Annales e America Latina

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O p•·esente número quádruplo, que cobre os anos de


1983 e 1984, apresenta-se debaixo de um título geral: "Ques-
tões Históricas - 1". De imed:ato, fica sugerida a seqüência
dessa temática no seu número subseqüente, que cobrirá os
anos de 1985 e 1986; o que remediará em parte a atualização
do periód ico e permitirá a sua regularidade sob o influxo de
A ESCOLA DOS ANNALES E AS AMÉRICAS
uma nova política editorial. LATINAS(*)- (1929- 1949)
Este número se abre com um artigo do professor Guy
MARTINIERE, que apresenta particular interesse para a his-
tor:ografia geral sobre a América Latina, mas sobretudo para Guy MARTINitRE
a história do intercâmbio cultural entre Brasil e França nesta
área. Segue-se uma importante colaboração de Luiz Felipe
BAETA NEVES FLORES, por seu agudo questionamento epis-
temológico e metodológico do modo de fazer a historiografia Ao apresentar a tábua analítica de "Vinte anos de histó-
do Brasil Colônia, part:cularmente no que concerne ao campo ria econômica e social" de Anna/es publicada em 1953, Mau-
religioso. O historiador norte-americano, Billy Jaynes CHAN- rice A. ARNOULD constatava o quanto esta Revista constitura,
DLER, que já se fez conhecido por outras produções de es- "potencialmente, um notável instrumento bibliográfico". E ele
pecial interesse para a elaboração histórica do Ceará e do acrescentava: "se os Anna/es. . . desfrutaram de uma audiên-
Nordeste, apoiando-se nessa experiência, desenvolve uma re- cia excepcional, também fizeram passar sobre a produção ci-
flexão histórico-comparativa e-o redor do chamado banditis- entífica da maioria dos países uma curiosidade mais ins::lciá-
mo social e se coloca contra a sua significação fora do âm- vel do que nenhuma <:>utra" (I). Ora, na análise da produção
bito da crim inalid .::de comum; argumento que suscitará por científica concernente à América Latina, a parte ocupada por
certo alguma discussão. O texto do professor René RIBEIRO esta revista, de 1929 a 1948, parece efetivamente espantosa
constitui um depoimento pr.ecioso para a histór:a da Antro- na produção histórica francesa. A América Latina, na própria
pologia no Bmsil, especialmente pela contextualização teórica emergência da nova concepção de História proposta como
em que ele se estriba. Já a colaboração da professora Suely um desafio pela "escola dos Annales", ocupou um terreno pri-
Machado CRESPO apresenta informações substant:vas para viiegiado, trabalhado intensame'1te por numerosos colabora-
a história econômica e política da Península Ibérica no curso dores da revista, e não dos menores.
do século XVIII, de evidente alcance para nossa própria his-
toriografia. O caráter sufic ientemente explícito do título do 1. - O espaço ocupado pela América Latina na revista.
artigo de Antônio Eymard CAVALCANTE PORTO dispensa
ma:ores comentários, salvo no que se refere ao fato de que Desde o primeiro ano de seu aparecimento, o segundo
el.e nos traz de volta, mediante esclarecedora indagação, um volume trimestral dos A!1na/es d'Histoire tconomique et So-
capítulo relevante da história local. Finalmente, a professora
Luciara Silve ira de ARAGÃO E FROTA reabre a discussão (*l Comunicação apresentada no Colóquio de Torun, Polônia, (1978),
sobre a existência de um campesinato brasileiro, situando o sobre "'A Imagem da América na Europa nos séculos XIX e XX" e pro-
suporte empírico dessa reflexão nas fases finais do Segundo movido pela Associação Européia de Historiadores LaJno-americanis-
tas.
Império. Encerra este número da rev:s:a a seção de resenha de
livros, inaugurada no volume anterior. 1) Maurice A. ARNOULD: introduction à Vingt années d'histoire éconamique
et sociale. Table analytique des 'ANNA LHS' fondées par Marc BLOCH et
Luden FERVRE {1929-1948), p. ó. Paris: A. Colin, 1953, 345 pp. (avec
Secretário-Geral, ed:tor. la coilaboration de Vital CHOMEL, Paul LEUlLLOT, André SCUFFLAI-
RE, augmentée des tables et index 1949-1951).

Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.0 1/2, 1983/1984 1


evidente que as contribuições regulares de vários colabora-
ciale, consagrava, por exemplo, vinte páginas densas de
dores habituais da revista se apresentavam como a prova do
Lucien FEBVRE a traçar o quadro de trabalhos que foram
interesse permanente pela América Latina dem:mstrado pelos
"por muito tempo o apanág:o unicamente dos etnógraíos"
membros de seu com1tê de redação e por seus próprios di-
mas que um interesse de novel e bom quilate alargava para
retores (4). Desse modo, Lucien FEBVRE assinou 59 textos
outras disciplinas a tal ponto "que um pouco por toda parte - ref.erindo-se à América Lat:na, Fernand BRAUDEL, 23; Paul
constatava nesse autor - começa-se a experimentar um pouco LEUILLOT, 17; Pierre BONF,3EIG, 9; etc. Mas as assinaturas de
de curios idade d;ante dos múlttplos problemas que apresen-
historiadores ou de pesquisadores de reputação reconhecida,
tam à ciência de hoje a história e a geografia desse imenso
trazendo à revista sua colaboração mais regular, como Henri
continente ... " . (2) Em suma, desde sua criação, os Annales
HAUSER, Albert GIRARD, André E. SAYOUS, Earl J. HAMIL-
atralram a atenção de seus leitores para "um c:;:.mpo privile-
TON, Max SORRE, Abel CHATELAIN, etc., freqüentement-e sob
giado de estudos: a América do Sul". Em 1948, vinte anos
a forma de artigos de fundo, reflet iam o avanço de trabalhos
após, o volume do último trimestre dos novos ANNALES: Eco- pessoais e contribuíam para traçar certas vias que jovens pes-
nomies - Sociétés - Civilisations propunha - coisa única
quisadores pod.eriam, por sua vez, desbravar.
um número especial da revista inteiramente consagrado ao
De fato. nesses vinte anos de publicação dos Annales, a
continente "latino" do Novo Mundo, trazendo O significativo
partir de um "programa", quase um manifesto, escrito por
tftulo de ''Através das Améric2.s Latinas". Se Lucien FEBVRE Lucien FEBVRE em 1929, iam destacar-se duas grandes cor-
se desculpava de só poder apresentar em "duzentas pági-
rentes de aplicação· uma. da Europa, de seus arquivos orga-
nas ... a América do Sul diante da História", ele se ccmpra-
nizados e classificados, questionava o Novo Mundo a fim de
zia em recordar porém quanto o seu artigo de 1929 perma-
reescrever uma h1slória européia em plena muLção (nesse t~
necia sempre "o programa mesmo ao qual responde nosso
sentido, a história colonial da América luso-hispânica e fran-
número esp.ecial de hoje ... ": "pôr ao alcance de noss:s lei-
cesa revela-se um ponto forte dessa "revisão"); a outra, me-
tores todo um domínio, mal explorc..do ainda, da vida e da ex-
nos eurocêntrica, muito mais "a.mericanista", fez da própria
periência dos homens ... , enriquecê-los com as primeiras
América uma terra de missões de que o caso brasileiro se
conquistas da história sobre esse vasto campo do desconhe-
mostra exemplar. Se a ligação ainda privilegiada com a Eu-
cido" (3) continuava sendo uma tarefa priori~ária, parcialmen-
te cumprida, todavia. Assim, tal continuidade de preocupa- ropa era mantida para além da.s questões de transferência
ções de 1929 a 1948 tinha permitido a qu3.renta e três cola- de metais preciosos, de relações comerciais - e a análise
da troca dos produtos se apresenta como um ponto forte
boradores diversos encontrar o meio de se exprimir sobre a
América Latina, dando conta de trabalhos publicados por cer-
4) Por ·'América Latina" compreendemos não apenas a área cultural luso-
ca de duzentos autores. Em 3. 763 contribuições recenseadas hispânica tradic•onal, mas também os territórios de língua francesa e in·
na tábua analítica, aproximadamente duzentas se referiram glcsa situados ao Sul do Rio Grande. Uma definição bastante discutível:
dir.eta ou indiretamente a nosso assunto, ou sej3., 5%, em mas era preciso escolher. Alias, não foi possível contabilizar o número
números redondos, do conjunto dos artigos. E uma quinzena exato de páginas consagradas pela Revista ao nosso assunto. A diversi-
dade dos temas tratados, quer de maneira geral, quer a partir de trabalhos
de "artigos de fundo" especializados era consagrada precisa- centrados sobre a península ibérica ou a Europa mas concernindo também
mente a esse continente sobre os 25 que se lhe referiam. !: ao contmente, torn<1va a nossos olhos essa tarefa dificilmente realizável no
quadro desta comunicação. Em compensação, a repetida participação de
2) Lucien FEBVRE: "Un champ privilegié d'études: l'Amérique de Sud", numerosos autores tratando de um assunto determinado cultural e geo-
(p. 258), Annales d'Histoire Économique et Sacia/e, 1929, pp. 2258-2782. graficamente facilitava a nossa escolha. Não cabe dúvida de que é possí-
3) Lucien FEBVRE: "L'Amérique du Sud devant l'Histoire" (p. 391), intro- vel melhorar essa primeira aproximação. Seu único mérito está em exis-
, duction à "quarante huit études, essais, comptes rendus et mises au tir, enquanto se espera que trabalhos de historiografia concernentes ao
point". "A travers les Amériques La tines", Annales E. S. C., oct.-déc. 1948, conjunto da Revista permitam a possibilidade de melhor cercar a questão.
pp. 385-576. Ajuntando as notas e resenhas do número de janeiro-março Enfim, se o "modernista" Lucien FEBVRE achou na história da América
de 1949 consagradas a ·O homem e a natureza na América meridional" do Sul um tema ideal, o medievalista Marc BLOCH nada escreveu sobre
assim como diversas notas complementares, o conjunto desse número es- esse assunto, embora hispanizante convencido. Todavia, as descobertas es-
pecial foi objeto de uma publicação separada dos Cahiers des Annales, candinavas do Novo Mundo encontraram nele um "resenhista" compreen·
sível. ..
n.o 4 , 1949, 20S pp.
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Soc1ais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 112, 1983/ 1984 3
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evidente que as contribuições regulares de vários colabora-
cia/e, consagrava, por exemplo, vinte páginas densas de
dores habituais da revista se apresentavam como a prova do
Lucien FEBVRE a traçar o quadro de trabalhos que foram
interesse permanente pela América Latina dem.Jnstrado pelos
"por muito tempo o apanág:o unicamente dos etnógra;os"
membros de seu com1tê de redação e por seus próprios di-
mas que um interesse de novel e b:Jm quilate alargava para
retores (4). Desse modo, Lucien FEBVRE assinou 59 textos
outras disciplinas a tal ponto "que um pouco por toda parte-
ref.erindo-se à América Lat:na, Fernand BRAUDEL, 23; Paul
constatava nesse autor - começa-se a experimentar um pouco
LEUILLOT, 17; Pierre BONBEIG, 9; etc. Mas as assinaturas de
de curlos:dade d'ante dos múltiplos problemas que apresen-
historiadores ou de pesquisadores de reputação reconhecida,
tam à ciência de hoje a história e a geografia desse imenso
trazendo à revista sua colaboração mais regular, como Henri
continente ... " (2) Em suma, desde sua criação, os Annales
HAUSER, Albert GIRARD, André E. SAYOUS, Earl J. HAMIL-
atralram a atenção de seus leitores para "um c::.mpo privile-
TON, Max SORRE, Abel CHATELAIN, etc., freqüentement.e sob
giado de estudos: a América do Sul". Em 1948, vinte anos
a forma de artigos de fundo, reflet iam o avanço de trabalhos
após, o volume do último trimestre dos novos ANNALES: Éco-
pessoais e contribuíam para traçar certas vias que jovens pes-
nomies - Sociétés - Civilisat.ions propunha - cois3. única
quisadores poderiam, por sua vez, desbravar.
um número especial da revista inteiramente consagrado ao
De fato. nesses v!nte anos de publicação dos Annales, a
continente "latino" do Novo Mundo, trazendo o significativo
partir de um "programa", quase um manifesto, escrito por
tftulo de ''Através das Américz..s Latinas''. Se Lucien FEBVRE Lucien FEBVRE em 1929, iam destacar-se duas grandes cor-
se desculpava de só poder apresentar em "duzentas pági-
rentes de aplicação· uma. da Europa, de seus arquivos orga-
nas ... a América do Sul diante da História", ele se ccmpra-
nizados e classificados, questionava o Novo Mundo a fim de
zia em recordar porém quanto o seu artigo do 1929 perma-
reescrever uma história européia em plena muLção (nesse
necia sempre "o programa mesmo ao qual responde nosso
sentido, a história colonial da América luso-hispânica e fran-
número especial de hoje ... ": "pôr ao alcance de noss:s lei-
cesa revela-se um ponto forte dessa "revisão"); a outra, me-
tores todo um domínio, mal explor&do ainda, da vida e da ex-
nos eurocêntrica, muito mais "americanista", fez da própria
periência dos homens ... , enriquecê-los com as primeiras
América uma terra de missões de que o caso brasileiro se
conquistas da história sobre esse vasto campo do desconhe-
mostra exemplar. Se a ligação ainda privilegiada com a Eu-
cido" (3) continuava sendo uma tarefa priori,ária, parcialmen-
ropa era mantida para além de.s questões de transferência
te cumprida, todavia. Assim, tal continuidade de preocupa-
de metais preciosos, de relações comerciais - e a análise
ções de 1929 a 1948 tinha permitido a qu:uenta e três cola-
da trcca dos produtos se apresenta como um ponto forte
boradores diversos encontrar o meio de se exprimir sobre a
América Latina, dando conta de trabalhos publicados por cer-
4) Por ''América Latina" compreendemos não apenas a área cultural luso-
ca de duzentos autores. Em 3. 763 contribuições recenseadas hispânica tradic•onal, mas também os territórios de língua francesa e in ·
na tábua analítica, aproximadamente duzentas se referiram glcsa situados ao Sul do Rio Grande. Uma definição bastante discutível:
direta ou indiretamente a nosso assunto, ou sej3., 5%, em mas era pteciso escolher. Alias, não foi possível contabilizar o número
números redondos, do conjunto dos artigos. E uma quinzena exato de páginas consagradas pela Revista ao nosso assunto. A diversi-
dade dos temas tratados, quer de maneira geral, quer a partir de trabalhos
de "artigos de fundo" especializados era consagrada precis3.- centrados sobre a península ibérica ou a Europa mas concernindo também
mente a esse continente sobre os 25 que se lhe referiam. ~ ao contmente, torn!lva a nossos olhos essa tarefa dificilmente realizável no
quadro desta comunicação. Em compensação, a repetida participação de
2) Lucien FEBVRE: "Un champ privilegié d'études: l'Amérique de Sud", numerosos autores tratando de um assunto determinado cultural e geo-
(p. 258), Annales d'Histoire Économique et Sociale, 1929, pp. 2258-2782. graficamente facilitava a nossa escolha. Não cabe dúvida de que é possí-
3) Lucien FEBVRE: "L'Amérique du Sud devant l'Histoire" (p. 391), intro- vel melhorar essa primeira aproximação. Seu único mérito está em exis-
duction à "quarante huit études, essais, comptes rendus et mises au tir, enquanto se espera que trabalhos de historiografia concernentes ao
point". "A travers les Amériques Latines", Annales E. S. C., oct.-déc. 1948, conjunto da Revista permitam a possibilidade de melhor cercar a questão.
pp. 385-576. Ajuntando as notas e resenhas do número de janeiro-março Enfim, se o "modernista" Lucien FEBVRE achou na história da América
de l':l49 consagradas a · O homem e a natureza na América meridional" do Sul um tema ideal, o medievalista Marc BLOCH nada escreveu sobre
assim como diversas notas complementares, o conjunto desse número es- esse assunto, embora hispanizante convencido. Todavia, as descobertas es-
pecial foi objeto de uma publicação separada dos Cahiers des Annales, candinavas do Novo .lVlundo encontraram nele um "resenhista" compreen·
sível. ..
n.o 4, 1949, 203 pp.
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Soc1ais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 3
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da primeira escola dos Annales em detrimento talvez das re- o artigo-programa de Lucien FEBVRE possuía ele pró-
lações de produção -, esta segunda corrente esboça o es- prio valoi da metodologia e de epistemologia: "quer a gente
tudo da realidade !atino-americana em e por si mesma. Ela se prenda ao homem ou à terra, às sociedades ou a seu qua-
inspiraria profundamente os temas de pesquisa da geração dro natural, quer seja etnógrafo ou pré-histor.ador, lingüista
de jovens historiadores formados durante e após a Segunda ou arqueólogo, historiador ou economista: os problemas sur-
Guerra Mundial, que trouxeram suas contribuições primeiras gem às dezenas. E não se trata de pequenos problemas limi-
ao número especial de 1948. Essa geração não se obstinou tados, daqueles cuja solução só interessa aos estudJs lo-
então em fazer de modo que se pusesse um fim à "era dos cais. . . Um continente que foi a testemunha e o lugar de
pioneiros" (P. CHAUNU) e que o americanismo histórico pu- tais e tão profundas mudanças e cujas pa:s:.gens mesmas
desse se afirmar como tal no mundo - fechado - dos his- atestam aos nossos olhos, ao mesmo tempo, a fraqueza e a
toriadores? Mas a lição de Lucien FEBVRE não se achava potência da iniciativa humana; um continente que, à3 nossas
então ultrapassada pelos êxitos mesmos obtidos pela reali- portas de europeus, às portas, muito mais ainda, dos homens
zação de programa inicialmente traçado? Todavia, tal pro- de ciência sul-americanos, oferece tais contrastes, tais opo-
grama, que era ele, qual era a sua originalidade? sições: é mister não se espantar com o fato de que tr~balha­
dores se apliquem a estudá-lo; é necessário escandalizar-se
com o fato de que ele não seja estudado mais sistematica-
2. - O programa de 1929: a América do Sul, campo mente. de que não se S3.iba, mais e melhor, aprove:tar das
privilegiado de estudos. t:xperiências já realizadas, dac; c:Jmparações já instituídas
que ele oferece, com tal abundância, a curiosidades a:nda por
Por que então, aos olhos de Lucíen FEBVRE, a América demais preguiçosas" (6).
do Sul - ele sempre hesitou em empregar o termo "América De fato, Luc:en FEBVRE estava inclinado a propor de
Latina" - era tida tão apaixonadamente como o objeto de início os problemas "da terra" e em seguida os problemas
um "campo privilegic:.do de estudes"? A publicação de seu "dos homens". E isso. explicitamente, no espírito mesmo de
artigo de 1929 não tinha nada de "fortuito": correspondia a sua obra principal sobre La Terre et I'Évolution Humaine -
uma tríplice preocupação. A primeira preocupação, conjun- lntroduction Géographique à I'Hístoire, publicada s-ete anos
tural, estava ligada a um "despertar de curiosidades" mais antes. Nesta série de notas bibliográfic~s de informações
e mais precisas que havia provocado a edição de um "lote propondo em si mesmas questões e problemas. que faziam
àe livros sobre a América do Sul". Esse despertar não se explod ir o conceito de civilização numa variedade de tipos
referia apenas aos historiadores, mas os cbrig3.va a assumir diferentes e numa diversidade certa em reiE.ção às formula-
seu lugar nas diferentes disciplinas. Mas esse mesmo des- çc-ss européias em que a noção evolutiva 'tempo-espap' as-
pertar - eis a segunda preocupação - merecia ser bem sumia outra dimensão, sua reflexão antropológica sobre o
compreendido: o interesse voltado para a América Latina im- homem americs.no antes da conquista enc:ntrava nos traba-
plicava uma lição de método e constituía "um campo pre- lhos etnolingüísticos de Paul RIVET os seus fundamentos (7).
c:oso de exper:ências e de comparações. . . rico de ensina- Mesmo a hipótese demográf:ca de uma estimativa mui "las-
mentos". O que só podia ser concretamente empreendido em casiana" da população ameríndia - os 40 a 45 milhões de
função do nascimento - imperativo - de uma "formação"
6) Ibidem, p. 258 e 261.
(t-erceira preocupação). Seu artigo se quer:a, pois, exemplar: 7) Uma excelente análise sobre o conceito de civilização em Lucien FEBVRE,
"sem que insistíssemos mais, concluía ele, e:s quem, para m.1is particularmente sobre "os limites de nossa civilização'', "a civilização
todos os trabalhadores curiosos por estudar um mundo ainda global'' e o "pluralismo das civilizações em nós", foi realizada por Hans-
tão mal conhecido, indica um mét::;do e deve impor uma for- Dieter MANN em: Lucien FEBV RE, la pensée vivante d'un historien, pp.
42-56 e 93-101. Paris: A. Colin, 1971, 190 pp., Cahiers des Annales n.o 31,
mação" (5). Um território ideal de algum modo para apanhar prefácio de F. BRAUDEL. Pode-se encontrar também nesse ensaio boas pá-
por inte!ro o "ofício de historiador" (Marc BLOCH). ginas sobre as relações de FEBVRE com VIDAL DE LA BLACHE, Henri
BERR e DllRKHElM. Mas o pensamento econômico do co-fundador dos
5) Luci.!n FEBVRE, op. cit., p. 278. Anna!es está curiosamente ausente desse trabalho . ..

Rev. de C. Soc1ais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, I983i 1984 5
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da primeira escola dos Annales em detrimento talvez das re- o artigo-programa de Lucien FEBVRE possuía ele pró-
lações de produção -, esta segunda corrente esboça o es- prio valoi da metodologia e de epistemologia: "quer a gente
tudo da realidade !atino-americana em e por si mesma. Ela se prenda ao homem ou à terra, às sociedades ou a seu qua-
inspiraria profundamente os temas de pesquisa da geração dro natural, quer seja etnógrafo ou pré-histor.ador, lingüista
de jovens historiadores formados durante e após a Segunda ou arqueólogo, historiador ou economista: os problemas sur-
Guerra Mundial, que trouxeram suas contribuições primeiras gem às dezenas. E não se trata de pequenos problemas limi-
ao número especial de 1948. Essa geração não se obstinou tados, daqueles cuja solução só interessa aos estudJs lo-
então em fazer de modo que se pusesse um fim à "era dos cais. . . Um continente que foi a testemunha e o lugar de
pioneiros" (P. CHAUNU) e que o americanismo histórico pu- tais e tão profundas mudanças e cujas pa:s:.gens mesmas
desse se afirmar como tal no mundo - fechado - dos his- atestam aos nossos olhos, ao mesmo tempo, a fraqueza e a
toriadores? Mas a lição de Lucien FEBVRE não se achava potência da iniciativa humana; um continente que, à3 nossas
então ultrapassada pelos êxitos mesmos obtidos pela reali- portas de europeus, às portas, muito mais ainda, dos homens
zação de programa inicialmente traçado? Todavia, tal pro- de ciência sul-americanos, oferece tais contrastes, tais opo-
grama, que era ele, qual era a sua originalidade? sições: é mister não se espantar com o fato de que tr~balha­
dores se apliquem a estudá-lo; é necessário escandalizar-se
com o fato de que ele não seja estudado mais sistematica-
2. - O programa de 1929: a América do Sul, campo mente. de que não se S3.iba, mais e melhor, aprove:tar das
privilegiado de estudos. experiências já realizadas, dac; c:Jmparações já instituídas
que ele oferece, com tal abundância, a curiosidades a:nda por
Por que então, aos olhos de Lucíen FEBVRE, a América demais preguiçosas" (6).
do Sul - ele sempre hesitou em empregar o termo "América De fato, Luc:en FEBVRE estava inclinado a propor de
Latina" - era tida tão apaixonadamente como o objeto de início os problemas "da terra" e em seguida os problemas
um "campo privilegiê.do de estud~s"? A publicação de seu "dos homens". E isso. explicitamente, no espírito mesmo de
artigo de 1929 não tinha nada de "fortuito": correspondia a sua obra principal sobre La Terre et I'Évolut.ion Humaine -
uma tríplice preocupação. A primeira preocupação, conjun- lntroduction Géographique à I'Hístoíre, publicada s·ete anos
tural, estava ligada a um "despertar de curiosidades" mais antes. Nesta série de notas bibliográfic:?.s de informações
e mais precisas que havia provocado a edição de um "lote propondo em si mesmas questões e problemas. que faziam
àe livros sobre a América do Sul". Esse despertar não se explodir o conceito de civillzação numa variedade de tipos
referia apenas aos historiadores, mas os cbrigava a assumir diferentes e numa diversidade certa em rel~. ção às formula-
seu lugar nas diferentes disciplinas. Mas esse mesmo des- çê.es européias em que a noção evolutiva 'tempo-espap' as-
pertar - eis a segunda preocupação - merecia ser bem sumia outra dimensão, sua reflexão antropológica sobre o
compreendido: o interesse voltado para a América Latina im- homem americs.no antes da conquista enc:ntrava nos traba-
plicava uma lição de método e constituía "um campo pre- lhos etnolingüísticos de Paul RIVET os seus fundamentos (7).
c:oso de exper:ências e de comparações. . . rico de ensina- Mesmo a hipótese demográf:ca de uma estimativa mui "las-
mentos". O que só podia ser concretamente empreendido em casiana" da população ameríndia - os 40 a 45 milhões de
função do nascimento - imperativo - de uma "formação"
6) Ibidem, p. 258 e 261.
(terceira preocupação). Seu artigo se quer:a, pois, exemplar: 7) Uma excelente análise sobre o conceito de civilização em Lucien FEBVRE,
"sem que insistíssemos mais, concluía ele, e:s quem, para mais particularmente sobre "os limites de nossa civilização'', "a civilização
todos os trabalhadores curiosos por estudar um mundo ainda global'' e o "pluralismo das civilizações em nós", foi realizada por Hans-
tão mal conhecido, indica um mét:Jdo e deve impor uma for- Dieter MANN em: Lucien FEBVRE, la pensée vivante d'un historien, pp.
42-56 e 93-101. Paris: A. Colin, 1971, 190 pp., Cahiers des Annales n.o 31,
mação" (5). Um território ideal de algum modo para apanhar prefácio de F. BRAUDEL. Pode-se encontrar também nesse ensaio boas pá-
por inte!ro o "ofício de historiador" (Marc BLOCH). ginas sobre as relações de FEBVRE com VIDAL DE LA BLACHE, Henri
BERR e DllRKHElM. Mas o pensamento econômico do co-fundador dos
5) Lucil!n FEBVRE, op. cit., p. 278. Anna!es está curiosamente ausente desse trabalho . ..

Rev. de C. Soc1ais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, I983i 1984 5
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bruscamente, da Europa e da Africa. Os problemas que pro-
habitantes - , fundamento dos trabalhos da escola america- põe às nossas disciplinas é às nossas curiosidades respecti-
nista de Berkeley nos anos 50 e confirmada pelos estudos
vas tal continente tão pleno de uma vitalidade ainda mal re·
de Nathan WACHTEL sobre o mundo incaico, achava-se men- guiada não são verdadeiramente int-eressantes, não são dig-
cionada. Passando do quadro natural ag 'ndJ e re : gindo sobre nos de atrair cada vez mais nossa atenção, senão porque
os homens em função de um tempo plurissecular à apresen- encontram alhures os seus análogos" (8),
tação do mundo ameríndio das sociedades primitiv3s e de
estado, passando dos problemas da descoberta aos da con- 3. - As primeiras aplicações do programa
quista, L. FEBVRE apresent::va estudos de Auguste CHEVA-
LIER, Paul RIVET, Alfred METRAUX, do Coronel LANGLOIS, Após a publicação de seu artigo-programa de 1929,
de Louis BAUDIN, Luc:en GALLOIS, Karl H. PANHORST, etc. apreciando outras obras sobre a América Latina, Lucien
Nesse conjunto de r.esenhas, o fio direto das relações FEBVRE voltou à carga em várias ocas'ões e de m~neira ex-
entre a economia e a história aparecia como dominante e se plícita. Seus comentár:os sobre o livro de André SIEGFREID,
via mais ainda valorizado por algumas páginas ma:s importan- L'Amérique Latine, intitulados "Para compreender a América
tes do artigo consagradas à 2pr.gsentação dos trabalhos de do Sul" e publicados em 1934, eram da mesma insp'ração
André E. SAYOUS sobre os problemas da história do comér- que o seu artigo· e as observações que consagra aos traba-
cio, mais particularmente sobre a moeda e sobre o câmbio. lhos de Alfred METRAUX sobre a rrha de Páscoa e sobretudo
A moeda, os metais preciosos, um probl.ema fundamental que aos de Jacques SOUSTELLE acerca do mundo mes::-ameri-
preocupava o mundo de 1929 e que será um dos temas es- cano dos grandes impérios, em 1938, reconciliaram-no com
senciais de r.eflexão dos Anna/es durante uma dezena de o aproche econômico das sociedades de estado ameríndias
anos, opondo estruturalistas a monet3.ristas, achava-se já que tanto o haviam decepcionado à leitura das problemáticas
posto e mui bem posto nesse continente produtor de m~tais, de Louis BAUDIN . De fato, o seu conhecimento íntimo do
exportados, e carecendo cruelmente de divisas em suas rela- mundo hispân ico que sua tese sobre Philippe 11 et la Franche-
ções comerciais. Depois, Lucien FEBVRE não podia concluir Comté tinha levado a empreender, o fez tornar-se sensível
seu artigo-programa sem uma evocação de trabalhos geo- aos estudos de numerosos ens:1ístas latino-americanos de
gráficos. Referência admirativa era feita então em face da língua espanhola e esse interêsse se manifestou nag r.gsenhas
obra de Pierre DENIS sobre A América do Sul, em dois vo- críticas de obras de Ricardo LEVENE, Hugo BARBAGELATA,
lumes, publicada na célebre coleção "Géographie Universelle" ou Alfonso Teja ZABRE: A América espanhola, a da Bacia do
concebida por VIDAL de la BLACHE e dirigida por L. GALLOIS. Prata, aliás, mais do que o confuso México, atraiu particular-
Mesmo que uma reflexão de síntese parecesse um tanto ne- mente a sua simpatia, uma simpatia que nada retirava à apro-
gligenciada nesse trabalho de "importância", a prodi~iosa ximação das Antilhas francesas às quais numerosos trabalhos
variedade dos "gêneros de vida" evocada permitia-lhe reto- de história colonial - Lucien FEBVRE apresentou nos Anna-
mar seu tema inicial sobre a variedade e os contrastes conti- les de 1932 as "lições" da Exposição Colonial lnt.ern:::.cional de
nentais onde "a civilização acotovelava a selvageria". O Paris - eram consagrados (9). Com efeito, essa atração pelo
Trocadero dos etnógrafos reencontrava assim todos os seus
dire:tos. "Para nós, quem quer que sejamos, - concluía 8) Lucien FEBVRE, op. cit., p. 278.
9) Lucien FEBVRE consagrou de fato numerosas notas às Antilhas francesas
então Lucien FEBVRE - pré-historiador.es ou etnógrafos, his-
e ao Império francês da América. e verdade que a atividade dos portos
toriadores ou geógrafos, curiosos do presente ou investiga- franceses de Bourdeaux, Nantes, etc. se achava descrita com minúcia na
dores do passado, é excelente que existam americanistas historiografia francesa dos anos trinta e que suas relações privilegiadas
especializados no estudo de um mundo amplamente original. com 11 Martinica e Guadalupe mas também Haiti-São Domingo abriam uma
larga porta para o Novo Mundo. Mesmo Marc BLOCH tentou compre-
Mas o seu labor perderia três quartos de seu interesse se ele ender "Bordeaux et les colonies" (Annales, X, p. 96). Nesse domínio, po-
se fechasse, sem nenhum cu id:::do com aproximações ne- rém, a especialidade crítica recai incontestavelmente sobre Paul LEUI-
cessárias, nos limites por mais vastos que fossem de um J:-LOT; e Gabriel DEBBIEN começava a empreender a publicação de seus
continente que o mar isolara, mas que também aproximara est~dos antt!hnnos'', alguns dos quais foram objeto de uma reedição em
0
numero 11 do~ Cahiers des Annales publicado em 1956.
do mundo oceânico, da Asia e, numa época mais recente,
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 7
6 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
bruscamente, da Europa e da África. Os problemas que pro-
habitantes - , fundamento dos trabalhos da escola america- põe às nossas disciplinas & às nossas curiosidades respecti-
nista de Berkeley nos anos 50 e confirmada pelos estudos
vas tal continente tão pleno de uma vitalidade ainda mal re-
de Nathan WACHTEL sobre o mundo incaico, achava-se men- gulada não são verdadeiramente int-eressantes, não são dig-
cionada. Passando do quadro natural ag 'ndJ e re : gindo sobre nos de atrair cada vez mais nossa atenção, senão porque
os homens em função de um tempo plurissecular à apresen- encontram alhures os seus análogos" (8).
tação do mundo ameríndio das sociedades primitiv3s e de
estado, passando dos problemas da descoberta aos da con- 3. - As primeiras aplicações do programa
quista, L. FEBVRE apresent:::va estudos de Auguste CHEVA-
LlER, Paul RIVET, Alfred METRAUX, do Coronel LANGLOIS, Após a publicação de seu artigo-programa de 1929,
de Louis BAUDIN, Luc1en GALLOIS, Karl H. PANHORST, etc. apreciando outras obras sobre a América Latina, Lucien
Nesse conjunto de r.esenhas, o fio direto das relações FEBVRE voltou à carga em várias ocas'ões e de m~neira ex-
entre a economia e a história aparecia como dominante e se plícita. Seus comentár:os sobre o livro de André SIEGFREID,
via mais ainda valorizado por algumas páginas ma:s importan- L'Amérique Latine, intitulados "Para compreender a América
tes do artigo consagradas à 2pr.gsentação dos trabalhos de do Sul" e publicados em 1934, eram da mesm::t insp'ração
André E. SAYOUS sobre os problemas da história do comér- que o seu artigo· e as observações que consagra aos traba-
cio, mais particularmente sobre a moeda e sobre o câmbio. lhos de Alfred METRAUX sobre a Ilha de Páscoa e sobretudo
A moeda, os metais preciosos, um probl.ema fundamental que aos de Jacques SOUSTELLE acerca do mundo mes:-ameri-
preocupava o mundo de 1929 e que será um dos temas es- cano dos grandes impérios, em 1938, reconciliaram-no com
senciais de r-eflexão dos Annales durante uma dezena de o aproche 8conômico das sociedades de estado ameríndias
anos, opondo estruturalistas a monet3.ristas, achava-se já que tanto o haviam decepcionado à leitura das problemáticas
posto e mui bem posto nesse continente produtor de m~tais, de Louis BAUDIN. De fato, o seu conhecimento íntimo do
exportados, e carecendo cruelmente de divisas em suas rela- mundo hispân ico que sua tese sobre Philippe 11 et la Franche-
ções comerciais. Depois, Lucien FEBVRE não podia concluir Comté tinha levado a empreender, o fez tornar-se sensível
seu artigo-programa sem uma evocação de trabalhos geo- aos estudos de numerosos ens:1ístas latino-americanos de
gráficos. Referência admirativa era feita então em face da língua espanhola e esse interêsse se manifestou nag r-9senhas
obra de Pierre DENIS sobre A América do Sul, em dois vo- críticas de obras de Ricardo LEVENE, Hugo BARBAGELATA,
lumes, publicada na célebre coleção "Géographie Universelle" ou Alfonso Teja ZABRE: A América espanhola, a da Bacia do
concebida por VIDAL de la BLACHE e dirigida por L GALLOIS. Prata, aliás, mais do que o confuso México, atraiu particular-
Mesmo que uma reflexão de síntese parecesse um tanto ne- mente a sua simpatia, uma simpatia que nada retirava à apro-
gligenciada nesse trabalho de "importância", a prodic;iasa ximação das Antilhas francesas às quais numerosos trabalhos
variedade dos "gêneros de vida" evocada permitia-lhe reto- de história colonial - Lucien FEBVRE apresentou nos Anna-
mar seu tema inicial sobre a variedade e os contrastes conti- les de 1932 as "lições" da Exposição Colonial lnt.ern:::cional de
nentais onde "a civilização acotovelava a selvageria". O Paris - eram consagrados (9). Com efeito, essa atração pelo
Trocadero dos etnógrafos reencontrava assim todos os seus
dire:tos. "Para nós, quem quer que sejamos, - concluía 8) Lucien FEBVRE, op. cit., p. 278.
9) Lucien FEBVRE consagrou de fato numerosas notas às Antilhas francesas
então Lucien FEBVRE - pré-historiador.es ou etnógrafos, his-
e ao Império francês da América. e verdade que a atividade dos portos
toriadores ou geógrafos, curiosos do presente ou investiga- france~es de Bourdeaux, Nantes, etc. se achava descrita com minúcia na
dores do passado, é excelente que existam americanistas historiografia francesa dos anos trinta e que suas relações privilegiadas
especializados no estudo de um mundo amplamente original. com u Martinica e Guadalupe mas também Haiti-São Domingo abriam uma
larga porta para o Novo Mundo. Mesmo Marc BLOCH tentou compre·
Mas o seu labor perderia três quartos de seu interesse se ele ender "Bordeaux et les colonies" (Annales, X, p. 96). Nesse domínio, po-
se fechasse, sem nenhum cu id:::do com aproximações ne- rém, a especialidade crítica recai incontestavelmente sobre Paul LEUI-
cessárias, nos limites por mais vastos que fossem de um J;-LOT; e Gabriel DEBBIEN começava a empreender a publicação de seus
continente que o mar isolara, mas que também aproximara est~dos antilh:mos'', alguns dos quais foram objeto de uma reedição em
o numero 11 do~ Cahiers des Annales publicado em 1956.
do mundo oceânico, da Asia e, numa época mais recente,
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 7
6 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
Cone Sul da América do Sul se achou amplificado por uma que fosse com um certo entusiasmo, o ano de 1932 viu os
viagem re3.lizada como conferencista a Buenos Aires, no fim Annales publicar dois artigos de E. J. HAMILTON intituladoc;:
da qual reenc:ntrou Fernand BRAUDEL, em outubro de 1937, "Em período de revolução econôm'r.a: a moeda em Castela
de retorno do Brasil. (1501-1650) ". Aquilo que Herbert LUTHY chama "o estudo ria
Mas a América Lat!na, apesar de tudo, apar-eceu aos lei- passagem (na época da expansão colonial hispano-portugue-
tores dos Anna/es dos anos 30 apenas como o prolongamen- sa nos séculos XVI e XVII) do Mediterrâneo corno área cul-
to primeiramente da conquista Ibérica e, através dela, como tur21 ao estádio da economia mundial" começava então a se
o aprofundamento dos conhecimentos sobre a Espanha mo- elaborar (12). André E. SAYOUS e Albert GIRARD r-eforçaram
derna. A Espanha, a saber as relações entre economia e his- seriamente a equipe hispanizante. Mas da Europa, dessa Es-
tória, entre metais preciosos e inflação, entre crise ec:nô- panha que Pierre VILAR se preparava para estudar por si
mica atlântica e Europa contemporânea. Ora, que eram os mesma. do Portuqal e da França, convinha liberar o Atlân-
trabalhos de história econômica sobre a Espanha senão os tico a fim de melhor conhecer esse laboratório americano de
de Earl J. HAMILTON em 1929? "Os historiadores da econo- met2l precioso. O projeto principiava a germinar. Contudo, o
mia de minha geração, constatava por exemplo Ruggiero RO- trabalho de campo dos anos 30 não se situou nos países mi-
MANO, foram impressionados pela geogr: fia publicada há neiros, o México tão perturbado ou o Peru tão longínquo . Os
mais de trinta anos por Earl Jefferson HAMILTON repr:Jduzin- "azares" de uma política cultural marcada pela predominân-
do as quantidades de ouro e de prata american:;.s chegadas
cia da América Atlântica do Sul. do Brasil à Argentin'3., sobre
a Sevilha. Eu não escapei à regra" (10). A regra era de ·fazer o conjunto do continente "latino", enqajaram nossos missio-
conhecer os trc.balhos de HAMILTON, de discuti-los e pu- nários rumo às terras mais freqüentadas pela Europa "lat'n 1"
blicá-los, e os Annales disso não se privaram. Na imensa dess-e período. E brilhantes col.,boradores dos Annales, vete-
enquête sobre "o problema histórico dos pr-eços" que a re- ranos e novatos, foram assim levados a freqüentar São Paulo
vista lançava em 1930, graças à colabors- ção de François ou Buenos Aires, regiões pouco propícias à exportação dos
SIMIAND, o primeiro artigo de Lucien FEBVRE era consagra- produtos minerais. A complexidade das civiliz:ções do açú-
do à análise de "American Treasure ... " public:.do no Jour- car não tardaria por fascinar nossos entusiastas da moeda e
nal of Economic and Business H;story, desde o seu apareci- dos metais preciosos. E o Brasil abria largamente suas por-
mento em 1929. E os comentários sobre "o afluxo dos metais tas à missão universitária francesa da Universidade de São
da Amér!ca e os preços em Sevilha" eram completados no Paulo. Que podia desejar de melhor essa nova escola fran-
ano seguinte por uma curta nota de apresentação de dois cesa de história econômica e social que as discussões fun-
outros trabalhos fundamemntais do economista-historiad:Jr nor- damentais realizadas em torno dos trabalhos de Earl J. HA-
te-americano sob o título provocador: "Ouro da Amér:ca e MILTON, mergulhando as interpr-etações quantitativistas da
Capitalismo" (11). As ref-erências aos grandes mestres, Max moeda no coração dos trabalhos clássicos sobre o mercanti-
WEBER, SOMBART, e TAWNEY, apareciam explícitas. Ainda lismo, estendidas a outros terrenos de lab:Jr2.tório? Num mo-
10) Ruggiero ROMANO: Les mécanismes de la conquête coloniale: les con-
mento em que a "modernidade do século XVI" (Henri HAU-
quistadores, p. 135. Paris: Flammarion, 1972, 185 pp. Coll. "Questions SE.~) saltava aos olhos dos contemporâneos da crise de 1929,
d'Histoire" n.o 24. a preponderância espanhola" sobre a América "!ath•a" que
11) Lucien FEBVRE: "L'Afflux de~ métaux précieux d'Amérique et les prix contribuía para eclipsar as divers:dades e os contrastes de
à Séville: un article fait, une enquête à faire", Annates d'Histoire 8connmi-
qlle et Sociale, 1930, pp. 68-80, apresentado sob a etiqueta "Le Probleme um continente aparecia qu-estionada em novos deb:tes e com-
historique des prix", p. 67; o estudo de HAMILTON comentado se in titu- 1ba~es que buscavam fazer apreciar a riqueza de uma América
lava: "American Treasure and Andalousian Prices, 1503-1660". Em 1931, ~Sitana,_ da qual uma parte da intefligentsia esforçava-se por
a notr. consagrada a "Dr. d' Amérique et Capitalisme" (Annales . .. , p. 160) escobnr a "brasilianidade" (F BRAUDEL) "Passado e pre~
fazia referência a "imports of American Gold and Silver into Spain, 1503- sente" · · ·
1660" publicad0 no Quaterly Journal o/ Econonzics de maio de 1'!72, e _ se JUntavam pois nesse novo "campo precioso de ex-
"American Treasure and the Rise of Capitalism (1500-1700)" publicado
no mesmo ano em Economica. Enfim. "En période de révolution économi- 121 !:,er~~ LUTHY: Geschichte ais Funktion der Gegenwart", in Der Monat_.
que : la monnaie en Castille, 1501-1650", Anna/es .. . , pp. 140-149 e 242-256 op. c't (1960-1961), n. 0 148, pp. 5-17, citado e traduzido por H. D. MANN,
. I., p. 163.
(1932).
Rev . de C . Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 9
8
Cone Sul da América do Sul se achou amplificado por uma que fosse com um certo entusiasmo, o ano de 1932 viu os
viagem re3.lizada como conferencista a Buenos Aires, no fim Annales publicar dois artigos de E. J. HAMILTON intitulado-,:
da qual reenc:::ntrou Fernand BRAUDEL, em outubro de 1937, "Em período de revolução econôm'r.a: a moeda em Castela
de retorno do Brasil. (1501-1650) ". Aquilo que Herbert LUTHY chama "o estudo ria
Mas a América Lat!na, apesar de tudo, apar.eceu aos lei- passagem (na época da expansão colonial hispano-portugue-
tores dos Anna/es dos anos 30 apenas como o prolongamen- sa nos séculos XVI e XVII) do Mediterrâneo corno área cul-
to primeiramente da conquista Ibérica e, através dela, como tur21 ao estádio da economia mundial" começava então a se
o aprofundamento dos conhecimentos sobre a Espanha mo- elaborar (12). André E. SAYOUS e Albert GIRARD r.eforçaram
derna. A Espanha, a saber as relações entre economia e his- seriamente a equipe hispanizante. Mas da Europa, dessa Es-
tória, entre metais preciosos e inflação, entre crise ec:::nô- panha que Pierre VILAR se preparava para estudar por si
mica atlântica e Europa contemporânea. Ora, que eram os mesma. do Portuqal e da França , convinha liberar o Atlân-
trabalhos de história econômica sobre a Espanha senão os tico a fim de melhor conhecer esse laboratório americano de
de Earl J. HAMILTON em 1929? "Os historiadores da econo- met?l precioso. O projeto principiava a germinar. Contudo, o
mia de minha geração, constatava por exemplo Ruggiero RO- trabalho de campo dos anos 30 não se situou nos países mi-
MANO, foram impressionados pela geogr;fia publicada há neiros, o México tão perturbado ou o Peru tão longínquo . Os
mais de trinta anos por Earl Jefferson HAMILTON reproduzin- "azares" de um3. política cultural marcada pela predominân-
do as quantidades de ouro e de prata american:::.s chegadas
cia da América Atlântica do Sul. do Brasil à Argentin'3., sobre
a Sevilha. Eu não escapei à regra" (10). A regra era de ·fazer o conjunto do ccntinente "latino", enqajaram nossos missio-
conhecer os trc.balhos de HAMILTON, de discuti-los e pu- nários rumo às terras mais freqüentadas pela Europa "lat'n 1"
blicá-los, e os Annales disso não se privaram. Na imensa desse período. E brilhantes col.,boradores dos Annales, vete-
enquête sobre "o problema histórico dos pr.eços" que a re- ranos e novatos, foram assim levados a freqüentar São Paulo
vista lançava em 1930, graças à colabors- ção de François ou Buenos Aires, regiões pouco propícias à exportação dos
SIMIAND, o primeiro artigo de Lucien FEBVRE era consagra- produtos minerais. A complexidade das civiliz:ções do açú-
do à análise de "American Treasure ... " public :.do no Jour- car não tardaria por fascinar nossos entusiastas da moeda e
nal of Economic and Business H;story, desde o seu apareci- dos metais preciosos. E o Brasil abria largamente suas por-
mento em 1929. E os comentários scbre "o afluxo dos metais tas à missão universitária francesa da Universidade de São
da Amér!ca e os preços em Sevilha" eram completados no Paulo. Que podia desejar de melhor essa nova escola fran-
ano seguinte por uma curta nota de apresentação de dois ces:t de história econômica e social que as discussões fun-
outros trabalhos fundamemntais do economista-historiador nor- damentais real izadas em torno dos trabalhos de Earl J. HA-
te-americano sob o título provocador: "Ouro da Amér:ca e MILTON, mergulhando as interpretações quantitativistas da
Capitalismo" (11). As ref.erências aos grandes mestres, Max moeda no coração dos trabalhos clássicos sobre o mercanti-
WEBER, SOMBART, e TAWNEY, apareciam explícitas. Ainda lismo, estendidas a outros terrenos de labor2.tório? Num mo-
10) Ruggiero ROMANO: Les mécanismes de la conquête coloniale: les con-
mento em que a "modernidade do século XVI" (Henri HAU-
quistadores, p. 135. Paris: Flammarion, 1972, 185 pp. Coll. "Questions SE.~) saltava aos olhos dos contemporâneos da crise de 1929,
d'Histoire" n.o 24. a preponderância espanhola" sobre a América "!ath•a" que
11) Lucien FEBVRE: "L'Afflux de~ métaux précieux d'Amérique et les prix contribuía para eclipsar as divers:dades e os contrastes de
à Séville: un article fait, une enquête à faire", Annates d'Histoire 8connmi··
qr1e et Sociale, 1930, pp. 68-80, apresentado sob a etiqueta "Le Probleme um continente aparecia qu-estionada em novos deb::.tes e com-
historique des prix", p. 67; o estudo de HAMILTON comentado se in titu- 1ba~es que buscavam fazer apreciar a riqueza de uma América
lava: "American Treasure and Andalousian Prices, 1503-1660". Em 1931, ~Sitana •. da qual uma parte da intefligentsia esforçava-se por
a notr. com agrada a "Dr. d' Amérique et Capitalisme" (Annales . .. , p. 160) escobnr a "brasilianidade" (F BRAUDEL) "Passado e pre~
fazia referência a "imports of American Gold and Silver into Spain, 1503- sente" · · ·
1660" publicad0 no Quaterly Journal o/ Economics de maio de 1972 , e se JUntavam pois nesse novo "campo precioso de ex-
"American Treasure and the Rise of Capitalism (1500-1700)" publicado
no mesmo ano em Economica. Enfim. "En période de révolution économi- l:>> ~er~-~~ LUTHY: Geschichte ais Funktion der Gegenwart", in Der Monat_.
que : la monnaie en Castille, 1501-1650", Annales .. . , pp. 140-149 e 242-256 op. . (1960-1961), n.o 148, pp. 5-17, citado e traduzido por H. D. MANN,
' 1
Cl ., p. 163.
(1932).
Rev . de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 9
8
de julho de 1933, do Ministério das Relações Exteriores,
per'ências e de comparações" t~nto quanto uma política se- era total. Constituía o coroamento de uma longa freaüen-
dutora de relações cultura:s entre a França e o Brasil se acha tação de cerca de um quarto de século das el:tes intelec•uais
instalada no mesmo momento sob o impulso comum d-e Jean e econômicas do Brasil, s.eduzidas pela cultura da França
MARX e do psicóloao Geornes niiMAS. "ls.tina", e aparecia como o resultado de uma part'cular atra-
No dia 25 de janeiro de 1934 fora criada, com efP.ito, a ção de Georges DUMAS por São Paulo e a franja "esclare-
Faculdade de Filosofia. Ciências e Letras da Un iversid-de de cida " d-e sua aristocracia do café. Certamente, nem Georges
São Paulo. O s:anatário do decreto, o Governador Armando DUMAS nem os represen'tantes da Emb- ixada de França no
SALLES DE OLIVEIRA, foi aconselhadn nesse sentido por um Brasil haviam desprezado o Rio de Jane iro, e a criação de
grupo de intelectuais desejosos de fornecer à "sua" cid:de seu Liceu Francês desde 1915 era disso um testemunh::>.
os quadros necessários ao de~envolvimento econõ....,:co. ad- Al 'ás, a participação, em 1936 de um1 dezena de professo-
ministrativo e cultural de "seu" Estadn. Na verdade, Si'io Pa,lo res franceses dentre os mais eminentes como Henri HAUSER,
atravessava desde alguns anos gra"e crise de ident'dade. Tal no ensino da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
crise. consecut'va ao craaue de 1929, era mesmo tanto mais Universidade do Distrito Federal, cri :: da no ano precedente,
grav-e quanto São Paulo acab-va de perder sua reconhecirla foi a conseqüência direta da operação São Paulo, onde vá-
prenonderância sobre a d'recão dos nenócios dJ Brasil após rias cátedras concedidas aos mestres franceses foram E.lém
a dupla deposição de Washinqton LUfS, o Presidente em disso duplicad as. A visita efetuada por Georges DUMAS ao
ex-ercício, e de Júlio PRESTES, o Presidente eleito, por um Rio e a São Paulo entre julho e setembro de 1935 permitiu
putsch militar que deu o poder a Getúlio VARGAS. A revolh mesmo o êrranjo de múlt'plos detalh·Ss (13). Além d s:o, nem
"secessionista" de 1932 acabou de mostrar quanto o tempo Georges DUMAS nem Jean MARX haviam tampouco negli-
da onipotent-e aristocracia do café havia termin~do . Recolhen- genc'ado o desenvolvimento das relações culturais da França
do a lição política dessa triste experiência, o grupo liberal com os outros países da América Latina de língua espanhola.
que gravitava em torno do eminente diretor d-e O Estado de O "Grupo das Universidades e Grandes Escolas de França
São Paulo decidiu então l2nçar a carta da "modernidF.tde". para as r-elações com a América Latina", criado em 1908,
Aos seus olhos, essa modernidade só pJder:a encontrar na cuidava bem d'sso e a tarefa, confiada mais p::.rticularmente
Europa suas raízes e os frutos de seu êxito; ela passaria pri- a Ernest MARTINENCHE, era cumprida com grande atenção
meiramente por uma reforma de b3.s-e do ensino, mais parti- quc.nto à Argentina e ao México. Tal era, aliás, o sentido da
cularmente pela criação de um ensino superior deliberada- viagem de Lucien FEBVRE, em 1937, pelo Rio da Prata. No
mente nevo, fundado sobre uma alta qualidade científica e entanto, a fundação da Universidade de São Paulo permane-
técnica.
Assim, pois, Theodoro Augusto RAMOS foi enviado à
13) Sobre esses diferentes pontos, numerosos testemunhos pessoais nos f~ram
Europa a fim de recrutar um conting-ente de professores d'g- confiados por Mme. Georges DUMAS, M. ARROUSSE-RA"-TIDE eM P•Prre
nos de um ensino superior de que o Brasil era tão trag:ca- MONBEIG. Consultar-se-á aliás com proveito as alusões de C. LBVI-
mente desnrovido. Geor"'-e" DUMAS foi prevenido por Júlio STRAUSS em Tristes Tropiques, Paris: Plon, 1955, co!!. "Terre Humaine"
de MESQUITA FILHO, diretor do Estado, da part'da de Th. 490 pp. referentes ao caráter de classe da concepção da política cultural
de Georges DUMAS no Brasil, assim como o artigo de P. MONBEIG:
Augusto RAMOS para Roma. Ele conseguiu encontrá-lo a "continuité et changement au Brésil", Revista de História, pp. 783-7qo,
tempo p3.ra "colocar" uma equipe de professores france~es, n.o 101. São Paulo. Esse periódico apresentou dois números fundamentais
antes de as autoridades it~.l'anas terem sido oficialmente sobre a influência da escola histórica francesa em São Paulo, por ocasião
contactadas. Desse modo, dos 13 professor-es recrutados em do 100. 0 nltmero da Revista: Número Jubilar e Número Jubilar bis
(n. 0 103). É claro, não se pode deixar de consultar a ohra manumental de
1934 por Th. Augusto RAMOS, quase a metade dentre eles Fernando d~ AZEVEDO: A Cultura Brasileira. São Paulo: Ed. Melhrll·a-
foi escolhida por Georg-es DUMAS; os 7 outros se repartiram mentos, 1964, 803 pp (4.• ed.), sendo ele um dos conselheiros mais ativos
entre a nacionalidade italiana (quatro) e a alemã (três). O do grupo do Governador SALLES DE OLIVEIRA e Júlio de MESQUITA
êx;to de Georges DUMAS e de Jean MARX, seu colega e Filho. Enfim, agradecemos particularmente ao Sr. Júlio de MES-
QUITA Neto, que nos fez chegar às mãos o conjunto dos artigos de
IJ amigo, diretor da Seção das Ciências Religiosas na Escola Georges DUMAS publicado por O Estado de São Paulo.
Prática de Altos Estudos e chefe do serviço de Obras, desde
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N. 0 112. 1983/1984 11
1O Rev de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
de julho de 1933, do Ministério das Relações Exteriores,
per'ências e de comparações" t;nto quanto uma política se- era total. Constituía o coroamento de uma longa freaüen-
dutora de relações cultura's entre a França e o Brasil se acha tação de cerca de um quarto de século das el:tes intelec•uais
instalada no mesmo momento sob o impulso comum d-e Jean e econômicas do Brasil, s.eduzidas pela cultura da França
MARX e do psicóloao Geornes niiMAS. "ls.tina", e aparecia como o resultado de uma part'cular atra-
No dia 25 de janeiro de 1934 fora criada, com efP.ito, a ção de Georges DUMAS por São Paulo e a franja "esclare-
Faculdade de Filosofia. Ciências e Letras da Universid~de de cida " d-e sua aristocracia do café. Certamente, nem Georges
São Paulo. O s'anatário do decreto, o Governador Armando DUMAS nem os representantes da Emb- ixada de França no
SALLES DE OLIVEIRA, foi aconselhado nesse sentido por um Brasil haviam desprezado o Rio de Jane iro, e a criação de
grupo de intelectuais desejosos de fornecer à "sua" cid:de seu Liceu Francês desde 1915 era disso um testemunh J.
os quadros necessários ao dec:envolvimento econõrn'co. ad- AFás, a participação, em 1936 de um1 dezena de professo-
ministrativo e cultural de "seu" Estado. Na verdade, Si'io Pa•do res franceses dentre os mais eminentes como Henri HAUSER,
atravessava desde alguns anos grave crise de ident'dade. Tal no ensino da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
crise. consecut'va ao craaue de 1929, era mesmo tanto mais Universidade do Distrito Federal, cri::da no ano precedente,
grav-e quanto São Paulo acab~va de perder sua reconheciria foi a conseqüência direta da operação São Paulo, onde vá-
prenonderância sobre a d'recão dos nenócios do Brasil após rias cátedras concedidas aos mestres franceses foram c.lém
a dupla deposição de Washinqton LUfS, o Presidente em disso duplicad as. A visita efetuada por Georges DUMAS ao
ex-ercício, e de Júlio PRESTES, o Presidente eleito, por um Rio e a São Paulo entre julho e setembro de 1935 permitiu
putsch m!litar que deu o poder a Getúlio VARGAS. A revolh mesmo o c:rranjo de múlt'plos detalh·Ss (13). Além d s:o, nem
1111
"secessionista" de 1932 acabou de mostrar quanto o tempo Georges DUMAS nem Jean MARX haviam tampouco negli-
da onipotent-e aristocracia do café havia termin1do . Recolhen- genc'ad o o desenvolvimento das relações culturais da França
do a lição política dessa triste experiência, o grupo liberal com os outros países da América Latina de língua espanhola.
que gravitava em torno do eminente diretor d-e O Estado de O "Grupo das Universidades e Grandes Escolas de França
São Paulo decidiu então l2nçar a carta da "modernidF.tde". para as r-elações com a Améric::t Latina", criado em 1908,
Aos seus olhos, essa modernidade só poder:a encontrar na cuidava bem d'sso e a tarefa, confiada mais p::.rticularmente
Europa suas raízes e os frutos de seu êxito; ela passaria pri- a Ernest MARTINENCHE, era cumprida com grande atenção
meiramente por uma reforma de b3.s-e do ensino, mais parti- quz.nto à Argentina e ao México. Tal era, aliás, o sentido da
cularmente pela criação de um ensino superior deliberada- viagem de Lucien FEBVRE, em 1937, pelo Rio da Prata. No
mente nevo, fundado sobre uma alta qualidade científica e entanto, a fundação da Universidade de São Paulo permane-
técnica.
Assim, pois, Theodoro Augusto RAMOS foi enviado à
13) Sobre esses diferentes pontos, numerosos testemunhos pessoais nos f~ram
Europa a fim de recrutar um conting-ente de professores d'g- confiados por Mme. Georges DUMAS , M. ARROUSSE-RA"TIDE eM P•Prre
nos de um ensino superior de que o Brasil era tão tragica- MONBEIG. Consultar-se-á aliás com proveito as alusões de C. LBVI-
mente desnrovicio. Geor,..,-e<> DUMAS foi prevenido por Júlio STRAUSS em Tristes Tropiques, Paris: Plon, 1955, co!!. "Terre Humaine"
de MESQUITA FILHO, diretor do Estado, da part'da de Th. 490 pp. referentes ao caráter de classe da concepção da política cultural
de Georges DUMAS no Brasil, assim como o artigo de P. MONBEIG:
Augusto RAMOS para Roma. Ele conseguiu encontrá-lo a "continuité et changemenl au Brésil", Revista de História, pp. 783-7qo,
tempo p3.ra "colocar" uma equipe de professores francec:es, n.o 101, São Paulo. Esse periódico apresentou dois números fundamentais
antes de as autoridades it~.l'anas terem sido oficialmente sobre a influência da escola histórica francesa em São Paulo, por ocasião
contactadas. Desse modo, dos 13 professor-es recrutados em do 100. 0 nítmero da Revista: Número Jubilar e Número Jubilar bis
(n. 0 103). É claro, não se pode detxar de consultar a ohra m~ numc n t al de
1934 por Th. Augusto RAMOS, quase a metade dentre eles Fernando d~ AZEVEDO: A Cultura Brasileira. São Paulo : Ed. Melhrn·a-
foi escolhida por Georg-es DUMAS; os 7 outros se repartiram mentos, 1964, 803 pp (4.• ed.), sendo ele um dos conselheiros mais ativos
entre a nacionalidade italiana (quatro) e a alemã (três). O do grupo do Governador SALLES DE OLIVEIRA e Júlio de MESQ UITA
êx:to de Georges DUMAS e de Jean MARX, seu colega e Filho. Enfim, agradecemos particularmente ao Sr. Júlio de MES·
QUITA Neto, que nos fez chegar às mãos o conjunto dos artigos de
amigo, diretor da Seção das Ciênc ias Religiosas na Escola Georges DUMAS publicado por O Estado de São Paulo.
Prática de Altos Estudos e chefe do serviço de Obras, desde
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 112. 1983/1984 11
1O Rev de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
ceu como "a qrande obra da vida de Georges DUMAS" DE. . . Foi, aliás, na Escola Normal que ele encontrou Henri
(Ciaude L~VI-STRAUSS) e a descoberta do Brasil por uma HAUSER, nascido como ele em 1866 mas entrado na Escola
plêiade de intelectuais franceses onde os historiadores iriam um ano mais cedo. E o mundo intelectual desse v'veiro da
repr-esentar um papel não desprezível, apresentou-se comn o inteliaência francesa tornou-se-lhe definitivamente disponível
ponto forte do contacto cultural entre a França e a América quando os azares da existência fizeram de Aimée PERROT
Latina. _ uma das filhas do célebre historiador da arte e DiretJr
A "Escola dos Annales" foi diretamente envolvid:i pela da Escola - a companheira de sua vida. De fato, ~mile
primeira missão universitária francesa enviada a São Paulo COORNAERT havia colaborado nos Annales desde 1932
desde a criação da Universidade. Todavia, os leitores tiveram antes de ver publicado, em 1936, auando do seu retorno do
que esperar o ano de 1937 para poder ler os primeiros escri- Brz.sil, assinado da Escola Prática de Altos Estudos, um arti-
tos resultantes das missões brasileiras. No primeiro número go de fundo consagrado à gênese do sistema capitalista em
de 1937, Henri HAUSER - o carioca - evocava simbolica- Anvers. Des'qnado para ens:nar História em São Paulo, essa
mente "um problema de influências: o saint-simonismo no escolha se deu em parte em função da defecção de Pierre
Brasil" em que a herança de Auguste COMTE era tão cultiva- MONBEIG, contactado desd-e janeiro de 1934 pela deligência
da, e, alguns meses mais tarde, Pierre MONBEIG descrevia de Henri HAUSER e de Georges DUMAS.
"as zonas pioneiras do Estado de São Paulo". De fato, ~mil e ~mile COORNAERT não estava pois preparado para sua
COORNAERT, "o primeiro francês chamado a lecionar Histó- empresa br2sile ira; e de modo alqum estava ele disposto a
ria num estabelecimento de Ensino Superior brasil-eiro" (H. comprometer seus trabalhos com a História do Brasil. No ·'"'11-
HAUSER) havia escrito, desde 1936, um artigo sobre o Brasil, tanto, aquele que ia se tornar um dos membros do Comitê
mas o seu "bosquejo da produção histórica r-ecente no Brasil" de Apoio dos Annales, após a Sequnda Guerra Mund'al, cum-
fora publicado pela Revue d'Histoire Moderne. Contudo, ~mile priu muito bem o seu trabalho. Seu "Aperçu ... " atingiu, se-
COORNAERT já era um colabor2dor, ligado ao grupo dos h's- gundo Henri HAUSER, "o duplo fim a que ele visava: mostrar
toriadores que Marc BLOCH e Lucien FEBVRE haviam junta- aos brasileiros que a gente era capaz de se interess-=-r por
do. Aliás, não era lógico que colaboradores de uma revista seus esforços e estabelecer um laço espir'tual entre os his-
fundada gr2.ças à liberalidade do editor Max LECLERQ que toriadores dos dois países" (15). Mas, n:1 r.ealidade, tal meta
havia analisado tão bem o Brasil no fim do século XIX como não correspondia de todo à amb:ção do programa de Lucien
corr-espondente do Journal des Débats fossem calorosamen- FEBVRE. E o seu artigo consciencioso só encontrou eco nos
te convidados por Georges DUMAS a ensin:1r em São Paulo? Annales em 1948 quando ele comentou uma obra de J. F. de
(14) Este psicólogo francês conhecia muito bem o seu mundo ALMEIDA PRADO a propósito das "origens do Bras:! do Norte
e sobretudo gostava de escutar os conselhos de seus amlgos e do Centro". Um comentário que Fernand BRAUDEL não he-
próximos. De sua cátedra de Sainte-Anne ou da Sorbonne, sitou em retomar, como o fizera em 1943, à sua maneira, aue
ele havia form2.do numerosas g-erações de estudantes, de foi na verdade a dos Annales, com a resenha seca e precisa
Paul ARBOUSSE-BASTIDE a Claude L~VI-STRAUSS, e, quan- que ~mile COORNAFRT escrevera de Casa Grande & Sen-
do estava em dificuldade, não hesitava absolutamente em re- zala d.e Gilberto FREYRE em seu "Aperçu".
correr junto à direção da Escola Normal Superior, da qual ~ verdade que muitos acasos haviam contribuído para
havia sido um brilhante elemento em 1886, condiscípulo de essa des:gnação de ~mile COORNAERT como professor na
Romain ROLLAND, Léon BRUNSCHWICG, André LALAN- Faculdade de Filosofia de São Paulo. De fato, Pierre MON-

14) Max LE CLERC: Lettres du Brésil, Paris, 1890, 274 pp.; uma tradução l5) Henrj HAUSER: "Notes et réflexions sur !e travail historique au Brésil",
brasi!t:ira por Sérgio MILLIET foi publicada em São Paulo em 1943 sob ~evue Historique (p. 86), tome 181. 1937: 85-98; Emile COORNAERT:
o título: Curtas do Brasil, co!. Brasiliana, n.U 215, Cia. Ed. Nac .. Na Aperçu de la production historique au Brésil", Revue d'Histoire Moderne,
morte de Max LECLERC (1864-1932), os Diretores dos Annales precisa· tot?~ 11. l<l36: 44-60: E, COORNAERT et Fernand BRAUDEL: "Aux
raro aquilo qu~ a Revista devia a esse "grande editor" da casa Armancl ~ngmes du Brésil du Nord et du Centre", Anna/es E. S. C., pp. 136-138; F.
Colin m Annales d'Histoire Economique et Sacia/e, n. 0 16, de 31 de G~UDEL:
1
"A travers un continent d'Histoire- Le Brésil et l'oeuvre de
julho de 1932, Ano IV. berto FRE'r RE", Melanges d'Histoire ::.ocia/e, IV, 1943: 1-20.

Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/19lH 13
12
ceu como "a qrande obra da vida de Georges DUMAS" DE. . . Foi, aliás, na Escola Normal que ele encontrou Henri
(Ciaude LÉVI-STRAUSS) e a descoberta do Brasil por uma HAUSER, nascido como ele em 186'6 mas entrado na Escola
plêiade de intelectuais franceses onde os historiadores iriam um ano mais cedo. E o mundo intelectual desse v'veiro da
repr.esentar um papel não desprezível, apresentou-se comn o iníelioência francesa tornou-se-lhe definitivamente disponível
ponto forte do contacto cultural entre a França e a América quando os azares da existência fizeram de Aimée PERROT
Latina. _ uma das filhas do célebre historiador da arte e Diret:Jr
A "Escola dos Annales" foi diretamente envolvid~ pela da Escola - a companheira de sua vida. De fato, Émile
primeira missão universitária francesa enviada a São Paulo COORNAERT havia colaborado nos Annates desde 1932
desde a criação da Universidade. Todavia, os leitores tiveram antes de ver publicado, em 1936, quando do seu retorno do
que esperar o ano de 1937 para poder ler os primeiros escri- Br2sil , assinado da Escola Prática de Altos Estudos, um arti-
tos resultantes das missões brasileiras. No primeiro número go de fundo consagrado à gênese do sistema capitalista em
de 1937, Henri HAUSER - o carioca - evocava simbolica- Anvers. Des 'qnado para ens:nar História em São Paulo, essa
mente "um problema de influências: o saint-simonismo no escolha se deu em parte em função da defecção de Pierre
Brasil" em que a herança de Auguste COMTE era tão cultiva- MONBEIG, contactado desde janeiro de 1934 pela deligência
da, e, alguns meses mais tarde, Pierre MONBEIG descrevia de Henri HAUSER e de Georges DUMAS.
"as zonas pioneiras do Estado de São Paulo". De fato, Émile Émile COORNAERT não estava pois preparado para sua
COORNAERT, "o primeiro francês chamado a lecionar Histó- empresa brasileira ; e de modo alqum estava ele disposto a
ria num estabelecimento de Ensino Superior brasil·eiro" (H. comprometer seus trabalhos com a História do Brasil. No ·"11-
HAUSER) havia escrito, desde 1936, um artigo sobre o Brasil, tanto, aquele que ia se tornar um dos membros do Comitê
mas o seu "bosquejo da produção histórica recente no Brasil" de Apoio dos Annales, após a Sequnda Guerra Mund'al, cum- ,,
fora publicado pela Revue d'Histoire Moderne. Contudo, Émile priu muito bem o seu trabalho. Seu "Aperçu ... " atingiu, se-
COORNAERT já era um colaborador, ligado ao grupo dos h's- gundo Henri HAUSER, "o duplo fim a que ele visava: mostrar
toriadores que Marc BLOCH e Lucien FEBVRE haviam junta- aos brasileiros que a gente era capaz de se interess?.r por
do. Aliás, não era lógico que colaboradores de uma revista seus esforços e estabelecer um laço espir'tual entre os his-
fundada gr2ças à liberalidade do editor Max LECLERQ que toriadores dos dois países" (15). Mas, n~ r-ealidade, tal meta
havia analisado tão bem o Brasil no fim do século XIX como não correspondia de todo à amb:ção do programa de Lucien
correspondente do Journal des Débats fossem calorosamen- FEBVRE. E o seu artigo consciencioso só encontrou eco nos
te convidados por Georges DUMAS a ensin:tr em São Paulo? Annales em 1948 quando ele comentou uma obra de J. F. de
(14) Este psicólogo francês conhecia muito bem o seu mundo ALMEIDA PRADO a propósito das "origens do Bras'l do Norte
e sobretudo gostava de escutar os conselhos de seus amigos e do Centro". Um comentário que Fernand BRAUDEL não he-
próximos. De sua cátedra de Sainte-Anne ou da Sorbonne, sitou em retomar, como o fizera em 1943, à sua maneira, ou e
ele havia form2do numerosas g·erações de estudantes, de foi na verdade a dos Annales, com a resenha seca e precisa
Paul ARBOUSSE-BASTIDE a Claude LÉVI-STRAUSS, e, quan- que Émile COORNAFRT escrevera de Casa Grande & Sen-
do estava em dificuldade, não hesitava absolutamente em re- zala d.e Gilberto FREYRE em seu "Aperçu".
correr junto à direção da Escola Normal Superior, da qual É verdade que muitos acasos haviam contribuído para
havia sido um brilhante elemento em 1886, condiscípulo de essa des:gnação de Émile COORNAERT como professor na
Romain ROLLAND, Léon BRUNSCHWICG, André LALAN- Faculdade de Filosofia de São Paulo. De fato, Pierre MON-

14) Max LE CLERC: Lettres du Brésil, Paris, 1890, 274 pp.; uma tradução
1
5) Henri HAUSER: "Notes et réflexions sur !e travail historique au Brésil",
brasi!t:ira por Sérgio MILLIET foi publicada em São Paulo em 1943 sob ~evue Historique (p. 86), tome 181, 1937: 85-98; Emile COORNAERT:
o título: Curtas do Brasil, col. Brasiliana, n.U 215, Cia. Ed. Nac .. Na Aperçu de Ia production historique au Brésil", Revue d'Histoire Moderne,
morte de Max LECLERC (1864-1932), os Diretores dos Annales precisa- tot_n~ 11. 1936: 44-60: E, COORNAERT et Fernand BRAUDEL: "Aux
ram aquilo quê a Revista devia a esse "grande editor" da casa Armanc.l. ~~nes du Brésil du Nord et du Centre", Annales E. S. C., pp. 136-138; F.
Colin m Anna/es d'Histoire Econornique et Sociale, n.O 16, de 31 de G'l
1
UDEL: ':A tr~yers un continent d'~istoire.- Le Brésil ~t l'oeuvre de
julho de 1932, Ano IV. berto F.RE'r RE , Me/anges d'Htsloire ::>ocwle, IV, 194.J: 1·20.

12 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 13
BEIG havia sido indicado primeiramente. A jovem esposa de Muito mais do que com as convicções católicas, eram pelo
Pierre MONBEIG não era filha de Paul JANET, com quem menos igualmente com as convicções "liberais" de Júlio de
Georges DUMAS havia percorrido o Brasil em 1925 qu -:.ndo MESQUITA Filho que contava Georges DUMAS. E a difusão de
de uma .espetacular missão de conferências de professores certo "-espírito" protestante e de certo espírito "livre-pensa-
universitários franceses, e prima de Pierre JANET, o am ·go dor" facilitou a tarefa dos admiradores de DURKHEIM : um
íntimo de nosso conselheiro do Quai d'Orsay sem a ajud '3. neopositivismo adaptado ao espírito científico do século XX
de quem o monumental Tratado de Psico!ogia não teria vindo reencontrava as raízes de Auguste COMTE no Brasil que vá-
à luz? Além disso, a companheira de pierre MONRI=IG não rios missionários, não obstante marcados pelo grande choque
dos anos 1934-1936 em França, abandor.aram para melhor se
tinha trabalhado sob a direção de Henri HAUSER, que
reconhecer nas idéias socializantes de SAINT-SIMON. As amar-
nosso geógrafo, aliás, conhecia? Numa palavra . em 1934.
posto aue solicitado oara ensinar História em São Paulo, ras estavam lançadas. O enxerto cultural ia pegar? A transplan-
Pierre MONBEIG declinou do convite e ofereceu seus servi- tação possível ia permitir aos novos intelectuais paulistas for-
ços de geógrafo para a !"Ubstituicão de Pi.erre DEFFONTAI- jar as bases da "brasilidade"?
NES, no ano seguinte. Efetivamente, em 1935, Pierre MONBEIG
veio para a Universidade de São Paulo em companhia de Fer- 4. - A concretização dos resultados das missões
nand BRAUDEL que substituía Émile COORNAERT; de Claude brasileiras.
LÉVI-STRAUSS que se benefici c.va com o desdobr8mento da
cadeira d-e sociologia confiada a Paul ARBOUSSE-BASTID~, O resultado foi imponente. Fernand BRAUDEL, depois
segundo os conselhos prodigalizados por Paul RIVET e H. Jean GAGE que o substituiu em 1938, Pierre MONBEIG e
Pierre DEFFONTAINES, Claude LÉVI-STRAUSS e depois Ro- ,,
LEVY-BRUHL, e podia assim ensinar etnologia; do filósofo
ger BASTIDE, que chegou ao Brasil em 1938, fizeram escola,
Jean MAUGUE que sucedeu a Etienn.e BORNE; e do literato
para não falar da influência de Paul ARBOUSSE-BASTIDE no
Pierre HOURCADE que prosseguia o trabalho de Robert GAR-
campo da filosofia e d&s ciências políticas. A "escola" etno-
RIC. Esta segunda missão un iverc:itári"l francesa se distinguia
da primeira em vários asp.ectos. Ela era muito ma's homooênea s:ciológica de São Paulo, a "escola" geográfica e a "escola"
e formada de professores jovens, bem no início de suas carrei- histórica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foram
ras. Em 1934, convinha sobretudo realizar uma missão brilha"'t·9 na verdade criadas por esses professores universitários fran-
cujos aspectos de aparato aproximavam-se mais das missões ces.es. Mas o intercâmbio não foi tão desigual como o pare-
de conferencistas, altamente espetaculares, do que das missões ce à primeira vista. Pois os derradeiros, de retorno à França,
de ensino propriament-e dito . Certamente, não era uma missão revelaram-se apaixonados por sua experiência brasil-eira. Já
tão distinta quanto a de 1925 composta dos mais altos dignitá- que Henri HAUSER deplorara "a lacuna de nossa informa-
rios da Universidade, mas os professores enviados a São Paulo ção histórica" a propósito do Brasil, eles se ligaram a pre-
eram talentos confirmados. Sobretudo Georges DUMAS e Jean enchê-la de maneira que já não se achem mais apenas em
MARX cuidaram para que as convicções ideológicas de seus nossos manuais algumas boas páginas sobre as colônias es-
missionários não perturbassem o meio l'beral .e católico do panholas da América, e o Brasil "despachado nalgumas li-
nhas, por assim dizer em anexos e por descarga de consci-
paulista "granfino". A representação católica era assim majo-
ritária e a segurança na carreira certa. Mas uma vez realizado ência". De São Paulo, o geógrafo Pierr.e MONBEIG não so-
o primeiro contacto e seduzida a "clientela", começavam as mente fornec.eu matéria para publicação nos Annales de Géo-
graphie mas também nos Annales de Marc BLOCH e Lucien
coisas sérias. Os missionários da segunda onda que iam per-
FEBVRE. O tempo de seu projeto d.e tese sobre as Baleares
manecer por vários anos tinham por tarefa a formação real de
estava muito distante. E mesmo qu-e tenha continuado por
jovens estudantes brasileiros saídos das classes médias cujo
ac.dente a assinar uma resenha sobre a Espanha, Pierre
sangue novo devia permitir que a aristocracia "esclarecida" do
café ultrapassasse o quadro estreito no qual havia conduzido
~10~BEIG_ assegurava doravante um direito prioritário ao
ras.tl. Alem das zonas pioneiras do Estado de São Paulo,
sua ação inábil e afirmar assim a potência futura da " moder- 0
nidade" paulista no coração do Brasil e na escuta da Europa. lettor francês conheceu graças a ele os trabalhos de J. F.
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N. 0 1/2, 1983/1984 15
14 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.0 1/2, 1983/1984
BEIG havia sido indicado primeiramente. A jovem esposa de Muito mais do que com as convicções católicas, eram pelo
Pierre MONBEIG não era filha de Paul JANET, com quem menos igualmente com as convicções "liberais" de Júlio de
Georges DUMAS havia percorrido o Brasil em 1925 qu-;.ndo MESQUITA Filho que contava Georges DUMAS. E a difusão de
de uma .espetacular missão de conferências de professores certo ".espírito" protestante e de certo espírito "livre-pensa-
universitários franceses, e prima de Pierre JANET, o am ·go dor" facilitou a tarefa dos admiradores de DURKHEIM: um
íntimo de nosso conselheiro do Quai d'Orsay sem a ajud'3. neopositivismo adaptado ao espírito científico do século XX
de quem o monumental Tratado de Psico!ogia não teria vindo reencontrava as raízes de Auguste COMTE no Brasil que vá-
à luz? Além disso, a companheira de pierre MONRI=IG não rios missionários, não obstante marcados pelo grande choque
dos anos 1934-1936 em França, abandor.aram para melhor se
tinha trabalhado sob a direção de Henri HAUSER, que
r-econhecer nas idéias socializantes de SAINT-SIMON. As amar-
nosso geógrafo, aliás, conhecia? Numa palavra . em 1934.
posto aue solicitado oara ensinar História em São Paulo, ras estavam lançadas. O enxerto cultural ia pegar? A transplan-
Pierre MONBEIG declinou do convite e ofereceu seus servi- tação possível ia permiiir aos novos intelectuais paulistas for-
ços de geógrafo para a ~ubstit11icão de pi.erre DEFFONTAI- jar as bases da "brasilidade"?
NES, no ano seguinte. Efetivamente, em 1935, Pierre MONBEIG
veio para a Universidade de São Paulo em companhia de Fer- 4. - A concretização dos resultados das missões
nand BRAUDEL que substituía I:mile COORNAERT; de Claude brasileiras.
LI:VI-STRAUSS que se beneficic.va com o desdobr::tmento da
cadeira d-e sociologia confiada a Paul ARBOUSSE-BASTID~. O resultado foi imponente. Fernand BRAUDEL, depois
segundo os conselhos prodigalizados por Paul RIVET e H. Jean GAGE que o substituíu em 1938, Pierre MONBEIG e
LEVY-BRUHL, e podia assim ensinar etnologia; do filósofo Pierr.e DEFFONTAINES, Claude LI:VI-STRAUSS e depois Re- ,:

ger BASTIDE, que chegou ao Brasil em 1938, fizeram escola,


Jean MAUGUE que sucedeu a Etienn.e BORNE; e do literato
para não falar da influência de Paul ARBOUSSE-BASTIDE no
Pierre HOURCADE que prosseguia o trabalho de Robert GAR-
campo da filosofia e dc.s ciências políticas. A "escola" etno-
RIC. Esta segunda missão univerc:itári3. francesa se distinguia
da primeira em vários asp.ectos. Ela era muito ma's homooênea s:ciológica de São Paulo, a "escola" geográfica e a "escola"
e formada de professores jovens, bem no início de suas carrei- histórica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foram
ras. Em 1934, convinha sobretudo realizar uma missão brilha"'t·9 na verdade criadas por esses professores universitários fran-
cujos aspectos de aparato aproximavam-se mais das missões ceses. Mas o intercâmbio não foi tão desigual como o pare-
de conferencistas, altamente espetaculares, do que das missões ce à primeira vista. Pois os derradeiros, de retorno à França,
de ensino propriament-e dito. Certamente, não era uma missão revelaram-se apaixonados por sua experiência brasil-eira. Já
tão distinta quanto a de 1925 composta dos mais altos dignitá- que Henri HAUSER deplorara "a lacuna de nossa informa-
ríos da Universidade, mas os professores enviados a São Paulo ção histórica" a propósito do Brasil, eles se ligaram a pr-e-
eram talentos confirmados. Sobretudo Georges DUMAS e Jean enchê-la de maneira que já não se achem mais apenas em
MARX cuidaram para que as convicções ideológicas de seus nossos manuais algumas boas páginas sobre as colônias .es-
missionários não perturbassem o meio l'beral .e católico do panholas da América, e o Brasil "despachado nalgumas li-
nhas, por assim dizer em anexos e por descarga de consci-
paulista "granfino". A representação católica era assim majo-
ritária e a segurança na carreira certa. Mas uma v-ez realizado ência". De São Paulo, o geógrafo Pierr.e MONBEIG não so-
o primeiro contacto e seduzida a "clientela", começavam as mente fornec.eu matéria para publicação nos Annales de Géo-
graphie mas também nos Annales de Marc BLOCH e Lucien
coisas sérias. Os missionários da segunda onda que iam per-
FEBVRE. O tempo de seu projeto d.e tese sobre as Baleares
manecer por vários anos tinham por tarefa a formação real de
estava muito distante. E mesmo qu-e tenha continuado por
jovens estudantes brasileiros saídos das classes médias cujo
ac,dente a assinar uma resenha sobre a Espanha, Pierre
sangue novo devia permitir que a aristocracia "esclarecida" do
café ultrapassasse o quadro estreito no qual havia conduzido
~O~BEIG_ assegurava doravante um direito prioritário ao
rasll. Alem das zonas pioneiras do Estado de São Paulo,
sua ação inábil e afirmar assim a potência futura da "moder- 0
nidade" paulista no coração do Brasil e na escuta da Europa. leitor francês conheceu graças a ele os trabalhos de J. F.

Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984


Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/198~ 15
14
NORMA NO, de Josué de CASTRO. de René COURTIN ... O Fernand BRAUDEL a jovem esperança que lhe faltava. Em ou-
comentário que ele realizou dos trabalhos de NORMANO, in- tubro de 1937, Fernand BRAUDEL se preparava para embar-
titulado "para compreender o Brac;il", correspondia exata- car em Santos de volta para França, tendo expirado o seu
menta às esperanças de Lucien FEBVRE " para compreE;nder contrato com a Faculd c: de de São Paulo. O acaso lhe fez re-
a América do Sul ". (16) encontrar Lucien FEBVRE no mesmo navio. Foi um momento
D-e fato, os anos 1937-1938 foram, para as Annales, os decisivo de sua vida de historiador. "I also made direct con-
anos da descoberta do Brasil. Henri HAUSER, que acabava tact with Lucien FEBVRE in 1932 and 1933", escreveu ele
de fornecer seu ponto de vista sobre o saint-simonismo fran- em seu 'Personal Testimony', "once at the home of Henri
co-brasileiro e tinha entregue à oficialíssima Ravue H "storique BERR (with whom I had been in touch since 1930l, once at
suas "Notes et réflexions sur le travail historique au Brésil", the Encyclopédie Française, rue du Four, and once at his
voltou à carga nos Annales em 1938. O historiador dos pre- house, in h;s house, in his amazing office in the rue Vai de
ços, do capitalismo e do trabalho não podia deixar de ser Grâce. And then, when I was finally leaving Brazil, at Santos
levado a refletir sobre as cond:ções de trabalho que tinham in October 1937, as I was boarding the ship (there were no
sido uma das características do Brasil contemporâneo: o tra- transocianic airplanes in those days), I encountred Lucien
balho S·ervil. E essa anál ise das condições de trabalho no FEBVRE, who was returning from a series of lectures in Bue-
seio de uma instituição recentemente abolida o levava a co- nos Aires. Those twenty days of the ocean crossing were, for
locar os problemas presentes da "agronomia" brasil-eira, das Lucien FEBVRE, my wife and me, twenty days of happy con-
"formas modernas da industrialização agrícola" do Bras:l de versat:on and laughter. lt was th-en I became more than a
uma maneira toda particular. Segundo o historiador francês compani on to Luc:en FEBVRE a little like a son; his house
da Universidade do Rio, conferencista do ltamaraty, a "mo- in the Juras at Souget became my house, his children my
dernidade" do Brasil devia passar por uma solução desse pro- children" (18).
blema "angustiante": "este modo de exploração nascido da Esse encontro foi, portanto, capital ; ele se situava no mo-
escravidão, modelado pela escravidão e cuja força continuou mento preciso em que Fernand BRAUDEL retornava à França
a moldar a civilização rural após a abolição, poderá ou não depo is de ter conhecido uma experiência excepcionalmente
concordar com as formas evoluídas do capitalismo e do sa- enriquecedora: "By chance in 1935, - confessou ele - , I
lariado?" E, no ano mesmo em que VARGAS acreditava achar was offered a position on the faculty of São Paulo in Brazil.
em Roma ou em Berlim seus modelos de conduta, ele con- I found it a parad:se for work and reflection. Charged w;th con-
cluía: "É uma grande fraqueza para uma democracia não pos- ductmg a general course on the history of civilization, I had
suir classe camponesa" (17). attractive students, combativa about some things, living close
Mas se o renome, o prestígio, de Henri HAUSER aí pelo to you, obliging you to take a position on every thing. I spent
fim de uma carreira exemplar, oferecia em França a descober- three marvelous years in this fashion: in winter, during the
ta do Brasil, a h:storiografia francesa encontrou na pessoa de period of my southern vacations, I was in the Mediterranean;
the rest of the year, in Brazil, with l·eisure and fantastic possi-
-----
16) Pierre MONBEJG: "Vie de relations et spécialisation agricole - Les Ba· bilities for reading. And so I read kilometers of microfilm ...
léares au XVIII e siecle", Annales .. . , IV, 1932: 538-548; "La réforme (18 bis) . Também, desde o seu retorno à França, o antigo
agraire en Espagne", Annales .. . , V, 1933: 541-560; "Les zones pionnieres aluno de Henri HAUSER que havia começado a refletir em
de l'Etat de São Paulo", ibid., IX, 1937: 343-365; "Pour comprendre le Argel sobre sua política mediterrânea de Filipe 11, nos anos
Brésil", ib., X, 1938: 476-477; "Coton centre café", ib., X, 1938: 478-480:
"Peuplement blanc sous les Tropiques", ib., XI, 1939: 462-463; "Economie 1930, abriu seu horizonte europeu ao horizonte atlântico do
ou économies brésiliennes", ib., XIX, 1947: 171-175; '"La géographie de la Novo Mundo entre 1935 e 1937. E se o essencial de seu Médi-
faim' de Josué de CASTRO", ib., XX, 1948: 495-500; etc. terranée . . .: à l'époque de Philippe 11 estava pronto em 1939,
17) Henri HAUSER: "Naissance, vie et mort d'une institution: le travail ser· a maturaçao de sua obra "revolucionária" efetuou-se imedia-
vile au Brésil" (p. 318) . A11nales .. , 1938: 309-311$. ~obre as re!lexões
brasileiras do professor honorário da Sorbonne, pode-se consultar a "in·
troduction" de Pierre CHAUNU à 3.• edição de La Prépondérance Espag· 18> Fernand BRAUDEL: "Personal Testimony", p. 453, The fournal of
nole 15i9·1l'60, pp. V-XL. '! mais particularmente p. XII nota 2, Paris: IS) A(1bC?dern .History, dez. 1972, vol. 44: 448-467.
1s) lbzdem, p . 452.
Mouton, 1973, 594 pp.
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 17
16
NORMA NO, de Josué de CASTRO. de René COURTIN ... O Fernand BRAUDEL a jovem esperança que lhe faltava. Em ou-
comentário que ele realizou dos trabalhos de NORMANO, in- tubro de 1937, Fernand BRAUDEL se preparava para embar-
titulado "para compreender o Brac:;il", correspondia exata- car em Santos de volta para França, tendo expirado o seu
menta às esperanças de Lucien FEBVRE " para compreE;nder contrato com a Faculd 2de de São Paulo. O acaso lhe fez re-
a América do Sul ". (16) encontrar Lucien FEBVRE no mesmo navio. Foi um momento
D-e fato, os anos 1937-1938 foram, para as Annales, os decisivo de sua vida de historiador. "I also made direct con-
anos da descoberta do Brasil. Henri HAUSER, que acabava tact with Lucien FEBVRE in 1932 and 1933", escreveu ele
de fornecer seu ponto de vista sobre o saint-simonismo fran- em seu 'Personal Testimony', "once at the home of Henri
co-brasileiro e tinha entregue à oficialíssima Ravue H"storique BERR (with whom I had been in touch since 1930), once at
suas "Notes et réflexions sur le travail historique au Brésil", the Encyclopédie Française, rue du Four, and once at his
voltou à carga nos Annales em 1938. O historiador dos pre- house, in h's house, in hls amazing office in the rue Vai de
ços, do capitalismo e do trabalho não podia deixar de ser Grâce. And then, when I was finally leaving Brazil, at Santos
levado a refletir sobre as cond:ções de trabalho que tinham in October 1937, as I was boarding the ship [there were no
sido uma das características do Brasil contemporâneo: o tra- transocianic airplanes in those days), I encountred Lucien
balho s-ervil. E essa anál ise das condições de trabalho no FEBVRE, who was returning from a series of lectures in Bue-
seio de uma instituição recentemente abolida o levava a co- nos Aires. Those twenty days of the ocean crossing were, for
locar os problemas presentes da "agronomia" brasileira, das Lucien FEBVRE, my wife and me, twenty days of happy con-
"formas modernas da industrialização agrícola" do Bras:l de versat:on and laughter. lt was th-en I became more than a
uma maneira toda particular. Segundo o historiador francês companion to Luc:en FEBVRE a little like a son; his house
da Universidade do Rio, conferencista do ltamaraty, a "mo- in the Juras at Souget became my house, his children my
dernidade" do Brasil devia passar por uma solução desse pro- children" (18).
blema "angustiante": "este modo de exploração nascido da Esse encontro foi, portanto, capital; ele se situava no mo-
escravidão, modelado pela escravidão e cuja força continuou mento prec iso em que Fernand BRAUDEL retornava à França
a moldar a civilização rural após a abolição, poderá ou não depois de ter conhecido uma experiência excepc ionalmente
concordar com as formas evoluídas do capitalismo e do sa- enriquecedora: "By chance in 1935, - confessou ele - , I
lariado?" E, no ano mesmo em que VARGAS acreditava achar was offered a position on the faculty of São Paulo in Brazil.
em Roma ou em Berlim seus modelos de conduta, ele con- I found it a parad:se for work and reflection. Charged w;th con-
cluía: "É uma grande fraqueza para uma democracia não pos- ductmg a general course on the history of civilization, I had
suir classe camponesa" (17). attractive students, combative about some things, living close
Mas se o renome, o prestígio, de Henri HAUSER aí pelo to you, obliging you to take a position on every thing. I spent
fim d-e uma carreira exemplar, oferecia em França a descober- three marvelous years in this fashion: in winter, during the
ta do Brasil, a historiografia francesa encontrou na pessoa de period of my southern vacations, I was in the Mediterranean;
the rest of the year, in Brazil, with l·eisure and fantastic possi-
-----
16) Pierre MONBEJG: "Vie de relations et spécialisation agricole - Les Ba· bilities for reading. And so I read kilometers of microfilm ...
léares au XVIII e siecle", Annales .. . , IV, 1932: 538-548; "La réforme [l8 bis). Também, desde o seu retorno à França , o antigo
agraire en Espagne", Annales .. . , V, 1933: 541-560; "Les zones pionnieres aluno de Henri HAUSER que havia começado a refletir em
de l'Etat de São Paulo", ibid., IX, 1937: 343-365; "Pour comprendre le Argel sobre sua política mediterrânea de Filipe 11, nos anos
Brésil", ib., X, 1938: 476-477; "Coton contre café", ib., X, 1938: 478-480:
"Peuplement blanc sous les Tropiques", ib., XI, 1939: 462-463; "Economie 1930, abriu seu horizonte europeu ao horizonte atlântico do
ou économies brésiliennes", ib., XIX, 1947: 171-175; "'La géographie de la Novo Mundo entre 1935 e 1937. E se o essencial de seu Médi-
faim' de Josué de CASTRO", ib., XX, 1948: 495-500; etc. terranée . . .: à l'époque de Philippe /1 estava pronto em 1939,
17) Henri HAUSER: "Naissance, vie et mort d'une institution: !e travail ser· a maturaçao d.e sua obra "revolucionária" efetuou-se imedia-
vile au Brésil" (p. 318) . A11nales .. , 1938: 309-::Jlli. ~obre as re!lexões
brasileiras do professor honorário da Sorbonne, pode-se consultar a "in·
18) Fernand BRAUDEL: "Personal Testimony", p. 453, The fournal of
troduction" de Pierre CHAUNU à 3.• edição de La Prépondérance Espag·
IS) A(1
b?dern .History, dez. 1972, vol. 44: 448-467.
nole 15i9-1C>60, pp. V-XL. '! mais particularmente p. XII nota 2, Paris: 1s) 1bzdem, p . 452.
Mouton, 1973, 594 pp.
Rev. de c. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 17
16
tamente para aquém e para além do ano de 1937 que lhe fez "operação Brasil ", empr.eendida por Georges DUMAS, tinham
ao m€smo tempo deixar o " pa raíso" brasileiro e conhecer sido, po is, ating idos. Doravante. de Paris, Fernand BRAUDEL ia
verdadeiramen te Lucien FEBVRE. Doravante, da Escola Prá- alimentar regularmente as colunas dos Annales com sua prosa
tica de Altos Estudos , Fe rn: nd BRAUDEL assegurou sua cola- "brasilian izante".
Em 1939, el.e resenhava d :ferentes trabalhos e prep -: rava
boração G.pa 'xonada nos Annales.
Desde 1938, ele comentou o estudo de Robert R:CARD outros estudos gue a guerra veio anular. Todavia, em 1943, as
s: bre /es Jésuítes au Brési /; e, longe de se interessar pelos Mélanges d'Histoire Sacia/e publicavam su 3. no .ável análise da
"métodos e pelas condições do trabalho apostólico" , ele bus- obra de Gilberto FREYRE. O título de seu comentário de 17
cav a delibe radamente " o Brasil e suas pr.:;fundezas continen- páginas era por si só um program a: " Através de um continen-
ta's". Essa tomada de consciência do "mov:mento geral" que te d.g História. O Brasil e a obra de Gilberto FREYRE". Ele re-
fez " o Brasil inteiro oscilar nesse momento rumo a suas pro- velava o impacto ds uma nova concepção do tempo e do es-
fun dezas continentais" , ess.e movimento que "marca, na ver- paço na dialética do passado e do presente e mostrava quanto
dade, o fim da primeira evanqel ;zação do Brasil, mais a'nda 0 indivíduo, qualquer que sejam suas possibilidades de c. ção .e
do que a morte do Padre ANCHIETA, ocorrid3 em 1597 e .es- ae pensamento, se situava recuado face ao "mundo ator",
colh ida como limite desse estudo", não deixa de nos fazer qu.sr fosse o Brasil ou o Mediterrâneo. De fato , o tempo da Li-
p·snsar nessa mutação do pensamento braudeliano que, na berc:.ção ia ass istir à eclcsão dessa monumental síntese da in-
mesma época, o f 2zia passar "dos quadros da história diplo- terpretação hamiltoniana dos metais preciosos e da geo-his-
mát!ca - de Fel ipe 11 - , bastante indiferente às conquistas tó ri a de Lucien FEBVRE passando dos horizontes euro-africa-
da ge :: grafia ... , pouco preocupada com a economia e os nos aos horiz.:;ntes da América e da c:vil iz::.ção : .em 1947, Fer-
prob !.sm as sociais, assaz desdenhosa em relação aos fatos nand BRAUDEL entregava aos Annales, novo formato, suas re-
de civilizaç ão, às religiões e ... às letras e às artes .. . ", para fle xões sobre "Moedas e civilização" - a p1ssag.9m do ouro
essa verdade ira vida, fecunda e densa. .. que lhe fez re- do Sudão à prata da América aparecia como um drama do Me-
constituir o mapu geral da política mundial da Espanha de dite rrâneo em proveito do Atlântico (20) . Não era chegado o
que o Mediterrâneo foi apenas um s.etor" e em que, "com cs momento de consagrar doravente os esfJrços dos jovens his-
anos 1580, a força da Espanha" foi de ser "lançada de um to riadores sobre esse Atlântico do segundo século XVI e do
golpe rumo ao Atlântico". Em suma, antes de escr.gver seu trág:co século XVII, um Atlântico que de Espanha e de Portu-
Méditerranée . .. , as experiências do laboratório brasileiro mol- gal chegava às Américas Ibéricas?
davam sua visão de historiador (19).
Aliás, em 1938, além dos artiqos de Henri HAUSER, de Conclusão: jovens historiadores para um novo programa.
Gabr:el DEBIEM sobre os pi G.ntadores antilhanos, e de Lucien
FEBVRE sobre a etnografia mexicana de Jacqu.es SOUSTELLE, Ao preparar o excepc ional número especial dos Anna/es
os Annales, dez anos após sua criação, destacavam particular- que devia vir à luz em outubro-dezembro de 1948, Fernand
mente a América Lat:na. Pierre MONBEIG e H9nri HAUSER óRAUDEL, tendo chegado à convicção de existênci a de vánas
constatavam o sprogressos dos instrumentos de tr :_balho que '·1-\mer.cas Latmas" segundo o próprio título do número e as
reflexc.ss surgidas de sua questão-prcgrama - "Exis .e uma
lhe eram consagrados no Panamá como nos Estados UnidJs, e
a rubr ica 'América Latina' da " correspondência crítica" v a se Amenca Lat1na" ? - , mtroduz1a s_ngue novo na equ .pe dos
j untarem as assinatu ras de Lucien FEBVRE, Pierre MONBEIG colaboradores da rev1sta. Aos nomes de mestres já confirma-
e Fernand BRAUDEL. Os primeiros resultados concretos da dos qt.a eram Paul RIVET e Lucien FEBVRE; aos hiscor.adJ-
res bastG.nte conhecidos que eram Emile COORNAERT e ele
19) Fernand BRAU DEL: Prefácio de La Méditerranée et le monde méditerra- própno; aos hispan.stas fascinados pela h.stóna das 1dé.as da
néen à /'épaque de Philippe ll (p . 15). 2 tomes. Paris: A. Colin, 1966, Reforma e da Contra-Reforma que eram Mareei BATAILLON e
2.• ed . rev. e :~um; "Les jésuites au Brésil", Annales ... (p. 478). X,
1938: 477-478. No mesmo "correio" observa-se uma crítica de Lucien 2\.JJ t'i:!ruand BRAUDEL: "Monnaies et civilisations: de l'or du Soudan à
FEBVRE sobre "o trabalho forçado nas colônias espanholas (1482-1 550)", l'argent d'Amérique - Un drame méditerranéen", Annales E. S. C.,
e comentários de Pierre MONBEIG " para compreender o Brasil" e X\ lll , 1947 : 9-22.
"al~?;odão contra café".
Rcv. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N.0 1/ 2, 1983/ 1984 19
R cv. de C. Sociais, Fortaleza , v. 14/ 15, N. 0 1/ 2, 1983/ 1984
18
tamente para aquém e para além do ano de 1937 que lhe tez "operação Brasil", empr-eendida par Georges DUMAS, tinham
ao mesmo tempo deixar o "paraíso" brasileiro e conhecer sido, po is, atingidos. Doravante. de Paris, Fernand BRAUDEL ia
verdadeiramente Lucien FEBVRE. Doravante, da Escola Prá- alimentar regularmente as colunas dos Annales com sua prosa
tica de Altos Estudos, Fern ~ nd BRAUDEL assegurou sua cola- "brasilian izante".
Em 1939, el-e resenhava d :terentes trabalhos e prep -:. rava
boração G.pa'xona da nos Annales.
Desde 1938, ele comentou o estudo de Robert R:CARD outros estudos gue a guerra veio anular. Todavia, em 1943, as
s:bre /es Jésuítes au Brési/; e, longe de se interessar pelos Mélanges d'Histoire Sacia/e publicavam su 3. no .ável análise da
"métodos e pelas condições do trabalho apostólico", ele bus- obra de Gilberto FREYRE . O título de seu comentário de 17
cav3 del iberadamente " o Brasil e suas pr::fundezas continen- páginas era por si só um program a: "Através de um continen-
ta's". Essa tomada de consciência do "mov:mento geral" que te de História. O Brasil e a obra de Gilberto FREYRE" . Ele re-
fez "o Brasil inteiro oscilar nesse momento rumo a suas pro- \elava o impacto ds uma nova concepção do tempo e do es-
fundezas continentais", ess-e movimento que "marc3, na ver- paço na dialética do passado e do presente e mostrava quanto
dade, o fim da primeira evanqel ;zação do Brasil, mais a;nda 0 indivíduo, qualquer que sejam suas possibilidades de G.ção .e
do que a morte do Padre ANCHIETA, ocorrid3 em 1597 e .es- ae pensamen to, se situava recuado face ao "mundo ator",
colhida como lim ite desse estudo", não deixa de nos fazer au.sr tosse o Brasil ou o Mediterrâneo. De fato , o tempo da Li-
p-snsar nessa mutação do pensamento braudeliano que, na berG.ção ia ass istir à ecl csão dessa monumental síntese da in-
mesma época, o f2zia passar " dos quadros da história diplo- terpretaç ão hamiltoniana dos metais preciosos e da geo-his-
mát: ca - de Felipe 11 - , bastante indiferente às conquistas tória de Lucien FEBVRE passando dos horizontes euro-africa-
da ge::grafia ... , pouco preocupada com a economia e os nos aos horizontes da América e da c:vil iEção: -em 1947, Fer-
prob!-smas sociais, assaz desdenhosa em relação aos fatos nand BRAUDEL entregava aos Annales, novo formato, suas re-
de civilização, às religiões e ... às letras e às artes ... ", para flexões sobre "Moedas e civilização" - a p1ssag-em do ouro
essa verdadeira vida, fecunda e densa . . . que lhe fez re- do Sudão à prata da América aparecia como um drama do Me-
constituir o mapu geral da política mundial da Espanha de diterrâneo em proveito do Atlântico (20) . Não era chegado o
que o Mediterrâneo foi apenas um s-e tor" e em que, "com cs momento de consagrar doravente os esfJrços dos jovens his-
anos 1580, a força da Espanha" foi de ser "lançada de um toriadores sobre esse Atlântico do segundo século XVI e do
golpe rum o ao Atlântico". Em sum:1, antes de escr::wer seu trág ;co século XVII, um Atlântico que de Espanha e de Portu-
Méditerranée . .. , as experiências do laboratório brasileiro mol- gal chegava às Américas Ibéricas?
davam sua visão de historiador (19).
Aliás, em 1938, além dos artiqos de Henri HAUSER, de Conclusão: jovens historiadores para um novo programa.
Gabr:el DEBIEM sobre os pi G.ntadores antilhanos, e de Lucien
FEBVRE sobre a etnografia mexicana de Jacqu-es SOUSTELLE, Ao preparar o excepcional número especial dos Anna/es
os Annales, dez anos após sua criação, destacavam particular- que devia vir à luz em outubro-dezembro de 1948, Fernand
mente a América Lat:na. Pierre MONBEIG e H-enri HAUSER óRAUDEL, tendo chegado à convicção de existênci a de vánas
constatavam o sprogressos dos instrumentos de tr:.balho que '·1-\mer,cas Lat1nas" segundo o próprio título do número e as
lhe eram consagrados no Panamá como nos Estados Unid:Js, e retlexc-ss surgidas de sua questão-programa - "Exis.e uma
a rubrica 'América Latina' da " correspondência crítica" v a se Amenca Lat1na"? - , mtroduz1a s_ngue novo na equ .pe dos
juntarem as assinaturas de Lucien FEBVRE, Pierre MONBEIG colaborado res da rev1sta. Aos nomes de mestres já confirma-
e Fernand BRAUDEL. Os primeiros resultados concretos da dos qL.-9 eram Paul RIVET e Lucien FEBVRE; aos hisror.adJ-
res bastc..nte conhecidos que eram Emile COORNAERT e ele
19) Fernand BRAUDEL: Prefácio de La Méditerranée et le monde méditerra- própno; aos hispan .stas fascinados pela h.stóna das 1dé.as da
néen à l'épaque de Philippe Jl íp. 15). 2 tomes. Paris: A. Colin, 1966, Reforma e da Contra-Reforma que eram Mareei BATAILLON e
2.• ed. rev. e :~um; "Les jésuites au Brésil", Annales ... (p. 478). X,
1938: 477-478. No mesmo "correio" observa-se uma crítica de Lucien :<vJ .t'.:ruand BRAUDEL: "Monnaies et civilisations: de l'or du Soudan à
FEBVRE sobre "o trabalho forçado nas colônias espanholas (1482-1550)", l'argent d'Amérique - Un drame méditerranéen", Annales E. S. C.,
e comentários de Pierre MONBEIG "para compreender o Brasil" e X\tlll, 1947: 9-22.
"al~odão contra café".
Rcv. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N.0 1/2, 1983/1984 19
R cv. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
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Robert RICARD, ajuntavam-se os dois historiadores que espe- política do mundo ocidental ia fazer coincid ;r com os domí-
ravam sua próxima consagração como François CHEVALIER n·os da guerra fria e dos pactos militar-es, achav : m-se em
ou Pierre VILAR. E sobretudo se agr-egavam os jovens h'sto- germe. Germes que não puderam se opor à captura da Amé-
riadores da terceira geração que acabavam de ser inic'ados rica Latina pela América do Norte, segundo os imperativos do
nos mistérios do Mediterrâneo de Carlos V: Heguette BALZO- panamericanismo e a regra da "rosa dos ventos" tão nota-
LA, Pierre CHAUNU e Frédéric MAURO encontravam pela pri- velmente evocada por André SIEGFRIED (22). No momento
meira vez a América e publ icavam seus prime iros trabalhos em que Lucien FEBVRE . descobria pesso::.lmente a importân-
na prestigiosa Revista. Para bem mostrar que as fronteiras cia do Brasil no mundo sul-americano que tanto o t'nha apai-
disciplinares não eram adm itidas nos Annales, F. BRAU[)EL xonado por ocasião de uma missão de conferências de três
faz :a ap-elo à col 2.boração dos "paulistas" Pierre MONBEIG e meses, em 1949, nas Universid2.des do Rio d-e Jane'ro, de São
Roger BASTIDE assim como do "portefío" Roger CAILLOIS. De Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Fortaleza, a Amé-
fato, a colaboração internacional era inerente à preparação do rica Latina que era -estudada da Europa, através do Atlântico,
número. Da Argentina, F. MARQUEZ MIRANDA fazia .eco aos escapava à sedução européia para se entregar aos encantos
mexicanos P. CASANOVA e Silvio ZAVALA. E se o Instituto da americanidade continental Norte-Sul. Um trabalho d.e his-
Francês da América Latina, de recente criação no Méx:co, tó ria da América Latina exigia desde logo um esforço de
bem merecia -sstender a sua influência, era para mostrar pri- americanismo oficial que as cs.deiras de História da América
meiramente que a operação Brasil em São Paulo não tinha dei- Latina, recentemente criadas na Sorbonne .e em Paris X
xado somente a A. d-e AZEVEDO e J. CRUZ COSTA a tarefa Nanterre há uma dezena de anos, buscavam intens:ticar. Mas
de representar a "latinidade" do Novo Mundo. Essa "latnida- uma nova política cultural fundada doravant.e nas realid _des
de" era, aliás, ampliada ao antigo mundo, pois que V. Maga- das Américas Latinas não deveria ancorar-se na busca de no-
lhães GODINHO irrompia sobre a cena em via direta de Lis- vas elites sociais para contribuir em sua medida, na transfor- '
boa. Entretanto, curiosamente, a América And:na se achava mação do campo de experiênci<-s? E as novas forças ascen-
ausente de toda reorese11taci'io. O -esforço organizado no d..;ntes de um trabalho internacionalmente dividido não po-
quadro do Instituto Francês de Estudos Andinos, de Lima, só deri&m subst'tuir vantajosr-l.mente a elite da aristocracia do
encontrará eco nos Annales um::t dez-ena de anos mais tarde. café que tanto seduzira Georg-es DUMAS? A questão mere-
O novo programa dos Annales era, aliás, proclamado por Lu- cia ser posta. Ela só apresenlana em si mesma um "incon-
cien FEBVRE em sua introdução: "Iremos nós esquecer, nós veniente" de monta: o de questionar a "latinidade" do con-
os historiadores do Velho Mundo, que possuímos uma facha- t;nente americano, inclusive as formas de sua pluralida-
da sobre o Atlântico? ( ... ) A considerável importância que de . .. (23).
representa para nós uma história que é tão européia, tão lar- Traduzido por
gam.snte européia quanto poderosamente sul-americana ... " Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
aparecia muito bem na lógica das missões e dos intercâm- 22) André SIEGFRIED: "Le développement économique de l'Amérique La-
bios universitários entre a França e a América Latina. "Uma tine" (p. 4), Revue de Paris, 54e année, n.0 1, janvier 1947: 3-13.
história de vaivém" prosseguia com efeito simbolicamente 23) Sobrl;) esse ponto cf. R.ROMANO: '·Amérique 'Latine' ", pp. 165-170
in Les mécanismes . .. , op. cit., e sobre as contribuições da historiografia
Lucien FEBVRE, "de ações e r-epresálias, de empréstimos e de marxista dl;) inspiração "francesa" concernente às Américas Latinas cf.
recusas de empréstimos, de idas aventure:ras e de r-etornos Guy MARTINIERE: "L. expédition mcxicaine de Napoléon III dans
com juros compostos. Um dos primeiros, um dos mais impor- l'hist.oriographie française", pp. 170-173 in "L'Historiographic du Second
tantes capítulos, já, dessa história das trocas mundiais que Emptre', Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, tome XXI, janv.-
mars 1974. No mesmo espírito, pode-se consultar também do mesmo
cada um de nós começa, em seus sonhos, a el aborar par3 auror: Contribution à /'étude de l'économie rétrospective du Brésil -
o futuro próximo" (21). A Espanha e o Atlântico (Sevilha), Essai d'historiographie. Pans, 1973, 3 vols. VIII - 476 + 324 (These
Portugal e o Atlânt1co, " a cr1a~ao e o dinam ,smo econômico ,~e ,.13c Cycle. Histoire, Paris X, 1973, IHEAL) e a comunicação sobre
de um mundo atlântico" (V. Magalhães GODINHO), que a L ?'1age de l'Amérique Latine dans 'Fermina Marque;;:' " apresentada no
Coloqu10 Valery LARBAUD et la littérature de son temps, organizado
e_m Ytchy Je. 17 a 19 de junho de 1977, para celebrar o XX. 0 aniversá-
21) Lucien FEBVRE "L'Amérique du Sud devant l'Histoire", art. cit., pp rp10 .da morte do escritor (cujas Atas serão publ!caaas por Klmsieck editor,
389-390. ans, out. 1978).

20 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N.0 1/2, 1983/ 1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
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Robert RICARD, ajuntavam-se os dois historiadores que espe- política do mundo ocidental ia fazer coincid;r com os domí-
ravam sua próxima consagração como François CHEVALIER n·os da guerra fria e dos pactos militar-es, achav : m-se em
ou Pierre VILAR. E sobretudo se agr-egavam os jovens h'sto- germe. Germes que não puderam se opor à captura da Amé-
riadores da terceira geração que acabavam de ser inic'ados rica Latina pela América do Norte, segundo os imperativos do
nos mistérios do Mediterrâneo de Carlos V: Heguette BALZO- panamericanismo e a regra da "rosa dos ventos" tão nota-
LA, Pierre CHAUNU e Frédéric MAURO encontravam pela pri- velmente evocada por André SIEGFRIED (22). No momento
meira vez a América e publ icavam seus prim.9iros trabalhos em que Lucien FEBVRE descobria pesso ::.lmente a importân-
na prestigiosa Revista. Para bem mostrar que as fronteiras cia do Brasil no mundo sul-americano que tanto o t'nha apai-
disciplinares não eram adm itidas nos Annales, F. BRAUJJEL xonado por ocasião de uma missão de conferências de três
faz :a ap-elo à col ::.boração dos "paulistas" Pierre MONBEIG e meses, em 1949, nas Universid::des do Rio d-9 Jane'ro, de São
Roger BASTIDE assim como do "portefio" Roger CAILLOIS. De Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Fortaleza, a Amé-
fato, a colaboração internacional era inerente à preparação do rica Latina que era -estudada da Europa, através do Atlântico,
número. Da Argentina, F. MARQUEZ MIRANDA fazia .eco aos escapava à sedução européia para se entregar aos encantos
mexicanos P. CASANOVA e Silvio ZAVALA. E se o Instituto da americanidade continental Norte-Sul. Um trabalho d.g his-
Francês da América Latina, de recente criação no Méx:co, tó ria da América Latina exigia desde logo um esforço de
bem merecia -estender a sua influência, era para mostrar pri- americanismo oficial que as c::deiras de História da América
meiramente que a operação Brasil em São Paulo não tinha dei- Latina, recentemente criadas na Sorbonne .e em Paris X
xado somente a A. de AZEVEDO e J. CRUZ COSTA a tarefa Nanterre há uma dezena de anos, buscavam intens:ficar. Mas
de representar a "latinidade" do Novo Mundo. Essa "lafnida- uma nova política cultural fundada doravant.e nas realid _des
de" era, aliás, ampliada ao antigo mundo, pois que V. Maga- das Américas Latinas não deveria ancorar-se na busca de no-
lhães GODINHO irrompia sobre a cena em via direta de Lis- vas elites sociais para contribuir em sua medida, na transfor-
boa. Entretanto, curiosamente, a América And:na se achava mação do campo de experiênci,.s? E as novas forças ascen-
ausente de toda reoresentacilo. O -esforço organizado no d..;ntes de um trabalho internacionalmente dividido não po-
quadro do Instituto Francês de Estudos Andinos, de Lima, só deriam subst'tuir vantajos::J.mente a elite da aristocracia do
encontrará eco nos Annales um:1 dez-ena de anos mais tarde. café que tanto seduzira Georg-es DUMAS? A questão mere-
O novo programa dos Anna!es era, aliás, proclamado por Lu- cia ser posta. Ela só apresen,ana em si mesma um "incon-
cien FEBVRE em sua introdução: "Iremos nós esquecer, nós ven iente" de monta: o de questionar a "latinidade" do con-
os historiadores do Velho Mundo, que possuímos uma facha- t;nente americano, inclusive as formas de sua pluralida-
da sobre o Atlântico? ( ... ) A considerável importância que de .. . (23).
representa para nós uma história que é tão européia, tão lar- Traduzido por
gamente européia quanto poderosamente sul-americana ... " Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
aparecia muito bem na lógica das missões e dos intercâm- 22) André SIEGFRIED: "Le développement économique de l'Amérique La-
bios universitários entre a França e a América Latina. "Uma tine" (p. 4), Revue de Paris, 54e année, n. 0 1, janvier 1947: 3-13.
história de vaivém" prosseguia com efeito simbolicamente 23) Sobre esse ponto cf. R.ROMANO: '·Amérique 'Latine' ", pp. 165-170
in Les mécanisrnes . .. , op. cit., e sobre as contribuições da historiografia
Lucien FEBVRE, "de ações e r-epresálias, de empréstimos e de marxista de inspiração "francesa" concernente às Américas Latinas cf.
recusas de empréstimos, de idas aventure:ras e de r-etornos Guy MARTINIERE: "L. expédition mcxicaine de Napoléon III dans
com juros compostos. Um dos primeiros, um dos mais impor- l'historiographie française", pp. 170-173 in "L'Historiographic du Second
tantes capítulos, já, dessa história das trocas mundiais que Empire', Revue d'Hrstoire Modeme et C'onternporaine, tom.: XXI, janv.-
mars 1974. No mesmo espírito, pode-se consultar também do mesmo
cada um d-e nós começa, em seus sonhos, a elaborar parJ autor: (;ontribution à l'étude de l'économie rétrospective du Brésil -
o futuro próximo" (21). A Espanha e o Atlântico (Sevilha), Essai d'historiographie. Pans, 1973, 3 vols. Vlii - 476 + 324 (Thêse
Portugal e o Atlânt.co, "a cr.a~,-cto e o dinam.smo econômico de 3c Cycle. Histoire, Paris X, 1973, IHEAL) e a comunicação sobre
de um mundo atlântico" (V. Magalhães GODINHO), que a "L image de l'Arnérique Latine dans 'Fermina Marquez' " apresentada no
Coióquro Valery LAH.BAUD et la littérature de son temps, organizado
e_m Vichy J~ 17 a 19 de junho de 1977, para celebrar o XX. 0 aniversá-
21) Lucien FEBVRE "L'Amérique du Sud devant l'Histoire", art. cit., pp rpro _da morte do escritor (Cujas Atas serão publ!caaas por Klmsreck edrtor,
389-390. ans, out. 1978).

20 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
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BCH~pERtoo
'Cos

REVIEW
A Journal of the Fernand Braudel Center for the Study of CONTJNUIDADE, TOTALIDADE, PERIODIZAC6"RS,
Economies, Historica/ Systems and Civilizations.
CORTES: SOBRE A HISTORIOGRAFIA DA RELIGIÃO
Editor: lmmanuel Wallerstein, State University of New York, NO BRASIL-COLóNIA.
Binghampton.

SAGE PUBLICATIONS, INC. Luiz Felipe BAETA NEVES FLORES


275 South Beverly Drive
Beverly Hills, California 90212 - USA.
O exercício que se s-egue é uma análise crít'cq, tentat'va
e preliminar, da historiografia brasileira sobre "religião" no
período colonial. Para tanto foi estabelecida uma amostragem
de livros de história 'geral' do Brasil e de histórias da reli-
gião, além de outros títulos que tratassem do pe~íodo et>tu-
d : do mesmo não se filiando, academicamente, a uma defi-
nição 'h:stórica' estrita.
Este ex-ercício procura, dentro da bibliografia estudada,
investigar as formas de continuidade e descontinuidade; tota-
lidade e parcelamento; periodizações, cortes, verificando ai ·
gumas proposições de M. Foucault, P. Bourdieu e L. Althusser.
O vínculo deste trabalho é, por outro lado, muito grande com
o qu-e seu autor vem realizando sobre formas de dominação
institucional-ideológica religiosa no Brasil-Colônia.
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLíTICOS O texto subseqüente se divide em três grandes movimen-
tos. No primeiro, são analisados os obstáculos .epistemoló-
Publicação da Universidade Federal de Minas Gerais gicos à constituição dos conceitos de descontinuidade, par-
celamento e corte e a decorrente organ ização do discurso
Diretor: Orlando M. Carvalho histórico como expressão da permanência. O segundo movi-
mento -enfoca, especialmente, as formas 'concretas' de pe-
Faculdade de Dir8ito (UFMG) - Av. Alvares Cabral, 211 - Sala riodização e recorte vigentes na historiografia em questão. O
1206- Caixa Postal, 1301 - 30000 Belo Horizonte, MG, Brasil. terceiro examina alguns conceitos consid-erados decisivos
para a construção de uma teoria da periodização e do corte
e aponta, ainda, algumas direções de pesquisa consideradas
relevantes para o desenvolvimento futuro dos estudos sobre
religião na Colônia.
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