As Mulatas Que Não Estão No Mapa
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Resumo
Quem a baiana? No h uma resposta simples para essa questo, mas refletir sobre o Circuito Sexual do Turismo em Salvador pode nos ajudar. As baianas so consideradas as morenas-jambo, por sua cor de pele. Este artigo trata das mulheres negras e como o mercado de corpos interfere na construo de suas identidades, criando sonhos e alimentando as fantasias masculinas sobre a mulher brasileira.
Recebido para publicao em abril de 196. Este artigo indito e faz parte de um conjunto de textos que serviro de base para a minha dissertao de Mestrado na Universidade Federal da Bahia, cujo ttulo provisrio : Algumas representaes em torno da imagem da morena-jambo como produto do Turismo Sexual em Salvador. Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS, da Universidade Estadual da Bahia UNEB e mestrando em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia UFBa.
Este trabalho, antes de ser uma discusso sobre identidade racial e a condio da mulher brasileira como mercadoria no comrcio internacional do sexo, surgiu como uma reflexo inicial sobre o Circuito do Turismo Sexual em Salvador. Referimo-nos a lugares, eventos e agentes que movimentam o comrcio do sexo na capital baiana, tendo como pblico preferencial os turistas estrangeiros ou gringos. Estes chegam em busca de aventuras com mulheres nativas, que lhes foram apresentadas geralmente atravs de material de propaganda. Como se organiza esse mercado? Quem so seus principais atores? Que construes acabam sendo criadas em torno da morena-jambo1, freqentemente associada, por turistas e agentes, imagem da nativa baiana? Como dar conta desse fenmeno associando-o rede de relaes engendrada pela mundializao das sociedades? o que tentaremos responder a seguir. A cidade de Salvador e a sua Regio Metropolitana (RMS), possuem vrios pontos de atrao turstica e alguns deles se destacam como os preferidos pelos visitantes pelos visitantes estrangeiros. Para efeito de organizao espacial, quando da nossa primeira incurso a campo, dividimos essas localidades em Distritos tursticos, que seriam: a Barra, o Centro Histrico (onde est situado o Pelourinho), a Orla Martima (Ondina-Itapu), Linha Verde e Ilha de Itaparica. Nestes lugares existem hotis, apartamentos para aluguel por temporada (3 meses), pousadas, bares, restaurantes, casas de shows, night clubs, saunas, casas de massagem for man e as principais praias que, alm de abrigar a maior parte das festas populares, principalmente no vero, atraem milhares de turistas. Salvador conhecida, tambm, como a cidade onde todo dia dia de festa. Exageros a parte, alguns eventos, alm do carnaval, tornam bastante peculiar a noo de lazer para os soteropolitanos a tera da beno, por exemplo, uma festa fixa que ocorre todas as semanas no Centro Histrico, atraindo um grande nmero de nativos e turistas. Com isso, a cidade se torna referncia quase obrigatria para a maioria dos visitantes brasileiros e estrangeiros que escolhem o
Mulheres negras, com cabelos compridos, alisados, encaracolados ou tranados (naturais ou artificiais), que constrem um esteretipo muito prximo das mulatas denominadas tipo exportao por Osvaldo Sargentelli, no seu famoso show ba, ba.
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Nordeste como destino de frias. Esta imagem no s cultuada, como tambm trabalhada pelo marketing turstico e um dos maiores smbolos dessa propaganda a mulher, presente em quase todos os cartazes, anncios em catlogos, vdeos e mensagens sobre a Bahia, veiculados dentro e fora do pas. De acordo com o nosso primeiro levantamento, de 1982 a 1996, na maior parte dessas peas publicitrias, as mulheres mostradas so negras ou mulatas vestidas com trajes tpicos, mais, biqunis ou fazendo top less e os textos convidam as pessoas para desfrutar as delcias da terra da felicidade e da festa. Alm de lugares e eventos, existem tambm as agentes, que chamaremos aqui de diretos e indiretos. So eles que fazem funcionar o comrcio do corpo feminino entre turistas e baianas ao facilitar o contato entre gringos e garotas de programa ou mulheres que de forma avulsa, se aventuram ao sair da periferia, do subrbio e outros bolses de pobreza da cidade, para encontrar um marido que poderia lev-las para fora do pas. Denominaremos tambm os agentes indiretos de agenciadores. Eles seriam: porteiros de prdios e hotis, taxistas, guias tursticos, agentes de viagem, donos de bares, restaurantes, night clubs e casas de massagem, alm de cafetes e cafetinas, a maioria com contatos no exterior. Muitos deles so, tambm, estrangeiros. As mulheres seriam os agentes diretos. A partir das observaes em locais estratgicos da cidade, como o Centro Histrico e a Barra, e de alguns depoimentos dessas pessoas, montamos o Circuito e identificamos as rotas, as funes de cada um, os dramas, as cifras e, principalmente, o cotidiano dessas mulheres negras ou, eventualmente, morenas-jambo. Entendemos que de fundamental importncia, para a anlise deste fenmeno, saber quem so elas, o que pensam, como vivem e porque esto ganhando a vida desta maneira. Tambm consideramos relevante traar um perfil inicial dos turistas, o principal motivo da existncia desse comrcio. Apesar de serem ainda escassos, os dados que dispomos permitem dizer que elas so pobres, tm entre 18 e 28 anos, algumas trabalham durante o dia como empregadas domsticas ou diaristas, residem em regies de baixa renda em Salvador ou em agncias apartamentos alugados por agenciadores em bairros de classe mdia e
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lugares mais sofisticados. Muitas vm do interior do estado ou de outras regies pobres do Brasil. Ivana, Flvia e Suelen so exemplos claros dentro do quadro que estamos tentando mostrar. A primeira do interior da Bahia, tem 22 anos, considerada mulata na comunidade onde vive, a Gamboa de Baixo, uma das favelas da cidade. Faz servios como diarista e a noite est sempre no Pelourinho acompanhada de outras duas mulheres. Ela j morou um tempo na Alemanha, com um homem que a levou para passar uma temporada. No entanto ele encaminhou-a para a prostituio, obrigando-a a sair com outros homens. Ivana conseguiu fugir com a ajuda de um francs, cujo endereo ela guardou para uma emergncia eles haviam se conhecido durante um vero. Ele levou-a para a Frana, mas os problemas no visto fizeram com que ela retornasse para o Brasil. No momento, espera permisso da embaixada para viajar e, segundo ela, se casar com esse homem. Outra situao tpica desse universo a de Flvia, que usa o codinome ris nos anncios de acompanhamentos e massagistas do jornal A Tarde. L, diz que ela morena-jambo e atende priv (no apartamento) e em hotis. Ela negra, tem 19 anos e os cabelos alisados com gel. Mora num apartamento com uma amiga na Barra mas, antes disso, vivia numa agncia. L era muito ruim. A gente tinha que dar quase tudo pro cara [o dono da agncia]. D pra passar at fome. Se uma menina [elas usam muito esta denominao para falar delas mesmas] fatura a grana do ms sozinha e as outras no fazem caixa, ela tem que entregar tudo e ficar zero. Agora, segundo ela, a vida ficou melhor, s tem que dividir com a amiga. Atende em casa ou no Praiamar Hotel, um dos maiores e mais procurados de Salvador. S vou com gringos. Perguntada se gosta do que faz, disse que no, mas a gente tem que ganhar a vida. Antes de ser garota de programa ela estudava, mas quando a me a abandonou, indo para So Paulo, deixando-a adolescente, com quinze anos, no teve escolha, foi trabalhar. Convidada por uma colega de escola para ganhar mais foi parar na agncia. Flvia, como a maioria dessas mulheres, veio da periferia. Passei minha infncia toda ali, em
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frente a Unimar de Pernambus bairro pobre da regio norte da cidade. O caso Suelen 25 anos, cabelos compridos com tranas artificiais ou mega hair caracteriza bem a idia de construo qual se submetem e so submetidas as mulheres negras do Circuito. Ela no baiana, veio do Mato Grosso, para trabalhar como garonete, trazida por um caminhoneiro, mas foi enganada e colocada numa agncia. No gosta de falar sobre o seu verdadeiro nome: esse pra chamar os gringos. Questionada sobre sua cor, disse saber que no morenajambo, como est nos jornais A Tarde e Bahia Hoje. Afirma ser negra com av ndia. Trabalho assim pra ganhar dinheiro. Agora, tem uma proposta para deixar o pas: um alemo vem me buscar. Quando morava em Cuiab, vivia com os pais e trabalhava num pequeno comrcio mas, segundo nos revelou, a vida era muito dura e ela fugiu. Hoje, ganha 50 reais por programa a divide uma kitchenette com mais duas mulheres. As justificativas dadas por essas mulheres para o fato de preferirem os estrangeiros, principalmente os europeus, so as mais diversas: eles podem se engraar pela gente e levar embora; eles so assim... bonitos, do olho azul, loiros e gostam de dar presentes. Assim, da mesma forma que Suelen, Flvia e Ivana, outras mulheres com as mesmas caractersticas fsicas e com identidades civis e tnicas falseadas por esse sexmarketing vm acrescentando novas feies ao turismo na Bahia. Quanto aos turistas, fizemos levantamentos junto Bahiatursa (Empresa de Turismo da Bahia) obtendo um perfil preliminar e estatstico. A maioria tem idade entre 25 e 55 anos, trabalha em profisses mdias como funcionrios pblicos, empregados da construo civil, industririos, pequenos comerciantes e at estudantes. Segundo os relatrios dos anos de 1993 a 1995, a propaganda feita nos pases de origem foi responsvel pela vinda de grande parte dos homens desta faixa etria para Salvador. Geralmente ganham acima de 2000 dlares, viajam sozinhos ou com amigos, permanecem na cidade de 4 a 15 dias, se hospedam em hotis credenciados pela Embratur ou em apartamentos por temporada. Quando falam das mulheres da Bahia referem-se a elas como quentes, carinhosas e sensuais. Segundo depoimentos algumas delas se satisfazem com uma simples lembrana.
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A dificuldade maior para analisar esses dados reside no fato de que pouco, ou quase nada, se produziu sobre assuntos tratados at aqui, isto , o Turismo Sexual e a construo de um modelo de beleza feminino na Bahia como objeto de consumo opor parte de turistas estrangeiros. Tambm pequena ou inexistente, a produo que relaciona esses fenmenos com outros, a exemplo da mundializao, nas sociedades contemporneas. As primeiras referncias utilizadas para fazer essa anlise vieram dos trabalhos de Castro2 e Santos.3 esses dois autores discutem, respectivamente, em artigo e livro, a mulata como modelo de beleza mestia brasileira, os caminhos para a concretizao dessa idia e como essa construo feita. A discusso colocada por Santos se prenda busca de uma identidade nacional a partir de determinados elementos presentes no que poderamos chamar de inconsciente brasileiro. Ele se utiliza da literatura para mostrar as construes que so feitas sobre o Brasil a partir de romances e personagens, como o caso da mulata. Em alguns momentos ele parece perguntar se essa tambm seria uma recriao dos modelos de beleza europeu, porm com corpo e cor brasileiros. Castro investe em discusses como a de Giacomini,4para quem existiria um corpo legtimo, que no necessariamente seria coincidente com o corpo real das mulheres de ascendncia africana. Sua pesquisa aponta ainda que muitas candidatas ao status de mulatas do Sargentelli perde o a vaga dos cursos oferecidos em sua empresa de shows, por no estarem dentro de alguns pr-requisitos indispensveis : corpo de violo, bundinha empinada e cintura fina. Ou entram nos padres ou no servem como mulatas tipo exportao. Isso fica claro num dos depoimentos de uma aluna do curso: mulata um corpo construdo.
CASTRO, Mary.Mulher Negra, Resistncia e Cidadania. E o lugar da mulata. Salvador, mimeo.,1996. 3 SOUZA, Otvio. Fantasia de Brasil: As identificaes na Busca da Identidade Nacional. So Paulo, Escuta, 1994. 4 Ver esta discusso ampliada em Castro, Mary. Op.cit.
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Fenmeno semelhante a esse comea a surgir em Salvador com a expanso do Turismo Sexual. Os alemes, por exemplo, chegam a pagar por um pacote de quinze dias, o equivalente a 10 mil marcos para conhecer e namorar mulheres baianas, preferencialmente negras ou mulatas, que apresentem as caractersticas daquelas que lhes foram mostradas, em books, vdeos ou catlogos, por agenciadores do eixo Europa-Brasil. Nesse caso, tambm, os pr-requisitos exigidos para as mulatas de Sargentelli fazem parte dos contratos. S que, em salvador, esse esteritipo recai sobre as mulheres denominadas pelo Circuito como morenas-jambo. O fato que as mulatas do ba-ba de Osvaldo Sargentelli se esmerarem para se diferenciar das outras mulheres de ascendncia africana, como tambm a produo qual se submetem as baianas que trabalham no Circuito ou quelas que sonham vier na Europa casadas ou como danarinas remete a alguns questionamentos acerca da identidade de si, ou seja, como se vem a si mesmas, essas mulheres, bem como a identidade pelo outro, isto , por aqueles que as querem como esposas e/ou como objetos de desejo descartveis. Certamente, pela precariedade dos dados sistematizados at o momento, a denominao morena-jambo, utilizada por agentes diretos ou indiretos do Circuito, ainda um caminho muito seguro para fazermos as conexes que nos propusemos inicialmente, porm, este termo parece estar intimamente relacionado com ambos os questionamentos mencionados no pargrafo anterior, pois serve de libi e de propaganda para as mulheres e seus donos, bem como, de estmulo para quem chega cidade em busca do produto que lhe foi anunciado. Os casos de Ivana, Flvia, Suelen mostram, com bastante propriedade, a importncia da manuteno dessa construo para o Circuito. Elas no escondem o fato de serem negras ou cafuzas, como o caso de Suelen , mas como tem sada com os gringos e como agrada o jogo aceito e, circunstancialmente, introjetado. Por outro lado, no difcil antever a imagem da mulher brasileira-baiana-tpica pode tambm ser construda pelos consumidores do turismo sexual donos de boates no exterior e cafetes de toda espcie. As prprias empresas estatais, responsveis pela divulgao do Brasil l fora, colocam, em grande parte dos seus
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anncios, imagens de mulheres a maioria mulatas ou negras vestidas em trajes sumrios, roupas tpicas (baianas de acaraj ou vestidas de orixs) e at nuas. Pesquisando em cartazes, folders, catlogos da Embratur e da Bahiatursa constatamos essa prtica. Mesmo as empresas sem a vinculao com a indstria turstica lanam mo desses artifcios, a exemplo da Copene (Companhia Petroqumica do Nordeste) que, num catlogo enviado ao exterior para anunciar investimentos disponveis na rea petroqumica e uma parceria com o projeto Tamar na preservao das tartarugas marinhas, colocou a foto de uma mulher - mulata de biquni. No entanto, as empresas privadas legalizadas e as agncias clandestinas de Turismo Sexual so as maiores responsveis pela expanso da idia de que a morena-jambo uma mulher tpica da Bahia. Existe uma verdadeira indstria desse tipo de material publicitrio e, alm das suas formas usuais j citadas, so feitos vdeos, que so mostrados aos interessados ainda nos seus pases de origem. Em todos esses caos a mulata e a morena-jambo so vistas como parte dos atrativos naturais da Bahia. Para aproximar esses fatos e a discusso da identidade, associada as idias de consumo e desejo, no Circuito do Turismo Sexual em Salvador, as posies de Renato Ortiz5, Boaventura de Souza Santos 6 e Luciano Zadsznajder7, embora apresentem alguns pontos conflitantes entre si, serviram como um segunda base de apoio terico para analisar as conseqncias da expanso de produtos mundializados fora dos moldes tradicionais. Ao falar de produtos mundializados podemos comear com a discusso de Ortiz acerca da mundializao da cultura. Para ele, devemos estar atentos s perspectivas que nos impe a mundializao, j que esse fenmeno traz consigo a necessidade da releitura de outros como: os meios de comunicao de massa, a cultura de massa, as conseqncias devastadoras da publicidade sem
ORTIZ,Renato. Mundializao e Cultura. So Paulo, Brasiliense, 1994. SANTOS<Boaventura de Souza. Pela Mo de Alice:O Social e o poltico na Psmodernidade. So Paulo, Cortez, 1995. 7 ZADSZNAJDER, Luciano. A Travessia do Ps-moderno. Rio de Janeiro, Gryphus, 1992.
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fronteiras, alm da multiplicao de signos, smbolos e emblemas que circulam pelo mundo desterritorializados. Embora tenha insistido na contraposio entre mundializao da cultura e cultura nacional, relegando a discusso sobre a Globalizao a um segundo plano, Ortiz traz luz discusses fundamentais, presente em boa parte da literatura das Cincias Sociais contempornea, quando se trata deste tema. A noo de consumo existente hoje, por exemplo, vista por ele como oposta a toda e qualquer concepo tradicional: Uma tica do consumo no deriva apenas de necessidades econmicas. preciso que ela se ajuste s relaes determinadas pela sociedade envolvente e, simultaneamente, seja compartilhada pelos seus membros. Com o advento da sociedade urbano-industrial, a noo de pessoa j no mais se encontra centrada na tradio. Os laos de solidariedade se rompem. O anonimato das grandes cidades e o capitalismo corporativo pulveriza as relaes sociais existentes, deixando os indivduos soltos na malha social8. O indivduo no decidiria mais sobre o seu destino de consumidor de bens materiais e imateriais, pois os produtos em que ele deposita os desejos mais intensos viriam possivelmente de outra cultuar, situada a milhas de distncia. Fora da esfera cultural-local e , por conseqncia, como afirma Giddens9, desencaixados de um contexto tradicional de consumo. A desterritorizao dos objetos e das relaes sociais contemporneas, discutidas na perspectivas de Boaventura, Giddens e do prprio Ortiz, no deixariam os indivduos apenas soltos, mas tambm rfos de razes e talvez mais propensos a experimentar o extico com menos reservas. A noo de compartilhar ganharia novas caractersticas e a mundialidade passaria a fazer parte do cotidiano de todas as sociedades sem fronteiras para a linguagem, os costumes e os nacionalismos exacerbados. Com essa dinmica cresceriam, e se tornariam quase institucionalizados, alguns fenmenos das sociedades industrializadas neste final de sculo. Comprar companhia, sexo e drogas num pacote
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de frias, ou escolher o ltimo modelo de carro par satisfazer um desejo de consumo, seria mais uma conseqncia desse novo mercado mundial. Mais especficas ainda seriam as escolhas por tipos, como por exemplo: mulher, negra brasileira, baiana. Tudo isso revela, em princpio, uma circularidade de informaes sobre culturas almfronteiras, propiciando a incluso no apenas de objetos, mas de pessoas, como artigos de consumo mundializados. Um exemplo desse comportamento de mercado o turismo. Como uma indstria, este setor veicula os seus produtos com muita liberdade dentro da sociedade de massa, isentando-se de responsabilidades e repercusses acerca de suas propagandas. Como conseqncia, tem-se uma absoro predatria, tanto nos pontos de vista econmico e ecolgico, como tambm na perspectiva sciocultural.10 H evidncias de um consumo crescente de que poderamos chamar de subprodutos da indstria turstica do Brasil o Turismo sexual seria um deles. Portanto, uma tica do consumo, como prope Ortiz, pode estar bem mais distante de ser alcanada do que se pode imaginar. Existem outros componentes que tambm precisam ser analisados nessa discusso, pois no apenas o consumo que determina as relaes que neles se engendram. A questo das fronteiras nas sociedades atuais fundamental para o entendimento da proposta inicial deste trabalho e, nesse sentido, Boaventura fornece um radiografia dos sujeitos reais e semi-virtualizados pelas relaes sociais que somos chamados a viver neste final de milnio. Este autor chama a ateno para a emergncia de uma nova leitura acerca das culturas a partir de trs orientaes metodolgicas: A primeira que, no sendo nenhuma cultura autocontida, os seus limites nunca coincidem com os limites do Estado; (...). A segunda que no sendo autocontida, nenhuma cultura indiscriminadamente aberta. Tem aberturas especficas, (...) . Finalmente, a terceira orientao metodolgica que a cultura de um grupo social no uma
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essncia. uma autocriao, uma negociao de sentidos que ocorre no sistema mundial e que, como tal, no compreensvel sem a anlise da trajetria histrica e da posio desse grupo no sistema mundial.11 Com isso, ele inclui a cultura como um dado a priori na discusso, tanto nas identidades, como nas possibilidades de exerc-las alm das fronteiras meramente territoriais. A internacionalizao do turismo brasileiro tem sido responsvel por essas aproximaes interculturais sob a gide da Globalizao e os plos receptores tm sofrido conseqncias de uma poltica desordenada de ocupao de espaos de lazer no pas.12 Num trabalho recente para o FIZ-Dritte Welt/ CHAME/UFBA, que estuda o trfico de mulheres no eixo Brasil-Sua, constatamos, por exemplo, que o fluxo turstico para Salvador tem se aproximado bastante do movimento domstico entre Bahia e outros estados. Em 1995, os mercados internacionais que, mais enviavam turistas para Salvador, em termos percentuais, foram a Alemanha, 19, 5%, Argentina, 17, 3%, Itlia, 10, 1%, Frana, 8, 3%, Espanha, 7, 5% e Estados Unidos, 6, 5%. Outros dados significativos para a nossa discusso mostram que a grande maioria dos visitantes estrangeiros que chegam Bahia, passando ou ficando em Salvador, so homens dentro do perfil citado anteriormente.13 Essa pesquisa ganha contornos qualitativos quando confrontada com uma srie de artigos que tm sido publicados no Brasil sobre quem so e o que desejam esses turistas quando cruzam nossas fronteiras. Esses trabalhos 14tm mostrado uma realidade de explorao, fantasias, dinheiro, sobrevivncia, desejos e encanto com o extico.
SANTOS, Boaventura de Souza. Op. cit.,p.118. SANTOS, Boaventura de Souza. Op. cit., p.148. 13 Dados retirados do Relatrio da Gerncia de Estudos Econmicos da Bahiatursa 1993-1995. 14 Ler especialmente: PISCITELLI, Adriana. Sexo Tropical. Comentrios sobre Gnero e Raa em alguns textos da mdia brasileira. Texto apresentado na XX Reunio Brasileira de Antropologia, realizado em Salvador-BA, 1995, (publicado neste caderno)
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Com isso, a hiptese de Boaventura sobre a cultura como uma negociao de sentidos em escala mundial se aproxima da idia de representao de identidades alm-fronteiras. E, se quisermos transpor essa discusso para o Circuito, poderemos encontrar alguns pontos de interseo, muito embora este seja um trabalho inicial munido apenas de dados preliminares. Primeiro, no podemos descartar a existncia de uma atrao pelo extico que nem sempre norteou a propaganda sobre o turismo brasileiro no exterior. Sendo assim, o acesso aos clichs poderia funcionar como dados para a construo de tipos e imagens possveis de serem descobertos e at comprados como um produto qualquer, presente na malha continental do mercado contemporneo. Segundo, o fascnio pelo que vem do exterior um forte componente das fantasias alimentadas por muitos brasileiros que j tiveram algum tipo de contato com algum ou alguma informao a respeito de outros pases. Talvez com esses elementos possamos responder, embora de forma parcial, o questionamento acerca da construo da auto-imagem por parte das mulheres que participam do Circuito. Se considerarmos as noes de identidade discutidas por Boaventura, dando conta de uma economia de sentidos e trocas em escala mundial, bem como o exemplo da mulata sargenteliana e da morena-jambo baiana, podemos levantar a seguinte hiptese: alm das condies materiais, que tornam possvel a existncia desse comrcio e de pessoas expropriadas da sua dignidade por uma rede de relaes sociais perversas, existe tambm o desejo como componente dessa autoconstruo. No estamos nos referindo apenas ao desejo sexual, que tem sido uma das explicaes dadas para essa atrao mtua o gringo e a morena-jambo- pois este, na maioria das vezes, faz parte somente dos planos de quem compra o produto. Esta noo apareceria aqui, num sentido mais amplo, incorporando outros sentimentos como autoestima. Essas mulheres se considerariam eleitas por serem diferentes, um tipo que agrada ou ainda, como revelou Suelen que tem sada com os gringos. A incluso do desejo como um elemento importante na anlise da auto-consrtuo da imagem pelas mulheres, saindo do vis psicanalista freudiano, que coloca libido no centro das discusses,
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vem de uma problematizao feita por Zajdsznajder. Para ele, as relaes sociais contemporneas modificam a maneira de sentir dos seus sujeitos e a sua psicologia por si mesma no basta para explicar essas transformaes. O desejo, livre da classificao freudiana, reassumiu segundo ele, o seu antigo significado, acrescido das condies de modernidade. esta disperso passou a significar que a intensificao do gozo sexual poderia ser obtida em relao a outras atividades (...) , no necessariamente por pessoas, como tambm por atividades, coisas ou objetos.15 De algum modo, aquilo que a psicanlise havia estabelecido como uma espcie de sublimao do desejo sexual, Zalsznajder afirma ter perdido a importncia, porqueesse tipo de desejo tornou-se igual a tantos outros. Guattari16, em parte, refora esta tese. De acordo com ele, as sociedades contemporneas esto passando por um reoordenamento do sentir e tm deixado de lado as anlises baseadas em modelos estticos, aos quais relegamos as explicaes do cotidiano como as teorias como a do self e do inconsciente. Numa outra passagem do seu livro, Zajdsznjder conclui esta argumentao dizendo: (...) identificado entre os extremos do excesso e da carncia, o desejo sobrepujou a idia de vontade e tornou-se o ponto de formao das identidades cambiantes(...). O sexo desejo sexual apresenta-se como uma singularizao do desejo, que por sua vez, nem universal, mas especialmente multiforme. Assim, apenas por concesso linguagem que se fala em desejo em geral. O que se manifesta nos desejos particulares articulados em conjuntos que se entrecruzam e solicitam a sua realizao.17
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ZAJDSZNAJDER, Luciano. Op.cit., p.102. GUATTARI, Felix. As Trs Ecologias. Campinas, Papirus, 1990. 17 ZAJDSZNAJDER, Luciano. Op.cit., p.103.
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Esta afirmao nos leva a mais uma hiptese: caso algum deseje comprar sexo em um paraso tropical poder estar atendendo muito mais aos apelos de um mercado dos sentidos globalizado, do que sua prpria libido. Mesmo aceitando, com algumas reservas, as afirmaes de Zajdsznajder e Guattari, no pretendo estender essa discusso, j que esse no o ponto central desse trabalho. Vale ressaltar, no entanto, que suas teses so muito importantes, pois conseguem nos dar pistas acerca de um dos componentes mais difceis de ser detectado no Circuito: a relao subjacente entre quem compra sexo, companhia, casamento e danarinas para exportao (gringo) e a brasileira-baiana tpica-mulata ou morena-jambo. quilo que Guiddens chama de condies de modernidade e Lyotard18 denomina de ps-modernidade, e que tornam possveis esse crculo de relaes, no chegam como reflexes at os cubculos escuros das kitchenettes da orla martima de Salvador, onde mulheres e meninas permanecem prontas para atendimento vinte e quatro horas, num regime de quase crcere privado. No entanto, as causas e os desdobramentos desses fenmenos atravessam o cotidiano de centenas de pessoas que, na condio de consumidores e mercadorias, nomeiam seus interesses como desejo espontneo. A busca de uma identidade para cada recorte da sociedade atravs da satisfao dos desejos como o de consumir um objeto -, dado pela Globalizao, faz com que se amplie e a desterritorializao das relaes sociais. Assim, um fato que tem origem em um determinado contexto scio-cultural, pode influenciar a vida de pessoas que vivem a milhares de quilmetros de distncia. Essa constatao nos faz indagar a respeito das conseqncias desses fenmenos em relao a situaes especficas, como a busca de um outro como objeto, mesmo que em princpio ele esteja espacialmente ausente. Isto nos leva a mais algumas hipteses provisrias: (1) o Turismo Sexual resultado desta situao. Alm disso, propicia a existncia de um consumo que busca um produto especfico, estabelecendo um comrcio o Circuito; (2) a questo do espao, em princpio, no representaria um problema, j que uma sociedade globalizada, exposta
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a intercmbios constantes, acaba criando um cotidiano compulsoriamente partilhado por sujeitos, ao mesmo tempo, ausentes e presentes; (3) a identidade caracterstica da vida social contempornea, tal como concebida por Boaventura, assume o papel de catalisador do Circuito, pois torna possvel a fragmentao do prprio espao, fazendo com que caiam, consequentemente, as fronteiras tradicionais (lngua, costumes, normas), como j dissemos anteriormente. Consideraes finais A denominao Mulatas que no esto no mapa est de acordo com a representao que agentes e turistas tm das mulheres que so negociadas no Circuito do Turismo Sexual de Salvador, na medida em que a construo dos tipos e as perspectivas dos atores envolvidos no universo sargentelliano no Rio de Janeiro faz parte de uma engrenagem muito semelhante, que se expande sem fronteiras, a depender dos interesses e dos contextos. O fato de mulheres negras, cariocas ou baianas, poderem se transmutar em mulatas a partir da montagem de um esteritipo ligado aos discursos sobre a mulher brasileira extica e sensual seria um indcio muito forte dessa conexo. Mesmo que no sejam todas mulatas, a expresso cunhada por Osvaldo Sargentelli para apresentar a mulher brasileira, considerada como tpica, ganhou o mundo e abriu portas para o surgimento de um mercado da beleza feminina no Brasil. As propagandas em torno das coisas da Bahia comprovam em parte essa afirmao. Alm dos agenciadores, empresas de comrcio, indstria e finanas utilizam livremente a imagem da mulher baiana, como forma de atrair a ateno para este Estado. Outro fator a difuso da imagem do Brasil como um pas culturalmente homogneo. Isso torna a identificao de tipos fsicos, peculiaridades regionais e outros aspectos scio-culturais de cada regio uma tarefa bastante complicada para quem chega ou deseja consumir produtos que foram alardeados como genuinamente nacionais. A partir da, poderamos falar at na construo de uma mulata genrica, mais isso seria objeto para um estudo mais aprofundado.
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Abstract
Who is the Bahiana? This is not a simple question. However reflecting on the sexual tourism circuit in Salvador might help to answer it. Baianas are native women considered morena-jambo for their dark skin color. This paper is about black women and how the commodification of bodies creating dreams and feeding mens fantasies about the Brazilian woman interferes in the construction of their identities.
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