PIZARRO, Ana. O Voo Do Tukui

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O voo

do
tukui
O voo
do
tukui
Ana Pizarro

apresentação
Hugo Achulgar
Conselho Curador
Eduardo Rinesi - Argentina
Eric Nepomuceno - Brasil
Gabriel Cohn - Brasil
Gabriel Restrepo - Colômbia
Horacio González - Argentina (in memoriam)
Hugo Achugar — Uruguai
Nora Garita — Costa Rica
Paulo Henrique Martins - Brasil
Salomon Nahmad Sitton — México
Stefano Varese — Peru

Equipe Editorial
Ana Paula Simonaci — Revistas de Cultura e Oca Editorial
André Magnelli — Ateliê de Humanidades
Cristián Jiménez — Tucán Ediciones
José Ronaldo A. Cunha — Fundação Darcy Ribeiro
Maria Elizabeth Brêa Monteiro — Fundação Darcy Ribeiro
Sergio Cohn — Azougue Editorial e Oca Editorial

Assessoria Jurídica Ana Luísa Chafir


Projeto Gráfico Pablo Marchant
Tradução Julia Borges da Silva e André Magnelli

ISBN 978-85-63574-66-3

Janeiro de 2022
BIBLIOTECA BÁSICA
LATINO -AMERICANA

A partir de seus anos de exílio, Darcy Ribeiro tomou para si — e


nunca mais largou — a tarefa de pensar a América Latina e a in-
serção do Brasil nesse continente essencial. Sua ação sempre se
deu como intelectual, como político e como cidadão do mundo. No
início da década de 1960, já tentara implantar a Biblioteca Básica
Brasileira — BBB, que reunia obras fundamentais para a reflexão
da formação do Brasil e, ao final dos anos 1980, montou a Biblioteca
Latino-Americana no Memorial da América Latina, na cidade de
São Paulo.
Darcy Ribeiro sempre fez de suas buscas um modo de agrupar
e disseminar saberes e conhecimentos. A Fundação Darcy Ribeiro,
em continuidade a esse sonho, decidiu por empreender a Biblioteca
Básica Latino-Americana — BBLA, iniciando a publicação de seus
primeiros livros neste ano que antecede as comemorações do cen-
tenário de nascimento de Darcy Ribeiro, em 2022.
A proposta da coleção é realizar o mapeamento, a apresentação,
a reflexão e o estímulo à criação sobre a cultura e o pensamento
latino-americano, através da publicação de livros de ensaios de im-
portantes pensadores e artistas do continente. O objetivo consiste
em alcançar um público amplo, por meio de livros com conteúdo de
qualidade, em edições atrativas e bem-cuidadas, que terão versão
em português, espanhol e inglês e publicação em diversos países.
Para uma tarefa de tal magnitude, complexidade e responsa-
bilidade, convidamos renomados intelectuais latino-americanos,
alguns deles amigos pessoais de Darcy Ribeiro, para compor o Con-
selho Curador da Coleção, que estabeleceram critérios básicos a
serem seguidos pela BBLA:

— Buscar a síntese entre o foco e a difusão da cultura Latino-Ame-


ricana, o presente e o crescente;
— Identificar as semelhanças na multiplicidade de povos, forma-
ções e expressões e tentar construir um corpo comum a partir da pro-
veniência dos nomes, conceitos e saberes latino-americanos;
— Estabelecer diálogo com as diversidades culturais dos povos
transplantados, povos novos, povos testemunho, fluxos migratórios,
populações compostas, minorias, alteridades radicais e periféricas no
embate do processo civilizatório
— Apresentar por meio de ensaios, contos, poesia, entrevistas, te-
mas relacionados à antropologia, sociologia, filosofia, literatura, teatro,
conteúdos que expressem a maior quantidade de interseções culturais.

Sabemos da complexidade e diversidade dos temas a serem


abordados, assim como dos obstáculos a serem superados para se
constituir um corpo de saberes e prazeres, consistente e relevante
para o público leitor. Esse é o nosso maior desafio!
Esta coleção é uma obra coletiva, fruto do trabalho de uma
equipe editorial comprometida com o propósito de semear e dis-
seminar saberes produzidos nesse imenso continente latino-ameri-
cano. É também uma obra viva, em movimento, que vai integrando
autores e protagonistas à medida que incorpora novas abordagens,
temas e questões cada vez mais contemporâneas e candentes.
Agradecemos aos conselheiros curadores que generosamente
aceitaram o desafio de pensar e orientar esta coleção, aos autores
por acreditarem no projeto, à equipe editorial que, como diria Dar-
cy, trabalha com muita determinação para plantar no chão do mun-
do essas sementes, e às editoras, pela colaboração em empreender
este projeto. A todos, e a você leitor, muito obrigado por apoiar a
Fundação Darcy Ribeiro.
Trazer a público esta coleção é atualizar os debates em torno
da América Latina e refletir sobre esse encantamento necessário,
ainda por consolidar, de integração da América Ibérica ao sonho
de criação do bloco latino-americano. Esta é, sem dúvida, a função
mais essencial desta Biblioteca Básica Latino-Americana.

José Ronaldo A. Cunha


Fundação Darcy Ribeiro
Presidente
SUMÁRIO

33 | AQUELES QUE NÃO ACREDITARAM


NO RETORNO DE DEUS

45 | O PÓS-HUIDOBRISMO NO CHILE

53 | COLONIALIDADE. OBSERVAÇÕES
SOBRE A CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS

II

83 | NASCEMOS NO MEIO DE PALAVRAS

99 | TITUBA E KEHINDE: A LÍNGUA, A ESCUTA E O OLHAR

117 | LER A SOCIEDADE POR MEIO DO CORDEL: DOIS CASOS

III

143 | AMAZÔNIA: HORIZONTE E FRATURAS

157 | HUMANIDADES NA AMAZÔNIA


IV

177 | CONFIGURAÇÃO CULTURAL:


O FLUXO AFRO-AMAZÔNICO

195 | FRONTEIRAS PERDIDAS: AGUALUSA

203 | HISTÓRIA E TRAVESSIA

225 | O PODER DA VERDADE E A VERDADE DO PODER

231 | REDE, TECIDO: PENSAR A CONSTRUÇÃO CULTURAL


VOOS DOS TUKUI. EM MODO DE APRESENTAÇÃO
POR HUGO ACHULGAR

Ana Pizarro se instala na casa do tukui 1 situada no nosso


continente. E é desde esse lugar que ela nos fala. Fala-nos de mundos
com muitas línguas e um espaço comum, embora diverso. A escolha
da autora não é, em nenhum sentido, ingênua; sua ampla e variada
produção comprova isso. O voo do tukui, pica-flor, do beija-flor, ou do
colibri — ou talvez não seja um, mas muitos entrelaçados — é uma
forma poética de celebrar uma escrita que evoca, voluntariamente
ou não, o mestre Montaigne.
O ensaio, como escolha discursiva, é justamente o voo que se
constrói para montar uma leitura contemporânea das culturas e dos
sistemas “literários ou não” que há muito tempo caracterizam grande
parte do pensamento latino-americano e em diferentes formatos ou
imaginários.
Nesse sentido, a autora estabelece, desde o início, uma escrita
e uma enunciação que revisa e dá conta da colonização, da
colonialidade e da diversidade — biodiversidade — ou pluralidade
de formas de expressão simbólica em nossa América.

1 [N.T.] Mais informações sobre o que são os tukui podem ser en-
contradas no prefácio abaixo da autora.

O VO O DO TUKUI 11
O voo do tukui — como a imagem lúdica de Montaigne,
“marchetaria mal ajustada”2 — percorre mundos, sociedades, sistemas
e culturas, com a fluidez e o entusiasmo ou o deslumbramento de
visitá-los com um olhar marcado por transformações sociais, culturais
e tecnológicas desse início do século XXI. De certa forma — a autora
mesma o diz —, esses ensaios que compõem o livro são, ao mesmo
tempo, a revisão de categorias que nortearam a crítica literária e
cultural do último meio século e também o retorno a olhar, a ler e a
ouvir o que a sociedade que habita essas terras diz e pede há séculos.
No “Prefácio”, Pizarro afirma: “O voo do tukui é como o trajeto do
ensaísta”. E desse lugar de enunciação, que é o continente, estando
situada na casa do tukui, é que ela fala em resposta à diversidade
cultural e à biodiversidade.
É por isso que “Aqueles que não acreditaram no retorno de Deus”
— o primeiro texto que abre o livro — se apresenta como uma revisão
da história de nosso continente desde a sua criação, passando pela
evocação de etnias e suas civilizações até centrar-se na nação ou
comunidade mapuche que, precisamente e ao contrário de outras,
não “acreditava no retorno de Deus”. Crença que marcou a derrota
dos maias e astecas — entre outros — e que o povo mapuche resistiu
ao longo dos séculos.

2 [N.T.] “Marqueterie mal jointe”: trata-se de uma metáfora clássi-


ca feita por Michel de Montaigne (1533-1592) nos Ensaios, presente
no livro III, cap. IX. Da vaidade, como uma forma de qualificar o
próprio modo como se constrói seu livro de pensamentos na re-
lação com o leitor. A imagem expressa um modo de entender a
forma-ensaio, através de uma escrita aberta, fragmentária, onde
os pensamentos vão assumindo seus contornos e seus lugares em
função das oportunidades e de seu diálogo com o leitor.

12 ANA PIZARRO
Essa resistência mapuche — algo que o relato hegemônico
havia negado durante a colônia, os avanços da sociedade do século
XIX e o século XX até chegar aos últimos anos — hoje floresce
negando a história da colonialidade no Chile, na Argentina e no
resto do continente. Expressando-se também em fortes movimentos
sociais, em centenas de bandeiras mapuches e na histórica eleição
da Assembleia Constituinte que levou uma mulher mapuche à
presidência da maior instituição daquele país multinacional que
conhecemos como Chile.
Essa entrada no livro não é inocente. Marca um revisionismo
histórico e historiográfico que incluirá, posteriormente, uma releitura
dos sistemas teóricos sociais, culturais e literários da modernidade
tardia da qual Pizarro provém e, meio século depois, precisa ser
revista e ajustada. Nessa linha, os dois textos que encerram a
primeira parte — até mesmo nos próprios títulos — falam do “pós-
huidobrismo” e da “construção de discursos” a partir do paradigma
da “colonialidade do poder” proposto por Aníbal Quijano.
A leitura do desenvolvimento poético chileno do século XX
mostra as tensões e contradições que revisam um passado desde o
momento presente em que se situa todo o livro. Algo que fica mais
claro e explícito no que Pizarro chama de “construção de discursos”
— com base em Quijano e Foucault — em que ela não apenas atende
à história crítica ou aos sistemas literários, mas também revê as
culturas populares (rurais e urbanas) observando o Caribe. Trata-se
de uma leitura que, sem dúvida, faz um balanço da herança do século
XX recebida pelo século XXI, e isso não pode ser feito sem levar
em conta as culturas indígenas, expressões subalternizadas. A sua

O VO O DO TUKUI 13
proposta, nessa linha, recolhendo experiências anteriores como a
de José María Arguedas ou Darcy Ribeiro, propõe, “ao contrário da
análise transcultural”, a ideia de um “um processo mais complexo
e abrangente que configura espaços amplos de interação” ou “redes
de interação”; com fluxos externos em que os indígenas enfrentam
o que Pizarro chama de “fluxos externos, como o europeu ou o
africano”.
As três partes seguintes de O voo de tukui apontam para fenômenos,
como a chamada literatura de cordel — em que a hibridização com
o europeu aparece explicitamente —, onde a oralidade se associa
à noção de uma rede complexa que não é a da “transculturação”
(Fernando Ortiz/ Angel Rama), nem da “heterogeneidade” (Cornejo
Polar). Para isso, são analisadas as vicissitudes do “espanhol” da
América e do “castelhano” — com sua função como ferramenta de
colonização, algo que outras línguas no Caribe e no Brasil também
cumpriram —, juntamente com a multiplicidade de línguas, ou mesmo
com o que surge historicamente da “pluralidade na formação social
da Amazônia, especialmente brasileira, que mostra a diversidade das
correntes migratórias, bem como sua complexidade interna” (Samuel
Benchimol). Por isso, a necessidade de falar de culturas e línguas no
plural; “pluralidade” em vez de heterogeneidade ou transculturação.
Tudo isso leva Pizarro a apontar a necessidade de rever a noção
de literatura. Na verdade, a literatura e também o papel da mulher
na construção da Amazônia.
É no segundo capítulo da segunda parte “Tituba e Kehinde:
a língua, a escuta, o olhar”, que emergem, com força especial, as
propostas mais sugestivas de Pizarro. A tríade “língua, escuta, olhar”.

14 ANA PIZARRO
Ao analisar os romances de duas narradoras, Maryse Condé e Ana
Maria Gonçalves, ela aponta que:

A língua, a escuta e o olhar são veículos de relação


com o mundo do escritor e de seus leitores ou
ouvintes, quando se trata da oralidade, e ao mesmo
tempo são formas de construir o mundo dentro de
nós mesmos.

A leitura de Pizarro analisa a colonialidade e seu papel na cultura.


É por isso que a autora considera que a escrita dessas duas autoras
– uma do Caribe e a outra do Brasil – constitui:

[...] uma forma de resistência ao poder colonial.


É um poder que não as destrói porque estão
armadas internamente e nisto são amparadas pelos
valores da sua cultura. Fala-lhes uma linguagem
diferente da do colono: uma linguagem que fala
com os mortos, uma linguagem que dialoga
com as árvores, que transmite o ouvir do canto
dos pássaros, uma linguagem que não treme ao
expressar o estremecimento de prazer, que não
esconde, mas desfruta da beleza dos corpos, e que,
acima de tudo, os vê. Porque o que fazem essas duas
narrativas é dar existência a esses corpos, diante
de uma degradação que os invisibiliza.

O VO O DO TUKUI 15
A leitura reivindica, dessa forma, não apenas a escrita subordinada
das mulheres, mas, principalmente, o papel que o olhar, a leitura e a
escuta têm na enunciação dos discursos estudados e que constroem
nossas múltiplas histórias.
No último capítulo da segunda parte do livro, Pizarro retoma
a ideia de “Ler a sociedade por meio do cordel: dois casos” e sua
importância em relação ao imaginário da nação; já que se concentra
na literatura de cordel entre 1860 e 1920, embora acabe chegando
ao presente no Brasil e no Chile. Pela mesma razão, ela afirma que
o cordel não é “nacional”, mas “regional”. A análise leva a autora a
considerar a fase de Getúlio Vargas para logo destacar a “diversidade
cultural” diante da “homogeneidade da nação”. Antônio Conselheiro,
Violeta Parra e muitas outras figuras são suportes para marcar a
relação entre cordel, região e nação e a pluralidade de discursos que
compõem o tecido das nossas histórias.
Em “Amazônia: horizonte e fraturas”, na terceira parte do livro,
Pizarro olha e analisa uma região e uma formação cultural que tem
sido objeto de análise fundamental nas últimas décadas. Além
de riqueza e diversidade, a palavra com a qual foca sua análise
é desigualdade. A Amazônia é um campo de observação das
destruições antropocênicas. O Antropoceno e os instrumentos da
“modernidade tardia” que invadem a Amazônia tentam erodir uma
sociedade multiétnica impondo tempos sobrepostos/articulados com
as particularidades de uma sociedade periférica de origem colonial,
como a dessa região e do nosso continente.
A Amazônia, segundo Pizarro, “é um espaço de exacerbação dos
paradoxos latentes na subjetividade continental”:

16 ANA PIZARRO
Não se trata de uma posição utópica de retorno ao
passado, trata-se de observar processos paralelos
em um continente como o nosso, como dissemos,
de tempos culturais sobrepostos, de culturas
imbricadas, não necessariamente transculturais. O
olhar para as tecnologias das culturas indígenas,
por exemplo — os estudos atuais falam disso — ,
não é um retrocesso, pois elas podem ser uma
referência.

Por isso, sua leitura é ambientalista. O desafio, porém, é que,


como o paradoxo latente é o da desigualdade, a Amazônia pode ser
um inferno e um paraíso ao mesmo tempo.
E, em um movimento que lhe é muito característico, Pizarro
introduz um tema — não estranho, mas singular — que é o de como
pensar a si mesma e em seus instrumentos de análise. Dessa forma,
ela pergunta a si mesma: “Para que as humanidades na Amazônia?”, e
então responde: “É necessário pensar que os fenômenos não podem
ser concebidos isoladamente”. Daí a exigência de interdisciplinaridade.
Algo que coloca a ênfase no centro particular do momento em que
estamos vivendo, tanto como cidadãos, quanto como cientistas
sociais ou críticos culturais: não há fronteiras disciplinares com
as quais dar conta não apenas — embora especialmente — da
Amazônia, mas também da sociedade como um todo.
Neste presente, de pandemia e também de mudanças de
paradigmas científicos e teóricos, a interdisciplinaridade é um
caminho essencial. As fronteiras do conhecimento tornaram-se

O VO O DO TUKUI 17
porosas e fechar-se dentro dos muros disciplinares de algumas
décadas atrás — seja por uma espécie de defesa da especificidade
ou da sacralidade de certos modos de conhecimento — é um perigo
enorme para o que estamos vivendo, que chega até nós como um
tsunami de tecnologias e obsolescência de paradigmas.
Por outro lado, Pizarro argumenta que:

[...] a int erdisciplinaridade é uma


necessidade imperativa. O desenvolvimento
da ciência e da tecnologia é importante, mas
ciência e tecnologia para quê? E para quem? São
nas respostas dessas perguntas que entram por
completo as humanidades: crítica, análise, mas
também emotividade, afeto, mística, vivência,
experiência vivida, os modos de sentir que a
música, as artes plásticas, as artes em geral nos
proporcionam; assim como a experiência literária.

A autora acaba acrescentando um segundo argumento: o da


“sensibilidade”. Ao que mais tarde, depois de recolher algumas
leituras de Guimarães Rosa e de Borges, lhe permite concluir:

Queria apenas tentar transmitir, por meio de leituras


mínimas, o inexplicável, mas digno de ser vivido:
aquela abertura de dimensões que a experiência
estética significa. Como ela atua sobre nós e nos
expande, às vezes em círculos concêntricos, com

18 ANA PIZARRO
frequência em linhas de fuga, a perspectiva sobre
o ser humano e a vida, sobre o universo. Para que
servem as humanidades? Para sensibilizar, para
ampliar e estender o espaço da experiência, para
coexistir com a alteridade, para compreender a
diferença. E também, fundamentalmente, para
pesquisar e construir significado.

O que mais tarde lhe permitirá concluir, referindo-se à Amazônia,


a respeito da possibilidade de construir seu próprio lugar de
enunciação a partir de uma crítica à colonialidade do poder, visto
que, nesse espaço, convivem diferentes formações socioculturais,
articulando e desarticulando os sistemas culturais eruditos, populares
e indígenas; o que nos permite considerar o ser humano em suas
múltiplas dimensões. Além disso, isso possibilita conviver com a
alteridade e compreender a diferença. Ao mesmo tempo que nos
permite, sustenta Pizarro, “buscar e construir sentido” diante da
colonialidade.
Essas reflexões são reafirmadas nos ensaios que seguem,
especialmente em “Configuração Cultural: o fluxo afro-amazônico”
e em “Fronteiras Perdidas: Agualusa”, que compõem a quarta parte
do livro.
Assim, surge a invisibilidade das culturas (não-orais) da África
e sua relação com a colonialidade. A África subsaariana – como é
chamada – “é uma construção europeia”. Pizarro olha a África a partir
de nossa história e de nosso lugar, mas o faz incorporando autores,
críticos e teóricos que não necessariamente vêm do primeiro mundo;

O VO O DO TUKUI 19
o que enriquece a sua leitura e a nossa escuta. Isso lhe permite
considerar a particularidade da cultura subsaariana na Amazônia e
problematizar — como havia feito anteriormente — a categoria de
“transculturação” de Fernando Ortiz, na medida em que, segundo
suas palavras, “a experiência cubana é diferente” e, portanto, não
pode ser extrapolada para a Amazônia. Em “Fronteiras Perdidas:
Agualusa”, por exemplo, ela se concentra no trabalho do angolano
Agualusa.3 Mas “fronteiras perdidas” não é uma imagem poética de
Pizarro, e sim a expressão que, em Angola descreve “aqueles em cujo
ser convivem várias culturas, e que se movem entre uma e outra”.
Agualusa é um escritor nascido em 1960, que é também jornalista
e cineasta. Com uma produção profusa, é um escritor ancorado em
Angola, mas um nômade que vai da África ao Brasil, Europa e volta
integrando tudo. Pois, como afirma Pizarro:

Tudo nele é movimento, trânsito geográfico e


cultural. Uma diversidade, uma mistura de vida
que sentimos como contemporâneos. Como a do
autor, que vai construindo a história da literatura

3 Neste capítulo, como em todo o livro, Ana Pizarro demonstra um


conhecimento não só dos clássicos da cultura latino-americana e
europeia, mas também da literatura e cultura africanas. Nesse sen-
tido, vale esta citação em que, antes de se referir aos atuais escri-
tores e autores da África subsaariana, refere-se aos clássicos: “São
os casos do senegalês Hampaté Bâ, do nigeriano Chinua Achebe
ou do autor do clássico Os Sóis das Independências (1970), Ahma-
dou Kourouma da Costa do Marfim, em que a pós-independência
aparece em todas as negociações com o ex-colono e em todo o seu
horror político e social. Há também o angolano Pepetela, com uma
obra considerável, mas já estamos falando dos clássicos”.

20 ANA PIZARRO
angolana no espaço marcado pela tradição
brasileira — bem temperada — de Machado de
Assis, como dissemos, mas também dos clássicos
contemporâneos europeus e latino-americanos —
Borges, Cortázar —, da cultura popular africana e
também afro-americana.

Entre as muitas obras premiadas e destacadas, está “Teoria Geral


do Esquecimento” (2012), ambientada em plena guerra de Angola.
Nessa obra, um documento de horror da guerra, Agualusa, segundo
Pizarro, coloca: “O problema da fabricação de um ‘outro monstruoso’.
‘Não há esse outro’, reflete mais tarde: ‘O outro somos nós mesmos.
A literatura faz com que se veja o ser humano, por isso as bibliotecas
são ‘armas de construção massiva’”, diz ele. A afirmação de Agualusa
é poderosa. Além disso, tem a força de Rimbaud quando disse “Je
est un autre” [“Eu sou um outro”]. Mas a alteridade de que fala
Agualusa não é exatamente a mesma. A alteridade do angolano não
“l’enfer, c’est les autres” [“O inferno, são os outros”] de Sartre. A
alteridade está em nós mesmos. A análise de Pizarro é mais do que
uma leitura de Agualusa e está ligada à argumentação e revisão da
cultura do nosso continente que tem laços transatlânticos que nem
sempre são lembrados ou investigados. Por isso, o título “fronteiras
perdidas”, que fala de muitos habitantes do nosso continente e dos
tempos em que vivemos.
Na parte V, a última do livro, Pizarro inclui três ensaios: “História
e travessia”, “O poder da verdade e a verdade do poder” e “Rede,
tecido: pensar a construção cultural”. No entanto, acredito que

O VO O DO TUKUI 21
essa última parte pode ser considerada como um conjunto; porque,
embora deem continuidade à linha de argumentação do livro, ela se
abre para outros aspectos, expressões culturais e problemas teóricos
que mostram o amplo alcance desse voo de tukui.
Nesses ensaios nos encontramos — embora talvez deva dizer
“eu me encontro”, já que outros leitores os verão à sua maneira —
com uma lógica de um signo diferente ao situar, como referente,
a discussão da ideia de colonização de uma forma particular.
Cabe destacar que essa discussão chega a um momento em que a
chamada “conquista” e a “colonização” estão levando à derrubada
de estátuas de Colombo e ao fato do próprio rei Felipe da Espanha
ter sido obrigado a sair para defender seu papel e, segundo ele, os
valores da colonização europeia — não mais só espanhola — em
nosso continente.
Pizarro parte de sua história na América Latina, Palavra, literatura
e cultura (1993), e faz uma espécie de genealogia do projeto que
realizou com um grupo de acadêmicos, especialmente Antonio
Cândido. Quase três décadas após a publicação de um projeto que
vinha em andamento há muito tempo, Pizarro aproveita para afinar
não apenas categorias historiográficas, mas também conceitos
teóricos fundamentais de sua leitura cultural e literária da América
Latina. Nesse sentido, enfoca, entre outros temas, a revisão de noções
e paradigmas que construíram o relato sobre nossas culturas e nossas
expressões simbólicas e artísticas. Nessa linha de argumentação,
ela fala de um “terceiro sistema literário dos povos indígenas”, da
necessidade — antes mencionada — de falar e pensar em “práticas
discursivas plurais” e da realidade tecnológica do presente, do urgente

22 ANA PIZARRO
agora. Na revisão das contribuições teóricas que foram construídas e
alimentadas nas últimas quatro décadas, Pizarro desenvolve seu olhar.
Não se pode estranhar, — na verdade eu diria que é preciso
celebrar — a incorporação à reflexão literária ou discursiva do sistema
cultural, as chamadas “redes sociais”. Não é mais possível — e
algumas teses em nossa América já estão o fazendo — deixar de levar
em conta aquela discursividade contemporânea que se realiza por
meio de Instagram, Facebook, Twitter, Tik Tok e outros meios. Essas
“redes sociais” fazem parte da “esfera pública” de que falava Jürgen
Habermas. Esta é a realidade instalada em grande parte do mundo
e continuará crescendo. Ao mesmo tempo, Pizarro lembra que os
indígenas já criam seus próprios vídeos e que a escrita de mulheres
tem apresentado crescimento indiscutível nos últimos tempos e
está fortemente posicionada no horizonte cultural atual. Não são
por acaso as recentes mobilizações — algumas delas performativas
— do movimento de mulheres e do movimento feminista em vários
países ocidentais e em particular em nossa América, como foi o
caso do Chile sob o lema: “O estuprador é você” (2019). Todas essas
expressões não podem ser deixadas de lado na análise cultural do
século XXI.
Em “O poder da palavra e a palavra do poder”, com uma evocação
implícita de Foucault, mas feita em relação à pandemia, Pizarro dá
conta do que vivemos desde o final de 2019. Ela analisa a situação
sanitária, mas está centrada na grande Amazônia e aponta, junto
com o teórico africano Achille Mbembe, que a pandemia nos atinge a
todos e que tem, nesse sentido, um caráter democrático. Entretanto,
não é assim. “não atinge a todos igualmente. Vivemos, como aponta

O VO O DO TUKUI 23
Achille Mbembe, tempos caracterizados por uma ‘redistribuição
desigual de vulnerabilidade’”.
A leitura política e cultural de Pizarro lembra Paes Loureiro e
alguns belos versos que afirmam: “Toda arte nasce de um momento/
para esse momento superar”. A vulnerabilidade da Amazônia, a
desigualdade histórica e a exploração extrativista e devastadora vão
ao encontro da pandemia. Isso nada mais faz que agravar o que já
acontecia, agora com apoio presidencial.
Por isso o tom sombrio ao final deste ensaio:

Hoje vivemos uma nova Idade Média que reproduz


[...] Os circuitos expansivos da era capitalista nos
remetem à origem, nos mostrando que, além de
nossa arrogância, está o ser humano básico com seus
afetos, seus defeitos, e também sua generosidade. E
que no final, como árvores ou pássaros, gostemos ou
não, teremos que chegar ao Grande Confinamento.

Mas Ana Pizarro não pode terminar assim um livro como O voo de
tukui. No último ensaio: “Rede, tecido: pensar a construção cultural”,
ela cumpre com sua responsabilidade de intelectual íntegra e honesta.
Para isso, ela relembra e retoma Roberto Fernández Retamar e sua
crítica descolonizadora e recorre ao estado atual do pensamento e
das pesquisas culturais em nossa América representadas por muitos
autores, abrindo as portas para a reflexão de todos aqueles — como
Darcy Ribeiro, Antonio Cândido, Edouard Glissant, Cornejo Polar e
outros tantos já citados — que tentam dar conta de um território,

24 ANA PIZARRO
de um continente, de uma região que abrange desde o Cone Sul até
o Caribe, passando pelos Andes e pela Amazônia.
Nessa empreitada, Pizarro não reduz o sistema literário à soma
das literaturas nacionais, como ocorreu durante grande parte do
século XX. Como já foi dito, sua leitura — e esse é o fechamento da
construção discursiva realizada em seu livro — está estruturada na
história da colonização e no seu efeito posterior sobre a colonialidade
das estruturas de relações e na colonialidade do poder, construindo
assim o espaço cultural.
Nesse sentido, a empreitada de Pizarro me atrai particularmente,
pois incorpora ao vasto universo de referências teóricas o pensamento
de Silvia Rivera Cusicanqui que, juntamente com outros pensadores
como Xavier Albó, acrescentam uma contribuição teórica a partir da
experiência das culturas indígenas (neste caso, andina).
Em relação às sociedades ch’ixi, Silvia Rivera Cusicanqui, de
uma linha de pensamento que vem da “sociedade variada” de René
Zavaleta, afirma que:

A noção de ch’ixi, ao contrário, propõe a coexistência


paralela de múltiplas diferenças culturais que não se
fundem, mas se antagonizam ou se complementam.
Cada uma reproduz a si mesma das profundezas
do passado e se relaciona com as demais de forma
contraditória.

Precisamente, localizando-se nos saberes e desenvolvimentos das


comunidades indígenas, Pizarro enfatizará sua ideia de fluxos, tecidos,

O VO O DO TUKUI 25
redes em movimento, energias culturais — ideia muito mais ampla
que a de expressões — diferentes, diferenciadas, diversas. Por isso,
a autora recorre à etnia Muinane e elege a imagem do “cesto” — essa
estrutura tradicional — que:

[...] dá forma e conteúdo aos múltiplos graus e


sentimentos do horror vivido por sua etnia, no
Putumayo, nos tempos da Casa Arana, e por isso
se fala de uma “Cesta das Trevas”, cujo sentido é
deslocado para purificar a existência das gerações
que vêm e a transformam em uma “Cesta de Vida”.

Eu poderia continuar mergulhando na riqueza de ideias e


pensamentos que os ensaios sobre a viagem ou voo da tukui de Pizarro
despertam ou ressoam em minhas próprias inquietações. É hora, no
entanto, de encerrar e voltar a olhar e escutar o que nossos povos tão
diversos, nossos diferentes vizinhos e vizinhas, têm a nos oferecer.
O colibri ou o beija-flor que acabei de ver chupando o hibisco pela
janela pode me ajudar, caso eu me lembre de que meus pica-flores
e meus tukuis chupam caienas, flores jamaicanas, rosas chinesas,
cravos, mares do Pacífico, tulipas, flores de vespa, pavonas, Sangues
de Cristo ou beija-flores.
Os voos do tukui são inumeráveis, diversos, múltiplos, e criam
uma rede de voos, de fluxos que nos fazem, nos identificam e nos
diferenciam em um mesmo entremeado.

26 ANA PIZARRO
PREFÁCIO
POR ANA PIZARRO

Entre muitos grupos indígenas e, particularmente na Amazônia,


as aves têm sido mais que o pássaro de carne e osso que consideramos
comumente no nosso meio. Elas são — algumas espécies mais que
outras — entidades transcendentes. Bastaria pensar no colibri
das linhas de Nazca, no Peru, em sua missão de transportar os
pensamentos entre os maias pré-hispânicos, com seus perfis
guerreiros entre os antigos astecas; alguns dos seus clãs o reconhecem
hoje como ave proeminente. Em culturas cujo saber foi desvalorizado
pelo Ocidente, tendo sido rechaçadas por um pensamento científico
legitimado em sua institucionalidade, a visão de mundo estabelece
uma adequação, um intercâmbio equilibrado entre o homem e as
árvores, entre esse e as pedras, entre ele e os animais, as aves. Ela
estabelece o equilíbrio biocentrado que foi deixado de lado pela era
do Antropoceno na qual habitamos. Isso ocorreu com a convicção da
superioridade do ser humano — e com seu autoritarismo — sobre
a natureza, o que levou o desenvolvimento tecnológico até a crise
ambiental de nível planetário que vivemos hoje. Como assinalou
Dipesh Chakrabarty, em um artigo inquietante, houve um momento

O VO O DO TUKUI 27
em que os historiadores separaram o desenvolvimento do homem
daquele do mundo natural, que aparecia como imutável.1
O colibri, pica-flor ou beija-flor, como é chamado mais docemente
no português do Brasil, tem sua origem e seu habitat na América.
Desde o norte ao extremo sul. Na língua karib das etnias amazônicas,
ele é chamado de tukui, também tucusi. Daí seu nome venezuelano:
tucusito.
O voo do tukui é como o trajeto do ensaísta. Ele precisa se nutrir
muito para sustentar um voo que se detém diante de cada flor ou
fruto em uma agitação nervosa durante alguns segundos, para em
seguida passar a outro e ficar novamente suspenso frente ao atrativo
de uma espécie diferente. Como o tukui, é com a abertura a uma
maior diversidade de cores e matizes percebidas que o olhar se
amplia.
Situados neste continente e desde aqui, a casa do tukui, é que
falamos na presente publicação.

1 [N.T.] Chakrabarty, Dipesh. O clima da história: quatro teses. So-


pro 91, julho, 2013, p. 4-22. Publicado originalmente em Critical
Inquiry, 35 (2009).

28 ANA PIZARRO
O VO O DO TUKUI 29
30 ANA PIZARRO
I

O VO O DO TUKUI 31
AQUELES QUE NÃO ACREDITARAM
NO RETORNO DE DEUS

Primeiro, o mar se agitou, o mar escuro e frio, e uma onda enorme


quebrou com ímpeto nas rochas, lançando a espuma contra o céu.
Um ruído surdo e prolongado surgia de seu interior como se fosse um
monstro esticando-se. O vento se estremeceu com vibrações cósmicas
e seu sibilo se transformou em rajada ensurdecedora que atingiu a
encosta das montanhas, tornando-se espessura, consistência. Por
onde passou, envolveu as pedras, agarrou as rochas, erguendo-as de
seus alicerces e atirando-as de cima, à altura da neve, com estrondo
em direção aos vales. Depois, foi a chuva fria e torrencial que começou
a inundar tudo, e as ondas alcançaram as planícies enquanto uma
explosão planetária surgiu dos vulcões, fez da neve, fogo, modelou o
rosto da terra e foi depositar-se no fundo das águas. Enquanto crescia
o mar por desígnio de Kai Kai1, a cobra que habita em seu interior,
também se elevavam as montanhas. Os mapuches se refugiaram nas
colinas porque Treng Treng reside ali e os aconselhou. Os que ficaram
embaixo se converteram em peixes. Os que subiram protegeram

1 [N.T.] A autora faz referência a uma lenda mapuche. Kai Kai e


Treng Treng são os nomes de suas serpentes.

O VO O DO TUKUI 33
a cabeça da chuva e do sol com jarros de argila. Com sacrifícios
conseguiram acalmar a água e depois desceram das colinas. Assim
nasceram os mapuches.
O primeiro habitat foi a área do trovão, do alerce, do raulí, do
maitén2 e da araucária, a selva austral da América do Sul. Desde
o rio Maule — no Chile atual — aumentava a população até mais
adiante do Toltén3, cujo canal se arrasta, em períodos de chuvas, à
terra, às árvores, às casas, aos equipamentos, aos animais e até aos
cavalos, com os cavaleiros e tudo mais. Eles já existiram nos anos
quinhentos a seiscentos a.C. e eram caçadores de guanacos4 e de
huemules.5 Marinheiros experientes que coletavam moluscos e algas
do mar: cochayuyo, luche.6 Da terra, os frutos da alfarrobeira, o pinhão
da araucária. Eles eram habilidosos caçadores que se aventuravam
em terreno amplo, mestres da flecha e do silêncio. Eles viviam em
famílias extensas, em poligamia sob a autoridade do lonco, o cacique
que impunha a igualdade e dirigia as relações com outros grupos.
A eleição do toqui, chefe em tempos de guerra, era feita de comum
acordo e destinava-se a quem possuísse o domínio das forças do
relâmpago.

2 [N.T.] Alerce, raulí e maitén são nomes de árvores nativas chi-


lenas.
3 [N.T.] Toltén é o nome de um distrito que faz parte da província
de Cautín, no Chile.
4 [N.T.] Guanaco é um tipo de camelídeo nativo da América do Sul.
5 [N.T.] Huemule é um tipo de cervo que habita a Cordilheira dos
Andes. É considerado o animal nacional do Chile, inclusive presen-
te no escudo do país junto com o condor.
6 [N.T.] Cochayuyo e luche são tipos de algas comestíveis presentes
no mar chileno.

34 ANA PIZARRO
Sem tardar, atravessaram a Cordilheira dos Andes
e se instalaram do outro lado, na atual Argentina,
impondo sua língua, o mapudungun. Assumiram o
nome de puelches, gente do Leste, conhecidos pelo
lugar onde habitavam: ranqueles7, salinas, pampas,
macieiros. Ali a natureza apresenta um rosto
diferente. Atravessando os bosques da Cordilheira,
ela é generosa em lagos, rios, bosques e vales para
logo estender-se nas enormes planícies desérticas
dos pampas. Nesse meio, a cabana mapuche, a ruca,
transformou-se em toldo, habitação feita de varas e
peles de guanaco — mais tarde de cavalo — cozidas
com cordas que permitiam os deslocamentos.

Um dia, ouviram-se os choroyes8 descendo da colina em grande


alvoroço. As pessoas se reuniram e consultaram a machi, a xamã do
grupo. Ela subiu os degraus do tronco de canela esculpido em forma
de totem para essas ocasiões, invocou Nguenechén9, aquele de grande
sabedoria, e anunciou presságios terríveis. Quando chegaram os
espanhóis, os domínios mapuches se estendiam amplamente sobre
a cordilheira entre o oceano Pacífico e o Atlântico. Eram quinhentos
mil só do atual lado chileno.

7 [N.T.] Ranqueles é a denominação da tribo índigena que habita


a região dos pampas da atual Argentina. A designação deriva da
palavra, em mapudungun, ragkülche: povo dos canaviais.
8 [N.T.] Choroye é uma espécie de papagaio pequeno que habita
Chile.
9 [N.T.] Nguenechén é uma importante divindade nas crenças do
povo mapuche.

O VO O DO TUKUI 35
Em outros grupos étnicos de América, a chegada do invasor
correspondeu à expectativa que surgia de uma crença mítico-
religiosa. O povo asteca viu em Cortés10 e seus seguidores o retorno
de Quetzalcóatl11, e Montezuma12 lhe recebeu como o “príncipe
de homens” que vem recuperar seu trono. Foi o caso também de
Viracocha13 para o império inca em Cusco, que pensou que talvez
seriam seus enviados; e o documento de Titu Cusi Yupanqui assinala
que “pareciam viracochas”. No sistema de crenças mapuche, não
existia o mito do retorno: Nguenechén era a força superior; Pillán14
residia nos montes, nos vulcões, nas nuvens, nas alturas, ali onde
o espírito dos guerreiros sobe para se converter em trono. Embora
os tenha surpreendido, o conquistador não desestruturou sua visão
do mundo. Ele foi identificado de imediato como o inimigo que era.
Os mapuches não acreditaram no retorno de Deus: enfrentaram-no
em uma guerra que durou duzentos e sessenta anos em que não
puderam ser vencidos. Logo depois da Independência, seu combate
também foi defensivo, mas dessa vez contra chilenos e argentinos.
Em 1546, partiu de Santiago del Nuevo Extremo15 o primeiro grupo

10 [N.T.] Hernán Cortés foi um conquistador espanhol, de impor-


tante papel na destruição do Império Asteca, liderado na época
por Montezuma II.
11 [N.T.] Entidade asteca ligada à fertilidade e à ressurreição.
12 [N.T.] Referência a Montezuma II, Moctezuma, foi um imperador
asteca.
13 [N.T.] Viracocha é uma divindade inca que representa a ordem
do universo no ser humano.
14 [N.T.] Pillán é o espírito masculino e poderoso que pode causar
desastres, como secas e inundações, segundo a cultura mapuche.
15 [N.T.] Santiago del Nuevo Extremo é o antigo nome da cidade
de Santiago.

36 ANA PIZARRO
de soldados espanhóis em direção ao sul. Iniciava-se, assim, uma
guerra incrível da pólvora contra a astúcia, do capacete contra o
sigilo, da estratégia militar tradicional contra uma luta com caráter
de guerra popular em que se ia definindo a tática e a estratégia, de
acordo com as novas circunstâncias. Os ataques mapuches não eram
frontais, mas, sim, feitos em pequenos grupos e de surpresa. Assim
que incorporaram o cavalo e suas lanças de coligue16, reconheceram
o corte das armas brancas. Lautaro17 aprendeu a guerra a serviço do
espanhol para voltar e ensinar seus seguidores como atacá-lo.
Pedro de Valdivia18 conseguiu avançar até o sul, atravessar o
rio Biobío, construir alguns fortes e fundar cidades: Concepción,
Valdivia, Villarrica. De lá, soldados espanhóis cruzaram os passos
da cordilheira e chegaram a Trepanada, atual Neuquén19, o País das
Maçãs. Do mesmo modo como o mito do El Dorado os animou em
outros lugares da América, aqui buscaram a cidade dos Césares, o
lugar da riqueza paradisíaca. Enquanto avançavam através dos raulíes,
lutadores fantasmas seguiam seus passos por entre os cipós úmidos.
A superioridade do armamento se confrontava com o conhecimento
do terreno, com a agilidade dos pés descalços. Ser vencido significava,
para os mapuches, a escravidão das encomendas, o trabalho nas
minas, a destruição de suas rucas, a devastação de suas famílias, o

16 [N.T.] Coligue é um tipo de bambu chileno.


17 [N.T.] Lautaro foi um líder militar mapuche de importante desta-
que na Guerra de Arauco - prolongado conflito do povo mapuche, e
outras tribos aliadas, com os colonos espanhóis no Chile.
18 [N.T.] Pedro de Valdivia foi um conquistador espanhol, que foi
vencido por Lautaro.
19 [N.T.] Neuquén é uma província na Argentina, importante cidade
da Patagônia.

O VO O DO TUKUI 37
serviço aos espanhóis, a perda de espaço e identidade. Eles lutaram
com a ferocidade e os movimentos de um puma, sabendo de antemão
os passos do inimigo, muitas vezes transformando suas retiradas
em fuga. No entanto, armas de fogo foram impostas e os donos
do território invadido viam proliferar os fortes construídos pelos
intrusos. Os espanhóis não formaram um exército vitorioso, o que
os obrigou a ceder ao acordo chamado Paces de Quilín, em 1641. Nele
se reconheceu a independência do povo mapuche em um território
compreendido entre o rio Bío-Bío [ou Biobío] e o rio Toltén. Isso foi
o começo de uma série de acordos que redefiniam a situação a cada
ano, já que a defesa mapuche não permitia novas invasões. Contudo,
comerciantes e missionários circulavam pela linha da fronteira e pelos
passos da cordilheira. Os mapuches trocavam sal, sementes, vacas,
ovelhas, éguas e ponchos por aguardente. O poncho chegou a ser
um símbolo da possível relação de troca, ao ponto do governador
Ambrosio O’Higgins20 o proibir: era subversivo. Os colhedores haviam
se tornado, por necessidades da guerra, pecuaristas e tinham um
comércio incipiente. Era a situação que existia no momento da
independência.
A segunda etapa dessa guerra centenária foi a defesa contra o
avanço do capitalismo agrário no Chile e na Argentina. Era a busca
de novas terras férteis, respaldada pela ideologia do “progresso”, pela
oposição civilização-barbárie, que colocava os mapuches no lugar
de “selvagens que representam uma ameaça para o futuro e que é

20 [N.T.] Ambrosio O’Higgins era um militar irlândes, enviado pela


coroa espanhola, para o Chile; lá se tornou governador no ano de
1788.

38 ANA PIZARRO
necessário submetê-los às leis e usos da Nação”, nas palavras de Julio
A. Roca, realizador da chamada Campanha do Deserto, na Argentina.
O chileno Gregorio Urrutia, por sua vez, chefe da empresa correlata,
a chamada Pacificação da Araucanía no país vizinho, acusava-os de
“bárbaros com seus instintos de roubo e saque”. Foi uma guerra em
que cada um dos países temia que o vizinho avançasse e as fronteiras
do Biobío e do rio Negro foram vistas como uma ameaça. Contudo,
quando houve necessidade, coordenaram o desenvolvimento da
guerra contra o bárbaro inimigo comum.
Os assédios começaram cedo com a República e foram feitos
acordos de neutralidade com o estabelecimento de doações: erva,
açúcar, tabaco, aguardente. Os mapuches devolveram os prisioneiros.
Do lado argentino, a campanha começou em 1879. Do lado chileno, o
plano do coronel Cornelio Saavedra havia começado em 1860. Nesse
ponto, algumas revoltas marcaram o deslocamento de grande parte
da população mapuche entre Malleco21 e Biobío, com a usurpação de
suas terras. Agora se trata da colonização em sua versão moderna.
Os caciques são prontamente informados da nova ofensiva e o
berrante, sinal de perigo, soa entre os diferentes grupos mapuches
do lado chileno: arribanos, abajinos, costinos.22 O mensageiro começa
a correr entre eles. O werquén23 usa no pulso o fio vermelho cujos
nós registram os pontos da mensagem, os dias até a reunião, o

21 [N.T.] Malleco é uma cidade localizada na região de Araucanía,


no Chile.
22 [N.T.] Arribano é o mapuche que vive na pré-cordilheira (arriba);
abajino é aquele que vem das planícies, das terras baixas (tierras
bajas); e costinos são os que vivem na costa, no litoral.
23 [N.T.] Werquén é um líder da tradição mapuche que exerce a
função de mensageiro.

O VO O DO TUKUI 39
conselho dos loncos.24 Buscavam-se alianças do lado argentino e
acesso a Calfucura25, cacique dos pampas. É um momento em que
circulam profusamente de um lado e do outro, cuidando dos passos
da cordilheira. A capacidade guerreira adquire um novo movimento
diante da agressão. Os combatentes se concentram, apertam o
couro das boleadoras e a nova estratégia é desenhada. Mas, para
a República, trata-se de uma luta de expansão que tem o caráter
de uma guerra total, e do lado chileno alguns jornais denunciam a
“guerra de extermínio” promovida pelo exército e seu caráter imoral:
está destruindo fazendas e famílias inteiras. Os colonos usam o
apoio da guarda nacional para as apropriações, enquanto os vagões
e a ferrovia avançam fundando fortes e vilas. O grande malón26, a
insurreição, ocorreu em 1881 no lado chileno. Mas o exército, que
venceu no Peru, agora é diferente: é um exército moderno e usa o
rifle de repetição. Do lado argentino, a resistência ocorre em termos
similares e tem um caráter simbólico: antes de se renderem, os
índios cercados se jogam no precipício de Choique Mahuida27 em
1879. A rendição é dura. Quando fazem acordos com os nacionais,
os caciques devem entregar uma criança como sinal de promessa.
No parlamento indígena de 1883, decidem lutar até a morte. Mas
o exército argentino acaba por vencê-los: é a obra dos fuzis de
repetição, do telégrafo, da ferrovia.

24 [N.T.] Lonco é um chefe de várias comunidades mapuches.


25 [N.T.] Calfucura (c. 1778-1873) foi um importante lonco mapuche.
26 [N.T.] Malón é o nome de um ataque inesperado do povo ma-
puche. Era considerada uma maneira pela qual se poderia obter
justiça.
27 [N.T.] Choique Mahuida é o nome de uma montanha, atualmente
localizada na Argentina.

40 ANA PIZARRO
Terminada a guerra, chegaram os topógrafos, agrimensores,
engenheiros e advogados, atribuindo aos mapuches terras por
comunidades: reservas ou reduções que os tornariam camponeses
pobres, marginalizados e discriminados. Dos dez milhões de hectares
que possuíam no Chile, reduziu-se a meio milhão. Em 1960, estima-se
que havia dois hectares por pessoa. Ao passo que, entre 1883 e 1885,
o Estado entregava lotes a trinta mil colonos europeus de quinhentos
hectares ou mais, segundo as apurações de Jacques Chonchol.
Em 1883, a Pacificação da Araucanía terminaria com a ocupação de
Villarrica. Em 1885 termina, por sua vez, a Campanha do Deserto.
No final da década de 60 do século XX, ocorreu um processo
de levante do povo mapuche no sul do Chile, ao sul do rio Biobío,
cujo intuito era a recuperação das terras apropriadas pelos chilenos.
Terminou, como todo o movimento social no país, com o golpe
militar de Pinochet.
Nos nossos dias, e lentamente, as vozes mapuches se fizeram
ouvir. Em parte, por meio de seus poetas e profissionais: professores
e advogados, mostrando uma visão de mundo que evidencia outra
relação com o mundo, como no poema de Jaime Huenún:

Los árboles anoche amáronse indios:


mañío e ulmo, pellín e hualle
tineo e lingue nudo a nudo amáronse
amantísimos, peumos
bronceáronse cortezas, coigües mucho
besáronse raíces e barbas e renuevos, hasta el amor
despertar de las aves ya arrulladas

O VO O DO TUKUI 41
por las plumas de sus propios
mesmos amores trinantes.28

À noite as árvores se amavam como índios:


mañío e ulmo, pellín e hualle
tineo e lingue, de nó a nó, se amavam
enamoradísimos, peumos
curtiram-se as cascas, coigües vários,
beijaram-se raízes e musgos e rebentos,
até o amor despertar das aves já embaladas
pelas plumas de seus próprios
e mesmos amores trinantes.

Mas os mapuches também têm se feito ouvir por meio de um


movimento social que tem contornos diferentes. Alguns deles
aparecem hoje, e cada vez mais, com uma violência incomum, que
coloca o conflito dos confrontos ocorridos no sul do Chile como
um grande problema para o governo: há queima de caminhões e
equipamentos agrícolas e florestais, fechamento de estradas, ataques
armados. A resposta do governo é clara: nomeia como ministro do
Interior e Segurança Pública um ex-prefeito designado por Pinochet.
As demandas mapuches do século XXI estão relacionadas com
a situação dos povos aborígenes em nível internacional, em relação

28 [N.T.] Versos da poesia do poema “Ceremonia del amor”, de Jai-


me Luis Huenún, escritor chileno huilliche (etnia huilliche, ramo
sul do povo mapuche), nascido em 1967. No poema, são citados
diversos tipos de árvores da região sul do Chile, como mañío e
ulmo, pellín e hualle, laço e lingue, peumo e coiügue.

42 ANA PIZARRO
às quais o Chile tem chegado atrasado. Não se trata mais apenas da
questão histórica da recuperação de terras, principalmente nas mãos
de grandes propriedades ou empresas madeireiras. Trata-se do seu
reconhecimento como povo perante um Estado que os vê apenas como
“etnia”, o que limita o seu estatuto jurídico. Isso envolve também
uma série de formas nas relações culturais que os diminuem, num
tratamento discriminatório da população nacional que lhes atribui
o status de bárbaros diante de uma população chilena ilusoriamente
branca, que não é reconhecida como mestiça e privilegia a imagem da
imigração europeia. Nesse sentido, a reivindicação mapuche também
aponta para o resgate e a difusão de sua cultura. Embora seja verdade
que nas últimas duas décadas houve pequenos avanços nesse último
sentido, a situação está longe de ser o que deveria ser. Por isso, eles
estabelecem sua reivindicação na Convenção 169 das Nações Unidas
sobre Povos Indígenas e Tribais, assinada e em vigor no Chile desde
2009, que os reconhece e respeita em sua alteridade.
Nesse marco de relações, situa-se, entre outros, o assassinato do
comunero29 Camilo Catrillanca em 2018, em que policiais interferiram
na investigação até que um dos seus membros fosse considerado
culpado, graças à pressão dos movimentos de cidadãos que o exigiam.
O grande surto social de outubro de 2019 nas ruas do país evidenciou
o avanço da consciência chilena, por meio de uma inusitada e
inumerável exibição de bandeiras mapuches.

29 [N.T.] Comunero é o nome dado ao líder político social-demo-


crata de cada distrito (comuna).

O VO O DO TUKUI 43
Também é necessário avaliar um avanço recente em que o machi
(xamã) Celestino Córdoba30, condenado a 18 anos de prisão por um
incêndio com consequências de morte, foi autorizado a participar
de uma cerimônia em sua comunidade após uma prolongada greve
de fome e antes de entrar em uma instituição prisional. Isso é o
produto da mobilização social e mostra, em um primeiro momento,
que a Convenção 169 é uma realidade na qual é preciso avançar nas
abordagens e no diálogo em condições de equilíbrio. Assim como a
pandemia que nos assola — e com maior força nos setores populares
e indígenas —, tais fatos mostram que a ciência e o conhecimento
institucional, nos quais acreditamos haver respostas precisas, estão
repletos de incertezas. Tudo isso evidenciou também que existem
diferentes formas de pensar e saber ligadas não só à racionalidade,
mas à sensibilidade, à emoção, à imaginação ou à perplexidade, que
precisamos aprender a valorizar nas culturas não ocidentais. Em uma
demonstração da história como transformação, da história como
movimento e transcurso — pois, como diz Riobaldo31, personagem
de Guimarães Rosa, a sociedade muda porque “as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas [...] elas vão sempre
mudando” —, a Convenção que constrói a nova constituição do
país, ou seja, seu futuro, será presidida por uma mulher mapuche.32
O futuro se abre a expectativas de maior justiça no país.

30 [N.T.] Celestino Córdoba (nascido em 1986) é um machi da co-


munidade Chicahual Córdova, da comuna de Padre Las Casas, na
região da Araucanía.
31 [N.T.] Riobaldo é um personagem de Grande Sertão Veredas (1956).
32 [N.T.] Ana Pizarro está se referindo a Elisa Loncon, linguista
mapuche, presidente da Constituinte chilena entre julho de 2021
e janeiro de 2022.

44 ANA PIZARRO
O PÓS-HUIDOBRISMO
NO CHILE 33

A geografia chilena nos faz um país muito comprido e estreito. A


história da poesia, sobretudo no século XX, o século da modernidade
que nos faz unos e únicos, sem fissuras, monolíticos, estabeleceu-
se em nosso país, nessa geografia estreita entre cordilheira e mar.
Parece que nela não há lugar para talentos diversos e por isso surgem
as polêmicas, as disputas, a guerrilha literária para determinar essa
figura ímpar e única da poesia chilena. Nesse céu, porém, há lugar
para todos, que são uma diversidade na qual, é verdade, há muitos
grandes. Parece infantil, então, jogar o jogo do quem é o melhor
poeta? Mas historicamente houve diatribes34, que geram adesões,
rivalidades, discussões, polêmicas, queixas. A história da poesia
chilena, a pequena, parece ser um memorial de queixas. Vicente
Huidobro não agiu de forma diferente: era o único, o rei do Chile,

33 [N.T.] Pós-huidobrismo é um movimento, na literatura, posterior


ao movimento de vanguarda do poeta chileno Vicente Huidobro
(1893-1948), conhecido como huidobrismo.
34 [N.T.] Sendo um termo da Grécia Clássica e do período hele-
nista, praticada originalmente pelos estóicos e cínicos, a diatribe
(diatribē: conversação) é um discurso ou nota escrita feito em uma
perspectiva moral, defendida costumeira de forma polêmica, sa-
tírica ou violenta.

O VO O DO TUKUI 45
o fundador da vanguarda, e levou a sua guerrilha a Paris nos anos
1920, confrontando-se com Pierre Reverdy.35 Depois o enfrentamento
seguiu, até os dias de hoje, em um país onde a poesia tem valor
maior. Ele identifica, define, gera o seu próprio discurso, em que
obviamente a história nacional, o contorno, o desenvolvimento das
nossas feridas e a visualidade das nossas cicatrizes estão presentes.
Mas vamos à história maior, a da própria palavra e, então, a
claridade parecerá também maior. Durante o século XX ocorre uma
produção de grande poesia que expressa dimensões fundamentais
do país. Isso, como toda produção, costuma ser irregular. Mas que
produção não é? É a linha que atravessa o século e onde estão os
nomes de Gabriela Mistral, Pablo de Rokha, Pablo Neruda e Gonzalo
Rojas. É o grosso trabalho de uma construção que faz a poesia do
século. Às vezes e, principalmente, no final, já perto de 1948, inclui-se
também o Huidobro de, por exemplo, Monumento ao mar. Nele está
a palpitação tectônica que os sujeitos experimentam em sua relação
com o constituinte daquele país: os materiais que o sustentam, as
camadas geológicas que o impedem de cair no vazio. Mas também a
presença generalizada ao longo de todo o país desse mar de intensas
águas azuis e geladas, as montanhas, os brutais movimentos telúricos,
as pedras, a transparência do ar que eleva o céu às alturas do homem.
Não é necessariamente uma poesia de solenidade, mas é uma
poesia que tem maiores dificuldades para ser festiva, embora o
faça em termos de expressão de prazer, erotismo, discurso lúdico,
entre outros. O processo de criação no Chile é marcado por isso. A

35 [N.T.] Pierre Reverdy (1889-1960), poeta francês fortemente asso-


ciado ao cubismo do início do século XX.

46 ANA PIZARRO
explosão da poesia de Huidobro, o poeta que chegou ao país nos
anos 1920 com as vanguardas europeias no bolso e as dispensou
com seu gesto oligárquico de quem está além da aldeia chilena, aos
poucos começa a penetrar no país. As vanguardas europeias, que
na América Latina têm uma resposta própria, ligada, entre outras, à
política subversiva contra as ditaduras da primeira metade do século,
e que, ao mesmo tempo, adquiriram o tom reivindicativo das culturas
indígenas e afro-americanas, no Chile têm uma apropriação muito
tardia. Huidobro as instala nos anos 1920, mas o enaltecimento do
discurso de vanguarda não tem caráter grupal, a não ser em pequena
medida, e vai penetrando nas gerações seguintes. Como nas artes
plásticas, com Wilfredo Lam, Roberto Matta, Tarsila do Amaral,
Gunther Gerzso ou Rufino Tamayo, a vanguarda europeia no Chile
é uma lente de reconfiguração modernizante da linguagem que nos
permite ver a realidade com novos olhos. Ao fazê-lo, essa realidade
já não é a mesma. É assim que a palavra —a atitude — e a vanguarda
da informação huidobriana renovam as linguagens aos poucos e
nos discursos individuais. O discurso de Huidobro é estimado por
poucos e sua abertura é evidenciada apenas em algumas poesias.
O terreno de Huidobro no país é estreito, e o poeta, amplamente
difundido na Espanha e na França muito antes, não será reconhecido
como poeta nacional de forma massiva até os anos noventa do
século passado, em que tivemos a possibilidade de inseri-lo na
opinião pública.
O discurso de Nicanor Parra parte dessa linha central da poesia
chilena. Entra no campo huidobriano da visualidade, incorpora
o espaço da cultura popular e gera um sujeito da enunciação de

O VO O DO TUKUI 47
distanciamento irônico do qual emerge a visão de mundo que,
retomando a expressão huidobriana, denomina “antipoesia”.
Como criação, é uma palavra descrente, um olhar oblíquo, uma
forma perspicaz de se expressar, em que os discursos se acumulam
semanticamente, gerando virtualidade, pluralidade, criação de
múltiplos sentidos:

Alguien anda diciendo por ahí


Que cuando Vicentito se pone insolente
Cosa que ocurre bien a menudo
Poco se gana con bajar la voz
Arriba los corazones
Ha llegado la hora del recto al mentón
Ojos en tinta dientes de menos
Y vamos viendo qué es la poesía.

Algúem está dizendo por aí


Que quando Vicentinho se põe insolente
Coisa que ocorre com frequência
Pouco adianta abaixar a voz
Que não desanime os corações
É chegada a hora de um direto no queixo
Olhos roxos dentes de menos
E vamos vendo o que é a poesia.

Esse discurso perspicaz incorpora a expressão popular e massiva,


propondo-nos uma fala que diz algo para significar outra coisa. Mas se

48 ANA PIZARRO
o interlocutor não a entende ou a leva à risca, não importa, sua função
é estabelecer cumplicidades com quem tem os mesmos códigos: é
um discurso compartilhado em que o subtexto é suficientemente
socializado. “Acima dos corações” é a expressão de um momento
na cueca, a dança nacional que tem como função elevar o ritmo dos
acontecimentos e pôr tudo em movimento. Nesse sentido, o verso de
Parra incorpora um conhecimento compartilhado da cultura chilena
que oferece ecos de musicalização e significados múltiplos.
Da mesma forma, em relação a uma das diatribes de Huidobro
com Neruda:

Lástima que el pobre Neruda


Haya terminado pisando el palito
No tenía perno para esa tuerca
Era poeta lírico no dramático
No sabía pelear a puño limpio
No manejaba bien la margarita
Se veía mejor en la penumbra.

Lástima que o pobre Neruda


Acabou caindo numa arapuca
Não tinha parafuso para essa ruela
Era poeta lírico não dramático
Não sabia brigar de socos
Não manejava bem agulha e linha
Ele se via melhor na penumbra.

O VO O DO TUKUI 49
Com essa série de expressões, ele constrói aqui um perfil de
Neruda a partir da fala popular, o que é no mínimo um golpe duplo.
Por um lado, o do perfil edificado e, por outro, o do lugar onde se
situa a enunciação, o popular, que, em princípio, é o setor social
ao qual Neruda está associado. Aí reside uma parte da insolência
do discurso de Parra: na reviravolta perspicaz, na desmistificação,
na construção de um sujeito da enunciação que se repreende a si
mesmo, que descrê, que desconstrói. É um sujeito anti-heróico, que
observa a realidade com certo sarcasmo, com a ironia de quem está
fora dela, e daí o huidobrismo, mas não por uma origem oligárquica,
mas por uma localização procurada de um sujeito descrente, alheio
a todos os rituais.
Essa tendência coloca Parra, de forma premonitória, na
modernidade tardia. Esse sujeito da enunciação poética que fala em
sua criação, tanto verbal quanto plástica, é um sujeito que se relaciona
principalmente com o período desmistificador e desconstrutivo da
parte tardia da nossa modernidade latino-americana, com seu perfil
de leveza, pluralidade e abertura. Também de fragmentação. Talvez
esse último esteja relacionado com a caracterização de seu discurso
como o característico de países com história colonial.
Pelas razões históricas próprias —ou seja, da colonização —, a
conformação dos discursos na América Latina é plural. São sistemas
muito diferentes, com temas, linguagens, estruturas, tempos próprios:
erudito, popular rural e urbano, de massas, sistema literário cultural
indígena. A corrente mais identificadora da evolução desses sistemas
no século XX é a da apropriação gradual e com carisma diferente
das culturas dos sistemas popular e indígena por parte das culturas

50 ANA PIZARRO
eruditas. Existem diferentes modos de circulação interna desses
discursos, alguns são mais fechados, outros diretamente abertos à
mudança. Marta Traba nos anos setenta já falava de áreas abertas e
áreas fechadas na caracterização de nossas culturas. As áreas mais
marcadas por culturas indígenas são mais relutantes à mudança,
chamados por Darcy Ribeiro de “povos testemunhas”. Mas os
sistemas culturais estão sempre em movimento, eles experimentam
permanentemente a transformação.
Seu direcionamento histórico revela uma incorporação gradativa
do popular, uma subversão de conteúdos míticos, visões de mundo,
linguagens do sistema erudito a partir do sistema popular e indígena
que toma diferentes formatos, mas constitui um movimento central
na conformação desses discursos. Digo “central” porque existem
outros movimentos em diferentes direções que constroem o discurso
da literatura e a literatura no continente.
O discurso de Nicanor Parra entra nessa vertente. A incorporação
do popular em uma perspectiva de mundo necessariamente erudita
mostra muitas nuances e, em particular, a dos códigos do mundo
popular chileno. Isso tudo, desde um sujeito de olhar perspicaz:

Chile fértil provincia


Hacienda con vista al mar
Administrada por su propio dueño

Chile fértil província


Fazenda com vista para o mar
Administrada por seu próprio dono

O VO O DO TUKUI 51
Aqui a perspectiva do país, construída em um verso de La
Araucana de Alonso de Ercilla36, poema épico fundador, como
qualquer nação que se orgulha disso, é de uma fazenda. Em outras
palavras, é o poder da oligarquia latifundiária, é a desigualdade, é
o dinheiro, com vista para o mar. Isso gera uma associação com a
expressão da publicidade imobiliária que aumenta o valor devido
à sua localização. Para depois terminar com a publicidade de um
negócio de bairro com fundo autoritário de único dono do país. Essa é
a linguagem de Parra, linguagem de ecos, de suspeitas, de insolências,
das quais surgem também e, evidentemente, seu encanto.
O pano de fundo huidobriano é claro, como o de Duchamp e as
vanguardas históricas com seu viés de confronto. Trata-se de um
sujeito que descrê e olha a realidade de lado, destacando também
seus horrores, mas com o sorriso um tanto irônico de sociedades que
precisaram forjar suas próprias linguagens diante de sua história e
de sua realidade atual.

36 [N.T.] Alonso de Ercilla (1533-1594) foi um poeta e soldado espa-


nhol. O poema épico La Araucana é uma importante obra sua, onde
relata a primeira fase da Guerra de Arauco (1550-1656).

52 ANA PIZARRO
COLONIALIDADE. OBSERVAÇÕES SOBRE
A CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS

Na presente reflexão, farei um exercício comparativo com o


objetivo de nos aproximarmos de algumas dinâmicas possíveis de
observar nas próprias literaturas o que Aníbal Quijano tem chamado
de “colonialidade do poder”, isto é, a marca estrutural que é herdada
do período colonial e que, neste caso, condiciona uma configuração
específica do discurso. Nesta tarefa, observarei, em primeiro lugar,
textos de alguns autores que, no que me parece, são de uma linha
importante da literatura erudita atual da América Latina e do Caribe,
caracterizada pela presença do popular. Isso para chegar, em segundo
lugar e, por meio dos movimentos da relação entre os sistemas
literários, ao que me interessa discutir e propor sobre os mecanismos
de construção do discurso nos espaços de história colonial.
Refiro-me ao discurso na concepção foucaultiana, por isso falo
de “construção”. Efetivamente, falarei de um discurso cuja forma
é dinâmica, uma argamassa que se modifica, se fundamenta, se
fragiliza, está atravessada por vontades diversas, por diferentes
instâncias do desejo, pela verdade e pela vontade de verdade, com
seus procedimentos internos, seus princípios de classificação, sua
ordenação, sua distribuição, suas defasagens rituais e, portanto,

O VO O DO TUKUI 53
suas exclusões e formas de adequação social. O discurso com uma
dinâmica interna, como assinalava Michel Foucault, em sua clássica
conferência de ingresso ao Collège de France em 1970. O discurso,
também, como espaço de luta e objeto em disputa.

O discurso — a psicanálise nos tem mostrado —


não é simplesmente o que manifesta (ou encobre)
o desejo; é também o que é o objeto de desejo; e já
que — isso a história não deixa de nos ensinar — o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas sim aquilo
pelo que, e por meio do que, se luta, aquele poder
de quem quer ser seu próprio dono.

Pois o discurso é também objeto de controle desde o exterior


mediante a imposição de uma ordem:

Não se trata desta vez de dominar os poderes


que implicam (os discursos), nem de evitar os
acasos de sua aparição; trata-se de determinar
as condições de sua utilização, de impor aos
indivíduos que lhe dizem certo número de regras
e não permitir, dessa forma, seu acesso ao mundo
todo. Enfraquecimento, desta vez, dos sujeitos que
falam; ninguém entrará na ordem do discurso se
não satisfaz certas exigências ou se não está, de
entrada, qualificado para fazê-lo.

54 ANA PIZARRO
Essa ordem excludente imposta, desde o exterior, conduz o
discurso a um movimento interno, a reconstruir-se, a remodelar-se.
Ela pode ser considerada como entidade em movimento que reage,
incorpora e se constrói. Ainda mais por estar situada em espaços de
história colonial.
Sabemos que a colônia age como instância de dominação de
um território sobre outro, tal como tem sido descrito nos trabalhos
de Immanuel Wallerstein e, em especial, de Aníbal Quijano sobre
a América Latina. A colonialidade, pensada por esse último autor,
não é a mesma coisa, pois é a prolongação das formas de poder para
além da independência formal. É a estrutura de poder, cujo centro
está localizado no centro-norte da Europa, após uma sistemática
história de formação do eurocentrismo que se prolonga no novo
padrão de poder mundial; prolongação que alcança todos os níveis
da vida social, incluindo a intersubjetividade:

Todo esse conturbado processo implicou, a


longo prazo, uma colonização das perspectivas
cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar
sentido aos resultados da experiência material
ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de
relações intersubjetivas do mundo, da cultura, em
suma (Aníbal Quijano).

Nesse processo, como sabemos, o tempo histórico do capitalismo


europeu nascente, que havia estabelecido em sua história formas
específicas do discurso escrito, se impôs sobre as formas indígenas

O VO O DO TUKUI 55
fundamentalmente orais. Ali se originou um campo de conflito,
tensionado pela hegemonia da forma européia escrita e a submissão
da expressão indígena, devido à nova ordem social que se instala.
Como sabemos, os discursos indígenas continuam existindo como tais
em áreas de sobrevivência que têm permitido sua continuidade até
hoje, eminentemente no âmbito popular, e algo similar tem ocorrido
com outras formas culturais dominadas, associadas ao mundo afro-
americano, resultante da escravidão. Nesse caso, a persistência, ainda
que forte, foi menor pelas condições históricas do transplante, que
deixou no lugar de origem a memória histórica situada, como é o caso,
nas culturas orais, entre os anciãos. As oralidades (afro)subsistentes e
as que foram geradas aqui também iriam constituir parte do popular
como âmbito de subalternidade.
Pois bem, nesse campo de tensões, evidentemente, a letra e a
“cidade letrada” [alusão a livro de Ángel Rama] impuseram sua ordem
discursiva em nível continental, mas o espaço hegemônico que foi
delimitado por elas foi e é sempre subvertido pelas formas das línguas
e dos pensamentos dos povos dominados, como tem sido estudado
por Martin Lienhard, no mundo quechua, e Serge Gruzinski, no
caso da arte mesoamericana. Uma disposição semelhante pode ser
encontrada entre os crioulos negros e brancos desde o período da
conquista até os dias atuais. Apreciável por meio dos textos literários,
essa disposição anti-hegemônica foi gradativamente constituindo
o próprio texto erudito continental em sua particularidade. No
entanto, surge de uma complexidade maior do que a sugerida pelas
interpretações “matriciais” da cultura latino-americana, ou seja,
aquelas que fazem nossas culturas remontarem às matrizes indígenas,

56 ANA PIZARRO
europeias e africanas e suas combinações. Por um lado, porque essas
culturas apresentam uma pluralidade maior do que se pensa em
termos de díades e em desenvolvimento linear. Pluralidade associada
a uma multiplicidade e multidirecionalidade de fluxos culturais que,
de fato, atualmente estão aumentando, manifestando-se em seus
cruzamentos e hibridizações. Por outro lado, porque hoje é evidente
que essa pluralidade não vem determinada pelo pertencimento
“étnico”, mas também por outros horizontes de identificação cultural
que se abrem, se visibilizam e se tornam operantes. Identidades
e processos subalternos tendem a reforçar a direção da nossa
literatura em seu sentido anti-hegemônico e anticolonial, tornando
as operações mais complexas em um âmbito de natureza diversa
sobre o qual nos deteremos.
Assim, quando se fala em literatura e, principalmente, literatura
latino-americana, é necessário considerá-la a partir de uma
espessura constitutiva que transcende e altera o caráter erudito
que habitualmente lhe é atribuído. Como já afirmei em publicações
anteriores, considero o conjunto de sistemas literários que constituem
os discursos estéticos da palavra: o erudito, o popular (rural e urbano)
e o indígena, acrescentando e intervindo neles um sistema popular
midiático que exige outros olhares. Cada um tem seu emissor, seu
público receptor, seus intermediários e participa de uma estética
própria, na qual os três estão imersos, ou seja, cada sistema possui
uma estética singular. Esses sistemas estão superpostos: são
produzidos discursos estéticos tanto na literatura erudita (escrita,
impressa e em línguas metropolitanas), como na popular (oral e
escrita, publicada de forma artesanal em geral; às vezes musicalizada)

O VO O DO TUKUI 57
e nas literaturas indígenas, geralmente orais, atualmente em grande
processo de publicação pelos mesmos emissores (a criação, nesse
caso, é muito mais social que individual). Essa pluralidade de sistemas
está relacionada com a formação histórica da nossa literatura, com seu
discurso surgido em condições de colonização, com a fragmentação
sociocultural que ela impõe.
Mas também, em segundo lugar, esses sistemas interagem entre
si, desde diferentes lugares de enunciação, relacionados a diferentes
experiências de colonialidade, bem como a posicionamentos
diferenciados.
O discurso, entendido como “aquilo por que e por meio do
que se luta, aquele poder de quem quer muito tornar-se dono de
si”, deixa o rastro dessas batalhas em seu cerco da escrita. Nesse
sentido, apesar de poder diferenciar os sistemas que organizam
nossas literaturas, cabe assumir diante delas perspectivas mais
complexas e abrangentes, abertas a reconhecer tanto suas interações
recíprocas quanto as alteridades e diferenças emergentes que também
lhe são constitutivas, em outras palavras, cabe transcender visões
claramente étnicas ou baseadas na estratificação social, a fim de
integrar os fluxos e interações culturais em novas perspectivas de
globalização, modernização e midiatização. Embora seja certamente
importante não deixar de se perguntar de que maneira tais fluxos,
interações e processos se articulam às configurações grosseiras
que particularizam e orientam nossa literatura continental em sua
colonialidade constitutiva.
Antes de retomar as considerações precedentes, as ilustrarei
abordando a obra de três escritores que hoje já mostraram uma

58 ANA PIZARRO
continuidade em sua produção. Dois deles são do Caribe, hispano-
falante e anglófono, ou seja, do norte da América do Sul, onde a
pluralidade é muito notória; e um terceiro, que é do Chile, no sul do
continente, que se apresentou ou, pelo menos, é assim que se quis
ver, como um espaço com um tom mais homogêneo.
Esses autores são o chileno Pedro Lemebel, a porto-riquenha Ana
Lydia Vega e o jamaicano Linton Kwesi Johnson.
Para começar, abordo um fragmento de Pedro Lemebel, um autor
que tem um grande público, que é atraído por uma escrita bastante
surpreendente a respeito do que era considerado canônico nos anos
1970.
Ele é um autor expressivo da mudança típica da modernidade
tardia. O autor fala, por um lado, do sujeito homossexual, para nos
fazer compartilhar sedutoramente esse universo em sua ternura e
humanidade, e, por outro lado, do sujeito homossexual de setores
populares e mestiços. Quais são as diferenças? E por quê? Quais são os
mecanismos, as estratégias de Lemebel ao construir sua enunciação?
Escutemos primeiramente sua voz, que aqui toma forma de crônica,
como em boa parte de sua produção literária.
O tema do texto está relacionado a um fenômeno social da
mudança do século que paira, acima de tudo, na comunidade
homossexual: a AIDS. Vou traduzir os termos populares, com sua
carga de desvalorização e ironia a uma terminologia acadêmica,
porque me interessa seu destaque. Diz assim:

No gueto homossexual sempre se sabe quem é


soropositivo, os boatos correm rápido, as carteiras

O VO O DO TUKUI 59
são abertas inesperadamente, papéis e remédios
são jogados no chão. E há sempre o intruso que
ajuda a pegar, perguntando: Para que serve o
certificado médico e as pílulas? E estas seringas,
gata? Não me diga que você é uma viciada.
Nestes lugares, onde se aninha com fugacidade
a juerga coliza [homossexual]: organizações de
prevenção, movimentos políticos reivindicatórios,
eventos culturais, desfiles de moda, salões de
cabeleireiro e discotecas, nunca falta a indireta,
a talla [a piada], o conchazo [a piada violenta]
que alardeia com alaraco [voz exagerada] a
palidez repentina da amiga que está entrando.
Seu sarcoma parece ótimo, minha linda! Assim,
os doentes são confundidos com os saudáveis, e o
estigma aidético passa por uma cotidianidade de
clube, através de uma familiaridade compinche
[amistosa] que frivoliza o drama. E esta forma de
lidar com a epidemia parece ser o melhor antídoto
para a depressão e a solidão, que é, em última
instância, o que acaba destruindo os infectados
(Pedro Lemebel).37

Nesse enunciado, vários elementos estão relacionados com a nova


posição do sujeito que escreve e seu modo de construir a enunciação.

37 [N.T.] Nesta citação, as gírias em espanhol são traduzidas em


colchetes pela própria autora.

60 ANA PIZARRO
O exercício retórico aponta para a sedução, aquele que fala desde
uma situação de enunciação performática que, desde já, tem muito
de kitsch e está permanentemente levando essa situação ao limite. O
autor começou o exercício performático durante a ditadura chilena,
nos anos 1980, quando, junto com o escritor e artista Francisco Casas,
constituiu um coletivo de arte chamado “As Éguas do Apocalipse”.
Eles se manifestavam em lugares públicos com gestos disruptivos. O
Chile é um país muito conservador, portanto o efeito era forte. Mas,
para o público da época da ditadura — um público silenciosamente
crítico —, essa atitude disruptiva, que apareceu fundamentalmente
na dimensão de gênero, foi muito mais longe e produziu um efeito
politicamente libertador após o primeiro impacto. A partir dos anos
1990, com a incipiente democratização política, Lemebel passou a
publicar crônicas, depois compilações e uma narrativa que fez muito
sucesso de crítica e vendas.
O tapa de felino acuado que articula sua escrita dá lugar ao
confronto com impudência, ao giro irônico, ao golpe com a sedução
performativa, ao humor permanente, muitas vezes negro, que
flexiona sua voz.
Há muito mais do que posicionamento de gênero, há a resposta a
uma agressão do meio chileno, ícone do consumo, do individualismo,
do neoliberalismo imposto a sangue e fogo pela ditadura e nunca
mais questionado pelo establishment.
Numa análise acurada, o crítico Leônidas Morales aponta:

A resposta de Lemebel a tal agressão é conceber


e colocar em prática estratégias discursivas

O VO O DO TUKUI 61
destinadas a instalar uma verdade que nega a
legitimidade da ordem das coisas (a do presente
e seu cotidiano) regida, a partir da mediação do
subdesenvolvimento e da história específica chilena,
por meio do paradigma da globalização, e coloca
à luz o que não diz, esconde ou manipula. O que,
em Lemebel, supõe-se assumir o controle daquelas
áreas do espaço social e cultural do presente
obscurecidas ou silenciadas pelo poder.

Uma estratégia central da qual se encarrega é, justamente, a


incorporação da linguagem do setor homossexual popular. Por isso “la
loca”, a “farra marucha”, o “conchazo”, a “talla”; a estrutura do diálogo
como tagarelice ou fofoca, a inflexão enunciativa. Mas, assim como
neste autor o discurso é irredutível a uma dimensão étnica, também
não o poderia ser a uma dimensão puramente de gênero. Em todo
caso, o queer é percebido aqui em seu funcionamento acentuado e
de acordo com a política hibridizadora, diversificadora, poluidora e
anti-hegemônica da escrita continental.
Esse é um primeiro caso. A proposta de Pedro Lemebel está ligada,
desde a perspectiva do que estamos observando e apesar de não
parecer à primeira vista, a outros tipos de textos, como, por exemplo,
os de Ana Lydia Vega (1946). A escrita dessa autora porto-riquenha
pertence a um fenômeno próprio do período da modernidade tardia
na América Latina, o do surgimento massivo da escrita de mulheres.
Isso acontece a partir dos anos 1980 no continente, no México, na
América Central, na Argentina, no Chile e, sobretudo no começo, no

62 ANA PIZARRO
Caribe, onde emergem vozes tão potentes como as de Maryse Condé
na região francófona ou Jamaica Kincaid na anglófona.
Mas o surgimento é vasto, de modo que não apela mais tanto ao
gênero, que evidentemente pesa em temas e estruturas, como em
esquetes anteriores, mas à qualidade de sua instalação no espaço
canônico do literário. Ana Lydia Vega forma parte dessas novas vozes.
Quero observar um texto bastante conhecido de Vega, com alguns
elementos que nos interessam destacar por meio da perspectiva de
pluralidade que estou sustentando. O fragmento pertence ao conto
intitulado Pollito chicken [Chicken franguinho].38 Nele, a autora relata
a história de uma porto-riquenha, Susana Bermúdez, e seu retorno,
após dez anos nos Estados Unidos, a Porto Rico. O conto começa
assim:

I really had a wonderful time, dijo Suzie Bermiúdez


a su jefe tan pronto puso un spike-heel en la oficina.
San Juan is wonderful, corroboró el jefe con
benévola inflexión, reprimiendo ferozmente el deseo
de añadir: I wonder why you Spiks don’t stay home
and enjoy it. Todo lo cual nos pone en el aprieto de
contarles el surprise return de Suzie Bermiúdez a
su native land tras diez años de luchas incesantes
(A.L.Vega, Pollito chicken).

38 [N.T.] Trata-se de um título em “espanglês”, ou seja, uma mis-


tura de espanhol com inglês: pollito, em espanhol, é franguinho;
chicken é galinha/frango.

O VO O DO TUKUI 63
Tive realmente momentos maravilhosos, disse
Suzie Bermiúdez a seu chefe assim que colocou
um salto alto de bico fino no escritório. San Juan é
maravilhoso, corroborou o chefe com uma inflexão
benevolente, reprimindo ferozmente sua vontade
de acrescentar: e eu me pergunto por que vocês,
Saltões, não ficam em casa e se divertem. Tudo
isso nos coloca no lugar certo para contar sobre o
retorno surpresa de Suzie Bermiúdez à sua terra
natal após dez anos de luta incansável (A.L.Vega,
Pollito chicken).

Em tom paródico, a porto-riquenha, em poucas linhas, revela


várias dimensões que expõem a situação do sujeito da enunciação: a
exposição de uma condição anômala. Por um lado, pela linguagem, já
que o spanglish nos coloca em um espaço surpreendente, um espaço
de interação linguística também cultural e capaz de gerar uma estética
própria (Sommer), peculiar ao cotidiano de uma parte de seu país.
Isso significa uma pausa e um desafio. O crítico Aníbal González
insere Ana Lydia dentro de uma tradição literária caribenha, que
passa por Aimé Césaire, sobre o qual ela também trabalha,, ou Luis
Palés Matos, na tentativa de evidenciar a pluralidade cultural da área:

Como muitos atuais escritores e escritoras porto-


riquenhos, Vega considera que Porto Rico é, antes
de tudo, uma nação caribenha, logo uma nação
hispano-americana, e somente de forma acidental

64 ANA PIZARRO
e temporária uma posse norte-americana. Definir
a identidade porto-riquenha em função de uma
identidade cultural caribenha mais ampla,
contudo, implica confrontar-se com um problema
que tem ocupado a inteligência e a imaginação
de praticamente todos os grandes escritores
caribenhos, desde Cuba até Trindade, há, pelo
menos, um século: trata-se da questão da unidade
ou multiplicidade da região caribenha. Com efeito,
a própria identidade cultural do Caribe, assim como
sua integridade regional, estão em questionamento
e suscitam profundos problemas de epistemologia
sociológica.

Por outro lado, na história a que nos referimos, esse desdobramento


idiomático é construído em tom humorístico. A aventura sexual com
que a história culmina é coroada com o grito de Susie “Viva Puerto Rico
Libre”, com uma autoconfiança que sugere formas de leitura culturais,
linguísticas ou fortemente políticas. Estamos longe do tom sério, e
inclusive solene, de escritos anteriores na literatura latino-americana
dos anos 1960 e seu tipo de reivindicação política. Aqui é o humor
que interpela a leitura da história num código feminino, em que a
petite histoire [pequena história] é também a grande histoire [grande
história]; em que a intimidade do privado é também uma forma do
público, do político, e não há dilema em colocá-lo em evidência. Há
nesse exercício uma afirmação da ordem do feminino e do feminista:
o direito de contar a seu país desde outro lugar, ou seja, há também

O VO O DO TUKUI 65
aqui uma afirmação e uma posição sobre a escrita da história. No
grande debate que surgiu ao longo do século 1920 sobre essa questão,
Vega propõe uma leitura a partir da subalternidade, ou seja, da classe
média baixa e dos setores populares, de mulheres, de latinos.
Ana Lydia Vega, assim como Lemebel, escreve crônicas, gênero
que parece confortável para os escritores atuais e que dá conta de
um interesse testemunhal em relação ao presente. Mas os autores
escrevem também contos e outros tipos de narrativas, em que
constroem uma linguagem própria, assim como um modo diferente
de encarar a denúncia política e de gênero, com complexidade, humor
e sátira. A virada da linguagem também aponta, como dissemos, para
a performatividade como estratégia de intervenção na situação de
enunciação.
Agora, em terceiro lugar, observo uma expressão poética própria
do Caribe anglófono que atualmente tem um desenvolvimento
significativo. Trata-se da poesia dub. Sabemos o que é o movimento
rastafari na Jamaica e sua expressão musical no reggae. A poesia dub
está diretamente relacionada com isso.
É um movimento poético importante que coleta os problemas
sociais do mundo popular e da injustiça em geral. Como assinala
o crítico Arnaldo Valero, sintetizando a questão, “em sua busca
estética, a rua adquire uma relevância primordial, pois a poesia dub
tem comunicado todo o ressentimento que desemboca no distúrbio”.
Relacionada ao reggae e emergindo do mundo negro, é uma poesia
que guarda dimensões da ritualidade própria dessa cultura.
Incorpora a história e o presente das situações de racismo e
preconceito e o canta, grita-o ou o recita. Como nos casos anteriores,

66 ANA PIZARRO
sua presença é performativa. É preciso ouvi-lo, mas tomaremos como
exemplo um texto de um de seus autores clássicos, Linton Kwesi
Johnson, cujas leituras e performances foram feitas até mesmo no
teatro Olympia de Paris, ou seja, diante de um público massivo.
A recepção desse tipo de poesia é ampla e representa uma parte
importante da cultura da Jamaica. Nesse sentido, não podemos
situá-la no campo do “contracultural”, que seria uma expressão
eurocêntrica, na verdade se trata de uma manifestação cultural
própria da periferia. Se nos guiamos por essa noção, toda nossa
cultura é contracultural. Poesia, música e rebeldia aqui ocupam o
espaço de uma única difusão, que é ao mesmo tempo uma expressão
da voz da rua, como se vê em “Inglan is a bitch”:

W’en mi jus’ come to Landantoun


mi use to work pan di andahgroun
but workin’ pan di andahgroun
y’u don’t get fi know your way around
Inglan is a bitch
dere’s no escapin it
Inglan is a bitch
dere’s no runnin’ whey fram it
mi get a lickle jab in a bih ’otell
an’ awftah a while, mi wozdoin’ quite well
demstaat mi aaf as a dish-washah
but w’en mi tek a stack, mi nohtun clack-watchah
Inglan is a bitch
dere’s no escapin it

O VO O DO TUKUI 67
Inglan is a bitch
no baddah try fi hide fram it (…)
(L.K.Johnson )

Como vemos, o texto está escrito em pidgin39, a linguagem


popular das Antilhas anglófonas. Para quem o escuta e o vê, já que
sua leitura é performática, é algo rítmico, musical, no compasso do
reggae jamaicano — e similar também ao rap norte-americano que
está influenciado pelo primeiro —, em que o refrão “Inglan is a bitch”
marca, em distintos tons, as pausas musicais. Surgido desde o mundo
afro-americano, o reggae expressa os setores mais marginais do Caribe
anglófono, porém chegou a se incorporar a grandes maiorias em nível
internacional. Emilio Jorge Rodríguez aponta:

Os rastafaris sobrepuseram ao criolo jamaicano


uma terminologia própria, que enriqueceu a
fala cotidiana. Há originalidade e também
irreverência em relação ao idioma estandardizado.
Esses vocábulos e essas frases idiomáticas têm
a particularidade de não circunscrever-se ao
conglomerado da comunidade rasta, nem de ser
uma linguagem litúrgica, como acontece com
religiões ou irmandades africanas no Nuevo
Mundo. Portanto, se o rasta está gestando e fixando

39 [N.T.] Pidgin é uma expressão de língua inglesa que designa


qualquer idioma ou língua criado, normalmente de forma espon-
tânea, a partir da mistura entre duas ou mais línguas.

68 ANA PIZARRO
dia a dia uma modalidade que difere do crioulo
jamaicano, essa criatividade pode ser assimilada,
e tem sido, por boa parte da poesia.

Antonio Benítez Rojo tem revisado a cultura do Caribe desde


uma perspectiva contemporânea e põe em evidência o caráter
ritualístico e coletivo de sua experiência estética. É por isso que a
música se desenvolve tanto em uma sociedade onde o ritmo, não
necessariamente musical, mas de forma geral, constitui um eixo
emblemático. Nesse cenário, a poesia dub vem se expandindo desde
os anos sessenta e setenta, cuja presença é recitada, declamada
ao ritmo do reggae ou da música eletrônica em geral, com uma
importante influência no mundo do hip hop nos Estados Unidos.
Dentro desse contexto está a produção de Linton Kwesi Johnson,
que viveu na Inglaterra desde 1963 e fez parte do Movimento dos
Panteras Negras Britânico enquanto ainda estava na escola. Em tom
reinvindicativo, sua poesia denuncia o racismo, a discriminação
em geral, o colonialismo e a xenofobia, uma vez que coloca sobre
a mesa o tratamento dos imigrantes caribenhos e sua condição de
exploração na Inglaterra.
Essas vozes da literatura erudita de hoje, que tomamos para
ilustrar nossos propósitos, permitem-nos observar com clareza o
trabalho e os elementos com que parte significativa do discurso
literário erudito se constrói. Estou analisando textos dentro de uma
linha expressiva ampla na América Latina, considerando-se, como
se vê, não só os âmbitos hispanos e lusitanos, mas também o Caribe
em sua diversidade. Compreender o processo da literatura em sua

O VO O DO TUKUI 69
amplitude e em suas formas de construção, observando movimentos,
tropismos internos ao jogo dos sistemas literários na literatura
atual, sua configuração em relação a outras literaturas, com outros
contextos, é uma forma de conhecer os mecanismos de elaboração
do discurso.
A configuração dos sistemas literários que mencionamos acima
nos permite observar, atualmente, porque é evidente que existem
conexões entre eles; por um lado, é possível observar qual é a relação
de circulação e interação dos discursos internamente e, por outro
lado, a forma como os fluxos culturais em relação à exterioridade
se inserem e funcionam na construção histórica do discurso latino-
americano e caribenho. Em outras palavras, qual é a direção e a
configuração dessa circulação em discursos que são produto de
uma história colonial na modernidade tardia. Nessa circulação, um
discurso incorpora elementos de outros sistemas que, nos casos do
indígena e do popular, subvertem a estrutura discursiva do erudito, o
sistema mais ocidental, em função tanto da diferença colonial como
de uma diversidade de sujeitos subalternos. O discurso vai, assim,
ressignificando elementos, reorganizando-se o campo semântico e
a estrutura da enunciação.
Nos textos citados, suas presenças são também as de vozes
performáticas: a palavra é acompanhada de gestualidade e
representação, reafirmando, dessa forma, a origem de condição
oral, mas ao mesmo tempo seu pertencimento à atual forma de
modernidade, com a importância do espaço visual e de uma ética da
ação. Mas o mais articulador, nos três casos que observamos, é que
são sujeitos da enunciação que se encarregam da linguagem e do gesto

70 ANA PIZARRO
do mundo popular, agora não apenas em termos de conteúdo, mas na
elaboração de uma enunciação complexa e sofisticada, que exprime
em si mesma uma interpelação que não precisa da panfletagem da
linguagem política, mas elabora criativamente um discurso estético
de alerta ao incorporar diferentes horizontes identitários ligados a
“minorias” culturais.
Existem diferentes modos de circulação interna entre os sistemas
literários, dependendo da área cultural da América Latina em que
estão localizados: alguns são mais fechados, outros diretamente
abertos à mudança. Os sistemas culturais estão sempre em
movimento, eles constantemente passam por transformações, tanto
de fora do sistema quanto em seu movimento interno.
A direção histórica desses fluxos tem revelado uma incorporação
gradual do popular, uma subversão de seus conteúdos míticos, de
visões de mundo sobre as linguagens do sistema iluminista que
toma diferentes formatos e constitui um movimento central na sua
conformação. Esse processo é mais evidente no século XX, em que a
pluralidade é mais definida na América Latina. São os casos clássicos
de Juan Rulfo, José María Arguedas ou Guimarães Rosa, os autores
apontados por Ángel Rama. Eles constroem um discurso a partir
das reelaborações que gera um sistema sobre outro. Atualmente,
já no século XXI, no Caribe, Patrick Chamoiseau ou Derek Walcott
incorporam o seu discurso. O primeiro com a fala popular do Caribe
francófono, o segundo com a voz dos pescadores das ilhas anglófonas
esvaziando-se na enxurrada do discurso ocidental.
Cartas de cidadania, modos de representar o universo popular e
indígena com validez universal. E posso afirmar de forma provisória,

O VO O DO TUKUI 71
já que se trata de um estudo em processo, que essa tendência dos
discursos construídos em espaços de história colonial se reitera,
sobretudo, em outras zonas culturais, como atestam os escritos de
Ahmadou Kourouma, na Costa do Marfim, Tierno Monénembo, na
Guiné, Sony Labou Tansi, no Congo, ou Mia Couto, em Moçambique.
Consequentemente, é possível notar, nesses autores, movimentos
similares do discurso erudito, em que o francês, o inglês e o português
metropolitanos adquiriram uma vida estética diferente.
O que observamos, então, é um movimento de espaços culturais
em permanente reelaboração, cujo traço comum é a incorporação
da expressão oral dos imaginários do sistema popular na construção
do discurso erudito. As transformações históricas têm instalado
a modernidade tardia na América Latina e reúnem as vozes que,
antes localizadas nas estreitas margens da sociedade e da cultura,
hoje falam de um local mais central. A existência dessas operações,
como indiquei anteriormente, são características do século XX, com
um perfil diferente.
Desde o início do século, com os escritores regionalistas, assim
como com as vanguardas, o processo vem ocorrendo com resultados
diversos. Ángel Rama apontou os criadores de uma linguagem imersa
nessas operações durante os anos sessenta. Mas hoje as línguas
têm perfis variados e a perspectiva de pluralidade que as mudanças
históricas trouxeram nos faz ver outros substratos.
Essa direção não é o único fluxo. Existem fluxos externos de
distinta amplitude, diferente origem e que se dão em diferentes
situações de poder; fluxos que são apropriados pelas nossas culturas
em momentos e níveis diferentes, transformando seu impulso.

72 ANA PIZARRO
Evidentemente, o de origem europeia é o de maior potência porque
foi definido politicamente pela colonização. A propósito disso, Rama
abordou a “transculturação”, como sabemos, seguindo Fernando Ortiz.
Entretanto, o estudo de outras áreas culturais do continente americano,
como o Caribe não hispano e a Amazônia, tem nos permitido
perceber diferentes situações. Em parte porque quando falamos de
cultura indígena ou de origem africana, estamos usando a categoria
de unidade a uma realidade múltipla. Não é a mesma coisa falar de
cultura mapuche e da cultura ona, guaraní, tupinambá ou yanomami.
Em outras palavras, o que se considera como elemento único é,
na verdade, um universo múltiplo. Não podemos generalizar como
uma unicidade “africana” a diversidade cultural, e linguística, de
grupos que foram trazidos como escravos.
Sua homogeneização foi se dando nos processos culturais
de reelaboração através do tempo. O mesmo acontece com a
consideração das culturas do mundo europeu: a cultura germânica
não é a mesma que a ibérica ou a grega.
Portanto, onde observamos um único elemento europeu ou
indígena, trata-se, na realidade, de um conjunto de elementos.
Para exemplificar essa situação, faço alusão aos estudos clássicos
de Samuel Benchimol a respeito da pluralidade na formação social
da Amazônia, especialmente brasileira, que mostra a diversidade
das correntes migratórias, bem como sua complexidade interna.
Esse autor aponta uma lista de 1884, em que aparecem 373 tribos,
somente no estado do Amazonas, que falavam centenas de línguas
e dialetos. Quando ele se refere à imigração judaica, ele fala sobre
sua pluralidade cultural:

O VO O DO TUKUI 73
Resumindo: os judeus que vieram habitar e viver na
Amazônia, a partir de 1810, podem ser classificados
e adjetivados em cinco correntes, como segue:
1. os sefarditas expulsos de Portugal, Espanha
e Marrocos, que falavam espanhol, português e
haquitia;
2. os forasteiros nativos do Marrocos, que falavam
árabe e haquitia;
3. os sefarditas de Alsácia e Lorena, de fala francesa
e alemã;
4. os ashkenazitas da Alemanha, Polônia e dos
países da Europa Central, que falavam alemão e
ídiche;
5. os foinquinos do Oriente Médio, que falavam
ladino e Árabe.
No caso dos escritores que abordei, pode-se avaliar
uma complexa dinâmica de fluxos culturais
que conectam a América Latina e o Caribe com
áreas metropolitanas como os Estados Unidos e
a Inglaterra, ou com uma situação de imposição
como a ditadura chilena. Em todos esses casos, a
posição de subordinação continua a direcionar o
popular para o sistema erudito. Mas, em segunda
instância, é muito evidente em todos esses discursos
literários que essa posição de subordinação está
articulada a outras, com destaque à tensão entre a
colonialidade e o gesto descolonizador, disruptivo,

74 ANA PIZARRO
desde o popular, que é também, simultaneamente,
marginal, homosexual, mulher ou imigrante.
Gera-se, assim, uma rede de sistemas literários
em movimento com cruzamentos, rupturas,
sobreposições, constantes assimilações, devido ao
que cabe nos perguntarmos se as leituras matriciais
tradicionais (europeu, indígena, africano) resultam
suficientes hoje para nos explicar o desenvolvimento
dos discursos continentais.

A obra crítica de Rama foi uma das maiores do século XX, pois
deu-nos as linhas para procurar as intrincadas operações de uma
cultura herdada dos processos coloniais, indicando como olhar para
o “cañamazo”40, nas palavras do autor, da nossa cultura. Mas, como
observo em um artigo recente em que volto ao trabalho dele para
entender sua localização no desenvolvimento do conhecimento que
nos corresponde, o grande intelectual latino-americano pertence
a um período de profundas transformações no final de sua vida;
transformações que determinam mudanças tanto na cultura como
na nossa maneira de entendê-la. Ángel Rama morreu em 1983. Nas
reuniões de análise historiográfica da literatura latino-americana, ele
limitou a observação aos anos sessenta. Não havia condições para
analisar o presente. Efetivamente, estávamos situados no ponto de
inflexão em que a modernidade transitava para sua etapa tardia.

40 [N.T.] Cañamazo designa, em espanhol, um tecido de cânhamo,


linho ou algodão cujos fios entrelaçados perpendicularmente rece-
bem a linha dos bordados.

O VO O DO TUKUI 75
O pensamento de Rama pertence a esse momento, ao vértice em
que a modernidade passa a uma etapa diferente. Daí o título do
artigo que busquei: “Ángel Rama: um pensamento no vértice”. Há
nele pensamentos e desenvolvimentos que pertencem a ambos os
momentos da evolução da sociedade e do pensamento.
No desenvolvimento da tese de Fernando Ortiz, como “fases do
processo de transição de uma cultura a outra”, em que há perdas
parciais (desculturas) e criação (neoculturas) (Ortiz), a mudança se
dá sobre “a herança particular” assim como sobre “as contribuições
provenientes de fora”, de acordo com a análise de Rama. O crítico
uruguaio especifica:

Haveria, portanto, perdas, seleções, redescobertas


e incorporações. Essas quatro operações são
concomitantes e todas se resolvem dentro de uma
reestruturação geral do sistema cultural, que é a
função criadora mais alta que se cumpre em um
processo transculturante.

Pois bem, a ideia de “fases” nos conduz a uma forma de processo


linear, que aparece de algum modo também na sequência “perdas,
seleções, redescobertas e incorporações”, ainda que nelas haja a
ideia de concomitância. Também aparece aqui a ideia — e assim
tem sido tomada pelos críticos das gerações seguintes, no geral — da
existência de duas culturas que levam a cabo o processo: europeia
e indígena e, ainda, uma terceira posterior, de origem africana. No
caso de Fernando Ortiz, seria europeia e africana. Aguirre Beltrán,

76 ANA PIZARRO
citado por Rama, aponta o termo transculturação como a “passagem
de uma cultura para outra”.
Esse conceito tem sido muito considerado e produtivo nos estudos
da cultura latino-americana. No entanto, a abertura à pluralidade que
a passagem para a modernidade tardia significou no desenvolvimento
do pensamento levou-nos a revisitar novamente esse instrumento,
que, para o momento em que se instalou no pensamento crítico, era
fundamental. Isso nos leva a perceber uma certa linearidade, como
apontamos, e uma certa singularidade na lógica desse pensamento,
apesar de ser uma das maiores conquistas teóricas nos estudos da
cultura latino-americana.
A operação nos parece ser um dos mecanismos que faz parte
de um processo muito maior, muito mais geral, diríamos, cuja
complexidade, colocada em evidência pelo desenvolvimento do
conhecimento atual, exige um novo olhar. Requer um olhar mais
rizomático e múltiplo para uma estrutura cultural cujos elementos
constituem mais do que uma concatenação, uma estrutura densa.
Nela se convergem, se deslocam, se rejeitam, se contradizem, se
cruzam, se invertem, se sobrepõem, se selecionam, se reelaboram
em cadeia e em movimentos paralelos, no mesmo momento ou ao
longo do tempo. Eles desembocam não em uma cultura específica,
uma instância final, mas num emaranhado de formas discursivas,
possíveis de serem tipificadas em um momento dado, mas que
formam parte de um movimento de construção, à maneira como o
pensaram os caribenhos Édouard Glissant e Stuart Hall. Partem em
direções diferentes em linhas de fuga, partindo da história como
gatilho para processos de hegemonia, reapropriação e resistência.

O VO O DO TUKUI 77
A perspectiva glissantiana41 da crioulização — como denomina esse
pensador —, “ao encontro, à interferência, ao embate, às harmonias
e desarmonias entre culturas na totalidade executada do mundo-
terra”, parece especialmente fértil na compreensão das dinâmicas
observadas. Principalmente porque questiona de que forma esta afeta
“a troca de línguas escritas e faladas”, apontando que:
A oralidade — essa paixão dos povos que, no século XX,
afloraram a oralidade do mundo, que de vez em quando é escritura
— aparece, antes de nada, nas férteis controvérsias em que
introduz multiplicidade, circularidade, ruminações, acumulação
e de religião. Relações, em suma.
Parece-me que é precisamente nessas relações e movimentos
dos sistemas culturais, seus conteúdos e suas estratégias, em que
podemos observar traços que marcam a literatura e a cultura da
América Latina e do Caribe em sua condição de construção a partir
de uma história colonial que hoje percebemos de forma ainda mais
plural, como uma rede complexa.

41 [N.T.] A autora faz referências à linha de pensamento do escritor


francês Édouard Glissant, que trouxe importantes reflexões acerca
do conceito de “crioulidade”.

78 ANA PIZARRO
II

O VO O DO TUKUI 79
II
NASCEMOS NO MEIO DE PALAVRAS

Nascemos no meio de palavras — parafraseando Sartre — e


morremos no meio delas.
No início é assim, elas chegam até nós pelo ar. Ar de doçura, às
vezes de indiferença, de rebeldia, também de horror, e por meio delas
tocamos o mundo. Marcam nossa chegada e marcam nossa partida.
Vamos absorvendo-as como sons e, com elas, seguimos nomeando
a vida. Depois, elas ganham sentido. Sentido para nós. Mas elas já
navegam com algum sentido antes de nos alcançar.
Porque o que não sabemos ainda é a complexidade deste universo
— a língua — do qual nos apropriamos pouco a pouco e que, no
nosso caso, na América, é o espanhol, que às vezes chamamos
castelhano. E nesse dizer já apontamos para uma primeira forma
dessa complexidade, a tensão que ainda não conhecemos dentro
desse universo que nos ensinou a nomear. A tensão entre as partes
e o todo. A língua, como produto social — é, de fato, uma de nossas
primeiras imersões na sociedade — incorpora dela sua história, seus
conflitos, as formas de sua identidade, o tom de seus gestos.
É dessa forma que, quando o espanhol chegou até nós, na América,
já vinha ligado à outra cultura, a árabe, instalada por séculos na

O VO O DO TUKUI 83
península ibérica e suficientemente forte, com bastante densidade
cultural para marcá-lo. É necessário lembrar que Al-Andalus42 foi
uma sociedade bilíngue, ao menos até os séculos XI ou XII, e que
o último reduto árabe, Granada, foi conquistado pela Espanha
no mesmo ano em que Colombo chegou à América. A profunda
diferença entre as duas línguas deixou sua marca, principalmente
no léxico, de forma que já não diferenciamos quando falamos
de “berenjenas” [beringelas], “almohada” [almofadas] ou “alelí”
[planta da família Cruciferous], quando dizemos “ojalá” [oxalá].
Assim foi como na América recebemos um espanhol recentemente
enriquecido por uma história cultural de densidade histórica, de
tensão e de mistura.
Essa informação é importante porque o espanhol, como acontece
com outras línguas, é um processo, um movimento. A língua vai se
configurando numa dinâmica incerta na história da sociedade em
que se inscreve. Ela a expressa e a constrói.
Por isso, o espanhol passa a ser uma das ferramentas da
colonização da América, junto com a cruz e a espada. O espanhol é
imposto como língua contra as línguas indígenas e até recentemente
em escolas rurais da Colômbia, da Venezuela, do Peru ou do Chile, as
crianças que falavam em suas línguas nativas eram punidas. Em outras
palavras, nesse caso a função do espanhol é uma função repressiva,
colonial. Mas também foi apropriado na América para inverter o seu
signo e na boca do seu povo tornou-se libertador: “Chile acordou”,

42 [N.T.] Al-Andalus foi o nome dado à Península Ibérica no século


VIII pelos muçulmanos.

84 ANA PIZARRO
dizem os lemas nos protestos do país. “Devuelvan el awa43”, em que
o w marca a diferença, a alternatividade do gesto.
Na Amazônia, a ocupação do território é milenar e, quando chega
o conquistador europeu, em 1542, seus fantasmas o enganam — ele
está saindo do aterrorizante universo do imaginário medieval e
renascentista, com os temores do absolutismo e da Inquisição: o que
ele chama de “amazonas” nada mais é do que o importante papel das
mulheres na guerra e na vida das populações, de origem matriarcal.
Em muitas comunidades indígenas, a origem de tudo é “a avó do
mundo”. É verdade que chegou com o peso histórico de sua cultura
e até lá, pulando a Idade Média, chegaram as amazonas do mundo
helênico, do mundo antigo em geral e, segundo historiadores, sua
origem é persa. As comunidades apresentam uma tendência plural,
heterogênea, o caboclo hoje é uma mistura. Hoje, na Pan-Amazônia,
considera-se que há uma população de 23 a 27 — as cifras variam
— milhões de pessoas, enquanto o universo indígena é de três. Os
fluxos culturais afro-americanos — os quilombolas —, assim como
os de múltiplas origens (recordemos a presença  de holandeses,
franceses e correntes migratórias judias, árabes, entre tantas outras,
na parte brasileira) dão à região seu aspecto múltiplo num processo
intercultural complexo. Por isso, o uso das línguas deve ter uma
finalidade comunicativa, a articulação de um grupo diversificado
cujas culturas e sociedades têm tido historicamente uma articulação
comum, já desde a colonização, e com uma comunicação anterior a

43 [N.T.] Na tradução literal: “devolvam a água”. Marca-se aqui a


pronúncia da palavra “água” em espanhol com o sotaque chileno,
em que o “g” é quase suprimido, ou seja, pronuncia-se: aua.

O VO O DO TUKUI 85
esta. Por essa razão, o papel do ensino das línguas metropolitanas
precisa ter clara a função de abrir perspectivas de comunicação em
sociedades que estão marcadas pela pluralidade étnica e cultural.
Dizemos frequentemente “o” espanhol e “o” indígena quando
falamos de nossa história. Porém, como foi assinalado, essa origem
é uma falácia. As culturas indígenas são múltiplas e diversas, assim
como suas línguas. Dizemos “a” cultura africana que foi trazida com
a escravidão, contudo não se trata de uma, mas sim de culturas de
diversas origens que não falam, em absoluto, as mesmas línguas e que
começam a se entender a golpe de tambor para configurar linguagens
comuns, linguagens alternativas à original que se vão delineando na
imprevisível via de uma nova em que a variante metropolitana do
senhor de terras se vê subvertida por tradições, vidas e experiências
que não conhecia e não estavam em sua formulação original. Com
essa reivindicação surge no Caribe francês, por exemplo, o Manifeste
de la creolité. Assim o espanhol se torna uma língua própria da
América em sua diversidade de experiências históricas: espanhol
do Chile, da Colômbia, da Venezuela. Todos diferentes e um só ao
mesmo tempo.
Nessa diversidade, assim como com uma enorme e fundamental
poesia e narrativa oral, a Amazônia chegou a ter grandes escritores
em línguas metropolitanas reconstruídas. Basta lembrar Euclides da
Cunha no Brasil, com uma série de artigos publicados postumamente
com o título de A Margem da História. Como também José Eustasio
Rivera, na Colômbia, com La Vorágine, entre os clássicos do espanhol
nessa área. O grande texto da literatura brasileira, Macunaíma, de
1928, foi escrito pelo grande paulista Mário de Andrade, contudo

86 ANA PIZARRO
seu tema é o mundo indígena. A Amazônia fala dela desde dentro,
se escreve dela desde fora, e inclusive se escreve por referência e
sem conhecimento direto, como é o caso de A jangada, texto de
Júlio Verne. Escrevem sobre ela os que a habitam, os que passam
por ela, os que sabem dela desde longe: é um centro inesgotável
de narrativas, de imaginário, de energia estética. Hoje se destaca, é
claro, o narrador Márcio Souza, que abordou, em diversos textos, a
história da região, entre os quais se situam Mad María, ou Galvez,
o imperador do Acre. Também tem circulado em nível internacional
a obra de Milton Hatoum, que trata do mundo amazônico desde a
perspectiva da migração árabe. Pensando na Pan-Amazônia de hoje,
na Colômbia, está o olhar renovador de William Ospina com sua
trilogia histórica sobre o rio, onde a primeira novela é a premiada
internacionalmente El país de la canela. Também emergem de sua
energia criativa grandes poetas, como J. J. Paes Loureiro, em Belém;
Thiago de Melo, em Manaus; na Colômbia, o clássico León de Greiff;
na Venezuela, Eugenio Montejo e Márgara Russotto, assim como
tantos outros. As línguas de origem metropolitana, tanto o espanhol
como o português, configuraram uma forma própria de dizer e, com
isso, uma grande literatura com seus próprios clássicos: Mistral,
Neruda, Borges, Rulfo, hoje Lemebel ou Margo Glantz.
Parecia que a distância entre as culturas europeia e vernácula
era absoluta no sistema colonial, porém nossos povos foram se
apropriando da língua metropolitana e modulando sua diversidade,
incorporando suas estruturas sintáticas para subvertê-las,
enriquecendo seu léxico a partir de materialidades diversas — e

O VO O DO TUKUI 87
falaram de chaya44, de chocolate, de mingaco45. De seus modos de
sentir, disseram, então: “aquí mismito” [“aqui mesminho”], “mi
huachita”46, disseram “qué guayabo”47, chamo” [criança], disseram
“ahoritica” [agora mesmo]. Trata-se de uma apropriação do espanhol,
em termos sintáticos, dando lugar a outras visões de mundo; núcleos
de significação mítica ou mágica, que modelam e continuam a
modelar a língua peninsular em seu caráter de instituição que
autoriza. Assim foi se constituindo uma diversidade linguística que
implica a evidência de subculturas na América e, desse modo, falamos
das diferentes apropriações quando denominamos “o espanhol do
Chile”, “o espanhol do Peru”, o “da Colômbia”, o “de Cuba”, etc.
No Chile, no final do século XIX, em um texto de La Lira Popular48
— a poesia de cordel, que relata sucessos variados: fuzilamentos,
relatos de amor, eróticos ou religiosos —, um poeta popular incorpora
a linguagem da região ao escrever uma homenagem ao nascimento
de Jesus. É José Hipólito Cordero que descreve os presentes para
o menino e diz:

44 [N.T.] Chaya é, na Argentina, a “festa do carnaval”; no Chile,


significa “confete”.
45 [N.T.] Mingaco é uma reunião entre amigos e/ou familiares para
realizar um trabalho coletivo ou para celebrar algo nas culturas
andinas.
46 [N.T.] “Mi huachita” faz referência à palavra guacho, que literal-
mente expressa, de forma pejorativa, órfão — ou bastardo. Porém,
a autora utilizou a acepção positiva do termo, significando “minha
menina”. Novamente a supressão do “g” foi empregada para simu-
lar a pronúncia do sotaque chileno.
47 [N.T.] Qué guayabo é, literalmente “que goiaba”; porém, é em-
pregada na fala coloquial para se referir a uma mulher atraente.
48 [N.T.] La Lira Popular é, no Chile, uma série de impressos con-
tendo narrativas da literatura de cordel.

88 ANA PIZARRO
Me interné en la cordillera
para traerle un guanaco,
y de peces de agua dulce
traje un canasto y un saco
le traje una guitarrita
para que al niño Dios
le cante una tonadita
(“Versitos del nacimiento
del niño Dios”)

Adentrei pela cordilheira


para lhe trazer um guanaco,
e de peixes de água doce
trouxe um cesto e um velho saco
trouxe uma violinha
para que ao menino Deus
lhe cante uma tonadinha
(“Versinhos do nascimento
do menino Deus”)

É que o primeiro assalto à língua do conquistador se deu no


meio popular e, como no caso do tango como gênero literário e
musical, as elites se apropriaram dele e acabaram fazendo parte de
sua identidade linguística.
Se revisarmos a literatura erudita de meados do século XX,
observaremos que a transformação que foi característica do sistema
popular já entra no campo da linguagem proposta do sistema erudito,

O VO O DO TUKUI 89
mas em sua própria estruturação. Assim, lemos em um mestiço que
se afirma como tal, como José María Arguedas, o seguinte parágrafo
em sua construção simbólica:

A ponte de Pachachaca foi construída pelos


espanhóis. Tem dois vãos altos, suportados por
bases de cal e pedra, tão poderosos quanto o rio. Os
contrafortes que canalizam as águas são colocados
nas rochas, e forçam o rio a fluir em uma marcha
turbulenta, dobrando-se em correntes forçadas.
Nas colunas dos arcos, o rio se despenca e se divide;
a água sobe, derrubando a parede, tentando escalá-
la, e depois corre para os vãos da ponte. (Los ríos
profundos)

O rio, por um lado, sua força, sua liberdade e, por outro, aquilo
que pretende subjugá-lo. É, evidentemente, Arguedas, em uma
imagem magnífica. Por um lado, pela relação assimétrica entre as
duas culturas. Por outro, pela vivência do rio como uma entidade
viva, irmã, que se retorce em sua grandeza, rompe-se, defende-se.
É a outra maneira de ver o mundo. É a unidade fundamental, no
homem da sociedade tradicional, tanto da ordem físico-natural como
da ordem espiritual ou histórica, como aponta Stefano Varese. A
relação indígena e seu ethos em relação ao mundo, que estrutura o
dizer. O mundo do tecido, não o do corte.
Mas estamos nos referindo a apenas alguns elementos —
plurais, decerto — e seu funcionamento na complexidade da língua

90 ANA PIZARRO
espanhola. O processo da língua, que é o processo da cultura na
América Latina, na parte hispânica é de uma complexidade muito
maior. Porque não se trata de duas culturas, trata-se de uma que já
incorporou outras regiões culturais, como o mundo árabe, e se trata,
por sua vez, não de uma só língua, ainda que central, mas de muitas
que vão chegando com as aparições repentinas e os processos de
imigração múltiplos na América ao longo dos séculos XIX, XX e
XXI. Tampouco se trata só das culturas indígenas, que, aliás, são
centenas. É fundamental, dependendo do setor da América Latina
e do Caribe, destacar o jogo das culturas e línguas africanas, também
estas, aliás, em atrito com as indígenas. Um jogo óbvio no imaginário
popular da Amazônia, em uma construção cujo esteticismo fortalece
a identidade, “em um mundo” — escreve Paes Loureiro - “em que
os deuses ainda não estão ausentes”, onde “não há desterro do
numinoso”. Tudo isso em paralelo, como é o nosso próprio mundo,
ao desenvolvimento da razão tecnológica e especulativa típicas da
razão ocidental de hoje.
Em outras palavras, o processo intercultural na América Latina
é extremamente complexo e configura um processo múltiplo.
Acredito, como venho apontando há algum tempo, que a noção de
transculturação que Ángel Rama desenvolveu tão oportunamente
foi muito importante na época, mas o desenvolvimento histórico do
pensamento mostrou que é insuficiente.
A noção de heterogeneidade, cunhada por Cornejo Polar,
também é iluminadora para visualizar o conjunto, mas também não
é suficiente, porque é mais característica do Peru e de países onde o
mundo indígena tem maior peso do que outras culturas.

O VO O DO TUKUI 91
Parece-me que esse desenvolvimento histórico do pensamento
diversificou sua matriz, porque a história nos mostrou uma maior
complexidade da sociedade, suas aspirações, seus problemas, sua
relação com o mundo, mas também nossos erros como historiadores
ao separar a história do homem da história do mundo natural e pensar
que este era imutável. Esse grande erro que nos fez sentir donos de
um universo onde não somos nada mais que uma de suas criaturas.
O percurso da reflexão nas últimas décadas permitiu que nós nos
reposicionássemos na existência do mundo natural e, com isso,
perceber o grande sentido da diversidade e sua riqueza. Não mais
como seus dominadores, mas como seus componentes. Neste exato
momento, no meu país, e eu diria que em outros lugares da América
Latina, ficou evidente a grande encruzilhada na tentativa de sermos
ganhadores, ao invés de sermos solidários, de sermos arrogantes e
não dar lugar à humildade, e em chegar a construir sociedades em
que as desigualdades são abismais, as quais se naturalizaram. A
evolução do pensamento nos abriu as portas para a pluralidade do
mundo e o seu valor.
Isso nos permitiu pensar também nossa cultura de um modo mais
plural. Tratando o sentido da cultura latino-americana, como herança
de nossos professores, deixamos de lado as perigosas modas críticas
que nascem da visão do norte e de suas necessidades, tirando desse
pensamento, criticamente, os elementos que podem ser úteis para
nosso ofício. Assim temos tentado perceber na cultura da América
Latina a articulação interna dessa pluralidade e, ao mesmo tempo,
as variadas formas de relação com outras culturas que ela estabelece
em seu processo. Digo culturas, mas estou me referindo também às

92 ANA PIZARRO
línguas, como sua parte integrante e ao mesmo tempo construtora.
Porque se trata de culturas e línguas sempre em processo de evolução,
de mudança, de adaptação, de trabalho interno de adequação à
história das sociedades das quais formam parte. Tenho uma anedota
pessoal a respeito: minhas netas riem quando digo “pituco” para
alguém pertencente às classes mais privilegiadas, termo que elas não
conhecem. Ainda que eu tenha chegado a dizer “momio” nos anos
1970, como se falava antes do golpe militar, ou “cuico” em algum
momento dos 1980. Porque logo depois meus filhos disseram “paltón”
nos 1990 e elas, minhas netas hoje dizem “zorrón”. Cada termo se
generalizou, foi descartado e substituído. Por quê? Como? Quando?
Onde? Não poderia dizer. É uma questão que tem direta relação com
a história política do país. Assim nascemos entre palavras, vivemos
no curso de sua evolução e morremos entre elas.
O que aponto é, evidentemente, uma mudança entre tantas outras.
Tento usar elementos da complexidade do movimento.
Ao fazer um corte no transcurso do processo cultural, vemos
melhor um emaranhado, não um passo de uma cultura a outra em que
há dois elementos que se unem para formar um terceiro diferente.
Trata-se de uma articulação de elementos múltiplos, como são as
culturas que chegam, seja pela imigração ou outras vias, seja através
da mídia, a partir dos anos oitenta do século passado dentro da
chamada globalização.
Nas nossas análises fica evidente o interesse da minha geração
pelo continente e sua cultura. Tudo começou nos anos sessenta,
quando passamos a olhar para nós mesmos de uma maneira crítica
e, ao mesmo tempo, orgulhosa ao descobrir o próprio, o que o

O VO O DO TUKUI 93
continente tem de único e suas potencialidades. Nasceu assim o
ensaio, foi assim que vimos a narrativa desdobrar-se em esplendor, no
mesmo momento em que as nossas sociedades assumiam o controle,
soltando-se do peso da colonialidade que arrastavam e moviam
perante o olhar escondido daqueles de quem desconfiavam. A ideia
de América Latina evoluiu sem deixar de ser ela mesma, até que
percebemos a diversidade que a articulava. Fizemos esse trajeto com
leituras e, ao mesmo tempo, em contato permanente com o universo
material que nos rodeava, assim também com a imersão na política
de ideias. É por isso que consideramos em nossa análise a maneira
como os tons dos comportamentos sociais se inserem na linguagem
e na cultura, como as palavras e os elementos da cultura incorporam
uma perspectiva da história, nos textos, nos gestos, no não dito.
Temas ou sujeitos que têm sido objeto de ficção, personagens
históricos ou fictícios que pertencem a esferas da cultura midiática,
temas de cultura popular não urbana. Isso nos levou a reconsiderar
a noção herdada de literatura, e nos levou a incorporar nela sistemas
diversificados, sempre num processo em evolução.
A incorporação ao estudo da crítica da chamada “literatura de
cordel” — folhetos, lira popular, literatura de “colportage” na França,
com denominação própria também na Irlanda, Holanda no século XV
e Alemanha, onde circulou até o começo do século XX e atravessou
o mar com os imigrantes, significou repensar a noção de literatura
com que temos operado tradicionalmente. Consequentemente, ela
nos apresentou pesquisadores em outras formas de narrar, misturar
gêneros, ver e vivenciar a realidade. Percebe-se, dessa forma, que
a noção de literatura referente a documentos escritos em gêneros

94 ANA PIZARRO
tradicionais, publicados em editoras e vendidos em livrarias, não é
suficiente. Percebemos que, tanto quanto nas chamadas “literaturas
indígenas” como na oralidade, havia outra relação entre o objeto
estético e o público. Percebemos que, ao contrário do autor-escritor,
o narrador realiza uma tarefa performativa que precisa captar o
interesse total do público, além do que acontece ao seu redor, e,
portanto, exercer um desperdício de energia para estabelecer empatia
com os telespectadores. A experiência da recepção nos obrigou a ter
consciência da existência de diferentes vias de expressão, literária
e cultural, e a aceitar que a estética não é uma, mas que é plural e
se relaciona com grupos humanos. Assim devemos reformular a
noção de literatura, situados no caso de nosso continente, onde o
fenômeno é atual, e ainda mais no Brasil, onde é contemporâneo, e
considerar que na noção de literatura existem sistemas diferenciados
com distintos emissores, distintos objetos estéticos e diferentes
públicos, que são sensíveis a estéticas diversas. Assim chegamos a
distinguir, como muito assinalamos, o sistema erudito, composto por
setores da elite, que no nosso continente são os que leem e podem
comprar livros; um sistema popular, que é oral ou tem publicações em
brochuras e de forma artesanal; e um sistema indígena que, além de
algumas publicações feitas por intermediários, em geral antropólogos
ou historiadores, as mais referidas na época da conquista, é um
sistema oral. É necessário observar que nesse momento, em vários
países do continente, o mundo indígena começa a ter poetas que se
comunicam com o público em línguas metropolitanas, reivindicando
sua cultura própria. Há entre eles poetas de grande valor. Penso,
entretanto, que atualmente se constituiu um quarto sistema, com o

O VO O DO TUKUI 95
auge dos meios de comunicação, com a comunicação do rádio como
antecedente, mas agora não é o caso de falar disso.
Nosso olhar pertence àqueles para quem abandonamos o
pensamento filológico purista, o estruturalismo seco e passamos a
incorporar a história, o olhar sociológico ou antropológico até chegar
a uma reflexão em que, situados a partir do texto, as disciplinas se
cruzam na pluralidade de seus saberes. Isso na convicção de que a
realidade, e principalmente em nosso objeto de estudo, em nosso
continente devido à sua condição de cultura periférica, é necessário
cercá-la de diferentes saberes. Até porque o pensamento racional
herdado, que tem sido o da nossa formação ocidental, desprovido
de outras dimensões como as dimensões sensoriais ou afetivas,
não gerou conhecimentos suficientes sobre a natureza e o futuro
do ser humano e das nossas sociedades. Isso nos levou a pensar no
desenvolvimento das culturas latino-americanas como uma estrutura,
não em um sentido linear, mas em espessura.
Nessa estrutura existem múltiplos elementos que se articulam
entre si. Alguns têm maior peso por sua história, por sua própria
solidez, pelo momento em que se interseccionam, pela sua situação
no esquema do poder político, pela velocidade em que o fazem,
entre tantas outras variáveis. É o caso de espanhóis e portugueses,
no nosso continente. Não é o caso, por exemplo, dos franceses
ou dos holandeses, que também estiveram presentes na época da
colonização. Sua esfera é restrita. Porém, no caso da cultura e da
língua francesa, ela adquire maior peso nas relações com a América,
sobretudo por ser uma referência cultural obrigatória na Europa. Ou
o caso do inglês, cujo peso cultural e linguístico é inevitável dada sua

96 ANA PIZARRO
posição política e seu caráter hegemônico em relação com a América
Latina e suas línguas. Na configuração em forma de espessura,
portanto, existem linhas, correntes de significados diferentes. O
espanhol tem um espaço central em mais da metade do continente,
pois na apropriação que as áreas culturais que o compõem têm feito,
lhe cabe a responsabilidade de mediador. Não o dizemos no sentido
imperial da antiga hispanidade, mas no sentido contemporâneo
de sua capacidade de vincular, em sua variedade interna, as áreas
culturais do continente e do mundo.
Nesse sentido, falamos de diversos fluxos culturais, que
constituem uma rede em movimento, em permanente mudança.
Os fluxos são parcial ou totalmente integrados em unidades
duplas ou múltiplas; se sobrepõem, se anulam, se intensificam, se
acrescentam e são direcionados em diferentes orientações, em um
desenvolvimento de novas configurações e linhas de fuga. Eles se
tornam oralidade, escritura, gesto, movimento, canto: transformam-
se em fala, expressam-se em língua. Assim vemos, em grandes linhas,
o complexo processo da língua espanhola na América, seus modos de
transformação e as funções que vai desempenhando no tempo. Nesse
processo, que desconhecemos no início, é que nos vão envolvendo
as palavras. No meio delas começamos, com elas nos despedimos.

O VO O DO TUKUI 97
TITUBA E KEHINDE: A LÍNGUA,
A ESCUTA, O OLHAR

Tenho tentando uma reflexão sobre algumas de nossas vias de


interlocução com o mundo e por isso quero me referir, em termos
muito gerais, à linguagem e sua concretização na linguagem, à
escuta e ao olhar, como formas centrais desse diálogo, a partir de
duas escritoras atuais do nosso continente: Ana Maria Gonçalves,
do Brasil, e Maryse Condé, de Guadalupe. Permito-me uma pequena
digressão introdutória para depois entrar nos textos.
Há o ouvir e há o escutar. “Ouvir é um fenómeno fisiológico,
escutar é um ato psicológico. É possível descrever as condições físicas
da audição (seus mecanismos), recorrendo à acústica e à fisiologia do
ouvido, mas a escuta não pode se definir por seu objeto, por seu ponto
de vista”, dizem Roland Barthes e Roland Havas (2002). O primeiro
movimento de escuta é o dos indícios, um ruído, um assobio, um
sopro. O segundo é o da decifração: trata-se agora de captar os signos,
de interpretá-los, o que seria o próprio do ser humano. O terceiro é o
que cria o espaço intersubjetivo, o de “eu escuto”, que é, ao mesmo
tempo, “escute-me”. É quando entramos, seguindo Barthes e Havas,
no jogo da transferência. Cito-os:

O VO O DO TUKUI 99
Do mesmo modo como a primeira escuta transforma
o ruído em indício, a segunda escuta metamorfoseia
o homem em sujeito dual: a interpelação conduz
a uma interlocução, na qual o silêncio do que
escuta será tão ativo como a palavra do locutor:
poderíamos dizer a escuta fala: é nesse estágio (seja
histórico seja estrutural) que intervém a escuta
psicanalítica.

Nesse caminho de reconhecimento, de interpretação do mundo,


onde surge o outro, há evidentemente uma evolução relacionada à
história e ao caminho da técnica, que redefine as hierarquias porque
também se redefinem os elementos que situam o meio e suas
relações: quando, no começo do século XX, surge a arte vanguardista
na Europa e na América Latina, aparecem Las Señoritas de Aviñón
e, mais tarde, o Retrato de Dora Maar de Picasso, com seus espaços
deslocados e os olhos em um mesmo perfil, porque aprendemos a
olhar, porque nos aproximamos à realidade com olhos novos e isso faz
que essa realidade seja diferente. As mudanças no curso da história,
a revolução das comunicações, o avião, a bicicleta, a telegrafia, nos
fazem ler de outro modo o espaço, como o fez a televisão ontem
e a internet hoje. A escuta, que é uma apropriação do espaço no
reconhecimento da realidade, viu a paisagem sonora se transformar:
o deslocamento do campo à cidade revelou a transformação dessa
paisagem desde os ruídos do vento, os pássaros, os animais, ao espaço
sonoro dos passos, dos disparos, das buzinas, da máquina. Não é à
toa que uma das principais revistas do Modernismo no Brasil leve

100 ANA PIZARRO


o nome de Klaxon na década de 1920. Portanto, a modernização é
isso: a máquina, o automóvel, percebido como mudança de som,
no ruído do que interpretamos os signos, como o descreveram os
futuristas, que não profetizaram o futuro, mas que fizeram a apologia
do presente. É a transformação da escuta, que significa ao mesmo
tempo uma transformação do ser humano em sua interlocução com
o mundo, uma nova forma de identificação.
Ao falar da escuta, já nos referimos ao olhar. Podemos isolar, de
fato, nosso diálogo com o mundo? Nosso cerco precisa de vários
caminhos para apenas fazer uma entrada incipiente nele, não é?
Quando pensamos no olhar como efeito unidirecional, nos voltamos
a Jacques Lacan que coloca a intersubjetividade como uma estrutura
com três termos. O primeiro: eu vejo o outro. A segunda: eu vejo ele
me vendo. A terceira: ele sabe que eu o vejo. A relação com o mundo
é mais plural do que parece. Há a história maravilhosa de Joaquim
Machado de Assis sobre um menino que foi nomeado alferes e todos
elogiam. Mas quando ninguém está lá e ele se olha no espelho, ele
não consegue se ver. Ele é a imagem que a relação com o outro lhe
dá, marcada pela máscara do uniforme. A máscara é a persona. O
jogo do jovem, do espelho e da identidade, avança assim um século
e meio de acordo com o que propõe Lacan no final do século XX.
Os escritores, mais que ninguém, têm consciência de que a língua
não se esgota na mensagem. Um título como o do relato Abrapalabra,
do venezuelano Luis Britto García, nos evidencia a importância da
função enunciativa. Ali jogam o olhar e a escuta e ambas permitem
a interlocução. Na estética literária, a oposição é clara: há relatos
que conduzem, e com maestria, muitas vezes a uma resolução

O VO O DO TUKUI 101
final do conflito, que nos impulsiona a seguir o trajeto com rapidez
até terminar. Há outros nos quais muitas vezes já conhecemos “a
morte anunciada”, mas cuja magnificência está na construção da
enunciação, na lentidão, na espessura. Não nos importa chegar ao
final, nos importa viver intensamente essa construção. São duas
linguagens literárias diferentes, mas são também modos diferentes
de se relacionar com o mundo.
Para o escritor, assim como para o homem mais próximo da
natureza, a palavra não é um utensílio, ela não se usa, ela se habita.
A língua tem para ele o que se chamou de valor de uso, não o
afastamento ou o desgaste do valor de troca. Para além dos jogos de
poder com a ordem do discurso e também por meio dele, a linguagem
nos identifica com o mundo e nos identifica com nós mesmos diante
dele. Em relação a isso, lembro-me da história de um linguista, José
Ribamar Bessa Freire. Ele traz o relato de alguns pesquisadores que
iam entrevistar o último falante de sua língua, entre as centenas que
desaparecem na Amazônia. Diziam que esse homem morava com
uma família de outro grupo que o havia acolhido, afirmavam que
ele não estava bem da cabeça. Quando chegaram lá, encontraram o
último falante de sua língua e viram em que consistia sua loucura:
ele vivia falando na frente de um espelho.
Detenho-me nesta reflexão para situar pontos de entrada.
A língua, a escuta e o olhar são veículos de relação com o
mundo do escritor e de seus leitores ou ouvintes, quando se trata
da oralidade, e ao mesmo tempo são formas de construir o mundo
dentro de nós mesmos. Dentro dessas linhas de observação, abordei
duas novelas atuais escritas por mulheres: Moi, Tituba sorcière…

102 ANA PIZARRO


(1986), da caribenha Maryse Condé, e Um defeito de cor (2006),
da brasileira Ana Maria Gonçalves. Eu as escolhi porque ambas
geraram um impacto estético importante no leitor. Não porque sejam
relatos experimentais, que não o são, mas sim, pela transmissão do
modo de perceber a vida no relato histórico. Sabemos que a escrita
tradicional da história não incorpora a subjetividade, os relatos dos
feitos militares ou políticos pretendem ser objetivos. E sabemos que
as discussões sobre a escrita da história e sua abertura a pontos de
vista diversos significaram também uma mudança na escrita ficcional.
Trata-se, no caso das narrativas a que nos referimos, do que se
chamou de “nova novela histórica”, trabalhada como gênero, entre
outros, pelos clássicos Fernando Aínsa e Seymour Menton. Eles a
situam fundamentalmente como proposta de ficção que deslegitima
o saber histórico canônico por meio de uma série de recursos. Um
novo aparato crítico surgiu atualmente sobre esse gênero, em resposta
à quantidade de textos desse tipo que têm visto a luz desde os fins
dos anos setenta do século passado.
A leitura dessas duas novelas produziu em mim, por um lado,
um efeito de atração e, por outro, me estimulou a indagação sobre
o caráter de sua enunciação. Vou insistir, neste momento, nas
recorrências de ambos, mais do que nas diferenças, para as quais
precisaria trabalhar bastante sobre a situação contextual de cada um,
o que não é o caso aqui. Ambas as narrativas têm um tema comum:
o desenvolvimento da vida de uma escrava e sua inserção na história
que lhe é contemporânea. É o caso, na narrativa de Gonçalves, do
tráfico de escravos — o comércio atlântico — e seu ponto de partida
na África, em Dahomé (Benin), e depois episódios importantes dos

O VO O DO TUKUI 103
levantes de escravos e da história de Salvador da Bahia no final do
século XVIII e início do século XIX. No caso de Maryse Condé, é o
clássico relato da queima de bruxas pelos puritanos no que virá a
ser os Estados Unidos, no episódio conhecido como “as bruxas de
Salém”, com o julgamento que leva à condenação, retirado em parte
de documentos históricos da história de Massachusetts do final do
século XVII e início do século XVIII.
Para entrar nesses relatos, seguirei os três caminhos que apontei
ao começo, numa tentativa comparativa, que me leva, em primeiro
lugar, a me aproximar para situar a figura do narrador: “Abena,
minha mãe, foi estuprada por um marinheiro inglês no convés
do Cristo Rei, num dia de 16... enquanto o navio velejava para
Barbados. Foi desta agressão que nasci. A partir deste ato de ódio e
desprezo” (Condé, 1986). Quem é essa narradora que nos lança com
agressividade sua identidade e sua origem? É Tituba, a protagonista
de Maryse Condé, mulher negra e escrava, que será condenada e
encarcerada por bruxaria pela sociedade puritana quando exerce
a medicina tradicional de sua cultura e segue suas crenças. O que
mais me interessa é o gesto que inicia a novela. Na estrutura da
enunciação, o domínio da língua levará, ao longo do relato, a um
segundo discurso por trás da peripécia. Quero destacá-lo. Nesse
caso, nesse gesto que o identifica, pode se observar a instância
secundária do nascimento de quem será a narradora e protagonista,
numa existência relatada como produto de um estupro, a primeira
e violenta informação. Na construção da linguagem narrativa, situa-
se, portanto, primeiramente, a violência e depois a existência da
protagonista. Essa inversão de informações, que não é simplesmente

104 ANA PIZARRO


“Nasci de”, marca desde o início a sutil e complexa construção da
linguagem na história.
Mais adiante, segue um pequeno episódio, aparentemente clássico
na relação senhor-escravo. Trata-se de Tituba diante da sociedade
branca:

Quando, cambaleando de exaustão, com o vestido


sujo e encharcado, desci as escadas, Susanna
Endicott estava tomando chá com suas amigas,
meia dúzia de mulheres, semelhantes a ela, com
a pele cor de leite azedo, os cabelos puxados para
trás e as pontas do xale amarradas na cintura.
Elas me encaravam assombradas, com seus olhos
multicoloridos:
— De onde ela veio?

O episódio tem seu dramatismo: a escrava, exausta pelo trabalho,


suja, fisicamente deslegitimada, enfrenta o grupo que completa o
sentido da humilhação com a expressão “De onde vem essa?”, uma
expressão que fala mais sobre a distância e o frente a frente de dois
mundos, duas culturas, duas formas de ver e experimentar a vida.
Dessa vez é o olhar: as mulheres iguais a Endicott olham, Tituba
olha-as ao mesmo tempo. É um diálogo de olhares impossíveis. Nesse
relato só é possível a instância hierárquica que ignora a presença
desse corpo que está ali adiante. “Eu era um não-ser”, diz a língua
da narradora. Só é possível a volta à sua cabana, sobrecarregada.
O interessante aqui é que no relato desse encontro, e inclusive nas

O VO O DO TUKUI 105
peripécias dos olhares, o que acontece, de fato, é o previsível: no
encontro a humilham e ela se retira. Contudo, há outra linguagem no
olhar da protagonista, que está na descrição do grupo que ela olha
e cuja apreciação é “a pele cor de leite azedo”, que imprime um tom
de desautorização do grupo de mulheres, de desprezo, que inclusive
recai nos “olhos multicoloridos”, que não teriam por que se perceber
assim, mas aparecem inexpressivos e atravessados pela feiura. Jogos
de linguagem, sentido do olhar.
Agora é a escuta a que transforma a situação e a torna ambígua,
é a narradora e a escuta. No parágrafo seguinte, todos se preparam
para o julgamento e os guardas buscam as “bruxas” para a prisão:

Era fevereiro, o mês mais frio de um ano que estava


se mostrando sem graça. Multidões se reuniram
ao longo da rua principal de Salem para nos ver
partir, os homens da polícia nos conduzindo em
seus cavalos e nós andando pela neve e lama das
estradas. Em meio a toda essa desolação, ressoava
ao fundo, surpreendentemente, o som de pássaros
pulando de galho em galho no ar cor de gelo.

É impressionante como o segundo discurso marca sua função


através do som: o agora, a paisagem sonora, os pássaros brincando
de primavera no meio do inverno, cantando e pulando. Ela os
escuta apesar de sua situação. Lembremo-nos que «aquele que
escuta fala». Em outras palavras, do mesmo modo como no texto
anterior o segundo discurso está no olhar, no olhar depreciativo

106 ANA PIZARRO


que a escrava expressa na valorização da pele «cor de leite azedo»
do grupo de mulheres que têm o poder naquele momento, mulheres
que não se destacam umas das outras, mas que são homogêneas,
iguais a Endicott, aqui, o segundo discurso está na escuta. São esses
pássaros que brincam e ela os percebe dentro do horror de caminhar
amarrada pela neve lamacenta. É a voz da vida. Há, por trás dos
acontecimentos, um discurso de afirmação, de gozo, como ela goza
do sexo com John Indien ou, inclusive, como o goza para além da
morte, como goza os cheiros das árvores, da comida, como a memória
de Barbados é o lugar prazeroso do gozo.
Em outras palavras, a estrutura da enunciação conduz, ao longo
de todo o relato, a dois discursos. O primeiro, o dos acontecimentos,
nos coloca diante da dor que é a situação em si, em cujo clímax a
protagonista experimenta regressões e volta ao útero da mãe: “Eu
quebrei a porta do útero de minha mãe com um grito. Eu bati com meu
punho raivoso e desesperado em sua placenta. Eu gaseei e sufoquei
neste líquido negro. Eu queria me afogar nele”. O segundo discurso é
o da afirmação da alteridade de sua cultura, o do sentido do gozo, do
desdobramento sensorial, da consciência da validade de seu modo
de sentir a vida, da liberdade interior que foi transmitida de forma
agressiva: “A partir de então, me entreguei a experiências de minha
própria criação, pesquisando o campo ao redor, armada com uma
pequena faca com a qual arranquei as plantas, coletando-as em uma
grande cesta de palha. Da mesma forma, mantive um novo diálogo com
a água dos rios, ou o sopro do vento, a fim de descobrir seus segredos”.
Essa dualidade funciona, no relato, desde o primeiro parágrafo:
a protagonista nos relata que nasceu de um estupro, mas sua atitude

O VO O DO TUKUI 107
não é de vítima, não é de escrava — a subalterna — que recorre à
vitimização; em vez disso, começa jogando o fato para o narrador, que
somos nós, com um gesto de violência. Esse segundo discurso logo
se transforma no discurso central durante o julgamento onde dessa
vez, empoderada, ela agride a morte com a palavra, denunciando,
nessa sociedade branca, aqueles que não são culpados por bruxaria,
mas tampouco inocentes diante da escravidão.
Vamos ao segundo texto que me interessa. Trata-se, como disse
anteriormente, do romance Um defeito de cor, da brasileira Ana Maria
Gonçalves. Do mesmo modo que o anterior, o relato de Gonçalves
tem, durante as quase mil páginas, uma jornada ágil que envolve o
leitor com paixão na história de Salvador, na Bahia, com toda sua
efervescência. Como em Condé, essa história põe em movimento um
amplo espaço de diálogo entre a vida e a morte, que se acompanham
mutuamente. Como no texto anterior, também é interessante a
imersão na história, primeiramente a partir de uma voz feminina,
porém além de uma voz duplamente subalterna, como pode ser a
de uma escrava: “Eu nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no
ano de um mil oitocentos e dez. Portanto tinha seis anos, quase sete,
quando esta história começou”.
Com um narrador em primeira pessoa, entramos, como antes, no
outro olhar da história, que, em seu caso e talvez com maior ênfase,
atravessa a vida da protagonista, Kehinde, em múltiplos espaços de
seu âmbito emocional. A linguagem se articula permanentemente
em um jogo entre o minimalismo da vida cotidiana da escrava e a
história em sua dimensão maior — o tráfico, a rebelião, os jogos
de poder —, exercício levado com uma sutileza extrema, em que

108 ANA PIZARRO


o leitor quase não percebe os trânsitos. A linguagem constrói um
relato mais próximo de uma “nova crônica das Índias” do que de
um romance histórico, na medida em que a presença do cotidiano,
do que é visto, do que é ouvido desempenha um papel importante
nele. Nesse caso, a estrutura nem sempre aponta para um segundo
discurso, pois a linguagem literária se abre para a incorporação
explícita da atitude esperada da escrava e ao mesmo tempo revela a
face oposta, a da rebelião. Pode se dizer que há um jogo permanente
entre o “tiotomismo”49 aparente e o cimarronaje.50 Contudo, o segundo
discurso tem, como veremos, outra forma de existência. No seguinte
fragmento, a senhora de terras tem uma relação de ciúmes de
Kehinde com um escravo jovem chamado Francisco. A passagem é
da narradora protagonista:

A situação ficou insustentável dentro de casa, com


a sinhá criticando tudo que eu fazia, me obrigando
a cozinhar pratos de que não gostava para depois
jogar a comida toda em cima de mim, dizendo
que aquilo era lavagem e que lavagem se dava aos
porcos (...) para me vingar dela, cuspia em todos

49 [N.T.] Tiotomismo é o termo adotado pelo escritor Miguel Rojas


Mix, em seu livro Cultura Afroamericana (1988), para se referir ao
estereótipo do negro bom, cristão, alegre, honesto e com sorte na
vida, apesar da vida dura de escravo. Trata-se de um termo utili-
zado muitas vezes para falar sobre resignação.
50 [N.T.] Cimarronaje é o processo de resistência contra o sistema
colonial, que consistia em fugas dos escravos, desobediência, con-
frontos, destruição de instrumentos de trabalho, atitudes tomadas
e organizadas pelos quilombolas em oposição à escravidão.

O VO O DO TUKUI 109
os pratos que a Esméria ou Maria das Graças
preparavam, e não perdia uma única oportunidade
de provocar o Francisco na frente dela.

O importante, nesse caso, é a construção de Kehinde desde


a situação de negação de si mesma pela escravidão ao estado de
pessoa, da qual vai adquirindo consciência. Ou, como ela aponta,
“estava conseguindo fazer minha vida”. Essa luta vai adquirir dimensões
muito mais dramáticas com o roubo de seu filho, um abiku51, um ser
destinado à morte precoce, e toda sua existência se volta à busca
dele. Toda a história assume a cara de uma narrativa de movimento
incessante, sem pausa. Nela, a dor tem sua contrapartida no prazer de
cheiros, alimentos, cores, deleites. É uma ficção muito mais inserida
na cultura africana e na religião do novo mundo, que faz parte da
trama, e onde a língua de origem se insere no português como se
insere a relação com os mortos ou o ritual. Todo esse mundo dá
densidade à protagonista, que precisa estar jogando entre as duas
culturas — preta/branca —, as duas situações hierárquicas que
são permanentemente dominadora/dominada. Esse é seu poder.
O mundo do senhor de terras despreza a cultura afro-americana
e não a conhece: a desconhece e a teme. Por outro lado, Kehinde,
como escrava, vai adquirindo a solidez, a habilidade, a sabedoria
necessária para conduzir as coordenadas das duas culturas, o que lhe
confere um maior grau de poder. Ela sabe que isso tem limitações,
que ela respeita e também teme. Dentro dela, é o olhar que lhe

51 [N.T.] Abiku é a criança que terá passagem curta pela terra den-
tro da terra dos Iorubás.

110 ANA PIZARRO


fala do futuro: “O babalaô não gostou do que viu no opelê — anota
quando vai consultar pelo seu destino — mas disse que não era para
eu me preocupar porque tudo já estava destinado. Eram mudanças
necessárias para que minha vida seguisse o caminho certo”
Em sua crônica, parece que o relato de Gonçalves foi uma narração
tradicional da história, a não ser por um indício: “O meu nome é
Kehinde porque sou uma ibêji52 e nasci por último”. Aí se situa a
primeira transgressão do texto: o narrador é uma mulher. É ela que
nos transmitirá essa história. Tradicionalmente, a escrita da história
tem sido, como sabemos, patrimônio dos homens e do poder. A
narradora começa situando-se como subalterna, inclusive porque é
uma ibêji que escreve “nasci por último”. Seu lugar de submissão vai
se situando e o episódio que estabelece esse lugar está prontamente
delineado com o estupro e a morte da mãe e do irmão. Em toda a
primeira parte, a infância, que, como vemos, não corresponde às
vivências normais de uma menina, a narração segue uma forma de
duplo discurso que lhe confere maior dramatismo. A memória da
narradora relata o que vê. Esse olhar recorre a uma voz regressiva
que interpreta o mundo infantilmente. Então, no estupro da mãe e
na morte do irmão pequeno, a narração focaliza no sangue que surge
de seus corpos, em forma de rio e com sua cor. Essas imagens, dali
em diante, serão um ver permanente na memória. Esse relato dos
acontecimentos tem um segundo discurso, desde logo, que o leitor
percebe de imediato, que é o do horror do estupro e, que, como
o mecanismo das “bienséances” [decoros] no teatro clássico, onde

52 [N.T.] Ibêji é a divindade do Candomblé que designa gêmeos que


nascem de uma mesma gestação.

O VO O DO TUKUI 111
a violência é narrada e não vista, produz um efeito duplamente
dramático.
Mas a complexidade da voz que narra não termina ali. Há nela o
efeito que também observou Mikhail Bakhtin em Fiodor Dostoievski.
Vejamos na protagonista: “Ibêjis dão boa sorte e riqueza para as
famílias em que nasceram e era por isso que a minha mãe podia
dançar no mercado de Savalu e ganhar dinheiro”.
Trata-se, pois, de uma voz infantil que incorpora um saber que
não é seu, um saber popular referente aos ibêjis, junto à interpretação
ingênua do trabalho da mãe e do dinheiro. Assim como nesse
fragmento há um permanente dialogismo no texto que incorpora
saberes e vozes, informações moduladas pela fala: “Ela dizia que
esta é uma história muito antiga, do tempo em que os homens ainda
respeitavam as árvores”. Aqui se faz eco do tempo indeterminado
do relato popular tradicional, uma espécie de coro que se infiltra na
textura do discurso. O “Era uma vez”, como em “enquanto os meninos
diziam que eram corajosos...”, é a indeterminação temporal. Agora é
a língua e a escuta: “Ela se sentou ao meu lado e me chamou de sua
menina, puxou minha cabeça de encontro ao quente do peito dela
e me embalou com cantigas da África”. Às vezes, a escuta e o olhar
convergem numa sinestesia que contradiz o sentido da peripécia,
mergulhando novamente em seu dramatismo. No momento em
que são sequestradas ela e Taiwo, sua gêmea, o episódio se abre da
seguinte maneira: “tocavam uma música que eu me lembro de ter
achado quase tão bonita quanto o mar, que tinha a cor mais bonita que
o pano de Iemanjá. Sei que é difícil comparar sons e cores, mas, aos
meus olhos e ouvidos, eram apenas duas belezas, só isso, uma quase

112 ANA PIZARRO


tão bonita quanto a outra”. Nesse espaço textual acontece o sequestro
que determinará sua vida. Mas, de repente, no texto o efeito do olhar
é funesto. Ana Felipa, a mulher do senhor de engenho, arranca os
olhos de Verenciana, uma escrava que está grávida do seu marido.
É um fragmento que funciona como uma espécie de tragédia do ver:

Antes eu tivesse obedecido [a Esmeria], pois seria


tido poupada de ver o que vi. A Verenciana estava
de pé, altiva, presa pelos braços, não falava nada
mas também não desviava os olhos dos olhos da
sinhá (...). A sinhá disse que sabia que a criança
não tinha culpa e que apenas comentara que a mãe
nunca veria o filho e era isso o que ia acontecer.

A história de Kehinde, então, é um discurso cuja espessura e


complexidade se relacionam com seu narrador como um maestro de
orquestra o faria, indo de adágios a tuttis, impulsionando o leitor a
ler por trás do acontecimento, e no curso deste, todos os discursos
do discurso que levam a construir um personagem sólido com perfis
contraditórios, que se ergue sozinho. Como Tituba, ela está apoiada
por sua cultura em que sempre é possível o mais além da dor, sempre
está a existência do prazer, dado pelas frutas, pelas cores, pelos
aromas, pelos sons, pelo canto, pelo casal, pelas amizades, pelo
diálogo com os seus entes queridos, vivos e mortos, pela memória.
Esses relatos são discursos da memória coletiva que se atualizam
em discursos da subjetividade, por meio das duas narradoras
protagonistas, Tituba e Kehinde, diluídas, sobretudo no episódio

O VO O DO TUKUI 113
da última, na maré de uma história de mil faces, complexa, confusa,
que revela não só o cotidiano do tráfico no middle passage, mas
também a corrupção do poder na África e seus representantes no
Uidá, importante polo do tráfico atlântico. É assim que se ligam ao
mundo: na palavra, na escuta e no olhar, na língua principal de sua
narração. Nessa ligação com o mundo, as personagens conseguem
representar o momento presente, ou seja, transmitir-nos para além
da informação histórica, o que implica uma interpretação nova e
diferente dela, uma relação com o mundo, diante da dor histórica,
e põe em evidência uma enorme capacidade de deleite, o valor dos
sentidos, uma ausência da noção de pecado que as torna livres; uma
alegria somente pelo fato de estarem vivas. Assim, elas expressam
permanentemente a necessidade de sobreviver.
Essa inversão da situação da escravidão no período colonial que
mostramos tem enorme importância política. Sobreviver, no caso
delas, é uma forma de resistência ao poder colonial. É um poder
que não as destrói porque estão armadas internamente e nisto são
amparadas pelos valores da sua cultura. Fala-lhes uma linguagem
diferente da do colono: uma linguagem que fala com os mortos,
uma linguagem que dialoga com as árvores, que transmite o ouvir
do canto dos pássaros, uma linguagem que não treme ao expressar
o estremecimento de prazer, que não esconde, mas desfruta da
beleza dos corpos, e que, acima de tudo, os vê. Porque o que fazem
essas duas narrativas é dar existência a esses corpos, diante de uma
degradação que os invisibiliza. Esse privilégio, esse patrimônio
que lhes entrega sua cultura é o que dá sentido ao seu existir e, no
auge da negação, é o que conduz à sua arrogância. Nesse sentido,

114 ANA PIZARRO


estando submetidos a um regime de extrema subalternidade como o
da escravidão — e a uma dupla subalternidade, porque são escravas
e mulheres —, as narradoras que protagonizam essas histórias
conseguem construir sua alteridade contra isso, recorrendo ao
patrimônio imaterial de sua cultura, que se difunde em suas formas
de dizer, ver, ouvir, que lhes abre um espaço próprio de existência.
Nisso, então, o peso da escravidão e da colonialidade são subvertidos
pela língua, pela escuta e pelo olhar.
Por fim, quis observar essas duas narrativas comparativamente
ao longo de suas semelhanças porque acredito que a compreensão
das literaturas, tanto eruditas quanto indígenas e populares (será
necessário falar em algum momento também da mídia) na América
Latina precisa estabelecer as articulações entre elas, para além das
línguas nacionais. Um dos elos que as articulam é justamente o
problema da colonialidade e seu funcionamento na cultura, as formas
de expressá-la, de combatê-la e de superá-la.

O VO O DO TUKUI 115
LER A SOCIEDADE POR MEIO
DO CORDEL: DOIS CASOS

Como sabemos, o interesse pelo cordel é tardio na perspectiva


da crítica literária, onde sempre foi considerado uma manifestação
menor, uma espécie de subliteratura, pouca digna de interesse
acadêmico. Foi a perspectiva crítica da cultura que foi se interessando
nessa forma popular de poesia, de narrativa poética, de expressão
do que antes era chamado de “baixo povo”. Lembro de ter me
deparado pela primeira vez com o sotaque nordestino em um canto
das façanhas de Lampião — “o capitão do cangaço, que não admitia
derrota, não aceitava fracasso” —, ressoando nos muros centenários
da Sorbonne, na França. A situação era surreal, inusitada: era o ano
de 1975 e meu papel era de avaliadora de uma banca de doutorado.
Ainda agradeço à jovem estudante brasileira da época pela maravilha
desse encontro.
Quero me aproximar, neste texto, do fenômeno dessa literatura
no caso brasileiro e chileno, com os quais tenho mais familiaridade
e cuja leitura me produz o especial prazer de tocar a história oficial
desde outro lugar e com uma perspectiva diferente. É o que estão
fazendo atualmente os jovens historiadores em meu país, com
importantes resultados. No Chile, chamam de “folhas de cordel”,

O VO O DO TUKUI 117
de “poesia impressa”, essas folhas em verso que circulavam nas
províncias do norte, nos campos de salitre, como forma de comunicar
notícias, às vezes recitadas por cantores com violão que iam de
estabelecimento em estabelecimento, ou em Santiago nos bairros
populares: a Estación Central, Matucana, o Mercado. Nesses lugares,
em geral, haviam obras de camponeses que chegavam a vender seus
versos nas fondas53, os lugares de encontro dos trabalhadores. Com
documentação desde 1860 e com uma forte produção até 1920 no
Chile, a publicação desses versos foi chamada de “Lira Popular”
por meio de uma revista com esse nome cuja edição pertence
fundamentalmente ao período indicado.
No Brasil, essas expressões populares foram chamadas de
“quadrilhas de São João”, “desafios” que cabiam a poetas repentistas.
Havia também “cirandas”, canções, assim como “literatura de cordel”,
chamada em português também como “folhas de cordel”, “folhetos”.
Eram denominados assim, porque, como sabemos, eram expostos
ao público em varais de corda, inclusive “acompanhavam, como
verdadeiras bulas, os remédios que vendiam certos curandeiros”, diz
um pesquisador da área.
Sobre a origem desse gênero na Europa, teria sido trazido para a
América por imigrantes, adquirindo aqui sua especificidade, segundo
o mesmo autor, que afirma o seguinte:

Embora o auge do gênero do cordel, no que


diz respeito à Península Ibérica , situe -se

53 [N.T.] Fondas são os salões ou cantinas onde são vendidos ali-


mentos e bebidas.

118 ANA PIZARRO


temporariamente na transição dos séculos XV
e XVI, não é arriscado supor que os versos ou
poemas de vários tipos, difundidos em forma
escrita, mesmo que não necessariamente impressa
e cantados por pessoas itinerantes, deve ser
muito mais antigo [...] Seu conteúdo às vezes
fica englobado em “versos de cego” ou do que se
considerava mais característico do que recitavam
os cegos: romances e orações [...].

No Brasil, Luís da Câmara Cascudo se refere à divulgação pela


América Ibérica dos desafios poéticos que estão na origem de grande
parte das folhas soltas de cordel (1952). Por sua vez, Ivan Cavalcanti
Proença aponta a influência hispânica do cordel nos “corridos54”, que
podem ser documentados na Argentina, Nicarágua, Peru e México,
bem como nas diferentes formas de desafio poético comumente
conhecidos como “contrapontos” (1976, p. 29), que aparecem no Cone
Sul da América nos debates dos “payadores”55. Na França foi usado
o nome “littérature de colportage”. Nos países hispano-falantes, foi
utilizado um tipo de métrica chamada “décima espinela” (A B B A C
C B B C). Até hoje ela foi usada por cantores de origem camponesa,
como Violeta Parra, no Chile, assim como os payadores atuais. No
Brasil, ele circulava na época sobretudo no sertão, no Nordeste, e

54 [N.T.] Corrido é um tipo de poesia com rima no México equiva-


lente ao cordel.
55 [N.T.] Payador é o nome dado aos criadores e intérpretes das
payas, forma de poesia improvisada originada na Argentina e no
Uruguai. É equivalente a repentista no Brasil.

O VO O DO TUKUI 119
se utilizava em grande medida do heptassílabo. São versos fáceis de
se aprender, de compreensão simples, muitas vezes humorística,
elaboradas para um público, um grupo que escuta quem recita nas
praças, nos mercados, no final da jornada. Foram chamados também
de “cantos de cego”. Os ouvintes eram e são, até hoje, analfabetos
ou semianalfabetos. Por isso é tão importante a xilogravura presente
nas capas dos folhetos, já que entrega uma informação a ser acessada
por quem não pode ler. Isso também explica seu tom de exagero, seu
aspecto caricatural. No Brasil, onde o gênero perdura no Nordeste
até hoje, e tem grande importância, são reconhecidos também os
artistas das xilogravuras. Atualmente, esse tipo de técnica está sendo
esquecida por causa das facilidades das novas tecnologias, que usam
fotografias impressas. Por isso, um crítico se queixa: “Assim declina
o gênero, fustigado pelo mau gosto e debilitado no poder inventivo
e na execução técnica”.
Agora nos interessa a forma de relação que estabelece esse tipo
de produção, no período que estamos observando — 1860-1930 —
com a construção da ideia de nação. Nos situamos nesse período
porque é o período áureo da produção de cordel no Chile. Os autores
dos versos não são necessariamente os que recitam ou cantam, mas
ambos, autores e recitadores, estabelecem um laço social com a
comunidade em que se desenvolvem, a que lhes gera exigências,
lhes propõe perspectivas dentro das quais eles encontram sua
criação, sua performance. Isso faz com que em ambos os casos haja
frequentemente elementos comuns, tanto no Brasil como no Chile;
como é, por exemplo, a dimensão contraditória de determinado
dever na sociedade, que é ao mesmo tempo uma transgressão. O laço

120 ANA PIZARRO


social é a padronização, a norma, a instituição, tudo que organiza o
veículo do indivíduo com a sociedade, o possível e o não possível.
Nesse contexto, o poeta popular segue a norma de sua comunidade,
mas ao mesmo tempo pode brincar com a subversão, o que muitas
vezes é permitido de forma humorística ou caricatural. Por exemplo,
o poeta Antônio Ferreira da Cruz, ao caracterizar os integrantes do
grupo de cangaceiros do Lampião, dá o apelido a um deles de “beija-
flor”. Vamos ouvir o poeta:

Antonio José da Silva


Acode por Beija-Flor
Seu rifle mata no rasto
Seu punhal é um terror
Seu braço não perde o jeito
Seu rosto mete respeito
Seu todo causa pavor
(Visita de Lampião a Juazeiro, p. 16)

Os temas foram organizados em “ciclos” no cordel do Brasil e


versam sobre temáticas variadas: desde histórias vindas da Europa
(Carlos Magno, Genoveva de Brabante56), até a vida nordestina e seus
problemas: a seca, a fome, o cangaço, a religião. Com o avanço da
modernização, os temas ficaram mais urbanos, mas, como em todo
continente, os tempos e os temas se sobrepõem. “Escrevem sobre
os acontecimentos do cotidiano e do mundo. Viajam pelo imaginário

56 [N.T.] Genoveva de Brabante é o nome de uma heroína da lenda


medieval, a “Lenda de Ouro”.

O VO O DO TUKUI 121
e o misturam com a vida real. Mundos e personagens se encontram;
o que parecia impossível acontece no cordel”.
Na lira do Chile há uma clara separação entre o humano e o divino.
No primeiro se encontram histórias jocosas, muitas vezes, eróticas,
histórias de crimes e fuzilamentos. Também histórias fantásticas,
como as tradicionais de Pedro Urdemales57, que coincidem com as do
Brasil na recriação das histórias de Carlos Magno e os “Doze Pares de
França”58, de Genoveva de Brabante e dos demais relatos vindos da
Europa. Arranjos diferentes foram feitos com eles. Tudo isso, aliás,
como uma reformulação típica da América onde os castelos medievais
têm tucanos ou Carlos Magno usa uma carabina além de uma lança.
O que nos interessa, nessa aproximação, é observar algumas
maneiras pelas quais essa literatura representa, por meio da voz
popular de finais do século XIX e começo do século XX, o imaginário
da nação. A partir de uma leitura mais geral de ambos os casos, Brasil
e Chile, parece haver algumas singularidades, as quais queremos
elucidar de modo hipotético.
O interessante desses versos é que eles expressam a História
desde um outro lugar e com diferentes graus de simbolismo. Nesse
sentido, constituem um documento que põe em evidência uma
percepção dos acontecimentos, mostrando mais uma vez que a
história não é uma, mas responde ao lugar a partir do qual os fatos
são avaliados.

57 [N.T.] Pedro Urdemales é um personagem famoso que aparece


em alguns contos populares do cordel brasileiro.
58 [N.T.] “Doze Pares de França” são personagens da história len-
dária medieval «Matéria de França”. São doze cavaleiros que cons-
tituem a guarda pessoal de Carlos Magno na França.

122 ANA PIZARRO


No Brasil chama a atenção, nesses relatos, a importância que
adquirem os heróis regionais. Trata-se de personagens não do
panteão oficial, mas de valores alternativos. Por um lado, aquele ao
qual já aludimos, como Lampião, personagem que ataca os poderosos
e defende os fracos, comandando um grupo de homens — todos com
roupas únicas, feitas por eles — que domina a região nordestina.
Junto com ele se venera também a imagem de sua companhia,
sentimental e audaciosa, “a deusa do sertão”, chamada Maria Bonita.
Outro personagem importante pela quantidade de produção sobre ele
é Antônio Conselheiro, “o santo Guerreiro de Canudos”, personagem
mítico que chegou com um grupo de gente humilde e se instalou num
lugar chamado Canudos, recusando a existência da recente república e
a unidade de um território que lhe exigia impostos, até que foi vencido
e morto pelas milícias do Estado central. Um terceiro personagem
é Padre Cícero, sacerdote com aura de santo não reconhecido pela
igreja católica que é venerado pelas pessoas humildes em todo o
Nordeste. O que nos leva a observar esses exemplos é a virtualidade
regional que mostra essa literatura. Ela não enfatiza a nação em
si, mas a região. O mesmo acontece com o cordel que se ouve na
Amazônia. Como sabemos, no Brasil os seringueiros de finais do
século XIX e inícios do século XX foram levados desde o Nordeste
em crise, devido à seca, para a Amazônia por jagunços enviados pelos
proprietários das seringueiras enganados pela ilusão de riqueza fácil
e vida plena. Foi uma experiência de escravidão, tortura e morte,
como foi o caso de Julio César Araña na Colômbia e no Peru. Com
eles, chegou o gênero do cordel à selva e às cidades, como Manaus,
onde a editora Guajarina, com uma revista dedicada a eles, publicava

O VO O DO TUKUI 123
os folhetos concedendo a esses trabalhadores semi-escravizados
um vínculo com sua cultura de origem. Tais textos não falam do
Estado central, não falam da nação como unidade imaginária, mas
sim de uma região distante, principalmente da saudade, da tristeza
e da nostalgia de seu lugar de origem, do Nordeste, onde estão seus
familiares, seu meio, seu mundo afetivo. Assim, um nordestino que
deixa a Amazônia escreve:

Vou-me embora, vou-me embora


Pra minha terra natal
Ao diabo na seringa
E o dono do seringal

No projeto de colonização de Bragança, perto de Belém, o escritor


Bruno Menezes diz o seguinte:

Vou mimbora, vou mimbora


Pisa, pilão!
Como já disse que vou
Pisa pilão!
Nesta terra não sou nada
Pisa pilão!
Mas na minha terra eu sou!

A experiência amazônica não é positiva. Com humor, um trovador


da época versifica:

124 ANA PIZARRO


Pinto foi ao Amazonas
Pensando que enriquecia,
além de chegar doente,
se esqueceu do que sabia;
não canta como cantava,
não bebe como bebia.
(Citado por W. Salles).

Junto ao “saudosismo” está a denúncia da exploração. Mas não


é uma queixa ao Estado nem ao sistema, é uma denúncia do dono
do seringal. Nesse sentido, o contexto aparece como a percepção
de uma situação de colonialidade, mas não como um chamado para
subvertê-la, o que implicaria outro grau de consciência. O sentido
de nação é observável mais tarde, nos anos 1940 durante a Segunda
Guerra Mundial, quando o governo de Vargas faz uma publicidade
nacionalista muito intensa sobre a necessidade de ir trabalhar nos
seringais da Amazônia como uma frente de batalha, por um acordo
de apoio aos Estados Unidos na guerra. Resta uma alternativa, então,
para os brasileiros diante da frente europeia: trata-se de defender
o Brasil. Com o governo de Vargas e seu sistema de comunicação,
principalmente por meio do rádio, a concretização da Nação se
enraíza no nível popular. É a chamada Batalha da Borracha, em
que mais de vinte mil trabalhadores morreram de fome e doenças,
em número superior ao da frente militar. Os trabalhadores vão
à Amazônia muitas vezes pressionados. Os donos da borracha
enriquecem com os valores disparados pela guerra. Um texto do
escritor Raimundo Alves comenta:

O VO O DO TUKUI 125
Alguns patrões são bons.
Mas o que estou narrando,
É o que sempre acontece,
O seringueiro vive trabalhando,
Perdendo a sua saúde.
E os patrões enricando

A relação com o Estado — quando ainda não era nação — está


também presente no cordel da primeira época a que nos dedicamos,
isto é, as primeiras décadas do século XX, mas há um tema de
relevância entre a região e o Estado central. O Estado, a República,
quer impor a ideia de nação, a região não escuta nem recusa, como
na história de Antônio Conselheiro. A nação na dimensão de suas
instituições de justiça aparece como algo distante, alheio, como
expressa Francisco de Chagas Batista no texto “Eu clamei pela
Justiça” que, como o próprio nome indica, implica a existência de
uma entidade abstrata. Também é o caso do grande Gomes de Barros,
provavelmente antes de 1906:

Havemos de andar agora


Do imposto amedrontados,
Com mil e cem de estampilhas
Nos chapéus e nos calçados
O que havemos de fazer?
Já não se pode sofrer
O fio da cruel fome
Os homens todos alerta

126 ANA PIZARRO


O Estado nos aperta
O município nos come
(“As Misérias da Época”)

Esse sentido de relevância regional do cordel brasileiro, e


em geral da literatura popular do Nordeste, põe em evidência
outra pluralidade: a da diversidade cultural que dá origem a suas
expressões. Trata-se de uma nação em formação cujas origens são
plurais: ademais dos portugueses, há italianos, espanhóis, franceses,
holandeses, também japoneses, junto a nordestinos em Guamá, assim
como imigrantes vindos de diferentes lugares do Brasil com fluxos
culturais também diversos. Isso aparece em manifestações de gêneros
musicais variados: sambas, rodas, desafios, modinhas, lundu, polcas,
mazurcas, valsas, ritmos com diferentes elementos e em permanente
evolução, transportados muitas vezes desde o norte por canoístas de
Tocantins, Araguaia, e Marabá como centro de articulação. Desde
antes dos bandeirantes que desbravaram, eles abriram caminho pelos
matos e rios, por ali eles navegavam. Logo circularam regatões59,
os mineiros, remadores e trovadores que se deslocavam entre as
localidades e cantavam ao ritmo dos remos, versos improvisados ou
memorizados. Em 1896, Ignácio Moura comenta:

Vou-me embora,
Vou-me embora,
Que me dão para levar?

59 [N.T.] O “regatão” é um comerciante ambulante que circula pelas


comunidades próximas de rios na Amazônia.

O VO O DO TUKUI 127
Levo penas e saudades
Para no caminho chorar.

É importante também observar que esse período é o fim da


escravidão no Brasil (1888). Em uma sociedade em grande trânsito, há
a presença do afro-americano na cultura cotidiana e sua possibilidade
de se transformar em cidadão. Há também a integração possível do
indígena ao Estado-Nação. Dimensões que aparecem cada vez mais
na diversidade do cordel.
No caso chileno, a Lira Popular coincide em alguns temas com o
cordel brasileiro. Como apontávamos, isso acontece com a presença
em ambos os países de relatos europeus medievais, que passam
por toda América Latina. Também há proximidade no desvio
melodramático das histórias de crimes e mortes. No caso chileno são
múltiplas as catástrofes: incêndios, terremotos, crimes, suicídios, e há
destaque para os fuzilamentos. Por exemplo, o tom melodramático do
clássico “Suspiros e lamentos do criminoso de Yuta quando ele se viu
preso em uma masmorra sombria e sem esperança de ser libertado”
do poeta J. Bautista Peralta, do século XIX. Essa circunstância não
é pouco relevante: a cadeia e o fuzilamento implicam a existência
de um mecanismo judicial que se vê implacável, um sistema que se
percebe em funcionamento. Neles a presença do Estado-Nação é
observada com muito mais força do que no caso anterior. Diríamos
que sua imagem é mais impiedosa. Parece que esta dimensão se deve
à proximidade com que seu poder é percebido, no quadro de um
centralismo que quer hegemonizar todo o território. Basta pensar
que o nacionalismo e a noção de raça no caso chileno implicam

128 ANA PIZARRO


um “domínio discursivo amplamente compartilhado”, como aponta
B. Subercaseaux em relação ao início do século XX — nos setores
dominantes, é claro —, que de fato tomou forma na obra de Nicolás
Palacios, Raza Chilena, de 1918, um livro que havia circulado sete anos
antes sem o nome do autor. Trata-se do pensamento lombrosiano60 e
de Gobineau61, retratado em sua versão local, como também ocorria
na época na Venezuela, no México, na Argentina e na Bolívia. No
período, o poder político, nas mãos da oligarquia latifundiária, lutava
pelo desenvolvimento das instituições como ideal de progresso ao
estilo europeu, que se consolidou na cidade como ideal civilizador
onde até os locais de entretenimento eram regulamentados por
decreto. A ideia de nação formulada a partir do poder é a disciplina
dos indivíduos, com normas e elementos moralizadores. A lei do
ensino básico, com o Estado docente, contribuiria para isso: é o
discurso do Estado sobre a sociedade civil, o das elites sobre os
setores populares.
A obra “Ejecución del reo Villavicencio” de J. B. Peralta aponta o
seguinte:

Por fin el Pueblo Social


hizo una gran reunión
para pedir el perdón

60 [N.T.] Referência ao psiquiatra italiano Cesare Lombroso (1835-


1909), que se tornou famoso por lançar teorias sobre criminologia
baseadas em aspectos biológicos e raciais.
61 [N.T.] Arthur de Gobineau (1816-1882) foi um filósofo francês que
também publicou trabalhos sobre eugenia e racismo, sendo muito
influente na construção do “racismo científico” que respaldou as
elites brasileiras do final do século XIX.

O VO O DO TUKUI 129
de aquel pobre criminal.
El Gobierno al contestar
declaró que ya el juzgado
lo había sentenciado;
pero dijo que algo haría
porque compasión tenía
del infeliz desgraciado.

Por fim o povo social


fez uma grande reunião
para pedir o perdão
daquele pobre criminoso.
O Governo ao contestar
declarou que já o juiz
o havia sentenciado;
mas disse que algo faria
porque compaixão teria
do infeliz desgraçado.

Aqui está o poder político implacável do governo, separado do


poder judicial e o “Povo Social” como um conjunto que se organiza
com um projeto comum. Logo, a divisão de poderes não é tão
clara — o governo “algo faria”, diz o relato —, numa estrofe que
evidentemente é anterior.
O dever ser da sociedade está latente nesses versos como um
pano de fundo inevitável, que é possível romper, mas na medida do
possível. Não se trata aqui de validar valores alternativos como os de

130 ANA PIZARRO


Antônio Conselheiro ou de Lampião. Há a referência a um sistema
de trabalho. Do mesmo Peralta segue o seguinte verso:

La muy noble sociedad


ufana y sin egoísmo
ataca al alcoholismo
por librar la humanidad.
(…)
Al fin la mujer chilena
por seguir el mal camino
toma chicha, toma vino
para desechar la pena.
Llega al burdel en la buena
tomándose el mejor trecho,
y se cruza pecho a pecho
a beber muy placentera:
toda vieja huachuchera62
le quita al hombre el derecho.

A mui nobre sociedade


Ufanista e sem egoísmo
Ataca ao alcoolismo
Para livrar a humanidade
(...)
Ao fim a mulher chilena

62 [N.T.] Huachuchera refere-se à palavra guachuchera, que seria o


adjetivo relativo à guachuco — aguardente de má qualidade.

O VO O DO TUKUI 131
Por seguir o mal caminho
Toma chicha, toma vinho
Para esquecer a pena.
Chega ao bordel toda fagueira
Seguindo a rua pela beira
E ali fica de peito aberto
Bebendo o que tiver por perto.
Toda velha cachaceira
Tira do homem o direito.

Aqui está a ideia de uma sociedade que atua junto e para além da
discussão feminista que estes versos carregam, e o que nos interessa é
a consideração da mulher em um sentido genérico de pertencimento
ao Chile: a expressão “mulher chilena”. Em outras palavras, existe
uma sociedade, um sistema que tem regras, que pode se subverter,
mas ele existe e gera limites. Ora, esse sentimento de nação se
exacerba quando se trata do Exército, parte significativa da noção de
Estado-Nação da época, como se vê nos versos de “Brindis a la patrona
del Ejército chileno” de José Hipólito Casas Cordero, ou quando há
situações de enfrentamento militar, com expressões racistas bastante
naturalizadas, como, por exemplo, no texto a seguir do mesmo poeta:

Sabemos que los cuyanos63


guerra quieren declarar
y no les vaya a pasar

63 [N.T.] Cuyanos são aqueles que nasceram em Cuyo, região da


Argentina.

132 ANA PIZARRO


como a los cholos64 peruanos;
quieren ser muy soberanos
estos cheyes libertinos
y como guerreros finos
a Chile lo han desafiado,
pero se han equivocado
los zánganos argentinos.

Sabemos que os cuyanos


querem guerra declarar
e não vão deixar passar
Como aos cholos peruanos.
Querem ser muito soberanos
estes chefes libertino
e como guerreiros finos
ao Chile tem desafiado
mas estão equivocados
os bravos argentinos.

Ora, a oligarquia do vale central impôs por meio do poder


político-econômico uma ideia de nação homogênea desde o início da
república. Os historiadores atuais, como Pinto e Salazar65, apontam
que esse imaginário foi uma construção de significados diferentes e, às
vezes, contraditórios, de acordo com o contexto e com os interesses.

64 [N.T.] Cholos são os mestiços ou índios do Peru.


65 [N.T.] A autora faz referência a Julio Pinto e Gabriel Salazar,
historiadores chilenos, conhecidos por abordarem os movimentos
sociais no Chile.

O VO O DO TUKUI 133
Em relação a essa unidade de nação, que não o é, as estrofes de Daniel
Meneses elucidem isso:

Los ricos ¿por qué razón


ninguno muere baleado?
El pobre por cualquier nada
a la muerte es sentenciado.
La corte con el fiscal
hacen que el rico no muera;
al rotito a la ligera
tratan de hacerle mal;
hasta el mismo Tribunal
sale a su contra en parada,
siendo que es la ley sagrada
negarla tienen tiene por galas;
y recibe cuatro balas
el pobre por cualquier nada.
Tantos ricos que han habido
asesinos, matadores,
les pregunto a mis lectores:
¿cuál es que muerto ha sido?
Solo el pobre, Dios querido,
es de todos mal mirado,
aunque sea el más honrado;
preguntarlo es necesario:
¿quién ha dicho: un millonario
a la muerte es sentenciado?

13 4 ANA PIZARRO
Por fin, pues, la mala suerte
no es ofensa ninguna;
el pobre hace su fortuna
cuando se encuentra la muerte;
el rico opulento y fuerte
en nuestra nación chilena,
jamás nunca siente pena
con los bienes que atesora;
pero llegando la hora
se muere y se condena.
“Versos de la desigualdad entre el rico y el pobre”

Os ricos, por que razão


Nenhum morre baleado?
O pobre por quase nada
À morte é sentenciado.
A corte com o promotor
faz que o rico não morra
já o pobre que corra
senão sentirá toda dor;
o mesmo Tribunal pode por
o pobre sob a espada
sendo que é a lei sagrada
que esta mesma seja negada;
e quatro balas são atiradas
contra o pobre por nada.
Sabemos de tantos ricos

O VO O DO TUKUI 135
assassinos, matadores
e pergunto aos meus leitores
o que lhes tem acontecido?
Só o pobre, Deus querido,
É tão depreciado
Mesmo que seja o mais honrado;
perguntar é necessário:
quem tem dito: um milionário
á morte ser sentenciado?
Por fim, pois, a má sorte
não é ofensa nenhuma;
o pobre faz a sua fortuna
quando encontra a morte;
o rico opulento e forte
em nossa nação chilena,
jamais sente a pena
do que guarda tão bem
mas quando a hora vem
se morre e se condena.
(“Versos da desigualdade entre o rico e o pobre”)

Embora a nação exista como um sistema com sua ordem


política, judicial e legislativa, há quem aí não entre da mesma forma
ou com o mesmo destino. Portanto, não se trata de uma ideia de
homogeneidade. Como podemos perceber, existe a noção de projeto
nacional, que é própria do poder central, mas há os que estão de
fora. Há situações nos versos, como os da Guerra do Pacífico, ou

136 ANA PIZARRO


os conflitos armados, por exemplo, que reúnem os imaginários e
respondem a uma oferta nacionalista da sociedade. Porém, isso
varia de acordo com o momento e em relação aos contextos; não é
um projeto compartilhado. Isso é evidente nas perspectivas opostas
sobre a figura de Balmaceda66 e seu governo presentes nos textos
numa vasta produção de textos, ocorrida entre 1886 e 1896, como a
pesquisadora Micaela Navarrete tem evidenciado com grande acervo
de antecedentes.
Nesse sentido, ele parece se diferenciar do sentido mais
disseminado e mais regionalista do imaginário de nação do cordel
brasileiro. Ao mesmo tempo, a lira chilena põe em evidência
um universo menos plural desde um ponto de vista cultural,
homogeneidade que se rompe na perspectiva social. Essa poesia,
em ambos os casos, expressa o imaginário de setores populares,
um modo diferente do oficial de experimentar a história, e em
nosso caso há um novo sentido de nação, tanto no Chile quanto
no Brasil — assim como em outros países da América Latina —, e
isso é afirmado em relato e canto, buscando a escuta apropriada,
para diferenciar a palavra do povo em relação às elites. Seu sotaque
perdura no tempo que tivemos que viver. Em parte, é um legado que
hoje tem vida própria no Nordeste do Brasil. No Chile há momentos
repentinos em que renasce, por exemplo, entre os presos políticos
nas cadeias da ditadura, antes dos anos 1990. Mas o legado vai mais
longe, está mais perto de nós e se estende até o final do século XX.
Violeta Parra canta:

66 [N.T.] José Manuel Balmaceda (1840-1891). Presidente do Chile


entre 1886 e 1891.

O VO O DO TUKUI 137
De arriba alumbra la luna, con tan amarga verdad,
la vivienda de la Luísa, que espera maternidad,
sus gritos llegan al cielo, nadie la puede escuchar,
en la fiesta nacional.

No tiene fuego la Luísa, ni una vela ni un pañal,


el niño nació en las manos, de la quien cantando está,
por un reguero de sangre, vá marchando un cadillac,
cueca67 amarga nacional.

La fecha más resaltante, la bandera va a flamear,


la Luísa no tiene casa, la parada militar,
y se va a parque la Luísa, adonde va a regresar
cueca larga militar.
“Yo canto la diferencia”

De cima alumbra a lua, com tão amarga verdade,


a moradia de Luísa, que espera maternidade,
seus gritos chegam ao céu, ninguém a pode escutar,
na festa nacional.

Não tem fogão a Luísa, nem uma vela nem fralda,


o bebê nasceu na mão, de quem está cantando
por um jorro de sangue, vai marchando um cadillac,

67 Cueca: Estilo musical e de dança típico de diferentes regiões do


Chile, Argentina, Perú, Bolívia e Colômbia. No Chile foi declarado
oficialmente como dança nacional.

138 ANA PIZARRO


canção amarga nacional.

A data mais importante, a bandeira a ondular,


a Luisa não tem casa, a parada militar,
e se vai ao parque a Luísa, onde vá a regressar
a grande canção militar
(“Eu Canto a Diferença”)

No Brasil, também está João Cabral de Melo Neto,


por cuja voz se imortaliza o Nordeste popular:

(…)
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual, mesma morte Severina:
(Morte e vida severina, 1955)

O VO O DO TUKUI 139
III

140 ANA PIZARRO


III

O VO O DO TUKUI 141
AMAZÔNIA: HORIZONTE E FRATURAS

Ao ler os primeiros cronistas de 1500 na navegação do Amazonas,


o olhar em torno a essa região aparece, ora como uma descrição
geopolítica destinada à informação militar, ora como descrição
de plantas e frutas para um possível desenvolvimento econômico
das nações metropolitanas. O estudioso Willi Bolle observa com
admiração a informação sobre as populações que Carvajal68, o
cronista de Orellana69, anota em seu texto, situação que finalmente
estudos recentes parecem confirmar, apontando que esse “intenso
povoamento é um índice da fartura de recursos”. De fato, segue a
citação de Carvajal: “É uma terra tão boa e fértil como na nossa
Espanha (...) E terra temperada, onde se colherá muito trigo e dará
todas as frutas; está também preparada para criar gado porque nela
há um bom capim”. Terras propícias à colonização, o que faz de
Carvajal um pioneiro do agronegócio, afirma Bolle.
Um olhar à história da arte e da literatura em seu sentido mais
geral conduz, com evidência, ao que tem sido a centralidade do ser
humano, situado sobre o mundo dos seres vivos: o desafio progressivo

68 [N.T.] Gaspar de Carvajal (1500-1584) foi um padre dominicano


espanhol que escreveu relatos sobre suas navegações.
69 [N.T.] Orellana é uma província do Equador, localizada na região
da Amazônia.

O VO O DO TUKUI 14 3
do “domínio do homem sobre a natureza”, como assinalam os textos
clássicos. Trata-se do princípio inequívoco que levou à noção atual
de Antropoceno, surgida no ano 2000 nos estudos de Paul Crutzen
e Eugene Stoermer, que passou do âmbito da geologia a distintas
disciplinas do saber. Este conceito expressa como o ser humano
gerou um impacto tão contundente no desenvolvimento do planeta a
ponto de ter alterado a sua paisagem. De agente biológico, o homem
aos poucos se tornou uma força geológica, diz Bruno Latour, um
clássico desses estudos. Em seguida, há um debate sobre chamá-lo
de Antropoceno ou Capitaloceno, mas não é o nosso tema hoje.
O problema de se considerar superior a outros seres vivos, aponta
Eduardo Viveiros de Castro, seguindo a Lévi-Strauss, é o primeiro
passo para se sentir especial diante dos outros seres humanos e para
considerar que os outros não têm alma, que não são tão humanos,
o que recai no princípio de exclusão de quem não é branco, dos não
tão brancos, não tão cristãos, nem ocidentais, dos que não pensam,
relacionam-se ou sentem como um só. Talvez o problema, inclusive
o das concepções consideradas mais progressistas, tem sido conceber
o desenvolvimento em uma direção única: a de produção de riqueza,
o que implica excesso de energia, petróleo e carbono, ou seja, a
noção clássica de progresso, e não conseguir construir uma direção
alternativa. Porque não o conseguimos de forma concreta. Sabemos
que, ao nos considerarmos progressistas, deveríamos nos situar em
atitude de permanente crítica para a conquista de uma sociedade
menos desigual, honesta e solidária, mas isso significa também o
equilíbrio entre a natureza e o ser humano. Nesse sentido, é sugestivo
refletir sobre a afirmação de um grande pensador dessa linha, como

14 4 ANA PIZARRO
Antonio Candido: ele diz que o socialismo “é um propósito sem
fim”. Em outras palavras, é uma busca por equilíbrios que nunca são
totalmente realizados. É uma busca permanente por uma melhor
relação do homem com o mundo.
A noção de progresso e desenvolvimento baseado no poder
econômico e no individualismo que comandou o ritmo histórico
de raízes coloniais da América Latina se baseia no princípio da
superioridade humana que faz da natureza um objeto de extermínio
e tem impulsionado megaprojetos de todo tipo. Desde o agronegócio
até a construção de grandes centrais hidrelétricas, alterando os
direitos de existência do mundo natural, o curso dos rios, a vida dos
peixes, o sustento das aves, a ritualidade, a memória, a existência
cotidiana, a cultura dos habitantes, o espaço em que habitam, hoje
em degradação em grande parte irreparável. A Amazônia atual é
um cenário dessa realidade. “Teatro do mundo”, disseram seus
pesquisadores e, por isso mesmo, cenário universal.
Mas não nos equivocamos, tudo aquilo que afeta a sociedade,
afeta também o indivíduo em particular.
Esse egocentrismo irreprimível mudou nossa relação com
os outros homens e com a própria natureza. Nos anos sessenta
do século passado, os jovens que éramos nos rebelamos contra
uma situação socioeconômica “de alienação”, dizíamos que
nos parecia insustentável, não imaginávamos que se tratava
somente da etapa prévia do desperdício de energia utilizado para
gerar países “superdesenvolvidos” e ao mesmo tempo outros
“supersubdesenvolvidos”, nos termos de Viveiros de Castro. Qual é
a alternativa, pergunta o intelectual brasileiro?

O VO O DO TUKUI 14 5
Em 1972, D. Meadows, cientista do MIT, lançou o livro Os limites
do crescimento em que sustentou que os limites do crescimento eram
físicos e que a única solução para um futuro catastrófico era a de
controlar o crescimento da população e a limitação do crescimento
econômico mundial. Solução malthusiana enfrentada pelo grupo de
intelectuais latino-americanos da Fundação Bariloche na Argentina.
Fizeram-no contra uma postura determinista e visando denunciar a
desigualdade como motor da situação no âmbito internacional e a
necessidade de realizar mudanças nos padrões de comportamento
e pensamento. Foi assim que lançaram seu Modelo Mundial Latino-
Americano de 1970, sob a liderança do cientista Jorge Sábato: não
somos muitos para a quantidade de alimentos que há, acontece
que estes estão distribuídos de forma desigual. A posição desses
intelectuais do continente é o antecedente direto de raciocínios atuais
como o de Viveiros de Castro que atesta a desigualdade como motor,
apontando nossa posição geral como contrária à utopia, sendo essa
a projeção imaginada do que fazemos hoje. É, diz ele, uma postura
distópica no sentido de que estamos levando a cabo ações cujas
consequências não podemos imaginar.
Como apontamos, essa situação de desequilíbrio na relação
do homem com a natureza condiciona claramente nossos modos
de vida em sociedade e gera estruturas que alteram nossa própria
subjetividade. É assim que o pesquisador Jens Andermann analisa esse
fenômeno, apontando que nossa subjetividade foi fraturada de forma
irreparável. Vivemos duas histórias: a cotidiana, da disputa eleitoral,
e a frivolidade do entretenimento. Segundo ele, “mas ninguém ignora
que é no âmbito da segunda história, a nefasta e sinistra, que nossas

14 6 ANA PIZARRO
vidas e mortes vão ser decididas, uma ação sem sujeito: continue
consumindo, os índices econômicos melhoram, mas cuidado com a
marca de carbono”. Essa é a reflexão de sua última publicação.
Como funciona nosso imaginário urbano hoje? Por um lado, no
espaço do shopping center, onde a nossa subjetividade se diviniza
no seu ego, no consumo desenfreado que responde às necessidades
impostas pelas infinitas estratégias publicitárias; e, por outro, numa
espécie de coro trágico que funciona em modo de baixo contínuo
há alguns anos: o barulho do mar que invade a orla e os primeiros
edifícios nas costas; as temperaturas que oscilam entre o máximo e
o mínimo até agora suportável; os blocos de gelo que degelam nos
polos; o furacão que destrói as cidades dos trópicos; um rompimento
de uma barragem em Mariana, Minas Gerais, ou de barragens que
transbordam afundando de forma irrecuperável formas de vida e
culturas na lama da Amazônia, na Colômbia, no Haiti, no Peru,
entre outras. Um tempo amortecido e sólido que se marca lenta,
mas inexoravelmente.
A Amazônia é um campo privilegiado para observar esses
processos. Parece-me que é aí onde, no espaço do continente, a sua
visualização surge com maior evidência. Já desde o início, desde a
própria viagem de Carvajal, esse espaço geográfico ganhou o estatuto
de laboratório, e aí La Condamine observou a utilidade da seiva de
certas árvores para a sua utilização na indústria europeia, o que hoje
chamamos de borracha. O mesmo que a indústria farmacêutica ou
a pesquisa metalúrgica estão fazendo hoje.
É na Amazônia que encontramos uma sociedade multiétnica,
oriunda de diferentes espaços culturais e temporais em

O VO O DO TUKUI 147
funcionamento. Aqui é possível mostrar a diversidade de tempos
sobrepostos e ao mesmo tempo articulados, que se tornam uma
particularidade de nossa sociedade periférica de origem colonial.
Aqui convivem sociedades indígenas comunitárias; comunidades
quilombolas, com grupos feudais, como nas fazendas do Marajó ou
no interior da floresta; um sistema de trabalho escravo como tem
sido denunciado por organismos internacionais; uma sociedade
capitalista urbana surgida do trabalho extrativista; uma sociedade
fruto do desenvolvimento tecnológico da nova mineração. Todas,
exceto algumas comunidades isoladas, estão ligadas entre si e,
de alguma forma, também ao mercado, incluindo o mercado
internacional.
O horizonte social tende, nessa concepção de progresso que
levamos adiante, a olhar os elementos do desenvolvimento ocidental
como referência e meta; o modelo europeu, o norte-americano.
Talvez seja possível observar os modos de vida dessas outras culturas
não ocidentais com as quais vivemos e aprender uma lição com elas.
Não se trata de uma posição utópica de retorno ao passado, trata-se de
observar processos paralelos em um continente como o nosso, como
dissemos, de tempos culturais sobrepostos, de culturas imbricadas,
não necessariamente transculturais. O olhar para as tecnologias das
culturas indígenas, por exemplo — os estudos atuais falam disso — ,
não é um retrocesso, pois elas podem ser uma referência. Os Andes,
assim como a Amazônia, pode ser uma referência de sobrevivência,
de gestão do meio ambiente adaptada às condições de existência de
grandes maiorias e culturas complexas. É o que aponta o metodólogo
Alexander Herrera Wassilowsky: «As tecnologias andinas são

14 8 ANA PIZARRO
eficientes, sustentáveis e
​​ dignas de recuperação”. Talvez nem sempre
seja necessário olhar para a frente nesta corrida desenfreada ao
progresso em que a humanidade se perde atrás da robótica, em
que as novas tecnologias passam a ameaçar o imaginário da ciência
e da ficção literária a partir do seu desenvolvimento competitivo
entre as nações. Ernesto Sábato, o escritor argentino, como tantos
outros, já havia refletido sobre isso, e o antecedente é o pensamento
de Rousseau em seu famoso «Discurso sobre as Ciências e as Artes”,
de 1750, em que discute a ideia de um progresso que padroniza e
defende a ideia do homem natural. Será necessário, digo, talvez não
entrar no jogo de uma carreira desumanizadora desenfreada, mas
sim procurar outras referências, olhar para o lado, por exemplo, para
culturas que se desenvolvem a partir de outros tipos de valores na
sua relação com o mundo, ou para trás, para aquelas que não usaram
o glifosato para purificar suas plantações, mas usaram técnicas não
invasivas ou poluentes baseadas em relações equitativas entre o ser
humano e a natureza.
Estamos, sem dúvida, num campo interdisciplinar em que
precisamos fazer convergir diferentes formas de conhecimento. Esse
é o nosso desafio: um espaço onde as relações entre conhecimento,
política e cultura tenham um lugar de privilégio.
Dissemos que a Amazônia é um espaço de exacerbação dos
paradoxos latentes na subjetividade continental.
A primeira grande cisão histórica que constitui seu universo
simbólico está situada no campo econômico, social e político,
um espaço abrangente porque se relaciona com o poder. É, por
um lado, a forte contradição constituída pela existência social de

O VO O DO TUKUI 149
espaços de autoritarismo, tanto na esfera política — caudilhismo70
regional — como na esfera econômica com as grandes empresas,
havendo o domínio supranacional da sociedade face a outra forma
de relação social, regida pela comunidade; ou seja, o predomínio
da solidariedade observável em espaços indígenas, quilombolas
ou ribeirinhos. Valores da humanidade. O caso da exploração da
borracha é um exemplo óbvio no final do século XIX e no início do
século XX. Os barões da borracha, que residiam em Manaus e Paris,
e seus representantes na floresta obtiveram a matéria-prima a partir
do roubo, da escravidão e da tortura de indígenas, como no caso
de Julio César Arana, em Putumayo, fronteira da Colômbia com o
Peru. Diante dessa pura expressão de autoritarismo na ligação com
o mercado internacional e com a bolsa de Londres, está o gesto
de grandeza da atual comunidade Muinane71, na negociação com a
memória, descrita por Juan Alvaro Echeverri, em um magnífico texto
chamado “Canasto de Tinieblas e Canasto de Vida” [Cesto das Trevas e
Cesto de Vida]72. Os jovens de Muinane, que não vivenciaram o drama
do Putumayo, viajam caminhando há dias até o local de La Chorrera,
onde seus avós estão enterrados em uma jornada de cura: “Nós

70 [N.T.] Caudilhismo é uma forma de poder político comum nos pa-


íses do continente latino-americana, constituído pelo agrupamento
de uma comunidade em torno de um “caudilho”, isto é, um chefe
ou líder que exercerá o poder de forma personalista e concentrada.
71 [N.T.] Muinane é um grupo indígena brasileiro que habita o Ama-
zonas, em áreas que fazem fronteira com Colômbia e Peru.
72 [N.T.] Canasto de Tinieblas e Canasto de Vida eram expressões
usadas por grupos indígenas para se referir às memórias da comu-
nidade. O primeiro faz referência às lembranças ruins da escravi-
zação de seu povo, já o segundo está ligado às “sementes” para um
futuro melhor, sem sofrimento, para as novas gerações.

150 ANA PIZARRO


somos seus netos e chegamos”, dizem eles. “Chegamos nesse ponto
e pisamos nesta parte. Viemos de boa, com bons pensamentos”.
Então eles explicam que vêm trocar o Cesto das Trevas, ou seja, a
memória do horror, das forças malignas, pelo Cesto de Vida, que é
do futuro limpo, a palavra do tabaco e da coca, a palavra pública. A
memória obscura da comunidade fica, assim, transformada. Contra
o autoritarismo, relações de carinho e generosidade.
Uma segunda ruptura preocupa o imaginário amazônico. Trata-
se da perspectiva modernizadora dos megaprojetos — hídricos,
agrícolas, metalúrgicos, farmacêuticos — ancorados em espaços
de hipodesenvolvimento tecnológico, que tem seus potenciais
destruidores do meio físico, biológico, social e cultural. O que é
contraditório se relaciona com o fato de que essa destruição ocorre
no meio de um universo natural que, em todas as suas dimensões,
expressa a vida em seu sentido mais pleno.
Os poderes funcionam cada vez mais em busca do grande
rendimento, ressalta William Ospina:

Não é mais necessário se esgotar em discussões


para demonstrar que todo esse poder voraz e
acumulado que domina a terra e o ar, a água e
o subsolo, não só o faz menos em benefício da
humanidade, mas está efetivamente destruindo,
com nossa cumplicidade incessante, o universo
dos deuses, envenenando as fontes, degradando
as águas, poluindo os solos, cercando cidades
com lixo, cobrindo os oceanos com resíduos não

O VO O DO TUKUI 151
biodegradáveis ​​e produzindo uma alteração no
clima planetário.

Em contraponto está a Amazônia em sua natureza latente, em sua


produção permanente de vida. Ospina evoca os versos de Whitman,
que recupero:

Creio que uma folha de relva não é menos que a


jornada das estrelas,
E a formiga é tão perfeita, e um grão de areia, e o
ovo da galinha,
E a rã é uma obra-prima para o altíssimo,
E a trepadeira de amoras-pretas podia enfeitar os
salões do céu
(Walt Whitman, Folhas de relva. Tradução de
Rodrigo Garcia Lopes)

Diante do universo hipertecnologizado da grande indústria, dos


grandes projetos que organizam rios com estradas especializadas
para pesca, ou do universo da Zona Franca de Manaus, está a técnica
milenar, útil para a vida sem destruição, que permite tocar as plantas,
cheirá-las, sentir a sua espessura e latência, desenterrar a mandioca
e sentir a sua frescura, e seguir o ritmo das estações num diálogo
produtivo.
O terceiro paradoxo latente na experiência amazônica é a
oposição entre extrema riqueza e extrema pobreza. A riqueza é
vista e conhecida por boatos. Como sabemos, é uma área geográfica

152 ANA PIZARRO


de enorme riqueza em biodiversidade, recursos minerais, hídricos
e culturais. Nos setores urbanos e nas empresas, isso é evidente e
tem sido historicamente ostentoso. Mas, para a maioria de seus
habitantes, é uma riqueza à qual não há acesso. A extrema pobreza
é evidente nas grandes cidades: Letícia, Manaus, Belém e Iquitos.
Isso fica evidente no garimpo, nas comunidades ribeirinhas, nos
moradores das palafitas.
Devido a essa mesma situação, é um espaço de usurpação das
riquezas naturais e do homem. E, paradoxalmente, sempre foi e é
o espaço da utopia. La Canela e El Dorado ainda estão presentes e
o mito original era o do Paraíso Terrestre. Quer dizer, por um lado,
como um sonho de enriquecimento em dinheiro, como a Fordlândia73,
mas também como o sonho de Manoa, a cidade encantada, o lugar
das sombras ilusórias, evocado pelo poeta venezuelano Eugenio
Montejo, onde se projetam ilusões, onde reside o essencial do
humano, o lugar que se busca mas não se encontra, porque não é
um lugar, mas um sentimento.
Assim, o grande paradoxo reside, por um lado, na força do real,
que é natureza, a vida e a destruição, a riqueza e a pobreza, as
tecnologias de ponta e as técnicas agrárias elementares, a morte e
a vida na sua expressão mais extrema, a vida em sua ressonância
original. E, por outro lado, na convivência íntima com a existência
de um imaginário persistente, que se materializa em jogos de cultura
popular, adquirindo vida coletiva, com o Boto, Iara, Boiúna, a Grande

73 [N.T.] Fordlândia é um distrito localizado no município de Avei-


ro, no Pará. Recebeu esse nome porque no passado foi uma cidade
operária e industrial.

O VO O DO TUKUI 153
Cobra, o Curupira ou Chullachaqui, da parte andina, com múltiplas
histórias moldam a vida de quem lá vive. Tudo em um tempo e um
espaço difusos, como mostra o poeta Paes Loureiro, em seu magnífico
texto sobre a poética amazônica. Segundo ele:

Há, no mundo amazônico, a produção de uma


verdadeira teogonia cotidiana. Revelando uma
afetividade cósmica, o homem promove a conversão
estetizante da realidade em signos, por meio das
labores do dia a dia, do diálogo com os mares, do
companheirismo com as estrelas, da solidariedade
dos ventos que impulsionam as velas, da paciente
amizade dos rios. E como se aquele mundo fosse
uma só cosmogonia, uma imensa e verde cosmo-
alegoria. Um mundo único real-imaginário. Foi se
constituindo nele uma poética do imaginário cujo
alcance intervém na complexidade das relações
sociais.

Acredito que sejam paradoxos que gravitam, em diferentes graus


e com diferente intensidade, no imaginário amazônico, e que estão
presentes em seus escritos populares e eruditos, nas vozes indígenas,
no escasso que delas deixamos de conhecer.
O interessante sobre esses paradoxos é que a Amazônia acabou
não sendo nem o Inferno nem o Paraíso, como nossos cronistas o
viam. Ela é os dois ao mesmo tempo, e essas múltiplas dualidades
são o que constituem a sua subjetividade.

15 4 ANA PIZARRO
Como parar? Como deter esse transborde de concepções
orgiásticas, favoráveis para os menos e invisibilizadas para os mais?
Como demonstrar as práticas do tipo de desenvolvimento em que
estamos imersos como perspectivas de profundas repercussões
éticas? Como mostrar que os imaginários de bem-estar trazidos
pelas novas tecnologias e megaprojetos não implicam a felicidade
que buscamos, nem são neutros e externos, mas incorporam formas
de comportamento e de relação com a vida? Que eles estruturam
as identidades individuais e coletivas, que geram formas de ver o
mundo privadas de humanidade? E que eles destroem a natureza,
as comunidades e as culturas?
Obviamente, não parece que a Amazônia esteja no melhor dos
cenários no momento. O horizonte parece bastante perturbador. No
entanto, nossa tarefa de busca da humanização parece ter cada vez
mais definitivamente o caráter do propósito sem fim, que indicava
Antonio Candido: promover a observação, o estudo, a análise, a
ação e a crítica permanentes para sua defesa. Como um anfiteatro
exposto ao mundo, a Amazônia chama a atenção. É a sua fraqueza,
mas também pode ser a sua força.

O VO O DO TUKUI 155
HUMANIDADES NA AMAZÔNIA

Quando buscamos bibliografias de estudos amazônicos, o que o


computador mais traz à tona são trabalhos na área de biologia ou
química, úteis à indústria farmacêutica ou a outro tipo de empresa
comercial, além de trabalhos relacionados à mineração, desde física,
química ou matemática; há também obras de geopolítica e, em
menor medida, de ciências sociais — antropologia ou sociologia —,
o que nos leva a questionar para que servem as ciências humanas
na Amazônia. E isso nos coloca, antes de tudo, diante da questão
geral: o pensamento literário e filosófico é um luxo das elites, como
era nos grandes salões das cortes francesas do século XVIII? Qual é a
utilidade do conhecimento e da pesquisa humanista e sua importância
para o desenvolvimento da sociedade em geral, da América Latina,
de nossos países?
Ou seja, qual é o seu estatuto dentro de uma organização do
conhecimento, que outrora teve como centro a Teologia, na Europa
medieval e na América colonial, depois a Razão, de Descartes,
generalizada a partir do Iluminismo? Organização que com o método
experimental supervalorizou o concreto na segunda metade do
século XIX, e que hoje parece ter como centro as disciplinas e os

O VO O DO TUKUI 157
métodos disciplinares de acordo com a função de mercado. Trata-se
da importância da Razão instrumental, que foi criticada na época
pela Escola de Frankfurt: a grande função do conhecimento é o
domínio da natureza.
Mas o desenvolvimento dos acontecimentos que presenciamos
diariamente na última década, nos quais os fenômenos ambientais
se aceleraram, nos faz questionar novamente essa relação do ser
humano com seu entorno, sua superioridade virtual e o orgulho
de seu domínio sobre ele. Será que em vez de dominá-la é preciso
dialogar com a natureza, negociar com seu poder? Não pecamos
um tanto por um antropocentrismo que quis ver o meio ambiente
como imutável e nos conduziu a um desastre ambiental como o
de hoje? O questionamento do ensino de filosofia, a precariedade
da leitura literária, muitas vezes reduzida a textos de autoajuda, a
pobreza do ensino de uma concepção histórica monolítica e acrítica
no ensino secundário em nossos países são nada mais que o efeito
concreto dessa razão instrumental que hierarquiza as disciplinas
de acordo com sua produção de valor. O pensamento estritamente
disciplinar é também uma expressão disso quando observamos a
evolução da noção de humanismo desde a concepção ampla do
homem presente na Renascença até aquela estreita dos dias de
hoje; e também quando pensamos que, em culturas intocadas pelo
desenvolvimento ocidental, a forma de pensamento é articuladora
do homem e do mundo natural, do homem, da natureza e da
dimensão transcendente. Nesse quadro, não podemos conceber a
literatura como uma entidade em si mesma, que não conecta o leitor
ou o observador com outras dimensões da vida, as quais exigem a

15 8 ANA PIZARRO
presença de disciplinas alternativas: psicologia, sociologia, história,
entre outras. Vou abordar apenas alguns aspectos de um problema
que é muito amplo.
O primeiro é o que ocupa o interesse do estudioso alemão
Ottmar Ette, da Universidade de Potsdam, sobre literatura e saber
viver. Trata-se de seu trabalho na área de literatura e ciências da
vida — Lebenswissenshaften. Segundo Ette, existe uma ciência intra
e extratextual, entre outras coisas, e que a literatura nos ajuda a
resolver um dos problemas mais urgentes do século XXI: como
culturas radicalmente diversas podem se reunir, se conhecer, conviver.
Isso nos aproxima de outras situações, línguas e comportamentos.
A diferença, aponta o estudioso colombiano Selnich Vivas, confirma
a humanidade, e ele acrescenta: “Cada espécie, animal ou vegetal,
é portadora de uma parte da memória do planeta. Atender a essa
memória é crescer em respeito a si mesmo como espécie”. O estudo
e a experiência literária estão no âmbito de uma ciência da vida, uma
ciência para a vida. O estudioso alemão argumenta que a noção de
sistemas científicos deve incluir a dimensão humanística, tarefa capaz
de mudar o curso que dão à tarefa científica, as chamadas ciências
duras e a tecnologia, esse espaço que se perdeu, o espaço de reflexão.
Ette declara: “As discussões sobre o genoma humano, a pesquisa com
células-tronco, a possibilidade de clonar uma vida animal ou humana
e a engenharia genética humana ou de sementes deixaram, em grande
parte, o público com a ideia de que algumas pequenas e altamente
especializadas linhas de pesquisa acadêmica cobrem atualmente o
amplo conhecimento sobre a vida humana”. Mas, agora digo eu, aí
vem o 11 de setembro norte-americano, o crescimento do ISIS em

O VO O DO TUKUI 159
vários continentes e não temos resposta. O que Benjamin chama de
“a monstruosidade do destino ameaçador” não tem resposta. Por que
e de onde surge o terror? Não refletimos, e se isso foi feito de fato,
não há respostas possíveis até agora, tampouco há autocrítica nas
respostas. Volta-se ao dualismo clássico que tanto conhecemos em
nosso continente de civilização e barbárie. Mas a Europa não olha
primeiro para a marca deixada pelo colonialismo e depois para a sua
persistência no desprezo e na invisibilidade de culturas de enorme
profundidade histórica e elevado desenvolvimento científico, como
as árabes, subalternizadas e devastadas em muitos casos. O poder do
desenvolvimento econômico não olha, não pensa: ataca. Benjamin já
rejeitava o “tempo mecânico” e chamava atenção para os riscos do
uso militar do desenvolvimento científico e técnico. Hoje vemos o
conhecido pesquisador S. Hawking reafirmar o perigo da tecnologia
e, em paralelo, os jornais nos trazem os acontecimentos da Coreia
do Norte de um lado, com seus testes atômicos, e da Síria, de outro,
com a devastação por meio de substâncias químicas. Então, voltamos
ao ponto de partida: para que servem as humanidades? Por que a
reflexão e a crítica sobre o nosso destino e o de nossos filhos e netos
são necessárias mais do que nunca? Estamos preparando as crianças
para o mundo de amanhã, mas deveríamos pensar em que mundo
estamos preparando para essas crianças. É aí que o pensamento
sobre o ser humano e a história desse pensamento têm uma
função. Precisamos criar um espaço contrastante e complementar
onde as humanidades, as ciências sociais, as ciências naturais e as
ciências duras dialoguem. É necessário pensar que os fenômenos
não podem ser concebidos isoladamente. Eles constituem um todo

160 ANA PIZARRO


articulado. Quando um grupo indígena desaparece na Amazônia,
não há apenas um problema demográfico ou biológico. O fenômeno
é humano e possui diversas dimensões. Quando morre o último de
seus habitantes, morre também uma língua, que é uma cultura, uma
forma de conceber e viver o mundo. Quando morre uma língua,
morre não só a maneira de falar de um grupo, morre uma dimensão
da humanidade. Com isso todos nós ficamos mais pobres.
Por isso, a interdisciplinaridade é uma necessidade imperativa.
O desenvolvimento da ciência e da tecnologia é importante, mas
ciência e tecnologia para quê? E para quem? São nas respostas dessas
perguntas que entram por completo as humanidades: crítica, análise,
mas também emotividade, afeto, mística, vivência, experiência vivida,
os modos de sentir que a música, as artes plásticas, as artes em geral
nos proporcionam; assim como a experiência literária.
E agora é o nosso segundo argumento, que não é um argumento
da razão, mas da sensibilidade.
E vou tentar um jogo. Em que medida as cinco linhas de uma
história podem provocar em nós uma experiência sensibilizante?
Como sabemos, e nos explicou maravilhosamente nosso amigo Carlos
Pacheco, o pesquisador venezuelano que faleceu há pouco tempo, a
história é uma narrativa de condensação. Seu rigor ordena ações em
um tempo e um espaço, instala um problema com a circunstância e
o prazo. É uma construção, como sabemos, simbólica, em princípio
fechada sobre si mesma. O importante é a intensidade do seu efeito.
Vou me permitir ler uma pequena história de Kafka que leva o
título “Uma pequena fábula”:

O VO O DO TUKUI 161
-- Oh! -- disse o rato -- O mundo está ficando menor a
cada dia. No começo era tão grande que fiquei com
medo dele. Eu corri e corri, e é verdade que fiquei
feliz em ver aquelas paredes, esquerda e direita,
na distância. Mas essas paredes se estreitam tão
rápido que logo me encontro na última sala e ali,
no canto, está a armadilha pela qual devo passar.
-- Tudo que você precisa fazer é mudar o rumo
-- disse o gato… e o comeu.

Dois personagens, um espaço em uma disposição determinada,


um tempo limitado. Um conflito crescente numa sequência de
movimentos e um fim abrupto em que o conflito se fecha em si
mesmo. Só nas palavras finais do relato, a observação deixa de buscar
a sequência e se amarra a um todo, uma condensação que se tornou
um símbolo e, como tal, irradia para o concreto, o abstrato, a emoção,
o sentimento. Cinco linhas são suficientes para gerar a intensidade
viva da angústia, quatro movimentos concretos para promover uma
experiência estética intensa. Ao ler essa história não estamos na sala
de espera da vida, estamos na própria vida, no centro da angústia.
A intensidade alcançada em quatro linhas é como o efeito da saída
abrupta dos bronzes em meio à calmaria da Bachiana nº 5 de Villa-
Lobos, que de repente nos leva para as profundezas da selva numa
experiência de êxtase e saudade de um universo possível.
O mundo de Guimarães Rosa, o grande escritor do sertão
brasileiro, aquele lugar mitopoético, ao longo das setecentas páginas
de sua história — que, como sabemos, é o monólogo poético de um

162 ANA PIZARRO


jagunço retirado de uma vida perigosa — transmite uma concepção da
vida como indeterminação, uma contradição permanente do homem
e do diabo. O que é o sertão?  Disse Riobaldo, o personagem. “Sertão
é onde o campo não tem cerca”, ou “Você sabe: o sertão é onde
manda quem é forte, com astúcia. O próprio Deus, quando vier, que
venha armado!”. Na história, tudo é e não é ao mesmo tempo. Em sua
revelação a um interlocutor médico, o antigo jagunço transmite um
sentido da vida como indeterminação, como transformação, às vezes
fuga, às vezes quietude, mas sempre em contraste. Em um balanço
constante, que também é o da oralidade, experimentamos a vida do
sertão, mas disparada por sua humanidade em um espectro universal.
De tudo isso, apenas uma linha: “O importante e bonito do mundo é
isso: que como as pessoas nem sempre são as mesmas, elas ainda não
estão acabadas, ao invés de estarem sempre em movimento. Afinam
e desafinam”. Mas não consigo deixar de ler, na sua tradução para o
espanhol, depois de setecentas páginas de lutas, amores, desesperos,
bravura, a frase final do texto, o fim do grande monólogo: “Conto o
que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei
tudo [...] Existe é homem humano. Travessia.”.
O núcleo simbólico aqui espalha sua energia estética, mais
abreviada e intensa na história, mais disseminada ao longo do
romance, gerando sensações de vida: de dor, de angústia, de afeto,
de sonho, de possibilidade, de expectativa, de rigor. A ficcionalização
nos fala a cada momento sobre o ser humano. Sobre culturas que se
cruzam e produzem no leitor a explosão de seu embate, como na
história de Borges “El cautivo”. Lá nos pampas argentinos, um filho de
um casal de colonos brancos é sequestrado pelos índios numa mala.

O VO O DO TUKUI 163
Os anos passam e, inesperadamente, os pais ouvem falar um jovem
de olhos claros que galopa entre os indígenas. Trazem o menino, que
parece não reconhecer nada, até que chega à cozinha, corre e pega
uma faca que havia escondido em um buraco quando era pequeno.
Os pais sentem que o recuperaram. Mas logo depois, o jovem foge e
retorna ao mundo que deixou. O clímax dessa história é um segundo,
o instante de confluência cultural, de contradição, de negociação. Um
instante que a ciência pura talvez não poderia explicar, o momento
em que a cultura ocidental se confronta, na experiência de um cativo,
com a experiência indígena, o momento de intersecção e choque das
duas culturas, que é, além do relato, o grande momento prolongado
do nosso continente. Nas palavras de Borges:

Talvez esta lembrança tenha sido seguida por


outras, mas o índio não podia viver entre paredes
e um dia foi procurar o seu deserto. Gostaria de
saber o que ele sentiu naquele momento de vertigem
em que o passado e o presente se confundiram.
Gostaria de saber se o filho perdido renasceu e
morreu naquele êxtase ou se conseguiu reconhecer,
ainda que como uma criatura ou como um cão, os
pais e a casa. 

A experiência do humano está também no universo indefinível


e surpreendente de Bartleby, o escrivão, na história de Melville, o
personagem que responde, quando a ele é feito qualquer pedido: “Eu
preferia não fazer”, e do qual o próprio Borges indica “a inutilidade

16 4 ANA PIZARRO
essencial que é uma das ironias diárias do universo”. Poderíamos
continuar, mas neste jogo de experimentar leituras curtas, temos
exemplos de sobra. Queria apenas tentar transmitir, por meio de
leituras mínimas, o inexplicável, mas digno de ser vivido: aquela
abertura de dimensões que a experiência estética significa. Como
ela atua sobre nós e nos expande, às vezes em círculos concêntricos,
com frequência em linhas de fuga, a perspectiva sobre o ser humano
e a vida, sobre o universo. Para que servem as humanidades? Para
sensibilizar, para ampliar e estender o espaço da experiência, para
coexistir com a alteridade, para compreender a diferença. E também,
fundamentalmente, para buscar e construir sentido.
E quando se trata de construção de sentido, as humanidades não
são um campo sem contradições. Ao contrário, a crítica desempenha
um papel importante em seu pensamento e as invalidações e
lutas estão presentes na história do pensamento. Um deles é a
consideração do pensamento e culturas indígenas na América. Agora,
deixarei de lado as culturas afro-americanas, às quais retornarei no
artigo a seguir deste volume. Porque isso nos permite validar formas
de saber e a visão humanística sobre as culturas da América Latina.
“Elas viraram de cabeça para baixo a cultura ocidental”, diz Márcio
Souza, ao desmontar a noção de cultura como algo exclusivo do
Ocidente e não inerente à natureza humana. Há nelas uma noção
diferente de tempo, que é tempo-espaço, em que o passado existe
simultaneamente com o presente. Um texto dessano74 sobre a origem
do mundo conta como a origem de tudo foi uma mulher, a quem

74 [N.T.] Os Dessanos são um grupo indígena que habita o noroeste


do Amazonas.

O VO O DO TUKUI 165
chamavam de “Avó do Mundo” ou “Avó da Terra”. Nasce-se na
natureza, vive-se nela e sua relação-comunicação com esse universo
é central na vida do habitante tradicional indígena, principalmente
no caso da cultura da floresta tropical, na Amazônia. A maior parte
de seu universo, senão todo, se desenvolve e vive ao seu redor e em
relação direta com ela. Essa relação certamente delineia sua forma
de se aproximar ao mundo. Seus componentes não são objetos
externos, eles são interlocutores e, em muitos casos, antecessores
de sua forma humana atual. Eles povoam seus relatos, concedem-
lhe uma linhagem: o clã do jaguar, o clã da onça, a cobra, a Grande
Cobra tem uma importância central no universo amazônico, como
já apontamos em trabalhos anteriores. Nesse universo existe uma
conexão básica com a natureza, uma energia que conecta o ser
humano com as árvores, os animais, o rio, a montanha, há uma
interlocução entre eles, eles constituem um todo que é a própria
vida. É uma relação próxima da poesia, na tentativa de se reconectar
com a origem das palavras, com a origem do sentido, na reconexão
com o fundamento, o tempo e a relação primordial entre as coisas.
O beija-flor transmite mensagens, as pedras estão vivas ou mortas.
As ervas produzem o mambe75, o yagé — o caapi76 — o cipó, aqueles
que o etnobotânico Evans Schultes (2000) chamou de “o guaco da
alma” ou “as plantas dos deuses”. Eles dão a lucidez para enfrentar
os problemas do grupo, para estabelecer a conexão com a esfera
divina. Nessa relação não cabe mediação alguma, sua relação com

75 [N.T.] Mambe é um pó não refinado que se concentra nas folhas


de coca.
76 [N.T.] Yagé, também chamado de caapi, conhecido no Brasil
como Cipó-mariri, é um cipó nativo da região amazônica.

166 ANA PIZARRO


o mundo pertence ao registro do valor de uso. Quando o valor de
troca entra, há apenas destruição, não só da natureza, mas também
das pessoas. Nesse sentido, a troca ou o valor desempenharam, e
ainda desempenham em muitos casos, um papel importante como
empecilho àquele mundo de relações solidárias entre os humanos e
com os humanos e a natureza.
Pois bem, apontamos ao longo desta jornada para algumas
primeiras percepções de um observador externo sobre essa forma
alternativa de pensar. Aproximei-me dela tentando observar
elementos que nos permitissem compreender a diferença, úteis para
estabelecer vínculos interculturais. Selnich Vivas, um conhecedor da
poesia minika77, na Colômbia, aponta: “Pensar a partir das línguas
indígenas implica ingressar em uma forma diferente de vida cognitiva
e espiritual”. O que sempre foi a mediação de um antropólogo no
século XX — que de outra forma tem sido extremamente útil para
a aproximação desses saberes — foi se transformando nas últimas
décadas. Hoje presenciamos a publicação de textos indígenas
contemporâneos, ou seja, documentos escritos e impressos, mas
com comunicação minimamente mediada. Já nas últimas décadas
do século XX, essas vozes começaram a aparecer, silenciadas pelo
desinteresse ou preconceito pela cultura ocidental, dessa vez em
publicações ou espaços autogestionários, colóquios universitários
ou encontros acadêmicos. As novas formas de comunicação
evidentemente os favoreceram.

77 [N.T.] O povo minika é um grupo indígena de regiões que com-


preendem a Colômbia.

O VO O DO TUKUI 167
Começamos a encontrar diretamente poetas wayuu78, mapuche
ou quechua, e aí percebemos nosso distanciamento de outras formas
de pensar e se relacionar com o universo. Como, por exemplo, no
fragmento do poema de Bernardo Colipan “Arco de Nguillatun”79

Las bandurrias vuelan en bandada


Bajo las piedras algunos insectos
Corren perseguidos por otros.
Harina tostada y muday
Ardiendo en el fuego sagrado.
De rodillas esperamos la salida del sol.
Con el rocío las oraciones ascienden
hacia la Tierra de Arriba.
La tierra vuelve a ser jardín
poblado por antiguos pasos,
una página en blanco,
una vasija
en donde cabe todo,
un puñado de semillas en un instante.
El fin de mi aliento es
el comienzo de otro.
Nuevamente la palabra traduce
la reunión de las cosas.

78 [N.T.] O povo wayuu constitui um grupo ameríndio que habita a


região de La Guajira, na Colômbia, e da Zulia, na Venezuela.
79 [N.T.] Arco de Nguillatun é uma expressão de origem mapuche
que faz referência a uma cerimônia religiosa para dar graças e pedir
pelo bem-estar.

168 ANA PIZARRO


As curicacas voam em bando
Sob as pedras alguns insetos
correm perseguindo uns aos outros.
Farinha torrada e muday80
Ardendo no fogo sagrado.
De joelhos aguardamos o nascero do sol.
Com o orvalho as orações ascendem
para a Terra de Cima.
A terra volta a ser um jardim
povovado por antigos passos,
uma página em branco,
uma vasilha
onde tudo cabe,
um punhado de sementes em um instante.
O fim de um suspiro
é o começo de outro.
Novamente a palavra traduz
a reunião das coisas.

É uma outra forma de aproximação com o mundo, uma forma


alternativa de relação que no poema encontra sua afiliação com a
própria poesia, em sua busca por um fundamento, em sua busca
pela origem do sentido.

80 Muday: Bebida tradicional do povo mapuche, feita pela fermen-


tação de grãos de cereais como milho ou trigo, ou sementes como
pinhões.

O VO O DO TUKUI 169
Desenvolvemos nestas páginas, por um lado, uma argumentação;
por outro, também tentamos nos aproximar do conhecimento pela
sensibilidade que o texto irradia, pela emotividade da imagem dessa
forma alternativa de um saber sobre o mundo. Observamos também
como esse conhecimento, fruto de uma forma alternativa de pensar,
foi historicamente desqualificado. As humanidades são a lente que
observa esses fenômenos e eles entram no quadro de sua discussão.
Porém, o conhecimento em seu aspecto hegemônico, o científico,
teve, e esteve tendo no século XX e desde seu início, rupturas que
lhe permitiram dar saltos fundamentais. Esses saltos têm origem
na dúvida.
Uma delas aconteceu em 1927, com o questionamento da relação
sujeito-objeto de Heisenberg, que rompeu com os princípios aceitos
da física de Newton e da filosofia de Descartes e deu origem ao
desenvolvimento do que hoje conhecemos como física quântica. O
salto científico que ela suscita também é um problema filosófico.
O conhecimento da ciência surge como um valor provisório cuja
determinação por leis permanentes é contestada. A própria teoria da
relatividade de Einstein propõe, no início do século, que a constante
— que é o tempo — é, na realidade, uma variável. Assim como o
espaço e ambos dependem da velocidade.
O final do século XX e o início do XXI começaram a observar
uma mudança de era, cujo nome seria Antropoceno, como já
observamos, devido à incidência que o homem tem tido nas
mutações que a natureza está apresentando. Os historiadores, diz
o bengali Dipesh Chakrabarty, já separaram a história do homem
da história do mundo natural há alguns séculos, por considerarem

170 ANA PIZARRO


que esta última era imutável (2009). Parece que nessa avaliação
também nos equivocamos, ou pelo menos temos que começar a
pensar em reestruturá-la. O ambientalismo, em seu aspecto radical,
propõe o deslocamento de uma concepção antropocêntrica por uma
biocêntrica como uma urgência.
Todas essas diferenças entre os modos de aproximação da
realidade, das dúvidas, das cautelas, das incertezas, da busca de
novas soluções para as crises nos fazem pensar na diferença de
saberes decorrentes das formas de aproximação do mundo tanto
da concepção hegemônica, quanto da alternativa que observamos.
Pensamos que é uma diferença que precisa ser apropriada pela
formação intercultural das humanidades que, na América Latina e
aqui mesmo na Amazônia, se apresenta na escola, na universidade,
e que praticamos na vida em geral. Apropriá-la na busca de um
diálogo entre dois epistemes diferentes. Precisamos mostrar que não
existe uma forma única de perceber o mundo. Que na diversidade
epistemológica há uma riqueza que precisamos entender, aceitar,
valorizar e respeitar para dar a volta, o que aparece a cada dia
como uma necessidade maior, para nós, mas sobretudo para as
gerações que virão. A valorização das humanidades — tanto na sua
concepção clássica, como na que surge dos problemas atuais com
as transformações da comunicação, o surgimento dos shoppings e
o vazio da imagem televisiva — é a inflexão da qual necessitamos
para construir um sentido.
Na Amazônia, onde coexistem diferentes formações socioculturais
com todas as suas evidências, onde se articulam e se desarticulam
sistemas culturais eruditos, populares e indígenas, é mais do que

O VO O DO TUKUI 17 1
nunca necessário compreender o ser humano em uma perspectiva
múltipla, em que se possa construir uma crítica à colonialidade do
poder e se possa elaborar um discurso, a partir de nosso próprio
lugar de enunciação, que enfrenta os olhares do predador em busca
de capital internacional.
Os discursos da literatura e da cultura geram mudanças na vida,
são janelas que levam nosso olhar para outros espectros e outras
sociedades. A cultura e a literatura não fazem revoluções, mas ajudam
a mudar mentalidades e a caminhar com nossos próprios pés para
gerar transformações. Não são um enfeite, são uma necessidade,
que na Amazônia pode nos ajudar a preservar perspectivas e modos
de vida que o cultivo da razão instrumental destrói para construir
um progresso voltado para o crescimento sem humanidade. Os
humanistas têm a obrigação de defender uma noção diferente de
desenvolvimento, não só que reduza as desigualdades, mas também
incorpore uma mudança de paradigma e uma relação de respeito dos
seres humanos entre si e com o universo natural, e que abra a opção
de dar a quem nos suceda um mundo onde seja possível sonhar.

172 ANA PIZARRO


IV
IV
CONFIGURAÇÃO CULTURAL:
O FLUXO AFRO-AMAZÔNICO

Nosso trabalho tem a ver com a investigação da trama da cultura


latino-americana — e nela a Amazônia. Consideramos esse tecido
como uma interação, uma dinâmica de fluxos culturais. Eles são
múltiplos e seu funcionamento é diverso. Nesse caso, vamos nos
aproximar do fluxo africano na Amazônia.
As informações que chegam até nós na América Latina sobre
o continente africano — na verdade, apenas a que incorporamos
— sempre pecaram por seu viés de discriminação étnica, como
sabemos, algo permanente em nosso continente em relação às
culturas indígenas, diferentemente das europeias. Trata-se também
de discriminação de classe, porque pelas razões históricas que
conhecemos, o mundo afro-americano tem se situado, seja qual
for a sua origem, nos setores populares. A África — especialmente
a subsaariana — não existe na mídia latino-americana se não for
pela tragédia, pela dor, pela fome, pela guerra. Só a presença do
ISIS e as rivalidades com a Al Qaeda colocam o continente na linha
de frente desse tipo de informação. No entanto, dados emergem
repentinamente, abrindo brechas para outros espaços e atribuindo
ao receptor diferentes dimensões. Geralmente eles não estão nos

O VO O DO TUKUI 17 7
jornais. Surgem, então, culturas, como a do Mali na sua grandeza e
esplendor históricos. Dessa forma podemos perceber Bamako como
um universo de complexidade inusitada, de uma cultura com uma
densidade histórica real, diante da qual a europeia aparece como uma
recente chegada à história da cultura — como apontou um grande
pensador africano, Abdel Malek.
Uma reportagem de 1996, do El País de Madrid, passou quase
despercebida ao público latino-americano, que não tinha acesso a
esse jornal. José Naranjo contou o seguinte:

No coração arenoso da Mauritânia, onde a vida e


o comércio floresceram há séculos, várias famílias
preservam da melhor forma que podem antigos
volumes, arquivos e incunábulos81. Vários países
prestam ajuda para que não se percam os arquivos
de uma cultura milenar.

O velho Mohamed Ould Ghoulham tira o livro de um arquivo de


papelão e o abre delicadamente. “Não mostramos isso aos turistas”,
disse seu sobrinho Abdoullah com um sorriso franco. Ele folheia as
frágeis páginas escritas à mão em caracteres árabes até encontrar o
que procura, algumas gravuras que mostram as fases da Lua e as órbitas
dos planetas desenhadas há mais de 600 anos. “E não é o mais antigo.
Aqui temos este outro volume, uma explicação do Alcorão escrita pelo
sábio iraniano Abu Hilal al Askari no século 11”, explica Abdoullah.

81 [N.T.] Incunábulos são os primeiros tipos de livros impressos


com conteúdo jornalístico, datados do período de 1455.

178 ANA PIZARRO


A invasão da religião islâmica em quase todo o continente
africano, com o manejo do árabe escrito, permitiu que uma grande
quantidade de material escrito, milhares de documentos, em língua
árabe fossem recuperados no Mali, depois da destruição do ISIS, e
retirados dos territórios ocupados, clandestinamente, aos poucos.
Tudo isso deixa de fora a afirmação de que as culturas pré-coloniais
da África subsaariana pertencem apenas ao reino da oralidade. Hoje
eles estão decifrando e gerando um arquivo de riqueza imensurável.
Então, por um lado, a riqueza, e por outro, a profundidade
histórica e a capacidade de valorizar a memória estão mostrando
ao mundo o perfil real de um continente silenciado e distorcido
pelas comunicações ocidentais. Um mapa da África do século
XIX — os mapas historicamente desenham apenas o que interessa
aos que os patrocinam —, presente na exposição “Cartografias do
Desconhecido”, que aconteceu há alguns meses em Madrid [entre
novembro de 2017 e janeiro de 2018], mostra um espaço africano
vazio de conteúdo. Carmen Morán afirma que: “Lançaram, assim,
uma mensagem colonizadora’’. Diz o curador: “Não tem nada ali,
eles podem entrar e colocar seus nomes, conquistar aquelas terras,
pendurar bandeiras de todas as cores”. Já não se tratava mais da
cartografia do exotismo de desenhos anteriores, que integravam
nos mapas o vasto espaço dos monstros, dos imaginários do
medo, das figuras aterrorizantes da Idade Média europeia, que se
projetavam no desconhecido. Agora era o território adequado para
a colonização.
Essa vasta e profunda cultura se espalhou pelo mundo, justamente
por causa desses processos de colonização. Talvez o problema

O VO O DO TUKUI 179
seja que essas culturas — que não são uma, mas muitas — foram
reinterpretadas pelo Ocidente, ou seja, descentradas de si mesmas,
colocadas em corpos estranhos que se apropriaram delas e lhes
deram significados de acordo com seu entendimento, com sua visão
enviesada de mundo. Mas também, com o fenômeno espalhado por
vários continentes, e principalmente com a escravidão atlântica do
mundo subsaariano (houve outras escravidões anteriores, como a
dos árabes), essa cultura plural encapsulou sua memória, por um
lado, pela proteção e, de outro, pelas necessidades de inseri-la
em novas formas de sobrevivência; isso ocorreu também porque
a escravidão deixou os velhos no continente africano, eles que são
os guardiões da memória de suas civilizações segundo a tradição da
oralidade. Os jovens, os aptos ao trabalho, com memória recente e
com capacidade de sobrevivência, foram arrastados pelas correntezas
do oceano — aqueles que perderam tudo no caminho: nome,
roupa, hábitos culinários, língua, vida social de origem nesse lapso
brutal de desculturação —; aqueles que puderam dar conta quase
exclusivamente do presente de suas culturas de origem. Pensemos,
para perceber com mais nitidez, no processo dos migrantes de hoje,
africanos subsaarianos, ou árabes que chegam à Europa com quinze,
vinte e cinco anos, guardiões de uma memória curta e que, além disso,
é deslegitimada nos países europeus onde chegam; e depois lhes é
pedido que se esqueçam para se abrir a um futuro ocidental que se
apresenta como legítimo. O resultado na França hoje é a rebelião há
pouco tempo de jovens árabes da periferia de Paris, formados em
escolas francesas, mas sem emprego ao saírem delas por causa da
discriminação. O resultado na África hoje é o aumento do terrorismo

180 ANA PIZARRO


em populações sufocadas por um destino concedido pela história
colonial. As culturas subsaarianas, então, são culturas de densidade
histórica desconhecida, são culturas marcadas pela colonização, são
culturas historicamente migrantes.
É assim que os recebemos na América, como culturas
interrompidas, que entram em processos de reconstrução alternativa,
de acordo com a nova circunstância. O que os condiciona a uma
situação de entrada diferente daquela das culturas indígenas na
estrutura que a história constrói.
Agora, esse caráter migrante também lhes dá um perfil plural.
A sua recepção e transformação confere-lhes dimensões um
pouco diferentes, um perfil diverso de acordo com o ambiente de
acolhimento, por razões históricas óbvias. Há, por um lado, uma
cultura migrante na América do Sul e no Caribe, onde também se
localiza a história afro-amazônica com suas especificidades; e há,
por outro lado, uma chamada cultura afro-americana na América
do Norte. Seu caráter difere em seu fluxo na história da Europa
e em sua inserção naquele continente. A travessia do Atlântico é
escravocrata, o europeu é principalmente migrante, a escravidão é
usada principalmente para mão de obra nas colônias. Mas a linhagem
tem histórias semelhantes e isso fez com que se restabelecessem os
laços originalmente rompidos pela relação colonial.
É a situação de conjunção que ocorre, por exemplo, nas primeiras
décadas do século XX. O desenvolvimento da cultura africana na
América do Norte como produto da história da escravidão e sua
passagem pela igreja protestante estabelece o ponto de partida para
uma nova expressão musical como o jazz. O chamado «Renascimento

O VO O DO TUKUI 181
do Harlem» é a concretização da cultura herdada da escravidão em
sua incorporação à modernização norte-americana.
Foi assim que o gospel, o blues, as canções de trabalho nas
plantações de algodão entraram em jogo com o incipiente processo
de urbanização dos Estados Unidos e sua modernidade. A cultura
popular negra começou a se incorporar totalmente ao mundo erudito
da modernização. O jazz era uma música de vanguarda, que quebrava
as estruturas permanentes com o surgimento de um instrumento solo,
ou uma voz com timbre gutural, ao modo afro, e começou a se espalhar
como estilo popular, em termos de hegemonia estética no Ocidente.
Marcus Garvey, um líder afro-americano da Jamaica, participa desse
Renascimento e leva essa afirmação renovada de identidade para o
Caribe. Por outro lado, a África ensina aos escritores e artistas visuais
europeus a noção de abstração, que está presente há milênios na sua
produção artesanal, nos seus objetos, na sua estatuária. Os epígonos
das vanguardas históricas europeias não deixaram de ter os “fetiches
da Oceania e da Guiné”, como os chamava Apollinaire; símbolos não
só dessa outra religião, mas da sua capacidade específica de abstração.
L. Frobenius havia recentemente colocado sobre a mesa a história do
continente africano, que hoje apreciamos em sua amplitude, desde
o pensamento de Ibn Khaldun82, bn Battuta83 ou Leão, o africano84,

82 [N.T.] Ibn Khaldun (1332-1406), nascido na Tunísia, foi um as-


trônomo, economista, historiador, jurista, advogado, estrategista
e filósofo.
83 [N.T.] Ibn Battuta (1304-1368/1369) foi um viajante, estudioso e
explorador berbere, povo que habitava a região que hoje compre-
ende o Marrocos no século XIV.
84 [N.T.] Leão, o africano (1494-1554) foi um diplomata, geógrafo e
explorador espanhol (1494), que cresceu no Marrocos.

182 ANA PIZARRO


e em seu desenvolvimento até mesmo Ki Zerbo85, Hampaté Ba86 ou
Achille Mbembe87, passando pelas investigações de Anta Diop88,
que mostrou como o Egito Antigo, antes das invasões árabes, tinha
a pele negra.
O Caribe então se vinculou e se impregnou do Renascimento do
Harlem, afirmando, por meio de Jacques Roumain, Aimé Césaire
e os demais participantes do que seria o movimento da negritude,
sua identidade e sua característica étnica, uma proposta histórica de
reivindicação e luta. Eles então se juntariam a outros intelectuais,
entre eles Sedar Senghor, originário do Senegal, articulando-se em
Paris por meio de revistas como Indigène ou L’Etudiant Noir, que
articulavam as posturas combativas daqueles que iniciaram uma luta
histórica na esfera intelectual contra o colonialismo e a discriminação
racial. Lá estiveram os norte-americanos Langston Hugues, Paul
Mackay, o africano Sedar Senghor, o caribenho Jacques Roumain, J.
Stéphane Alexis e Aimé Césaire entre outros. Se imaginarmos agora
o mapa, será possível notar uma circularidade geográfica em pleno
movimento de intelectuais de origem africana entre a África, o Caribe,
os Estados Unidos e a Europa; tendo como epicentro do terremoto
que produziriam a cidade de Paris, que era um foco de atração —
polo da religião, segundo Rama — das energias culturais daquele
momento. Essas décadas de meados do século XX constituem

85 [N.T.] Ki Zerbo (1993-2006) foi um político e historiador de


Burkina Faso.
86 [N.T.] Hampaté Ba (1901-1991), escritor nascido em Mali.
87 [N.T.] Achille Mbembe, nascido em 1957, é um filósofo e histo-
riador de Camarões.
88 [N.T.] Anta Diop (1923-1986) é um historiador, antropólogo, físico
e político nascido no Senegal.

O VO O DO TUKUI 183
um espaço privilegiado para a mobilidade das culturas africanas
conscientes de si mesmas no Ocidente.
Nos diversos casos a que nos referimos, a relação das culturas
africanas com o Ocidente produz, como dissemos, efeitos
diferenciados, mas ao mesmo tempo compartilhados e incorporados
a uma história comum das culturas migrantes. Nos Estados Unidos,
essa forma de consciência levou a liderança do movimento pelos
direitos civis dos negros um pouco mais longe, em meados do
século XX; o que é um exemplo para todos, aliás, como afirma
o bispo Dom Desmond Tutu, na África do Sul, que atuou na luta
histórica desse país sob a liderança de Nelson Mandela na segunda
metade do século XX. Trata-se, portanto, do mundo chamado
“afro-americano”.
No Caribe, local, como sabemos, da primeira revolução de
independência liderada por escravos em 1804, a afirmação da
Negritude terá um desenvolvimento teórico que dará lugar a
diferentes propostas. Trata-se do Manifeste de la Créolité, de Confiant
e Chamoiseau, os quais, enraizados na história e na relação com a
África, não se mantêm no estatismo imobilizador nem na volta à
África que os primeiros líderes preconizaram, mas olham para o
presente e para o futuro com uma proposta de diversificar e assumir a
história do Caribe. De certa forma, textos de hoje, como o da brasileira
Ana Maria Gonçalves Um defeito de Cor ou o anterior da caribenha
Maryse Condé, já clássico, Moi, Tituba Sorcière (ambos analisados
em seção anterior do presente volume), assumem a proposta do
presente e do futuro de uma cultura ligada à África, mas diferente
dela. Este é o resultado de uma das direções do fluxo subsaariano, o

18 4 ANA PIZARRO
da América do Norte. Nele se encaixa também a especificidade do
desenvolvimento amazônico.
A relação e a história da África na Europa é outra variável, mas ao
mesmo tempo está ligada às demais evoluções, como no caso de Sedar
Senghor. Hoje fala-se de uma forma cultural diferente, a “afropea”,
um pouco diferente das outras: é a de quem nasceu e foi criado na
Europa. Recentemente, entrevistamos a escritora contemporânea
de origem camaronesa e de nacionalidade francesa Leonora Miano.
Nascida nos Camarões em 1973 e residente na França há 26 anos, a
romancista foi reconhecida com importantes prêmios literários. A
partir de seu romance O interior da noite (L’intérieur de la nuit, 2005),
ela começou, por meio de uma volumosa produção, a integrar com
sucesso os imaginários da África ao público. Em suas páginas, a
própria narrativa do romance é combinada com temas identitários,
com discursos de mulheres, com as aventuras da imigração e com a
complexa relação com o Ocidente, tanto no plano simbólico, quanto
político e econômico.
Leonora Miano diz:

A atividade intelectual da África é milenar. Ela


nutriu especialmente os pensadores da Grécia
antiga, que foram educados no Egito. E a civilização
egípcia da época era absolutamente africana.
Além desse espaço, o continente africano produziu
inúmeras formas de escrita e conhecimento em
diversos campos. É por desconhecimento que
esse rico patrimônio é percebido como inexistente

O VO O DO TUKUI 185
ou recente, uma vez que a imagem da África,
para todos, é construída a partir das conquistas
europeias dos séculos XV e XVI. No entanto, é à
África que o mundo deve o nascimento da raça
humana e, portanto, do pensamento. Basta abordar
o assunto com um pouco de seriedade para percebê-
lo. O período colonial não marca a certidão de
nascimento da África. Para mim, acima de tudo
está a literatura, e na literatura o universo dos
autores. Se a literatura africana for entendida como
romance, produzida por autores subsaarianos, esta
é uma nova forma para nós.

E esclarece:

O romance é um formato europeu; os demais


espaços culturais do mundo sempre tiveram
maneiras diferentes de contar histórias. No
continente africano, o mais antigo e o maior
do planeta, contamos histórias desde tempos
imemoriais e de acordo com diferentes modalidades.
Falar do surgimento da literatura subsaariana a
partir da descolonização, é aproximar a expressão
literária desse espaço ao seu encontro com uma
Europa conquistadora e ler o seu progresso em
relação a ela (…) Escrevo em francês, mas não
escrevo em francês, isso não seria possível para

186 ANA PIZARRO


mim. Hoje não me vejo como um autor que oscila
entre duas culturas, mas como quem habita uma,
a minha, mista, como todas são hoje. (…) A Europa
ainda tem que descolonizar o seu imaginário e a
sua palavra, com o intuito de valorizar a forma
como tem se modificado no seu encontro com a
África. Do nosso lado, temos menos complexos.
(…) Muitos países subsaarianos são governados
por indivíduos que roubam bens do Estado para
investir no Ocidente as quantias das quais eles se
apropriam. Nessas condições, não se veria porque
os africanos subsaarianos, sabendo que sua fortuna
estava no Ocidente, não iriam para lá. No fundo,
eles estão em seu lugar. Já pagaram por isso. A
África subsaariana, como a conhecemos hoje, é
uma manufatura europeia. Quero dizer com isso
que a Europa a recortou em 1885 e se apropriou
dela para seu bem-estar na Conferência de Berlim,
sem consultar os povos subsaarianos. Desde então,
ela é uma peça essencial da industrialização, da
prosperidade europeia / ocidental.

Achamos a informação interessante, mas também a atitude.


Como podemos ver, então, a variante “afro-europeia” da cultura
africana é atravessada pelo colonialismo da Europa na África, pelas
migrações forçadas, pelo estigma discriminatório, mas também pela
vitalidade que lhe entrega e pelo espaço que reivindica. Assim, são

O VO O DO TUKUI 187
dados os territórios diferenciados e comuns que os articulam. A forma
de enfrentar o mundo do afrodescendente na América do Norte não é
a mesma de quem vive na Europa e de quem vive na América Latina.
Todas as variantes são uma, mas são diferentes ao mesmo tempo.
Eu acho que as culturas subsaarianas na Amazônia também têm
uma certa especificidade. E nisso, arriscarei algumas hipóteses que
os conhecedores dessas culturas poderão avaliar.
Em primeiro lugar, nesta zona do planeta há o quilombo, e ele
tem um significado especial. Como sabemos, seus descendentes hoje
compõem o movimento dos “Quilombos Remanescentes”. A oposição
escravidão/cimarronaje tem uma força simbólica muito importante
em termos de rebelião, de transgressão. Isso é emblemático.
O longo período de escravidão na Amazônia onde o africano
tomou o lugar, em grande medida, dos indígenas, especialmente após
a abolição da escravidão indígena em 1755, fez com que os africanos
fossem empregados principalmente em plantações dedicadas ao
cultivo de exportação: cana-de-açúcar, arroz, tabaco, algodão, cacau,
gado, sal, bem como a construção de fortalezas para proteger a
fronteira norte, segundo estudos sobre o assunto.
A conformação natural própria da floresta e de áreas de rios
fez com que o cimarronaje tivesse condições propensas à formação
de mocambos ou quilombos — termo, como sabemos, de origem
africana, que teria se generalizado a partir do famoso Quilombo
dos Palmares. São reconhecidos os do rio Trombetas, entre tantos
outros, que criaram enormes problemas para Mendonça Furtado,
irmão de Pombal, que queria levar a cabo o seu plano colonizador.
Como sintetiza um historiador, Ruiz-Peinado:

18 8 ANA PIZARRO
A Amazônia brasileira durante a primeira metade
do século XIX foi marcada por extraordinária
instabilidade político-militar. A sua adesão tardia
à independência do Brasil (1822), o debate sobre
a escravidão e a explosão da Cabanagem foram
processos que tiveram como protagonistas não
só as elites políticas luso-brasileiras, mas também
diferentes grupos quilombolas e indígenas que
agiam a partir de amplos e intrincados espaços
de fronteira, atentos às ideias revolucionárias
que vieram do exterior e que tiveram papel
fundamental na construção da especificidade do
Norte do Brasil.

Nesse cenário, pensamos que a variante amazônica do fluxo


cultural africano tem um perfil próprio, fortemente marcado pelo
quilombo e sua influência simbólica na área. Há uma discussão
de cunho histórico-acadêmico sobre a existência da escravidão na
Amazônia brasileira, na medida em que o mundo da escravidão na
América do Sul está ligado tanto às plantações quanto à mineração.
Essa discussão é também uma forma de evitar a presença dessa
situação e dessa incorporação cultural à complexidade disso que
simplificamos com a expressão “cultura amazônica”. Nesse caso,
dificilmente se explicariam as manifestações culturais fortemente
marcadas pela marca africana, como as do boi-bumbá, do carimbó,
do lundu, do marambiré, de diversos elementos das festas juninas,
até os mais atuais do hip-hop urbano.

O VO O DO TUKUI 189
Em seguida, apontamos como primeiro elemento importante
de definição de perfil, no âmbito dos imaginários, a presença
persistente do quilombo. Essa situação teria começado com a
Amazônia portuguesa organizada sob um governo autônomo desde
1621, com ligação direta com Lisboa e a costa oeste da África, onde
se localizavam as empresas escravistas. Em 1755, a Companhia
Geral do Grão-Pará e Maranhão monopolizou a economia da região,
inclusive o tráfico de escravos. Em geral, os trabalhos sobre esses
temas têm historicamente deixado de lado a percepção mais humana
dos atores. Fugindo da exploração, do castigo, da desumanidade, os
quilombos cresciam no Pará, principalmente na região de Santarém,
no rio Trombetas, onde se vinculavam a grupos indígenas guianenses.
Eles cresciam também na atual fronteira do Peru com a Colômbia,
no rio Putumayo, de acordo com os relatórios do governador de
Popayán, segundo Patricia Sampaio. É verdade que em muitos
casos, principalmente no dos escravos da Casa-Grande das fazendas,
havia espaço de negociação da própria condição. Prematuramente
no Amazonas, eles perceberam os conflitos internos políticos e de
poder dos portugueses — o surgimento dos cabanos no início do
século XX —, e administraram essa situação para gerar estratégias
para a obtenção de seus espaços de convivência. Mas a relação
senhor/escravo em suas diferentes possibilidades é uma relação de
conflito e, acima de tudo, a necessidade da fuga foi gerada como um
efeito natural. Na Amazônia, o ambiente natural era propício para
os emboscados, para os “negros do mato”, como eram chamados
na Jamaica.
Assim escreve Eurípedes A. Funes:

190 ANA PIZARRO


Aproveitando-se da complexidade da região,
das longas distâncias e dos rios que constituíam
caminhos naturais para a fuga, os escravos, ao
se evadirem das propriedades de seus senhores,
tinham como opção ir para outros centros urbanos
ou se embrenharem nas matas. Nesse sentido,
havia a possibilidade de grande mobilidade espacial
para os cativos em fuga, que procuravam passar
por libertos, misturando-se às camadas populares
um tanto matizadas, onde um mulato podia
passar por um tapuia, um curiboca ou um cafuzo.
Assim, a qualidade da cor se diluía, quebrando
um elemento a mais de identidade do escravo
fujão, já que costumava também trocar de nome.
Outra saída encontrada pelo escravo em fuga era
valer-se de instrumentos legais que garantissem a
ex-cativos o status de livre, e a partir daí encontrar
mecanismos para preservar a condição de liberto.
Ajustando-se como tripulantes de barcos, ou neles
se escondendo, os escravos em fuga circulavam
ao longo dos rios, em especial pelo Amazonas,
deslocando-se com certa facilidade entre o Baixo
Amazonas, e Manaus, e vice-versa.

Essa história de luta marca a cultura afrodescendente no


Amazonas, onde, por exemplo, os novos modos de vida e defesa
incorporam a cultura de origem: “São cantos e danças que exprimem

O VO O DO TUKUI 191
uma nova ‘estética musical’”. Filhos, ritmos, palavras, canções que
vemos do outro lado do Atlântico, que se materializam, se misturam
em novas formas de expressão da cultura negra, como a capoeira,
por exemplo, como conta Luiz Carlos de Matos Bonates em A
capoeiragem baré, onde apresenta a capoeira no Amazonas, “com
ou sem berimbau”.
Como segundo ponto, a presença africana teve um caráter
intercultural na área. Porque em alguns casos os senhores obrigavam
os escravos a se misturarem com os indígenas para diminuir o interesse
pela fuga, fosse pela convivência ou pela necessidade de sobreviver
naquele ambiente. O mundo afro era um mundo de mistura, de
intercomunicação cultural. Seu imaginário foi se construindo em
relação a outros imaginários da selva e, assim, os “encantos” foram
se configurando, com elementos indígenas, afro e colonizadores:
o bufeo [boto]89 no Peru; o boto no Brasil; a sachamama90 também
no Peru; a Cobra Grande na parte brasileira. Quanto eles têm de
cada cultura e como esses imaginários foram sendo construídos?
Teremos que esperar por estudos comparativos de mitologia para
descobrir. Vicente Salles diz: “A lúdica amazônica, no que tem de
mais representativo, é essencialmente africana”.
Nessa relação intercultural, o movimento dos cabanos
desempenhou um papel central, organizando as vontades de
diferentes indivíduos unidos por um sentido comum de identidade,
o dos desamparados. Nas fileiras dos insurgentes, dizem os

89 [N.T.] No Peru, há uma lenda equivalente à lenda do Boto Cor-


-de-Rosa do Brasil.
90 [N.T.] “Sachamama” é como chamam a grande cobra na lenda
andina correspondente à de Boiúna, ou Cobra Grande, no Brasil.

192 ANA PIZARRO


historiadores, indígenas “civilizados” ou tapuios, mulatos, cafuzos,
brancos, escravos negros e libertos atuaram conjuntamente. Gerou-se
ali um senso de identidade que os articulou.
Em outras palavras, essa interação de vida promove formas
transculturais que imprimem uma marca ao conjunto. É o caso
da importância da cultura oral — e com ela suas formas de
relacionamento social e de relação com o mundo. Porque, como
já desenvolvemos em outros textos, a escrita não é a sequência,
um estágio superior da oralidade, é uma forma diferente de se
relacionar com o mundo e com os outros. Essa atitude imprimiu
características no perfil cultural da região, que somente com o
salto tecnológico da década de oitenta do século passado e a nova
comunicação começaram a mudar. São formas que expressam a
superposição de tempos altamente diferenciados em um mesmo
momento histórico. As formas de relação impostas pelas grandes
empresas, que entraram na Amazônia a partir dos anos setenta do
século passado, se sobrepõem e ao mesmo tempo convergem com as
das comunidades ribeirinhas caboclas, gerando uma dinâmica típica
da região (exemplo: “luz” em nosso vídeo “O Areal”91).
O fluxo cultural afro dialoga com os imaginários locais, gerando
um espaço comum de encantamentos. Constituem um campo de
estudo que pode levar amplas luzes sobre a estrutura da cultura
amazônica, suas configurações e sua criatividade, sua ampla dimensão

91 [N.T.] “O Areal” é um documentário (2008) de produção espa-


nhola, brasileira e chilena, dirigido por Sebastián Sepúlveda, que
aborda a comunidade de Guajará, na Amazônia, onde parece haver
um areal, local em que os espíritos e humanos convivem, segundo
os nativos de lá.

O VO O DO TUKUI 193
estética, como mostrou Paes Loureiro, em seu notável estudo da
poética amazônica. O vasto espaço de formas que os imaginários
de homens e mulheres de diferentes procedências e de diferentes
grupos étnicos — os caboclos — vão construindo em seu cotidiano, e
que lhes permitem existir, defender-se, amar, lutar em uma travessia
vital cruzada por rios, floresta, perigos e vastidão.
O fluxo cultural africano na Amazônia evidencia, assim, uma
forma diferente de existência da África fora do continente de origem.
Sua permanência ali se baseia na imposição hegemônica do tráfico,
que gera suas primeiras formas de desculturação, como em outros
lugares geográficos, mas ao mesmo tempo se recompõe em uma
nova e diferente cultura baseada no atrito étnico com as culturas
indígenas locais. Todos os elementos que permitem apontar não
para a noção de transculturação que Fernando Ortiz desenvolveu em
Cuba — onde a situação era diferente — mas para uma complexa rede
de elementos diversos, em que estes formam combinações distintas,
se sobrepõem ou se cruzam em diferentes tempos e termos de seu
desenvolvimento. Esses cruzamentos e combinações é o que estamos
estudando atualmente e acho que é um vasto campo de trabalho para
jovens pesquisadores hoje.

194 ANA PIZARRO


FRONTEIR AS PERDIDAS: AGUALUSA

Desde os processos de descolonização nos anos sessenta, a


literatura da África subsaariana tem assumido os problemas que
daí decorrem e criado uma linguagem própria da nova situação
social e cultural, com um olhar também novo. Paralelamente ao
sólido sistema literário oral que existiu desde tempos imemoriais
naquele continente, essa literatura erudita, agora escrita e em línguas
europeias, passou a questionar a história, o cotidiano e a cultura das
suas sociedades e, consequentemente, a colonização, as guerras de
descolonização e a situação posterior a elas, que eram motivos de
suas preocupações. Nelas a latência das culturas populares, presentes,
entre outros, em ditados que muitas vezes habitam essas escrituras,
teve um lugar importante. São os casos do senegalês Hampaté Bâ,
do nigeriano Chinua Achebe ou do autor do clássico Os Sóis das
Independências (1970), Ahmadou Kourouma da Costa do Marfim,
em que a pós-independência aparece em todas as negociações com
o ex-colono e em todo o seu horror político e social. Há também
o angolano Pepetela, com uma obra considerável, mas já estamos
falando dos clássicos. Uma nova onda de escritores africanos está

O VO O DO TUKUI 195
atualmente povoando a Europa e o mundo por meio de inúmeras
traduções, histórias, imaginários, línguas, problemas e expectativas
do continente. Escritoras como a nigeriana Chimamanda Ngozi
Adichie (1977), com um discurso feminista africano, ou a palavra
direta e forte de Leonora Miano (1973) dão a esses jovens escritores
uma inflexão cosmopolita, um interesse internacional, bem como
uma visão aberta e questionadora do continente.
“Fronteiras perdidas” é a expressão que se utiliza para designar, na
Angola, aqueles que não têm uma determinada origem, aqueles em
cujo ser convivem várias culturas, e que se movem entre uma e outra.
É nesse contexto que está José Eduardo Agualusa (1960), escritor,
cineasta e jornalista de origem angolana, vencedor de importantes
prêmios internacionais, cuja vida se passa entre a sua terra de origem,
o Brasil e Lisboa. Embora seja possível dizer também Paris, outros
países da Europa, da África, como brevemente América Latina e
outros. Não se trata de geografias diversas, mas de culturas vividas e
integradas. De escritos, de paisagens sonoras, de espetáculos visuais,
de experiências de vida, de gestos e percepções históricas, absorvidos
como alimento terrestre e que deslizam como camadas submersas em
suas linhas. Autor de inúmeras publicações: poesia, novelas, peças de
teatro, o sedentarismo não é o seu caso, nem na vida nem na escrita.
Diríamos também que existe igualmente um nomadismo temporário
capaz de articular a herança de Machado de Assis com a de Jorge Luis
Borges — em plena guerra angolana — como um intelectual avançado
que revela tanto a leitura de Proudhon, como a de Judith Butler, de
Foucault, passando por Pessoa ou Flaubert, em meio à história de
personagens africanos e ao legado secular da experiência popular

196 ANA PIZARRO


daquele continente. Isso surge especificamente não só na história da
guerra angolana, mas também em figuras históricas, como a Rainha
Ginga (La Reina Ginga, 2017), a protagonista do século XVII de um dos
seus romances, que “ali era tão homem que ninguém a considerava
mulher”. Sensual, dona do corpo, guerreira, inteligente, hábil na
estratégia política, adquire uma contemporaneidade inusitada. Não
se trata de anacronismo, o que simplificaria o exercício, trata-se de
uma modelagem maior da palavra poética, trata-se de uma narrativa
escrita em tom de poesia que consegue incorporar múltiplos fluxos
culturais e literários em uma voz simbólica ao mesmo tempo sólida
e comovente, densa e frugal.
Nação Crioula (1997) é seu segundo romance. O título se relaciona
— é uma das suas virtualidades — com o nome do último navio
negreiro que deixou Angola à venda no Brasil após a proibição inglesa.
Quando o império anglo-saxão percebeu que a escravidão era um mau
negócio, pois o trabalho assalariado significava menos investimento
e maior produtividade e vetou o trânsito transatlântico.
Nación crioula é a expressão de identidades em movimento,
momentos de transição de um espaço cultural para outro, análise
de momentos do processo de jogo e pistas para o leitor cultural. É
um romance de misturas escrito por um mestiço consciente de ser
um. Tem uma organização epistolar e é através das cartas que o
leitor conhece o personagem ficcional, retirado do clássico escritor
português Eça de Queirós, o qual se dirige à sua tia, ao próprio Eça
e também à sua querida Ana Olímpia, a quem liberta da escravidão
para relatar episódios de sua vida com elegância. Há um leve tom de
humor e pistas para o leitor, o que nos remete ao grande Machado de

O VO O DO TUKUI 197
Assis. O tema do abolicionismo é um dos trânsitos da personagem,
Fradique Mendes, e da diversidade do espaço identitário em jogo, em
construção na Angola, no Brasil, universos em que chega, por motivos
diversos. “O que faço eu aqui?», pergunta-se, repentinamente, o
personagem consternado, que acabou de sair de Portugal e tenta
compreender “os segredos da África”, em meio à confusão de
culturas, de origens marcadas pela colonização portuguesa. Tudo
nele é movimento, trânsito geográfico e cultural. Uma diversidade,
uma mistura de vida que sentimos como contemporâneos. Como a do
autor, que vai construindo a história da literatura angolana no espaço
marcado pela tradição brasileira — bem temperada — de Machado
de Assis, como dissemos, mas também dos clássicos contemporâneos
europeus e latino-americanos — Borges, Cortázar —, da cultura
popular africana e também afro-americana. A afirmação anticolonial
é também a necessidade de escrever a história. Remete-se ao clássico
escritor africano Chinua Achebe: “Até que os leões criem seu próprio
historiador, a história da caça só glorificará o caçador”.
Como em Nação crioula, o Agualusa de O vendedor de passados
(2017) aparece centrado na temática identitária. A grande questão
dos países que alcançaram a descolonização, justamente porque
neles, mais do que nos demais, o que parece unitário, como a
noção de identidade, é paradoxalmente o contrário, é a colocação
em jogo das pluralidades no processo de articulação. Félix Ventura
tem a função de inventar vidas, histórias e passados. Depois de uma
guerra isso é útil, muitos precisam mudar sua história, tornar-se
democratas, ter um passado heroico, ou simplesmente inventar ser
outras pessoas, por medo ou fantasia. Sempre contemporâneo. É

198 ANA PIZARRO


assim que se desenvolve um espaço onírico onde os personagens se
encontram ou se reencontram, eles se descobrem. O assunto tem
diversas projeções virtuais. Há também a da construção da História
como versão absoluta, a das vozes diferentes, a das histórias, ou da
petite histoire e sua relação com as outras. A Angola se constitui de
muitos povos com identidades diferentes. E, no fundo de tudo isso,
a determinação da guerra anticolonial, seus personagens, seu horror.
Estamos diante de textos de um poeta que escreve uma narrativa,
e nesse sentido também um ensaio-narrativo, que nos traz reflexão
e ao mesmo tempo nos transmite beleza, deixando em seu rastro
considerações sobre a existência, sobre a sociedade deslocada da
África dos séculos XX e XXI. Uma história absolutamente afastada
da folclorização, sem camelos nem elefantes, rompendo, de uma vez
por todas, com o olhar colonial.
Teoria geral do esquecimento (2012) se situa no meio da Guerra da
Angola, em que a protagonista, Ludo, observa do olho mágico de um
lugar fechado: o apartamento em que foi deixada sozinha e pelo qual
se separou do mundo por uma parede. É um documento do horror
da guerra e das posições totalitárias que obrigam os indivíduos a
perder a irreverência, a originalidade, e a gerar o medo de existir em
demasia. O problema da fabricação de um “outro monstruoso”. “Não
há esse outro”, reflete mais tarde: “O outro somos nós mesmos. A
literatura faz com que se veja o ser humano, por isso as bibliotecas
são “armas de construção massiva”, diz ele.
A jovem narrativa africana nos traz surpresas, histórias de um
continente que tem muito mais histórias do que escritores.

O VO O DO TUKUI 199
V
V
HISTÓRIA E TR AVESSIA

Hoje quero relatar uma experiência de escrita da história. Depois,


apresentar algumas reflexões a partir do tempo presente sobre ela e
sobre as condições pelas quais poderíamos pensar hoje em relação
a essa escrita.
Em primeiro lugar, quando trabalhamos na escrita da história
e nos nossos volumes América Latina, palabra, literatura y cultura92
(1990), fizemos isso com base em certos parâmetros: queríamos
construir, primeiro, uma história literária, depois uma história
literária da América Latina. Eu uso o termo construir em seu
sentido pleno. É claro que havia histórias literárias, mas não havia
experiência nos termos em que planejávamos. Geralmente, estavam
escritas por um autor e abordavam um escopo mais restrito. Eram
histórias que falavam da América espanhola, ou seja, só abordavam
a produção em espanhol. Por isso consideraram apenas a produção
impressa erudita. Às vezes, eram histórias de um gênero específico,
por exemplo, o romance, o mais evidente na concepção ocidental

92 [N.T.] Pizarro, Ana (org.) América Latina, palabra, literatura y cul-


tura. Santiago: Uah ediciones, 2013.

O VO O DO TUKUI 203
moderna de gêneros. Também existiam outras com base em um
critério de gerações. Havia bastantes trabalhos em torno da história
das literaturas nacionais. Foram obras muito enriquecedoras sobre as
“correntes literárias” do continente. Entre os autores mais clássicos,
estão Anderson Imbert, Pedro Henríquez Ureña, Cedomil Goic e
muitos outros. Havia tantas perspectivas quanto autores, desde
tentativas cumulativas de nomes e obras, passando por concepções
geracionais, até desenvolvimentos analíticos das obras, organizadas
em ordem cronológica.
Eles foram nosso aprendizado. Utilizo o “nós” não como um efeito
acadêmico: tenho a convicção de que neste trabalho a reflexão e a
aprendizagem são coletivas e se formulam e reformulam de maneira
insensível e plural, ao longo, em movimento e em superposição no
tempo, em que somos sempre contemporâneos de Heraclitus, Sóror
Juana Inés de la Cruz, Netzahualcoyotl, assim como Derek Walcott
e Guimarães Rosa. De todos esses trabalhos que pudemos rever,
incorporamos algo, seja pela informação, não mais pelas críticas
que nos permitiram fazer. Graças a eles, visualizamos perspectivas,
percebemos desenvolvimentos, percebemos articulações. Houve
aqueles de grande significado, como o de Pedro Henríquez Ureña,
o de Antonio Candido, os trabalhos de Ángel Rama ou a obra de
Jean Franco. Essas experiências de escrita da história fizeram
principalmente um trabalho de reunir informações e estabelecer
um corpus e um cânone. Foi um ponto de partida fundamental para
podermos repensar, revisar os critérios, avaliar o próprio conceito
de literatura, os seus primórdios, a sua espessura, os seus momentos
em situação de colonização e colonialidade, num campo onde a

204 ANA PIZARRO


existência de culturas era plural e era vista em termos hierárquicos.
Então, o primeiro impulso foi querer elaborar uma história da
literatura latino-americana. Por que fazê-lo? Aqui preciso falar em
primeira pessoa: pensei nisso em meio ao desastre político-social do
qual tinha saído, ao me exilar na França. Senti que devia fazer algo
de positivo diante da destruição, pensar no que nos articula. Deu-
se a possibilidade e comecei. Fui apoiada por Jacques Leenhardt,
da École de Hautes Etudes en Sciences Sociales. Fui apoiada por
Jacques Voisine, do Departamento de Literatura Comparada da
antiga Sorbonne. Então consegui começar. O trabalho era enorme,
desproporcional e não havia orçamento, era preciso apelar às
vontades. Era preciso ir pensando no projeto e, ao mesmo tempo,
começar a convocar participantes dentro do melhor da crítica latino-
americana. Eu vim de um mundo e um ambiente onde queríamos
mudar a vida. Se já tínhamos pensado que tudo era possível, como
um projeto acadêmico poderia nos reduzir? A utopia não deixou de
ser um motor de estímulo.
Então, a primeira coisa a se pensar foi o que era a América Latina,
quais foram suas denominações, quais são suas fronteiras, qual era
seu espaço. Incorporamos o Brasil, como primeira questão, porque
seria um absurdo falar da América Latina sem ele. Imediatamente
incorporamos o Caribe, cujo status não era muito claro, mas
cujas articulações históricas com o continente se expressavam
em elementos históricos e culturais comuns. Basta pensar que a
“Carta da Jamaica de Simón Bolívar”, um dos textos fundadores
de nossa história política, está escrita no Caribe anglófono. Isso
evidentemente colocou em discussão a questão da língua como

O VO O DO TUKUI 205
unidade do continente — tudo está publicado em Hacia una historia
de la literatura latinoamericana (México, 1987, Santiago do Chile, RIL,
2014) —, elemento que tinha estabelecido o corpus e o cânone na
história literária. Mas, evidentemente também, a ideia do espanhol
como centro articulador havia deixado de lado não só o Brasil, mas
a multiplicidade de nossas culturas indígenas. Em outras palavras,
ao aceitá-lo, estávamos autorizando nossa própria definição com
critérios coloniais. Incorporamos também a cultura dos “latinos”
nos Estados Unidos, fenômeno típico do continente desde meados
do século XX que, a partir de migrações massivas, foi gerando uma
cultura com um perfil específico, que se articulava à de origem.
Em outras palavras, passamos a lidar com a noção de América
Latina a partir de sua situação colonial e de como essa situação
permeia o posterior desenvolvimento da cultura em seus diferentes
momentos. Tratava-se, aliás, de uma noção com uma dinâmica
permanente cujos espaços iam mesmo para além dos limites
geográficos. Tudo isso significou também um rompimento não só
com a história literária tradicional, mas também com concepções
históricas sobre o continente que fornecem delimitações estáticas
regidas por certas lógicas políticas ou militares, sem dificilmente
percebê-lo. De alguma forma, nós também tínhamos uma lógica
política de outro tipo ao colocar a ideia de colonização como ponto
de referência para a discussão. Hoje reflito sobre esse exercício e
exponho o que nossas discussões naquela época impactaram no meu
próprio desenvolvimento intelectual: obviamente havia disparidades
de critérios, mas nunca radicais. Então, com isso, estávamos nos
distanciando da história literária tradicional cujos referentes eram

206 ANA PIZARRO


principalmente geográficos ou linguísticos. Esse afastamento não era
um propósito, era o resultado de uma revisão epistemológica. O que
é central, o que articula a ideia de América Latina, é a cultura, uma
cultura atravessada pelo signo da colonialidade.
Outro conceito central do nosso propósito inicial era o de
“literatura”. Quando o abordamos, deixamos de lado a ideia de
“história literária” para chegar à denominação com a qual os volumes
resultantes foram publicados. Foi um título que propus a Antonio
Candido e ele achou que expressava bem o que fazíamos. Quais foram
os motivos da mudança? Por um lado, a ideia de “história”, que se
referia a expectativas que não eram necessariamente aquelas que
pareciam emergir das nossas conversas, com a sua carga cronológica
e organização linear. Por outro lado, a ideia de literatura na América
Latina não levava em conta as características do corpus e de sua
hierarquia interna que estavam na noção de literatura da Europa
Ocidental. Explico: usar apenas a noção de literatura remete a um
universo de escrita e publicação, que faz parte de uma cultura de elite.
Na realidade do continente, o universo da palavra falada é importante
em grandes setores da população, em vários países onde a oralidade é
fundamental. Nesse sentido, a noção de literatura na América Latina
incorpora vários sistemas literários ao mesmo tempo, não apenas
a produção erudita e em línguas metropolitanas. A hierarquia que
a chamada literatura popular tem no nosso continente é diferente
daquela da Europa. Aqui é uma presença muito importante em
setores sociais que, em todos os países, são de grande importância
numérica. É uma literatura viva e em permanente desenvolvimento:
podemos observar o contraponto, o cordel e a multiplicidade de

O VO O DO TUKUI 207
relatos orais que cruzam a Amazônia com migrações internas; a
dez quilômetros de Caracas, já se começa a ouvir o canto llanero93.
Além da contribuição cultural de outras migrações, externas, que
ainda não foram valorizadas. Em outras palavras, quando falamos
de literatura popular no continente, estamos nos referindo a um
corpus considerável que possui uma estética que comunica setores
importantes da população entre si.
Mas há também outro elemento: a noção de literatura precisa
ser incorporada a um terceiro sistema literário, muito importante
porque também é expressão de vastos setores, em alguns países
majoritários, como são os povos indígenas: caso da Guatemala, Peru,
Bolívia ou México. Lá, há uma importante produção geralmente
oral, que agora começa a ser levada para a escrita e à publicação,
com o ímpeto que teve a presença do mundo indígena no plano
internacional nas últimas décadas. O problema que vimos aí é a falta
de um trabalho crítico sobre esse último universo que nos permitisse
fazer um desenvolvimento histórico. Mas também surgem outros
problemas: como contar a história da produção literária de um mundo
tão alheio ao ocidental-mestiço a que pertencemos? Qual é a sua
ideia da história? Sabemos que em muitos grupos é uma história de
temporalidade circular, por exemplo. Portanto, o que chamamos de
literatura, ou o pertencimento estético a esse campo no Ocidente, é
diferente em sua função para eles. Lá são canções de trabalho, rituais
religiosos, canções de amamentação, funerais, etc. O que resultou da
observação desses problemas foi que percebemos que a possibilidade

93 [N.T.] Llanero: dos Llanos, zona intertropical da bacia do Ori-


noco.

208 ANA PIZARRO


que tínhamos era a de fazer a história dos modos e dos momentos
em que as literaturas e culturas indígenas foram apropriadas pela
nossa literatura. Nosso olhar como críticos e historiadores não vem
de dentro dessas literaturas, vem de fora delas. Então, a partir dessa
observação, pudemos ver esses momentos com clareza. Um deles
foi o período da conquista em que testemunhos, textos e canções
são traduzidos; uma segunda instância foi no final do século XIX e
início do XX com a chegada do mundo ocidental a Machu Picchu no
Peru — e sua colocação em evidência — e ao México e a Guatemala,
com a publicação do Popol Vuh e parte do Chilam Balam das culturas
astecas e maias. Um terceiro momento situa-se em meados do século
XX com os trabalhos de tradução e publicação realizados no Peru e na
Bolívia, assim como no México: a obra de El Ateneo com Miguel León
Portilla, por exemplo. Depois, os processos literários transculturais,
como a obra de José María Arguedas. Lá as línguas indígenas e o
mundo mítico subvertem o espanhol e as lógicas ocidentais para gerar
uma ficção diferente. Atualmente está sendo desenhada uma outra
etapa em que os indígenas — de formação ocidental — se expressam
diretamente na poesia e na narrativa.
O importante pesquisador brasileiro das culturas amazônicas José
Bessa Freire cita uma canção do século XIX, que diz assim:

Te mandei um passarinho,
patuá miri pupé,
pintadinho de amarelo,
iporanga ne iaué.

O VO O DO TUKUI 209
A este respeito, destaca: “Estes versos fazem parte de uma canção
bilíngue recordada por Couto de Magalhães, no Pará, em 1874, quando
ainda era cantada por extensos setores da população da Amazônia.
Trata-se de uma expressão da literatura oral bilíngue português-
nheengatu.94 Existem outras canções como essa, de versos compostos
simultaneamente nas duas línguas, que se alternam simetricamente,
ou português e o nheengatu, tendendo à métrica e rima como parte
constitutiva da unidade textual”.
O importante em tudo isso é que as literaturas indígenas não
podem ser reduzidas a um lugar introdutório na produção literária
do continente. Trata-se de uma produção que tem sido permanente
e silenciosa, uma literatura que se produz hoje da mesma forma que
se fez no momento da conquista.
Mas o problema persiste na escrita: se queremos uma história
cronológica, como vamos inserir esse outro sistema, permanente
e alternativo ao público e à corrente midiática do sistema literário
erudito? Seria necessário traçar o percurso de pelo menos três
sistemas literários paralelos, que apenas se tocam. Isso cria um
problema porque envolve desenvolvimentos separados. O resultado é
que só podemos fazer a história dos momentos em que sua existência
é introduzida no campo do conhecimento do mundo ocidental, que
somos nós, tendo consciência de que existe um universo em nosso
continente no qual temos uma quase impossibilidade de acesso para
falar sobre isso de dentro.

94 [N.T.] Nheengatu é uma língua desenvolvida a partir do tupi-


nambá, falada na região amazônica brasileira, compreendendo
áreas de fronteira com Peru, Colômbia e Venezuela.

210 ANA PIZARRO


A noção de literatura, então, é uma noção complexa onde se
desenvolvem três sistemas diferenciados que ocasionalmente
mostram contatos. É uma noção que implica práticas discursivas
plurais: oralidade — com sua dimensão performativa —, pictogramas,
ideogramas, canções, livros, escrita, assim como diferentes formas
de transmissão.
Isso nos fez pensar numa organização da escrita em torno de
problemas, mais que de autores, — não se trataria tanto de uma
história intelectual, mas de uma história dos imaginários — no
contexto de um desenvolvimento temporal lábil que, no entanto,
tem uma direção cronológica. Assim, incorporamos as literaturas
indígenas como tema e problema, ao invés de desenvolvimento.
As culturas populares também foram tratadas da mesma forma e
dentro delas houve forte impacto, dependendo da região, do fluxo
cultural africano.
Nesses espaços provisórios lábeis, incorporamos como tema o
da literatura de mulheres, a qual não tinha a importância social,
visualidade ou o nível de análise que tem hoje quando a obra foi
preparada e o texto foi publicado. Nesse sentido, a concepção de
história incorporou uma quarta dimensão, depois de Brasil e Caribe,
que envolveu a cultura afro-americana, que incorporava a literatura
popular e a literatura feminina como temas e problemas ausentes
como tais na história literária em geral. Hoje eu acho que deveríamos
ter tratado mais amplamente do mundo afro-americano e dos temas
e problemas de sua implicação com a cultura popular. Mas é um
reflexo do hoje e da literatura e da história de hoje, naquela época
eu não vi dessa forma.

O VO O DO TUKUI 211
À medida que fomos observando o material literário, tanto
da América espanhola, quanto do Brasil e do Caribe, foi ficando
claro que para nós era impossível falar de uma produção literária e
conseguir explicá-la, sem incorporá-la à cultura da qual ela surge, à
sociedade à qual pertence e ao momento em que nasce. Porque é
preciso considerar que a literatura e a cultura não apenas expressam
a sociedade que as modela, mas que, ao mesmo tempo, têm a função
de construir as sociedades das quais nascem. Antonio Candido diz:

Ao contrário do que pressupõem os formalistas,


a compreensão da obra não prescinde da
consideração dos elementos inicialmente não-
literários. O texto não os anula, ao transfigurá-
los, e sendo um resultado, só pode ganhar pelo
conhecimento da realidade que serviu de base à
sua realidade própria. Por isso, se o entendimento
dos fatores é desnecessário para a emoção estética,
sem o seu estudo não há crítica, operação, segundo
vimos, essencialmente de análise (Antonio Candido,
Formação da Literatura Brasileira, vol. I).

Em uma obra posterior, o eminente intelectual brasileiro fala


da literatura latino-americana como uma literatura “empenhada”
(comprometida) na construção de suas nações.
Obviamente, para nós, uma obra como a de Guimarães Rosa
constrói uma nação. O sertão adquire, com ela, uma dimensão maior
na sua apreensão, diríamos que é o sertão mais a obra de Guimarães

212 ANA PIZARRO


Rosa. Assim como o texto Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves,
é o mundo dos escravos em Salvador mais a construção simbólica
que a escritora fez sobre sua história; e Derek Walcott incorpora os
pescadores do Caribe à dimensão mítica universal. Vicente Huidobro,
no Chile, constrói o mar chileno com a densidade de seu imaginário,
enquanto Neruda dá a Machu Picchu outra densidade.
Trabalhamos, então, com uma concepção do literário indissociável
da sociedade e das formas de seu imaginário, em um momento
e de um lugar determinado. Isso significou, concretamente, que
deveríamos nos situar em um espaço interdisciplinar. Em nossos
estudos, isso foi bem diferente do que havia sido feito em geral.
Mas, de alguma forma, os trabalhos se equilibraram entre análises
literárias, históricas, sociais e antropológicas. Para alcançar a
interdisciplina própria da perspectiva, outras condições teriam sido
necessárias: grupos de trabalho permanentes na mesma instituição,
com um orçamento de acordo com as necessidades.
Se hoje me propusessem realizar um empreendimento dessa
envergadura, estaria obviamente dentro de outras condições materiais
devido às transformações que a passagem para a modernidade
tardia significou: e-mail em vez de correio, internet para acessar
a informação, por exemplo. A situação seria muito diferente. As
condições históricas mudaram e os impulsos do trabalho voluntário
em busca de um projeto comum talvez se chocassem contra
os muros que o neoliberalismo vem construindo em torno das
individualidades.
Mas, para além das transformações na sociedade, existem
diferentes perspectivas, questões e problemas.

O VO O DO TUKUI 213
O importante nas mudanças também é que, a partir dos anos 80,
com o computador e depois com a internet, o espaço literário vem se
abrindo para novos gêneros: instâncias como o blog implicam outra
forma de escrita, que às vezes remete à narrativa ficcional, outros não;
o twit é um tipo de linguagem que gera diferentes instâncias dentro
da comunicação de síntese — estabelecendo a diferença à forma do
haicai. Dentro do conjunto das transformações, a oralidade conquistou
um lugar no mundo cibernético e até as culturas indígenas saíram da
marginalidade em que estavam situadas para acessar lá um espaço de
maior visibilidade a partir de atitudes e ações reivindicativas. Hoje
as comunidades indígenas produzem seus próprios vídeos, ou seja,
utilizam as novas tecnologias e se apropriam delas para a difusão
de suas culturas, seus problemas, sua história. Hoje não há apenas
oralidade, há também a escrita de indígenas ou seus descendentes
que conseguiram, por meio da formação profissional, um espaço nas
publicações não mais de pequenos grupos, mas de ampla distribuição
nas livrarias e com grande sucesso. Pensemos em Daniel Munduruku
no Brasil, por exemplo, ou Davi Kopenawa, yanomami, Elicura
Chihuailaf, ou Jaime Huenún, poetas mapuches do Chile, ou poetas
wayuu na Colômbia, como Vito Apüshana, entre outros.
A escrita das mulheres nos anos 80 nessa região adquiriu enorme
importância. Havia escritoras conhecidas e valorizadas, como Clarice
Lispector, mas depois houve mais. Em primeiro lugar, começaram
a ser revalidadas escritoras conhecidas, mas que sempre tiveram
presença secundária nas considerações históricas, como o grupo
liderado por Alfonsina Storni, Delmira Agustini ou Cecília Meireles.
Foram realizadas novas leituras, que discutiram e colocaram Gabriela

214 ANA PIZARRO


Mistral em um espaço privilegiado da escrita contemporânea, uma
escritora agora complexa, contraditória, interessante. Em geral,
houve uma reconsideração do espaço da mulher na história literária
e na consagração. Discussão que evidentemente anda de mãos
dadas com as demandas e os lugares nos quais entram as lutas
feministas no final do século XX e com a entrada no XXI. Mas, ao
mesmo tempo, observa-se o surgimento de um grande número de
escritoras contemporâneas. A elas se deve essa notoriedade, por sua
escrita sólida em narrativa e principalmente em poesia, com revisões
históricas de um lugar diferente, com estética própria: na narrativa
do Caribe, tem Jean Rhys e Maryse Condé na parte francófona;
Jamaica Kincaid na parte anglófona; Ana Lydia Vega ou Rosario
Ferré em Porto Rico; e a poetisa Márgara Russotto na Venezuela.
Já no sul da América, os nomes se multiplicam na poesia: Diamela
Eltit, Guadalupe Nettel, Lina Meruane, Ana Maria Gonçalves, Alia
Trabucco, Elvira Hernández (na poesia), entre muitas outras. Assim,
o espaço da mulher na história literária passou por uma mudança
fundamental e, também, por um reconhecimento internacional. Essa
situação marca uma diferença central em uma nova consideração
historiográfica, em que a ausência da escrita feminina se tornaria
inexplicável.
O desenvolvimento teórico da literatura e da cultura acompanha
as mudanças que a história precisa seguir de perto. Surge, no
continente, uma tendência de teorizar e, nele, de explicar a própria
cultura. Muitos textos começam a observar as transformações
culturais — Marta Traba — bem como os processos em geral da
nova situação histórica que chamamos de modernidade tardia —

O VO O DO TUKUI 215
Beatriz Sarlo, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Nelly Richard, Néstor
García Canclini. No ponto de partida desse impulso analítico a
partir de diferentes perspectivas, está, sem dúvida, a posição de R.
Fernández Retamar, que nos anos setenta reivindicou uma análise
que se encarregasse da literatura e da cultura dessa parte do mundo
com suas especificidades.
O discurso crítico e histórico deve dar conta das novas formas
de dizer, a linguagem das instalações, as aproximações entre os
gêneros, as diferentes posições do narrador, seu enfoque, a mistura
de literatura e jornalismo, mas também as transformações dessa
literatura e cultura, e agora a experiência midiática com as novas
tecnologias e o papel do leitor, espectador. Da importância do
espetáculo, da política como entretenimento, das transformações
éticas, feitas por um herói do marginal, como Pedro Navaja, o
protagonista do ritmo caribenho mais ouvido nos anos 1980 e 1990.
Ou das canções que passaram a ser chamadas de “narco-corridos”
no México ou na América Central.
Será preciso se encarregar de novos temas, justamente como o
narcotráfico na cultura; a memória, entre outras coisas, como eco
das ditaduras, que assume formas clássicas e novas de dizer; guerras
internas, como a do Peru contra o Sendero Luminoso; as ditaduras
ligadas ao capital financeiro; o lugar que o mundo indígena tem
assumido na sociedade mestiça ocidental; as formas impulsionadas
pelo desenvolvimento cibernético em sua instalação diferenciada no
continente; o descrédito da política, entre tantos outros.
Porque aqui há algo muito importante para a história da cultura
do futuro: é que agora precisamos considerar um novo sistema

216 ANA PIZARRO


literário-cultural que foi forjado através dos meios de comunicação
de massa: o sistema cultural de massa. Este começou a se formar
com a profissionalização do escritor, por um lado, a partir do início
do século XX — como estudava Angel Rama —, quando passou
a publicar em revistas ou jornais, depois com a massificação do
rádio e do gênero dos romances de rádio; e os shows populares,
de outro. O surgimento, primeiro, do rádio, depois da televisão,
do computador e de todas as tecnologias ligadas à visualidade e ao
espetáculo estabeleceram as condições para o desenvolvimento de
uma cultura ligada à sensibilidade de grandes setores da população.
Assim surgiram as “divas”, Carmen Miranda, María Félix, Libertad
Lamarque, que se tornaram ícones continentais, sobre os quais
escrevi em outra publicação. Para os trabalhadores, depois de
um duro dia no expediente, o cinema ou a leitura não são uma
diversão que lhes permita descansar, por isso encontram prazer em
gêneros como novelas ou séries de televisão. É uma estética ligada
ao sentimentalismo — ao kitsch — que já existia em gêneros como
o bolero ou o tango — em performances ou programas que não
rompem com seu horizonte de expectativas. As séries americanas
entregam uma passagem de perseguições e corridas de automóveis
que geram uma certa expectativa, mas nunca transtornada. Não
existem situações que gerem grandes conflitos ou que mergulhem
nos abismos da personalidade. Trata-se de uma estética de maiorias
cuja afirmação é simples e divertida. Não se rompe o horizonte de
expectativas.
Porque, como vemos, cada sistema literário-cultural tem sua
própria estética, seus próprios emissores e projeta seu público. A

O VO O DO TUKUI 217
história cultural de hoje só pode incorporar essa estética em seu
discurso. Cito aqui uma reflexão do sempre lúcido crítico uruguaio
Hugo Achugar, que escreve:

Convenci-me de que não é essencial ler Julio


Herrera y Reissig, ou Juan Carlos Onetti, ou José
Gorostiza, ou Sóror Juana Inés de la Cruz, ou outros
semelhantes, para experimentar morte sem fim,
o gozo interminável de uma obra de arte (tanto
o prazer da leitura “inocente”, quanto da leitura
“crítica”). A experiência da estética não tem uma
única fonte. O menosprezado bolero ou o tardio
soneto epigonal e modernista também são a fonte
da estética. A ranchera, a pajada e o rock nacional
são ocasiões para satisfazer o desejo estético. Não
existe uma estética única, tal como não existe
uma arte única, uma única literatura, uma única
biblioteca.

A outra situação que a escrita da história terá que enfrentar é que,


com o avanço das comunicações e seu caráter democratizante — que
também deve fazer parte de seu processo —, esses quatro sistemas
começaram a se relacionar talvez mais do que nunca no passado.
Até o final do século XIX, havia uma diferenciação muito clara entre
os sistemas: erudito, popular, indígena. Houve algumas interações
facilmente perceptíveis. Existem apropriações, por exemplo, do
sistema indígena pelo erudito. Há casos em que é tomado como tema,

218 ANA PIZARRO


em que, em geral, tem efeito pastiche. Embora com boas intenções por
parte do escritor, a abordagem se torna paternalista e esse universo é
caricaturado: o caso de Jorge Icaza com Huasipungo, por exemplo, no
Equador. Ou Iracema de José de Alencar, com perspectiva romântica,
no Brasil. Cada época nos mostrou um indígena diferente: o bárbaro
— o Caliban —, o romântico — o bom selvagem —, aquele com
extremo compromisso político, o vitimado. Em meados do século
XX, apareceu a incorporação propriamente dita do universo indígena,
a alteração da língua espanhola e do universo a partir da língua e
dos núcleos míticos da concepção do mundo indígena em um autor
como José María Arguedas, um autor bicultural. Era necessário
estar entre as duas culturas para fazer isso. Também interessante
nesse sentido é a obra Maíra (1977), de Darcy Ribeiro, antropólogo
e bom conhecedor das culturas indígenas, que tenta uma expressão
organizada em fragmentos. A partir do final do século XX, foram os
próprios indígenas, ou seus descendentes urbanos, que começaram
a publicar seus textos, principalmente poesias.
Na década de 1990, em um encontro de “escritores indígenas” com
escritores chilenos do qual participei, em Temuco, sul do Chile, eles
pediram formalmente aos chilenos que não falassem mais por eles
porque podiam falar por si próprios. Também é verdade que não é
por serem eles os sujeitos da enunciação que a representação será a
melhor: aqui, a estética alcançada desempenha um papel importante.
A literatura de cordel (tratada no capítulo anterior deste volume)
traça um caminho interessante nessa relação entre sistemas. Na
América Latina encontramos relatos da história de Carlos Magno
no Brasil, Chile, México, Peru, República Dominicana, entre outros.

O VO O DO TUKUI 219
Trata-se de histórias que datam da Europa medieval, na época do
apogeu dos livros de cavalaria. Lá, apareceu em francês. Houve
publicações que o traduziram para o espanhol em Sevilha por Nicolás
de Piedmont em 1521 e muitas reimpressões.
Esse texto sobre Fierabrás, espécie de ser excepcional de origem
árabe, teria duas continuações em português. De seus setenta e
seis capítulos, emergiram narrativas como a das façanhas de Carlos
Magno. Uma recente publicação em espanhol foi feita no Chile pelo
tradutor Humberto Olea e pode ser encontrada na internet.95 Em
outras palavras, da narrativa oral europeia passa-se a um texto escrito,
que é o de Fierabrás, um livro de cavalaria. Daí surgem relatos, um
dos quais é publicado em espanhol, inglês e português. A obra do
Piemonte migra ilegalmente para a América. Literatura popular, de
massa. Aim Olea aponta:

A obra inicial é a de Fierabrás, mas Piemonte


trabalhou com a obra mais conhecida: a compilação
realizada por Jehan Beignon, a pedido do cânone
Henry Bolomier, que foi impressa pela primeira
vez em Gênova, em 1478, sob o título Le roman
de Fierabras le geant [O romance de Fierabrás, o
gigante].

O pesquisador também destaca o trabalho inicial do chileno


Yolando Pino, que observa que a presença do texto na América foi

95 [N.T.] Olea, Humberto. Historia de Carlo Magno y los doce pares


de Francia, 4 de novembro de 2019.

220 ANA PIZARRO


detectada em 1536 por um soldado do Rio de la Plata, que o cita.
Em 1586, e apesar das proibições, 14 exemplares teriam entrado na
América.
Aqui se torna narração oral no sertão brasileiro, como no interior
mexicano (onde Carlos Magno não só usa sabre, mas também
“carabina”) ou no Chile, entre outros. Do oral, volta-se a passar para
a escrita, em folhetos do sistema popular, literatura expressa na fala
sertaneja.
Em outras palavras, parte de um texto escrito que aos poucos
vai se desintegrando em pequenas histórias orais, que, por sua vez,
também o deformam; isto é, é uma oralidade que parte da escrita,
que a recria e que volta a ser a escrita de folhetos. Às vezes, esses
relatos de cordel vão para a televisão, como acontece, por exemplo,
com Antônio Conselheiro, também protagonista do clássico romance
de Euclides da Cunha, Os Sertões. Nesse último caso, o sistema
popular passa para o sistema de massa e também para o sistema
erudito. Às vezes, o relato de cordel é criado a partir do sistema de
massa, como no Chile, em que as histórias da Lira Popular, no início
do século XX, são criadas a partir de notícias da imprensa. Como
revelam os títulos, no Brasil, as narrativas de cordel também surgem
de episódios da televisão. As histórias de Lampião e Maria Bonita
emergem do imaginário popular a partir de acontecimentos, passam à
escrita, em forma de cordel, sempre no sistema popular, e depois são
tomados pela televisão ou pelo cinema, ou seja, entram diretamente
no sistema cultural de massa. Há também os romances — Manuel
Puig, o argentino, ou a chilena Lucía Guerra — que incorporam
personagens da mídia, Rita Hayworth ou Carmen Miranda.

O VO O DO TUKUI 221
Desses trânsitos, essas interlocuções terão que dar conta da
história da cultura latino-americana na medida em que é um
fenômeno de cruzamento de sistemas, que constrói a subjetividade
de nossa cultura e a diferença daquelas — as europeias, que serviram
de referências, em que a expressão dos sistemas não é tão plural
nem tão evidente. Agora, novos problemas e complexos terão que
ser considerados pela história literária.
Trata-se da própria articulação do discurso cultural e dos
processos que o constituem, que no século XXI expressam — a
partir de uma matriz constituída por fluxos históricos de trajetória
progressiva e bastante definida, como são o europeu e o africano
fundamentalmente — a incorporação violenta de uma diversidade de
culturas, fruto de processos de imigração que, a partir de situações
histórico-políticas ou econômicas, assim como de desenvolvimento
das comunicações, são típicos de seu tempo.
Em trabalhos anteriores, temos observado o processo da cultura
latino-americana, diferente da análise transcultural, como um
processo mais complexo e abrangente que configura espaços amplos
de interação, não necessariamente em linearidade, mas em termos
de rede de interações. Nessa rede existem fluxos externos, como o
europeu ou o africano, que se incorporam a diferentes hierarquias,
em relação às situações de poder historicamente constituídas.
Na incorporação, como já observamos em trabalhos anteriores,
não se trata apenas de duas culturas que se encontram e formam
uma terceira, mas de várias culturas que entram no processo. Já
dissemos que, quando falamos de culturas europeias, generalizamos
uma situação que é em si mesma de uma diversidade enorme. Não

222 ANA PIZARRO


podemos reunir a cultura holandesa com a espanhola, ou a russa
com a inglesa, por exemplo. Nós as identificamos de forma arbitrária.
Outra coisa é se situarem em centros de poder semelhantes e
constituírem metrópoles. É uma questão de poder, não de assimilação
de condições culturais. Além disso, como podemos falar de uma
cultura espanhola homogênea se a Espanha esteve sob o domínio
árabe por séculos e no sul sua história não pode deixar de estar
culturalmente ligada a essas culturas? Caso bastante semelhante é a
presença do mundo judeu em Portugal, o que fez, para os demais,
com que os portugueses fossem sempre olhados com desconfiança
quando estavam nos países dominados pela Espanha por serem vistos
como novos cristãos. Quer dizer, sem ir mais longe, quando falamos
das culturas dominantes na conquista, estamos falando também de
culturas de fluxos plurais.
Por outro lado, não podemos reduzir todas as culturas indígenas
a um conceito geral de “cultura indígena”, porque são todas muito
diferentes e não necessariamente se entendem entre si. O que
há são situações mais ou menos semelhantes de subordinação e
sobrevivência. No caso das culturas africanas que vieram para a
América, por meio da escravidão, é o mesmo. Da mesma forma
que as culturas indígenas, elas provêm de sociedades de diferentes
organizações, clãs e reinos, algumas com enorme desenvolvimento
cultural, como Mali, por exemplo, com uma diversidade de
desenvolvimentos históricos, de multiplicidade de línguas e culturas.
O que os une é a situação absolutamente desproporcional em que
chegam à América e aí estão inseridos. Isso, evidentemente, marca
sua incorporação à rede de constituição cultural do continente. Além

O VO O DO TUKUI 223
disso, é necessário pensar em todos os casos que sua existência
cultural é diferente dependendo das regiões e do desenvolvimento
histórico. Obviamente, a importância da cultura africana no Pacífico
Sul é muito diferente daquela da costa do Atlântico Norte ou do
Caribe.

224 ANA PIZARRO


O PODER DA VERDADE
E A VERDADE DO PODER

Durante a pandemia, morreu, por causa do vírus, na cidade de


Letícia, na Colômbia amazônica, o ator Antonio Bolívar, protagonista
daquele belo filme que foi indicado ao Oscar de Hollywood, em
2016, intitulado O Abraço da Serpente, dirigido por Ciro Guerra. É o
relato, em tempos históricos paralelos, da busca por uma planta com
maiores poderes no interior da selva amazônica. Um filme fora do
comum, com espessura histórica, estética apurada e reconhecimento
das culturas indígenas.
Antonio Bolívar morava na Tríplice Fronteira, o trapézio
amazônico onde as cidades de Letícia, da Colômbia, Santa Rosa de
Yaraví, do Peru, e Tabatinga, do Brasil, são vistas pela proximidade
do outro lado do rio. Uma zona de história muito violenta, por um
lado na primeira metade do século XX, devido à guerra em que
Peru e Colômbia se enfrentaram. Do outro, hoje, pelo narcotráfico
e a extração de ouro. La Chorrera, onde nasceu Antonio Bolívar, é
justamente o epicentro dos dramas do início do século passado em
torno da extração da borracha. Ele era um venerável, de origem

O VO O DO TUKUI 225
Ocaina Witoto96, muito respeitado na área. Mais uma vítima da
pandemia, mais uma perda de memória indígena.
A pandemia em si mesma atinge a todos nós, diríamos que
tem um caráter democrático. Mas não é assim, não atinge a todos
igualmente. Vivemos, como aponta Achille Mbembe, tempos
caracterizados por uma “redistribuição desigual de vulnerabilidade”.
No Chile, penetrou pelos setores abastados da sociedade, os
que viajavam para o exterior, e logo se voltou fortemente para
os setores populares, onde a população mora em ambientes de
superlotação, fraqueza física, dificuldades de higiene e má nutrição.
Assim também atingiu a precariedade das comunidades indígenas
amazônicas. Não só elas, mas também as comunidades quilombolas,
os ribeirinhos, as cidades amazônicas. A tradição de isolamento
indígena os protegia de todo tipo de doenças contagiosas. Já não é
assim. Um vereador de Tabatinga, no Alto Solimões, afirmou, antes
da chegada do vírus: “Se tivéssemos casos de coronavírus aqui, de
pessoas infectadas, seria um... Não tenho palavras para isso. Isso
vai ser um filme de terror aqui”. Na verdade, hoje ele já chegou, e
o filme está em andamento.
A Amazônia sofre com a desigualdade histórica, mas hoje, e
principalmente no caso brasileiro, isso é mais chocante devido à
redução da presença do Estado. Ela tem duas causas. Primeiramente,
a ideologia posta em prática pelo governo Bolsonaro no sentido
de querer fazer da Amazônia um terreno devastado, propício ao
agronegócio, à mineração, para transformá-la em um pilar do

96 [N.T.] Os uitotos constituem um grupo indígena que vive na


Amazônia, em áreas fronteiriças com Colômbia e Peru.

226 ANA PIZARRO


desenvolvimento neoliberal. Nesse sentido, trata-se de uma terra
sem história e sem habitantes, como na conquista do século XVI. Se
eles querem existir, é para servir à grande empresa. São conhecidos
os sucessivos desastres produzidos por este tipo de visão: entre
outros, aqueles ocorridos em Minas Gerais, com os rompimentos de
barragens de mineração que deixaram centenas de mortos, primeiro
em Mariana, e depois em Brumadinho.
Em segundo lugar, porque essa falta é histórica: a situação era ruim
antes das bactérias. Os agentes patogênicos já tinham, como agora, a
cara de invasões de terras por grandes latifundiários, que arrasaram
árvores com incêndios monumentais, como os do “dia do fogo” há
um ano, incentivados pelo governo. Em seguida, os aviões voaram
jogando sementes para promover a exploração de gado em larga
escala. Além disso, os assassinatos de líderes ambientais e de direitos
humanos já estavam ocorrendo. Dentro de uma corrupção endêmica,
o enfraquecimento dos órgãos de proteção já deixou sem controle a
presença, em grande escala, de garimpeiros, os que procuram ouro,
tradicionais na área, que agora têm o caminho aberto para entrar em
terras indígenas; e ajudam em massa, já que a situação internacional
faz com que o capital se desvie do dólar e encontre seu refúgio no
ouro, aumentando seu preço. A ascensão dos garimpeiros e missões
protestantes, que na década de 1970 foram expulsos de outros países
pela falta de clareza de seus interesses, agora são incentivados pelo
poder. Mais uma vez o ritmo da vida amazônica hoje é alterado pela
violência do mercado internacional e, como na época da borracha,
suas mortes estão pautadas pelas distantes inflexões das bolsas de
valores europeias ou norte-americanas.

O VO O DO TUKUI 227
Entre a violência do narcotráfico, a da busca pelo ouro e a da
instalação da grande empresa, a vivência da experiência material
de seus habitantes consegue, de forma inusitada, refugiar-se no que
o poeta brasileiro Paes Loureiro chama de “modalidade estética
poética do seu imaginário”. Cada experiência se refere a unidades
míticas que explicam e expressam o mundo, organizando sua
experiência em sistemas simbólicos que lhes permitem viver e
superar acontecimentos. Desse modo, há histórias, personagens e
configurações significativas que, ao modelar sua experiência dessa
forma, condensam sua história. Daí o drama da borracha na história
de Gitoma.97 Hoje, ainda não sabemos que forma o drama adquire no
imaginário. Isso ocorre numa participação humilde e igualitária com
o universo natural — pedras, árvores, pássaros, animais, ar, chuva
— com cujas entidades dialoga, conduzindo-os ao seu cotidiano. É
sua maneira de sobreviver, enquanto sobrevivem.
No espaço amazônico, o espetacular desenvolvimento tecnológico
encontra o arcaico. A supervalorização do primeiro discrimina a
profundidade histórica do segundo. Há pouco tempo, Chomsky
apontou em uma conferência os dois perigos capazes de destruir
nossas sociedades, ainda mais temíveis que o coronavírus: o perigo
nuclear, que foi revivido nos últimos tempos com o jogo entre Trump
e o Irã, e as mudanças climáticas. Os três perigos se unem no mundo
amazônico, que provê os minerais necessários para a expansão da
nuclearização, sendo um espaço estratégico que o governo brasileiro
negou em relação às mudanças climáticas e ao vírus, já presente em
suas populações, espaço cuja importância é negada por Bolsonaro,

97 [N.T.] A história de Gitoma é um relato mítico amazônico.

228 ANA PIZARRO


apesar de ser o centro da pandemia no continente. Estamos nos
referindo, então, a uma área onde coincidem as chaves do nosso
futuro.
Mesmo antes da pandemia, cuidados básicos, leitos hospitalares,
médicos e profissionais de saúde eram deficientes na área. As
pessoas recorrem muito à medicina tradicional. Dessa forma, não
foi o suficiente, muito menos agora. Em Tabatinga, não há hospital,
os doentes são atendidos em postos militares, inclusive os partos.
Existe só uma UTI aérea para nove municípios, que transfere os
doentes para Manaus.
Em Manaus é o caos, a superlotação, a escassez. No ano passado,
o governo foi solicitado com urgência para levar cem caixões de
avião — os mortos se amontoavam em caminhões —, Bolsonaro
negou. O governador do estado pediu ajuda urgente, recorrendo a
Greta Thunberg para ser ouvido. Em maio do ano passado, o grande
fotógrafo Sebastião Salgado, reconhecido internacionalmente, pediu
ajuda através da TV5 francesa. É uma situação que não atinge apenas
aos amazonenses, pelos motivos que aludi acima, mas que afeta a
todos nós.
Em um belo poema recente, Paes Loureiro representa a tragédia
de Édipo Rei, de Sófocles, para mostrar como ela se configura no
conflito do poder da verdade e da verdade do poder. Ele termina seu
texto com uma reflexão, já que é um poema didático:

Toda arte nasce de um momento


para esse momento superar.
É a raiz de sua eternidade.

O VO O DO TUKUI 229
Por isso tantas vezes, renasceu
tragédia Édipo Rei, de Sófocles.
No nosso tempo
lutar contra a verdade se politiza.
Para não aceitar a verdade da ciência
criam-se caminhos que desviam
do único caminho verdadeiro.
Mas da verdade tantos descaminhos
talvez caminhem à mesma encruzilhada
como na tragédia de Édipo, Jocasta
e o povo atônito de Tebas:
à cegueira, à desesperação, à morte.

Hoje vivemos uma nova Idade Média que reproduz — a partir


do cultivo intensivo de dendê, já próximo às cidades, que atraem
morcegos que são vendidos como “caça selvagem” nos mercados
chineses, após o déficit causado pela peste suína — os mesmos
males, o mesmo desespero e sofrimento. Ela reproduz também
as superstições e os medos daquela época que considerávamos
distante. Nessa época, também se acreditava em fetiches e figuras
diversas, que, quando tocadas, podiam curar as doenças. Os circuitos
expansivos da era capitalista nos remetem à origem, nos mostrando
que, além de nossa arrogância, está o ser humano básico com seus
afetos, seus defeitos, e também sua generosidade. E que no final,
como árvores ou pássaros, gostemos ou não, teremos que chegar ao
Grande Confinamento.

230 ANA PIZARRO


REDE , TECIDO:
PENSAR A CONSTRUÇÃO CULTUR AL

Quase cinco décadas atrás, instalou-se a necessidade de construir


nossos próprios referenciais para nossa cultura. Quem verbalizou,
em termos teóricos, esse ponto de partida da virada descolonizadora
do pensamento da cultura na América Latina foi Roberto Fernández
Retamar. Foi em um ensaio intitulado “Pour une théorie de la littérature
latinoaméricaine”, que ele leu pela primeira vez como um artigo no
Colóquio Royaumont, no final de 1972, organizado por Jacques
Leenhardt, sobre o qual não sabemos muito na América Latina. Mais
tarde ele o integrou em seu livro de mesmo nome. Esse Colóquio
foi um acontecimento memorável apesar de pequeno, no qual Julio
Cortázar lançou a ideia do exílio como um “subsídio funesto”, do
qual era necessário inverter seu sinal, transformando o seu sentido
e utilizando-o com uma orientação positiva. Roberto Schwarz, por
sua vez, levantou ali suas “ideias fora do lugar”, entrando em um
mecanismo típico da construção cultural do Brasil, e Roger Bastide
analisou a penetração cultural ali. Walnice Galvão introduziu o
tema da literatura de cordel naquele país e eu mesma falei do
discurso poético da vanguarda mapuche do Chile, questionando

O VO O DO TUKUI 231
implicitamente o conceito canônico de literatura, incorporando a ele
o sistema popular vivo e próprio do nosso continente. Esse encontro
é uma referência no caminho das discussões sobre descolonização
intelectual. Como no caso de Las Casas, o pensamento descolonizador
emergiu do próprio centro da metrópole colonial.
No ano anterior, o Calibán (1971), de Fernández Retamar, havia
sido publicado no México, que, em uma consideração teórica na linha
de Lamming e Aimé Césaire, fez uma releitura de A Tempestade,
de Shakespeare, recuperando a imagem do personagem injuriado,
o bárbaro Calibán, enquanto símbolo positivo da América Latina
que se confronta com Próspero, o colonizador. Aqueles foram anos
em que a Revolução Cubana representou uma vanguarda não só
política e social, mas também intelectual. Tudo isso acompanhado de
outros acontecimentos que surgiram recentemente e nos obrigaram
a refletir sobre a situação no continente: a luta pelos direitos civis
nos Estados Unidos, daqueles que sonharam e para lá se dirigiam;
as lutas anticoloniais na África, que, a partir da Revolução Argelina,
estavam conseguindo se desprender das metrópoles — ainda não
conheciam suas estratégias para deixá-las subordinadas de todos os
modos —; e também os crescentes movimentos de massa que, desde
o início do século XX, mostraram na América Latina a expansão de
uma consciência própria.
Exemplo disso são também os trabalhos das Ciências Sociais da
América Latina, que deram os primeiros passos com os conceitos
de “centro” e “periferia”, no seio da CEPAL [Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe], e depois com as discussões
sobre “dependência” e outras, para começar a designar os

232 ANA PIZARRO


fenômenos e mecanismos de nossas sociedades subdesenvolvidas e
subalternizadas, com nome próprio.
Seriam décadas de revisão dos cânones e subversão do
pensamento. Com Frantz Fanon, em Pele negra, máscaras brancas,
em 1952, e depois em Os condenados da terra, em 1961, a periferia
começou a construir um pensamento a partir de sua perspectiva.
Em 1978, surgiu o Orientalismo de Edward Said, revendo a imagem
do mundo árabe da Europa; e, em 1983, no livro As Cruzadas vistas
pelos árabes, Amin Maaluf olhava a história através de outro lugar.
Em seguida, apareceram as obras de Gayatri Spivak e Homi Bhabha,
relacionadas com a experiência do colonialismo na Índia.
Os anos 1980 e 1990 foram décadas em que uma nova linguagem
começou a ser forjada para se aproximar da cultura latino-americana.
Nesse espaço, deu-se lugar a conceitos que puderam assumir o
caráter — considerado dual — da cultura latino-americana: Ángel
Rama, Cornejo Polar e García Canclini elaboraram os conceitos
de transculturação, heterogeneidade e hibridez respectivamente.
Procurou-se superar a noção tão arraigada — que na época tinha
sido um sucesso e um avanço — de “miscigenação”.
“Várias vezes comentei que o conceito de miscigenação, apesar
da sua tradição e prestígio, é o que falsifica da forma mais drástica
— notou Cornejo Polar em 2002 — a condição da nossa cultura e da
nossa literatura. De fato, o que ele faz é oferecer imagens harmoniosas
do que é obviamente danificado e bélico, propondo figurações
que são, na verdade, relevantes apenas para aqueles a quem lhes
convém imaginar nossas sociedades como puros, e nada conflituosos,
espaços de convivência. Assim, temos trabalhado com noções como

O VO O DO TUKUI 233
a “subalternidade”, e a noção de “colonialismo” ressurgiu, referindo-
se à obra marcante de Fanon e fundamentando nossas sociedades
atuais, aos olhos do peruano Aníbal Quijano, como “colonialidade”.
Na verdade, para além das discussões a que esses conceitos deram
e dão origem, tem se buscado as operações que estão constituindo
a cultura latino-americana e que também nela deixam marcas,
produto dos processos coloniais. Isso é o mais valioso desse percurso
que, em uma tentativa similar de descolonização, visa encontrar os
caminhos que podem explicar essas culturas em que trabalhamos e
em que vivemos.
Como participante e herdeira dessas questões, trabalhei em duas
direções com uma intenção comparativa: de um lado, em uma linha de
pensamento sobre a pluralidade, e de outro os fluxos. Esse percurso
seria formado por fluxos externos, apropriações e movimentos entre
um sistema literário e outro. Ao estudar primeiramente o Caribe,
pude perceber a existência do arquipélago cultural e as formas de sua
convivência. A conformação de suas culturas justificou sua interação,
e línguas, como o papiamento, falavam da coexistência de diferentes
línguas africanas com o português, indígena arahuaco, espanhol e
hebraico sefardita e ladino. Na literatura, expressou-se em obras
como a de D. Walcott com seus elementos clássicos ocidentais, seu
inglês, a interferência do francês, a presença do mundo hindu, entre
outras coisas; em suma, a afirmação da fragmentação na imagem do
vaso quebrado, o que ele fez no discurso do Nobel.
Estudar a Amazônia me deu outras evidências variadas dessa
pluralidade de culturas. Antes da chegada dos europeus, o esplendor
da cultura marajoara foi fruto de uma população multiétnica e

23 4 ANA PIZARRO
multilíngue que chegou em épocas diferentes, segundo estudos
arqueológicos atuais.
Samuel Benchimol destaca, por exemplo, a diversidade que
construiu as culturas amazônicas antes da chegada dos portugueses:
“Durante aqueles longos 250 anos, as matrizes culturais do povo
amazônico foram formadas por justaposição, sucessão, diferenciação,
miscigenação, competição, conflito, adaptação, por diferentes
contingentes de diversos povos, línguas, religiões e grupos étnicos”.
Para direcionar o processo subsequente nos seguintes termos:

O conhecer, o saber, o viver e o fazer na Amazônia


Equatorial e Tropical inicialmente foi um processo
predominantemente indígena. A esses valores e
culturas, foram sendo incorporados, por via de
adaptação, assimilação, competição e difusão, novas
instituições, instrumentos, técnicas, incentivos e
motivações transplantados pelos seus colonizadores
e povoadores. Entre eles: portugueses, espanhóis,
em particular, europeus, com algumas contribuições
africanas, semíticas e asiáticas, além de novos
valores aqui aportados por migrantes nordestinos
e de outras regiões brasileiras.

Benchimol ressalta, então, que o protagonista da ocupação


humana da Amazônia foi a “multidiversidade dos povos e nações”.
Além disso, tratava-se de culturas em contato. Hoje, esse fato pode
ser examinado em vestígios arqueológicos e pedras encontradas de

O VO O DO TUKUI 235
um lado na Colômbia e de outro no Caribe. O rio que atravessa o
continente meridional sempre foi o veículo central dos habitantes
da região, aquele que realizava os vínculos culturais. Nem sempre
foram bons relacionamentos, é o imaginário de uma sociedade
fragmentada e tensionada. O momento da conquista certamente
agrega componentes centrais à pluralidade de grupos étnicos. Não
se trata aqui do encontro de espanhóis e indígenas, que é uma
simplificação do que se diz para caracterizar a região andina, por
exemplo. As origens e misturas culturais são aqui muito mais plurais.
Em parte, porque não são apenas espanhóis ou portugueses — que
vieram de uma forte mistura árabe e judaica. Desde o período
colonial, a região foi dominada por setores ou atravessada por
diferentes culturas europeias: holandeses, franceses, ingleses, que
tomaram posse, durante um período, de uma parte importante de
seu território.
Ao longo da história, as migrações foram diversas e em diferentes
regiões: espanhóis e portugueses, é claro, africanos de diferentes
etnias, como escravos, e a partir do século XIX, especialmente
alemães, italianos, norte-americanos, escoceses, árabes, franceses,
judeus, chineses, marroquinos, entre muitos outros. Todos eles, na
maioria das vezes, em relações de conflito com as sociedades locais.
Frequentemente se exemplifica a europeização do Amazonas
com o caso de Manaus no início do século. Pouco se fala sobre o
caso peruano. A cidade de Iquitos, uma das três mais desenvolvidas
pela extração e comercialização da borracha e por onde chegava
a frota marítima, tinha na época um ar cosmopolita e um aspecto
de belle époque, o que pode ser deduzido dos vestígios da época.

236 ANA PIZARRO


De costas para a capital, com a qual não tinha comunicação direta
porque não havia estradas (nem existem hoje), Iquitos se relacionou
mais facilmente com a Europa, através da Companhia de Navegação
Inglesa, que fez todo o trajeto do Amazonas a partir de Iquitos,
cruzando a parte brasileira, carregando a borracha para trazer em
seu lugar mercadorias de Londres e Paris que transformaram em
parte a estética local. Isso gerou impactos culturais que mereceram
uma descrição crítica na época, em que se caracterizava Iquitos
como povoado por “uma raça bastante mestiça e por isso mesmo
desnacionalizada, com um grupo de indivíduos preocupados apenas
com o trabalho que traz dinheiro, mas indiferentes a toda moral
laboral e toda ideia religiosa”.
O olhar para o Caribe e a Amazônia nos leva a nos perguntarmos,
então, sobre o resto das sociedades latino-americanas. Percebemos
assim que, com diferenças importantes, a pluralidade de culturas é
um fenômeno generalizado no continente. De fato, porque falamos de
cultura europeia e, na realidade, existem diferenças substanciais entre
os franceses, os alemães, os portugueses, os húngaros, os espanhóis
ou os checos. Em outros termos, quando dizemos Europa, estamos
falando de culturas no plural. Ao mesmo tempo, quando falamos
de culturas indígenas, estamos nos referindo a grupos étnicos muito
diferentes, em que, em geral, não há contato linguístico. Certamente,
o nheengatu, a língua franca, surge como uma necessidade de
comunicação na área amazônica. Lá a cosmogonia tem os mesmos
pontos de encontro que poderia ter com grupos étnicos australianos
ou africanos. Assim dizendo, quando falamos do mundo indígena,
estamos nos referindo a uma pluralidade de culturas. É o mesmo

O VO O DO TUKUI 237
caso das culturas africanas que vieram com a escravidão.
Se pensarmos no trânsito de culturas ao longo do século XX,
a dinâmica adquire uma agilidade cada vez maior. De um lado, os
fenômenos de imigração que se desenvolvem em função da crise
europeia: italianos; alemães; centro-europeus de diferentes linhagens
culturais; judeus de diferentes raízes, como S. Benchimol apontou
detalhadamente para a Amazônia; árabes de lugares e histórias
diferentes; chineses, asiáticos em geral, etc. A dinâmica interna do
continente não é menos ágil, principalmente a partir de meados
do século, quando as fortes migrações do México, da América
Central e do Caribe dão origem a uma área cultural extraterritorial
diferente, como a dos latinos nos Estados Unidos, de caráter também
intercultural em uma direção diferente.
Cada um deles, como cada fluxo de leituras, de arte, no espaço
visual e auditivo que se multiplica à medida que o século passa
e avança a cultura popular de massa, adquirindo a velocidade da
vertigem com a entrada da televisão e depois da internet, constitui,
em suas variantes, um fluxo, que se incorpora às operações de
construção cultural com diferentes graus de presença, em diferentes
momentos e sob diferentes formas de interação. Pensemos que os
sistemas literários culturais — erudito, popular rural, popular de
massa e indígena — apresentam diferentes conexões não apenas em
relação a esses fluxos como também nas relações entre si. Em outras
palavras, a cultura latino-americana é um processo de articulação de
fluxos. De um lado, existem vários fluxos europeus de imposição,
com diferenças internas no âmbito espacial e temporal, baseadas no
desenvolvimento histórico diferenciado das áreas culturais, tendo

238 ANA PIZARRO


elementos mais sólidos na memória cultural e outros mais fracos,
que, portanto, entram em jogo com diferentes valores. Por outro lado,
articulam-se fluxos africanos, também múltiplos por envolverem uma
diversidade de etnias que chegaram à América com a escravidão, que
é um primeiro momento de incorporação destes. Mas existem outros,
como o momento da negritude, ou a presença atual, parcial, mas real
— especialmente em algumas áreas do continente, como o Brasil ou
o Caribe — da poesia e da narrativa africana após a descolonização.
Porém, há muito mais do que isso se pensarmos na presença árabe,
majoritariamente judaica em alguns lugares, como a Argentina, e
principalmente em Buenos Aires; ou a inglesa; a norte-americana;
a italiana; a espanhola, a partir dos processos migratórios.
Por isso, me interessa observar os elementos, a direcionalidade,
a velocidade, os cruzamentos, as colisões, aa sobreposições ou as
rejeições, o caráter hegemônico ou subalterno que eles mostram,
tudo que se relaciona também com a história social a partir da qual
essas forças do imaginário atuam. É o que se conjuga numa rede,
um tecido grosso que tendo a assimilar ao conceito de “cesto” dos
indígenas muinanes, citado pelo nosso amigo Juan Echeverri, um
espaço que tem exterior e ao mesmo tempo volume. “Cesto das
Trevas” e “Canasto de Vida”, dão origem a duas formas de cosmovisão,
ou seja, de reflexão filosófica sobre a vida.
Todo esse enxame cultural, em que há elementos que aparecem
como mais evidentes no nosso momento atual, dependendo de onde
são observados, faz parte da conformação da nossa cultura; ou seja,
são elementos que estão em movimento e assim formam a estrutura e
suas dinâmicas internas, que é o que estudamos quando observamos

O VO O DO TUKUI 239
com um olhar comparativo. Assim, a historiografia do continente não
pode ser reduzida à soma das culturas ou das literaturas nacionais.
Uma coluna vertebral articula esses processos e lhes dá significado.
Essa coluna é a história da colonização e, para além dela, o seu efeito
subsequente, a colonialidade das estruturas de relacionamento, a
colonialidade do poder, construindo o espaço cultural. Para não citar
a mim mesma, volto às expressões de um trabalho anterior, pois sinto
que o conhecimento funciona em espiral.
Parece-me que devemos repensar a noção de “transculturação”,
que o nosso professor toma de Fernando Ortiz. O conceito foi
enormemente produtivo nos estudos da cultura latino-americana.
Mas a abertura à pluralidade que o desenvolvimento desse
pensamento significou com a passagem para a modernidade tardia
nos leva a perceber uma certa linearidade, como apontamos, e uma
certa unicidade na lógica desse pensamento, apesar de ser, sem
dúvida, uma das maiores conquistas teóricas dos estudos da cultura
latino-americana. Ela pertence ao pensamento da modernidade e, em
sua fase tardia, aquela em que vivemos hoje, nos dá uma perspectiva
mais plural na percepção da realidade.
A operação transcultural nos parece ser um dos mecanismos
de um processo muito maior, cuja complexidade, revelada pelo
desenvolvimento do conhecimento atual, exige um novo olhar. Um
olhar mais rizomático e múltiplo para um quadro cultural, cujos
elementos convergem, deslocam-se, rejeitam-se, contradizem-
se, cruzam-se, convertem-se, sobrepõem-se, selecionam-se,
reelaboram-se em cadeia e em movimentos paralelos, num mesmo
tempo ou ao longo do tempo. Eles desembocam não em uma cultura

240 ANA PIZARRO


específica, uma instância final necessariamente, mas constituem
relacionalmente uma rede de formas discursivas, que podem-se
tipificar em um determinado momento, mas que fazem parte de
um movimento de construção, próximo ao modo como pensaram
os caribenhos Édouard Glissant e Stuart Hall, e que partem em
diferentes direções, ou linhas de fuga, desde a história como gatilho
para processos de hegemonia, de reapropriação e de resistência.
Nessa medida, vemos o “tecido” da cultura latino-americana
como um processo, ou seja, o vemos em permanente movimento,
com fios que vão em diferentes direções e velocidades, como
uma formulação mais próxima de um “sistema complexo”, como
“uma representação de um corte da realidade”, segundo o que
formulou o epistemólogo argentino Rolando García em conjunto
com Jean Piaget. Como sistemas abertos, como totalidade relativa
e organizada, suficientemente autônoma, que realiza intercâmbios
com o meio externo, onde os limites são frágeis, eles também
estão em movimento e são identificados pelo sujeito conhecedor
na concepção de seu funcionamento. Todo elemento externo, todo
fluxo, produz distúrbios e gera reações. Nas travessias, os fluxos
têm espessuras distintas, atuam com velocidade própria e em
âmbitos diversos (popular, indígena, massivo ou erudito). Vários
atuam ao mesmo tempo, desencadeando diversos processos de
aceitação parcial, rejeição, transformação, justaposição ou outros;
e não necessariamente conduzem a um equilíbrio permanente
porque quando atingem uma estabilização, há uma nova situação
perturbadora, composta por outros ou os mesmos fluxos com uma
nova intensidade que os altera. A complexidade se relaciona com o

O VO O DO TUKUI 241
fato de que, como representação da realidade, seus elementos, seu
processo, sua estruturação, não podem ser estudados isoladamente,
mas sim em conjunção disciplinar. Nesse sentido, nossa reflexão
sobre essas formações nos aproxima de Cornejo Polar, que falava de
sistemas em 1982 em nosso encontro em Caracas e antes, em 1977,
da “heterogeneidade”, ao estudar a literatura peruana como uma
totalidade contraditória, e já vislumbrar a diferença de sistemas.
Outras dimensões dos fluxos ocorrem internamente, com
movimentos internos de relação entre os diferentes sistemas: o
popular, que se incorpora ao erudito; o indígena, como o mais
resistente; o erudito, que é absorvido pelo popular, pelo sistema de
massas. Os caminhos e as relações são múltiplos: os movimentos
mostram a passagem de um sistema a outro, a reapropriação de um
mesmo sistema, as conexões internas desse recorte da realidade
que chamamos de “cultura” e “literatura”, e, em um recorte ainda
mais restrito, “latino-americanas”. Espaço delineado pela reflexão
que tem fronteiras frágeis e abertas em movimento. Que se apropria
de fluxos de diferentes potências: hegemônicos ou subordinados.
Que os processa em múltiplos tempos, cada um com sua velocidade
dependendo de sua inscrição histórica, alguns deles com o tempo
lento das constantes. Que se cruzam, não necessariamente em
combinação binária, mas múltipla devido à pluralidade de seus
componentes, alguns de maior poder, outros de menor. Que
produzem desdobramentos imprevistos, e não necessariamente
chegam a uma fusão, que mostram desdobramentos paralelos sem
fusão possível, como no caso andino ou amazônico, dos grupos
indígenas. Que, então, são projetados não necessariamente em

242 ANA PIZARRO


uma determinada direção, mas em linhas de fuga. Que encontram
equilíbrio, se desestabilizam e depois se reequilibram, em processos
de diferentes épocas. Cuja multiplicidade e movimento, assim como
sua potência, se enquadram no efeito da colonização e, mais tarde,
na colonialidade do poder.
Cada um deles, como cada fluxo de leituras, de arte, no espaço
visual e auditivo, se multiplica à medida que o século passa com
o avanço da cultura popular de massa e adquire a velocidade da
vertigem com a entrada da televisão... e depois da internet.
A partir da multiplicidade de fluxos a que nos referimos,
assim como a atualidade dos deslocamentos internos dentro do
continente, não nos basta trabalhar para compreendê-los com uma
percepção binária: duas culturas que dão origem a uma terceira. A
multiplicidade de fluxos culturais, bem como o movimento interno
deles entre os diferentes sistemas literários, nos leva antes a pensar
em um sistema de relações em que várias contribuições culturais
interferem ao mesmo tempo ou em sequência, em uma escala de
tempo específica para cada situação, em que os cruzamentos podem
ou não se consolidar, em que cada fluxo tem no momento uma energia
diferenciada de acordo com o contexto histórico e por isso existem
os sistemas hegemônicos e subalternos. Em que a velocidade das
mudanças permite considerá-los constantes, se são lentos; periódicos,
se dispersos no tempo; efêmeros, se sua existência é breve.
Tudo isso na medida em que se desenvolvem em uma sociedade
mais ou menos variada, como são as latino-americanas, onde se
observa claramente uma variação entre a sociedade mexicana e a
do cone sul.

O VO O DO TUKUI 24 3
As sociedades ch’ixi, como aponta a boliviana Silvia Rivera
Cusicanqui, situam-se na linha de pensamento sobre a “sociedade
variada”98 de René Zavaleta. Ela explica: “A noção de ch’ixi, ao contrário,
propõe a coexistência paralela de múltiplas diferenças culturais que
não se fundem, mas se antagonizam ou se complementam. Cada uma
reproduz a si mesma das profundezas do passado e se relaciona com
as demais de forma contraditória”.
É por isso que me pergunto se esse tecido, essa rede, em seu
movimento, seu entrelaçamento de fluxos, energias culturais
diferentes e diferenciadas, também na sociedade em que se
agitam, não responde à estrutura da «cesta» de que os membros
da comunidade Muinane falam. A cesta dá forma e conteúdo aos
múltiplos graus e sentimentos do horror vivido por sua etnia, no
Putumayo, nos tempos da Casa Arana, e por isso se fala de uma “Cesta
das Trevas”, cujo sentido é deslocado para purificar a existência das
gerações que vêm e a transformam em uma “Cesta de Vida”.

98 [N.T.] A expressão na língua espanhol, formulada por René Za-


valeta, é sociedade abigarrada, a qual representa uma sociedade
constituída por relações assimétricas entre diferentes poderes de
distintas culturas.

244 ANA PIZARRO


SOBRE A AUTORA

Ana Pizarro

O VO O DO TUKUI 24 5
246 ANA PIZARRO
SOBRE AS ILUSTRAÇÕES

Ilustrações de capa e miolo: Philippi, Rodulfo Amando. Viagem ao


Deserto do Atacama: feita por ordem do governo do Chile no verão
de 1853-54; publicada sob os auspícios do governo do Chile. Halle in
Saxony: Livraria de Edward Anton, 1860, viii, 236 páginas, 27 placas.
Coleção da Biblioteca Nacional do Chile. Disponível em: www.memo-
riachilena.gob.cl.

Rodulfo Amando Philippi Krumwiede (Charlottenburg, Prús-


sia, 1808 - Santiago, Chile, 1904) estudou medicina na Universidade
de Berlim – enquanto era dirigida por Hegel – e se formou como
doutor em 1833. Entre 1830 e 1840, fez várias viagens à Itália onde
estudou espécies de moluscos e a geologia do Mediterrâneo.
Dada a situação instável resultante do fracasso da Revolução de
Março (1848-1849) na Confederação Germânica, ele migrou para a
América. Ele se estabeleceu na cidade de Valdivia, no sul do Chile,
devido às condições favoráveis oferecidas pelo governo chileno aos
colonos alemães. Nesta cidade, ele trabalhou como professor na
escola alemã.

O VO O DO TUKUI 247
Como naturalista, ele continuou a desenvolver suas pesquisas
com base em várias viagens pelo território chileno, incluindo sua
expedição de três meses ao Deserto do Atacama, encomendada
pelo governo, e sua exploração de toda a área de colonização ale-
mã entre Valdivia e o Lago Llanquihue. Philippi também realizou
estudos no arquipélago de Juan Fernández e na Araucania. En-
quanto desenvolvia suas pesquisas, ele manteve correspondência
com renomados cientistas como Charles Darwin e Alexander von
Humboldt.
Suas pesquisas em zoologia, botânica, geologia, paleontologia,
climatologia, entomologia, entre outras, desenvolvidas ao longo de
53 anos de atividade científica ininterrupta, foram registradas em
mais de 500 trabalhos científicos publicados tanto no Chile como
no exterior. Somente em botânica, ele descreveu 3.730 espécies
chilenas das 5.000 atualmente conhecidas.
Philippi foi professor de botânica e zoologia na Universidade
do Chile e diretor do Museu Nacional de História Natural, o qual
cresceu de forma notável durante sua gestão.

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SOBRE O ORGANIZADOR

Hugo Achulgar é poeta, crítico e ensaísta. Nasceu em Monte-


videu, Uruguai, em 1944, onde lecionou no ensino médio até ser
demitido pela ditadura. Então, viajou para Caracas, Venezuela,
onde trabalhou como pesquisador do Centro de Estudos Latino-
-Americanos Rómulo Gallegos e foi professor universitário. De lá,
partiu para os Estados Unidos, onde foi professor da Northwestern
University e se tornou professor titular de Literatura Latino-Ame-
ricana da University of Miami. De volta ao Uruguai, foi professor
da Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação da Univer-
sidade da República do Uruguai, entre 1988 e 2010. Entre 2008 e até
o final do governo do presidente Pepe Mujica, em 2015, atuou como
Diretor Nacional de Cultura do Ministério da Educação e Cultura
do Uruguai.
Como ensaísta, publicou diversos livros, entre eles “La Balsa de
la Medusa: ensayos sobre identidad, cultura y fin de siglo en Uru-
guay” (Trilce, 1992), “La biblioteca en ruinas. Reflexiones culturales
desde la periferia” (Trilce, 1994) e “Planestas sin boca: escritos
efímeros sobre arte, cultura y literatura” (Trilce, 2004). Este último

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foi publicado no Brasil pela Editora UFMG, em 2006. Em 2020, pu-
blicou a antologia de ensaios “Piedra, papel o tijera: Sobre cultura
y literatura en América Latina”, pela Eduvim.

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CONSELHO EXECUTIVO

José Ronaldo Alves da Cunha


Presidente

Lúcia Velloso Maurício


Diretoria Administrativo-Financeira

Maria de Nazareth Gama e Silva


Diretoria Cultural

Maria Elizabeth Brêa Monteiro


Diretoria Técnica

CONSELHO FISCAL

Antônio Henrique Albuquerque Filho


Guilherme Hideo Assaoka Hossaka
Sidirley Daniel Venâncio
CONSELHO CURADOR

Alberto Venâncio Filho


Antônio Claudio Lotar da Silva Araújo
Elizabeth Versiani Formaggini
Haroldo Costa
Haydée Ribeiro Coelho
Irene Figueira Ferraz
Isa Grinspum Ferraz
Leonel Kaz
Luzia de Maria Rodrigues Reis
Maria de Nazareth Gama e Silva
Maria José Latgé Kwamme
Maria Stella Faria de Amorim
Milton Eric Nepomuceno
Sergio Pereira da Silva

CONSELHO CURADOR (IN MEMORIAM)

Antonio Callado
Carlos de Araujo Moreira Neto
Leonel de Moura Brizola
Maria Vera Teixeira Brant
Moacir Werneck de Castro
Oscar Niemeyer
Paulo de F. Ribeiro
Tatiana Chagas Memória
Wilson Mirza
Os textos deste volume da BBLA foram
compostos utilizando as famílias tipográ-
ficas Neco e General Sans. O exemplar que
você tem nas mãos foi impresso nos ateliês
da gráfica PSI7 (São Paulo) em novembro
de 2021.

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