Annales e America Latina
Annales e America Latina
Annales e America Latina
Rev. de C. Soc1ais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, I983i 1984 5
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da primeira escola dos Annales em detrimento talvez das re- o artigo-programa de Lucien FEBVRE possuía ele pró-
lações de produção -, esta segunda corrente esboça o es- prio valoi da metodologia e de epistemologia: "quer a gente
tudo da realidade !atino-americana em e por si mesma. Ela se prenda ao homem ou à terra, às sociedades ou a seu qua-
inspiraria profundamente os temas de pesquisa da geração dro natural, quer seja etnógrafo ou pré-histor.ador, lingüista
de jovens historiadores formados durante e após a Segunda ou arqueólogo, historiador ou economista: os problemas sur-
Guerra Mundial, que trouxeram suas contribuições primeiras gem às dezenas. E não se trata de pequenos problemas limi-
ao número especial de 1948. Essa geração não se obstinou tados, daqueles cuja solução só interessa aos estudJs lo-
então em fazer de modo que se pusesse um fim à "era dos cais. . . Um continente que foi a testemunha e o lugar de
pioneiros" (P. CHAUNU) e que o americanismo histórico pu- tais e tão profundas mudanças e cujas pa:s:.gens mesmas
desse se afirmar como tal no mundo - fechado - dos his- atestam aos nossos olhos, ao mesmo tempo, a fraqueza e a
toriadores? Mas a lição de Lucien FEBVRE não se achava potência da iniciativa humana; um continente que, à3 nossas
então ultrapassada pelos êxitos mesmos obtidos pela reali- portas de europeus, às portas, muito mais ainda, dos homens
zação de programa inicialmente traçado? Todavia, tal pro- de ciência sul-americanos, oferece tais contrastes, tais opo-
grama, que era ele, qual era a sua originalidade? sições: é mister não se espantar com o fato de que tr~balha
dores se apliquem a estudá-lo; é necessário escandalizar-se
com o fato de que ele não seja estudado mais sistematica-
2. - O programa de 1929: a América do Sul, campo mente. de que não se S3.iba, mais e melhor, aprove:tar das
privilegiado de estudos. experiências já realizadas, dac; c:Jmparações já instituídas
que ele oferece, com tal abundância, a curiosidades a:nda por
Por que então, aos olhos de Lucíen FEBVRE, a América demais preguiçosas" (6).
do Sul - ele sempre hesitou em empregar o termo "América De fato, Luc:en FEBVRE estava inclinado a propor de
Latina" - era tida tão apaixonadamente como o objeto de início os problemas "da terra" e em seguida os problemas
um "campo privilegiê.do de estud~s"? A publicação de seu "dos homens". E isso. explicitamente, no espírito mesmo de
artigo de 1929 não tinha nada de "fortuito": correspondia a sua obra principal sobre La Terre et I'Évolut.ion Humaine -
uma tríplice preocupação. A primeira preocupação, conjun- lntroduction Géographique à I'Hístoíre, publicada s·ete anos
tural, estava ligada a um "despertar de curiosidades" mais antes. Nesta série de notas bibliográfic:?.s de informações
e mais precisas que havia provocado a edição de um "lote propondo em si mesmas questões e problemas. que faziam
àe livros sobre a América do Sul". Esse despertar não se explodir o conceito de civillzação numa variedade de tipos
referia apenas aos historiadores, mas os cbrigava a assumir diferentes e numa diversidade certa em rel~. ção às formula-
seu lugar nas diferentes disciplinas. Mas esse mesmo des- çê.es européias em que a noção evolutiva 'tempo-espap' as-
pertar - eis a segunda preocupação - merecia ser bem sumia outra dimensão, sua reflexão antropológica sobre o
compreendido: o interesse voltado para a América Latina im- homem americs.no antes da conquista enc:ntrava nos traba-
plicava uma lição de método e constituía "um campo pre- lhos etnolingüísticos de Paul RIVET os seus fundamentos (7).
c:oso de exper:ências e de comparações. . . rico de ensina- Mesmo a hipótese demográf:ca de uma estimativa mui "las-
mentos". O que só podia ser concretamente empreendido em casiana" da população ameríndia - os 40 a 45 milhões de
função do nascimento - imperativo - de uma "formação"
6) Ibidem, p. 258 e 261.
(terceira preocupação). Seu artigo se quer:a, pois, exemplar: 7) Uma excelente análise sobre o conceito de civilização em Lucien FEBVRE,
"sem que insistíssemos mais, concluía ele, e:s quem, para mais particularmente sobre "os limites de nossa civilização'', "a civilização
todos os trabalhadores curiosos por estudar um mundo ainda global'' e o "pluralismo das civilizações em nós", foi realizada por Hans-
tão mal conhecido, indica um mét:Jdo e deve impor uma for- Dieter MANN em: Lucien FEBVRE, la pensée vivante d'un historien, pp.
42-56 e 93-101. Paris: A. Colin, 1971, 190 pp., Cahiers des Annales n.o 31,
mação" (5). Um território ideal de algum modo para apanhar prefácio de F. BRAUDEL. Pode-se encontrar também nesse ensaio boas pá-
por inte!ro o "ofício de historiador" (Marc BLOCH). ginas sobre as relações de FEBVRE com VIDAL DE LA BLACHE, Henri
BERR e DllRKHElM. Mas o pensamento econômico do co-fundador dos
5) Lucil!n FEBVRE, op. cit., p. 278. Anna!es está curiosamente ausente desse trabalho . ..
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bruscamente, da Europa e da Africa. Os problemas que pro-
habitantes - , fundamento dos trabalhos da escola america- põe às nossas disciplinas é às nossas curiosidades respecti-
nista de Berkeley nos anos 50 e confirmada pelos estudos
vas tal continente tão pleno de uma vitalidade ainda mal re·
de Nathan WACHTEL sobre o mundo incaico, achava-se men- guiada não são verdadeiramente int-eressantes, não são dig-
cionada. Passando do quadro natural ag 'ndJ e re : gindo sobre nos de atrair cada vez mais nossa atenção, senão porque
os homens em função de um tempo plurissecular à apresen- encontram alhures os seus análogos" (8),
tação do mundo ameríndio das sociedades primitiv3s e de
estado, passando dos problemas da descoberta aos da con- 3. - As primeiras aplicações do programa
quista, L. FEBVRE apresent::va estudos de Auguste CHEVA-
LIER, Paul RIVET, Alfred METRAUX, do Coronel LANGLOIS, Após a publicação de seu artigo-programa de 1929,
de Louis BAUDIN, Luc:en GALLOIS, Karl H. PANHORST, etc. apreciando outras obras sobre a América Latina, Lucien
Nesse conjunto de r.esenhas, o fio direto das relações FEBVRE voltou à carga em várias ocas'ões e de m~neira ex-
entre a economia e a história aparecia como dominante e se plícita. Seus comentár:os sobre o livro de André SIEGFREID,
via mais ainda valorizado por algumas páginas ma:s importan- L'Amérique Latine, intitulados "Para compreender a América
tes do artigo consagradas à 2pr.gsentação dos trabalhos de do Sul" e publicados em 1934, eram da mesma insp'ração
André E. SAYOUS sobre os problemas da história do comér- que o seu artigo· e as observações que consagra aos traba-
cio, mais particularmente sobre a moeda e sobre o câmbio. lhos de Alfred METRAUX sobre a rrha de Páscoa e sobretudo
A moeda, os metais preciosos, um probl.ema fundamental que aos de Jacques SOUSTELLE acerca do mundo mes::-ameri-
preocupava o mundo de 1929 e que será um dos temas es- cano dos grandes impérios, em 1938, reconciliaram-no com
senciais de r.eflexão dos Anna/es durante uma dezena de o aproche econômico das sociedades de estado ameríndias
anos, opondo estruturalistas a monet3.ristas, achava-se já que tanto o haviam decepcionado à leitura das problemáticas
posto e mui bem posto nesse continente produtor de m~tais, de Louis BAUDIN . De fato, o seu conhecimento íntimo do
exportados, e carecendo cruelmente de divisas em suas rela- mundo hispân ico que sua tese sobre Philippe 11 et la Franche-
ções comerciais. Depois, Lucien FEBVRE não podia concluir Comté tinha levado a empreender, o fez tornar-se sensível
seu artigo-programa sem uma evocação de trabalhos geo- aos estudos de numerosos ens:1ístas latino-americanos de
gráficos. Referência admirativa era feita então em face da língua espanhola e esse interêsse se manifestou nag r.gsenhas
obra de Pierre DENIS sobre A América do Sul, em dois vo- críticas de obras de Ricardo LEVENE, Hugo BARBAGELATA,
lumes, publicada na célebre coleção "Géographie Universelle" ou Alfonso Teja ZABRE: A América espanhola, a da Bacia do
concebida por VIDAL de la BLACHE e dirigida por L. GALLOIS. Prata, aliás, mais do que o confuso México, atraiu particular-
Mesmo que uma reflexão de síntese parecesse um tanto ne- mente a sua simpatia, uma simpatia que nada retirava à apro-
gligenciada nesse trabalho de "importância", a prodi~iosa ximação das Antilhas francesas às quais numerosos trabalhos
variedade dos "gêneros de vida" evocada permitia-lhe reto- de história colonial - Lucien FEBVRE apresentou nos Anna-
mar seu tema inicial sobre a variedade e os contrastes conti- les de 1932 as "lições" da Exposição Colonial lnt.ern:::.cional de
nentais onde "a civilização acotovelava a selvageria". O Paris - eram consagrados (9). Com efeito, essa atração pelo
Trocadero dos etnógrafos reencontrava assim todos os seus
dire:tos. "Para nós, quem quer que sejamos, - concluía 8) Lucien FEBVRE, op. cit., p. 278.
9) Lucien FEBVRE consagrou de fato numerosas notas às Antilhas francesas
então Lucien FEBVRE - pré-historiador.es ou etnógrafos, his-
e ao Império francês da América. e verdade que a atividade dos portos
toriadores ou geógrafos, curiosos do presente ou investiga- franceses de Bourdeaux, Nantes, etc. se achava descrita com minúcia na
dores do passado, é excelente que existam americanistas historiografia francesa dos anos trinta e que suas relações privilegiadas
especializados no estudo de um mundo amplamente original. com 11 Martinica e Guadalupe mas também Haiti-São Domingo abriam uma
larga porta para o Novo Mundo. Mesmo Marc BLOCH tentou compre-
Mas o seu labor perderia três quartos de seu interesse se ele ender "Bordeaux et les colonies" (Annales, X, p. 96). Nesse domínio, po-
se fechasse, sem nenhum cu id:::do com aproximações ne- rém, a especialidade crítica recai incontestavelmente sobre Paul LEUI-
cessárias, nos limites por mais vastos que fossem de um J:-LOT; e Gabriel DEBBIEN começava a empreender a publicação de seus
continente que o mar isolara, mas que também aproximara est~dos antt!hnnos'', alguns dos quais foram objeto de uma reedição em
0
numero 11 do~ Cahiers des Annales publicado em 1956.
do mundo oceânico, da Asia e, numa época mais recente,
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 7
6 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
bruscamente, da Europa e da África. Os problemas que pro-
habitantes - , fundamento dos trabalhos da escola america- põe às nossas disciplinas & às nossas curiosidades respecti-
nista de Berkeley nos anos 50 e confirmada pelos estudos
vas tal continente tão pleno de uma vitalidade ainda mal re-
de Nathan WACHTEL sobre o mundo incaico, achava-se men- gulada não são verdadeiramente int-eressantes, não são dig-
cionada. Passando do quadro natural ag 'ndJ e re : gindo sobre nos de atrair cada vez mais nossa atenção, senão porque
os homens em função de um tempo plurissecular à apresen- encontram alhures os seus análogos" (8).
tação do mundo ameríndio das sociedades primitiv3s e de
estado, passando dos problemas da descoberta aos da con- 3. - As primeiras aplicações do programa
quista, L. FEBVRE apresent:::va estudos de Auguste CHEVA-
LlER, Paul RIVET, Alfred METRAUX, do Coronel LANGLOIS, Após a publicação de seu artigo-programa de 1929,
de Louis BAUDIN, Luc1en GALLOIS, Karl H. PANHORST, etc. apreciando outras obras sobre a América Latina, Lucien
Nesse conjunto de r.esenhas, o fio direto das relações FEBVRE voltou à carga em várias ocas'ões e de m~neira ex-
entre a economia e a história aparecia como dominante e se plícita. Seus comentár:os sobre o livro de André SIEGFREID,
via mais ainda valorizado por algumas páginas ma:s importan- L'Amérique Latine, intitulados "Para compreender a América
tes do artigo consagradas à 2pr.gsentação dos trabalhos de do Sul" e publicados em 1934, eram da mesm::t insp'ração
André E. SAYOUS sobre os problemas da história do comér- que o seu artigo· e as observações que consagra aos traba-
cio, mais particularmente sobre a moeda e sobre o câmbio. lhos de Alfred METRAUX sobre a Ilha de Páscoa e sobretudo
A moeda, os metais preciosos, um probl.ema fundamental que aos de Jacques SOUSTELLE acerca do mundo mes:-ameri-
preocupava o mundo de 1929 e que será um dos temas es- cano dos grandes impérios, em 1938, reconciliaram-no com
senciais de r-eflexão dos Annales durante uma dezena de o aproche 8conômico das sociedades de estado ameríndias
anos, opondo estruturalistas a monet3.ristas, achava-se já que tanto o haviam decepcionado à leitura das problemáticas
posto e mui bem posto nesse continente produtor de m~tais, de Louis BAUDIN. De fato, o seu conhecimento íntimo do
exportados, e carecendo cruelmente de divisas em suas rela- mundo hispân ico que sua tese sobre Philippe 11 et la Franche-
ções comerciais. Depois, Lucien FEBVRE não podia concluir Comté tinha levado a empreender, o fez tornar-se sensível
seu artigo-programa sem uma evocação de trabalhos geo- aos estudos de numerosos ens:1ístas latino-americanos de
gráficos. Referência admirativa era feita então em face da língua espanhola e esse interêsse se manifestou nag r-9senhas
obra de Pierre DENIS sobre A América do Sul, em dois vo- críticas de obras de Ricardo LEVENE, Hugo BARBAGELATA,
lumes, publicada na célebre coleção "Géographie Universelle" ou Alfonso Teja ZABRE: A América espanhola, a da Bacia do
concebida por VIDAL de la BLACHE e dirigida por L GALLOIS. Prata, aliás, mais do que o confuso México, atraiu particular-
Mesmo que uma reflexão de síntese parecesse um tanto ne- mente a sua simpatia, uma simpatia que nada retirava à apro-
gligenciada nesse trabalho de "importância", a prodic;iasa ximação das Antilhas francesas às quais numerosos trabalhos
variedade dos "gêneros de vida" evocada permitia-lhe reto- de história colonial - Lucien FEBVRE apresentou nos Anna-
mar seu tema inicial sobre a variedade e os contrastes conti- les de 1932 as "lições" da Exposição Colonial lnt.ern:::cional de
nentais onde "a civilização acotovelava a selvageria". O Paris - eram consagrados (9). Com efeito, essa atração pelo
Trocadero dos etnógrafos reencontrava assim todos os seus
dire:tos. "Para nós, quem quer que sejamos, - concluía 8) Lucien FEBVRE, op. cit., p. 278.
9) Lucien FEBVRE consagrou de fato numerosas notas às Antilhas francesas
então Lucien FEBVRE - pré-historiador.es ou etnógrafos, his-
e ao Império francês da América. e verdade que a atividade dos portos
toriadores ou geógrafos, curiosos do presente ou investiga- france~es de Bourdeaux, Nantes, etc. se achava descrita com minúcia na
dores do passado, é excelente que existam americanistas historiografia francesa dos anos trinta e que suas relações privilegiadas
especializados no estudo de um mundo amplamente original. com u Martinica e Guadalupe mas também Haiti-São Domingo abriam uma
larga porta para o Novo Mundo. Mesmo Marc BLOCH tentou compre·
Mas o seu labor perderia três quartos de seu interesse se ele ender "Bordeaux et les colonies" (Annales, X, p. 96). Nesse domínio, po-
se fechasse, sem nenhum cu id:::do com aproximações ne- rém, a especialidade crítica recai incontestavelmente sobre Paul LEUI-
cessárias, nos limites por mais vastos que fossem de um J;-LOT; e Gabriel DEBBIEN começava a empreender a publicação de seus
continente que o mar isolara, mas que também aproximara est~dos antilh:mos'', alguns dos quais foram objeto de uma reedição em
o numero 11 do~ Cahiers des Annales publicado em 1956.
do mundo oceânico, da Asia e, numa época mais recente,
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 7
6 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
Cone Sul da América do Sul se achou amplificado por uma que fosse com um certo entusiasmo, o ano de 1932 viu os
viagem re3.lizada como conferencista a Buenos Aires, no fim Annales publicar dois artigos de E. J. HAMILTON intituladoc;:
da qual reenc:ntrou Fernand BRAUDEL, em outubro de 1937, "Em período de revolução econôm'r.a: a moeda em Castela
de retorno do Brasil. (1501-1650) ". Aquilo que Herbert LUTHY chama "o estudo ria
Mas a América Lat!na, apesar de tudo, apar-eceu aos lei- passagem (na época da expansão colonial hispano-portugue-
tores dos Anna/es dos anos 30 apenas como o prolongamen- sa nos séculos XVI e XVII) do Mediterrâneo corno área cul-
to primeiramente da conquista Ibérica e, através dela, como tur21 ao estádio da economia mundial" começava então a se
o aprofundamento dos conhecimentos sobre a Espanha mo- elaborar (12). André E. SAYOUS e Albert GIRARD r-eforçaram
derna. A Espanha, a saber as relações entre economia e his- seriamente a equipe hispanizante. Mas da Europa, dessa Es-
tória, entre metais preciosos e inflação, entre crise ec:nô- panha que Pierre VILAR se preparava para estudar por si
mica atlântica e Europa contemporânea. Ora, que eram os mesma. do Portuqal e da França, convinha liberar o Atlân-
trabalhos de história econômica sobre a Espanha senão os tico a fim de melhor conhecer esse laboratório americano de
de Earl J. HAMILTON em 1929? "Os historiadores da econo- met2l precioso. O projeto principiava a germinar. Contudo, o
mia de minha geração, constatava por exemplo Ruggiero RO- trabalho de campo dos anos 30 não se situou nos países mi-
MANO, foram impressionados pela geogr: fia publicada há neiros, o México tão perturbado ou o Peru tão longínquo . Os
mais de trinta anos por Earl Jefferson HAMILTON repr:Jduzin- "azares" de uma política cultural marcada pela predominân-
do as quantidades de ouro e de prata american:;.s chegadas
cia da América Atlântica do Sul. do Brasil à Argentin'3., sobre
a Sevilha. Eu não escapei à regra" (10). A regra era de ·fazer o conjunto do continente "latino", enqajaram nossos missio-
conhecer os trc.balhos de HAMILTON, de discuti-los e pu- nários rumo às terras mais freqüentadas pela Europa "lat'n 1"
blicá-los, e os Annales disso não se privaram. Na imensa dess-e período. E brilhantes col.,boradores dos Annales, vete-
enquête sobre "o problema histórico dos pr-eços" que a re- ranos e novatos, foram assim levados a freqüentar São Paulo
vista lançava em 1930, graças à colabors- ção de François ou Buenos Aires, regiões pouco propícias à exportação dos
SIMIAND, o primeiro artigo de Lucien FEBVRE era consagra- produtos minerais. A complexidade das civiliz:ções do açú-
do à análise de "American Treasure ... " public:.do no Jour- car não tardaria por fascinar nossos entusiastas da moeda e
nal of Economic and Business H;story, desde o seu apareci- dos metais preciosos. E o Brasil abria largamente suas por-
mento em 1929. E os comentários sobre "o afluxo dos metais tas à missão universitária francesa da Universidade de São
da Amér!ca e os preços em Sevilha" eram completados no Paulo. Que podia desejar de melhor essa nova escola fran-
ano seguinte por uma curta nota de apresentação de dois cesa de história econômica e social que as discussões fun-
outros trabalhos fundamemntais do economista-historiad:Jr nor- damentais realizadas em torno dos trabalhos de Earl J. HA-
te-americano sob o título provocador: "Ouro da Amér:ca e MILTON, mergulhando as interpr-etações quantitativistas da
Capitalismo" (11). As ref-erências aos grandes mestres, Max moeda no coração dos trabalhos clássicos sobre o mercanti-
WEBER, SOMBART, e TAWNEY, apareciam explícitas. Ainda lismo, estendidas a outros terrenos de lab:Jr2.tório? Num mo-
10) Ruggiero ROMANO: Les mécanismes de la conquête coloniale: les con-
mento em que a "modernidade do século XVI" (Henri HAU-
quistadores, p. 135. Paris: Flammarion, 1972, 185 pp. Coll. "Questions SE.~) saltava aos olhos dos contemporâneos da crise de 1929,
d'Histoire" n.o 24. a preponderância espanhola" sobre a América "!ath•a" que
11) Lucien FEBVRE: "L'Afflux de~ métaux précieux d'Amérique et les prix contribuía para eclipsar as divers:dades e os contrastes de
à Séville: un article fait, une enquête à faire", Annates d'Histoire 8connmi-
qlle et Sociale, 1930, pp. 68-80, apresentado sob a etiqueta "Le Probleme um continente aparecia qu-estionada em novos deb:tes e com-
historique des prix", p. 67; o estudo de HAMILTON comentado se in titu- 1ba~es que buscavam fazer apreciar a riqueza de uma América
lava: "American Treasure and Andalousian Prices, 1503-1660". Em 1931, ~Sitana,_ da qual uma parte da intefligentsia esforçava-se por
a notr. consagrada a "Dr. d' Amérique et Capitalisme" (Annales . .. , p. 160) escobnr a "brasilianidade" (F BRAUDEL) "Passado e pre~
fazia referência a "imports of American Gold and Silver into Spain, 1503- sente" · · ·
1660" publicad0 no Quaterly Journal o/ Econonzics de maio de 1'!72, e _ se JUntavam pois nesse novo "campo precioso de ex-
"American Treasure and the Rise of Capitalism (1500-1700)" publicado
no mesmo ano em Economica. Enfim. "En période de révolution économi- 121 !:,er~~ LUTHY: Geschichte ais Funktion der Gegenwart", in Der Monat_.
que : la monnaie en Castille, 1501-1650", Anna/es .. . , pp. 140-149 e 242-256 op. c't (1960-1961), n. 0 148, pp. 5-17, citado e traduzido por H. D. MANN,
. I., p. 163.
(1932).
Rev . de C . Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 9
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Cone Sul da América do Sul se achou amplificado por uma que fosse com um certo entusiasmo, o ano de 1932 viu os
viagem re3.lizada como conferencista a Buenos Aires, no fim Annales publicar dois artigos de E. J. HAMILTON intitulado-,:
da qual reenc:::ntrou Fernand BRAUDEL, em outubro de 1937, "Em período de revolução econôm'r.a: a moeda em Castela
de retorno do Brasil. (1501-1650) ". Aquilo que Herbert LUTHY chama "o estudo ria
Mas a América Lat!na, apesar de tudo, apar.eceu aos lei- passagem (na época da expansão colonial hispano-portugue-
tores dos Anna/es dos anos 30 apenas como o prolongamen- sa nos séculos XVI e XVII) do Mediterrâneo corno área cul-
to primeiramente da conquista Ibérica e, através dela, como tur21 ao estádio da economia mundial" começava então a se
o aprofundamento dos conhecimentos sobre a Espanha mo- elaborar (12). André E. SAYOUS e Albert GIRARD r.eforçaram
derna. A Espanha, a saber as relações entre economia e his- seriamente a equipe hispanizante. Mas da Europa, dessa Es-
tória, entre metais preciosos e inflação, entre crise ec:::nô- panha que Pierre VILAR se preparava para estudar por si
mica atlântica e Europa contemporânea. Ora, que eram os mesma. do Portuqal e da França , convinha liberar o Atlân-
trabalhos de história econômica sobre a Espanha senão os tico a fim de melhor conhecer esse laboratório americano de
de Earl J. HAMILTON em 1929? "Os historiadores da econo- met?l precioso. O projeto principiava a germinar. Contudo, o
mia de minha geração, constatava por exemplo Ruggiero RO- trabalho de campo dos anos 30 não se situou nos países mi-
MANO, foram impressionados pela geogr;fia publicada há neiros, o México tão perturbado ou o Peru tão longínquo . Os
mais de trinta anos por Earl Jefferson HAMILTON reproduzin- "azares" de um3. política cultural marcada pela predominân-
do as quantidades de ouro e de prata american:::.s chegadas
cia da América Atlântica do Sul. do Brasil à Argentin'3., sobre
a Sevilha. Eu não escapei à regra" (10). A regra era de ·fazer o conjunto do ccntinente "latino", enqajaram nossos missio-
conhecer os trc.balhos de HAMILTON, de discuti-los e pu- nários rumo às terras mais freqüentadas pela Europa "lat'n 1"
blicá-los, e os Annales disso não se privaram. Na imensa desse período. E brilhantes col.,boradores dos Annales, vete-
enquête sobre "o problema histórico dos pr.eços" que a re- ranos e novatos, foram assim levados a freqüentar São Paulo
vista lançava em 1930, graças à colabors- ção de François ou Buenos Aires, regiões pouco propícias à exportação dos
SIMIAND, o primeiro artigo de Lucien FEBVRE era consagra- produtos minerais. A complexidade das civiliz:ções do açú-
do à análise de "American Treasure ... " public :.do no Jour- car não tardaria por fascinar nossos entusiastas da moeda e
nal of Economic and Business H;story, desde o seu apareci- dos metais preciosos. E o Brasil abria largamente suas por-
mento em 1929. E os comentários scbre "o afluxo dos metais tas à missão universitária francesa da Universidade de São
da Amér!ca e os preços em Sevilha" eram completados no Paulo. Que podia desejar de melhor essa nova escola fran-
ano seguinte por uma curta nota de apresentação de dois ces:t de história econômica e social que as discussões fun-
outros trabalhos fundamemntais do economista-historiador nor- damentais real izadas em torno dos trabalhos de Earl J. HA-
te-americano sob o título provocador: "Ouro da Amér:ca e MILTON, mergulhando as interpretações quantitativistas da
Capitalismo" (11). As ref.erências aos grandes mestres, Max moeda no coração dos trabalhos clássicos sobre o mercanti-
WEBER, SOMBART, e TAWNEY, apareciam explícitas. Ainda lismo, estendidas a outros terrenos de labor2.tório? Num mo-
10) Ruggiero ROMANO: Les mécanismes de la conquête coloniale: les con-
mento em que a "modernidade do século XVI" (Henri HAU-
quistadores, p. 135. Paris: Flammarion, 1972, 185 pp. Coll. "Questions SE.~) saltava aos olhos dos contemporâneos da crise de 1929,
d'Histoire" n.o 24. a preponderância espanhola" sobre a América "!ath•a" que
11) Lucien FEBVRE: "L'Afflux de~ métaux précieux d'Amérique et les prix contribuía para eclipsar as divers:dades e os contrastes de
à Séville: un article fait, une enquête à faire", Annates d'Histoire 8connmi··
qr1e et Sociale, 1930, pp. 68-80, apresentado sob a etiqueta "Le Probleme um continente aparecia qu-estionada em novos deb::.tes e com-
historique des prix", p. 67; o estudo de HAMILTON comentado se in titu- 1ba~es que buscavam fazer apreciar a riqueza de uma América
lava: "American Treasure and Andalousian Prices, 1503-1660". Em 1931, ~Sitana •. da qual uma parte da intefligentsia esforçava-se por
a notr. com agrada a "Dr. d' Amérique et Capitalisme" (Annales . .. , p. 160) escobnr a "brasilianidade" (F BRAUDEL) "Passado e pre~
fazia referência a "imports of American Gold and Silver into Spain, 1503- sente" · · ·
1660" publicad0 no Quaterly Journal o/ Economics de maio de 1972 , e se JUntavam pois nesse novo "campo precioso de ex-
"American Treasure and the Rise of Capitalism (1500-1700)" publicado
no mesmo ano em Economica. Enfim. "En période de révolution économi- l:>> ~er~-~~ LUTHY: Geschichte ais Funktion der Gegenwart", in Der Monat_.
que : la monnaie en Castille, 1501-1650", Annales .. . , pp. 140-149 e 242-256 op. . (1960-1961), n.o 148, pp. 5-17, citado e traduzido por H. D. MANN,
' 1
Cl ., p. 163.
(1932).
Rev . de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N.o 1/2, 1983/1984 9
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de julho de 1933, do Ministério das Relações Exteriores,
per'ências e de comparações" t~nto quanto uma política se- era total. Constituía o coroamento de uma longa freaüen-
dutora de relações cultura:s entre a França e o Brasil se acha tação de cerca de um quarto de século das el:tes intelec•uais
instalada no mesmo momento sob o impulso comum d-e Jean e econômicas do Brasil, s.eduzidas pela cultura da França
MARX e do psicóloao Geornes niiMAS. "ls.tina", e aparecia como o resultado de uma part'cular atra-
No dia 25 de janeiro de 1934 fora criada, com efP.ito, a ção de Georges DUMAS por São Paulo e a franja "esclare-
Faculdade de Filosofia. Ciências e Letras da Un iversid-de de cida " d-e sua aristocracia do café. Certamente, nem Georges
São Paulo. O s:anatário do decreto, o Governador Armando DUMAS nem os represen'tantes da Emb- ixada de França no
SALLES DE OLIVEIRA, foi aconselhadn nesse sentido por um Brasil haviam desprezado o Rio de Jane iro, e a criação de
grupo de intelectuais desejosos de fornecer à "sua" cid:de seu Liceu Francês desde 1915 era disso um testemunh::>.
os quadros necessários ao de~envolvimento econõ....,:co. ad- Al 'ás, a participação, em 1936 de um1 dezena de professo-
ministrativo e cultural de "seu" Estadn. Na verdade, Si'io Pa,lo res franceses dentre os mais eminentes como Henri HAUSER,
atravessava desde alguns anos gra"e crise de ident'dade. Tal no ensino da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
crise. consecut'va ao craaue de 1929, era mesmo tanto mais Universidade do Distrito Federal, cri :: da no ano precedente,
grav-e quanto São Paulo acab-va de perder sua reconhecirla foi a conseqüência direta da operação São Paulo, onde vá-
prenonderância sobre a d'recão dos nenócios dJ Brasil após rias cátedras concedidas aos mestres franceses foram E.lém
a dupla deposição de Washinqton LUfS, o Presidente em disso duplicad as. A visita efetuada por Georges DUMAS ao
ex-ercício, e de Júlio PRESTES, o Presidente eleito, por um Rio e a São Paulo entre julho e setembro de 1935 permitiu
putsch militar que deu o poder a Getúlio VARGAS. A revolh mesmo o êrranjo de múlt'plos detalh·Ss (13). Além d s:o, nem
"secessionista" de 1932 acabou de mostrar quanto o tempo Georges DUMAS nem Jean MARX haviam tampouco negli-
da onipotent-e aristocracia do café havia termin~do . Recolhen- genc'ado o desenvolvimento das relações culturais da França
do a lição política dessa triste experiência, o grupo liberal com os outros países da América Latina de língua espanhola.
que gravitava em torno do eminente diretor d-e O Estado de O "Grupo das Universidades e Grandes Escolas de França
São Paulo decidiu então l2nçar a carta da "modernidF.tde". para as r-elações com a América Latina", criado em 1908,
Aos seus olhos, essa modernidade só pJder:a encontrar na cuidava bem d'sso e a tarefa, confiada mais p::.rticularmente
Europa suas raízes e os frutos de seu êxito; ela passaria pri- a Ernest MARTINENCHE, era cumprida com grande atenção
meiramente por uma reforma de b3.s-e do ensino, mais parti- quc.nto à Argentina e ao México. Tal era, aliás, o sentido da
cularmente pela criação de um ensino superior deliberada- viagem de Lucien FEBVRE, em 1937, pelo Rio da Prata. No
mente nevo, fundado sobre uma alta qualidade científica e entanto, a fundação da Universidade de São Paulo permane-
técnica.
Assim, pois, Theodoro Augusto RAMOS foi enviado à
13) Sobre esses diferentes pontos, numerosos testemunhos pessoais nos f~ram
Europa a fim de recrutar um conting-ente de professores d'g- confiados por Mme. Georges DUMAS, M. ARROUSSE-RA"-TIDE eM P•Prre
nos de um ensino superior de que o Brasil era tão trag:ca- MONBEIG. Consultar-se-á aliás com proveito as alusões de C. LBVI-
mente desnrovido. Geor"'-e" DUMAS foi prevenido por Júlio STRAUSS em Tristes Tropiques, Paris: Plon, 1955, co!!. "Terre Humaine"
de MESQUITA FILHO, diretor do Estado, da part'da de Th. 490 pp. referentes ao caráter de classe da concepção da política cultural
de Georges DUMAS no Brasil, assim como o artigo de P. MONBEIG:
Augusto RAMOS para Roma. Ele conseguiu encontrá-lo a "continuité et changement au Brésil", Revista de História, pp. 783-7qo,
tempo p3.ra "colocar" uma equipe de professores france~es, n.o 101. São Paulo. Esse periódico apresentou dois números fundamentais
antes de as autoridades it~.l'anas terem sido oficialmente sobre a influência da escola histórica francesa em São Paulo, por ocasião
contactadas. Desse modo, dos 13 professor-es recrutados em do 100. 0 nltmero da Revista: Número Jubilar e Número Jubilar bis
(n. 0 103). É claro, não se pode deixar de consultar a ohra manumental de
1934 por Th. Augusto RAMOS, quase a metade dentre eles Fernando d~ AZEVEDO: A Cultura Brasileira. São Paulo: Ed. Melhrll·a-
foi escolhida por Georg-es DUMAS; os 7 outros se repartiram mentos, 1964, 803 pp (4.• ed.), sendo ele um dos conselheiros mais ativos
entre a nacionalidade italiana (quatro) e a alemã (três). O do grupo do Governador SALLES DE OLIVEIRA e Júlio de MESQUITA
êx;to de Georges DUMAS e de Jean MARX, seu colega e Filho. Enfim, agradecemos particularmente ao Sr. Júlio de MES-
QUITA Neto, que nos fez chegar às mãos o conjunto dos artigos de
IJ amigo, diretor da Seção das Ciências Religiosas na Escola Georges DUMAS publicado por O Estado de São Paulo.
Prática de Altos Estudos e chefe do serviço de Obras, desde
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N. 0 112. 1983/1984 11
1O Rev de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
de julho de 1933, do Ministério das Relações Exteriores,
per'ências e de comparações" t;nto quanto uma política se- era total. Constituía o coroamento de uma longa freaüen-
dutora de relações cultura's entre a França e o Brasil se acha tação de cerca de um quarto de século das el:tes intelec•uais
instalada no mesmo momento sob o impulso comum d-e Jean e econômicas do Brasil, s.eduzidas pela cultura da França
MARX e do psicóloao Geornes niiMAS. "ls.tina", e aparecia como o resultado de uma part'cular atra-
No dia 25 de janeiro de 1934 fora criada, com efP.ito, a ção de Georges DUMAS por São Paulo e a franja "esclare-
Faculdade de Filosofia. Ciências e Letras da Universid~de de cida " d-e sua aristocracia do café. Certamente, nem Georges
São Paulo. O s'anatário do decreto, o Governador Armando DUMAS nem os representantes da Emb- ixada de França no
SALLES DE OLIVEIRA, foi aconselhado nesse sentido por um Brasil haviam desprezado o Rio de Jane iro, e a criação de
grupo de intelectuais desejosos de fornecer à "sua" cid:de seu Liceu Francês desde 1915 era disso um testemunh J.
os quadros necessários ao dec:envolvimento econõrn'co. ad- AFás, a participação, em 1936 de um1 dezena de professo-
ministrativo e cultural de "seu" Estado. Na verdade, Si'io Pa•do res franceses dentre os mais eminentes como Henri HAUSER,
atravessava desde alguns anos grave crise de ident'dade. Tal no ensino da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
crise. consecut'va ao craaue de 1929, era mesmo tanto mais Universidade do Distrito Federal, cri::da no ano precedente,
grav-e quanto São Paulo acab~va de perder sua reconheciria foi a conseqüência direta da operação São Paulo, onde vá-
prenonderância sobre a d'recão dos nenócios do Brasil após rias cátedras concedidas aos mestres franceses foram c.lém
a dupla deposição de Washinqton LUfS, o Presidente em disso duplicad as. A visita efetuada por Georges DUMAS ao
ex-ercício, e de Júlio PRESTES, o Presidente eleito, por um Rio e a São Paulo entre julho e setembro de 1935 permitiu
putsch m!litar que deu o poder a Getúlio VARGAS. A revolh mesmo o c:rranjo de múlt'plos detalh·Ss (13). Além d s:o, nem
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"secessionista" de 1932 acabou de mostrar quanto o tempo Georges DUMAS nem Jean MARX haviam tampouco negli-
da onipotent-e aristocracia do café havia termin1do . Recolhen- genc'ad o o desenvolvimento das relações culturais da França
do a lição política dessa triste experiência, o grupo liberal com os outros países da América Latina de língua espanhola.
que gravitava em torno do eminente diretor d-e O Estado de O "Grupo das Universidades e Grandes Escolas de França
São Paulo decidiu então l2nçar a carta da "modernidF.tde". para as r-elações com a Améric::t Latina", criado em 1908,
Aos seus olhos, essa modernidade só poder:a encontrar na cuidava bem d'sso e a tarefa, confiada mais p::.rticularmente
Europa suas raízes e os frutos de seu êxito; ela passaria pri- a Ernest MARTINENCHE, era cumprida com grande atenção
meiramente por uma reforma de b3.s-e do ensino, mais parti- quz.nto à Argentina e ao México. Tal era, aliás, o sentido da
cularmente pela criação de um ensino superior deliberada- viagem de Lucien FEBVRE, em 1937, pelo Rio da Prata. No
mente nevo, fundado sobre uma alta qualidade científica e entanto, a fundação da Universidade de São Paulo permane-
técnica.
Assim, pois, Theodoro Augusto RAMOS foi enviado à
13) Sobre esses diferentes pontos, numerosos testemunhos pessoais nos f~ram
Europa a fim de recrutar um conting-ente de professores d'g- confiados por Mme. Georges DUMAS , M. ARROUSSE-RA"TIDE eM P•Prre
nos de um ensino superior de que o Brasil era tão tragica- MONBEIG. Consultar-se-á aliás com proveito as alusões de C. LBVI-
mente desnrovicio. Geor,..,-e<> DUMAS foi prevenido por Júlio STRAUSS em Tristes Tropiques, Paris: Plon, 1955, co!!. "Terre Humaine"
de MESQUITA FILHO, diretor do Estado, da part'da de Th. 490 pp. referentes ao caráter de classe da concepção da política cultural
de Georges DUMAS no Brasil, assim como o artigo de P. MONBEIG:
Augusto RAMOS para Roma. Ele conseguiu encontrá-lo a "continuité et changemenl au Brésil", Revista de História, pp. 783-7qo,
tempo p3.ra "colocar" uma equipe de professores francec:es, n.o 101, São Paulo. Esse periódico apresentou dois números fundamentais
antes de as autoridades it~.l'anas terem sido oficialmente sobre a influência da escola histórica francesa em São Paulo, por ocasião
contactadas. Desse modo, dos 13 professor-es recrutados em do 100. 0 nítmero da Revista: Número Jubilar e Número Jubilar bis
(n. 0 103). É claro, não se pode detxar de consultar a ohra m~ numc n t al de
1934 por Th. Augusto RAMOS, quase a metade dentre eles Fernando d~ AZEVEDO: A Cultura Brasileira. São Paulo : Ed. Melhrn·a-
foi escolhida por Georg-es DUMAS; os 7 outros se repartiram mentos, 1964, 803 pp (4.• ed.), sendo ele um dos conselheiros mais ativos
entre a nacionalidade italiana (quatro) e a alemã (três). O do grupo do Governador SALLES DE OLIVEIRA e Júlio de MESQ UITA
êx:to de Georges DUMAS e de Jean MARX, seu colega e Filho. Enfim, agradecemos particularmente ao Sr. Júlio de MES·
QUITA Neto, que nos fez chegar às mãos o conjunto dos artigos de
amigo, diretor da Seção das Ciênc ias Religiosas na Escola Georges DUMAS publicado por O Estado de São Paulo.
Prática de Altos Estudos e chefe do serviço de Obras, desde
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 112. 1983/1984 11
1O Rev de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
ceu como "a qrande obra da vida de Georges DUMAS" DE. . . Foi, aliás, na Escola Normal que ele encontrou Henri
(Ciaude L~VI-STRAUSS) e a descoberta do Brasil por uma HAUSER, nascido como ele em 1866 mas entrado na Escola
plêiade de intelectuais franceses onde os historiadores iriam um ano mais cedo. E o mundo intelectual desse v'veiro da
repr-esentar um papel não desprezível, apresentou-se comn o inteliaência francesa tornou-se-lhe definitivamente disponível
ponto forte do contacto cultural entre a França e a América quando os azares da existência fizeram de Aimée PERROT
Latina. _ uma das filhas do célebre historiador da arte e DiretJr
A "Escola dos Annales" foi diretamente envolvid:i pela da Escola - a companheira de sua vida. De fato, ~mile
primeira missão universitária francesa enviada a São Paulo COORNAERT havia colaborado nos Annales desde 1932
desde a criação da Universidade. Todavia, os leitores tiveram antes de ver publicado, em 1936, auando do seu retorno do
que esperar o ano de 1937 para poder ler os primeiros escri- Brz.sil, assinado da Escola Prática de Altos Estudos, um arti-
tos resultantes das missões brasileiras. No primeiro número go de fundo consagrado à gênese do sistema capitalista em
de 1937, Henri HAUSER - o carioca - evocava simbolica- Anvers. Des'qnado para ens:nar História em São Paulo, essa
mente "um problema de influências: o saint-simonismo no escolha se deu em parte em função da defecção de Pierre
Brasil" em que a herança de Auguste COMTE era tão cultiva- MONBEIG, contactado desd-e janeiro de 1934 pela deligência
da, e, alguns meses mais tarde, Pierre MONBEIG descrevia de Henri HAUSER e de Georges DUMAS.
"as zonas pioneiras do Estado de São Paulo". De fato, ~mil e ~mile COORNAERT não estava pois preparado para sua
COORNAERT, "o primeiro francês chamado a lecionar Histó- empresa br2sile ira; e de modo alqum estava ele disposto a
ria num estabelecimento de Ensino Superior brasil-eiro" (H. comprometer seus trabalhos com a História do Brasil. No ·'"'11-
HAUSER) havia escrito, desde 1936, um artigo sobre o Brasil, tanto, aquele que ia se tornar um dos membros do Comitê
mas o seu "bosquejo da produção histórica r-ecente no Brasil" de Apoio dos Annales, após a Sequnda Guerra Mund'al, cum-
fora publicado pela Revue d'Histoire Moderne. Contudo, ~mile priu muito bem o seu trabalho. Seu "Aperçu ... " atingiu, se-
COORNAERT já era um colabor2dor, ligado ao grupo dos h's- gundo Henri HAUSER, "o duplo fim a que ele visava: mostrar
toriadores que Marc BLOCH e Lucien FEBVRE haviam junta- aos brasileiros que a gente era capaz de se interess-=-r por
do. Aliás, não era lógico que colaboradores de uma revista seus esforços e estabelecer um laço espir'tual entre os his-
fundada gr2.ças à liberalidade do editor Max LECLERQ que toriadores dos dois países" (15). Mas, n:1 r.ealidade, tal meta
havia analisado tão bem o Brasil no fim do século XIX como não correspondia de todo à amb:ção do programa de Lucien
corr-espondente do Journal des Débats fossem calorosamen- FEBVRE. E o seu artigo consciencioso só encontrou eco nos
te convidados por Georges DUMAS a ensin:1r em São Paulo? Annales em 1948 quando ele comentou uma obra de J. F. de
(14) Este psicólogo francês conhecia muito bem o seu mundo ALMEIDA PRADO a propósito das "origens do Bras:! do Norte
e sobretudo gostava de escutar os conselhos de seus amlgos e do Centro". Um comentário que Fernand BRAUDEL não he-
próximos. De sua cátedra de Sainte-Anne ou da Sorbonne, sitou em retomar, como o fizera em 1943, à sua maneira, aue
ele havia form2.do numerosas g-erações de estudantes, de foi na verdade a dos Annales, com a resenha seca e precisa
Paul ARBOUSSE-BASTIDE a Claude L~VI-STRAUSS, e, quan- que ~mile COORNAFRT escrevera de Casa Grande & Sen-
do estava em dificuldade, não hesitava absolutamente em re- zala d.e Gilberto FREYRE em seu "Aperçu".
correr junto à direção da Escola Normal Superior, da qual ~ verdade que muitos acasos haviam contribuído para
havia sido um brilhante elemento em 1886, condiscípulo de essa des:gnação de ~mile COORNAERT como professor na
Romain ROLLAND, Léon BRUNSCHWICG, André LALAN- Faculdade de Filosofia de São Paulo. De fato, Pierre MON-
14) Max LE CLERC: Lettres du Brésil, Paris, 1890, 274 pp.; uma tradução l5) Henrj HAUSER: "Notes et réflexions sur !e travail historique au Brésil",
brasi!t:ira por Sérgio MILLIET foi publicada em São Paulo em 1943 sob ~evue Historique (p. 86), tome 181. 1937: 85-98; Emile COORNAERT:
o título: Curtas do Brasil, co!. Brasiliana, n.U 215, Cia. Ed. Nac .. Na Aperçu de la production historique au Brésil", Revue d'Histoire Moderne,
morte de Max LECLERC (1864-1932), os Diretores dos Annales precisa· tot?~ 11. l<l36: 44-60: E, COORNAERT et Fernand BRAUDEL: "Aux
raro aquilo qu~ a Revista devia a esse "grande editor" da casa Armancl ~ngmes du Brésil du Nord et du Centre", Anna/es E. S. C., pp. 136-138; F.
Colin m Annales d'Histoire Economique et Sacia/e, n. 0 16, de 31 de G~UDEL:
1
"A travers un continent d'Histoire- Le Brésil et l'oeuvre de
julho de 1932, Ano IV. berto FRE'r RE", Melanges d'Histoire ::.ocia/e, IV, 1943: 1-20.
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/19lH 13
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ceu como "a qrande obra da vida de Georges DUMAS" DE. . . Foi, aliás, na Escola Normal que ele encontrou Henri
(Ciaude LÉVI-STRAUSS) e a descoberta do Brasil por uma HAUSER, nascido como ele em 186'6 mas entrado na Escola
plêiade de intelectuais franceses onde os historiadores iriam um ano mais cedo. E o mundo intelectual desse v'veiro da
repr.esentar um papel não desprezível, apresentou-se comn o iníelioência francesa tornou-se-lhe definitivamente disponível
ponto forte do contacto cultural entre a França e a América quando os azares da existência fizeram de Aimée PERROT
Latina. _ uma das filhas do célebre historiador da arte e Diret:Jr
A "Escola dos Annales" foi diretamente envolvid~ pela da Escola - a companheira de sua vida. De fato, Émile
primeira missão universitária francesa enviada a São Paulo COORNAERT havia colaborado nos Annates desde 1932
desde a criação da Universidade. Todavia, os leitores tiveram antes de ver publicado, em 1936, quando do seu retorno do
que esperar o ano de 1937 para poder ler os primeiros escri- Br2sil , assinado da Escola Prática de Altos Estudos, um arti-
tos resultantes das missões brasileiras. No primeiro número go de fundo consagrado à gênese do sistema capitalista em
de 1937, Henri HAUSER - o carioca - evocava simbolica- Anvers. Des 'qnado para ens:nar História em São Paulo, essa
mente "um problema de influências: o saint-simonismo no escolha se deu em parte em função da defecção de Pierre
Brasil" em que a herança de Auguste COMTE era tão cultiva- MONBEIG, contactado desde janeiro de 1934 pela deligência
da, e, alguns meses mais tarde, Pierre MONBEIG descrevia de Henri HAUSER e de Georges DUMAS.
"as zonas pioneiras do Estado de São Paulo". De fato, Émile Émile COORNAERT não estava pois preparado para sua
COORNAERT, "o primeiro francês chamado a lecionar Histó- empresa brasileira ; e de modo alqum estava ele disposto a
ria num estabelecimento de Ensino Superior brasil·eiro" (H. comprometer seus trabalhos com a História do Brasil. No ·"11-
HAUSER) havia escrito, desde 1936, um artigo sobre o Brasil, tanto, aquele que ia se tornar um dos membros do Comitê
mas o seu "bosquejo da produção histórica recente no Brasil" de Apoio dos Annales, após a Sequnda Guerra Mund'al, cum- ,,
fora publicado pela Revue d'Histoire Moderne. Contudo, Émile priu muito bem o seu trabalho. Seu "Aperçu ... " atingiu, se-
COORNAERT já era um colaborador, ligado ao grupo dos h's- gundo Henri HAUSER, "o duplo fim a que ele visava: mostrar
toriadores que Marc BLOCH e Lucien FEBVRE haviam junta- aos brasileiros que a gente era capaz de se interess?.r por
do. Aliás, não era lógico que colaboradores de uma revista seus esforços e estabelecer um laço espir'tual entre os his-
fundada gr2ças à liberalidade do editor Max LECLERQ que toriadores dos dois países" (15). Mas, n~ r-ealidade, tal meta
havia analisado tão bem o Brasil no fim do século XIX como não correspondia de todo à amb:ção do programa de Lucien
correspondente do Journal des Débats fossem calorosamen- FEBVRE. E o seu artigo consciencioso só encontrou eco nos
te convidados por Georges DUMAS a ensin:tr em São Paulo? Annales em 1948 quando ele comentou uma obra de J. F. de
(14) Este psicólogo francês conhecia muito bem o seu mundo ALMEIDA PRADO a propósito das "origens do Bras'l do Norte
e sobretudo gostava de escutar os conselhos de seus amigos e do Centro". Um comentário que Fernand BRAUDEL não he-
próximos. De sua cátedra de Sainte-Anne ou da Sorbonne, sitou em retomar, como o fizera em 1943, à sua maneira, ou e
ele havia form2do numerosas g·erações de estudantes, de foi na verdade a dos Annales, com a resenha seca e precisa
Paul ARBOUSSE-BASTIDE a Claude LÉVI-STRAUSS, e, quan- que Émile COORNAFRT escrevera de Casa Grande & Sen-
do estava em dificuldade, não hesitava absolutamente em re- zala d.e Gilberto FREYRE em seu "Aperçu".
correr junto à direção da Escola Normal Superior, da qual É verdade que muitos acasos haviam contribuído para
havia sido um brilhante elemento em 1886, condiscípulo de essa des:gnação de Émile COORNAERT como professor na
Romain ROLLAND, Léon BRUNSCHWICG, André LALAN- Faculdade de Filosofia de São Paulo. De fato, Pierre MON-
14) Max LE CLERC: Lettres du Brésil, Paris, 1890, 274 pp.; uma tradução
1
5) Henri HAUSER: "Notes et réflexions sur !e travail historique au Brésil",
brasi!t:ira por Sérgio MILLIET foi publicada em São Paulo em 1943 sob ~evue Historique (p. 86), tome 181, 1937: 85-98; Emile COORNAERT:
o título: Curtas do Brasil, col. Brasiliana, n.U 215, Cia. Ed. Nac .. Na Aperçu de Ia production historique au Brésil", Revue d'Histoire Moderne,
morte de Max LECLERC (1864-1932), os Diretores dos Annales precisa- tot_n~ 11. 1936: 44-60: E, COORNAERT et Fernand BRAUDEL: "Aux
ram aquilo quê a Revista devia a esse "grande editor" da casa Armanc.l. ~~nes du Brésil du Nord et du Centre", Annales E. S. C., pp. 136-138; F.
Colin m Anna/es d'Histoire Econornique et Sociale, n.O 16, de 31 de G'l
1
UDEL: ':A tr~yers un continent d'~istoire.- Le Brésil ~t l'oeuvre de
julho de 1932, Ano IV. berto F.RE'r RE , Me/anges d'Htsloire ::>ocwle, IV, 194.J: 1·20.
12 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984 13
BEIG havia sido indicado primeiramente. A jovem esposa de Muito mais do que com as convicções católicas, eram pelo
Pierre MONBEIG não era filha de Paul JANET, com quem menos igualmente com as convicções "liberais" de Júlio de
Georges DUMAS havia percorrido o Brasil em 1925 qu -:.ndo MESQUITA Filho que contava Georges DUMAS. E a difusão de
de uma .espetacular missão de conferências de professores certo "-espírito" protestante e de certo espírito "livre-pensa-
universitários franceses, e prima de Pierre JANET, o am ·go dor" facilitou a tarefa dos admiradores de DURKHEIM : um
íntimo de nosso conselheiro do Quai d'Orsay sem a ajud '3. neopositivismo adaptado ao espírito científico do século XX
de quem o monumental Tratado de Psico!ogia não teria vindo reencontrava as raízes de Auguste COMTE no Brasil que vá-
à luz? Além disso, a companheira de pierre MONRI=IG não rios missionários, não obstante marcados pelo grande choque
dos anos 1934-1936 em França, abandor.aram para melhor se
tinha trabalhado sob a direção de Henri HAUSER, que
reconhecer nas idéias socializantes de SAINT-SIMON. As amar-
nosso geógrafo, aliás, conhecia? Numa palavra . em 1934.
posto aue solicitado oara ensinar História em São Paulo, ras estavam lançadas. O enxerto cultural ia pegar? A transplan-
Pierre MONBEIG declinou do convite e ofereceu seus servi- tação possível ia permitir aos novos intelectuais paulistas for-
ços de geógrafo para a !"Ubstituicão de Pi.erre DEFFONTAI- jar as bases da "brasilidade"?
NES, no ano seguinte. Efetivamente, em 1935, Pierre MONBEIG
veio para a Universidade de São Paulo em companhia de Fer- 4. - A concretização dos resultados das missões
nand BRAUDEL que substituía Émile COORNAERT; de Claude brasileiras.
LÉVI-STRAUSS que se benefici c.va com o desdobr8mento da
cadeira d-e sociologia confiada a Paul ARBOUSSE-BASTID~, O resultado foi imponente. Fernand BRAUDEL, depois
segundo os conselhos prodigalizados por Paul RIVET e H. Jean GAGE que o substituiu em 1938, Pierre MONBEIG e
Pierre DEFFONTAINES, Claude LÉVI-STRAUSS e depois Ro- ,,
LEVY-BRUHL, e podia assim ensinar etnologia; do filósofo
ger BASTIDE, que chegou ao Brasil em 1938, fizeram escola,
Jean MAUGUE que sucedeu a Etienn.e BORNE; e do literato
para não falar da influência de Paul ARBOUSSE-BASTIDE no
Pierre HOURCADE que prosseguia o trabalho de Robert GAR-
campo da filosofia e d&s ciências políticas. A "escola" etno-
RIC. Esta segunda missão un iverc:itári"l francesa se distinguia
da primeira em vários asp.ectos. Ela era muito ma's homooênea s:ciológica de São Paulo, a "escola" geográfica e a "escola"
e formada de professores jovens, bem no início de suas carrei- histórica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foram
ras. Em 1934, convinha sobretudo realizar uma missão brilha"'t·9 na verdade criadas por esses professores universitários fran-
cujos aspectos de aparato aproximavam-se mais das missões ces.es. Mas o intercâmbio não foi tão desigual como o pare-
de conferencistas, altamente espetaculares, do que das missões ce à primeira vista. Pois os derradeiros, de retorno à França,
de ensino propriament-e dito . Certamente, não era uma missão revelaram-se apaixonados por sua experiência brasil-eira. Já
tão distinta quanto a de 1925 composta dos mais altos dignitá- que Henri HAUSER deplorara "a lacuna de nossa informa-
rios da Universidade, mas os professores enviados a São Paulo ção histórica" a propósito do Brasil, eles se ligaram a pre-
eram talentos confirmados. Sobretudo Georges DUMAS e Jean enchê-la de maneira que já não se achem mais apenas em
MARX cuidaram para que as convicções ideológicas de seus nossos manuais algumas boas páginas sobre as colônias es-
missionários não perturbassem o meio l'beral .e católico do panholas da América, e o Brasil "despachado nalgumas li-
nhas, por assim dizer em anexos e por descarga de consci-
paulista "granfino". A representação católica era assim majo-
ritária e a segurança na carreira certa. Mas uma vez realizado ência". De São Paulo, o geógrafo Pierr.e MONBEIG não so-
o primeiro contacto e seduzida a "clientela", começavam as mente fornec.eu matéria para publicação nos Annales de Géo-
graphie mas também nos Annales de Marc BLOCH e Lucien
coisas sérias. Os missionários da segunda onda que iam per-
FEBVRE. O tempo de seu projeto d.e tese sobre as Baleares
manecer por vários anos tinham por tarefa a formação real de
estava muito distante. E mesmo qu-e tenha continuado por
jovens estudantes brasileiros saídos das classes médias cujo
ac.dente a assinar uma resenha sobre a Espanha, Pierre
sangue novo devia permitir que a aristocracia "esclarecida" do
café ultrapassasse o quadro estreito no qual havia conduzido
~10~BEIG_ assegurava doravante um direito prioritário ao
ras.tl. Alem das zonas pioneiras do Estado de São Paulo,
sua ação inábil e afirmar assim a potência futura da " moder- 0
nidade" paulista no coração do Brasil e na escuta da Europa. lettor francês conheceu graças a ele os trabalhos de J. F.
Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N. 0 1/2, 1983/1984 15
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BEIG havia sido indicado primeiramente. A jovem esposa de Muito mais do que com as convicções católicas, eram pelo
Pierre MONBEIG não era filha de Paul JANET, com quem menos igualmente com as convicções "liberais" de Júlio de
Georges DUMAS havia percorrido o Brasil em 1925 qu-;.ndo MESQUITA Filho que contava Georges DUMAS. E a difusão de
de uma .espetacular missão de conferências de professores certo ".espírito" protestante e de certo espírito "livre-pensa-
universitários franceses, e prima de Pierre JANET, o am ·go dor" facilitou a tarefa dos admiradores de DURKHEIM: um
íntimo de nosso conselheiro do Quai d'Orsay sem a ajud'3. neopositivismo adaptado ao espírito científico do século XX
de quem o monumental Tratado de Psico!ogia não teria vindo reencontrava as raízes de Auguste COMTE no Brasil que vá-
à luz? Além disso, a companheira de pierre MONRI=IG não rios missionários, não obstante marcados pelo grande choque
dos anos 1934-1936 em França, abandor.aram para melhor se
tinha trabalhado sob a direção de Henri HAUSER, que
r-econhecer nas idéias socializantes de SAINT-SIMON. As amar-
nosso geógrafo, aliás, conhecia? Numa palavra . em 1934.
posto aue solicitado oara ensinar História em São Paulo, ras estavam lançadas. O enxerto cultural ia pegar? A transplan-
Pierre MONBEIG declinou do convite e ofereceu seus servi- tação possível ia permiiir aos novos intelectuais paulistas for-
ços de geógrafo para a ~ubstit11icão de pi.erre DEFFONTAI- jar as bases da "brasilidade"?
NES, no ano seguinte. Efetivamente, em 1935, Pierre MONBEIG
veio para a Universidade de São Paulo em companhia de Fer- 4. - A concretização dos resultados das missões
nand BRAUDEL que substituía I:mile COORNAERT; de Claude brasileiras.
LI:VI-STRAUSS que se beneficic.va com o desdobr::tmento da
cadeira d-e sociologia confiada a Paul ARBOUSSE-BASTID~. O resultado foi imponente. Fernand BRAUDEL, depois
segundo os conselhos prodigalizados por Paul RIVET e H. Jean GAGE que o substituíu em 1938, Pierre MONBEIG e
LEVY-BRUHL, e podia assim ensinar etnologia; do filósofo Pierr.e DEFFONTAINES, Claude LI:VI-STRAUSS e depois Re- ,:
20 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/ 15, N.0 1/2, 1983/ 1984 Rev. de C. Sociais, Fortaleza, v. 14/15, N. 0 1/2, 1983/1984
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Robert RICARD, ajuntavam-se os dois historiadores que espe- política do mundo ocidental ia fazer coincid;r com os domí-
ravam sua próxima consagração como François CHEVALIER n·os da guerra fria e dos pactos militar-es, achav : m-se em
ou Pierre VILAR. E sobretudo se agr-egavam os jovens h'sto- germe. Germes que não puderam se opor à captura da Amé-
riadores da terceira geração que acabavam de ser inic'ados rica Latina pela América do Norte, segundo os imperativos do
nos mistérios do Mediterrâneo de Carlos V: Heguette BALZO- panamericanismo e a regra da "rosa dos ventos" tão nota-
LA, Pierre CHAUNU e Frédéric MAURO encontravam pela pri- velmente evocada por André SIEGFRIED (22). No momento
meira vez a América e publ icavam seus prim.9iros trabalhos em que Lucien FEBVRE descobria pesso ::.lmente a importân-
na prestigiosa Revista. Para bem mostrar que as fronteiras cia do Brasil no mundo sul-americano que tanto o t'nha apai-
disciplinares não eram adm itidas nos Annales, F. BRAUJJEL xonado por ocasião de uma missão de conferências de três
faz :a ap-elo à col ::.boração dos "paulistas" Pierre MONBEIG e meses, em 1949, nas Universid::des do Rio d-9 Jane'ro, de São
Roger BASTIDE assim como do "portefio" Roger CAILLOIS. De Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Fortaleza, a Amé-
fato, a colaboração internacional era inerente à preparação do rica Latina que era -estudada da Europa, através do Atlântico,
número. Da Argentina, F. MARQUEZ MIRANDA fazia .eco aos escapava à sedução européia para se entregar aos encantos
mexicanos P. CASANOVA e Silvio ZAVALA. E se o Instituto da americanidade continental Norte-Sul. Um trabalho d.g his-
Francês da América Latina, de recente criação no Méx:co, tó ria da América Latina exigia desde logo um esforço de
bem merecia -estender a sua influência, era para mostrar pri- americanismo oficial que as c::deiras de História da América
meiramente que a operação Brasil em São Paulo não tinha dei- Latina, recentemente criadas na Sorbonne .e em Paris X
xado somente a A. de AZEVEDO e J. CRUZ COSTA a tarefa Nanterre há uma dezena de anos, buscavam intens:ficar. Mas
de representar a "latinidade" do Novo Mundo. Essa "lafnida- uma nova política cultural fundada doravant.e nas realid _des
de" era, aliás, ampliada ao antigo mundo, pois que V. Maga- das Américas Latinas não deveria ancorar-se na busca de no-
lhães GODINHO irrompia sobre a cena em via direta de Lis- vas elites sociais para contribuir em sua medida, na transfor-
boa. Entretanto, curiosamente, a América And:na se achava mação do campo de experiênci,.s? E as novas forças ascen-
ausente de toda reoresentacilo. O -esforço organizado no d..;ntes de um trabalho internacionalmente dividido não po-
quadro do Instituto Francês de Estudos Andinos, de Lima, só deriam subst'tuir vantajos::J.mente a elite da aristocracia do
encontrará eco nos Annales um:1 dez-ena de anos mais tarde. café que tanto seduzira Georg-es DUMAS? A questão mere-
O novo programa dos Anna!es era, aliás, proclamado por Lu- cia ser posta. Ela só apresen,ana em si mesma um "incon-
cien FEBVRE em sua introdução: "Iremos nós esquecer, nós ven iente" de monta: o de questionar a "latinidade" do con-
os historiadores do Velho Mundo, que possuímos uma facha- t;nente americano, inclusive as formas de sua pluralida-
da sobre o Atlântico? ( ... ) A considerável importância que de .. . (23).
representa para nós uma história que é tão européia, tão lar- Traduzido por
gamente européia quanto poderosamente sul-americana ... " Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
aparecia muito bem na lógica das missões e dos intercâm- 22) André SIEGFRIED: "Le développement économique de l'Amérique La-
bios universitários entre a França e a América Latina. "Uma tine" (p. 4), Revue de Paris, 54e année, n. 0 1, janvier 1947: 3-13.
história de vaivém" prosseguia com efeito simbolicamente 23) Sobre esse ponto cf. R.ROMANO: '·Amérique 'Latine' ", pp. 165-170
in Les mécanisrnes . .. , op. cit., e sobre as contribuições da historiografia
Lucien FEBVRE, "de ações e r-epresálias, de empréstimos e de marxista de inspiração "francesa" concernente às Américas Latinas cf.
recusas de empréstimos, de idas aventure:ras e de r-etornos Guy MARTINIERE: "L. expédition mcxicaine de Napoléon III dans
com juros compostos. Um dos primeiros, um dos mais impor- l'historiographie française", pp. 170-173 in "L'Historiographic du Second
tantes capítulos, já, dessa história das trocas mundiais que Empire', Revue d'Hrstoire Modeme et C'onternporaine, tom.: XXI, janv.-
mars 1974. No mesmo espírito, pode-se consultar também do mesmo
cada um d-e nós começa, em seus sonhos, a elaborar parJ autor: (;ontribution à l'étude de l'économie rétrospective du Brésil -
o futuro próximo" (21). A Espanha e o Atlântico (Sevilha), Essai d'historiographie. Pans, 1973, 3 vols. Vlii - 476 + 324 (Thêse
Portugal e o Atlânt.co, "a cr.a~,-cto e o dinam.smo econômico de 3c Cycle. Histoire, Paris X, 1973, IHEAL) e a comunicação sobre
de um mundo atlântico" (V. Magalhães GODINHO), que a "L image de l'Arnérique Latine dans 'Fermina Marquez' " apresentada no
Coióquro Valery LAH.BAUD et la littérature de son temps, organizado
e_m Vichy J~ 17 a 19 de junho de 1977, para celebrar o XX. 0 aniversá-
21) Lucien FEBVRE "L'Amérique du Sud devant l'Histoire", art. cit., pp rpro _da morte do escritor (Cujas Atas serão publ!caaas por Klmsreck edrtor,
389-390. ans, out. 1978).
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REVIEW
A Journal of the Fernand Braudel Center for the Study of CONTJNUIDADE, TOTALIDADE, PERIODIZAC6"RS,
Economies, Historica/ Systems and Civilizations.
CORTES: SOBRE A HISTORIOGRAFIA DA RELIGIÃO
Editor: lmmanuel Wallerstein, State University of New York, NO BRASIL-COLóNIA.
Binghampton.