PIZARRO, Ana. O Voo Do Tukui
PIZARRO, Ana. O Voo Do Tukui
PIZARRO, Ana. O Voo Do Tukui
do
tukui
O voo
do
tukui
Ana Pizarro
apresentação
Hugo Achulgar
Conselho Curador
Eduardo Rinesi - Argentina
Eric Nepomuceno - Brasil
Gabriel Cohn - Brasil
Gabriel Restrepo - Colômbia
Horacio González - Argentina (in memoriam)
Hugo Achugar — Uruguai
Nora Garita — Costa Rica
Paulo Henrique Martins - Brasil
Salomon Nahmad Sitton — México
Stefano Varese — Peru
Equipe Editorial
Ana Paula Simonaci — Revistas de Cultura e Oca Editorial
André Magnelli — Ateliê de Humanidades
Cristián Jiménez — Tucán Ediciones
José Ronaldo A. Cunha — Fundação Darcy Ribeiro
Maria Elizabeth Brêa Monteiro — Fundação Darcy Ribeiro
Sergio Cohn — Azougue Editorial e Oca Editorial
ISBN 978-85-63574-66-3
Janeiro de 2022
BIBLIOTECA BÁSICA
LATINO -AMERICANA
45 | O PÓS-HUIDOBRISMO NO CHILE
53 | COLONIALIDADE. OBSERVAÇÕES
SOBRE A CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS
II
III
1 [N.T.] Mais informações sobre o que são os tukui podem ser en-
contradas no prefácio abaixo da autora.
O VO O DO TUKUI 11
O voo do tukui — como a imagem lúdica de Montaigne,
“marchetaria mal ajustada”2 — percorre mundos, sociedades, sistemas
e culturas, com a fluidez e o entusiasmo ou o deslumbramento de
visitá-los com um olhar marcado por transformações sociais, culturais
e tecnológicas desse início do século XXI. De certa forma — a autora
mesma o diz —, esses ensaios que compõem o livro são, ao mesmo
tempo, a revisão de categorias que nortearam a crítica literária e
cultural do último meio século e também o retorno a olhar, a ler e a
ouvir o que a sociedade que habita essas terras diz e pede há séculos.
No “Prefácio”, Pizarro afirma: “O voo do tukui é como o trajeto do
ensaísta”. E desse lugar de enunciação, que é o continente, estando
situada na casa do tukui, é que ela fala em resposta à diversidade
cultural e à biodiversidade.
É por isso que “Aqueles que não acreditaram no retorno de Deus”
— o primeiro texto que abre o livro — se apresenta como uma revisão
da história de nosso continente desde a sua criação, passando pela
evocação de etnias e suas civilizações até centrar-se na nação ou
comunidade mapuche que, precisamente e ao contrário de outras,
não “acreditava no retorno de Deus”. Crença que marcou a derrota
dos maias e astecas — entre outros — e que o povo mapuche resistiu
ao longo dos séculos.
12 ANA PIZARRO
Essa resistência mapuche — algo que o relato hegemônico
havia negado durante a colônia, os avanços da sociedade do século
XIX e o século XX até chegar aos últimos anos — hoje floresce
negando a história da colonialidade no Chile, na Argentina e no
resto do continente. Expressando-se também em fortes movimentos
sociais, em centenas de bandeiras mapuches e na histórica eleição
da Assembleia Constituinte que levou uma mulher mapuche à
presidência da maior instituição daquele país multinacional que
conhecemos como Chile.
Essa entrada no livro não é inocente. Marca um revisionismo
histórico e historiográfico que incluirá, posteriormente, uma releitura
dos sistemas teóricos sociais, culturais e literários da modernidade
tardia da qual Pizarro provém e, meio século depois, precisa ser
revista e ajustada. Nessa linha, os dois textos que encerram a
primeira parte — até mesmo nos próprios títulos — falam do “pós-
huidobrismo” e da “construção de discursos” a partir do paradigma
da “colonialidade do poder” proposto por Aníbal Quijano.
A leitura do desenvolvimento poético chileno do século XX
mostra as tensões e contradições que revisam um passado desde o
momento presente em que se situa todo o livro. Algo que fica mais
claro e explícito no que Pizarro chama de “construção de discursos”
— com base em Quijano e Foucault — em que ela não apenas atende
à história crítica ou aos sistemas literários, mas também revê as
culturas populares (rurais e urbanas) observando o Caribe. Trata-se
de uma leitura que, sem dúvida, faz um balanço da herança do século
XX recebida pelo século XXI, e isso não pode ser feito sem levar
em conta as culturas indígenas, expressões subalternizadas. A sua
O VO O DO TUKUI 13
proposta, nessa linha, recolhendo experiências anteriores como a
de José María Arguedas ou Darcy Ribeiro, propõe, “ao contrário da
análise transcultural”, a ideia de um “um processo mais complexo
e abrangente que configura espaços amplos de interação” ou “redes
de interação”; com fluxos externos em que os indígenas enfrentam
o que Pizarro chama de “fluxos externos, como o europeu ou o
africano”.
As três partes seguintes de O voo de tukui apontam para fenômenos,
como a chamada literatura de cordel — em que a hibridização com
o europeu aparece explicitamente —, onde a oralidade se associa
à noção de uma rede complexa que não é a da “transculturação”
(Fernando Ortiz/ Angel Rama), nem da “heterogeneidade” (Cornejo
Polar). Para isso, são analisadas as vicissitudes do “espanhol” da
América e do “castelhano” — com sua função como ferramenta de
colonização, algo que outras línguas no Caribe e no Brasil também
cumpriram —, juntamente com a multiplicidade de línguas, ou mesmo
com o que surge historicamente da “pluralidade na formação social
da Amazônia, especialmente brasileira, que mostra a diversidade das
correntes migratórias, bem como sua complexidade interna” (Samuel
Benchimol). Por isso, a necessidade de falar de culturas e línguas no
plural; “pluralidade” em vez de heterogeneidade ou transculturação.
Tudo isso leva Pizarro a apontar a necessidade de rever a noção
de literatura. Na verdade, a literatura e também o papel da mulher
na construção da Amazônia.
É no segundo capítulo da segunda parte “Tituba e Kehinde:
a língua, a escuta, o olhar”, que emergem, com força especial, as
propostas mais sugestivas de Pizarro. A tríade “língua, escuta, olhar”.
14 ANA PIZARRO
Ao analisar os romances de duas narradoras, Maryse Condé e Ana
Maria Gonçalves, ela aponta que:
O VO O DO TUKUI 15
A leitura reivindica, dessa forma, não apenas a escrita subordinada
das mulheres, mas, principalmente, o papel que o olhar, a leitura e a
escuta têm na enunciação dos discursos estudados e que constroem
nossas múltiplas histórias.
No último capítulo da segunda parte do livro, Pizarro retoma
a ideia de “Ler a sociedade por meio do cordel: dois casos” e sua
importância em relação ao imaginário da nação; já que se concentra
na literatura de cordel entre 1860 e 1920, embora acabe chegando
ao presente no Brasil e no Chile. Pela mesma razão, ela afirma que
o cordel não é “nacional”, mas “regional”. A análise leva a autora a
considerar a fase de Getúlio Vargas para logo destacar a “diversidade
cultural” diante da “homogeneidade da nação”. Antônio Conselheiro,
Violeta Parra e muitas outras figuras são suportes para marcar a
relação entre cordel, região e nação e a pluralidade de discursos que
compõem o tecido das nossas histórias.
Em “Amazônia: horizonte e fraturas”, na terceira parte do livro,
Pizarro olha e analisa uma região e uma formação cultural que tem
sido objeto de análise fundamental nas últimas décadas. Além
de riqueza e diversidade, a palavra com a qual foca sua análise
é desigualdade. A Amazônia é um campo de observação das
destruições antropocênicas. O Antropoceno e os instrumentos da
“modernidade tardia” que invadem a Amazônia tentam erodir uma
sociedade multiétnica impondo tempos sobrepostos/articulados com
as particularidades de uma sociedade periférica de origem colonial,
como a dessa região e do nosso continente.
A Amazônia, segundo Pizarro, “é um espaço de exacerbação dos
paradoxos latentes na subjetividade continental”:
16 ANA PIZARRO
Não se trata de uma posição utópica de retorno ao
passado, trata-se de observar processos paralelos
em um continente como o nosso, como dissemos,
de tempos culturais sobrepostos, de culturas
imbricadas, não necessariamente transculturais. O
olhar para as tecnologias das culturas indígenas,
por exemplo — os estudos atuais falam disso — ,
não é um retrocesso, pois elas podem ser uma
referência.
O VO O DO TUKUI 17
porosas e fechar-se dentro dos muros disciplinares de algumas
décadas atrás — seja por uma espécie de defesa da especificidade
ou da sacralidade de certos modos de conhecimento — é um perigo
enorme para o que estamos vivendo, que chega até nós como um
tsunami de tecnologias e obsolescência de paradigmas.
Por outro lado, Pizarro argumenta que:
18 ANA PIZARRO
frequência em linhas de fuga, a perspectiva sobre
o ser humano e a vida, sobre o universo. Para que
servem as humanidades? Para sensibilizar, para
ampliar e estender o espaço da experiência, para
coexistir com a alteridade, para compreender a
diferença. E também, fundamentalmente, para
pesquisar e construir significado.
O VO O DO TUKUI 19
o que enriquece a sua leitura e a nossa escuta. Isso lhe permite
considerar a particularidade da cultura subsaariana na Amazônia e
problematizar — como havia feito anteriormente — a categoria de
“transculturação” de Fernando Ortiz, na medida em que, segundo
suas palavras, “a experiência cubana é diferente” e, portanto, não
pode ser extrapolada para a Amazônia. Em “Fronteiras Perdidas:
Agualusa”, por exemplo, ela se concentra no trabalho do angolano
Agualusa.3 Mas “fronteiras perdidas” não é uma imagem poética de
Pizarro, e sim a expressão que, em Angola descreve “aqueles em cujo
ser convivem várias culturas, e que se movem entre uma e outra”.
Agualusa é um escritor nascido em 1960, que é também jornalista
e cineasta. Com uma produção profusa, é um escritor ancorado em
Angola, mas um nômade que vai da África ao Brasil, Europa e volta
integrando tudo. Pois, como afirma Pizarro:
20 ANA PIZARRO
angolana no espaço marcado pela tradição
brasileira — bem temperada — de Machado de
Assis, como dissemos, mas também dos clássicos
contemporâneos europeus e latino-americanos —
Borges, Cortázar —, da cultura popular africana e
também afro-americana.
O VO O DO TUKUI 21
essa última parte pode ser considerada como um conjunto; porque,
embora deem continuidade à linha de argumentação do livro, ela se
abre para outros aspectos, expressões culturais e problemas teóricos
que mostram o amplo alcance desse voo de tukui.
Nesses ensaios nos encontramos — embora talvez deva dizer
“eu me encontro”, já que outros leitores os verão à sua maneira —
com uma lógica de um signo diferente ao situar, como referente,
a discussão da ideia de colonização de uma forma particular.
Cabe destacar que essa discussão chega a um momento em que a
chamada “conquista” e a “colonização” estão levando à derrubada
de estátuas de Colombo e ao fato do próprio rei Felipe da Espanha
ter sido obrigado a sair para defender seu papel e, segundo ele, os
valores da colonização europeia — não mais só espanhola — em
nosso continente.
Pizarro parte de sua história na América Latina, Palavra, literatura
e cultura (1993), e faz uma espécie de genealogia do projeto que
realizou com um grupo de acadêmicos, especialmente Antonio
Cândido. Quase três décadas após a publicação de um projeto que
vinha em andamento há muito tempo, Pizarro aproveita para afinar
não apenas categorias historiográficas, mas também conceitos
teóricos fundamentais de sua leitura cultural e literária da América
Latina. Nesse sentido, enfoca, entre outros temas, a revisão de noções
e paradigmas que construíram o relato sobre nossas culturas e nossas
expressões simbólicas e artísticas. Nessa linha de argumentação,
ela fala de um “terceiro sistema literário dos povos indígenas”, da
necessidade — antes mencionada — de falar e pensar em “práticas
discursivas plurais” e da realidade tecnológica do presente, do urgente
22 ANA PIZARRO
agora. Na revisão das contribuições teóricas que foram construídas e
alimentadas nas últimas quatro décadas, Pizarro desenvolve seu olhar.
Não se pode estranhar, — na verdade eu diria que é preciso
celebrar — a incorporação à reflexão literária ou discursiva do sistema
cultural, as chamadas “redes sociais”. Não é mais possível — e
algumas teses em nossa América já estão o fazendo — deixar de levar
em conta aquela discursividade contemporânea que se realiza por
meio de Instagram, Facebook, Twitter, Tik Tok e outros meios. Essas
“redes sociais” fazem parte da “esfera pública” de que falava Jürgen
Habermas. Esta é a realidade instalada em grande parte do mundo
e continuará crescendo. Ao mesmo tempo, Pizarro lembra que os
indígenas já criam seus próprios vídeos e que a escrita de mulheres
tem apresentado crescimento indiscutível nos últimos tempos e
está fortemente posicionada no horizonte cultural atual. Não são
por acaso as recentes mobilizações — algumas delas performativas
— do movimento de mulheres e do movimento feminista em vários
países ocidentais e em particular em nossa América, como foi o
caso do Chile sob o lema: “O estuprador é você” (2019). Todas essas
expressões não podem ser deixadas de lado na análise cultural do
século XXI.
Em “O poder da palavra e a palavra do poder”, com uma evocação
implícita de Foucault, mas feita em relação à pandemia, Pizarro dá
conta do que vivemos desde o final de 2019. Ela analisa a situação
sanitária, mas está centrada na grande Amazônia e aponta, junto
com o teórico africano Achille Mbembe, que a pandemia nos atinge a
todos e que tem, nesse sentido, um caráter democrático. Entretanto,
não é assim. “não atinge a todos igualmente. Vivemos, como aponta
O VO O DO TUKUI 23
Achille Mbembe, tempos caracterizados por uma ‘redistribuição
desigual de vulnerabilidade’”.
A leitura política e cultural de Pizarro lembra Paes Loureiro e
alguns belos versos que afirmam: “Toda arte nasce de um momento/
para esse momento superar”. A vulnerabilidade da Amazônia, a
desigualdade histórica e a exploração extrativista e devastadora vão
ao encontro da pandemia. Isso nada mais faz que agravar o que já
acontecia, agora com apoio presidencial.
Por isso o tom sombrio ao final deste ensaio:
Mas Ana Pizarro não pode terminar assim um livro como O voo de
tukui. No último ensaio: “Rede, tecido: pensar a construção cultural”,
ela cumpre com sua responsabilidade de intelectual íntegra e honesta.
Para isso, ela relembra e retoma Roberto Fernández Retamar e sua
crítica descolonizadora e recorre ao estado atual do pensamento e
das pesquisas culturais em nossa América representadas por muitos
autores, abrindo as portas para a reflexão de todos aqueles — como
Darcy Ribeiro, Antonio Cândido, Edouard Glissant, Cornejo Polar e
outros tantos já citados — que tentam dar conta de um território,
24 ANA PIZARRO
de um continente, de uma região que abrange desde o Cone Sul até
o Caribe, passando pelos Andes e pela Amazônia.
Nessa empreitada, Pizarro não reduz o sistema literário à soma
das literaturas nacionais, como ocorreu durante grande parte do
século XX. Como já foi dito, sua leitura — e esse é o fechamento da
construção discursiva realizada em seu livro — está estruturada na
história da colonização e no seu efeito posterior sobre a colonialidade
das estruturas de relações e na colonialidade do poder, construindo
assim o espaço cultural.
Nesse sentido, a empreitada de Pizarro me atrai particularmente,
pois incorpora ao vasto universo de referências teóricas o pensamento
de Silvia Rivera Cusicanqui que, juntamente com outros pensadores
como Xavier Albó, acrescentam uma contribuição teórica a partir da
experiência das culturas indígenas (neste caso, andina).
Em relação às sociedades ch’ixi, Silvia Rivera Cusicanqui, de
uma linha de pensamento que vem da “sociedade variada” de René
Zavaleta, afirma que:
O VO O DO TUKUI 25
redes em movimento, energias culturais — ideia muito mais ampla
que a de expressões — diferentes, diferenciadas, diversas. Por isso,
a autora recorre à etnia Muinane e elege a imagem do “cesto” — essa
estrutura tradicional — que:
26 ANA PIZARRO
PREFÁCIO
POR ANA PIZARRO
O VO O DO TUKUI 27
em que os historiadores separaram o desenvolvimento do homem
daquele do mundo natural, que aparecia como imutável.1
O colibri, pica-flor ou beija-flor, como é chamado mais docemente
no português do Brasil, tem sua origem e seu habitat na América.
Desde o norte ao extremo sul. Na língua karib das etnias amazônicas,
ele é chamado de tukui, também tucusi. Daí seu nome venezuelano:
tucusito.
O voo do tukui é como o trajeto do ensaísta. Ele precisa se nutrir
muito para sustentar um voo que se detém diante de cada flor ou
fruto em uma agitação nervosa durante alguns segundos, para em
seguida passar a outro e ficar novamente suspenso frente ao atrativo
de uma espécie diferente. Como o tukui, é com a abertura a uma
maior diversidade de cores e matizes percebidas que o olhar se
amplia.
Situados neste continente e desde aqui, a casa do tukui, é que
falamos na presente publicação.
28 ANA PIZARRO
O VO O DO TUKUI 29
30 ANA PIZARRO
I
O VO O DO TUKUI 31
AQUELES QUE NÃO ACREDITARAM
NO RETORNO DE DEUS
O VO O DO TUKUI 33
a cabeça da chuva e do sol com jarros de argila. Com sacrifícios
conseguiram acalmar a água e depois desceram das colinas. Assim
nasceram os mapuches.
O primeiro habitat foi a área do trovão, do alerce, do raulí, do
maitén2 e da araucária, a selva austral da América do Sul. Desde
o rio Maule — no Chile atual — aumentava a população até mais
adiante do Toltén3, cujo canal se arrasta, em períodos de chuvas, à
terra, às árvores, às casas, aos equipamentos, aos animais e até aos
cavalos, com os cavaleiros e tudo mais. Eles já existiram nos anos
quinhentos a seiscentos a.C. e eram caçadores de guanacos4 e de
huemules.5 Marinheiros experientes que coletavam moluscos e algas
do mar: cochayuyo, luche.6 Da terra, os frutos da alfarrobeira, o pinhão
da araucária. Eles eram habilidosos caçadores que se aventuravam
em terreno amplo, mestres da flecha e do silêncio. Eles viviam em
famílias extensas, em poligamia sob a autoridade do lonco, o cacique
que impunha a igualdade e dirigia as relações com outros grupos.
A eleição do toqui, chefe em tempos de guerra, era feita de comum
acordo e destinava-se a quem possuísse o domínio das forças do
relâmpago.
34 ANA PIZARRO
Sem tardar, atravessaram a Cordilheira dos Andes
e se instalaram do outro lado, na atual Argentina,
impondo sua língua, o mapudungun. Assumiram o
nome de puelches, gente do Leste, conhecidos pelo
lugar onde habitavam: ranqueles7, salinas, pampas,
macieiros. Ali a natureza apresenta um rosto
diferente. Atravessando os bosques da Cordilheira,
ela é generosa em lagos, rios, bosques e vales para
logo estender-se nas enormes planícies desérticas
dos pampas. Nesse meio, a cabana mapuche, a ruca,
transformou-se em toldo, habitação feita de varas e
peles de guanaco — mais tarde de cavalo — cozidas
com cordas que permitiam os deslocamentos.
O VO O DO TUKUI 35
Em outros grupos étnicos de América, a chegada do invasor
correspondeu à expectativa que surgia de uma crença mítico-
religiosa. O povo asteca viu em Cortés10 e seus seguidores o retorno
de Quetzalcóatl11, e Montezuma12 lhe recebeu como o “príncipe
de homens” que vem recuperar seu trono. Foi o caso também de
Viracocha13 para o império inca em Cusco, que pensou que talvez
seriam seus enviados; e o documento de Titu Cusi Yupanqui assinala
que “pareciam viracochas”. No sistema de crenças mapuche, não
existia o mito do retorno: Nguenechén era a força superior; Pillán14
residia nos montes, nos vulcões, nas nuvens, nas alturas, ali onde
o espírito dos guerreiros sobe para se converter em trono. Embora
os tenha surpreendido, o conquistador não desestruturou sua visão
do mundo. Ele foi identificado de imediato como o inimigo que era.
Os mapuches não acreditaram no retorno de Deus: enfrentaram-no
em uma guerra que durou duzentos e sessenta anos em que não
puderam ser vencidos. Logo depois da Independência, seu combate
também foi defensivo, mas dessa vez contra chilenos e argentinos.
Em 1546, partiu de Santiago del Nuevo Extremo15 o primeiro grupo
36 ANA PIZARRO
de soldados espanhóis em direção ao sul. Iniciava-se, assim, uma
guerra incrível da pólvora contra a astúcia, do capacete contra o
sigilo, da estratégia militar tradicional contra uma luta com caráter
de guerra popular em que se ia definindo a tática e a estratégia, de
acordo com as novas circunstâncias. Os ataques mapuches não eram
frontais, mas, sim, feitos em pequenos grupos e de surpresa. Assim
que incorporaram o cavalo e suas lanças de coligue16, reconheceram
o corte das armas brancas. Lautaro17 aprendeu a guerra a serviço do
espanhol para voltar e ensinar seus seguidores como atacá-lo.
Pedro de Valdivia18 conseguiu avançar até o sul, atravessar o
rio Biobío, construir alguns fortes e fundar cidades: Concepción,
Valdivia, Villarrica. De lá, soldados espanhóis cruzaram os passos
da cordilheira e chegaram a Trepanada, atual Neuquén19, o País das
Maçãs. Do mesmo modo como o mito do El Dorado os animou em
outros lugares da América, aqui buscaram a cidade dos Césares, o
lugar da riqueza paradisíaca. Enquanto avançavam através dos raulíes,
lutadores fantasmas seguiam seus passos por entre os cipós úmidos.
A superioridade do armamento se confrontava com o conhecimento
do terreno, com a agilidade dos pés descalços. Ser vencido significava,
para os mapuches, a escravidão das encomendas, o trabalho nas
minas, a destruição de suas rucas, a devastação de suas famílias, o
O VO O DO TUKUI 37
serviço aos espanhóis, a perda de espaço e identidade. Eles lutaram
com a ferocidade e os movimentos de um puma, sabendo de antemão
os passos do inimigo, muitas vezes transformando suas retiradas
em fuga. No entanto, armas de fogo foram impostas e os donos
do território invadido viam proliferar os fortes construídos pelos
intrusos. Os espanhóis não formaram um exército vitorioso, o que
os obrigou a ceder ao acordo chamado Paces de Quilín, em 1641. Nele
se reconheceu a independência do povo mapuche em um território
compreendido entre o rio Bío-Bío [ou Biobío] e o rio Toltén. Isso foi
o começo de uma série de acordos que redefiniam a situação a cada
ano, já que a defesa mapuche não permitia novas invasões. Contudo,
comerciantes e missionários circulavam pela linha da fronteira e pelos
passos da cordilheira. Os mapuches trocavam sal, sementes, vacas,
ovelhas, éguas e ponchos por aguardente. O poncho chegou a ser
um símbolo da possível relação de troca, ao ponto do governador
Ambrosio O’Higgins20 o proibir: era subversivo. Os colhedores haviam
se tornado, por necessidades da guerra, pecuaristas e tinham um
comércio incipiente. Era a situação que existia no momento da
independência.
A segunda etapa dessa guerra centenária foi a defesa contra o
avanço do capitalismo agrário no Chile e na Argentina. Era a busca
de novas terras férteis, respaldada pela ideologia do “progresso”, pela
oposição civilização-barbárie, que colocava os mapuches no lugar
de “selvagens que representam uma ameaça para o futuro e que é
38 ANA PIZARRO
necessário submetê-los às leis e usos da Nação”, nas palavras de Julio
A. Roca, realizador da chamada Campanha do Deserto, na Argentina.
O chileno Gregorio Urrutia, por sua vez, chefe da empresa correlata,
a chamada Pacificação da Araucanía no país vizinho, acusava-os de
“bárbaros com seus instintos de roubo e saque”. Foi uma guerra em
que cada um dos países temia que o vizinho avançasse e as fronteiras
do Biobío e do rio Negro foram vistas como uma ameaça. Contudo,
quando houve necessidade, coordenaram o desenvolvimento da
guerra contra o bárbaro inimigo comum.
Os assédios começaram cedo com a República e foram feitos
acordos de neutralidade com o estabelecimento de doações: erva,
açúcar, tabaco, aguardente. Os mapuches devolveram os prisioneiros.
Do lado argentino, a campanha começou em 1879. Do lado chileno, o
plano do coronel Cornelio Saavedra havia começado em 1860. Nesse
ponto, algumas revoltas marcaram o deslocamento de grande parte
da população mapuche entre Malleco21 e Biobío, com a usurpação de
suas terras. Agora se trata da colonização em sua versão moderna.
Os caciques são prontamente informados da nova ofensiva e o
berrante, sinal de perigo, soa entre os diferentes grupos mapuches
do lado chileno: arribanos, abajinos, costinos.22 O mensageiro começa
a correr entre eles. O werquén23 usa no pulso o fio vermelho cujos
nós registram os pontos da mensagem, os dias até a reunião, o
O VO O DO TUKUI 39
conselho dos loncos.24 Buscavam-se alianças do lado argentino e
acesso a Calfucura25, cacique dos pampas. É um momento em que
circulam profusamente de um lado e do outro, cuidando dos passos
da cordilheira. A capacidade guerreira adquire um novo movimento
diante da agressão. Os combatentes se concentram, apertam o
couro das boleadoras e a nova estratégia é desenhada. Mas, para
a República, trata-se de uma luta de expansão que tem o caráter
de uma guerra total, e do lado chileno alguns jornais denunciam a
“guerra de extermínio” promovida pelo exército e seu caráter imoral:
está destruindo fazendas e famílias inteiras. Os colonos usam o
apoio da guarda nacional para as apropriações, enquanto os vagões
e a ferrovia avançam fundando fortes e vilas. O grande malón26, a
insurreição, ocorreu em 1881 no lado chileno. Mas o exército, que
venceu no Peru, agora é diferente: é um exército moderno e usa o
rifle de repetição. Do lado argentino, a resistência ocorre em termos
similares e tem um caráter simbólico: antes de se renderem, os
índios cercados se jogam no precipício de Choique Mahuida27 em
1879. A rendição é dura. Quando fazem acordos com os nacionais,
os caciques devem entregar uma criança como sinal de promessa.
No parlamento indígena de 1883, decidem lutar até a morte. Mas
o exército argentino acaba por vencê-los: é a obra dos fuzis de
repetição, do telégrafo, da ferrovia.
40 ANA PIZARRO
Terminada a guerra, chegaram os topógrafos, agrimensores,
engenheiros e advogados, atribuindo aos mapuches terras por
comunidades: reservas ou reduções que os tornariam camponeses
pobres, marginalizados e discriminados. Dos dez milhões de hectares
que possuíam no Chile, reduziu-se a meio milhão. Em 1960, estima-se
que havia dois hectares por pessoa. Ao passo que, entre 1883 e 1885,
o Estado entregava lotes a trinta mil colonos europeus de quinhentos
hectares ou mais, segundo as apurações de Jacques Chonchol.
Em 1883, a Pacificação da Araucanía terminaria com a ocupação de
Villarrica. Em 1885 termina, por sua vez, a Campanha do Deserto.
No final da década de 60 do século XX, ocorreu um processo
de levante do povo mapuche no sul do Chile, ao sul do rio Biobío,
cujo intuito era a recuperação das terras apropriadas pelos chilenos.
Terminou, como todo o movimento social no país, com o golpe
militar de Pinochet.
Nos nossos dias, e lentamente, as vozes mapuches se fizeram
ouvir. Em parte, por meio de seus poetas e profissionais: professores
e advogados, mostrando uma visão de mundo que evidencia outra
relação com o mundo, como no poema de Jaime Huenún:
O VO O DO TUKUI 41
por las plumas de sus propios
mesmos amores trinantes.28
42 ANA PIZARRO
às quais o Chile tem chegado atrasado. Não se trata mais apenas da
questão histórica da recuperação de terras, principalmente nas mãos
de grandes propriedades ou empresas madeireiras. Trata-se do seu
reconhecimento como povo perante um Estado que os vê apenas como
“etnia”, o que limita o seu estatuto jurídico. Isso envolve também
uma série de formas nas relações culturais que os diminuem, num
tratamento discriminatório da população nacional que lhes atribui
o status de bárbaros diante de uma população chilena ilusoriamente
branca, que não é reconhecida como mestiça e privilegia a imagem da
imigração europeia. Nesse sentido, a reivindicação mapuche também
aponta para o resgate e a difusão de sua cultura. Embora seja verdade
que nas últimas duas décadas houve pequenos avanços nesse último
sentido, a situação está longe de ser o que deveria ser. Por isso, eles
estabelecem sua reivindicação na Convenção 169 das Nações Unidas
sobre Povos Indígenas e Tribais, assinada e em vigor no Chile desde
2009, que os reconhece e respeita em sua alteridade.
Nesse marco de relações, situa-se, entre outros, o assassinato do
comunero29 Camilo Catrillanca em 2018, em que policiais interferiram
na investigação até que um dos seus membros fosse considerado
culpado, graças à pressão dos movimentos de cidadãos que o exigiam.
O grande surto social de outubro de 2019 nas ruas do país evidenciou
o avanço da consciência chilena, por meio de uma inusitada e
inumerável exibição de bandeiras mapuches.
O VO O DO TUKUI 43
Também é necessário avaliar um avanço recente em que o machi
(xamã) Celestino Córdoba30, condenado a 18 anos de prisão por um
incêndio com consequências de morte, foi autorizado a participar
de uma cerimônia em sua comunidade após uma prolongada greve
de fome e antes de entrar em uma instituição prisional. Isso é o
produto da mobilização social e mostra, em um primeiro momento,
que a Convenção 169 é uma realidade na qual é preciso avançar nas
abordagens e no diálogo em condições de equilíbrio. Assim como a
pandemia que nos assola — e com maior força nos setores populares
e indígenas —, tais fatos mostram que a ciência e o conhecimento
institucional, nos quais acreditamos haver respostas precisas, estão
repletos de incertezas. Tudo isso evidenciou também que existem
diferentes formas de pensar e saber ligadas não só à racionalidade,
mas à sensibilidade, à emoção, à imaginação ou à perplexidade, que
precisamos aprender a valorizar nas culturas não ocidentais. Em uma
demonstração da história como transformação, da história como
movimento e transcurso — pois, como diz Riobaldo31, personagem
de Guimarães Rosa, a sociedade muda porque “as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas [...] elas vão sempre
mudando” —, a Convenção que constrói a nova constituição do
país, ou seja, seu futuro, será presidida por uma mulher mapuche.32
O futuro se abre a expectativas de maior justiça no país.
44 ANA PIZARRO
O PÓS-HUIDOBRISMO
NO CHILE 33
O VO O DO TUKUI 45
o fundador da vanguarda, e levou a sua guerrilha a Paris nos anos
1920, confrontando-se com Pierre Reverdy.35 Depois o enfrentamento
seguiu, até os dias de hoje, em um país onde a poesia tem valor
maior. Ele identifica, define, gera o seu próprio discurso, em que
obviamente a história nacional, o contorno, o desenvolvimento das
nossas feridas e a visualidade das nossas cicatrizes estão presentes.
Mas vamos à história maior, a da própria palavra e, então, a
claridade parecerá também maior. Durante o século XX ocorre uma
produção de grande poesia que expressa dimensões fundamentais
do país. Isso, como toda produção, costuma ser irregular. Mas que
produção não é? É a linha que atravessa o século e onde estão os
nomes de Gabriela Mistral, Pablo de Rokha, Pablo Neruda e Gonzalo
Rojas. É o grosso trabalho de uma construção que faz a poesia do
século. Às vezes e, principalmente, no final, já perto de 1948, inclui-se
também o Huidobro de, por exemplo, Monumento ao mar. Nele está
a palpitação tectônica que os sujeitos experimentam em sua relação
com o constituinte daquele país: os materiais que o sustentam, as
camadas geológicas que o impedem de cair no vazio. Mas também a
presença generalizada ao longo de todo o país desse mar de intensas
águas azuis e geladas, as montanhas, os brutais movimentos telúricos,
as pedras, a transparência do ar que eleva o céu às alturas do homem.
Não é necessariamente uma poesia de solenidade, mas é uma
poesia que tem maiores dificuldades para ser festiva, embora o
faça em termos de expressão de prazer, erotismo, discurso lúdico,
entre outros. O processo de criação no Chile é marcado por isso. A
46 ANA PIZARRO
explosão da poesia de Huidobro, o poeta que chegou ao país nos
anos 1920 com as vanguardas europeias no bolso e as dispensou
com seu gesto oligárquico de quem está além da aldeia chilena, aos
poucos começa a penetrar no país. As vanguardas europeias, que
na América Latina têm uma resposta própria, ligada, entre outras, à
política subversiva contra as ditaduras da primeira metade do século,
e que, ao mesmo tempo, adquiriram o tom reivindicativo das culturas
indígenas e afro-americanas, no Chile têm uma apropriação muito
tardia. Huidobro as instala nos anos 1920, mas o enaltecimento do
discurso de vanguarda não tem caráter grupal, a não ser em pequena
medida, e vai penetrando nas gerações seguintes. Como nas artes
plásticas, com Wilfredo Lam, Roberto Matta, Tarsila do Amaral,
Gunther Gerzso ou Rufino Tamayo, a vanguarda europeia no Chile
é uma lente de reconfiguração modernizante da linguagem que nos
permite ver a realidade com novos olhos. Ao fazê-lo, essa realidade
já não é a mesma. É assim que a palavra —a atitude — e a vanguarda
da informação huidobriana renovam as linguagens aos poucos e
nos discursos individuais. O discurso de Huidobro é estimado por
poucos e sua abertura é evidenciada apenas em algumas poesias.
O terreno de Huidobro no país é estreito, e o poeta, amplamente
difundido na Espanha e na França muito antes, não será reconhecido
como poeta nacional de forma massiva até os anos noventa do
século passado, em que tivemos a possibilidade de inseri-lo na
opinião pública.
O discurso de Nicanor Parra parte dessa linha central da poesia
chilena. Entra no campo huidobriano da visualidade, incorpora
o espaço da cultura popular e gera um sujeito da enunciação de
O VO O DO TUKUI 47
distanciamento irônico do qual emerge a visão de mundo que,
retomando a expressão huidobriana, denomina “antipoesia”.
Como criação, é uma palavra descrente, um olhar oblíquo, uma
forma perspicaz de se expressar, em que os discursos se acumulam
semanticamente, gerando virtualidade, pluralidade, criação de
múltiplos sentidos:
48 ANA PIZARRO
o interlocutor não a entende ou a leva à risca, não importa, sua função
é estabelecer cumplicidades com quem tem os mesmos códigos: é
um discurso compartilhado em que o subtexto é suficientemente
socializado. “Acima dos corações” é a expressão de um momento
na cueca, a dança nacional que tem como função elevar o ritmo dos
acontecimentos e pôr tudo em movimento. Nesse sentido, o verso de
Parra incorpora um conhecimento compartilhado da cultura chilena
que oferece ecos de musicalização e significados múltiplos.
Da mesma forma, em relação a uma das diatribes de Huidobro
com Neruda:
O VO O DO TUKUI 49
Com essa série de expressões, ele constrói aqui um perfil de
Neruda a partir da fala popular, o que é no mínimo um golpe duplo.
Por um lado, o do perfil edificado e, por outro, o do lugar onde se
situa a enunciação, o popular, que, em princípio, é o setor social
ao qual Neruda está associado. Aí reside uma parte da insolência
do discurso de Parra: na reviravolta perspicaz, na desmistificação,
na construção de um sujeito da enunciação que se repreende a si
mesmo, que descrê, que desconstrói. É um sujeito anti-heróico, que
observa a realidade com certo sarcasmo, com a ironia de quem está
fora dela, e daí o huidobrismo, mas não por uma origem oligárquica,
mas por uma localização procurada de um sujeito descrente, alheio
a todos os rituais.
Essa tendência coloca Parra, de forma premonitória, na
modernidade tardia. Esse sujeito da enunciação poética que fala em
sua criação, tanto verbal quanto plástica, é um sujeito que se relaciona
principalmente com o período desmistificador e desconstrutivo da
parte tardia da nossa modernidade latino-americana, com seu perfil
de leveza, pluralidade e abertura. Também de fragmentação. Talvez
esse último esteja relacionado com a caracterização de seu discurso
como o característico de países com história colonial.
Pelas razões históricas próprias —ou seja, da colonização —, a
conformação dos discursos na América Latina é plural. São sistemas
muito diferentes, com temas, linguagens, estruturas, tempos próprios:
erudito, popular rural e urbano, de massas, sistema literário cultural
indígena. A corrente mais identificadora da evolução desses sistemas
no século XX é a da apropriação gradual e com carisma diferente
das culturas dos sistemas popular e indígena por parte das culturas
50 ANA PIZARRO
eruditas. Existem diferentes modos de circulação interna desses
discursos, alguns são mais fechados, outros diretamente abertos à
mudança. Marta Traba nos anos setenta já falava de áreas abertas e
áreas fechadas na caracterização de nossas culturas. As áreas mais
marcadas por culturas indígenas são mais relutantes à mudança,
chamados por Darcy Ribeiro de “povos testemunhas”. Mas os
sistemas culturais estão sempre em movimento, eles experimentam
permanentemente a transformação.
Seu direcionamento histórico revela uma incorporação gradativa
do popular, uma subversão de conteúdos míticos, visões de mundo,
linguagens do sistema erudito a partir do sistema popular e indígena
que toma diferentes formatos, mas constitui um movimento central
na conformação desses discursos. Digo “central” porque existem
outros movimentos em diferentes direções que constroem o discurso
da literatura e a literatura no continente.
O discurso de Nicanor Parra entra nessa vertente. A incorporação
do popular em uma perspectiva de mundo necessariamente erudita
mostra muitas nuances e, em particular, a dos códigos do mundo
popular chileno. Isso tudo, desde um sujeito de olhar perspicaz:
O VO O DO TUKUI 51
Aqui a perspectiva do país, construída em um verso de La
Araucana de Alonso de Ercilla36, poema épico fundador, como
qualquer nação que se orgulha disso, é de uma fazenda. Em outras
palavras, é o poder da oligarquia latifundiária, é a desigualdade, é
o dinheiro, com vista para o mar. Isso gera uma associação com a
expressão da publicidade imobiliária que aumenta o valor devido
à sua localização. Para depois terminar com a publicidade de um
negócio de bairro com fundo autoritário de único dono do país. Essa é
a linguagem de Parra, linguagem de ecos, de suspeitas, de insolências,
das quais surgem também e, evidentemente, seu encanto.
O pano de fundo huidobriano é claro, como o de Duchamp e as
vanguardas históricas com seu viés de confronto. Trata-se de um
sujeito que descrê e olha a realidade de lado, destacando também
seus horrores, mas com o sorriso um tanto irônico de sociedades que
precisaram forjar suas próprias linguagens diante de sua história e
de sua realidade atual.
52 ANA PIZARRO
COLONIALIDADE. OBSERVAÇÕES SOBRE
A CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS
O VO O DO TUKUI 53
suas exclusões e formas de adequação social. O discurso com uma
dinâmica interna, como assinalava Michel Foucault, em sua clássica
conferência de ingresso ao Collège de France em 1970. O discurso,
também, como espaço de luta e objeto em disputa.
54 ANA PIZARRO
Essa ordem excludente imposta, desde o exterior, conduz o
discurso a um movimento interno, a reconstruir-se, a remodelar-se.
Ela pode ser considerada como entidade em movimento que reage,
incorpora e se constrói. Ainda mais por estar situada em espaços de
história colonial.
Sabemos que a colônia age como instância de dominação de
um território sobre outro, tal como tem sido descrito nos trabalhos
de Immanuel Wallerstein e, em especial, de Aníbal Quijano sobre
a América Latina. A colonialidade, pensada por esse último autor,
não é a mesma coisa, pois é a prolongação das formas de poder para
além da independência formal. É a estrutura de poder, cujo centro
está localizado no centro-norte da Europa, após uma sistemática
história de formação do eurocentrismo que se prolonga no novo
padrão de poder mundial; prolongação que alcança todos os níveis
da vida social, incluindo a intersubjetividade:
O VO O DO TUKUI 55
fundamentalmente orais. Ali se originou um campo de conflito,
tensionado pela hegemonia da forma européia escrita e a submissão
da expressão indígena, devido à nova ordem social que se instala.
Como sabemos, os discursos indígenas continuam existindo como tais
em áreas de sobrevivência que têm permitido sua continuidade até
hoje, eminentemente no âmbito popular, e algo similar tem ocorrido
com outras formas culturais dominadas, associadas ao mundo afro-
americano, resultante da escravidão. Nesse caso, a persistência, ainda
que forte, foi menor pelas condições históricas do transplante, que
deixou no lugar de origem a memória histórica situada, como é o caso,
nas culturas orais, entre os anciãos. As oralidades (afro)subsistentes e
as que foram geradas aqui também iriam constituir parte do popular
como âmbito de subalternidade.
Pois bem, nesse campo de tensões, evidentemente, a letra e a
“cidade letrada” [alusão a livro de Ángel Rama] impuseram sua ordem
discursiva em nível continental, mas o espaço hegemônico que foi
delimitado por elas foi e é sempre subvertido pelas formas das línguas
e dos pensamentos dos povos dominados, como tem sido estudado
por Martin Lienhard, no mundo quechua, e Serge Gruzinski, no
caso da arte mesoamericana. Uma disposição semelhante pode ser
encontrada entre os crioulos negros e brancos desde o período da
conquista até os dias atuais. Apreciável por meio dos textos literários,
essa disposição anti-hegemônica foi gradativamente constituindo
o próprio texto erudito continental em sua particularidade. No
entanto, surge de uma complexidade maior do que a sugerida pelas
interpretações “matriciais” da cultura latino-americana, ou seja,
aquelas que fazem nossas culturas remontarem às matrizes indígenas,
56 ANA PIZARRO
europeias e africanas e suas combinações. Por um lado, porque essas
culturas apresentam uma pluralidade maior do que se pensa em
termos de díades e em desenvolvimento linear. Pluralidade associada
a uma multiplicidade e multidirecionalidade de fluxos culturais que,
de fato, atualmente estão aumentando, manifestando-se em seus
cruzamentos e hibridizações. Por outro lado, porque hoje é evidente
que essa pluralidade não vem determinada pelo pertencimento
“étnico”, mas também por outros horizontes de identificação cultural
que se abrem, se visibilizam e se tornam operantes. Identidades
e processos subalternos tendem a reforçar a direção da nossa
literatura em seu sentido anti-hegemônico e anticolonial, tornando
as operações mais complexas em um âmbito de natureza diversa
sobre o qual nos deteremos.
Assim, quando se fala em literatura e, principalmente, literatura
latino-americana, é necessário considerá-la a partir de uma
espessura constitutiva que transcende e altera o caráter erudito
que habitualmente lhe é atribuído. Como já afirmei em publicações
anteriores, considero o conjunto de sistemas literários que constituem
os discursos estéticos da palavra: o erudito, o popular (rural e urbano)
e o indígena, acrescentando e intervindo neles um sistema popular
midiático que exige outros olhares. Cada um tem seu emissor, seu
público receptor, seus intermediários e participa de uma estética
própria, na qual os três estão imersos, ou seja, cada sistema possui
uma estética singular. Esses sistemas estão superpostos: são
produzidos discursos estéticos tanto na literatura erudita (escrita,
impressa e em línguas metropolitanas), como na popular (oral e
escrita, publicada de forma artesanal em geral; às vezes musicalizada)
O VO O DO TUKUI 57
e nas literaturas indígenas, geralmente orais, atualmente em grande
processo de publicação pelos mesmos emissores (a criação, nesse
caso, é muito mais social que individual). Essa pluralidade de sistemas
está relacionada com a formação histórica da nossa literatura, com seu
discurso surgido em condições de colonização, com a fragmentação
sociocultural que ela impõe.
Mas também, em segundo lugar, esses sistemas interagem entre
si, desde diferentes lugares de enunciação, relacionados a diferentes
experiências de colonialidade, bem como a posicionamentos
diferenciados.
O discurso, entendido como “aquilo por que e por meio do
que se luta, aquele poder de quem quer muito tornar-se dono de
si”, deixa o rastro dessas batalhas em seu cerco da escrita. Nesse
sentido, apesar de poder diferenciar os sistemas que organizam
nossas literaturas, cabe assumir diante delas perspectivas mais
complexas e abrangentes, abertas a reconhecer tanto suas interações
recíprocas quanto as alteridades e diferenças emergentes que também
lhe são constitutivas, em outras palavras, cabe transcender visões
claramente étnicas ou baseadas na estratificação social, a fim de
integrar os fluxos e interações culturais em novas perspectivas de
globalização, modernização e midiatização. Embora seja certamente
importante não deixar de se perguntar de que maneira tais fluxos,
interações e processos se articulam às configurações grosseiras
que particularizam e orientam nossa literatura continental em sua
colonialidade constitutiva.
Antes de retomar as considerações precedentes, as ilustrarei
abordando a obra de três escritores que hoje já mostraram uma
58 ANA PIZARRO
continuidade em sua produção. Dois deles são do Caribe, hispano-
falante e anglófono, ou seja, do norte da América do Sul, onde a
pluralidade é muito notória; e um terceiro, que é do Chile, no sul do
continente, que se apresentou ou, pelo menos, é assim que se quis
ver, como um espaço com um tom mais homogêneo.
Esses autores são o chileno Pedro Lemebel, a porto-riquenha Ana
Lydia Vega e o jamaicano Linton Kwesi Johnson.
Para começar, abordo um fragmento de Pedro Lemebel, um autor
que tem um grande público, que é atraído por uma escrita bastante
surpreendente a respeito do que era considerado canônico nos anos
1970.
Ele é um autor expressivo da mudança típica da modernidade
tardia. O autor fala, por um lado, do sujeito homossexual, para nos
fazer compartilhar sedutoramente esse universo em sua ternura e
humanidade, e, por outro lado, do sujeito homossexual de setores
populares e mestiços. Quais são as diferenças? E por quê? Quais são os
mecanismos, as estratégias de Lemebel ao construir sua enunciação?
Escutemos primeiramente sua voz, que aqui toma forma de crônica,
como em boa parte de sua produção literária.
O tema do texto está relacionado a um fenômeno social da
mudança do século que paira, acima de tudo, na comunidade
homossexual: a AIDS. Vou traduzir os termos populares, com sua
carga de desvalorização e ironia a uma terminologia acadêmica,
porque me interessa seu destaque. Diz assim:
O VO O DO TUKUI 59
são abertas inesperadamente, papéis e remédios
são jogados no chão. E há sempre o intruso que
ajuda a pegar, perguntando: Para que serve o
certificado médico e as pílulas? E estas seringas,
gata? Não me diga que você é uma viciada.
Nestes lugares, onde se aninha com fugacidade
a juerga coliza [homossexual]: organizações de
prevenção, movimentos políticos reivindicatórios,
eventos culturais, desfiles de moda, salões de
cabeleireiro e discotecas, nunca falta a indireta,
a talla [a piada], o conchazo [a piada violenta]
que alardeia com alaraco [voz exagerada] a
palidez repentina da amiga que está entrando.
Seu sarcoma parece ótimo, minha linda! Assim,
os doentes são confundidos com os saudáveis, e o
estigma aidético passa por uma cotidianidade de
clube, através de uma familiaridade compinche
[amistosa] que frivoliza o drama. E esta forma de
lidar com a epidemia parece ser o melhor antídoto
para a depressão e a solidão, que é, em última
instância, o que acaba destruindo os infectados
(Pedro Lemebel).37
60 ANA PIZARRO
O exercício retórico aponta para a sedução, aquele que fala desde
uma situação de enunciação performática que, desde já, tem muito
de kitsch e está permanentemente levando essa situação ao limite. O
autor começou o exercício performático durante a ditadura chilena,
nos anos 1980, quando, junto com o escritor e artista Francisco Casas,
constituiu um coletivo de arte chamado “As Éguas do Apocalipse”.
Eles se manifestavam em lugares públicos com gestos disruptivos. O
Chile é um país muito conservador, portanto o efeito era forte. Mas,
para o público da época da ditadura — um público silenciosamente
crítico —, essa atitude disruptiva, que apareceu fundamentalmente
na dimensão de gênero, foi muito mais longe e produziu um efeito
politicamente libertador após o primeiro impacto. A partir dos anos
1990, com a incipiente democratização política, Lemebel passou a
publicar crônicas, depois compilações e uma narrativa que fez muito
sucesso de crítica e vendas.
O tapa de felino acuado que articula sua escrita dá lugar ao
confronto com impudência, ao giro irônico, ao golpe com a sedução
performativa, ao humor permanente, muitas vezes negro, que
flexiona sua voz.
Há muito mais do que posicionamento de gênero, há a resposta a
uma agressão do meio chileno, ícone do consumo, do individualismo,
do neoliberalismo imposto a sangue e fogo pela ditadura e nunca
mais questionado pelo establishment.
Numa análise acurada, o crítico Leônidas Morales aponta:
O VO O DO TUKUI 61
destinadas a instalar uma verdade que nega a
legitimidade da ordem das coisas (a do presente
e seu cotidiano) regida, a partir da mediação do
subdesenvolvimento e da história específica chilena,
por meio do paradigma da globalização, e coloca
à luz o que não diz, esconde ou manipula. O que,
em Lemebel, supõe-se assumir o controle daquelas
áreas do espaço social e cultural do presente
obscurecidas ou silenciadas pelo poder.
62 ANA PIZARRO
Caribe, onde emergem vozes tão potentes como as de Maryse Condé
na região francófona ou Jamaica Kincaid na anglófona.
Mas o surgimento é vasto, de modo que não apela mais tanto ao
gênero, que evidentemente pesa em temas e estruturas, como em
esquetes anteriores, mas à qualidade de sua instalação no espaço
canônico do literário. Ana Lydia Vega forma parte dessas novas vozes.
Quero observar um texto bastante conhecido de Vega, com alguns
elementos que nos interessam destacar por meio da perspectiva de
pluralidade que estou sustentando. O fragmento pertence ao conto
intitulado Pollito chicken [Chicken franguinho].38 Nele, a autora relata
a história de uma porto-riquenha, Susana Bermúdez, e seu retorno,
após dez anos nos Estados Unidos, a Porto Rico. O conto começa
assim:
O VO O DO TUKUI 63
Tive realmente momentos maravilhosos, disse
Suzie Bermiúdez a seu chefe assim que colocou
um salto alto de bico fino no escritório. San Juan é
maravilhoso, corroborou o chefe com uma inflexão
benevolente, reprimindo ferozmente sua vontade
de acrescentar: e eu me pergunto por que vocês,
Saltões, não ficam em casa e se divertem. Tudo
isso nos coloca no lugar certo para contar sobre o
retorno surpresa de Suzie Bermiúdez à sua terra
natal após dez anos de luta incansável (A.L.Vega,
Pollito chicken).
64 ANA PIZARRO
e temporária uma posse norte-americana. Definir
a identidade porto-riquenha em função de uma
identidade cultural caribenha mais ampla,
contudo, implica confrontar-se com um problema
que tem ocupado a inteligência e a imaginação
de praticamente todos os grandes escritores
caribenhos, desde Cuba até Trindade, há, pelo
menos, um século: trata-se da questão da unidade
ou multiplicidade da região caribenha. Com efeito,
a própria identidade cultural do Caribe, assim como
sua integridade regional, estão em questionamento
e suscitam profundos problemas de epistemologia
sociológica.
O VO O DO TUKUI 65
aqui uma afirmação e uma posição sobre a escrita da história. No
grande debate que surgiu ao longo do século 1920 sobre essa questão,
Vega propõe uma leitura a partir da subalternidade, ou seja, da classe
média baixa e dos setores populares, de mulheres, de latinos.
Ana Lydia Vega, assim como Lemebel, escreve crônicas, gênero
que parece confortável para os escritores atuais e que dá conta de
um interesse testemunhal em relação ao presente. Mas os autores
escrevem também contos e outros tipos de narrativas, em que
constroem uma linguagem própria, assim como um modo diferente
de encarar a denúncia política e de gênero, com complexidade, humor
e sátira. A virada da linguagem também aponta, como dissemos, para
a performatividade como estratégia de intervenção na situação de
enunciação.
Agora, em terceiro lugar, observo uma expressão poética própria
do Caribe anglófono que atualmente tem um desenvolvimento
significativo. Trata-se da poesia dub. Sabemos o que é o movimento
rastafari na Jamaica e sua expressão musical no reggae. A poesia dub
está diretamente relacionada com isso.
É um movimento poético importante que coleta os problemas
sociais do mundo popular e da injustiça em geral. Como assinala
o crítico Arnaldo Valero, sintetizando a questão, “em sua busca
estética, a rua adquire uma relevância primordial, pois a poesia dub
tem comunicado todo o ressentimento que desemboca no distúrbio”.
Relacionada ao reggae e emergindo do mundo negro, é uma poesia
que guarda dimensões da ritualidade própria dessa cultura.
Incorpora a história e o presente das situações de racismo e
preconceito e o canta, grita-o ou o recita. Como nos casos anteriores,
66 ANA PIZARRO
sua presença é performativa. É preciso ouvi-lo, mas tomaremos como
exemplo um texto de um de seus autores clássicos, Linton Kwesi
Johnson, cujas leituras e performances foram feitas até mesmo no
teatro Olympia de Paris, ou seja, diante de um público massivo.
A recepção desse tipo de poesia é ampla e representa uma parte
importante da cultura da Jamaica. Nesse sentido, não podemos
situá-la no campo do “contracultural”, que seria uma expressão
eurocêntrica, na verdade se trata de uma manifestação cultural
própria da periferia. Se nos guiamos por essa noção, toda nossa
cultura é contracultural. Poesia, música e rebeldia aqui ocupam o
espaço de uma única difusão, que é ao mesmo tempo uma expressão
da voz da rua, como se vê em “Inglan is a bitch”:
O VO O DO TUKUI 67
Inglan is a bitch
no baddah try fi hide fram it (…)
(L.K.Johnson )
68 ANA PIZARRO
dia a dia uma modalidade que difere do crioulo
jamaicano, essa criatividade pode ser assimilada,
e tem sido, por boa parte da poesia.
O VO O DO TUKUI 69
amplitude e em suas formas de construção, observando movimentos,
tropismos internos ao jogo dos sistemas literários na literatura
atual, sua configuração em relação a outras literaturas, com outros
contextos, é uma forma de conhecer os mecanismos de elaboração
do discurso.
A configuração dos sistemas literários que mencionamos acima
nos permite observar, atualmente, porque é evidente que existem
conexões entre eles; por um lado, é possível observar qual é a relação
de circulação e interação dos discursos internamente e, por outro
lado, a forma como os fluxos culturais em relação à exterioridade
se inserem e funcionam na construção histórica do discurso latino-
americano e caribenho. Em outras palavras, qual é a direção e a
configuração dessa circulação em discursos que são produto de
uma história colonial na modernidade tardia. Nessa circulação, um
discurso incorpora elementos de outros sistemas que, nos casos do
indígena e do popular, subvertem a estrutura discursiva do erudito, o
sistema mais ocidental, em função tanto da diferença colonial como
de uma diversidade de sujeitos subalternos. O discurso vai, assim,
ressignificando elementos, reorganizando-se o campo semântico e
a estrutura da enunciação.
Nos textos citados, suas presenças são também as de vozes
performáticas: a palavra é acompanhada de gestualidade e
representação, reafirmando, dessa forma, a origem de condição
oral, mas ao mesmo tempo seu pertencimento à atual forma de
modernidade, com a importância do espaço visual e de uma ética da
ação. Mas o mais articulador, nos três casos que observamos, é que
são sujeitos da enunciação que se encarregam da linguagem e do gesto
70 ANA PIZARRO
do mundo popular, agora não apenas em termos de conteúdo, mas na
elaboração de uma enunciação complexa e sofisticada, que exprime
em si mesma uma interpelação que não precisa da panfletagem da
linguagem política, mas elabora criativamente um discurso estético
de alerta ao incorporar diferentes horizontes identitários ligados a
“minorias” culturais.
Existem diferentes modos de circulação interna entre os sistemas
literários, dependendo da área cultural da América Latina em que
estão localizados: alguns são mais fechados, outros diretamente
abertos à mudança. Os sistemas culturais estão sempre em
movimento, eles constantemente passam por transformações, tanto
de fora do sistema quanto em seu movimento interno.
A direção histórica desses fluxos tem revelado uma incorporação
gradual do popular, uma subversão de seus conteúdos míticos, de
visões de mundo sobre as linguagens do sistema iluminista que
toma diferentes formatos e constitui um movimento central na sua
conformação. Esse processo é mais evidente no século XX, em que a
pluralidade é mais definida na América Latina. São os casos clássicos
de Juan Rulfo, José María Arguedas ou Guimarães Rosa, os autores
apontados por Ángel Rama. Eles constroem um discurso a partir
das reelaborações que gera um sistema sobre outro. Atualmente,
já no século XXI, no Caribe, Patrick Chamoiseau ou Derek Walcott
incorporam o seu discurso. O primeiro com a fala popular do Caribe
francófono, o segundo com a voz dos pescadores das ilhas anglófonas
esvaziando-se na enxurrada do discurso ocidental.
Cartas de cidadania, modos de representar o universo popular e
indígena com validez universal. E posso afirmar de forma provisória,
O VO O DO TUKUI 71
já que se trata de um estudo em processo, que essa tendência dos
discursos construídos em espaços de história colonial se reitera,
sobretudo, em outras zonas culturais, como atestam os escritos de
Ahmadou Kourouma, na Costa do Marfim, Tierno Monénembo, na
Guiné, Sony Labou Tansi, no Congo, ou Mia Couto, em Moçambique.
Consequentemente, é possível notar, nesses autores, movimentos
similares do discurso erudito, em que o francês, o inglês e o português
metropolitanos adquiriram uma vida estética diferente.
O que observamos, então, é um movimento de espaços culturais
em permanente reelaboração, cujo traço comum é a incorporação
da expressão oral dos imaginários do sistema popular na construção
do discurso erudito. As transformações históricas têm instalado
a modernidade tardia na América Latina e reúnem as vozes que,
antes localizadas nas estreitas margens da sociedade e da cultura,
hoje falam de um local mais central. A existência dessas operações,
como indiquei anteriormente, são características do século XX, com
um perfil diferente.
Desde o início do século, com os escritores regionalistas, assim
como com as vanguardas, o processo vem ocorrendo com resultados
diversos. Ángel Rama apontou os criadores de uma linguagem imersa
nessas operações durante os anos sessenta. Mas hoje as línguas
têm perfis variados e a perspectiva de pluralidade que as mudanças
históricas trouxeram nos faz ver outros substratos.
Essa direção não é o único fluxo. Existem fluxos externos de
distinta amplitude, diferente origem e que se dão em diferentes
situações de poder; fluxos que são apropriados pelas nossas culturas
em momentos e níveis diferentes, transformando seu impulso.
72 ANA PIZARRO
Evidentemente, o de origem europeia é o de maior potência porque
foi definido politicamente pela colonização. A propósito disso, Rama
abordou a “transculturação”, como sabemos, seguindo Fernando Ortiz.
Entretanto, o estudo de outras áreas culturais do continente americano,
como o Caribe não hispano e a Amazônia, tem nos permitido
perceber diferentes situações. Em parte porque quando falamos de
cultura indígena ou de origem africana, estamos usando a categoria
de unidade a uma realidade múltipla. Não é a mesma coisa falar de
cultura mapuche e da cultura ona, guaraní, tupinambá ou yanomami.
Em outras palavras, o que se considera como elemento único é,
na verdade, um universo múltiplo. Não podemos generalizar como
uma unicidade “africana” a diversidade cultural, e linguística, de
grupos que foram trazidos como escravos.
Sua homogeneização foi se dando nos processos culturais
de reelaboração através do tempo. O mesmo acontece com a
consideração das culturas do mundo europeu: a cultura germânica
não é a mesma que a ibérica ou a grega.
Portanto, onde observamos um único elemento europeu ou
indígena, trata-se, na realidade, de um conjunto de elementos.
Para exemplificar essa situação, faço alusão aos estudos clássicos
de Samuel Benchimol a respeito da pluralidade na formação social
da Amazônia, especialmente brasileira, que mostra a diversidade
das correntes migratórias, bem como sua complexidade interna.
Esse autor aponta uma lista de 1884, em que aparecem 373 tribos,
somente no estado do Amazonas, que falavam centenas de línguas
e dialetos. Quando ele se refere à imigração judaica, ele fala sobre
sua pluralidade cultural:
O VO O DO TUKUI 73
Resumindo: os judeus que vieram habitar e viver na
Amazônia, a partir de 1810, podem ser classificados
e adjetivados em cinco correntes, como segue:
1. os sefarditas expulsos de Portugal, Espanha
e Marrocos, que falavam espanhol, português e
haquitia;
2. os forasteiros nativos do Marrocos, que falavam
árabe e haquitia;
3. os sefarditas de Alsácia e Lorena, de fala francesa
e alemã;
4. os ashkenazitas da Alemanha, Polônia e dos
países da Europa Central, que falavam alemão e
ídiche;
5. os foinquinos do Oriente Médio, que falavam
ladino e Árabe.
No caso dos escritores que abordei, pode-se avaliar
uma complexa dinâmica de fluxos culturais
que conectam a América Latina e o Caribe com
áreas metropolitanas como os Estados Unidos e
a Inglaterra, ou com uma situação de imposição
como a ditadura chilena. Em todos esses casos, a
posição de subordinação continua a direcionar o
popular para o sistema erudito. Mas, em segunda
instância, é muito evidente em todos esses discursos
literários que essa posição de subordinação está
articulada a outras, com destaque à tensão entre a
colonialidade e o gesto descolonizador, disruptivo,
74 ANA PIZARRO
desde o popular, que é também, simultaneamente,
marginal, homosexual, mulher ou imigrante.
Gera-se, assim, uma rede de sistemas literários
em movimento com cruzamentos, rupturas,
sobreposições, constantes assimilações, devido ao
que cabe nos perguntarmos se as leituras matriciais
tradicionais (europeu, indígena, africano) resultam
suficientes hoje para nos explicar o desenvolvimento
dos discursos continentais.
A obra crítica de Rama foi uma das maiores do século XX, pois
deu-nos as linhas para procurar as intrincadas operações de uma
cultura herdada dos processos coloniais, indicando como olhar para
o “cañamazo”40, nas palavras do autor, da nossa cultura. Mas, como
observo em um artigo recente em que volto ao trabalho dele para
entender sua localização no desenvolvimento do conhecimento que
nos corresponde, o grande intelectual latino-americano pertence
a um período de profundas transformações no final de sua vida;
transformações que determinam mudanças tanto na cultura como
na nossa maneira de entendê-la. Ángel Rama morreu em 1983. Nas
reuniões de análise historiográfica da literatura latino-americana, ele
limitou a observação aos anos sessenta. Não havia condições para
analisar o presente. Efetivamente, estávamos situados no ponto de
inflexão em que a modernidade transitava para sua etapa tardia.
O VO O DO TUKUI 75
O pensamento de Rama pertence a esse momento, ao vértice em
que a modernidade passa a uma etapa diferente. Daí o título do
artigo que busquei: “Ángel Rama: um pensamento no vértice”. Há
nele pensamentos e desenvolvimentos que pertencem a ambos os
momentos da evolução da sociedade e do pensamento.
No desenvolvimento da tese de Fernando Ortiz, como “fases do
processo de transição de uma cultura a outra”, em que há perdas
parciais (desculturas) e criação (neoculturas) (Ortiz), a mudança se
dá sobre “a herança particular” assim como sobre “as contribuições
provenientes de fora”, de acordo com a análise de Rama. O crítico
uruguaio especifica:
76 ANA PIZARRO
citado por Rama, aponta o termo transculturação como a “passagem
de uma cultura para outra”.
Esse conceito tem sido muito considerado e produtivo nos estudos
da cultura latino-americana. No entanto, a abertura à pluralidade que
a passagem para a modernidade tardia significou no desenvolvimento
do pensamento levou-nos a revisitar novamente esse instrumento,
que, para o momento em que se instalou no pensamento crítico, era
fundamental. Isso nos leva a perceber uma certa linearidade, como
apontamos, e uma certa singularidade na lógica desse pensamento,
apesar de ser uma das maiores conquistas teóricas nos estudos da
cultura latino-americana.
A operação nos parece ser um dos mecanismos que faz parte
de um processo muito maior, muito mais geral, diríamos, cuja
complexidade, colocada em evidência pelo desenvolvimento do
conhecimento atual, exige um novo olhar. Requer um olhar mais
rizomático e múltiplo para uma estrutura cultural cujos elementos
constituem mais do que uma concatenação, uma estrutura densa.
Nela se convergem, se deslocam, se rejeitam, se contradizem, se
cruzam, se invertem, se sobrepõem, se selecionam, se reelaboram
em cadeia e em movimentos paralelos, no mesmo momento ou ao
longo do tempo. Eles desembocam não em uma cultura específica,
uma instância final, mas num emaranhado de formas discursivas,
possíveis de serem tipificadas em um momento dado, mas que
formam parte de um movimento de construção, à maneira como o
pensaram os caribenhos Édouard Glissant e Stuart Hall. Partem em
direções diferentes em linhas de fuga, partindo da história como
gatilho para processos de hegemonia, reapropriação e resistência.
O VO O DO TUKUI 77
A perspectiva glissantiana41 da crioulização — como denomina esse
pensador —, “ao encontro, à interferência, ao embate, às harmonias
e desarmonias entre culturas na totalidade executada do mundo-
terra”, parece especialmente fértil na compreensão das dinâmicas
observadas. Principalmente porque questiona de que forma esta afeta
“a troca de línguas escritas e faladas”, apontando que:
A oralidade — essa paixão dos povos que, no século XX,
afloraram a oralidade do mundo, que de vez em quando é escritura
— aparece, antes de nada, nas férteis controvérsias em que
introduz multiplicidade, circularidade, ruminações, acumulação
e de religião. Relações, em suma.
Parece-me que é precisamente nessas relações e movimentos
dos sistemas culturais, seus conteúdos e suas estratégias, em que
podemos observar traços que marcam a literatura e a cultura da
América Latina e do Caribe em sua condição de construção a partir
de uma história colonial que hoje percebemos de forma ainda mais
plural, como uma rede complexa.
78 ANA PIZARRO
II
O VO O DO TUKUI 79
II
NASCEMOS NO MEIO DE PALAVRAS
O VO O DO TUKUI 83
península ibérica e suficientemente forte, com bastante densidade
cultural para marcá-lo. É necessário lembrar que Al-Andalus42 foi
uma sociedade bilíngue, ao menos até os séculos XI ou XII, e que
o último reduto árabe, Granada, foi conquistado pela Espanha
no mesmo ano em que Colombo chegou à América. A profunda
diferença entre as duas línguas deixou sua marca, principalmente
no léxico, de forma que já não diferenciamos quando falamos
de “berenjenas” [beringelas], “almohada” [almofadas] ou “alelí”
[planta da família Cruciferous], quando dizemos “ojalá” [oxalá].
Assim foi como na América recebemos um espanhol recentemente
enriquecido por uma história cultural de densidade histórica, de
tensão e de mistura.
Essa informação é importante porque o espanhol, como acontece
com outras línguas, é um processo, um movimento. A língua vai se
configurando numa dinâmica incerta na história da sociedade em
que se inscreve. Ela a expressa e a constrói.
Por isso, o espanhol passa a ser uma das ferramentas da
colonização da América, junto com a cruz e a espada. O espanhol é
imposto como língua contra as línguas indígenas e até recentemente
em escolas rurais da Colômbia, da Venezuela, do Peru ou do Chile, as
crianças que falavam em suas línguas nativas eram punidas. Em outras
palavras, nesse caso a função do espanhol é uma função repressiva,
colonial. Mas também foi apropriado na América para inverter o seu
signo e na boca do seu povo tornou-se libertador: “Chile acordou”,
84 ANA PIZARRO
dizem os lemas nos protestos do país. “Devuelvan el awa43”, em que
o w marca a diferença, a alternatividade do gesto.
Na Amazônia, a ocupação do território é milenar e, quando chega
o conquistador europeu, em 1542, seus fantasmas o enganam — ele
está saindo do aterrorizante universo do imaginário medieval e
renascentista, com os temores do absolutismo e da Inquisição: o que
ele chama de “amazonas” nada mais é do que o importante papel das
mulheres na guerra e na vida das populações, de origem matriarcal.
Em muitas comunidades indígenas, a origem de tudo é “a avó do
mundo”. É verdade que chegou com o peso histórico de sua cultura
e até lá, pulando a Idade Média, chegaram as amazonas do mundo
helênico, do mundo antigo em geral e, segundo historiadores, sua
origem é persa. As comunidades apresentam uma tendência plural,
heterogênea, o caboclo hoje é uma mistura. Hoje, na Pan-Amazônia,
considera-se que há uma população de 23 a 27 — as cifras variam
— milhões de pessoas, enquanto o universo indígena é de três. Os
fluxos culturais afro-americanos — os quilombolas —, assim como
os de múltiplas origens (recordemos a presença de holandeses,
franceses e correntes migratórias judias, árabes, entre tantas outras,
na parte brasileira) dão à região seu aspecto múltiplo num processo
intercultural complexo. Por isso, o uso das línguas deve ter uma
finalidade comunicativa, a articulação de um grupo diversificado
cujas culturas e sociedades têm tido historicamente uma articulação
comum, já desde a colonização, e com uma comunicação anterior a
O VO O DO TUKUI 85
esta. Por essa razão, o papel do ensino das línguas metropolitanas
precisa ter clara a função de abrir perspectivas de comunicação em
sociedades que estão marcadas pela pluralidade étnica e cultural.
Dizemos frequentemente “o” espanhol e “o” indígena quando
falamos de nossa história. Porém, como foi assinalado, essa origem
é uma falácia. As culturas indígenas são múltiplas e diversas, assim
como suas línguas. Dizemos “a” cultura africana que foi trazida com
a escravidão, contudo não se trata de uma, mas sim de culturas de
diversas origens que não falam, em absoluto, as mesmas línguas e que
começam a se entender a golpe de tambor para configurar linguagens
comuns, linguagens alternativas à original que se vão delineando na
imprevisível via de uma nova em que a variante metropolitana do
senhor de terras se vê subvertida por tradições, vidas e experiências
que não conhecia e não estavam em sua formulação original. Com
essa reivindicação surge no Caribe francês, por exemplo, o Manifeste
de la creolité. Assim o espanhol se torna uma língua própria da
América em sua diversidade de experiências históricas: espanhol
do Chile, da Colômbia, da Venezuela. Todos diferentes e um só ao
mesmo tempo.
Nessa diversidade, assim como com uma enorme e fundamental
poesia e narrativa oral, a Amazônia chegou a ter grandes escritores
em línguas metropolitanas reconstruídas. Basta lembrar Euclides da
Cunha no Brasil, com uma série de artigos publicados postumamente
com o título de A Margem da História. Como também José Eustasio
Rivera, na Colômbia, com La Vorágine, entre os clássicos do espanhol
nessa área. O grande texto da literatura brasileira, Macunaíma, de
1928, foi escrito pelo grande paulista Mário de Andrade, contudo
86 ANA PIZARRO
seu tema é o mundo indígena. A Amazônia fala dela desde dentro,
se escreve dela desde fora, e inclusive se escreve por referência e
sem conhecimento direto, como é o caso de A jangada, texto de
Júlio Verne. Escrevem sobre ela os que a habitam, os que passam
por ela, os que sabem dela desde longe: é um centro inesgotável
de narrativas, de imaginário, de energia estética. Hoje se destaca, é
claro, o narrador Márcio Souza, que abordou, em diversos textos, a
história da região, entre os quais se situam Mad María, ou Galvez,
o imperador do Acre. Também tem circulado em nível internacional
a obra de Milton Hatoum, que trata do mundo amazônico desde a
perspectiva da migração árabe. Pensando na Pan-Amazônia de hoje,
na Colômbia, está o olhar renovador de William Ospina com sua
trilogia histórica sobre o rio, onde a primeira novela é a premiada
internacionalmente El país de la canela. Também emergem de sua
energia criativa grandes poetas, como J. J. Paes Loureiro, em Belém;
Thiago de Melo, em Manaus; na Colômbia, o clássico León de Greiff;
na Venezuela, Eugenio Montejo e Márgara Russotto, assim como
tantos outros. As línguas de origem metropolitana, tanto o espanhol
como o português, configuraram uma forma própria de dizer e, com
isso, uma grande literatura com seus próprios clássicos: Mistral,
Neruda, Borges, Rulfo, hoje Lemebel ou Margo Glantz.
Parecia que a distância entre as culturas europeia e vernácula
era absoluta no sistema colonial, porém nossos povos foram se
apropriando da língua metropolitana e modulando sua diversidade,
incorporando suas estruturas sintáticas para subvertê-las,
enriquecendo seu léxico a partir de materialidades diversas — e
O VO O DO TUKUI 87
falaram de chaya44, de chocolate, de mingaco45. De seus modos de
sentir, disseram, então: “aquí mismito” [“aqui mesminho”], “mi
huachita”46, disseram “qué guayabo”47, chamo” [criança], disseram
“ahoritica” [agora mesmo]. Trata-se de uma apropriação do espanhol,
em termos sintáticos, dando lugar a outras visões de mundo; núcleos
de significação mítica ou mágica, que modelam e continuam a
modelar a língua peninsular em seu caráter de instituição que
autoriza. Assim foi se constituindo uma diversidade linguística que
implica a evidência de subculturas na América e, desse modo, falamos
das diferentes apropriações quando denominamos “o espanhol do
Chile”, “o espanhol do Peru”, o “da Colômbia”, o “de Cuba”, etc.
No Chile, no final do século XIX, em um texto de La Lira Popular48
— a poesia de cordel, que relata sucessos variados: fuzilamentos,
relatos de amor, eróticos ou religiosos —, um poeta popular incorpora
a linguagem da região ao escrever uma homenagem ao nascimento
de Jesus. É José Hipólito Cordero que descreve os presentes para
o menino e diz:
88 ANA PIZARRO
Me interné en la cordillera
para traerle un guanaco,
y de peces de agua dulce
traje un canasto y un saco
le traje una guitarrita
para que al niño Dios
le cante una tonadita
(“Versitos del nacimiento
del niño Dios”)
O VO O DO TUKUI 89
mas em sua própria estruturação. Assim, lemos em um mestiço que
se afirma como tal, como José María Arguedas, o seguinte parágrafo
em sua construção simbólica:
O rio, por um lado, sua força, sua liberdade e, por outro, aquilo
que pretende subjugá-lo. É, evidentemente, Arguedas, em uma
imagem magnífica. Por um lado, pela relação assimétrica entre as
duas culturas. Por outro, pela vivência do rio como uma entidade
viva, irmã, que se retorce em sua grandeza, rompe-se, defende-se.
É a outra maneira de ver o mundo. É a unidade fundamental, no
homem da sociedade tradicional, tanto da ordem físico-natural como
da ordem espiritual ou histórica, como aponta Stefano Varese. A
relação indígena e seu ethos em relação ao mundo, que estrutura o
dizer. O mundo do tecido, não o do corte.
Mas estamos nos referindo a apenas alguns elementos —
plurais, decerto — e seu funcionamento na complexidade da língua
90 ANA PIZARRO
espanhola. O processo da língua, que é o processo da cultura na
América Latina, na parte hispânica é de uma complexidade muito
maior. Porque não se trata de duas culturas, trata-se de uma que já
incorporou outras regiões culturais, como o mundo árabe, e se trata,
por sua vez, não de uma só língua, ainda que central, mas de muitas
que vão chegando com as aparições repentinas e os processos de
imigração múltiplos na América ao longo dos séculos XIX, XX e
XXI. Tampouco se trata só das culturas indígenas, que, aliás, são
centenas. É fundamental, dependendo do setor da América Latina
e do Caribe, destacar o jogo das culturas e línguas africanas, também
estas, aliás, em atrito com as indígenas. Um jogo óbvio no imaginário
popular da Amazônia, em uma construção cujo esteticismo fortalece
a identidade, “em um mundo” — escreve Paes Loureiro - “em que
os deuses ainda não estão ausentes”, onde “não há desterro do
numinoso”. Tudo isso em paralelo, como é o nosso próprio mundo,
ao desenvolvimento da razão tecnológica e especulativa típicas da
razão ocidental de hoje.
Em outras palavras, o processo intercultural na América Latina
é extremamente complexo e configura um processo múltiplo.
Acredito, como venho apontando há algum tempo, que a noção de
transculturação que Ángel Rama desenvolveu tão oportunamente
foi muito importante na época, mas o desenvolvimento histórico do
pensamento mostrou que é insuficiente.
A noção de heterogeneidade, cunhada por Cornejo Polar,
também é iluminadora para visualizar o conjunto, mas também não
é suficiente, porque é mais característica do Peru e de países onde o
mundo indígena tem maior peso do que outras culturas.
O VO O DO TUKUI 91
Parece-me que esse desenvolvimento histórico do pensamento
diversificou sua matriz, porque a história nos mostrou uma maior
complexidade da sociedade, suas aspirações, seus problemas, sua
relação com o mundo, mas também nossos erros como historiadores
ao separar a história do homem da história do mundo natural e pensar
que este era imutável. Esse grande erro que nos fez sentir donos de
um universo onde não somos nada mais que uma de suas criaturas.
O percurso da reflexão nas últimas décadas permitiu que nós nos
reposicionássemos na existência do mundo natural e, com isso,
perceber o grande sentido da diversidade e sua riqueza. Não mais
como seus dominadores, mas como seus componentes. Neste exato
momento, no meu país, e eu diria que em outros lugares da América
Latina, ficou evidente a grande encruzilhada na tentativa de sermos
ganhadores, ao invés de sermos solidários, de sermos arrogantes e
não dar lugar à humildade, e em chegar a construir sociedades em
que as desigualdades são abismais, as quais se naturalizaram. A
evolução do pensamento nos abriu as portas para a pluralidade do
mundo e o seu valor.
Isso nos permitiu pensar também nossa cultura de um modo mais
plural. Tratando o sentido da cultura latino-americana, como herança
de nossos professores, deixamos de lado as perigosas modas críticas
que nascem da visão do norte e de suas necessidades, tirando desse
pensamento, criticamente, os elementos que podem ser úteis para
nosso ofício. Assim temos tentado perceber na cultura da América
Latina a articulação interna dessa pluralidade e, ao mesmo tempo,
as variadas formas de relação com outras culturas que ela estabelece
em seu processo. Digo culturas, mas estou me referindo também às
92 ANA PIZARRO
línguas, como sua parte integrante e ao mesmo tempo construtora.
Porque se trata de culturas e línguas sempre em processo de evolução,
de mudança, de adaptação, de trabalho interno de adequação à
história das sociedades das quais formam parte. Tenho uma anedota
pessoal a respeito: minhas netas riem quando digo “pituco” para
alguém pertencente às classes mais privilegiadas, termo que elas não
conhecem. Ainda que eu tenha chegado a dizer “momio” nos anos
1970, como se falava antes do golpe militar, ou “cuico” em algum
momento dos 1980. Porque logo depois meus filhos disseram “paltón”
nos 1990 e elas, minhas netas hoje dizem “zorrón”. Cada termo se
generalizou, foi descartado e substituído. Por quê? Como? Quando?
Onde? Não poderia dizer. É uma questão que tem direta relação com
a história política do país. Assim nascemos entre palavras, vivemos
no curso de sua evolução e morremos entre elas.
O que aponto é, evidentemente, uma mudança entre tantas outras.
Tento usar elementos da complexidade do movimento.
Ao fazer um corte no transcurso do processo cultural, vemos
melhor um emaranhado, não um passo de uma cultura a outra em que
há dois elementos que se unem para formar um terceiro diferente.
Trata-se de uma articulação de elementos múltiplos, como são as
culturas que chegam, seja pela imigração ou outras vias, seja através
da mídia, a partir dos anos oitenta do século passado dentro da
chamada globalização.
Nas nossas análises fica evidente o interesse da minha geração
pelo continente e sua cultura. Tudo começou nos anos sessenta,
quando passamos a olhar para nós mesmos de uma maneira crítica
e, ao mesmo tempo, orgulhosa ao descobrir o próprio, o que o
O VO O DO TUKUI 93
continente tem de único e suas potencialidades. Nasceu assim o
ensaio, foi assim que vimos a narrativa desdobrar-se em esplendor, no
mesmo momento em que as nossas sociedades assumiam o controle,
soltando-se do peso da colonialidade que arrastavam e moviam
perante o olhar escondido daqueles de quem desconfiavam. A ideia
de América Latina evoluiu sem deixar de ser ela mesma, até que
percebemos a diversidade que a articulava. Fizemos esse trajeto com
leituras e, ao mesmo tempo, em contato permanente com o universo
material que nos rodeava, assim também com a imersão na política
de ideias. É por isso que consideramos em nossa análise a maneira
como os tons dos comportamentos sociais se inserem na linguagem
e na cultura, como as palavras e os elementos da cultura incorporam
uma perspectiva da história, nos textos, nos gestos, no não dito.
Temas ou sujeitos que têm sido objeto de ficção, personagens
históricos ou fictícios que pertencem a esferas da cultura midiática,
temas de cultura popular não urbana. Isso nos levou a reconsiderar
a noção herdada de literatura, e nos levou a incorporar nela sistemas
diversificados, sempre num processo em evolução.
A incorporação ao estudo da crítica da chamada “literatura de
cordel” — folhetos, lira popular, literatura de “colportage” na França,
com denominação própria também na Irlanda, Holanda no século XV
e Alemanha, onde circulou até o começo do século XX e atravessou
o mar com os imigrantes, significou repensar a noção de literatura
com que temos operado tradicionalmente. Consequentemente, ela
nos apresentou pesquisadores em outras formas de narrar, misturar
gêneros, ver e vivenciar a realidade. Percebe-se, dessa forma, que
a noção de literatura referente a documentos escritos em gêneros
94 ANA PIZARRO
tradicionais, publicados em editoras e vendidos em livrarias, não é
suficiente. Percebemos que, tanto quanto nas chamadas “literaturas
indígenas” como na oralidade, havia outra relação entre o objeto
estético e o público. Percebemos que, ao contrário do autor-escritor,
o narrador realiza uma tarefa performativa que precisa captar o
interesse total do público, além do que acontece ao seu redor, e,
portanto, exercer um desperdício de energia para estabelecer empatia
com os telespectadores. A experiência da recepção nos obrigou a ter
consciência da existência de diferentes vias de expressão, literária
e cultural, e a aceitar que a estética não é uma, mas que é plural e
se relaciona com grupos humanos. Assim devemos reformular a
noção de literatura, situados no caso de nosso continente, onde o
fenômeno é atual, e ainda mais no Brasil, onde é contemporâneo, e
considerar que na noção de literatura existem sistemas diferenciados
com distintos emissores, distintos objetos estéticos e diferentes
públicos, que são sensíveis a estéticas diversas. Assim chegamos a
distinguir, como muito assinalamos, o sistema erudito, composto por
setores da elite, que no nosso continente são os que leem e podem
comprar livros; um sistema popular, que é oral ou tem publicações em
brochuras e de forma artesanal; e um sistema indígena que, além de
algumas publicações feitas por intermediários, em geral antropólogos
ou historiadores, as mais referidas na época da conquista, é um
sistema oral. É necessário observar que nesse momento, em vários
países do continente, o mundo indígena começa a ter poetas que se
comunicam com o público em línguas metropolitanas, reivindicando
sua cultura própria. Há entre eles poetas de grande valor. Penso,
entretanto, que atualmente se constituiu um quarto sistema, com o
O VO O DO TUKUI 95
auge dos meios de comunicação, com a comunicação do rádio como
antecedente, mas agora não é o caso de falar disso.
Nosso olhar pertence àqueles para quem abandonamos o
pensamento filológico purista, o estruturalismo seco e passamos a
incorporar a história, o olhar sociológico ou antropológico até chegar
a uma reflexão em que, situados a partir do texto, as disciplinas se
cruzam na pluralidade de seus saberes. Isso na convicção de que a
realidade, e principalmente em nosso objeto de estudo, em nosso
continente devido à sua condição de cultura periférica, é necessário
cercá-la de diferentes saberes. Até porque o pensamento racional
herdado, que tem sido o da nossa formação ocidental, desprovido
de outras dimensões como as dimensões sensoriais ou afetivas,
não gerou conhecimentos suficientes sobre a natureza e o futuro
do ser humano e das nossas sociedades. Isso nos levou a pensar no
desenvolvimento das culturas latino-americanas como uma estrutura,
não em um sentido linear, mas em espessura.
Nessa estrutura existem múltiplos elementos que se articulam
entre si. Alguns têm maior peso por sua história, por sua própria
solidez, pelo momento em que se interseccionam, pela sua situação
no esquema do poder político, pela velocidade em que o fazem,
entre tantas outras variáveis. É o caso de espanhóis e portugueses,
no nosso continente. Não é o caso, por exemplo, dos franceses
ou dos holandeses, que também estiveram presentes na época da
colonização. Sua esfera é restrita. Porém, no caso da cultura e da
língua francesa, ela adquire maior peso nas relações com a América,
sobretudo por ser uma referência cultural obrigatória na Europa. Ou
o caso do inglês, cujo peso cultural e linguístico é inevitável dada sua
96 ANA PIZARRO
posição política e seu caráter hegemônico em relação com a América
Latina e suas línguas. Na configuração em forma de espessura,
portanto, existem linhas, correntes de significados diferentes. O
espanhol tem um espaço central em mais da metade do continente,
pois na apropriação que as áreas culturais que o compõem têm feito,
lhe cabe a responsabilidade de mediador. Não o dizemos no sentido
imperial da antiga hispanidade, mas no sentido contemporâneo
de sua capacidade de vincular, em sua variedade interna, as áreas
culturais do continente e do mundo.
Nesse sentido, falamos de diversos fluxos culturais, que
constituem uma rede em movimento, em permanente mudança.
Os fluxos são parcial ou totalmente integrados em unidades
duplas ou múltiplas; se sobrepõem, se anulam, se intensificam, se
acrescentam e são direcionados em diferentes orientações, em um
desenvolvimento de novas configurações e linhas de fuga. Eles se
tornam oralidade, escritura, gesto, movimento, canto: transformam-
se em fala, expressam-se em língua. Assim vemos, em grandes linhas,
o complexo processo da língua espanhola na América, seus modos de
transformação e as funções que vai desempenhando no tempo. Nesse
processo, que desconhecemos no início, é que nos vão envolvendo
as palavras. No meio delas começamos, com elas nos despedimos.
O VO O DO TUKUI 97
TITUBA E KEHINDE: A LÍNGUA,
A ESCUTA, O OLHAR
O VO O DO TUKUI 99
Do mesmo modo como a primeira escuta transforma
o ruído em indício, a segunda escuta metamorfoseia
o homem em sujeito dual: a interpelação conduz
a uma interlocução, na qual o silêncio do que
escuta será tão ativo como a palavra do locutor:
poderíamos dizer a escuta fala: é nesse estágio (seja
histórico seja estrutural) que intervém a escuta
psicanalítica.
O VO O DO TUKUI 101
final do conflito, que nos impulsiona a seguir o trajeto com rapidez
até terminar. Há outros nos quais muitas vezes já conhecemos “a
morte anunciada”, mas cuja magnificência está na construção da
enunciação, na lentidão, na espessura. Não nos importa chegar ao
final, nos importa viver intensamente essa construção. São duas
linguagens literárias diferentes, mas são também modos diferentes
de se relacionar com o mundo.
Para o escritor, assim como para o homem mais próximo da
natureza, a palavra não é um utensílio, ela não se usa, ela se habita.
A língua tem para ele o que se chamou de valor de uso, não o
afastamento ou o desgaste do valor de troca. Para além dos jogos de
poder com a ordem do discurso e também por meio dele, a linguagem
nos identifica com o mundo e nos identifica com nós mesmos diante
dele. Em relação a isso, lembro-me da história de um linguista, José
Ribamar Bessa Freire. Ele traz o relato de alguns pesquisadores que
iam entrevistar o último falante de sua língua, entre as centenas que
desaparecem na Amazônia. Diziam que esse homem morava com
uma família de outro grupo que o havia acolhido, afirmavam que
ele não estava bem da cabeça. Quando chegaram lá, encontraram o
último falante de sua língua e viram em que consistia sua loucura:
ele vivia falando na frente de um espelho.
Detenho-me nesta reflexão para situar pontos de entrada.
A língua, a escuta e o olhar são veículos de relação com o
mundo do escritor e de seus leitores ou ouvintes, quando se trata
da oralidade, e ao mesmo tempo são formas de construir o mundo
dentro de nós mesmos. Dentro dessas linhas de observação, abordei
duas novelas atuais escritas por mulheres: Moi, Tituba sorcière…
O VO O DO TUKUI 103
levantes de escravos e da história de Salvador da Bahia no final do
século XVIII e início do século XIX. No caso de Maryse Condé, é o
clássico relato da queima de bruxas pelos puritanos no que virá a
ser os Estados Unidos, no episódio conhecido como “as bruxas de
Salém”, com o julgamento que leva à condenação, retirado em parte
de documentos históricos da história de Massachusetts do final do
século XVII e início do século XVIII.
Para entrar nesses relatos, seguirei os três caminhos que apontei
ao começo, numa tentativa comparativa, que me leva, em primeiro
lugar, a me aproximar para situar a figura do narrador: “Abena,
minha mãe, foi estuprada por um marinheiro inglês no convés
do Cristo Rei, num dia de 16... enquanto o navio velejava para
Barbados. Foi desta agressão que nasci. A partir deste ato de ódio e
desprezo” (Condé, 1986). Quem é essa narradora que nos lança com
agressividade sua identidade e sua origem? É Tituba, a protagonista
de Maryse Condé, mulher negra e escrava, que será condenada e
encarcerada por bruxaria pela sociedade puritana quando exerce
a medicina tradicional de sua cultura e segue suas crenças. O que
mais me interessa é o gesto que inicia a novela. Na estrutura da
enunciação, o domínio da língua levará, ao longo do relato, a um
segundo discurso por trás da peripécia. Quero destacá-lo. Nesse
caso, nesse gesto que o identifica, pode se observar a instância
secundária do nascimento de quem será a narradora e protagonista,
numa existência relatada como produto de um estupro, a primeira
e violenta informação. Na construção da linguagem narrativa, situa-
se, portanto, primeiramente, a violência e depois a existência da
protagonista. Essa inversão de informações, que não é simplesmente
O VO O DO TUKUI 105
peripécias dos olhares, o que acontece, de fato, é o previsível: no
encontro a humilham e ela se retira. Contudo, há outra linguagem no
olhar da protagonista, que está na descrição do grupo que ela olha
e cuja apreciação é “a pele cor de leite azedo”, que imprime um tom
de desautorização do grupo de mulheres, de desprezo, que inclusive
recai nos “olhos multicoloridos”, que não teriam por que se perceber
assim, mas aparecem inexpressivos e atravessados pela feiura. Jogos
de linguagem, sentido do olhar.
Agora é a escuta a que transforma a situação e a torna ambígua,
é a narradora e a escuta. No parágrafo seguinte, todos se preparam
para o julgamento e os guardas buscam as “bruxas” para a prisão:
O VO O DO TUKUI 107
não é de vítima, não é de escrava — a subalterna — que recorre à
vitimização; em vez disso, começa jogando o fato para o narrador, que
somos nós, com um gesto de violência. Esse segundo discurso logo
se transforma no discurso central durante o julgamento onde dessa
vez, empoderada, ela agride a morte com a palavra, denunciando,
nessa sociedade branca, aqueles que não são culpados por bruxaria,
mas tampouco inocentes diante da escravidão.
Vamos ao segundo texto que me interessa. Trata-se, como disse
anteriormente, do romance Um defeito de cor, da brasileira Ana Maria
Gonçalves. Do mesmo modo que o anterior, o relato de Gonçalves
tem, durante as quase mil páginas, uma jornada ágil que envolve o
leitor com paixão na história de Salvador, na Bahia, com toda sua
efervescência. Como em Condé, essa história põe em movimento um
amplo espaço de diálogo entre a vida e a morte, que se acompanham
mutuamente. Como no texto anterior, também é interessante a
imersão na história, primeiramente a partir de uma voz feminina,
porém além de uma voz duplamente subalterna, como pode ser a
de uma escrava: “Eu nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no
ano de um mil oitocentos e dez. Portanto tinha seis anos, quase sete,
quando esta história começou”.
Com um narrador em primeira pessoa, entramos, como antes, no
outro olhar da história, que, em seu caso e talvez com maior ênfase,
atravessa a vida da protagonista, Kehinde, em múltiplos espaços de
seu âmbito emocional. A linguagem se articula permanentemente
em um jogo entre o minimalismo da vida cotidiana da escrava e a
história em sua dimensão maior — o tráfico, a rebelião, os jogos
de poder —, exercício levado com uma sutileza extrema, em que
O VO O DO TUKUI 109
os pratos que a Esméria ou Maria das Graças
preparavam, e não perdia uma única oportunidade
de provocar o Francisco na frente dela.
51 [N.T.] Abiku é a criança que terá passagem curta pela terra den-
tro da terra dos Iorubás.
O VO O DO TUKUI 111
a violência é narrada e não vista, produz um efeito duplamente
dramático.
Mas a complexidade da voz que narra não termina ali. Há nela o
efeito que também observou Mikhail Bakhtin em Fiodor Dostoievski.
Vejamos na protagonista: “Ibêjis dão boa sorte e riqueza para as
famílias em que nasceram e era por isso que a minha mãe podia
dançar no mercado de Savalu e ganhar dinheiro”.
Trata-se, pois, de uma voz infantil que incorpora um saber que
não é seu, um saber popular referente aos ibêjis, junto à interpretação
ingênua do trabalho da mãe e do dinheiro. Assim como nesse
fragmento há um permanente dialogismo no texto que incorpora
saberes e vozes, informações moduladas pela fala: “Ela dizia que
esta é uma história muito antiga, do tempo em que os homens ainda
respeitavam as árvores”. Aqui se faz eco do tempo indeterminado
do relato popular tradicional, uma espécie de coro que se infiltra na
textura do discurso. O “Era uma vez”, como em “enquanto os meninos
diziam que eram corajosos...”, é a indeterminação temporal. Agora é
a língua e a escuta: “Ela se sentou ao meu lado e me chamou de sua
menina, puxou minha cabeça de encontro ao quente do peito dela
e me embalou com cantigas da África”. Às vezes, a escuta e o olhar
convergem numa sinestesia que contradiz o sentido da peripécia,
mergulhando novamente em seu dramatismo. No momento em
que são sequestradas ela e Taiwo, sua gêmea, o episódio se abre da
seguinte maneira: “tocavam uma música que eu me lembro de ter
achado quase tão bonita quanto o mar, que tinha a cor mais bonita que
o pano de Iemanjá. Sei que é difícil comparar sons e cores, mas, aos
meus olhos e ouvidos, eram apenas duas belezas, só isso, uma quase
O VO O DO TUKUI 113
da última, na maré de uma história de mil faces, complexa, confusa,
que revela não só o cotidiano do tráfico no middle passage, mas
também a corrupção do poder na África e seus representantes no
Uidá, importante polo do tráfico atlântico. É assim que se ligam ao
mundo: na palavra, na escuta e no olhar, na língua principal de sua
narração. Nessa ligação com o mundo, as personagens conseguem
representar o momento presente, ou seja, transmitir-nos para além
da informação histórica, o que implica uma interpretação nova e
diferente dela, uma relação com o mundo, diante da dor histórica,
e põe em evidência uma enorme capacidade de deleite, o valor dos
sentidos, uma ausência da noção de pecado que as torna livres; uma
alegria somente pelo fato de estarem vivas. Assim, elas expressam
permanentemente a necessidade de sobreviver.
Essa inversão da situação da escravidão no período colonial que
mostramos tem enorme importância política. Sobreviver, no caso
delas, é uma forma de resistência ao poder colonial. É um poder
que não as destrói porque estão armadas internamente e nisto são
amparadas pelos valores da sua cultura. Fala-lhes uma linguagem
diferente da do colono: uma linguagem que fala com os mortos,
uma linguagem que dialoga com as árvores, que transmite o ouvir
do canto dos pássaros, uma linguagem que não treme ao expressar
o estremecimento de prazer, que não esconde, mas desfruta da
beleza dos corpos, e que, acima de tudo, os vê. Porque o que fazem
essas duas narrativas é dar existência a esses corpos, diante de uma
degradação que os invisibiliza. Esse privilégio, esse patrimônio
que lhes entrega sua cultura é o que dá sentido ao seu existir e, no
auge da negação, é o que conduz à sua arrogância. Nesse sentido,
O VO O DO TUKUI 115
LER A SOCIEDADE POR MEIO
DO CORDEL: DOIS CASOS
O VO O DO TUKUI 117
de “poesia impressa”, essas folhas em verso que circulavam nas
províncias do norte, nos campos de salitre, como forma de comunicar
notícias, às vezes recitadas por cantores com violão que iam de
estabelecimento em estabelecimento, ou em Santiago nos bairros
populares: a Estación Central, Matucana, o Mercado. Nesses lugares,
em geral, haviam obras de camponeses que chegavam a vender seus
versos nas fondas53, os lugares de encontro dos trabalhadores. Com
documentação desde 1860 e com uma forte produção até 1920 no
Chile, a publicação desses versos foi chamada de “Lira Popular”
por meio de uma revista com esse nome cuja edição pertence
fundamentalmente ao período indicado.
No Brasil, essas expressões populares foram chamadas de
“quadrilhas de São João”, “desafios” que cabiam a poetas repentistas.
Havia também “cirandas”, canções, assim como “literatura de cordel”,
chamada em português também como “folhas de cordel”, “folhetos”.
Eram denominados assim, porque, como sabemos, eram expostos
ao público em varais de corda, inclusive “acompanhavam, como
verdadeiras bulas, os remédios que vendiam certos curandeiros”, diz
um pesquisador da área.
Sobre a origem desse gênero na Europa, teria sido trazido para a
América por imigrantes, adquirindo aqui sua especificidade, segundo
o mesmo autor, que afirma o seguinte:
O VO O DO TUKUI 119
se utilizava em grande medida do heptassílabo. São versos fáceis de
se aprender, de compreensão simples, muitas vezes humorística,
elaboradas para um público, um grupo que escuta quem recita nas
praças, nos mercados, no final da jornada. Foram chamados também
de “cantos de cego”. Os ouvintes eram e são, até hoje, analfabetos
ou semianalfabetos. Por isso é tão importante a xilogravura presente
nas capas dos folhetos, já que entrega uma informação a ser acessada
por quem não pode ler. Isso também explica seu tom de exagero, seu
aspecto caricatural. No Brasil, onde o gênero perdura no Nordeste
até hoje, e tem grande importância, são reconhecidos também os
artistas das xilogravuras. Atualmente, esse tipo de técnica está sendo
esquecida por causa das facilidades das novas tecnologias, que usam
fotografias impressas. Por isso, um crítico se queixa: “Assim declina
o gênero, fustigado pelo mau gosto e debilitado no poder inventivo
e na execução técnica”.
Agora nos interessa a forma de relação que estabelece esse tipo
de produção, no período que estamos observando — 1860-1930 —
com a construção da ideia de nação. Nos situamos nesse período
porque é o período áureo da produção de cordel no Chile. Os autores
dos versos não são necessariamente os que recitam ou cantam, mas
ambos, autores e recitadores, estabelecem um laço social com a
comunidade em que se desenvolvem, a que lhes gera exigências,
lhes propõe perspectivas dentro das quais eles encontram sua
criação, sua performance. Isso faz com que em ambos os casos haja
frequentemente elementos comuns, tanto no Brasil como no Chile;
como é, por exemplo, a dimensão contraditória de determinado
dever na sociedade, que é ao mesmo tempo uma transgressão. O laço
O VO O DO TUKUI 121
e o misturam com a vida real. Mundos e personagens se encontram;
o que parecia impossível acontece no cordel”.
Na lira do Chile há uma clara separação entre o humano e o divino.
No primeiro se encontram histórias jocosas, muitas vezes, eróticas,
histórias de crimes e fuzilamentos. Também histórias fantásticas,
como as tradicionais de Pedro Urdemales57, que coincidem com as do
Brasil na recriação das histórias de Carlos Magno e os “Doze Pares de
França”58, de Genoveva de Brabante e dos demais relatos vindos da
Europa. Arranjos diferentes foram feitos com eles. Tudo isso, aliás,
como uma reformulação típica da América onde os castelos medievais
têm tucanos ou Carlos Magno usa uma carabina além de uma lança.
O que nos interessa, nessa aproximação, é observar algumas
maneiras pelas quais essa literatura representa, por meio da voz
popular de finais do século XIX e começo do século XX, o imaginário
da nação. A partir de uma leitura mais geral de ambos os casos, Brasil
e Chile, parece haver algumas singularidades, as quais queremos
elucidar de modo hipotético.
O interessante desses versos é que eles expressam a História
desde um outro lugar e com diferentes graus de simbolismo. Nesse
sentido, constituem um documento que põe em evidência uma
percepção dos acontecimentos, mostrando mais uma vez que a
história não é uma, mas responde ao lugar a partir do qual os fatos
são avaliados.
O VO O DO TUKUI 123
os folhetos concedendo a esses trabalhadores semi-escravizados
um vínculo com sua cultura de origem. Tais textos não falam do
Estado central, não falam da nação como unidade imaginária, mas
sim de uma região distante, principalmente da saudade, da tristeza
e da nostalgia de seu lugar de origem, do Nordeste, onde estão seus
familiares, seu meio, seu mundo afetivo. Assim, um nordestino que
deixa a Amazônia escreve:
O VO O DO TUKUI 125
Alguns patrões são bons.
Mas o que estou narrando,
É o que sempre acontece,
O seringueiro vive trabalhando,
Perdendo a sua saúde.
E os patrões enricando
Vou-me embora,
Vou-me embora,
Que me dão para levar?
O VO O DO TUKUI 127
Levo penas e saudades
Para no caminho chorar.
O VO O DO TUKUI 129
de aquel pobre criminal.
El Gobierno al contestar
declaró que ya el juzgado
lo había sentenciado;
pero dijo que algo haría
porque compasión tenía
del infeliz desgraciado.
O VO O DO TUKUI 131
Por seguir o mal caminho
Toma chicha, toma vinho
Para esquecer a pena.
Chega ao bordel toda fagueira
Seguindo a rua pela beira
E ali fica de peito aberto
Bebendo o que tiver por perto.
Toda velha cachaceira
Tira do homem o direito.
Aqui está a ideia de uma sociedade que atua junto e para além da
discussão feminista que estes versos carregam, e o que nos interessa é
a consideração da mulher em um sentido genérico de pertencimento
ao Chile: a expressão “mulher chilena”. Em outras palavras, existe
uma sociedade, um sistema que tem regras, que pode se subverter,
mas ele existe e gera limites. Ora, esse sentimento de nação se
exacerba quando se trata do Exército, parte significativa da noção de
Estado-Nação da época, como se vê nos versos de “Brindis a la patrona
del Ejército chileno” de José Hipólito Casas Cordero, ou quando há
situações de enfrentamento militar, com expressões racistas bastante
naturalizadas, como, por exemplo, no texto a seguir do mesmo poeta:
O VO O DO TUKUI 133
Em relação a essa unidade de nação, que não o é, as estrofes de Daniel
Meneses elucidem isso:
13 4 ANA PIZARRO
Por fin, pues, la mala suerte
no es ofensa ninguna;
el pobre hace su fortuna
cuando se encuentra la muerte;
el rico opulento y fuerte
en nuestra nación chilena,
jamás nunca siente pena
con los bienes que atesora;
pero llegando la hora
se muere y se condena.
“Versos de la desigualdad entre el rico y el pobre”
O VO O DO TUKUI 135
assassinos, matadores
e pergunto aos meus leitores
o que lhes tem acontecido?
Só o pobre, Deus querido,
É tão depreciado
Mesmo que seja o mais honrado;
perguntar é necessário:
quem tem dito: um milionário
á morte ser sentenciado?
Por fim, pois, a má sorte
não é ofensa nenhuma;
o pobre faz a sua fortuna
quando encontra a morte;
o rico opulento e forte
em nossa nação chilena,
jamais sente a pena
do que guarda tão bem
mas quando a hora vem
se morre e se condena.
(“Versos da desigualdade entre o rico e o pobre”)
O VO O DO TUKUI 137
De arriba alumbra la luna, con tan amarga verdad,
la vivienda de la Luísa, que espera maternidad,
sus gritos llegan al cielo, nadie la puede escuchar,
en la fiesta nacional.
(…)
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual, mesma morte Severina:
(Morte e vida severina, 1955)
O VO O DO TUKUI 139
III
O VO O DO TUKUI 141
AMAZÔNIA: HORIZONTE E FRATURAS
O VO O DO TUKUI 14 3
do “domínio do homem sobre a natureza”, como assinalam os textos
clássicos. Trata-se do princípio inequívoco que levou à noção atual
de Antropoceno, surgida no ano 2000 nos estudos de Paul Crutzen
e Eugene Stoermer, que passou do âmbito da geologia a distintas
disciplinas do saber. Este conceito expressa como o ser humano
gerou um impacto tão contundente no desenvolvimento do planeta a
ponto de ter alterado a sua paisagem. De agente biológico, o homem
aos poucos se tornou uma força geológica, diz Bruno Latour, um
clássico desses estudos. Em seguida, há um debate sobre chamá-lo
de Antropoceno ou Capitaloceno, mas não é o nosso tema hoje.
O problema de se considerar superior a outros seres vivos, aponta
Eduardo Viveiros de Castro, seguindo a Lévi-Strauss, é o primeiro
passo para se sentir especial diante dos outros seres humanos e para
considerar que os outros não têm alma, que não são tão humanos,
o que recai no princípio de exclusão de quem não é branco, dos não
tão brancos, não tão cristãos, nem ocidentais, dos que não pensam,
relacionam-se ou sentem como um só. Talvez o problema, inclusive
o das concepções consideradas mais progressistas, tem sido conceber
o desenvolvimento em uma direção única: a de produção de riqueza,
o que implica excesso de energia, petróleo e carbono, ou seja, a
noção clássica de progresso, e não conseguir construir uma direção
alternativa. Porque não o conseguimos de forma concreta. Sabemos
que, ao nos considerarmos progressistas, deveríamos nos situar em
atitude de permanente crítica para a conquista de uma sociedade
menos desigual, honesta e solidária, mas isso significa também o
equilíbrio entre a natureza e o ser humano. Nesse sentido, é sugestivo
refletir sobre a afirmação de um grande pensador dessa linha, como
14 4 ANA PIZARRO
Antonio Candido: ele diz que o socialismo “é um propósito sem
fim”. Em outras palavras, é uma busca por equilíbrios que nunca são
totalmente realizados. É uma busca permanente por uma melhor
relação do homem com o mundo.
A noção de progresso e desenvolvimento baseado no poder
econômico e no individualismo que comandou o ritmo histórico
de raízes coloniais da América Latina se baseia no princípio da
superioridade humana que faz da natureza um objeto de extermínio
e tem impulsionado megaprojetos de todo tipo. Desde o agronegócio
até a construção de grandes centrais hidrelétricas, alterando os
direitos de existência do mundo natural, o curso dos rios, a vida dos
peixes, o sustento das aves, a ritualidade, a memória, a existência
cotidiana, a cultura dos habitantes, o espaço em que habitam, hoje
em degradação em grande parte irreparável. A Amazônia atual é
um cenário dessa realidade. “Teatro do mundo”, disseram seus
pesquisadores e, por isso mesmo, cenário universal.
Mas não nos equivocamos, tudo aquilo que afeta a sociedade,
afeta também o indivíduo em particular.
Esse egocentrismo irreprimível mudou nossa relação com
os outros homens e com a própria natureza. Nos anos sessenta
do século passado, os jovens que éramos nos rebelamos contra
uma situação socioeconômica “de alienação”, dizíamos que
nos parecia insustentável, não imaginávamos que se tratava
somente da etapa prévia do desperdício de energia utilizado para
gerar países “superdesenvolvidos” e ao mesmo tempo outros
“supersubdesenvolvidos”, nos termos de Viveiros de Castro. Qual é
a alternativa, pergunta o intelectual brasileiro?
O VO O DO TUKUI 14 5
Em 1972, D. Meadows, cientista do MIT, lançou o livro Os limites
do crescimento em que sustentou que os limites do crescimento eram
físicos e que a única solução para um futuro catastrófico era a de
controlar o crescimento da população e a limitação do crescimento
econômico mundial. Solução malthusiana enfrentada pelo grupo de
intelectuais latino-americanos da Fundação Bariloche na Argentina.
Fizeram-no contra uma postura determinista e visando denunciar a
desigualdade como motor da situação no âmbito internacional e a
necessidade de realizar mudanças nos padrões de comportamento
e pensamento. Foi assim que lançaram seu Modelo Mundial Latino-
Americano de 1970, sob a liderança do cientista Jorge Sábato: não
somos muitos para a quantidade de alimentos que há, acontece
que estes estão distribuídos de forma desigual. A posição desses
intelectuais do continente é o antecedente direto de raciocínios atuais
como o de Viveiros de Castro que atesta a desigualdade como motor,
apontando nossa posição geral como contrária à utopia, sendo essa
a projeção imaginada do que fazemos hoje. É, diz ele, uma postura
distópica no sentido de que estamos levando a cabo ações cujas
consequências não podemos imaginar.
Como apontamos, essa situação de desequilíbrio na relação
do homem com a natureza condiciona claramente nossos modos
de vida em sociedade e gera estruturas que alteram nossa própria
subjetividade. É assim que o pesquisador Jens Andermann analisa esse
fenômeno, apontando que nossa subjetividade foi fraturada de forma
irreparável. Vivemos duas histórias: a cotidiana, da disputa eleitoral,
e a frivolidade do entretenimento. Segundo ele, “mas ninguém ignora
que é no âmbito da segunda história, a nefasta e sinistra, que nossas
14 6 ANA PIZARRO
vidas e mortes vão ser decididas, uma ação sem sujeito: continue
consumindo, os índices econômicos melhoram, mas cuidado com a
marca de carbono”. Essa é a reflexão de sua última publicação.
Como funciona nosso imaginário urbano hoje? Por um lado, no
espaço do shopping center, onde a nossa subjetividade se diviniza
no seu ego, no consumo desenfreado que responde às necessidades
impostas pelas infinitas estratégias publicitárias; e, por outro, numa
espécie de coro trágico que funciona em modo de baixo contínuo
há alguns anos: o barulho do mar que invade a orla e os primeiros
edifícios nas costas; as temperaturas que oscilam entre o máximo e
o mínimo até agora suportável; os blocos de gelo que degelam nos
polos; o furacão que destrói as cidades dos trópicos; um rompimento
de uma barragem em Mariana, Minas Gerais, ou de barragens que
transbordam afundando de forma irrecuperável formas de vida e
culturas na lama da Amazônia, na Colômbia, no Haiti, no Peru,
entre outras. Um tempo amortecido e sólido que se marca lenta,
mas inexoravelmente.
A Amazônia é um campo privilegiado para observar esses
processos. Parece-me que é aí onde, no espaço do continente, a sua
visualização surge com maior evidência. Já desde o início, desde a
própria viagem de Carvajal, esse espaço geográfico ganhou o estatuto
de laboratório, e aí La Condamine observou a utilidade da seiva de
certas árvores para a sua utilização na indústria europeia, o que hoje
chamamos de borracha. O mesmo que a indústria farmacêutica ou
a pesquisa metalúrgica estão fazendo hoje.
É na Amazônia que encontramos uma sociedade multiétnica,
oriunda de diferentes espaços culturais e temporais em
O VO O DO TUKUI 147
funcionamento. Aqui é possível mostrar a diversidade de tempos
sobrepostos e ao mesmo tempo articulados, que se tornam uma
particularidade de nossa sociedade periférica de origem colonial.
Aqui convivem sociedades indígenas comunitárias; comunidades
quilombolas, com grupos feudais, como nas fazendas do Marajó ou
no interior da floresta; um sistema de trabalho escravo como tem
sido denunciado por organismos internacionais; uma sociedade
capitalista urbana surgida do trabalho extrativista; uma sociedade
fruto do desenvolvimento tecnológico da nova mineração. Todas,
exceto algumas comunidades isoladas, estão ligadas entre si e,
de alguma forma, também ao mercado, incluindo o mercado
internacional.
O horizonte social tende, nessa concepção de progresso que
levamos adiante, a olhar os elementos do desenvolvimento ocidental
como referência e meta; o modelo europeu, o norte-americano.
Talvez seja possível observar os modos de vida dessas outras culturas
não ocidentais com as quais vivemos e aprender uma lição com elas.
Não se trata de uma posição utópica de retorno ao passado, trata-se de
observar processos paralelos em um continente como o nosso, como
dissemos, de tempos culturais sobrepostos, de culturas imbricadas,
não necessariamente transculturais. O olhar para as tecnologias das
culturas indígenas, por exemplo — os estudos atuais falam disso — ,
não é um retrocesso, pois elas podem ser uma referência. Os Andes,
assim como a Amazônia, pode ser uma referência de sobrevivência,
de gestão do meio ambiente adaptada às condições de existência de
grandes maiorias e culturas complexas. É o que aponta o metodólogo
Alexander Herrera Wassilowsky: «As tecnologias andinas são
14 8 ANA PIZARRO
eficientes, sustentáveis e
dignas de recuperação”. Talvez nem sempre
seja necessário olhar para a frente nesta corrida desenfreada ao
progresso em que a humanidade se perde atrás da robótica, em
que as novas tecnologias passam a ameaçar o imaginário da ciência
e da ficção literária a partir do seu desenvolvimento competitivo
entre as nações. Ernesto Sábato, o escritor argentino, como tantos
outros, já havia refletido sobre isso, e o antecedente é o pensamento
de Rousseau em seu famoso «Discurso sobre as Ciências e as Artes”,
de 1750, em que discute a ideia de um progresso que padroniza e
defende a ideia do homem natural. Será necessário, digo, talvez não
entrar no jogo de uma carreira desumanizadora desenfreada, mas
sim procurar outras referências, olhar para o lado, por exemplo, para
culturas que se desenvolvem a partir de outros tipos de valores na
sua relação com o mundo, ou para trás, para aquelas que não usaram
o glifosato para purificar suas plantações, mas usaram técnicas não
invasivas ou poluentes baseadas em relações equitativas entre o ser
humano e a natureza.
Estamos, sem dúvida, num campo interdisciplinar em que
precisamos fazer convergir diferentes formas de conhecimento. Esse
é o nosso desafio: um espaço onde as relações entre conhecimento,
política e cultura tenham um lugar de privilégio.
Dissemos que a Amazônia é um espaço de exacerbação dos
paradoxos latentes na subjetividade continental.
A primeira grande cisão histórica que constitui seu universo
simbólico está situada no campo econômico, social e político,
um espaço abrangente porque se relaciona com o poder. É, por
um lado, a forte contradição constituída pela existência social de
O VO O DO TUKUI 149
espaços de autoritarismo, tanto na esfera política — caudilhismo70
regional — como na esfera econômica com as grandes empresas,
havendo o domínio supranacional da sociedade face a outra forma
de relação social, regida pela comunidade; ou seja, o predomínio
da solidariedade observável em espaços indígenas, quilombolas
ou ribeirinhos. Valores da humanidade. O caso da exploração da
borracha é um exemplo óbvio no final do século XIX e no início do
século XX. Os barões da borracha, que residiam em Manaus e Paris,
e seus representantes na floresta obtiveram a matéria-prima a partir
do roubo, da escravidão e da tortura de indígenas, como no caso
de Julio César Arana, em Putumayo, fronteira da Colômbia com o
Peru. Diante dessa pura expressão de autoritarismo na ligação com
o mercado internacional e com a bolsa de Londres, está o gesto
de grandeza da atual comunidade Muinane71, na negociação com a
memória, descrita por Juan Alvaro Echeverri, em um magnífico texto
chamado “Canasto de Tinieblas e Canasto de Vida” [Cesto das Trevas e
Cesto de Vida]72. Os jovens de Muinane, que não vivenciaram o drama
do Putumayo, viajam caminhando há dias até o local de La Chorrera,
onde seus avós estão enterrados em uma jornada de cura: “Nós
O VO O DO TUKUI 151
biodegradáveis e produzindo uma alteração no
clima planetário.
O VO O DO TUKUI 153
Cobra, o Curupira ou Chullachaqui, da parte andina, com múltiplas
histórias moldam a vida de quem lá vive. Tudo em um tempo e um
espaço difusos, como mostra o poeta Paes Loureiro, em seu magnífico
texto sobre a poética amazônica. Segundo ele:
15 4 ANA PIZARRO
Como parar? Como deter esse transborde de concepções
orgiásticas, favoráveis para os menos e invisibilizadas para os mais?
Como demonstrar as práticas do tipo de desenvolvimento em que
estamos imersos como perspectivas de profundas repercussões
éticas? Como mostrar que os imaginários de bem-estar trazidos
pelas novas tecnologias e megaprojetos não implicam a felicidade
que buscamos, nem são neutros e externos, mas incorporam formas
de comportamento e de relação com a vida? Que eles estruturam
as identidades individuais e coletivas, que geram formas de ver o
mundo privadas de humanidade? E que eles destroem a natureza,
as comunidades e as culturas?
Obviamente, não parece que a Amazônia esteja no melhor dos
cenários no momento. O horizonte parece bastante perturbador. No
entanto, nossa tarefa de busca da humanização parece ter cada vez
mais definitivamente o caráter do propósito sem fim, que indicava
Antonio Candido: promover a observação, o estudo, a análise, a
ação e a crítica permanentes para sua defesa. Como um anfiteatro
exposto ao mundo, a Amazônia chama a atenção. É a sua fraqueza,
mas também pode ser a sua força.
O VO O DO TUKUI 155
HUMANIDADES NA AMAZÔNIA
O VO O DO TUKUI 157
métodos disciplinares de acordo com a função de mercado. Trata-se
da importância da Razão instrumental, que foi criticada na época
pela Escola de Frankfurt: a grande função do conhecimento é o
domínio da natureza.
Mas o desenvolvimento dos acontecimentos que presenciamos
diariamente na última década, nos quais os fenômenos ambientais
se aceleraram, nos faz questionar novamente essa relação do ser
humano com seu entorno, sua superioridade virtual e o orgulho
de seu domínio sobre ele. Será que em vez de dominá-la é preciso
dialogar com a natureza, negociar com seu poder? Não pecamos
um tanto por um antropocentrismo que quis ver o meio ambiente
como imutável e nos conduziu a um desastre ambiental como o
de hoje? O questionamento do ensino de filosofia, a precariedade
da leitura literária, muitas vezes reduzida a textos de autoajuda, a
pobreza do ensino de uma concepção histórica monolítica e acrítica
no ensino secundário em nossos países são nada mais que o efeito
concreto dessa razão instrumental que hierarquiza as disciplinas
de acordo com sua produção de valor. O pensamento estritamente
disciplinar é também uma expressão disso quando observamos a
evolução da noção de humanismo desde a concepção ampla do
homem presente na Renascença até aquela estreita dos dias de
hoje; e também quando pensamos que, em culturas intocadas pelo
desenvolvimento ocidental, a forma de pensamento é articuladora
do homem e do mundo natural, do homem, da natureza e da
dimensão transcendente. Nesse quadro, não podemos conceber a
literatura como uma entidade em si mesma, que não conecta o leitor
ou o observador com outras dimensões da vida, as quais exigem a
15 8 ANA PIZARRO
presença de disciplinas alternativas: psicologia, sociologia, história,
entre outras. Vou abordar apenas alguns aspectos de um problema
que é muito amplo.
O primeiro é o que ocupa o interesse do estudioso alemão
Ottmar Ette, da Universidade de Potsdam, sobre literatura e saber
viver. Trata-se de seu trabalho na área de literatura e ciências da
vida — Lebenswissenshaften. Segundo Ette, existe uma ciência intra
e extratextual, entre outras coisas, e que a literatura nos ajuda a
resolver um dos problemas mais urgentes do século XXI: como
culturas radicalmente diversas podem se reunir, se conhecer, conviver.
Isso nos aproxima de outras situações, línguas e comportamentos.
A diferença, aponta o estudioso colombiano Selnich Vivas, confirma
a humanidade, e ele acrescenta: “Cada espécie, animal ou vegetal,
é portadora de uma parte da memória do planeta. Atender a essa
memória é crescer em respeito a si mesmo como espécie”. O estudo
e a experiência literária estão no âmbito de uma ciência da vida, uma
ciência para a vida. O estudioso alemão argumenta que a noção de
sistemas científicos deve incluir a dimensão humanística, tarefa capaz
de mudar o curso que dão à tarefa científica, as chamadas ciências
duras e a tecnologia, esse espaço que se perdeu, o espaço de reflexão.
Ette declara: “As discussões sobre o genoma humano, a pesquisa com
células-tronco, a possibilidade de clonar uma vida animal ou humana
e a engenharia genética humana ou de sementes deixaram, em grande
parte, o público com a ideia de que algumas pequenas e altamente
especializadas linhas de pesquisa acadêmica cobrem atualmente o
amplo conhecimento sobre a vida humana”. Mas, agora digo eu, aí
vem o 11 de setembro norte-americano, o crescimento do ISIS em
O VO O DO TUKUI 159
vários continentes e não temos resposta. O que Benjamin chama de
“a monstruosidade do destino ameaçador” não tem resposta. Por que
e de onde surge o terror? Não refletimos, e se isso foi feito de fato,
não há respostas possíveis até agora, tampouco há autocrítica nas
respostas. Volta-se ao dualismo clássico que tanto conhecemos em
nosso continente de civilização e barbárie. Mas a Europa não olha
primeiro para a marca deixada pelo colonialismo e depois para a sua
persistência no desprezo e na invisibilidade de culturas de enorme
profundidade histórica e elevado desenvolvimento científico, como
as árabes, subalternizadas e devastadas em muitos casos. O poder do
desenvolvimento econômico não olha, não pensa: ataca. Benjamin já
rejeitava o “tempo mecânico” e chamava atenção para os riscos do
uso militar do desenvolvimento científico e técnico. Hoje vemos o
conhecido pesquisador S. Hawking reafirmar o perigo da tecnologia
e, em paralelo, os jornais nos trazem os acontecimentos da Coreia
do Norte de um lado, com seus testes atômicos, e da Síria, de outro,
com a devastação por meio de substâncias químicas. Então, voltamos
ao ponto de partida: para que servem as humanidades? Por que a
reflexão e a crítica sobre o nosso destino e o de nossos filhos e netos
são necessárias mais do que nunca? Estamos preparando as crianças
para o mundo de amanhã, mas deveríamos pensar em que mundo
estamos preparando para essas crianças. É aí que o pensamento
sobre o ser humano e a história desse pensamento têm uma
função. Precisamos criar um espaço contrastante e complementar
onde as humanidades, as ciências sociais, as ciências naturais e as
ciências duras dialoguem. É necessário pensar que os fenômenos
não podem ser concebidos isoladamente. Eles constituem um todo
O VO O DO TUKUI 161
-- Oh! -- disse o rato -- O mundo está ficando menor a
cada dia. No começo era tão grande que fiquei com
medo dele. Eu corri e corri, e é verdade que fiquei
feliz em ver aquelas paredes, esquerda e direita,
na distância. Mas essas paredes se estreitam tão
rápido que logo me encontro na última sala e ali,
no canto, está a armadilha pela qual devo passar.
-- Tudo que você precisa fazer é mudar o rumo
-- disse o gato… e o comeu.
O VO O DO TUKUI 163
Os anos passam e, inesperadamente, os pais ouvem falar um jovem
de olhos claros que galopa entre os indígenas. Trazem o menino, que
parece não reconhecer nada, até que chega à cozinha, corre e pega
uma faca que havia escondido em um buraco quando era pequeno.
Os pais sentem que o recuperaram. Mas logo depois, o jovem foge e
retorna ao mundo que deixou. O clímax dessa história é um segundo,
o instante de confluência cultural, de contradição, de negociação. Um
instante que a ciência pura talvez não poderia explicar, o momento
em que a cultura ocidental se confronta, na experiência de um cativo,
com a experiência indígena, o momento de intersecção e choque das
duas culturas, que é, além do relato, o grande momento prolongado
do nosso continente. Nas palavras de Borges:
16 4 ANA PIZARRO
essencial que é uma das ironias diárias do universo”. Poderíamos
continuar, mas neste jogo de experimentar leituras curtas, temos
exemplos de sobra. Queria apenas tentar transmitir, por meio de
leituras mínimas, o inexplicável, mas digno de ser vivido: aquela
abertura de dimensões que a experiência estética significa. Como
ela atua sobre nós e nos expande, às vezes em círculos concêntricos,
com frequência em linhas de fuga, a perspectiva sobre o ser humano
e a vida, sobre o universo. Para que servem as humanidades? Para
sensibilizar, para ampliar e estender o espaço da experiência, para
coexistir com a alteridade, para compreender a diferença. E também,
fundamentalmente, para buscar e construir sentido.
E quando se trata de construção de sentido, as humanidades não
são um campo sem contradições. Ao contrário, a crítica desempenha
um papel importante em seu pensamento e as invalidações e
lutas estão presentes na história do pensamento. Um deles é a
consideração do pensamento e culturas indígenas na América. Agora,
deixarei de lado as culturas afro-americanas, às quais retornarei no
artigo a seguir deste volume. Porque isso nos permite validar formas
de saber e a visão humanística sobre as culturas da América Latina.
“Elas viraram de cabeça para baixo a cultura ocidental”, diz Márcio
Souza, ao desmontar a noção de cultura como algo exclusivo do
Ocidente e não inerente à natureza humana. Há nelas uma noção
diferente de tempo, que é tempo-espaço, em que o passado existe
simultaneamente com o presente. Um texto dessano74 sobre a origem
do mundo conta como a origem de tudo foi uma mulher, a quem
O VO O DO TUKUI 165
chamavam de “Avó do Mundo” ou “Avó da Terra”. Nasce-se na
natureza, vive-se nela e sua relação-comunicação com esse universo
é central na vida do habitante tradicional indígena, principalmente
no caso da cultura da floresta tropical, na Amazônia. A maior parte
de seu universo, senão todo, se desenvolve e vive ao seu redor e em
relação direta com ela. Essa relação certamente delineia sua forma
de se aproximar ao mundo. Seus componentes não são objetos
externos, eles são interlocutores e, em muitos casos, antecessores
de sua forma humana atual. Eles povoam seus relatos, concedem-
lhe uma linhagem: o clã do jaguar, o clã da onça, a cobra, a Grande
Cobra tem uma importância central no universo amazônico, como
já apontamos em trabalhos anteriores. Nesse universo existe uma
conexão básica com a natureza, uma energia que conecta o ser
humano com as árvores, os animais, o rio, a montanha, há uma
interlocução entre eles, eles constituem um todo que é a própria
vida. É uma relação próxima da poesia, na tentativa de se reconectar
com a origem das palavras, com a origem do sentido, na reconexão
com o fundamento, o tempo e a relação primordial entre as coisas.
O beija-flor transmite mensagens, as pedras estão vivas ou mortas.
As ervas produzem o mambe75, o yagé — o caapi76 — o cipó, aqueles
que o etnobotânico Evans Schultes (2000) chamou de “o guaco da
alma” ou “as plantas dos deuses”. Eles dão a lucidez para enfrentar
os problemas do grupo, para estabelecer a conexão com a esfera
divina. Nessa relação não cabe mediação alguma, sua relação com
O VO O DO TUKUI 167
Começamos a encontrar diretamente poetas wayuu78, mapuche
ou quechua, e aí percebemos nosso distanciamento de outras formas
de pensar e se relacionar com o universo. Como, por exemplo, no
fragmento do poema de Bernardo Colipan “Arco de Nguillatun”79
O VO O DO TUKUI 169
Desenvolvemos nestas páginas, por um lado, uma argumentação;
por outro, também tentamos nos aproximar do conhecimento pela
sensibilidade que o texto irradia, pela emotividade da imagem dessa
forma alternativa de um saber sobre o mundo. Observamos também
como esse conhecimento, fruto de uma forma alternativa de pensar,
foi historicamente desqualificado. As humanidades são a lente que
observa esses fenômenos e eles entram no quadro de sua discussão.
Porém, o conhecimento em seu aspecto hegemônico, o científico,
teve, e esteve tendo no século XX e desde seu início, rupturas que
lhe permitiram dar saltos fundamentais. Esses saltos têm origem
na dúvida.
Uma delas aconteceu em 1927, com o questionamento da relação
sujeito-objeto de Heisenberg, que rompeu com os princípios aceitos
da física de Newton e da filosofia de Descartes e deu origem ao
desenvolvimento do que hoje conhecemos como física quântica. O
salto científico que ela suscita também é um problema filosófico.
O conhecimento da ciência surge como um valor provisório cuja
determinação por leis permanentes é contestada. A própria teoria da
relatividade de Einstein propõe, no início do século, que a constante
— que é o tempo — é, na realidade, uma variável. Assim como o
espaço e ambos dependem da velocidade.
O final do século XX e o início do XXI começaram a observar
uma mudança de era, cujo nome seria Antropoceno, como já
observamos, devido à incidência que o homem tem tido nas
mutações que a natureza está apresentando. Os historiadores, diz
o bengali Dipesh Chakrabarty, já separaram a história do homem
da história do mundo natural há alguns séculos, por considerarem
O VO O DO TUKUI 17 1
nunca necessário compreender o ser humano em uma perspectiva
múltipla, em que se possa construir uma crítica à colonialidade do
poder e se possa elaborar um discurso, a partir de nosso próprio
lugar de enunciação, que enfrenta os olhares do predador em busca
de capital internacional.
Os discursos da literatura e da cultura geram mudanças na vida,
são janelas que levam nosso olhar para outros espectros e outras
sociedades. A cultura e a literatura não fazem revoluções, mas ajudam
a mudar mentalidades e a caminhar com nossos próprios pés para
gerar transformações. Não são um enfeite, são uma necessidade,
que na Amazônia pode nos ajudar a preservar perspectivas e modos
de vida que o cultivo da razão instrumental destrói para construir
um progresso voltado para o crescimento sem humanidade. Os
humanistas têm a obrigação de defender uma noção diferente de
desenvolvimento, não só que reduza as desigualdades, mas também
incorpore uma mudança de paradigma e uma relação de respeito dos
seres humanos entre si e com o universo natural, e que abra a opção
de dar a quem nos suceda um mundo onde seja possível sonhar.
O VO O DO TUKUI 17 7
jornais. Surgem, então, culturas, como a do Mali na sua grandeza e
esplendor históricos. Dessa forma podemos perceber Bamako como
um universo de complexidade inusitada, de uma cultura com uma
densidade histórica real, diante da qual a europeia aparece como uma
recente chegada à história da cultura — como apontou um grande
pensador africano, Abdel Malek.
Uma reportagem de 1996, do El País de Madrid, passou quase
despercebida ao público latino-americano, que não tinha acesso a
esse jornal. José Naranjo contou o seguinte:
O VO O DO TUKUI 179
seja que essas culturas — que não são uma, mas muitas — foram
reinterpretadas pelo Ocidente, ou seja, descentradas de si mesmas,
colocadas em corpos estranhos que se apropriaram delas e lhes
deram significados de acordo com seu entendimento, com sua visão
enviesada de mundo. Mas também, com o fenômeno espalhado por
vários continentes, e principalmente com a escravidão atlântica do
mundo subsaariano (houve outras escravidões anteriores, como a
dos árabes), essa cultura plural encapsulou sua memória, por um
lado, pela proteção e, de outro, pelas necessidades de inseri-la
em novas formas de sobrevivência; isso ocorreu também porque
a escravidão deixou os velhos no continente africano, eles que são
os guardiões da memória de suas civilizações segundo a tradição da
oralidade. Os jovens, os aptos ao trabalho, com memória recente e
com capacidade de sobrevivência, foram arrastados pelas correntezas
do oceano — aqueles que perderam tudo no caminho: nome,
roupa, hábitos culinários, língua, vida social de origem nesse lapso
brutal de desculturação —; aqueles que puderam dar conta quase
exclusivamente do presente de suas culturas de origem. Pensemos,
para perceber com mais nitidez, no processo dos migrantes de hoje,
africanos subsaarianos, ou árabes que chegam à Europa com quinze,
vinte e cinco anos, guardiões de uma memória curta e que, além disso,
é deslegitimada nos países europeus onde chegam; e depois lhes é
pedido que se esqueçam para se abrir a um futuro ocidental que se
apresenta como legítimo. O resultado na França hoje é a rebelião há
pouco tempo de jovens árabes da periferia de Paris, formados em
escolas francesas, mas sem emprego ao saírem delas por causa da
discriminação. O resultado na África hoje é o aumento do terrorismo
O VO O DO TUKUI 181
do Harlem» é a concretização da cultura herdada da escravidão em
sua incorporação à modernização norte-americana.
Foi assim que o gospel, o blues, as canções de trabalho nas
plantações de algodão entraram em jogo com o incipiente processo
de urbanização dos Estados Unidos e sua modernidade. A cultura
popular negra começou a se incorporar totalmente ao mundo erudito
da modernização. O jazz era uma música de vanguarda, que quebrava
as estruturas permanentes com o surgimento de um instrumento solo,
ou uma voz com timbre gutural, ao modo afro, e começou a se espalhar
como estilo popular, em termos de hegemonia estética no Ocidente.
Marcus Garvey, um líder afro-americano da Jamaica, participa desse
Renascimento e leva essa afirmação renovada de identidade para o
Caribe. Por outro lado, a África ensina aos escritores e artistas visuais
europeus a noção de abstração, que está presente há milênios na sua
produção artesanal, nos seus objetos, na sua estatuária. Os epígonos
das vanguardas históricas europeias não deixaram de ter os “fetiches
da Oceania e da Guiné”, como os chamava Apollinaire; símbolos não
só dessa outra religião, mas da sua capacidade específica de abstração.
L. Frobenius havia recentemente colocado sobre a mesa a história do
continente africano, que hoje apreciamos em sua amplitude, desde
o pensamento de Ibn Khaldun82, bn Battuta83 ou Leão, o africano84,
O VO O DO TUKUI 183
um espaço privilegiado para a mobilidade das culturas africanas
conscientes de si mesmas no Ocidente.
Nos diversos casos a que nos referimos, a relação das culturas
africanas com o Ocidente produz, como dissemos, efeitos
diferenciados, mas ao mesmo tempo compartilhados e incorporados
a uma história comum das culturas migrantes. Nos Estados Unidos,
essa forma de consciência levou a liderança do movimento pelos
direitos civis dos negros um pouco mais longe, em meados do
século XX; o que é um exemplo para todos, aliás, como afirma
o bispo Dom Desmond Tutu, na África do Sul, que atuou na luta
histórica desse país sob a liderança de Nelson Mandela na segunda
metade do século XX. Trata-se, portanto, do mundo chamado
“afro-americano”.
No Caribe, local, como sabemos, da primeira revolução de
independência liderada por escravos em 1804, a afirmação da
Negritude terá um desenvolvimento teórico que dará lugar a
diferentes propostas. Trata-se do Manifeste de la Créolité, de Confiant
e Chamoiseau, os quais, enraizados na história e na relação com a
África, não se mantêm no estatismo imobilizador nem na volta à
África que os primeiros líderes preconizaram, mas olham para o
presente e para o futuro com uma proposta de diversificar e assumir a
história do Caribe. De certa forma, textos de hoje, como o da brasileira
Ana Maria Gonçalves Um defeito de Cor ou o anterior da caribenha
Maryse Condé, já clássico, Moi, Tituba Sorcière (ambos analisados
em seção anterior do presente volume), assumem a proposta do
presente e do futuro de uma cultura ligada à África, mas diferente
dela. Este é o resultado de uma das direções do fluxo subsaariano, o
18 4 ANA PIZARRO
da América do Norte. Nele se encaixa também a especificidade do
desenvolvimento amazônico.
A relação e a história da África na Europa é outra variável, mas ao
mesmo tempo está ligada às demais evoluções, como no caso de Sedar
Senghor. Hoje fala-se de uma forma cultural diferente, a “afropea”,
um pouco diferente das outras: é a de quem nasceu e foi criado na
Europa. Recentemente, entrevistamos a escritora contemporânea
de origem camaronesa e de nacionalidade francesa Leonora Miano.
Nascida nos Camarões em 1973 e residente na França há 26 anos, a
romancista foi reconhecida com importantes prêmios literários. A
partir de seu romance O interior da noite (L’intérieur de la nuit, 2005),
ela começou, por meio de uma volumosa produção, a integrar com
sucesso os imaginários da África ao público. Em suas páginas, a
própria narrativa do romance é combinada com temas identitários,
com discursos de mulheres, com as aventuras da imigração e com a
complexa relação com o Ocidente, tanto no plano simbólico, quanto
político e econômico.
Leonora Miano diz:
O VO O DO TUKUI 185
ou recente, uma vez que a imagem da África,
para todos, é construída a partir das conquistas
europeias dos séculos XV e XVI. No entanto, é à
África que o mundo deve o nascimento da raça
humana e, portanto, do pensamento. Basta abordar
o assunto com um pouco de seriedade para percebê-
lo. O período colonial não marca a certidão de
nascimento da África. Para mim, acima de tudo
está a literatura, e na literatura o universo dos
autores. Se a literatura africana for entendida como
romance, produzida por autores subsaarianos, esta
é uma nova forma para nós.
E esclarece:
O VO O DO TUKUI 187
dados os territórios diferenciados e comuns que os articulam. A forma
de enfrentar o mundo do afrodescendente na América do Norte não é
a mesma de quem vive na Europa e de quem vive na América Latina.
Todas as variantes são uma, mas são diferentes ao mesmo tempo.
Eu acho que as culturas subsaarianas na Amazônia também têm
uma certa especificidade. E nisso, arriscarei algumas hipóteses que
os conhecedores dessas culturas poderão avaliar.
Em primeiro lugar, nesta zona do planeta há o quilombo, e ele
tem um significado especial. Como sabemos, seus descendentes hoje
compõem o movimento dos “Quilombos Remanescentes”. A oposição
escravidão/cimarronaje tem uma força simbólica muito importante
em termos de rebelião, de transgressão. Isso é emblemático.
O longo período de escravidão na Amazônia onde o africano
tomou o lugar, em grande medida, dos indígenas, especialmente após
a abolição da escravidão indígena em 1755, fez com que os africanos
fossem empregados principalmente em plantações dedicadas ao
cultivo de exportação: cana-de-açúcar, arroz, tabaco, algodão, cacau,
gado, sal, bem como a construção de fortalezas para proteger a
fronteira norte, segundo estudos sobre o assunto.
A conformação natural própria da floresta e de áreas de rios
fez com que o cimarronaje tivesse condições propensas à formação
de mocambos ou quilombos — termo, como sabemos, de origem
africana, que teria se generalizado a partir do famoso Quilombo
dos Palmares. São reconhecidos os do rio Trombetas, entre tantos
outros, que criaram enormes problemas para Mendonça Furtado,
irmão de Pombal, que queria levar a cabo o seu plano colonizador.
Como sintetiza um historiador, Ruiz-Peinado:
18 8 ANA PIZARRO
A Amazônia brasileira durante a primeira metade
do século XIX foi marcada por extraordinária
instabilidade político-militar. A sua adesão tardia
à independência do Brasil (1822), o debate sobre
a escravidão e a explosão da Cabanagem foram
processos que tiveram como protagonistas não
só as elites políticas luso-brasileiras, mas também
diferentes grupos quilombolas e indígenas que
agiam a partir de amplos e intrincados espaços
de fronteira, atentos às ideias revolucionárias
que vieram do exterior e que tiveram papel
fundamental na construção da especificidade do
Norte do Brasil.
O VO O DO TUKUI 189
Em seguida, apontamos como primeiro elemento importante
de definição de perfil, no âmbito dos imaginários, a presença
persistente do quilombo. Essa situação teria começado com a
Amazônia portuguesa organizada sob um governo autônomo desde
1621, com ligação direta com Lisboa e a costa oeste da África, onde
se localizavam as empresas escravistas. Em 1755, a Companhia
Geral do Grão-Pará e Maranhão monopolizou a economia da região,
inclusive o tráfico de escravos. Em geral, os trabalhos sobre esses
temas têm historicamente deixado de lado a percepção mais humana
dos atores. Fugindo da exploração, do castigo, da desumanidade, os
quilombos cresciam no Pará, principalmente na região de Santarém,
no rio Trombetas, onde se vinculavam a grupos indígenas guianenses.
Eles cresciam também na atual fronteira do Peru com a Colômbia,
no rio Putumayo, de acordo com os relatórios do governador de
Popayán, segundo Patricia Sampaio. É verdade que em muitos
casos, principalmente no dos escravos da Casa-Grande das fazendas,
havia espaço de negociação da própria condição. Prematuramente
no Amazonas, eles perceberam os conflitos internos políticos e de
poder dos portugueses — o surgimento dos cabanos no início do
século XX —, e administraram essa situação para gerar estratégias
para a obtenção de seus espaços de convivência. Mas a relação
senhor/escravo em suas diferentes possibilidades é uma relação de
conflito e, acima de tudo, a necessidade da fuga foi gerada como um
efeito natural. Na Amazônia, o ambiente natural era propício para
os emboscados, para os “negros do mato”, como eram chamados
na Jamaica.
Assim escreve Eurípedes A. Funes:
O VO O DO TUKUI 191
uma nova ‘estética musical’”. Filhos, ritmos, palavras, canções que
vemos do outro lado do Atlântico, que se materializam, se misturam
em novas formas de expressão da cultura negra, como a capoeira,
por exemplo, como conta Luiz Carlos de Matos Bonates em A
capoeiragem baré, onde apresenta a capoeira no Amazonas, “com
ou sem berimbau”.
Como segundo ponto, a presença africana teve um caráter
intercultural na área. Porque em alguns casos os senhores obrigavam
os escravos a se misturarem com os indígenas para diminuir o interesse
pela fuga, fosse pela convivência ou pela necessidade de sobreviver
naquele ambiente. O mundo afro era um mundo de mistura, de
intercomunicação cultural. Seu imaginário foi se construindo em
relação a outros imaginários da selva e, assim, os “encantos” foram
se configurando, com elementos indígenas, afro e colonizadores:
o bufeo [boto]89 no Peru; o boto no Brasil; a sachamama90 também
no Peru; a Cobra Grande na parte brasileira. Quanto eles têm de
cada cultura e como esses imaginários foram sendo construídos?
Teremos que esperar por estudos comparativos de mitologia para
descobrir. Vicente Salles diz: “A lúdica amazônica, no que tem de
mais representativo, é essencialmente africana”.
Nessa relação intercultural, o movimento dos cabanos
desempenhou um papel central, organizando as vontades de
diferentes indivíduos unidos por um sentido comum de identidade,
o dos desamparados. Nas fileiras dos insurgentes, dizem os
O VO O DO TUKUI 193
estética, como mostrou Paes Loureiro, em seu notável estudo da
poética amazônica. O vasto espaço de formas que os imaginários
de homens e mulheres de diferentes procedências e de diferentes
grupos étnicos — os caboclos — vão construindo em seu cotidiano, e
que lhes permitem existir, defender-se, amar, lutar em uma travessia
vital cruzada por rios, floresta, perigos e vastidão.
O fluxo cultural africano na Amazônia evidencia, assim, uma
forma diferente de existência da África fora do continente de origem.
Sua permanência ali se baseia na imposição hegemônica do tráfico,
que gera suas primeiras formas de desculturação, como em outros
lugares geográficos, mas ao mesmo tempo se recompõe em uma
nova e diferente cultura baseada no atrito étnico com as culturas
indígenas locais. Todos os elementos que permitem apontar não
para a noção de transculturação que Fernando Ortiz desenvolveu em
Cuba — onde a situação era diferente — mas para uma complexa rede
de elementos diversos, em que estes formam combinações distintas,
se sobrepõem ou se cruzam em diferentes tempos e termos de seu
desenvolvimento. Esses cruzamentos e combinações é o que estamos
estudando atualmente e acho que é um vasto campo de trabalho para
jovens pesquisadores hoje.
O VO O DO TUKUI 195
atualmente povoando a Europa e o mundo por meio de inúmeras
traduções, histórias, imaginários, línguas, problemas e expectativas
do continente. Escritoras como a nigeriana Chimamanda Ngozi
Adichie (1977), com um discurso feminista africano, ou a palavra
direta e forte de Leonora Miano (1973) dão a esses jovens escritores
uma inflexão cosmopolita, um interesse internacional, bem como
uma visão aberta e questionadora do continente.
“Fronteiras perdidas” é a expressão que se utiliza para designar, na
Angola, aqueles que não têm uma determinada origem, aqueles em
cujo ser convivem várias culturas, e que se movem entre uma e outra.
É nesse contexto que está José Eduardo Agualusa (1960), escritor,
cineasta e jornalista de origem angolana, vencedor de importantes
prêmios internacionais, cuja vida se passa entre a sua terra de origem,
o Brasil e Lisboa. Embora seja possível dizer também Paris, outros
países da Europa, da África, como brevemente América Latina e
outros. Não se trata de geografias diversas, mas de culturas vividas e
integradas. De escritos, de paisagens sonoras, de espetáculos visuais,
de experiências de vida, de gestos e percepções históricas, absorvidos
como alimento terrestre e que deslizam como camadas submersas em
suas linhas. Autor de inúmeras publicações: poesia, novelas, peças de
teatro, o sedentarismo não é o seu caso, nem na vida nem na escrita.
Diríamos também que existe igualmente um nomadismo temporário
capaz de articular a herança de Machado de Assis com a de Jorge Luis
Borges — em plena guerra angolana — como um intelectual avançado
que revela tanto a leitura de Proudhon, como a de Judith Butler, de
Foucault, passando por Pessoa ou Flaubert, em meio à história de
personagens africanos e ao legado secular da experiência popular
O VO O DO TUKUI 197
Assis. O tema do abolicionismo é um dos trânsitos da personagem,
Fradique Mendes, e da diversidade do espaço identitário em jogo, em
construção na Angola, no Brasil, universos em que chega, por motivos
diversos. “O que faço eu aqui?», pergunta-se, repentinamente, o
personagem consternado, que acabou de sair de Portugal e tenta
compreender “os segredos da África”, em meio à confusão de
culturas, de origens marcadas pela colonização portuguesa. Tudo
nele é movimento, trânsito geográfico e cultural. Uma diversidade,
uma mistura de vida que sentimos como contemporâneos. Como a do
autor, que vai construindo a história da literatura angolana no espaço
marcado pela tradição brasileira — bem temperada — de Machado
de Assis, como dissemos, mas também dos clássicos contemporâneos
europeus e latino-americanos — Borges, Cortázar —, da cultura
popular africana e também afro-americana. A afirmação anticolonial
é também a necessidade de escrever a história. Remete-se ao clássico
escritor africano Chinua Achebe: “Até que os leões criem seu próprio
historiador, a história da caça só glorificará o caçador”.
Como em Nação crioula, o Agualusa de O vendedor de passados
(2017) aparece centrado na temática identitária. A grande questão
dos países que alcançaram a descolonização, justamente porque
neles, mais do que nos demais, o que parece unitário, como a
noção de identidade, é paradoxalmente o contrário, é a colocação
em jogo das pluralidades no processo de articulação. Félix Ventura
tem a função de inventar vidas, histórias e passados. Depois de uma
guerra isso é útil, muitos precisam mudar sua história, tornar-se
democratas, ter um passado heroico, ou simplesmente inventar ser
outras pessoas, por medo ou fantasia. Sempre contemporâneo. É
O VO O DO TUKUI 199
V
V
HISTÓRIA E TR AVESSIA
O VO O DO TUKUI 203
moderna de gêneros. Também existiam outras com base em um
critério de gerações. Havia bastantes trabalhos em torno da história
das literaturas nacionais. Foram obras muito enriquecedoras sobre as
“correntes literárias” do continente. Entre os autores mais clássicos,
estão Anderson Imbert, Pedro Henríquez Ureña, Cedomil Goic e
muitos outros. Havia tantas perspectivas quanto autores, desde
tentativas cumulativas de nomes e obras, passando por concepções
geracionais, até desenvolvimentos analíticos das obras, organizadas
em ordem cronológica.
Eles foram nosso aprendizado. Utilizo o “nós” não como um efeito
acadêmico: tenho a convicção de que neste trabalho a reflexão e a
aprendizagem são coletivas e se formulam e reformulam de maneira
insensível e plural, ao longo, em movimento e em superposição no
tempo, em que somos sempre contemporâneos de Heraclitus, Sóror
Juana Inés de la Cruz, Netzahualcoyotl, assim como Derek Walcott
e Guimarães Rosa. De todos esses trabalhos que pudemos rever,
incorporamos algo, seja pela informação, não mais pelas críticas
que nos permitiram fazer. Graças a eles, visualizamos perspectivas,
percebemos desenvolvimentos, percebemos articulações. Houve
aqueles de grande significado, como o de Pedro Henríquez Ureña,
o de Antonio Candido, os trabalhos de Ángel Rama ou a obra de
Jean Franco. Essas experiências de escrita da história fizeram
principalmente um trabalho de reunir informações e estabelecer
um corpus e um cânone. Foi um ponto de partida fundamental para
podermos repensar, revisar os critérios, avaliar o próprio conceito
de literatura, os seus primórdios, a sua espessura, os seus momentos
em situação de colonização e colonialidade, num campo onde a
O VO O DO TUKUI 205
unidade do continente — tudo está publicado em Hacia una historia
de la literatura latinoamericana (México, 1987, Santiago do Chile, RIL,
2014) —, elemento que tinha estabelecido o corpus e o cânone na
história literária. Mas, evidentemente também, a ideia do espanhol
como centro articulador havia deixado de lado não só o Brasil, mas
a multiplicidade de nossas culturas indígenas. Em outras palavras,
ao aceitá-lo, estávamos autorizando nossa própria definição com
critérios coloniais. Incorporamos também a cultura dos “latinos”
nos Estados Unidos, fenômeno típico do continente desde meados
do século XX que, a partir de migrações massivas, foi gerando uma
cultura com um perfil específico, que se articulava à de origem.
Em outras palavras, passamos a lidar com a noção de América
Latina a partir de sua situação colonial e de como essa situação
permeia o posterior desenvolvimento da cultura em seus diferentes
momentos. Tratava-se, aliás, de uma noção com uma dinâmica
permanente cujos espaços iam mesmo para além dos limites
geográficos. Tudo isso significou também um rompimento não só
com a história literária tradicional, mas também com concepções
históricas sobre o continente que fornecem delimitações estáticas
regidas por certas lógicas políticas ou militares, sem dificilmente
percebê-lo. De alguma forma, nós também tínhamos uma lógica
política de outro tipo ao colocar a ideia de colonização como ponto
de referência para a discussão. Hoje reflito sobre esse exercício e
exponho o que nossas discussões naquela época impactaram no meu
próprio desenvolvimento intelectual: obviamente havia disparidades
de critérios, mas nunca radicais. Então, com isso, estávamos nos
distanciando da história literária tradicional cujos referentes eram
O VO O DO TUKUI 207
relatos orais que cruzam a Amazônia com migrações internas; a
dez quilômetros de Caracas, já se começa a ouvir o canto llanero93.
Além da contribuição cultural de outras migrações, externas, que
ainda não foram valorizadas. Em outras palavras, quando falamos
de literatura popular no continente, estamos nos referindo a um
corpus considerável que possui uma estética que comunica setores
importantes da população entre si.
Mas há também outro elemento: a noção de literatura precisa
ser incorporada a um terceiro sistema literário, muito importante
porque também é expressão de vastos setores, em alguns países
majoritários, como são os povos indígenas: caso da Guatemala, Peru,
Bolívia ou México. Lá, há uma importante produção geralmente
oral, que agora começa a ser levada para a escrita e à publicação,
com o ímpeto que teve a presença do mundo indígena no plano
internacional nas últimas décadas. O problema que vimos aí é a falta
de um trabalho crítico sobre esse último universo que nos permitisse
fazer um desenvolvimento histórico. Mas também surgem outros
problemas: como contar a história da produção literária de um mundo
tão alheio ao ocidental-mestiço a que pertencemos? Qual é a sua
ideia da história? Sabemos que em muitos grupos é uma história de
temporalidade circular, por exemplo. Portanto, o que chamamos de
literatura, ou o pertencimento estético a esse campo no Ocidente, é
diferente em sua função para eles. Lá são canções de trabalho, rituais
religiosos, canções de amamentação, funerais, etc. O que resultou da
observação desses problemas foi que percebemos que a possibilidade
Te mandei um passarinho,
patuá miri pupé,
pintadinho de amarelo,
iporanga ne iaué.
O VO O DO TUKUI 209
A este respeito, destaca: “Estes versos fazem parte de uma canção
bilíngue recordada por Couto de Magalhães, no Pará, em 1874, quando
ainda era cantada por extensos setores da população da Amazônia.
Trata-se de uma expressão da literatura oral bilíngue português-
nheengatu.94 Existem outras canções como essa, de versos compostos
simultaneamente nas duas línguas, que se alternam simetricamente,
ou português e o nheengatu, tendendo à métrica e rima como parte
constitutiva da unidade textual”.
O importante em tudo isso é que as literaturas indígenas não
podem ser reduzidas a um lugar introdutório na produção literária
do continente. Trata-se de uma produção que tem sido permanente
e silenciosa, uma literatura que se produz hoje da mesma forma que
se fez no momento da conquista.
Mas o problema persiste na escrita: se queremos uma história
cronológica, como vamos inserir esse outro sistema, permanente
e alternativo ao público e à corrente midiática do sistema literário
erudito? Seria necessário traçar o percurso de pelo menos três
sistemas literários paralelos, que apenas se tocam. Isso cria um
problema porque envolve desenvolvimentos separados. O resultado é
que só podemos fazer a história dos momentos em que sua existência
é introduzida no campo do conhecimento do mundo ocidental, que
somos nós, tendo consciência de que existe um universo em nosso
continente no qual temos uma quase impossibilidade de acesso para
falar sobre isso de dentro.
O VO O DO TUKUI 211
À medida que fomos observando o material literário, tanto
da América espanhola, quanto do Brasil e do Caribe, foi ficando
claro que para nós era impossível falar de uma produção literária e
conseguir explicá-la, sem incorporá-la à cultura da qual ela surge, à
sociedade à qual pertence e ao momento em que nasce. Porque é
preciso considerar que a literatura e a cultura não apenas expressam
a sociedade que as modela, mas que, ao mesmo tempo, têm a função
de construir as sociedades das quais nascem. Antonio Candido diz:
O VO O DO TUKUI 213
O importante nas mudanças também é que, a partir dos anos 80,
com o computador e depois com a internet, o espaço literário vem se
abrindo para novos gêneros: instâncias como o blog implicam outra
forma de escrita, que às vezes remete à narrativa ficcional, outros não;
o twit é um tipo de linguagem que gera diferentes instâncias dentro
da comunicação de síntese — estabelecendo a diferença à forma do
haicai. Dentro do conjunto das transformações, a oralidade conquistou
um lugar no mundo cibernético e até as culturas indígenas saíram da
marginalidade em que estavam situadas para acessar lá um espaço de
maior visibilidade a partir de atitudes e ações reivindicativas. Hoje
as comunidades indígenas produzem seus próprios vídeos, ou seja,
utilizam as novas tecnologias e se apropriam delas para a difusão
de suas culturas, seus problemas, sua história. Hoje não há apenas
oralidade, há também a escrita de indígenas ou seus descendentes
que conseguiram, por meio da formação profissional, um espaço nas
publicações não mais de pequenos grupos, mas de ampla distribuição
nas livrarias e com grande sucesso. Pensemos em Daniel Munduruku
no Brasil, por exemplo, ou Davi Kopenawa, yanomami, Elicura
Chihuailaf, ou Jaime Huenún, poetas mapuches do Chile, ou poetas
wayuu na Colômbia, como Vito Apüshana, entre outros.
A escrita das mulheres nos anos 80 nessa região adquiriu enorme
importância. Havia escritoras conhecidas e valorizadas, como Clarice
Lispector, mas depois houve mais. Em primeiro lugar, começaram
a ser revalidadas escritoras conhecidas, mas que sempre tiveram
presença secundária nas considerações históricas, como o grupo
liderado por Alfonsina Storni, Delmira Agustini ou Cecília Meireles.
Foram realizadas novas leituras, que discutiram e colocaram Gabriela
O VO O DO TUKUI 215
Beatriz Sarlo, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Nelly Richard, Néstor
García Canclini. No ponto de partida desse impulso analítico a
partir de diferentes perspectivas, está, sem dúvida, a posição de R.
Fernández Retamar, que nos anos setenta reivindicou uma análise
que se encarregasse da literatura e da cultura dessa parte do mundo
com suas especificidades.
O discurso crítico e histórico deve dar conta das novas formas
de dizer, a linguagem das instalações, as aproximações entre os
gêneros, as diferentes posições do narrador, seu enfoque, a mistura
de literatura e jornalismo, mas também as transformações dessa
literatura e cultura, e agora a experiência midiática com as novas
tecnologias e o papel do leitor, espectador. Da importância do
espetáculo, da política como entretenimento, das transformações
éticas, feitas por um herói do marginal, como Pedro Navaja, o
protagonista do ritmo caribenho mais ouvido nos anos 1980 e 1990.
Ou das canções que passaram a ser chamadas de “narco-corridos”
no México ou na América Central.
Será preciso se encarregar de novos temas, justamente como o
narcotráfico na cultura; a memória, entre outras coisas, como eco
das ditaduras, que assume formas clássicas e novas de dizer; guerras
internas, como a do Peru contra o Sendero Luminoso; as ditaduras
ligadas ao capital financeiro; o lugar que o mundo indígena tem
assumido na sociedade mestiça ocidental; as formas impulsionadas
pelo desenvolvimento cibernético em sua instalação diferenciada no
continente; o descrédito da política, entre tantos outros.
Porque aqui há algo muito importante para a história da cultura
do futuro: é que agora precisamos considerar um novo sistema
O VO O DO TUKUI 217
história cultural de hoje só pode incorporar essa estética em seu
discurso. Cito aqui uma reflexão do sempre lúcido crítico uruguaio
Hugo Achugar, que escreve:
O VO O DO TUKUI 219
Trata-se de histórias que datam da Europa medieval, na época do
apogeu dos livros de cavalaria. Lá, apareceu em francês. Houve
publicações que o traduziram para o espanhol em Sevilha por Nicolás
de Piedmont em 1521 e muitas reimpressões.
Esse texto sobre Fierabrás, espécie de ser excepcional de origem
árabe, teria duas continuações em português. De seus setenta e
seis capítulos, emergiram narrativas como a das façanhas de Carlos
Magno. Uma recente publicação em espanhol foi feita no Chile pelo
tradutor Humberto Olea e pode ser encontrada na internet.95 Em
outras palavras, da narrativa oral europeia passa-se a um texto escrito,
que é o de Fierabrás, um livro de cavalaria. Daí surgem relatos, um
dos quais é publicado em espanhol, inglês e português. A obra do
Piemonte migra ilegalmente para a América. Literatura popular, de
massa. Aim Olea aponta:
O VO O DO TUKUI 221
Desses trânsitos, essas interlocuções terão que dar conta da
história da cultura latino-americana na medida em que é um
fenômeno de cruzamento de sistemas, que constrói a subjetividade
de nossa cultura e a diferença daquelas — as europeias, que serviram
de referências, em que a expressão dos sistemas não é tão plural
nem tão evidente. Agora, novos problemas e complexos terão que
ser considerados pela história literária.
Trata-se da própria articulação do discurso cultural e dos
processos que o constituem, que no século XXI expressam — a
partir de uma matriz constituída por fluxos históricos de trajetória
progressiva e bastante definida, como são o europeu e o africano
fundamentalmente — a incorporação violenta de uma diversidade de
culturas, fruto de processos de imigração que, a partir de situações
histórico-políticas ou econômicas, assim como de desenvolvimento
das comunicações, são típicos de seu tempo.
Em trabalhos anteriores, temos observado o processo da cultura
latino-americana, diferente da análise transcultural, como um
processo mais complexo e abrangente que configura espaços amplos
de interação, não necessariamente em linearidade, mas em termos
de rede de interações. Nessa rede existem fluxos externos, como o
europeu ou o africano, que se incorporam a diferentes hierarquias,
em relação às situações de poder historicamente constituídas.
Na incorporação, como já observamos em trabalhos anteriores,
não se trata apenas de duas culturas que se encontram e formam
uma terceira, mas de várias culturas que entram no processo. Já
dissemos que, quando falamos de culturas europeias, generalizamos
uma situação que é em si mesma de uma diversidade enorme. Não
O VO O DO TUKUI 223
disso, é necessário pensar em todos os casos que sua existência
cultural é diferente dependendo das regiões e do desenvolvimento
histórico. Obviamente, a importância da cultura africana no Pacífico
Sul é muito diferente daquela da costa do Atlântico Norte ou do
Caribe.
O VO O DO TUKUI 225
Ocaina Witoto96, muito respeitado na área. Mais uma vítima da
pandemia, mais uma perda de memória indígena.
A pandemia em si mesma atinge a todos nós, diríamos que
tem um caráter democrático. Mas não é assim, não atinge a todos
igualmente. Vivemos, como aponta Achille Mbembe, tempos
caracterizados por uma “redistribuição desigual de vulnerabilidade”.
No Chile, penetrou pelos setores abastados da sociedade, os
que viajavam para o exterior, e logo se voltou fortemente para
os setores populares, onde a população mora em ambientes de
superlotação, fraqueza física, dificuldades de higiene e má nutrição.
Assim também atingiu a precariedade das comunidades indígenas
amazônicas. Não só elas, mas também as comunidades quilombolas,
os ribeirinhos, as cidades amazônicas. A tradição de isolamento
indígena os protegia de todo tipo de doenças contagiosas. Já não é
assim. Um vereador de Tabatinga, no Alto Solimões, afirmou, antes
da chegada do vírus: “Se tivéssemos casos de coronavírus aqui, de
pessoas infectadas, seria um... Não tenho palavras para isso. Isso
vai ser um filme de terror aqui”. Na verdade, hoje ele já chegou, e
o filme está em andamento.
A Amazônia sofre com a desigualdade histórica, mas hoje, e
principalmente no caso brasileiro, isso é mais chocante devido à
redução da presença do Estado. Ela tem duas causas. Primeiramente,
a ideologia posta em prática pelo governo Bolsonaro no sentido
de querer fazer da Amazônia um terreno devastado, propício ao
agronegócio, à mineração, para transformá-la em um pilar do
O VO O DO TUKUI 227
Entre a violência do narcotráfico, a da busca pelo ouro e a da
instalação da grande empresa, a vivência da experiência material
de seus habitantes consegue, de forma inusitada, refugiar-se no que
o poeta brasileiro Paes Loureiro chama de “modalidade estética
poética do seu imaginário”. Cada experiência se refere a unidades
míticas que explicam e expressam o mundo, organizando sua
experiência em sistemas simbólicos que lhes permitem viver e
superar acontecimentos. Desse modo, há histórias, personagens e
configurações significativas que, ao modelar sua experiência dessa
forma, condensam sua história. Daí o drama da borracha na história
de Gitoma.97 Hoje, ainda não sabemos que forma o drama adquire no
imaginário. Isso ocorre numa participação humilde e igualitária com
o universo natural — pedras, árvores, pássaros, animais, ar, chuva
— com cujas entidades dialoga, conduzindo-os ao seu cotidiano. É
sua maneira de sobreviver, enquanto sobrevivem.
No espaço amazônico, o espetacular desenvolvimento tecnológico
encontra o arcaico. A supervalorização do primeiro discrimina a
profundidade histórica do segundo. Há pouco tempo, Chomsky
apontou em uma conferência os dois perigos capazes de destruir
nossas sociedades, ainda mais temíveis que o coronavírus: o perigo
nuclear, que foi revivido nos últimos tempos com o jogo entre Trump
e o Irã, e as mudanças climáticas. Os três perigos se unem no mundo
amazônico, que provê os minerais necessários para a expansão da
nuclearização, sendo um espaço estratégico que o governo brasileiro
negou em relação às mudanças climáticas e ao vírus, já presente em
suas populações, espaço cuja importância é negada por Bolsonaro,
O VO O DO TUKUI 229
Por isso tantas vezes, renasceu
tragédia Édipo Rei, de Sófocles.
No nosso tempo
lutar contra a verdade se politiza.
Para não aceitar a verdade da ciência
criam-se caminhos que desviam
do único caminho verdadeiro.
Mas da verdade tantos descaminhos
talvez caminhem à mesma encruzilhada
como na tragédia de Édipo, Jocasta
e o povo atônito de Tebas:
à cegueira, à desesperação, à morte.
O VO O DO TUKUI 231
implicitamente o conceito canônico de literatura, incorporando a ele
o sistema popular vivo e próprio do nosso continente. Esse encontro
é uma referência no caminho das discussões sobre descolonização
intelectual. Como no caso de Las Casas, o pensamento descolonizador
emergiu do próprio centro da metrópole colonial.
No ano anterior, o Calibán (1971), de Fernández Retamar, havia
sido publicado no México, que, em uma consideração teórica na linha
de Lamming e Aimé Césaire, fez uma releitura de A Tempestade,
de Shakespeare, recuperando a imagem do personagem injuriado,
o bárbaro Calibán, enquanto símbolo positivo da América Latina
que se confronta com Próspero, o colonizador. Aqueles foram anos
em que a Revolução Cubana representou uma vanguarda não só
política e social, mas também intelectual. Tudo isso acompanhado de
outros acontecimentos que surgiram recentemente e nos obrigaram
a refletir sobre a situação no continente: a luta pelos direitos civis
nos Estados Unidos, daqueles que sonharam e para lá se dirigiam;
as lutas anticoloniais na África, que, a partir da Revolução Argelina,
estavam conseguindo se desprender das metrópoles — ainda não
conheciam suas estratégias para deixá-las subordinadas de todos os
modos —; e também os crescentes movimentos de massa que, desde
o início do século XX, mostraram na América Latina a expansão de
uma consciência própria.
Exemplo disso são também os trabalhos das Ciências Sociais da
América Latina, que deram os primeiros passos com os conceitos
de “centro” e “periferia”, no seio da CEPAL [Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe], e depois com as discussões
sobre “dependência” e outras, para começar a designar os
O VO O DO TUKUI 233
a “subalternidade”, e a noção de “colonialismo” ressurgiu, referindo-
se à obra marcante de Fanon e fundamentando nossas sociedades
atuais, aos olhos do peruano Aníbal Quijano, como “colonialidade”.
Na verdade, para além das discussões a que esses conceitos deram
e dão origem, tem se buscado as operações que estão constituindo
a cultura latino-americana e que também nela deixam marcas,
produto dos processos coloniais. Isso é o mais valioso desse percurso
que, em uma tentativa similar de descolonização, visa encontrar os
caminhos que podem explicar essas culturas em que trabalhamos e
em que vivemos.
Como participante e herdeira dessas questões, trabalhei em duas
direções com uma intenção comparativa: de um lado, em uma linha de
pensamento sobre a pluralidade, e de outro os fluxos. Esse percurso
seria formado por fluxos externos, apropriações e movimentos entre
um sistema literário e outro. Ao estudar primeiramente o Caribe,
pude perceber a existência do arquipélago cultural e as formas de sua
convivência. A conformação de suas culturas justificou sua interação,
e línguas, como o papiamento, falavam da coexistência de diferentes
línguas africanas com o português, indígena arahuaco, espanhol e
hebraico sefardita e ladino. Na literatura, expressou-se em obras
como a de D. Walcott com seus elementos clássicos ocidentais, seu
inglês, a interferência do francês, a presença do mundo hindu, entre
outras coisas; em suma, a afirmação da fragmentação na imagem do
vaso quebrado, o que ele fez no discurso do Nobel.
Estudar a Amazônia me deu outras evidências variadas dessa
pluralidade de culturas. Antes da chegada dos europeus, o esplendor
da cultura marajoara foi fruto de uma população multiétnica e
23 4 ANA PIZARRO
multilíngue que chegou em épocas diferentes, segundo estudos
arqueológicos atuais.
Samuel Benchimol destaca, por exemplo, a diversidade que
construiu as culturas amazônicas antes da chegada dos portugueses:
“Durante aqueles longos 250 anos, as matrizes culturais do povo
amazônico foram formadas por justaposição, sucessão, diferenciação,
miscigenação, competição, conflito, adaptação, por diferentes
contingentes de diversos povos, línguas, religiões e grupos étnicos”.
Para direcionar o processo subsequente nos seguintes termos:
O VO O DO TUKUI 235
um lado na Colômbia e de outro no Caribe. O rio que atravessa o
continente meridional sempre foi o veículo central dos habitantes
da região, aquele que realizava os vínculos culturais. Nem sempre
foram bons relacionamentos, é o imaginário de uma sociedade
fragmentada e tensionada. O momento da conquista certamente
agrega componentes centrais à pluralidade de grupos étnicos. Não
se trata aqui do encontro de espanhóis e indígenas, que é uma
simplificação do que se diz para caracterizar a região andina, por
exemplo. As origens e misturas culturais são aqui muito mais plurais.
Em parte, porque não são apenas espanhóis ou portugueses — que
vieram de uma forte mistura árabe e judaica. Desde o período
colonial, a região foi dominada por setores ou atravessada por
diferentes culturas europeias: holandeses, franceses, ingleses, que
tomaram posse, durante um período, de uma parte importante de
seu território.
Ao longo da história, as migrações foram diversas e em diferentes
regiões: espanhóis e portugueses, é claro, africanos de diferentes
etnias, como escravos, e a partir do século XIX, especialmente
alemães, italianos, norte-americanos, escoceses, árabes, franceses,
judeus, chineses, marroquinos, entre muitos outros. Todos eles, na
maioria das vezes, em relações de conflito com as sociedades locais.
Frequentemente se exemplifica a europeização do Amazonas
com o caso de Manaus no início do século. Pouco se fala sobre o
caso peruano. A cidade de Iquitos, uma das três mais desenvolvidas
pela extração e comercialização da borracha e por onde chegava
a frota marítima, tinha na época um ar cosmopolita e um aspecto
de belle époque, o que pode ser deduzido dos vestígios da época.
O VO O DO TUKUI 237
caso das culturas africanas que vieram com a escravidão.
Se pensarmos no trânsito de culturas ao longo do século XX,
a dinâmica adquire uma agilidade cada vez maior. De um lado, os
fenômenos de imigração que se desenvolvem em função da crise
europeia: italianos; alemães; centro-europeus de diferentes linhagens
culturais; judeus de diferentes raízes, como S. Benchimol apontou
detalhadamente para a Amazônia; árabes de lugares e histórias
diferentes; chineses, asiáticos em geral, etc. A dinâmica interna do
continente não é menos ágil, principalmente a partir de meados
do século, quando as fortes migrações do México, da América
Central e do Caribe dão origem a uma área cultural extraterritorial
diferente, como a dos latinos nos Estados Unidos, de caráter também
intercultural em uma direção diferente.
Cada um deles, como cada fluxo de leituras, de arte, no espaço
visual e auditivo que se multiplica à medida que o século passa
e avança a cultura popular de massa, adquirindo a velocidade da
vertigem com a entrada da televisão e depois da internet, constitui,
em suas variantes, um fluxo, que se incorpora às operações de
construção cultural com diferentes graus de presença, em diferentes
momentos e sob diferentes formas de interação. Pensemos que os
sistemas literários culturais — erudito, popular rural, popular de
massa e indígena — apresentam diferentes conexões não apenas em
relação a esses fluxos como também nas relações entre si. Em outras
palavras, a cultura latino-americana é um processo de articulação de
fluxos. De um lado, existem vários fluxos europeus de imposição,
com diferenças internas no âmbito espacial e temporal, baseadas no
desenvolvimento histórico diferenciado das áreas culturais, tendo
O VO O DO TUKUI 239
com um olhar comparativo. Assim, a historiografia do continente não
pode ser reduzida à soma das culturas ou das literaturas nacionais.
Uma coluna vertebral articula esses processos e lhes dá significado.
Essa coluna é a história da colonização e, para além dela, o seu efeito
subsequente, a colonialidade das estruturas de relacionamento, a
colonialidade do poder, construindo o espaço cultural. Para não citar
a mim mesma, volto às expressões de um trabalho anterior, pois sinto
que o conhecimento funciona em espiral.
Parece-me que devemos repensar a noção de “transculturação”,
que o nosso professor toma de Fernando Ortiz. O conceito foi
enormemente produtivo nos estudos da cultura latino-americana.
Mas a abertura à pluralidade que o desenvolvimento desse
pensamento significou com a passagem para a modernidade tardia
nos leva a perceber uma certa linearidade, como apontamos, e uma
certa unicidade na lógica desse pensamento, apesar de ser, sem
dúvida, uma das maiores conquistas teóricas dos estudos da cultura
latino-americana. Ela pertence ao pensamento da modernidade e, em
sua fase tardia, aquela em que vivemos hoje, nos dá uma perspectiva
mais plural na percepção da realidade.
A operação transcultural nos parece ser um dos mecanismos
de um processo muito maior, cuja complexidade, revelada pelo
desenvolvimento do conhecimento atual, exige um novo olhar. Um
olhar mais rizomático e múltiplo para um quadro cultural, cujos
elementos convergem, deslocam-se, rejeitam-se, contradizem-
se, cruzam-se, convertem-se, sobrepõem-se, selecionam-se,
reelaboram-se em cadeia e em movimentos paralelos, num mesmo
tempo ou ao longo do tempo. Eles desembocam não em uma cultura
O VO O DO TUKUI 241
fato de que, como representação da realidade, seus elementos, seu
processo, sua estruturação, não podem ser estudados isoladamente,
mas sim em conjunção disciplinar. Nesse sentido, nossa reflexão
sobre essas formações nos aproxima de Cornejo Polar, que falava de
sistemas em 1982 em nosso encontro em Caracas e antes, em 1977,
da “heterogeneidade”, ao estudar a literatura peruana como uma
totalidade contraditória, e já vislumbrar a diferença de sistemas.
Outras dimensões dos fluxos ocorrem internamente, com
movimentos internos de relação entre os diferentes sistemas: o
popular, que se incorpora ao erudito; o indígena, como o mais
resistente; o erudito, que é absorvido pelo popular, pelo sistema de
massas. Os caminhos e as relações são múltiplos: os movimentos
mostram a passagem de um sistema a outro, a reapropriação de um
mesmo sistema, as conexões internas desse recorte da realidade
que chamamos de “cultura” e “literatura”, e, em um recorte ainda
mais restrito, “latino-americanas”. Espaço delineado pela reflexão
que tem fronteiras frágeis e abertas em movimento. Que se apropria
de fluxos de diferentes potências: hegemônicos ou subordinados.
Que os processa em múltiplos tempos, cada um com sua velocidade
dependendo de sua inscrição histórica, alguns deles com o tempo
lento das constantes. Que se cruzam, não necessariamente em
combinação binária, mas múltipla devido à pluralidade de seus
componentes, alguns de maior poder, outros de menor. Que
produzem desdobramentos imprevistos, e não necessariamente
chegam a uma fusão, que mostram desdobramentos paralelos sem
fusão possível, como no caso andino ou amazônico, dos grupos
indígenas. Que, então, são projetados não necessariamente em
O VO O DO TUKUI 24 3
As sociedades ch’ixi, como aponta a boliviana Silvia Rivera
Cusicanqui, situam-se na linha de pensamento sobre a “sociedade
variada”98 de René Zavaleta. Ela explica: “A noção de ch’ixi, ao contrário,
propõe a coexistência paralela de múltiplas diferenças culturais que
não se fundem, mas se antagonizam ou se complementam. Cada uma
reproduz a si mesma das profundezas do passado e se relaciona com
as demais de forma contraditória”.
É por isso que me pergunto se esse tecido, essa rede, em seu
movimento, seu entrelaçamento de fluxos, energias culturais
diferentes e diferenciadas, também na sociedade em que se
agitam, não responde à estrutura da «cesta» de que os membros
da comunidade Muinane falam. A cesta dá forma e conteúdo aos
múltiplos graus e sentimentos do horror vivido por sua etnia, no
Putumayo, nos tempos da Casa Arana, e por isso se fala de uma “Cesta
das Trevas”, cujo sentido é deslocado para purificar a existência das
gerações que vêm e a transformam em uma “Cesta de Vida”.
Ana Pizarro
O VO O DO TUKUI 24 5
246 ANA PIZARRO
SOBRE AS ILUSTRAÇÕES
O VO O DO TUKUI 247
Como naturalista, ele continuou a desenvolver suas pesquisas
com base em várias viagens pelo território chileno, incluindo sua
expedição de três meses ao Deserto do Atacama, encomendada
pelo governo, e sua exploração de toda a área de colonização ale-
mã entre Valdivia e o Lago Llanquihue. Philippi também realizou
estudos no arquipélago de Juan Fernández e na Araucania. En-
quanto desenvolvia suas pesquisas, ele manteve correspondência
com renomados cientistas como Charles Darwin e Alexander von
Humboldt.
Suas pesquisas em zoologia, botânica, geologia, paleontologia,
climatologia, entomologia, entre outras, desenvolvidas ao longo de
53 anos de atividade científica ininterrupta, foram registradas em
mais de 500 trabalhos científicos publicados tanto no Chile como
no exterior. Somente em botânica, ele descreveu 3.730 espécies
chilenas das 5.000 atualmente conhecidas.
Philippi foi professor de botânica e zoologia na Universidade
do Chile e diretor do Museu Nacional de História Natural, o qual
cresceu de forma notável durante sua gestão.
2 48 ANA PIZARRO
SOBRE O ORGANIZADOR
O VO O DO TUKUI 249
foi publicado no Brasil pela Editora UFMG, em 2006. Em 2020, pu-
blicou a antologia de ensaios “Piedra, papel o tijera: Sobre cultura
y literatura en América Latina”, pela Eduvim.
CONSELHO FISCAL
Antonio Callado
Carlos de Araujo Moreira Neto
Leonel de Moura Brizola
Maria Vera Teixeira Brant
Moacir Werneck de Castro
Oscar Niemeyer
Paulo de F. Ribeiro
Tatiana Chagas Memória
Wilson Mirza
Os textos deste volume da BBLA foram
compostos utilizando as famílias tipográ-
ficas Neco e General Sans. O exemplar que
você tem nas mãos foi impresso nos ateliês
da gráfica PSI7 (São Paulo) em novembro
de 2021.