A Literariedade - Jonathan Culler
A Literariedade - Jonathan Culler
A Literariedade - Jonathan Culler
Que literatura? Esta pergunta, que parece impor-se como a pergunta base dos estudos literrios e como o objeto primordial da teoria literria, pode ser compreendida de diferentes maneiras: em primeiro lugar, como uma pergunta sobre a natureza geral da literatura. Que tipo de objeto ou de atividade a literatura? Para que serve? Por que estud-la? Qual o seu lugar na diversidade das atividades humanas? Compreendida desta maneira, se trataria de uma pergunta no de definio, mas de caracterizao, e isto porque interessaria a todos os que se ocupam da literatura e queriam saber porque se dedicar a esta atividade e no a outra. Mas o que literatura? Tambm pode significar o que distingue literatura das outras coisas: o que que a distingue dos outros textos, das outras representaes? O que a distingue dos outros produtos do ser humano ou das outras prticas? Perguntar-se qual ou quais so a ou as qualidades distintivas da literatura colocar a pergunta da literariedade: qual ou quais so os critrios que fazem de algo literatura? Apesar do carter aparentemente central desta pergunta acerca dos estudos literrios, temos de confessar que no se chegou a uma definio central de literariedade. Northrop Frye, em seu livro Anatomia da Crtica, tem razo quando declara que no dispomos de verdadeiros critrios para distinguir um estrutura verbal literria de uma que no (1966,13). H vrias razes para isso. Se refletirmos um momento, nos damos conta de que h dificuldades de princpio assim como dificuldades empricas. Existe uma imensa variedade de obras literrias e um romance determinado, por exemplo, Em busca do tempo perdido ou Jane Eyre, pode parecer-se mais com uma autobiografia do que com um soneto, ainda que uma poesia lrica de Burns, de Heine ou de Verlaine se parea mais com uma cano do que uma obra de teatro de Sfocles. Assim, um primeiro problema consistiria em saber se existem propriedades interessantes que esto presentes em todas as obras que denominamos literrias e que as distinguem dos objetos no literrios aos quais se parecem. Mas esta pergunta se torna mais difcil em uma perspectiva histrica, por puco que seja. Segundo um clebre perito em poesia, a fronteira que separa a obra potica da que no potica mais instvel que a fronteira dos territrios administrativos da China (JAKOBSON, 1973, 114). Podemos pensar em alguns poemas modernos que em outras pocas no seriam considerado como literatura. Os talk poems do poeta norte-americano David Antin, por exemplo, manifestam um discurso que no pode ser mais comum, sem rimas nem ritmos, sem figuras especiais, e que possui todas as vacilaes e repeties da fala cotidiana. Quando do auge do nouveau roman francs, muitos crticos e leitores achavam que essas construes sem personagens a sem as intrigas tradicionais tampouco podiam ser consideradas literatura. Esses textos no poderiam levar o nome de romance no sculo XIX. Nessas condies, poderamos chegar concluso de que a literatura no nada coisa alm do que aquilo que uma determinada sociedade trata como literatura: quer dizer, um conjunto de textos que os rbitros da cultura professores, escritores, crticos, acadmicos reconhecem que pertence literatura. Esta concluso no muito satisfatria, mas nos servimos de outras categorias da mesma natureza mediante as quais os critrios de definio e delimitao dos objetos culturais nos remetem s opinies mutveis de um grupo, grande ou pequeno. Neste sentido, a literatura seria uma categoria como a das ms ervas (Ellis, 1974). As ervas ms so um simplesmente um tipo de plantas que uma sociedade no trata cultivar, mas sim de eliminar quando brotam em um lugar em que deve florescer outra coisa. De forma que no haveria qualidades de forma ou de fundo que as ms ervas possuiriam. No h nenhuma essncia de m erva ou nenhum critrio pertinente de delimitao. Aquele que se interessasse por esta categoria, o que teria de fazer no seria buscar a natureza botnica das ervas ms, mas levar a cabo investigaes histricas, sociolgicas e talvez psicolgicas, sobre as diferentes espcies de plantas que esto catalogadas com ervas ms por grupos ou sociedades diferentes, sem por isso chegar a estar jamais seguro de encontrar um critrio geral, nem sequer para uma poca determinada. Se a literatura fosse uma categoria desse tipo, a literariedade no seria objeto de anlise de um terico, mas unicamente objeto de uma investigao histrica que pretenderia tornar explcitos os critrios utilizados por diferentes grupos que se interessam pela literatura. Mas em geral, as respostas s perguntas sobre a literariedade no se formulam desta maneira. As prprias dificuldades de definio e de delimitao inspiram e fazem que seja
2 mais interessante a reflexo sobre a natureza da literatura, reflexo esta que perseguida pelos tericos, no porque queira saber que discursos querem excluir ou incluir na literatura, no porque queiram explicitar critrios que tenham regido as incluses e excluses de outras culturas ou momentos histricos, mas porque se perguntam quais so so aspectos mais importantes da literatura porque querem determinar o que estudar um texto como parte integrante da literatura. Em suma, as definies de literariedade no so importantes como critrios para identificar aquilo que pe em evidncia que h literatura [em um texto], mas como instrumentos de orientao terica e metodolgica que trazem luz os aspectos fundamentais da literatura e que finalmente orientam os estudos literrios. Por um lado, a literariedade se define em termos de uma relao com uma realidade suposta, como discurso fictcio ou imitao dos atos da linguagem cotidiana. Por outro lado, ao que aponta para determinadas propriedades da linguagem. Embora coincidam em alguns pontos, estas duas respostas devem ser analisadas separadamente e detalhadamente. Haja vista que nem uma nem outra implicam uma resposta historizante, necessrio proporcionar previamente algumas indicaes histricas. Para explicar o que literariedade, o que esta qualidade suscetvel de definir o literrio, teramos de compreender o contexto que promoveu a pergunta sobre a natureza da literatura. Obras que denominamos literrias foram criadas h vinte e cinco sculos, mas a idia moderna de literatura data de apenas dois sculos. At o sculo XIX, a literatura e termos anlogos em outras lnguas europias significavam de uma maneira global os escritos e at o saber livresco. Nas Briefe die neueste literatur betreffend [Cartas sobre a nova literatura] de Liessinga, publicadas a partir de 1759, a palavra toma um sentido precocemente moderno que designa a produo literria contempornea. sobretudo o livro de Mme Stal, De la littrature considere dans ses reports avec les institutions sociales (1800) [Sobre a literatura considerada em relao s instituies sociais], que marca o estabelecimento do sentido moderno. Mas foi somente com a instituio da crtica literria e o estudo profissional da literatura que a pergunta sobre a especificidade da literatura, e portanto da literariedade, pode se estabelecer. Antes de fins do sculo XIX, o estudo da literatura no era uma atividade realizada de maneira independente: estudavam-se os poetas antigos ao mesmo tempo em que se estudavam os filsofos e os oradores os escritores de todo tipo e os escritos que chamamos literrios formavam parte de um todo cultural mais vasto. Foi, pois, com a fundao dos estudos especificamente literrios que o problema do carter distintivo da literatura se implantou. Temos que considerar que a pergunta se colocou, no porque se quisesse distinguir o que literrio do que no , mas porque se queria promover, mediante a separao do peculiar da literatura, mtodos de anlises que permitiriam fazer avanar a compreenso deste objeto e deixar de lado os mtodos imprprios que no levavam em considerao a natureza deste objeto. Assim, foram os formalistas russos, grupo de jovens lingistas e poeticistas de Moscou e Leningrado, no incio do sculo XX, os que, inicialmente, apontaram a literariedade (literaturnost) e formularam algumas das grandes linhas do debate sobre esse problema. Roman Jakobson colocava o problema da seguinte maneira: O objeto da cincia literria no a literatura, mas a literariedade, dizer o que faz de uma determinada obra literria(1921,11). Os crticos literrios e os historiadores da literatura, postulava [Jakobson], utilizavam a vida pessoal do autor, a psicologia, a filosofia, em vez de vislumbrar uma cincia literria. Se os estudos literrios querem se converter em uma cincia declara Jakobson tm que reconhecer o procedimento (priem) como o seu personagem nico. Depois, a pergunta principal a da aplicao, a da justificao do procedimento. Portanto, a questo da literariedade serve para a atrair a ateno para as estruturas que seriam essenciais nas obras literrias e, em contrapartida, no seriam essenciais em outras obras. Estudar um texto como texto literrio em vez de valer-se dele como documento biogrfico e histrico, ou ainda como declarao filosfica , para o analista, concentrar sua ateno no uso de algumas estratgias verbais. Os formalistas tinham como afirmao fundamental que o objeto da cincia literria deve ser o estudo das particularidades especficas dos objetos literrios que os distinguem de outra narrativa (Eichenbaun, 1927, 25). O problema essencial consiste em encontrar particularidades especficas das obras literrias que sejam suficientemente genricas (gerais) para manifestar-se na prosa assim como na poesia. Esta literariedade possui trs caractersticas fundamentais: 1) os procedimentos do foregrounding (evidentes, de primeiro plano) da prpria linguagem; 2) a dependncia do texto as relaes, convenes e seus vnculos com outros textos da tradio literria; e 3) a perspectiva da integrao composicional dos elementos e dos materiais utilizados em um texto.
3 No que se refere ao primeiro ponto, o formalista russo Shklovski declara que a lngua potica difere da lngua prosaica (cotidiana) pelo carter perceptvel [oshchutimost] de sal construo (Eichenbaum, 1972, 32). Para o checo Mukarovsk, um dos fundadores da escola de Praga que se situa na continuidade do formalismo russo, a linguagem potica no se define por sua beleza, nem por seu ornamento, nem por sua afetividade, nem por seu carter metafrico, nem por sua singularlidade, mas pela sua manifestao (aktualisace, foregrounding) (1977,3,4). H vrias maneias de tornar perceptvel a linguagem de, de modo que o leitor no receba o texto como um simples meio transparente de comunicar uma mensagem, mas que surja envolvido pela materialidade do significante e outros aspectos da estrutura verbal. O desvio ou aberrao lingstica a criao de neologismos, as combinaes inslitas de palavras, a eleio de estruturas no gramaticais ou aberrantes no plano semntico so formas de pr em evidncia que se utiliza, sobretudo, na poesia, mas que se encontram tambm na prosa, como no incio de Finnegans Wake: Eins within a space and a wearrywide space it was wohned a Mookse. The onesomeness eas alltonely, archunsitslike, broadyoval, and a Mookse he would walking go.1. O fim e o resultado desta forma de evidenciao o que os formalistas russos chamam de desfamiliarizao [estranhamento] (ostraniere) ou desautomatizao da linguagem, que produz a percepo dos signos enquanto tal. Isto se pode obter mediante o recurso a diferentes classes de paralelismos e de repeties. No plano do significante, a rima, a assonncia e a aliterao criam o efeito de um objeto muito estruturado como nos versos de Valry: Dormeuse, amas dor dombres et dabandons, Ton repos redoutable est charg de tels dons (La Dormeuse) [Dormente cmulo dourado e sombras e abandonos, / teu repouso terrvel est carregado de tuas ddivas...] Os ritmos, regulares e irregulares, as repeties de categorias sintticas que criam paralelismo, todo tipo de estribilhos e de estruturas fechadas, fazem perceptvel e linguagem em outros meios. As estruturas do relato (paralelismos, repeties e detalhes, construo escalonada) produzem efeitos hermticos, e se considera que expressam que se trata de um discurso bem construdo em que cada detalhe deve ser levado a srio. Alm disso, uma linguagem figurativa que exige esforo de interpretao serve tambm para significar a literariedade. Com efeito, a linguagem literria (obraz) que pretende criar uma nova percepo colocando o objeto em uma perspectiva inslita, muitas vezes se toma como o elemento mais comum, o mais expandido da literariedade. At o romance realista serve-se de imagens novas para mostrar: os tetos de palha, como gorros enterrados at os olhos... (Fleubert, Madame Bovary). Em outro plano a perspectiva realista eleita o elemento que vai atualizar o efeito de desfamiliarizao. Em Jolstemer, de Tolstoi, o relato narrado por um cavalo e por meio dele que os objetos tornam-se singulares graas a esta percepo inusitada e tematizao da linguagem e da interpretao: o narrador observa, por exemplo, que as palavras meu cavalo, quando se referem a ele, parecem-lhe to estranhas como minha terra, meu ar e minha gua. Pr em evidncia os signos lingsticos e os meios de representao pode fazer da literatura uma crtica dos modelos semiticos mediante o costume que temos de fazer o mundo inteligvel. Assim, pois, o nouveau roman 2
1
Finnegans Wake, ou, na traduo brasileira, Finnicius Revm, o ltimo romance de James Joyce, publicado em 1939, e um dos grandes marcos da literatura experimental por ser escrito em uma linguagem composta pela fuso de outras palavras, em ingls e outras lnguas, buscando uma multiplicidade de significados. Referncias Campos, Augusto de; Campos, Haroldo de. (2001) Panorama do Finnegans Wake. So Paulo: Editora Perspectiva. ISBN 85-273-0207-5. Joyce, James. (1999) Finnegans Wake/Finnicius Revm. Traduo de Donaldo Schler, 1o volume. Porto Alegre: Ateli Editorial. ISBN 85-85851-97-X. (N.T)
2
Nouveau roman: Forma experimentalista, caracterstica da produo literria de romancistas franceses da dcada de 1950, entre os quais se encontram Nathalie Sarraute e Alain Robbe-Grillet. Os ensaios deste ltimo escritor, reunidos em Pour um Nouveau Roman (1963), contm muitos dos fundamentos tericos desta tendncia. De modos vrios, os escritores do nouveau roman procuraram eliminar as personagens, o enredo e a subjectividade inerente ao trabalho do autor, tentando, na sua escrita, apresentar o mundo como uma coisa em si mesma, na sua solidez e pureza de conceito. As obras Le Voyeur (1955), de Robbe-Grillet, e Le Planetarium (1959), de Sarraute, tornaram-se exemplos bem aceites pela crtica desta tendncia literria. Outros escritores, como Michel Butor, Claude Ollier e Marguerite Duras foram tambm associados ao nouveau roman, tambm designado por anti-romance, pela subverso dos processos tradicionais da narrativa. Em Portugal, aproximaram-se deste tipo de romance escritores como Nuno Bragana e Artur Portela Filho. (N.T)
4 foi reconhecido por sua crtica aos modelos romanescos tradicionais, tais como os de personagem e os do princpio de causalidade, mediante os quais interpretamos o mundo quase sem saber, da mesma forma que a poesia tem tratado muitas vezes de romper as associaes que considera normais. Mas h uma ressalva a fazer em relao literatura como desfamiliarizao. No plano lingstico, de fato, a literatura destaca-se no s por figuras ou combinaes inslitas, mas tambm pela linguagem elevada, que consiste, em parte, em utilizar frmulas que perderam sua fora inovadora: the azure vault of heaven [a abbada azul do firmamento] percebe-se de imediato como literrio porque o emprego do adjetivo ativa no leitor a idia da literatura enquanto enunciao elegante e perifrstica de sentimentos elevados. Dizer quarenta velas em vez de quarenta navios uma figura literria convencional. Cada lngua possui algumas palavras e convenes que pertencem a uma linguagem arcaica e elevada e que indicam que tm a ver com a literatura, mesmo quando a pardia ou destruio desta mesma linguagem seja tambm discurso literrio. No obstante, nos expomos a um importante obstculo quando tratamos de limitar o efeito de literariedade de um texto presena de um repertrio de procedimentos lingsticos, pois todos esses elementos e procedimentos podem ser encontrados em outra parte, em textos no literrios. O prprio Jakobson reconhece que as aliteraes e outros procedimentos eufnicos3 so utilizados... pela linguagem falada no cotidiano. No nibus escutam-se brincadeiras baseadas nas mesmas figuras nas quais a poesia mais sutil, e os boatos freqentemente esto compostos de acordo com as leis que regem a composio das narrativas curtas... (1960, 353). Que quer dizer isto? Esta definio retoma em parte a noo tradicional de que o objeto esttico tem um valor em si, no est submetido a quaisquer fins utilitrios, mas possui o que Kant em sua Crtica da razo denomina a finalidade sem fim (Zweckmssigkeit ohne Zweck). Livre das delimitaes do discurso cotidiano, histricos e prticos, a obra literria situa-se de outra maneira (como veremos mais adiante) e pode produzir ambigidade, pode constituir-se como estrutura autnoma ligada ao exerccio da imaginao do autor e do leitor. Esta liberdade que pe em jogo algumas idias mestras da literariedade: a idia, por exemplo, de um discurso polivalente, no qual todos os sentidos de uma palavra (sobretudo as conotaes) podem entrar em jogo, ou a de um discurso portador de um sentido oculto, indireto e complementar, que seria o sentido mais importante. Assim, pois, contemplamos mais de perto a noo a funo potica da linguagem como o tom da linguagem por sua prpria conta. No se deve compreender tal coisa como uma autonomia, mas como uma relao especfica com outros elementos constituintes da situao lingstica. Se agendo uma entrevista com um amigo, s seis da tarde, de manh, em um caf, , o que essencial que, antes de tudo, a mensagem seja emitida com seriedade por mim e v destinada a ele pessoalmente, quer dizer, que no se trate de uma brincadeira, nem de um exemplo gramatical, que a mensagem no esteja destinada a nada mais, e que a hora e o lugar do encontra estejam fixados em referncia a um contexto geogrfico e temporal em que nos situamos. A forma da frase e as palavras especficas de que me sirvo so menos importantes, como tambm so as relaes com outros convites emitidos por mim e por outras pessoas antes desta. Em contrapartida, em um poema como Convidando um amigo para jantar, do poeta ingls Ben Johnson, o que se produz todo o contrrio: aqui, o que mais importa a estrutura das imagens e dos ritmos no texto; o contexto no qual se insere a mensagem o contexto de um gnero literrio, um certo lirismo do cotidiano, do que se desprende, no tom e no movimento do poema, uma viso dos valores que sustentam o modo de vida que se evoca. Shklovski fala da literatura como do caminho no qual o p sente a pedra, o caminho que regressa sobre si mesmo (1919, 115). A obra na est dirigida a um fim, mas isto no quer dizer que carea de determinaes. Na realidade, a obra se refere a seus prprios meios, ou seja, a evidncia da linguagem em um texto literrio uma maneira de desprend-lo de outros contextos (do momento e as circunstncias prticas do enunciado), de fazer do ato de linguagem que o texto pretendo cumprir (como o convite) um procedimento literrio e situ-lo em um contexto de textos e de procedimentos literrios. Voltamos agora, portanto, s afirmaes de Jakobson para quem os estudos literrios faro do procedimento seu personagem nico: qualquer discusso que se centra na literariedade no considerar o procedimento como um meio de expressar uma mensagem qualquer, mas como o protagonista, o sujeito do discurso literrio. Em um determinado nvel, o texto nos conta uma aventura puramente literria (formal). Ento temos de nos perguntar: o que faz aqui este encadeamento? Em que se converte o soneto? Em que consistem as combinaes de imagens e quais so os seus efeitos? Em vez de tratar um elemento formal a forma do soneto, por exemplo
3
5 como um meio para expressar a viso de um amante, pode-se contemplar este contedo como o meio de explorar ou de fazer avanar ou desviar o soneto. Este aspecto da literariedade, que tende a isolar o texto dos contextos prticos e histricos da sua produo, redefine, por oposio, o contexto como o contexto especfico da literatura. Neste contexto, escrever inscrever-se na tradio literria, e tem-se que explicar as obras de acordo com esta nica perspectiva. Toda obra literria se cria em referncia e em oposio a um modelo especfico que fornecem outras obras da tradio. As obras esto determinadas por estruturas convencionais por exemplo, os procedimentos para estabelecer a intriga. Shkolovski demonstra que a convencionalidade mora no miolo de toda obra, posto que as situaes esto livres de suas relaes cotidianas e se determinam segundo as leis de uma trama artstica dada! (1911, 118). Como indicamos, a forma da obra est determinada pelas formas literrias preexistentes. medida que a literatura, em seus vnculos com outros discursos literrios, um comentrio ou uma reflexo sobre a literatura, isto nos ajuda a ver o papel das estruturas lingsticas e retricas que tratamos anteriormente em nossa anlise da literariedade como evidncia da linguagem. Constatamos que o foregrounding [primeiro plano] apenas pode chegar a ser um critrio suficiente do literrio, visto que h repeties e aberraes tambm em outros textos. , melhor dizendo, o modo de integrao destas estruturas dizer, o estabelecimento de uma interdependncia funcional e unificadora de acordo com as normas da tradio do contexto literrio o que caracteriza a literatura. So os trs nveis ou os tipos de integrao que devemos contemplar. Em um primeiro nvel est a integrao das estruturas ou das relaes que, em outros discursos no tm funo alguma. Quando marco um encontro, na forma de minha mensagem se pode ignorar uma assonncia, uma aliterao ou um paralelismo. Precisamente porque o texto literrio no um discurso que comunique informaes prticas, mas porque est vinculado a uma situao de comunicao peculiar, na qual reina a conveno da importncia dos detalhes e das estruturas lingsticas, significa em vrios nveis de anlise. Em um poema, qualquer paralelismo coloca a questo das relaes semnticas entre seus componentes. Ali onde domina a fico potica da linguagem, a similaridade se converte no procedimento constitutivo da seqncia (Jakobson, 1960, 358) procedimento constitutivo no momento para o autor, que escolhe e rene os elementos em virtude de qualquer similaridade (fonolgica, morfolgica, sinttica ou semntica) e para o leitor, que deve considerar em que medida uma espcie de equivalncia se transforma em outra. Na Chanson dautomne, de Verlaine, as repeties de sons e de estruturas rtmicas Produzem aproximaes nos nveis semntico e temtico: Les sanglots longs Des violons De lautomne Blessent mon caeur Dune langueur Monotone [Os grandes soluos/ Dos violinos/ Do outono/ Ferem meu corao/ com uma languidez/ Montona.] O resultado desta estruturao efeito propriamente literrio consiste em fazer funcionar a capacidade da linguagem para produzir pensamento. As comparaes criam a idia, por exemplo, de um outono relacionado com os violinos, a idia de uma relao entre a languidez da estao, os soluos e talvez os ventos violentos que podem gemer como violinos. Em suma, a primeira classe de integrao a produo de efeitos semnticos e temticos mediante estruturas formais. A integrao em segundo nvel a da obra de arte completa: a conveno pela qual a obra literria h de ser um todo orgnico (Ingarden, 1931) e a que, em conseqncia, o sabor da interpretao consista em buscar e demonstrar essa unidade, uma das noes fundamentais da literariedade. Os formalistas russos falam da dominante que se apresenta em forma de um elemento ou de uma estrutura unificadora (s vezes uma figura, como o quiasmo) localizvel em todos os nveis (Jakobson, 1973, 145). Mas pouco freqente encontrar um s motivo que encarne a literariedade deste modo. O essencial que se suponha esta unidade e engendre um esforo para perceber como um momento ou um elemento do texto pode relacionar-se com outros, transforma-los, inclusive confront-los, e criar uma estrutura de conjunto. Esse aspecto da literatura se pe em evidncia de
6 maneira surpreendente em textos de aparncia fragmentria que exigem um esforo especial do leitor. Papyrus, de Ezra Pound, consiste em trs versos fragmentrios: Spring.../ Too long/ Gongola [Primavera/Muito tempo/Gongola] As convenes da literariedade incitam os leitores a conferir uma totalidade formal a este texto e a outorgar uma significao s ausncias que se revelam nele. Se tomamos Gongola como um nome prprio e se supomos uma relao entre Gongola e o que fala, as lacunas do poema acabam funcionando como signos da ausncia, da carncia, sobretudo na primavera. No que sempre se encontra a unidade que se busca, mas a suposio da unidade faz que apaream tenses e at contradies entre os elementos ou entre as estruturas em diferentes nveis. A linguagem da poesia a linguagem do paradoxo, declara um ilustre representante do New Criticism4 norte-americano (Brooks, 1947,3): a literatura, mediante o jogo das conotaes e a apresentao irnica dos discursos (os discursos do cotidiano e os discursos da literatura anterior), faz que se sinta at que ponto toda a reduo a uma posio ou a uma viso monolgica baseia-se em simplificaes. A linguagem da poesia procura os meios para o questionamento de proposies simplistas. Quando, por exemplo, se trata de definir a relao entre as dimenses constatativas e performativas do texto a relao entre o que ele diz e o que ele faz -, freqente tropear em dificuldades. Um exemplo clebre: o verso do poeta norte-americano Archibald Macleish, freqentemente citado pelo New Criticism, A poem should not mean, but be [Um poema no deveria significar mas ser], contrape ser e significar e, atravs disso, significa: faz que se veja que a oposio entre ser e significao mais complicada do que se supunha anteriormente. Mas a presuno de unidade este segundo nvel de integrao que faz que surjam as dissonncias e se produzam muitos efeitos literrios deste gnero. Em um terceiro nvel de integrao, a obra significa muito em relao ao contexto literrio: em sua relao com os procedimentos e convenes, com os gneros literrios, com os cdigos e modelos pelos quais a literatura permite aos leitores interpretar o mundo. Neste nvel, o texto literrio oferece sempre um comentrio sobre uma leitura implcita (Iser, 1972) ou pode se interpretado como uma alegoria da leitura, uma reflexo sobre as dificuldades da interpretao (De Man, 1979). A possibilidade de ler um texto literrio como uma reflexo sobre sua prpria natureza e sobre a natureza da literatura, faz da literatura um discurso auto-reflexivo, um discurso que, implicitamente (por causa de sua situao de comunicao adiada), conta algo interessante sobre sua prpria atividade significativa. Isto no quer dizer que se explique o texto inteiramente ou se domine plenamente: pelo contrrio, as investigaes recentes indicam que h sempre aspectos do funcionamento do texto que escapam reflexo ou definio. Neste sentido, o tema profundo da literatura sempre a impossibilidade da literatura, essa perseguio do absoluto literrio de certa maneira o fracasso (Blanchot, 1955). Mas para voltar s formas mais familiares que traduzem a prtica mediante a qual os autores buscam renovar e fazer progredir a literatura, esta uma crtica da literatura da noo de literatura que ele herda-, e nisto, a literariedade um tipo de reflexividade. O atual debate sobre literariedade oscila entre uma definio das propriedades dos textos (da organizao do texto) e uma definio das convenes e pressupostos com os quais se aborda o texto literrio. Estas duas perspectivas no so de modo algum idnticas, nem tampouco se pode supor que estejam em contradio. Na realidade, a natureza da linguagem e dos fenmenos culturais exige essa alternncia de perspectivas: s em relao a um conjunto de convenes, em um ou outro nvel, em um o outro nvel, como uma srie de marcas ou uma seqncia sonora esto dotadas de propriedades. No obstante, essa alternncia de perspectivas cria problemas para uma delimitao da literatura. Por uma parte, est claro que a noo de literariedade uma funo das relaes diferenciais do discurso literrio e de outros discursos, mais que uma qualidade intrnseca. Se se toma um fragmento de prosa periodstica e se dispe em uma pgina em forma de poema, vemos surgir algumas qualidades que esto no texto, mas que so uma funo das novas convenes que se aplicam a ele:
4
O New Criticism um movimento inicial da teoria literria surgido nos anos 20 nos Estados Unidos. Ele prope a separao do texto e do autor a fim de que o texto que seja objeto em si mesmo. Rompe com biografismo da crtica de ento, mas rejeita tambm a anlise literria a partir de contextos sociais ou culturais. Por isso dizemos que se enquadra na Corrente Textualista dos estudos literrios. Um dos conceitos mais conhecidos destes tericos o Close Reading, leitura analtica e minuciosa do texto preconizada por Elliot. Colhida em: http://pt.wikipedia.org/wiki/New_Criticism (N.T) .
7 Hier sur la Nationale sept Une automobile Roulant cent lheure sest jete Sur un platane Ses quatre occupants ont t Tus. (Genette, 1969, 150) [Ontem, na estrada nacional sete,/Um automvel/ A cem por hora lanou-se/Contra um pltano/Seus quatro ocupantes foram/Mortos.] Os diversos dados mudam de aspecto. Ontem j no se relaciona somente com uma data, mas com todos os ontens e, em conseqncia, conota um acontecimento freqente, no extraordinrio. Lanou-se adquire uma nova fora, como se o carro tivesse vontade prpria, e se escuta o esmagamento do pltano. O estilo de reportagem e a escassez de detalhes podem inclusive indicar uma atitude de resignao. Em outro nvel, se poderia na eleio do tema um comentrio sobre o lirismo hoje, em que a tragdia adquire esta forma banal. Estas interpretaes literrias so o resultado de uma orientao crtica que contempla esse discurso como se fosse literatura. Precisamente porque isso possvel, necessrio refletir sobre o que literariedade. Mas, por outro lado, cada vez que se identifica uma certa literariedade, se constata que estes tipos de organizaes encontram-se em outros discursos, at quando no se trata esse discurso como se fosse literatura. Jakobson mesmo cita como exemplo da funo potica da linguagem um lema norte-americano da campanha presidencial de Eisenhower em 1954, I Like Ike [Eu gosto do Ike]: h aqui uma repetio paronomstica muito acentuada na qual o sujeito do gosto e o objeto do gosto esto inteiramente envoltos pelo ato de gostar (Like contm I e Ike), como se fosse inevitvel, inscrito at na lngua, que I like Ike (1960,357). Temos que observar que em toda uma srie de investigaes tericas atuais em campos to diferentes como a antropologia,a psicanlise, a filosofia e a histria - tm encontrado uma certa literariedade em fenmenos no literrios. Os estudos de Sigmund Freud e de Jacques Lacan demonstraram, por exemplo, o papel constitutivo no funcionamento da psique de uma lgica da significao mais diretamente observvel na poesia. Jacques Derrida mostra a centralidade inquestionvel da metfora no discurso filosfico. Claude-Levi Strauss descreveu uma lgica do concreto que atua nos mitos e no totemismo, lgica que se parece com o jogo de oposies (macho/fmea, terrestre/celeste, moreno/loiro, sol/lua) da temtica literria. como se cada procedimento e cada espcie de estrutura que poderiam parecer essencialmente literrios, encontram-se tambm em outros discursos. Esta constatao seria desesperante se o objetivo das investigaes sobre a natureza da literatura consistisse unicamente em distinguir a literatura do que no , mas medida em que a finalidade consiste em identificar o que importante na literatura, a busca da literariedade nos mostra at que ponto a literariedade pode iluminar outros fenmenos culturais e revelar mecanismos semiticos fundamentais. A outra concepo da literariedade, representada por velhos lemas como a frmula de Sir Philip Sydney segundo a qual o poeta no afirma nada e portanto no mente, pem a tnica em uma relao particular do discurso com a realidade: estas proposies referem-se a pessoas e acontecimentos imaginrios mais que histricos. Este caminho no consegue captar o critrio distintivo da literatura haja vista que no discurso h outras instncias da fico. Enunciados que pertencem lingstica e filosofia pem em cena personagens fictcios Le roi actuel de la France est chauve, John is eager to please [O rei atual da Frana calvo. Joo est ansioso por agradar] como fazem toda parbola e todo cenrio hipottico. Mas estas observaes no minimizam a importncia dos esforos para definir as relaes da literatura com a realidade. A ficcionalidade no se limita a personagens, situaes e acontecimentos imaginrios. No [dizer] unicamente que Anna Karenina, don Quixote e Hans Castorp no existam; um eu de um poema no designa tampouco um indivduo emprico em um dado momento, mas um sujeito criado no e pelo poema: Jai plus de souvenirs que si javais mille ans5, o primeiro
5
SPLEEN
8 verso de Spleen de Baudelaire, no uma proposio sobre o Charles Baudelaire que escreveu Flores de Mal. Neste sentido, a obra literria um acontecimento semntico: projeta um mundo imaginrio, que abarca os narradores e os leitores implcitos. Mas esta concepo de literatura como fico no de todo exata, posto que as obras literrias tambm pem em cena realidades histricas e psicolgicas Napoleo, a batalha de Waterloo, as condies de trabalho dos trabalhadores das minas, o sentimento de cimes de um menino mimado etc. Podemos ento dizer que a obra se refere mais a um mundo possvel entre vrios mundos possveis do que a um mundo imaginrio. Para expor melhor as implicaes desta ficcionalidade, alguns tericos, em vez de dizerem que a obra se refere a um mundo de fico, querem dizer que o ato de referncia em si fictcio. Como ato de linguagem, a obra literria imitao de um ato de linguagem srio, na qual o locutor responsvel pelas proposies que emite, pelas promessas que fez, etc. Por esta perspectiva, a fico se entende em relao com o discurso natural ou no fictcio o qual imita6. A ficcionalidade essencial das obras literrias no se h de descobrir na ausncia de realidade dos personagens, objetos e acontecimentos aos quais se referem, mas na realidade do prprio ato de referncia (Smith, 1978, 11). Assim, em um romance, o ato de narrar os acontecimentos, de descrever os personagens e de referir-se aos lugares que fictcio. O romance representa o ato de algum que descreve, que conta feitos etc. A mimese da literatura no consistiria tanto na imitao dos personagens e dos acontecimentos como na imitao dos discursos naturais, dos atos de linguagem srios. Os romances seriam as instncias fictcias de diversos tipos de livros - crnicas, dirios, memrias, biografias, histrias e at colees de cartas. O novelista faz crer que escreve uma biografia, mas o que faz fabricar uma (Smith, 1978, 30). O terico espanhol Martinez-Bonati vai mais longe que os signos chamados lingsticos de uma obra na realidade so imitaes fictcias, e no verdadeiramente lingsticas, dos signos propriamente lingsticos (1981,81). H romances que efetivamente nos levam a crer que so biografias ou colees de cartas, ou que pem em cena um personagem que simula contar sua vida, ma na maior parte dos casos o texto literrios, a ficcionalidade no de modo algum a qualidade essencial que distingue um romance de uma biografia. Smith entende que ao escrever A Morte de Ivan Ilich Tolstoi faz crer que escreve uma biografia, mas na verdade fabrica
Uma cmoda imensa atulhada de planos, Versos, cartas de amor, romances escrituras, Com grossos cachos de cabelo entre as faturas, Guarda menos segredos que o meu corao. uma pirmide, um fantstico poro, E jazigo no h que mais mortos possua. - Eu sou um cemitrio odiado pela lua, Onde, como remorsos, vermes atrevidos Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos. Sou como um camarim onde h rosas fanadas, Em meio a um turbilho de modas j passadas, Onde os tristes pastis de um Boucher desbotado Ainda aspiram o odor de um frasco destampado. Nada iguala o arrastar-se dos trpegos dias, Quando, sob o rigor das brancas invernias, O tdio, taciturno exlio da vontade, Assume as propores da prpria eternidade. - Doravante hs de ser, pobre e humano escombro! Um granito aoitado por ondas de assombro, A dormir nos confins de um Saara brumoso; Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso, Esquecida no mapa, e cujo spero humor Canta apenas os raios do sol a se pr. Fonte: http://geocities.yahoo.com.br/edterranova/baudelapoe76.htm em 16/3/2006. 6 Observamos uma situao peculiar na qual os tericos da literatura ou da literariedade como fico definem a literatura como imitao de um discurso no fictcio, e os analistas dos discursos no fictcios (o relato da Historia, por exemplo) mostram que temos de compreend-los em relao ao discurso literrio. A inteligibilidade da histria no depender da uma causalidade cientfica, mas da maneira que os elementos do relato se sucedem e se vinculam para formar um todo segundo os modelos do gnero literrio. Este outro exemplo de um campo em que os discursos literrios funcionam segundo estruturas e procedimentos que se manifestam mais explicitamente na literatura.
9 uma, embora ao contrrio Tolstoi no simula nada. Longe de fabricar um escrito que parea uma biografia, Tolstoi vale-se de procedimentos que seriam ilegtimos em uma biografia e que so prprios do romance. Ilich est escrito em terceira pessoa e, naturalmente vemos o mundo segundo o seu ponto de vista, e seguimos o ponto de vista do protagonista no momento de sua morte. Kte Hamburger (1968) distingue a literatura dos demais discursos pela capacidade que ela tem de apresentar um mundo, includa a experincia anterior, a partir do ponto de vista de um personagem que est representando em terceira pessoa. O indcio desta literariedade um tipo de frase propriamente literria, Morgen war Weihnachten [Amanh era natal], na qual os elementos diticos (manh, ontem, aqui, l, voc) esto definidos em relao a uma subjetividade (do personagem) que est situado no passado ma no presente da enunciao. Martinez-Bonati refere-se tambm a modos de discurso da fico que no so a imitao de um ato cotidiano supostamente real (1981, 104). Assim, h boas razes para supor que a literatura no uma imitao fictcia dos atos de linguagem no fictcios e srios, mas um ato de linguagem especfico como, por exemplo, contar uma histria. Por este caminho chegamos a uma concluso que j foi abordada no princpio de outra forma: que o discurso literrio para possuir condies de enunciao diferentes de outros atos lingsticos, se relaciona com condies especficas. Mas quais so essas condies e, em particular, qual a relao entre estes atos de linguagem do relato literrio e dos relatos no literrios? Pergunta essencial para uma literatura vinculada ficcionalidade. Mary Louise Pratt, que se ope idia de uma linguagem literria distinta, insiste na importncia que teria contemplar as narraes literrias como membros de uma classe de textos narrativos de exibio [narrative display texts] , classe que abarcaria a todo relato de acontecimentos apresentados como inslitos, interessantes, destinados a divertir, e nos quais se consideraria que o destinatrio reconhece que a pertinncia do relato no est nas informaes que este prope, mas no fato de que seja contvel [tellable] (1977, 148). Nesta classe, os relatos literrios se beneficiam dos mecanismos da seleo - edio, crtica literria, ensino que criam, frente a estes relatos, um princpio de cooperatividade hiperprotegida [hyper-protected cooperativa principle] e permitem ao leitor acreditar que podem resultar dele uma comunicao interessante. Para compreender este princpio de cooperatividade, temos que notar que se pressupe uma cooperao que sustenta e faz possvel a comunicao comum: assim, em geral, pressupe-se que nosso interlocutor se coloca em uma atitude de cooperao e que sua resposta ser pertinente com respeito questo proposta (se me convidam ao cinema e eu respondo faz um bom dia, o princpio de cooperatividade nos autoriza a encontrar a pertinncia dessa resposta). Em nossas relaes cotidianas, s vezes decidimos [coisas] muitos apressadamente que os detalhes e as digresses do relato que algum nos faz no so pertinentes e que nosso interlocutor viola o princpio da cooperatividade. Mas em literatura, este princpio est hiper-protegido, no sentido de que pressupomos a pertinncia e o valor dos momentos obscuros, anormais e digressivos. Quando o relato literrio parece que no obedece s regras da comunicao eficaz, que est a servio de uma comunicao diferente e indireta.Teramos que acumular uma imensa soma de incompreenses e de frustraes frente a um texto para que podermos decidir que no h solicitao de comunicao cooperativa, pois em literatura at a impertinncia dos detalhes pode ser um componente significativo da arte. Em suma, o que distingue A Morte em Veneza do relato da morte de um homem mais velho que desejava um rapaz sobretudo que temos boas razes para supor que o primeiro relato ser mais rico, complexo, valer a pena ouvi-lo ou l-lo, ter uma unidade e demais propriedades da literariedade das quais nos ocupamos anteriormente. Portanto, vemos que uma discusso sobre a ficcionalidade dos atos literrios de linguagem nos levam a essas pressuposies da literariedade que nos fazem buscar e encontrar na obra uma organizao complexa e intensa da linguagem. Isto no quer dizer que tenhamos resolvido o problema da literariedade; no encontramos um critrio distintivo o suficiente que possa definir, o que significa simplesmente que todas as buscas que procura isolar os elementos e as convenes determinantes para produzir literatura coincidem e propem juntas meios importante para os estudos literrios. In ANGENOT, Marc et alii. Teoria Literaria. Madrid: Siglo veintiuno editores: 1993, pp. 36-50. Traduo: Manoel Francisco Guaranha.