A Lenda Da Imortalidade Da Alma (Lucas Banzoli)
A Lenda Da Imortalidade Da Alma (Lucas Banzoli)
A Lenda Da Imortalidade Da Alma (Lucas Banzoli)
Para citar:
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Sumário
PREFÁCIO .................................................................................................................... 13
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 18
CAP. 1 – Certamente não morrereis ............................................................................. 28
CAP. 2 – O que é a alma? ............................................................................................. 48
• Somos alma ou possuímos uma? .................................................................................. 48
Holismo ......................................................................................................................... 48
Tricotomia ..................................................................................................................... 60
Dicotomia ...................................................................................................................... 67
• A alma visível e tangível ................................................................................................. 73
Alma como pessoa ........................................................................................................ 73
Animais como alma....................................................................................................... 75
Animais e Deus “com” alma.......................................................................................... 79
Alma que come e sente fome ....................................................................................... 82
Alma material................................................................................................................ 89
Alma como garganta ..................................................................................................... 92
Alma como sangue........................................................................................................ 93
As almas debaixo do altar ............................................................................................. 98
• Considerações Finais.................................................................................................... 122
CAP. 3 – A morte da alma imortal .............................................................................. 124
A morte da alma explicitamente ................................................................................ 125
A morte da alma implicitamente ................................................................................ 130
Destruição, extermínio, expirar e desfalecer ............................................................. 134
Ser eliminado do meio do povo .................................................................................. 136
Alma como cadáver .................................................................................................... 138
Temer pela alma ......................................................................................................... 141
Arriscar a alma ............................................................................................................ 142
Dar a alma ................................................................................................................... 143
Alma por alma ............................................................................................................. 145
Poupar a alma ............................................................................................................. 146
Conservar a alma ........................................................................................................ 147
Perder a alma .............................................................................................................. 148
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Introdução................................................................................................................. 1699
O Reino que vem....................................................................................................... 1700
A vida eterna no AT................................................................................................... 1703
A vida eterna no NT .................................................................................................. 1712
O domínio sobre a terra............................................................................................ 1719
A regeneração de todas as coisas ............................................................................. 1721
Textos usados pelos imortalistas .............................................................................. 1726
O dilúvio e a volta de Jesus ....................................................................................... 1731
A terra permanecerá para sempre ou será destruída? ............................................ 1735
• Como será a vida eterna? .......................................................................................... 1741
Introdução................................................................................................................. 1741
Os problemas do céu tradicional .............................................................................. 1743
A dinâmica da nova terra .......................................................................................... 1745
O céu monástico, o ascetismo e o trabalho ............................................................. 1755
Considerações Finais ................................................................................................. 1760
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma?
............................................................................................................................... 1764
Introdução................................................................................................................. 1764
O argumentum ad populum ..................................................................................... 1764
O apelo à autoridade ................................................................................................ 1767
O viés de confirmação .............................................................................................. 1777
O apelo à tradição ..................................................................................................... 1785
O argumento da ortodoxia ....................................................................................... 1816
As dificuldades de ser mortalista .............................................................................. 1823
Palavras finais ........................................................................................................... 1830
APÊNDICE ................................................................................................................ 1833
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 1853
• Fontes impressas ....................................................................................................... 1853
• Fontes digitais ............................................................................................................ 1882
12
PREFÁCIO 13
PREFÁCIO
Azenilto Brito
fomos criados por Deus tendo um corpo material e uma alma imortal. Recordo-me
de quatro queridos tios espíritas, três dos quais até havendo sido membros da
mesma igreja evangélica em que fui criado desde pequeno, e diálogos que às vezes
mantinham com o meu pai, veterano crente evangélico. Mesmo sem profundos
reencarnação. Meu pai buscava contestá-los nesse ponto, mas adotava, em comum
com eles, as suas convicções de haver em cada um de nós uma “alma imortal” que
sobrevive à morte.
humanos com crentes de visão holística (em que se integram corpo, alma e espírito,
nenhum dos quais operando independentemente do outro, num ser vivente), senti
bem pequeno, e inicialmente achava muito difícil acatar qualquer noção diferente.
profundas sobre textos bíblicos nunca considerados pelos crentes com que sempre
Banzoli nesta obra. Contudo, também atribuo a aceitação plena da visão holística à
percepção de alguns aspectos nesse meu novo entendimento, que enumero num
13
PREFÁCIO 14
oportunidade se apresente. Destarte, observei que a visão holística faz muito mais
sentido do que a dualística (a crença na imortalidade da alma) à luz de, pelo menos,
10 fatos:
algo que já possuímos inerentemente na forma de uma alma imortal. “Quem tem o
Cristo, que não merece a mesma importância aos crentes dualistas, já que a herança
4º Faz mais sentido com o tema do juízo individual, pois se na morte cada
um segue para o seu destino – salvos para “a glória”, perdidos para um local de
só povo pagão que deixe de crer em almas e espíritos de pessoas (ou até de animais
14
PREFÁCIO 15
e coisas inanimadas) para crer na ressurreição final como único meio de retorno à
erros sutis que existem ou têm vindo à existência nestes últimos tempos, como o
conquanto nas Escrituras haja muitas menções a “alma” e “espírito”, estas não
que só Deus é possuidor de imortalidade, a Bíblia afirma que a alma pode morrer
cuidado do corpo como «templo do Espírito Santo» que deve ser consagrado
15
PREFÁCIO 16
dos deuses é alheia às Escrituras. Antes, a Bíblia fala dos santos ressurretos
“novos céus e uma nova terra” (Is 65:17) não são um retiro espiritual remoto e
sem nada restar para lhe assinalar a presença. Mas Deus não precisa de “marca”
ou aplaudindo. Quando se desliga o aparelho, não fica nenhum sinal daquilo tudo.
Basta, porém, religar a máquina, dar os cliques necessários, e tudo “ressuscita”, volta
morrem estão na memória de Deus. Ele conhece cada um de nós. Jesus disse que
bombeiros deram toda instrução necessária da direção em que devia pular, mas ela
16
PREFÁCIO 17
não se animava a dar o salto no escuro. O pai apareceu e gritou: “Querida, aqui é
seu pai. Pule sem medo para o lado direito e será amparada com a rede armada”.
Ouvindo a voz paterna, ela não teve mais dúvidas e saltou no rumo indicado,
salto no escuro. A Bíblia diz que “o justo viverá pela fé” (Rm 1:17). Sabemos pela fé
que os que morrem em Cristo ressuscitarão, mesmo que não fique nenhuma
no Pai Eterno que podemos morrer, sabendo que a morte é somente um sono do
tenho palavras de entusiasmado louvor ao Lucas Banzoli pela sua busca da verdade
dos fatos a respeito. Ele se “gaba” a certa altura de que tal obra dificilmente
que admitir que assim é. Parabéns, pois, a ele por essa portentosa pesquisa, com
mensagem da Bíblia quanto a como Deus nos formou, nos salva e nos redime para
a vida eterna.
17
INTRODUÇÃO 18
INTRODUÇÃO
como um artigo. Esse “artigo” foi crescendo ao longo de quase todo o ano de 2010,
a ponto de se transformar num livro de 400 páginas. Três anos depois, eu revisei o
livro todo, mudei algumas coisas e ampliei moderadamente o conteúdo, mas ainda
se parecendo muito com a versão original. Após mais uma década de estudos na
área, decidi escrever essa versão totalmente nova, quase cinco vezes maior que a
versão original e com uma vasta quantidade de conteúdo inédito (eu evitei até
mesmo consultar a antiga versão para que tanto a linguagem quanto o conteúdo
fossem originais).
pensava exatamente como quase todos os cristãos do mundo ainda pensam: que
nós possuímos uma alma, que essa alma é imortal, que vamos morar no céu após a
sabia que havia no meio cristão outros pontos de vista que destoam do
desde o berço, o simples ouvir alguém falar qualquer coisa que fugisse do
binarismo céu/inferno já era algo que soava repulsivo e herético, não porque eu
visse na Bíblia provas sólidas da crença tradicional, mas pela força da tradição
Por isso, foi com espanto que eu ouvi pela primeira vez alguém dizendo que
não faz sentido que uma alma que já esteja no céu em espírito tenha que abandonar
18
INTRODUÇÃO 19
o céu, retornar ao corpo sepultado e voltar para onde já estava antes, ou que aquele
verdade, o próprio termo “ressurreição” soava quase desconhecido pra mim, já que
tão pouca importância se dá a esse ensino nas igrejas contemporâneas (exceto para
que eu li ali mexeu comigo de uma forma que me deixou consideravelmente mais
(v. 18), nossa esperança se limitaria apenas a esta presente vida (v. 19) e seria melhor
«comer, beber e depois morrer» (v. 32), já que esta vida seria tudo o que existiria.
não só não faz o menor sentido do ponto de vista imortalista, como lhe é
diametralmente oposta.
pouco ou nada àquilo que nós somos. Afinal, para emprestar as palavras de um
19
INTRODUÇÃO 20
humano”1.
Paulo diria que sem a ressurreição do corpo seria melhor viver de uma forma
hedonista – comer, beber e depois morrer –, e que teria lutado com feras em Éfeso
zero textos que chamem a alma de “imortal” – e a ponto de que em 6 das 9 vezes
doutrinárias apostólicas, mas tão esquecida nos púlpitos e nos livros cristãos
(inclusive teológicos) dos nossos dias? A resposta não é senão uma: a introdução
ressurreição e tira dela toda e qualquer relevância que tinha para os cristãos
primitivos. Se o nosso “verdadeiro eu” é a alma, e essa alma é imortal, todo o clímax
Mas se nós somos um ser integral e a alma morre, toda a esperança de vida após a
1
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 91.
20
INTRODUÇÃO 21
tessalonicenses pela perda de seus entes queridos (1Ts 4:13-18). Se ali toda ênfase
está na ressurreição coletiva que ocorre na volta de Jesus, sem qualquer traço de
almas que já estejam no céu, hoje tudo o que vemos é uma pregação voltada à alma
individual que parte deste mundo para um lugar melhor, sem nem se falar em
ressurreição ou volta de Jesus. O problema não está nos pastores ou padres: está
na própria doutrina que eles acreditam, na qual realmente faz pouco sentido que
se enfatize a ressurreição.
É por isso que a doutrina da ressurreição foi não apenas esquecida dos
contato com os mortos e até mesmo dizem se comunicar eles. Em seu livro At The
2
PAINS, Clarissa. Pesquisa revela que 44% dos brasileiros seguem mais de uma religião. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/brasil/pesquisa-revela-que-44-dos-brasileiros-seguem-mais-de-uma-
religiao-21444431>. Acesso em: 19/03/2022.
3
OSIS, Karlis; HARALDSON, Erlendur. At The Hour of Death. New York: Avon, 1977, p. 13.
21
INTRODUÇÃO 22
um corpo mortal e uma alma imortal – alimenta a busca pelos mortos, diminui o
interesse por crenças cristãs basilares, como a ressurreição e a volta de Jesus. Oscar
Cullmann cita como exemplo a decisão da Congregação do Santo Oficio (um dos
órgãos mais importantes da Santa Sé, o mesmo que era responsável pela
“não pode ser ensinada como certa”4, devido à progressiva quantidade de teólogos
Como bem observou Abraham Kuyper, “a maioria dos cristãos não pensa
muito além de sua própria morte”5, já que, como assinala o Dr. Samuele Bacchiocchi,
relacionado ao interesse pelas outras, e que uma mesma mentira está na raiz de
não morrerás” (Gn 3:4) – nunca tivesse sido contada e nem acreditada por ninguém.
4
CULLMANN, Oscar. Christ and Time. Philadelphia: Westminster Press, 1964, p. 147.
5
BERKOUWER, G. C. The Return of Christ. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1972, p. 34.
6
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 245.
22
INTRODUÇÃO 23
simplesmente não existiriam sem o grande pilar que dá fundamento a todas elas: a
da imortalidade da alma.
procissões com essas imagens, reza pelos defuntos, culto aos mortos, intercessão e
canonização dos “santos”, purgatório, limbo, missa de sétimo dia, dia de finados,
veneração de relíquias de quem morreu e qualquer coisa que envolva Nova Era,
que se relaciona a isso. Sempre que a serpente quer desviar a criatura do Criador
ela evoca os mortos, e para isso ela precisa da crença na sobrevivência da alma. É
por isso que, se pararmos pra pensar, veremos que a imortalidade da alma está na
raiz de quase todo engano destrutivo e de toda falsa religião. Sem a crença na
que somos essencialmente uma alma que sobrevive à morte. Ao longo dos séculos,
os evangélicos têm lutado contra essas heresias, mas sem lutar contra aquilo que
sustenta todas elas. É como uma planta venenosa, que nunca é cortada pela raiz.
Eles viram o fruto podre e o evitaram, mas não eliminaram a raiz de onde esses
frutos procedem. É justamente porque a maioria dos cristãos acredita ser possível
(ainda que errado) o contato com os mortos que tanta gente dá crédito a
A maioria dos evangélicos perde tempo tentando refutar crença por crença,
23
INTRODUÇÃO 24
engano maior, todos os enganos secundários caem por terra, sem fazer qualquer
vez vai atrair a ira de não pouca gente determinada a manter essas lendas –
incluindo muita gente que se orgulha de sua “ortodoxia”. Quando Oscar Cullmann,
da alma, ele não recebeu em troca tapinhas nas costas nem refutações bíblicas, mas
uma onda impetuosa de ataques de cunho emocional. Como ele mesmo descreve,
sentimental.7
7
CULLMANN, Oscar. Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? Disponível em:
<https://www.mentesbereanas.info/wp-content/uploads/2020/07/imort-ressur_folheto.pdf>. Acesso
em: 19/03/2022.
24
INTRODUÇÃO 25
A razão por que Cullmann foi tão violentamente atacado com argumentos
sentimentais, do tipo “eu não posso crer que nossos entes queridos simplesmente
longe é uma disputa apenas exegética. Ela desafia a doutrinação que recebemos
desde a infância, e por isso mexe com os sentimentos mais do que qualquer coisa.
Não foi diferente comigo. Mesmo após entender o que a ressurreição realmente
desprendesse dos laços que me amarravam à crença tradicional, e não foi senão
É por isso que grande parte deste livro é destinado a “desatar nós”,
hoje usados pelos imortalistas para ludibriar as mentes mais fracas e mantê-las
cativas ao erro. Mesmo que geralmente não passem de meia dúzia de versos
possível, são argumentos como esses que mantém muitos acomodados à antiga
difícil para alguém que tenha a mente aberta para a verdade e esteja decidido a
segui-la onde quer que ela leve. Qualquer dúvida que ainda pudesse restar foi
8
ibid.
25
INTRODUÇÃO 26
dissipada ao longo de anos debatendo com imortalistas sem jamais ver qualquer
se atualizar e oferecer respostas, as quais são cada vez mais vazias e superficiais. É
tradição, não às luzes da razão. Desde a primeira versão do meu livro, lá se foram
13 anos onde muitos prometeram resposta, mas ninguém jamais esboçou sequer
uma tentativa.
resultados aqui. Ao todo, descobri 300 ocorrências bíblicas que falam da morte da
alma nos originais, as quais são aqui listadas e estudadas uma a uma, além de 181
É sem sombra de dúvida o livro que exigiu de mim o trabalho mais exaustivo,
mas ricamente recompensador por não só confirmar as teses da versão antiga, mas
acrescentar muitos outros dos que descobri ao longo dos anos e dos que escavei
nas pesquisas para esta nova versão. Se quando eu comecei a escrever, há pouco
mais de dois anos, alguém me dissesse que este livro terminaria com 1900 páginas,
de textos mortalistas que são muito mais perceptíveis nos originais da Bíblia do que
26
INTRODUÇÃO 27
sobre a perspectiva científica, o que foi ainda mais trabalhoso por fugir à minha
formação, mas o resultado não poderia ser mais gratificante. De todo modo, não
cabe a mim julgar a validade dos argumentos aqui apresentados: essa é uma tarefa
que só compete a você, de quem eu espero que não se limite à leitura deste livro,
Eu sei que não é fácil deixar de crer em algo que você aprendeu a vida inteira
como sendo o certo. Não foi fácil pra mim também. A tradição tem um peso
enorme, e nos influencia mais do que pensamos. Mas espero que ao final dessas
linhas você possa compreender a mesma verdade que me alcançou um dia, e que
mentira da serpente, mas em Cristo Jesus como a ressurreição e a vida (Jo 11:25).
27
28
vida, como o próprio nome sugere, tinha por finalidade garantir uma existência sem
fim a quem dela comesse. Uma vez que o pecado entrou no mundo e o homem já
não mais era digno de viver para sempre, Deus expulsou o primeiro casal do jardim
conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele também tome
do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre’. Por isso o Senhor
Deus o mandou embora do jardim do Éden para cultivar o solo do qual fora
querubins e uma espada flamejante para não deixar que alguém tivesse acesso à
havia criado o homem com uma natureza imortal, o que significa que tanto faz
como tanto fez que o homem comesse ou não da árvore da vida. Se Adão já possuía
28
Certamente não morrereis 29
dentro de si um elemento imortal que lhe garantia uma existência eterna a despeito
de suas atitudes, por que teria Deus criado uma árvore da vida com a mesma
finalidade? E por que se preocuparia tanto em protegê-la para que o homem não
comesse de seu fruto e vivesse para sempre, se o homem já havia sido criado em
por natureza, e assim não haveria qualquer razão para a existência de uma árvore
da vida que concedesse imortalidade. Isso seria como eu oferecer uma vaga na
completamente inútil para qualquer efeito prático. Se Deus criou o homem com
uma alma imortal, criar uma árvore da vida que concedesse imortalidade a quem
dela comesse seria abusar da falta de inteligência dos seres por Ele criados.
9
BOARDMAN, George Dana. Studies in the Creative Week. New York: The National Baptist, 1878, p. 215-
216.
29
Certamente não morrereis 30
espada flamejante para ter acesso a uma árvore que garantiria o mesmo que ele já
tinha por natureza, e mais difícil ainda pensar que Deus se preocuparia a este ponto
em evitar algo que Ele mesmo já tinha providenciado de outra maneira. Se era tão
importante impedir que o homem tivesse acesso à árvore que o tornaria imortal,
por que Deus o teria criado naturalmente imortal? Isso seria o mesmo que eu me
quando ele sequer precisaria disso por já ter cadeira cativa e acesso VIP.
Diante disso, é evidente que Deus não colocaria tal árvore à disposição caso
já tivesse implantado no homem uma alma eterna que lhe garantisse o mesmo que
a árvore da vida. Da mesma forma que o homem não era conhecedor do bem e do
mal até comer do fruto da árvore do conhecimento (Gn 3:22), ele não era imortal
antes de comer da árvore da vida – com a diferença de que ele não chegou a comer
desta árvore, pois foi expulso antes disso (Gn 3:22-24). Tanto o conhecimento do
frutos, mas só um deles o homem chegou a comer. Com isso, o que a Bíblia está
nos mostrando é que o homem não foi criado naturalmente imortal e tampouco
se tornou um.
porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá” (Gn 2:16-17). Se a
30
Certamente não morrereis 31
homem que lhe assegurasse uma vida imortal. É justamente por isso que Deus se
indicando que o homem era por criação um ser imortal. Pelo contrário,
condição de criação, e sim de algo fora dele, e seu direito ao uso disso
Queda, “para que não viva para sempre”. Não há nada indicando que
Queda, a mortalidade se tornou o seu estado natural. Isso contradiz toda a noção
ter sido convidada, ela implanta a dúvida na cabeça de Eva, convencendo-a de que
10
NISBET, James. Immortality: a clerical symposium on what are the foundations of the belief in the
immortality of man. London: James Nisbet & Co., 1887, p. 118.
31
Certamente não morrereis 32
Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: ‘Foi isto mesmo que Deus
disse: Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim?’. Respondeu a
mulher à serpente: ‘Podemos comer do fruto das árvores do jardim, mas
Deus disse: Não comam do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem
Eis aí a primeira mentira contada pela serpente; o mais antigo, o maior e mais
útil engano diabólico de todos os tempos: certamente não morrerão. Deus havia
previsto a morte como punição pelo pecado, mas Satanás desde o início se esforçou
a palavra do Senhor não poderia se cumprir. Foi baseado nisso que Eva tomou
coragem para comer o fruto, e baseado nisso que tanta gente hoje em dia se
envolve nas mais variadas ciladas, que vão desde a reza pelos mortos até a
invocação dos espíritos, passando pelo purgatório e pela reencarnação. Não é à toa
pensou em colocar no mundo: ela é de longe a mentira que lhe é mais proveitosa,
comesse o fruto proibido não era uma morte real, mas meramente espiritual (no
sentido de estar separado de Deus). Isso porque Deus havia dito que “no dia em
que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:17). Como Adão e Eva não morreram
32
Certamente não morrereis 33
no mesmo dia em que comeram, segue-se que eles teriam morrido de mentirinha
uma morte que em nada teria a ver com uma morte real (ou seja, com o inverso de
“vida”).
O problema com essa interpretação é que ela ignora o que diz o hebraico e
desloca a ênfase do texto. Devemos lembrar que Deus disse isso a seres que ainda
Deus diz que “no dia” em que comerem certamente morreriam, o sentido não é que
eles morreriam necessariamente naquele mesmo dia, mas que a partir daquele dia
quando dizemos que “se você fumar, você vai morrer”. Isso naturalmente não
significa que a pessoa vai morrer imediatamente ao colocar o cigarro na boca, mas
morrerás» significa que o indivíduo que não foi originalmente criado para morrer
passaria a morrer a partir do dia em que desobedecesse a Deus. A ênfase não está
Algo semelhante seria se eu te dissesse que “no dia em que você se formar,
que se formar”, onde a ênfase é deslocada da ação para o tempo da ação, do início
33
Certamente não morrereis 34
mesmo dia. Mas não lhes foi dito que “vocês morrerão no mesmo dia em que
comerem”, como no segundo exemplo, mas que “no dia em que comerem,
O que deixa este sentido ainda mais evidente é uma sutileza do texto
hebraico que passa despercebida por muitos, porque é “engolida” pelas traduções.
No hebraico, as duas palavras usadas são moth tâmuth, que são dois tempos
o homem finalmente morresse. Isso parece redundante, mas não é. Significa que o
processo de morte teria início ali, naquele dia, mas só se consumaria de fato no
partir daquele dia o homem começaria a morrer – isto é, passaria por todo o
34
Certamente não morrereis 35
incondicional).11
Quem concorda com isso é ninguém menos que John Locke, um dos maiores
que dela comeres, certamente morrerás”. Como isto foi aplicado? Ele
comeu, mas no dia em que comeu não morreu efetivamente, mas foi
que não comesse dela e vivesse para sempre. Isto mostra que o estado
perdeu nesse mesmo dia em que comeu: sua vida dali em diante
e certa. Daí a morte entrou, e mostrou sua face, que antes estava
11
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 126.
35
Certamente não morrereis 36
comeram (Gn 5:4-5), como alguns parecem achar que Gn 2:17 sugere.
vez que é impossível que Deus minta (Hb 6:18), então os falíveis seres
12
LOCKE, John. The Works, Vol. 6 (The Reasonableness of Christianity). Disponível em:
<https://oll.libertyfund.org/title/locke-the-works-vol-6-the-reasonableness-of-christianity>. Acesso em:
24/01/2022.
36
Certamente não morrereis 37
Considere ainda o fato de que a morte biológica é a única morte que alguém
como Eva poderia entender, justamente por ser a mais simples, já que nada mais é
desenvolvimento teológico tão complexo que os teólogos discutem até hoje o que
vem a ser seu significado preciso, e certamente não seria o que Eva naturalmente
entenderia ao ouvir o termo. Além de Eva não ser teóloga e de não estar a par das
que sugira que Deus havia previamente explicado que o conceito de morte ali não
era a morte natural, mas uma morte espiritual que estaria além do alcance de sua
compreensão.
13
HODGE, Bodie. Por que Adão e Eva não morreram no instante em que comeram o fruto? Disponível em:
<https://answersingenesis.org/pt/respostas/por-que-ad%C3%A3o-e-eva-n%C3%A3o-morreram-no-
instante-em-que-comeram-o-fruto>. Acesso em: 27/05/2021.
37
Certamente não morrereis 38
buscar entender não o que o texto parece dizer aos nossos olhos, mas como ele
seria entendido pelos receptores originais. Se o único conceito de morte que seria
compreensível a Eva era o da morte como o inverso da vida – que além de ser a
própria definição do termo é algo tão simples que qualquer criança consegue
entender as palavras de Deus não em seu sentido mais natural, mas em um sentido
Portanto, a não ser que Deus estivesse querendo confundir Eva, é evidente
compreensão, mas em seu sentido natural, simples e inteligível. É por isso que
quando Eva descreve as palavras de Deus à serpente, ela nada fala sobre o “no dia
em que”:
Ela não disse que “do contrário vocês morrerão no mesmo dia”, mas
simplesmente que “do contrário vocês morrerão”. Isso indica que Eva havia
compreendido que a ênfase não estava no dia da ação, mas na ação em si. O cerne
da questão não era quando o homem morreria, mas que ele morreria, justamente
porque não havia sido criado para morrer. Por isso a serpente também não precisou
38
Certamente não morrereis 39
responder que “certamente não morrerás hoje”, mas apenas que “certamente não
morte meramente espiritual ou figurada, nem diz respeito apenas a uma separação
entre Deus e o homem que teria ocorrido naquele mesmo dia. É evidente que a
pelo pecado significa mais do que isso. O salário do pecado é muito mais que uma
morte figurativa: é a morte em seu sentido mais pleno e completo. Uma morte que
a humanidade, seduzida pela serpente, duvidou que aconteceria. Uma morte que
até hoje muitos seguem duvidando, razão por que inventaram uma substância
e o corpo é apenas uma “capa” que o veste, o que eles estão querendo dizer é que
é a morte. O que eles querem dizer, na verdade, é que quem nós somos de fato é
imune ao castigo divino. Que Deus advertiu tão seriamente e tomou tanta
precaução à toa, já que os efeitos não seriam sentidos por quem nós somos em
essência, mas só pelo “casco” exterior. Que quando Deus diz «você morrerá», o
“você” não é quem você realmente é (i.e, a alma), mas apenas a sua “prisão”, o
pedaço de carne que o encobre. É sobre esse tipo de conclusão absurda que
Hughes escreve:
39
Certamente não morrereis 40
dia em que dela comerás, morrerás”, foi dirigida ao homem como uma
que a alma é imune aos efeitos do pecado, que só seriam experimentados pelo
“manto” que nos veste, e não por quem nós realmente somos em essência:
Se a alma não morre, a alma é intocada pelo pecado. É uma alma sem
pecado que só no seu corpo é que peca. É aquela ideia grega, que a
alma é boa e o corpo é que é ruim. Então, nós somos uma alma sem
do corpo. Mas essa é uma antropologia grega; a Bíblia não fala nada
a esse respeito. A Bíblia inclusive diz que nós temos que nos purificar
purificadas.15
Na antropologia bíblica, não existe um dualismo entre uma alma boa que é
imune ao pecado e um corpo mau que carrega sozinho toda a culpa e toda a
14
HUGHES, Philip Edgcumbe. The True Image: the origin and destiny of man in Christ. Grand Rapids:
Eerdmans, 1989, p. 400.
15
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HwYqAU6hcbk>. Acesso em: 23/05/2022.
40
Certamente não morrereis 41
consequência do pecado. Não é uma “parte” de nós que peca e que paga o preço
pelo pecado, como se a nossa alma fosse menos culpada do que o corpo. É o
imortalistas), a Bíblia é clara em dizer que a nossa mente é corrompida pelo pecado,
mente, é evidente que a mente (alma) está sujeita à mesma morte que atinge o
corpo. Ela não “dribla” a morte, como no dualismo platônico. Assumir que só o
consequências do pecado, mas tratá-lo como se ele não afetasse o nosso aspecto
obediência ao Criador, que a dá como uma dádiva ou presente (Rm 6:23). É aí que
entra a figura da árvore da vida, que estava à disposição do homem quando ele
ainda não havia caído, mas que foi dela privado após a Queda. A árvore simboliza a
imortalidade obtida mediante a obediência a Deus, razão pela qual ela virtualmente
“Aquele que tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas. Ao vencedor
darei o direito de comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus”
(Apocalipse 2:7)
41
Certamente não morrereis 42
Aqui vemos Jesus garantir que o vencedor teria o direito de comer da árvore
da vida. Note com atenção o tempo futuro da frase, e não presente, como seria se
da ressurreição, que ocorre no final do livro (Ap 20:4), que os justos se tornam
imortais na comunhão com Deus. É por isso que o Apocalipse só retrata os salvos
ressuscitarem:
“De cada lado do rio estava a árvore da vida, que dá doze colheitas, dando
fruto todos os meses. As folhas da árvore servem para a cura das nações”
(Apocalipse 22:2)
“Felizes os que lavam as suas vestes, para que tenham direito à árvore da
(Apocalipse 22:14)
“Se alguém tirar alguma palavra deste livro de profecia, Deus tirará dele a
sua parte na árvore da vida e na cidade santa, que são descritas neste livro”
(Apocalipse 22:19)
na nova terra, depois da ressurreição, e exclusivamente aos salvos. Isso refuta toda
árvore da vida, que os salvos já desfrutem dessa imortalidade hoje no céu ou que
42
Certamente não morrereis 43
os ímpios sejam tão imortais quanto. No panorama bíblico, o homem foi criado não
Deus, algo que ele não foi. Mas aquilo que a humanidade perdeu através do
primeiro Adão ela obteve através do segundo, que ressuscitará os que nEle creem
(120-186), um Pai da Igreja do segundo século que escreveu três livros ao pagão
humano foi criado, se mortal ou imortal, e do que aconteceu após a Queda. E o que
ele explica a Autólico é precisamente o mesmo que vimos neste capítulo: que o
homem não foi criado nem naturalmente mortal nem incondicionalmente imortal,
16
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 126.
43
Certamente não morrereis 44
deus, subisse então até o céu, possuindo a imortalidade, pois o homem foi
criado como ser intermédio, nem completamente mortal nem absolutamente
imortal, mas capaz de uma e outra coisa, assim como seu lugar, o jardim, se
“Poder-se-á dizer: ‘O homem não foi criado mortal por natureza?’. De jeito
nenhum. ‘Então foi criado imortal?’. Também não dizemos isso. ‘Então não foi
nada?’. Também não dizemos isso. O que afirmamos é que por natureza não
foi feito nem mortal, nem imortal. Porque se, desde o princípio, o tivesse
criado imortal, o teria feito deus; por outro lado, se o tivesse criado mortal,
pareceria que Deus é a causa da morte. Portanto, não o fez mortal, nem
imortal, mas, como dissemos antes, capaz de uma coisa e de outra. Assim, se
causa da morte para si mesmo, porque Deus fez o homem livre e senhor de
seus atos” (Teófilo a Autólico, Livro II, c. 27)
44
Certamente não morrereis 45
escolha, e sua escolha foi pelo pecado, atraindo sobre si a mortalidade. Mas através
a mesma palavra para paraíso): a primeira quando foi criado no Éden, e a segunda
quando ressuscitar dos mortos, na «nova Jerusalém» que «desce do céu» (Ap 21:2).
Em ambas as ocasiões aparece a figura da árvore da vida (Gn 2:9; Ap 22:2), a qual,
como vimos, representa a imortalidade (Gn 3:22). Por isso é tão inconcebível a ideia
de que somos imortais por natureza e que dela desfrutamos desde antes da
jardim do Éden; não porque a árvore da ciência tivesse alguma coisa de mau,
mas foi por causa de sua desobediência que o homem atraiu trabalho, dor,
tristeza e caiu finalmente sob o poder da morte. Também foi um grande
benefício feito por Deus ao homem que este não permanecesse sempre em
45
Certamente não morrereis 46
paraíso, para que pagasse por tempo determinado a pena de seu pecado e,
assim educado, fosse novamente chamado. Tendo sido o homem formado
neste mundo, misteriosamente se escreve no Gênesis como se ele tivesse sido
fique novo e inteiro, assim acontece com o homem através da morte: de certo
modo se quebra, para que na ressurreição surja sadio, isto é, sem mancha,
Como veremos no capítulo 12, quase todos os Pais da Igreja dos primeiros
da alma foi introduzida em seio cristão, todo esse panorama bíblico lógico e coeso
foi desfeito para dar lugar a uma crença irracional que joga por terra toda a lógica
da criação. Graças a isso, hoje somos ensinados que Deus nos dotou de uma alma
doutrina pagã introduzida de fora para dentro da Bíblia, toda a harmonia do relato
não morrerão” (Gn 3:4). É evidente que, na medida em que o corpo foi
46
Certamente não morrereis 47
mentira com uma nova roupagem. Para isso, bastou convencer as pessoas de que
ninguém morreu de verdade, já que a essência delas não era o pó que se via voltar
à terra (Gn 3:19), mas uma alma fantasmagórica que ninguém nunca viu nem pode
que dela dependem, e que são até hoje usadas para desviar o coração do homem
de Deus em direção aos mortos – coisas que vão desde a idolatria a gente que já
morreu até a invocação de espíritos do além. Ele nem mesmo precisou inventar uma
mentira nova: bastou adaptar a mesma mentira numa nova versão, não-falseável.
humana. É assim que ele consegue convencer tanta gente de que a morte na Bíblia
não é uma morte de verdade, mas qualquer coisa que permita que as pessoas
47
O que é a alma? 48
O que é a alma?
da filosofia grega, o corpo não é nada a mais que a “prisão” da alma, que dela anseia
Bíblia – para ser mais específico, justo no relato da criação do homem, onde lemos:
“Tornou-se”.
Eis a palavrinha que faz toda a diferença, o começo do fim da lenda de uma
alma imortal. O autor poderia ter dito – e na opinião dos imortalistas era o que ele
48
O que é a alma? 49
queria dizer no fim das contas – que o homem “recebeu” (laqach) uma alma, mas,
em vez disso, usa o vocábulo hayah, que significa «tornar-se» ou «vir a ser»17. Para
a Bíblia, portanto, a alma não é algo que foi infundido no homem, mas o que o
homem se tornou após o sopro do fôlego da vida em suas narinas (e não após a
infusão de uma alma imortal em seu corpo). Que diferença isso faz? O pastor batista,
dizendo sobre o homem? Afinal, o homem tem uma alma ou ele é uma
longe de ser um deles. A única razão por que muitos insistem em problematizar e
17
#1961 da Concordância de Strong.
18
MADUREIRA, Jonas Moreira. Inteligência Humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 210.
49
O que é a alma? 50
consequências para uma das crenças mais basilares das falsas religiões. Tamanho é
ao ponto de afirmar que o “fôlego” soprado nas narinas do homem é a tal alma
imortal (embora o texto diga “fôlego” e não “alma”), e não o que ele se tornou
(embora o texto diga “alma” e não outra coisa!). Isso mostra como muitos preferem
se agarrar ao erro mesmo quando tem que lutar contra a própria consciência,
quando o que está em jogo é uma crença na qual foi sistematicamente doutrinado.
interpretação”, mas justamente por ser claro, claro até demais. Não é a
recusar a entender um texto tão simples é que, quanto mais claro um texto é,
um texto uma ideia que ele quer que esteja ali, embora não esteja. Isso é o contrário
através de uma hermenêutica séria que possa ser replicada com outros textos do
tipo.
Tome como exemplo o texto que aparece poucos versos adiante, onde o
mesmo termo hayah aparece novamente: “Por essa razão, o homem deixará pai e
mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão (hayah) uma só carne” (Gn 2:24).
Aqui, o casal se tornar “uma só carne” é a consequência do homem deixar pai e mãe
que Deus diz que “agora o homem se tornou (hayah) como um de nós, conhecendo
50
O que é a alma? 51
o bem e o mal” (Gn 3:22), onde isso acontece em decorrência de terem comido da
árvore do conhecimento.
vassalo por três anos” (2Rs 24:1), onde Jeoaquim se torna vassalo de
Nabucodonosor em consequência dele ter invadido o seu país. Jeremias diz aos
israelitas que “quando o Senhor não pôde mais suportar as impiedades e as práticas
(hayah) objeto de maldição e desabitada, como se vê no dia de hoje” (Jr 44:22). Aqui,
Em todos esses casos e em muitos outros que poderiam ser citados como
evento, e não aquilo que já era antes. Dito em termos simples, inferir que em Gn 2:7
o homem já tinha uma alma antes de se tornar (hayah) uma alma vivente é o mesmo
que dizer que ele já era uma só carne com a sua mulher antes de deixar pai e mãe,
ou que Jeoaquim já era vassalo do rei da Babilônia antes dele invadir seu país, ou
51
O que é a alma? 52
conjecturas sem fim – e tudo isso para encontrar a tal alma imortal no texto de
que a “alma vivente” nada mais é que um corpo que respira. É aquilo que o homem
vida soprado em suas narinas. Nada de alma imortal aqui. Alma é o que somos, não
o que temos.
comparar a alma com a luz, o corpo com a lâmpada e o fôlego com a eletricidade.
a uma outra dimensão? Não. Ela simplesmente apaga; cessa de existir até que
corpo animado pelo fôlego da vida (respiração), mas quando esse fôlego se vai (i.e,
Ela simplesmente morre, até que o corpo receba novamente o fôlego e volte à vida
hidrogênio. Se os dois estiverem juntos, temos água, mas apenas um dos dois
isoladamente não é água. Assim também, não há alma vivente sem a junção entre
o corpo e o fôlego que o anima. Quando o corpo perde o fôlego que o mantém
52
O que é a alma? 53
***
Assim como no primeiro exemplo citado não há luz sem a junção entre a
lâmpada e a eletricidade, não existe vida sem a conexão entre o corpo formado do
pó da terra com o fôlego de vida soprado por Deus (que, como veremos no capítulo
4, é a mesma coisa que o espírito). É por isso que, quando o corpo volta ao pó (Ec
12:7) e o espírito volta a Deus (Ec 12:7), “não há mais atividade nem planejamento,
não há conhecimento nem sabedoria” (Ec 9:10) – e tudo isso dito pelo mesmo autor,
no mesmo livro. Nem corpo nem espírito tem vida por si só. É apenas com a fusão
de ambos que temos um ser vivo – ou seja, uma alma vivente. Na morte essa união
é desfeita e, assim, não há mais vida até a ressurreição, quando são unidos
novamente.
53
O que é a alma? 54
entre si e precisam uma da outra para constituir um indivíduo vivo. Assim como não
desconectado da tomada, ele não continua funcionando por si só, e muito menos
pela tomada sozinha. Ele simplesmente desliga, até que seja reconectado outra vez.
Assim também, quando o fôlego volta para Deus na morte, nós não
Deus nos soprar o fôlego novamente, na ressurreição. Imaginar um ser humano vivo
computador enquanto tal. Da mesma forma, Deus não criou um corpo à toa ou
perfeitamente funcional, por que diabos teria Deus nos criado com um corpo?
Simplesmente para nos manter “presos” numa superfície terrena, sujeitos a todo
passar fome e sede, calor e frio, cansaço e desgaste, precisando lutar todos os dias
54
O que é a alma? 55
contra a balança para não engordar, tomar banho diariamente para não cheirar mal,
se alimentar regularmente para não ficar desnutrido, perder grande parte do nosso
tempo dormindo para repor as energias, se exercitar para não ficar travado e
enfrentar riscos de todos os tipos à nossa integridade física? Não seria muito mais
lógico ter nos poupado de tudo isso, nos deixando apenas com a “alma imortal”
Platão: o corpo é mesmo o cárcere da alma, que viveria muito melhor sem ele.
Embora nenhum imortalista com quem já debati até hoje admita essa conclusão
conclusão evidente que não escapou à mente de intelectuais como Platão, que
que nos faz mortais e corruptíveis é o corpo, é inevitável concluir que o corpo é uma
lógicas que fugissem a essa conclusão óbvia que se deduz da própria teologia deles.
Todos eles – ou pelo menos os que ainda querem manter a pose de teólogos
“ortodoxos” – acham que na morte seremos espíritos fora do corpo com uma
consciência igual ou maior que a atual, sem limitações físicas e espaciais, sendo
capazes de voar pelas nuvens, de atravessar paredes, de ser imune à dor e de viajar
a qualquer lugar que quisermos sem termos que nos preocupar com qualquer das
coisas que hoje nos perturbam, mas mesmo assim precisam dizer que o corpo é
55
O que é a alma? 56
obrigados a dizer isso (e não porque isso faça sentido dentro de suas próprias
premissas).
Os pagãos, espíritas e esotéricos da Nova Era pelo menos são mais honestos
(para não dizer desprezível) e que é melhor viver sem um. Os imortalistas que se
declaram cristãos são loucos para admitirem isso, mas não podem, devido à imensa
da criação de Deus, tão importante que Ele fará questão de ressuscitá-lo no último
racionalmente sabem que o corpo é totalmente dispensável, mas da boca pra fora
precisam fingir que ele serve pra alguma coisa – especialmente quando debatem
explica por que há ressurreição da carne: não porque Deus queira nos dar o
vivermos como anjos no céu, mas porque Deus nos criou como seres que precisam
de um corpo para existir como um ente consciente. É por isso que Deus nos criou
com um corpo, e por isso que existe ressurreição. Nós não fomos criados para
56
O que é a alma? 57
vivermos como anjos no céu, mas como seres físicos numa terra física que será
“computador”, o espírito ou fôlego que Deus soprou em nossas narinas não tem
por finalidade garantir a sobrevivência do homem como uma “alma penada” após
a morte, como se o corpo não fosse necessário, mas assegurar que o corpo continue
respirando – ou seja, que permaneça uma alma vivente. Por isso, quando o espírito
se vai, nós não somos transferidos a uma outra dimensão para ali continuarmos
simples “separação” entre corpo e alma, mas o inverso da vida em sua dimensão
mais completa – razão por que o mesmo termo maveth é usado indistintamente
para homens e animais, inclusive no mesmo contexto (Ec 3:19). Em vez do dualismo
de corpo e mente onde a mente seria a alma e estaria imune à morte, na Bíblia o
corpo e a mente estão tão intimamente conectados que um não pode existir na
falta do outro. Assim como não há corpo vivo sem atividade cerebral, não há
atividade cerebral sem um corpo. A mente precisa do corpo para existir tanto
o do olho e a visão. Embora a visão em si não seja uma coisa física que possamos
19
Falaremos mais sobre isso no capítulo 21 do livro.
57
O que é a alma? 58
pegar ou tocar, ela é proporcionada por algo físico, o olho, e não pode existir sem
ele. Se você arrancar seus dois olhos, sua visão não vai ser teletransportada para
uma outra dimensão onde uma parte espiritual sua continuará enxergando fora do
morte cerebral, sua mente não pula para fora do corpo com consciência e
Não há visão sem olho, assim como não há mente sem cérebro. Assim,
embora o homem como alma vivente seja mais do que apenas matéria, as
características não-físicas do nosso ser não são causadas por uma entidade
apenas à estrutura física em si, ou seja, ao seu aspecto externo (à parte dos
É por isso que muitas vezes quando ela fala do corpo de alguém está falando
de um cadáver sem vida (Lc 23:52; Mc 15:45; Lc 24:3; At 5:6). Já a alma, em seu
sentido primário e básico, abrange tudo o que o ser humano é, tanto fisicamente
quanto psicologicamente. Isso não significa que o corpo seja dispensável para a
existência da vida humana, como se fosse possível viver sem ele em algum lugar.
Pelo contrário: uma vez que é através do corpo que esses aspectos não-físicos se
58
O que é a alma? 59
Vemos um exemplo disso no texto que diz: “Por isso o meu coração está
alegre e a minha língua exulta; o meu corpo também repousará em esperança” (At
externo. Observe que, embora os sentimentos e a fala não sejam coisas físicas ou
corpo e não a uma alma imaterial. Neste sentido, o que seria a alma? A alma nada
mais é que o ser humano por completo, isto é, a junção do que é o corpo no
conceito bíblico (aspecto externo) com o «coração alegre» e a «língua que exulta»
(aspectos internos), ainda que o coração e a língua também sejam partes do corpo.
mente é inovadora para a sua época e está perfeitamente de acordo com a ciência
relacionada à outra e não pode ser tirada do todo sem comprometer a própria
implica em deixar de lado a ideia de um “ser dentro do ser”, que ao morrer deixa o
carregamos conosco.
Essa visão não é bíblica. Ela é herética e pagã. Ela desafia a ciência e se opõe
harmonia com todo o restante das Escrituras. E se a alma não é aquilo que os
dualistas insistem que é, fica muito mais fácil entender a mortalidade da alma. Dizer
59
O que é a alma? 60
que a alma é mortal não é o mesmo que dizer que um “fantasminha” pode ser
morto. Significa dizer que a alma é vivente enquanto possui o fôlego da vida (ou
seja, enquanto respira), mas ao expirar nos tornamos almas mortas, porque uma
imortais e imateriais, o que torna difícil apontar essa diferença na prática. Se a alma
é uma entidade imaterial dentro de nós, o que seria o espírito? Uma outra entidade
imateriais? Neste caso, apenas um ou o outro já seria mais que o suficiente, já que
isso será inútil tentar encontrar entre eles uma explicação concreta e objetiva da
diferença entre alma e espírito, a não ser quando nos deparamos com pérolas desse
60
O que é a alma? 61
É isso mesmo que você está vendo: o corpo é a “carcaça”, a alma está dentro
do corpo e o espírito está dentro da alma. Como um ente imaterial poderia estar
dentro de outro ente imaterial, é um mistério que nem eles mesmos sabem
para explicar sua própria doutrina, que tem tudo a ver com a deles. O que isso tem
Para aqueles que não creem na ideia do “perispírito”, o que resta é lidar com
a triste conclusão onde alma e espírito são “diferentes”, mas ambos são
incorpóreos, ambos são imateriais, ambos são imortais, ambos deixam o corpo
após a morte e ambos são nossa “verdadeira forma” na qual viveremos no céu – ou
seja, “é igual mas é diferente”. Ao mesmo tempo em que eles precisam dizer que
alma e espírito são diferentes, eles realmente não fazem a menor ideia do que
consiste essa diferença, e a prova disso é que tanto alma como espírito são usados
61
O que é a alma? 62
Quando exigimos a prova bíblica dessa figura pitoresca que retrata bem a
confusão mental na qual estão mergulhados, o máximo que eles têm a citar é o
texto em que Paulo pede “que todo o espírito, alma e corpo de vocês seja
conservado irrepreensível na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5:23), como
se isso dissesse qualquer coisa sobre a alma ser imortal ou sobre a relação entre
arranjar uma base “bíblica” a uma doutrina que eles sabem não possuir nenhuma.
texto isolado que não diz nada do que eles precisam para provar o ponto, e com
base nesse texto isolado condicionam toda a doutrina sobre a natureza humana,
os três são mencionados juntos em um mesmo versículo, o que faz dessa estrutura
uma exceção pontual e ocasional, não uma regra ou um padrão que possa ser
62
O que é a alma? 63
seria necessário provar que espírito, alma e corpo em 1Ts 5:23 são
impossível.20
Um exemplo é o texto que diz com relação a Josias que “nunca houve um rei
como ele, que se voltasse para o Senhor de todo o coração, de toda a alma e de
todas as suas forças” (2Rs 23:25), onda a “alma” aparece, mas não o “espírito” e nem
o “corpo”. E o próprio Paulo, que se expressou daquela forma em 1Ts 5:23, em outra
ocasião “se esquece” da alma quando diz que a mulher solteira “cuida das coisas do
Senhor para ser santa, tanto no corpo como no espírito” (1Co 7:34), deixando a alma
20
BRASILINO, Gyordano Montenegro. A Bíblia ensina a tricotomia? Disponível em:
<http://cristianismopuro.blogspot.com.br/2009/02/biblia-ensina-parte-4.html>. Acesso em:
20/08/2013>. Acesso em: 20/08/2013.
63
O que é a alma? 64
de fora da equação, assim como quando pede que nos purifiquemos “de tudo o
E antes que alguém levante o questionamento, isso também não sugere que
a natureza humana seja dividida em duas partes em vez de três, pela mesma razão
que Jesus não a dividiu em quatro partes quando disse: “Amarás ao Senhor teu Deus
de todo o teu (1) coração, e de toda a tua (2) alma, e de todas as tuas (3) forças, e
de todo o teu (4) entendimento” (Lc 10:27), e sem sequer mencionar o espírito.
Alguém que fosse tão amador – para não dizer mal-intencionado – quanto os
tricotomistas poderia facilmente usar esse versículo isolado da mesma forma que
eles usam 1Ts 5:23 para defender que a natureza humana está dividida assim:
Por mais ridícula que a ilustração seja (quase tanto quanto a original), ela
forma idêntica à original, ela segue rigorosamente a mesma lógica: um texto isolado
que menciona aspectos do ser humano e que é tomado como uma regra universal
64
O que é a alma? 65
a respeito de como a natureza humana está dividida (mesmo que os textos sequer
partem do pressuposto de que a natureza humana está dividida, para então buscar
um texto que confirme suas crenças prévias. Assim como ao citar coração, alma,
quatro partes diferentes, quando Paulo cita espírito, alma e corpo ele não estava
os quais devemos amar a Deus. Já em 1Ts 5:23, estes aspectos eram o espírito
irrepreensíveis até a volta de Jesus. Isso significa que devemos cuidar igualmente
Note que isso não tem nada a ver com dividir a natureza humana em três ou
enxadrista e professor, e mesmo assim não são cinco “partes” de você, mas cinco
65
O que é a alma? 66
aspecto físico, uma mente racional e uma consciência espiritual, não porque
sejamos três pessoas em uma tal como a Santíssima Trindade, mas porque essas
É por essa razão que não há na Bíblia qualquer padrão, princípio ou regra
usados para defender uma divisão dupla (como 1Co 7:34), tripla (como 1Ts 5:23),
quádrupla (como Lc 10:27) ou até mais, dependendo de qual texto for tomado
isoladamente e sem critério nenhum. Até mesmo o falecido teólogo batista Thomas
em 1Ts 5:23; mas o “coração” não pode ser identificado com coisa
66
O que é a alma? 67
humana.21
Mas se a tricotomia não vem da Bíblia, de onde ela veio? A resposta está no
os choici (que vem de “terreno”, em alusão ao corpo). Foi deles que se desenvolveu
a teologia que divide o homem em três partes, que tempos mais tarde foi
alma foi a dicotomia, que em vez de dividir o homem em três o divide em dois, onde
a alma é identificada como sendo o mesmo que o espírito (mas que por alguma
21
SIMMONS, Thomas Paul. Um Estudo Sistemático da Doutrina Bíblica: uma disposição lógica e um
tratamento diligente dos ensinamentos da palavra santa de Deus. Presidente Prudente: Palavra Prudente,
2013, p. 184.
22
MAHER, Michael; BOLLAND, Joseph. “Soul”. The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton
Company, 1912. v. 14. Disponível em: <https://www.newadvent.org/cathen/14153a.htm . Acesso em:
11/02/2022. 67
O que é a alma? 68
interpretado por pura conveniência, como 1Ts 5:23. Em vez disso, dicotomistas se
apoiam no dualismo clássico entre corpo e alma, onde o inconveniente espírito que
fica sobrando na equação é entendido como nada a mais que um outro nome para
a alma. Embora essa visão evite lidar com o problema da distinção conceitual entre
alma e espírito que leva os tricotomistas a apelar até às ideias espíritas, eles não
sabem lidar com o problema central de sua tese: as provas de que alma e espírito
espírito ou fôlego de vida é aquilo que dá ânimo ao corpo, que juntos constituem
aquilo que chamamos de «alma vivente» (Gn 2:7). Se alma e espírito fossem a
mesma coisa, Deus teria soprado em Adão uma alma/espírito para que o homem
se tornasse uma alma/espírito, o que não faz o menor sentido. A única conclusão
que nos resta é que a alma é tão diferente do espírito quanto é diferente do corpo,
embora dependendo do sentido figurado em que esteja sendo usada possa ter uma
O próprio texto de 1Ts 5:23, que, como vimos, não prova nada de tricotomia,
vai de encontro à ideia de que alma e espírito sejam a mesma coisa. Neste caso,
apenas dizer para guardar irrepreensíveis corpo e alma (ou corpo e espírito) já seria
seria o mesmo que eu listasse os três melhores jogadores de todos os tempos como
sendo Messi, Pelé e Edson Arantes do Nascimento. Se Paulo disse para guardarmos
68
O que é a alma? 69
“Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de
dois gumes; ela penetra ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas,
e julga os pensamentos e intenções do coração” (Hebreus 4:12)
Aqui vemos que a palavra de Deus penetra a ponto de dividir alma e espírito,
assim como divide juntas e medulas (o texto não diz que também divide os
pensamentos e intenções do coração, mas sim que os “julga”). À luz deste texto, só
nos resta concluir que alma e espírito são duas coisas tão diferentes quanto juntas
e medulas, embora estejam de alguma forma relacionadas entre si. Isso faz todo o
sentido na visão holista, onde a alma como o indivíduo concreto é animada pelo
espírito, e até na visão espírita tricotômica do “perispírito”, mas não faz sentido
nenhum na perspectiva de quem pensa que alma e espírito são o mesmo – o que
espírito sejam duas coisas tão diferentes quanto juntas e medulas, ou toda a
que o texto faz com as juntas e medulas, a própria afirmação de que a palavra de
Deus é capaz de dividir alma e espírito por si só não faria o menor sentido se alma
69
O que é a alma? 70
e espírito fossem duas palavras sinônimas que designassem a mesma coisa, o que
seria o mesmo que separar Messi e Lionel, água e H2O, seis e meia dúzia.
É possível separar coisas que são muito próximas e interligadas, mas separar
mesmo para Deus. Assim como Deus não pode criar um “casado solteiro”, um
número que seja par e ímpar ao mesmo tempo ou uma pedra tão grande que Ele
não possa carregar, Ele não pode dividir duas coisas entre si que na verdade são a
mesma coisa. Não porque Lhe falte poder, mas pelo simples fato de se tratar de
sentido – uma espécie de nada com coisa nenhuma, que com certeza não era o que
defender que corpo e espírito são a mesma coisa está na oração de Maria, que assim
diz: “Minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu
Salvador, pois atentou para a humildade da sua serva” (Lc 1:46-48). Como Maria usa
mesma coisa. O problema com esse argumento é que ele ignora como um
relação existente entre uma coisa e outra, não necessariamente para dizer que eram
Por isso vemos tantos casos de paralelismo entre coisas que literalmente
similares dependendo do contexto. Por exemplo, o salmista diz que “o meu coração
70
O que é a alma? 71
mas isso não significa que o coração seja o corpo inteiro, ou que o corpo se limite
ao coração. Certamente há uma relação entre um e outro, mas não que eles sejam
diz que “o meu espírito se angustia em mim; e o meu coração em mim está
desolado” (Sl 143:4). Se isso prova alguma coisa, não é que coração e espírito sejam
analogia entre ambos. O mesmo vemos no Salmo 51, que diz que “os sacrifícios que
(Sl 51:17), onde os dois executam a mesma função, não porque sejam a mesma
O coração também aparece em paralelismo com a alma no texto que diz: “Se
disseres: Eis que não o sabemos; porventura não o considerará aquele que pondera
os corações? Não o saberá aquele que atenta para a tua alma?” (Pv 24:12). Assim
com o corpo: “A minha alma tem sede de ti; meu corpo te almeja, como terra árida,
exausta e sem água” (Sl 63:1), e ainda: “O homem bom cuida bem de si mesmo, mas
o cruel prejudica o seu corpo” (Pv 11:17), onde o “si mesmo” é nephesh, no hebraico.
corpo», mas isso não significa que corpo e alma sejam a mesma coisa em absoluto
71
O que é a alma? 72
A alma não apenas é usada em paralelismo com o corpo, mas também com
partes do corpo. Por exemplo, o salmista alega que “a nossa alma está abatida até
ao pó; o nosso ventre se apega à terra” (Sl 44:25), onde “alma” e “ventre” são tidos
como equivalentes, apesar de não serem a mesma coisa. O mesmo no texto em que
o sábio diz que as suas palavras “serão vida para a tua alma, e adorno ao teu
pescoço” (Pv 3:22), e quando Deus diz por meio do profeta Ezequiel que “nem a sua
prata nem o seu ouro os poderá livrar no dia do furor do Senhor; eles não fartarão
a sua alma, nem lhes encherão o estômago” (Ez 7:19), onde “alma” e “estômago”
são usados em paralelismo, assim como “prata” e “ouro” – ainda que tanto num caso
como no outro se refiram a coisas diferentes, mesmo que numa mesma categoria.
provar que são o mesmo, prova apenas que estão relacionados, no mesmo sentido
corpo e às partes do corpo. A razão por que tudo o que compõe um ser humano é
humana de forma holista, como um todo integral e indivisível, não como um ser
repartido em diversas partes com um “ser dentro do ser” – ou, pior ainda, um “ser
dentro do ser dentro do ser”, como popularizado no século passado por Kenneth
Hagin, que consagrou a máxima de que nós “somos” um espírito, “possuímos” uma
72
O que é a alma? 73
fluídico e intangível que vemos nos filmes de Hollywood, nas séries da Netflix e nas
quando não identificada – com elementos físicos e funções biológicas, que vão
Alma como pessoa – Para começo de conversa, um dos usos mais comuns
onde uma “alma vivente” equivale meramente a um “ser vivo” (ou seja, uma pessoa
de carne e osso). É assim que “Esaú tomou suas mulheres, e seus filhos, e suas filhas,
e todas as almas de sua casa, e seu gado, e todos os seus animais, e todos os seus
bens, que havia adquirido na terra de Canaã; e foi para outra terra” (Gn 36:6). Essas
«almas de sua casa» não eram fantasmas de uma casa mal-assombrada, mas
A Bíblia registra que “todas as almas que vieram com Jacó ao Egito, que
saíram dos seus lombos, fora as mulheres dos filhos de Jacó, todas foram sessenta
e seis almas” (Gn 46:26), mas é difícil imaginar Jacó levando almas sem corpo para
se encontrar com o faraó, a não ser que quisesse assombrá-lo. O mesmo capítulo
diz que “estes são os filhos de Zilpa, a qual Labão deu à sua filha Lia; e deu a Jacó
73
O que é a alma? 74
estas dezesseis almas” (Gn 46:18), mas as mulheres de Jacó não deram à luz a
original é qanah nephesh (comprar uma alma). Não porque algum sacerdote tivesse
um interesse obscuro num fantasminha trabalhando para ele (talvez para mover
objetos pela casa de forma paranormal), mas porque a alma-nephesh era o próprio
pelos seus bens” (Ez 27:13), onde a parte que diz «trocaram escravos» é nathan
nephesh no hebraico, não porque eles achassem que os bens de Tiro valessem mais
que almas imortais de um plano superior, mas porque vendiam escravos que os
serviam fisicamente.
Nebuzaradã, capitão da guarda, deixara com Gedalias, filho de Aicão” (Jr 43:6).
Nebuzaradã não deixou com Gedalias espíritos do além para assombrá-lo à noite,
mas as pessoas físicas que foram levadas cativas pelos babilônicos. É neste sentido
duas pessoas” (Jr 52:29), onde “pessoas” também é nephesh (alma), no hebraico.
Em Atos, Lucas nos informa que os que aceitaram a palavra de Pedro foram
batizados, e “naquele dia agregaram-se quase três mil almas” (At 2:41), e que no
navio onde ele estava com Paulo “éramos ao todo duzentas e setenta e seis almas”
(At 27:37). Essas almas não eram a tripulação fantasma do Capitão Salazar dos
Piratas do Caribe, mas simplesmente a tripulação que ali estava de carne e osso, a
74
O que é a alma? 75
A razão por que temos hoje a tendência de ler “alma” como se fosse um
espírito sem corpo é porque somos fortemente influenciados pelo dualismo grego
que, ao interpretarmos a Bíblia, é tão importante nos livrarmos de todo viés grego,
esses escritos desde muito antes do próprio helenismo. Este é o único jeito de
entendermos a Bíblia como ela era entendida originalmente, e não como somos
Animais como alma – Essa diferença se nota com mais clareza ainda quando
relação à alma humana também são usadas com a mesma naturalidade ao se referir
aos animais, apesar da crença geral de que apenas os seres humanos são dotados
de alma. O escritor de um dos sites cristãos mais famosos do mundo diz que “os
animais não têm alma, mas têm certo tipo de consciência”23, e que “apesar de sua
falta aos animais. (...) O catecismo da Igreja Católica diz que a palavra
que torna uma pessoa humana, não é um acréscimo. Você não pode
23
DY, Glory. Do Animals Have Souls? Disponível em: <https://www.christianity.com/wiki/christian-life/do-
animals-have-souls.html>. Acesso em: 15/04/2021.
24
ibid.
75
O que é a alma? 76
tirar a alma de alguém como pode cortar a mão dela. Ter uma alma é
(nephesh chay); e voem as aves sobre a face da expansão dos céus” (Gênesis
1:20)
espécies; e toda a ave de asas conforme a sua espécie; e viu Deus que era
➢ “E disse Deus: Produza a terra alma vivente (chay nephesh) conforme a sua
espécie; gado, e répteis e feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi”
(Gênesis 1:24)
toda a ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e
tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente (chay nephesh), isso foi o
25
BOLTON, Peter. Soulless, but still valuable. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/commentisfree/belief/2010/jan/18/animals-souls-philosophy>. Acesso
em: 15/04/2021.
76
O que é a alma? 77
descendência depois de vós. E com toda a alma vivente (chay nephesh), que
todos que saíram da arca, até todo o animal da terra” (Gênesis 9:9-10)
➢ “Então me lembrarei da minha aliança, que está entre mim e vós, e entre toda
➢ “Toda vez que o arco-íris estiver nas nuvens, olharei para ele e me lembrarei
da aliança eterna entre Deus e todos os seres vivos (chay nephesh) de todas
➢ “Porém todo o que não tem barbatanas nem escamas, nos mares e nos rios,
todos os que enxameiam as águas e todo ser vivo (chay nephesh) que há nas
vivos (chay nephesh) que se movem na água e de todo animal que se move
Um texto que a ACF traduz como “quem matar um animal, o restituirá, vida
por vida” (Lv 24:18), no original é nakah nephesh bhemah shalam nephesh tachath
(quem mata a alma de um animal deve pagar alma por alma). No Apocalipse,
“morreu a terça parte das criaturas do mar” (Ap 8:9), onde é a psiquê que aparece
77
O que é a alma? 78
onde o tradutor optou por “criaturas”. O mesmo volta a ocorrer quando o segundo
anjo derrama a sua taça no mar, e como consequência “morreu no mar toda a alma
vivente” (Ap 16:3). “Alma vivente” aqui é psiquê zao, o equivalente grego ao chay
nephesh, do hebraico.
Uma vez que a maior parte dos imortalistas considera inaceitável que os
animais tenham «aquilo que torna uma pessoa humana», os tradutores da maior
parte das versões em nosso idioma preferem verter nephesh e psiquê como
denuncia o mesmo a respeito das versões inglesas, que também costumam usar de
hebraico nephesh.26
Com essa manobra, eles ajudam a reforçar na cabeça das pessoas a ideia de
que a alma é uma entidade metafísica e imortal que só os homens possuem, algo
26
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 36.
78
O que é a alma? 79
entendiam a nephesh como nada a mais que um simples ser vivo de carne e osso
que eles a usavam indistintamente para homens e animais, inclusive quando são
Animais e Deus “com” alma – Alguns imortalistas objetam que a Bíblia não
apenas retrata o homem como uma alma, mas com uma alma. Natanael Rinaldi, por
ter uma alma dentro dele, tais como em Sl 42:11, Jó 30:6, Lm 3:20, Dn 7:15, Jn 2:7 e
At 10:9-10”27. O primeiro texto que ele cita é o que diz: “Por que você está assim tão
triste, ó minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim?” (Sl 42:11).
O problema é que a Bíblia frequentemente usa a mesma linguagem para falar dos
Salomão, por exemplo, diz que “o justo tem consideração pela vida dos seus
animais, mas as afeições dos ímpios são cruéis” (Pv 12:10). Embora a ACF traduza
por “vida”, o hebraico traz nephesh (alma). Ao pé da letra, o que o texto está dizendo
é que o justo tem consideração pela alma dos seus animais, o que nos levaria a crer
que eles têm uma alma, embora não seja o caso. A própria Enciclopédia Católica
cita esse texto como um exemplo de nephesh significando o indivíduo em si, e não
hebraica para “ser” é nephesh. Dos animais, Pv 12:10 diz: “O justo tem
27
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 125.
79
O que é a alma? 80
seus animais”.28
Da mesma forma, no primeiro capítulo da Bíblia, Deus diz a Adão que “todo
o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma
vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi” (Gn 1:30). Por razões
óbvias, há mais textos que retratam o homem “com” alma do que os animais,
porque a Bíblia fala muito mais dos homens do que dos animais. Mas esses
exemplos nos mostram que o mesmo princípio que se aplica a um também se aplica
ao outro: ambos são retratados como se tivessem uma nephesh, embora não
Essa forma de se expressar era tão comum que até mesmo Deus, que é
mente pura e não possui alma alguma (e muito menos precisaria de uma) é
retratado como “tendo” uma alma em diversos textos. Não deveríamos esperar um
texto de um animal falando sobre si mesmo como o salmista faz no Salmo 42, mas
Deus, como um ser racional, se expressa dessa maneira não poucas vezes. Apenas
28
NEW CATHOLIC ENCYCLOPEDIA. Soul (in the Bible). 2ª ed. New York: McGraw-Hill Book Company, 1967.
v. 13, p. 449.
80
O que é a alma? 81
➢ “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem então o desviará? O que a sua alma
➢ “O Senhor prova o justo, mas o ímpio e a quem ama a injustiça, a sua alma
(Provérbios 6:16)
firmemente, com todo o meu coração e com toda a minha alma” (Jeremias
32:41)
➢ “Mas o justo viverá pela fé; e, se ele recuar, a minha alma não tem prazer
Apesar de tantos textos em que Deus fala como se tivesse uma alma, o
consenso teológico é que Deus não “tem” alma, Ele apenas é uma, no sentido de
um ser. Quando Deus diz «a minha alma», o sentido não é que Ele possui algum
elemento “dentro” dEle, mas é apenas uma forma de se referir ao Seu ser ou aos
81
O que é a alma? 82
Assim, quando o salmista diz «ó minha alma», ele não estava dizendo que
possuía uma alma imaterial presa dentro do corpo tal como no conceito grego, mas
apenas fazendo um uso reflexivo do termo tal como fazemos quando dizemos, por
exemplo, que “fulano falou mal da minha pessoa”, onde «minha pessoa» equivale
apenas a “mim”, não a uma pessoa que o meu “eu” possui. Isso é ainda mais
evidente quando se considera o caráter poético do texto, que é muito mais aberto
a construções desse tipo (que vemos com muito menos frequência em outros
contextos).
Alma que come e sente fome – Qualquer um que diga nos dias de hoje que
sua alma está com fome seria taxado como um maluco, a não ser que fosse uma
“fome de Deus”, uma “sede de justiça” ou qualquer coisa espirituosa do tipo. Mas
fome mesmo, de comer a comida que está na geladeira, seria algo impensável,
assim como seria dizer que a sua alma comerá aquele alimento. Esse tipo de coisa
está tão distante da nossa realidade que até eu, como um bom holista, me
fome. A razão por que até um mortalista se surpreende com isso é pelo tanto que
Na Bíblia, porém, somos informados que toda nephesh que comer da oferta
alguém que está impuro comer da carne da oferta de comunhão que pertence ao
82
O que é a alma? 83
Senhor, será eliminado do meio do seu povo” (Lv 7:20). Embora a NVI traduza por
“alguém”, o hebraico traz nephesh (alma). É a alma que come a oferta da comunhão
pessoa (nephesh) que a comer será extirpada do seu povo” (Lv 7:25). A nephesh
poderá comer sangue, nem também o estrangeiro residente” (Lv 17:12), onde o
hebraico diz que nenhuma nephesh poderia comer sangue, e que “toda a pessoa
que comer algum sangue, aquela pessoa será extirpada do seu povo” (Lv 7:27), onde
nephesh aparece onde consta “pessoa”. Toda nephesh que comesse sangue tinha
que ser eliminada (Lv 17:14), e toda nephesh que comesse “um animal encontrado
morto ou despedaçado por animais selvagens, lavará suas roupas e se banhará com
do Cristianismo serem influenciados pelo platonismo, Oseias dizia que “os seus
sacrifícios lhes serão como pão de pranteadores; todos os que dele comerem serão
imundos, porque o seu pão será somente para si mesmos; não entrará na casa do
Senhor” (Os 9:4). Onde a tradução diz “para si mesmos”, o hebraico traz nephesh –
«o pão será somente para as suas almas», porque é a alma que comeria o pão.
83
O que é a alma? 84
ele entre si, dizendo: Que farei? Não tenho onde recolher os meus frutos. E
disse: Farei isto: Derrubarei os meus celeiros, e edificarei outros maiores, e ali
recolherei todas as minhas novidades e os meus bens; e direi a minha alma:
Alma, tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe
e folga. Mas Deus lhe disse: Louco! esta noite te pedirão a tua alma; e o que
tens preparado, para quem será?” (Lucas 12:16-20)
corpo-soma. Tão certo era o fato de que a alma come e bebe que Jesus pediu que
“não se preocupem com suas próprias vidas, quanto ao que comer ou beber; nem
com seus próprios corpos, quanto ao que vestir” (Mt 6:25). Embora a NVI traduza
por “vidas”, é psiquê (alma) que consta no grego. Mas o que a preocupação com a
alma teria a ver com o «comer ou beber»? Na perspectiva dualista, nada. Na Bíblia,
tudo. Como vimos aqui, a alma biblicamente come e bebe, razão por que a
da alma com coisas corpóreas, na Bíblia a alma não apenas come e bebe alimentos
perfeitamente tangíveis, como sente fome, tem apetite e saboreia aquilo que é
digerido pelo organismo. Mesmo que às vezes a comida não seja das mais
apetitosas, como quando Jó declara: “Ou comer-se-á sem sal o que é insípido? Ou
haverá gosto na clara do ovo? A minha alma recusa tocá-las, pois são para mim
como comida repugnante” (Jó 6:6-7). A razão pela qual sua alma-nephesh se
recusava a tocar aqueles alimentos não é porque ela fosse imaterial, mas porque
84
O que é a alma? 85
ela se recusava a comer aquele tipo de «comida repugnante» (o que significa que
É neste sentido que se diz, quanto aos que murmuraram a respeito do maná,
que “a sua alma aborreceu toda a comida, e chegaram até às portas da morte” (Sl
107:18). Não porque a alma não comesse o maná, mas justamente porque comia e
se enjoou do mesmo: “Mas agora perdemos o apetite; nunca vemos nada, a não ser
este maná!” (Nm 11:6). Onde a NVI traduz por “apetite”, o original traz nephesh. A
ACF traduz por “agora a nossa alma se seca; coisa nenhuma há senão este maná
diante dos nossos olhos”. A alma “secar” é a mesma coisa que “perder o apetite”,
Moisés: “Por que vocês nos tiraram do Egito para morrermos no deserto? Não há
pão! Não há água! E nós detestamos esta comida miserável!” (Nm 21:5). Esse trecho
final aparece no hebraico como nephesh quwts qloqel lechem – “nossa alma
detesta essa comida ruim”. Eles jamais teriam dito tal coisa se tivessem o mesmo
só o corpo diz respeito aos aspectos físicos. Se este fosse o caso, seria o corpo, e
fome o impulsiona” (Pv 16:26). O mesmo versículo é traduzido pela NAA como «a
fome do trabalhador o faz trabalhar, porque a sua boca o incita a isso». O que
poucos sabem é que, ao invés de “apetite” ou “fome”, o hebraico deste texto traz
85
O que é a alma? 86
orgânicos que parecem ter pouca ou nenhuma coisa a ver com uma alma espiritual
Salomão em Eclesiastes diz que “todo trabalho do ser humano é para a sua boca;
contudo, o seu apetite nunca se satisfaz” (Ec 6:7), onde “apetite” também
Ele ainda aconselha que “quando você se assentar para uma refeição com
alguma autoridade, observe com atenção quem está diante de você, e encoste a
faca à sua própria garganta, se estiver com grande apetite” (Pv 23:1-2). Mais uma
vez, o hebraico traz nephesh onde o tradutor traduz por “apetite”, apesar da fome
ser uma reação natural do organismo sem qualquer relação aparente com um ente
arrogante é como a sepultura; ele é como a morte, que nunca se farta” (Hc 2:5), e
em Provérbios lemos que “não se injuria o ladrão, quando furta para saciar-se,
tendo fome” (Pv 6:30), onde o hebraico diz nephesh ra`eb (tendo a sua alma fome).
Vários são os provérbios que ressaltam essa mesma mensagem, como o que
diz que “o Senhor não deixa o justo passar fome, mas rechaça a aspiração dos
trocadilho) a nephesh que aparece no hebraico. Bem traduzido, o que o texto nos
diz é que o Senhor não deixa «a alma do justo passar fome», novamente reforçando
que a fome é um atributo ligado à alma e não somente ao corpo. Do mesmo modo,
ele diz que “a preguiça leva ao sono profundo, e o preguiçoso passa fome” (Pv
Um dos textos mais incisivos diz que “a alma que já se fartou recusa o favo
de mel, mas para a alma faminta todo amargo é doce” (Pv 27:7), onde vemos que a
86
O que é a alma? 87
alma-nephesh pode comer e se fartar, ou não comer e passar fome. Em mais uma
aula de como não se traduz um texto, a NVI assim traduz Pv 25:25: “Como água
fresca para a garganta sedenta é a boa notícia que chega de uma terra distante”.
ideia de uma alma com sede, o hebraico traz novamente nephesh aqui.
Um caso que chama ainda mais a atenção é o de Pv 13:25, que a ACF traduz
como “o justo come até ficar satisfeito, mas o ventre dos ímpios passará
hebraico diz tsaddiyq 'akal soba` nephesh (o justo come até satisfazer a sua alma),
suprimido na tradução, talvez pelo absurdo que seria admitir uma comparação
entre um ser imaterial e imortal como a alma com uma simples parte do corpo,
como o ventre. Uma equiparação dessa natureza jamais seria tolerada do ponto de
vista dualista, onde a alma contrasta com o corpo, em vez de se identificar com ele.
“Será como quando um homem faminto sonha que está comendo, mas
acorda e sua fome continua; como quando um homem sedento sonha que
está bebendo, mas acorda enfraquecido, sem ter saciado a sede. Assim será
com as hordas de todas as nações que lutam contra o monte Sião”
(Isaías 29:8)
Em vez de “sua fome continua”, o hebraico traz nephesh reyq (sua alma
continua vazia), e em vez de “sem ter saciado a sede”, o hebraico diz nephesh
87
O que é a alma? 88
shaqaq (sua alma continua com sede). O que uma alma imaterial, imortal e espiritual
tem a ver com a fome e a sede das pessoas? Nada, porque esse tipo de alma nunca
coisas do corpo, uma vez que não são duas “partes” separadas, mas um todo
que diz que “o vil fala obscenidade, e o seu coração pratica a iniquidade, para usar
hipocrisia, e para proferir mentiras contra o Senhor, para deixar vazia a alma do
faminto, e fazer com que o sedento venha a ter falta de bebida” (Is 32:6). Embora
hoje em dia costumamos dizer que “o estômago está vazio” quando estamos com
fome, os hebreus não hesitavam em dizer que a nephesh estava vazia, apesar de
físico. Isso mais uma vez desafia o dualismo grego entre corpo e alma, em que a
alma jamais poderia ser igualada ou tratada como algo físico, como o estômago.
diz à nação de Israel que “sua prata e seu ouro serão incapazes de livrá-los no dia
da ira do Senhor e, não poderão saciar sua fome e encher os seus estômagos” (Ez
7:19). Em vez de “saciar sua fome”, o hebraico traz saba` nephesh (saciar sua alma),
imediatamente antes de falar sobre male' me`ah (encher os seus estômagos). Aqui,
alma e estômago são citados lado a lado no mesmo contexto, que fala de fome.
Isaías chama as sentinelas de Israel de “cães são gulosos, que nunca se fartam” (Is
88
O que é a alma? 89
É por isso que, quando alguém jejua, a própria alma é “castigada”, como
conta o salmista: “Quando chorei, e castiguei com jejum a minha alma, isto se me
tornou em afrontas” (Sl 69:10). Embora costumemos pensar que apenas o corpo
sofre com o jejum, a alma também é “castigada” pela fome, biblicamente falando.
Estamos acostumados a dizer que jejuamos para “castigar o corpo e edificar a alma”,
mas, à luz das Escrituras, tanto o corpo como a alma são “castigados” pelo jejum (ou
seja, sofrem as consequências físicas da fome). Ainda que o jejum possa trazer
benefícios à nossa espiritualidade, ele não tem nada a ver com uma concepção
Isso explica por que Jeremias diz que “todo o seu povo anda suspirando,
buscando o pão; deram as suas coisas mais preciosas a troco de mantimento para
a pensar. A alma cuja força é restaurada pelo mantimento físico se deleita com a
comida, como Deus diz em Isaías: “Por que gastais o dinheiro naquilo que não é
pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me
atentamente, e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura” (Is
55:2).
Alma material – Se uma coisa percebemos pela leitura de todos esses textos,
é que os hebreus entendiam a alma como algo tangível, muitas vezes identificada
com o próprio corpo animado pelo fôlego da vida, quando não por funções ou
órgãos do mesmo. Mas o que eles definitivamente não imaginavam é que a alma
a essa conclusão, temos os vários textos que falam da alma tocando em algo físico,
89
O que é a alma? 90
o que é difícil entender do ponto de vista da alma incorpórea. Por exemplo, Deus
diz que “qualquer coisa na qual alguém que estiver impuro tocar se tornará impura,
e qualquer pessoa que nela tocar ficará impura” (Nm 19:22), onde nephesh aparece
A respeito daqueles que tocassem num cadáver, Ele ordena que “o homem
que o tocar será imundo até à tarde” (Lv 22:6), onde nephesh aparece onde a ACF
“se uma pessoa (nephesh) tocar alguma coisa imunda, como imundícia de homem,
pacífico, que é do Senhor, aquela pessoa (nephesh) será extirpada do seu povo” (Lv
7:21). A razão por que a alma podia tocar em tudo aquilo que é físico neste mundo
é porque ela não era vista como um ente espiritual e metafísico de um outro mundo,
É por isso que a alma não só podia tocar nas coisas materiais, mas também
ser tocada por elas e até tomada como despojo numa batalha. Jeremias várias vezes
pestilência; mas o que sair, e se render aos caldeus, que vos têm cercado, viverá, e
terá a sua vida por despojo” (Jr 21:9; cf. 38:2, 39:18, 45:5). Embora os tradutores
tenham traduzido por “vida”, é mais uma vez nephesh que aparece no hebraico. Ter
a alma por despojo, neste caso, não significa morrer, mas ser levado em cativeiro.
Como é de se esperar que os babilônicos não levariam em cativeiro uma alma sem
corpo, mas um indivíduo concreto, é evidente que a alma não tem qualquer
90
O que é a alma? 91
Assim como era possível levar uma alma como despojo, também se podia
sequestrar uma alma, como se diz em Deuteronômio: “Se um homem for pego
vendendo-o, o sequestrador terá que morrer” (Dt 24:7). O hebraico diz 'iysh matsa'
ganab nephesh 'ach bem Yisra'el, que literalmente traduzido é «se um homem for
fácil imaginar alguém arrancando a alma do corpo de outra pessoa numa “projeção
astral” e a capturando numa gaiola metafísica. Faz mais sentido entender que a
alma, mais uma vez, nada mais é que o próprio indivíduo como pessoa.
em relação a Jó: “Pele por pele! Um homem dará tudo o que tem por sua vida” (Jó
2:4). Aqui, mais uma vez, é a nephesh que aparece no hebraico em lugar de “vida”.
Mas por que Satanás diria «pele por pele», se estava falando da alma de Jó?
Obviamente, porque até o diabo sabia que a alma não era um ente etéreo e
imaterial, razão por que é igualada aqui à pele (`owr). Satanás pensava que Jó
negaria a Deus se fosse para salvar sua nephesh, ou seja, sua alma de ser destruída
fisicamente. Mas Jó, apesar de sofrer com todos os tipos de doenças físicas que
degradavam sua pele a ponto de estar “rachada e vertendo pus” (Jó 7:5), se manteve
fiel a Deus.
pediram, mas enviou-lhes também uma doença terrível” (Sl 106:14-15). O hebraico
diz shalach razown nephesh na parte traduzida como “enviou-lhes uma doença
91
O que é a alma? 92
Um caso particularmente curioso é o do Salmo 105, que diz que quando Jacó
foi vendido como escravo “apertaram os seus pés com correntes e puseram uma
coleira de ferro no seu pescoço” (Sl 105:18). Este versículo passaria facilmente
despercebido se não fosse pelo fato do hebraico trazer nephesh onde é traduzido
por “pescoço”. Como os tradutores acharam absurda demais a ideia de uma alma
imaterial e incorpórea ser fisicamente presa com uma coleira de ferro, tomaram a
liberdade de traduzir por “pescoço” aquilo que no hebraico é “alma”. Isso não seria
dualista e simplesmente colocassem na cabeça que “alma” na Bíblia não tem nada
a ver com a filosofia grega, o que lhes permitiria traduzir o hebraico honestamente
e sem medo.
Alma como garganta – Quando investigamos a razão por que a alma é tantas
do verbo naphash, que significa «tomar fôlego, reanimar-se»30. É por isso que nos
tempos antigos nephesh era utilizada para a garganta, pois é pela garganta que
toda a vida se passa: por meio dela comemos, bebemos e respiramos (quando as
29
#7332 da Concordância de Strong.
30
#5314 da Concordância de Strong.
92
O que é a alma? 93
naphash e nephesh.
Enciclopédia Católica, quando diz que nephesh “vem de uma raiz original
garganta aberta para respirar, daí, sopro de vida. Como a respiração distingue os
vivos dos mortos, nephesh passou a significar vida”33. Isso sugere que nephesh era
utilizada apenas para os vivos (que respiram), não para mortos desencarnados (que
A mesma enciclopédia aponta ainda que “no Salmo 69:2, a frase ‘as águas
ameaçam minha vida’, é literalmente ‘as águas sobem até a nephesh’ (cf. Jn 2:6; Is
físicos do corpo humano, para os hebreus isso era absolutamente normal, tão
normal que a própria origem da palavra não remete a um ente metafísico, mas a
Alma como sangue – Aliado a isso, uma das provas mais fortes de que a alma
em nada tem a ver com uma parte do homem que sobreviva com consciência e
31
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Death. Disponível em:
<https://www.britannica.com/science/death/Mesopotamia>. Acesso em: 15/02/2022.
32
ibid.
33
NEW CATHOLIC ENCYCLOPEDIA. Soul (in the Bible). 2ª ed. New York: McGraw-Hill Book Company, 1967.
v. 13, p. 449.
34
ibid. 93
O que é a alma? 94
sangue que corre nas veias tanto de homens como de animais. E isso não ocorre
que “a vida da carne está no sangue” (Lv 17:11). Embora todas as 15 versões em
que Deus está dizendo, literalmente, é que a alma da carne está no sangue.
sangue da vida (nephesh) de vocês; de todo animal o requererei, bem como do ser
humano; sim, de cada um requererei a vida (nephesh) de seu semelhante” (Gn 9:5).
Aqui, não apenas a alma dos homens é retratada como tendo sangue, mas também
a dos animais. Isso refuta aqueles que pensam que sem sangue não há mais vida no
corpo, como se a pessoa pudesse continuar viva na forma de uma alma incorpórea.
O texto não fala apenas do «sangue do vosso corpo», mas do «sangue da vossa
alma-nephesh».
Isso indica que a alma é tão dependente do sangue quanto o próprio corpo,
o que jamais seria dito a respeito de um elemento imaterial e imortal, que por
natureza não poderia depender de nada físico ou tangível (como o sangue). A alma
também tem sangue no texto em que Jeremias diz que “até nas orlas dos teus
vestidos se achou o sangue das almas dos inocentes e necessitados” (Jr 2:34), e
fugirá até à cova; ninguém o detenha” (Pv 28:17), onde o hebraico fala do «sangue
de qualquer alma-nephesh».
paralelismo, quando diz que “estes armam emboscadas contra o seu próprio
sangue e ficam à espreita contra a própria vida” (Pv 1:18), onde “vida” corresponde
94
O que é a alma? 95
príncipes são “como lobos que arrebatam a presa, para derramarem sangue, para
associada ao sangue, como é muitas vezes até mesmo identificada por ele.
Mas o que o sangue teria a ver com uma alma imortal metafísica, imaterial e
dessa natureza. Seja qual for a explicação brilhante que os imortalistas tenham
qualquer explicação lógica para uma alma etérea ser igualada a um sangue físico,
porque o sangue, que é igualado à alma, não mais recebe o oxigênio que é tão vital
para a vida”35. Como vimos até aqui, a alma na Bíblia possui dois significados mais
indivíduo como um todo (ou seja, uma pessoa), e o outro é da força vital que ativa
o corpo, que os imortalistas alegam continuar existindo por conta própria fora dele.
O problema é que a alma como força vital é igualada ao sangue, que, como
35
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 39.
95
O que é a alma? 96
dele. Se a nephesh do homem é o seu sangue (Lv 17:11,14), é impossível que ela
função do sangue nada é mais do que garantir a manutenção da vida no corpo, sem
vital é o sangue, então sem sangue não há nephesh, o que anula qualquer
espírito sem corpo (a não ser que os imortalistas mudem a sua teologia para
expressamente ordenou a Noé que “a carne, com sua vida, isto é, com seu sangue,
não comereis” (Gn 9:4), onde “vida” foi a tradução escolhida para o hebraico
nephesh (alma). Essa proibição se manteve nos tempos da lei, quando Deus alerta
aos israelitas que “não comas o sangue; pois o sangue é vida (nephesh); pelo que
não comerás a vida (nephesh) com a carne” (Dt 12:23). Literalmente, o que Deus
estava dizendo é que o sangue é a alma, e que eles não podiam comer a alma com
a carne – o que por si só já seria algo impossível se a alma fosse um ente imaterial,
“Porque a vida (nephesh) de toda carne é o seu sangue. Por isso eu disse aos
israelitas: vocês não poderão comer o sangue de nenhum animal, porque a
vida (nephesh) de toda carne é o seu sangue; todo aquele que o comer será
eliminado” (Levítico 17:14)
96
O que é a alma? 97
É difícil imaginar um texto desses sendo escrito por um autor imortalista que
Deus implantou dentro de nós, ou mesmo um imortalista em nossos dias que ouse
repetir essa verdade tantas vezes reiterada na Bíblia. Quantas vezes você já viu um
A razão por que é tão difícil para eles admitirem algo tantas vezes repetido
na Bíblia é porque isso confronta toda a noção grega e dualista de alma que se
tornou o senso comum, onde igualar alma e sangue é algo que não faz o menor
sentido. Mas essa verdade não apenas é repetida na Bíblia à exaustão, como
também é dita pela boca do próprio Deus, como neste caso de Lv 17:14 e da maior
Tão seriamente isso era levado pelas pessoas nos tempos bíblicos que essa
é uma das poucas proibições legais que existem antes da lei (Gn 9:4), durante a lei
(Lv 17:14) e depois da lei, quando o Concílio de Jerusalém conduzido por Tiago
sufocada” (At 15:29). Ao mesmo tempo, chama a atenção o fato das pessoas hoje
em dia não darem a mínima pra isso, e muitos cristãos comerem carne sufocada e
outros alimentos com sangue. A maioria sequer sabe que a Bíblia proíbe tal prática,
e outros pensam que essa proibição chegou ao fim por não verem sentido na
mesma.
A razão por que essa proibição vigente na Bíblia toda caiu em “desuso” é
porque a concepção dualista de alma que é hoje tão popular ofuscou o ensino
bíblico do sangue como o princípio vital da existência humana, uma vez que para
97
O que é a alma? 98
eles quem desempenha essa função é uma alma incorpórea, imortal e imaterial que
em nada depende do sangue e jamais pode ser comida. E como essa alma imortal
já estaria em um outro mundo, sem mais qualquer relação com o corpo que morreu,
identificar a alma com o sangue não faria o menor sentido, assim como não faria
desde os tempos bíblicos até os atuais, onde a alma se tornou um fantasma sem
qualquer relação com o sangue e que em nada depende dele para continuar viva.
próprio princípio de vida, porque o princípio de vida não é uma alma imaterial e
imortal, mas apenas o conjunto de funções biológicas que animam um corpo físico
e mortal. Comer o sangue é comer a alma, não porque a alma seja imortal, mas
tomam conta da obra inteira. O texto em questão diz respeito ao quinto selo, e diz
o seguinte:
“Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que
haviam sido mortos por causa da palavra de Deus e do testemunho que
98
O que é a alma? 99
conservos e irmãos, que deveriam ser mortos como eles” (Apocalipse 6:9-11)
Será que isso prova que estamos errados em tudo o que vimos até aqui, e
que de fato a Bíblia concebe a alma como uma entidade incorpórea, imaterial e
imortal, tal como na filosofia grega? Vamos com calma. A primeira coisa que salta
aos olhos é que os mesmos intérpretes imortalistas que tomam as “almas debaixo
do altar” ao pé da letra não fazem o mesmo com os outros selos, e muito menos
Por exemplo, no selo anterior a este, João diz que “diante de mim estava um
cavalo amarelo. Seu cavaleiro chamava-se Morte, e o Hades o seguia de perto” (Ap
personagem real como nos quadrinhos da Marvel, que está literalmente montada
imortalistas é o próprio inferno, que estaria saindo de seu lugar habitual para
acompanhar o cavaleiro Morte por onde ele ia, numa proeza digna de Máquinas
que diz:
“Observei quando ele abriu o sexto selo. Houve um grande terremoto. O sol
ficou escuro como tecido de crina negra, toda a lua tornou-se vermelha como
sangue, e as estrelas do céu caíram sobre a terra como figos verdes caem da
figueira quando sacudidos por um vento forte. O céu foi se recolhendo como
99
O que é a alma? 100
O texto fala de estrelas caindo na terra (v. 13), mas hoje sabemos que as
estrelas são consideravelmente maiores que o nosso planeta, e seria preciso muito
menos que isso para que uma única delas destruísse completamente o nosso
planeta de modo a não restar continuação da história. Também fala do céu “se
recolher” como um pergaminho (v. 14), embora ninguém pense que o céu será
seus lugares (v. 14), mas mesmo assim os homens se escondem nelas (v. 15) e
pedem que elas caiam sobre eles (v. 15). O que quer que a simbologia aponte, ela
tomam o quinto selo ao pé da letra porque lhes convém, embora não façam o
mesmo nem com o selo anterior, nem com o selo seguinte. Que conveniente. A
coisa fica ainda mais interessante quando observamos o teor geral do Apocalipse,
que fala de criaturas marítimas falando e louvando a Deus (Ap 5:13), de cavalos com
cabeça de leão que soltam fogo pela boca (Ap 9:17), de duas oliveiras e dois
candelabros que também soltam fogo pela boca (Ap 11:4-5), de gafanhotos com
rosto humano, cabelos de mulher, dentes de leão e coroas de ouro na cabeça (Ap
9:7-8) e de mulher grávida num deserto que tem asas e voa (Ap 12:14) enquanto é
100
O que é a alma? 101
perseguida por um dragão que solta um rio pela boca que é engolido pela terra que
tal como ele é, mas recebeu uma revelação que representa simbolicamente a
aos que enfrentassem martírio e morte que por fim seriam vindicados
Será difícil achar um imortalista que espere encontrar Jesus no céu com sete
chifres e sete olhos na cabeça (Ap 5:6) e que acredite que uma besta repleta de
cabeças e chifres literalmente sairá de dentro do mar como o Godzilla (Ap 13:1),
36
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 178-179.
101
O que é a alma? 102
assim como outra besta chifruda que sai da terra (Ap 13:11) como se fosse um
também descreve trovões falantes (Ap 10:3) e altar falante (Ap 16:7), mas
doutrina da alma imortal dos trovões ou que o altar tem consciência própria.
conveniente para salvar a imortalidade da alma, nem que para isso seja preciso
Todos esses exemplos nos mostram o quão desonesto alguém pode ser na
provarem que a alma em Ap 6:9 é literal, eles simplesmente assumem isso como um
tipo de artimanha. Uma manobra de tão pouca honestidade intelectual como essa
e da verdade.
na Bíblia. Seus proponentes – alguns dos quais se dizem até teólogos – deveriam se
deplorável é notar que até mesmo amilenistas, que costumam ter uma leitura
quando se trata de tomar Ap 6:9 ao pé da letra a fim de salvar a crença numa alma
102
O que é a alma? 103
imortal. Até o milênio eles encaram como alegórico, mas “almas” espremidas
que é literal ou não no Apocalipse é o que é conveniente para o seu próprio gosto
Escrituras.
mesmo livro que no Paraíso Deus “enxugará dos seus olhos toda lágrima” (Ap 21:4),
de modo que “não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a
antiga ordem já passou” (Ap 21:4). Mesmo assim, aquelas almas, ao invés de
debaixo de um altar, gritando por vingança, como se o céu não fosse o bastante
para elas se não virem seus inimigos terrenos sofrendo do outro lado (e como se já
O grego traz krazo phone megas no início do verso 10, que é geralmente
traduzido por “clamavam em alta voz”, mas na verdade tem uma conotação mais
boao, outra palavra comumente traduzida por “clamar”, que significa «falar com
uma voz alta e forte»38. Enquanto boao significa falar em voz alta e forte, krazo é
bíblico, boao é usada no texto em que “Jesus exclamou com grande voz, dizendo:
37
#2896 da Concordância de Strong.
38
#994 da Concordância de Strong.
103
O que é a alma? 104
Eloí, Eloí, lamá sabactâni” (Mc 15:34), e krazo é usada no texto em que a multidão
Mas o grego de Ap 6:10 não só diz que aquelas almas estavam krazo
(gritando), mas krazo phone megas, onde phone no grego significa “voz”, e megas
aparece no NT, apenas 11 vezes além daqui ele é acompanhado por megas39, já que
krazo por si só já é o bastante para expressar um brado em alta voz. Isso significa
que aquelas almas não apenas estavam gritando: elas estavam gritando com toda
vida eterna, inclusive no próprio livro do Apocalipse, onde uma voz do céu declara:
“’Felizes os mortos que morrem no Senhor de agora em diante’. Diz o Espírito: ‘Sim,
eles descansarão das suas fadigas, pois as suas obras os seguirão’” (Ap 14:13). O
texto diz que os que morressem seriam felizes e encontrariam descanso, um cenário
totalmente oposto ao das almas dos justos gritando por vingança em pleno Paraíso,
inquietas e perturbadas; nem pareciam felizes, pois quem é feliz não se preocupa
Jesus expressamente disse “amem os seus inimigos e orem por aqueles que
os perseguem” (Mt 5:44), que é o contrário de pedir vingança. Quem ora por
aqueles que o perseguem não ora para que eles fritem no fogo do inferno, mas para
39
São elas: Mt 27:50; Mc 5:7; At 7:57, 60, 19:34; Ap 7:2, 10, 10:3, 14:15, 18:2, 19:17.
104
O que é a alma? 105
que ele. “Orar” para que as pragas divinas caiam sobre a cabeça dos seus inimigos
deles. É por isso que Jesus na cruz orou pelos seus algozes, dizendo: “Pai, perdoa-
lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23:43). Antes que alguém diga que ele só
fez isso por ser Deus, considere o exemplo de Estêvão, cujas últimas palavras ao ser
apedrejado foram: “Senhor, não os consideres culpados deste pecado” (At 7:60).
Se essas tais “almas debaixo do altar” são mesmo almas no céu clamando
por vingança contra os seus inimigos, elas ignoram o que Jesus ensinou e fazem
exatamente o contrário do exemplo que ele e Estêvão nos deram. Enquanto a Bíblia
nos ensina a amar e orar pelo bem daqueles que nos fazem mal (mesmo daqueles
que buscam a nossa morte), elas só pensam em vingança, e pior: fazem isso em
pleno Paraíso, justamente o último lugar que alguém esperaria encontrar mesmo o
pior dos pecadores nutrido de tal sentimento. Nem na própria terra Estêvão pediu
por vingança contra os seus inimigos, mas muitos entendem que ele está entre os
mártires que gritam por vingança ao chegar no céu. Se existe um fundo do poço, os
gratidão total, de paz completa e de inteiro regozijo é colocada em xeque pela cena
a plenitude da felicidade no céu enquanto não ver seus inimigos torrando do outro
lado e sofrendo o pior dos males. Essas almas rancorosas e sedentas de sangue se
parecem muito mais com aqueles que ainda não foram alcançados pelo amor de
105
O que é a alma? 106
Cristo do que com alguém cujo coração foi regenerado “segundo a imagem
Ademais, se aquelas almas já estavam no céu, então elas sabiam que seriam
E a julgar por todas as pragas, desastres e cataclismas que acometiam a terra, além
da própria duração da grande tribulação, estava claro que não tardaria muito. Se os
sido vingadas e seus algozes já estariam sofrendo nas terríveis chamas eternas do
gritaria toda. Além de não desfrutarem o céu, de não terem paz de espírito e de não
A cena fica ainda mais bizarra quando observamos que aquelas almas não
debaixo do altar (Ap 6:9). Não sabemos exatamente quantas almas eram, mas é
preciso muita criatividade para imaginar as almas dos mártires literalmente debaixo
altar de ouro (Hb 9:4), era uma cópia exata do santuário celestial (Hb 9:23), o que
explica por que Deus deu ordens tão específicas a Moisés a respeito do tamanho e
da forma de cada objeto sagrado. Por isso ele diz que os sacerdotes levitas “servem
num santuário que é cópia e sombra daquele que está nos céus, já que Moisés foi
avisado quando estava para construir o tabernáculo: ‘Tenha o cuidado de fazer tudo
106
O que é a alma? 107
Isso significa que o altar celestial tem as mesmas dimensões do altar terreno,
que Deus mandou Moisés construir. Quantos mártires caberiam em um altar de “um
metro e trinta e cinco centímetros de altura, com dois metros e vinte e cinco
centímetros de cada lado” (Êx 38:1)? Não muitos, eu suponho, a não ser que o texto
o que vai de encontro à ideia transmitida no texto, que abraça um todo muito maior
deram” (v. 9). Meia dúzia de mártires espremidos debaixo de um altar e berrando
em alta voz por vingança contra os seus inimigos é uma imagem que lembra muito
aos milhões em um mesmo lugar sem qualquer coisa que as impeça. O problema
com essa interpretação é a continuação do texto, que diz que “cada um deles
recebeu uma veste branca” (v. 11). Uma alma imaterial também não deveria vestir
vestes brancas, já que as vestes servem para cobrir um corpo, e essas almas não
espiritual que pode ser literalmente vestido – e neste caso não caberiam debaixo
do altar –, ou são fantasminhas sem corpo que de modo algum poderiam vestir
espaciais dentro de sua própria dimensão espiritual, eles jamais poderiam travar
batalhas contra outros seres espirituais, como os demônios (Dn 10:12-13, 20). Um
107
O que é a alma? 108
ser invisível que lutasse com outro ser invisível ficaria lutando indefinidamente por
todo o sempre, como uma “briga” de duas sombras. Para Satanás e seus anjos terem
sido expulsos do céu (Ap 12:7-8), presos no milênio (Ap 20:2) e condenados ao lago
de fogo (Ap 20:10), é preciso que eles tenham alguma forma corpórea, mesmo que
invisível aos nossos olhos (ou seja, a quem vive numa dimensão inferior à deles).
muitos imortalistas, só nos resta concluir que elas estão tão limitadas espacialmente
dimensão física. E isso anula qualquer chance de que milhares de almas de mártires
Tenha em mente que o texto se refere “as almas daqueles que haviam sido mortos
por causa da palavra de Deus e do testemunho que deram” (Ap 6:9), o que
Para piorar, logo após dizer que aquelas almas receberam vestes brancas, o
texto segue dizendo que “foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco mais, até
haviam de ser mortos como eles foram” (v. 11). Embora a NVI tenha traduzido por
palavra usada para dizer que Jesus encontrou os discípulos dormindo no Getsêmani
(Mt 26:45; Mc 14:41). Note ainda que em Ap 6:11 isso é dito diretamente para as
40
#373 da Concordância de Strong.
108
O que é a alma? 109
concluir que essas almas estavam dormindo, depois acordaram para pedir vingança
psicopaniquismo). E isso, é claro, você não verá nenhum deles defender, porque a
literalidade só vale até o ponto em que eles desejam. Quando deixa de ser
simbólico.
Para resumir tudo o que vimos até aqui, pense na seguinte cena: você morre,
deixa o seu corpo e chega ao céu, onde está na presença dos anjos, de todos os
santos que já pisaram na terra, de todos os amigos e entes queridos que você viu
partir e, é claro, do próprio Deus. Neste lugar não há mais tristeza, nem choro, nem
dor, nem luto, mas apenas um sentimento de perfeita paz, de uma alegria indizível,
longe gritos lancinantes que vão se tornando cada vez mais agudos e
ensurdecedores quanto mais você se aproxima, até se deparar com uma cena
Mas, dirá você, se o relato é simbólico, o que ele está simbolizando e por
descortinando aquilo que deveria ser de conhecimento geral se não fosse pela
109
O que é a alma? 110
símbolo.
Tome como exemplo os quatro seres viventes (Ap 4:6-8), que já haviam sido
citados por Ezequiel (Ez 1:5-14); a besta com dez chifres (Ap 13:1), que já havia sido
citada por Daniel (Dn 7:7); a árvore da vida (Ap 22:2,14), que já havia sido citada no
Gênesis (Gn 2:9); ao diabo como a «antiga serpente» (Ap 20:2), em alusão à serpente
que Satanás usou para enganar Eva (Gn 3:1-5), e as «duas testemunhas» retratadas
como «as duas oliveiras» e os «dois candelabros» que “estão diante do Deus da
terra” (Ap 11:4), exatamente como consta em Zacarias (Zc 4:11-14). Muitas das
imagens que foram reveladas a João de maneira simbólica aludem a trechos do AT,
“A vida (nephesh) de toda carne é o seu sangue” (Lv 17:11), fato reiterado em todo
o AT. João se apropria dessa imagem para figurar o sacrifício dos mártires, que são
descritos como “almas” porque o seu sangue, que em Levítico é o mesmo que a
alma, foi derramado. Como comenta Bacchiocchi, “o uso da palavra psiquê nesta
humanos no estado intermediário. A razão para o seu emprego aqui é sugerida pela
morte não-natural dos mártires, cujo sangue foi derramado pela causa de Cristo”41.
O sangue “clamar” também não foi uma invenção de João. Ele simplesmente
se apropriou da mesma linguagem usada em Gênesis, quando Deus diz a Caim que
41
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 179.
110
O que é a alma? 111
“da terra o sangue do seu irmão está clamando” (Gn 4:10). O sangue da vítima
assassinada é um sangue que “clama”, não porque o sangue seja um ente pessoal,
mas porque Deus não se esqueceu do sangue derramado e executará o Seu juízo
aspergido, que fala melhor do que o sangue de Abel” (Hb 12:24), onde o sacrifício
de Jesus é tido como superior ao de Abel, e por isso o seu sangue «fala melhor».
Até mesmo Jó conhecia essa figura de linguagem quando exclamou: “Ó terra, não
cubra o meu sangue! Não haja lugar de repouso para o meu clamor!” (Jó 16:18).
entre os quais Jesus inclui o próprio Abel (Lc 11:50-51) – é apresentado como se
altar, o sangue é igualado à alma. É daí que João extrai a metáfora das “almas
clamando debaixo do altar”, que é tão literal quanto o sangue de Abel que clama
retém (Tg 5:4). Bacchiocchi ainda acrescenta que a própria imagem do martírio
também diz que estava contente “que seja eu oferecido por libação”
por Cristo (Fp 2:17). Assim, os mártires cristãos eram vistos como
111
O que é a alma? 112
povo fiel de Deus sacrificado como mártires com sua vida sendo
prestando um serviço a Deus (Jo 16:2). (...) Então, o que temos aqui é
evangelho.43
Em suma, a metáfora das almas debaixo do altar gritando por vingança alude
um sacrifício. Mas ainda resta uma parte do quebra-cabeças para que tudo se
42
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 179.
43
STEFANOVIC, Ranko. La Revelación de Jesucristo: Comentario del libro del Apocalipsis. Berrien Springs:
Andrews University Press, 2013, p. 246.
112
O que é a alma? 113
era derramado na base do altar dos holocaustos (Lv 4:7, 18, 25, 30), não “debaixo”
“debaixo do altar”. Aquiva bem José (40-135 d.C), um dos mais proeminentes rabis
da lei oral que veio a se tornar a Mishná, comentou que “aquele que foi sepultado
Isso não era um conceito novo para os judeus. O Ketubot, um tratado judaico
altar de terra [adama] você fará para Mim" (Êx 20:21), e é declarado ali:
“Porque Ele vinga o sangue de Seus servos, e faz vingança aos Seus
altar, porque toda a terra de Israel é apropriada para ser o local do altar”46. Assim,
44
JOSÉ, Aquiva bem. Shabbath 152b; Ketubot 111a.
45
KETUBOT 111A. Disponível em: <https://www.sefaria.org/Ketubot.111a?lang=bi>. Acesso em:
01/05/2021.
46
AVOT OF RABBI NATAN, 26. Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20120831042327/http://www.tsel.org/torah/avotrnatan/index.html>.
Acesso em: 01/05/2021. 113
O que é a alma? 114
vemos que a linguagem de estar enterrado “debaixo do altar” era de uso corrente
da terra nada mais era que uma forma de dizer que Deus vingaria o sangue
derramado por Caim, a linguagem das “almas debaixo do altar” não era senão uma
forma de dizer que Deus vingaria todo o sangue derramado em Israel. Mas João
não disse que aquelas almas estavam no céu? A resposta é simples: não! Volte a Ap
branco que leva em mãos um arco sem flechas (Ap 6:2), representa o período de
paz que precede a grande tribulação, quando o anticristo “fará uma aliança que
paz na terra (Ap 6:4); o terceiro selo representa a fome que se segue (Ap 6:5-6), o
se passa no céu (Ap 8:1-5), mas observe que o sétimo selo está deslocado dos
uma pausa que dura todo o capítulo 7, até o último selo ser retomado no capítulo
seguinte. Em outras palavras, a ordem lógica dos eventos deixa evidente que o
quinto selo não se passa no céu, mas na terra, assim como todos os outros do
capítulo 6.
114
O que é a alma? 115
Observe ainda que o quinto selo se passa logo em seguida do quarto, que é
justamente o do cavalo amarelo que representa a morte (Ap 6:8). Isso não é
não é diferente. Aqueles mártires haviam sido mortos por ocasião do quarto selo, e
seu sangue foi derramado na terra. Isso é justamente o que é retratado no quinto
selo sob a metáfora das almas debaixo do altar, onde a alma corresponde ao sangue
A razão por que as pessoas pensam que aquelas almas estavam no céu,
mesmo sem o texto dizer isso, deve-se antes de tudo à sua predisposição em
enxergar a alma platônica sempre que a alma é mencionada na Bíblia, apesar deste
sentido nunca ser empregado nas Escrituras, e também por ignorar o consenso
distinção a “no céu” ou “na terra”, em 5:3, 13). A escolha das palavras
mesma terra que acabara de ser marcada pelos desastres dos quatro
primeiros selos. João poderia ter escrito “debaixo do céu” (no sentido
47
MICHAELS, J. Ramsey. Revelation: The IVP New Testament Commentary Series. Westmont: IVP
Academic, 2011.
115
O que é a alma? 116
ou na terra, mas precisamente debaixo da terra – tal como o sangue derramado dos
“Mas não havia ninguém, nem no céu nem na terra nem debaixo (hupokato)
da terra, que podia abrir o livro, ou sequer olhar para ele” (Apocalipse 5:3)
debaixo da terra. Quando entendemos que o “altar” citado no texto é uma alusão à
uma visão simbólica, na qual ele viu um altar; e debaixo dele as almas
48
CLARKE, Adam. “Commentary on Revelation 6:9”. The Adam Clarke Commentary (1832).
116
O que é a alma? 117
pessoas vivas na terra, mas nunca na de gente morta. Compare o que as “almas”
“Até quando, ó Soberano santo e “Até quando, Senhor? (...) Diante dos
habitantes da terra e vingar o nosso tua vingança pelo sangue dos teus
sangue?” servos”
ambos clamam por vingança, e em ambos os casos essa vingança está relacionada
especificamente ao sangue dos servos de Deus. Em outras palavras, João não estava
vendo fantasminha nenhum no céu clamando em causa própria: ele estava apenas
aludindo ao clamor dos israelitas vivos numa linguagem simbólica, para enfatizar
literal para vestir as pobres almas desnudas no Paraíso? O próprio João responde a
isso mais adiante: “E foi-lhe dado que se vestisse de linho fino, puro e
resplandecente. O linho fino são os atos justos dos santos” (Ap 19:8). As vestes são
o começo do livro João trabalha com a alegoria das vestes, como vemos na carta à
igreja de Sardes: “No entanto, você tem aí em Sardes uns poucos que não
117
O que é a alma? 118
contaminaram as suas vestes. Eles andarão comigo, vestidos de branco, pois são
pobre, cego e que está nu” (Ap 3:17). Como é óbvio, nem os cristãos de Sardes
pelados por aí. A veste, assim como o branco, é apenas um símbolo que remete à
sua condição espiritual. Isso também anula qualquer tentativa de interpretar Ap 6:9-
11 ao pé da letra. Assim como o texto não fala de vestes literais, também não fala
de almas literais gritando por vingança. Tudo é parte do símbolo que João usa para
ilustrar uma verdade espiritual mais profunda do que o palmo da mão que os
Vale destacar que, embora poucos tenham ciência disso, os selos, trombetas
e taças do Apocalipse não retratam períodos ou eventos diferentes, mas falam das
mesmas coisas sob diferentes perspectivas. No caso do quinto selo, ele é espelhado
“O terceiro anjo derramou a sua taça nos rios e nas fontes de águas, e eles se
transformaram em sangue. Então ouvi o anjo que tem autoridade sobre as
águas dizer: ‘Tu és justo, tu, o Santo, que és e que eras, porque julgaste estas
coisas; pois eles derramaram o sangue dos teus santos e dos teus profetas, e
tu lhes deste sangue para beber, como eles merecem’. E ouvi o altar
responder: ‘Sim, Senhor Deus todo-poderoso, verdadeiros e justos são os teus
juízos’” (Apocalipse 16:4-7)
118
O que é a alma? 119
Aquilo que foi ilustrado no quinto selo através do simbolismo das almas que
derramado dos profetas que seria vingado por Deus, e aqui o próprio altar fala. Os
dois textos estão falando da mesma coisa, com a diferença de que em Ap 6:9-11 é
“fala”, em vez das almas. A linguagem do “lhes deste sangue para beber” (v. 6) é tão
metafórica quanto o clamor das almas por vingança e quer dizer a mesma coisa:
que Deus se vingará daqueles que derramaram sangue ou mataram uma alma,
para ser bebido (o que iria de encontro à própria proibição divina a beber sangue)
ou que o altar literalmente fala, mas acreditam piamente que no texto análogo de
acontece não por razões hermenêuticas, mas simplesmente pela sua convicção
prévia na existência de uma alma que guarda consciência após a morte, o que os
leva a buscar na Bíblia qualquer pretexto por mais ridículo que seja que sirva às suas
pretensões.
para fazer parecer que não é o altar que fala, mas alguém que está no altar. A ACF,
por exemplo, traduz por «e ouvi outro do altar, que dizia...», enquanto a NAA ousa
119
O que é a alma? 120
um pouco mais e traduz por «ouvi uma voz do altar, que dizia...», e a NVT ousa mais
ainda e traduz por «e ouvi uma voz que vinha do altar dizer...».
O grego, no entanto, traz apenas kai akouo tou thusiasterion lego (“e ouvi o
altar dizer...”). A NVI é a única que aqui traduz o texto com mais precisão, como «e
ouvi o altar responder». A razão por que quase todas as traduções imortalistas
6:9-11 é literal, e, portanto, essa voz não poderia ser do próprio altar, mas das almas
Outro texto que deixa claro que as almas citadas no quinto selo estavam
mortas é Ap 20:4, onde João volta a falar sobre elas nas seguintes palavras:
palavra de Deus, e que não adoraram a besta, nem a sua imagem, e não
receberam o sinal em suas testas nem em suas mãos; e viveram, e reinaram
Em Ap 6:9, João vê as almas daqueles que haviam sido mortos «por causa da
palavra de Deus e do testemunho que deram», e aqui ele volta a ver as almas
daqueles que foram degolados «pelo testemunho de Jesus e pela palavra de Deus».
Obviamente, João não estava falando de dois grupos de almas diferentes, mas das
mesmas almas que ele havia visto no quinto selo. Mas aqui já estamos no
julgamento, ao final da grande tribulação, e João diz que elas viveram e reinaram
com Cristo mil anos. Se elas viveram nesta ocasião, é porque estavam mortas antes.
E se estavam mortas, a visão que ele teve no quinto selo não foi literal, já que almas
120
O que é a alma? 121
mortas não falam. Isso refuta a ideia de que aquelas almas estavam vivas, e apenas
As almas que João viu no quinto selo não estavam realmente vivas no céu,
vivificadas. O termo grego usado nesta ocasião foi zao, que significa «viver, respirar,
estar entre os vivos (não inanimado, não morto)»49. Note que João não disse isso
apenas a respeito do corpo-soma, que sequer é citado no texto, mas das almas-
psiquê, as mesmas que haviam sido previamente citadas. A síntese de tudo isso é
que João não estava falando de almas vivas no céu literalmente gritando por
vingança, mas usando a linguagem simbólica que caracteriza todo o seu livro para
acentuar que no devido tempo Deus fará justiça pelo sangue dos mártires
pelo altar.
Por mais simples e lógica que essa conclusão seja, os imortalistas preferem
se agarrar à interpretação literal que não faz o menor sentido, cegos em seu apego
apaixonado a uma doutrina tão frágil e insustentável que precisa de um texto como
daquele simbolismo.
49
#2198 da Concordância de Strong.
121
O que é a alma? 122
Isso mais uma vez revela o despreparo dos nossos oponentes, que se
apegam a literalmente qualquer coisa, por mais precária que seja, no desespero em
mais que notória – basta lembrar que essa simbologia apocalíptica é a única ocasião
em toda a Bíblia em que uma alma falecida é apresentada com vida em algum lugar,
o que já nos diz muito sobre a credibilidade da doutrina. O próprio fato de Ap 6:9
base a um ensino cuja pobreza argumentacional salta aos olhos de qualquer um.
• Considerações Finais
tem a ver com uma entidade fantasmagórica dentro do corpo, como na filosofia
grega. A alma na Bíblia é, antes de tudo, uma referência ao homem em si, sendo
uma “alma vivente” nada a mais que um “ser vivo” – razão por que os animais são
almas viventes tanto quanto os humanos. Isso explica por que a alma é tão
coisas físicas tanto quanto com coisas espirituais. Tudo o que é próprio do corpo (o
que inclui comer, beber, tocar e até morrer, como veremos no capítulo seguinte)
também é próprio da alma, que interage com aquilo que é físico com a mesma
122
O que é a alma? 123
A Bíblia também se refere à alma como a força vital que torna um corpo vivo,
finalidade não é providenciar uma vida segura após a morte fora de um corpo, mas
meramente manter o corpo vivo. Tanto um como o outro sentido implicam em sua
mortalidade, uma vez que nem a pessoa em si, muito menos seu sangue,
estudamos as 858 ocorrências de alma na Bíblia, das quais mais de um terço alude
à morte da alma nos originais – um feito e tanto para algo inerentemente imortal.
De fato, como veremos no capítulo seguinte, nada morre tanto na Bíblia quanto a
alma, que é justamente aquilo que os imortalistas apontam como sendo imortal.
123
A morte da alma imortal 124
escrever uma versão totalmente nova do mesmo. Na versão antiga do livro, foram
exibidos 58 versículos bíblicos que nos originais hebraico e grego falam da morte
da alma, com poucas dezenas estudados em particular. Para esta nova versão, eu
fiz questão de examinar uma a uma de cada uma das 858 ocorrências de nephesh
expectativas. Para a minha própria surpresa, descobri que nada a menos que 300
dessas 858 vezes em que nephesh ou psiquê aparecem nos originais estão
absolutos como na proporção de citações. Se você ainda não estava inteirado disso
de todos os tempos são os tradutores, que suprimem a palavra “alma” sem a menor
cerimônia na maior parte (senão em todas) das vezes em que ela aparece nesses
contextos. Assim, embora grande parte dos textos que falam da morte de alguém
124
A morte da alma imortal 125
conseguiram salvar a noção dualista tradicional que contrasta corpo e alma, onde
pode morrer sob nenhuma hipótese. Embora tal dualismo seja complemente
filosofia grega levou muitos a se esforçarem em conciliar uma doutrina com a outra,
o que por fim resultou na supressão sumária de todos os textos que falam da morte
é provável que já tenha passado por textos como Lv 24:17, que diz que “quem matar
a alguém certamente morrerá”50. Se eu posso apostar, você não deve ter notado
nada de mais neste texto, e provavelmente deve ter imaginado que o mesmo se
“fantasminha” imortal. O que você certamente não deve ter nem suspeitado é que
o hebraico deste texto traz «ve'iysh kiy yakkeh kol-nephesh 'âdhâm moth yumâth»,
alma, os tradutores evitaram verter “alma” neste texto, para que ninguém pensasse
na hipótese de que a alma morre. Assim, um texto que em teoria seria decisivo para
fazer muita gente repensar a ideia de uma alma inerentemente imortal torna-se
50
De acordo com a tradução da ACF.
125
A morte da alma imortal 126
mais um como outro qualquer, que as pessoas olham, leem e passam para o
próximo versículo sem suspeitar de nada. Isso nos leva a questionar quantas vezes
que Deus ordena que “todos os que tiverem matado alguma pessoa ou tiverem
tocado em algum morto devem se purificar no terceiro dia” (Nm 31:19). A parte que
uma alma”. Deus também ordenou que os israelitas escolhessem “algumas cidades
que lhes sirvam de refúgio, para que, nelas, se acolha o homicida que matar alguém
preferiu colocar “alguém”. Nas cidades de refúgio, “todo aquele que tiver matado
alguém (nephesh) sem intenção poderá fugir para lá” (Nm 35:15).
Outro regulamento da lei de Deus previa que “todo aquele que matar uma
testemunha não deporá contra alguém para que morra” (Nm 35:30). Aqui, mais uma
vez, «matar uma pessoa» é matar uma nephesh, no hebraico. Da mesma forma,
Deus declara “maldito aquele que aceitar suborno para matar pessoa inocente” (Dt
27:25), onde “matar pessoa inocente” é nakah naqiy nephesh. A punição para o
estuprador era a mesma “daquele que ataca e mata o seu próximo” (Dt 22:26), onde
126
A morte da alma imortal 127
milhares de filisteus. O que poucos sabem é que no texto onde ele exclama “que eu
morra com os filisteus” (Jz 16:30), o que realmente foi dito por ele foi tâmoth
naphshiy `im-pelishtiym – “morra a minha alma com os filisteus”. Sansão sabia que
a sua morte era a morte da alma, porque não imaginava que a nephesh fosse um
gregos apareceriam com essa ideia inovadora e estranha à mentalidade dos judeus
Assim como Sansão, Davi confessa ao sacerdote Abiatar que “eu fui a causa
da morte de todas as pessoas da casa de seu pai” (1Sm 22:22). A “morte de todas as
141, onde declara que “os meus olhos estão fixos em ti, ó Soberano Senhor; em ti
entregues minha alma à morte”. O que mostra que, para Davi, a alma era tão mortal
Ao conquistar Libna, Josué “matou à espada toda nephesh que nela vivia” (Js
10:30), assim como fez em Láquis (Js 10:32) e Hazor (Js 11:11). Como era de se
tradutores imortalistas jamais admitiriam a ideia de uma alma imaterial e imortal ser
nephesh dos textos, optando por “matou à espada todos os que nela estavam” (Js
11:11) em vez de “matou à espada toda alma que nela estava”. É o mesmo que
ocorre em Pv 19:18, onde «não queiras a morte dele» ignora a presença da nephesh
127
A morte da alma imortal 128
dele”.
versão traduz nephesh por “alma” em textos que falam da sua morte. Um exemplo
é Jó 36:14, onde o jovem e sábio Eilú declara a respeito dos ímpios que “a sua alma
morre na mocidade, e a sua vida perece entre os impuros”. Mesmo neste caso,
traduz por “alma”, e todas as outras dão um jeito de tirar a alma do texto.
Que a minha alma morra da morte dos justos, e seja o meu fim como o seu”. Da
mesma forma, Isaías profetiza a respeito de Jesus que ele “derramou a sua alma na
Senhor diz pela boca do profeta que a alma pode ser morta:
O texto bíblico mais comumente usado pelos mortalistas é o que diz que “a
alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18:4, 20), já que é um dos únicos que a maioria
das versões não omite a alma do texto. A razão mais provável por que os tradutores
abriram uma exceção para essa passagem é porque ela não fala da primeira morte
128
A morte da alma imortal 129
(a morte que sofremos ao final desta vida, à qual os textos anteriores se referem),
mas à segunda morte, isto é, a morte que os ímpios sofrerão após a ressurreição. E
como para eles essa morte é meramente “espiritual”, eles não se incomodaram em
“espiritual” para se referir ao inferno, não da morte da alma do justo nesta vida com
a mesma naturalidade com que a Bíblia fala da morte do corpo. E como quase
compram a ideia de que a Bíblia só fala da morte da alma de uma forma espiritual,
quando se todos os textos fossem traduzidos com a mesma coragem com que os
“Saiba que aquele que fizer converter do erro do seu caminho um pecador, salvará
da morte uma alma, e cobrirá uma multidão de pecados” (Tg 5:20). Aqui, “salvar da
morte uma alma” obviamente não se refere a esta vida, pois nesta vida todos
morrem. Diz respeito à vida futura, quando os salvos viverão para sempre, e os
4:
129
A morte da alma imortal 130
“Jesus disse ao homem da mão ressequida: Venha aqui para o meio! Então
lhes perguntou: É lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma
vida ou deixar morrer? Mas eles ficaram em silêncio” (Marcos 3:3-4)
O trecho que diz «salvar uma vida», no grego, é «salvar a alma-psiquê». Mas
nesta ocasião específica Jesus não estava falando de salvação espiritual, porque se
referia a uma cura física. “Salvar a alma ou deixar morrer” dizia respeito a curar
aquele homem ou deixar que ele morresse, o que seria a morte da própria alma-
consenso é que a alma é passível de morrer, tanto nesta vida como na próxima.
a morte da alma explicitamente, ainda há outros tantos que a sugerem sem margem
diz: ‘Rogo-te que me deixes viver’”. Embora a NVI traduza por “me deixes viver”, o
original literalmente diz nephesh chayah – “deixe minha alma viver”. Ben-Hadade
jamais teria suplicado por sua alma ao rei Acabe se a alma fosse imortal. Neste caso,
ele poderia pedir que seu corpo vivesse, mas não sua alma, que Acabe não poderia
Caso semelhante vemos com o oficial que implorou por sua vida a Elias,
dizendo: “Homem de Deus, tenha consideração por minha vida e pela vida destes
cinquenta soldados, teus servos!” (2Rs 1:13). Em vez de “vida” (que no hebraico é
chay), o hebraico traz nephesh. O oficial sabia do que havia acontecido com os
130
A morte da alma imortal 131
outros dois oficiais e seus soldados, que foram consumidos pelo fogo que Elias
rogou que caísse do céu sobre eles (2Rs 1:9-12). Foi por isso que ele pediu
consideração por sua vida – no hebraico, por sua alma –, para que não acontecesse
com ele o mesmo que havia acontecido com os que foram enviados antes dele (ou
seja, a morte). Isso sugere que não apenas seus corpos haviam sido consumidos
se vingar pela morte dos profetas de Baal e jurou: “Que os deuses me castiguem se
amanhã a estas horas eu não tiver feito com a sua vida o mesmo que você fez com
a vida de cada um deles!” (1Rs 19:2). Mais uma vez, é a alma-nephesh que aparece
no hebraico, no lugar onde os tradutores traduzem por “vida”. Uma vez que Elias
havia matado os profetas de Baal, é evidente que o que ela queria fazer com a alma
extermínio dos judeus, mas que sofreu um grande plot twist e foi ele mesmo
condenado à forca. Pouco antes de morrer, “percebendo que o rei já tinha decidido
condená-lo, ficou ali para implorar por sua vida à rainha Ester” (Et 7:7). Como você
já deve suspeitar, o hebraico traz nephesh onde consta “vida”. Hamã sabia que
morreria, e que essa morte seria a morte da alma. No fim da história, Ester
vidas” (Et 8:11), isto é, defender sua nephesh dos inimigos que queriam matá-los (Et
9:16).
Matar uma pessoa era matar uma nephesh, implorar pela vida era implorar
pela nephesh, e defender sua vida era defender sua nephesh. Para os judeus, a
131
A morte da alma imortal 132
nephesh estava longe de ser um ente imaterial e imortal impossível de ser atingido
ou morto, mas se referia tão-somente à vida humana no corpo físico, que cessava
na morte. Por isso Jó pergunta: “Por que esperar, se já não tenho forças? Por que
prolongar a vida, se o meu fim é certo?” (Jó 6:11). Em vez de “prolongar a vida”, o
hebraico fala de “prolongar a nephesh”. Uma alma eterna e metafísica não pode ser
nenhum poderá reter viva a sua alma” (Sl 22:29). A razão por que não é possível reter
viva a alma é porque a alma morre, simples assim. Nesse mesmo salmo, o salmista
pede ao Senhor: “Livra a minha alma da espada, e a minha predileta da força do cão”
(Sl 22:20). A “espada” em questão não era uma espada espiritual metafísica com
poderes mágicos de destruir um fantasma imortal, mas a mesma espada pela qual
tantos pereciam nas batalhas. Rogar que a alma fosse preservada da espada nada
Por isso Davi diz em outro salmo que “Ele me guarda ileso na batalha, ainda
que muitos estejam contra mim” (Sl 55:18). O hebraico deste texto também traz
nephesh (“ele guarda a minha alma ilesa na batalha”, seria a tradução mais precisa).
ímpio que não temesse a Deus também a tivesse preservada ilesa nas batalhas. Tal
ideia conflitaria com o Salmo 66, que diz que “é Ele quem preserva com vida a nossa
O salmista pede ainda que “não entregues a vida da tua pomba aos animais
selvagens; não te esqueças para sempre da vida do teu povo indefeso” (Sl 74:19). A
“pomba” aqui se refere a ele mesmo, os “animais selvagens” aos seus perseguidores,
132
A morte da alma imortal 133
e o termo hebraico aqui traduzido como “vida” é nephesh. Sua alma ser “entregue”
aos “animais selvagens” significa morrer pelas mãos deles, o que o salmista sabia
ser uma possibilidade real. Essa ideia é reforçada no Salmo 124, também davídico,
onde lemos:
“Se não fora o Senhor, que esteve ao nosso lado, quando os homens se
levantaram contra nós, eles então nos teriam engolido vivos, quando a sua
ira se acendeu contra nós. Então as águas teriam transbordado sobre nós, e a
corrente teria passado sobre a nossa alma; então as águas altivas teriam
passado sobre a nossa alma; bendito seja o Senhor, que não nos deu por
presa aos seus dentes. A nossa alma escapou, como um pássaro do laço dos
transmitida é de como sua alma escapou por pouco de morrer pelas mãos dos
que assim responde ao rei Zedequias: “Assim diz o Senhor, Deus dos Exércitos, Deus
a tua alma, e esta cidade não se queimará a fogo, e viverás tu e a tua casa” (Jr 38:17).
Disso subtende-se que, se Zedequias não se entregasse, sua alma não viveria e a
trono, Adonias: “Que Deus me castigue com todo o rigor, se isso que Adonias falou
não lhe custar a sua própria vida!” (1Rs 2:23). O hebraico traz nephesh em lugar de
133
A morte da alma imortal 134
“vida”, o que significa que Adonias pagaria com a própria alma por aquilo que fez –
e que de fato resultou em sua morte (1Rs 2:34). Se pudéssemos voltar no tempo e
exemplo, Deus diz que todos os que se achegarem às coisas santas “tendo sobre si
a sua imundícia, aquela alma será extirpada de diante da minha face” (Lv 22:3), onde
“extirpar” corresponde ao hebraico karath, que significa «cortar fora»51. Uma vez
que a face do Deus onipresente contempla toda a criação, ser cortado fora da Sua
Quando Josué tomou Maquedá, “atacou a cidade e matou o seu rei à espada
e exterminou todos os que nela viviam” (Js 10:28), onde “exterminar” corresponde
hebraico. O mesmo se repete sete versos adiante, quando Josué cerca Eglom e
«destrói totalmente» toda nephesh que nela estava (Js 10:35), e novamente quatro
versos depois, quando Josué conquista Debir e extermina (charam) toda nephesh
de Hebrom e “destruíram totalmente a cidade e todos os que nela viviam” (Js 10:37).
51
#3772 da Concordância de Strong.
52
#2763 da Concordância de Strong.
134
A morte da alma imortal 135
Aqui é usada uma palavra diferente no hebraico, nakah, que significa «golpear,
açoitar, atingir, bater, sacrificar, matar»53, mas é novamente nephesh que aparece
em relação a quem morreu. Em Ezequiel, Deus diz que “o faraó, com seu poderoso
exército e seus batalhões, não será de nenhuma ajuda para ele na guerra, quando
rampas são construídas e obras de cerco são erguidas para destruir muitas vidas
livra-me; para que eles não arrebatem a minha alma, como leão, despedaçando-a,
sem que haja quem a livre” (Sl 7:1-2). “Arrebatar” a alma e “despedaçá-la” não tem
nada a ver com levar uma alma em segurança pro céu, mas sim com destruí-la, que
claro alguns versos adiante, quando ele complementa: “Persiga-me o meu inimigo
salmista diz que os hebreus “andaram errantes pelo deserto, por lugares áridos, sem
alma” (Sl 107:4-5). Sabemos que toda aquela geração pereceu no deserto, à exceção
templo” (Jn 2:7). A NVI traduz por «quando a minha vida já se apagava», e a NAA
por «quando minha vida se esvaía», mas é nephesh que aparece no hebraico.
53
#5221 da Concordância de Strong.
135
A morte da alma imortal 136
“Eles clamam às suas mães: ‘Onde estão o pão e o vinho?’. Ao mesmo tempo
(Lamentações 2:12)
corpo vai morrendo (seja pela fome ou por outra razão), a própria alma vai
a alma morre, como acompanha todo o ciclo de degeneração física que culmina na
morte. Nada mais distante da noção grega de uma alma intangível e independente
AT, é a de ser “eliminado do meio povo”, o que acontecia quando alguém cometia
um pecado grave e era punido com a pena de morte. Por exemplo, “quando alguém
136
A morte da alma imortal 137
meu rosto contra ele e o eliminarei do meio do seu povo” (Lv 20:6). Embora a
dia da expiação, “toda a alma que naquele mesmo dia se não afligir será extirpada
Somos informados ainda que “todo aquele que fizer alguma destas
do seu povo” (Lv 18:29), e que ”o homem incircunciso, cuja carne do prepúcio não
estiver circuncidada, aquela alma será extirpada do seu povo” (Gn 17:14). Também
“toda a pessoa (nephesh) que comer algum sangue, aquela pessoa (nephesh) será
extirpada do seu povo” (Lv 7:27), e “qualquer que o comer levará a sua iniquidade,
porquanto profanou a santidade do Senhor; por isso tal alma será extirpada do seu
No sétimo dia, “toda a alma que fizer algum trabalho eu a destruirei do meio
do seu povo” (Lv 23:30). A punição para a alma que blasfemasse também era ser
“eliminada do meio do seu povo” (Nm 15:30), e “a pessoa (nephesh) que estiver
Jesus, diz que “toda a alma que não escutar esse profeta será exterminada dentre o
extirpada do meio do povo não significava sua destruição, mas apenas seu
traduzir nestes casos por “alma” mesmo). O problema é que essas pessoas
137
A morte da alma imortal 138
«eliminadas do meio do povo» não migravam a um outro povo, como quem sofre
morrerá; porque qualquer que nele fizer alguma obra, aquela alma será eliminada
do meio do seu povo” (Êx 31:14). Ser eliminado do meio do povo, portanto, era o
mesmo que morrer – o que aqui, assim como em todos os outros textos, é a morte
da alma-nephesh.
hebreus não tinham a menor noção da alma como um “fantasminha” à moda grega
(nephesh). Por exemplo, a tradução da NAA diz que o sumo sacerdote “não se
aproximará de cadáver algum, nem se contaminará por causa do seu pai ou da sua
mãe” (Lv 21:11). A parte traduzida por “cadáver algum”, no hebraico, é muwth
nephesh (alma morta). Literalmente, o que o texto está dizendo é que o sumo
sacerdote não podia se aproximar de uma alma morta – o que seria impossível se
tocar em algo contaminado por um cadáver, ou se lhe sair o sêmen” (Lv 22:4), onde,
mais uma vez, “cadáver” é a tradução escolhida para nephesh. Também o nazireu,
“durante todo o período de sua separação para o Senhor, não poderá aproximar-
138
A morte da alma imortal 139
pecado e o outro como holocausto, para fazer propiciação por ele, pois pecou ao
Deus também ordena aos filhos de Israel “que expulsem do arraial todo
leproso, todo o que tiver um fluxo e todo impuro por ter tocado em algum morto”
puderam celebrar a Páscoa naquele dia porque se haviam tornado impuros por
terem tocado num cadáver (nephesh)” (Nm 9:6), já que a lei dizia que “quem tocar
num cadáver humano ficará impuro durante sete dias” (Nm 19:11), onde “cadáver
Nm 19:13 adverte que “todo aquele que tocar no cadáver de uma pessoa, e
Israel”. A nephesh aqui aparece duas vezes no hebraico: primeiro quando fala do
cadáver (muwth nephesh) de uma pessoa, e depois quando diz que essa pessoa
(nephesh) seria eliminada de Israel. Diante desses textos, o Dr. James Dunn destaca
ser “notável aqui o fato de que nephesh pode ser usada em relação a uma pessoa
distintivas da pessoa”54.
tradutores imortalistas é quando Ageu pergunta: “Se alguém que for contaminado
pelo contato com o corpo morto, tocar nalguma destas coisas, ficará ela imunda? E
54
DUNN, James D. G. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 109.
139
A morte da alma imortal 140
Versão Tradução
CNBB Cadáver
“alma”, apesar de ser nephesh que consta no hebraico, e não corpo (basar) ou
cadáver (peger). A razão por que todas as traduções evitam traduzir nephesh como
140
A morte da alma imortal 141
fluídico e intangível, que além de tudo é imune à morte, uma muwth nephesh não
pode ser realmente uma alma morta com a qual as pessoas podem ter contato
físico, como diz o texto hebraico, mas apenas um corpo morto. Através dessa
a noção grega de alma, e anular o conceito hebraico em que uma alma vivente nada
mais é que um corpo com vida, que ao morrer torna-se uma alma morta.
Temer pela alma – O fato dos hebreus entenderem corpo e alma como
inseparáveis explica por que eles temiam pela nephesh quando sua vida estava em
risco, algo difícil de imaginar vindo de um imortalista que acredita que sua alma
gibeonitas, que se aliaram a Josué por medo de serem destruídos assim como os
outros povos:
“É que foi anunciado a estes seus servos, como certo, que o Senhor, seu Deus,
havia ordenado ao seu servo Moisés que lhes desse toda esta terra e
nossa vida por causa de vocês e foi por isso que fizemos aquilo” (Josué 9:24)
O trecho que diz “tememos muito pela nossa vida” é, no hebraico, m`od yare'
nephesh – “tememos muito pela nossa alma”. Eles não temiam pela alma por
pensarem que ela era imortal e que iria pro céu após a morte, mas justamente
porque temiam que sua alma morresse. Da mesma forma, Deus declara em Ezequiel
a respeito do faraó:
141
A morte da alma imortal 142
“Farei que muitos povos fiquem chocados ao vê-lo, e que os seus reis fiquem
Aqui, mais uma vez, é nephesh que aparece onde o tradutor traduz por
(nephesh) está sempre em perigo, mas não me esqueço da tua lei” (Sl 119:109).
Devemos nos perguntar: a qual perigo a alma dele estava sempre exposta? O
Deus? Parece que não. Obviamente, o perigo que o salmista se refere é o de sua
nephesh morrer pelas mãos de seus perseguidores, uma tônica muito frequente
nos salmos. Isso porque eles não viam a alma como um ente imortal pertencente a
um outro mundo, mas, ao contrário, como tão vulnerável quanto qualquer parte do
corpo.
Arriscar a alma – Uma vez que para os hebreus a alma era tão vulnerável
quanto o corpo, colocar a vida em risco não era apenas arriscar o corpo, mas
também a alma. Apesar de hoje em dia, influenciados pelo dualismo platônico, nós
envolvendo salvação, eles falavam dessa maneira do jeito mais natural possível, a
respeito da morte física. Jotão, por exemplo, disse aos cidadãos de Siquém que
“meu pai lutou por vocês e arriscou a vida para livrá-los das mãos de Midiã” (Jz 9:17).
142
A morte da alma imortal 143
O mesmo ocorre com Jefté, o qual depõe que “arrisquei a minha vida e fui
lutar contra os filhos de Amom” (Jz 12:3), onde é novamente nephesh que aparece
no hebraico. Jônatas diz a seu pai Saul que Davi “arriscou a vida (nephesh) quando
matou o filisteu” (1Sm 19:5), não porque ele colocou em risco sua salvação espiritual
ao lutar com o gigante Golias, mas porque sua integridade física estava em risco.
Assim, nephesh era usada não no sentido de uma alma espiritual etérea, mas como
referência à vida num corpo físico. O próprio Davi se recusou a beber a “água
representa o sangue desses homens que arriscaram a própria vida” (1Cr 11:19), isto
(nephesh) para conseguir o nosso pão, por causa da ameaça que vem do deserto”
(Lm 5:9).
No NT, sabemos que Paulo e Barnabé são “homens que têm arriscado a vida
pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (At 15:26), onde “vida” é a tradução
escolhida para psiquê (alma). Aos filipenses, Paulo testemunha que Epafrodito
“arriscou a vida (psiquê) para suprir a ajuda que vocês não me podiam dar” (Fp 2:30),
e aos romanos diz que Áquila e Priscila “pela minha vida (psiquê) arriscaram a sua
própria cabeça” (Rm 16:4). O fato de uma parte do corpo (a cabeça) ser citada junto
com a alma no mesmo contexto (de arriscar a vida) sugere que ambas eram vistas
Dar a alma – Se alguém pode arriscar sua alma, no sentido de expor sua alma
submetê-la à morte em favor de alguém. Essa linguagem foi muito usada por Jesus
no NT, mas já havia sido usada a seu respeito desde Isaías, que profetizou que ele
daria “a sua alma como oferta pelo pecado” (Is 53:10). Jesus disse que o Filho do
143
A morte da alma imortal 144
homem “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por
muitos” (Mt 20:28). Embora o tradutor tenha optado por “vida”, é psiquê que
encontramos no grego.
Ele se intitulou o bom pastor, e “o bom Pastor dá a sua vida (psiquê) pelas
ovelhas” (Jo 10:11). Assim como o Pai o conhece, “também eu conheço o Pai, e dou
a minha vida (psiquê) pelas ovelhas” (Jo 10:15). Ninguém tem maior amor do que
aquele que “dá a sua vida (psiquê) pelos seus amigos” (Jo 15:13), e o Pai o amava
porque “eu dou a minha vida (psiquê) para recebê-la outra vez” (Jo 10:17). Em
alusão a essas palavras, João disse que “Jesus Cristo deu a sua vida (psiquê) por nós,
e devemos dar a nossa vida (psiquê) por nossos irmãos” (1Jo 3:16). Pedro pensou
que conseguiria dar a sua alma (morrer) por Jesus, mas foi contrariado com a dura
realidade:
“Simão Pedro lhe perguntou: ‘Senhor, para onde vais?’. Jesus respondeu:
‘Para onde vou, vocês não podem me seguir agora, mas me seguirão mais
tarde’. Pedro perguntou: ‘Senhor, por que não posso seguir-te agora? Darei a
minha vida por ti!’. Então Jesus respondeu: ‘Você dará a vida por mim?
Asseguro-lhe que, antes que o galo cante, você me negará três vezes!’”
(João 13:36-38)
Mais uma vez, onde aparece “vida”, é psiquê (alma) que consta no grego.
Esse uso de “alma” também contrasta diretamente com a noção grega que nós
herdamos. Nós até podemos dizer que alguém “deu a alma”, desde que em um
“deu a alma dentro de campo”, no sentido de que ele se esforçou muito. Mas jamais
144
A morte da alma imortal 145
literalmente submetê-la à morte, já que ninguém pensava que ela pudesse ser
imortal.
morte por alguém, a expressão “alma por alma” se refere a alguém cuja alma é
morta como punição por ter matado outra alma. Sempre quando essa expressão
ocorre na Bíblia, as versões em português preferem traduzir por “vida”, embora seja
nephesh que conste no hebraico. No famoso texto do «olho por olho», somos
informados que “se houver danos graves, a pena será vida por vida, olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por
ferida e contusão por contusão” (Êx 21:23-25), onde “vida por vida” é nephesh
Em outros casos, nephesh tachath nephesh significava que a pessoa teria sua
alma morta por ter poupado a alma de alguém que era para morrer. Por exemplo,
quando o rei Acabe poupou a vida de Ben-Hadade, rei da Síria, um profeta lhe disse
que “porquanto soltaste da mão o homem que eu havia posto para destruição, a
tua vida (nephesh) será em lugar da sua vida (nephesh), e o teu povo em lugar do
seu povo” (1Rs 20:42). Da mesma forma, quando Jeú instruiu seus soldados a matar
homens que estou entregando a vocês, será a sua vida (nephesh) pela dele” (2Rs
10:24).
Um caso em particular ocorre quando Raabe suplica aos espias que sua
nephesh e as de sua família fossem poupadas da morte (Js 2:13), e eles respondem:
“A nossa vida (nephesh) responderá pela vossa até à morte, se não denunciardes
145
A morte da alma imortal 146
este nosso negócio, e será, pois, que, dando-nos o Senhor esta terra, usaremos
contigo de misericórdia e de fidelidade” (Js 2:14). A NVI traduz este texto como «as
nossas vidas pelas de vocês», o que significa que eles se comprometeram até a
morte com o juramente que fizeram. Se eles não poupassem a nephesh de Raabe e
de sua família, a nephesh deles mesmos pagaria com a morte por descumprir a
promessa.
Poupar a alma – Por falar em poupar a alma, temos aqui outra linguagem
frequente na Bíblia. Quando Abraão chegou ao Egito, pediu à sua mulher Sara que
se dissesse sua irmã, “para que me tratem bem por amor a você e minha vida seja
poupada por sua causa” (Gn 12:13). Embora os tradutores tenham traduzido por
visto a Deus em Peniel, Jacó declarou: “Vi a Deus face a face e, todavia, minha vida
(nephesh) foi poupada” (Gn 32:30). Quando os anjos pediram para Ló que fugisse
para as montanhas, ele respondeu: “Eis que agora aquela cidade está perto, para
fugir para lá, e é pequena; ora, deixe-me escapar para lá (não é pequena?), para que
Quando Davi poupou a vida de Saul, este respondeu: “Pequei! Volte, meu
filho Davi! Como hoje você considerou preciosa a minha vida (nephesh), não lhe
farei mal de novo” (1Sm 26:21). Ao que Davi retrucou: “Assim como hoje a sua vida
(nephesh) foi de grande valor aos meus olhos, assim também seja a minha vida
(nephesh) aos olhos do Senhor Deus, e que ele me livre de toda a angústia” (v. 24).
Sua nephesh foi considerada “preciosa” ou “de grande valor” não porque fosse
eterna e incapaz de morrer, mas justamente porque foi poupada da morte por
146
A morte da alma imortal 147
seus oficiais, que lhe disseram: “Soubemos que os reis do povo de Israel são
misericordiosos. Nós vamos até o rei de Israel vestidos com panos de saco e com
cordas no pescoço. Talvez ele poupe a tua vida (nephesh)” (1Rs 20:31). Quem
também pediu que sua alma fosse poupada foi a rainha Ester, que rogou ao rei
Xerxes: “Se posso contar com o favor do rei, e se isto lhe agrada, poupe a minha
vida (nephesh) e a vida do meu povo; este é o meu pedido e o meu desejo’” (Et 7:3).
O rei concedeu o pedido, e com isso a alma da rainha e de seu povo foi poupada da
morte.
Quando Satanás pediu a Deus permissão para ferir Jó, o Senhor respondeu:
“Pois bem, ele está nas suas mãos; apenas poupe a vida (nephesh) dele’” (Jó 2:6).
Como resultado, Jó sofreu as piores chagas possíveis, mas foi poupado da morte.
dos judeus da Babilônia para ser maltratado, o profeta respondeu: “Eles não o
entregarão. Obedeça ao Senhor fazendo o que eu lhe digo, para que estejas bem e
a tua vida (nephesh) seja poupada’” (Jr 38:20). Nem sempre, contudo, a alma é
dos primogênitos (Sl 78:51), o salmista diz que Deus “não poupou as suas almas da
Conservar a alma – Para aqueles cuja alma é poupada da morte, a Bíblia diz
que sua alma foi “conservada”. Isso pode se aplicar tanto em relação à preservação
Provérbios, onde lemos que “o que guarda a sua boca conserva a sua alma, mas o
147
A morte da alma imortal 148
que abre muito os seus lábios se destrói” (Pv 13:3). O segundo sentido vemos em
Uma vez que nesta vida todos morrem, o «conservar a alma em vida» diz
respeito à vida póstuma, quando os salvos terão a alma preservada para a vida
eterna, enquanto os ímpios serão eliminados. Jesus falou sobre isso quando disse
que “quem ama a sua vida (psiquê) perde-a; mas aquele que odeia a sua vida
(psiquê) neste mundo irá preservá-la para a vida eterna” (Jo 12:25). Como
numerosos exemplos bíblicos confirmam, “perder a alma” é o mesmo que ter a alma
morta, o que também pode se aplicar tanto à vida presente como à futura.
pensamos que essa pessoa perdeu a salvação, ou que se desviou da fé, ou que foi
para o inferno, ou que vendeu a alma para o diabo, ou ainda, em um sentido mais
figurado, que perdeu o ânimo para fazer qualquer coisa. Mas jamais pensaríamos
que a alma dessa pessoa literalmente morreu, dada a influência que sofremos do
pensamento grego. Tão maciça é essa influência que se alguém dissesse que
perdeu um parente todos entenderiam naturalmente que esse parente morreu, mas
se dissesse que ele perdeu a alma pensaríamos em tudo, menos que ele morreu.
148
A morte da alma imortal 149
sua família perderão a vida” (Jz 18:25). No hebraico, o trecho aqui traduzido como
“perderão a vida” é 'acaph nephesh (perder a alma). Eles não estavam falando sobre
tirar a salvação de Mica, nem sobre condená-lo ao inferno, tampouco sobre fazer
declara: “Se comi os seus frutos sem pagar ou se causei a morte aos seus donos,
que ela produza espinhos em vez de trigo, e joio em lugar de cevada” (Jó 31:39-40).
A parte que diz «se causei a morte aos seus donos», no hebraico, é melhor traduzido
Jesus também disse que “quem quiser salvar a sua vida a perderá; e quem
perder a vida por minha causa, esse a achará” (Mt 16:25). “Perder a vida” por causa
de Jesus é ser fiel a ele até o martírio, o que no grego é apollumi ho psiquê (perder
a alma). Por causa da filosofia grega, nós só conseguimos pensar que alguém
perda da salvação, mas, para Jesus, “perder a alma” é morrer por ele nesta vida, o
que pode acontecer com qualquer justo que nele crê. Mas como os imortalistas só
“Porque qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas, qualquer que
perder a sua vida por amor de mim e do evangelho, esse a salvará. Pois, que
aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma? Ou, que
daria o homem pelo resgate da sua alma?” (Marcos 8:35-37)
149
A morte da alma imortal 150
por “vida” na primeira parte do texto, que fala de «perder a sua vida por amor de
mim e do evangelho», mas a traduz por “alma” na continuação, que fala sobre
«ganhar o mundo todo e perder a sua alma». A razão para isso é simples: como a
primeira parte do verso fala da morte física e a segunda da morte final (que para os
em traduzir psiquê por alma no trecho final, mas a suprimem da primeira parte, que
fala de morrer por Jesus (já que para eles a alma é imortal e portanto não pode
morrer). E como quase ninguém tem por hábito consultar o que dizem os originais,
severa, ele exortou a tripulação “que tenham coragem, porque nenhuma vida
(psiquê) se perderá, mas somente o navio” (At 27:22). O sentido é que apenas o
navio seria destruído, mas não as almas-psiquês dos tripulantes – algo inteiramente
se a psiquê é passível de ser destruída tanto quanto o navio onde estavam. Caso
contrário, ele estaria apenas garantindo o que todo mundo já sabia e não
salvar uma. Você com certeza já deve ter ouvido muito sobre “salvar almas”, quase
“salvar almas”, que Jesus veio para salvar as almas dos pecadores e que salvar almas
é “saquear o inferno”. Mas um sentido que você nunca verá alguém citar, mesmo
150
A morte da alma imortal 151
sendo muito mais frequente na Bíblia, é de salvar uma alma da morte física à qual
ela estaria fadada55. Isso, mais uma vez, decorre do conceito platônico que
carregamos conosco, onde salvar uma alma da morte simplesmente não faz
Na Bíblia, entretanto, vemos que “Saul enviou alguns homens à casa de Davi
para vigiá-lo e matá-lo de manhã; mas Mical, a mulher de Davi, o alertou: ‘Se você
não fugir esta noite para salvar sua vida, amanhã estará morto’” (1Sm 19:11). O
trecho em que Mical diz para Davi “salvar sua vida”, no hebraico, é malat nephesh
(salvar a alma). Mas Mical claramente não tinha a intenção de salvar a alma de Davi
pregando-lhe o evangelho para que ele não fosse pro inferno. Ao contrário, ela
queria livrar Davi da morte, que era o que Saul (que também não estava preocupado
com salvação ou perdição espiritual) estava tramando contra ele. Aqui, portanto,
“salvar a alma” não é converter alguém, mas evitar que a alma morresse fisicamente.
repreendeu por ter “humilhado todos os teus soldados, os quais salvaram a tua vida
(nephesh)” (2Sm 19:5). Como você já deve suspeitar, a intenção dos soldados não
era converter Davi, mas protegê-lo fisicamente de todas as ameaças. Ao salvar Davi
da morte, eles salvaram sua nephesh, dado que a nephesh morreria assim como o
“misericórdia para comigo, salvando-me a vida (nephesh)” (Gn 19:19). Os anjos não
trouxeram a salvação espiritual para Ló – que já era um homem justo –, mas livraram
55
Como veremos no capítulo 17, mesmo quando a Bíblia fala da morte final ela não está falando de uma
morte puramente “espiritual” no sentido de permanecer vivo longe de Deus, mas da segunda morte, que
é tão literal e física quanto a primeira.
151
A morte da alma imortal 152
fogo.
Natã deu a Bate-Seba “um conselho para que você salve a sua vida (nephesh) e a
vida (nephesh) do seu filho Salomão“ (1Rs 1:12). Se lermos a natureza deste
conselho nos versos seguintes (vs. 13-14), vemos que ele não tinha nada de
trono. Até mesmo “Elias teve medo e fugiu para salvar a vida (nephesh)” (1Rs 19:3)
quando perseguido por Jezabel, assim como fizeram os arameus diante dos
deixando o arraial como estava, fugindo para salvar a sua vida (nephesh)” (2Rs 7:7).
Corram para salvar suas vidas (nephesh); tornem-se como um arbusto no deserto”
(Jr 48:5-6), e também: “Fujam da Babilônia! Que cada um salve a sua vida (nephesh)!
Não sejam destruídos por causa da maldade dela!” (Jr 51:6). Amós diz que “os mais
ágeis não encontrarão refúgio, os fortes não poderão usar a sua força, e os valentes
não conseguirão salvar a sua vida (nephesh)” (Am 2:14). Até mesmo “os que vão
montados a cavalo não conseguirão salvar a sua vida (nephesh)” (Am 2:15). Em
152
A morte da alma imortal 153
“Quando eu fizer vir um exército inimigo sobre uma terra, se o povo dessa
terra escolher um homem do meio deles e o constituir por seu atalaia, e se,
ao ver que o inimigo se aproxima, esse atalaia tocar a trombeta e avisar o
povo, então aquele que ouvir o som da trombeta e não se der por avisado, se
o inimigo vier e o abater, esse será responsável pela sua própria morte. Ele
ouviu o som da trombeta e não se deu por avisado; será responsável por sua
própria morte. Se ele tivesse dado atenção ao aviso, salvaria a sua vida
Quando Tiago e João pediram a Jesus autorização para fazer com que um
“E os seus discípulos, Tiago e João, vendo isto, disseram: Senhor, queres que
digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?
sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens,
Note que, ao contrário do que fez com os outros textos, a ACF aqui decidiu
manter “alma” como tradução de psiquê, talvez porque Jesus disse que não veio
atender o pedido dos filhos de Zebedeu naquele momento, o texto nos mostra
claramente que é possível a psiquê ser destruída, mesmo por um fogo que cai
fisicamente do céu (como o que aconteceu com Elias). Caso contrário, Jesus diria
apenas que não veio para destruir os corpos dos homens, já que o que estava em
jogo era a destruição literal e física nesta vida. O fato dele mencionar a alma prova
153
A morte da alma imortal 154
que ela é tão perecível quanto o corpo, em consonância com tudo o que vimos até
aqui.
Livrar a alma – Da mesma forma que o “salvar a alma”, quase sempre que
alguém na Bíblia fala em “livrar a alma” diz respeito a livrar a alma da morte física, e
não a um livramento espiritual de algo que não seja a morte. O salmista louva ao
Senhor porque “tu livraste a minha alma da morte” (Sl 56:13), o que mostra que,
para ele, uma alma morrer era perfeitamente possível. A maioria dos salmos foram
escritos por Davi e expressam sua mais profunda aflição enquanto sofria pelas mãos
de Saul, enquanto Deus o livrava constantemente da morte. Por isso ele diz que
poder da morte” (Sl 86:13), e que “tu livraste a minha alma da morte, os meus olhos
O salmista também declara que “os olhos do Senhor estão sobre os que o
temem, sobre os que esperam na sua misericórdia; para lhes livrar as almas da
morte, e para os conservar vivos na fome” (Sl 33:18-19). O paralelismo mostra que
imortal e um corpo físico e perecível. Para ele, a morte era uma possibilidade tanto
para a alma como para o corpo, e afetava ambos por igual. O dualismo grego nos
faz pensar que é impossível uma alma morrer de fome, mas essa é precisamente a
(nephesh) da morte” (Js 2:13), o que eles concederam quando pouparam Raabe e
sua família da destruição de Jericó. Nos dias de Ezequiel, Israel havia se desviado a
154
A morte da alma imortal 155
tal ponto que Deus disse que “ainda que Noé, Daniel e Jó estivessem no meio dela,
vivo eu, diz o Senhor Deus, que nem um filho nem uma filha eles livrariam, mas
somente eles livrariam as suas próprias almas pela sua justiça” (Ez 14:20). O mesmo
também se aplicava à segunda morte, a morte final. “Se avisares ao ímpio, e ele não
iniquidade, mas tu livraste a tua alma” (Ez 3:19), diz o Senhor ao profeta.
Resgatar a alma – Assim como é possível livrar uma alma da morte, também
é possível resgatá-la da morte, que tem o mesmo significado básico. Deus disse a
Moisés que “quando fizeres a contagem dos filhos de Israel, conforme a sua soma,
cada um deles dará ao Senhor o resgate da sua alma, quando os contares; para que
não haja entre eles praga alguma, quando os contares” (Êx 30:12). O «resgate da
sua alma» se referia à oferta dada ao Senhor para livrar o povo de morrer pelas
pragas. Uma vez que a própria alma é “resgatada”, é evidente que seria ela a morrer
“Se, todavia, o boi costumava chifrar e o dono, ainda que alertado, não o
manteve preso, e o boi matar um homem ou uma mulher, o boi será
apedrejado e o dono também terá que ser morto. Caso, porém, lhe pedirem
um pagamento, poderá resgatar a sua vida (nephesh) pagando o que for
exigido” (Êxodo 21:29-30)
Se um boi matasse alguém, seu dono tinha que ser apedrejado, a não ser
que pagasse um resgate por sua alma à família do falecido. Desta forma, sua
nephesh era resgatada da morte, que seria o seu destino caso não pagasse o
resgate.
155
A morte da alma imortal 156
Tirar a alma – Chegamos agora aos poucos (e únicos) textos usados pelos
versos que falam de “tirar a alma”. Isso acontece porque, da mesma forma que nos
de toda a vida. Assim, quando vemos alguém falando em “tirar” a alma, a primeira
cena que vem à nossa mente é aquela dos filmes de Hollywood, onde uma alma
fantasmagórica sai do corpo ao maior estilo kardecista, indo para sabe-se lá onde –
mesmas versões que têm por hábito omitir a palavra “alma” nos textos que falam
da sua morte fazem questão de incluí-la ali: “E aconteceu que, saindo-se-lhe a alma
(porque morreu), chamou-lhe Benoni; mas seu pai chamou-lhe Benjamim” (Gn
35:18). Outro exemplo é o do menino que Elias ressuscitou, dizendo: “Ó Senhor meu
Deus, rogo-te que a alma deste menino torne a entrar nele. E o Senhor ouviu a voz
de Elias; e a alma do menino tornou a entrar nele, e reviveu” (1Rs 17:21-22). Por fim,
padrão:
“E, estando um certo jovem, por nome Êutico, assentado numa janela, caiu do
terceiro andar, tomado de um sono profundo que lhe sobreveio durante o
156
A morte da alma imortal 157
precisamos primeiramente lembrar que o que nós costumamos chamar por “alma”
não era o mesmo que eles tinham em mente, já que viveram antes da filosofia grega
popularizar o conceito platônico da mesma. Como vimos até aqui com uma densa
nuvem de testemunhas, nephesh para eles nada mais era que a vida que vivemos
num corpo físico, quando não uma alusão ao homem em si. Isso explica por que a
alma “sai” na morte e “volta” na ressurreição: nada a mais que um eufemismo para
a pessoa retorna à vida. Como Ralph Lee Smith corretamente observa, “obviamente
respiração (1Rs 17:8-23) e, em alguns casos, pela perda de sangue. Para eles, a vida
escreve:
faz a nephesh voltar da mansão dos mortos (Sl 30:3, 86:13), deve-se
pensar na volta para a vida sadia de todo o ser humano que, em sua
56
SMITH, Ralph Lee. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo: Vida Nova,
2001, p. 361.
57
WOLFF, Hans Walter. Anthropologie des Alten Testaments. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Mohn,
1973, p. 48.
157
A morte da alma imortal 158
para falar de alguém que morreu (porque o corpo perdeu o princípio vital que o
para o fato da pessoa ter deixado de respirar e seu sangue não mais circular, uma
vez que a alma está associada tanto à respiração como ao sangue. É por isso que
quatro versos antes de Elias ressuscitar o menino, o texto diz: “E depois destas coisas
sucedeu que adoeceu o filho desta mulher, dona da casa; e a sua doença se agravou
Esse trecho final é traduzido pela NVI como «e finalmente parou de respirar».
Essa é a “saída” da alma, isto é, da vida que anima o corpo (e que “volta” na
interiores resulta no reavivamento do corpo, ou, poderíamos dizer, faz com que se
torne uma vez mais uma alma vivente”58. Até mesmo a Enciclopédia Católica
reconhece que “em 1Rs 17:22 nephesh significa sopro de vida”59, e não uma alma
metafísica imortal. Outro texto que lança luz a isso é o que o jovem amalequita
58
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 47.
59
NEW CATHOLIC ENCYCLOPEDIA. Soul (in the Bible). 2ª ed. New York: McGraw-Hill Book Company, 1967.
v. 13, p. 449.
158
A morte da alma imortal 159
O que o amalequita queria dizer com isso não é que toda a extensão de sua
alma imortal ainda estava nele, como se uma parte da alma saísse do corpo de cada
vez, mas sim que ele ainda estava completamente vivo, cuja vitalidade vai se
esvaindo na medida em que a pessoa vai morrendo. Assim, quando ele diz que toda
a sua alma ainda estava nele, o sentido era totalmente diferente do conceito grego,
conceitos prévios que o intérprete traz consigo –, onde parte-se da premissa de que
a alma é aquilo imaginado por Platão para então interpretar os textos bíblicos por
texto esclarece isso com mais precisão do que a oração de Jonas, que, em sua
angústia e aflição, clamou a Deus: “Agora, Senhor, tira a minha vida, eu imploro,
“Tira a minha vida” é a tradução escolhida para laqach nephesh (tirar a alma).
Qualquer imortalista ao se deparar com isso poderia pensar que Jonas estava
pedindo a Deus que retirasse a sua alma do corpo sã e salva para que ele
claramente o que ele realmente desejava: “Ao nascer do sol, Deus trouxe um vento
oriental muito quente, e o sol bateu na cabeça de Jonas, a ponto de ele quase
desmaiar. Com isso ele desejou morrer, e disse: ‘Para mim seria melhor morrer do
159
A morte da alma imortal 160
Onde a NVI traduz por «ele desejou morrer», o hebraico traz sha'al nephesh
muwth (desejou que sua alma morresse). Em outras palavras, quando Jonas pediu
a Deus que “tirasse” a sua alma, ele não estava pedindo que sua alma continuasse
viva em algum lugar, mas justamente o contrário, que ela morresse. “Tirar a alma”,
para Jonas, era apenas um eufemismo para falar da morte da alma, não de sua
ler a Bíblia com as lentes da filosofia grega com a qual estamos habituados, somos
naturalmente propensos a pensar que “tirar a alma” é levar um ser consciente pro
céu fora do corpo, quando essa linguagem denotava algo completamente diferente
“Elias teve medo e fugiu para salvar a vida. Em Berseba de Judá ele deixou o
seu servo e entrou no deserto, caminhando um dia. Chegou a um pé de
giesta, sentou-se debaixo dele e orou, pedindo a morte. ‘Já tive o bastante,
Senhor. Tira a minha vida; não sou melhor do que os meus antepassados’”
(1º Reis 19:3-4)
O trecho que diz «tira a minha alma», no hebraico, é laqach (tomar) nephesh
(alma). Mais uma vez, os imortalistas poderiam ver nisso uma “prova” da
fantasminha dos livros de Allan Kardec que deixa o corpo com consciência e
personalidade após a morte. O problema é que o trecho que diz «pedindo a morte»,
no hebraico, é sha'al nephesh muwth (pediu que sua alma morresse). Assim como
160
A morte da alma imortal 161
Jonas, Elias em sua angústia não estava pedindo pela sobrevivência da alma em um
plano superior, mas apenas que sua alma morresse, na falta de ânimo para
continuar vivo.
Mais uma vez, o “tira a minha alma” era apenas um eufemismo para falar da
morte da alma, no sentido de que o indivíduo perde toda a vitalidade que anima o
corpo. Assim, “tirar” a alma no hebraísmo bíblico tem o mesmo sentido dos textos
que falam de “perder” a alma, os quais, como vimos, aludem à morte e não à
texto, quando Elias diz: “Tenho sido muito zeloso pelo Senhor Deus dos Exércitos,
Onde a ACF traduz por «buscam a minha vida», o original diz baqash
nephesh (buscam a minha alma). Como parece óbvio, seus perseguidores não
estavam buscando sua alma imortal para conduzi-la em segurança ao céu, mas
buscavam sua alma para matá-la. Portanto, “tirar a alma” consistia no mesmo que
“buscar a alma”, e ambos queriam dizer apenas que a alma estava fadada à morte.
Quem “buscava” a sua alma a buscava para matá-la, e era nisso que consistia “tirar”
a alma da vítima, que assim perdia o princípio vital que a mantinha viva. Note o
uma alma é levar um ser consciente desse mundo para um mundo espiritual, nada
no sentido da morte da alma, nunca da sua sobrevivência. Deus disse que as cidades
161
A morte da alma imortal 162
de refúgio serviam “para que o vingador do sangue não persiga o homicida, quando
ficar furioso, e o alcance, por ser longo o caminho, e lhe tire a vida (nephesh), porque
não merece morrer, pois não o odiava” (Dt 19:6). O verso anterior diz que “ele
poderá fugir para uma daquelas cidades para salvar a vida” (v. 5), o que mostra que
a própria nephesh estava sob ameaça. É por isso que quando Davi era perseguido
por Saul, ele questionou a Jônatas: “Qual foi o pecado que cometi contra seu pai
para que ele queira tirar minha vida (nephesh)?’” (1Sm 20:1). Saul não queria mandar
O mesmo pode ser dito a respeito daqueles que “conspiram contra mim,
tramando tirar-me a vida (nephesh)” (Sl 31:13), daqueles que “me retribuem o bem
com o mal e procuram tirar-me a vida (nephesh)” (Sl 35:12) e daqueles que
(nephesh)” (Sl 56:6). Como castigo por seus pecados, Deus entregou o rei Zedequias
“nas mãos de Nabucodonosor, rei da Babilônia, que era seu inimigo e procurava
tirar-lhe a vida (nephesh)” (Jr 44:30). Salomão diz que “o espírito de ganância tira a
vida (nephesh) de quem o possui” (Pv 1:19), e os homens que lançaram Jonas do
navio clamaram ao Senhor para que “não nos deixes morrer por tirarmos a vida
(nephesh) deste homem” (Jn 1:14). Assim, embora Bolton diga que “você não pode
tirar a alma de alguém como pode cortar a mão dela”60, esses numerosos exemplos
demonstram o contrário.
Quando Abigail diz a Davi que “mesmo que alguém te persiga para tirar-te a
vida (nephesh), a vida (nephesh) de meu senhor estará firmemente segura como a
60
BOLTON, Peter. Soulless, but still valuable. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/commentisfree/belief/2010/jan/18/animals-souls-philosophy>. Acesso
em: 15/04/2021.
162
A morte da alma imortal 163
dos que são protegidos pelo Senhor teu Deus, mas a vida (nephesh) de teus
inimigos será atirada para longe como por uma atiradeira” (1Sm 25:29), o que ela
estava querendo dizer com isso não era que uma alma fantasmagórica seria
arremessada para longe como num arremesso de peso, mas sim que os inimigos de
nephesh.
porque não resta mais vida, não porque ela foi transferida a uma outra dimensão.
novamente como um ser vivo ou uma alma vivente, não porque ele estivesse vivo
em outro lugar e então tivesse que retornar ao corpo. Por isso ao lermos a Bíblia é
mas eles não estão falando da mesma coisa. Enquanto o cristão se refere a uma
fantasminha saindo literalmente do corpo, mesmo que isso tenha na Bíblia uma
ninguém imagina que ele esteja falando sobre vida após a morte, mas se fala em
“tirar a alma” essa é a ideia imediata que nos vem à mente, não porque haja de fato
163
A morte da alma imortal 164
A forma grega de pensar a alma torna sem sentido textos como o que
Salomão escreve: “Não explore os pobres por serem pobres, nem oprima os
essência, como poderíamos ser despojados de nós mesmos? O texto só faz sentido
se a alma for entendida como o princípio vital que nos mantém vivos, sem o qual
somos apenas corpos sem vida. Note que o “eu” aqui não é entendido como o que
“sai”, mas como o que “fica” (i.e, o corpo), algo inadmissível caso a nossa
Outro exemplo é o texto em que Zofar declara que “os olhos dos ímpios
desfalecerão, e perecerá o seu refúgio; e a sua esperança será o expirar da alma” (Jó
11:20). Se a alma do ímpio permanecesse viva após a morte, ele jamais teria dito
que sua esperança seria o expirar da alma. É evidente que para Zofar o expirar da
eterno, mas referia-se tão-somente à morte física. O sentido é que os ímpios teriam
uma vida tão atribulada aqui na terra que desejariam a morte, que é o expirar de
A noção de que a alma é um ente que sobrevive à parte do corpo com todas
quais ela consistia meramente no conjunto das funções vitais do organismo, sem o
qual ele é incapaz de permanecer vivo. Não existia a ideia de uma “vida no corpo” e
164
A morte da alma imortal 165
outra “vida fora do corpo”. A vida só é possível de ser vivenciada no corpo presente
como um todo ou à própria vida que ele vive corporalmente, cuja vitalidade está no
sangue.
era possível “buscar” a alma, que era quando alguém intencionalmente procurava
matar o próximo. Davi viu “que Saul saíra à busca da sua vida (nephesh)” (1Sm
23:15), disse que “os que buscam a minha vida (nephesh) me armam laços” (Sl
minha vida (nephesh) para destruí-la” (Sl 35:4) e que “aqueles que procuram a
minha alma para a destruir irão para as profundezas da terra” (Sl 63:9). Nestes dois
fantasma que sobrevive fora do corpo, mas apenas como a vida que se vive no
corpo. Portanto, matar o corpo era matar a alma, e “buscar” a alma era um
eufemismo usado neste mesmo sentido, não uma indicação de vida após a morte.
O Senhor diz a respeito de Judá e de Jerusalém que “os farei cair à espada diante de
seus inimigos, e pela mão dos que buscam a vida (nephesh) deles; e darei os seus
cadáveres para pasto às aves dos céus e aos animais da terra” (Jr 19:7). O que se
segue à busca da nephesh não é aparição súbita no céu ou no inferno, mas sua
transformação em cadáveres.
165
A morte da alma imortal 166
Aos romanos, Paulo cita o texto em que Elias clama ao Senhor que “mataram
(Rm 11:3). Como já vimos, nem Jezabel queria buscar a alma de Elias por outra razão
que não fosse para destruí-la, nem o próprio Elias imaginava sobreviver na forma
de uma alma incorpórea, razão por que pediu que sua alma morresse (1Rs 19:4), o
que só não aconteceu porque foi transladado vivo para o céu, corporalmente (2Rs
2:11). “Buscar a alma”, portanto, não tinha nada a ver com tirar uma alma imortal de
um corpo mortal, mas em buscar a morte integral de alguém que se tinha por
inimigo.
Pedir a alma – Assim como era possível “buscar” a alma, também se podia
“pedir” uma. Mas calma, eles não estavam comprando almas no Mercado Livre nem
a alma”. Quando Salomão pediu a Deus sabedoria, o Senhor lhe elogiou por ter
pedido isso “e não uma vida longa, nem riqueza, nem pediu a morte dos seus
inimigos, mas discernimento para ministrar a justiça” (1Rs 3:11). Onde a NVI traduz
requisitada:
tenho onde recolher os meus frutos. E disse: Farei isto: Derrubarei os meus
celeiros, e edificarei outros maiores, e ali recolherei todas as minhas
166
A morte da alma imortal 167
muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e folga. Mas Deus lhe
disse: Louco! Esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para
quem será?” (Lucas 12:16-20)
Embora muitos possam imaginar que “pedir a alma” tenha a ver com uma
alma incorpórea deixando o corpo direto para a presença de Deus, na Bíblia isso
significa apenas que alguém quer que outra pessoa perca a vida, razão por que uma
alma pode ser “requisitada” por meros seres humanos (2Cr 1:11).
meio imortalista é a de “caçar” a alma. Davi reclama a Saul que “nunca pequei contra
o rei, ainda que esteja à caça da minha vida para tirá-la de mim” (1Sm 24:11). Onde
a NAA traduz por «à caça da minha vida», o hebraico diz tsadah (caçar) nephesh
(alma). A conclusão é que Saul não estava apenas perseguindo o corpo de Davi, mas
também sua alma-nephesh, não porque ele tivesse algum interesse obscuro no
“fantasma” que se escondia no corpo de Davi, mas porque ele sabia que matar o
Uma vez que não há vida fora do corpo, Davi pôde dizer que “os meus
inimigos falam contra mim, e os que espiam a minha alma consultam juntos” (Sl
71:10). O que seria “espiar a alma”? Ficar escondidinho espionando uma alma
imaterial dentro do corpo de outra pessoa pelo buraco da fechadura? Não é o que
parece. A NAA traduz esse verso como «os meus inimigos falam contra mim; e os
que querem matar-me conspiram». “Espiar a alma” é tramar sua morte, o que só é
167
A morte da alma imortal 168
Não à toa, na continuação do capítulo ele diz que “os meus lábios exultarão
quando eu te cantar, assim como a minha alma, que tu remiste” (Sl 71:23). O salmista
teve sua alma “remida” porque Deus impediu que seus conspiradores a matassem,
uma vez que ela é tão vulnerável quanto qualquer parte do corpo.
A alma na cova – Por fim, chegamos aos textos que falam da alma na cova,
imortal e transcendental. Eliú diz a Jó que “sua alma se vai chegando à cova, e a sua
vida aos que trazem a morte” (Jó 33:22). “Cova” aqui é a tradução de shachath, que
significa «cova, destruição, sepultura»61. Ele também diz que Deus tem poder “para
desviar a sua alma da cova, e a sua vida de passar pela espada” (Jó 33:18), e que
“Deus livrou a minha alma de ir para a cova, e a minha vida verá a luz” (Jó 33:28).
Todos esses textos nos mostram que o destino natural da alma-nephesh é a cova,
assim como ocorre com o corpo, embora Deus possa prolongar os dias da vida de
Por isso ele diz que “Deus faz dessas coisas ao homem, duas ou três vezes,
para recuperar sua alma da cova, a fim de que refulja sobre ele a luz da vida” (Jó
33:29-30). Embora o «recuperar sua alma da cova» possa ser entendido como uma
alusão à ressurreição, aqui o sentido mais provável diante do contexto é que mesmo
quando a alma de alguém está caminhando para a morte (i.e, para a cova), Deus
pode intervir e livrar o homem de uma morte precoce. De uma forma ou de outra,
está claro que o destino da alma após a morte não é o céu, o inferno ou um “estado
intermediário” consciente onde quer que seja, mas o mesmo lugar onde o corpo jaz
debaixo da terra.
61
#7845 da Concordância de Strong.
168
A morte da alma imortal 169
Jeremias denuncia que “cavaram uma cova para a minha alma” (Jr 18:20),
algo reiterado pelo salmista, que lamenta que “sem causa encobriram de mim a
rede na cova, a qual sem razão cavaram para a minha alma” (Sl 35:7). O que explica
os seus perseguidores terem cavado uma cova para a sua alma é porque a cova é o
destino natural para o qual sua alma se dirigiria caso esses inimigos tivessem êxito.
Por isso ele diz que “se não fosse o auxílio do Senhor, a minha alma já estaria na
região do silêncio” (Sl 94:17). Qual seria essa «região do silêncio», para a qual o
salmista diz que a sua alma, e não somente o seu corpo, iria após a morte? Com
certeza não o céu, com seus altos louvores, muito menos o inferno, com tanta
gritaria. A região do silêncio nada mais é que a sepultura, onde a alma repousa
inconsciente e silenciosamente.
escreve que “o resgate de uma vida não tem preço. Não há pagamento que o livre
para que viva para sempre e não sofra decomposição” (Sl 49:8-9). Embora a NVI
tenha traduzido por “vida”, o hebraico traz nephesh. O que o salmista está dizendo
é que não há preço que pague o livramento da alma da sepultura, para que ela
possa viver para sempre e não sofrer decomposição. Com uma cajadada só, o
salmista prova que (1) o destino natural da alma após a morte é a sepultura, que (2)
a alma sofre decomposição, da mesma forma que o corpo, e que (3) se não há como
O salmista jamais diria que não há pagamento que livre a alma de sofrer
seria extremamente irônico se ele dissesse que não há pagamento que a faça viver
169
A morte da alma imortal 170
para sempre sem interrupção, se a alma de literalmente todo mundo vivesse para
sempre sem jamais ver a morte. É evidente que para o salmista a nephesh era tão
mortal quanto o corpo, que morre, que se decompõe no túmulo e que é incapaz de
Tão certo eles estavam de que o destino da alma após a morte é a sepultura
que Ezequias, após ser curado da doença pela qual estava fadado a morrer, orou
em gratidão a Deus:
“Eis que foi para a minha paz que tive grande amargura, mas a ti agradou
livrar a minha alma da cova da corrupção; porque lançaste para trás das
tuas costas todos os meus pecados. Porque não te louvará a sepultura, nem a
vivente, o vivente, esse te louvará, como eu hoje o faço; o pai aos filhos fará
Se apenas o corpo de Ezequias estava prestes a descer à cova, por que ele
agradece a Deus por ter livrado a sua alma da «cova da corrupção»? É evidente que
depois da morte.
170
A morte da alma imortal 171
Vimos até aqui um compilado de textos dos mais variados tipos que falam,
Bíblia 858 vezes ao todo (sendo 754 no AT e 104 no NT). Conferindo uma a uma,
constatei que exatamente 300 dessas 858 ocorrências (espalhadas ao longo de 246
montante total. Isso significa que, a cada três vezes que a palavra “alma” aparece
nos originais, pelo menos uma está em um contexto que alude à sua morte.
psicológico. Assim, o leitor que não conhece as línguas originais ou que não se
mesmo aquele elemento espiritual não sujeito à morte, uma ideia que seria
honestos.
E este número nem sequer considera todas as citações que colocam a alma
171
A morte da alma imortal 172
ou psiquê do que à morte do corpo (basar ou soma). Das 412 vezes que a palavra
se referem a um morto, um total inferior a 10%, muito menos que os 35% que
entre corpo e alma, onde o corpo é perecível e a alma é imortal por natureza. Isso
não se dá devido a uma análise bíblica séria e sincera e muito menos por uma
consulta aos originais, mas apenas porque somos doutrinados de todas as formas
desde a mais tenra idade e pelos mais diversos meios a pensar que a alma é um
morte. E por mais descaradamente falso que isso seja à luz da Bíblia, o fato disso ser
reforçado a todo tempo por pregadores famosos, por líderes religiosos, por
teólogos conceituados e por toda a mídia que nos cerca nos dá a impressão de que
esse ensino é bíblico, de forma que a maioria das pessoas sequer faz ideia de que
Na tabela abaixo, você pode conferir uma a uma das 246 passagens bíblicas62
onde a alma é citada num contexto que direta ou indiretamente implique em sua
morte, incluindo muitas das que analisamos neste estudo. Primeiro temos o texto
hebraico ou grego, seguido por uma tradução em português entre três versões
selecionadas63, e nos casos onde nenhuma delas inclui a alma (ou seja, na maioria
62
As 300 ocorrências de morte da alma estão incluídas nessas 246 passagens, já que algumas delas
possuem mais de uma ocorrência do termo no mesmo verso.
63
As versões selecionadas foram a ACF (Almeida Corrigida e Fiel), a NAA (Nova Almeida Atualizada) e a
NVI (Nova Versão Internacional).
172
A morte da alma imortal 173
absoluta dos casos) há também uma tradução alternativa64 que corrige o texto da
versão selecionada para a forma que ficaria se não tivessem omitido ou substituído
a alma do texto:
Referência Texto
vechâythâh naphshiybighlâlêkh.
1. NVI Diga que é minha irmã, para que me tratem bem por amor a você
COR Diga que é minha irmã, para que me tratem bem por amor a você
minha aliança.
64
Abreviada como “COR” (corrigido).
173
A morte da alma imortal 174
ACF E aconteceu que, tirando-os fora, disse: Escapa-te por tua vida;
não olhes para trás de ti, e não pares em toda esta campina; escapa
COR E aconteceu que, tirando-os fora, disse: Escapa-te por tua alma;
não olhes para trás de ti, e não pares em toda esta campina; escapa
hârâ`âh vâmattiy.
NAA Eis que o teu servo encontrou favor diante dos teus olhos, e
Gn 19:19 Mas não posso fugir para o monte, pois receio que a destruição vá
me alcançar, e eu morra.
COR Eis que o teu servo encontrou favor diante dos teus olhos, e
Mas não posso fugir para o monte, pois receio que a destruição vá
me alcançar, e eu morra.
Gn 19:20 ACF Eis que agora aquela cidade está perto, para fugir para lá, e é
174
A morte da alma imortal 175
6.
NVI Jacó chamou àquele lugar Peniel, pois disse: “Vi a Deus face a face
Gn 32:30
e, todavia, minha vida foi poupada”.
COR Jacó chamou àquele lugar Peniel, pois disse: “Vi a Deus face a
lo'nakkennu nâphesh.
7. NVI Quando Rúben ouviu isso, tentou livrá-lo das mãos deles,
COR Quando Rúben ouviu isso, tentou livrá-lo das mãos deles,
Êx 4:19
ACF Disse também o Senhor a Moisés em Midiã: Vai, volta para o
hashebhi`iy.
175
A morte da alma imortal 176
cortada de Israel.
Êx 12:19 ACF Por sete dias não se ache nenhum fermento nas vossas casas;
porque qualquer que comer pão levedado, aquela alma será cortada
terra.
tachath chabburâh s.
11. NVI Mas, se houver danos graves, a pena será vida por vida, olho por
Êx 21:23-25 olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por
COR Mas, se houver danos graves, a pena será alma por alma, olho
por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por
176
A morte da alma imortal 177
NVI Se, todavia, o boi costumava chifrar e o dono, ainda que alertado,
12. será apedrejado e o dono também terá que ser morto. Caso, porém,
COR Se, todavia, o boi costumava chifrar e o dono, ainda que alertado,
será apedrejado e o dono também terá que ser morto. Caso, porém,
Êx 30:12 ACF Quando fizeres a contagem dos filhos de Israel, conforme a sua
os contares; para que não haja entre eles praga alguma, quando os
contares.
177
A morte da alma imortal 178
Êx 31:14
ACF Portanto guardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele
hahiv'mê`ammeyhâ ph.
15. ACF Toda a pessoa que comer algum sangue, aquela pessoa será
COR Toda alma que comer algum sangue, aquela alma será extirpada
do seu povo.
NVI Todo aquele que fizer alguma destas abominações, aqueles que
16.
assim procederem serão eliminados do meio do seu povo.
Lv 18:29
povo.
17.
HEB ve'okhelâyv`avono yisâ' kiy-'eth-qodhesh Adonay chillêl
Lv 19:8
venikhrethâh hannepheshhahiv' mê`ammeyhâ.
178
A morte da alma imortal 179
seu povo.
yithammâ'.
20.
HEB 'emor 'alêhem ledhorothêykhem kol-'iysh 'asher-yiqrabhmikkol-
Lv 22:3
zar`akhem 'el-haqqodhâshiym 'asher yaqdiyshu bhenêy-
179
A morte da alma imortal 180
millephânay'aniy Adonay.
hazzehvenikhrethâh mê`ammeyhâ.
22.
Lv 23:29 ACF Porque toda a alma, que naquele mesmo dia se não afligir, será
180
A morte da alma imortal 181
ACF Também toda a alma, que naquele mesmo dia fizer algum
24.
ACF E quem matar a alguém certamente morrerá.
Lv 24:17
zar`akhem va'akhâluhu'oyebhêykhem.
25. NVI Então assim os tratarei: eu lhes trarei pavor repentino, doenças e
Lv 26:16 febre que tirarão a visão e lhes definharão a vida. Vocês semearão
181
A morte da alma imortal 182
NAA Ordene aos filhos de Israel que expulsem do arraial todo leproso,
todo o que tiver um fluxo e todo impuro por ter tocado em algum
morto.
COR Ordene aos filhos de Israel que expulsem do arraial todo leproso,
todo o que tiver um fluxo e todo impuro por ter tocado em alguma
alma.
a sua cabeça.
182
A morte da alma imortal 183
29.
NVI Mas alguns deles não puderam celebrar a Páscoa naquele dia
Nm 9:6
porque se haviam tornado impuros por terem tocado num cadáver.
COR Mas alguns deles não puderam celebrar a Páscoa naquele dia
183
A morte da alma imortal 184
NAA Mas a pessoa que fizer alguma coisa deliberadamente, quer seja
32.
dos naturais da terra quer dos estrangeiros, está blasfemando contra
Nm 15:30
o Senhor; tal pessoa será eliminada do meio do seu povo.
COR Mas a alma que fizer alguma coisa deliberadamente, quer seja
184
A morte da alma imortal 185
yâmiym
34. NVI Quem tocar num cadáver humano ficará impuro durante sete
Nm 19:11 dias.
sobre essa pessoa, ficará impura; a sua impureza ainda está nela.
sobre essa pessoa, ficará impura; a sua impureza ainda está nela.
185
A morte da alma imortal 186
está impura.
está impura.
Que a minha alma morra da morte dos justos, e seja o meu fim como
o seu.
186
A morte da alma imortal 187
39. refúgio, para que, nelas, se acolha o homicida que matar alguém
Nm 35:11 involuntariamente.
refúgio, para que, nelas, se acolha o homicida que matar uma alma
involuntariamente.
nephesh bishghâghâh.
40. vivam entre eles, para que todo aquele que tiver matado alguém sem
vivam entre eles, para que todo aquele que tiver matado uma alma
187
A morte da alma imortal 188
NAA Todo aquele que matar uma pessoa será morto conforme o
COR Todo aquele que matar uma alma será morto conforme o
quando ficar furioso, e o alcance, por ser longo o caminho, e lhe tire
Dt 19:11 ACF Mas, havendo alguém que odeia a seu próximo, e lhe arma
188
A morte da alma imortal 189
COR Mas, havendo alguém que odeia a seu próximo, e lhe arma
44. NVI Não tenham piedade. Exijam vida por vida, olho por olho, dente
COR Não tenham piedade. Exijam alma por alma, olho por olho,
NVI Não façam nada, pois ela não cometeu pecado algum que
45.
mereça a morte. Este caso é semelhante ao daquele que ataca e mata
Dt 22:26
o seu próximo.
COR Não façam nada, pois ela não cometeu pecado algum que
46.
HEB lo'-yachabhol rêchayim vârâkhebh kiy-nepheshhu' chobhêl s.
Dt 24:6
189
A morte da alma imortal 190
vida.
alma.
kol-hâ`âm'âmên s.
47.
NAA Maldito aquele que aceitar suborno para matar pessoa
Dt 27:25
inocente.
COR Maldito aquele que aceitar suborno para matar alma inocente.
vida de meu pai e de minha mãe, dos meus irmãos e das minhas
irmãs, com tudo o que eles têm, e de que livrarão a nossa vida da
morte.
190
A morte da alma imortal 191
COR E agora jurem pelo Senhor que, assim como usei de misericórdia
vida de meu pai e de minha mãe, dos meus irmãos e das minhas
irmãs, com tudo o que eles têm, e de que livrarão a nossa alma da
morte.
haddâbhâr hazzeh.
191
A morte da alma imortal 192
NAA É que foi anunciado a estes seus servos, como certo, que o
Senhor, seu Deus, havia ordenado ao seu servo Moisés que lhes
vocês. Tememos muito pela nossa vida por causa de vocês e foi por
COR É que foi anunciado a estes seus servos, como certo, que o
Senhor, seu Deus, havia ordenado ao seu servo Moisés que lhes
vocês. Tememos muito pela nossa alma por causa de vocês e foi por
51. seu rei à espada e exterminou todos os que nela viviam, sem deixar
Js 10:28 sobreviventes. E fez com o rei de Maquedá o que tinha feito com o
rei de Jericó.
seu rei à espada e exterminou toda alma que nela vivia, sem deixar
rei de Jericó.
192
A morte da alma imortal 193
yeriycho s.
NVI O Senhor entregou também aquela cidade e seu rei nas mãos dos
52. israelitas. Josué atacou a cidade e matou à espada todos os que nela
Js 10:30 viviam, sem deixar nenhum sobrevivente ali. E fez com o seu rei o que
COR O Senhor entregou também aquela cidade e seu rei nas mãos
dos israelitas. Josué atacou a cidade e matou à espada toda alma que
nela vivia, sem deixar nenhum sobrevivente ali. E fez com o seu rei o
193
A morte da alma imortal 194
hannephesh 'asher-bâh s.
194
A morte da alma imortal 195
Js 10:39 algum. Fizeram com Debir e seu rei o que tinham feito com Libna e
sobrevivente algum. Fizeram com Debir e seu rei o que tinham feito
195
A morte da alma imortal 196
NAA Para que possa fugir para lá o homicida que matar uma pessoa
por engano ou sem querer. Essas cidades serão para vocês um lugar
COR Para que possa fugir para lá o homicida que matar uma alma por
NAA São estas as cidades que foram designadas para todos os filhos
59. nelas pudesse se refugiar todo aquele que, por engano, matasse uma
Js 20:9 pessoa, para que não morresse às mãos do vingador do sangue, até
COR São estas as cidades que foram designadas para todos os filhos
nelas pudesse se refugiar todo aquele que, por engano, matasse uma
Jz 5:18 sâdheh.
196
A morte da alma imortal 197
61. NVI Meu pai lutou por vocês e arriscou a vida para livrá-los das mãos
Jz 9:17 de Midiã.
COR Meu pai lutou por vocês e arriscou a alma para livrá-los das
mãos de Midiã.
NAA Quando vi que vocês não iam me livrar, arrisquei a minha vida
62. minhas mãos. Então por que vocês estão vindo hoje para lutar contra
Jz 12:3 mim?
COR Quando vi que vocês não iam me livrar, arrisquei a minha alma
minhas mãos. Então por que vocês estão vindo hoje para lutar contra
mim?
197
A morte da alma imortal 198
63. NVI Importunando-o o tempo todo, ela o esgotava dia após dia,
64. com toda a força, e o templo desabou sobre os líderes e sobre todo
Jz 16:30 o povo que ali estava. Assim, na sua morte, Sansão matou mais
COR Disse: “Que minha alma morra com os filisteus!”. Então, ele as
sobre todo o povo que ali estava. Assim, na sua morte, Sansão matou
198
A morte da alma imortal 199
ACF Porém os filhos de Dã lhe disseram: Não nos faças ouvir a tua voz,
para que porventura homens de ânimo mau não se lancem sobre vós,
COR Porém os filhos de Dã lhe disseram: Não nos faças ouvir a tua
voz, para que porventura homens de ânimo mau não se lancem sobre
dâvidh chinnâm.
66. grande vitória para todo o Israel; tu mesmo viste tudo e ficaste
1Sm 19:5 contente. Por que, então, farias mal a um inocente como Davi,
mumâth.
199
A morte da alma imortal 200
NVI Saul enviou alguns homens à casa de Davi para vigiá-lo e matá-
fugir esta noite para salvar sua vida, amanhã estará morto”.
COR Saul enviou alguns homens à casa de Davi para vigiá-lo e matá-
fugir esta noite para salvar sua alma, amanhã estará morto”.
NVI Então Davi fugiu de Naiote, em Ramá, foi falar com Jônatas e
perguntou: “O que foi que eu fiz? Qual é o meu crime? Qual foi o
68.
pecado que cometi contra seu pai para que ele queira tirar minha
1Sm 20:1
vida?”.
COR Então Davi fugiu de Naiote, em Ramá, foi falar com Jônatas e
perguntou: “O que foi que eu fiz? Qual é o meu crime? Qual foi o
pecado que cometi contra seu pai para que ele queira tirar minha
alma?”.
1Sm 22:22
NAA Então Davi disse a Abiatar: Naquele dia, quando vi que Doegue,
o edomita, estava ali, eu sabia que ele não deixaria de contar tudo a
200
A morte da alma imortal 201
COR Então Davi disse a Abiatar: Naquele dia, quando vi que Doegue,
o edomita, estava ali, eu sabia que ele não deixaria de contar tudo a
70. NAA Fique comigo, não tenha medo, porque quem procura a minha
1Sm 22:23 morte procura também a sua; mas comigo você estará a salvo.
COR Fique comigo, não tenha medo, porque quem procura a minha
alma procura também a sua alma; mas comigo você estará a salvo.
vedhâvidhbemidhbar-ziyph bachoreshâh s.
71. NVI Vendo, pois, Davi, que Saul saíra à busca da sua vida,
COR Vendo, pois, Davi, que Saul saíra à busca da sua alma,
NAA Veja, meu pai, veja aqui na minha mão a ponta do seu manto.
201
A morte da alma imortal 202
e veja que não há em mim nem mal nem rebeldia. Nunca pequei
contra o rei, ainda que ele esteja à caça da minha vida para tirá-la de
mim.
COR Veja, meu pai, veja aqui na minha mão a ponta do seu manto.
e veja que não há em mim nem mal nem rebeldia. Nunca pequei
contra o rei, ainda que ele esteja à caça da minha alma para tirá-la
de mim.
NVI Mesmo que alguém te persiga para tirar-te a vida, a vida de meu
73. senhor estará firmemente segura como a dos que são protegidos
1Sm 25:29 pelo Senhor teu Deus. Mas a vida de teus inimigos será atirada para
protegidos pelo Senhor teu Deus. Mas a alma de teus inimigos será
202
A morte da alma imortal 203
NVI Então Saul disse: “Pequei! Volte, meu filho Davi! Como hoje você
considerou preciosa a minha vida, não lhe farei mal de novo. Tenho
COR Então Saul disse: “Pequei! Volte, meu filho Davi! Como hoje você
considerou preciosa a minha alma, não lhe farei mal de novo. Tenho
tsârâh ph.
NAA Assim como hoje a sua vida foi de grande valor aos meus olhos,
75.
assim também seja a minha vida aos olhos do Senhor Deus, e que ele
1Sm 26:24
me livre de toda a angústia.
COR Assim como hoje a sua alma foi de grande valor aos meus olhos,
assim também seja a minha vida aos olhos do Senhor Deus, e que ele
ao rei: Eis aqui a cabeça de Is-Bosete, filho de Saul, teu inimigo, que
203
A morte da alma imortal 204
ao rei: Eis aqui a cabeça de Is-Bosete, filho de Saul, teu inimigo, que
procurava a tua alma; assim o Senhor vingou hoje ao rei meu senhor,
2Sm 14:7 centelha que me restou, deixando meu marido sem nome nem
última centelha que me restou, deixando meu marido sem nome nem
204
A morte da alma imortal 205
ACF Disse mais Davi a Abisai, e a todos os seus servos: Eis que meu
78.
filho, que saiu das minhas entranhas, procura a minha morte; quanto
2Sm 16:11
mais ainda este benjamita?
COR Disse mais Davi a Abisai, e a todos os seus servos: Eis que meu
filho, que saiu das minhas entranhas, procura a minha alma; quanto
defenderia.
205
A morte da alma imortal 206
NVI Então Joabe entrou no palácio e foi falar com o rei: “Hoje
COR Então Joabe entrou no palácio e foi falar com o rei: “Hoje
NAA Longe de mim, ó Senhor, fazer tal coisa! Beberia eu o sangue dos
81.
homens que lá foram colocando em risco a sua vida? E assim não a
2Sm 23:17
quis beber.
COR Longe de mim, ó Senhor, fazer tal coisa! Beberia eu o sangue dos
quis beber.
ve'eth-nephesh benêkhshelomoh.
82. NAA Agora permita que eu lhe dê um conselho, para que você salve
COR Agora permita que eu lhe dê um conselho, para que você salve
206
A morte da alma imortal 207
'eth-haddâbhâr hazzeh.
NVI Então o rei Salomão jurou pelo Senhor: “Que Deus me castigue
83.
com todo o rigor, se isso que Adonias falou não lhe custar a sua
1Rs 2:23
própria vida!”.
COR Então o rei Salomão jurou pelo Senhor: “Que Deus me castigue
com todo o rigor, se isso que Adonias falou não lhe custar a sua
própria alma!”.
84. NVI Por isso Deus lhe disse: “Já que você pediu isto e não uma vida
1Rs 3:11 longa nem riqueza, nem pediu a morte dos seus inimigos, mas
COR Por isso Deus lhe disse: “Já que você pediu isto e não uma vida
longa nem riqueza, nem pediu a alma dos seus inimigos, mas
207
A morte da alma imortal 208
tiver feito com a sua vida o mesmo que você fez com a vida de cada
um deles!
tiver feito com a sua alma o mesmo que você fez com a alma de
cada um deles!
1Rs 19:3 NVI Elias teve medo e fugiu para salvar a vida.
mê'abhothây.
dele e orou, pedindo que a sua alma morresse. “Já tive o bastante,
208
A morte da alma imortal 209
antepassados”.
ACF E ele disse: Tenho sido muito zeloso pelo Senhor Deus dos
COR E ele disse: Tenho sido muito zeloso pelo Senhor Deus dos
1Rs 19:14
ACF E ele disse: Eu tenho sido em extremo zeloso pelo Senhor Deus
209
A morte da alma imortal 210
COR E ele disse: Eu tenho sido em extremo zeloso pelo Senhor Deus
90. Israel são misericordiosos. Nós vamos até o rei de Israel vestidos com
1Rs 20:31 panos de saco e com cordas no pescoço. Talvez ele poupe a tua
vida”.
Israel são misericordiosos. Nós vamos até o rei de Israel vestidos com
alma”.
210
A morte da alma imortal 211
te que me deixes viver’. O rei respondeu: ‘Ele ainda está vivo? Ele é
meu irmão!’”.
te que deixes minha alma viver’. O rei respondeu: ‘Ele ainda está
'okhikkar-keseph tishqol.
NAA Quando o rei ia passando, o profeta gritou: Este seu servo estava
92. trouxe um homem, dizendo: “Vigie este homem. Se ele escapar, será
1Rs 20:39 a sua vida pela vida dele ou você pagará trinta e quatro quilos de
prata”.
COR Quando o rei ia passando, o profeta gritou: Este seu servo estava
a sua alma pela alma dele ou você pagará trinta e quatro quilos de
prata”.
211
A morte da alma imortal 212
ve`ammekha tachath`ammo.
homem que eu havia posto para destruição, a tua alma será em lugar
2Rs 1:13 implorou: “Homem de Deus, tenha consideração por minha vida e
212
A morte da alma imortal 213
tiyqar naphshiybe`êyneykha s.
NVI Sei que desceu fogo do céu e consumiu os dois primeiros oficiais
95.
com todos os seus soldados. Mas agora tenha consideração por
2Rs 1:14
minha vida!
COR Sei que desceu fogo do céu e consumiu os dois primeiros oficiais
minha alma!
tachathnaphsho.
213
A morte da alma imortal 214
haggibboriym.
NVI “Longe de mim fazer isso, ó meu Deus!”, disse Davi. “Esta água
1Cr 11:19 Eles arriscaram a vida para trazê-la. E não quis bebê-la”. Foram essas
COR “Longe de mim fazer isso, ó meu Deus!”, disse Davi. “Esta água
Eles arriscaram a alma para trazê-la. E não quis bebê-la”. Foram essas
214
A morte da alma imortal 215
himlakhtiykha `âlâyv.
NAA Deus disse a Salomão: Visto que foi este o desejo do seu
COR Deus disse a Salomão: Visto que foi este o desejo do seu coração,
e você não pediu riquezas, bens ou honras, nem a alma dos seus
NVI Então a rainha Ester respondeu: “Se posso contar com o favor do
100.
rei, e se isto lhe agrada, poupe a minha vida e a vida do meu povo;
Et 7:3
este é o meu pedido e o meu desejo”.
COR Então a rainha Ester respondeu: “Se posso contar com o favor do
rei, e se isto lhe agrada, poupe a minha alma e a vida do meu povo;
101.
HEB vehammelekh qâm bachamâtho mimmishtêh hayyayin'el-
Et 7:7
ginnath habbiythân vehâmân `âmadh lebhaqqêsh `al-naphsho
215
A morte da alma imortal 216
hammelekh.
NVI Furioso, o rei levantou-se, deixou o vinho, saiu dali e foi para o
condená-lo, ficou ali para implorar por sua vida à rainha Ester.
COR Furioso, o rei levantou-se, deixou o vinho, saiu dali e foi para o
condená-lo, ficou ali para implorar por sua alma à rainha Ester.
NAA Nelas o rei concedia aos judeus, que havia em cada cidade, que
COR Nelas o rei concedia aos judeus, que havia em cada cidade, que
216
A morte da alma imortal 217
shâlchu 'eth-yâdhâm.
Et 9:16 descanso dos seus inimigos; e mataram dos seus inimigos setenta e
104. NVI “Pele por pele!”, respondeu Satanás. “Um homem dará tudo o que
COR “Pele por pele!”, respondeu Satanás. “Um homem dará tudo o
Jó 2:6
NVI O Senhor disse a Satanás: “Pois bem, ele está nas suas mãos;
217
A morte da alma imortal 218
COR O Senhor disse a Satanás: “Pois bem, ele está nas suas mãos;
NAA Por que esperar, se já não tenho forças? Por que prolongar a
106.
vida, se o meu fim é certo?
Jó 6:11
COR Por que esperar, se já não tenho forças? Por que prolongar a
Jó 11:20
ACF Porém os olhos dos ímpios desfalecerão, e perecerá o seu
109. hippâchtiy.
Jó 31:39
NAA Se comi os seus frutos sem pagar ou se causei a morte aos seus
donos.
218
A morte da alma imortal 219
COR Se comi os seus frutos sem pagar ou se fiz com que seus donos
perdessem a alma.
110. bashâlach.
Jó 33:18
ACF Para desviar a sua alma da cova, e a sua vida de passar pela
espada.
Jó 33:22 ACF E a sua alma se vai chegando à cova, e a sua vida aos que trazem
a morte.
Jó 33:28
ACF Porém Deus livrou a minha alma de ir para a cova, e a minha vida
verá a luz.
Jó 33:29-30 NVI Deus faz dessas coisas ao homem, duas ou três vezes, para
recuperar sua alma da cova, a fim de que refulja sobre ele a luz da
vida.
114.
HEB tâmoth banno`ar naphshâm vechayyâthâm baqqedhêshiym.
Jó 36:14
219
A morte da alma imortal 220
impuros.
pó.
Sl 17:13
ACF Levanta-te, Senhor, detém-no, derriba-o, livra a minha alma do
118.
HEB hatsiylâh mêcherebh naphshiymiyyadh-kelebh yechiydhâthiy.
Sl 22:20
220
A morte da alma imortal 221
cão.
Sl 22:29 ACF Todos os que na terra são gordos comerão e adorarão, e todos
zâmâmu.
120.
NVI Ouço muitos cochicharem a meu respeito; o pavor me domina,
Sl 31:13
pois conspiram contra mim, tramando tirar-me a vida.
Sl 33:18-19 ACF Eis que os olhos do Senhor estão sobre os que o temem, sobre
122.
HEB yêbhoshuveyikkâlemu mebhaqshêy naphshiy yissoghu 'âchor
Sl 35:4
veyachperu choshebhêyrâ`âthiy.
221
A morte da alma imortal 222
123. lenaphshiy.
Sl 35:7
ACF Porque sem causa encobriram de mim a rede na cova, a qual sem
124.
NVI Elas me retribuem o bem com o mal e procuram tirar-me a vida.
Sl 35:12
222
A morte da alma imortal 223
querem mal.
127. NVI Pois o resgate de uma vida não tem preço. Não há pagamento
Sl 49:8-9 que o livre para que viva para sempre e não sofra decomposição.
COR Pois o resgate de uma alma não tem preço. Não há pagamento
que o livre para que viva para sempre e não sofra decomposição.
procuram a minha alma; não têm posto Deus perante os seus olhos.
223
A morte da alma imortal 224
hâyu `immâdhiy.
129. NVI Ele me guarda ileso na batalha, ainda que muitos estejam contra
Sl 55:18 mim.
COR Ele guarda minha alma ilesa na batalha, ainda que muitos
Sl 56:13
ACF Pois tu livraste a minha alma da morte; não livrarás os meus pés
Sl 59:4
NAA Sem culpa minha, eles se apressam para me atacar; desperta,
224
A morte da alma imortal 225
COR Sem culpa minha, eles se apressam para atacar minha alma;
Sl 63:9 ACF Mas aqueles que procuram a minha alma para a destruir, irão
Sl 66:8-9 NAA Bendigam, ó povos, o nosso Deus; façam ouvir a voz do seu
louvor. É ele quem preserva com vida a nossa alma e não permite
Sl 70:2
ACF Fiquem envergonhados e confundidos os que procuram a minha
Sl 71:10 ACF Porque os meus inimigos falam contra mim, e os que espiam a
Sl 71:23 pâdhiythâ.
225
A morte da alma imortal 226
tishkach lânetsach;
138. NVI Não entregues a vida da tua pomba aos animais selvagens; não
COR Não entregues a alma da tua pomba aos animais selvagens; não
Sl 78:50
ACF Preparou caminho à sua ira; não poupou as suas almas da morte,
Sl 86:2
NAA Preserva a minha alma, pois eu sou piedoso. Ó Deus meu, salva
141. tachtiyyâh.
Sl 86:13
NAA Pois grande é a tua misericórdia para comigo, e me livraste a
226
A morte da alma imortal 227
142.
ACF Ó Deus, os soberbos se levantaram contra mim, e as assembleias
Sl 86:14
dos tiranos procuraram a minha alma, e não te puseram perante os
seus olhos.
Sl 94:17
NAA Se não fosse o auxílio do Senhor, a minha alma já estaria na
região do silêncio.
à morte.
NVI Odeiem o mal, vocês que amam o Senhor, pois ele protege a vida
145.
dos seus fiéis e os livra das mãos dos ímpios.
Sl 97:10
COR Odeiem o mal, vocês que amam o Senhor, pois ele protege a
227
A morte da alma imortal 228
Sl 107:4-5 ACF Andaram errantes pelo deserto, por lugares áridos, sem achar
neles a alma.
mâveth.
Sl 107:18 morte.
portas da morte.
mallethâh naphshiy.
148. sobre mim; aflição e tristeza me dominaram. Então clamei pelo nome
228
A morte da alma imortal 229
Sl 116:8
ACF Porque tu livraste a minha alma da morte, os meus olhos das
tua lei.
151.
NVI O Senhor o protegerá de todo o mal, protegerá a sua vida.
Sl 121:7
nimlâthenu.
229
A morte da alma imortal 230
vivos, quando a sua ira se acendeu contra nós. Então as águas teriam
bendito seja o Senhor, que não nos deu por presa aos seus dentes. A
naphshiy.
153. NVI Mas os meus olhos estão fixos em ti, ó Soberano Senhor; em ti
Sl 143:3 NAA Pois o inimigo tem perseguido a minha alma; tem lançado por
Pv 1:19 ph.
230
A morte da alma imortal 231
NAA Até que uma flecha lhe atravesse o coração. Ele era como a ave
156. que corre para dentro do alçapão, sem saber que isto lhe custará a
Pv 7:23 vida.
COR Até que uma flecha lhe atravesse o coração. Ele era como a ave
que corre para dentro do alçapão, sem saber que isto lhe custará a
alma.
Pv 13:3 ACF O que guarda a sua boca conserva a sua alma, mas o que abre
Pv 14:25
COR A testemunha que fala a verdade salva almas, mas a testemunha
falsa é enganosa.
231
A morte da alma imortal 232
naphshekha.
160. NVI Discipline seu filho, pois nisso há esperança; não queiras a morte
Pv 19:18 dele.
COR Discipline seu filho, pois nisso há esperança; não queiras a morte
da alma dele.
232
A morte da alma imortal 233
Is 38:17-19 ACF Eis que foi para a minha paz que tive grande amargura, mas a ti
para trás das tuas costas todos os meus pecados. Porque não te
como eu hoje o faço; o pai aos filhos fará notória a tua verdade.
163.
NAA Todavia, ao Senhor agradou esmagá-lo, fazendo-o sofrer.
Is 53:10
Quando ele der a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua
NAA Por isso, eu lhe darei a sua parte com os grandes, e com os
233
A morte da alma imortal 234
165. hanne'emâniym.
Is 55:3
ACF Inclinai os vossos ouvidos, e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma
NVI O que você está fazendo, ó cidade devastada? Por que se veste
COR O que você está fazendo, ó cidade devastada? Por que se veste
234
A morte da alma imortal 235
ACF Portanto, assim diz o Senhor acerca dos homens de Anatote, que
COR Portanto, assim diz o Senhor acerca dos homens de Anatote, que
168. s.
Jr 15:9
ACF A que dava à luz sete se enfraqueceu; expirou a sua alma; pôs-
os que ficarem dela entregarei à espada, diante dos seus inimigos, diz
o Senhor.
Jr 18:20
ACF Porventura pagar-se-á mal por bem? Pois cavaram uma cova
170.
HEB ubhaqqothiy 'eth-`atsath yehudhâh viyrushâlaim
Jr 19:7
bammâqomhazzeh vehippaltiym bacherebh liphnêy 'oyebhêyhem
235
A morte da alma imortal 236
e os farei cair à espada diante de seus inimigos, e pela mão dos que
buscam a vida deles; e darei os seus cadáveres para pasto às aves dos
e os farei cair à espada diante de seus inimigos, e pela mão dos que
ACF E lhes farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas,
171.
e comerá cada um a carne do seu amigo, no cerco e no aperto em
Jr 19:9
que os apertarão os seus inimigos, e os que buscam a vida deles.
COR E lhes farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas,
172. HEB shiyru layhvh halelu 'eth-Adonay kiy hitsiyl 'eth-nephesh 'ebhyon
236
A morte da alma imortal 237
Jr 21:7 e na mão de seus inimigos, e na mão dos que buscam a sua vida; e
237
A morte da alma imortal 238
ulebhehemath hâ'ârets.
NVI Sim, eu os entregarei nas mãos dos inimigos que desejam tirar-
175.
lhes a vida. Seus cadáveres servirão de comida para as aves e para os
Jr 34:20
animais.
COR Sim, eu os entregarei nas mãos dos inimigos que desejam tirar-
os animais.
Jr 34:21
ACF E até o rei Zedequias, rei de Judá, e seus príncipes entregarei na
238
A morte da alma imortal 239
mebhaqshiym 'eth-naphshekha s.
Jr 38:16 Vive o Senhor, que nos fez esta alma, que não te matarei nem te
Vive o Senhor, que nos fez esta alma, que não te matarei nem te
Jr 38:17
ACF Então Jeremias disse a Zedequias: Assim diz o Senhor, Deus dos
239
A morte da alma imortal 240
179. Senhor fazendo o que eu lhe digo, para que estejas bem e a tua vida
Senhor fazendo o que eu lhe digo, para que estejas bem e a tua alma
seja poupada”.
'achiyqâm.
180. ACF E disseram-lhe: Bem sabes que Baalis, rei dos filhos de Amom,
Jr 40:14 enviou a Ismael, filho de Netanias, para tirar-te a vida. Mas, Gedalias,
COR E disseram-lhe: Bem sabes que Baalis, rei dos filhos de Amom,
240
A morte da alma imortal 241
yehudhâh.
que ninguém o saiba; por que razão te tiraria ele a vida, de modo que
que ninguém o saiba; por que razão te tiraria ele a alma, de modo
s.
182.
ACF Assim diz o Senhor: Eis que eu entregarei o Faraó Hofra, rei do
Jr 44:30
Egito, nas mãos de seus inimigos e nas mãos dos que procuram a sua
morte.
COR Assim diz o Senhor: Eis que eu entregarei o Faraó Hofra, rei do
Egito, nas mãos de seus inimigos e nas mãos dos que procuram a sua
241
A morte da alma imortal 242
alma.
nebhukhadhre'tsarmelekh-bâbhel ubheyadh-`abhâdhâyv
242
A morte da alma imortal 243
kallothiy 'othâm.
ACF E farei que Elão tema diante de seus inimigos e diante dos que
185. procuram a sua morte; e farei vir sobre eles o mal, o furor da minha
Jr 49:37 ira, diz o Senhor; e enviarei após eles a espada, até que venha a
consumi-los.
COR E farei que Elão tema diante de seus inimigos e diante dos que
procuram a sua alma; e farei vir sobre eles o mal, o furor da minha
ira, diz o Senhor; e enviarei após eles a espada, até que venha a
consumi-los.
NAA Fujam da Babilônia! Que cada um salve a sua vida! Não sejam
COR Fujam da Babilônia! Que cada um salve a sua alma! Não sejam
243
A morte da alma imortal 244
'immothâm s.
189.
HEB benaphshênu nâbhiy'lachmênu mippenêy cherebh hammidhbâr.
Lm 5:9
244
A morte da alma imortal 245
HEB ve'attâh kiy hizharto tsaddiyq lebhiltiy chatho' tsaddiyq vehu' lo'-
Ez 3:21
ACF Mas, avisando tu o justo, para que não peque, e ele não pecar,
245
A morte da alma imortal 246
ACF E dize: Assim diz o Senhor Deus: Ai das que cosem almofadas
NAA Portanto, assim diz o Senhor Deus: Eis que eu sou contra as
193.
fitinhas mágicas que vocês usam para enredar as pessoas como se
Ez 13:20
fossem pássaros. Eu as arrancarei dos seus braços, e deixarei livres
COR Portanto, assim diz o Senhor Deus: Eis que eu sou contra as
fitinhas mágicas que vocês usam para caçar almas como se fossem
246
A morte da alma imortal 247
'adhonây Adonay.
dela homens e animais. Ainda que estivessem no meio dela estes três
homens, Noé, Daniel e Jó, eles pela sua justiça livrariam apenas as
Ez 14:20
ACF Ainda que Noé, Daniel e Jó estivessem no meio dela, vivo eu, diz
o Senhor Deus, que nem um filho nem uma filha eles livrariam, mas
Ez 17:17
ACF E Faraó, nem com grande exército, nem com uma companhia
247
A morte da alma imortal 248
COR E Faraó, nem com grande exército, nem com uma companhia
ACF Eis que todas as almas são minhas; como o é a alma do pai, assim
ACF A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniquidade
248
A morte da alma imortal 249
Ez 22:27 ACF Os seus príncipes no meio dela são como lobos que arrebatam a
seguirem a avareza.
NVI Farei que muitos povos fiquem chocados ao vê-lo, e que os seus
COR Farei que muitos povos fiquem chocados ao vê-lo, e que os seus
minha espada diante deles. No dia da sua queda todos eles tremerão
HEB 'êth qol hashophâr shâma` velo' nizhâr dâmo bo yihyeh vehu'
nizhârnaphsho millêth.
202.
NAA Ele ouviu o som da trombeta e não se deu por avisado; será
Ez 33:5
responsável por sua própria morte. Se ele tivesse dado atenção ao
249
A morte da alma imortal 250
COR Ele ouviu o som da trombeta e não se deu por avisado; será
'edhrosh s.
ACF Mas, se quando o atalaia vir que vem a espada, e não tocar a
203. trombeta, e não for avisado o povo, e a espada vier, e levar uma vida
Ez 33:6 dentre eles, este tal foi levado na sua iniquidade, porém o seu sangue
COR Mas, se quando o atalaia vir que vem a espada, e não tocar a
trombeta, e não for avisado o povo, e a espada vier, e levar uma alma
dentre eles, este tal foi levado na sua iniquidade, porém o seu sangue
Ez 33:9 ACF Mas, se advertires o ímpio do seu caminho, para que dele se
205.
HEB ve'âbhadh mânos miqqâl vechâzâqlo'-ye'ammêts kocho
Am 2:14
veghibbor lo'-yemallêth naphsho.
250
A morte da alma imortal 251
Jn 1:14 nos deixes morrer por tirarmos a vida deste homem. Não caia sobre
desejavas”.
nos deixes morrer por tirarmos a alma deste homem. Não caia sobre
251
A morte da alma imortal 252
desejavas”.
Jn 2:7
ACF Quando desfalecia em mim a minha alma, lembrei-me do
mothiy mêchayyây s.
209. NVI Agora, Senhor, tira a minha vida, eu imploro, porque para mim é
COR Agora, Senhor, tira a minha alma, eu imploro, porque para mim
Jn 4:8 o sol bateu na cabeça de Jonas, a ponto de ele quase desmaiar. Com
isso ele desejou morrer, e disse: “Para mim seria melhor morrer do
que viver”.
252
A morte da alma imortal 253
isso ele desejou que sua alma morresse, e disse: “Para mim seria
ACF E disse Ageu: Se alguém que for contaminado pelo contato com
211. o corpo morto, tocar nalguma destas coisas, ficará ela imunda? E os
COR E disse Ageu: Se alguém que for contaminado pelo contato com
GRE legôn egertheis paralabe to paidion kai tên mêtera autou kai
poreuou eis gên israêl tethnêkasin gar oi zêtountes tên psuchên tou
paidiou.
menino.
253
A morte da alma imortal 254
NVI Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem
matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto
GRE o eurôn tên psuchên autou apolesei autên kai o apolesas tên
214. NAA Quem acha a sua vida a perderá; e quem perde a vida por minha
COR Quem acha a sua alma a perderá; e quem perde a alma por
GRE os gar a=ean tsb=an thelê tên psuchên autou sôsai apolesei
autên.
215.
NAA Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; e quem perder a
Mt 16:25
vida por minha causa, esse a achará.
COR Pois quem quiser salvar a sua alma a perderá; e quem perder a
254
A morte da alma imortal 255
GRE kai os a=an tsb=ean thelê en umin einai prôtos a=estai tsb=estô
alla diakonêsai kai dounai tên psuchên autou lutron anti pollôn.
NAA Quem quiser ser o primeiro entre vocês, que seja servo de vocês;
217.
tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para
Mt 20:27-28
servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
COR Quem quiser ser o primeiro entre vocês, que seja servo de vocês;
tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para
218.
meio! Então lhes perguntou: É lícito nos sábados fazer o bem ou fazer
Mc 3:3-4
o mal? Salvar uma vida ou deixar morrer? Mas eles ficaram em
silêncio.
meio! Então lhes perguntou: É lícito nos sábados fazer o bem ou fazer
silêncio.
255
A morte da alma imortal 256
GRE os gar a=ean tsb=an thelê tên psuchên autou sôsai apolesei
psuchên autou.
ACF Porque qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas,
219. qualquer que perder a sua vida por amor de mim e do evangelho,
mundo e perder a sua alma? Ou, que daria o homem pelo resgate da
sua alma?
COR Porque qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas,
mundo e perder a sua alma? Ou, que daria o homem pelo resgate da
sua alma?
GRE kai gar o uios tou anthrôpou ouk êlthen diakonêthênai alla
220. ACF Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas
COR Porque o Filho do homem também não veio para ser servido,
256
A morte da alma imortal 257
b=apokteinai ats=apolesai.
221.
Lc 6:9 NVI Jesus lhes disse: “Eu lhes pergunto: o que é permitido fazer no
COR Jesus lhes disse: “Eu lhes pergunto: o que é permitido fazer no
GRE os gar b=ean ats=an thelê tên psuchên autou sôsai apolesei
autên.
222.
NVI Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a
Lc 9:24
vida por minha causa, este a salvará.
COR Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder
tsb=eipon kurie theleis eipômen pur katabênai apo tou ouranou kai
223.
analôsai autous tsb=ôs tsb=kai tsb=êlias tsb=epoiêsen strapheis de
Lc 9:54-56
epetimêsen autois b=[kai ts=kai tsb=eipen tsb=ouk tsb=oidate
257
A morte da alma imortal 258
queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias
sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para
destruir as almas dos homens, mas para salvá-las. E foram para outra
aldeia.
Lc 12:20
ACF Mas Deus lhe disse: Louco! Esta noite te pedirão a tua alma; e o
zôogonêsei autên.
225.
NAA Quem tentar preservar a sua vida a perderá; e quem a perder,
Lc 17:33
esse a salvará.
esse a salvará.
226. GRE egô eimi o poimên o kalos o poimên o kalos tên psuchên autou
258
A morte da alma imortal 259
ACF Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas.
COR Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua alma pelas ovelhas.
GRE kathôs ginôskei me o patêr kagô ginôskô ton patera kai tên
227. ACF Assim como o Pai me conhece a mim, também eu conheço o Pai,
GRE dia touto a=me o patêr tsb=me agapa oti egô tithêmi tên
228. NAA Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para recebê-
COR Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha alma para
259
A morte da alma imortal 260
COR Quem ama a sua alma perde-a; mas aquele que odeia a sua alma
GRE legei autô ats=o petros kurie ab=dia ab=ti ts=diati ou dunamai
soi akolouthêsai arti tên psuchên mou uper sou thêsô a=apokrinetai
NVI Pedro perguntou: “Senhor, por que não posso seguir-te agora?
230.
Darei a minha vida por ti!”. Então Jesus respondeu: “Você dará a vida
Jo 13:37-38
por mim? Asseguro-lhe que, antes que o galo cante, você me negará
três vezes!”.
COR Pedro perguntou: “Senhor, por que não posso seguir-te agora?
Darei a minha alma por ti!”. Então Jesus respondeu: “Você dará a
alma por mim? Asseguro-lhe que, antes que o galo cante, você me
GRE meizona tautês agapên oudeis echei ina tis tên psuchên autou
NVI Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos
231.
seus amigos.
Jo 15:13
COR Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua alma
260
A morte da alma imortal 261
ACF E acontecerá que toda a alma que não escutar esse profeta será
Cristo.
homens que têm arriscado a alma pelo nome de nosso Senhor Jesus
Cristo.
GRE legôn autois andres theôrô oti meta ubreôs kai pollês zêmias ou
234.
monon tou ab=phortiou ts=phortou kai tou ploiou alla kai tôn
At 27:10
psuchôn êmôn mellein esesthai ton ploun.
261
A morte da alma imortal 262
vidas.
almas.
235. NAA Mas agora aconselho que tenham coragem, porque nenhuma
237. mou en christô iêsou oitines uper tês psuchês mou ton eautôn
Rm 16:3-4 trachêlon upethêkan ois ouk egô monos eucharistô alla kai pasai ai
262
A morte da alma imortal 263
quais pela minha vida arriscaram a sua própria cabeça; e isto lhes
agradeço, não somente eu, mas também todas as igrejas dos gentios.
quais pela minha alma arriscaram a sua própria cabeça; e isto lhes
agradeço, não somente eu, mas também todas as igrejas dos gentios.
GRE prosdechesthe oun auton en kuriô meta pasês charas kai tous
238. honrem a homens como este, porque ele quase morreu por amor à
Fp 2:29-30 causa de Cristo, arriscando a vida para suprir a ajuda que vocês não
me podiam dar.
honrem a homens como este, porque ele quase morreu por amor à
causa de Cristo, arriscando a alma para suprir a ajuda que vocês não
me podiam dar.
263
A morte da alma imortal 264
NAA Assim, com muito afeto, estávamos prontos a lhes oferecer não
COR Assim, com muito afeto, estávamos prontos a lhes oferecer não
GRE êmeis de ouk esmen upostolês eis apôleian alla pisteôs eis
Hb 10:39
NAA Nós, porém, não somos dos que retrocedem para a perdição,
Tg 5:20 ACF Saiba que aquele que fizer converter do erro do seu caminho um
pecados.
GRE en toutô egnôkamen tên agapên s=tou s=theou oti ekeinos uper
êmôn tên psuchên autou ethêken kai êmeis opheilomen uper tôn
242.
adelphôn tas psuchas a=theinai tsb=tithenai.
1Jo 3:16
NVI Nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua vida
264
A morte da alma imortal 265
COR Nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua alma
tsb=diephtharê.
Ap 8:8-9 terça parte das criaturas do mar, e foi destruída a terça parte das
embarcações.
terça parte das almas do mar, e foi destruída a terça parte das
embarcações.
GRE kai autoi enikêsan auton dia to aima tou arniou kai dia ton logon
tês marturias autôn kai ouk êgapêsan tên psuchên autôn achri
thanatou.
Ap 12:11 vida.
alma.
265
A morte da alma imortal 266
phialên autou eis tên thalassan kai egeneto aima ôs nekrou kai pasa
245.
psuchê a=zôês tsb=zôsa apethanen a=ta en tê thalassê.
Ap 16:3
GRE kai eidon thronous kai ekathisan ep autous kai krima edothê
autois kai tas psuchas tôn pepelekismenôn dia tên marturian iêsou
kai dia ton logon tou theou kai oitines ou prosekunêsan a=to tsb=tô
246.
ACF E vi tronos; e assentaram-se sobre eles, e foi-lhes dado o poder
Ap 20:4
de julgar; e vi as almas daqueles que foram degolados pelo
anos.
Dos 246 textos em que nephesh ou psiquê aparecem ao menos uma vez em
conhecida por ser mais literal) mantém a alma no texto, e não a quantidade média
266
A morte da alma imortal 267
Na maior parte versões disponíveis em português, esses 28% viram menos de 10%,
Mesmo desses 28% em que alguma tradução mantém a palavra alma, quase
todos são textos onde a morte da alma está implícita ou é presumida, sendo
incrivelmente raro eles manterem a alma em textos onde ela morra explicitamente.
Por exemplo, entre esses 28% não constam nenhum dos textos onde um cadáver é
falam de “arriscar a alma”. A maioria consiste nos textos que falam sobre ser
sobreviveria em outro lugar) e dos textos que falam da morte final (por imaginarem
Qual o impacto que os tradutores têm nas crenças das pessoas? Certamente
deram através de muito estudo das Escrituras, muitas vezes impulsionado pelo
povo comum e simples. Se todas as vezes nephesh e psiquê fossem traduzidas por
tudo o que esse povo tem acesso são traduções deliberadamente defeituosas, não
devemos esperar resultado melhor do que na Idade Média, quando a própria Bíblia
65
Sobre isso, eu escrevi em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/04/conheca-toda-perseguicao-e-
proibicao-da.html>.
267
A morte da alma imortal 268
Mas não pense que essa ignorância afeta apenas os leigos. Até os teólogos
traduções e não fazem a menor ideia disso. Um exemplo é o Pr. Natanael Rinaldi,
livro sobre o tema chegou a dizer que “a única morte da alma é aquela que se dá
enquanto o homem tem vida física, mas vive separado de Deus por causa do seu
maior força do lado contrário, anulando seus argumentos não por uma exegese
séria, mas pela adulteração grosseira que já não pode mais ser escondida.
a palavra “alma” nas centenas de textos que falam da sua morte, eles a mantém nas
poucas passagens que distorcem para dizer que ela não morre. Já vimos alguns
exemplos nos textos que falam da alma “saindo” e “voltando”, mas nenhum é mais
66
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 115.
268
A morte da alma imortal 269
• Mateus 10:28
em Mt 10:28, texto que diz: “Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não
podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma
como o corpo no inferno” (Mt 10:28). A primeira coisa que salta aos olhos de
qualquer observador atento é que o único texto usado para dizer que a alma é
imortal é justamente um que diz que ela é destruída junto com o corpo no inferno.
significa “destruir mesmo”, mas sim o seu oposto, qualquer tentativa de manipular
esse texto específico é frustrada pelo contexto, que não abre qualquer margem à
porque, assumindo que “alma” neste texto esteja no sentido de um elemento que
final, do contrário o que o texto estaria dizendo é para não temer os que matam o
corpo e não a alma, mas sim aquele que também só mata o corpo e não a alma (o
parte ser uma antítese da primeira já atesta que Jesus estava falando realmente de
aniquilação. O sentido claro e manifesto é que Deus mata mais do que os homens
são capazes de matar – porque, enquanto estes matam só o corpo, Deus destrói
corpo e alma. Para tentar fugir a essa conclusão lógica, alguns imortalistas
269
A morte da alma imortal 270
argumentam que o texto não diz que Deus efetivamente destrói corpo e alma, mas
apenas que Ele “pode” destruir corpo e alma. É difícil imaginar como isso resolve o
problema, já que ninguém teria razões pra temer alguém que apenas tem o “poder”
É como imaginar uma criança que teme o pai porque este “pode” (tem o
poder de) colocá-la de castigo, quando este mesmo pai já disse que jamais a
colocaria de castigo não importa o que ela fizesse. Que criança realmente temeria
um pai desses, que tem apenas o poder teórico de fazer algo que Ele mesmo já
disse, decretou e determinou que não fará? Neste caso, a própria ameaça de
significado. Ela só faz sentido se Deus não apenas “pode” destruir a alma, mas
realmente a destrói.
reconhecendo que Deus realmente destrói a alma, mas que essa destruição não é
segue-se que Jesus não estaria falando de morte literal na última parte do verso
declaração (pois, como vimos, não faria o menor sentido dizer para não temer
aqueles que só matam o corpo, se Deus também matasse só o corpo). Para começo
mesmo significado básico que apokteino (i.e, a destruição ou morte). Jesus disse
270
A morte da alma imortal 271
casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio, e os destruiu
aqui por ele ao se referir ao fim que tiveram os ímpios por ocasião do dilúvio, que,
como sabemos, foi a destruição total pelas águas (que não deixaram nenhum
deixar perecer» e «punir com a morte»68. A única diferença é que apollumi também
para “esposa” (gune), cabendo apenas ao contexto definir se está falando de uma
grego dos tempos bíblicos era linguisticamente pobre se comparado aos idiomas
modernos, razão por que com frequência muitas palavras assumiam mais de um
significado dependendo do contexto (algo que aliás acontece ainda hoje com
67
#622 da Concordância de Strong.
68
#615 da Concordância de Strong.
69
#622 da Concordância de Strong.
271
A morte da alma imortal 272
responder a isso, apenas tente substituir “destruir” por “perder” para ver se o texto
“Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma.
Antes, tenham medo daquele que pode perder tanto a alma como o corpo no
inferno”
Nessa leitura, o que o texto estaria nos dizendo é que o próprio Deus
perderia sua alma e corpo no inferno, o que não parece fazer muito sentido. Aqui,
Alguém poderia perguntar então por que Mateus usaria duas palavras
fato, alguns imortalistas usam isso como um argumento para “provar” que o
272
A morte da alma imortal 273
fiéis entre os filhos dos homens. Cada um fala com falsidade ao seu próximo;
falam com lábios lisonjeiros e coração dobrado. O Senhor cortará todos os
lábios lisonjeiros e a língua que fala soberbamente. Pois dizem: Com a nossa
(Salmos 12:1-4)
Mesmo que passe imperceptível aos olhos de muitos, temos aqui o que
“Cada um fala com falsidade ao seu “Falam com lábios lisonjeiros e coração
“O Senhor cortará todos os lábios “[O Senhor cortará] a língua que fala
“Pois dizem: Com a nossa língua “[Pois dizem:] são nossos os lábios;
Note que a segunda linha de cada verso não altera o sentido ou o significado
ideia é a mesma, a qual só é expressa em outros termos (um recurso típico da poesia
273
A morte da alma imortal 274
“Não tenham medo dos que matam o “Tenham medo daquele que pode
corpo, mas não podem matar a alma” destruir tanto a alma como o corpo”
primeira usando as mesmas palavras, mas não é assim que um paralelismo hebraico
usando sinônimos, o que explica por que a primeira parte do verso traz apokteino
(matar) e a segunda apollumi (destruir). O que importava para eles não era a palavra
específica que era usada, mas o conceito expresso em ambas as linhas. Neste caso,
o conceito é que Deus dá fim ao corpo e à alma, enquanto os homens dão fim
somente ao corpo.
Sabemos, portanto, que o texto não pode ser usado como uma prova da
contexto exige que o tipo de morte aqui seja a mesma que o corpo padece). Mas o
“alma” aqui em seu sentido habitual, seríamos forçados a concluir que a alma é
aniquilada na segunda morte, mas que sobrevive à primeira (embora o texto não
diga em que lugar ou estado, se consciente ou não). E isso abriria margem à crença
Mas vamos com calma. Imagine que você abra amanhã os noticiários
esportivos e se depare com críticas ácidas a um certo time de futebol (que aqui
veja um dos comentaristas dizer que “esse time não tem alma” (o que é verdadeiro
274
A morte da alma imortal 275
tenha sido expressar alguma crença mortalista, a despeito do que quer que ele
dissesse que “esse time joga com alma”. Independentemente dos jogadores terem
alma ou não, todo mundo sabe que a intenção não era dissertar sobre a natureza
da alma.
primeiro volume da minha série dos “500 Anos de Reforma: Como o Protestantismo
Mas não para por aí. Fernando sabia que não bastava o exílio, as
do que matar o corpo: a própria alma boêmia tinha que ser destruída.
subtendido que o imperador estava matando só o corpo e não a alma dos boêmios,
deixar a alma ilesa pra sair voando pro céu. Era óbvio que a “alma” aqui dizia
respeito a toda a cultura boêmia que passou a ser suprimida à força pelo imperador
70
Disponível na página dos livros: <http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
275
A morte da alma imortal 276
católico, que foi o primeiro a não apenas exterminá-los fisicamente, mas a destruir
Isso obviamente não significa que este era o mesmo sentido que Jesus usou
em Mt 10:28, mas esses exemplos servem para nos mostrar que precisamos ser um
só porque um único texto isolado parece dizer isso – ainda mais quando esse texto
Tomar esse texto sem estudar o contexto maior para endossar a imortalidade da
alma é o mesmo que alguém ligar para a polícia ao ouvir que um namorado “partiu
o coração” da namorada. Pode até ser que ele tenha cortado o coração em
era que “os vivos são sempre, e cada vez mais, governados pelos mortos”71. Se
alguém lesse essa frase isoladamente em algum canto da Bíblia poderia facilmente
pensar que os vivos são governados por almas fora do corpo em um plano superior,
e até mesmo usar com entusiasmo este texto contra os mortalistas. Mas qualquer
o sentido realmente pretendido por Comte, que falava apenas da submissão dos
Argentina). É por isso que é preciso buscar o sentido de uma afirmação com cuidado
71
PINTO, Almir Pazzianotto. Sob o comando dos mortos. Disponível em:
<https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,sob-o-comando-dos-mortos-imp-,1577036>. Acesso em:
16/07/2022.
276
A morte da alma imortal 277
em vez de se deixar levar pela emoção quando encontra um recorte de texto que
presente. De modo geral, podemos dizer que uma palavra é sempre mais usada em
seu sentido habitual pelo qual ela é definida, mas sempre haverá ocasiões em que
ela será usada em um sentido que foge ao seu significado natural e simples.
Por isso seria um absurdo alguém dizer que todas as vezes em que a alma
morre nas centenas de textos que vimos neste capítulo está sempre em um sentido
figurado, mas não seria absurdo nenhum dizer que em uma única ocasião onde
ocorre o contrário ela está em um sentido figurado. Para toda regra há uma
exceção, mas a exceção não pode virar a regra. Dizer que todas as centenas de
textos bíblicos que dizem que a alma morre estão condicionados a um único que
diz que ela não morre é jogar de pernas pro ar os princípios mais básicos da
hermenêutica.
aparentemente contraria este ensino tão reiterado na Bíblia, você não busca
direção para conciliá-los ao único que aparenta dizer o contrário. Em vez disso, você
277
A morte da alma imortal 278
Por exemplo, Paulo certa vez disse que “a mulher será salva dando à luz
filhos” (1Tm 2:15). Se este fosse o único versículo da Bíblia, alguns poderiam concluir
que a salvação vem pela gestação, ou que ter filhos é necessário para ser salvo. Mas
com tantos versículos dizendo de forma tão clara que a salvação é pela graça,
Embora este princípio pareça algo tão óbvio, quando se trata de salvar a
luz do consenso geral da Bíblia e das palavras de Jesus, eles fazem o inverso,
Mas se o «não podem matar a alma» não contradiz o caminhão textos que
dizem expressamente que a alma morre, onde a nephesh ou psiquê está em seu
sentido habitual, em que sentido Jesus teria usado “alma” aqui? Para encontrar essa
nos evangelhos. Se ele tinha o costume de usar o termo em um sentido que vai além
de sua dimensão natural, é muito provável que este também seja o caso de Mt
10:28. A questão é: encontramos tal uso nos ensinos de Jesus? E a resposta está
278
A morte da alma imortal 279
apenas onze versos depois do texto em questão, pouco após dizer que «não podem
matar a alma»:
“Quem acha a sua vida (psiquê) a perderá, e quem perde a sua vida (psiquê)
Embora a NVI traduza como “vida”, é psiquê que consta no original grego –
exatamente a mesma palavra usada onze versos antes. Mas o que Jesus queria dizer
aqui? Certamente não que alguém “acha” ou “perde” uma alma imaterial escondida
dentro do corpo, o que seria uma missão um tanto quanto desafiadora (tão difícil
que os próprios cientistas até hoje não encontraram a tal “alma”). Como é evidente,
a psiquê aqui se refere à vida, tanto a vida presente como a futura (que ganharemos
na ressurreição).
Jesus alterna esses dois sentidos na mesma frase de forma dinâmica. Assim,
quem se apega à sua vida presente perde a vida futura, e quem abre mão dos
prazeres carnais desta vida conquista a vida futura. Tanto Lucas como João ecoam
“Aquele que ama a sua vida (psiquê), a perderá; ao passo que aquele que
odeia a sua vida (psiquê) neste mundo, a conservará para a vida eterna”
(João 12:25)
279
A morte da alma imortal 280
porque Jesus diz que quem a conserva a perde, e quem a perde preserva. Da mesma
forma, Jesus não estava falando sobre amar ou odiar uma alma imaterial presa no
corpo, o que faz tanto sentido quanto amar ou odiar um dedo do pé. O sentido
evidente é o mesmo de Mt 10:39, onde o que está em jogo é amar a vida terrena
(vivendo para os seus próprios prazeres), que implica em se privar da vida futura, ou
abrir mão dos prazeres da carne por algo maior, a vida eterna. Alguns capítulos
perder a alma (psiquê) por minha causa achá-la-á. Pois que aproveitará o
O homem não pode dar nada em troca da sua alma-psiquê, não porque
alguns não possuam alma e precisem comprá-la, mas porque “alma” aqui significa
a vida que se obtém após a ressurreição. O texto apresenta mais uma vez o
contraste existente entre a vida presente e a futura, onde somos exortados a viver
(renunciando a certas práticas de quem vive como se esta vida fosse tudo). Vemos
“Portanto eu lhes digo: não se preocupem com suas próprias vidas (psiquê),
quanto ao que comer ou beber; nem com seus próprios corpos, quanto ao
que vestir. Não é a vida (psiquê) mais importante do que a comida, e o corpo
mais importante do que a roupa?” (Mateus 6:25)
280
A morte da alma imortal 281
Na primeira parte, a psiquê se refere à vida presente (que Jesus diz para não
vida futura (que Jesus diz que é mais importante que essas coisas da vida presente).
Mais uma vez, somos instados a priorizar a vida futura em detrimento da vida
presente, sendo ambas designadas pelo mesmo termo para alma (psiquê). Em
outras ocasiões, psiquê se refere exclusivamente à vida futura, como quando Jesus
“Vocês não sabem de que espécie de espírito são, pois o Filho do homem não
veio para destruir a vida (psiquê) dos homens, mas para salvá-las”
(Lucas 9:55)
justamente ao contrário: para salvá-las e dar a elas uma oportunidade de viver para
sempre. Em outra ocasião, ele diz aos discípulos que “é perseverando que vocês
obterão a vida (psiquê)” (Lc 21:19). É evidente que Jesus não estava falando aqui
sobre “obter uma alma imortal” (que os discípulos supostamente já teriam), nem
sobre “obter a vida presente” (que eles, assim como qualquer pessoa viva, também
tinham). “Obter a psiquê” aqui se refere a obter a vida futura, isto é, a vida que
desfrutamos após a ressurreição (Jo 5:28-29; Lc 14:14; 1Co 15:22-23; 1Ts 4:16-17).
Com tantos exemplos de alma-psiquê sendo usada num sentido que não
tem nada a ver com um elemento, mas sim com a vida futura, é fácil entender as
palavras de Jesus em Mt 10:28. Não poder matar a psiquê significa não ter a
capacidade de acabar com a vida futura, já que os homens só podem nos matar
nesta vida. Deus, no entanto, pode nos destruir tanto nesta vida, quanto na próxima
281
A morte da alma imortal 282
– o que explica por que devemos temê-lo mais do que tememos aos homens.
algum.72
Em síntese, tudo o que os homens podem fazer é nos privar desta vida, mas
não podem fazer nada para nos excluir da próxima, que recebemos pela graça
mediante a fé. Mas se pecarmos contra Deus, comprometemos não apenas a vida
presente, mas também a futura. É por isso que a Bíblia ensina que os ímpios
duas mortes para os ímpios, mas apenas uma para os justos (a que sofremos ao final
desta vida). Enquanto os justos ressuscitam para a vida eterna, os ímpios que
pecados:
72
WHATELY, Richard. A View of the Scripture Revelations Concerning a Future State. London: Lindsay &
Blakiston, 1842, p. 68.
282
A morte da alma imortal 283
morte não tem poder sobre eles; serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e
reinarão com ele durante mil anos” (Apocalipse 20:6)
Note que o texto não diz que a primeira morte não tem poder sobre os
justos, mas apenas a «segunda morte», porque a primeira é aquela pela qual todos
passamos ao final da nossa jornada terrena, e tanto justos como ímpios morrem
nesta vida. Mas além dela há também uma outra morte, a segunda, que se dá após
a ressurreição, à qual só os condenados estão sujeitos. É por isso que tanto Deus
como os homens são capazes de matar alguém nesta vida (primeira morte), mas só
discursos de Jesus, que nunca se referiu a ela como uma parte imaterial e imortal da
nossa natureza que sobrevive com consciência e personalidade fora do corpo, mas
sempre como o nosso ser integral (no sentido básico de Gn 2:7) ou como a nossa
simples, Jesus entendia a alma não de acordo com o pensamento grego, mas
A ideia de que Jesus defendeu a noção grega de alma em Mt 10:28 não vem
do texto bíblico em si (até porque nenhum platônico diria que a psiquê pode ser
283
A morte da alma imortal 284
que Jesus falava do conceito platônico de alma porque quando ouvimos falar de
não no conceito hebraico e bíblico que contempla a alma apenas como a vida
O que lança ainda mais luz a essa conclusão é o registro que Lucas faz do
mesmo verso citado por Mateus. Observe com atenção como Lucas
“Eu lhes digo, meus amigos: não tenham medo dos que matam o corpo e
depois nada mais podem fazer. Mas eu lhes mostrarei a quem vocês devem
temer: temam aquele que, depois de matar o corpo, tem poder para lançar
no inferno. Sim, eu lhes digo, esse vocês devem temer” (Lucas 12:4-5)
Mateus cita a psiquê, e Lucas não (o que seria bastante estranho, se a intenção era
escreveu depois de Mateus e o usou como fonte para o seu próprio evangelho (um
quase sempre que Lucas ecoa Mateus ele transcreve o texto sem mudanças
intérprete.
neste padrão. Basta uma comparação simples com o próprio contexto de ambas as
73
Disponível em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/05/resolvendo-o-problema-sinoptico-da.html>.
284
A morte da alma imortal 285
Mateus 10 Lucas 12
26. Não há nada escondido que não 2. Não há nada escondido que não
venha a ser revelado, nem oculto que venha a ser descoberto, ou oculto que
27. O que eu lhes digo na escuridão, 3. O que vocês disseram nas trevas
falem à luz do dia; o que é sussurrado será ouvido à luz do dia, e o que vocês
29. Não se vendem dois pardais por 6. Não se vendem cinco pardais por
285
A morte da alma imortal 286
vocês estão todos contados. Portanto, estão todos contados. Não tenham
não tenham medo; vocês valem mais medo; vocês valem mais do que
33. Mas aquele que me negar diante 9. Mas aquele que me negar diante
dos homens, eu também o negarei dos homens será negado diante dos
Observe como todos os versos de Lucas seguem quase ipsis litteris o trecho
Lucas chega nele, ele prefere fazer uma alteração significativa no texto, tão
inteira do texto, substituindo a parte que diz «não podem matar a alma» por «nada
mais podem fazer», que é uma diferença enorme para quem pensa que Jesus disse
Duas coisas devemos nos perguntar aqui. A primeira é o que teria levado
286
A morte da alma imortal 287
resposta mais lógica é porque Lucas (um gentio nascido em Antioquia) escrevia seu
evangelho aos judeus, o qual inclusive foi originalmente escrito em hebraico antes
Em outras palavras, Mateus sabia que seus leitores corriam muito menos
hebraicas, por isso não se importou em transcrever as palavras exatas de Jesus sem
alteração. Mas Lucas escrevia a um público distinto, para os quais este versículo
contradição, já que uma hora dizia que a psiquê é mortal (Lc 6:9, 12:20, 17:33), e
literal palavra por palavra. Que outra razão teria Lucas para tirar do texto um
aspecto tão importante, ainda mais considerando que ele habitualmente evitava
mudanças substanciais nos textos que citava de outra fonte? Ele nem mesmo vê
chega na parte de não poder matar a alma-psiquê prefere dar um jeito de tirá-la do
74
Leia mais sobre isso em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/05/resolvendo-o-problema-sinoptico-
da.html>.
287
A morte da alma imortal 288
Ele certamente não tomaria a liberdade de fazer uma alteração tão radical
exclusivamente na parte da alma se não fosse por uma boa razão, e a única razão
que ele teria é a precaução diante de um público que poderia entender errado o
significado de psiquê no texto. E isso nos leva à nossa segunda questão: seria o
imortalistas têm na Bíblia inteira para “provar” que a alma não morre não fosse o
bastante, temos uma evidência ainda mais forte no próprio texto: a menção ao
Geena.
capítulo 16 deste livro, que aborda o inferno e os acontecimentos finais. Por hora,
basta dizer que os próprios imortalistas reconhecem que o Geena não se refere a
lançados após a ressurreição. Para eles, o Hades seria o “inferno atual” onde os
mortos sem Cristo atualmente se encontram, e o Geena o “inferno final”, para onde
esses mesmos mortos migrarão para passar o restante da eternidade (o porquê que
eles precisariam migrar de um inferno para outro inferno é um mistério que nem
eles sabem).
“inferno” nas nossas Bíblias é o Geena (ou seja, o estado final pós-ressurreição), não
o Hades (ou seja, o estado intermediário atual). Com isso em mente, leia novamente
Lc 12:4-5:
288
A morte da alma imortal 289
“Eu lhes digo, meus amigos: não tenham medo dos que matam o corpo e
depois nada mais podem fazer. Mas eu lhes mostrarei a quem vocês devem
temer: temam aquele que, depois de matar o corpo, tem poder para lançar
no geena (após a ressurreição). Sim, eu lhes digo, esse vocês devem temer”
Hades, como seria caso a ideia que o texto quisesse transmitir fosse a da separação
entre o corpo e a alma. Em vez disso, após a morte do corpo o homem integral é
como o lugar para onde a alma é lançada após a morte física, que seria o seu destino
natural e imediato fora do corpo. Em vez disso, o que se segue à morte do corpo é
o lançamento da pessoa inteira no Geena, o que reforça a noção bíblica de que não
Quem morre permanece sem vida até ser ressuscitado, o que explica por que o
289
A morte da alma imortal 290
da alma por ocasião da morte, para qual lugar você acha que ele diria que a alma
do condenado é levada? Para o Hades, que seria o seu destino imediato fora do
corpo, ou para o Geena, onde estaria depois de muito tempo e de corpo e alma? A
resposta parece óbvia, se Jesus tivesse mesmo a menor intenção de passar a ideia
da sobrevivência da alma fora do corpo. Neste caso, o ouviríamos dizer para temer
«aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no Hades», já que o Hades
seria esse lugar para onde as almas são atormentadas após a morte.
O fato de Lucas “pular” o Hades como se não existisse e citar direto o Geena
se dá justamente porque o que estava em jogo era a vida que se obtém após a
senso, mas perverte as palavras de Cristo de tal modo a transformar um texto que
com uma análise séria do texto quando percebem a menor brecha para defender o
dualismo na Bíblia.
• Considerações Finais
Nestes dois últimos capítulos, vimos que a alma não é o que Deus colocou
no homem, mas o que o homem se tornou após o sopro do fôlego da vida que nos
mantém vivos, possuindo muitas vezes o sentido da vida cuja vitalidade está no
290
A morte da alma imortal 291
Bíblia como algo tátil e tangível, capaz de comer e ter fome, de tocar e ser tocada,
de matar e morrer. Não existe alma sem corpo ou fora do corpo, precisamente
porque “o corpo, longe de ser dividido de seu princípio animado, é a nephesh (alma)
alma – 246, para ser mais preciso, englobando 300 ocorrências ao todo –, frente a
deparou com este mesmo trecho do livro publicado em um artigo do meu site76
significados(!) e por isso os tradutores são livres para traduzir de qualquer jeito que
quiserem. Como era de se esperar, ele não citou qualquer fonte que mostre os tais
“480 significados”, pois qualquer palavra que tivesse tantos significados assim seria
basicamente uma palavra inútil, que poderia significar tanta coisa que não
Por isso as palavras com mais significados diferentes em português não têm
mais do que três ou quatro significados, no máximo77 (como “banco”, que pode
sentar ou “bancar” alguém no sentido de prover seu sustento). Mas jamais teríamos
uma palavra com centenas de significados possíveis, que seria o mesmo que não
75
MORK, Dom Wulstan. The Biblical Meaning of Man. Milwaukee: Bruce Publishing, 1967, p. 34.
76
Disponível em: <http://www.lucasbanzoli.com/2021/04/300-vezes-que-alma-morre-nos-
originais.html>.
77
Outros idiomas, como o inglês, podem possuir palavras que abraçam mais significados, mas que
dificilmente chegam a uma dezena.
291
A morte da alma imortal 292
Tome como exemplo a palavra “manga”, que pode significar duas coisas:
uma fruta com este nome, ou a parte da camisa de mesmo nome. Mas se a manga
fosse qualquer fruta (ou seja, se toda fruta pudesse ser chamada de “manga”) ela
perderia seu significado. Uma palavra que significa tudo é a mesma coisa de uma
palavra que não significa nada. Ela não nos ajudaria a identificar coisa alguma. Da
mesma forma, se a manga pudesse significar qualquer parte da camisa, ela também
não serviria pra nada. Alguém que falasse em “arregaçar as mangas” poderia estar
coisa só aumentaria a confusão. Ela precisa ser identificada com alguma parte
significados não podem ser excessivos e muito menos conflitar com um outro
significado. Por isso não pode existir uma alma com tantos significados que não
signifique nada, ou uma alma que morre e outra que seja imortal. O pastor
nossos sentimentos (como quando alguém diz que está “de coração partido”,
embora não tenha sofrido nenhum acidente). Tanto o significado literal como o
figurado de “coração” são frequentes na Bíblia, mas note que os imortalistas não
tomam a liberdade de traduzir por outra coisa que não seja o coração.
sentido figurado de bênção material (Nm 14:8) ou de alimento espiritual (1Pe 2:2).
292
A morte da alma imortal 293
No entanto, todas as vezes que a palavra aparece na Bíblia – mesmo quando seu
ocorre quando se trata da alma, que por imaginarem se tratar de uma entidade que
textos que falam de sua morte, impedindo assim que o leitor chegue às suas
próprias conclusões.
Ademais, seria demasiado irônico, para não dizer bizarro, que todas as 300
que o sentido literal seja aquele impressionante total de zero textos que dizem que
somada a um mínimo de honestidade concluiria que 300 textos dizendo que a alma
morre contra nenhum dizendo que ela é imortal significa uma coisa: que a alma
morre. Mas para quem já está comprometido com a visão de que a alma é imortal,
é mais fácil distorcer um único texto, ignorar todos os outros e tomar esse único
lugar de um leitor hebreu comum dos tempos bíblicos que se deparasse com
menos imaginaria que o verdadeiro conceito de nephesh é algo oculto nas páginas
293
A morte da alma imortal 294
impossível.
demonstra o quão pouco comprometidos eles estão com uma análise bíblica séria,
facilmente anular qualquer doutrina bíblica à nossa escolha, apenas assumindo que
à extinção da exegese.
Poderíamos, por exemplo, negar que Cristo morreu por nós, evocando que
“morte” tem “centenas de significados” e que nenhum dos textos que dizem que
Jesus morreu falam de uma morte real e literal, ou então negar a vida eterna,
alegando que “vida” também tem “centenas de significados” e que nenhum dos
textos que falam de vida eterna falam de uma vida real e literal. Toda tradução
ficaria à cargo do freguês, e nenhuma verdade objetiva existiria. Embora tal tática
verdadeira crença a respeito da nephesh e rejeitar qualquer ensino que dela destoe,
reinterpretam todos os textos bíblicos que a ele se oponham. É por isso que mesmo
294
A morte da alma imortal 295
na ausência de qualquer texto que diga que a alma é imortal eles preferem ficar
contra centenas de textos que dizem o contrário, já que o que vale é o que se alinha
à filosofia grega, não o que a Bíblia realmente ensina. É sempre mais fácil torcer as
295
O que é o espírito? 296
O que é o espírito?
Introdução – Nos dois últimos capítulos, nós vimos que alma na Bíblia em
nada tem a ver com um ente imaterial que sobrevive com consciência fora do corpo.
Mas o que dizer do espírito? Nós já falamos um pouco sobre ele no capítulo 2, onde
vimos que alma e espírito na Bíblia são duas coisas diferentes, e que o espírito
humano nada mais é que o fôlego de vida que Deus soprou em nossas narinas, em
equivalente bíblico a uma “alma vivente” – isto é, uma alma viva (Gn 2:7). Por isso,
quando o espírito se vai (ou seja, quando paramos de respirar), a alma não sobrevive
intacta em um outro mundo. Ela simplesmente morre, que é o que acontece quando
imprescindível para entender este, nós comparamos a relação entre corpo, alma e
transfere a luz a outro lugar, mas simplesmente a apaga até que seja novamente
acesa. Da mesma forma, quando o corpo perde o princípio de vida que o anima, a
até a ressurreição. Uma vez que o espírito não é um ser pessoal, mas apenas o que
296
O que é o espírito? 297
garante vida a esse ser, não faz sentido falar em “morte” do espírito, assim como
Quando uma pessoa morre, ninguém diz que “sua respiração morreu”. Em
vez disso, dizemos apenas que ela parou de respirar, embora estejamos
forma, quando alguém corta o cabelo e fica careca, ninguém diz que “o cabelo
morreu”, embora não haja mais cabelo na cabeça. Em vez disso, dizemos apenas
que a pessoa perdeu o cabelo. O mesmo podemos dizer a respeito de coisas como
o ar, o sopro, o vento ou uma unha do pé, que não morrem nem são imortais, pelo
simples fato de que não são seres vivos para viver ou morrer. Isso explica por que
há centenas de textos que falam da morte da alma, mas nenhum que fale da morte
do espírito – o que seria bastante estranho se o espírito fosse a mesma coisa que a
tricotomistas).
da morte do espírito, assim como vemos centenas de vezes a alma morrer. Mas não
espírito. Por si só, isso já é um forte indício de que alma e espírito na Bíblia são
alma é o ser integral (que morre) e o espírito é apenas o fôlego da vida (que não
morre, porque não é um ser pessoal para viver ou morrer). É por isso que a alma é
297
O que é o espírito? 298
ser a região subterrânea da terra, onde os mortos são enterrados de corpo e alma.
Mas não se enterra o espírito, o qual não é uma “parte” do homem ou o homem em
si, mas apenas a força vital que veio de Deus e volta para Deus na morte (em
conformidade com textos como Ec 12:7, Lc 23:46 e At 7:59). Isso também confronta
a visão de que o espírito seja a mesma coisa que a alma ou algo inseparável dela,
ouvirmos “desafios” do tipo “onde a Bíblia diz que o espírito morre?” e até mesmo
sua própria ignorância. Os mesmos imortalistas não têm sequer um texto que
chame o espírito humano de eterno ou imortal, mas o que importa é que não existe
personalidade ao espírito está em Zc 12:1, que diz que o Senhor “assenta o alicerce
da terra e forma o espírito do homem dentro dele”. Alguns argumentam que isso
implica que o espírito é um ente pessoal, já que o verbo usado no hebraico para
“formar” é yatsar, o mesmo que aparece em Gn 2:7 quando diz que o homem foi
criação de coisas inanimadas, impessoais e até abstratas como o verão (Sl 74:17), a
luz (Is 45:7) e a calamidade (Jr 18:11). Basicamente qualquer coisa que Deus cria
298
O que é o espírito? 299
aceitar que o espírito seja um ente impessoal identificado com o fôlego da vida.
Para a maioria deles, quando a Bíblia fala do fôlego (do hebraico neshamah) ela está
falando apenas da respiração, mas quando fala do espírito (do hebraico ruach) ela
está falando da tal alma imortal ou de um ente similar a ela. Tal concepção, todavia,
neshamah quando se refere ao espírito humano. Pelo contrário: sempre que elas
Isaías, por exemplo, diz que Deus “dá a respiração (neshamah) ao povo que
nela está, e o espírito (ruach) aos que andam nela” (Is 42:5), ao se referir aos
moradores da terra. Ele não estava tratando a respiração e o espírito como duas
parte da frase com outras palavras, o que significa que «respiração» e «espírito» são
tão equivalentes entre si quanto «o povo que nela está» equivale «aos que andam
nela». Isso significa que Deus não deu duas coisas ao homem: Ele deu uma só, que
é a neshamah ou ruach.
a NVI coloque “Espírito” em maiúsculo, neste caso a ruach não se refere à pessoa
299
O que é o espírito? 300
do Espírito Santo, mas ao mesmo «sopro do Todo-poderoso» que o fez (em alusão
a Gn 2:7).
O texto mais forte que prova que neshamah e ruach são o mesmo quando
respirar (neshamah) e o sopro (ruach) de Deus estiver nas minhas narinas, nunca os
meus lábios falarão injustiça, nem a minha língua pronunciará engano” (Jó 27:3-4).
paralelismo com a neshamah, mas também que ela estava nas suas narinas. O
termo hebraico aqui traduzido como “narinas” é 'aph, que é exatamente a palavra
(Gênesis 2:7)
(narinas) de Adão, e dessa forma o homem se tornou uma nephesh (alma) viva. Jó,
que segundo a tradição judaica foi escrito por Moisés – o mesmo autor do
Pentateuco que escreveu Gn 2:7 –, diz que o sopro (ruach) de Deus está nas suas
'aph (narinas), onde a ruach ocupa o lugar que em Gn 2:7 é dado à neshamah.
Portanto, a não ser que Deus tenha escondido a tal “alma imortal” do homem
dentro do nariz dele e o fato do fôlego também estar relacionado ao nariz seja uma
300
O que é o espírito? 301
05397 nêshamah
1) respiração, espírito;
espírito e fôlego são os mesmos, mas o fôlego é um ser pessoal e imortal assim
como eles imaginam que seja o espírito. Em outras palavras, quando o texto diz que
Deus “soprou em suas narinas o fôlego-neshamah da vida” (Gn 2:7), o que Deus
teria soprado seria uma alma ou espírito imortal que sobrevive com consciência e
personalidade após a morte, e que por alguma misteriosa razão Deus decidiu
colocar bem no nosso nariz (tome cuidado na hora de espirrar, ou sua alma pode
não tendo um conhecimento científico dos mais avançados, não era preciso muito
para perceber a relação entre a respiração e o nariz, já que é pelo nariz que
301
O que é o espírito? 302
diz respeito somente à respiração. Mas de alguma forma que foge à nossa
desespero explica.
“Todos os seres vivos que se movem sobre a terra pereceram: aves, rebanhos
domésticos, animais selvagens, todas as pequenas criaturas que povoam a
terra e toda a humanidade. Tudo o que havia em terra seca e tinha nas
Quando o texto diz que “tudo o que havia em terra seca e tinha nas narinas
o fôlego de vida morreu” (v. 22), é evidente que não estava falando apenas de seres
terra; tanto os homens, como os animais” (v. 23), como é explicado logo no versículo
seguinte. Assim, tanto homens como animais possuem a neshamah, o que não
impediu nem um nem o outro de perecer no dilúvio. Mas note atentamente que o
302
O que é o espírito? 303
texto não só diz que homens e animais têm a neshamah, mas também aponta
exatamente o lugar em que ela se encontra em ambos: nas narinas ('aph). Se ainda
Isaías exclama em alto e bom som: “Parem de confiar no homem, cuja vida
não passa de um sopro (neshamah) em suas narinas. Que valor ele tem?” (Is 2:22).
Aqui, não apenas vemos mais uma vez que a neshamah está em nossas narinas
('aph), mas também temos isso como a razão por que a vida do homem tem pouco
valor. Se o fôlego da vida fosse um espírito pessoal e eterno, indagar “que valor ele
tem” seria uma pergunta retórica burra, já que ela tem o claro propósito de dizer
que tem pouco valor, o que contrasta clamorosamente com a noção de que esse
espírito é eterno.
Ao dizer que «a sua vida não passa de um sopro», o sentido evidente é que
sua existência é curta, justamente porque sua vida é um sopro (neshamah). Isso
implica que a neshamah não pode ser eterna, ou Isaías não poderia dizer algo mais
precisamente o contrário: é a razão por que a nossa existência é tão breve e passível
e esse expirar final é o que dá fim à nossa curta existência, uma vez que o processo
narrar o mesmo evento. Enquanto Mateus diz que “depois de ter bradado
novamente em alta voz, Jesus entregou o espírito” (Mt 27:50), Marcos registra que
303
O que é o espírito? 304
“Jesus, dando um grande brado, expirou” (Mc 15:37). O trecho de Mateus traduzido
termo de amplo significado que geralmente tem a ver com deixar algo ou alguém,
«deixar ir, abandonar, não interferir, desistir, não guardar mais»78, e pneuma é o
espírito.
Já Marcos diz apenas que Jesus ekpneo, que significa «expirar, emitir o
último suspiro, morrer»79. Mateus e Marcos não estão falando de coisas diferentes,
indivíduo deixou de respirar (ou seja, que a vida que fluía dentro dele cessou), que
que Marcos preferiu evitar traduzir por pneuma aqui é porque ele escrevia a um
que sobrevive à morte com consciência, enquanto Mateus dirigiu seu evangelho
Sendo assim, está claro que “entregar o espírito” é apenas outra forma de
dizer que a pessoa expirou, isto é, que deixou de respirar, reforçando o conceito de
espírito como a própria respiração. Esse “expirar” se difere de todas as outras vezes
que expelimos ar dos pulmões ao longo da nossa vida justamente por ser o último
suspiro, ou seja, a última vez que a pessoa expirará. Dali em diante, o corpo perde a
vitalidade que o mantinha vivo (ou seja, a capacidade de respirar), e o indivíduo que
78
#863 da Concordância de Strong.
79
#1606 da Concordância de Strong.
304
O que é o espírito? 305
forma que a neshamah. Acabamos há pouco de mostrar o texto onde Isaías diz que
a vida do homem “não passa de um sopro em suas narinas” (Is 2:22), onde é a
ruach: “Lembra-te, ó Deus, de que a minha vida não passa de um sopro (ruach);
meus olhos jamais tornarão a ver a felicidade” (Jó 7:7). Isso não apenas confirma
novamente que na Bíblia a neshamah e a ruach são a mesma coisa que Deus soprou
no homem, mas também nos mostra que o espírito-ruach está longe de ser um ente
imortal.
Se este fosse o caso, Jó jamais teria dito que sua vida não passa de um sopro,
onde o “sopro” (ruach) é apresentado como algo efêmero, não como uma
assim como um sopro, assim como a nossa respiração –, em contraste com um ente
eterno. O mesmo Jó também diz que Deus multiplica as suas chagas e “não me
permite respirar, antes me farta de amarguras” (Jó 9:18), onde “respirar” é ruach no
hebraico, a mesma palavra traduzida como “espírito”. Ele revela ainda que até
mesmo sua mulher “acha repugnante o meu hálito; meus próprios irmãos têm nojo
de mim” (Jó 19:17), onde a ruach aparece onde é traduzido por “hálito”.
O hálito nada mais é que o ar que sai pela nossa boca durante a expiração, e
por isso está diretamente atrelado à respiração. Não à toa, em diversos idiomas,
também acontece no hebraico, dado que a ruach do homem em nada tem a ver
com uma entidade metafísica que Deus implantou em nós, mas apenas com sua
respiração. Por isso Jeremias se refere ao “fôlego-ruach das nossas narinas” (Lm
305
O que é o espírito? 306
4:20) usando o mesmo vocábulo ruach, onde vemos mais uma vez a relação entre
apresentados como destituídos de vida. O salmista diz que as imagens “têm boca,
mas não podem falar, olhos, mas não podem ver; têm ouvidos, mas não podem
escutar, nem há respiração em sua boca” (Sl 135:16-17). Onde a NVI traduziu por
forma de um ser humano, elas não respiram – ou seja, não tem ruach ou vida dentro
delas.
que diz à madeira: ‘Desperte! Ou à pedra sem vida: Acorde!’. Poderá isso dar
orientação? Está coberta de ouro e prata, mas não respira (ruach)” (Hc 2:19).
Jeremias lamenta que “todas as pessoas são tolas e não têm conhecimento. Todo
ourives é envergonhado pela imagem que ele mesmo esculpiu, pois as suas
imagens são falsas, e nelas não há fôlego de vida” (Jr 10:14), onde “fôlego” foi a
tradução escolhida para a ruach. Isso se torna ainda mais claro quando lemos sobre
Apocalipse:
“Ordenou-lhes que fizessem uma imagem em honra da besta que fora ferida
pela espada e contudo revivera. Foi-lhe dado poder para dar fôlego à
imagem da primeira besta, de modo que ela podia falar e fazer que fossem
mortos todos os que se recusassem a adorar a imagem” (Apocalipse 13:14-15)
306
O que é o espírito? 307
Enquanto a imagem era apenas uma estátua de pedra, como os ídolos que
os profetas denunciavam, ela não podia falar nem agir. Quando, porém, é lhe dado
fôlego (pneuma, no grego, a mesma palavra traduzida como “espírito”), ela passa a
“falar e fazer que fossem mortos todos os que se recusassem a adorar a imagem”
(v. 15). Como é óbvio, a imagem não ganhou uma alma imortal fantasmagórica que
mas simplesmente ganhou vida (ou seja, passou a respirar) enquanto continuasse
animada pelo pneuma. Uma vez que o pneuma se vai, ela simplesmente volta a ser
ou neshamah é apenas «pó da terra», no sentido de que foi criado do barro e dele
recebe suas propriedades físicas80. Mas uma vez animado pelo fôlego da vida, esse
continuar animado pelo fôlego. Quando o fôlego se vai (i.e, quando paramos de
voltamos a pó (Gn 3:19; Sl 90:3; Ec 3:19-20), da mesma forma que a imagem, que
volta a ser uma estrutura física destituída de vida. É por isso que existe ressurreição,
80
São elas: sódio, potássio, cloreto, cálcio, magnésio, bicarbonato, fosfato, sulfato e ferro. Leia mais sobre
isso em: <http://ateismorefutado.blogspot.com/2015/04/a-biblia-e-ciencia.html>.
307
O que é o espírito? 308
quando Deus voltará a soprar o fôlego no corpo levantado do pó a fim de nos tornar
Outro texto que retrata este quadro com exatidão é a ressurreição das duas
“Mas, depois dos três dias e meio, entrou neles um sopro de vida da parte de
Deus, e eles ficaram de pé, e um grande terror tomou conta daqueles que os
viram. Então eles ouviram uma forte voz do céu que lhes disse: ‘Subam para
cá’. E eles subiram para o céu numa nuvem, enquanto os seus inimigos
olhavam” (Apocalipse 11:11-12)
Observe que não é dito que a alma dos profetas saiu do corpo por ocasião
da morte e voltou por ocasião da ressurreição, mas sim que entrou neles um sopro
justamente o espírito que veio de Deus e volta para Deus na morte (Ec 12:7), não
que voltaram ao corpo, mas tão-somente o sopro de vida divino que anima o corpo,
permitindo-o que voltassem à vida. Note que é o mesmo caso de Adão, que não
existia antes do sopro divino, mas passou a existir depois disso (Gn 2:7). Isso
308
O que é o espírito? 309
significa que não é a alma que volta ao corpo na ressurreição, mas apenas o
Tanto é assim que não lhes é dito “voltem para cá”, como se tivessem
acabado de sair do céu para retornar ao corpo, mas “subam para cá”. Eles não
estavam no céu e voltaram ao corpo para voltar pro céu; eles estavam sem vida e
receberam vida novamente quando Deus soprou neles o fôlego vital. Entender isso
que em nada tem a ver com um fantasminha vagando de um lado pro outro.
“Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar em vós o espírito,
e vivereis. E porei nervos sobre vós e farei crescer carne sobre vós, e sobre vós
309
O que é o espírito? 310
novamente com tendões, carne e pele (v. 8), mas isso ainda não era o bastante para
fazê-los voltar à vida. Eram como Adão ao ser formado do barro, antes de lhe ser
aqueles corpos sem vida que eles se tornam seres animados, que respiram.
Assim como não há vida no corpo que perece sozinho debaixo da terra, não
está vivo quando respira, mas a respiração por si só não é o homem, nem garante a
sobrevivência do homem. É por isso que Tiago diz que “o corpo, sem espírito, está
morto” (Tg 2:26). Um corpo sem respiração é uma pessoa (ou alma) morta, e um
que respira é uma pessoa (ou alma) viva. Isso explica por que no texto de Ezequiel
o espírito que é soprado sobre os corpos não é uma alma viva e consciente em
outro mundo que volta a se encarnar, mas apenas o fôlego que dá vida a um corpo.
Observe que Deus diz “venha desde os quatro ventos, ó espírito, e sopre
dentro desses mortos, para que vivam” (v. 9), onde “espírito” está no singular, e não
espírito é soprado dentro dos corpos mortos, e como consequência eles voltam a
310
O que é o espírito? 311
ganhar vida. Isso está de acordo com a noção de que o espírito é a respiração que
Deus coloca sobre cada um de nós. Por outro lado, se o espírito fosse o próprio
próprio corpo, e o texto diria que os espíritos voltaram para os corpos, e não que o
O uso do termo “soprar” mostra que a infusão veio de Deus, não do homem.
Não é um espírito humano que volta a um corpo; é o sopro divino que é novamente
soprado sobre quem morreu. O “homem”, como tal, não é aquilo que foi soprado
no corpo, mas o corpo que jazia no pó da terra. Por isso não é dito que os mortos
voltaram para os corpos, mas, ao contrário, que o espírito foi soprado nos mortos.
Da mesma forma, não é dito que eles entraram nos corpos, mas sim que o espírito
entrou neles. Essa sutil e crucial diferença corrobora a nossa conclusão de que a
essência do homem não é o espírito, o qual é apenas o sopro que anima o corpo.
se move e fala quando está conectado à pilha. No entanto, a pilha por si só não é o
boneco, nem pode fazer coisa alguma à parte do boneco, e muito menos seria
referida como o boneco em si. Ela apenas fornece a “energia” necessária para que
o boneco se mova, mas não é o próprio boneco, nem pode fazer nada do que o
boneco faz quando ligado à pilha. Assim também, o espírito não é o homem nem
pode fazer coisa alguma fora do corpo, porque não é um “ser dentro do ser”, mas
aquilo que anima o ser – ou seja, o que propicia as condições necessárias para a
“pilha” que os mantém fisicamente vivos, e tanto um como o outro “perdem” essa
311
O que é o espírito? 312
sempre, o que faz da morte deles uma morte irreversível. É por isso que é a
que compete ao destino pós-morte. Se você está surpreso com a afirmação de que
➢ “Eis que vou trazer águas sobre a terra, o Dilúvio, para destruir debaixo do
céu toda criatura que tem fôlego (ruach) de vida. Tudo o que há na terra
➢ “Casais de todas as criaturas que tinham fôlego (ruach) de vida vieram a Noé
➢ “Todos os seres vivos que se movem sobre a terra pereceram: aves, rebanhos
terra e toda a humanidade. Tudo o que havia em terra seca e tinha nas
Estes são apenas alguns dos muitos textos bíblicos em que a ruach é usada
quando é para os animais e por “espírito” quando é para os homens, devido à sua
por nós, mas não por eles. Nota especial fica por conta do Salmo 104:24-30, que
homens:
312
O que é o espírito? 313
“Quantas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A
terra está cheia de seres que criaste. Eis o mar, imenso e vasto. Nele vivem
inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e grandes. Nele passam os navios, e
também o Leviatã, que formaste para com ele brincar. Todos eles esperam
em ti para que lhes dês o alimento no tempo certo; tu lhes dás, e eles o
voltam ao pó. Quando sopras o teu fôlego (ruach), eles são criados, e renovas
Embora o tradutor tenha mais uma vez optado por “fôlego”, é ruach (espírito)
que aparece no hebraico, tanto no verso 29 quanto no 30. No verso 30, somos
informados que quando Deus lhes sopra a ruach eles são criados, e no verso 29
vemos que quando Deus lhes retira a ruach, eles morrem e voltam ao pó. Qualquer
um que lesse apenas essa parte daria por certo que o autor estava falando do que
relação à sua criação (Gn 2:7) e morte (Sl 146:4). No entanto, o verso 25 deixa claro
que o salmista estava falando das «inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e
no homem, o mesmo processo que sucedeu aos homens sucedeu também aos
animais: Deus os formou do pó da terra (Sl 104:29), soprou neles o fôlego da vida
(Sl 104:30) e assim eles se tornaram almas viventes (Gn 1:24). A morte é o mesmo
processo, só que ao inverso: Deus retira o fôlego, eles morrem e voltam ao pó (Sl
313
O que é o espírito? 314
que refletem essa ignorância, como um extenso artigo do Pr. Airton Evangelista da
Costa onde ele diz que “Deus criou os animais sem soprar em suas narinas, diferente
Com base nisso, ele conclui que “os seres humanos possuem portanto algo
alma”82. O pastor Airton, assim como todo bom imortalista, passou por alto na
leitura do Salmo 104:30, cujo autor diz que «quando sopras o teu fôlego, eles são
criados», onde o sujeito ativo que sopra o fôlego é Deus (v. 24), e o sujeito passivo
que recebe a ação são os animais marinhos (v. 25). Qualquer semelhança com a
neles como soprou em nós, porque o fôlego não é uma alma fantasmagórica que
Airton, são levados a pensar que na Bíblia apenas seres humanos têm espírito, e os
animais não. Certo estudo bíblico imortalista afirma com segurança que “a Escritura
nunca em lugar nenhum diz que os animais têm espírito”83, e você certamente deve
até mesmo em cursos de teologia que pretendem se levar a sério. Mas nós não
podemos condená-los, já que eles são tão enganados pelos tradutores quanto os
próprios leigos.
81
COSTA, Airton Evangelista da. Reflexões sobre a Imortalidade da Alma. Disponível em:
<http://solascriptura-tt.org/AntropologiaEHamartologia/ReflexoesImortalidadeAlma-AECosta.htm>.
Acesso em: 05/05/2021.
82
ibid.
83
Disponível em: <https://www.neverthirsty.org/bible-qa/qa-archives/question/do-animals-have-spirits-
or-souls>. Acesso em: 05/05/2021. 314
O que é o espírito? 315
induzidos a pensar que quando os hebreus diziam que os animais tinham ruach eles
termo em relação aos homens estavam falando de uma alma imortal ou coisa que
imaginário popular que os tradutores a tomam como uma verdade a priori antes de
E isso acontece mesmo que ela não esteja em nada alinhada ao pensamento
dos autores bíblicos, que são torcidos de modo a soarem mais compatíveis com as
uma resposta pronta pra isso. Para eles, embora tanto homens como animais sejam
e nada a mais.
possibilidade de que a ruach dos homens seja diferente da dos animais. Salomão
de vida; o homem não tem vantagem alguma sobre o animal. Nada faz
315
O que é o espírito? 316
sentido! Todos vão para o mesmo lugar; vieram todos do pó, e ao pó todos
“Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos
animais, e lhes sucede a mesma coisa; como morre um, assim morre o outro;
Esse texto parece ter sido escrito diretamente em resposta aos imortalistas
que alegam que a ruach dos homens é diferente da ruach dos animais. O que
Salomão diz no verso 19 é que todos têm a mesma ruach, mas nem a NVI, nem a
ACF e nem qualquer uma das 15 versões em português consultadas traduzem por
quase todas traduzem ruach por “fôlego” em Ec 3:19, embora a traduzam por
Esse duplo critério vergonhoso tem uma razão de ser: se ruach for traduzida
como “espírito”, o que Salomão estaria dizendo – e o que ele de fato está dizendo
– é que não apenas os animais têm espírito, mas têm o mesmo espírito que o nosso,
outro não. Como se não bastasse, o contexto todo deixa nítido que é justamente
essa a razão por que o destino dos dois é o mesmo depois da morte, de modo que
316
O que é o espírito? 317
que os dois têm a mesma pilha, e por isso o mesmo destino os aguarda. Isso se
opõe totalmente à visão de que o nosso espírito-ruach é algo que nos garante uma
existência eterna, que nos distingue dos animais (cujo espírito-ruach não serviria
para sobreviver por um segundo depois da morte). Toda a lógica do raciocínio vai
imortal implantado em nós em detrimento dos animais. Como «todos têm a mesma
ruach», a vantagem dos homens é «nenhuma», porque «todos vão para o mesmo
verdade, colocado em nossa natureza uma ruach diferente dos animais, capaz de
nos dotar de uma vida indestrutível, que escapa da própria morte. Se isso fosse
por dizer algo notoriamente falso, que qualquer um poderia facilmente rebater. Se
a ruach dos homens fosse diferente dos animais e assegurasse uma vida após a
morte, seu postulado seria inteiramente inválido, assim como o raciocínio que levou
a ele. E sendo Salomão o homem mais sábio de todo o mundo da época (1Rs 4:31),
dificilmente ele se exporia ao ridículo dessa maneira se não estivesse bem certo do
que dizia.
e nem sequer pensam em traduzir ruach por espírito ali, coisa totalmente diferente
morte “o pó volta à terra, de onde veio, e o espírito volta a Deus, que o deu”. Para
317
O que é o espírito? 318
que costumam traduzir ruach como “fôlego” ou similares em Ec 3:19, mas que
traduzem o mesmo termo hebraico por “espírito” aqui no final do livro. Através
e a pensar que o autor estava falando de duas coisas diferentes, quando estava se
Almeida Revista e
Fôlego Espírito
Atualizada
318
O que é o espírito? 319
Nova Versão
Respiram Espírito
Transformadora
Nova Tradução na
Respirar Espírito
Linguagem de Hoje
Ec 3:19, como quase sempre fazem quando ruach é usada em referência a alguém.
12:7, o que significa que 86% delas decidiram misteriosamente mudar a tradução
nos difere dos animais ou que sobreviva à morte, eles preferem tomar a liberdade
de traduzi-la como qualquer coisa que não seja o espírito, e reservá-la para o único
texto que pensam encontrar uma brecha para a concepção dualista de espírito.
geralmente ignoram até tocar no assunto para evitar ter de lidar com as dificuldades
que isso acarreta. Podemos começar com o verbo shuwb usado no hebraico e aqui
traduzido como “voltar”. Se o que volta para Deus é um espírito vivo, consciente e
com personalidade no céu, isso implica que um espírito vivo, consciente e pessoal
319
O que é o espírito? 320
estava no céu com Deus antes de vir ao mundo, o que é uma heresia das mais
gritantes, conhecida como a preexistência das almas (crida por espíritas e outros
reencarnacionistas).
se o espírito “volta para Deus”, ele só pode ter vindo de Deus. E o texto
diz isso. Mas, será que alguém diria que no momento em que o
espírito ainda estava com Deus (antes de ser dado ao homem), ele
existia como uma pessoa consciente? Se não, que razão temos para
acreditar que quando ele “volta para Deus” continuará existindo como
Se o texto usa o verbo shuwb (voltar) e não está falando de preexistência das
almas, a conclusão é que o espírito citado no texto não tem nada a ver com um ser
pessoal, mas ao simples princípio de vida que veio de Deus e por isso volta para Ele
após a morte. Em outras palavras, como é Deus quem deu ao homem a força vital,
é para Ele que ela retorna uma vez que já não há mais vida no homem. Note que a
ruach não é descrita como algo que nós somos em essência, mas como algo que
Deus nos “empresta” pelo tempo de duração de nossas vidas terrenas. Como
84
MENTES BEREANAS. O “Espírito” Que Retorna a Deus. Disponível em:
<https://www.mentesbereanas.info/o-espirito-que-retorna-a-deus>. Acesso em: 22/02/2022.
320
O que é o espírito? 321
Assim, o que “volta” não é o homem, mas meramente o seu princípio vital, que Deus
relação evidente de Ec 12:7 com Gn 2:7: nesta ocasião, Deus formou o homem do
pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e, aqui, Salomão diz que o
pó volta à terra e o espírito volta a Deus. Isso significa que essa ruach que volta para
não estava falando de nenhuma alma ou espírito imortal, nem aludindo a nada de
O que corrobora essa conclusão é que Salomão falava do que acontece com
todos os homens, indistintamente, não do que se passa somente com os justos. Isso
impreterível que ele estivesse se referindo apenas aos salvos, cuja alma sobe para a
presença de Deus após a morte (uma vez que para eles a alma do ímpio vai para
É por isso que o pastor Airton diz que Salomão “não se estendeu muito no
assunto, mas nota-se que ele estava falando dos justos, cujas almas vão
diretamente para Deus. Portanto, não vale dizer que Salomão ensinou a salvação
85
MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento. São Paulo: Academia
Cristã LTDA, 2005, p. 48.
321
O que é o espírito? 322
universal, salvação para todos”86. O que o pastor Airton provavelmente não contava
“Lembre-se do seu Criador nos dias da sua juventude, antes que venham os
dias difíceis e antes que se aproximem os anos em que você dirá: ‘Não tenho
satisfação neles’; antes que se escureçam o sol e a luz, a lua e as estrelas, e as
parecer fraco; quando você tiver medo de altura, e dos perigos das ruas;
quando florir a amendoeira, o gafanhoto for um peso e o desejo já não se
vagueiam pelas ruas. Sim, lembre-se dele, antes que se rompa o cordão de
morra, o que significa que ele também escrevia a gente que não se importava com
Deus a ponto de não se “lembrar” dEle. Tudo o que ele escreve na sequência nada
mais é que uma descrição do homem na velhice, quando não tem mais satisfação
86
COSTA, Airton Evangelista da. Reflexões sobre a Imortalidade da Alma. Disponível em:
<http://solascriptura-tt.org/AntropologiaEHamartologia/ReflexoesImortalidadeAlma-AECosta.htm>.
Acesso em: 05/05/2021.
322
O que é o espírito? 323
pela vida (v. 1), quando a visão fica fraca (v. 2), quando perde o vigor físico (v. 3),
quando a audição é debilitada (v. 4), quando está mais vulnerável aos perigos (v. 5),
finalmente, quando morre (v. 7). Toda a perícope é expressa em linguagem poética
onde cada verso descreve uma dificuldade adicional que uma pessoa idosa
não. Em parte alguma o autor diz que se refere apenas aos salvos, e, a julgar pelo
verso 1, faria até mais sentido dizer que ele escrevia a incrédulos do que a crentes
fiéis. Ninguém que escreve apenas a pessoas justas e piedosas precisa exortar o
leitor a se lembrar de Deus antes que seja tarde demais, uma vez que se presume
que elas já se lembrem. E como é óbvio, Eclesiastes, assim como quase todos os
livros do AT, foi dirigido a um público geral constituído de justos e injustos, fiéis e
infiéis, bons e maus, em vez de a um grupo seleto de pessoas que não precisavam
se converter.
Mesmo que o texto estivesse falando apenas do que acontece com os salvos,
porque todo o AT é unânime em dizer que tanto justos como ímpios descem
(discorreremos amplamente sobre isso no capítulo 6). Apenas para citar alguns
exemplos, o salmista diz que a sua vida se aproximava do Sheol (Sl 88:3), que ao
livrá-lo da morte Deus o livrou das profundezas do Sheol (Sl 86:13) e que homem
323
O que é o espírito? 324
O rei Ezequias, descrito como alguém que “fez o que era bom e certo, e em
tudo foi fiel diante do Senhor, do seu Deus” (2Cr 31:20), quando soube pelo profeta
Isaías que morreria da doença que havia contraído, clamou ao Senhor para não ter
de “passar pelas portas do Sheol e ser roubado do restante dos meus anos” (Is
38:10). Quando Davi foi salvo das mãos de Saul, ele relata que “as cordas do Sheol
Jacó disse que desceria ao Sheol para junto de seu filho José (Gn 37:35), e o verbo
“descer” (yarad) não é usado em vão, já que o Sheol é identificado com as regiões
subterrâneas da terra, não com o céu (Am 9:2; Nm 16:23-33; Is 5:13-14; Ez 31:14; Mt
11:23).
Assim, temos aqui que (1) Salomão nem de longe estava falando de um
processo que sucede apenas aos justos, e (2) mesmo se fosse o caso, a Bíblia não
diz que os justos subiam ao céu depois da morte, mas que desciam ao Sheol (o que
é reconhecido por grande parte dos próprios teólogos imortalistas, que assumem
que os justos foram transferidos do Sheol para o céu após a morte de Jesus). Isto
posto, está claro que Ec 12:7 não está falando de um espírito ou alma imortal que
prova de que Deus colocou em nós um espírito eterno se demonstra uma fraude
324
O que é o espírito? 325
assumem a priori que o espírito na Bíblia é aquilo que reflete o pensamento grego,
o que os leva a perverter qualquer texto onde encontrem a menor brecha para
na morte, veriam que nenhum deles se refere a um estado consciente após a morte
inconsciência. Tome como exemplo o texto em que Jó diz: “Porém, morto o homem,
é consumido; sim, rendendo o homem o espírito, então onde está ele? Como as
águas se retiram do mar, e o rio se esgota, e fica seco, assim o homem se deita, e
não se levanta; até que não haja mais céus, não acordará nem despertará de seu
imortalistas seriam rápidos em responder “no céu”, “no inferno”, “no Seio de
Abraão”, “no limbo”, “no purgatório”, “no mundo dos espíritos” ou em qualquer tipo
poderia ser mais contundente: o homem «se deita» (morre) e «não se levanta»
(ressuscita) «até que não haja mais céus». Enquanto isso, ele «não acordará nem
despertará de seu sono», o que mostra que Jó não concebia a ideia de qualquer
É irônico que os imortalistas digam de boca cheia que “nós somos espírito”
(no sentido de que o espírito é a nossa essência e o corpo é apenas uma “carcaça”
325
O que é o espírito? 326
que o cobre), mas, paradoxalmente, sempre que a Bíblia fala sobre onde o homem
está após render o espírito ela se refira à “carcaça” inútil, e não ao nosso “verdadeiro
eu”. Se o homem rende o espírito, é porque o espírito não é o “homem”, isto é, não
é a nossa essência. Isso está perfeitamente de acordo com a visão holista, na qual o
espírito não é o homem, mas o fôlego que anima o homem. É por isso que o «onde
ele está?» não se refere ao espírito (que não é o homem), mas ao corpo.
Do contrário, Jó jamais teria dito que “se ele [Deus] pusesse o seu coração
(neshamah), toda a carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó” (Jó
34:14-15). Jó não diz que Deus recolheria o espírito e o fôlego do homem, mas sim
«o seu», ou seja, o espírito e o fôlego dEle mesmo. Isso mais uma vez nos mostra
que o espírito não é a nossa essência como pessoa, mas simplesmente o dom da
vida que Deus nos deu e que Ele pode retirar a qualquer momento. Se outros textos
bíblicos fazem referência ao nosso espírito, não é por ele ser uma possessão natural,
mas porque Deus nos “emprestou” pela duração de nossa vida terrena com a
O outro detalhe desse texto é que ele coloca homens e animais no mesmo
balaio, ao dizer que «toda a carne juntamente expiraria», e não como se nós
expirar final da morte não é a partida imediata do espírito para um mundo espiritual,
326
O que é o espírito? 327
à morte, Jó não diria que após o expirar o homem volta ao pó, mas que apenas o
corpo volta, enquanto o homem, que é espírito, estaria nas moradas eternas.
Não há texto que prove isso de forma mais enfática e categórica do que o
salvação. Sai-lhe o espírito, volta para a terra; naquele mesmo dia perecem
os seus pensamentos” (Salmos 146:3-4)
imortalistas que argumentam com tanta veemência que a alma é a responsável pela
nossa mente digam que este texto se refere apenas ao corpo, embora esteja falando
depois da morte, mas cessam. Assim, de duas, uma: ou os pensamentos não são de
defender as duas coisas ao mesmo tempo diante de um texto como esse, de clareza
tão indisputável. É justamente por isso que os imortalistas precisaram mais uma vez
327
O que é o espírito? 328
adulterar o texto em suas traduções da Bíblia, muitas das quais traduziram por
“planos”, para dar a entender que o que perece não são os pensamentos em si, mas
Em que pese o fato da maioria das Almeidas (ACF, ARC, AA) traduzirem por
“pensamentos”, nenhuma das versões “modernas” (NVI, NAA, NVT, NTLH) ou das
católicas (BJ, CNBB, Ave Maria) traduzem assim. Em vez disso, elas preferem traduzir
palavra pronta, à mão, que poderia perfeitamente ser utilizada se fosse o caso:
machashabah, que tem como principal significado “pensamento”, mas que também
pode significar «ideia, plano, propósito»91, como ocorre em uma gama de textos (Et
ou “desígnios”, ou uma mais genérica que possa ser entendida desta maneira, o
87
#6250 da Concordância de Strong e da NAS Exhaustive Concordance.
88
#6245 da Concordância de Strong.
89
#6098 da Concordância de Strong.
90
#4209 da Concordância de Strong.
91
#4284 da Concordância de Strong.
328
O que é o espírito? 329
unicamente. Isso mostra que a razão pela qual tantas traduções optam por
tradutores não podiam aceitar a ideia dos pensamentos perecerem na morte, eles
No fim das contas, não importa o que o autor disse, mas o que o tradutor
pensa que ele queria dizer (ou que deveria ter dito). E se ele disse algo desagradável
conciliar com a visão do tradutor. Assim, o que temos aqui é o mesmo das 300
ocorrências da morte da alma, onde o que prevalece não é a visão do autor, mas a
que nele consta, ele toma a liberdade de mudar o texto, suprimindo as ideias do
produzia já não existe mais. É por isso que de todas as ocasiões na Bíblia em que
uma alma saindo do corpo para uma outra dimensão em decorrência disso. Um
329
O que é o espírito? 330
O que aconteceu com Estêvão após entregar o espírito? Foi recebido no céu
na forma de um fantasminha sem corpo? Não é o que o texto diz. Em vez disso, o
texto simplesmente diz que Estêvão adormeceu (para despertar na ressurreição dos
mortos). Ou tome como exemplo o próprio Senhor Jesus, que na cruz disse: “Pai,
nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23:46). Já vimos que Marcos, ao narrar o
mesmo acontecimento, diz apenas que “Jesus, com um alto brado, expirou” (Mc
Mais do que isso, o próprio Cristo após ressuscitar dos mortos disse a Maria
Madalena que “não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai” (Jo 20:17),
o que significa que a entrega do espírito ao Pai não resultou na sua subida para a
em nada tem a ver com uma alma subindo ao céu ou sendo recebida por Deus
como um ser consciente. A despeito disso, você nunca verá um imortalista citar
esses textos quando escreve sobre Ec 12:7, que ele arranca violentamente do
do espírito voltar a Deus, significa que ele literalmente sobe voando do corpo até o
céu. E já que o último suspiro não sobe literalmente até onde Deus habita, segue-
se que a ruach que Salomão se refere tem que ser aquela entidade fantasmagórica
330
O que é o espírito? 331
vezes usa linguagem semelhante a respeito de uma série de coisas que não “sobem”
literalmente, tal como, por exemplo, a fumaça dos sacrifícios de novilhos na época
da antiga aliança:
Será que isso significa que a fumaça do sacrifício literalmente subia pela
Apocalipse, lemos que “da mão do anjo subiu diante de Deus a fumaça do incenso
juntamente com as orações dos santos” (Ap 8:4), embora nem a fumaça do incenso
minha oração subiu a ti, ao teu santo templo” (Jn 2:7), apesar da oração ser algo
abstrato, que não “sobe” em um sentido literal (embora seja recebida por Deus).
não apenas sobe até Deus, mas «penetra as nuvens», como se literalmente estivesse
92
O livro é considerado canônico pelos católicos, mas não para os protestantes e judeus. De todo modo,
não foi citado como uma fonte de autoridade, mas apenas como um exemplo do uso corrente desse tipo
de linguagem entre os judeus da época.
331
O que é o espírito? 332
Deus também pediu que Jonas pregasse em Nínive, “porque a sua maldade
subiu até a minha presença” (Jn 1:2). Uma vez que a maldade também não é algo
tangível para subir a Deus, trata-se mais uma vez de um eufemismo para retratar o
fato de que Deus não pouparia Nínive por suas maldades se não se arrependesse.
Em todos esses casos e em muitos outros que poderiam ser citados, o que “sobe a
comum na Bíblia para enfatizar que Deus não “se esqueceu” de algo (seja da
No caso do espírito que sobe a Deus, isso sugere que Deus não se esquece
daquele que morreu, pois todas as vidas estão nas Suas mãos e serão todos
ressuscitados no devido tempo, tanto os justos como os ímpios. É por isso que o
mesmo autor sugere que a ruach dos homens sobe para Deus ao passo em que a
ruach dos animais desce à terra (Ec 3:21), já que os homens serão ressuscitados um
dia, mas os animais não. Assim, quando Jesus e Estêvão entregam o espírito a Deus,
eles não estavam enviando uma alma fantasmagórica para fora do corpo, mas
N. T. Wright faz uma analogia com a informática quando diz, citando o físico
e padre John Polkinghorne, que “Deus fará o download de nosso software em seu
hardware até o momento em que Ele nos der um novo hardware para executar o
software novamente por nós mesmos”93. É assim que Deus preserva as nossas
memórias, a nossa personalidade e tudo o que nos faz ser quem somos, para que
93
BIEMA, David Van. Christians Wrong About Heaven, Says Bishop. Disponível em:
<http://content.time.com/time/world/article/0,8599,1710844,00.html>. Acesso em: 19/02/2022.
332
O que é o espírito? 333
dessa vez com razão, que ruach significa um ente pessoal quando usado em relação
a Deus e aos anjos, que são espírito (Jo 4:24; Hb 1:7). O problema é a conclusão que
salta de paraquedas: se ruach significa um ente pessoal com os anjos e Deus, então
tem que significar o mesmo conosco. Essa conclusão ignora o fato da ruach
também ser rotineiramente usada em relação a coisas impessoais, como o vento (Sl
107:25), o ar (Jó 41:16) ou um sopro (Êx 15:8). Um exemplo é o texto de Ez 37:9, onde
Deus chama o espírito «dos quatro ventos», sendo “vento” a tradução de ruach.
Jó disse que Deus “deu peso ao vento” (Jó 28:25), onde é ruach que aparece
fantasminha numa balança. Jesus também disse que “o vento sopra onde quer” (Jo
3:8), onde a palavra grega para “vento” é pneuma, a mesma usada para falar do
espírito humano e do Espírito Santo. O mesmo acontece com a neshamah. Eliú disse
(Jó 37:10). Mesmo assim, nenhum imortalista alega que as geadas são formadas por
um espírito pessoal, ou que elas também são imortais como o espírito humano.
alguém não necessariamente significa que esse termo tenha o mesmo significado
fato de Deus e dos anjos serem ruach não implica que a nossa ruach seja do mesmo
tipo que a deles, da mesma forma que do fato da ruach ser o vento ou a geada em
outros textos não necessariamente significa que a nossa ruach seja um vento ou
333
O que é o espírito? 334
uma geada. O que nós devemos procurar entender não é o que ruach significa
quando usada em referência a outras coisas ou seres, mas sim o que significa
mesmo sentido que os imortalistas afirmam que temos. Deus é mente pura, sem
justamente neste sentido que Jesus disse que Deus é espírito (Jo 4:24), um sentido
que passa longe daquele que os imortalistas entendem como sendo o nosso
espírito. Mesmo os anjos não têm um espírito no mesmo sentido que os imortalistas
afirmam que possuímos: eles são espíritos, no sentido de serem seres espirituais de
uma dimensão superior e por isso invisíveis aos nossos olhos, mas que, como
nossa por terem sido criados numa dimensão superior com suas próprias regras
que fogem ao nosso conhecimento, mas não são fantasmas sem corpo, como os
imortalistas imaginam que seja a nossa alma ou espírito. Eles são chamados de
“espíritos” por serem seres de uma dimensão espiritual, não por serem intangíveis
na relação entre si e com o seu próprio mundo. Como nós fomos criados numa
comparação com a deles não passa de uma bobagem. Se alguma comparação deve
ser feita não é com os seres de outro mundo, mas com os seres do nosso mundo,
334
O que é o espírito? 335
Assim como morre um, também morre o outro. Todos têm o mesmo fôlego
de vida (ruach); o homem não tem vantagem alguma sobre o animal. Nada
faz sentido! Todos vão para o mesmo lugar; vieram todos do pó, e ao pó
Como já abordamos, o hebraico deste texto traz ruach, que aqui não apenas
é aplicada também aos animais, como é igualada à ruach que os homens possuem.
É irônico que os mesmos imortalistas que se apoiam no exemplo dos anjos (mesmo
sem a Bíblia jamais igualar nossa ruach à deles) não mencionem jamais o exemplo
razão para esse duplo critério de extremo cinismo é simples: se a nossa ruach é do
mesmo tipo que os animais possuem, e os animais não têm nada que se compare a
uma alma imortal que sobreviva com consciência à morte, resta-nos concluir que a
ruach do homem também não tem qualquer relação com um ente pessoal e eterno,
mas é o mesmo dom de Deus que anima toda a criação que respira neste mundo,
incluindo os animais.
seja, do fôlego da vida. Vale ressaltar que ruach e neshamah são as únicas palavras
outra palavra que designe a respiração, o que nos leva a pensar que ou os escritores
bíblicos nunca falaram sobre isso nem de passagem, ou falaram, porque sabiam
que a respiração era a ruach e a neshamah. Não é preciso ser muito inteligente para
inferir que se eles acreditavam que a ruach ou a neshamah fosse uma alma imortal,
335
O que é o espírito? 336
teriam criado uma outra palavra para a respiração, em vez de usarem sempre e
Tudo isso nos mostra com uma clareza indiscutível que, para os hebreus dos
tempos bíblicos, a ruach/neshamah humana nada mais era que a respiração, o que
nos mantém vivos. Mas se o espírito é apenas o fôlego da vida, e o fôlego de vida é
seguir.
alguns exemplos, temos o caso de Ana, a mãe de Samuel, que “com a alma
amargurada, chorou muito e orou ao Senhor” (1Sm 1:10) para ter um filho. Salomão
diz que “o anseio satisfeito agrada a alma” (Pv 13:19), o salmista professa que “a
minha alma consome-se de perene desejo das tuas ordenanças” (Sl 119:20),
assegura que “a minha alma exultará no Senhor” (Sl 35:9) e confessa que “a minha
Espírito – O mesmo acontece com o espírito, que pode ficar deprimido (Pv
18:14), desanimado (Sl 143:4), aflito (Jó 7:11), amargurado (Ez 3:14), quebrantado
336
O que é o espírito? 337
(Jó 17:1), abatido (Dn 7:15), oprimido (Pv 15:13), agitado (Jo 11:33), alegre (Lc 1:47)
ou aliviado (1Co 16:18), assim como pode ser manso (1Co 4:21), serene (Pv 17:27),
estável (Sl 51:10), sábio (Pv 1:23), humilde (Mt 5:3), orgulhoso (Pv 29:23), altivo (Pv
16:18), sanguinário (Ez 35:6), fervoroso (Rm 12:11) ou covarde (2Tm 1:7). Natanael
Rinaldi se agarra a um desses versículos para defender que o espírito precisa ser
É digno de nota que o espírito de Daniel sentiu aflição (Dn 7:15), e para
que a Bíblia também se refere com frequência a órgãos do corpo como fonte de
coração se inclina para o bem e para o mal (Ec 10:2), pode nos condenar ou nos
tranquilizar (1Jo 3:19-21), pode ser sábio (Pv 23:15), puro (Mt 5:8), sincero (Pv 22:11),
firme (Sl 57:7), reto (Sl 94:15), íntegro (Sl 78:72), aplicado (Pv 22:17) ou fiel (Dt 30:6),
mas também pode ser falso (Pv 26:24), insensível (Sl 17:10), orgulhoso (Pv 16:5),
O coração desfalece (Jr 8:18), entra em pânico (Sl 143:4), se endurece (Hb
3:8), medita (Sl 49:3), exulta (Sl 13:5); pode estar angustiado (Pv 15:13), amargurado
(Sl 73:21), perturbado (Jo 14:1), ansioso (Pv 12:25), alegre (Is 65:14), triste (Rm 9:2),
94
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 117.
337
O que é o espírito? 338
abatido (Sl 109:22), quebrantado (Sl 147:3) ou de luto (Ec 7:4); pode ter
discernimento (Pv 2:2), planos (Pv 24:2), propósitos (Pv 6:14), desejos (Sl 37:4),
segredos (Sl 44:21); pode fraquejar (Sl 73:26), se corromper (Ec 7:7), ser provado (Pv
É com o coração que se crê para justiça (Rm 10:10), é o coração que guarda
a palavra (Sl 119:11), é o coração que nós consagramos a Deus (Jó 11:13), é o
coração que Paulo “abriu” aos coríntios (2Co 6:11), é o coração que é “circuncidado”
para amar a Deus (Dt 30:6), é o coração que deve se preparar para buscar ao Senhor
(2Cr 12:14), é o coração que dá graças a Deus (Sl 111:1), e é no coração que o justo
traz a lei de Deus (Sl 37:31) e o ímpio trama a injustiça (Sl 58:2).
O sábio rei Salomão já dizia que “de tudo o que se deve guardar, guarda o
teu coração, porque dele procedem as saídas da vida” (Pv 4:23). Se existe alguma
“parte” de nós que esteja biblicamente mais próxima de ser apontada como a nossa
“essência”, ela é seguramente o coração, pois “assim como a água reflete o rosto, o
coração reflete quem somos” (Pv 27:19). É o coração que nos define como pessoa,
quando me buscardes de todo o coração” (Jr 29:13). O homem bom «tira coisas
boas do bom tesouro que está em seu coração», e o homem mau «tira coisas más
do mal que está em seu coração», “porque a boca fala do que está cheio o coração”
(Lc 6:45).
como se fosse necessário um ente espiritual metafísico dentro de nosso corpo para
sermos capazes de executar tais operações. E isso é tão claro que até o Comentário
338
O que é o espírito? 339
Bíblico Pentecostal das Assembleias de Deus, que assume a posição de que a alma
“coração” mais que o lugar das emoções; também era o lugar das
equilibrados ou desequilibrados.95
seja citado repetidas vezes num sentido figurado em que representa todas essas
espírito, que tecnicamente não são os responsáveis por gerar essas emoções, mas
95
SHELTON, James B. Comentário Bíblico Pentecostal: Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2003, p.
41.
339
O que é o espírito? 340
Em Ezequiel, por exemplo, Deus diz aos israelitas que “lhes darei um coração
nossa índole e caráter. Da mesma forma, o salmista diz que “o meu espírito se
desanima; o meu coração está em pânico” (Sl 143:4), onde espírito e coração estão
salmista acreditasse que suas emoções são de atribuição exclusiva de uma alma
imaterial como cumprindo a mesma função. No máximo faria essa associação entre
No relato da nova criação de Isaías 65, o Senhor diz que “os meus servos
seja simbólico e o segundo seja literal, mas justamente porque ambos aludem às
alma, quando Lucas nos diz que “era um o coração e a alma da multidão dos que
criam” (At 4:32), não porque todo mundo ali tivesse perdido o coração e a alma a
Salomão adverte aqueles que diziam: “’Eis que não o sabemos’; porventura
não o considerará aquele que pondera os corações? Não o saberá aquele que
atenta para a tua alma?” (Pv 24:12). “Ponderar os corações” é o mesmo que “atentar
340
O que é o espírito? 341
para a alma”, porque ambos são usados figurativamente para se referir ao que se
passa na mente do homem. O mesmo autor escreve que “o coração conhece a sua
própria amargura” (Pv 14:10), onde “a sua própria amargura” esconde a presença
pelo coração.
Corpo e alma também aparecem juntos no texto em que Jesus pede que
“ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu
entendimento e de toda a sua força” (Mc 12:30), onde o coração aparece por
primeiro. Um texto que ilustra bem o falso dualismo entre o «homem interior» e o
«homem exterior» é o que o salmista diz que “meu coração e minha carne cantam
de alegria” (Sl 84:2), onde o corpo diz respeito ao aspecto exterior e o coração ao
interior, ainda que este não tenha nada a ver com uma alma imortal.
Ventre – Para a surpresa de muitos, os hebreus tinham por praxe citar órgãos
Não apenas a alma estava consumida de tristeza, mas também seus olhos e
seu ventre, o que mostra que para o salmista esse sentimento não estava de modo
341
O que é o espírito? 342
assim como a alma, e mesmo assim perecem na morte, não há nada que exija um
A palavra traduzida por “ventre” aqui no Salmo 31:9 é beten no hebraico, que
também consta no texto que diz que os ímpios “concebem o mal e dão à luz a
iniquidade; o coração deles só prepara enganos” (Jó 15:35), no lugar onde a NAA
traduz por “coração”. Beten também aparece quando Zofar afirma que o ímpio “não
sentiu sossego no seu ventre; nada salvará das coisas por ele desejadas” (Jó 20:20).
Habacuque declara que “o meu ventre se comoveu, à sua voz tremeram os meus
lábios; entrou a podridão nos meus ossos, e estremeci dentro de mim” (Hc 3:16).
homem” (Pv 18:8), onde o “íntimo do homem” é a tradução que a NVI preferiu dar
Senhor, que esquadrinha todo o interior até o mais íntimo do ventre” (Pv 20:27),
onde o hebraico traz neshamah (fôlego) onde o tradutor põe “espírito”, talvez por
pensar que um simples fôlego ou respiração não fosse capaz de executar tal função,
mas um espírito como entendido pelos imortalistas sim. Note ainda que o texto diz
que a neshamah esquadrinha «todo o interior até o mais íntimo do ventre», como
contrapõe fortemente à noção de que o nosso íntimo mais profundo consiste numa
alma ou espírito.
Rins – A coisa fica ainda mais interessante quando notamos que até mesmo
os rins(!) são usados no mesmo sentido figurado no qual tantas vezes o coração, a
342
O que é o espírito? 343
➢ “Filho meu, se o teu coração for sábio, alegrar-se-á o meu coração, sim, o
meu próprio. E exultarão os meus rins, quando os teus lábios falarem coisas
➢ “Eu, o Senhor, esquadrinho o coração e provo os rins; e isto para dar a cada
17:10)
➢ “Tu, pois, ó Senhor dos Exércitos, que provas o justo, e vês os rins e o
coração, permite que eu veja a tua vingança contra eles; pois já te revelei a
exemplo, o salmista diz que “quando o meu coração estava cheio de amargura e o
animal diante de ti” (Sl 73:21-22). Em vez de “íntimo”, o hebraico traz kilyah (rins).
mim” (Jó 19:27), mas quando vamos ao hebraico vemos que a palavra aqui
coração (kilyah), ó Deus” (Sl 7:9), e no texto que a NVI traduz por “tu estás sempre
343
O que é o espírito? 344
perto dos seus lábios, mas longe dos seus corações (kilyah)” (Jr 12:2). Os rins
26:2), e “mentes” no texto em que Jeremias chama o Senhor de “justo juiz que
provas o coração e a mente (kilyah)” (Jr 11:20). No hebraico bíblico, os rins têm
(Lamentações 2:11)
Onde a NAA traduz por “alma”, o hebraico traz me`ah, que diz respeito aos
20:14; Jn 1:17, etc), menos aqui, onde ele magicamente vira a alma.
alma dos textos que falam da sua morte a incluam em textos que sequer estão
96
#4578 da Concordância de Strong.
344
O que é o espírito? 345
imortalistas estão no dualismo grego que não admite a menor hipótese de órgãos
internos como os intestinos desempenharem funções que para eles seriam da alma.
Para esse tipo de gente, não importa o que dizem os originais: só o que importa é
“coração” onde o original traz kabed, que significa fígado, no hebraico97. Em outras
palavras, o que o texto hebraico está dizendo é que o intestino “se agita” (o original
angustia, dois sentimentos internos que não têm qualquer relação literal com esses
órgãos do corpo, os quais Jeremias cita com naturalidade para expressar o mesmo
às emoções, como no Salmo 40, em que o salmista diz que “a tua lei está dentro do
meu coração” (Sl 40:8), onde é me`ah (intestinos) que aparece no lugar onde o
tradutor preferiu verter por “coração”. Pode parecer estranho a um de nós lidar com
que estamos ao dualismo de corpo e alma, onde tudo que é do corpo se relaciona
apenas àquilo que é físico, e só a alma tem contato com as coisas espirituais. No
97
#3516 da Concordância de Strong.
98
#2560 da Concordância de Strong.
345
O que é o espírito? 346
Jeremias escreve que “meu coração está aflito, e minha alma, desesperada”
(Lm 1:20), cujo hebraico traz me`ah na primeira parte e leb (coração) na segunda,
“Ah, entranhas minhas, entranhas minhas! Estou com dores no meu coração!
O meu coração se agita em mim. Não posso me calar; porque tu, ó minha
alma, ouviste o som da trombeta e o alarido da guerra” (Jeremias 4:19)
Aqui nós vemos a tríade formada pelas entranhas (me`ah), coração (leb) e
alma (nephesh), onde ele fala ao seu “eu interior” («ah, entranhas minhas»; «ó minha
alma») acerca do que se passa dentro dele, em seu coração («meu coração se agita
igualmente consideradas por Jeremias como o seu “eu interior”, isto é, seu aspecto
psicológico invisível a olhos nus, e num mesmo contexto – ainda que eu desconheça
A linguagem das entranhas como o “eu interior” era tão usual que ela é usada
até em relação a Deus, que não possui intestino algum. Em Isaías, Ele diz que “o meu
íntimo vibra por Moabe como harpa, e o meu interior por Quir-Heres” (Is 16:11),
tuas entranhas, e das tuas misericórdias, detém-se para comigo?” (Is 63:15), e em
Jeremias o Senhor declara que “por ele [Efraim] se comovem as minhas entranhas”
(Jr 31:20).
346
O que é o espírito? 347
(rins), kabed (fígado) e me`ah (intestino) pelos seus significados de acordo com o
referência aos nossos sentimentos, é porque estes não viam problema nenhum em
alguma em si mesmas, já que para eles o homem era uma unidade indivisível onde
Rinaldi – mesmo que para isso tenham que sacrificar e adulterar os textos bíblicos.
Elias e João Batista – Uma das provas mais contundentes de que os textos
que atribuem personalidade ao espírito estão no mesmo pacote dos textos que
atribuem personalidade a órgãos do corpo e não têm nada a ver com um ente
pessoal é o texto que diz que João Batista “irá adiante do Senhor, no espírito e no
poder de Elias” (Lc 1:17). Para os espíritas, o fato de João Batista ter o “espírito” de
Elias quer dizer que ele é uma reencarnação do antigo profeta, o que nem mesmo
seria possível, dado que Elias não passou pela morte para que pudesse reencarnar
(Mt 17:3), o que não teria acontecido se Elias tivesse mudado de identidade. Aliás,
99
SMITH, Ralph Lee. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo: Vida Nova,
2001, p. 361.
347
O que é o espírito? 348
o próprio João Batista negou taxativamente que fosse Elias quando questionado
João Batista a Elias. Jesus disse que João cumpriu de alguma forma a profecia da
vinda de Elias (Mt 11:14; cf. Ml 4:5), disse ainda que “Elias já veio, e eles não o
reconheceram, mas fizeram com ele tudo o que quiseram” (Mt 17:12), e “os
discípulos entenderam que era de João Batista que ele tinha falado” (v. 13). Mas se
João não era a reencarnação de Elias, como entender esses textos? A resposta está
justamente em Lc 1:17, que diz que João veio «no espírito» de Elias.
“Espírito” aqui, como nos demais textos, não tem qualquer relação com uma
NT que aponta o caminho para a chegada do Senhor, assim como Elias preencheu
psicológicas, sem que tenha qualquer coisa a ver com uma entidade espiritual e
pessoal – o que faria de João Batista o próprio Elias, como reivindicam os espíritas.
interior» (Rm 7:22-23), ela não está transmitindo a ideia dualista que contrasta o
corpo mortal com a alma imortal, porque para os hebreus praticamente tudo o que
por que tendemos a pensar que o “homem interior” do qual Paulo fala é uma
100
Disponível em: <https://www.gotquestions.org/John-Baptist-Elijah.html>. Acesso em: 14/11/2021.
348
O que é o espírito? 349
entidade pessoal que habitava dentro dele é pela massiva influência que sofremos
do pensamento grego, que nos faz ler a Bíblia pelas lentes dualistas.
No entanto, nós sabemos que coração, ventre, rins e intestinos, assim como
sentido técnico. Embora o coração seja muitas vezes citado num sentido figurado
aludindo aos nossos sentimentos, nós sabemos que em um sentido literal ele nada
mais é que um órgão muscular que recebe o sangue das veias e o bombeia para
dentro das artérias, sem ser responsável pela formação de qualquer emoção real.
101
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 28.
349
O que é o espírito? 350
Da mesma forma, nós sabemos que em um sentido literal nem a alma e nem
frequência para falar das nossas emoções e sensações. A pergunta que não quer
nenhuma versão da Bíblia, e também não aparece nos originais, apesar de ser o
órgão mais importante do corpo humano e responsável por inúmeras funções que
têm tudo a ver com aquilo que os escritores bíblicos frequentemente se referiam
usando outras partes do corpo figurativamente. Há uma razão por que tantos
órgãos do corpo são citados neste sentido, mas o cérebro não: os hebreus não
Não foi senão em 1808 que Franz Joseph Gall (1758-1828) descobriu que
todos os processos mentais ocorrem no cérebro e que há uma área específica para
cada um. Obviamente, era impossível que os escritores bíblicos soubessem disso
milhares de anos antes, e apesar da Bíblia ser inspirada, sua natureza e propósito
são espirituais (para orientar e guiar o homem à salvação), não científicos. Isso não
significa que não haja verdades científicas na Bíblia ou que a Bíblia contrarie a
ciência, significa apenas que ela se silencia em relação à maior parte das
descobertas científicas que vieram séculos ou até milênios mais tarde, sendo a
350
O que é o espírito? 351
partes do nosso ser de maneira figurada, muitas vezes de forma poética. Prova disso
é que, mesmo com todo o avanço científico, ainda hoje usamos expressões poéticas
que ligam, por exemplo, o sentimento do amor ao coração (não à toa, o próprio
time não tem alma”, não porque acreditemos que literalmente o amor emana do
coração ou que um time de futebol tenha uma alma fantasmagórica, mas porque
Como eles não sabiam realmente qual parte do corpo era responsável por
preciso nessa área ainda não desbravada na época deles – razão por que se
351
O que é o espírito? 352
sentiam.102
Se podemos fazer uma analogia aqui, tome como exemplo os vários textos
bíblicos que falam de estrelas caindo do céu na grande tribulação (Mt 24:29; Mc
13:25; Ap 6:13, 8:10). No entanto, se uma estrela literalmente caísse na terra, todo o
planeta seria destruído e não sobraria mais nada para continuar a história, já que
hoje sabemos que as estrelas são bem maiores que a própria terra. O que então
impossível afirmar com certeza, mas há hipóteses que vão desde asteroides até
inverdade. Para o argumento imortalista fazer sentido, seria preciso no mínimo que
mesma razão que os filósofos gregos jamais se referiam a esses órgãos quando
escritores bíblicos tivessem ciência disso, atribuí-los a outras partes do corpo que
102
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 29.
352
O que é o espírito? 353
não tem nada a ver com isso, mesmo que de forma rara e excepcional, seria um erro
imperdoável. E eles fazem isso, não uma ou duas vezes, mas literalmente o tempo
vem os nossos sentimentos, é seguro afirmar que eles sabiam que não vinha
literalmente da alma ou do espírito, o que explica por que tiveram que recorrer tão
Dor, medida essa tão desesperadora que escandaliza até outros imortalistas. O
médium. Isso é um prato cheio para os espíritas, tanto que no meio apologético a
maior parte dos próprios imortalistas entende que não foi Samuel quem realmente
em sua “Resposta às Seitas” que não foi Samuel quem apareceu em En-Dor, assim
103
Disponível em: <http://www.cacp.org.br/a-medium-de-endor-chamou-mesmo-a-samuel>. Acesso em:
28/05/2022.
104
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W6oLylZ59Ek>. Acesso em: 28/05/2022.
353
O que é o espírito? 354
Entre os que descem a esse nível está Paulo Sérgio de Araújo, que escreveu:
Aparentemente, Deus pode criar uma lei, depois quebrar a própria lei que
Ele criou, e está tudo certo com isso. São “duas coisas completamente distintas e
dissociadas”! Isso seria como Deus proibir o adultério e então mandar um profeta
adulterar, sem que haja qualquer problema nisso. É o tipo de bizarrice que só
dessas sessões, temos aqui um cenário cômico se não fosse trágico, onde Deus
105
ARAÚJO, Paulo Sérgio de. Quem falou com o rei Saul em En-Dor: o falecido profeta Samuel ou um
demônio? S/editora, 2009, p. 18.
354
O que é o espírito? 355
“Não permitam que se ache alguém entre vocês que queime em sacrifício o
por quem pratica essas coisas, e é por causa dessas abominações que o
não respondeu a Saul nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas” (1Sm 28:6),
teria decidido respondê-lo justo por meio de uma prática abominada e proibida
por Ele mesmo. É como se você se recusasse a atender alguém que lhe pede algo
cuspir no seu rosto ou agredir o seu filho. Se entre humanos isso seria inaceitável,
Note ainda que o texto diz claramente que entre as formas que Deus se
respondeu nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas” (1Sm 28:6). E, como
afirmar que Deus falou com Saul através do profeta Samuel nesta ocasião significa
o mesmo que dizer que Ele não queria responder Saul através de profetas vivos
(embora isso fosse perfeitamente legítimo e era o modo como Deus costumava se
355
O que é o espírito? 356
coisa ser abominável e repugnante aos Seus próprios olhos, além de expressamente
alguma prática ilícita. Um deus como este certamente não se parece com o Deus da
Bíblia, que jamais se recusaria a atender alguém do jeito certo se estivesse disposto
sessão de necromancia, pelas mesmas exatas razões. Achar que Deus fomenta
aquilo que Ele abomina é colocar a natureza divina contra si mesma. Não entender
isso é desconhecer inteiramente o mais básico sobre Deus, como se Ele agisse de
forma hipócrita e cínica; hora proibindo algo e tratando como abominável, hora
fazendo com que um profeta se envolvesse nessa mesma prática, como se fizesse
pouco caso.
deus bipolar que instiga aquilo que Ele proíbe, e que proporciona o que Lhe é
com isso era punido com a morte (Lv 20:27). O que os imortalistas querem nos
convencer é que esse mesmo Deus não apenas tolerou essa prática nessa ocasião,
356
O que é o espírito? 357
prática que Ele havia proibido sob pena de morte, após ter recusado
desse profeta. 1º Samuel 28:6 diz claramente que Deus não respondeu
a Saul quando este buscou ajuda para enfrentar os filisteus, e não que
Deus jamais enviaria uma mensagem a esse rei. É isso o que está
conclusão diferente dessa. Os únicos que dizem que Deus nunca mais
106
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 159.
357
O que é o espírito? 358
enviaria uma mensagem a Saul são aqueles que negam que Samuel
apareceu.107
ser justamente o último jeito que Deus escolheria para responder Saul), o autor
Russell Shedd, o hebraico realmente nos mostra que Deus jamais responderia Saul:
107
ARAÚJO, Paulo Sérgio de. Quem falou com o rei Saul em En-Dor: o falecido profeta Samuel ou um
demônio? S/editora, 2009, p. 19.
108
BÍBLIA, Português. Bíblia Shedd. 2ª ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Vida Nova, 1997.
109
FONSECA, Nedson Mateus M. Samuel e a Médium: Foi Samuel mesmo que subiu? Disponível em:
<http://estudanteteologia.blogspot.com.br/2013/08/saul-e-medium-foi-samuel-mesmo-que-
subiu.html>. Acesso em: 07/06/2015. 358
O que é o espírito? 359
Como Araújo desconhece o hebraico e a lógica não é o seu ponto mais forte,
diz o que não sabe e chega à excêntrica conclusão de que Deus não queria
responder Saul a princípio, mas mudou de ideia quando ele foi consultar uma
feiticeira. Talvez a lição que ele queira tirar disso tudo é que se você tem uma oração
não respondida, pode ser que Deus esteja apenas esperando que você vá consultar
Leve em consideração ainda que o autor de 1º Crônicas diz que Saul morreu
justamente por tentar estabelecer esse tipo de comunicação proibida por Deus (1Cr
10:13), mas para Araújo foi o próprio Senhor quem decidiu responder Saul através
desse meio, fazendo com que Samuel atendesse ao pedido da necromante – o que
significa que Ele matou o rei por ter feito algo que Ele mesmo viabilizou. Pior do
que isso, Deus disse que quem se voltasse aos médiuns seria contaminado por eles
(Lv 19:31), o que implicaria que Samuel teria se contaminado ao atender o chamado
pecaminosa. Um deus que induz os seus próprios servos ao pecado pode ser
são incertas e imprecisas. Ele diz a Saul que “amanhã você e seus filhos estarão
comigo” (1Sm 28:19), mas há dois problemas com isso. O primeiro é que a maior
parte dos filhos de Saul sobreviveu à guerra. Saul tinha pelo menos oito filhos:
Armoni (2Sm 21:8), Is-Bosete (2Sm 4:1), Jônatas (1Sm 14:49), Isvi (1Sm 14:49),
Malquisua (1Sm 14:49), Merabe (1Sm 14:49), Mical (1Sm 14:49) e Abinadabe (1Sm
359
O que é o espírito? 360
contradição, dado que o texto não diz que todos os filhos de Saul morreriam.
Porém, quando a Bíblia faz descrições genéricas, como «tu e teus filhos», ela por
regra se refere ao todo. Tome como exemplo o texto que diz que Jacó “levou
consigo para o Egito seus filhos, seus netos, suas filhas e suas netas” (Gn 46:7), não
porque ele tenha levado metade dos filhos ou menos, mas justamente porque levou
todos. Ou então considere o texto que diz que “Noé, seus filhos, sua mulher e as
mulheres de seus filhos entraram na arca” (Gn 7:7), o que obviamente significa que
todos os filhos de Noé entraram na arca, mesmo que o “todos” não esteja
explicitamente presente.
Da mesma forma, quando Moisés pede aos israelitas que “não se casem com
pessoas de lá, não deem suas filhas aos filhos delas, nem tomem as filhas delas para
os seus filhos” (Dt 7:3), ele obviamente não estava dizendo que alguns dos filhos
deles poderiam contrair matrimônio com os povos pagãos à sua volta, só porque
não usou o pronome “todos”. Quando a expressão «os seus filhos» é usada, é
evidente que se trata de algo generalizado, que engloba o todo a não ser que o
Uma vez que não há em 1Sm 28:19 nada que excetue alguém, a boa
filhos de Saul morreriam, mas não morreu nem a metade. E essa falsa profecia, por
si só, é evidência suficiente de que o Samuel citado nessa perícope não é o mesmo
Samuel da Bíblia, já que o verdadeiro Samuel era tão preciso em suas profecias que
Deus não deixou “nenhuma das suas palavras cair em terra” (1Sm 3:19). A entidade
que se passou por Samuel nessa ocasião era inteligente o suficiente para saber que
360
O que é o espírito? 361
os israelitas perderiam a guerra, mas não o bastante para prever os detalhes que só
mesmo texto, que diz que “amanhã você e seus filhos estarão comigo” (1Sm 28:19).
Será que isso significa que um rei ímpio como Saul estaria no dia seguinte com
coração duro e insensível, que continuou sem se arrepender até o último suspiro de
vida. A verdade é que a feiticeira nunca viu Samuel no céu: ela viu um espírito
Eles acreditavam que todos os espíritos desciam para este mundo inferior na
morte, fossem justos ou ímpios (em direto contraste com Ec 12:7). Isso explica por
Samuel. Primeiro Saul pede que “invoque um espírito para mim, fazendo subir
aquele cujo nome eu disser” (v. 8), depois ela pergunta “quem devo fazer subir” (v.
11), e ao invocar Samuel, o próprio “Samuel” questiona “por que você me perturbou,
fazendo-me subir” (v. 15). Assim, está claro que para Saul, para a necromante e para
o próprio “Samuel” o lugar dos espíritos após a morte é no mundo inferior, tanto
para os justos como para os injustos, e não no céu junto a Deus. É por isso que Saul
espírito de Saul estaria com Samuel no Sheol, o “mundo dos mortos”, localizado
Sheol para o céu (uma tese amplamente refutada no capítulo 6 deste livro). O
361
O que é o espírito? 362
problema é que Salomão disse expressamente que na morte o espírito dos homens
volta para Deus (Ec 12:7), em vez de descer para debaixo da terra, como o dos
para dizer que o espírito dos justos sobe conscientemente para a presença de Deus
Samuel no céu com Deus. Ao que parece, coerência não é o ponto forte deles. O
verso 13 é o mais interessante, pois não apenas diz que Samuel «subia da terra» (o
que significa que não veio do céu), mas também o chama de “deuses”: “Então a
mulher disse a Saul: Vejo deuses (elohim) que sobem da terra” (1Sm 28:13).
Este termo é usado com frequência no AT em relação a Deus (Gn 1:1; Sl 51:10,
57:2) e a falsos deuses (Gn 35:2; Êx 12:12, 20:3), mas nunca é usado em relação a
século” (2Co 4:4), disse que o agente que atua por detrás dos falsos deuses são os
demônios (1Co 10:20) e que “o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz” (2Co
11:14). Isso reforça a conclusão de que o “Samuel” que a feiticeira viu não foi o
subindo” (v. 14). Há mais dois problemas aqui. O primeiro é “a fantástica dificuldade
362
O que é o espírito? 363
zaqen, que significa “velho”, e é a palavra sempre usada para se referir a pessoas de
ter visto uma pessoa de aparência idosa? É evidente que o que ela viu não foi
física (o que por si só já seria uma contradição), por que Samuel apareceria como
anos)? Poucos estariam dispostos a admitir isso, mesmo entre os imortalistas mais
obstinados.
Diante disso, faz muito mais sentido que a médium tenha visto um demônio
disfarçado da aparência que Samuel tinha em vida, não o próprio profeta no mundo
inferior. Isso porque a crença pagã na vida após a morte naquela época era muito
diferente da crença imortalista atual. Para eles, os mortos realmente existiam com
características físicas no mundo inferior, o que explica por que eles não acreditavam
110
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 160.
363
O que é o espírito? 364
e nem aquela que aparece nos livros de teologia sistemática, mas é a que norteia
feiticeira viu dentro da perspectiva pagã compartilhada por ela e pelo rei apóstata.
Nessa perspectiva, “Samuel” era um velho vestido com uma capa, subindo do
mundo dos mortos debaixo da terra para dar suas predições de caráter duvidoso.
Mas se quem apareceu na ocasião não foi realmente Samuel, a pergunta que não
quer calar é: por que o relato o chama pelo nome, em vez de dizer explicitamente
essenciais, que juntas nos explicam como e por que isso ocorre.
certos textos da Bíblia, que consiste em narrar um evento pela ótica do observador,
o que a leva a descrever coisas que não são precisas em um sentido técnico, mas
que descrevem com precisão aquilo que o observador viu. Tome como exemplo os
inúmeros textos onde anjos que se apresentam em forma humana para alguém na
vestes brancas (Mt 28:2-3; Jo 20:12), Lucas se refere a eles como “dois homens com
roupas que brilhavam como a luz do sol” (Lc 24:4), e Marcos como “um jovem
vestido de roupas brancas” (Mc 16:5), onde ele não só é representado como um
humano, mas também como alguém de pouca idade (embora os anjos tenham pelo
364
O que é o espírito? 365
Mas se eram anjos, por que são retratados por Lucas e Marcos como se
fossem homens? Será que os dois evangelistas não estavam cientes de que as
mulheres foram recebidas por seres celestiais, e por isso cometeram uma gafe? É
óbvio que não se trata disso. Eles foram chamados de “homens” simplesmente
porque se pareciam com homens. Era a impressão visual que se tinha deles, da
mesma forma que o demônio que apareceu na forma de Samuel. E é baseado nessa
Mateus e João preferiram escrever sob uma ótica diferente. Agora imagine que só
não apareceu anjo algum na ocasião, mas apenas homens, como parece dizer o
seus demônios na Bíblia vem do NT, onde encontramos centenas de textos que
falam do diabo sem a menor cerimônia. Já no AT, tudo o que temos são algumas
Crônicas (21:1), além de algumas breves e vagas menções a «espíritos malignos» (Jz
365
O que é o espírito? 366
Testamento). Sabemos que essa teoria não pode ser verdadeira, porque, embora
pouco citado, ele de fato é citado em alguns textos, o suficiente para sabermos que
os israelitas não eram ignorantes da sua existência. Mesmo assim, ainda é difícil
explicar por que eles evitavam falar dele, mesmo quando era ele quem estava
atuando.
(do mesmo autor de 1º Samuel) diz que foi incitado pelo Senhor (24:1), mas 1º
Crônicas, ao citar o mesmo evento, diz que foi Satanás quem incitou Davi a fazê-lo
sabia que quem havia incitado Davi era o diabo, e o de 2º Samuel escreveu na
perspectiva de quem Davi achava que o havia incitado a fazer aquilo, o que explica
encontradas na Bíblia. Considere o texto em que Salomão diz que “o sol se levanta
e o sol se põe, e depressa volta ao lugar de onde se levanta” (Ec 1:5). Isso não
significa que o sol gire em torno da terra, porque ele está apenas descrevendo o
movimento que o sol parece fazer do ponto de vista de quem está na terra. Algo
semelhante ocorre no texto que diz que “o sol parou e a lua se deteve” (Js 10:13)
quando Josué orou para o sol parar (v. 12), embora tecnicamente falando o que
366
O que é o espírito? 367
observa, na perspectiva de alguém que participa da trama. Isso não significa que
vice-versa, mas que as duas formas podem ser encontradas na Bíblia, ainda que a
realmente pensavam se tratar de Samuel. E ele optou por narrar dessa maneira
mencionar o diabo que chega a atribuir a Deus algo que em outro livro é atribuído
temos nenhuma razão para pensar que ele agiria de outra forma, para fazer questão
propósito deste livro, mas é provavelmente pela mesma razão que muitos até hoje
evitam mencioná-lo (ou o mencionam por outros nomes para não precisar chamá-
lo pelo nome, como “cão” ou “capiroto”). Algo parecido vemos na saga Harry Potter,
onde os mocinhos da história evitam o quanto podem citar Lord Voldemort pelo
nome, preferindo chamá-lo de “Você Sabe Quem”. O mesmo tipo de temor, embora
pelas razões opostas, temos por parte de grupos judaizantes que evitam escrever o
367
O que é o espírito? 368
nome “Deus”. Eles escrevem “D-us” ou “D’us”, seja por questão de reverência, seja
sob a perspectiva do observador nas ocasiões em que Satanás deveria ser citado (e
onde seria se estivéssemos no NT, onde esse preconceito deixa de existir). Há até
quem creia que a razão por que o NT não tem nenhum tabu em relação a citar
escreviam, Satanás já havia sido derrotado na cruz, o que fazia dele um adversário
um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Cl 2:15). O diabo no NT não
e exposto à desonra pública através da cruz. Ele já está debaixo dos pés do Senhor
(Ef 1:22), e em breve será esmagado debaixo dos nossos pés (Rm 16:20). A grosso
modo, é como se o diabo tivesse “perdido o respeito”, e por isso ninguém mais tem
potestade é obrigado a se submeter (Mc 16:17), algo que não vemos no AT, onde
Samuel quem aparece, mas também por que o autor prefere narrar sob a ótica do
observador, uma vez que a predisposição do autor em não citar Satanás o levava a
368
O que é o espírito? 369
Bíblia. Tampouco havia o risco de ser interpretado erroneamente, uma vez que seus
Essa é a mesma razão por que o mesmo autor não receou dizer que Deus
incitou Davi a fazer o censo (2Sm 24:1), já que era bem sabido de todos os judeus
que “Deus a ninguém tenta” (Tg 1:13), e por isso era evidente que não podia ser
realmente Deus quem estava incitando Davi a cometer esse pecado pelo qual ele
foi severamente punido, com a perda do próprio filho. Se não podia ser Deus, só
cronista, muito tempo mais tarde (1Cr 21:1). Da mesma forma, se era igualmente
bem conhecido de todos os judeus que não havia atividade após a morte (Ec 9:5,
10; Sl 6:5, 146:4; Is 38:18-19), a única conclusão possível é que Satanás tinha
aparecido em En-Dor, o que era também tão simples de se presumir que o autor
mesmo muito tempo mais tarde continuou sendo de longe a interpretação mais
aceita entre os cristãos, mesmo entre aqueles que nem mesmo compartilhavam o
mesmo pressuposto da inconsciência pós-morte. É por isso que quase todos os Pais
possibilidade de que pudesse ser o espírito de Saul que apareceu para a feiticeira
(isso inclui Hipólito, Efrém, João Crisóstomo, Cirilo de Alexandria, Basílio, Gregório
369
O que é o espírito? 370
(...) Você não deve imaginar que aquele que produziu o fantasma foi
um, e aquele que o consultou foi outro; mas que era o mesmo espírito,
real.111
Isto é certo: que não foi realmente Samuel, porque Deus nunca teria
111
A Treatise on the Soul, 57.
370
O que é o espírito? 371
imaginaria que Deus desejou que Seu profeta fosse exposto a tal
dos santos guardados por Ele? É dito que as almas dos santos estão
própria mulher foram assim enganados, a ponto dela pensar que via
Samuel.113
112
Homilia 100 em 1º Samuel.
113
KEIL, Carl Friedrich. Biblical Commentary on the Books of Samuel. Edinburgh: T. and T. Clark, 1876, p.
265.
371
O que é o espírito? 372
por outros que seguem a linha de que foi realmente Samuel quem apareceu é que
a mensagem não poderia ser de um demônio, já que muitas das coisas que ele diz
são coisas que esperaríamos ouvir do próprio profeta se estivesse vivo (como a
(Jo 8:44), ele não poderia dizer tais verdades. O problema com essa argumentação
ser considerado um mestre do engano – seria como um jogador de poker que blefa
em todas as mãos.
encobriria a mentira com um par de verdades, como a serpente fez com Eva. Se
analisarmos o que a serpente disse, constataremos muitas verdades: ela disse que
abertos, que seriam como Deus e conheceriam o bem e o mal (Gn 3:5). No final do
capítulo, vemos Deus dizendo que “agora o homem se tornou como um de nós,
conhecendo o bem e o mal” (v. 22), o que significa que essa parte era verdadeira.
morrerão” (Gn 3:4). A mentira não vem senão cercada de verdades, que a tornam
por Samuel contou eram convincentes o bastante para fazer Saul e a médium
acreditarem que Samuel estava vivo depois da morte e que a comunicação com os
372
O que é o espírito? 373
certo crédito às sessões espíritas, que dizem fazer o mesmo que a médium do texto.
Samuel apareceu ao ser invocado, quem garante que o mesmo não possa acontecer
Testamento? O que impede que o próprio Samuel apareça por aí de novo, com mais
ocasião, qualquer imortalista sincero que defenda isso teria que admitir ao menos
Por fim, um exemplo simples de como até os demônios são capazes de dizer
verdades pontuais são os demônios que falavam com Jesus e o reconheciam como
o “Filho de Deus” (Mt 8:29; Lc 8:28; cf. Mc 1:24; Lc 4:34). Devemos concluir então que
Jesus não era o filho de Deus, só porque os demônios o chamavam assim? No caso
“Filho do Deus Altíssimo” (Lc 8:28), mas ainda dizem seu nome sem mentir (v. 30).
Portanto, embora o diabo seja um mentiroso por natureza, isso não significa que
verso 12. Se ela ficou surpresa – argumentam eles –, então deve ser porque Samuel
apareceu mesmo. Em primeiro lugar, deve-se destacar que essa é uma leitura errada
do texto, que em momento nenhum diz que a feiticeira ficou surpresa por ter visto
373
O que é o espírito? 374
Samuel. Tudo o que o texto diz é: “Quando a mulher viu Samuel, gritou e disse a
Note que a mulher não gritou “por saber que era Samuel”, mas por saber que
era Saul quem estava com ela, já que Saul havia “eliminado os médiuns e os espíritas
da terra de Israel” (v. 9), o que explica o seu grito de desespero. É por isso que Saul
responde “não tenha medo” (v. 13), não porque a mulher estivesse com medo de
Samuel, mas porque temia que tudo aquilo fosse uma trama arquitetada pelo rei
comunicou que se tratava de Saul, e é isso o que a levou a gritar de medo (e não de
surpresa).
Mesmo se a mulher tivesse gritado de surpresa por ver Samuel, em que isso
prova que era Samuel mesmo? O máximo que isso provaria é que a médium estava
alguém (que se dizia ser Samuel). Afinal, se ela costumava invocar seres que
Seria apenas mais um dia corriqueiro de trabalho, já que com certeza Saul não deve
ter sido o primeiro a lhe pedir que invocasse um profeta ou alguém importante. O
médium sabia que lidava com demônios, e se surpreendeu nessa ocasião especial
Por que Deus proibiu consultar os mortos? – Por fim, um argumento dos
Deus não teria proibido consultá-los. Nessa linha de raciocínio, só faz sentido Deus
proibir uma coisa se ela for possível, o que significa que a comunicação com os
374
O que é o espírito? 375
com esse argumento é que Deus também proíbe coisas como adorar falsos deuses,
O primeiro mandamento diz “não terás outros deuses além de mim” (Êx
20:3), de forma semelhante à proibição de se consultar os mortos. Mas nem por isso
acreditamos que esses deuses existam mesmo, da mesma forma que não cremos
que os mortos existam de fato em algum outro mundo. Se eu digo para “não adorar
nenhum outro Deus que não seja Jesus”, ninguém automaticamente assumirá que
do deus, não o deus em si, como se houvesse um deus pagão vivo por aí em algum
lugar.
como se houvesse um morto vivo em algum outro mundo. Mesmo assim, Deus
proíbe tanto a adoração a outros deuses quanto a consulta aos mortos, não porque
esses deuses ou mortos existam de fato em algum lugar, mas porque essa adoração
pseudo-Samuel. É por isso que Paulo diz que o que os pagãos sacrificam aos ídolos
“é oferecido aos demônios e não a Deus” (1Co 10:20), pois “sabemos que o ídolo
não significa nada no mundo e que só existe um Deus” (1Co 8:4). Essa estreita
relação entre a procura pelos deuses e pelos mortos é ressaltada por Isaías, que
escreve:
375
O que é o espírito? 376
mortos e não com os demônios, não haveria qualquer motivo razoável para Deus
comunicação que ocorra não é com o espírito dos mortos, mas com
12:12, 20:3). O que a médium viu foi um falso deus ou espírito maligno
personificando a Samuel.114
Assim, vemos que a razão por que Deus proíbe a comunicação com os
mortos não é porque tal contato seja real ou porque Deus queira cortar o barato de
quem sente tanta falta de seus entes queridos, mas para preservar as pessoas de
114
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 159.
376
O que é o espírito? 377
de En-Dor.
dos seus discípulos (Pedro, Tiago e João). Mateus narra o evento da seguinte
maneira:
“Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago, e
deles. Sua face brilhou como o sol, e suas roupas se tornaram brancas como
aqui. Se quiseres, farei três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra
para Elias’. Enquanto ele ainda estava falando, uma nuvem resplandecente os
envolveu, e dela saiu uma voz, que dizia: ‘Este é o meu Filho amado em
A aparição de Elias não é nada surpreendente, já que ele foi transladado vivo,
ou seja, teve o seu corpo transformado de mortal para imortal sem passar pela
377
O que é o espírito? 378
morte (2Rs 2:11). É a aparição de Moisés que causa perplexidade, isso porque ele
não foi levado vivo para o céu igual Elias, pois sua morte é narrada expressamente
na Bíblia (Dt 34:5). Assim, ele deveria ser mais um entre aqueles que só voltariam à
vida na ressurreição final, uma vez que o seu espírito, por si só, não é um ente
pessoal que leve consigo consciência após a morte. Por isso, não poucos
transfiguração à vista dos discípulos? Temos muitas razões para pensar que não, e
para isso não é preciso mais do que ler o próprio texto dentro do seu contexto.
Observe com atenção o verso 4, onde Pedro sugere a Jesus que fizesse “três tendas:
uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias” (Mt 17:4). Por que um espírito sem
corpo precisaria de uma tenda para passar a noite? Isso seria tão estúpido quanto
se estivesse ciente de que Moisés não mais existia fisicamente e portanto só podia
estar ali em espírito, teria sugerido construir apenas duas tendas, para Jesus e para
Elias.
no monte prova que ele não tinha a menor ideia de que Moisés existisse como um
espírito incorpóreo, como seria caso ele acreditasse que após a morte as pessoas
se tornam fantasmas sem corpo. Isso também refuta uma outra teoria popular, a de
que Moisés e Elias não estavam no monte, mas no céu (apenas os discípulos
378
O que é o espírito? 379
estúpido sugerir construir tendas no céu, e é surreal que alguém pense nessa
possibilidade. Será que Pedro não sabia que havia enormes mansões celestiais
muito mais confortáveis que qualquer tenda que ele pudesse construir no
improviso? E como iria ele construir as tendas para Jesus, Elias e Moisés, se apenas
verso 4 diz «farei», ou seja, o próprio Pedro tomaria a ação, o que seria bem difícil
A própria ideia de construir tendas sugere que Pedro pensava que eles
passariam a noite ali, e talvez mais alguns dias, como Moisés que passou 40 dias no
Sinai. As pessoas que acampam levam tendas para se proteger do frio, de animais,
da chuva e de qualquer coisa que possa prejudicar o sono – coisas que nem de
estivesse no céu e não no monte. Isso reforça o fato de que, para Pedro, Moisés ali
era tão humano quanto Jesus, aparecendo como um ser limitado àquilo que é físico
fisicamente no monte, assim como Jesus e Elias. Até Lutero estava certo de que
115
LUTHER, Martin. Luther’s Works: Letters I. Minneapolis: Fortress: 1963. v. 49, p. 360.
379
O que é o espírito? 380
da alma fora do corpo. Mas como Moisés poderia estar fisicamente no monte, se
possível é que ele ressuscitou também. Temos um indício adicional disso em Judas
9, que diz:
Por que o diabo se interessaria tanto por um simples cadáver? Há quem diga
que o motivo seria para incitar o povo israelita à idolatria, como fazem os católicos
com os cadáveres dos “santos”. Só que não há nas páginas do AT uma única
cadáveres de grandes homens de Deus como Abraão, José, Samuel, Eliseu, Davi,
Daniel, Jeremias, Isaías e etc. Os israelitas eram de fato inclinados à idolatria, mas à
380
O que é o espírito? 381
passar do tempo. Assim, seria puro anacronismo inferir que a ideia do diabo em
disputar o corpo de Moisés era expô-lo à idolatria, uma vez que tal prática era
E se este tivesse sido o propósito, por que o diabo não disputou também os
Nada disso faz sentido à luz da explicação popular dada pelos teólogos imortalistas
com tão pouco aprofundamento, mas faz todo o sentido quando lemos o texto sob
da ressurreição. Isso explica por que o diabo disputava o corpo de Moisés: não por
uma tola obsessão por um mero cadáver, mas para tentar impedir sua ressurreição.
Foi isso o que levou Satanás a arrumar briga com ninguém menos que
Miguel pelo corpo de Moisés, uma vez que o diabo é aquele que tem poder sobre
a morte (Hb 2:14) e Paulo diz que a morte é derrotada na ressurreição (1Co 15:55).
morte, isto é, o diabo” (Hb 2:14). Sobre isso, Cullmann observa com precisão:
que Jesus realizava não envolve apenas trazer de volta da morte, mas
381
O que é o espírito? 382
Não é à toa que esse evento narrado por Judas tenha sido extraído de um
sugere, defende a tese da ressurreição de Moisés, aceita por muitos judeus. Isso é
reconhecido até pelos teólogos imortalistas, como Burdick, que diz que “segundo
vários mestres da Igreja primitiva, esse versículo baseia-se numa obra apócrifa
ocorrido. A Bíblia com frequência cita verdades de livros que não são
116
CULLMANN, Oscar. Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? Disponível em:
<https://www.mentesbereanas.info/wp-content/uploads/2020/07/imort-ressur_folheto.pdf>. Acesso
em: 26/01/2022.
117
BURDICK, Donald W. Bíblia de Estudo NVI (org. Kenneth Barker). São Paulo: Vida, 2003, p. 2164.
118
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 426. 382
O que é o espírito? 383
Isso explica por que Pedro não ficou nem um pouco surpreso com a aparição
muitas das crenças de seu povo, que podiam ser verdadeiras ou não. No caso em
Judas tirada de um livro que indica a sua ressurreição e que só faz sentido à luz da
mesma provam que não se tratava de mera lenda urbana judaica, mas de um fato
Babilônico e por Flávio Josefo, que diz que Moisés foi «oculto numa nuvem de
para Moisés121, o qual foi «tomado da presença dos homens»122. Como comenta
Monteiro, “o termo ἀπογεγονότος não pode significar apenas ‘morrer’ neste verso,
porque ele está ligado à preposição ἐξ, indicando afastamento. Aqui, portanto,
Josefo reforça a ideia do livro anterior, segundo a qual Moisés foi ‘afastado dos
no monte como um espírito sem corpo, e, do outro, uma grande soma de passagens
119
ibid, p. 426.
120
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. São Paulo: CPAD, 2004. v. 4, p. 179.
121
Antiguidades Judaicas, 9:28.
122
Antiguidades Judaicas, 5:1.
123
MONTEIRO, Sérgio H. S. Flávio Josefo e a Morte de Moisés. Disponível em:
<https://leandroquadros.com.br/flavio-josefo-e-a-morte-de-moises>.
383 Acesso em: 11/07/2022.
O que é o espírito? 384
bíblicas que indicam que Moisés ressuscitou e que este fato era bem aceito pelos
judeus da época, mesmo que não haja um versículo que o afirme explicitamente
De fato, o texto não só não prova nada de imortalidade da alma, como ainda
sugere que há apenas dois meios através dos quais podemos estar com o Senhor:
por Moisés). Embora Jesus pudesse ter invocado qualquer uma das milhares de
almas que supostamente estariam no Paraíso para indicar que há ainda uma terceira
via pela qual podemos estar com o Senhor (e que seria aquela pela qual a grande
maioria dos salvos chegaria lá), não vemos um único espírito fantasmagórico no
espírita.
a de gente como Noé, Jó e Daniel, tidos como os mais justos do mundo inteiro de
sua época, Jesus foi escolher para aparecer no monte justamente Elias (que não
morreu) e Moisés (que ressuscitou), veja só que coincidência! Se tem alguma coisa
que esse relato nos ensina não é que a alma sobrevive à morte, mas que mesmo nas
384
O que é o espírito? 385
Bíblia ela permanece misteriosamente ausente. Jesus poderia até mesmo ter
invocado todo o panteão de “santos” que estariam no céu, mas fez isso apenas com
O que os imortalistas fazem para tentar contornar este fato é apelar a alguns
textos que dizem que Jesus é a primícia dos mortos (1Co 15:22), o primogênito
dentre os mortos (Ap 1:5) ou o primeiro a ressuscitar (At 26:23), mas mesmo que
esses textos sejam entendidos em um sentido cronológico, isso não muda em nada
ressuscitou antes dele, mas que ele foi o primeiro a ressuscitar em um corpo
ressurreição final.
Assim, nada impede que Moisés tenha sido ressuscitado da mesma forma
que tantos outros que ressuscitaram antes de Cristo, mas não em um corpo glorioso
como o de Jesus, que neste sentido continua sendo o primeiro a ressuscitar. Assim,
o fato de Deus ter ressuscitado Moisés para que este pudesse aparecer no monte
não entra em conflito com o fato de Jesus ser o primeiro a ressuscitar como o
É interessante notar que, embora tanto Moisés como Elias fossem servos de
Deus, é só em relação a Jesus que é dito “este é o meu Filho amado em quem me
385
O que é o espírito? 386
os olhos novamente (v. 8). Jesus repetidamente dividiu a antiga aliança entre “a lei
e os profetas” (Mt 5:17, 11:13, 7:12, 22:40; Lc 16:16), e ninguém melhor do que
At 13:39, 15:5; 1Co 9:9; Hb 10:28) e Elias era considerado o maior dos profetas, razão
por que João Batista é considerado o novo Elias (Mt 17:11-13, 11:14; Lc 1:17). Jesus,
por sua vez, representava a nova aliança (Hb 12:24; Lc 22:20), que é superior à lei e
aos profetas, isto é, ao antigo pacto que Deus fez com os judeus (Hb 8:8-9, 9:15;
Por fim, uma nota especial fica por conta da afamada Bíblia Apologética, do
editor-geral Jamierson Oliveira, que diz que “o diálogo ocorreu entre Jesus, Elias e
no monte. Ironicamente, anos mais tarde, o mesmo Jamierson Oliveira usou esse
jogou na cara dele o que a própria Bíblia Apologética dele mesmo dizia, em um dos
124
OLIVEIRA, Jamierson. Bíblia Apologética. Jundiaí: Geográfica, 2000, p. 928.
125
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BcuOgrbzFm0>. Acesso em: 17/07/2015.
386
O que é o espírito? 387
numa visão quando debatem com espíritas. A razão por que nem eles mesmos têm
convicção daquilo que dizem é porque sabem o quão frágil o argumento é, ainda
que seja um dos poucos textos que podem usar em favor da imortalidade da alma
– e por isso mesmo não podem simplesmente ser honestos e reconhecer que não
há nada conclusivo no texto que prove que o espírito de Moisés baixou no monte e
“Pois também Cristo sofreu pelos pecados uma vez por todas, o justo pelos
injustos, para conduzir-nos a Deus. Ele foi morto no corpo, mas vivificado
pelo Espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão que há
muito tempo desobedeceram, quando Deus esperava pacientemente nos dias
de Noé, enquanto a arca era construída. Nela apenas algumas pessoas, a
saber, oito, foram salvas por meio da água” (1ª Pedro 3:18-20)
corpo e foi ao inferno pregar a outras almas humanas fora do corpo, que ali
primeiro lugar, apesar da crendice popular, parte nenhuma do texto nos informa
que Jesus fez isso entre a morte e a ressurreição. Pelo contrário, o contexto nos
387
O que é o espírito? 388
indica que isso ocorreu somente após a ressurreição, ao descrever uma sequência
lógica de eventos onde a pregação sucede a morte e a ressurreição. Ele foi (1) morto
Primeiro ele morreu, depois foi vivificado (termo que alude à ressurreição –
cf. 1Co 15:22), e só depois pregou aos espíritos em prisão. Portanto, a pregação não
ocorreu antes da ressurreição, mas depois dela. Se a intenção fosse dizer que Jesus
fez isso entre a sua morte e ressurreição, Pedro teria dito que ele foi (1) morto no
corpo, depois (2) pregou aos espíritos em prisão e então foi (3) vivificado no Espírito.
Se existe uma sequência cronológica, ela claramente aponta para algo que Cristo
A razão por que tantos acreditam que Jesus fez isso entre a sua morte e
“espírito” como um ente humano que sobrevive com consciência fora do corpo, o
que os leva a pensar que o «vivificado no Espírito» se refere a uma alma saindo
Tampouco faria sentido que o «vivificado no Espírito» fosse a alma fora do corpo,
já que o “Espírito” aqui diz respeito à pessoa do Espírito Santo, não ao espírito
humano de Jesus. A ideia que o texto transmite é que Jesus foi ressuscitado pelo
Espírito Santo, algo reforçado em Rm 8:11, e desta forma pôde pregar aos espíritos
em prisão.
inferno, eles se apegam aos textos que falam hora do Hades (onde os ímpios
388
O que é o espírito? 389
a ressurreição). Mas o texto em questão não menciona nenhum dos dois. Em vez
disso, Pedro usa o termo grego phulake, aqui traduzido como “prisão”. Quantas
nem mesmo faria sentido, já que o Hades dos imortalistas não é meramente uma
espíritos humanos queimando atualmente (a não ser que Jesus estivesse com o GPS
poderiam sair dali de nenhuma maneira, podemos até especular sobre como deve
“Eis que vos trago ‘boas novas’ de grande desespero: estão sendo
atormentados por seus pecados? Não viram nada ainda! Muito mais torturas
este lugar para se religar ao corpo, passar pelo julgamento e depois voltar ao
inferno para continuar queimando eternamente como antes, mas com corpo
e alma...”.
alguém que esteja com o corpo todo pegando fogo e veja se ele prestará atenção
389
O que é o espírito? 390
estranha razão por que Jesus teria ido pregar especificamente àqueles «dos dias de
Noé». Se Jesus foi realmente ao inferno pregar às almas dali, deveríamos assumir
que todas as outras bilhões de almas que ali estariam agonizando e que não eram
da época de Noé taparam os seus ouvidos? Ou então que Jesus reservou essas
que ele faria isso? Se a ideia era anunciar a vitória de Cristo sobre as forças do mal,
como dizem alguns imortalistas, esse anúncio não seria igualmente importante
com um mínimo de lógica e coerência, dado que nada em sua teologia reserva um
seletiva dessa natureza, sem nenhuma razão aparente. Dito isso, é evidente que
uma boa exegese do texto é uma que (1) assume que Cristo fez isso depois de sua
ressurreição e não antes; (2) assume que a pregação não foi feita no Hades, onde as
almas humanas estariam, mas em um outro lugar chamado de “prisão”; (3) assume
que a pregação não foi feita a seres humanos, em um lugar de tormento; (4) assume
que há uma razão lógica e coerente para a pregação ter sido feita especificamente
126
Aviso: não tente isso em casa.
390
O que é o espírito? 391
todos esses quatro pontos? E a resposta é sim, existe. Mas para a entendermos,
filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas e
escolheram para si aquelas que lhes agradaram. Então disse o Senhor: ‘Por
causa da perversidade do homem, meu Espírito não contenderá com ele para
sempre; e ele só viverá cento e vinte anos’. Naqueles dias havia nefilins na
a algo que aconteceu nos dias de Noé, aproximadamente cem anos antes do
dilúvio. Isso é compatível com o ponto 4. A grande discussão que rodeia este texto
maioria dos teólogos modernos, os “filhos de Deus” nada mais são que os
descendentes de Sete.
continuou predominante por séculos, é a de que os filhos de Deus são anjos que
Augusto Vailatti reconhece que “essa é a interpretação mais antiga de que temos
391
O que é o espírito? 392
judaicas que endossaram esse ponto de vista nos tempos antigos são tão
numerosas que é quase impossível numerar todas elas, mas a tabela a seguir nos
apresenta algumas:
127
VAILATTI, Carlos Augusto. “Os ‘filhos de Deus’ e as ‘filhas do homem’: as várias interpretações dadas a
Gênesis 6:1-4”. Revista Vértices: Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. n. 15, 2013, p. 98.
128
ibid.
129
2ª Apologia, 2:5.
130
Um apelo aos cristãos, 24.
131
Contra as Heresias, 16:2; Demonstração, 18.
132
De Gigantibus, 6-7.
133
Miscelâneas, 5:1,10.
134
Antiguidades Judaicas, 1:73.
135
Sobre a Idolatria, 9; Contra Marcião, 5:18; Sobre392
o véu das virgens, 7.
136
Instituições Divinas, 2:15.
137
Preparação, 5:5.
138
Noé e a Arca, 4:8.
139
Hebreus, 6:4.
O que é o espírito? 393
Uma nota especial fica por conta do “Livro dos Gigantes”, um apócrifo
século II a.C, o que faz dele possivelmente a obra não-bíblica mais antiga a abordar
o assunto. O elemento central que norteia o livro todo é a união sexual entre os
livro de Enoque, escrito por volta da mesma época, que fala dos duzentos vigilantes
(ou “sentinelas”) celestiais que entraram em comum acordo para coabitar com as
filhos. (...) Então eles tomaram esposas, cada um escolhendo por si mesmo; as
140
História, 1:2.
141
Antiguidades Bíblicas, 3:1-2.
393
O que é o espírito? 394
primeiro e o segundo século d.C – ou seja, com cerca de três a quatro séculos de
Igreja a defender essa tese foi Éfrem, o Sírio (306-373)142, com dois séculos de atraso
em relação aos Pais que defenderam a posição contrária143. Além dele, apenas
Agostinho (354-430) defendeu essa tese144, mas como sua fama superou de longe
do AT usada pelos cristãos dos primeiros séculos e também muito popular entre os
Gn 6:2 pelo grego angeloi tou theou – anjos de Deus145. E é da Septuaginta que os
evangelistas e apóstolos costumavam fazer suas citações do AT, o que prova até
O fato dos anjos terem se relacionado com as mulheres era uma verdade tão
142
Comentário sobre Gênesis, 6:3.
143
Antes disso, essa tese havia sido defendida apenas por Júlio Africano, entre o segundo e o terceiro
século, mas ele não é considerado um Pai da Igreja.
144
Cidade de Deus, 15:22-23.
145
WRIGHT, Archie T. The Origin of Evil Spirits. Tübingen: Mohr Siebeck, 2005, p. 62.
146
Confira alguns exemplos em: <http://lucasbanzoli.no.comunidades.net/a-arca-de-noe-encontrada-
p1>. 394
O que é o espírito? 395
Vale lembrar que todos esses povos descendiam de Noé assim como os
outras palavras, o fato dos anjos terem descido dos céus e tido relações com as
mulheres da terra, através das quais nasceram pessoas superdotadas (os «heróis do
passado», como diz o verso 4), não foi esquecido tão cedo e é o que deu origem
aos mitos como o de Hércules. Tal fato permaneceu vivo na consciência coletiva,
mesmo que com o tempo os seres celestiais fossem confundidos com deuses e suas
Essa também foi por muito tempo a crença aceita pelos judeus e cristãos,
pela dificuldade em aceitar que anjos pudessem ter realmente se relacionado com
as mulheres da terra, como se isso fosse mais difícil de admitir do que cobra falante,
virgem dar à luz, Deus se fazer carne, morto ressuscitar, alguém ser arrebatado
numa carruagem de fogo, alguém andar sobre as águas, transformar água em vinho
ridículo.
147
CHOURAQUI, André. No Princípio (Gênesis). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1995, p. 82.
148
ALTER, Robert. Genesis: Translation and Commentary. New York and London: W. W. Norton & Co.,
1996, p. 26.
149
VAILATTI, Carlos Augusto. “Os ‘filhos de Deus’ e as ‘filhas do homem’: as várias interpretações dadas a
Gênesis 6:1-4”. Revista Vértices: Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. n.395 15, 2013, p. 100.
O que é o espírito? 396
distorção são evidentes. O problema mais sério com a teoria alternativa é que parte
respeito de Sete como temos de Caim, muito menos como provar que toda a sua
descendência foi justa, ou que toda a descendência de Caim foi ímpia. Essas são
conclusões que os adeptos dessa teoria são obrigados a tirar, não porque textos
bíblicos apontem nessa direção, mas por ser a única forma que se encaixa em sua
interpretação de Gn 6:1-4.
(Lameque) é citado como sendo ímpio (Gn 4:17-24), e há onze nomes citados na
genealogia de Sete, dos quais apenas dois (Enoque e Noé) são citados como sendo
justos (Gn 5:6-32). Concluir a partir disso que toda a descendência de Sete foi justa
e que toda a descendência de Caim foi ímpia é no mínimo uma presunção duvidosa.
E se parte nenhuma da Bíblia chama toda a geração de Sete de justa ou proíbe que
descendência de Sete, usa o termo “filhas” nove vezes, mas no capítulo 4, que fala
dessa teoria querem nos convencer é que o autor usou o termo “filhas dos homens”
de que o termo se aplicava à geração de Caim, sendo que ele nunca nem mesmo
396
O que é o espírito? 397
usa o termo “filhas” em relação à geração de Caim. Isso seria o mesmo que querer
Para piorar, Gn 6:4 literalmente traduzido não diz “as filhas dos homens”,
como vertem a maioria das traduções, mas “as filhas de Adão”, já que 'adam está no
não fosse, o texto diria “as filhas de Caim”, e toda a discussão estaria encerrada. Mas
em vez de dizer que “os filhos de Sete” viram que “as filhas de Caim” eram formosas,
o que o texto realmente diz é que os “filhos de Deus” viram que as “filhas de Adão”
E que esses “filhos de Deus” não era a geração de Sete, basta notar que todas
para se referir a anjos. É essa a expressão usada no início de Jó, onde vemos que “os
anjos (ben 'elohiym) vieram apresentar-se ao Senhor, e Satanás também veio com
eles” (Jó 1:6), o que acontece novamente em 2:1 e mais uma vez no final do livro,
onde lemos que quando Deus criou a terra “as estrelas matutinas juntas cantavam
e todos os anjos (ben 'elohiym) se regozijavam” (Jó 38:7). As outras duas vezes que
a expressão ocorre fora de Gn 6:2 estão nos salmos. O primeiro diz “atribuam ao
Senhor, ó seres celestiais (ben 'elohiym), atribuam ao Senhor glória e força” (Sl 29:1),
397
O que é o espírito? 398
(sobretudo em Jó, que segundo a tradição judaica foi escrito por Moisés, o mesmo
autor do Gênesis). Por mais que algumas vezes Deus se refira a Israel como «meus
filhos» (Is 43:6), é só no NT que a expressão “filhos de Deus” começa a ser usada em
relação a seres humanos, porque Deus nos adotou como filhos através de Cristo
(Rm 8:15-17). Este conceito era estranho ao AT e ainda mais estranho ao Gênesis,
que descreve uma época em que Israel sequer existia como nação.
Se por um lado não faz o menor sentido chamar a geração de Sete de “filhos
de Deus”, por outro lado chamar a geração de Caim de “filhas dos homens” faz
menos sentido ainda. Isso porque parte nenhuma da Bíblia usa o termo de forma
pejorativa e muito menos o aplica à geração de Caim. A única vez que bath 'adam
volta a aparecer no AT é no texto que diz que “as filhas dos homens desta cidade
saem para tirar água” (Gn 24:13), quando o servo de Abraão procura uma jovem
para se casar com Isaque. Sua forma masculina, “filho do homem”, também nunca
Ezequiel (Ez 2:1) e Daniel (Dn 8:17), além de ser um termo frequentemente usado
Sendo assim, faz muito mais sentido inferir que as «filhas dos homens» seja
simplesmente uma alusão às mulheres em geral com a qual aqueles anjos (“filhos
«filhas dos homens» não é entre “homens bons” e “mulheres más”, mas entre seres
398
O que é o espírito? 399
Sete com a de Caim, isso envolveria tanto homens como mulheres das duas partes,
e neste caso o texto também deveria falar de “filhas de Deus” e de “filhos dos
homens”.
feminina dos caimitas”. Aliás, neste caso, o ônus da prova recai sobre
Sete falha também em explicar por que o fruto dessa relação nasceria com um DNA
alterado, de modo a se tornarem “os heróis do passado, homens famosos” (Gn 6:4),
Caim, o que explica a sua força descomunal? O texto só faz sentido se entendermos
que essa união resultou numa mutação genética que criou uma raça de “super-
terreno.
150
VAILATTI, Carlos Augusto. “Os ‘filhos de Deus’ e as ‘filhas do homem’: as várias interpretações dadas a
Gênesis 6:1-4”. Revista Vértices: Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. n. 15, 2013, p. 103.
399
O que é o espírito? 400
que ia muito além da mera relação entre pessoas boas e más. Em decorrência da
diminuiu o tempo médio da vida humana para 120 anos (v. 4), e depois destruiu
toda a humanidade com o dilúvio (v. 7). Isso mostra que a humanidade havia
chegado a um ponto sem retorno onde a maldade havia se elevado como nunca
antes, e o ápice disso é justamente a relação dos filhos de Deus com as filhas dos
homens. Isso certamente não condiz com uma simples união mista entre o crente e
o descrente, mas com algo muito mais grave, com consequências muito mais sérias.
simplesmente pela união matrimonial entre uma geração boa e uma ruim. A razão
que levou o Senhor a tomar uma medida tão drástica que foge completamente ao
padrão é porque o pecado envolvia muito mais que casamentos mistos, mas a
seres celestes e terrenos. Foi isso o que bagunçou o mundo de tal maneira que Deus
Assim, a tese de que os “filhos de Deus” de Gn 6:2 são os anjos é a única que
consequências lógicas dessa união. Do outro lado, temos a tese de que Deus enviou
Caim, mesmo sem Deus jamais ter proibido essa união, e mesmo à parte de
qualquer texto que defina toda a descendência de Sete como justa e toda a de Caim
400
O que é o espírito? 401
como ímpia. O fato dessa união gerar os «heróis do passado» também é mera
coincidência que a interpretação mais antiga que vigorou por séculos seja a de que
texto, que se choca com qualquer exegese séria que respeite a realidade e a
gravidade do que o texto bíblico relata. Como os judeus não eram tolos a ponto de
não perceberem essas incoerências, eles mantiveram por séculos que de fato os
“filhos de Deus” que o texto retrata são anjos, até que muito tempo mais tarde os
rabinos viessem a propor uma teoria alternativa que suavizasse o texto, a fim de
dizer algo mais leve e “aceitável”, ainda que não esteja ali (algo semelhante ao que
por completo para não ter que admitir o óbvio: que os “filhos de Deus” são
realmente anjos que se relacionaram com as “filhas dos homens”. A ironia é que a
interpretação alternativa surgiu para suavizar um texto que parecia pesado demais,
mas é justamente por ser algo pesado demais que Deus chegou ao extremo de
acabar com tudo enviando o dilúvio. Em outras palavras, ao suavizar o texto, eles
fazem parecer que a própria reação divina foi um exagero, como se Deus tivesse
destruído o mundo apenas por maldades “comuns” (que continuam existindo até
401
O que é o espírito? 402
A razão por que essa verdade é tão difícil de ser aceita é porque os anjos,
como seres assexuados, não poderiam procriar ou sentir desejo sexual. Essa é a
simples do texto, não por questões hermenêuticas, mas devido às suas implicações.
E esvaziar a objeção é mais simples do que parece, uma vez que todo o
angelical. De fato, em sua condição angelical eles não reproduzem nem sentem
desejo sexual, mas estes anjos não estavam na terra em sua forma angelical, mas
homem. Como anjos, eles também não podem comer alimentos físicos pois não
têm fome e nem aparelho digestivo, mas vemos anjos comendo com Abraão (Gn
terra em sua forma natural (i.e, na condição em que se encontram no céu). E se eles
eram capazes de comer, nada impede que fossem capazes de praticar qualquer
outra atividade comum a um ser humano, o que inclui o sexo e a procriação. É por
isso que Ló teve que proteger debaixo do seu teto dois anjos materializados dos
402
O que é o espírito? 403
Ló se desesperou tanto que chegou a oferecer suas duas filhas virgens para
satisfazer os homens depravados daquela cidade (v. 8), a fim de proteger os dois
homens que sabia serem anjos (v. 1). Tal atitude seria totalmente injustificada se
como no caso de estarem ali em uma forma fluídica e imaterial. Isso mostra que Ló
sabia que aqueles anjos, uma vez materializados em forma humana, estavam
6:1-4, com a diferença de que ali os próprios anjos eram os abusadores, o que
Isso explica por que Jesus disse que “na ressurreição, as pessoas não se
casam nem são dadas em casamento; mas são como os anjos no céu” (Mt 22:30).
Note que ele não disse apenas que “serão como os anjos”, mas que serão “como os
refere ao casamento será a mesma condição celestial dos anjos, já que Jesus
soltos, e não presos em algum lugar. Paulo diz que “a nossa luta não é contra
mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Ef 6:12).
Note que ele não diz que essas forças demoníacas que lutam contra nós estão
403
O que é o espírito? 404
É por isso que Pedro diz que Satanás “anda ao redor como leão, rugindo e
procurando a quem possa devorar” (1Pe 5:8). Isso certamente não condiz com a
descrição de alguém preso e impotente, mas com alguém tão livre e solto que
representa uma ameaça real às nossas próprias vidas. Se o diabo estivesse preso,
ele só conseguiria “andar ao redor” de sua própria cela. Em vez disso, ele é chamado
de “o príncipe das potestades do ar” (Ef 2:2), porque é ali, nos “ares” (ou “regiões
celestiais”) que os demônios se encontram hoje. Desde que foram expulsos, eles
não mais têm acesso livre ao céu onde Deus habita, mas rodeiam o nosso próprio
céu, ainda que invisíveis aos nossos olhos, procurando a quem possam tragar.
“Jesus lhe perguntou: ‘Qual é o seu nome?’ ‘Legião’, respondeu ele; porque
muitos demônios haviam entrado nele. E imploravam-lhe que não os
liberdade daqueles que possuíram aquele homem e entraram nos porcos (v. 33). E
isso nos coloca num dilema, pois ao mesmo tempo em que a Bíblia deixa claro que
os demônios no geral estão soltos, também afirma com a mesma clareza que alguns
deles estão presos neste lugar que em Lucas é chamado apenas de “abismo”. Mas
404
O que é o espírito? 405
sua rebelião), por que Deus decidiu prender alguns e deixar os outros soltos? Note
que nem mesmo o próprio Satanás que liderou a rebelião está preso (1Pe 5:8), o
que torna inútil qualquer tentativa de dizer que é por terem pecado mais.
quando entendemos que os anjos de Gn 6:1-4 são diferentes dos anjos que se
encaixam. Isso fica ainda mais claro quando vemos a descrição de Judas, que assim
"E aos anjos que não conservaram suas posições de autoridade mas
abandonaram sua própria morada, ele os tem guardado em trevas, presos
Aqui não apenas vemos que há anjos caídos que estão presos, mas também
de 575 e 3007; v
151
Colocado entre aspas porque Lúcifer não é o nome próprio do diabo, embora ele seja assim conhecido
na cultura popular. Sobre isso, confira: <http://ocristianismoemfoco.blogspot.com/2015/09/o-nome-do-
diabo-e-lucifer.html>.
152
De acordo com a Concordância de Strong.
405
O que é o espírito? 406
Isso não poderia ser dito a respeito dos anjos da rebelião original no céu, os
quais não “abandonaram” sua própria morada, mas foram expulsos dela após
“Houve então uma guerra no céu. Miguel e seus anjos lutaram contra o
dragão foi lançado fora. Ele é a antiga serpente chamada diabo ou Satanás,
que engana o mundo todo. Ele e os seus anjos foram lançados à terra”
(Apocalipse 12:7-9)
Acrescente a isso que esses anjos que batalharam com Miguel não foram
presos, mas «lançados à terra», enquanto os do texto de Judas foram presos com
«correntes eternas, para o juízo do grande dia». Claramente eles não estão falando
dos mesmos anjos, nem do mesmo evento. João no Apocalipse descreve a rebelião
original que resultou na batalha celestial onde Satanás e seus anjos foram
Ou seja, temos o registro dos anjos que seguiram “Lúcifer” em sua rebelião
original, que foram expulsos do céu após perderem a batalha com os anjos fiéis a
Deus (Ap 12:7-9), e temos também o registro dos anjos que desertaram de sua
morada, ou seja, que abandonaram o céu por livre e espontânea vontade. Isso é
pensamento. É a esses anjos que Judas se refere, e eles que se encontram presos
406
O que é o espírito? 407
hoje. Isso explica por que há um grupo de anjos caídos que estão soltos (i.e, os da
rebelião) e outro grupo de anjos caídos que estão presos (i.e, os de Gn 6:1-4).
abismo/tártaro onde os anjos de Gn 6:1-4 estão encarcerados, e onde Judas diz que
eles estão presos em correntes, volta a aparecer em Ap 20:7, onde o mesmo termo
phulake usado em 1Pe 3:19 aparece em relação ao lugar onde Satanás estará preso
durante o milênio: “Quando terminarem os mil anos, Satanás será solto da sua
prisão-phulake” (Ap 20:7). Isso reforça que Satanás realmente não está preso hoje,
porque ele será preso no milênio. Assim, esses anjos que Judas diz que estão
“presos com correntes eternas para o juízo do grande Dia” (Jd 6) não pode se referir
a Satanás e seus anjos, que ainda não estão presos, mas a outros anjos, isto é, os de
Gn 6:1-4.
Mas por que Deus prenderia estes e deixaria aqueles soltos? Isso também é
facilmente compreensível: embora o pecado dos primeiros anjos caídos tenha sido
tão grave quanto, eles não causaram diretamente um mal à humanidade. Eles
apenas tentam os homens para que causem o mal, ou seja, buscam inclinar sua
vontade aos seus desígnios perversos, mas não causam o mal diretamente. É por
isso que costumamos dizer que Satanás é um cão raivoso amarrado numa coleira,
da qual ele só se solta se nós dermos permissão. Paulo disse que não devemos dar
brecha ao maligno (Ef 4:27), o que significa que o diabo precisa dessa “brecha” para
ter legalidade sobre as nossas vidas. Vemos isso claramente no livro de Jó, a quem
Satanás não podia tocar diretamente, só conseguindo ir até onde Deus permitia
407
O que é o espírito? 408
não se limitaram a inclinar o desejo das pessoas para o mal, mas efetivamente se
encarnaram e praticaram o mal com suas próprias mãos, cruzando todos os limites
arrombaram a porta. Veja como nada faz sentido quando partimos do princípio de
que todos os anjos caídos se limitam aos que seguiram Satanás na rebelião original.
Neste caso, por que Deus decidiria prender alguns, mas deixar outros que
e com anjos diferentes que as coisas fazem algum sentido, onde Deus é obrigado a
diretamente, com as próprias mãos. É por isso que Deus os prendeu no abismo, o
mesmo lugar que Pedro chama de tártaro ao aludir ao mesmo texto de Judas:
“Pois Deus não poupou os anjos que pecaram, mas os lançou no inferno,
prendendo-os em abismos tenebrosos a fim de serem reservados para o
aqui, o grego traz tartaroo. É a única ocasião em que o tártaro aparece na Bíblia,
408
O que é o espírito? 409
É bem sabido que a carta de Judas é em grande parte uma “cópia” deste
capítulo de 2ª Pedro (não no sentido de plágio, mas porque ele queria que seus
destinatários tivessem ciência do que Pedro havia escrito numa época em que ainda
não existia uma Bíblia completa com todos os livros). Em outras palavras, Judas
entendia que os anjos no tártaro citados na carta de Pedro eram os mesmos “filhos
mesma forma para falar dos anjos que estão presos em cadeias por seu pecado
sexual:
“Pois ele se tornou um perigo para a sua própria alma: até para os anjos.
Pois, além disso, no tempo em que ele foi criado, eles gozavam de liberdade.
Isso fica ainda mais evidente quando continuamos a leitura de Judas, que
escreve:
409
O que é o espírito? 410
“E aos anjos que não conservaram suas posições de autoridade mas abandonaram
sua própria morada, ele os tem guardado em trevas, presos com correntes eternas
“E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria
entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por
Mais uma:
“Os anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria
havendo-se prostituído como aqueles anjos, e ido após outra carne, foram postas
eram semelhantes aos pecados daqueles anjos (do grego hos, que também pode
ser traduzido por “assim como” ou “da mesma forma que”). Nós já sabemos que o
410
O que é o espírito? 411
pecado de Sodoma e Gomorra foi a imoralidade sexual, como traduz a NVI. A ACF
traduz por “fornicação” e a ARIB por “prostituição”, mas em todos esses casos o
exclui qualquer chance de Judas estar falando dos anjos que se uniram a “Lúcifer”
na rebelião original, já que a rebelião original não teve nada a ver com sexo.
monstruosamente desonesto para não enxergar aqui uma ligação óbvia com os
dos anjos é aqui igualado ao pecado dos habitantes de Sodoma e Gomorra, o qual,
como sabemos, foi tão literal, físico e carnal quanto poderia ser. Se Judas diz que os
significar que seu pecado sexual foi tão real e literal quanto o deles.
apresenta o texto:
hos como
Sodoma Sodoma
kai e
Gomorrha Gomorra
kai e
ho as
411
O que é o espírito? 412
peri ao redor de
autos elas
polis cidades
tou o
homoioo semelhante
toutois a estes
tropos maneira
kai e
opiso após
sarx carne
heteros outra
deigma exemplo
tropos ekporneuo kai aperchomai opiso sarx heteros como «agindo de modo
sua cobiça com carne diferente». A palavra aqui traduzida como “outro” ou
isto é, alguém que não é da mesma natureza, forma, classe, tipo, diferente»154. Este
153
Disponível em: <https://biblehub.com/interlinear/jude/1-7.htm>. Acesso em: 19/05/2021.
154
#2087 da Concordância de Strong.
412
O que é o espírito? 413
fornicação entre um homem e uma mulher, mas entre duas carnes “estranhas”, de
“tipos” diferentes.
como dos anjos mencionados no verso anterior. Isso significa que ambos «foram
após carne estranha», isto é, cometeram um pecado sexual com alguém que não
era da mesma “natureza” que a deles. Isso faz todo o sentido, já que o pecado dos
habitantes de Sodoma tinha a ver com a sodomia (Gn 19:5), isto é, com a prática
homossexual, que a Bíblia classifica como antinatural (Rm 1:26-27). Mas o pecado
dos “filhos de Deus” não foi o homossexualismo, porque eles pecaram com as “filhas
dos homens”, não com os “filhos dos homens”. Aqui, a “carne estranha” diz respeito
à sua condição como anjos, para os quais qualquer relação com humanos era
antinatural.
Assim, vemos que Judas não apenas trata o pecado dos anjos e dos
para a relação entre anjos e mulheres. Trocando em miúdos, o que Judas estava
sexuais antinaturais de modo análogo àqueles anjos com os quais ele compara.
práticas antinaturais e foram punidos por conta disso – os anjos por terem se
413
O que é o espírito? 414
Gn 6:1-4 não sabem explicar que anjos eram esses que cometeram pecados sexuais,
e muito menos de que forma esse pecado pode ser identificado com o dos
sodomitas. Quando Judas fala de «ir à procura de outra carne», ele usa o termo
grego aperchomai, que literalmente significa «partir a fim de seguir alguém»155. Isso
mais uma vez é uma alusão perfeita àquilo que os “filhos de Deus” fizeram em Gn 6,
partindo (ou abandonando) de sua habitação celestial para seguir alguém (“ir após
outra carne”, i.e, a carne humana). Também tem tudo a ver com os habitantes de
Sodoma, que partiram de suas casas para seguir os homens que Ló abrigou em sua
A verdade pode ser forte, pode ser dura, pode ser difícil de se engolir, pode
ser até mesmo chocante para alguns, mas poucas coisas na Bíblia são tão claras
o que o autor do Gênesis pretendeu nos dizer, e é deste jeito que Pedro e Judas o
entenderam (assim como todos os judeus e cristãos de sua época). Com isso em
“Ele foi morto no corpo, mas vivificado pelo Espírito, no qual também foi e
pregou aos espíritos em prisão que há muito tempo desobedeceram, quando
construída. Nela apenas algumas pessoas, a saber, oito, foram salvas por
meio da água” (1ª Pedro 3:19-20)
155
#565 da Concordância de Strong.
414
O que é o espírito? 415
anjos pecaram com as mulheres (Gn 6:4), e eles estavam presos (embora não
atormentados) quando Jesus pregou para eles, exatamente como aqueles anjos (Jd
6; 2Pe 2:4). A Bíblia nunca diz que as almas dos ímpios estão presas em algum lugar
no pós-vida, mas diz duas vezes que esses anjos de Gn 6 estão presos (Jd 6; 2Pe 2:4),
uma delas com o próprio Pedro em sua segunda carta. E a Bíblia nunca chama um
morto de “espírito”, mas chama os demônios (que são anjos caídos) inúmeras vezes
assim (Jz 9:23; 1Sm 16:14-16, 18:10, 19:9; Lc 7:21, 8:2; At 19:12-13, 19:15).
pensar que o texto se refere a almas humanas fora do corpo ao falar de “espíritos”
é por estarem acostumadas com a ideia platônica de espírito, que em nada tem a
alegoria das “almas debaixo do altar”, nem na passagem do ladrão da cruz, nem na
sobre “partir e estar com Cristo” a palavra “espírito” aparece, embora os imortalistas
156
BURDICK, Donald W. Bíblia de Estudo NVI (org. Kenneth Barker). São Paulo: Vida, 2003, p. 2133.
415
O que é o espírito? 416
Sempre que a Bíblia usa o termo “espírito” em relação a seres humanos, se refere a
pessoas vivas (a exceção é 1º Samuel 28, que, como acabamos de analisar, trata-se
Então, por um lado, temos a teoria que assume que Pedro usou o termo
espírito-pneuma para se referir a almas humanas vivas após a morte, algo sem
assim puderam ouvir a pregação de Jesus; que ele pregou especificamente aos da
época de Noé, mesmo sem nenhuma razão aparente; que ele fez isso no Hades,
mesmo sem o texto mencionar o Hades; e que fez isso entre a sua morte e
ressurreição, mesmo o texto indicando que foi após a ressurreição. Essa mesma
teoria deixa sem explicação a própria pregação em si, que seria inócua e sem
sentido.
Do outro lado, temos uma tese que conecta perfeitamente todos os pontos,
próprio Pedro diz que estão presos (2Pe 2:4), os quais pecaram precisamente no
tempo indicado no texto e que não estavam queimando no inferno, mas “presos
com correntes eternas para o juízo do grande Dia” (Jd 6). A própria “pregação” passa
a fazer sentido nessa linha interpretativa. O termo grego usado no texto é kerusso,
que significa «ser um arauto, oficiar como um arauto»157. Um arauto, de acordo com
de guerra ou paz», «aquele que, por meio de pregão, tornava pública uma notícia».
157
#2784 da Concordância de Strong.
416
O que é o espírito? 417
Foi exatamente isso o que Jesus fez sobre as forças das trevas após triunfar
sobre elas na cruz. Paulo diz que ele “despojou os poderes e as autoridades, fazendo
deles um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Cl 2:15). Aquilo que
celestiais ele fez também com os anjos presos no tártaro ou abismo, os quais não
tinham como saber da vitória de Cristo justamente por estarem presos. Então, Jesus
precisou descer até a sua prisão e anunciar ali sua vitória, com um corpo ressurreto
Você pode estar curioso em saber o que acontecerá com esses anjos caídos
de Gênesis 6. Nós sabemos que seu destino final será o mesmo dos outros
demônios (ou seja, a aniquilação), mas o que poucos sabem é que eles serão
“O quinto anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que havia caído do céu
sobre a terra. À estrela foi dada a chave do poço do Abismo. Quando ela
abriu o Abismo, subiu dele fumaça como a de uma gigantesca fornalha. O sol
escorpiões da terra. Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva
da terra nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não
tinham o selo de Deus na testa. Não lhes foi dado poder para matá-los, mas
sim para causar-lhes tormento durante cinco meses. A agonia que eles
sofreram era como a da picada do escorpião. Naqueles dias os homens
procurarão a morte, mas não a encontrarão; desejarão morrer, mas a morte
417
O que é o espírito? 418
Tinham sobre a cabeça algo como coroas de ouro, e o rosto deles parecia
rosto humano. Os cabelos deles eram como os de mulheres e os dentes como
os de leão. Tinham couraças como couraças de ferro, e o som das suas asas
(Apocalipse 9:1-11)
O verso 1 fala de uma estrela que caiu do céu sobre a terra, à qual foi dada a
12:4), e aqui temos uma que desce do céu à terra, exatamente a linguagem que
Jesus usa para Satanás (Lc 10:18). Essa “estrela” (Satanás) tinha em suas mãos a
chave do abismo, que, como vimos, é a prisão em que os anjos de Gn 6:2 estão
presos (Lc 8:31; 2Pe 2:4). Quando a chave do abismo é dada a Satanás, ele abre o
abismo (v. 2), e o que João vê sair dali são “gafanhotos” (v. 3).
fazer para torturar seres humanos. Nos tempos bíblicos, o gafanhoto era o que os
hebreus mais temiam, porque devoravam as suas lavouras, que era tudo o que eles
como um símbolo do mal, e, portanto, uma figura bem adequada para seres
É por isso que esses “gafanhotos” do texto “não causam dano nem à relva da
terra nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo
418
O que é o espírito? 419
de Deus na testa” (v. 4). Eles não atacam plantações, mas pessoas, atormentando-
as diretamente (v. 5). O detalhe mais interessante fica por conta da descrição física
desses “gafanhotos”, quando se diz que “o rosto deles parecia rosto humano” (v.
7). Note que o texto não diz que eles eram humanos de fato, mas que pareciam
mulheres.
É por isso que o rosto deles é como o rosto de um homem, algo que não
poderia ser dito a respeito de nenhum outro demônio (que são espíritos destituídos
de rosto físico) e nem a respeito de um homem de fato (ou o texto não diria que
seu rosto “parece” humano, já que é humano). A descrição exige que o ser em
que cai como uma luva na descrição dos anjos caídos de Gn 6:1-4. O verso seguinte
é ainda mais revelador, pois diz que “os cabelos deles eram como os de mulheres”
(v. 8). Em outras palavras, os seres que João viu tinham cabelo comprido como o de
fatal nisso, para além do fato do abismo ser uma prisão para demônios e não para
seres humanos (Lc 8:31): os romanos tinham cabelo curto, não comprido. A
tendência de se cortar o cabelo curto começou com os gregos e foi seguida pelos
romanos, cujo corte se assemelhava ao padrão dos nossos dias (ainda mais entre
os soldados, que tinham que ter o cabelo curto por padrão). Portanto, João não
419
O que é o espírito? 420
época mais antiga em que o costume era ter cabelo mais longo. Mais uma vez, isso
O relato também descreve asas (v. 9), uma linguagem bíblica comum para se
falar dos anjos (Ez 10:8,16, 11:22; 2Cr 3:13, 5:8; 1Rs 8:7; Êx 37:9), e diz que eles
“tinham poder para causar tormento aos homens durante cinco meses” (v. 10), mas
não para matá-los, porque suas vítimas procurariam a morte, mas não a achariam
(v. 6). Isso significa que as pessoas vão sofrer a tal ponto que desejarão a morte, o
não vemos os anjos caídos matarem ninguém, sendo o seu delito puramente sexual.
Isso indica que quando forem soltos do abismo voltarão a praticar os mesmos atos
de antes, o que será permitido por Deus como uma forma de executar Seu juízo
sobre os ímpios.
E isso também nos leva a uma conclusão intrigante: assim como a descida
dos anjos culminou no dilúvio, que foi o fim do mundo de então, a subida desses
Senhor Jesus comparou o fim desta era ao dilúvio (Mt 24:37-39), o que nos ajuda a
entender por que Pedro alude a esses anjos e ao dilúvio em 1Pe 3:18-21. Uma das
tônicas mais presentes em ambas as suas cartas era justamente o fim do mundo por
ocasião da volta de Jesus, algo que ele volta a abordar em 2Pe 3:3-37:
420
O que é o espírito? 421
tempo foi submerso e destruído. Pela mesma palavra os céus e a terra que
agora existem estão reservados para o fogo, guardados para o dia do juízo e
para a destruição dos ímpios” (2ª Pedro 3:3-7)
Como vemos, Pedro volta a comparar o dilúvio com a volta de Jesus, onde
estabelece o primeiro como um antítipo do segundo. Por isso não é à toa que ele
tenha aludido à época de Noé em 1Pe 3:18-21, nem sem razão que tenha
promiscuidade entre os anjos e a raça humana, que foi a gota d’água em sentido
quase literal, o fim do nosso mundo resultará da impiedade dos homens da nossa
época que, por coincidência ou não, terá como apogeu a mesma relação, só que de
qualquer outro lugar, mas dos anjos caídos de Gn 6:1-4, que pecaram sexualmente
com as mulheres da terra e por isso foram presos no lugar conhecido como tártaro
ou abismo. Estes anjos foram presos em sua condição física materializada para não
mais agirem como procederam e só serão soltos do abismo por um breve período,
(o que explica por que os ímpios de então preferirão a morte). Pedro volta a tratar
sobre isso em sua segunda carta (2Pe 2:4), da mesma forma que Judas, que deixa
421
O que é o espírito? 422
claro que esses anjos aprisionados cometeram pecado sexual com carne estranha
(Jd 6-7).
Diante de tudo o que vimos, essa conclusão é óbvia para qualquer pessoa
com a menor capacidade de raciocínio lógico e apreço pela verdade, como também
era óbvia para os leitores originais (que até aquele momento só conheciam essa
que essa interpretação seja rejeitada por tanta gente não tem a ver com razões
bíblico queira dizer exatamente aquilo que diz: que anjos assumiram a forma
dada pela maioria deles, e são muitos os que pensam da mesma forma aqui
e Thomas Howe, por exemplo, dizem que “os ‘espíritos em prisão ’não eram salvos,
mas seres perdidos. Na verdade, essa pode ser uma referência a anjos, não a seres
que apoiem a sua tese, acabaram por popularizar uma ideia totalmente contrária à
do texto bíblico, que torna a perícope ilógica como um todo e impossível de ser
compreendida.
mesma ideia de que Jesus foi para o inferno pregar aos espíritos dos falecidos é o
158
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 372.
422
O que é o espírito? 423
texto em que Pedro diz que “por isso mesmo o evangelho foi pregado também a
mortos, para que eles, mesmo julgados no corpo segundo os homens, vivam pelo
Espírito segundo Deus” (1Pe 4:6). Não poucos imortalistas desonestos tiram esse
texto do contexto para fazer parecer que Pedro falava dos mesmos “espíritos em
prisão” do capítulo anterior, quando usou a expressão «por isso mesmo». Alguns
Só o que você nunca verá é algum deles citando o verso anterior, que explica
com clareza cristalina do que Pedro se referia. Vejamos o texto em seu contexto
mais amplo:
“Eles acham estranho que vocês não se lancem com eles na mesma torrente
de imoralidade, e por isso os insultam. Contudo, eles terão que prestar contas
àquele que está pronto para julgar os vivos e os mortos. Por isso mesmo o
evangelho foi pregado também a mortos, para que eles, mesmo julgados no
Veja como basta apenas colocar o texto dentro do seu contexto para tudo
ficar claro. O verso 6 começa com um «por isso mesmo». “Por isso mesmo” o que?
Porque Jesus foi pro inferno pregar aos espíritos em prisão? Não, mas porque os
mortos hão de prestar contas a Deus (no dia do juízo). Na verdade, tudo o que o
texto prova é que os mortos não foram julgados ainda, o que é um golpe de morte
na tese imortalista do “juízo individual” (no qual os mortos já teriam sido julgados e
apenas aguardam um juízo final). Se eles não tiveram ainda que prestar contas a
423
O que é o espírito? 424
Deus por seus atos, é obviamente porque não foram julgados. E se não foram
julgados, não podem ter sido lançados no inferno ou em qualquer outro lugar. A
Mas se os mortos não estão vivos em algum lugar, o que Pedro quer dizer
quando diz que o evangelho foi pregado a mortos? Obviamente ele se referia
àqueles que estavam mortos na época em que ele escrevia a carta, mas que estavam
vivos na época em que a pregação foi feita. Isso é reconhecido até mesmo por
muitos dos imortalistas mais sinceros, como Norman Geisler, que comenta: “É
possível que ela [a pregação] se refira àqueles que agora estão mortos, e que
fato de que o evangelho ‘foi pregado’ (no passado) àqueles que estão ‘mortos’
(situação presente)”159.
salientar que a pregação ocorreu quando eles já estavam mortos, ele teria dito que
o evangelho foi pregado aos que estavam mortos, não aos que estão mortos. Por
isso a nota de rodapé da NVI diz que “essa pregação foi um acontecimento passado,
a pessoas que então viviam, mas já estavam mortas nos dias do autor da carta. Não
texto que eles citam é o que diz que após a morte vem o juízo (Hb 9:27), o qual é
159
ibid, p. 417.
160
BURDICK, Donald W. Bíblia de Estudo NVI (org. Kenneth Barker). São Paulo: Vida, 2003, p. 2134.
424
O que é o espírito? 425
Isso significa que a condição de um morto não pode ser alterada após a
morte, seja para sair do céu ou para deixar o inferno. Isso é corroborado pelos
muitos textos bíblicos que atestam com toda a clareza que é só nesta vida que
temos oportunidade de salvação. Paulo diz “eis aqui agora o tempo aceitável, eis
aqui agora o dia da salvação” (2Co 6:2). Por que “eis aqui” e “eis agora”? A razão é
simples: é só aqui e agora (ou seja, nesta vida) que temos oportunidade de salvação.
Quem rejeita a Cristo aqui não tem uma segunda chance após a morte, o que
Assim como Paulo, o autor de Hebreus pede que “encorajem-se uns aos
outros todos os dias, durante o tempo que se chama ‘hoje’, de modo que nenhum
de vocês seja endurecido pelo engano do pecado” (Hb 3:13). Por que “durante o
tempo que se chama ‘hoje’”? Porque amanhã (i.e, na vida póstuma) já não existe
essa oportunidade. Esses textos só fazem sentido sob a ótica de que a salvação é
uma oferta que se limita a esta vida, o que torna completamente inútil qualquer
evangelização após a morte. É por isso que Paulo diz que o evangelho tem sido
pregado a todos os que estão «debaixo do céu», e não aos “debaixo da terra” ou
“no além”:
todos os que estão debaixo do céu. Esse é o evangelho do qual eu, Paulo, me
tornei ministro” (Colossenses 1:23)
Será que Paulo não sabia que o evangelho havia sido pregado aos mortos
no inferno? É muito mais sensato concluir que ele sabia que os “mortos” que
425
O que é o espírito? 426
evangelho não é proclamado aos mortos, mas aos que habitam «debaixo do céu»,
expressão essa que sempre designa apenas pessoas vivas na terra, nunca os
espíritos dos mortos em uma outra dimensão (At 4:12; Gn 6:17; Êx 17:14; Dt 2:25,
A tentativa de encontrar em 1Pe 4:6 qualquer relação com 1Pe 3:19 também
palavra traduzida por “pregou” em 1Pe 3:19, kerusso, que significa «proclamar
abertamente algo que foi feito»161, enquanto em 1Pe 4:6 é usada euaggelizo, que
pregação do evangelho, coisa que não necessariamente ocorre com kerusso, que
2:21; Mc 1:45).
Isso, por si só, já prova que Pedro não podia estar falando dos mesmos
“espíritos em prisão” do capítulo anterior, já que estes dizem respeito aos que
viviam na época de Noé (1Pe 3:20), milhares de anos antes do evangelho ser trazido
ao mundo. Portanto, eles não podem ter sido evangelizados, que é o significado de
– coisa completamente inútil a quem está morto e cujo destino já está selado –, mas,
como vimos ao estudar 1Pe 3:19, Jesus não vai evangelizar os “espíritos em prisão”
161
#2784 da Concordância de Strong.
162
#2097 da Concordância de Strong.
426
O que é o espírito? 427
(os anjos que se rebelaram em Gn 6:1-4), mas proclamar sua vitória na cruz
(kerusso).
Além disso, note que, diferente de em 1Pe 3:19, não há nada em 1Pe 4:6 que
diga quem pregou foi Jesus. O texto apenas diz que o evangelho “foi pregado”, sem
especificar quem o pregou. Isso faz todo o sentido quando consideramos que o
evangelho foi pregado por múltiplos cristãos, razão por que Pedro preferiu usar o
indefinido aqui (enquanto em 1Pe 3:19 quem pregou foi especificamente uma
pessoa, Jesus).
especificamente os espíritos da época de Noé, não há nada em 1Pe 4:6 que sugira
“Eles acham estranho que vocês não se lancem com eles na mesma torrente
de imoralidade, e por isso os insultam. Contudo, eles terão que prestar contas
àquele que está pronto para julgar os vivos e os mortos. Por isso mesmo o
evangelho foi pregado também a mortos, para que eles, mesmo julgados no
Noé, pois os antediluvianos não insultavam os cristãos para os quais Pedro escrevia.
427
O que é o espírito? 428
outro, é evidente que Pedro não estava aludindo aos mesmos espíritos dos quais
falou em 3:19.
alguma de 1Pe 3:19 fala de “mortos”. E nem poderia, já que aqueles anjos não
julgamento. É por isso que o texto fala apenas de “espíritos”, termo que, como
vimos, nunca é usado na Bíblia para algum morto, mas é aplicado dúzias de vezes
em relação a anjos e demônios. Por outro lado, curiosamente, 1Pe 4:6 nada fala de
“espíritos”, mas apenas de “mortos”. Isso ajuda a reforçar o fato de que Pedro não
a tendência seria seguir o mesmo padrão (ou seja, falar de espíritos ou de mortos
em ambos os casos).
São os imortalistas que presumem que os “espíritos” de 1Pe 3:19 são uma
dualistas que um leitor original da carta não teria. Também não há nada em 1Pe 4:6
que sugira que esses mortos estão presos, tal como os espíritos em prisão de 1Pe
3:19. Por fim, mas não menos importante, observe ainda que Pedro não diz que eles
“vivem” (no presente, como seria de se esperar caso a intenção fosse dizer que
falava dos espíritos da época de Noé, mas dos ímpios de seus dias que foram
evangelizados, mas rejeitaram o evangelho mesmo assim. É por isso que Pedro diz
428
O que é o espírito? 429
que a razão do evangelho ter sido pregado aos mortos é porque eles terão que
prestar contas a Deus no dia do juízo, já que é justamente o fato deles terem sido
evangelizados que os tornava indesculpáveis perante Deus. E isso, como vimos, não
se deu após a morte – quando qualquer evangelização teria sido inútil –, mas
cristãos (que é a tônica da sua carta desde o primeiro capítulo), a despeito de ainda
estarem vivos ou de já terem morrido, serão julgados por Deus – e a base desse
julgamento é a recusa do evangelho que lhes foi proclamado. Tanto os ímpios que
arrepender, preferindo em vez disso atribulá-los com todo tipo de provação (1Pe
lemos:
429
O que é o espírito? 430
igreja dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus. Vocês chegaram
tem a resposta mais óbvia: não é uma igreja de dorminhocos, porque igreja na Bíblia
vida por mim. Sou grato a eles; não apenas eu, mas todas as igrejas dos
(Romanos 16:3-5)
Observe que Paulo nunca diz para saudar “quem se reúne na igreja”, mas “a
igreja que se reúne” na casa de alguém. Paulo diz que “se toda a igreja se reunir no
430
O que é o espírito? 431
indoutos ou incrédulos, não dirão, porventura, que estais loucos?” (1Co 14:23). Note
que a igreja não é o lugar onde as pessoas se reúnem, mas justamente quem se
“reuniram a igreja e relataram tudo o que Deus tinha feito por meio deles” (At 14:27).
O texto não diz que eles se reuniram “na” igreja, mas sim que eles reuniram “a”
igreja.
O que todos esses textos nos mostram é que a igreja está longe de ser o
nome dado ao templo ou à instituição religiosa, mas se refere aos próprios cristãos
que se reúnem como igreja (e não “na” igreja). Por isso há tantos textos dizendo que
“a igreja é o corpo de Cristo” (Cl 1:24; Ef 1:22-23, 5:23), e que “vocês são o corpo de
Cristo” (1Co 12:27). A conclusão é óbvia: nós somos a igreja. Essa igreja pode se
nada o fato de que o conceito de igreja se refere aos próprios cristãos verdadeiros,
relação ao templo, e desde então se consolidou de tal forma que é tarde demais
431
O que é o espírito? 432
Note que ele poderia facilmente ter dito “a igreja dos primogênitos que
estão nos céus”, como qualquer imortalista diria sem hesitar, mas, em vez disso, diz
que “seus nomes estão escritos nos céus”. O termo grego usado aqui é apographo,
que o autor não estava falando das pessoas em si, mas de seus nomes, que estão
escritos desde já no livro da vida (Ap 3:5, 13:8, 17:8, 20:15, 21:27, 22:19). Paulo pede
que a igreja ajude Evódia e Síntique porque “os seus nomes estão no livro da vida”
Em outras palavras, a pessoa não precisa morrer para ter seu nome escrito
no livro da vida: ela o tem escrito desde o momento em que se converte. Assim,
quando o autor de Hebreus se refere à “igreja dos primogênitos, cujos nomes estão
escritos no céu” (Hb 12:23), ele não estava falando de espíritos fora do corpo
verdadeiros cristãos que têm seus nomes atualmente escritos no livro da vida. Se o
propósito fosse dizer que eles já estavam no céu (o que se chocaria frontalmente
com o que ele havia dito poucos versos antes, em 11:13-16 e 39-40), ele não teria
aludido à inscrição dos salvos no livro da vida, mas aos próprios salvos numa
O final do verso é que aparenta ser mais difícil, pois ele fala dos «espíritos
vasta maioria dos cristãos atuais só pode se referir a alguém que já morreu. No
163
#583 da Concordância de Strong.
432
O que é o espírito? 433
Ele termina a carta aos gálatas dizendo “que a graça de nosso Senhor Jesus
Cristo seja com o espírito de vocês” (Gl 6:18), o mesmo que faz com os filipenses (Fp
4:23), com Timóteo (2Tm 4:22) e com Filemom (Fm 25). Em sua primeira carta aos
coríntios, ele ordena que “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” (1Co
14:32); na segunda, ele lamenta que “não tive sossego em meu espírito” (2Co 2:13),
e aos romanos ele exorta que “sejam fervorosos no espírito” (Rm 12:11).
estes versos seja uma entidade pessoal, é inegável que ele só aparece em relação a
pessoas vivas, nunca a gente morta. A Bíblia menciona dúzias de vezes pessoas
como Abraão, Isaque, Jacó, Moisés, Davi e outros gigantes do AT após a morte
deles, mas nunca se refere a eles como espíritos fora do corpo. Quando a palavra
relação a pessoas ainda vivas, visto que o espírito não é um ser pessoal que leve
vivos temos um espírito, mas quando morremos não temos nem somos espírito
algum.
Hb 12:23 não foge ao consenso bíblico unânime. Ele não fala de almas
mediante o sangue de Jesus. Chegar “aos espíritos dos justos aperfeiçoados” não é
433
O que é o espírito? 434
fazer um tour celestial e encontrar por ali as almas dos que já partiram, mas chegar
à mesma condição espiritual dos heróis da fé a respeito dos quais ele discorreu no
capítulo anterior – ou seja, chegar à estatura de varão perfeito (Ef 4:13). A prova
mais clara de que ele não falava de espíritos ambulantes no Paraíso é a própria
continuação do verso, que alude ao “sangue aspergido, que fala melhor do que o
sangrando no céu ou se deparar com o mesmo sangue de Abel que Caim derramou
sobre a terra, mas alcançar aquilo ao qual o conceito remete, isto é, a limpeza dos
pecados através do sangue que Jesus verteu por nós na cruz. Da mesma forma,
“chegar aos espíritos dos justos aperfeiçoados” não é encontrar no céu uma legião
Outro texto muitas vezes usado pelos imortalistas é o que Paulo diz:
terceiro céu. Se foi no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe. E sei que
esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei, mas Deus o sabe – foi
434
O que é o espírito? 435
ele fala aqui de si mesmo, primeiro porque diz “não sei” na primeira pessoa (e não
que “ele não sabe”), segundo porque Paulo falava das “visões e revelações do
Senhor” (2Co 12:1) que ele recebeu, e terceiro porque estava exaltando o seu
1), razão por que diz que “evito fazer isso para que ninguém pense a meu respeito
mais do que em mim vê ou de mim ouve” (2Co 12:6), ou seja, que evitava contar
essa experiência para que ninguém o superestimasse, o que não faria o menor
outra dimensão (algo que os espíritas e adeptos da Nova Era chamam de “projeção
dualismo entre corpo e alma, não o que o apóstolo tinha em mente. Um exemplo
simples de como Paulo podia ter outra concepção totalmente diferente do uso do
termo é que na única vez em que ele usa a expressão “fora do corpo” além deste
435
O que é o espírito? 436
Será que Paulo queria dizer que quando mentimos, xingamos, roubamos ou
matamos alguém é a nossa alma que abandona o corpo e pratica esses pecados, e
«fora do corpo» aqui não tem nada a ver com uma alma fora do corpo, assim como
não há alma alguma saindo do corpo em 2Co 12:2-4 (os próprios vocábulos “alma”
adicionais que exijam que o “fora do corpo” se refira a uma projeção astral, a simples
Um exemplo é quando alguém diz que fulano de tal está “fora de si”, e
não ser que seja ele que esteja “fora de si”!). Vemos isso acontecer com o próprio
Senhor Jesus, quando os seus familiares pensavam que ele havia enlouquecido:
“Quando seus familiares ouviram falar disso, saíram para apoderar-se dele, pois
diziam: ‘Ele está fora de si’” (Mc 3:21). Com certeza os seus familiares não estavam
preocupados se Jesus era um praticante da projeção astral, mas pensavam que ele
Jesus Cristo, entreguem esse homem a Satanás, para que o corpo seja
destruído, e seu espírito seja salvo no dia do Senhor” (1ª Coríntios 5:4-5)
436
O que é o espírito? 437
O que seria “estar com vocês em espírito”? Será que algum imortalista
imagina que enquanto os coríntios se reuniam na igreja a alma de Paulo estava ali
escondida em algum canto, bisbilhotando tudo o que eles faziam? Embora essa
pudesse ser a ideia que muitos são tentados a pensar pela ótica do platonismo, até
os teólogos imortalistas reconhecem que aqui Paulo só estava falando sobre dar a
sua aprovação àquilo que os coríntios fariam, e não que uma alma fantasmagórica
tinha qualquer relação com o pensamento do apóstolo, mesmo que hoje em dia as
pessoas influenciadas pelo dualismo tendam a interpretar desta forma. Assim como
o «fora do corpo» de 1Co 6:18, o «fora de si» de Mc 3:21 e o «estando eu com vocês
em espírito» de 1Co 5:4 em nada tinham a ver com uma alma abandonando o corpo,
a Bíblia pelas lentes do platonismo, corremos o risco de ver almas saindo do corpo
tido uma projeção astral, já que todos os que dizem ter passado por essa
experiência estavam bem certos de que estavam fora do corpo. A razão para isso é
alguém não se dar conta de que não está no corpo. É difícil imaginar alguém tendo
437
O que é o espírito? 438
certeza, seria algo impossível de não ser notado. Tais pessoas até mesmo dizem ver
o próprio corpo enquanto “voam” lá de cima, o que deixa menos dúvida ainda.
é porque o “fora do corpo” não tinha nada a ver com um fantasma deixando o
corpo, do contrário ele não teria dúvida alguma (a própria dúvida seria burra). Como
não se dar conta de que você não tem mais pernas, que se movimenta de um jeito
diferente, que “flutua” no ar, que não respira pelo nariz nem o vê à sua frente, que
sua visão é agora muito mais panorâmica, que não tem mais dedos nas mãos, que
não tem mais carne nem ossos e que perdeu toda a sensibilidade física? Que tipo
um estado imaterializado. Como veremos, a dúvida de Paulo não era se ele estava
no Paraíso fisicamente ou na forma de uma alma incorpórea, mas se ele estava ali
fisicamente, e por isso a dúvida). Para piorar, Tiago diz taxativamente que “o corpo
sem espírito está morto” (Tg 2:26). Portanto, se realmente o espírito de Paulo saiu
do corpo nesta ocasião, ele teria morrido em tal circunstância! Os imortalistas são
assim forçados a concluir que Paulo morreu ao ser arrebatado em espírito e depois
438
O que é o espírito? 439
menos importantes, como Tabita (At 9:37-41), Talita (Mc 5:35-42), Lázaro (Jo 11:14-
44) e Êutico (At 20:9-10). Não existe maior milagre que o milagre da ressurreição,
experiência, a Bíblia narraria sem hesitação. Mas nem mesmo Lucas, que narra
para dizer que foi ali que Paulo morreu, saiu do corpo, foi pro céu e ressuscitou:
O problema é que o texto não diz que os judeus mataram Paulo, mas sim
que eles pensaram que Paulo estivesse morto (justamente porque não estava!). Se
Paulo tivesse ressuscitado nesta ocasião, Lucas obviamente diria que ele morreu e
voltou à vida, o que seria muito útil ao propósito do livro, que era narrar o que de
mais extraordinário havia acontecido com os apóstolos, sobretudo com Paulo. Por
que o mesmo Lucas que narrou outras ressurreições no livro teria ocultado a do
personagem mais importante da sua obra? A única resposta é porque Paulo não
439
O que é o espírito? 440
multidão furiosa que teriam notado facilmente se o seu corpo tivesse desaparecido
do nada para ser teletransportado a outro lugar. Se Paulo tinha dúvidas se estava
no céu fisicamente ou não, não pode ter sido nesta ocasião, onde a resposta seria
fácil. Isso significa que ele não morreu, não ressuscitou e nem saiu do corpo em At
experiência não se deu entre uma morte e ressurreição, o que elimina as chances
do espírito de Paulo ter deixado o corpo, já que um corpo sem espírito é um corpo
Mas se não foi o espírito de Paulo que deixou o corpo, como deveríamos
mente é que o uso judaico de certas terminologias que nos soam familiares não
tiramos esses conceitos da filosofia grega, e não da Bíblia. Hoje, se ouvirmos alguém
dizer que esteve “fora do corpo”, o que imediatamente pensamos é que seu espírito
saiu do corpo, mas isso não significa que um judeu do primeiro século ao ouvir isso
4:3), que, como vimos pelo contexto, não está falando de uma alma deixando o
hebraico para se referir à morte da alma (Jn 4:8). A mesma coisa se aplica às
440
O que é o espírito? 441
expressões “perder a alma”, “salvar a alma” e “buscar a alma”, que, como vimos no
O mesmo pode ser dito a respeito da expressão “fora do corpo”, que para
um judeu não-helenizado como Paulo não tinha nada a ver com uma alma ou
espírito saindo do corpo como nos livros de Allan Kardec, mas com estar em certo
lugar numa visão em vez de fisicamente. Para os judeus, uma visão não era algo
“real”, embora cumprisse a um propósito designado por Deus. Vemos esse conceito
encaminha até a saída, mas este “não sabia que era real o que se fazia por meio do
Isso significa que as visões podiam parecer tão reais a ponto da pessoa não
saber se estava ali literalmente ou se estava ali apenas na visão, como Pedro, que
visão. É neste sentido que alguém vê algo “fora do corpo”: não porque uma parte
está corporalmente no lugar que ela se vê, já que tudo acontece apenas dentro da
sua cabeça.
que passaria “às visões e revelações do Senhor” (2Co 12:1), justamente porque ele
sabia da possibilidade daquilo ter se tratado apenas de uma visão (o que ainda
assim não tira a importância do feito, já que quem deu a visão foi Deus). Se Paulo
441
O que é o espírito? 442
Morumbi e ver o São Paulo jogar ali eu não posso dizer que tive uma “visão”, mas
Era essa a dúvida que Paulo tinha, já que visões na Bíblia podem soar tão
reais que a pessoa não tem certeza se é uma visão ou se realmente está ali. Mas em
como um sonho ultrarrealista que você pensa ser real enquanto está acontecendo,
no qual você se vê ali fisicamente, não como um espírito incorpóreo. Concorda com
Ezequiel, por exemplo, diz que “enquanto ele falava, o Espírito entrou em
mim e me pôs de pé, e ouvi aquele que me falava” (Ez 2:2). Não nos é dito que o
espírito do próprio profeta deixou o corpo nessa ocasião, mas sim que o Espírito de
Deus entrou nele a fim de lhe capacitar a receber de Deus a revelação que Ele o
livro:
442
O que é o espírito? 443
Note que não é o espírito do profeta que deixa o corpo, mas o Espírito de
Deus que arrebata os seus sentidos para que ele veja alguma coisa como se
estivesse ali. Neste último texto, por exemplo, é dito claramente se tratar de uma
visão (mar'eh), mas mesmo assim é usada uma linguagem como se o profeta
estivesse ali mesmo (“e levou-me aos que estavam exilados na Babilônia”). Em
lugar, seus sentidos foram arrebatados como se ele tivesse sido literalmente
conduzido a outra parte. É isso o que significa estar “fora do corpo” na linguagem
hebraica.
me vi tomado pelo Espírito, e diante de mim estava um trono no céu e nele estava
assentado alguém” (Ap 4:2). Ele estava «diante do trono no céu», não porque seu
espírito saiu do corpo, mas porque o Espírito do Senhor arrebatou os seus sentidos.
Caso contrário, ele jamais teria visto Jesus no céu na forma de um cordeiro
ensanguentado (Ap 5:6) com sete chifres e sete olhos (Ap 5:6), distorções típicas de
sentidos, uma visão; via um vaso, como um grande lençol que descia do céu e vinha
443
O que é o espírito? 444
até junto de mim” (At 11:5). A palavra aqui traduzida por “arrebatamento dos
de Strong:
mente, seja tal como faz um lunático ou como um homem que por
fixada nas coisas divinas que ele nada vê mas as formas e imagens
do AT e de Paulo em 1Co 12:2, com a diferença de que neste caso ele cogitava
ambas as hipóteses, a do arrebatamento dos sentidos (onde ele se via ali, mas não
Paraíso e ali estava corporalmente. O que não encontra qualquer respaldo bíblico é
vida ou na morte.
164
#1611 da Concordância de Strong.
444
O que é o espírito? 445
“Enquanto falavam sobre isso, o próprio Jesus apresentou-se entre eles e lhes
disse: ‘Paz seja com vocês!’. Eles ficaram assustados e com medo, pensando
que estavam vendo um espírito. Ele lhes disse: ‘Por que vocês estão
(Lucas 24:36-39)
que implicaria que os discípulos acreditavam que Jesus após a morte fosse um
espírito sem corpo. E a segunda está na resposta de Jesus, que diz que «um espírito
não tem carne nem ossos», em vez de dizer que “não existe espírito”. Começando
por essa última, Jesus obviamente não poderia ter respondido que “não existe
espírito”, porque estaria negando a existência dos anjos, dos demônios e do próprio
Deus, que são espíritos (no sentido de não possuírem um corpo físico como o
nosso).
conceito platônico de espírito não existe, mas isso não significa que não exista
445
O que é o espírito? 446
espírito em absoluto. Nem Deus, nem os anjos e nem os humanos têm o mesmo
tipo de espírito, mas todos têm em comum o fato desse espírito não ter carne nem
ossos. Quando dizemos que Deus é espírito, nos referimos ao fato dEle ser mente
pura; quando dizemos que os anjos são espíritos, nos referimos ao fato do seu
corpo não ser feito de uma matéria deste mundo, e quando dizemos que os
homens têm um espírito, nos referimos ao seu fôlego ou respiração. Em todos esses
casos, o espírito não tem carne nem ossos, então não há nada de errado com o que
Jesus disse.
O “problema” ficaria por conta da reação dos discípulos, que pensavam ver
um espírito. Isso quer dizer que eles pensavam que Jesus era uma alma fora do
corpo, como o fantasminha que os imortalistas imaginam? Com certeza não, já que
eles não teriam medo de ver Jesus, com ou sem um corpo físico. O que os discípulos
temiam não era Jesus, mas um espírito demoníaco que estivesse se passando por
Jesus. Quando Jesus mostra suas mãos feridas e pede que os discípulos o toquem,
ele não estava tentando convencê-los de que ele não era um fantasma (algo que
seria óbvio bastando olhar para ele), mas sim que um demônio não aparece
11:14).
fingindo ser a pessoa, mas não pode literalmente se materializar como os anjos
fazem, a ponto de ser tocado. Por isso Jesus pediu para ser tocado, o que era a prova
de que não se tratava de uma ilusão criada por um demônio para amedrontar ou
enganar os discípulos. Isso também explica por que a reação dos discípulos foi de
susto e medo (v. 37), uma reação nem um pouco compreensível se eles pensassem
446
O que é o espírito? 447
estar vendo Jesus mesmo. Como já dito, se eles achassem que fosse Jesus, pouco
importaria se ele estava ali como uma alma penada ou como um ser físico, o que
importa é que eles teriam Jesus. Além do mais, a própria dúvida seria injustificável,
uma vez que seria estupidamente fácil distinguir um fantasma sem corpo de um ser
físico.
12:43; Mc 1:26, 3:11; Lc 8:29, 9:42, etc), ou ao próprio Deus (Jo 4:24, 20:22; Mt 12:31;
Mc 1:12; Lc 2:26, etc). Nenhum ser humano jamais é chamado de “espírito” na Bíblia,
(Lc 23:52; Mt 27:52; Jo 19:40), “almas” (Ag 2:13; Nm 19:13; Lv 22:4) ou “cadáveres”
(Lv 11:28; Nm 14:32; Mt 24:28), mas nunca de espíritos. Uma vez que o espírito
que o espírito que os discípulos pensaram estar vendo não era o espírito de Jesus,
mas um espírito demoníaco – o que explica por que eles tiveram tanto medo.
447
O que é o espírito? 448
Então Pedro saiu do barco, andou sobre a água e foi na direção de Jesus.
Mas, quando reparou no vento, ficou com medo e, começando a afundar,
gritou: ‘Senhor, salva-me!’. Imediatamente Jesus estendeu a mão e o segurou.
casos eles são convencidos após tocar em Jesus. Apesar disso, nenhum imortalista
Jesus (pelo menos o suficiente para não acreditar nisso). Mesmo que os discípulos
moderno do termo (de um espírito humano perambulando por aí), o que era esse
uma aparição demoníaca em forma humana. Como eles ao longe ainda não sabiam
que era Jesus, imaginavam ser um espírito demoníaco andando sobre as águas na
batista John Gill (1967-1771), que não tinha nada de mortalista, assim comentou a
448
O que é o espírito? 449
seja um demônio”. Eles dizem muitas coisas de uma לילית, “Lilith”, que
apareciam em forma humana e levavam isso tão a sério que proibiam que um
amigo saudasse o outro à noite, dado o risco de ser um demônio disfarçado. Era
desse tipo de espírito ou “fantasma” que os discípulos tiveram medo nessas duas
ocorrências, não de uma alma penada como nos filmes de assombração. É por isso
que Pedro pediu para ir ao encontro de Jesus para confirmar que era ele mesmo,
pois tocá-lo seria a confirmação de que não se tratava de um espírito maligno como
165
GILL, John. “Commentary on Matthew 14:26”. The New John Gill Exposition of the Entire Bible (1999).
449
O que é o espírito? 450
de aparecer em forma humana ou mesmo angelical (2Co 11:14). Foi isso o que levou
• Considerações Finais
Nos capítulos anteriores, vimos que a alma é o corpo com todas as suas
aspecto físico em si. Nessa perspectiva, o que seria o espírito? Como vimos neste
capítulo, o espírito nada mais é que a respiração que dá vida ao corpo, o fôlego que
anima um boneco formado do barro. Com o espírito somos almas viventes, sem o
Não existe uma “parte espiritual” do homem que seja responsável por sua
razão e emoções e outra “parte física” que seja responsável por aquilo que é físico.
Em vez disso, o homem é uma unidade indivisível em que cada aspecto – físico ou
existindo como um indivíduo vivo. Isso é tão verdadeiro que os séculos de estudos
neurológicos até aqui só nos levaram a concluir aquilo que os holistas já sabiam há
450
De onde vem a consciência? 451
“quem somos” e “para onde vamos”. Nos tempos antigos, quando o cérebro ainda
espírito. Não porque houvesse de fato alguma prova ou evidência de qualquer alma
conhecimento científico disponível na época. Hoje, com a ciência cada vez mais
avançada e com os recentes estudos em neurologia, essa ideia primitiva é cada vez
Até William Lane Craig, embora imortalista por convicções filosóficas, admite
que
longo dos últimos cem anos, a maioria dos cientistas nessas áreas
451
De onde vem a consciência? 452
escárnio.166
foi o neuroanatomista alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), que descobriu que
todos os processos mentais ocorrem no cérebro, e há uma área específica para cada
um. Um século depois, em 1861, um famoso caso que confirmou essa relação foi
apresentado pelo anatomista francês Paul Broca (1824-1880), cujo paciente perdeu
a fala após uma lesão cerebral na área que hoje tem o seu nome, mas continuou
associados.
166
CRAIG, William Lane. Deus e a neurociência. Disponível em:
<https://pt.reasonablefaith.org/artigos/pergunta-da-semana/deus-e-a-neurociencia>. Acesso em:
17/01/2021.
452
De onde vem a consciência? 453
Em seu livro “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu”, Oliver
ponto de que cada parte da mente pode agora ser vista falhar quando
explosivos, que fez com que uma barra de ferro atravessasse o seu crânio. Apesar
167
ibid.
168
CAVE, Stephen. What science really says about the soul. Disponível em:
<https://www.skeptic.com/eskeptic/13-03-20/#feature>. Acesso em: 28/12/2021.
453
De onde vem a consciência? 454
Ele não podia mais ser contratado como operário; ele era
coisa a menos para fazer – uma coisa a menos para ela explicar. Tirou
aspecto da nossa mentalidade e personalidade, sem precisar apelar para uma alma
fantasmagórica e indetectável:
169
JOHNSON, David Kyle. Do souls exist? Disponível em: <https://philpapers.org/archive/JOHDSE.pdf>.
Acesso em: 04/01/2022.
454
De onde vem a consciência? 455
Ele foi preso, mas pediu uma ressonância do cérebro. E a ressonância detectou um
comportamento social, incluindo os impulsos sexuais. Assim que a cirurgia foi feita,
170
ibid.
455
De onde vem a consciência? 456
capacidades cognitivas foi uma das mais revolucionárias descobertas científicas dos
que essa alma imaterial tenha se mantido perfeitamente intacta e ilesa no acidente
passaram a gostar de insetos e a odiar música, ainda que a tal alma não tenha tido
Casos bem mais comuns são de pessoas que perdem a memória, temporária
supostamente são de atribuição de uma alma incorpórea que não pode ser afetada
memória caso a alma fosse atingida, não com um dano puramente físico.
tendência se inverteu. Quanto mais sabemos a respeito do cérebro, mais claro fica
que é ele o responsável por nossas funções mentais, não uma alma escondida em
171
LEWIS, David. Impulse: why we do what we do without knowing why we do it. Cambridge: Harvard
University Press, 2013, p. 198-204.
456
De onde vem a consciência? 457
algum lugar. Não só não temos mais a necessidade de apelar para uma alma
cérebro.
levaria justamente à conclusão oposta. Neste caso, a ciência teria descoberto que
atribuídas à alma terem outras explicações à luz da ciência prova que, se a alma
conhecimento científico sobre o cérebro para meter uma alma imortal ali, os
dizer que a alma está ali, mas não pode realizar suas funções por culpa do corpo
não possa existir uma alma. Um grande piloto de automóveis, quando o freio
quebra, não deixa de ter a ‘capacidade’ (subjetividade) em dirigir, só não tem
o ‘aparelho’ (concreto) para que a sua faculdade se expresse”
457
De onde vem a consciência? 458
não consegue dirigir sozinho, sem o aparelho que usa. Se a analogia prova alguma
coisa, é que a alma precisa de um corpo para expressar seus sentidos, da mesma
forma que um piloto precisa de um automóvel para dirigir de um lugar a outro. Uma
alma que sobrevive perfeitamente bem fora do corpo é como um piloto que dirige
piloto dirigisse por si só, sem um carro com ele. No fim das contas, o que eles
querem dizer é que o piloto tem problemas para dirigir quando o seu veículo está
Uma analogia mais conhecida, mas tão ruim quanto a do carro, é a da alma
televisão não muda o que está sendo transmitido, mas um dano cerebral muda o
que nós somos em essência, como ocorreu com Phineas Gage e com tantos outros.
Em outras palavras, para que a analogia estivesse certa, alguém que dá um soco na
Defeitos de aparelho podem apenas impedir que a imagem chegue, mas não
caso, para ser precisa, a analogia exigiria que o aparelho fosse dispensável, e que as
imagens fossem produzidas perfeitamente bem sem ele. Como comenta Stephen,
458
De onde vem a consciência? 459
imagem, mas uma vez que o aparelho é arruinado, o sinal pode criar imagens por
desses argumentos:
pensar que isso não é verdade. E sabemos isso agora, com 150 anos
sabe muito sobre isso. E o que está sendo pedido para que
172
CAVE, Stephen. What science really says about the soul. Disponível em:
<https://www.skeptic.com/eskeptic/13-03-20/#feature>. Acesso em: 28/12/2021.
459
De onde vem a consciência? 460
Como indaga Stephen, “se cada um de nós tem uma alma que nos permita
ver, pensar e sentir após a total destruição do corpo, por que, em casos de disfunção
documentados por neurocientistas, estas almas não nos permitem ver, pensar e
sentir quando apenas uma pequena porção do cérebro foi destruída?”174. Podemos
usar como exemplo a visão, que fica comprometida se os nervos ópticos do cérebro
forem danificados. “Se a alma pode ver quando cérebro e corpo deixam de
funcionar, por que, no caso de danos ao nervo óptico, ela não pode ver quando
reconhecia que sem o corpo a alma era privada de todos os sentidos, à exceção do
intelecto e da vontade, os únicos que para ele não dependiam dos órgãos físicos.
Ele escreve:
173
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Zhx7cJuBNmA>. Acesso em: 28/12/2021.
174
CAVE, Stephen. What science really says about the soul. Disponível em:
<https://www.skeptic.com/eskeptic/13-03-20/#feature>. Acesso em: 28/12/2021.
175
ibid.
460
De onde vem a consciência? 461
haver nenhum ato delas que se não exerça por órgão corpóreo.176
dependem do corpo, o que significa que não seria capaz de ver, ouvir, falar, cheirar
ou sentir, embora continue a pensar, uma vez que para ele essa era uma faculdade
própria da alma e independente do corpo. Se Aquino vivesse nos dias de hoje, com
recuaria também em relação a isso, pois hoje sabemos que o ato de pensar é tão
Cave,
também cessam, uma vez que o cérebro para. (...) De fato, evidências
176
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. “Prima Pars”. Questão 77, Art. 8.
461
De onde vem a consciência? 462
se por completo –, por que ela não pode fazê-lo quando o cérebro
explicar a relação entre corpo e mente (onde a mente sobrevive intacta fora do
corpo) não são apenas ridículas, mas também heréticas. Se a alma permanece ali
intacta, mas não pode fazer nada por culpa do corpo que está danificado, então o
problema foi Deus ter criado o corpo. Essa foi precisamente a conclusão dos
gnósticos, para os quais a alma espiritual era essencialmente boa e o corpo material
era essencialmente mau, criado por um demiurgo (um deus mau). Também era a
conclusão dos platônicos, que entendiam o corpo como a “prisão” da alma, que
justamente por terem em mente a mesma concepção que os imortalistas têm para
com a alma. Eles são apenas conclusões lógicas e bastante elementares do ponto
de vista de quem realmente pensa que a relação entre corpo e alma é como a de
completamente imune aos danos físicos, a razão por que sofremos com deficiências
alma manifestar a perfeição que possui. É por isso que o interesse principal dos
pagãos estava em abandonar o corpo para assumir um estado perfeito fora dele.
Se o piloto consegue pilotar bem melhor sem o seu carro (porque o carro
supostamente só o prejudicaria pelos freios falhos que impedem que o piloto dirija
177
CAVE, Stephen. What science really says about the soul. Disponível em:
<https://www.skeptic.com/eskeptic/13-03-20/#feature>. Acesso em: 28/12/2021.
462
De onde vem a consciência? 463
perfeitamente), então por que ele usa o carro? Se alguém poderia assistir TV bem
melhor sem a televisão (que está sujeita a falhas técnicas e a problemas de sinal),
por que assiste num aparelho televisivo? Essas perguntas nos parecem ridículas
pelo simples fato de sabermos ser impossível dirigir um carro sem o carro, ou assistir
TV sem a TV. Mas se isso fosse possível, a única conclusão que nos restaria é a de
que tanto o carro como o aparelho de TV são inúteis, e que sem eles tudo
(que prejudica sua memória e aptidões cognitivas), por que raios Deus nos criou
com corpo? É justamente por isso que os antigos hereges gnósticos criam que o
deus que criou os corpos não era o Deus de Jesus Cristo, mas um falso deus, tido
fardo, uma carcaça que impede a alma de ser livre, que nos confina a uma matéria
frágil e imperfeita, que foi criado apenas para nos trazer problemas, e que obstrui
de dirigir bem (o que ele supostamente conseguiria fazer se não precisasse estar
num automóvel).
tudo o que a Bíblia ensina a respeito do corpo como sendo não o cárcere da alma,
mas o “templo do Espírito Santo” (1Co 6:19) que devemos guardar irrepreensível
até a vinda de Jesus (1Ts 5:23). É com o nosso corpo que glorificamos a Deus (1Co
6:20), e ele que devemos manter “cheio de luz” (Lc 11:34). A própria metáfora da
Igreja é com o corpo (e não com a alma) de Cristo (1Co 12:27), assim como a
metáfora da ceia, onde comemos o “corpo” (e não a “alma”) de Jesus (Mc 14:22). É
463
De onde vem a consciência? 464
justamente porque o corpo não é mau que Deus o ressuscita no último dia (Jo 5:28-
29; Mt 22:31; 1Co 15:13, 42), e justamente por isso não é possível viver sem ele (1Co
15:18-19, 32).
corpo e mente está longe de ser como a da estação e do aparelho de TV, mas é mais
parecido com uma caixa de música, cujo som não vem de qualquer outro lugar
som não continua tocando por si só, mas cessa de tocar até que alguém concerte a
caixa. Assim também é com a nossa mente, que não transcende o corpo na morte,
mas cessa de existir até que Deus ressuscite o corpo. É por isso que o salmista disse
que “na morte os pensamentos perecem” (Sl 146:4), e não que eles são conservados
essência não só contraria tudo de bíblico e científico que conhecemos, mas também
abre uma margem enorme para ideias absurdas como a da “identidade de gênero”,
mulher por “se identificar” assim internamente, o que parte do pressuposto de que
os aspectos biológicos não são a única coisa que conta (como se o homem em sua
Você certamente já deve ter ouvido alguém falar que tal pessoa “é uma
não é o corpo, mas uma alma presa no corpo, que constitui a base para a ideia de
464
De onde vem a consciência? 465
que um homem biológico pode ser uma mulher de fato, já que o que importa não
é o corpo, mas a alma dentro dele. E se o corpo é apenas uma “casca” exterior
desprezível e sem valor, ele não nos diz nada sobre a verdadeira essência de uma
pessoa.
Mas se tudo o que constitui o homem é biológico, qualquer coisa que fuja
holismo bíblico, um homem alegar ser uma mulher por “se identificar” como uma
mulher está no mesmo nível de alguém alegar ser um lobo por “se identificar” como
um. Ambos contradizem a biologia que nos define, na ausência total de qualquer
quando o corpo não importa que teses como a da identidade de gênero passam a
ciência e da biologia.
responsável por nosso estado psicológico, nós não seríamos tão facilmente
doença. No momento em que escrevo esta parte do livro, acabo de sair de uma crise
de rinite que me deixou espirrando sem parar por dois dias. Desnecessário dizer
comumente atribuídos à alma (que não sofreu doença alguma nem foi afetada de
fortemente o nosso comportamento, apesar de não ser a nossa alma imaterial que
esteja com fome, sono ou frio (mas mesmo assim é apontada como a responsável
465
De onde vem a consciência? 466
Esses exemplos simples nos mostram como corpo e mente não são dois
impossível que haja consciência fora do corpo. E assim como a mente precisa do
cadáver.
É por isso que não existe mente ativa à parte do corpo ou corpo ativo à parte
oposição, mas de unidade. Não é dualista, mas holista. É a ciência mais uma vez
corroborando aquilo que a Bíblia já dizia desde o Gênesis, quando retrata a criação
do homem (Gn 2:7). Curiosamente, uma das mais recentes invenções que reforçam
a interdependência entre corpo e mente é a nova tecnologia criada por Elon Musk,
“O poder da mente”, neste caso, não é uma alma metafísica, mas um simples
que até mesmo um macaco jogasse Pong apenas pensando nos movimentos178. O
macaco foi recentemente desafiado para uma partida por Nathan Copeland, que
178
PAIVA, Vitor. Macaco consegue jogar game utilizando somente o pensamento através de chip de Elon
Musk. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2021/04/macaco-consegue-jogar-game-
utilizando-somente-o-pensamento-atraves-de-chip-de-elon-musk>. Acesso em: 01/01/2022.
466
De onde vem a consciência? 467
em uma das mãos. Copeland também tem um implante neural, que usa para jogar
mesmo desenhar no Paint. Para gerar o efeito de um clique no mouse, por exemplo,
ente espiritual que a move, como pode um chip físico prescrutar os pensamentos
de uma alma imaterial? Por acaso alguém conseguiria através de um chip identificar
precisamente o que pensa o Espírito Santo, um ente espiritual que realmente habita
em nossos corpos (1Co 6:19)? A simples questão soa ridícula, porque é evidente
pertencem ao cérebro, não a uma alma metafísica. É tão simples quanto parece. À
luz da ciência moderna, perguntar “de onde vem a consciência” é tão obscurantista
ajudaram a derrubar o geocentrismo, antes defendido pela Igreja com tanto afinco
179
OLHAR DIGITAL. Homem com chip no cérebro desafia macaco da Neuralink para duelo de game.
Disponível em: <https://tecnologia.ig.com.br/olhar-digital/2021-05-17/homem-com-chip-no-cerebro-
desafia-macaco-da-neuralink-para-duelo-de-game.html>. Acesso em: 01/01/2022.
467
De onde vem a consciência? 468
equivalente e até mesmo superior ao de muitos humanos, mesmo sem possuir alma
amigo do homem: o gato cachorro. Os cientistas têm cada vez mais se surpreendido
doutor em psicologia Stanley Coren, autor do livro “A Inteligência dos Cães”, afirma
anos e meio, embora os mais brilhantes possam ter uma idade mental equivalente
assim como um bebê, será capaz de entender que o objeto está na região apontada,
seja capaz de entender tudo o que falamos, eles podem aprender uma quantidade
180
GRAY, Richard. Dogs as intelligent as two-year-old children. Disponível em:
<https://www.telegraph.co.uk/news/science/science-news/5994583/Dogs-as-intelligent-as-two-year-
old-children.html>. Acesso em: 29/12/2021.
468
De onde vem a consciência? 469
que tantos cães conseguem ser treinados para fazer coisas incríveis, e até mesmo
que se mostrou capaz de decorar 200 palavras, ainda provou que cães
A ciência também provou que cães são capazes de criar vínculos emocionais
reais com humanos (ou seja, que não é à toa que o seu dog parece estar tão feliz
quando te vê voltar para casa). Certa pesquisa mostrou que quando um cão
como uma criança pequena fica quando a mãe dá mais atenção a outro filho182.
181
BERNARDO, Kaluan. 5 descobertas sobre a inteligência do seu cachorro. Disponível em:
<https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/02/16/5-descobertas-sobre-a-intelig%C3%AAncia-do-
seu-cachorro>. Acesso em: 29/12/2021.
182
ibid.
469
De onde vem a consciência? 470
ferramentas foi muitas vezes relatado por macacos em cativeiro, e seu uso inclui a
até mesmo armas. Uma pesquisa de 2007 mostrou que os chimpanzés da savana
de Fongoli afiam gravetos para usar como lanças durante a caça, considerada a
noturna no processo”184.
chegar à idade mental de uma criança de 4 anos185. Ele é uma das poucas espécies
visual. Neste teste, o animal é anestesiado e então marcado (com uma pintura ou
adesivo) em uma área do corpo que ele não pode ver. Quando o animal se recupera
183
ROACH, J. “Chimps Use ‘Spears’ to Hunt Mammals, Study Says”. National Geographic News, 22 fev.
2007.
184
JAWER, Michael. Do only humans have souls or do animals possess them too? Disponível em:
<https://www.humansandnature.org/do-only-humans-have-souls-or-do-animals-possess-them-too>.
Acesso em: 31/12/2021.
185
RIBEIRO, Krukemberghe Divino Kirk da Fonseca. Semelhanças entre o chimpanzé e o homem. Disponível
em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/biologia/semelhancas-entre-chimpanze-homem.htm>.
470 Acesso
em: 30/12/2021.
De onde vem a consciência? 471
considerado uma indicação de que ele percebe a imagem refletida como uma
São também uma das únicas espécies capazes de se comunicar por meios
conhecidos pelo homem. O que se sabe é que muitos desses sons significam coisas
levar em conta o contexto para determinar o significado, algo que há pouco tempo
era considerado uma habilidade exclusiva dos humanos186. Eles também têm uma
excitação, de agressão ou ataque iminente, para convidar pra brincar e até mesmo
compreende mais de 3 mil palavras faladas – mais do que muitos brasileiros que
passam anos em escolas de inglês. Kanzi foi submetido a uma variedade de testes
para avaliar sua compreensão da fala. Em um desses testes, ele ouviu 660 palavras
186
WEBB, Jonathan. Bonobo squeaks hint at earlier speech evolution. Disponível em:
<https://www.bbc.com/news/science-environment-33731444>. Acesso em: 29/12/2021.
187
Disponível em:
<http://web.archive.org/web/20060502101116/http://www.colszoo.org/animalareas/aforest/bonobo.h
tml>. Acesso em: 29/12/2021.
471
De onde vem a consciência? 472
em fones de ouvido e tinha que indicar o objeto real, a foto ou o lexigrama que a
que indicava, embora em tom muito agudo e com distorções, que era o mais
faladas individualmente e como elas são usadas em novas frases, e cita como
exemplo a ocasião em que pediu para ele buscar a cenoura no microondas. Kanzi
foi direto para o microondas, e ignorou completamente a cenoura que estava mais
2 anos a tarefa de “alimentar sua bola com um pouco de tomate”. A criança ficou
sem saber o que fazer, mas Kanzi imediatamente usou uma abóbora de Halloween
lexigramas, que ele receberia iogurte. Ela pediu que ele comunicasse essa
informação à sua irmã Panbanisha, que estava em uma sala separada. Kanzi fez
188
SAVAGE-RUMBAUGH, Sue. “Language Comprehension in Ape and Child”. Monographs of the Society
for Research in Child Development (1993). Disponível em:
<https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/summary?doi=10.1.1.473.9931>. Acesso em: 29/12/2021.
189
WISE, Steven M. “Why Animals Deserve Legal Status”. In: “Animals Deserve Legal Rights”. Animal Rights
(ed. Shasta Gaughen). San Diego: Greenhaven Press, 2005.
472
De onde vem a consciência? 473
algumas vocalizações que sua irmã pôde ouvir, e ela apontou para o lexigrama do
galhos para fazer uma fogueira, acendeu-a com os fósforos que recebeu e torrou a
televisão, entendendo a lógica do jogo e jogando melhor do que este que vos
escreve193.
O repórter e escritor Paul Raffaele registrou o encontro que teve com Kanzi,
em 2006:
190
RAFFAELE, Paul. Speaking Bonobo. Disponível em: <https://www.smithsonianmag.com/science-
nature/speaking-bonobo-134931541>. Acesso em: 29/12/2021.
191
SAVAGE-RUMBAUGH, Sue. Kanzi: the ape at the brink of the human mind. New York: Wiley, 1994, p.
201.
192
THE TELEGRAPH. Amazing photos of Kanzi the bonobo lighting a fire and cooking a meal. Disponível
em: <https://www.telegraph.co.uk/news/picturegalleries/howaboutthat/8985122/Amazing-photos-of-
Kanzi-the-bonobo-lighting-a-fire-and-cooking-a-meal.html>. Acesso em: 29/12/2021.
193
Programa “Champions of the Wild”. Temporada 4734, episódio 3. Exibido em: 30/10/2000. Um outro
exemplo dele jogando Pac-Man pode ser visto em: <https://www.youtube.com/watch?v=Rh8gfIcjQNY>.
Acesso em: 29/12/2021.
De onde vem a consciência? 474
“Kanzi diz que sabe que você não os está ameaçando”, Savage-
para ele, em uma sala nos fundos, para que os outros não ficassem
gorila Koko, capaz de conversar com humanos por linguagem de sinais. Koko,
falecida em 2018 aos 46 anos, entendia 2.000 palavras do inglês falado e possuía
criados pela própria gorila, combinando outros gestos. Sua instrutora e cuidadora,
Francine Patterson, disse que ninguém ensinou a Koko a palavra “anel”, mas a
“água”197.
194
RAFFAELE, Paul. Speaking Bonobo. Disponível em: <https://www.smithsonianmag.com/science-
nature/speaking-bonobo-134931541>. Acesso em: 29/12/2021.
195
HAVILAND, W; PRINS, H; WALRATH, D; MCBRIDE, B. The Essence of Anthropology. Boston: Cengage
Learning, 2012, p. 178.
196
Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20090602082734/http://www.koko.org/friends/research.koko.html>.
Acesso em: 29/12/2021.
197
GARATTONI, Bruno; LACERDA, Ricardo; PUJOL, 474
Leonardo. Koko, a gorila que fala. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ideias/koko-a-gorila-que-fala>. Acesso em: 30/12/2021.
De onde vem a consciência? 475
conceitos abstratos como “bom” e “falso”. Embora ela não usasse gramática ou
sintaxe e seu vocabulário não excedesse o de uma criança humana, ela pontuou
lento, mas não deficiente198. Quando estava com dor de dente, a própria gorila
comunicou a dor por linguagem de sinais, indicando ainda o nível da dor (9) numa
chamou de “All Ball” (“todo bola”, provavelmente devido ao fato de não ter cauda)
e cuidou como se fosse seu bebê. Em dezembro daquele ano, o gato foi atropelado
e morto. Quando Koko soube disso, assinalou “gato”, “chora”, “eu triste” e “amor da
Koko”, emitindo sons semelhantes ao choro humano e levando todos a chorar com
ela. Koko então disse: “Durma, gato”, cruzando as mãos e colocando-as ao lado da
Desnecessário dizer que Koko passou no teste do espelho, que a maioria dos
gorilas falham. Acredita-se que a única razão por que ela não falava de fato é
porque os gorilas têm a laringe grande demais para emitir sons humanos, razão por
que só conseguem produzir urros. Mas isso não significa que eles não tenham nada
198
Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20180712174911/http://www.koko.org/sites/default/files/root/pdfs/teo
k_book.pdf>. Acesso em: 29/12/2021.
199
BBC NEWS. 'Talking' gorilla demands dentist. Disponível em:
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/3548246.stm>. Acesso em: 29/12/2021.
200
MCGRAW, Carol. Gorilla’s Pet: Koko Mourns Kitten’s Death. Disponível em:
475
<https://www.latimes.com/archives/la-xpm-1985-01-10-mn-9038-story.html>. Acesso em: 29/12/2021.
De onde vem a consciência? 476
102 gestos que ninguém lhes ensinou, o que indica que eles têm o seu próprio
idioma de sinais201.
difusão para analisar os circuitos neurais dos bonobos comprovou que eles se
importam com o sofrimento dos outros e são capazes de controlar seus impulsos
comportamento pró-social.202
201
GARATTONI, Bruno; LACERDA, Ricardo; PUJOL, Leonardo. Koko, a gorila que fala. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ideias/koko-a-gorila-que-fala>. Acesso em: 30/12/2021.
202
RILLING, James K; SCHOLZ, Jan; PREUSS, Todd M; GLASSER, Matthew F; ERRANGI, Bhargav K; BEHRENS,
Timothy E. Differences between chimpanzees and bonobos in neural systems supporting social cognition.
Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3324566>. Acesso em: 30/12/2021.
476
De onde vem a consciência? 477
Gorilas também são capazes de sentir empatia real por humanos. Em 1996,
desceu dos seus galhos, chegou perto da criança e, como uma mãe protetora,
segurou-a no colo e a afastou dos demais gorilas. Ela levou a criança até a porta de
acesso aos cuidadores; parou e começou a embalar a criança até que ouviu os
Quando Kwibi ficou adulto para cuidar de si mesmo, ele foi libertado na natureza.
Cinco anos mais tarde, Damian decidiu encontrá-lo na selva densa, algo perigoso,
já que Kwibi era agora um gorila selvagem. Mas Damian estava determinado a vê-
lo. Ele entrou em um barco e começou sua jornada para encontrar seu velho amigo.
Do barco, ele chamava por ele, na esperança de que Kwibi reconhecesse a sua voz.
Horas mais tarde, Kwibi aparece à beira do rio. Ele abraça Damian, o
ir. Após muito tempo, Damian retorna ao barco para seguir de volta ao
manhã seguinte, Damian foi tomar banho no rio, e lá estava Kwibi, esperando-o
como que para dizer um último adeus ao amigo que cuidou dele quando bebê204.
203
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BDU5iK7xqPU>. Acesso em: 31/12/2021.
204
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bKFFTV1FMik>. Acesso em: 30/12/2021.
477
De onde vem a consciência? 478
criada pelo biólogo holandês Jan van Hooff. Aos 59 anos e sofrendo com uma
doença terminal, Mama estava tão infeliz que recusava até a comida. Mama
conhecia Hooff desde 1972, mas desde que se aposentou, em 2001, eles
praticamente perderam contato. Até que em 2016 ele recebeu a notícia de que ela
estava no leito de morte, e decidiu fazer uma última visita mesmo que ela nem se
lembrasse dele. Mas seu encontro com Mama superou todas as expectativas, e
emocionou todos os que assistiam a cena. Quando Mama reconheceu que era
Hooff que ali estava, seu semblante caído mudou completamente, abriu um largo
sorriso e o abraçou por longos minutos, ainda com o sorriso no rosto. Hooff
Há até mesmo o caso do “pinguim brasileiro” Dim Dim, assim chamado pelo
pescador João, que vive em Ilha Grande/RJ. João salvou o pinguim quando o
encontrou caído na areia próximo à sua casa, quase morto e coberto de petróleo.
João o levou para dentro, deu banho nele, o alimentou com peixes e o soltou no
mar. Mas curiosamente, no dia seguinte, ali estava o pinguim, de volta à sua casa.
Todos os anos, desde 2011, Dim Dim nada até a Argentina, onde se reproduz, e
depois volta sozinho por mais de 8 mil km para visitar o homem que salvou sua vida.
João é a única pessoa que Dim Dim deixa tocá-lo, e João o considera o filho que ele
nunca teve206.
205
Confira esse encontro em: <https://www.youtube.com/watch?v=7D-Rg1YhGNk>. Acesso em:
30/12/2021.
206
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_OEl7YAUvKI>. Acesso em: 30/12/2021.
478
De onde vem a consciência? 479
pescadores:
quando a baleia percebeu que estava livre. Em vez de sair de cena, ela
círculos”208.
citar nos mostram é que o ser humano está longe de ser a única criatura com
207
WAAL, Franciscus Bernardus Maria de. The Age of Empathy: Nature's Lessons for a Kinder Society. New
York: Three Rivers Press, 2010.
208
JAWER, Michael. Do only humans have souls or do animals possess them too? Disponível em:
<https://www.humansandnature.org/do-only-humans-have-souls-or-do-animals-possess-them-too>.
Acesso em: 31/12/2021.
479
De onde vem a consciência? 480
Mas se o ser humano não é a única criatura com inteligência, a teoria de que
somos inteligentes porque temos alma, mas há animais que são mais inteligentes
que uma criança pequena ou um adulto com deficiência, isso nos levaria à inevitável
conclusão de que os bebês nascem sem alma, e só ganham uma depois que
crescem. Pior do que isso, nos levaria à abominável tese de que os deficientes
mentais têm defeito na alma – como se Deus lhes tivesse dado uma alma defeituosa
209
Disponível em: <http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf>. Acesso
em: 30/12/2021.
480
De onde vem a consciência? 481
prova que a inteligência não está ligada à alma, mas ao cérebro. A razão que nos
faz ser mais racionais do que os bichos, e o que faz um bicho ser mais racional do
que outro, não reside num ente fantasmagórico como a alma, mas é perfeitamente
explicável pelo tamanho e conexões do cérebro. É por isso que há tão pouca
diferença cognitiva entre uma criança de dois anos e um bonobo da mesma idade,
diferença essa que se torna cada vez maior na medida em que os anos vão
passando210.
210
WOBBER, Victoria; HERRMANN, Esther; HARE, Brian; WRANGHAM, Richard; TOMASELLO, Michael.
Differences in the early cognitive development of children and great apes. Disponível em:
<https://www.eva.mpg.de/documents/Wiley-
Blackwell/Wobber_Differences_DevPsychobio_2014_1837160.pdf>. Acesso em: 30/12/2021.
211
OLIVETO, Paloma. Plasticidade do cérebro humano pode explicar diferença entre homens e macacos.
Disponível em:
<https://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2012/02/07/interna_tecnologia,276511/plasticidade-
481
do-cerebro-humano-pode-explicar-diferenca-entre-homens-e-macacos.shtml>. Acesso em: 30/12/2021.
De onde vem a consciência? 482
nascem, em até um ano. Por isso, achamos que esse é um dos fortes
Califórnia, Ajit Varki, assegura que “as diferenças entre o cérebro de um homem e
212
ibid.
213
ibid.
214
ibid.
482
De onde vem a consciência? 483
desenvolvendo as sinapses depois do primeiro ano, o que faz com que o nosso
cognitiva de uma criança da mesma idade, mas essa criança quatro anos mais tarde
esteja muito mais avançada do que aquele chimpanzé, cuja evolução mental
praticamente estagnou desde então. Tudo tem a ver com o cérebro, não com uma
cérebro dos animais, e então a resposta para o desnível cognitivo entre uma espécie
muito maior que a deles, o que nos faz particularmente inteligentes. É por isso que
nascemos iguais a eles, mas evoluímos mais do que eles. Não porque nossa alma
nasce “burra” e depois fica inteligente, mas porque nosso cérebro evolui mais do
215
ibid.
483
De onde vem a consciência? 484
Não é difícil observar que um cachorro é mais esperto que um pernilongo, porque,
e com mais sinapses que o do outro. Note que a diferença entre cachorros e
pernilongos é, num nível maior ou menor, a mesma diferença entre a raça humana
e o reino animal como um todo. Somos mais inteligentes que eles porque temos
Assim, dizer que a alma é o que nos faz mais inteligentes que os animais é
tão estúpido quanto dizer que a alma é o que faz um animal mais inteligente do
que outro, quando toda a explicação lógica e simples recai sobre o cérebro de cada
sem cérebro, como as esponjas-do-mar), e nem por isso alguém diria que o
não.
que dizer que toda a diferença cerebral que explica perfeitamente bem a variação
no grau de intelecto dos seres vivos não passa de pura coincidência, quando o que
que está ali mesmo que ninguém o veja. Assim, toda a explicação científica que
superstição que não pode ser de modo algum detectada, investigada ou colocada
484
De onde vem a consciência? 485
suas funções, tinham dificuldades em associar a alma à mente quando notavam que
com a lógica do sistema que ele mesmo criou, matéria e mente nunca
parecem ser capazes de expressar amor pelo dono (os gatos são um
caso à parte).216
216
BYNUM, William. Uma Breve História da Ciência. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 75.
485
De onde vem a consciência? 486
O objetivo aqui não é negar que o ser humano é de certa forma único, nem
Nós não somos singulares porque Deus decidiu colocar em nós uma alma
fantasmagórica, mas porque Ele quis que nós fôssemos os únicos seres com
eles não são capazes de provar a existência da alma e nem mesmo de refutar os
argumentos científicos em contrário, o que lhes resta é apelar para a filosofia. Uma
permanece a mesma? Isso supostamente provaria que o nosso “verdadeiro eu” não
pode ser um amontoado de células, mas precisa ser algo indetectável e não-físico
O que significa ser “a mesma coisa ou pessoa” que eu era antes? Bem,
Então, o que seria “mesma”? Talvez seja a duração das partes que me
486
De onde vem a consciência? 487
cada sete anos (em média). Portanto, parece que o fato de eu perdurar
só faz sentido se cada um de nós for uma entidade sem partes, que
Por mais bem formulado que o argumento filosófico pareça ser, ele é uma
mesmo que dizer que alguém que troca aos poucos todas as telhas do telhado não
reconhecesse mais aquilo como o seu telhado. É curioso notar que nenhum deles
acha que seu pet de estimação vira “outro” animal só porque as suas células
também são substituídas – e no caso deles, não haveria nem mesmo a tal alma
Mas Craig não chega à conclusão de que os animais também são “entidades
sem partes”, e nem que eles deixam de ser o mesmo animal ao longo da vida (uma
filosofia em um debate que deveria ser bíblico e científico: a filosofia não nos dá
217
CRAIG, William Lane. Deus e a neurociência. Disponível em:
<https://pt.reasonablefaith.org/artigos/pergunta-da-semana/deus-e-a-neurociencia>. Acesso em:
03/03/2022.
487
De onde vem a consciência? 488
do São Paulo foram substituídos por outros em algum momento nos últimos dez
anos, mas nem por isso não é mais o São Paulo e virou outra coisa. Nem mesmo
são trocados a identidade se perde, pois ela continua sendo construída ao longo de
todo o processo.
É sempre preciso lembrar que, assim como a visão é diferente do olho apesar
de ser produzida por ele, a mente difere do cérebro, embora seja produzida por ele.
É essa mente (ou consciência) que podemos chamar de “eu” (o que inclui nossa
substituição de todas as células das nossas pernas não nos impede de continuar
todas as células dos nossos olhos não nos impede de continuar enxergando
488
De onde vem a consciência? 489
que a consciência continua ali – e ela não precisa que todas as células permaneçam
nós não nos tornamos “outra” pessoa quando nossas células são totalmente
trocadas, mas a mesma pessoa (i.e, a mesma mente) com células novas. Nada disso
indetectável.
Creditar nossa consciência à alma pelo simples fato de que nossas células
pelo simples fato de que as células do olho também mudam. Qualquer pessoa com
a mudança das células em nada altera o fato de enxergarmos pelos olhos, nossa
precise atualizar suas células. E assim como a visão é uma só, a despeito de ser
produzida por algo físico (o olho), a consciência também é uma só, a despeito de
Pense por um momento que a alma imaterial não exista (o que deve ser
filosoficamente falando. Isso serve para nos mostrar que discussões filosóficas
podem ter seu espaço, mas são completamente inúteis para determinar uma
489
De onde vem a consciência? 490
verdade objetiva. Ao invés de nos dar respostas, ela só nos dá perguntas, que às
vezes são respondidas da forma mais fácil e preguiçosa por mera conveniência –
como se por não sabermos exatamente no que consiste o “eu”, se deva deduzir a
Como vimos, “ser a mesma pessoa” não é “ser a mesma alma”, mas “ter o
mesmo fluxo de consciência”, mesmo que esse fluxo venha de células que estejam
simplesmente “não sabemos”. Talvez a própria concepção do “eu” seja uma ideia
abstrata que criamos tentando dar resposta a tudo. Talvez o “eu” nada mais seja que
De todo modo, seja qual for a resposta, isso não é algo que deva servir de
pretexto para inventar a existência de uma alma na falta de respostas mais certas,
televisão certamente seria tentado a atribuir tal coisa à bruxaria, não por haver de
fato alguma prova concreta de que bruxaria é real, mas por ser ignorante a respeito
uma alma metafísica rejeitada tanto pela ciência quanto pela Escritura, que são as
490
De onde vem a consciência? 491
de que bruxaria é real, e não que a própria bruxaria tenha sido provada. Em outras
se fosse real explicaria como alguém em outro lugar aparece na pequena tela do
do pressuposto de que a alma existe e que ela é uma boa resposta à problemática
Ele não tem realmente uma prova da alma mais do que o católico medieval
tem da bruxaria, mas só uma resposta fácil que aparentemente cobre uma lacuna
do conhecimento, mas que ignora outras mil hipóteses que podem não ter sido
além de ignorar todas as provas do contrário. É por isso que a filosofia não constitui
realmente uma “prova” de coisa alguma (como a ciência ou a Bíblia para quem crê);
dia a Bíblia, a ciência, a arqueologia e outras fontes que trabalham com a realidade
que porcos voam, e sustente essa posição “filosoficamente”. Mesmo que você não
tenha como refutá-lo no campo das abstrações filosóficas, que valor teria essa
realidade concreta? Tudo o que você teria a lhe dizer é “cale a boca e escute a
491
De onde vem a consciência? 492
ciência”. Posições tolas que contradigam a ciência e a Bíblia não deveriam ser
esteja de que a sua filosofia está certa dentro do seu entendimento (que é
devem ser descartadas a priori de qualquer problematização filosófica, pois não faz
sentido conjecturar filosoficamente aquilo que já foi provado falso nos campos de
prova que a alma existe, no máximo provaria que não sabemos ao certo a definição
do “eu”, que também varia de pessoa a pessoa. Mesmo se tivéssemos sido criados
existiriam, e certamente não faltaria quem propusesse uma “alma da alma” como a
dentro dela que fosse a responsável por gerar a consciência. Onde há uma lacuna,
conhecimento científico.
imortalista argumenta:
492
De onde vem a consciência? 493
probabilística.218
O problema com esse argumento é que ele inverte causa e efeito. Do fato da
nossa consciência ser formada pelas sinapses entre os neurônios não decorre que
os neurônios em si (ou cada neurônio individualmente) tome as decisões por si. Essa
é uma compreensão completamente errada e até mesmo infantil do que vem a ser
a consciência. Em vez disso, o certo a ser dito é que as sinapses propiciam um estado
mental de autoconsciência, e não que elas próprias sejam este estado. É como um
bebê, que é formado pela união entre o espermatozoide e o óvulo, mas ninguém
seria insano de dizer que o bebê é o próprio espermatozoide ou o óvulo em si. Eles
formação da consciência.
refreando os nossos instintos mais básicos (como quando alguém tem uma
vontade louca de fazer algo, mas tem a consciência de que aquilo pode gerar efeitos
em nosso lugar, eles apenas formam as condições necessárias para se chegar a esse
218
Disponível em: <http://conhecereis-a-verdade.blogspot.com/2021/03/sem-alma-imaterial-nao-ha-
arbitrio-e.html>. Acesso em: 01/01/2022.
493
De onde vem a consciência? 494
Note como a alma não apenas não é necessária aqui, como incorreria nas
alguma fosse uma resposta muito mais satisfatória. Primeiro precisaríamos saber
qual a substância da alma (do que ela é formada, o que a constitui), e então
nada” é capaz de formar a consciência e por que nossas decisões também não
sendo imaterial. Ou seja, ela tem a forma dos pés mesmo sem ter pés, tem a forma
das mãos mesmo sem ter mãos, a forma de uma cabeça sem ter cabeça de fato, e
assim por diante. Ela copia a forma do corpo em tudo, mesmo sem possuir um.
Diante disso, devemos nos perguntar: de onde vem o centro de consciência dessa
alma? Do que ela é composta? O que faz os “pés” dessa alma se mover pra esquerda
mundo da fantasia, jamais teremos resposta alguma, ficando tudo pro campo da
onde quer que venha essa consciência, qualquer um poderia indagar se não
seríamos “determinados” por ela também. Talvez a solução seja realmente inventar
494
De onde vem a consciência? 495
Como se vê, o que os imortalistas têm como resposta não é realmente uma
burra – como se o aglomerado de alguma coisa invisível que ninguém sabe o que é
tivesse mais chances de formar a consciência do que os neurônios que Deus nos
deu. É um caso parecido com a reencarnação, criada como uma pretensa resposta
Você sofre porque está pagando pelos males cometidos na vida passada,
como se isso resolvesse o problema, quando apenas levanta a questão: por que a
primeira pessoa sofreu, quando ainda não tinha nenhuma encarnação anterior?
Aqui temos uma outra resposta igualmente simplista e preguiçosa que tenta
solucionar um problema que eles próprios criaram por pura teimosia, mas que na
verdade só o adia, já que ninguém realmente sabe do que essa alma que eles tanto
defendem é feita. Assim, eles basicamente tentam encontrar essa tal alma dentro
das lacunas que eles próprios criaram por não compreender como a realidade
funciona.
maior está em conceber que algo não-físico, como a consciência, seja gerado por
algo físico, como o cérebro. A forma mais simples de se responder a isso é com a
visão, que não é física, mas é gerada por algo físico, o olho. Da mesma forma, a
audição em si não é física, mas ela é gerada pelo ouvido, que é físico. Nossos sonhos
também não são físicos, mas são fabricados pelo nosso cérebro, que é físico (a não
495
De onde vem a consciência? 496
ser que você creia como Allan Kardec, o qual dizia que o sonho é “a lembrança do
também, embora a nossa consciência não seja o próprio cérebro em si, todas as
evidências científicas são unânimes em apontar que ela é produzida pelas conexões
entre os neurônios, razão por que quanto mais sinapses houver, maior o grau de
consciência do ser.
computador já produzido:
219
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 4ª ed. Brasília: FEB, 2013, p. 209.
220
FOLHA ONLINE. Entenda a complexidade de seu cérebro. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/318086-entenda-a-complexidade-de-seu-
cerebro.shtml>. Acesso em: 01/01/2022.
496
De onde vem a consciência? 497
todos esses dados, filtrando o que é mais importante daquilo que não é. Mas isso
não é tudo:
computador comum chega a ter 1 terabyte, milhares de vezes menos que o cérebro
humano. Mas recentemente os cientistas descobriram que essa conta estava errada,
221
ibid.
222
Disponível em: <https://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/capacidade-de-memoria-do-cerebro-e-
10-vezes-maior-do-que-se-pensava-antes-diz-estudo-22012016>. Acesso em: 01/01/2022.
497
De onde vem a consciência? 498
característica que o faz ser único e virtualmente impossível de ser reproduzido por
223
Disponível em: <https://www.salk.edu/news-release/memory-capacity-of-brain-is-10-times-more-
than-previously-thought>. Acesso em: 01/01/2022.
224
FERREIRA, Tiago. Cérebro humano é até 30 vezes superior ao melhor computador do mundo. Disponível
em: <https://www.vix.com/pt/bbr/1639/cerebro-humano-e-ate-30-vezes-superior-ao-computador-
mais-avancado-do-mundo>. Acesso em: 01/01/2022.
498
De onde vem a consciência? 499
Roberto Lent.226
Por essa razão, ela conclui que a inteligência artificial “é apenas um modelo
225
KAUFMAN, Dora. Redes neurais artificiais e a complexidade do cérebro humano. Disponível em:
<https://epocanegocios.globo.com/colunas/IAgora/noticia/2020/08/redes-neurais-artificiais-e-
complexidade-do-cerebro-humano.html>. Acesso em: 01/01/2022.
226
ibid.
227
ibid.
499
De onde vem a consciência? 500
consciência. Para a maioria dos imortalistas, no entanto, Deus nos deu um cérebro
responsável por nossa consciência é uma alma invisível e indetectável, que só eles
Por este ponto de vista, tanto faz se o cérebro é simples ou complexo, já que
não é ele que produz nossos estados mentais. Então, Deus teria criado um cérebro
Na verdade, se existe algo que Ele criou especificamente para este propósito,
este algo é o cérebro. O fato de mesmo hoje o funcionamento do cérebro ainda nos
parecer um grande mistério só mostra o quanto Deus dedicou esforços para criar
algo que cumpriria perfeitamente bem este propósito, ainda que a Queda tenha
500
De onde vem a consciência? 501
cunho emocional, que consegue ser ao mesmo tempo uma mistura da falácia da
consiste em chamar essa visão de “materialista” por negar a alma imaterial, e então
A partir do momento em que alguém crê em coisas como Deus, anjos, demônios e
céu – ou seja, em coisas sobrenaturais que transcendem nossa realidade física –, ele
desejando isso como uma criança birrenta. Materialistas não creem em nada que
não seja a própria matéria; portanto, qualquer um que creia em algo além da
que serve como intermediário entre o corpo e o espírito, algo que os imortalistas
501
De onde vem a consciência? 502
revelação e que nem de longe é um requisito necessário para não ser materialista.
para nos dissociar dos ateus ou agnósticos. São os imortalistas que não apenas se
Para alguns, o fato de “Deus ter nos criado exatamente assim” é algo
precisasse de uma alma imortal que o fizesse de alguma forma um ser de outro
mundo, caso contrário a Bíblia não estaria dizendo nada que parecesse espiritual
da Bíblia não falar nada sobre um elemento sobrenatural dentro do homem que
atesta a sua origem divina. É justamente esse o diferencial da Bíblia em relação aos
após a morte, que eles acreditavam com tanto entusiasmo, e isso seria o mais
inventando uma história, ele certamente teria refletido na Bíblia as crenças que
502
De onde vem a consciência? 503
ele não fala nada sobre Deus colocar no homem um elemento sobrenatural, apenas
que o homem se tornou uma “alma vivente” após o corpo ganhar fôlego de vida
(Gn 2:7).
à unidade psicossomática que acabamos de ver, mesmo que isso contrariasse tudo
aquilo que os pagãos da época pensavam. Como assinala Roger L. Shinn, presidente
intuitivamente.228
próprio Moisés estava imerso antes de ser chamado por Deus, e se antecipar a
uma forma tão simples quanto Moisés descreveu em Gn 2:7. Como sempre, a Bíblia
não contradiz a ciência: ela antevê com milênios de antecedência o que os cientistas
228
SHINN, Roger Lincoln. Life, Death and Destiny. Philadelphia: Westminster Press, 1957, p. 83.
503
De onde vem a consciência? 504
descobririam muito tempo mais tarde, assim como aconteceu com o formato da
Assim, quando alguém acusa o holismo por parecer “pouco espiritual”, está
em que eles viveram, o dualismo era a posição-padrão, e ser holista era ser
pensamento novo, coerente com a ciência moderna, mas ultrajante para os “sábios”
daquela época.
• As experiências de quase-morte
Introdução – Apesar de tudo o que vimos, não pense que os imortalistas não
têm nenhuma prova da alma imaterial. A “prova” que eles têm é a mesma repetida
todas as vezes que esse assunto é trazido à tona: as EQM. Esse acrônimo diz respeito
corpo quando o indivíduo está quase morrendo. São muitos os relatos de gente
que não apenas diz ter deixado o corpo, mas visitado o céu ou um mundo espiritual.
Quem ficou recentemente famosa por passar por uma dessas experiências
foi a ex-garota de programa Andressa Urach, que viu sua alma sair do corpo durante
504
De onde vem a consciência? 505
o coma causado por uma infecção229. Depois dessa experiência sobrenatural, ela
largou a prostituição, entrou pra igreja, vendeu um livro e reatou com o ex-marido
serem impactadas por uma EQM é tão vasta que a ciência passou a estudá-la, até
As EQM sob uma perspectiva bíblica – Mas antes de entrarmos naquilo que
acreditam na Bíblia como a Palavra de Deus). E quando analisamos as EQM à luz das
Escrituras, vemos que uma não pode ser defendida sem sacrificar a outra. E isso não
só porque a Bíblia descarta qualquer “projeção astral” fora do corpo, mas sobretudo
229
Disponível em: <http://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2015/09/urach-diz-que-alma-saiu-do-
corpo-durante-o-coma-causado-por-infeccao.html>. Acesso em: 02/01/2022.
230
Disponível em: <https://www.terra.com.br/diversao/gente/andressa-urach-entenda-os-motivos-do-
seu-afastamento-da-igreja,c914602aea5845cd3d898aea5dbc3bb4rgygnfit.html>. Acesso em:
02/01/2022.
231
Disponível em: <https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/celebridades/gravida-andressa-urach-se-
separa-do-marido-apos-9-meses-nao-estou-bem-66212>. Acesso em: 02/01/2022.
232 505
Disponível em: <https://revistaquem.globo.com/QUEM-News/noticia/2021/09/andressa-urach-
anuncia-volta-de-imola-seu-nome-quando-fazia-programa.html>. Acesso em; 02/01/2022.
De onde vem a consciência? 506
“relatam encontros com Yamraj, o deus dos mortos, yamdoots, que são os
Ele foi arrastado por dois indivíduos até a presença de uma figura
negra e nua, mais tarde identificada como Yamraj. Em tom de fúria, ele
teria dito: “Eu lhes disse para trazer o jardineiro Vasudev, já que nosso
Outro homem conta que tentou escapar desse “purgatório”, e por isso teve
233
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 121.
234
DENCK, Diego. 5 histórias cabulosas de pessoas que tiveram experiências de quase-morte. Disponível
em: <https://www.megacurioso.com.br/mito-ou-verdade/96915-5-historias-cabulosas-de-pessoas-que-
tiveram-experiencias-de-quase-morte.htm>. Acesso em: 02/01/2022.
235
ibid. 506
De onde vem a consciência? 507
Quando descobriram que seu nome não estava na lista dos mortos,
Assim como as EQM indianas refletem o tipo de vida após a morte aceito
ou um só Deus, mas vários paraísos e deuses que refletem cada qual as convicções
Alguns são recebidos no “céu” por Jesus, outros por santos, outros por orixás,
outros por deidades do paganismo. Uma egípcia que sofreu um grave acidente de
carro disse ter visto o trono de Deus, onde estava escrito “Laillahah illalah,
mensageiro”)237. O registro mais antigo de uma EQM vem de Platão, no décimo livro
da “República”. Ele narra o que teria acontecido com um guerreiro chamado Er,
236
ibid.
237
DENCK, Diego. 5 histórias cabulosas de pessoas que tiveram experiências de quase-morte. Disponível
em: <https://www.megacurioso.com.br/mito-ou-verdade/96915-5-historias-cabulosas-de-pessoas-que-
tiveram-experiencias-de-quase-morte.htm>. Acesso em: 02/01/2022.
507
De onde vem a consciência? 508
sorteio para determinar suas novas vidas. Ele, inclusive, bebeu a água
seguir adiante. No meio disso, porém, ele foi mandado de volta para
Platão não perdeu a oportunidade de usar esse relato como uma “prova” da
dizia ser a única verdade e o único caminho à vida (Jo 14:6). Cada experiência reflete
apenas o viés religioso dos próprios pacientes, não uma verdade universal e única.
do cérebro, já que todo mundo pensa que ao morrer irá para o “céu” da sua religião,
encontrar Jesus do outro lado. Em vez disso, o que vemos na quase totalidade dos
casos são os pacientes confirmando as suas convicções prévias, o que indica que o
238
ibid.
508
De onde vem a consciência? 509
Isso explica por que os relatos são tão divergentes, e até mesmo contraditórios uns
com os outros.
Também chama a atenção que as EQM sejam bem menos frequentes com
morte, e os muçulmanos por acreditarem que a alma dorme na sepultura até o dia
“prévia” da sua condenação eterna ou ascensão ao Paraíso239. Isso não significa que
um ateu não possa experimentar uma EQM, porque mesmo eles estão imersos em
uma cultura religiosa imortalista que toma conta da mídia, do cinema, da arte e da
literatura. Mas o fato disso acontecer com bem menos frequência com eles reforça
se quase todo mundo fosse salvo, uma visão bem adequada se você é um adepto
da Nova Era e acredita que todos os caminhos levam a Deus, mas completamente
avessa às Escrituras.
O próprio Senhor Jesus disse que são poucos os que se salvam, e muitos os
que se perdem:
239
ibid.
509
De onde vem a consciência? 510
“Entrem pela porta estreita, pois larga é a porta e amplo o caminho que leva
à perdição, e são muitos os que entram por ela. Como é estreita a porta, e
apertado o caminho que leva à vida! São poucos os que a encontram”
(Mateus 7:13-14)
“Alguém lhe perguntou: ‘Senhor, serão poucos os salvos?’. Ele lhes disse:
‘Esforcem-se para entrar pela porta estreita, porque eu lhes digo que muitos
tentarão entrar e não conseguirão’” (Lucas 13:23-24)
verdade do que cristãos tradicionais que se pautam nas palavras de Jesus. O inferno
estaria quase vazio, e o céu cheio de gente que desprezou Jesus em vida e que se
qualquer filosofia de vida relaxada em relação ao pecado, já que após a morte todos
Mais do que isso, quase nenhum relato descreve aquilo que a Bíblia
realmente diz ser o evento que sucede a morte: o juízo. O autor de Hebreus disse
que “o homem está destinado a morrer uma só vez e depois disso enfrentar o juízo”
(Hb 9:27). Não obstante, o juízo é quase ausente nos relatos de EQM repletos de
510
De onde vem a consciência? 511
santos ou anjos antes de passar por qualquer juízo, e voltam ao corpo sem nem
saber o que é isso. Mais uma vez, devemos escolher entre os relatos de EQM e a
Bíblia.
grande maioria das pessoas vivas hoje acredita ser boa o suficiente para merecer a
salvação – ainda que a Bíblia nos mostre uma realidade contrária –, razão por que
quase todas elas dizem ser levadas ao céu. E a grande maioria – até mesmo dos
cristãos – desconhece o ensino bíblico de que após a morte vem o juízo, razão por
que o juízo é misteriosamente omitido na maioria absoluta dos relatos de EQM. Isso
também explica por que cada uma encontra do outro lado o tipo de vida após a
morte condizente com suas visões religiosas, mesmo as mais heréticas. É tudo um
Finalmente, há uma razão maior, mais simples e mais óbvia por que as EQM
não podem, à luz da própria teologia imortalista, consistir numa experiência real da
alma saindo do corpo: a alma não sai antes da morte! Como o próprio nome diz,
experiência não é alguém que morreu e ressuscitou, mas alguém que estava
Mas se a alma já estava saindo do corpo antes mesmo de morrer, a própria teologia
onde a alma não precisa nem mesmo esperar o corpo morrer para dar o fora dali.
511
De onde vem a consciência? 512
Salomão disse que “o pó volte à terra, de onde veio, e o espírito volte a Deus,
que o deu” (Ec 12:7). Observe que ele não diz que o espírito volta a Deus antes do
pó voltar à terra (ou seja, antes da morte física). Primeiro vem a morte, e então a
partida do espírito. No capítulo anterior, nós vimos que esse espírito não tem nada
a ver com uma alma pessoal, mas é assim que os imortalistas o entendem. E se eles
assim entendem, deveriam ser coerentes com sua própria teologia e só aceitar
7:11-15, 8:41-56; Jo 11:11-44; At 9:36-41, 20:9-12). Nem mesmo Lázaro, que teria
passado quatro dias no outro lado do túnel, teve qualquer relato sobrenatural pra
contar – o que teria certamente despertado grande interesse por parte de todos.
Er, João nada fala a respeito das aventuras de Lázaro no além – o que não seria um
mero deslumbre da vida após a morte, como no caso das EQM, mas a própria vida
com um silêncio perturbador a respeito do que Lázaro fez nos quatro dias em que
esteve morto. E a razão para isso é simples: ele não fez nada. O grande milagre não
foi Jesus ter trazido Lázaro de volta do outro mundo, mas tê-lo ressuscitado dos
mortos, trazendo de volta alguém que já não tinha mais vida em lugar nenhum.
Jesus não teve que tirar Lázaro do céu após quatro dias de bênçãos paradisíacas, o
que certamente faria Lázaro questionar se Jesus era realmente seu amigo. A
512
De onde vem a consciência? 513
lugar nenhum. Por isso Jesus não disse que “nosso amigo Lázaro está no paraíso”,
mas apenas que “nosso amigo Lázaro adormeceu, mas vou até lá para acordá-lo”
(Jo 11:11).
A alma que abandona o barco antes dele afundar não foi a única maluquice
inventada pelos imortalistas. Talvez você já tenha ouvido falar do “peso da alma”,
uma das coisas mais estúpidas que é possível imaginar. Esse mito surgiu em 1907,
concluiu que os outros cinco não tinham alma que a alma pesa 21 gramas. Gênio!
Pouco importa que o cadáver desse sexto paciente tenha recuperado o peso mais
tarde: estava provado, a alma metafísica e imaterial pode ser pesada numa balança
(e talvez seja a responsável por você nunca atingir o peso ideal mesmo após uma
dieta).
Se você acha que isso é tudo, é porque não conhece o aclamado cientista
da comunidade científica – que a foto era uma montagem tosca feita por outra
pessoa e postada em outro lugar, e que a foto original era um simples infravermelho
sem qualquer relação com a existência da alma240. Alma que sai do corpo antes da
morte, que pode ser pesada e fotografada são apenas alguns exemplos de como os
240
LOPES, Gilmar. Cientista russo fotografa a alma no momento da morte! Disponível em:
<https://www.e-farsas.com/cientista-russo-fotografa-alma-momento-morte.html>. Acesso em:
03/01/2022.
513
De onde vem a consciência? 514
As EQM sob uma perspectiva científica – E por falar em ciência, o que ela
tem a nos dizer sobre as EQM? Por muito tempo, a reação mais comum da
Raymond Moody, que o assunto passou a ser tratado com atenção e estudado
de inúmeros experimentos com revisão por pares – é que elas nada mais são que
“Mas espere um momento”, você irá contestar. “As EQM parecem realmente
reais para quem as vivenciou, tão reais quanto aquilo que vemos!”. É aí que mora o
as sofre, a ponto do indivíduo não saber mais distinguir o que é real do que não é.
Alucinação é justamente a «percepção real de um objeto que não existe, haja vista
alucinado». Elas são muito mais comuns do que se pensa, e acontecem mesmo com
gente completamente normal, que não sofre de doenças psiquiátricas nem faz uso
(ou seja, 5% da população) sofreu algum tipo de alucinação. E este índice se refere
241
LEONARDI, Ana Carolina. Uma em cada 20 pessoas tem alucinações. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/saude/uma-em-cada-20-pessoas-tem-alucinacoes>. Acesso em: 03/01/2022.
514
De onde vem a consciência? 515
Mas isso ainda não responde à pergunta: por que o fenômeno ocorre com
muito mais frequência com pessoas à beira da morte? E por que elas não costumam
ver unicórnios, mas uma projeção fora do corpo, seguida da sensação de estar se
como elas imaginam que seja? A resposta está no livro The Spiritual Doorway in the
o nervo vago (um longo nervo que se conecta com o coração) desloca
515
De onde vem a consciência? 516
olhos.
516
De onde vem a consciência? 517
que experiências fora do corpo nada têm a ver com almas deixando
para pensar que as almas das pessoas estão deixando seus corpos
representado.
517
De onde vem a consciência? 518
mudou de posições.
que viram deles mesmos dormindo nas suas camas era reconstruída
em sua memória.242
242
LICKERMAN, Alex. The Neurology Of Near-Death Experiences. Disponível em:
<https://www.psychologytoday.com/us/blog/happiness-in-world/201105/the-neurology-near-death-
experiences>. Acesso em: 03/01/2022.
518
De onde vem a consciência? 519
Penfield, é evidente que elas são produzidas pelo próprio cérebro, não por uma
alma fantasmagórica. E ele não foi o único que conseguiu replicar os efeitos de uma
Houzel aborda o caso de uma mulher suíça que teve uma experiência
243
MURPHY, Todd. The God Helmet Experiments: the science that found God in the human brain.
Independently Published, 2019.
519
De onde vem a consciência? 520
vazio”. A equipe, claro, não parou aí. Testaram uma corrente elétrica
cama.244
homem de 63 anos que teve eletrodos instalados em seu cérebro para tratar um
244
HERCULANO-HOUZEL, Suzana. Eu me vi lá de cima. Disponível em:
<https://cienciahoje.org.br/coluna/eu-me-vi-la-de-cima>. Acesso em: 03/01/2022.
245
FOLHA DE S. PAULO. Paciente experimenta viagem fora do corpo acidentalmente. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0111200703.htm>. Acesso em: 04/01/2022.
520
De onde vem a consciência? 521
vida após a morte, mas que a relação entre o “eu” consciente e o “eu”
oxigênio no cérebro nos momentos finais que precedem a morte247, o que induz às
alucinações e explica por que elas são tão comuns com quem se encontra nessa
246
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 120-121.
247
BASSHAM, Gregory. Critical Thinking: a student's introduction. New York: McGraw-Hill, 2004, p. 485.
248
NATIONAL GEOGRAPHIC TELEVISION. Im Augenblick des Todes – Medizin im Grenzebereich. NGHT,
2008. Deutsche Fassung ZDF, 2010.
521
De onde vem a consciência? 522
qualquer pessoa que esteja suspensa entre a vida e a morte deve estar
perturbação.249
tem a ver, quase sempre, com aquilo que mais preocupa o indivíduo. É comum, por
que estão à beira da morte e que acreditam que vão deixar o corpo assim que
morrerem?
espontâneo e involuntário. Como diz um velho ditado, até ateu reza quando o avião
acredita estar dando os últimos suspiros, o que explica por que essas visões
249
BADHAM, Paul; BADHAM, Linda. Immortality or Extinction? New Jersey: Barnes & Noble Books, 1982,
p. 81.
522
De onde vem a consciência? 523
Um argumento muitas vezes dado para negar este fato é que algumas
clinicamente mortos, cujo cérebro deveria estar inativo. Isso foi refutado por uma
que o cérebro se tornaria inativo ou hipoativo (com muita pouca atividade). “Muito
pelo contrário, o cérebro se torna muito mais ativo no processo de óbito do que
disso, a ciência já havia descoberto que após uma parada cardíaca o cérebro ainda
tem 6 minutos de “vida útil”. Esse é o tempo que leva para as células começarem a
morrer, o que não significa que a atividade cerebral cessará por completo
imediatamente depois.
É por isso que não usamos o termo “ressurreição” para quem se recupera de
recuperou de dez paradas cardíacas teria “ressuscitado” dez vezes!252). Uma morte
250
MORELLE, Rebecca. Near-death experiences are 'electrical surge in dying brain'. Disponível em:
<https://www.bbc.com/news/science-environment-23672150>. Acesso em: 03/01/2022.
251
ibid.
252
GUEDES, Philipe. Após 30 dias internado e dez paradas cardíacas, menino de 9 anos com sequelas da
523
Covid-19 tem alta em SP. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/02/13/apos-
De onde vem a consciência? 524
que, quando ocorre, é ou por um milagre divino, ou por um erro médico a respeito
das condições do paciente (às vezes causada pela presunção de morte de forma
eram tão fracos que a morte já estava dada como certa. Depois de
quase normal.253
30-dias-internado-e-dez-paradas-cardiacas-menino-de-9-anos-com-sequelas-da-covid-19-tem-alta-em-
sp.ghtml>. Acesso em: 04/01/2022.
253
LOPES, Gilmar. Cientista russo fotografa a alma no momento da morte! Disponível em:
<https://www.e-farsas.com/cientista-russo-fotografa-alma-momento-morte.html>. Acesso em:
03/01/2022.
524
De onde vem a consciência? 525
indivíduo esteve clinicamente morto, porque ela pode perfeitamente ter se passado
cardíaca, a última coisa que ele se lembra é da alucinação que sofreu enquanto
estava inconsciente – alucinação essa que ele toma como um evento real, que é a
percepção que ele tem (como qualquer pessoa que sofre alucinações). E como essa
é a última memória da qual se recorda, é fácil pensar que a experiência ocorreu após
O fato é que ninguém é capaz de provar que a EQM ocorreu após a morte
clínica, porque não é possível se colocar dentro da mente do indivíduo para saber
se ele sofreu a alucinação antes ou depois. São os imortalistas que presumem que
ocorreu depois, porque isso torna o argumento muito mais sedutor. Porém, como
vimos, ainda que essas experiências tenham se passado após a morte clínica, isso
não significa que tenham vindo da alma, porque o cérebro continua ativo minutos
após o coração parar de bater – e com uma atividade bem mais elevada do que se
pensava antes.
negar que ela tenha qualquer coisa a ver com um processo cerebral é a suposta
capacidade dos pacientes em ver além do seu campo visual natural, o que
comprovaria que a alma realmente saiu do corpo e deu uns “rolê” por aí. O fundador
Olavo de Carvalho é um dos que usam isso em favor da projeção astral. Diz ele:
“Tem até o caso do sujeito que, exatamente neste estado, ele viu que na casa vizinha
525
De onde vem a consciência? 526
telhado).
Lamentavelmente, não somos informados que “sujeito” era esse, qual era
essa casa vizinha ou se tinha mesmo um sapato que sabe-se lá por que diabos foi
parar ali. Somos instados a confiar apenas pela palavra do Mestre dos Magos, que
talvez tenha descoberto isso com sua bola de cristal reluzente (ou consultando o
cuidado da próxima vez que deixar seu sapato em cima do telhado: nunca se sabe
que tipo de alma pode sair do corpo só pra bisbilhotar e fazer fofoca.
lado falham sempre num mesmo ponto: eles são inteiramente desprovidos de
quando vem, a fonte é sempre um livro escrito por um proselitista e nunca uma
revista científica com revisão por pares. Esse tipo de “prova” tem um nome:
ou seja, que pode até ser significativa para a pessoa que passou pela experiência,
no bicho papão e no velho do saco (que não é o mesmo da Virgínia). De fato, esses
254
Disponível nos minutos 16-17 do vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=5PaUM7eSpHw>.
Acesso em: 04/01/2022.
526
De onde vem a consciência? 527
relatos não diferem em substância das anedotas usadas para sustentar qualquer
boato, folclore ou lenda urbana. Temos tantas provas científicas de que o tal sujeito
viu o sapato no telhado quanto temos de que a mula sem cabeça foi avistada no
quintal do Seu Zé, ou que a vaca do Seu Sebastião foi abduzida por uma nave
Isso não significa que não haja em absoluto nenhum dado científico sobre
projeção astral, mas os poucos dados que temos nunca puderam ser reproduzidos
adianta publicar um artigo científico cheio de dados que podem ser frutos de
fraude, que não seja passível de ser reproduzido por outros pesquisadores. Esse
É por isso que a revisão por pares é tão importante, e mesmo fundamental
para traçar a linha daquilo que é científico e do que não é (sendo, no melhor dos
casos, apenas hipóteses que ainda esperam por embasamento). Uma vez que
nenhuma projeção astral jamais conseguiu ser corroborada pela revisão por pares,
revisão por pares nos mostram é que a consciência está localizada fisicamente no
cérebro, e é por isso que cada vez menos cientistas acreditam na existência da alma
255
JOHNSON, David Kyle. Do souls exist? Disponível em: <https://philpapers.org/archive/JOHDSE.pdf>.
Acesso em: 04/01/2022.
527
De onde vem a consciência? 528
E não foi por falta de tentativa. Entre 2008 e 2014, a pesquisadora Sam Parnia
com mais de duas mil pessoas que sofreram paradas cardíacas em 15 hospitais no
Reino Unido, Estados Unidos e Áustria. O detalhe é que ela própria é uma defensora
da teoria da projeção astral, e era isso o que o estudo tentava provar. A diferença
desse estudo para os demais não estava apenas na maior quantidade de dados
coletados, mas sobretudo por ser o primeiro a testar a teoria de que os pacientes
“fora do corpo” são capazes de enxergar coisas que estão além do alcance do seu
campo visual.
mas que poderia ser visualizado por alguém flutuando acima de seu corpo. O que
pacientes com EQM fossem capazes de visualizar a imagem, o que seria uma forma
foram anunciados, não houve qualquer menção a pacientes que puderam ver,
morte, mas de 140 deles. De todos esses 140 pacientes que relataram EQM, nenhum
– isso mesmo, nenhum – foi capaz de ver as imagens que poderiam ser facilmente
observadas por uma alma flutuando acima do corpo. O único caso apresentado por
Parnia em favor da projeção astral foi de um paciente que foi capaz de descrever
256
NOVELLA, Steven. AWARE Results Finally Published – No Evidence of NDE. Disponível em:
<https://theness.com/neurologicablog/index.php/aware-results-finally-published-no-evidence-of-nde>.
Acesso em: 05/01/2022.
528
De onde vem a consciência? 529
que todos os outros 139 nem mesmo souberam descrever corretamente o que
aconteceu com o seu corpo enquanto a “alma” pairava lá em cima – mesmo assim,
projeção astral.
será o ano seguinte, 139 deles errarem miseravelmente, mas um descrever certas
coisas que batem com a realidade. Em vez disso ser uma prova de que a vidência
funciona, qualquer pessoa séria concluiria apenas que ele acertou por sorte – o que
não é nada improvável num universo de 140 indivíduos com todos os tipos de
palpites. É como o cara da empresa que acerta em cheio no “bolão da Copa”, sem
futebolístico). Com tanta gente palpitando, não esperaríamos outra coisa senão que
ganha na loteria.
ressaltar só os casos exitosos, levando os néscios a pensar que pacientes com EQM
529
De onde vem a consciência? 530
sinônimo de verdade absoluta, o fato de que as EQM são produzidas pelo cérebro
é ponto pacífico entre os neurocientistas de hoje. Embora sempre haja meia dúzia
de gatos pingados negando qualquer fato bem estabelecido pela ciência (a maioria
alma que sai do corpo. De fato, quanto mais a ciência sabe sobre o cérebro, mais
claro fica que é dali que procede a consciência, e que nem mesmo as EQM estão
isentas disso.
530
531
• Introdução
estado intermediário é que o único lugar para o qual a Bíblia diz que justos e ímpios
vão após a morte, o Sheol, não é nem um céu nem um inferno, mas tão-somente a
Bíblia, embora muitas delas, pelo viés do tradutor, traduzam por “inferno” ou por
“mansão dos mortos”, impondo um conceito que não está no texto. Tome como
exemplo um simples texto como Is 14:15, que a NVI traduz da seguinte maneira:
(Isaías 14:15)
Bíblias em português. Mas veja como este mesmo texto é traduzido pela Almeida
Revista e Atualizada:
531
O estado dos mortos no Sheol 532
Na ARA, o Sheol é traduzido como o “reino dos mortos”, o que para alguns
pode transmitir a ideia de um reino literal cujos habitantes estão vivos e interagem
entre si (algo semelhante ao “Reino dos céus”). Algo parecido faz a Nova Almeida
“E, entretanto, eis que foste precipitado à morada dos mortos, ao mais
Para piorar, observe como o mesmo texto é traduzido pela Almeida Corrigida Fiel:
14:15)
532
O estado dos mortos no Sheol 533
onde se lê:
“Em vez disso, será lançado ao lugar dos mortos, ao mais profundo abismo”
(Isaías 14:15)
Bíblia Tradução
533
O estado dos mortos no Sheol 534
“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força,
pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento,
não há conhecimento nem sabedoria” (Eclesiastes 9:10)
texto de Isaías, a NVI preferiu traduzir por “sepultura” aqui, e manter o “Sheol” no
outro texto, sem tradução. Das outras versões, a maior parte delas prefere traduzir
falava apenas do túmulo e nada a mais (embora seja o mesmo termo que apareça
Bíblia Tradução
534
O estado dos mortos no Sheol 535
coisa, mesmo que uma mudança sutil. O segundo detalhe curioso é que a maioria
nenhuma fez isso com o Sheol em Is 14:15. Até a NVI, que de todas foi a única
corajosa que verteu o Sheol como Sheol em Is 14:15, deixando que o leitor tirasse
texto hebraico pensem que Salomão falava do qeber (túmulo) em Ec 9:10, e não do
Sheol. Essas mudanças são intencionais, e fazem parte das sutilezas com as quais os
clarividente a qualquer leitor do hebraico, de que o Sheol nada mais é que a região
subterrânea da terra. Em minhas pesquisas para escrever este capítulo, descobri que
tradutores preferiram ocultar sua menção, pelo simples fato de que os textos
enterrados. Nestes casos, eles preferem traduzir por “sepultura”, “túmulo” ou “cova”.
Por outro lado, nos poucos textos onde não está claro o significado do Sheol
(ou seja, onde o contexto não mostra claramente que se trata de um lugar sem vida,
embora também não afirme ser um lugar com vida), eles aproveitam para manter o
termo “Sheol” ou para traduzir por “mansão dos mortos”, “reino dos mortos”,
leitores sem familiaridade com o hebraico são induzidos a pensar que este lugar
535
O estado dos mortos no Sheol 536
aparece pouquíssimas vezes na Bíblia, e todas elas em textos que abrem alguma
Mal sabem eles que o Sheol aparece em toda parte, e que é justamente o
grosso dos textos sobre o Sheol que lança luz ao seu significado nos demais textos,
onde o sentido é “obscuro” ao olhar o texto por si só. Nenhum leigo consegue
induzem ao erro. Ao invés de manter o Sheol onde o Sheol aparece e deixar que a
Bíblia interprete a Bíblia (ou seja, que os textos com significado menos claro sejam
explicados à luz dos textos onde o significado é claro), elas astutamente encobrem
o Sheol em pelo menos 80% dos textos onde o Sheol aparece, e o mantém na
minoria que abre alguma margem para interpretações duvidosas, que os teólogos
ponto de sugerir que quase todas as vezes que o Sheol aparece na Bíblia ele aparece
em um sentido alternativo e secundário que não tem nada a ver com o Sheol “de
os demais. Isso não apenas é um exemplo de como não se faz exegese, como ilustra
desejado.
536
O estado dos mortos no Sheol 537
para que o leitor saiba quando é o Sheol que aparece, e quando é outro termo
por que os textos do AT que mencionam o Sheol são citados no NT como uma
referência ao Hades. Por exemplo, o salmista diz que “tu não me abandonarás no
sepulcro, nem permitirás que o teu santo sofra decomposição” (Sl 16:10). O termo
aqui traduzido por “sepulcro”, no original hebraico, é o Sheol. Este mesmo texto é
citado por Pedro em seu discurso no Pentecoste, mas com o Hades em lugar do
Onde está, ó sepultura, a sua destruição?” (Os 13:14). Aqui, mais uma vez, é o Sheol
que aparece no texto hebraico. Paulo cita esse mesmo texto em 1Co 15:55, mas com
o Hades em lugar do Sheol, uma vez que o Hades é o equivalente grego ao Sheol
produzida poucos séculos antes de Cristo, o Sheol é sempre traduzido como Hades.
537
O estado dos mortos no Sheol 538
Há quem tire daqui a ideia de que os autores do NT criam que o Sheol era
um lugar com vida, pelo simples fato de que o Hades, tal como concebido pelos
gregos, era um lugar com vida. O problema com este argumento é que o Hades
grego não tem nada a ver com o Hades da teologia imortalista “cristã”, esse
ensinado por aí nas igrejas e nos livros de teologia sistemática. Para começar, o
Hades grego não era apenas um lugar, mas designava antes de tudo o próprio deus
do “mundo inferior”, o equivalente ao deus romano Plutão. Ele era guardado por
as boas), o Campo de Asfódelos (para as que não eram nem boas nem más) e as
538
O estado dos mortos no Sheol 539
Não é preciso dizer que nada disso se parece com a visão cristã, nem mesmo
com a visão cristã imortalista do Hades. Você nunca verá qualquer dessas
da concepção grega. Aqueles que argumentam que o Hades cristão precisa ser um
míticos do Hades grego – a começar pelo próprio deus pagão que designa este
O que é preciso entender é que do fato dos cristãos por vezes citarem nomes
e termos conhecidos no mundo grego não decorre que eles acreditavam da mesma
forma. Isso porque era praxe comum dos cristãos ressignificar os termos gregos,
Deus no AT (por exemplo, elohim) para o grego, mas em vez disso preferiram usar
o substantivo theos (de onde vem a “teologia”), que os gregos usavam em relação
257
PEIXOTO, Paulo Matos. Mitologia Grega. São Paulo: Germape, 2003, p. 132.
539
O estado dos mortos no Sheol 540
dizendo: “O verdadeiro Deus não é o theos que vocês conhecem, mas este que vos
estivessem dizendo: “O verdadeiro lugar dos mortos não é o Hades que vocês
significado em conformidade com o uso do AT, assim também eles não seguiam o
época de Jesus. É do Sheol bíblico que temos o conceito cristão de Hades, não do
paganismo grego.
vem a ser o Sheol do qual o AT tanto fala. Como veremos, na Bíblia o Sheol/Hades
poética para se referir ao Sheol de uma forma figurada (no mesmo sentido em que
540
O estado dos mortos no Sheol 541
própria morada dos espíritos dos mortos, onde estão conscientes e sofrendo
justos).
quem está no Sheol ou onde o Sheol fica. Para alguns, o Sheol é um lugar
pergunte o que um espírito imaterial faria no interior de um planeta físico, mas este
é o único jeito que eles encontraram para conciliar os inúmeros textos que
Natanael Rinaldi, por exemplo, afirmou que o Sheol “é o lugar não visto, abaixo da
ser humano”258.
como um “reino dos mortos” embaixo da terra, como por exemplo esse
autointitulado “mapa escatológico” cheio de setas pra lá e pra cá, que ilustra bem a
258
RINALDI, Natanael. O que dizem os adventistas sobre o Seol e o Hades? Disponível em:
<http://www.cacp.org.br/o-que-dizem-os-adventistas-sobre-o-seol-e-o-hades>. Acesso em: 29/09/2020.
541
O estado dos mortos no Sheol 542
Sheol fica embaixo da terra escreveu outra coisa em seu livro, onde se opõe aberta
e descaradamente aos textos bíblicos que ele mesmo cita e diz que o Sheol fica na
“lugar mais baixo da terra” (Jó 11:8; Is 44:23, 57:9; Ez 26:20; Am 9:2).
geográfica. Indicam que o Sheol não faz parte desta dimensão (ou
259
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 95.
542
O estado dos mortos no Sheol 543
Não me pergunte de onde foi que Rinaldi viu nos textos uma indicação de
que o Sheol “existe em outra dimensão”, mas aqui nos deparamos com o primeiro
grande dilema que atormenta a alma dos imortalistas (sem trocadilhos). Se eles
disserem que o Sheol fica nas regiões subterrâneas da terra, como a Bíblia
taxativamente ensina, terão que lidar com insuperáveis problemas lógicos; por
outro lado, se disserem que fica em outra dimensão, terão que lidar com o
mandar o Sheol para uma outra dimensão, ainda que não haja um único mísero
texto que afirme que o Sheol pertence a uma outra dimensão fora da terra. Isso
embaixo da terra ou se fica fora da terra. Se o Sheol fica mesmo em uma outra
dimensão, então fica fora da terra, e todos os textos bíblicos que descrevem o Sheol
como parte da terra estão simplesmente enganando o leitor. É curioso notar que
não há um único texto bíblico que diga que o céu onde Deus habita é uma parte da
terra, justamente porque os seus autores sabiam que ficava numa outra dimensão.
Por isso vemos vários textos que contrastam o céu com a terra (Dt 4:39; Is 55:9; 1Rs
Por outro lado, nunca vemos um único texto bíblico que coloque em
contraste o Sheol (que para esses imortalistas também fica numa outra dimensão
espiritual) com a terra, ou que considere o Sheol um lugar fora da terra. Pelo
parte da terra, não de outra dimensão, como o céu. Dizer que o Sheol fica em outra
543
O estado dos mortos no Sheol 544
não são. É pisar em cima dos textos bíblicos desavergonhadamente e dizer que vale
alma.
Em Amós, Deus diz que “ainda que cavem até o Sheol, dali a minha mão irá
tirá-los” (Am 9:2). Aqui vemos que é possível chegar ao Sheol cavando. Eu me
pergunto quanto tempo será preciso escavar até acessar uma outra dimensão,
como ensina Rinaldi e tantos outros autores imortalistas. Deve dar um trabalhão, eu
Um texto que mostra com uma clareza indiscutível como o Sheol era
“Então o Senhor disse a Moisés: ‘Diga à comunidade que se afaste das tendas
de Corá, Datã e Abirão’. Moisés levantou-se e foi para onde estavam Datã e
a eles, senão vocês serão eliminados por causa dos pecados deles’. Eles se
afastaram das tendas de Corá, Datã e Abirão. Datã e Abirão tinham saído e
estavam de pé, à entrada de suas tendas, junto com suas mulheres, seus
544
O estado dos mortos no Sheol 545
filhos e suas crianças pequenas. E disse Moisés: ‘Assim vocês saberão que o
Senhor me enviou para fazer todas essas coisas e que isso não partiu de
mim. Se estes homens tiverem morte natural e experimentarem somente
aquilo que normalmente acontece aos homens, então o Senhor não me
enviou. Mas, se o Senhor fizer acontecer algo totalmente novo, e a terra abrir
a sua boca e os engolir, junto com tudo o que é deles, e eles descerem vivos
ao Sheol, então vocês saberão que estes homens desprezaram o Senhor’.
Assim que Moisés acabou de dizer tudo isso, o chão debaixo deles fendeu-se
e a terra abriu a sua boca e os engoliu juntamente com suas famílias, com
todos os seguidores de Corá e com todos os seus bens. Desceram vivos à
sepultura [Sheol], com tudo o que possuíam; a terra fechou-se sobre eles, e
pereceram dentre a assembleia” (Números 16:23-33)
subterrâneas da terra. Observe ainda que o texto não apenas diz que os seguidores
de Corá desceram vivos ao Sheol, mas também que desceram com tudo o que
possuíam (ou seja, com os seus pertences). Se o Sheol fica numa outra dimensão, a
única coisa que podemos concluir é que, enquanto os seguidores de Corá eram
engolidos pela terra, suas almas se separaram de seus corpos e foram magicamente
teletransportadas para uma outra dimensão, juntamente com os seus bens. Se isso
inteira, não somente a alma, desce ao Sheol”260. É evidente que o Sheol para os
260
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 150.
545
O estado dos mortos no Sheol 546
hebreus nada mais era que o interior da terra, onde as pessoas eram enterradas. O
quando a terra se abriu e os engoliu com todos os seus pertences, incluindo suas
“Portanto, o meu povo vai para o exílio, por falta de conhecimento; a elite
morrerá de fome, e as multidões, de sede. Por isso o Sheol aumenta o seu
próprias riquezas e palácios. Isso não seria preciso, já que isso é o que acontece
naturalmente com uma cidade em ruínas: com o passar do tempo, ela é lentamente
“engolida” pela terra da mesma forma que os seguidores de Corá. É por isso que
mesmo de uma não tão antiga assim, ele precisa escavar, e muito. O que Deus
estava dizendo é que toda a riqueza da cidade e o seu esplendor viraria ruínas nas
546
O estado dos mortos no Sheol 547
mãos dos babilônicos, o que faria a cidade desaparecer no fundo da terra – ou seja,
no Sheol.
Algo semelhante é dito a respeito da cidade de Tiro, sobre a qual Ezequiel declara:
“Depois entoarão um lamento acerca de você e lhe dirão: ‘Como você está
destruída, ó cidade de renome, povoada por homens do mar! Você era um
poder nos mares, você e os seus cidadãos; você impunha pavor a todos que
ali vivem. Agora as regiões litorâneas tremem no dia de sua queda; as ilhas
do mar estão apavoradas diante de sua ruína’. Assim diz o Soberano Senhor:
que descem à cova, e você não voltará e não retomará o seu lugar na terra
dos viventes. Levarei você a um fim terrível e você já não existirá. Você será
(Ezequiel 26:17-21)
ou se regozijando, mas porque habitaria «embaixo da terra», assim como eles. Essa
expressão de modo algum diz respeito a uma dimensão espiritual metafísica, mas
e onde se encontram os resquícios das antigas cidades. O mesmo pode ser dito a
respeito das árvores que são cortadas e morrem, as quais também vão «para baixo
547
O estado dos mortos no Sheol 548
Neste último texto, vemos que o destino do faraó seria o mesmo das árvores
do Éden, que estão embaixo da terra. Isso não significa que as árvores do Éden
tenham sido teletransportadas para o inferno numa outra dimensão onde o faraó
estaria sofrendo; significa apenas que o faraó estaria no mesmo lugar que as árvores
destruídas pelo dilúvio: embaixo da terra. Assim, vemos que toda a região
subterrânea da terra é chamada de Sheol, razão por que ela é tantas vezes associada
hebreus usavam o termo erets (traduzido como “terra”), enquanto usavam Sheol
o Sheol aparece no AT, ele pode ser simplesmente traduzido como “regiões
sentido, mas em muitos desses casos traduzi-lo por “inferno” ou por qualquer lugar
548
O estado dos mortos no Sheol 549
infernus foi criado, ele designava justamente as regiões inferiores da terra, mas com
lugar onde o espírito dos ímpios está queimando conscientemente. Isso porque
Paulo diz que todo joelho se dobraria a Cristo “debaixo da terra” (na versão em
“Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está
acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no
céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o
dobrar seus joelhos ali. Com essa mesma lógica, poderíamos concluir que a
Atlântida do filme do Aquaman é uma cidade real no fundo do mar, já que outro
no mar, e tudo o que neles há, que diziam: ‘Àquele que está assentado no
trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glória e o poder, para todo o
sempre!’” (Apocalipse 5:13)
549
O estado dos mortos no Sheol 550
“debaixo da terra” do texto aos filipenses. O que Paulo queria dizer não é que os
joelhos se dobrariam enquanto estivessem debaixo da terra, mas que todos aqueles
que agora estão sepultados sobre a terra (ou seja, os mortos) um dia dobrarão seus
joelhos diante do Senhor. Da mesma forma, João não estava dizendo que quem
estava no mar louvaria ao Senhor enquanto estivesse no mar, mas que o mar
entregará os seus mortos (Ap 20:13), quando eles então reconhecerão ao Senhor e
ressuscitarem e estiverem frente a frente com Ele. Isso inclui todos os que estão
vivos hoje (no céu ou na terra) e os que já morreram e estão debaixo da terra ou do
mar. Se uma mãe com vários filhos espalhados pela casa dissesse que “todos os que
estão na sala, na cozinha e no quarto vão tomar banho”, isso obviamente não
significaria que eles vão tomar banho na sala, na cozinha ou no quarto, mas sim que
Da mesma forma, todos os que estão debaixo da terra confessarão que Jesus
interpretá-lo em relação aos anjos caídos presos no tártaro (a respeito dos quais
550
O estado dos mortos no Sheol 551
alguma da Bíblia.
“desce” para o Sheol com a de que o espírito “sobe” para Deus na morte. Como
para dizer que uma alma imortal abandona o corpo depois da morte e vai para a
presença de Deus, já que o texto diz que “o pó volta à terra, de onde veio, e o espírito
volta a Deus, que o deu” (Ec 12:7). Como vimos, o espírito neste texto se refere ao
princípio animador da vida que Deus soprou no homem em Gn 2:7 e que volta para
Ele por ocasião da morte. Em nada tem a ver com uma alma dotada de
precisamente à alma imortal fora do corpo, eles são obrigados a interpretar este
texto no sentido de um ente pessoal que vai para a presença de Deus, mesmo antes
Sheol como um lugar embaixo da terra, situado em contraste com o Paraíso, em vez
de ser identificado com ele. Jesus, por exemplo, exclamou: “E você, Cafarnaum, será
elevada até ao céu? Não, você descerá até o Hades” (Mt 11:23).
551
O estado dos mortos no Sheol 552
Para Jesus, portanto, o Hades está embaixo da terra, e o céu em cima. Os dois
claramente não estão no mesmo lugar, como seria preciso para conciliar o texto
que fala do espírito subindo para Deus com os inúmeros textos que dizem que a
alma desce ao Sheol na morte. Isso está perfeitamente de acordo com a noção
“embaixo”) e de que o céu faz parte de uma dimensão mais elevada em relação à
nossa (portanto, “em cima”). Se Deus habita no céu (1Rs 8:43; Jó 22:12; Mt 6:9; Hb
9:24) e o espírito volta para Deus por ocasião da morte (Ec 12:7), a única coisa que
podemos concluir é que ele não desce ao Sheol, o que desmonta inteiramente a
noção de que o espírito seja a tal “alma imortal”, o nosso verdadeiro “eu” que
céu. Sempre que um escritor bíblico se refere à ida de alguém ao Sheol, ele usa o
verbo yarad (descer). Jó diz que “assim como a nuvem esvai-se e desaparece, assim
quem desce (yarad) à sepultura [Sheol] não volta” (Jó 7:9). De igual maneira, os
seguidores de Corá “desceram (yarad) vivos ao Sheol, com tudo o que possuíam; a
terra fechou-se sobre eles, e pereceram dentre a assembleia” (Nm 16:33). Segundo
Isaías, “o Sheol aumenta o seu apetite e escancara a sua boca. Para dentro dele
Davi pede que seu filho Salomão faça Joabe “descer (yarad) ensanguentado
à sepultura [Sheol]” (1Rs 2:9), e Jacó diz a seus filhos que se alguma coisa
(yarad) ao Sheol com tristeza” (Gn 42:38), algo que é repetido pelos próprios filhos
552
O estado dos mortos no Sheol 553
(Gn 44:31). Na oração de Ana, lemos que “o Senhor mata e preserva a vida; ele faz
descer (yarad) à sepultura [Sheol] e dela resgata” (1Sm 2:6). Jó também declara que
desceria (yarad) às portas do Sheol (Jó 17:16), e o salmista diz que estava prestes a
usado para se falar da descida à cova ou sepultura (Sl 88:4; Pv 1:12; Is 38:18; Ez
26:20), o que reforça a conexão entre ambos. O uso constante do verbo yarad
(descer) relativo ao Sheol, tanto para os justos como para os ímpios, vai ao encontro
da mensagem de Jesus, que situou o Hades como um lugar em oposição ao céu (Mt
11:23). Enquanto para o Sheol é usado sempre e somente o verbo descer, para o
céu é justamente o inverso que ocorre. Embora o céu seja mencionado milhares de
Em vez disso, vemos Moisés dizendo que “o Senhor é Deus em cima nos céus
e embaixo na terra” (Dt 4:39), que “o céu está acima da terra” (Dt 11:21) e que ao
Senhor pertencem “os mais altos céus” (Dt 10:14). Josué reforça a mensagem de que
“o Senhor é Deus em cima nos céus e embaixo na terra” (Js 2:11), Samuel diz que “o
clamor da cidade subiu até o céu” (1Sm 5:12), Esdras reconhece que “a nossa culpa
sobe até os céus” (Ed 9:6), Jó declara que Deus está “nas alturas dos céus” (Jó 22:12),
Salomão diz que “não há Deus como tu em cima nos céus nem embaixo na terra”
(1Rs 8:23) e pergunta “quem subiu aos céus e desceu” (Pv 30:4).
Deus “convoca os altos céus e a terra para o julgamento do seu povo” (Sl 50:4), que
“os céus se elevam acima da terra” (Sl 103:11), que os “mais altos céus pertencem
553
O estado dos mortos no Sheol 554
ao Senhor” (Sl 115:16) e que “se eu subir aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama
na sepultura [Sheol], também lá estás” (Sl 139:8). Neste último texto, em particular,
reforçar que não importa o quanto o salmista pudesse subir ou descer, ele nunca
Jesus também disse que “ninguém jamais subiu ao céu” (Jo 3:13), e em sua
ascensão nos é dito que “ele foi elevado aos céus” (At 1:2). Em relação a Davi, somos
informados que ele “não subiu aos céus” (At 2:34), e no Apocalipse vemos uma
porta aberta no céu, de onde uma voz diz a João: “Suba para cá, e lhe mostrarei o
que deve acontecer depois dessas coisas” (Ap 4:1). Paulo não apenas situou o céu
“em cima”, como ainda reforçou o contraste entre ele e o Sheol ao escrever:
“Mas a justiça que vem da fé diz: ‘Não diga em seu coração: ‘Quem subirá
ao céu?’ (isto é, para fazer Cristo descer) ou ‘Quem descerá ao abismo?’ (isto
textos do AT em paralelismo com o Sheol e com a morte (Jó 26:6, 22:28; Sl 88:11; Pv
15:11). Paulo diz que foi deste lugar que Jesus ressuscitou dos mortos, e Pedro em
At 2:27 diz que foi do Hades (Sheol) que Jesus ressuscitou. Isso prova que o
Jesus ressuscitou. Note que Paulo claramente situa o céu acima (“subirá”), e o
554
O estado dos mortos no Sheol 555
que o espírito não é o “verdadeiro eu”, mas apenas o fôlego da vida, algo impessoal
que veio de Deus (Gn 2:7) e volta para Deus na morte (Ec 12:7). Por isso todos os
mortos descem ao Sheol, mas nenhum sobe para a presença de Deus. Mas se os
imortalistas entendem que o espírito citado em Ec 12:7 se refere à alma imortal que
sai do corpo após a morte, cabe a eles conciliar este texto (e todos os outros que
são pateticamente tirados do contexto para dizer que alguém vai para o céu após a
morte, como o do ladrão da cruz de Lc 23:43) com todos os textos que dizem que
os homens vão de corpo e alma ao Sheol na morte – que é não apenas distinto do
sobem. É basicamente uma salada de frutas, onde cada um diz uma coisa diferente
argumentos dos dois lados e não chega a qualquer conclusão definitiva (embora
pareça favorecer a tese de que os mortos iam e continuam indo direto ao céu).
Em favor da tese de que os mortos estão no Sheol, ele cita como exemplo o
texto que fala dos “espíritos em prisão” (1Pe 3:19) e a parábola do rico e Lázaro,
sempre apontada como a prova mais forte da imortalidade da alma na Bíblia, onde
ao final deste capítulo). Já em favor da tese contrária (de que após a morte vamos
555
O estado dos mortos no Sheol 556
direto pro céu) ele cita como exemplo o ladrão da cruz, que supostamente estaria
no Paraíso naquele mesmo dia, bem como Jesus entregando o espírito ao Pai (Lc
equilibrar numa corda bamba os textos que usa para provar a imortalidade da alma
sua própria teologia. Eles são cínicos o suficiente para usar textos como Ec 12:7 para
provar que a alma vai pro céu depois da morte, ao mesmo tempo em que usam a
céu). E fazem o mesmo com todos os outros textos que usam, os quais não
Para tentar contornar uma contradição tão gritante, Geisler chega a dizer
que “o seio de Abraão (Lc 16:23) é uma descrição do céu. Em nenhum ponto ele é
descrito como sendo o inferno. É o lugar para onde Abraão foi, que é o ‘Reino dos
parábola Abraão podia não estar no inferno, mas ele estava claramente no mesmo
lugar que o rico que sofria tormentos, separado apenas por um abismo (mas não
estava mesmo no céu, a única coisa que podemos concluir é que o rico também
estava no céu – ou pelo menos em um lugar muito próximo, que de modo algum
261
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 371.
556
O estado dos mortos no Sheol 557
Na parábola, lemos que o rico estava no Hades (Lc 16:23), que para Jesus era
céu? Não, você descerá até o Hades” (Mt 11:23). Se o rico estava tão perto de
Abraão a ponto de conversar com ele, e ele estava em um lugar mais distante do
céu do que a própria terra onde vivemos, então é óbvio que Abraão não podia estar
no céu. Alguns tentarão resolver este problema alegando que o céu e o Hades são
próximos. Essa tentativa esbarra nos inúmeros textos bíblicos que explicitamente
angústia, e a minha vida se aproxima da sepultura” (Sl 88:3). Onde a NVI traduz por
“sepultura”, é o Sheol que aparece no texto hebraico. Se o salmista sabia que ele iria
ao Sheol caso morresse, é evidente que não passava pela sua cabeça que o Sheol
fosse uma habitação apenas de ímpios (ou seja, um “inferno”). Quando recuperado
de sua enfermidade, ele louvou ao Senhor dizendo que “grande é o teu amor para
templo ele ouviu a minha voz; meu grito chegou à sua presença, aos seus
ouvidos” (Salmos 18:4-6)
Estas palavras são quase que repetidas à risca no Salmo 116, onde ele exclama:
557
O estado dos mortos no Sheol 558
“Ele inclinou os seus ouvidos para mim; eu o invocarei toda a minha vida. As
(Salmos 116:2-6)
Tão certo o salmista estava de que o Sheol era o destino natural de todos os
homens que ele fez a pergunta retórica: “Que homem pode viver e não ver a morte,
ou livrar-se do poder da sepultura?” (Sl 89:48). Aqui, “sepultura” é mais uma vez a
tradução do hebraico Sheol, o que mostra que para o salmista o Sheol estava longe
de ser uma morada apenas de ímpios. Note que ele não pergunta “que homem
ímpio pode livrar-se do Sheol”, mas fala do gênero humano, de uma forma geral262.
sepultura [Sheol] e me levará para si” (Sl 49:15). Embora a NVI traduza por “vida” e
“sepultura”, é nephesh (alma) e Sheol que constam no original hebraico. Note que
ele não diz que Deus não permitiria que sua alma passasse pelo Sheol, mas sim que
Deus redimiria a sua alma dali. A palavra usada no hebraico para “redimir” é padah,
que significa «resgatar, redimir, livrar; ser resgatado»263. Esta é uma das primeiras
alusões à ressurreição final na Bíblia, e mostra que para o salmista não apenas o
262
Ainda que hajam exceções pontuais, como Enoque e Elias, que não passaram pela morte porque foram
arrebatados vivos, como os crentes serão na volta de Jesus.
263
#6299 da Concordância de Strong.
558
O estado dos mortos no Sheol 559
Observe ainda que ele seria resgatado do Sheol, que é onde ele estaria antes
disso, e que só então veria a Deus, o que fica claro na sequência do verso (“...e me
levará para si”). Para o salmista, portanto, ele desceria de corpo e alma ao Sheol, e
dali seria resgatado em algum momento para a presença do Senhor (o que ocorrerá
na ressurreição dos mortos). Isso confronta toda a visão de que só os ímpios vão ao
Mesmo Jó, o homem mais justo de sua época (Jó 1:8), disse que “o único lar
pelo qual espero é o Sheol” (Jó 17:13), o que prova definitivamente que o Sheol não
era uma morada exclusiva dos ímpios (como o inferno ou qualquer coisa que o
valha). O próprio Ezequias, que é descrito como um rei que “fez o que era bom e
certo, e em tudo foi fiel diante do Senhor, do seu Deus” (2Cr 31:20), estava certo de
que iria para o Sheol caso morresse: “No vigor da minha vida tenho que passar pelas
portas da sepultura [Sheol] e ser roubado do restante dos meus anos?’” (Is 38:10).
Semelhantemente, quando Deus livrou Davi das mãos de Saul, que queria matá-lo,
meu Deus. Do seu templo ele ouviu a minha voz; o meu grito de socorro
chegou aos seus ouvidos” (2ª Samuel 22:5-7)
debaixo da terra estão no Sheol, sejam eles justos ou ímpios, o que explica por que
559
O estado dos mortos no Sheol 560
morte. Isso refuta o ensino tradicional de que vamos ao céu após a morte, uma vez
que, como vimos, o céu é sempre apresentado em oposição ao Sheol, não como
uma parte do mesmo. Sendo assim, é evidente que o espírito que volta para Deus
na morte (Ec 12:7) não é uma alma imortal, como creem os imortalistas, mas o
que popularmente conhecemos –, Jacó jamais teria dito que desceria ao Sheol para
junto de seu filho José (Gn 37:35), a não ser que ele pensasse que ele e seu filho
eram ímpios que queimariam juntos no quinto dos infernos. Jó também jamais teria
até passar a tua ira!” (Jó 14:13). Quem em sã consciência desejaria ir para o inferno?
Neste caso, Jó estaria desejando algo pior do que a vida horrível que ele tinha
naquele momento, o que não faz o menor sentido. Como também não faz o menor
sentido queimar um lugar que já está queimando, como Deus diz que faria com o
Sheol:
“Pois um fogo foi aceso pela minha ira, fogo que queimará até às
profundezas do Sheol. Ele devorará a terra e as suas colheitas e consumirá os
Até mesmo Russell Norman Champlin, que não apenas tem um livro
defendendo a imortalidade da alma como ainda tem uma abordagem espírita sobre
560
O estado dos mortos no Sheol 561
grega, e desde então o Sheol passou a ser entendido por alguns como algo
“terra de sombras e densas trevas” (Jó 10:21), uma “terra tenebrosa como a noite”
(Jó 10:22) e uma terra de esquecimento e de escuridão (Sl 88:12). Isso contrasta com
a visão de que o Sheol é um “inferno” onde os ímpios estão queimando, pois onde
há fogo, há luz. A única conclusão que nos resta é que o Sheol não é nem o céu nem
mortos.
que dizem que apenas os ímpios descem ao Sheol –, mas também que o Sheol
264
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo:
Candeia, 2000. v. 2, p. 880.
561
O estado dos mortos no Sheol 562
de Deus e de todos os santos que partiram desta vida. Isso porque todos esses
textos têm uma coisa em comum: as pessoas envolvidas (Davi, Ezequias e etc) não
queriam ir ao Sheol de jeito nenhum, apesar de saberem que é para onde iriam
caso morressem.
em que o Hades aparece no NT, não vemos uma única pessoa desejando ir para lá.
A única exceção é Jó, que estava tão arruinado e desolado que desejava ir ao Sheol,
não porque achasse que o Sheol era alguma coisa boa, mas porque na condição em
que se encontrava preferia a morte do que a vida (Jó 14:13, 17:13). Isso deveria
chamar a atenção de todos aqueles que pensam que os justos iam para uma “parte
boa” do Sheol conhecida como o “Seio de Abraão”: se isso é verdade, por que
todos os santos falecidos, um lugar de paz e tranquilidade, onde não há mais dor
nem sofrimento, onde não há quem o fira nem quem o persiga, e onde tudo o que
é mau já ficou para trás, por que raios todos os justos do AT desejavam com todas
as forças não ir para lá? Não é preciso ser um Sherlock Holmes para perceber que
Sempre que algum personagem bíblico estava prestes a descer ao Sheol, ele
fazia questão de orar a Deus clamando para que isso não acontecesse (Is 38:17-19;
Sl 6:4-5), e quando Deus livrava um justo da morte, ele agradecia por não ter
descido ao Sheol (2Sm 22:5-7; Sl 18:5-6, 30:3, 116:2-6; Is 38:10). O Sheol nunca foi
562
O estado dos mortos no Sheol 563
(Sl 88:12), a “cova da corrupção” (Is 38:17) e o lugar de completa inatividade (Ec
9:10). “Mais vale um cão vivo do que um leão morto” (Ec 9:4), porque quem morreu
“não sabe coisa nenhuma” (Ec 9:5) e tem sua memória “entregue ao esquecimento”
(Ec 9:5).
Quando estava prestes a descer ao Sheol, o salmista disse que “a minha alma
está cheia de angústia, e a minha vida se aproxima da sepultura [Sheol]” (Sl 88:3). A
palavra aqui traduzida por “angústia” é o hebraico ra`, que significa «ruim, mau,
como o salmista estaria se sentindo desse jeito sabendo que estava tão perto de se
encontrar com Abraão, Moisés, seus entes queridos e talvez até com Deus no Sheol.
ao céu. Ou Deus teve o péssimo gosto de reservar para os santos milhares de anos
numa morada desagradável e indesejável, ou o Sheol não tinha nada a ver com um
O salmista também diz que “grande é o teu amor para comigo; tu me livraste
das profundezas do Sheol” (Sl 86:13). Livrar do Sheol era um sinal do amor de Deus
pelo salmista, o que demonstra mais uma vez que o Sheol era um lugar indesejável.
Quando o salmista pergunta “que homem pode viver e não ver a morte, ou livrar-
se do poder da sepultura [Sheol]?” (Sl 89:48), ele está novamente nos mostrando
que o Sheol é um lugar para onde nem ele, nem pessoa alguma desejava ir. Assim
como ninguém em sã consciência diria que deseja “se livrar do céu”, ninguém diria
265
#7451 da Concordância de Strong.
563
O estado dos mortos no Sheol 564
que deseja se livrar do Sheol se o Sheol fosse um lugar bom, como uma “antessala”
do céu.
Diante disso, está claro que o Sheol não era o céu nem um lugar análogo ao
céu, da mesma forma que não era o inferno nem análogo ao inferno. Todas as
descrições do Sheol, bem como o sentimento de pavor diante dele, descrevem com
perfeição os sentimentos de quem sabe que o Sheol nada mais era que as regiões
subterrâneas da terra, onde o corpo repousaria inconsciente. Isso explica por que
ninguém desejava descer ao Sheol, exceto Jó, cuja aflição era tamanha que até
mesmo o Sheol era encarado com bons olhos, assim como muitos que vivem em
amargura e sofrimento preferem a morte para não ter que viver mais.
vida conduz para cima quem é sensato, para que ele não desça à sepultura [Sheol]”
(Pv 15:24). Será que esse verso se opõe a todo o caminhão de textos que atestam
com toda a clareza que o Sheol é o destino de toda a humanidade? Não tão cedo.
Embora a NVI tenha traduzido por «conduz para cima», o “conduz” (yabal ou
Palavra Tradução
’orach caminho
chay vida
564
O estado dos mortos no Sheol 565
ma àn por causa de
Sheol –
mattah embaixo
A Bible in Basic English traduz por: Acting wisely is the way of life, guiding a
man away from the underworld (“Agir sabiamente é o caminho da vida, guiando o
homem para longe do submundo”). Uma tradução mais precisa e literal, com o
mesmo sentido, seria: “Ser prudente é um caminho mais alto (ou mais elevado) de
Sheol”). Em outras palavras, o texto não está falando sobre ir para o céu, mas de
O mesmo termo ma àl que a NVI traduziu como “para cima”, mas que
também pode ser traduzido como “mais alto” ou “mais elevado”, aparece em Dt
ele; ele será por cabeça, e tu serás por cauda” (Deuteronômio 28:43-44)
até o céu, como se estivesse falando do destino de sua alma. “Elevar”, aqui, diz
Numerosos textos expressam um sentido semelhante. Em Jó, lemos que Deus “faz
chover sobre a terra e envia águas sobre os campos, para pôr os abatidos num lugar
565
O estado dos mortos no Sheol 566
alto e para que os enlutados se alegrem da maior ventura” (Jó 5:10-11). O Salmo 20
No Salmo 91, vemos Deus dizendo que “também eu o livrarei; pô-lo-ei num
alto retiro, porque conheceu o meu nome” (Sl 91:14). Alguns salmos adiante, ele
diz que “torre forte é o nome do Senhor; a ela correrá o justo, e estará em alto
refúgio” (Pv 18:10). Todos esses textos usam verbos hebraicos que significam
«elevar» ou «ser colocado no alto»266, mas obviamente não estão falando do céu,
céu, mas uma vida com prudência. Viver sabiamente é o “caminho mais alto” que
afasta o homem do Sheol, ou seja, da morte. Isso não significa que uma pessoa
sábia não vá para o Sheol um dia, pois, como vimos, era um consenso que todos os
que os sábios evitarão trilhar caminhos que levam à morte precoce, pois ter vida
longa na terra é uma das tônicas principais tanto de Provérbios como do AT como
(Provérbios 10:27)
266
#7682 da Concordância de Strong.
566
O estado dos mortos no Sheol 567
➢ “Ouça, meu filho, e aceite o que digo, e você terá vida longa” (Provérbios
4:10)
➢ “Na mão direita, a sabedoria lhe garante vida longa; na mão esquerda,
➢ “Pois por meu intermédio os seus dias serão multiplicados, e o tempo da sua
➢ “Meu filho, não se esqueça da minha lei, mas guarde no coração os meus
mandamentos, pois eles prolongarão a sua vida por muitos anos e lhe
sentido que Pv 15:24 deve ser entendido. Assim, “se afastar do Sheol” não significa
“nunca ir ao Sheol”, mas multiplicar seus dias de vida na terra de modo a retardar o
quanto possível a ida ao Sheol (i.e, a morte). Isso é reconhecido até mesmo por
567
O estado dos mortos no Sheol 568
sábios evitam o Sheol o máximo que podem, sendo sábios. Viver com
homem sábio que teme ao Senhor (Pv 1:7) é recompensado com vida
30:3, que diz: “Senhor, da cova [Sheol] fizeste subir a minha alma; preservaste-me a
vida para que não descesse à sepultura”. A preservação da vida, neste caso, está
atrelada ao fato da alma não ter descido ao Sheol, o que teria acontecido se Deus
não tivesse estendido os dias de vida do salmista. Isso obviamente não significa que
mas que Deus o livrou de uma ida precoce ao Sheol ao livrá-lo da morte. O próprio
autor de Provérbios volta a expressar este sentido no capítulo 23, onde diz:
267
CONSTABLE, Thomas. "Commentary on Proverbs 15:24". Dr. Constable's Expository Notes (2012).
268
ELLICOTT, Charles John. "Commentary on Proverbs 15:24". Ellicott's Commentary for English Readers
(1905).
568
O estado dos mortos no Sheol 569
“Não evite disciplinar a criança; se você a castigar com a vara, ela não
Sheol”, já que o hebraico traz aqui nephesh e Sheol. Isso não se opõe aos inúmeros
textos bíblicos que mostram a alma de pessoas justas no Sheol, porque a intenção
não era dizer que o filho jamais morreria, mas que não morreria precocemente, por
desobedecer aos pais. Não à toa, Paulo diz que “honra teu pai e tua mãe’ é o
primeiro mandamento com promessa: ‘Para que tudo te corra bem e tenhas longa
vida sobre a terra’” (Ef 6:2-3). Caso semelhante seria se eu dissesse a um fumante
compulsivo: “Se você continuar fumando assim, você vai morrer”. Obviamente ele
não entenderia que se não fumasse nunca morreria, mas que fumando morrerá
mais cedo.
qualquer parte do AT que o justo vai pro céu depois da morte. Pelo contrário, somos
sempre informados que o lar dos salvos é a terra, tanto no Antigo (Sl 37:29, 25:3; Pv
2:21) como no Novo Testamento (Mt 5:5; Ap 21:2-3). Se Pv 15:24 estivesse falando
de ir morar no céu após a morte, este texto não só seria uma exceção à regra, mas
Provérbios, que diz que “os justos habitarão na terra, e os íntegros nela
permanecerão” (Pv 2:21). Se para ele os justos habitarão na terra, ele não pode estar
569
O estado dos mortos no Sheol 570
textos que os imortalistas usam para dizer que vamos imediatamente ao céu após
a morte; do outro, todo o testemunho bíblico que unanimemente atesta que o lar
“partir e estar com Cristo” (Fp 1:23) e o “hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23:43)
como uma alma que sai do corpo em direção ao céu é frustrada pelo realismo
ao afirmar que o ladrão estaria naquele mesmo dia no Paraíso, eles são obrigados
a concluir que o Paraíso fica no Sheol, como afirma Pickering ao comentar o texto:
“’Paraíso’ aqui diz respeito à metade do Hades (Sheol no AT) destinada aos finados
justos. Hades é tipo a ‘sala de espera’ onde os espíritos dos finados aguardam o
juízo final. Em Lc 16:22 leva o nome de ‘seio de Abraão’”269. Mas se o Paraíso está no
Hades, e Jesus classificou o Hades como antagônico ao céu (Mt 11:23), como
explicar o texto em que Paulo diz que o Paraíso está justamente no céu?
terceiro céu. Se foi no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe. E sei que
esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei, mas Deus o sabe – foi
arrebatado ao paraíso e ouviu coisas indizíveis, coisas que ao homem não é
permitido falar” (2ª Coríntios 12:2-4)
269
PICKERING, Wilbur. Comentários em Lucas 23:43. Disponível em: <https://www.prunch.com.br/wp-
content/uploads/2020/01/Lucas.pdf>. Acesso em: 13/09/2020.
570
O estado dos mortos no Sheol 571
No verso 2, Paulo diz que foi arrebatado ao terceiro céu, onde ouviu coisas
indizíveis da parte de Deus. Ele abre um parêntesis no verso 3 para sublinhar que
não sabia se estava lá fisicamente, e então volta a dizer que foi arrebatado ao
Paraíso, retomando o ponto anterior. Isso prova que o Paraíso está no terceiro céu,
onde Paulo foi arrebatado. O Paraíso, portanto, não era um nome dado à “metade
do Hades”(!) ou ao tal “Seio de Abraão”, mas a uma parte do próprio céu, onde Deus
que “ao vencedor darei o direito de comer da árvore da vida, que está no paraíso
de Deus” (Ap 2:7). Aqui vemos que a árvore da vida está no Paraíso, mas no capítulo
22 vemos a árvore da vida presente na «cidade santa» (Ap 22:2, 14, 19), chamada de
«a Nova Jerusalém» (Ap 21:2), a mesma que desce dos céus à terra ao final do
milênio, para ser a morada eterna dos santos (Ap 21:2-3). Isso significa que o Paraíso
está hoje no céu, mas um dia descerá à terra e aqui estará para sempre, à
semelhança do jardim do Éden, que Deus criou como um paraíso terrestre onde a
outros imortalistas que literalizam a parábola do rico e Lázaro. O Hades não é o céu
conclusão de que o ladrão da cruz não esteve naquele mesmo dia com Jesus no
Paraíso, uma vez que o seu destino, como o de todos os demais, era descer ao
Sheol/Hades, em vez de subir ao Paraíso (no terceiro céu). O ladrão não poderia
571
O estado dos mortos no Sheol 572
de Deus.
parte do problema, alguns criaram a ideia de que os mortos iam para o Sheol até a
morte de Cristo, quando então Jesus tirou os salvos dali e os transportou ao céu,
deixando no Sheol apenas os ímpios. Desde então, dizem eles, o justo que morre
vai direto pro céu, mas o ímpio continua descendo ao Sheol. Como é óbvio, essa
respaldo bíblico, embora não faltem textos mutilados com este objetivo. Em seu
livro, toda a argumentação de Natanael Rinaldi a este respeito se limita a isso aqui:
“Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu
dons aos homens. Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia
270
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 98.
572
O estado dos mortos no Sheol 573
se sinta sozinho. Não se espante se às vezes (ou sempre) eles enxergarem coisas
sinistras nos textos que simplesmente não estão ali. Para quem acredita em
fantasminha fora do corpo, enxergar coisas a mais nos textos é fichinha. Talvez até
estejam ali, mas nós não conseguimos ver porque são tão invisíveis quanto a alma
tão surreal que chega a ser criticada até por teólogos imortalistas de calibre mais
271
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 371.
272
ibid.
573
O estado dos mortos no Sheol 574
NVI traduz por “levou cativo muitos prisioneiros, e deu dons aos homens” (Ef 4:8).
Teria Jesus feito os salvos de prisioneiros, levando-os cativos para o céu? A simples
Na verdade, Paulo estava apenas citando o Salmo 68:18, que por sua vez
guerra, distribuindo-os entre si e com o seu povo. Foi isso o que Jesus fez quando
triunfou sobre as forças das trevas na cruz do Calvário e em sua ressurreição: ele
imortalistas mais militantes, como Calvino). Era ponto pacífico que o “levou cativo
273
#161 da Concordância de Strong.
274
#161 do léxico de Thayer.
574
O estado dos mortos no Sheol 575
potestades, não uma remoção dos salvos do “Seio de Abraão” para o céu.
Podemos começar com o famoso teólogo metodista Adam Clarke (1760-1832), que
Ele não apenas subjuga seu inimigo, mas ele conduz seus cativos em
soldados; compare também Jz 5:30, onde parece que este também era
275
CLARKE, Adam. “Commentary on Ephesians 4:8”. The Adam Clarke Commentary (1832).
276
BARNES, Albert. "Commentary on Ephesians 4:8". Barnes' Notes on the Whole Bible (1870).
575
O estado dos mortos no Sheol 576
John Gill (1697-1771), ministro batista do século XVIII e autor de uma conceituada
público.277
Jamieson (não o que você está pensando, mas o autor de um dos comentários
da destruição do inimigo.278
277
GILL, John. "Commentary on Ephesians 4:8". The New John Gill Exposition of the Entire Bible (1999).
278
JAMIESON, Robert, D.D.; FAUSSET, A. R.; BROWN, David. "Commentary on Ephesians 4:8".
Commentary Critical and Explanatory on the Whole Bible (1871).
576
O estado dos mortos no Sheol 577
Quando subiu ao alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens.
extraordinários do Espírito.280
279
VINCENT, Marvin R. DD. "Commentary on Ephesians 4:8". Vincent's Word Studies in the New Testament
(1887).
280
WESLEY, John. "Commentary on Ephesians 4:8". John Wesley's Explanatory Notes on the Whole Bible
(1765).
577
O estado dos mortos no Sheol 578
281
TRAPP, John. "Commentary on Ephesians 4:8". John Trapp Complete Commentary (1865).
282
PETT, Peter. "Commentary on Ephesians 4:8". Peter Pett's Commentary on the Bible (2013).
283
WHEDON, Daniel. "Commentary on Ephesians 4:8". Whedon's Commentary on the Bible (1874).
578
O estado dos mortos no Sheol 579
mesma verdade, que por meio da cruz Cristo derrotou seus inimigos
livres do terror da morte (Hb 2:14-15). Eles estão livres dos enganos
do diabo (Ef 4:14; 2Co 2:11). Eles têm as armas para resistir aos ataques
aos seus seguidores. Assim, Cristo venceu. Ele destruiu aquele que
tem o poder da morte, ou seja, o diabo. Ele libertou aqueles que pelo
armado, guarda sua casa, seus bens estão seguros. Mas quando
284
DUNAGAN, Mark. "Commentary on Ephesians 4:8". Mark Dunagan Commentaries on the Bible (1999).
579
O estado dos mortos no Sheol 580
Até mesmo Calvino (1509-1564), a quem muito se deve o fato da Reforma ter
que de qualquer outra forma. Ele não só obteve uma vitória completa
partir dos rebeldes ele forma todos os dias “um povo voluntário” (Sl
carne. Por outro lado, seus inimigos – cuja classe todos os homens
são impedidos por seu poder de exercer sua fúria além dos limites que
ele designa.286
das trevas (Satanás, o pecado e o mal). Aquilo que os comandantes de guerra faziam
com o exército derrotado é usado como metáfora para ilustrar o que Jesus fez
285
HODGE, Charles. "Commentary on Ephesians 4:8". Hodge's Commentary on Romans, Ephesians and
First Corintians.
286
CALVIN, John. "Commentary on Ephesians 4:8". Calvin's Commentary on the Bible (1840).
580
O estado dos mortos no Sheol 581
não tem nada a ver com levar cativo os próprios salvos ao céu, numa viagem
vários textos bíblicos que expressam a mesma ideia, como Cl 2:13-15, que diz:
Ambos os textos falam daquilo que Jesus fez ao triunfar sobre o inimigo na cruz,
despojo/presentes. No caso de Ef 4:8, é dito que Cristo «deu dons (presentes) aos
homens», o que, como vimos, era uma prática recorrente do exército vitorioso, que
não se referem a uma ida dos salvos ao céu, mas aos dons ministeriais, como
prossegue Paulo:
deu dons aos homens. Que significa ‘ele subiu’, senão que também descera
às profundezas da terra? Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de
todos os céus, a fim de encher todas as coisas. E ele designou alguns para
581
O estado dos mortos no Sheol 582
povo para o céu só veio a surgir em tempos recentes, quando teólogos imortalistas
sórdido que justificasse a ida imediata da alma do salvo ao céu após a morte, sem
ter que negar a clareza de tantos textos bíblicos do AT que expressamente colocam
caiu como uma luva, ao deslocarem os salvos de um lugar para outro depois da
de Hb 2:13, que diz: “Aqui estou eu com os filhos que Deus me deu”. Para alguns
imortalistas, isso significaria que quando Cristo entrou no céu ele veio
nisso que consistiria a frase «aqui estou eu com os filhos que Deus me deu». O
problema com essa interpretação é que o próprio verso seguinte explica quando
“Portanto, visto que os filhos são pessoas de carne e sangue, ele também
participou dessa condição humana, para que, por sua morte, derrotasse
aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo” (Hebreus 2:14)
582
O estado dos mortos no Sheol 583
Como se vê, o autor não estava falando de almas imateriais fora do corpo,
mas de pessoas de carne e sangue (αἵματος καὶ σαρκός). Uma vez que um espírito
não tem carne ou sangue, é evidente que ele não estava falando de almas fora do
corpo, mas de pessoas fisicamente presentes. Por isso o texto prossegue dizendo
que Jesus «participou dessa condição humana», já que se referia não ao que Jesus
fez entre a sua morte e ressurreição, mas justamente à sua encarnação. Em outras
palavras, os “filhos que Deus me deu” são os homens e mulheres que seguiram
Jesus quando ele esteve na terra, não um grupo de almas fantasmagóricas que
Outro texto por vezes usado para provar que Jesus tirou os salvos do seio de
“Sou aquele que vive. Estive morto mas agora estou vivo para todo o sempre!
E tenho as chaves da morte e do Hades” (Apocalipse 1:18)
Um bom observador deve ter notado que não há nada no texto que sugira
claramente ir “além daquilo que está escrito” (1Co 4:6). A bem da verdade, o texto
nem sequer diz que Jesus tomou as chaves do diabo, só diz que ele está em posse
das chaves. Presumimos isso justamente por causa de textos como Cl 2:13-15 e Ef
4:8, que mostram o triunfo espiritual de Cristo sobre as forças das trevas, por
583
O estado dos mortos no Sheol 584
A ideia transmitida nestes textos não é que Jesus foi ao inferno e ali
literalmente arrancou as chaves das mãos do diabo, mas que Cristo, como “as
primícias dos que dormem” (1Co 15:23), venceu o império da morte por meio de
dia, quando seremos ressuscitados do Hades assim como ele foi. Por isso Paulo diz
que “da mesma forma como em Adão todos morrem, em Cristo todos serão
vivificados. Mas cada um por sua vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele vier, os
Paulo diz que Cristo, “tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles
um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Cl 2:15). Obviamente, ele não
estava falando de um espetáculo público literal enquanto Jesus morria na cruz, mas
humilhadas espiritualmente. Da mesma forma, Jesus não tomou as chaves das mãos
do diabo literalmente, como creem certas pessoas que chegam a afirmar que Jesus
desceu até o inferno, assim como não entregou uma chave literal para Pedro (Mt
autoridade. Quando Jesus diz que tem as chaves da morte e do Hades, o que ele
quer dizer é que toda autoridade lhe foi dada (Mt 28:18), até mesmo sobre o
império da morte.
E uma vez que Jesus tem a autoridade sobre o Hades, ele pode ressuscitar
qualquer pessoa dali, no último dia. É isso o que Paulo alude em 1Co 15:54-55, que
diz:
584
O estado dos mortos no Sheol 585
(que, como vimos, é o equivalente ao Sheol do AT). Este texto prova que os justos
momento que Paulo diz que o Hades será derrotado. Se os justos já tivessem
deixado o Hades após a morte de Cristo, o Hades já teria sido derrotado há milhares
de anos. E antes que alguém diga que essa ressurreição da qual Paulo se refere diz
respeito apenas aos ímpios, Paulo claramente fala em nome dos cristãos quando
diz que “nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados” (v. 51), e
dos mortos veio por meio de um só homem. Pois da mesma forma como em
Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados. Mas cada um por sua
vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele vier, os que lhe pertencem”
justamente a ressurreição dos justos, que a morte não consegue reter. Assim, está
volta de Jesus, quando então o próprio Hades será derrotado. Isso não apenas
585
O estado dos mortos no Sheol 586
céu, como refuta a separação esdrúxula que os imortalistas fazem entre o Hades
para os ímpios e o “Seio de Abraão” para os justos. Para Paulo, os próprios justos
Corrobora com isso o fato de Paulo citar o texto de Oséias, onde Deus diz:
as suas pragas? Onde está, ó sepultura [Sheol], a sua destruição?” (Os 13:14). Um
imortalista desprevenido que lesse esse texto fora do contexto poderia pensar que
o texto fala das almas transferidas do Sheol para o céu por ocasião da morte de
Jesus, mas Paulo cita este mesmo texto e o aplica à ressurreição na volta de Jesus,
um evento futuro no qual os justos ressuscitarão (1Co 15:52-55). Isso significa que
séria de que Jesus transferiu os justos do Sheol para o céu, onde Deus habita. Os
poucos textos citados para este fim não passam de distorções bizarras e
vergonhosas, que só servem para demonstrar o quanto eles precisam apelar aos
doutrina que eles criaram. Ao invés de tirar suas conclusões a partir da Bíblia, eles
textos mais simples para encaixar neles a imortalidade da alma, pois sem apelar
A razão por que os imortalistas tiveram que criar esse arranjo teológico é
586
O estado dos mortos no Sheol 587
textos que eles usam para dizer que vamos imediatamente ao céu após a morte
com os textos que dizem que o destino de todos é o Sheol, embaixo da terra. Como
vimos, de acordo com eles, Jesus prometeu ao ladrão da cruz que estaria naquele
mesmo dia com ele no Paraíso (Lc 23:43), que segundo Paulo fica no terceiro céu,
onde Deus habita (2Co 12:2-4). No entanto, se Jesus esteve no Hades após a morte
(At 2:27) e se o Sheol/Hades é o destino de todos os que morrem (Jó 3:19; Sl 49:15,
31:17), como o ladrão da cruz poderia estar naquele mesmo dia no Paraíso?
Da mesma forma, eles dizem que Paulo esperava estar com Cristo como um
espírito incorpóreo num estado intermediário (Fp 1:23), e sabemos que Jesus está
assentado à direita do Pai, no céu (At 7:56; Lc 22:69). Mas se todos descem ao Sheol
na morte, como Paulo poderia estar no céu? E como poderia Abraão estar no céu
com Deus, se na parábola do rico e Lázaro (que eles interpretam literalmente) ele
entregar o espírito a Deus (Lc 23:46; At 7:59), se eles iriam para o Sheol/Hades após
a morte, e não para a presença de Deus no céu? Apelar para a onipresença de Deus
não resolve o problema, pois se fosse assim nós já estaríamos na presença de Deus
hoje, já que a onipresença dEle obviamente abrange a própria terra. A única solução
seria dizer que o Sheol/Hades está no próprio céu onde Deus habita visivelmente,
mas, como vimos, isso esbarra em todos os textos que contrastam um e outro – o
587
O estado dos mortos no Sheol 588
já que desde os tempos do AT Salomão já dizia que o espírito voltava para Deus na
morte (Ec 12:7), o que para os imortalistas se refere à alma imortal. O próprio fato
deles precisarem apelar para uma tese tão esdrúxula e sem qualquer fundamento
uma engenharia colossal para explicar o inexplicável, à custa dos textos bíblicos
barbaramente sacrificados.
sepultura, e por isso não podem ser o mesmo. Rinaldi, por exemplo, escreve que
o lugar do corpo, enquanto que Sheol (Hades) é o lugar do espírito e da alma” 287.
De fato, ele acerta quando diz que o Sheol não é uma mera sepultura individual, já
entanto, é simplesmente falso, para usar um termo mais suave, que «qeber é o lugar
do corpo, enquanto que Sheol é o lugar do espírito e da alma». Quem afirma isso o
Isso me faz lembrar uma antiga querela que tive com o pastor imortalista
desafio:
287
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 94.
588
O estado dos mortos no Sheol 589
“a minha refutação está guardada”, mas deve ter guardado tão bem que perdeu, e
até hoje (2022) não saiu nada. A verdade é que os imortalistas são tão fracos de
Bíblia que fazem afirmações das mais categóricas e desafios dos mais ousados em
torno de coisas das quais desconhecem por completo. Nenhum deles sequer se deu
categoria.
exército de Israel na época do rei Davi. Em seu leito de morte, o rei diz a seu filho e
herdeiro Salomão: “Mas, agora, não o considere inocente. Você é um homem sábio
e saberá o que fazer com ele; apesar de ele já ser idoso, faça-o descer
Sheol, no hebraico. A não ser que o espírito de Joabe sangre, é evidente que Davi
falava de seu corpo físico, que desceria ensanguentado ao Sheol por ser atacado e
288
Disponível em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2015/07/o-sheol-hades-e-uma-morada-de-
almas.html>.
589
O estado dos mortos no Sheol 590
“Meu filho não descerá com vocês; seu irmão está morto, e ele é o único que
resta. Se qualquer mal lhe acontecer na viagem que estão por fazer, vocês
farão estes meus cabelos brancos descerem ao Sheol com tristeza”
(Gênesis 42:38)
“Agora, pois, se eu voltar a teu servo, a meu pai, sem levar o jovem conosco,
logo que meu pai, que é tão apegado a ele, perceber que o jovem não está
conosco, morrerá. Teus servos farão seu velho pai descer seus cabelos
brancos ao Sheol com tristeza” (Gênesis 44:30-31)
Novamente vemos o verbo “descer”, porque Jacó sabia que o Sheol nada
mais era que as regiões subterrâneas da terra. Ele não esperava ir para o céu depois
da morte, nem pensava que seu espírito se separaria do corpo e iria a uma outra
dimensão. Isso porque os textos são claros em dizer que seus cabelos brancos
desceriam com ele ao Sheol, não uma alma incorpórea e fluídica. Jacó sabia
perfeitamente que não era o seu espírito que estaria no Sheol, mas seu corpo físico,
com cabelos, ossos e tudo mais. Vemos isso claramente no Salmo 141:7, que diz:
“Quando eles caírem nas mãos da Rocha, o juiz deles, ouvirão as minhas
Mais uma vez, o termo aqui traduzido por “sepultura” é Sheol, no hebraico.
Se o Sheol fica em outra dimensão, só podemos concluir que os ossos do ímpio que
590
O estado dos mortos no Sheol 591
dimensão. Isso ainda não chegaria a provar a imortalidade da alma, mas com
que os restos mortais daquele homem estavam espalhados na terra, onde em breve
seriam soterrados assim como os seguidores de Corá e todos os que morrem, mais
cedo ou mais tarde. Em nada tem a ver com um lugar no centro da terra ou em outra
corpo, é expressado com perfeição pelo salmista, que diz: “Voltem os ímpios ao pó,
todas as nações que se esquecem de Deus!” (Sl 9:17). O termo que a NVI traduz por
“pó” e que a ACF traduz por “inferno” é justamente o Sheol, no hebraico. Mas
“inferno” é uma tradução visceralmente equivocada, uma vez que o texto diz
“voltem” (shuwb, que significa «retornar, voltar»289). Ninguém volta para um lugar
onde nunca esteve; portanto, traduzir por “inferno” é um disparate. Neste sentido,
a NVI é mais coerente ao traduzir por “pó”, lembrando que “do pó viestes, e ao pó
o que ele quer dizer é que eles voltarão ao pó da terra, de onde foram feitos. Aqui,
o Sheol é claramente identificado com o pó, de onde Deus fez o corpo (Gn 2:7). É o
corpo que foi feito do pó da terra (Sheol), e é o corpo que para lá retorna na morte.
289
#7725 da Concordância de Strong.
591
O estado dos mortos no Sheol 592
Nada tem a ver com um inferno numa outra dimensão ou com qualquer “mansão
dos mortos”. Quem também relaciona o Sheol com o pó da terra é Jó, quando
exclama:
“Ora, se o único lar pelo qual espero é o Sheol; se estendo a minha cama nas
trevas; se digo à corrupção mortal: Você é o meu pai, e se aos vermes digo:
Vocês são minha mãe e minha irmã, onde está então minha esperança?
Quem poderá ver alguma esperança para mim? Descerá ela às portas do
Sheol? Desceremos juntos ao pó?” (Jó 17:13-16)
Jó não estava dizendo que iria para o inferno e que ali seria comido por
vermes metafísicos, mas apenas que voltaria ao pó, onde seu corpo mortal viraria
comida para os vermes. Por isso ele conclui dizendo: “Descerá ela às portas do
Sheol? Desceremos juntos ao pó?” (v. 16). O paralelismo entre as «portas do Sheol»
e o «pó» mostra claramente que Jó equiparava ambos, como sendo idênticos (como
do verso o mesmo que havia sido dito na parte anterior, mas com outras palavras).
“silente, empoeirado e escuro lugar para onde Deus disse a Adão que ele e seus
volta a ser pó, como disse Deus (Gn 3:19). Por isso Jó falou em descer ao pó, uma
linguagem que diz respeito à morte, quando seria enterrado embaixo da terra.
290
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 155.
592
O estado dos mortos no Sheol 593
ciclo da vida.
Este significado torna-se ainda mais nítido à luz do Salmo 49, que diz:
o Sheol que aparece no original hebraico. Literalmente, o que o salmista dizia era
incorpóreo com uma aparência que se desfaz numa outra dimensão ou no centro
da terra. O termo aqui traduzido por “desfará” no hebraico é balah, que significa
quem não aceita a clareza dos textos bíblicos são os dualistas, seja por uma
ignorância invencível, seja por uma obstinação ainda mais difícil de se derrotar.
em tantos textos, se não fosse pela necessidade patológica que os imortalistas têm
291
#1086 da Concordância de Strong.
593
O estado dos mortos no Sheol 594
em encontrar um lugar para colocar a alma dos mortos fora do corpo, o que os leva
Embora seja errado limitar o Sheol a uma sepultura individual (qeber), as sepulturas
são enterradas na terra, ou seja, no Sheol. Por essa razão, todos os que estão
sepultados estão no Sheol, embora nem todos os que estejam no Sheol foram
foram engolidos vivos pela terra, e outros tantos cadáveres são privados de
sepultura). Essa relação íntima entre o Sheol e a sepultura (ou cova) explica os tantos
textos bíblicos que equivalem ambos (em vez de contrastá-los, como afirma
Rinaldi).
os resgatarei da morte. Onde estão, ó morte, as suas pragas? Onde está, ó sepultura,
a sua destruição?” (Os 13:14). O termo aqui traduzido por “sepultura”, no hebraico,
é o Sheol. Paulo cita esse mesmo texto em 1Co 15:55, ao falar da ressurreição da
salmista escreve:
594
O estado dos mortos no Sheol 595
“Por isso o meu coração se alegra e no íntimo exulto; mesmo o meu corpo
nephesh sh'owl (“não abandonarás minha alma no Sheol”). É ali, no Sheol, que o seu
corpo repousaria tranquilo, e onde sua alma não sofreria decomposição (observe o
paralelismo hebraico, que iguala corpo e alma). Isso refuta ao mesmo tempo a ideia
de que o corpo não vai pro Sheol e de que a alma é um elemento incorpóreo que
O mais interessante é que Pedro aplica este texto a Jesus, que não foi
dia (At 2:27). Logo após citar o salmo em questão, ele declara:
“Irmãos, posso dizer-lhes com franqueza que o patriarca Davi morreu e foi
sepultado, e o seu túmulo está entre nós até o dia de hoje. Mas ele era
profeta e sabia que Deus lhe prometera sob juramento que colocaria um dos
seus descendentes em seu trono. Prevendo isso, falou da ressurreição do
Cristo, que não foi abandonado no sepulcro e cujo corpo não sofreu
decomposição” (Atos 2:29-31)
Davi disse que sua alma não seria abandonada no Sheol nem sofreria
decomposição (Sl 16:9-10), e Pedro, ao citar este verso (At 2:27), o aplica
595
O estado dos mortos no Sheol 596
profeticamente a Jesus, cujo corpo não sofreu decomposição no túmulo. Isso prova
que, para Pedro, não havia diferença substancial entre a alma e o corpo, e tampouco
túmulo, como Pedro disse. Portanto, no salmo e no uso do salmo por parte de Pedro
“Ó Senhor, Deus que me salva, a ti clamo dia e noite. Que a minha oração
chegue diante de ti; inclina os teus ouvidos ao meu clamor. Tenho sofrido
tanto que a minha vida está à beira da sepultura! Sou contado entre os que
descem à cova; sou como um homem que já não tem forças. Fui colocado
junto aos mortos, sou como os cadáveres que jazem no túmulo, dos quais já
dizendo que sua alma sairia do corpo rumo a uma outra dimensão na presença de
596
O estado dos mortos no Sheol 597
Deus, que seria o Sheol. No entanto, essa ideia é fortemente combatida nos versos
seguintes, onde ele complementa o seu pensamento dizendo estar contado entre
os que descem à cova (v. 4), como os cadáveres que jazem no túmulo (v. 5). Em
Vemos algo semelhante no Salmo 30, onde o salmista diz: “Senhor, tiraste-
traduzido significa “tiraste minha alma do Sheol”. Note que ele não apenas diz que
sua alma foi “tirada” do Sheol, mas que estava prestes a descer à cova. Esse texto foi
hebraico, que diz: Yhovah `alah nephesh sh'owl chayah yarad bowr, o qual,
Sheol era igualado à cova, e não a um lugar em uma outra dimensão. Era o local
vivos, como a sepultura engole os mortos; vamos destruí-los inteiros, como são
destruídos os que descem à cova” (Pv 1:12). Como você já deve suspeitar, o termo
aqui traduzido por “sepultura” é o Sheol, no hebraico. Aqui, o Sheol é mais uma vez
igualado à cova (bowr), que aparece 67 vezes na Bíblia, e nunca designa um lugar
597
O estado dos mortos no Sheol 598
numa outra dimensão. Todas as vezes que a palavra é usada, é para se referir a uma
cova literal, cavada na terra (que pode servir de poço, sepultura, cisterna e etc)292.
Jó também diz que “assim como o calor e a seca depressa consomem a neve
derretida, assim a sepultura consome os que pecaram” (Jó 24:19). À essa altura, creio
que não seja preciso dizer qual palavra consta no original hebraico do termo aqui
traduzido por “sepultura”. O mais importante é que o texto diz que o Sheol consome
os que pecaram, da mesma forma que o calor consome a neve derretida. Essa é uma
se decompõe até voltar ao pó de onde veio – como a neve que se derrete e já não
é mais neve –, mas nada compatível com um espírito imortal e imaterial, além de
incorruptível.
Outro texto que mostra com clareza o vínculo entre o Sheol e a sepultura
está em Isaías 38, onde o rei Ezequias, que estava à beira da morte, agradece pelos
“Foi para o meu benefício que tanto sofri. Em teu amor me guardaste da cova
da destruição; lançaste para trás de ti todos os meus pecados, pois a
sepultura não pode louvar-te, a morte não pode cantar o teu louvor. Aqueles
que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade. Os vivos, somente
os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo; os pais contam a tua fidelidade
a seus filhos” (Isaías 38:17-19)
292
Confira em: <https://biblehub.com/hebrew/strongs_953.htm>. Acesso em: 30/09/2020.
598
O estado dos mortos no Sheol 599
O hebraico deste texto tem uma série de nuances que passam despercebidas
na tradução defeituosa ao português. Primeiramente, na parte que diz que «em teu
ele disse literalmente é que Deus, ao livrá-lo da morte, livrou sua alma de descer à
cova (do hebraico shachath, que significa «cova, destruição, sepultura»293). Isso
responde o inocente desafio do pastor Jamierson, que pediu um texto bíblico onde
a alma está na sepultura (na verdade, como vimos no capítulo 3, há muitos textos
Logo após louvar a Deus por ter livrado sua alma da cova, Ezequias conclui:
“Pois a sepultura não pode louvar-te...” (v. 18). Aqui, “sepultura” é a tradução do
hebraico Sheol, o que não só mostra que não há louvor no Sheol (refutando
conscientes), mas também iguala o Sheol à cova-shachath, uma vez que o texto é
uma conclusão que completa o sentido do verso anterior. Em outras palavras, Deus
livrou sua alma de descer à cova, porque ele não poderia louvar a Deus no Sheol.
Se o Sheol fosse algo diferente da cova citada no verso 17, o verso 18 não
claramente absurdo pelo contexto. O fato do Sheol ser identificado com a “cova da
destruição” é reforçado na continuação do próprio verso 18, que diz que «aqueles
que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade». Aqui é usada outra
palavra para cova (bowr), mas que expressa o mesmo sentido. Ezequias usa três
palavras diferentes para designar o local onde iria após a morte – shachath, Sheol e
bowr –, e ambos são igualados em absoluto. Era bastante comum um judeu usar
293
#7845 da Concordância de Strong.
599
O estado dos mortos no Sheol 600
Salmo 24:
“Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem”
(Salmos 24:1)
A segunda parte do verso diz a mesma coisa que a primeira, mas com outras
uma, do Senhor é «o que nela existe»; na outra, «os que nele vivem». A segunda
uso de palavras sinônimas ou bastante próximas, não para introduzir uma ideia
nova ao texto. Vemos isso centenas de vezes na Bíblia. Quando Isaías usa shachath,
Sheol e bowr para dizer que depois da morte ele não poderia louvar a Deus, ele
mesma ideia. Isso obviamente exige que o Sheol seja tão físico e terreno quanto a
Ralph Walter Doermann chegou à conclusão de que “os mortos eram concebidos
lugares diferentes”294. Da mesma forma que quem está em São Paulo também está
no Brasil, mas isso não significa que esteja em dois lugares diferentes, assim
também quem está na sepultura está no Sheol, porque o Sheol abrange a sepultura.
294
DOERMANN, Ralph Walter. Sheol in the Old Testament. Dissertação (Doutorado em Teologia) – Duke
University. Durham, 1961, p. 191.
600
O estado dos mortos no Sheol 601
Assim, embora o Sheol não se limite à sepultura apenas, ele está intimamente
relacionado a ela, uma vez que todos os mortos que foram sepultados estão no
Sheol.
Só não está no Sheol os mortos que não foram enterrados, como aqueles
que morreram no mar. O texto mais esclarecedor concernente a isso é o que retrata
o Hades entregando os mortos que nele havia e o mar entregando os mortos que
nele havia, o que revela que quem tinha morrido no mar não estava no Hades:
os mortos que neles havia; e cada um foi julgado de acordo com o que tinha
feito. Então a morte e o Hades foram lançados no lago de fogo. O lago de
sentido, pois retrata cada um entregando os seus mortos (ou seja, «os mortos que
neles havia»). Aqui vemos o mar entregando os mortos que nele havia (ou seja, os
que morreram no mar), enquanto o Hades entrega os mortos que nele havia (ou
seja, os que morreram na terra). Os mortos no mar não estão no Hades, justamente
porque não estão debaixo da terra (já que boiam no mar). Quem confirma isso é o
questão:
601
O estado dos mortos no Sheol 602
separada dos mortos. Mas eles também são agora levados perante o
Isso é mais uma prova avassaladora de que o Sheol/Hades nada mais é que
para onde as almas se dirigem, é evidente que os que morreram no mar estariam lá
também. A não ser que os imortalistas inventem que o “mar” neste texto também
se refere a uma outra dimensão metafísica para onde vão as almas que não estão
no Hades, fica mais do que evidente que o autor concebia o Hades como não mais
que a região subterrânea da terra onde os mortos estão enterrados, uma região tão
Os imortalistas não conseguem nem chegar perto de explicar por que João
distinguiu o Hades e o mar, ou mesmo por que raios o mar aparece no texto.
Interpretar aqui que João se referia aos que morreram no mar quando diz que o
mar entregou os seus mortos, mas que ao se referir ao Hades estava falando das
almas numa outra dimensão, é simplesmente boçal. A única divisão lógica é aquela
exposta por Wright: o mar diz respeito aos que morreram no mar e por isso não
foram enterrados, e o Hades aos que morreram em terra firme e estão debaixo da
terra. O que João estava dizendo é que tanto os cadáveres que estão boiando no
mar quanto aqueles que estão enterrados na terra ressuscitarão para prestar contas
a Deus no dia do juízo, o que anula toda tentativa de interpretar o Hades como um
“mundo espiritual dos espíritos”. O Hades é uma região tão física quanto o mar, e
295
WRIGHT, N. T. Os Evangelhos para Todos. São Paulo: Thomas Nelson, 2020, p. 1899.
602
O estado dos mortos no Sheol 603
• Há vida no Sheol?
“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força,
pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento,
hebraico. Note que o autor não diz que há vida, consciência ou qualquer tipo de
atividade no Sheol. Pelo contrário, ele diz que no Sheol não há atividade, nem
de almas imortais.
dizer é que no Sheol não há conhecimento das coisas que acontecem na terra, mas
que eles têm pleno conhecimento do que acontece à sua volta, no Sheol. Isso é
claramente refutado pelo contexto, que diz tudo o que devemos fazer temos que
fazer agora, já que no Sheol não teremos como realizá-los. Se essas práticas fossem
sem sentido, já que as coisas que fazemos aqui também seriam possíveis de se
realizar no além. A única coisa que explica a necessidade de fazermos tais coisas
603
O estado dos mortos no Sheol 604
Sheol é impossível fazer o que fazemos aqui, justamente porque no Sheol não há
verso? Sabedoria do que acontece na terra? Isso não faz sentido algum. É difícil
imaginar como isso possa se aplicar a um homem sábio, a não ser que ele perca a
porque não há vida no Sheol. E se não há vida, não há nada que se relacione a ela,
outras traduções aparece como «obras». Ela vem do substantivo hebraico ma`aseh,
realização. Ela é usada logo no início do livro, quando o autor diz que “atentei para
todas as obras (ma`aseh) que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e
aflição de espírito” (Ec 1:14). Que “obras” eram essas? Evidentemente, qualquer
coisa que pudesse ser realizada pelos homens. É o mesmo sentido em que o NT diz
que Deus nos retribuirá de acordo com as nossas obras (Rm 2:6), onde as “obras” se
É por isso que Salomão diz que “melhor que uns e outros é aquele que ainda
não é; que não viu as más obras (ma`aseh) que se fazem debaixo do sol” (Ec 4:3; cf.
8:11), onde as «más obras» dizem respeito a qualquer má ação que alguém possa
604
O estado dos mortos no Sheol 605
➢ “Portanto, vá, coma com prazer a sua comida, e beba o seu vinho de coração
alegre, pois Deus já se agradou do que você faz (ma`aseh)” (Eclesiastes 9:7)
➢ “Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito (ma`aseh), inclusive tudo
➢ “Não permita que a sua boca o faça pecar. E não diga ao mensageiro de
Deus: ‘O meu voto foi um engano’. Por que irritar a Deus com o que você diz
Quando ele diz que “há um tempo para todo propósito, um tempo para tudo
o que acontece” (Ec 3:17), “tudo o que acontece” é a tradução de kol ma`aseh, e
envolve obviamente qualquer ação humana. A prova mais forte de que ma`aseh
abrange qualquer tipo de ação, e não somente algo que só pudesse ser praticado
homem, sem que este possa descobrir a obra (ma`aseh) que Deus fez desde
605
O estado dos mortos no Sheol 606
➢ “Considere o que Deus fez: Quem pode endireitar o que ele fez (ma`aseh)
➢ “Então percebi tudo o que Deus tem feito (ma`aseh). Ninguém é capaz de
➢ “Assim como você não conhece o caminho do vento, nem como o corpo é
prática de uma profissão ou de uma obra no sentido de construir algo, mas inclui
qualquer atividade que possa ser realizada por quem quer que seja. Não é à toa que
Salomão tenha selecionado justamente o termo mais amplo que ele costumava
associar a qualquer ação praticada por alguém e diga que isso não é mais possível
de se fazer no Sheol, uma vez que ele sabia que o Sheol era a cessação total da
em um estado incorpóreo, ele jamais teria dito que ali é impossível realizar qualquer
tipo de atividade-ma`aseh. É por isso que ele diz que é só “debaixo do sol” (ou seja,
de onde vieram. Salomão diz que “assim como morre o sábio, morre o tolo” (Ec
2:16), algo que não faria sentido algum se ambos tivessem destinos completamente
enquanto estão no Sheol. Isso vai ao encontro das palavras do salmista, de “que os
606
O estado dos mortos no Sheol 607
ímpios sejam humilhados e calados fiquem no Sheol” (Sl 31:17). Como um ímpio
noção de sofrimento no Sheol, ele diria exatamente o oposto, que eles gritariam no
que diz “calados fiquem no Sheol” deva ser interpretada como “calados fiquem
nesta vida, mas no Sheol não”. Ou, pior ainda, que os seus corpos estão calados,
mas suas almas imortais fora do corpo estão gritando de agonia e desespero. Além
estão no Sheol, já que para ele (e para os imortalistas no geral) o Sheol é a morada
das almas, e o lugar do corpo é apenas a sepultura. Quanto mais eles argumentam,
Em outro salmo, o salmista diz que “se o Senhor não fora em meu auxílio, já
a minha alma habitaria no lugar do silêncio” (Sl 94:17). Que “lugar do silêncio” é
esse, onde o salmista diz que a sua alma-nephesh habitaria depois da morte? O céu,
com altos louvores a Deus? O inferno, com toda a dor e gritaria (além de pouco
provável para o salmista)? A única conclusão que resta é que ele falava do Sheol, o
«lugar do silêncio» debaixo da terra para onde vão corpo e alma, uma unidade
indivisível.
Este texto é tão mortal que nem mesmo permite a manobra sorrateira à qual
eles estão acostumados, de dizer que neste caso Sheol se refere à sepultura, mas
que em outros casos (que ninguém sabe quais) se refere ao mundo do além. Isso
porque o salmista diz que sua nephesh (alma) iria para o lugar do silêncio na morte,
607
O estado dos mortos no Sheol 608
Portanto, a única solução que resta para os imortalistas são duas manobras
sorrateiras atuando juntas: primeiro, dizer que nephesh (alma) está se referindo ao
corpo e não à alma, e, segundo, dizer que o Sheol está se referindo à sepultura
comprar – o que muitos não hesitam em fazer, já que é a única opção que lhes resta.
Isso mostra o quanto seus argumentadores não são sérios nem estão
arrumar qualquer pretexto que sirva para negar a clareza do texto bíblico que
pergunta retórica: “Quem morreu não se lembra de ti. No Sheol, quem te louvará?”
(Sl 6:5). É evidente que se nós morrêssemos, a primeira pessoa de quem nos
lembraríamos seria Deus. Nenhum católico diria que os “santos” no céu para os
quais ele reza não se lembram do Deus com quem estão, e mesmo um ateu se
solução que resta aos imortalistas é a manobra de que o texto “só se refere ao
mesmo essa inferência ridícula é refutada logo em seguida, quando ele diz: “No
608
O estado dos mortos no Sheol 609
Note que o salmista não fala do qeber, mas do Sheol, precisamente o lugar
que os imortalistas acreditam estar em uma outra dimensão e onde as almas dos
justos estão (ou estavam) na presença de Deus. E é neste lugar que ele diz que
estivessem conscientes no Sheol (a não ser que haja uma placa na entrada do Sheol
Não poucos imortalistas têm a desfaçatez de dizer que aqui o salmista estava
falando apenas sobre louvar a Deus na assembleia de Israel, como se ele dissesse:
Isso é como se eu dissesse: “No Recife, quem pode louvar a Deus em São Paulo?”.
Não apenas a frase é irracional, como leva a uma direção obviamente oposta à que
o salmista intencionava. Como você pode perceber ao ler o salmo na íntegra, todo
o ponto girava em torno da inutilidade que o salmista teria para com Deus caso
viesse a morrer:
Salmos 6
ossos tremem:
6 Estou exausto de tanto gemer. De tanto chorar inundo de noite a minha cama; de
609
O estado dos mortos no Sheol 610
adversários.
8 Afastem-se de mim todos vocês que praticam o mal, porque o Senhor ouviu o
meu choro.
de repente.
Como você deve ter notado, o salmista acreditava estar à beira da morte, e
por isso faz essa oração ao Senhor, onde roga pela manutenção de sua vida. No
verso 5, ele apresenta uma razão pela qual ele seria mais útil vivo, ao alegar que os
mortos não se lembram de Deus e não podem louvá-lo no Sheol. Até mesmo
ainda deseja ouvir a voz de Davi em louvor, deve conservar a vida de Davi. Davi seria
inútil para Deus se estivesse morto; vivo, pode cantar, gritar e testemunhar o amor
e a misericórdia de Deus”296.
razão seria de toda falsa, e jogaria por terra todo o argumento. Para os católicos,
salmista, que acreditava que só seria útil para Deus vivo, na terra. Isso porque ele
296
RADMACHER, Earl D; ALLEN, Ronald B; HOUSE, Wayne H. O Novo Comentário Bíblico AT, com recursos
adicionais: a Palavra de Deus ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2010, p. 830.
610
O estado dos mortos no Sheol 611
sabia que o Sheol não era uma morada de almas conscientes louvando a Deus, mas
“Pois a sepultura não pode louvar-te, a morte não pode cantar o teu louvor.
Aqueles que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade. Os vivos,
somente os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo; os pais contam a tua
fidelidade a seus filhos” (Isaías 38:18-19)
Onde a NVI traz “sepultura”, é o Sheol que consta no hebraico. Como vimos,
o autor equivale o Sheol à cova, mas não só isso: ele também diz que não há louvor
no Sheol pode louvar a Deus na assembleia israelita, mas que podem louvá-lo no
próprio Sheol. Isso é claramente refutado no verso seguinte, que diz que “os vivos,
e somente os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo”. Não sei de que forma
Ezequias poderia deixar mais claro que não há a menor possibilidade de louvar a
hipótese que não seja a interpretação natural do texto. Isso porque Ezequias estava
agradecendo por Deus ter lhe concedido quinze anos a mais de vida, após o profeta
Isaías dizer que ele morreria da doença que havia contraído. É neste contexto que
ele diz que só os vivos podem louvar a Deus e que não há como louvá-lo no Sheol.
Em outras palavras, o que ele estava dizendo é que seria mais útil vivo, pois
611
O estado dos mortos no Sheol 612
enquanto vivo poderia louvar ao Senhor, algo que ele não poderia fazer depois de
morto.
Dizer que aqui Ezequias estava falando apenas de louvar a Deus entre os
vivos é o mesmo que interpretar sua frase como “os vivos, e somente os vivos,
podem te louvar entre os vivos”, o que seria uma informação redundante e inútil.
Tanto o contexto como o bom senso exigem que Ezequias estava olhando para
além da vida presente, fazendo questão de destacar que ele não teria valor algum
para Deus na condição de morto, mas vivo ele poderia louvá-lo e adorá-lo. Ou, para
usar as palavras do sábio filho de Davi, “até um cachorro vivo é melhor do que um
leão morto” (Ec 9:4). Diante disso, é evidente que para os escritores bíblicos o Sheol
Isso é confirmado pelo salmista no Salmo 88, que lembra muito a oração de
de tristeza. A ti, Senhor, clamo cada dia; a ti ergo as minhas mãos. Acaso
mostras as tuas maravilhas aos mortos? Acaso os mortos se levantam e te
612
O estado dos mortos no Sheol 613
Note a semelhança deste texto com os dois últimos que analisamos, que
termo que aparece para “túmulo” aqui é qeber, o que mostra que o salmista se
naturalidade com a qual ele se referia aos mortos no Sheol, porque de fato ambos
Sheol) mostra não apenas a paridade entre um e outro, mas também que no Sheol
completamente falso se o Sheol fosse uma outra dimensão onde os que morreram
estão mais próximos de Deus. Como reconhece o erudito imortalista Hans Walter
no mundo dos mortos, não há mais lugar para a obra de Javé, nem
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil no início do século passado, disse que
297
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 171-172.
298
CRABTREE, A. R. Teologia Bíblica do Velho Testamento. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960,
p. 268.
613
O estado dos mortos no Sheol 614
perfeitamente claro a partir da descrição que Jó faz do Sheol, que em nada se parece
“Por que não morri ao nascer, e não pereci quando saí do ventre? Por que
ruínas, com governantes que possuíam ouro, que enchiam suas casas de
prata. Por que não me sepultaram como criança abortada, como um bebê
que nunca viu a luz do dia? Ali os ímpios já não se agitam, e ali os cansados
Jó não estava falando de uma sepultura individual (qeber), porque diz que
se tivesse morrido logo após nascer estaria na companhia dos reis, conselheiros e
Portanto, é evidente que ele estava falando do Sheol, onde estão todos os mortos,
embaixo da terra. Sabemos então que Jó se referia ao Sheol, mas que tipo de Sheol
era esse? Seria o Sheol imortalista da outra dimensão, onde as almas estão
perfeitamente ativas e conscientes? Não é o que parece. Jó diz que ali «os ímpios já
614
O estado dos mortos no Sheol 615
consciente, mas que Jó nega categoricamente que fossem possíveis após a morte.
Ainda mais significativo que isso é que “já não ouvem mais os gritos do feitor de
escravos” (v. 18), quando o senhor de escravos deveria ser o primeiro a estar
gritando de dor.
sossego», assim como Jó, que estaria “deitado em paz e acharia repouso junto aos
reis e conselheiros da terra” (vs. 13-14). Isso lembra muito o texto em que Daniel diz
ressurreição do último dia. Note que Daniel não diz que essas multidões virão do
céu ou do inferno, mas do pó da terra, que, como vimos, está associado ao Sheol.
(dormir), o mesmo que Jó usa em relação à condição dos mortos no Sheol, no texto
que acabamos de conferir (Jó 3:13). E é do Sheol (Hades) que Paulo diz que os
Daniel falava apenas do corpo, pois é só o corpo que ressuscita (uma vez que a alma
já está viva). Se isso é verdade em relação ao texto de Daniel, também deveria ser
para o texto de Jó, que fala da condição dos mortos no Sheol usando a mesma
299
#7267 da Concordância de Strong.
615
O estado dos mortos no Sheol 616
linguagem. Mas isso implicaria que o Sheol é o lugar onde fica o corpo, o que
Isso os deixa na delicada situação onde são forçados a concluir que Jó falava
ou então negar que o Sheol seja um lugar de almas incorpóreas numa outra
outro, eles estão em maus lençóis. Como diz o ditado, se correr o bicho pega, se
“sono” no Sheol ou no pó da terra lança luz aos vários textos do Pentateuco que
dizem que alguém que morreu “foi reunido aos seus antepassados” (Gn 25:8, 17,
35:29, 49:33; Nm 20:26, 31:2; Dt 32:50). Esses textos são por vezes citados pelos
imortalistas para dizer que a alma dos personagens bíblicos em questão se desligou
dimensão, quando na verdade é apenas um eufemismo semita para dizer que eles
compartilhariam o mesmo lugar embaixo da terra. Alguém que morre é reunido aos
outros mortos no cemitério, não porque tenha virado um fantasma que assombra
o lugar com as outras almas penadas, mas porque seu destino é compartilhar o
É por isso que a expressão «foi reunido aos seus antepassados» é substituída
nos livros históricos pela expressão “descansou com os seus antepassados” (1Rs
2:10, 15:8, 16:6, 28, 22:40; 2Rs 20:21; 2Cr 16:13, 33:20, etc), que quer dizer a mesma
coisa. Essa expressão é usada indistintamente para os reis bons e maus, o que
significa que o “descansar” aqui em nada tem a ver com um “descanso celestial” no
616
O estado dos mortos no Sheol 617
sentido de refrigério (até mesmo o ímpio rei Acabe, marido de Jezabel, «descansou
respeito somente ao corpo, uma vez que a alma está bem ativa e consciente no
“mundo dos mortos”. Se isso é verdade, significa que a expressão «descansou com
os seus antepassados» se refere ao estado do corpo, o que prova que «se reunir aos
antepassados» não era de modo algum uma linguagem de vida após a morte, como
Mais do que isso, implicaria que o próprio Sheol é o lugar do corpo, e não da
alma fora do corpo, uma vez que o Sheol abrange todos os mortos embaixo da
terra, enquanto a sepultura (qeber) diz respeito apenas ao túmulo individual. É por
isso que Daniel diz que os mortos “dormem no pó da terra” (Dn 12:2), não que eles
“descansavam” com os seus antepassados, que, como vimos, é o mesmo que ser
inatividade. Isso é tudo o que os hebreus tinham a dizer quanto ao estado atual dos
617
O estado dos mortos no Sheol 618
mortos, sem o menor indício de vida após a morte em uma outra dimensão, como
44:29, 31; Is 38:10, 17; Sl 9:15, 17, 16:10, 49:9, 15, 88:3-6, 11; Pv 1:12)300.
O próprio fato da cidade de Tiro “descer com os que descem à cova, para
fazer companhia aos antigos” (Ez 26:20), prova que a mesma linguagem empregada
em relação aos mortos no Sheol também era utilizada para cidades na cova, o que
obviamente não significa que haja vida consciente na cova ou que Tiro sobrevive
numa outra dimensão na companhia das almas dos mortos. Ao contrário, é dito a
seu respeito que “você já não existirá” (v. 21), que é o que acontece com quem
“habita embaixo da terra” (v. 20). Habitar embaixo da terra, fazer companhia aos
expressões idiomáticas semíticas comumente usadas para designar não uma vida
após a morte, mas o fim da existência ao ser enterrado na terra, um fim comum a
toda a humanidade.
300
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 167.
618
O estado dos mortos no Sheol 619
onde Jacó lamenta a perda de seu filho José, que ele julgava ter sido despedaçado
devorou! José foi despedaçado!’. Então Jacó rasgou suas vestes, vestiu-se de
pano de saco e chorou muitos dias por seu filho. Todos os seus filhos e filhas
vieram consolá-lo, mas ele recusou ser consolado, dizendo: ‘Não! Chorando
descerei à sepultura para junto de meu filho’. E continuou a chorar por ele”
(Gênesis 37:33-35)
problema é que, se José havia sido despedaçado por uma fera, como pensava Jacó,
ele não poderia ter sido sepultado, o que é usado pelos imortalistas para dizer que
as almas se encontram após a morte. Isso mais uma vez ignora o fato de que o Sheol
bíblico não se limita a um simples túmulo, mas diz respeito a toda a região
Não é porque José não foi propriamente sepultado que seu corpo não foi
outro engolidos pela terra (é por isso que quando um arqueólogo quer descobrir
619
O estado dos mortos no Sheol 620
pó (que ainda não foi literalmente enterrado) está dentro das dimensões do Sheol,
Jacó sabia disso, e é com base nisso que ele disse que desceria ao Sheol para
junto de seu filho, que nada mais é que a mesma linguagem de ser «reunido aos
seus antepassados», a qual, como vimos, em nada tinha a ver com uma alma imortal
mansão literal dos mortos, no outro mundo. Leia com atenção o “argumento”
levantado por Michael S. Heiser: “O Sheol tinha ‘barras’ (Jó 17:16) e ‘cordas’ para
amarrar seus habitantes (2Sm 22:5-6), impedindo qualquer fuga (Jó 7:9)”301. O
primeiro texto que ele cita é Jó 17:16, que diz: “Descerá ela às portas do Sheol?
Desceremos juntos ao pó?”. Ele usa esse texto para explicar as “portas do Hades” de
Mt 16:18, que não prevalecerão contra a Igreja. Para ele, trata-se de portas literais,
paralelismo hebraico presente no texto, que iguala o Sheol ao pó da terra. Uma vez
que o pó não tem um portão literal, é evidente que as “portas do Sheol” são uma
força de expressão. Jesus também disse que devemos andar pelo “caminho
estreito” (Mt 7:14) e entrar pela “porta estreita” (Mt 7:14), mas ninguém em sã
301
HEISER, Michael S. What Did Jesus Mean by “Gates of Hell”? Disponível em:
<https://blog.logos.com/2018/04/jesus-mean-gates-hell>. Acesso em: 03/10/2020.
620
O estado dos mortos no Sheol 621
consciência acredita que ele estava falando de uma porta literal na qual devemos
entrar nesta vida, como se tivéssemos que encontrar o armário que leva a Nárnia
ou como se uma pessoa obesa colocasse sua salvação em risco por não conseguir
passar por uma porta tão estreita. Da mesma forma, ninguém lucidamente acredita
que Jesus entregou uma chave literal nas mãos de Pedro quando disse que estava
lhe dando as chaves do Reino dos céus (Mt 16:19), as mesmas que ele deu aos
e a não ser que o contexto indique o contrário, não devem ser tomadas ao pé da
letra. Paulo disse que a morte tem um “aguilhão” (1Co 15:55-56), mas nem por isso
(embora essa imagem seja recorrente nos quadrinhos e nos filmes de terror). No
Salmo 9:13, o salmista pede para Deus salvá-lo «das portas da morte», embora a
morte em si não seja um lugar para ter portas, mas apenas uma condição. A mesma
A Bíblia fala, é claro, com uma linguagem figurada quando diz que “as
302
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 184.
621
O estado dos mortos no Sheol 622
Heiser está certo ao aplicar este texto ao Sheol, pois é o Sheol que aparece
no hebraico onde a NVI traduz por “sepultura”. No entanto, o contexto não diz nada
a respeito de “cordas para amarrar seus habitantes”. Trata-se apenas de uma forma
poética de expressar sua aflição, uma vez que ele se encontrava à beira da morte.
Algo semelhante vemos no Salmo 116:3, onde lemos que a própria morte tem
“cordas”, o que é obviamente tão figurado quanto as cordas do Sheol. Note que o
texto também diz que as ondas da morte o cercaram, que as torrentes da destruição
alguém acredita que a morte tem cercas, que a destruição tem torrentes e que a
Mais do que isso, o paralelismo aqui deixa claro que o Sheol é igualado à
bastasse, o texto em questão se refere ao rei Davi, que entoou este cântico ao
Senhor quando Ele o livrou de seus inimigos. Uma vez que Davi era um homem
“segundo o coração de Deus” (At 13:22), é evidente que ele não iria para o inferno
ou a “parte ruim” do Sheol, para ser amarrado com cordas. Para os imortalistas, Davi
estaria no “Seio de Abraão”, a “parte boa” do Sheol, não num assombroso lugar em
que precisaria ser amarrado para não fugir. Aparentemente Heiser se esqueceu
622
O estado dos mortos no Sheol 623
Por fim, ele cita o texto em que Jó diz que “assim como a nuvem esvai-se e
desaparece, assim quem desce à sepultura [Sheol] não volta” (Jó 7:9), para dizer que
as cordas servem para evitar a fuga. Mas além deste texto de Jó não ter
absolutamente qualquer relação com o texto de 2º Samuel (o que diz muito sobre
a metodologia usada pelos imortalistas para enganar o leitor mais incauto), o texto
em si não fala nada sobre a natureza do Sheol, só diz que não há como voltar de lá.
Jó acreditava na ressurreição do último dia (Jó 19:25-27), mas como ele viveu
na época dos patriarcas, nunca tinha testemunhado uma ressurreição para esta
vida, como a de Lázaro. Por isso ele complementa logo em seguida que “nunca mais
voltará ao seu lar; a sua habitação não mais o conhecerá” (Jó 7:10). Ele não estava
mas apenas dizendo que ninguém voltava do Sheol para o seu lar, isto é, para a
mesma habitação terrena que tinha aqui, na companhia de seus familiares, porque
até aquele momento nenhuma ressurreição havia ocorrido ainda e todos os que
haviam morrido permaneciam mortos em seus respectivos túmulos. Tirar esse texto
utilizado pela fatia dos teólogos imortalistas mais sérios que acreditam que os
intermediário não é nenhum daqueles que vemos sendo citados por aí pelos
quase não vemos sendo citados nos círculos apologéticos. E a razão por que não
“vida” após a morte que esses teólogos defendem baseado nesses textos é
623
O estado dos mortos no Sheol 624
exatamente aquilo que os propagandistas combatem – uma visão onde a alma está
rephaim, que aparece em oito textos do AT em relação aos mortos (Jó 26:5; Sl 88:10;
Pv 2:18, 9:18, 21:16; Is 14:9, 26:14, 19). Isso porque ele é traduzido como “sombras”,
o que alguns tomam ao pé da letra e concluem que os mortos ainda possuem uma
«existência fraca» no Sheol. Harold Coward, por exemplo, considera essa “sombra”
O que seria essa “réplica fraca”? Coward diz que não necessariamente deve
ser identificada com a alma, mas muitos outros imortalistas são mais taxativos em
afirmar que não tem nada a ver com a alma. Por exemplo, H. Wheeler Robinson, o
303
COWARD, Harold. The Perfectibility of Human Nature in Eastern and Western Thought. New York: New
York University Press, 2008, p. 30.
304
ROBINSON, Henry Wheeler. The Religious Ideas of the Old Testament. London: Gerald Duckworth &
Co. Ltd., 1913, p. 91.
624
O estado dos mortos no Sheol 625
Da mesma forma que ele, o teólogo imortalista Dana Prom Smith disserta:
homem se torna uma mera sombra de seu antigo eu. Há uma relativa
estado dos vivos. É precisamente por isso que o israelita ansiava por
uma longa vida. Isto era um sinal do favor do Senhor. (...) Portanto, não
de vida após a morte. Ele tinha uma. A vida após a morte era fraqueza
Por sua vez, Murtonen não só diz que a “sombra” é diferente da alma, mas que é
parece ser bastante oposto à palavra nephesh, uma vez que esta
após a morte.306
305
SMITH, Dana Prom. Biblical and Classical Views of Personality. Tucson: University of Arizona, 1958, p.
12.
306
MURTONEN, A. The Living Soul: a study of the meaning of the word næfæš in the Old Testament hebrew
language. Helsinki: Societas Orientalis Fennica, 1958, p. 29.
625
O estado dos mortos no Sheol 626
identificada com ela na Bíblia, o que ela seria na opinião desses teólogos que
nos deu a dica quando disse que «o homem deixa de existir, em qualquer sentido
real de personalidade». Em outras palavras, seja lá o que quer que essa “sombra”
seja, ela não carrega consigo qualquer personalidade individual que possa ser
submundo do Sheol, junto com os que passaram para este reino antes
dele. Lá ele subsiste nas trevas (Jó 10:21-22), numa espécie de sono
É por isso que Cullmann diz que essa «existência sombria» “não é uma vida
energia, sem sentidos, sem memória e sem consciência”310. Em uma de suas últimas
307
BUTTRICK, George Arthur. The Interpreter’s Dictionary of the Bible. Nashville: Abingdom Press, 1952.
v. 1, p. 371.
308
CULLMANN, Oscar. Das origens do Evangelho à formação da teologia cristã. São Paulo: Fonte Editorial,
2004, p. 194.
309
ibid.
310
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo:
Candeia, 2000. v. 2, p. 880. 626
O estado dos mortos no Sheol 627
recolhidas para a morte. O que é uma sombra? É algo que não pode
fazer nada. É uma coisa, mas não tem nenhuma força, nenhuma
Embora esteja entre os que identificam a “sombra” como a alma, ele é claro
em tirar dela qualquer força ativa, sendo ela inteiramente desprovida de atividade
no além. Sua afirmação de que «sombra é sombra» não era uma redundância óbvia
e inútil, mas uma indicação clara de que, para ele, as “sombras” dos mortos eram
tão destituídas de atividade ou personalidade quanto uma sombra literal, que não
fala nem pensa, tampouco se move ou faz qualquer coisa por si mesma. É por essa
razão que Georg Fohrer diz que a “sombra” vegeta no “mundo inferior”:
311
“Brasileiro” no sentido de ter vivido aqui a maior parte de sua vida (apesar de ter nascido na Bolívia),
onde estabeleceu seu ministério, pregou e ensinou por mais de 50 anos.
312
SHEDD, Russell Philip. MCB - 1ª de 7 - Fim dos Tempos - Ressurreição - Congresso 2011. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=nXQH_E_t4dA> (min 46). Acesso em: 29/01/2022.
313
FOHRER, Georg. History of Israelite Religion. Nashville: Abingdon Press, 1972, p. 219.
627
O estado dos mortos no Sheol 628
vegetativo, vivendo num coma profundo cuja vitalidade não é maior que a de uma
mera sombra daquilo que um dia já foi. Em nada tem a ver com uma alma imortal
imortalista popular. Assim, traduzido como “sombras” ou não, rephaim pode ser
facilmente entendido como uma figura adequada para o estado inerte dos mortos,
tal como a própria metáfora do sono. Como veremos ao analisar os textos em si,
não há nada que exija que eles sejam entendidos no sentido de uma alma que
sobrevive em um outro mundo, como muitos teólogos sustentam para não ter que
admitir que os hebreus não tinham qualquer noção de uma existência fora do
corpo.
É uma visão tão intimamente próxima ao mortalismo que não admira que ambos
sejam atacados em conjunto pelos imortalistas, muitas vezes como uma coisa só.
inatividade.
vida real nem sensação de passagem de tempo em nenhum dos dois casos. É mais
628
O estado dos mortos no Sheol 629
espiritual sobrevive à morte com consciência e personalidade. É por isso que você
como nunca verá entre mortalistas e psicopaniquistas – mas verá os dois primeiros
Na tentativa de endossar uma visão mais “vívida” das sombras no Sheol, sem
314
Disponível em: <http://www.adelmomedeiros.com/eruditosensinam.htm>. Acesso em: 23/02/2022.
629
O estado dos mortos no Sheol 630
Para ele, as “sombras” não estão o tempo todo dormindo, mas apenas
dormindo a maior parte do tempo “porque está escuro” (lógica genial!). Mas note
que ele mesmo diz que quando essas “sombras” ou “almas” não estão dormindo,
falam da condição dos mortos no Sheol sem ter que concluir pelo mortalismo ou
pelo psicopaniquismo. Mas para conseguir isso, ele é forçado a assumir uma
condição onde os próprios justos – como o rei Ezequias, que agradeceu ao Senhor
por tê-lo livrado de descer ao Sheol, onde não poderia louvá-Lo (Is 38:18-19) –,
Abraão, Isaque, Moisés, Davi, Daniel e os profetas – não foram recebidos com
seus próprios amados fiéis numa agonia semelhante à do inferno, só que sem a
Nos perguntamos que Deus é esse que, como recompensa por anos de
reservaria para eles no outro mundo uma vida ainda pior que a atual – muito mais
triste, mais deprimente, sem vitalidade e sem nada pra fazer. E quanto mais antigo
o personagem fosse, pior para ele: mais tempo passaria nesse lugar sombrio e
absolutamente indesejável (coitado de Abel, que além de ser assassinado por seu
630
O estado dos mortos no Sheol 631
irmão ainda teria que se angustiar por pelo menos quatro milênios em um lugar
em que Deus diz a Daniel: “Quanto a você, siga o seu caminho até o fim. Você
descansará, e então, no final dos dias, você se levantará para receber a herança que
lhe cabe” (Dn 12:13). Na verdade, em vez de enganar o profeta dizendo apenas que
ele “descansaria”, Deus precisava tê-lo avisado que ele seria enfraquecido,
entristecido e deprimido de todas as formas até “se levantar para receber a herança
que lhe cabe”, como se tivesse sido pouco o que ele sofreu em vida. É difícil imaginar
um deus tão sádico a esse ponto, embora isso seja bem menos difícil na cabeça de
alguém que acredita que esse mesmo deus tortura eternamente as almas de bilhões
de criaturas no inferno (que Ele mesmo criou sabendo que estariam ali).
É sem sombra de dúvida muito mais sensato entender que as “sombras” não
se referem a almas fora do corpo com alguma consciência, mas uma simples
linguagem poética para se falar da condição dos mortos: uma condição sem vida,
sem atividade, sem consciência, sem personalidade e sem existência própria, por
isso mesmo igualada a uma simples sombra, assim como a vida é igualada a um
“sopro” em tantos outros textos316. O que corrobora este fato são dois aspectos
cruciais, que partem da análise dos próprios textos e que são decisivos para chegar
a essa conclusão. O primeiro é que, como observa Green, todas essas oito
315
Como para alguns imortalistas os salvos foram transferidos do Sheol ao Paraíso entre a morte e a
ressurreição de Cristo, enquanto outros acreditam que eles permanecem até hoje no Sheol, deixo essa
dúvida cruel em aberto (embora aposte que isso faria pouca diferença para alguém que sofreu por quatro
milênios).
316
Por exemplo, em Sl 144:4, 39:5, Jó 7:7, Is 2:22, etc.
631
O estado dos mortos no Sheol 632
Você mesmo pode fazer uma busca em cada um desses textos, e descobrirá
é o texto em que Jó diz que “os mortos tremem debaixo das águas, com os seus
moradores” (Jó 26:5), onde «os mortos» foi dessa vez a tradução escolhida para
chuwl (tremer) tachath (aqueles sob) mayim (as águas) shakan (e os que habitam).
Por isso a Bíblia de Jerusalém traduz por: “As sombras tremem debaixo da terra, as
nos levaria a perguntar aos imortalistas se existe uma piscina olímpica no mundo
dos mortos. Mas a segunda tradução é a mais provável, porque todos os versos do
capítulo são compostos de duas partes, como também é característico dos textos
onde rephaim aparece. Neste caso, teríamos aqui dois sujeitos: as “sombras”, que
tremem debaixo da terra, e os habitantes das águas, que estão com medo.
Mas que lógica existe em dizer que os habitantes das águas (i.e, os animais
marinhos) têm medo de Deus? É evidente que estamos lidando aqui com uma
317
GREEN, Joel B. Body, Soul, and Human Life: the nature of humanity in the Bible. Grand Rapids: Baker
Academic, 2008, p. 155.
632
O estado dos mortos no Sheol 633
que vemos nos textos que dizem que “os montes tremeram diante de ti” (Is 64:3; cf.
Sl 104:32; Jz 5:5).
marcadamente hiperbólica é o verso seguinte, que diz: “Nu está o Sheol diante de
Deus, e nada encobre a Destruição” (Jó 26:6). A hipérbole aqui é evidente, dado que
é apenas transmitir a ideia de que nenhuma criatura viva ou morta pode escapar da
“Nas profundezas o Sheol está todo agitado para recebê-lo quando chegar.
Por sua causa ele desperta os espíritos dos mortos (rephaim), todos os
governantes da terra. Ele os faz levantar-se dos seus tronos, todos os reis dos
povos. Todos responderão e lhe dirão: ‘Você também perdeu as forças como
tópico à parte logo mais, mas muitos são rápidos em tirar esses versos do contexto
para dizer que os «espíritos dos mortos» (rephaim, no hebraico, e não ruach) são
318
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 158.
633
O estado dos mortos no Sheol 634
note o que diz o verso seguinte, que eles sempre convenientemente omitem: “Sua
soberba foi lançada na sepultura, junto com o som das suas liras; sua cama é de
larvas, sua coberta, de vermes” (v. 11). Obviamente, ele não estava falando da alma
É neste sentido que ele «perdeu as forças como nós», onde os outros reis
outros textos (Jz 9:6-15; 2Rs 14:9; 1Cr 16:33; Sl 98:8). Ele não “perdeu a força” porque
se tornou um espírito infeliz e deprimido que dorme porque está escuro, mas
reis, aos quais ele oprimia em vida. Desconsiderar a linguagem poética aqui tão
Ou então tome como exemplo o texto de Provérbios que diz que “eles nem
imaginam que ali estão os espíritos dos mortos” (Pv 9:18), onde “espíritos dos
não se perceba à primeira vista é que o «eles» se refere àqueles que a insensatez
(ou «senhora Loucura», como vertem outras traduções) convidou para a sua casa
quando estava sentada à porta (vs. 13-15), e que quem é citado narrando esse
319
Algo que ele repete em Pv 21:16, quando diz que “quem se afasta do caminho da sensatez repousará
na companhia dos mortos”.
634
O estado dos mortos no Sheol 635
Outra prova de que os rephaim nada mais são que uma linguagem poética
para se falar dos mortos numa condição deplorável é que em todas exceto uma das
vezes, o paralelismo é simplesmente com “os mortos” (muwth), como nesses textos:
“Agora eles estão mortos (muwth), não viverão; são sombras (rephaim), não
ressuscitarão. Tu os castigaste e os levaste à ruína; apagaste por completo a
usado em paralelismo com rephaim, é a mesma palavra usada nos muitos textos
que falam sobre enterrar os mortos (Gn 23:4, 6, 8, 11, 13, 15), além de ser
comumente usada para falar dos cadáveres nos quais os israelitas não podiam tocar
(Lv 21:11; Nm 19:11, 13, 16), o que mostra que ela não se referia a uma alma imaterial
e intangível, mas ao corpo físico que perece. Uma vez que rephaim é usado em um
espírito vivo num outro mundo, mas ao cadáver que jaz no pó da terra e que se
320
A exceção é Pv 21:16.
635
O estado dos mortos no Sheol 636
Note que a palavra “mortos” aparece duas vezes, uma como muwth, e a outra
texto está falando da ressurreição. Todo o contexto se refere aos que «voltaram ao
pó», onde o hebraico traz shakan aphar (moradores do pó). Note ainda que o trecho
final diz que «a terra dará à luz os seus mortos-rephaim», onde os rephaim não
descem do céu para se religar ao corpo por ocasião da ressurreição, mas são
Antes que alguém diga que os rephaim desse texto estão na terra apenas
porque o texto se refere aos ímpios que queimam no inferno, os versos 16-17
deixam claro que Isaías está falando dos justos, o que também é evidente pelo
verso 14, onde é empregado “eles” para se referir aos ímpios. Como comenta
Bacchiocchi,
636
O estado dos mortos no Sheol 637
À luz de tudo isso, o Dr. Joel B. Green, teólogo e ministro metodista, conclui:
Gleason L. Archer:
Está claro que este antigo termo quase mitológico foi usado
321
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 157.
322
GREEN, Joel B. Body, Soul, and Human Life: the nature of humanity in the Bible. Grand Rapids: Baker
Academic, 2008, p. 155.
637
O estado dos mortos no Sheol 638
mortos”.323
homem.
abaddon, que significa literalmente “destruição”. Jó diz que “o Sheol está nu diante
diante do Senhor” (Pv 15:11). Como comenta Bacchiocchi, “o fato do Sheol estar
associado com abaddon, o local de destruição, mostra que o reino dos mortos era
visto como um lugar de destruição, e não como um lugar de eterno sofrimento para
os ímpios”324.
323
WHITE, William. “Repa’im”. Theological Wordbook of the Old Testament (org. Laird Harris, Gleason L.
Archer and Bruce K. Waltke). Chicago: Moody Press, 1980. v. 2, p. 858.
324
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 151.
638
O estado dos mortos no Sheol 639
mostra que não se trata de dois acordos diferentes, mas do mesmo pacto. Em
outras palavras, fazer um pacto com a morte é o mesmo que fazer pacto com o
inverso da vida).
Isso explica por que o Sheol é descrito como um «ventre estéril» em Pv 30:16.
Uma mulher estéril é uma mulher que não pode gerar vida em seu ventre, e, da
mesma forma, não há vida no interior do Sheol. Isso se opõe por completo à visão
Sheol poderia ser comparado com tudo, menos com o ventre de uma mulher estéril.
Assim como não há vida no ventre de uma mulher estéril, não há vida no Sheol.
que falam do Sheol ou Hades, há apenas três que são mais frequentemente usados
325
MARTIN-ACHARD, Robert. Da Morte à Ressurreição segundo o Antigo Testamento. São Paulo:
Academia Cristã LTDA, 2005, p. 54.
639
O estado dos mortos no Sheol 640
do rei da Babilônia escrito em linguagem poética. Para que fique claro o seu
Isaías 14
4 assim você zombará do rei da Babilônia: Como chegou ao fim o opressor! Sua
arrogância acabou-se!
8 Até os pinheiros e os cedros do Líbano alegram-se por sua causa e dizem: “Agora
9 Nas profundezas o Sheol está todo agitado para recebê-lo quando chegar. Por
sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos os governantes da terra. Ele
10 Todos responderão e lhe dirão: “Você também perdeu as forças como nós, e
11 Sua soberba foi lançada na sepultura [Sheol], junto com o som das suas liras; sua
12 Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada! Como foi atirado
640
O estado dos mortos no Sheol 641
13 Você que dizia no seu coração: “Subirei aos céus; erguerei o meu trono acima
14 Subirei mais alto que as mais altas nuvens; serei como o Altíssimo”.
16 Os que olham para você admiram-se da sua situação, e a seu respeito ponderam:
18 Todos os reis das nações jazem honrosamente, cada um em seu próprio túmulo.
19 Mas você é atirado fora do seu túmulo, como um galho rejeitado; como as
roupas dos mortos que foram feridos pela espada; como os que descem às pedras
20 você não se unirá a eles num sepultamento, pois destruiu a sua própria terra, e
21 Preparem um local para matar os filhos dele por causa da iniquidade dos seus
antepassados; para que eles não se levantem para herdar a terra e a cobrirem de
cidades.
diz o Senhor.
23 “Farei dela um lugar para corujas e uma terra pantanosa; vou varrê-la com a
A parte que alguns citam fora de contexto para dizer que o Sheol é uma
morada de almas incorpóreas é a que diz que “nas profundezas o Sheol está todo
641
O estado dos mortos no Sheol 642
agitado para recebê-lo quando chegar. Por sua causa ele desperta os espíritos dos
mortos (rephaim), todos os governantes da terra. Ele os faz levantar-se dos seus
tronos, todos os reis dos povos” (v. 9). Como saber que se trata de uma linguagem
alegórica, e não de mortos-vivos no além? Simples: o próprio verso anterior diz que
“até os pinheiros e os cedros do Líbano alegram-se por sua causa e dizem: ‘Agora
que você foi derrubado, nenhum lenhador vem derrubar-nos!’” (v. 10).
que reconhecer o caráter alegórico do texto. O objetivo do autor não era acentuar
Da mesma forma que o autor personifica as árvores, ele personifica os mortos com
quem morreu, mas para enfatizar o trágico fim do rei da Babilônia por meio da
linguagem poética.
Assim, quando o verso seguinte diz que “todos responderão e lhe dirão:
‘Você também perdeu as forças como nós, e tornou-se como um de nós’” (v. 10), o
sentido não é que esse diálogo ocorreu realmente, mas que o rei da Babilônia
tornou-se a mesma coisa que os que morreram antes dele (ou seja, um mero
cadáver). Este sentido é reforçado logo no verso seguinte, que diz que “a sua
soberba foi lançada na sepultura [Sheol], junto com o som das suas liras; sua cama
é de larvas, sua coberta, de vermes” (v. 11). Sua “cama” era de larvas e sua “coberta”
de vermes, não porque ele estivesse sendo comido por vermes metafísicos da
642
O estado dos mortos no Sheol 643
paralelismo que deixa claro que o Sheol citado no texto nada mais é do que a cova:
“Mas às profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo”. A palavra
hebraica traduzida como “abismo” neste texto é bowr, que significa «cova, poço,
sepultura, onde são colocados os cadáveres (Pv 1:12; Sl 28:1, 88:4; Is 38:18). O
salmista pede ao Senhor que “não escondas de mim o teu rosto, ou serei como os
que descem à cova-bowr” (Sl 143:7), o que mostra que os que estão na cova estão
«fundo do abismo (bowr)» mostra que em Is 14:15 o Sheol não era nada além da
cova.
a seu respeito ponderam: ‘É esse o homem que fazia tremer a terra e abalava os
reinos e fez do mundo um deserto, conquistou cidades e não deixou que os seus
prisioneiros voltassem para casa?’” (v. 16). Antes que um imortalista use esse texto
como as roupas dos mortos que foram feridos pela espada; como os que
descem às pedras da cova; como um cadáver pisoteado, você não se unirá a
326
#953 da Concordância de Strong.
643
O estado dos mortos no Sheol 644
eles num sepultamento, pois destruiu a sua própria terra, e matou o seu
que personificava tanto homens como árvores dizia respeito justamente ao fato de
a ser pisoteado pelos homens, enquanto os outros reis que haviam morrido jaziam
em seu próprio túmulo. Em outras palavras, era apenas uma forma poética de dizer
que aquele rei tão poderoso e temido pelas nações enquanto vivo teria na morte o
juntando-se aos que foram mortos pela espada. Qual das árvores do Éden
pode comparar-se a você em esplendor e majestade? No entanto, você
também será derrubado e irá para baixo da terra, junto com as árvores do
644
O estado dos mortos no Sheol 645
Éden; você jazerá entre os incircuncisos, com os que foram mortos pela
como no 17, é o Sheol que aparece no hebraico. O que o texto diz é que as árvores
prova de que as árvores também têm uma alma imortal que vai para o mesmo lugar
dos espíritos humanos após a morte, embora seja esse o tipo de exegese que eles
Ezequiel 32
18 Filho do homem, lamente pelas multidões do Egito e faça descer para baixo da
terra tanto elas como as filhas das nações poderosas, junto com aqueles que
descem à cova.
19 Diga-lhe: “Acaso você merece mais favores do que os outros? Desça e deite-se
com os incircuncisos”.
20 Eles cairão entre os que foram mortos pela espada. A espada está preparada;
21 De dentro do Sheol os poderosos líderes dirão ao Egito e aos seus aliados: “Eles
645
O estado dos mortos no Sheol 646
22 A Assíria está ali com todo o seu exército; está cercada pelos túmulos de todos
23 Seus túmulos estão nas profundezas, e o seu exército jaz ao redor de seu
túmulo. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos viventes estão mortos,
24 Elão está ali, com toda a sua população ao redor de seu túmulo. Todos eles estão
mortos, caídos pela espada. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos
viventes desceram incircuncisos para baixo da terra. Carregam sua vergonha com
25 Uma cama está preparada para ele entre os mortos, com todas as suas hordas
em torno de seu túmulo. Todos eles são incircuncisos, mortos pela espada. Porque
o seu terror havia se espalhado na terra dos viventes, eles carregam sua desonra
26 Meseque e Tubal estão ali, com todas a sua população ao redor de seus túmulos.
Todos eles são incircuncisos, mortos à espada porque espalharam o seu terror na
27 Acaso não jazem com os outros guerreiros incircuncisos que caíram, que
desceram ao Sheol com suas armas de guerra, cujas espadas foram postas debaixo
de suas cabeças? O castigo de suas iniquidades está sobre seus ossos, embora o
pavor causado por esses guerreiros tenha percorrido a terra dos viventes.
28 Você também, ó faraó, será abatido e jazerá entre os incircuncisos, com os que
29 Edom está ali, seus reis e todos os seus príncipes; a despeito de seu poder, jazem
com os que foram mortos à espada. Jazem com os incircuncisos, com aqueles que
descem à cova.
646
O estado dos mortos no Sheol 647
30 Todos os príncipes do norte e todos os sidônios estão ali; eles desceram com os
mortos cobertos de vergonha, apesar do pavor provocado pelo poder que tinham.
Eles jazem incircuncisos com os que foram mortos à espada e carregam sua desonra
31 O faraó, ele e todo o seu exército, os verá e será consolado da perda de todo o
32 Embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos viventes, o faraó e todo o
seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que foram mortos pela espada,
Mas como qualquer leitor pode observar ao ler todo o contexto, trata-se apenas de
os mortos. Por isso o Sheol é citado em paralelismo com o túmulo (qeber), como se
fossem a mesma coisa. Note que parte alguma do texto fala de almas ou espíritos
se refere ao Sheol como um local onde todos os corpos mortos pela espada jazem.
do verso diz que elas desceriam «junto com aqueles que descem à cova (bowr)»,
seguinte diz que eles desceriam e se deitariam com os incircuncisos, onde “deitar”
647
O estado dos mortos no Sheol 648
expressão para falar do indivíduo na sepultura, e não como se houvesse uma rede
de dormir no inferno.
líderes “falaram” dentro do Sheol, mas se esquecem que o que foi dito é que «eles
usando o mesmo termo hebraico shakab, que diz respeito a uma pessoa morta na
sentido do texto é que os egípcios se tornariam iguais aos demais mortos; ou seja,
que “descansariam” o sono da morte na sepultura assim como eles, sem terem mais
O que prova este sentido com mais clareza é o verso seguinte, que diz que
«a Assíria está ali com todo o seu exército; está cercada pelos túmulos de todos os
seus mortos, de todos os que caíram pela espada». Primeiro ele diz que a Assíria
“está ali”, ou seja, no mesmo lugar que os egípcios estariam (que o verso anterior
diz ser no Sheol). Se os imortalistas estão certos, portanto, os assírios estariam numa
dimensão espiritual metafísica, que seria a morada dos espíritos fora do corpo. Mas
desta forma, já que diz que «está cercada pelos túmulos de todos os seus mortos».
A não ser que os túmulos também tenham sido teletransportados para uma
cova, onde os assírios estariam enterrados com todos os seus mortos. Em outras
327
#7901 da Concordância de Strong.
648
O estado dos mortos no Sheol 649
palavras, de acordo com o verso anterior, o “está ali” se refere ao Sheol, e, de acordo
com a continuação do verso, se refere à sepultura. Isso não é uma contradição, uma
vez que, como vimos, o Sheol é precisamente a “sepultura universal dos mortos” –
sepultura.
Note ainda que o verso 23 prossegue dizendo que «seus túmulos estão nas
profundezas», e que o exército «jaz ao redor de seu túmulo». Tudo isso comprova
que o autor não estava falando de um mundo espiritual numa realidade metafísica,
mas da própria sepultura, onde o exército jaz (descansa) após a morte. Isso também
subterrâneo dos espíritos, mas dizia respeito à condição dos cadáveres que
“Elão está ali, com toda a sua população ao redor de seu túmulo. Todos eles
estão mortos, caídos pela espada. Todos os que haviam espalhado pavor na
terra dos viventes desceram incircuncisos para baixo da terra. Carregam sua
vergonha com os que descem à cova” (v. 24)
fala dos guerreiros incircuncisos “que desceram ao Sheol com suas armas de
649
O estado dos mortos no Sheol 650
dimensão ou um mundo subterrâneo para onde vão as almas, isso significaria que
os espíritos imateriais descem ao Sheol com suas armas (físicas) na mão, o que é
tão pitoresco que nenhum imortalista admitiria. Agora veja como o texto faz um
terra. Neste caso, o que o texto está dizendo é que eles pereceram ainda com suas
É digno de nota que logo após dizer que os edomitas “jazem com os
incircuncisos, com aqueles que descem à cova” (v. 29), Deus continua dizendo que
“todos os príncipes do norte e todos os sidônios estão ali; eles desceram com os
mortos cobertos de vergonha” (v. 30). Para onde foi que eles desceram? Onde é o
“ali”? Obviamente, ele não está falando de um mundo espiritual em outra dimensão,
mas da cova, como diz o final do verso anterior, complementado pelo verso 30. O
texto termina dizendo que “embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos
viventes, o faraó e todo o seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que foram
viventes, teria o mesmo fim que qualquer outro humano. Ele não teria um destino
o que o faraó teria era um fim indigno e vergonhoso na sepultura, como todos os
650
O estado dos mortos no Sheol 651
ímpias, não há nada ali que faça alusão a um tormento no pós-morte, a torturas
as árvores também falam, e a própria fala serve pra destacar não uma vida
caídos com suas espadas debaixo da cabeça (Ez 32:27) não falam de
328
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 155.
329
PETERSON, Robert A. Hell on Trial: The Case for Eternal Punishment. Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 1995, p. 28.
651
O estado dos mortos no Sheol 652
tomar uma parábola como a prova mais forte de imortalidade da alma na Bíblia, à
hora, em lugares diferentes, mas não muito distante um do outro, dois homens. O
sua tarefa profissional. Era muito, mas muito barbeiro. Foi assim a vida toda, até que
bem, chegaram na porta do céu praticamente juntos. São Pedro atendeu primeiro
o motorista.
saber quem ele era, aquele homem começou a explicar: eu sou aquele conhecido
respondeu o homem. “Pois bem!”, disse São Pedro. “Entre! O céu é todo seu!”.
652
O estado dos mortos no Sheol 653
também atendido, pensava: “Se este homenzinho foi admitido ao céu, imagine eu,
o pregador”.
São Pedro cortou: “Olha, eu sei quem você é. Infelizmente, você não tem
fazia seu trabalho mal feito, que não pregava, que vivia dando prejuízo pra empresa,
que sempre deixava todos os seus passageiros tensos e temerosos, vai entrar no
céu, e eu, o pregador, que vivia na igreja, que falava da palavra de Deus, que
com seus sermões sem vida, colocando todos os seus fiéis para dormir, o motorista
***
653
O estado dos mortos no Sheol 654
A parábola que você acabou de ler costuma ser contada pelo pastor
Lázaro. Depois que ele conta a história, ainda antes de revelar ao auditório qual será
o assunto do dia, começa a perguntar às pessoas quais são as lições que elas tiraram
termina a história, os ouvintes sorriem e vão fazendo a lista das lições aprendidas:
• “Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus”
E por aí vai.
O interessante é que ninguém até hoje diz que viu nesta história lições como:
• “A alma é imortal”
654
O estado dos mortos no Sheol 655
ele introduza o assunto da palestra baseado em alguma das lições que conseguiram
tirar dela. Começam a imaginar qual será o tema da noite, sem jamais imaginar que
popular apenas como um cenário onde se passava uma história fictícia, a fim de
• Eles conhecem a crendice popular de que quem morre vai pro céu, e na
• Eles não creem nesta crendice como doutrina. Sabem que isto não é
verdade (o pastor já conhece o auditório e sabe que eles creem como ele crê, sobre
• O auditório vai conseguir captar as lições que ele quer ensinar com mais
facilidade, pois, através de uma metáfora, está figurando o ensino. Isto é didática.
Na primeira vez que ele ouviu essa história, ela foi contada por um palestrante que
não cria na imortalidade da alma, para um público que também não cria. Na
imortalidade não foi cogitada por ninguém. Não era este o assunto.
do rico e Lázaro pela mesma razão que o pastor adventista contou a parábola do
errônea sobre a vida após a morte, porque o propósito passava longe de ser uma
655
O estado dos mortos no Sheol 656
aula teológica sobre o que acontece depois da morte. Tanto os ouvintes de Jesus
como os do pastor Valdeci eram perfeitamente bem doutrinados para saber disso.
Nos tempos de Jesus, parábolas eram bem mais comuns do que são hoje, e
PARÁBOLA
■ substantivo feminino
1 Narrativa alegórica que tem por objetivo transmitir uma mensagem de maneira
Escrituras Sagradas.330
Quando um imortalista iletrado diz que “se a parábola não é real, então Jesus
mentiu”, mostra em primeiro lugar que não sabe nem o significado básico de uma
parábola, que jamais teve por objetivo ser uma história real ou expressar
necessariamente coisas reais. A prova disso é que na Bíblia não faltam exemplos de
parábolas onde árvores falam e conversam entre si, e nem por isso os mesmos
imortalistas dizem que os personagens bíblicos “mentiram” (ou que árvores falem
mesmo). Por exemplo, no segundo livro de Reis, nós nos deparamos com a seguinte
parábola:
330
Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/par%C3%A1bola>. Acesso em: 18/09/2020.
656
O estado dos mortos no Sheol 657
Por que provocar uma desgraça que levará você e também Judá à ruína?’”
ao contar a parábola do rico e Lázaro obviamente não era dizer que o Sheol/Hades
conversa das árvores ou dos mortos serve apenas como um «recurso de analogia
mortos) sejam fictícios, eles transmitem uma lição moral mais profunda, que é de
fato o objetivo do autor ao usar a parábola como recurso didático. Em Juízes vemos
“Certo dia as árvores saíram para ungir um rei para si. Disseram à oliveira:
657
O estado dos mortos no Sheol 658
renunciar ao meu vinho, que alegra os deuses e os homens, para ter domínio
Jotão contou essa parábola para ilustrar o quão errada foi a escolha dos
israelitas por Abimeleque como rei, o qual havia assassinado os seus irmãos a
sangue frio. Ao invés deles escolherem homens mais dignos, representados pelas
fictício envolvendo conversas entre árvores, não para fundamentar uma doutrina
de árvores falantes, mas para ilustrar uma verdade mais profunda através do uso da
alegoria.
haja na Bíblia textos em menor quantidade que apresentem mortos “vivos” falando
alguma coisa, uma vez que tanto os mortos como as árvores são seres inanimados
literalmente para dizer que os mortos estão vivos no mundo do além, mas não
658
O estado dos mortos no Sheol 659
Jesus não contava parábolas para esclarecer verdades espirituais, mas para ocultá-
las. Por mais estranho que isso possa parecer, Jesus não contava parábolas para que
a multidão entendesse melhor o seu ensino, mas justamente o contrário: para que
não entendessem! Se você está surpreso com isso, deve ser porque ainda não leu
terá em grande quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado.
Por essa razão eu lhes falo por parábolas: ‘Porque vendo, eles não veem e,
É por isso que Jesus falava aos discípulos claramente, mas à multidão falava
apenas por parábolas: “Jesus falou todas estas coisas à multidão por parábolas.
659
O estado dos mortos no Sheol 660
Nada lhes dizia sem usar alguma parábola” (Mt 13:34). Não é porque Jesus queria
que a multidão entendesse, mas justamente o contrário, já que não foi concedido a
ela conhecer os «mistérios do Reino dos céus», uma vez que se tratava de uma
multidão interesseira e de coração endurecido. Isso explica por que o povo estava
sempre entendendo errado o que Jesus dizia, como acontece o tempo todo nos
evangelhos.
se declarou o «pão vivo» que devia ser comido (Jo 6:51-52), a mulher samaritana do
doutor da lei como Nicodemos achou que Jesus falava de voltar ao ventre da mãe
para renascer quando o ouviu falar sobre «nascer de novo» (Jo 3:3-4). Até os
quando não, razão por que discutiram sobre não terem pão quando Jesus pediu
que tivessem cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus (Mt 16:6-7).
Isso indica que Jesus não contou a parábola do rico e Lázaro para ensinar
qualquer coisa sobre a vida após a morte. Se ele sempre falava à multidão por
alegorias que ela não entendia, e se o propósito era justamente que eles não
entendessem, a moral da parábola não pode ser algo que tenha sido dito
alguém tão tolo a ponto de pensar que Jesus queria ensinar a vida após a morte ao
contar a parábola (o que não é de se espantar, já que confundiam tudo o que Jesus
660
O estado dos mortos no Sheol 661
alternativa que resta aos imortalistas é dizer que Lc 16:19-31 não é uma parábola,
mas uma história real. Este é o único jeito de exigir a literalidade do texto, o que
distinguiria essa parábola das parábolas em que árvores falam e outras de natureza
claramente simbólica, e faria com que a mensagem que Jesus queria passar à
multidão fosse exatamente aquilo que pode ser extraído literalmente dela e que
essa tentativa esbarra nas evidências esmagadoras, tanto dentro como fora de Lc
16:19-31, que demonstram que Jesus estava contando realmente uma parábola,
os seguintes, incluindo o próprio capítulo 16, são recheados de parábolas dos mais
variados tipos, como se Lucas tivesse reservado essa parte do livro quase que
mais narra parábolas de Jesus, e muitas delas nós conhecemos apenas por seu
661
O estado dos mortos no Sheol 662
Teria Lucas incluído uma história real justamente no meio de uma série de
parábolas? Há quem diga que sim, porque em Lc 16:19-31 ele não diz
Isso seria como um comediante num show de Stand Up precisar interromper sua
apresentação para avisar a plateia de que aquilo que ele contaria em seguida seria
mais uma piada, o que não faz o menor sentido. Se a parábola do rico e Lázaro
desses, mas não quando todo o contexto é notoriamente marcado por histórias
fictícias.
Isso explica por que muitas outras parábolas em torno de Lucas 16 também
não vem com um aviso prévio de que se trata de uma parábola, embora todos
(Lc 15:8-9), a do filho pródigo (Lc 15:11-32) e a do administrador desonesto (Lc 16:1-
enfatizar que se trata de outra parábola quando se vem narrando várias parábolas
É por isso que até mesmo Clemente de Alexandria (150-215), um dos precursores
331
Stromata, Livro IV, 6.
662
O estado dos mortos no Sheol 663
Há vários outros casos em que Jesus não diz expressamente que se tratava
de uma parábola, mas seus discípulos assim entenderam (e nestes casos, com
razão). Por exemplo, em Lc 12:37-40 Jesus conta uma história sem dizer que é uma
parábola, e então Pedro questiona: “Senhor, estás contando esta parábola para nós
ou para todos?” (Lc 12:41). Jesus não responde a Pedro dizendo que ele estava
enganado ao julgar ser uma parábola, porque de fato se tratava de uma (embora
uma parábola sem que Jesus tivesse avisado se tratar de uma. Em Lc 5:36, o
evangelista diz que Jesus “lhes contou esta parábola...”, mas a mesma parábola é
citada em Mc 2:21 sem a informação de que se trata de uma parábola. Isso nos
regra é que Jesus usou um verbo de existência quando disse que “havia um homem
rico...” (v. 19), o que provaria que neste caso se tratava de uma história real. Este
demonstra o peso de sua ignorância, já que o termo “haver” nem mesmo consta no
grego, que diz apenas anthrōpos de tis ēn plousios kai enedidysketo porphyran
663
O estado dos mortos no Sheol 664
homem rico que tinha um administrador; e este lhe foi denunciado como quem
tivessem feito uma pesquisa básica antes de repetir bobagens de terceiros e usá-
isso apenas implicaria que o rico existia na parábola, da mesma forma que o filho
“Depois de ter gasto tudo, houve uma grande fome em toda aquela região, e
original grego, aqui na parábola do filho pródigo de fato aparece o verbo ginomai,
que significa «vir à existência, começar a ser, receber a vida»332. Nem por isso
alguém acredita que a parábola do filho pródigo era uma história real, como alguns
de existência em sua história, não porque esteja descrevendo algo real, mas porque
literalmente. Muitos imortalistas são rápidos em citar a parábola como uma “prova”
332
1096 da Concordância de Strong.
664
O estado dos mortos no Sheol 665
Lucas 16
19 Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e vivia no luxo
todos os dias.
chagas;
21 este ansiava comer o que caía da mesa do rico. Em vez disso, os cães vinham
23 No Hades, onde estava sendo atormentado, ele olhou para cima e viu Abraão de
24 Então, chamou-o: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro
molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha língua, porque estou sofrendo
25 Mas Abraão respondeu: “Filho, lembre-se de que durante a sua vida você
recebeu coisas boas, enquanto que Lázaro recebeu coisas más. Agora, porém, ele
26 E além disso, entre vocês e nós há um grande abismo, de forma que os que
desejam passar do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não
conseguem”.
27 Ele respondeu: “Então eu lhe suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai,
28 pois tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não venham
665
O estado dos mortos no Sheol 666
30 “Não, pai Abraão, disse ele, mas se alguém dentre os mortos fosse até eles, eles
se arrependeriam”.
menciona alma ou espírito. Apenas diz que “o rico foi sepultado”, e então ele
aparece no Hades. Isso não é um mero detalhe sem relevância, porque, como
corpo físico, não como uma alma desencarnada ou um espírito sem corpo. Isso fica
nítido no verso 24, em que o rico pede a Lázaro que “molhe a ponta do dedo na
Isso mostra que Lázaro tinha dedos e que o rico tinha língua, ambos órgãos
depositado na sepultura. Foi o seu corpo levado ao Hades juntamente com sua
alma por engano?”333. Não me surpreende que alguns cheguem ao ponto de sugerir
que o espírito fora do corpo tem os mesmos órgãos do corpo, para superar esses
disse que um espírito não tem carne nem ossos (Lc 24:39).
333
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 165.
666
O estado dos mortos no Sheol 667
Mais do que isso, se um espírito já tem corpo, pra que serve o nosso corpo
atual? E por que diabos haveria a ressurreição? Por outro lado, se a alma é
como a água? Note que o risco deseja refrescar sua língua, o que indica que ele
sentia sede. Mas a sede é uma característica biológica, não de um espírito imaterial
e fluídico. Nem Deus nem os anjos precisam “refrescar a língua”, porque não têm
um corpo para sentir sede. O rico precisava, porque ele não estava ali como um
É por isso que não é de se estranhar que não haja em toda a parábola uma
ensinar a imortalidade da alma. Nenhum dos personagens está ali como uma alma
fora do corpo, mas com corpos com dedo, língua e tudo o que têm direito. Assim,
é obviamente ridículo).
teologia. Por exemplo, ela abriria espaço para a crença de que os salvos no céu
conversa com Lázaro. Imagine você não apenas saber que seu filho está queimando
no inferno em um terrível sofrimento sem fim, mas ainda poder vê-lo sofrendo
diante dos seus olhos e se comunicar com ele sem poder fazer nada para atenuar
seu sofrimento ou livrá-lo dali. Eu aposto que sua experiência no céu não seria tão
satisfatória assim...
667
O estado dos mortos no Sheol 668
não mais têm contato com os perdidos no inferno, ainda assim teriam que lidar com
o incômodo fato de que por pelo menos quatro mil anos (desde o início da criação
até a vinda de Cristo) isso não apenas era possível, mas acontecia realmente. Se
você nunca viu um pastor ou padre pregar que os salvos no Paraíso podiam ou
podem ver e conversar com os ímpios no inferno, talvez seja porque até eles sabem
que a parábola não pode ser interpretada literalmente, mas mesmo assim a usam
para “provar” a sobrevivência da alma. Não há nada que não possa mudar conforme
a conveniência.
outro, mas o próprio relato diz que havia «um grande abismo» entre eles, tão
lado para o outro (v. 26). Mesmo se estivessem próximos, dificilmente poderiam se
ouvir com clareza, já que milhões de almas naquele lugar estariam gritando ao
realmente “sofrendo muito neste fogo” (v. 24). Quem é que consegue dialogar com
um lago de fogo?
O diálogo, assim como tudo o que o rodeia, é bem típico de uma história
fictícia, e, como toda ficção, esbarra em absurdos lógicos quando transposto para
daquela distância enquanto sofria amargamente entre as chamas, por que raios ele
668
O estado dos mortos no Sheol 669
pediria para Lázaro molhar a sua língua, quando todo o seu corpo estava sendo
devorado pelo fogo? Eu nunca vi alguém que está queimando se preocupar com
refrescar a língua, a não ser que apenas a língua estivesse pegando fogo. Ou o fogo
da parábola é de mentirinha, ou o inferno não deve ser tão doloroso assim, afinal.
Ademais, de que adiantaria uma gota d’água, quando todo o corpo está
mesmo que chegasse até ele, ainda mais considerando que eles estavam separados
Hades por toda a eternidade. Tal visão não destruiria a própria alegria
divisório.334
forma o rico sabia que era Abraão, ou como reconheceu Lázaro de tão longe entre
334
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 165-166.
669
O estado dos mortos no Sheol 670
as fumaças de uma fornalha, ou para onde iam as pessoas no “Seio de Abraão” antes
de Abraão existir, ou por que ele pediria que Lázaro molhasse apenas “a ponta do
dedo na água” (v. 24) para transportar a água de um lugar para outro em vez de
encher as mãos de água e lhe dar um verdadeiro “banho”, ou de que forma algumas
existem.
Também chama a atenção que o rico peça que Abraão mande Lázaro de
volta ao mundo dos vivos, como se Abraão tivesse algum poder para isso, em lugar
de Deus. E embora Abraão não atenda o pedido, ele não diz que não tinha esse
poder, como quando diz que não podia lançar água devido ao grande abismo que
os separava.
leviana citam fora de contexto os trechos da parábola que lhes convém para dizer
que os mortos estão vivos no outro mundo não fazem o mesmo para sustentar a
doutrina de que os espíritos descem ao Hades com corpo e tudo, que os salvos
é possível ter um diálogo racional com alguém que esteja tão longe num ambiente
outras abobrinhas que lhes convém. Isso mostra o grau de cinismo e dissimulação
670
O estado dos mortos no Sheol 671
dos nossos oponentes, que não pensam duas vezes em usar essa parábola para
endossar a vida após a morte, mas não são loucos de acreditar no tipo de vida após
a morte que a parábola registra nem ousam sustentar esse tipo de “céu” e “inferno”
mas não pra retratar como realmente é essa vida após a morte. É como se o texto
dissesse que “o rico estava sendo atormentado no Hades, e fim”. O resto nunca é
citado, a não ser quando é pra tirar vergonhosamente algum trecho do contexto
acreditassem que a parábola é uma história real ou que pelo menos retrata como
realmente é a vida após a morte, o tipo de estado intermediário que pregariam nos
púlpitos seria totalmente compatível com o que existe na parábola – mas você
nunca verá nenhum deles dizendo que os espíritos têm corpos físicos que sentem
sede ou que é possível bater um papo bacana com quem está queimando lá do
outro lado.
Isso prova que eles mesmos sabem que essa parábola não tem nada de real,
porque com uma parábola dessas é muito mais fácil ludibriar os incautos, que nem
sequer sabem o que é uma parábola ou que nenhuma doutrina séria depende de
parábolas para ser sustentada. Como comenta Bacchiocchi, “vez após vez tenho-
335
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 154.
671
O estado dos mortos no Sheol 672
praticamente tudo o que eles têm, e sem ela só restam meia dúzia de textos
verdadeira e única razão por que eles precisam se apegar tão desesperadamente a
essa parábola como o “carro-forte” da doutrina que eles defendem, já que é o único
desprovida de exegese.
mentiu” ao contar uma parábola em que há vida após a morte não dizem que Jesus
morte, embora eu não conheça um único imortalista que cogite tal coisa. É como se
Jesus pudesse ter “mentido” sobre os salvos e perdidos baterem papo depois da
morte ou terem corpos físicos no Hades, mas não pudesse “mentir” sobre existir
vida consciente após a morte. Eles pegam da parábola apenas o que lhes convém,
para acusar os mortalistas de fazerem exatamente aquilo que eles mesmos fazem.
estar numa piscina conversando com o rico que queima do outro lado mas que está
mortalistas Jesus “mentiu” por ter contado essa parábola mostra o quanto os
672
O estado dos mortos no Sheol 673
perceber que só faz sentido falar em “mentira” em se tratando de histórias reais, não
ficção seriam grandes mentirosos. Para a sorte deles, algo só pode ser considerado
uma mentira quando se pretende dizer uma verdade literal em um contexto literal.
Por exemplo, se alguém estivesse sendo presunçoso e você lhe dissesse “tire o seu
cavalinho da chuva”, ele não poderia com razão te acusar de ser mentiroso só
porque ele não tem um filhote de cavalo ou porque não está chovendo. Isso porque
é óbvio, neste contexto, que a declaração não tem a pretensão de ser entendida
parábola literalmente.
Para entender a diferença entre uma coisa e outra, imagine que eu dissesse
vaca numa fazenda, e tentasse te convencer de que isso aconteceu mesmo, apesar
de nunca ter ocorrido. Neste caso, é evidente que eu estaria mentindo. Mas se eu
contasse isso como uma piada ou como um conto folclórico, ninguém diria que eu
É por isso que J. K. Rowling não “mentiu” ao escrever Harry Potter, porque
ninguém realmente acredita que haja crianças praticando magia com varinhas
mágicas, nem Tolkien mentiu quando escreveu O Senhor dos Anéis, porque
ninguém supõe ser verdade que existem hobbits, orcs e elfos habitando numa
“Terra Média”, e tampouco C. S. Lewis mentiu quando escreveu Nárnia, porque ele
nunca pretendeu que alguém tomasse como verdade que um armário literalmente
673
O estado dos mortos no Sheol 674
O que é preciso entender é que um conto de ficção tem algo que chamamos
de “licença poética”, que é a liberdade de poder falar coisas que não são verdades,
justamente porque se sabe que não serão encaradas como verdadeiras por parte
do receptor. É por isso que um personagem pode ser assassinado num filme ou
numa obra literária, mas se alguém fizer isso na vida real será preso. Por isso é tão
diferente quando Alec Baldwin “mata” alguém num filme e quando mata no set de
suficiente para se expressar de um modo que não seria correto fora dele.
2Rs 14:9 (nos textos que personificam árvores falantes), nem Tiago mentiu quando
falou da “ferrugem que testemunha” (Tg 5:3) ou do “salário que clama” (Tg 5:4), nem
Moisés mentiu quando falou do sangue de Abel que clama da terra em Gn 4:10,
nem João mentiu quando disse que “os trovões falaram” (Ap 10:3). O mesmo
podemos dizer a respeito dos “campos exultantes” (1Cr 16:32), das “árvores
jubilantes” (1Cr 16:33), das “colinas que irromperão em canto” (Is 55:12), das aves e
peixes falantes (Jó 12:7-8) e das montanhas que “regozijam” (Sl 98:8).
Isaías também não é um mentiroso por ter dito “pranteiem, vocês, navios de
Társis” (Is 23:14), embora o navio não tenha sentimentos nem fala, e tampouco
Jeremias mentiu por ter dito que Deus “fez com que os muros e as paredes se
lamentassem; juntos eles se desmoronaram” (Lm 2:8), apesar das paredes e muros
674
O estado dos mortos no Sheol 675
Bíblia, ainda mais em um contexto parabólico como esse. Assim como árvores
falantes em parábolas não prova que árvores realmente falam ou que alguém
mentiu ao dizer que falam, mortos falantes em outra parábola também não prova
que os mortos realmente falam ou que alguém mentiu ao retratá-los falando. Não
a interpretação da parábola àquilo que a Bíblia como um todo ensina sobre o tema
em questão. Nenhuma parábola que Jesus contou era uma história real, e nem por
isso ele era um mentiroso ou induzia as multidões ao erro, porque elas sabiam que
era uma parábola e sabiam que parábolas não deviam ser entendidas ao pé da letra.
Se um imortalista do século XXI não sabe, a culpa não é de Jesus, mas dele,
por sua própria ignorância e obstinação. Nenhum dos ouvintes originais de Jesus
seria induzido a pensar que a alma sobrevive após a morte, da mesma forma que
credores a fim de obter deles algum ganho pessoal (Lc 16:1-9), mas ninguém acusa
agiu astutamente” (Lc 16:8). Dizem que “o que aconteceu em Vegas, fica em Vegas”,
675
O estado dos mortos no Sheol 676
qual, por definição, é uma história fictícia, expressa por meio de alegorias. O que
devemos extrair delas é sua lição moral, que geralmente se encontra nas
entrelinhas.
parábola tinha que ter um cenário real, já que as parábolas de Jesus costumavam
ilustrar verdades do dia a dia. O problema é que, como veremos mais adiante, a
parábola do rico e Lázaro não era uma parábola “de Jesus” no sentido de ter sido
originalmente contada por ele, como parece ser o caso das parábolas do bom
imortalistas concordam que a parábola do rico e Lázaro nada mais é que uma
adaptação de um conto popular bem conhecido por todos na época, e contos não
Assim como ninguém acredita que lobos maus destroem casas com um
sopro, ninguém deveria pensar que os mortos conversam no além – ainda mais com
dedos, língua e sede, como na parábola do rico e Lázaro. Se Jesus “mentiu” por ter
citado uma parábola onde os mortos estão “vivos”, teria “mentido” também por ter
dito que os mortos estão com os corpos físicos no outro mundo, uma concepção
que nenhum imortalista admite. É nisso que dá quando se exige um “fundo real”
para aquilo que não foi concebido para ser encarado como real: a própria premissa
retrata “verdades do dia a dia”, porque conversar com alguém no inferno não é
parte do “dia a dia” de pessoa nenhuma. Estamos obviamente lidando aqui com um
676
O estado dos mortos no Sheol 677
caso sui generis, isto é, com uma parábola que não tem precedentes, já que é de
evangelhos.
O propósito de uma parábola – Quem diz que Jesus era imortalista porque
contou uma parábola cujo cenário inclui a vida após a morte não entende nem o
que é uma parábola, e muito menos o propósito de Jesus ao usá-las. Isso porque,
como vimos, a Bíblia é perfeitamente clara em dizer que Jesus não contava as
parábolas para deixar as coisas mais claras, mas justamente para mantê-las
Isso significa que as parábolas que Jesus contava não podiam ser entendidas
pelo senso comum, como os imortalistas fazem ao dizer que a parábola do rico e
seria tão óbvio que de modo algum se enquadraria no que Jesus diz sobre a
multidão ser incapaz de entender as parábolas, porque não foi dado a ela o
conhecimento dos mistérios do Reino dos céus (Mt 13:11). Em outras palavras, só é
Para entender o que Jesus queria dizer era preciso mais do que uma análise
superficial, que é exatamente o erro que os imortalistas incorrem, os quais são tão
está escondido, oculto, mantido em segredo, não algo que esteja escancarado
diante de todos, mediante uma leitura superficial. Isso significa que para entender
o que Jesus queria dizer com a parábola do rico e Lázaro nós devemos ir além da
superfície, buscando captar a intenção por detrás dela – isto é, seu significado
677
O estado dos mortos no Sheol 678
por todo exegeta que se preze é retirar delas sua lição moral, e não os meios
utilizados para se chegar a ela. Da mesma forma que o conto do pastor Valdeci não
tinha qualquer objetivo de ser uma lição sobre o que acontece após a morte, mas
apenas se apropria de um conceito popular para extrair uma lição moral, assim
também ocorria com as parábolas de Jesus, muitas das quais deixariam os cristãos
administrador desonesto é elogiado por ter agido astutamente, mesmo ele tendo
alma ao contar a parábola seguinte. Nós sabemos que isso não é verdade porque a
lição moral da parábola frequentemente não tem qualquer relação com seus meios,
que nada mais são que um instrumento utilizado para se chegar à lição, e não a
lição em si.
desonesto no muito” (Lc 16:10) – nada a ver com roubar o patrão – e, como veremos,
a lição da parábola do rico e Lázaro era que “se não ouvem a Moisés e aos Profetas,
678
O estado dos mortos no Sheol 679
Em outra parábola, “um juiz que não temia a Deus nem se importava com os
homens” (Lc 18:2) decide atender o pedido de uma viúva de tanto que ela insistiu:
“Embora eu não tema a Deus e nem me importe com os homens, esta viúva está me
aborrecendo; vou fazer-lhe justiça para que ela não venha me importunar” (vs. 4-5).
Jesus contou essa parábola “para mostrar-lhes que eles deviam orar sempre e
nunca desanimar” (v. 1). Sendo Deus aquele que atende as orações, qualquer um
ímpio que se irrita com as nossas orações e só as responde para deixar de ser
Mas a lição moral é apenas que “Deus lhes fará justiça, e depressa” (v. 8), aos “que
Jesus diz:
de viagem, e não tenho nada para lhe oferecer’. E o que estiver dentro
deitados comigo. Não posso me levantar e lhe dar o que me pede’. Eu lhes
digo: embora ele não se levante para dar-lhe o pão por ser seu amigo, por
causa da importunação se levantará e lhe dará tudo o que precisar. Por isso
lhes digo: Peçam, e lhes será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta
lhes será aberta” (Lucas 11:5-9)
679
O estado dos mortos no Sheol 680
Mais uma vez, uma aplicação literal da parábola nos levaria a pensar que
Deus não nos dá as coisas por ser nosso amigo, como Jesus disse que somos (Jo
15:15), mas porque é importunado e quer se livrar desse incômodo o quanto antes.
do mundo espiritual, onde Deus “dá a todos liberalmente, de boa vontade” (Tg 1:5).
A lição da parábola não tinha nada a ver com Deus se irritar com os nossos pedidos,
talentos é descrito como “um homem duro, que colhe onde não plantou e junta
onde não semeou” (Mt 25:24). Qualquer um que fizesse uma aplicação literal da
parábola seria levado a pensar que Deus é como aquele homem de duro coração
que age desonestamente, já que é Ele quem distribui os talentos. No entanto, essa
aplicação é falsa pelo simples fato de que os meios de uma parábola nunca podem
ser usados para fundamentar doutrina. Embora seja um dos princípios mais básicos
obrigue-os a entrar, para que a minha casa fique cheia’” (Lc 14:23). Sabemos que
essa parábola fala a respeito de salvação, pois Jesus a contou para dizer quem
estaria no banquete do Reino de Deus (v. 15). No entanto, poucos pensam que Deus
literalmente obriga as pessoas a serem salvas, como se elas não tivessem como
seria um convite, mas uma exigência feita na base da força, de maneira coercitiva.
680
O estado dos mortos no Sheol 681
desuso, e por isso tanta gente tende a interpretá-las literalmente e extrair doutrina
de seus meios, criando confusões como essas. E os teólogos, que em tese teriam a
obrigação de esclarecer isso aos leigos, preferem endossar o engano, porque tiram
bíblica a uma doutrina que sabe que é tão desprovida de fundamento que o jeito é
que: (1) Lc 16:19-31 é de fato uma parábola como todas as outras em torno dela, e
não uma história real; (2) se a parábola do rico e Lázaro devesse ser entendida
literalmente, como uma aula de teologia sobre o que acontece após a morte, ela
acredita que os espíritos vão para o Hades com um corpo físico tal como o rico e
Lázaro, e tampouco o lugar onde estavam se parece com a noção tradicional de céu
e inferno; (3) parábolas são essencialmente alegorias, não descrições literais, das
quais devemos captar a lição moral que o autor pretende ensinar, em vez de nos
Tendo isso em mente, o que ainda nos resta é saber que lição é essa que
Jesus quis ensinar com a parábola do rico e Lázaro. Parte da dificuldade está no fato
de que muitas pregações são feitas sobre as outras parábolas, explicando seu
significado contextual aos leigos, mas nunca vemos o mesmo sendo feito com a do
ali. Mas entender o significado dessa parábola não é nada complicado quando
681
O estado dos mortos no Sheol 682
daquela parábola não estava exatamente no filho pródigo (embora seja o foco de
por inveja não aceitava o fato do pai ter acolhido o seu irmão. Para entendermos
isso, precisamos primeiro ver o contexto que levou Jesus a contar essa parábola e
outras do tipo:
come com eles’. Então Jesus lhes contou esta parábola: Qual de vocês que,
coloca-a alegremente sobre os ombros e vai para casa. Ao chegar, reúne seus
amigos e vizinhos e diz: ‘Alegrem-se comigo, pois encontrei minha ovelha
perdida’. Eu lhes digo que, da mesma forma, haverá mais alegria no céu por
um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não
precisam arrepender-se” (Lucas 15:1-7)
“pecadores” estarem se reunindo para ouvir Jesus, pois se julgavam melhores que
“populacho” cheio de pecados. Então Jesus começa a contar uma série de parábolas
682
O estado dos mortos no Sheol 683
pela da moeda perdida e pela do filho pródigo. Ele costumava contar várias
um rei encarrega seus súditos a cuidar de dez minas). Em Lucas 15, a parábola da
desta, que depois é reforçado pelas parábolas do filho pródigo e do rico e Lázaro.
Todas elas tinham o mesmo significado básico, de que Deus dá mais valor ao
pecador que se arrepende do que àqueles que julgam a si mesmos justos que não
fariseus, que não aceitavam que os “pecadores” (representados pelo filho pródigo)
braços abertos). Assim como o outro filho da parábola se revoltou com o pai por
soberba dos fariseus, que se achavam superiores aos demais e julgavam não
precisar de arrependimento, o que levou Jesus a dizer que “eu não vim chamar
justos, mas pecadores ao arrependimento” (Mt 9:13). Se achar justo e não precisar
683
O estado dos mortos no Sheol 684
Aquilo que tem muito valor entre os homens é detestável aos olhos de Deus’”
(Lucas 16:13-15)
Note que a discussão entre Jesus e os fariseus tinha tudo a ver com a do
“parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade” (Mt
23:28). Mas além dessa discussão principal, há aqui um detalhe adicional que não
consta no capítulo 15, que são as riquezas. Os fariseus amavam o dinheiro, e por
isso Jesus contou uma nova parábola com os mesmos significados básicos das três
do capítulo anterior, mas incluindo a questão do dinheiro, para reforçar que “a vida
Por isso não é surpresa que o homem que represente os fariseus aqui, que é
o equivalente ao irmão do filho pródigo na outra parábola, seja descrito como “um
homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e vivia no luxo todos os dias”
684
O estado dos mortos no Sheol 685
parábola é representada pelo filho pródigo? Aqui, ela é representada por “um
mendigo chamado Lázaro, coberto de chagas; este ansiava comer o que caía da
Isso também faz todo o sentido, já que a multidão que costumava seguir
Jesus era tão miserável que ele dizia que “se eu os mandar para casa com fome, vão
desfalecer no caminho” (Mc 8:3), razão por que ele lhes multiplicou os pães e os
peixes em pelo menos duas ocasiões diferentes (Mt 14:13-21, 15:32-39). Não é à
toa que o nome “Lázaro” significa «alguém ajudado por Deus», como sublinha
Ronald Sider336. Note também como o rico da parábola se refere a Abraão: “Pai
Abraão, tem misericórdia de mim...” (Lc 16:24). Quem mais chamava Abraão de pai?
“Quando viu que muitos fariseus e saduceus vinham para onde ele estava
batizando, disse-lhes: Raça de víboras! Quem lhes deu a ideia de fugir da ira
que vocês podem dizer a si mesmos: ‘Abraão é nosso pai’. Pois eu lhes digo
que destas pedras Deus pode fazer surgir filhos a Abraão” (Mateus 3:7-9)
E ainda:
“Eu lhes estou dizendo o que vi na presença do Pai, e vocês fazem o que
Jesus: ‘Se vocês fossem filhos de Abraão, fariam as obras que Abraão fez. Mas
336
SIDER, Ronald J. Cristãos Ricos em Tempos de Fome. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1982, p. 78.
685
O estado dos mortos no Sheol 686
vocês estão procurando matar-me, sendo que eu lhes falei a verdade que
cartas diferentes que “nem por serem descendentes de Abraão passaram todos a
ser filhos de Abraão” (Rm 9:7), e que “os que são da fé, estes é que são filhos de
Abraão” (Gl 3:7). Em outras palavras, ao colocar Abraão contra o rico que
protestante faria ao colocar Pedro (que os papistas dizem ter sido o primeiro papa
enfatizar o contraste entre Pedro e os papas. Jesus fez isso com Abraão e o rico,
conformidade com o que Abraão fazia. É por isso que na parábola Jesus coloca
abismo (v. 26). Tudo isso é muito simbólico, representando ao mesmo tempo o
quanto os fariseus passavam longe daquele em quem ostentavam ter por “pai”, e
arrependidos que eles tanto desprezavam, que na parábola são colocados ao lado
É isso o que significa “Lázaro no seu seio” (v. 23), que os imortalistas
quando na verdade nada mais era que uma expressão semítica usada para designar
alguém que está junto de outra pessoa (razão por que a NVI traduz por «ao seu
686
O estado dos mortos no Sheol 687
diz que “ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é
quem o revelou” (Jo 1:18), a expressão «o seio do Pai» não diz respeito a um lugar
com este nome, mas é apenas uma forma de dizer que Jesus está ao lado do Pai,
aberração em seus livros cheios de ilustrações bizarras sobre o estado dos mortos,
porque seu nome significa “aquele que Deus socorre”, mas porque Lázaro também
era o nome do homem a quem Jesus havia ressuscitado e suscitado a inveja dos
687
O estado dos mortos no Sheol 688
fariseus. Nesta ocasião, “os chefes dos sacerdotes fizeram planos para matar
também Lázaro, pois por causa dele muitos estavam se afastando dos judeus e
crendo em Jesus” (Jo 12:10-11). Os fariseus não acreditaram em Jesus mesmo após
admira que ele tenha dado o nome Lázaro ao mendigo da parábola, a quem o rico
“Ele respondeu: ‘Então eu lhe suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai,
pois tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não
venham também para este lugar de tormento’. Abraão respondeu: ‘Eles têm
Moisés e os Profetas; que os ouçam’. ‘Não, pai Abraão’, disse ele, ‘mas se
alguém dentre os mortos fosse até eles, eles se arrependeriam’. Abraão
Como vimos, tudo isso está envolvo em uma simbologia muito forte. Os
Jesus por causa disso, “fizeram planos para matar também Lázaro, pois por causa
dele muitos estavam se afastando dos judeus e crendo em Jesus” (Jo 12:10-11), e
688
O estado dos mortos no Sheol 689
Note ainda que o rico diz que tinha cinco irmãos (v. 28). Jesus poderia apenas
ter dito que ele tinha irmãos, mas é bem específico em dizer que tinha cinco. Se,
como vimos, o rico representava os fariseus, que eram a principal facção dos judeus,
quais seriam esses seus “irmãos”? A conclusão mais lógica é que se trata de uma
saduceus (Lc 20:27); (2) a dos zelotes (Lc 6:15); (3) a dos herodianos (Mc 12:13); (4) a
dos samaritanos (Jo 4:9) e (5) a dos essênios. Estes últimos são os únicos que não
aparecem no NT, uma vez que viviam isolados do resto da sociedade, mas eram
O ponto em comum de todos esses cinco partidos dos judeus da época (ou
seis, se contar os próprios fariseus) é que nenhum deles reconheceu Jesus como o
salvador ou esteve ao lado dele quando a multidão gritava “crucifica-o” (Jo 19:6).
Haviam elementos de cada um deles (ou da maior parte deles) que aceitou Jesus,
4:24-42), mas como grupo, nenhum reconheceu Jesus como o Messias ou esteve
com ele até o fim. Isso significa que Jesus foi rejeitado por todas as facções judaicas
que o rico (fariseu) tinha cinco irmãos que também não se convenceriam mesmo se
689
O estado dos mortos no Sheol 690
ressuscite alguém dentre os mortos” (v. 31). “Moisés e os Profetas” é uma forma de
se referir à Escritura que eles conheciam (i.e, o AT). Por exemplo, quando Paulo
los a respeito de Jesus, com base na Lei de Moisés e nos Profetas” (At 28:23). A lei
bíblico do qual se diziam mestres, que apontava a Jesus como o Messias. Como
pródigo” a ênfase não recaía no filho pródigo, mas no outro filho (que também
tipifica os fariseus), também aqui a ênfase não recai em Lázaro, mas no rico e seus
irmãos:
segundo (vs. 27-31) trata do pedido do rico a Abraão para que envie
Isso significa que Jesus não quer comentar sobre um problema social,
690
O estado dos mortos no Sheol 691
usam como a “prova” de que não era uma parábola, fazem um perfeito sentido
quando captamos o propósito da parábola. Vale ressaltar que não existe um único
dicionário no mundo que imponha como regra que uma parábola não possa ter
nomes próprios. Essa é uma “regra” inventada por imortalistas desesperados, tirada
da própria cabeça deles. O fato dessa parábola ter nomes não significa que ela não
seja parábola, só significa que é a única parábola de Jesus que tem nomes (da
mesma forma que a parábola do bom samaritano é a única que cita a nacionalidade
dos personagens, mas nem por isso deixa de ser parábola). Se um conto se torna
necessariamente real por ter nomes, até A Branca de Neve e os Sete Anões tem que
significado da parábola, já que tudo o que conseguem ver ali é Jesus ensinando a
imortalidade da alma, o que estava longe de ser o propósito. Isso explica por que
essa parábola é tão pouco estudada, uma vez que não há a menor preocupação em
337
JEREMIAS, Joachim. The Parables of Jesus. 2ª ed. New Jersey: SCM Press Ltd., 1972, p. 186.
691
O estado dos mortos no Sheol 692
realmente estudar a parábola, mas somente em usá-la como uma arma em favor de
Como comenta Aguiar, “apesar das discussões que envolvem esse relato,
erudição, uma vez que ela não tem recebido tanta atenção dos estudiosos quanto
do rico e Lázaro339. Isso acontece porque a maioria dos estudiosos prefere assumir
que Jesus estava apenas contando uma historinha sobre como é a vida após a morte
propósito.
arrependimento, do que supor que ele iria parar tudo para contar uma simples
historinha sobre a vida após a morte, que teria caído de paraquedas no texto sem
qualquer justificativa ou lógica. Se este fosse o propósito, faria muito mais sentido
Jesus contar essa história em sua disputa com os saduceus (Mc 12:18-37) do que
aqui, onde nada no contexto alude à vida após a morte (mas os imortalistas acham
que era o que Jesus queria provar, “porque sim”). É esse o cúmulo do amadorismo
338
AGUIAR, Adenilton T. de; BARROS, Diego Rafael da S. “Estudo sobre a morte em Lucas 16:19-31”.
Revista Kerygma. v. 9, n. 1, 2013, p. 132.
339
HOCK, R. F. “Lazarus and Micyllus: greco-roman backgrounds to Luke 16:19-31”. Journal of Biblical
Literature, v. 106, n. 3, 1987, p. 447.
692
O estado dos mortos no Sheol 693
antibíblica, que precisa se agarrar aos meios de uma parábola para se sustentar.
imortalidade da alma, pergunta a respeito dela: “O que esta passagem nos diz a
pode ser: ‘Nada’”341. Ele então cita como exemplo algumas das incoerências que
da vida no além, nem propicia uma base firme para uma doutrina do
posição ética. Ele podia não estar endossando tais imagens, e não
340
COOPER, John W. Soul and Life Everlasting: Biblical Anthropology and the Monism-Dualism Debate.
Grand Rapids: Alban Books Limited, 1989, p. 139.
341
ibid.
342
ibid.
343
ibid.
693
O estado dos mortos no Sheol 694
Para ele, “Jesus apenas emprega o imaginário popular para ressaltar a ética
do reino vindouro. Assim, ciente de que este imaginário não passava de fábulas
judaicas, ele não poderia endossar este conceito”344. Snodgrass, também ele um
imortalista, concorda com Cooper quando diz que a parábola “não tem o objetivo
depois da morte”345.
non est demonstrativa – ou seja, que doutrina nenhuma pode ser fundamentada
judaicas”346. Quem está de acordo com isso é o famoso teólogo Grant R. Osborne,
344
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 141.
345
SNODGRASS, K. Compreendendo Todas as Parábolas de Jesus: guia completo. Rio de Janeiro: CPAD,
2010, p. 607.
346
SMITH, W. “Bosom of Abraham”. In: Dr’s William Smith’s dictionary of the Bible: compreing its
antiquities, biographies and natural history. New York:
694 Riverside Press, 1869. v. 2, p. 1038.
O estado dos mortos no Sheol 695
demais.347
doutrina com base nos meios dessa parábola é algo pouco conhecido dos leitores
não se tratar de uma parábola original de Jesus, mas de uma adaptação de uma
parábola famosa tanto no mundo grego como judaico daqueles tempos. Aguiar diz
que uma versão dessa parábola corrente nos dias de Jesus “pode ser encontrada no
Talmude de Jerusalém, nos tratados Sanhedrin 6.6 (23c) e Hagigah 2.2 (77d)”348, e é
sábado.349
egípcia da viagem de Osíris e de seu pai ao reino dos mortos, que teria sido trazida
347
OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São Paulo:
Vida Nova, 2009, p. 392.
348
AGUIAR, Adenilton T. de; BARROS, Diego Rafael da S. “Estudo sobre a morte em Lucas 16:19-31”.
Revista Kerygma. v. 9, n. 1, 2013, p. 137.
349
RICHARDS, L. O. Comentário Histórico-Cultural do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2007, p. 17.
695
O estado dos mortos no Sheol 696
à Palestina por judeus alexandrinos, onde foi reformulada como “a história do pobre
que foi bom na terra será abençoado no reino dos mortos; e aquele
impostos rico Bar Ma’jan. Que Jesus estava familiarizado com essa
outro mundo: “Poucos dias depois, esse escriba viu seu colega em
350
JEREMIAS, Joachim. The Parables of Jesus. 2ª ed. New Jersey: SCM Press Ltd., 1972, p. 183-184.
696
O estado dos mortos no Sheol 697
todas essas versões da parábola têm em comum é que ao rico é sempre concedida
a permissão de voltar e contar aos seus irmãos os horrores da vida após a morte.
do Hades para alertar Jambres sobre o fogo e sobre as trevas a fim de que ele
O Dr. Rodrigo Silva explica que havia pelo menos sete versões conhecidas
dessa parábola contadas pelos judeus da época de Jesus, além de muitas outras do
mundo pagão. Mas em todas elas o rico consegue o que queria no final: voltar ao
mundo dos vivos para dar o recado que desejava352. Concorda com isso N. T. Wright,
que escreve:
verdade, histórias como esta eram tão bem conhecidas que podemos
351
SNODGRASS, K. Compreendendo Todas as Parábolas de Jesus: guia completo. Rio de Janeiro: CPAD,
2010, p. 592.
352
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8dCiEqjG-1M>. Acesso em: 25/09/2020.
353
WRIGHT, N. T. Os Evangelhos para Todos. São Paulo: Thomas Nelson, 2020, p. 466.
697
O estado dos mortos no Sheol 698
Mas por que Jesus teria mudado o final da estória? A razão está num
narrar um conto popular tal como ele era conhecido, mas alterando detalhes na
história com o propósito de refutar tal crença, e não de endossá-la. Vemos isso
que o filme é baseado em uma história real, porque sabemos que se baseia em um
conto popular, um folclore. Este é o mesmo caso do público que ouviu Jesus, o qual
conhecia muito bem a parábola e sabia que não se tratava de uma história real, mas
de ficção. Jesus sabia que, ao narrar um conto popular como o do rico e Lázaro, seus
ouvintes reagiriam da mesma forma que nós ao ouvirmos uma historinha como a
dos Três Porquinhos ou da Bela Adormecida – ou seja, um conto popular que todo
mundo sabe que se trata apenas de ficção. Somos nós que, por puro anacronismo,
achamos que Jesus contava uma história real, ou que seus ouvintes assim
entenderiam.
Em vez de tomarmos as adaptações como histórias reais (ou como histórias que
retratam com exatidão o que ocorre nesta vida ou na próxima, como se realmente
é voltada para os aspectos da narrativa que são alterados, os quais nos levam a
refletir qual era a intenção do autor. Por exemplo, uma princesa que não precisa ser
354
AGUIAR, Adenilton T. de; BARROS, Diego Rafael da S. “Estudo sobre a morte em Lucas 16:19-31”.
Revista Kerygma. v. 9, n. 1, 2013, p. 138.
698
O estado dos mortos no Sheol 699
salva por um príncipe loiro montado num cavalo branco é uma adaptação que visa
inverter papeis tradicionais para “empoderar” a mulher, algo muito comum nos dias
de hoje.
com um príncipe rico e belo, ela se casasse com um homem comum e simples, para
mostrar que beleza e dinheiro não são tudo. Se eu fizesse isso, ninguém acima do
Branca de Neve como uma história real. Todos entenderiam perfeitamente o ponto,
que é a lição moral que eu desejaria passar com isso. Foi exatamente isso o que
Jesus fez, ao citar uma parábola bem popular, mas com um final alterado para
ensinar uma lição moral que seus ouvintes certamente não esperavam.
meio da trama, relacionados ao mundo dos mortos. Nas outras versões da mesma
história, o que ia para o Hades era um espírito incorpóreo, de acordo com a crença
platônica tradicional. Na mitologia grega, como vimos, o Hades era o nome do deus
do “mundo inferior”, que levava esse nome. Este mundo inferior era um lugar
subterrâneo para onde iam as almas dos falecidos, guiadas por Hermes, o emissário
deuses olímpicos saíram vitoriosos. Então, Zeus, Posídon e Hades partilharam entre
si o universo: Zeus ficou com os céus e as terras, Posídon ficou com os oceanos e
Hades com o mundo dos mortos. Sua guarda cabia ao Cérbero, um cão gigante de
três cabeças que era dócil com quem chegava, mas feroz com quem tentasse fugir.
699
O estado dos mortos no Sheol 700
os justos, e o Tártaro, onde ficavam os ímpios. Edward Fudge fez o seguinte resumo
do Hades grego:
mortos ao longo dos rios Styx e Aqueron para as suas moradas, onde
dotando-os de outros significados, que fossem mais compatíveis com sua própria
mundo grego fosse usada para designar o panteão de deuses gregos. A prática de
ressignificar termos pagãos também ocorre em relação a Lilith, que era adorada
como uma deusa na Mesopotâmia e na Babilônia, mas que na Bíblia aparece com
355
FUDGE, Edward William. The Fire That Consumes: A Biblical and Historical Study of the Final
Punishment. Houston: Providential Press, 1982, p. 205.
356
Eu falo mais sobre isso no vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=51LxEKnaqmQ>.
700
O estado dos mortos no Sheol 701
Da mesma forma que theos e Lilith, o Hades cristão tinha um significado bem
Sheol hebraico, um lugar sem vida ou existência consciente. Isso explica por que há
não era um retrato do Sheol bíblico, mas uma sátira do Hades grego, já que a
acreditava serem reais. Por isso, enquanto nos contos gregos o Hades era o local
para onde iam os espíritos fora do corpo, na parábola de Jesus ele faz questão de
colocar no Hades personagens de carne e osso, com língua, dedos, que sentem
pensam que não há humor na Bíblia, o que é um grande equívoco. Ele está ali,
mesmo que nem todos percebam a uma primeira vista. Um exemplo dos mais
conhecidos é a ocasião em que Elias zombou dos profetas de Baal, que gritavam e
flagelavam o próprio corpo para que o deus deles os ouvisse e fizesse cair fogo do
“Ao meio-dia Elias começou a zombar deles. ‘Gritem mais alto!’, dizia, ‘já que
É evidente que Elias não acreditava que Baal realmente existisse e estivesse
apenas dormindo ou viajando, mas disse aquilo justamente para satirizar a crença
dos adoradores de Baal. Quando Jesus colocou o rico no Hades com língua e Lázaro
701
O estado dos mortos no Sheol 702
com dedos, e disse que o rico (cujo corpo inteiro queimava no fogo) queria que
Lázaro molhasse apenas a ponta do dedo para refrescar somente a sua língua, ele
pagã, que via no Hades um lugar de vida consciente após a morte. Ao invés de
são ocasionais, mas foram propositalmente incluídos por Jesus para satirizar o
Hades grego. Ao verem Jesus tratar o Hades pagão como uma piada, seus ouvintes
saberiam que Jesus não endossava a crença, da mesma forma que Elias não
história da Branca de Neve, mas retratasse os sete anões como sete gigantes
eu acredito no conto.
ainda que isto não esteja em primeiro plano, a parábola veicula uma
357
GILMOUR, M. J. “Hints of homer in Luke 16:19-31?”. Didaskalia, v. 10, n. 2, 1999, p. 23.
702
O estado dos mortos no Sheol 703
Em suma, a parábola do rico e Lázaro não é uma história real ou uma lição
sobre o que acontece após a morte, mas uma alegoria sobre a incredulidade e a
tanto, Jesus usou como pano de fundo um famoso conto popular da época, onde
um morto consegue voltar ao mundo dos vivos para alertar seus companheiros,
mas muda o final da história, para enfatizar que já não há mais esperança para quem
lugar de habitação dos mortos para satirizar a crença pagã e mostrar a todos o
parábola é uma paródia do Hades grego, porque é no Hades grego que se passava
o conto popular ao qual Jesus aludiu, e que todos os seus ouvintes conheciam bem.
seu público-alvo, seu fundo histórico e os textos que a cercam, criaram a estúpida
ideia de que Jesus contou a parábola – que para alguns nem parábola é – como
uma aula de teologia sobre o que acontece depois da morte, o que seria cômico, se
concluir que Jesus estava endossando a crença numa alma imortal. Por essa razão,
os leigos a pensarem que se trata apenas de uma historinha sobre a vida após a
703
O estado dos mortos no Sheol 704
• Considerações Finais
Como vimos neste capítulo, o Sheol (nome hebraico usado no AT) e o Hades
31:18). À exceção dos que morreram no mar (Ap 20:13), todos os mortos estão no
Sheol (Jó 3:19), sejam eles justos (Sl 49:15; Is 38:10) ou injustos (Sl 31:17). No Sheol
não há vida (Sl 88:8-13), consciência (Sl 6:5), louvor a Deus (Is 38:17-19) ou atividade
(Ec 9:10); também não há sofrimento (Sl 31:17; Jó 3:11-18), gritaria (Jó 3:18; Sl 94:17)
comparável à cova (Sl 30:3; Pv 1:12) e à sepultura (Sl 49:14, 141:6-7; 1Rs 2:9),
diferindo-se delas apenas por sua extensão, não por sua natureza.
poéticos e alegóricos, onde não apenas os mortos conversam entre si no Sheol, mas
as próprias árvores falam (Is 14:8). No NT, o único texto que retrata o Hades como
Jesus (Lc 16:19-31), onde é representado não o Hades bíblico, mas uma sátira do
Hades grego, e cuja lição moral não tinha qualquer relação com a sobrevivência da
alma.
Mais significativo que isso, vimos que o lugar para onde os mortos iam de
terra (Nm 16:33; 1Sm 2:6), não com o céu, que é um plano superior ao nosso (Dt
4:39; 1Rs 8:23). Isso anula qualquer pretensão de colocar os salvos no céu
704
705
expressamente, de um modo impossível de ser mais claro (Mt 11:23). Para tentar
transferiu os salvos do Sheol ao Paraíso entre a sua morte e ressurreição, mas vimos
705
706
• Introdução
No capítulo anterior, vimos que o lar para o qual a Bíblia diz que todos vão
após a morte – e que para os imortalistas é uma morada consciente de almas fora
do corpo – nada mais é que as regiões subterrâneas da terra, onde os mortos estão
enterrados. Embora isso por si só já baste para refutar o estado intermediário como
• Santos intercessores?
crença de que os mortos não só estão vivos em algum lugar, mas também cientes
do que acontece na terra e capazes de interceder pelos vivos. É nisso que acreditam
grandes massas de pagãos “converteu-se” por livre e espontânea pressão, uma vez
706
O estado intermediário no Antigo Testamento 707
E como não se muda uma cultura inteira da noite pro dia – muito menos com
quem se converte à força –, muitos dos costumes pagãos passaram a fazer parte da
Diocleciano e Galério, e boa parte da hierarquia que a substituiu veio dos conversos
Cristianismo a ideia de um “santo” responsável por cada uma dessas funções, além
E assim como muitas cidades romanas tinham um deus específico para elas
“santos padroeiros” para cada cidade. Os pagãos tinham por costume adorar Ísis, a
deusa-mãe do Egito, chamada de “rainha dos céus” (Jr 7:18) e representada por uma
bíblico.
do rei Ezequias ao saber que morreria em função de sua doença nos seguintes
707
O estado intermediário no Antigo Testamento 708
termos: “Não tornarei a ver o Senhor, o Senhor, na terra dos viventes; não olharei
mais para a humanidade nem estarei mais com os que agora habitam neste
mundo” (Is 38:11). O hebraico traz lo’ (não) nabat (olhar) 'adam (homem) 'owd
O conceito de mortos intercessores era tão estranho aos hebreus que Isaías
exclama: “Mas tu és nosso Pai, ainda que Abraão não nos conhece, e Israel não nos
reconhece; tu, ó Senhor, és nosso Pai; nosso Redentor é o teu nome desde a
antiguidade” (Is 63:16). Aqui, vemos que Abraão não os conhecia (lo’ yada) e Isaque
não os reconhecia (lo’ nakar). O paralelismo entre um e o outro mostra que “não
reconhecer” aqui tem o mesmo significado de “não conhecer”, ou seja, de não ter
com»359, o que explica por que é usada neste texto como sinônimo para yada'.
eles do céu, do limbo ou seja lá onde for. Note o quanto isso se distancia da
salmista faz a pergunta retórica: “A quem tenho eu no céu senão a ti?” (Sl 73:25). Ele
não estava dizendo que Deus é o único ser que habita o céu, mas que era o único
358
#5234 da Concordância de Strong.
359
ibid.
708
O estado intermediário no Antigo Testamento 709
para o qual ele podia recorrer, em um forte contraste com a ideia de que os santos
não só veem as maravilhas que Deus opera na terra, como eles mesmos são agentes
que produzem uma porção de milagres. Nada que pudesse estar mais distante do
padrão bíblico encontrado ao longo de toda a Escritura. Note ainda que, para o
ressurreição) para que pudessem louvar a Deus, uma vez que são incapazes de tal
Nenhum salmo expressa isso com mais clareza que o Salmo 146, que diz:
põe a sua esperança no Senhor, seu Deus, o Criador do céu, da terra, do mar
Aqui, somos instados a não confiar em seres humanos (v. 3), precisamente
porque são mortais e quando morrem seus pensamentos perecem (v. 4). Em vez
disso, devemos colocar nossas esperanças unicamente no Senhor (v. 5), o nosso
Criador (v. 6). Que imenso contraste com a ideia de que devemos confiar em
709
O estado intermediário no Antigo Testamento 710
normalmente após a morte. Na visão bíblica, “até um cachorro vivo é melhor do que
um leão morto” (Ec 9:4), justamente porque “os vivos sabem que vão morrer, mas
os mortos não sabem de coisa nenhuma” (v. 5). O contraste com a noção de que os
santos após a morte se tornam intercessores mais poderosos não poderia ser mais
abismal.
Na teologia católica, os santos são de fato mais úteis mortos do que vivos.
Enquanto vivos, só podem orar por uma pessoa de cada vez, desconhecem
qualquer coisa que não se peça a eles diretamente e realizam muito menos
milagres. Mas depois de mortos e canonizados, sabem tudo o que acontece na terra
diversas partes do mundo e interceder por todas elas ao mesmo tempo. O santo na
saber o que se reza a eles em toda parte), além de uma dimensão ilimitada de
são dirigidas única e exclusivamente a Deus, e nunca vemos um único morto sequer
atender orações ou interceder de algum lugar. Não à toa, os católicos que buscam
brechas na Bíblia para basear este ensino totalmente avesso às Escrituras são
obrigados a recorrer a um texto que diz exatamente o inverso do que eles supõem.
O verso em questão é o que diz que “ainda que Moisés e Samuel estivessem diante
de mim, intercedendo por este povo, eu não lhes mostraria favor” (Jr 15:1).
710
O estado intermediário no Antigo Testamento 711
Observe que o texto não diz que Moisés e Samuel estavam diante de Deus
ou intercediam depois de mortos; pelo contrário, diz que ainda que eles estivessem,
Deus não os atenderia (o que significa que eles não estavam). Se Moisés e Samuel
obviamente estariam orando por Israel, pois foi o que esses dois profetas sempre
fizeram pelo povo em vida e o que não deixariam de fazer depois da morte. Neste
caso, o texto diria que apesar da intercessão deles, Deus não os atendeu. Mas o que
o texto diz é exatamente o oposto: ainda que eles fizessem isso – o que não fazem,
Qualquer um que use este texto como uma prova da intercessão de gente
morta também deveria acreditar que quando o salmista diz que “ainda que os
montes se transportem para o meio dos mares” (Sl 46:2) significa que os montes se
transportavam mesmo para o meio do oceano, ou que o texto em que Salomão diz
“ainda que vivesse duas vezes mil anos” (Ec 6:6) significa que existiam pessoas que
de fato viviam dois mil anos em sua época, quando a expectativa de vida era de
Deus pergunta: “Se eu tivesse fome, precisaria dizer a você? Pois o mundo é
meu, e tudo o que nele existe” (Sl 50:12). Embora o tradutor tenha optado por “se
eu”, a expressão usada no hebraico é ’im, a mesma cláusula que consta em Jr 15:1.
Se a lógica que afirma que a cláusula condicional ’im (traduzida por “ainda que” ou
“se”) no texto de Jeremias implica que os dois profetas estavam mesmo na presença
de Deus, essa mesma lógica deveria servir para concluir que Deus sente fome. Como
711
O estado intermediário no Antigo Testamento 712
Deus, mas exatamente o contrário: que não estavam (da mesma forma que Deus
Tal forma de falar serve justamente para reforçar que algo está fora de
“ainda que as vacas falassem, eu não faria tal coisa” (algo semelhante à expressão
“nem que a vaca tussa”), o que evidentemente não significa que vacas de fato falem,
mas que tal ideia é totalmente incogitável – tanto quanto Moisés e Samuel estarem
Senhor, a cláusula ’im perderia totalmente o sentido, já que quando usada neste
Deus não os ouviria. Obviamente, a coisa não precisou chegar a este ponto,
Samuel e Moisés estivessem com Deus no céu, Ele não diria “ainda que estivessem
diante de mim”, mas sim “apesar de estarem diante de mim”. A diferença é crucial e
estivessem na presença de Deus seria dizer “ainda que estejam diante de mim”
“ainda que estivessem diante de mim”, está bem nítido que não estavam. Assim, o
texto não só não prova nada de intercessão dos santos, como prova de forma clara
712
O estado intermediário no Antigo Testamento 713
Por fim, não há nenhuma razão para pensar que Samuel e Moisés não
sempre fizeram pelo povo de Israel em vida (e justamente por isso são usados de
exemplo neste texto). Teriam os dois profetas desistido de interceder pelo povo
depois de mortos? Dificilmente. Mas note que o texto não diz que Deus se recusou
a atender a intercessão deles, mas “ainda que estivessem” diante de Deus, não
seriam atendidos. Isso reforça o fato de que eles nem mesmo estavam na presença
Eliseu fez um milagre após a morte? – Outro texto usado pelos apologistas
católicos para dizer que os mortos operam milagres em favor dos vivos é o do
homem ressuscitado ao tocar nos ossos de Eliseu (que já havia falecido há muito
tempo):
Para eles, isso significa que Eliseu realizou o milagre depois de morto e isso
seria a “prova” dos santos milagreiros. Se você tem dificuldade em encontrar a parte
que diz que o próprio Eliseu realizou o milagre, é porque realmente o texto não fala
nada disso. Tudo o que vemos é Deus decidindo reviver aquele homem quando ele
caiu sobre os ossos de Eliseu, da mesma forma que vemos relatos de pessoas sendo
curadas pela saliva de um cuspe (Mc 8:23), pelo cuspe misturado com terra (Jo 9:6),
713
O estado intermediário no Antigo Testamento 714
após tocarem nos lenços e aventais de Paulo (At 19:12) e após passarem pela
Nem por isso alguém diz que a sombra em si é “milagrosa” ou que existe um
“cuspe santo” que cura as pessoas – mas acham que um morto sim, porque estão
muitas outras passagens do gênero é uma só: quando Deus quer fazer um milagre,
Ele usa o que Ele quiser, até mesmo coisas inanimadas e sem vida como os ossos
de um morto ou um pedaço de pano, pois Ele é soberano para isso. Isso não serve
para formular uma doutrina de “mortos milagreiros” mais do que serviria para criar
a “doutrina do cuspe”, na qual temos que cuspir na cara dos outros igual Jesus fez
Deus curou Naamã da lepra após ordená-lo que mergulhasse sete vezes no
rio Jordão (2Rs 5:14), mas eu aposto que se hoje em dia um leproso for até o Jordão
e der sete mergulhos vai continuar leproso. Da mesma forma, naquela ocasião
específica Deus quis ressuscitar um morto através dos ossos de um profeta falecido,
mas se alguém nos dias de hoje cair nos ossos de um santo falecido vai continuar
mortinho da silva. Há uma diferença crucial entre uma prescrição, que é uma regra
universal exigida de todos nós (por exemplo, “honrai pai e mãe”) e uma descrição,
que é algo pontual e específico que ocorreu em determinada ocasião e por isso não
Por não entender algo tão básico da hermenêutica, a Igreja Romana atrai os
fiéis às práticas mais idólatras em torno dos cadáveres de gente morta, o que só
não é mais herético do que macabro. Embora Deus possa usar até uma jumenta
para fazer coisas extraordinárias quando Ele quer (como usou com Balaão), isso não
714
O estado intermediário no Antigo Testamento 715
pode usar o que Ele quiser quando Ele quiser e da forma que Ele quiser.
ocasião extraordinária uma jumenta foi usada por Deus para falar com Balaão, e
pela mesma razão não vamos venerar cadáveres como os católicos só porque em
milagre. O mais importante é entender que nem aqui, nem em parte alguma da
Bíblia um morto aparece realizando um milagre por sua própria vontade, o que
vivas intercedendo por outras pessoas vivas (1Tm 2:1-2; Rm 15:30; 1Ts 5:25; 2Ts 3:1;
Hb 13:18), pelo simples fato de que os mortos “não sabem de coisa alguma” (Ec 9:5).
por outros vivos. Crer na intercessão de gente morta diante disso é literalmente
pedir para ser enganado, como alguém que tem fetiche em ser feito de trouxa. Não
surpreende que todos os textos usados na apologética católica sejam desse nível
pra baixo, onde até mesmo os textos que eles usam depõe contra eles.
715
O estado intermediário no Antigo Testamento 716
• O “verdadeiro eu”
O “eu” que deixa de existir na morte – Uma das crenças basilares dos
imortalistas repousa na tese de que isso que nós somos corporalmente não diz
respeito à nossa essência, mas é apenas um “manto” ou uma “carcaça” que cobre o
nosso verdadeiro “eu”, que seria a alma ou o espírito. O pastor Rinaldi, por exemplo,
isso fosse verdade, deveríamos esperar que sempre quando a Bíblia se refere ao
dos muitos textos que descrevem o ser humano como essencialmente pó e cinzas
(Gn 18:27; Jó 30:19; Sl 10:18, 103:14; Ec 3:20), temos não poucas descrições da morte
que “desvie de mim os teus olhos, para que eu volte a ter alegria, antes que eu me
vá e deixe de existir” (Sl 39:13). O que é que «deixa de existir» na morte? Ele diz
apenas «eu», não “o meu corpo”. O que quer que seja o verdadeiro “eu” do ser
humano, não pode ser dissociado da resposta do salmista, para quem o “eu” deixa
de existir na morte.
da onipresença do Criador, ele diz que Deus não o encontraria depois da morte, em
360
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 91.
716
O estado intermediário no Antigo Testamento 717
um belo contraste com a visão de que ele estaria com o próprio Senhor assim que
morresse. Mas como um ser onipresente pode não encontrar alguém? A resposta é
dada logo em seguida: porque «eu já não existirei». Um ser onipresente pode
encontrar qualquer coisa que existe, mas não o que não existe, justamente por se
tratar de uma impossibilidade lógica. O que não existe não pode ser encontrado,
claramente se refere à sua consciência, isto é, ao seu ente racional que deixa de
existir na morte. Por mais que o seu corpo ainda pudesse ser encontrado, sua
consciência deixaria de existir, e, dessa forma, seria inacessível até mesmo para
Deus, que está em todo lugar dessa dimensão e fora dela. Isso refuta toda e
seja. Seja pela atividade cerebral ou pela operação de um espírito ou alma, o fato é
Jeremias também diz que “nossos pais pecaram e já não existem mais, e nós
levamos o castigo pelos seus pecados” (Lm 5:7). O que é que «não existe mais»?
Não “o corpo” de seus antepassados, mas os próprios, como pessoa. Isaías alega
que Deus “aniquila os príncipes e reduz a nada os juízes deste mundo” (Is 40:23),
onde o que é «reduzido a nada» são os próprios juízes, não meramente seus corpos.
Por ocasião da matança das crianças pelas mãos de Herodes, Mateus diz que
“ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que chora por
seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem” (Mt 2:18), em
cumprimento ao que foi profetizado por Jeremias (Mt 2:17 com Jr 31:15).
717
O estado intermediário no Antigo Testamento 718
assassinadas estivessem com a própria Raquel no Paraíso, ela não estaria chorando
por elas por “não mais existirem”, já que elas não só existiriam, como estariam na
companhia da própria Raquel (e ninguém chora pela perda de alguém que está com
você). Note ainda que o choro de Raquel não foi ouvido no céu, mas na terra de
Ramá, uma cidade israelita, o que lança por terra qualquer pretensão ardilosa de
Mais significativo que isso, o texto diz que essas crianças «já não existem»,
algo que estaria longe de ser verdade se a essência delas fosse uma alma imortal
que nunca deixa de existir, ainda mais na perspectiva de alguém que supostamente
estaria no céu, como Raquel. Esses textos indicam que a essência do homem não
está ligada a uma alma que sobreviva à morte, mas à totalidade do ser que não mais
que a Bíblia se refere à nossa natureza ela a chame apenas de mortal, e nunca, em
vezes a mortalidade do homem (Jó 4:17, 9:2, 10:4,5), como quando pergunta:
“Como pode o mortal ser justo diante de Deus?” (Jó 9:2). O salmista também
questiona “que poderá fazer-me o simples mortal” (Sl 56:4), diz para não confiarmos
em “meros mortais” (Sl 146:3) e pede ao Senhor que “não permitas que o mortal
718
O estado intermediário no Antigo Testamento 719
Em Isaías, Deus pergunta “quem é você para que tema homens mortais, os
filhos de homens, que não passam de relva” (Is 51:12), e em Jeremias questiona se
“pode o homem mortal fazer os seus próprios deuses” (Jr 16:20). Note que os textos
dizem “o homem”, não “uma parte” do homem, muito menos a parte menos
natureza humana como mortal, mas nem um único que a descreva como imortal.
que cobre o nosso ente racional, mas não com a imortalidade da alma, o nosso “eu”
verdadeiro.
sermos imortais, pois o seríamos por natureza. Em vez disso, o que os imortalistas
querem nos convencer é que os autores bíblicos nunca falavam da nossa essência,
mas somente do “acessório”, como se o corpo fosse mais importante que a alma
brinquedo indestrutível num pacote perecível, mas todas as vezes que me referisse
O melhor que eles têm para citar é o texto em que Salomão diz que Deus
eterno dentro de nós, mas do desejo pela eternidade (e como vimos, o coração é
719
O estado intermediário no Antigo Testamento 720
indicado na Bíblia como a principal sede dos sentimentos). É por isso que a NVI
traduziu esse verso como «pôs no coração do homem o anseio pela eternidade», a
pretendido era dizer que o homem tem o desejo de ser eterno, é porque ele não é
A forma com que Deus descreve os «homens mortais» em Is 51:12, que «não
homens como imortais em essência, já que, neste caso, a analogia não poderia ser
mais imprecisa. A comparação do homem com a relva, no que diz respeito à sua
quanto a relva do campo, “que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo” (Mt 6:30).
Assim, afirmar que o homem é na verdade imortal é tão leviano quanto assumir a
imortalidade da relva. Se a nossa essência fosse imortal, isso tornaria a analogia com
natureza mortal.
“barganhou” com Deus por Sodoma e Gomorra, ele disse: “Sei que já fui muito
ousado a ponto de falar ao Senhor, eu que não passo de pó e cinza” (Gn 18:27). Jó
é pó” (Sl 10:18), Salomão afirmou que tanto o homem como os animais “vão para o
mesmo lugar; vieram todos do pó, e ao pó todos retornarão” (Ec 3:20), e Paulo
sublinhou que “o primeiro homem era do pó da terra” (1Co 15:47). O Senhor tem
720
O estado intermediário no Antigo Testamento 721
compaixão dos que o temem “porque Ele sabe do que somos formados, e lembra-
seres humanos’” (Sl 90:3). Jó sustenta que tanto o justo como o ímpio “jazem no pó,
ambos cobertos de vermes” (Jó 21:26), e que “se Deus retirasse o seu sopro, a
humanidade pereceria toda de uma vez, e o homem voltaria ao pó” (Jó 34:14-15).
Como consequência do pecado de Adão, Deus sentenciou que “com o suor do seu
rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque
Ele sabia que se morresse voltaria ao pó, o que não lhe seria de nenhuma vantagem,
seja para louvar a Deus ou para proclamar a Sua fidelidade (em um imenso
contraste com a visão de que ele estaria diante de Deus e poderia louvá-lo). Quando
“pó consciente” e nem simplesmente dizendo uma obviedade tola e inútil, mas
usando essa pergunta retórica como um argumento para ressaltar o quão inútil
seria para com Deus depois de morto, uma vez que se tornaria apenas pó.
formados (Gn 2:7), que o salmista declarou: “Que é o homem, para que com ele te
importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes?” (Sl 8:4), algo
repetido pelo autor de Hebreus (Hb 2:6). É interessante notar a ausência completa
de textos bíblicos que digam que o homem é constituído por uma alma imortal por
natureza, e que, portanto, sua verdadeira essência é muito mais do que pó. Se nós
721
O estado intermediário no Antigo Testamento 722
fomos criados naturalmente imortais como Deus e os anjos, haveria pouca razão
pra dizer que o homem é tão pequeno a ponto de que Deus não precisaria se
muitos textos bíblicos que assumem que somos apenas pó e cinzas, que na morte
voltam para onde vieram. É a isso que eles aludiam ao lançar a pergunta retórica
O simples fato de tantos textos bíblicos afirmarem que o homem “não passa
de pó e cinza” (Gn 18:27) é um golpe fatal naqueles que afirmam que nós somos em
essência uma alma imortal presa num corpo mortal. Neste caso, Abraão jamais teria
dito que ele não passava de pó e cinzas, uma vez que sua essência era eterna e em
pó, essa essência simplesmente não pode ser uma alma espiritual e imortal.
Isso faria de Abraão um grande mentiroso, que dizia que em essência ele não
passava de pó e cinzas, quando na verdade essa essência era constituída por uma
alma eterna e metafísica. O que Abraão disse no hebraico foi ’anokiy ‘aphar ’epher
361
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 27.
722
O estado intermediário no Antigo Testamento 723
(eu sou pó e cinzas). Enquanto para a Bíblia nós somos pó, para os imortalistas nós
somos um espírito imortal, cujo contraste com a Bíblia não poderia ser maior. Isso
porque o fôlego da vida, ou espírito, não é aquilo que somos em essência, mas
livros e cursos de teologia que nós somos em essência uma alma imortal são
obrigados a reconhecer que todos esses textos sobre o homem ser apenas pó e
que o descreva como um ser eterno, o que para os imortalistas significa que os
“embalagem”, e não do produto. E pensar que foi para isso que eles cursaram anos
de teologia!
salmista deixou claro que não só o corpo está apegado ao pó, mas também a alma-
nephesh: “A minha alma está apegada ao pó; vivifica-me segundo a tua palavra” (Sl
119:25). A palavra aqui traduzida por “apegada” é dabaq, que significa «grudar-se
com»362. Algo parecido se observa no Salmo 7, onde ele diz: “Persiga-me o meu
362
#1692 da Concordância de Strong.
723
O estado intermediário no Antigo Testamento 724
que dá ao salmo a beleza rara de um paralelismo tríplice entre (1) tomar a alma, (2)
aniquilar a vida e (3) lançar a honra no pó, onde «alma», «vida» e «pó» são tidos
homem que “tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:19), isso nem de longe exclui a alma,
como se a alma pudesse burlar o castigo divino e permanecer ilesa à morte que nos
reduz ao pó. É o homem criado do pó da terra que é tido como uma chay nephesh
(alma vivente), e este homem que na morte desce como uma chay nephesh para o
que o salmista pôde declarar com confiança que “o homem não passa de um sopro”
(Sl 39:11), em contraste brutal com a noção de que o nosso “verdadeiro eu” é eterno
por natureza. Isso porque o valor do homem está no amor de Deus por nós, não
em nossa própria natureza. Por nossa própria natureza, somos corruptos, decaídos,
mortais e corruptíveis, “cujos dias são como uma sombra passageira” (Sl 144:4). Mas
Deus nos ama com o amor de um pai, não porque sejamos dignos, mas apesar de
não sermos.
Você certamente já deve ter visto muitos estudos bíblicos cravando que o
homem é valioso porque possui uma “alma eterna”, e essa alma indestrutível seria
o que faz do ser humano alguém especial. No entanto, o valor de uma coisa nunca
está nela mesma. Mesmo as coisas mais valiosas deste mundo, como o ouro, não
724
O estado intermediário no Antigo Testamento 725
adiantaria ter barras de ouro ou uma mochila lotada de notas de cem. Sem pensar
duas vezes, você trocaria facilmente as barras de ouro por garrafinhas de água cujo
A Bíblia nos fala de uma época em que a prata era tão abundante em Israel
que tinha perdido todo o seu valor comercial, tornando-se como as pedras (2Cr
9:27). Isso porque nem o ouro, nem a prata e nem coisa alguma no mundo tem
algum valor intrínseco por sua própria natureza. Nós determinamos o valor do ouro
e da prata conforme a oferta e demanda, não pela sua própria essência. Em outras
palavras, o ouro é valioso porque é importante para terceiros (que estão dispostos
a pagar uma fortuna por brincos, anéis e outras coisas feitas dessa matéria-prima),
não porque tenha um valor intrínseco. Da mesma forma, nós somos valiosos não
por nossa própria essência, mas pelo quanto somos importantes para Aquele que
nos criou.
Por nossa própria essência, não passamos de pó e cinzas (Gn 18:27; Jó 30:19;
Sl 10:18, 103:14; Ec 3:20) e somos indistinguíveis dos animais (Ec 3:19-20). Mas
somos valiosos porque Deus decidiu olhar para esse ser tão pequenininho,
amando como um verdadeiro filho. Assim, nosso valor não está no que nós somos
ou possuímos, mas no que Deus atribui a nós por Sua maravilhosa graça.
725
O estado intermediário no Antigo Testamento 726
personagens bíblicos. Nós não somos valiosos porque alguma parte de nós o faça
por merecer, como se tivéssemos um corpo indigno e uma alma digna, tal como
apenas pó, Deus nos olha com um amor que não merecemos de maneira alguma,
não era uma alma eterna, e por isso podiam dizer que nossa existência não passa
de um sopro (Sl 39:11, 144:4) e que nossa essência não passa de pó e cinzas (Gn
18:27). É por isso que eles não hesitavam em se referir ao “eu” como o corpo que
perece, em vez de um suposto espírito pessoal e imortal. Isso explica por que eles
esperavam estar com Deus não em um estado intermediário fora do corpo, mas
Quando Daniel estaria com o Senhor? – O texto que responde a isso com
“Quanto a você, siga o seu caminho até o fim. Você descansará, e então, no
final dos dias, você se levantará para receber a herança que lhe cabe”
(Daniel 12:13)
726
O estado intermediário no Antigo Testamento 727
receber a sua herança. Isso não quer dizer que Daniel tiraria uma soneca numa noite
qualquer e algumas horas mais tarde acordaria para receber uma herança de seu
falecido pai. Aqui, tal como no início do capítulo (Dn 12:2), “descansar” é um
nos leva a indagar se Daniel realmente estaria todos esses milhares de anos no céu
sem receber ainda herança alguma, como se deduz da leitura imortalista, e, mais do
Lembre-se que os imortalistas creem, tal como afirmou o Pr. Rinaldi, que “o
fim dos tempos, o que significa que o «você» do verso é Deus se dirigindo direta e
exclusivamente à sua “carcaça”, e não ao seu ente racional (i.e, sua alma ou espírito),
se dirigir ao mero «acessório» do profeta, como se alguém falasse com uma casa
em vez de falar com a pessoa que está na casa. E tudo isso apenas para não admitir
que é a alma que morre e ressuscita, que é a inferência lógica que se tira do texto.
Assim, os mesmos imortalistas que dizem que “a alma é o nosso verdadeiro eu” são
obrigados a concluir neste texto que apenas o corpo descansa e ressuscita no fim
paráfrase:
363
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 91.
727
O estado intermediário no Antigo Testamento 728
“Quanto a você [sua alma], siga o seu caminho até o fim. Você [seu corpo]
descansará, e então, no final dos dias, você [seu corpo] se levantará para receber
Seria estúpido inferir que quando Deus diz «você» a Daniel Ele não estava se
vez de seu ente racional (que recebe a mensagem). Isso leva os imortalistas a
concluir que “você” aqui se refere à alma do profeta. Mas como na continuação do
texto «você» é usado mais duas vezes em relação a algo que morre, repousa
inconsciente e ressuscita para receber a herança, eles são forçados a concluir que
Note como tudo fica muito mais simples e lógico quando assumimos a
verdade bíblica do holismo, onde é o ser como um todo ao qual Deus se dirige, e o
ser como um todo que morre e ressuscita. No imortalismo, por outro lado, o critério
Em seus cursos e livros de teologia sistemática, eles dizem com a boca cheia
que a alma é o “verdadeiro eu” do ser humano, o ente racional e pensante, sendo o
corpo apenas uma “capa”. Mas quando se deparam com todos os versos que falam
se transformar no corpo que voltou ao pó, e não mais na alma – mesmo quando
Enquanto nós trabalhamos com a exegese, tudo o que é preciso para ser um
728
O estado intermediário no Antigo Testamento 729
cara.
Como se isso tudo não bastasse, a coisa piora quando vamos ao hebraico e
descobrimos que o texto diz `amad (vai surgir) gowral (na sua herança) qets (no fim)
yowm (dos tempos). Note que o texto não diz “vai ganhar”, mas “vai surgir”. Em um
debate recente que tive com um imortalista364, ele interpretou este texto como se a
mas a herança aqui não se refere ao que Daniel ganharia, mas onde ele surgiria. Em
profeta, não algum tipo de recompensa adicional após milhares de anos que ele já
estaria no céu. É a própria vida eterna a herança prometida, na qual ele só entraria
na ressurreição.
Daniel é o que o salmista declara: “Quanto a mim, feita a justiça, verei a tua face;
quando despertar, ficarei satisfeito em ver a tua semelhança” (Sl 17:15). Quando é
que o salmista esperava ver a Deus? Quando morresse e sua alma saísse do corpo
em direção ao tal estado intermediário? Não, mas quando despertasse. Assim como
364
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Rh9ojn9QgH4>.
729
O estado intermediário no Antigo Testamento 730
O salmista sabia que nesta vida ninguém pode ver a Deus e sobreviver (Êx
33:20; Jo 1:18), mas também sabia que esse momento chegaria, que é tudo o que
nos interessa saber. E a resposta do salmista não poderia concordar mais com tudo
o que vimos: é só na ressurreição que ele ficaria “satisfeito em ver a tua semelhança”
de violentar a clareza do texto não é mais que uma manipulação desonesta para
Em outro salmo, ele diz que “Deus redimirá a minha vida da sepultura e me
levará para si” (Sl 49:15), onde vemos novamente sua esperança de ser levado à
presença de Deus após a ressurreição, e não antes dela. Isso é o que deveríamos
esperar de alguém que sabia que não estaria com Deus entre a morte e a
ressurreição, mas seria deveras estranho dizer que Deus «levará para si» alguém
que já estaria com Ele. Se ele diz que Deus o levará para si após a ressurreição,
pressupõe-se que ele não estaria com Deus antes disso. É ainda mais interessante
notar que o hebraico traz nephesh onde é traduzido por “vida” e Sheol onde é
traduzido por “sepultura”, o que mostra que o salmista estava ciente de que não
Diante disso, é evidente que o salmista não tinha qualquer ideia de uma vida
no céu antes da ressurreição, onde estaria na presença do Senhor por todos esses
séculos até ressuscitar e voltar para o mesmo lugar onde já estava e com quem já
estava. Neste caso, a ressurreição seria reduzida a um anticlímax que nem de longe
730
O estado intermediário no Antigo Testamento 731
intermediário antes da ressurreição. Sempre que alguém fala em estar com Deus ou
“preciosa é à vista do Senhor a morte dos seus santos” (Sl 116:15), e embora o texto
nada fale a respeito de uma alma imortal que sobrevive à morte do corpo, é a
conclusão que eles magicamente tiram da cartola. Mas o problema é maior do que
o texto não dizer nada do que eles querem: o próprio sentido do hebraico aponta
Antes que você pense que esse tipo de coisa não existe no hebraico, abra a
sua Bíblia em Jó 2:9 e leia o que a mulher de Jó lhe sugeriu, que em todas as versões
formos ao hebraico deste mesmo texto, teremos uma surpresa: ali aparece o
um pouco depois, em 3:8. Mas por que todas as versões traduzem barak pelo seu
incentivo à perseverança na fé, e foi injustiçada por todos nós esse tempo todo?
inconcebível, pois ela primeiramente afronta o seu marido por ainda conservar a
integridade (v. 9), e em seguida o próprio Jó diz que “falas como uma doida” (v. 10).
731
O estado intermediário no Antigo Testamento 732
literal, o que explica por que todas as versões o traduzem como “amaldiçoa”. Ao
contrário do que alguns possam pensar, essa inversão não é uma característica
contexto específico, “ridículo” não era pejorativo, assim como o ataque “terrível” do
PSG (se estivéssemos falando do ataque do São Paulo formado por Pablo e Vitor
116:15) como exemplos de textos onde a inversão ocorre no hebraico. É por isso
➢ “Grievous in the eyes of the Lord is the death of his pious ones” (Leeser Old
Testament)
365
Aos 12:48 do vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=GoxBVygvt5E>. Acesso em: 16/02/2022.
366
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1k1HzOc99YE>. Acesso em: 16/02/2022.
732
O estado intermediário no Antigo Testamento 733
“angústia”, “aflição” e “tristeza” (v. 3), e ele mesmo se regozija por continuar entre
os vivos (vs. 6, 9, 12). É por isso que não faz o menor sentido que ele dissesse que o
Senhor vê com alegria ou como uma coisa excelente a morte de um justo, quando
é evidentemente o sentido pretendido, onde Deus não tem nada a ganhar com a
Encontrar aqui uma alma que sobreviva à morte e que seja a razão para Deus gostar
ele a tratava como uma coisa lastimável, que ele não queria passar de jeito nenhum.
Já vimos o exemplo do rei Ezequias, que ao saber que morreria não fez uma festança
pra celebrar que iria pro céu mais cedo, mas lamentou com profunda angústia e
rogou por mais anos de vida. E quando Deus lhe concedeu o pedido, ele não disse
que se morresse isso seria bom, mas justamente o contrário, ressaltando que o
louvor a Deus é impossível no Sheol e que somente os vivos é que podem louvá-lo
“Pois a sepultura [Sheol] não pode louvar-te, a morte não pode cantar o teu
louvor. Aqueles que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade.
733
O estado intermediário no Antigo Testamento 734
sofria por aqueles que queriam tirar a sua vida, exclamou: “Se eu morrer, se eu
fidelidade?” (Sl 30:9). Se ele morresse, não haveria nenhuma vantagem, seja para si
mesmo (que estaria simplesmente sem vida ou consciência), seja para Deus (que
não teria nada a ganhar com um justo a menos na terra, um a menos para
onde o salmista louva ao Senhor por tê-lo livrado da morte, justamente porque sua
morte seria penosa para Deus (e não alguma coisa pra se comemorar).
É só à luz do NT que vemos alguém como Paulo desejando a morte (Fp 1:20-
24; 2Co 5:1-8), não pensando na morte em si, mas visando a ressurreição (falaremos
muito sobre esses textos no capítulo 9). Isso porque a ressurreição de Cristo é a
garantia da nossa própria ressurreição (At 17:31; 1Ts 4:14; 1Co 15:20-23), garantia
essa que os autores do AT não tinham. Eles tinham apenas uma esperança, um
vislumbre, não uma certeza, como a que Cristo nos deu. Foi a ressurreição de Jesus
que transformou essa expectativa numa certeza, e fez com que os nossos olhos se
voltassem não mais para a condição em que estamos após a morte, mas para a
Uma vez que os autores do AT não tinham a mesma garantia, seus olhos
morte – ou seja, no estado sem vida e sem consciência no Sheol, que não é
autores do AT, falavam da morte em termos tão sombrios, como uma coisa sempre
734
O estado intermediário no Antigo Testamento 735
de Jó, que também não via vantagem nenhuma na condição de morto, mas tinha a
“Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a
terra. E depois de consumida a minha pele, contudo ainda em minha carne
verei a Deus, por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros o
(Jó 19:25-27)
Jó disse que esperava ver a Deus «depois de consumida a minha pele», isto
é, depois que seu corpo apodrecesse no túmulo. No entanto, observe que ele não
disse que isso aconteceria em um estado imaterial fora do corpo, que seria a
sequência lógica a se esperar caso ele tivesse a crença numa alma imortal. Em vez
disso, ele diz que «ainda em minha carne verei a Deus», ou seja, corporalmente, não
como um fantasminha sem corpo. Isso significa que a crença de Jó era a mesma do
salmista: ele morreria, mas um dia ressuscitaria para a presença de Deus, quando
Isso está de acordo com o verso anterior, que diz que o Redentor por fim se
que ressuscitará os mortos no último dia (Jo 6:39, 40, 44, 54), exatamente como
previa Jó ao usar o vocábulo 'acharown, aqui traduzido como “por fim”, mas que
735
O estado intermediário no Antigo Testamento 736
no último dia, como Jesus disse que fará, e é nesta ocasião – e não como uma alma
Mais uma vez, é de se questionar por que nem ele, nem personagem algum
será despertado do seu sono” (Jó 14:11-12; cf. Sl 76:5, 90:5). Aqui está
uma descrição bem vívida da morte. Quando uma pessoa exala o seu
Ele não mais existe. Torna-se como um lago ou rio cujas águas se
por que ele fala de esperar até não mais “existirem os céus” (Jó 14:11)
e até ser “substituído” (Jó 14:14)? É evidente que nem Jó nem qualquer
367
#314 da Concordância de Strong.
736
O estado intermediário no Antigo Testamento 737
morte.368
Como é bem típico, imortalistas dirão que aqui Jó falava apenas de seu
destino de uma carcaça que apodrece debaixo da terra do que do “verdadeiro eu”
Paulo fala em “partir e estar com Cristo” (Fp 1:23), que analisaremos mais adiante –
, o “eu” é interpretado como sendo a alma, mas em todos os outros textos (como
neste em que Jó responde à pergunta crucial sobre «onde ele está?» após a morte)
o “eu” passa a ser apenas o corpo, dado que esse «eu» “dorme” e permanece
inconsciente até a ressurreição, quando despertará de seu sono para estar com o
Senhor.
próprio Jó ao falar de si mesmo preferiram se referir a uma mera “carcaça” sem vida
obscuros” cujo entendimento foge aos mais sábios eruditos e aos mais hábeis
dizem que os textos são tão enigmáticos que apenas um magistério infalível é capaz
368
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 133.
369
Disponível em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2016/07/responda-ao-questionario-de.html>.
737
O estado intermediário no Antigo Testamento 738
“Volta-te, Senhor, e livra-me; salva-me por causa do teu amor leal. Quem
b) Quem morreu se lembra de Deus, dos anjos, dos santos, da família, do vizinho,
do cachorro e da sogra.
***
“Os mortos não louvam o Senhor, tampouco nenhum dos que descem ao
***
738
O estado intermediário no Antigo Testamento 739
“Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa
nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica
entregue ao esquecimento” (Eclesiastes 9:5)
a) Os mortos sabem de tudo, inclusive estão agora mesmo rogando por nós no céu,
b) Os mortos não sabem coisa nenhuma do que acontece na terra, mas sabem de
***
“Se o Senhor não tivesse sido o meu auxílio, já a minha alma estaria
habitando no lugar do silêncio” (Salmos 94:17)
• Qual é esse lugar do silêncio para onde a alma do salmista iria caso
morresse?
c) A sepultura.
d) O texto diz “alma”, mas na verdade o que o salmista estava querendo dizer era
739
O estado intermediário no Antigo Testamento 740
“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o faça com toda a sua força,
pois no além, para onde vais, não há atividade alguma e nem planejamento,
não há conhecimento e nem sabedoria” (Eclesiastes 9:10)
atividades interessantíssimas.
***
vivinha da silva.
b) São transportados para uma região no além, pois eles procedem da alma, que é
imortal.
c) Perecem.
740
O estado intermediário no Antigo Testamento 741
que é preciso é reconhecer que os textos querem dizer exatamente o que dizem,
autores não estavam brincando com o leitor ou exigindo deles uma interpretação
pessoas de que a mentalidade dos autores do AT era mortalista pode ser tão difícil
quanto convencê-las de que a grama é verde, que o céu é azul e que 2 com 2 são 4,
não porque essas verdades sejam obscuras ou difíceis de entender, mas justamente
confronte as suas convicções. Como alguém já disse uma vez, é muito mais fácil
do peso das evidências. Mas para qualquer pessoa de mente aberta, não é preciso
muito esforço para perceber que a interpretação imortalista, longe de ser a mais
natural, visa apenas torturar os textos até que digam aquilo que eles gostariam de
ouvir.
Da boca pra fora dizem que o “verdadeiro eu” do homem é a alma, mas
quando esse “eu” morre, fica inconsciente, não pode mais louvar a Deus nem fazer
atividade alguma, ele passa em um piscar de olhos a ser somente o corpo e não a
alma. “A alma é a mente responsável pelos pensamentos”, dizem eles, mas quando
a Bíblia diz que os pensamentos perecem na morte (Sl 146:4), esses pensamentos
741
O estado intermediário no Antigo Testamento 742
Isso mostra o quão flexíveis os imortalistas são para evitar qualquer brecha
que refute a teologia deles, mesmo que para isso se tenha que apelar aos
provavelmente nem eles mesmos acreditam realmente que tenha sido a intenção
no NT. Mas, para a minha surpresa, logo na abertura ele reconheceu que os autores
Com isso, precisei apenas provar que o restante da Bíblia não contradizia a
revelação anterior, o que é tão simples quanto parece. Após o debate, pesquisei o
que os teólogos no geral tinham a dizer sobre a posição do meu oponente, e para
a minha admiração essa posição é mais comum do que eu podia imaginar. Como
742
O estado intermediário no Antigo Testamento 743
eu estava mais acostumado a lidar com os “apologéticos”, não tinha ideia do quanto
compete ao AT. Verdades e mais verdades que eu pensava só serem assumidas por
que reconhecem não haver vida fora do corpo no AT, em consonância com o que
esses mesmos autores acreditam que o NT mudou o ensino do AT (do contrário não
bastante significativo, pois mostra que para reconhecer este fato nem mesmo
intelectual.
Werner H. Schmidt
um pai, quando está morto, não fica sabendo nem mesmo o que
sucede a seus filhos na vida que continua (Jó 14:21). (...) Não somente
370
SCHMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 458-459.
743
O estado intermediário no Antigo Testamento 744
desesperança da existência.371
Para o AT, o ser humano é uma unidade, não uma alma imortal num
Robert Martin-Achard
texto (Ec 12:7) não afirma de maneira alguma que no instante em que
a criatura expira, seu espírito ou sua alma se eleve a Deus. Aqui se trata
realidade o do Deus vivo, uma força vital impessoal que segue sendo
371
ibid, p. 459.
372
ibid, p. 460.
373
ibid.
374
ibid, p. 458.
744
O estado intermediário no Antigo Testamento 745
sepultura.377
do homem volta a Deus, a carne (bassar) volta à terra como era (Ec
375
MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento. São Paulo: Academia
Cristã LTDA, 2005 p. 48.
376
ibid, p. 54.
377
ibid, p. 55.
745
O estado intermediário no Antigo Testamento 746
recompensa.380
do AT é radicalmente distinta.381
378
CRABTREE, A. R. Teologia Bíblica do Velho Testamento. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960,
p. 127.
379
ibid, p. 267.
380
ibid, p. 268.
381
SMITH, Ralph Lee. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo: Vida
Nova, 2001, p. 251-252. 746
O estado intermediário no Antigo Testamento 747
deixa bem claro que a referência deve ser à nephesh como algo com
que se pode ter contato físico, não à “alma” do morto como algum
fenômeno fantasmagórico.382
Deus, que o deu, não diz muito. Isso pode significar apenas que a
fim do ser humano; sua força vital é “derramada” de tal maneira que
não pode mais ser recuperada (Jó 7:21, 14:7-10; Sl 39:13, 146:4).384
382
ibid, p. 257.
383
Ibid, p. 361.
384
ibid.
747
O estado intermediário no Antigo Testamento 748
céu, une-se ao sol, e seu corpo de deus mistura-se com seu genitor”.
mais do que a referência ao enterro como fim da vida (Gn 42:38, 44:29,
31; Is 38:10, 17; Sl 9:16, 18, 16:10, 49:10, 16, 88:4-7, 12; Pv 1:12).385
No mundo dos mortos, não há mais lugar para a obra de Javé, nem
O reino das sombras não tem qualquer poder nem dignidade própria.
regentes.387
Josef Schreiner
385
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 167.
386
ibid, p. 171-172.
387
ibid, p. 167.
748
O estado intermediário no Antigo Testamento 749
corpo.388
388
SCHREINER, Josef. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p. 408.
389
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo:
Candeia, 2000. v. 2, p. 880.
749
O estado intermediário no Antigo Testamento 750
Wolfhart Pannenberg
Note-se que o homem não “tem” nem alma nem corpo, conquanto,
elementos constitutivos (ex., 1Ts 5:23). Eis aqui a verdade básica: ele
é uma unidade. Nephesh, traduzido por ser (RSV) ou alma (AV, RV),
390
PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática. São Paulo: Academia Cristã, Paulus, 2009. v. 3, p. 720.
750
O estado intermediário no Antigo Testamento 751
Bruce K. Waltke
(Pv 6:30, 10:3, 12:10, 16:26, 19:15, 25:25, 27:7; cf. Dt 23:24[25]; Sl 78:18;
como “garganta”.392
391
KIDNER, Frank Derek. Gênesis: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1979, p. 57.
392
WALTKE, Bruce K. Provérbios – Volumes 1 e 2; Capítulos 1 a 31. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 95.
751
O estado intermediário no Antigo Testamento 752
Tokunboh Adeyemo
Ezequias compôs uma canção de louvor após sua cura (Is 38:9-20; cf.
pessoas perderiam toda ligação com a terra dos viventes (Is 38:10-11,
18).393
Romana)
*Nota: o trecho em questão se refere ao Livro dos Jubileus, escrito por volta de 176-
393
ADEYEMO, Tokunboh. Comentário Bíblico Africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 865.
394
BROWN, Raymond E; FITZMYER, Joseph A; MURPHY, Roland E. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo:
Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Paulus, 2011, p. 955.
752
O estado intermediário no Antigo Testamento 753
mas seus espíritos terão muito júbilo”. Esta é a mais antiga atestação
Earl D. Radmacher
Os israelitas eram o único povo de sua área que tinha foco no aqui e
sepultura, para onde tu vais, não há obra, nem indústria, nem ciência,
tinham ido descansar ou dormir com seus pais (1Rs 2:10, 11:43,
14:31).396
395
ibid.
396
RADMACHER, Earl D; ALLEN, Ronald B; HOUSE, Wayne H. O Novo Comentário Bíblico AT, com recursos
adicionais: a Palavra de Deus ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2010, p. 934.
753
O estado intermediário no Antigo Testamento 754
“porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem
A visão geral dos salmistas parece ter sido que a morte era uma
James Orr
platônica, que diz que o corpo morre, mas a alma é imortal. Tal ideia
397
ibid.
398
SPENCE, Henry Donald Maurice; EXELL, Joseph S. “Comentário ao Salmo 6:5”. Pulpit Commentary
(1897).
754
O estado intermediário no Antigo Testamento 755
Mas adquiriu essas novas ideias muito lentamente. O Sheol por muito
tempo foi apenas uma sepultura ampliada, para a qual iam todos os
30:23; Sl 89:48).400
superior, eles iam para um reino próprio, com seu soberano senhor,
399
ORR, James; NUELSEN, John; MULLINS, Edgar; EVANS, Morris; KYLE, Melvin. “Morte”. Enciclopédia
Bíblica Padrão Internacional. 1960. v. 2, p. 812.
400
ELLICOTT, Charles John. “Comentário ao Salmo 6:5”. Ellicott's Commentary for English Readers (1905).
755
O estado intermediário no Antigo Testamento 756
ideias estrangeiras, gradualmente lutou para ter uma luz mais elevada
Paul J. Achtemeier
os hebreus eram corpos vivos, eles não tinham corpos. Este campo
pesada a alma” (9:15). Este corpo corruptível é oposto por uma alma
ao corpo.402
401
ibid.
402
ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary. New York: Harper & Row, 1985, p. 982.
756
O estado intermediário no Antigo Testamento 757
não tem uma alma, mas é uma alma (Gn 2:7). Isto é, ele é uma
403
CHILDS, Brevard Spring. Old Testament Theology in a Canonical Context. Philadelphia: Fortress Press,
1985, p. 199.
757
O estado intermediário no Antigo Testamento 758
Lawrence O. Richards
seres pessoais.405
John C. L. Gibson
seu corpo mais o fôlego que lhe dá vida. (...) Visto que ele, Abraão,
morreu como um bom hebreu, ele não teria tido nenhuma noção de
404
TENNEY, Merrill C; SILVA, Moisés. The Zondervan Encyclopedia of the Bible. Grand Rapids: Zondervan,
1975. v. 1, p. 232-233.
405
RICHARDS, Lawrence O. Expository Dictionary of Bible Words. Grand Rapids: Zondervan, 1991, p. 576.
758
O estado intermediário no Antigo Testamento 759
Muitos outros autores poderiam ser citados, mas paremos por aqui para que
porque não pega bem reconhecer logo de cara que pelo menos ¾ da Bíblia
406
GIBSON, John C. L. Genesis. Louisville: Westminster John Knox Press, 1981. v. 1, p. 103, 135.
407
NEW CATHOLIC ENCYCLOPEDIA. Soul (in the Bible). 2ª ed. New York: McGraw-Hill Book Company, 1967.
v. 13, p. 449.
759
O estado intermediário no Antigo Testamento 760
defende o lado contrário. Sabe como é: vai ter gente que ousará pensar que os
outros ¼ defendem o mesmo. Por isso, é mais fácil fazer de conta que os autores
contrário.
torturar os textos do AT para dizerem o oposto daquilo que dizem, o trabalho dos
teólogos imortalistas sérios não é menos complicado. Embora não precisem violar
têm que lidar com um problema tão embaraçoso quanto, que é assumir que a maior
da doutrina”. Para eles, a razão por que os autores do AT eram ignorantes a respeito
da vida após a morte é porque essa doutrina “evoluiu” até a época do NT, quando
verdade, imortal, e não mortal como pensavam os escritores bíblicos antes deles.
760
O estado intermediário no Antigo Testamento 761
O problema com este argumento não é que uma doutrina não possa ser
revelada mais tarde na revelação bíblica (o próprio Apocalipse descreve uma série
de coisas que não são encontradas nos 65 livros que o precedem), mas sim que essa
afirme de forma tão explícita como o NT o faz em Mt 28:19, não há texto nenhum
que a contradiga (por exemplo, assumindo que Deus só pode ser uma única pessoa,
Santo).
inúmeras passagens onde Deus é mais de um (Sl 45:6-7, 110:1; Jr 23:5-6; Ml 3:1) e
onde o Anjo do Senhor é Deus, embora seja distinto do Pai409. Em outras palavras,
a “luz maior” do NT não se opõe à “luz menor” do AT; antes, a reforça com mais
clareza. Ambas as luzes apontam na mesma direção, ainda que a luz do NT brilhe
tipificados por ele, como no caso do batismo/circuncisão), mas não que refutem
uma doutrina do AT, o que seria o mesmo que a Bíblia contradizer a si mesma. Em
outras palavras, os novos estágios da revelação não anulam o que já havia sido
onde novas partes vão sendo construídas, mas sem derrubar o que já existia. Você
408
Disponível em: <http://www.lucasbanzoli.com/2019/07/jesus-e-deus-as-provas-biblicas-da.html>.
409
Confira mais sobre isso em: <https://www.youtube.com/watch?v=BNt5NKSse0Y&t>. Acesso em:
09/06/2021.
761
O estado intermediário no Antigo Testamento 762
não destrói o banheiro para construir o quarto, mas constrói o banheiro ao lado do
com eles.
Deus dava uma medida adicional de luz em certos assuntos, mas essas
assim por diante. Uma coisa é construída sobre a outra, e cada nova
também falso teologicamente. Basta uma leitura simples no AT para constatar que
410
ANSTEY, Bruce. Teologia do Pacto ou Dispensações. Christian Truth Publishing. Versão Digital, 2017, p.
146. Disponível em: <http://files.acervodigitalcristao.com.br/Literaturas/livros/Teologia-do-Pacto-ou-
Dispensacoes-Bruce-Anstey.pdf>.
762
O estado intermediário no Antigo Testamento 763
isso seja bem mais ressaltado, pela garantia que Cristo nos deu através de sua
os do AT, disse que “Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o
que está escondido, seja bom, seja mal” (Ec 12:14) e que “de todas estas coisas nos
O salmista também diz que o Senhor “não condenará o justo quando for
julgado” (Sl 37:33), que os justos terão sua recompensa quando Deus fizer justiça
na terra (Sl 58:11), que “os ímpios não resistirão no julgamento” (Sl 1:5) e que “Ele
vem, vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, com retidão” (Sl
98:9). Daniel tem uma visão profética do dia em que “milhões e milhões estavam
diante dEle; o tribunal iniciou o julgamento, e os livros foram abertos” (Dn 7:10), e
em Ezequiel Deus diz que “trarei vocês para o deserto das nações e ali, face a face,
os julgarei” (Ez 20:35) e que “eu os julgarei a cada um de acordo com os seus
no apêndice do livro, dos quais 125 são do AT). O salmista declara que “a herança
deles [dos salvos] será eterna” (Sl 37:18), mas “todos os rebeldes serão destruídos;
futuro para os ímpios, nunca haverá” (v. 38). Em Ezequiel, Deus diz que
por eles” (Ez 33:19), mas, caso contrário, “praticando iniquidade, morrerá nela” (v.
18). O próprio “livro da vida”, que representa a totalidade dos que herdarão a vida
763
O estado intermediário no Antigo Testamento 764
sabiam bem disso, e justamente por isso acreditavam em ressurreição, como Daniel
registra: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão” (Dn 12:2). A palavra
aqui traduzida por “ressuscitar” (quwts) é a mesma usada por Isaías quando diz que
“os teus mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai (quwts)
e exultai, os que habitais no pó” (Is 26:19), e pelo salmista quando diz que “quando
O salmista também diz que “Tu restaurarás a minha vida, e das profundezas
da terra de novo me farás subir” (Sl 71:20), em mais uma alusão à ressurreição, e
novamente que “Deus redimirá a minha vida da sepultura e me levará para si” (Sl
49:15), o que não apenas prova que ele acreditava na ressurreição, mas que sabia
que só seria levado para a presença de Deus depois dela. Já vimos também o
testemunho de Jó, um dos mais antigos livros da Bíblia (que de acordo com a
tradição judaica foi escrito por Moisés, o mesmo autor do Gênesis), o qual cria que
“o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra. E depois de
consumida a minha pele, contudo ainda em minha carne verei a Deus” (Jó 19:25-
26).
Para Jó, ver a Deus é algo reservado para o fim dos tempos, mas se daria
«ainda em minha carne» (ou seja, fisicamente). Ele também declara que “o homem
se deita, e não se levanta; até que não haja mais céus, não acordará nem despertará
de seu sono” (Jó 14:12). Ele não diz que o homem nunca mais se levantará, mas que
não se levantará até que não haja mais céus, e a Bíblia fala de “novos céus e nova
terra” (Is 65:17; 2Pe 3:13). Portanto, desde Jó, nos tempos mais remotos do AT, eles
764
O estado intermediário no Antigo Testamento 765
Seu povo até mesmo uma doutrina que ninguém mais acreditava, mas por alguma
não seria surpresa pra ninguém! Quando chegou nessa parte específica, em vez de
revelar-lhes a verdade assim como fez com a ressurreição, o juízo e a vida eterna,
encoberto do Seu próprio povo a verdade mais importante a respeito da vida após
a morte, como também teria feito eles descobrirem essa maravilhosa “verdade”
411
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Resurrection. Disponível em:
<https://www.britannica.com/topic/resurrection-religion>. Acesso em: 15/02/2022.
765
O estado intermediário no Antigo Testamento 766
através do contato com o paganismo, que Ele próprio havia proibido. Seria cômico
questão não estava com o povo escolhido de Deus que recebeu a revelação
usados diretamente por Deus. Em vez disso, a verdade estaria justamente com os
e adoração a falsos deuses que exigiam até sacrifício infantil (e que Paulo
verdade estando entregues nas mãos do capeta do que de Deus, uma ideia tão
onde veio aquele que foi o responsável pelos primeiros cinco livros da Bíblia412, que
verdades divinas concernentes à vida após a morte. Mas ele cresceu justamente no
Egito, o país mais obcecado do mundo pela ideia de vida após a morte naquela
412
Além de Jó, embora este não esteja no começo da Bíblia.
766
O estado intermediário no Antigo Testamento 767
época, muitos séculos antes dos gregos se interessarem pelo tema através de
Platão. Moisés foi criado numa cultura tão fascinada pelos mortos que até hoje
falamos de suas múmias e de seu famoso “Livro dos Mortos”. Durante 40 anos,
Moisés não deve ter passado um só dia sem ouvir falar de alma imortal,
metempsicose, mundo dos mortos, projeção astral e outras tantas crenças bem
todas as ideias imortalistas que perduram até hoje, deixasse essas ideias
criação sem qualquer alma infundida no corpo. O contraste de Gn 2:7 com a cultura
egípcia na qual Moisés certamente acreditava antes de sua conversão não poderia
ser maior: em um, o ser humano é apenas um corpo que respira, chamado de “alma
vivente”; na outra, ele é como um deus, dotado de uma substância espiritual que é
abandonou todos os conceitos imortalistas que ele tinha como certos no Egito. Se
os imortalistas têm razão, isso nos levaria à desagradável conclusão de que Moisés
estava certo enquanto pagão, mas após ser chamado por Deus e passar anos
conversando com Ele face a face (Nm 12:8) mudou de opinião para adotar uma
doutrina errada sobre a vida após a morte! É como se Deus estivesse literalmente
com a verdade.
767
O estado intermediário no Antigo Testamento 768
proposto. Estamos falando dos livros pagãos inspirados por demônios sustentando
a verdade, e Deus fazendo questão de remover essa verdade de Sua Palavra santa
Esperaríamos ver uma conclusão como essa apenas da boca de teólogos liberais
consequências disso.
os pagãos da mesma época sim, não é porque os pagãos estavam certos e o povo
de Deus errado. Inferir que a Palavra de Deus estava errada sobre o que acontece
após a morte, mas os livros sagrados dos pagãos da mesma época estavam certos,
indefensável e negar o óbvio dos textos bíblicos a fim de sustentar a absurda tese
honesta).
que Deus e a Sua Palavra mentem e deixaram propositalmente o Seu próprio povo
as páginas do AT e insiste com o Seu povo para manter distância (Êx 23:32-33; Js
23:7; 2Rs 17:8; Ed 9:1-3). Como veremos no capítulo 8, foi justamente através do
768
O estado intermediário no Antigo Testamento 769
dispersos por todo o mundo helenista, que muitos deles abraçaram a doutrina
genuínos, de que “toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a
Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3:16-17).
Note que Paulo não disse que a Escritura é inspirada apenas para a devoção
espiritual, mas também para o ensino. Ele obviamente não estava excetuando o AT,
mesmo porque a maior parte do NT sequer tinha sido escrito ainda, e tudo o que
os judeus conheciam como Escritura até aquele momento era o AT. “Toda” Escritura
Não, Deus não estava mentindo para os profetas nem iludindo os escritores bíblicos
para escreverem “heresias inspiradas” para o seu próprio engano, porque “homens
falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1:21). Diferente do que
413
Alguém poderia objetar: mas e a lei, cujos princípios cerimoniais Paulo disse que chegaram ao fim com
Cristo (Cl 2:16-17; Ef 2:15; Rm 6:14; Gl 2:19)? Aqui cabe observar duas coisas: primeiramente, que a lei foi
dada especificamente aos judeus, não a todas as pessoas do mundo, razão por que os apóstolos no
Concílio de Jerusalém decidiram não impor essa carga sobre os gentios evangelizados (At 15:13-29), e,
segundo, que a finalidade da lei era servir de “aio” ou “tutor” até Cristo (Gl 3:23-25), por isso era uma
sombra da realidade futura (Hb 10:1). Ou seja, não se trata da lei cerimonial ser um erro teológico, mas
de ter sido dada com um propósito específico a um povo específico no tempo delimitado. O mesmo não
pode ser dito a respeito da doutrina da alma, em primeiro lugar porque ela não é uma lei cerimonial e
nem mesmo é parte da lei em si, e em segundo porque 769se trata de uma realidade espiritual e antropológica
aplicável a todos os seres humanos. Portanto, a não ser que os imortalistas argumentem que a alma era
realmente mortal até o NT e tenha se tornando magicamente imortal desde então, a inspiração de toda
a Escritura exige a mortalidade da alma como consequência.
O estado intermediário no Antigo Testamento 770
pessoas ao erro, mas justamente o contrário: instruí-las em toda a verdade (Jo 14:17,
16:8).
pecado é a morte quando na verdade é um tormento eterno, ou que não existe vida
fora do corpo quando ela existe, é um Deus trapaceiro e mentiroso que nem de
longe merece a nossa confiança. Imagine a surpresa de Davi, dos patriarcas e dos
profetas que disseram ser o Sheol um lugar de silêncio (Sl 94:17) e inconsciência (Ec
9:10) onde não há louvor a Deus (Is 38:18-19; Sl 6:5), ao chegarem lá e verem que é
dessa época, que diante de 125 textos aniquilacionistas contra zero de tormento
eterno acreditavam que seu destino final seria a morte, ao se depararem no último
dia com a pegadinha do Mallandro: serem lançados em um lago de fogo literal para
um tormento eterno que se estende pelos séculos dos séculos sem fim.
“verdadeiras” dos povos pagãos ao redor). Por que Deus esconderia de alguém
como Caim o fato de que a punição por seu pecado seria queimar por toda a
eternidade? Seria muito mais justo que deixasse isso claro desde o começo para
que toda a humanidade estivesse ciente do que seus atos levariam e pudesse medir
depois pegá-los todos de surpresa, como um juiz que na surdina inventa uma lei
770
O estado intermediário no Antigo Testamento 771
Imagine que a lei diga que a pena para quem rouba um celular é dois anos
de cadeia. Você rouba um celular, é pego e levado a julgamento, e então tem uma
baita surpresa: é condenado a passar o resto da vida na prisão (e não só isso, mas
vai ser torturado literalmente todos os dias, a cada segundo, sem descanso). E
quando você contesta o juiz mostrando que na lei que ele próprio criou está escrito
que a pena para esse tipo de crime é dois anos de prisão, a resposta que você recebe
é que ele preferiu esconder essa parte da lei e que só vai revelá-la daqui milhares
de anos para as pessoas do futuro (mas as do presente vão pagar o preço mesmo
assim). O que você pensa de um juiz desses? Para os imortalistas, ele expressa com
algo que só muito tempo mais tarde ele mostraria ser falso.
Deus teria deixado propositalmente o Seu próprio povo nas trevas por
milhares de anos sobre algo da mais suma importância com implicações eternas,
homens segundo o coração de Deus (como Davi) e a pessoa mais sábia do mundo
conhecimento da verdade, mas esses pagãos que queimavam seus próprios filhos
e eternamente” (Hb 13:8) e que “não muda como sombras inconstantes” (Tg 1:17).
Deus não é um deus de duas faces que coloca intencionalmente falsas doutrinas
em Sua Palavra inspirada para pregar uma peça em quem nela acredita. Ao
contrário, Ele é o Senhor e não muda (Ml 3:6), muito menos em relação a algo tão
771
O estado intermediário no Antigo Testamento 772
crucial e decisivo sobre toda a vida humana. Se acreditamos nas palavras de Jesus
que Deus não semeou nenhuma falsa doutrina em parte alguma da Bíblia, do
Gênesis ao Apocalipse.
livro com 1% de mentira não pode ser considerado totalmente verdadeiro. Imagine
“examinavam todos os dias as Escrituras para ver se tudo era assim mesmo” (At
17:11). Qual Escritura é essa que os bereanos examinavam para julgar a mensagem
de Paulo? Obviamente não o NT, que sequer havia sido escrito ainda, mas
Paulo!
doutrina pelo AT. Até os discípulos usavam como base a Escritura que eles tinham
na época, além dos ensinos de Jesus, que jamais ensinou a imortalidade da alma e
que se baseava neste mesmo livro sagrado. Foi a Escritura que Jesus citou três vezes
ao ser tentado pelo diabo no deserto (Mt 4:4,7,10), era a Escritura que ele incitava
os seus ouvintes a ler (Mt 21:42) e a Escritura que ele disse que não pode falhar (Jo
10:35). A expressão «está escrito» é usada mais de 90 vezes no NT, grande parte
772
O estado intermediário no Antigo Testamento 773
descredibilizada por Jesus, que os acusa de “anular a palavra de Deus por meio da
tradição que vocês mesmos transmitiram” (Mc 7:13). Paulo disse que “tudo que
dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito” (Rm 15:4), e isso que foi escrito no
passado, que serve para o nosso ensino, é justamente o AT. Isso significa que
mesmo quando um autor do AT não dizia «assim diz o Senhor», o que ele transmitia
não era meramente uma opinião pessoal de qualidade duvidosa, mas uma verdade
divinamente inspirada pelo Espírito Santo, que preservou a Sua Palavra de erros –
que os autores do AT não estavam enganados é inevitável, o que significa que eles
não podiam estar errados sobre o que acontece depois da morte. O NT pode ter
deixado mais claro o que eles já acreditavam a este respeito, mas não passado uma
borracha e corrigido supostos erros com uma novidade extraída direto do entulho
Se a Bíblia não é inspirada, ela não é digna da nossa confiança. Seria apenas
mais um livro como qualquer outro, com erros e acertos, verdades e mentiras, e
saber qual parte é verdade e qual é mentira ficaria a gosto do freguês. Assumir que
a Bíblia é inspirada mas parte dela se equivoca em relação à alma é como dizer que
773
O estado intermediário no Antigo Testamento 774
verdadeira, ou ela não pode ser inspirada. Uma “inspiração parcial” não apenas
contradiz o «toda a Escritura» de 1Tm 6:16, como nos deixa à deriva, sem saber qual
do autor, mas dizem respeito ao próprio Senhor Deus falando em primeira pessoa
falam por si (ainda que igualmente inspirados). Tome como exemplo o texto que
diz que “a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18:4), onde é o próprio Deus falando
ao profeta (v. 1), e não um pensamento do próprio profeta. Da mesma forma, como
vimos ao estudar Dn 12:13, é o próprio Senhor que diz ao profeta que ele
descansaria e só no fim dos dias se levantaria para receber (entrar na) sua herança.
Deus elogia Salomão por não pedir “a morte dos seus inimigos” (2Cr 1:11),
onde o hebraico traz nephesh. O Senhor diz a Acabe que “porquanto soltaste da
mão o homem que eu havia posto para destruição, a tua vida (nephesh) será em
lugar da sua vida (nephesh)” (1Rs 20:42), onde a punição por ter deixado com vida
a alma do rei da Síria era ter sua própria alma morta. Semelhantemente, o texto que
fala de “matar uma nephesh acidentalmente” (Js 20:3) é o próprio Deus que o
comunica a Josué (v. 1), bem como o texto que fala do que acontece com quem
nephesh (Nm 19:13), que é Deus falando a Arão (v. 1), e dos textos que dizem que a
774
O estado intermediário no Antigo Testamento 775
compromete a destruir a alma que pecasse (Lv 23:30) e a extirpar a alma que
quebrasse a aliança (Gn 17:14). Portanto, se a alma é realmente imortal, Deus não
apenas teria escondido essa verdade dos autores do AT, fazendo-os acreditar em
um engano, como teria Ele próprio mentido sucessivas vezes para induzi-los
deliberadamente ao erro! Com certeza não é nesse tipo de deus que o autor de
Hebreus cria quando disse que “é impossível que Deus minta” (Hb 6:18).
suficiente” para saber que a alma é imortal e que por isso se expressavam daquela
maneira teriam que afirmar o mesmo a respeito do próprio Criador dos céus e da
terra, o qual, embora onisciente e onipotente, não tinha “luz suficiente” para
perceber que a alma é imortal e por isso dizia ingenuamente que a alma morre, que
vira um cadáver e que só estaremos com Ele após a ressurreição. Ou, pior ainda, que
quando o profeta dizia «assim diz o Senhor» ele estava colocando palavras na boca
de Deus que Ele jamais disse, o que é jogar definitivamente no lixo qualquer
teólogos liberais.
Em suma, o conceito judaico sobre a vida após a morte não “evoluiu” após o
filósofos pagãos para trazer aos judeus as verdades que Ele próprio se recusou a
revelar-lhes em Sua Palavra e que, pior do que isso, contrariam abertamente o que
Ele lhes ensinou explicitamente através das Escrituras Sagradas. Isso é não apenas
775
O estado intermediário no Antigo Testamento 776
filosofia grega deu origem a tradições humanas que se misturaram com a Palavra
alma e todo o “pacote” que a acompanha (purgatório, limbo, reza aos mortos e
de gente falecida e por aí vai). O cardeal John Henry Newman (1801-1890), que
reconhecia que tais ensinos não podem ser encontrados na Bíblia, justificou essas
doutrina!
é uma doutrina que afronta as Escrituras e desafia o que já foi revelado, mas é
reconhecermos humildemente que “as Tuas palavras são em tudo verdade” (Sl
776
777
eterna – o que mostra que estavam longe de serem ignorantes sobre o tema –,
todas as vezes que eles descrevem o estado atual dos mortos é sempre e
louvor (Sl 6:5) ou atividade (Ec 9:10), assim como o “mundo” onde eles estão (o
Sheol) é constantemente descrito como uma terra subterrânea sem vida, como
criam em imortalidade da alma, a partir de que momento eles passaram a crer? Hoje
em dia, não é difícil encontrar judeus que acreditam até mesmo em reencarnação.
Como as coisas chegaram a este ponto? A resposta está na soma de dois fatores:
sua terra natal, o que aconteceu com o Reino do Norte em 722 a.C, pelas mãos dos
assírios, e com o Reino do Sul (os “judeus” propriamente ditos) em 586 a.C, pelos
babilônicos.
777
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 778
dava, principalmente, de “boca em boca”. Mas na época as viagens eram muito mais
por toda a vida, o que significa que a cultura local (sua religião, costumes, crenças e
consistentemente longe das ideias pagãs de uma alma imortal durante todo o
quando o povo foi expulso de sua própria terra nas conquistas da Assíria e da
Babilônia.
falsos deuses dos povos em redor (1Rs 11:2), que foi o principal pecado que levou
imortalidade da alma.
criada duzentos anos antes, com os órficos414, foi com Platão (427-347 a.C) que ela
414
JAEGER, W. Paidéia: A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
778
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 779
o corpo era encarado como um cárcere da alma que ansiava dele se libertar por
ocasião da morte. Nessa dicotomia entre “corpo mau” e “alma boa”, o primeiro seria
precursor das crenças espíritas. Não é difícil entender por que o platonismo fez
tanto sucesso em tão pouco tempo: entre acreditar que o homem não passa de pó
e cinzas, como declara a Bíblia, ou que ele é na verdade um ser divino dotado de
uma alma eterna e incorruptível, vai ser sempre muito mais tentador abraçar aquilo
que alimenta mais ao ego. Assim, a atraente ideia de possuirmos dentro de nós um
elemento imortal, somada à astúcia das sutilezas filosóficas que levavam a essa
Mesmo assim, ela não teria obtido tanto sucesso se não fosse por um fator
histórico e político de grande importância que foi fundamental para o êxito das
expansão da cultura helênica (ou seja, a cultura grega) após Alexandre o Grande
costumava intervir nos costumes próprios de cada povo. Elas não estavam
expandir sua cultura, para que os outros povos incorporassem a mesma forma de
pensar (que é no que consiste a helenização). Este processo foi tão exitoso que ele
779
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 780
perdurou mesmo após a queda do Império Grego para os romanos, tanto que até
bebemos até hoje, para o bem ou para o mal. Como Freeman Butts certa vez
pensavam415. A filosofia grega se tornou sinônimo da razão, o que significa que por
muito tempo se julgou necessário concordar com ela para ser considerado alguém
racional ou intelectual. Por isso, até mesmo filósofos cristãos, como Tomás de
pensamento ao Cristianismo.
frequência do que a própria Bíblia, uma vez que a filosofia grega era posta no ápice
da autoridade quando o assunto era a razão. Note o quanto isso contrasta com
415
A frase é uma paráfrase do que literalmente foi escrito por ele em sua “História da Cultura da Civilização
Ocidental”: “Nós pensamos da maneira como fazemos em grande parte porque os gregos pensaram como
o fizeram”.
780
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 781
Obviamente, isso não aconteceu da noite pro dia, e parte dos judeus
reconhecido pelos próprios estudiosos judeus, bem como por qualquer historiador
que se preze.
alega:
(Malaquias) data de um século antes, o que se conclui é que durante todo o período
o pensamento grego mais tarde, por influência da filosofia platônica. Isso explica
416
KOHLER, Kaufmann. “Immortality of the Soul”. Jewish Encyclopedia. Disponível em:
<https://jewishencyclopedia.com/articles/8092-immortality-of-the-soul>. Acesso em: 15/02/2022.
781
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 782
por que não vemos um único texto imortalista em todo o AT, como encontramos
início do NT).
verdade escrita quase um milênio após Salomão, nas últimas décadas do primeiro
século a.C. Este livro apócrifo (embora aceito no cânon católico), escrito por um
judeu helenizado de Alexandria, diz expressamente que as almas dos justos são
imortais e estão com Deus após a morte (além de defender a preexistência das
almas em 8:19-20). Observe o contraste brutal com a obra realmente escrita por
Salomão, o Eclesiastes:
782
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 783
claramente a inconsciência após a morte, a falsificação barata escrita mil anos mais
judaica abandonou suas raízes após o contato com a filosofia grega. Até mesmo o
os hebreus eram corpos vivos, eles não tinham corpos. Este campo
alma” (9:15). Este corpo corruptível é oposto por uma alma imortal
corpo.417
Dicionário da Bíblia (uma obra com 900 mil palavras considerada “a interpretação
dicionário bíblico mais lido do mundo), ele afirma que “a imortalidade da alma,
417
ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary. New York: Harper & Row, 1985, p. 982.
418
“Book Review”. The Thomist Review, 1967. v. 20, p. 355.
783
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 784
contrário do AT, que é todo escrito em hebraico com alguns trechos em aramaico)
e seu autor é de Alexandria, o berço através do qual a cultura grega se expandiu por
desenvolveu uma escola judaica que buscou conciliar o Judaísmo tradicional com a
filosofia grega:
419
MCKENZIE, John L. Dictionary of the Bible. New York: The Bruce Publishing Company, 1965. v. 1, p. 183-
184.
420
KOHLER, Kaufmann; BROYDÉ, Isaac; BLAU, Ludwig. “Soul”. Jewish Encyclopedia. Disponível em:
<https://jewishencyclopedia.com/articles/12340-preexistence-of-the-soul>. Acesso em:
15/02/2022.
784
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 785
escreve:
Orfeu.421
de Alexandre o Grande (356-323 a.C), mas também que isso se deu primeiramente
421
BREMMER, Jan Nicolaas. The Rise and Fall of the Afterlife: the 1995 read-tuckwell lectures at the
University of Bristol. New York: Routledge, 2002, p. 9.
785
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 786
Deus e são de alguma forma emprestadas aos homens, nos quais elas
imortalidade da alma não se encontra nas páginas do AT e nem dos rabinos antigos,
422
WESTPHAL, Alexandre. Dictionnaire Encyclopedique de la Bible. Valence: Je sers, 1932. v. 2, p. 557.
786
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 787
medievais e posteriores.423
e o corpo físico.424
ao afirmar que a imortalidade da alma não entrou no Judaísmo por meio da Bíblia,
I a.C ao século I d.C. Esta doutrina ensina que todo ser humano é um
423
ROTH, Cecil. The Concise Jewish Enciclopedia. New York: New American Library, 1980, p. 257.
424
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Soul. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/soul-religion-
and-philosophy>. Acesso em: 15/02/2022.
787
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 788
falso ensino, e mesmo dos que sucumbiram, nem todos caíram tão cedo. Os judeus
da Palestina (ou seja, os que voltaram do exílio) foram os mais resistentes a tal
grega. Raymond Brown, tido por muitos como o maior teólogo católico do século
XX, no Comentário Bíblico católico mais utilizado nos EUA, disse o seguinte a
mas seus espíritos terão muito júbilo”. Esta é a mais antiga atestação
O detalhe é que esse livro, de acordo com o mesmo autor, foi escrito por
volta de 176-168 a.C427, o que significa que a primeira obra imortalista escrita por
judeus da Palestina data de cerca de 260 anos depois do último livro do AT. Mas
mesmo após essa época, a maior parte dos judeus da Palestina se manteve fiel à
425
NEUSNER, Jacob; AVERY-PECK, Alan J; SCOTT, Green; SCOTT, William. The Encyclopaedia of Judaism.
Leiden: Brill Academic Publishers, 1999. v. 1, p. 200-201.
426
BROWN, Raymond E; FITZMYER, Joseph A; MURPHY, Roland E. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo:
Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Paulus, 2011, p. 955.
427
ibid.
788
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 789
e 124 a.C e tido como canônico pelos católicos, que diz que “Deus dará ao mau e
ao pecador o que merecem; ele os guarda para o dia em que os castigará” (12:4).
Que esse «dia em que os castigará» não é o dia em que a alma sai do corpo
após a morte, é evidente pelo trecho que diz que «a maior parte de suas obras está
oculta», as quais só serão reveladas «no último dia», quando as «sentenças divinas»
“Com efeito, a maior parte de suas obras está oculta; quem anunciará, quem
E para que não restasse nenhuma dúvida de que o castigo só se daria mesmo
no “último dia”, ele diz: “Lembra-te da ira do último dia, e do tempo em que Deus
castigará, desviando o rosto” (18:24). Uma evidência final de que ele não acreditava
escolhida pela Ave Maria para o hebraico Sheol) é o texto onde é dito que “a
moradia dos mortos é-lhe preferível” (28:25). Se o autor entendesse o Sheol como
parábola do rico e Lázaro), jamais teria dito que ele é preferível para o ímpio em
A explicação disso está dois capítulos adiante, onde vemos que a morte é
melhor que a vida presente se vivemos uma vida de aflição, não porque sejamos
789
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 790
na aflição; e o repouso eterno que um definhamento sem fim” (30:17). Que o autor
não encarava o Sheol como uma morada de almas desincorporadas, é evidente pelo
trecho que diz: “Pratica a justiça, antes de tua morte, pois na moradia dos mortos
não há de se achar alimento” (14:17), o que jamais seria dito de uma morada de
retórica: “Quem louvará o Senhor na habitação dos mortos, em lugar dos vivos e
acrescenta:
“Não te detenhas no erro dos ímpios, louva a Deus antes da morte; após a
morte nada mais há, o louvor terminou. Glorifica a Deus enquanto viveres;
curioso que, apenas dois versos depois, o autor diz que “não se pode encontrar tudo
malícia” (17:29). Um morto “perdeu a luz” (22:10) e já não tem mais qualquer
sensação de passagem de tempo: “Dez anos, cem anos, mil anos... na habitação dos
428
De acordo com a versão grega (os outros trechos são citados de acordo com a versão hebraica do livro).
429
“Psychopannychia”.
790
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 791
“Abri os vossos olhos, e volvei-os sobre nós! Não são os mortos das moradas
subterrâneas [Sheol], cujo sopro se lhes desprendeu das entranhas, que
rendem glória ao Senhor, e louvam sua justiça, e sim a alma viva, por mais
acabrunhada que esteja de tristeza, aquele que caminha curvado e esfalfado,
o olhar desfalecido, e a alma a penar de fome – estes vos rendem glória e
que diz: “Senhor, Todo-poderoso, Deus de Israel, escutai a prece dos mortos de
Israel, dos filhos daqueles que pecaram contra vós, que não atenderam à voz do
Senhor, seu Deus, e por isso foram levados à desgraça” (3:4). Contudo, todo o
contexto deixa claro que ele não está falando de mortos físicos, mas do estado de
fraqueza da nação de Israel que era comparável à morte. O próprio verso anterior
diz que “nós caminhamos para um definitivo aniquilamento” (3:3), e é neste sentido
Os «filhos daqueles que pecaram contra vós» não são os mortos, mas os
próprios israelitas vivos naquele momento que rogavam pela restauração de Israel.
A ideia transmitida é que as gerações anteriores haviam pecado, e por isso eles
791
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 792
estavam condenados àquela sorte. É por isso que na continuação do texto o autor
geração atual (de vivos) lamentando pela iniquidade dos pais (mortos): “Agora, em
nossos pais, que contra vós pecaram” (3:7). Isso é reconhecido até mesmo por um
como nas trevas, e nos lugares escuros como mortos” (Is 59:10).430
cânon católico, mas consta no cânon da Igreja Ortodoxa Síria e em algumas edições
ímpios lamentarão, pois o tempo de seu tormento é chegado” (30:2-5), o que indica
que, para os seus autores, os ímpios não estão atualmente em tormento. Isso é
430
GOMES, Érick Augusto. Manual de Defesa da Fé Católica. S/editora, 2019.
792
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 793
“Por que choramos pelos que partem para o Sheol? Que as lamentações
que disseste sobre os justos, que por causa deles veio este mundo, assim
também o que há de vir virá por causa deles. Porque este mundo é para eles
uma luta e um trabalho de muitas tribulações; e o que está por vir, uma
Ao falar de Josias, um dos reis mais justos da história de Israel, o autor diz
que “ele receberá uma recompensa eterna e será glorificado com o Poderoso mais
tarde” (66:6). Considerando que o livro foi escrito bem depois da época de Josias e
que o próprio autor se refere a ele no tempo passado (66:5), é evidente que na visão
de 2º Baruque o rei não havia ainda recebido «uma recompensa eterna». Mesmo 2º
grego por um escritor helenístico) e muito usado pelos católicos para sustentar a
oração pelos mortos, diz expressamente que se não fosse pela ressurreição essas
orações seriam inúteis, o que indica que para ele os mortos permaneceriam sem
793
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 794
mil dracmas para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados dos que
tinham falecido. Belo e santo modo de agir, decorrente de sua crença na
ressurreição! Pois, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido
vão e supérfluo rezar por eles. Mas, se ele acreditava que uma belíssima
Note que o autor justifica a oração pelos mortos, não com a crença no
purgatório ou de que os mortos já estivessem vivos em algum lugar para que essas
orações tivessem algum efeito, mas com a crença na ressurreição, sem a qual eles
crença em si não ser bíblica, ela é justificada por uma lógica bíblica: a de que não
existe nada entre a morte e a ressurreição, razão por que sem a ressurreição teria
sido «vão e supérfluo rezar por eles». Todo o segundo livro dos Macabeus está
Nenhum deles coloca a esperança de vida após a morte na alma que sai do corpo,
794
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 795
estava a ponto de expirar: ‘É uma sorte desejável perecer pela mão humana
com a esperança de que Deus nos ressuscite. Para ti, porém, certamente não
haverá ressurreição para a vida’” (2º Macabeus 7:13-14)
É digno de nota as últimas palavras de uma mãe ciente de que estava prestes
a morrer junto com o seu filho. Em vez de aproveitar a oportunidade para dizer que
veriam novamente:
“Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra. Reflete bem: tudo o que
vês, Deus criou do nada, assim como todos os homens. ‘Não temas, pois, este
algoz, mas sê digno de teus irmãos e aceita a morte, para que no dia da
fôlego de vida, o mesmo espírito-ruach que vimos que veio de Deus, que volta para
Deus na morte e que Ele soprará em nós novamente por ocasião da ressurreição:
“Ignoro – dizia-lhes ela – como crescestes em meu seio, porque não fui eu
que vos dei o espírito e a vida, não fui eu que ajuntei os vossos membros.
795
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 796
saíam, e lançou-as sobre os inimigos. Foi assim seu fim, pedindo ao Senhor
da vida e do espírito que lhos restituísse um dia” (2º Macabeus 14:46)
e bíblica onde o espírito não é o próprio indivíduo, mas o sopro divino que anima o
corpo. O livro também fala de Razias, um dos anciãos de Jerusalém, que “por
Judaísmo ele se havia exposto de corpo e alma com extremo zelo” (14:38), onde «se
expor de corpo e alma» é arriscar tanto o corpo como a alma ao perigo de morte431.
alma não era totalmente aceita nem mesmo entre os judeus que foram em alguma
fundação de uma efebia (o sistema de educação dos jovens na Grécia antiga), que
em pouco tempo levou muitos a se desviarem dos costumes judaicos para sucumbir
ao helenismo:
privilégios obtidos do poder real por João, pai de Eupólemo, que foi enviado
431
É bem verdade que em 15:12-14 Onias e Jeremias são vistos depois de mortos, mas o verso 11 esclarece
que se tratava de uma visão.
796
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 797
ímpio Jasão, que não era de modo algum pontífice, obteve o helenismo tal
jogos proibidos. Não faziam caso das honras da pátria e amavam muito mais
os títulos helênicos” (2º Macabeus 4:9-15)
Antíoco escreveu a Lisias dizendo que “os judeus resistem em adotar os costumes
helênicos, conforme a decisão de nosso pai, mas preferem conservar suas tradições
e pedem que lhes deixemos seus costumes” (11:24). Isso nos mostra que, apesar de
zelavam por manter seus costumes e crenças. Como Jan N. Bremmer informa, foi só
797
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 798
ben Zakai, falecido em 90 d.C (520 anos depois de Malaquias, o último livro do
AT)433. Em consonância com isso, Mathews diz que “não há sequer clara evidência
de que os judeus nos dias de Jesus cressem num estado intermediário”434. Nas
432
BREMMER, Jan Nicolaas. The Rise and Fall of the Afterlife: the 1995 read-tuckwell lectures at the
University of Bristol. New York: Routledge, 2002, p. 8.
433
STRACK, Hermann L; BILLERBECK, Paul. Commentary on the New Testament from the Talmud and
Midrash. Bellingham: Lexham Press, 2021. v. 4.
434
MATHEWS, S. “Bossom of Abraham”. In: A Dictionary of the Bible: dealing with the language, literature
and contents, including the biblical theology (ed. J. Hastings). New York: Scribner, 1909, p. 6.
435
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron 798em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 82.
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 799
com os deuses das nações vizinhas (o que explica por que um rei apóstata como
crida desde sempre, muito menos uma crença intuitiva (como a existência de Deus).
Enciclopédia Judaica:
se acredita que mantém corpo e alma juntos, tanto dos homens como
dos animais (Gn 2:7, 6:17, 7:22; Jó 27:3), é retirado (Sl 146:4) ou retorna
a Deus (Ec 12:7; Jó 34:14), a alma desce ao Sheol ou Hades, para lá ter
uma sombria existência, sem vida e consciência (Jó 14:21; Sl 6:5, 115:7;
436
Disponível em: <https://super.abril.com.br/historia/a-morte-apos-a-morte-o-inferno-na-mitologia-
grega>. Acesso em: 20/06/2021.
799
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 800
E ainda:
com que foi dotado por seu Criador (Gn 2:7), mas esse espírito é
individualidade.438
judeu extraído das Escrituras hebraicas, “o ser humano não é uma mescla de corpo
perecível e alma imortal, e sim uma unidade psicofísica que depende de Deus para
ponto pacífico – um fato histórico, não uma questão de opinião. Não admira que os
437
KOHLER, Kaufmann. “Immortality of the Soul”. Jewish Encyclopedia. Disponível em:
<https://jewishencyclopedia.com/articles/8092-immortality-of-the-soul>. Acesso em: 15/02/2022.
438
KOHLER, Kaufmann; BROYDÉ, Isaac; BLAU, Ludwig. “Soul”. Jewish Encyclopedia. Disponível em:
<https://jewishencyclopedia.com/articles/12340-preexistence-of-the-soul>. Acesso em:
15/02/2022.
439
BERLIN, Adele; BRETTLER, Marc Zvi. The Jewish Study Bible. New York: Oxford University Press, 2004,
p. 15. 800
Quando a imortalidade da alma entrou no Judaísmo 801
acadêmico – e que contradizem esse consenso por razões dogmáticas, não por
entre os que se desviaram das Escrituras para seguir a filosofia grega, ou entre os
801
802
• Introdução
tange à vida após a morte. Pelo contrário, das 206 provas contra a imortalidade da
alma listadas no meu antigo livro, 85 eram do AT, e as outras 121 do NT. Isso
surpreendeu até a mim, uma vez que o NT representa não mais que ¼ do todo da
Bíblia, e mesmo assim acumula a maior parte dos textos que põem em xeque a
Pior do que isso, a razão por que tanta gente ainda pensa que o NT mudou
convincentes, mas simplesmente por um punhado de textos que cabem numa mão,
alguns dos quais já analisamos aqui – e descobrimos como eles se baseiam numa
do altar”.
capítulo à parte, e analisarei aqui os textos que tem alguma coisa a nos dizer sobre
802
O estado intermediário no Novo Testamento 803
assistir a final da Copa do Mundo de 2022, no Catar. Isso não é uma esperança
remota, nem um sonho distante, nem algo que você tenha que pagar ou esperar
numa fila de interessados. Você já tem o ingresso. Tudo o que precisa é ir ao jogo
no dia da final. Agora imagine que, nestas condições, apareça alguém dizendo que,
se você for um bom menino, obediente, esforçado e submisso a ele, ele te dará de
você já tem.
De fato, a própria proposta não faria sentido, a não ser que quem a tenha
feito não soubesse que você já tinha o ingresso. Mas imagine que tenha sido essa
mesma pessoa que tenha dado o ingresso anteriormente, e que não pretenda tirá-
sentido ainda, e quem a fez estaria brincando com a sua cara ou simplesmente
imortalista e a realidade bíblica. Embora eles digam sem qualquer base que Deus
colocou uma alma imortal no homem por ocasião da criação e que, portanto, somos
803
O estado intermediário no Novo Testamento 804
presente, mas como um prêmio dado aos que vencerem para ser adquirido no
seres humanos por natureza, a despeito de suas ações. Para eles, até a alma mais
inferno para serem eternamente refratários ao fogo que os queima sem consumi-
los. Neste panorama, pouco importa se você «persiste em fazer o bem» ou não, já
possessão natural, na forma de uma alma eterna que carregamos dentro de nós e
que diz respeito à nossa própria essência como ser. Se a imortalidade precisa ser
buscada e possui seus pré-requisitos, isso só pode significar que não a temos por
inevitavelmente terá uma vida eterna em algum lugar, mesmo que no quinto dos
infernos. O que realmente importa para eles não é ser imortal, mas apenas onde
440
#861 da Concordância de Strong.
804
O estado intermediário no Novo Testamento 805
herança, uma recompensa dada gratuitamente por Deus aos que lhe foram fiéis.
Por isso nós nunca vemos um único texto bíblico dizendo que “vamos morar no
céu”, como costumamos ouvir tão assiduamente em nossos dias, e sim que teremos
uma vida eterna, já que o foco não estava em “onde” passaremos a eternidade, mas
sim que viveremos para sempre (uma vez que os condenados não terão o mesmo
próprio fato de que um dia viveremos para sempre – ênfase essa que foi totalmente
perdida para dar lugar a uma teologia onde viver eternamente é algo inerente a
no céu”, há nada a menos que 90 textos falando sobre “crer para a vida eterna” (1Tm
1:16), sobre “a esperança da vida eterna, a qual o Deus que não mente prometeu
antes dos tempos eternos” (Tt 1:2), que “o aprovado receberá a coroa da vida que
Deus prometeu aos que o amam” (Tg 1:12) e que receberá, “na era futura, a vida
eterna” (Lc 18:30). Quando o jovem rico perguntou a Jesus “que farei para herdar a
vida eterna” (Lc 18:18), Jesus não respondeu: “Nada. Você já tem uma alma imortal”.
Pelo contrário, disse o que ele teria que fazer para “entrar na vida” (Mt 19:17), uma
expressão que Jesus usava rotineiramente (Mt 18:8-9; Mc 9:43, 45), embora ele
se teremos uma eternidade para passar em algum lugar. Isso porque a vida eterna,
assim como a imortalidade, é tida como um dom gratuito de Deus que Ele reservou
exclusivamente aos salvos, que a desfrutarão após a ressurreição (Rm 6:23; Jo 5:28-
805
O estado intermediário no Novo Testamento 806
recompensa, um “dom”, como em Rm 6:23, não uma possessão natural ou algo que
A razão por que hoje se fala tão pouco em “herdar a vida eterna” e muito
mais sobre “ir pro céu” decorre da ideia distorcida de que todos já são imortais de
qualquer maneira, e assim resta apenas discutir onde passaremos essa eternidade.
imortalidade é uma possessão natural ou algo que todos possuirão. Isso porque
Paulo não apenas diz que Deus dará imortalidade aos que a buscam, mas também
glória e honra.
também tem que ser algo que nós não possuímos ainda, e que nem todos possuirão
apenas os salvos serão imortais e isso não é algo que eles possuam por natureza,
441
NISBET, James. Immortality: a clerical symposium on what are the foundations of the belief in the
immortality of man. London: James Nisbet & Co., 1887, p. 118.
806
O estado intermediário no Novo Testamento 807
acadêmicos, a de que a alma não é imortal “por natureza” como criam os gregos,
mas apenas “por concessão” (ou seja, porque Deus a torna imortal, e não porque
ela é imortal em si mesma, como se não fosse criada ou não precisasse de Deus).
Através dessa sutil distinção filosófica, muitos pensam poder explicar textos como
Rm 2:7 e 1Tm 6:16. Tal é o caso do Pr. Carlos Vailatti, que disse em um debate sobre
o tema:
Nós não acreditamos nisso porque Platão ensinou, em vez disso nós
1Tm 6:16. Mas creio que Deus confere soberana e graciosamente, sem
Mas como é óbvio para qualquer observador atento, essa objeção não muda
ser morta é uma hipótese abstrata que reside puramente no campo das ideias, e
quer dizer apenas que Deus tem o poder de matar uma alma, embora de fato Ele
nunca tenha feito ou fará (e não apenas não faz, mas Ele mesmo é quem outorga e
assegura sua imortalidade). Assim, para efeitos práticos, ambas as posições são a
exata e mesma coisa: a crença de que a alma não morre, e que isso é assegurado
442
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Dl-Eg7DwQKQ> (às 1h e 13m). Acesso em:
24/02/2022.
807
O estado intermediário no Novo Testamento 808
dizer não é apenas que a alma não é eterna e autocriada, mas que Deus não a criou
imortal. Algo que não esteja sujeito à morte em nenhuma hipótese real e concreta
imortalidade não é dada a todos, mas somente aos salvos, como está perfeitamente
claro no texto. Não se trata, portanto, de uma imortalidade que Deus concedeu a
É por isso que Paulo disse que Cristo “tornou inoperante a morte e trouxe à
luz a vida e a imortalidade por meio do evangelho” (2Tm 1:10), usando o mesmo
Paulo nunca teria dito que a obtemos por meio do evangelho, uma vez que cada
Se a imortalidade é obtida «por meio do evangelho», isso implica que (1) ninguém
a tem por possessão natural, e (2) ninguém que rejeita o evangelho a terá concedida
um dia.
anacrônicos, que nem de longe tinham algo a ver com o significado natural dos
termos ou com o seu uso corrente. Em meu debate de 2017 com Francisco
Tourinho, ele alegou que Rm 2:7 em nada tinha a ver com o conceito de
808
O estado intermediário no Novo Testamento 809
não tenha esclarecido que raios é essa “qualidade de imortal” e muito menos
15:42, 50, 53, 54; Rm 2:7; 1Tm 6:16; Ef 6:24; 2Tm 1:10; Tt 2:7), o sentido é um só: de
durabilidade eterna.
imortal. Simples assim. A única razão por que os imortalistas precisam tanto lançar
obscuridade naquilo que é simples não é senão porque sabem que os textos
resta.
por Gordon Fee, de que “um texto não pode significar o que nunca poderia ter
443
FEE, Gordon D. How to Read the Bible for All Its Worth. 4ª ed. Grand Rapids: Zondervan, 2014.
809
O estado intermediário no Novo Testamento 810
natureza deve ser descartada de antemão. Pettingell expôs o mesmo princípio com
palavra:
maior parte da Palavra de Deus está em prosa clara e sóbria. Ela foi
Pense nos leitores originais das cartas de Paulo, sobre os quais o próprio
apóstolo disse que “poucos eram sábios segundo os padrões humanos; poucos
eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento” (1Co 1:26), e que foram
444
PETTINGELL, John Hancock. The Life Everlasting: What is it? Whence is it? Whose is it? New York: J. D.
Brown, 1883, p. 183.
810
O estado intermediário no Novo Testamento 811
escolhidos por Deus justamente porque “Deus escolheu as coisas loucas do mundo
filosofia formal, não eram alunos de Platão, não estudavam Aristóteles, não eram
pessoas das mais simples, meros pescadores iletrados, “homens comuns e sem
instrução” (At 4:13), e os crentes da Igreja primitiva não ficavam por menos. Agora
Se realmente Paulo tinha em mente essa distinção filosófica que até hoje é
confundindo a cabeça dos seus próprios leitores forçando-os a concluir algo que
demanda uma distinção filosófica com a qual eles não tinham a menor familiaridade
– e tudo isso quando o mesmo apóstolo afirmou com todas as letras que “nada lhes
escrevemos que vocês não sejam capazes de ler ou entender” (2Co 1:13).
Em meu recente debate com Samuel Monteiro445, apesar dele não apelar
do que era entendido como “imortalidade” em toda a literatura grega, e por isso o
445
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6QHWAoX_2Hw>.
811
O estado intermediário no Novo Testamento 812
texto não poderia ser usado para negar o conceito de alma imortal ou imortalidade
natural. Perceba que essa é exatamente a mesma artimanha dos teólogos e igrejas
liberais que negam, por exemplo, que Paulo tenha classificado como pecado a
teologia paulina que foge totalmente ao seu uso corrente na literatura antiga, onde
estivesse usando para condenar algo que não tinha nada a ver com o conceito que
literatura antiga como aquilo que não morre, já que não podem aceitar que Paulo
estivesse dizendo que não possuímos imortalidade assim como os liberais não
na falta de uma explicação coerente ao texto que não fulmine por completo os seus
Paulo estivesse usando um termo na intenção de dizer outra coisa (que os leitores
teriam que concluir por conta própria sabe-se lá como). É como se eu dissesse que
812
O estado intermediário no Novo Testamento 813
qualquer coisa que não aquilo que entendemos pelo termo. É esse o tipo de
manobra que os imortalistas são obrigados a apelar para salvar sua doutrina tirada
absolutamente zero textos do Gênesis ao Apocalipse que diga que somos imortais,
há um curioso texto em que Paulo escreve sobre o único que possui imortalidade:
“Aquele que possui, ele só, a imortalidade, e habita em luz inacessível; a quem
nenhum dos homens tem visto nem pode ver; ao qual seja honra e poder para
sempre. Amém” (1Tm 6:16). Mas se Deus é o único que possui a imortalidade, a
conclusão lógica e natural é que nós não possuímos imortalidade alguma (como
cada uma mais ridícula que a outra. Veja como Norman Geisler, um dos maiores
446
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 388.
813
O estado intermediário no Novo Testamento 814
A explicação poderia até ser boa, se não fosse por um pequeno problema:
1Tm 6:16 não diz que só Deus “é” imortal, mas que só Ele possui a imortalidade – o
exato oposto do que argumenta Geisler! O grego usa o termo echo, que significa
«ter, i.e., possuir»447, palavra que aparece 711 vezes no NT e é a mais utilizada neste
sentido (Mt 11:15, 19:22, 22:24; Mc 1:22, 3:1; Tt 1:6, etc), mas nunca no sentido de
“ser”. Se Paulo tivesse em mente a explicação de Geisler, ele não teria usado echo
(possuir), mas esti, que é o verbo para ser ou estar448. Assim, a explicação que eles
dão para escapar da conclusão inevitável de que não possuímos uma alma imortal
Mas por que eles precisam atropelar o texto grego induzindo os leitores a
acreditar em uma distinção que vai exatamente na direção contrária do que o grego
não somos inerentemente imortais, uma vez que temos um corpo mortal. Como
vimos, esse argumento esbarra no fato de que o grego fala de possuir e não de ser,
e, na verdade, até mesmo as versões em inglês usam os verbos para possuir, e não
o to be, o que nos leva a questionar até que ponto eles acham que os leitores são
estúpidos.
Paulo neste texto e salvar a doutrina da imortalidade da alma. Uma bem comum é
alegar que Paulo estava dizendo que Deus é a única fonte de imortalidade, pelo fato
de que nós supostamente possuímos uma imortalidade dada por Ele, e não algo
447
#2192 da Concordância de Strong.
448
#2076 da Concordância de Strong.
814
O estado intermediário no Novo Testamento 815
que outorgamos a nós mesmos. O problema com esse argumento é que ele é mais
uma trapaça que tenta distorcer aquilo que efetivamente foi dito: Paulo não falou
nada sobre Deus ser a única fonte de imortalidade, mas sim que Deus é o único que
possui a imortalidade.
O fato dos imortalistas precisarem substituir uma coisa pela outra só prova
que o texto como consta é de fato irrefutável, o que exige da parte deles que
provar o que quisesse sobre qualquer assunto, e assim anular qualquer ensino
bíblico por mais óbvio e evidente que seja. Até mesmo doutrinas básicas como a
sua tradução da Bíblia. Essa manobra digna de seitas não refuta nada, apenas
mostra até que ponto eles estão decididos a ir em frente quando se trata de
endossar a manipulação. Para ele, Paulo não falava sobre possuir a imortalidade,
mas sobre possuir a eternidade. Em suas palavras: “A imortalidade de que trata 1Tm
ser traduzida por eternidade, isto é, Deus não teve começo nem terá fim”449.
449
COSTA, Airton Evangelista. Reflexões sobre a imortalidade da alma. Disponível em:
<http://solascriptura-tt.org/AntropologiaEHamartologia/ReflexoesImortalidadeAlma-AECosta.htm>.
815
O estado intermediário no Novo Testamento 816
dita, por que ele usou athanasia (imortalidade), e não aion, a palavra própria para
eternidade? Isso ele não explica. É um mistério que só Deus sabe. É importante
que não morre, ou seja, que não tem fim, independentemente se teve um começo
ou não. É por isso que o pastor Airton precisa mudar a palavra usada no texto, como
se Paulo tivesse escolhido a palavra errada por engano e ele se desse ao direito de
porque eles sabem perfeitamente bem que o texto como consta é imbatível contra
o que lhes resta é uma objeção ingênua: se realmente apenas Deus possui a
futura de Satanás e seus anjos (sobre isso, confira o capítulo 17). Nenhum anjo
possui em si um elemento imortal que lhes garanta uma existência sem fim, eles
apenas não morrem enquanto Deus permite que permaneçam vivos (o que está
possuíam em si nada que fosse imortal, mas que não morreriam se se mantivessem
demônios, que também são anjos, serão aniquilados após o juízo). Por isso eles não
816
O estado intermediário no Novo Testamento 817
estava errado em dizer que só Deus possui a imortalidade, o que exclui qualquer
anjos.
ajustar sua falsa doutrina com os textos bíblicos. Basta apenas assumir que Paulo
queria dizer exatamente o que ele disse: que Deus é o único que possui a
imortalidade, porque nós apenas almejamos obtê-la, razão por que ela tem que ser
buscada (Rm 2:7). Deus é o único que tem a imortalidade como posse presente, ao
passo em que os justos terão sua natureza mortal transformada um uma imortal
Essa é a única visão que faz jus aos textos bíblicos e que traduz com
817
O estado intermediário no Novo Testamento 818
• O sono da morte
como “dormindo”, frente a literalmente zero textos onde são descritos como
“acordados”. Jó diz que “o homem se deita, e não se levanta; até que não haja mais
céus, não acordará nem despertará de seu sono” (Jó 14:12). Deus disse a Daniel que
“você descansará, e então, no final dos dias, você se levantará para receber a
herança que lhe cabe” (Dn 12:13). O salmista pede que “ilumina-me os olhos, para
que eu não durma o sono da morte” (Sl 13:3), e sublinha que “os homens valorosos
jazem saqueados, dormem o sono final; nenhum dos guerreiros foi capaz de erguer
companhia dos mortos” (Pv 21:16), Pedro disse que os nossos antepassados
“dormem” (2Pe 3:4), Paulo disse que em decorrência do pecado haviam na igreja
“muitos fracos e doentes, e vários já dormiram” (1Co 11:30), que Jesus é “as primícias
dentre aqueles que dormiram” (1Co 15:20) e que na ressurreição Jesus trará de volta
“aqueles que nele dormiram” (1Ts 4:14). Jesus também tratou a morte como um
sono quando disse que “nosso amigo Lázaro dorme, mas vou para despertá-lo do
seu sono” (Jo 11:11). Como os discípulos pensavam que Jesus falava do sono
comum, ele os corrigiu e “lhes disse claramente: Lázaro morreu” (v. 14).
no AT para quem morreu (1Rs 2:10; 2Rs 20:21; 2Cr 16:13), no sentido de que foi
818
O estado intermediário no Novo Testamento 819
“dormir” no pó da terra, o mesmo lugar onde seus antepassados jazem sem vida.
Por isso Daniel diz que no dia da ressurreição “multidões que dormem no pó da
terra acordarão” (Dn 12:2), o que prova que o “sono” não se dá nem no céu, nem no
um eufemismo para o estado atual dos mortos no pó da terra, não uma referência
Por que a metáfora do sono? – Isso explica por que os escritores bíblicos
recorreram tantas vezes à metáfora do sono para retratar o estado dos mortos, em
lugar de tantas outras analogias que eles poderiam ter utilizado e que descreveriam
bem melhor o estado de um ser ativo. Isso porque quem dorme um sono profundo
não tem consciência do que se passa à sua volta, não tem noção de tempo ou
espaço, é incapaz de racionalizar o que quer que seja e de realizar qualquer tipo de
visivelmente falando parece estar “dormindo” na sepultura e que também não tem
Assim, apesar do sono não ser literal, a metáfora não é à toa e muito menos
inadequada, mas justifica sua razão de ser por expressar com maestria uma
fosse verdade que após a morte a melhor parte do homem, a saber, sua alma,
819
O estado intermediário no Novo Testamento 820
continua desperta e viva; e com uma liberdade de ação maior do que ela usufruíra
É neste sentido que Jesus diz que a filha de Jairo “não está morta, mas dorme”
(Mt 9:24). Ele não estava negando o conceito da morte como um sono, que ele
próprio havia postulado a respeito de Lázaro (Jo 11:11), mas olhando para além da
morte, com vistas à ressurreição. Ele sabia que a menina não permaneceria morta
por muito tempo, porque ele a ressuscitaria em poucos instantes. Por isso, sua
condição era como a de alguém que dorme e logo acorda, onde o “despertar” alude
à ressurreição. É como se ele estivesse dizendo: “Não olhe para a garota como uma
450
LAYTON, Henry. A Search After Souls: or, the immortality of a humane soul, theologically,
philosophically, and rationally considered, with the opinions of ancient and modern authors. By a lover of
truth. S/editora, 1706. v. 1, p. 185.
451
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 137.
820
O estado intermediário no Novo Testamento 821
menina morta, mas como alguém que descansa e logo despertará”. Mas a multidão,
que nunca entendia as metáforas de Jesus, riu e zombou dele (Mt 9:24).
que eles aludissem muito mais à alma fora do corpo do que ao corpo que voltou ao
literalmente nenhuma deles “acordados”. Que tipo de gente que sabe que a
sem noção que não é de se surpreender que hoje em dia pregador nenhum use
mais a linguagem do “dormir” para os mortos. Em vez disso, falam apenas “dos que
estão com o Senhor”, “dos que foram pro céu”, “dos que habitam com os anjos” e
coisas do gênero.
Pense nisso: quantas vezes você ouviu seu pastor, padre, professor de
teologia ou catequista se referir aos mortos como “os que dormem”? Agora,
quantas vezes você já os ouviu dizer que os mortos estão na presença de Deus, que
estão no Paraíso ou até mesmo que devemos rezar a eles e pedir sua intercessão?
Não preciso dizer mais nada. A razão por que a metáfora do sono caiu em desuso
821
O estado intermediário no Novo Testamento 822
em nossos dias é simplesmente porque ela não é mais aplicável à nova teologia que
corrompeu todo o conceito bíblico sobre a vida após a morte. Nessa nova teologia,
já não é mais razoável e nem lógico dizer que os mortos “dormem”, quando se sabe
acentuando que o que dorme é só o corpo, e não a alma. Mais uma vez, não é isso
dormia (Mt 27:52), mas isso não significa que a alma estivesse desperta, da mesma
forma que o texto que diz que “na prosperidade repousará a sua alma” (Sl 25:13)
não exclui o repouso do corpo. Em todos os outros 70 textos, os autores não fizeram
a menor questão de discriminar corpo ou alma, pela simples razão de ser algo
totalmente desnecessário, já que não existe alma separada do corpo. Não é uma
alma fora do corpo ou um corpo sem alma que dorme, mas indivíduos, concebidos
em sua totalidade.
Uma vez que os hebreus não concebiam corpo e alma como entes
dissociados, tal distinção era pouco ou nada relevante. É por isso que quase todas
as vezes que o eufemismo do sono é usado na Bíblia, ele não é vinculado nem ao
corpo e nem à alma, mas diretamente ao indivíduo falecido – indivíduo este que,
para os imortalistas, consiste essencialmente numa alma imortal que não “dorme”
corpo, o mínimo que deveríamos esperar seria uma metáfora própria para a alma,
que na teologia imortalista é muito mais importante do que o corpo. Mas isso nunca
822
O estado intermediário no Novo Testamento 823
Bíblia nunca usar uma metáfora que indique qualquer estado ativo para os mortos
consciente após a morte, enquanto usavam uma metáfora que não podia ser mais
ainda está por vir, não faz o menor sentido que bilhões de criaturas estejam
agonizando um suplício eterno sem que nem mesmo tenham passado pelo juízo.
após serem julgados por um juiz que determina a sua pena, não esperaríamos
individual” que antecede o “juízo geral”. Ou seja, que cada pessoa é julgada duas
inferno, e outra após a ressurreição, que acontece porque sim. É daí que vem a ideia
823
O estado intermediário no Novo Testamento 824
definitivo (a despeito da Bíblia jamais usar o termo “juízo final”, já que o juízo é um
só).
sem nenhum amparo bíblico para resolver mais uma contradição insolúvel, à
Trento (1545-1563):
Sabemos ao mesmo tempo qual será o nosso destino final. No fim dos
O problema com a tese dos dois juízos não é pequeno. Em primeiro lugar,
por que Deus teria que julgar o mesmo indivíduo duas vezes, se o seu destino já
452
Denzinger, #983.
824
O estado intermediário no Novo Testamento 825
estava selado desde a primeira vez em que foi julgado? Se o ímpio já está no inferno
alegar que aqui na terra há mais de uma instância de juízo, de modo que um mesmo
acusado pode passar por dois ou até mais julgamentos. Isso é verdade, mas só
acontece porque juízes humanos são falhos, e por isso suas decisões muitas vezes
precisam ser ratificadas por outros juízes de instâncias superiores (e nunca pelo
mesmo juiz).
Uma vez que quem julga é Deus, cujo juízo é necessariamente perfeito e que
não possui ninguém superior para julgar suas decisões, inferir mais de um juízo é
simplesmente ridículo. Seria como dizer que Deus precisa rever as decisões dEle
mesmo, como se o primeiro juízo fosse imperfeito e precisasse ser confirmado por
um segundo. Isso é não apenas antibíblico, mas uma afronta ao Criador. Se Deus já
segundo juízo não seria mais que uma peça teatral inteiramente desprovida de
todos que estavam no céu continuariam no céu. Seria o julgamento mais inútil de
todos os tempos.
com o “final”. Em vez disso, sempre que alguém se refere ao juízo, usa o artigo
definido e o singular (Mt 11:22, 24, 12:36, 41, 42; Lc 10:14, 11:31-32; At 24:25; Hb 6:2,
9:27; 2Pe 2:4,9, 3:7; 1Jo 4:17), indicando assim que não há mais que um único juízo
825
O estado intermediário no Novo Testamento 826
Tome como exemplo o texto em que Jesus diz que “no dia do juízo, os
homens haverão de dar conta de toda palavra inútil que tiverem falado” (Mt 12:36).
Ele poderia facilmente ter dito “nos dias dos juízos”, caso pensasse haver mais de
um, mas diz no dia do juízo, porque sabia que só teremos que prestar contas por
Paulo, na presença de Félix, “se pôs a discorrer acerca da justiça, do domínio próprio
e do juízo vindouro” (At 24:25). Por que Paulo não falou dos juízos vindouros para
Félix, mas somente de um? Desse jeito, Félix poderia até pensar que há só um
mesmo!
Note que o autor diz «dos batismos», no plural, porque sabia que existem
dois batismos (o batismo nas águas e o batismo com o Espírito Santo). Contudo,
quando chega na parte do juízo, ele diz «do juízo», no singular, porque não estava
mais tarde. Para ele, havia apenas um juízo, o que é reforçado pela expressão aion
resultados são permanentes. Isso elimina qualquer chance de haver dois juízos,
826
O estado intermediário no Novo Testamento 827
Além disso, há muitos textos que claramente afirmam que os mortos não
foram julgados ainda, jogando na lata do lixo qualquer teoria de que eles já foram
que Pedro diz que os ímpios “terão que prestar contas àquele que está pronto para
julgar os vivos e os mortos” (1Pe 4:5). Se Deus está «pronto para julgar», é porque
não os julgou ainda. Alguém só se prepara para uma ação porque não a executou.
Tão simples quanto parece. Paulo disse a mesma coisa ao declarar que “Cristo Jesus
há de julgar os vivos e os mortos por sua manifestação e por seu Reino” (2Tm 4:1).
note que isso acontecerá «por sua manifestação e por seu Reino», ou seja, quando
Jesus voltar, não em um estado intermediário após a morte. Por fim, observe que
isso também inclui os mortos, e não só aqueles que estiverem vivos quando Jesus
é que há um único juízo para vivos e mortos, que se dá por ocasião da volta de Jesus,
e não que os mortos são julgados duas vezes e os vivos apenas uma.
foram julgados uma vez e serão julgados de novo, mas os vivos serão julgados
somente uma vez, quando Jesus voltar. Mas se os vivos são julgados apenas uma
vez, por que diabos os mortos precisariam ser julgados duas vezes? São necessários
dois juízos para uns, mas só um para outros? E se um já basta para alguns, por que
descrédito quando disse aos gregos do Areópago que Deus “estabeleceu um dia
827
O estado intermediário no Novo Testamento 828
em que há de julgar o mundo com justiça, por meio do homem que designou” (At
17:31). Em primeiro lugar, Paulo não diz que Deus estabeleceu “dias” de julgamento,
como se soubesse que cada pessoa é julgada mais de uma vez ou como se houvesse
diferença entre quem já morreu e quem continua vivo, mas que estabeleceu um dia
em que irá julgar o mundo todo. Como se isso não fosse suficientemente claro, esse
rejeitaram, que “no dia do juízo haverá menor rigor para Sodoma e Gomorra do que
para aquela cidade” (Mt 10:15). Se no dia do juízo «haverá» menor rigor para
ocasião do fogo divino que caiu sobre elas) não haviam sido julgados ainda. Em vez
cidades ainda não tomaram parte. Uma vez que Jesus não poderia estar falando de
pessoas ainda vivas, já que Sodoma e Gomorra não mais existiam, é evidente que
isso significa que os mortos não foram julgados ainda. Caso contrário, Jesus teria
dito que Sodoma e Gomorra foram julgadas com menos rigor do que aquelas
cidades seriam.
Ele também disse que “os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os
que fizeram o mal ressuscitarão para serem condenados” (Jo 5:29). Se os ímpios
ressuscitarão para serem condenados, é porque eles de fato não foram condenados
nenhum condenado é julgado de novo, mas cada réu é julgado pela primeira e
única vez, e assim condenado a cumprir a sua pena. Isso é reforçado pelas palavras
828
O estado intermediário no Novo Testamento 829
de Jesus, de que “há um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras;
Quando é que aquele que rejeita Jesus seria condenado? Quando sua alma
individual num estado intermediário? Não, mas no último dia. O «último dia» em
toda a Bíblia é identificado como o dia em que Jesus ressuscitará os mortos no fim
dos tempos, e jamais diz respeito ao dia da morte de cada um. Por isso Jesus diz
numerosas vezes que “eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6:39, 40, 44, 54). Assim,
está claro que os ímpios só são condenados no último dia, e este último dia é
justamente quando eles ressuscitarão para pagar pelos seus pecados. Mais uma
Isso explica por que Jesus disse que é só quando Ele voltar que os ímpios
quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos” (Mc 8:38). Alguém poderia
alegar que Jesus falava apenas da geração de ímpios que estivesse viva por ocasião
do Seu retorno, mas ele é taxativo em dizer «nesta geração». Se Jesus falava daquela
Alguém poderia alegar ainda que Jesus só disse tal coisa porque é no tal
precedente é apenas individual. Mas note que o texto diz especificamente que o
Filho do homem se envergonhará dele, ou seja, o próprio Senhor Jesus, não uma
multidão de almas. Para os imortalistas, é Deus quem julga os mortos nas duas
829
O estado intermediário no Novo Testamento 830
vezes, o que significa que, em tese, o Senhor já teria se envergonhado deles muito
antes da Sua volta. Isso mais uma vez implica que esses mortos não tinham passado
por qualquer condenação prévia, sendo apenas na volta de Jesus que aquilo se
É por isso que Jesus disse que “os homens de Nínive se levantarão no juízo
Jonas, e agora está aqui o que é maior do que Jonas” (Mt 12:41). A palavra traduzida
NT em alusão à ressurreição. É essa a palavra que consta no texto que diz que “o
Filho do homem há de ressuscitar (anistemi) dos mortos” (Mc 9:9), que “três dias
(anistemi), não são dados em casamento” (Mc 12:25) e que “tampouco irão se
convencer, ainda que ressuscite (anistemi) alguém dentre os mortos” (Lc 16:31).
Ela igualmente aparece no texto que diz que “Cristo haveria de sofrer e
ressuscitar (anistemi) dos mortos no terceiro dia” (Lc 24:46), que “eu o ressuscitarei
(anistemi) no último dia” (Jo 6:40), que “o seu irmão [Lázaro] há de ressuscitar
(anistemi)” (Jo 11:23), que “Deus ressuscitou (anistemi) Jesus” (At 2:32), que
“comemos e bebemos com ele depois que ressuscitou (anistemi) dos mortos” (At
10:41), que “Jesus morreu e ressuscitou (anistemi)” (1Ts 4:14), que “os mortos em
Cristo ressuscitarão (anistemi) primeiro” (1Ts 4:16) e em muitos outros textos que
ele não estava querendo dizer que suas almas estavam sentadas em algum
830
O estado intermediário no Novo Testamento 831
banquinho e então se colocariam de pé, mas que os homens de Nínive que estão
mortos ressuscitarão no dia do juízo. Isso não só confirma que o juízo só ocorre na
ressurreição, mas também que é apenas neste momento que aquela geração ímpia
da época de Jesus seria condenada. Se eles já tivessem sido julgados após a morte
“quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então,
se assentará no trono da sua glória” (Mt 25:31). Quando Jesus diz que então se
assentará no trono da glória, ele não quer dizer que não estaria assentado em um
trono celestial antes da segunda vinda, já que muitas vezes somos informados que
Jesus está assentado à destra de Deus Pai (Lc 22:69; Cl 3:1; Hb 10:12). O “assentar”
contexto de um julgamento, que é o tema dos versos que se seguem até o fim do
Mas se é só então que ele se assentará para julgar, isso exclui qualquer
na volta de Jesus que os mortos começam a ser julgados por seus atos, sejam bons
ou maus, o que está de acordo com o que Jesus disse no texto anteriormente citado,
831
O estado intermediário no Novo Testamento 832
Trento, que não tem nenhuma vergonha em dizer que «somos julgados
vem assim que a alma deixa o corpo na morte, para Jesus o justo só recebe sua
Mas por que o Concílio de Trento teve a audácia de se opor de peito aberto
que o justo é julgado imediatamente após a morte, mas tem que esperar milênios
até receber sua recompensa (mesmo estando no céu com tudo do bom e do
melhor). Assim, a única saída foi dizer que a recompensa antecede a ressurreição e
o “juízo final”, e cruzar os dedos para ninguém conhecer Lc 14:14 e todos os outros
“Embora em nada minha consciência me acuse, nem por isso justifico a mim
mesmo; o Senhor é quem me julga. Portanto, não julguem nada antes da
hora devida; esperem até que o Senhor venha. Ele trará à luz o que está
oculto nas trevas e manifestará as intenções dos corações. Nessa ocasião,
Paulo pede que os cristãos não julguem nada antes da hora, porque ele sabe
que existe o tempo designado por Deus onde Ele julgará todas as coisas. A grande
responder que se daria por ocasião da morte de cada um, quando Deus julgaria
832
O estado intermediário no Novo Testamento 833
cada ato seja para condenar ao inferno ou para abrir as portas do céu (quando não
Logo após dizer para não julgarem nada «antes da hora devida», ele complementa
com um “esperem até que o Senhor venha” (v. 5), porque sabia que é na volta de
«nessa ocasião» que “cada um receberá de Deus a sua aprovação” (v. 5). Se os salvos
do Senhor. Este é o mesmo caso de Onesíforo, que Paulo esperava que alcançasse
a misericórdia do Senhor “naquele dia” (2Tm 1:18), o dia do juízo na volta de Jesus.
“Se alguém constrói sobre esse alicerce, usando ouro, prata, pedras preciosas,
madeira, feno ou palha, sua obra será mostrada, porque o Dia a trará à luz;
pois será revelada pelo fogo, que provará a qualidade da obra de cada um.
alguém construiu se queimar, esse sofrerá prejuízo; contudo, será salvo como
alguém que escapa através do fogo. Vocês não sabem que são santuário de
Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês? Se alguém destruir o
santuário de Deus, Deus o destruirá; pois o santuário de Deus, que são vocês,
é sagrado” (1ª Coríntios 3:12-17)
833
O estado intermediário no Novo Testamento 834
Note que Paulo diz «o Dia», não “os dias”, como se estivesse falando dos tais
juízos individuais que cada um seria submetido após a morte. Esse dia é o mesmo
dia do juízo na volta de Jesus que ele alude no capítulo seguinte, no texto que
acabamos de conferir (1Co 4:4-5). Mas observe o que ele diz na sequência, quando
destaca que é neste momento que o justo “receberá recompensa” (v. 14) e “será
salvo” (v. 15), e que o ímpio será “destruído” (v. 17). Isso não somente destrói a tese
lançado no inferno e isso acontece assim que a alma deixa o corpo, por que Paulo
diz que Deus o destruirá no juízo que acontece após a ressurreição? Neste caso, o
ímpio já estaria no inferno, e, portanto, já teria sido “destruído”. Como não faz
nenhum sentido destruir o que já foi destruído, é evidente que essa destruição em
nada tem a ver com o inferno, mas com o aniquilamento que se segue à ressurreição
e ao juízo.
contraste com a noção de que os salvos já entraram na vida eterna, que os justos já
834
O estado intermediário no Novo Testamento 835
diz que “pela mesma palavra os céus e a terra que agora existem estão reservados
para o fogo, guardados para o dia do juízo e para a destruição dos ímpios” (2Pe 3:7).
Esse «dia do juízo», como é óbvio, não se trata do dia da morte de cada um,
porque Pedro diz que neste dia os céus e a terra que agora existem serão destruídos
pelo fogo, o que evidentemente ainda não aconteceu. Mas note que Pedro
acrescenta que neste dia os ímpios serão destruídos, o que mais uma vez nos leva
a questionar que tipo de destruição seria essa. Se a resposta for uma “destruição
espiritual” no inferno, Pedro deveria saber que essas pessoas já estariam no inferno
tópicos à frente) é um golpe fatal na doutrina dos dois juízos, porque, a despeito da
que o juízo é um evento futuro. Isso é facilmente perceptível tanto pela leitura do
os injustos para o dia do juízo, para serem castigados”), como até mesmo na
reservar para o dia do juízo os injustos, que já estão sendo castigados”). Em ambas
as leituras, fica claro que o juízo é um evento futuro, e que os ímpios em questão
não passaram por qualquer juízo prévio. Tanto para os vivos como para os mortos,
835
O estado intermediário no Novo Testamento 836
um juízo particular que o antecede, como se cada um fosse julgado duas vezes.
Note que o juízo dos salvos é mencionado em conjunto com a ressurreição, porque
“Vi tronos em que se assentaram aqueles a quem havia sido dada autoridade
para julgar. Vi as almas dos que foram decapitados por causa do testemunho
de Jesus e da palavra de Deus. Eles não tinham adorado a besta nem a sua
imagem, e não tinham recebido a sua marca na testa nem nas mãos. Eles
ressuscitaram e reinaram com Cristo durante mil anos. O restante dos mortos
não voltou a viver até se completarem os mil anos. Esta é a primeira
terra e o céu fugiram da sua presença, e não se encontrou lugar para eles. Vi
abertos. Outro livro foi aberto, o livro da vida. Os mortos foram julgados de
acordo com o que tinham feito, segundo o que estava registrado nos livros. O
mar entregou os mortos que nele havia, e a morte e o Hades entregaram os
mortos que neles havia; e cada um foi julgado de acordo com o que tinha
feito” (Apocalipse 20:11-13)
836
O estado intermediário no Novo Testamento 837
julgados pelas suas obras. Não existe na Bíblia um único texto de julgamento pós-
pessoa mais de uma vez, como se a decisão anterior pudesse ser revogada ou como
sobre o primeiro, que decidiria o destino eterno do réu julgado, e não sobre o
entanto, como nós vimos, todas as vezes que a Bíblia fala do juízo, mesmo quando
se refere aos que já morreram, o situa sempre como um evento futuro, que se segue
final fosse apenas uma extensão do juízo que realmente importa – ou seja, do que
Imagine o “juízo final” de Caim, que teria sido julgado logo após a morte e
sentença de que continuaria queimando do mesmo jeito que já estava. Se você está
surpreso por haver gente com mais de dois neurônios que acredita nesse tipo de
coisa, não se sinta sozinho. Quando a lógica se choca com o dogma, eles sacrificam
837
O estado intermediário no Novo Testamento 838
a lógica para ficar com o dogma, mesmo que o dogma em questão seja uma
Quem certamente não fazia ideia dessa gambiarra teológica foi João, que
escreveu que “nisto é aperfeiçoado em nós o amor, para que no dia do juízo
tenhamos confiança; porque, qual ele é, somos também nós neste mundo” (1Jo
4:17). Que «dia do juízo» no singular seria esse? Certamente não o fantasioso “juízo
mesmo dia que o próprio João registra em seu evangelho: “Há um juiz para quem
condenará no último dia” (Jo 12:48). Portanto, João falava do juízo no último dia –
com todo o arsenal de textos bíblicos que falam do “dia do juízo” sempre como um
Mas se até esse dia chegar os mortos já tivessem sido julgados uma vez e
lançados no céu ou no inferno, que sentido haveria em João dizer que se estamos
encontra no Paraíso? Neste caso, João diria que podemos ter confiança no dia da
nossa morte, quando o nosso destino fosse definitivamente selado, e não no juízo
vindouro. Se no juízo final a nossa sorte já estivesse definida entre os salvos, nossa
838
O estado intermediário no Novo Testamento 839
ressurreição, mas também no que diz respeito à multidão de textos que classificam
destino de cada um é definido e selado para sempre, não uma mera exibição teatral
no NT:
para o corpo. Paulo fala da ressurreição não “do corpo”, mas “dos
839
O estado intermediário no Novo Testamento 840
NT é muito grande.453
Dito isso tudo, podemos concluir seguramente que (1) só existe um juízo
para cada indivíduo, e (2) esse juízo ocorre após a ressurreição. Mas de que forma
hora? Não só por uma questão de lógica – Deus não precisaria julgar ninguém duas
vezes e não condenaria ninguém que não tivesse sido julgado antes –, mas também
por uma questão bíblica, relacionada justamente ao texto que o Concílio de Trento
para o “juízo final”. Trata-se de Hb 9:27, que diz que “o homem está destinado a
O grego não diz somente que “depois [da morte] vem o juízo”, mas usa a
conjunção de, traduzida como «então»454, o que traz a ideia de algo instantâneo.
momento depois da morte, mas que o evento que sucede imediatamente a morte
é o juízo. E se o juízo é o evento que se passa logo após a morte, então ele só pode
453
AUTHAUS, Paul. The Theology of Martin Luther. Philadelphia: Fortress Press, 1966, p. 413-414.
454
#1161 do léxico da Concordância de Strong.
840
O estado intermediário no Novo Testamento 841
Isso porque não faria o menor sentido que o autor de Hebreus dissesse que
de anos mais tarde. Neste caso, ele teria dito que após a morte vem o céu ou o
inferno, e só muito depois o juízo. Assim, concluem eles, deve existir um juízo assim
que a alma deixa o corpo, e outro depois que Jesus voltar. Mas, como vimos neste
ocorre depois da morte, não porque ele ocorra antes da ressurreição, mas
Para quem morreu não há evento, não há passagem de tempo, não há sensação
ressurreição. Preste atenção: nada. “Nada” é diferente de “alguma coisa”; quer dizer
quem morreu, é evidente que faz todo o sentido do mundo dizer que após a morte
vem o juízo, já que o juízo é o primeiro evento com o qual ele irá se deparar assim
841
O estado intermediário no Novo Testamento 842
“Da mesma forma, como o homem está destinado a morrer uma só vez e
depois disso enfrentar o juízo, assim também Cristo foi oferecido em sacrifício
uma única vez, para tirar os pecados de muitos; e aparecerá segunda vez,
não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que o aguardam”
(Hebreus 9:27-28)
seguinte: ele diz que o homem morre uma só vez e depois enfrenta o juízo, e assim
também Cristo morreu uma só vez e aparecerá uma segunda vez. O «assim
também» conecta as duas ideias: Cristo morreu uma só vez assim como os homens
morrem uma só vez, e voltará uma segunda vez assim como os mortos são julgados
depois da morte. Percebemos uma conexão entre as primeiras duas ideias (Cristo
morrer uma vez / os homens morrerem uma vez), mas que conexão haveria entre
as outras duas?
entendemos que este juízo é justamente o mesmo que acontece na volta de Jesus,
tudo faz um perfeito sentido. O autor traça uma analogia entre o juízo pós-morte e
Isso é reforçado pelo final do verso, que conclui o pensamento dizendo que Cristo
“aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que
842
O estado intermediário no Novo Testamento 843
morreram uma vez e agora esperam o juízo. E eles aguardam o que? O próprio texto
responde: «para trazer salvação». Mas os que creem já não estão salvos? Estão, mas
no sentido de garantia, não de posse (exatamente como vimos neste capítulo com
sentido de que ele recebeu a garantia de ser salvo, e por isso pode descansar
tranquilo, seguro de sua própria salvação. Mas ele só será efetivamente salvo
quando chegar lá, isto é, quando adentrar os portões da glória. Por isso o autor de
Hebreus diz que esses que já morreram “o aguardam” para a salvação, e não que
Jesus «aparecer uma segunda vez», ou seja, na segunda vinda de Cristo. Perceba
aguardam a entrada na salvação, que acontecerá assim que forem julgados, o que
serão assim que Jesus voltar. Há uma harmonia perfeita entre todos os pontos, e é
justamente isso que faz o pensamento do autor tão coeso e elegante. Infelizmente,
455
Antes que alguém diga que “aguardar” aqui se refere a um “aguardar consciente”, considere o exemplo
da própria criação que também “aguarda”: “A natureza criada aguarda, com grande expectativa, que os
filhos de Deus sejam revelados. Pois ela foi submetida à futilidade, não pela sua própria escolha, mas por
causa da vontade daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria natureza criada será libertada
da escravidão da decadência em que se encontra para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8:19-
21). A despeito da própria natureza aguardar a nossa revelação, nem por isso alguém em sã consciência
diria que árvores, plantas e animais estão deliberadamente “aguardando” como alguém consciente do
que está por vir. O “aguardar”, aqui e em Hb 9:28, diz respeito à condição de alguém cuja sorte está
lançada para o futuro, que lhe reserva coisas melhores,
843 e não a uma expectativa pessoal. Usamos esse
tipo de expressão cotidianamente, até hoje. Uma matéria recente diz que “Marte aguarda três missões
nesse mês de fevereiro”, a despeito do planeta Marte ser um agente passivo que recebe a ação –
exatamente como os mortos que aguardam a volta de Jesus e a natureza que aguarda sua redenção.
O estado intermediário no Novo Testamento 844
tantas vezes ressaltado na Bíblia, que acontece quando Jesus voltar e não quando
uma alma fantasmagórica abandona o corpo. Como isso anula totalmente a noção
de que os justos já estão no céu e os ímpios já estão no inferno (já que é o juízo e
um jeito de conciliar as duas ideias, e foi assim que surgiu a gambiarra teológica
dos “dois juízos”, que só existe na imaginação de quem precisa torcer as Escrituras
deixou de existir, o que naturalmente faz do juízo na volta de Jesus o evento que se
imortalistas e mortalistas encaram os eventos após a morte nas duas tabelas abaixo:
844
O estado intermediário no Novo Testamento 845
No Ocorrência Quando se dá
No Ocorrência Quando se dá
Observe que há para os imortalistas pelo menos dois eventos entre a morte
quem morre, mas nenhum para os mortalistas, já que a inexistência não é uma fase
da vida para ser considerada uma etapa da vida pós-morte (por essa razão foi
incluído na tabela para fins meramente ilustrativos, com numeração “0”). É neste
sentido que os mortalistas dizem que não existe estado intermediário, não porque
tempo.
passam em toda a Bíblia – ou seja, o juízo da volta de Jesus – e esse juízo é o primeiro
845
O estado intermediário no Novo Testamento 846
evento que quem morreu experimenta após a morte, a conclusão lógica que se
segue é que não há nada entre a morte e o juízo da volta de Jesus – nada além da
e até entre os vivos há diferença nas sensações. Quando você acorda de uma noite
de sono, não parece que já passou tanto tempo desde que você colocou a cabeça
no travesseiro, a não ser que você tenha tido uma noite de insônia. Alguém que
metaforicamente um sono. A alma não “dorme” literalmente, mas morre, o que faz
com que nem mesmo a ligeira sensação de tempo que temos enquanto dormimos
seja aplicável aos mortos. Assim, a ressurreição para o juízo é um evento que
tempo se passe entre aqueles que permaneceram vivos. Quem compreendia isso
muito bem era Lutero, que disse que “repentinamente ressuscitaremos no último
dia, sem conseguir compreender como morremos e como passamos pela morte”456.
escreve:
456
WOLF, Manfred. Mais uma pergunta, Dr. Lutero...: entrevista com o reformador. São Leopoldo: Sinodal,
2011, p. 92.
846
O estado intermediário no Novo Testamento 847
E ainda:
Para quem está vivo no mundo hoje, pode parecer que esse dia esteja
num futuro remoto. Mas para quem deixa o mundo hoje, é como se
primeiro. (...) Por isso Jesus disse que os amigos que granjearmos aqui
457
FERNANDES, Hermes Carvalho. Afinal, para onde vamos ao morrer? Parte 1. Disponível em:
<http://www.hermesfernandes.com/2009/12/afinal-pra-onde-vamos-ao-morrer-parte-1.html>. Acesso
em: 16/08/2013.
847
O estado intermediário no Novo Testamento 848
imortalidade da alma: o “partir e estar com Cristo” (Fp 1:23), que segue exatamente
a mesma lógica do “morrer uma vez e depois enfrentar o juízo” (Hb 9:27). Mas antes
de examinarmos este texto, vejamos o que o NT tem a nos dizer sobre quando
458
FERNANDES, Hermes Carvalho. Afinal, para onde vamos ao morrer? Parte 2. Disponível em:
<http://www.hermesfernandes.com/2009/12/pra-onde-vamos-ao-morrer-parte-2.html>. Acesso em:
16/08/2013.
848
O estado intermediário no Novo Testamento 849
Só que não.
com a mesma clareza. Um texto esquecido por muitos, que vai exatamente nessa
“Quando o Filho do homem vier em sua glória, com todos os anjos, assentar-
se-á em seu trono na glória celestial. Todas as nações serão reunidas diante
dele, e ele separará umas das outras como o pastor separa as ovelhas dos
Recebam como herança o Reino que lhes foi preparado desde a criação do
mundo’” (Mateus 25:31-34)
glória – ou seja, nada a menos que o texto feito para responder diretamente ao
Reino, e ninguém recebe algo que já tem. Mas quando é que eles o recebem? O
verso 31 responde a isso: quando o Filho do homem vier em sua glória. Em outras
4:14-17). Eu poderia terminar o livro aqui, que nada a mais seria necessário dizer.
849
O estado intermediário no Novo Testamento 850
1a) esp. receber uma parte de uma herança, receber como herança, obter pelo
direito de herança;
2) receber a porção designada, receber uma porção loteada, receber como próprio
mundo). Isso nunca teria sido dito se os salvos já estivessem ali, pois seria o mesmo
que dizer para eles obterem algo que já obtiveram, ou receber uma porção que já
haviam recebido. Neste caso, Jesus não diria para receber o Reino, mas para
continuar no Reino.
dessa maneira, uma vez que ninguém diz para alguém vir e possuir algo que já tem.
entrarem em uma casa onde eles já estão, ou alguém que dissesse para um herdeiro
receber a herança que ele já tinha recebido. Isso estaria mais para uma conversa de
850
O estado intermediário no Novo Testamento 851
Ademais, Jesus não apenas diz para eles receberem o Reino como herança
naquele momento, mas também que o Reino estava preparado para eles desde a
fundação do mundo. Isso reforça o fato de que eles não estavam no Reino ainda,
dado que o Reino estava preparado para eles desde a fundação do mundo até
aquele momento, e ninguém prepara algo quando o hóspede já está ali. A palavra
tudo pronto»459. Ela é «originária do costume oriental de enviar antes dos reis em
Como é evidente, diz respeito a algo que as pessoas fazem antes de receber
alguém, não algo que façam na presença do convidado. Da mesma forma que
ninguém faz os preparativos de uma festa enquanto a festa está rolando, ninguém
teologia deles de qualquer jeito, na qual a grande maioria dos que recebem o Reino
Veja como tudo faz mais sentido quando aceitamos a verdade bíblica de que
só estaremos com o Senhor após a ressurreição: Jesus nos ressuscita na Sua volta
gloriosa, nos leva para a presença de Deus e nos diz para recebermos o Reino
prometido, o qual ele preparou para nós. Então, e só então, os salvos entram no
Paraíso, a herança obtida por meio da fé. Essa sequência lógica e coerente dos
459
#2090 da Concordância de Strong.
460
ibid.
851
O estado intermediário no Novo Testamento 852
Pois vocês morreram, e agora a sua vida está escondida com Cristo em Deus.
Quando Cristo, que é a sua vida, for manifestado, então vocês também serão
é quando a nossa alma sai do corpo e vai pro céu, onde esperará por muito tempo
até se religar ao corpo sabe-se lá por que. Mas Paulo responde à questão de outra
maneira, que é quando Cristo for manifestado – ou seja, na Sua volta gloriosa, que
não por acaso é quando os mortos ressuscitarão (1Co 15:22-23; 1Ts 4:14-17).
dos autores do AT em relação a quando veriam ao Senhor era que o veriam depois
alguma coisa quanto a isso? Temos essa resposta no texto em que João escreve:
852
O estado intermediário no Novo Testamento 853
Quando é que veremos a Deus como Ele é? João responde: quando Ele se
mesma visão que os do AT, com a diferença de que eles sabiam precisamente em
que ocasião os mortos ressuscitariam, que é na volta de Jesus. Como comenta Joe
Crews,
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Conforme a sua
grande misericórdia, ele nos regenerou para uma esperança viva, por meio
até chegar a salvação prestes a ser revelada no último tempo. Nisso vocês
461
CREWS, Joe. O que a Bíblia diz sobre estar ausente do corpo. Disponível em:
<http://setimodia.wordpress.com/2008/12/16/livreto-o-que-a-biblia-diz-sobre-estar-ausente-do-
corpo>. Acesso em: 19/08/2013.
853
O estado intermediário no Novo Testamento 854
exultam, ainda que agora, por um pouco de tempo, devam ser entristecidos
por todo tipo de provação. Assim acontece para que fique comprovado que a
fé que vocês têm, muito mais valiosa do que o ouro que perece, mesmo que
refinado pelo fogo, é genuína e resultará em louvor, glória e honra, quando
que jamais poderá perecer», a qual está «guardada nos céus». A pergunta é: quando
responderia a essa questão de forma simples: logo após a morte, quando a alma se
contexto aponta na direção contrária. Primeiro ele diz que essa salvação seria
revelada «no último tempo», não algo iminente que ocorreria assim que cada um
Alguém poderia objetar alegando que Pedro só disse isso porque esperava
que ele e os cristãos aos quais escrevia permaneceriam vivos até a volta de Jesus.
Mas o próprio Pedro reconheceu que a volta de Jesus poderia ainda levar milênios
(2Pe 3:3-8), e ele mesmo já estava velho e sabia que morreria dentro de pouco
tempo, “porque sei que em breve deixarei este tabernáculo, como o nosso Senhor
Jesus já me revelou” (2Pe 1:14). Concorda com isso o fato dele dizer que essa
salvação estava “a ser revelada no último tempo” (v. 5), e não em seus próprios dias.
Assim, Pedro não disse que eles receberiam a herança na volta de Jesus por
achar que Jesus voltaria enquanto todos estivessem vivos, mas porque sabia que
era na volta de Jesus que eles ressuscitariam para tomar posse dessa herança. É só
854
O estado intermediário no Novo Testamento 855
então que eles exultariam “em louvor, glória e honra” (v. 7), não depois da morte,
os autores do NT não se referiam apenas aos vivos quando falavam sobre entrar no
Reino somente após a ressurreição é o capítulo dos “heróis da fé”, de Hebreus 11,
que não poderia apresentar isso de forma mais clara e contundente. Após
“Todos estes, mesmo tendo obtido bom testemunho por meio da fé, não
obtiveram a concretização da promessa, porque Deus tinha previsto algo
melhor para nós, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados”
(Hebreus 11:39-40)
concretização da promessa, e não a alcançarão sem nós. Que promessa era essa? A
mais tarde receberia como herança, embora não soubesse para onde estava
855
O estado intermediário no Novo Testamento 856
Canaã, mais à promessa maior que consistia na «cidade que tem alicerces, cujo
arquiteto e edificador é Deus» e não os homens. Era dessa promessa que Isaque e
da fé, mesmo os que viveram antes de Abraão ou os que viveram depois dos
israelitas terem tomado posse de Canaã. Os versos que deixam ainda mais claro que
ele não se referia a uma promessa terrena e que os heróis da fé ainda não a
superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser
chamado o seu Deus, porque lhes preparou uma cidade” (Hebreus 11:13-16)
Qual é essa promessa que eles não obtiveram (v. 13)? A resposta está na cara:
a pátria celestial (v. 16). O autor de Hebreus deixa claro que eles não estão lá ainda,
porque além de dizer que eles não obtiveram a promessa, também afirma que eles
estão procurando uma pátria e que desejam a pátria celestial, e ninguém procura
eu jamais diria que estou “procurando” morar em Curitiba ou que tenho o “desejo”
de ir morar em Curitiba, o que seria conversa de doido. Eu diria isso apenas se não
morasse em Curitiba.
856
O estado intermediário no Novo Testamento 857
É curioso notar que quando Calvino se defronta com este texto em seu
“desejo” dos heróis da fé implicar que o mesmo ainda não havia se concretizado, e
uma pátria celestial, eles não a possuem ainda. Nós, pelo contrário,
argumentamos que se eles desejam, eles devem existir, pois não pode
próprio Paulo disse que “a natureza criada aguarda, com grande expectativa, que
os filhos de Deus sejam revelados” (Rm 8:19), e que “sabemos que toda a natureza
criada geme até agora, como em dores de parto” (Rm 8:22). Em várias partes da
Bíblia a natureza inanimada, como as árvores, não apenas “desejam” coisas, mas até
mesmo conversam em conhecidas prosopopeias (Jz 9:6-15; 2Rs 14:9; 1Cr 16:33; Sl
98:8). Essa linguagem é tão comum que a usamos no cotidiano mesmo sem se dar
conta.
forma alternativa de falar que a chuva faz bem para a terra e que em breve o jogo
462
Disponível em: <http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/joao-calvino/calvino-
contra-os-aniquilacionistas-psychopannychia.html>. Acesso em: 22/01/2022.
857
O estado intermediário no Novo Testamento 858
acontecerá no Maracanã. É neste mesmo sentido que dizemos que “os mortos
Da mesma forma, os heróis da fé “procuram” uma pátria porque eles estão mortos
sem pátria nenhuma, não porque eles estejam andando por aí à sua procura (e
Corrobora com essa conclusão o trecho final, que diz que Deus «lhes
preparou uma cidade». Se a cidade está preparada para eles, é porque eles não
estão lá ainda. O que tudo isso nos mostra é que os “heróis da fé” tinham uma
promessa, e essa promessa era a pátria celestial. Se eles já tivessem chegado lá, seria
a ocasião mais que perfeita para o autor de Hebreus ressaltar isso, já que era disso
que todo o contexto tratava. Mas em vez de aproveitar a ocasião para dizer que
Deus honrou Sua promessa e os recebeu no céu após a morte, ele diz exatamente
O último verso do capítulo explica a razão por que eles ainda não obtiveram
a concretização da promessa: “...para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados”
(v. 40). O que ele quer dizer com «sem nós»? Obviamente ele não estava falando
das pessoas que compunham aquela geração específica, da mesma forma que
Paulo não falava daquela geração específica quando disse que “nós, os vivos, os que
(1Ts 4:15). O “nós” se refere ao conjunto de pessoas que estiverem vivas por ocasião
Um exemplo é quando dizemos coisas como “um dia nós vamos colonizar
outros planetas”, embora saibamos que isso pode levar muito tempo pra acontecer,
858
O estado intermediário no Novo Testamento 859
falando da sua própria geração, isso implicaria que os heróis da fé já tinham obtido
especial dos versos 13 ao 16. É evidente que o sentido pretendido é que os mortos
em Cristo não entram na pátria celestial sem que nós, ou seja, os vivos, sejamos
arrebatados para junto deles, para assim entrarmos na glória todos num mesmo
capítulo seguinte).
que nós, os vivos, sejamos aperfeiçoados juntamente com eles. A palavra traduzida
vivos, não sem eles, como se entrassem na glória antes. É só na volta de Jesus que
igualmente tornados perfeitos mediante uma vida santa e uma mente sem pecado.
É por essa razão que imediatamente antes de dizer «para que eles, sem nós,
não fossem aperfeiçoados», ele diz que «Deus tinha previsto algo melhor para nós».
Por que “algo melhor para nós”? Porque se os mortos já estivessem no céu, eles já
463
#5048 da Concordância de Strong.
859
O estado intermediário no Novo Testamento 860
promessa e continuam sem alcançá-la até hoje, porque Deus em Sua soberania
tornados perfeitos não é mais que um embuste intelectual fabricado para sustentar
Paulo escreve:
“Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem,
para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança. Se
cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus trará,
mediante Jesus e juntamente com ele, aqueles que nele dormiram. Dizemos a
vocês, pela palavra do Senhor, que nós, os que estivermos vivos, os que
arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor
nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre”
(1ª Tessalonicenses 4:13-17)
860
O estado intermediário no Novo Testamento 861
dos seus entes falecidos, «para que não se entristeçam como os outros que não têm
esperança». Quem eram esses que “não têm esperança”? Provavelmente Paulo
aludia aos que seguiam a filosofia de Epicuro, para o qual a morte era a cessação
total da existência para todo o sempre. Para eles, portanto, não havia qualquer
esperança dos vivos reencontrarem um dia os que já partiram. Sabendo disso, Paulo
evita esse pensamento ao dizer que haverá um dia em que voltaremos a vê-los, não
quando uma massa amorfa se desligasse do corpo na morte, mas quando Jesus
Observe com atenção o trecho em que Paulo diz que “nós, os que estivermos
vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, certamente não precederemos os que
dormem” (v. 15). “Não preceder” significa não entrar antes em algum lugar. Por
exemplo, se eu disser que “os homens não precederão as mulheres na entrada para
antes. Obviamente, Paulo não estava falando sobre entrar no metrô, mas sobre “o
encontro com o Senhor” (v. 17). Mas por que dizer que os vivos não precederão os
os mortos já estão no céu, e Paulo apenas precisaria reforçar a ideia de que sua alma
precisasse dizer que os homens não entrarão antes – algo que não faz o menor
sentido. Evidentemente, para Paulo, tanto os vivos como os mortos esperam pelo
momento em que estarão com Deus, o que se dará na mesma ocasião, razão por
861
O estado intermediário no Novo Testamento 862
que não precederemos os que dormem (ou seja, eles não ficarão para trás, porque
a crença corrente e bem estabelecida de que os mortos já estão com Deus no céu.
Como vemos aqui e em 1ª Coríntios 15, era a doutrina da ressurreição que era posta
mortos para sempre. A doutrina sobre o estado da alma após a morte nunca esteve
em discussão, já que era ponto pacífico que não há vida entre a morte e a
464
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 136.
862
O estado intermediário no Novo Testamento 863
Alguém poderia ainda pensar que a razão por que não precederemos os que
dormem é porque os mortos já estão com Cristo há muito tempo, seja há anos,
séculos ou até milênios, dependendo de quando partiu desta vida. Mas isso
também é refutado pelo contexto, que em momento nenhum diz que esses mortos
já estão com o Senhor (o que seria bastante oportuno, dada a desesperança dos
estivermos vivos seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para
o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para
em outras palavras, ela explica por que os mortos não precederão os vivos para
estar na presença do Senhor. Este seria o momento perfeito para Paulo dizer que
isso acontece devido ao fato deles já estarem agora com Deus, esperando o
momento em que suas almas imortais se religarão aos seus corpos físicos para
encontrar os vivos arrebatados. No entanto, Paulo não diz nada disso. Tudo o que
ele diz é que “o próprio Senhor descerá do céu, e os mortos em Cristo ressuscitarão
primeiro” (v. 16), indicando que é através da ressurreição, e não de uma alma
863
O estado intermediário no Novo Testamento 864
vivos seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o encontro com
o Senhor nos ares” (v. 17). Observe que, apesar da ressurreição anteceder o
arrebatamento, eles ocorrem num mesmo e único evento, pois Paulo diz que
«seremos arrebatados juntamente com eles». Ele não diz que “seremos arrebatados
para junto deles”, mas juntamente com eles, o que é totalmente diferente. Se eu
disser que “vou ao cinema para junto dos meus amigos”, alguém pode entender
que os meus amigos já estão lá, e eu vou me encontrar com eles. Mas se eu disser
que “vou ao cinema juntamente com os meus amigos”, a única conclusão razoável
é que nós iremos juntos ao cinema, e não que eles vão ao cinema antes.
vivos que serão arrebatados por ocasião da volta de Jesus: os mortos também, e
com nosso corpo físico atual transformado em um piscar de olhos num corpo
Isso está de acordo com o Hb 11:39-40, onde lemos que os mortos não serão
aperfeiçoados antes dos vivos, uma vez que entraremos todos juntos na glória, em
antes dos vivos, em 1Ts 4:15 aprendemos que os vivos também não precedem os
que marca o encontro com Cristo, primeiro os mortos são ressuscitados, e então
864
O estado intermediário no Novo Testamento 865
eles e os vivos são juntamente arrebatados para habitar com o Senhor para sempre.
Não é sem razão que Paulo conclui a perícope com um “e assim estaremos com o
É assim, ou seja, desse jeito, dessa maneira, por este meio, que tanto os
mortos como os vivos encontrarão o Salvador a quem esperam. Não é por uma
alma imortal que deixa o corpo após a morte e nos antecede no céu por séculos, o
a razão pela qual sua tristeza era sem fundamento; é ela o antídoto à morte, o meio
pelo qual estaremos com o Senhor. Como Bacchiocchi assinala, “o ‘assim’ (houtos)
refere-se à maneira ou meio pelo qual os crentes estarão com Cristo, isto é, não por
vinda”465.
para sempre com o Senhor”, ficando implícito que não há outro meio
da ressurreição.466
465
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 171
466
ATKINSON, Basil F. C. Life and Immortality: an examination of the nature and meaning of life and death
as they are revealed in the Scriptures. London: Tauton, 1969, p. 67.
865
O estado intermediário no Novo Testamento 866
texto algo que indique que os mortos já estão com o Senhor encontram no verso
14 o pretexto pra isso, mais especificamente no trecho que diz que «Deus trará,
mediante Jesus e juntamente com ele, aqueles que nele dormiram». O “juntamente
com ele” seria a prova de que na volta de Jesus ele virá acompanhado de todos
mortos, o que, se fosse verdade, iria na contramão do verso 17, que diz que «os que
estivermos vivos seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o
Senhor nos ares, é porque eles não voltam com o Senhor nos ares. Isso está de
acordo com toda a linguagem bíblica, que sempre, em todas as ocasiões, sem uma
única exceção, descreve Jesus voltando acompanhado unicamente dos anjos, e não
abaixo:
➢ “Pois o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos, e então
866
O estado intermediário no Novo Testamento 867
➢ “E ele enviará os seus anjos com grande som de trombeta, e estes reunirão
os seus eleitos dos quatro ventos, de uma a outra extremidade dos céus”
(Mateus 24:31)
➢ “E dar alívio a vocês, que estão sendo atribulados, e a nós também. Isso
acontecerá quando o Senhor Jesus for revelado lá do céu, com os seus anjos
de citar a presença das almas dos salvos, e por isso mencionavam apenas e tão-
santos canonizados pelo papa, este texto é a “prova” de que Jesus volta
acompanhado por almas sem corpo, que já estavam com ele no céu. O problema é
que na Bíblia os anjos também são chamados de “santos”, como vemos nos textos
a seguir:
867
O estado intermediário no Novo Testamento 868
➢ “Também beberá do vinho do furor de Deus que foi derramado sem mistura
anjos, somente aos “santos”. Será uma incrível coincidência que nenhum dos textos
que menciona os anjos mencione os santos, e este único que menciona os santos
não mencione os anjos? É muito mais lógico entender que não há diferença alguma
entre o primeiro conjunto de textos e este, já que aqui a palavra “santos” se refere
justamente aos anjos citados nos outros textos. O que mata toda a charada é um
pequeno detalhe no texto que faz toda a diferença: Judas não estava dizendo aquilo
868
O estado intermediário no Novo Testamento 869
Assim, o que nos resta é ir ao livro de Enoque e descobrir quem são esses
“santos” que ele cita. E quando fazemos isso, constatamos que os anjos são citados
como “santos” nada a menos que dezenas de vezes no livro, de forma bastante
“Estes são os nomes dos anjos Sentinelas: Uriel, um dos santos anjos, o qual
preside sobre o clamor e o terror. Rafael, um dos santos anjos, o qual preside
sobre os espíritos dos homens. Raguel, um dos santos anjos, o qual inflige
punição ao mundo e às luminárias. Miguel, um dos santos anjos, o qual,
santos anjos, o qual preside sobre os espíritos dos filhos dos homens que
transgridem. Gabriel, um dos santos anjos, o qual preside sobre Ikisat, sobre o
anjos maus, que abandonaram o céu e pecaram com as “filhas dos homens”, com
os anjos bons, que são chamados de “santos” por terem se mantido fiéis a Deus. A
própria expressão «milhares de milhares», usada no trecho citado por Judas, volta
a aparecer outras vezes em relação aos anjos, como em 70:10, onde ele diz que «vi
aquela habitação». Portanto, Judas não estava citando algo que contradiz o
consenso bíblico de que Jesus volta acompanhado unicamente dos anjos, mas
citando um trecho que ele e os seus leitores sabiam retratar exatamente isso.
869
O estado intermediário no Novo Testamento 870
ideia de que os mortos voltam junto com Cristo, mas também todo o consenso
bíblico unânime. Como entender então o verso 14, que parece dizer que os mortos
virão à terra juntamente com Jesus? O problema está novamente na tradução, que
mais uma vez induz o leitor ao erro. Para começo de conversa, diferente do verso
17, o grego do verso 14 não traz a palavra “juntamente” (hama). Ela é acrescentada
pelos tradutores, pelo menos nessa versão utilizada (NVI) e em outras. O que o
Palavra Tradução
ei se
gar então
hoti que
Iesous Jesus
apethanen morreu
kai e
anistemi ressuscitou
houtos assim
kai também
ho o
Theos Deus
tous aqueles
dia em
870
O estado intermediário no Novo Testamento 871
ho o
Iesous Jesus
sun com
autos ele
Literalmente, o verso pode ser traduzido como “Se, então, nós acreditamos
que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, [quanto] àqueles que dormem
em Jesus, há de trazer com ele”. Note a diferença disso para «Deus trará, mediante
Jesus e juntamente com ele, aqueles que nele dormiram», como verte a NVI. Neste
caso, a ACF se aproxima mais da tradução correta, ao verter como «aos que em
Jesus dormem, Deus os tornará a trazer com ele», embora acrescente o “tornará”,
porque pensam que esses crentes falecidos já estavam com Cristo no céu antes de
ressuscitarem para serem conduzidos à Sua presença. Por conta desse pressuposto,
tomaram a liberdade de acrescentar um termo que não existe no grego, mas que é
Diante do contexto, o que Paulo queria dizer não é que os mortos seriam
anjos, mas que Deus há de trazer os mortos para a presença de Cristo assim que
palavras, tudo o que Paulo estava dizendo é que a tristeza dos tessalonicenses em
relação aos mortos era injustificada, já que eles seriam ressuscitados para estarem
871
O estado intermediário no Novo Testamento 872
É por isso que Paulo usa o houtos kai (assim também), que é usado para
expressar uma analogia entre dois pensamentos. Mas que analogia haveria entre o
mesmo em que Jesus morreu e ressuscitou. Em outras palavras, assim como Jesus
ressuscitarão para a Sua presença. Isso não apenas prova que Paulo não falava nada
Ironicamente, é uma versão católica (Ave Maria) que traduz melhor este
texto, ao verter por: “Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, cremos também
que Deus levará com Jesus os que nele morreram”. Ou seja, da mesma forma que
mortos em Cristo serão um dia ressuscitados para estarem com Jesus. Em vez do
texto indicar que os mortos já estavam com Jesus antes da ressurreição, ele prova
exatamente o contrário: que eles só serão trazidos para a sua presença por ocasião
Outra versão que traduz bem o texto é a TEB467, onde lemos: “Se com efeito,
nós cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também aqueles que morreram,
Deus por causa deste Jesus, com Jesus os reunirá”. Mais uma vez, o sentido não é
de Jesus vir acompanhado dos mortos, mas dos mortos serem ressuscitados para
que possam ser reunidos com Jesus, assim como os vivos. É por isso que é
467
Tradução Ecumênica da Bíblia.
872
O estado intermediário no Novo Testamento 873
17 nada mais são que uma explicação mais detalhada do que Paulo disse no verso
14, e, como vimos, ele expressamente ensina que os vivos serão arrebatados
juntamente com os mortos para a presença de Cristo (v. 17) – exatamente como nas
no verso 14, e não uma ideia nova e contraditória, fica muito mais fácil entender o
texto: no verso 17, Paulo diz que tanto os vivos como os mortos serão arrebatados
sentido do verso 14, que diz que os mortos serão levados com Jesus (ago sun
autos), neste mesmo sentido de ressuscitarem para serem reunidos com ele. Assim,
em vez de trazer dos céus os mortos, o que Jesus faz é levar os mortos com ele às
verbo sofre uma ação direta). Se eles estão sofrendo a ação, não podem vir do céu
com Jesus, o que faria deles agentes ativos. Eles apenas sofrem passivamente a
levados juntamente ao encontro com Cristo nos ares, em vez dos mortos já
Isso explica por que o verso 16 diz que “dada a ordem, com a voz do arcanjo
873
O estado intermediário no Novo Testamento 874
Cristo ressuscitarão primeiro”. Note que o texto não diz que “o próprio Senhor
descerá do céu acompanhado dos mortos em Cristo”, e sim que o Senhor descerá
do céu e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Esses mortos não estavam com
Cristo quando ele desceu; eles são levados com ele quando ele os ressuscita.
Primeiro Jesus volta acompanhado dos seus santos anjos, depois ressuscita os
ressurretos para a presença com Cristo nas nuvens do céu. É essa a cronologia
bíblica do retorno de Cristo, e é assim que estaremos com o Senhor para sempre.
autor de Hebreus, Paulo não falava apenas das pessoas que permaneceriam vivas
manifestados na glória (o que na prática significaria dizer que Cl 3:4 não se aplicaria
a nenhuma das pessoas às quais ele escreveu, como se Paulo não soubesse da
dissipada quando vemos o que o que ele escreveu a respeito de um indivíduo que,
ao que tudo indica, já estava morto: Onesíforo. O texto em questão diz o seguinte:
874
O estado intermediário no Novo Testamento 875
Embora o texto não diga explicitamente que Onesíforo estava morto, tudo
futuro em que estaria com o Senhor e no final da carta saudou apenas a sua família,
e não o próprio (2Tm 4:19). Mas se Onesíforo era um cristão fiel e já tinha partido
dessa vida, o que deveríamos esperar que Paulo dissesse à sua família?
ente querido: que já está nos braços do Senhor, que já foi recebido no céu, que está
com os anjos, que está muito melhor agora e outros clichês nessa mesma linha.
No entanto, Paulo não diz nada disso em momento algum, o que é bastante
oportuno para expressar tais clichês, ele diz precisamente o contrário, apontando
para um momento futuro no qual Onesíforo estaria com o Senhor. Leia de novo
Como Onesíforo estaria no céu com Deus e mesmo assim não tinha
espera resposta (ou pelo menos não uma resposta sóbria). Os apologistas católicos
purgatório(!) e que Paulo rezava para que Deus tirasse a alma dele de lá e a
mesmo sem nada no texto indicar uma reza pela sua alma.
875
O estado intermediário no Novo Testamento 876
O que Paulo fez foi expressar o seu desejo de que Onesíforo fosse recebido
pelo Senhor «naquele dia», quando ele seria julgado e encontraria a misericórdia
da parte dEle. Tal coisa seria inócua e sem sentido se ele já tivesse passado por um
sempre. Tudo isso nos confirma que é só “naquele dia”, o dia da ressurreição e do
já morreram, seja os que estiverem vivos até lá. Vale ressaltar que a expressão
do juízo na volta de Jesus, quando os mortos serão ressuscitados (2Pe 3:12; Lc 10:12;
Mt 7:22; 2Tm 4:8). É só então que Onesíforo estará com o Senhor, e não antes disso,
em 67 d.C, no mesmo ano da sua morte. Consciente disso, ele escreve a respeito da
sua partida e não deixa de mencionar o momento em que seria coroado na glória.
Seria essa a ocasião perfeita para dizer que ele teria a sua coroa da justiça quando
a sua alma deixasse o corpo e fosse diretamente pro céu, mas o que ele de fato disse
foi isso:
“Eu já estou sendo derramado como uma oferta de bebida. Está próximo o
guardei a fé. Agora me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor, justo
Juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os
que amam a sua vinda” (2ª Timóteo 4:6-8)
876
O estado intermediário no Novo Testamento 877
Note que ele não diz que conseguiria a sua coroa da justiça assim que
morresse e fosse recebido no céu, mas que a sua coroa lhe estaria «reservada» até
que ele a recebesse «naquele dia». Que dia é esse? A própria continuação do texto
responde: a Sua vinda (v. 8). A expressão “naquele dia”, desde os tempos mais
NT como o “último dia”, o dia da volta de Jesus e da ressurreição dos mortos. É por
isso que Pedro diz que “logo que o Supremo Pastor se manifestar, recebereis a
significa que sejamos obrigados a andar no Paraíso com uma coroa literal na
cabeça. Tanto a coroa da justiça mencionada por Paulo em 2Tm 4:8 como a da glória
citada por Pedro em 1Pe 5:4 simbolizam a mesma coisa: a glória eterna que
“naquele dia” (2Tm 4:8), quando “o Supremo Pastor se manifestar” (1Pe 5:4), não
Aos imortalistas, portanto, só resta uma opção: alegar que Paulo esteve
todos esses milhares de anos no Paraíso com Deus, e mesmo assim continua
privado da “coroa da justiça”. Por incrível que pareça, é justamente o que eu já tive
de ouvir ao longo desses anos de debates com imortalistas. Em vez de Paulo à beira
da morte focar em estar com o Senhor no céu assim que a sua alma deixasse o
corpo, ele preferiu enfatizar uma simples coroa que receberia milênios mais tarde,
como se isso fosse mais importante do que estar com o Senhor. Seria cômico se não
fosse trágico!
877
O estado intermediário no Novo Testamento 878
Paulo estaria com o Senhor, eles acreditam que Paulo estava focando os seus olhos
milênios mais tarde. Isso é como você esperar a vida toda para encontrar alguém,
mas justo quando isso está prestes a acontecer, preferir falar de uma jaqueta de
couro que essa pessoa te dará daqui longos anos do que desse encontro tão
especial. O tipo de coisa que só faz sentido na cabeça de alguém atordoado com
toda a Bíblia é o de um homem que mantinha relações sexuais com a sua madrasta,
a respeito do qual Paulo escreveu: “Entreguem esse homem a Satanás, para que o
corpo seja destruído, e seu espírito seja salvo no dia do Senhor” (1Co 5:5). Embora
o texto não seja de fácil interpretação, a maioria dos teólogos concorda que
destruído» alude à sua morte física ou doenças que contrairia, e «seu espírito seja
arrependimento. Adam Clarke comenta o texto sob uma perspectiva imortalista nas
seguintes palavras:
878
O estado intermediário no Novo Testamento 879
Deus; nada disso deve ser assumido; as pretensões a isso são tão
perversas quanto vãs. Foi o mesmo poder pelo qual Ananias e Safira
foram mortos (At 5:1-10), e Elimas, o feiticeiro, ficou cego (At 13:8-
11).468
atento: embora ele fale em “espírito imortal”, o texto não diz que o espírito é salvo
assim que deixa o corpo, mas que será salvo «no dia do Senhor»! A expressão “o dia
escatológico: a volta de Jesus. Paulo disse que “o dia do Senhor virá como ladrão à
noite” (1Ts 5:2) e pediu que ninguém se enganasse “por carta supostamente vinda
de nós, como se o dia do Senhor já tivesse chegado” (2Ts 2:2). Pedro também disse
que “o dia do Senhor, porém, virá como ladrão” (2Pe 3:10), ocasião na qual “os céus
468
CLARKE, Adam. “Commentary on 1 Corinthians 5:5”. The Adam Clarke Commentary (1832).
879
O estado intermediário no Novo Testamento 880
Portanto, o «dia do Senhor» em nada tem a ver com o dia em que a alma de
cada um sai do corpo para um estado intermediário, mas com o “último dia”, o dia
em que Jesus voltará e ressuscitará os salvos (Jo 6:39, 40, 44, 54). É por isso que
Paulo disse que o espírito daquele homem só seria salvo no dia do Senhor: ele sabia
que não existe vida entre a morte e a ressurreição, e que, portanto, seria apenas
quando Jesus voltasse que aquele homem herdaria a salvação. Se aquele homem
fosse para o céu assim que morresse, por que teria Paulo feito questão de acentuar
que ele seria salvo no dia do Senhor, já que o dia do Senhor ocorreria muito tempo
mais tarde? A única resposta razoável é porque Paulo sabia que ele não estaria lá
antes disso.
ao homem excomungado, mas ao próprio Paulo, que também escreve aos coríntios:
E aos filipenses:
“Façam tudo sem queixas nem discussões, para que venham a tornar-se
880
O estado intermediário no Novo Testamento 881
O «dia de Cristo», o «dia do Senhor» e o «dia do Senhor Jesus» não são três
dias diferentes, mas o mesmo dia que judeus e cristãos aguardavam ansiosamente
e que é por vezes aludido pela simples expressão «naquele dia». Paulo não está
Jesus. É só então que Paulo se orgulharia dos coríntios (2Co 1:14) e de “não ter
corrido nem me esforçado inutilmente” (Fp 2:16) pelos filipenses. Por que ele não
poderia se orgulhar antes? Porque é só depois do juízo que ele teria a certeza de
que o seu trabalho não foi vão, pois resultou em salvação para os crentes aos quais
escrevia.
a morte e antes da ressurreição, ele já poderia se orgulhar deles muito antes do «dia
do Senhor». Neste caso, Paulo teria dito aos coríntios que “nos orgulharemos de
vocês quando nos vermos no céu”, e aos filipenses que “no dia em que vocês
mesma direção: a de que não há vida póstuma antes do dia do Senhor – ou seja,
Voltarei e os levarei para mim – Ninguém confirmou essa verdade com mais
clareza do que Jesus em João 14:2-3, ao se dirigir aos seus discípulos com as
seguintes palavras:
881
O estado intermediário no Novo Testamento 882
“Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria
Jesus disse que lhes prepararia um aposento, mas não disse que os
para a presença de Deus. Em vez disso, o texto é claro em mostrar que os discípulos
só estariam com Jesus quando ele voltasse para levá-los para si. A lógica é
que os discípulos já estivessem com Cristo antes do seu retorno, porque, logo após
dizer «voltarei e os levarei para mim», Jesus explica a razão por que ele faria isso:
«para que vocês estejam onde eu estiver». A conjunção “para que” diz respeito ao
motivo pelo qual aquela ação seria necessária, ou seja, justamente para que eles
Jesus) não se realizasse, a consequência é que os discípulos não estariam com Cristo
(em direto contraste com a noção de que eles já estariam com Cristo ou que
corresponde à conjunção hina, que significa «com que propósito, por quê, para
882
O estado intermediário no Novo Testamento 883
que»469. Se o propósito de Jesus voltar é para que os discípulos estejam onde ele
estiver, logicamente eles não estariam na companhia de Cristo se ele não voltasse.
A lógica é irrefutável: não é a nossa alma que abandona o corpo e vai para a
presença de Jesus; é Jesus que volta para nos buscar de corpo e alma.
É como se eu dissesse que “vou ali na padaria, mas já volto para te levar
cognitiva, nem mesmo uma criança pequena que tenha acabado de aprender o
óbvio não é porque sejam tão burros, mas porque o apego cego e obstinado à
É assim que uma linguagem simples, clara e objetiva como a de João 14:2-3,
segunda vinda propriamente dita, mas do tal “arrebatamento secreto” crido por
si (ao qual eu já dediquei um livro inteiro em refutação470), o fato é que Jesus dirigia
469
#2444 da Concordância de Strong.
470
“A Igreja na Grande Tribulação”, disponível na página dos livros:
<http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
883
O estado intermediário no Novo Testamento 884
aquelas palavras diretamente aos seus discípulos, como aponta todo o contexto (vs.
ao que parece não há nenhum discípulo vivo até hoje para ser arrebatado nesta
ocasião.
Outro malabarismo típico é dizer que o texto aqui não fala da volta visível de
Jesus no fim dos tempos, mas de uma suposta volta invisível para buscar a alma
é claro – seria mencionada apenas aqui e em mais nenhum outro lugar da Bíblia.
Infelizmente, no entanto, o texto não fala de doze voltas de Jesus (ou onze, já que a
alma de Judas provavelmente seria conduzida pelo capiroto) para buscar a alma de
cada um, mas de uma só, porque se trata de um evento único e coletivo, exatamente
Como comentou o prof. Azenilto, Jesus não disse que “quando eu for e vos
preparar lugar, ficarei lá esperando que vão aparecendo para ocupar os lugares que
vos preparei, segundo vão morrendo, um após o outro”. Os lugares não estariam
céu para assumi-las. “Voltarei e os levarei para mim” é diferente de “morrerão e virão
até mim”. Se ele estivesse falando da separação da alma na morte, sequer precisaria
“voltar” para cada discípulo, já que na própria parábola do rico e Lázaro que eles
interpretam literalmente é um anjo quem busca a alma, não Jesus ou Deus (Lc
16:22). Parte nenhuma da Bíblia diz que Jesus desce do céu para buscar a alma de
alguém e então levá-la ao céu, mas há dúzias de textos que falam da volta de Jesus
como um evento único, visível e universal no fim dos tempos (Ap 1:7; 1Ts 4:14-17;
Mt 24:30-31).
884
O estado intermediário no Novo Testamento 885
A prova mais forte de que Cristo não falava sobre buscar a alma de alguém
na morte é o contexto. Jesus havia dito que “para onde eu vou, vocês não podem
ir” (Jo 13:33), e quando Pedro perguntou “para onde vais?” (v. 36), Jesus reiterou que
“para onde vou, vocês não podem me seguir agora, mas me seguirão mais tarde”
(Jo 13:36). Que lugar é esse para onde Jesus iria, e que ninguém poderia ir?
poderia ir. Jesus estava antecipando sua partida ao Paraíso, um lugar inacessível aos
“Pedro perguntou: ‘Senhor, por que não posso seguir-te agora? Darei a
Pedro queria tanto seguir Jesus que estava disposto a morrer para estar com
ele, e é neste contexto que Jesus diz que lhes prepararia um lugar e só depois
voltaria para levá-los consigo. Devemos lembrar que a divisão por capítulos na
imediatamente ao final do capítulo 13, que eram uma coisa só. Ou seja, não se trata
do mesmo relato. A resposta de Jesus a Pedro nos mostra que nem mesmo a morte
poderia fazer com que o apóstolo fosse para o lugar onde Jesus estaria.
É como se Jesus estivesse dizendo: “Você não pode ir para onde eu irei, nem
mesmo morrendo; sou eu que irei até você quando eu voltar, e assim você estará
aonde eu estiver”. Em outras palavras, não adiantava nem mesmo morrer para ir ao
lugar onde Cristo iria, pois para onde ele iria ninguém poderia ir, nem mesmo
através da morte. É por isso que é necessário que ele volte para nos levar com ele,
885
O estado intermediário no Novo Testamento 886
imediatamente no Paraíso, ele logicamente poderia seguir Jesus dando sua vida por
ele, mas o contexto é claro em mostrar que nem mesmo a morte poderia propiciar
tal coisa. Isso porque não é a morte que nos leva para a presença de Deus, mas a
ressurreição.
mais sinistra de todas – que Jesus não falava da sua volta gloriosa no fim dos
tempos, mas da sua ressurreição, quando voltou para a companhia dos discípulos
durante um período de 40 dias, e seria isso o que ele quis dizer quando falou sobre
voltar para que eles estivessem onde ele estiver. O problema é que o texto fala de
“levar” com ele, onde consta o verbo grego paralambano, que significa «tomar a,
levar consigo»471. Mas Jesus não “levou consigo” os discípulos para lugar nenhum
mortos serão arrebatados e levados para o encontro com o Senhor nos ares (1Ts
4:17), quando aí sim “estaremos com o Senhor para sempre” (v. 17).
No fim das contas, todas essas teses alternativas pitorescas têm um mesmo
ponto em comum: elas negam que Jesus falava da sua volta gloriosa, porque sabem
que isso implicaria que os discípulos passaram todo esse tempo longe da
companhia de Cristo, o que liquidaria toda a teologia deles. Assim, são forçados a
sempre sem nunca ser refutada, não importa o quanto a lógica e o bom senso
471
#3880 da Concordância de Strong.
886
O estado intermediário no Novo Testamento 887
o Senhor após a ressurreição que Jesus insistiu tanto em dizer que a separação entre
Mateus 13, Jesus conta uma parábola onde deixa este sentido bastante nítido:
“Jesus lhes contou outra parábola, dizendo: O Reino dos céus é como um
homem que semeou boa semente em seu campo. Mas enquanto todos
respondeu ele. Os servos lhe perguntaram: ‘O senhor quer que vamos tirá-
lo?’. Ele respondeu: ‘Não, porque, ao tirar o joio, vocês poderão arrancar com
ele o trigo. Deixem que cresçam juntos até à colheita. Então direi aos
(Mateus 13:24-30)
letra igual os imortalistas fazem com a do rico e Lázaro, permita-me dizer que nem
o joio e nem o trigo são literais, e que o próprio Senhor explicou os significados
mas na própria explicação que o Mestre nos dá. E a explicação dada é essa:
887
O estado intermediário no Novo Testamento 888
do homem os seus anjos, e eles colherão do seu reino tudo o que causa
sol, no reino de seu Pai. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”
(Mateus 13:36-43)
Jesus deixa claro que tanto os justos (representados pelo trigo) como os
ímpios (representados pelo joio) permanecem juntos até a ceifa, quando só então
é logo após a morte, no suposto estado intermediário. Mas Jesus diz que a ceifa é
“o fim do mundo” (v. 39). É só então que justos e ímpios serão separados, e não
antes, como se o ímpio já fosse pro inferno e o justo pro céu imediatamente após a
Reino do Pai. Isso é destacado pelo uso do advérbio tote, que significa «então;
naquele tempo»472. Isso significa que é só então, naquele tempo (i.e, após a volta
472
#5119 da Concordância de Strong.
888
O estado intermediário no Novo Testamento 889
Pai” (v. 43). Difícil imaginar como Jesus poderia ter sido mais claro. Uma parábola
com eles. O que tinha recebido cinco talentos trouxe os outros cinco e disse:
‘O senhor me confiou cinco talentos; veja, eu ganhei mais cinco’. O senhor
respondeu: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Você foi fiel no pouco; eu o porei
sobre o muito. Venha e participe da alegria do seu senhor!’”
(Mateus 25:19-21)
O “venha e participe da alegria do seu senhor” (v. 21) não vem senão depois
do senhor daqueles servos voltar, “depois de muito tempo” (v. 19). Uma vez que o
servo bom representa o crente fiel e o senhor que volta representa o próprio Senhor
Jesus em sua segunda vinda, o sentido não pode ser outro senão que o servo fiel só
estar com Cristo é uma experiência que se dá logo após a morte, já que não há
889
O estado intermediário no Novo Testamento 890
explica dois textos semelhantes a Hb 9:27 que são frequentemente usados pelos
imortalistas, apesar de nenhum deles falar nada de uma alma saindo do corpo ou
Partir e estar com Cristo – O primeiro deles está no início da carta de Paulo
fruto do meu trabalho. E já não sei o que escolher! Estou pressionado dos dois
lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é muito melhor; contudo, é mais
disso, sei que vou permanecer e continuar com todos vocês, para o seu
progresso e alegria na fé” (Filipenses 1:20-25)
Note que Paulo não menciona alma nem espírito, não fala do céu nem de
um estado intermediário, tampouco diz quando se daria este “estar com Cristo”.
Tudo o que ele faz é se referir à experiência de estar com o Senhor como algo que
se daria assim que ele morresse, o que é explicado, como já dissemos, pela ausência
passado nem um segundo, ainda que entre os vivos (que estão sujeitos à passagem
890
O estado intermediário no Novo Testamento 891
vez sabe que, mesmo que se passem muitas horas na perspectiva de quem está do
lado de fora, para o paciente que acorda é como se tudo tivesse se passado em
Assim, não há nada de errado em dizer que a morte é o caminho mais curto
para se chegar a Deus, desde que isso não seja entendido em um sentido
cronológico terreno. Isso porque, como vimos com exaustivos exemplos bíblicos ao
longo deste capítulo (em especial pela leitura de Hb 11:39-40, de Mt 25:34 e de 1Ts
no Reino, mas entramos todos juntos no mesmo momento, quando Jesus voltar
na perspectiva de quem morreu – para quem não há mais passagem de tempo até
esperar mais alguns anos vivo na terra, o que explica o dilema de Paulo.
espacial quer muito encontrar sua família, que está na terra. Mas tem um problema:
Como ele não quer esperar todo esse tempo para rever sua família, ele se “congela”
numa cápsula onde “apaga” até o pouso da nave. Assim, embora tenha se passado
891
O estado intermediário no Novo Testamento 892
Poderíamos fazer a mesma analogia com alguém que viaja para o futuro ou
com alguém em coma profundo (para quem não é muito fã de ficção científica). O
ponto todo é que a morte realmente “encurta” o intervalo entre o momento em que
Paulo escrevia e o momento em que ele estaria com Cristo, não porque uma alma
saísse do corpo, mas pela ausência de eventos que se interpõem entre um e outro
(justamente porque ele não mais existe na condição de morto). Assim, cabe aos
imortalistas provar que esse “estar com Cristo” necessariamente precisa ocorrer na
mesmo desejo, mas com outras palavras e mais detalhes – detalhes esses que são
fundamentais para nos indicar quando ele esperava estar com o Senhor. Trata-se
por isso também gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação, que
é do céu; Se, todavia, estando vestidos, não formos achados nus. Porque
também nós, os que estamos neste tabernáculo, gememos carregados; não
porque queremos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja
absorvido pela vida. Ora, quem para isto mesmo nos preparou foi Deus, o
qual nos deu também o penhor do Espírito. Por isso estamos sempre de bom
ânimo, sabendo que, enquanto estamos no corpo, vivemos ausentes do
892
O estado intermediário no Novo Testamento 893
Senhor (porque andamos por fé, e não por vista). Mas temos confiança e
O verso 8, que fala de «deixar este corpo para habitar com o Senhor», é
texto é sempre misteriosamente omitido. A razão por que você nunca verá um
imortalista citar a perícope completa ao usar esse texto a seu favor é porque ele
sabe que isso destruiria as suas pretensões de enganar o leitor – isso quando o
próprio argumentador não sabe o que está falando. Por isso, é melhor citar só o
verso 8 e fingir que ele caiu de paraquedas no texto, sem um raciocínio que conduz
a ele.
O que é essa «casa não feita por mãos», que Paulo se refere no final do verso?
Embora os imortalistas pensem que Paulo falava de uma casa literal no céu para
onde ele moraria assim que morresse, o contraste com a primeira casa derruba
completamente essa hipótese. Isso porque Paulo fala da «casa terrestre deste
tabernáculo», que se desfaz. Será que Paulo falava sobre ter sua casa terrena
destruída por um guindaste? É evidente que não. Ele mesmo disse que não tinha
893
O estado intermediário no Novo Testamento 894
residência certa (1Co 4:11), pois vivia viajando de lugar a lugar para pregar o
A casa terrestre que se desfaz não é uma moradia literal, mas um eufemismo
que diz respeito ao nosso próprio corpo corruptível – ou seja, o corpo que
possuímos hoje. Paulo sabia que um dia o seu corpo não aguentaria e passaria pelo
mesmo processo natural que todos passaremos um dia: a morte. É neste mesmo
sentido figurado que o autor de Hebreus (que alguns cogitam ser o próprio Paulo)
usa o mesmo termo “casa”: “Mas Cristo é fiel como Filho sobre a casa de Deus; e
esta casa somos nós, se é que nos apegamos firmemente à confiança e à esperança
Que “casa” é essa que ele chama de «casa de Deus»? Uma feita à base de
madeira e tijolo? Não, mas nós mesmos. Essa mesma expressão «casa não feita por
mãos humanas» só aparece uma única vez fora de 2Co 5:1, e é no famoso texto em
que Jesus diz que em três dias edificaria uma casa não feita por mãos de homens
(Mc 14:58; Jo 2:19). Na ocasião ele foi zombado, porque a multidão de incrédulos
entendeu que ele falava de um templo literal de pau e pedra, quando na verdade
“ele falava do templo do seu próprio corpo” (Jo 2:21). A “casa terrestre”, portanto,
em nada tinha a ver com uma casa literal, mas com o nosso corpo corruptível
corruptível, então a casa celestial não feita por mãos humanas só pode se referir ao
o mesmo que ela tem no início – não uma mansão literal, mas um corpo físico. Caso
894
O estado intermediário no Novo Testamento 895
evidente: ainda que nosso corpo corruptível pereça, nós teremos um corpo
incorruptível na ressurreição. Era deste modo que Paulo esperava estar com Cristo,
Alguém poderia estranhar o fato de Paulo dizer que nossa casa atual é “da
terra”, e a casa futura é “do céu”. À uma primeira vista, isso parece confrontar nossa
visão de que o lar eterno dos salvos é a nova terra, e não o céu (como veremos no
capítulo 21), e abre margem para que alguém pense que Paulo falava de uma casa
literal na segunda parte do verso, ainda que falasse de uma casa figurada na
primeira parte. Mas essa impressão só existe para quem não está familiarizado com
a linguagem paulina, o que certamente não era o caso dos coríntios, para os quais
sabemos que ele não se referia a dois homens distintos473, mas da mesma pessoa
473
Outro exemplo está no texto em que Paulo diz que “o nosso velho homem foi crucificado com ele, para
que o corpo do pecado seja destruído, e não mais sejamos escravos do pecado” (Rm 6:6). Embora Paulo
fale de um “velho homem” que já morreu crucificado e de um “corpo do pecado” que foi destruído,
obviamente o sentido não é que nós literalmente morremos ou que sejamos literalmente uma outra
pessoa em um sentido biológico, ainda que a linguagem utilizada dê a entender isso. Da mesma forma,
embora Paulo fale do “homem terreno” e do “homem celestial” (1Co 15:49), assim como da “casa
terrestre” e do “edifício eterno” (2Co 5:1), ele não
895se referia a dois corpos totalmente distintos sem
nenhuma conexão um com o outro, mas do mesmo corpo levado à perfeição através da ressurreição.
O estado intermediário no Novo Testamento 896
Os “dois homens”, portanto, representam dois corpos. Como veremos com mais
chamado de “celestial” porque é espiritual e imortal. Por isso Paulo diz que “é
semeado um corpo natural e ressuscita um corpo espiritual” (v. 44), e que “se há
O “homem celestial”, portanto, não era sinônimo de “um homem que mora
no céu”, mas de um corpo espiritual, ao passo em que o “homem terreno” não era
sinônimo de “um homem que mora na terra”, mas de um corpo natural. Explicarei
melhor do que se trata o corpo natural e o espiritual no capítulo seguinte, mas, por
hora, está claro que a linguagem do “corpo celestial” não era em nada estranha aos
coríntios, que já haviam lido a respeito na primeira carta de Paulo. Assim, eles
sabiam bem que a «casa eterna nos céus» não era uma mansão literal, mas um
esperava receber assim que ressuscitasse. Essa é a «casa não feita por mãos», em
celestial é eterna, porque seremos imortais assim que assumirmos o corpo glorioso
que Paulo falava de deixar este corpo para obter o corpo da ressurreição, e não
sobre deixar este corpo para viver fora do corpo, como um fantasminha em um
estado intermediário. Mas quanto mais avançamos na leitura da perícope, pior fica
896
O estado intermediário no Novo Testamento 897
“...e por isso também gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação,
Primeiramente, observe que agora Paulo não diz “no céu”, mas “do céu”. Isso
concorda com o que descobrimos no verso 1, que a “casa eterna nos céus” em nada
tem a ver com uma casa literal no céu, mas sim com o «homem celestial», isto é,
Qualquer um que fale sobre ir morar no céu diz coisas como “entrar” no céu,
“chegar” ao céu ou “habitar” no céu, mas você nunca verá alguém falar sobre “ser
revestido” da habitação que é do céu. Isso porque não faz o menor sentido alguém
ser revestido de uma casa literal, uma vez que “revestir” literalmente significa “vestir
Por outro lado, “revestir” é o mesmo verbo usado pelo mesmo apóstolo e
então se cumprirá a palavra que está escrita: ‘A morte foi destruída pela
tudo aquilo que é físico, incluindo os órgãos internos e cada neurônio do cérebro,
897
O estado intermediário no Novo Testamento 898
eles geralmente chamavam de corpo a estrutura externa (ou seja, aquilo que é
visível aos olhos humanos), não o que está “dentro” do corpo (como os órgãos
internos ou aquilo que é produzido por eles, tais como a visão, a audição, o olfato
e o raciocínio). Por isso Paulo usa a linguagem do “revestir”, uma vez que nós hoje
de um corpo imperecível. Mais uma vez, nada tinha a ver com ir morar no céu ou
fora de um corpo.
Paulo não falava sobre habitar no céu, mas sobre ser revestido da habitação
perfeição, por isso mesmo chamado de “celestial”. Com efeito, a ideia transmitida
não é a de “morrer e ir pro céu”, mas de morrer e ser revestido de um corpo glorioso
através do qual ele estaria com o Senhor por toda a eternidade. Por essa razão, a
CNBB traduz o verso de forma direta: «Por isso, suspiramos neste estado, desejosos
objetivo era dizer que estaria com Cristo muito antes dela? A razão óbvia por que
seria na ressurreição que ele concretizaria o seu desejo de estar com o Senhor. Note
que a mesma palavra “desejar” usada no verso 8 (“desejamos deixar este corpo”) é
usada aqui no verso 2 (“desejando ser revestidos da nossa habitação”), não porque
Paulo desejasse duas coisas diferentes e sem conexão uma com a outra, mas
porque «deixar este corpo» diz respeito justamente a «ser revestido» do corpo da
898
O estado intermediário no Novo Testamento 899
Como vimos no verso anterior, Paulo usa a linguagem do “revestir” (ou seja,
vestir de novo) para o corpo da ressurreição. Assim, o que seria estar “vestido”? A
resposta é óbvia: estar no corpo atual. Quando ele diz «se estando vestidos, não
formos achados nus», ele está estabelecendo uma condição pela qual
alcançaremos o revestimento do qual ele falou no verso anterior (ou seja, o corpo
imperecível). E essa condição é não ser achado “nu”, que se refere a uma condição
espiritual pecaminosa – a mesma designação usada para Adão e Eva após a Queda
Se a condição para ser revestido (ou seja, para obter um corpo imortal) é não
ser achado nu (ou seja, em pecado), isso implica que nenhum ímpio receberá um
corpo imortal na ressurreição, o que concorda com os muitos textos bíblicos que
ressurreição (Rm 2:7; 2Tm 1:10; Gl 6:8), e se opõe à visão imortalista de que os ímpios
ressuscitarão com corpos imortais e imperecíveis para viverem para sempre e serem
verso reforça o fato de que todo o foco de Paulo estava no corpo que se obtém na
dissiparia com o verso seguinte, que liquida qualquer chance de Paulo estar falando
899
O estado intermediário no Novo Testamento 900
carregados; não porque queremos ser despidos, mas revestidos, para que o
mortal seja absorvido pela vida” (v. 4)
corpo, da mesma forma que Pedro em 2Pe 1:14 (“porque sei que em breve deixarei
que esperaria estar com o Senhor fora do corpo, que é exatamente o que eles
entendem que Paulo disse no verso 8. Mas Paulo diz expressamente o contrário
aqui. Ele explicitamente diz que não quer ser “despido”, mas “revestido”.
entendimentos distintos do que vem a ser estar sem um corpo. Para os mortalistas,
estar sem corpo é simplesmente estar morto, porque, como vimos no capítulo 2, a
Bíblia não concebe a possibilidade de viver sem um corpo ou fora do corpo. Já para
474
COSTA, Airton Evangelista da. Reflexões sobre a Imortalidade da Alma. Disponível em:
<http://solascriptura-tt.org/AntropologiaEHamartologia/ReflexoesImortalidadeAlma-AECosta.htm>.
Acesso em: 14/08/2021.
900
O estado intermediário no Novo Testamento 901
“despido” não se refere ao corpo no sepulcro, e sim ao espírito no Paraíso, por que
Paulo foi tão enfático em dizer que não queria estar despido? Na ótica
aniquilacionista isso faz todo o sentido; afinal, ninguém desejaria morrer só para
deixar de existir. Quem morre, morre esperando o que vem depois disso: a
ressurreição. É por isso que Paulo não queria ser “despido”, mas “revestido”.
céu, o que nos leva a sérios problemas. Afinal, quem não desejaria isso também?
Quem não gostaria de estar imediatamente com o Senhor na glória? Mas Paulo diz
que não queria isso, e sim a ressurreição. Isso é bastante suspeito, já que, para os
verso 8 estar com Cristo fora do corpo, mas aqui no verso 4 ele diz justamente o
quatro versículos? É dessa forma que os imortalistas imaginam Paulo, que no verso
4 diz que não queria estar despido, mas que no verso 8 supostamente quer ser
decidir: Paulo queria ou não queria estar fora do corpo? Se ele queria, por que no
verso 4 ele diz o oposto? Se não, por que ele não desejaria algo que o levaria direto
perfeitamente por que Paulo não queria ser “despido”: “...não porque queremos ser
despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida”. Aqui está
901
O estado intermediário no Novo Testamento 902
certa forma sim, pois sabia que era o caminho mais curto para estar com o Senhor,
no sentido que explicamos há pouco. Mas ele pensava que estaria com o Senhor
antes da ressurreição? De modo algum, pois ele diz que não queria ser despido,
Em outras palavras, Paulo queria morrer porque ele sabia que na ressurreição
estaria com o Senhor, e não porque pensasse estar com o Senhor na condição de
“despido” (sem corpo). É como se ele estivesse dizendo: “Eu não tenho interesse na
morte em si, mas na ressurreição”. Isso confronta frontalmente a ideia de que ele
ele desejaria estar “despido” mais do que desejaria estar “vestido”, já que “vestido”
(i.e, neste corpo) ele estava longe do Senhor, e “despido” (i.e, sem corpo) ele estaria
com Ele. No entanto, ele expressamente diz que não quer estar nesta condição, mas
já estamos com Cristo na forma de um espírito imaterial, Paulo desejaria isso mais
do que tudo, dado que o maior anseio do cristão é estar com Cristo,
não diz que queria ser despido (para encontrar o Senhor na morte) e também
revestido (para continuar com Ele na ressurreição). Em vez disso, ele diz que não
queria ser despido, mas sim revestido – o que obviamente significa que ele não
902
O estado intermediário no Novo Testamento 903
ele não está ansioso para o sono da morte (sendo “despido”), quando
ele não estaria com o Senhor, mas ele está esperando pela redenção
do corpo, quando ele seria revestido com a “casa eterna nos céus”. (...)
Podemos estar certos, então, que o estado despido não envolvia estar
com o Senhor, uma vez que Paulo não deseja estar despido (e ele
(1) vestido (no corpo atual), (2) despido (sem corpo algum) e (3) revestido (com o
corpo da ressurreição). Desses, ele diz que desejava ser revestido, mas não ser
despido (ou seja, desejava a condição 3, mas não a 2). Mas desejava em relação ao
que? Obviamente, em relação à sua condição atual (a condição 1). Estar “vestido”
era o seu estado natural, ou seja, o padrão com o qual ele media as condições 2 e
3, da mesma forma que um jogador do Coritiba poderia dizer que deseja jogar no
São Paulo e que não deseja jogar no Bangu, tendo por base o fato de jogar no
ele poderia considerar ambas as opções ruins e não desejar nenhuma delas, ou
poderia desejar ambas se fosse um jogador de várzea louco pra ter uma
relação a algo tem sempre por base o estado atual em que se encontra, o que, no
caso de Paulo, dizia respeito à condição 1 (de estar “vestido”, ou seja, com o corpo
atual). Assim, se ele diz que não deseja ser despido, mas que deseja ser revestido, a
475
CREWS, Joe. O que a Bíblia diz sobre estar ausente do corpo. Disponível em:
<http://setimodia.wordpress.com/2008/12/16/livreto-o-que-a-biblia-diz-sobre-estar-ausente-do-
corpo>. Acesso em: 19/08/2013.
903
O estado intermediário no Novo Testamento 904
única conclusão lógica é que o estado de despido é inferior à condição em que ele
Para o apóstolo, portanto, viver no corpo ressurreto era melhor do que viver
no corpo atual, mas estar sem corpo nenhum era pior do que viver no corpo atual.
Isso é um grande problema para os imortalistas, já que eles imaginam que estar sem
corpo nenhum equivale a estar vivo como uma alma fantasmagórica na companhia
do Senhor, dos seus amigos e entes queridos – onde já não haveria mais morte,
nem choro, nem pranto, nem luto, nem dor ou sofrimento de qualquer tipo. De que
forma isso poderia ser menos desejável em comparação ao estado atual? É óbvio
que para Paulo o estado sem corpo estava longe de ser uma condição em que ele
morte e a ressurreição.
É por isso que Paulo diz que não queria ser despido: não porque ele não
quisesse ir imediatamente para a presença do Senhor, mas porque ele sabia que
não há nada entre a morte e a ressurreição, razão por que tal condição no pó da
terra não era nada desejável. Ainda assim, ele sabia que se sujeitar a essa condição
era o único jeito de alcançar o que ele realmente visava – a ressurreição, quando ele
de fato estaria com o Senhor. Podemos resumir os três estados e a forma como eles
904
O estado intermediário no Novo Testamento 905
___
Desejável? Não Sim
(condição padrão)
___
Gradação Pior Melhor
(referencial)
será absorvido pela vida» (v. 4), para que ele possa encontrar o Senhor. Este
conceito também não era nada novo para os coríntios, para os quais Paulo já havia
então se cumprirá a palavra que está escrita: ‘A morte foi destruída pela
vitória’. Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu
É neste momento que o mortal será absorvido pela vida: quando a morte for
tragada pela vitória. Quando isso acontece? Quando o nosso corpo mortal e
dos mortos. Era isso o que Paulo desejava, não o estado que se passa entre a morte
905
O estado intermediário no Novo Testamento 906
e a ressurreição. Isso fica ainda mais claro quando vemos o que Paulo escreve em
“Mas até nós, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós
Como é evidente, Paulo falava da mesma coisa nas duas ocasiões, usando a
expressa um desejo tão ardente que é como um gemido interior, de ressuscitar dos
mortos para estar com o Senhor (o que em 2Co 5:2 é expresso pela linguagem do
que ele diz que seremos adotados, não porque atualmente já não sejamos filhos de
Deus, mas porque só na ressurreição é que estaremos junto do Pai, habitando com
Ele.
906
O estado intermediário no Novo Testamento 907
mais uma prova de que o desejo de Paulo não tinha qualquer relação com um
estado intermediário, já que aos romanos ele é ainda mais claro em dizer que o que
ele aguardava era «a redenção do nosso corpo», não ficar sem corpo nenhum. Isso
refuta totalmente a ideia de que o anseio de Paulo consistia em estar com Cristo
como uma alma fora do corpo, antes mesmo da ressurreição e a despeito dela.
ressurreição não era um mero religar inútil do corpo com a alma, mas precisamente
o momento em que estaremos com o Senhor e o veremos face a face. Por isso a
ele expressa o seu desejo de estar com o Senhor. Quando compreendemos todo o
contexto, fica extremamente fácil entender o que ele escreve na sequência (a parte
“...ora, quem para isto mesmo nos preparou foi Deus, o qual nos deu também
o penhor do Espírito. Por isso estamos sempre de bom ânimo, sabendo que,
enquanto estamos no corpo, vivemos ausentes do Senhor (porque andamos
por fé, e não por vista). Mas temos confiança e desejamos antes deixar este
corpo, para habitar com o Senhor” (vs. 5-8)
possibilidade de estar vivo fora do corpo, mas sobre estar vivo neste corpo atual.
“No corpo” é diferente de “em um corpo”. Como vimos pelo contexto, Paulo não
desejava estar sem um corpo, mas com o corpo glorioso da ressurreição. A lógica
não era de estar longe do Senhor com um corpo e perto dEle sem um, mas de estar
907
O estado intermediário no Novo Testamento 908
E então ele finaliza, dizendo que desejava «deixar este corpo para habitar
com o Senhor». Observe mais uma vez que ele não diz que deseja viver sem um
corpo, mas sim que deseja deixar este corpo. Este corpo se refere justamente ao
estado atual de “vestido”, o “tabernáculo” do qual Paulo fala no verso 4. Mas deixar
este corpo não era viver sem corpo nenhum, mas ser “revestido” com o corpo da
ressurreição. Em momento algum Paulo fala sobre viver fora do corpo – quando ele
Os únicos que veem uma alma viva fora do corpo neste texto são os
imortalistas, que enxertam na Bíblia todo tipo de filosofia pagã e antibíblica que
aprenderam fora dela. Para Paulo, a vida fora do corpo nunca foi uma hipótese. O
que estava em jogo era viver neste corpo ou no próximo, que é muito mais
desejável, separados por um estado de morte total que ele jamais desejou. Estar
“sem corpo”, para Paulo, não era estar vivo na forma de um espírito, mas
simplesmente deixar de existir, uma vez que a existência humana só é possível por
908
O estado intermediário no Novo Testamento 909
com o Senhor.476
Portanto, o «deixar este corpo para habitar com o Senhor» em nada tinha a
ver com uma alma abandonando o corpo para um estado intermediário, como
obras de Allan Kardec, mas com deixar este corpo para conseguir o corpo da
que Paulo ressuscitasse ele precisava primeiro morrer (“deixar este corpo”), mas seu
piscar de olhos – ainda que muito tempo se passasse no mundo dos vivos.
É por isso que Paulo desejava “partir e estar com Cristo” (Fp 1:23). Não era
pela morte em si (“não queremos ser despidos”), mas pela ressurreição que viria
logo depois (“mas revestidos”), momento no qual estaremos com o Senhor. Uma
vez que a morte é o caminho para a ressurreição, sim, Paulo desejava a morte, mas
visando algo maior do que a morte em si. Como Azenilto Brito destaca, “Paulo
momento em que iria saudar a Jesus face a face e viver com Ele para sempre”477.
emprego marcada, mas que ainda está vestido com uma camisa feia, velha e suja
de um time de futebol alvinegro com a qual ele havia jogado bola com seus amigos
476
CREWS, Joe. O que a Bíblia diz sobre estar ausente do corpo. Disponível em:
<http://setimodia.wordpress.com/2008/12/16/livreto-o-que-a-biblia-diz-sobre-estar-ausente-do-
corpo>. Acesso em: 19/08/2013.
477
BRITO, Azenilto. O que é estar ausente do corpo. Disponível em: <http://www.c-
224.com/Ausente.html>. Acesso em: 14/08/2021.
909
O estado intermediário no Novo Testamento 910
horas antes. Então, ele diz que precisa “deixar esta camisa para a entrevista com o
chefe”. O que você naturalmente entenderia dessas palavras? Que ele iria para a
entrevista sem camisa nenhuma, com o peito nu, para ser barrado logo na entrada?
Quero pensar que não. Todos facilmente entenderiam que “deixar esta camisa” não
significa comparecer à entrevista sem camisa nenhuma, mas vestido de uma outra
camisa mais adequada para a ocasião, como um terno ou uma camisa social.
Este é o caso de Paulo no texto em questão. Para ele, «deixar este corpo para
habitar com o Senhor» não era estar com o Senhor “despido”, sem corpo nenhum,
mas com o corpo glorioso da ressurreição, pois carne e sangue corruptíveis não
podem herdar o Reino de Deus (1Co 15:50). Por isso ele diz que queria deixar este
corpo, não porque queria ser “despido”, mas “revestido” do corpo com o qual
poderia ver o Senhor – da mesma forma que o homem tira a camisa não porque
espera ver o chefe despido, mas vestido novamente (=revestido) com uma camisa
mais adequada.
A razão por que tanta gente ainda vê uma alma fantasmagórica na presença
de Deus quando Paulo fala sobre «deixar este corpo para habitar com o Senhor» é
divididos em corpo e alma, com esta última abandonando o corpo na morte – fruto
Por isso é tão importante trocarmos as lentes dualistas pela ótica hebraica
910
O estado intermediário no Novo Testamento 911
Escrituras não com o olhar dos seus autores ou destinatários originais, mas com o
nosso viés moderno contaminado por todo tipo de filosofia mundana popularizada
ao longo dos séculos. Sem nos desprendermos dos nossos conceitos pré-
“prova” de uma doutrina que, na verdade, é facilmente destroçada por esse mesmo
Introdução – Vimos que o desejo de Paulo não era de estar com Cristo fora
Mas o que dizer do ladrão da cruz? Ele não recebeu a promessa de estar naquele
mesmo dia com Jesus no Paraíso, como todos nós aprendemos e lemos em nossas
traduções da Bíblia? Sendo assim, isso não confrontaria tudo o que vimos até aqui,
abrindo margem para pensar que pelo menos uma pessoa está no céu sem ter
passado pela ressurreição? Seria essa a prova que derruba todo o nosso estudo
conhecem, mas que é crucial para entender o texto, é que o original grego no qual
Isso significa que o texto literalmente traduzido diz apenas “em verdade te digo
hoje comigo estarás no Paraíso” (amen soi lego semeron meta emou eimi en ho
911
O estado intermediário no Novo Testamento 912
possíveis.
Assim, o texto que consta em nossas Bíblias como “em verdade te digo, hoje
quando vieres no teu Reino”), também pode ser traduzido como “em verdade te
digo hoje, estarás comigo no Paraíso”. Se isso for verdade, Jesus não estava
prometendo que o ladrão da cruz estaria naquele mesmo dia com Ele no Paraíso, e
sim prometendo, naquele dia, que o ladrão estaria com Ele no Paraíso. É como se
dívida”. Isso não significa necessariamente que a dívida será paga hoje, mas que a
posição de uma simples vírgula, que os tradutores imortalistas, é claro, optaram por
(mesmo que isso confronte tudo o que a Bíblia ensina a respeito). Alguns foram
ainda mais ousados, inserindo um “que” depois do “te digo” (“te digo que hoje
comigo no Paraíso”), para dar mais ênfase à ida imediata do ladrão ao Paraíso, ainda
A inversão do ônus da prova – Sem ter como provar que a tradução correta
é aquela que coloca o ladrão naquele mesmo dia no Paraíso, alguns imortalistas
chegaram ao cúmulo de exigir que nós provemos que a única tradução possível é a
912
O estado intermediário no Novo Testamento 913
cabe a eles o ônus da prova, da mesma forma que fizemos nos textos que provam
É como em um jogo de futebol, onde quem ataca precisa fazer o gol, mas
do seu time resolvam lá na frente. É por isso que nenhum juiz condena um réu que
não tenha contra ele provas contundentes, ainda que o réu não tenha como provar
sua inocência. Isso porque cabe sempre a quem acusa fornecer as provas
escondeu uma bomba em algum lugar de São Paulo, caberia a mim provar essa
acusação, mesmo que você não tenha como provar que não escondeu bomba
nenhuma.
Por isso nenhum intérprete sério daria um caso por encerrado por um texto
ambíguo, assim como nenhum juiz sério condenaria um réu por uma evidência
ambígua, que passa longe de ser conclusiva. Isso lembra certa anedota de uma
cidade”, como muitos brasileiros que não gostam de usar pontuação no WhatsApp
e fazem a gente enlouquecer tentando adivinhar o que eles estão querendo dizer.
Na dúvida, você queimaria a cidade ou não? A resposta lógica, a não ser que você
913
O estado intermediário no Novo Testamento 914
por que isso nos parece tão óbvio é porque medidas afirmativas e drásticas exigem
em vez de numa rocha firme, como Jesus ensinou (Mt 7:24-27). Por isso não se
que o texto que eles usam passa longe de ser conclusivo, e, para piorar, depõe
contra o restante de toda a Bíblia, como vimos até aqui. Note que não é preciso
vírgula depois do “não”; basta o fato de não haver provas conclusivas do contrário.
vírgula em Lc 23:43 tem que ser colocada depois do “hoje”: basta o fato dos
argumento deles nulo, baseado numa mera suposição e não em alguma coisa
concreta – ou seja, sustentado sobre a areia da praia. É lamentável ter que explicar
que os imortalistas nos obrigam ao apelar para a inversão do ônus da prova como
o último recurso.
914
O estado intermediário no Novo Testamento 915
improvável.
tendo um padre como orientador e sendo alvo de forte hostilidade, e ainda assim
banca. O que ele fez foi comparar a estrutura de Lc 23:43 – o “hoje” entreposto
claro pelo contexto, dos quais todas, sem exceção, vinculam o semeron (hoje) ao
verbo anterior. Das outras 3 cujo significado preciso é incerto, duas são traduzidas
915
O estado intermediário no Novo Testamento 916
De todos os 21 textos, apenas 2Sm 16:3 possui nas traduções vernáculas uma
apenas 4,7%. Ainda mais significativo é notar que, desses 21 textos, 15 tem o verbo
uma força de atração sobre o semeron maior que o segundo verbo”478. Ao todo, são
478
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 60.
916
O estado intermediário no Novo Testamento 917
mais de 70 casos na LXX onde o pronome aparece junto ao semeron, e “em todos
eles, sem exceção, o advérbio foi ligado à frase anterior onde estava o pronome”479.
vir em seguida, “a ligação sempre foi com o pronome e verbo antecedentes”480 (por
exemplo, Gn 4:14, 25:31, 30:32, 31:46, 41:41, 42:13, 42:32, 47:23; Êx 14:13, 32:29; Js
pronome que o antecede, tal como em Lc 23:43 (“te digo hoje”), onde o semeron
esteja ligado ao verbo seguinte. Isso faz de Lc 23:43 um texto único que foge do
vinculado ao verbo seguinte (“hoje estarás”, em vez de “te digo hoje”). Isso é
Septuaginta”481.
21:28, cujo texto grego diz teknon hupago semeron ergazomai en ho ampelon
mou, que literalmente traduzido seria “filho vai hoje trabalha na minha vinha”. A
traduzido como “filho, vai hoje, trabalha na minha vinha”, ou como “filho vai, hoje
479
ibid.
480
ibid.
481
BROWN, Raymond E. O Nascimento do Messias: um comentário sobre as narrativas da infância nos
evangelhos de Mateus e Lucas. Nova York: Doubleday, 1993, p. 623.
917
O estado intermediário no Novo Testamento 918
trabalha na minha vinha”. A primeira soa muito mais natural, e assim também é
pontuada pela Berean Interlinear Bible, que coloca uma pausa após o semeron482.
O segundo texto é Lc 22:61, onde o grego traz prin alektor phoneo semeron
aparneomai ego tris, que é literalmente traduzido como “antes que o galo cante
hoje você negará a mim três vezes”. O texto pode ser traduzido como “antes que o
galo cante hoje, você negará a mim três vezes”, ou como “antes que o galo cante,
hoje você negará a mim três vezes”. Neste caso, a questão é se o “hoje” qualifica o
verbo “cantar” ou o “negar”. Mas qualquer dúvida neste sentido é dissipada pelo
verso 34, que diz a mesma coisa com outras palavras: “Digo-te, Pedro, que não
cantará hoje o galo antes que três vezes negues que me conheces” (v. 34).
Uma vez que o verso 61 é uma repetição daquilo que foi expresso no 34 (o próprio
verso inicia dizendo que «Pedro lembrou-se da palavra do Senhor, como lhe havia
deve ser colocada depois do semeron, como faz a Berean Interlinear Bible483 e a
O último texto é At 26:29, que diz pas tou akouo mou semeron ginomai
toioutos, isto é, «todos os que ouvem a mim hoje tornarem-se como eu», que pode
ser traduzido como “todos os que ouvem a mim hoje, tornarem-se como eu”, ou
como “todos os que ouvem a mim, hoje tornarem-se como eu”. Mais uma vez, a
482
Disponível em: <https://biblehub.com/bib/matthew/21.htm>. Acesso em: 01/09/2021.
483
Disponível em: <https://biblehub.com/bib/luke/22.htm>. Acesso em: 01/09/2021.
918
O estado intermediário no Novo Testamento 919
Berean Interlinear Bible pontua depois do “hoje”484, assim como virtualmente todas
semeron situado entre dois verbos modifica o verbo seguinte, ocasião na qual Jesus
disse a Zaqueu: “Desce depressa, porque hoje me convém pousar em tua casa” (Lc
19:5). Porém, aqui o semeron não está entre dois verbos separados apenas pelo
“comigo” é a junção de meta (com) e emou (eu). Em vez disso, o grego traz speudo
katabaino semeron gar en ho oikos sou dei me meno (depressa desce hoje pois na
desfazendo assim qualquer equivalência com Lc 23:43, onde não consta conjunção
alguma entre o semeron e os dois verbos que pode qualificar. Na verdade, o que
(“hoje pois” em lugar de “pois hoje”, que seria o mais natural), o que faz com que a
tradução da NVI seja precisa (“desce depressa, porque hoje me convém pousar em
tua casa”). Uma vez que não há qualquer interposição de conjunção alguma em Lc
aparece entre dois verbos de uma forma análoga a Lc 23:43, ele qualifica o verbo
484
Disponível em: <https://biblehub.com/bib/acts/26.htm>. Acesso em: 01/09/2021.
919
O estado intermediário no Novo Testamento 920
seja, em textos onde ele não necessariamente está entre dois verbos), ainda assim
a ligação com a parte anterior da sentença continua sendo a mais forte. O termo
que sete desses doze textos são justamente dos livros de Lucas, dos quais apenas
que o antecede, o que se demonstra ainda mais forte nos próprios escritos de Lucas.
em Lc 23:43. Isso faz da leitura mortalista do texto de longe a mais natural, a mais
O “hoje” como advérbio de reforço – “Tudo bem”, dirá você, “essa pode ser
a tendência natural, mas não pode se aplicar a Lc 23:43, porque não faz o menor
485
São eles: Mt 6:30, 16:3, Mc 14:30, Lc 4:21, 12:28, 19:5, 19:9, At 13:33, 27:33, Hb 1:5, 3:15, 4:7, 5:5 e Tg
4:13. Do outro lado, temos: Mt 6:11, 11:23, 21:28, 27:8, 27:19, 28:15, Lc 2:11, 5:26, 13:32, 13:33, 22:34,
22:61, At 4:9, 19:40, 20:26, 22:3, 24:21, 26:2, 26:29, Rm 11:8, 2Co 3:14, 3:15, Hb 3:7, 3:13 e 13:8.
486
São elas: Mc 14:30, At 13:33, Hb 1:5 e 5:5. Do outro lado, temos: Mt 6:11, Lc 2:11, 13:33, At 4:9, 19:40,
22:3, 26:29 e Hb 3:7.
487
At 13:33. Do outro lado, temos: Lc 2:11, 13:33, At
9204:9, 19:40, 22:3 e 26:29.
O estado intermediário no Novo Testamento 921
sentido acrescentar o ‘hoje’ a uma frase que estava sendo dita naquele dia”. Esse
verdade te digo hoje” nos soa bastante estranha – uma redundância aparentemente
inútil, que não serve a qualquer propósito –, o que nos faz pensar que os leitores
originais entenderiam Lc 23:43 como uma exceção à regra, mesmo que estivessem
muito mais habituados a vincular o semeron ao verbo anterior do que com o verbo
seguinte.
“estarás” (mesmo se lêssemos o verso sem vírgulas), o que devemos nos perguntar
não é qual leitura parece mais natural a nós brasileiros com uma cultura ocidental
do século XXI, mas o que soaria mais natural para os leitores originais, imersos numa
uma lacuna de vinte séculos. Supor que os leitores originais tinham as mesmas
sua ignorância, que Jesus jamais poderia ter dito “te digo hoje”, pois seria
argumentam eles –, então não precisava dizer “te digo hoje”. O que eles precisam
explicar é por que o próprio Senhor Deus se dirige de forma semelhante ao povo
tão “desnecessário” quanto em Lc 23:43. Tome como exemplo Dt 26:18, que é assim
921
O estado intermediário no Novo Testamento 922
“E o Senhor hoje te declarou que tu lhe serás por seu próprio povo, como te
hebraico coloca o verbo antes do advérbio ('amar yowm), ou seja, “te declaro hoje”.
Obviamente, Deus não precisava ter dito “te declaro hoje”, da mesma forma que
Jesus não precisava ter dito “te digo hoje”. O simples “dizer” ou “declarar” já era
suficiente para entender o sentido da frase, mas, mesmo assim, eles preferiam
adicionar o “hoje”.
é dito em seguida (e que poderia ser dito mesmo sem o anúncio). Em outras
palavras, Jesus poderia ter prometido o Paraíso ao ladrão da cruz sem ter dito o “em
verdade te digo”, assim como Deus poderia ter declarado que Israel é o Seu povo
sem precisar da introdução “eu te declaro” (com ou sem o “hoje”). A razão por que
E isso não é feito uma ou duas vezes na Bíblia, mas muito mais do que
pensamos. A razão por que isso nos passa despercebido é porque os tradutores
redefinem a ordem das palavras na hora de traduzir pro português, o que leva à
922
O estado intermediário no Novo Testamento 923
no original hebraico, assim como no grego da LXX, está situado depois do verbo,
“...te ordeno hoje” (Dt 4:40, 6:2, 6:6, 8:1, 8:11, 10:13, 11:8, 11:13, 11:28, 13:18,
15:5, 19:9, 27:1, 27:4, 27:10, 28:1, 28:13, 28:14, 30:8, 30:11, 30:16)
Em todos esses textos, assim como em muitos outros do tipo, o “hoje” era
inútil para os hebreus e nem foi usado por Deus à toa, pois sua função era enfatizar
“E vo-lo tenho declarado hoje; mas não destes ouvidos à voz do Senhor vosso
Deus, em coisa alguma pela qual ele me enviou a vós” (Jeremias 42:21 – ACF)
923
O estado intermediário no Novo Testamento 924
A NVI traduz esse mesmo verso como «eu lhes disse hoje mesmo», onde o
“hoje” não se refere ao dia em que eles não deram ouvidos à voz do Senhor, mas ao
dia em que aquela sentença estava sendo pronunciada em caráter formal. O mesmo
encontramos no NT, quando Paulo diz aos presbíteros de Éfeso que “eu lhes
declaro hoje que estou inocente do sangue de todos” (At 20:26). Embora Paulo
pudesse dizer apenas “eu lhes declaro”, sem que o sentido da frase se perdesse, ele
hábito comum entre os judeus, o que muitos imortalistas leigos nos dias de hoje
pensar que o acréscimo do “hoje” ao “te digo” seria uma redundância inconcebível.
Não à toa, o grande erudito da Igreja Assíria do Oriente, George Lamsa (1892-1975),
falante nativo do aramaico e tradutor da Peshitta, reconheceu que “de acordo com
a maneira aramaica de falar, a ênfase neste texto [Lc 23:43] é sobre a palavra ‘hoje’
e deveria ser lido: ‘Em verdade eu digo a ti hoje, tu estarás comigo no Paraíso’”488.
488
LAMSA, George M. The Holy Bible from Ancient Manuscripts. Philadelphia: A. J. Hofmann Co, 1957.
489
Disponível em: <http://www.e-cristianismo.com.br/teologia/apologetica/a-pontuacao-de-lucas-23-
43.html>. Acesso em: 02/09/2021.
924
O estado intermediário no Novo Testamento 925
atua como um advérbio temporal de reforço e não inicia uma declaração, mas é
colocado propositalmente ao final de uma oração. Da mesma forma que Deus não
dizia “hoje te ordeno” ou “hoje te declaro”, mas “te ordeno hoje” e “te declaro hoje”,
é de se esperar que Jesus não dissesse “hoje te digo em verdade”, mas “em verdade
hebraica e grega.
Tome como exemplo o texto de Mt 27:19, que assim é traduzido pela NVI:
“Estando Pilatos sentado no tribunal, sua mulher lhe enviou esta mensagem:
‘Não se envolva com este inocente, porque hoje, em sonho, sofri muito por
Embora a NVI traduza por “hoje, em sonho, sofri”, o grego traz pascho
semeron kata onar (sofri hoje em sonho). Esse padrão acontece o tempo todo no
ou «ouvem a mim hoje» em vez de “hoje me ouvem” em At 26:29). Isso não quer
dizer que a NVI “adulterou” este texto, porque, de fato, o mais natural no português
é que o advérbio seja colocado antes do verbo (“hoje eu sofri”, e não “eu sofri hoje”).
Mas nem o hebraico e nem grego bíblico funcionam da mesma forma que o idioma
em que falamos, fato um tanto quanto óbvio, mas mesmo assim ignorado por
925
O estado intermediário no Novo Testamento 926
Mesmo idiomas modernos, como o inglês, tem suas próprias regras que
diferem do português. Por isso um “carro azul” não é um “car blue”, mas um “blue
car”. Isso deve responder àqueles que infantilmente argumentam que se o “hoje”
estivesse relacionado ao “digo”, ele deveria ser colocado antes dele, e não depois.
Como vimos, a razão por que Lucas não escreveu “em verdade hoje eu digo
a ti” é porque na vasta maioria das vezes que o semeron é usado na Bíblia ele sucede
o verbo que qualifica, o que é muito mais comum no grego e no hebraico do que o
contrário – algo que os imortalistas ignoram, talvez por pensarem que o grego e o
hebraico funcionam igual ao português. E a razão por que ele não escreveu “em
verdade eu digo a ti hoje que” é porque o “que” nunca aparece nos textos em que
o semeron qualifica o verbo anterior, ainda mais naqueles em que o “hoje” atua
NT onde o semeron está ligado ao verbo anterior, para a minha completa falta de
surpresa descobri um total de zero textos que adicionam o “que” (hoti) logo após o
490
Disponível em: <http://www.cacp.org.br/lc-23-43-o-paraiso>. Acesso em: 31/08/2021.
926
O estado intermediário no Novo Testamento 927
“hoje” (semeron)491. Isso é ainda mais evidente nos textos em que o semeron
cumpre a função de enfatizar uma frase de anúncio, como na absoluta maioria dos
“E o Senhor hoje te declarou que tu lhe serás por seu próprio povo, como te
Embora a ACF traduza como “hoje te declarou que”, como reivindica o CACP
“digo”, o hebraico literalmente diz yêhovah (Senhor) ’amar (proclama) yowm (hoje)
hayah (tornem-se) lōw (seu) ’am (povo). Ou seja, “o Senhor proclama hoje: tornem-
se seu povo”. Com o advérbio depois do verbo ao qual modifica, e sem o “que” (kiy)
Outro exemplo é Dt 30:16, que a ACF traduz como “te ordeno hoje que ames
ao Senhor teu Deus”, mas que o hebraico traz ’anokiy (eu) tsavah (ordeno) yowm
(hoje) ’aheb (amem) ’eṯ (ao) yêhovah (Senhor) ’elohiym (Deus). Ou seja, “eu ordeno
Bíblia teria que ser reescrita e esses versos deveriam incluir a conjunção “que” após
do hebraico. Em vez disso, vemos todas essas frases de anúncio nos originais
491
A única exceção seria At 20:26, se não fosse pela interposição de hemera entre o semeron e o hoti.
927
O estado intermediário no Novo Testamento 928
grego e por isso exige que eles sigam o mesmo padrão do português falado no
verbo sem precisar introduzir a conjunção “que” entre eles, tão normal que não há
haverem dúzias de exemplos onde o “hoje” qualifica o verbo anterior). Mas será que
o mesmo pode ser dito no sentido contrário? Em outras palavras, será que quando
claramente o contrário. Tome como exemplo Lc 4:21, que a ACF assim traduz:
português omite qualquer pronome relativo, dando a entender que o “hoje” está
entre dois verbos, tal como em Lc 23:43. Se isso fosse verdade, teríamos aqui um
928
O estado intermediário no Novo Testamento 929
texto perfeitamente simétrico com Lc 23:43, que seria um prato cheio para os
Palavra Tradução
archomai começou
de então
lego a dizer
pros a
hautou eles
hoti que
semeron hoje
pleroo se cumpriu
he a
graphe Escritura
À essa altura, você já deve ter notado a presença do hoti antes do semeron,
justamente para indicar que o semeron aqui não qualifica o verbo anterior (como
lhe é de costume), mas o verbo seguinte. Seria exatamente isso o que deveríamos
esperar se Lc 23:43 estivesse dizendo algo semelhante: em verdade te digo que hoje
estarás comigo no Paraíso, onde o hoti serviria para deixar claro que o “hoje”
qualifica o verbo seguinte, já que, via de regra, ele qualifica o verbo anterior. Ou
então tome como exemplo outro texto de Lucas, onde lemos na ACF:
“E disse-lhe Jesus: Hoje veio a salvação a esta casa, pois também este é filho
de Abraão” (Lucas 19:9)
929
O estado intermediário no Novo Testamento 930
verbo seguinte. Contudo, mais uma vez, o grego corta todo o barato dos
Palavra Tradução
epo disse
de então
pros a
autos ele
ho o
iesous Jesus
hoti que
semeron hoje
soteria salvação
ho na
oikos casa
toutoi esta
ginomai houve
aqui o advérbio qualifica o verbo seguinte, algo que seria totalmente desnecessário
930
O estado intermediário no Novo Testamento 931
“E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que o galo
A razão por que este texto é o mais significativo de todos é que ele não
apenas tem o “que” antes do “hoje” para indicar que o advérbio se relaciona à
continuidade do verso (o que dessa vez não é disfarçado pelos tradutores), mas
grego de Marcos realmente diz após o amen lego soi é hoti semeron en ho nux, isto
é, “em verdade te digo que tu hoje à noite...”, o que reforça duas verdades
(“tu hoje”, em vez de “hoje tu”), à exemplo do que vemos em Lc 23:43 (onde “eu te
digo hoje” aparece em lugar de “hoje eu te digo”). Como vimos, o grego costuma
jogar o advérbio para o fim da oração, enquanto nós costumamos fazer o contrário.
amen amen
lego soi
soi lego
931
O estado intermediário no Novo Testamento 932
hoti –
semeron semeron
Este é um claro indicativo de que Marcos sabia que a relação mais natural de
semeron era com o verbo seguinte, razão por que precisava incluir a conjunção para
demonstrar que aqui o sentido era outro. Já Lucas, por sua vez, não precisou inserir
conjunção nenhuma (como ele mesmo fez em Lc 4:21 e em Lc 19:9 para indicar que
qualificava o verbo anterior, como lhe é mais natural, o que dispensava o uso da
conjunção.
frase de anúncio ele não costuma vir acompanhado pela conjunção, assim como
porque sua intenção era desvincular o semeron do verbo anterior, enquanto Lucas
mesma frase introdutória porque sua intenção era justamente associar o semeron
Portanto, com tantos exemplos em vista, torna-se claro que a conjunção hoti
seguinte, e não o contrário. Dito em termos simples, se a ideia fosse dizer “hoje
estarás comigo no Paraíso”, Lucas teria feito o mesmo que Marcos (e o mesmo que
ele próprio fez em outras duas ocasiões) e inserido o “que” depois do “hoje”, ficando
assim: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”. Isso porque, como
932
O estado intermediário no Novo Testamento 933
verbo anterior, devendo ser destacado quando algo diferente do padrão acontece,
e não quando o padrão é seguido à risca. Por isso o hoti nunca sucede
Assim, a simples frase “em verdade te digo hoje estarás” seria naturalmente
entendida por um leitor judeu ou grego com uma pausa depois do “hoje”, não só
por ser o modus operandi do semeron em toda a Bíblia quando acompanhado pelo
pronome e situado entre dois verbos (onde ele nunca qualifica o verbo seguinte se
não estiver intercalado por uma conjunção), mas também por conhecerem o
padrão das frases de anúncio no AT, onde o “hoje” frequentemente aparece como
conjunção “que” depois do “em verdade te digo” num texto onde o “hoje” estava
desvinculado do “digo”, e por isso Lucas, ao contrário, não usou conjunção alguma
A expressão “em verdade te digo” – Diante disso tudo, o que resta para os
ao “em verdade te digo”, o que de alguma forma implicaria que este não pode ser
repetido inúmeras vezes em todos os artigos, até a exaustão, simplesmente por não
933
O estado intermediário no Novo Testamento 934
expressão.492
todos os textos imortalistas consultados ignoram por completo: Lc 23:43 não diz
amen lego soi, como argumenta o CACP, mas amen soi lego. É a única ocorrência
em toda a Bíblia de amen soi lego em lugar de amen lego soi, o que faz de Lc 23:43,
de fato, uma ocorrência única e singular (ou, para usar a linguagem do CACP, «uma
ocorrência bíblica onde o grego literalmente diz “em verdade te digo” (soi lego). Em
todas as outras ocasiões, ele diz “em verdade digo a você” (lego soi).
A razão por que esse fato é tão pouco conhecido é porque os tradutores
escapando assim aos olhos do leitor leigo qualquer nuance de diferença. O Dr.
Rodrigo sublinha que “a própria tônica de desconforto gramatical foi sentida pelo
492
Disponível em: <http://www.cacp.org.br/lc-23-43-o-paraiso>. Acesso em: 02/09/2021.
934
O estado intermediário no Novo Testamento 935
enunciado de Lucas para lego soi (conformando-o assim com os demais do NT)”493.
Isso também explica por que tantas traduções mantém em Lc 23:43 o mesmo
enunciado que nas demais passagens, já que boa parte delas utiliza como base o
Sabemos, portanto, que Lc 23:43 é realmente um caso único, mas isso ainda
não responde à questão que é naturalmente levantada: por que razão teria Jesus
duas possibilidades. A primeira é que ele fez isso sem nenhum propósito, de forma
que, neste caso, aparece antes do verbo. Aqui temos a forma soi lego
lego soi (verbo + pronome). Isso cria uma proximidade muito maior
justamente para criar uma proximidade maior do “hoje” com o “digo”, em lugar do
enquanto o “estarás” aparece três palavras após o advérbio (i.e, após o meta e o
493
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 72.
494
ibid, p. 70.
935
O estado intermediário no Novo Testamento 936
emou). Essa diferença sutil e proposital reforça a ligação do semeron com o verbo
23:43 segue o mesmo padrão de todas as outras ocorrências. Jesus mudou sua
fórmula habitual aqui pela mesma razão que acrescentou o “hoje”: porque se
conjunção hoti que já mostramos que deveria suceder o semeron caso ele
similares. Essa mesma conjunção é também largamente usada em Lucas após o “em
lego soi (ou humin, quando se dirige a mais pessoas) aparece seis vezes no terceiro
evangelho fora de Lc 23:43, e em cinco delas conta com a conjunção hoti após a
amen lego humin hoti oudeis “Em verdade vos digo que
936
O estado intermediário no Novo Testamento 937
amen lego humin hoti oudeis “Na verdade vos digo que
Lc 18:29 esti hos aphiemi oikia e goneus ninguém há, que tenha deixado
amen lego humin hoti ou me “Em verdade vos digo que não
Lc 21:32
parerchomai e genea passará esta geração...”
O único texto além de Lc 23:43 que o amen lego não é acrescido pelo hoti é
Lc 18:17, mas neste caso o evangelista acrescenta a partícula disjuntiva an, que
João) os evangelistas são bem mais flexíveis, ora acrescentando o hoti ao amen
lego, ora não. Mas “Lucas é mais metódico em suas construções sintáticas e isso
495
ibid.
937
O estado intermediário no Novo Testamento 938
deve ser notado pelo exegeta”496. Sendo uma característica de Lucas ser metódico,
onde ela teria uma importância crucial e decisiva, muito mais fundamental do que
em qualquer outro texto. De duas, uma: ou ele mudou o seu padrão para criar uma
onde o “hoje” complementa o “em verdade te digo”, razão por que não poderia
“hoje”, com o diferencial de que aqui Cristo inicia com sua própria fórmula habitual
(o “em verdade te digo”), levemente alterada para criar uma proximidade maior com
o ladrão arrependido. Uma vez que não há conjunção alguma nos textos do gênero
ideia de que o “em verdade te digo” de Lc 23:43 era só mais um entre tantos outros
do mesmo livro.
496
ibid.
938
O estado intermediário no Novo Testamento 939
exato enunciado que tinha por costume e Lucas não tivesse o hábito de acrescentar
a conjunção nestes casos, isso de modo algum implicaria que Jesus não pudesse
Jesus responde a alguém que pede para lembrar-se dele no futuro, quando Jesus
grego erchomai é traduzido 512 vezes no NT pelo verbo “vir”, e apenas duas pelo
ladrão, portanto, não estava pedindo que Cristo se lembrasse dele imediatamente,
assim que entrasse no Reino, mas futuramente, quando viesse em sua glória. Então
Jesus responde com o reforço do hoje, como que dizendo que ele não precisaria
ficar na expectativa de ser lembrado em um dia tão distante, pois recebia naquele
939
O estado intermediário no Novo Testamento 940
consigo no Paraíso.497
vieres no teu poder real»498, na parte em que o ladrão diz “quando vieres no teu
reino”. Essa vinda no “poder real” era justamente o que os judeus pensavam que o
Messias faria em sua primeira vinda, mas que Jesus reservou para a segunda. Eles
pensavam que o Messias faria de uma só vez tudo o que estava escrito sobre ele, o
à beira da morte, o ladrão convertido tinha a noção de que isso seria realizado no
Era neste momento que ele esperava ser lembrado por Jesus, como que
dizendo: “Quando o Senhor voltar em toda a sua glória para ressuscitar os mortos
(i.e, em resposta a um pedido relacionado ao futuro), é evidente que ele pode ser
dado como uma exceção à regra, mesmo se a estrutura formal fosse a mesma das
497
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 169.
498
FOSTER, Lewis. Bíblia de Estudo NVI (org. Kenneth Barker). São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 1779.
940
O estado intermediário no Novo Testamento 941
Messias, mas ainda hoje em uma subdivisão do reino dos mortos que
Seu povo, mas somente algumas com o acréscimo do “hoje” como advérbio
temporal de reforço. E se olharmos mais de perto, veremos que elas são, via de
português seja a dupla negação, usada em raros casos, mas não completamente à
toa.
Você muitas vezes já deve ter ouvido alguém falar coisas como “não vou
não”, “não sei não”, “não fiz não” e assim por diante. Embora o primeiro “não” já seja
mais que o suficiente para expressar o ponto, às vezes optamos por adicionar um
segundo “não” que, embora pleonástico, está ali para enfatizar a negativa – razão
por que geralmente falamos assim quando estamos irritados ou envoltos numa
discussão acalorada. É como se a pessoa estivesse dizendo nas entrelinhas que está
determinada a negar a ação, o que dá um destaque adicional à negativa que ela não
499
REINHARDT, Ludwig. “Comentário a Lucas 23:43”. Reinhardt Evangelien (1910). Disponível em:
<https://bibliaestudos.com/rei10ev/lucas/23>.
941
O estado intermediário no Novo Testamento 942
judeus de forma pleonástica (“digo hoje”, “ordeno hoje”, “declaro hoje”, etc). O
objetivo não é convencer o interlocutor de que aquilo está realmente sendo dito
naquele dia, mas colocar uma ênfase adicional à declaração que vem logo em
seguida. Obviamente, você não colocará uma ênfase adicional em tudo o que você
diz, assim como Deus não colocava uma ênfase adicional às Suas declarações senão
acrescentou um “hoje” como advérbio de reforço apenas uma vez, ao dirigir suas
O fato de Jesus colocar uma ênfase adicional apenas nesta ocasião específica
é bastante significativo. Isso faz do ladrão da cruz, de certa forma, alguém especial,
que não só recebeu a garantia de estar com o Mestre no Paraíso, mas a recebeu em
caráter solene, a despeito das circunstâncias que não podiam ser mais
(mnaomai), usada pelo ladrão arrependido no verso anterior (quando pede para
que Jesus se lembre dele), é um imperativo aoristo passivo, que de acordo com
Daniel Wallace “tem a força de fazer de algo sua prioridade número um”500.
apenas pede para Jesus se lembrar dele, mas também pede que se lembre dele com
recurso bem conhecido dos judeus, mas que Jesus só usou aqui –, ele está
500
WALLACE, Daniel B. Gramática Grega: uma sintaxe exegética do Novo Testamento. São Paulo: Batista
Regular, 2016, p. 479.
501
Disponível em: <http://www.e-cristianismo.com.br/teologia/apologetica/a-pontuacao-de-lucas-23-
43.html>. Acesso em: 03/09/2021.
942
O estado intermediário no Novo Testamento 943
todos os demais. Ele foi o único que teve o privilégio de não só receber a garantia
de que estaria no Paraíso – algo que Jesus jamais assegurou a outra pessoa em
particular –, mas de receber essa garantia com uma ênfase adicional que ninguém
teoricamente possíveis (o “te digo hoje” e o “hoje estarás”), apenas uma faz jus ao
acima de tudo, ao próprio estilo de Lucas. Assim, a não ser que Lc 23:43 contrarie
que estamos falando aqui de uma linguagem oriental caraterística que pode soar
o entendimento dos primeiros cristãos são alguns manuscritos que datam até o
século V e que vinculam o “hoje” ao “te digo”. Apesar do original grego do NT não
ser pontuado, com o tempo foram surgindo formas primitivas de pontuação que
eram usadas em alguns manuscritos, o que nos ajuda a entender de que forma os
502
PAROSCHI, Wilson. “A importância de uma vírgula: uma análise de Lucas 23:43”. Ministry Magazine,
jun. 2013, p. 9.
943
O estado intermediário no Novo Testamento 944
Dos 351 manuscritos gregos antigos que contém Lc 23:43, apenas três são
Codex Vaticanus é um dos quatro grandes códices unciais e é tido pela erudição
acadêmica como um dos melhores textos gregos do NT. Nesse mesmo manuscrito
meio de duas palavras, indicando uma pausa. Esse ponto aparece, coincidência ou
Uma objeção comum dos imortalistas a mais essa evidência incisiva é alegar
uma mancha causada por um copista descuidado (que, por um acaso, foi cair justo
na hora errada e no lugar errado). Para tanto, citam como exemplo outros supostos
“pontos” em trechos onde não deveria constar pontuação alguma (embora quase
503
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 29.
944
O estado intermediário no Novo Testamento 945
Quem popularizou essa tese foi Bruce Metzger, um respeitado crítico textual
que acreditava que o ponto em Lc 23:43 provinha de um editor tardio que maculou
o documento com inserções que não faziam parte do manuscrito original, o que
diferença:
do ms. Por isso, estes autores entendem que este ponto não é
manuscrito é irrelevante, dado que esses sinais vêm de um editor tardio, enquanto
504
ibid, p. 28.
945
O estado intermediário no Novo Testamento 946
Siríaco Curetoniano, uma das primeiras traduções do NT que se tem registro, que
cem anos da morte dos apóstolos)505. Esse é, de longe, o mais antigo documento
Aqui, não apenas o “hoje” modifica o “digo”, mas também somos informados
(falaremos mais sobre isso num instante). Essa é a mesma tradução que consta na
recensão siríaca A266, datada de um pouco mais tarde, no século V507. Uma outra
pleonástico irrelevante, como alguns imortalistas nos acusam. Isso jamais seria feito
se o tradutor pensasse que o “hoje” está vinculado ao “estarás”, o que faria toda a
É interessante notar que isso ocorre com certa frequência até mesmo nos
manuscritos gregos, onde o copista não precisava traduzir nada, mas só copiar o
texto509. Mesmo o erudito batista Earle Ellis reconhece que “alguns manuscritos
505
SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. O Novo Testamento Grego: quinta edição revisada com aparato crítico.
São Paulo: SBB, 2018.
506
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 27.
507
ibid.
508
ibid, p. 28.
509
WESTCOTT, F; HORT, A. The New Testament in Original
946 Greek. New York: Macmillan Co, 1947, p. 589-
595.
O estado intermediário no Novo Testamento 947
Reinhardt acentua que “o ‘hoje’ está faltando até mesmo em muitos manuscritos e
traduções antigas, prova de que não lhe foi dado uma importância crucial”511.
Mesmo muito tempo mais tarde, em plena Idade Média, quando a crença na
gregos copiados por monges com a pontuação depois do “hoje”, como é o caso do
manuscrito grego 339, do século XIII, que coloca um ponto depois do semeron e
gregos que pontuam da forma imortalista, o que é bastante natural, dado que a
antigos que vertem dessa forma datam de duzentos a quatrocentos anos depois do
Codex Vaticanus, do século IV. Tratam-se do Codex Bezae (D), do século VI, e do
Codex Parisiense (L), do século VIII512. Isso parece indicar que os copistas mais
antigos sabiam como o verso deve ser entendido, mas os copistas mais tardios
deparamos com uma antiga obra cristã escrita entre os séculos II e IV513, hoje
510
ELLIS, Edward Earle. The Gospel of Luke. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1983.
511
REINHARDT, Ludwig. “Comentário a Lucas 23:43”. Reinhardt Evangelien (1910). Disponível em:
<https://bibliaestudos.com/rei10ev/lucas/23>.
512
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 28.
513
ibid, p. 37. 947
O estado intermediário no Novo Testamento 948
seções, sendo duas as que mencionam Lc 23:43: os Acta Pilati (Atos de Pilatos) e o
século II, já que é citado por Justino e Tertuliano (ambos do segundo século), mas
A mesma enciclopédia atesta que essa obra, embora apócrifa, era muito
explica a grande quantidade de cópias em vários idiomas), e que os Acta são “de
seção se baseia no julgamento de Jesus em Lucas 23, era de se esperar uma citação
É aqui que a coisa começa a ficar interessante. A Enciclopédia Católica afirma que
existem cópias da obra em latim, copta e armênio, mas que o texto original é
comigo no Paraíso”517.
514
REID, George. “Acta Pilati”. The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Co., 1907. v. 1.
Disponível em: <https://www.newadvent.org/cathen/01111b.htm>.
515
ibid.
516
ibid.
517
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da948Assunção. São Paulo, 2001, p. 37.
O estado intermediário no Novo Testamento 949
contudo, é que a versão latina mais tardia relaciona o “hoje” ao “estarás”, como
primeiros séculos para a Idade Média. Da mesma forma, uma versão grega do Acta
Pilati traz: “E disse-lhe: Hoje digo a ti a verdade, que eu deveria ter-te no Paraíso
versão latina mais tardia verter da forma que os imortalistas querem é bastante
significativo. Isso confirma que o texto era originalmente lido de uma certa maneira,
outra forma, a que predomina até hoje. E quem teve um papel decisivo nesse
outro livro521).
estabelecido na Igreja desse período. Por isso era necessário que pelo menos a
versão latina – o idioma oficial adotado pela Igreja Romana – vertesse o texto da
518
ibid, p. 38.
519
ibid, p. 37.
520
ibid, p. 38.
521
Mais especificamente a partir da página 425 da versão digital do volume 2 do meu livro “500 Anos de
Reforma: Como o Protestantismo Revolucionou o Mundo” (disponível na página dos livros:
http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html). 949
O estado intermediário no Novo Testamento 950
forma popular, mesmo que para isso fosse preciso adulterar a versão grega original
(o que para eles não era um problema, já que nem mesmo intelectuais como Tomás
É digno de nota que muitos manuscritos dos Pais da Igreja são cópias
Até onde sabemos, nenhum Pai da Igreja dos primeiros três séculos citou Lc
23:43 – nem mesmo Irineu ou Tertuliano, apesar deles terem citado exaustivamente
quase todos os textos de Lucas referentes à crucificação. Se este fato pode parecer
suspeito por si só, acrescente que boa parte de seus escritos (ou fragmentos deles)
adiante (como fizeram à exaustão com Agostinho e outros Pais de sua preferência).
os Pais do século II e III, dos quais temos tão poucas obras conhecidas.
522
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 30.
950
O estado intermediário no Novo Testamento 951
Porém, Orígenes sozinho escreveu nada a menos que 6.000 obras, embora
documento se perder com o tempo se não for copiado e passado adiante. Por isso
tão pouca coisa dos Pais da Igreja mais antigos sobreviveu na comparação com os
Pais de séculos posteriores, que eram mais copiados pelo simples fato de seus
ensinos serem mais compatíveis com os da Igreja medieval do que os Pais que
seus escritos.
sobre Lc 23:43 que chegaram até as nossas mãos sejam justamente daqueles que
que torna natural que a maior parte deles entendesse o verso da forma imortalista,
já que é um dos poucos textos que eles podem usar a seu favor. O que realmente
surpreende é que, mesmo assim, encontramos Pais desse período que sabiam que
Jesus não tinha prometido que o ladrão estaria com Ele naquele mesmo dia no
quando diz que Jesus “fala ao ladrão acreditando e confessando em Sua própria
paixão, e promete que ele deveria estar consigo mesmo no Paraíso”523. Note que
Cipriano não faz nenhuma menção ao “hoje”, como seria de se esperar caso ele
ao Paraíso. Quem é mais direto quanto a isso é Ambrósio (340-397), que escreve:
523
Epístola 72, 22.
951
O estado intermediário no Novo Testamento 952
contexto deixa claro que ele não o entendia da forma imortalista, porque tinha
acabado de dizer que os profetas não estavam no Reino. Assim, para Ambrósio, esse
versículo não contradizia a verdade de que os justos ainda não estão no Reino, que
uma atual presença dos santos no Reino definitivo de Cristo. Ele interpreta a ida do
ladrão ao Paraíso como sendo o escape da morte eterna que permite uma visão da
524
De Fide, III, 12, 99.
525
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 33.
952
O estado intermediário no Novo Testamento 953
mundo.526
defendia a leitura mais popular de Lc 23:43, testemunha que “alguns assim leem:
estarás comigo no Paraíso’”527. Isso prova que a leitura proposta pelos mortalistas
contrário.
por consagrar a imortalidade da alma como um dogma da Igreja. Ele fala de Cristo
estar “no mesmo dia no Paraíso com o ladrão que o confessou”528, e cita o verso em
questão como “hoje estarás comigo no Paraíso”529. A partir dele, o mais célebre
por que preferia fazer exegese a partir das versões em latim (provenientes de
526
Comentário sobre Mateus.
527
PG 93, 1432, dificuldade 49.
528
Sermons on Selected Lessons of the New Testament, Sermão 18, 7.
529
Lecture or tratactes on the Gospel to st. John. XI, 55-57; XII.
953
O estado intermediário no Novo Testamento 954
maneira até tempos recentes (ou mais especificamente até Ellen White), ou que
ninguém o tenha traduzido assim até a Tradução Novo Mundo, das testemunhas
de Jeová (como veremos no final deste estudo, há dúzias de versões que fizeram
que a leitura alternativa não apenas existia desde muito antes de Ellen White ou de
Charles Russell, como é de fato a leitura mais antiga do texto, que remonta desde
estudo exegético aprofundado tal como a tese do Dr. Rodrigo, como pensam os
Quando a crença numa alma imortal foi incorporada à mentalidade dos cristãos,
ficou muito mais fácil e convidativo imaginar Jesus prometendo que o ladrão estaria
oriental que soava redundante e estranho aos escritores latinos e que até hoje é tão
que relaciona o “hoje” ao “digo”, e nas poucas vezes que a mencionam é para tratá-
la como heresia. Um exemplo é João Cassiano (m. 435 d.C), que rejeitava “com
horror a má pontuação dos hereges”530, ainda que os “hereges” neste caso não fosse
uma referência aos mortalistas, mas àqueles que “não acreditam que Cristo poderia
ser encontrado no Paraíso no mesmo dia em que desceu ao inferno”531. Este era um
problema teólogo tão sério que dividiu a opinião dos teólogos imortalistas por
530
Conferências, XIV.
531
Conferências, XIV.
954
O estado intermediário no Novo Testamento 955
séculos, já que a Bíblia é clara ao dizer que a alma de Jesus desceu ao Hades na
Sheol ou Hades na Bíblia nada mais é que a região subterrânea da terra onde estão
O problema é que, de acordo com o grego de At 2:27, foi ali que esteve a
psiquê (alma) de Jesus após a morte, em alusão ao Salmo 16:10, onde é mencionada
inferno”, já que mais tarde o Hades do NT passou a ser identificado pelos teólogos
imortalistas como o inferno da mitologia grega (alguns até chegam a dizer que
Jesus foi pro inferno tomar as chaves das mãos do diabo, embora o diabo sequer
esteja no “inferno”).
Diante disso, surgia o dilema: como conciliar o texto que diz que a alma de
Jesus esteve no Hades após a morte com Lc 23:43, que supostamente diz que Jesus
estaria no Paraíso naquele dia, e não no Hades? Mais uma vez, os brilhantes
teoria bizarra que tenta conciliar as duas coisas igual malabarista de circo, não
955
O estado intermediário no Novo Testamento 956
quiser, que o Hades (inferno) e o Paraíso eram o mesmo lugar. O problema com
essa teoria é que, para além do fato da Bíblia nunca qualificar o Hades como um
“paraíso”, ela os contrasta diretamente. E quem faz isso é o próprio Senhor Jesus,
que disse:
“E tu, Cafarnaum, será elevada até ao céu? Não, você descerá até o Hades!
obviamente significa que o céu está em cima e o Hades embaixo. Eles não apenas
são diferenciados, mas tratados como dois opostos. Definitivamente, portanto, não
podem ser o mesmo lugar. O próprio Senhor Jesus havia predito que ficaria “três
dias e três noites no coração da terra” (Mt 12:40), e o Paraíso jamais é chamado de
«coração da terra» – expressão essa que, obviamente, combina muito mais com as
o Paraíso e o céu são dois lugares completamente distintos. Um deles, por exemplo,
mencionado por Jesus esteja localizado no céu, algo que não pode ser
532
Disponível em: <http://www.e-cristianismo.com.br/teologia/apologetica/a-pontuacao-de-lucas-23-
43.html>. Acesso em: 06/09/2021.
956
O estado intermediário no Novo Testamento 957
extensivamente:
O ladrão da cruz não foi para o céu no mesmo dia, até porque Jesus
estava morto e não subiu nesse mesmo dia, pelo contrário, desceu às
céu. Já vimos que o Paraíso não pode ser o céu. Então o que era o
Paulo escreve:
533
ibid.
534
EDVALDO, Everton. O ladrão da cruz foi para o céu no mesmo dia? Disponível em:
<https://www.ibitek.com.br/o-ladrao-da-cruz-foi-para-o-ceu-no-mesmo-dia>. Acesso em: 13/09/2021.
957
O estado intermediário no Novo Testamento 958
Primeiro Paulo diz que foi arrebatado ao «terceiro céu», depois abre um
parêntesis para dizer que não sabia se aquilo havia ocorrido corporalmente, e em
seguida retoma o ponto e diz que foi arrebatado «ao Paraíso». A não ser que Paulo
tenha sido acometido por uma súbita amnésia em relação ao lugar para onde foi
arrebatado, é evidente que ele considerava o céu onde Deus habita como o mesmo
lugar chamado de “Paraíso”. Isso também refuta aqueles que dizem que o Paraíso
não fica no céu nem no Hades, mas numa “antessala” do céu onde os mortos-vivos
confrontados com o mesmo dilema, eles tinham outra resposta na ponta da língua:
em todo lugar. É isso o que defendia João Cassiano, no texto que vimos há pouco,
de Lc 23:43, mas diz que “não há contradição; uma vez que divindade de nosso
salvador é ilimitada, ele não foi apenas para o Hades, mas também para o Paraíso
com o ladrão, e com o Pai, e no túmulo, na medida em que ele preenche todas as
coisas”535.
535
PG 93, 1432, dificuldade 49.
958
O estado intermediário no Novo Testamento 959
reconheceu por esta voz que Jesus era realmente um rei, ele
Paraíso”. Como homem, ele estava na cruz, mas como Deus ele está
Isso atesta que mesmo em plena Idade Média ainda havia quem preferisse a
perguntando qual o problema com essa explicação, uma vez que Jesus é de fato
da onipresença, mas na sua aplicação. Mesmo os que sustentam que Jesus como
Deus era onipresente na terra não chegam ao ponto de dizer que um índio na
ciência completa de tudo o que acontece em toda parte. É por isso que, embora
especificamente no céu (Sl 115:3, 103:19, 11:4; Mt 6:9; Jo 14:2, etc), mas é difícil se
lembrar de um texto que diga que Ele está no inferno, na terra, em outros planetas
536
PG 123, 1004.
959
O estado intermediário no Novo Testamento 960
visível no céu, não na terra ou em qualquer outro lugar. Por isso é dito que os anjos
contemplam a face do Senhor (Mt 18:10), algo que não nos é possível ainda.
Assim, quando Jesus diz ao ladrão que estaria com ele no Paraíso, ele não
estava falando meramente de uma presença espiritual como a que nós já temos
hoje com Deus (Mt 18:20, 28:20), o que com certeza não era o que o ladrão estava
com o ladrão arrependido, que é o que todos os crentes desejam, não de estar
espiritualmente presente por ser onipresente. É por isso que Jesus disse aos seus
discípulos que “voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu
estiver” (Jo 14:3), apesar de ser onipresente e neste sentido estar em todo lugar. Isso
mostra que Jesus sabia distinguir uma presença real de uma espiritual.
Da mesma forma, quando Pedro diz que Jesus esteve no Hades entre a morte
e a ressurreição, o sentido não era que “ele estava em todos os lugares, então
também estava no Hades”, mas que ele estava especificamente no Hades e não em
outro lugar, uma vez que Jesus como pessoa já não mais vivia. Citando o Salmo
16:10, de caráter messiânico, ele diz que “tu não me abandonarás no sepulcro, nem
permitirás que o teu Santo sofra decomposição” (At 2:27). Embora o tradutor tenha
dado um jeito de esconder, o grego desse texto traz alma-psiquê na parte do “me”
e é a mesma palavra usada de novo no verso 31, que diz que Jesus “não foi
537
#1459 da Concordância de Strong.
960
O estado intermediário no Novo Testamento 961
sentido transmitido por esses textos é que, se não fosse pela ressurreição, Deus teria
abandonado a alma de Jesus no Hades, o que não poderia ser de modo algum
ladrão) no Paraíso, ou em qualquer outro lugar que não fosse apenas no Hades. É
por isso que, mesmo após a ressurreição, Jesus disse a Maria Madalena que “não
Portanto, a alma de Jesus passou os três dias no Hades, como ele próprio
havia previsto (Mt 12:40), e só subiu ao Paraíso por ocasião da sua ascensão, ao final
dos quarenta dias (At 1:2-3). O que aconteceu com a divindade de Jesus é uma outra
hermenêutica, mas como pessoa, que é o que nos interessa aqui, ele não passou
por Paraíso nenhum no dia da sua morte, mesmo que sua presença divina se
pouco mais esclarecidos, como Tomás de Aquino, que não engolia a explicação
própria solução ao problema, que não é nem a tradução mortalista, nem a bizarrice
de que o Paraíso fica no Hades, nem a que tenta resolver tudo num passe de mágica
Alguns, de fato não leem “hoje tu estarás comigo no Paraíso”, mas sim
961
O estado intermediário no Novo Testamento 962
está morto”. Do mesmo modo o ladrão, uma vez que não voltaria mais
Aquino era da posição de que o Paraíso só seria aberto aos justos após a
ressurreição, e até lá os salvos esperariam em algum canto onde não teriam a visão
antessala tão secreta que até hoje ninguém encontrou na Bíblia, mas que alguns
identificam como o mesmo Hades ou o “limbo dos patriarcas”. Por isso ele evita
imortalista por ser a forma com que a Vulgata (a tradução latina de Jerônimo
que diz que o paciente “já morreu”, embora não tenha morrido ainda, mas também
literalmente entrado no Paraíso naquele dia, mas foi-lhe dito como se ele tivesse
entrado, uma vez que não voltaria à condição de perdido. Por mais duvidosa que
essa interpretação seja – a ponto de ser ignorada hoje em dia pelos próprios
católicos que tem Aquino como o grande referencial intelectual –, ela mostra que
essa.
538
AQUINO, Tomás de. Catena Áurea. New York: Sant Austin Press, 1900. v. 2, p. 756-757.
962
O estado intermediário no Novo Testamento 963
mostra que nem mesmo é preciso assumir a “tradução mortalista” de Lc 23:43 (com
a vírgula depois do “hoje”) para refutar o argumento imortalista, já que eles mesmos
de que a “tradução imortalista” é a certa. E não pense que Aquino estava sozinho.
após sua morte desceu ao Hades (At 2:31; Mt 12:40; Rm 10:7). Havia
crucificação.539
antes que pudesse entrar no Paraíso e ter a visão beatífica de Deus. De fato, Philip
539
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 31.
963
O estado intermediário no Novo Testamento 964
do purgatório540. Há até mesmo quem sustente que o “hoje” do texto não deva ser
«eu hoje te gerei» não seria um dia de 24h, já que a geração de Cristo seria eterna.
O autor de Hebreus também pede que “encorajem-se uns aos outros todos os dias,
durante o tempo que se chama ‘hoje’, de modo que nenhum de vocês seja
endurecido pelo engano do pecado” (Hb 3:13). Aqui, o “hoje” não diz respeito a um
que ele diz que “Deus estabelece outra vez um determinado dia, chamando-o ‘hoje’,
ao declarar muito tempo depois, por meio de Davi, de acordo com o que fora dito
antes: ‘Se hoje vocês ouvirem a sua voz, não endureçam o coração’” (Hb 4:7).
o sentido usual do “hoje” para não ter que lidar com o problema envolvendo o lugar
embaraçosa a questão é para eles mesmos, ainda que a maior parte dos apologistas
imortalistas prefira fingir que o problema não existe e nem tocar no assunto (assim,
quem sabe, eles consigam pelo menos fazer com que os seus leitores nem pensem
nisso).
preço pago pelo pecado. Você muitas vezes já deve ter ouvido falar que “Jesus
540
SCHAFF, Philip. International Revision Commentary on the New Testament. New York: Charles Scriber’s
sons, 1882. v. 3, p. 344.
964
O estado intermediário no Novo Testamento 965
4:25; Is 53:5). Mas o que quer dizer “pagar o preço”? Significa que Jesus sofreu aquilo
que era para você e eu termos sofrido, e aquilo que nos aconteceria de fato se ele
não tivesse vindo e morrido em nosso lugar. É por isso que Isaías diz que “o Senhor
fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós” (Is 53:6). Em outras palavras, Deus fez
cair sobre Jesus aquilo que aconteceria com nós mesmos, assim como quem paga
vindo e pagado o preço que era nosso? Que preço seria esse? Para os mortalistas,
esse preço é a morte (i.e, a cessação da existência), exatamente como Paulo ensina
quando diz que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6:23). Mas para os imortalistas,
essa “morte” na verdade significa uma vida póstuma entre as chamas do inferno,
que todos nós deveríamos pagar consiste em queimar no inferno, e Jesus pagou
esse preço em nosso lugar, a conclusão é inevitável: Jesus deveria ter queimado no
inferno entre a morte e a ressurreição, e não ser recebido pelo Pai no céu.
Note como o mortalismo faz muito mais sentido à luz do plano de salvação
965
O estado intermediário no Novo Testamento 966
conclusão, não é porque a teologia deles não leve logicamente a isso, mas porque
Por isso, sem a menor coerência, eles enviam Jesus pro Paraíso entre a sua
morte e ressurreição, em vez do inferno, onde deveria ter estado se eles tivessem
conseguiriam colocar o ladrão da cruz no Paraíso naquele mesmo dia, já que ele
estaria com Cristo, que não estaria queimando no inferno ao mesmo tempo em que
recebia o ladrão arrependido no céu. É por isso que eles preferem ignorar toda a
lógica que se deduziria da teologia deles, e concluir que Jesus não sofreu realmente
onde as almas de Jesus e do ladrão foram após a morte fica ainda mais embaraçosa
para os imortalistas quando procuramos na Bíblia que Paraíso era este. Isso porque
“paraíso” aparece apenas três vezes no NT. Uma é em Lc 23:43, outra no texto em
que Paulo afirma ter sido arrebatado (2Co 12:2-4) e a outra no Apocalipse, no texto
que diz:
“Aquele que tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas. Ao vencedor
darei o direito de comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus”
(Apocalipse 2:7)
966
O estado intermediário no Novo Testamento 967
Este último texto é a chave para entendermos qual é esse misterioso paraíso,
pois diz que ali se encontra a árvore da vida. E o único lugar onde a árvore da vida
“O Senhor Deus fez nascer então do solo todo tipo de árvores agradáveis aos
ao constatar que a palavra só aparece três vezes na Bíblia, e todas elas no NT. Algo
tão importante como o Paraíso certamente não deve ter passado batido em todo o
AT, e com certeza Paulo e João não tiraram a ideia do Paraíso da própria cabeça
deles. Jesus mesmo jamais teria prometido o Paraíso ao ladrão arrependido, se este
lugar não fosse bem conhecido pelo mesmo. Do contrário, seria como expressar
qualquer coisa sem significado, tal como se eu te dissesse que você vai morar em
Hogwards antes mesmo de Harry Potter ser escrito para que você soubesse do que
se trata.
Isso pressupõe que o ladrão sabia o que era o Paraíso. Jesus não estava
um lugar que qualquer judeu conhecia bem. O que nos leva a questionar como eles
podiam saber o que era o Paraíso, já que a única fonte comum a todos os judeus
era o AT, que não menciona diretamente a palavra “paraíso” – pelo menos não em
nossas traduções. A única conclusão razoável é que o Paraíso está ali, mas com um
967
O estado intermediário no Novo Testamento 968
a mesma que aparece em Lc 23:43. Literalmente falando, a LXX verte Gn 2:8 como
linguagem da LXX; a LXX fala do paradeisos onde Adão e Eva habitavam, e ele traduz
a resposta de Jesus como dizendo ao ladrão que estaria com ele no paradeisos. Para
completar, Ap 2:7 diz que a árvore da vida está no paradeisos, assim como consta
Gn 2:9.
Devemos lembrar que Jesus não falou com o ladrão em grego, mas
palavras (“Eloi, Eloi, lamá sabactani”), ou talvez em hebraico, também falado por
muitos judeus. E nesses idiomas, assim como em outros idiomas asiáticos (como o
persa e o árabe), a palavra para “paraíso” é a mesma para “jardim”, sem distinção.
Somos nós que distinguimos as duas coisas, que para os judeus eram uma coisa só.
Assim, quando Jesus diz ao ladrão que ele estaria no Paraíso, ele não falava de um
lugar novo ou desconhecido que o ladrão não fizesse a menor ideia qual fosse, mas
traduções antigas para o hebraico traduzem o verso como “eu digo a ti hoje, que
maior estilo freestyle, quando elas na verdade estavam apenas seguindo a lógica
541
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 27.
968
O estado intermediário no Novo Testamento 969
duas coisas e nos fazem pensar que Jesus falava de um lugar nunca antes referido,
Para a maioria dos judeus dos tempos de Jesus, o Paraíso – isto é, o jardim
do Éden – havia sido arrebatado ao céu para escapar da destruição causada pelo
dilúvio, a fim de que um dia fosse restabelecido à terra, como também sublinha
Silva:
primeiro lugar, com o jardim do Éden, onde Deus havia colocado Adão
arrebatado por Deus para o céu (S. Bar. IV, 3, 6), ou escondido nalgum
lugar de difícil acesso (Ap. Moisés 37:5; Enoque Eslovêno 8:1). Neste
que falam do Paraíso: Paulo diz que o seu arrebatamento ao terceiro céu foi um
542
ibid, p. 81.
969
O estado intermediário no Novo Testamento 970
atualmente no céu, algo que é reiterado por João no Apocalipse, que diz que “a
árvore da vida está no paraíso de Deus” (Ap 2:7), o que significa que ela não foi
destruída no dilúvio. Ele volta a mencionar a árvore da vida no final do livro, onde
lemos:
“Então o anjo me mostrou o rio da água da vida que, claro como cristal, fluía
(Apocalipse 22:1-2)
Aqui nós já vemos a árvore da vida numa cidade, com ruas, pessoas de
diferentes nações e toda a dinâmica de uma cidade real. Mas que cidade é essa, e
como ela foi parar ali? Nós descobrimos isso no capítulo anterior, onde João nos
“Então vi um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira
adornada para o seu marido. Ouvi uma forte voz que vinha do trono e dizia:
‘Agora o tabernáculo de Deus está com os homens, com os quais ele viverá.
Eles serão os seus povos; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus’”
(Apocalipse 21:1-3)
970
O estado intermediário no Novo Testamento 971
Aqui temos o nome que João dá a essa cidade, chamada de “cidade santa, a
nova Jerusalém” (v. 2). Mas o detalhe mais intrigante é o que vem logo em seguida,
quando ele diz que essa cidade “descia do céu, da parte de Deus” (v. 2), de modo
que o tabernáculo de Deus estará com os homens (v. 3). Note mais uma vez a
acreditavam que o Paraíso (i.e, o jardim do Éden) havia sido arrebatado por Deus e
preservado no céu, e um dia voltaria à terra para ser a morada dos homens como
era no princípio. Esse dia, para João, ocorre depois da ressurreição, do juízo e do
milênio, que se passam no capítulo anterior (Ap 20:4-5, 11-15). Isso mostra que os
judeus não apenas tinham uma noção do que era o Paraíso, mas também que, pelo
Note como tudo se conecta perfeitamente com o texto de Hebreus que diz:
“Pois não temos aqui nenhuma cidade permanente, mas buscamos a que há de vir”
(Hb 13:14). Preste bem atenção no final do verso, quando ele diz que essa cidade
“há de vir”. Não somos nós que vamos até essa cidade, como se a nossa alma
deixasse o corpo e ‘voasse’ até ela; é essa cidade que vem até nós. Qualquer
semelhança com Ap 21:1-3 não é mera coincidência. E que cidade é essa à qual ele
se refere? É evidente que é a mesma “cidade que tem alicerces, cujo arquiteto e
edificador é Deus” (Hb 11:10), no mesmo capítulo sobre o qual já discorremos aqui
amplamente, onde ele termina dizendo que ninguém entrou nela ainda:
“Todos estes ainda viveram pela fé, e morreram sem receber o que tinha sido
prometido; viram-nas de longe e de longe as saudaram, reconhecendo que
eram estrangeiros e peregrinos na terra” (Hebreus 11:13)
971
O estado intermediário no Novo Testamento 972
“Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus
“Todos estes, mesmo tendo obtido bom testemunho por meio da fé, não
(Hebreus 11:39-40)
Jerusalém» da qual João fala, que por sua vez é o mesmo Paraíso (jardim) que Jesus
que o ladrão não poderia estar no Paraíso naquele mesmo dia, a não ser que ele
Paraíso como uma alma fantasmagórica até a volta de Jesus. Diante disso, a única
onde o homem habitou uma vez, e onde voltará a habitar depois da ressurreição.
Não nos resta, portanto, nenhuma possibilidade de que o ladrão estivesse ali antes
ele escreve:
972
O estado intermediário no Novo Testamento 973
alguma coisa de mau, mas foi por causa de sua desobediência que o
Para Autólico, o homem é colocado duas vezes no Paraíso: uma quando foi
Este era o mesmo entendimento de Efrém da Síria (306-373), para o qual “este
justos somente depois da ressurreição final (2:1, 8:11)”544. O Paraíso não era
ressurreição, mas como um reino físico, tangível e concreto onde o homem habita
543
Teófilo a Autólico, Livro II, c. 25-26.
544
Carmina Nisibena, 36:11-14, 37:9-11, 50:10ss.
973
O estado intermediário no Novo Testamento 974
próprio evangelho, como em Mt 13:11), sempre que ele é citado no sentido próprio
Tome como exemplo o texto em que Jesus diz que “pessoas virão do oriente
invisível em meio à imensidão do céu. Da mesma forma, o texto que diz “feliz será
aquele que comer no banquete do Reino de Deus” (Lc 14:15) sugere que o Reino é
um lugar físico onde é possível comer e beber – algo muito diferente de uma
545
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 74.
974
O estado intermediário no Novo Testamento 975
espiritual. Isso está de acordo com tudo aquilo que vimos neste capítulo, no que
vier em sua glória” (Mt 25:31) e disser aos servos fieis que “recebam como herança
o Reino que lhes foi preparado desde a criação do mundo” (v. 34); que os heróis da
melhor para nós, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados” (Hb 11:39-40),
que eles “não obtiveram as promessas” (v. 13) e ainda estão “procurando uma
pátria” (v. 14), que o trigo (justos) só é recolhido no celeiro (Reino) por ocasião da
ocupariam seus aposentos na casa do Pai depois que Jesus voltasse e os levasse
aos salvos futuramente, após a ressurreição, em um corpo glorioso, não como uma
alma fantasmagórica. Isso não deixou de ser notado por alguns dos próprios
teólogos imortalistas, que não sem razão tiveram que criar a tese da “antessala do
céu” – a qual, em que pese a completa falta de amparo bíblico, pelo menos evita
Paraíso, não sobra espaço para a crença de que o ladrão da cruz está ali, como uma
975
O estado intermediário no Novo Testamento 976
exceção total à regra (o único ser humano que estaria como um espírito no Paraíso,
O ladrão morreu naquele mesmo dia? – Corrobora com isso tudo um fato
também bem pouco conhecido do público em geral, para não dizer completamente
caso excepcional, porque ele não só sofreu a crucificação em si, mas também os 39
açoites com o flagellum romano, quando o normal era ou receber os açoites, ou ser
crucificado. Isso aconteceu porque Pilatos não queria condenar Jesus à morte,
(Lc 23:20-25).
Isso é reconhecido até pelos teólogos imortalistas, como Albert Barnes, que
diz que “não era comum que as pessoas crucificadas morressem em dois ou três
dias, às vezes nem mesmo antes do sexto ou sétimo”546. Da mesma forma, John Gill
comenta que “a morte por crucificação era uma morte lenta e prolongada; pessoas
que estavam em pleno vigor eram penduradas muito antes de morrer”547. Um texto
que atesta isso com toda a clareza é Mc 15:43-45, onde nos deparamos com a
546
BARNES, Albert. “Commentary on Mark 15:44”. Barnes' Notes on the Whole Bible (1870).
547
GILL, John. “Commentary on Mark 15:44. The New John Gill Exposition of the Entire Bible. 1999.
976
O estado intermediário no Novo Testamento 977
crucificação foi planejada como uma morte lenta”548. A palavra aqui traduzida por
maravilhar-se»549. Ela é por vezes usada para designar susto ou perplexidade, como
quem é este que até os ventos e o mar lhe obedecem”. Por regra, ela é sempre usada
saber que Jesus havia morrido naquele mesmo dia, na hora nona, três horas antes
do fim do dia judaico. Isso obviamente indica que os outros crucificados com ele
naquele dia passariam bem mais tempo na cruz do que as três horas restantes. O
destacou que
548
COFFMAN, James Burton. “Commentary on Mark 15:44”. Coffman Commentaries on the Bible (1983-
1999).
549
#2296 da Concordância de Strong.
977
O estado intermediário no Novo Testamento 978
foi uma exceção, porque ele teve as pernas quebradas pelos soldados de acordo
“Os judeus, pois, para que no sábado não ficassem os corpos na cruz, visto
como era a preparação (pois era grande o dia de sábado), rogaram a Pilatos
fora crucificado; mas, vindo a Jesus, e vendo-o já morto, não lhe quebraram
as pernas” (João 19:31-33)
Com base nisso, eles argumentam que ao quebrar a perna do crucificado ele
não mais conseguiria se apoiar com os pés para manter as cavidades torácicas
perderia sangue e morreria por asfixia. Assim, para eles, essa medida era tomada
para apressar a morte, fazendo com que morressem antes de terminar aquela sexta.
Embora à primeira vista a explicação pareça fazer sentido, ela esbarra em várias
dificuldades. A primeira é presumir que Pilatos não estava ciente de que isso era
feito às sextas-feiras, para que se surpreendesse com algo que teoricamente seria
corriqueiro.
550
CONSTABLE, Thomas. “Commentary on Mark 15:44”. Expository Notes of Dr. Thomas Constable (2012).
978
O estado intermediário no Novo Testamento 979
A segunda é que parte nenhuma do texto diz que isso era feito para apressar
a morte dos crucificados. Se essa fosse a intenção, eles não teriam apenas quebrado
as pernas e torcido para que morressem logo antes de iniciar o sábado, que estava
dissiparia. A propósito, foi exatamente isso o que fizeram com Jesus, quando viram
que ele já estava morto e precisavam apenas confirmar a morte. Eles não quebraram
suas pernas (Jo 19:33). Se a intenção fosse matar os outros crucificados, este
Mas se eles não quebravam as pernas para matá-los, por que faziam isso? A
para que o sábado não fosse profanado. Arnaldo B. Christianini explica que “depois
do sábado haver passado, sem dúvida esses dois corpos foram outra vez amarrados
na cruz, e lá ficaram diversos dias, até morrerem”551. As pernas não eram quebradas
para que eles morressem, mas para que não fugissem ao serem retirados da cruz.
Assim, o ladrão não morreu por perda de sangue ou asfixia, porque não continuou
Observe que o texto não diz que eles “rogaram a Pilatos que se lhes
quebrassem as pernas para matá-los”, mas sim que «rogaram a Pilatos que se lhes
simplesmente tirá-los da cruz. Fora da cruz, eles não precisariam se apoiar pelas
mãos nem sofreriam para continuar respirando. Essas dificuldades eles teriam assim
que fossem recolados dois dias depois, para completar seu suplício. Mas nem
551
CHRISTIANINI, Arnaldo B. Subtilezas do Erro. Santo André: Casa Publicadora Brasileira, 1965, p. 222.
979
O estado intermediário no Novo Testamento 980
descartada. Se eles ficavam sentados, não precisariam se apoiar com os pés para
conseguir respirar, como seria no caso de estarem suspensos. Assim, levariam ainda
não era uma forma de clemência dos romanos a fim de aliviar o sofrimento das
mesma pena comum a todos os crucificados. Se tem uma coisa que o Império
judeus em relação ao sábado não era para atenuar o tempo de sofrimento dos
mesmo dia, as evidências apresentadas até aqui são suficientes para concluir que
ele não esteve no Paraíso no mesmo dia, a despeito do dia em que morreu.
552
CARDOSO, Rodrigo. Como Jesus foi crucificado? Disponível em:
<https://istoe.com.br/62060_COMO+JESUS+FOI+CRUCIFICADO+>. Acesso em: 01/10/2021.
980
O estado intermediário no Novo Testamento 981
te digo hoje, estarás comigo no Paraíso”. Mesmo assim, quase todas as traduções
tradicional: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (isso quando não
Em primeiro lugar, é preciso remeter à questão mais importante: por que isso
é relevante? Se o que importa é o que o grego original diz, e não o que tradutores
são inspirados, e nem poderiam, dado que se contradizem o tempo inteiro. O que
outros escritores sagrados sob a direção do Espírito Santo. Por isso os livros da
Bíblia não se contradizem, mas as traduções (que qualquer um pode fazer) sim.
de que, como quase todas as traduções vertem Lc 23:43 da forma imortalista, essa
deve ser a tradução certa. Essa lógica desconsidera por completo o fato simples,
óbvio e manifesto de que os tradutores são homens falhos como nós, igualmente
981
O estado intermediário no Novo Testamento 982
Um exemplo dos mais clássicos é o texto em que o anjo diz a Maria: “Alegre-
se, agraciada” (Lc 1:28), que as traduções católicas preferem traduzir por «Ave, cheia
porque cada uma delas, ou pelo menos uma delas, prioriza suas pressuposições
unem para traduzir da forma imortalista, por uma razão muito simples: ambas
adotam a imortalidade da alma como crença oficial e tem no ladrão da cruz um dos
principais pilares tradicionais dessa crença. Assim, da mesma forma que em Lc 1:28
O grande problema das sociedades bíblicas é que seus tradutores não estão
tradição denominacional, que tire dos imortalistas um dos seus principais (e únicos)
982
O estado intermediário no Novo Testamento 983
concordam que não era parte do texto original do evangelho, mas ainda assim
naquelas traduzidas a partir do Texto Crítico. Uma vez que quase todas as traduções
É por isso que as versões católicas não ousam traduzir Lc 1:28 como
“agraciada”, uma vez que o “cheio de graça” é parte essencial do Ave Maria, a
principal reza católica. Traduzir de outro jeito seria provocar a ira de seus próprios
fiéis, e ter por certo que eles boicotariam a versão – versão essa que levou anos para
ser produzida e que precisou ser financiada com não poucos recursos que eles
precisam bancar com o valor das vendas. Tudo isso ajuda a tornar as traduções
983
O estado intermediário no Novo Testamento 984
E ele conclui:
Por isto, não existem traduções perfeitas, ou uma que possa ser
foram mencionadas.554
Graças ao viés teológico dos editores, até mesmo versículos que não têm
que para eles a alma é um elemento imortal por natureza e seria inadmissível
553
MIGUEL, Igor. Problemas da Bíblia Hebraica em Português. Disponível em:
<http://www.welingtoncorp.xpg.com.br/biblia_hebraica_portugues.pdf>. Acesso em: 15/08/2013.
554
ibid.
984
O estado intermediário no Novo Testamento 985
traduzir de outro modo. Se é isso o que eles fazem com textos que não têm
imagine o que não fazem com um texto como Lc 23:43, onde há a possibilidade
Para piorar, diferente do que muitos pensam, a maioria das versões bíblicas
disponíveis em qualquer idioma não traduz diretamente das cópias originais (ou
grego que já vem acompanhadas pela pontuação escolhida por seus editores, as
quais acabam influenciando a tradução por parte do tradutor que nelas se baseia.
dos tradutores e não está incluído nas edições feitas para eruditos e
Bover, etc), mas também num bom número de versões modernas que
555
ALAND, K; ALAND, H. The Text of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1989, p. 230.
985
O estado intermediário no Novo Testamento 986
não por sérias razões hermenêuticas ou por aprofundados estudos linguísticos, mas
tradução se consolidou por razões dogmáticas, antes que por critérios técnicos:
556
SILVA, Rodrigo P. Análise Linguística de semeron em Lucas 23:43. Tese (Doutorado em Teologia) –
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo, 2001, p. 16.
986
O estado intermediário no Novo Testamento 987
resolvida a questão.557
parte delas são versões críticas (ou seja, baseadas diretamente nos manuscritos
➢ “Amen, I say to thee to-day that you shall be with me in the Paradise” (Burkitt
➢ “And said to him the Jesus: Indeed I say to thee today, with me thou shalt be
➢ “And he said unto him: Verily, I say unto thee this day: With me, shalt thou be
➢ “Und Jesus sprach zur ihm: mahrlich ich sage heute, mit mir wirst du im
1878)
557
ibid, p. 46.
987
O estado intermediário no Novo Testamento 988
➢ “And he said unto him: Verily, I say unto thee this day: With me, shalt thou be
➢ “Und Jesus sprach zu ihm: Wahrlich, ich sage dir heute: Mit mir wirst du im
➢ “And Jesus said to him, ‘Verily, to you am I saying today, with Me shall you be
➢ “Jesus said to him, Truly I say to you today, you will be with me in Paradise”
➢ “Jesus antwortete ihm: ‘Wahrlich, dir sage Ich heute: Mit Mir wirst du im
➢ “And Jesus said to him, Verily, to thee I say this day, with Me shalt thou be in
Paradise” (Critical Lexicon and Concordance to the English and Greek New
Testament, 1957)
988
O estado intermediário no Novo Testamento 989
➢ “Indeed today I say you, you shall be with Me in the paradise” (New
➢ “Truly, already today I give you the assurance: (once day) you will be together
➢ “And replied: ‘I tell you this today as a fact... you will be with me in the
➢ “He replied: ‘Today I tell you this. You will be with me in paradise’” (New
➢ “And Jesus said to him, Verily I say to thee this day, Thou shalt be with me in
situando o “hoje” entre duas vírgulas, seja excluindo qualquer vírgula. Entre elas,
989
O estado intermediário no Novo Testamento 990
forma imortalista. Em vez disso, elas são fruto do trabalho e da pesquisa de eruditos
independentes, via de regra imortalistas, mas com liberdade para traduzir conforme
substancial.
Isso porque é sempre muito mais cômodo que um ignorante defenda a sua
ignorância com base justamente naquilo que o faz ser ignorante (i.e, sua limitação
imortalista, que depende inteiramente de uma tradução que eles não podem provar
em absoluto.
Mas, como vimos, o cenário é muito mais grave, já que todas as evidências
990
O estado intermediário no Novo Testamento 991
de entender à primeira vista e que pode parecer até mesmo um tanto paradoxal é
o momento em que possuímos a vida eterna. Isso porque há uma gama de textos
uma outra gama de textos que dizem que só teremos a vida eterna no futuro.
considere os textos em que Jesus diz que “aquele que crê tem a vida eterna” (Jo
6:47), que “eu lhes dou a vida eterna” (Jo 10:28) e que “quem ouve a minha palavra
e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não será condenado, mas já
passou da morte para a vida” (Jo 5:24). João escreveu “para que vocês saibam que
têm a vida eterna” (1Jo 5:13), disse que “Deus nos deu a vida eterna” (1Jo 5:11) e que
“quem odeia seu irmão é assassino, e vocês sabem que nenhum assassino tem vida
eterna em si mesmo” (1Jo 3:15), o que implica que quem ama ao próximo já tem a
vida eterna.
com uma quantidade ainda mais avassaladora de textos que indicam que a vida
991
O estado intermediário no Novo Testamento 992
eterna não é algo que possuímos hoje, mas que possuiremos no futuro. Tome como
exemplo o texto em que Jesus diz que “estes irão para o castigo eterno, mas os
justos para a vida eterna” (Mt 25:46). Se os maus não estão sendo castigados hoje,
é sensato concluir que os justos também não têm uma vida eterna hoje.
Jesus também disse que o justo “colhe fruto para a vida eterna” (Jo 4:36), que
devemos trabalhar “pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho
do homem lhes dará” (Jo 6:27) e que “é perseverando que vocês obterão a vida” (Lc
21:19). Por ocasião da ressurreição, “os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida,
e os que fizeram o mal ressuscitarão para serem condenados” (Jo 5:29). Se os justos
já estivessem na vida, Jesus não teria dito que eles sairiam para a vida, mas que
Em todos esses textos, a vida eterna é apresentada como algo a ser obtido
no futuro, não como uma possessão presente. Nenhum texto deixa isso mais claro
“Pedro lhe disse: ‘Nós deixamos tudo o que tínhamos para seguir-te!’.
Respondeu Jesus: ‘Digo-lhes a verdade: Ninguém que tenha deixado casa,
mulher, irmãos, pai ou filhos por causa do Reino de Deus deixará de receber,
(Lucas 18:28-30)
Onde a NVI traduz por “era futura” e a ARA por “mundo por vir”, o grego
literalmente traz aion ho erchomai (era por vir), indicando assim uma era que ainda
não está em vigência, mas que estará no futuro. Portanto, Jesus não poderia estar
992
O estado intermediário no Novo Testamento 993
falando de um fantasioso estado intermediário atual. A «era por vir» nada mais é do
que a era que se inicia depois «daquele dia» (i.e, do “dia do Senhor” que os profetas
Nessa mesma linha, João diz que nos agarramos na promessa da vida eterna
(1Jo 2:25), Judas pede que “se mantenham amor de Deus, enquanto esperam que a
misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo os leve para a vida eterna” (Jd 1:21), Paulo
qual o Deus que não mente prometeu antes dos tempos eternos” (Tt 1:2) e
admoesta que “nos tornemos seus herdeiros, tendo a esperança da vida eterna” (Tt
3:7).
Ninguém tem esperança em relação a algo que já possui, o que mais uma
vez desloca a posse da vida eterna para o futuro. O apóstolo dos gentios assegura
que “Ele dará vida eterna aos que, persistindo em fazer o bem, buscam glória, honra
e imortalidade” (Rm 2:7) e que “quem semeia para a sua carne, da carne colherá
destruição; mas quem semeia para o Espírito, do Espírito colherá a vida eterna” (Gl
6:8). Assim como não faz sentido dizer que o ímpio já está destruído hoje, também
não faz sentido dizer que o justo já tem a vida eterna agora. “Colherá” implica em
Paulo que nos ajuda a entender a relação entre a vida eterna como uma possessão
atual e a vida eterna como uma aquisição futura. Você não planta a planta em si,
mas uma sementinha, que será enterrada na terra e depois de muito tempo crescerá
se tornando, aí sim, o que podemos chamar de planta. A mesma coisa acontece com
993
O estado intermediário no Novo Testamento 994
a vida eterna. Temos a vida eterna hoje como uma semente, no sentido de que Jesus
Mas assim como há um tempo até que a semente germine e se torne uma
eterna como uma garantia e o momento em que possuiremos a vida eterna de fato
(no sentido de entrarmos na vida eterna). Por isso Jesus disse que “todo o que come
a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último
dia” (Jo 6:54). Jesus ter mencionado a ressurreição logo após dizer que temos a vida
eterna não foi um acaso nem caiu de paraquedas no texto. Uma coisa está
sermos através de Cristo. É como alguém que já tem um ingresso para um jogo de
futebol, mas que só entrará no estádio para assistir ao jogo de fato na data e horário
efetivamente seremos tirados do estado de morte para uma vida que não tem fim,
vida essa que já temos hoje como garantia, se estamos em Cristo. Assim, é na
ressurreição que colhemos a vida eterna (Gl 6:8) que hoje semeamos pela fé.
Paulo insiste que Jesus está vivo – Pouco depois de Paulo ser levado preso
a Cesareia, governada pelo procurador Pórcio Festo, dois visitantes ilustres – o rei
994
O estado intermediário no Novo Testamento 995
Agripa e sua mulher Berenice – chegaram para saudar Festo, que aproveitou a
ocasião para lhes falar sobre Paulo e apresentá-lo ao rei e à rainha. Observe
nenhum dos crimes que eu esperava. Pelo contrário, tinham alguns pontos de
divergência com ele acerca de sua própria religião e de um certo Jesus, já
Por que Paulo precisaria insistir que Jesus estava vivo, se todos os que
morreram estavam de uma maneira ou outra vivos em algum lugar? Essa insistência
em relação a Jesus em particular não faria o menor sentido, a não ser que Jesus,
Obviamente, Paulo não estava insistindo que Jesus estava vivo na terra, porque
tanto Paulo como seus interlocutores tinham perfeita ciência de que ele já tinha
partido e não estava mais fisicamente entre eles. Portanto, Paulo obviamente estava
próprio Cristo. Neste caso, ele não estaria tentando convencer Festo de que Jesus
em especial estava vivo, mas sim que todos os mortos estavam vivos em algum
lugar, incluindo Jesus. E essa crença não seria estranha a Festo, já que muitos gregos
da época pensavam exatamente assim. Neste caso, ele nem consideraria tal
995
O estado intermediário no Novo Testamento 996
atingido as Torres Gêmeas, e tudo ali estivesse tão tranquilo como sempre foi.
residentes do prédio estava vivo? Evidente que não, já que não haveria qualquer
decorrentes dele, faz todo o sentido alguém precisar convencer outra pessoa de
que o morador em questão está vivo, uma vez que poucos ali tiveram a mesma
sorte.
não estavam vivos em lugar nenhum, mas Jesus sim (porque ressuscitou). Isso
corrobora o fato de que, para Paulo, é só através da ressurreição que alguém que já
morreu vive, não através de uma alma imortal que passa ilesa à morte. Não existem
“mortos-vivos” no mundo do além, apenas vivos que não passaram pela morte ou
Há quem objete alegando que Paulo não estava querendo dizer que os
outros que morreram não estavam vivos em algum lugar, mas apenas que não
estavam vivos em um corpo físico, como Jesus. Mas isso é inverter a proposição pela
causa da proposição. O texto não diz que Paulo insistiu que Jesus ressuscitou, mas
que ele insistiu que Jesus estava vivo. O fato de Jesus ter ressuscitado é justamente
o que faz com que ele estivesse vivo, e não o que Paulo queria provar em primeiro
lugar.
a vida após a morte que estava em jogo. Isso é totalmente diferente de dizer que
996
O estado intermediário no Novo Testamento 997
todos os mortos estavam vivos em algum lugar e tudo o que Paulo queria dizer era
apenas que esse em especial estava vivo em um corpo. Estar vivo era o objeto da
discussão; ter ressuscitado era a causa disso. Isso significa que não há vida após a
morte a não ser pela ressurreição, e é por isso que para um morto estar vivo ele
Cristo (vs. 12-17), representado na figura de Melquisedeque (v. 3). Em certo ponto,
ele diz algo digno de nota: “No primeiro caso, quem recebe o dízimo são homens
mortais; no outro caso é aquele de quem se declara que vive” (Hb 7:8). Os «homens
levitas tinham um corpo mortal, e Jesus não. Mas será mesmo que era com a
cuidadosa do contexto nos permite entender qual a ideia do autor por detrás desse
pensamento:
a mortalidade dos levitas com o fato de Jesus estar vivo: não porque ele estivesse
997
O estado intermediário no Novo Testamento 998
os levitas não podiam ter um sacerdócio permanente. E que razão é essa? “Porque
a morte os impede de continuar em seu ofício” (v. 23), enquanto Jesus, “visto que
vive para sempre, tem um sacerdócio permanente” (v. 24). Em outras palavras, os
levitas não podiam continuar seu sacerdócio porque morriam, mas Jesus pode,
Hebreus teria cometido uma gafe ao fazer um contraste dessa natureza, já que
tanto um como o outro estariam vivos para continuar seu ofício no outro mundo. A
antítese aqui só faz sentido se Jesus está vivo no céu, mas os levitas não, justamente
porque a morte é a cessação total da existência até a ressurreição. É por isso que
Jesus pode interceder por nós e ser nosso sumo sacerdote, diferentemente de
todos os demais, que estão mortos e não podem interceder por ninguém.
Isso explica por que o verso 8 diz que os levitas são homens mortais,
enquanto Jesus está atualmente vivo. A intenção não era meramente dizer que os
levitas têm um corpo mortal, mas que a sua mortalidade os impede de ter um
existência. É por isso que, logo após chamá-los de «homens mortais», ele não diz
que Jesus tem um “corpo imortal”, mas que se declara que vive. O contraste não era
Enquanto Jesus vive (um particípio presente do verbo zao), os levitas morrem, o que
exige que a morte aqui seja uma condição inversa à vida, do contrário não haveria
998
O estado intermediário no Novo Testamento 999
Assim, o contraste entre Jesus e os levitas implica que Jesus está vivo e por
isso pode ser o nosso sumo sacerdote e interceder em nosso favor, enquanto
aqueles estão literalmente mortos (i.e, sem vida) e por isso não podem manter o
Levitas Jesus
Não podem continuar seu ofício, por Continua vivo no céu, então pode ter
Não podem interceder pelos vivos, Pode interceder pelos vivos, pois vive
Ao dizer que os levitas tinham uma alma imortal e permanecem vivos após
Davi não subiu aos céus – No discurso de Pedro no Pentecoste, lemos algo
igualmente revelador: “Pois Davi não subiu ao céu, mas ele mesmo declarou: ‘O
Senhor disse ao meu Senhor: Senta-te à minha direita até que eu ponha os teus
inimigos como estrado para os teus pés’” (At 2:34-35). O texto é tão claro que não
precisa de explicação. Quem precisa explicar são os imortalistas, que não perdem
quatro são mais comuns, sendo as duas primeiras refutadas do mesmo jeito e pela
mesma razão.
999
O estado intermediário no Novo Testamento 1000
A primeira afirma que Davi não subiu ao céu para dizer aquilo – ou seja, que
ele não foi arrebatado enquanto escrevia o verso em questão. Essa tese que já nasce
sem pé nem cabeça, já que obviamente ninguém nunca escreveu nada no céu, é
Quando não subiu ao céu? Quando estava vivo. Davi pronunciou estas
Pedro é claríssimo: Davi não subiu ao céu para poder saber, ou fazer,
“assenta-te à minha direita”. Davi não subiu ao céu para saber isto e,
Logo de cara temos que nos perguntar que raios essa informação – de que
Davi não subiu ao céu para escrever aquilo – acrescentaria aos seus ouvintes, já que
até onde sabemos ninguém jamais escreveu nada no céu e voltou. Se tudo o que
ele queria dizer é que Davi não fez algo que ninguém mais fez, a resposta dos seus
interlocutores deveria ser um grande “eeeeeee daí?”. Mas será mesmo que o
tradução NVI (e mais adiante tomaremos nota de alguns termos em particular que
Atos 2
24 Mas Deus o ressuscitou dos mortos, rompendo os laços da morte, porque era
558
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 89-90.
1000
O estado intermediário no Novo Testamento 1001
25 A respeito dele, disse Davi: “Eu sempre via o Senhor diante de mim. Porque ele
26 Por isso o meu coração está alegre e a minha língua exulta; o meu corpo também
repousará em esperança,
sofra decomposição.
presença”.
29 Irmãos, posso dizer-lhes com franqueza que o patriarca Davi morreu e foi
30 Mas ele era profeta e sabia que Deus lhe prometera sob juramento que colocaria
32 Deus ressuscitou este Jesus, e todos nós somos testemunhas desse fato.
34 Pois Davi não subiu ao céu, mas ele mesmo declarou: “O Senhor disse ao meu
35 até que eu ponha os teus inimigos como estrado para os teus pés”.
O que o contexto sugere? Que Pedro queria convencer seus ouvintes de que
Davi não subiu ao céu quando escreveu aquelas palavras? Difícil pensar em alguém
argumentando é que Davi escreveu sobre não ser abandonado no sepulcro e nem
sofrer decomposição, mas ele não falava de si mesmo, porque o túmulo de Davi se
1001
O estado intermediário no Novo Testamento 1002
encontrava entre eles até aqueles dias e todos sabiam que tinha se decomposto.
Portanto, Davi não podia estar falando dele mesmo, mas do Messias. É por isso que
ele complementa dizendo que “Davi não subiu ao céu” (v. 34), não porque Davi não
tivesse subido na época dele mas tenha subido depois, mas porque não tinha
O grego é tão incisivo a esse respeito que não usa aqui o “não” comum (mē),
Por que razão Lucas faria questão de usar uma partícula de negação absoluta, se a
intenção era dizer que Davi não subiu ao céu apenas naquela ocasião, mas já tinha
subido depois?
Obviamente, Lucas sabia que a intenção de Pedro era acentuar que Davi não
tinha subido ao céu em hipótese alguma, o que explica por que destaca isso com
fato de que Pedro poderia perfeitamente ter dito que “Davi não havia subido ao
céu”, dando a entender que ele já tinha subido na época em que Pedro discursava.
Em vez disso, ele usa uma negação absoluta em um contexto que não abre a menor
Isso também refuta a segunda “explicação” que eles sugerem, a de que Davi
não tinha subido ao céu na época em que ele morreu (porque tinha ido ao Sheol),
mas depois da ressurreição de Cristo foi transportado ao Paraíso junto com todos
559
#3361 da Concordância de Strong.
1002
O estado intermediário no Novo Testamento 1003
momento sem subir ao céu, e quando Pedro discursou Jesus já tinha ressuscitado
(ou seja, Davi supostamente já deveria estar no céu, mas não estava).
Uma terceira hipótese levantada diz que Davi ainda não havia subido ao céu
porque ele não estava no céu propriamente dito, mas no Paraíso, que seria uma
“antessala” do céu (não me pergunte o que é isso e muito menos a base bíblica). O
problema é que Paulo deixou claro que o Paraíso está justamente no céu onde Deus
habita:
esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei, mas Deus o sabe – foi
Primeiro ele diz que foi arrebatado ao terceiro céu, e depois diz que foi
mas do mesmo acontecimento. O verso 3 é apenas um parêntesis que ele abre para
retomar o ponto anterior, com a diferença de que “céu” é substituído por “Paraíso”,
não porque Paulo foi subitamente abatido por amnésia e se esqueceu de onde
Assim sendo, a ideia de que o Paraíso não é o céu onde Jesus habita, mas
uma “antessala” do céu onde os salvos esperam sabe-se lá o que para entrar no “céu
de verdade”, não passa de uma ideia criativa e espúria criada como uma gambiarra
1003
O estado intermediário no Novo Testamento 1004
estudo bíblico sistemático que possa ser levado a sério. O que sobra para os
imortalistas é a última carta na manga: a de que Pedro não falava da alma de Davi,
mas somente do corpo. Essa é a alternativa que Geisler e Howe recorrem em seu
manual:
Pedro não está falando da alma de Davi, mas do seu corpo. A alma de
Davi está no céu junto com todos os outros crentes, mas o seu corpo
Mas será mesmo que Pedro em seu discurso falava apenas do corpo de Davi,
à parte da alma? Essa é a resposta mais fácil, pois basta ir ao grego. No verso 27,
que a NVI traduz por “porque tu não me abandonarás no sepulcro, nem permitirás
que o teu Santo sofra decomposição”, o grego diz hoti ouk enkataleipseis tēn
psychēn mou eis hadēn oude dōseis ton Hosion sou idein diaphthoran. A palavra
em negrito é nada a menos que o termo usado em todo o NT para a alma (psiquê).
Literalmente, o que Pedro disse é que Deus não abandonaria a alma no Hades. Mas
por que raios ele falaria da alma no Hades se a intenção era falar apenas do corpo
no túmulo?
Se você leu o capítulo 5, já sabe a resposta: assim como não existe alma fora
do corpo, não há túmulo fora do Hades. Na Bíblia, como vimos, a alma compreende
onde os mortos estão enterrados. É por isso que Pedro faz questão de citar um
560
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 332.
1004
O estado intermediário no Novo Testamento 1005
salmo de Davi onde ele fala da alma, já que não era apenas a “carcaça” de Davi que
estava em jogo, mas o destino de todo o seu ser integral. Uma vez que o «tu não
Se isso não basta, releia o texto e preste atenção no quão desconexo fica o
apenas do corpo, e do nada cita a alma que cai de paraquedas no texto de forma
ser completo (tanto o corpo como a alma) de Davi tenha deixado de existir na
morte, e por essa razão Davi não subiu ao céu – nem quando Davi escrevia, nem
Isso significa que Pedro sabia que não apenas o corpo jaz sem vida após a
morte, mas a própria alma, que repousa inconsciente no túmulo como tantas vezes
ressalta o AT (Jó 33:18, 22, 28, 30; Jr 18:20; Sl 35:7, 49:8-9, 94:17; Is 38:17-19). O verso
31 completa esse pensamento, ao dizer que a psiquê (alma) de Jesus não foi
e “Hades” que constam no grego), isso logo antes de dizer que «Davi não subiu ao
já subiu ao céu para a presença de Deus. Leia novamente com atenção o trecho em
Atos 2
31 Nesta previsão, disse da ressurreição de Cristo, que a sua alma não foi deixada
1005
O estado intermediário no Novo Testamento 1006
33 De sorte que, exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa
34 Porque Davi não subiu aos céus, mas ele próprio diz: Disse o Senhor ao meu
Embora a ACF cometa a gafe de traduzir por “inferno” onde o grego traz o
Hades (o que levou alguns a defenderem a tese lunática de que Jesus foi pro inferno
após a morte), ela pelo menos mantém a alma no texto, em conformidade com o
Hades, a de Jesus não, pois ele subiu para a destra de Deus, no céu. É por isso que
ele conclui dizendo que «Davi não subiu ao céu», em consonância com o raciocínio
Essa relação é destacada pela conjunção gar, que significa «porque, pois,
visto que, então»561, a qual é traduzida por “pois” na NVI e por “porque” na ACF,
palavras, quando Pedro diz que “Davi não subiu aos céus” (v. 34), ele não estava
raciocínio desenvolvido até ali com aquilo que se depreende da lógica utilizada.
Que lógica era essa? A lógica de que Davi falou de alguém cuja alma não
seria abandonada no Hades, mas esse alguém não era ele mesmo, porque sua alma
permanecia no Hades (uma vez que seu túmulo permanecia entre eles até aqueles
561
#1063 da Concordância de Strong.
1006
O estado intermediário no Novo Testamento 1007
dias – v. 29). Portanto, suas palavras diziam respeito ao Messias, Jesus, cuja alma
não foi abandonada no Hades porque ressuscitou para a presença de Deus no céu,
Isso refuta toda a pretensão de que o Hades seja o “inferno” (já que nem Davi
seria condenado ao inferno e muito menos Jesus queimaria por lá), confirma a
identificação da alma no Hades com o corpo no túmulo e prova que a alma de Davi
permanecia no Hades até aqueles dias (o que refuta tanto aqueles que dizem que
os santos do AT iam direto para a presença de Deus após a morte como também
aqueles que dizem que eles foram transferidos pro céu entre a morte e a
ressurreição de Cristo).
Davi permanece no Hades e seu corpo permanece no túmulo – que, como vimos
mesmo significado da primeira com outras palavras, e não como se a alma estivesse
em um lugar e o corpo em outro. Por isso ele conclui que Davi não subiu ao céu;
não porque sua alma tivesse subido e o corpo não (o que destruiria toda a lógica
do argumento), mas porque sua alma permanecia no Hades (ou seja, nas regiões
apontava a profecia, que foi ressuscitado dos mortos. Não entender isso é o fim da
picada – a picada da mesma serpente que inventou a primeira mentira (Gn 3:4).
Ainda que morra, viverá – Por ocasião da morte de Lázaro, Jesus consolou
1007
O estado intermediário no Novo Testamento 1008
“Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra,
viverá; e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente” (João 11:25-26)
Por mais sinistro que pareça, o Pr. Rinaldi usou esse texto em favor do
lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que
esteja morto, viverá; e todo aquele que vive, e crê em mim, nunca
Infortunadamente, ele não deve ter prestado muita atenção no tempo verbal
da frase: “viver” está no futuro, não no presente! Se a alma de Lázaro e dos demais
santos falecidos estivesse viva em algum lugar, Jesus não teria dito que «ainda que
morra, viverá», mas sim que “ainda que morra, vive”. O tempo verbal faz toda a
diferença aqui: ele nos mostra exatamente o contrário do que o Pr. Rinaldi tentou
argumentar. Em vez dos mortos já estarem vivos em algum lugar como uma alma
E a parte do “nunca morrerá”? Estaria ela indicando que não existe morte
real, e que a nossa morte é apenas de mentirinha? Lógico que não. Rinaldi aqui
ignora o que diz o grego (o que não é de se surpreender, já que ele ignora até o
português). O grego não diz apenas que “não morrerá”, mas “não morrerá
562
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 25.
1008
O estado intermediário no Novo Testamento 1009
suprimir o “eternamente” da frase, fazendo parecer que Jesus estava falando sobre
nunca passar pela morte, que nada mais é que a própria mentira da serpente
falava da morte eterna, ou seja, a morte final que os ímpios sofrem após a
salvos estão isentos, não da primeira, que todos desde Adão e Eva sofrem como
de que na visão de Jesus é só a ressurreição que nos tira de um estado sem vida
Note ainda que mesmo se Rinaldi estivesse certo e o grego não trouxesse o
continuidade por ocasião da morte física», como ele argumenta, isso só provaria
que a alma dos ímpios morre mesmo, já que Jesus claramente impôs uma condição
para “não morrer”: “Quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente” (Jo 11:26).
Se a alma é naturalmente imortal e era isso o que Jesus estava dizendo aqui, por
que ele diria que quem crê nele não morre, se até os que não cressem nele também
não morreriam? Que sentido faz colocar uma condição na frase se aquilo se
concretizaria da mesma forma sem ela? Se Rinaldi estiver certo, ou Jesus estava
que força Rinaldi. Jesus não estava falando nada sobre a alma sobreviver à morte,
1009
O estado intermediário no Novo Testamento 1010
como se fosse preciso crer nele para que isso ocorresse, quando os próprios
imortalistas alegam que até o mais ímpio dos homens possui uma alma imortal que
«não sofre solução de continuidade por ocasião da morte física». O que ele estava
falando é da morte eterna, aquela que os ímpios sofrem após a ressurreição, mas
da qual o salvo é poupado. Isso explica por que há a condição de crer nele para não
morrer, já que Jesus não falava do que acontece após a morte física, mas do destino
Morto fala? – No mesmo capítulo de Hebreus 11 que nos diz que os heróis
de Caim. Pela fé ele foi reconhecido como justo, quando Deus aprovou as suas
ofertas. Embora esteja morto, por meio da fé ainda fala” (Hb 11:4). Como é que Abel
pelo Paraíso e tagarelando aos quatro cantos? Não, mas por meio da fé.
O grego traz dia (através de563) autos (isto564), ou seja, “através disso” (i.e, da
fé). É a fé de Abel que “fala” em nossos dias (no sentido de nos encorajar a
seguirmos o seu exemplo de fé), não o próprio. Se ele acreditasse que Abel
de dizer que o próprio Abel continua falando, ainda mais em um capítulo em que
Isso sugere que o autor da carta sabia que Abel não estava vivo em lugar nenhum,
e por isso apenas o seu exemplo de fé é que fala alguma coisa nos dias de hoje.
563
#1223 da Concordância de Strong.
564
#846 da Concordância de Strong.
1010
O estado intermediário no Novo Testamento 1011
facilmente passar despercebido a qualquer leitor desatento é 1Tm 5:21, onde Paulo
escreve:
“Conjuro-te diante de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, e dos anjos eleitos, que
O que Paulo faz aqui nada mais é que citar os seres que habitam o céu e
tinham ciência do que se passava entre eles. E ele cita apenas: (1) Deus, (2) Jesus e
(3) os anjos eleitos. O Espírito Santo não é citado porque, na linguagem bíblica, ele
habita em nossos corações, não em um trono celestial como o Pai e o Filho (1Co
6:19; Ap 22:1, 3). Note que Paulo teve até mesmo a precaução de realçar os anjos
eleitos, já que nem todos os anjos habitam o céu (os demônios, que são anjos
diamarturomai, que significa «dar testemunho solene para alguém; confirmar algo
Nos tribunais da época, era comum a pessoa fazer uma declaração solene na
carta particular a Timóteo, mas isso não significa que a sua conjuração estivesse
isenta de testemunhas. É por isso que ele cita Deus, Jesus e os anjos eleitos, que
habitam o céu e têm ciência do que se passa na terra. Se Paulo cresse que havia no
céu uma multidão de santos intercessores, ele de modo algum teria perdido a
565
#1263 da Concordância de Strong.
1011
O estado intermediário no Novo Testamento 1012
“Conjuro-te diante de (1) Deus, e do (2) Senhor Jesus Cristo, dos (3) anjos
eleitos e dos (4) santos, que sem prevenção guardes estas coisas, nada
fazendo por parcialidade”
terra e até recebendo orações dos fiéis. Teria Paulo ignorado sumariamente uma
quantidade tão massiva de almas tão úteis e prestativas que rogam no céu por nós?
É muito mais lógico inferir que ele não se esqueceu de nada, pelo simples fato de
que não há no céu alma alguma para ser invocada como testemunha de sua
conjuração566.
Alguns imortalistas tentam demonstrar o contrário com o texto que diz que
“estamos rodeados por tão grande nuvem de testemunhas” (Hb 12:1), como se isso
significasse que estamos cercados de almas penadas nos vigiando por aí e tomando
5:21. O autor de Hebreus não está conjurando nada diante de testemunhas, como
fez Paulo, mas simplesmente aludindo aos testemunhos de fé que ele havia
566
Embora Enoque e Elias estejam no céu, não há nada que indique que eles tenham ciência do que se
passa na terra, de modo que eles não poderiam ser testemunhas da conjuração de Paulo nesta ocasião.
1012
O estado intermediário no Novo Testamento 1013
Essa «nuvem de testemunhas», portanto, diz respeito à mesma “fé que fala”
de Hb 11:4 – ou seja, ao exemplo de fé que eles nos deixaram, que hoje nos serve
imortalistas, ainda que muitos não estejam certos a respeito do que quer dizer o
comenta sobre este texto que “os exemplos de fé verdadeira que o escritor acaba
perseverança semelhante”567.
da fidelidade de Deus.568
O Dr. Thomas L. Constable também observa que “eles são ‘testemunhas’ não
porque atualmente testemunhem nossas ações, mas porque com suas vidas eles
apóstolo não quis insinuar que os santos no outro mundo sabem o que estamos
567
FLEMMING, Donald C. “Commentary on Hebrews 12:1”. Brideway Bible Commentary (2005).
568
BARKER, Kenneth (org.). Bíblia de Estudo NVI. São Paulo: Vida, 2003, p. 2111.
569
CONSTABLE, Thomas. “Commentary on Hebrews 12:1”. Expository Notes of Dr. Thomas Constable
(2012).
570
MACKNIGHT, James. Apostolic Epistles. Nashville: Gospel Advocate Co., 1960, p. 568.
1013
O estado intermediário no Novo Testamento 1014
fazem, e a maneira como vivem. Há aqui uma alusão, sem dúvida, aos
com justiça disso que ele quer dizer que todos aqueles antigos
animar.571
O que isso não significa é que os santos do AT, dos quais falamos no
terra. Isso não significa que eles estejam nos observando para ver
nos testemunham o valor de andar com Deus. E vendo que suas vidas
nos é proposta, olhando para Jesus” (Hb 12:1-2). Portanto, suas vidas
571
BARNES, Albert. “Commentary on Hebrews 12:1”. Barnes' Notes on the Whole Bible (1870).
1014
O estado intermediário no Novo Testamento 1015
Ele diz que estamos tão cercados por essa multidão que, para onde
Egito: “Soldiers, forty centuries are looking down on your deeds today”574. Embora
“testemunharam” uma história milenar que “falava” até aqueles dias. É dessa forma
que estamos cercados pela “nuvem de testemunhas”: não porque estejamos sendo
vigiados por gente morta, mas porque seu exemplo de fé testemunha até os nossos
572
SMITH, Charles Ward. “Commentary on Hebrews 12:1”. Chuck Smith Bible Commentary (2004).
573
CALVIN, John. “Commentary on Hebrews 12:1”. Calvin's Commentary on the Bible (1840).
574
COFFMAN, James Burton. “Commentary on Hebrews 12:1”. Coffman Commentaries on the Bible (1983-
1999).
1015
O estado intermediário no Novo Testamento 1016
dias. É exatamente o mesmo sentido em que o mesmo autor havia dito que Abel
“fala” (Hb 11:4) – pelo seu testemunho de fé, não por uma alma que sobreviva à
morte.
sua fé, não uma alma imortal. Vemos um exemplo semelhante no texto em que
Tiago diz aos ricos que “o ouro e a prata de vocês enferrujaram, e a ferrugem deles
testemunhará contra vocês e como fogo lhes devorará a carne” (Tg 5:3). A palavra
Outro exemplo vemos no texto em que Deus diz aos israelitas que “hoje
tomo por testemunhas contra vós o céu e a terra, que certamente logo perecereis
da terra, a qual passais o Jordão para a possuir; não prolongareis os vossos dias
nela, antes sereis de todo destruídos” (Dt 4:26). Embora o céu e a terra sejam
água e do sangue que “testemunham” em 1Jo 5:7-8 e da pedra erigida por Josué
que “será uma testemunha contra nós, pois ela ouviu todas as palavras que o Senhor
Imagine se este último texto não estivesse falando de uma pedra, mas da
alma de um falecido. Não há dúvidas de que esse texto seria usado à exaustão pelos
1016
O estado intermediário no Novo Testamento 1017
e citado pelos brilhantes teólogos dualistas como a grande prova cabal de que a
alma pode ouvir alguém depois da morte e servir como testemunha. Se eles fazem
isso até mesmo com as “almas debaixo do altar” clamando por vingança em pleno
céu em um livro simbólico como o Apocalipse, imagine a folia que não fariam com
um texto desses.
(desde que apoie a sua doutrina, é claro), sem considerar o contexto bíblico maior,
brecha na Bíblia para colocar a alma imortal ali. É isso o que acontece quando se
qualquer custo, em vez de deixar de lado os preconceitos, ter a Bíblia como o ponto
escaparam da morte e, por isso, estão na presença de Deus. Eles são Elias – que foi
arrebatou para não ver a morte (Gn 5:24; Hb 11:5)575. Uma evidência adicional de
que eles são realmente os únicos seres humanos que se encontram hoje na
575
Embora há quem diga que Enoque apenas foi arrebatado a outra parte da terra e depois morreu como
todos os outros, essa teoria é refutada em um dos capítulos do meu livro “Exegese de Textos Difíceis da
Bíblia”, também disponível em: <http://ocristianismoemfoco.blogspot.com/2015/09/enoque-
morreu.html>.
1017
O estado intermediário no Novo Testamento 1018
como Enoque e Elias, embora há quem pense que se refira ao Antigo e ao Novo
seguinte:
(Apocalipse 11:3-4)
O verso 6 diz que essas duas testemunhas são dois homens («estes homens
têm poder para fechar o céu»), mas não homens comuns, porque o texto segue
dizendo que eles soltam fogo pela boca, tem poder para fechar o céu e transformar
ao final (vs. 5-7). Mesmo assim, é de se convir que este texto, por si só, não é o
bastante para cravar que as duas testemunhas sejam mesmo Enoque e Elias. O que
faz dessa conclusão a mais provável é quando descobrimos de onde João tirou essa
ramos de oliveira, que estão junto aos dois tubos de ouro, e que vertem de si
azeite dourado? E ele me falou, dizendo: Não sabes tu o que é isto? E eu
disse: Não, senhor meu. Então ele disse: Estes são os dois ungidos, que estão
1018
O estado intermediário no Novo Testamento 1019
Os dois textos falam de dois ungidos retratados como duas oliveiras e dois
candelabros (ou “tubos de ouro”), que estão diante do Senhor. Não é mera
coincidência. João não diz meramente que “essas são duas oliveiras e dois
candelabros”, mas sim que «essas são as duas oliveiras e os dois candelabros»,
usando o artigo definido ho, no grego. A intenção era justamente remeter a Zc 4:11-
14, como que dizendo: “Essas são as duas oliveiras e os dois candelabros dos quais
esse texto de Zacarias, embora muitos pensem que o texto de Zacarias falava de
sabemos que este não é o caso? Porque João diz que eles permaneciam (histemi)
diante do Senhor (Ap 11:4), e nem Zorobabel nem Josué permaneciam em suas
do Apocalipse.
do Senhor» no texto de Zacarias dizia respeito apenas à função que eles exerciam
(e não a estar realmente com o Senhor no céu), eles deveriam continuar exercendo
essas funções quando João escrevia, seis séculos mais tarde. E isso, como é óbvio,
está longe de ser o caso. Além disso, o que dois personagens relativamente pouco
plena tribulação apocalíptica, lutando contra exércitos inteiros, soltando fogo pela
Isso certamente não faz o perfil de Josué (não o sucessor de Moisés, mas o
1019
O estado intermediário no Novo Testamento 1020
com Elias, que fechou o céu para que não chovesse, precisamente como diz o texto
(1Rs 17:1 com Ap 11:6). Outro detalhe importante que passa despercebido por
muitos é o trecho que diz que as duas testemunhas “profetizarão durante mil
duzentos e sessenta dias” (Ap 11:3). Não há em toda a Bíblia uma única profecia de
Josué ou Zorobabel, mas temos uma profecia de Enoque em relação à volta de Jesus
Uma razão adicional para acreditar que uma das duas testemunhas é
realmente o profeta Elias é porque isso foi predito em Malaquias, que disse:
corações dos filhos para seus pais; do contrário eu virei e castigarei a terra
Note que Elias seria enviado antes do «grande e terrível dia do Senhor», mas
sempre que a Bíblia fala do “dia do Senhor” ela se refere ao evento escatológico
relacionado à segunda vinda, nunca à primeira. Ademais, o coração dos pais e dos
pense que tudo já se cumpriu em João Batista, isso não é verdade. O próprio Senhor
Jesus deixou claro que Elias ainda viria, e que João cumpria apenas parcialmente a
“Os discípulos lhe perguntaram: ‘Então, por que os mestres da lei dizem que é
necessário que Elias venha primeiro?’. Jesus respondeu: "De fato, Elias vem e
1020
O estado intermediário no Novo Testamento 1021
restaurará todas as coisas. Mas eu lhes digo: Elias já veio, e eles não o
reconheceram, mas fizeram com ele tudo o que quiseram. Da mesma forma
o Filho do homem será maltratado por eles” (Mateus 17:10-12)
Observe que Jesus não disse apenas que “Elias já veio”, mas que de fato ele
vem e restaurará (futuro) todas as coisas, indicando assim que João foi um
cumprimento tipológico da vinda de Elias, mas que isso não anula o fato de que o
próprio Elias ainda virá e restaurará todas as coisas (em cumprimento literal a Ml
profeticamente como um evento futuro, não algo que já tivesse se cumprido nos
dias de João Batista (Mt 19:28). Pedro também confirmou que se tratava de um
“É necessário que ele permaneça no céu até que chegue o tempo em que
Deus restaurará todas as coisas, como falou há muito tempo, por meio dos
Em outras palavras, Ml 4:5-6 diz que antes do dia do Senhor (segunda vinda
de Cristo) Elias virá e converterá o coração dos pais e dos filhos; Jesus alude a esse
texto e diz que de fato Elias virá e restaurará todas as coisas, e Pedro confirma que
esse tempo em que Deus restaurará todas as coisas ainda é futuro (e não algo que
já tivesse se cumprido nos dias de João Batista). Assim, é evidente que o texto se
refere ao momento em que “todo o Israel será salvo” (Rm 11:26), na metade da
grande tribulação, após a pregação de Elias (uma das duas testemunhas), e não a
algo que já tivesse acontecido na pessoa de João Batista (o qual era um antítipo de
1021
O estado intermediário no Novo Testamento 1022
Isso faz todo o sentido, já que a Bíblia diz que a morte está ordenada ao
homem (Hb 9:27), mas Enoque e Elias escaparam da morte, deixando assim de
cumprir aquilo que lhes estava ordenado. E o que acontece com as duas
testemunhas? Elas são mortas pela besta (Ap 11:7), e seus cadáveres são expostos
publicamente (v. 8). Ou seja, conquanto os dois profetas não tenham morrido em
sua própria época, eles experimentarão a morte como qualquer outro humano,
muito menos de Israel e da Igreja (que nem existia ainda) ou do Antigo e Novo
Testamento (que também não existia nos dias de Zacarias). Em vez disso, eles
falavam dos dois únicos «homens» (Ap 11:6) e «profetas» (Ap 11:3) que
João: Enoque e Elias, os únicos que não passaram pela morte e por isso estão na
artigo definido também indica que eles não são dois entre muitos homens e
mulheres que estão na presença de Deus hoje, mas que são os únicos que lá se
encontram. Caso contrário, o texto não diria que são os que estão na presença de
simplesmente porque na Bíblia não existe vida fora do corpo. Para alguém estar
com Deus, ele precisa ser arrebatado vivo (corporalmente) ou ressuscitar (também
1022
O estado intermediário no Novo Testamento 1023
Escrituras, que concebe o corpo como o único meio pelo qual experimentamos
Se a vida fora do corpo fosse possível, Deus sequer precisaria ter arrebatado
Enoque e Elias para estarem com Ele – bastaria que seguissem o curso natural da
vida ou que os deixasse morrer, que estariam com Ele do mesmo jeito no céu. A
razão por que foi preciso arrebatá-los para que estivessem em Sua presença é
morte. Se a morte tivesse essa capacidade, Deus teria arrebatado Enoque e Elias
apenas pelo prazer de arrebatá-los, não porque fosse de alguma forma necessário
em algum lugar é aquele em que Jesus diz que Deus “não é Deus de mortos, mas
de vivos, pois para ele todos vivem” (Lc 20:38). Baseado nesse trecho isolado e fora
de contexto, eles concluem que Jesus estava dizendo que não existem mortos de
verdade, porque todos aqueles que julgamos estarem mortos estão neste
momento vivos na presença de Deus como almas desencarnadas. Mas teria sido
que nenhum imortalista faz ao citar o texto, que é analisando cuidadosamente todo
o contexto.
1023
O estado intermediário no Novo Testamento 1024
(3) Por que o fato de Deus ser um «Deus de vivos» prova exatamente o
ponto?
Lucas 20
homem morrer e deixar mulher sem filhos, este deverá casar-se com a viúva e ter
30 O segundo
33 Na ressurreição, de quem ela será esposa, visto que os sete foram casados com
ela?”.
34 Jesus respondeu: “Os filhos desta era casam-se e são dados em casamento,
1024
O estado intermediário no Novo Testamento 1025
35 mas os que forem considerados dignos de tomar parte na era que há de vir e na
36 e não podem mais morrer, pois são como os anjos. São filhos de Deus, visto que
38 Ele não é Deus de mortos, mas de vivos, pois para ele todos vivem”.
ou não após a morte. Este não foi sequer um assunto abordado ao longo de toda a
discussão. A disputa de Jesus era com os saduceus, “que dizem que não há
isso, desafiando-lhe a dizer de quem aquela mulher seria esposa na ressurreição (v.
33). Toda a disputa tinha a ver com a existência ou não da ressurreição, e não com
curioso notar que eles não aproveitaram a ocasião para discutir com Jesus sobre
nos perguntar é: se os saduceus sabiam que Jesus acreditava em almas vivas fora
do corpo, por que eles não desafiaram Jesus neste ponto também? A questão
levantada a respeito da mulher e seus sete ex-maridos faria muito mais sentido
1025
O estado intermediário no Novo Testamento 1026
qualquer outro lugar intermediário entre a morte e a ressurreição onde ela já estaria
pergunta que não quer calar é: por quê? E a resposta é fácil de entender: porque
eles sabiam que Jesus também não acreditava em um estado intermediário antes
da ressurreição. Por isso, eles pularam direto para o ponto em que ambos entravam
em conflito: a ressurreição.
estaria logo após a morte, o que faz muito mais sentido do que pular milhares de
anos no tempo para saber com quem ela estaria quando ressuscitasse (como se isso
já não tivesse sido decidido ao longo de todo esse tempo no estado intermediário).
Portanto, temos aqui um forte indício de que a sobrevivência da alma após a morte
que acontece depois, já que Jesus acreditava que os mortos voltarão à vida na
sempre.
ressurreição no desafio que lançaram, mas ainda não explica a parte do «Deus de
vivos», que é o que mais nos interessa. Para isso, precisamos entender a lógica por
1026
O estado intermediário no Novo Testamento 1027
detrás do argumento que Jesus levanta, o que pode não ser uma coisa tão simples
quando essa estrutura não é claramente visível (e geralmente não é). É o que leva
consistência interna.
premissa oculta aqui – não manifesta abertamente, mas necessária para dar suporte
à conclusão –, que é a de que o critério para se definir qual o maior clube do mundo
silogismo ou não; o que importa é que ele segue o silogismo de uma forma lógica,
1027
O estado intermediário no Novo Testamento 1028
está subtendida, tal como no exemplo do Real Madrid. O silogismo está ali, mas
de non sequitur. “Non sequitur” é uma expressão em latim que significa “não se
segue”, e diz respeito a uma conclusão que não segue as premissas. Por exemplo,
que a grama é verde, a conclusão não seguiria a premissa nenhuma, porque o fato
da grama ser verde não tem qualquer relação com o Palmeiras ter ou não ter
mundial. A isso damos o nome de falácia, que são argumentos fraudulentos, sem
consistência interna. Como cristãos, nós acreditamos que Jesus não usaria uma
falácia non sequitur para tentar provar alguma coisa através de algo que não
Isso nos leva à segunda das três indagações iniciais: o que Jesus estava
ao Senhor ele chama ‘Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó’. Ele não é
Deus de mortos, mas de vivos, pois para ele todos vivem” (vs. 37-38). Ou seja,
quando Jesus cita Êx 3:6, onde Deus diz que «eu sou o Deus de seu pai, o Deus de
Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó», sua intenção explícita era provar que
os mortos ressuscitam. O que nos leva à terceira e última questão: de que modo o
interpretar as palavras de Jesus como uma prova da ressurreição, uma vez que, para
1028
O estado intermediário no Novo Testamento 1029
eles, tudo o que Jesus estaria dizendo ao usar aquele texto era que a alma sobrevive
após a morte – o que não necessariamente prova ressurreição alguma. Quase todos
os pagãos da época acreditavam que os mortos estavam vivos em algum lugar, mas
realmente dizendo que os mortos estão vivos porque Deus não é Deus de mortos,
da alma (que não era o seu objetivo e nem lhe foi perguntado).
estaria usando um non sequitur para provar algo que não segue a qualquer
premissa, exatamente como o Palmeiras ter mundial porque a grama é verde. Ele
estaria dizendo que os mortos ressuscitam porque eles estão vivos na presença de
Deus, mas o fato de estarem vivos na presença de Deus não prova a ressurreição,
visto que muitos em sua época acreditavam em imortalidade da alma, mas não em
ressurreição. Assim, ele estaria provando a sobrevivência da alma, que não estava
essas explicações esdrúxulas não mudam nada do non sequitur em questão. Jesus
não disse que “a ressurreição é importante” e por isso deve ser verdadeira; em vez
disso, ele deu um argumento bíblico que de fato provou a ressurreição. Mas como
1029
O estado intermediário no Novo Testamento 1030
para os imortalistas esse argumento só implica que os espíritos estão agora no céu,
importante”, não apenas o texto citado teria sido completamente inútil (já que nada
falaria de ressurreição alguma), como ele teria dado uma aula aos saduceus sobre
religar ao corpo (o que ele não fez, e se fizesse estenderia a discussão, em vez de
teria respondido outra (que não necessariamente tem relação com a primeira e
obviamente tão falso quanto uma nota de 3 reais), uma coisa é o que a sua teologia
afirma, outra coisa é prová-la a quem o está desafiando e não acredita nela. Como
viva em outra dimensão não era de forma alguma uma prova concreta de que os
mortos ressuscitam, a não ser que Jesus passasse um longo tempo argumentando
Ademais, há uma diferença crucial entre algo ser importante e algo ser
a alma, isso não seria necessário, já que a alma poderia viver eternamente sem um
corpo (da mesma forma que vivia antes da ressurreição). É por isso que os gregos,
1030
O estado intermediário no Novo Testamento 1031
Jesus citou dizia apenas que a alma sobrevive após a morte, isso não seria uma
corpo e a alma que exigisse uma ressurreição, algo impossível de se fazer a não ser
apelando a um non sequitur ainda mais grosseiro. O mais importante é ter em conta
que Jesus não se esforçou de nenhuma maneira em provar aos saduceus uma
que as almas estão no céu, como se tivesse deixado que os saduceus chegassem a
essa conclusão por si mesmos (algo que nem os filósofos gregos chegaram!).
Neste caso, também deveríamos nos perguntar como Jesus teria silenciado
levar por uma falácia tão descarada. Para resumir a “lógica” imortalista:
→ Para isso, citaram como exemplo uma mulher que teve sete maridos ao
longo da vida, todos eles falecidos, até que por fim a mulher morresse. E em vez de
perguntarem com quem a mulher seria casada depois da morte, perguntam com
quem ela seria casada depois da ressurreição (mesmo que isso só acontecesse
1031
O estado intermediário no Novo Testamento 1032
→ Em resposta a isso, Jesus, para provar “que os mortos ressuscitam” (v. 37),
cita um texto que não fala absolutamente nada de ressurreição nenhuma, apenas
ressurreição, já que mesmo entre os que acreditavam em vida após a morte naquela
a ressurreição, isso exige uma interpretação bem diferente daquela dada pelos
imortalistas. Uma onde o «Deus de vivos» não implica que os mortos estão vivos
em algum lugar, mas que eles ressuscitarão um dia. Antes, porém, precisamos nos
perguntar por que Jesus não citou aos saduceus um texto que fala explicitamente
válidos para fundamentar doutrina. E nestes cinco primeiros livros não há, de fato,
1032
O estado intermediário no Novo Testamento 1033
já destacamos no início: o de que o estado atual dos mortos era um ponto pacífico
entre ele e os saduceus, razão por que estes questionaram Jesus direto sobre a
Com isso em mente, Jesus cita o texto da sarça ardente, onde Deus se revela
a Moisés como o de Deus de Abraão, Isaque e Jacó. O detalhe fica por conta de que
Deus não disse que era o Deus deles, mas que “eu sou o Deus de seu pai, o Deus de
mortos para sempre, como acreditavam os saduceus, Deus não diria que ele
continuava sendo o Deus deles, e sim que ele foi o Deus deles (que não mais
e Deus se declara o Deus deles, isso só pode significar que eles voltariam à vida, o
que implica em uma ressurreição (uma vez que a ressurreição é o único meio de
estivessem vivos como uma alma incorpórea tudo o que o texto estaria provando é
necessária justamente porque os mortos não estão vivos hoje, o que faz desse
1033
O estado intermediário no Novo Testamento 1034
Note que a premissa 1, que se pressupõe do próprio fato dos saduceus não
os mortos estão realmente mortos é que se exige que eles voltem à existência um
dia, dado o fato de Deus ser um Deus de vivos. Se os mortos já estivessem vivos em
algum lugar, o fato de Deus ser um Deus de vivos não exigiria uma ressurreição,
entenderam isso melhor do que o famoso reformador inglês William Tyndale (1494-
1536). Em sua disputa com o imortalista Thomas More (que usou justamente esse
E quando ele quer provar que os santos já estão no céu em glória com
Cristo, dizendo: "Se Deus é seu Deus, eles estão no céu, porque ele
1034
O estado intermediário no Novo Testamento 1035
efeito.576
O trecho final do verso 38 explica em que sentido Deus é Deus de vivos: «Pois
para ele todos vivem». Note que o texto não diz simplesmente que “todos vivem”,
perspectiva humana. Ao contrário, diz que para ele (ou seja, para Deus) todos vivem.
Por que Lucas fez questão de incluir o “para ele”? Porque ele estava falando da
serem vivificados no último dia, quando Jesus voltar. Mas sob a perspectiva de um
presente e futuro, quem morreu já está vivo com ele. Para nós só existe o “agora”,
porque estamos presos no presente. Mas alguém que criou o tempo não está
sujeito ao tempo, e por isso tem como realidade diante de si tudo aquilo que para
nós ainda é futuro. É isso o que significa dizer que Deus é presciente, ou seja, que
sabe por antecipação as coisas que para nós ainda estão não aconteceram (que é
um profeta ou um vidente).
É neste sentido que «para Ele todos vivem», uma vez que numa perspectiva
consciência, sem atividade). Lucas teve o cuidado de incluir o “para ele”, sem o qual
576
TYNDALE, William. An Answer to Sir Thomas More's Dialogue. Cambridge: Cambridge University Press,
1850, p. 118.
1035
O estado intermediário no Novo Testamento 1036
imortalistas a interpretam. Quem morreu pode estar morto para nós, que vivemos
limitados à sequência linear de eventos temporais, mas está vivo para Deus, para
quem não há limitações temporais. De modo que aqueles que para nós estão
mortos no pó da terra para Deus estão vivos em um corpo ressurreto, ainda que
ressuscitá-los.
É por isso que Paulo disse que Deus “dá vida aos mortos e chama à existência
coisas que não existem, como se existissem” (Rm 4:17). Aquilo que não existe na
nossa perspectiva já existe na perspectiva de Deus, que está acima e além do tempo.
É desta forma que os mortos estão vivos para Deus: não porque possuam uma alma
imortal que deixa o corpo depois da morte, mas porque serão ressuscitados para
estar com Ele, e para Deus tudo o que é “futuro” já é “presente”. O nosso “agora” se
futuro. É por isso que Deus não é Deus de mortos, pois, para Ele, todos vivem.
É curioso notar que, assim como vimos em Mt 10:28, Lucas aqui toma a
exatamente como consta em suas fontes (Mateus e Marcos), como lhe era de
costume. Enquanto nos outros evangelhos Jesus diz apenas a parte do «eu sou o
Deus de Abraão, Isaque e Jacó», Lucas faz questão de acrescentar o «pois para ele
todos vivem», como alguém que quer explicar aos seus leitores de que forma seria
possível Deus ainda ser o Deus dos patriarcas – o que seria de todo desnecessário
se a ideia fosse que Deus é o Deus deles porque a alma deles está com Deus, que é
1036
O estado intermediário no Novo Testamento 1037
contrário (ou seja, se ele estivesse justamente apoiando o sentido imortalista), ele
vivem”, ou então que “com Deus todos vivem”, o que expressaria bem o sentido
imortalista. Ao dizer que “para Deus todos vivem”, ele estava claramente apontando
“Pois para eles todos vivem” (Lc 20:38) – “na visão dele” ou “na
mantém uma relação consciente permanente com Ele. (...) Visto que
1037
O estado intermediário no Novo Testamento 1038
surge a ressurreição.577
corpo e partiram pro céu, mas porque na perspectiva divina que não leva em conta
Jesus voltar. Isso explica a presença de vários detalhes na perícope que deixam claro
desencarnado.
Por exemplo, no verso 35 Jesus diz que «os que forem considerados dignos
de tomar parte na era que há de vir e na ressurreição dos mortos não se casarão
nem serão dados em casamento». A “era que há de vir”, como o próprio nome
que será inaugurado na ressurreição (1Tm 6:19; Mt 12:32; Ef 1:21). Até mesmo o
577
FAUSSET, Andrew Robert; JAMIESON, Robert; BROWN, David. Commentary Critical, Practical and
Explanatory on the Old and New Testaments. Philadelphia: S.S. Scranton & Company, 1871. v. 3, p. 212-
213.
1038
O estado intermediário no Novo Testamento 1039
confirmam que Jesus falava apenas do que acontece após a ressurreição, e não de
um estado anterior. Em Marcos, Jesus diz que “quando os mortos ressuscitam, não
se casam nem são dados em casamento, mas são como os anjos nos céus” (Mc
12:25). E em Mateus, diz que “na ressurreição as pessoas não se casam nem são
Portanto, é após a ressurreição que as pessoas «não se casam nem são dadas
não se casam no estado intermediário simplesmente porque não mais existem até
que sejam ressuscitados. É por isso que Jesus não falou nada sobre se casar ou não
não tem como se casar. Por isso a ênfase recaía na ressurreição, uma vez que é na
casar mais).
O verso seguinte lança mais luz a isso, pois diz que “não podem mais morrer,
pois são como os anjos. São filhos de Deus, visto que são filhos da ressurreição” (v.
36). Aqui vemos que é somente a partir da ressurreição que eles «não podem mais
morrer», o que significa que continuavam mortais antes disso. Adicionalmente, eles
578
ARRINGTON, French L. Comentário Bíblico Pentecostal: Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2015.
v. 1, p. 451.
1039
O estado intermediário no Novo Testamento 1040
não mais morreremos nem nos casaremos. Toda essa ênfase seria nula se os mortos
já estivessem no céu antes disso na forma de uma alma imortal que não se casa e
nem pode morrer, sendo a ressurreição um mero apêndice nisso tudo, que apenas
sobrevivência da alma após a morte. Eles sabiam que Jesus também não acreditava
nisso, e por isso o questionaram direto sobre a ressurreição a respeito de algo que
Deus ser “Deus de vivos”, neste caso, só provaria que os mortos estão vivos agora,
mas não diria nada a respeito de uma ressurreição futura. Os gregos (que
sobre a ressurreição.
continua sendo o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, isso implica que eles voltarão à
existência, o que ocorre por meio da ressurreição. A lógica é que se eles não
Sua companhia (o que para Deus já é algo presente, visto que Ele não possui
1040
O estado intermediário no Novo Testamento 1041
limitações temporais como nós). Isso que implica que, se não fosse pela
ressurreição, Deus seria um Deus de mortos, visto que eles nunca mais voltariam à
→ Portanto, o texto não apenas prova que é a ressurreição que traz alguém
de volta à existência, mas também que não existe imortalidade da alma, pois se a
alma sobrevivesse à morte a razão por que Deus não seria Deus de mortos não seria
a ressurreição futura, mas a presença das almas dos mortos com Deus antes mesmo
para provar que as almas dos mortos já estão com Deus no céu, ignorando que
ao mesmo tempo a imortalidade da alma e a ressurreição, mas neste caso isso não
mortos não estiverem vivos em algum lugar hoje. Em outras palavras, ou Jesus
provou apenas a imortalidade da alma (e fugiu da pergunta dos saduceus, que era
assim provou que os mortos hão de ressuscitar (que foi o que ele efetivamente fez).
fato de que é na ressurreição que não mais nos casaremos e quando nos
transmitida em todos esses textos não é de que existe esta vida atual e uma outra
1041
O estado intermediário no Novo Testamento 1042
Para terminar, voltemos às nossas três questões iniciais, que agora são fáceis
de responder:
(1) A quem Jesus dizia aquilo? Aos saduceus, que não acreditavam em
ressurreição.
(3) Por que o fato de Deus ser um «Deus de vivos» prova exatamente o
alma é, na verdade, uma das provas mais fortes contra a mesma, quando analisado
encontrará esse texto dentro da perícope completa, como aqui fizemos, muito
menos verá uma análise detalhada de todo o contexto, e tampouco uma explicação
coerente de toda a lógica por detrás do argumento que Cristo usou para provar
Em vez disso, tudo o que você verá é Lc 20:38 sendo citado de forma avulsa,
ingênuo. Não deveríamos esperar menos de uma falsa doutrina senão ser refutada
1042
O estado intermediário no Novo Testamento 1043
com uma massiva quantidade de textos que afirmassem que os ímpios estão no
entanto, tudo o que os próprios imortalistas têm para nos oferecer como
Jesus e o castigo futuro – Por outro lado, temos muitos textos que
descrevem o sofrimento dos ímpios como algo reservado para o futuro, em vez de
um suplício atual. O próprio Senhor Jesus sempre usou o verbo no futuro quando
disse que “ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8:12; 13:42, 13:50, 22:13, 24:51,
25:30; Lc 13:28). Essa frase aparece sete vezes nos evangelhos, e todas, sem exceção,
usam o verbo no futuro (“haverá”, e não “há”). Como vimos em Mt 13:24-30, o joio
e o trigo crescem juntos até a colheita, e o Senhor se recusa a queimar o joio antes
que Jesus queimará – no futuro – a palha com fogo, em alusão ao que acontecerá
Nunca é dito nas Escrituras que Jesus já esteja queimando a maior parte do
joio ou da palha neste exato momento, como seria se os bilhões de ímpios que já
presente. Por que Jesus sempre apontava o castigo dos ímpios como um evento
1043
O estado intermediário no Novo Testamento 1044
futuro no fim dos tempos, apesar da grande maioria deles supostamente já estarem
no inferno? Se o inferno fosse um estado atual que se estende desde já por toda a
futuro distante. Não há nenhuma razão para pensar que Jesus não falaria de um
Um exemplo é quando Jesus diz: “Vim para lançar fogo sobre a terra e bem
quisera que já estivesse a arder” (Lc 12:49). Se Jesus gostaria que o fogo «já estivesse
a arder», é obviamente porque o fogo não está ardendo ainda. A não ser que
alguém tenha um extintor de incêndio no inferno, parece óbvio que a razão por que
o fogo não queima ainda é porque não existe inferno algum a pleno vapor hoje.
Antes que alguém diga que o “fogo” aqui não se refere ao fogo de condenação dos
ímpios, mas sim ao “fogo do Espírito” ou alguma coisa neste sentido, considere o
contexto em que ele está inserido. Os três versos anteriores a Lc 12:49 são
“O senhor daquele servo virá num dia em que ele não o espera e numa hora
que não sabe, e o punirá severamente e lhe dará um lugar com os infiéis.
Aquele servo que conhece a vontade de seu senhor e não prepara o que ele
deseja, nem o realiza, receberá muitos açoites. Mas aquele que não a
quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito
1044
O estado intermediário no Novo Testamento 1045
da imortalidade da alma.
como aquele capítulo termina, com Jesus dizendo: “Eu lhe digo que você não sairá
de lá enquanto não pagar o último centavo” (Lc 12:59). Todo o contexto é sobre ser
colocado em um lugar com os infiéis, receber muitos ou poucos açoites e ser posto
na “prisão”, mas eles acham que Jesus teria metido no meio disso tudo um “fogo do
Espírito” que cai totalmente de paraquedas no texto. Mas é essa a conclusão que
eles são obrigados a chegar, para não terem que assumir que Jesus lamentou pelo
inferno.
Paulo e o castigo futuro – Um texto que deixa nítido que o castigo dos
ímpios é futuro está no início da segunda carta de Paulo aos tessalonicenses, onde
ele escreve:
“É justo da parte de Deus retribuir com tribulação aos que lhes causam
tribulação, e dar alívio a vocês, que estão sendo atribulados, e a nós também.
Isso acontecerá quando o Senhor Jesus for revelado lá do céu, com os seus
anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes. Ele punirá os que não
1045
O estado intermediário no Novo Testamento 1046
Paulo começa dizendo que é justo que Deus retribua ao ímpio o mal que ele
• “Isso acontecerá no dia em que ele vier para ser glorificado em seus
O que todos esses indicativos têm em comum? Em todos eles o verbo está
quando isso se dará: quando o Senhor Jesus for revelado do céu (v. 7), no dia em
que ele voltar em sua glória (v. 10). Se Paulo fosse imortalista, ele de modo algum
teria dito que é só na volta de Jesus que os ímpios receberão o castigo que
merecem. Em vez disso, teria dito o que todo e qualquer imortalista afirma de boca
cheia em nossos dias: que eles serão castigados assim que morrerem e sua alma for
Pedro e o castigo futuro – Assim como Paulo, Pedro também destacou que
o castigo dos ímpios está reservado para um momento futuro ao escrever: “Assim,
juízo, para serem castigados” (2Pe 2:9). Se os ímpios serão castigados após o juízo,
1046
O estado intermediário no Novo Testamento 1047
é porque não estão sendo castigados hoje. Isso é tão evidente que algumas versões
tiveram até que mudar a tradução para passar o sentido oposto, de que os ímpios
provação e manter em castigo os ímpios para o dia do juízo», e a ARIB por «reservar
para o dia do juízo os injustos, que já estão sendo castigados». Logo de cara vemos
que tais traduções não fazem o menor sentido, pois se eles estão reservados para o
dia do juízo, então não estariam sendo castigados hoje, antes mesmo de serem
julgados. Primeiro um réu é julgado, e só então é condenado para pagar a sua pena.
um pensamento que vem sendo construído nos versos anteriores (por isso começa
“Pois Deus não poupou os anjos que pecaram, mas os lançou no inferno,
prendendo-os em abismos tenebrosos a fim de serem reservados para o
“espíritos em prisão”), o grego deste texto não traz “inferno”, mas “tártaro”. É a única
vez que essa palavra aparece na Bíblia, e se relaciona especificamente aos anjos
caídos de Gn 6:1-4 (não aos demônios de uma forma geral, que estão soltos e não
1047
O estado intermediário no Novo Testamento 1048
presos, e muito menos a seres humanos). Mas nós não temos que voltar a falar
sobre isso, porque o foco aqui não está na natureza do tártaro, mas no tormento
atual dos anjos que ali se encontram. Para eles, portanto, Pedro citou um tormento
presente dos anjos maus no verso 4 e um tormento presente dos homens maus no
verso 9.
Há dois problemas com isso. O primeiro é que o texto em questão não diz
que esses anjos estão sendo atormentados hoje. Essa noção vem do entendimento
“inferno”, ainda que no grego conste o tártaro (o que não é de se admirar, já que os
vimos no capítulo 4, o tártaro nada mais é que uma prisão onde esses anjos estão
resultou no dilúvio. Seu verdadeiro castigo é futuro, assim como o dos demais anjos
“Então eles gritaram: ‘Que queres conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para
nos atormentar antes do devido tempo?’” (Mateus 8:29)
estavam sendo atormentados no inferno ainda. Eles sabiam que o seu tormento era,
e é, um acontecimento futuro, e não uma realidade presente. Portanto, 2Pe 2:4 não
1048
O estado intermediário no Novo Testamento 1049
conclusão dos versos 4 ao 8. Para a infelicidade dos imortalistas, o contexto não tem
só o verso 4. Entre os versos 4 e 9, Pedro segue fazendo uma série de analogias que
os imortalistas nunca citam, como se ele tivesse pulado do verso 4 direto pro 9. E a
razão por que eles nunca citam esses versos é justamente porque nada neles
favorece a visão de que o apóstolo estava falando de almas fora do corpo sofrendo
2ª Pedro 2
5 Ele não poupou o mundo antigo quando trouxe o dilúvio sobre aquele povo
7 mas livrou Ló, homem justo, que se afligia com o procedimento libertino dos que
8 (pois, vivendo entre eles, todos os dias aquele justo se atormentava em sua alma
Observe que, logo após mencionar o juízo que aguarda os anjos caídos,
Pedro cita outros dois eventos relacionados aos seres humanos, que os imortalistas
convenientemente passam por cima e fingem que não existem. Isso porque
tipificam um juízo futuro como castigo por seus atos. O primeiro exemplo é o dos
ímpios dos dias de Noé. Enquanto Noé construía a arca, “o povo vivia comendo,
bebendo, casando-se e sendo dado em casamento, até o dia em que Noé entrou
1049
O estado intermediário no Novo Testamento 1050
vindouro, que tanto no verso 4 (“reservados para o juízo”) como no verso 9 (“para o
imortalistas mais tendenciosas. Mas note que os ímpios da época de Noé não
estavam sofrendo nada antes do dilúvio. Pelo contrário, tanto em 2Pe 2:5 como em
Lc 17:27 (de onde Pedro extraiu a tipologia) os ímpios viviam tranquilamente até vir
do dilúvio não estavam sofrendo castigo algum, a conclusão é óbvia para qualquer
pessoa com mais de dois neurônios: os ímpios só serão castigados após o juízo.
O que corrobora o fato de que Pedro extraiu a tipologia das palavras de Jesus
em Lucas 17 é que o segundo exemplo que ele citou também é, não por acaso,
(Lucas 17:28-29)
Na comparação das perícopes, fica mais do que evidente que Pedro extraiu
1050
O estado intermediário no Novo Testamento 1051
coisa que os dois estão querendo ilustrar: que os ímpios estão livres de castigo até
o juízo divino ser executado sobre eles. Esse juízo é tipificado pelo dilúvio, que
destruiu os ímpios da época de Noé, e pelo fogo que caiu em Sodoma e Gomorra,
que destruiu seus habitantes. Em Lucas, vemos que antes de cair fogo e enxofre
1051
O estado intermediário no Novo Testamento 1052
Em outras palavras, eles não estavam sofrendo coisa alguma, viviam uma
destruir a todos” (v. 29). Por isso Pedro diz que o que aconteceu com Sodoma e
está no castigo futuro dos ímpios, que se dá após o juízo, usando como antítipos o
dos ímpios, mas sobretudo porque até então eles viviam tranquilamente como se
mas justamente o contrário: que eles não sofrem coisa alguma até chegar o juízo.
Vale ressaltar que o apóstolo volta a fazer uma analogia com o dilúvio no capítulo
pela água o mundo daquele tempo foi submerso e destruído. Pela mesma
palavra os céus e a terra que agora existem estão reservados para o fogo,
guardados para o dia do juízo e para a destruição dos ímpios”
Mais uma vez, a destruição dos ímpios por ocasião do dilúvio é citada como
um alerta para os ímpios de seus dias, que serão destruídos no dia do juízo (v. 7), e
1052
O estado intermediário no Novo Testamento 1053
não antes. 2Pe 2:9 é a conclusão de um raciocínio que vem sendo construído desde
no futuro (i.e, após o juízo). Tudo o mais que ele diz na sequência nada mais é do
que exemplos que ele usa para ilustrar o ponto, para então concluir no verso 9 com
o mesmo pensamento iniciado no verso 1. Uma vez que o verso 9 apenas reitera a
ideia do verso 1 (em vez de apresentar uma ideia nova e alheia ao texto), devemos
Note como tudo faz muito mais sentido quando entendemos o estado dos
mortos: o ímpio pode morrer sem nada ter sofrido na terra, mas ressuscitará no dia
do juízo para repentinamente receber a devida retribuição por seus atos. Quando
fácil também de compreender os exemplos citados por Pedro para ilustrar o ponto:
os antediluvianos, que não sofriam nada até serem pegos de surpresa pelo dilúvio,
e os sodomitas, que pecavam livremente até serem surpreendidos pelo fogo que
destruiu a cidade.
1053
O estado intermediário no Novo Testamento 1054
Todos esses exemplos citados por Pedro estão ali para reforçar a mesma
ideia do verso 1: a destruição repentina que ocorrerá após o juízo (que não seria
reforça o fato de que ele extraiu a ideia do discurso de Jesus em Lucas 17, que além
de citar os mesmos exemplos também destaca que será algo repentino, inesperado,
próprios genros de Ló zombaram dele quando o ouviram dizer que Deus destruiria
Jesus assegurou que “como foi nos dias de Noé, assim também será na vinda
do Filho do homem. Pois nos dias anteriores ao dilúvio, o povo vivia comendo e
arca; e eles nada perceberam, até que veio o dilúvio e os levou a todos. Assim
isto é, foram pegos completamente desprevenidos. É daí que Pedro tirou a ideia da
continuarão ali, mas porque os ímpios que nunca pensaram que pagariam por seus
É surreal que alguém não consiga entender algo tão óbvio no texto, tamanha
1054
O estado intermediário no Novo Testamento 1055
que o interesse em procurar a verdade. Quem procura a verdade olha com cuidado
para todo o contexto, mas o dogmático só se preocupa com o que pode tirar do
Cabe ressaltar que nem todos os imortalistas descem tão baixo a ponto de
usar 2Pe 2:9 a seu favor. Isso explica as muitas traduções da Bíblia que, apesar de
2:9 como “já estão sendo castigados”. Entre elas constam a maioria das versões mais
➢ “The Lord knoweth how to deliver the godly out of temptations, and to
reserve the unjust unto the day of judgment to be punished” (King James)
➢ “The lorde knoweth how to deliver the godly out of temptacion and how to
reserve the vniuste vnto the daye of iudgement for to be punisshed” (Bíblia
de Tyndale)
➢ “[The] Lord knows [how] to deliver the godly out of trial, and to keep [the]
➢ “If this is so, then the Lord knows how to rescue the godly from trials and to
International Version)
1055
O estado intermediário no Novo Testamento 1056
➢ “Jehovah knows how to deliver the godly out of temptation, and to preserve
➢ “The Lord hath known to rescue pious ones out of temptation, and
Translation)
➢ “Then the Lord knows how to rescue the godly from trials and to reserve the
Bible)
➢ “If so, then the Lord knows how to rescue the godly from their trials, and to
➢ “Es porque el Señor sabe librar de las pruebas a los piadosos y guardar a los
➢ “Pero el Señor sabe librar de la prueba a sus servidores y reserva a los malos
➢ “Le Seigneur saura délivrer de l'épreuve ceux qui l'honorent, et garder les
1056
O estado intermediário no Novo Testamento 1057
➢ “Le Seigneur sçais aussi delivrer de tentation ceux qui l'honorent, et reserver
➢ “Le Seigneur saura délivrer de l'épreuve ceux qui l'honorent, et garder les
➢ “Le Seigneur sait délivrer de l'épreuve les hommes pieux, et réserver les
➢ “Der HErr weiß die GOttseligen aus der Versuchung zu erlösen, die
de Lutero)
1057
O estado intermediário no Novo Testamento 1058
dizer que kolazomenous (de kolazo, que significa «punição»579) está no particípio e,
portanto, o castigo ou punição tem que ser atual. Mas se é tão simples assim, por
qualquer época traduzem por «para serem castigados no dia do juízo», e não por
a própria doutrina para cometer um erro tão amador como esse? Por mais que eu
ame uma boa teoria da conspiração, isso ultrapassa todos os limites do bom senso.
principiante como esse seria o mesmo que os responsáveis por inserir as legendas
por “eu voltei” em vez de “eu voltarei”, e arruinassem o filme. Não é preciso ser
muito inteligente para presumir que a questão linguística do texto passa longe de
não tem a ver somente com o contexto (o qual, como vimos, está ali justamente
para mostrar que os ímpios só serão castigados após o juízo), mas com o próprio
uso do particípio. Quem explica isso são os editores da New English Translation,
579
#2849 da Concordância de Strong.
1058
O estado intermediário no Novo Testamento 1059
uma Bíblia com mais de 60 mil notas de rodapé produzidas por mais de vinte
12:33; At 3:26; 2Pe 2:10, como até a maioria das versões o traduz).
580
THE NET BIBLE. New English Translation. Dallas: Biblical Studies Press, 2017, p. 2372.
1059
O estado intermediário no Novo Testamento 1060
ainda assim seria precipitado concluir que ele implica em um castigo atualmente
pode ser apenas uma sentença mais curta para se referir à sentença do castigo.
perversos agora estão sofrendo punição; mas Pedro pode muito bem
ter usado “sob castigo” como uma forma curta para “sob sentença de
a punição dos ímpios, um tempo ainda futuro (veja Jd 1:6). Este verso
chegando até 2Pe 2:4. Como Kelcy disse: “A prótase (isto é, as orações
grego bíblico Johann Albrecht Bengel, que comentou: “κολαζομένους – para ser
Barnes também sublinha: “para serem castigados: como os anjos caídos (2Pe 2:4),
581
COFFMAN, James Burton. “Commentary on 2 Peter 2:9”. Coffman Commentaries on the Bible (1983-
1999).
582
BENGEL, Johann Albrecht. “Commentary on 2 Peter 2:9”. Johann Albrecht Bengel's Gnomon of the New
Testament (1897).
1060
O estado intermediário no Novo Testamento 1061
assim eles não escaparão do tormento futuro; eles são poupados por
temporais, estão reservados para a vingança eterna. Ou: (2) pode ser
Senhor sabe como libertar o piedoso das tentações quando ele achar
final.584
O mais curioso é que até o próprio Calvino interpretou assim, embora ele
583
BARNES, Albert. “Commentary on 2 Peter 2:9”. Barnes' Notes on the Whole Bible (1870).
584
POOLE, Matthew. “Commentary on 2 Peter 2”. Matthew Poole's English Annotations on the Holy Bible
(1685).
1061
O estado intermediário no Novo Testamento 1062
ter se inclinado para o lado imortalista. Em seu Comentário à 2ª Pedro, ele escreve:
serem punidos, ou para que possam ser punidos. Pois ele nos ordena
não está no sentido de que os ímpios estão sendo castigados agora, mas que eles
estão sob a sentença do castigo, a qual será executada somente por ocasião do
juízo.
É curioso notar que esse mesmo termo no particípio só ocorre duas vezes na
Bíblia. Uma é aqui, e a outra é em At 2:47, que diz que ”o Senhor lhes acrescentava
todos os dias os que iam sendo salvos” (At 2:47). Esse paralelo único na Bíblia é de
sabemos que a salvação em si é tratada como um evento futuro, ainda que agora
585
CALVIN, John. “Commentary on 2 Peter 2:9”. Calvin's Commentary on the Bible (1840).
586
BAUCKHAM, Richard J. “Jude, 2 Peter”. Word Biblical Commentary. Waco: Word, 1983. v. 50, p. 254.
1062
O estado intermediário no Novo Testamento 1063
Tome como exemplo o texto em que Jesus diz que “aquele que perseverar
até o fim, esse será salvo” (Mt 10:22), e não que “já está” salvo. Paulo também diz
que “seremos salvos da ira de Deus” (Rm 5:9) e que “a nossa salvação está,
agora, mais perto do que quando no princípio cremos” (Rm 13:11). Se ela está “mais
perto”, é porque não a conquistamos ainda. A Timóteo, ele escreve que “fazendo
assim, salvarás a ti mesmo e aos teus ouvintes” (1Tm 4:16), a despeito do fato de
Timóteo já ser um crente fiel. E o autor de Hebreus diz que Cristo aparecerá uma
segunda vez “aos que o aguardam para a salvação” (Hb 9:28), mas ninguém
Por outro lado, como bem sabemos, há muitos textos que mostram a
salvação como algo presente. Jesus disse a Zaqueu que “hoje houve salvação nesta
casa” (Lc 19:9), Paulo diz que “nessa esperança fomos salvos” (Rm 8:24), que Deus
“nos salvou pelo lavar regenerador e renovador do Espírito Santo” (Tt 3:5) e que
1:13). E ao mesmo Timóteo, ele diz que Deus “nos salvou e nos chamou com uma
diz respeito à nossa “sentença” atual (ou seja, que estamos hoje na condição de
salvos, a qual manteremos ou não até o dia do juízo), enquanto a salvação como
na vida eterna (após o juízo). Algo semelhante parece ser o caso aqui em 2Pe 2:9:
os ímpios estão “sob castigo” no sentido de que eles estão já sob a sentença do
1063
O estado intermediário no Novo Testamento 1064
castigo, da mesma forma que nós estamos sob a sentença da salvação, e não que
“Quem nele crê não é condenado, mas “Os que fizeram o bem ressuscitarão
quem não crê já está condenado, por para a vida, e os que fizeram o mal
Note que, embora o ímpio já esteja condenado (Jo 3:18), ele só é condenado
de fato após a ressurreição (Jo 5:29). Mais uma vez, não há contradição entre as
está expressa desde o presente (mesmo para os ímpios que ainda vivem), mas se
consumará de fato no futuro. Assim como o salvo já está na condição de salvo, mas
não foi recebido na glória ainda, o ímpio já está na condição de condenado, mesmo
o mesmo com outras palavras: “Há muito tempo a sua condenação paira sobre eles,
e a sua destruição não tarda” (2Pe 2:3). Eles já estão há muito tempo sob a sentença
condenatória (“há muito tempo a sua condenação paira sobre eles”), mas só serão
destruídos de fato no futuro (“sua destruição não tarda”). É isso o que Pedro reitera
no verso 9, mas com outras palavras: eles já estão “sob punição” (i.e, sob a sentença
1064
O estado intermediário no Novo Testamento 1065
particípio, neste caso, não está ali para indicar que o ímpio esteja sofrendo castigo
atualmente, mas que ele está atualmente fadado ao castigo, o qual se dará no dia
do juízo.
Observe como a NVI (uma das traduções que vertem o “castigo” como presente,
tais homens não têm medo de difamar os seres celestiais” (2ª Pedro 2:9-10)
verso. Vale lembrar que a Bíblia original não continha divisão de capítulos ou
1065
O estado intermediário no Novo Testamento 1066
“desprezam”, etc). O que isso quer dizer? Que se Pedro realmente falava no verso 9
que aqueles falsos mestres já estavam sofrendo castigo naquele presente momento
no inferno, então esses falsos mestres continuavam seguindo seus desejos impuros
O ponto todo é que não dá pra desvincular o verso 9 do verso 10, porque o
podia estar falando no verso 10 de outros falsos mestres (que estivessem ainda
vivos), porque ele inicia o verso com um “especialmente”. O termo usado no grego
principalmente os argentinos”.
Da mesma forma, quando Pedro diz que os falsos mestres estão “sob
são um grupo à parte do que acabou de ser referido, mas estão inclusos entre os
que ele citou. Assim, se os falsos mestres do verso 9 estão queimando no inferno,
587
#3122 da Concordância de Strong.
1066
O estado intermediário no Novo Testamento 1067
segue-se logicamente que os do verso 10 (que não são outros mestres, mas os
Mas eles não estão, porque o particípio demonstra que eles continuavam
na terra. Ou seja, Pedro falava de falsos mestres vivos, não de mortos queimando
em algum lugar. Isso corrobora o fato de que o “sob castigo” não tem qualquer
relação com um castigo atual em qualquer tipo de inferno, mas diz respeito à
explicitamente o verso 9.
regular o particípio presente em textos que não são entendidos por ninguém como
O trecho traduzido pela NVI como «se derreterão pelo calor», no grego, é
1067
O estado intermediário no Novo Testamento 1068
Pedro escrevia, já que, assim como em 2Pe 2:9, todo o contexto indica algo futuro.
Todos concordam que aqui o particípio presente tem força de particípio futuro,
Pedro rotineiramente usa o particípio presente para coisas futuras, o que por si só
já anula o argumento daqueles cuja única razão que tem para acreditar que os
2 é a de Ló, que “atormentava a sua alma justa, dia após dia, por causa das obras
iníquas que aqueles praticavam” (v. 8). Obviamente, Ló estava tão vivo quanto os
acontecer com eles, mal sabendo que estavam já sob a sentença do juízo que Deus
que o texto realmente prova é que os ímpios só serão castigados após o juízo, que
crendice popular e das tradições humanas, não da Bíblia. O máximo que a Bíblia
«tártaro» (2Pe 2:4) ou «abismo» (Lc 8:31), que não é o inferno propriamente dito e
tampouco envolve tortura ou sofrimento, mas uma prisão que limita o campo de
atuação dos que ali estão encerrados. De modo geral, contudo, os demônios estão
1068
O estado intermediário no Novo Testamento 1069
soltos, «nos ares» (Ef 2:2) ou «nas regiões celestiais» (Ef 6:12), e o próprio Satanás
“anda ao derredor como um leão, rugindo e procurando a quem possa tragar” (1Pe
Eles sabem que o seu castigo é futuro, razão por que questionaram Jesus se
ele os atormentaria antes do devido tempo (Mt 8:29). Isso elimina qualquer
sequer estejam num lugar desses. Sempre que Satanás é mencionado na Bíblia,
mesmo após a rebelião e a Queda, ele aparece “nas regiões celestiais” (Ef 6:12), não
afirmação, a Bíblia nunca, jamais e em momento nenhum diz que Satanás está no
Isso nos leva a perguntar por que Deus estaria castigando uma imensa
Satanás, ninguém menos que o autor do pecado, estaria livre, leve e solto por aí.
Para os imortalistas, Deus teria deixado Satanás e seus anjos – que pecam desde o
princípio do mundo (1Jo 3:8) – pintando e bordando até o fim do mundo, mas os
homens e mulheres que pecaram durante apenas algumas décadas não seriam
“inferno” das traduções imortalistas foi “preparado para o diabo e seus anjos” (Mt
25:41), não para os seres humanos, embora estes acabem tendo o mesmo destino.
Pense nisso: Deus teria preparado o inferno especificamente para o diabo, não para
nós, mas ironicamente só quem está ali agora são os humanos, não o próprio diabo
1069
O estado intermediário no Novo Testamento 1070
para quem o inferno foi criado! Deus prepara um lugar para castigar o diabo, mas
deixa o próprio diabo livre e em seu lugar decide castigar os humanos ali antes dele!
A coisa piora ainda mais quando consideramos outra crendice popular (mas
aceita por muitos desses apologistas imortalistas), a de que o diabo está no inferno,
mas não queimando ou sofrendo, e sim reinando como um verdadeiro deus sádico
que tortura as almas que para lá são enviadas. Em outras palavras, que o diabo reina
no lugar criado para o seu próprio castigo! O inferno, nessa perspectiva, é uma
ao chegar lá, ao invés de encontrá-lo punido e preso como merece, ele está ali
jogando baralho, tem livre permissão para entrar e sair do presídio e, pior ainda, ele
adora ficar lá porque pode torturar à vontade os outros criminosos que ali são
Na prática, o diabo deve estar é agradecendo a Deus por ter criado o inferno
e o colocado ali como um deus, como descrevem todos os relatos de gente que
ido pra lá e voltou – e que atraem multidões de crédulos ignorantes. O lugar que
deveria ser seu suplício é um parque de diversões onde o único que se diverte é
justamente aquele que mais deveria estar sofrendo. É esse o tipo de deus estranho
e bipolar que muitos imortalistas acreditam, alguém que cria o inferno para o diabo
1070
O estado intermediário no Novo Testamento 1071
Note como, mais uma vez, tudo faz muito mais sentido quando analisamos
a coisa dentro de uma perspectiva bíblica: o diabo não está no inferno porque não
existe “inferno” atual, mas ele será castigado futuramente no mesmo lugar que os
ímpios, mas por muito mais tempo e de forma bem mais severa. Nessa perspectiva,
não há ninguém sofrendo castigo antes do próprio autor do pecado; Satanás não
mitologia medieval influenciada pelo dualismo platônico, não pelo realismo bíblico.
identificado como um parque de diversões do diabo, mas como uma prisão na qual
Para Satanás e seus anjos, o lugar de seu suplício é apenas suplício, não
diversão, não entretenimento. Ninguém ficará ali mais do que ele próprio, para
quem o lugar foi criado – diferentemente da visão imortalista, onde todos queimam
para sempre, mas gente como Caim queima por pelo menos 6 mil anos a mais que
o próprio diabo, que nem começou a queimar ainda. Se na visão imortalista Deus
suplício, na visão mortalista o “inferno” é desde o princípio até o fim o local de seu
1071
O estado intermediário no Novo Testamento 1072
resumido: “Se os mortos deixam de existir, então Jesus deixou de existir por três dias
até a ressurreição?”. A resposta para essa pergunta é sim. E não. Antes de denunciar
distinguiu em nada da morte de qualquer ser humano, o que significa que ele
pecados (1Co 15:3; cf. Rm 5:6, 8:34, 14:9, 15; 1Co 8:11; 2Co 5:14-15; 1Ts
4:14, 5:9-10; 1Pe 3:18; 1Jo 3:16, 5:11). No entanto, se a morte atinge
alma, que seria a essência ou a “parte mais importante” das duas que
Que Jesus morreu por nossos pecados, isso todos concordam. Mas pelo que
Cristo morreu? Só para salvar o corpo? Evidentemente não, mas para salvar a alma
também. Mas se Cristo teve que morrer corporalmente para redimir nosso corpo,
por que não teria que morrer como alma para redimir nossa alma? Se corpo e alma
588
GOMES, Ezequiel. A Imortalidade da Alma e o Castigo Eterno: um breve comentário exegético de 2
Pedro. Jundiaí: Ed. do Autor, 2020, p. 154-155.
1072
O estado intermediário no Novo Testamento 1073
são dois entes distintos e Jesus morreu pelos dois, é evidente que ele teria que
morrer de corpo e alma, não só de corpo. O preço a ser pago pela nossa redenção
foi a morte, e se a morte foi em nosso lugar, ela abrange corpo e alma, pois ambos
foram redimidos na cruz. Em outras palavras, dizer que a alma de Jesus não
experimentou a morte é o mesmo que dizer que a nossa alma não precisava de
redenção.
Isso explica os vários textos que dizem explicitamente que Jesus deu a sua
alma (nephesh ou psiquê) por nós, como vimos no capítulo 3. Isaías profetizou que
ele daria “a sua alma (nephesh) como oferta pelo pecado” (Is 53:10) e que ele
“derramou a sua alma (nephesh) na morte” (Is 53:12). João disse que “Jesus Cristo
deu a sua vida (psiquê) por nós, e devemos dar a nossa vida (psiquê) por nossos
irmãos” (1Jo 3:16), onde é psiquê-alma que consta no grego, embora o tradutor
tenha preferido traduzir por “vida” (talvez para não chocar os leitores com uma
O próprio Jesus disse que o Filho do homem “não veio para ser servido, mas
para servir e dar a sua vida (psiquê) em resgate por muitos” (Mt 20:28), que ele é o
bom pastor e que “o bom Pastor dá a sua vida (psiquê) pelas ovelhas” (Jo 10:11),
que assim como o Pai o conhece, “também eu conheço o Pai, e dou a minha vida
(psiquê) pelas ovelhas” (Jo 10:15), que ninguém tem maior amor do que aquele que
“dá a sua vida (psiquê) pelos seus amigos” (Jo 15:13) e que o Pai o amava porque
“eu dou a minha vida (psiquê) para recebê-la outra vez” (Jo 10:17).
do tradutor. Jesus foi taxativo: a sua própria alma morreria em nosso favor. Ele não
1073
O estado intermediário no Novo Testamento 1074
sacrificaria apenas seu corpo, mas também sua alma. Seu sacrifício era completo.
Por outro lado, não podemos esquecer que Jesus não era um homem
qualquer, mas o Deus encarnado. E, como Deus, Jesus nunca passou pela morte,
pois não é possível que a divindade morra ou deixe de existir por um segundo
sequer (1Tm 6:16). É isso o que distingue o caso de Jesus do nosso, já que nenhum
de nós é Deus encarnado ou tem uma natureza divina para estar na mesma
condição que ele. Assim, Jesus é um caso sui generis – um caso único e singular,
que não pode ser comparado a nenhum outro. Ele é o único que pode “morrer e
não morrer” (morrer como homem, e não morrer como Deus). Ao passo em que
nós, por termos apenas a natureza humana, não temos senão o destino da morte
natural.
primeiro lugar, chega a ser irônico que quem reclama sobre “separar as duas
naturezas” seja justamente quem separa a natureza humana em duas e envia cada
parte para um destino diferente após a morte. Para eles, a natureza divina não
humana pode ser separada consigo mesma. É o nível de bizarrice com a qual somos
obrigados a lidar.
589
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 124.
1074
O estado intermediário no Novo Testamento 1075
divina, temos aqui um problema do mesmo tipo daquele que é colocado na nossa
conta. E se o corpo de Jesus pôde se separar da natureza divina sem que isso
representasse qualquer problema, por que o mesmo não poderia acontecer com a
alma? Aparentemente, a lógica que prevalece é a de que o corpo não tem valor
algum, e por isso pode ser facilmente descartado da equação. Só o que vale é a
imortalista de alma, Jesus sequer precisaria de uma. Ele não precisava de uma alma
para sobreviver à morte, pois já tinha uma natureza divina. Tampouco precisaria da
alma para ter uma “essência”, uma vez que sua essência estava naquilo que ele já
era como Deus. Humanamente falando, ele só precisava de um corpo. Talvez seja
por isso que o autor de Hebreus disse que “quando Cristo veio ao mundo, disse:
‘Sacrifício e oferta não quiseste, mas um corpo me preparaste’” (Hb 10:5), sem
mencionar nada a respeito de uma alma que tivesse sido infundida no corpo.
Quarto, se Jesus existia antes de vir ao mundo (ou seja, antes de ter uma
natureza humana), por que precisaria da natureza humana para continuar existindo
após a morte física? Isso é como dizer que após a encarnação Jesus ficou
leva às conclusões mais excêntricas, como a de que Jesus sente fome, sede e sono
1075
O estado intermediário no Novo Testamento 1076
no céu (como pregado pelo pastor Heber Carlos de Campos, ninguém menos que
Quinto, o fato das duas naturezas estarem unidas enquanto vivo não
significa que elas assim permaneçam na morte. A união hipostática se refere ao que
entendem que corpo e alma estão unidos enquanto estamos vivos, mas mesmo
assim acreditam que essa união se desfaz na morte, sem que isso seja uma
alma, por que não pode desfazer momentaneamente a união entre a alma e a
da conveniência.
Dizer que a morte não foi sequer capaz de separar as duas naturezas de
Cristo é o mesmo que dizer que ele não sofreu nenhuma morte real. Tudo
continuou exatamente como antes: uma natureza humana viva (através da alma)
unida a uma natureza divina também viva (por não poder morrer). Em termos
práticos, é o mesmo que dizer que ele nem mesmo passou pela morte – ou seja,
que não morreu por nossos pecados. Sua essência humana (a alma) permaneceu
tão viva quanto sua essência divina, sendo a morte uma mera ilusão; um despojar
590
Disponível nos minutos 13-14 do vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=LJKs-t1RQgc>. Acesso
em: 06/01/2022.
1076
O estado intermediário no Novo Testamento 1077
Daí vem a cena da morte em si. Com sublime calma Sócrates bebe a
omitir a frase) brada em voz alta: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me
abandonaste?”. E com outro alto brado ele morre (Mc 15:37). Esta não
de toda a vida. É precisamente por esta razão que Jesus, que está tão
significa ser abandonado por Deus. De uma forma bem diferente dos
condição realmente a ser temida. Foi por isso que ele clamou a Deus:
É só com uma morte real – uma morte de corpo e alma – que Jesus pôde
591
CULLMANN, Oscar. Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? Disponível em:
<https://www.mentesbereanas.info/wp-content/uploads/2020/07/imort-ressur_folheto.pdf>. Acesso
em: 26/01/2022.
1077
O estado intermediário no Novo Testamento 1078
Visto que Jesus sofreu a morte em todo o seu horror, não só em seu
vence a morte por meio de sua própria morte. Ele não pode obter esta
vida, o bem mais precioso que Deus nos deu. Eis a razão por que os
completamente humana.592
Por fim, com o pretexto de fugir do nestorianismo (no qual havia “duas
para a qual as duas naturezas de Jesus eram tão inseparáveis que constituíam uma
naturezas de Cristo eram distintas, ainda que estivessem unidas em uma única
592
ibid, p. 13-14.
1078
O estado intermediário no Novo Testamento 1079
dilemas bíblicos que de outro modo seriam apenas contradições. Tome como
exemplo o texto em que Tiago diz que “Deus não pode ser tentado” (Tg 1:13),
humana de Jesus não pode ser “separada” da natureza divina, de modo que o que
que Jesus não é Deus, já que ele foi tentado, e Deus não pode ser tentado. Mas se
tentado humanamente, mas não como Deus (i.e, não em sua natureza divina). Note
insolúveis.
Outro exemplo é o texto que diz que Jesus crescia em graça e sabedoria (Lc
2:52), embora Deus não possa “crescer” em sabedoria, por já ser pleno em
sabedoria. Jesus nem mesmo sabia o dia preciso da sua volta, que “ninguém sabe,
nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão somente o Pai” (Mt 24:36), algo
inaceitável do ponto de vista da natureza divina, que é onisciente por natureza. Mais
uma vez, esse texto só pode ser entendido quando separamos as duas naturezas e
entendemos que Jesus falava apenas da sua condição humana. O autor de Hebreus
também diz que Deus “não tem princípio nem fim de dias” (Hb 7:3), mas Jesus
aos montões. Em certa ocasião, Jesus “não pôde fazer ali nenhum milagre” (Mc 6:5),
mas a natureza divina é onipotente; em outra, Jesus não sabia quem havia tocado
1079
O estado intermediário no Novo Testamento 1080
em seu manto (Lc 8:43-48), embora a natureza divina seja onipresente. Deus
também não sente fome ou sede, não passa frio ou calor, não faz necessidades
básicas, não sente dor física, não chora, não se cansa e nem é gerado em nove
meses, mas Jesus passou por todas essas coisas, além de muitas outras.
É por essa mesma lógica que dizemos que a morte seria impossível do ponto
de vista da natureza divina, pois um ser imortal como Deus (1Tm 6:16) não pode
morrer numa cruz. O que morreu foi a natureza humana, não a divindade. Sem
separar as duas coisas seria impossível declarar Jesus como verdadeiro Deus,
porque, como homem, ele sofreu uma série de coisas que seria impossível a Deus,
e a morte é uma delas. Indo um pouco além, é justamente por isso que Maria não é
“mãe de Deus”, como creem os católicos, mas mãe de Jesus enquanto homem.
É curioso notar que o próprio Rinaldi era membro do CACP, que nega que
Maria seja mãe de Deus593, embora originalmente o termo theotókos tenha sido
cunhado justamente em resposta ao nestorianismo (que nega que Maria seja mãe
naturezas de Cristo para evitar a blasfêmia de que um Deus eterno tem uma mãe.
O próprio Paulo separa as duas naturezas claramente quando diz que “há
se entregou a si mesmo como resgate por todos” (1Tm 2:5-6). Ele poderia ter dito
593
Disponível em: <http://www.cacp.org.br/maria-mae-de-deus>. Acesso em: 06/01/2022.
1080
O estado intermediário no Novo Testamento 1081
apenas “Jesus Cristo”, mas fez questão de acrescentar o “homem”, pois foi como
homem que ele «entregou a si mesmo como resgate por todos», ou seja, que ele
morreu por nós (como já dissemos, a divindade não morre). Se o próprio apóstolo
distingue as duas naturezas quando fala da morte de Jesus, quem é Rinaldi para
Um argumento tão ruim que eu não ia nem colocar no livro, mas decidi
incluir de última hora após ver que tem dado muito o que falar na internet, é o de
que Paulo seria um imortalista porque ele era um fariseu, e os fariseus são
crucial na própria premissa, já que o fato de Paulo ter sido um fariseu não significa
que ele tenha conservado todas as crenças farisaicas após sua conversão mais do
que Moisés teria conservado o paganismo egípcio após ser chamado por Deus.
O próprio fato de Jesus discutir inúmeras vezes com os fariseus (muito mais
como uma transgressão dos mandamentos divinos (Mt 15:3; Mc 7:13) já mostra que
um fariseu para ser cristão teria que rever muito daquilo que ele tinha como certo
quando fariseu – o que inclui o próprio fato de perseguir os cristãos, como Paulo
fazia por excelência. Mais tarde, o próprio Paulo diria que o fato de ter sido um
fariseu foi deixado para trás e considerado como “perda” e como “esterco” após
1081
O estado intermediário no Novo Testamento 1082
“Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais:
que para mim era lucro, passei a considerar perda, por causa de Cristo. Mais
(Filipenses 3:4-8)
para que fique claro qual o propósito de Paulo em se dizer fariseu mesmo após sua
conversão:
“Então Paulo, sabendo que alguns deles eram saduceus e os outros fariseus,
bradou no sinédrio: ‘Irmãos, sou fariseu, filho de fariseu. Estou sendo julgado
ficou dividida. Os saduceus dizem que não há ressurreição nem anjos nem
errado neste homem. Quem sabe se algum espírito ou anjo falou com ele?’. A
discussão tornou-se tão violenta que o comandante teve medo que Paulo
1082
O estado intermediário no Novo Testamento 1083
Como está claro, Paulo se identificou como fariseu não porque ainda
ressurreição dos mortos, que os saduceus desacreditavam. É por isso que ele
exclama: “Estou sendo julgado por causa da minha esperança na ressurreição dos
mortos!” (v. 6). Ele poderia ter dito que estava sendo julgado por crer em almas
justamente para provocar a confusão que se seguiu e assim salvar a própria pele,
Se o propósito era acirrar os ânimos, por que ele não aproveitou para dizer
que cria também na imortalidade da alma? Isso certamente ajudaria a incitar ainda
mais a cólera dos saduceus, que já se irritaram a esse ponto simplesmente por causa
da ressurreição. A razão pode estar no simples fato de que Paulo não cria em
imortalidade da alma, mas somente na ressurreição dos mortos. É por isso que ele
dos saduceus. De todo modo, uma vez que é apenas a ressurreição que é citada
como algo que Paulo defendia, na ausência total de qualquer menção a uma alma
imortal, é estupidez pegar esse trecho como um indício de que Paulo era
imortalista.
1083
O estado intermediário no Novo Testamento 1084
Lucas diz que «os saduceus dizem que não há ressurreição nem anjos nem espíritos,
mas os fariseus admitem todas essas coisas», como se isso significasse que Paulo
defendia tudo isso, embora o texto só diga que Paulo acreditava na ressurreição,
sem entrar no mérito das outras questões (se concordava com todos esses outros
pontos do farisaísmo ou não). Note ainda que o verso em questão nada fala de
o termo “espíritos” se refira às almas fora do corpo, mas pneuma na Bíblia nunca é
refere a uma alma humana sobrevivendo consciente fora do corpo, por outro lado
o termo é inúmeras vezes usado em relação aos demônios (Mt 8:16, 12:43; Mc 1:26,
nunca são referidos na Bíblia pelo uso do termo aggelos (anjos), com exceção dos
textos que falam dos anjos que não guardaram suas posições de autoridade (Jd 6;
cf. 2Pe 2:4), onde mesmo assim o termo se refere à condição anterior deles (ou seja,
o que eles eram antes da queda, não o que eles são hoje)594.
algo que nenhum demônio é mais, razão por que a Bíblia nunca usa o termo “anjo”
para se referir à condição atual de algum demônio (ou dos demônios no geral).
594
A razão provavelmente está na origem do termo aggelos, que significa “mensageiro”. Um demônio
não mais é um mensageiro de YHWH, razão por que não é mais chamado de “anjo”, termo reservado aos
que se mantiveram fiéis.
1084
O estado intermediário no Novo Testamento 1085
Sempre que a palavra “anjo” aparece, é ou para se referir aos anjos que não caíram,
É por isso que faz todo o sentido a explicação de Lucas quanto aos fariseus
uma condição que eles já tinham perdido. Por isso, eles os chamavam apenas de
“demônios” ou de “espíritos”, como vemos numerosas vezes. É por isso também que
Mesmo se “espíritos” aqui fosse uma referência às almas fora do corpo, como
do que vem a ser o espírito (a respeito do qual já dedicamos todo o capítulo 4 deste
livro), isso não implicaria que Paulo acreditava nisso, já que, como vimos, ele
595
CONSTABLE, Thomas. “Commentary on Acts 23:8”. Dr. Constable's Expository Notes (2012).
1085
O estado intermediário no Novo Testamento 1086
É por isso que o próprio Calvino, inimigo número um dos mortalistas de seu
tempo, nunca usou o fato de Paulo ser fariseu como um argumento contra o
mortalismo (e não só ele, mas ninguém que eu conheça até as discussões recentes
com imortalistas amadores). Mesmo Calvino era capaz de reconhecer que todo o
ponto em disputa girava em torno da ressurreição, não nas outras doutrinas que
dividiam uma seita da outra. Lucas apenas precisou abrir um parêntesis para
aqueles leitores que não estivessem familiarizados com as doutrinas dos dois
fariseu, e deve abandonar qualquer doutrina farisaica que conflita com a nova fé.
Como cristão, Paulo não podia continuar defendendo tudo o que os fariseus
salvação, o que se choca diretamente com o seu ensino da salvação pela graça
mediante a fé, “não por obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2:9). Como se sabe,
os fariseus não apenas acreditavam na salvação pela obediência da lei, como ainda
acrescentavam muitas prescrições por tradição oral que nem mesmo estavam na
lei, mas eram igualmente assumidas como necessárias à salvação (Mc 7:1-13). Esse
tipo de legalismo nunca foi parte do ensino de Paulo como cristão, embora
596
CALVIN, John. “Commentary on Acts 23:8”. Calvin's Commentary on the Bible (1840).
1086
O estado intermediário no Novo Testamento 1087
significa apenas que o que eles acreditavam era irrelevante para determinar o que
um cristão deve acreditar. Sobre isso, a maioria dos estudiosos afirma que eles eram
primária. E essa única fonte primária nem mesmo foi contemporânea de Jesus, mas
é da geração seguinte. Estamos falando de Flávio Josefo (37-100 d.C), que assim
Dizem que todas as almas são incorruptíveis, mas que as almas dos
força imortal dentro delas e que sob a terra elas serão premiadas ou
vida; e estas últimas são mantidas numa prisão eterna, ao passo que
Com base nesses textos, muitos são rápidos em afirmar que os fariseus eram
cuja referência que tem para o Judaísmo vem unicamente de Josefo. Mas há muitos
realmente imortalistas, é de se estranhar que a única fonte que se tenha para isso
597
Guerra Judaica, Livro II, 8.
598
Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, 1.
1087
O estado intermediário no Novo Testamento 1088
em toda a literatura judaica seja Josefo, que escreveu após sua dissolução em 73
d.C, não enquanto ainda existiam. Mesmo um imortalista como John Gill cita apenas
Josefo como evidência de que os fariseus eram imortalistas, enquanto sua crença
rabínicos599.
resposta é sim. Após estudar sobre os fariseus por quase 50 anos em todas as fontes
dito de Aquiba de que tudo está nas mãos dos céus, e ainda assim os
crença. Josefo não descreveu uma crença farisaica. Não, nós não
599
GILL, John. “Commentary on Acts 23:8”. Gill's Exposition of the Entire Bible (1999).
600
Confira mais sobre isso em: <https://www.youtube.com/watch?v=MjGFRuq0xts>. Acesso em:
16/02/2022.
601
NEUSNER, Jacob. In Quest of the Historical Pharisees. Waco: Baylor University Press, 2010, p. 310-311.
1088
O estado intermediário no Novo Testamento 1089
ele apresentou a crença dos fariseus. Steve Mason, o maior especialista em Josefo,
assim respondeu ao e-mail do professor Sérgio Monteiro, que lhe perguntou “se
A razão por que ele diz que «nada é claramente declarado ou claro» é porque
602
KOHLER, Kaufmann. “Pharisees”. Jewish Encyclopedia. Disponível em:
<https://jewishencyclopedia.com/articles/12087-pharisees>. Acesso em: 15/02/2022.
603
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=d4FzhCIv1f8>. Acesso em: 16/02/2022.
1089
O estado intermediário no Novo Testamento 1090
também não são nada definitivas. Por exemplo, logo após dizer que «todas as almas
são incorruptíveis», ele diz que as almas dos bons são “movidas para outros corpos,
porém, as almas dos maus são sujeitas ao castigo eterno”604, dando a entender que
elas não são «movidas para outros corpos» (ou seja, que não ressuscitam ou
Na outra citação, onde ele diz que «as almas tinham uma força imortal
dentro delas», ele complementa que “estas últimas são mantidas numa prisão
ensino de Paulo, de que “haverá ressurreição tanto de justos como de injustos” (At
24:15).
em outras ocasiões e diz que pelo menos alguns ímpios não viverão para sempre, e
604
Guerra Judaica, Livro II, 8.
605
Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, 1.
1090
O estado intermediário no Novo Testamento 1091
mas todo bom homem que tenha sua própria consciência dando
crê que Deus fez esta dádiva àqueles que observam estas leis, ainda
Aqui, Josefo se expressa como um perfeito mortalista: ele não só diz que «os
606
Contra Apião, Livro II.
1091
O estado intermediário no Novo Testamento 1092
Ele também alega que a crença de que “as almas más são lançadas numa
que “os homens maus sofrem punição imortal após a morte”609. Josefo define tais
crenças como “uma inevitável isca para quem uma vez teve gosto por sua filosofia
punição infindável, não aos ensinos do AT, mas a “fábulas” gregas, que
crenças.611
como obra de Josefo (e que seria a “prova” de que ele cria no estado intermediário),
os historiadores já sabem há muito tempo que essa obra não é de Josefo, mas
discussão acadêmica).
O mais irônico é que essa mesma obra que eles citam como de autoria de
607
JOSEFO, Flávio. Josephus Complete Works (ed. William Whiston). Grand Rapids: Kregel Publications,
1974, p. 478.
608
ibid.
609
ibid.
610
ibid.
611
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
1092
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 194.
O estado intermediário no Novo Testamento 1093
o que não somente contradiz a crença imortalista de que os ímpios terão corpos
Mas no que se refere aos injustos, eles receberão seus corpos não
contraditório com o qual ele expressou a crença farisaica na vida após a morte, que
Ademais, como Josefo está longe de ser a única autoridade para se estabelecer a
crença dos fariseus e nenhuma outra fonte em toda a literatura judaica da época
os fariseus do sinédrio em que Paulo bradou sua crença na ressurreição dos mortos
mudar de uma geração para outra, e que, como comenta o Dr. Mason, é muito
provável que nem todos eles tivessem a mesma visão sobre o que acontece após a
612
Discurso aos gregos sobre o Hades.
1093
O estado intermediário no Novo Testamento 1094
morte, assim como os cristãos de hoje têm formas bem diferentes de pensar a
questão. Se podemos estar certos de alguma coisa, é que a nossa fé não se baseia
no testemunho incerto de Josefo ou nos mesmos fariseus que levaram Jesus à cruz,
mas na Palavra de Deus, que nunca abriu espaço para as especulações imortalistas.
alma que sobrevive consciente à morte, os católicos vão além, alegando que os
possuem perfeita ciência do que se passa na terra e rogam no céu diante de Deus
por nós. Essa crença é rejeitada no meio protestante (mesmo entre os evangélicos
divindade, tais como a onisciência e a onipresença (para saberem o que todos oram
dos santos é patente pela quantidade de textos do NT usados a seu favor: eles se
1094
O estado intermediário no Novo Testamento 1095
pressupõem que esteja falando dos mesmos “santos” canonizados pela Igreja
que a Bíblia se refere a um ser humano como um “santo”, ela diz respeito a uma
pessoa viva, nunca a almas fora do corpo. Tome como exemplo o famoso texto que
diz “sejam santos, porque eu sou santo” (1Pe 1:16). Não é preciso ser um gênio da
hermenêutica para concluir que Pedro não estava dizendo “sejam canonizados pela
Igreja Romana após a morte”, mas para que levassem uma vida de santidade aqui
Paulo termina a segunda carta aos coríntios dizendo que “todos os santos
lhes enviam saudações” (2Co 13:13). Que “santos” seriam esses? Será que Paulo
vez, é evidente que Paulo falava de seus companheiros cristãos – gente tão viva em
carne e osso quanto ele próprio –, os quais são chamados de “santos” por viverem
em santidade. O mesmo pode ser dito a respeito do texto em que Paulo escreve:
César” (Fp 4:22). Isso não significa que César colecionasse almas fantasmagóricas
vivendo ali.
(2Co 8:4). Certamente muitos católicos imaginariam que a “assistência aos santos”
tinha algo a ver com a mística “comunhão dos santos” do catolicismo romano, que
1095
O estado intermediário no Novo Testamento 1096
nem eles mesmos sabem explicar o que é. Mas quando analisamos o contexto,
descobrimos que “santos” eram esses dos quais Paulo falava: os crentes pobres de
9:1-9).
Por isso ele diz que “a Macedônia e a Acaia tiveram a alegria de contribuir
para os pobres dentre os santos de Jerusalém” (Rm 15:26), embora uma alma no
céu não tenha necessidade de nada. É isso o que significa “compartilhar o que vocês
têm com os santos em suas necessidades” (Rm 12:13). Numerosos outros exemplos
poderiam ser dados, mas nenhum é necessário. Basta irmos ao próprio livro do
Aqui vemos que as orações dos santos subiram para a presença de Deus.
“Subiram” por que? Obviamente, porque elas vieram da terra, não do céu. O trecho
é claramente uma alusão ao salmo onde Davi diz: “Suba a minha oração perante a
tua face como incenso” (Sl 141:2). Davi obviamente disse isso da terra, não do céu,
e é por essa razão que a oração “sobe” da mesma forma que o “incenso”. Em
conformidade com isso, note que João diz que as orações dos santos sobem para
1096
O estado intermediário no Novo Testamento 1097
não é uma alma beatificada morando no Paraíso, mas uma pessoa que vive uma
vida santa – ainda que não totalmente isenta de pecados – na terra. É a oração
dessas pessoas que sobe para Deus, o que significa que todas as orações que
fazemos aqui na terra chegam ao Senhor, ainda que às vezes nos pareça que não
fomos respondidos.
Há outros que argumentam que, uma vez que os 24 anciãos têm em suas
mãos as orações dos santos (Ap 5:8), isso implicaria que há 24 “santos” no céu
devem ser tomadas ao pé da letra. Devemos lembrar que João não viu o céu tal
quatro seres viventes (que os Pais da Igreja entendiam como uma referência aos
João não vê Jesus no céu em sua forma humana glorificada, mas como um cordeiro
ensanguentado (Ap 5:6, 7:14), uma imagem que dificilmente alguém interpretaria
literalmente.
Da mesma forma, quando ele fala dos 24 anciãos, não devemos imaginar
literalmente 24 pessoas com uma harpa numa mão e uma taça de ouro na outra,
antiga à nova aliança (ou seja, de Israel e da Igreja). Longe de colocar almas
1097
O estado intermediário no Novo Testamento 1098
que a imagem realmente transmite é que Deus não se esqueceu das orações de Seu
enquanto vivo, não orações de terceiros que são recebidas por almas fora do corpo,
como se houvesse outro mediador entre Deus e os homens além de Cristo (1Tm
2:5). Em última análise, essas orações tem tudo a ver com as das “almas debaixo do
altar” (Ap 6:9), as quais, como vimos exaustivamente no capítulo 2, aludem aos
mártires que estavam na terra e rogavam por justiça frente aos seus perseguidores
popular é a do purgatório, segundo a qual a maior parte dos salvos não entra
diretamente no céu, mas precisa passar por um estágio de purificação antes de estar
“pronto” para ver a Deus. Assim, o próprio indivíduo expiaria os seus pecados após
a morte, pelo menos no que diz respeito aos assim chamados “pecados veniais”,
uma vez que quem morre em “pecado mortal” vai diretamente ao inferno. Essa
bíblica de que “se andarmos na luz, o sangue de Jesus nos purifica de todo o
para ser “purgado” no purgatório, a não ser que o sangue de Jesus tenha sido
insuficiente (que é precisamente o que é induzido por este engano). Além de tornar
1098
O estado intermediário no Novo Testamento 1099
inclusive pelo próprio versículo usado por seus defensores para sustentar o dogma,
que diz:
“Todo aquele que disser uma palavra contra o Filho do homem será
perdoado, mas quem falar contra o Espírito Santo não será perdoado, nem
nesta era nem na era que há de vir” (Mateus 12:32)
Como Jesus disse que quem blasfemar contra o Espírito Santo não será
perdoado «nem nesta era nem na era que há de vir», eles supõem que há certos
pecados que têm perdão na «era que há de vir», e esses pecados são todos aqueles
sugere, a era que há de vir não é uma era presente, mas futura – a era que se
esses pecados sejam perdoados, já que Jesus não falava de algo atualmente em
vigência.
Não é à toa que Lucas vincule a «era que há de vir» à ressurreição dos mortos
(Lc 20:35), já que é na ressurreição que a era futura se inaugura. E antes que alguém
diga que essa «era que há de vir» só era futura em relação a Jesus porque o
purgatório não tinha sido ainda estabelecido (pois só teria sido inaugurado após
sua morte), o fato dessa mesma expressão continuar sendo usada nos escritos de
Paulo (1Tm 6:19) e do autor de Hebreus (Hb 6:5) mostram claramente que eles
1099
O estado intermediário no Novo Testamento 1100
continuavam a entender a «era que há de vir» como uma era que ainda viria, não
Assim, quando Jesus diz que o blasfemo não seria perdoado «nem nesta era
e nem na que há de vir», o que ele estava dizendo era algo análogo a quando
usamos a expressão “nem agora e nem nunca”. Nada mais era que uma forma de
uma nova doutrina de salvação após a morte onde cada um salva a si mesmo. O
“Sua obra será mostrada, porque o Dia a trará à luz; pois será revelada pelo
fogo, que provará a qualidade da obra de cada um. Se o que alguém
se queimar, esse sofrerá prejuízo; contudo, será salvo como alguém que
Essa parte final, onde Paulo diz que «será salvo como alguém que escapa
é transitório. Por isso o horror a um era quase tão grande quanto o horror ao outro.
Mas aqui Paulo obviamente não falava de um fogo literal, porque fazia uma simples
1100
O estado intermediário no Novo Testamento 1101
comparação. Ele não diz que tal pessoa seria salva pelo fogo, mas como alguém
Este “como” (hos) está no texto justamente para indicar que o “salvo pelo
fogo” aqui é comparativo, não literal. É a mesma coisa das nossas expressões “salvo
por um triz” ou “salvo pelo gongo”, mesmo que o gongo enquanto instrumento
musical não tenha literalmente salvado ninguém. Como explica W. Harold Mare,
triz’, sendo o trabalho da pessoa queimado pelo fogo da justiça e do juízo puro de
Deus”613. Mais importante que isso, o texto não está falando de algo presente, mas
do juízo do grande dia, o qual, como vimos exaustivamente no início deste capítulo,
outras que nem mesmo os Pais da Igreja posteriores ao século II, que já aceitavam
com Agostinho (354-430 d.C) que essa crença foi proposta pela primeira vez, e
mesmo assim como uma mera conjectura teológica, que só muito mais tarde
613
MARE, Harold W. Bíblia de Estudo NVI (org. Kenneth Barker). São Paulo: Vida, 2003, p. 1957.
614
LE GOFF, Jacques. The Birth of Purgatory. Chicago: The University of Chicago Press, 1986.
1101
O estado intermediário no Novo Testamento 1102
• Considerações Finais
duvidar de algo tão certo, que se choca frontalmente a tudo o que Deus havia
interpretados, que não chegam nem a encher os dedos de uma mão, e que quando
pretendem. Isso ocorre pelo simples fato de que nem Jesus nem os apóstolos
meio através do qual estaremos com o Senhor. Tanto no AT como no NT, a morte
não é superada por uma alma imortal, mas pela ressurreição – que é o que veremos
a partir de agora.
1102
1103
• A esperança da ressurreição
o que é ressurreição dos mortos, talvez a resposta não seja tão certa. Embora todos
tenham alguma ideia do que seja uma ressurreição, não são muitos os cristãos que
têm uma noção clara do que acontece na ressurreição geral, nem mesmo que existe
uma ressurreição geral ou quando ela se dará. O “como” é outro problema. Muitos
em dia, na Bíblia, em especial no NT, ela é o âmago de tudo o que concerne à vida
póstuma. A palavra “ressurreição” aparece 42 vezes no NT, isso sem contar suas
Muito pelo contrário: como vimos, Rm 2:7 fala da imortalidade como uma
possessão futura que nem todos possuirão; 2Tm 1:10 é taxativo em dizer que a
1103
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1104
Não parece irônico que todos conheçam tão bem e aceitem sem qualquer
sustentação bíblica –, mas conheçam tão pouco e estejam tão confusos acerca da
ressurreição, essa sim exaustivamente reiterada nas Escrituras? Se você acha isso
estranho, não se sinta sozinho. Numerosos autores têm apontado o paradoxo entre
razão por que a ressurreição é tão pouco falada (e tão pouco crida seriamente) nos
dias de hoje.
e atraiu ataques violentos por acentuar algo que deveria saltar aos olhos de
introdução de uma doutrina estranha, de origem pagã, que a ofusca por completo
Se em nossa essência nós somos nossa alma ou espírito, e este ente espiritual
já está com Deus após a morte, por que ressuscitar um simples corpo que jaz na
costuma atribuir aos anjos. Um ser “preso” em um corpo físico não pode voar ou
1104
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1105
atravessar paredes, não pode se locomover mais rápido que a velocidade da luz,
tampouco fazer muitas das coisas que se supõe que os espíritos no além fazem
neste momento.
Por outro lado, um ser “espiritual” pode fazer tudo aquilo que um ser físico
pode fazer, com a diferença de que não tem a necessidade de alimentar o corpo e
virtualmente ilimitado e não perde em nada para um ser físico. Não à toa tanta
paredes, mas poucos desejam ser uma versão aprimorada – mas ainda física – do
que são hoje. Certamente ser como um anjo parece bem mais animador do que
ser... humano. E o que nos faz diferente deles é justamente a nossa natureza
mesmo que cortar todo o barato de uma alma que já está no céu vivendo como um
anjo, e teria que voltar à terra para se religar a um corpo no qual voltaria a
de não morrer ou ficar doente. Não é por acaso que os gregos zombavam da crença
na ressurreição (At 17:32), uma vez que para eles a vida era muito mais satisfatória
teológico que tenta conciliar ambas as doutrinas mesmo que uma invalide a outra
1105
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1106
Eles concordam com a premissa grega de que o corpo é de certa forma uma
prisão e que a morte é uma libertação, mas sem concordar com as implicações
óbvias que esse raciocínio leva, implicações essas que levavam os gregos a zombar
do ensino de Paulo pelo simples fato dele pregar a ressurreição (At 17:32). Observe
que em parte alguma do relato somos informados de que Paulo tentava conciliar a
imortalista cristão faria em seu lugar. Em vez disso, o texto apenas diz que Paulo
da alma.
24:15, 26:6-7, 28:20)615, o que significa dois terços das ocasiões. Pedro cita a profecia
de Davi de que “o meu coração está alegre e a minha língua exulta; o meu corpo
sepulcro (Hades), nem permitirás que o teu Santo sofra decomposição” (At 2:26-
27), onde a esperança não consistia na alma partir imediatamente para a presença
615
As outras três se referem a esperanças terrenas circunstanciais, como a esperança de lucro dos donos
de uma escrava (At 16:19), a esperança de ser salvo de uma tempestade (At 27:20) e a esperança de
alcançar a cidade de Fenice (At 27:12).
1106
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1107
“Agora, estou sendo julgado por causa da minha esperança no que Deus
(Atos 26:6-8)
Paulo não diz que a esperança dele ou das doze tribos de Israel era que a
alma fosse imortal e deixasse o corpo direto para a presença de Deus. A promessa
que Deus fez com os seus antepassados e à espera da qual eles cultuavam a Deus
«com fervor, dia e noite», não era a da imortalidade da alma, mas da ressurreição
dos mortos. É ela que Paulo defende como a grande esperança dos cristãos na
com a Lei e no que está escrito nos Profetas, e tenho em Deus a mesma
Mais uma vez, a esperança que Paulo se refere não é a esperança de que sua
alma imortal se libertasse da prisão do corpo em direção ao céu, e sim “de que
haverá ressurreição tanto de justos como de injustos” (v. 15). Por que ele jamais
1107
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1108
simples acréscimo de um corpo, que, como vimos, nem mesmo seria útil ou
questões deveriam perturbar o estudioso sincero e fazê-lo pensar duas vezes antes
de páscoa. No mais, os fiéis só ouvem falar dela nos velhos credos e confissões de
espírito vai pro céu, ou que o tormento no inferno é eterno, ou que nossa alma é
imortal.
Pergunte a qualquer cristão dos dias de hoje qual a maior esperança dele no
que concerne à vida após a morte, e eu duvido que um único responderá como
praticamente todos dirão algo sobre “ir morar no céu” num estado fora do corpo. É
completamente deslocada para um ente estranho, que tomou toda a atenção para
si. E a razão é simples: quando se aceita que a alma é imortal, a ressurreição vira
realmente um detalhe.
1108
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1109
condição que for (e na verdade a maioria preferiria passar como um espírito, o que
estamos com Deus há séculos antes dela se concretizar. Essa é a razão por que hoje
em dia ninguém mais fala em ressurreição dos mortos, mas todo mundo enfatiza a
NT. Embora seja tão óbvio na Bíblia que os apóstolos eram pobres (At 3:6; 1Co 4:9,
15:19), quantas vezes ouvimos falar nas igrejas neopentecostais que os apóstolos
que os próprios apóstolos tinham uma vida oposta àquilo que essa nova teologia
ensina. Por isso é mais conveniente esquecer essa parte e lembrar apenas da riqueza
dos patriarcas, como Abraão, Isaque e Jacó, milhares de anos antes da cruz.
ele como uma virgem pura. O que receio, e quero evitar, é que assim como a
serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie
da sua sincera e pura devoção a Cristo” (2Co 11:2-3), e que “para nós há um só
1109
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1110
Senhor, Jesus Cristo, por meio de quem vieram todas as coisas e por meio de quem
vivemos” (1Co 8:6). Por que então no catolicismo Cristo está longe de ser o único
Por que se reza o Ave Maria muito mais que o Pai Nosso? Por que o Rosário
quase não fala de Jesus, mas é inteiramente focado em Maria? Por que há tão
poucas igrejas católicas cujo nome evoca a Cristo, mas tantas com o nome de
“Santuário Nossa Senhora de Alguma Coisa”? Por que a Maria da Bíblia literalmente
não é sequer mencionada nas cartas apostólicas doutrinárias (ou seja, em todo o
em conjunto com os irmãos de Jesus (At 1:14), e no romanismo ela é muito mais
atenções?
“esquecida”, e não é por mera coincidência ou fatalidade. Assim que uma nova
crença em entidades poderosas que rogam por nós no além, Cristo foi sendo cada
vez mais “escanteado” para dar lugar à legião de novos intercessores que substituiu
em um livro com o título bem sugestivo de “As Glórias de Maria”, sustentou que
1110
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1111
conseguem-se”616.
responsável por ofuscar uma doutrina bíblica, por maior que seja a sua importância
nas Escrituras e por mais exaustivamente que apareça. É exatamente isso o que
cristã primitiva na ressurreição dos mortos em um Reino físico em prol de uma vida
fora do corpo no céu com vestes brancas, harpas nas mãos e uma auréola dourada
na cabeça. Você não tem muitas razões para falar de Jesus se Maria faz tudo o que
ele faz e mais um pouco, e, da mesma forma, não tem por que falar da ressurreição
deprimente anticlímax na própria volta de Jesus, outro foco constante do NT. Como
616
LIGÓRIO, Afonso Maria de. Glórias de Maria. São Paulo: Santuário, 2018, p. 118.
1111
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1112
vivos até lá para sermos arrebatados nos ares, mas esquecemos completamente da
para a presença de Deus, razão por que Paulo diz que seremos arrebatados
“juntamente com eles” (1Ts 4:17), como já vimos no capítulo anterior. O próprio
Senhor Jesus sempre ressaltou a esperança da ressurreição “no último dia” (Jo 6:39,
40, 44, 54), o dia do Seu retorno triunfal (1Co 15:23). O fato de hoje em dia a volta
deve a outra razão senão ao simples fato de imaginarmos os mortos já vivos no céu,
E antes que alguém pense que o problema vem de hoje, tome como exemplo
1856:
617
BACCHIOCCHI, Samuele. Dualismo e holismo no exame de consciência após a morte. Disponível em:
<http://www.c-224.com/1-DDD-1.html>. Acesso em: 27/11/2021.
1112
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1113
principal da pregação dos apóstolos era a ressurreição dos mortos? Porque essa
imortalista que não conseguia compreender de que forma isso aconteceu ou por
que – embora a resposta fosse bastante óbvia se alguém lhe tivesse apresentado as
verdades que vimos neste livro. O problema era tão sério que não havia sequer um
menção da ressurreição.619
618
SPURGEON, Charles Haddon. A Ressurreição dos Mortos. Disponível em:
<https://livros.gospelmais.com.br/wp-content/blogs.dir/6/files/livro-ebook-a-ressurreicao-dos-
mortos.pdf>. Acesso em: 28/11/2021.
619
ibid.
1113
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1114
imortalidade da alma, teria encontrado tantos que seria difícil saber por onde
começar. Mas sobre a ressurreição dos mortos, não havia um único sequer! A que
se deve o estranho fenômeno de uma doutrina tão central no evangelho ter sido
renegada a um papel que não chega nem a ser coadjuvante, mas meramente
figurante? O que explica que uma doutrina antes tão pregada e tão ressaltada com
tanta ênfase subsista hoje apenas formalmente nos cânones confessionais, mas não
Embora o próprio Spurgeon não tenha ido mais longe a ponto de apurar as
razões, elas são mais do que evidentes quando entendemos que a ressurreição,
para Paulo e para os apóstolos, era muito mais do que um detalhe desnecessário.
suas esperanças porque eles sabiam que era através dela que eles chegariam ao
Senhor, não através de uma alma que sai do corpo na morte. Em outras palavras, se
não houvesse ressurreição, não haveria nada: nenhuma vida póstuma, nenhuma
eternidade a ser desfrutada com Deus ou com quem quer que seja. É por isso que
seja daqui algumas horas, mas o carro invente de quebrar justo quando você ia sair.
Embora tal situação seja certamente embaraçosa, ainda estaria longe de estar tudo
perdido: você ainda poderia pedir um Uber ou um táxi, pegar um ônibus ou o metrô,
pedir carona para um vizinho ou ligar para um amigo e avisar que chegará atrasado.
Mas imagine que você não tenha um tostão para o Uber ou o táxi, que você não
1114
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1115
tenha celular e viva numa região afastada com poucos vizinhos e nenhum disposto
a te dar uma carona. Neste caso, o carro estar funcionando seria o único meio de
de importância total.
um casamento, mas a vida eterna. Como ela é o único meio para chegar lá, ela não
imprescindível. Por isso era ela a esperança de vida eterna, visto que apenas por
meio dela e a partir dela a outra vida é possível. Se um morto não existe em nenhum
ressurreição ocupa um papel central, da mais suma importância. Agora veja como
apenas não é o meio através do qual estaremos com o Senhor, como teremos
Para usar a mesma analogia do casamento, seria como se você não apenas
depois de se casar teria que voltar para pegar o seu próprio carro e retornar à festa.
acréscimo de um corpo, e que já estaremos com Deus no céu desde muito antes de
corpo ressurreto “porque sim”, e, uma vez religado, retornaria à sua habitação no
1115
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1116
fosse a religação da alma com o corpo, isso seria precisamente o mesmo que a
«encarnar de novo»620, que é a junção do prefixo “re” (de novo) com “encarnar”. É
por isso que “recomeçar” é “começar de novo”, que “renascer” é “nascer de novo”,
que permanece viva após a morte e que em algum momento volta a encarnar (cujo
reencarnação crida pelos imortalistas não seja exatamente a mesma crida pelos
espíritas (já que para estes a reencarnação se dá diversas vezes e em vários corpos
diferentes), o que não se pode negar é que os dois creem no mesmo engano
conecta novamente a um corpo, ou seja, onde re-encarna. O que faz com que a
ressuscita não é um ente espiritual ainda vivo num mundo do além, mas alguém
que jaz sem vida no pó da terra. Por isso o termo “ressuscitar” não tem nada a ver
620
De acordo com o Dicionário de Oxford.
621
ibid.
1116
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1117
com “encarnar de novo”, mas com «tornar a viver»622. Você não torna a viver alguém
que continua vivo, assim como não torna a ligar um computador que continue
ligado.
Por isso Paulo definiu a ressurreição não como a reencarnação da alma, mas
"Como está escrito: ‘Eu o constituí pai de muitas nações’. Ele é o nosso pai
aos olhos de Deus, em quem Abraão depositou sua fé, o Deus que dá vida
É digno de nota que, ao ressuscitar Lázaro, Jesus não disse “Lázaro, desce”
(como se sua alma estivesse no céu), nem “Lázaro, sobe” (como se sua alma
estivesse no “Seio de Abraão”), mas simplesmente “Lázaro, vem para fora” (Jo
11:43). O ente racional de Lázaro não se religou ou reencarnou em seu corpo físico,
nem veio de onde quer que seja. Jesus sabia que Lázaro não estava em lugar
inexistentes, como se existissem” (Rm 4:17). O capítulo que mostra mais claramente
622
ibid.
1117
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1118
resposta seria rápida: “Se os mortos não ressuscitam, ‘comamos e bebamos, porque
amanhã morreremos’” (1Co 15:32). Por que Paulo diz que se não há ressurreição é
melhor “comer e beber, para amanhã morrer”? A resposta é óbvia: porque não
existiria nada após a morte. E se não há vida póstuma, o melhor seria viver de uma
terrenos da vida e esperando o dia da morte. Se essa vida é tudo o que existe, não
Diante disso, é óbvio que para Paulo a vida futura só é possível mediante a
que razão teria Paulo para sugerir um estilo de vida egoísta e hedonista sem
qualquer propósito maior? Estaria ele desprezando por completo estar com Deus
em espírito? Isso contradiria não apenas o bom senso, mas a própria interpretação
estivessem com Deus há milênios antes dela e pudessem permanecer para sempre
no céu sem um corpo, uma vida com propósito valeria a pena, mesmo sem a
1118
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1119
estivesse fora de si ou usando argumentos sem nexo e sem sentido, é evidente que
para ele a vida eterna se dava apenas na ressurreição e por meio dela, razão por que
se ela não existisse seria melhor viver hedonisticamente e esperar pela morte, uma
Se Paulo acreditasse que a vida futura se dá através de uma alma imortal que
deixa o corpo após a morte, ele obviamente teria dito que “se a alma não é imortal,
após a morte. Mas Paulo diz exatamente o contrário: é a ressurreição que faz valer
a pena viver a vida atual para Deus, porque é através dela que o nosso desejo de
“Se não há ressurreição, que farão aqueles que se batizam pelos mortos? Se
Também nós, por que estamos nos expondo a perigos o tempo todo? Todos
os dias enfrento a morte, irmãos; isso digo pelo orgulho que tenho de vocês
em Cristo Jesus, nosso Senhor. Se foi por meras razões humanas que lutei
com feras em Éfeso, que ganhei com isso? Se os mortos não ressuscitam,
Paulo faz duas perguntas retóricas como argumento para a esperança cristã
12). A primeira é que “se os mortos não ressuscitam, por que se batizam por eles?”
(v. 29). O que Paulo está dizendo é que o batismo pelos mortos seria inútil se os
1119
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1120
que um vivo pratica no lugar de alguém que morreu sem ter se batizado, o fato de
que “após a morte vem o juízo” (Hb 9:27) e de que “cada um prestará contas de si
A única interpretação razoável diante de todo o contexto é que esses que “se
batizam pelos mortos” são crentes que se batizam na esperança de rever aqueles
que deixaram para trás. Se eles se batizam na esperança de rever seus entes
queridos e é na ressurreição que esses que partiram voltam à vida, é evidente que
de Paulo. Qualquer outra forma de entender o texto, seja como fazem os mórmons
que a parte do batismo pelos mortos não caiu de paraquedas no texto, mas é parte
ressurreição.
bem mais simples de entender. Ele questiona que, se não há ressurreição, “por que
estamos nos expondo a perigos o tempo todo?” (v. 30). O argumento aqui é simples:
evangelho se não fosse pela esperança da ressurreição. Por isso ele prossegue
dizendo que “todos os dias enfrento a morte, irmãos; isso digo pelo orgulho que
tenho de vocês em Cristo Jesus, nosso Senhor. Se foi por meras razões humanas
que lutei com feras em Éfeso, que ganhei com isso?” (1Co 15:31-32).
1120
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1121
Isso implica que, se não fosse pela ressurreição dos mortos, Paulo teria se
exposto a perigos à toa, enfrentado a morte por nada e lutado com feras «por meras
alguma capacidade cognitiva: se não fosse pela ressurreição, não haveria nada
após a morte. É por isso que o batismo pelos mortos seria inútil, é por isso que os
perigos que Paulo se expunha seriam inúteis, é por isso que suas lutas contra “feras”
seriam inúteis.
Se essa vida é tudo o que existe, não há justificativa razoável para sofrer pelo
evangelho, carregar sua cruz todos os dias e viver por uma causa maior. Mas se a
ressurreição é a única coisa que garante uma vida póstuma, isso significa que não
existe vida após a morte antes da ressurreição. De fato, tudo o que Paulo escreveu
a face do Criador e desfrutar uma vida sem dor e sofrimento algum é algo que
desincorporado. Se é somente a ressurreição que faz com que a vida cristã valha a
pena, é evidente que a imortalidade da alma é uma carta fora do baralho, pelo
Nos versos 16 ao 19, Paulo reforça que sem a ressurreição nem mesmo Cristo
1121
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1122
não ressuscitou, inútil é a fé que vocês têm, e ainda estão em seus pecados.
Neste caso, também os que dormiram em Cristo estão perdidos. Se é
somente para esta vida que temos esperança em Cristo, dentre todos os
O trecho mais intrigante é o que diz que «neste caso, também os que
dormiram em Cristo estão perdidos». Mesmo que se alegue que neste texto Paulo
não falava da ressurreição geral, mas apenas da ressurreição de Cristo, o texto ainda
é uma dor de cabeça insuportável para os imortalistas. Isso porque eles defendem
a tese de que os salvos já tinham uma alma imortal e eram consolados num mundo
espiritual desde muito antes de Jesus ressuscitar. Tome como exemplo a parábola
os salvos antes de Cristo iam para um lugar chamado “Seio de Abraão”, que uns
O que nenhum deles discute é que esse era um lugar de consolo, onde os
poderia esperar na terra. Mas aqui Paulo diz que, se Cristo não ressuscitou, «os que
dormiram em Cristo estão perdidos». É difícil imaginar como alguém poderia estar
céu. É evidente que para Paulo os salvos que viveram antes de Cristo dependiam da
ressurreição dele para ter alguma esperança futura, o que seria completamente
1122
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1123
ressurreição de Cristo, tudo o que aconteceria se esta não tivesse ocorrido seria a
modernos. Mas isso de modo algum seria estar “perdido”, pois, como vimos, estar
no tal Seio de Abraão ainda seria muito melhor do que estar na terra. A coisa piora
ainda mais quando vamos ao original grego e descobrimos que a palavra usada por
“perecer”623. Essa é a razão por que tantas versões traduzem o verso 18 como «neste
apollumi” (Lc 15:9), que não admite a tradução por “moeda perecida”. Mas em todos
perfeitamente possível, como é de fato o único aceitável à luz do texto grego, que
pereceram).
É por isso que quem traduz por “perdidos” precisa adicionar o “estão” antes
de apollumi, embora o grego pule do christos (Cristo) direto pro apollumi (perecer
ou perder). Como não faz o menor sentido traduzir por “aqueles que dormiram em
Cristo perdidos”, é evidente que a tradução mais plausível aqui é por “perecer”, o
mesmo que em Lc 17:27, que diz que o dilúvio «destruiu-apollumi a todos», onde
623
#622 da Concordância de Strong.
624
Por exemplo, a ARA e a SBB.
1123
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1124
seria igualmente pouco razoável traduzir por “perdeu a todos”. Isso explica por que
perdidos”.
porém, não faz tal alusão quanto a essa possibilidade porque cria que
ressurreição de Cristo.626
coisa após a morte – a própria morte seria o fim da existência para sempre. Assim,
625
Como a King James, a Conservative Version, a American Standard Version, a Revised Standard Version,
a Geneva Bible, a Young’s Literal Translation, a Bible in Basic English, a The Riverside New Testament, a
English Majority Text Version, a New Simplified Bible, a Bíblia de John Wycliffe, a Bíblia de William Tyndale,
a Bíblia de Webster e o NT de Wesley.
626
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 136-137.
1124
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1125
Cristo que torna possível acreditar que eles não pereceram eternamente, porque a
ressurreição de Jesus é a garantia da nossa própria ressurreição, uma vez que é ele
quem nos ressuscita (Jo 6:39, 40, 44, 54), o que só seria possível se ele mesmo tivesse
vencido a morte.
É por isso que logo adiante Paulo diz que “visto que a morte veio por meio
homem. Pois da mesma forma como em Adão todos morrem, em Cristo todos
serão vivificados. Mas cada um por sua vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele
vier, os que lhe pertencem” (vs. 21-23). Em síntese, Paulo trabalha com dois
pereceu ou está “perdido”, porque não haveria qualquer futuro para os que
aos salvos uma esperança de vida futura garantida por meio da ressurreição de
ressurreição é reforçado no verso seguinte. Logo após dizer que os que dormiram
em Cristo teriam “perecido”, Paulo complementa que “se é somente para esta vida
que temos esperança em Cristo, dentre todos os homens somos os mais dignos de
certamente ninguém suspeitaria que há aqui uma pérola de grande valor contra
uma das doutrinas mais amplamente aceitas pelos mais diversos grupos religiosos.
1125
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1126
da ressurreição. Assim, quando Paulo diz «se é somente para esta vida que temos
cenário, onde a ressurreição não existiria. Neste caso, a nossa esperança se limitaria
apenas a esta vida. A razão é extremamente simples: porque não existiria nenhuma
outra!
Para Paulo, não existe uma vida no corpo e outra fora do corpo. O que existe
existisse, a pessoa não continuaria viva sem um corpo, mas simplesmente pereceria
para sempre quando morresse, e por isso toda a esperança dela se limitaria à vida
presente. Ou ela está viva em um corpo, ou está destituída de qualquer coisa que
(quando estamos vivos neste corpo mortal) e o que se segue à ressurreição (quando
estaremos vivos no corpo ressurreto imortal). É por isso que quando se tira o
segundo momento da equação o que sobra é apenas a vida presente, sem nada
Por que Paulo diria que sem a ressurreição nossa esperança se limitaria a esta
vida, se de todo modo haveria uma vida póstuma na glória, mesmo que sem um
corpo? Por que ele diria que seríamos dentre todos os homens os mais dignos de
assim certamente estaria longe de ser considerada “digna de lástima”, que vem da
1126
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1127
palavra grega eleeinos, que também significa «miserável»627. Será que as almas no
Seio de Abraão estavam tão mal assim a ponto de serem classificadas como
“miseráveis”?
É evidente que o raciocínio de Paulo era outro. Ele seria “miserável” ou “digno
de lástima”, não porque a vida no Seio de Abraão deixasse a desejar, mas porque a
vida atual seria tudo o que ele teria (se não houvesse a ressurreição). E, nesta vida,
Paulo, em particular, tinha ainda mais motivos para pensar assim, já que ele
além de tudo era um alvo constante de perseguição por parte dos judeus, “as quais
esperança da própria vida” (2Co 1:8). Ele descreve essas perseguições e privações
da seguinte maneira:
“São eles servos de Cristo? – estou fora de mim para falar desta forma – eu
ainda mais: trabalhei muito mais, fui encarcerado mais vezes, fui açoitado
mais severamente e exposto à morte repetidas vezes. Cinco vezes recebi dos
627
#1652 da Concordância de Strong.
1127
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1128
judeus trinta e nove açoites. Três vezes fui golpeado com varas, uma vez
apedrejado, três vezes sofri naufrágio, passei uma noite e um dia exposto à
fúria do mar. Estive continuamente viajando de uma parte a outra, enfrentei
perigos nos rios, perigos de assaltantes, perigos dos meus compatriotas,
perigos dos falsos irmãos. Trabalhei arduamente; muitas vezes fiquei sem
dormir, passei fome e sede, e muitas vezes fiquei em jejum; suportei frio e
É por isso que Paulo dizia que, sem a ressurreição, eles seriam os mais
miseráveis de todos os homens: não porque ele esperasse continuar vivo fora do
corpo em um lugar de paz, mas porque ele sabia que neste caso a vida atual seria
tudo o que ele teria, e nesta vida ele não tinha mais do que sofrimentos e tribulações
que só compensavam diante da esperança da ressurreição. É por isso que logo após
dizer que “aquele que ressuscitou ao Senhor Jesus dentre os mortos também nos
ressuscitará com Jesus e nos apresentará com vocês” (2Co 4:14), ele complementa:
nos, interiormente estamos sendo renovados dia após dia, pois os nossos
sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós uma glória
Preste atenção no início do verso, que diz “por isso não desanimamos”. “Por
isso” o que? Pelo que ele havia acabado de mencionar dois versos antes, quando
disse que Deus “nos ressuscitará com Jesus e nos apresentará com vocês” (v. 14). É
1128
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1129
que o nosso trabalho árduo é recompensado; é ela que faz valer a pena qualquer
mais dignos de lástima dentre todos os homens, uma vez que não haveria nada
estado desencarnado.
com a visão mortalista que vê a ressurreição como o único meio de se obter uma
“verdadeiro eu” já está no céu, no Seio de Abraão ou seja lá onde for desde muito
– o que nem mesmo seria algo ruim, já que para os imortalistas é neste estado que
ressurreição, no outro mudaria tudo, a começar pelo fato de que nem mesmo
haveria uma vida após a morte, a qual seria o fim de tudo para sempre. Isso explica
por que Paulo diz que neste caso os que dormiram em Cristo já teriam perecido (v.
18), que a nossa esperança estaria apenas nesta vida (v. 19), que seríamos os mais
miseráveis de todos os homens (v. 19), que estaríamos nos expondo a perigos à toa
(vs. 30-31) e que seria melhor viver de uma forma hedonista (v. 32).
1129
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1130
Tudo isso só faz sentido à luz da compreensão de que, para Paulo, a morte é
encontrar em seus escritos uma alma fantasmagórica que não depende em nada
da ressurreição para garantir uma vida imortal aos que dormem em Cristo.
simplesmente não responde. Desde a primeira versão do meu livro, escrita há mais
artigos e vídeos –, e até hoje nem uma única alma vivente sequer chegou a
seu entorno. Eu tive que voltar até o século XVI para encontrar uma “resposta” de
628
Disponíveis em:
<https://www.youtube.com/playlist?list=PLidcVUF714F2ENsclSOauGQk4ATmMGqZ7>.
629
“Calvinismo ou Arminianismo: Quem está com a razão?”. Disponível na página dos livros:
<http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
1130
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1131
E a resposta que ele dá não poderia ser melhor (não porque fosse boa, mas
porque prova exatamente o ponto que demonstramos). Leia com os seus próprios
está a grande miséria dos cristãos, uma miséria que ultrapassa aquela
(algo que eles estão sempre planejando), eu teria aqui uma ampla
pelo fato de que todas as bases nas quais o apóstolo fundamenta sua
de fato vive, mas que o corpo, quando uma vez se deteriora em pó,
não pode ser levantado. Vamos fornecer exemplos. Quando ele diz,
1131
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1132
alma. Quando ele pergunta, "o que farão aqueles que se batizaram
cada hora?”, a resposta poderia ter sido que nós expomos esta vida
São tantos absurdos grosseiros que chega a ser difícil enumerar um a um,
«expositores sensatos» (tão sensatos quanto ele mesmo) aqueles que dizem que
Paulo não disse isso a respeito da ressurreição, mas «da vida que nos resta depois
que nossa vida mortal termina» – ou seja, da alma fantasmagórica que abandona o
O que ele faz aqui é exatamente o mesmo que muitos judeus modernos
“reencarnação” toda vez que ela aparece nas Escrituras e assim sustentam a
atenção a isso, é esse o nível da manobra rasteira à qual Calvino desce para
Agindo com a mesma má-fé que ele, poderíamos simplesmente trocar “alma” por
630
Disponível em: <http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/joao-calvino/calvino-
contra-os-aniquilacionistas-psychopannychia.html>. Acesso em: 22/01/2022.
1132
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1133
“corpo” em todas as ocasiões em que ela aparece na Bíblia e assim nem sequer
transformar qualquer coisa em outra, até mesmo fazer de Calvino um arminiano (ou
um mortalista, veja só!). E ele ainda não se envergonha em dizer que a sobrevivência
sem citar um único mísero texto em apoio a isso. Não admira que nem mesmo os
argumento desse nível, preferindo em vez disso não usar argumento nenhum.
A insanidade vai tão longe que ele literalmente diz que quando os saduceus
negavam a ressurreição «não é do corpo que se referia(!!!)», mas sim que «nada do
homem sobrevive à morte» (espero que ele tenha chegado a essa conclusão sem a
“na ressurreição, de quem ela será esposa?” (Lc 20:33), o que eles realmente
estavam querendo dizer era “quando a alma imortal deixar o corpo e for para o
estado intermediário, de quem ela será esposa?”. Sim, é esse o nível da canalhice.
Com uma hermenêutica desse nível, o que mais nos impressiona é que Calvino creia
Ele ainda chega a dizer que essa opinião (a que violenta descaradamente o
apóstolo fundamenta sua declaração poderiam ter sido removidas por responder
1133
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1134
que a alma de fato vive», que é justamente o que argumentamos aqui! É justamente
Paulo que prova que Paulo não acreditava que a alma sobrevive à morte, ou seja,
que ele descartava essa premissa de antemão (de outro modo, o seu argumento
refutada pela lógica paulina. O que Calvino não consegue entender é que quando
Paulo disse que sem a ressurreição não haveria vida póstuma, ele já estava partindo
do pressuposto de que não existe alma que sobreviva à morte, o que tornaria sua
alegação inválida. Calvino tenta superar esse problema com uma petição de
E o pior é que isso nem mesmo faria o menor sentido, já que no mesmo
(vs. 12-13), e a não ser que Calvino também não creia na ressurreição física de Jesus,
ele seria obrigado a concluir que Paulo defendeu a sobrevivência da alma com o
ver com a outra. Parafraseando a forma que Calvino interpreta, é como se Paulo
estivesse dizendo no verso 12: “Se está sendo pregado que Cristo ressuscitou
[fisicamente] dentre os mortos, como alguns de vocês estão dizendo que não existe
1134
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1135
então nem Jesus ressuscitou fisicamente. Mas Jesus de fato ressuscitou fisicamente,
capaz de entender que Paulo escrevia a cristãos, o que faz com que a sua insistência
Por exemplo, quando ele diz que em resposta ao verso 18 «ele poderia ter
sido refutado pelos filósofos que ativamente declaram a imortalidade da alma», ele
parte do pressuposto de que Paulo estava aqui discutindo com os filósofos gregos,
não com seus próprios discípulos doutrinados pessoalmente por ele na igreja que
ele mesmo fundou. Da mesma forma, quando ele comenta que “à questão ‘por que
estamos em risco a cada hora?’, a resposta poderia ter sido que nós expomos esta
vida frágil pela imortalidade na qual nossa melhor parte irá sobreviver”631, ele está
pressupondo que os crentes para os quais Paulo escrevia não sabiam que Paulo era
o argumento de Paulo é a prova de tudo o que argumentamos aqui: que Paulo não
podia ser imortalista, ou sua lógica seria totalmente falha e facilmente refutada.
Paulo argumenta como quem sabe que não há vida entre a morte e a ressurreição,
e com base nessa premissa é que ele afirma que sem a ressurreição não valeria a
631
Disponível em: <http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/joao-calvino/calvino-
contra-os-aniquilacionistas-psychopannychia.html>. Acesso em: 22/01/2022.
1135
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1136
mas se recusa a acreditar que Paulo realmente pensava dessa maneira, preferindo
em vez disso apelar a teorias delirantes que violam o significado dos textos e não
fazem o menor sentido. A prova mais forte de que o próprio Calvino estava ciente
da fraqueza do seu argumento é que ele tenta depois dar uma outra explicação
alternativa, tão ruim quanto a anterior, na esperança de que alguém que percebesse
o quanto a anterior era ruim pudesse pelo menos considerar essa outra hipótese:
saber, que nós somos mais miseráveis que todos os homens se não há
dizemos que os espíritos dos santos são felizes no que eles descansam
Esse «outro argumento» consegue ser ainda mais estúpido que o anterior, e
fazer menos sentido ainda. Para ele, nós de fato somos felizes antes da ressurreição
(ou seja, enquanto nossa alma está com Deus no céu), mas mesmo assim não
razão que faz as almas no céu felizes não é estar com o Senhor, nem estar na
companhia dos anjos, dos patriarcas, dos santos, dos profetas, de seus amigos e
entes queridos, nem estar livre de toda doença, dor, mágoa, sofrimento, ansiedade,
angústia ou aflição, nem as mansões de ouro, nem o voo nas nuvens, nem o coral
632
ibid.
1136
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1137
O sujeito já está no céu desfrutando de tudo isso, mas mesmo assim não
conseguiria ser feliz se soubesse que o seu corpo não ressuscitará (e isso quando o
próprio Calvino chama a alma de «nossa melhor parte»!). A alma já tem tudo isso e
mesmo assim estaria “triste” por saber que a sua pior parte não ressuscitaria. Na
cabeça dele, nada disso valeria a pena se a alma não fosse religada a um simples
corpo, muitos séculos mais tarde. Neste caso, o que Paulo estaria dizendo é que
seria melhor viver uma vida hedonista, “comer, beber e depois morrer” (1Co 15:32)
sabendo que não vai se religar ao corpo (quando nem mesmo precisa dele para
estar ali).
conseguiram foi isso aí), que tanta gente tem se despertado para a verdade de que
teológicos, e que a maioria dos cristãos sequer sabe que estão na Bíblia. Um deles
1137
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1138
Romanos 8
18 Considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a
19 A natureza criada aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus sejam
revelados.
20 Pois ela foi submetida à futilidade, não pela sua própria escolha, mas por causa
22 Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto.
23 E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito,
24 Pois nessa esperança fomos salvos. Mas, esperança que se vê não é esperança.
perícope, que diz respeito a ser participante da glória (v. 17). Esse é aquele
momento em que um imortalista seria rápido em dizer que isso aconteceria assim
há qualquer pista neste sentido ao longo de toda a extensa perícope, que toma
conta de quase metade do capítulo. Após dizer que os nossos sofrimentos atuais
1138
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1139
“não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada” (v. 18), Paulo
dito que eles ainda serão revelados, uma vez que o fato já seria consumado. Mas se
Paulo não falava de um momento atual onde almas desincorporadas habitam o céu,
que momento é este em que os filhos de Deus serão revelados? Encontrar essa
que o apóstolo dá à questão que inicia e norteia a perícope. O verso 21 define esse
perícope, onde Paulo diz que “se somos filhos, então somos herdeiros; herdeiros de
Deus e co-herdeiros com Cristo” (v. 17), o que ele reitera por diversas vezes nos
versos seguintes, como quando diz que a natureza criada aguarda com grande
expectativa “que os filhos de Deus sejam revelados” (v. 19) e que a própria natureza
relacionada ao momento em que seremos «adotados como filhos», que era o que
define a adoção como filhos como “a redenção do nosso corpo” (v. 23). Note que
1139
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1140
Paulo não está falando de duas coisas diferentes ou mudando de assunto. Ele não
diz “nossa adoção como filhos e a redenção do nosso corpo”, mas “nossa adoção
como filhos, a redenção do nosso corpo”, como significando uma coisa só. De fato,
justamente quando o nosso corpo for redimido, numa clara alusão à ressurreição
da carne.
definido ho, que também pode ser traduzido como “este”633, mostra que Paulo se
por “redenção”, é o mesmo que aparece no texto que diz “não entristeçam o Espírito
Santo de Deus, com o qual vocês foram selados para o dia da redenção-apolutrosis”
(Ef 4:30).
seremos participantes da glória (Rm 8:17), co-herdeiros do Reino de Cristo (v. 17) e
revelados na glória (vs. 18-19). Veja como está tudo perfeitamente conectado: o
o que ocorre na ressurreição. A não ser que Paulo esperasse ficar milênios no
633
#3588 da Concordância de Strong.
1140
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1141
ressurreição – o que faz com que toda a expectativa cristã recaia na ressurreição.
É por isso que, logo após dizer que esperava ansiosamente a redenção do
corpo (v. 23), Paulo acrescenta “pois nessa esperança fomos salvos” (v. 24), onde a
bíblica nunca foi a alma sair do corpo, mas a redenção do corpo. É essa a esperança
pela qual Paulo diz que “aguardamos pacientemente” (v. 25), esperança essa que
Neste caso, a própria ressurreição deixa de ser a tônica principal e dá lugar a uma
declarado o campeão, quando já sabe que foi campeão há muito tempo. Mesmo
que o troféu só seja levantado no último jogo, todo o clímax está voltado para os
jogos que definiram o título, que se deram muitas rodadas antes. E a “esperança”
de levantar a taça não seria esperança se já estivesse claro que o time era campeão.
dela qualquer projeção de uma expectativa real, tornando a esperança dos cristãos
1141
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1142
os cegos. Feliz será você, porque estes não têm como retribuir. A sua
recompensa virá na ressurreição dos justos” (Lucas 14:13-14)
ressurreição, é evidente que eles não estão no céu antes disso. Se estivessem, já
teriam sido recompensados. O próprio céu já seria uma recompensa maior do que
qualquer outra: estar na companhia do Eterno, dos santos, dos seus amigos e entes
queridos, em um lugar sem dor, nem choro, nem sofrimento ou mágoa alguma, mas
que isso?
isso no céu, mas mesmo assim não foram recompensados ainda. Como comentou
um seguidor do meu canal ao assistir o meu debate com o Pr. Paulo Sérgio Batista634
(que fazia esses malabarismos para negar o óbvio), “estar com Cristo é o maior
prêmio, pois Jesus é Deus e é tudo de bom. Estar com o Deus salvador é o ápice,
não tem maior prêmio. Por ser o maior prêmio é contraditório dizer que está no
634
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ChZvVXno-eA>.
1142
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1143
Temos aqui, portanto, que: (1) estar com Deus é a maior recompensa que um
estaremos com Deus na ressurreição. Se isso já parece simples e óbvio, a coisa piora
própria vida eterna é considerada um prêmio (Rm 2:7, 6:23) – ou seja, uma
imortalistas que pensam que nem a vida eterna, nem o céu, nem todos os benefícios
que os acompanham são recompensas, mas somente o “galardão” que seria uma
mansão maior ou uma pérola a mais na coroa de ouro, o que seria cômico se não
fosse trágico.
com o próprio céu, é não apenas um entendimento pobre do que vem a ser a
recompensa, mas também uma noção pueril do que é a vida eterna. Assim, também
prévia muito mais significativa do que qualquer coisa que pudesse vir depois.
entre os protestantes acarreta, a Igreja Católica foi além para salvar a doutrina da
1143
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1144
como declara o Concílio de Trento635. Para eles, até existe uma recompensa na
ressurreição, mas os salvos já tinham sido recompensados desde muito antes disso,
como almas desencarnadas no céu. Por que Jesus teria se esquecido de citar essa
Note ainda que Jesus não disse que “você também será recompensado na
mas sim que “a sua recompensa virá na ressurreição dos justos”, onde a recompensa
eisegese, que é enxergar coisas no texto que simplesmente não estão ali, mas que
momento em que a alma encontra Deus no céu, nem mesmo faria sentido deslocar
toda a ênfase para a ressurreição, que ocorreria milhares de anos mais tarde. O justo
já teria sido recompensado assim que chegasse ao céu, e a ressurreição seria apenas
um apêndice na história. Mas Jesus não disse que “você será recompensado no céu
É preciso muito esforço para escapar à conclusão mais simples que alguém
635
“Somos julgados imediatamente e recebemos a nossa recompensa, para bem ou mal” (Denzinger,
983).
1144
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1145
só na ressurreição que saímos da inexistência para uma vida eterna com Deus na
glória.
ressurreição desta vida porque dura para sempre e se dá num corpo incorruptível.
Note que foi para alcançar essa ressurreição que «alguns foram torturados e
recusaram ser libertados», o que dificilmente aconteceria nos dias de hoje, quando
a ressurreição perdeu espaço para a crença numa alma imortal que encontra o
eles certamente não teriam aceitado sofrer o que sofreram com vistas à ressurreição
futura, e sim para estarem com Deus em espírito assim que morressem.
O fato de toda a ênfase estar na ressurreição indica vividamente que era nela
contrário, eles não teriam sofrido o martírio para encontrar o Senhor, mas
sofre o martírio é encontrar o Senhor, como parece óbvio, então é lógico que a
1145
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1146
razão por que eles visavam a ressurreição é porque sabiam que é na ressurreição
Os imortalistas tem que lidar aqui com a delicada dificuldade que diz
corpo, não para estar com Deus ou para entrar no céu, já que o texto diz que eles
de estar com o Senhor no Paraíso – que é o que qualquer mártir espera antes de
tudo –, eles visavam a ressurreição porque sabiam que ela não era o simples
acréscimo de um corpo a uma alma incorpórea que já está com Deus no céu, mas
que é somente na ressurreição que eles voltariam à existência para estar com Deus.
Mais uma vez, tudo faz muito mais sentido quando simplesmente aceitamos
como exemplo o texto em que Paulo diz que Deus “nos resgatou do domínio das
trevas e nos transportou para o Reino do seu Filho amado” (Cl 1:13). Embora nós
1146
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1147
“Todavia, Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos
amou, deu-nos vida juntamente com Cristo, quando ainda estávamos mortos
em transgressões – pela graça vocês são salvos. Deus nos ressuscitou com
Cristo e com ele nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus”
(Efésios 2:4-6)
Obviamente Paulo não estava falando em termos literais, pois nós não
estávamos literalmente mortos quando Deus nos trouxe à vida em Cristo. Mas assim
como ninguém ganha vida no reino físico sem que esteja morto ou inexistente,
assim também na linguagem espiritual nós estávamos mortos quando Cristo nos
deu a vida. Mas a analogia não termina aqui: no verso 6, Paulo complementa
dizendo que «Deus nos ressuscitou com Cristo e com ele nos fez assentar nos
lugares celestiais em Cristo Jesus». Observe como a linguagem espiritual mais uma
vez segue à risca a ordem lógica do reino físico: primeiro nós somos ressuscitados,
errada, que subverte a ordem natural das coisas, ou teria dito que Deus nos fez
assentar nos lugares celestiais e depois nos ressuscitou em Cristo, uma vez que para
se Paulo não usava uma analogia falha, a única conclusão que nos resta é que a
1147
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1148
• O reencontro da ressurreição
2ª Coríntios 4:14 – Outra razão por que a morte é o fim da existência até a
todo o NT, embora muitos desses textos passem despercebidos em uma leitura
escreve:
mortos, também nos ressuscitará com Jesus e nos apresentará com vocês”
Paulo sabia que ele um dia morreria, e que o mesmo aconteceria aos
coríntios. Diante disso, o que ele diz a eles? Que se veriam de novo quando ambos
uma vez que não há reencontro algum entre duas partes que já estão juntas. Qual
lado ou próximo a; apresentar uma pessoa para outra ver e questionar; apresentar
1148
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1149
coríntios aos quais ele escrevia aquelas palavras já estão juntos no céu há quase
dois mil anos, o que é aparentemente tempo suficiente para serem apresentados e
milênios. “Paulo, aqui estão os coríntios. Coríntios, aqui está Paulo... com quem
vocês estavam esse tempo todo”. Esse reencontro deve ser mais surpreendente que
Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que o texto só tem algum
nexo sob a ótica que acompanhamos minuciosamente até aqui: que não há vida de
qualquer tipo entre a morte e a ressurreição. É por isso que Paulo e os coríntios se
na morte, a ressurreição não concretizaria reencontro algum, dado que não houve
8:38-39 para dizer que nem a morte nos separa de Deus, quando o texto não diz
que a morte não nos separa de Deus, mas que a morte não nos separa do amor de
Deus. Da mesma forma que você continua amando sua mãe falecida mesmo após
sua morte (em vez de se tornar indiferente a ela), Deus continua nos amando
mesmo quando não mais existimos. Não há, no entanto, qualquer texto que diga
ou sugira que a morte não nos separa de Deus ou de outras pessoas. É justamente
636
#3936 da Concordância de Strong.
1149
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1150
porque a morte nos separa que a ressurreição nos reúne, seja com Deus, seja com
ressurreição, a não ser que cada um ficasse no seu canto no céu sem se ver nem
falar nada uns com os outros (ou seja, um céu apenas de curitibanos).
desloca toda a ênfase para a ressurreição. Três versos antes, Paulo escreveu:
Por que Paulo trazia em seu corpo o “morrer de Jesus”, isto é, por que ele
sofria continuamente pelo evangelho? Porque desejava deixar o corpo assim que
morresse? Não, mas para que a vida de Jesus também fosse revelada em seu corpo,
ou seja, fisicamente, e não como uma alma penada. E dois versos depois do verso
nos, interiormente estamos sendo renovados dia após dia, pois os nossos
eterna que pesa mais do que todos eles. Assim, fixamos os olhos, não naquilo
que se vê, mas no que não se vê, pois o que se vê é transitório, mas o que
não se vê é eterno” (2ª Coríntios 4:16-18)
1150
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1151
Nós já falamos desse texto, mas não custa repetir: por que Paulo não
imediatamente após a morte quando a sua alma entrasse direto no Reino dos céus?
Não, mas porque ele sabia que “aquele que ressuscitou ao Senhor Jesus dentre os
mortos, também nos ressuscitará com Jesus” (v. 14). E se é a ressurreição que Paulo
tinha em mente, é evidentemente a respeito dela que Paulo escreve o que vem na
frequentemente em pregações, mas sempre associado ao céu onde a alma vai após
a morte, nunca à ressurreição, que pauta todo o contexto. Isso mostra como a
que mesmo um texto como esse, onde todo o contexto aponta claramente à
quando é que voltaremos a ver os que partiram é um que nós já abordamos aqui:
“Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem,
para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança. Se
cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus trará,
1151
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1152
mediante Jesus e juntamente com ele, aqueles que nele dormiram. Dizemos a
vocês, pela palavra do Senhor, que nós, os que estivermos vivos, os que
ficarmos até a vinda do Senhor, certamente não precederemos os que
dormem. Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta
nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre. Consolem-se uns
o que indica que os dois grupos (os que estiverem vivos quando Jesus voltar e os
que já estiverem mortos) encontrarão o Senhor num mesmo momento, sem que
um tenha precedência sobre o outro. Vimos também que os mortos não descerão
do céu junto com Jesus e com os anjos, mas serão ressuscitados e arrebatados
juntamente com os vivos. Mas há aqui um outro aspecto que merece destaque: o
fato dessa ser a única mensagem de esperança que Paulo tinha a dar sobre aqueles
que já morreram.
o que um mortalista teria para confortar alguém que perdeu um parente ou alguém
que a alma do falecido está com Deus, que ele já está na glória e está bem melhor
agora do que quando vivo. E embora esses clichês nem sempre sejam eficazes para
1152
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1153
É por isso mesmo que é curioso notar que ninguém na Bíblia jamais foi
mensagem de que fulano já está numa mansão celestial ou habitando com os anjos.
Pelo contrário, Jesus consolou a irmã de Lázaro com a esperança da ressurreição (Jo
11:23), a qual respondeu que “eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no
último dia” (v. 24), o que indica que a ressurreição era o modo habitual pelo qual os
judeus consolavam uns aos outros quando perdiam alguém. Não sem razão, Jesus
disse inúmeras vezes ”eu o ressuscitarei no último dia”, mas nunca “eu levarei sua
➢ “Todo o que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e
➢ “Porque a vontade de meu Pai é que todo o que olhar para o Filho e nele crer
1153
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1154
➢ “E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum dos
Por que Jesus faria questão de reiterar tantas vezes que “eu o ressuscitarei
paradisíacas desde muito antes? Por que a ênfase recaía sempre e somente na
ressurreição do fim dos tempos, e nunca na tal alma que sai do corpo e vai para a
presença de Deus logo após a morte? Por que a promessa de uma ressurreição –
existência, e só então que veremos a Deus e reencontraremos uns aos outros. Por
esperanças do povo judeu e cristão estavam depositadas. É por isso também que,
como vimos, Paulo não consolou a família de Onesíforo dizendo que as portas do
céu já tinham se aberto pra ele, mas com a esperança de que ele encontrasse a
Mas o texto mais enfático sobre isso é mesmo o de 1Ts 4:13-18. Isso porque
o propósito era justamente trazer consolo a respeito «dos que dormem», “para que
não se entristeçam como os demais, que não têm esperança” (v. 13). Ou seja, este
clichês imortalistas usados hoje para o mesmo propósito, já que esses «que não têm
1154
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1155
sempre – sem ressurreição nem imortalidade da alma. E como a morte seria o fim
de tudo, não restava qualquer esperança em relação aos que dormem, o que
No entanto, em nenhum dos seis versos da perícope ele chega perto de fazer
respeito dos que morreram, ele não diz em momento algum que eles já estavam no
céu, que fazem companhia aos anjos ou que já estão nos braços do Senhor.
propícia como essa, que parece ter sido feita justamente para isso.
ele finaliza dizendo: “Consolem-se uns aos outros com estas palavras” (v. 18). Aqui,
não apenas confirmamos que a intenção de Paulo era trazer consolo a respeito dos
que já morreram, mas também que esse consolo não incluía nada daquilo que ele
deixou de fora. Ao pedir que os tessalonicenses consolassem uns aos outros com
estas palavras, ele descartava tudo aquilo que havia deixado de fora, ficando apenas
1155
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1156
tocam o coração mas que não passam de fábulas, e a verdadeira esperança bíblica,
concreta e realista. A ressurreição pode não ser aquilo que os leitores mais
gostariam de ouvir, mas é o que de melhor Paulo tinha a oferecer. O que não falta
no mundo são filosofias sobre a vida após a morte que visam dar algum conforto
aos que estão vivos, mas isso não significa que sejam verdadeiras. Paulo não quis
consolar seus leitores com uma mentira embelezada, mas com a verdade nem
se passaria facilmente por insensível, mas não haveria nada de estranho se esses
clichês fossem ignorados por um pastor mortalista, que sabe que é errado contar
uma mentira só por ser conveniente. Essa é a razão por que Paulo deixou
porque são indispensáveis apenas para quem acredita nisso. Um cristão bem
doutrinado como o apóstolo Paulo poderia facilmente descartar tais clichês, não
637
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 136.
1156
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1157
por ser insensível, mas por conhecer no que consistia a verdadeira esperança do
cristão.
E antes que alguém alegue que Paulo simplesmente “se esqueceu” ou deixou
de lado por qualquer estranha e misteriosa razão os clichês que nenhum imortalista
se esqueceria, leve em conta que ele explicitamente disse que não queria que seus
queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem, para que não se
entristeçam como os outros que não têm esperança” (v. 13). Em outras palavras,
Paulo não estava fazendo um breve resumo das razões por que não devemos nos
dizendo tudo o que podia ser dito para que eles não se entristecessem – do
Assim, apenas duas opções nos restam: a de que Paulo decidiu manter os
seus leitores na ignorância a respeito dos mortos, mesmo quando disse que seu
objetivo era justamente que eles não fossem ignorantes quanto aos que dormem,
e por isso deixou de lado o motivo principal pelo qual a lamentação deles era
improcedente (o de que esses entes queridos já estavam com Deus no céu e que os
poderiam cair bem, mas a um custo que Paulo não estava disposto a pagar, onde a
1157
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1158
livro como este do que a pregação de Paulo em Atenas, o berço da filosofia grega
mundo, Atenas era certamente para aquela época o grande epicentro cultural e
pensamento da época.
compete à alma, sabemos que a maior parte deles seguia a filosofia de Sócrates e
eram mortalistas, não no sentido cristão da vida após a ressurreição, mas no sentido
absoluto de não existir nada após a morte para sempre. E havia ainda os estoicos,
Some a isso o fato de que o objetivo principal de Paulo não era confrontar
ganhar mais adeptos. É por isso que ele não diz que os gregos só adoravam falsos
deuses, em que pese o fato de “ver que a cidade estava cheia de ídolos” (At 17:16),
mas diz que “encontrei até um altar com esta inscrição: AO DEUS DESCONHECIDO.
Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio” (v. 23). Isso
1158
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1159
também explica por que em várias partes do seu discurso ele alude a filósofos e
poetas gregos, como uma forma de reforçar os pontos convergentes que existiam
entre um e outro.
Um exemplo é o verso 28, que diz que «nEle vivemos, nos movemos e
existimos», uma famosa citação de Epimênides (séc. VI a.C), seguida por uma
menção direta ao que “disseram alguns dos poetas de vocês: ‘Também somos
descendência dele’” (v. 28), em alusão ao que disseram Arato (272 a.C) e Cleantes
(300 a.C). Diante disso, era de se esperar que se Paulo fosse imortalista citaria
alma, mesmo quando o contexto era propício a isso. Um exemplo é o verso 25, que
diz que Deus “não é servido por mãos de homens, como se necessitasse de algo,
porque ele mesmo dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas” (v. 25). Se havia
um momento oportuno para dizer que Deus colocou uma alma imortal no homem,
certamente era este. Mas Paulo diz apenas que Deus «dá a todos a vida, o fôlego e
alguém habituado à filosofia grega, onde a alma seria a primeira a ser mencionada.
Paulo não apenas não menciona a psiquê (alma), como tem até mesmo o
acostumados à ideia grega e não à ideia hebraica de espírito. Uma vez que a
intenção não era dar um longo sermão só sobre este assunto, Paulo prefere
1159
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1160
simplesmente evitar o uso do termo, usando em vez disso o vocábulo pnoe, que
significa:
2) vento.
como indica ainda que Deus não colocou um elemento eterno ou imortal no
homem, mas apenas o sopro de vida que anima o corpo pela duração de sua vida
incorporada pela maior parte dos cristãos atuais. Além de tomar todo o cuidado de
“Pois estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio
do homem que designou. E deu provas disso a todos, ressuscitando-o dentre
Paulo confronta diretamente a ideia grega sobre a vida após a morte, que
porque, como vimos, ele não condenou a idolatria dos gregos sem antes fazer a
ressalva de que eles adoravam um “Deus desconhecido”, que era quem ele pregava.
1160
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1161
Mas Paulo contesta a ideia grega sobre a vida após a morte sem fazer qualquer
ressalva, como esperaríamos se ele pelo menos concordasse no principal (de que a
Mais do que isso, Paulo diz que a ressurreição de Jesus é a prova de que Deus
julgados. Tão importante era para Paulo pregar a ressurreição para os gregos que
ressurreição.
‘Parece que ele está anunciando deuses estrangeiros’, pois Paulo estava
mencionada lado a lado com «as boas novas a respeito de Jesus» como as únicas
duas coisas que mais valiam a pena serem pregadas aos atenienses. Paulo nem
porque, naquela época, pregar a ressurreição era exatamente o mesmo que negar
reencarnação. Por isso a reação dos gregos não podia ser outra:
1161
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1162
outros disseram: ‘A esse respeito nós o ouviremos outra vez’. Com isso, Paulo
retirou-se do meio deles’” (Atos 17:32-33)
“escultura de ouro, prata ou pedra, feita pela arte e imaginação do homem” (At
17:29), o que na prática significava chamar todos ali de idólatras, mas foi só chegar
embora, o que mostra até que ponto eles estavam apegados à ideia de uma alma
imortal.
conciliar essa ideia com a da ressurreição, como qualquer imortalista cristão faria
hoje. Ele poderia ter deixado claro que a alma sobrevive após a morte e depois só
alma e que na morte a alma se desprende do corpo, poderia ter pregado uma
imortalistas atuais, mas em vez de qualquer uma dessas coisas ele simplesmente
1162
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1163
A razão por que Paulo não faz o menor esforço de conciliar uma coisa com a
outra é simples: porque ele realmente pregava uma doutrina que se chocava de
frente com o conceito dualista de alma. Essa é a única, simples e lógica razão por
comum com os gregos no que compete à ideia de vida após a morte. Eles não
convergiam em nada porque não tinham nada em comum, o que indica que o
Agostinho de Hipona, se esforçaram em tentar fazer aquilo que Paulo jamais fez,
conseguir o apreço dos gregos sem ter que abrir mão totalmente de algum
apóstolo, que poderia ter feito o mesmo e sair do Areópago cheio de seguidores,
mas saiu ignorado e zombado por não negociar em nenhuma medida e a qualquer
ressurreição. Mas como não é tão simples negar algo ensinado explicitamente em
dúzias de textos, eles não a negam abertamente, apenas mudam o seu significado
1163
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1164
(o que é o mesmo na prática). Uma manobra das mais corriqueiras é dizer que a
ressurreição não é literal (como um morto que renasce de uma tumba), mas
uma pessoa melhor não era algo estranho aos gregos, muito menos algo que os
repeliria imediatamente. É evidente que eles sabiam que Paulo não pregava uma
mas uma ressurreição física real, como a que os judeus criam e Platão abominava.
“Agora, estou sendo julgado por causa da minha esperança no que Deus
prometeu aos nossos antepassados. Esta é a promessa que as nossas doze
tribos esperam que se cumpra, cultuando a Deus com fervor, dia e noite. É
por causa desta esperança, ó rei, que estou sendo acusado pelos judeus. Por
Estaria Paulo sendo julgado por causa da simples convicção de que Deus
pode “transformar a mente” de uma pessoa? Seria tal coisa tão extraordinária a
ponto de seus interlocutores a acharem impossível? Seria apenas isso que as doze
1164
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1165
tribos de Israel esperavam «com fervor, dia e noite»? Não é preciso ser um gênio
para perceber que Paulo não falava de uma simples mudança de mente ou
religação da alma com o corpo, mas em trazer de volta à existência alguém que não
mais existe. É isso o que chocava tanto os pagãos, e que continua chocando tanta
ressurreição).
Talvez o texto mais claro a este respeito seja aquele em que “os saduceus,
que dizem não haver ressurreição, o interrogaram” (Mt 22:23), e Jesus, em vez de
“No mesmo dia chegaram junto dele os saduceus, que dizem não haver
ressurreição, e o interrogaram, dizendo: Mestre, Moisés disse: Se morrer
alguém, não tendo filhos, casará o seu irmão com a mulher dele, e suscitará
descendência a seu irmão. Ora, houve entre nós sete irmãos; e o primeiro,
tendo casado, morreu e, não tendo descendência, deixou sua mulher a seu
irmão. Da mesma sorte o segundo, e o terceiro, até ao sétimo; por fim, depois
de todos, morreu também a mulher. Portanto, na ressurreição, de qual dos
sete será a mulher, visto que todos a possuíram? Jesus, porém, respondendo,
disse-lhes: Errais, não conhecendo as Escrituras, nem o poder de Deus.
Porque na ressurreição nem casam nem são dados em casamento; mas serão
como os anjos de Deus no céu” (Mateus 22:23-30)
“ressurreição espiritual”, porque o exemplo que eles dão não é de uma pessoa má
1165
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1166
que se torna boa aqui na terra, mas de uma viúva que literalmente morreu e que
de ressurreição – uma ressurreição física e literal após a morte – que Jesus defende,
Jesus voltar:
“Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão
vivificados em Cristo. Mas cada um por sua ordem: Cristo as primícias, depois
os que são de Cristo, na sua vinda” (1ª Coríntios 15:22-23)
última instância, negar a ressurreição da carne é o mesmo que negar a volta de Jesus
um evento futuro na volta de Jesus que Paulo denunciou os que “se desviaram da
(2Tm 2:18), texto que deveria ser suficiente para encerrar a discussão como um
todo.
pergunta: “Se está sendo pregado que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como
alguns de vocês estão dizendo que não existe ressurreição dos mortos? Se não há
ressurreição dos mortos, então nem mesmo Cristo ressuscitou” (vs. 12-13). Se a
1166
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1167
Paulo seria falacioso e sem sentido. Schwertley explica isso muito bem quando
escreve:
Paulo está dizendo que se não há plural A, então não pode haver
Israel étnico, então Paulo está comparando maçãs com laranjas. Ele
estaria dizendo que se não há plural B, então não pode haver singular
A.638
ideia de que o corpo da ressurreição não é um corpo físico como o nosso corpo
corpo que não se parece em nada com o nosso corpo presente, o que sequer
638
SCHWERTLEY, Brian. Refutando o Preterismo Completo. Disponível em:
<http://www.revistacrista.org/Literaturas/Refutando%20o%20Preterismo%20Completo.pdf>. Acesso
em: 11/12/2021.
1167
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1168
poderia ser chamado de “ressurreição”, já que seria uma nova criação de algo
totalmente novo.
que até mortalistas por vezes pensam que o corpo da ressurreição será um corpo
(Romanos 8:11)
Aqui, não só vemos que o que ressuscita é o nosso «corpo mortal» (esse
mesmo feito de carne), mas também que seremos ressuscitados por Deus da
mesma forma que Cristo, o que significa que negar a ressurreição da carne é o
mesmo que negar a ressurreição do próprio Senhor Jesus. Aos filipenses, Paulo
“Pelo poder que o capacita a colocar todas as coisas debaixo do seu domínio,
tipo diferente do nosso, pela mesma razão que o autor de Hebreus não dizia que
1168
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1169
Jesus não era humano quando escreveu que “era necessário que ele se tornasse
semelhante a seus irmãos em todos os aspectos” (Hb 2:17). Se Jesus não era igual a
nós, todos os textos bíblicos que dizem que ele veio em carne seriam mentira, o que
era levado tão a sério pelos cristãos primitivos que aquele que negasse que Jesus
veio em carne tinha o “espírito do anticristo” (1Jo 4:2-3). Ou seja, Jesus literalmente
como o dele.
O próprio Senhor Jesus foi perfeitamente claro ao dizer que “está chegando
a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os
que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal ressuscitarão
para serem condenados” (Jo 5:28-29). Primeiramente, note que ele se refere
claramente aos que estiverem nos túmulos, não a pessoas vivas na terra ou almas
ressuscita «para a vida», o que também implica que ela não estava desde já na vida.
físico, por que falaria do corpo que jaz no túmulo, e diria que é esse mesmo corpo
que sai dali para a vida ou para a condenação? Neste caso, o corpo que está no
corpo que tinha quando morreu, mas em um outro corpo totalmente diferente e
novo ou estranho ao que o indivíduo tinha, mas no mesmo corpo que morreu,
docetismo – uma heresia dos primeiros séculos que dizia que Jesus era um espectro,
1169
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1170
possuindo apenas uma aparência humana, mas sem possuir carne e sangue reais.
Também não é um corpo novo formado do zero, sem qualquer semelhança com o
que jaz na sepultura (ou, nos casos onde esse corpo já não é mais visível, religar
propriedades do corpo).
Alguns ainda objetam que essa ressurreição não se daria em um corpo físico
porque Jesus disse que seremos “como os anjos de Deus no céu” (v. 30). Contudo,
que eles querem quando citam esse versículo isoladamente. Jesus não estava
casar na ressurreição. É então que ele faz a analogia com os anjos, que não se casam.
nos permita voar, e alguém neste contexto dissesse que “seremos como os
pássaros”. Será que alguém em sã consciência interpretaria a partir dessa frase que
teríamos a mesma natureza de um pássaro (com penas, bico, asas e tudo mais)? É
evidente que a comparação não diz respeito à natureza do ser, mas à característica
de poder “voar” e ver tudo lá de cima. Da mesma forma, a analogia que Jesus faz
entre o que nós seremos na ressurreição e o que os anjos são hoje não diz respeito
Tirar esse texto do contexto para defender que seremos exatamente iguais
qual Ele nos criou. Se Deus quisesse nos tornar anjos, Ele já teria nos criado assim.
1170
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1171
O fato dEle ter nos criado tão diferente deles em se tratando de nossa natureza
particular é porque Ele aprecia essa diferença e nos valoriza do jeito que somos. É
por isso que Ele não vai destruir nossa humanidade para nos tornar iguais a uma
“raça superior”, da mesma forma que ele não vai transformar animais em humanos.
Deus criou cada espécie com suas próprias características peculiares e ama
cada uma delas da forma que as criou. O problema não é a nossa natureza, mas o
pecado que a corrompeu. Adão não foi criado como um anjo – ele era um homem
pecado não tinha vez. A diferença não está na natureza em si, mas na sua
restauração.
A razão por que nós não pecaremos na eternidade não é porque seremos
transformados em anjos, até porque houve anjos que se rebelaram antes mesmo
qualquer inclinação, vontade ou desejo pelo pecado, uma vez que seremos
outras palavras, nós não pecaremos pela mesma razão por que não comemos cocô:
não porque isso seja humanamente impossível ou viole o nosso livre-arbítrio, mas
porque teremos zero desejo por isso, e só pecamos hoje porque todo pecado é
ressuscita um corpo espiritual” (1Co 15:44). Para eles, o “corpo espiritual” é espiritual
1171
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1172
como um vulto ou um fantasminha – embora isso nem mesmo faça sentido, já que
a alma como imaginam os imortalistas já cumpre precisamente este papel. Para que
então ressuscitar um corpo não-físico para um ser que já não é físico? Que utilidade
teria tal corpo? Por que diabos um espírito sem corpo precisaria de um corpo que
é espírito? Isso seria o mesmo que trocar seis por meia dúzia (uma verdadeira
Piper é uma pessoa espiritual”, eu obviamente não estaria dizendo que John Piper
é um fantasma que vive fora do corpo perambulando por aí como uma alma
“carnal” (que também não tem nada a ver com não ser físico, mas com viver no
pecado).
Quando Paulo disse que ”os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a
carne, com as suas paixões e os seus desejos” (Gl 5:24), ele não estava pregando a
pecaminosa. É neste sentido que Paulo diz que “quem é dominado pela carne não
pode agradar a Deus” (Rm 8:8) e que “quem vive segundo a carne tem a mente
voltada para o que a carne deseja; mas quem vive de acordo com o Espírito tem a
Ser “carnal” não é ter um corpo físico, porque neste sentido todos somos
“carnais” – até mesmo Jesus, que veio em carne (1Jo 4:2). Ser canal é ser dominado
1172
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1173
pelo pecado, o contrário de ser “espiritual”, que consiste em ser guiado pelo Espírito
(ainda que continue vivendo em um corpo físico). É neste sentido que Paulo usa a
porém, cada um para que também não seja tentado” (Gálatas 6:1)
Com isso ele não estava querendo dizer que os gálatas eram espíritos sem
corpo, mas simplesmente que viviam de acordo com a vontade do Espírito. Não
precisamos nem ir tão longe: na mesma epístola de 1ª Coríntios ele faz o mesmo
mais uma vez o sentido não era de ser desprovido de carne e ossos, mas de
1173
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1174
Isso explica o texto em que Paulo diz que “assim como tivemos a imagem do
sentido não é que teremos a mesma natureza dos anjos no céu, mas que seremos
libertos da inclinação ao pecado assim como eles. De fato, no grego de 1Co 15:44
nem mesmo encontramos a expressão “corpo físico”, mas soma psychikon, onde
texto ao pé da letra, a tradução não seria “corpo físico”, mas “corpo almático”. Aqui,
a alma é claramente identificada com o corpo, não o oposto a ele como no dualismo
639
CRAIG, William Lane. Corpo de Jesus. Disponível em:
<http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Corpo-de-Jesus>. Acesso em: 11/12/2021.
640
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 143.
1174
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1175
a Deus.641
Uma vez que é este “corpo almático” que Paulo diz que “é semeado em
desonra e ressuscita em glória” (v. 43), é evidente que para Paulo o que morria e
ressuscitava não era um corpo desprovido de alma, como se a alma tivesse partido
homem, o que inclui a alma, uma vez que ele é “alma vivente” (Gn 2:7). Não é à toa
que Paulo citou Gn 2:7 imediatamente no verso seguinte (v. 45). Como comenta
Bacchiocchi,
sobrevive à morte do corpo. Isso serve para mostrar que, para Paulo,
Paulo não estava dizendo que o corpo que ressuscita é um corpo sem
“ressurreição”, que significa trazer de volta a mesma coisa que havia antes. Criar
algo diferente e totalmente novo não seria ressurreição, mas recriação. A recriação
641
ibid, p. 143.
642
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 264.
1175
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1176
passa a ideia de criar algo novo a partir do zero, enquanto a ressurreição consiste
em Deus trazer de volta alguém que já existia, cujos átomos e partículas não
morre, isso nem mesmo pode ser chamado de ressurreição. Quando Paulo diz que
“quando você semeia, não semeia o corpo que virá a ser, mas apenas uma simples
semente” (v. 37), o sentido não é que se trata de outro corpo, mas do mesmo corpo
elevado a um estado glorificado. É neste aspecto que ele se difere do corpo atual,
Note que Paulo não diz que “é semeado um corpo perecível e ressuscita
outro corpo, imperecível”, mas sim que “o corpo que é semeado perecível ressuscita
antídoto para rejuvenescer as células e garantir uma vida eterna (o que ainda está
fora do alcance dela e jamais aconteceria antes da volta de Jesus). Mas, supondo
1176
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1177
que isso fosse possível, não seria correto dizer que teríamos um “outro” corpo,
como não ganhamos um novo corpo quando tomamos uma vacina ou fazemos
Mas, de fato, teríamos um corpo muito diferente, no sentido de ser bem mais
corpo atual como a “semente” daquilo que se tornará um dia, na ressurreição. Não
se trata de mudar de corpo, mas de ter o corpo aprimorado, assim como uma planta
na manga é lançada: o verso 50, que diz que “carne e sangue não podem herdar o
Reino de Deus, nem o que é perecível pode herdar o imperecível” (v. 50). Seria essa
a prova que refuta cabalmente todo o nosso estudo a respeito da ressurreição? Não
tão cedo. O que temos aqui é uma expressão idiomática semita que pode de fato
passar despercebida ao olhar de um leitor leigo assim como os textos que falam de
1177
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1178
Quando Paulo diz que “a nossa luta não é contra carne e sangue, mas contra
hostes espirituais da maldade” (Ef 6:12), “carne e sangue” aqui têm o sentido de
Da mesma forma, quando Paulo diz que “quando Lhe agradou revelar o seu
Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei carne e
sangue” (Gl 1:15-16), Paulo não estava dizendo que literalmente não consultou o
“meros mortais”, isto é, pessoas fracas na comparação com Aquele que o chamou.
Assim, quando Paulo usa a expressão «carne e sangue», ele não se referia
literalmente à carne que cobre o nosso corpo e ao sangue que corre em nossas
Senhor). Voltando a 1Co 15:50, em relação a qual poder superior Paulo usava a
porque ele literalmente não seja feito de carne ou não tenha sangue, mas por ser
um corpo incorruptível.
643
CRAIG, William Lane. Corpo de Jesus. Disponível em:
<http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Corpo-de-Jesus>. Acesso em: 11/12/2021.
1178
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1179
não pode herdar o Reino de Deus, por isso ele precisa ser transformado em um
pensavam que a ressurreição era ridícula porque não faria o menor sentido
ressuscitar no mesmo corpo que tinha antes para morrer de novo, razão por que
era falar de “natureza física”, a expressão utilizada nunca era “carne e sangue”, mas
da carne”), que em parte alguma diz “creio na imortalidade da alma”. Ainda no final
do primeiro século, Clemente de Roma (35-97) escrevia com todas as letras que “Tu
ressuscitarás minha carne, que suportou todas essas coisas”644, e Atenágoras (133-
ressurreição da carne:
644
1ª Clemente, 26:3.
1179
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1180
“Deus ressuscitará a tua carne, imortal, juntamente com tua alma”646, reforçando o
fato de que a carne não é desfeita, mas transformada em uma natureza imortal. Por
volta da mesma época, Taciano o Sírio (120-180) disse que “nem a alma poderia por
si mesma jamais se manifestar sem o corpo, e nem a carne ressuscita sem a alma”647.
Para Taciano, a alma não era um fantasminha que podia se manifestar fora do
corpo, e, da mesma forma, a carne não ressuscita sem a alma, porque o corpo é a
alma visível. Isso nos mostra que desde os primórdios da Igreja a crença na
os gnósticos e os docetistas, que não criam nem que o próprio Senhor Jesus
[Jesus] estava na sua carne. Quando veio até aos que estavam em
torno de Pedro, lhes disse: “Pegai, tocai-me, e vede que eu não sou
contato com sua carne e seu espírito acreditaram. É por isso que eles
645
Petição em Favor dos Cristãos, 36.
646
Primeiro Livro a Autólico, 7.
647
Discurso contra os Gregos, 15.
1180
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1181
Foi por causa desses mesmos hereges que João alertou que “muitos
enganadores têm saído pelo mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio
em carne. Tal é o enganador e o anticristo” (2Jo 7), e que precisou reforçar que não
apenas os seus olhos o viram, mas “nossas mãos o apalparam” (1Jo 1:1). É esse
que qualquer um podia tocar –, nós ressuscitaremos não como espíritos sem corpo
ou corpos sem carne, mas numa carne tão física quanto a atual, embora
expressão «carne e sangue», não só vemos que ela não refuta em nada a
ressurreição da carne, mas também reforça o fato de que ninguém entrará no Reino
ressurreição, visto que é somente neste momento que a nossa natureza atual será
“Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas
648
Inácio aos Erminiotas, 3:1-3.
1181
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1182
qualquer espaço para a ideia de entrar no Reino antes da ressurreição. Primeiro ele
diz que «carne e sangue» não podem herdar o Reino de Deus (v. 50), indicando a
nossa natureza fraca. Depois ele aponta quando essa natureza fraca se transformará
Deus, e diz que é quando “os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos
transformados” (v. 52). Difícil imaginar como Paulo poderia ser mais claro quanto a
precisar desenhar.
Note ainda que Paulo não diz “este corpo mortal”, como se apenas uma parte
se a toda a sua natureza. Ninguém comenta isso melhor do que Cullmann, quando
escreve:
Se a vida é eliminada por meio duma morte tão genuína como esta, é
volta à vida não apenas uma parte do homem, mas o homem inteiro
1182
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1183
(...) Quem não entendeu o horror da morte não pode juntar-se a Paulo
15:54).649
Não é por acaso que é só por ocasião da ressurreição que a morte é destruída
pela vitória (v. 54). A morte não é derrotada por uma alma imortal que se liberta da
para a morte, e é através dela que a morte é finalmente derrotada. Que imenso
contraste com o pensamento grego, onde a morte é vencida por uma alma que
escapa ilesa a ela! Todo o capítulo é uma grande afronta à ideia predominante sobre
a morte, seja naquele tempo, seja em nossos dias. Não admira que não haja
Bacchiocchi:
Paulo tivesse tal crença, dificilmente poderia ter evitado fazer algumas
649
CULLMANN, Oscar. Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? Disponível em:
<https://www.mentesbereanas.info/wp-content/uploads/2020/07/imort-ressur_folheto.pdf>. Acesso
em: 01/03/2022.
1183
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1184
para uma imortal na volta do Senhor. Mas o único “mistério” que Paulo
mudança da vida mortal para a imortal, tanto para vivos como para
15:54).650
pecado (como o nosso corpo atual). Este corpo se difere do atual não em
substância, mas em glória. Por ser imortal e incorruptível (1Co 15:53-54), não pode
morrer ou contrair doenças, e tampouco se deteriora com o tempo (razão por que
sem medo de engordar). Suas células são autorregenerativas, como Adão antes da
Queda, que não foi criado em um corpo já sujeito aos efeitos da morte.
desde a Queda, que todos nós experimentamos numa medida maior ou menor.
650
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 137.
1184
Imortalidade da alma vs Ressurreição dos mortos 1185
Você ainda será “você”, mas sem os defeitos que o seu corpo atual carrega. Seremos
1185
1186
método comparativo
Nos capítulos anteriores, vimos inúmeras provas bíblicas de que a alma não
é um ente imaterial implantado no corpo humano, que ela não é natural nem
morte é o fim da existência até a ressurreição. Mas existe uma outra forma de chegar
a essa mesma conclusão sem precisar amontoar milhares de textos bíblicos, como
fizemos aqui. Esse método segue uma linha de investigação mais própria de uma
Tome como exemplo o Jesus histórico. Ao todo, nós temos 15 fontes não-
cristãs que mencionam Jesus em um período de até 150 anos após sua morte.
Alguns ateus pensam que isso é pouco, e por isso deduzem que ele é uma fraude
histórica. Só que o próprio imperador romano da época, Tibério, tem não mais que
9 fontes não-cristãs atestando sua existência durante o mesmo período, e nem por
isso alguém duvida da existência dele651. Note que a dúvida só surge quando
época falassem de Jesus, o que seria esperado nos dias de hoje em que todo mundo
651
Eu falo mais sobre isso em meu livro “As Provas da Existência de Deus” e “Deus é um Delírio?”,
disponíveis na página dos livros: <http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
1186
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1187
perspectiva pela qual se avalia esse dado. Quando não seguimos parâmetro algum,
de novas provas, mas a capacidade de julgar com mais precisão se essas provas são
suficientes ou não, avaliando-as de uma forma mais técnica e criteriosa. É por isso
nenhum imortalista jamais tenha feito tal coisa em seus livros e artigos que nunca
ultrapassam o superficial.
da alma por todos os lados, explícita e declaradamente, sem abrir a menor margem
1187
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1188
É quase impossível virar a página de uma obra imortalista dessa época sem
ver alguma menção explícita de “alma imortal” ou de vida consciente no céu ou nos
declarações pontuais de caráter subjetivo. Nada disso. Eles a afirmavam sem medo
e sem restrições, sem rodeios e sem ambiguidades, com toda a clareza de quem
parece ter orgulho em defender tal doutrina e difundi-la pelo mundo. Tome como
se parecerá com uma mortal. Mas ela não revelará a sua natureza, que
1188
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1189
Porque um dom deste gênero não é dado a homens que não sejam
Note quantas vezes o autor gnóstico deste livro faz questão de acentuar que
mencionam a alma (nephesh ou psiquê) nada a menos que 858 vezes, ela NUNCA
aphthrsia).
por dezenas de autores imortalistas diferentes não diga uma única vez aquilo que
qualquer escritor imortalista diria sem hesitar repetidas vezes em qualquer livro
mesmo que curto? Deixo que o leitor conclua por si mesmo. Para ajudá-lo, tome
1189
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1190
a terra inteira, e cada um irá para o seu próprio corpo onde foi
grande voz desses espíritos for ouvida haverá um terremoto por toda
entanto, apesar da Bíblia mencionar a ressurreição dúzias de vezes, ela nunca chega
perto de descrever o evento como a religação entre o corpo e a alma. Nem mesmo
1190
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1191
contraste com as obras escritas por judeus e cristãos helenizados não poderia ser
maior.
exatamente nisso que esse apócrifo diz, o que nos leva a perguntar por que não
vemos na Bíblia a mesma clareza em relação às aventuras de Jesus entre a sua morte
e ressurreição.
mas muitas vezes se atiram milhares de tais objetos em algo que não
1191
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1192
eterno”.
deixar, seus corpos morrerão, mas suas almas estarão vivas, e eles
serão levados.
1192
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1193
partem do corpo na morte, coloca na boca de Jesus até mesmo o número exato de
hoje no paraíso?”. Jesus respondeu: “As almas dos justos, que saíram
século, não só descreve a partida da alma do corpo mas também seu acolhimento
pela Virgem Maria, numa linguagem muito semelhante à dos católicos marianos:
suas almas deixem seus corpos. E as almas que este arconte possuir
Virgem, filha da luz, e ela deu-a aos Seus herdeiros, que a levaram ao
seio de Isabel.
1193
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1194
do corpo:
para suportar o transe de ver sua alma separada de seu corpo. Agora,
então, meu Senhor, faz com que o teu anjo fique do lado da minha
dor. (...) Então Abbadão entrou, tomou a alma de meu pai José e
em que sua alma saiu do seu corpo, desapareceu para ele toda espécie
o lugar de repouso que tem meu Pai nesses céus que nunca serão
destruídos.
Ele até chega a descrever como essa tal alma imortal deixa o corpo na morte,
1194
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1195
Eu coloquei minha mão sobre seu peito e notei que sua alma já havia
subido até a sua garganta para deixar seu corpo. Mas ainda não havia
seguinte maneira:
“Amém, seja assim”; e eles fizeram uma oração pela entrada da alma
não viram mais a alma no lugar onde estava. E Abraão disse ao anjo:
“Ela foi salva por tu oração, e um anjo de luz a tomou e a levou para
Paraíso”.
1195
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1196
que a alma finalmente deixaria o corpo para trás: “Quando a sua alma sair do seu
dessas obras foram realmente escritas pelo Moisés, Abraão, Judas ou Tomé da
Bíblia. São todas falsificações escritas muito tempo mais tarde em nome deles, e por
isso mesmo consideradas apócrifas (que vem de “falso” ou “espúrio”). Não obstante,
apesar de não refletir as crenças desses personagens bíblicos, elas nos dizem muito
A maioria dessas obras foram escritas por gnósticos que se diziam “cristãos”,
e datam dos séculos II e III. Mas por que eles precisavam escrever falsificações em
nome dos apóstolos? A razão é simples: porque nos próprios escritos apostólicos
nada se podia encontrar dos ensinos deles, o que os forçava a forjar documentos
colocando na boca dos apóstolos as doutrinas gnósticas que eles gostariam que
tivessem pregado. É por isso que eles falavam tanto em alma imortal, na partida da
que afirma que a Bíblia hebraica não diz nada sobre uma imortalidade da alma e
que essa doutrina só surgiu entre os judeus após a diáspora, menciona uma série
1196
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1197
8:13, 17, 15:3). Em 4º Macabeus, também (9:8, 22, 10:15, 14:5, 15:2,
Não é à toa que o único lugar da Bíblia (pelo menos da Bíblia católica) onde
escrita muitos séculos depois de Salomão por judeus helenizados, jamais aceita
grego por um judeu de Alexandria nas últimas décadas do século I a.C, lemos que
estão nas mãos de Deus, que elas portam imortalidade e que preexistem ao corpo,
652
KOHLER, Kaufmann. “Immortality of the Soul”. Jewish Encyclopedia. Disponível em:
<https://jewishencyclopedia.com/articles/8092-immortality-of-the-soul>. Acesso em: 19/02/2022.
1197
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1198
“As almas dos justos estão na mão de Deus, e não os tocará o tormento da
morte. Pareceu aos olhos dos insensatos que morriam; e a sua saída deste
mundo foi considerada como uma aflição, e a sua separação de nós como
um extermínio; mas eles estão em paz (no céu). E, se eles sofreram tormentos
(Sabedoria 3:1-4)
“Eu era um menino vigoroso, dotado de uma alma excelente, ou antes, como
hebraico (é também o livro mais novo, escrito poucos anos antes da época de
Se por um lado esses textos apócrifos escritos por judeus helenizados ou por
da alma em seus escritos, por outro lado eles nos ajudam a ver como os escritores
da Bíblia teriam escrito caso eles também fossem imortalistas. Esperaríamos nos
uma alma imortal, sua separação do corpo com consciência e personalidade, seu
1198
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1199
algo que não deixaria a menor sombra de dúvida, assim como não temos dúvidas
dividida em 1189 capítulos, nenhum deles fala de uma alma imortal, de uma alma
deixando o corpo e sendo recebida no céu ou de uma religação com o corpo. Não
Quando os meios de uma parábola são a prova mais forte de uma doutrina
mesma doutrina. Não temos qualquer razão para pensar que se os apóstolos
parecida com “os mortos não sabem de nada” (Ec 9:5), “no além não há atividade,
nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria” (Ec 9:10), que “na morte
os pensamentos perecem” (Sl 146:4), que “os mortos não louvam ao Senhor” (Sl
38:18), que “quem morreu não se lembra de ti” (Sl 6:5), que “Davi não subiu aos
1199
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1200
céus” (At 2:34), que “nenhum deles [os heróis da fé] recebeu o que havia sido
prometido” (Hb 11:39), que “se os mortos não ressuscitam, ‘comamos e bebamos,
porque amanhã morreremos’” (1Co 15:32), e que neste caso “os que dormiram em
predominante nos povos pagãos ao seu redor. O “Novo Comentário Bíblico do AT”,
editado por Wayne H. House, observa que “os israelitas eram o único povo de sua
área que tinha foco no aqui e agora. Enquanto os egípcios preparavam túmulos
que a morte é o fim da atividade humana”653. Da mesma forma, Hans Walter Wolff
coloca em contraste a crença dos judeus com a dos egípcios da mesma época:
céu, une-se ao sol, e seu corpo de deus mistura-se com seu genitor”.
653
RADMACHER, Earl D; ALLEN, Ronald B; HOUSE, Wayne H. O Novo Comentário Bíblico AT, com recursos
adicionais: a Palavra de Deus ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2010, p. 934.
654
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 167.
1200
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1201
fora delas, rejeita até hoje que o mesmo seja afirmado a respeito da Bíblia. Se
expunham sua crença sem nenhuma cerimônia e da forma mais clara possível, sem
abrir qualquer margem a dúvidas. Se o mesmo não pode ser dito a respeito da
vergonha de expor suas crenças, mas simplesmente porque não criam em nada
disso.
imortalistas, eles não teriam motivo algum para não expressar essa crença
segundo que, se não fossem mortalistas, jamais teriam se expressado como nos
textos acima, que nunca apareceriam numa obra de teor imortalista. Como os
gnóstico onde a “alma boa” está em conflito com o “corpo mau”, o qual tentou
1201
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1202
essa evidência é onde reside o seu maior erro nesse ponto de partida
Ele diz que o suposto silêncio dos escritores do NT sobre tais assuntos
começaram a ter contato com essa doutrina por ocasião da diáspora, quando se
isso não significa que todos eles se convenceram de repente, nem que essa
influência tenha sido igual em toda parte. Obviamente, essa crença era abraçada de
forma singular nas regiões de fala grega, mas os judeus da Palestina estavam muito
não apenas a doutrina da imortalidade da alma, mas praticamente tudo o que vinha
655
Disponível em: <https://www.adelmomedeiros.com/tecnicasdedistorcer.htm>. Acesso em:
08/02/2022.
1202
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1203
manter suas raízes, mesmo que isso os colocasse em conflito com os judeus
conflito que havia entre eles, como quando “os judeus de fala grega entre eles
queixaram-se dos judeus de fala hebraica, porque suas viúvas estavam sendo
discutia com os judeus de fala grega, mas estes tentavam matá-lo” (At 9:29).
mista, e nela incluía-se desde saduceus que não acreditavam em nada (nem em
transmigração e reencarnação das almas), ela certamente era constituída mais por
mortalistas do que por imortalistas. Não precisamos nos estender neste ponto, uma
vez que isso já foi amplamente abordado no capítulo 8, onde vimos uma série de
656
WITHERINGTON, Ben. Matthew 10.28 – Why Annihilationism is not Universalism. Disponível em:
<https://www.patheos.com/blogs/bibleandculture/2011/03/18/mt-10-28-why-anihilationism-is-not-
universalism>. Acesso em: 07/02/2022.
1203
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1204
naquele meio (ou seja, a crença a princípio aceita pelos apóstolos) e se é verdade
que «quem abandona um ensino no qual acreditava sempre divulga a nova crença
ainda mais ênfase que os escritos gnósticos (produzidos por gente já imersa no
parte de outra falsa pressuposição, a de que alguém que já cria em alguma coisa
não tem interesse em expô-la e propagá-la. De onde foi que ele tirou isso? A
ressurreição já era uma crença judaica bem aceita na época de Jesus e se encontrava
claramente no AT, mas mesmo assim o NT inteiro a ressalta até a exaustão, mesmo
nos textos dirigidos a judeus. Por que então não vemos o mesmo acontecer com a
imortalidade da alma?
sábado nos cultos deles, já que todo mundo ali sabe que deve guardar o sábado, e
os católicos deixariam de falar da Virgem Maria em suas missas, já que todo mundo
ali sabe decor e salteado que deve venerá-la e cultuá-la. Da mesma forma, todos os
1204
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1205
que acabamos de conferir aqui, as quais, embora escritas por quem acreditava na
imortalidade da alma e dirigidas a quem pensava o mesmo, nem por isso deixam
impossível não ser claro a respeito, o que é ainda mais estarrecedor quando se
estava longe de ser um consenso mesmo no mundo grego. Assim como haviam os
concepção mais ampla da vida após a morte, que incluía uma alma eterna,
tinham a tendência contrária. Das facções principais dos líderes religiosos, por mais
que se discuta qual era a crença dos fariseus, o certo era que os saduceus não criam
657
Além disso, no estoicismo clássico, a alma podia ser fisicamente esmagada junto com o corpo e só
sobrevivia à morte se “partiisse livremente”, como explicou Sêneca (4 a.C – 65 d.C): “Os estoicos
sustentam que a alma de um homem esmagado por um grande peso não pode subsistir e é dispersa
imediatamente, porque não teve a oportunidade de partir livremente” (SÊNECA. Cartas de um Estoico.
São Paulo: Montecristo Editora, 2021. v. 1, LVII, 7).
1205
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1206
tanto no mundo grego como nos círculos judaicos, sem que nenhuma delas
sistemas estoico e epicurista têm, cada um, uma atração para ele. Tal
que os apóstolos fossem claros ao assumir aquilo que criam, fosse na ressurreição,
fosse na imortalidade da alma. E o que vemos é eles sendo claros apenas a respeito
termo “ressurreição” é apropriado sem reservas, em vez de ser sustentado por mera
dedução ou interpretação.
658
MAHER, Michael; BOLLAND, Joseph. “Soul”. The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton
Company, 1912. v. 14. Disponível em: <https://www.newadvent.org/cathen/14153a.htm . Acesso em:
11/02/2022.
1206
A imortalidade da alma nos escritos apócrifos e o método comparativo 1207
silêncio sepulcral, onde não só o termo em si inexiste, mas qualquer ensino claro
que endosse o conceito. Qualquer pessoa razoável concluiria que isso acontece
Mas eles concluem que eles também acreditavam na imortalidade da alma, só não
É por isso que eles precisam fabricar a ideia de que os apóstolos viviam em
um mundo onde todo mundo era imortalista, e por isso não precisaram falar de
algo que já era a crença comum compartilhada por todos. Embora alguns pensem
como esse seja levado a sério, o qual seria falso mesmo se a premissa fosse
verdadeira (o que também não é). Só há uma razão real por que os escritores
padrão: as obras escritas pelos Pais que viveram mais perto dos apóstolos trazem
época posterior, que já acreditavam nisso, não conseguiam falar em outra coisa.
1207
1208
Judaísmo. Mas o que você deve estar se perguntando é quando (e de que forma) a
examinar os escritos dos Pais da Igreja, que são os bispos e teólogos cristãos dos
só sobre isso (“Os Pais da Igreja Contra a Imortalidade da Alma”), não vou me
estender aqui mais do que o necessário. Se você quer uma abordagem mais
aprofundada sobre este tópico em específico, basta ler o meu livro disponível
gratuitamente em meu site659. Também destaco que não entrarão aqui os textos
que dizem respeito à aniquilação final dos ímpios, os quais serão tratados em um
capítulo à parte.
morte foi Inácio, bispo de Antioquia, que escreveu no começo do segundo século
d.C. Em sua carta a Policarpo, ele escreve: “Uma vez que a Igreja de Antioquia da
659
Você pode baixar gratuitamente o pdf do livro ou comprar a versão impressa em:
<http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
1208
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1209
Síria está em paz, como fui informado, graças à vossa oração, fiquei mais confiante
ressurreição como vosso discípulo”660. Ele não diz que esperava encontrar Policarpo
quando ressuscitasse. Essa expectativa foi reiterada aos cristãos de Éfeso, aos quais
ele diz:
“Fora dele [Jesus], nada tenha valor para vós. Eu carrego as correntes por
causa dele. São as pérolas espirituais com as quais eu gostaria que me fosse
dado ressuscitar, graças à vossa oração. Desta desejo sempre participar para
me encontrar na herança dos cristãos de Éfeso, que estão sempre unidos aos
apóstolos pela força de Jesus Cristo” (Inácio aos Efésios, 11:2)
Inácio gostaria de alcançar a ressurreição, mas para que? Para «me encontrar
na herança dos cristãos de Éfeso», ou seja, no Paraíso, onde ele se encontraria com
os crentes de Éfeso aos quais escrevia. É só na ressurreição que Inácio, que escrevia
“Não vos dou ordens como Pedro e Paulo; eles eram apóstolos, eu sou um
condenado. Eles eram livres, e eu até agora sou um escravo. Contudo, se eu
sofro, serei um liberto de Jesus Cristo, e ressurgirei nele como pessoa livre.
Acorrentado, aprendo agora a não desejar nada” (Inácio aos Romanos, 4:3)
660
Carta de Inácio a Policarpo, 7:1.
1209
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1210
ressurreição:
“Os profetas, que tinham a graça dele, profetizaram a seu respeito. E ele a
si o povo novo e demonstrar, durante sua estada na terra, que era ele mesmo
que julgaria, depois de ter realizado a ressurreição” (Epístola de Barnabé, 5)
após o julgamento: “Deixai-vos instruir por Deus, procurando o que o Senhor quer
com quem? Barnabé pode estar falando de se encontrar com Deus ou com os
irmãos, mas em ambos os casos isso só ocorre no dia do julgamento, que para
discípulo do apóstolo João. Em sua carta aos filipenses, ele escreve: “Se o
661
Epístola de Barnabé, 21.
1210
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1211
aguardarmos neste mundo, ele nos dará em troca o tempo futuro, pois ele nos
também reinaremos com ele, se tivermos fé”662. A posse do «tempo futuro» está
teremos a vida póstuma. A obra “O Martírio de Policarpo”, escrita anos após sua
“Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar
Policarpo poderia ter agradecido por saber que sua alma iria direto para a
presença de Deus antes mesmo da ressurreição, mas, em vez disso, seus olhos
ressuscita aquilo que já está vivo, da mesma forma que não se mata o que já está
morto.
• Hermas (70-155)
meados do segundo século e tida como canônica por algumas comunidades cristãs
662
Policarpo aos Filipenses, 5:2.
1211
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1212
dos primeiros séculos. Essa obra defende que os justos só herdarão o Reino no
futuro, o qual ainda virá para se estabelecer na terra. É só então que os justos
habitarão no Reino, que eles serão manifestos, que seus frutos serão conhecidos e
“De novo, ele me mostrou muitas árvores, umas verdes e outras secas. E me
disse: ‘Vês essas árvores?’ Respondi: ‘Sim, senhor, eu as vejo: umas estão
verdes e outras secas’. EIe continuou: ‘As árvores verdes são os justos, que
habitarão no mundo que está para chegar. De fato, o mundo que está para
chegar será verão para os justos e inverno para os pecadores. Portanto,
quando brilhar a misericórdia do Senhor os servos de Deus poderão ser
madeira morta, patenteando-se assim que durante a vida deles sua conduta
seu Criador. Portanto, leva frutos em ti mesmo, para que, naquele verão, teu
fruto seja conhecido” (Pastor de Hermas, 53:1-5)
1212
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1213
metade do segundo século, e por isso mesmo uma das fontes mais importantes
para o propósito deste livro. A primeira parte de seu Diálogo com Trifão é dedicada
justamente a narrar o seu diálogo com um velho cristão que o convenceu de que a
alma é naturalmente mortal, o que foi fundamental na sua transição para a nova fé.
Ali podemos ver como Justino, tal como qualquer platônico, começa se
identificando com a crença numa alma imortal que transmigra para outros corpos,
que selecionei os trechos mais importantes. Caso haja o interesse, em meu livro
***
Velho cristão – Qual é a nossa semelhança com Deus? Será que a alma é
***
1213
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1214
Velho cristão – E ela se lembra disso quando volta outra vez ao homem?
Velho cristão – Então, que proveito ela tira de vê-lo, ou que vantagem tem
aquele que viu sobre aquele que não viu, uma vez que disso não permanece
nenhuma lembrança?
Velho cristão – E que castigo sofrem aquelas julgadas indignas dessa visão?
Velho cristão – E elas sabem que vivem nesses corpos por essa causa, como
Velho cristão – Portanto, nem essas tiram proveito algum de seu castigo. E
eu diria ainda que nem castigo sofrem, uma vez que não têm consciência do
castigo.
***
Velho cristão – Portanto, nem as almas veem a Deus, nem transmigram para
outros corpos, pois dessa forma elas saberiam que esse é o seu castigo e
1214
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1215
também concordo que elas sejam capazes de entender que Deus existe e
Velho cristão – Portanto, esses filósofos nada sabem sobre essas questões,
Velho cristão – Tampouco, se pode dizer que ela seja imortal, porque, se é
imortal.
Velho cristão – Fazes muito bem. Com efeito, por qual motivo um corpo tão
De fato, foram feitas por causa dos homens e dos outros seres vivos, ainda
que digas que elas foram criadas completamente separadas e não junto com
1215
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1216
***
Velho cristão – Com efeito, além de Deus, tudo o que existe ou há de existir
Apenas Deus é incriado e incorruptível e, por isso, ele é Deus; mas, além dele,
todo o resto é criado e corruptível. Por esse motivo, as almas morrem e são
castigadas.
***
Justino – Por acaso, tudo isso passou distraído a Platão e Pitágoras, homens
vida. Se ela é vida, terá que fazer viver outra coisa e não a si mesma, da
mesma forma que o movimento move outra coisa mais do que a si mesmo.
Ninguém poderá contradizer o fato de que a alma vive. Portanto, se ela vive,
ela não vive por ser vida, mas porque participa da vida. Uma coisa é aquilo
porque Deus quer que ela viva. Portanto, da mesma forma, um dia ela
deixará de participar, quando Deus quiser que ela não viva. De fato, o viver
não é próprio dela como o é de Deus. Como o homem não subsiste sempre
e a alma não está sempre unida ao corpo, mas quando chega o momento de
1216
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1217
***
transmigração das almas, depois ele o convence que o mundo não é incriado, e que,
por conseguinte, as almas não podem ser imortais. Ele não só defende que a alma
momento em que elas não existirão». Isso é reforçado na parte do diálogo com o
judeu Trifão, onde Justino sustenta que Jesus, “após a santa ressurreição, nos dará
a posse eterna”663, e não que entramos na vida eterna antes da ressurreição. Em seu
Tratado sobre a Ressurreição, ele reitera que “seu Filho veio até nós, tendo sido
alma, sendo claro em dizer que “Deus chamou o homem para a vida e ressurreição,
ele chamou não uma parte, mas o todo, que é a alma e o corpo”665. E da mesma
forma que ele, Justino se regozijava na morte não porque esperava que sua alma
deixasse o corpo com consciência para a presença de Deus, mas por causa da
acreditando que Deus nos ressuscitará a nós pelo seu Cristo, e nos fará
663
Diálogo com Trifão, 113.
664
Tratado sobre a Ressurreição, 1.
665
ibid, 8.
1217
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1218
incorruptíveis, intactos e imortais”666. Justino era tão enfático a este respeito que se
recusava a chamar de cristãos aqueles que acreditavam que a alma vai pro céu após
a morte:
são ímpios, hereges, ateus, e ensinam doutrinas que são em todos os sentidos
blasfemas, ateístas e tolas. Mas, para que saiba que eu não estou sozinho em
las, e admitindo as mesmas coisas que eu admito a você. Pois eu opto por
não seguir a homens ou a doutrinas humanas, mas a Deus e as doutrinas
entregues por Ele. Se vós vos deparais com supostos cristãos que não façam
antes, que no ato de morrer, as suas almas são elevadas ao céu, não os
Assim, para Justino, a alma ir para o céu antes da ressurreição estava no rol
das «doutrinas que são em todos os sentidos blasfemas, ateístas e tolas». A única
666
Diálogo com Trifão, 46.
1218
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1219
filosofia grega, o que não é de se espantar, uma vez que ele mesmo era um seguidor
lembrar brevemente o que ele tem a dizer sobre como o homem foi criado e o que
ser perfeito e até declarado deus, subisse então até o céu, possuindo a
outra coisa, assim como seu lugar, o jardim, se considerarmos a sua beleza, é
Para Teófilo, o homem não foi criado naturalmente mortal nem imortal, mas
capaz de uma coisa ou de outra, dependendo de sua obediência a Deus. Uma vez
1219
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1220
que o homem escolheu o pecado, atraiu sobre si a mortalidade, que passou a ser
“Poder-se-á dizer: ‘O homem não foi criado mortal por natureza?’. De jeito
nenhum. ‘Então foi criado imortal?’. Também não dizemos isso. ‘Então não foi
nada?’. Também não dizemos isso. O que afirmamos é que por natureza não
foi feito nem mortal, nem imortal. Porque se, desde o princípio, o tivesse
criado imortal, o teria feito deus; por outro lado, se o tivesse criado mortal,
pareceria que Deus é a causa da morte. Portanto, não o fez mortal, nem
imortal, mas, como dissemos antes, capaz de uma coisa e de outra. Assim, se
seus atos. O que o homem atraiu sobre si mesmo por sua negligência e
desobediência, agora Deus o presenteou com isso, através de sua
vida eterna. De fato, Deus nos deu lei e mandamentos santos, e todo aquele
que os cumpre pode salvar- se e, tendo alcançado a ressurreição, herdar a
Para Teófilo, ainda que o homem tenha atraído sobre si a morte por sua
desobediência, Deus nos presenteou com a vida eterna através de Cristo. Mas isso
não se dá através de uma alma imortal que Deus tenha colocado tanto em justos
1220
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1221
como em ímpios, mas através da ressurreição, por meio da qual podemos «herdar
ressurreição:
Gênesis como se ele tivesse sido colocado duas vezes no jardim. A primeira
vez se realizou quando foi aí colocado; a outra se realizaria depois da
ressurreição e do julgamento. Podemos ainda dizer mais. Do mesmo modo
Deus lá criou Adão e Eva, e segundo depois que ressuscitarmos. Não existe no
justa, poderás ver a Deus. Antes de tudo, porém, entrem em teu coração a fé
e o temor de Deus, e então compreenderás isso. Quando depuseres a
mortalidade e te revestires da incorruptibilidade, verás a Deus de maneira
1221
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1222
digna. Com efeito, Deus ressuscitará a tua carne, imortal, juntamente com
tua alma. Então, tornado imortal, verás o imortal, contanto que agora tenhas
fé nele. Então reconhecerás que falaste injustamente contra ele”
(Teófilo a Autólico, Livro I, 7)
Nós não vemos a Deus quando a alma sai do corpo, mas quando Deus nos
qualquer chance de que isso ocorra antes da ressurreição. É o pecado que nos leva
representou não apenas a derrota do holismo cristão dos primeiros séculos, mas a
que na morte deixaria de existir assim como não existia antes de nascer, para
1222
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1223
obtê-la:
mas os homens, depois de perderem a imortalidade, com sua morte pela fé,
venceram a morte e, por meio da penitência, foi-lhes outorgado o dom de
uma nova vocação, conforme a palavra que diz: ‘Pois por um pouco de
tempo foram tornados inferiores aos anjos’. De fato, é possível para todo
aquele que foi vencido vencer por sua vez, contanto que rejeite a constituição
da morte, e qual seja esta é fácil de ver para aqueles que desejam a
imortalidade” (Discurso contra os Gregos, 15)
Para Taciano, a alma “se manifesta por meio do corpo, razão por que nem a
alma poderia por si mesma jamais se manifestar sem o corpo, e nem a carne
ressuscita sem a alma”667. Este é um golpe fatal no dualismo grego, onde a alma tem
alma capaz de se manifestar fora do corpo era tão absurda para Taciano quanto a
ideia de que a alma não ressuscita. É por isso que ele diz que “a alma um dia possuirá
Em outro trecho, Taciano zomba da crença dos gregos numa alma imortal:
667
Discurso contra os Gregos, 15.
668
ibid, 20.
1223
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1224
“Os demônios que dominam os homens não são as almas dos mortos. Com
efeito, como podem ser capazes de agir depois de mortos? A não ser que
creiamos que, enquanto vive, um homem é ignorante e impotente e, depois
que morre, recebe daí para a frente um poder mais eficaz. Isso, porém, não é
mais eficaz depois de morta, como se a alma se tornasse mais inteligente quando
se separa do corpo. O trecho onde ele questiona «como podem ser capazes de agir
depois de mortos?» mostra que para ele a morte era um estado de completa
inatividade, o que prova que até aquela época eles continuavam acreditando que
“De fato, como é possível que, não tendo eu sido absolutamente mau
enquanto vivi, os meus restos, depois de morto, sem eu fazer nada, os meus
1224
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1225
restos, que já não se movem nem sentem, realizem alguma coisa sensível?
Como aquele que morreu com a mais desastrosa morte poderá ajudar
alguém a se vingar? Com efeito, se fosse capaz, muito melhor vingaria a si
mesmo contra o seu próprio inimigo, pois aquele que pode ajudar a outros,
crendices que criaram em torno dos mortos, ele certamente teria que atualizar e
popularizada entre os cristãos, Arnóbio foi seu principal algoz. Em sua obra “Contra
coisa:
“Mas se você está realmente certo de que as almas dos homens são imortais
à sua incorporalidade:
1225
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1226
“Além disso, o mesmo raciocínio não só mostra que elas [as almas] não são
não muito diferentes dos animais e, na maioria das vezes, não agem
de toda a Igreja universal (o que deveria tornar esse testemunho ainda mais
impressionante). Infelizmente, essa visão é refutada pela própria obra, onde ele
clara alusão ao fato de ser uma novidade teológica, não um ensino aceito pela Igreja
669
NEW CATHOLIC ENCYCLOPEDIA. Soul, Human. 2ª ed. New York: McGraw-Hill Book Company, 1967. v.
13. Disponível em: <https://cvdvn.files.wordpress.com/2018/05/new-catholic-encyclopedia-vol-13.pdf>.
1226
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1227
“Não há motivo, portanto, que nos engane, não há motivo que nos faça
mortalismo sozinho enquanto todo o resto da Igreja inteira dizia o contrário (como
seria excomungado da Igreja, o que nunca aconteceu, mas jamais teria dito que essa
crença era de «pensadores recentes», o que claramente indica que era uma
novidade teológica impossível de ser encontrada nos Pais mais antigos – uma
teria Arnóbio para dizer que essa era uma inovação recente? Quem é que
acreditaria nisso? A quem ele esperava enganar? Isso seria o mesmo que um espírita
espírita acredite nisso. Qual é a chance de algum deles engolir essa narrativa? No
mínimo, isso indica que a disputa continuava viva no século III, com pensadores de
1227
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1228
“até agora ninguém recebeu sua recompensa, pois os justos não herdaram o Reino,
nem os ímpios foram para o tormento”670. Ele define a morte como o sono das almas
mundo para fixarem o coração no mundo porvir, quando então estarão com o
Senhor672.
descobriria muitos séculos mais tarde, sendo um dos primeiros a propor que
(na contramão do dualismo tradicional que atribui essas funções à alma). Ele
também nega taxativamente que possa existir vida fora do corpo ao dizer que “nem
pode a alma estar em algum momento sem o corpo, nem pode o corpo estar sem
a alma, porque a alma não é o próprio corpo; mas é a alma do corpo: e desta forma
está no corpo, sim, e nesse tipo de corpo: pois ela não tem uma existência por si
só”673.
670
Demonstrações, 8:22, 20.
671
ibid, 6:14.
672
ibid, 22:6-8.
673
De Natura Hominis, c. 2. Disponível em:
<https://quod.lib.umich.edu/e/eebo/A08062.0001.001/1:6.4?rgn=div2;view=fulltext>. Acesso em:
24/01/2022. 1228
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1229
Embora muitos outros autores possam ser citados e muitas outras citações
possam ser dadas, deixo que o leitor leia o meu livro sobre o tema caso queira um
maior aprofundamento do que vimos neste capítulo. De todo modo, o que já foi
exposto basta para ver que os Pais da Igreja mais antigos, que viveram mais perto
tornaremos imortais, para que possamos ver o Senhor e estar com Ele para sempre.
Essa crença permaneceu sem sofrer contestações por pelo menos um século e
meio, mesmo não sendo nada fácil resistir à tentação helênica que predominava no
mundo greco-romano.
Escritura para fundamentar sua opinião”674, o que explica muita coisa. Em vez disso,
674
CONSTABLE, Henry. The Duration and Nature of Future Punishment. Disponível em:
<https://davidlarkin.files.wordpress.com/2012/05/henry-constable-1868-duration-and-nature-of-
future-punishment.pdf>. Acesso em: 11/02/2022.
675
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Athenagoras: Greek Christian philosopher and apologist. Disponível em:
<https://www.britannica.com/biography/Athenagoras>. Acesso em: 27/12/2021.
1229
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1230
vezes, o que nos lembra muito o costume dos gnósticos e judeus helenizados em
suas obras apócrifas, como vimos no capítulo anterior. O contraste com os Pais da
Igreja que lhe antecederam não podia ser maior: se por um lado a expressão “alma
imortal” aparece uma dezena de vezes em um único livro de Atenágoras, por outro
ela está misteriosamente ausente dos escritos dos Pais da Igreja desse período,
mesmo dos que escreveram obras bem maiores e em maior quantidade. O quadro
1230
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1231
A coisa piora mais ainda quando vemos que o termo “alma imortal” só
aparece duas vezes em outros autores, e em contextos onde eles estão claramente
quando ele conta a crença que ele tinha na época em que ainda era um filósofo
platônico, para logo depois admitir que estava errado e que o velho cristão tinha
razão, e a outra é quando Taciano zomba da crença platônica numa “alma imortal”
presa dentro dos membros do corpo que se torna “mais inteligente” fora dele.
Então, temos treze autores e dezenas de livros escritos, onde a “alma imortal”
Atenágoras temos, de uma só vez e num único livro, nada a menos que nove
citações em favor de uma alma imortal! Não é preciso muita inteligência para
concluir que Atenágoras jamais esteve reafirmando qualquer doutrina cristã bem
estabelecida, mas introduzindo uma que era totalmente estranha à Igreja primitiva.
E fez isso por sua influência platônica, que não podia ser mais forte em pleno berço
discípulo Orígenes (para quem a alma não só era imortal, mas preexistente), que
platonismo, especialmente no que compete a esse ponto tão caro aos platônicos, a
imortalidade da alma. Não por acaso, foi em Alexandria que se desenvolveu a escola
1231
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1232
numa tentativa de apresentar um evangelho que soasse mais atraente aos gregos
sem abrir mão totalmente das principais convicções cristãs, em contraste com o
evangelho que Paulo definia como “loucura para os gregos” (1Co 1:23). O fruto
dessa mistura foi uma coisa que não mais podia ser corretamente identificada nem
com o platonismo nem com o Cristianismo primitivo, mas que rebaixava o corpo e
Antes que alguém pense que essa é apenas minha opinião pessoal baseada
nos escritos patrísticos, reservei como nota final o que alguns dos mais respeitados
um consenso, assim como o fato de que isso interferiu na forma como os cristãos
McGuckin.
1232
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1233
Unido. Ele tem dezenas de livros sobre patrística e história eclesiástica, num dos
quais escreve:
de Harvard, é outro que reconhece a influência das ideias platônicas sobre a alma
na teologia patrística:
era helenística, ele chegou a essa posição nos primeiros séculos da era
676
MCGUCKIN, John Anthony. The SCM Press A-Z of Patristic Theology. London: SCM Press, 2004, p. 317.
1233
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1234
teologia dos Pais da Igreja de finais do segundo século em diante, dando destaque
deste.678
677
FERGUSON, Everett. Backgrounds of Early Christianity. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co.,
1987, p. 335.
678
MOLTMANN, Jürgen. The Spirit of Life. Minneapolis: Fortress Press, 1992, p. 89.
1234
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1235
era platônico, no sentido de que muitos dos Pais da Igreja formularam suas
eles não falariam da vida imortal que Cristo oferece. Acreditavam que
679
JONES, William Thomas. A History of Western Philosophy: the classical mind. San Diego: Harcourt, Brace
& World, 1952, p. 168.
680
WILLIAMS, George Huntston. The Radical Reformation. Kirksville: Truman State University Press, 1992,
p. 65.
681
ibid.
1235
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1236
enfatiza que foi só depois que o Cristianismo se separou de suas raízes judaicas que
Até mesmo Justo González, famoso historiador eclesiástico cujos livros estão
682
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: Aste, 2000, p. 44.
683
WESTPHAL, Alexandre. Dictionnaire Encyclopedique de la Bible. Valence: Je sers, 1932. v. 2, p. 557.
1236
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1237
A única coisa que resta ser mostrada é como essas tradições pagãs
684
GONZÁLEZ, Justo L. Uma História do Pensamento Cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. v. 1, p. 49-
50.
685
HOUAISS, Antônio. Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda, 1993. v. 2, p. 404.
1237
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1238
muitas pessoas que tinham sido educadas nas escolas dos filósofos
Por sua vez, o erudito irlandês Henry Constable (1816–1891) não só denuncia
ímpios entre qualquer um dos nomes que, por uma razão ou outra,
segurança que sustentou essa crença foi Atenágoras. (...) Ele nasceu
686
BALFOUR, Walter. Three Essays: on the intermediate state of the dead, the resurrection from the dead,
and on the greek terms rendered judge, judgment, condemned, condemnation, damned, damnation etc in
the New Testament. Massachussets: G. Davidson, 1828, p. 94.
1238
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1239
em substância.687
que jamais esperaríamos ver confessando verdades do tipo, diz com todas as letras
que
a alma foi Clemente de Alexandria. Para ele, a filosofia pode ser usada
tudo o que qualquer escola ensina corretamente pode ser usado pelo
687
CONSTABLE, Henry. The Duration and Nature of Future Punishment. Disponível em:
<https://davidlarkin.files.wordpress.com/2012/05/henry-constable-1868-duration-and-nature-of-
future-punishment.pdf>. Acesso em: 11/02/2022.
688
NEW CATHOLIC ENCYCLOPEDIA. Soul, Human. 2ª ed. New York: McGraw-Hill Book Company, 1967. v.
13. Disponível em: <https://cvdvn.files.wordpress.com/2018/05/new-catholic-encyclopedia-vol-13.pdf>.
1239
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1240
conteúdo.690
689
ibid.
690
ibid.
691
ibid.
1240
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1241
seria desnecessária.
• O exemplo do milenarismo
Alguém poderia indagar como é possível que uma doutrina acreditada por
todos os primeiros Pais da Igreja fosse substituída nos séculos seguintes sem que
acreditavam em um reino literal de Cristo na terra, durante mil anos após Seu
Já vimos aqui uma citação de Justino, que sustentava que “eu e os outros,
que somos cristãos de bem em todos os pontos, estamos convictos de que haverá
uma ressurreição dos mortos, e mil anos em Jerusalém, que será construída,
que ele não fala apenas por si mesmo, mas diz «eu e os outros, que somos cristãos
de bem em todos os pontos», mostrando claramente que essa não era uma crença
692
Diálogo com Trifão, c. 80.
693
Disponível em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2015/11/o-milenarismo-dos-primeiros-pais-
da.html>.
1241
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1242
Isso era reconhecido até pelos Pais amilenistas de data posterior, como
Jerônimo (347-420), que disse que Papias (70-163) “divulgou uma segunda vinda
ressurreição do Senhor, ele irá reinar em carne com os santos. Também Tertuliano,
em sua obra ‘Sobre a Esperança dos Fieis’, Vitorino de Petau e Lactâncio seguem
este ponto de vista”694. Mas, entre os séculos II e IV, alguma coisa aconteceu que já
não se cria mais assim, e os Pais desse tempo em diante achavam estranho que se
acreditasse assim antes deles. Tome como exemplo Eusébio de Cesareia (265-339),
que escreve:
esta terra. Eu creio que Papias supõe tudo isto por haver derivado das
parecidas.695
694
De Viris Illustribus, 18.
695
História Eclesiástica, Livro III, 39:12-13.
1242
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1243
Note que Eusébio, escrevendo em princípios do século IV, não nega que
Papias e os outros Pais anteriores à sua época eram milenaristas, mas atribui isso à
suposta “burrice” de Papias, na falta de uma explicação melhor. Isso porque, dentro
Aqui, duas coisas saltam aos olhos de qualquer bom observador. A primeira
é que era evidentemente possível, por mais estranho que nos possa parecer, que
relação a algo que estava longe de ser sem importância. Note que nenhum concílio
foi convocado para tratar a questão, como alguns imortalistas afirmam que teria
d.C.
subterrâneos não tinha como reunir bispos do mundo todo para tratar as questões
doutrinárias, razão por que as doutrinas não eram mudadas “oficialmente” através
de concílios, mas sutilmente, pelo ensinamento dos bispos que exerciam maior
influência no meio cristão. Foi assim que o milenarismo foi gradualmente trocado
pelo amilenismo sem que qualquer concílio se reunisse para tratar abertamente a
questão, e assim que a imortalidade da alma entrou pela surdina, sem grandes
1243
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1244
Cristianismo.
A segunda indagação que nos salta aos olhos é também bastante óbvia: por
doutrina que todos eles tomavam como verdadeira? Alguém poderia pensar que
exegeticamente, mas isso está longe de ser o caso. O primeiro Pai da Igreja a
dele já se pensava assim, mesmo sem nenhum tratado teológico com provas
Mas se a razão que levou todos os Pais à direção contrária não foi de
natureza exegética, de onde ela veio? Somente uma influência externa muito forte
mudou a mentalidade primitiva a respeito da vida após a morte. Dentro dessa nova
século, já não mais fazia sentido um reino físico na terra, uma vez que os crentes já
estariam reinando atualmente com Cristo no céu, que seria o destino de cada um
mesma época em que o mortalismo bíblico foi abandonado. Não foi apenas uma
coincidência de datas: foi uma consequência lógica. Não é à toa que o milenarismo
foi rechaçado não somente na mesma época, mas também precisamente pelos
1244
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1245
seguido por seu discípulo mais famoso, Orígenes (185-253), que ocupa
outros vultos da Igreja antiga, como Irineu e Justino, ocupam apenas um tópico ou
1245
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1246
este ensino assim como fez com a imortalidade da alma, era tão influenciado pelo
platonismo... também foi influenciado pelo neoplatonismo, que era uma forma
religiosa de platonismo”698.
696
MacARTHUR JR, John Fullerton; MAYHUE, Richard. Os Planos Proféticos de Cristo: um guia básico sobre
o pré-milenismo futurista. São Paulo: Peregrino, 2016, p. 131.
697
Publicação feita em seu facebook, no dia 19 de dezembro de 2020. Disponível em:
<https://www.facebook.com/profile.php?id=100010982823128>. Acesso em: 15/07/2022.
698
VLACH, Michael J. Premillennialism: why there must be a future earthly Kingdom of Jesus. Los Angeles:
Theological Studies Press, 2015, p. 1655.
699
VIVIANO, Benedict Thomas. The Kingdom of God 1246
in History. Eugene: Wipf and Stock, 1988, p. 52-53.
Quando a imortalidade da alma entrou no Cristianismo 1247
polos da filosofia grega no mundo antigo eram Atenas e Alexandria, e foi dali que
esquecidos por longo tempo após Agostinho sacramentar seu fim, de onde
por mera sorte do acaso. Eles foram rejeitados em conjunto pelos mesmos Pais que
buscaram sincretizar o Cristianismo com a filosofia de Platão, para os quais não fazia
para eles não havia qualquer alma fora do corpo reinando no céu. É por isso que
imediatamente antes de dizer que haverá um reino milenar de Jesus na terra, Justino
alerta que aqueles que sustentam que no ato de morrer as almas são elevadas ao
700
VLACH, Michael J. Premillennialism: why there must be a future earthly Kingdom of Jesus. Los Angeles:
Theological Studies Press, 2015, p. 1655.
701
Diálogo com Trifão, 80.
1247
1248
céu tornava irracional uma volta à terra por mil anos para depois voltar pro céu, a
crença no milênio tinha como pressuposto que o lar dos salvos é a terra, e que os
mortos em Cristo não reinam em lugar nenhum. É só quando Jesus voltar que eles
serão ressuscitados, e então poderão reinar com Cristo na Nova Jerusalém. Estando
uma doutrina tão intimamente conectada à outra, não admira que ambas tenham
1248
1249
doutrina de que vamos morar no céu antes da ressurreição, algo quase unânime até
III, até dois séculos atrás, quando Edward White teria “ressuscitado” essa heresia
(pelo menos é isso o que defende o “astronauta católico” e outros apedeutas que
entraram na onda).
de toda a história da Igreja, mesmo que recluso a uma minoria. Mesmo em plena
Idade Média, quando o papado controlava o que se podia crer a fogo e a ferro e
morte e a ressurreição, a doutrina não era precisa”702, e que “segundo alguns, após
a morte, os defuntos esperam nos túmulos”703 até o dia do julgamento. Embora essa
posição fosse obviamente minoritária, ela nunca deixou de existir – nem mesmo nos
702
LE GOFF, Jacques. La Naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1981, p. 181.
703
ibid.
1249
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1250
(...) Decretamos que todos os que aderirem a erros desse tipo sejam
A não ser que Leão X estivesse condenando os erros de Ellen White, que
nasceria séculos mais tarde, é evidente que o mortalismo já existia naquela época e
era expressivo o bastante para instigar a fúria do papa e levá-lo a medidas tão
severas. Um dos mortalistas mais famosos dessa época era o filósofo italiano Pietro
tratado em que defendia exatamente o que a bula combatia, e foi apoiado por
704
LEÃO X. Apostolici Regiminis. 19 de dezembro de 1513.
1250
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1251
«defendido por vários estudiosos e autoridades eclesiásticas» mostra até que ponto
Com o típico linguajar com o qual atacava todos os seus adversários, ele diz que
“estes tagarelas têm se esforçado tão ativamente, que já arrastaram centenas para
sua insanidade”707.
705
STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Pietro Pomponazzi. Disponível em:
<https://plato.stanford.edu/entries/pomponazzi>. Acesso em: 07/02/2022.
706
Intitulado “Psychopannychia”. Porém, o livro era tão pobre de conteúdo e tão mal fundamentado que
nem os próprios imortalistas falam dessa obra nos dias de hoje ou usam seus argumentos. Talvez isso se
explique pelo fato de que o próprio Calvino admitiu que nunca leu nada do que os seus oponentes
escreveram, mas que “tenho somente recebido algumas notas de um amigo, que anotou o que ele
superficialmente ouviu de seus lábios”.
707 1251
Disponível em: <http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/joao-calvino/calvino-
contra-os-aniquilacionistas-psychopannychia.html>. Acesso em: 22/01/2022.
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1252
que vimos aqui. Em sua disputa com o papista Thomas More (1478-1535), ele
escreveu:
por que não estão em tão boas condições como os anjos? E então,
portanto, estariam tão bem que uma ressurreição seria desnecessária (assim como
os anjos não precisam de corpos físicos). Mais significativo que isso, ele diz que
tanto um como o outro partem da premissa da ausência de vida após a morte para
capítulo 15 de 1ª Coríntios).
No mesmo livro, em tom sarcástico, ele ironiza More e sua crença de que os
Paulo aos coríntios sem sentido. Lembra ainda que Paulo, ao consolar os
708
TYNDALE, William. An Answer to Sir Thomas More's Dialogue. Cambridge: Cambridge University Press,
1850, p. 180-181.
1252
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1253
tessalonicenses “a respeito dos que dormem” (1Ts 4:13), nada disse sobre já
qualquer valor, pois ele diz: ‘Se não há ressurreição, somos os mais
ressurreição.709
tentativa de unir uma doutrina pagã (imortalidade da alma) com uma doutrina
bíblica (ressurreição dos mortos), cuja fusão dá lugar a uma doutrina sem pé nem
709
ibid, p. 118.
1253
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1254
doutrina carnal dos filósofos; coisas tão contrárias que não podem
o texto:
E quando ele quer provar que os santos já estão no céu em glória com
Cristo, dizendo: "Se Deus é seu Deus, eles estão no céu, porque ele
efeito.711
710
ibid, p. 180.
711
ibid, p. 118.
1254
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1255
do século XVIII, Johann Lorenz von Mosheim (1693-1755), testifica que em sua
último dia, não tem nem prazer nem dor, mas está numa condição de
insensibilidade”712.
E que o mortalismo ou sono da alma não era popular apenas entre os leigos,
sustentavam o mortalismo na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, incluindo John Frith,
John Parkhurst, Edward Wightman, George Wither, John Milton, Jeremy Taylor,
Henry Layton, John Locke, Henry Dodwell, Isaac Newton, William Coward, Samuel
Isaac Watts713 – todos eles anteriores ao século XIX –, além de muitos outros.
com a crença a tal ponto que em seus escritos há nada a menos que 125
inconsciente após a morte, sem ciência do que se passa à sua volta –, ela chama a
712
MOSHEIM, Johann Lorenz von. Institutes of Ecclesiastical History. London: Longman & Co., 1841. v. 3,
p. 578.
713
Todas as citações desses autores ingleses e de muitos outros ícones protestantes nos outros países
podem ser conferidas em: <https://www.mentesbereanas.info/a-vida-apos-a-morte-no-conceito-biblico-
parte-1>. Acesso em: 24/01/2022.
714
KETOLA, T. N. A Study of Martin Luther’s Teaching Concerning the State of the Dead. Dissertação
1255
(Mestrado em Teologia) – Seventh-day Adventist Theological Seminary. Washington, D.C., 1946, p. 76.
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1256
século XVII715, e até hoje os nossos oponentes atacam os dois como se fossem a
alma, Lutero reconhece que não tinha argumentos para refutar essa posição e, mais
estão até o dia do julgamento. Sou levado a esta opinião pela palavra
das Escrituras: “Eles dormem com seus pais”. Os mortos que foram
que isto seja verdade no caso de todas as almas em geral, por causa
Quem sabe como Deus lida com as almas que partem? Não poderia
715
WILLIAMS, George Huntston. The Radical Reformation. Kirksville: Truman State University Press, 1992,
p. 65.
716
LUTHER, Martin. Luther’s Works: Letters I. Minneapolis: Fortress: 1963. v. 49, p. 360.
1256
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1257
Em seu comentário a Ec 9:5, ele diz que “Salomão parece pensar que os
complementa dizendo:
absoluto. Pois os mortos ali jazem, não levando em conta nem dias
enquanto dormiam:
como passamos por ela.719 (...) Nós dormiremos até que Ele venha e
717
LUTHER, Martin. An Exposition of Solomon’s Book, Called Ecclesiastes or the Preacher (1532). Disponível
em: <https://quod.lib.umich.edu/e/eebo2/A06504.0001.001/1:4.9.10?rgn=div3;view=fulltext>. Acesso
em: 23/01/2022.
718
ibid. Disponível em:
<https://quod.lib.umich.edu/e/eebo2/A06504.0001.001/1:4.9.20?rgn=div3;view=fulltext>. Acesso em:
23/01/2022..
719
LUTHER, Martin. Werke. Weimar, 1910. XVII, II,1257
p. 235.
720
ibid, XXXVII, p. 151.
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1258
que acontece à sua volta, que é provavelmente o que ele acreditava que aconteceu
Assim, depois da morte a alma vai para o seu quarto e para sua paz, e
enquanto está dormindo ela não percebe seu sono, e Deus preserva
Mas, como pode ser isso? Não sabemos; nós nos satisfazemos com
descanso e uma paz. Aquele que dorme, naturalmente não sabe nada
do que acontece na casa de seu vizinho; e, porém, ele ainda está vivo,
Se Lutero diz que Deus é capaz de despertá-los «de modo que eles viverão»,
ele não considerava o sono da alma como “vida” de fato. Em um sentido técnico, ele
acreditava que a alma estava viva no céu, mas, para efeitos práticos, a alma só vivia
afirma reiteradas vezes, ela não teria consciência de nada do que acontece à sua
721
Embora não como almas sem corpo, já que ele disse que eles “certamente não apareceram como
fantasmas no monte Tabor”. Lutero provavelmente acreditava que Elias e Moisés estavam corporalmente
no céu, mas no mesmo estado de “sono” das almas que supostamente lá estariam.
722
LUTHER, Martin. Dr. Martin Luthers Sämmtliche Schriften. Erster Teil: Auslegung des ersten Buches
Mose. St. Louis: Concordia Publishing House. v. 1, p. 1759-1760.
1258
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1259
volta e nem sensação de passagem de tempo – ou seja, uma situação análoga à dos
mortos na visão mortalista. Bacchiocchi acredita que essa “brecha” que Lutero abre
mortalismo, e que isso “apenas serve para mostrar que mesmo reformadores
De todo modo, como vimos, o estado de sono após a morte não era
considerado realmente vida para Lutero, o que fazia dele um oponente do conceito
desperta no céu. É por isso que ele inclui a imortalidade da alma no rol das
e para seus próprios fiéis – tais como: que o pão e o vinho são
fim no monte de estrume dos decretos romanos – para que tal qual
sua fé é, tal seja seu evangelho, e tal a sua igreja, e que os lábios
723
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 138.
724
ibid.
725
LUTHER, Martin. Luther's Works: Genesis Chapters 38-44. St. Louis: Concordia Publishing House, 2007.
v. 7, p. 131-132.
1259
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1260
É difícil imaginar como Lutero poderia ser mais claro do que isso. Ele
sua época, que é a mesma concepção adotada mais tarde pela maioria dos
protestantes até hoje. Não faz nenhum sentido dizer que aqui Lutero falava apenas
e aos decretos romanos da Igreja papal (que são os mesmos de hoje). Em outra
purgatório, à oração pelos mortos e a outras fantasias que decorrem desse engano):
decretos são, de fato, mais apropriados para a Igreja papal, pois eles
alma”727. Mas Lutero não só se opõe à especulação filosófica de que «a alma tem
726
LW 32:77.
727
Disponível em: https://beggarsallreformation.blogspot.com/2006/04/seventh-day-adventist-luther-
soul.html>. Acesso em: 24/01/2022.
1260
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1261
que «a alma do homem é imortal». Isso não se parece uma mera descrença na
filosofia, mas uma afirmação clara e categórica de que a alma não é imortal. O fato
de Lutero contrapor a imortalidade da alma à vida eterna significa que ele também
via as duas crenças como conflitantes, uma vez que é a ressurreição que nos garante
perdidos era vacilante, mas mesmo assim ele se recusava a afirmar que estão
segurança e satisfação. Contra a posição imortalista, ele cita dois textos bíblicos que
retratam o juízo como um evento futuro ligado à ressurreição, mas não é taxativo
que todos deverão estar perante o tribunal (Rm 14:10), e João 5:29
728
LW 4:316.
1261
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1262
Tudo isso nos mostra que Lutero tinha inclinações mortalistas bastante
recusava a tratar a posição mortalista como uma heresia e que a favoreceu muitas
vezes, mesmo diante de toda a pressão emocional vinda de todos os lados – o que
adotou a doutrina do sono da alma, numa base bíblica, e daí fez uso dela como uma
Por que então os imortalistas têm tanta dificuldade em admitir que Lutero
abraçava o sono da alma? A razão é simples: se eles fazem isso, não têm mais como
nenhum reformado discute. E essa é uma concessão que eles simplesmente não
podem fazer, ou perderiam uma de suas melhores armas de efeito moral que usam
protestante não foi nem a de Tyndale (um mortalista convicto) nem a de Lutero (um
729
BLACKBURNE, Francis. A Short Historical View of the Controversy concerning an Intermediate State and
the Separate Existence of the Soul, Between Death and the General Resurrection, deduced from the
Beginning of the Protestant Reformation, to the Present Time. London: printed for T. Field, 1765, p. 14.
1262
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1263
(não é por acaso que seu primeiro tratado teológico foi dirigido justamente contra
com virulência pelas autoridades, levando a sérias consequências para aqueles que
John Milton – Um dos mortalistas mais famosos dessa época foi John Milton
(1608-1674), até hoje muito conhecido por seus poemas sacros, em especial o épico
“Paraíso Perdido” (1667). Mas poucos sabem que ele era também um grande
imenso tratado sobre a doutrina cristã, onde dedica grande parte a refutar a crença
Não sem razão, o livro só foi publicado após sua morte, numa época em que
a liberdade religiosa era muito mais restrita do que é hoje. Uma abordagem
completa dos argumentos de Milton demandaria um livro maior que este, mas o
íntegra730, disponibilizada pelo Internet Archive731. Foi com grande surpresa que eu
descobri que Milton já usava, há quatro séculos, muitos dos argumentos que eu uso
730
Disponível em: <https://www.mentesbereanas.info/a-vida-apos-a-morte-no-conceito-biblico-parte-
1>. Acesso em: 23/01/2022.
731
Disponível em: <https://archive.org/details/treatiseonchrist00miltrich/page/194/mode/2up?ref=ol>.
Acesso em: 23/01/2022.
1263
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1264
verdadeiro “eu” é a alma ou o espírito, mas que somente o corpo é que morre (o
que na prática significa dizer que ninguém morre). Para Milton, se o corpo não tem
vida em si mesmo, é necessariamente a alma que morre, já que é ela que vive:
pode dizer que ele morre, se jamais teve qualquer vida em si mesmo?
morte do homem.732
Isso é ainda mais evidente para Milton quando se observa que a morte é o
salário do pecado (Rm 6:23), e nós pecamos primeiramente com a nossa mente (os
732
MILTON, John. A Treatise on Christian Doctrine. Cambridge University Press: 1825, p. 191.
1264
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1265
sem excetuar qualquer parte. Pois, o que poderia ser mais justo do
que aquele que pecou em toda a sua pessoa, deva morrer em toda a
sua pessoa? Ou, por outro lado, o que poderia ser mais absurdo do
E após citar vários textos bíblicos, entre eles Ec 3:18-21 e Sl 146:4, ele finaliza
dizendo que “existe abundante testemunho para provar que a alma (se
entendermos este termo como o conjunto completo do ser humano, ou se ele tiver
de ser considerado como sinônimo de espírito) está sujeita à morte, tanto a natural,
como a violenta”734.
Em outra parte, após citar vários textos bíblicos que provam que os animais
Ec 3:19, ele conclui que “não tem a palavra espírito qualquer outro significado nos
Da mesma forma, ele observa que a palavra “alma” é igualmente usada em relação
aos animais e que a ideia de uma existência espiritual à parte do corpo é um ensino
733
ibid.
734
ibid, p. 286.
735
ibid, p. 190.
1265
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1266
alma é também aplicada a todo tipo de ser vivente (Gn 1:30, 7:22);
simplesmente ele, Sir Isaac Newton (1643-1727), talvez a mente mais brilhante de
física). O que poucos sabem é que Newton não só era um cientista, mas também
da vida.
Ele tinha um interesse especial pelas profecias, pela crítica textual e pelos
escritos dos Pais da Igreja. Chegou até a escrever um longo comentário sobre as
profecias de João e de Daniel, onde conclui que Jesus só voltaria depois de 2060737,
736
ibid.
737
GRAYLING, A. C. The Age of Genius: The Seventeenth Century and the Birth of the Modern Mind.
London: Bloomsbury Publishing, 2016.
1266
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1267
comentários bíblicos nunca se tornaram públicos enquanto ele vivia, já que ele
sustentava certas posições “heterodoxas” que se viessem à tona poderiam lhe trazer
problemas. Por isso, ele registrava suas pesquisas teológicas em cadernos que não
alma? Eu posso dizer apenas que parece que ele leu todo o meu livro e resumiu
que ele é em suas colocações. Eu não conhecia os escritos dele quando escrevi a
maior parte do livro, mas me impressionei com sua capacidade de enxergar naquela
época mais do que a maioria das pessoas consegue enxergar em pleno século XXI
1267
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1268
S. Paulo dizendo “eu desejo ser dissolvido e estar com Cristo” (Fp 1:23),
Cristo, embora a visão não fosse das almas deles (pois Elias jamais
morreu), e sim de seus corpos vivos. Por outro lado, se os santos vão
Abraão, Isaque e Jacó no Reino dos céus” antes do último dia (Mt
1268
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1269
pode louvar-te, a morte não pode celebrar-te” (Is 38.18); “Deus nos
Cristo dentre os mortos, para uma herança... guardada nos céus” (1Pe
sejais ignorantes com respeito aos que dormem, para não vos
1269
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1270
E para o mesmo fim é que o próprio Cristo diz: “Pois vou preparar-vos
receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós
também” (Jo 14:3). Assim, pois, São Paulo ainda não está com Cristo.
Ele diz claramente que, “se os mortos não ressuscitam, nossa fé é vã,
e o que farão os que se batizam por causa dos mortos?” (1Co 15:18,
19, 29). E Cristo diz também tão claramente que “Deus não é Deus dos
juízos, a pontuação duvidosa de Lc 23:43, lembra que nenhuma doutrina pode ser
morre, refuta a noção espírita de que Moisés e Elias estivessem no monte como
738
NEWTON, Isaac. Paradoxical Questions concerning the morals & actions of Athanasius & his followers.
Disponível em: <https://www.newtonproject.ox.ac.uk/view/texts/normalized/THEM00117>. Acesso em:
23/01/2022.
1270
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1271
fantasminhas, prova que os mortos não foram julgados nem recompensados ainda,
joga na cara todos os textos que dizem que os mortos estão inconscientes no Sheol,
da alma anula essa esperança, prova que só estaremos com Cristo quando Ele voltar
para nos levar com ele, refuta a interpretação imortalista do “Deus de vivos” com a
sem que eu o tivesse lido antes e muito menos ele a mim, mas que ele tenha
forma que fazia em suas descobertas científicas que revolucionaram o mundo. Ele
era o inverso do tipo de cristão preguiçoso que mais tem hoje, o tipo que terceiriza
a leitura da Bíblia para que um pastor, padre ou magistério interprete por ele,
porque é covarde demais para pensar por si mesmo e chegar às suas próprias
conclusões.
ortodoxas: ele queria chegar onde poucos chegaram, encontrar o que poucos
viram, descobrir o que poucos notaram, e estar contra uma multidão era apenas
parte do hábito de ser diferenciado. Ele não inventou a força da gravidade, mas foi
opinião geral. Da mesma forma, ele não inventou o mortalismo da cabeça dele, mas
1271
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1272
foi sagaz o suficiente para reconhecê-lo a partir da Bíblia, numa época em que
poucos acreditavam nisso e sem ter acesso a nenhuma bibliografia mortalista para
socorrê-lo.
John Locke – Um contemporâneo de Newton que foi tão grande quanto ele,
mas na área da filosofia, foi John Locke (1632-1704). Locke é considerado o pai do
Newton (lembremos o quanto isso era perigoso naquele contexto), ele claramente
cessação da existência:
Devo confessar que por morte aqui, eu não entendo nada além de
morte veio sobre Adão e toda a sua posteridade, por sua primeira
para sempre, se não fosse pela redenção por meio de Jesus Cristo.740
739
Disponível na página dos livros: <http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
740
LOCKE, John. The Works, Vol. 6 (The Reasonableness of Christianity). Disponível em:
<https://oll.libertyfund.org/title/locke-the-works-vol-6-the-reasonableness-of-christianity>. Acesso em:
24/01/2022.
1272
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1273
Ele disse isso justamente para refutar aqueles que pensavam que o
verbal da Bíblia, a existência dos milagres como prova da natureza divina das
acordo com a razão que ele não aceitava interpretações de cambalhota daqueles
de “morte”, que ele não aceitava que fosse entendida senão da forma usual e
padrão que usamos no dia a dia. Se a Bíblia é um livro divino e acessível a todos, ela
também deve ter uma linguagem simples e inteligível que seja compreensível a
todo mundo. Por isso ele se opõe a “esses sentidos elaborados, artificiais e forçados,
que são procurados e colocados sobre elas na maioria dos sistemas teológicos, de
prossegue dizendo:
741
ibid.
1273
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1274
vida eterna em miséria. Poderia alguém entender que, por uma lei que
maneira?742
Numa época em que colocar em dúvida o dualismo era quase o mesmo que pedir
pra morrer e descobrir por conta própria, Locke foi o primeiro pensador a descartar
a necessidade de uma alma imaterial para explicar a relação entre os dois. Em sua
alma imaterial –, e foi tão atacado que decidiu suavizar seu discurso por livre e
espontânea pressão:
No Ensaio, Locke não argumenta contra o dualismo, mas diz que não
742
ibid.
1274
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1275
Liberdade sufocada – É uma grande pena que nem Locke, nem Newton, nem
Milton, nem muitos outros intelectuais mortalistas desse tempo tenham podido se
expressar abertamente sobre esse tema, com receio de acontecer com eles o
mesmo que se passou com o poeta inglês William Coward (1657–1725), queimado
na fogueira por negar publicamente a alma imaterial (desde 1648, Cromwell havia
preciso tomar cuidado com o que se escrevia, moderar o tom o quanto pudesse e
esconder suas verdadeiras crenças para só serem publicadas após sua morte.
É por isso que há nesse período muitas obras mortalistas anônimas, que até
743
VOLTAIRE FOUNDATION. John Locke and the question of the soul. Disponível em:
<http://www.voltaire.ox.ac.uk/locke-soul>. Acesso em: 24/01/2022.
744
SOCCARD, S. “L’exclusion des athées par Locke. L’envers théorique d’une convention politique”. Revue
de la société d'études anglo-américaines des XVIIe et XVIIIe siècles, n. 65, 2008, p. 317.
1275
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1276
conhecido que não queria ser identificado porque tinha muito a perder.
estavam sozinhos e tinham que descobrir a verdade por conta própria. Se mesmo
tinham os imortalistas.
tratados teológicos, aos quais ele pudesse dedicar anos da vida trabalhando. Se as
imortalista, imagine se uma mente genial como a de Newton pudesse entregar tudo
de si em um projeto como este, e quantos seguidores ele atrairia com sua fama e
começavam a formular seu corpo doutrinário que seria mantido nos séculos
seguintes (e em grande parte copiado pelas igrejas mais recentes). A história é feita
1276
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1277
Oscar Cullmann – É por isso que hoje, com muito mais liberdade religiosa e
tanto entre os leigos como entre os eruditos mais respeitados. Talvez nenhum deles
tenha sido mais expressivo que o teólogo luterano Oscar Cullmann (1902-1999),
Ressurreição dos Mortos?”, publicação que, segundo ele mesmo, provocou mais
745
CULLMANN, Oscar. Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? Disponível em:
<https://www.mentesbereanas.info/wp-content/uploads/2020/07/imort-ressur_folheto.pdf>. Acesso
em: 26/01/2022.
1277
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1278
Porém, como ele mesmo atesta, esses ataques eram de natureza puramente
emocional, por crentes que não suportavam a ideia de que seus entes queridos não
que... “eu não posso crer que nossos entes queridos simplesmente
Cullmann disse aquilo que disse. Um exemplo é um artigo do CACP, onde lemos:
pagã inerente à alma, sem Deus e sem o corpo. Posto isso, faço aqui
746
ibid.
1278
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1279
desonestidade intelectual.747
da alma aceita pelos gregos, não a imortalidade da alma aceita pelos cristãos! É de
se impressionar que Cullmann tenha sido tão violentamente atacado por um livro
levantado da tumba e lhe dirigido ataques impetuosos), sem que estivesse falando
nada contra a imortalidade da alma aceita pelos seus leitores cristãos. Pior do que
isso é ter sido por toda a vida associado ao mortalismo sem jamais ter rejeitado ou
repelido essa associação, mesmo tendo vivido mais 43 anos após a escrita do livro.
se recusou até o fim da vida a desfazer esse terrível mal-entendido), ou parece que
velha “máxima de Lenin”, «acuse-os do que você faz, chame-os do que você é»). Por
ironia, em todo o artigo em questão, eles não citam trecho nenhum do livro
“Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?”, que ao que tudo indica eles
sequer chegaram a ler (bastaria ler o título que pouparia o tempo deles).
Em vez disso, eles se limitam a citar três trechos de um outro livro, trechos
que sequer falam de consciência após a morte. Se eles não leram nem o título do
747
Disponível em: <http://www.cacp.org.br/oscar-cullmann-e-a-imortalidade-da-alma>. Acesso em:
27/01/2022.
1279
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1280
protestante ou católico, quer não) sobre o que ele pensa ser o ensino
Note que Cullmann não diz “se perguntássemos a um grego”, mas “se
«bem versados ou leigos». Depois, diz que a imortalidade da alma é um dos maiores
filósofos gregos. É óbvio que ele não estava apenas batendo em uma crença antiga
crença tradicional aceita por católicos e protestantes – o que explica por que
nenhuma de suas publicações suscitou uma hostilidade tão violenta. É preciso ser
imortalidade da alma sem jamais fazer qualquer ressalva de que isso se aplicava
apenas ao conceito pagão de alma e não àquilo que pensavam a maioria dos
cristãos de seu tempo. Mesmo quando ele comenta Mt 10:28 (o texto que os
imortalistas usam pra dizer que a alma não morre), Cullmann escreve:
748
CULLMANN, Oscar. Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? Disponível em:
<https://www.mentesbereanas.info/wp-content/uploads/2020/07/imort-ressur_folheto.pdf>. Acesso
em: 27/01/2022.
1280
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1281
alma não é imortal. Tem de haver uma ressurreição para ambos, pois
O único trecho onde ele parece endossar a imortalidade da alma é onde diz:
permanece radical.750
Mas observe que ele não diz que os textos afirmam a imortalidade da alma,
mesma. Para Cullmann, o estado onde estamos “com Cristo” na morte é uma
Lutero, com a diferença de que em parte alguma somos informados que as almas
749
ibid.
750
ibid.
1281
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1282
Precisamos lembrar, mais uma vez, que tanto naquela época como hoje o
próprio mortalismo, razão por que ambos são até hoje tratados como uma coisa só
nula: em ambos os casos a alma não tem consciência após a morte e tampouco
alma não morra de fato, seu estado inerte após a morte é de tão pouca significância
que a maioria deles sequer considera “vida” real, como é o caso do próprio
Cullmann quando fala de uma “existência sombria esfumada no Sheol, porém isto
mesma coisa em essência, e se opõem à ideia tradicional que se tem da vida após a
morte – ideia essa que se Cullmann fosse partidário jamais teria sido violentamente
751
CULLMANN, Oscar. Das origens do Evangelho à formação da teologia cristã. São Paulo: Fonte Editorial,
2004, p. 194.
1282
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1283
apelidarem de “o papa dos evangélicos”). Stott foi criado com as mesmas crenças
sua transição ao aniquilacionismo não foi uma decisão fácil, já que ele, como um
dos principais autores do Pacto de Lausana (1974), levava em alta estima a unidade
evangélica. Mas como a verdade está acima da unidade e não faz o menor sentido
estar unido no erro, o assunto era por demais importante para ser ignorado:
grande respeito pela longa tradição que reivindica ser uma correta
Vale ressaltar que Stott não mudou de convicção por razões emocionais, por
mais inconcebível que seja a ideia de um Deus torturador que criou um lago de fogo
752
STOTT, John; EDWARDS, David L. Essentials: a liberal-evangelical dialogue. London: Hodder &
Stoughton, 1988, p. 319-320.
1283
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1284
contrário, foi o estudo sincero e criterioso das Escrituras que o fez mudar:
Deus.753
tramaram para executá-lo (Mt 2:13, 12:14, 27:4). O próprio Jesus nos
disse para não ter medo daqueles que matam o corpo e não podem
matar a alma. “Em vez disso”, continuou ele, “temam aquele [Deus]
que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno” (Mt 10:28;
cf. Tg 4:12).
753
ibid, p. 315.
1284
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1285
Rm 2:12; 1Co 15:18; 2Pe 3:9). Se os crentes são hoi sozomenoi (aqueles
que estão sendo salvos), os incrédulos são hoi apollumenoi (os que
estão perecendo).
A frase ocorre em 1Co 1:18, 2Co 2:15 e 4:3, e em 2Ts 2:10. Jesus
“caminho estreito... que leva à vida” com o “caminho largo que leva à
destruição” (Mt 7:13; cf. Rm 9:22; Fp 1:28, 3:19; Hb 10:39; 2Pe 3:7; Ap
17:8, 11; a palavra usada em 1Ts 5:3 e 2Ts 1:9 é olethros, que também
inconclusivo de destruição.754
Stott esperou até o fim da vida para declarar sua nova crença, pelo receio de
ser descredibilizado como um “herege” e ser malvisto por seus pares. Assim como
ele, muitos estão apenas esperando até que não tenham muito a perder para saírem
do armário – ou até que a maioria dos teólogos dê esse passo antes deles.
754
ibid, p. 315-316.
1285
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1286
mortalismo será maioria nós jamais saberemos, mas o fato é que Cullmann e Stott
são apenas dois entre muitos eruditos bíblicos conceituados que abandonaram a
acumulado aos montões entre aqueles que foram criados e doutrinados com o
selecionei os 70 mais relevantes para a lista a seguir, com alguns que eu acrescentei
como referência acadêmica e intelectual até os dias de hoje. Eu revisei nome a nome
para garantir que nenhum dos autores citados era adventista ou testemunha de
Jeová, e também deixei fora os de “ortodoxia” duvidosa (como autores liberais que
755
Disponíveis em:
1) <https://www.mentesbereanas.info/a-vida-apos-a-morte-no-conceito-biblico-parte-1>.
2) <https://www.mentesbereanas.info/a-vida-apos-a-morte-no-conceito-biblico-parte-2>.
3) <https://www.mentesbereanas.info/a-vida-apos-a-morte-no-conceito-biblico-parte-3>.
4) <https://www.mentesbereanas.info/a-vida-apos-a-morte-no-conceito-biblico-parte-4>.
5) <https://www.mentesbereanas.info/a-vida-apos-a-morte-no-conceito-biblico-parte-5>.
Acesso em: 05/02/2022. 1286
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1287
Doador.756
756
WATSON, Richard. Theological Institutes: or, a view of the evidences, doctrines, morals and institutions
of Christianity. New York: T. Mason & G. Lane, 1836. v. 2, p. 83.
757
WHATELY, Richard. A View of the Scripture Revelations Concerning a Future State. London: Lindsay &
Blakiston, 1842, p. 68.
1287
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1288
miséria. Pois jamais se fala deles como sendo mantidos vivos, e sim
perdendo a vida: como por exemplo: “E não quereis vir a mim para
terdes vida” (Jo 5:40); “Quem tem o Filho tem vida; e quem não tem o
Wittenberg)
obtenção de uma vida eterna; mas ela perde a vida que lhe é pessoal
758
ibid, p. 230.
1288
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1289
que finalidade haveria para alguma “árvore da vida” afinal? Isso parece
759
NITZSCH, Karl Immanuel. System der Christlichen Lehre. Bonn: A. Marcus, 1851, p. 253-254.
760
BOARDMAN, George Dana. Studies in the Creative Week. New York: The National Baptist, 1878, p. 215-
216.
1289
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1290
da alma como tal. O que Deus criou Ele mantém em existência, e pode
aniquilar à vontade.761
Esta doutrina [da imortalidade natural] pode ser rastreada através dos
761
BEECHER, Edward. History of Opinions on the Scriptural Doctrine of Retribution. New York: Appleton,
1878, p. 58.
762
PETTINGELL, John Hancock. The Life Everlasting: What is it? Whence is it? Whose is it? New York: J.D.
Brown, 1883, p. 640.
1290
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1291
De acordo com o conceito bíblico, a alma pode ser morta (Nm 35:11)
763
DELITZSCH, Franz Julius. A Commentary on the Book of Psalms. New York: Funk and Wagnalls, 1883. v.
1, p. 180.
764
STOKES, George Gabriel. That Unknown Country, Or, What Living Men Believe Concerning Punishment
After Death. Massachussets: C. A. Nichols & Co., Publishers, 1888, p. 828.
1291
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1292
dois ou três são tão obscuros que sua verdadeira interpretação é bem
filósofos pagãos.767
765
ibid, p. 829-830.
766
FAUSSET, Andrew Robert; JAMIESON, Robert; BROWN, David. Commentary Critical, Practical and
Explanatory on the Old and New Testaments. Philadelphia: S.S. Scranton & Company, 1871. v. 1, p. 789.
767
ibid. v. 3, p. 784.
1292
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1293
indicando que o homem era por criação um ser imortal. Pelo contrário,
condição de criação, e sim de algo fora dele, e seu direito ao uso disso
Queda, “para que não viva para sempre”. Não há nada indicando que
deve olhar, não para dentro de si mesmo, mas para fora de si em busca
da garantia da imortalidade.769
768
NISBET, James. Immortality: a clerical symposium on what are the foundations of the belief in the
immortality of man. London: James Nisbet & Co., 1887, p. 118.
769
ibid, p. 121, 124.
1293
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1294
770
PEROWNE, John J. S. Hulsean Lectures on Immortality. Los Angeles: University of California Libraries,
1868, p. 31.
771
FREER, Frederick Ash. Edward White: His Life and Work. London: Elliot Stock, 1902, p. 355.
1294
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1295
nosso Senhor.772
Estou bem certo de que a opinião comum sobre esta doutrina não é
pela vontade de Deus, obriga-nos a pensar que não pode haver vida
772
ABBOTT, Lyman. That Unknown Country, Or, What Living Men Believe Concerning Punishment After
Death. Massachussets: Nichols & Co. Publishers, 1888, p. 74.
1295
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1296
separação pecaminosa de Deus não tem esta vida. Ele está entregue à
morte, e somente por sua salvação, ou seu julgamento, ele foi dotado
Mas o evangelho nos ensina que haverá a segunda morte, e que Deus
de Sua ira – isto é, que Ele vai destruí-los como o fogo destrói a palha
Sem dúvida, o espírito de Deus dá ao homem sua força vital; mas isso
não quer dizer que a criatura faz parte do Criador, e por conta disso
existência.775
773
PETTINGELL, John Hancock. The Life Everlasting: What is it? Whence is it? Whose is it? New York: J.D.
Brown, 1883, p. 737.
774
ibid, p. 738.
775
PÉTAVEL-OLLIFF, Emmanuel. The Problem of Immortality. London: Elliot Stock, 1892, p. 53.
1296
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1297
776
PÉTAVEL-OLLIFF, Emmanuel. The Extinction of Evil: three theological essays. Boston: C. H. Woodman,
1889, p. 50-51.
1297
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1298
o Senhor” fosse alcançável sem ela! (...) É uma fraude literária tratar
Para mim, é inexplicável como uma pessoa que tenha esse conceito
“ortodoxo” possa ter algum momento feliz nessa vida. Ele está
uma alma humana foi lançada em meio ao tormento eterno, sem fim.
Para mim, é ainda mais inexplicável que tal pessoa “ortodoxa” possa
ter até mesmo um único momento feliz? Pois, segundo essa doutrina
777
BULLINGER, Ethelbert William. How to enjoy the Bible, or, The "Word", and "the words", how to study
them. Londres: Eyre & Spottiswoode, 1910, p. 223, 226.
1298
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1299
próximo, seus pais, seus irmãos e irmãs, seu cônjuge e seus filhos.
Mas alguns podem dizer que, de qualquer forma, a Bíblia ensina que
o homem é um ser imortal. Não, a Bíblia não faz isso. Nem no AT nem
nos casos em que Ele deseja, e que Ele não o faz no caso de pecadores
778
PERSONNE, Johan Wilhelm. Til Prästerskapet i Linköpings Stift. Linköping, 1910, p. 24-25.
779
MANN, Cameron. Five Discourses On Future Punishment. New York: T. Whittaker, 1888, p. 113-118.
1299
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1300
grega, platônica, de que o corpo morre, mas a alma é imortal. Tal ideia
146:4; Ec 12:7), ou a alma (Gn 35:18; 2Sm 1:9; 1Rs 17:21; Jn 4:3), sai do
homem. Não somente o seu corpo, mas sua alma também retorna a
Jó 36:14; SI 78:50).780
Testament Study)
780
BAVINK, Herman. “Death”. The International Standard Bible Encyclopaedia (org. James Orr). Grand
Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1960. v. 2, p. 812.
1300
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1301
nos credos.781
781
HOOKE, Samuel Henry. The Siege Perilous: essays in biblical anthropology and kindred subjects. London:
S.C.M. Press, 1956, p. 201-202.
782
AULÉN, Gustaf. The Faith of the Christian Church. Philadelphia: The Muhlenberg Press, 1948, p. 154.
1301
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1302
primitiva.783
inferno manifesta a glória de Deus, por mostrar Sua justiça, não menos
783
ibid, p. 220.
784
MATTHEWS, Walter Robert. “The Destiny of the Soul”. The Hibbert Journal. January, 1930, p. 199.
1302
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1303
de nós, sem dúvida, prefeririam errar com Orígenes a estar certo com
Agostinho. Mas não creio que um desses extremos ou o outro nos seja
é a morte.785
morte em qualquer vida que valha a pena ter. E mesmo o NT, por toda
psíquica”.786
morte. Disso a Bíblia nos assegura; mas ela não responde às nossas
785
ibid.
786
QUICK, Oliver Chase. Doctrines of the Creed: their basis in the Scripture and their meanings today. New
York: Scribner, 1938, p. 264.
1303
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1304
E seria difícil citar qualquer texto fora dos apócrifos que sugira que a
criada.787
787
ibid, p. 266.
788
BAILLIE, John. And the Life Everlasting. New York: Charles Scribner’s Sons, 1934, p. 244-245.
1304
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1305
eles não falariam da vida imortal que Cristo oferece. Acreditavam que
789
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: Aste, 2000, p. 44.
1305
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1306
túmulo.790
reformado)
que com certas modificações, foi assimilado pela teologia cristã e pelo
cristã. (...) A opinião de que nós homens somos imortais porque nossa
alma é de uma essência indestrutível, por ser divina, é, de uma vez por
790
MICKLEM, Nathaniel. The Doctrine of Our Redemption. London: Taylor & Francis, 1943, p. 78-79.
791
BRUNNER, Emil. Eternal Hope. Louisville: Westminster Press, 1954, p. 100.
792
ibid, p. 105.
1306
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1307
Holandesa)
morrerá. Mas toda a vida do homem será renovada por Deus. Deus
anteriores, quando pregavam sobre a vida eterna, era sem esforço que
793
LEEUW, Gerardus van der Leeuw. Onsterfelijkheid of Opstanding. Assen: Van Gorcum & Comp, 1947,
p. 30, 32, 36.
1307
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1308
Deus.794
794
NYGREN, Anders Theodor Samuel. Agape and Eros. New York: Harper & Row, 1953, p. 224-225.
1308
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1309
não pertence a ninguém a não ser o Rei dos reis. (…) A imortalidade
da alma não faz parte do credo cristão, assim como não é parte da
século XX)
795
BURNABY, John. Christian Words and Christian Meanings. London: Hodder and Stoughton, 1955, p.
148-149.
1309
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1310
796
NIEBUHR, Karl Paul Reinhold. The Nature and Destiny of Man. New York: Charles Scribner's Sons, 1955.
v. 1, p. 5, 7, 13, 153.
797
ibid. v. 2, p. 295, 298.
1310
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1311
está sempre associada com um ser humano vivo na terra e que ela
uma vida após a morte. Não há nada em mim que mereça sobreviver
Mas a vida eterna, a qual Deus pode criar aqui mesmo em meu
798
ATKINSON, Basil Ferris Campbell. The Pocket Commentary of the Bible, Part One: Book of Genesis.
London: Henry E. Walter, 1954, p. 32.
799
ATKINSON, Basil Ferris Campbell. Life and Immortality: an examination of the nature and meaning of
life and death as they are revealed in the Scriptures. Taunton: Goodman & Sons, 1969, p. 12.
800
CULLBERG, John Olof. Dogmernas Insida: herdabrev till Vasterds stift. 1940.
1311
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1312
Universidade de Edimburgo)
diante da nova ideia seria perguntar: “Com que corpo eles vêm?”. A
801
STEWART, James Stuart. A Man in Christ: the vital elements of St. Paul’s religion. New York: Harper &
Row, 1935, p. 267.
1312
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1313
Testament Study)
maneira alguma. (...) À base disso, é claro que Paulo não usa a palavra
nenhum lugar da Bíblia. Toda a Bíblia, o NT, bem como o AT, baseia-
isso deveria ser mais reconhecido por todos. Está claro para nós, e
802
SNAITH, Henry Norman. The Distinctive Ideas of the Old Testament. London: Epworth Press, 1944, p.
89.
1313
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1314
esperamos ter deixado claro nestas páginas para outros, que existe
teologia na Bíblia.803
tem uma parte mortal, o corpo, e uma parte imortal, a alma. Ele é uma
803
ibid, p. 183-185.
804
KANTONEN, Taito. Life After Death. Philadelphia: Fortress Press, 1952, p. 18.
1314
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1315
eles, o homem vai para casa, para Deus. Mas isto não é verdade. Em
todo o caso, a Bíblia não ensina isso. Ela afirma clara e definitivamente
que não é a morte, e sim o dia de Jesus Cristo que vem com a
805
ibid, p. 14-15.
806
BOLANDER, Nils Fredrik. Ingen Död Kan Döda Oss. Estocolmo, 1952.
807
BERKOUWER, Gerrit Cornelis. Studies In Dogmatics. Man: the image of God. Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmans Publishing Co., 1962, p. 203, 205.
1315
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1316
homem não sujeita à morte, mas que o homem inteiro está sujeito ao
especial.809
deão de York)
808
MOODY, Dale. The Word of Truth: a summary of christian doctrine based on biblical revelation. Grand
Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1981, p. 182.
809
MCMINN, Mark R; PHILLIPS, Timothy R. Care for the Soul: exploring the intersection of psychology &
theology. Westmont: IVP Academic, 2001, p. 107.
1316
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1317
do homem inteiro.810
810
RICHARDSON, Alan. A Theological Word Book of the Bible. New York: The MacMillan Company, 1951,
p. 111.
811
RICHARDSON, Alan. An Introduction to the Theology of the New Testament. London: SCM Press, 1958,
p. 197.
1317
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1318
o corpo do homem vai para um lugar e que sua alegada “alma imortal”
812
RIDDERBOS, Herman. Paulus, A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 128,
568.
813
WISBROCK, George. Death and the Soul After Life. Oakbrook: ZOE-Life Books, 1990 (Prefácio de F.
F. Bruce).
1318
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1319
que ela é atribuída, nunca à alma. (...) Para outros, incluindo vários de
era visando a trocá-la por uma que era imortal; estar sem um corpo
grego)
814
BRUCE, Frederick Fyvie. Paul, Apostle of the Heart Set Free. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans
Publishing Co., 1977, p. 311.
815
DUDLEY-SMITH, Timothy. John Stott: A Global Ministry: A Biography of the Later Years. Westmont:
InterVarsity Press, 2001, p. 354.
816
LADD, George Eldon. A Commentary on the Revelation of John. Grand Rapids: Eerdmans, 1979, p. 270.
1319
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1320
cristãos. A Bíblia não ensina isso. A Bíblia não conhece tal distinção
em sua forma familiar, chegou até nós, não do povo de Israel e dos
elementos que compõem uma vida humana, sua união – e não sua
na vida e na morte.817
817
SIMCOX, Carroll Eugene. The Resurrection of the Body and the Life Everlasting. New York: Forward
Movement Publications, 1955, p. 5-6.
1320
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1321
ele.818
Há, assim, uma grande carga de material que prima facie [à primeira
818
RAMSEY, Robert Paul. Basic Christian Ethics. Louisville: Westminster John Knox Press, 1950, p. 263.
819
WENHAM, John William. Facing Hell: The Story of a Nobody, An Autobiography. Carlisle: Paternoster
Press, 1998.
1321
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1322
bem buscam (Rm 2:7); a imortalidade para o crente foi trazida à luz
pelo evangelho (2Tm 1:10) – ele ganha a imortalidade (ao que parece)
imortal, para que ele viva, não só além da morte, mas também além
consumidas.820
820
ibid, p. 229.
1322
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1323
como tal ele morreria. Não há qualquer sugestão de que uma parte
concebível que possa haver uma seção ou domínio da criação que não
imortais.822
821
HUGHES, Philip Edgcumbe. The True Image: the origin and destiny of man in Christ. Grand Rapids:
Eerdmans, 1989, p. 400.
822
ibid, p. 406-407.
1323
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1324
brasileiro)
doutorados honorários)
Eles prefeririam acreditar que, na morte, a alma deixa o corpo para trás
como uma roupa velha e fica desimpedida para o céu. Ora, há muito
823
HOUAISS, Antônio. Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda, 1993. v. 2, p. 404.
1324
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1325
sobrevive.824
824
CAIRD, George Bradford. The Truth of the Gospel: a primer of Christianity. Oxford: Oxford University
Press, 1950, p. 122.
825
ROBINSON, John Arthur Thomas. In the End, God: a study of the Christian Doctrine of the last things.
Cambridge: James Clarke & Co. Ltd., 1950, p. 74-75.
826
ROBINSON, John Arthur Thomas. The Body: a study in pauline theology. London: SCM, 1957, p. 14.
1325
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1326
Políticas)
homem tem uma alma, e sim que ele é uma alma; nem,
corpo.827
827
TRESMONTANT, Claude. Essai sur la Pensée Hébraïque. Paris: O.E.I.L, 1953.
1326
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1327
828
ELLIS, Edward Earle. Rethinking Hell: readings in evangelical conditionalism. Eugene: Cascade Books,
2014, p. 128.
1327
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1328
Westminster] pode ser criticada por várias razões: (1) sua separação
Cambridge)
829
GUTHRIE JR, Shirley C. Christian Doctrine. Louisville: Westminster John Knox Press, 1994, p. 378.
830
ibid, p. 381-394.
1328
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1329
Deus julgará as pessoas “de acordo com o que elas [têm] feito” (por
“vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por
eternidade?831
A Igreja Católica inventou o que a Bíblia nada diz sobre esse período
Mas “dormir”, como vocês sabem muito bem, não somente significa
tempo.832
831
STOTT, John; EDWARDS, David L. Essentials: a liberal-evangelical dialogue. London: Hodder &
Stoughton, 1988, p. 318.
832
SHEDD, Russell Philip. MCB - 1ª de 7 - Fim dos Tempos - Ressurreição - Congresso 2011. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=nXQH_E_t4dA> (min 36-37). Acesso em: 29/01/2022.
1329
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1330
California)
Deus nos fez pessoas inteiras: e em Cristo ele nos redimiu totalmente.
do NT.834
833
MARSHALL, Ian Howard. 1 e 2 Tessalonicenses, Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1984.
834
FEE, Gordon. Paulo, o Espírito e o Povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 87.
1330
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1331
homem tenha uma alma, mas o próprio homem é uma alma. Ela
que são todas situadas nos órgãos corporais os quais atraem eles
Universidade de Manchester)
835
ROBINSON, Gnana. “The Biblical View of Man”. Indian Journal of Theology. n. 27.3-4, jul-dez. 1978, p.
140-142.
1331
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1332
corporificada ao seu povo (1Co 15:21, 50-54; 2Tm 1:10). Deus nos dá
colocada em algum lugar se ela rejeitar a Deus. Se uma pessoa por fim
alma, no inferno. Uma vez que isso seja entendido, uma pessoa é livre
para ler o que a Bíblia diz sobre o inferno de forma natural e direta.836
professor de AT)
836
PINNOCK, Clark H. “The Conditional View”. In: Four Views on Hell. (ed. W. Crockett). Grand Rapids:
Zondervan, 1992, p. 148.
1332
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1333
do animal desce para a terra?” (Ec 3:21). Nos dias de Qohelet [o autor
evidência disso.838
sobre o inferno)
837
GOLDINGAY, John. Old Testament Theology: Israel's Faith. Westmont: IVP Academic, 2006. v. 2, p. 640.
838
ibid, p. 644.
1333
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1334
tradicional.839
professor de NT)
referências do NT à “punição eterna” (Mt 25:46; cf. 2Ts 1:9; Hb 6:2) não
sempre.840
839
FUDGE, Edward William. The Fire That Consumes: a biblical and historical study of final punishment.
Houston: Providential Press, 1982.
840
TRAVIS, Stephen H. “The Nature of Final Destiny”. In: Rethinking Hell: readings in evangelical
conditionalism (ed. Christopher M. Date). Eugene: Cascade Books, 2014.
841
TRAVIS, Stephen H. Christian Hope and the Future of Man: issues in contemporary theology. Westmont:
InterVarsity Press, 1980, p. 135. 1334
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1335
presas no inferno?842
clérigos)
(unificadoras).843
842
TRAVIS, Stephen H. The Problem of Judgment. Disponível em:
<https://theologicalstudies.org.uk/pdf/judgment_travis.pdf>. Acesso em: 08/02/2022.
843
BENNER, David G; HILL, Peter C. Baker Encyclopedia of Psychology and Counseling. 2ª ed. Michigan:
Baker Academic, 1999, p. 1148.
1335
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1336
para a maioria dos cristãos, ela não pode ser apoiada por textos
bíblicos. (...) Não existe alma imortal alguma que permaneça auto-
844
FORD, David F. The Modern Theologians: an introduction to Christian theology since 1918. Malden:
Blackwell Publishing, 2005, p. 693.
1336
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1337
mesmo verso [Mt 10:28] prova. Jesus pensa que todo o seu ser pode
Jesus está se referindo a alguém que pode matar, pôr um fim, destruir
possível ler este texto de outra maneira, parece-me que este texto
Meu bom colega Lawson Stone e eu tivemos uma boa conversa sobre
pode ser bom fazer uma boa pergunta: por que mesmo um Deus
845
WITHERINGTON, Ben. Matthew 10.28 – Why Annihilationism is not Universalism. Disponível em:
<https://www.patheos.com/blogs/bibleandculture/2011/03/18/mt-10-28-why-anihilationism-is-not-
universalism>. Acesso em: 07/02/2022.
846
ibid.
1337
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1338
Também a imortalidade é algo que Deus deve conceder por Sua graça
(cf. 1Co 15:53 em diante), o homem não a possui por natureza. Isso faz
com que a morte seja entendida por Paulo como morte total, não
847
WALTON, John H. Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: introducing the conceptual
world of the hebrew Bible. Grand Rapids: Baker Academic, 2006, p. 214.
1338
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1339
alma.848
848
McGRATH, Alister. The Big Question: why we can’t stop talking about science, faith and God. New York:
St. Martin's Press, 2015, p. 138.
849
McGRATH, Alister. The Blackwell Encyclopedia of Modern Christian Thought. Cambridge: Blackwell
Publishing, 1995, p. 101.
850
GREEN, Joel B. Body, Soul, and Human Life: the nature of humanity in the Bible. Michigan: Baker
Academic, 2008, p. 140.
851
GREEN, Joel B. Evangelism Through the Local 1339Church: a comprehensive guide to all aspects of
evangelism. Vancouver: Regent College Publishing, 2012, p. 69.
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1340
acadêmicos)
(Obra de referência editada por Derek Williams, com mais de dois mil verbetes)
852
GUSHEE, David P. Only Human: christian reflections on the journey toward wholeness. San Francisco:
Jossey-Bass, 2005, p. 49-50.
1340
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1341
isso quer dizer que a existência humana jamais poderá ser parcial e
importante que a alma nem a alma mais importante que o corpo, até
853
WILLIAMS, Derek. Dicionário Bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 158.
854
SCHNEIDER, Nélio. “Alma (corpo, espírito)”. Dicionário Brasileiro de Teologia (org. Fernando Bortolleto
Filho). São Paulo: ASTE, 2008, p. 30.
1341
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1342
***
William Branham, Harold Camping, Roger Foster, Richard Bauckham, Nigel Wright,
Robert Brow, Charles Gore, Henry Grew, Homer Hailey, Harold Guillebaud, Oliver
Chase Quick, Charles F. Hudson, Freeman Barton, Michael Green, Eric Lewis, Ulrich
Ernst Simon, James Nichols, Norman McFarland, Charles H. Welch, J. Howard Shaw,
Robert Brow, Warren Prestidge, F. LaGard Smith, Scot McKnight, John G. Stackhouse
Jr, Richard Bauckham, David Powys, John Zens, Christopher M. Date e tantos outros
mortalismo ao sectarismo.
contrário, cada vez mais estudiosos do mais alto escalão reconhecem a verdade
bíblica sobre a natureza mortal do homem, embora muitos deles sejam pouco
conhecidos por aqueles que não estão familiarizados com a literatura acadêmica.
Dizer que a alma não é imortal pode certamente soar um escândalo nas igrejas
855
ibid.
1342
O mortalismo na Idade Média aos nossos dias 1343
que só sabe o que ouve do pastor ou aprende na EBD, mas soa absolutamente
holismo não existe para que ninguém tenha contato com ele, nos seminários e
com muitos defensores de cada lado. Assim, enquanto os estudiosos estão cada vez
permanecem presas numa bolha, bitoladas nos mesmos clichês e com uma visão
deformada da realidade. Essa é justamente a razão da escrita deste livro, que busca
acadêmico.
1343
1344
3:4). Mas talvez você nem se interesse muito por doutrina, e esteja se perguntando
se todo esse livro com milhares de páginas tem alguma utilidade prática. Se todo
856
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 11.
1344
As consequências práticas do dualismo 1345
gnósticos, muito mais influenciados pelo platonismo do que pela Bíblia, e tinham à
sua frente Marcião, um dos heresiarcas mais famosos da história da Igreja. Para ele,
Jesus
versa). Então, se autoflagelar é um bom meio de penitência, uma vez que pune e
pecado, já que gera prazer ao corpo, que é mau e não merece nenhum prazer. Então
não podemos comer carne, já que a carne vem do corpo, e o corpo é mau. É daí que
veio toda uma escola de pensamento que demoniza tudo que é atividade física, em
Toda vez que alguém proíbe divertimentos lícitos como ver televisão, jogar
futebol, ouvir música ou ir ao cinema; toda vez que alguém exige um certo tipo de
vestimenta ou corte de cabelo; toda vez que alguém exige o celibato ou restringe o
sexo à procriação; toda vez que alguém proíbe comer carne e sempre que alguém
857
WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 2006. v. 1, p. 84.
1345
As consequências práticas do dualismo 1346
gnósticas ainda que não se reconheça como tal, e mesmo que não faça a menor
“Já que vocês morreram com Cristo para os princípios elementares deste
mundo, por que é que vocês, então, como se ainda pertencessem a ele, se
submetem a regras: ‘Não manuseie!’, ‘Não prove!’, ‘Não toque!’? Todas essas
coisas estão destinadas a perecer pelo uso, pois se baseiam em
o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne”
(Colossenses 2:20-23)
sofrido um golpe fatal no final do segundo século, e, de fato, nos séculos seguintes
pensar criou raízes, influenciou e continua influenciando muita gente até hoje,
solo cristão “ortodoxo”. Ele era tão radical que fazia questão de determinar até
mesmo o tamanho do véu que as mulheres deveriam usar e a posição exata que
1346
As consequências práticas do dualismo 1347
ficaria na cabeça – o qual deveria ser colocado não só durante o culto, mas sempre
Paulo dizer que “a mulher está ligada a seu marido enquanto ele viver, mas se o seu
marido morrer ela estará livre para se casar com quem quiser, contanto que ele
pertença ao Senhor” (1Co 7:39). Ele chegou a pedir à sua própria esposa que
permanecesse viúva após sua morte860, a qual não tinha muito como contestar, já
Tertuliano “não dava nenhuma esperança para os fiéis que haviam caído em
pecado grave após o batismo”862, cuja lista incluía o homicídio, a fraude, a apostasia,
buscassem o perdão de Deus, ele jamais seria concedido. Se era esse o tratamento
reservado aos de dentro da igreja, imagine em relação aos de fora. Não admira que
858
De virginibus velandis.
859
De exhortatione castitatis.
860
Ad uxorem.
861
ALTANER, B; STUIBER, A. Patrologia: Vida, obras e doutrina dos Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas,
1972.
862
WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 2006. v. 1, p. 99.
863
FIGUEIREDO, Fernando A. Curso de Teologia Patrística II: A vida da Igreja Primitiva (século III).
Petrópolis: Vozes, 1984, p. 38.
864 1347 cristã: a deformação da antropologia bíblica e
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 20.
As consequências práticas do dualismo 1348
tão radical quanto ele gostaria que fosse, Tertuliano aderiu em seus anos finais à
havia uma forte ênfase numa vida moral mais rigorosa. Assim, ele e
Assim como o gnosticismo, o montanismo como tal não durou muito, mas a
ganhou cada vez mais espaço na Igreja. Walker afirma que “em alguns lugares, a
gnósticos, baseada no mesmo princípio de que o corpo é mau, e por isso é errado
ter intercurso sexual e trazer novos corpos à existência. Foi isso o que Paulo
que Deus criou para serem recebidos com ação de graças pelos que creem e
conhecem a verdade” (1ª Timóteo 4:2-3)
865
WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 2006. v. 1, p. 86.
866
ibid, p. 140.
1348
As consequências práticas do dualismo 1349
vemos nos “Atos de João”. A influência desse pensamento gnóstico nos círculos
Hermas que viva com a sua mulher como com uma irmã, ou seja, sem a vida
realizado numa época em que o celibato ainda não era obrigatório, mas se exigia
que os membros do clero deixassem de ter relações sexuais com suas próprias
esposas:
acentua que “o século III apresenta uma mudança na prática em relação aos
Até o final do século IV, a Igreja Latina promulgou várias leis em favor do celibato
867
DANIÉLOU, J; MARROU, H. Nova História da Igreja: dos primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis:
Vozes, 1966, p. 137.
868
Cânon 33.
869
HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. “O Celibato Sacerdotal: História”. In: Teocomunicação – A Política
no Brasil, v. 21, n. 94. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1991, p. 547.
1349
As consequências práticas do dualismo 1350
removendo a genitália). Ele “vivia uma vida ascética, dedicada aos estudos e à
Orígenes ia tão longe que Eusébio dedicou um volume inteiro sobre ele em sua
870
THURSTON, H. “Celibacy of the Clergy”. In: The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Co.,
1908.
871
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 38.
872
MORESCHINI, Cláudio; NORELLI, Enrico. História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina I: de Paulo
à era constantiniana. São Paulo: Loyola, 1996, p. 366.
873
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia
1350 cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 28, 37.
As consequências práticas do dualismo 1351
século IV, enquanto os outros vultos da Igreja antiga (como Inácio, Justino e Irineu)
tardariam em surgir. Um dos mais antigos foi fundado pelo monge egípcio
Pacômio, em 323 d.C, num vilarejo deserto próximo ao Nilo. Ali, tudo se fazia em
silêncio: lavar roupa, preparar o pão, fabricar cestas e qualquer tarefa diária tinha
que ser feita sem conversa. Pacômio achava que as mulheres falavam demais e por
Mesmo o trabalho manual era visto com profundo desprezo, já que era
praticado com o suor do corpo, não com o intelecto da alma. Por isso a maioria dos
trabalhava arduamente como fabricante de tendas (At 18:3) para não se tornar um
peso aos demais. “Fiz tudo para não ser um peso a vocês, e continuarei a agir assim”
(2Co 11:9), diz ele, que em outra ocasião é taxativo ao dizer que “se alguém não
privações extremas, como Santo Antão (251-356), que viveu grande parte da vida
isolado numa caverna lutando contra demônios que assumiam a forma de animais
1351
As consequências práticas do dualismo 1352
metade bode), dentre outros de dar inveja aos universos de J. K. Rowling. Depois
dessas batalhas épicas, Antão se mudou para um forte abandonado, onde viveu
Mas é lógico que Antão não comia qualquer coisa que lhe fosse jogada: só aceitava
comer uma única refeição por dia, composta de pão e água. Mais do que isso seria
Outro monge famoso foi Simeão Estilita (389-459), que resolveu construir
uma coluna e viver sobre ela. A coluna original não tinha mais de dois metros de
altura, o que permitia que fosse importunado por esses seres chatos chamados
humanos. Por isso ele foi aumentando a coluna cada vez mais, até terminar com 15
metros. O estilita passava 24h por dia ali, 7 dias por semana, 365 dias ao ano,
durante 36 anos até sua morte. Não saía nem para comer, nem para fazer
vida de Simeão Estilita. Aos olhos do povo, ele não podia ser outra coisa a não ser
mais asceta a pessoa fosse no sentido mais rigoroso do termo, quanto maiores
1352
As consequências práticas do dualismo 1353
fossem as suas privações, quanto mais punisse o corpo de todas as formas possíveis
bíblico poderia ser considerado realmente santo – ou pelo menos não no nível de
decide se isolar, foi devido à perseguição de Jezabel (que havia matado os profetas)
e tomado por uma profunda angústia e depressão a ponto de pedir para que Deus
tirasse sua vida (1Rs 19:4), não pelo desejo de se tornar “santo”.
inúmeras perseguições por pregar aos judeus e aos gentios, fundando numerosas
próprio Cristo passou todos os seus anos de ministério em meio ao povo, pregando
Como comenta Blainey, “comer em silêncio e afastar as mulheres com certeza eram
Ele não passou mais de 40 dias isolado no deserto – bem menos que as
longas décadas dos monges eremitas –, o que indica que o curto período de
isolamento não tinha como propósito o isolamento em si, mas o preparo para o
ministério público (e sem precisar encarar nenhum animal mágico, até onde se
874
BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Cristianismo. São Paulo: Fundamento, 2012, p. 53.
1353
As consequências práticas do dualismo 1354
“Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída
diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai
Assim como ninguém esconde uma lâmpada num lugar isolado, mas a
coloca num lugar visível a todos, também os cristãos não devem se isolar do mundo,
para que sua luz brilhe diante de todos e todos glorifiquem a Deus. “Não rogo que
os tires do mundo, mas que os protejas do maligno” (Jo 17:15), foi o que Jesus orou.
Por mais corrupto e degenerado que o mundo seja, não é do propósito de Deus
que os cristãos “saiam” do mundo, mas que sejam protegidos do maligno em meio
ao mundo. Note que quando Jesus disse isso não havia ainda nenhum foguete e
nem o Elon Musk querendo levar as pessoas para outros planetas: ele estava
Ele também disse que “a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Peçam, pois, ao Senhor da seara que envie trabalhadores para a sua seara” (Mt 9:37-
encerrando-se em seus mosteiros? Não seriam eles muito mais úteis pregando em
atuante na sociedade?
Não seria o ato de se afastar do mundo para garantir sua salvação pessoal
1354
As consequências práticas do dualismo 1355
Deus nos chamou para pregar o evangelho a toda criatura e salvar os perdidos? O
egocêntrica de que só o que importa é conservar sua própria salvação, e o resto que
Cristo poderia ter feito o mesmo, como Deus e dono de tudo, mas preferiu
pecadores e morrer por pecadores, como eu e você. Porque, como ele mesmo disse,
“não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não
vim para chamar justos, mas pecadores ao arrependimento” (Mc 2:17). Ele é o nosso
assim viveu como um de nós, não como um monge no deserto, não se escondendo
Não temos por que duvidar da sinceridade da fé dos primeiros monges, mas
tal forma que o próprio Senhor Jesus seria novamente encarado como um “comilão
e beberrão, amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11:19). Essa mudança não se deu
grego, mesmo que nem sempre esse sincretismo fosse intencional. O que importa
1355
As consequências práticas do dualismo 1356
vida cristão. Afinal, eles surgiram no meio católico, e absorveram o mesmo modo
O próprio Lutero era um monge agostiniano, e Calvino era tão obcecado por
Agostinho que o cita nominalmente mais de 400 vezes nas Institutas, fora todas as
citações indiretas. Como Laurence Vance observou, “ninguém consegue ler cinco
está tão ligado a mim que, se eu quisesse escrever uma confissão de minha fé, eu
poderia assim fazer com toda a plenitude e satisfação a mim mesmo de seus
escritos”876.
sistematizou o dualismo na teologia cristã. Ele também era o teólogo favorito dos
escolásticos medievais, entre eles Tomás de Aquino, e é por isso que seus escritos
foram largamente copiados e comentados, enquanto a maior parte das obras dos
outros Pais simplesmente se perdeu. Não é por acaso que Calvino, o maior fanboy
que Agostinho já teve, defendia que “o corpo é uma prisão para a alma sem nenhum
875
VANCE, Laurence M. O Outro Lado do Calvinismo. São Paulo: Reflexão, 2017.
876
CALVIN, John. A Treatise on the Eternal Predestination of God. Disponível em:
<https://www.monergism.com/treatise-eternal-predestination-god-john-calvin>. Acesso em:
14/01/2022.
1356
As consequências práticas do dualismo 1357
valor”877. Ele explicitamente diz nas Institutas que “se a liberdade consiste em ficar
livre deste corpo, que outra coisa é o corpo senão uma prisão?”878.
gnóstico do corpo como um cárcere da alma, e diz que “nós desejamos de fato
partir desta prisão do corpo”879. Neste mesmo tratado ele chama a alma de «nossa
melhor parte»880, e exemplifica isso com uma analogia que quando li pela primeira
vez quase me fez cair da cadeira e quebrar a mandíbula de tanto rir. Veja você
mesmo, com os seus próprios olhos, como ele refuta o mortalismo de forma
magistral (aviso: se estiver com um copo na mão, deixe em cima da mesa por
Isaque, também, que era um tipo de Cristo, e foi restaurado a seu pai
diz, nos mostra a verdade em uma figura. Pois depois de ter sido
solto pela ordem de Deus. Mas o carneiro que foi pego na moita foi
877
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 66.
878
CALVINO, João. As Institutas.. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. v. 4, p. 215.
879
Disponível em: <http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/joao-calvino/calvino-
contra-os-aniquilacionistas-psychopannychia.html>. Acesso em: 22/01/2022.
880
ibid. 1357
As consequências práticas do dualismo 1358
foi liberta da prisão, assim também nossas almas são libertas antes de
perecerem.881
Genial!
“argumento do carneiro”, e por que os imortalistas não usam mais nos dias de hoje
essa prova bombástica a seu favor. E pensar que esse era um dos maiores
carneiro” não fez tanto sucesso quanto Calvino esperava, ele pelo menos nos diz
superado”883. Talvez não seja coincidência que a Genebra calvinista estivesse repleta
de regras legalistas que refletiam uma visão ascética radical. Entre as práticas
proibidas sob pena de multa, prisão ou exílio, inclui-se as danças, a música, os jogos,
881
ibid.
882
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 66.
883
ibid.
1358
As consequências práticas do dualismo 1359
nomes que os pais poderiam dar aos filhos. Alguns pecados mais graves, como o
Embora Calvino não fosse o autor dessas leis e muitas delas já vigorassem em
calvinismo posterior tenham sido mais moderados no que diz respeito às normas
pietistas887.
para que as peças de Shakespeare não fossem encenadas, e fizeram isso enquanto
884
SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. Vol. VIII: Modern Christianity: The Swiss Reformation,
p. 431-432. Disponível em: <https://www.ccel.org/ccel/s/schaff/hcc8/cache/hcc8.pdf>. Acesso em:
14/01/2022.
885
ibid.
886
LINDSAY, T. M. A Reforma. Lisboa: Typ. a vapor de Eduardo Ros, 1912, p. 74.
887
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 39. 1359
888
NOGUEIRA, Quéfren Weld Cardozo. “Aversão Puritana ao Divertimento: uma análise dos divertimentos
e as tentativas de reforma da cultura popular europeia medieval”. Licere. v. 21, n. 3, set. 2018, p. 431.
As consequências práticas do dualismo 1360
os atores ambulantes foram presos e os jogos das aldeias proibidos. O que surgiu
tentativa de eliminar toda e qualquer impureza da Igreja. Mas como eles próprios
estavam contaminados pelo dualismo platônico, achavam que o próprio corpo era
parte do mal que precisava ser eliminado, tal como os antigos gnósticos. Daí a
É por isso que até hoje existem em nosso meio igrejas que seguem essa
herança de legalismo e repressão e proíbem tudo, desde assistir televisão até o uso
ascetismo não é recente nem surgiu do nada: ele é tão antigo quanto a própria
doutrina que divide corpo e alma, onde tudo o que é relacionado ao corpo é “do
mundo” e deve ser combatido, como uma forma de alcançar a pureza de espírito. A
despeito de muitos dos que pensam dessa forma nem mesmo saberem de onde
religiosas.
889
ibid, p. 435.
890
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 2000, p. 281.
1360
As consequências práticas do dualismo 1361
teologia que via o corpo como um mal demoníaco, que precisava ser domado de
forma tão brutal quanto bestial. Na mesma época em que os monges tentavam
superar uns aos outros em testes de resistência para mostrar o quão espirituais
quem era o mais santo. Quanto mais carne fosse arrancada da pele e mais vivo fosse
tinha que ser reprimida das formas mais severas que a mente humana fosse capaz
de conceber. Até as moças mais novas eram instadas a viver uma vida de jejum
todos os dias de sua vida” (Jud. 8:6) de acordo com o apócrifo católico.
(“Masoquismo como uma Jornada Espiritual”), mostra que só a partir do século XIX
1361
As consequências práticas do dualismo 1362
masoquismo como uma doença, as religiões pré-século XIX viram como cura”891.
A razão por que as práticas masoquistas eram vistas como uma “cura” para
a alma também tem a ver com a dicotomia corpo-alma: se o corpo está em oposição
alimentar a alma. É a mesma lógica da gnose: tudo o que faz bem ao corpo faz mal
à alma, e tudo o que faz mal ao corpo faz bem à alma. É por isso que o flagelo físico,
que não é ensinado em parte alguma da Bíblia e não parece à primeira vista
891
HAYDEN, Dorothy C. Masochism As a Spiritual Journey. Disponível em:
<https://ezinearticles.com/?Masochism-As-a-Spiritual-Journey&id=6087038>. Acesso em: 11/01/2022.
1362
As consequências práticas do dualismo 1363
horas seguidas. Dizia-se que através dessas práticas ela estava sujeita
892
HAYDEN, Dorothy C. Masochism As a Spiritual Journey. Disponível em:
<https://ezinearticles.com/?Masochism-As-a-Spiritual-Journey&id=6087038>. Acesso em: 11/01/2022.
1363
As consequências práticas do dualismo 1364
budistas, hindus e tibetanos, entre outras religiões orientais que adotam a mesma
jamais o levou tão a sério quanto os monges, orientados por uma visão dualista que
os levava a acreditar que degradar o corpo era uma forma de purificar a alma. O
contraste com o Cristianismo original não podia ser maior, onde não só não vemos
Espírito Santo” (1Co 6:19) que devemos guardar irrepreensível da mesma forma que
alma, mas degradar o santuário de Deus em nós, aviltando contra a própria morada
se dizer que profanou o templo. Se Paulo diz que “nós somos o templo do Deus
vivo” (2Co 6:16), quanto mais devemos preservar nossos corpos desse sacrilégio.
1364
As consequências práticas do dualismo 1365
Três vezes fui golpeado com varas, uma vez apedrejado, três vezes sofri
Note que ele diz “fui açoitado”, não “me açoitei”. Ele sofreu a ação, não a
sofrer e corre atrás desse tipo de coisa. Paulo não se gloriava pelo sofrimento em si,
mas por ter suportado tudo isso sem negar a fé. Como na Idade Média os monges
não sofriam qualquer perseguição, mas queriam ser tão espirituais quanto Paulo,
passaram a flagelar a si próprios, como se fosse a mesma coisa. Não é à toa que em
gritavam. E dançavam em volta do altar que haviam feito. Mas não houve
ser despertado’. Então passaram a gritar ainda mais alto e a ferir-se com
1365
As consequências práticas do dualismo 1366
Quando o texto diz “de acordo com o costume deles” (v. 28), ele nada mais
está fazendo do que explicando aos leitores judeus por que os profetas de Baal
agiram daquela maneira, já que essa era uma prática estranha aos israelitas. Nessa
época, se flagelar para alcançar o favor divino era uma característica dos pagãos,
não do povo de Deus. Foi só depois que o Cristianismo abraçou a dicotomia entre
corpo e alma que incorporou os traços do paganismo. Isso não só teve como
tinham por finalidade acentuar o sofrimento físico – afinal, quanto mais o corpo
católico que até Madre Teresa de Calcutá (1910-1997), tida até hoje como um dos
as condições deploráveis aos quais eles eram submetidos, tendo a própria Madre
pacientes eram intencionalmente deixados sem remédio, sem comida e sem tudo
aquilo que é básico – e não por falta de recursos, pois a própria admitia que dinheiro
para nós isso parece monstruoso, em sua visão ela estava apenas aumentando as
893
Tudo isso é detalhado no documentário Hell's Angel (1994), dirigido por Christopher Hitchens e Tariq
Ali, e no livro The Missionary Position: Mother Teresa in Theory and Practice (2012), de Hitchens.
1366
As consequências práticas do dualismo 1367
chances de seus pacientes irem pro céu, ao promover o sofrimento deles. Esse tipo
destrutivo. Se era assim que agia aquela que é considerada ainda hoje a alma mais
bondosas assim.
exterior, sem liberdade de ir e vir, sem sequer um telefone pessoal. Todos usam um
único aparelho, mas somente para enviar mensagens por WhatsApp que ficam
visíveis a todos. Para falar ao telefone, só se for com um telefone fixo, e sempre com
alguém ao lado vigiando. Ali não há livros didáticos, livros de história do Brasil ou
de literatura, mas só enciclopédias católicas antigas e livros escritos por João Clá.
como parar com os pés em “V”, andar sem balançar os braços e deitar com o rosto
no chão em estado de completa humilhação, por horas a fio. Para que a lavagem
cerebral seja completa, são proibidas fotos de parentes ou amigos, as quais dão
1367
As consequências práticas do dualismo 1368
de quem conseguiu se libertar da seita não têm fim, assim como a dor dos pais que
família894.
quando a Igreja dominava tudo e não tinha que dar satisfação a ninguém. Isso que
hoje é visto com horror e é investigado pelo Ministério Público, naquela época não
defendia esse tipo de pensamento por dizer que “os que pertencem a Cristo Jesus
crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos” (Gl 5:24), de onde vem
a ideia de que devemos “matar a carne”. Mas o que seria “crucificar a carne com suas
corpo e alma, onde “crucificar a carne” seria privar o corpo de todos os seus desejos
naturais? O segredo para entender o texto está na palavra “carne” (sarx), que é
diz respeito à matéria da qual somos formados, a “carne” diz respeito à nossa
894
G1. Grupo católico é investigado por abuso psicológico e humilhações em internato de São Paulo.
Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/10/20/grupo-catolico-e-investigado-por-
abuso-psicologico-e-humilhacoes-em-internato-de-sao-paulo.ghtml>. Acesso em: 11/01/2022.
1368
As consequências práticas do dualismo 1369
➢ “Por isso digo: vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos
➢ “Quem semeia para a sua carne (sarx), da carne (sarx) colherá destruição; mas
quem semeia para o Espírito, do Espírito colherá a vida eterna” (Gálatas 6:8)
➢ “Quem vive segundo a carne (sarx) tem a mente voltada para o que a carne
(sarx) deseja; mas quem, de acordo com o Espírito, tem a mente voltada para
➢ “Quem é dominado pela carne (sarx) não pode agradar a Deus” (Romanos
8:8)
➢ “Portanto, irmãos, estamos em dívida, não para com a carne (sarx), para
Observe que Paulo nunca usa o vocábulo soma (corpo) para falar daquilo
que precisa ser “mortificado”, mas apenas sarx (carne). Ademais, sarx não é usado
Santo que habita em nós). A ideia transmitida nesses textos, portanto, não é a
1369
As consequências práticas do dualismo 1370
que conflitam com a vontade do Espírito para as nossas vidas. Paulo não está
dizendo que o corpo é mau ou que tudo o que vem do corpo é mau, mas se
É por isso que ele nunca ordena a prática de rituais sem sentido cuja única
finalidade é desgastar o corpo, nem impõe proibições inúteis que visam apenas
castigar o corpo e reprimir suas vontades mais básicas. Pelo contrário: como vimos,
ele se opõe abertamente às restrições banais de “’não manuseie!’, ‘não prove!’, ‘não
toque!’” (Cl 2:21), pois “essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua
pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm
soma», justamente porque não tinha nenhum valor para «refrear os impulsos da
carne-sarx». Isso não apenas prova que Paulo usava “corpo” e “carne” em sentidos
corpo não serviam em nada para refrear a carne, que é a nossa verdadeira inimiga.
Em outras palavras, nosso inimigo não é o corpo, mas o pecado, que não é
que tanto mal causou de forma totalmente desnecessária. Para Paulo, degradar o
corpo não era alimentar a alma, era simplesmente degradar o corpo – corpo este
que deveria ser preservado e não degradado (1Ts 5:23). É justamente por isso que
essas imposições legalistas em relação ao corpo não tinham qualquer efeito contra
1370
As consequências práticas do dualismo 1371
história da Igreja, imoralidade essa praticada pelas mesmas pessoas que tanto se
Não é à toa que a Roma papal era o maior centro de prostituição do mundo
medieval. Com uma população de 100 mil habitantes na época de Lutero, nada a
menos que 6 mil era de prostitutas, índice que supera esmagadoramente as cidades
modernas com mais prostituição896. Todos devem se lembrar que Lutero – ele
o que encontrou foi uma promiscuidade nunca antes vista, levando-o a uma crise
de fé.
895
BROTTON, Jerry. El bazar del Renacimiento: sobre la influencia de Oriente en la cultura occidental.
Barcelona: Paidós, 2003, p. 98.
896
PIJOAN, J. Historia del Mundo. Barcelona: Salvat Editores, 1933. v. 4, p. 101.
1371
As consequências práticas do dualismo 1372
são castos.897
Não sem razão, quando Cobet fundou a escola de S. Paulo, em 1510, Erasmo
observou que ele não chamou nem padres nem bispos para administrá-la, como
“respondeu que embora nada houvesse de certo nos assuntos humanos, ainda era
atividade homossexual”902.
outra coisa senão dedicar-se a se envolver com a mulher de todo o mundo, com a
filha de todo o mundo e com a criada de todo o mundo, de sorte que a corneação
presente apenas nas casas das jovens donzelas, mas também nos bordéis e “casas
897
ibid, p. 106-107.
898
JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 328.
899
PIJOAN, J. Historia del Mundo. Barcelona: Salvat Editores, 1933. v. 4, p. 104.
900
MELO, Saulo de. História da igreja e evangelismo brasileiro. Maringá: Orvalho, 2011, p. 95-96.
901
CURTIS, A. Kenneth. Os 100 acontecimentos mais importantes da história do Cristianismo: do incêndio
de Roma ao crescimento da igreja na China. São Paulo: Vida, 2003, p. 116.
902
McGRATH, Alister E. Revolução Protestante. Brasília: Palavra, 2012, p. 28.
903 1372 history related by contemporary observes and
HILLEBRAND, Hans J. The Reformation: a narrative
participants. New York: Harper and Row, 1964, p. 307-308.
As consequências práticas do dualismo 1373
que a presença deles nesses dois últimos era até vista com bons olhos, pois pelo
ponto que até o secretário do papa Bento XIII disse a respeito dos clérigos que
cerca de metade dos jovens esteve envolvida em algum estupro, cifra inimaginável
nos dias de hoje907. O estupro era algo tão comum que havia se tornado banal, “um
904
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: As minorias na Idade Média. São Paulo: Jorge Zahar, 1993,
p. 67.
905
MELO, Saulo de. História da igreja e evangelismo brasileiro. Maringá: Orvalho, 2011, p. 95.
906
ibid.
907
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: As minorias na Idade Média. São Paulo: Jorge Zahar, 1993,
p. 26. 1373
As consequências práticas do dualismo 1374
traço habitual da vida dos jovens, um rito de passagem”908. Richards afirma que
909
. Tanto era assim que a punição para tais estupros era apenas “uma multa ou um
período curto na prisão”910, embora, “a julgar pelas evidências para a Inglaterra dos
a cultura e a vida em sociedade era controlada pela Igreja, como podem os estupros
serem tão absurdamente comuns? A resposta está na própria moral da Igreja, que,
além de não servir de exemplo pra ninguém, ainda era condescendente aos abusos
sexuais. Richards diz que “o estupro não era condenado pelos penitenciais, mas o
sequestrasse a mulher da casa de seus pais ou marido, o abuso sexual era tolerado.
estupro, se não se casar com o sedutor, terá mais dificuldade para casar. Poderá
pensar que a época de mais severa repressão para com o corpo seja também a era
908
ibid.
909
ibid, p. 27.
910
ibid, p. 26.
911
ibid, p. 27.
912
ibid, p. 22.
913
ibid, p. 75. 1374
As consequências práticas do dualismo 1375
forma mais bestial. Essa é a prova viva do que Paulo disse: a severidade para com o
corpo não refreia em nada os impulsos da carne. Pelo contrário, quanto maior a
depravados.
É por isso que os mesmos padres e monges que falavam do sexo como algo
sujo em si mesmo e errado mesmo dentro do casamento, sendo não mais que um
eram eles mesmos os que mais se entregavam aos prazeres carnais com a mulher,
as filhas e os filhos dos outros. Ao mesmo tempo em que pregavam que o corpo é
mau e que seus desejos devem ser reprimidos da forma mais severa possível, eles
próprios preceitos de forma a dar inveja a qualquer libertino. Para os outros, todo
sobre os seus instintos, o que ele cria é um desejo insaciável por aquilo que não se
tem, e quem acaba pagando o preço são crianças indefesas (coroinhas, em sua
maioria)914. O desejo não é refreado por ser reprimido: ele só é acumulado, até ser
uma das muitas consequências do pensamento dualista, onde privações físicas não
o corpo, diferente do que se pensa, não é oposto à alma, mas integrado a ela.
914
Eu discorro mais sobre isso neste vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=4SIq5QrSdnk>.
1375
As consequências práticas do dualismo 1376
aos pecados mais bestiais. Enquanto uns iam para o extremo do ascetismo, outros
importa o que fazemos com ele, só o que importa é como está a nossa alma. Isso
abria licença a todos os instintos mais pecaminosos da carne, sob o pretexto de que
só precisamos edificar o espírito. Muitos gnósticos eram conhecidos por sua notória
imoralidade, de modo que “aquilo que eles fazem em oculto, até mencionar é
sexual, mas qualquer coisa como fumar, beber ou se drogar não é pecado, pois
afetam apenas o corpo, e não a alma. Enquanto Deus estipulou regras para
preservar a saúde física, psíquica e espiritual do homem para o seu próprio bem
(como os bons pais fazem com seus filhos), os gnósticos ou iam para o extremo de
corpo-alma –, não surpreende que haja ainda hoje esses dois extremos.
Uma vez que o cultivo da alma tem sido visto como mais importante
1376
As consequências práticas do dualismo 1377
muita importância a coisas de menor valor! Isso não é o evangelho”916. Como ele
as pessoas aceitam a Cristo com a mente, o que fazemos com nossos corpos de fato
não importa”917. Mesmo que nem todos os imortalistas estejam hoje de acordo com
isso, todos devem concordar que tal mentalidade não é uma extrapolação das
premissas dualistas, mas uma consequência lógica das mesmas. Como expõe
opõe frontalmente à ciência, que já descobriu há muito tempo que o que impacta
muito tempo entendido como uma atividade puramente “mental”, já que os dois
915
BACCHIOCCHI, Samuele. Dualismo e holismo no exame da consciência após a morte. Disponível em:
<http://www.c-224.com/1-DDD-1.html>. Acesso em: 13/01/2022.
916
ibid.
917
ibid.
918
SCHNEIDER, Nélio. “Alma (corpo, espírito)”. Dicionário Brasileiro de Teologia (org. Fernando Bortolleto
Filho). São Paulo: ASTE, 2008, p. 30.
919
ibid. 1377
As consequências práticas do dualismo 1378
– com o perdão do trocadilho – foi o match entre Karpov e Kasparov pelo mundial
de 1984. Karpov abriu 5 a 0 nas primeiras rodadas de um formato que previa que
quem vencesse seis partidas primeiro levaria o título, mas com o tempo o seu
conseguiu duas vitórias seguidas, e então o torneio foi suspenso por razões de
saúde. Mas o que a saúde tem a ver com uma competição de xadrez? O motivo é
que nesse meio-tempo Karpov havia perdido 10 kg, não porque fez uma baita dieta,
mas pelo desgaste mental dos jogos. Isso explica o seu mau desempenho na
um Grande Mestre de xadrez consome cerca de 6 mil calorias por dia durante as
por volta de 396 calorias, o que significa 15 vezes menos que um enxadrista
profissional921.
tem uma rotina intensa de atividades físicas, incluindo corrida, futebol, tênis, esqui,
basquete e beisebol. Ele sabe melhor do que ninguém que corpo e mente estão
associados de forma muito mais íntima do que um dualista jamais assumiria, e que,
corpo e mente que faz com que um jogador de xadrez renda mais quando divide o
920
G1. Mestres do xadrez perdem até 6 mil calorias por dia em torneios. Disponível em:
<https://ge.globo.com/eu-atleta/noticia/mestres-xadrez-perdem-ate-6-mil-calorias-por-dia-
torneios.ghtml>. Acesso em: 13/01/2022.
921
Disponível em: <https://gooutside.com.br/corrida-ou-caminhada-para-emagrecer>. Acesso em:
13/01/2022.
1378
As consequências práticas do dualismo 1379
tempo de estudo com o tempo de atividade física do que quando passa todo o
tempo apenas estudando. Isso jamais seria admitido pelos gnósticos ou pela Igreja
ser humano sofre em seu corpo, sofre também em sua alma; quando
Bacchiocchi escreve,
922
SCHNEIDER, Nélio. “Alma (corpo, espírito)”. Dicionário Brasileiro de Teologia (org. Fernando Bortolleto
Filho). São Paulo: ASTE, 2008, p. 30.
923
ANDRADE, Fernanda. Caminhada: 11 benefícios, como emagrecer e como começar. Disponível em:
<https://www.minhavida.com.br/fitness/tudo-sobre/12490-caminhada>. Acesso em: 13/01/2022.
1379
As consequências práticas do dualismo 1380
tanto numa perspectiva bíblica como científica as duas coisas estão perfeitamente
924
ENCYCLOPEDIA AMERICANA, edição de 1983, s, v. “Holistic medicine”, p. 294.
925
COUSINS, Norman. Anatomy of an Illness. New York: W. W. Norton & Co., 1979, p. 133.
926
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 22.
1380
As consequências práticas do dualismo 1381
não admira que as pessoas aceitassem com tanta facilidade ideias como a
cognitiva geral.
reconhece o teólogo católico José Comblin, torturar ou matar o corpo não era para
eles o mesmo que torturar ou matar o indivíduo, já que a “pessoa” não era o corpo
que externamente sofria, mas a alma que internamente permanecia intacta. Era a
Somente foi possível porque, para eles, o corpo não era realmente
927
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 43.
1381
As consequências práticas do dualismo 1382
Não por acaso a escravidão foi tão amplamente praticada pelos cristãos e
sancionada pela Igreja, tanto a católica como a maioria das protestantes (como eu
III (1198-1216) escreveu aos senhores do reino da França, que assim dizia:
os meios que Deus vos inspirará. Com mais firmeza ainda que com os
mim, se reunirão contra esta terra... e farão com que muita gente
nada.930
928
COMBLIN, José. Antropologia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 82.
929
Disponível em: <http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
930
BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard. A Inquisição. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 35.
1382
As consequências práticas do dualismo 1383
ordenava:
Três anos depois, esse mesmo papa emitiria ainda outra bula com o mesmo
Portugal sobre todas as terras situadas ao sul do cabo Bojador, na África. A bula
permitiu a escravização dos nativos e dos “negros tomados à força, e alguns por
931
PAPA NICOLAU V. Unam Sanctam Catholicam. Disponível em:
<http://unamsanctamcatholicam.blogspot.com.br/2011/02/dum-diversas-english-
translation.html>. Acesso em: 15/01/2022.
932
PAPA NICOLAU V. Romanus Pontifex. Disponível em:
<http://www.nativeweb.org/pages/legal/indig-romanus-pontifex.html>. Acesso em:
15/01/2022. 1383
As consequências práticas do dualismo 1384
crianças, mulheres grávidas e outros que não podiam oferecer qualquer resistência:
infiéis. (...) Na verdade estas ações são tantas, tão graves, tão cruéis e
execráveis, que sequer podem ser ditas uma a uma, nem serem
acreditar nelas a não ser que as veja com seus próprios olhos, pois só
933
LAS CASAS, Bartolomé de. Brevíssima relação da destruição das Índias; o Paraíso destruído. Porto
Alegre: LPM, 1984, p. 32.
1384
As consequências práticas do dualismo 1385
dos que foram reduzidos à servidão? E que dizer dos bens? O que
certa vez com seus cães à caça; não encontrando o que caçar e
934
LAS CASAS, Bartolomeu de. “Do único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião”. In: SUESS,
Paulo (org.). A conquista espiritual da América Espanhola: 200 documentos – século XVI. Petrópolis: Vozes,
1992, p. 495.
935
LAS CASAS, Bartolomé de. Brevíssima relação da destruição das Índias; o Paraíso destruído. Porto
Alegre: LPM, 1984, p. 71.
1385
As consequências práticas do dualismo 1386
É difícil imaginar como alguém que crê em Deus possa ser capaz de
monstruosidades como essas, e, pior ainda, como possa fazer isso com a aprovação
do papa ou das autoridades religiosas competentes. A razão por que isso é tão
difícil para nós hoje é porque tendemos a considerar o homem como um todo, não
como uma alma separada de um corpo. Mesmo os dualistas de nossa época são
O doutor em história social José Oscar Beozzo concorda quando diz que “a
Isso explica por que para nós é tão incompreensível que milhões de cristãos tenham
coniventes –, quando a moral cristã dos evangelhos a repele com tanta força. Para
nós isso é um absurdo porque temos um olhar mais holístico do homem, mas para
eles não era nada de mais, já que não faziam mal nenhum ao seu “verdadeiro eu”, a
936
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 56-57.
937
BEOZZO, José Oscar. “Evangelho e escravidão na teologia latino-americana”. In: RICHARD, Pablo (org.).
Raízes da teologia latino-americana. Paulinas: São Paulo, 1988, p. 122.
1386
As consequências práticas do dualismo 1387
alma imortal. É por isso que até mesmo os papas e evangelistas famosos como
Na cabeça deles, eles não estavam fazendo mal a uma pessoa, mas a uma
mera “carcaça” sem valor. Desde que a alma estivesse salva (ou seja, que o escravo
importava era a salvação da alma, não o que se fazia com o corpo. A escravidão era
tolerada, não porque os cristãos da época soubessem tão menos da Bíblia do que
humana em duas partes e despreza uma delas, a que sente na pele todo o
sofrimento humano.
daqueles que creem que Deus está operando para restaurar a pessoa
938
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 21.
1387
As consequências práticas do dualismo 1388
O que precisa estar claro é que não estamos falando apenas de uma
está em jogo são vidas, vidas essas que podem se perder agora e para sempre. Todo
estragos, tanto no que compete a esta vida como para comprometer a próxima. É
por isso que é tão importante defender a verdadeira doutrina. É uma discussão que
de pouca coisa. Como dissemos no início do livro, sem a imortalidade da alma não
adoração de imagens de gente morta, procissões com essas imagens, reza pelos
limbo, missa de sétimo dia, dia de finados, veneração de relíquias de quem morreu
impacta ainda hoje cada aspecto da nossa vida, da nossa forma de pensar, da
maneira como nos comportamos. Ele está presente em toda a filosofia e é usado
como base de numerosas ideologias, que vão desde cosmovisões religiosas até
teorias políticas. Em resumo, ele norteia toda a nossa vida, mesmo quando não o
1388
As consequências práticas do dualismo 1389
doutrina que também tem como fonte a imortalidade da alma: o tormento eterno
ainda acreditam) que Deus criou bilhões de criaturas apenas para serem torturadas
Um deus desses, que sem sombra de dúvida se parece muito mais com o
diabo, suscita mais terror que afeição e explica muito do porquê se creu por tanto
939
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 156.
1389
As consequências práticas do dualismo 1390
tempo que um deus desses teria prazer no sacrifício humano numa fogueira ou
numa câmara de tortura, e que seus carrascos serviriam à sua vontade. Uma
a uma eternidade de sofrimento após a morte também serve para torná-los inertes
agora.
1390
1391
Introdução – Até aqui, nós focamos naquilo que acontece com o homem
a Bíblia descreve este estado como uma inatividade absoluta, comparável ao sono,
de morte total do ser racional. Nesta segunda parte do livro, estudaremos o que
acontece com o homem após a ressurreição (ou seja, o seu destino eterno). Para os
no inferno como estavam antes, só que desta vez com corpo e alma, para
por demônios de rabo grande e tridente, enquanto são dilacerados por vermes e
que ali reina como um verdadeiro rei. Já os salvos, cuja alma se desliga do corpo em
novamente ao céu, onde estarão para sempre perseguindo nuvens, tocando harpa
douradas na cabeça.
Já na visão holista, o homem integral é que morre e ressuscita, mas não para
o céu ou para o inferno. Essa pode ser a coisa mais chocante que você talvez já tenha
lido, mas a Bíblia nunca diz que alguém irá para o céu ou para o inferno. A razão por
1391
Uma introdução histórica ao inferno 1392
que essa afirmação soa tão chocante é porque aprendemos desde o berço que
estes são os dois destinos definitivos no pós-morte, e que só quem pensa diferente
verdade bíblica. Assim fomos doutrinados de todas as formas possíveis (em casa,
nos cultos, na EBD, na catequese, na mídia, nos filmes, em livros e por aí vai).
Não bastasse o nosso cérebro ser bombardeado a todo instante com os dois
trata daquilo que ele se lançou “de cabeça” (com o perdão do trocadilho). Sabemos
de Jim Jones e da Família Manson). Na famosa noite em que 909 membros da seita
de Jim Jones cometeram suicídio coletivo, ele os convenceu dizendo que morrer é
O que mais impressiona não é a crença imortalista de Jones, mas como ele
a concordar com qualquer coisa que ele dissesse – como se já não fosse o bastante
acreditar que Jones era a reencarnação de Jesus, Buda e Lenin. Obviamente, nem
todos que ensinam a imortalidade da alma são como Jim Jones, mas todos se
absoluta aquilo que eles sempre ouviram, ou àquilo ao qual se apegaram de corpo
940
Disponível em: <https://jonestown.sdsu.edu/?page_id=29081>. Acesso em: 31/08/2020.
1392
Uma introdução histórica ao inferno 1393
É por isso que apesar da maioria dos cristãos nunca ter lido a Bíblia inteira
uma única vez na vida, mesmo assim se escandalizam ao ouvir alguém dizer que a
alma morre, ou que ninguém vai morar no céu, ou que o inferno não existe. A razão
por que essas afirmações causam surpresa e atraem uma repulsa automática não é
porque as pessoas estudem a Bíblia a fundo e cheguem a outra conclusão, mas tão-
somente porque isso confronta tudo aquilo que ela ouviu a vida toda – mesmo que
Nosso cérebro foi “programado” para aceitar o céu e o inferno como os dois
destinos post mortem porque é aquilo no qual ele foi ensinado a vida inteira, culto
após culto, EBD após EBD, livro após livro e filme após filme, seja pelos pais, pelos
inferno, mesmo que ele não creia em nada disso. E porque somos tão fortemente
concordar com o senso comum e a dar o assunto por encerrado, mesmo que nós
Só de você estar lendo este livro já é um bom começo, pois a maior parte das
aprenderam. Se eu tiver êxito, espero que até o final você se convença pelas provas
bíblicas de que a vida eterna dos salvos é na nova terra, e que o destino dos ímpios
não é o “inferno” (apesar das traduções adulteradas nos induzirem a isso), mas a
morte eterna, após um período de castigo proporcional aos pecados de cada um. É
por isso que em toda a Bíblia não há sequer um único texto que expresse a antítese
1393
Uma introdução histórica ao inferno 1394
tão popular entre “céu e inferno”, mas somente entre “vida e morte” (Pv 19:16, 11:19;
Mas para que você não pense que essa visão é nova, antes de entrarmos
naquilo que a Bíblia diz faremos um breve panorama histórico, resumindo o que
questão de sair da Bíblia, este tópico é importante, não só para refutar aqueles que
apóstolos estavam inseridos, que era muito diferente do cenário que a maioria dos
imortalistas pensa.
medieval trouxe foi nos acostumar à ideia de um tormento eterno, algo que em
viola qualquer senso moral humano. A verdade é que, quanto mais nos
acostumamos com aquilo que é mau, mais nos tornamos insensíveis ao sofrimento
da escravidão. Quando nós pensamos em algo tão cruel, que percorreu quase toda
a história da humanidade até poucos séculos, nos perguntamos como tanta gente
pôde ter feito vista grossa, tratado com naturalidade e até mesmo apoiado
ativamente a prática.
941
Disponível na página dos livros em meu site: <http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
1394
Uma introdução histórica ao inferno 1395
respeito dos papas da época)942. Nós só conseguimos entender como tanta gente
“adotaram”. Um desses casos é de Oxana, uma menina ucraniana que foi criada por
amigos caninos:
O vínculo com a matilha de cães era tão forte que as autoridades que
Suas ações eram iguais aos sons de seus cuidadores. Ela rosnou, latiu,
quando ela foi resgatada. Quando foi descoberta, Oxana achou difícil
942
Você pode ler mais detalhadamente sobre isso no capítulo 4 do meu livro “A Bíblia e a Escravidão”,
disponível em: <http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
1395
Uma introdução histórica ao inferno 1396
emocional veio dos cães com quem ela vivia. Quando foi encontrada
na selva aos oito anos e foi reencontrada pela família quase vinte anos depois.
Apesar disso, ela nunca conseguiu se reajustar à vida em sociedade. Sua mãe
sempre tinha que colocar suas roupas novamente quando ela tentava tirá-las, e três
anos depois, após várias tentativas de fuga, ela finalmente conseguiu voltar para a
suscetível ao meio em que vive e é facilmente influenciado por ele, o que explica
praça pública, o que hoje só seria admitido por um grupo como o ISIS. Quanto
opinião pública da época, porque a ética social era misógina o suficiente para
permitir afirmações desse tipo. As mesmas afirmações feitas hoje gerariam intensa
A noção de que o ser humano é guiado puramente pela razão e que segue
aquilo que lhe parece o mais lógico é fabulosa e mítica. Somos massivamente
influenciados pela criação que recebemos, pela escola que estudamos, pela mídia
943
Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2014/04/conheca-a-historia-de-5-criancas-que-
foram-criadas-por-animais>. Acesso em: 31/08/2020.
944
Ibid.
945
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. “Prima Pars”. Questão 99, Art. 2.
946
ibid. “Secunda Secundae”. Questão 70, Art. 3.
1396
Uma introdução histórica ao inferno 1397
tradicional, pelos influencers digitais, por todos com quem convivemos e até
mesmo pelo tiozão do zap. A soma de tudo isso forma quem nós somos, não de
Paulo disse que “as más companhias corrompem os bons costumes” (1Co
15:33), justamente porque ele sabia o quanto somos influenciados por aqueles com
sua famosa frase “diga-me com quem andas, e te direi quem és”, o que ele tinha em
mente era precisamente essa tendência muito fácil de se constatar, que sequer é
mentalidade. Isso explica por que temos a tendência de achar que uma coisa é certa
ou boa por ser apoiada pela maioria, e vice-versa – a despeito do quão errada ou
farão as futuras gerações se perguntarem como foi possível tanta gente ter
acreditado em algo tão pavoroso e macabro por tanto tempo, mas que parece
“normal” para muitos cristãos que foram doutrinados com ela desde cedo, o que
moralmente repugnante uma coisa seja: ela sempre parecerá aceitável quando
apoiada pelo senso comum, o que faz muitos perderem a noção do quão
1397
Uma introdução histórica ao inferno 1398
Daqui duzentos anos, as pessoas olharão para os nossos dias com o mesmo
espanto que olhamos hoje para cristãos da estatura de Jonathan Edwards e George
Whitefield, sem entender como eles defendiam a escravidão usando até mesmo a
contra a escravidão, tomando todo o cuidado do mundo para não ser assertivo
demais a ponto de desagradar a maioria, que a apoiava. Eles não podiam falar de
boca cheia tudo o que pensavam dela e todo o horror que ela representava, como
fazemos hoje com tranquilidade. Isso não acontecia porque a escravidão fosse
menos horrenda do que de fato era, mas pela dificuldade em enxergar todo o
embora ainda seja rejeitado pela vasta maioria dos brasileiros, é aceito e apoiado
pela maioria dos europeus, que não conseguem ver nisso o que realmente é, nem
condená-lo pelo nome do que realmente se trata: assassinato. É a mesma razão por
que é tão difícil para tantos cristãos enxergarem a tortura eterna do inferno com o
horror que ela realmente representa: não porque a doutrina seja menos desprezível
longe de ser a mais popular, embora ela já tivesse alguns fãs. Nós vimos no capítulo
8 que por ocasião da diáspora judaica muitos judeus foram expostos às doutrinas
alma que sobrevive à morte era a que predominava no mundo greco-romano. Mas
1398
Uma introdução histórica ao inferno 1399
isso não significa que todos os judeus helenizados passaram a crer em um tormento
eterno, este ensino acabou entrando com menos força no Judaísmo do Segundo
Isso explica por que a maior parte dos apócrifos judaicos dessa época
como o gelo ao fogo. Ele será esmagado como a um dragão, sem que possa
um novo céu e uma nova terra, onde não existirá mais nenhum demônio.
(Jd 9), é outro livro abertamente aniquilacionista, onde lemos em letras cristalinas
que “então o reino dEle aparecerá através de toda Sua criação, e então Satanás não
1399
Uma introdução histórica ao inferno 1400
mais existirá, e a tristeza partirá com ele”947. Neste momento, não apenas Satanás,
Deus eterno, e Ele aparecerá para castigar os gentios, e destruirá todos seus ídolos.
Então tu, Israel, ficará contente, e montará nos pescoços e asas da águia, e eles
serão exterminados”948.
Os Oráculos Sibilinos, obra composta por volta do segundo século a.C por
autores judaicos, diz que Deus “queimará a terra inteira, e consumirá toda a raça
sempre, e ele não será lembrado, quando o justo é visitado”950. Os arrogantes irão
destruição e as trevas”952. Logo após dizer que a vida dos justos é para sempre,
acrescenta que “os pecadores serão levados para a destruição, e não será
947
Assunção de Moisés, 10.
948
ibid.
949
Oráculos Sibilinos, 4:76.
950
Salmos de Salomão, 3:11-12.
951
ibid, 2:31.
952
ibid, 15:10.
953
ibid, 13:11. 1400
Uma introdução histórica ao inferno 1401
de Jasher declara que “todos os teus inimigos perecerão, ó Deus, e os ímpios serão
como palha impulsionada pelo vento, e os teus amados serão como árvores
de Abraão diz que “a Mim compete acabar com o Hades e exterminar aqueles que
compara o fim dos ímpios com o fim dos antediluvianos que morreram no dilúvio,
e anuncia que Deus “não deixa remanescentes ou sobreviventes dentre eles”958. Por
consequência, eles serão “como se não tivessem sido”959. Também nos rolos do Mar
Belial”961.
954
Ode 23:20.
955
Ibid, 29:10.
956
Livro de Jasher, 89:22.
957
Apocalipse de Abraão, 9:12.
958
Documento de Damasco, 2:6-7.
959
ibid, 2:20.
960
1QS 4:14. 1401
961
Ibid, 2, 4-8.
Uma introdução histórica ao inferno 1402
“Ela durará, mas não sempre; ela dominará o proceder dos injustos, e os
justos não serão devorados pelas suas chamas. Aqueles que abandonam
Deus lhe serão entregues: ela os consumirá sem se apagar; ela se lançará
sobre eles como um leão; e os estraçalhará como um leopardo”
(Eclesiástico 28:26-27)
O trecho que diz que «os justos não serão devorados pelas suas chamas» já
deixa subtendido que os ímpios serão devorados, o que é reafirmado de forma mais
direta quando diz que «ela os consumirá sem se apagar». Embora a “chama” não se
apague, quem ela queima não permanece eternamente vivo em meio às chamas
num corpo incorruptível, mas é consumido, devorado por elas da mesma forma que
alguém é estraçalhado por um leopardo. Ele também diz que “a espada vingadora
[está] destinada ao extermínio dos ímpios” (39:36) e que “no fim os prevaricadores
serão aniquilados” (40:14), numa linguagem impossível de ser mais clara. Para o
autor, a aniquilação dos ímpios é tão completa que “até o nome dos ímpios será
aniquilado” (41:14).
que contrasta a existência eterna de Deus com a destruição eterna dos homens:
com aqueles que «adquirirão a vida», os ímpios «morrerão»: “Ela é o livro dos
mandamentos divinos e a lei que subsiste para todo o sempre. Todos aqueles que
1402
Uma introdução histórica ao inferno 1403
passa a eternidade toda em prisão (mas não queimando). Mas na época de Jesus, e
três principais facções em relação àquilo que acontece após a morte. A vertente
epicuristas, semelhante aos saduceus, acreditavam que tudo acabava com a morte,
um só.
Para os estoicos, as almas são destruídas pelo fogo, que consumirá o mundo
todo. Porém, passado algum tempo, Zeus recriaria o mundo e recomeçaria tudo
outra vez, dando origem a novas destruições periódicas em ciclos sem fim.
gregos, disse que para os estoicos “a alma permanece depois da morte, e é, todavia,
corruptível [mortal]” 962. O famoso filósofo romano Cícero (106-43 a.C) igualmente
asseverou que “os estoicos dizem que as almas durarão por muito tempo, mas não
para sempre”963.
962
DIÓGENES LAÉRCIO. VII, 156 (von Arnim, S.V.F., II, fr. 774).
963
CÍCERO. Tusc. disp., I, 31, 77 (von Arnim, S.V.F., I, fr. 822).
1403
Uma introdução histórica ao inferno 1404
várias aniquilações em vez de uma só. A despeito disso, a similaridade entre o que
serem muito posteriores a estes e de terem tirado tudo isso da lei e dos
profetas” (Livro II, 37)
que se diferisse na quantidade. Pedro, por exemplo, diz que “os céus e a terra que
agora existem estão reservados para o fogo, guardados para o dia do juízo e para a
destruição dos ímpios” (2Pe 3:7), e também que Deus “condenou as cidades de
O fim dos ímpios não é uma vida eterna no inferno, mas a destruição total
pelo fogo que consumirá céus e terra, reduzindo-os às cinzas, enquanto os salvos,
por sua vez, herdarão os «novos céus e nova terra» que Deus criará (2Pe 3:13; Ap
1404
Uma introdução histórica ao inferno 1405
21:1; Is 65:17). Em outras palavras, ainda que Teófilo discordasse de muitas das
crenças dos gregos, ele concordava no que diz respeito à conflagração universal.
abrasará todos os ímpios’ (Ml 4:1). E Isaías: ‘A ira do Senhor virá como
granizo que cai com violência e como água no vale que arrasta tudo’ (Is
depois dos profetas, porque o que importa é que falaram de acordo com os
ardente consome todos os ímpios (em vez de mantê-los em vida para sempre) e um
texto de Isaías que fala de um “fogo consumidor” (Is 30:27), como exemplos da
mesma conflagração da qual os poetas falaram. Uma vez que a conflagração crida
por esses poetas consistia na destruição total das almas, não faz sentido interpretá-
os próprios textos bíblicos aludidos, que nada falam de um tormento eterno para
Mas Teófilo estava longe de ser o único Pai da Igreja que defendeu o
aniquilacionismo. Como demonstrei em meu livro sobre o tema, essa foi a posição-
padrão dos Pais da Igreja dos primeiros dois séculos, à exceção de alguns que
1405
Uma introdução histórica ao inferno 1406
da Igreja cujos escritos chegaram até nós foi Clemente de Roma (37-97), que
escreveu por volta de 90 d.C. Seu único escrito sobrevivente é uma carta escrita à
igreja de Corinto, onde ele diz que os ímpios serão «exterminados»964 e «não mais
existirão»965.
destacado pela Didaquê (c. 60-90), que diz que aquele que pede algo sem
necessidade “será posto na prisão e interrogado sobre o que fez; e dali não sairá até
tempo limitado é abordada com mais profundidade por Hermas (70-155), que
"Eu lhe disse: ‘Senhor, explica-me ainda esse ponto’. Ele perguntou: ‘O que
Deus, fossem torturadas por tempo sete vezes maior'. Ele me disse:
964
Clemente aos Coríntios, 57:4.
965
ibid, 14:3-4.
966
Epístola de Barnabé, 20:1.
967
Didaquê, 1:5.
1406
Uma introdução histórica ao inferno 1407
que os ímpios têm suas almas aniquiladas e morrem968. Quem também expressou
esse pensamento foi Justino (100-165), que nos primeiros capítulos de seu Diálogo
Uma das coisas que o velho cristão lhe disse foi que “as almas que se manifestaram
dignas de Deus não morrem; as outras são castigadas enquanto Deus quiser que
Aqui, vemos que apenas as almas que são dignas de Deus “não morrem”, o
que implica que as outras morrem. Mas note que elas não morrem sem que antes
Deus as castigue pelo tempo que ele deseja que elas existam. O próprio Justino é
levado a concluir que “além de Deus, tudo o que existe ou há de existir possui
incriado e incorruptível e, por isso, ele é Deus; mas, além dele, todo o resto é criado
e corruptível. Por esse motivo, as almas morrem e são castigadas”970. Tão verdadeiro
968
Pastor de Hermas, 62:1.
969
Diálogo com Trifão, 5:2.
970
ibid, 5.
1407
Uma introdução histórica ao inferno 1408
alma foi Taciano, o Sírio (120-180). Em seu Discurso contra os Gregos, ele diz que
se aos demônios, ele diz que “é fato que eles não morrem facilmente, pois não têm
imortal”. Significa apenas que demoram mais tempo pra morrer, já que pecaram
muito mais. Por isso ele diz que “entre os homens que os seguem, aconteceu menos
espécies de pecados por não viverem longo tempo, enquanto nos citados
vida”973. Note ainda que ele diz “tempo indefinido”, não “eterno” ou “imortal”.
por todas: “Há quem diz o mundo é indestrutível; eu, que é destrutível; que a
971
Discurso contra os Gregos, 13.
972
ibid, 14.
973
ibid.
974
ibid, 25.
1408
Uma introdução histórica ao inferno 1409
aos salvos. Em sua obra “Contra as Heresias”, ele deixa claro que os ímpios se privam
“E, novamente, Ele fala assim a respeito da salvação do homem: 'Ele lhe deu
Pois a vida não surge de nós, nem de nossa própria natureza, mas é
rejeitar, e provar por si mesmo que é ingrato para com seu Criador na
medida em que foi criado, e não O reconhecer como aquele que concedeu o
dom da vida, este priva-se da continuidade para todo o sempre. E, por essa
razão, o Senhor decretou a quem se mostrar ingrato para com Ele: se você
não for fiel no que é pouco, ele vai lhe dar aquilo que é grande? Isso indica
que aqueles que se mostraram ingratos para com Ele nesta breve vida
se trata de dizer que as almas que anteriormente não existiam devem passar a existir
para sempre, uma vez que Deus deseja que elas devam existir, e devem continuar
em existência”975. Quanto aos ímpios, “eles são privados de seu dom, que é a vida
975
Contra as Heresias, Livro II, 34:4.
976
ibid, Livro III, 19:1.
1409
Uma introdução histórica ao inferno 1410
existência eterna”978, pois Ele “tem poder de conferir-lhes duração eterna”979. Mas,
aos que não creem, pergunta: “Como pode ser imortal, quem em sua natureza
mortal não obedece ao seu Criador?”980. Até mesmo o desconhecido autor da carta
até o fim aqueles que lhe forem entregues”981, o que supõe um fim aos tormentos.
Uma nota à parte fica por conta de 3ª Coríntios, um apócrifo cristão escrito
canônica pelas igrejas armênia e siríaca e citada como Escritura por muitos Pais da
Igreja orientais, como Afraates, Santo Efrém e Gregório o Iluminador. Nela, vemos
o pseudo-Paulo dizendo que “o Senhor Jesus Cristo irá apressar sua vinda e
e gregos).
Mas essa visão estava com os dias contados. Dentro de poucos séculos, o
de que o homem nasce com uma alma imortal, e que essa imortalidade natural e
incondicional implica numa existência eterna e perene de justos e ímpios – uns com
977
ibid, Livro IV, 37:6.
978
ibid, 38:3.
979
ibid, Livro V, 5:2.
980
ibid, Livro IV, 39:2.
981
Carta a Diogneto, 10:7.
982
3ª Coríntios, 3.
983 1410
Disponível em: <https://www.meudicionario.org/aniquilar>. Acesso em: 25/02/2022.
Uma introdução histórica ao inferno 1411
uma vida eterna no céu, e os outros com uma vida eterna no inferno. Assim, toda a
abertamente este fato. Basílio (330-379), por exemplo, admitiu que “grande parte
dos homens afirma que haverá um fim à punição daqueles que foram punidos”984,
e Agostinho, o “pai” do inferno eterno, disse que “existem muitíssimos que apesar
ser traduzida como “a maioria”. Isso mostra que mesmo após a introdução da
a posição oficial da Igreja ocidental (mais tarde batizada como “Igreja Católica
984
De Asceticis.
985
Enchiria, ad Laurent, 29.
986
Contra os Pagãos, Livro II, 14-15.
1411
Uma introdução histórica ao inferno 1412
“Igreja Ortodoxa Grega”), talvez pela influência de Agostinho ser menor, o inferno
pode ser “salvo” no final. Isso se deve em grande parte à influência de Pais orientais
acreditavam que os ímpios viverão para sempre, mas não num inferno de fogo
Deus após a morte, uma experiência que para os salvos será de refrigério e para os
Deus a quem eles não amam. O “inferno”, entendido dessa maneira, é semelhante
a um adolescente rebelde que é levado pelos pais à marra para a igreja, onde tem
que suportar duas horas de culto que para ele é um tédio insuportável. A diferença
é que no céu ele teria que fazer isso eternamente, e seria nisso que consistiria o seu
“tormento eterno”.
um sofrimento físico literal, mas a presença divina manifesta plenamente, que para
os salvos será uma experiência de indizível paz e alegria, mas para os condenados
1412
1413
empregado em relação aos ímpios, embora esta seja a conclusão natural que
controlar e aterrorizar as massas, nós veremos nos capítulos seguintes que ela
também é incompatível com o que a Bíblia ensina sobre o destino dos ímpios, que
e que nem tudo foi reformado imediatamente). Por isso, é o inferno ocidental de
tormento eterno literal e físico que será enfatizado nos próximos capítulos, apesar
1413
1414
• O surgimento do “inferno”
tipo. Assim, resta explorar o significado do “Geena”, que é para onde os ímpios irão
perdura por toda a eternidade, onde os ímpios são lançados após a ressurreição.
termos diferentes para designar o inferno, quando o inferno, em tese, seria uma
coisa só. O disparate é tanto que até hoje eles chamam apenas de “inferno” as duas
ouvirá uma pregação sobre o Sheol e menos ainda sobre o Geena, mas ouve sobre
o inferno, e muito.
A razão por que nenhum deles fala em Sheol ou Geena é porque estes são
os termos bíblicos, e os imortalistas não gostam muito da Bíblia. Em vez disso, eles
adotam a terminologia católica que vem da Vulgata, a Bíblia latina criada por
Jerônimo no início do século V que continua sendo a versão oficial adotada pelos
1414
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1415
aramaico e grego, e não em latim –, o termo pegou, e com o tempo passou a ser
usado no sentido que conhecemos hoje: de uma terrível câmara de tortura que arde
os textos bíblicos que falam de Sheol, Hades e Geena (e até mesmo do tártaro, que
nas Bíblias católicas, que traduzem não dos originais da Bíblia, mas da Vulgata de
Jerônimo.
traduzirem dos originais. A razão para isso é que o inferno já estava tão fortemente
que ele não conste nos originais. Mais uma vez, a tradição prevaleceu sobre as
Escrituras, e graças a isso versões modernas até hoje mantém o termo “inferno”,
por “inferno”, ou assim o fazem quando o tradutor acha que o texto se refere ao
Tome como exemplo 2ª Pedro 2:4, cujo original grego traz o termo “tártaro”:
1415
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1416
“ei gar ho theos angelōn hamartēsantōn ouk epheisato ala seirais zophou
Como a João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada traduziu esse verso? Assim:
Como a mesma João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada traduziu esse verso?
Adivinhe:
inferno”
“kai hē glõssa pyr ho kosmos tēs adikias hē glõssa kathistatai en tois melesin
hēmōn hē spilousa holon to sõma kai phlogizousa ton trochon tēs geneseōs
Como você acha que a João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada traduziu
1416
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1417
na Bíblia, eles violentam os mais diversos termos usados nos originais, de forma
Bíblia, já que o próprio inferno não existe nos originais, o que não é questão de
Chega a ser irônico que as versões bíblicas que mais se orgulham de traduzir
“direto dos originais” coloquem o inferno, de origem latina, para dentro da Bíblia,
em vez de traduzir do hebraico e do grego. Só quem tem a perder com isso são os
leigos, que desconhecem esse pequeno detalhe e são induzidos a pensar que o
inferno é mesmo uma doutrina bíblica, porque o leem em suas Bíblias que são
traduzir tudo por “inferno”. Afinal, seria mesmo difícil explicar como que palavras
incrédulo ao morrer é lançado ao Hades para queimar por milhares de anos, e então
é ressuscitado para voltar a queimar do mesmo jeito que antes, só que dessa vez
1417
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1418
ambos sejam igualmente um lugar de tormento com fogo). Não admira que eles
coerência é a NVI, que preserva os termos Sheol e Hades todas as vezes que
mostrando que mesmo ela não está pronta para dar esse passo adiante, preferindo
tradicionais. As demais, de modo ainda mais cínico, traduzem até mesmo o Sheol
como “inferno”.
mencionar o inferno no plural, mas é isso o que ele deveria fazer se levasse sua
própria teologia a sério. A razão por que todos eles falam apenas “do inferno”, como
uma coisa só, é porque eles sabem o ridículo que seria falar do inferno como sendo
dois, e do choque que isso causaria nos leigos. Por isso preferem continuar falando
do inferno como um lugar só – aquele que alguns vão depois da morte e ali
seus livros mofados de teologia sistemática que ninguém lê. Se isso parece
continuarem queimando do mesmo jeito que já estavam antes. Eles bem que
1418
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1419
gostariam de defender isso, mas não podem, porque bateria de frente com o texto
que diz que o Hades será lançado no lago de fogo (Ap 20:14), que para eles é outro
inferno (identificado com o Geena), já que não faz o menor sentido o Hades ser
lançado dentro dele mesmo. No entanto, em vez de solucionar o problema, isso cria
mais uma bizarrice cômica: a de um inferno literal sendo lançado dentro de outro
Como nós não pretendemos enganar ninguém e nem cair nas mesmas
pra falar do Sheol, Hades quando é pra falar do Hades, Geena quando é pra falar do
Geena e “inferno” quando é pra falar do mito criado pelos imortalistas. Mas, afinal,
não pode significar a mesma coisa que ele, como na teologia imortalista. A lógica,
• O significado do Geena
ali que todos os mortos estão até que Deus os ressuscite. Mas se por um lado justos
muitos justos são registrados no Sheol (Gn 44:29; 1Rs 2:9; Jó 17:16), mas nenhum
1419
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1420
lugar para onde só os ímpios vão (Mt 5:22, 18:9, 23:33; Mc 9:43), e para onde vão
repetições dos evangelhos (Mt 5:22, 29, 30, 10:28, 18:9, 23:15, 33; Mc 9:43, 45, 47; Lc
12:5; Tg 3:6). Todas as vezes, à exceção do texto de Tiago, são palavras de Jesus.
Talvez por isso, muitos imortalistas pensam que Jesus estava criando um conceito
novo e estranho à mentalidade judaica, uma vez que o termo próprio “Geena” não
aparece no AT, e é quase ausente fora dos evangelhos. Mas faria pouco sentido
Jesus citar o fogo do Geena, se o Geena não fosse conhecido daquele público.
Tome como exemplo o texto em que Jesus diz que “é melhor perder uma
parte do seu corpo do que ser todo ele lançado no inferno” (Mt 5:29). Onde aparece
“inferno”, é o “Geena” que consta no grego. Literalmente, Jesus estava falando que
o corpo pode ser lançado no Geena. Mas de que adiantaria isso, se o público em
questão não fizesse bulhufas de ideia do que seria o Geena? Isso seria o mesmo que
eu ameaçar enviá-lo para Pavabag. Você provavelmente não vai dimensionar o que
isso significa, porque “Pavabag” é uma palavra que eu inventei agora e não existe
em dicionário algum. Para que o discurso de Jesus não fosse tão incompreensível e
vazio quanto Pavabag, era preciso que seus ouvintes soubessem – ou pelo menos
tivessem uma boa ideia – o que era esse Geena do qual Jesus falava.
lembrar que Jesus se comunicava com os judeus no idioma deles, não em grego,
apesar dos evangelistas escreverem em grego e por isso transliterem para “Geena”.
1420
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1421
Mas, afinal de contas, o que era esse tal Vale de Hinom? Pelas informações que
temos no AT, o vale se situava à sudoeste de Jerusalém (Js 15:8, 18:16; Jr 19:2) e foi
usado para sacrifícios humanos a deuses pagãos numa época de intensa apostasia
Mais tarde, esse vale serviu como depósito de lixo, onde também lançavam
para que os cadáveres e o lixo fossem consumidos. O fato do Geena estar associado
a cadáveres, fogo e matança fez dele um símbolo perfeito para o que acontece após
consumidos, tal como os cadáveres do Vale de Hinom. Essa imagem foi vividamente
narrada por Isaías e Jeremias, que o descrevem como o «vale da matança» (Jr 19:6)
no qual os ímpios por fim perderão a vida, e seus cadáveres serão entregues aos
Isso explica por que o Geena só é citado por Jesus nos evangelhos e por
Tiago em sua carta: ambos se dirigiam a um público judeu (Tg 1:1), que conhecia
demais apóstolos nunca escreveram sobre o Geena, porque não faria sentido falar
entenderia bem o que estava sendo aludido, sem correr o risco de ser mal
interpretado. Para Paulo, o mais importante não era onde os ímpios estariam
Essa é a razão por que há tão poucas menções ao “inferno” (Geena) na Bíblia,
obcecados por ele. Se você acredita que os ímpios nunca serão consumidos, mas
1421
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1422
que sofrerão eternamente em algum lugar, este lugar vira o centro do palco, o que
explica por que o inferno ganhou tanta notoriedade ao longo dos séculos até os
nossos dias. Mas se o “inferno” é apenas o lugar onde os ímpios serão destruídos, o
quem nele está. É por isso que o “inferno” se tornou onipresente na cultura popular,
que os judeus tinham desde os tempos de Isaías e Jeremias, que viam no Vale de
Rinaldi até chega a reconhecer isso, mas faz uma aplicação totalmente surreal na
Hinom” e mostra que o local recebeu esse nome por causa dos
dos Filhos de Hinom (Jr 7:22) tornou-se o nome técnico para designar
Note que Rinaldi reconhece ser o Geena um local de sacrifício, mas então o
987
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 107.
1422
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1423
se apropriou dessa imagem para descrever o tormento eterno dos ímpios, não
Embora seja possível que um brasileiro no século XXI veja o Geena como um
local de tormento eterno, essa de nenhuma maneira seria a forma como um judeu
foi visto por eles como um lugar associado a morte, cadáveres e lixo, nunca como
um lugar de castigo consciente. Se essa fosse a ideia, faria muito mais sentido usar
como exemplo uma prisão, onde os condenados pagavam pena por um tempo, em
tortura sem fim, já deveria encerrar toda a discussão – pelo menos pra qualquer
leitor inteligente. Não há nada que faça menos sentido do que usar um vale que
denotava apenas morte como um símbolo do seu exato oposto – a existência eterna
e sem fim. Se a razão por que Paulo e os apóstolos (à exceção de Tiago, o único a
escrever a judeus) jamais falaram do Geena é porque não queriam confundir seus
leitores gentios, isso implica que Jesus e Tiago não citavam o Geena em um sentido
forma. É justamente pelo Geena ser usado num sentido consistente com seu
Não, os ímpios não saem de um inferno para outro inferno, mas da sepultura
para o Geena, onde serão destruídos. Alguém poderia alegar que também não faz
se quem alegasse isso não estivesse pulando etapas. Deus não ressuscita um ímpio
1423
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1424
para matá-lo imediatamente em seguida, o que seria tão estúpido quanto transferi-
lo de um inferno a outro.
receberão o veredicto de acordo com as suas obras; então são presos pelo tanto
induzidos por Satanás para a rebelião final, e só então é que perecem no Geena. Há
espantalho.
Iremos abordar cada um desses eventos nos tópicos seguintes, mas é bom
fundamental, não só para resguardar a perfeita justiça divina, mas porque muitos
• O castigo proporcional
muito tempo. Ele foi sentenciado a 20 anos de cadeia, sem direito a advogado ou a
também foi condenado a 20 anos de detenção. Dividia a mesma cela com eles Yuri,
1424
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1425
com todos os requintes de crueldade que é possível imaginar. Sua pena? Adivinhe:
20 anos.
Imagine que você seja um cidadão dessa cidade sinistra, que condena todo
no lugar de Joãozinho. Como se sentiria sabendo que seu crime tem o mesmo peso
que os crimes de Miguel e de Yuri? Eu não sei o que você pensa disso, mas se você
julga ser justo e coerente que todos os criminosos sejam sentenciados ao mesmo
tempo de detenção, há algo errado com o seu senso de justiça – a não ser que você
justiça do juiz dessa cidade, que não vê diferença entre roubar um frango e estuprar
uma criança. Ou seja, que Deus tem um senso de justiça inferior ao nosso, ou que
iguais, sem distinção de grau ou peso, é bastante popular entre os evangélicos. Essa
mesma pena.
Essa ideia é fortemente confrontada por textos como João 19:11, onde Jesus
1425
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1426
Ezequiel diferentes graus de idolatria à qual o povo estava submetido, e lhe declara
três vezes que “verás abominações ainda maiores que estas” (Ez 8:6, 13, 15). Por isso
a pena na lei para quem cometia um assassinato não era a mesma para aquele que
roubava: enquanto o ladrão tinha que devolver até cinco vezes mais o que roubou
(Êx 22:1), o assassino era condenado à morte, porque tirou uma vida (Nm 35:16).
todos os coríntios e até ele mesmo, que se reconhecia como um pecador (1Tm 1:15-
16). Em vez disso, ele só excomungou um membro daquela igreja, que mantinha
(1Co 5:1-5). O que muitos evangélicos fazem é uma confusão entre a gravidade do
significa que eles sejam iguais, nem que sejam castigados com a mesma
intensidade.
Tome como exemplo a forma como a lei punia o culpado por uma briga
“Quando dois homens se envolverem numa briga, terão que levar a causa ao
tribunal, e os juízes decidirão a questão, absolvendo o inocente e condenando
crime merecer, desde que nunca ultrapasse quarenta açoites. Açoitá-lo além
disso seria humilhar publicamente um israelita”
(Deuteronômio 25:1-3)
1426
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1427
limite. Eles nunca podiam ultrapassar os quarenta, porque Deus não é um maníaco
insensível e sádico que inflige sofrimento para além das nossas capacidades, como
morte989. Não há na lei de Moisés um único crime que seja castigado com mais que
lei é uma “sombra” (i.e, uma figura) das realidades futuras (Hb 10:1; Cl 2:17), no
sentido de que encontramos na lei a tipificação daquilo que estava por vir. Por
Jesus, o Cordeiro de Deus (Hb 9:11-14; Jo 1:29); a circuncisão como sinal externo da
terrestre era uma sombra do tabernáculo celestial (Hb 8:5-6); as leis de “impureza”
tipificava Jesus, nosso definitivo e único sumo sacerdote da nova aliança (Hb 10:19-
988
GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo. Rio de Janeiro: Objetiva Ltda, 2007.
989
EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
1993, p. 56.
1427
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1428
certamente oculto ao entendimento dos israelitas da época, mas que eram sombras
É por isso que Deus jamais mandaria um israelita ser açoitado para sempre
ou até esgotarem suas forças, o que passaria uma ideia errada do que acontece
após o juízo. Em vez disso, as duas punições mais frequentes previstas na lei
espiritual futura, deixasse de fazer isso justamente com um dos temas mais
antagônico àquele que será implementado de fato, como se Deus usasse o castigo
diametralmente oposto a ambos. Neste caso, seria como se eu quisesse ilustrar uma
coisa com a sua antítese, o que é o inverso do propósito de um antítipo (uma figura
É por isso que Jesus falou diversas vezes sobre o castigo dos ímpios, mas
que algumas versões fazem em cima de Mt 25:46, o que analisaremos mais adiante).
1428
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1429
um fim temporal:
“Aquele servo que conhece a vontade de seu senhor e não prepara o que ele
deseja, nem o realiza, receberá muitos açoites. Mas aquele que não a
conhece e pratica coisas merecedoras de castigo, receberá poucos açoites”
(Lucas 12:47-48)
Jesus falava aqui do castigo que o ímpio receberá após o juízo, mas note a
juiz ordenará que ele se deite e seja de seu senhor e não prepara o que ele
número de açoites que o seu crime açoites. Mas aquele que não a
Ambos os textos falam de açoites, ambos os textos dizem que os açoites são
que dissemos sobre a lei tipificar com exatidão as realidades do Reino, através de
coisas do cotidiano. Jesus não “revogou” a lei, apenas a “descortinou”, isto é, deu a
1429
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1430
ela o seu sentido completo, trazendo à realidade aquilo que estava nas sombras (Mt
identificado por Jesus como uma alusão ao castigo dos ímpios, que também será
endossando o tormento eterno ao falar do servo que recebe «muitos açoites». Mas
se os “muitos açoites” significam um tormento eterno (ou seja, açoites sem fim), o
eterno? Isso desmantelaria toda a base da doutrina do inferno, que precisa ser
eterno para todos. Inferir que os “poucos açoites” também significam um tormento
Você não diz que alguém “bebe pouco” se passa o dia todo no bar, não diz
que alguém “joga pouco videogame” se passa o dia inteiro jogando, não diz que
alguém “estuda pouco” se passa todos os dias da vida estudando, e não diz que
que um mau intérprete para encontrar um tormento eterno nos poucos açoites, o
pode ser definido como “pouco”, precisamente porque não tem fim.
menor de açoites dentro de um período eterno, isso ainda não faz o menor sentido,
pois matematicamente o que é eterno não pode ser quantificado. Por exemplo,
1430
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1431
Quantos hóspedes o hotel teria agora? Você não poderia citar um número, porque
o infinito não tem fim. Isso seria o mesmo que perguntar “quanto é infinito menos
um”, o que não faz sentido, em se tratando de algo infinito. Da mesma forma, não
deixaria de ser açoitado para que esses açoites pudessem ser comparados ou
quantificados.
ser que o castigo seja finito (ou seja, que chegue ao fim em algum momento). É por
disse qual o limite de “açoites” que os servos maus receberiam, mas ao comparar a
quantidade de açoites que ambos recebem deixa claro que esse limite existe, assim
como na lei. De outro modo, seria impossível que alguém levasse “poucos açoites”,
assim como é impossível haver poucos quartos de hotéis em um hotel com infinitos
quartos.
A respeito dos fariseus, Jesus disse que eles “devoram as casas das viúvas,
fazendo, por pretexto, largas orações. Estes receberão maior condenação” (Lc
20:47). Como a condenação dos fariseus pode ser maior que a de qualquer outro
uma condenação infinita, assim como eles? Eu sei que já está tedioso, mas pense
uma última vez na analogia do hotel. Imagine que Joãozinho recebesse um hotel
de infinitos quartos, e então alguém dissesse a Yuri que seu hotel teria mais quartos
que o de Joãozinho. Você sabe que isso não faz sentido, mas por que?
1431
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1432
como essa só são possíveis com coisas finitas. Os mortalistas novamente saem na
frente aqui, pois afirmam que aquilo que é eterno (a morte) é igual para todos, mas
perfeitamente com a distinção que Jesus faz em relação à graduação dos castigos
lógicas insolúveis.
lembrar de que seu irmão tem algo contra você, deixe sua oferta ali, diante
sua oferta. Entre em acordo depressa com seu adversário que pretende levá-
lo ao tribunal. Faça isso enquanto ainda estiver com ele a caminho, pois, caso
contrário, ele poderá entregá-lo ao juiz, e o juiz ao guarda, e você poderá ser
jogado na prisão. Eu lhe garanto que você não sairá de lá enquanto não
É evidente que Jesus não estava apenas dando uma aula de direito, como se
aquele que não se reconcilia com o seu irmão será julgado por Deus e condenado
1432
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1433
à prisão, de onde não sairá enquanto não pagar o último centavo. Observe que
Jesus poderia facilmente ter dito que “não sairá de lá nunca”, como todo bom
imortalista diria em seu lugar. Em vez disso, o que ele disse é que não sairá de lá
enquanto não pagar até o último centavo, o que indica que a prisão não é eterna.
O grego usa o advérbio heos, que pode ser traduzido como “até que”. Essa
é a mesma palavra que aparece no texto que diz que José não “conheceu”
(eufemismo para o ato sexual) Maria “até que deu à luz seu filho, o primogênito”
(Mt 1:25), que é sempre citado como uma das provas mais fortes contra o dogma
apóstolos foram “colocados na prisão até o dia seguinte” (At 4:3), ninguém em sã
consciência interpretaria que eles foram colocados na prisão para sempre. O «dia
mensagem de que o servo mau permanece na prisão até que pague a dívida:
“Então o senhor, chamando aquele servo, lhe disse: ‘Servo malvado, eu lhe
perdoei aquela dívida toda porque você me implorou. Será que você também
não devia ter compaixão do seu conservo, assim como eu tive compaixão de
você?’. E, indignando-se, o senhor entregou aquele servo aos carrascos, até
que lhe pagasse toda a dívida. Assim também o meu Pai, que está no céu,
fará com vocês, se do íntimo não perdoarem cada um a seu irmão”
(Mateus 18:32-35)
1433
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1434
Mais uma vez Jesus perdeu a oportunidade de dizer que o servo é entregue
aos carrascos “para sempre”, como creem os imortalistas. O sentido óbvio do texto
é que o pecado é como uma dívida que os condenados pagam na prisão após o
juízo. Imortalistas argumentam que a dívida é eterna, e por isso nunca termina de
ser paga. Contra isso, o próprio texto apresenta um valor mensurável para a dívida
do servo mau da parábola – no caso, dez mil talentos (v. 24). Estudiosos apontam
era muito mais do que qualquer pessoa da época era capaz de pagar, mas ainda
O que Jesus queria dizer é que a dívida que temos para com Deus é
incomparavelmente maior que qualquer dívida que alguém tenha conosco, porque
pecamos contra Deus desde a idade da consciência, e ninguém peca tanto assim
contra nós. Por isso, se não perdoarmos o nosso próximo, Deus também não nos
perdoará por nossos pecados, o que acontece mediante a imputação dos méritos
de Cristo na cruz em nosso favor. Em vez disso, teremos nós mesmos que pagar por
esses pecados na outra vida, até que cada pecado seja devidamente castigado. Uma
vez que ninguém pecou eternamente para passar a eternidade pagando pelos
Cabe ressaltar que eu não estou propondo que os ímpios fazem expiação
pelos seus pecados, e sim que pagam pelos seus pecados, o que é bem diferente.
Fazer expiação pelos pecados é ser purificado dos pecados, o que só Jesus pode
fazer (1Jo 1:7). Os ímpios não são purificados de seus pecados após a morte, eles
apenas são castigados por eles, numa medida proporcional aos mesmos. Se
houvesse purificação dos pecados, nada impediria que eles herdassem a vida eterna
1434
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1435
após o tempo na prisão, mas como se trata apenas de castigar os pecados, seu fim
é o mesmo destino natural de todos os homens que não abraçam a graça salvadora:
a morte.
Jesus era judeu e pregava a um público também judeu), a finitude do castigo fica
ainda mais evidente. Isso porque um judeu que se tornava servo de outro judeu por
contrair dívidas trabalhava até sete anos, que era o limite de serviço de um escravo
hebreu. Depois disso, não importa o quão grande fosse a dívida, ele ganharia a
liberdade e estaria livre da dívida contraída (Dt 15:9, 12). Além disso, havia o ano do
jubileu, que ocorria a cada 50 anos e também marcava um limite temporal para a
(Dt 25:2-3). Ninguém era açoitado com mais de quarenta açoites, pois “açoitá-lo
além disso seria humilhar publicamente um israelita” (Dt 25:3). Já vimos que Jesus
citou a mesma ilustração dos açoites para afirmar que o sofrimento dos servos maus
não teria uma duração eterna, mas variada de acordo com o que cada um fez por
merecer (Lc 12:47-48). O que tudo isso nos mostra é que para Deus o sofrimento de
alguém sempre tem um limite, a despeito de quantos e quais pecados possa ter
acumulado, pois fazê-lo sofrer mais que esse limite seria desumano.
É isso o que esperaríamos de um Deus que julga com justiça, sem deixar de
lado sua principal característica: o amor. De fato, o amor de Deus é a tônica mais
recorrente das Escrituras, pois Deus não apenas “tem” amor, mas é amor puro (1Jo
1435
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1436
4:8,16). Não à toa, o salmista diz que “sua ira dura só um momento” (Sl 30:5), mas
“seu amor dura para sempre” (Sl 136:2). Isso é completamente antagônico à
doutrina que ensina que Deus permanecerá a eternidade inteira irado com a maior
parte dos seres que Ele mesmo criou, o que esperaríamos de um ser como o diabo,
que é ódio puro, não de Deus, que é amor em essência. Não admira que a doutrina
em vez de falarem de enquanto não pagar o último centavo e até que pagasse toda
condenado a um lugar de onde nunca poderia sair. Há alguma dúvida de que esses
seriam os textos favoritos dos imortalistas, muito mais do que os dois ou três que
eles usam a seu favor com muito menos clareza? Mas como os textos dizem
exatamente o contrário, é melhor fingir que eles não existem ou dar um jeito de
torcer os versos pra fazer com que o “enquanto” e o “até que” queiram dizer “para
escreve:
1436
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1437
Isaías descreve aconteceu em seus dias ou nos séculos seguintes. Note que ele não
fala apenas da punição dos «reis em baixo na terra», mas também dos «poderes em
cima nos céus», os mesmos que Paulo se refere quando diz que “nossa luta não é
dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões
Nem Satanás e seus anjos foram castigados dessa maneira ainda (v. 21), nem
os astros do céu foram abalados ainda (v. 23), nem o Senhor dos Exércitos reina no
monte Sião ainda (v. 23). Portanto, que o contexto é escatológico, está acima de
qualquer dúvida. O que falta discutir é que prisão é essa que Isaías descreve, na qual
os demônios e os homens maus serão aprisionados por muitos dias. Ela não pode
ser o inferno, porque o inferno como entendido pelos imortalistas é eterno, e essa
da qual Jesus disse que os pecadores não sairão até pagarem o último centavo (Mt
5:23-26, 18:32-35).
A Bible in Basic English traduz o verso 22 como: And they will be got together,
like prisoners in the prison-house; and after a long time they will have their
punishment (“E eles serão reunidos, como prisioneiros na prisão; e depois de muito
tempo terão sua punição”). A “punição” (paqad) que o texto se refere não pode ser
1437
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1438
a própria prisão, porque o texto é claro em dizer que ela ocorre muito tempo depois
deles terem sido aprisionados. Portanto, ele só pode estar falando de um outro tipo
de punição que sucede o tempo na prisão, que em todo o livro de Isaías é sempre
De fato, Isaías diz que os pecadores serão “destruídos” (Is 1:28), que os que
deixarem o Senhor serão “consumidos” (Is 1:28), que o Senhor “matará os ímpios”
(Is 11:4), que seus cadáveres serão entregues aos abutres (Is 18:6), que “seus
cadáveres exalarão mau cheiro” (Is 34:3), que “o opressor há de ter fim” (Is 16:4), que
os inimigos do Senhor “se tornarão como o pó fino” (Is 29:5), que as chamas os
“devorarão” (Is 29:6), que todos os maus serão “eliminados” (Is 29:20), que serão
“totalmente destruídos” (Is 34:2), que “serão como o nada e perecerão” (Is 41:11),
que “serão reduzidos a nada” (Is 41:12) e que “serão totalmente exterminados” (Is
60:12).
os ímpios serão presos por um longo tempo, e depois serão punidos com a segunda
morte, a morte eterna. Isso é contrário ao que pregam os imortalistas, para os quais
a prisão temporária não existe, mas somente um inferno de duração eterna. O fato
texto em que Jesus diz a respeito de Judas que “melhor lhe seria não haver nascido”
(Mt 26:24). Alguém que nunca nasceu nunca sofrerá coisa alguma, mas pessoas
como Judas terão que pagar o correspondente aos seus pecados, até o último
centavo.
1438
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1439
Para os mortalistas:
Para os imortalistas:
Morte >>> Juízo >>> Inferno >>> Ressurreição >>> Juízo >>> Inferno
não contradiz o ensino bíblico da justificação pela fé. Os salvos são salvos pela fé
em Cristo (Ef 2:8-9), pois as obras perfeitas de Cristo são imputadas a eles (Is 53:4-
5; Gl 3:13; Cl 2:13-15). É isso o que significa dizer que Jesus morreu em nosso lugar
– ele pagou a conta que era nossa. Com os ímpios isso não acontece, não porque
Jesus não tenha morrido por eles também, mas porque eles não creem em Jesus
para que essa fé lhes seja imputada como justiça. Por isso eles são julgados de
1439
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1440
retribuição pelas obras, o que é bem diferente. A justificação vem pela fé, mas a
retribuição varia de acordo com as obras de cada um. Este ensino é mais do que
lhes o que as suas mãos têm feito e dá-lhes o que merecem” (Salmos 28:3-
4)
94:2)
24:12)
➢ “Conforme o que fizeram lhes retribuirá: aos seus inimigos, ira; aos seus
Senhor que está dando a devida retribuição aos seus inimigos” (Isaías 66:6)
1440
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1441
➢ “O Senhor tem uma acusação contra Judá, e vai castigar Jacó de acordo com
os seus caminhos; de acordo com suas ações lhe retribuirá” (Oseias 12:2)
➢ “O Filho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos; e então
➢ “Contudo, por causa da sua teimosia e do seu coração obstinado, você está
➢ “Não é surpresa que os seus servos finjam que são servos da justiça. O fim
➢ “Matarei os filhos dessa mulher. Então, todas as igrejas saberão que eu sou
O que todos esses textos têm em comum é que todos dizem que Deus
mas em seu sentido mais amplo, que envolve cada uma de nossas ações. Além
1441
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1442
disso, os textos fazem questão de falar na “devida retribuição” (Is 59:18, 66:6), no
“justo julgamento” de Deus (Rm 2:5) e em dar o que merecem (Sl 28:3-4, 94:2; Is
59:18; 2Co 11:15). Todos estes termos indicam que o juízo divino não será arbitrário
princípio da proporcionalidade.
Isso não significa que Deus não pudesse condenar a um tormento eterno,
caso Ele quisesse. Como soberano onipotente e criador de tudo, Ele teria toda a
autoridade e o poder para tanto, mas Seu caráter o impede de agir como um tirano
e da devida retribuição, ela está enfatizando justamente o fato de que o juízo divino
não é tirânico ou moralmente injustificável, mas muito mais coerente e justo do que
qualquer juiz humano poderia ser. É por isso que toda a Escritura aponta que a
pecados finitos. Por essa lógica, se a vida é eterna para os salvos e isso não é o que
eles merecem, então o castigo tem que ser eterno para os ímpios, mesmo que eles
não mereçam. O problema com esse argumento é que ele ignora o fato de que os
justos não são salvos por seu próprio mérito, mas pelos méritos de Cristo, que são
A vida eterna não é o que os salvos merecem por sua própria natureza, mas
é um presente que Deus nos dá de graça, mediante a fé. Por isso nós somos “salvos
pela graça, por meio da fé, e isto não vem de nós, é dom de Deus; não por obras,
1442
O surgimento do inferno e o castigo proporcional 1443
para que ninguém se glorie” (Ef 2:8-9). Ou seja, a vida eterna não é o que os salvos
merecem, mas justamente o que eles não merecem. É uma dádiva dada pela graça,
um favor imerecido da parte de Deus àqueles que têm sua fé imputada como justiça
merecem (um castigo proporcional aos seus pecados), os justos recebem o que eles
Existe uma graça que dá aos salvos o que não merecem, mas não uma “anti-
graça” que castiga os perdidos por mais do que o merecido. Há uma graça
salvadora que livra os filhos de Deus da morte, dando-lhes aquilo que não
merecem: a vida eterna. Mas não há uma “graça reversa” que dê aos pecadores
impenitentes algo além do merecido (i.e, uma tortura eterna por alguns anos de
morte, após pagar o correspondente por seus pecados em um lugar que a Bíblia
que viveu no primeiro século: “Se Deus nos recompensasse segundo nossas obras,
deixaríamos de existir (ouketi esmen)”990. Ele sabia que o salário do pecado não é
um sofrimento eterno no inferno, mas a morte (Rm 6:23). Deixar de existir – e não
990
Inácio aos Magnésios, 10:1.
1443
1444
O aniquilacionismo na Bíblia
Poucas verdades são tão ressaltadas na Bíblia quanto a morte final dos
que retratam a sorte final dos ímpios como uma destruição completa e sem volta,
denotar a destruição final dos ímpios. De acordo com o erudito Basil Atkinson, cerca
qualquer estudioso sério exigiria para aceitar qualquer doutrina como bíblica. Para
991
ATKINSON, Basil F. C. Life and Immortality: An examination of the nature and meaning of life and death
as they are revealed in the Scriptures. Taunton: Goodman, 1969, p. 85-86.
1444
O aniquilacionismo na Bíblia 1445
eterno, e todos eles provam exatamente o contrário do que eles pretendem quando
Foram necessárias quase trinta páginas só para listar cada um dos versos
você verá na tabela abaixo, os escritores bíblicos se referem à morte final dos ímpios
1445
O aniquilacionismo na Bíblia 1446
4:1; Ap 20:9
1446
O aniquilacionismo na Bíblia 1447
insista em dizer que “não existe base bíblica para o aniquilacionismo” ultrapassa o
1447
O aniquilacionismo na Bíblia 1448
argumentar aos textos (algo que analisaremos a partir de agora), mas dizer que os
aniquilacionismo de forma mais clara, ou o que mais deveriam dizer para convencer
meu site postou um longo comentário onde externava sua insatisfação e revolta
desamparados por Deus. Os falsos crentes de sua igreja têm tudo do bom e do
melhor – inclusive aqueles que vivem em adultério –, mas ele, que se esforça em
viver piedosamente, passa por tantas necessidades que chega a “invejar” o ímpio.
Trata-se de um questionamento sincero e comum, que quase todo crente deve ter
feito alguma vez na caminhada cristã. Tão comum que nem os autores da Bíblia
descobriu o destino dos ímpios. Trata-se do Salmo 73, que vale a pena ler na
íntegra:
Salmos 73
2 Quanto a mim, os meus pés quase tropeçaram; por pouco não escorreguei.
1448
O aniquilacionismo na Bíblia 1449
5 Estão livres dos fardos de todos; não são atingidos por doenças como os outros
homens.
8 Eles zombam e falam com más intenções; em sua arrogância ameaçam com
opressão.
10 Por isso o seu povo se volta para eles e bebem suas palavras até saciar-se.
16 Quando tentei entender tudo isso, achei muito difícil para mim,
17 até que entrei no santuário de Deus, e então compreendi o destino dos ímpios.
20 São como um sonho que se vai quando a gente acorda; quando te levantares,
22 agi como insensato e ignorante; minha atitude para contigo era a de um animal
irracional.
25 A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar
junto a ti.
1449
O aniquilacionismo na Bíblia 1450
26 O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar, mas Deus é a força do meu
28 Mas, para mim, bom é estar perto de Deus; fiz do Soberano Senhor o meu
O salmista havia chegado ao ponto de pensar que foi inútil manter o coração
puro (v. 13), pois enquanto os ímpios não passavam por sofrimento e tinham um
corpo saudável e forte (v. 4), ele se afligia o dia inteiro, e sofria todas as manhãs (v.
14). Mas, para a nossa sorte, esse salmo não foi escrito por um ateu ou um apóstata.
O que o fez mudar de opinião e rever seus conceitos foi entrar no santuário de Deus,
“...e então compreendi o destino dos ímpios” (v. 17). O que foi que o salmista
descobriu, que o fez mudar de ideia desse jeito? Esta seria a ocasião perfeita para
dizer que viu os ímpios queimando para sempre, em um sofrimento sem fim que
Mas, em vez disso, o que ele descobriu sobre o destino dos ímpios foi o
seguinte:
1450
O aniquilacionismo na Bíblia 1451
destruição repentina, que consistia na privação da existência. Quando ele diz que
Deus faria os ímpios desaparecer, ele não estava falando de alguém que “aparece”
em outro lugar, mas de alguém que some da mesma forma que “um sonho que se
vai quando acordamos” (v. 20). O sonho existe apenas enquanto estamos
comparação que o salmista faz com o destino dos ímpios, que “se vão” quando
“acordamos”.
mesma que o salmista usa no Salmo 17:15 em alusão à ressurreição, a qual também
aquilo que ele sonhou à noite deixou de existir, assim também os ímpios deixarão
outro lugar, porque a terra é o único lar dos homens, sejam justos ou injustos. Por
isso “os justos herdarão a terra” (v. 29), e por isso ser eliminado da face da terra
significava ser eliminado de tudo. Não havia a menor ideia de vida eterna em outro
lugar, numa outra dimensão. Como vimos no capítulo 6, o próprio Sheol/Hades era
identificado com as regiões subterrâneas da terra, não com uma outra dimensão, e,
da mesma forma, o Vale de Hinom (Geena) não era um vale da quarta dimensão,
mas um conhecido vale em Israel. A terra era tudo o que o homem poderia ter, e ser
1451
O aniquilacionismo na Bíblia 1452
O salmista usa duas palavras no verso 27 para definir o destino final dos
define como «destruir, matar, exterminar»992, e é uma das palavras hebraicas mais
usadas nos textos do AT que falam de morte ou destruição. A outra é tsamath, que
06789 tsamath
esta. Assim, é evidente que o que fez o salmista compreender que vale a pena
permanecer fiel a Deus não foi um pavoroso e medonho tormento eterno, mas o
aniquilamento dos ímpios, ao passo em que os justos herdam a vida (v. 24). Por mais
que os ímpios pareçam ter uma vida longa e próspera aqui, seu destino é a morte,
992
#6 da Concordância de Strong.
1452
O aniquilacionismo na Bíblia 1453
enquanto os salvos desfrutarão de toda uma eternidade com Deus – algo ricamente
sobre a vida, discorrendo sobre seus anseios mais profundos e seus desejos mais
íntimos. Diante disso, é inevitável que uma das tônicas mais presentes seja a da
Deus e o ímpio será devidamente punido por suas ações. Um salmo inteiramente
Salmo 37
1 Não se aborreça por causa dos homens maus e não tenha inveja dos perversos;
2 pois como o capim logo secarão, como a relva verde logo murcharão.
segurança.
6 Ele deixará claro como a alvorada que você é justo, e como o sol do meio-dia que
você é inocente.
7 Descanse no Senhor e aguarde por ele com paciência; não se aborreça com o
1453
O aniquilacionismo na Bíblia 1454
9 Pois os maus serão eliminados, mas os que esperam no Senhor receberão a terra
por herança.
10 Um pouco de tempo, e os ímpios não mais existirão; por mais que os procure,
13 o Senhor, porém, ri dos ímpios, pois sabe que o dia deles está chegando.
quebrados.
17 pois o braço forte dos ímpios será quebrado, mas o Senhor sustém os justos.
sempre.
desfrutarão fartura.
generosidade;
22 aqueles que o Senhor abençoa receberão a terra por herança, mas os que ele
24 ainda que tropece, não cairá, pois o Senhor o toma pela mão.
1454
O aniquilacionismo na Bíblia 1455
25 Já fui jovem e agora sou velho, mas nunca vi o justo desamparado, nem seus
26 Ele é sempre generoso e empresta com boa vontade; seus filhos serão
abençoados.
28 Pois o Senhor ama quem pratica a justiça, e não abandonará os seus fiéis. Eles
serão preservados para sempre, mas a descendência dos ímpios será eliminada;
33 mas o Senhor não o deixará cair em suas mãos, nem permitirá que o condenem
quando julgado.
34 Espere no Senhor e siga a sua vontade. Ele o exaltará, dando-lhe a terra por
36 mas logo desapareceu e não mais existia; embora eu o procurasse, não pôde
ser encontrado.
38 Mas todos os rebeldes serão destruídos; futuro para os ímpios, nunca haverá.
Enquanto o justo herdará uma vida eterna na terra, o ímpio será completamente
eliminado:
1455
O aniquilacionismo na Bíblia 1456
Justos Ímpios
Desfrutarão pleno bem-estar (v. 11) Não mais existirão (v. 10)
Permanecerão para sempre (v. 18) Receberão uma ferida mortal (v. 15)
importante que o salmista teria a fazer quanto ao destino dos ímpios, se ele o
somente de aniquilacionismo: não mais existir, ser eliminado, ser destruído, perecer,
receber uma ferida mortal, desaparecer e não ter futuro não se parece em nada com
sua sanidade mental, de que o salmista que escreveu todas essas coisas cria num
salmista falava apenas do que acontecia com o ímpio nesta vida, baseado no verso
em que ele diz que “vi um homem ímpio e cruel florescendo como frondosa árvore
1456
O aniquilacionismo na Bíblia 1457
nativa, mas logo desapareceu e não mais existia” (vs. 35-36). Mas basta um olhar
em todo o capítulo para ver que em todos os outros versos a destruição do ímpio é
em questão é apenas um exemplo didático que o salmista usou para apontar o que
acontecerá com os ímpios no futuro, não que ele estivesse falando somente de algo
presente.
longo de todo o capítulo, é o suficiente para refutar essa alegação boba, uma vez
que os justos diferentemente dos ímpios não serão eliminados, mas nesta vida os
dois perecem igualmente. Tome como exemplo o verso 22, que diz: “Pois os maus
serão eliminados, mas os que esperam no Senhor receberão a terra por herança”.
Se o salmista estivesse falando apenas do que acontece nesta vida, ele deveria ter
dito que “os maus são eliminados e os justos também, e fim”. A antítese só faz
sentido se ele estiver falando não do que acontece nesta vida, mas do que
acontecerá na próxima.
aniquilacionista: ele diz que os ímpios “se desfarão como fumaça” (v. 20). A metáfora
não poderia ser mais precisa em relação a alguém que é reduzido ao pó. Assim
consumidor de Deus. É difícil pensar numa metáfora mais imprecisa para se referir
1457
O aniquilacionismo na Bíblia 1458
Mais difícil ainda é conciliar o contraste dos dois últimos versículos, onde
lemos que o justo tem futuro (v. 37), mas “futuro para os ímpios nunca haverá” (v.
38). Na teologia imortalista, os dois têm um longo futuro pela frente – na verdade,
para o salmista, apenas um dos dois tem um futuro pela frente, e eu não preciso
dizer qual é. A razão por que não há futuro para os ímpios é explicitamente
declarada na primeira parte do mesmo verso, que diz que “todos os rebeldes serão
destruídos” (v. 38). A palavra aqui usada para “destruir” é shamad, que significa
Essa palavra aparece 90 vezes no AT, e em todas elas diz respeito a uma
hebraico invariavelmente usado para designar uma aniquilação é usado aqui para
qualificar justamente o seu oposto, isto é, a existência eterna dos ímpios em meio
aos tormentos. Isso mostra até que ponto eles são capazes de chegar apenas para
salmos que uma das primeiras coisas que ouvimos falar quando lemos o Salmo 1 é
justos, pois o Senhor aprova o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios leva
à destruição” (Sl 1:5-6). O salmo seguinte diz que os ímpios serão “destruídos de
repente” (Sl 2:12), mensagem que é reforçada no Salmo 92, que diz que “embora os
ímpios brotem como a erva e floresçam todos os malfeitores, eles serão destruídos
993
#8045 da Concordância de Strong.
994
Confira em: <https://biblehub.com/hebrew/strongs_8045.htm>. Acesso em: 15/08/2020.
1458
O aniquilacionismo na Bíblia 1459
para sempre” (Sl 92:7). Aqui, é a mesma palavra shamad (aniquilação) que aparece,
seguida de `ad (para sempre). A destruição é eterna por ser uma destruição
uma inovação. Ambos concordavam que a sorte final do ímpio não era um
sofrimento eterno no inferno, mas uma destruição eterna, isto é, uma destruição
definitiva e cabal com efeitos permanentes. É curioso notar que os salmos estão
questão de ressaltar repetidas vezes o trágico fim que teriam, mas não temos
sequer uma única descrição do destino dos ímpios como um tormento eterno. Ao
contrário, o consenso unânime é de que a justa retribuição por seus atos resulta na
Depois de Salmos, o livro que mais aborda o destino final dos ímpios é Isaías,
não só por ser o segundo mais longo da Bíblia (com 66 capítulos), mas pelo seu
“os rebeldes e os pecadores serão destruídos” (Is 1:28), e mais à frente é dito que
1459
O aniquilacionismo na Bíblia 1460
Deus “os destruirá totalmente, ele os entregará à matança” (Is 34:2). Aqui, outro
é usado em textos como Êx 22:20, que diz que "quem oferecer sacrifício a qualquer
serão julgados. Sua descrição não poderia ser mais precisa: “Vejam! O dia do Senhor
está perto, dia cruel, de ira e grande furor, para devastar a terra e destruir os seus
pecadores” (Is 13:9). Aqui, mais uma vez, é shamad (aniquilação) que consta no
linguagem se repete alguns capítulos depois: “Quem insiste no erro depois de muita
Senhor e o rei, meu filho, e não se associe aos dissidentes, pois terão repentina
destruição” (Pv 24:21-22). Não é coincidência que Pedro use exatamente a mesma
linguagem para descrever a sorte final dos ímpios: “Estes introduzirão secretamente
sobre si mesmos repentina destruição” (2Pe 2:1). Como todo bom judeu, Pedro
Poucos versos depois, ainda falando sobre os mesmos falsos profetas, ele diz
que “há muito tempo a sua condenação paira sobre eles, e a sua destruição não
995
#2763 da Concordância de Strong.
1460
O aniquilacionismo na Bíblia 1461
tarda” (2Pe 2:3). No capítulo seguinte, ele acrescenta que “os céus e a terra que
agora existem estão reservados para o fogo, guardados para o dia do juízo e para a
destruição dos ímpios” (2Pe 3:7). Mais uma vez, dois versos adiante, reitera que o
Senhor “é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos
perfeitamente ter dito que o destino dos ímpios é um sofrimento eterno, mas em
disse que Deus “pode destruir no inferno-geena tanto a alma como o corpo” (Mt
10:28). Já vimos que “alma” aqui tem o sentido da vida póstuma, que obteremos
após a ressurreição. Dessa vida o ímpio é totalmente privado, pois ele não herda a
vida, mas apollumi – destruição. Não há “vida eterna” no Geena, há apenas morte e
queria dizer é que não devemos temer aqueles que podem dar um fim apenas à
nossa existência atual, mas sim Aquele que, além de poder tirar nossa vida presente,
“perdição” – o que sequer tem nexo com o texto, pois estaria dizendo que Deus
pode perder no Geena tanto o corpo como a alma, o que é completamente ilógico.
para um texto que diz que não devemos temer os que podem matar apenas o
1461
O aniquilacionismo na Bíblia 1462
“corpo” mas não a “alma” é que Deus mata ambos, independentemente de qual
Caso contrário, o que o texto estaria dizendo é para não temer aqueles que
só matam o corpo e não a alma, mas sim aquele que também só mata o corpo e
não a alma – já que apollumi aqui significaria uma mera “perdição”. Isso não só
quebra toda a lógica da advertência, mas arruína toda a mensagem sobre temer
Aquele que pode dar fim a todas as formas ou estágios de existência dos ímpios. E
assim como os homens não apenas “podem” matar, mas matam realmente, Deus
realizada, destrói toda tentativa de anular Mt 10:28 como uma prova inequívoca do
Paulo sabia disso, e por isso nunca se referiu ao destino final dos ímpios
como um tormento, dor ou sofrimento sem fim. Muito pelo contrário: todas as
vezes que se referiu a isso fez questão de utilizar o mesmo vocábulo do AT, de seu
mestre Jesus e de seu companheiro Pedro: destruição. Assim, os “vasos de ira” estão
“preparados para a destruição” (Rm 9:22), não para um tormento eterno. Da forma
mais direta possível, ele declara que “o seu destino é a destruição” (Fp 3:19), razão
por que “para eles o evangelho é sinal de destruição, mas para vocês, de salvação”
(Fp 1:28). Em todos esses textos é apoleia que aparece, que significa antes de tudo
«destruição total»996.
996
#684 do Thayer's Greek Lexicon.
1462
O aniquilacionismo na Bíblia 1463
O desconhecido autor de Hebreus também afirma que “nós não somos dos
oposto à “conservação da alma”, o que só pode significar que quem é destruído não
tem sua alma preservada – porque ela simplesmente perece no Geena, como Jesus
ensinou. Mesmo que a alma-psiquê seja entendida neste texto como a vida que
serão destruídos.
com os mais diversos substantivos e verbos que denotam uma destruição total? A
morte nesta vida, pela qual tanto os justos como os ímpios passam. Geisler e Howe,
por exemplo, afirmam que “a mesma palavra usada para o verbo ‘perecer’, a
a destruição nesta vida, não decorre que todos os textos que falem de destruição
se refiram apenas a esta vida. De fato, justos e ímpios perecem nesta vida, mas só
bíblicos se referem nos textos aqui listados. Tome como exemplo o Salmo 1, que
diz que “o Senhor aprova o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios leva a
destruição” (Sl 1:6). Será que o salmista queria dizer que o caminho dos justos
997
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 383.
1463
O aniquilacionismo na Bíblia 1464
também leva à destruição? Deixo que o leitor sincero e honesto responda por si
mesmo.
justos e ímpios, que não fariam qualquer sentido se estivessem falando apenas
(Provérbios 2:21-22)
➢ “Quem obedece aos mandamentos preserva a sua vida, mas quem despreza
Se textos como esses estivessem falando apenas da vida terrena atual, não
futuro, onde o justo viverá, mas o ímpio morrerá (será destruído). É só na outra vida
– a vida que obteremos após a ressurreição – que o ímpio será eliminado, mas o
salvo receberá a terra como herança. É essa a mensagem central do Salmo 37, que
1464
O aniquilacionismo na Bíblia 1465
revoltava com o fato dos ímpios terem saúde e prosperidade enquanto os justos
passam necessidade, se sentiria caso a grande revelação que tivesse tido ao entrar
no santuário do Senhor (Sl 73:17) fosse que os ímpios serão destruídos... nesta vida.
Ou seja, que teriam o mesmo fim que os justos também tinham (e que para
descobrir não é preciso nenhuma grande revelação!). Com certeza ele não teria as
à inutilidade de manter o coração puro e à sua inveja da vida que os ímpios têm.
Mas faz todo o sentido se ele se referia a um momento futuro, quando os salvos
herdarão a vida eterna, mas os ímpios serão destruídos (como ele aponta
expressamente no salmo).
Se a Bíblia é clara em dizer que “se é somente para esta vida que esperamos
que quando ela destaca o destino final dos ímpios ela não se refere a um fim comum
de toda a humanidade (morrer nesta vida), mas a um fim trágico que distingue o
ímpio do justo. Nesta vida, tanto os justos como os ímpios têm suas dificuldades e
morrem ao final da jornada, por isso seria tão inútil enfatizar que os ímpios serão
próprio contraste com o destino dos justos perde completamente o sentido, pois,
como vimos, se os autores tivessem em mente apenas a vida presente, os justos não
teriam nada a ganhar em relação aos ímpios (muito pelo contrário, já que os
Considere por exemplo o texto de Ezequiel em que Deus diz que “se um
1465
O aniquilacionismo na Bíblia 1466
decretos e fizer o que é justo e é direito, com certeza viverá, não morrerá” (Ez 18:21).
Claro que Deus não está dizendo que “com certeza viverá nesta vida”, porque
qualquer ímpio que se arrepende dos seus pecados morre nesta vida, assim como
o ímpio que não se arrepende. O sentido não pode ser outro senão uma morte
futura, ou seja, um momento em que o ímpio morre, mas o justo continua vivo (para
mesmas práticas detestáveis dos ímpios, ele deverá viver? Nenhum de seus
atos de justiça será lembrado! Por causa de sua infidelidade de que é culpado
e por causa dos pecados que ele cometeu, ele morrerá. (...) Se um justo
desviar-se de sua justiça e cometer pecado, ele morrerá por causa disso, por
causa do pecado que ele cometeu ele morrerá. Mas, se um ímpio se desviar
de sua maldade e fizer o que é justo e direito, ele salvará a sua vida. Por
considerar todas as ofensas que cometeu e se desviar delas, ele com certeza
um dos menos compreendidos, diz que “Deus amou o mundo de tal maneira que
deu o seu filho unigênito, para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha
a vida eterna” (Jo 3:16). Jesus estabeleceu uma condição muito clara para viver para
sempre: comer o pão da vida (=crer nele): “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se
1466
O aniquilacionismo na Bíblia 1467
alguém comer deste pão, viverá para sempre. Este pão é a minha carne, que eu darei
Obviamente, Jesus não estava falando desta vida, porque nesta vida todos
morrem. É da vida futura que Jesus falava, a vida que se obtém após a ressurreição,
totalmente arruinados, mas ainda são carros, arruinados como estejam, e ainda
ter várias respostas diferentes para lidar com o mesmo problema, e todas elas
igualmente ruins.
de veículos”, mas ele já não funciona mais como um carro. Já não pode ser dirigido,
nem fazer coisa alguma se não for concertado. Da mesma forma, um ser humano
destruído é um cadáver que não anda, não fala, não sente e não faz nada em
com o uso do termo “aniquilar”, que, a propósito, foi cunhado pelos detratores da
doutrina, não pelos seus proponentes (que normalmente preferem usar termos
998
ibid, p. 382.
1467
O aniquilacionismo na Bíblia 1468
um animal morre, nem a Bíblia e nem nós costumamos dizer que “ele foi
aniquilado”. Dizemos apenas que “ele morreu”, mesmo que estejamos cientes de
que o animal não continua existindo em outro lugar. O mesmo se aplica aos seres
textos que os termos usados com mais frequência queiram dizer outra coisa.
primeira lei da termodinâmica, mas ainda assim não existe mais como um ser vivo
Assim como um carro destruído que vira sucata não é mais um carro ativo,
que possa ligar ou andar, os ímpios destruídos no Geena não são mais pessoas
vivas, que pensam ou sentem. São apenas cadáveres, que em algum momento se
999
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 187.
1468
O aniquilacionismo na Bíblia 1469
no sentido de deixarem de existir como seres vivos (a não ser que os imortalistas
acreditem que eles também possuem uma alma imortal incapaz de morrer ou de
ser destruída).
fosse apenas o que Geisler e Howe alegam, esperaríamos ver centenas de menções
à destruição atual dos ímpios, já que eles já estão em “ruína espiritual” hoje,
termo é aplicado aos ímpios na Bíblia é para descrever seu estado futuro, após o
julgamento (Sl 1:6, 5:6, 37:38; Pv 6:15, 11:3; Is 1:28; Mt 10:28; 2Ts 1:9, etc). Isso mostra
que os escritores bíblicos não tinham a menor ideia de uma mera “destruição moral”
no sentido de estar longe de Deus, mas de uma destruição real e literal, que os
sentido que os aniquilacionistas entendem que acontece aos seres humanos, aos
quais são dirigidos os mesmos termos. Tome como exemplo Sodoma e Gomorra,
que a Bíblia diz que foram destruídas pelo fogo que caiu do céu (Gn 19:25).
pelo fogo, apesar do mesmo termo aqui usado para a destruição das cidades
(haphak) ser também usado para falar da destruição final dos ímpios em outros
1469
O aniquilacionismo na Bíblia 1470
critério aos dois casos: Sodoma ao ser destruída (haphak) não existe mais como
indivíduos. São os imortalistas que violentam a exegese para salvar seus dogmas
imortalistas é Lc 17:29, onde Jesus diz que o fogo que caiu sobre Sodoma e Gomorra
destruiu seus habitantes. Aqui o verbo usado por Lucas foi apollumi, que a
“exterminar”, porque é lógico que “destruiu a todos” faz mais sentido do que dizer
que o fogo “perdeu a todos”. Mas em Mt 10:18, quando o mesmo Senhor Jesus diz
que os ímpios serão destruídos no Geena e Mateus usa o mesmo termo apollumi
Ou então tome como exemplo Jr 10:15, que diz que as imagens de escultura
existência. No entanto, quando o mesmo termo abad é usado dúzias de vezes para
1000
#622 da Concordância de Strong.
1470
O aniquilacionismo na Bíblia 1471
se referir ao destino final dos ímpios (por exemplo, Sl 1:6, 37:20, 68:2, 83:17), os
relação ao destino dos ímpios após o julgamento, da mesma forma que é usado
para o fim da nossa atual existência terrestre. Mais interessante ainda é o texto de
Lc 13:1-5, onde Jesus iguala o destino final dos pecadores com o destino dos
“E, naquele mesmo tempo, estavam presentes ali alguns que lhe falavam dos
galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios. Ele, porém,
lhes disse: Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os
outros galileus, por terem padecido estas coisas? Não eram, eu vo-lo afirmo;
que aqueles dezoito, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, foram
mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não, eu vos
(Lucas 13:1-5)
morreram. Mas atente ao detalhe: Jesus não só diz que os pecadores perecerão,
mas que perecerão de igual modo que os galileus que Pilatos matou e os dezoito
que foram esmagados pela torre de Siloé. Em outras palavras, o destino final dos
1471
O aniquilacionismo na Bíblia 1472
morreram literalmente, o que joga por terra qualquer pretensão de dizer que
cemitério”.
Se o destino final dos ímpios não fosse uma morte física e literal da mesma
forma que os citados por Jesus, ele não teria dito que os ímpios pereceriam de igual
modo, mas que pereceriam de um modo diferente daqueles, uma vez que aqueles
claramente indica que a sorte final dos ímpios não é de uma categoria diferente da
Mesmo que algum imortalista tente dizer que a morte dos galileus e dos
dezoito de Siloé foi uma separação da alma do corpo, e não a cessação da existência
do ser consciente, isso ainda não faz jus ao texto, que iguala o tipo de morte de
ambos. Isso porque nenhum imortalista diz que a segunda morte é uma segunda
separação da alma do corpo, como se a alma dos ímpios se religasse ao corpo por
alma do corpo, obviamente não é disso que Jesus falava ao se referir à morte dos
galileus e dos dezoito habitantes de Siloé, que é o mesmo tipo de morte que os
ímpios experimentarão.
por uma torre que caiu em cima deles). Portanto, a equivalência que Jesus impõe só
1472
O aniquilacionismo na Bíblia 1473
existência dos iníquos após o juízo. Assim, ao igualar a natureza da morte, Jesus
prova acima de qualquer dúvida que ele entendia a destruição final dos ímpios
como uma destruição tão real e literal quanto a dos galileus e dos habitantes de
Testamento para designar a destruição final dos ímpios são as mesmas que eles
e à destruição total de coisas como o templo (Is 64:11), uma casa (Pv 14:11),
utensílios (2Cr 36:19) ou os muros de uma cidade (Is 25:12). A razão por que os
usados para designar a destruição completa e literal de algo é porque eles sabiam
que o destino dos ímpios era, de fato, a cessação da existência, não sua
ao ver os escritores bíblicos usando sem reservas termos como apollumi, apoleia,
existência?
desses termos em relação ao destino dos ímpios, e em seu lugar fizessem questão
1473
O aniquilacionismo na Bíblia 1474
de usar palavras como kakopatheo, odin, basanos, ponos e pathema, que são os
termos utilizados nos textos do NT que falam de tormento, dor ou sofrimento (1Pe
1:11; 2Tm 2:3; Tg 5:10; Mt 4:24, 24:8; Ap 21:4), mas que nunca são usados para
designar o destino eterno dos ímpios1001. Como observa Richard Whately, devemos
miséria. Pois jamais se fala deles como sendo mantidos vivos, e sim
perdendo a vida: como por exemplo: “E não quereis vir a mim para
terdes vida” (Jo 5:40); “Quem tem o Filho tem vida; e quem não tem o
1001
Alguém poderia objetar que basanos é usado em Ap 20:10, mas o texto não fala de seres humanos,
apenas do diabo, da besta (sistema político) e do falso profeta (sistema religioso). Este texto é analisado
em detalhes no próximo capítulo do livro.
1002
WHATELY, Richard. A View of the Scripture Revelations Concerning a Future State. London: Lindsay &
Blakiston, 1842, p. 230.
1474
O aniquilacionismo na Bíblia 1475
mesmo assim fizeram questão de ressaltar por diversas vezes que os ímpios serão
completamente exterminados. Isaías diz que “a nação e o reino que não a servirem
perecerão; serão totalmente exterminados” (Is 60:12). Naum declara que “o ímpio
não tornará mais a passar por ti [Judá]; ele é inteiramente exterminado” (Na 1:15).
Uma vez que os perversos continuaram invadindo Judá depois disso, é evidente que
“os maus serão exterminados, mas os que esperam no Senhor receberão a terra por
herança” (Sl 37:9). Aqui, novamente, o contraste com a vida eterna dos justos mostra
que o extermínio dos ímpios não se refere à morte nesta vida, mas à segunda morte,
a morte final e definitiva. Ele também diz que “o Senhor guarda a todos os que o
amam; porém os ímpios serão exterminados” (Sl 145:20). É difícil pensar em alguém
escurecerei as suas estrelas; cobrirei o sol com uma nuvem, e a lua não dará a sua
luz” (Ez 32:7). O sol se escurecer e a lua não dar sua luz são coisas que não
os ímpios depois disso? Continuarão existindo para sempre? Parece que não. Se
dizemos que uma espécie entrou em extinção quando ela não existe mais. Os
1475
O aniquilacionismo na Bíblia 1476
para conciliar todos esses textos com a doutrina do tormento eterno. De fato, a
clareza das Escrituras em relação à destruição total dos perdidos é tanta que a única
dúvida que nos resta é como eles perecerão. E é aqui que entra um componente
ignoram e pervertem sua real finalidade. À luz da Bíblia, o fogo não é enviado por
completamente. Em outras palavras, Deus usa o fogo para pôr um fim à existência
Tertuliano, que pode ser considerado o pai do tormento eterno, disse que “o
fogo não consome o que queima, mas enquanto queima repara”1004. Agostinho,
que tornou este ensino popular, comparava o fogo do inferno à sarça ardente, que
queimava, mas não se consumia (Êx 3:2). Essa conclusão é imprescindível para os
para sempre. O problema é que não há nada tão claro na Bíblia quanto o fato de
1003
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 382.
1004
Apologia, 48:31-33.
1476
O aniquilacionismo na Bíblia 1477
que os ímpios serão consumidos pelo fogo, o qual não é nada parecido com o da
sarça ardente.
cai por terra diante de textos como Gl 6:8, que diz que os salvos terão uma vida
de textos bíblicos afirmando da forma mais enfática possível que os ímpios serão
pelo fogo que caiu do céu a pedido de Elias (2Rs 1:10) e os dois filhos de Arão que
ascenderam fogo estranho perante o Senhor, que fez “sair fogo da sua presença, e
O salmista diz que “sobre os ímpios Deus fará chover laços, fogo, enxofre e
vento tempestuoso; isto será a porção do seu copo” (Sl 11:6). Ao ler este texto, um
de fogo” do qual João falou, onde os ímpios sofrerão por toda a eternidade. No
entanto, basta ler os outros salmos escritos pelo mesmo autor para perceber como
essa definitivamente não era a ideia que ele tinha em mente. No Salmo 21, por
exemplo, ele diz que “no dia em que te manifestares farás deles uma fornalha
ímpios queimando conscientes por todo o sempre, mas devorá-los até que sejam
totalmente consumidos. De modo ainda mais incisivo, ele diz: “Consome-os em tua
1005
#5356 da Concordância de Strong.
1477
O aniquilacionismo na Bíblia 1478
ira, consome-os até que não mais existam. Então se saberá até os confins da terra
que Deus governa Jacó” (Sl 59:13). Como se não bastasse dizer que os ímpios serão
consumidos, o salmista acrescenta que serão consumidos até que não mais
que isso. A não ser que alguém tenha uma vontade inexplicavelmente sádica de
enganar a si mesmo, é evidente que para o salmista a função do fogo era aniquilar
nossas Bíblias. Por exemplo, compare a famosa declaração de Jesus sobre o «choro
(“choro”; “se entristecerá”), e ambos dizem que o ímpio irá “ranger os dentes”. Não
é preciso ser um Sherlock Holmes para perceber que Jesus estava aludindo
justamente a este salmo. É preciso entender que Jesus era um judeu que tinha um
familiarizado com os escritos do AT. Por isso, muitas de suas advertências aos
1478
O aniquilacionismo na Bíblia 1479
judeus aludem a trechos da Escritura que eles conheciam muito bem, e este é um
que a mensagem continuava tão válida quanto nos dias do salmista. Mas note que,
dias como uma referência ao sofrimento eterno no inferno, o salmo do qual Jesus
dentes não é uma vida eterna no inferno, mas sua aniquilação pelo fogo.
de dentes é o resultado do juízo dos ímpios, que, por fim, resulta em sua
destruição”1006. Note ainda que nem Jesus nem o salmista disseram que o choro e
ranger de dentes é por causa de um sofrimento eterno no inferno, e sim que o ímpio
se entristece e range os dentes por ver o justo salvo, e ele não. Sua exclusão do
Deus, e é isso que os leva a ranger os dentes, não uma tortura no quinto dos
infernos.
pelo fogo em um lugar de vida, e de vida eterna. Isso mostra até que ponto eles
1006
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 202.
1479
O aniquilacionismo na Bíblia 1480
Antigo para respaldar sua visão sobre o destino dos ímpios é Gogue e Magogue,
duas nações escatológicas citadas por Ezequiel e ecoadas por João no Apocalipse.
Em Ezequiel, Deus diz que “mandarei fogo sobre Magogue e sobre aqueles que
vivem em segurança nas regiões costeiras, e eles saberão que eu sou o Senhor” (Ez
39:6). Alguém poderia pensar que este fogo é o fogo do inferno imortalista de
tormento eterno, o que é visceralmente refutado pelo contexto, que deixa claro que
a função do fogo é consumir os inimigos de Deus até que eles se tornem cadáveres:
“Nos montes de Israel você cairá, você e todas as suas tropas e as nações que
estiverem com você. Eu darei você como comida a todo tipo de ave que come
(Ezequiel 39:4)
A ave que o texto cita não come almas incorpóreas que sofrem tormento
consciente, mas carniça. Essa verdade é reiterada à risca no Apocalipse, onde Gogue
para batalhar contra o Cordeiro e os santos (Ap 20:7-9), mas são totalmente
consumidas pelo fogo que cai do céu: “E subiram sobre a largura da terra, e
cercaram o arraial dos santos e a cidade amada; e de Deus desceu fogo, do céu, e
no tempo do fim, em ambos os casos um fogo cai do céu, e em ambos os casos esse
1480
O aniquilacionismo na Bíblia 1481
ao Seu povo. É por isso que Paulo diz que “quem semeia para a sua carne, da carne
colherá corrupção; mas quem semeia para o Espírito, do Espírito colherá vida
eterna” (Gl 6:8). O termo que aparece no grego é phthora, que significa «corrupção,
Aqui, a “vida eterna” dos justos se contrasta à “corrupção” dos ímpios, como
os dois destinos finais. É digno de nota que phthora é sempre usada para coisas
perecíveis, o que explica por que Paulo o usa quando fala do nosso “corpo que é
nosso corpo atual é perecível (phthora) é justamente porque ele morre. Paulo usa
esse mesmo termo para designar o futuro dos ímpios, o que refuta a ideia de que
fogo. Para Paulo, apenas os justos ressuscitam incorruptíveis (aphthrsia, termo que
Note o quanto isso contrasta com o que diz o teólogo imortalista Ron
Rhodes:
eternidade.1008
1007
#5356 da Concordância de Strong.
1008
RHODES, Ron. A Cronologia do Fim dos Tempos. Porto Alegre: Chamada, 2016, p. 255.
1481
O aniquilacionismo na Bíblia 1482
O termo grego aqui usado pelo autor de Hebreus é esthio, que significa
«devorar, consumir». Dificilmente haveria uma palavra mais forte para designar um
que os que perecem em pecado contra Deus por fim experimentarão o juízo de um
fogo vingador que os irá consumir. Observem que a função do fogo é consumir os
conhecia textos como Is 26:11, que diz que “o fogo reservado para os adversários
do Senhor os consumirá”. Note a semelhança com o texto de Hebreus, que diz que
conhecia Is 29:6, que diz que “repentinamente, num instante, o Senhor dos Exércitos
1009
ibid, p. 226.
1482
O aniquilacionismo na Bíblia 1483
Mais uma vez, Isaías diz que “sem dúvida eles são como restolho; o fogo os
consumirá. Eles não podem nem mesmo salvar-se do poder das chamas” (Is 47:14).
A razão por que eles não podem «salvar-se do poder das chamas» é justamente
porque as chamas os consumirão completamente, sem que eles tenham como fugir
para salvar sua vida. Em outras palavras, não há nada que possa impedir que eles
sejam consumidos pelo fogo. Isso é exatamente o inverso da teologia que diz que
encharcados de bebida como bêbados, serão consumidos como a palha mais seca”
afirma que o fogo do Senhor consumirá os ímpios a ponto de “não sobrar nem raiz
nem ramo”, uma metáfora em nada condizente com alguém que continua vivo para
“Porque eis que aquele dia vem ardendo como fornalha; todos os soberbos, e
todos os que cometem impiedade, serão como a palha; e o dia que está para
vir os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem
raiz nem ramo” (Malaquias 4:1)
ímpios serão consumidos, os imortalistas ainda assim insistam que não serão. É o
tipo de coisa que ultrapassa todos os níveis conhecidos de teimosia. O único motivo
por que eles não podem admitir o óbvio daquilo que a Bíblia diz é porque isso é um
1483
O aniquilacionismo na Bíblia 1484
imortalistas tanto falam fora de contexto não atormenta ninguém para sempre,
verdade é vividamente retratada em Isaías, que diz que “os seus muitos inimigos se
tornarão como o pó fino, as hordas cruéis, como palha levada pelo vento” (Is 29:5).
O verso seguinte explica como isso acontece: “O Senhor dos Exércitos virá com
de manter a pessoa viva, cumpre exatamente aquilo ao qual se propõe: devorar, até
que os inimigos de Deus se tornem como o pó fino. Malaquias não podia ser mais
específico quanto a isso quando diz que “pisareis os ímpios, porque se farão cinza
debaixo das plantas de vossos pés, naquele dia que estou preparando, diz o Senhor
dos Exércitos” (Ml 4:3). Os salvos não vão pisar em almas incorpóreas ou em corpos
incorruptíveis e imortais, mas nas cinzas dos ímpios que já foram aniquilados.
Referindo-se àqueles que o rejeitam, Jesus disse que “aquele que cair sobre
esta pedra será despedaçado, e aquele sobre quem ela cair será reduzido a pó” (Mt
21:44). O paralelismo mostra que “ser despedaçado” é o mesmo que ser “reduzido
a pó”, que aqui é ilustrado pelos efeitos da Rocha (Cristo) que os esmaga. Ninguém
se expressou em termos mais claros quanto a isso do que Pedro, que não somente
disse que os ímpios serão reduzidos às cinzas, mas ainda iguala o destino deles com
1484
O aniquilacionismo na Bíblia 1485
A comparação de Pedro não poderia ser mais precisa: ele menciona o que
aconteceu com Sodoma e Gomorra, não porque citava duas cidades aleatórias ao
acaso entre tantas outras que poderia ter citado como exemplo, mas porque
Deus fez cair do céu, que é exatamente o mesmo que Ele fará com os ímpios após
o juízo. Pedro diz que o que Deus fez com essas duas cidades é o mesmo que
acontecerá com os ímpios, o que só pode significar que a destruição dos ímpios é
mais precisa do que as cinzas: as cinzas não falam, não andam, não sentem, não
sofrem, não têm consciência alguma. Elas são precisamente aquilo que há de menor
entre as coisas que os escritores bíblicos viam e conheciam, e por isso caíam como
uma luva na descrição de alguém que foi aniquilado e não mais existe. Além disso,
especialmente após ser consumido pela ação do fogo – que é justamente o que
razão por que isso é difícil de se pensar é justamente porque tal coisa é impossível.
Pedro sabia perfeitamente disso, e é simplesmente ridículo supor que ele diria tal
1485
O aniquilacionismo na Bíblia 1486
como o destino dos ímpios, se não quisesse respaldar essa mesma crença. As
são muito piores do que você imagina. Para eles, Pedro não falava literalmente
quando dizia que os ímpios serão reduzidos às cinzas, mas as cinzas são apenas
uma “alegoria” para se falar de um estado de “ruína espiritual” dos que estão no
inferno.
Se é assim que devemos interpretar o texto, por que Pedro cita como
pior do que isso, diria que o que aconteceu a essas cidades é aquilo que acontecerá
aos ímpios? Neste caso, Pedro deveria citar como exemplo cidades que não haviam
sido literalmente destruídas até literalmente serem reduzidas às cinzas, mas cidades
submetidas à “ruína espiritual”, entre as quais não faltariam exemplos a ser citados.
Em vez disso, ele faz questão de citar justamente as únicas duas cidades em toda a
Bíblia que foram literalmente reduzidas às cinzas por um fogo que o próprio Deus
enviou do céu, e que não mais existiam na época em que Pedro escrevia (o lugar é
não diria que os ímpios serão reduzidos às cinzas, já que eles espiritualmente já
seriam “cinzas” (ruína espiritual) hoje. Se ele fala daquilo que acontecerá aos ímpios,
Uma vez que os ímpios já estão em ruína espiritual, isso obviamente não pode ser
cinzas. Como ele coloca como algo que acontecerá no futuro, só pode se referir a
um tipo de destruição que eles ainda não experimentam hoje – a destruição física e
1486
O aniquilacionismo na Bíblia 1487
total, que faz das cinzas não uma metáfora para a ruína espiritual, mas uma
descrição tão real e literal quanto a do exemplo que ele citou (de Sodoma e
Gomorra).
retrato fiel de um ímpio que hoje tem um corpo corruptível e mortal, mas que no
não no sentido da extinção física, mas de herdar um corpo muito mais poderoso e
“ser reduzido às cinzas” seria interpretado no futuro como uma vida eterna em um
corpo imortal que não mais está sujeito à corrupção. Isso é mais do que cuspir no
texto bíblico: é insultar a inteligência do leitor, por mais condicionado que esteja a
vida toda.
aqui, terá também que tratar como alegórica a destruição de Sodoma e Gomorra, o
que eu não duvido que façam para salvar a doutrina do sofrimento eterno. O que
cinzas da mesma forma que as duas cidades alegoricamente viraram cinzas, o que
1487
O aniquilacionismo na Bíblia 1488
de como não se deve usar uma analogia, uma vez que o objetivo da mesma seria
dizer exatamente o inverso daquilo que está sendo ilustrado, como no quadro
abaixo:
Interpretação
O que o texto diz Interpretação mortalista
imortalista A
1488
O aniquilacionismo na Bíblia 1489
ímpios se tornarão cinzas mesmo, mas uma cinza imortal, que fala, que sente, que
Vale lembrar ainda que a Bíblia nunca diz que alguma coisa ou alguém virou
cinzas em um sentido de mera ruína espiritual. Sempre que isso acontece, é pra se
que Moisés destrói o bezerro de ouro, dizendo: “Então peguei o bezerro, o bezerro
do pecado de vocês, e o queimei no fogo; depois o esmigalhei e o moí até virar pó,
e o joguei no riacho que desce do monte” (Dt 9:21). Tanto “esmigalhar” como “virar
pó” são coisas que a Bíblia diz que acontecerá com os ímpios, e que aqui se refere
Quando um homem morre, é dito que ele volta ao pó: “Com o suor do seu
rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque
quando morremos, nosso corpo lentamente se decompõe até o ponto de virar pó,
o mesmo material do qual fomos feitos (Gn 2:7). Por isso Jó, que se via à beira da
farás voltar ao pó?” (Jó 10:9). Virar pó ou ser reduzido às cinzas sempre foi
destruição de algo.
1489
O aniquilacionismo na Bíblia 1490
tempestade o ímpio já não existe, mas o justo permanece firme para sempre” (Pv
10:25).
Obviamente, ele não falava de uma simples tempestade do dia a dia, pois
nem o justo ganha uma vida eterna e tampouco os ímpios morrem após uma
tempestade, como se o objetivo do autor fosse dizer que Deus atinge os ímpios
com raios e trovões como se fosse Zeus ou o tio Victor do Castelo Rá-Tim-Bum. A
“tempestade” que ele se refere é a própria vida terrena, após a qual o ímpio não
mais existirá, mas o justo permanecerá para sempre. Este fato é reiterado por
Obadias, que fala do fim de Edom como o fim de todos os inimigos de Deus, que
“Pois o dia do Senhor está próximo para todas as nações. Como você fez,
assim lhe será feito. A maldade que você praticou recairá sobre você. Assim
como vocês beberam do meu castigo no meu santo monte, também todas as
nações beberão sem parar. Beberão até o fim, e serão como se nunca
tivessem existido. Mas no monte Sião estarão os que escaparam; ele será
1490
O aniquilacionismo na Bíblia 1491
identificado no NT como o dia do juízo (At 2:20; 2Pe 3:10; 1Co 5:5). Note que
Obadias não diz que os ímpios continuarão existindo para sempre depois disso,
mas que serão como se nunca tivessem existido. Para nós é difícil imaginar a
de assimilar o que acontecerá com os ímpios é entender que eles serão o mesmo
que eram antes de serem concebidos: nada. Assim como não existiam antes de
virem ao mundo, não existirão depois do juízo. Ou, para usar as palavras do profeta,
É difícil imaginar como alguém pode vir a ser “como se nunca tivesse
a ginástica mental dos teólogos imortalistas é capaz de explicar. Mas isso não é
tudo: note ainda como o verso 18 diz que os ímpios deixarão de existir: incendiados
e consumidos! Mais fantástica ainda será a ginástica que explicará de que modo
para sempre:
Ser “reduzido às cinzas” e ser “reduzido a nada” são duas formas diferentes
de dizer a mesma coisa: que os ímpios não mais existirão. Não à toa, Jeremias diz:
“Corrige-me, Senhor, mas somente com justiça, não com ira, para que não me
1491
O aniquilacionismo na Bíblia 1492
reduzas a nada” (Jr 10:24). Jeremias sabia que se ele se desviasse dos caminhos do
Senhor ele seria punido, e também sabia que essa punição não era uma eternidade
de torturas infernais, mas ser reduzido a nada – deixar de existir. É por isso que o
salmista diz que os ímpios serão “tirados do livro dos vivos” (Sl 69:28), o que implica
Se o nome dos ímpios não estará no livro dos vivos, em que livro estará?
pó, pois abandonaram o Senhor, a fonte de água viva” (Jr 17:13). Sim: no pó!
Enquanto os salvos têm seus nomes escritos no livro da vida (Ap 3:5) – porque
permanecerão vivos para sempre –, os ímpios terão seus nomes escritos no pó, que
é justamente o destino tão falado por Pedro e pelos profetas – e não no inferno,
onde supostamente viverão para sempre, segundo os imortalistas. Uns vivem para
sempre e têm seus nomes escritos no livro da vida; os outros são reduzidos às cinzas
concluir outra coisa senão que a morte final que a Bíblia tanto fala a respeito dos
ímpios é uma morte física, real, completa e literal; não uma metáfora, não uma
própria existência. Morte é por definição o inverso da vida, e assim deve ser
entendida antes de tudo. Dizer que “morte” na Bíblia significa a separação da alma
respeito da segunda morte (Ap 20:14)? Será que a alma dos ímpios se separa
1492
O aniquilacionismo na Bíblia 1493
novamente do corpo para ser lançada no “lago de fogo”? E se isso não se aplica à
usada para a morte dos animais (Jr 21:6), e eu não conheço nenhum exegeta
imortalista que sustente que a morte dos animais também consiste na separação
da alma do corpo. Geisler e Howe alegam que “a palavra ‘morte’ na Bíblia não deve
ser entendida como aniquilação, mas como separação”1010. Se isso é verdade, como
de vida; o homem não tem vantagem alguma sobre o animal. Todos vão
(Eclesiastes 3:19-20)
que o homem “se separa” assim como o animal “se separa”, o que não parece fazer
muito sentido (porque não faz). O único significado aceitável para “morte” aqui é o
inverso de vida – ou seja, a cessação da existência. Neste caso, faz todo o sentido
dizer que assim como morrem (deixam de existir) os animais, assim também
1010
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 369.
1493
O aniquilacionismo na Bíblia 1494
homens possuem uma alma imortal que se liberta do corpo na morte. Assim, ao
invés de extrair dos textos o seu verdadeiro significado, eles enxertam nos textos
um conceito estranho a eles, que nem de longe pode ser encontrado ali, mas que é
Mas se não foi da Bíblia que os imortalistas tiraram o seu conceito de morte,
e isolar-se em si mesma.1011
mundo pagão passa longe de ser verificado na Bíblia. Como Bacchiocchi observa,
“a palavra hebraica mais comum com o significado de ‘morrer’ é muwth, que ocorre
1011
Fédon, 64.
1012
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 129.
1494
O aniquilacionismo na Bíblia 1495
imortalista usar o conceito platônico de morte e disser que é bíblico, pergunte a ele
ímpios da qual os autores tanto se referem não é uma separação da alma do corpo
É neste sentido que Isaías diz que Deus “julgará com justiça aos pobres, e
repreenderá com equidade aos mansos da terra; e ferirá a terra com a vara de sua
boca, e com o sopro dos seus lábios matará ao ímpio” (Is 11:4). Em descrição
semelhante, Sofonias diz que “o sangue deles será derramado como poeira, e suas
entranhas como lixo” (Sf 1:17), e o salmista diz que Deus “julgará as nações,
110:6).
Essa verdade é ressaltada muitas vezes no NT, onde lemos que “o salário do
pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus,
nosso Senhor” (Rm 6:23). Neste texto, a morte dos ímpios como consequência de
seus pecados é colocada em antítese com a vida eterna que os salvos desfrutam.
Uma vez que a vida eterna não é meramente “qualitativa” no sentido de estar
espiritualmente “vivo”, mas uma vida real e literal, a única conclusão honesta que
podemos chegar é que a morte ali também não é apenas “qualitativa” no sentido
de uma “morte espiritual”, mas uma morte real e literal daqueles que não foram
1495
O aniquilacionismo na Bíblia 1496
Exigir que a morte neste texto seja apenas espiritual, quando a vida eterna
vida apenas espiritual e não como uma vida real a ser desfrutada fisicamente,
referindo a uma morte puramente espiritual, em vez de uma morte real e literal –
Tiago diz que “aquele que fizer converter do erro do seu caminho um
pecador, salvará da morte uma alma, e cobrirá uma multidão de pecados” (Tg 5:20).
Tiago não falava da primeira morte, a que passamos ao final desta vida, porque
nesta vida todos morrem. A morte da alma aqui diz respeito à segunda morte,
que ele está dizendo é que, quando convertemos alguém à fé, livramos a alma-
psiquê dessa pessoa da morte eterna, porque nem corpo nem alma estão imunes à
destruição no Geena.
O próprio Senhor Jesus condicionou a vida eterna a crer nele, quando disse:
“Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá; e
quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente” (Jo 11:25-26). Na Bíblia,
concedido aos salvos, não uma possessão natural. Os ímpios não obtêm
imortalidade para viver para sempre, mas precisamente o seu oposto: a morte,
estado do qual jamais retornarão (por isso mesmo chamada de “morte eterna”).
1496
O aniquilacionismo na Bíblia 1497
qual estivemos submetidos por toda a vida, não porque o termo “morte” carregue
isso, e que certamente não fazia parte do uso cotidiano de um judeu do primeiro
século. Provar que “morte” nesses textos significa “morte mesmo” é uma tarefa tão
ardorosa quanto provar que a grama é verde ou que 2+2=4 para quem insiste em
Mesmo quando a Bíblia fala de “morte espiritual”, ela não está falando de
outra coisa senão da morte física futura tratada como uma realidade presente. Não
poucas vezes a Bíblia se refere a coisas futuras como se fossem presentes, como
uma antecipação daquilo que está por vir. Por exemplo, Paulo diz que “Deus nos
ressuscitou com Cristo e com ele nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo
Jesus” (Ef 2:6). Evidentemente, a ressurreição e a posse das moradas celestiais é algo
futuro, mas Paulo trata como se fosse presente, porque é aquilo que nos espera
hoje.
O salmista faz a mesma coisa quando diz que “quando subiste em triunfo às
alturas, levaste cativo muitos prisioneiros; recebeste homens como dádivas, até
mesmo rebeldes, para estabeleceres morada, ó Senhor Deus” (Sl 68:18). Embora o
salmista escreva como se o fato já tivesse ocorrido, Paulo, ao citar o mesmo texto,
diz que aquilo aconteceu quando Jesus ressuscitou dos mortos (Ef 4:8-12), algo que
1497
O aniquilacionismo na Bíblia 1498
Isaías diz acerca de Tiro: “Pranteiem, vocês, navios de Társis; destruída está a
sua fortaleza!” (Is 23:14). No entanto, isso só aconteceu em 332 a.C, quatro séculos
depois de Isaías, que escreve sobre o futuro como se o fato já tivesse ocorrido. Ele
também faz isso no famoso texto que diz que “um menino nos nasceu, um filho nos
foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso,
Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9:6). Aqui ele alterna
presente e futuro, como se o menino já tivesse nascido, ainda que o seu nome não
fosse dado. Sabemos que a profecia se aplica a Jesus, que só nasceria muito tempo
mais tarde.
que falam do futuro como se fosse presente. Jesus disse que “quem ouve a minha
palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não será condenado, mas
já passou da morte para a vida” (Jo 5:24). Que a morte aqui é uma morte física e
literal, isso é facilmente provado pelo contexto, que fala de uma ressurreição literal.
O verso seguinte diz: “Eu lhes afirmo que está chegando a hora, e já chegou, em que
os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles que a ouvirem, viverão” (v. 25).
“Não fiquem admirados com isto, pois está chegando a hora em que todos os
que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem
1498
O aniquilacionismo na Bíblia 1499
literal (vs. 21, 25, 28 e 29), é evidente que ele falava de uma morte igualmente física
e literal, que demanda uma ressurreição da mesma natureza. Note que o verso 25
é retratar as duas realidades futuras como algo presente, como uma “antecipação”
daquilo que está por vir. Em outras palavras, dizer que alguém “passou da morte
para a vida” (Jo 5:24) equivale a dizer que “ele ia morrer, mas agora vai viver”, e dizer
que “estávamos mortos em nossos delitos em pecados” (Ef 2:1) significa dizer que
“iríamos morrer por causa dos nossos delitos e pecados”. O importante é entender
Um salmo que expressa esse conceito com perfeição é o Salmo 30, onde Davi
diz ter chegado perto da morte, e então declara: “Fizeste subir a minha alma do
Sheol, conservaste-me a vida para que não descesse ao abismo” (Sl 30:3).
Evidentemente, Davi não tinha ido ao Sheol naquele momento, porque ainda estava
no mundo dos vivos. Mas ele escreve como se tivesse ido, antecipando o que teria
acontecido caso tivesse morrido. Este é precisamente o caso daqueles que a Bíblia
diz que estão mortos no pecado, não porque estejam fisicamente mortos hoje, mas
1499
O aniquilacionismo na Bíblia 1500
pecados hoje.
enterrando os mortos, mas de pessoas que em breve estariam tão mortas quanto
1013
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 126.
1500
O aniquilacionismo na Bíblia 1501
que eles propõem têm em comum é que nenhum deles tem a ver com morte de
manda entender um termo de acordo com seu uso geral e regular, quando não há
quase sempre na Bíblia é usada no sentido natural e simples de uma estrutura física
do Espírito Santo (1Co 6:19). Quando isso ocorre, o próprio contexto deixa claro que
não se refere a um templo literal, uma vez que este seria o sentido natural a ser
O mesmo podemos dizer a respeito da morte na Bíblia. Uma vez que seu uso
natural e simples remete ao fim da vida, que é como consta no dicionário e como
usamos no cotidiano, é assim que devemos entender os textos bíblicos que falam
natural de “morte” não porque haja realmente algo no contexto que indique a
que a alma é imortal. Em outras palavras, eles preferem mudar o significado habitual
Vale ressaltar que não há um único texto da Bíblia que fale de “existência
eterna” aos salvos. Em vez disso, sempre que ela quer falar da existência eterna, ela
1501
O aniquilacionismo na Bíblia 1502
fala de “vida eterna”, e quando quer falar de inexistência eterna, fala de “morte
eterna”. Na Bíblia, a morte é o inverso da vida, e está associada não a uma separação
entre corpo e alma, nem tão-somente à separação de Deus, mas à morte biológica,
a cessação da existência (que pode ser eterna, como no caso da segunda morte, ou
termo “morte” usado para o destino final dos ímpios também é usado para se referir
Cadáveres – Que a morte dos ímpios é tão real e literal quanto podemos
imaginar, isso também é evidente pelo relato de Jeremias, que fala do grande «dia
cadáveres:
“Portanto, eis que vêm dias, diz o Senhor, em que não se chamará mais
em Tofete, por não haver outro lugar. E os cadáveres deste povo servirão de
O Vale de Hinom se refere justamente ao Geena, o lugar onde Jesus diz que
os ímpios serão queimados (Mt 5:22, 10:28; Mc 9:43). Já vimos que esse queimar
não diz respeito a um tormento eterno em meio às chamas, mas ao fato dos ímpios
serem consumidos até a morte. Em Jeremias, é o próprio Senhor que chama o Vale
sofrimento eterno, mas de morte. E antes que alguém levianamente diga que a
1502
O aniquilacionismo na Bíblia 1503
Deus” (mas ainda vivo), note que o verso 33 fala claramente de cadáveres, o que
implica que a morte ali retratada é uma morte tão física e literal quanto a que
ou corpos incorruptíveis, mas cadáveres, como o texto diz (e como animais fazem).
Quando Jesus citou o Geena (Vale de Hinom), ele estava justamente aludindo a este
importância entender que o Geena não era e nunca foi um lugar de sofrimento. O
pagavam a pena. Por isso o Geena transmitia tão bem a imagem de aniquilamento
que Jesus queria passar a um público judeu que conhecia perfeitamente o Vale de
É por isso que Isaías se refere aos ímpios após o juízo como cadáveres, e não
“Sairão e verão os cadáveres dos que se rebelaram contra mim; o seu verme
não morrerá, e o seu fogo não se apagará, e causarão repugnância a toda a
Como veremos no capítulo seguinte, Jesus fez uso deste texto para falar do
destino final dos ímpios (Mc 9:47-48), onde tanto o “fogo que não se apaga” quanto
o “verme que não morre” são tirados de contexto como se fizessem referência a
1503
O aniquilacionismo na Bíblia 1504
uma pessoa viva, e não a alguém que já foi morto. Em outro lugar, Isaías diz que
“seus mortos serão lançados fora e os seus cadáveres exalarão mau cheiro; os
montes se encharcarão do sangue deles” (Is 34:3). Mais uma vez vemos os ímpios
sendo descritos como cadáveres, não porque sejam zumbis, mas porque o que
Note ainda que Isaías diz neste versículo que eles “serão lançados fora”, que
é o mesmo que Jesus diz a respeito dos ímpios nas ocasiões em que fala do “choro
eterno (Mt 8:12, 25:30). Novamente vemos Jesus perfeitamente familiarizado com
completo:
Quando Jesus disse que os ímpios «serão lançados fora», onde «haverá
34:3, que diz que os ímpios «serão lançados fora», e o Salmo 112:10, que diz que o
ímpio «se entristecerá e rangerá os dentes». Ou seja, Jesus não estava criando uma
doutrina nova, estava apenas citando aos judeus os textos que eles já conheciam a
respeito do destino dos ímpios. E o detalhe é que ambos os textos aludidos são
1504
O aniquilacionismo na Bíblia 1505
os dentes, o salmista prossegue dizendo que ele “se consumirá”, e após dizer que
os ímpios serão lançados fora, Isaías prossegue dizendo que seus cadáveres
Para qualquer leitor sincero, é mais do que evidente que ambos os textos
rangerá os dentes de ódio, e então será consumido pelo fogo consumidor que o
tornará um cadáver (um morto, não um morto-vivo). É neste contexto que os bichos
conscientemente, mas cadáveres, que é o que se tornarão. A razão por que Jesus
citava textos aniquilacionistas bem conhecidos dos judeus é porque ele concordava
com a visão veterotestamentária que define a morte dos ímpios como a cessação
O próprio Isaías diz que os cadáveres dos ímpios “serão todos entregues aos
abutres das montanhas e aos animais selvagens; as aves se alimentarão deles todo
o verão, e os animais selvagens, todo o inverno” (Is 18:6). Parte alguma diz que os
ímpios estarão vivos nesta ocasião, enquanto são devorados pelos abutres. Pelo
que dizem a mesma coisa através de analogias com um significado bastante nítido,
exemplo, o salmista escreve: “Que tu os dissipes assim como o vento leva a fumaça,
1505
O aniquilacionismo na Bíblia 1506
o vento que leva a fumaça que se dissipa no ar, e a cera que se derrete na presença
indestrutíveis, nem mesmo com qualquer coisa conhecida por ser resistente, mas
Quando o vento leva a fumaça, você não vê mais a fumaça, e quando a cera é
acordo com a Lei de Lavoisier, “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se
transforma”), já não há mais o elemento visível que faz da fumaça uma fumaça ou
da cera uma cera. Da mesma forma, quando o ímpio morre ele deixa de existir como
um ser humano, ainda que seus átomos não sejam destruídos, mas transformados
em outra coisa (que nada tem a ver com um ser humano, muito menos com a
manhã, como o orvalho que bem cedo evapora, como a palha que num redemoinho
vai-se de uma eira, como a fumaça que sai pela chaminé” (Os 13:3). Todas essas
analogias são muito mais compatíveis com alguém que deixa de existir como
indivíduo, do que com alguém que continua existindo como um ser imortal em um
1506
O aniquilacionismo na Bíblia 1507
“Por isso, assim como a palha é consumida pelo fogo e o restolho é devorado
(Isaías 5:24)
Uma palha consumida pelo fogo não mais existe como palha; da mesma
humanos, sendo reduzidos ao pó que é levado pelo vento. Isso lança luz ao texto
em que João Batista diz que “Ele traz a pá em sua mão e limpará sua eira, juntando
seu trigo no celeiro, mas queimará a palha com fogo que nunca se apaga” (Mt 3:12).
“Queimar a palha com fogo” é uma linguagem muito presente no AT para se referir
ao aniquilamento dos ímpios, e outra figura que os judeus conheciam bem. E como
veremos no capítulo seguinte, o “fogo que não se apaga” é também uma linguagem
Jesus fez uma analogia semelhante quando disse: “Deixem que cresçam
juntos até à colheita. Então direi aos encarregados da colheita: Juntem primeiro o
joio e amarrem-no em feixes para ser queimado; depois juntem o trigo e guardem-
no no meu celeiro” (Mt 13:30). Na agricultura, queima-se o joio para destruí-lo, não
dizendo é que Jesus usou uma analogia pretendendo dizer o oposto – ou seja, que
1507
O aniquilacionismo na Bíblia 1508
Além da analogia com o joio, Jesus também fez uma analogia com o sal: “Se
o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser
jogado fora e pisado pelos homens” (Mt 5:13). O que as pessoas fazem com o sal
após o sal se estragar não é guardá-lo e dar um jeito de conservá-lo para sempre,
mas justamente o seu oposto. Obviamente Jesus não diria que “o sal morre”, pois
não se trata de um ser vivo, mas jogar um sal fora para ser pisado é o que chega
mais perto de uma analogia com a morte humana. É por isso que na parábola dos
lavradores Jesus diz que, quando o dono da vinha voltar, “virá e exterminará aqueles
Ele não diz que os lavradores maus seriam torturados ou presos pelo máximo
de suas existências, mas que seriam exterminados, que é o que melhor descreve o
destino final dos ímpios. Esse mesmo destino é aludido novamente em outra
parábola, quando é dito “quanto a esses meus inimigos, que não quiseram que eu
reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-os na minha presença” (Lc 19:27).
da vinha e do rei, que representam com exatidão aquilo que Deus fará aos
pecadores impenitentes. E diferente da parábola do rico e Lázaro, note que isso faz
No salmo que iniciou este estudo, vimos que os ímpios “são como um sonho
que parte do sonho estávamos ou como ele era; se acordarmos, o sonho passará
imediatamente. A analogia com o destino dos ímpios indica que sua existência é
1508
O aniquilacionismo na Bíblia 1509
tão tênue quanto um sonho que existe hoje, mas deixará de existir amanhã e será
deles; como o aborto duma mulher, que nunca viu o sol” (Sl 58:8). A lesma que se
derrete não continua existindo; ela simplesmente morre. E ainda que possamos
texto é que ele nunca verá o sol, justamente porque não nasceu. A primeira analogia
diz respeito a algo que deixa de existir, e a segunda a algo que não veio à existência
debaixo do sol. Ambas são perfeitamente adequadas ao destino eterno dos ímpios,
que “deixarão de existir” (Sl 37:10, 59:13, 104:35; Pv 10:25) e “serão como se nunca
A oração de Jeremias também nos revela que tipo de fim que ele acreditava
Reserva-os para o dia da matança!” (Jr 12:3). A ovelha destinada ao matadouro não
1509
O aniquilacionismo na Bíblia 1510
eterno. Em todas as analogias bíblicas sobre o destino dos ímpios, os ímpios são
ilustrado não só nas analogias com aquilo que é perecível, mas também na própria
lei, que tipificava as realidades que estavam por vir (Hb 10:1; Cl 2:17). Na lei de
no dia do juízo. Após citar uma série de imoralidades sexuais (entre elas o incesto,
a zoofilia e o homossexualismo), é dito que “todo aquele que fizer alguma destas
1510
O aniquilacionismo na Bíblia 1511
Ser “eliminado do meio do povo” não significava uma viagem para outro
expiação, “toda alma que nesse dia não se afligir, será eliminada do meio do povo.
Quem nesse dia fizer alguma obra, a esse eu destruirei do meio do povo” (Lv 23:29-
lugar no período da colheita entre o trigo e o joio. Uma vez que o joio
(Mt 13:38), é evidente que Jesus tinha sua Igreja em mente. Trigo e
vinda. Mas por ocasião do juízo final, tipificado pelo dia da expiação,
1511
O aniquilacionismo na Bíblia 1512
1:9).1014
rememora essas palavras da lei e diz que “toda alma que não ouvir a esse profeta
será exterminada do meio do povo” (At 3:23). A palavra aqui traduzida por
aniquilar, exterminar, desenraizar»1015 (de fato, a ACF traduz este texto por
Imortalistas alegam que aqui Pedro não falava do extermínio da alma, mas
somente de sua separação do resto da comunidade (no caso, dos salvos que vão
morar no céu), já que ele diz que a alma será “exterminada do meio do povo”. O que
eles não se dão conta é que Pedro aludia à mesma linguagem tão recorrente em
todo o AT, onde ser “eliminado do meio do povo” não significava continuar vivo em
outra parte, mas ser eliminado da própria existência. Devemos lembrar que Pedro
discursava no templo para um público judeu, que conhecia muito bem a lei e sabia
exterminados. Ser “eliminado do meio do povo” não significava uma passagem para
1014
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 219-220.
1015
#1842 da Concordância de Strong.
1512
O aniquilacionismo na Bíblia 1513
estão sujeitos à morte final e definitiva. Note que a pena prevista na lei para quem
era “eliminado do meio do povo” não era uma tortura incessante ou uma prisão
Se a pena para os incrédulos fosse o tormento eterno, não faria muito mais
sentido que ela fosse tipificada por um tormento infindável enquanto durasse esta
vida? No entanto, este nunca é o caso. A morte (real, física e literal) era a punição
máxima. Como observa Bacchiocchi, “esta verdade fundamental foi ensinada no AT,
Em suma, a lei, como uma “sombra” da realidade futura (Hb 10:1; Cl 2:17),
1016
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 219.
1017
DUNN, James D. G. “Paul’s Understanding of the Death of Jesus”. In: Reconciliation and Hope: New
Testament Essays on Atonement and Eschatology (ed. Robert Banks). Grand Rapids: W. B. Eerdmans Pub.
Co., 1974, p. 136.
1513
O aniquilacionismo na Bíblia 1514
Uma razão adicional para acreditar que os perdidos não terão uma
que Deus por sua benevolência e graça concede aos salvos na ressurreição dos
mortos. Por isso, não é de se admirar que nem athanasia nem aphthrsia sejam
usadas para se referir aos ímpios, seja nesta vida ou na próxima. O texto mais claro
apóstolo diz que Cristo “tornou inoperante a morte e trouxe à luz a vida e a
inútil e sem sentido a declaração de Paulo, uma vez que a imortalidade seria
apenas mediante o evangelho, segue-se que nenhum ímpio a possuirá, uma vez
que ele não está inserido no meio pelo qual é possível obtê-la.
no dilúvio por meio da arca”. O que estaria implícito nessa afirmação é que a arca
foi o meio pelo qual as pessoas puderam ser salvas no dilúvio, o que leva
1018
#861 da Concordância de Strong.
1514
O aniquilacionismo na Bíblia 1515
não nos resta outra conclusão senão a de que quem deliberadamente rejeita o
O termo grego aqui traduzido como “por meio do” é a preposição
(transliterado como dia), que Paulo usa novamente na mesma epístola no capítulo
3, quando diz que as Escrituras tornam o homem “sábio para a salvação mediante
() a fé em Cristo Jesus” (2Tm 3:15). Aqui vemos a mesma preposição sendo
usada num contexto semelhante, que fala da salvação sendo obtida mediante a fé
em Jesus. O sentido é de que a fé é o único meio pelo qual podemos ser salvos –
por isso Sola Fide, como os protestantes sempre creram –, o que é destacado pela
preposição , a mesma que é usada no texto que diz que a imortalidade é obtida
mediante o evangelho:
1:10)
1515
O aniquilacionismo na Bíblia 1516
Outra ocasião em que Paulo usa o termo aphthrsia é em Rm 2:7, que diz: “Ele
dará vida eterna aos que, persistindo em fazer o bem, buscam glória, honra e
herdarão, mas uma posse exclusiva daqueles que «persistem em fazer o bem». Uma
vez que os ímpios não “persistem em fazer o bem”, é evidente que a imortalidade
não é estendida a eles. O próprio fato de Paulo dizer que é preciso buscar a
pois ninguém busca aquilo que já tem. Se Paulo fosse imortalista, ele diria apenas
que devemos buscar o céu, já que a imortalidade em si é algo que todos já possuem,
terão. Preste atenção nas outras duas coisas que Paulo diz que devemos buscar
neste verso: glória e honra. Todos terão glória? Sabemos que não. Todos terão
honra? Também não. Então, que sentido faz dizer que todos terão imortalidade? Se
os ímpios serão imortais no inferno, a imortalidade seria o único tópico citado por
Paulo que todos terão, tornando inútil a “busca”. Dizemos que buscamos algo
quando não o temos, mas se já temos, não precisamos buscar. A única conclusão
“imortalidade” neste texto quer dizer exatamente aquilo que é: imortalidade. Uma
qualquer tentativa de negar esse significado aqui é apenas mais uma prova de
como eles são capazes de perverter toda e qualquer exegese para salvar seus
1516
O aniquilacionismo na Bíblia 1517
dogmas defendidos de antemão. Não importa o quão simples e claro um texto seja:
eles enxertam nos textos os seus próprios conceitos prévios, com os quais
ímpios serão imortais “por natureza”, mas não “por qualidade”. Baseado nessa
distinção filosófica que eles próprios criaram para solucionar o problema e que não
problema não é apenas colocar palavras na boca de Paulo para forçar uma distinção
mas é desconhecer uma das verdades mais elementares da Bíblia, de que não é
Aos atenienses, Paulo disse que “nele [em Deus] vivemos, e nos movemos, e
existimos” (At 17:28). Note que Paulo não só disse “vivemos”, mas também
que acontece com os perdidos no inferno. Uma separação total de Deus implicaria
que Deus é a fonte de toda a vida. Existir completamente apartado de Deus é como
uma planta sobreviver permanentemente sem água. Por isso Jesus disse “eu sou o
1517
O aniquilacionismo na Bíblia 1518
caminho, a verdade e a vida” (Jo 14:6), não num mero sentido espiritual, mas no
a própria Bíblia. Isso mostra o quão longe alguém é capaz de chegar apenas para
não ter de reconhecer um erro notório. Como vimos neste capítulo, a própria
ao seu significado primário e básico, que diz respeito à existência enquanto ser.
Assim como não é possível alguém espiritualmente vivo não ter a vida eterna, não
é possível alguém espiritualmente morto não ter a morte eterna (a não ser, é claro,
que se converta e passe “da morte para a vida”). Os dois conceitos estão
• O fim do diabo
existência para todo o sempre. Mas esses versículos estão falando de homens e
mulheres, não de seres espirituais, como Satanás e os seus anjos. Deveríamos então
Bíblia pouco falar do destino do diabo, temos fortes razões para crer que ele não
1518
O aniquilacionismo na Bíblia 1519
terá um fim diferente dos homens ímpios, apesar de sofrer mais do que eles até a
destruição.
mesmo tempo que o próprio autor do pecado, Satanás, que pecou por muito mais
tempo e lesou muito mais gente. Por essa mesma lógica, o sofrimento do diabo não
pode ser eterno, visto que ele não é eterno (1Tm 6:16) nem peca desde a eternidade.
Os anjos foram criados no tempo; portanto, não são eternos, como Deus. Quando
João diz que “Satanás peca desde o princípio” (1Jo 3:8), o sentido é que ele peca
desde quando se tornou “Satanás” (que significa “adversário”, no hebraico), não que
cada um, e o diabo não peca desde a eternidade, não faz sentido que ele sofra
eternamente, embora faça todo o sentido que ele sofra muito mais que as pessoas
comuns, mesmo o pior dos homens. De qualquer forma, a justiça retributiva exige
um fim temporal do castigo, o que implica na eliminação dos demônios assim como
dos homens ímpios. Mas temos evidência bíblica adicional de que o destino do
relato que Mateus faz de um demônio na região dos gadarenos, que possuíam um
“Que queres conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes
do devido tempo" (Mateus 8:29)
1519
O aniquilacionismo na Bíblia 1520
“O que queres conosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos destruir? Sei quem
em um ele diz que seria atormentado, e no outro diz que seria destruído. Não há
contradição entre os textos, porque, como vimos, eles serão as duas coisas:
consciência de seu destino futuro, que eles conhecem melhor do que muitos
intérpretes da Bíblia.
como uma mera “ruína espiritual”, assim como fazem com o caminhão de textos
que dizem que os ímpios serão destruídos. O problema é que os demônios já estão
em ruína espiritual, razão por que não faz o menor sentido eles temerem que Jesus
demônios em questão não diriam que Jesus iria destruí-los, pois destruídos eles já
estavam.
também mostra que os demônios sabem que não são imortais; doutro modo, não
1520
O aniquilacionismo na Bíblia 1521
não teme ser destruído, mas teme ir pro inferno eterno, justamente porque acredita
que até o diabo sabe que será atormentado e destruído, e não só atormentado. No
AT, o diabo é mencionado poucas vezes, e em algumas é citado por outros nomes,
na forma de profecias de dupla referência. Uma delas está em Ezequiel 28, que é
um lamento sobre o rei de Tiro, mas que a maioria dos estudiosos concorda que se
seguinte:
Ezequiel 28
perfeita beleza.
sárdio, topázio e diamante, berilo, ônix e jaspe, safira, carbúnculo e esmeralda. Seus
engastes e guarnições eram feitos de ouro; tudo foi preparado no dia em que você
foi criado.
14 Você foi ungido como um querubim guardião, pois para isso eu o determinei.
15 Você era inculpável em seus caminhos desde o dia em que foi criado até que se
1521
O aniquilacionismo na Bíblia 1522
16 Por meio do seu amplo comércio, você encheu-se de violência e pecou. Por isso
17 Seu coração tornou-se orgulhoso por causa da sua beleza, e você corrompeu a
sua sabedoria por causa do seu esplendor. Por isso eu o atirei à terra; fiz de você um
18 Por meio dos seus muitos pecados e do seu comércio desonesto você profanou
os seus santuários. Por isso fiz sair de você um fogo, que o consumiu, e eu reduzi
dupla referência: o fato do rei de Tiro ser descrito como «o modelo de perfeição,
cheio de sabedoria e de perfeita beleza» (v. 12), sua presença no jardim do Éden (v.
13), sua descrição como um «querubim guardião» (v. 14), sua impecabilidade
quando se encontrava neste estado (v. 15) e o fato de ter sido «atirado sobre a terra»
(v. 17), que é o mesmo que aconteceu com Satanás (Ap 12:9; Lc 10:18). Todos estes
e outros detalhes no texto levam a crer que a referência vai além do rei de Tiro e se
ainda era um anjo de luz (vs. 12-15); prossegue descrevendo seu estado atual,
quando foi atirado à terra (vs. 16-17), e termina descrevendo seu destino final,
quando será aniquilado (vs. 18-19). O final da perícope, de forma enfática, declara
que “você não mais existirá” (v. 19), e o verso anterior explica como isso acontece:
1522
O aniquilacionismo na Bíblia 1523
“Por isso fiz sair de você um fogo, que o consumiu, e eu reduzi você a cinzas no
chão, à vista de todos os que estavam observando” (v. 18). Note que é a mesma
linguagem empregada em relação à morte final dos ímpios, porque ambos serão
consumidos pelo fogo devorador da parte de Deus (Sl 21:9), a ponto de serem
Caso semelhante ocorre em Isaías 14, dirigido ao rei da Babilônia, mas que
muitos intérpretes identificam como mais uma profecia de dupla referência. É nele
que consta o famoso texto que diz: “Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã,
filho da alvorada! Como foi atirado à terra, você, que derrubava as nações!” (v. 12).
“nome” do diabo (embora neste texto “estrela da manhã” não seja um nome
próprio, mas uma designação do que ele era). Muitos são rápidos em citar o verso
12, mas poucos lembram a sequência do texto, que o descreve como um “cadáver
1523
O aniquilacionismo na Bíblia 1524
Novamente vemos o uso do termo «atirar à terra» (v. 4), que é recorrente nas
descrições de Satanás (Ap 12:9; Lc 10:18; Is 14:12; Ez 28:17). O verso 7 diz que
quando ele fosse extinto, o céu seria encoberto, as estrelas se escureceriam e a lua
não daria a sua luz, o que não aconteceu nos dias do faraó, mas é uma linguagem
escatológica recorrente para se falar do tempo do fim (Mc 13:24; Mt 24:29; Is 13:10;
Jl 3:15), quando os ímpios serão destruídos. Assim, apesar do texto falar em termos
antropomórficos (“sua carne”, “seu sangue”, etc), o que é compreensível por ter o
Isaías também fala do Leviatã, o “monstro dos mares” (Jó 41:1-34; Sl 104:26),
“Naquele dia, o Senhor com sua espada severa, longa e forte, castigará o
Leviatã, serpente veloz, o Leviatã, serpente tortuosa; matará no mar a
serpente aquática” (Isaías 27:1)
Temos bons motivos para pensar que aqui Isaías não se referia literalmente
ao Leviatã, embora o tenha citado como uma figura de algo maior. Em primeiro
lugar, porque Deus não teria qualquer razão para castigar um animal irracional, que
age por instinto. Em segundo, o Leviatã aqui mencionado não podia ser exatamente
o mesmo de Jó, a não ser que o mesmo animal estivesse vivo há milhares de anos,
1019
Disponível em: <http://ateismorefutado.blogspot.com/2015/04/evidencias-da-coexistencia-de-
humanos-e.html>.
1524
O aniquilacionismo na Bíblia 1525
Evidentemente, qualquer que seja a identificação mais precisa do animal, ele é parte
de uma espécie que, como qualquer outra, morre e se reproduz com o passar do
tempo.
Por isso faz tão pouco sentido dizer que Deus mataria um animal que de
qualquer maneira morreria dentro de pouco tempo por causas naturais, além de ser
um feito bem pouco notável para um Deus Todo-Poderoso, já que até mesmo um
armas certas. Foi assim que grandes e temidos animais no passado foram levados à
extinção ou reduzidos a uma quantidade ínfima. Para um ser como Deus, matar um
animal (por mais poderoso e temível que seja) não seria um feito e tanto a ponto
linguagem escatológica. O texto começa com a expressão “naquele dia”, que nos
livros proféticos é quase sempre uma alusão ao dia do Senhor, quando Deus
executará Seu juízo sobre os ímpios. Num contexto escatológico e de juízo como
esse, seria no mínimo estranho que um animal entrasse em cena, seja ele qual for.
A Bíblia nunca descreve o dia do juízo como um juízo sobre os animais, nem mesmo
sobre os animais que devoram humanos, os quais agiram por puro instinto, não por
maldade de coração.
O juízo divino sobre o Leviatã nos leva a crer que neste texto Isaías não estava
falando do animal em si, mas usava o animal como uma figura de algo maior, da
mesma forma que no texto de Ezequiel, onde Satanás é aludido na figura do rei de
Tiro. Não é a simples morte de um animal que é louvada e celebrada, mas a morte
1525
O aniquilacionismo na Bíblia 1526
Bíblia, o único usado para defender o tormento eterno do diabo é Ap 20:10, que,
Por fim, mas não menos importante, uma razão final para acreditar no
praticam. Talvez você nunca tenha parado para refletir sobre isso, mas a visão
imortalista perpetua o mal, em vez de extingui-lo para sempre. Para quem acredita
contínua e permanentemente.
terá fim, pois ele existe enquanto houver pecadores. Tampouco poderia haver paz
de espírito para alguém no céu que sabe que tem parentes e amigos sofrendo
mesma e uma das piores chagas da humanidade, continuarão existindo por toda a
criados pelo próprio Deus presciente. É difícil pensar em um roteiro mais dramático
1526
O aniquilacionismo na Bíblia 1527
eliminado.
Crer na imortalidade dos ímpios no inferno é acreditar que Deus odeia tanto
o mal que decide eternizá-lo; que Ele detesta tanto o pecado que decide perpetuá-
presente, com a única diferença de que os maus estarão em um lugar separado dos
existiria à parte dos salvos. Por outro lado, no aniquilacionismo bíblico, tanto o mal
quanto o pecado têm um fim, não só na comunidade dos justos, mas em toda a
criação. Ambos serão uma mancha do passado, não uma realidade presente. Na
humanidade caída.
O autor de Hebreus parece endossar este ponto de vista quando diz que a
missão expiatória de Cristo é “aniquilar o pecado” (Hb 9:26). O termo aqui traduzido
por “aniquilar” é o grego athetesis, que significa «abolir, anular, remover»1020, como
abolido, enquanto houver pecadores? O pecado, assim como o mal, não existe por
é uma ação produzida por seres pecadores, que continuará existindo enquanto
1020
#115 da Concordância de Strong.
1527
O aniquilacionismo na Bíblia 1528
aniquilacionismo como solução final, ainda que apenas este último seja
biblicamente defensável. Um texto que lança muita luz sobre isso está no capítulo
“Então virá o fim, quando ele entregar o Reino a Deus, o Pai, depois de ter
destruído todo domínio, autoridade e poder. Pois é necessário que ele reine
até que todos os seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés. O último
inimigo a ser destruído é a morte. Porque ele ‘tudo sujeitou debaixo de seus
pés’. Ora, quando se diz que ‘tudo’ lhe foi sujeito, fica claro que isso não inclui
o próprio Deus, que tudo submeteu a Cristo. Quando, porém, tudo lhe estiver
sujeito, então o próprio Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe
Primeiro ele diz que Deus destruirá todo domínio, autoridade e poder (v. 24),
depois diz que os inimigos do Senhor serão colocados debaixo dos seus pés (v. 25),
depois diz que a própria morte será destruída (v. 26), e então conclui dizendo que
Deus será tudo em todos (v. 28). Diante de todo o contexto, está claro que Deus ser
«tudo em todos» está diretamente ligado à destruição dos ímpios, incluindo todo
principado e potestade espiritual. A razão por que Deus será “tudo em todos”
depois que os ímpios forem destruídos é extremamente simples: Ele não pode estar
O próprio Senhor Jesus foi muito claro a este respeito quando disse:
1528
O aniquilacionismo na Bíblia 1529
“E eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Conselheiro para estar com vocês
Por que o mundo não pode receber o Espírito Santo? Porque Deus não
habita no impuro, mas só naqueles que são lavados e regenerados pelo sangue de
Jesus, que nos purifica de todo pecado (1Jo 1:7). Os ímpios não são purificados no
sangue do Cordeiro, e por isso Deus não habita neles (2Co 6:16). É por essa razão
que Deus não é “tudo em todos” hoje – note que Paulo coloca isso como um evento
o que é herético e antibíblico. Mais uma vez, o texto exige duas linhas de
não existem. Como vimos, todo o contexto aponta para este último.
Stott questiona
Enquanto existirem ímpios, Deus não pode ser “tudo em todos”, mas
somente em alguns, isto é, nos salvos. Futuramente, porém, quando a morte for
1021
STOTT, John; EDWARDS, David. L. Essentials: A liberal-evangelical dialogue. London: Hodder and
Stoughton, 1988, p. 319.
1529
O aniquilacionismo na Bíblia 1530
um imortalista por que Deus ainda não é “tudo em todos” hoje, e você verá um
silêncio sepulcral seguido de uma resposta ridícula. Essa é a única alternativa que
resta para quem defende a tese da existência eterna dos ímpios e da perpetuação
do mal no universo, o que exige verdadeiros malabarismos para explicar como Deus
dEle.
Tanto o mal como os ímpios já existem, e, todavia, Deus não habita neles.
Por que habitaria na eternidade, quando continuarão tão maus quanto hoje, e de
forma irreversível? É difícil pensar que essa fosse a ideia de Paulo, o mesmo que
disse não haver comunhão entre luz e trevas, nem entre Cristo e Belial (2Co 6:14-
15). Se a visão imortalista estiver certa, Deus estará “em todos”, inclusive em Belial
(Satanás). Se isso soa herético, é porque é herético. Tampouco faz sentido entender
“todos” aqui como se referindo a uma parcela minoritária da humanidade (ou seja,
os salvos). Neste caso, Paulo não diria que isso só aconteceria depois que a morte
e as autoridades deste mundo fossem destruídas, uma vez que Deus já habita nos
santos hoje.
Um Pai da Igreja que entendeu isso muito bem, embora o tenha aplicado
Mas Aquele que se torna “todas” as coisas estará “em todas” as coisas
o mal, claramente, não estará entre elas; pois se alguém pensasse que
existirá então [o mal], como a crença de que Deus estará “em todos”
1530
O aniquilacionismo na Bíblia 1531
abrangência do termo “todo”. (...) Uma vez que não é da Sua natureza
que o mal deve existir fora da vontade, não se segue que, quando toda
ímpios não mais existam, o que exige a «completa aniquilação do mal». Só que ele
interpretava que essa aniquilação do mal não se dava através da aniquilação dos
ímpios em si, mas sim de sua salvação, quando deixariam de ser maus e se tornariam
conosco!). Gregório foi forçado a concluir desta maneira porque viveu numa época
para ele era inconcebível a ideia de uma alma que morre. Assim, o jeito de resolver
o problema foi colocando todos os ímpios no céu, mesmo contra a vontade deles.
“Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude, e por meio
dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto
as que estão no céu, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na
harmonia anterior»1023. Note que esse estado de harmonia anterior que é trazido de
1022
Sobre a Alma e a Ressurreição.
1023
#604 da Concordância de Strong.
1531
O aniquilacionismo na Bíblia 1532
volta abrange tudo, incluindo «todas as coisas no céu e na terra», o que só é possível
graças à obra redentora de Cristo. Mas para os imortalistas, o mesmo Paulo que
escreveu isso também acreditava que a esmagadora maioria das pessoas que Deus
onde o mal nunca é eliminado, a rebelião nunca termina e o pecado é tão eterno
quanto Deus.
voltam a um estado de perfeita harmonia, onde não havia pecado e nem mal, se
num recanto do universo bilhões de criaturas entre seres humanos (da terra) e
contra Deus. Essa nova criação não teria nada a ver com a original, antes da revolta
de Satanás e da Queda de Adão, mas se pareceria muito mais com o estado atual
futura como um momento em que não mais existirá o mal, nem qualquer coisa que
1532
O aniquilacionismo na Bíblia 1533
escuridão, os olhos dos cegos tornarão a ver. Mais uma vez os humildes se
alegrarão no Senhor, os necessitados exultarão no Santo de Israel. Será o fim
do cruel, o zombador desaparecerá e todos os de olhos inclinados para o mal
dissiparem era preciso que o ímpio tivesse fim, pois só com a eliminação dos maus
é possível haver plena paz e retidão. O autor demonstra isso através de três palavras
hebraicas diferentes usadas no verso 20: 'aphec (desaparecer, cessar, ser reduzido
comenta Stott, “vitória significa que o mal é removido, e nada permanece, mas luz
Um dos textos mais enfáticos quanto a isso é Is 60:21, que diz: “Então todo o
seu povo será justo, e possuirá a terra para sempre. Ele é o renovo que plantei, obra
das minhas mãos, para manifestação da minha glória”. Se todo o povo será justo,
isso mais uma vez nos leva a concluir ou pelo universalismo (todo o povo é justo
“povo” não inclui todos os que vivem, mas somente os que já estão salvos – o que
1024
#656 do léxico e da Concordância de Strong.
1025
#3615 do léxico e da Concordância de Strong.
1026
#3772 do léxico e da Concordância de Strong.
1027
STOTT, John; EDWARDS, David. L. Essentials: A liberal-evangelical dialogue. London: Hodder and
Stoughton, 1988, p. 319.
1533
O aniquilacionismo na Bíblia 1534
não faz sentido, já que os salvos já são tidos como justos (Sl 37:29; Mt 13:49; 1Jo 3:7;
2Pe 2:8), mas o texto coloca isso como algo futuro («então todo o seu povo será
justo»).
Outra opção seria dizer que o texto não se refere ao estado eterno, mas
talvez a algum evento da história israelita antes da volta de Jesus. Isso é refutado
pelo contexto, já que dois versos antes lemos: “O sol não será mais a sua luz de dia,
e você não terá mais o brilho do luar, pois o Senhor será a sua luz para sempre; o
seu Deus será a sua glória” (v. 19). Se este texto te soa familiar, é porque você
conhece o texto do Apocalipse que fala do estado eterno: “A cidade não precisa de
sol nem de lua para brilharem sobre ela, pois a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro
toda a população da terra. A única saída que resta aos imortalistas seria dizer que o
inferno fica fora da terra, talvez num universo paralelo, o que contradiz o significado
Geena (um lugar físico na terra, não um recanto nos confins do universo) e o próprio
serem consumidos no lago de fogo (Ap 20:9), sem que haja qualquer indício de que
eles foram transferidos da terra para outro lugar. Pelo contrário, o texto deixa
subtendido que eles continuam na terra, mas fora das portas da cidade santa:
“Felizes os que lavam as suas vestes, para que tenham direito à árvore da
vida e possam entrar na cidade pelas portas. Fora ficam os cães, os que
1534
O aniquilacionismo na Bíblia 1535
“Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem
Note que João não falava apenas da condição dos salvos, mas da “nova
“nova ordem” exclui da criação de Deus tudo aquilo que caracteriza o mal: morte,
tristeza, choro e dor. Na nova criação de Deus, essas coisas não mais existem. Neste
cenário, é impossível pensar que há espaço para um ponto nos recantos do universo
onde bilhões de criaturas sofrem uma morte eterna consciente, com choro, tristeza
e dor (que de “morte” mesmo não tem nada). Qualquer inferência do tipo nega
pela inexistência de tudo aquilo que é mau, não somente pela separação entre
justos e ímpios.
Em suma, a visão bíblica não é de um Deus tão irado com o pecado que
decide perpetuá-lo para sempre, eternizando o mal em vez de eliminá-lo pela raiz,
mas de um mundo futuro no qual “o ímpio já não existe, mas o justo permanece
firme para sempre” (Pv 10:25), de modo que “não há mais pranto, nem luto, nem
1535
O aniquilacionismo na Bíblia 1536
trágico acidente doméstico que colocou sua casa em chamas, sem dar tempo de
salvá-lo. Quando um amigo lhe pergunta o que aconteceu com seu cãozinho, você
responde às lágrimas: ele morreu. Mas como você não usou a palavra “aniquilar”,
ele pensa que o seu cão não morreu de verdade, apenas teria “se separado” de você
(mas continuava vivo em algum lugar por aí), e por isso pede para ir procurá-lo nas
ruas. Você insiste em dizer que ele morreu mesmo, que pereceu, que foi consumido
pelo fogo, destruído pelas chamas... mas então ele pensa que você está falando em
um sentido figurado ou espiritualista, não no sentido que nós usamos no dia a dia.
Já sem paciência, você responde de forma enfática: ele perdeu a vida, deixou
de existir, foi exterminado, eliminado, se tornou pó, chegou ao fim e foi reduzido a
nada. Mas não adianta. Ele continua pensando que você está falando através de
metáforas, assim como os discípulos não entendiam o que Jesus queria dizer
quando falava de sua morte e ressurreição que estavam por vir (Lc 18:32-34). Sem
ter o que fazer, você desiste de tentar convencê-lo de que seu cachorro morreu
mesmo, pois não importa o que você diga, nem quantos adjetivos use, ele irá
sempre interpretar como uma morte “espiritual”, uma morte “qualitativa” ou uma
figura de linguagem. De fato, desculpas não faltam para inventar qualquer pretexto
que seja a fim de negar a realidade do que está sendo dito claramente.
moço que não sabe como dizer ao seu amigo que seu cachorro morreu mesmo.
1536
O aniquilacionismo na Bíblia 1537
que demonstram o mesmo ponto, os imortalistas vão sempre bater na tecla de que
o indivíduo que morre, que é destruído, que perece, que é exterminado, que é
eliminado, que é extinto, que é consumido, que é devorado, que perde a vida, que
chega ao fim, que vira um cadáver, que se torna cinzas, que deixa de existir, que é
reduzido a nada e que é como se nunca tivesse existido tem, na verdade, uma
da falseabilidade. Uma teoria “não-falseável” não pode ser provada falsa, e por isso
não pode ser levada a sério. Um exemplo disso é o famoso dragão na garagem, de
Carl Sagan. Se eu te dissesse que tenho um dragão na minha garagem, mas que é
um dragão invisível, você poderia não ver o dragão, mas também não conseguiria
provar que o dragão invisível não está ali, justamente por ele ser não-falseável.
Como o dragão invisível não é detectável, é impossível refutá-lo, ainda que não se
possa prová-lo. Caso diferente seria se eu dissesse que é um dragão físico, o que
próprios olhos.
problema do dragão invisível: ela não é falseável. Não importa que adjetivo seja
usado, não importa o quão claro o texto seja, não importa quantos textos se usem,
1537
O aniquilacionismo na Bíblia 1538
“morte qualitativa” ou qualquer asneira do tipo, ainda que o contexto todo aponte
falseável, não porque ela seja verdadeira, mas porque suas sutilezas não abrem
ou tormento eterno, que toda a crença na morte dos ímpios cairia por terra. No
entanto, dos dois únicos textos usados pelos imortalistas neste sentido (Mt 25:46 e
kolasin era usado na Bíblia e na literatura secular no sentido da pena de morte, não
de tormento), e o outro o próprio João explica que o lago de fogo não é um lago
de fogo literal, mas um símbolo para a segunda morte (Ap 20:14), além do texto não
falar nada de seres humanos. E isso é tudo o que eles têm em 66 livros da Bíblia,
Por outro lado, temos absolutamente tudo aquilo que esperaríamos ter caso
quase ninguém que acredita em um inferno de tormento eterno crê nisso por causa
De fato, mesmo quando questionados, eles não sabem citar mais do que
meia dúzia de textos fora do contexto, mas mesmo assim acreditam piamente que
1538
O aniquilacionismo na Bíblia 1539
baseado em mecanismos de defesa, e isso explica por que o nosso primeiro instinto
ao ouvir falar de uma crença contrária é reagir com energia, em vez de estudar o
deste livro. Tudo para elas é surpresa, e se alguma delas se deu ao trabalho de ler
até aqui sem pular nada, provavelmente se deparou com um conteúdo que nunca
tinha reparado antes, não importa quantas vezes tenha lido a Bíblia. E como temos
“ortodoxia”.
cérebro quando nos deparamos com o desconhecido e com aquilo que confronta
nossos conhecimentos prévios, por mais limitados e superficiais que sejam. Por isso
é tão difícil aceitar novas verdades que confrontem tudo aquilo que aprendemos
desde a infância, embora seja relativamente mais fácil abandonar ideias que
elas já aprenderam como sendo a verdade, e quanto mais enraizada uma crença
estiver, mais difícil é convencê-las do erro (em alguns casos, não há a menor
chance). Não tem a ver com o quão sólido é um ensino, mas com quanta
1539
O aniquilacionismo na Bíblia 1540
doutrinação foi feita. Isso explica por que há tanta resistência em se aceitar o
1540
1541
inferno
• Introdução
eterno» (Mt 25:41); (5) a «fumaça do tormento que sobe para todo o sempre» (Ap
14:11) e (6) o «bicho que não morre» (Mc 9:44). Se parece que são poucos textos, é
porque são poucos textos. Mas como tudo o que é ruim sempre pode piorar, esses
1028
ALFORD, Henry. Apocalypse of John in the Greek Testament. Chicago: Moody Press, 1958. v. 4, p. 367.
1541
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1542
agora.
que a ACF traduz como: “E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a
vida eterna”. Um leitor que se paute apenas por essa tradução não poderia chegar
a outra conclusão senão a de que Jesus neste texto estaria ensinando a doutrina do
Por sua vez, todas as versões em inglês que eu tive acesso vertem por punishment
“tormento”, esta parece não ser a melhor tradução da palavra grega kolasin, já que
nem mesmo os tradutores imortalistas das outras versões da Bíblia concordam com
1029
#2851 da Concordância de Strong.
1542
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1543
o uso de kolasin nos mais diversos escritos dos primeiros séculos e conclui que ele
Já a obra intitulada “A Critical Lexicon and Concordance to the English and Greek
curto, podar, manter dentro de limites, interromper, punir... o castigo futuro pelo
rodapé da obra “The Emphatic Diaglott” traz os seguintes significados para kolasin:
Como se nota, kolasin tem muito mais a ver com extirpar alguém da vida do
que com sofrimento contínuo e consciente. O que corrobora ainda mais este fato é
conforme o “The Classic Greek Dictionary”, do Dr. George Ricker Berry, significa
1030
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. Greek-English Lexicon. London: Clarendon Press, 1966, p. 971.
1031
KITTEL, Gerhard. Theological Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1965. v. 3.
1032
YOUNG, Robert. Young’s Analytical Concordance. Nashville: Thomas Nelson Incorporated, 1879, p.
995.
1033
#2849 da Concordância de Strong.
1543
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1544
tormento, mas a cortar fora, decepar, podar, como se fazem com as árvores. O
«aparar, podar, cortar curto»1034, e o “Thayer’s and Smith’s Bible Dictionary” como
«cortar galhos, podar, como árvores, asas». Vale ressaltar que todos esses léxicos
notório reconhecido até por quem teria uma predisposição contrária. Como
Bacchiocchi comenta,
eliminado do meio do povo” (Gn 17:14; Êx 30:33, 38; Lv 7:20, 21, 25, 27;
1034
#2849 da Concordância de Strong.
1035
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 201.
1544
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1545
pronta, à mão, que podia perfeitamente ter sido utilizada para este fim caso ele
longe a palavra mais adequada caso o sentido intentado fosse este. Outras opções
seriam o uso das palavras gregas kakopatheo, odin, ponos e pathema, que são os
termos sempre utilizados nos textos do NT que falam de dor ou sofrimento (por
disposição, seria incrível a utilização de kolasin para este fim, que em toda a
literatura secular. A única vez que kolasin aparece no NT fora de Mt 25:46 é em 1Jo
4:18, onde “pena” é a tradução mais adequada (curiosamente, a mesma ACF que
traduz kolasin em Mt 25:46 como “tormento”, traduz o mesmo termo por “pena”
em 1Jo 4:18, o que mostra o quanto o viés doutrinário dos tradutores influi nas
traduções).
pena eterna seria essa que o texto se refere? A resposta mais óbvia ao analisarmos
contrastam a vida eterna dos justos com o destino dos ímpios não pode ser outra
senão a morte. Apesar de Rinaldi afirmar que o aniquilamento não pode ser uma
forma de punição, pois “toda pena e sentido de culpa ficariam nulos”1037, desde os
tempos antigos até os nossos dias a morte tem sido vista como uma forma de
punição, não à toa conhecida pelo nome de pena (i.e, punição) de morte.
1036
#931 da Concordância de Strong.
1037
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 101.
1545
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1546
Na própria lei que o Senhor deu aos israelitas havia expressamente a pena
de morte para os pecados mais graves (Êx 21:12, 22:18-20; Lv 20:2; Nm 35:16; Dt
22:25), o que mostra que aparentemente Deus não compartilha da ideia de que a
morte não pode ser uma pena. O uso de kolasin na Septuaginta (a tradução grega
do AT, que foi muito usada pelos apóstolos) traz luz a isso: ele ocorre em duas
“Acaso se paga o bem com o mal? Mas eles cavaram uma cova para mim.
(Jeremias 18:20)
indica ser a morte, pois, até onde eu sei, ninguém cava uma cova para preservar a
1546
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1547
18:30-31)
todos os seus males? O verso 31 esclarece que é a morte (“por que deveriam morrer,
ó nação de Israel?”). Para completar, o verso seguinte finaliza dizendo que “não me
(Ez 18:32). Portanto, a punição (kolasin) que o texto se refere nada mais é do que,
novamente, a pena de morte. Este uso do termo kolasin também é recorrente nos
toda a cidade até o lugar onde havia lançado a mão sacrílega sobre Onias. E
O trecho final diz que «o Senhor deu-lhe o merecido castigo», onde “castigo”
é a tradução de kolasin. Mas qual seria esse “merecido castigo-kolasin“ que o texto
se refere? O próprio trecho anterior responde, ao dizer que «ali acabou com a vida
Aelianus, do segundo século, escreveu uma obra chamada Aelian, onde diz que
1547
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1548
“seus filhos que não haviam feito nada de errado foram condenados à morte”1038.
Onde o tradutor traduz por “condenados”, o original traz kolasin (o grego diz
literalmente “punidos com a morte”), onde a punição-kolasin não era uma tortura
Assim, mesmo que “punição” para alguns de nós possa carregar mais o
não escreveram em português para brasileiros, mas para o mundo grego no idioma
deles, onde o sentido mais usual para kolasin era justamente o da pena de morte.
Este uso de kolasin também está de acordo com o padrão encontrado em toda a
“Quem obedece aos mandamentos preserva a sua vida, mas quem despreza os
“Quem permanece na justiça viverá, mas quem sai em busca do mal corre para a
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu filho único, para que
todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3:16)
1038
Aelian, 7, 15.
1548
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1549
“Que fruto vocês colheram então das coisas as quais agora vocês se
envergonham? O fim delas é a morte! Mas agora que vocês foram libertados do
“Pois para Deus somos o bom cheiro de Cristo nos que são salvos e nos que
perecem. Para estes somos cheiro de morte; para aqueles, fragrância de vida”
(2Co 2:15-16)
“Quem semeia para a sua carne, da carne colherá destruição; mas quem semeia
Outros numerosos exemplos poderiam ser dados (só para citar alguns, Dt
30:15, 19:2; 2Sm 15:21; Pv 12:28, 13:14, 14:27, 18:21; Jr 8:3, 21:8, 52:34; Jo 5:24, 11:26;
Rm 5:10, 5:17, 5:21, 6:4, 6:10, 7:10, 8:6, 8:38; Fp 1:20; 2Ts 1:9; 1Jo 3:14, 5:16). De fato,
apresentado seja entre vida e morte, às vezes é entre vida e destruição (2Ts 1:9), ou
entre vida e perecimento (Jo 3:16), ou entre vida e qualquer outro sinônimo para a
1549
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1550
morte como o destino final dos ímpios a esse único texto, como se todas as vezes
tormento, que é o seu destino real (baseado nesse único versículo!). É realmente rir
ausente nas Escrituras, entre vida eterna e tormento eterno. Mas – perguntará você
pelo pecado, como ocorre em toda a Bíblia, por que Jesus adiciona o adjetivo
“eterno” em seguida? Se kolasin está no sentido de pena de morte, que sentido faz
próprias palavras de Jesus no evangelho de João, onde diz que “quem vive e crê em
eternamente” é uma locução contraditória e por isso não pode ser o sentido de Mt
25:46, por que foi exatamente o que Jesus disse sobre quem não crê nele? E se
morrer eternamente é o que Cristo disse que acontece com os não-salvos, por que
Mt 25:46 deveria ser interpretado de maneira adversa ao que o próprio Jesus disse
em outra ocasião?
Para entender por que a Bíblia fala sobre “morrer eternamente” e não
Uma das crenças mais populares entre os gregos era o estoicismo, que ensinava o
1550
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1551
aniquilamento das almas por ocasião da conflagração universal, quando tudo o que
existe será destruído. Mas isso não duraria para sempre, já que após uma era as
aniquilamento dos ímpios, eles não acreditavam que essa morte duraria para
Mas os cristãos não criam numa morte temporária, pelo menos não no que
compete à segunda morte – uma vez que a primeira morte, essa que sofremos ao
final da vida, é de fato revertida na ressurreição do último dia, por isso jamais é
sofrem) é uma morte eterna, porque dela ninguém volta. É definitiva. E o fato da
segunda morte ser definitiva justificava o uso do adjetivo “eterno” (aionios), o que
durava só uma era, para os cristãos durava para sempre – uma morte eterna.
não será lembrado, quando o justo é visitado. Esta é a porção dos pecadores para
1551
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1552
mesma que Paulo usou quando disse que certo iníquo seria entregue a Satanás
“para que o corpo seja destruído (olethros), e seu espírito seja salvo no dia do
Senhor” (1Co 5:5). Se Paulo quisesse dar a entender que os ímpios iriam apenas se
perder, como vertem algumas traduções, ele teria à sua disposição a palavra grega
pipto, que significa «estar perdido»1039, ou mesmo apollumi, que pode significar
Paulo também poderia ter usado qualquer uma daquelas muitas palavras
gregas com a conotação de tormento, dor ou sofrimento, mas em vez disso fez
questão de usar uma cujo significado é destruição, e que assim era entendida em
toda a Antiguidade Clássica. Mas observe que Paulo não só diz que os ímpios serão
destruídos (algo repetido à exaustão em todas as partes da Bíblia), mas que essa
incompleto que não termina nunca (ou seja, uma destruição eternamente
inconclusiva). É evidente que ele se referia a alguém que é destruído de uma vez
por todas, razão por que a destruição é qualificada de “eterna” – uma destruição
1039
#4098 da Concordância de Strong.
1040
#622 da Concordância de Strong.
1552
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1553
o meu celular e dissesse que vou destruí-lo para sempre. Com certeza ninguém em
sã consciência entenderia que eu irei quebrá-lo de novo e de novo, dia após dia por
toda a eternidade, mas que irei destruí-lo de tal modo que não sobrará mais nada
que não conseguem entender essa distinção tão simples, insistem que
referência aos efeitos que duram para sempre, e não ao processo de algo que não
tem fim. Por exemplo, em Hb 6:2 o autor fala de um “juízo eterno-aionios”, mas isso
obviamente não significa que o juízo é um processo que tem início mas não tem
1041
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 200.
1042
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 382.
1553
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1554
sair de lá. O juízo é eterno porque tem consequências eternas, não porque não
termina nunca. Ele “se dá num momento e depois termina”, mas seus efeitos são
consequências irreversíveis – um pecado que não tem perdão “nem nesta vida e
nem na era vindoura” (Mt 12:32), ou seja, nunca. Hb 9:12 diz que Jesus efetuou
cada um (ele fez isso «de uma vez por todas», como diz o verso 26), mas justamente
tem efeitos eternos para os que creem, não porque estejamos sendo salvos a todo
o momento durante toda a eternidade. Isaías diz que “Israel será salvo pelo Senhor
por toda a eternidade” (Is 45:17). Embora nossa salvação tenha se dado num
instante, seus efeitos duram para sempre. O salmista diz que Deus “repreende as
nações e destrói os ímpios; para todo o sempre apagas o nome deles” (Sl 9:5). Isso
não significa que Deus passe a eternidade toda apagando o nome dos ímpios de
seu livro (como se a borracha fosse fraca demais e por isso os nomes nunca fossem
definitivamente apagados), mas sim que eles são apagados uma vez, e
1554
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1555
porque é uma morte com efeitos permanentes. O juízo é eterno por ser irrevogável,
o pecado é eterno por não ter perdão, e a morte é eterna porque quem padece a
destruídos (Sl 1:6, 2:12, 5:6, 37:38), eliminados (Sl 37:22, 28, 34, 104:35),
exterminados (Sl 37:9, 54:5, 145:20), consumidos (Sl 21:9, 59:13, 112:10), devorados
(Sl 21:9, 63:10) e que deixarão de existir (Sl 37:10, 59:13, 104:35) também disseram
que eles serão «destruídos para sempre», o que prova que a destruição eterna não
era de modo algum entendida no sentido de uma existência eterna, mas como uma
“O insensato não entende, o tolo não vê que, embora os ímpios brotem como
(Salmos 92:6-7)
1555
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1556
sempre, mas serão punidos uma vez por todas com resultados
eterna.1043
diria respeito a uma vida que não tem fim, e no segundo a uma morte que não tem
é eterno é uma condição de vida, e não de morte. No caso de Mt 25:46, tudo o que
vemos é que um grupo (o dos salvos) viverá para sempre, ao passo em que o outro
Um herda a vida, e essa vida é eterna (o que significa que a pessoa nunca
mais vai morrer), enquanto o outro herda a morte, e essa morte também é eterna
(o que significa que nunca mais vai viver). No primeiro caso há uma existência
eterna, e no segundo uma inexistência tão eterna quanto. A “morte eterna” não é
um processo eterno de morte onde você está sempre morrendo e nunca morre de
1043
ATKINSON, Basil F. C. Life and Immortality: An examination of the nature and meaning of life and death
as they are revealed in the Scriptures. Taunton: Goodman, 1969, p. 101.
1556
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1557
O contraste, portanto, era entre estar vivo para sempre ou morto para
sempre, entre existência ou inexistência eterna. Mt 25:46 não foge à regra absoluta
de toda a Escritura – que contrasta vida e morte como os dois únicos destinos
possíveis – para criar um conceito novo e estranho à Bíblia, onde há vida nos dois
lados: uma vida eterna no céu para os salvos, e uma eternidade no inferno para os
perdidos. Em vez disso, o texto reforça a mensagem mais óbvia e recorrente de toda
a Bíblia: a de que só os justos herdarão a vida, e os ímpios a morte. Não uma vida
passageira ou uma morte reversível, mas uma vida eterna e uma morte eterna.
O significado do “lago de fogo” foi uma das principais razões que me levaram
a fazer uma segunda edição reformulada do livro, e é inclusive a primeira parte que
eu estou escrevendo (embora provavelmente não seja a primeira que você esteja
dado o caráter altamente hiperbólico do livro. Mas hoje vejo como se trata de uma
Nós veremos aqui que o lago de fogo é uma simbologia que tem sua razão
de ser, mas que aponta para a segunda morte, não para a continuidade da
que precede a morte, não é dele que João fala ao usar a figura do lago de fogo, mas
1557
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1558
da própria morte que é o resultado final do castigo. Como sabemos disso? Simples:
Observe que este versículo aparece depois do verso 10, que diz que “o diabo,
que as enganava, foi lançado no lago de fogo que arde com enxofre, onde já haviam
sido lançados a besta e o falso profeta. Eles serão atormentados dia e noite, para
todo o sempre” (Ap 20:10). Este é o único texto em toda a Bíblia que fala de um
tormento eterno dos ímpios, embora os “ímpios” aqui se refiram apenas à besta, ao
falso profeta e ao diabo (a rigor, nem mesmo esse texto serviria para provar o
verso 14 explica o significado da figura do lago de fogo usada no verso 10, ao dizer
estão mortos (Ef 2:1), e não faz sentido nenhum “matar um morto” – isto é, condenar
à segunda morte alguém que nunca passou da morte para a vida para que seja
seu entendimento de “morte” como apenas espiritual, não haveria uma segunda
morte para os ímpios, mas somente uma (a primeira morte espiritual, que se
estenderia por toda a eternidade, uma vez que eles nunca abandonariam este
estado).
1558
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1559
O texto só faz sentido se for lido no sentido de uma morte física e real, no
mesmo sentido da primeira. Tanto justos como ímpios estão vivos hoje e morrerão
um dia, e essa é a primeira morte. Mas a Bíblia ensina que há ressurreição para justos
estes morrem novamente (=segunda morte), os salvos vivem para sempre. É por
isso que parte nenhuma da Bíblia afirma que os justos estão isentos de sofrer a
primeira morte, mas sempre afirma que eles estarão livres da segunda morte, que é
“Aquele que tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas. O vencedor de
morte não tem poder sobre eles; serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e
que entender a primeira morte como também se referindo a uma morte espiritual,
duas vezes, mesmo jamais tendo revivido espiritualmente após passar pela primeira
chamo de “teologia zumbi”, onde uma mesma pessoa é espiritualmente morta duas
vezes, mesmo sem estar viva espiritualmente para que possa morrer de novo.
1559
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1560
A teologia zumbi também não explica por que os salvos passam pela
primeira morte, já que estão vivos espiritualmente, muito menos por que a morte
espiritual dos ímpios não seria uma só (que se estenderia por toda a sua existência).
texto faz muito mais sentido: como a primeira morte é a morte que passamos ao
final desta vida, tanto os justos como os ímpios passam por ela, e como a segunda
a segunda morte. Isso explica por que os salvos são livres da segunda morte mas
não da primeira, e também por que os ímpios sofrem duas mortes (uma vez que
espiritual, mas como a separação entre a alma e o corpo por ocasião da morte. Mas
morte uma segunda separação da alma do corpo, após a ressurreição? Se este for
o caso, qual o propósito de uma ressurreição que religa corpo e alma para
imediatamente em seguida separá-los novamente? Se não for, o que faz pensar que
Note ainda que João não diz que a segunda morte é o lago de fogo, como
segunda morte. Se o lago de fogo da visão que João recebeu significasse um lago
de fogo literal, João nem ao menos precisaria explicar do que ele se trata, já que seu
significado seria o próprio conceito. A única razão por que João precisou explicar o
que o lago de fogo representa é justamente porque ele não é um lago de fogo
1560
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1561
literal, mas está tipificando outra coisa. Portanto, quando ele diz que “o lago de
fogo é a segunda morte” (Ap 20:14), não está nada mais que esclarecendo o que a
Tampouco faria sentido João dizer que o lago de fogo é a segunda morte se
essa segunda morte fosse o lago de fogo (literal), o que cairia num círculo vicioso
segunda morte, e a segunda morte significa o lago de fogo). É incrível que alguém
chegue a uma conclusão dessas, mas essa é a triste conclusão que eles são forçados
a chegar quando tomam por pressuposto que o lago de fogo é o próprio inferno.
Ou João estava usando um raciocínio circular pueril e redundante para dizer que o
lago de fogo significa a segunda morte que na verdade significa o lago de fogo, ou
de fato a segunda morte e o lago de fogo são duas coisas diferentes, onde a
segundo.
realidade como o símbolo. João não diz que a segunda morte “significa” alguma
coisa. A segunda morte é o que é: segunda morte. O que tem um significado por
detrás não é a segunda morte, mas o lago de fogo, que é a segunda morte. Em
1561
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1562
candelabros:
peito. Sua cabeça e seus cabelos eram brancos como a lã, tão brancos
quanto a neve, e seus olhos eram como chama de fogo. Seus pés eram como
o bronze numa fornalha ardente e sua voz como o som de muitas águas.
Tinha em sua mão direita sete estrelas, e da sua boca saía uma espada
afiada de dois gumes. Sua face era como o sol quando brilha em todo o seu
fulgor. Quando o vi, caí aos seus pés como morto. Então ele colocou sua mão
direita sobre mim e disse: ‘Não tenha medo. Eu sou o primeiro e o último.
Sou aquele que vive. Estive morto mas agora estou vivo para todo o sempre!
E tenho as chaves da morte e do Hades. Escreva, pois, as coisas que você viu,
tanto as presentes como as que estão por vir. Este é o mistério das sete
estrelas que você viu em minha mão direita e dos sete candelabros: as sete
estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete
igrejas’” (Apocalipse 1:12-20)
candelabros e sete estrelas, dentre outros símbolos. Mas no final ele explica o que
são as sete estrelas e os sete candelabros, ao dizer que as sete estrelas são os anjos
das sete igrejas, e que os sete candelabros são as sete igrejas. Temos aqui os
1562
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1563
contrário: que os anjos é que representam estrelas, e que as igrejas é que significam
Pois é exatamente o mesmo que fazem com o lago de fogo, que João explica
que significa a segunda morte da mesma forma que explica o significado dos outros
dois:
Simbolismo Significado
“Tinha em sua mão direita sete “As sete estrelas são os anjos das sete
jeito:
1563
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1564
a maior parte João deixa apenas nas “entrelinhas”, sem dar o seu significado direto
(ele dá pistas, mas não diz abertamente do que se trata). Mas há casos onde ele dá
o significado das próprias simbologias que usa, como nos exemplos citados do
candelabro e das estrelas, ou quando diz que “as taças de incenso são as orações
dos santos" (Ap 5:8), ou quando escreve que “o linho fino são os atos de justiça dos
santos” (Ap 19:8). Ou seja, nem sempre o que João escreve em símbolos permanece
ou, pior ainda, insistir na literalidade daquilo que o próprio João explicou ser
simbólico!).
Tampouco faria sentido a segunda morte significar alguma outra coisa, pois
precisa ser literal (não faz sentido algum explicar uma alegoria com outra alegoria,
que no final não explica nada!). Tome como exemplo novamente o texto das
1044
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 209.
1564
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1565
estrelas e dos candelabros, que João diz que significam anjos e igrejas. Seria ridículo
se alguém dissesse que os anjos na verdade não são o significado das estrelas, mas
representam algo maior, ou que as igrejas não são o significado dos candelabros,
significado de uma alegoria com mais alegoria, e no fim das contas não explicando
Tal é o que ocorre com o lago de fogo: se João diz que o lago de fogo é a
segunda morte, a segunda morte não é uma alegoria ou uma representação de algo
maior, mas o próprio significado que precisa ser literal. Da mesma forma, aquilo ao
qual se está dando um significado (neste caso, o lago de fogo) não pode ser literal,
doutro modo ele próprio já seria o significado para si mesmo, em vez de receber
uma significação externa. Assim como seria ridículo dizer que as sete estrelas são
sete estrelas literais nas mãos de alguém e que ao mesmo tempo representam
anjos, também é ridículo inferir que o lago de fogo seja um lago de fogo literal e ao
apenas um símbolo da segunda morte. Por isso o único lugar onde você encontra
não uma existência sem fim ou a separação da alma do corpo, é que essa expressão
1565
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1566
O Targum de Jr 51:57 (um oráculo contra a Babilônia onde Deus diz que eles
comenta Dt 33:6 (“que Rúben viva e não morra, mesmo sendo poucos os seus
homens”) da seguinte maneira: “Que Rúben viva neste mundo e não morra na
para os meus escolhidos e o Senhor Deus vos matará com a segunda morte, mas a
não uma existência eterna e consciente longe de Deus, mas a própria ausência da
vida – uma morte no sentido mais completo e literal da palavra. Portanto, João não
cunhou um termo novo nem tirou o conceito da própria cabeça: ele apenas
entenderiam do que ele falava. Se João fosse imortalista, ele nunca, jamais e em
1045
FORD, J. Massyngberde. “Revelation: Introduction, Translation and Commentary”. In: The Ancor Bible.
Nova York: Doubleday, 1975, p. 393.
1046
McNAMARRA, M. The New Testament and the Palestinian: Targum to the Pentateuch. Roma: Pontifical
Biblical Institute, 1966, p. 117.
1047
ibid, p. 123.
1566
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1567
hipótese alguma teria usado a expressão “segunda morte”, sabendo que se tratava
somente no sentido aniquilacionista. É tolice supor que João usaria um termo que
leitores judeus.
Mas se o “lago de fogo e enxofre” do qual João fala é uma figura apocalíptica
que simboliza a segunda morte, e não um lago de fogo real onde os ímpios
agonizam para sempre, ainda resta a pergunta: por que João usa esse símbolo, e
não qualquer outro? Temos fortes razões para acreditar que a razão está
os ímpios serão consumidos pelo fogo que Deus fará cair do céu sobre eles, um
fogo que “não lhes deixará nem raiz nem ramos” (Ml 4:1), reduzindo-os às cinzas da
mesma forma que ocorreu com Sodoma e Gomorra (2Pe 2:6). Nessa mesma linha,
o salmista escreve que “sobre os ímpios [Deus] fará chover laços, fogo, enxofre e
ímpios passarão a eternidade em tormentos, mas como a maneira que eles serão
consumidos por Deus. Jesus expressou algo semelhante ao dizer que “no dia em
que Ló saiu de Sodoma, choveu fogo e enxofre do céu e os consumiu a todos” (Lc
17:29), e que “assim será no dia em que o Filho do homem há de se manifestar” (v.
1567
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1568
30). Novamente vemos o fogo e o enxofre, não como um lugar de castigo, mas
como o modo com que Deus há de consumir os ímpios, que é o mesmo que ele
foram consumidos. Daí a imagem do “lago de fogo e enxofre” que João descreve,
literal, mas como uma imagem apropriada para a segunda morte, já que o modo
João poderia ter usado qualquer outro símbolo para se referir à morte final,
mas escolheu o do “lago de fogo e enxofre” por transmitir de forma mais vívida a
imagem do que acontece na destruição dos ímpios. O lago de fogo, em si, é apenas
uma simbologia apocalíptica, mas uma simbologia que tem tudo a ver com a
segunda morte, a qual ela representa. Se alguém ainda insiste em pensar que o lago
de fogo é um lago de fogo literal conhecido pelo nome de “inferno”, e não uma
metáfora adequada que designa a morte final e definitiva pelo fogo e enxofre,
1568
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1569
Observe que o lago de fogo não é somente o local para onde vão os ímpios
após a ressurreição, mas também para onde coisas abstratas e/ou inanimadas são
lançadas, como é o caso da morte e do Hades. A despeito de qual seja a noção que
você tenha do Hades (se como a região subterrânea da terra, tal como na Bíblia, ou
se como um “inferno”, tal como na mitologia medieval), uma coisa você deve
concordar: ele não é um ser pessoal para que seja literalmente lançado em um lago
literal de fogo e enxofre. A propósito, seria ainda mais estúpido assumir neste texto
que o Hades é o inferno da teologia imortalista, pois neste caso o texto estaria
dizendo, nada mais e nada a menos, que um inferno é lançado dentro de outro
inferno!
fogo! Como uma coisa impessoal e abstrata como a morte pode ser lançada num
imortalistas? A não ser que os quadrinhos da Marvel estejam certos e a Morte seja
uma entidade real – a esposa de Thanos, para ser mais preciso –, não há como
conceber que uma condição ou estado (a morte) seja lançada dentro de um lago
de fogo literal – o que não faz o menor sentido, embora faça tanto sentido quanto
significa a morte final e definitiva (a segunda morte, no caso dos ímpios). Por que
“segunda” morte? Porque a primeira é a que passamos ao final desta vida, mas essa
1569
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1570
definitiva, pois não há ressurreição futura para ela, o que faz dela uma morte
eterna, sem fim. Então, quando o texto diz que a morte e o Hades (sepultura
universal) são figurativamente lançados no “lago de fogo”, tudo o que ele está
dizendo é que a morte será agora definitiva, final, irreversível; um caminho sem
volta.
A morte ser lançada no lago de fogo é uma outra forma de dizer aquilo que
em outro lugar João expressou sem rodeios: “Não haverá mais morte... pois a antiga
presente do Antigo ao Novo Testamento. Isaías diz que Deus “destruirá a morte
para sempre” (Is 25:8), e Paulo escreve que “quando o que é corruptível se revestir
que está escrita: ‘A morte foi destruída pela vitória’” (1Co 15:54). Obviamente, nem
Paulo nem Isaías falavam de um inferno literal sendo lançado dentro de um outro
linguagem da destruição da morte, uma vez que ali os ímpios existiriam para todo
O que Paulo e Isaías falavam era do fim da morte, o mesmo aludido por João
montado em um cavalo amarelo. No capítulo 20, ela e o Hades são lançados no lago
de fogo, representando que já não há mais morte e nem gente morta. Na nova
criação de Deus, há apenas vida, e vida eterna. Sem entender que João falava
através de símbolos, nada faz sentido. Mas quando assumimos que João descrevia
1570
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1571
Assim como a morte não é uma entidade pessoal, mas é tratada como uma
na visão alegórica que João recebeu e descreveu, também a besta lançada no lago
de fogo não é um ser humano de carne e osso, mas um sistema que consiste no
João diz que “cinco já caíram [Egito, Assíria, Babilônia, Medo-Persa e Grécia],
um ainda existe [Roma] e o outro não surgiu, mas quando surgir deverá permanecer
durante pouco tempo” (Ap 17:10). E então diz que a besta é um dos sete, que voltará
a reinar na época da grande tribulação (v. 11). Isso significa que a besta não é uma
pessoa, mas um império que reinava no passado e que voltará a reinar no futuro.
Quem ele é? O verso 3 diz que a prostituta está assentada na besta, o verso 11 diz
que a prostituta está assentada sobre sete colinas e o verso 18 diz que é “a grande
cidade que reina sobre os reis da terra”. A única cidade conhecida no mundo antigo
como «a cidade das sete colinas» é Roma, o império que reinava soberano na época
Roma como o quarto e último império que estará reinando quando Jesus voltar,
1571
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1572
7:17-27 com Ap 17:3 e 9-14). Daniel diz que o quarto reino (Roma) “proferirá
os tempos e a lei; e eles serão entregues na sua mão, por um tempo, e tempos, e a
metade de um tempo” (Dn 7:25). Compare essa descrição do quarto reino com a
“À besta foi dada uma boca para falar palavras arrogantes e blasfemas, e lhe
foi dada autoridade para agir durante quarenta e dois meses. Ela abriu a
boca para blasfemar contra Deus e amaldiçoar o seu nome e o seu
tabernáculo, os que habitam no céu. Foi-lhe dado poder para guerrear contra
os santos e vencê-los. Foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo, língua
os santos até a morte e ambos fazem isso por três anos e meio (equivalente aos 42
meses mencionados por João e ao «tempo [ano], tempos [dois anos] e metade de
A diferença é que Daniel o descreve como um “animal” (Dn 7:19) e João como uma
“besta” (Ap 13:5), usando a palavra grega therion, que significa «animal
traduções).
1048
#2342 da Concordância de Strong.
1572
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1573
Se o animal que João viu foi o mesmo que Daniel viu e todos os estudiosos
são unânimes em concordar que este quarto animal de Daniel é Roma, segue-se
que Roma é a besta que João diz que voltará a reinar por ocasião dos eventos da
grande tribulação. Ou seja, é Roma a besta cuja “ferida mortal” é curada (Ap 13:3)
após sofrer um golpe de morte quando os dez reinos bárbaros a conquistaram (Ap
Explicar tudo isso com profundidade exigiria muito tempo e talvez um livro
inteiro (você pode conferir o meu artigo sobre isso na nota de rodapé, onde eu
explico com mais detalhes1049), o que desvirtuaria o propósito deste livro, mas por
hora o importante é ter em mente que a besta não é o anticristo, mas o império que
o anticristo governará.
interpretar o lago de fogo literalmente, pois um império não pode ser literalmente
que nos resta é entender o lago de fogo como um símbolo daquilo que o próprio
João explicou que era: a segunda morte, a morte final e definitiva. Não faz sentido
um sistema ser jogado dentro de um lago de fogo literal para ser conscientemente
atormentado eternamente, mas faz todo o sentido dizer que um reino diabólico é
destruído para todo o sempre, que é no que consiste a metáfora do lago de fogo.
O que tem em comum a besta, o Hades e a morte é que todos eles deixam
1049
Disponível em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/09/seria-uniao-europeia-o-novo-imperio.html>.
1573
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1574
reconhecem ser o mesmo que o falso profeta do capítulo 20) é destruída “para
nunca mais ser encontrada” (Ap 18:21), ou seja, uma aniquilação completa, que
durará para sempre. O lago de fogo não vai no sentido contrário a isso, mas reitera
Neste ponto, eu posso até adivinhar o que você está pensando: se o lago de
fogo é uma metáfora para a morte final e não um lago literal de fogo e enxofre,
como explicar o fato de João dizer que a besta, o diabo e o falso profeta seriam
atormentados para sempre ao serem lançados no lago de fogo? Não deveriam eles
apenas morrer, já que o lago de fogo nada mais é que a própria morte definitiva?
Essa é uma objeção franca que pode e deve ser levantada pelo leitor, sendo você
imortalista ou não.
20:10 é exatamente o mesmo com que trabalha todas as outras. Para isso, é preciso
entender que há uma diferença enorme entre a descrição das visões e o seu
significado. João teve uma visão: ele viu o diabo, a besta e o falso profeta sendo
lançados no lago de fogo e atormentados pelos séculos dos séculos, mas lembre-
se que ele também viu um dragão perseguindo uma mulher grávida no deserto (Ap
12:13), cavalos que soltam fogo e enxofre pela boca (Ap 9:17), gafanhotos com
rosto humano (Ap 9:7-8), mulher que cria asas e voa (Ap 12:14), estrelas caindo do
céu à terra (Ap 6:13), duas oliveiras e dois candelabros soltando fogo da boca (Ap
11:4-5), cavalos com cabeça de leão (Ap 9:17), Jesus no céu com sete chifres e sete
olhos (Ap 5:6) e em forma de cordeiro ensanguentado (Ap 5:6); trovões (Ap 10:3),
1574
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1575
altares (Ap 16:17), peixes (Ap 5:13) e aves (Ap 19:17) que falam em linguagem
É curioso que as mesmas pessoas que tomam ao pé da letra a visão que João
teve da besta sendo atormentada para sempre no lago de fogo não interpretem
com a mesma literalidade as outras visões que João recebeu, a ponto de dogmatizar
embora João escrevesse em linguagem simbólica, ele levava essas simbologias até
o fim. Por exemplo, no capítulo 10 ele diz que engoliu um livrinho. Sabemos que
isso ocorreu na visão e não literalmente, mas mesmo assim ele prossegue
descrevendo a visão, chegando a dizer até mesmo o sabor que o livro tinha, embora
seja bem óbvio que no mundo real ele não engoliu livro algum:
“Depois falou comigo mais uma vez a voz que eu tinha ouvido falar do céu:
‘Vá, pegue o livro aberto que está na mão do anjo que se encontra de pé
sobre o mar e sobre a terra’. Assim me aproximei do anjo e lhe pedi que me
desse o livrinho. Ele me disse: ‘Pegue-o e coma-o! Ele será amargo em seu
estômago, mas em sua boca será doce como mel’. Peguei o livrinho da mão
do anjo e o comi. Ele me pareceu doce como mel em minha boca; mas, ao
comê-lo, senti que o meu estômago ficou amargo’”
(Apocalipse 10:8-10)
Note que tudo aqui acontece em uma visão, não literalmente. João pega um
livro aberto das mãos de um anjo, o que faz parte da simbologia. Ele poderia
terminar aí, mas prossegue, levando a simbologia até seus efeitos finais: ele pega o
1575
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1576
livro, come o livro e ainda sente o gosto do livro. Ele não só descreve o livro, mas
também os efeitos que esse livro causou, que eram os mesmos que causaria caso
existisse em realidade (ou seja, caso não fosse uma visão simbólica e sim algo
literal). Da mesma forma que o livrinho que João engoliu executou sua
função dentro da própria simbologia, o "lago de fogo" (que é tão simbólico quanto
o livro) também executa o seu papel, que é causar sofrimento (que é o que
O tormento no lago de fogo é tão literal quanto o sabor do livro que João
“comeu”, porque ambos ocorrem dentro da visão, não no mundo real. No mundo
real, tanto o livro como o lago de fogo têm outros significados, mas dentro da visão
aquilo ocorre como ocorreria se fosse real. Um exemplo ilustrativo é o sonho que o
faraó teve das vacas magras engolindo as vacas gordas, registrado em Gênesis 41.
Obviamente, nunca existiu uma vaca magra que literalmente engoliu uma vaca
gorda – isso era apenas parte do sonho, e fora do sonho tinha um significado
prosperidade). No entanto, embora seja impossível uma vaca engolir a outra na vida
real, isso aconteceu dentro do sonho, não porque o sonho fosse literal, mas porque
Este é o caso do livrinho que João engoliu e do lago de fogo: eles não são
mais literais do que as vacas do sonho do faraó, mas dentro da visão executam a
função que exerceriam se fossem reais (no caso, o gosto amargo no estômago, o
sofrimento ao ser lançado no lago de fogo e as vacas gordas engolidas pelas vacas
magras). Isso também explica por que é dito que o tormento no lago de fogo é
“para sempre”: porque o que ele está representando (i.e, a morte) é eterno. Tudo
1576
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1577
para o mundo real aplicando tudo literalmente sem critério algum, como uma
ele em visão, mas essas coisas não eram realidades literais, embora fossem levadas
realidade significa a morte eterna, dentro da visão era um lago literal que João
estava vendo, cujo sofrimento causado não tinha fim porque representava um
verdadeiro lago de fogo assim como a besta e o falso profeta, mas isso era o que
ele via, e não o que aquilo representava. A razão por que faz tão pouco sentido a
morte ser literalmente lançada em um lago de fogo – assim como a besta (Império
Romano) e o Hades (toda a região subterrânea da terra) – é porque a visão que João
recebeu não foi dada para ser tomada ao pé da letra, mas para ser entendida através
do significado que ela remete – neste caso, bem explicado no verso 14, que
real, assim como dentro da simbologia o livro que João engoliu era amargo como
como se fossem reais. O problema não é a simbologia, mas os néscios que tomam
1577
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1578
completo.
ridículo de interpretar a visão de Ap 20:10 literalmente, o que só nos mostra até que
ponto alguém é capaz de chegar quando o que está em jogo são suas crenças
frágeis defendidas a priori. Como sublinha o erudito batista George Eldon Ladd,
20:10, que lança ainda mais luz a tudo o que constatamos aqui. Os três versículos
anteriores dizem:
“Quando terminarem os mil anos, Satanás será solto da sua prisão e sairá
para enganar as nações que estão nos quatro cantos da terra, Gogue e
1050
LADD, George Eldon. A Commentary on the Revelation of John. Grand Rapids: Eerdmans, 1979, p. 270.
1578
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1579
os mil anos com Cristo na terra (Ap 20:4), e o verso 5 diz que “o restante dos mortos
[ou seja, os ímpios] não voltou a viver até se completarem os mil anos”. Quando os
mil anos terminam, os ímpios ressuscitam e são compelidos por Satanás a uma
que acontece com eles? O final do verso 9 é claro em dizer que um fogo caiu do céu
Além daqui, essa palavra aparece outras três vezes no Apocalipse. Uma é pra
dizer que João comeu o livro na visão (10:9-10), outra é pra dizer que as duas
testemunhas soltam fogo pela boca que devora os seus inimigos, insistindo que “é
assim que deve morrer qualquer pessoa que quiser causar-lhes dano” (11:5), e a
outra é pra dizer que “o dragão colocou-se diante da mulher que estava para dar à
luz, para devorar o seu filho no momento em que nascesse” (12:4). Em todos esses
Mas como saber se aqui João falava de uma destruição literal? O único jeito
é recorrendo à fonte de onde João tirou isso, já que ele não foi o primeiro e nem o
único profeta a descrever os eventos finais. A principal pista neste texto está no
uma colina que de fato existe em Israel e que é palco da batalha de Ap 19:11-211052,
Gogue e Magogue não existiam nos tempos bíblicos e tampouco existem hoje. O
1051
#2719 da Concordância de Strong.
1052
De acordo com Ap 16:16, onde o termo “Har Meggido” (vale do Megido) é erroneamente traduzido
como “Armagedom” (a tradução de uma transliteração grega que acabou criando um lugar novo no
imaginário popular).
1579
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1580
único lugar em que elas são mencionadas fora do Apocalipse é em Ezequiel 38 e 39,
que também fala do tempo do fim, o que significa que Gogue e Magogue são
batalha final1053.
a cessação da existência:
de chuva, saraiva e enxofre ardente sobre ele e sobre as suas tropas e sobre
➢ “Nos montes de Israel você cairá, você e todas as suas tropas e as nações que
estiverem com você. Eu darei você como comida a todo tipo de ave que
come carniça e aos animais do campo. Você cairá em campo aberto, pois eu
1053
Para ser mais preciso, quando João fala das “nações que estão nos quatro cantos da terra, Gogue e
Magogue” (Ap 20:8), ele provavelmente se referia a dois extremos geográficos, assim como quando o AT
usava a expressão “de Dã a Berseba” (1Sm 3:20; 2Sm 3:10; 1Rs 4:25, etc) para designar toda a extensão
da terra de Israel (Dã ficava no extremo norte, e Berseba no extremo sul). Como João falava das nações
“dos quatro cantos da terra”, que é uma expressão usada para se referir a toda a extensão do planeta, é
de se supor que Gogue se localize num extremo geográfico, e Magogue no outro. A mensagem principal
que o texto quer passar é que Satanás irá reunir os ímpios ressuscitados de todas as regiões da terra para
a batalha final contra o Cordeiro e os santos, onde serão definitivamente exterminados pelo fogo
consumidor enviado por Deus (Ap 20:9). Diferente1580da batalha do Armagedom (Ap 19:19-21), que ocorre
ao final da grande tribulação e antecede o milênio, aqui não há uma “batalha” propriamente dita, já que
as legiões de Gogue e Magogue são devoradas pelo fogo sem que haja combate.
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1581
aqueles que vivem em segurança nas regiões costeiras, e eles saberão que
➢ “Filho do homem, assim diz o Soberano Senhor: Chame todo tipo de ave e
sacrifício nos montes de Israel. Ali vocês comerão carne e beberão sangue.
O relato prossegue falando dos cadáveres dos ímpios deixados ao solo, após
a grande matança (Ez 39:11-15). Assim, está claro que a batalha de Gogue e
Magogue não resulta na existência contínua e interminável dos ímpios, mas em sua
completa e total eliminação para sempre. Com isso em mente, fica muito mais fácil
interpretar Apocalipse 20: o verso 9 diz o que acontece com os rebeldes (i.e, são
totalmente consumidos pelo fogo devorador que cai do céu), e o verso 15 usa a
metáfora do lago de fogo para reforçar o que acontece com aqueles que são
existência.
interpreta a Bíblia – estiver certo, não há escape para a doutrina do tormento eterno,
mutila é que tem um bom pretexto para ensinar uma heresia que não encontra eco
1581
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1582
em parte alguma da Bíblia, fazendo jus ao famoso ditado de que texto fora de
contexto é pretexto para heresia. Como vimos, isso não pode ser mais verdadeiro
• O “fogo eterno”
por todo o sempre. A expressão “fogo eterno” em relação ao Geena aparece duas
vezes no evangelho de Mateus (Mt 18:8, 25:41), enquanto a expressão “fogo que
não se apaga” aparece uma vez em Mateus (Mt 3:12), uma em Lucas (Lc 3:17) e duas
faz pensar que de fato Jesus falava de um fogo que literalmente nunca se apaga
Bíblia foi escrita numa época específica, para um público específico que tinha seus
próprios vícios de linguagem, assim como nós temos os nossos. Imagine, por
exemplo, se daqui dois mil anos uma civilização futura, que nada tem a ver com a
nossa, lesse um texto de nossa época dizendo que “fulano de tal morreu de rir”.
Alguns seriam tentados a pensar que fulano riu tanto a ponto de falecer, mas nós
sabemos que essa não é a ideia que o texto transmite, o qual quer apenas reforçar
1582
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1583
Imortalistas do quarto milênio poderiam usar esse texto como a prova da existência
de uma alma imortal que abandona o corpo e se dirige a esse lugar tão quente
chamado inferno, mas nós sabemos que expressões desse tipo são apenas
hipérboles que não devem ser tomadas ao pé da letra. Da mesma forma que nós
entendidas literalmente podem levar a grandes enganos – e, por que não, a grandes
Mas como podemos ter certeza de que se tratava mesmo de uma força de
basta ler a Bíblia, que interpreta a si mesma. Tome como exemplo o texto a seguir,
Edom era a terra dos descendentes de Esaú, que muitas vezes estiveram em
guerra com os israelitas. Deus diz que sua terra se tornaria “piche ardente”, mas não
só isso: ele diz que sua fumaça subiria para sempre, que não seria apagada nem de
dia e nem de noite, e que para todo o sempre ninguém passaria por ela. Mas temos
um problema: Edom não está queimando até hoje, nem existe uma fumaça
tranquilamente passar pelo seu território sem medo de pegar fogo. Será que o
1583
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1584
bíblica?
É evidente que não. Quando Isaías usa essa linguagem hiperbólica, tudo o
que ele pretende é enfatizar o fato de que Edom seria totalmente destruída pelo
fogo, e como resultado nunca mais existiria. E, de fato, os edomitas não mais
existem, e será inútil procurar um país chamado Edom num mapa-múndi. A profecia
acertou com precisão, não porque a terra que pertencia a Edom esteja literalmente
pegando fogo até hoje, mas porque o fogo consumiu tudo e os edomitas não mais
existem. Este é exatamente o mesmo caso do fogo do Geena que “nunca se apaga”:
o fogo é chamado de “eterno”, não por literalmente queimar para sempre, mas por
consumir completamente os ímpios, que nunca mais existirão – tal como ocorreu
Caso você ainda não esteja convencido de que essa linguagem era mesmo
de uso comum entre os hebreus, tome também como exemplo o texto de Jeremias,
dia de sábado, então, acenderei fogo nas suas portas, o qual consumirá os
Deus diz que se o povo deixasse de guardar o sábado e fizesse entrar alguma
apagaria. Lemos em 2Cr 36:19-21 que o povo fez exatamente isso, e essa profecia
1584
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1585
até hoje – os quais teriam que ser indestrutíveis, tal como os imortalistas imaginam
a alma imortal. Em vez disso, os palácios foram totalmente queimados pelo exército
babilônico de Nabucodonor, e como resultado eles não mais existem (Jr 52:12-13).
Mais uma vez, vemos a linguagem do “fogo que não se apaga” sendo
utilizada não para representar um fogo que literalmente não tem fim, mas a
destruição total causada pelo fogo, que consome tudo a ponto de extinguir para
sempre – exatamente como a Bíblia descreve a sorte final dos ímpios. Se você é do
tipo teimoso que não se dá por convencido tão fácil, aqui vai outro exemplo:
apagada, e todos os rostos, do Neguebe até o norte, serão ressecados por ela.
(Ezequiel 20:47-48)
Deus repete duas vezes que a chama abrasadora nas florestas do Neguebe
não seria apagada, mas embora a floresta tenha sido totalmente consumida pelo
fogo e a região seja hoje um deserto árido e estéril, não há um fogo literalmente
em operação até os nossos dias. Mais uma vez, o que ocorreu foi uma destruição
total pelo fogo, que extinguiu para sempre aquilo que foi consumido. Precisamente
Senhor sentencia:
1585
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1586
busquem Betel, não vão a Gilgal, não façam peregrinação a Berseba. Pois
Gilgal certamente irá para o exílio, e Betel será reduzida a nada’. Busquem o
Senhor e terão vida, do contrário, ele irromperá como um fogo entre os
Apesar de ninguém em Betel poder apagar o fogo, Betel não seria queimada
para sempre, pois o verso 5 diz expressamente que Betel seria reduzida a nada. A
se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas
eterno”. Se lermos o relato de Gênesis 19, vemos que de fato Sodoma e Gomorra
foram consumidas pelo fogo que Deus fez cair do céu, o qual destruiu
que foram avisados com antecedência e deixaram a cidade). No entanto, será inútil
procurar um “fogo eterno” queimando as cidades até hoje, até porque a região
uma vez, vemos o mesmo padrão se repetindo: o fogo devorador consumindo tudo
1586
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1587
a ponto das cidades e seus habitantes não mais existirem, mas não um fogo que
e quando Pedro cita o mesmo exemplo de Judas, ele diz que Deus “condenou as
acontecerá aos ímpios” (2Pe 2:6). O que acontecerá aos ímpios é o mesmo que
vivas e conscientes.
destruição dos ímpios, uma condição que dura para sempre. O fogo é
inextinguível porque não pode ser apagado até que haja consumido
fazem de Judas 7. Wayne Jackson, por exemplo, chega a dizer que “o ‘fogo eterno’
não foi o que choveu sobre Sodoma e Gomorra, mas aquele em que eles entraram
1054
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 224.
1587
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1588
texto desta forma, o que mostra até que ponto eles estão comprometidos a
distorcer e manipular os textos mais simples para adequá-los à sua teoria de inferno
atual e eterno. Deve ser muita coincidência que Judas tenha aludido justamente às
únicas duas cidades que Deus consumiu pelo fogo para se referir não ao fogo que
consumiu as cidades, mas ao fogo que queima os ímpios no inferno (o que poderia
ser dito em relação a qualquer ímpio, de qualquer cidade). São “coincidências” que
alegava que o verbo traduzido por “sofrer” está no particípio presente (“sofrendo”)
e não no pretérito, o que, segundo ele, implicaria que “no momento em que a carta
pena do fogo eterno”. O que ele ignora é que, da mesma forma que o português, o
grego nem sempre usa o tempo verbal no passado para se referir a uma ação que
já ocorreu. Por exemplo, em Mt 9:35 lemos que “Jesus ia passando por todas as
cidades e povoados, ensinando nas sinagogas”. O termo grego aqui traduzido por
“ensinando” (διδάσκων) também está no particípio presente, mas nem por isso
alguém interpreta que “no momento em que o livro de Mateus estava sendo escrito,
fogo eterno”, se relaciona não ao presente, mas ao passado, quando aquele fato (da
equivalente ao que seria se alguém dissesse que “o Brasil foi massacrado pela
1055
JACKSON, Wayne. “Homer Hailey’s Last Book”. Christian Courier. Dezembro., 39:29-31.
1588
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1589
Alemanha, sofrendo 7 gols no jogo”. Isso não significaria que o Brasil continua
sofrendo gols da Alemanha até hoje (haja voz pro Galvão Bueno!), mas apenas uma
pretérito.
(“havendo-se entregue à fornicação”), assim como poderia ter dito “sofreram a pena
do fogo eterno”, mas preferiu usar um tempo contínuo, de modo a combinar com
Sodoma e Gomorra não continuam se entregando à fornicação até hoje, eles não
queimando em outra dimensão até hoje, em vez do fogo que literalmente caiu
se Judas estivesse mesmo falando do inferno onde os ímpios estariam – que para
próprio Hades terá fim e será lançado no lago de fogo após a ressurreição (Ap
20:13-14). É por isso que os imortalistas dizem que o Hades é o “inferno atual” e o
1056
Mesmo que o “sofrendo” exigisse um estado presente, ele não se relacionaria com o fogo eterno em
si, mas com a pena do fogo eterno. Neste caso, seria análogo aos textos que falam de “juízo eterno” (Hb
6:2) e de “pecado eterno” (Mc 3:29), que são eternos (e consequentemente presentes) pelos efeitos, não
pelo processo. Em outras palavras, eles estariam ainda sob a sentença condenatória, no sentido de que a
sentença não tem fim (ainda que o fogo em si o tenha).
1589
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1590
Geena é o “inferno final”. Mas se o Hades é um “inferno transitório”, o seu fogo não
É por isso que todas as vezes que a expressão “fogo eterno” é associada a
algum lugar, é sempre ao Geena, nunca ao Hades (Mt 18:8-9; Mc 9:43, 45-46). Em
outras palavras, nem mesmo na própria teologia imortalista faz sentido dizer que
o fogo do Hades (no qual estariam queimando atualmente) não é eterno nem
nela: no fim das contas, acabam pervertendo tanto que refutam até a si mesmos.
‘Quem de nós pode conviver com o fogo consumidor? Quem de nós pode
o fogo que vem de Deus como um fogo consumidor (v. 11). No entanto, o final do
mesmo verso 14 descreve a chama como uma “chama eterna”, não porque ela
nunca consuma aquilo ao qual se destina, mas porque veio de Deus, e ninguém
além dEle pode contê-la. É por isso que a mesma linguagem é usada em referência
à ira de Deus, que é comparável ao fogo (Hb 12:29). O salmista pergunta: “Até
1590
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1591
quando a tua ira queimará como fogo?” (Sl 89:46). Se usássemos a mesma exegese
provocarem à ira por todas as obras das suas mãos, o meu furor se acendeu
provocarem à ira com todas as obras das suas mãos; portanto o meu furor
➢ “Portanto, assim diz o Soberano Senhor: A minha ardente ira será derramada
também sobre o produto do solo; ela arderá como fogo, e não poderá ser
Será que isso significa que Deus está até hoje irado e continuará irado para
sempre com o povo judeu? Não foi o próprio apóstolo Paulo que disse que Deus
tem um plano para Israel, e que no fim “todo o Israel será salvo”?
“E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: ‘Virá de Sião o redentor
que desviará de Jacó a impiedade. E esta é a minha aliança com eles quando
eu remover os seus pecados’” (Romanos 11:26-27)
Se todo o Israel será salvo quando Deus remover de Israel os seus pecados,
é sensato concluir que essa ira contra Israel não durará para sempre, apesar dos
1591
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1592
textos dizerem que Sua ira não seria apagada – assim como os vários textos que
falam de um fogo eterno ou que não se apaga. A ideia de que Deus permanece
irado para sempre, mas tens prazer em mostrar amor” (Miquéias 7:18)
➢ “Ficarás indignado conosco para sempre? Prolongarás a tua ira por todas
as gerações? Acaso não nos renovarás a vida, a fim de que o teu povo se
Não reprovará perpetuamente, nem para sempre reterá a sua ira. Não nos
inextinguível que não pode ser apagado, é retratada em outros textos como algo
que existe entre os textos que falam de um fogo “eterno” e os que dizem que o fogo
1592
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1593
Quem quer que leia este texto isoladamente será levado a pensar que o fogo
da ira de Deus queimará para sempre. Afinal, ele é claramente descrito aqui como
“Eu os castigarei de acordo com as suas obras, diz o Senhor, porei fogo em
sua floresta, que consumirá tudo ao redor”
(Jeremias 21:14)
não é manter a coisa existindo para sempre em meio às chamas, mas consumir
aquilo ao qual queima, e não de perdurar sua existência (Jó 20:26; Sl 21:9, 59:13,
Isaías diz que “o poderoso se tornará como estopa e sua obra, como fagulha;
ambos serão queimados juntos, e não haverá quem os apague” (Is 1:31). O curioso
é que Isaías havia dito três versos antes que “os rebeldes e os pecadores serão
destruídos, e os que abandonam o Senhor perecerão” (v. 28), o que significa que
esse fogo que “não há quem apague” tem a função de destruir os pecadores até
1593
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1594
que eles pereçam completamente, não sendo apagado por mãos humanas até que
Note a similaridade com a linguagem da ira de Deus sobre Israel, que, como
vimos nos textos anteriormente citados, não dura literalmente para sempre, mas é
apagados por mãos humanas, uma vez que quem o acendeu foi Deus. Isso não
significa que o fogo em si seja literalmente eterno, porque tanto o fogo da ira de
Deus como o fogo do Geena têm um fim temporal, que só a Deus compete. O fogo
é “eterno” no sentido de que ele nunca pode ser apagado por homens, do contrário
não poderia executar sua função (que é consumir por completo aquilo ao qual se
destina).
1594
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1595
usados para coisas que chegam ao fim após completar a ação. Por exemplo, quando
Jonas saiu do ventre do grande peixe, ele testemunha que desceu “até à terra cujos
ferrolhos se correram sobre mim para sempre, contudo fizestes subir da sepultura
a minha vida” (Jn 2:6). Como se nota, o “para sempre” (owlam) durou até que ele
saísse do ventre do peixe. Embora em nossa gramática possa parecer estranho e até
contraditório um “para sempre” que dura “até que”, isso não é incomum quando
Isaías diz que “Ofel e a torre da guarda servirão de cavernas para sempre, até
que se derrame sobre nós o Espírito lá do alto: então o deserto se tornará em pomar
e o pomar será tido por bosque” (Is 32:14-15). Aqui, owlam é inserido
imediatamente antes da preposição ‘ad, traduzida como “até que”. O mesmo ocorre
no NT. Paulo diz que “tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para
aviso nosso, sobre quem tem chegado o fim dos tempos” (1Co 10:11). “Fim dos
tempos” é aqui a tradução de aion (a mesma palavra usada nos textos do “fogo
eterno”) seguida de katantao (fim). É difícil imaginar algo eterno (aion) que tem fim
(katantao), mas isso é possível no grego porque aion não carrega necessariamente
12:24), tanto quanto a herança de Calebe (Js 14:9), a lepra de Geazi (2Rs 5:27), o
sacerdócio de Arão (Êx 29:9), o reinado de Davi (1Cr 28:4) e a duração do serviço de
um escravo estrangeiro (Lv 25:46). Apesar disso, ninguém poderia supor que tais
coisas permaneceriam após a morte, pois owlam tem aqui o sentido de enquanto
1595
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1596
que o templo que ele construiu seria uma «eterna habitação» para o Senhor (1Rs
8:12-13), mas ele foi destruído alguns séculos mais tarde pelos babilônicos, e os
algo que dura até que se complete a ação, fica fácil entender o aparente paradoxo
de Is 66:24, que fala de um cadáver em chamas, cujo fogo “nunca se apaga”. Isso
significa apenas que o fogo não pode ser apagado por ninguém até que os corpos
Pedro (2Pe 2:6). De fato, o próprio Isaías diz que o “fogo devorador” (Is 29:6)
reservado aos inimigos do Senhor “os consumirá” (Is 26:11) de tal modo que “serão
Eles “sem dúvida eles são como restolho; o fogo os consumirá” (Is 47:14).
“Assim como a palha é consumida pelo fogo e o restolho é devorado pelas chamas,
assim será a sua raiz como podridão, e a sua flor se esvaecerá como pó” (Is 5:24).
Toda a linguagem de Isaías diz respeito a alguém que é totalmente consumido pelo
fogo devorador da parte de Deus, “de sorte que lhes não deixará nem raiz nem
ramo” (Ml 4:1). Longe de respaldar um tormento sem fim, o vocábulo “fogo eterno”
prova que o fogo não pode ser apagado até que complete a sua função, que
de onde vieram: o pó. Isso é apoiado por inúmeros exemplos bíblicos onde o fogo
é “eterno” ou “inextinguível” não por durar para sempre, mas por consumir
E não só por exemplos bíblicos, mas também históricos. É curioso notar que
1596
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1597
(Satanás) por meio do «fogo eterno» (1QS 2:4-8). O Manual de Disciplina não é
canônico, mas prova que a linguagem do “fogo eterno” era naturalmente usada
Se mesmo depois de tudo isso alguém ainda insistir em dizer que os ímpios
serão atormentados para sempre por causa da linguagem do “fogo que não se
apaga”, que me traga um único texto bíblico que fale de um fogo eterno que
Por fim, vale ressaltar que a própria figura do “fogo” para os judeus nunca
para retratar o aniquilamento dos ímpios. Nos tempos da lei, a carne pura era
comida, mas a impura era queimada: “A carne que tocar em qualquer coisa impura
não será comida; será queimada no fogo. A carne do sacrifício, porém, poderá ser
comida por quem estiver puro” (Lv 7:19). Deus poderia simplesmente ter orientado
o povo a jogar a carne fora, mas mandava queimar, porque o fogo simbolizava a
completa destruição daquilo que é impuro, o que tipificava a eliminação dos ímpios
pelo fogo.
1597
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1598
terra por ocasião da volta de Jesus (2Pe 3:10-12) e como o elemento da destruição
de Sodoma e Gomorra, que tipifica a futura destruição dos ímpios (Lc 17:29-30).
sacrifícios” (2Cr 7:1); quando Elias orou, “desceu fogo do céu e consumiu o oficial e
seus soldados” (2Rs 1:10), e quando ele desafiou os profetas de Baal, “caiu fogo do
e não ímpios. Esse exemplo não é análogo ao dos ímpios no inferno, mas
diametralmente oposto. Ele serve para mostrar que os salvos com corpos
ressurretos serão imunes à força do fogo, e não que os ímpios também o sejam. A
maior prova disso é que eles não sofreram qualquer dano pelo fogo, não
experimentaram dor alguma, seus mantos não estavam queimados e nem um fio
de cabelo tinha chamuscado; nem mesmo havia cheiro de fogo neles (Dn 3:27). Isso
inferno, justamente porque essa exceção não se aplica a eles. Para os ímpios, a
inextinguível, isso ainda não seria o bastante para provar que os condenados serão
atormentados para sempre, pois para isso seria preciso que não fossem
consumidos pelo fogo, algo que não pode ser provado pelo simples uso da
1598
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1599
O texto diz que “o fogo não se apagará”, mas o que o fogo está queimando?
disso, o texto é perfeitamente claro em relatar o tipo de coisa que o “fogo eterno”
eterno que se apaga”, onde o fogo é eterno pelos efeitos irreversíveis da destruição
e não pelo processo em si. Mas mesmo que fosse tomado ao pé da letra, tudo o
que o texto estaria dizendo é que o fogo continuaria queimando os cadáveres como
Essa pode ter sido a posição do autor de Eclesiástico (um apócrifo aceito no
cânon católico), que diz que os injustos serão «devorados» pelas chamas e
«estraçalhados» como por um leopardo, mas que a chama “os consumirá sem se
apagar” (Ecl. 28:26-27), embora o mais provável seja que o fogo não se apagaria
1599
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1600
sentido com o teor dos textos do AT sobre o “fogo que não se apaga”. Ninguém
queria dizer.1057
Mas mesmo que o fogo em Eclesiástico 28:26-27 fosse eterno mesmo, isso
só provaria que havia judeus que acreditavam que o fogo era eterno mas os ímpios
1057
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 191.
1600
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1601
ao fogo (Jó 20:26; Sl 21:9, 59:13, 112:10; Is 1:28, 5:24, 26:11, 30:30, 47:14; Na 1:10; Ml
4:1; Ap 20:9).
Hiperbólico ou literal, o “fogo que não se apaga” é mais uma prova em favor
reduzidos às cinzas, seja por se referir aos cadáveres de quem já foi aniquilado. A
incorruptíveis. Isso é não somente uma ofensa gritante ao bom senso, mas um
“Um terceiro anjo os seguiu, dizendo em alta voz: ‘Se alguém adorar a besta
e a sua imagem e receber a sua marca na testa ou na mão, também beberá
do vinho do furor de Deus que foi derramado sem mistura no cálice da sua
ira. Será ainda atormentado com enxofre ardente na presença dos santos
1601
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1602
o sempre. Para todos os que adoram a besta e a sua imagem, e para quem
recebe a marca do seu nome, não há descanso, dia e noite’”
(Apocalipse 14:9-11)
Embora o texto não mencione o lago de fogo, ele usa outras duas metáforas
vezes no AT, todas elas para se referir à morte de quem bebeu o cálice. Por exemplo,
em Isaías é dito que Jerusalém “bebeu da mão do Senhor o cálice da ira dele” (Is
destruição, fome e espada” (v. 19), formas distintas pelas quais o povo veio a
perecer. De modo ainda mais enfático, o verso seguinte diz que “eles jazem à frente
de cada rua, como antílope pego numa rede. Estão cheios da ira do Senhor e com
1058
BRITO, Azenilto. Nota do tradutor. In: BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma
abordagem bíblica sobre a natureza humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 241.
1602
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1603
significar alguém que está apenas descansando, ou um eufemismo para quem teve
relações sexuais (“dormiu” com alguém), ou alguém que jaz morto1059. Uma vez que
que nos resta é a de que aqueles que beberam o cálice da ira de Deus morreram.
Outra ocasião em que o cálice da ira é mencionado ocorre em Jeremias, onde Deus
diz ao profeta: “Pegue de minha mão este cálice com o vinho da minha ira e faça
com que bebam dele todas as nações a quem eu o envio” (Jr 25:15). Então Jeremias
pegou o cálice e fez “com que dele bebessem todas as nações às quais o Senhor me
18-26 descreverem que nações eram essas que beberam o cálice da ira de Deus, o
levantem, por causa da espada que envio no meio de vocês” (v. 27). Alguém que cai
pra não mais se levantar não caiu porque estava bêbado, mas porque morreu. É isso
o que acontece com quem é ferido pela espada do Senhor. Por isso a perícope
1059
#7901 da Concordância de Strong.
1603
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1604
vasos finos. Não haverá refúgio para os pastores nem escapatória para os
leão, ele saiu de sua toca; a terra deles ficou devastada, por causa da espada
Note a incrível similaridade com o texto de Is 66:24, que também diz que os
mortos no «dia da matança» não teriam seus corpos sepultados, mas seriam “um
Observe que em Jeremias é dito expressamente que isso acontece após eles
Como vemos, a figura do cálice da ira não é citada aleatoriamente por João,
aniquilamento dos ímpios, seja nesta vida ou após o juízo. Talvez nenhum texto seja
mais enfático quanto a isso do que Obadias 16, onde Deus diz: “Assim como vocês
beberam do meu castigo no meu santo monte, também todas as nações beberão
sem parar. Beberão até o fim, e serão como se nunca tivessem existido”. O que
tormentos sem fim? É bem o contrário: serão como se nunca tivessem existido, uma
1604
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1605
Ap 14:10 também diz que o cálice da ira de Deus é «sem mistura», ou seja,
sem diluição, para assegurar seu efeito letal1060. O veneno era um dos meios mais
usados na época de João para se matar alguém, e por isso era uma metáfora
apropriada para descrever o que Deus fará com os ímpios. É inconcebível que João,
que conhecia tão bem a linguagem bíblica e as figuras do AT, se expressasse dessa
maneira para se referir ao seu oposto: uma existência eterna e sem fim. Isso é
zombar da inteligência dos leitores, não apenas de nossos dias, mas sobretudo dos
receptores originais.
É curioso notar que João usa a mesma linguagem do cálice para a Babilônia,
a “mãe das prostitutas e das práticas repugnantes da terra” (Ap 17:5), que estava
embriagada com o sangue dos santos (v. 6). João diz: “Retribuam-lhe na mesma
moeda; paguem-lhe em dobro pelo que fez; misturem para ela uma porção dupla
no seu próprio cálice” (Ap 18:6). O que acontece com a Babilônia quando bebe uma
porção dobrada do seu próprio cálice? Continua a existir para sempre? Basta
prosseguir a leitura para perceber que é justamente o contrário: “Por isso num só
dia as suas pragas a alcançarão: morte, tristeza e fome, e o fogo a consumirá, pois
destruição permanente pelo fogo, e não a uma existência sem fim. Da mesma forma
que a Babilônia bebe o cálice e não continua existindo para sempre, os ímpios não
bebem o cálice para continuarem existindo, mas para deixar de existir. Assim como
o lago de fogo, o “cálice sem mistura” é mais uma figura que João emprega para
1060
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 204.
1605
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1606
sobe para sempre». Já vimos que João tirou a linguagem do cálice da ira de vários
textos do AT que se referem à morte dos ímpios, mas de onde ele tirou a linguagem
da fumaça que sobe para sempre, e qual o seu significado? Uma comparação
Edom Ímpios
subirá para sempre a sua fumaça; de tormento de tais pessoas sobe para
para todo o sempre ninguém passará adoram a besta e a sua imagem, e para
14:10-11)
Ambos os textos usam a expressão «dia e noite» e falam de uma fumaça que
subiria para sempre, mas já vimos que a fumaça de Edom não subiu literalmente
para sempre, mas queimou por um tempo até consumir completamente a região, e
cálice sem mistura, a do “fogo que sobe para sempre” tem o mesmo objetivo de
1606
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1607
retratar o eterno aniquilamento dos ímpios, o que qualquer leitor familiarizado com
da Babilônia, que, como vimos, é identificada com Roma (Ap 17:6, 9, 18). No capítulo
19, João diz que “a fumaça que dela vem sobe para todo o sempre" (Ap 19:3).
Nenhum imortalista ousa interpretar esse texto literalmente, porque sabem que
uma cidade não pode ser literalmente atormentada para sempre, e tampouco na
identificam como Jerusalém (no caso dos preteristas) concordam que o fogo aqui é
apagará. A prova disso está na própria descrição que João faz: além da linguagem
da “porção dupla” do cálice (Ap 18:6), que já vimos ser uma alusão à morte e não à
continuidade da existência, João diz que o fogo a consumirá (v. 8) e que ela nunca
pedra de moinho, lançou-a ao mar e disse: ‘Com igual violência será lançada
por terra a grande cidade da Babilônia, para nunca mais ser encontrada’”
(Apocalipse 18:21)
1607
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1608
Por isso, apesar do verso 7 afirmar que ela sofreria tormento e aflição, seu
fim é a destruição total, não uma existência eterna. O fato da mesma linguagem de
pelo fogo, e não a uma existência sem fim, é mais uma prova inequívoca de que o
“fogo que sobe para todo o sempre” denota o aniquilamento dos ímpios, não sua
imortalidade.
Em conjunto com os textos que falam do “fogo eterno”, “que sobe para
sempre” ou “que nunca se apaga”, um outro texto que não sai da boca dos
imortalistas é o do “verme (ou “bicho”) que não morre”, como consta no evangelho
de Marcos:
reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no
fogo do inferno, onde o seu bicho não morre, e o fogo não se apaga”
(Marcos 9:47-48)
acabamos de fazer. Mas o que dizer do “bicho que não morre”? Para não ter de criar
a teologia do “bicho imortal” onde até os animais têm uma alma eterna, alguns
refere à alma do cidadão(!), e portanto a parte que diz que “o seu bicho não morre”
deve ser lida como “a sua alma não morre”. Pronto, aí está a grande prova da
1608
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1609
imortalidade da alma! Por mais hilário que pareça, é exatamente assim que Geisler
e Howe interpretam:
Jesus não está falando de vermes da terra, nem de nenhum outro tipo
de animal. Ele está falando sobre o corpo humano. Observe que ele
não diz “onde o verme não morre”, mas diz “onde não lhes morre o
Bíblia, eles a tiram direto do paganismo, e a partir dos conceitos pagãos tentam
interpretam dois teólogos imortalistas com Ph.D, imagine o nível dos apologistas
imortalistas no geral.
Para o azar deles, Jesus estava citando justamente ao texto de Is 66:24 (o qual
1061
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 289-290.
1609
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1610
porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se apagará; e serão um
Mais uma vez: o que é que os salvos veem ao olhar para os ímpios no Geena?
em um corpo incorruptível? Parece que não. Em vez disso, eles «sairão e verão os
cadáveres dos homens» que pecaram contra Deus. Cadáveres, não pessoas vivas!
acertou (já pode até passar no Enem). O texto é tão óbvio e de simples assimilação
que é de se impressionar que alguém consiga o feito de encontrar uma alma viva
sendo comida por vermes ali. Isso só reforça o quanto o condicionamento mental
Devemos lembrar que Jesus dirigia essas palavras a um público judeu, que
anacrônico e pagão que fazem os imortalistas. O Geena, como vimos, era o nome
dado ao Vale de Hinom, um lixão público onde era aceso um “fogo que não se
apagava”, pois precisava estar continuamente aceso para consumir todos os tipos
de lixo e cadáveres que eram ali despejados. É por isso que o Geena está associado
aos vermes, que se acumulam onde tem carniça, a fim de devorar seus corpos.
qual Jesus faz menção. Não um cenário onde almas imortais com corpos
1610
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1611
onde cadáveres (i.e, corpos de pessoas que já foram aniquiladas, e não um bando
de zumbis) são lançados para serem devorados pelos vermes, exatamente como
O Dr. Lyman Abbott é um dos teólogos lúcidos que percebem essa relação
óbvia, e destaca:
para ser destruído. Este é o fogo do inferno do NT. Cristo advertiu seus
lançado fora da cidade santa, para ser destruído. O verme que não
não mais chamarão este lugar Tofete ou vale de Ben-Hinom, mas vale da
1062
ABBOTT, Lyman. That Unknown Country, Or, What Living Men Believe Concerning Punishment After
Death. Massachussets: Nichols & Co. Publishers, 1888, p. 65.
1611
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1612
Matança, pois ali enterrarão cadáveres até que não haja mais lugar. E os
cadáveres deste povo servirão de pasto às aves dos céus e aos animais da
terra; e ninguém os espantará” (Jeremias 7:31-33)
Em Jeremias vemos a mesma ideia básica do texto de Isaías citado por Jesus:
ambos falam dos ímpios no Vale de Hinom (Geena), ambos os descrevem como
cadáveres e ambos dizem que seus corpos são comidos por animais. Mais do que
isso, ambos destacam o fato de que os bichos não os abandonarão até que
terminem todo o trabalho (Isaías e Jesus dizem que «o bicho não morrerá», e
Jeremias diz que «ninguém os espantará»). No entanto, está claro que aquilo que
os animais comem não é uma alma imortal ou um corpo incorruptível, mas meros
cadáveres de gente que pereceu no «vale da matança» (que não leva esse nome à
toa).
“Ouçam-me, vocês que sabem o que é direito, vocês, povo que têm a minha
lei no coração: Não temam a censura de homens nem fiquem aterrorizados
com seus insultos. Pois a traça os comerá como a uma roupa; o verme os
devorará como à lã. Mas a minha retidão durará para sempre, a minha
A descrição não abre margem a dúvidas: o verme que devora o cadáver dos
ímpios o devora literalmente, assim como a traça come uma roupa. Não há espaço
aqui para um corpo incorruptível que não pode ser devorado literalmente. O
1612
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1613
contraste no verso final deixa claro que os homens ímpios não duram (justamente
porque morrem e são comidos por vermes), diferente da retidão de Deus, que dura
sendo devorado por bichos, não de uma alma imortal ou de alguém vivo e
Tudo isso nos mostra que Jesus não estava criando um conceito novo ou
acreditavam em todas essas profecias a respeito do cadáver dos ímpios ser comido
por vermes. Isso era tão conhecido e bem aceito entre os judeus que mesmo no
Eclesiástico, escrito séculos após o fim do AT e pouco antes de Cristo, vemos essa
imagem ser reiterada. O autor diz que “o fogo e o verme são o castigo da carne do
ímpio” (7:19), sendo que “fogo” e “verme” são exatamente os elementos citados por
Obviamente, essa “carne” não se refere a uma alma sem corpo ou a um corpo
que morre e vira um cadáver: “Quando o homem está morto, tem por herança
homem de nenhuma valia; ele se tornará pasto da podridão e dos vermes; ficará
sendo um grande exemplo, e sua alma será suprimida do número dos vivos” (19:3).
Mc 9:44 é inclusive mais enfático quanto a isso, pois enquanto o hebraico usa o
termo towla, que se aplica a qualquer tipo de larva, o grego de Marcos traz skolex,
1613
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1614
Portanto, Jesus nada mais estava senão aludindo a Is 66:24, que, assim como
dos ímpios sendo comidos por vermes (que é o que acontece a um cadáver). E
embora o texto diga que o bicho-skolex “não morre”, isso deve ser entendido no
cadáver seja totalmente consumido, e não que o bicho tem uma vida eterna. Todo
“Se a sua mão o fizer tropeçar, corte-a. É melhor entrar na vida mutilado do
que, tendo as duas mãos, ir para o inferno, onde o fogo nunca se apaga,
onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga. E se o seu pé o fizer
tropeçar, corte-o. É melhor entrar na vida aleijado do que, tendo os dois pés,
ser lançado no inferno. onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga.
Será que alguém acredita que no céu haverá caolhos, manetas e pernetas?
1614
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1615
“bicho que não morre” e do “fogo que não se apaga”, interpretam literalmente sem
A maioria deles também reconhece que os animais não são imortais por não
possuírem a tal “alma imortal”, mas abrem uma conveniente exceção em relação ao
tal “bicho que não morre”, tudo para sustentar o argumento de que as pessoas
ficarão a eternidade toda sendo comidas por vermes no Geena (isso se não
quiserem apelar para a teoria de Geisler, que é ainda mais patética). Não há nada
que não mude conforme a conveniência para salvar uma crença frágil, fraca e nem
usado em defesa do tormento eterno. Trata-se de Dn 12:2, que diz que os justos
ressuscitados para uma vida que não tem fim, os ímpios serão ressuscitados para a
desgraça infindável”1063, mas não consegue provar que essa “desgraça infindável”
1063
PETERSON, Robert A. Hell on Trial: The case for eternal punishment. Phillipsburg: Nova Jersey, 1995,
p. 36.
1615
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1616
comidos por vermes, e não há qualquer razão para pensar que Daniel tivesse outra
concepção em mente. Ao usar o mesmo termo empregado por Isaías, ele aludia ao
gloriosa e digna que dura para sempre, os ímpios têm um fim vergonhoso e ignóbil,
uma morte repulsiva da qual jamais voltarão. É curioso notar que o mesmo Manual
destruição por fogo da região das trevas. E todo o seu tempo de era em era
na maior angústia e amarga desgraça, em calamidades de escuridão até que
sejam destruídos com nenhum deles sobrevivendo ou escapando”
(1QS 4:11-14)
1616
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1617
Note que o texto fala de «infindável horror e vergonha sem fim», que é
desprezo eterno” não era entendida pelos judeus da época como um sofrimento
perpétuo, mas como uma morte em desonra (que durará para sempre).
Para os judeus, assim como para qualquer um do mundo antigo, não havia
vergonha maior do que morrer de forma indigna, como o ímpio rei Jeorão, que
“morreu sofrendo dores horríveis” (2Cr 21:19) e “seu povo não fez nenhuma
fogueira em sua homenagem, como havia feito para os seus antepassados” (v. 19).
“Morreu sem que ninguém o lamentasse” (v. 20), e foi sepultado fora do túmulo dos
reis (v. 20). Isso era sofrer uma morte vergonhosa, o que no caso dos ímpios após o
juízo é agravado pelo horror aos seus corpos em decomposição, dilacerados pelos
vermes. Nada que pudesse ser melhor descrito como uma vergonha e um desprezo
eterno.
Um salmo que expressa bem essa condição é o Salmo 52, que Daniel
destino final dos ímpios como uma aniquilação irreversível, quando os ímpios serão
(Sl 37:9) e “deixarão de existir” (Sl 37:10). Esse mesmo salmista afirma que os ímpios
serão destruídos para sempre quando forem eliminados do mundo dos vivos,
1617
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1618
eterno, mas como uma destruição eterna. O desprezo que os ímpios sofrem não
para os justos, devido à sua morte indigna. Não temos nenhuma razão para pensar
que Daniel tivesse outra concepção em mente, que destoasse de todo o padrão da
• Considerações Finais
débeis ou traduções defeituosas, que não resistem a uma exegese simples. De fato,
como vimos no capítulo 16, a Bíblia ensina a verdade de que os ímpios serão
1618
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1619
que diz que eles serão por fim destruídos. Mas os textos usados na tentativa de
composta por 66 livros e mais de mil capítulos, não haja nada a mais que meia dúzia
eterno (Mt 25:46), e no outro o próprio autor explica a metáfora do lago de fogo
como uma referência à segunda morte (Ap 20:10-14). Eles se somam à hipérbole do
“bicho que não morre” (Mc 9:44), cujo contexto diz respeito a cadáveres
consumidos por vermes, e a um conjunto de textos que falam de um “fogo que não
se apaga” (Mc 9:48; Mt 3:12; Lc 3:17), expressão essa que em toda a Escritura é usada
sempre e somente para se referir a qualquer coisa que tenha sido completamente
delongas, se não fosse pelo fato de ser desde muito defendida por grande parte da
Cristandade. Como eu já disse certa vez, uma idiotice não deixa de ser idiotice por
ser defendida pela maioria, mas o fato de ser defendida por uma maioria lhe dá ares
de credibilidade que ela não merece, e que tampouco teria se não fosse unicamente
por isso. Não importa o quão ilógica ou indecente uma proposição seja: se ela for
apoiada por uma maioria, magicamente se torna uma crença lógica e sensata na
1619
Uma refutação aos argumentos “bíblicos” para o inferno 1620
Um erro crido por poucos é apenas um erro, mas um erro crido por muitos e
passado adiante pelas gerações vira tradição e ganha o status de verdade. É por isso
que ao longo dos séculos a humanidade tem a mania de acreditar em tantas coisas
burras, que eram levadas a sério pelo simples fato de serem a crença geral,
maioria acredita, para ser aceito no grupo. Foi por essa mesma razão que muitos
Diante disso, tudo o que resta aos imortalistas são sofismas travestidos de
capítulo seguinte.
1620
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1621
inferno
tormento eterno na Bíblia. Mas como eles sabem que esses argumentos não
bastam, levantam também uma série de sofismas retóricos que podem até parecer
era a de que o tormento no inferno tem que ser eterno porque Deus é um ser eterno
– como se uma coisa tivesse alguma coisa a ver com a outra. Embora esteja quase
em desuso, de vez em quando ainda vemos este argumento ser levantado nos dias
livros velhos (que estão desatualizados há pelo menos duzentos anos). A razão por
que o argumento merece ser descredibilizado logo de cara é que a conclusão cai
1621
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1622
Mesmo se a punição precisasse ser eterna porque Deus é um ser eterno, isso
não significa que ela teria que ser um tormento – como vimos, toda a Bíblia ensina
a morte eterna como o salário do pecado, e não um tormento eterno. Exigir que a
punição seja um tormento com fogo é uma conclusão que salta das premissas ao
ofendido, o que é tomada como uma verdade a priori, mesmo não se tratando de
nenhuma coisa óbvia ou autoevidente. Esse argumento até fazia algum sentido na
Idade Média, quando realmente a pena era maior dependendo de quem se lesava,
mas hoje só continua sendo usado por reacionários ainda presos à forma medieval
extinguia diante do valor do rei, que vivia no topo. Hoje, porém, como
1622
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1623
funcionam”1064.1065
Tanto na lei de Moisés como nas democracias modernas, a pena para quem
mata o chefe de Estado é a mesma para quem mata um mendigo de rua (na lei de
em um presídio). Da mesma forma, quem assassina um idoso de cem anos não sofre
uma pena maior que alguém que tenha assassinado um recém-nascido. Além do
mais, nos países que ainda aplicam a pena de morte, a morte é entendida como
uma punição mais adequada para os crimes mais graves. Por exemplo, nos Estados
Unidos alguém pode ser executado em uma cadeira elétrica por um crime hediondo
um roubo, é punido apenas com alguns anos de prisão, mesmo que tenha roubado
o presidente.
Por este ponto de vista, por que a desobediência a Deus, que seria um delito
da mais alta grandeza, não poderia receber como pena uma morte eterna? Se a
sua existência, já que a pena de morte seria pouco. Isso contraria não só o direito
moderno, mas a própria lei que Deus deu ao seu povo, onde os crimes mais graves
eram punidos com a morte, não com um sofrimento perpétuo (Lv 20:6-6).
1064
PINNOCK, Clark R. "Response to John E Walvoord". In: Four Views on Hell (ed. William Crockett). Grand
Rapids: Zondervan, 1992, p. 152-153.
1065
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 234.
1623
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1624
quem foi ofendido, em vez de com base na ofensa em si. Todas as vezes que a Bíblia
fala da pena imposta ao pecador não-arrependido, ela reforça que ele está sendo
punido pelas más obras que cometeu, em vez de dizer que ele é punido em função
de contra quem cometeu (Jo 5:29; Rm 2:6-8; Ap 21:8). Assim como na nossa lei o
morreu foi fulano ou beltrano, os infratores da lei de Deus são condenados por
causa do próprio delito em si, não com base em quem foi ofendido.
Mesmo se a base da punição fosse quem foi ofendido e não o que a pessoa
impossível relativizar um período eterno). Mas se o que conta não é o que a pessoa
fez, mas contra quem fez, sequer faria sentido os “graus de punição” no inferno, já
contornar todos esses problemas, quem disse que Deus é obrigado a se sujeitar à
lógica humana? Se Ele é o ofendido, cabe a Ele decidir qual será a punição, a não
ser que os imortalistas queiram ensinar Deus a ser Deus. Em teoria, Ele poderia até
1624
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1625
mesmo perdoar todos os pecadores e abrir as portas do céu a eles, caso quisesse, e
não seria um imortalista com sua filosofia de araque que impediria o Senhor de agir
assim.
O ponto todo é que apenas o ofendido tem o poder de decidir qual será a
pena, ainda mais em se tratando de Deus, o criador e dono de tudo. Isso não é de
competência dos filósofos, muito menos dos filósofos ruins. Cremos que Ele decide
pela aniquilação dos ímpios, não só pelo caminhão de textos bíblicos a este respeito
(revelados e inspirados pelo próprio Deus, que não se contradiz), mas também pela
Sua perfeita retidão de caráter e senso de justiça, algo ao qual nenhuma filosofia
devemos sempre ter em mente que ninguém é perfeito, o que Geisler se esforça em
1625
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1626
contra si mesmo.1066
Bíblia. De fato, os teólogos discutem até hoje o que vem a ser a “imagem de Deus”
Deus” significa apenas que fomos criados para parecermos com Ele, refletindo o
Seu caráter perfeito em uma escala humana muito mais limitada. O homem é o
único ser racional da criação terrena de Deus, e por isso mesmo é capaz de se
relacionar com Ele. Não à toa, a Bíblia diz que o Senhor andava e conversava com
Adão no jardim, mas nunca diz que Ele fazia o mesmo com os animais (Gn 1:28-30,
2:19, 3:8-19). Em outras palavras, ser criado à imagem de Deus não significa ter sido
criado “imortal”, mas que foi criado como um ente racional capaz de ter comunhão
escolher entre amar ou odiar a Deus, entre crer ou descrer nEle, entre seguir os
caminhos de Deus ou os do mundo. Não faz sentido dizer que um animal como o
nosso cachorro de estimação é “teísta”, e tampouco faz sentido dizer que ele é
1066
GEISLER, Norman. Enciclopédia de Apologética: respostas aos críticos da fé cristã. São Paulo: Vida,
2002, p. 43.
1626
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1627
“ateu”. A razão por que ele não é nem uma coisa e nem outra é porque ele não é
Chama a atenção que, por ocasião da criação do homem, Deus diga que o
faria “à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1:26). Embora ninguém
mais além de Deus tenha criado o homem, a razão do emprego do plural “nós” é,
para muitos estudiosos, indicativo de que o ser humano seria criado como um ser
tão racional quanto os anjos, com os quais Deus também podia se relacionar. É
como se Deus estivesse dizendo aos anjos: “Neste sexto dia criarei um ser diferente
no mesmo nível de intelecto dos anjos (assim como não significa que os anjos
estejam no mesmo nível que Deus), mas significa que somos capazes de interagir e
“Mas se Deus é um ser imortal”, dirá você, “e o homem foi criado à Sua
imagem, o homem não deve ser imortal por associação?”. Não mais do que deveria
divindade que nenhum homem possui. À luz da Bíblia, falar em “uma criatura feita
à imagem imortal de Deus” faz tanto sentido quanto falar em uma “criatura feita à
1627
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1628
a um só atributo?1067
Com a mesma clareza que a Bíblia afirma que só Deus é Todo-Poderoso (Jó
37:23), ela também garante que só Deus possui a imortalidade (1Tm 6:16), a qual
Ele dá a quem quer (2Tm 1:10). Isso significa que a imortalidade não é um atributo
la, como diz Paulo (Rm 2:7). Isso significa que a imortalidade é um atributo inato à
própria premissa. Geisler tenta provar que a alma não morre partindo da premissa
de que a alma não morre – neste caso, de que Deus concedeu ao homem
que Deus elimina os ímpios não é o mesmo que dizer que Ele “age contra si mesmo”,
só porque os ímpios foram criados à Sua imagem. Por essa lógica, Ele também agiria
1067
ATKINSON, Basil Ferris Campbell. The Pocket Commentary of the Bible, Part One: Book of Genesis.
London: Henry E. Walter, 1954, p. 32.
1628
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1629
como se se tratasse da mesma coisa. A imagem de Deus é algo que Ele concedeu
ao homem – neste caso, a razão e a liberdade de escolha –, não uma “parte” dEle
mim mesmo” só porque tinha lhe dado um presente. Geisler fala como se a pessoa
executada tivesse recebido uma parte da essência do próprio Deus, e que essa
essência morresse ao morrer o indivíduo. Essa é uma noção ridícula que demonstra
como até mesmo os mais brilhantes teólogos imortalistas têm dificuldades sérias
Faz muito mais sentido dizer que os ímpios condenados à segunda morte
não serão mais a imagem de Deus do que dizer que “a imagem de Deus morreu”,
morrer. Ao condenar os ímpios à morte eterna, Deus não está “atacando a Sua
imagem”, Ele está atacando pecadores impenitentes que não honraram a Sua
imagem, usando a liberdade que Deus lhes deu para escolherem o mau caminho.
Dizer que “a imagem de Deus morreu” é como dizer que “a respiração de fulano
morreu”, em vez de dizer que fulano não está mais respirando. Como nem a
respiração nem a imagem de Deus são entes pessoais, falar nestes termos é apelar
1629
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1630
no inferno?
seu debate com o então ateu Antony Flew é o que parece reconhecer que um
tormento eterno por pecados finitos é algo injusto, mas tenta resolver esse
no inferno, uma vez que continuariam blasfemando contra Deus sem parar. E como
eles vão continuar pecando por toda a eternidade, a única forma de punir estes
pecados é castigando-os também por toda a eternidade, o que faz com que o
alguma diz que alguém será punido por pecados que cometerá após a morte. Não
existe um só texto na Bíblia onde Deus julgue alguém por pecados no mundo porvir.
Nenhum. Pelo contrário, todas as vezes que a Bíblia fala da razão por que os ímpios
são castigados, é pelos pecados que eles praticaram nesta vida, não por pecados
que seriam cometidos após a morte (2Co 5:10; Ap 20:12). Ademais, se a razão para
o tormento ser eterno está nos pecados que os condenados cometem na outra vida,
indefinidamente.
sem nunca ter ouvido falar de Jesus não seria sentenciado no juízo a um sofrimento
1630
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1631
eterno como pagamento pelos pecados que cometeu nesta vida, mas a alguns anos
neve”. Mas não é isso o que os imortalistas dizem quando usam os textos que falam
do “castigo eterno”, os quais não se referem a pecados que não foram cometidos
Se os ímpios são castigados por pecados que cometem após a morte, isso
nos levaria a um problema ainda mais sério em relação à doutrina do juízo, uma vez
que, como vimos, a Bíblia toda ensina a existência de um único juízo para cada
indivíduo (At 17:31; 2Tm 4:1). Mas se os condenados permanecem no inferno para
sempre por serem punidos por pecados que ainda cometerão, isso significa que
eles são castigados sem serem julgados por esses pecados, já que o julgamento
que passam após a morte não dizia respeito aos pecados futuros, mas aos que
Isso quer dizer que esses pecados futuros ficam sem julgamento, o que seria
sua sentença por antecipação no juízo final, o que seria ainda mais imoral, já que
Deus nos castigaria por pecados que nem cometemos ainda. Isso seria o mesmo
que um juiz estar ciente de que determinado criminoso merece cinco anos de
detenção pelo crime que cometeu, mas por saber que o condenado terá mau
efetivamente havia cometido até aquele momento e pelos quais estava sendo
julgado.
1631
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1632
que os faria prestar contas por esses “pecados adicionais” e serem punidos por eles
em ciclos sem fim. Embora essa teoria resolva o problema conceitual envolvido, ela
esbarra em uma dificuldade bíblica insolúvel: o fato da Bíblia nunca falar de “juízos
existência de dois juízos, tomam como certo que o segundo é o último, e por isso o
literalmente queimado em um lago que arde com fogo e enxofre, onde dificilmente
ele conseguiria falar ou pensar em alguma coisa além de gritar de dor e desespero.
Alguém que tem o corpo todo queimado pode conseguir expressar algum
pensamento racional antes e depois, mas não enquanto é devorado pelo fogo. Se
difícil que eles cometam qualquer pecado consciente pelo qual estendam sua pena
nunca foi apresentado a eles, neste ponto um imortalista poderia argumentar que
(1) isso ainda assim seria possível no inferno, porque o rico da parábola conversa
com Abraão enquanto queima numa chama, e (2) de acordo com a teoria mais
popular do inferno, nem todos queimam literalmente, mas são sujeitos a diversos
castigos que não necessariamente envolvem o fogo (por exemplo, alguém que é
1632
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1633
“apenas” torturado com tridentes). Em resposta a isso, devemos observar que nem
nesses cenários seria justificável um tormento que se estende para sempre, porque,
embora a pessoa continue pecando, ela não peca literalmente a todo o instante,
como seria necessário para que o tormento fosse eterno, sem parar.
O próprio rico da parábola não parece estar pecando no diálogo que tem
com Abraão: ele não amaldiçoa a Deus, não xinga a mãe de Abraão, não manda
Lázaro pra casa do baralho, nem manda ninguém tomar caju. Pelo contrário, ele
apenas suplica que Lázaro lhe molhe a ponta da língua com uma gota de água e
ainda demonstra se importar com os seus familiares a ponto de pedir que Lázaro
voltasse para alertá-los a fim de que não tivessem o mesmo destino, em vez de
tempo todo, algo difícil de conseguir mesmo que se esforce pra isso. Mesmo os
maiores pecadores da face da terra não passam cada segundo pecando, como se
nem dormissem pra conseguir pecar mais. Até a mente mais suja precisa de alguns
momentos pensando em coisas “normais”, nem que seja por distração e sem a
menor intenção.
segundo sofrendo no inferno, mas eles não estão pecando sempre, pelo menos não
na mesma frequência com a qual sofrem por seus pecados. Assim, mesmo se os
1633
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1634
ultrapassaria o tempo de pecados cometidos, o que exigiria um fim aos castigos (já
algo que não pode ser provado nem com a Bíblia, muito menos com a razão. E
antibíblica, uma vez que na nova criação de Deus não há espaço para qualquer
Você pode não acreditar, mas tem gente que pensa que se o tormento não é eterno,
então vale a pena pecar à vontade nesta vida. Pior do que isso, tem gente que
literalmente usa essa retórica como argumento! Se você não acredita, veja o que
essa ideia seria um “todo mundo consegue o que quer”, isto é, embora
1634
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1635
mata uma pessoa que ele odeia. O crime é premeditado e ele está
alguma pessoa que mesmo presa afirme: “Eu faria isso de novo”. (...)
queiram e depois não irão viver eternamente mas também não irão
Um homem que pensa que vale a pena alguns anos de pecado na terra para
que possamos sentir aqui tem sérios problemas com a matemática, pra começo de
conversa. Mesmo que seja possível que alguém pense assim, seria um completo
uma vida de pecado mesmo assim. Isso parece indicar que a ameaça de um
tormento eterno não é lá tão convincente assim para prender as pessoas na fé, pelo
1068
Essa pérola está disponível em: <https://cosmovisaoefe.wordpress.com/2019/05/21/reflexoes-
sobre-a-eternidade-do-inferno-e-a-justica-de-deus>. Acesso em: 30/07/2020.
1635
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1636
E a questão objetiva a ser tratada não é “o que o ateu pensaria”, mas “o que
é mais justo”. Só alguém extremamente sádico exigiria uma tortura eterna para
punir pecados finitos. Por mais grave que o seu filho tenha falhado com você, eu
duvido que você o punisse com torturas que perdurassem por toda a existência dele
(se este for o caso, já vou logo ligando 190). Na vida real, nós castigamos uma
pessoa de acordo com o que ela fez por merecer. Se o seu filho fez algo que mereça
cinco chineladas no bumbum, você não pensa: “Vou descer a cinta em cima dele
para sempre, ou senão ele pode querer fazer isso de novo e aproveitar os prazeres
da vida”. Embora haja essa possibilidade, você sabe que só um monstro bateria nele
para sempre, e que o certo é dar uma quantidade proporcional de chineladas, algo
Se até um pai de família mundano tem o bom senso de agir assim, como que
Deus, sendo muito mais justo e amoroso do que esse pai, agiria como um monstro
sádico e indolente? Felizmente, Deus não é um sádico que tortura seus filhos para
sofrimento. Eu francamente teria pavor de passar perto na rua de alguém que pensa
que um erro só pode ser devidamente compensado se for com sofrimento eterno,
terra.
Na vida real, nós punimos as pessoas que estão sob o nosso teto privando-
exatamente assim que Deus age com quem mora sob o “teto” dele, que é toda a
terra: os priva da vida eterna, que é a recompensa dada aos que lhe forem
1636
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1637
surreal que alguns tenham dificuldade em entender algo tão simples e ao mesmo
duração eterna para que o pecado não valha a pena. Nem Hitler, nem Stalin, nem
Charles Manson, nem mesmo Freddy Krueger jamais chegaram tão longe.
família”, tem um artigo intitulado “Por que o Inferno tem de ser Eterno”, onde
difícil acreditar que eles mesmos levem a sério. Apenas observe o raciocínio
formidável:
Uma razão principal pela qual o inferno tem de ser eterno é que a
mas este ano, uma catástrofe atingiu a sua área, e deixou-o sem
tremendo. Será que o fato de você ter tido aquecimento nos últimos
10 anos irá fazer você feliz enquanto que neste inverno está a
congelar? Não, isso não irá ajudá-lo em nada. Tudo o que importa é
que você não tem calor neste inverno. É verdade dizer que tudo o que
suponha que você viveu sem aquecimento nos últimos 10 anos, mas
que este ano finalmente o obteve. O fato de você ter vivido sem
1637
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1638
dor. Uma vez que a condição presente é tudo o que importa para o
neles sem cessar sempre que fossem desobedientes, já que “tudo o que importa é
a sua condição atual”. Por essa lógica, um pai não poderia parar de bater no filho
desobediente, pois, quando ele parasse, a “condição atual” do filho seria a ausência
da dor, e ele acharia que a desobediência compensa. Por essa mesma lógica, não
com bilhões na conta do banco. Nada do que a pessoa passou importa, só o que
Não admira que católicos como ele tenham recorrido tão amplamente à
Se tudo o que importa é a “condição atual”, então qualquer sofrimento que a pessoa
tenha tido no passado não tem valor, é irrelevante. Esse raciocínio parece ter sido
criado por Satanás, e na verdade deve ter sido mesmo. Um jeito fácil de identificar
1069
DIMOND, Pedro. Por que o Inferno tem de ser Eterno. Disponível em:
<https://www.igrejacatolica.org/inferno-eterno/#.X1T6CnlKiUl>. Acesso em: 06/09/2020.
1638
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1639
algum sentido na teoria. Por isso muitos sofismas são realmente difíceis de se
clareza o quão ridículo é o que está sendo proposto. Uma filosofia que não se baseia
na Igreja” destinado a refutar o universalismo, nos brindando com aquela que talvez
Ele escreve:
1070
LOPES, Augustus Nicodemus Gomes. Polêmicas na Igreja. São Paulo: Mundo Cristão, 2015, p. 60.
1639
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1640
aniquilacionistas como John Stott “sentem-se livres para praticar todo tipo de
que os crentes imortalistas. Eu aposto que ele não pode. Na verdade, para ser
dado um mau exemplo muito pior que qualquer aniquilacionista. Por maiores que
À parte de qualquer erro doutrinário que você possa apontar nas igrejas
evangélicas e nas outras que creem no inferno eterno (como a Igreja Católica e o
seu exército de padres pedófilos) com aqueles que creem na segunda morte como
o fim total da existência, e não dá nem jogo. Uma análise séria da realidade nem de
concede uma licença ao pecado. Se a realidade nos mostra alguma coisa, está mais
para o contrário.
1640
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1641
o fim da vida física humana”. Ou o reverendo está falando do que desconhece ou,
pior ainda, está criando uma caricatura do aniquilacionismo para ser mais fácil de
ser refutada, o que configura desonestidade intelectual (espero que não seja o caso,
mesmo saco”. Mas a diferença entre aniquilacionismo e universalismo não pode ser
os ímpios herdam uma vida eterna, no aniquilacionismo eles têm é uma morte
eterna. Se Nicodemus realmente não consegue ver uma diferença gritante entre
uma coisa e outra, é bastante desanimador. De fato, o universalismo tem muito mais
eterno, então o mal compensa. Mas, como vimos, isso simplesmente não faz
sentido. Na vida real, sentimos que o mal é “compensado” quando se paga o tanto
pena não envolve uma tortura infindável, mas a prisão por um longo tempo que
pode ser tudo o que o indivíduo tem para viver nesta vida, mas que certamente não
perpétua” é na verdade uma sentença tecnicamente finita, mas que pelo acumulado
1641
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1642
na terra).
Ser castigado infinitamente por pecados finitos não satisfaz a nenhum senso
satisfazer com o céu, enquanto as almas dos descrentes não continuassem a ser
estivesse na presença de Deus – seja no céu ou na nova terra, ou onde quer que
fosse – estaria tão pleno e satisfeito que sequer me importaria se os ímpios fossem
perdoados e salvos de última hora, mas esse tipo de gente não se satisfaz senão
orgulhoso!
Por fim, há por detrás de toda objeção imortalista uma indireta (às vezes bem
direta, como vemos aqui com Nicodemus) de que o tormento eterno faz bem à fé,
sem fim levaria as pessoas a se afastar do pecado por medo de ir para este lugar tão
pavoroso. Na minha opinião, este é o cerne de toda a discussão, que mostra bem
A Bíblia é clara ao dizer que quem convence o mundo “do pecado, da justiça
e do juízo” (Jo 16:8) é o Espírito Santo, não o inferno. Quem pensa que o inferno de
1642
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1643
tortura eterna é necessário para convencer as pessoas pelo medo não conhece o
pensaria em estragar isso e pecar contra ele, porque o alvo da vida dele será
Quando você está apaixonado por alguém, você só quer estar com essa
pessoa, o máximo que puder. Quando o amor é real, você não vai querer estar com
a pessoa só porque alguém te intimida com uma ameaça terrível caso não a veja. A
ameaça neste caso é completamente irrelevante, já que você ama tanto a pessoa
que vai querer estar com ela não importa qual seja a outra opção. Você não quer
vê-la porque é compelido a isso, mas porque você mesmo a deseja. Da mesma
forma, o cristão que é cheio do Espírito Santo quer ter a vida eterna, não porque
está sendo ameaçado com um tormento eterno, mas porque ama Jesus e quer viver
Tudo o que um cristão sincero mais quer é estar com Cristo, mesmo se não
houvesse castigo nenhum do outro lado, e mesmo se a opção fosse uma vida eterna
em um céu sem Deus. Quem diz que o pecado compensa se não houver tormento
eterno mostra que não está nem aí com Cristo: sua verdadeira e única motivação
real é escapar da concepção que ele tem de inferno, e não perderia a oportunidade
motivação para estar com Cristo não é Cristo, é preciso urgentemente rever a
1643
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1644
Um marido que ama a esposa com todas as suas forças jamais irá traí-la, não
porque tema ser preso ou torturado caso isso ocorra, mas porque mulher alguma
pode lhe dar o prazer que é estar ao lado de sua amada. Nem em última hipótese
ele pensará em desagradá-la, pois sua alegria é vê-la feliz, e vice-versa. Assim é o
medonhas, mas do amor que se tem por ele e do desejo de estar com ele. Um
“cristão” que pensa que vale a pena pecar se não houver um tormento eterno é
como um marido que acha que vale a pena trair a esposa se ela não o torturar num
desejamos estar ao lado de quem amamos, muito mais deveríamos desejar estar
com Deus, a quem devemos amar em primeiro lugar (Mt 22:36-38). Deveríamos
importa, nada mais é necessário. Estar eternamente com a pessoa que mais
amamos deveria ser mais que o suficiente: deveria ser tudo o que realmente
importa. É por isso que o verdadeiro cristão vive em função de Cristo, não em função
do inferno.
finalidade dessa “conversão” é fugir do inferno, e não alcançar a Cristo. É por isso
1644
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1645
que para eles não existe recompensa para os justos se o tormento não for eterno
para os ímpios, já que a própria vida eterna não é boa o suficiente para satisfazê-
los.
a eternidade, já que é isso o que os motiva a estar na fé, uma vez que a própria vida
eterna com Deus é tida como de pouco valor, insuficiente para motivar por si
mesma. E é este tipo de Cristianismo, mais carnal que o diabo, que está sendo
vez do amor e da compaixão. Se você precisa crer num tormento eterno para
desejar estar com Deus, sinto lhe dizer, mas você não ama a Deus, você
simplesmente teme o inferno. Deus já não é mais suficiente, e por isso você precisa
legião de crentes fracos na fé que estão com Cristo não por quem ele é, mas pelo
terrorismo psicológico é que ela não leva ninguém a lugar nenhum. Mais cedo ou
mais tarde, o sujeito se desviará ou se tornará mais um entre tantos crentes carnais
que vemos por aí aos montões. Só uma fé alicerçada no amor de Deus é capaz de
resistir a todas as tribulações e tempestades da vida, não uma que tenha o medo
por base. “O perfeito amor lança fora o medo” (1Jo 4:18), diz João, numa época em
que se costumava converter pessoas pelo atrativo da vida eterna, e não pela sua
antítese.
Não temos melhor exemplo disso do que a Idade Média, época em que as
pessoas criam muito mais fortemente em um inferno de tortura eterna do que hoje,
1645
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1646
e mesmo assim eram muito mais carnais, imorais e insensíveis à vida humana. Nessa
época, 6% de toda a população de Roma (nada a menos que a sede do papado) era
nossos dias1071. Nem mesmo os clérigos escapavam, bastando lembrar mais uma
A maior parte dos estudantes que estudavam para virar padre não
consideravam pecado a fornicação1073, e era comum uma mesma casa ter escolas
banhos públicos com orgias à plena luz do dia1075, e os estupros eram tão
frequentes que mais da metade dos jovens incorriam nessa prática alguma vez na
vida1076 – algo que era relativizado e normatizado na sociedade por teólogos como
Tomás de Aquino1077.
VI (1492-1503), por exemplo, era pai de pelo menos oito filhos ilegítimos com
diversas amantes, fato conhecido e notório mesmo naquela época. Ele havia
1071
PIJOAN, J. Historia del Mundo. Barcelona: Salvat Editores, 1933. v. 4, p. 101.
1072
BROTTON, Jerry. El bazar del Renacimiento: sobre la influencia de Oriente en la cultura occidental.
Barcelona: Paidós, 2003, p. 98.
1073
LINS, Ivan. A Idade Média: a Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p.
207.
1074
PIJOAN, J. Historia del Mundo. Barcelona: Salvat Editores, 1933. v. 4, p. 104.
1075
ROSSIAUD, Jacques. A prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 99.
1076
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: As 1646
minorias na Idade Média. São Paulo: Jorge Zahar, 1993,
p. 26.
1077
ROSSIAUD, Jacques. A prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 79.
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1647
família ao cardinalato e colocou todos os cargos à venda, para quem pagasse mais.
Sobre ele e sua família, os Bórgia, pesam numerosos assassinatos, estupros, roubos,
permitiram que tal doutrina horrenda fosse aceita sem tanta resistência moral, e, do
para com o sofrimento alheio, o que explica por que a prática de queimar hereges
era tão habitual no Ocidente católico, mas bem menos comum na Igreja do Oriente,
inferno de tortura eterna, reflete com perfeição o tipo de crente que se cria através
tempo, mas só o amor dura para sempre. O medo pode levar a um relacionamento
1078
PIJOAN, J. Historia del Mundo. Barcelona: Salvat Editores, 1933. v. 4, p. 99-100.
1647
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1648
superficial, mas só o amor leva à intimidade. O medo pode ter uma eficácia ilusória,
mas “quem tem medo não está aperfeiçoado no amor” (1Jo 4:18).
fortalecida após descobrirem que não há tormento eterno. Essas pessoas haviam se
apostasia, muitos preferem a apostasia, e não posso dizer que estejam errados.
insensível, que não se satisfaz nem com bilhões de anos de sofrimento em meio a
um lago de fogo e enxofre. E não há nada que afaste mais as pessoas da fé do que
uma imagem distorcida de quem Deus é, razão por que tudo o que Satanás sempre
e repugnância a esse monstro cruel e insaciável, que nada tem a ver com o Deus de
1648
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1649
Um argumento muito parecido com o anterior, mas que pelo menos não diz
tempo de castigo seria um ato de “misericórdia” de Deus para com os ímpios, já que
Isso seria o mesmo que dizer que um pai que deu 50 chineladas no filho por
ter xingado um amiguinho da escola foi “piedoso” com o filho só porque não deu
500 chineladas. Há pouco tempo um casal russo foi preso por ter forçado o filho de
oito anos a ficar 9 horas com o joelho no milho (o joelho ficou todo desfigurado em
cruel por deixar os ímpios pagarem o proporcional aos seus pecados e deixarem de
existir; Ele é apenas justo por lhes retribuir exatamente o que eles merecem, sem
1079
Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/page-not-found/mae-padrasto-sao-presos-por-
punirem-menino-se-ajoelhando-em-graos-de-trigo-por-ate-9-horas-seguidas-24289796.html>. Acesso
em: 10/03/2022.
1649
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1650
mais nem menos. Sua misericórdia Ele reserva aos fiéis, que recebem o que não
merecem (i.e, uma vida eterna), razão por que a salvação é pela graça. Mas não
existe uma “graça reversa” para dar aos ímpios mais do que eles merecem,
estendendo o seu tormento para todo o sempre mesmo sem propósito algum além
do sofrimento em si.
outros argumentam – acredite se quiser – que uma morte eterna seria mais cruel do
pessoas não clamariam pela morte se fossem submetidas a uma sessão de tortura
real, daquelas em que dentes, dedos e outras partes do corpo são cortadas uma a
uma...
É muito fácil falar da boca pra fora que a tortura é melhor que a morte,
quando na vida real qualquer pessoa que sugerisse isso não seria considerada
menos que um monstro maquiavélico da pior espécie. Alguém que dissesse que é
1650
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1651
misericordiosa” com o criminoso, não seria considerado menos que um doente com
tratando de dores extremas sem que haja a menor possibilidade de recuperar a vida
normal. Tente ver um vídeo do ISIS queimando prisioneiros vivos numa gaiola sem
desejar que eles morram o mais depressa, para atenuar seu sofrimento. A Inquisição
vítimas que sofreram por horas em meio às chamas até perderem a vida. Nem
mesmo o diabo chegaria a dizer que isso é “mais misericordioso” com a vítima do
que a morte pela guilhotina, onde o condenado era imediatamente morto. Se isso
sofrimento, quando estão sofrendo muito e nada pode ser feito para que eles se
recuperem. Perpetuar um sofrimento que não tem propósito e nem fim é algo que
não passa pela cabeça nem dos roteiristas mais maquiavélicos dos filmes de terror.
“E foi-lhes permitido, não que os matassem, mas que por cinco meses os
atormentassem; e o seu tormento era semelhante ao tormento do escorpião,
1651
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1652
sofrimento pelo qual elas passavam. Isso refuta toda a ideia de que o sofrimento
exatamente o contrário). Mais uma vez, trata-se de uma filosofia que não tem
amparo na realidade, e, portanto, deve ser colocada na lata do lixo junto com todos
reformatório?
esse castigo que precede a morte não tem um propósito reformatório (uma vez que
quem é castigado morre depois), e por isso o castigo não faz sentido. Se esse
argumento vem de quem defende o tormento eterno, não poderia ser mais irônico,
já que nada faz menos sentido do ponto de vista reformatório do que um castigo
que não tem fim. Se o castigo temporário não tem um propósito reformatório, que
para sempre, blasfemando para sempre e sofrendo para sempre. Por outro lado,
esse argumento pode ser dado com justiça por universalistas que creem que após
1652
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1653
não creem em castigo prévio. Como responder a eles? Para além dos textos bíblicos,
justiça. Um preso não é preso apenas por propósitos reformatórios. Na verdade, ele
A primeira e mais imediata razão por que o sistema prisional existe é para
o criminoso livre para praticar mais crimes. Essa primeira razão não visa o criminoso
pagar pelo crime que cometeu. Isso não necessariamente tem um caráter
realmente deixar de cometer crimes se forem soltos. Além disso, claramente não há
nunca serão reinseridos na sociedade para provar que mudaram. O mesmo se aplica
àqueles condenados à pena de morte, que visa apenas fazer com que o criminoso
pague pelos seus crimes, e não reformar sua conduta. É importante ter isso em
mente para entender a natureza do castigo temporário, pois não se espera que
1653
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1654
alguém ali se arrependa de seus pecados, mas isso não muda o fato de que eles
condenados são presos, não a única que conduz a isso. Isso não significa que Deus
não tenha dado tempo para o pecador se arrepender, pois Ele deu literalmente todo
o tempo de nossa existência terrena para isso. Até mesmo alguém que
por Deus. O castigo é só para aqueles que se mantiveram obstinados por toda a
Outra falácia comum que é por vezes levantada contra os mortalistas que
mesma heresia criada pela Igreja Romana medieval. Quem afirma esse tipo de coisa
é um lugar para os condenados, mas para os salvos que precisam passar por um
Média era encarado com a mesma literalidade do inferno, mesmo que hoje os
1654
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1655
esse período de purificação, a alma estaria pronta para entrar no céu e ter
os salvos. Nenhum salvo precisa de purificação para entrar no céu, pois o sangue
de Jesus já nos purificou de todo o pecado (1Jo 1:7). A pessoa que é castigada antes
de morrer não está purificando-se dos pecados para entrar no céu, mas recebendo
a devida retribuição por seus atos pecaminosos antes de padecer a segunda morte.
purgatório, não só pela natureza do mesmo, mas também por sua finalidade e
consequência:
No estado intermediário
ressurreição
1655
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1656
O ímpio morre a
Qual o desfecho? A alma é recebida no céu
segunda morte
Mesmo se houvesse, este não deveria ser o critério para estabelecer se a doutrina é
doutrina que deve ser provada herética por si mesma, não pela suposta similaridade
• Considerações Finais
Cada nova argumentação dada parece ter como objetivo apenas aumentar o
punição mais lógica e consistente não só com a Bíblia, mas com a própria razão que
1656
Uma refutação aos argumentos “filosóficos” para o inferno 1657
Uma vez que a imortalidade é um prêmio dado aos justos e não uma
condição natural do homem, não faz sentido que os ímpios vivam para sempre, seja
se alguém como Hitler não sofresse nada por todo o mal que fez, assim como seria
sem fim, ou que sofresse no inferno pela mesma duração que o diabo, o próprio
dependendo dos pecados de cada um, mesmo que ninguém tenha pecado uma
Isso que qualquer um pode concluir pela simples razão e bom senso é
sofrimento que é proporcional aos pecados de cada um, e não igual para todos.
Não é coincidência que o padrão perfeito de justiça pelo uso da razão e do senso
moral seja o mesmo estipulado por Deus na Bíblia, porque nossa consciência nos
foi dada pelo próprio Deus, e reflete o caráter perfeito dEle (Rm 2:14-15). Não
implantou em nós.
1657
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1658
amor?
Uma parábola sobre a vida após a morte – Imagine que você tenha perdido
uma filha de 16 anos em um trágico acidente de carro, algo que lhe causou grande
dor e comoção por longos anos. Algumas décadas mais tarde, você morre e sua
alma sai voando pro céu, onde esperava encontrá-la e revê-la. No entanto, em vez
disso, você recebe a notícia de que ela está queimando em um lago de fogo e
enxofre literais, onde sofreria amargamente pelos séculos dos séculos. Você até
entende as razões por que ela não foi salva – gostava de baladas regaladas a muito
álcool, achava um tédio ir à igreja e não se importava com as coisas de Deus –, mas
1080
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 233.
1658
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1659
saber que sua filha estaria literalmente torrando viva e que esse sofrimento terrível
duraria para sempre lhe causou muito mais dor do que quando soube de sua trágica
morte.
Infelizmente pra você, não resta muita opção senão curtir o céu, voar sobre
as nuvens e beber leite de ambrósia. Após um ano todo trajando vestes brancas e
tocando muita harpa, você se lembra que sua filha está naquele terrível sofrimento,
e se dirige à presença de Deus para interceder por ela. “Senhor, eu sei que ela não
mereceu ser salva, mas não acha que um ano inteiro queimando viva não é o
bastante?”. Lamentavelmente, ouve que o destino já estava selado, e não havia nada
que pudesse ser feito. Quinze anos mais tarde, você volta à presença de Deus:
“Senhor, já faz 16 anos que minha filha está torrando num fogo inextinguível, não
acha que é o bastante pelos 16 anos de pecado que ela teve?”. Mas, novamente,
de Deus: “Senhor, já faz um milênio que minha filha está sendo torturada e sentindo
dores extremas indescritíveis, eu lhe suplico que ao menos lhe tire a vida para
mais nisso. Nada a menos que um bilhão de anos se passam, e você se sente mal
por estar curtindo o Paraíso enquanto sua filha sofre continuamente as dores mais
agudas que uma criatura é capaz de suportar. E mesmo com pouca esperança, sente
que deve ir de novo à presença de Deus, o mesmo que amou tanto os pecadores
1659
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1660
devorada por vermes insaciáveis e indestrutíveis. O Senhor não acha que ela já
aprendeu a lição?
– Mas, Senhor! Longe de mim diminuir a gravidade dos pecados que ela
cometeu, mas um bilhão de anos de insuportável tortura não saciou seu senso de
justiça?
tocar harpa. E você viveria toda a eternidade sabendo que sua amada filha está
torrando viva, sendo comida por vermes, torturada por demônios de rabo grande
ser humano é capaz de sofrer, tudo isso por causa de alguns anos de pecado na
terra.
***
Sim, o conto que você leu é obviamente tão fictício quanto a parábola do
vai pro céu depois da morte, muito menos que Deus é o ser insensível ali retratado.
1660
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1661
claro que sim. Na teologia imortalista, alguns desses jovens vão para o inferno?
filho ou filha está no inferno sendo atormentado? Com certeza (a não ser que você
odeie o seu filho, e neste caso não sei o que estaria fazendo no céu).
reverter a sentença ou atenuá-la por misericórdia? Mais uma vez, qualquer pai ou
mãe que se preze faria isso. Seria respondido? Se a teologia imortalista estiver certa,
obviamente não. A conclusão é que o conto pode ser fictício, mas ele retrata com
discussão sobre a natureza e a duração do inferno (na verdade, poderia ser até pior,
se o pai visse com seus próprios olhos a filha sendo fritada do outro lado igual na
sanguinário e impassível que não se sacia nem com bilhões de anos de tortura sem
fim de seres que Ele próprio criou sabendo que sofreriam tudo isso, saiba que você
real, isso perturbaria a própria paz de espírito dos salvos no Paraíso, a não ser que
palavras:
1661
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1662
Para mim, é inexplicável como é que uma pessoa que tenha esse
conceito “ortodoxo” pode ter algum momento feliz nessa vida. Ele
humana foi lançada em meio ao tormento eterno, sem fim. Para mim,
é ainda mais inexplicável que tal pessoa “ortodoxa” possa esperar ter
Pode tal pessoa, se ama o seu próximo como a si mesma, ter até
condenação eterna e a agonia sem fim para seu parente mais próximo,
seus pais, seus irmãos e irmãs, seu cônjuge e seus filhos. Como pode
céu, o que nos permitirá curtir o Paraíso em paz de espírito sem nos preocuparmos
com entes queridos sofrendo torturas indescritíveis. O Pr. Natanael Rinaldi, por
exemplo, é um dos que imaginam que Deus faz parte do MIB (Homens de Preto) e
usa um neuralizador para apagar a memória de todo mundo. Ele afirmou em seu
1081
PERSONNE, Johan Wilhelm. Til Prästerskapet i Linköpings Stift. Linköping, 1910, p. 24-25.
1662
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1663
livro que “toda a memória de amigos, parentes e queridos serão para sempre
A única referência citada por Rinaldi para endossar essa tese é Ap 21:4, que
diz que “não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor”. A referência
diz que não haverá muita coisa, mas, para o azar dos Homens de Preto, não diz que
não haverá lembranças. Talvez Rinaldi presuma isso apenas por pensar que é o
único jeito de conciliar este texto com a visão imortalista em que amigos e parentes
por quem tinha muito afeto, e deseja reencontrá-los um dia. Se o Pr. Rinaldi estiver
certo, essa esperança é vã e sem sentido, pois sem a memória de quem fomos e do
que fizemos nesta vida sequer teríamos como reconhecer aqueles que conhecemos
aqui. Isso porque a mãe que perdeu um filho, ao chegar à glória, não o reconheceria,
e tampouco o filho reconheceria a própria mãe. Qualquer pessoa que você perdeu
com quem você não tem nenhuma história construída e que você não faz a menor
como esse seria tão “emocionante” quanto encontrar uma pessoa aleatória na rua,
a quem você nunca viu. Quando Paulo escreveu aos tessalonicenses, vemos
claramente que eles reencontrariam seus entes falecidos não como anônimos, mas
1082
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 114.
1663
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1664
como as mesmas pessoas que eles conheciam em vida e com quem construíram
“Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem,
para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança. Se
cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus trará,
mediante Jesus e juntamente com ele, aqueles que nele dormiram. Dizemos a
vocês, pela palavra do Senhor, que nós, os que estivermos vivos, os que
ficarmos até a vinda do Senhor, certamente não precederemos os que
dormem. Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta
arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor
nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre. Consolem-se uns
No verso 13, Paulo deixa claro que estava escrevendo sobre os que
morreram, «para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança».
Quem eram esses que “não tinham esperança”? Provavelmente era uma referência
aos que seguiam a filosofia de Epicuro, os quais pensavam que os que morreram
teríamos nenhuma memória dessa. A consequência destes ensinos era que nós
1664
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1665
Mas Paulo não diz que essa desesperança era justificável. Para ele, haveria
um momento em que nós voltaríamos a ver nossos entes queridos, e este momento
encontrarão o Senhor nos ares com os mortos ressurretos, «e assim estaremos com
o Senhor para sempre». E Paulo pede que os crentes «consolem-se uns aos outros
com estas palavras». Isso com certeza não seria um consolo caso a mensagem na
verdade fosse que “vocês vão reencontrar seus entes queridos, mas quando os
as partes com toda a memória e consciência de quem eram e de quem são. Se não
não a de rever quem a gente mais amava. E note que Paulo não falava em primeiro
lugar sobre estar com Deus em 1Ts 4:13-18, mas «a respeito dos que dormem», ou
Ademais, para sermos julgados por nossas obras (2Co 5:10), temos que ter
lembrança delas. Caso contrário, seria como se fôssemos julgados pelos atos de um
estranho, não pelos nossos atos. A única forma de sermos julgados por nossos atos
de uma maneira justa é se nos lembrarmos de tê-las cometido. Outro problema tem
a ver com o sacrifício de Cristo em nosso favor. Se nossa memória será apagada,
então não nos lembraremos nem mesmo de que Deus amou ao mundo de tal
maneira que deu o seu filho unigênito para morrer em nosso lugar. O sacrifício seria
Mesmo se Jesus no céu dissesse que morreu por nós, ninguém jamais teria
a real dimensão de tudo o que isso significou de fato. Como na eternidade não
1665
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1666
sentiremos dor, jamais compreenderíamos o quanto Jesus sofreu por nós. Não
partido, um golpe na face, uma cruz para carregar. De fato, é o sofrimento que nos
leva a dar valor ao prazer, é a tristeza que nos faz valorizar os momentos felizes, é a
guerra que nos faz valorizar a paz, são as doenças que nos fazem valorizar a saúde,
é a desgraça que nos faz saber o que é a graça, e são todos os maus momentos da
de Preto de Natanael Rinaldi, teria sido muito mais lógico ter nos criado direto no
céu, sem precisarmos passar por todo o sofrimento atual, já que nem mesmo nos
misericórdia de Deus seria tão diferente que nunca entenderíamos tudo o que Deus
fez por nós, tampouco daríamos valor à nossa condição reformada de toda mancha
de pecado e dor.
a teoria da amnésia, pois nela Abraão diz ao rico: “Filho, lembre-se de que durante
a sua vida você recebeu coisas boas, enquanto que Lázaro recebeu coisas más” (Lc
16:25). Se a parábola é literal (como Rinaldi defende) e a memória dos que partiram
desta vida será apagada (como Rinaldi também defende), então a única resposta
possível do rico seria “lembrar do que?”. Em vez disso, ele sabe que possui cinco
irmãos (v. 28) e se compadece deles, porque não se esqueceu de coisa nenhuma
(assim como não se esqueceu de quem era Lázaro e o chama pelo nome).
1666
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1667
Também há quem use o texto de Isaías que diz que “as coisas passadas não
serão lembradas, jamais virão à mente” (Is 65:17). Mas o “não lembrar” é
frequentemente usado na Bíblia no sentido de não levar algo em conta, não de ter
a memória apagada. Por exemplo, no mesmo livro vemos Deus dizendo a respeito
do pecador arrependido que “não se lembra mais de seus pecados” (Is 43:25).
Obviamente isso não significa que Deus também tem sua memória apagada, mas
que Ele não leva em consideração os nossos pecados após terem sido perdoados.
Da mesma forma, quando Deus diz “esqueçam o que se foi; não vivam no passado”
(Is 43:18), Ele não está encorajando alguém a bater com a cabeça bem forte na
parede até ter uma amnésia, mas a deixar as coisas do passado para trás.
Jesus disse que “a mulher, quando está para dar à luz, sente tristeza, porque
é chegada a sua hora; mas, depois de ter dado à luz a criança, já não se lembra da
aflição, pelo prazer de haver nascido um homem no mundo” (Jo 16:21). A mulher
que deu à luz não sofreu de uma amnésia repentina pós-parto, apenas deixou para
trás as aflições que tinha ao dar à luz. Numerosos outros exemplos bíblicos podem
ser dados neste mesmo sentido (Sl 9:17, 13:1, 78:11, etc). Deus não apagará nossas
do preço que Deus pagou para redimir a criação, que custou a vida do seu próprio
filho.
Escrituras, ela esbarra em um dilema moral tão grande quanto. Imagine que você
tenha sido convidado para uma festa de gala numa mansão paradisíaca, a mais
1667
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1668
que pagar nada. Mas tem um porém: enquanto você estivesse na festa, sua esposa
dos poucos que conseguem, certamente não é o tipo de gente que mereceria estar
ali. Qualquer pessoa com um mínimo de humanidade não conseguiria fazer outra
coisa senão passar a festa inteira apenas tentando chegar ao porão e salvar sua
mulher e filhos. E se fosse necessário deixar a festa paradisíaca para que sua família
fosse liberta, não pensaria duas vezes. Agora pense o quão revoltante seria se você
soubesse que quem contratou os torturadores e mandou sua família lá para ser
Por melhor que seja a festa e por mais que ele tenha deixado você entrar de
graça, você não pensaria outra coisa dele a não ser que ele é um monstro da pior
espécie, a despeito de qualquer coisa que sua mulher e filhos pudessem ter feito
contra ele. Agora imagine que o dono da festa previu esses infortúnios, e para lidar
com o problema apagou sua memória com o neuralizador ao chegar à festa. Assim,
você poderia curtir a festa sem se preocupar com sua esposa e filhos torturados no
porão da mansão, já que nem mesmo se lembraria da existência deles. Será que
uma atitude dessas não tornaria o dono da festa ainda mais cruel e covarde, digno
de vilão de cinema?
cerebral para anestesiar a consciência dos salvos em relação a esse tormento. Assim,
1668
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1669
Deus tão diabólico quanto o diabo. O que deveríamos esperar de uma doutrina
Com ou sem amnésia, eu sinceramente não sei como alguém que realmente
perturbar com isso. Mesmo que a pessoa pense que está à salva, seria demasiado
misericórdia, como descrito nas Escrituras, com esse deus torturador e sanguinário
mesmo Deus sendo insensível ao sofrimento de inúmeras criaturas para sempre (ou
que se sensibiliza, mas não faz nada a respeito). O salmista diz que “o Senhor é bom
para todos; a sua compaixão alcança todas as suas criaturas” (Sl 145:9). Note que o
Senhor não tem compaixão somente por uma minoria de eleitos, mas por todas as
lago de fogo e enxofre não parece ser uma boa forma de demonstrar compaixão, e
tivessem com você. Também está longe de parecer o mesmo “Deus compassivo e
1669
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1670
cheio de amor” (Sl 103:8). Ainda mais significativo que isso é o fato de Deus não
reter Sua ira para sempre, o que é mencionado mais de uma vez. O salmista diz que
Deus “não reprovará perpetuamente, nem para sempre reterá a sua ira” (Sl 103:9).
irado para sempre, mas tens prazer em mostrar amor” (Miqueias 7:18)
pelos séculos dos séculos debaixo da Sua ira. Se a ira divina não dura para sempre,
não há razão para manter bilhões de criaturas em sofrimento consciente após Sua
ira ter cessado. Isso é perfeitamente compatível com a descrição paulina de que
“Deus é rico em misericórdia, por causa do seu grande amor com que nos amou”
(Ef 2:4). Quando Tiago diz que “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2:13), o que
ele quer dizer não é que Deus não é justo, mas que Sua misericórdia é tão grande
1670
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1671
Cristo, pois ele é “a expressão exata do Seu ser” (Hb 1:3), e nele encontramos os
pastor” (Mt 9:36), e multiplicou-lhes os pães e peixes. Essa é a mesma multidão que
um pouco mais tarde chegou a pegar em pedras para apedrejá-lo (Jo 8:59), o que
palavras:
1083
MONTOSA, Rodolfo Garcia. Jesus se importa com os aflitos e exaustos. Disponível em:
<http://www.ipilon.org.br/conteudo-e-midia/mensagem/jesus-se-importa-com-os-aflitos-e-exaustos>.
Acesso em: 03/09/2020.
1671
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1672
que ele a condenasse à morte, como previa a lei, ele se compadeceu dela e disse:
“Eu também não a condeno. Agora vá, e não peques mais” (Jo 8:11). Àqueles que
lhe zombavam ao pé da cruz, ele rogou ao Pai: “Perdoa-lhes, porque não sabem o
que fazem” (Lc 23:34). Quando Pedro cortou a orelha do servo do sumo sacerdote,
enviado para prender Jesus, ele não só repreendeu seu discípulo por essa atitude,
devia perdoar sete vezes quem pecasse contra ele, ouviu como resposta “não até
É difícil imaginar que o mesmo Senhor Jesus que sempre agiu com
compaixão e misericórdia, inclusive para com os seus inimigos, pelos quais orava e
nos mandava orar (Mt 5:43-45), tem uma “outra face” sombria, que atormenta para
sempre aqueles que não acreditam nele. Nenhum ser humano jamais se
Se existe uma coisa que pode ser definida como o exato oposto aos
atribui a Jesus o inverso a quem ele é nos evangelhos. Assim como é impossível
inferno, de dar inveja aos psicopatas mais bárbaros que já pisaram neste planeta.
a desculpa de que Deus não condena ninguém ao inferno, mas as próprias pessoas
1672
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1673
propósito para sofrerem eternamente, o que não faz o menor sentido. Por este
ponto de vista, Deus não teria “controle” sobre isso, já que os próprios indivíduos
teriam decidido sofrer eternamente no inferno. Contudo, a Bíblia nunca diz que
alguém “se condena” ao inferno, mas que é condenado por Deus (1Co 5:13). Deus
Não é o homem que “se condena” ao inferno por suas ações, é Deus que
condena o homem pelo que fez, e é a Ele que cabe inteiramente decidir que tipo de
castigo que infligirá aos ímpios. Por isso Mt 10:28 é tão claro em dizer que devemos
temer a Deus acima de tudo, porque é Ele quem pode destruir corpo e alma no
Geena. Não são as pessoas que “se lançam” no Geena por conta própria, mas Deus
inferno, alguns recorrem ao versículo que diz que Deus preparou o “inferno”
(Geena) para o diabo e seus anjos (Mt 25:41). Mas o sentido do texto não é que os
homens maus se lançam no Geena por conta própria, porque o próprio verso em
questão diz expressamente que é Deus quem os manda pra lá. Ao dizer que o “fogo
eterno” foi preparado para o diabo e os seus anjos, o que Jesus estava indicando é
que pessoa alguma precisaria ir para lá, se não cometesse os mesmos atos de
impiedade que condenaram os demônios a este fim. Mas é obviamente Deus que
decidiu dar este fim a elas, como retribuição por seus atos pecaminosos.
diabo, nem por pessoa alguma, senão por Deus. Semelhantemente, na visão
aniquilacionista, o fogo que abate os ímpios no Geena não é enviado por outra
1673
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1674
pessoa senão por Deus. Diante disso, dizer que Deus não manda as pessoas ao
coisa. Como soberano, onipotente e criador de tudo, Ele poderia facilmente apagar
as chamas, caso quisesse, dar um fim aos pecadores, caso desejasse, ou até mesmo
Mas Ele não é “coagido” externamente a algo, como se não pudesse fazer
nada para evitar o sofrimento eterno dos pecadores, que é o sofisma apresentado
decisão soberana como essa, ainda mais considerando que Deus criou toda essa
gente já sabendo de antemão que a maior parte delas queimaria para sempre, em
famoso como John Stott reconhece que, “emocionalmente, eu acho o conceito [de
tormento eterno] intolerável e não entendo como pessoas podem viver com ele
e teólogo quaker John Hick concordava que “a ideia de corpos queimando para
1084
STOTT, John; EDWARDS, David. L. Essentials: A liberal-evangelical dialogue. London: Hodder and
Stoughton, 1988, p. 314.
1085
HICK, John. Death and Eternal Life. New York: Harper & Row, 1976, p. 199.
1674
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1675
quais nem permite que morram. Como pode alguém amar a um Deus
como esse? Suponho que se teria medo dele, mas poderíamos amá-
defender o Cristianismo.1086
Flew foi um filósofo ateu por quase toda a vida, o mais aclamado do século
XX, até se tornar teísta em seus últimos anos. Ele é o autor do livro “Um Ateu
Garante: Deus Existe”. Mesmo assim, ele nunca se tornou cristão. A razão pode ser
vista em seu debate com William Lane Craig, onde seu principal argumento contra
se importa em enviar os seres por ele criados para uma tortura infindável entre as
1086
PINNOCK, Clark R. "Response to John E Walvoord". In: Four Views on Hell (ed. William Crockett). Grand
Rapids: Zondervan, 1992, p. 149-150.
1675
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1676
chamas que nunca se apagam dificilmente pode ser aceita por um filósofo
esclarecido como Flew, por mais disposto que estivesse a abraçar o Cristianismo1087.
ofuscando o ensino de um Deus que nos amou tanto que enviou Seu filho para
morrer por nós. A tortura eterna cria um deus ambíguo, com duas faces tão opostas
quanto Deus e o diabo: de um lado, ele ama os salvos a ponto de morrer por eles;
num lugar que ele mesmo criou, com fogo e enxofre literais e vermes imortais que
tempo amoroso e sedento de sangue; uma espécie de mistura de Jesus com Hitler,
que mais apavora do que atrai os descrentes, e um espantalho fácil de ser atacado
pelos secularistas.
criaram esse tipo de inferno, numa época em que a vida humana era tida em tão
pouco valor, quando era comum queimar “hereges” e “bruxas” em praça pública e
em que eram queimados em praça pública os hereges até a morte – com toda a sua
homens, mulheres e crianças, como nas cruzadas, era encarado com louvor, assim
1087
De fato, ele estava tão disposto a abraçar o Cristianismo que permitiu que um amigo cristão escrevesse
como apêndice ao livro um capítulo com as evidências da ressurreição de Jesus.
1088
PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo:
Giordano, 1992, p. 62.
1676
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1677
milhares1089.
nas galés1090. Nessa época a escravidão era aceita pela maior parte da sociedade, os
negros eram tratados como animais e as mulheres como um «macho falho», nas
Massacre de Vassy (1562)1094, foi celebrado pelos católicos da região, e o duque foi
o seu povo sido reduzido de 100 milhões para apenas 5 em menos de um século.
“Príncipe” de Maquiavel.
1089
LE GOFF, Jacques. La Baja Edad Media. Madrid: Siglo XXI, 1971, p. 128.
1090
BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard. A Inquisição. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 88.
1091
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. “Prima Pars”. Questão 99, Art. 2.
1092
Eu escrevo mais amplamente sobre isso em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/03/entenda-tudo-
sobre-o-massacre-da-noite.html>.
1093
NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1960, p.
168.
1094
Eu escrevo mais amplamente sobre isso em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/03/o-massacre-de-
1677
vassy-inicio-das-guerras.html>.
1095
LINDSAY, T. M. A Reforma. Lisboa: Typ. a vapor de Eduardo Ros, 1912, p. 103.
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1678
tortura eterna fizesse tanto sucesso, e fosse inclusive usada para insuflar as massas
alimentado por uma visão errada sobre Deus. O povo era constantemente exposto
pelo clero. Essa era a estratégia utilizada para tornar as massas insensíveis e
em um lago regado a enxofre enquanto são dilacerados por vermes, nada mais
justo e coerente do que caçar, matar e torturar hereges agora mesmo, raciocinavam
queima dos heréticos com fogo temporal em vista do fogo eterno que
1678
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1679
bons.1096
criminoso numa cadeira elétrica que atue com seu choque elétrico
Não à toa, o inferno era descrito com todos os requintes de crueldade a que
tinham direito, como se sentissem um verdadeiro prazer nas torturas mais bestiais
1096
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 231.
1097
ibid.
1679
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1680
inferno.1098
fumaça ardente que lhes fere as narinas, e outros mais correm desnudos de hordas
inferno como um lugar em que “os condenados se nutriam de sua própria carne e
onde uma única faísca de fogo era mais dolorosa do que mil anos passados por
1098
CROCKETT, William V. “The Metaphorical View”. In: Four Views of Hell (ed. William Crockett). Grand
Rapids: Zondervan, 1992, p. 46-47.
1099
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 188.
1100
LINDBERG, Carter. Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 56.
1680
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1681
inferno não só como eternas, mas com a máxima brutalidade possível, é porque isso
retratava com exatidão o ódio que sentiam a todo aquele que não compartilhava
seus dogmas de fé, numa época marcada fortemente pela intolerância e tirania. A
Bacchiocchi:
ideias teológicas são sujeitas a uma crítica ética e racional que proíbe
Mesmo em pleno século XX, uma das imagens do inferno mais famosas e
bem aceitas pelos católicos até os dias de hoje retrata fielmente a visão medieval
1101
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 211.
1681
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1682
do inferno. Trata-se das supostas visões de Nossa Senhora de Fátima descritas pela
foi um momento, e graças à nossa boa Mãe do céu, que antes nos
tinha prevenido com a promessa de nos levar para o céu (na primeira
pavor.1102
oficialmente em 1930, razão por que são aceitas até hoje por todo o mundo católico
difícil imaginar como alguém que realmente acredita nesse tipo de inferno consiga
ter um único segundo de paz nesta vida, e isso explica por que durante tanto tempo
1102
Disponível em: <https://www.novaesengenharia.com.br/noticia/282/nossa-senhora-do-rosario-de-
fatima--rogai-por-nos>. Acesso em: 10/03/2022.
1682
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1683
outra coisa senão em caçar hereges, bruxas e qualquer material que pudesse
apóstatas depois da morte – raciocinavam eles –, nada mais justo do que obrigar
tormento eterno não esteve presente somente nos círculos católicos dos séculos
eloquente deles foi Jonathan Edwards (1703-1758), que descrevia o inferno como
uma fornalha crepitante de líquido incandescente que enche tanto o corpo quanto
a alma dos pecadores1103. Como você pode notar, sua concepção de inferno não
1103
ibid, p. 188.
1104
GERSTNER, John. Jonathan Edwards on Heaven and Hell. Grand Rapids: Baker Book House, 1980, p.
56.
1683
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1684
Sua pregação mais famosa, “Pecadores nas mãos de um Deus irado”, é até
menciona o inferno 51 vezes (mais de 4 vezes o tanto que a Bíblia inteira menciona
o Geena), além de muitas outras menções ao diabo, aos tormentos e à ira de Deus.
Nela, Deus é apresentado como um velho tirano cheio de ódio e cólera diabólica
contra esses vermes chamados humanos, pelos quais Ele não sente nada além de
queima como fogo. Ele olha para vocês como não sendo dignos de
outra coisa senão ser atirados no fogo. (...) E será uma surpresa, se
muito pouco tempo, até mesmo antes de o ano terminar. E não será
1684
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1685
insetos nojentos aos quais Ele abomina, para fazer questão de atormentá-los para
sempre em vez de simplesmente nunca tê-los criado. Mais difícil ainda é conciliar
esse deus sádico e diabólico com o Deus da Bíblia, que amou de tal maneira esses
“vermes” que entregou seu filho unigênito para dar-lhes uma vida eterna ao seu
lado (Jo 3:16)1106. Paulo diz que “pelo homem bom talvez alguém tenha coragem de
morrer, mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor
quando ainda éramos pecadores” (Rm 5:7-8). O próprio Paulo, que teve parte no
assassinato de Estêvão (At 7:58), se considerava o pior dos pecadores, por quem
Ele diz enfaticamente que Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e
amaldiçoou seus algozes, mas orou para que Deus os perdoasse (Lc 23:34). Ele disse
que se amamos apenas os que nos amam, não estaremos fazendo mais do que os
pagãos também fazem. Por isso devemos ir além, amando até os nossos inimigos e
aqueles que nos perseguem (Mt 5:43-47). Difícil pensar em um Deus que exige a
meros mortais limitados e falhos aquilo que nem Ele próprio coloca em prática, uma
vez que, para Edwards, não há em Deus nada além de ódio e repugnância por esses
“insetos nojentos” aos quais Ele anseia jogar o quanto antes no fogo do inferno para
1105
EDWARDS, Jonathan. Pecadores nas mãos de um Deus irado. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.
1106
Talvez não tão difícil assim para Edwards, um calvinista que acreditava que o “mundo” aqui se referia
apenas aos eleitos.
1685
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1686
serem torturados por toda a eternidade. Um deus que não se difere em nada do
Nessa época, dizer que “Deus ama o pecador, mas odeia o pecado”, seria
repudiado como um escândalo, assim como simplesmente dizer “Deus é amor” (se
que falam da ira de Deus, preferencialmente aqueles do AT, eram realçados, porque
uma época de insensibilidade e frieza exigia uma teologia que lhe fosse compatível.
todas as tuas veias como caminhos sobre o qual transitará a dor, todo
nervo uma corda em que o diabo para sempre tocará sua diabólica
nem que para isso fosse preciso transformar o inferno numa Disneylândia do
capeta.
1107
KUEHNER, Fred Carl. “Heaven or Hell?”. In: Fundamentals of the Faith (ed. Carl F. H. Henry). Grand
Rapids: Baker Book House, 1975, p. 239.
1108
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 189.
1686
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1687
os pecadores, na época a moda era usar o artifício inverso com a mesma finalidade,
mesmo entre os pregadores imortalistas mais convictos. O que antes era útil para
controlar as massas, hoje é visto com horror e assombro, e serviria apenas para
sua reticência [em pregar sobre o inferno] não é tanto devido à falta
níveis de finesse. Algo dentro deles lhes diz, talvez numa escala
instintiva, que o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo não é o tipo
inferno.1109
1109
PINNOCK, Clark R. "Response to John E Walvoord". In: Four Views on Hell (ed. William Crockett). Grand
Rapids: Zondervan, 1992, p. 39.
1687
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1688
um sofrimento físico. Billy Graham, por exemplo, confessou que “tenho muitas
de anseio por Deus, de ter comunhão com Deus, um fogo que nunca será
como um lugar de tormento físico evitam tocar no assunto, conscientes de que tal
visão dificilmente pode ser conciliada com o caráter de Deus manifesto nas
Escrituras.
“Argumento emocional” é inválido? – Talvez você tenha lido tudo isso, mas
ignorado sumariamente cada palavra deste capítulo usando uma objeção muito
comum quando tocamos neste assunto com um imortalista: “Você está usando um
argumento emocional!”, dizem eles. Sim, estou. Quando alguém aponta os horrores
Auschwitz sem usar emoção ou falar ao coração. O holismo bíblico implica que
1110
GRAHAM, Billy. “There is a Real Hell”. Decision 25. jul./ago. 1984, p. 2.
1688
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1689
tormento eterno, ainda que isso apele às emoções. A ideia de que é preciso
sociopata.
para condenar aberrações morais sem deixar de ser racional por isso. Quem
psicopata. O psicopata não sente empatia ou remorso, por isso não se sensibiliza
com a dor alheia. Como provar a um psicopata que coisas como matar e estuprar
são erradas, sem usar a “emoção” em nenhuma medida? Como convencê-lo de que
ao sofrimento?
A lei de consciência moral – A única razão por que dizemos que coisas como
matar e estuprar são erradas é porque temos impregnado em nossa mente uma
consciência moral que objetivamente nos diz que essas coisas são erradas, porque
todos os seres humanos. É este senso de moralidade que nos causa repulsa a coisas
inferno. E o que faz disso um argumento ainda mais forte contra o inferno é que
essa lei moral foi implantada em nós pelo próprio Deus, porque reflete o Seu
caráter perfeito.
1689
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1690
consciência, que é manifestação da lei moral. (...) Essa lei moral deve
ter uma fonte mais elevada que nós mesmos, porque ela é uma
infinito amor.1111
Paulo também escreveu sobre essa lei moral nos seguintes termos:
“Porque não são os que ouvem a lei que são justos aos olhos de Deus; mas os
que obedecem à lei, estes serão declarados justos. De fato, quando os gentios,
que não têm a lei, praticam naturalmente o que ela ordena, tornam-se lei
para si mesmos, embora não possuam a lei; pois mostram que as exigências
da lei estão gravadas em seus corações. Disso dão testemunho também a
1111
GEISLER, Norman; TUREK, Frank. Não tenho fé suficiente para ser ateu. São Paulo: Vida, 2006, p. 145.
1690
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1691
Os judeus tinham uma lei escrita para cumprir, mas e quanto àqueles que
não tinham a lei? Paulo diz que eles também estavam debaixo de uma lei, mas uma
lei escrita em seus corações, sendo testemunha disso a nossa consciência, que ora
nos acusa, e ora nos defende. Em outras palavras, um pagão que não conhecia os
dez mandamentos também sabia que coisas como matar e roubar são erradas,
porque sua própria consciência lhe apontava isso. É por isso que as leis de todos os
países do mundo, por mais diferentes que sejam e com todas as suas muitas
da história.
Ainda que frequentemente leis como essas não sejam cumpridas, todos sabem que
essas práticas são erradas, não porque uma lei criada por homens diz isso, mas
leis escritas (como em tribos indígenas). Paulo diz que essa lei moral foi implantada
em nossos corações pelo próprio Deus, razão por que deve necessariamente refletir
o caráter dEle (a não ser que Deus colocasse em nós uma lei moral que se opõe ao
É por isso que logo após Jesus dizer que não deveríamos amar apenas os
perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês” (Mt 5:48). Que sentido haveria em
dizer para ser perfeito como o Pai, se o padrão de moralidade do Pai não nos tivesse
sido revelado de nenhuma maneira? Isso seria o mesmo que dizer para buscar ser
perfeito sem saber o que é ser perfeito, já que a moralidade de Deus seria obscura
1691
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1692
e incognoscível. Neste caso, Jesus teria dito para sermos algo que não sabemos o
corresponde exatamente à lei moral que Ele implantou em nós, faz todo o sentido
o padrão de moralidade divina não fosse conhecido. Neste caso, o que seria o
poderiam evitar em absoluto, bem como todos os estupros de crianças que teriam
sido determinados desde antes da fundação do mundo pelo próprio Deus. Se isso
é ser “amor”, então “amor” pode ser qualquer coisa, desde os atos mais cruéis que
a mente humana é capaz de conceber. Dizer que Deus é amor seria uma afirmação
vaga, vazia e inútil, se o conceito de amor referente a Deus não fosse o mesmo que
refuta a ideia calvinista das “duas faces de Deus”, como se tudo o que Deus fizesse
fosse moral pela simples razão de que Deus fez. Por exemplo, todos sabemos que
Deus não mente, mas por que Ele não mente? Muitos calvinistas respondem a isso
dizendo que Ele não mente porque “não quer” mentir, mas poderia mentir caso
quisesse (e neste caso a mentira seria moralmente justificável, por ter vindo da parte
“Em esperança da vida eterna, a qual Deus, que não pode mentir, prometeu
antes dos tempos dos séculos” (Tito 1:2)
1692
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1693
“Para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta,
Deus não mente porque Ele não pode, não porque Ele não quer. Em outras
palavras, é impossível que Deus contrarie o seu padrão perfeito de moral, e esse
meio da lei não-escrita, a da nossa consciência que nos diz o que é certo e o que é
errado à parte de qualquer lei. É essa lei de consciência moral que nos diz que certas
mesmo), o que poderia ser entendido como uma opinião enviesada, deixemos que
Deus, que fazem uma confissão impressionante: “Nós certamente não gostamos
daquilo que a Bíblia diz sobre o inferno. Gostaríamos que não fosse verdade”1112.
Você precisa ler isso de novo (e em vermelho): “Nós certamente não gostamos
daquilo que a Bíblia diz sobre o inferno. Gostaríamos que não fosse verdade”.
publicamente que gostaria que uma doutrina da Bíblia não fosse verdade, essa
1112
ibid, p. 285.
1693
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1694
doutrina deve ser a coisa mais repulsiva possível. O também teólogo imortalista
que ele reconhece que não “aprecia” a ideia. E para citar um autor brasileiro, Fabio
Blanco reconhece:
realidade.1114
1113
MORRIS, Leon. “The Dreadful Harvest”. Christianity Today. 27 mai. 1991, p. 34.
1114
BLANCO, Fabio. Rob Bell e a eternidade do Inferno. Disponível em:
<http://www.fabioblanco.com.br/rob-bell-e-a-eternidade-do-inferno>. Acesso em: 04/08/2020.
1694
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1695
nos é revelado, existe, como algo sem fim, portador de penas sem fim.
inferno de tormento eterno é repulsivo tanto à razão quanto às emoções, mas como
foi que eles descobriram que o inferno é «uma afronta à percepção natural» e que
«parece cruel demais, mesmo em relação aos homens mais pecadores»? A resposta
não pode ser outra senão a própria consciência moral que Deus implantou em nós.
Se é verdade que a nossa consciência sabe o que é bom e mau através da lei
moral que Deus colocou em nós e que reflete o Seu caráter perfeito, isso significa
que aquilo que sabemos “instintivamente” ser mau são coisas que o próprio Deus
jamais faria, da mesma forma que a mentira é má e é impossível que Deus minta.
eterno se Ele condenasse alguém a um tormento eterno, o que seria o mesmo que
1115
ibid.
1116
GEISLER, Norman; TUREK, Frank. Não tenho fé suficiente para ser ateu. São Paulo: Vida, 2006, p. 145.
1695
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1696
Isso não significa que Deus não tenha poder ou autoridade para infligir um
tormento eterno caso quisesse, mas Ele jamais agiria contrariamente ao seu padrão
atrocidades que só não se igualam ao tormento eterno porque não duram para
sempre.
numa coisa caricata que beira o ridículo, tornando o Cristianismo um alvo fácil dos
1696
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1697
eterna, mas viver no céu, já que viver por viver todo mundo viverá em algum lugar,
mesmo que seja no quinto dos infernos. Assim, o convite de Cristo à salvação deixa
de ser uma oferta para escapar do destino natural (a morte) e viver para sempre, e
passa a ser encarado como uma ameaça: ou você aceita Jesus, ou será atormentado
pelos séculos dos séculos, em um inferno criado pelo próprio Deus – o que na
você não me visitar, vou te torturar para sempre, entendeu bem?”. Você
provavelmente iria me fazer a visita, mas não porque gosta de mim. Isso não seria
nem mesmo um convite, mas uma ameaça. Agora veja como a coisa muda se eu
me visitar você beberia dessa “fonte da juventude” e jamais morreria. Agora não é
mais uma ameaça, pois a morte é seu destino natural, e viver eternamente é que é
uma recompensa. Agora sim nós temos um convite, e não uma intimidação.
recusarão o convite. Mas o convite foi feito, ele é sincero e é real, e quem aceitá-lo
está em conceber a imortalidade não como uma possessão natural, mas como um
prêmio, um dom, uma dádiva divina, como disse Paulo (Rm 6:23). Sem compreender
1697
O tormento eterno é compatível com um Deus de amor? 1698
caricata e ridícula.
diabólico que retrata a Deus como um ser tão perverso quanto o diabo, e solta a
língua dos pregadores para pregar o juízo de Deus sobre os ímpios, sem medo de
1698
1699
alguns, imagine dizer que ninguém vai morar no céu. Um crente mais tradicional
Bíblia nunca diz que vamos morar no céu, o choque talvez tenha sido maior do que
Minha primeira reação foi procurar por todas as referências bíblicas a “céu”
para ver se encontrava qualquer coisa que fundamentasse a crendice popular, mas,
para a minha desilusão, tive que me conformar com o total de zero textos. Chega a
ser irônico que uma das crenças mais solidamente estabelecidas no imaginário
último do Apocalipse. Você pode fazer a experiência por si mesmo: tente lembrar
de um versículo que diga que passaremos a eternidade no céu, peça a ajuda dos
O que você verá não vai sair da sua memória tão cedo: eles vão bufar, se
1699
Vida eterna: no céu ou na terra? 1700
um pouco mais razoável é que se lembre dos textos que, embora não falem de ir
pro céu, falam de herdar o “Reino dos céus”, o que para muitos leigos se trata da
mesma coisa.
aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus” (Mt 5:3). O
problema é que, apenas dois versos após dizer isso, Jesus também disse que “bem-
aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança” (Mt 5:5). Será que
Jesus vai mandar os pobres em espírito para o céu e deixar os humildes na terra?
Pouco provável. Para entendermos o que Jesus queria dizer por “Reino dos céus”,
precisamos voltar aos vários textos onde é dito que “o Reino dos céus está próximo”
(Mt 3:2, 4:7, 10:7). Você só diz que algo está “próximo” se ele está vindo. Se um
amigo está chegando à sua casa, você diz que “ele está próximo”.
Mas em que sentido o Reino dos céus estaria próximo? Obviamente, Jesus
não podia estar falando da morte individual de cada um, o que seria relativo a cada
caso em particular e não uma verdade universal. Jesus não falava de nós irmos pro
Reino dos céus, mas do Reino dos céus vir até nós. É o Reino dos céus que toma a
ação, e nós os agentes passivos. Mas de que forma o Reino dos céus vem? Há duas
respostas pra isso. A primeira é num aspecto espiritual, onde o Reino é identificado
com o próprio Rei, que estava entre eles. É neste sentido que Jesus diz que “o Reino
1700
Vida eterna: no céu ou na terra? 1701
Mas este certamente não era o mesmo sentido dos textos que falam do
Reino dos céus estar “próximo”, porque algo que está próximo é algo que ainda não
chegou (ou seja, que não estava já entre eles). E é aí que entra o conceito do Reino
Reino literal na terra com tanta segurança que perguntaram a Jesus se era naquela
época que isso se concretizaria (e não “se” isso aconteceria), e Jesus, em vez de
corrigir a ignorância deles e dizer que o único Reino que existia era o espiritual,
respondeu apenas que não lhes competia saber o tempo em que isso ocorreria:
“Então os que estavam reunidos lhe perguntaram: ‘Senhor, é neste tempo que
vais restaurar o reino a Israel?’. Ele lhes respondeu: ‘Não lhes compete saber
Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão
minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os
Isso indica que a crença dos discípulos estava certa, apesar deles não serem
“Então vi um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira
terra tinham passado; e o mar já não existia. Vi a cidade santa, a nova
Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, preparada como uma noiva
adornada para o seu marido. Ouvi uma forte voz que vinha do trono e dizia:
‘Agora o tabernáculo de Deus está com os homens, com os quais ele viverá.
1701
Vida eterna: no céu ou na terra? 1702
Eles serão os seus povos; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus’”
(Apocalipse 21:1-3)
“Que descia do céu”, diz o texto. Isso nos ajuda a entender por que Jesus
disse que os humildes herdariam o Reino dos céus, e apenas dois versos depois diz
para um lugar e os pobres de espírito para outro, porque o próprio Reino celestial
descerá à terra para se tornar o lar eterno dos salvos. Isso explica por que herdar o
Reino dos céus é herdar a terra, e não o próprio céu. Também explica o total de zero
Alguém que pense que o texto acima é apenas linguagem simbólica para
representar qualquer outra coisa sem nenhuma relação com um Reino que
à terra. Um exemplo é quando Jesus diz que “não beberei outra vez do fruto da
videira até que venha o Reino de Deus” (Lc 22:18). Note que, embora o Reino
invisível já tivesse chegado na pessoa de Jesus (Lc 11:20, 17:21), ele também fala de
um Reino que ainda viria, com o verbo erchomai (vir) relacionado ao futuro.
Esse Reino evidentemente não é o Reino invisível que já tinha chegado, mas
o Reino visível que chegaria quando Jesus voltasse e estabelecesse seu Reino físico
na terra. É esse Reino que José de Arimateia esperava chegar (Mc 15:43), e é esse
Reino que nós oramos no Pai Nosso quando pedimos “que venha o teu Reino” (Mt
6:10). Foi por isso que, ao chegar em Jerusalém, Jesus teve que “contar-lhes uma
1702
Vida eterna: no céu ou na terra? 1703
(Lc 19:11).
terra, razão por que Jesus contou-lhes uma parábola onde o senhor só voltava para
acertar as contas “depois de muito tempo” (Mt 25:19). Isso não só reforça a crença
judaica no Reino visível terreno, mas também aponta o tempo em que ele vai se
parábola que ele contou com essa mesma finalidade (e também precisamente de
frequentemente às Escrituras – ou seja, ao AT, que era tudo de inspirado que existia
na época – para fundamentar seus ensinos (Mc 12:10; Jo 5:39, 7:38; Lc 4:21; Mt
26:54). Eles não nasceram num vácuo teológico, mas numa imensa e rica teologia
judaica que tinha como base os profetas e escritores sacros que os precederam. O
grande embate de Jesus com os fariseus nunca foi porque estes seguiam a Escritura
Não à toa, a expressão «está escrito» aparece quase uma centena de vezes
no NT em alusão ao AT, muitas delas por Jesus nos evangelhos. Basta lembrar que
Jesus não rebateu as tentações do diabo no deserto com suas próprias palavras,
embora fosse o filho de Deus e tivesse autoridade para tal, mas com um «está
escrito» em cada uma das tentações (Mt 4:4, 7, 10). Dito em termos simples, os
1703
Vida eterna: no céu ou na terra? 1704
apóstolos não nasceram em um vácuo cultural e teológico e Jesus não tinha por
finalidade mudar toda a crença judaica sobre a vida eterna, porque ambos bebiam
Diferente do que pensava Marcião, Jesus não veio para se opor ao Deus do
AT ou mudar as doutrinas por Ele estabelecidas. Ele mesmo advertiu que “não
pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir” (Mt 5:17).
Assim, para saber no que Jesus cria, basta saber o que a Escritura da época ensinava.
E quando vamos ao AT, não só vemos um silêncio sepulcral quanto a irmos morar
no céu, como nos deparamos com uma imensidão de textos perfeitamente claros
➢ “Um pouco de tempo, e os ímpios não mais existirão; por mais que os
➢ “Aqueles que o Senhor abençoa receberão a terra por herança, mas os que
➢ “Os justos herdarão a terra e nela habitarão para sempre” (Salmos 37:29)
➢ “Espere no Senhor e siga a sua vontade. Ele o exaltará, dando-lhe a terra por
1704
Vida eterna: no céu ou na terra? 1705
➢ “Qual é o homem que teme ao Senhor? Ele o ensinará no caminho que deve
(Salmos 25:12-13)
(Provérbios 2:21)
➢ “O justo nunca jamais será abalado, mas os perversos não habitarão a terra”
(Provérbios 10:30)
➢ “O homem que faz de mim o seu refúgio receberá a terra por herança e
Alguém poderia dizer que esses textos não falam da terra como a herança
eterna dos salvos, mas meramente de uma porção de terra (ou mais
especificamente da terra de Israel) que seria ocupada por pessoas justas nesta vida.
Mas se este fosse o sentido pretendido nesses textos, a consequência seria que a
Bíblia mente e ilude com falsas promessas, uma vez que Israel (ou qualquer outro
território no mapa) jamais foi ocupado apenas por pessoas justas. Pelo contrário,
todos conhecem a história do profeta Elias, selvagemente caçado em Israel por sua
fidelidade ao Senhor numa época em que apenas sete mil joelhos de toda a nação
habitaram a terra, qualquer que seja a definição de “terra”. E antes que alguém diga
que os textos não dizem que apenas os justos herdarão a terra, considere o
1705
Vida eterna: no céu ou na terra? 1706
contexto dessas passagens, como a que diz que “os justos habitarão na terra, e os
infiéis serão arrancados” (Pv 2:21-22). O único propósito em dizer que os justos
Portanto, se os textos falam de uma terra herdada apenas por pessoas fiéis
e justas e isso nunca aconteceu na época desses textos ou depois, só restam duas
futuro ainda distante e difícil de se imaginar onde, ainda antes da volta de Jesus,
todo mundo que habitará na terra será justo e temente a Deus. O problema com
essa segunda hipótese não é só por ser inverossímil e impossível dada a natureza
multidão de textos que retratam vividamente um fim dos tempos muito diferente
disso.
odiarão uns aos outros, e numerosos falsos profetas surgirão e enganarão a muitos”
(Mt 24:10-11), que “devido ao aumento da maldade, o amor de muitos esfriará” (Mt
24:12) e que quando voltasse não encontraria fé na terra (Lc 18:8). Pedro disse que
paixões” (2Pe 3:3), e Paulo acentuou que “nos últimos dias sobrevirão tempos
terríveis” (2Tm 3:1), porque “os homens serão egoístas, avarentos, presunçosos,
arrogantes, blasfemos, desobedientes aos pais, ingratos, ímpios, sem amor pela
1706
Vida eterna: no céu ou na terra? 1707
bem, traidores, precipitados, soberbos, mais amantes dos prazeres do que amigos
de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando o seu poder” (2Tm 3:2-5).
Este certamente não parece ser o cenário onde apenas justos herdam a terra
e vivem alegremente nela. Mais do que isso, se a promessa que os textos bíblicos
se referem dissesse respeito a um futuro distante que nenhum dos leitores originais
envolvendo apenas pessoas que eles não conheciam e jamais saberiam quem é,
essa promessa seria a mais inútil possível para aqueles que viviam naquela época.
Ela não serviria nem de motivação para fazer o bem, nem como uma ameaça real a
Seria como alguém dizer para você aguentar firme os sofrimentos e fazer o
que é certo, porque as pessoas que estiverem fazendo o bem daqui a 4 mil anos
serão recompensadas com bênçãos terrenas (mas você não, porque a promessa só
vale pra quem viver daqui 4 mil anos). Com certeza uma promessa desse tipo não
surtiria qualquer efeito nos receptores originais a não ser indiferença ou indignação.
de na época deles os ímpios povoarem a terra por toda a parte. E a razão por que
as épocas, que um dia ressuscitarão e terão a terra só para eles. Isso inclui todos os
da época de Isaías, de Provérbios e dos Salmos que dizem que os justos herdarão a
terra.
É por isso que o salmista diz que “os justos herdarão a terra e nela habitarão
para sempre” (Sl 37:29). Ele não disse que os justos “habitarão no céu” ou que
“herdarão a terra por algum tempo e depois se mudarão para o céu”, mas que
1707
Vida eterna: no céu ou na terra? 1708
habitarão na terra para sempre. É impossível pensar como ele poderia ter sido mais
defendendo que iremos passar a eternidade no céu diante de um texto como esse.
textos acima da mesma forma a fim de evitar que sejam interpretados do modo
pertencente a Canaã que eles já ocupavam na época em que esses textos foram
escritos. Há mais furos nessa teoria do que num queijo suíço: ela não explica por
que o verbo “herdar” está no futuro (se eles já estavam na terra que Deus lhes
prometeu), nem por que a promessa teria falhado (já que eles não permaneceram
mais justos), nem por que a promessa se destina especificamente aos justos, se a
se apegam por vezes ao texto que fala sobre “habitar nas alturas” como a prova de
“Aquele que anda corretamente e fala o que é reto, que recusa o lucro
injusto, cuja mão não aceita suborno, que tapa os ouvidos para as tramas de
1117
“A Sentinela”, 1º de janeiro de 1986, p. 31.
1708
Vida eterna: no céu ou na terra? 1709
que habitará nas alturas; seu refúgio será a fortaleza das rochas; terá
suprimento de pão, e água não lhe faltará. Seus olhos verão o rei em seu
esplendor e vislumbrarão o território em toda a sua extensão”
(Isaías 33:15-17)
Como vemos, a própria sequência explica qual lugar é esse nas “alturas”,
quando diz que “seu refúgio será a fortaleza das rochas” (v. 16), ou seja, lugares altos
na terra, a não ser que o céu também tenha rochas. Mais do que isso, o texto
prossegue dizendo que «terá suprimento de pão, e água não lhe faltará», embora
uma alma incorpórea não se alimente de pão nem beba água. O verso 17 fala sobre
vislumbrar o território em toda a sua extensão. Que território seria esse? O céu?
“Olhe para Sião, a cidade das nossas festas; seus olhos verão Jerusalém,
morada pacífica, tenda que não será removida; suas estacas jamais serão
Um texto-chave que mostra com clareza onde Jesus estabelecerá Seu reino
“‘Dias virão’, declara o Senhor, ‘em que cumprirei a promessa que fiz à
época farei brotar um Renovo justo da linhagem de Davi; ele fará o que é
justo e certo na terra. Naqueles dias Judá será salva e Jerusalém viverá em
segurança, e este é o nome pelo qual ela será chamada: O Senhor é a Nossa
1709
Vida eterna: no céu ou na terra? 1710
um Renovo justo da linhagem de Davi», que sabemos se tratar de Jesus. Mas não se
referia à primeira vinda de Cristo, porque diz que «naqueles dias Judá será salva e
destruída pelos romanos. Além disso, o texto diz que “Davi jamais deixará de ter um
descendente que se assente no trono de Israel” (v. 17), mas Israel nunca mais teve
um rei (já não tinha quando Jesus nasceu), muito menos uma descendência
permanente no trono. Na verdade, Israel passou quase dois mil anos sem nem
mesmo constituir uma nação, até a criação do Estado de Israel em 1948. Mesmo
depois, eles seguem sem ter um rei ou reconhecer Jesus como Rei.
Assim, é evidente que o texto não diz respeito a algo que Jesus fez em sua
estado eterno, não de algo que acontecerá na terra atual antes da volta de Jesus.
Com isso em mente, preste atenção no que diz o verso 15, que explicitamente
declara que «ele fará o que é justo e certo na terra». Deus não diz que o Renovo da
linhagem de Davi faria o que é justo e certo “no céu”, mas na terra, porque é aqui,
na terra, que ele reinará. Como já vimos que o texto não se refere à primeira vinda,
é evidente que diz respeito ao estado eterno, quando Jesus reinará conosco na
1710
Vida eterna: no céu ou na terra? 1711
o Seu santuário entre os homens, que viveriam com Ele na terra para sempre:
“O meu servo Davi será rei sobre eles, e todos eles terão um só pastor. Eles
ali para sempre, e o meu servo Davi será o seu líder para sempre. Farei uma
aliança de paz com eles; será uma aliança eterna. Eu os firmarei e os
multiplicarei, e porei o meu santuário no meio deles para sempre. Minha
morada estará com eles; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Então,
quando o meu santuário estiver entre eles para sempre, as nações saberão
Davi” (Jr 33:15), razão por que Jesus é frequentemente chamado de «filho de Davi»
no NT (Mc 10:47; Lc 18:38; Mt 1:1, 9:27, 20:30, 21:15; 2Tm 2:8; Ap 22:16). Mas note
que o texto não diz que os seus servos viveriam no céu, mas sim que viveriam “na
terra que dei ao meu servo Jacó, a terra onde os seus antepassados viveram” (v. 25).
E isso não se refere ao simples fato de morarmos hoje na terra, porque o texto segue
Observe ainda que Deus não diz que os Seus filhos viriam até Ele no céu, mas
o contrário: que Ele colocaria o Seu santuário «no meio deles para sempre», de
1711
Vida eterna: no céu ou na terra? 1712
modo que “Minha morada estará com eles” (v. 27). Não somos nós que
abandonamos a terra e vamos até Deus; é o próprio Deus que vem até nós e faz
morada em nosso meio. Isso é confirmado pelo trecho final, que diz que “as nações
saberão que eu, o Senhor, santifico Israel” (v. 28), o que indica que nações
borracha em cima de todos os textos que falam de herdar a terra – incluindo aqueles
eterno dos salvos no céu, pegando de surpresa todos os personagens bíblicos que
viveram antes de Jesus e pensavam que herdariam a terra. Se você também pensa
assim, compare o texto de Ezequiel que acabamos de ler com este do último livro
“Então vi um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira
terra tinham passado; e o mar já não existia. Vi a cidade santa, a nova
Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, preparada como uma noiva
adornada para o seu marido. Ouvi uma forte voz que vinha do trono e dizia:
‘Agora o tabernáculo de Deus está com os homens, com os quais ele viverá.
Eles serão os seus povos; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus’”
(Apocalipse 21:1-3)
1712
Vida eterna: no céu ou na terra? 1713
ambos falam da morada de Deus descendo à terra para estar com os homens, e
livro que completa a revelação do NT, pensaria que o NT está de acordo ou que se
responder a esta pergunta não é preciso ser um grande teólogo; basta ter uma
João não se opôs à revelação de Ezequiel, não mudou o local onde viveremos
para sempre nem inverteu a ordem estabelecida pelo antigo profeta. Ambos
concordam com a ideia básica de que não somos nós que fazemos morada onde
1713
Vida eterna: no céu ou na terra? 1714
Deus está para vivermos com Ele, mas Deus que faz morada onde nós estamos para
alguma coisa que se choque com essa mensagem, mas que a reforça: a descida da
«nova Jerusalém» do céu à terra, para se tornar o lar eterno dos salvos (Ap 21:2).
Mesmo essa ideia, como vimos, não era de todo estranha aos judeus. Pelo
acreditavam que o Paraíso era o mesmo Jardim do Éden do qual o homem foi
expulso originalmente (a própria palavra para “jardim” era a mesma para “paraíso”).
Este Jardim ou Paraíso teria sido preservado por Deus no céu para não ser destruído
com o resto do mundo no dilúvio, razão por que a árvore da vida, que estava no
Jardim (Gn 2:9), não foi sumariamente destruída, mas se encontra hoje no céu, de
“Este edifício [o templo] agora construído no meio de vocês não é o que foi
preparado de antemão aqui desde o momento em que tomei conselho para
fazer o Paraíso, e mostrei a Adão antes que ele pecasse. Mas quando ele
transgrediu o mandamento, foi removido dele, como também o Paraíso... e
agora, eis que o Paraíso está preservado comigo” (2º Baruque 4:3-6)
Essa é apenas uma das muitas obras judaicas da época de Jesus que
“dia do Senhor”, o que mais uma vez configura uma incrível similaridade com o
pensamento cristão, no qual a “Nova Jerusalém” desce do céu à terra para se tornar
1714
Vida eterna: no céu ou na terra? 1715
o lar eterno dos salvos ao final do milênio (Ap 21:1-3). Tudo isso demonstra que a
tradição dos judeus, pelo menos no caso em questão, era inteiramente compatível
com a visão cristã (a qual, nunca é demais lembrar, emerge de uma mentalidade
judaica).
Se a árvore da vida foi arrebatada ao céu para não ser destruída pelo dilúvio,
faz todo o sentido pensar que Deus fez o mesmo com o próprio Jardim ou Paraíso
onde ela se encontrava. Mas assim como a árvore da vida não permanecerá no céu
para sempre, que não é o seu lar natural, assim também o Jardim ou Paraíso voltará
à terra tal como no projeto original. É por isso que João narra a descida da Nova
Jerusalém à terra (Ap 21:1-3), quando então teremos novamente acesso à árvore da
vida (Ap 22:2, 14). Isso indica uma equivalência entre o Jardim/Paraíso e a Nova
O texto mais claro fora do Apocalipse que reforça a crença judaica na vinda
literal da Nova Jerusalém para a terra está em Hb 13:14, que diz que “não temos
aqui nenhuma cidade permanente, mas buscamos a que há de vir”. Note que ele
não diz simplesmente que essa cidade é “futura” no sentido de que a herdaremos
futuramente, mas sim que ela “há de vir”. O verbo aqui utilizado (mello) carrega a
ideia de expectação, de «estar prestes a»1118. A ideia aqui apresentada é que essa
cidade estava prestes a vir, o que é bem diferente de dizer que nós vamos até essa
onde não somos nós que saímos daqui para lá, mas a cidade que vem de lá para cá.
1118
#3195 da Concordância de Strong.
1715
Vida eterna: no céu ou na terra? 1716
É assim que devemos entender um texto muito usado pelos que dizem que
vamos morar no céu, o que diz que “a nossa cidade está nos céus, de onde também
esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Fp 3:20). Como vimos, a cidade
céu hoje (e também quando Paulo escrevia), mas isso de modo algum significa que
nós vamos morar no céu, porque eles acreditavam que essa cidade desceria para se
quando Paulo diz que a nossa pátria está nos céus, ele não quer dizer
que em seguida à morte iremos morar no céu. Ele está dizendo que o
são imperais – virá do céu para a terra, para mudar a condição atual e
Isso é reforçado pelo uso do termo “também” no texto, que pode ter
passado despercebido por muitos. Observe que Paulo não diz simplesmente que “a
nossa cidade está nos céus, onde esperamos o Salvador”, e sim que “nossa cidade
está nos céus, de onde também esperamos o Salvador” (Fp 3:20). Por que Paulo
somente Jesus que vem, mas também a cidade da qual Paulo fala. O “também” liga
terra. Não é apenas Jesus que virá à terra, mas também Jesus.
1119
WRIGHT, N. T. Surpreendido pela Esperança. São Paulo: Ultimato, 2020, p. 116.
1716
Vida eterna: no céu ou na terra? 1717
diferença é que os judeus achavam que o Messias faria tudo isso de uma vez só,
quando viesse à terra pela primeira vez, enquanto os cristãos acreditam em duas
segunda em glória, quando voltará como Rei e governará de fato na terra sobre o
seu povo.
Uma das evidências mais fortes de que os salvos passam o milênio na terra
e continuam aqui depois disso está no texto em que Satanás sai da sua prisão ao
santos. A pergunta que não quer calar é: onde esse confronto se passa? Vejamos o
“Quando terminarem os mil anos, Satanás será solto da sua prisão e sairá
para enganar as nações que estão nos quatro cantos da terra, Gogue e
João faz questão de ressaltar não uma, mas duas vezes no mesmo contexto
que Satanás ajuntará os ímpios dos quatro cantos da terra, os quais marcharão por
toda a superfície da terra. Então é óbvio que os ímpios ressuscitam na terra, não no
céu. Mas e os justos? Basta continuar a leitura do texto, que diz que esses ímpios
que marcham sobre a superfície da terra cercam o acampamento dos santos, o que
1717
Vida eterna: no céu ou na terra? 1718
amada» também estava na terra, não no céu ou em uma dimensão inacessível. Isso
prova que após o arrebatamento na volta de Jesus (que se dá nas nuvens do céu
levar os salvos ao céu onde Deus habita, mas preservá-los da destruição pelo fogo
Como comenta Bacchiocchi, “nas Escrituras, Cristo vem a segunda vez, não
para ajudar os santos a escaparem deste planeta, mas para transformar a terra
milênio, e não que seremos conduzidos a um plano superior onde os anjos moram.
Note ainda que parte alguma do texto diz que depois disso os salvos foram
aqui e depois zarpassem. Pelo contrário, o capítulo seguinte se inicia com a Nova
Isso concorda com o que diz o autor de Hebreus em outra parte: “Não foi a
anjos que Ele sujeitou o mundo que há de vir, a respeito do qual estamos falando”
(Hb 2:5). A palavra usada no grego e aqui traduzida como “mundo” é oikoumene,
1120
BACCHIOCCHI, Samuele. Dualismo e holismo no exame de consciência após a morte. Disponível em:
<http://www.c-224.com/1-DDD-1.html>. Acesso em: 02/03/2022.
1718
Vida eterna: no céu ou na terra? 1719
NT, e em todas elas, sem exceção, designa esta terra, habitada por seres
é perfeitamente lógico concluir que o autor de Hebreus não falava do céu, mas da
O domínio sobre a terra – O próprio texto diz que não foi a anjos que Deus
sujeitou este «mundo que há de vir», mas a nós, os salvos. Isso corrobora o fato de
que ele não estava falando do céu, mas da própria terra em seu estado restaurado
futuro, por ocasião da “regeneração de todas as coisas” (Mt 19:28). O uso do termo
“sujeitou” indica que nós teremos o domínio sobre a terra como Adão tinha antes
do pecado, quando este domínio foi transferido a Satanás (Lc 4:6). Isso não faria o
menor sentido se nós nem mesmo estivéssemos habitando na terra, mas vivendo
em uma outra dimensão, no céu, região na qual nem mesmo teríamos o domínio,
já que parte alguma da Bíblia afirma que Deus nos sujeitou ou nos sujeitará o céu.
Senhor, mas a terra ele a confiou ao homem” (Sl 115:16). A terra não é apenas um
lugar onde o homem “está”, mas o lugar confiado a ele. O hebraico nathan aqui
alguma coisa. Deus não colocou o homem na terra por fatalidade ou sorte do
1121
#3625 da Concordância de Strong.
1122
Você pode ver uma relação dessas ocorrências em: <https://biblehub.com/greek/strongs_3625.htm>.
Acesso em: 14/12/2021.
1123
#5414 da Concordância de Strong.
1719
Vida eterna: no céu ou na terra? 1720
não simplesmente para “viver” aqui. Por isso não é dito que Deus colocou Adão no
Éden apenas para aproveitar a paisagem, mas “para o lavrar e o guardar” (Gn 2:15).
ainda mais irracional pensar que Ele o transferirá para o céu como uma morada
permanente, o que vai contra o próprio propósito pelo qual estamos aqui. É como
se Deus tivesse confiado a terra ao homem, mas então mudasse de ideia e decidisse
mandar todo mundo pro céu, deixando a terra vazia e inabitada, sem ter quem a
com o Deus da Bíblia, que é consistente com os seus planos e propósitos. Por essa
razão, assim como texto nenhum diz que os anjos vão abandonar sua morada
celestial onde foram criados, texto nenhum diz que iremos abandonar a morada
A ideia de que Deus criou a terra para deixá-la vazia e inabitada também se
“Pois assim diz o Senhor, que criou os céus, ele é Deus; que moldou a terra e
a fez, ele a fundou; ele não a criou para estar vazia, mas a formou para ser
Embora o próprio Deus diga que não criou a terra para estar vazia, mas para
1720
Vida eterna: no céu ou na terra? 1721
texto, é como se Deus na verdade estivesse dizendo que não criou a terra para estar
vazia, mas ela ficará vazia para sempre; que a formou para ser habitada, mas só por
todo o plano original é subvertido em prol de mandar todo mundo pra outro lugar
nova criação como uma subversão total dos padrões da criação original de Deus,
original, é evidente que o plano divino não consiste em abortar o projeto e mandar
os salvos pro céu, mas em restaurar a humanidade numa terra sem a mancha do
Quando Deus criou Adão, Ele não o criou para a morte, mas para que vivesse
para sempre desde que se mantivesse obediente (Gn 2:17). Se Adão se mantivesse
pecado não fez Deus rever todo o plano e recomeçar de novo do zero, como se
tivesse desistido da ideia da vida eterna na terra e preferido dar uma carona pro
céu. O propósito de Deus enviar Seu filho unigênito como resgate pelo pecado e
1124
#3824 da Concordância de Strong.
1721
Vida eterna: no céu ou na terra? 1722
pudesse voltar a ser como no princípio, como as coisas foram feitas pra ser. Não se
T. Wright:
É por isso que até mesmo a natureza aguarda a sua redenção, isto é, sua
restauração ao estado original perfeito no qual fora criada. É isso o que Paulo ensina
quando escreve:
sejam revelados. Pois ela foi submetida à futilidade, não pela sua própria
A “natureza” aqui não se refere aos salvos, porque eles já são mencionados
na parte dos “filhos de Deus”. Ela se refere, antes, ao próprio planeta e seres
morte não só para os seres humanos, mas para a própria natureza, que entrou em
estado decadente. Na nova terra, não haverá mais morte de animais, árvores,
1125
WRIGHT, N. T. Surpreendido pela Esperança. São Paulo: Ultimato, 2020, p. 123.
1722
Vida eterna: no céu ou na terra? 1723
plantas ou seres de qualquer tipo, assim como não havia morte antes da Queda. É
por isso que Paulo diz que será a libertação da própria natureza, que voltará ao seu
estado de glória original. Isso indica que animais, árvores e plantas continuarão
existindo na nova terra, pois sua aniquilação eterna não seria sua libertação.
libertação dos filhos de Deus (v. 21), o que significa que a libertação de um está
homem, mas de toda a criação ao seu estado primitivo. Isso contrasta fortemente
com a ideia de que Deus abandonará o “projeto Terra” e levará todo mundo pro
céu, deixando o planeta vazio, inabitado e entregue à própria sorte, como quando
É curioso notar que a influência dualista em nosso meio é tão forte que ela
se estende até mesmo aos animais. Você já deve ter lido e ouvido muitas vezes (e
talvez até mesmo se perguntado) a famosa dúvida que atormenta tanta gente: se
os animais vão pro céu. Numa busca simples no Google por “os animais vão para o
quase não ouve falar de “animais na nova terra”, porque o platonismo não só
levar de uma só vez tudo e todos daqui para o céu. Nem mesmo os animais são
poupados.
Essa repulsa ao nosso próprio lar é uma das consequências mais nocivas,
1723
Vida eterna: no céu ou na terra? 1724
nos parece muito mais atraente, nos sentimos livres para danificar o planeta e
maltratar os seres que nele habitam, que é como a humanidade tem agido desde
muito tempo. Em vez de cuidar da natureza por ter a consciência de que este é o
nosso único lar, ajudamos a destruir o planeta e a destratar aquilo que Deus nos
pensar na terra como apenas um “lugar de transição” para o nosso “verdadeiro lar”,
O hebraico usa o termo shamar no texto que diz que Deus colocou o homem
no jardim para cuidar dele (Gn 2:15). Shamar significa primariamente «guardar,
dever, não uma orientação. Quando desmatamos as florestas, jogamos lixo na rua,
prejudicando a nós mesmos, mas quebrando uma ordenança divina. O que fez com
que essa noção bíblica se perdesse e que tratássemos isso como uma mera questão
de ordem social foi justamente a mentalidade dualista, que nos faz pensar que
podemos tratar a terra como quisermos, já que Deus a deixará largada às traças e
não somente a forma como lidamos com a natureza em si, mas também com os
1126
#8104 da Concordância de Strong.
1724
Vida eterna: no céu ou na terra? 1725
conosco por mil anos sobre a terra –, quanto mais seria em relação ao estado
de Deus. Essa crença não leva a uma tolerância passiva diante das
1127
OLSON, Roger E. Why I am a premillennialist (and you should be, too). Disponível em:
<https://www.patheos.com/blogs/rogereolson/2010/09/why-i-am-a-premillennialist-and-you-should-
be-too>. Acesso em: 15/01/2022.
1725
Vida eterna: no céu ou na terra? 1726
muitos textos fora de contexto, que não dizem nada daquilo que pretendem seus
ponto de poder ser usado em favor da tradição é interpretado como uma “prova”
de que vamos morar no céu. Talvez o caso mais emblemático seja o texto que diz
que “olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que
Deus preparou para aqueles que o amam” (1Co 2:9), que apesar de nem sequer
crucificado o Senhor da glória. Todavia, como está escrito: ‘Olho nenhum viu,
ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para
aqueles que o amam’; mas Deus o revelou a nós por meio do Espírito. O
Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as coisas mais profundas de Deus”
1128
WRIGHT, N. T. Surpreendido pela Esperança. São Paulo: Ultimato, 2020, p. 45.
1726
Vida eterna: no céu ou na terra? 1727
Diante do contexto, qual era esse “mistério que estava oculto”? O céu? Nana-
nina-não. A prova mais forte de que o texto não tem nada a ver com o céu é que,
logo após dizer que «olhou nenhum viu» e «mente nenhuma imaginou» o que Deus
preparou, ele afirma que «Deus o revelou a nós», o que mostra que o mistério não
mais continuava oculto, mas já tinha sido revelado. É por isso que o verso 7 diz que
o mistério estava oculto, no passado (porque já não está mais). Assim, o trecho do
verso 9 diz respeito a algo que ninguém imaginava antes de Deus ter revelado, ou
seja, o plano divino de redenção (que inclui até os gentios). O trecho é uma citação
nunca tinha sido visto, nunca tinham ouvido falar, nem poderia
tão vasto; nem poderia qualquer outro poder, exceto o seu próprio,
1129
CLARKE, Adam. “Commentary on 1 Corinthians 2:9”. The Adam Clarke Commentary (1832).
1727
Vida eterna: no céu ou na terra? 1728
Outro trecho que pode ser utilizado pelos defensores da tese de que vamos
não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também
O tesouro está no céu, mas note que o texto não diz que nós vamos até o
céu usufruir desse tesouro. Pelo contrário, o próprio Senhor explicou o sentido
desse texto quando disse: “Eis que venho em breve! A minha recompensa está
comigo, e eu retribuirei a cada um de acordo com o que fez” (Ap 22:12). Em outras
nas mãos de Deus, mas Jesus nos dará quando voltar à terra e retribuir a cada um
de acordo com o que fez. Portanto, não se trata de um tesouro que nós vamos
buscar no céu, mas de um tesouro guardado no céu que Jesus nos trará quando
voltar à terra.
Finalmente, o verso mais usado para sustentar que vamos morar no céu é
“Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria
levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver” (João 14:2-3)
1728
Vida eterna: no céu ou na terra? 1729
Note, porém, que o texto não diz em parte alguma que vamos morar no céu,
apenas diz que na «casa do Pai» (que muitos entendem ser o céu, embora nem isso
esteja claro, como demonstrou Vailatti em seu debate com Elias Soares1130) há
muitos aposentos. Mesmo que se refira ao céu, o texto não diz que nós ocuparemos
esses aposentos no próprio “céu”, porque, como vimos, esses aposentos se referem
à Nova Jerusalém que descerá do céu à terra para se tornar a habitação eterna dos
salvos (Ap 21:1-3; Hb 13:14; Fp 3:20), que é quando ocuparemos essas moradas.
Observe ainda que Jesus não disse “voltarei e os levarei para esses aposentos”, mas
«voltarei e os levarei para mim». Da mesma forma, a continuação não diz “para que
vocês estejam nesses aposentos”, mas «para que vocês estejam onde eu estiver».
quando seremos levados para a presença de Cristo. A rigor, o texto nada fala sobre
quando ocuparemos essas moradas, apenas diz que estaremos com Jesus quando
ele voltar para nos receber. Esse evento se dá no arrebatamento, quando Cristo nos
levará para o seu encontro nos ares (1Ts 4:14-17). Isso leva muitos a pensarem que
se passa no próprio céu atmosférico – ou seja, ainda em nosso planeta, não fora
dele. É por isso que Paulo diz que esse encontro se dará nas nuvens, não numa outra
dimensão:
1130
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WEDCz38osWs>. Acesso em: 15/07/2022.
1729
Vida eterna: no céu ou na terra? 1730
juntamente com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E
Note que Paulo não disse que nós iremos até o céu onde Jesus está, mas
justamente o contrário, que «o próprio Senhor descerá do céu». Não somos nós
que vamos até o céu; é Cristo que desce do céu para estar conosco. Parte da
confusão deve-se ao fato de que usamos a mesma palavra “céu” para designar o
céu onde Deus habita e o céu atmosférico, coisa que não acontece em outros
idiomas, como o inglês (onde o céu como dimensão espiritual é heaven, e o céu
onde os pássaros voam é sky). É preciso entender que o céu atmosférico é parte da
terra, razão por que ninguém que anda de avião e sobe até acima das nuvens saiu
Quando Paulo diz que seremos arrebatados «nas nuvens» para o encontro
com o Senhor «nos ares», ele não está falando de um encontro numa outra
dimensão, nem significa que no céu onde Deus habita há nuvens ou oxigênio, como
no céu atmosférico. O céu que Paulo se refere é obviamente esse céu acima das
nossas cabeças, que ainda é parte da terra enquanto planeta. É por isso que, logo
após Jesus ser elevado ao céu diante dos discípulos, os anjos lhes disseram que ele
para se encontrar conosco na terra. É triste que a maioria das pessoas não
1730
Vida eterna: no céu ou na terra? 1731
constantemente traça entre a volta de Jesus e o dilúvio. Jesus comparou a sua volta
a “como foi nos dias de Noé” (Lc 17:26), cujo povo “vivia comendo, bebendo,
casando-se e sendo dado em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca.
Então veio o dilúvio e os destruiu a todos” (v. 27). Pedro também comparou a volta
de Jesus com o dilúvio quando disse que “pela água o mundo daquele tempo foi
submerso e destruído” (2Pe 3:6), e “pela mesma palavra os céus e a terra que agora
existem estão reservados para o fogo, guardados para o dia do juízo e para a
destruição dos ímpios” (v. 7). Sempre que um autor compara a volta de Jesus com
Mas por que? O principal motivo tem a ver com a magnitude do juízo divino.
Assim como o dilúvio foi um juízo sobre o mundo da época que condenou todos
últimos dias, sobre os quais será derramada a ira de Deus no período que a
antecede, chamado de a “grande tribulação” (Ap 3:10; Mt 24:21). Ambos são juízos
de caráter universal, e ambos terminam com a morte de todos os ímpios. Jesus disse
que “veio o dilúvio e os destruiu a todos” (Lc 17:27), e que “acontecerá exatamente
1131
“A Igreja na Grande Tribulação”, disponível na página dos livros:
<http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
1731
Vida eterna: no céu ou na terra? 1732
zombando e seguindo suas próprias paixões. Eles dirão: ‘O que houve com a
promessa da sua vinda? Desde que os antepassados morreram, tudo
terra, esta formada da água e pela água. E pela água o mundo daquele
tempo foi submerso e destruído. Pela mesma palavra os céus e a terra que
agora existem estão reservados para o fogo, guardados para o dia do juízo e
Pedro explica que, assim como Deus destruiu os ímpios do passado pela
água, ele destruirá os ímpios dos últimos dias pelo fogo. Mas como isso se dará? É
“Mas o dia do Senhor virá como o ladrão de noite; no qual os céus passarão
1732
Vida eterna: no céu ou na terra? 1733
O céu será «desfeito pelo fogo», os elementos «se derreterão pelo calor» e a
terra e tudo o que nela há «queimará», o que evidentemente implica numa grande
destruição massiva pelo fogo. Não é o caso aqui de especular o que provoca essa
destruição, se um meteoro, uma bomba nuclear ou o que quer que seja (de fato,
candidatos é o que não falta). O fato concreto que nos importa é que a superfície
da terra será destruída com fogo assim como na época de Noé foi destruída pela
água. Isso explica por que os salvos precisam ser arrebatados nos ares, mas sem sair
Aqui temos outra simetria impressionante com o dilúvio: Noé e sua família
não precisaram deixar o planeta nem foram arrebatados para uma outra dimensão
a fim de escapar do dilúvio, mas foram preservados vivos acima das águas,
preservados a salvo acima dela (mas ainda na atmosfera da terra). Noé foi
preservado acima das águas (mas não fora da Terra), e nós seremos preservados
salvação foi a arca, na volta de Jesus o meio de condenação será o fogo e o meio de
pousou em terra firme, quando o fogo baixar a Igreja voltará à terra com Cristo para
o Reino milenar e o estado eterno. Isso explica por que o arrebatamento é no céu
atmosférico, não no céu onde Deus habita. A intenção não é nos levar para uma
1733
Vida eterna: no céu ou na terra? 1734
outra dimensão e esquecer este planeta para sempre, mas nos preservar da
Por falar em nova terra, temos aqui uma outra correspondência entre a volta
depois do dilúvio era a mesma terra de antes, provavelmente a resposta seria dúbia
reconstituição de sua superfície. Mas tudo aquilo que Noé conhecia, incluindo toda
apenas um monte de água cobrindo a terra, mas a dissolução de tudo o que existia.
placas tectônicas, só surgiram com o dilúvio, que fez romper “todas as fontes do
grande abismo” (Gn 7:11), em alusão às camadas subterrâneas da terra. Antes disso,
criou o mundo originalmente, somos informados que Ele criou “a porção seca” (Gn
1:9), não várias porções separadas por águas. Por isso Deus disse que “se ajuntem
com a movimentação das placas, e das pedras preciosas, que Deus criou
originalmente para embelezar a paisagem a olhos nus (Ez 28:13), mas que após o
1734
Vida eterna: no céu ou na terra? 1735
geologicamente a mesma, era uma terra completamente nova, que não se parecia
em nada com aquela da qual eles se lembravam. Assim também, a terra que os
salvos encontrarão após sua destruição pelo fogo é chamada de “nova”, não porque
a terra atual deixará de existir em um sentido biológico, mas porque passará por
aparente contradição entre um conjunto de textos bíblicos que dizem que a terra
será destruída e outro conjunto de textos que dizem que ela permanecerá para
sempre:
a terra se gastará como uma roupa, e “Os justos possuirão a terra e viverão
palavras de modo algum passarão” ela nunca, jamais, será tirada do seu
1735
Vida eterna: no céu ou na terra? 1736
grande estrondo, os elementos serão “Uma geração vai e outra geração vem,
desfeitos pelo calor, e a terra, e tudo o mas a terra permanece para sempre”
3:10)
da terra, e os céus são obras das tuas “Pois assim diz o Senhor, que criou os
mãos. Eles perecerão, mas tu céus, ele é Deus; que moldou a terra e
permanecerás; envelhecerão como a fez, ele a fundou; ele não a criou para
102:25-26)
A Bíblia não está se contradizendo quando diz que a terra será destruída e
que durará para sempre, porque a “destruição” que os textos se referem não é o
planeta com tudo o que nela há (incluindo construções, paisagens, pessoas e outros
seres vivos, como no dilúvio). É por isso que Pedro diz que “a terra e tudo o que nela
há será desnudada” (2Pe 3:10). “Desnudar” não é a mesma coisa que desintegrar,
Assim como uma pessoa que tira a roupa que a veste não deixou de existir,
a terra não deixará de existir ao ser “desnudada”, mas perderá tudo aquilo que é
“exterior” a ela (paisagens naturais, edifícios, rios, oceanos, seres vivos e etc),
voltando a uma forma rudimentar. É por isso que João, logo após dizer que «a
1736
Vida eterna: no céu ou na terra? 1737
primeira terra já não existia», acrescenta que “o mar também não mais existia” (Ap
21:1). Isso é o que deveríamos esperar de uma terra consumida pelo fogo, onde
tudo o que há hoje na superfície vira nada. Mas uma terra coberta por fogo ainda é,
O que nos ajuda a entender melhor em que sentido a terra “perecerá” e dará
lugar a uma “nova” terra é justamente o uso do termo “novo”, do grego kainos,
usado em todos os textos que falam da “nova” terra (Ap 21:1; 2Pe 3:13). Este é o
mesmo adjetivo usado no texto que nos descreve como “novas” criaturas em Cristo
(2Co 5:17), apesar de não sermos literalmente substituídos por uma outra pessoa
entre neos e kainos, duas palavras traduzidas como “novo” no NT, explica que
ou superior à sua versão anterior), e neos com respeito ao tempo (algo que
sentido qualitativo, não no que compete à substância. Ela não será “nova” no
sentido de ser criada do zero em substituição à terra atual, mas por ser
1132
#2537 da Concordância de Strong.
1133
BROMILEY, Geoffrey W. International Standard Bible Encyclopedia. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans
Publishing Co., 1995. v. 4, p. 2140.
1737
Vida eterna: no céu ou na terra? 1738
A prova mais clara de que a destruição que a Bíblia diz que sucederá à terra
não é a eliminação da terra enquanto planeta é que o mesmo Pedro que disse que
a terra será destruída na volta de Jesus também disse que a terra foi destruída por
ocasião do dilúvio:
palavra de Deus, existiam céus e terra, esta formada da água e pela água. E
pela água o mundo daquele tempo foi submerso e destruído. Pela mesma
palavra os céus e a terra que agora existem estão reservados para o fogo,
guardados para o dia do juízo e para a destruição dos ímpios”
(2ª Pedro 3:5-7)
aparece no texto que diz que a terra perecerá (Hb 1:11, que é uma citação de Sl
102:25-26). No entanto, ninguém seria tolo de dizer que o dilúvio destruiu a terra
da terra, que foi totalmente reconfigurada após o dilúvio, como já dissemos. Mas a
destruição da terra pelas águas, onde a terra é “desnudada”, mas não desintegrada.
Outro texto que esclarece com precisão em que sentido a terra será consumida pelo
1738
Vida eterna: no céu ou na terra? 1739
fogo na volta de Jesus está em Lc 17:28-30, quando o próprio Senhor Jesus iguala
(Lucas 17:26-30)
planeta em si, nem fez colapsar as camadas internas da terra. Ele apenas destruiu
toda a superfície da região que foi afetada, sem deixar sobreviventes, casas ou
paisagens para trás. Se Jesus disse que “acontecerá exatamente assim no dia em
que o Filho do homem for revelado” (Lc 17:30), a não ser que ele estivesse mentindo
fogo na volta de Jesus será análoga à destruição pelo fogo em Sodoma e Gomorra,
isto é, uma destruição total da superfície da terra, mas não o fim do planeta em si.
É por isso que tantos textos são claros em dizer que a terra permanecerá para
sempre, ou que ela “ela nunca, jamais, será tirada do seu lugar” (Sl 104:5), uma
linguagem enfática demais para ser tomada figurativamente. Mesmo que se diga
este não pode ser o caso dos textos em questão, porque o salmista iguala a duração
da terra com a duração do próprio santuário de Deus: “Ele fez o seu santuário tão
duradouro como os céus; como a terra, que ele estabeleceu para sempre” (Sl 78:69).
1739
Vida eterna: no céu ou na terra? 1740
Assim, afirmar que a terra terá fim é o mesmo que dizer que o próprio
santuário de Deus terá fim – algo que soa mais como uma blasfêmia do que como
interpretação. Ademais, o Salmo 104:5 não só usa o termo hebraico ʽolam (para
também adiciona o termo ʽad (por todo o sempre), que na Bíblia é sempre usado
para um tempo sem fim. O uso de ʽad como reforço para ʽolam mostra que o sentido
pretendido é definitivamente de uma duração sem fim, que aqui diz respeito à “terra
pelo fogo é um mistério indecifrável para aqueles que pensam que Deus deixará a
terra abandonada à sua própria mercê sem ninguém mais para morar aqui. Neste
caso, mudaria pouco ou nada se Deus simplesmente deixasse a terra destruída para
sempre, uma vez que permaneceria eternamente inabitada de todo jeito. E para
aqueles que creem que a terra atual literalmente deixará de existir, é de se perguntar
por que Deus faria questão de criar uma outra terra, se essa outra terra seria um
significativo. O fato de Deus criar uma nova terra pressupõe que essa nova terra terá
Por isso Pedro, logo após falar da destruição da presente terra, segue
dizendo que “de acordo com a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra,
onde habita a justiça” (2Pe 3:13). De que forma poderia «habitar a justiça» numa
nova terra que fosse completamente desabitada? Isso seria tão estúpido quanto
dizer que “em Vênus habita a justiça”, ou em qualquer outro planeta em que, até
onde sabemos, não há vida. Tanto a justiça como a injustiça não existem por si só,
1740
Vida eterna: no céu ou na terra? 1741
existência de pessoas que fazem o que é justo, isso exclui qualquer chance da nova
Este texto sozinho já deveria ser o suficiente para dar o assunto por
responsável pelo senso comum de que a Bíblia ensina que o nosso lar é o céu, ainda
muito mais à sua volta. Quando a imortalidade da alma passou da filosofia grega
gente morta, e este lugar não podia ser a terra, por razões óbvias. Assim,
convencionou-se que o céu é este lugar que recebe as almas falecidas, que lá
céu, por que teriam que ser trazidos de volta à terra, ainda mais quando no
1741
Vida eterna: no céu ou na terra? 1742
obrigado a descer e passar a eternidade aqui. Ao invés da vida eterna na terra ser
uma grande recompensa, ela seria de fato um grande anticlímax, como quando
uma criança recebe a notícia de que tem que ir embora do parque de diversões para
voltar para casa. Não importa o quão boa essa casa seja, abandonar o parque de
É por essa razão que os teólogos imortalistas foram além, sustentando que
não só estaremos no céu antes da ressurreição, mas também depois dela, por toda
a eternidade. Para isso foi preciso atropelar sem piedade uma enormidade de textos
texto que nada fala do céu como se estivesse falando dele. Como comenta Wright,
“textos que não se referem ao céu muitas vezes são interpretados como referindo-
A razão por que tanta gente insiste em acreditar que vamos morar no céu, a
naquilo que pareça mais fundamentado. Dizer para um crente tradicional que ele
passará a eternidade na terra e não no céu o encherá de cólera, não porque ele
conheça versículos bombásticos que sustentem a sua crença, mas porque isso mexe
com seu lado mais forte, o emocional. Quando deixamos nossas emoções falarem
mais alto que nossa razão, o resultado não pode ser outro senão uma
autossabotagem mental.
1134
WRIGHT, N. T. Surpreendido pela Esperança. São Paulo: Ultimato, 2020, p. 106.
1742
Vida eterna: no céu ou na terra? 1743
se acreditado sem muita discussão que morar no céu é muito mais interessante do
que viver na terra, muitos estão acordando para a realidade do que isso realmente
significaria para um ser humano real, dotado de emoções reais. Nós não fomos
criados como anjos, mas como seres humanos sujeitos a emoções particulares que
nos distinguem de todos os outros seres. É por isso que não importa o quão boas
senso de aventura. Uma vida monótona pode facilmente parecer tediante, mesmo
que se esteja vivendo em Paris (de fato, Edmund White definia a vida em Paris como
histórias parece, para certo autor, “a última nota do marasmo ecoando por todo o
infinito em linha reta”1136. Uma série que explora bem esse aspecto melancólico da
eternidade é The Good Place (se você não quer spoiler, pule para o parágrafo
próprios personagens principais decidindo encerrar sua existência, não por estarem
em um lugar indesejável ou ruim, mas por não terem mais nenhum desafio pela
frente, nada de novo que os motivasse a continuar vivendo após longos milênios.
monotonia porque nós não produzimos nada, mas já está tudo produzido para nós.
1135
DRUCKERMAN, Pamela. Crianças francesas não fazem manha: os segredos parisienses para educar os
filhos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 30.
1136
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BknkOV4nPo0>. Acesso em: 22/12/2021.
1743
Vida eterna: no céu ou na terra? 1744
Pensamos que será uma eterna liturgia onde tudo é repetido: os lugares, as
repetição exaustiva de tudo aquilo que é bom, mas tudo o que é bom cansa com o
tempo. Você consegue ouvir uma música nova dúzias de vezes seguidas se for
realmente boa, mas uma hora inevitavelmente enjoará e aquela música perderá a
graça.
criança fazendo as mesmas coisas que ela. Para a criança tudo é novo, e tudo o que
é novo tem uma experiência muito mais marcante. Os jogos que eu jogava quando
criança podiam ter gráficos e jogabilidade muito piores que os jogos atuais, mas eu
me divertia muito mais jogando quando criança do que jogando hoje (mesmo
quando se trata dos mesmos jogos). O mesmo se aplica a qualquer coisa na vida. Ir
à praia não vai ser a mesma experiência para alguém que raramente ou nunca foi à
praia em comparação a quem mora no litoral. Tudo o que é muito repetido tende a
repetição de algo que sequer tivemos o poder de escolha. Não existe autonomia
individual quando tudo é feito para nós sem que possamos mover um dedo no
sentido de construir nosso próprio destino. Nossa rotina é a rotina comum a todos,
compartilhada por todos no mesmo lugar. É como se nem mesmo fôssemos nós
1744
Vida eterna: no céu ou na terra? 1745
liberdade sufocada e sem personalidade própria para tomar suas próprias decisões
primeiro momento, restando apenas “reviver” essa conquista inicial durante toda a
eternidade sem fim. Teríamos uma emoção indescritível ao chegar ao céu e rever
todos os que deixamos para trás, ao contemplar a face de Deus e ao entrar numa
mansão magnífica preparada para nós, mas dali em diante não haveria nada de
novo, nada de singular, nenhuma nova conquista, nenhum grande êxito, nada que
merecesse destaque, nada pelo qual valesse a pena lutar – o que para alguns seria
se iniciaria a repetição exaustiva dos mesmos padrões, vez após vez, século após
mundo já estabelecido. E essa noção tem causado um desconforto cada vez maior,
por vezes até mesmo desencorajando muitos cristãos na fé. O maior atrativo do
pouco.
comenta Wright, “quando chegamos à verdadeira imagem do dia final nos capítulos
1745
Vida eterna: no céu ou na terra? 1746
pelo céu, mas a Nova Jerusalém descendo do céu e unindo-se à terra em um abraço
eterno”1137. Todo o cenário que João descreve nos capítulos finais não se parece em
nada com um Paraíso etéreo situado distante no céu, mas é indistinguível de uma
cidade como qualquer outra, com a diferença de não haver espaço para o pecado
ou o mal.
A Nova Jerusalém é descrita como uma «cidade» (Ap 22:3), possui muralha
e portões (Ap 21:12), tem comprimento e largura definidos (Ap 21:16-17), é feita e
ornamentada com materiais terrenos (Ap 21:18-20), possui ruas (Ap 21:21), rios (Ap
22:1) e praças (Ap 22:2), e por toda a eternidade continua havendo nações e reis (Ap
21:24). Se João vivesse nos dias de hoje e fosse tão influenciado pelo dualismo
entrar na Nova Jerusalém, afirma-se que “os reis da terra trarão para
ela a sua glória... a ela trarão a glória e honra das nações” (Ap 21:24,
26). Tais versos sugerem que tudo quanto tem real valor nos antigos
1137
WRIGHT, N. T. Surpreendido pela Esperança. São Paulo: Ultimato, 2020, p. 35.
1746
Vida eterna: no céu ou na terra? 1747
norte e do sul, e ocuparão os seus lugares à mesa no Reino de Deus” (Lc 13:29),
compartilhada pelos judeus da época, razão por que em certa ocasião “um dos que
estavam à mesa com Jesus, disse-lhe: ‘Feliz será aquele que comer no banquete do
Reino de Deus’” (Lc 14:15). Como se nota, o realismo bíblico em relação ao mundo
porvir em nada se parece com a visão romantizada e tradicional que se tem do céu.
a Bíblia não retrata o mundo por vir como um paraíso etéreo onde
1138
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 281, 23.
1747
Vida eterna: no céu ou na terra? 1748
8:19-25; Ap 21:1). Os “novos céus e uma nova terra” (Is 65:17) não são
original.1139
comparamos 2Pe 3:10-13 com Ap 21:1. Pedro diz que a destruição da terra se dará
no “dia do Senhor” (2Pe 3:10), que é sempre na Bíblia identificado com o dia da volta
de Jesus (1Ts 5:2; 2Ts 2:2), e que “naquele dia os céus serão desfeitos pelo fogo, e
os elementos se derreterão pelo calor” (v. 12). Então diz que, “de acordo com a sua
promessa, esperamos novos céus e nova terra, onde habita a justiça” (2Pe 3:13). Mas
quando vamos ao Apocalipse, vemos que há um período de mil anos entre a volta
derrotado (Ap 20:7-9). E só então é que João vê o novo céu e a nova terra (Ap 21:1),
mil anos depois do “dia do Senhor”. Como se explica isso? A resposta é muito
simples: a “nova terra” é a terra que os salvos construirão ao longo desses “mil anos”
volta de Jesus e se concretiza ao final do milênio. A única parte que não será
construída por mãos humanas é a própria Jerusalém celestial, que João diz que
“desce do céu, da parte de Deus” (Ap 21:2), que será a cidade principal.
1139
ibid, p. 23.
1748
Vida eterna: no céu ou na terra? 1749
Assim, quando João vê a nova terra, ao final do milênio, o que ele está vendo
pelo fogo começou a ser restaurada pelos salvos, precisamente como nos dias de
Noé, que encontrou uma terra completamente desolada e devastada pelas águas e
teve que reconstruí-la com sua família. Portanto, a nova terra não é uma terra na
qual não tenhamos nada a contribuir, mas uma onde temos participação ativa e
autoridade sobre a terra atual para cuidar dela e agir como quisesse.
Por isso é Adão, e não Deus, que nomeia os animais (Gn 2:19), e é ele o
responsável por “dominar sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre
todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1:28). Nunca é demais repetir o texto
que diz que “os mais altos céus pertencem ao Senhor, mas a terra ele a confiou ao
homem” (Sl 115:16). Como vimos, isso é verdade não só em relação à terra atual,
mas também para a nova terra. Isso está muito distante da visão tradicional que se
tem de uma vida eterna no céu, onde não construímos nem produzimos nada, e
passaremos a eternidade toda deitados numa rede sem que nada de novo
aconteça.
É por isso que a Bíblia não perde muito tempo descrevendo em detalhes
como será a vida na nova terra, uma vez que ela não se distingue da vida atual no
básico, e seremos nós que construiremos esse futuro. Tudo o que era realmente
preciso saber é que nós teremos um corpo imortal e incorruptível, e que o pecado
não terá mais lugar. Assim, a vida eterna é como a vida atual, cheia de inovações e
oportunidades novas, com a diferença de não ter aquilo que a faz penosa para tanta
1749
Vida eterna: no céu ou na terra? 1750
SPFC).
desafios que faz a vida ter algum valor. Alguém poderia questionar que tipo de
desafio haveria a um ser que já é perfeito, mas é preciso destacar que essa perfeição
Quando Jesus veio à terra, ele era moralmente perfeito, mas isso não significa que
jogasse xadrez melhor que Garry Kasparov, que jogasse futebol melhor do que o
Pelé, que nadasse mais rápido que o Michael Phelps, que fizesse mais cestas que o
Michael Jordan ou que fosse mais veloz que o Usain Bolt. Ele era um humano, não
não sei tocar piano hoje, eu não ressuscitaria sabendo tocar melhor que Ludwig van
vida atual não terá sido em nada inútil (a não ser que você seja um dos aniquilados,
é claro).
motivação para seguir na jornada, da mesma forma que muitos esportistas que
importante da vida, e na vida eterna eles estarão sempre lá, pois haverá sempre
novas coisas criadas que exigirão tempo e esforço para alcançar a excelência.
1750
Vida eterna: no céu ou na terra? 1751
da terra que Deus criou, podendo moldá-la da forma que desejasse. Isso significa
assim como a vida atual se difere em muito da vida daqueles que viveram há
como um fã da saga O Senhor dos Anéis assistir as 12h da trilogia completa num
dia só, o que ele certamente adoraria, mas ser obrigado a fazer isso todos os dias,
reassistindo o mesmo filme para todo o sempre. Não importa o quão fã ele seja da
saga, mais cedo ou mais tarde isso se tornará um fardo e ele não suportará nem
mais olhar para a cara do Gandalf. Esse céu se tornaria para ele um inferno. Por outro
lado, a eternidade na nova terra seria como se todos os dias um novo filme do
Senhor dos Anéis fosse lançado, tão espetacular quanto os anteriores. Neste caso,
1140
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 286.
1751
Vida eterna: no céu ou na terra? 1752
um fã da saga adoraria assistir todos os dias, assim como tem gente que maratona
tudo que é tipo de série interminável (ou o BBB), e faz isso com prazer.
O segredo não está exatamente no tempo que você passa fazendo algo, mas
se esse algo se torna repetitivo ou não. Assistir séries todos os dias pode ser
vida eterna é uma extensão melhorada da vida atual, não apenas teremos séries
maravilhosas para assistir por toda a eternidade, mas tudo que é tipo de produção
atualmente.
Mais do que isso, nós mesmos poderemos ser protagonistas da história, uma
vez que não seremos meros agentes passivos. Todos os nossos dons e talentos
serão explorados em toda a sua potencialidade, tornando a vida futura muito mais
dinâmica, fluídica e vibrante do que a vida presente, onde trabalhamos tanto que
graça divina. Deus poderia ter criado Adão em um paraíso terreno com tecnologia
coisas sozinho, com o passar do tempo, e transformar o mundo do seu próprio jeito.
Assim também, não devemos esperar que na nova terra a tecnologia acabe
Dubai. Tudo aquilo que o homem poderia alcançar, mas ainda não o fez, teremos a
1752
Vida eterna: no céu ou na terra? 1753
colonização de outros planetas, que Deus não criou só para servir de enfeite
(lembremos que com o corpo incorruptível não teremos mais as limitações atuais
Você provavelmente já deve ter se perguntado por que Deus criou uma
infinitude de planetas se, até onde sabemos, só existe vida na terra. Longe de querer
ter todas as respostas, pra mim a resposta é perfeitamente coerente com essa
realidade dinâmica da nova criação: não há planeta que não possa ser explorado
durante toda a eternidade, com nosso novo corpo adaptável a todas as condições
A Nova Jerusalém será sempre a nossa pátria, mas teremos diante de nós um
será meramente o fim dos nossos problemas atuais, mas o início de uma jornada
muito mais fascinante do que seria possível vivenciar no céu. Bacchiocchi concorda
1753
Vida eterna: no céu ou na terra? 1754
humanidade sugere também que a vida ali não será monótona e sem
juntas para tornar possíveis todos os sonhos que hoje são apenas ficção científica.
mais dinâmico, vibrante e cheio de vida que o atual, onde os salvos chegarão onde
futuro não é um jogo de cartas marcadas, mas uma página em branco na qual
parecido com o filme Jogador Nº 1, mas muito mais realista. Não haverá limites ao
1141
TRAVIS, Steve. I Believe in the Second Coming of Jesus. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1982.
1142
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 287.
1754
Vida eterna: no céu ou na terra? 1755
progresso tecnológico e a tudo aquilo que ele pode nos proporcionar de bom.
Haverá novos livros, não para debater assuntos dos quais já saberemos a
aprendemos, mais percebemos quanto mais há para aprender. Na nova terra, não
adorar ao Senhor com toda a criação. Nada do progresso atual se perderá, e muito
tudo de bom que há no mundo atual, mas elevado à enésima potência. Não se trata
interminavelmente.
imaginar uma vida eterna desse jeito é porque fomos doutrinados incansavelmente
com a ideia de uma vida eterna no céu, onde receberemos tudo pronto e acabado,
1143
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 286.
1755
Vida eterna: no céu ou na terra? 1756
de mão beijada e sem produzir nada. Essa mentalidade foi construída na época em
Antão (251-356) e Simeão Estilita (390-459). O primeiro viveu grande parte da vida
anos em cima de uma coluna que ele construiu para não ser importunado por
principal líder do evangelho social no século XIX, “a ascética cristã disse que o
O trabalho também era visto com maus olhos, encarado como uma maldição
decorrente da Queda. Por essa razão, a maioria dos monges era mendicante,
1144
ROSA, Wanderley Pereira da. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e
suas consequências. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2010, p. 153.
1756
Vida eterna: no céu ou na terra? 1757
É por isso que até hoje a visão de um Paraíso terreno com trabalho e prazeres
físicos soa tão escandalosa para tanta gente, habituada ao tipo de paraíso
paraíso de acordo com sua própria visão de santidade, razão por que o céu
afastado, privado de prazeres físicos, onde nada de novo acontece, onde todas as
(Mt 19:28), e Adão foi criado para trabalhar no jardim antes mesmo do pecado (Gn
que os monges pensavam, Deus não puniu o homem com o trabalho, mas com o
o jardim desde antes da Queda (Gn 2:15), mas depois da Queda isso passou a ser
algo penoso, “com o suor do seu rosto” (Gn 3:19). Na regeneração de todas as
coisas, Deus não eliminará o trabalho, tornando o homem basicamente inútil e sem
função no mundo, mas fará com que o trabalho volte a ser algo aprazível, como era
antes do pecado.
1145
Leia mais sobre isso no capítulo 19 do meu livro “Os 100 Maiores Acontecimentos da História do
Cristianismo”, disponível em: <http://www.lucasbanzoli.com/2020/12/santo-antao-o-monaquismo-e-o-
ascetismo.html>.
1757
Vida eterna: no céu ou na terra? 1758
Isso também confronta a ideia tradicional de que vamos morar no céu, onde
não haveria basicamente nenhum trabalho possível, uma vez que a dinâmica da
vida atual seria totalmente substituída por “ter tudo pronto”, em uma realidade
etérea onde nada precisaria ser produzido (exatamente como os monges, que nada
na eternidade (Lc 13:29, 14:15; Ap 19:9), razão por que não haveria no céu
semeadura e colheita, como Adão foi orientado a fazer desde antes do pecado (Gn
2:5).
comer algo delicioso (e o melhor: sem medo de engordar!). “O Senhor Deus fez
nascer do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento” (Gn
2:9) para o casal original antes da Queda, que podiam “comer livremente de
conhecimento (Gn 2:17). Apesar de Adão e Eva não terem sido criados mortais antes
expressamente:
“Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem
sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de
Note a diferença disso para a visão que as pessoas comuns têm a respeito
do céu. Na criação original, o homem tinha um trabalho e uma função, não foi
1758
Vida eterna: no céu ou na terra? 1759
criado simplesmente para ser servido o dia inteiro ganhando tudo de mão beijada.
trabalho é eliminado e somos basicamente imersos num mar de marasmo sem fim.
jeito que criou, e se redimisse desse erro brutal ao transformar o homem numa coisa
que ele nunca foi. Mas quando entendemos que a vida futura é “a regeneração de
todas as coisas” (Mt 19:28), isto é, a volta ao projeto original, vemos que o propósito
nunca foi nos transformar numa raça superior de anjos – se este fosse o caso, teria
sido extremamente simples para Deus ter simplesmente criado mais anjos no céu,
A razão por que Deus nos criou diferente deles é porque Ele valoriza e
respeita essas diferenças, e não tem interesse em nos transformar em anjos mais do
que tem em transformar cachorros em gatos. Cada ser criado por Deus tem um
valor especial e único, razão por que a expressão «e viu Deus que era bom»
acompanha cada obra da criação (Gn 1:10, 12, 18, 21, 25). Jesus não morreu para
nos transformar numa outra espécie, mas para redimir a natureza humana da
mancha do pecado.
Isso obviamente não significa que a parte sobre louvar e adorar a Deus esteja
exclusa da vida eterna. Adão não foi colocado no jardim só “para o lavrar e o
guardar” (Gn 2:15), mas também para andar com Deus, interagindo face a face com
Ele (Gn 3:8). A comunhão íntima com o Criador sempre foi o propósito maior da
1759
Vida eterna: no céu ou na terra? 1760
criação, e não há sentido na vida que não seja viver para Deus. Mas a noção de que
faremos apenas isso por toda a eternidade, sem qualquer espaço para a liberdade
e a individualidade, não tem amparo bíblico e tampouco faz sentido de acordo com
a lógica da criação. A Bíblia nunca define a vida eterna como um mosteiro localizado
nas nuvens, mas como um grande banquete terreno que celebraremos com júbilo
porque um banquete remete à imagem de uma festa, e uma festa é tudo o que há
de oposto ao ideal da vida monástica. Para eles, a vida eterna pode ser tudo menos
divertida, ainda mais quando essa diversão inclui prazeres carnais (neste caso,
Considerações Finais – Devo confessar que nem sempre foi fácil aceitar essa
verdade. Mesmo após descobrir que a alma morre e que o inferno não é eterno,
levei um tempo para aceitar que passaremos a eternidade na terra, e não no céu.
criança, a ir morar no céu. Numa época em que somos jovens demais para refletir
criança que tem sua viagem para a Disney cancelada e tem que se contentar com o
Beto Carrero.
1760
Vida eterna: no céu ou na terra? 1761
céu”, e não aqui sobre uma terra renovada. Esta verdade foi-me
imaginarmos uma vida aqui sem eles, coisa que não ocorre com o céu, onde nunca
estivemos.
lugar paradisíaco, a primeira coisa que nos vem à mente não é uma imagem do céu,
1146
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 280.
1761
Vida eterna: no céu ou na terra? 1762
Dubai, dos Alpes suíços às ilhas Maldivas, são esses lugares que arrebatam o nosso
com toda sorte de poluição e contaminação, abalada pelo dilúvio e habitada por
comoção, imagine a nova terra restaurada à sua perfeição original, com o paraíso
Somos nós que não damos valor ao lar que Deus criou para nós, e que
diversidade de cores, tons e ritmos do mundo onde Deus nos criou. Se a ideia fosse
nos levar para o céu, é de se pensar por que Deus não nos teria criado direto ali,
sem precisarmos passar por todos os infortúnios da vida terrena. Mas Ele nos criou
aqui, para aprendermos a amar e cuidar do único lar que temos, o que Ele criou
Deus não nos criou em um lar que deixa a desejar em relação ao céu, para
precisar nos tirar daqui e levar para lá. Ele nos criou em um lugar absolutamente
atualmente isso seja ofuscado pelos efeitos do pecado. Não é a terra que Deus criou
para nós que não é suficientemente boa, é o pecado que entrou no mundo que
arruinou tudo. Consequentemente, a solução não é nos tirar daqui para outro lugar,
1762
Vida eterna: no céu ou na terra? 1763
pecado e do mal não é um prêmio de consolação para quem esperava ir pro céu,
1763
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1764
síntese de tudo aquilo que foi abordado ao longo dos capítulos. Mas em um livro
com tantas páginas e tanta informação que já foi tratada em detalhes, revisar tudo
o que foi dito não apenas seria desnecessário, mas cansativo e maçante. Por isso,
reservei essa última parte do livro para discutir algo que não chega a ser um
argumento, mas que mesmo assim é a razão principal por que muitos preferem
contrária. E essa razão é o fato da grande maioria dos teólogos e cristãos da nossa
qual alguma coisa é verdadeira por ser aceita pela maioria das pessoas. É o clássico
pressupõe que a maioria está sempre certa sobre qualquer assunto (se fosse assim,
são inteligentes, e por isso o que a maioria delas acredita deve ter mais chances de
ser verdade.
1764
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1765
estar felizes por não nos associarmos ao que as pessoas pensam. Por muito tempo,
do mundo por todas as gerações de homens e mulheres – até que novas gerações
notório, tão simples e tão óbvio que nos parece incrível que tenham demorado
sua crueldade. Mas como quase todo mundo pensava igual, era muito mais fácil se
acostumar à situação e tratá-la como uma coisa normal, como parte da “ordem
natural”. Afinal, não podia estar todo mundo errado ao mesmo tempo, pensavam.
eternidade no inferno: as pessoas não acreditam nisso por terem bons argumentos,
mas porque acham absurdo que todo mundo esteja enganado ao mesmo tempo.
Note que o fato de todo mundo aceitar a escravidão não a tornava menos
erro, porque o fato de todo mundo defender uma coisa confere a essa coisa uma
credibilidade que ela não merece. Por isso, o único jeito de um engano prosperar
por muito tempo é quando todo mundo acredita nele. Esse é o jeito mais fácil das
1765
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1766
argumento decisivo.
É por isso que durante séculos quase todos os povos eram politeístas,
embora nos pareça tão óbvio que não possa existir mais de um ser onipotente. O
fato dessa crença ser obviamente falsa era ofuscado pela quantidade esmagadora
todo mundo acreditava assim, isso parecia fazer sentido. Mais uma vez, era o peso
da opinião coletiva que conferia credibilidade à crença, que por si mesma era fraca
“unanimidade burra”.
E antes que você diga que a unanimidade só era burra naquela época, como
cometeriam esses erros bobos, lembre-se que estamos falando das mesmas
pessoas que assistem BBB, que dançam funk no bailão, que passam o dia todo no
TikTok, que se guiam pelo horóscopo, que não sabem nem o nome dos continentes,
que esperam três meses na fila pra conseguir ingresso pro show do Justin Bieber1147,
que falam “ponhei”, que trocam “a gente” por “agente” e “nada a ver” com “nada
haver”, que escrevem “todes” e “todxs”, que acham que alguém que nasceu homem
pode virar mulher e jogar no time feminino, e que são capazes de levar Lula e
1147
Eu tinha originalmente escrito “uma semana”, mas depois fui pesquisar no Google e descobri que eles
esperam por três meses. Antes que você pense que eu estou mentindo: <https://g1.globo.com/sao-
paulo/musica/noticia/fa-passa-tres-meses-na-fila-para-ver-show-de-justin-bieber-em-sao-paulo.ghtml>.
Acesso em: 19/01/2022.
1766
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1767
autoridade dos que defendem a proposição e não nas razões apresentadas para
mesmo assim elas são facilmente provadas pela Bíblia e encontradas nos primeiros
Pais da Igreja. Se você for arminiano, considere que por muito tempo os calvinistas
historiadores católicos mais sérios, que não sem razão apoiam a tese do
1767
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1768
que não existia nos primeiros séculos, como eu mostro em um artigo com dúzias
de estudiosos católicos dos mais renomados, alguns deles com o Nihil obstat e o
Imprimatur do Vaticano (ou seja, que passou por um censor oficial da Igreja
próprio Tomás de Aquino, tido como o maior doutor da história da Igreja Católica,
Maria, que ainda não era dogma, mas já era ensinada por uma minoria1149.
significativo na história da Igreja em que alguma coisa que você crê – senão todas
elas – foram sumariamente rejeitadas por todos ou quase todos desse período,
tivessem que ser levados a sério, o próprio Cristianismo em si teria que ser
punhado de pescadores, “homens comuns e sem instrução” (At 4:13), que não
autoridade para tentar identificar qual dos dois grupos estava com a verdade (se os
cristãos ou as autoridades do Judaísmo oficial) não teria que pensar por mais do
que dois segundos para concluir que os cristãos não tinham a menor chance de
1148
Disponível em: <http://www.lucasbanzoli.com/2019/03/imperdivel-historiadores-e-teologos.html>.
1149
Leia mais sobre isso em: <https://respostascristas.blogspot.com/2016/05/tomas-de-aquino-morreu-
acreditando-na.html>. Acesso em: 20/05/2022.
1768
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1769
religião minoritária e marginalizada no império por pelo menos três séculos, até a
argumentos por conta própria e concluir que os cristãos estavam com a verdade
Mas mesmo que a maioria dos imortalistas esteja ciente de que não é pelo
determinada doutrina, na prática essa acaba sendo a razão por que muitos deles se
contrário. É por isso que você já deve ter ouvido muitas vezes o questionamento de
que, “se o mortalismo é verdadeiro, por que a grande maioria dos teólogos são
imortalistas?”. E com base apenas nisso, concluem que o imortalismo deve ser
verdadeiro, porque é muito mais cômodo deixar que os outros pensem em seu
E é justamente esse “pensamento de manada” que faz com que muita gente
1769
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1770
confrontar a maioria. “Se a maioria defende tal coisa, essa coisa deve estar certa”,
para eles não está na consistência dos argumentos, mas no que os supostos
“intelectuais” defendem. Por isso, estar do lado dos “intelectuais” para eles é o
mesmo que estar do lado da verdade – mesmo que eles próprios sejam
verdade quase todos eles são dualistas apenas por ser o status quo. Praticamente
superficial. A prova disso é que, embora se possa facilmente compilar uma lista de
milhares de estudiosos que creem na imortalidade da alma por ser a crença oficial
desenvolver um trabalho tão minucioso como este, ou qualquer coisa que chegasse
1770
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1771
perto desse nível de profundidade. Ironicamente, os que mais tem a escrever sobre
o tema são justamente os mortalistas (talvez porque seja difícil desenvolver muita
Colocado de outro modo, o leitor leigo imagina que uma grande quantidade
posição também. Ele não imagina que a maior parte desses teólogos mal foram
Dos teólogos imortalistas que realmente estudaram esse tema a fundo, são poucos
mas engana-se quem pensa que ele chegou a essa conclusão através de provas
teológicas sólidas ou textos bíblicos irrefutáveis, e mais ainda quem pensa que ele
perfeitamente compatível com as Escrituras. Mais do que isso, ele reconhece até
cérebro, esse fato conflita de forma clara e direta com o que a Escritura
1771
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1772
Então ele cita vários textos que vimos neste livro, tais como Gn 2:7 e 3:19, Dn
E em seguida, conclui:
(Samuel, Moisés e Elias, todos esses parecem ter feito aparições, por
1150
CRAIG, William Lane. Deus e a neurociência. Disponível em:
<https://pt.reasonablefaith.org/artigos/pergunta-da-semana/deus-e-a-neurociencia>. Acesso em:
17/01/2021.
1151
ibid.
1772
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1773
Craig reconhece que essas passagens “parecem indicar” o holismo (que ele
chama de “fisicalismo”), mas diz que elas «devem ser lidas pelo filtro do dualismo».
Este é o problema central: eles não interpretam os textos de acordo com o que os
interpreta a Bíblia com as lentes de Roma (ou “pelo filtro do papado”). Essa não é
mesmo. Tudo pode ser interpretado (ou melhor, distorcido e manipulado) quando
se usa “filtros” como pressupostos. É nisso que consiste a eisegese, que é tentar
encontrar nos textos o que não está ali. No fim das contas, o que acaba valendo é
muito para alguém que acredita na alma imortal e foi doutrinado assim a sua vida
alma está claramente sendo desonesto, já que o próprio Craig reconhece que não
tem uma posição dogmática sobre o tema e que a evidência bíblica é ambígua,
cristãos renomados que, embora creiam na imortalidade da alma por ser a posição
oficial das igrejas em que congregam e a forma com que foram ensinados desde a
infância, não têm um conhecimento profundo sobre o tema nem colocaria a mão
no fogo por isso. Eles podem ter um currículo invejável, falar duzentas e cinquenta
1773
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1774
línguas e serem extremamente geniais como teólogos, mas isso não significa que
profundo em cada uma delas. Eu mesmo domino alguns temas teológicos que me
sinto apto a debater com qualquer um, mas em outros sou profundamente inapto.
seriam capazes de debater esse tema comigo, não porque eu seja intelectualmente
superior, mas porque o tempo que eu passei estudando este assunto em particular
interesse. E a verdade é que por muito tempo a imortalidade da alma foi tão pouco
arminianismo, já que essa é uma discussão histórica que sempre dividiu opiniões e
argumentos para estarem aptos a responder ao lado contrário. Mas esses mesmos
Não porque eles sejam ruins, mas porque passaram tanto tempo lendo, estudando
1774
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1775
É por isso que pessoas teoricamente capacitadas em uma área podem ser
áreas de atuação, se for uma área muito ampla. Um professor de história como eu
não consegue dominar toda a história universal, mesmo que passe cem anos
história nos tempos de estágio, que dominava a matéria como ninguém e era uma
referência na cidade inteira, não sabia a quantidade de teses pregadas por Martinho
currículo de dar inveja a qualquer um, que literalmente esqueceu o nome de Tomás
de Aquino. Não importa o qual genial uma pessoa seja: ela sempre vai ter os seus
da história da Igreja Católica, mas que não sabia nem grego e nem hebraico (o que
é normal para nós hoje, mas uma vergonha para aquela época). Ele também não
sabia árabe, o idioma mais falado da época, e nunca leu nenhum documento
latim para interpretar a Bíblia e para ler Aristóteles (este traduzido pelos árabes, no
grande referencial teológico da Igreja latina, não sabia hebraico e dizia ter um grego
1152
MATTOS, Carlos Lopes de. Tomás de Aquino – Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural Ltda., 2004, p. 6.
1775
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1776
pobre, e é mesmo assim venerado como o maior exegeta de todos os tempos pelos
de uma forma geral, mas especificamente sobre essa questão. Eu poderia ser citado
como “autoridade” em se tratando deste assunto, mas não sobre a cláusula filioque
ser uma autoridade pelo seu currículo ou pelo trabalho desempenhado em alguma
área não significa que possa falar com propriedade sobre todas as outras áreas ou
que a sua opinião nessa área tenha o mesmo peso que possui em suas áreas de
especialidade.
dominam podem ser incrivelmente ignorantes e burras sobre aquilo que não
apegadas. Um exemplo é Richard Dawkinks, que dizem ser um ótimo biólogo, mas
naquela área específica, a biologia, como se isso significasse que seus argumentos
têm o mesmo peso quando ele fala sobre outra coisa, a existência de Deus.
que estão do lado da maioria dos teólogos, quando a opinião da grande maioria
deles sobre a natureza da alma tem o mesmo peso da opinião de Dawkins sobre a
existência de Deus. Se o apelo à autoridade já é ruim por si só, ele fica ainda mais
1776
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1777
feio quando se apela a quem nem sequer é “autoridade” de fato sobre o tema
pressupõe que esses teólogos são imortalistas porque estudaram a Bíblia de forma
verdade quase todos são imortalistas pelo simples fato de que são de igrejas
imortalistas e foram doutrinados desse modo a vida inteira. Eles não só foram
ciência tem cada vez mais comprovado o quanto o nosso cérebro é sugestionável
qualquer lance que o juiz marcou para o time adversário ou que deixou de marcar
pro seu time, mesmo em se tratando de lances em que a marcação foi certa e não
há nenhuma razão pra discutir sobre isso. E quando essas mesmas marcações não
são dadas pro time adversário em lances idênticos, nenhum deles ousa abrir a boca
O mais curioso é que esses mesmos torcedores que são tão passionais
quando assistem jogos do seu próprio time tendem a ser mais racionais quando
assistem jogos de outros times sem torcer para nenhum deles. O mesmo tipo de
lance que ele xingaria até a décima geração do juiz se fosse com o time dele, ele
não tem dificuldade nenhuma em entender que a marcação foi certa e que não há
“roubo” nenhum quando assiste os outros times jogando. Por vezes, isso se vê
1777
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1778
de suas agremiações.
que reclama dos lances que o juiz marcou contra o seu time mesmo quando as
marcações foram certas (mas não reclama das marcações contra o time adversário
1778
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1779
isenta e neutra, como uma "tábula branca" livre de qualquer aspecto externo que
possa influenciar na interpretação. Por mais que nos esforcemos, ninguém está
aquilo que fomos ensinados a vida toda, ou à influência massiva que gurus e
Por isso a maioria lê a Bíblia para buscar nela a confirmação das suas crenças
prévias, não para extrair dela o seu verdadeiro significado a despeito de para onde
ela levar. E isso não exclui os teólogos, que são os primeiros a recorrer a essa prática.
Nós teólogos somos tão humanos quanto qualquer um, e estamos sujeitos aos
mesmos vícios de todo mundo. E essas tendências são mais fortes na medida em
que são mais enraizadas, e são mais enraizadas na medida em que são tidas como
verdade absoluta desde sempre. Em outras palavras, quanto mais cedo somos
pelos pais e criadas por animais na floresta, que anos mais tarde são encontradas,
mas nunca mais voltam a adquirir hábitos humanos. Na maior parte dos casos, elas
não conseguem mais falar palavras, andar eretas, ter comportamentos sociais ou
fazer coisas simples, como segurar uma colher. Isso mostra o quanto o cérebro
estamos condicionados.
1779
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1780
da doutrinação, algo muito mais sutil. Mesmo que alguns consigam se convencer
exerce sobre as nossas escolhas e tendências. Sendo a nossa mente tão maleável
ao meio em que vive e influenciável conforme o que aprendemos como o certo, não
É por isso que é tão estúpido colocar lado a lado a quantidade bruta de
teólogos que defendem uma coisa e de teólogos que defendem outra. Eles não
assunto específico que se discute, mas também estão sujeitos a todos os tipos de
teólogo é uma “tábula rasa”, uma folha de papel em branco totalmente livre de
Por mais propensos que estejamos a pensar que casos como o das crianças
que se veem como animais e dos seguidores de Jim Jones que praticaram o suicídio
essencialmente igual ao deles. E por mais que não tenhamos chegado a esses
extremos, todos somos suscetíveis a doses mais leves de controle mental que
influem sobre o nosso modo de ver a vida e pensar as coisas. Ninguém tem um
1780
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1781
muito mais vulneráveis do que pensamos, como a própria hipnose demonstra com
maestria.
religiões (e também fora delas). Se o nosso cérebro fosse uma máquina capaz de
julgar com precisão e livre de influências, esperaríamos que todas as pessoas mais
fossem todas ateias), que defendessem todas as mesmas doutrinas, que tivessem
todas a mesma visão política, que defendessem todas os mesmos pontos de vista
que todas as visões possíveis são defendidas pelas mentes mais brilhantes, e nada
poderia chegar mais longe de um consenso. E isso ocorre porque, diferente dos
robôs dos filmes de ficção, somos sugestionáveis, muito mais do que pensamos ser.
Numa época em que todos cresciam aprendendo que a Inquisição era boa,
todos (exceto as vítimas, é claro) aceitavam sem restrições morais que milhares de
a esses espetáculos, levando toda a família para presenciar tais cenas dantescas.
Hoje em dia isso é inimaginável, até para os próprios católicos, até mesmo para o
papa. Isso porque hoje não somos mais doutrinados desde a infância com o
pensamento de que queimar pessoas em praça pública é algo aceitável, o que torna
a nossa mente mais livre para perceber o horror do que isso representa de fato.
Da mesma forma, por muito tempo todo mundo aceitou sem muito
literal e muito mais intenso do que seria possível vivenciar aqui –, porque era assim
1781
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1782
disso, assim como muitos dos evangelistas mais famosos, como Jonathan Edwards.
Hoje em dia, em que a pregação sobre as terríveis torturas do inferno saiu de moda,
As implicações que isso nos leva são muito evidentes. Por que a esmagadora
simples: porque eles foram ensinados assim desde a infância (ou, no caso dos que
convencê-los de que estão errados pode ser quase tão difícil quanto restabelecer
hábitos sociais às crianças criadas por animais. É por isso que a opinião dos
teólogos, quando corrobora com aquilo que eles já pensavam (ou seja, com o que
É preciso tirar da mente essa ideia de que os teólogos são um grupo seleto
condicionamento mental. Na verdade, eles são tão humanos quanto qualquer um,
conhecimento superior que possuem (o que torna ainda mais difícil mudar de
Pense no quão difícil deve ser para uma pessoa orgulhosa reconhecer que
esteve errada esse tempo todo, e que ainda levava outras pessoas ao erro. Se
coloque no lugar de um professor que ensinou aos seus alunos por décadas que a
alma é imortal, ou de um pastor que fez o mesmo com os seus fiéis. Não deve ser
1782
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1783
agarrar ao erro, mesmo que para isso seja preciso enganar-se a si mesmo. E
“enganar a si mesmo” não é fazer de conta que está certo, mas condicionar-se de
tal forma que é virtualmente impossível que mude de opinião, já que não há nada
devemos sempre estar dispostos a crer que o que o branco que eu vejo é negro, se
maneira a ponto de acreditar que mesmo o branco que eles veem é na verdade
Acrescente a isso o fato de que esses teólogos, como qualquer outra pessoa,
precisam pagar as contas, sustentar uma família e dar o que comer aos filhos, e
como esse, isso certamente chegaria aos seus superiores e sua cabeça estaria em
jogo (ainda que não literalmente, como nos tempos de Newton). Eles dificilmente
de vista da instituição.
1153
LOYOLA, Inácio de. Exercícios de Santo Inácio de Loiola. Petrópolis: Vozes, 1959, p. 333.
1783
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1784
vez que percebe o risco em que está se metendo. Talvez isso explique por que há
por que tantos teólogos mortalistas não saem do armário). Quando é preciso, eles
fazem questão de destacar que a alma não morre, que o inferno é eterno e que
vamos pro céu após a morte, mas nem pensam em desenvolver o assunto ou ir a
fundo nos argumentos. É como se houvesse uma lei invisível que exigisse que eles
A coisa era ainda pior antes, na época em que os próprios livros mortalistas
eram censurados e seus autores corriam o risco de ir pra fogueira, como vimos no
risco real de ir parar numa fogueira, numa forca ou numa cela pequena e suja pro
resto da vida. É sem dúvida mais difícil avaliar de forma ponderada, racional e
imparcial duas doutrinas quando se tem uma corda amarrada no pescoço caso
decida escolher uma delas. É como um árbitro de futebol tendo que apitar de forma
justa uma partida sabendo que se um dos times perder será linchado na saída.
Adicione a isso o fato de que, na falta de uma literatura mortalista (por ser
proibida), tudo o que sobrava era a literatura imortalista, o que significa que eles só
eram influenciados por um lado, o que tornava a própria competição desleal. Foi
dogmas por tanto tempo, uma vez que qualquer visão divergente era censurada
pelo Index e proibida de ser publicada, lida ou divulgada. Não é à toa que nós temos
1784
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1785
que Newton, Milton e muitos outros mortalistas ilustres precisaram esconder suas
crenças em vida e pedir para só serem publicadas após sua morte, e mesmo assim
em anonimato.
Mas é lógico que esses fatores não são levados em consideração pelos
aceita pela maioria dos leigos e usada como a base de seus argumentos, embora
não possa estar mais distante da realidade histórica. Não foi o debate aberto, mas
mesmos indivíduos que faz com que a maioria hoje prefira manter as coisas como
foram estabelecidas.
O apelo à tradição – Isso nos leva à terceira e última falácia que o argumento
na medida em que é tradicional, isto é, que é ensinado há muito tempo pela igreja
que frequenta ou pela linha teológica que sustenta. Tais pessoas não estão abertas
mas em relação aos credos e confissões denominacionais que têm como regra de
1785
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1786
presbiterianos e reformados como isenta de erros (na prática, como uma outra
Bíblia).
romanos fazem isso de forma muito mais explícita, ao declarar oficialmente a sua
tradição como regra de fé no mesmo patamar das Escrituras, servindo de base para
revisadas e corrigidas.
É por isso que você quase nunca vê igrejas mudando credos doutrinários
ocasião específica monopolizasse toda a verdade das Escrituras e não pudesse ter
errado em absolutamente nada, o que é uma crença tão boba quanto ingênua.
1786
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1787
postagem de certo autor não pouco conhecido no meio apologético brasileiro, que
disse o seguinte:
peremptoriamente.
numa época em que ele era acusado com as mesmas palavras ipsis litteris pelos
papistas de sua época. Chega a ser assustador que um post como esse tenha
quem se pergunte por que tantos reformados passam para o lado de Roma após
sua mente ser infestada de discursos como esse, onde a tradição é exaltada acima
conta apenas o parecer dos “mestres do passado”, e não a exegese em si, como se
que nada mais é que o inverso da hermenêutica). O tipo de gente que argumenta
nessa linha deve pensar, do alto da sua ingenuidade, que esses “grandes mestres
do passado” concordavam sobre tudo, o que não poderia estar mais longe da
verdade.
1787
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1788
hoje, além de muitas outras discussões que saíram de moda. É preciso estar
realmente alienado da história da Igreja para achar que existia uniformidade sobre
qualquer coisa.
presente” não podem? Porque são menos antigos? Isso seria tão estúpido quanto
vale, mas a deles não, porque nós seríamos os “antigos”, e eles os novos. É o ad
me refiro aos primeiros Pais da Igreja, que estavam numa condição vantajosa por
uma razão óbvia, visto que ouviram diretamente dos apóstolos ou de discípulos de
apóstolos a doutrina certa. Refiro-me aos teólogos que viveram séculos depois dos
apóstolos, na época em que essas confissões de fé que ele tanto enaltece foram
1788
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1789
formuladas. Sendo nós tão humanos quanto eles, com um cérebro biologicamente
igual e com a mesma capacidade potencial, por que a interpretação deles deveria
posição muito mais vantajosa, não porque sejamos por natureza melhores que eles,
mas porque temos muito mais ferramentas do que eles tinham. Nós dispomos hoje
grego, uma quantidade muito maior de manuscritos à mão para analisar e uma lista
pé para talvez encontrar alguma fonte numa biblioteca, nós temos tudo à distância
de um clique.
superior, descobertas arqueológicas que lançaram luz a uma série de eventos antes
cobertos de mistério e por isso mal interpretados, além de uma crítica textual
apenas seis manuscritos para produzir o Receptus, que era tudo o que ele tinha
acessível em Basileia, nós temos mais de cinco mil manuscritos gregos ao nosso
alcance (sem falar de tantos outros em outros idiomas), o que nos permite descobrir
Praticamente tudo o que eles podiam saber nós também podemos, e muito
do que nós podemos eles não podiam. Por que então há essa insistência tola em se
1789
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1790
mais é que a pura idolatria ao passado. É como um vírus que ataca o cérebro e o
É por isso que eles enchem a boca para falar da “Tradição da Igreja” – com
“T” maiúsculo, como todo bom católico –, como se houvesse uma única tradição
que remonte aos apóstolos e sobreviva através dos séculos, outra noção pueril
antes do segundo século, a ponto deles discutirem entre si até dia de celebração da
páscoa, que para os bispos orientais tinha que ser comemorada em 14 de Nisã, e
1790
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1791
que se baseiam nessa tradição na hora de formular suas doutrinas. Tanto para os
harmonia com esse vulto chamado “Tradição”, à qual todos devem obediência
incondicional. E aqui nem mesmo entramos nos problemas mais sérios, como o fato
da tradição de uma mesma igreja passar por inúmeras deformações ao longo dos
séculos, o que explica por que dentro da mesma Igreja Católica Romana “una e
sancta” existem tantas alas divergentes que se odeiem mutuamente, como a dos
isso1155; se quando caçava até a morte os dissidentes da Igreja ou agora que pratica
ecumenismo com esses mesmos grupos; se a que ordenava dos reis a submissão
incondicional aos papas mesmo nos assuntos temporais1156 ou aquela que não mais
1154
Leia mais sobre isso em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/06/entenda-tudo-sobre-inquisicao-e-
caca.html>.
1155
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u73742.shtml>. Acesso em:
10/02/2022.
1156
Leia mais sobre isso em: <http://www.lucasbanzoli.com/2019/06/os-papas-contra-os-reis-quando-
os-papas_22.html>. 1791
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1792
missa que não fosse em latim jamais seria tolerada1159 ou a que aceita a Missa Nova
Estamos falando apenas da tradição de uma única igreja, mas não há igreja
longo da sua história, a não ser que estejamos falando de uma igreja fundada
ontem. Se nem as tradições de uma mesma igreja é a mesma ao longo dos séculos,
imagine o absurdo que é falar de uma única “Tradição” que incorpora todas as
“Tradição” como se fosse uma coisa só, cujo conteúdo seria claro e manifesto a
Não, não existe algo como “a Tradição”. O que existem são milhares de
que conflitam consigo mesmas e umas com as outras. E essas tradições, por sua vez,
estão em constante mudança, o que faz com que algo que era considerado
1157
Leia mais sobre isso em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/04/conheca-toda-perseguicao-e-
proibicao-da.html>.
1158
Leia mais sobre isso em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2016/08/igreja-catolica-inimiga-da-
liberdade.html>.
1159
De acordo com a bula Quo Primum Tempore (1570), do papa Pio V, a missa não poderia ser jamais
alterada no futuro: “E a fim de que todos, e em todos os lugares, adotem e observem as tradições da
Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as igrejas, decretamos e ordenamos que a missa, no futuro
e para sempre, não seja cantada nem rezada de modo diferente do que esta, conforme o missal publicado
por nós, em todas as igrejas”. 1792
1160
Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/08/02/por-que-a-igreja-catolica-decidiu-
condenar-a-pena-de-morte-e-por-que-nao-havia-feito-isso-antes.ghtml>. Acesso em: 10/02/2022.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1793
milenarismo defendido por todos os Pais da Igreja dos dois primeiros séculos
que queiram chamar assim, mesmo que contradiga a própria história da Igreja. É
por isso que teólogos que defendem coisas totalmente antagônicas dizem ambos
ortodoxos (e de protestantes confusos com pouco estudo). Nenhum deles tem uma
noção precisa do que vem a ser o depósito da tradição e de tudo o que nela se
inclui, razão por que é mais fácil pensar que “tradição” é tudo o que ele próprio
defende, ou tudo o que defende a igreja à qual pertence – em vez de admitir que é
são infalíveis (o que é óbvio, senão seriam obrigados a provar qual das milhares de
confissões é a única infalível, e não teriam como fazer isso sem usar a mesma
saber em que ponto elas erram, se não for pela nossa interpretação individual? Ou
1161
Leia mais sobre isso em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2015/11/o-milenarismo-dos-
primeiros-pais-da.html>.
1793
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1794
A não ser que haja uma base comum para definir qual confissão se aproxima
do passado” não é mais do que conversa de louco, impossível de ser sequer julgada
por qualquer referencial. É evidente que apenas pela Escritura podemos julgar a
que não chega a lugar algum. Não é pelas confissões que nós interpretamos a
“magistério”. Há muitos grupos que fazem isso, desde os católicos romanos com o
pensamento é que a consciência individual ainda é necessária para definir quem vai
pensar por você (ou, se preferir, qual é a organização infalível suprema e fodástica
que vai pensar no seu lugar), o que nos leva de volta ao cerne de tudo: a consciência
individual.
1794
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1795
O que esses grupos estão querendo dizer na verdade é que você não é
inteligente para chegar à conclusão de que eles, e apenas eles, são os únicos
por si só.
É o mesmo que dizer que você chegou à conclusão de que não pode
interpretar a Bíblia interpretando a Bíblia. É como alguém que se diz paralítico, mas
diz isso enquanto anda ao seu lado. Esse é o paradoxo de todo tradicionalista: por
um lado ele precisa se agarrar ao mito de que tal confissão de fé, igreja, organização
ou magistério tem todas as respostas e que você não pode conseguir nada por
conta própria; que você precisa deles pra tudo, até para as interpretações mais
simples. Mas, ao mesmo tempo, para chegar a essa conclusão ele precisa ter
interpretação, que esse é o panorama certo (se tivesse chegado a essa conclusão
por meio da própria instituição seria mera petição de princípio, como dizer que
Roma está certa porque o papa disse que Roma está certa).
Mesmo em se tratando das igrejas que não assumem para si mesmas tal
pensar que só há salvação ali, mas no sentido de se julgar “mais certa” que todas as
1795
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1796
demais, como se fosse a única que acerta nos pontos em que todas as outras erram.
É por isso que elas não são humildes o suficiente para reconhecer um erro histórico
ou revisar confissões antigas, o que na prática significaria dizer que esteve errada
este tempo todo e que, portanto, não era a “mais certa” ou a “única verdadeira”.
elas admitem que erraram por séculos em um ponto tão importante, toda a mística
se perde, e ela se torna mais uma “igreja comum”. Por isso para eles é tão
Church of God, que reexaminou velhas doutrinas e ganhou com isso uma
não é verdade para com igrejas bem estabelecidas. Uma igreja que
1796
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1797
1995.1162
falência. É por isso que até a Igreja Católica, que torturou e queimou “hereges” em
não poupavam mulheres nem crianças1166 e que por muito tempo esbravejou
embora obviamente nem pense em restaurar essas práticas. Mesmo quando o papa
forma vaga, sem precisar se o erro foi da Igreja ou só dos “filhos” da Igreja, ou se os
Embora seja óbvio e clarividente que a Igreja Romana atual tem pouca coisa
a ver com a Igreja Romana de eras passadas, eles precisam manter a aparência de
que nada mudou substancialmente, e que mantêm as mesmas tradições de dois mil
anos. Qualquer passo para trás seria comprometer a mística da “igreja verdadeira”,
jogar por terra a teoria da infalibilidade e reconhecer que “o rei está nu”. É assim
1162
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 129.
1163
Confira um resumo em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/06/entenda-tudo-sobre-inquisicao-e-
caca.html>.
1164
Confira as citações em: <http://www.lucasbanzoli.com/2018/04/conheca-toda-perseguicao-e-
proibicao-da.html>.
1165
Confira as citações em: <http://www.lucasbanzoli.com/2019/03/a-igreja-catolica-e-os-papas-
eram.html>.
1166
Leia mais sobre isso em meu livro “Cruzadas: O Terrorismo Católico”, disponível na página dos livros:
1797
<http://www.lucasbanzoli.com/2017/04/0.html>.
1167
Confira as citações em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2016/08/igreja-catolica-inimiga-da-
liberdade.html>.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1798
acreditam ambos pertencer à única igreja que se manteve a mesma por dois mil
anos.
perfeita” onde se sintam mais seguros. Afinal, é muito mais fácil terceirizar a
nossa salvação, o que exige muito mais comprometimento individual. Por isso é
com credos divinamente inspirados elaborados por concílios infalíveis que devem
chegar às suas próprias conclusões. Isso é tão crônico e alarmante que se aplica até
aos líderes religiosos. Pesquisas recentes constataram que mais da metade dos
pastores nunca leu a Bíblia inteira uma única vez na vida (imagine entre os
padres)1168. Que valor tem a opinião de alguém sobre um livro que nunca leu? Isso
seria o mesmo que eu fazer uma resenha crítica do livro O Pequeno Príncipe sem
1168
Disponível em: <https://noticias.gospelmais.com.br/ler-a-biblia-toda.html>. Acesso em: 20/01/2022.
1798
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1799
nunca tê-lo lido, ou, pior ainda, confiar inteiramente na crítica de outra pessoa que
nunca leu a Bíblia, mas confia na interpretação dos seus líderes. O problema é que
esses próprios líderes também nunca leram, como demonstram as pesquisas. Mas
se nem os leigos leram e tampouco aqueles nos quais eles confiam, de onde vem
das vezes, daquilo que um punhado de gente com cabelos grisalhos e longas
quanto eu e você.
A conclusão que nós chegamos é que aquilo que a maioria dos cristãos
acredita como verdadeiro não provém do que eles mesmos leram, mas do que os
pastores ou padres ensinaram a eles. Só que esses pastores e padres também não
sabem nada, e só repetem aquilo que é a doutrina oficial da igreja, seja ela qual for.
E o pior é que muitas vezes nem mesmo os que formularam essas doutrinas oficiais
há muito tempo atrás (ou há não tanto tempo assim, dependendo da igreja) sabiam
muita coisa. A maioria dos clérigos que participavam dos concílios medievais não
1169
O historiador Ivan Lins, por exemplo, conta que “entre o próprio clero, nos primeiros séculos da Idade
Média, muitos eram os bispos que deixavam de apor o seu nome aos cânones dos concílios, em que
tomavam parte, visto não saberem escrever” (LINS, Ivan. A Idade Média: a Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 224).
1799
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1800
última vez que 700 prostitutas foram chamadas para atender sexualmente os bispos
Igreja Católica1171. E era com o voto desses mesmos bispos iletrados, ignorantes,
por tradição até hoje, muitas vezes por uma margem pequena de votos.
O que eu quero dizer é que toda tradição tem um começo, e quem a originou
não necessariamente era mais apto ou estava numa condição vantajosa em relação
a nós. Embora muita gente ingênua pense que nesses concílios só participavam
dos que compunham essas reuniões seria inapta para votar numa reunião para
síndico de condomínio. Mesmo assim, são eles que nos legaram uma tradição
considerada sagrada e intocável para muitos, cuja mera desconfiança desperta a ira
de seus defensores, convencidos de que não há nada mais santo e piedoso do que
se sujeitar inteiramente a ela (a mesma santa convicção que os fariseus tinham para
No fim das contas, só o que acaba valendo é a tradição, essa força invisível
passada adiante geração a geração sem que se questione o seu fundamento. Não
é à toa que em muitas igrejas a tradição tem ares sagrados, como se fosse uma
1170
Um exemplo é Alexandre VI, da inescrupulosa família Bórgia, sobre o qual eu escrevi aqui:
<http://www.lucasbanzoli.com/2021/01/alexandre-vi-os-borgia-e-degradacao-do.html>.
1171
BROTTON, Jerry. El bazar del Renacimiento: sobre la influencia de Oriente en la cultura occidental.
Barcelona: Paidós, 2003, p. 98.
1800
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1801
segunda Bíblia. Tende questionar uma tradição, e será repreendido com a mesma
onde essas igrejas se sustentam e a razão por que eles acreditam no que creem,
– é uma questão de honra, para não dizer uma questão de vida ou morte.
Mesmo em se tratando dos poucos que leem a Bíblia, eles leem pelas razões
erradas. Com raras e louváveis exceções, as pessoas leem a Bíblia não para formar
seu próprio pensamento, mas para encontrar nela a confirmação daquilo que elas
já creem, para poder usar contra os demais. Ao invés de lerem a Bíblia para
estabelecida, mesmo que para isso seja preciso torcer os textos bíblicos e forçar a
É por isso que os imortalistas adoram citar os mesmos seis versos isolados
todas as vezes que debatem com mortalistas, que é tudo o que eles têm.
Obviamente, eles não chegaram a essa conclusão após ler a Bíblia, apenas
recortaram por conveniência o pouco que poderia ser tirado do contexto para usar
igreja, seja ela qual for. Bacchiocchi destaca essa problemática quando escreve:
1801
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1802
Isso não significa dizer que toda tradição está errada, mas que uma coisa não
está certa por ser tradição. Um exemplo é a divindade de Cristo, que é uma doutrina
tradicional pertencente ao credo de quase toda igreja desde a fundação, mas nós
não cremos nela por ser tradicional, mas por ser bíblica. Se não fosse, nós não
creríamos, mesmo que fosse parte da tradição de toda igreja. O critério para
estabelecer a verdade é a Bíblia, não a tradição, que cada qual tem uma. Isso porque
existem doutrinas muito antigas que também são parte da tradição de muitas
igrejas e nem por isso são menos falsas, como muitos dos dogmas da Igreja
problemático.
pecado original e das imagens de escultura, todas aceitas pela tradição da Igreja
1172
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 15.
1802
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1803
Católica Romana, mas rejeitadas pela tradição da Igreja Ortodoxa Grega. Ao invés
novo: quem tem a tradição certa? Todos os argumentos apresentados por ambos
são pura petição de princípio e argumento circular, que não merecem sequer ser
levados a sério.
É por isso que o argumento da tradição é uma falácia formal catalogada, com
tradição”, segundo o qual algo é verdadeiro por ser mais antigo, ou possui mais
antiquitatem não fosse uma falácia, a imortalidade da alma cairia por terra do
mesmo jeito, já que, como vimos ao longo de todo este livro, a Bíblia (a fonte
bíblico ou não: o que importa é se é uma tradição da igreja deles, não se remonta
aos apóstolos.
O maior problema com o apego à tradição é que uma coisa que seria
ser “tradição”. No momento em que escrevo este livro, estamos em plena pandemia
Sapucaí com lotação total. Algo que em circunstâncias normais seria considerado
1803
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1804
Quando uma coisa ganha com o passar do tempo o status de tradição, ela
Pense no quanto de coisas bobas, tolas e irracionais que são defendidas pura e
outros conceitos abstratos do tipo. Até mesmo se você criticar o funk por sua
obrigado a ouvir porque o desgraçado não sabe o que é um fone de ouvido), você
absolutamente nada requer que toda cultura ou tradição seja boa em si mesma,
transmitimos tudo que é tipo de porcaria – que não deixa de ser porcaria só por ser
tradição indiana de arremessar bebês do alto de uma torre de 15 metros para serem
pegos lá embaixo por pessoas com lençóis, ritual que acontece todos os anos em
Solapur e já dura mais de 500 anos, ou a tradição de andar sobre brasas no dia de
São João, como praticado no quilombo Mato do Tição (e que causa queimaduras
1804
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1805
corrida dos touros na Espanha durante a festa de Sanfermines, onde os touros são
Por que a polícia não intervém nesses eventos? A resposta é simples: porque
é “tradição”, e quando uma coisa vira tradição, se torna acima da crítica. Alguém
que isoladamente arremessasse um bebê do alto de uma torre, que atirasse uma
bola de fogo em outra pessoa, que soltasse touros furiosos em plena rua ou que
recurso e sem fiança. Mas como essas práticas viraram tradição, têm permissão até
para burlar a lei. Basta que seja alçada ao patamar de “tradição” que qualquer coisa
louvável.
situada na garagem de sua própria humilde residência) são levadas a sério por
estudiosos diplomados pelo simples fato de serem “tradição” de alguma igreja tida
como “tradicional”. Se o Seu Zezinho dissesse que José foi assunto aos céus, todos
1173
AGUIAR, Lívia. 10 tradições perigosas ao redor do mundo. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/coluna/superlistas/10-tradicoes-perigosas-ao-redor-do-mundo>. Acesso em:
20/01/2022.
1174
G1. Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com deficiência física. Disponível em:
<https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/12/tradicao-indigena-faz-pais-tirarem-vida-de-crianca-
com-deficiencia-fisica.html>. Acesso em: 20/01/2022.
1805
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1806
apresentam a mesma quantidade de evidências (ou seja, nenhuma), isso vira alvo
em Elvis Presley, todos diriam que ele está louco, mas se um padre diz que consegue
Jesus, como diz o Concílio de Trento1175, «com seus ossos, nervos e etc», como
e racional. Eu nem preciso dizer do que o Seu Zezinho seria taxado se dissesse que
tem uma água benta milagrosa que é só jogar na cara dos fiéis que vão pegar a
que teve visões do inferno como a santa católica que viu Lutero queimando ali
recentemente vai ser considerado uma loucura, e o mesmo erro inventado há muito
mais tempo vai parecer digno de muito crédito. No fim do dia, pouco importa se a
doutrina é bíblica ou não; o que importa é que é antiga, o que é sinônimo de ser
1175
Cap. VIII, Cânon 1. Disponível em: <http://agnusdei.50webs.com/trento17.htm>. Acesso em:
20/01/2022.
1176
Suma Teológica. Parte III, Questão 76, Artigo 1.
1177
Disponível em: <https://pt.churchpop.com/o-dia-em-que-uma-beata-teve-uma-visao-de-martinho-
lutero-no-inferno>. Acesso em: 20/01/2022.
1178
Só de heresias cristológicas, havia pelo menos doze bem conhecidas, isso dentro da própria
perspectiva católica, sem considerar todas as outras heresias dos primeiros séculos nas mais diversas
1806
esferas teológicas: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_heresias_cat%C3%B3licas>. Acesso em:
20/01/2022.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1807
antiquitatem ao ad populum. Mas, como já dizia Craig em seu famoso debate com
sólido”1179.
Por isso é tão difícil derrotar uma tradição. Não porque a tradição seja sólida,
racional ou faça algum sentido, mas por estar profundamente enraizada na cabeça
diz a mesma coisa, tem do seu lado todo o peso de uma tradição que remonta há
As pessoas não são suficientemente inteligentes para perceber que um erro crido
por centenas de gerações ou se ganhou aceitação geral: ele continua tão errado
quanto sempre foi. O fato de ter virado “tradição” não torna o ensino menos falso,
como se uma mentira contada mil vezes virasse verdade. Essa máxima popular está
burramente os erros umas das outras por acreditarem que não pode ter tanta gente
1179
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6d6ZHCQQw9I>. Acesso em: 20/01/2022.
1807
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1808
É isso, e apenas isso, que explica tantas tradições patentemente falsas serem
da alma é apenas mais uma. Se você perguntar a qualquer irmão da igreja quantos
magos visitaram Jesus na manjedoura, ele será rápido em responder “três”: os “três
reis magos”, dirá ele Além dos filmes, das pregações, das gravuras e dos livros que
fazem coro à tradição, quase toda peça teatral natalina mostra Jesus sendo visitado
na manjedoura pelos três reis magos. O problema é que a Bíblia não diz em lugar
nenhum que os magos eram três, muito menos que eram reis, e indica ainda que
Jesus já tinha cerca de dois anos quando os magos o visitaram (Mt 2:16), não na
deram-lhe três presentes (ouro, incenso e mirra), uma suposição bastante inocente,
já que podiam ser muitos magos trazendo esses presentes ou até mesmo dois
trazendo mais de um. Já a crença de que isso se deu por ocasião do nascimento de
manjedoura (Lc 2:8-12). Mas não há nada que sequer sugira que fossem reis (o que
quais dificilmente abandonariam seus súditos para perseguirem estrelas por meses.
até hoje e fazer a cabeça de todo mundo, se estabelecendo como uma verdade
universal apenas por ser consagrada pela tradição. Quer outro exemplo de como
1808
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1809
todo mundo? Pergunte aos irmãos de sua igreja quantas virgens da Parábola das
Dez Virgens caíram no sono. Nove em cada dez responderá “as cinco insensatas” (o
ficaram com sono e adormeceram” (Mt 25:5). O que diferenciou as virgens sensatas
das insensatas não foi o fato de não terem adormecido, mas de terem trazido azeite
para acender suas candeias (vs. 7-9). Mas talvez por confundir com os textos em
que Jesus diz para “vigiar” (Mc 13:37, 14:38; Mt 24:42, 25:13) e com o texto em que
Paulo exorta para que “não durmamos como os demais, mas estejamos atentos e
sejamos sóbrios” (1Ts 5:6), quase todo mundo pensa que somente as virgens
Outro exemplo simples de texto cuja leitura foi afetada pela tradição é o que
montanhas, mas Jesus não fala nada sobre “tamanho”. Ele diz apenas que se a nossa
fé for como o grão de mostarda, poderemos mover montanhas (Mt 17:20). “Como”
é diferente de “do tamanho”. Ele não expressa quantidade, mas qualidade. Jesus
havia contado uma parábola onde dizia que “o Reino dos céus é como um grão de
mostarda que um homem plantou em seu campo. Embora seja a menor dentre
numa árvore, de modo que as aves do céu vêm fazer os seus ninhos em seus ramos”
(Mt 13:31-32).
exatamente como em Mt 17:20, mas note que a ênfase não está no tamanho do
1809
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1810
grão, mas na sua capacidade de se tornar a maior de todas as hortaliças. Era o seu
crescimento, e não o seu tamanho, que fazia do grão de mostarda um modelo para
a fé. Nem mesmo faria sentido Jesus dizer que basta ter fé “do tamanho” de um
grão de mostarda para mover até montanhas, se naquele mesmo versículo Jesus
havia acabado de repreender os discípulos por terem uma fé pequena, razão por
Jesus não diria que basta ter uma fé pequena se estava justamente criticando
uma fé pequena, nem diria que uma fé pequena é suficiente para mover montanhas
se não tinha sido suficiente nem para expulsar um demônio. É evidente que o que
ele queria dizer é que se a fé dos discípulos fosse como um grão de mostarda – que
capazes de fazer tudo o que não conseguiram fazer por terem ainda uma fé
pequena. Mas o impacto da tradição sobre esse versículo foi tão forte que
influenciou até mesmo uma tradução séria como a da NVI, que traduziu por «do
pretendido no texto.
Esses são apenas alguns exemplos simples entre milhares de outros dos
quais precisaríamos de um outro livro tão imenso quanto este só para abordá-los,
onde crendices totalmente antibíblicas e que não fazem o menor sentido são
quantidade de coisas que todo mundo jura que está na Bíblia, mas que ninguém é
1810
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1811
acreditaríamos em tais coisas. Mas quando nós lemos a Bíblia, nós a lemos com as
lentes da tradição, que é tão onipresente em nosso meio que é impossível até
mesmo discernir o que cremos por tradição do que cremos por ser bíblico.
Por isso, estamos o tempo todo crendo em tradições que achamos ser
bíblicas, e nem suspeitamos quando uma delas não é. A consequência é que cremos
na tradição sem nem perceber, e julgamos estar na Bíblia o que aprendemos fora
dela. Note que não estamos falando aqui de um católico que crê na tradição por ser
tradição. Estamos falando de evangélicos que pensam crer apenas naquilo que é
bíblico, mas que mesmo sem saber acabam crendo em tradições antibíblicas da
Para ter uma ideia do quanto a tradição consegue influenciar até a mente
melhor do que examinar a conduta dos discípulos. Jesus lhes tinha dito para irem
ao mundo todo pregar a toda criatura (Mc 16:15), mas após sua morte eles estavam
momento (At 8:1-4). Mas por que eles relutaram tanto em cumprir aquilo que Jesus
Nós só temos essa resposta quando conhecemos a tradição judaica que era
profetas sendo enviados a pregar para a nação de Israel, com a única exceção de
Jonas, que mesmo assim se recusou a cumprir o chamado divino e foi engolido por
1811
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1812
um peixe por causa disso. O sentimento nacionalista judeu era tão forte que mesmo
depois disso Jonas só pregou em Nínive contrariado, e pediu pela morte após ver
que os ninivitas haviam mesmo se arrependido com a pregação (Jn 3:10, 4:1-3).
O primeiro apóstolo a pregar aos gentios foi Pedro, já muitos anos depois
da dispersão, e mesmo assim não o fez por vontade própria, mas instigado por uma
visão (At 10:9-35). É só então ele diz: “Agora percebo verdadeiramente que Deus
não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as nações aceita todo aquele
que o teme e faz o que é justo” (At 10:34-35). Isso significa que a tradição judaica
de se desassociar dos gentios era tão forte que se manteve na mente de Pedro e
dos apóstolos mesmo após Jesus ter expressamente pregado o contrário. E o pior
é que, muito tempo mais tarde, Pedro volta a censurar os gentios em Antioquia,
quando é severamente repreendido por Paulo por deixar de comer com os gentios
Salvador e receberam toda a doutrina em primeira mão – era tão difícil se libertar
dos nossos dias, que nunca viram Jesus em pessoa e nem vão receber uma visão
como Pedro. Tudo isso explica por que dificilmente doutrinas tão tradicionais como
1812
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1813
É importante dizer mais uma vez que nem toda tradição é falsa, e que nem
sempre ela é maléfica. Como em quase tudo na vida, ela tem seu lado bom e ruim.
Assim como o apego à tradição elimina qualquer chance remota de rever velhos
erros uma vez consagrados pela tradição, ela também evita mudanças doutrinárias
rejeitar guitarra e bateria no culto apenas porque elas não existiam na época da
Ela não abre espaço para restaurar a igreja de erros antigos, mas pelo menos fecha
ter apostatado completamente, mas uma igreja fundada ontem sem tradição
nenhuma pode não estar numa situação melhor (Agenor Duque que o diga). O
ponto todo não é se igrejas “tradicionais” são melhores ou piores, mas se a tradição
não são boas por serem tradições, são boas por serem bíblicas. A tradição é
responsável apenas por conservar acertos ou erros, não por tornar qualquer coisa
um acerto ou um erro. Ela explica por que as pessoas acreditam em alguma coisa,
1813
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1814
quando necessário.1180
Igreja buscavam aplicar esse critério, em vez de abraçar qualquer coisa tida como
aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha
epístolas ou Atos dos Apóstolos... que esta divina e santa tradição seja
observada.1181
1180
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 216-127.
1181
Epístola 74.
1814
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1815
inválido à luz da Bíblia. O problema é que isso era tido na época como parte da
romano que defendia essa prática baseada na tradição. O que Cipriano pede que
façamos é o mesmo que todo mundo deveria: em vez de engolir qualquer coisa tida
como “tradição”, questionar de onde procede essa tradição. Se não vem do que é
«prescrito no evangelho, ou contido nas epístolas ou Atos dos Apóstolos», ela tem
tanto valor quanto um CD pirata da Banda Calypso. Foi com esse mesmo critério
escopo dos Pais da Igreja mais antigos e só foi introduzida na Igreja em finais do
segundo século por razões que fogem totalmente da exegese bíblica. Nem
platônicas com noções cristãs a fim de apresentar um evangelho mais atrativo aos
aqui, nem fizeram uma exegese em torno de milhares de textos bíblicos estudados
e tentaram dar uma carinha cristã à parte de qualquer estudo hermenêutico sério
que a justificasse. É esse o tipo de tradição que deveríamos rejeitar com horror, em
1815
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1816
mesmo argumento da tradição, mas com uma mudança sutil de palavras. Em vez
de “tradição”, usam “ortodoxia” (talvez porque soe mais chique). Mas o que é
implantado como único e verdadeiro pela Igreja». Note que o conceito de ortodoxia
não está atrelado ao que é bíblico, mas ao que é “aceito pela Igreja”.
Mas que Igreja? Cada uma tem sua própria “ortodoxia”, que difere
herege. Você com certeza já deve ter visto muitos calvinistas acusarem os
Ortodoxa” – não preciso nem dizer quem eles pensam ser os ortodoxos!
A razão por que cada um tem um conceito próprio de ortodoxia que exclui
tradições variam de igreja pra igreja. Como cada uma acredita que a sua tradição é
1816
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1817
tradições. Assim, quando eles te acusam de não ser “ortodoxo”, o que eles querem
dizer com isso não é “você é antibíblico”, mas “você não se enquadra na nossa
tradição” – como se isso fosse gerar calafrios em quem crê em alguma coisa por ser
bíblica, e não por ser tradição. É o típico argumento inútil de gente carente que
precisa se encaixar em uma “ortodoxia” para ser bem aceito em um grupo, algo que
Se ser “ortodoxo” é se encaixar no que diz uma maioria, é apenas uma versão
casos, se dizer “ortodoxo” pode até fazer bem à autoestima de uma pessoa carente,
mas é inteiramente inútil como argumento. O único critério que deveríamos nos
preocupar é se uma doutrina é bíblica, ou seja, se foi realmente ensinada por Jesus
e pelos apóstolos. É isso o que realmente deveria fazer alguém ter orgulho de ser
chamado de “a seita dos nazarenos” (At 24:5) por ser uma facção recente e
com uma tradição humana e obsoleta (assim como a Reforma é o rompimento com
1817
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1818
sermos judeus ortodoxos – que não levam esse nome à toa. Isso nem de longe tem
a ver com ser conservador, mas com ser puramente reacionário – alguém refratário
a qualquer mudança.
Adicione a isso o fato de que a imortalidade da alma nunca foi tida como
dos católicos, que a têm como uma das doutrinas mais basilares (sem a qual eles
no capítulo 13).
mesmo citada, embora tanto uma como a outra classifiquem a ressurreição como
uma crença fundamental. O que mais impressiona é que nem mesmo a Confissão
próprio Lutero, fala qualquer coisa sobre a imortalidade da alma, embora seja uma
1182
Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/credos/39artigos.htm>. Acesso em:
10/02/2022.
1183
Disponível em: <http://metodistabrasil.blogspot.com/2010/05/doutrinas-da-igreja-metodista.html>.
Acesso em: 10/02/2022.
1184
Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/textos/a-confissao-de-augsburgo>. Acesso em:
10/02/2022. 1818
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1819
que apenas nas confissões calvinistas a imortalidade da alma seja enfatizada, o que
história, que se reuniu para definir o que é necessário crer para ser considerado
votos que a imortalidade da alma não é uma doutrina essencial, e que os mortalistas
tomada pela Sociedade Teológica Evangélica, fundada por Norman Geisler, que
A decisão não poderia ser outra, já que, se os mortalistas não podem ser
considerados evangélicos, isso excluiria até mesmo Oscar Cullmann, John Stott, F.
evangélico atual da Bíblia. Isso também desmantela uma tática comum dos adeptos
Brasil, todas elas vistas por eles como “sectárias”. E se essas denominações
“suspeitas” ensinam tal coisa, essa coisa deve estar errada, raciocinam eles. Esse
1819
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1820
modus operandi de identificar uma heresia por associação já foi denunciado por
pode ser decidida por sua associação e não precisa ser testada por
defendem isso, e então isso deve ser falso). Usando a mesma lógica, poderíamos
fazendo o mesmo que aqueles que nos acusam de “heresia por associação”, sem
1185
PINNOCK, Clark H. “The Conditional View”. In: Four Views on Hell. (ed. W. Crockett). Grand Rapids:
Zondervan, 1992, p. 161.
1820
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1821
muito mais graves – entre os imortalistas do que entre os mortalistas, e nem por
isso descemos tão baixo a ponto de acusar uma doutrina exclusivamente em função
dos grupos que a ensinam. Antes que alguém diga que fizemos isso o tempo todo
inúmeras razões por que essa crença é falsa a despeito de sua procedência.
um apedeuta diria que a crença mortalista surgiu no meio cristão através de Ellen
White ou de Charles Russell (o que mesmo assim é dito por muita gente, já que
apedeuta é o que não falta na apologética imortalista). Como vimos no capítulo 13,
Ainda que nem todo imortalista seja tão desqualificado a ponto de chamar
existe uma razão emocional relacionada a isso que é responsável por fazer com que
muitos deles acabem na prática agindo assim, pelo menos para definir suas próprias
crenças. Isso porque não falta gente que gosta de posar de “ortodoxa” por aí,
1821
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1822
de ser associada a “grupos sectários” por crer em algo que eles também creem
(ainda que haja muitas diferenças entre o aniquilacionismo defendido neste livro e
o defendido pelas TJ, que não creem nem que os ímpios ressuscitarão, nem que
serão julgados ou que sofrerão por algum tempo antes de serem aniquilados).
bons mocinhos, do que crer no que a Bíblia ensina e serem associados a “sectários”.
São como os «muitos líderes dos judeus» que creram em Jesus, mas que, “por causa
dos fariseus, não confessavam a sua fé, com medo de serem expulsos da sinagoga;
pois preferiam a aprovação dos homens do que a aprovação de Deus” (Jo 12:42-
43). Isso pode ser aplicado hoje a muita gente que não quer perder seus cargos de
manifestar uma crença tida como própria de grupos “heréticos”. Há outros tantos
que sequer têm muito a perder, mas preferem ser bem vistos pelos homens do que
imortalista até hoje, mesmo que não precisasse tocar no assunto. A partir do
momento em que você assume uma posição tida como “heterodoxa” pela maioria
dos seus pares, você passa a ser difamado por uns, detestado por outros,
perseguido pelos mais radicais e malvisto por muitos dos mais “moderados”, além
1822
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1823
específico, é visto com reservas por todos eles, e numerosas portas se fecham. É um
Neste caso, aceitar a verdade bíblica sobre o que acontece após a morte seria visto
como “dar o braço a torcer para as seitas”, e por isso é uma questão de honra
pessoal não ceder a elas, como se tivessem que estar erradas em tudo (note que
eles não aplicam o mesmo critério a seitas como o espiritismo, que eles também
alma).
Para muitos deles, o simples fato de atacar o mortalismo, mesmo sem sequer
saber direito do que estão falando, lhes confere um “selo de ortodoxia” – o que,
nada mais é que o consenso de uma maioria (maioria essa que varia de grupo pra
grupo, o que explica por que coisas consideradas “ortodoxas” para uns são tidas
1823
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1824
olhos dos outros, mas em ser tido como fiel aos olhos de Deus. E por mais difícil que
isso seja, cada vez mais teólogos se libertam de todo cativeiro mental que os amarra
Além dos muitos nomes que nós vimos no capítulo 13, Samuele Bacchiocchi
chega a citar em seu livro repleto de referências nada a menos que 300 teólogos
maneira na escola dominical, nos sermões, nos seminários teológicos, nos livros e
vista apenas pela leitura das Escrituras, mesmo cientes de que isso os colocava
crença tem um peso muito maior que a de quem a mantém desde sempre. Quem
tomar essa decisão – uma decisão impopular e que poderia lhe trazer
consequências sérias –, mas muitos dos que defendem algo “desde sempre” o
fazem apenas por terem aprendido assim, sem jamais terem tido a coragem de
confrontar suas próprias crenças para chegar às suas próprias conclusões. Além
disso, quem mudou de opinião foi obrigado a rever sua programação mental – ou
1824
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1825
seja, se livrar de qualquer preconceito que o impedia de enxergar algo –, coisa que
imortalista. Talvez eles existam, mas se escondem tão bem que não são
uma involução, um passo pra trás, algo que ninguém faria no alto de suas
catolicismo por razões bíblicas, já que a Bíblia está claramente do lado contrário,
continuar acreditando que a Bíblia ensina a imortalidade da alma. Isso cria uma forte
predisposição mental a enxergar nos textos algo que não está ali, o que explica por
em imortalidade da alma. Esse cenário tem mudado aos poucos, na medida em que
mais teólogos tomam a coragem de expor o que a Bíblia realmente ensina sobre o
conhecida.
Pode parecer bizarro, mas a maioria dos próprios cristãos (incluindo os que
têm familiaridade com a Bíblia, que são uma minoria) sequer conhecem ou ouviram
1825
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1826
estudos bíblicos que já participaram isso nunca foi discutido e nem mesmo
bíblica.
espantalhos que demonstram que nem eles mesmos conhecem aquilo que se
aventuram a criticar. Se nem eles sabem do que estão falando, imagine o povão,
Felizmente, com a invenção e difusão da internet, tem sido cada vez mais
dos fiéis, os quais agora têm acesso a um conhecimento muito mais amplo que se
1826
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1827
espalha cada vez mais. Talvez seja isso o que causou espanto a certo anglocatólico
aconteceu.
O que aconteceu foi que as pessoas estão cada vez menos dependentes de
crenças dos fiéis. Se antes a maioria das pessoas tinha “horror” àquilo que
mais fácil encarar o mortalismo com “horror” quando tudo o que se sabe sobre ele
livro sobre o tema, que embora muito menor e menos robusta levou centenas de
1827
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1828
humilde desconhecido. São poucas as pessoas que leram o livro e mantiveram suas
crenças, o que me leva a perguntar quanto mais gente poderia ter sido impactada
Essa é outra razão por que o ad populum é tão irrelevante: as pessoas não
têm acesso a ambos os lados com igualdade de conhecimento para tomar uma
decisão consciente por um dos dois. Na maioria dos casos, elas conhecem pouco
irrelevante, já que se elas conhecessem a sua visão poderia ser outra. Se levássemos
em conta apenas a opinião das pessoas com uma boa base sobre os dois lados –
por exemplo, que leram este livro e algum livro imortalista para efeitos de
populum.
Infelizmente, porém, é possível que isso nunca ocorra, por uma razão muito
simples: as pessoas cada vez menos têm vontade de ler, estudar e aprender coisas
novas que sejam relevantes ao seu conhecimento. Na era do TikTok e dos stories
do Instagram, são poucos os guerreiros que chegarão até essa parte do livro sem
terem pulado nada, ou mesmo a se animar a começar a ler um livro tão grande. O
conhecimento está mais acessível do que nunca, mas nunca antes houve tão pouco
interesse por ele. Um sábio certa vez disse que a Bíblia é o livro mais vendido do
É por isso que a maioria das pessoas se assusta até mesmo ao ouvir alguém
falar que a palavra “inferno” não está na Bíblia, que a Bíblia nunca ensina que vamos
1828
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1829
morar no céu, que o sofrimento dos perdidos não é eterno ou que a alma morre.
Essas coisas parecem chocantes a elas porque quanto menos alguém conhece algo,
mais se escandaliza ao se deparar com aquilo. Por isso é absolutamente natural que
uma pessoa que foi doutrinada a vida toda com uma única verdade e que sequer
estava a par da existência de outros pontos de vista se horrorize com a simples ideia
de que esses outros pontos de vista existem. O horror na verdade não é do ponto
de vista em si, mas da mera possibilidade de ter sido ensinado errado a vida toda
Numa era em que as pessoas não se interessam mais por estudar a fim de
formar suas próprias convicções, o que resta é seguir a manada, balançar a cabeça
que dizem as “autoridades”. É justamente por essa preguiça de pensar pela própria
cabeça e por terceirizar a atividade mais importante da mente humana que muitos
jamais mudarão de parecer não importa quantas provas sejam apresentadas, a não
ser que o consenso da maioria mude de lado ou que os líderes da sua igreja passem
a ensinar isso.
1829
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1830
moral perderão sua força na consciência popular? Acho difícil. Além de eu não ser
vícios que dominam a mente humana desde sempre, sem que haja qualquer indício
história humana, os filhos têm um QI inferior ao dos pais1186. E a julgar pela onda de
Isso talvez explique por que é tão difícil ter uma discussão inteligente com
pessoas racionais, seja sobre esse tema ou sobre qualquer outro. Não importa o
quão pouco estudo as pessoas tenham na área, elas têm sempre a certeza de
disposição que se tem para falar é inversamente proporcional à que se tem para
ouvir, assim como a vontade de esfregar a verdade na cara dos outros é sempre
maior que a de sentar, ler e aprender, com a mente aberta para mudar convicções
1186
VELASCO, Irene Hernández. 'Geração digital': por que, pela 1ª vez, filhos têm QI inferior ao dos pais.
Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-54736513>. Acesso em: 05/02/2022.
1830
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1831
intérprete sério e sincero na busca pela verdade. Nós não temos a missão de
convencer todo mundo da verdade, como se isso fosse mesmo possível. Se até o
filho de Deus foi rejeitado pelos homens e colocado numa cruz, não deveríamos
maioria morre no engano e sem salvação. Não são os outros que devem pautar o
que cremos, mas a Palavra de Deus que deve pesar sobre a nossa consciência.
Mesmo quando apenas sete mil joelhos não haviam se dobrado diante de
Baal em toda a terra de Israel (1Rs 19:18), o Eterno continuou sendo o Deus
Elias julgava ser o último adorador do Deus vivo que havia restado, ele não olhou
para as pessoas ao seu redor para pautar sua própria crença, mas seguiu fiel à
Ainda que haja pouca esperança para a humanidade, nossa consciência deve
ser a mesma de Lutero na emblemática Dieta de Worms (1521), que definiu o futuro
da Reforma. Mesmo cercado pelas autoridades católicas e ciente de que sua cabeça
1831
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por que tanta gente ainda acredita na imortalidade da alma? 1832
(pois não confio nem no papa nem nos concílios por si sós, pois é bem
na raiz da própria Reforma, esses mesmos argumentos são usados hoje em dia por
areia do papado, Deus tem levantado pessoas simples nos mais diferentes lugares
1187
SAUSSURE, A de. Lutero: o grande reformador que revolucionou seu tempo e mudou a história da
igreja. São Paulo: Vida, 2004, p. 73.
1832
APÊNDICE 1833
APÊNDICE
No Texto bíblico
“Mas àqueles que o desprezam, retribuirá com destruição; ele não
1
demora em retribuir àqueles que o desprezam” (Deuteronômio 7:10)
“Aqueles que se opõem ao Senhor serão despedaçados. Ele trovejará do
2 céu contra eles; o Senhor julgará até os confins da terra. Ele dará poder a
seu rei e exaltará a força do seu ungido” (1º Samuel 2:10)
“Pelo sopro de Deus são destruídos, pelo vento de sua ira eles perecem”
3
(Jó 4:9)
“Um fogo não assoprado o consumirá e devorará o que sobrar em sua
tenda. Os céus porão à mostra a sua culpa; a terra se levantará contra ele.
4 Uma inundação arrastará a sua casa, águas avassaladoras, no dia da ira
de Deus. Esse é o destino que Deus dá aos ímpios, é a herança designada
por Deus para eles” (Jó 20:26-29)
“Não é o caso dos ímpios! São como a palha que o vento leva. Por isso não
resistirão no julgamento, nem os pecadores na comunidade dos justos.
5
Pois o Senhor aprova o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios
leva a destruição!” (Salmos 1:4-6)
“Proclamarei o decreto do Senhor: Ele me disse: Tu és meu filho; eu hoje
te gerei. Pede-me, e te darei as nações como herança e os confins da terra
6
como tua propriedade. Tu as quebrarás com vara de ferro e as
despedaçarás como a um vaso de barro” (Salmos 2:7-9)
1833
APÊNDICE 1834
“Beijem o filho, para que ele não se ire e vocês não sejam destruídos de
7
repente, pois num instante acende-se a sua ira” (Salmos 2:12)
“Destróis os mentirosos; os assassinos e os traiçoeiros o Senhor detesta”
8
(Salmos 5:6)
“Quando os meus inimigos contigo se defrontam, tropeçam e são
9
destruídos” (Salmos 9:3)
“Repreendeste as nações e destruíste os ímpios; para todo o sempre
10
apagaste o nome deles” (Salmos 9:5)
“Voltem os ímpios ao pó, todas as nações que se esquecem de Deus!”
11
(Salmos 9:17)
“Sobre os ímpios fará chover laços, fogo, enxofre e vento tempestuoso;
12
isto será a porção do seu copo” (Salmos 11:6)
“No dia em que te manifestares farás deles uma fornalha ardente. Na sua
13
ira o Senhor os devorará, um fogo os consumirá” (Salmos 21:9)
“O rosto do Senhor volta-se contra os que praticam o mal, para apagar
14
da terra a memória deles” (Salmos 34:16)
“A desgraça matará os ímpios, os que odeiam os justos serão
15
condenados” (Salmos 34:21)
“Lá estão os malfeitores caídos, lançados ao chão, incapazes de levantar-
16
se!” (Salmos 36:12)
“Não se aborreça por causa dos homens maus e não tenha inveja dos
17 perversos; pois como o capim logo secarão, como a relva verde logo
murcharão” (Salmos 37:1-2)
“Pois os maus serão exterminados, mas os que esperam no Senhor
18
receberão a terra por herança” (Salmos 37:9)
1834
APÊNDICE 1835
“Um pouco de tempo, e os ímpios não mais existirão; por mais que os
19 procure, não serão encontrados. Mas os humildes receberão a terra por
herança e desfrutarão pleno bem-estar” (Salmos 37:10-11)
“Os ímpios desembainham a espada e preparam o arco para abaterem o
necessitado e o pobre, para matarem os que andam na retidão. Mas as
20
suas espadas lhes atravessará o coração, e os seus arcos serão
quebrados” (Salmos 37:14-15)
“O Senhor cuida da vida dos íntegros, e a herança deles permanecerá
para sempre. Em tempos de adversidade não ficarão decepcionados; em
21 dias de fome desfrutarão fartura. Mas os ímpios perecerão, e os inimigos
do Senhor serão como a gordura dos cordeiros; desaparecerão, e em
fumaça se desfarão” (Salmos 37:18-20)
“Aqueles que o Senhor abençoa receberão a terra por herança, mas os que
22
ele amaldiçoa serão eliminados” (Salmos 37:22)
“Pois o Senhor ama quem pratica a justiça, e não abandonará os seus
23 fiéis. Para sempre serão protegidos, mas a descendência dos ímpios será
eliminada” (Salmos 37:28)
“Espere no Senhor e siga a sua vontade. Ele o exaltará, dando-lhe a terra
24 por herança; quando os ímpios forem eliminados, você o verá” (Salmos
37:34)
“Mas todos os rebeldes serão destruídos, futuro para os ímpios nunca
25
haverá” (Salmos 37:38)
“Considerem isto, vocês que se esquecem de Deus; caso contrário os
26
despedaçarei, sem que ninguém os livre” (Salmos 50:22)
“Amas todas as palavras devoradoras, ó língua fraudulenta. Também
27 Deus te destruirá para sempre; arrebatar-te-á e arrancar-te-á da tua
habitação; e desarraigar-te-á da terra dos viventes. E os justos o verão, e
1835
APÊNDICE 1836
temerão, e se rirão dele, dizendo: Eis aqui o homem que não pôs a Deus
por sua fortaleza; antes, confiou na abundância das suas riquezas e se
fortaleceu na sua maldade” (Salmos 52:4-5)
“Recaia o mal sobre os meus inimigos! Extermina-os por tua fidelidade!”
28
(Salmos 54:5)
“Destrói os ímpios, Senhor, confunde a língua deles, pois vejo violência e
29
brigas na cidade” (Salmos 55:9)
“Desapareçam como a água que escorre! Quando empunharem o arco,
30
caiam sem força as suas flechas!” (Salmos 58:7)
“Sejam como a lesma que se derrete pelo caminho; como feto abortado,
31
não vejam eles o sol!” (Salmos 58:8)
“Os ímpios serão varridos antes que as suas panelas sintam o calor da
lenha, esteja ela verde ou seca. Os justos se alegrarão quando forem
32 vingados, quando banharem seus pés no sangue dos ímpios. Então os
homens comentarão: ‘De fato os justos têm a sua recompensa; com
certeza há um Deus que faz justiça na terra’” (Salmos 58:9-11)
“Consome-os em tua ira, consome-os até que não mais existam. Então
33
se saberá até os confins da terra que Deus governa Jacó” (Salmos 59:13)
“Até quando maquinareis o mal contra um homem? Sereis mortos todos
34 vós, sereis como uma parede encurvada e uma sebe prestes a cair”
(Salmos 62:3)
“Aqueles, porém, que querem matar-me serão destruídos; descerão às
35
profundezas da terra” (Salmos 63:9)
36 “Serão entregues à espada e devorados por chacais” (Salmos 63:10)
“Que tu dissipes assim como o vento leva a fumaça, como a cera derrete
37 na presença do fogo, assim pereçam os ímpios na presença de Deus”
(Salmos 68:2)
1836
APÊNDICE 1837
1837
APÊNDICE 1838
“O Senhor está à tua direita; ele esmagará reis no dia da sua ira” (Salmos
49
110:5)
“Julgará as nações, amontoando os mortos e esmagando governantes
50
em toda a extensão da terra” (Salmos 110:6)
“O ímpio o verá, e se entristecerá; rangerá os dentes, e se consumirá; o
51
desejo dos ímpios perecerá” (Salmos 112:10)
“Tu destróis como refugo todos os ímpios da terra; por isso amo os teus
52
testemunhos” (Salmos 119:119)
“Caiam brasas sobre eles, e sejam lançados ao fogo, em covas das quais
53 jamais possam sair. Que os difamadores não se estabeleçam na terra, e a
desgraça persiga os violentos até à morte” (Salmos 140:10-11)
“O Senhor guarda a todos os que o amam; porém os ímpios serão
54
exterminados” (Salmos 145:20)
“Pois a inconstância dos inexperientes os matará, e a falsa segurança dos
55
tolos os destruirá” (Provérbios 1:32)
“Pois os justos habitarão na terra, e os íntegros nela permanecerão; mas
56 os ímpios serão eliminados da terra, e dela os infiéis serão arrancados”
(Provérbios 2:21-22)
“As maldades do ímpio o prendem; ele se torna prisioneiro das cordas do
57 seu pecado. Certamente morrerá por falta de disciplina; andará
cambaleando por causa da sua insensatez” (Provérbios 5:22-23)
“Por isso a desgraça se abaterá repentinamente sobre ele; de um golpe
58
será destruído, irremediavelmente” (Provérbios 6:15)
“Os tesouros de origem desonesta não servem para nada, mas a retidão
59
livra da morte” (Provérbios 10:2)
“Passada a tempestade o ímpio já não existe, mas o justo permanece
60
firme para sempre” (Provérbios 10:25)
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APÊNDICE 1845
“Ah! Aquele dia! Sim, o dia do Senhor está próximo; como destruição
116
poderosa da parte do Todo-poderoso, ele virá” (Joel 1:15)
“Todos os pecadores que há no meio do meu povo morrerão à espada,
todos os que dizem: ‘A desgraça não nos atingirá nem nos encontrará’.
117 Naquele dia levantarei a tenda caída de Davi. Consertarei o que estiver
quebrado, e restaurarei as suas ruínas. Eu a reerguerei, para que seja
como era no passado” (Amós 9:10-11)
“Por causa da violenta matança que você fez contra o seu irmão Jacó, você
118
será coberto de vergonha e eliminado para sempre” (Obadias 1:10)
“Assim como vocês beberam do meu castigo no meu santo monte,
119 também todas as nações beberão sem parar. Beberão até o fim, e serão
como se nunca tivessem existido” (Obadias 1:16)
“Embora estejam entrelaçados como espinhos e encharcados de bebida
120
como bêbados, serão consumidos como a palha mais seca” (Naum 1:10)
“Eis sobre os montes os pés do que traz as boas novas, do que anuncia a
paz! Celebra as tuas festas, ó Judá, cumpre os teus votos, porque o ímpio
121
não tornará mais a passar por ti; ele é inteiramente exterminado”
(Naum 1:15)
“Naquele dia, declara o Senhor, haverá gritos perto da porta dos Peixes,
lamentos no novo distrito, e estrondos nas colinas. Lamentem, vocês que
122 moram na cidade baixa; todos os seus comerciantes serão
completamente destruídos, todos os que negociam com prata serão
arruinados” (Sofonias 1:10-11)
“Trarei aflição aos homens; andarão como se fossem cegos, porque
123 pecaram contra o Senhor. O sangue deles será derramado como poeira, e
suas entranhas como lixo” (Sofonias 1:17)
1845
APÊNDICE 1846
“Porque eis que aquele dia vem ardendo como fornalha; todos os
soberbos, e todos os que cometem impiedade, serão como a palha; e o dia
124
que está para vir os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que
lhes não deixará nem raiz nem ramo” (Malaquias 4:1)
“E pisareis os ímpios, porque se farão cinza debaixo das plantas de
125 vossos pés, naquele dia que estou preparando, diz o Senhor dos
Exércitos” (Malaquias 4:3)
“Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-
126 lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos
homens” (Mateus 5:13)
“Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei
127 antes aquele que pode destruir no inferno tanto a alma como o corpo”
(Mateus 10:28)
“’Portanto, quando vier o dono da vinha, o que fará àqueles lavradores?’
Responderam eles: ‘Matará de modo horrível esses perversos e arrendará
128
a vinha a outros lavradores, que lhe deem a sua parte no tempo da
colheita’” (Mateus 21:40-41)
“Aquele que cair sobre esta pedra será despedaçado, e aquele sobre
129
quem ela cair será reduzido a pó” (Mateus 21:44)
“O que fará então o dono da vinha? Virá e exterminará aqueles
130
lavradores e dará a vinha a outros” (Marcos 12:9)
“Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a vida
131
por minha causa, este a salvará” (Lucas 9:24)
“Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, e perder-se ou
132
destruir a si mesmo?” (Lucas 9:25)
“Ele, porém, lhes disse: Pensais que esses galileus eram mais pecadores
133
do que todos os outros galileus, por terem padecido estas coisas? Não
1846
APÊNDICE 1847
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APÊNDICE 1848
“Pois Davi não subiu ao céu, mas ele mesmo declarou: O Senhor disse ao
142 meu Senhor: Senta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos
como estrado para os teus pés” (Atos 2:34-35)
“Acontecerá que toda alma que não ouvir a esse profeta será
143
exterminada do meio do povo” (Atos 3:23)
“Cuidem para que não lhes aconteça o que disseram os profetas: Olhem,
144 escarnecedores, admirem-se e pereçam; pois nos dias de vocês farei algo
que vocês jamais creriam se alguém lhes contasse!” (Atos 13:40-41)
“Embora conheçam o justo decreto de Deus, de que as pessoas que
145 praticam tais coisas merecem a morte, não somente continuam a praticá-
las, mas também aprovam aqueles que as praticam” (Romanos 1:32)
“Todo aquele que pecar sem lei, sem a lei também perecerá, e todo
146
aquele que pecar sob a lei, pela lei será julgado” (Romanos 2:12)
“Não sabem que, quando vocês se oferecem a alguém para lhe obedecer
como escravos, tornam-se escravos daquele a quem obedecem: escravos
147
do pecado que leva à morte, ou da obediência que leva à justiça?”
(Romanos 6:16)
“Que fruto colheram então das coisas das quais agora vocês se
148
envergonham? O fim delas é a morte!” (Romanos 6:21)
“Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a
149
vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Romanos 6:23)
“Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito
150
mortificardes as obras do corpo, vivereis” (Romanos 8:13)
“E se Deus, querendo mostrar a sua ira e tornar conhecido o seu poder,
151 suportou com grande paciência os vasos da sua ira, preparados para a
destruição?” (Romanos 9:22)
1848
APÊNDICE 1849
“Pois a palavra da cruz é uma estultícia para os que perecem, mas para
152
nós que somos salvos é o poder de Deus” (1ª Coríntios 1:18)
“Entretanto, falamos de sabedoria entre os que já têm maturidade, mas
153 não da sabedoria desta era ou dos poderosos desta era, que estão sendo
reduzidos a nada” (1ª Coríntios 2:6)
“Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espírito de Deus
habita em vocês? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o
154
destruirá; pois o santuário de Deus, que são vocês, é sagrado” (1ª
Coríntios 3:16-17)
“Porque para Deus somos o aroma de Cristo entre os que estão sendo
155
salvos e os que estão perecendo” (2ª Coríntios 2:15)
“Para estes somos cheiro de morte; para aqueles, fragrância de vida” (2ª
156
Coríntios 2:16)
“Ele nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da
157 letra, mas do Espírito; pois a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2ª
Coríntios 3:6)
“Se ainda um véu permanece sobre o nosso evangelho, naqueles que
158
perecem está o véu” (2ª Coríntios 4:3)
“A tristeza segundo Deus não produz remorso, mas sim um
159 arrependimento que leva à salvação, e a tristeza segundo o mundo produz
a morte” (2ª Coríntios 7:9)
“Quem semeia para a sua carne, da carne colherá destruição; mas quem
160
semeia para o Espírito, do Espírito colherá vida eterna” (Gálatas 6:8)
“Sem de forma alguma deixar-se intimidar por aqueles que se opõe a
161 vocês. Para eles isso é sinal de destruição, mas para vocês, de salvação, e
isso da parte de Deus” (Filipenses 1:28)
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1850
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1851
APÊNDICE 1852
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tenho uma enorme gratidão por ter sido de longe o que mais ajudou a esclarecer meu
Se há 12 anos alguém me dissesse que o mesmo autor dos artigos que tanto me
impactaram faria o prefácio do meu livro sobre esse mesmo tema, eu jamais acreditaria.
Agradeço ainda ao Bruno Soares por gentilmente ter se disponibilizado a fazer a capa
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