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Textos & Debates

Revista de Filosofia e Ciências Humanas


da Universidade Federal de Roraima

No 26

REVISTA VINCULADA AOS PROGRAMAS DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS DO CENTRO


DE CIÊNCIAS HUMANAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA (CCH/UFRR)

ISSN 1413-9987
ISSN On-line 2317-1448

Textos & Debates Boa Vista Nº 26 Referência 2014 / Publicação 2015


Ficha catalográfica

Textos & Debates: R e v i s t a d e F i l o s o f i a e C i ê n c i a s H u m a n a s d a U n i v e r s i d a d e


Fe d e r a l d e R o r a i m a n. 1 (1995) - . - Boa Vista: Editora UFRR, 1995-
Periodicidade: semestral.
ISSN 1413-9987 / ISSN On-line 2317-1448
1. Periódicos. 2.Ciências Sociais. 3.História - Universidade Federal de Roraima.
Revista vinculada aos programas de estudos pós-graduados do Centro de Ciências Humanas (CCH/UFRR)
CDU:0 (05)

Indexada em Sumários Correntes Brasileiros - ESALQ; Indice Historico Español - Bibliografias de História de
España; Centro de Información y Documentación Científica - CINDOC; American History and Life ABC - Clio
- 130; Historical Abstract - ABC - Clio - 130; Hispanic American Periodical Index; Bibliographies and Indexes in
Latin American and Caribbean Studies; Social Sciences Index; Info-Latinoamerica (ILA); Ulrich’s International
Periodicals Directory.

Textos & Debates

Comitê editorial Conselho Executivo


Ana Lúcia de Sousa Prof. Dr. Alfredo Ferreira de Souza (UFRR)
Maria Luiza Fernandes Profa. Dra. Ana Lúcia de Sousa (UFRR)
Rodrigo Pereira Chagas Prof. Dr. Américo Alves de Lyra Jr. (UFRR)
Profa. Dra. Carla Monteiro de Souza (UFRR)
Conselho Editorial Prof. Dr. Carlos Alberto Marinho Cirino (UFRR)
Prof. Dr. Antonio Emílio Morga (UFAM) Profa. Dra. Déborah de B. A. P. Freitas (UFRR)
Prof. Dr. Antônio Paulo Rezende (UFPE) Prof. Dr. Edson Rufino Oyama (UFRR)
Prof. Dr. Durval Muniz de A. Júnior (UFRN) Prof. Dr. Felipe Kern Moreira (UFRR)
Prof. Dr. José Ribamar Bessa Freire (UERJ) Profa. Dra. Francilene dos Santos Rodrigues (UFRR)
Profa. Dra. Silvia Regina Ferraz Petersen (UFGRS) Prof. Dra. Gilvete de Lima Gabriel (UFRR)
Profa. Dra. Maria Denise Guedes (UNESP) Prof. Dr. Jaci Guilherme Vieira (UFRR)
Prof. Dr. Nilson Cortez Crócia de Barros (UFPE) Profa. Dra. Madalena Vange M. C. Borges (UFRR)
Prof. Dr. Ramòn Peña Castro (UFScar) Profa. Dra. Maria das Graças S. D. Magalhães (UFRR)
Prof. Dr. Stephen Grant Baines (UNB) Profa. Dra. Maria Luiza Fernandes (UFRR)
Prof. Dr. Maxim Repetto (UFRR)
Prof. Dr. Nélvio Paulo Dutra Santos (UFRR)
Prof. Dra. Olendina de carvalho Cavalcante (UFRR)
Prof. Dr. Reginaldo Gomes de Oliveira (UFRR)
Prof. Dr. Roberto Mibielli (UFRR)
Prof. Dr. Roberto Ramos Santos (UFRR)

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Campus Paricarana: Av. Cap. Ene Garcez, Direção
nº 2413. Bairro Aeroporto. Cezário Paulino Bezerra de Queiroz
CEP: 69304-000 Boa Vista / RR
Telefone: (55) (95) 3621-3111 Editoração Eletrônica e Capa
E-mail: [email protected] Rodrigo P. Chagas
www.ufrr.br Tayná de Mello Leite
Berto Batalha M. Carvalho
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 04

ARTIGOS
Dificuldade de demarcação da Pan-Amazônia e dos
territórios indígenas na região . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07
Paulo Henrique Faria Nunes
Iniciati va para a Integração da Infraestrutura Regional
Sul-Americana (IIRSA) – Possibilidades e Desafios: Eixo Peru-
Brasil-Bolívia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Suely Aparecida de Lima
A prisão para efetivação da deportação no Brasil:
inconsistências com as normas da convenção americana de
direitos humanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
Alan Robson Alexandrino Ramos
Antigas e novas dinâmicas de poder e território no Médio
Purus/AM. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Willas Dias da Costa
Thereza C. Cardoso Menezes
TRÍPLICE FRONTEIRA BRASIL, PERU E COLÔMBIA E AS IMPLICAÇÕES
COM O NARCOTRÁFICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
Luiz Felipe de Vasconcelos Dias Balieiro
Izaura Rodrigues Nascimento
O MUNDO DA HINTERLÂNDIA E OS AVANÇOS DA FRONTEIRA NO
ESPAÇO TOCANTINENSE .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Débora Assumpção e Lima

RESENHA
Educação à distância: sobre discursos e práticas. . . . . . . . . . 113
Andyara Maria G. P. Schimin
Ângelo Munhoz

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, referência 2014. Publicação 2015


Apresentação

A Revista Textos & Debates do Centro de Ciências Humanas da Universidade


Federal de Roraima, nessa Edição 26 (2015), abre espaço para publicação de algu-
mas pesquisas que representam o aprofundamento de estudos relacionados com a
temática das migrações, fronteiras, grandes projetos, territórios e conflitos na Pan-
Amazônia. Nessa perspectiva, acredita-se que os textos publicados nessa edição re-
presentam uma forma de dar continuidade ao debate e aprofundamento de temas
relevantes para a produção do conhecimento nessa região, marcada pela complexi-
dade de suas fronteiras.
O texto Dificuldade de demarcação da Pan-Amazônia e dos territórios indíge-
nas na região, de Paulo Henrique Faria Nunes, analisa dois problemas relacionados
à cooperação amazônica: a delimitação da área de aplicação do Tratado de Coope-
ração Amazônica - TCA, conhecida como Amazônia pactual ou Pan-amazônia e a
demarcação de terras indígenas. Segundo o autor parece não haver um diálogo que
possibilite a adoção de critérios harmônicos na definição das áreas nacionais e, no
tocante às terras indígenas, percebe-se que as diferenças e a ineficiência na condução
das políticas nacionais têm aberto o caminho para que as terras indígenas e o co-
nhecimento tradicional se tornem possíveis instrumentos de ingerência estrangeira
na Amazônia.
Dando continuidade ao debate da Pan-Amazônia, o texto IIRSA – Possibilida-
des e Desafios: Eixo Peru-Brasil-Bolívia, de autoria de Suely Aparecida de Lima e
Maria de Jesus Morais, avalia as relações do Brasil com o Peru e a Bolívia baseadas
na Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana - IIRSA, a
partir de sua incorporação pela UNASUL, em 2008. As autoras aprofundam as for-
mulações da política externa brasileira e o projeto geopolítico dispensado à América
do Sul e os benefícios resultantes do processo de integração regional Sul-americano
promovido pelo Brasil. Entretanto, alertam que os ganhos comerciais não refletem
em ganhos sociais no tocante às populações das localidades atingidas, podendo re-
sultar em conflitos nas fronteiras.
Outras modalidades de conflitos são abordados no texto Antigas e novas dinâ-
micas de poder e território no Médio Purus/AM, de Willas Dias da Costa e The-
reza Cristina Cardoso Menezes, que apresentam um quadro complexo de conflitos
socioambientais no sul do Estado do Amazonas envolvendo patrões, lideranças das
associações de agricultores e das etnias indígenas com os agentes do Estado.

4 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 4-6, referência 2014. Publicação 2015


A temática dos conflitos é retomada também no texto Tríplice fronteira Brasil,
Peru e Colômbia e as implicações com o narcotráfico, de Luiz Felipe de Vasconcelos
Dias Balieiro e Izaura Rodrigues Nascimento. Os/as autores/as observam as cara-
cerísticas do narcotráfico na tríplice fronteira amazônica, seu processo de formação
histórica, a dinâmica da atividade cocaleira e do narcotráfico nos países vizinhos e
suas implicações nas relações transfronteiriças.
O texto de Alan Robson Alexandrino Ramos, A prisão para efetivação da depor-
tação no Brasil: inconsistências com as normas da convenção americana de direitos
humanos, aborda o instituto jurídico da deportação no Brasil, com análise da medida
de prisão administrativa para efetivação da deportação de estrangeiros no Brasil em
confronto com as normas da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Adentrando as fronteiras da Amazônia Brasileira, Débora Assumpção e Lima,
tendo por base a formação do estado do Tocantins, apresenta a hinterlândia, como
uma releitura do sertão, não apenas como um lugar, mas uma condição atribuída
a variados lugares. Segundo a autora, a hinterlândia pode ser também um símbolo
imposto, uma realidade simbólica onde o sertão não pode ser mensurável, já que
a fronteira é movimento. Nessa perspectiva, o “fim do atraso” do sertão seria a
maneira de se reconfigurá-lo, produzindo-o a partir do mesmo modo de circulação,
de trabalho e de signos em suas diversas temporalidades, criadas pelos diversos ato-
res e suas complexidades históricas, velocidades, conflitos e intencionalidades que
formam um território integrado ao sistema do capital, mesmo que localizado na
margem.
Por fim, e não menos importante, Gil Almeida Felix, em seu texto Trabalho e
mobilidade: trajetórias sociais de trabalhadores em Ourilândia do Norte/PA, aborda
a questão da expansão das atividades industriais de mineração dirigidas pelo grande
capital, em especial, pela empresa Vale e associadas, que tem sido anunciada como
promotora do “desenvolvimento” local no Pará. Entretanto, o autor afirma que tal
expansão se dá através da atração de enormes contingentes de trabalhadores que an-
tes circulavam em atividades da rede de produção agropecuária e que, em sua maio-
ria, encontram trabalho apenas no período de implantação das unidades industriais.
O autor analisa determinadas características de processos de proletarização em uma
área de expansão da indústria da mineração e apresenta os desafios metodológicos
que tal contingente de trabalhadores representa para a pesquisa sócio-antropológica,
em especial, para a devida compreensão das suas trajetórias sociais e das atuais for-
mas de acumulação de capital.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 4-6, referência 2014. Publicação 2015 5


Fica claro, assim, que a edição número 26 da Revista Textos & Debates nos
apresenta importantes contribuições para ampliar o conhecimento acerca da região
Amazônica. Agradecemos a contribuição de todos/as os/as pesquisadores/as que
tornaram possível essa edição contribuindo para o debate e o aprofundamento das
temáticas ora apresentadas.

Profa. Dra. Márcia Maria de Oliveira


Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia. Pós-Doutoranda (PNPD/CAPES) junto ao
Programa de Pós-Graduação Sociedade e Fronteiras - PPGSOF da Universidade Federal de Roraima.

6 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 4-6, referência 2014. Publicação 2015


Paulo Henrique Faria Nunes*

Artigo
Dificuldade de demarcação da Pan-Amazônia e dos
territórios indígenas na região

Resumo Abstract
Este artigo analisa dois problemas relacio- This article analyzes two problems related to the
nados à cooperação amazônica: a delimi- Amazonian cooperation: the delimitation of the
tação da área de aplicação do Tratado de area subjected to the Amazon Cooperation Treaty
Cooperação Amazônica (TCA), conhecida (ACT), known as Amazonia pactual or Pan
como Amazônia pactual ou Pan-amazônia; Amazonia; and the demarcation of indigenous
e a demarcação de terras indígenas. Ao lands. Concerning the first issue, the study shows
abordar a primeira temática, constata-se that there is no any satisfactory conversation that
que não há um diálogo que possibilite a makes feasible the adoption of harmonic criteria
adoção de critérios harmônicos na defi- aiming the definition of the national areas.
nição das áreas nacionais. No tocante às Regarding the indigenous lands, Amazonian
terras indígenas, verifica-se que os Estados States have a legal framework complemented by
amazônicos dispõem de um marco legal international instruments although the ACT
complementado por instrumentos inter- has no granted special concern to this matter.
nacionais, embora o TCA não tenha dado However, the implementation of the national
destaque a essa matéria. Entretanto as policies has been unequal and inefficient what
diferenças e a ineficiência na condução das turns the indigenous lands and the traditional
políticas nacionais têm aberto o caminho knowledge instruments of foreign intervention in
para que as terras indígenas e o conhe- Amazonia”
cimento tradicional se tornem possíveis
instrumentos de ingerência estrangeira na Keywords:
Amazônia.
Amazonia; cooperation; integration; territory;
indigenous peoples.
Palavras-Chave:
Amazônia; cooperação; integração; territó-
rio; povos indígenas.

* Bacharel em Direito (UFG), especialista em Relações Internacionais (PUC Goiás), mestre em Geografia
(UFG), doutorando em Ciências Políticas e Sociais na Universidade de Liège (Bélgica). Professor e pes-
quisador na PUC Goiás e na Universidade Salgado de Oliveira (campus Goiânia).

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 7


Introdução

A questão territorial nos países amazônicos apresenta uma dinâmica complexa.


Além de todos os problemas de ordem geopolítica e dos discursos – muitas vezes
exagerados – sobre uma possível internacionalização da Amazônia, existe uma quan-
tidade razoável de litígios entre os países da região. Igualmente não se pode ignorar
a existência de problemas decorrentes da ineficiência da estrutura governamental
(narcotráfico, contrabando, mineração ilegal, danos ambientais, guerrilha) e de ques-
tões políticas nacionais que extrapolam as fronteiras a exemplo do movimento de
refugiados. Outro elemento que merece destaque quando se discute o conceito de
território no contexto das relações pan-amazônicas são as terras indígenas e os di-
reitos dos povos originários.
Este trabalho tem por objetivo principal analisar a demarcação da área de Ama-
zônia Legal de cada país-membro da Organização do Tratado de Cooperação Ama-
zônica (OTCA) e dos territórios indígenas na região, a fim de compreender as razões
e os fatores complicadores, bem como propor possíveis soluções para o problema.
Chama-se a atenção para a relevância do tema, uma vez que determinados pro-
blemas discutidos pelos vários setores governamentais e pela sociedade civil não
se restringem ao território nacional. A parcela de preservação da cobertura vegetal
originária na Amazônia brasileira é algo que deve ser pensado levando-se em consi-
deração as políticas agropecuárias e ambientais dos países vizinhos pois parte signifi-
cativa da produção agrícola na zona andino-amazônica (v.g. Bolívia, Peru, Colômbia,
Venezuela) se dá no domínio da floresta; o mesmo pode ser dito em relação às nas-
centes de importantes afluentes do Grande Rio, aos povos indígenas transfronteiriços
(v.g. Ianomâmi), às espécies da biodiversidade que se espalham por vários países e à
atuação de grupos criminosos transnacionais.
Registra-se ainda que existem iniciativas no sentido de diminuir a dimensão
da Amazônia Legal brasileira, a exemplo do projeto de lei 5/2007 – apresentado
pelo senador Jonas Pinheiro (DEM-MT) – que visa a exclusão dos estados do Mato
Grosso, Tocantins e Maranhão.
Inicialmente, serão apresentadas questões gerais a respeito da OTCA. Em se-
guida, serão analisadas a delimitação da Pan-amazônia e a demarcação das áreas
indígenas.
Por último, registra-se que as informações contidas neste artigo são resultado
do estudo de fontes bibliográficas, análise legislativa comparada, diálogos interinsti-
tucionais e coleta primária por meio de entrevistas.

8 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015


Considerações gerais sobre o Tratado de Cooperação Amazônica

O Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi firmado, em Brasília, aos 3


de julho de 1978, pelos oito Estados independentes da região – Brasil, Bolívia, Co-
lômbia, Equador, Guiana, Peru, Venezuela e Suriname. O texto se sustenta sobre
dois princípios fundamentais: soberania e proteção da natureza. Entretanto, outros
objetivos foram propostos quando da sua adoção: comércio; infraestrutura física;
navegação; cooperação em setores como educação e saúde; proteção dos povos in-
dígenas.
O Pacto Amazônico reflete a preocupação conjunta de afirmação de soberania
sobre o território e os recursos naturais de cada Estado-parte, a fim de garantir a
continuidade dos projetos econômicos na região e afastar o fantasma da interna-
cionalização. Além disso, os signatários apresentaram à sociedade internacional um
texto que resguardasse não apenas a exclusividade da gestão dos problemas amazô-
nicos, mas transparecesse a sintonia do desenvolvimento com a proteção ambiental.
Dentre os principais fatos que favoreceram um ambiente propício ao diálogo,
mencionam-se: os litígios territoriais pendentes entre vários dos países negociado-
res; a crise energética mundial – que colocou o petróleo, o gás e o carvão sul-ameri-
canos na pauta de prioridades brasileiras; o movimento ambientalista em ascensão e
a realização de conferências de âmbito global, a exemplo da Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972) e a Conferência das
Nações Unidas sobre a Água (Mar del Plata, 1977); a busca de apoio mútuo para a
condução dos projetos nacionais de exploração econômica da Amazônia. Embora
esse contexto esteja bem presente no TCA, identificam-se algumas divergências na
enumeração dos elementos norteadores da cooperação regional.
José Enrique Greño Velasco (1979) apresenta os seguintes: igualdade das par-
tes; liberdade de navegação comercial; uso e aproveitamento exclusivo dos recursos
naturais.
Adherbal Meira Mattos sugere, a partir da análise do preâmbulo, “a cooperação,
o desenvolvimento, o respeito à soberania e a preservação do meio ambiente” (1982,
p. 15).
Rubens Ricupero (1984) apresenta cinco princípios fundamentais: exclusividade
no desenvolvimento e no aproveitamento da Amazônia; soberania nacional; coope-
ração regional; desenvolvimento harmônico1; igualdade. Para Georgenor de Sousa
1
Resumiu-se com a expressão desenvolvimento harmônico, presente no preâmbulo e no art. I, o que
Rubens Ricupero traduziu na redação “o equilíbrio e a harmonia entre o desenvolvimento e a proteção
ecológica” (Ibid., p. 186)

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Franco Filho (1996), as diretrizes mestras do Pacto são a exclusividade; a soberania
interna; a cooperação regional; o equilíbrio ecológico; e a igualdade. Edson Damas
da Silveira (2002) sintetiza os princípios do TCA em apenas três elementos: sobera-
nia, desenvolvimento sustentável e cooperação regional.
A partir de uma análise do tratado, resumem-se os princípios em quatro: sobera-
nia; equidade; desenvolvimento harmônico, ou sustentável; cooperação. Emprega-se aqui a pala-
vra soberania sem nenhum adjetivo pois trata-se de uma característica elementar do
poder estatal. É certo que a soberania pode ser analisada sob o prisma interno e in-
ternacional; todavia, o texto do Pacto Amazônico enfatiza as restrições decorrentes
do Direito Internacional (art. III, IV, XVI). O art. XVI representa bem essa sintonia
entre soberania e direito internacional: “As decisões e compromissos adotados pelas
Partes Contratantes na aplicação do presente Tratado não prejudicarão os projetos e
empreendimentos que executem em seus respectivos territórios, dentro do respeito
ao Direito Internacional e segundo a boa prática entre nações vizinhas e amigas”.
Optou-se por utilizar a palavra equidade no lugar de igualdade, visto que busca-
-se definir aqui apenas os princípios gerais do TCA e não as obrigações formais. A
igualdade pode ser encontrada em vários dispositivos, mas o parágrafo único do art.
XVII faz menção especial aos “países de menor desenvolvimento”.
O desenvolvimento harmônico – ou sustentável, conforme expressão conso-
lidada nas décadas seguintes – é uma evidência clara da preocupação com a explo-
ração econômica da região e com a proteção ambiental. Todavia, percebe-se que a
temática ambiental foi uma medida politicamente correta a fim de harmonizar o
Pacto Amazônico com os principais instrumentos internacionais voltados para a
preservação do meio ambiente. É evidente o cuidado com o ser humano: saúde;
condições sanitárias; epidemias; desenvolvimento social são elementos presentes no
tratado. Contudo, é importante não chegar à conclusão precipitada que o TCA se
antecipa ao conceito de desenvolvimento sustentável pois o leitmotiv era o desenvol-
vimento econômico. A inquietação com a incorporação da Amazônia ao território
nacional e à sua valorização econômica, uma constante desde a década de 1950, está
bem evidente no preâmbulo2 e no art. X3.
2
“Animadas do propósito comum de conjugar os esforços que vêm empreendendo, tanto em seus respec-
tivos territórios como entre si, para promover o desenvolvimento harmônico da Amazônia, que permita
uma distribuição equitativa dos benefícios desse desenvolvimento entre as Partes Contratantes, para ele-
var o nível de vida de seus povos e a fim de lograr a plena incorporação de seus territórios amazônicos às
respectivas economias nacionais”.
3
“Artigo X. As Partes Contratantes coincidem na conveniência de criar uma infra-estrutura física ade-
quada entre seus respectivos países, especialmente nos aspectos de transportes e comunicações. Con-
sequentemente, comprometem-se a estudar as formas mais harmônicas de estabelecer ou aperfeiçoar as

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No tocante à cooperação, optou-se por eliminar o adjetivo “regional”. É claro
que a prioridade é a cooperação entre os Estados contratantes. No entanto, o tratado
não restringe a participação de outros organismos internacionais. Os artigos IX (§
2.º4) e XV5 preveem a possibilidade de ações conjuntas com outras entidades, com
especial destaque a organizações latino-americanas. A Organização dos Estados
Americanos (OEA) tem desenvolvido ações em parceria com os países amazônicos
e programas específicos foram criados, a exemplo do Projeto Plurinacional de Coo-
peração Amazônica e do Projeto Desenvolvimento Sustentável de Áreas Fronteiri-
ças na América do Sul.
Apesar da relevância geopolítica da Amazônia, o TCA permaneceu em um lon-
go período de marasmo e, a fim de torná-lo mais efetivo, os signatários investiram
em um novo projeto no fim da década de 1990. Aos 14 de dezembro de 1998, foi
celebrado, em Caracas, o Protocolo de Emenda ao TCA por meio do qual foi criada
a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), entidade dotada de
personalidade jurídica e competente para celebrar tratados com Estados e organis-
mos intergovernamentais.

A delimitação da Pan-Amazônia

Identificados e esclarecidos os princípios fundamentais do TCA, discorre-se


sobre a delimitação da Pan-amazônia.
Em primeiro lugar, cumpre destacar que a área de abrangência espacial do tra-
tado depende da legislação de cada país. A Amazônia Pactual é a soma das áreas de
Amazônia Legal (art. II), de modo que se extrapolou a dimensão da Bacia Amazôni-
ca e/ou da Floresta Tropical. No entanto, ainda hoje, nem todos os Estados-partes
dispõem de normas internas que definem com clareza a porção do território que
corresponde à Amazônia nacional.

interconexões rodoviárias, de transportes fluviais, aéreos e de telecomunicações, tendo em conta os planos


e programas de cada país para lograr o objetivo prioritário de integrar plenamente seus territórios amazô-
nicos às suas respectivas economias nacionais”.
4
“As Partes Contratantes poderão, sempre que julgarem necessário e conveniente, solicitar a participação
de organismos internacionais na execução de estudos, programas e projetos resultantes das formas de
cooperação técnica e científica definidas no parágrafo primeiro do presente artigo”
5
“As Partes Contratantes se esforçarão por manter um intercâmbio permanente de informações e colabo-
ração entre si e com os órgãos de cooperação latino-americanos, nos campos de ação que se relacionam
com as matérias que são objeto deste Tratado”.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 11


À época da assinatura do TCA havia preocupações de ordem interna,
sobretudo por causa dos planos nacionais de desenvolvimento, bem como certa
desconfiança de cunho geopolítico. No Brasil, a Amazônia Legal foi delimitada
pela primeira vez em 1953 (art. 2.º da Lei 1.806); atualmente, ela é regulamentada
pela lei complementar 124/2007. Segundo o art. 2.º desse último ato normativo,
trata-se da área que “[...] abrange os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato
Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Pará e do Maranhão na sua porção a oeste
do Meridiano 44º”.6
Na Bolívia, a questão foi alçada ao nível constitucional. O parágrafo II do art.
390 da Constituição de 2009 inclui as seguintes unidades administrativas na Amazô-
nia boliviana: “[...] la totalidad del departamento de Pando, la provincia Iturralde del
departamento de La Paz y las provincias Vaca Díez y Ballivián del departamento del
Beni”. A Amazônia Legal colombiana é constituída pelos departamentos de Caquetá,
Putumayo, Amazonas, Guainía, Guaviare e Vaupés (art. 1.º do decreto 3.083/1986).
O Equador, muito provavelmente em virtude dos conflitos territoriais que en-
volveram porções da Hileia, dispõe de regulamentos longevos, a exemplo da Ley
de División Territorial de la Región Oriental (19 ago. 1925), sucedida pela Ley Es-
pecial de Oriente (20 ago. 1960). Após a entrada em vigor do Tratado de Coopera-
ção Amazônica substitui-se a expressão “Região Oriental” por “Região Amazônica
Equatoriana” (decreto legislativo 41, de 5 ago. 1980). Dela fazem parte as províncias
de Sucumbíos, Francisco de Orellana, Napo, Pastaza, Morona-Santiago e Zamora-
-Chinchipe.

6
A Amazônia brasileira, conforme a lei 1.806/1953, era menor do que a atual pois não contemplava toda
a área correspondente a Mato Grosso: “Art. 2.º A Amazônia brasileira, para efeito de planejamento econô-
mico e execução do Plano definido nesta lei, abrange a região compreendida pelos Estados do Pará e do
Amazonas, pelos territórios federais do Acre, Amapá, Guaporé e Rio Branco e ainda, a parte do Estado de
Mato Grosso a norte do paralelo de 16º, a do Estado de Goiás a norte do paralelo de 13º e a do Maranhão
a oeste do meridiano de 44.º”.

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No Peru, a Lei 27.037/1998 faz uma minuciosa descrição da Amazônia.

Figura 1: delimitação da amazônia pactual7

A Amazônia venezuelana, no que diz respeito à aplicação do TCA, corresponde


ao Estado do Amazonas. Contudo, uma porção maior do território da Venezuela
possui características que permitiriam a ampliação do conceito de Amazônia vene-
zuelana. O decreto 478, de 8 jan. 1980, dispõe sobre as regiões administrativas do
país; uma delas é a Guayana, formada pelos estados de Bolívar, Amazonas e Delta
Amacuro. No fim de abril de 2010, o Ministerio para el Poder Popular del Ambiente
anunciou um projeto de divisão do território venezuelano em biorregiões, a fim de
aplicar planos específicos para a Convenção sobre Diversidade Biológica. A propos-
ta é estabelecer quatro macrorregiões: região marino-costera-insular; região dos llanos;
região andina; e região do Delta. Essa última corresponderá à região Guayana. Há,
portanto, uma possibilidade considerável que Bolívar e Delta Amacuro sejam inclu-
ídos na Amazônia venezuelana.
A Guiana e o Suriname não dispõem de normas internas específicas e tampouco
integram a bacia Amazônica. Assim, consideram-se incluídas na Pan-amazônia as
áreas de floresta tropical dos dois países.
7
Fonte: EVA, Hugh D.; HUBER, Otto. A proposal for defining the geographical boundaries of Amazonia:
Synthesis of the results from an Expert Consultation Workshop organized by the European Commission
in collaboration with the Amazon Cooperation Treaty Organization – JRC Ispra, 7-8 June 2005. Luxem-
bourg: Office for Official Publications of the European Communities, 2005.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 13


Conquanto a área de aplicação do TCA em cada país-membro possa ser de-
finida internamente, a questão foi levada ao nível institucional e interinstitucional.
No fim de 2004, a Secretária-geral da Organização do Tratado de Cooperação Ama-
zônica (OTCA), Rosalía Arteaga Serrano, dirigiu-se formalmente ao Presidente da
Comissão Europeia e solicitou o apoio do Centro Comum de Pesquisa (Centre de Re-
cherche Conjoint) para a realização de um trabalho de definição dos limites geográficos
da Amazônia. Realizou-se então em junho de 2005, em Ispra (Itália), um seminário
com a finalidade de apresentar os resultados dos trabalhos dos experts. De modo bem
direto, pode-se afirmar que a proposta do grupo europeu busca suprimir algumas
áreas de savana, tanto ao norte quanto ao sul, e conferir maior importância a zonas
com ecossistemas e estrutura hidrológica mais vulneráveis. Buscou-se incluir áreas
de florestas na região do Planalto das Guianas; no Brasil, vislumbrou-se a inclusão
de áreas do Planalto Central, onde nascem alguns cursos que correm em direção ao
norte do país, isto é, rumo à bacia Amazônica, e de porções da faixa de interseção
floresta-pantanal; nos países andinos, nota-se também que houve a preocupação de
incluir áreas de florestas e pontos de formação de cursos d’água que abastecem rios
amazônicos.
A participação de um grupo de experts europeus, conquanto solicitada pela Se-
cretária-geral da OTCA, não foi bem recebida por vários setores dos países-mem-
bros da entidade. Os resultados do estudo, embora relevantes, também não corres-
pondem a um anseio por parte dos governos amazônicos de definir de modo preciso
a área correspondente à Amazônia no texto do TCA. Além do fato da proposta do
Centro Comum de Pesquisa incluir a Guiana Francesa, um não signatário do TCA,
vale lembrar que no Brasil há projetos de lei que visam reduzir substancialmente a
área da Amazônia brasileira.
Apesar da indisposição gerada pelo trabalho do centro ligado à Comissão Eu-
ropeia, deve-se admitir que os resultados foram bastante satisfatórios do ponto de
vista técnico.

14 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015


Figura 2 – Proposta De Delimitação Da Pan-Amazônia Elaborada Pelo Grupo De Experts Do
Centro Comum De Pesquisa8

Os territórios indígenas na Pan-Amazônia

Os temas dominantes do TCA são, em síntese: desenvolvimento harmônico e


infraestrutura; intercâmbio de informações; respeito à soberania e à integridade ter-
ritorial. Como matérias secundárias, podem-se enumerar: comércio, turismo, política
social, povos indígenas.
Apesar da importância do assunto, o TCA não define políticas claras para as
populações autóctones. Dois artigos fazem referências vagas ao assunto: o art. XIII,
que trata do fomento ao turismo, prevê que essa atividade deve ser desenvolvida
“sem prejuízo das disposições nacionais de proteção às culturas indígenas e aos re-
cursos naturais”; e o art. XIV dispõe sobre a “conservação das riquezas etnológicas
e arqueológicas”.
A proteção dos grupos autóctones tem status de matéria constitucional na maior
parte dos países amazônicos. A personalidade jurídica coletiva é reconhecida por to-
8
Fonte: EVA, Hugh D.; HUBER, Otto. Op. cit.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 15


dos não só em função do sistema normativo interno, mas em virtude dos principais
atos internacionais concernentes ao tema (ANAYA, 1996; UNITED NATIONS,
2009): Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Proteção
e Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais e Semitribais de
Países Independentes (1957); Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, So-
ciais e Culturais (1966); Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966);
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969); Convenção 169 da OIT
sobre Povos Indígenas e Tribais (1989); Convenção sobre Diversidade Biológica
(1992); Declaração das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e a Intolerância (2001); Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos
dos Povos Indígenas (2007)9. Vale ainda ressaltar que existe no âmbito da Organi-
zação do Tratado de Cooperação Amazônica uma Comissão Especial de Assuntos
Indígenas, instituída em março de 1989.
Bolívia e Equador – que se apresentam oficialmente como “plurinacionais” –
atribuíram status constitucional a princípios e valores de seus povos originários. O
preâmbulo da Constituição equatoriana (2008) faz referência a Pacha Mama e ressalta
a meta social de alcançar o sumak kawsay (buen vivir).
O preâmbulo da Lei Fundamental boliviana (2009) também faz referência a
Pachamama10. Mais adiante, no art. 8.º, o texto constitucional afirma que o Estado
assume e promove vários princípios ético-morais pré-coloniais – “ama qhilla, ama
llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas mentiroso ni seas ladrón), suma qamaña (vivir
bien), ñandereko (vida armoniosa), teko kavi (vida buena), ivi maraei (tierra sin mal)
y qhapaj ñan (camino o vida noble)” (art. 8.º). Ademais, prestou-se especial deferên-
cia à medicina tradicional e à coca em diversos dispositivos.
A Constituição da Venezuela (1999) chama a atenção para o “sacrificio de nues-
tros antepasados aborígenes” no preâmbulo e, a exemplo das normas fundamentais
de Bolívia e Equador, traz um conjunto expressivo de direitos atribuídos aos povos
indígenas11 e coloca em relevo os idiomas dos povos nativos12.
9
Registra-se que nem todos os países amazônicos são partes de todos os tratados listados. Porém, mesmo
para aqueles que não veem certos atos internacionais como binding agreements, percebe-se que os princí-
pios fundamentais da proteção internacional dos povos indígenas encontram-se presentes em suas legisla-
ções nacionais. Cita-se como exemplo a Guiana que dispõe de uma legislação avançada sobre o assunto, o
Amerindian Act (2005), e de um Ministry of Amerindian Affairs (www.amerindian.gov.gy).
10
Optou-se por manter a grafia original de cada uma das Constituições. Em virtude disso, a ocorrência de
duas grafias para a mesma divindade no texto (Pacha Mama e Pachamama).
11
Cf. especialmente os artigos 119-126.
12
Na Bolívia são idiomas oficiais “el castellano y todos los idiomas de las naciones y pueblos indígena
originario campesinos, que son el aymara, araona, baure, bésiro, canichana, cavineño, cayubaba, chácobo,
chimán, ese ejja, guaraní, guarasu’we, guarayu, itonama, leco, machajuyaikallawaya, machineri, maro-

16 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015


A Carta Magna colombiana (1991) também reserva um número considerável de
dispositivos à temática indígena (v.g. arts. 171, 246, 286, 329, 330).
Nesses quatro países (Bolívia, Equador, Venezuela e Colômbia), percebe-se um
envolvimento considerável das assembleias constituintes com os problemas indíge-
nas. Apesar do número variável de dispositivos dedicados ao assunto e das particu-
laridades encontradas, mencionam-se como elementos que permitem diferenciar o
perfil das Constituições desses países das dos demais membros da OTCA: o reco-
nhecimento da “justiça indígena”, a participação política ativa dos povos nativos e o
reconhecimento das áreas indígenas como unidades político-territoriais.
As Constituições da Guiana e do Suriname não dispõem de regras claras sobre
o tema. Não obstante, na Guiana há um Ministério para Assuntos Indígenas (Mi-
nistry of Amerindian Affairs13) e um marco normativo bem avançado em consonância
com os principais instrumentos internacionais, o Amerindian Act (2005). No Peru,
os direitos dos povos indígenas ganharam status de matéria constitucional, embora
a Constituição (1993) tenha apenas um artigo específico sobre o assunto (art. 89)14.
A Constituição brasileira, de modo semelhante ao que ocorre na maioria dos
países amazônicos, dedica um capítulo aos povos indígenas no Artigo 231 e 232.
A questão dos direitos dos povos indígenas não se limita ao ordenamento jurí-
dico de cada Estado nem tampouco às discussões conduzidas no âmbito regional.
Trata-se de problema de dimensão mundial em função de seu aspecto humanitário
– v.g. regras concernentes à proteção das minorias étnicas (WUCHER: 2000) –, am-
biental – papel dos povos nativos na execução de políticas conservacionistas – e eco-
nômico – propriedade intelectual sobre conhecimento tradicional (GREAVES: 1994;
FONTAINE: 2004).
Dentre as questões mais polêmicas a respeito das terras indígenas, mencionam-
-se: a) a titularidade das terras indígenas, isto é, a quem elas pertencem: ao Estado ou

pa, mojeño-trinitario, mojeño-ignaciano, moré, mosetén, movima, pacawara, puquina, quechua, sirionó,
tacana, tapiete, toromona, uru-chipaya, weenhayek, yaminawa, yuki, yuracaré y zamuco” (art. 5.I); no
Equador, segundo o art. 2.º da Constituição do país, “ el castellano es el idioma oficial del Ecuador; el
castellano, el kichwa y el shuar son los idiomas oficiales de relación intercultural”; e na Venezuela, con-
quanto o castellano seja o idioma oficial, o art. 9.º da Constituição reconhece que os idiomas indígenas
“son de uso oficial para los pueblos indígenas y deben ser respetados en todo el territorio de la República,
por constituir patrimonio cultural de la Nación y de la humanidad”.
13
http://www.amerindian.gov.gy.
14
“Art. 89. Las Comunidades Campesinas y las Nativas tienen existencia legal y son personas jurídicas.
Son autónomas en su organización, en el trabajo comunal y en el uso y la libre disposición de sus tierras,
así como en lo económico y administrativo, dentro del marco que la ley establece. La propiedad de sus
tierras es imprescriptible, salvo en el caso de abandono previsto en el artículo anterior.
El Estado respeta la identidad cultural de las Comunidades Campesinas y Nativas”.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 17


aos nativos? b) a autonomia política dos povos originários; c) a dimensão; e d) os direitos
de propriedade intelectual.
A Convenção 107 da OIT (1957) estatui que deve ser assegurado aos membros
das populações originárias o direito de propriedade, individual ou coletivo, sobre
as terras tradicionalmente ocupadas por eles. Entretanto, a Convenção 169 da OIT
(1989) revisou o texto de 1957. Quando da aprovação da primeira, a principal pre-
ocupação era integrar os povos indígenas à sociedade geral; concebia-se de maneira
geral que a melhor política de desenvolvimento seria a aculturação e a modernização
dos selvagens. A segunda se preocupa mais com os direitos e o desenvolvimento
dos autóctones sem ignorar a necessidade de se reconhecer a luta pela preservação
de seus traços culturais originários. Ao tratar do direito à propriedade, a convenção
de 1989 não se refere aos “membros das populações”; em vez disso, resolveu-se que
as terras tradicionalmente ocupadas pertencem aos “povos”: “Dever-se-á reconhecer
aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que
tradicionalmente ocupam” (art. 14.1).
Os sistemas normativos dos países amazônicos asseguram o direito de proprie-
dade ou posse dos povos nativos sobre suas terras. As constituições de Bolívia (art.
394, parágrafo III), Equador (art. 57, § 4.º), Peru (art. 89) e Venezuela (art. 119)
prescrevem eles são proprietários de suas terras; não obstante, esse direito não é ab-
soluto pois elas são consideradas inalienáveis e indivisíveis. Na Guiana, o Amerindian
Act também reconhece o direito de propriedade dos povos autóctones sobre suas
terras com a ressalva de que são inalienáveis. A Carta Magna colombiana prevê a
existência de “tierras comunales de grupos étnicos” e confere a essas áreas o status de
entidades territoriais assim como os departamentos, os distritos e os municípios (art.
286). A Constituição brasileira inclui as terras indígenas dentre os bens pertencentes
à União (art. 20, XI), mas reconhece aos nativos o direito à posse e ao usufruto de
seus recursos naturais (art. 231)15.
Pode-se afirmar que os povos indígenas são sujeitos sui generis do direito interna-
cional, posto que seus direitos transcendem a esfera individual mas não se equiparam
a uma ordem política soberana (NUNES: 2011). O território indígena pode ser do-
tado de autonomia política, reconhecida formalmente pelo sistema jurídico nacional,
todavia a titularidade de suas terras lhes confere direitos passíveis de limitações ou
condicionantes. Assim, as disputas relacionadas à exploração de recursos naturais
(v.g. ouro, diamante, petróleo) e à realização de obras de infraestrutura – estradas,
15
Em junho de 2010, a Procuradoria Geral da República se manifestou contrariamente ao arrendamento
de terras dos índios Javaés e Karajás, na Ilha do Bananal, para pecuaristas.

18 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015


barragens, ferrovias, hidrovias (NUNES: 2010)16 – apresentam alta dose de com-
plexidade pois dizem respeito a interesses dos nativos, de investidores privados e do
setor produtivo, bem como de Estado.
Além da questão da titularidade da terra, há que se definir o grau de autonomia
dos povos autóctones.
Usualmente, o princípio da autodeterminação dos povos é invocado por aqueles
que pregam um maior grau de autonomia política. Contudo, a autodeterminação
deve conviver com a soberania de cada Estado. Assim, por mais que se defenda a
emancipação dos aborígenes, não se pode confundir autonomia com soberania indíge-
na, o que leva à conclusão que a expressão “território indígena” tem valor relativo.
A Declaração sobre os Princípios de Direito Internacional Referentes às Rela-
ções de Amizade e à Cooperação entre os Estados de Conformidade com a Carta
das Nações Unidas (1970)17 dispõe sobre a noção de autodeterminação dos povos18:
“Em virtude do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos,
consagrado na Carta das Nações Unidas, todos os povos têm o direito de determinar
livremente, sem ingerência externa, sua condição política e de procurar seu desen-
volvimento econômico, social e cultural, e todo Estado tem o dever de respeitar este
direito”. Entretanto, o alcance da palavra “povos” é limitado no que diz respeito
às minorias étnicas, incluindo-se aí os povos indígenas. A Convenção 169 da OIT
esclarece que a “utilização do termo “povos” na presente Convenção não deverá ser
interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que
possam ser conferidos a esse termo no direito internacional” (parágrafo 3 do art.
1)19.
Esse preceito é acolhido majoritariamente pelos países amazônicos de modo
mais ou menos explícito. O art. 126 da Constituição venezuelana reproduz o art. 1.3
da Convenção 169, ao passo que os demais países contêm dispositivos constitucio-
nais sobre a indivisibilidade e/ou indissolubilidade do território nacional.
A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, apro-
vada por meio da resolução 61/295 da Assembleia Geral, em 2 out. 2007, também
16
Um exemplo é o projeto da hidrovia Araguaia-Tocantins, em tramitação no Senado brasileiro (cf. o
projeto de decreto legislativo 234/2004).
17
Aprovada pela resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral da ONU em 24 de outubro de 1970.
18
Cf. os artigos 1.2 e 55 da Carta das Nações Unidas.
19
A Declaração de Durban contra o Racismo, a Discriminação Racial, o Xenofobismo e a Intolerância
(2001) acolheu o mesmo princípio (item 24): “We declare that the use of the term “indigenous peoples”
in the Declaration and Programme of Action of the World Conference against Racism, Racial Discrimi-
nation, Xenophobia and Related Intolerance is in the context of, and without prejudice to the outcome of,
ongoing international negotiations on texts that specifically deal with this issue, and cannot be construed
as having any implications as to rights under international law”.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 19


faz referência ao tema. Contudo, deu-se à noção de autodeterminação um significado
menos restritivo nos arts. 3 e 4:

Artigo 3: Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito,


determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento
econômico, social e cultural.
Artigo 4: Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à
autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais,
assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas.

Um elemento que não pode ser ignorado é o diferente grau de importância atri-
buído à questão indígena pelos governos da Pan-amazônia: na Bolívia e no Equador,
por exemplo, a política indigenista não é somente um problema relativo às minorias
étnicas, visto que a maior parte da população descende diretamente dos povos origi-
nários. A eleição de Evo Morales na Bolívia, de origem aymará, é um reflexo da força
da democracia indígena nesses países (CAMARGO: 2006; MOLDIZ: 2009). Por-
tanto, a política indigenista nos países onde eles são a maioria diz respeito à ordem
política e social de uma maneira geral (LE BOT: 2009).
No Brasil, os povos originários representam uma parcela pequena da população,
sobretudo aqueles que são considerados efetivamente não inseridos na “sociedade
geral”. O caso brasileiro é bem peculiar, pois a maioria esmagadora da população
de ascendência indígena vive nas grandes cidades da região Norte do país, mas não
se declara pertencente a uma tribo ou etnia específica; são pessoas inseridas na so-
ciedade geral pelo simples fato de não se sentirem ou declararem membros de um
povo autóctone. Assim, nem sempre as políticas sociais dirigidas ao Estado como
um todo atendem aos interesses e necessidades dos povos indígenas brasileiros. Por
outro lado, percebe-se um certo ressentimento por parte da população que vive pró-
xima a áreas indígenas face aos “benefícios” que o Estado concede aos índios. Não
é difícil colher relatos, na Amazônia Legal, que retratam a insatisfação das pessoas
com o governo e com a atitude dos indígenas: produtores rurais reclamam de situa-
ções como furto de gado, presença de nativos – com a intenção de caçar e pescar em
suas terras – que adentram suas residências sem autorização e/ou causam danos a
bens e equipamentos (cercas, máquinas agrícolas); nas estradas, queixa-se da cobran-
ça ilegal de pedágios e da presença de índios que conduzem veículos sem habilitação;
as pessoas de baixa renda manifestam insatisfação sob o argumento que o governo
se preocupa “mais com os índios do que com os pobres”. Bares e restaurantes não

20 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015


podem vender bebida alcoólica aos tutelados pela FUNAI (Fundação Nacional do
Índio), mas enfrentam uma situação inusitada: quem insiste na venda pode ser au-
tuado e penalizado com o pagamento de multa, no entanto já houve casos em que
índios, revoltados com o fato de ser-lhes negada a venda de cachaça, depredaram
o estabelecimento. Obviamente os fatos acima indicados não devem ser tomados
como a regra, mas ajudam a elucidar a complexidade do problema e as imperfeições
das políticas públicas.
Merece destaque igualmente a questão fundiária. Nos países onde a população
originária representa a maioria, a política fundiária se confunde, ainda que parcial-
mente, com a demarcação de terras indígenas e/ou com a distribuição de lotes a
campesinos. Nos países onde os indígenas são minoria, nem sempre a demarcação
de grandes glebas para os nativos é bem vista por todos. No Brasil, conquanto haja
certa interação entre movimentos sociais e populações indígenas não se pode dizer
que há uma plena convergência de interesses entre os povos que lutam pela demarca-
ção de suas terras e as agremiações que lutam pela reforma agrária. Com frequência
lembra-se que mais de doze por cento do território brasileiro é destinado a áreas
indígenas, já demarcadas ou por demarcar20, e, em dados momentos, esse argumento
é invocado para desviar o foco do problema da concentração de terras no Brasil
(CARDIM et al.: 2010).
Existe uma grande dificuldade na determinação da área que corresponde a cada
nação indígena pois muitas foram extintas. Chama-se também a atenção para o fato
que havia guerras tribais que antecedem e/ou remontam ao período colonial. O
padre Cristóbal de Acuña (1994), que acompanhou a expedição de Pedro Teixeira
em seu retorno do Equador ao Pará (fevereiro a dezembro de 1639), faz referência
a mais de 150 nações. Obviamente as informações dos relatos dos viajantes que
adentraram a floresta devem ser interpretadas com cuidado, mas o número serve
de referência da grande quantidade de nações indígenas que habitaram a Amazônia
antes da chegada dos europeus, mormente se levado em conta que as expedições não
se distanciavam muito dos rios pelos quais navegavam. Consequentemente, embora
os trabalhos de demarcação das terras indígenas sejam acompanhados de estudos
antropológicos21, cogita-se se algumas nações não sucederam outras com quem não
20
O domínio terrestre brasileiro corresponde a uma área de 8.514.877 Km2. O percentual exato destinado
às áreas indígenas, embora nem todas tenham sido demarcadas e homologadas, é de 12,64%, isto é, uma
área de 1.076.280 Km2. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a população indígena
brasileira soma menos de 500.000 indivíduos. Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), até o fim de 2009 foram destinados 7.913.701 hectares ao Programa Brasileiro
de Reforma Agrária, o equivalente a 79.137 Km2.
21
No Brasil, o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas é regulamentado pelo

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 21


tiveram contatos ou relações de amizade e especula-se a respeito da “fabricação”
de nações indígenas contemporâneas, a exemplo das discussões sobre os Ianomâmi
(BARRETO: 1995; CARRASCO: 2003; REBELO: 2010)22.
Em adição às diferenças de ordem interna, deve-se ter em conta que os países
da Pan-amazônia também apresentam divergências no tocante a temas da política
externa. A Declaração sobre os Direitos dos povos indígenas foi aprovada por ampla
maioria nas Nações Unidas: 143 votos a favor, 4 contra (Áustrália, Canadá, EUA e
Nova Zelândia) e 11 abstenções23. Dentre os que se abstiveram de votar encontra-se
a Colômbia.
Embora os demais membros da OTCA não tenham manifestado oposição ao
texto da Declaração sobre o Direito dos Povos Indígenas, seria ingênuo supor que
não existem preocupações da parte dos demais governos. Os países sul-america-
nos adotam, tradicionalmente, o regime mineiro de concessões, isto é, o direito de
propriedade se restringe à superfície e os recursos naturais pertencem ao Estado
(NUNES: 2006). Frisa-se ainda que o direito à consulta prévia, como requisito à
realização de empreendimentos econômicos, não é relativo apenas na Colômbia
(FUNDACIÓN PARA EL DEBIDO PROCESO LEGAL et al.: 2010). No Brasil,
por exemplo, a Constituição estatui que o aproveitamento dos recursos hídricos e a
exploração mineral em áreas indígenas são condicionados à realização de consultas
juntas aos povos indígenas, porém a decisão final cabe ao Congresso Nacional.
Além das discussões concernentes à titularidade das terras, é de suma relevância
destacar as questões relacionadas à propriedade intelectual, mormente a biodiversi-
dade e o conhecimento tradicional (GREAVES: 1994). Uma vez que uma grande
porção das espécies que compõem a fauna e a flora amazônica ainda não foram de-
vidamente catalogadas e estudadas, os povos indígenas e as populações tradicionais
detêm conhecimento estratégico para a indústria farmacêutica. Contudo, tanto os
indígenas quanto os caboclos são extremamente vulneráveis às investidas do poder
econômico em razão de sua condição social; é muito barato a companhias nacionais
ou estrangeiras comprar o conhecimento tradicional, pois um mateiro, normalmente
alguém que se encontra na parte mais baixa da pirâmide social, pode transmitir todo
seu saber por muito pouco dinheiro. No que diz respeito ao contato direto com
os índios, a situação se revela ainda mais delicada pois, embora o titular de direitos

decreto 1.775 de 8 jan. 1996.


22
Cf. Opinião divergente das obras citadas, em apoio à demarcação da área dos índios Ianomâmi, pode
ser lida em BARAZAL, Neusa Romero. Yanomami: um povo em luta pelos direitos humanos. São Paulo:
EDUSP, 2001.
23
Azerbajão, Bangladesh, Burundi, Butão, Colômbia, Geórgia, Nigéria, Quênia, Rússia, Samoa e Ucrânia.

22 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015


reconhecidos nacional e/ou internacionalmente seja o grupo, é comum que mem-
bros de determinadas etnias sejam aliciados e passem a vender sua sabedoria. Os
indígenas são pessoas sujeitas às mesmas ambições que todo e qualquer indivíduo e
muitos buscam um estilo e uma qualidade de vida diferente de seu padrão cultural
originário; assim, o desejo de consumo se torna um elemento capaz de abalar a uni-
dade de uma nação, pois favorece a transmissão do conhecimento tradicional sem o
benefício geral da coletividade indígena ou do Estado.
Obviamente, os recursos naturais pertencem aos Estados e não às nações in-
dígenas. Todavia, em um cenário como a Pan-amazônia é difícil uma territoriali-
zação eficiente do patrimônio genético. A floresta tropical se espalha sobre países
em desenvolvimento de diferentes níveis socioeconômicos, com parcos recursos
destinados à educação e à ciência, de modo que grande parte da escassa tecnologia
produzida é oriunda de conglomerados transnacionais. O conhecimento tradicional
é um instrumento que permite chegar ao patrimônio genético amazônico, portanto
a falta de políticas satisfatórias voltadas para os povos autóctones faz com que eles
se tornem potenciais agentes da internacionalização da Amazônia.
Por conseguinte, chega-se a uma conjuntura curiosa: os nativos podem desem-
penhar um papel crucial no desenvolvimento de seus países, posto que o saber tra-
dicional é de importância estratégica; não obstante, se esse conhecimento é desviado
para conglomerados estrangeiros que não reconhecem ou ignoram a soberania dos
Estados sobre seus respectivos patrimônios genéticos, os povos nativos assumem
o papel de instrumento de práticas neocolonialistas. O mesmo pode ser dito no
tocante à demarcação de áreas indígenas sem critérios razoáveis e/ou à implemen-
tação de políticas socioeconômicas compatíveis com a vulnerabilidade ambiental e
antropológica.
Em contrapartida à questão da internacionalização, sobre os povos originários
recai o rótulo de entrave ao desenvolvimento. Uma quantidade razoável de terras in-
dígenas guarda vultosos depósitos minerais (petróleo, ouro, diamante, ligas metálicas
em geral, urânio), ou se encontram em áreas dotadas de recursos hidrelétricos, ou
na rota de vias de escoamento da produção (estradas, ferrovias, hidrovias)24. Curio-
24
Ao analisar o contexto brasileiro, Baines (2005: p. 260) observa que “Pressões no Congresso indicam
uma tendência no sentido de efetivar a regularização das terras indígenas na região amazônica para faci-
litar a ‘regularização’ dos interesses de grandes empresas mineradoras e de aproveitamento de recursos
hídricos. As concessões, por parte do governo, de ‘autodeterminação’ aos povos indígenas, junto com
cortes em recursos para projetos sociais de saúde, educação e desenvolvimento comunitário, criam si-
tuações em que os índios terão poucas opções a não ser negociar diretamente com as grandes empresas
que têm interesses econômicos em suas terras. A estratégia é de criar mecanismos que permitem que as
empresas entrem em acordos diretos, embora desmedidamente desiguais, com as lideranças indígenas,
para fornecer indenizações e programas assistencialistas em troca da exploração predatória dos recursos

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 23


samente, conquanto os países mais industrializados tenham interesse na riqueza da
biodiversidade da Amazônia, as principais agências de desenvolvimento apoiam e
financiam a demarcação de terras indígenas.

As terras indígenas dentro da Amazônia Legal estão recebendo financiamento para sua
demarcação do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Ama-
zônia Legal (PPTAL) que faz parte do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tro-
picais do Brasil (PPG7), financiado pelo Grupo de 7 países mais ricos do mundo. [...] O
PPTAL recebe apoio financeiro e técnico de agências internacionais: o Banco Mundial,
o Rain Trust Fund, o Kreditanstalt für Wiederaufbau (KFW), o Deutsche Gesellschaft
für Technische Zusammenarbeit (GTZ), e o PNUD, e do governo brasileiro por meio
da Funai, Ministério da Justiça e Ministério do Meio Ambiente, com orçamento total de
aproximadamente US$22 milhões, com a contrapartida do governo brasileiro de US$2,2
milhões destinados às indenizações de benfeitorias de boa fé feitas por não-índios nas
terras indígenas (BAINES: 2005, p. 251-252).

A cooperação internacional, obviamente, é fundamental para o desenvolvimen-


to de políticas conservacionistas em um ambiente como a floresta tropical. Todavia,
a dependência de recursos alienígenas coloca em xeque a autonomia dos Estados
amazônicos pois os critérios adotados na demarcação dos territórios indígenas po-
dem ser impostos pelas agências financiadoras; portanto os laudos e estudos que
fundamentam os processos demarcatórios podem não ser totalmente isentos e im-
parciais. Ademais, o acesso a outras linhas de crédito pode ser condicionado à exe-
cução de planos prematuros.
A demarcação das terras indígenas é, sem dúvida, o resgate de uma dívida histó-
rica. E independentemente da maior ou menor dimensão das áreas, há que se levar
sempre em conta o aspecto humanitário do problema. Entretanto, questionamentos
devem ser postos diante da possibilidade de interferência estrangeira na região com
fundamento no princípio da autodeterminação dos povos originários.
No fim do século XX e no princípio do século XXI, fóruns e discussões foram
realizados com vistas à compensação dos povos colonizados por parte dos coloni-
zadores. Os principais meios de reparação são o perdão de dívidas contraídas e a
transferência de recursos dos países desenvolvidos. Pode-se afirmar que o marco
principal dessas discussões foi a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo,
a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância (Durban, África do Sul, 31 ago.
naturais dos povos indígenas. Assim se pretende criar caminhos para a exploração dos recursos minerais
e hídricos em terras indígenas ‘dentro da Lei’, respaldada numa retórica de autodeterminação indígena e
que concilia também exigências ambientalistas para desenvolvimento ‘sustentável’”. Cf. Fontaine (2004)
e Nascimento et al. (2003).

24 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015


a 8 set. 2001). Reconheceu-se na Declaração de Durban todos os males gerados
pelo processo colonizador, não obstante medidas concretas reparadoras não foram
incluídas no texto25.
Tem-se, portanto, que a pressão pela demarcação de terras indígenas também
transfere às antigas colônias o ônus da obrigação de reparação.

Considerações Finais

A Amazônia é uma região de dimensões que, ao mesmo tempo, fascinam e


assustam aquele que se dedica ao seu estudo. Obviamente as variáveis encontradas
são muitas e o risco de conclusões precipitadas aumenta a responsabilidade do pes-
quisador. De todo modo, apresentam-se abaixo as considerações finais resultantes
da apreciação dos problemas discutidos nos itens anteriores.
O Pacto Amazônico, conquanto verse sobre matéria de alta relevância, tem sido
relegado a um segundo plano na política sul-americana. Os Estados-membros da
OTCA não conseguiram harmonizar a diplomacia amazônica com os projetos re-
gionais prioritários de índole comercial e política (MERCOSUL, CAN, UNASUL).
Assim, à OTCA foi atribuído o papel de foro ocasional: sua existência é marcada
mais pela inércia do que pela ação, de modo que a entidade exibe uma falsa pujança
em momentos que os países-membros desejam firmar posições conjuntas frente a
possíveis investidas e/ou cobranças amparadas em argumentos conservacionistas.
A liberdade assegurada a cada Estado na delimitação de sua área de “Amazônia
nacional” é uma necessidade inegável. Afinal de contas, as diferenças naturais, cul-
turais, econômicas e políticas não podem ser ignoradas. Entretanto, percebe-se que
essa autonomia é exercida sem que haja critérios técnicos que assegurem padrões sa-
tisfatórios que conciliem a delimitação e o uso da região de domínio da floresta tro-
pical. Além disso, vale registrar que as normas ambientais de proteção da cobertura
vegetal natural não são fruto de discussões conjuntas; frisa-se uma vez mais que nos
países andino-amazônicos a produção agropecuária é majoritariamente em território
amazônico. Portanto, o sucesso da cooperação amazônica depende de harmoniza-
ção legislativa razoável. Sem isso, pode-se assistir a um aumento da transferência de
parte da produção agrícola brasileira para países vizinhos a fim de explorar vanta-
gens econômicas, tributárias e – sobretudo – normas ambientais mais flexíveis; ou,
25
Registra-se que dos 173 países que participaram da Conferência de Durban, somente 99 participaram
da sessão plenária final.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015 25


em contrapartida, a adoção de padrões que venham colocar em risco a floresta. As
discussões concernentes ao novo Código Florestal Brasileiro, que ganharam maior
impulso nos mandatos sucessivos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef,
deveriam ser conduzidas tendo em vista o Tratado de Cooperação Amazônica mas,
até o momento, nota-se que o Parlamento brasileiro demonstra uma lamentável ig-
norância sobre o assunto. Insiste-se, portanto, que tanto a manutenção quanto a
alteração das regras sobre o percentual de desflorestamento tolerado requer diálogos
na OTCA.
No tocante às áreas indígenas, uma vez mais, identifica-se a ausência de con-
versações satisfatórias. Como afirmado ao longo do trabalho, a questão indígena se
mostra complexa uma vez que em países como Bolívia e Equador ela se confunde
com a implementação de políticas sociais de maneira geral (moradia, segurança ali-
mentar, educação, saúde); por outro lado, nos Estados onde os nativos são minorias,
não existe essa coincidência. Não obstante, a demarcação de terras indígenas em áre-
as estratégicas detentoras de grandes depósitos de substâncias minerais ou de recur-
sos energéticos – mormente aquelas transfronteiriças – requerem o estabelecimento
de ações concertadas. Ademais, há que se levar em conta a harmonização legislativa
tendo em vista o papel que os povos originários poderão desempenhar no futuro:
detentores de conhecimento tradicional que pode ser empregado na exploração ra-
cional da biodiversidade amazônica ou agentes da internacionalização dispostos a
vender a empreendedores estrangeiros.

Recebido em outubro de 2014, aprovado em dezembro de 2014.

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28 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015


Suely Aparecida de Lima *

Artigo
Iniciativa para a Integração da Infraestrutura
Regional Sul-Americana (IIRSA) – Possibilidades e
Desafios: Eixo Peru-Brasil-Bolívia¹
Resumo Abstract
Este trabalho visa analisar as relações do This paper aims to analyse Brazil relations’
Brasil com o Peru e a Bolívia com base no with Peru and Bolivia based on Peru–
Eixo Peru–Brasil–Bolívia da Iniciativa para Brazil –Bolivia hub of the Initiative for the
a Integração da Infraestrutura Regional Integration of Regional Infrastructure in South
Sul-Americana (IIRSA), a partir de sua America (IIRSA) since it was incorporated by
incorporação pela UNASUL, em 2008, UNASUL, in 2008, up to 2014. The paper
até o ano de 2014. Serão considerados a will take into account the Brazilian’s Foreign
política externa brasileira e o projeto geo- Policy and its geopolitical project towards South
político dispensado à América do Sul para America to identify possibilities and challenges
identificar as possibilidades e os desafios involved in the process of regional integration
do processo de integração regional sul- of South America promoted by Brazil. Social
-americana promovido pelo Brasil, tendo scope is going to be the groundwork and the
como alicerce o âmbito social. A principal main hypothesis is that commercial gains and
hipótese desse trabalho é que os ganhos the physical integration alone, in the shape it’s
comerciais dos atores envolvidos e a inte- being implemented, do not reflect in social gains
gração física, por si só e da forma que vem regarding the populations from reached localities,
sendo implementada, não refletem em which can result in conflicts.
ganhos sociais no tocante às populações
das localidades atingidas, podendo resultar Keywords:
em conflitos. IIRSA; Foreign Policy; Regional Integration;
South America; International Relations.
Palavras-Chave:
IIRSA; Política Externa; Integração Re-
gional; América do Sul; Relações Interna-
cionais.

* Bacharel em Relações Internacionais; Aluna do Mestrado em Sociedade e Fronteiras da UFRR. E-mail:


[email protected]
¹ O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-
fico e Tecnológico – Brasil.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 29


A política externa brasileira e a inserção internacional

Nos anos 1990, uma convergência entre os presidentes latino-americanos mar-


cou a adesão dos Estados nacionais ao neoliberalismo. Sob o “paradigma normal”
(neoliberal), a região, de forma passiva, seguiu regras estabelecidas pelas estruturas
hegemônicas do capitalismo, deixando de induzir seu próprio desenvolvimento para
reduzir a função do Estado a um papel de espectador do mercado, consignando ao
Estado a função de “prover a estabilidade econômica, logo reduzida à estabilida-
de monetária, e ao mercado a função de prover tudo o mais, sobretudo o próprio
desenvolvimento” (CERVO, 2008, p. 77). A estratégia de política externa foi uma
abertura econômica que transferiu a autonomia decisória ao centro capitalista e ao
mercado:

O conjunto dessas instruções sugeria três dimensões de uma nova abertura – daí o sucesso
desse termo na linguagem latino-americana: dos mercados de consumo, dos mercados de
valores e do sistema produtivo e de serviços. Para realizar essa mudança de modelo, as
táticas vinham anexas ao conjunto de instruções: eliminar o Estado empresário, privatizar
os empreendimentos estatais, realizar superávit primário, proteger os capitais e os empre-
endimentos estrangeiros e adaptar as instituições e a legislação de modo a produzir esse
novo marco regulatório (CERVO, 2008, p. 78).

Essas demandas impulsionaram o Regionalismo Aberto (RA)2 que combinou


uma ampla abertura econômica com integração regional ou bilateral fundamentada
em preferências comerciais que, por ventura, mitigariam efeitos negativos da própria
abertura. No caso brasileiro, ao enfraquecer o “paradigma desenvolvimentista”, o
país atuou com “subserviência na esfera política, destruição na esfera econômica e
regresso do ponto de vista estrutural e histórico” (CERVO, 2008, p. 82).

² O Regionalismo Aberto significa, nas palavras de Fábio Borges, “que a integração serviria para uma me-
lhor inserção das econômicas da América Latina no cenário internacional e não apenas na própria região.
Essa estratégia seria mais eficiente que a do Regionalismo Fechado que prevaleceu até os anos 1980 que
visava diminuir o problema da deterioração dos termos de troca, sendo o mercado regional uma válvula
de escape dos bens nacionalmente e pouco competitivos em termos mundiais. Nesse sentido, o modelo
partia de dentro e fechava-se na própria região, vista como mera extensão do mercado interno. O chamado
regionalismo aberto já é percebido como um instrumento do Estado para alcançar o desenvolvimento
sustentável e a equidade social, ao alavancar os níveis de competitividade e produtividade em escala
regional, ao promover e explorar as complementaridades econômicas entre os países do subcontinente e
permitir uma harmonização de políticas e de normas que garantam um melhor acesso de suas econômicas
ao mercado mundial” (BORGES, 2011, p. 22).

30 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


Num segundo momento, uma nova convergência regional entre os presidentes
eleitos contribuiu para que a integração passasse a ser vista como meio de articular o
interesse de diferentes Estados e forças políticas de reformar o ambiente internacio-
nal, em vista a participar nos assuntos internacionais e elaborar regimes mais favorá-
veis aos interesses dos países integrados. A América do Sul ganhou mais destaque na
política externa brasileira ao mesmo tempo em que o Brasil buscou diversificar suas
relações políticas e comerciais. Assim, alicerçada em parcerias estratégicas e coopera-
ção Sul-Sul, o Brasil buscou maior equilíbrio junto aos países centrais e ampliou seu
protagonismo internacional, visando aumentar seu poder de barganha para favore-
cer o desenvolvimento e a superação de dependências estruturais do país (CERVO,
2008; VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003; VIGEVANI; CEPALUNI, 2007).
Essa estratégia significou uma mudança de paradigma: a adoção do paradigma
logístico como meio de atenuar os efeitos do neoliberalismo na vida política, eco-
nômica e social. O paradigma logístico consiste em “dosar o liberalismo às etapas
do desenvolvimento agrícola, industrial e tecnológico e à salvaguarda de interesses
nacionais”, uma mescla entre o paradigma desenvolvimentista e o neoliberal:

A ideologia subjacente ao paradigma do Estado logístico associa um elemento externo, o


liberalismo, a outro interno, o desenvolvimentismo. Funde a doutrina clássica do capitalis-
mo com o estruturalismo latino-americano. Admite, portanto, operar na ordem do sistema
ocidental, recentemente globalizado. Na esfera política, o paradigma logístico, como expe-
riência brasileira e latino-americana, comprova uma criatividade ainda maior. Recuperar a
autonomia decisória da política exterior sacrificada pelos normais e adentrar pelo mundo
da interdependência, implementando um modelo de inserção pós-desenvolvimentista. Seu
escopo final, a superação de assimetrias entre as nações, ou seja, elevar o patamar nacional
ao nível das nações avançadas. Diferencia-se do paradigma desenvolvimentista, com o qual
pode conviver em certa dose, ao transferir à sociedade as responsabilidades do Estado
empresário. Diferencia-se do normal, consignando aos Estados não apenas a função de
prover a estabilidade econômica, mas a de secundar a sociedade na realização de seus
interesses. Limita a prevalência absoluta do Estado que caracterizava o primeiro e elimina
do segundo a crença anticientífica no poder ilimitado do mercado de prover tudo o mais.
Por fim, o Estado logístico imita o comportamento das nações avançadas, particularmente
dos Estados Unidos, tido como protótipo do modelo. A política exterior volta-se à realiza-
ção de interesses nacionais diversificados: dos agricultores, combatendo subsídios e prote-
cionismo, porque convém à competitividade do agronegócio brasileiro; dos empresários,
amparando a concentração empresarial e o desenvolvimento tecnológico; dos operários,
defendendo seu emprego e seu salário; dos consumidores, ampliando seu acesso à socieda-
de do bem-estar (CERVO, 2008, p. 85-86).

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 31


Ou seja, o Estado logístico apoia os empreendimentos públicos e – principal-
mente – privados, com a finalidade de estimular o fortalecimento interno de suas
empresas e equipá-las para a expansão global. Concomitantemente, busca zelar pelo
emprego e salário dos trabalhadores e ampliar o bem-estar do consumidor. Sob
tais diretrizes, o Estado brasileiro busca investir diretamente no exterior, a partir de
sua própria vizinhança. Em termos realistas, isso significa construir meios de poder
para fazer valer vantagens comparativas “não mais naturais, mas intangíveis, como
ciência, tecnologia e capacidade empresarial”, exercendo uma “adaptação da política
exterior à interdependência global do século XXI”. A globalização é vista como
oportunidade de negócios e a opção estratégica é pelos países emergentes que “reú-
nem no início do século XXI mais de cinquenta por cento da população, do comér-
cio internacional, do consumo e das finanças do mundo” (CERVO, 2008, p. 88-89).
É nesse contexto que a integração com base no transporte, energia e comuni-
cação, cerne da IIRSA, e investimentos brasileiros, ganham destaque na diplomacia
brasileira.

A América do Sul e a integração regional

Desde a independência dos Estados latino-americanos diferentes iniciativas de


integração regional apresentaram dificuldades de consolidação. Num primeiro mo-
mento, um grande movimento integracionista iniciado por Simón Bolívar foi frus-
trado pela disputa entre os Estados Unidos da América (EUA) e a Inglaterra, uma
vez que a América do Sul estava incluída num sistema de livre comércio pelo qual
a Inglaterra produzia e exportava produtos industriais enquanto aos sul-americanos
cabia a produção e exportação de produtos primários. Nessa disputa, prevaleceu na
região o domínio inglês, baseado na clássica divisão internacional do trabalho (SOU-
ZA, 2012, p. 89-93).
A segunda onda de integração foi bloqueada pela consolidação da hegemonia
dos EUA. Objetivando formar uma área de livre comércio no continente, valeram-se
de propaganda ideológica, expansionismo político, econômico e militar e fomenta-
ram golpes militares na região – e o resultado foi o alinhamento político ao Depar-
tamento de Estado norte-americano, o que garantiu a abertura das economias para a
entrada de capital estrangeiro e ingresso de empresas transnacionais (SOUZA, 2012,
p. 94-102).

32 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


O Pacto Andino (1969) marcou uma nova etapa de integração. Em 1997 pas-
sou a denominar-se Comunidade Andina (CAN). Em 1991 firmou-se o Mercado
Comum do Sul (MERCOSUL). Inicialmente fundamentadas no regionalismo cepa-
lino3, essas iniciativas modificaram sua natureza para aderir ao postulado neoliberal
de livre comércio, transitando para o RA, também cepalino (GUIMARÃES, 2007, p.
179-180; SOUZA, 2012, p. 102-113).
Em 1994 deflagrou-se mais uma onda de integração regional que marcou o
princípio da década de 2000, a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). A
emergência de governos progressistas marcou o fracasso da ALCA: iniciativa dos
EUA para criar um território econômico único com a livre movimentação de bens,
serviços e capital, mas não mão-de-obra e tecnologia. Estabelecia regras uniformes
para temas como serviços, investimentos, compras governamentais, propriedades
intelectuais, entre outras. O objetivo da ALCA contrapunha a ideia de um bloco eco-
nômico e político sul-americano e, consequentemente, restringia-se à execução de
políticas nacionais e/ou regionais de desenvolvimento econômico (GUIMARÃES,
2007, p. 181; SOUZA, 2012, p. 113-116).
A partir dessas ambivalências as iniciativas de integração latino-americanas to-
maram outros rumos. Em 2004 foi fundada a Comunidade Sul-Americana das Na-
ções que a partir de 2008 passou a ser designada por União das Nações Sul-Ameri-
canas (UNASUL). Integrada pelas doze nações sul-americanas4, visa uma integração
multissetorial e inclui o MERCOSUL e a CAN. Outros projetos também ganharam
destaque na região, é o caso da Aliança Bolivariana dos Povos de Nossa América
(ALBA), iniciativa venezuelana de 2004, e a Comunidade dos Estados Latino-Ame-
ricanos e Caribenhos (CELAC), fundada em 2010.
Souza argumenta que a origem desses projetos é a busca pela superação da in-
tegração centrada apenas no comércio, pois as iniciativas apresentam a cooperação
como critério central para desenvolver o conjunto da região e fortalecê-la no cenário
internacional. A CELAC, em particular, visa realizar um concerto político e integrar
os trinta e três países da América Latina e Caribe. Inclui Cuba e não inclui Canadá
e EUA, o bloco conta apenas com países latino-americanos. Além de ser a iniciativa
de integração mais abrangente de toda a história da integração latino-americana,
3
Os economistas da CEPAL, entre eles, Raúl Prebisch e Celso Furtado, diagnosticaram que o subde-
senvolvimento era fruto da dependência externa e das arcaicas estruturas internas na América Latina. A
solução seria a industrialização que, por sua vez, seria garantida com um projeto integracionista, alargando
o mercado com a criação de um mercado regional, o que exigiria instalação de plantas industriais maiores
e mais eficientes. Portanto, a integração seria condição para o desenvolvimento autônomo e endógeno da
região (SOUZA; 2012, p. 96-97).
4
Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e
Venezuela.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 33


também inaugura o retorno do México ao processo de integração latina. Em termos
simbólicos, significa o distanciamento da América Latina do pan-americanismo e seu
retorno ao latino-americanismo (SOUZA, 2012, p. 116-121).
No entanto, nenhuma dessas iniciativas tem consolidação garantida. Elas preci-
sam estar em consonância para evitar disputas que inviabilize a integração, seja sul
ou latino-americana. Somam-se a isso algumas resistências enfrentadas pela UNA-
SUL, conforme mencionou Guimarães: preferência por celebrar acordos de livre
comércio com os EUA; prioridade em fortalecer o MERCOSUL; demanda por uma
organização mais audaciosa, com base na solidariedade e cooperação, não em pre-
ferências comerciais, projetos de investimentos e livre comércio (2007, p. 181). Em
meio a esse cenário insere-se a IIRSA.
O mesmo autor argumenta que a construção de um espaço econômico e po-
lítico sul-americano, seja ele economicista ou solidarista, depende da integração da
infraestrutura, transporte, energia e comunicação (GUIMARÃES, 2007, p. 181-182).
Nesse sentido, a IIRSA é um esforço de planejamento que precisa materializar-se.
Contudo, em alguns casos, a posição brasileira não corresponde às expectativas de
seus vizinhos que defendem uma integração mais cooperativa e solidária, uma vez
que, apesar de toda importância dos vizinhos sul-americanos, o Brasil não se com-
promete com as chamadas políticas compensatórias.
Para um entendimento mais empírico referente à importância de políticas com-
pensatórias, segue alguns indicadores econômicos e sociais da Bolívia, Peru e Brasil.

Panorama econômico e social

Este panorama econômico e social expressa algumas heterogeneidades e assi-


metrias que a integração precisará enfrentar.

Tabela 1 – Dimensões da Amazônia: Bolívia, Brasil e Peru.


Amazônias Nacio- Total da Território Nacional
Países População 2013* Área em km²
nais km² Amazônia % Total %
Bolívia 10.670.000 1.098.580 724.000 10.91 65.87
Brasil 200.400.000 8.514.880 4.275.000 64.45 50.30
Peru 30.380.000 1.285.220 968.000 14.60 75.00
Total 241.450.000 10.898.680 5.967.000 89.96

Fonte: Elaboração própria baseada em BORGES, 2011, p. 32. *Números atualizados.


Disponível em: http://data.worldbank.org/country/. Acesso: 5 outubro 2014.

34 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


Através da Tabela 1 observa-se que, se por um lado, o Brasil detém 64.45% da
Amazônia, ela representa 3/4 do território peruano e 65.87% do boliviano. Isso
pode ser compreendido de diversas formas, inclusive, o impacto que uma política
brasileira para a região pode significar para o Peru e a Bolívia.

Tabela 2 – Indicadores Econômicos.


PIB - IED US$
PIB US$ PIB Per Capita
Crescimento Inflação milhões/bil-
Países bilhões PPP US$
Econômico % hões
2008 2013 2008 2013 2008 2013 2008 2013 2008 2013
Bolívia 16.7 30.6 6.1 6.5 4.865 6.130 14 6.0 512 1.750
Brasil 1.653 2.246 5.2 2.3 12.809 15.034 5.7 7.6 50.716 80.843
Peru 121.6 202.3 9.1 5.8 8.882 11.775 5.8 1.7 6.923 10.172

Fonte: Elaboração própria baseada em: http://data.worldbank.org/indicator.


Acesso: 5 outubro 2014.

Esses indicadores econômicos se coadunam com a sobreposição da dimensão


territorial brasileira e reforçam a importância de políticas compensatórias partindo
do Brasil para a Bolívia e o Peru. Peru e Bolívia, no período em questão, apresentam
maior dinamismo econômico que o Brasil. No tocante ao Produto Interno Bruto
(PIB) per capita, todos os três países tiveram avanços, mas a desigualdade – que é
uma forte característica da região – faz com que seja necessário complementar essa
avaliação com as duas tabelas seguintes. Sobre o Investimento Externo Direto (IED)
vale ressaltar que, apesar de contribuir para o dinamismo econômico, também pode
fragilizar a economia, a política e o desenvolvimento nacional, conforme conclusão
de François Chesnais (1996) em seu estudo sobre a mundialização do capital. Nesse
estudo o autor destacou a predominância do investimento internacional sobre o
comércio internacional, de maneira que o investimento determina a produção e tran-
sação de bens e serviços em favor de instituições financeiras. Nesse caso, a disputa
por IED e dependência do mesmo podem provocar equívocos nas decisões políticas
e abrir espaço para ingerências externas.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 35


Tabela 3 – Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Países 2013 2008 2000 1990 1980
Bolívia 113 (médio) 0.667 0.649 0.615 0.554 0.494
Brasil 79 (alto) 0.744 0.731 0.682 0.612 0.545
Peru 82 (alto) 0.737 0.707 0.682 0.615 0.595
Fonte: Elaboração própria baseada no relatório anual da UNDP, 2014.

O IDH corresponde a um método que consiste em educação, expectativa de


vida e outras variáveis entendidas como essenciais para um padrão mínimo de qua-
lidade de vida. Quanto mais próximo de 1, melhor a posição do país no ranking
internacional.

Tabela 4 – População Vulnerável e em Situação de Pobreza.


População
População População
População População Abaixo
Abaixo Próxima Total
Pobreza Pobreza Linha Po-
Linha Po- Pobreza População
Países Multidi- Severa breza - US$
breza – US$ Multidi- Vulnerável
mensional % 1.25/dia
2/dia 1990- mensional %
% 2002-2012
2005 %* %
%
Bolívia 42.2 20.6 17.3 7.8 15.6 61.3
Brasil 21.2 3.1 7.4 0.5 6.14 17.14
Peru 30.6 10.4 12.3 2.1 4.9 29.7
Fonte: Elaboração própria baseada no relatório anual da UNDP, 2014.
Fonte: UNDP, 2007.

Os indicadores de vulnerabilidade e situação de pobreza de uma parcela signi-


ficativa da população precisam ganhar relevância nas decisões tomadas acerca dos
projetos de integração e na adoção de modelos para o desenvolvimento. Entre os
três, a Bolívia apresenta o quadro mais vulnerável.

36 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana – IIRSA: eixo
Peru – Brasil – Bolívia

Nas últimas décadas a região amazônica vem ganhando bastante importância


geoestratégica. As razões são diversas, conforme assinaladas por Borges – recursos
humanos e naturais, problemas transnacionais, como o tráfico de drogas, destruição
da floresta e biopirataria –, que também pontua que esse conjunto de elementos gera
pressões que muitas vezes reivindicam a internacionalização da gestão da Amazônia
(2011, p. 11). Isso se agrava quando a maioria dos países da região ainda não con-
seguiu atingir um patamar de desenvolvimento econômico que possa garantir um
padrão mínimo de qualidade de vida para seus nacionais.
Nos anos 90, em resposta a esse conjunto de elementos e à demanda por de-
senvolvimento, o Estado brasileiro enfraqueceu o paradigma desenvolvimentista e
aderiu ao paradigma normal. Sob esse novo paradigma, nos dias 31 de agosto e 1 de
setembro de 2000, Fernando Henrique Cardoso reuniu-se com os Chefes de Estado
de Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Perú, Suriname,
Uruguai e Venezuela. Também participaram da Reunião de Presidentes da América
do Sul os Presidentes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da
Corporación Andina de Fomento (CAF)5.
Entre os temas abordados, estão: democracia, comércio, infraestrutura de inte-
gração, drogas ilícitas e delitos conexos, além de informação, conhecimento e tec-
nologia. A reunião reafirmou a formação e ampliação de um espaço econômico
regional baseado no princípio do RA e reforçou o objetivo de criar uma área de
livre comércio das Américas, com base na ALCA. Com a posterior alternância pre-
sidencial que resultou numa convergência progressista, a ALCA não se confirmou.
Contudo, a IIRSA, lançada nessa reunião como um fórum de coordenação de ações
intergovernamentais para articular os projetos de integração da infraestrutura de
transporte, energia e comunicações, foi incorporada pela UNASUL, em 2008, e pas-
sou a ser regida pelo Tratado Constitutivo da UNASUL e pelo Estatuto e Regula-
mento do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN),
uma instância de discussão política e estratégica criada em 2009. No ano de 2011 o
COSIPLAN elaborou um Plano de Ação Estratégico (PAE) 2012-2022, resultado
5
Respectivamente: Fernando De la Rúa, Hugo Bánzer Suárez, Ricardo Lagos Escobar, Andrés Pastrana
Arango, Gustavo Noboa, Bharrat Jagdeo, Luis Angel Ganzález Macchi, Alberto Fujimori, Ronaldo Ve-
netiaan, Jorge Battle Ibanez, Hugo Chávez, Enrique Iglesias, e Enrique García. Comunicado de Brasilia.
Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2000/01/comunicado-
-de-brasilia>. Acesso 13 agosto 2014.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 37


do trabalho conjunto dos Ministros de Transporte, Energia e Telecomunicação dos
doze países signatários. Em resumo, a IIRSA diz respeito a uma carteira com mais de
500 projetos organizados em dez Eixos de Integração e Desenvolvimento (EIDs)6,
como pode ser observado no Mapa 1.

Mapa 1: Eixos de Integração e Desenvolvimento (EIDs).

Fonte: www.iirsa.org. Acesso em: 13 agosto 2014.

A área de influência do Eixo Peru–Brasil–Bolívia abarca os departamentos de:


Tacna, Moquegua, Arequipa, Apurimac, Cusco, Madre de Dios e Puno (Peru); Pan-
do, Beni e La Paz (Bolívia); estados do Acre e Rondônia (Brasil). Essa tríplice fron-
teira localiza-se numa pequena área costeira e serrana, e numa grande área florestal,
conforme Mapa 27.
6
Eixos: 1 – Andino (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela); 2 – Andino do Sul (região andina
fronteira com Chile e Argentina); 3 – Capricórnio (Argentina, Brasil, Chile e Paraguai); 4 – Hidrovia
Paraguai-Paraná; 5 – Amazonas (Brasil, Colômbia, Equador e Peru) 6 – Escudo das Guianas (Brasil,
Guiana, Suriname e Venezuela); 7 – Sul (Argentina e Chile); 8 – Interoceânico Central (Bolívia, Brasil,
Chile, Paraguai e Peru); 9 – MERCOSUL-Chile; 10 – Peru-Brasil-Bolívia. Informações disponíveis em
www.iirsa.org. Acesso: 10 maio 2014.
7
De acordo com cálculos realizados em 2008, esse eixo conta com a menor densidade demográfica e
representa 4.4% da população total dos três países, sendo 10.125.493 habitantes de 227.854.457. A super-
fície corresponde a 1.146.871 km² de 10.898.629 km². Disponível em: www.iirsa.org. Acesso: 10 outubro
2014.

38 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


Mapa 2 : Eixo Peru – Brasil – Bolívia (área de influência).

Fonte: www.iirsa.org. Acesso em: 13 agosto 2014.

O eixo em questão está dividido em três grupos, conforme breve apresentação.


Grupo 1: Corredor Porto Velho – Rio Branco – Assis – Puerto Maldonado
– Cusco/Juliaca – Portos do Pacífico.
Projeto País Setor Tipo de Obra Status
Pavimentacao Iñapari – Puerto
Transporte Ampliação da capa-
Maldonado – Inambari, Inambari – Peru Concluído
Rodoviário cidade rodoviária
Juliaca/Inambari – Cusco
Transporte Ampliação/adequa-
Melhoramento do aeroporto de Juliaca Peru Em execução
Aéreo ção de aeroporto
Melhoramento do aeroporto de Transporte Ampliação/adequa-
Peru Em execução
Arequipa Aéreo ção de aeroporto
Passo de fronteira e construção do
Brasil Passo de Infraestrutura para
Centro Binacional de Atenção a Fron- Concluído
Peru Fronteira controle fronteiriço
teira (CEBAF) Peru – Brasil
Brasil Transporte Construção ponte
Ponte sobre o Rio Acre Pré-execução
Peru Rodoviário rodoviária
Melhoramento do aeroporto de Transporte Ampliação/adequa-
Peru Em execução
Puerto Maldonado Aéreo ção de aeroporto

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 39


Inter-
Linha de transmissão San Gabán – Interligação ener-
Peru conexão Concluído
Puerto Maldonado gética
Energética
Seção 1 da rodovia Interoceânica
Transporte Reabilitação do as-
IIRSA Sul: San Juan de Marcona – Peru Concluído
Rodoviário falto e infraestrutura
Abancay – Cusco – Urcos
Fonte: Elaboração própria baseada em: http://www.iirsa.org. Acesso: 10 outubro 2014.

Os projetos do primeiro grupo correspondem à microrregião sul do Peru e aos


estados do Acre e Rondônia. Visam facilitar o acesso aos mercados internacionais,
em especial, pela Bacia do Pacífico. O Brasil e o Peru compartilham 2.822 km de
fronteira com uma rede viária entre Iñapari (Madre de Dios) e Assis (Acre)8.
Grupo 2: Corredor Rio Branco – Cobija – Ribalta – Yucumo – La Paz.
Projeto País Setor Tipo de Obra Status
Ponte internacional sobre o Rio Ma-
Bolívia Transporte Construção ponte
moré entre Guayaramerin (Bolívia) e Pré-execução
Brasil Rodoviário rodoviária
Guajará-Mirim (Brasil)
Rodovia Guayaramerín – Riberalta / Transporte
Bolívia Pavimentação Em execução
Yucumo – La Paz Rodoviário
Rodovia Cobija – El Choro – Rib- Transporte
Bolívia Pavimentação Em execução
eralta Rodoviário
Transporte
Rodovia Yucumo – Trindade Bolívia Pavimentação Pré-execução
Rodoviário
Transporte
Rodovia Cobija – Extrema Bolívia Pavimentação Em execução
Rodoviário
Infraestrutura para
Passo de fronteira San Lorenzo Bolívia Passo de
controle frontei- Em estudo
(Peru) – Extrema (Bolívia) Peru Fronteira
riço
Ponte sobre o Rio Madeira em Abuna Transporte Construção ponte
Brasil Pré-execução
(BR-364/RO) Rodoviário rodoviária
Ponte internacional sobre Igarapé Ra-
Brasil Transporte Construção ponte
piran entre Plácido de Castro (Brasil) Em estudo
Bolívia Rodoviário rodoviária
e Montevideo (Bolívia)
Infraestrutura para
Passo de fronteira Tilali (Peru) – Bolívia Passo de
controle frontei- Em estudo
Puerto Acosta (Bolívia) Peru Fronteira
riço
Fonte: Elaboração própria baseada em: http://www.iirsa.org. Acesso: 10 outubro 2014.
8
INICIATIVA PARA LA INTEGRACION DE LA INFRAESTRUCTURA REGIONAL SURAMERICA-
NA. Eje Perú – Brasil – Bolívia. Visión de Negocios. Lima, 2003. 65 p. Disponível em: www.iirsa.org.
Acesso: 10 maio 2014.

40 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


Esse grupo opera na região MAP (acrônimo para Madre de Dios, Acre e Pando)
e visa interligá-la ao eixo central boliviano. A Bolívia e o Peru compartilham 1.047
km de fronteira e não dispõem de interconexão viária pela Amazônia. Suas embar-
cações utilizam pequenos cursos de água sazonal para transportar mercadorias em
pequena escala e de forma esporádica. Entre a Bolívia e o Brasil há 3.126 km de
fronteira com diferentes interconexões de rede viária, como Cobija/Pando com Bra-
siléia/Acre e Guayaramerín/Beni com Guajará-Mirim/Rondônia, além de algumas
conexões fluviais9. A região MAP é caracterizada pela

distância e isolamento de seus respectivos centros nacionais de poder político, cultural,


econômico e financeiro; isso traduz-se em: débil presença do Estado; escassez de investi-
mentos; dependência do Governo Central; desenvolvimento baseado em atividades extra-
tivistas da florestas, que são submetidas a processos incipientes de transformação; indica-
dores socioeconômicos abaixo da média nacional, etc10.

Grupo 3: Corredor Fluvial Madeira – Madre de Dios – Beni.


Projeto País Setor Tipo de Obra Status
Navegação do Rio Madeira entre Porto Transporte Melhorar a
Brasil Em estudo
Velho e Guajará-Mirim Fluvial navegabilidade
Hidrelétrica Cachiela Esperanza (Río Geração de Instalação
Bolívia Pré-execução
Madre de Dios – Bolívia) Energia hidrelétrica
Transporte Melhorar a
Hidrovia Ichilo – Marmoré Bolívia Pré-execução
Fluvial navegabilidade
Transporte Melhorar a
Navegabilidade do Río Beni Bolívia Em estudo
Fluvial navegabilidade
Transporte Melhorar a
Hidrovia Madre de Dios e Porto Fluvial Bolívia Em estudo
Fluvial navegabilidade
Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira
Geração de Instalação
(Hidroelétrica Santo Antonio e Hidroelé- Brasil Em execução
Energia hidrelétrica
trica Jirau)
Bolívia Geração de Instalação
Hidrelétrica Binacional Bolívia – Brasil Em estudo
Brasil Energia hidrelétrica

9
INICIATIVA PARA LA INTEGRACION DE LA INFRAESTRUCTURA REGIONAL SURAMERICA-
NA. Eje Perú – Brasil – Bolívia. Visión de Negocios. Lima, 2003. 65 p. Disponível em: www.iirsa.org.
Acesso: 10 maio 2014.
10
Ibid., p. 7. Tradução nossa.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 41


Linha de transmissão entre as duas Inter-
Interligação
centrais hidrelétricas do Rio Madeira e o Brasil conexão Em execução
energética
Sistema Central Energética

Fonte: Elaboração própria baseada em: http://www.iirsa.org. Acesso: 10 outubro 2014.

O Grupo 3 visa consolidar uma via de integração fluvial para facilitar a logística
de transporte das regiões de Madre de Dios, Rondônia, Pando e Beni, além de am-
pliar a oferta e abastecimento de energia11.
Até a presente data, quatro obras foram concluídas, sete estão em estudo, seis
em pré-execução e oito em execução. Entre os setores abrangidos, dez correspon-
dem ao transporte rodoviário, três ao transporte aéreo, cinco ao setor energético,
três ao controle fronteiriço e quatro ao transporte fluvial. As obras estão distribuídas
da seguinte forma: dezoito obras nacionais (oito na Bolívia, seis no Peru e quatro no
Brasil) e sete obras binacionais (três no Brasil-Peru, duas no Brasil-Bolívia e duas na
Bolívia-Peru).
O atual estágio das obras dificulta uma avaliação concreta em termos de impac-
tos diretos e/ou indiretos, negativos e/ou positivos. Porém, a IIRSA – no que diz
respeito ao desenvolvimento regional e à população local, entre outros fatores – ne-
cessita de estudos prognósticos e análises que possam apontar seus impactos, falhas
e equívocos, destacando os desafios para evitar custos humanos e a reprodução de
injustiças sociais, além de julgar a viabilidade dos projetos para a integração regional.

Possibilidades e desafios

Em teoria, o objetivo da IIRSA não se limita à integração física, sendo a redução


das assimetrias parte da estratégia de integração. Contudo, para materializar-se, serão
necessários programas específicos com a participação dos povos dos respectivos
Estados nacionais. Além da integração da infraestrutura física,

em termos de rodovias, pontes, ferrovias e de energia é essencial a integração das comuni-


cações aéreas, pela sua importância para a economia e a política, assim como da mídia, em

11
INICIATIVA PARA LA INTEGRACION DE LA INFRAESTRUCTURA REGIONAL SURAMERI-
CANA. Eje Perú – Brasil – Bolívia. Visión de Negocios. Lima, 2003. 65 p. Disponível em: www.iirsa.
org. Acesso: 10 maio 2014.

42 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


especial a televisão, essencial à formação do imaginário sul-americano, através do conhe-
cimento da vida política, econômica e social dos países da região, hoje desconhecida do
grande público e, portanto, fonte de toda sorte de preconceitos e manipulações que enve-
nenam a opinião pública e afetam os discursos, as atividades e as decisões políticas (GUI-
MARÃES, 2007:182-183).

Isso nos leva a uma das críticas à IIRSA, a qual entende que os projetos de obras
físicas privilegiam uma vertente comercial que ignora os diferentes grupos étnicos
presentes nas regiões fronteiriças, em outras palavras, não promove uma integração
que não seja baseada no comércio e consumo12. É nesse sentido que Castro tece
críticas severas e destaca que apesar da fronteira ser “produtora de redes de sociabi-
lidade e de conflitos, com base nos grupos que a conformam, tendo caráter econô-
mico, social, político e étnico” (2009, p. 122), o que tem prevalecido nos projetos da
IIRSA é o caráter econômico, e isso pode alimentar conflitos em relação aos outros
três caracteres. O desafio seria incluir a participação e contribuição da população dos
Estados partícipes e promover e/ou fortalecer laços entre os povos.
Essas críticas nos remetem à questão cultural, considerada de extrema relevância
dada a existência de múltiplas identidades culturais entre os povos da América do
Sul:

[...] a integração latino-americana defronta-se com o desafio de resolver adequadamente


a questão cultural. Há muitas identidades culturais entre os povos da região, a começar
pelas expressões linguísticas de raiz latina, mas a diversidade cultural. O grande desafio
consiste em realizar a integração cultural sem submeter uma cultura a outra ou sem borrar
a diferença, mas preservando, como elemento criativo, a rica diversidade de culturas que
caracteriza os povos latino-americanos. Para isso é importante que cada povo ou etnia, ao
mesmo tempo que valorize sua cultura, conheça e valorize a cultura do “outro”, que simul-
taneamente é parte do “nós” (SOUZA, 2012, p. 124).

Outro desafio é fazer com que o projeto de integração cesse enquanto projeto
de governos nacionais para tornar-se projeto de Estados nacionais. Em outras pala-
vras, para o projeto de integração deixar de ser projeto de governo e transformar-se
em projeto de Estado, o único caminho é, primeiro, transformar a integração em
projeto dos povos. Isso requer tanto participação nos benefícios como participação
nas decisões que envolvem o processo integracional (SOUZA, 2012, p. 123).
Outra crítica diz respeito à diferenciação no trato entre Cone Sul e região ama-
zônica. Há “muita desigualdade no trato das relações entre os países da região”, o
12
Para maiores detalhes, consultar: ALAYZA; GUDYNAS, 2012.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 43


Cone Sul concentra a maior parte dos estudos “referentes às relações regionais ou
bilaterais, ao passo que os países andinos carecem de atenção, tanto sob o ângulo das
formas nacionais quanto das relações bilaterais e regionais” (CERVO, 2008, p. 196).
O mesmo autor acrescenta que mesmo com o Tratado de Cooperação Amazônica,
1978, essa carência não foi preenchida pela comunidade acadêmica. Sobre essa ques-
tão, Guimarães assinala ser a América do Sul o centro da política externa brasileira,
mas tem o MERCOSUL como núcleo e a Argentina como cerne, o que nos remete
ao desafio da UNASUL em adotar a solidariedade e a cooperação como meio de
superação de tais assimetrias (2007, p. 181).
De acordo com as observações feitas por Cervo, um dos problemas a ser su-
perado é o fato da diplomacia e da sociedade nem sempre marcharem conectadas
e, no caso brasileiro, a diplomacia é distante da sociedade. O autor complementou
que, embora os líderes políticos tenham papel relevante na gênese dos processos de
integração, estes somente vingam quando as forças das sociedades – intelectuais,
empresários, agricultores, opinião pública etc. – envolvem-se diretamente (CERVO,
2008, p. 156-157).
A concepção de desenvolvimento também recebe críticas. Borges argumenta
que desenvolvimento implica conservação (uso econômico não destrutivo) e um
processo de redistribuição no qual os beneficiários primários devem ser os habi-
tantes da região em questão, para depois beneficiar outros grupos sociais e regiões
necessitadas do país. Essa seria a condição sine qua non para o desenvolvimento
integral e auto-sustentado. Porém, “logicamente isso só pode ser executado com
melhores níveis de conhecimento sobre a Amazônia” (2011, p. 33). O autor tam-
bém nos remete a uma assertiva da Teoria da Dependência acerca da dinâmica do
capitalismo mundial. Essa assertiva foi assinalar que a característica mais importan-
te do sistema mundial é funcionar como sistema integrado que extrai excedentes
econômicos e transfere riquezas da periferia para os centros. Isso se configura pela
ausência de recursos nos países periféricos para seu próprio desenvolvimento, o
que impossibilita a apropriação de excedentes produzidos localmente, dificultando
a redução do gap econômico, tecnológico e militar que os separam dos países ricos,
condenando-os à dependência. A reprodução dessa dinâmica pelo Brasil na Améri-
ca do Sul fomenta avaliações críticas em relação aos interesses e ação brasileira no
plano regional, representando significativos obstáculos para o pretendido protago-
nismo brasileiro. (p. 40-44).
Castro critica a orientação governamental para a “integração de mercados com
os países que se alinham nas amplas fronteiras da região amazônica, mas com vistas

44 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


a mercados mais distantes como os asiáticos, europeus e americanos” (2009, p. 114).
Isso nos faz pensar numa “diplomacia de generosidade”, expressão utilizada pelo ex-
-presidente Lula ao referir-se ao potencial e tamanho do Brasil na região, o que seria
suficiente para recomendar aos importadores domésticos que se compre mais dos
países vizinhos, independente de desvantagens relativas acerca dos preços, pois esse
seria um meio de equilibrar o fluxo do comércio e contribuir para a prosperidade
regional (BORGES, 2011, p. 50). Esse seria um meio para o Brasil assumir custos
envolvidos no processo de integração regional, fortalecendo-se como líder nesse
processo.
A atuação de empresas brasileiras na região sul-americana também alimentam
críticas contrárias a IIRSA. Algumas dessas críticas dizem respeito à qualidade dos
serviços prestados. Em alguns casos, desrespeitam legislações nacionais e atuam de
maneira predatória, além de não reinvestir os lucros e tampouco gerar empregos.
Isso contribui pra que recebam o rótulo de subimperialistas13.

[...] a Queiroz Galvão teve que sair da Bolívia acusada de graves fissuras na construção de
uma estrada, deixando a obra para outra construtora brasileira, OAS, que agora está sendo
acusada de corrupção e fraude no processo de licenciamento. Os impactos ambientais,
sociais e trabalhistas das atividades da mineradora Vale vem sendo sofridos por populações
e trabalhadores no Peru, Indonésia, Canadá, e outros países onde ela opera (GARCIA,
2009, p. 16).

Essas críticas e denúncias, no caso da IIRSA materializam-se em resistências


populares e faz com que a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Eco-
nômico e Social (BNDES) também seja alvo de críticas. Por exemplo, os valores
desembolsados pelo BNDES para as usinas hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau,
apesar das dúvidas em relação à viabilidade econômica e ambiental dessas obras,
evidenciando que os investimentos foram realizados sem os critérios socioambien-
tais e sem mecanismos de acompanhamento de impactos dos projetos financiados
(MARACCI, 2012, p. 20-21).

Segundo a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Estado de Rondônia


(SRTE/RO), as hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau receberam, cada uma, mais de mil
autuações por violações à legislação trabalhista. Esta situação decorre do elevado nível de

13
Para maiores detalhes sobre o uso do rótulo subimperialista e críticas à atuação do BNDES, consultar:
BORGES, 2011; INSTITUTO ROSA LUXEMBURG STIFTUNG et al. (Orgs.), 2009; LOPES PINTO,
2012; RODRÍGUEZ, 2014; ALAYZA; GUDYNAS, 2012.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 45


terceirização dos empregos e da intensa precarização do trabalho, incluindo casos compro-
vados de trabalho escravo. (...) Nesse contexto de dramáticos conflitos sociais e ambientais,
as cooptações, perseguições, criminalizações e ameaças de morte, entre outras ações por
parte das empresas, em parceria com forças policiais militares e da área judicial, compõem
praticamente o cotidiano de pessoas, comunidades, movimentos e entidades civis que in-
tegram os coletivos de resistência às violações dos direitos aqui tratados. Este processo é
verificado em todos os oito casos de megaprojetos trazidos nesta publicação. É bastante
fácil constatar o forte aparato policial que fornece segurança às empresas construtoras,
como a situação em pleno curso vivida pelos trabalhadores da construção da UHE Belo
Monte e do complexo hidrelétrico no Rio Madeira. Mais grave ainda são as denúncias do
uso de milícias na segurança da TKCSA. As greves dos operários dos canteiros de obras
destes empreendimentos denunciam situações de superexploração do trabalho, com longas
jornadas e baixos salários, falta de atendimento adequado à saúde, problemas de transporte
e segurança, incluindo demissões e ameaças de demissão (MARACCI, 2012, p. 25).

Dourojeanni et al. (2009) critica a promoção da IIRSA como vetor do desenvol-


vimento sul-americano e questiona os interesses do Brasil nesses projetos, além de
apontar que o papel do Peru é apenas o de colocar “à venda ou oferecer em licitação
suas necessidades aparentes de infraestrutura e seus recursos naturais”, enquanto
as obras previstas na Amazônia peruana contemplam necessidades brasileiras, por
exemplo: escoar parte de sua produção para a Ásia pelos portos do Pacífico; apro-
veitar recursos peruanos, como fosfatos de Bayóvar; satisfazer suas necessidades de
energia elétrica com base no potencial peruano e; estender sua influencia econômica
(apud BORGES, 2011, p. 102-103).
Soma-se a essas críticas o custo de algumas obras, os impactos ambientais em
regiões de alta fragilidade ambiental – é o caso da região designada por MAP –,
possíveis transferências de riscos da concessionária para o Estado, os privilégios
das empreiteiras brasileiras e sua participação de destaque nos financiamentos de
campanhas políticas no Brasil, a possibilidade dos ganhos econômicos serem menor
que os estimados pelos estudos de factibilidade, a (não) transparência dos Estudos
de Impactos Ambientais (EIA),14 e as resistências locais.

Sob diversas formas de organização coletiva, atores locais, em toda a extensão amazônica,
tem-se mobilizado para defesa de seus interesses, afirmando suas diferenças e reivindican-
do direitos sociais, étnicos e territoriais, sejam eles povos indígenas, pequenos agricultores,
quilombolas, pescadores, ribeirinhos, atingidos por barragens, ou por projetos de grandes
investimentos, ou outras categorias de identidade política. Em áreas de fronteira tem sido
fortalecida as articulações de movimentos sociais reunindo varias nacionalidades [...]. In-
14
Para maiores detalhes, consultar: BORGES, 2011.

46 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


tegração política, estratégica e territorial muito concreta existe nas fronteiras entre Brasil,
Peru, Colômbia, Bolívia e Equador que compõem a grande faixa fronteiriça da Amazônia
Ocidental [...]. Os temas de discussão nesses fóruns são variados [...]. Alguns fragmentos
mostram a diversidade desses temas, e seus impactos locais: como enfrentar as consequên-
cias do avanço de empresas e do consequente desmatamento que ocorre no leste do Peru,
a exploração madeireira que avança em direção da Bolívia [...] (CASTRO, 2009, p. 123-124).

Essas articulações corroboram a existência de variadas formas de sociabilidade


entre os povos de diferentes nacionalidades e, em certa medida, um desconheci-
mento acerca “das experiências sociais e do campo de trocas, materiais e simbólicas,
que atravessam as relações e conformam a vida social e as relações com a natureza
nessas regiões” (CASTRO, 2009, p. 124). Nesses encontros os povos organizados,
muitas vezes, redigem cartas de princípios com propostas para políticas públicas
no que concerne a vida local, mas seus encontros e suas demandas e propostas são
invisibilizados15.
Por último, é importante mencionar que as relações entre Brasil-Peru e Brasil-
-Bolívia, países de grande importância estratégica para o Brasil, necessitam de maior
equilíbrio.

[...] se essas relações não forem tratadas de maneira mais equilibrada pela parte brasileira,
os resultados poderão ser frustrantes. Isso pode acarretar muitos movimentos de resistên-
cias a atuação das empresas e também da diplomacia brasileira nesse estratégico vizinho.
Uma forma de evitar futuros conflitos é aprofundar os conhecimentos sobre esse vizinho
amazônico, identificando as expectativas e necessidades dos peruanos em relação ao Brasil.
Dessa maneira se poderão construir reais projetos de cooperação entre esses dois países,
com possibilidades de ganhos mútuos que vai além do puro lucro econômico de um pe-
queno grupo de empreiteiras brasileiras (BORGES, 2011, p. 104).

O autor faz referência ao Peru, no entanto, entendemos que essa mesma ob-
servação aplica-se à Bolívia, apesar da Bolívia ter sido contemplada com política
15
Um exemplo é a “Declaración de la II Cumbre Regional Amazónica: Vida Plena frente al IIRSA y
Desarrollismo”. A II Cúpula Amazônica dos Povos Indígenas foi realizada no final de 2013 na Colômbia,
convocada pela Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (COICA), contou
com a participação de nove países: Bolívia, Brasil, Equador, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Peru,
Venezuela e Suriname. O objeto central da Cúpula foi a IIRSA, compreendida como “um ambicioso
projeto de reordenamento territorial cujo objetivo é, mediante a definição de rotas multimodais (hidro-
via, rodovias, vias férreas), reordenar uma ampla extensão do território da América do Sul para servir as
exigências do mercado mundial, aprofundando a visão extrativista que constitui uma séria ameaça para a
vida e culturas dos povos indígenas” (tradução nossa). Disponível em: <http://laboratoriosdepaz.org/vida-
-plena-amazonica-frente-al-iirsa-y-el-desarrollismo-declaracion-de-la-ii-cumbre-regional-amazonica-de-
-los-pueblos-indigenas/>. Acesso: 10 outubro 2014.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 47


compensatória em termos de trocas comerciais. Esses desequilíbrios, além de poder
frustrar toda uma iniciativa de integração regional, contam com outro agravante: a
incidência de conflitos de maiores proporções. O desafio é a construção de projetos
de cooperação, e esse desafio ganha novas dimensões ao considerar imprescindível
a participação das populações locais.

Considerações Finais

Os argumentos favoráveis a IIRSA ganham sentido ao apontar a importância


e necessidade de estimular o crescimento econômico, integrar a produção e o co-
mércio, gerar emprego e renda, garantir acessibilidade a determinadas regiões e, as-
sim, aprofundar a integração sul-americana, contemplando suas vertentes políticas,
sociais, culturais e econômicas. Contudo, as graves denúncias de relações espúrias
e exclusão das populações locais dos processos decisórios podem resultar em con-
flitos de diversos níveis, além de colocar em xeque a própria iniciativa de integração.
O paradigma logístico beneficia o país em termos de competitividade nas rela-
ções econômicas internacionais, além de ampliar o protagonismo brasileiro e con-
tribuir para a tentativa de equilibrar o sistema internacional por meio de políticas
multilaterais. Por outro lado, as especificidades da América do Sul demandam outro
paradigma de política externa e concepções de desenvolvimento que visem contem-
plar as necessidades e os desafios da região. Nesse sentido, uma diplomacia de gene-
rosidade e a adoção de medidas compensatórias podem viabilizar o enfrentamento
dos desequilíbrios entre Brasil-Bolívia e Brasil-Peru, além de evitar a reprodução
da clássica divisão internacional do trabalho na região. Em outras palavras, as assi-
metrias entre os países precisam ser corrigidas e a solidariedade deve prevalecer em
relação à competitividade.
A incorporação da IIRSA pela UNASUL é compreendida como um avanço já
que a UNASUL objetiva aprofundar as relações na esfera política, cultural, social e
econômica. Porém, os trâmites técnicos e diplomáticos permanecem distantes da so-
ciedade. Isso desencadeia muitas críticas e questionamentos em relação à legitimida-
de das obras, projetos e processos decisórios e, em casos mais alarmantes, alimenta
posições contrárias ao próprio projeto de integração. Essa carência de sustentação
social reduz a força política e, consequentemente, contribui para um enfoque comer-
cial baseado na competição em detrimento da cooperação, privilegiando empresas

48 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015


mais competitivas. Isso pode fragilizar ainda mais os países com graves problemas
sociais e aprofundar as vulnerabilidades internas e assimetrias nas relações externas.

Recebido em outubro de 2014, aprovado em dezembro de 2014.

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Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 29-51, referência 2014. Publicação 2015 51


Alan Robson A. Ramos *

Artigo
A prisão para efetivação da deportação no Brasil:
inconsistências com as normas da convenção
americana de direitos humanos

Resumo Abstract
Este artigo aborda o instituto jurídico This article discusses the legal institution
da deportação no Brasil, com análise of deportation in Brazil, with analysis of
da medida de prisão administrativa para administrative detention measure to execute
efetivação da deportação de estrangeiros the deportation of foreigners in Brazil in
no Brasil em confronto com as normas comparison with the provisions of the American
da Convenção Americana de Direitos Hu- Convention on Human Rights, part of the legal
manos, que integra a ordem jurídica pátria order homeland since 1992 and has legal status
desde 1992 e tem status jurídico supralegal supralegal in the legal system.
no ordenamento jurídico.
Keywords:
Palavras-Chave: Deportation; imprisonment; human rights.
Deportação; prisão; direitos humanos.

* Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Sociedade e Fronteiras pela Uni-
versidade Federal de Roraima. Delegado de Polícia Federal em Roraima. Email: alanrobsonce@yahoo.
com.br.

52 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


Introdução

A deportação é a medida de retirada compulsória de estrangeiros do Brasil pre-


vista nos artigos 57 a 64 da lei 6.815/80, que define a situação jurídica do estrangeiro
no Brasil. É deportado do Brasil o estrangeiro que tenha ingressado irregularmente
no território brasileiro ou permaneça de forma irregular no país.
A deportação consiste, nos termos do artigo 58 da lei 6.815/80, na “saída com-
pulsória do estrangeiro” e este será compulsoriamente encaminhado ao “país da
nacionalidade ou de procedência do estrangeiro, ou para outro que consinta em
recebê-lo.”
Para a efetivação da medida, o artigo 61 da lei prevê a possibilidade de prisão do
estrangeiro, determinada pelo Ministro da Justiça. Após a Constituição de 1988, por
mandamento do artigo 5º, LXI, a prisão para efetivação de deportação só pode ser
efetivada por ordem judicial, não tendo a nova ordem constitucional recepcionado
integralmente o artigo 61 da lei 6.815/80.
Através do Decreto número 678 do ano de 1992, a Convenção Americana de
Direitos Humanos passou a integrar a ordem jurídica pátria. A jurisprudência do
STF definiu status supralegal às normas da Convenção Americana de Direitos Hu-
manos. Abordar-se-á a compatibilidade da prisão para fins de deportação prevista
na lei 6.815/80 com as normas supralegais da Convenção Americana de Direitos
Humanos.

Imigração no Brasil: recorte do estado fronteiriço de Roraima

Para ingressar no território brasileiro o estrangeiro deve cumprir requisitos le-


gais para a regular entrada e estada regular no país. Ademais, o Estado Brasileiro em
sua política pública concernente ao estrangeiro estipula como uma das primeiras
condições para ingresso no país a entrada por ponto regular de fiscalização.
Quanto aos obstáculos da imigração, “podem-se interpor barreiras físicas reais,
como o ´Muro de Berlim´, ou leis de migração que visem a limitar o movimento”
(LEE, 1980, p. 102). O primeiro obstáculo ao migrante internacional que intenciona
ingressar no território do Brasil, de forma legal, a partir da República Bolivariana
da Venezuela, ou República Cooperativista da Guiana, nas fronteiras com o estado
de Roraima, é a passagem por um dos pontos oficiais de fiscalização. É o obstáculo

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015 53


previsto no art. 22, da lei 6.815/90: “A entrada no território nacional far-se-á somen-
te pelos locais onde houver fiscalização dos órgãos competentes dos Ministérios da
Saúde, da Justiça e da Fazenda” (BRASIL, 1980).
A título de exemplo, o estado fronteiriço de Roraima tem extensa fronteira de
1.922 quilômetros com a Venezuela e Guiana, e existem apenas dois pontos oficiais
de entrada regular no país, localizados às margens das rodovias federais BR-174,
fronteira com a Venezuela e BR-401, fronteira com a Guiana. A fronteira brasileira
permite acessos por vários pontos, sem permanente fiscalização do Estado, mas o
ingresso sem a autorização gera consequências previstas em lei: multa e retiradas
compulsórias do estrangeiro do território brasileiro.
Os dois postos oficiais de fiscalização de fronteira para entrada regular de es-
trangeiros no Brasil pelo estado de Roraima, consistentes em prédios públicos da
Polícia Federal, funcionam apenas em horário comercial, com funcionamento tam-
bém aos finais de semana. O estrangeiro que não seja detentor de tal informação
de quadro de horários tem que retornar aos países vizinhos para ser atendido no
momento oportuno, ou ingressa de forma ilícita no país.
Os pontos de fiscalização de fronteira em Roraima são localizados em frontei-
ras de acesso facilitado por rodovias pavimentadas. Na fronteira do Brasil com a
República Cooperativista da Guiana há o rio Tacutu como divisa natural entre os
países, mas desde 2009 há a ponte internacional que atravessa o referido rio, divisor
de territórios, e facilita o trânsito entre os países. Na fronteira com a Venezuela não
há barreiras naturais, havendo continuidade da rodovia BR-174.
A decisão acerca da permissão de entrada do estrangeiro no Brasil ou o atendi-
mento do estrangeiro em quaisquer demandas de seu interesse, como refúgio, asilo
ou obtenção de documento, é do agente de imigração, nos termos dos art. 26 e 7º da
lei de imigração (BRASIL, 1980). Os procedimentos de imigração são de atribuição
da Polícia Federal, que é exercida através da ação de um servidor público policial que
fundamenta seus atos na lei 6.815/80.
Observa-se que há vasta discricionariedade ao servidor da Polícia Federal ao
decidir sobre a entrada regular do estrangeiro no Brasil, decidindo se a entrada do es-
trangeiro atende “interesses nacionais”, nos termos do art. 7º da lei (BRASIL, 1980).
Caso negada a permissão para entrada, seja por falha na documentação apresen-
tada ou pelos critérios discricionários inscritos na lei, com fundamento na segurança
e interesses nacionais, o estrangeiro se depara com a impossibilidade de ingresso
no país ou de recurso administrativo ou judicial daquela decisão administrativa do
estrangeiro migrante.

54 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


Em Roraima, o estrangeiro que teve a entrada negada não tem acesso a outras
instâncias administrativas ou a autoridades judiciárias, salvo se ingressar ilicitamente
no país para buscar auxílio de tais meios. A Justiça Federal de primeira instância em
Roraima, órgão com poder de apreciar judicialmente pleito de estrangeiro contra a
decisão administrativa da Polícia Federal que negou a sua entrada, é localizada ape-
nas na capital Boa Vista, situada a 130km da fronteira com a Guiana e a 250km da
fronteira com a Venezuela.
A Constituição Federal garante, em norma de aplicabilidade plena, o acesso ao
judiciário, seja a nacionais ou estrangeiros que entendam violados seus direitos. Os
atos dos agentes de imigração são passíveis de análise pelo Poder Judiciário Federal.
A decisão sobre a entrada no país acaba por se tornar, de fato, ato irrecorrível, em
violação ao dispositivo constitucional mencionado, nada obstante trazer graves con-
sequências ao estrangeiro, que tem como única possibilidade o retorno aos países
vizinhos – Venezuela ou Guiana. A entrada do estrangeiro no Brasil em desobediên-
cia a determinação ao agente de imigração ou sem a passagem e controle em ponto
regular de imigração é considerada clandestina e sujeita o estrangeiro à medida de
retirada compulsória consistente na sua deportação.
A deportação consiste na retirada compulsória de estrangeiros do território do
país, se aplicando no Brasil, especificamente e tão somente, aos estrangeiros com
entrada e/ou estada irregular no país. No Brasil a deportação é prevista na lei fede-
ral número 6.815 do ano de 1980, que “define a situação jurídica do estrangeiro no
Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração” (BRASIL, 1980). Como categoria
científica, a deportação é espécie do gênero retiradas compulsórias de estrangeiros
do Brasil, não se confundindo com as outras retiradas: extradição, expulsão ou repa-
triação. Na repatriação, instituto que mais se assemelha à deportação, o estrangeiro
não chega a efetivamente ingressar no território brasileiro, tendo sua entrada no país
negada pelas autoridades de imigração, que no Brasil são policiais federais.
A deportação consiste, nos termos o artigo 58 da lei 6.815/80, na “saída com-
pulsória do estrangeiro” (BRASIL, 1980) e é ato decorrente da soberania estatal. O
estrangeiro é retirado compulsoriamente do Brasil “nos casos de entrada ou estada
irregular” (idem) e encaminhado “para o país da nacionalidade ou de procedência”
ou ainda “outro que consinta em recebê-lo”1. Em ocorrendo situação fática como as
1
De acordo com Portela (2010, p. 261), as hipóteses fáticas de entrada ou estada irregular no Brasil pas-
síveis de deportação são: Falta de documentação; passaporte vencido; passaporte com prazo de validade
inferior a seis meses na entrada; passaporte não válido para o país no qual se pretenda entrar; uso de docu-
mento não aceito para estrangeiros (como carteira de identidade quando deveria ser usado o passaporte);
visto vencido; exercício de atividade incompatível com o visto concedido; e ausência de visto, quando
exigido (...) também poderão ser deportados os estrangeiros que se afastem do local de entrada no país

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015 55


citadas, o ato administrativo de deportação é executado pela Polícia Federal brasilei-
ra, que tem atribuição constitucional de polícia aeroportuária e de fronteiras inscrita
no art. 144 da Constituição Federal. São policiais federais que atuam diretamente na
execução dos mandamentos legais.
Os policiais federais, em constatando fato subsumível às hipóteses legais citadas
– entrada ou estada irregular de estrangeiro no Brasil – aplicam a deportação e exe-
cutam a retirada do estrangeiro do Brasil, com sua entrega às autoridades de outro
país, seja o da nacionalidade do deportando, origem ou aquele país que consinta no
recebimento do estrangeiro deportando. Não há no ordenamento jurídico brasileiro
uma conceituação legal de estrangeiro, único destinatário da medida de deportação.
A Constituição Federal brasileira caracteriza os nacionais, afirmando aqueles
que são brasileiros, sendo a natureza jurídica do estrangeiro concluída por exclusão -
aqueles que não são nacionais nos termos da constituição, são caracterizados como
estrangeiros nos termos do artigo 12 da Constituição Federal brasileira (BRASIL,
1988). A realidade no século XXI é a facilidade para a mobilidade de pessoas no
mundo. Estima-se em 3% a população migrante no globo (VENTURA, 2012) e é
sobre estes visitantes estrangeiros, no Brasil, que é aplicada a medida de deportação.
A lei federal 6.815/80, que já tem mais de trinta anos de vigência, elaborada du-
rante a ditadura militar brasileira, estipula que, em sua aplicação, “atender-se-á preci-
puamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos,
sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional”
(BRASIL, 1980).

Deportação e compromissos com os Direitos Humanos assumidos pelo Brasil

Em essência, nacionais e estrangeiros são seres humanos e merecem respeito e


consideração de qualquer Estado e isto é ratificado nos dispositivos da Constitui-
ção Federal e dos compromissos de Direitos Humanos assumidos pelo Brasil. A lei
maior do Brasil tem como um de seus fundamentos a Dignidade da Pessoa Humana
(BRASIL, 1988). O fundamento filosófico e a própria ontologia deste fundamento
da ordem jurídica pátria é cotejado pela literatura jurídica nacional com destaque ao
filósofo iluminista prussiano Immanuel Kant (MENDES, 2007; WEYNE, 2013).
sem que o seu documento de viagem e o seu cartão de entrada e saída tenham sido visados pela autoridade
competente, dentre outros casos elencados nos seguintes artigos: 21 § 2º; 24; 37, § 2º; 98 a 101; 104, §§
1º e 2º; e artigo 105.

56 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


As máximas morais em Kant carreiam o conceito de Dignidade da Pessoa Humana
no século XVIII. Mas a ontologia da dignidade humana é paulatinamente construída
na história. Os estóicos, no século II a.C., trataram do ser humano e de sua dignida-
de. Segundo Comparato (2013, p. 28) “organizou-se em torno de algumas ideias cen-
trais, como a unidade moral do ser humano e a dignidade do homem, considerado
filho de Zeus e possuidor, em conseqüência, de direitos inatos e iguais em todas as
partes do mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais”.
A Dignidade da Pessoa Humana na Idade Média é decorrente da criação. Deus
criou o homem à Sua imagem e semelhança, portanto com “dignidade dada pelo
próprio criador” (BERGOGLIO, 2013, p. 13). E todos descendem de um único e
primeiro homem – Abraão – sendo decorrente o princípio da igualdade de todos os
homens. “Não existem indivíduos que, diante de Deus, tenham prerrogativas maio-
res ou menores” (BERGOGLIO, 2013, p. 15).
Na idade moderna, no século XVIII, Kant explana em sua obra sobre o valor
absoluto que existe no ser humano. Afirma que “o homem – e, de uma maneira
geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio
para o uso arbitrário desta ou daquela vontade” (KANT, 2002, p. 58).
Em Kant, Dignidade Humana tem valor absoluto, incomparável ao valor das coisas
não-humanas. As coisas podem ser substituídas. Cada ser humano é insubstituível e
um fim em si mesmo, o que constitui sua dignidade. Um ser humano não pode ser
substituído por outro ou por qualquer coisa ou conjunto de coisas. O ser humano,
cada ser humano, é detentor de um valor absoluto. Segundo Kant, os seres humanos,
portadores de razão, têm dignidade. As coisas têm preço. Apenas os seres humanos
têm liberdade e vontade. Não há preço para o ser humano. Não há nada de mais
valor que um ser humano, que está acima de qualquer preço, pois possui o atributo
da dignidade.
Só o homem possui moralidade, pois pode, com a razão, fazer escolhas de sua
vontade, não agindo unicamente sob os impulsos da natureza. E a liberdade humana
é a independência das causas determinantes do mundo sensível, ligado diretamente
ao princípio da autonomia e este ao da moralidade (KANT, 2002, p. 58). Indepen-
dentemente de serem nacionais ou estrangeiros, portanto, com base no fundamento
da Constituição da República Federativa do Brasil, são, antes, seres humanos, pes-
soas, dotadas de dignidade. Em liame com a obra de Ingo Sarlet, observamos que
Dignidade da Pessoa Humana é conceito “em permanente processo de construção e
desenvolvimento” e a aplicação dos Direitos Humanos na prática diária dos servido-
res públicos estatais lavra diuturnamente o conceito de Dignidade especificamente

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015 57


no Brasil. O conceito está em “constante concretização e delimitação pela práxis
constitucional, tarefa cometida a todos os órgãos estatais” (SARLET, 2013, p. 27).
A restrição aplicada ao estrangeiro pelo texto constitucional, quanto a termo
“residência no país”, para a plena garantia de direitos fundamentais, é de interpreta-
ção extremamente restrita na literatura jurídica (MENDES, 2007, p. 262, 685; SIL-
VA, 2009, p. 191; SARLET, 2010, p. 212). A lei 6.815/80 “Define a situação jurídica
do estrangeiro no Brasil” (BRASIL, 1980) e em seu artigo 95 assim determina sobre
o tratamento igualitário entre brasileiros e estrangeiros. O Artigo 95 afirma que o es-
trangeiro residente no Brasil goza de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros,
nos termos da Constituição e das leis.
Não é cabível o afastamento de direitos fundamentais aos estrangeiros no Brasil,
seja qual for a condição de entrada ou estada do estrangeiro no Brasil. Os estados
têm obrigações para com quaisquer pessoas em seus territórios, decorrentes de vá-
rios compromissos internacionais de direitos humanos, tendo relevância a Conven-
ção Americana de Direitos Humanos, que integra a ordem jurídica nacional desde
1992 com status supralegal no ordenamento jurídico.

Prisão para deportação

As hipóteses legais acerca da deportação estão nos artigos 57 a 64 da lei


6.815/80, prevendo o artigo 61 que “o estrangeiro, enquanto não se efetivar a de-
portação, poderá ser recolhido à prisão por ordem do Ministro da Justiça, pelo prazo
de sessenta dias”. Tal artigo não foi integralmente recepcionado pela Constituição
Federal de 1988. Não mais subsiste no ordenamento jurídico brasileiro a prisão de-
terminada por quaisquer autoridades administrativas, salvo em crimes ou infrações
propriamente militares.
O Ministro da Justiça, assim como os demais ministros, é subordinado hierar-
quicamente ao Presidente da República, chefe do poder executivo. A determinação
de qualquer prisão após a Constituição de 1988 só pode emanar do poder judiciário,
através de ordem fundamentada, inscrita em mandado judicial e, normalmente, exe-
cutada pela polícia judiciária (seja Polícia Civil ou Polícia Federal), consoante artigo
5º da Constituição Federal, especificamente no inciso LXI: ninguém será preso se-
não em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judi-
ciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente
militar, definidos em lei (BRASIL, 1988).

58 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


A literatura jurídica apontou possível revogação do instituto da prisão para de-
portação após a lei 12.403/2011, que revogou previsão expressa da prisão adminis-
trativa no Código de Processo Penal (ANDREATA, 2012), mas a jurisprudência
brasileira demonstra persistência do instituto jurídico da prisão administrativa para
deportação no ano de 2014 (BRASIL, 2014), com lastro legal na lei 6.815/80. A
entrada irregular de estrangeiro no país não constitui crime por parte do estrangeiro,
sua prisão é cautelar, no interesse da medida administrativa de retirada compulsória.
A prisão administrativa para deportação é meio para atingir o fim de retirar o es-
trangeiro irregular do país. O ato imputável ao estrangeiro é sua entrada ou estada
irregular no Brasil e, para tal conduta, não há previsão em qualquer dispositivo de lei
penal e, portanto, não há pena de prisão para a entrada ou estada irregular no Brasil.
A determinação legal para entrada ou estada irregular no Brasil é a deportação
– retirada do estrangeiro do país – sendo a prisão um meio para execução da medida
e não uma pena como conseqüência da conduta irregular do estrangeiro. A restrição
de liberdade no Brasil, seja de pessoa estrangeira ou nacional, é medida extrema.
Não há ato estatal mais grave que a prisão no Brasil, aplicável pelo Estado contra o
cidadão, salvo, unicamente, a excepcionalíssima pena de morte prevista no art. XL-
VII, inciso “a” da Constituição Federal, em caso de guerra declarada e ratificada nos
art. 56 e em vários tipos penais do Código Penal Militar brasileiro.
A consulta à jurisprudência da corte maior do Brasil – Supremo Tribunal Fede-
ral – revela, por outro lado, que o Estado brasileiro já chegou, em 1978, a aplicar a
prisão para deportação de adolescente estrangeiro sob a justificativa de “ter penetra-
do no território nacional clandestinamente” (BRASIL, 1977). A jurisprudência do
ano de 2004 em que adolescente, juntamente com adultos, foi preso sob fundamento
de que “o ingresso no Brasil ocorreu de forma irregular e, ainda, que eles não pos-
suem documento algum e nem falam a língua nacional” (BRASIL, 2004). Nesse sen-
tido, a excepcionalidade da prisão após 1988 exige das autoridades administrativas da
Polícia Federal que fundamentem minuciosamente em representação ao Judiciário
os motivos da necessidade da prisão cautelar administrativa para fins de deportação
e dos juízes a demonstração, em decisão fundamentada, da efetiva inafastabilidade
do Mandado de Prisão.
O argumento de entrada ou estada irregular do país, tão somente, não é válido
para decretação de prisão de estrangeiro. Para a entrada ou estada irregular no Brasil
a consequência jurídica já é a deportação. Em sopesando o direito à liberdade do
estrangeiro, não obstante irregular no país, e a higidez coletiva, o magistrado só deve
decretar prisão administrativa para fins de deportação caso a manutenção da liberda-

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015 59


de seja efetivo risco à sociedade. Cabe ao poder executivo – Polícia Federal – através
da Autoridade Policial, que é o Delegado de Polícia Federal, representar junto à Jus-
tiça Federal pela prisão do estrangeiro, expondo as razões fáticas e a fundamentação
jurídica que a justifique.
A entrada ou a estada irregular de estrangeiro no Brasil não configuram condu-
tas criminosas e tão só por estes motivos não se pode prender um estrangeiro no
Brasil para deportação. A medida aplicável para entrada ou a estada irregular de es-
trangeiro no Brasil é unicamente a deportação, que consiste na retirada compulsória
do estrangeiro do Brasil. Não obstante as premissas expostas, a competência para
decretar a prisão administrativa de estrangeiro para fins de deportação não é de um
juízo federal de vara federal cível, mas de um juiz de vara federal criminal, ao menos
assim tem sido a práxis judicial nos termos da interpretação da legislação por parte
dos tribunais pátrios2.
A lei 6.815/80 prevê outra medida menos gravosa que a prisão, consistente na
liberdade vigiada, que será aplicada nas hipóteses previstas em lei, com a ressalva que
as condições impostas devem sempre ser determinadas por autoridade judiciária,
não pelo Ministro da Justiça, em consonância com a ordem constitucional estabele-
cida em 19883.
A prisão para deportação é caracterizada como prisão administrativa, nada obs-
tante sua necessidade ser analisada por juízo federal criminal. Em essência, tal prisão
não decorre dos requisitos de prisão preventiva e/ou prisão temporária previstas em
lei de cunho penal. A prisão é cautelar administrativa, não visa a aplicação ulterior de
medida prevista em lei penal, mas aplicação de medida administrativa de deportação.
Accioly (2012, p. 546), entende de forma distinta, quando afirma que “tal prisão se
dá por ordem de juiz federal, não se admitindo mais a antiga prisão administrativa,
no regime anterior à Constituição de 1988”
2
A jurisprudência nacional está sedimentada nesses termos: Processual. Conflito negativo de compe-
tência. Apreciação de pedido de liberdade vigiada. Procedimento de deportação de estrangeiro. Compe-
tência do juízo criminal. 1. A jurisdição cível é competente para decretar prisão em duas circunstâncias
expressamente autorizadas pela Constituição Federal (art. 5º, inciso LXVII), quais sejam, do devedor
de pensão alimentícia e do depositário infiel. 2. Sendo a decretação de prisão de estrangeiro, para fins
de deportação, da competência do juízo federal criminal, ainda que não tenha natureza estritamente penal,
é razoável que também o pedido de concessão de liberdade vigiada seja abrangido por essa competência,
visto que inserido no mesmo procedimento de deportação de estrangeiro, tratar-se de restrição de liberda-
de, e possuir idêntica natureza. 3. Conflito conhecido e julgado procedente, declarada a competência do
juízo suscitado.
3
Conforme o Art. 73 da Constituição Brasileira: O estrangeiro, cuja prisão não se torne necessária, ou que
tenha o prazo desta vencido, permanecerá em liberdade vigiada, em lugar designado pelo Ministério da
Justiça, e guardará as normas de comportamento que lhe forem estabelecidas.

60 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


A prisão para deportação também não é cível, pois no Brasil só é permitida
prisão civil para o devedor de obrigação alimentícia, consoante art. 5º LXVII da
Constituição Federal e jurisprudência do STF que tem como paradigma a Conven-
ção Americana de Direitos Humanos. A decisão do Supremo Tribunal Federal que
assenta, a contrario sensu, a prisão cível tão somente ao devedor de alimentos, restou
inscrita na súmula vinculante nº 25: “é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qual-
quer que seja a modalidade de depósito”.
A prisão para deportação não é prisão civil e também não é prisão penal, pois
seu fundamento não é a prática de quaisquer crimes nem mesmo para resguardar
aplicação de quaisquer leis penais. A prisão é administrativa, pois é decretada pela
Justiça Federal, após representação do delegado de Polícia Federal, para garantir a
aplicação da medida administrativa de deportação, executada pela Polícia Federal,
Em consulta à jurisprudência, podemos aferir decretação de prisão administrati-
va para fins de deportação com lastro no “comportamento violento” do estrangeiro
(BRASIL, 2005) ou ainda em face de estrangeiro “sem paradeiro certo e emprego,
que se recusou a retirar-se do país voluntariamente” (BRASIL, 1998).
Destaque-se que na jurisprudência citada, o “comportamento violento” ou o “sem
paradeiro certo e emprego” é fato indiferente ao direito penal, pois não se vislumbra
tal prática como crime. Recente jurisprudência do ano de 2014 aponta plena vigência
da prisão administrativa para deportação, delineando suas circunstâncias.
Ou há fato jurídico criminoso praticado pelo estrangeiro, que culmina na sua
prisão em flagrante ou em outras medidas penais cautelares diferentes da prisão e
ulterior condenação pela prática que viola bem penalmente protegido; ou há fato
que não viola bem jurídico penalmente tutelado.
Em uma ordem constitucional que determina direitos iguais aos nacionais e es-
trangeiros, há de se questionar a prisão para fins de deportação, quando ela é decre-
tada com lastro em fundamentação genérica, sem que haja ato específico imputado
ao deportando. Sopesando-se os direitos humanos e a higidez coletiva, a medida ex-
trema de prisão só deve ser decretada quanto efetivamente necessária ao resguardo
da coletividade. Neste caso, o risco social da liberdade do estrangeiro deve suplantar
seu direito à liberdade, no sopesamento de princípios analisados pelo Estado-juiz.
Não se pode imputar apenas ao Poder Judiciário a omissão de fatos concretos que
justifiquem a prisão de estrangeiro para fim de deportação, ou seja, pela prisão fun-
damentada em argumentos genéricos e díspares de atos perpetrados pelo estrangeiro
que causem efetivo risco social.
O Poder Judiciário age apenas sob provocação. A representação fundamentada
para prisão para fins de deportação advém do poder executivo, especificamente em
Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015 61
representação subscrita por delegado de Polícia Federal, no bojo de procedimento
administrativo de deportação. O interesse na aplicação da medida extrema de retira-
da compulsória de estrangeiro do Brasil é da Polícia Federal, atuando como polícia
de imigração brasileira.
O Delegado de Polícia é titular de cargo que tem como requisito formação
jurídica, com ratificação pela recente lei 12.830/13. Diante de tal requisito, deve
convencer o Juiz Federal em representação fundamentada com lastro probatório su-
ficiente para decretação da medida excepcional de prisão, mormente porque não há
medida mais gravosa decretada pelo Estado brasileiro, através do Poder Judiciário. A
decisão advém do poder judiciário, mas a provocação do poder executivo, através de
representação do delegado de polícia, deve demonstrar inequivocamente a excepcio-
nalidade que justifique a segregação do estrangeiro para fins de deportação.

Convenção americana de direitos humanos e seus reflexos na prisão para deportação


de estrangeiros no Brasil

A doutrina jurídica nacional entende que os direitos fundamentais dos estran-


geiros não estão afastados quando sua situação documental no país não esteja re-
gular (MENDES, 2007, p. 262, 685; SILVA, 2009, p. 191; SARLET, 2010, p. 212).
Independentemente de serem nacionais ou estrangeiros, são antes seres humanos,
pessoas, dotadas de dignidade, portanto, a inovação constitucional traria certeza a
tal interpretação.
Caso o Brasil afaste a proteção da dignidade daqueles estrangeiros que se en-
contrem irregularmente ou indocumentados em seu território, estaria afastando o
direito a até mesmo a ter quaisquer direitos no Brasil.
Observa-se, de um lado, o princípio jurídico da soberania estatal no livre exer-
cício do poder do Estado na regulação da entrada e estada de estrangeiros no terri-
tório do país, em cotejo com o princípio jurídico da Dignidade da Pessoa Humana,
inscrito em compromissos internacionais de direitos humanos.
A soberania do Estado, com personificação de pessoa jurídica de direito públi-
co internacional e o poder a ele inerente, é inafastável do conceito de Estado. Mas,
atentando ao viés humanista dos compromissos internacionais de direitos humanos,
pode-se destacar que “o Estado serve aos cidadãos, é instituição concatenada para
lhes garantir os direitos básicos” (MENDES, 2007, p. 222). O Estado é uma criação

62 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


humana. Não se pode concluir outro objetivo do Estado senão o bem das pessoas,
nacionais ou estrangeiras.
A lei 6.815/80 determina que o estrangeiro com entrada ou estada irregular no
Brasil seja retirado compulsoriamente do país, seja para o país de origem ou outro
que consinta em recebê-lo, além de cominar multa da qual o pagamento é condição
de permissão de regresso ao país. Em cumprimento aos ditames da lei, a Polícia
de imigração, através dos seus servidores públicos, cumpre tais mandamentos. A
Constituição Federal brasileira trata a desigualdade entre seres humanos, nacionais
e estrangeiros, como exceção. Como exemplo de exceção mais relevante à igualdade
do estrangeiro com o brasileiro há a inscrita no art. 14 § 1º da Constituição Federal,
que veda o direito a voto ao estrangeiro. A Constituição Federal de 1988 relativiza a
própria soberania nacional em nome dos compromissos de direitos humanos assu-
midos pelo país. Consoante Piovesan (2011, p. 138), sobre tal relativização na Cons-
tituição Federal é possível afirmar que “os direitos e garantias nela expressos não
excluem outros, decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, a
Constituição de 1988 passa a incorporar os direitos enunciados nos tratados de direi-
tos humanos ao universo dos direitos constitucionalmente consagrados”. Ratifica a
autora que em caso de conflito da Constituição Federal com o Direito Internacional
dos Direitos Humanos “adota-se o critério da prevalência da norma mais favorável
à vítima [...] a primazia é da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos da
pessoa humana” (PIOVESAN, 2011, p. 158).
Especificamente no tema dos tratados internacionais de direitos humanos, o
Brasil aderiu, através do Decreto número 678, no ano de 1992, à Convenção Ame-
ricana de Direitos Humanos. Os dispositivos legais da Convenção Americana de
Direitos Humanos têm força normativa superior às demais leis ordinárias e comple-
mentares brasileiras, nos termos de reiterada e recente jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, corte maior do Brasil. O STF reconhece em seus julgados que os
compromissos internacionais de direitos humanos têm status jurídico supralegal no
Brasil.
Autores da literatura jurídica nacional interpretam que as normas decorrentes de
compromissos internacionais de direitos humanos assumidos pelo Brasil tem status
jurídico similar às normas constitucionais (MAZZUOLI, 2009; PIOVESAN, 2011).
Entretanto, há paradigma jurisprudencial da mais alta corte do Brasil para o
reconhecimento da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos huma-
nos. Tal paradigma consiste em julgados que culminaram na Súmula Vinculante nº
25, que afirma que “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a

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modalidade do depósito”. Nos fundamentos desta jurisprudência é vislumbrada a
supremacia legal dos tratados internacionais de direitos humanos:

A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no


ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna.
O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos
pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela
anterior ou posterior ao ato de ratificação (BRASIL, 2008).

Podemos concluir das premissas expostas que ao cotejar duas normas brasilei-
ras – a lei 6.815/80 que “define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o
Conselho Nacional de Imigração” (BRASIL, 1980) e a Convenção Americana de
Direitos Humanos, inscrita na ordem jurídica pátria pelo Decreto 678/92, temos a
supremacia dos termos desta norma de direitos internacional de direitos humanos
sobre a lei que regula a deportação. A Convenção Americana de Direitos Humanos
tem supremacia, no ordenamento jurídico brasileiro, sobre a lei do estrangeiro de
1980.
Todo e qualquer ato referente à deportação de estrangeiros do Brasil tem que ser
analisado sob ótica da compatibilidade com os compromissos de direitos humanos
assumidos pelo Brasil. Os atos de deportação ínsitos à lei 6.815/80 devem obedi-
ência à Convenção Americana de Direitos Humanos. A Convenção Americana de
Direitos Humanos prevê expressamente a possibilidade de deportação, conforme
interpretação conjunta do Artigo 22 que afirma que “toda pessoa que se ache legal-
mente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em
conformidade com as disposições legais”.
Observamos, por outro lado, no artigo 22, limitadores às retiradas compulsórias
de estrangeiros dos países signatários da Convenção Americana de Direitos Huma-
nos. No preâmbulo da convenção, se afere o propósito de consolidar “um regime
de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos
essenciais” e que “os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de
ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os
atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional”
(BRASIL, 1992). Na convenção há limitações do poder de soberania estatal. É com
lastro na soberania que o Estado brasileiro deporta estrangeiros, retirando-os com-
pulsoriamente de seu território com medidas conforme a lei 6.815/80. Tal poder
de retiradas compulsórias no Brasil não é regulado tão somente por este dispositivo

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legal. Os compromissos internacionais, como a Convenção Americana de Direitos
Humanos, são normas que limitam tais práticas soberanas.
Observe-se a sujeição do Estado brasileiro à norma convencional que determina
legalmente que quaisquer pessoas sujeitas à jurisdição estatal brasileira estão subme-
tidas aos mandamentos da Convenção Americana de Direitos Humanos. Tal deter-
minação inclui os estrangeiros com entrada ou estada irregular no Brasil, sujeitos à
deportação, nos termos da lei federal 6.815/80, mas sujeitos, com prevalência sobre
a lei 6.815/80, às normas da Convenção Americana de Direitos Humanos, pois esta
tem status jurídico superior à lei ordinária 6.815/80.
Cabe destacar, no interesse da medida de deportação de estrangeiros no Brasil,
a vedação constante na citação do artigo primeiro da convenção de “discriminação
alguma” por motivo de “idioma” ou “nascimento”. Quanto à prisão para fins de
deportação, não há regulamentação específica na Convenção Americana de Direitos
Humanos. Mas o cotejo hermenêutico sobre o tema prisão, na Convenção Ameri-
cana de Direitos Humanos, traz reflexos à prisão administrativa para fins de depor-
tação.
Vislumbramos dificuldade, especificamente na prisão administrativa para fins
de deportação de estrangeiros do Brasil, em notificar à pessoa estrangeira presa “da
acusação ou acusações formuladas contra ela”. Sem tal notificação, restará maculada
a determinação da Convenção Americana de Direitos Humanos e a prisão é nula,
por desobediência à norma com caráter supralegal no Brasil.
A dificuldade reside em que não há acusação na prisão administrativa para de-
portação. A prisão é meio para efetivação da medida administrativa de deportação,
que é espécie de retirada compulsória do país. Ratifica-se aqui a necessidade de fun-
damentação da representação para prisão e da decisão judicial que a determina, para
a necessidade da prisão com lastro na preservação da paz pública e/ou dos interesses
da coletividade especificados na decisão judicial.
A prisão para fins de deportação não tem uma acusação como móvel nem tem
como fim um julgamento para acusação. Por isso também resta dificultoso o cum-
primento do mandamento inscrito no artigo 7.5 in fine. Não há de se falar também
em processo, pois a prisão não tem como fim um julgamento de processo pelo po-
der judiciário, mas a aplicação de medida administrativa de deportação pela Polícia
Federal.
O artigo 22.2 da Convenção traz dispositivo que também deve ser confrontado
com a prisão administrativa para fins de deportação no Brasil, pois determina que
“Toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio.”
(BRASIL, 1992). Repise-se que o termo legal “toda pessoa” deve ser interpretado
Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015 65
com base nos fundamentos expostos no preâmbulo da convenção, que exorta que
“Os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser ele nacional de deter-
minado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa
humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza conven-
cional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados
americanos”.
A Convenção determina a não restrição ao direito de sair livremente de qualquer
país, devendo-se analisar tal norma jurídica supralegal com a determinação de prisão
administrativa para fim de deportação da lei 6.815/80.
Há algumas outras restrições à deportação no Brasil, inscrita na Convenção
Americana de Direitos Humanos, com destaques à observância ao direito de asilo
(art. 22.7); observância de eventuais riscos à vida ou liberdade do estrangeiro por
causa da sua raça, nacionalidade, religião, condição social ou de suas opiniões polí-
ticas no país de destino (art. 22.8) e à vedação de deportação coletiva (artigo 22.9).
A restrição ao direito de sair livremente do país é prevista em hipóteses taxativas na
Convenção, em seu artigo 22.3: “para prevenir infrações penais ou para proteger a
segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas,
ou os direitos e liberdades das demais pessoas” (BRASIL, 1992).
Conclui-se que quaisquer representações de delegado de Polícia Federal e de-
cisões da Justiça Federal que determinem prisão para fim de deportação devem ser
fundamentadas em uma das hipóteses desta previsão convencional de direitos hu-
manos assumida pelo Brasil: proteção da segurança nacional; segurança ou à ordem
pública; moral ou a saúde públicas e direitos e liberdades das demais pessoas. Em
manifestação da Corte Interamericana de Direitos Humanos4, elaborada após audi-
ências e manifestações dos vários países integrantes e organizações internacionais
de direitos humanos, há a interpretação sobre a condição jurídica e direitos dos
imigrantes indocumentados.
Na elaboração da Opinião Consultiva 18/2003-CIDH restou assentado que o
princípio da igualdade alberga o tratamento dos Estados para com os imigrantes
irregulares no território do país, vedando quaisquer formas de discriminação que
violem as normas da Convenção Americana de Direitos Humanos. Na prática ad-
ministrativa e judicial da retirada compulsória de estrangeiros dos países, inclusive
quanto à deportação, a Opinião Consultiva 18, da Corte Interamericana de Direitos
4
Opinión consultiva oc-18/03 de 17 de septiembre de 2003, solicitada por los estados unidos mexicanos.
Em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. Consulta em 28/05/2014.

66 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


Humanos traz recomendações aos Estados signatários, aí incluído o Brasil. Cabe aos
estados signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos a não aplicação
das medidas de retiradas compulsórias quando o estrangeiro indocumentado procu-
re órgãos públicos administrativos ou judiciais.
O artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos especifica que o
direito de brasileiros ou estrangeiros serem ouvidos, no interesse de seus direitos,
em “juiz ou Tribunal competente” (BRASIL, 1992) e ainda destaca que tal direito
de serem ouvidos deve ser exercido “ na determinação de seus direitos e obrigações
de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza” (BRASIL, 1992).
Merece reflexão a deportação de estrangeiros que estão irregularmente no Brasil
em busca de meios para manutenção de suas vidas ou de membros de suas famí-
lias, seja através de tratamento público de saúde, seja de quaisquer outras condições
possíveis no Brasil (e.g. aquisição de equipamento hospitalar, alimentação especial,
medicamentos). Ao agente de imigração cabe decisão de deportação que, eventual-
mente, pode culminar na morte do estrangeiro migrante ou de terceiros. O migrante
pode estar em busca de meios de manutenção de sua vida ou de terceiros, tendo sua
ação obstada pelo agente de imigração.
Ao agente de imigração cabe análise da proteção à vida inscrita no artigo 4º da
Convenção Americana de Direitos Humanos, além da proteção à vida inscrito no
art. 5º da Constituição brasileira. A Corte Interamericana de Direitos Humanos rati-
fica a proteção a vida. As decisões e orientações consultivas da Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos, especificamente a Opinião Consultiva OC 18/93, trazem
elementos para interpretação do texto da Convenção que interferem diretamente
na atividade dos agentes de imigração, quanto à aplicação da medida de deportação.
É dever ainda do Brasil, consoante a Convenção Americana de Direitos Huma-
no, o fornecimento de meios efetivos para que o estrangeiro tenha acesso à justiça e
aos órgãos que atuem na defesa de seus direitos quando em processo de deportação.
A Opinião Consultiva 18 ratifica que tal garantia deve ser real, não apenas formal,
obrigando a Polícia Federal a efetivamente comunicar, a um advogado ou à De-
fensoria Pública da União, bem como aos órgãos consulares, situações fáticas que
envolvam retiradas compulsórias de estrangeiros do Brasil, inclusive procedimentos
de deportação e, mormente, em caso de prisão administrativa para fins de aplicação
das medidas de retiradas compulsórias.

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Considerações Finais

O direito brasileiro prevê a deportação na lei federal 6.815 de 1980. A Cons-


tituição Federal de 1988 inovou na ordem jurídica, não recepcionando alguns dos
dispositivos da lei nº 6.815/80.
Um dos dispositivos não recepcionados integralmente é o que prevê a possibilidade
de prisão administrativa do estrangeiro para fins de deportação.
A lei determinava que o Ministro da Justiça decretasse a prisão do estrangeiro
para a execução da medida administrativa de deportação. Com a Constituição Fede-
ral, apenas um Juiz Federal pode decretar a prisão para deportação.
Em 1992 o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos. Tal
compromisso internacional tem status supralegal no direito brasileiro, conforme ju-
risprudência do Supremo Tribunal Federal. Diante dessa característica normativa, os
dispositivos da lei 6.815/80, que tratam da retirada compulsória de estrangeiro do
Brasil consistente na deportação e da prisão para fins de deportação, devem obe-
diência às normas jurídicas da Convenção Americana de Direitos Humanos. Esta
convenção revoga dispositivos legais contrários às suas normas.
O Brasil, ainda nos termos da Convenção Americana de Direitos Humanos, é
obrigado a implementar alterações legislativas no interesse do recrudescimento dos
direitos humanos dos estrangeiros. Tal determinação é inscrita no art. 2º da Conven-
ção Americana de Direitos Humanos, no sentido de “tornar efetivos tais direitos e
liberdades” (BRASIL, 1992) conforme interpretação conjunta com o artigo primei-
ro da convenção.
No contexto de inovação legislativa, está em discussão um Projeto de Lei que
“Institui a Lei de Migração e cria a Autoridade Nacional Migratória.”, em substi-
tuição ao Estatuto do Estrangeiro – atual lei 6.815/80. As inovações são estuda-
das em Comissão de Especialistas criada pelo Ministério da Justiça pela Portaria n°
2.162/2013 e discussões em reuniões de especialistas e da sociedade, tendo recente
Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio - COMIGRAR em junho de 2014.
A lei em debate, que será submetida ao Congresso Nacional, pretende mudar
o viés de segurança nacional ínsito na lei 6.815/80 – Estatuto do Estrangeiro – que
fora promulgado durante a ditadura militar e humanizar o trato do “migrante” (e não
mais “estrangeiro”), prevendo no artigo 110 que a nova lei “não prejudica direitos
e obrigações estabelecidos por acordos internacionais vigentes para o Brasil e mais

68 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


benéficos ao fronteiriço e ao migrante, em particular os acordos firmados no âmbito
do Mercado Comum do Sul - Mercosul.”
A Convenção Americana de Direitos Humanos estipulou expressamente que a
deportação é cabível, mas traçou várias medidas protetivas dos direitos das pesso-
as submetidas a esta retirada compulsória de estrangeiros do território dos países
signatários. A Opinião Consultiva 18 da Corte Americana de Direitos Humanos
interpreta e detalha as normas da convenção, ratificando o princípio da igualdade e
a inafastabilidade de direitos humanos de estrangeiros indocumentados, fornecen-
do garantias aos estrangeiros em processo de deportação dos países signatários da
Convenção.
Diante das normas deste compromisso de direitos humanos assumidos pelo
Brasil, a prisão administrativa para fins de deportação de estrangeiros do Brasil só
pode ser decretada quando em consonância com os mandamentos da convenção,
quais sejam: proteção da segurança nacional; segurança ou a ordem públicas; moral
ou a saúde públicas e direitos e liberdades das demais pessoas.
A Convenção Americana de Direitos Humanos alberga ainda outras proteções
aos estrangeiros submetidos à deportação, com destaque ao acesso a órgãos públicos
e obrigação da defesa do estrangeiro em processos de retiradas compulsórias.
Destaque-se que o Brasil deve obediência a outros compromissos normativos
de diretos humanos assumidos pelo país, com recepção no ordenamento jurídico
brasileiro com status supralegal. Os textos de compromissos de direitos humanos as-
sumidos pelo Brasil devem ser ponderados e as decisões administrativas e judiciais e
devem ser tomadas sempre em benefício dos seres humanos envolvidos. Na dúvida,
prevalecem normas de direitos humanos.

Recebido em outubro de 2014, aprovado em dezembro de 2014.

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72 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 52-72, referência 2014. Publicação 2015


Willas Dias da Costa *
Thereza C. Cardoso Menezes **

Artigo
Antigas e novas dinâmicas de poder e
território no Médio Purus/AM

Resumo Abstract
Este trabalho é um breve recorte da tese This paper is a brief outline of the doctoral thesis
de doutorado em andamento no programa in progress in the graduate program in Social
de Pós-Graduação em Antropologia Social Anthropology Federal University of Amazonas.
da Universidade Federal do Amazonas. We present some preliminary findings from field
Apresentamos algumas conclusões preli- work in the middle Purus region where we are
minares do trabalho de campo na região conducting a comparative analysis of the recent
do médio Purus onde estamos realizando past and the present moment watching the old
uma análise comparativa entre um passado and new dynamics of power and territory in
recente e o momento atual observando as the Middle Purus in southern Amazonas state
antigas e novas dinâmicas de poder e ter- where still predominate relations of domination
ritório no Médio Purus, no sul do Estado characterized by “patronage”. In this context of
do Amazonas onde ainda predominam indigenous lands and protected areas identified an
relações de dominação caracterizadas pelo intense social and environmental conflict involving
“patronado”. Nesse contexto de Terras the figures of employers, associations of farmers
Indígenas e Unidades de Conservação and indigenous peoples with state agents. The
identificamos um intenso conflito socio- research aims to understand some of the facets
ambiental envolvendo as figuras dos pa- and the social impacts of long and intense process
trões, das associações de agricultores e dos of transformation in the power relations in the
povos indígenas com os agentes do estado. region.
A pesquisa visa compreender algumas das
facetas e os impactos sociais do longo e
Keywords: Employers; Conflicts; South of the
intenso processo de transformações nas
Amazon; Indigenous peoples; Farmers.
relações de poder na região.

Palavras-Chave: Patrões; Conflitos; Sul do


Amazonas; Povos Indígenas; Agricultores.

* Graduado e Licenciado em Pedagogia pela Universidade Federal do Amazonas, Especialista em Gestão


Escolar pela Universidade do Estado do Amazonas, Mestre em Educação e Doutorando do Programa
de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas. Email: willasdc@
hotmail.com.
** Graduação e licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ).
Mestrado e Doutorado em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Mu-
seu Nacional (UFRJ); Pós-Doutorado no Programa de Formação de Quadros Profissionais do CEBRAP
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento/ PRODOC-CAPES) e no PPGAS- Museu Nacional/UFRJ.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015 73


Introdução

Nesse texto apresentamos, de forma sucinta, alguns fragmentos das primeiras


impressões que resultam de dois anos de intenso trabalho de campo na região do
médio Purus com o objetivo de recolher informações para a elaboração de nossa
tese de doutoramento em andamento no Programa de Pós-Graduação em Antro-
pologia Social na Universidade Federal do Amazonas. No decorrer dos trabalhos,
tornaram-se recorrentes comparações entre dois tempos: um passado associado ao
período do domínio dos patrões e o tempo presente relacionado às experiências
associativas e de maior presença do Estado na região do médio Purus. Parte substan-
cial dos territórios da região teve seu estatuto territorial modificado desde as últimas
décadas com a formação de um amplo mosaico de Terras Indígenas e Unidades de
Conservação.
Nosso estudo visa compreender algumas das facetas e efeitos sociais deste lon-
go processo de transformações nas relações de poder sobre populações e amplos
territórios. O poder aqui não é percebido como uma coisa, mas, como um conjunto
de relações. Ao invés de derivar de uma superioridade, o poder produz a assimetria
produzindo continuamente instâncias de autoridade. No médio Purus existem di-
ferentes formas de dominação que se revezaram e coexistiram no tempo e espaço
produzindo uma dinâmica complexa de experiências e leituras da dominação no
passado e no presente. As formas de poder que se constituíram na região percorre-
ram um trajeto histórico que envolveu a chegada da empresa seringalista e se desen-
volveu pelas transformações econômicas que se constituíram ao longo das últimas
décadas em municípios como Lábrea, Tapauá, Canutama1. Nas duas últimas sedes
municipais realizou-se surveys e em Lábrea um trabalho de campo mais prolongado
na sede municipal e diversas comunidades situadas no interior do município.

1
Esses municípios fazem parte da zona 7 no mapa das sub-regiões do Estado do Amazonas.

74 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015


O impulso para a ocupação da região do Vale do Purus deu-se a partir de 1822
com a vinda de mão de obra para os seringais2, essa situação acarretou o aumento
populacional significativo, sobretudo de pessoas oriundas de regiões do nordeste
brasileiro3. Atualmente em municípios como Tapauá4 percebe-se um movimento
intenso de migrantes deslocados da zona rural, outrora ocupada e formada pelos
antigos seringais, para a sede municipal.
A presença de Terras Indígenas e Unidades de Conservação são responsáveis
hoje pela ocupação de 90% do território do médio Purus sob gestão de entidades
vinculadas à esfera Federal e Estadual. A presença e a função dessas instituições na
região vêm tencionando as relações sociais e intensificando os conflitos socioam-
bientais. Instituições como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiver-
sidade - ICMBio, que estão na região como gestores de Unidades de Conservação,
assumiram a função de reprimir drasticamente práticas de uso de recursos naturais
por indígenas, pescadores e ribeirinhos.
Por outro lado, percebe-se que o longo domínio dos seringalistas na região re-
sultou numa estrutura de dominação abrangente em torno de vários aspectos da
sociedade, passando pela esfera econômica, política e social dos agentes mobilizados
pelos seringais. O resultado desta estrutura produziu a negação e estigmatização da
identidade indígena, assim como a permanência em vários castanhais da estrutura de
aviamento, exploração e submissão à figura do patrão5 que afirma ser o proprietário
da terra.

2
Em relação a este período de ocupação do Purus Agnello Bittencourt comenta: “Os retirantes eram in-
divíduos torturados pela calamidade do estio, os quais se dirigiam aos rincões desta planície então ainda
virgem, na sua maior longitude. Sofrendo tantas vezes a perda de entes extremosos, aniquiladas suas
propriedades, roídos pela saudade da aldeia natal, maltrapilhos, famintos, mas resignados e corajosos, ce-
arenses em sua maioria, afrontavam a distância, a imensidade da floresta, a correnteza do rio, os selvagens,
as intempéries...” (BITTENCOURT, 1973, p. 17).
3
De acordo com o religioso Sebastião Ferrarini o processo de ocupação do Vale do Purus teve como seu
primeiro residente o explorador Manuel Urbano Encarnação, juntamente com Manuel Nicolau de Melo.
O povoamento, de modo mais intenso e organizado, o que não significa oficialmente amparado, dá-se
com o português Antônio Rodrigues Pereira Labre em fins de 1871. Para aprofundamento da história de
ocupação do Purus consultar “O Progresso e Desenvolvimento no Purus” de Sebastião Antonio Ferrarini.
4
O município de Tapauá foi criado em 1955 da Lei n° 96 de 19 de dezembro.
5
Patrão é uma categoria criada a partir da estrutura da exploração da borracha. Representa a figura do
seringalista dono do seringal, de seus capatazes e gerentes de produção que eram os funcionários que
permaneciam mais tempo nos seringais.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015 75


Novos patrões e novas configurações da dominação

As estruturas que se formaram através do poder dos patrões da borracha, cujas


atividades foram, em certa medida, convertidas ou transferidas a outros patrões de
castanhais ou fazendas, traduziram-se em domínio do poder político na esfera pú-
blica dos municípios do Purus. Não raro, prefeitos e vereadores dos municípios da
região revestem-se da figura do patrão, reproduzindo na administração pública as
relações de poder e dominação vivenciadas no interior dos seringais e castanhais. A
relação de controle e dominação se reproduz em diversos níveis, inclusive no espaço
urbano desses municípios que se encontra simbolicamente marcado pelos patrões e
coronéis da borracha que continuam dando seus nomes às ruas, praças e bairros das
cidades. Não raro, prefeitos e vereadores são os mesmos patrões que promoveram
massacres e expulsões dos povos indígenas de seus territórios.
Durante o survey inicial realizado nos três municípios, optamos por explorar
mais detidamente o município de Lábrea por sua centralidade histórica e adminis-
trativa no contexto regional do médio Purus. A cidade possui peculiaridades que
a tornam um espaço de conflitos de diversas naturezas em virtude do seu acesso
pela rodovia Transamazônica, ainda que transitável apenas no verão, que representa
a principal via de saída do Sul do Amazonas para o resto do país. A proximidade
de Porto Velho, capital de Rondônia, torna essa cidade a principal referência para
o acesso a serviços de saúde e a órgãos do Estado. Como cidade central da região,
Lábrea concentra instituições públicas e privadas que atuam no médio Purus.
Com o término do período áureo da borracha, Lábrea sofreu com o grave de-
clínio econômico que afetou profundamente a elite seringalista. Os milhares de
seringueiros que habitavam áreas dos seringais foram forçados a se reorganizarem
econômica e espacialmente, passando a sobreviver através de plantio de roçados, do
extrativismo e da pesca, disputando espaços territoriais e recursos naturais com os
povos indígenas da região. Entretanto, muitos milhares de seringueiros não pude-
ram permanecer no interior dos seringais por causa das dificuldades de sobrevivên-
cia. Deslocados do interior da floresta, buscaram novos espaços que facilitassem a
sobrevivência, comunicação e transporte às margens do rio. Na década de oitenta
a retirada da madeira tornou-se uma importante fonte lucrativa e de renda para
“herdeiros”, novos donos/rendeiros de seringais que transformou Lábrea num cen-
tro de exploração madeireira controlado pelos mesmos patrões que atuavam nos
seringais. A nova atividade econômica altamente nociva à floresta ganhou o reforço

76 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015


de comerciantes da madeira vindos especialmente do sul do Brasil para exploração
da madeira que representa rápido enriquecimento através da exploração da mão de
obra de indígenas e ribeirinhos das margens do rio Purus. A economia da madeira
reproduz no mesmo sistema de exploração que surgiu no período da borracha e
vêem atravessando o tempo: o aviamento. Segundo Menezes (2011, p. 133),

Para além do conflito, o sistema do seringal produziu também um padrão de relação social
caracterizado pelo aviamento, onde o seringueiro recebe mercadorias do barracão, per-
tencente ao padrão, saldando as dívidas contraídas com borracha ou outros produtos de
valor extraído da floresta como castanha, por exemplo: a rigidez do sistema de aviamento
pelo uso da violência e ameaça de expulsão obedecia á lógica dos preços do mercado in-
ternacional, ou seja, quanto mais alto os preços da borracha, menor margem de manobra
de negociação tinha o seringueiro que era constrangido a vende a borracha somente para
seu patrão em condições por ele determinadas. Em geral, o sistema de aviamento era
pouco monetarizado, caracterizado pelo endividamento permanente em função dos preços
extorsivos das mercadorias negociadas em troca da produção de borracha e como pouca
abertura para concorrência de outros comerciantes ou regatões, os quais poderiam ter sua
atividade restringida, controlada ou impedida pelos seringalistas. É possível afirmar que
residia no controle estrito do fluxo de trocas um eixo central deste processo de domina-
ção, porém este sistema era também legitimado pela dominação tradicional manifesta na
pessoalidade das relações (WEBER, 1964) e expressa na centralidade das relações diádicas
(FOSTER, 1961), de compadrio e na ajuda emergencial aos “clientes”. O poder do pa-
trão respaldava-se na assunção por este da posição-chave de mediador entre o isolamento
do seringal e o acesso aos serviços essenciais acessíveis nos núcleos urbanos. Ao reiterar
quotidianamente esta função diante de seus clientes, era lhe imputado o título do “bom
patrão”, reproduzindo-se a crença na legitimidade ao sistema.

Enquanto forma ou sistema de exploração, o aviamento tornou-se um meca-


nismo eficiente no processo de dominação social. A falta de condições econômicas
aliadas aos problemas estruturais de saúde, educação, falta de atividade trabalhista
facilitaram a consolidação desse sistema de dominação na região do Médio Purus.
A partir dos anos de 1990 o sul da Amazônia passou por um período de rá-
pidas transformações em termos de ações governamentais dirigidas à redução do
desmatamento ocasionado pela o avanço da fronteira agrícola e a implementação
de projetos desenvolvimentistas . Em meio aos conflitos resultantes desses novos
processos, aumentam as lutas pela demarcação de Terras Indígenas e a criação de
novas modalidades de Unidades de Conservação como as Reservas Extrativistas -
RESEX e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável - RDS. Esse novo cenário
intensificou, desde então, os conflitos socioambientais que,

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015 77


Desde a década de noventa vem se delineando na região a marcante presença de dois veto-
res de redefinição do perfil político-territorial da região, manifestos, por um lado, na forte
presença do socioambientalismo, expresso na difusão de ONGs e na explosão de territo-
rialidades legitimadas seja pela presença e mobilização de povos e práticas tradicionais. Por
outro lado, percebe-se o avanço da fronteira do desmatamento, expresso na dinamização
de empreendimentos agropecuários e hidrelétricos e que se inscrevem nas novas estra-
tégias empresariais articuladas para tornar a região do Purus uma faixa de produção de
commodities como pecuária, grão, madeira e energia. (MENEZES, 2011: p. 131).

Percebe-se um aumento considerável de investimentos do capital privado no


médio Purus transformando as antigas formas de gestão territorial baseadas na pos-
se e uso coletivo da floresta em propriedades privadas baseadas na patronagem e no
aviamento com novas formas de gestão e vigilância territorial participativas, bastante
diversas das anteriores.

Patronagem e Estado na Amazônia

O Médio Purus se constituiu ao longo desta situação como lugar de fraca pre-
sença do Estado até a década de noventa. A economia seringalista era o vetor de
orientação de outras esferas da vida e o patrão tornou-se “coronel”, normatizando
e ditando o modo de vida dos seringueiros tendo por base o sistema do aviamento
que determinava um modelo clássico de controle e dominação.
O sistema de patronagem é um elemento discutido a exaustão nas diversas inter-
pretações do Brasil, constituindo um dos problemas centrais da estrutura social pa-
triarcal, herança da colonização, e as instituições liberal-democráticas, alimentando
um intenso e persistente debate em torno da formação social6 do Brasil nos moldes
ocidentais. Nessa perspectiva, a patronagem representa a continuidade do modelo
colonialista reproduzido nas relações de poder e dominação territorial. Conforme
assinala Cunha (2006, p. 227), trata-se de um fenômeno secular do clientelismo e,
posteriormente do patrimonialismo que, segundo Vianna (1999, pp.35) seria “um
sistema político de cooptação sobreposto ao de representação, uma sociedade es-
6
Para Alonso (1997), textos referenciais no debate sobre a formação social brasileira seriam: Casa-grande
& senzala: Formação da família patriarcal brasileira (1933), de Gilberto Freyre; Formação do Brasil
contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr.; Formação histórica de São Paulo (De comunidade a metrópo-
le) (1954),de Richard Morse; Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro (1957), de
Raymundo Faoro; Formação econômica do Brasil (1958), de Celso Furtado; A formação do federalismo
no Brasil (1961), de Oliveira Torres; Formação histórica do Brasil (1962), de Nelson Werneck Sodré;
Formação política do Brasil (1967), de Paula Beiguelman.

78 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015


tamental igualmente sobreposta à estrutura de classes, o primado do Direito Ad-
ministrativo sobre o Direito Civil, a forma de domínio patrimonial-burocrática e o
indivíduo como um ser desprovido de iniciativa e sem direitos diante do Estado”.
Os coronéis e patrões mantiveram, por muito tempo, o controle das relações
econômicas na Amazônia estendendo as relações de dominação e controle também
para as esferas políticas através da estratégia do voto de cabresto expressa através do
poder de ordenar e direcionar os votos dos seringueiros. Como declínio da econo-
mia gomífera e a estagnação dos seringais a propriedade privada veio tomando con-
ta de regiões inteiras como ocorre no médio Purus num processo de reorganização
territorial no qual a representação política através dos governos municipais apenas
atendia aos interesses daqueles que possuíam prestigio junto aos políticos locais que,
na maioria dos casos, representavam os interesses dos antigos seringalistas, adequan-
do-se, portanto a premissa de que o espaço político é um espaço pré-construído. É
curioso notar que, apesar da decadência da borracha, os dados sobre sucessão do
poder municipal indicam a manutenção dos patrões em todas as esferas da política
numa relação de barganha de votos por favores.
Em meio a esse cenário de tensão, encontram-se algumas instituições que pro-
movem a permanente mobilização social dos grupos mais prejudicados pela inicia-
tiva privada. De maneira especial algumas instituições como o Conselho Indigenista
Missionário - CIMI, a Comissão Pastoral da Terra - CPT e o Conselho Nacional
de Seringueiros CNS, todos vinculados à Igreja Católica, contribuem para manter
os grupos organizados através de associações, sindicatos, cooperativas na luta pela
questão territorial e contra o avanço da fronteira agrícola com seu capital privado
que ameaça os grupos em seus territórios. Por outro lado, percebe-se uma tensão
também entre as instituições. De um lado, aquelas mais tradicionais ligadas à pre-
sença da Igreja católica na região. De outro lado, as instituições vinculadas ao poder
público, financiadas pelos governos estaduais e federais, dentre as quais destacam-se
o ICMBio e a Fundação Nacional do Índio - FUNAI que representam os interesses
do governo nos territórios em questão7. Segundo Menezes (2001, p. 131),

Em Lábrea, a ênfase na proteção aos povos tradicionais manifesta na difusão de terras


indígenas vinha provocando embates entre pescadores e indígenas em função da interdição
em locais tradicionais de pesca que recentemente se tornaram terras indígenas. ‘Segundo
índios Paumaris, por exemplo, frotas pesqueiras de Lábrea, Manacapuru, Boca do Acre e
7
Num levantamento superficial identificamos diversas instituições que atuam no município. Além das
supracitadas, identificamos muitas outras que atuam apoiando comunidades, organizações e associações
formadas por povos tradicionais tais como o GTA (Grupo de Trabalho Amazônico), IEB (Instituto Inter-
nacional de Educação do Brasil) e OPAN (Operação Amazônia Nativa).

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015 79


Manaus, em busca de cardumes de tambaquis, invadiam freqüentemente suas áreas. Muitos
grupos indígenas vinham reagindo com a expulsão, apreensão de equipamentos de pes-
cadores, práticas que eventualmente resultam em conflitos armados. (MENEZES, 2011).

Nessa perspectiva, percebe-se que os conflitos socioambientais vão muito além


da disputa pelos territórios abrangendo as relações econômicas e políticas na região.
Nesse sentido, acredita-se que a crise da economia seringalista e o posterior processo
de criação de novos estatutos territoriais no médio Purus como Terras Indígenas
e Unidades de conservação, produzem uma inflexão nas formas prévias de gestão
territorial e política, cuja dominação estariam alicerçadas na dívida, compadrio e
formas variadas de violência física e simbólica. A formação de um novo mosaico
territorial na região e o crescente controle pelo Estado de áreas de rígido domínio
privado estaria produzindo novas formas de dominação fundadas na racionalização
do uso de recursos naturais com base na ideia de sustentabilidade e vigilância am-
biental e territorial.
Como foi salientado, o foco da pesquisa é o município de Lábrea pela concen-
tração de Terras Indígenas, Unidades de Conservação, conflitos socioambientais e
iniciativas de promoção de instrumentos de gestão e vigilância territorial. Na pri-
meira fase da pesquisa de campo identificamos que o processo de reivindicação
de territorialidades verificadas a partir da década de 1990 não seria possível sem a
presença de mediadores que ora informam da existência dos novos estatutos e ora
agenciam a demanda por capacitação para gestão administrativa e financeira das
diversas associações criadas na região. De acordo com Menezes (2011), devido à
grande quantidade de novos territórios e demandas por criação, expansão, controle
e gestão, observa-se um vasto conjunto de organizações devotadas a assessoria para
a gestão de projetos, sobretudo nas Terras Indígenas.
A formalização ou oficialização das diversas formas de associativismo tem se
apresentado como uma imposição para o reconhecimento jurídico de instâncias
coletivas de tomada de decisão, etapa imprescindível para a gestão de projetos e
políticas públicas por parte destas organizações. Com relação aos Povos Indígenas,
nos últimos vinte anos houve um grande avanço quantitativo das organizações e
formas de associativismo resultantes, em parte, da apropriação e de práticas apren-
didas no contato com os parceiros não-governamentais. Segundo Silva (2002), as
organizações indígenas, e poderíamos acrescentar também as associações de outros
povos tradicionais, visam a constituir um instrumento de representação política para
a reivindicação de direitos territoriais e serviços de assistência (saúde e educação)

80 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015


e a necessidade de instrumento para buscar recursos para o desenvolvimento de
projetos de apoio à produção, geração de renda, recuperação de áreas degradadas,
dentre outros.
Por outro lado, percebe-se que a experiência de gestão nem sempre é positiva
para as organizações. Em Lábrea, a Organização dos Povos indígenas do Médio
Purus (OPIMP), fundada em 1995, assumiu em 1999 a gestão do Distrito Sanitário
Especial Indígena - DSEI/Médio Purus, vinculado à Fundação Nacional de Saúde
- Funasa, e é um exemplo da ocupação dos espaços de decisão por parte das organi-
zações indígenas. Segundo Franco (2009), tais experiências indicam a “superação da
imagem do índio como freguês do patrão”, visto que este passou a “ocupar o posto
de comprador e empregador, assinando anualmente convênios nas cifras de um a
dois milhões de reais”.
Entretanto, devido a problemas de gestão de recursos relacionados à falta de
experiência dos indígenas na organização burocrática e do compromisso do Estado
em contribuir com apoio técnico, político e administrativo, a OPIMP endividou-se e
sofreu múltiplas condenações na justiça trabalhista. Desde 2005 a organização estava
paralisada por este impasse e acometida por crescente desgaste político que resultou
na sua extinção. Em maio de 2010, o movimento indígena reagiu a esta situação,
reunindo-se em assembléia e fundando a Federação das Organizações e Comuni-
dades Indígenas do Médio Purus (FOCIMP) tendo como premissa o diagnóstico e
planejamento para a gestão territorial das Terras Indígenas do médio Purus.

Considerações Finais

Refletir sobre a constituição e os efeitos sociais de processos de patronagem,


formas estatais e associativas implica uma dada abordagem do poder. A opção teó-
rica foi buscar compreender a categoria poder como datada e apoiada em estratégias
de dominação específicas, ou seja, o poder se encontra adjetivado por uma época.
Segundo Foucault (2005), “o poder não é uma instituição, uma estrutura, uma lei
universal: é o nome dado a uma situação estratégica complexa, em uma situação de-
terminada”. Dessa forma, pensar o poder e os processos de dominação no Médio
Purus exige situar o processo colonial que vem se reproduzindo nas mais diversas
formas de organização social pré-existentes constituindo um discurso e uma forma
de gerir uma estrutura de dominação, bem como as configurações históricas que
emergiram com a crise deste modelo.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015 81


A tensão entre os diversos grupos e os fazendeiros, novos patrões atuais, resul-
tam em intensos conflitos socioambientais que ultrapassam as perspectivas essencia-
listas da simultaneidade de tempos e espaços mediados pelas fronteiras territoriais.
As fronteiras, nessa perspectiva, dão lugar às transformações simultâneas do territó-
rio onde as distâncias culturais se estreitam e as diferenças passam por um processo
de reelaboração.
A fronteira passa a ser também o divisor de águas determinante para a constru-
ção de novas relações que extrapolam as próprias linhas geopolíticas e estendem-se
por outras regiões. Para as populações tradicionais do Médio Purus, as fronteiras
geopolíticas e os limites geográficos são abstratos e complexos e estão relacionados
com a construção da ideia de território ou territorialidade (HAESBAERT, 2004)
que, via de regra, transcende às fronteiras geopolíticas institucionalizadas. Alhures,
propomos romper com o tradicional enfoque geopolítico que trata relações de po-
der e espaço geográfico na Amazônia como processo sem sujeito ou dirigidos por
entidades abstratas como o Estado, as organizações o internacionalismo, os movi-
mentos sociais, cujas ações se explicariam por suas vinculações aos interesses econô-
micos, soberania ou controle territorial.
Por fim, nossa pesquisa aponta a existência de um processo diverso e pouco
estudado de redefinição de fronteiras e novas formas de geri-las se desenhando nos
últimos anos na Amazônia. Um processo que se desenhou, em grande medida, pelas
forças de pressão e reação de diversos agentes atuando nos centros de tomada de
decisão do Estado e no interior dos diversos formatos de organização local. Nesse
sentido, rompe-se com o paradigma da sujeição dos povos indígenas guiados pelo
clientelismo e assistencialismo. Esses novos processos de organização e participação
vêm resultando em intensos conflitos socioambientais necessários para as mudanças
e transformações dos modelos de gestão territorial. Dessa forma, percebe-se impor-
tantes rupturas com a visão naturalizada dos povos da Amazônia como povos ani-
quilados sob a opressão dos patrões. Percebe-se que a figura do patrão permanece na
região, porém, não com a intensidade e representatividade de outrora.
Percebe-se ainda que, de modo geral, os conflitos encontram-se relacionados
com questões muito complexas e de difícil resolução como a questão da posse da
terra, do direito de propriedade e da proteção dos recursos. Na raiz dos conflitos, en-
contramos a disputa de grupos que representam interesses antagônicos. De um lado,
encontram-se os grupos que insistem na permanência de um modo de vida baseado
na relação de interação e interdependência com a floresta e seus recursos assumindo
uma atitude de permanente defesa e proteção dos meios de sobrevivência. Do outro

82 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 73-84, referência 2014. Publicação 2015


lado, estão os grupos formados pelos interesses econômicos ou os grandes inves-
tidores que estabelecem uma relação de apropriação dos recursos naturais baseada
nos valores da economia capitalista. Ou seja, trata-se de um conflito de paradigmas
antagônicos.
Observamos também que as diversas formas de organização social, tais como
a participação nos movimentos socioambientais, na comissão pastoral da terra, no
movimento indígena, nas redes de agricultores tradicionais e muitas outras formas
de associativismo e engajamento político, tem se apresentado como alternativa de
superação das relações de poder e dominação baseada na figura do patrão. De modo
geral, percebemos que todas as formas de participação promovem o fortalecimento
dos grupos que, aos poucos vão ocupando espaços de tomada de decisão e de-
monstrando sua capacidade intervenção e transformação. Entretanto, a participação
nos referidos espaços de engajamento social e político, também pode representar o
acirramento do conflito socioambiental. Isso ocorre porque os povos indígenas e
ribeirinhos cada vez mais estudam e conhecem seus direitos e passa a acionar a lei
em favor de seus legítimos interesses. Isso representa uma ameaça aos agentes de
dominação não acostumados a lidar com resistências e oposições.
Nota-se que ndígenas, ribeirinhos, extrativistas, jovens, grupos de mulheres,
ONGs, camponeses, integrantes do Ministério Público Federal, pesquisadores(as) e
muitos outros segmentos sociais têm oferecido renhida oposição aos projetos desen-
volvimentistas e a tudo o que é associado a eles: degradação ambiental, concentra-
ção fundiária e expansão dos bolsões de pobreza, entre outros problemas.
Por fim, as diversas formas de resistência representadas nas mais diversificadas
formas de participação resultam em tensões e conflitos e abre precedentes para rela-
tivizar os discursos anti-indigenistas que acusam os povos indígenas e as populações
tradicionais da Amazônia de representarem um entrave para o avanço do progresso
defendido pela iniciativa privada e pelo patronado. Para os povos indígenas e ribeiri-
nhos, ou camponeses da Amazônia, o progresso significa a garantia da sobrevivên-
cia em condições plenas e o alcance de uma convivência baseada numa relação de
respeito e interdependência com a natureza sem prejuízos para nenhuma das partes.
Já para os patrões e capitalistas, o progresso significa tão somente o avanço da eco-
nomia, a dominação e o controle da exploração comercial dos recursos naturais.
Esses antagonismos indicam que os conflitos tendem a acirrar-se porque as partes
envolvidas não abrem mão de seus valores e interesses.

Recebido em outubro de 2014, aprovado em dezembro de 2014.

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Luiz Felipe de Vasconcelos D. Balieiro *
Izaura Rodrigues Nascimento **

Artigo
TRÍPLICE FRONTEIRA BRASIL, PERU E COLÔMBIA
E AS IMPLICAÇÕES COM O NARCOTRÁFICO

Resumo Abstract
Na região do Alto Solimões, extremo In the Upper Amazon, extreme western
oeste do Amazonas, localiza-se a chamada Amazonas, it is located the Triple Amazon
Tríplice Fronteira Amazônica, formada Border, formed by the cities of Tabatinga/
pelas cidades de Tabatinga/Brasil, Santa Brazil, Santa Rosa/Peru and Letícia/
Rosa/Peru e Letícia/Colômbia. Esta Colombia. This border area is identified
zona fronteiriça é identificada como uma as one of the entry points of narcortics
das portas de entrada dos entorpecentes produced in Colombia and Peru in the
oriundos das zonas produtoras do Peru Brazilian territory. This article aims to
e Colômbia no território brasileiro. Este analyses the characteristics of drug trafficking
artigo objetiva promover a análise das in that zone, with a brief statement of its
características do narcotráfico na tríplice historical formation process , dynamics of coca-
fronteira amazônica, com uma breve ex- growing activity and drug trafficking in those
posição do seu processo de formação his- neighboring countries. Furthermore, are also
tórica, dinâmica da atividade cocaleira exposed, the production potential of cocaine
e do narcotráfico nesses países vizinhos, production, growing areas, and logistics employed
além de expor o potencial de produção by the criminal drugs trafficking groups to smuggle
de cocaína, zonas de cultivo, e logística drugs into Brazilian territory.
empregada pelos grupos envolvidos com
o tráfico de cocaína destas localidades para Keywords:
o território brasileiro. Drug trafficking; Amazon triple border; Public
safety.
Palavras-Chave:
Narcotráfico; Tríplice fronteira amazônica;
Segurança Pública.

* Mestre em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Amazo-
nas - UEA; especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo; graduado em Direito; Delegado de Polícia Civil. E-mail: [email protected]
** Doutora em Relações Internacionais e Desenvolvimento Regional (UnB/Flacso/UFRR). Mestre em
Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia (UFAM). Graduada em Ciências Sociais (UFAM).
Professora da Universidade do Estado do Amazonas - UEA, onde coordena o Curso de Mestrado Profis-
sional em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos. E-mail:[email protected]

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015 85


O presente artigo tem por objetivo analisar as características do narcotráfico no
Trapézio Amazônico, região fronteiriça dos territórios do Peru, Colômbia e Brasil.
Apresenta os resultados iniciais de uma pesquisa maior, que busca além das carac-
terísticas do narcotráfico, avaliar a atuação das forças de segurança naquela região,
para assim se obter um panorama da capacidade do Estado brasileiro em reprimir o
tráfico de entorpecentes na área mencionada.
Trata-se de uma zona de sensibilidade para as políticas de segurança pública bra-
sileiras, em especial àquelas voltadas ao combate a ilícitos transnacionais, com des-
taque ainda maior para o enfrentamento ao narcotráfico, uma vez que Colômbia e
Peru são os maiores plantadores de folha de coca e produtores mundiais de cocaína.
Assim, este estudo aborda a caracterização da região do Trapézio Amazôni-
co, com uma breve exposição do seu processo de formação histórica. Em seguida,
observa-se a dinâmica da atividade cocaleira e do narcotráfico nesses países vizinhos,
verificando o potencial de produção de entorpecentes, zonas de cultivo, e logística
empregada pelos grupos envolvidos com o tráfico de cocaína destas localidades para
o território brasileiro. Com isso, é possível traçar um panorama do narcotráfico na
região de fronteira analisada, e dos desafios que este apresenta para as políticas de
segurança pública do governo brasileiro.

Breves considerações sobre o narcotráfico

O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, realizado pelo Instituto Na-


cional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas
(Inpad) e que teve seus resultados divulgados em 2013, revelou que o Brasil é o
segundo maior consumidor de cocaína, atrás apenas dos Estados Unidos e maior
consumidor de crack do mundo, evidenciando-se assim a dimensão do problema do
uso e tráfico de drogas no Brasil.
O território brasileiro é fronteiriço aos três países que concentram o cultivo de
coca, matéria-prima para a produção de cocaína, Bolívia, Peru e Colômbia. No oeste
do Estado do Amazonas, na região do Alto Solimões, localiza-se a zona fronteiriça
denominada Trapézio Amazônico, formada pela confluência dos territórios brasi-
leiro, colombiano e peruano. Esta região é considerada uma das principais portas
de entrada de cocaína no território brasileiro, sendo constante objeto de discussões
governamentais de planos de segurança voltados para a região.

86 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015


No entanto, as publicações que analisam de forma científica a problemática do
tráfico de entorpecentes na região, em geral o fazem com um enfoque voltado para
as áreas da Geografia e das Relações Internacionais.
Com isso, surge a oportunidade de se realizar uma pesquisa com ênfase na área
de Segurança Pública, com o objetivo de identificar a dimensão do narcotráfico, fi-
nalidade deste artigo, além de avaliar a capacidade do Estado Brasileiro em reprimir
esta modalidade criminosa naquela zona fronteiriça.

O narcotráfico na região do Trapézio Amazônico

O Trapézio Amazônico é a denominação dada à região que engloba o ponto de


interseção das fronteiras entre Brasil, Peru e Colômbia, e os territórios adjacentes
em um raio de aproximadamente sessenta quilômetros, destes três países. Engloba
assim, parte do Departamento colombiano do Amazonas, Departamento peruano
de Loreto e o estado brasileiro do Amazonas.
Nele habita uma população heterogênea, de aproximadamente 150 mil pessoas,
formada por diferentes etnias indígenas (ticuna, cocamas, yasha-mishara, uitoto e
ocaina), mestiços de origem local e migrantes andinos e de outros territórios amazô-
nicos. Esta população concentra-se principalmente nos centros urbanos da região,
destacando-se as cidades de Caballocha e Islândia, no Peru; Puerto Nariño e Letícia,
na Colômbia; e Atalaia do Norte, Benjamin Constant e Tabatinga, no Brasil (CHAU-
MEIL, 2000).

Figura 1 Espaço da Tríplice Fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.


Fonte: Adaptado de Euzébio, 2014 por Luiz Felipe Balieiro

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015 87


Estas cidades – e a região do Trapézio Amazônico como um todo – acabam
por apresentar como características: posicionamento periférico e distanciamento em
relação ao poder central de seus países, baixa densidade populacional, população
carente de necessidades básicas e ausência do Estado. Desse modo, acabaram por
desenvolver ao longo dos anos, uma relação estreita e complementar, de processos
sociais e econômicos.
Tome-se, por exemplo, o caso das cidades-gêmeas de Tabatinga (Brasil) e Le-
tícia (Colômbia), maiores cidades do Trapézio Amazônico. Ambas são originárias
de processos de colonização militar, que buscavam afirmar a soberania nacional e
estabelecer os limites territoriais de Brasil-Peru-Colômbia. Tabatinga surge a partir
de um povoado estabelecido nos arredores do Forte de São Sebastião de Xavier,
instalado em 1776 na confluência dos rios Javari e Solimões, com o objetivo de fis-
calizar o tráfego de embarcações na fronteira. Apesar da destruição do forte, cujas
ruínas desapareceram no início do século XX, o povoado se desenvolveu, fazendo
inicialmente parte do município de São Paulo de Olivença (1891), Benjamin Cons-
tant (1938), até obter a autonomia municipal em 1983.
Já Letícia, teve sua origem quase um século após, com o povoamento nos arre-
dores do Posto Militar de San Antonio, instalado em 1867 pelos peruanos. Passou
a compor o território colombiano em 1927, após a assinatura do tratado Salomón-
-Lozano em 1922, que fixava limites territoriais entre Peru e Colômbia. No entanto,
em 1932, um grupo de peruanos se revoltou e invadiu Letícia, reivindicando que o
território pertencia ao Peru e dando início a um conflito armado entre os dois países.
Apenas dois anos depois, em 1934, negociações de paz estabelecidas no Protocolo
do Rio de Janeiro, reafirmaram o estabelecido do tratado de 1922, considerando
Letícia como integrante do território colombiano. Em 1930, tornou-se capital da
Comisaria del Amazonas, antiga forma de unidade territorial colombiana, sendo ele-
vada à categoria de município em 1963 e tornando-se, em 1991, a capital do recém-
-criado Departamento do Amazonas.
Durante a segunda metade do século XIX e início do século XX, a economia da
região baseou-se no extrativismo de produtos de origem florestal, especialmente do
látex extraído das árvores de caucho ali existentes, com maciça exploração da mão-
-de-obra escrava indígena. Este ciclo durou até meados de 1920, quando a exemplo
das demais zonas produtoras de borracha da Amazônia, entrou em decadência em
virtude da concorrência do látex produzido nas colônias inglesas localizadas na Ásia.
A partir de então, cresce a importância da exploração madeireira na região, nas
regiões colombianas de Tarapacá e La Pedrera, bem como nas terras ao longo do rio

88 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015


Javari, em território brasileiro, com destaque no município de Benjamin Constant.
Com a criação da legislação ambiental, demarcação de terras indígenas e áreas de
preservação ambientais, na segunda metade do século XX, a exploração madeireira
começa a declinar, gerando uma crise econômica neste setor produtivo (STEIMAN,
2002).
Na década de 70, inicia-se o processo de escalada do cultivo de produção de
cocaína, a fim de suprir a demanda do mercado norte-americano. Com isso, a eco-
nomia derivada do tráfico de drogas, logo passa a ter uma importância primordial
na região.
Independente do período analisado deve-se atestar a importância dos corredo-
res hidrográficos formados pelos rios do Trapézio Amazônico, nos processos de de-
senvolvimento da região. Destacam-se, portanto, as rotas fluviais dos rios Caquetá-
Japurá, Putumayo-Içá e Maranõn-Amazonas, amplamente utilizados nos períodos
que serviram como: rotas do contrabando, no século XVIII; vias de exportação de
borracha e madeira, ao longo do século XX; e mais recentemente para o escoamento
de entorpecentes provenientes das regiões produtoras do Peru e Colômbia. Além
disso, a falta de ligações terrestres dos aglomerados urbanos do Trapézio Amazôni-
co, com as regiões centrais dos países que o compõe, e as limitações impostas pelos
custos de transportes aéreos, faz com que os rios ali existentes, sejam o principal
meio de deslocamento das suas populações.

Figura 2- Fluxo fluviais no Trapézio Amazônico

Fonte: http://www.info.lncc.br

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015 89


O narcotráfico é uma das modalidades criminosas que mais movimenta dinheiro
no mundo. Em 2009, o Escritório das Nações Unidas sobe Drogas e Crime, divul-
gou relatório no qual estima que o comércio de cocaína gera uma receita bruta esti-
mada em 84 bilhões de dólares. Desta, a maior parte é gerada na América do Norte
(35 bilhões de dólares) e Europa Ocidental e Central (26 bilhões). Além disso, os
custos de produção da cocaína foram estimados em 1 bilhão de dólares anuais, que
se destinam principalmente aos produtores das regiões andinas.
O mercado de cocaína teve sua expansão iniciada na década de 70 do século XX,
de forma a atender à crescente demanda por esta droga, especialmente nos Estados
Unidos. No período, surgem as grandes organizações criminosas envolvidas na pro-
dução e distribuição de cocaína para aquele país, como os cartéis de Cali e Medellín.
Assim, verifica-se a ampliação do cultivo de coca em diversas áreas dos terri-
tórios de Peru, Colômbia e Bolívia, estabelecendo um monopólio da produção da
matéria-prima da cocaína que persiste até os dias atuais.
Segundo Machado (2002), os modos de organização territorial do processo pro-
dutivo de cocaína podem ser separados em duas formas diferentes. Na primeira,
que perdurou até o início dos anos 90, Peru e Bolívia teriam a predominância nos
cultivos e produção da pasta de coca, enquanto que a Colômbia se firma como maior
produtora e exportadora de cocaína, estabelecendo assim uma divisão transnacional
do processo produtivo. Neste período, o papel do território brasileiro como rota de
exportação de cocaína não possui grande relevância, uma vez que esta era escoada
aos Estados Unidos predominantemente pela costa do Oceano Pacífico, passando
pelo Mar do Caribe. Além disso, não se encontra uma base de dados confiável sobre
apreensões de entorpecentes, especialmente pasta base e cocaína, no território bra-
sileiro, neste período.
No entanto, a despeito da menor importância nas rotas de exportação inter-
nacionais, a região do Trapézio Amazônico, possuía importância estratégica para o
transporte da pasta base produzida no Peru e Bolívia para o refino nos laboratórios
colombianos localizados nos departamentos de Caquetá, Putumayo e Guaviare, que
eram transportados pelas já mencionadas rotas fluviais da região.
Assim, surge na região o Cartel de Letícia, liderado pelo narcotraficante Evaristo
Porras Ardila, e que se torna o principal fornecedor de coca para o Cartel de Medel-
lín, liderado por Pablo Escobar.
Impulsionada pela movimentação financeira do narcotráfico, a cidade de Le-
tícia experimenta um desenvolvimento econômico sem precedentes, derivando na
expansão do mercado imobiliário, com a construção de hotéis, residências e lojas

90 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015


comerciais, bem como o aumento da circulação de bens de luxo, como automóveis,
lanchas e motos. Além das moedas nacionais de Peru, Colômbia e Brasil, o dólar era
amplamente utilizado nas transações comerciais, e surgiram inúmera casas de câm-
bio, tanto em Letícia com em Tabatinga.
No período ente 1973 e 1993, a população urbana de Letícia mais que triplica
passando de 5.849 para 17.187 habitantes.
Tabatinga também experimentou ganhos com a economia do narcotráfico. No
período, a moeda brasileira encontrava-se desvalorizada ante as demais, fazendo com
que os preços do comércio local se tornassem atrativos. De igual modo, a cidade
passou por um aumento de sua população local, embora não haja dados estatísticos
oficiais que atestem a população no município antes de 1991.
A pujança econômica de Letícia persiste até meados da década de 1990, quando
o aumento da repressão ao narcotráfico na Colômbia, resultou na captura ou morte
dos principais narcotraficantes do país e o desmantelamento dos grandes cartéis de
drogas, a exemplo do Cartel de Letícia, que teve seu líder Evaristo Porras, preso e
seus bens confiscados. A partir de então, Letícia passa por uma grave crise financei-
ra, com declínio da atividade comercial até então estimulada pelo tráfico de drogas.

O aumento da repressão ao tráfico de drogas na década de 1990 e seu ápice em 1997 oca-
sionou a dissolução do Cartel de Letícia, o terceiro mais importante da Colômbia, e levou
consigo o padrão de crescimento econômico da cidade até então. Os bens dos traficantes
colombianos da cidade foram confiscados (mansões luxuosas, as empresas, centros comer-
ciais, hotéis, etc.), muitos chefes locais foram presos ou fugiram. [...] Por volta de 2000, a
situação financeira da Gobernacion del Amazonas e da Municipalidad de Letícia era grave
(STEIMAN, 2002, p. 69)

No final dos anos 80 e início dos anos 90, o território colombiano passa a
apresentar também grandes áreas de cultivo de coca, passando a concentrar todas
as etapas da produção do entorpecente. O mesmo ocorre, em sentido inverso, com
Bolívia e Peru, onde se verifica o aumento da produção de cocaína. Desse modo, o
caráter transnacional do processo produtivo é substituído por um método de organi-
zação que concentra todas as etapas da produção nos limites territoriais de cada país.

In the 1990s, Colombia also became a major producer of coca leaf and coca paste. On
the other hand, Peru and Bolivia experienced a decrease in coca leaf production and a
trend towards cocaine production. In other words, there seems to be a tendency towards a
vertically integrated mode of organisation within the limits of each country (MACHADO,
2002, p.158).

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015 91


Neste novo período, identifica-se ainda o surgimento de novos mercados con-
sumidores de cocaína, até então concentrados nos Estados Unidos, como a Europa
e África. Ante este novo cenário, aumenta também a importância de rotas expor-
tadoras que passam pelo território brasileiro, iniciadas nas regiões de fronteira dos
estados do Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, até
atingir os portos da costa brasileira e dali os mercados finais via Oceano Atlântico.
Assim, verifica-se uma mudança na utilização das vias hidrográficas da região no
processo de tráfico de entorpecentes. Se antes estas eram utilizadas majoritariamente
para o transporte da pasta de coca produzida no Peru e Bolívia para os laboratórios
de refino colombianos, agora estas são utilizadas para o escoamento da pasta base e
cloridrato de cocaína para o mercado externo.
Ademais, na última década, vem se observando uma mudança do perfil do tráfi-
co de cocaína no Brasil. Este vem deixando de ser um país caracterizado como rota
de trânsito, passando a ser um importante mercado consumidor.

O Brasil contém aproximadamente metade da população da América do Sul; é um país


que é vulnerável tanto ao tráfico, devido à sua geografia (o que o torna uma área de
preparação conveniente para cocaína traficada para a Europa), como ao consumo de
cocaína, devido à sua grande população urbana. A última estimativa oficial de prevalência
anual do consumo de cocaína no Brasil com base na população geral remonta a 2005.
Uma pesquisa mais recente, entre estudantes de ensino superior nas capitais brasileiras,
estimou a prevalência de uso de cocaína em pó (de todas as idades) a 3 % em 2009
(UNODC, 2014, p. 143).

Com isso, o tráfico de cocaína mantém-se ativo na região do Trapézio Amazôni-


co, e a sua repressão representa um desafio para o Estado Brasileiro.

A produção de coca e sua influência econômica na região do Trapézio Amazônico

Como já exposto anteriormente, o tráfico de entorpecentes atua como um dos


dinamizadores econômicos da região. Assim, torna-se importante tentar mensurar
qual o impacto econômico gerado por esta atividade.
Primeiramente deve-se observar que a produção mundial de folhas de coca
restringe-se a três países sul-americanos: Colômbia, Peru e Bolívia. A UNODC em
parceria com os governos destes países realiza o monitoramento da extensão dos
cultivos de coca e divulga os resultados obtidos em suas publicações. A principal de-

92 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015


las é o World Drug Report, um relatório anual que analisa a problemática das drogas
de forma global em suas variadas vertentes (produção, tráfico e consumo), tendo
por base os dados mais recentes disponíveis. Na versão 2014 do WDR, que utilizou
dados atualizados até fim do ano de 2012, a área total de cultivos de coca foi estima-
da em 133.700 hectares, apresentando uma área 14% menor que a do ano anterior e
21% menor que a observada no ano de 2002, conforme se observa na tabela abaixo:

Tabela 1 - Cultivos Ilícitos de coca (em hectares)


2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Bol. 21.600 23.600 27.700 25.400 27.500 28.900 30.500 30.900 31.000 27.200 25.300
Col. 102.000 86.000 80,000 86.000 78.000 99.000 81.000 73.000 62.000 64.000 48.000
Per. 46.700 44.200 50.300 48.200 51.400 53.700 56.100 59.900 61.200 64.400 60.400
Tot. 170,300 153,800 158,000 159,600 156,900 181,600 167,600 163,800 154,200 155,600 133,700

Fonte: Adaptado de World Drug Report 2014 por Luiz Felipe Balieiro

As reduções nas áreas de cultivo de coca são resultadas de diversos programas


de erradicação implementados nos países produtores.
Na Colômbia, a estratégia de redução de oferta de drogas ilícitas, na qual a
redução das áreas de cultivo se insere, é realizada por meio de diversas ações que
incluem: erradicação manual, erradicação por meio de aspersão aérea de herbicidas
e substituição voluntária de cultivos através de programas de desenvolvimento alter-
nativo. Com isso, verifica-se que de 2011 para 2012, houve uma redução de 25% nos
cultivos de coca no país (UNODC, 2014).
Na Bolívia, ações de erradicação e programas de desenvolvimento alternativo
vêm conseguindo reduzir as áreas de cultivo de coca. No relatório Monitoreo de
Cultivos de Coca 2013, produzido pela UNODC em parceira com o Governo da
Bolívia, estimou-se em 23.000 hectares de cultivos de coca no país, menor área ob-
servada desde o ano de 2003.
No Peru, os esforços do governo carreados pela Comissão Nacional para De-
senvolvimento e Vida sem drogas (DEVIDA) conseguiram pelo segundo ano con-
secutivo reduzir os cultivos de coca, que somaram 49.800ha em dezembro de 2013,
ou seja, 17,5% a menos que o ano anterior (60.400ha) ou 22,7% a menos que o
registrado em 2011 (64.400ha). Esta redução se deve tanto por ações de erradicação
de cultivos ilícitos, bem como ações de desenvolvimento econômico que levam ao
abandono dos cultivos cocaleiros. Exemplo disto é a disputa por mão de obra, oca-
sionada pela demanda gerada por obras públicas de governos locais e regionais ou

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ainda por companhias ligadas à exploração do Gás de Camisea, na região Central do
Peru (UNODC, 2014).
Tendo-se obtido uma visão geral sobre a produção cocaleira, deve-se agora pro-
curar delimitar as áreas com influência direta sobre a região da Tríplice Fronteira
Amazônica.
Primeiramente, devemos observar que embora seja a origem de mais da metade
da cocaína apreendida no Brasil, o aprofundamento sobre a produção de coca na
Bolívia não deve ser realizado neste estudo. Isto porque, os limites territoriais boli-
vianos estão distantes da zona fronteiriça ora analisada. Assim, as zonas produtoras
de coca e cocaína produzidas na Bolívia e sua posterior entrada em território bra-
sileiro, relacionam-se mais com a região Centro-Oeste de nosso país, notadamente
com os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Já a dinâmica do mercado de cocaína colombiana também se afasta da fronteira,
uma vez que o principal destino da droga ali produzida são os Estados Unidos, uti-
lizando como rota de escoamento o Equador, México e países da América Central.
Ressalta-se ainda, que em 2013, não foram realizadas ações de erradicação manual
ou operações de aspersão de herbicida em cultivos de coca localizados nos departa-
mentos de Vaupés e Amazonas que são aquelas fronteiriças à região oeste do Ama-
zonas, ora estudada. De acordo com o World Drug Report 2013, com informações
fornecidas pelo governo brasileiro, no ano de 2011, apenas 7,5% da droga fornecida
em território nacional possuía origem colombiana.
Com isso, é possível afirmar que a produção de coca no Peru é a que mais dire-
tamente se relaciona com o narcotráfico na região da Tríplice Fronteira Amazônica.
Em 2013, a área de coca cultivada no Departamento de Loreto foi estimada em
5.013ha, apresentando-se assim como a terceira maior região produtora de coca da-
quele país. Quando se observa apenas a zona do Bajo Amazonas, situada na provín-
cia de Ramon Castilla, e que faz a fronteira imediata com a região do Alto Solimões,
chega-se a um quantitativo 3.070ha de cultivos de coca, percentual 3,8% superior ao
ano anterior. Ressalte-se ainda, que o aumento dos campos de coca no Bajo Ama-
zonas só não foi superior devido às operações conjuntas realizadas pelas forças de
segurança do Peru e a Polícia Federal do Brasil, principalmente por meio das deno-
minadas Operações Trapézio. No período de 2011-2012, a zona do Bajo Amazonas
apresentou o maior percentual de aumento de área planta de coca em todo o Peru,
saindo de 1710 ha para 2959 ha, ou seja, um incremento de 73% em apenas 1 ano.
Além disto, não se deve ignorar que outras zonas cocaleiras, como a Alto
Huallaga e Maranõn, também contribuem para o fluxo de entorpecentes na Tríplice

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Fronteira Amazônica. Isto porque as rotas fluviais oriundas destas localidades con-
fluem para o rio Solimões no território brasileiro, formando assim vias naturais para
o escoamento de entorpecentes.
A disposição geográfica dos cultivos de coca no Departamento de Loreto, com
destaque para a proximidade daqueles localizados na zona do Bajo Amazonas é ilus-
trada pela figura a seguir apresentada:

Figura 3- Extensão dos cultivos de coca no Departamento de Loreto-Peru


Fonte: Adaptado de Monitoreo de Cultivos de Coca-Peru 2013 por Luiz Felipe Balieiro

Uma vez delimitada a área de produção de coca que se relaciona de forma mais
aproximada com o Trapézio Amazônico, busca-se agora mensurar o impacto eco-
nômico do tráfico de cocaína na região. Para tanto, algumas premissas iniciais devem
ser observadas.
Como exposto anteriormente, foram identificados em 2013, 60.400 hectares
de cultivos de coca. Estes cultivos seriam suficientes para a produção de 121.242
toneladas de folhas de coca, das quais 9.000 são utilizadas em costumes tradicionais,
uso ancestral ou ainda pela indústria, e o restante é empregado pelo narcotráfico na
obtenção de derivados da coca (cloridrato de cocaína, pasta base).

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015 95


A produtividade dos cultivos de coca varia conforme a zona em que estes são
localizados. No Vale dos rios Apurimac e Ene (VRAE), que apresenta os maiores
níveis de produção, são obtidas em média 3.627 quilos de folha de coca por hectare
plantado. Já na zona de La Convención y Lares, o rendimento médio obtido é de
1.457 kg/ha. Nem todas as zonas cocaleiras do Peru têm a sua produtividade aferida
nos relatórios de monitoramento, caso das zonas situadas no Departamento de Lo-
reto, como o Bajo Amazonas e Putumayo. Diante disto, será considerada para os fins
de cálculo de insumos disponíveis para o narcotráfico, que estas zonas apresentam
uma produtividade de 2.000kg/ha, que nada mais é do que a produtividade média do
Peru quando seus cultivos são analisados de forma geral.
Estão sendo revisados pela UNODC os fatores de conversão utilizados para se
estimar o potencial de produção de cocaína pura (cloridrato de cocaína) a partir das
folhas de coca. Estes fatores levam em consideração: a extensão do cultivo, quan-
tidade de folhas obtidas por hectare plantado, quantitativo de alcaloide encontrado
nas folhas e eficiência do processo laboratorial de extração do alcaloide (UNODC,
2010). Com isso, será considerado na presente pesquisa a taxa de conversão de 375
quilos de folha de coca para a obtenção de um quilo de cloridrato de cocaína. Esta
taxa foi obtida por meio estudos científicos do US Drug Enforcement Administra-
tion (DEA), e utilizada nos WDR até o ano de 2008. Além disso, considerar-se-á
que a mesma quantidade de folhas de coca é necessária para produzir um quilo de
pasta-base de coca, subproduto anterior ao estado de cloridrato.
O quilo da folha de coca peruana é negociado por um preço médio de 4,3
dólares. Por sua vez, o quilo de pasta-base de cocaína é negociado, em média, por
U$863,00 (oitocentos e sessenta e três dólares), enquanto que o cloridrato de cocaína
é negociado por U$1310/kg. Não se tem disponível uma estatística precisa de quan-
to de cocaína é comercializada na forma de pasta ou na forma de cloridrato. Deste
modo, utilizaremos nesta pesquisa um preço médio de U$1.000/kg de cocaína.
Com base nas informações apresentadas, pode-se estimar que as venda de folhas
de coca produzidas no Departamento de Loreto gera uma movimentação financeira
de cerca de U$ 43 milhões. Apenas no Departamento de Loreto, seriam produzidas
anualmente 26,7 toneladas de cocaína (pasta-base ou cloridrato). Considerando-se o
preço de U$1000/Kg, obtém-se que a vendas anuais de cocaína ali produzida, movi-
mentam U$26,7 milhões ou 61 milhões de reais. Assim, apenas a cocaína produzida
no Departamento de Loreto e cujo destino é o Brasil por meio da Tríplice Fronteira
Amazônica, possui um impacto econômico equivalente ao setor agropecuário e su-
perior à atividade industrial nos municípios de Atalaia do Norte, Benjamin Constant

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e Tabatinga, que juntos movimentaram, respectivamente, 62 e 58,6 milhões de reais
no ano de 2011 (SEPLAN,2013).
Desta forma, observa-se que mesmo utilizando uma estimativa conservadora
pode-se afirmar que a atividade do tráfico de entorpecentes possui um elevado im-
pacto econômico na região do Trapézio Amazônico. Evidencia-se assim, que é ne-
cessária uma ampla ação do Estado brasileiro, de forma a enfrentar a problemática
do narcotráfico de forma adequada, a fim de tentar reduzir o impacto deste sobre a
região ora analisada.

Considerações Finais

Conforme exposto ao longo deste artigo, o narcotráfico na região do Trapézio


Amazônico caracteriza-se como uma atividade com grande impacto econômico na-
quela região, apresentando diferentes fases ao longo das últimas décadas do século
XX. Este estudo procurou apresentar o processo de evolução histórica desta ativi-
dade criminosa na região, identificar quais zonas produtoras de coca que possuem
influência no território brasileiro. Assim sendo, foi possível observar que a produção
de cocaína no território colombiano não possui grande relevância para o mercado
brasileiro. Por outro lado, o território peruano, em especial o Departamento de Lo-
reto, tem a atividade cocaleira diretamente ligada à produção de entorpecentes que
adentram ao território brasileiro na região estudada.
A delimitação desta zona de influência, bem como a mensuração de seu impacto
econômico, pode servir como instrumento balizador para os projetos voltados para
o enfrentamento ao narcotráfico naquela região, a fim de que sejam traçadas polí-
ticas que tenham por base a real dimensão que esta atividade criminosa possui no
Trapézio Amazônico.

Recebido em setembro de 2014, aprovado em dezembro de 2014.

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Acesso em 14 abril de 2014.

98 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 85-98, referência 2014. Publicação 2015


Débora Assumpção e Lima *

Artigo
O MUNDO DA HINTERLÂNDIA E OS AVANÇOS DA
FRONTEIRA NO ESPAÇO TOCANTINENSE

Resumo Abstract
As categorias do imaginário responsáveis The categories of the imaginary charge the
em munir o ideário nacional da ideia de ser national ideology the idea of being
​​ about the
da hinterlândia, atendo-se aqui a formação hinterland, referring here as the formation of the
do estado do Tocantins, apresentavam a state of Tocantins, which is presented as a wild,
região como selvagem, exótica e distante. exotic and distant region. The hinterland, “o
A hinterlândia, o sertão, não é um lugar, sertão”, is not a place but a condition attributed
mas uma condição atribuída a variados lu- to places; a symbol, a symbolic reality. “O
gares; um símbolo imposto, uma realidade sertão” cannot be measured, therefore the border
simbólica. O sertão não pode ser mensu- is movement and advancement for development,
rável, já que a fronteira é movimento e seu the valuation of the space within the capital.
avanço em prol do desenvolvimento, da The use of land, basic shape with which men
valoração do espaço dentro do capital. O use, organize and change the territory, develop
uso da terra, forma básica com a qual os economic activities, deploying structures and
homens se territorializam, desenvolvem fastening systems eventually tend to homogeneity,
atividades econômicas, implantam estru- and under these aspects the state of Tocantins
turas e sistemas de fixação acabam por consolidates as a space whith multi caracteristics,
tender a uma homogeneidade, e sob estes created by the various actors and their historical
aspectos o Tocantins consolida-se como complexities, different time-space relations, conflict
um sertão misturado, em que suas diversas and intentions to form an integrated system of
temporalidades, criadas pelos diversos Capital, even if located on the shore territory.
atores e suas complexidades históricas,
velocidades, conflitos e intencionalida-
des formam um território integrado ao Keywords:
sistema do capital, mesmo que localizado Frontier; hinterland; Tocantins; space
na margem. modernization.

Palavras-Chave:
Fronteira; hinterlândia; Tocantins; moder-
nização do espaço.

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Campinas -


UNICAMP; Mestra e graduada (bacharelado e licenciatura) em Geografia pela UNICAMP. Professora
visitante da Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP/MG

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Introdução

A hinterlândia1 pode ser colocada primeiramente como sertão: um espaço para a


expansão, incorporação aos fluxos econômicos ou a uma esfera de poder que ainda
lhe escapa, em que “conhecer e divulgar um dado espaço desconhecido iniciaria o
processo de sua transformação, seu fim enquanto sertão” (MORAES, 2003, p.14).
Este movimento do (des)conhecido foge a própria expansão da fronteira, já que os
movimentos de incorporação são planejados, seguindo dialogicamente os movimen-
tos da franja pioneira, do movimento de incorporação e consolidação do mercado
de terras como descrito por Monbeig (1984).
A “Marcha para Oeste” foi um marco para a expansão da fronteira agrícola,
mesmo que tais áreas já fossem conhecidas por brasileiros e estrangeiros2, diver-
gindo-se dos movimentos de expansão ocorridos no último quartel do século XIX
que ainda ocorreriam a partir de um caráter espontâneo e de um tipo localizado de
produção. A borracha, na Amazônia, consolidou o último capítulo da formação
territorial do Brasil (SILVA, 2007). A “Marcha para Oeste” apresenta a perspectiva
de organizar o espaço dentro da economia capitalista moderna, em que o desejo de
especular as terras se sobrepõe ao sentido de colonizar, ocupar.
1
O conceito de hinterlândia aqui é entendido brevemente como terra pouco ocupada, de desenvolvimento
reduzido, uma “área subordinada economicamente a um centro urbano.” (Correa, 1998, p.86). O mesmo
autor ainda afirma que no panorama da divisão territorial do trabalho, a articulação entre territórios espe-
cializados é fundamental ao sistema capitalista (Correa, 1994). O conceito de hinterlândia aqui definido
distancia-se das vertentes expostas na revista Geographical Review,vol. 31, No. 2 (Apr., 1941), p.
308-311, ligada à uma hinterlândia definida por características naturais litorâneas, ou portuárias econô-
micas. O termo hinterlândia utilizado no trabalho aproximar-se-ia mais ao termo anglo-saxão umland.
Concorda-se com Eugene van Cleef apenas o trecho aqui exposto: “Infelizmente, nem “umland” ou “hin-
terland” podem ser definidos com exatidão. Estes termos se aplicam a atividades humanas e desta feita
condicionados por diversas circunstâncias. Talvez “umland” seja menos preciso que “hinterland”. Muitos
elementos não geográficos afetam os limites destas regiões em questão. Elementos como taxas logísticas,
influências políticas, o “acaso” de convenientes ou inconvenientes do transporte, rivalidades nacionalistas
[ou empresariais], contrastes linguísticos, antagonismos sociais, restrições comerciais, e outros diversos
fatores” (p.311) (Tradução minha).
2
A partir de um olhar histórico eurocêntrico tem-se como marco a descoberta do Rio Tocantins pelos
franceses instalados nas terras do Maranhão no início do século XVII. O desbravamento do antigo Goiás,
hoje Tocantins, também foi impulsionado pelos missionários chefiados pelo Frei Cristóvão de Lisboa, que
percorrendo a área do rio Tocantins fundaram a missão religiosa em 1625. Para maior conhecimento das
expedições ao longo da hinterlândia no fim do século XIX e início do século XX, em especial aquelas
que entrecortaram o Tocantins, ver: BRAZIL, 1876; COUDREAU, 1897, 1899; MOURA, 1910; DOLE,
1973; RODRIGUES, 1978; AUTOS DA DEVASSA, 1986 e FERNANDES NETO, 2012.

100 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015
A hinterlândia, desta forma, é a região em que as frentes de expansão dariam
lugar a frentes pioneiras, movimento de integração do território nacional. José de
Souza Martins (1997) corrobora tal questão, em que:

O deslocamento progressivo das frentes de expansão tem sido, na verdade, um dos mo-
dos pelos quais se dá o processo de reprodução ampliada do capital, o da sua expansão
territorial. Um outro momento desse modo de expansão tem sido o que se dá através do
deslocamento das chamadas frentes pioneiras. Ambas, na verdade, são faces e momentos
distintos da mesma expansão (MARTINS, 1997, p.27).

Distinguindo os dois conceitos, poder-se-ia dizer que a frente de expansão seria


originalmente a expansão da civilização – tendo como desdobramentos o avanço da
sociedade nacional, do modo capitalista de produção, não necessariamente guardan-
do uma correlação entre si. Já a frente pioneira teria o econômico como seu movi-
mento, a “reprodução extensiva e territorial essencialmente mediante a conversão
da terra em mercadoria e, portanto, em renda capitalizada, como indicava e indica a
proliferação de companhias de terras e negócios imobiliários nas áreas de fronteira
em que a expansão assume essa forma” (MARTINS, 1997, p.156).
Na obra de Pierre Monbeig (1984), apesar de não haver distinção entre os di-
versos termos referentes à fronteira, poder-se-ia classificar tais termos em três ca-
tegorias: espacial, trabalho e atividade, na tentativa de compreender as nuances das
questões que envolvem a fronteira, já que a diversidade de expressões acerca da
fronteira enfatiza sua multiplicidade de sentidos, que vão além do olhar meramente
geográfico3. Os termos foram aqui organizados por ordem de apresentação no texto
de Monbeig e por relevância:
Espacial: regiões pioneiras, novas regiões pioneiras, franja, mancha pioneira (ou
mancha dos pioneiros), zona nova, manchas de povoamento pioneiro, frente pio-
neira, área pioneira, planaltos pioneiros, cidades pioneiras, mundo pioneiro, marcha
pioneira, marcha pioneira moderna, front, terra nova, zona de sertão, sertão, municí-
pios pioneiros, fronteiras naturais;
Atividade: movimento pioneiro, agricultura pioneira, economia pioneira, frente
de povoamento, cultura (referente ou cultivo) pioneira, pecuária pioneira, noma-
dismo pioneiro, povoamento pioneiro, deslocamento pioneiro, produção pioneira,
cultura de subsistência pioneira, cereais pioneiros, movimento de expansão;
3
Sobre os diversos estudos sobre fronteira que perpassam a Geografia acessar VIEIRA, Alberto, Biblio-
grafias-Fronteira, Funchal, CEHA, 2013.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015 101
Trabalho: pioneiro, fazendeiro pioneiro, agricultores pioneiros, massa de pionei-
ros, senhor do mundo pioneiro, pioneiro moderno;
Outros: sociedade pioneira, avanço pioneiro, universo pioneiro, rodovia pioneira,
grupos pioneiros.
Monbeig define a “franja pioneira” como uma expressão vaga, onde a fronteira
seria uma região instável e incerta, que progride irregularmente e em direções difusas
(MONBEIG, 1984, p.165). Leo Waibel é outro autor importante para auxiliar na dis-
tinção dos movimentos de expansão, em que o pioneiro não significa somente aque-
le que vive numa fronteira espacial; ele expande a ocupação do espaço, mas também
cria novos padrões e técnicas de vida (SILVA, 2007). Waibel permite diferenciar os
conceitos de fronteira e de zona pioneira, considerando que a expansão da fronteira
que havia adentrado o país pela pecuária não consolidou um povoamento e nem me-
lhorou o padrão de vida. Deste modo, o pioneiro cria um tipo de paisagem que não
é a terra civilizada e nem é mais o sertão, definindo assim a zona pioneira. O cultivo
da terra é o que constitui o fundamento econômico da zona pioneira, distanciando-
-se do padrão da “Marcha para Oeste” norte-americana e colocando o camponês
segundo conceituações europeias como o elemento que caracteriza a zona pioneira.
Outro aspecto que Waibel aborda justificando sua escolha pelo termo “zona pionei-
ra” é a sua localização em áreas de povoamento mais antigos e próximos às vias de
circulação modernas, estradas e ferrovias. Isso demonstra que a economia pioneira
era relevante para aos mercados de escalas maiores – a “zona pioneira” representa-
va uma situação de momento, podendo ser uma via eficaz de colonização (SILVA,
2007, p.80). Já as “frentes” (pioneiras, de expansão, de povoamento) podem ser
diferenciadas pelo caráter espontâneo ou privado, com mínima intervenção estatal
(MACHADO, 1992).
Não cabe nos trabalhos de Waibel4 a definição sobre fronteira agrícola que trans-
forma o espaço a partir dos elementos de expansão da civilização tecno-mercantil.
Ligia Osório Machado (1992, p.35-37) define que as “fronteiras agrícolas” têm pa-
drão espacial estreitamente vinculado à expansão das vias de circulação; atrelados
a movimentos espontâneos de imigração e de iniciativa de projetos de colonização
oficial ou privado, podendo estar especializadas em um único produto, como o ar-
roz, a soja e o trigo, na policultura, com grau de tecnificação e investimento variado.
A partir do conceito de fronteira agrícola, entende-se que sua expansão no ter-
ritório brasileiro estava vinculada ao aumento de produção com baixo coeficiente de
4
Um fato interessante é que para Waibel (1979, p.309) as regiões Norte e Centro-Oeste não seriam favo-
ráveis à agricultura intensiva devido às condições naturais, afirmando que a ocupação da hinterlândia era
de caráter mais geopolítico que econômico.

102 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015
capitalização, sem criar obstáculos para a acumulação urbano-industrial, exproprian-
do os pequenos produtores e trabalhadores rurais que também avançavam com a
fronteira, criando um movimento contraditório do espaço, em que a não ocupação
efetiva e intensiva da terra também serve ao capital. Neste sentido, considera-se até
a década de 1920 o Estado de Goiás como frente pioneira. O estado permaneceu
semi-isolado do restante do país, mantendo vínculos econômicos que se refere ao
comércio de gado, em principal para o centro-sul e uma produção agrícola de subsis-
tência. Em 1913 a região foi cortada pela estrada de ferro que alcançou o município
de Ipameri-GO e assim passou a receber um fluxo migratório mais intenso. “Esta
ocupação desenvolveu-se de duas formas, constituindo-se em ‘frentes pioneiras’ as
áreas próximas à estrada de ferro e em alargamento das ‘frentes de expansão’ as
áreas mais distantes constituídas por terras devolutas” (CARNEIRO, 1988, p.71).
Contudo, esta franja pioneira não alcançava a parte norte do estado goiano, área
compreendia pelo atual estado do Tocantins.
Na década de 1940, foi criada a Fundação Brasil Central – FBC, que instrumen-
talizou a “Marcha para o Oeste”, posteriormente extinta e anexada à Superintendên-
cia do Desenvolvimento do Centro Oeste - SUDECO em 1967, um ano depois da
criação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM (BRA-
SIL, 2001). Os objetivos destas instituições, e da Marcha para o Oeste, eram atrair
capital nacional e estrangeiro e preparar uma estrutura logística para o desenvolvi-
mento desse capital, que não menosprezava a vocação agropecuária, num primeiro
momento mais intenso nas margens do rio Araguaia. O Tocantins era caracterizado
por “um grande ‘bolsão de miséria’ deslocado e distante do processo de moderniza-
ção agrícola que dinamizou grande parte do território goiano” (AJARA et al.,1991,
p.5).
A crescente vinculação da nação ao território passa paulatinamente a mediar
a definição de Estado soberano. Atrelado de forma definitiva à tarefa de delimita-
ção espacial de uma área homogênea, o estado deve estar sob sua jurisdição direta,
apontando para as intrincadas interações que se observam entre o espaço construído
herdado. Tal espaço é uma rugosidade fruto do desenrolar histórico de ações colo-
nizadoras, que cria construções identitárias de base espacial nascidas em meio ao
surgimento e afirmação do nacionalismo (NOGUEIRA, 2012).
As categorias do imaginário responsáveis em munir o ideário nacional da ideia
de ser do Tocantins apresentavam a região como selvagem, exótica e distante; povo-
ada por índios, sertanejos e garimpeiros. Um sertão ainda atrasado, não integrado à
civilidade brasileira. A ideia de um deserto de homens menospreza o papel desem-

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015 103
penhado pelas comunidades indígenas, de sertanistas e estrangeiros que também
adentraram o sertão tocantinense. A história do sertão remonta à entrada do sistema
mercantil exportador associado à expropriação das comunidades tradicionais.
A primeira metade do século XX desembocou na abertura de estradas, pistas
de aviões, fazendas de gado e cidades. Para Monbeig (1984), “quando esta [ferrovia]
prolonga os trilhos, embrenha-se o homem mais para dentro do sertão” (p.121).
Neste sentido, pode-se afirmar que o sertão não é um lugar, mas uma condição
atribuída a variados lugares; um símbolo imposto, uma realidade simbólica (MO-
RAES, 2003). O sertão não pode ser mensurável, já que a fronteira é movimento e
seu avanço em prol do desenvolvimento, da valoração do espaço dentro do capital,
do “fim do atraso” é a ação de chegar até o sertão e reconfigurá-lo, não necessa-
riamente colocando-o como centralidade, mas certamente transformando-o como
homogeneidade no espaço, produzindo-o a partir do mesmo modo de produção5,
de circulação, de trabalho e de signos. A civilidade pressupunha a incorporação da
disciplina do trabalho, hábitos de higiene, de moradia e de costumes considerados
tradicionais. A relação entre o sertão e o processo de colonização é estreita. Iluminar
o sertão seria imputar o sistema de valor daquilo que nega o sertão, concebido no
discurso hegemônico também como um território não urbanizado.
A relação com a natureza e as culturas rurais que vinham se desenvolvendo
autarquicamente entra no projeto dominador que as cidades modernizadas levam a
cabo, buscando integrar o território nacional sob a norma urbana (RAMA, 1985). A
modernidade está associada à racionalização que impõe a destruição das relações só-
cio-espaciais, costumes e crenças. Portanto, a expansão da fronteira até os rincões do
Brasil leva ao outro (representado pelos índios, quilombolas, ribeirinhas e sertanejos)
os objetos6 do urbano, criando uma rede produzida pela inteligência racionalizante
que, através da mecanicidade das leis institui a ordem7 urbana. “Tais elementos ordenam
o mundo físico, normatizam a vida da comunidade e se opõem à fragmentação e ao particularismo
de qualquer invenção sensível” (RAMA, 1985, p.51).
Sobre o viés da unicidade da técnica como processo de hegemonização, Milton
Santos apresenta que os objetos mundializados, que participam de um mesmo siste-
5
Entende-se que o modo de produção projeta relações temporais e sociais no espaço (LEFEBVRE, 2006).
6
O objeto nele mesmo e no seu próprio ser nos levam a ideia de coisa. Mas quando se vê o objeto enquanto
representação de outro, a ideia que se tem dele é a de signo. Assim, o signo encerra duas ideias, uma de
coisa que representa e outra de coisa representada, e sua natureza consiste em provocar a segunda ideia
através da primeira (RAMA, 1985).
7
“... a ordem dos signos imprimiu sua potencialidade sobre o real, fixando marcas, se não perenes, pelo
menos tão vigorosas para que ainda subsistiam hoje e as encontremos em nossas cidades; mais radical-
mente, na eminência de ver esgotada sua mensagem demonstrou assombrosa capacidade para rearticular
uma nova, sem por isso abandonar sua primazia hierárquica” (RAMA, 1985, p.33).

104 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015
ma técnico travam um conflito permanente entre o tempo dos atores hegemônicos
e dos atores não-hegemônicos (SANTOS, 1994). Entretanto, o Estado planifica o
tempo, reduzindo as diferenças, as repetições, as circularidades e particularidades, se
impondo como vetor do local e regional ao global.
O uso da terra, forma básica com a qual os homens se territorializam, desenvol-
vem atividades econômicas, implantam estruturas e sistemas de fixação acabam por
tender a homogeneidade, e sob estes aspectos o Tocantins, antigo “nortão goiano”,
consolida-se como um sertão misturado, em que suas diversas temporalidades, cria-
das pelos diversos atores e suas complexidades, velocidades, conflitos e intenciona-
lidades formam um território integrado ao sistema do capital.

Tocantins: um espaço mutifacetado pertencente ao capital

A expansão da fronteira está associada diretamente ao aumento da participação


governamental no processo de ocupação no interior do país. Este movimento refle-
tiu na legalização e implantação de projetos de colonização, priorizando um fluxo
determinado de migração e dando uma crescente complexidade à ocupação do es-
paço, com reprodução de relações diversas de trabalho.
Assim como observamos que há um processo de consolidação entre as refor-
mas de um poder de fato urbano no Brasil, a constituição do território tocantinense,
mesmo com os movimentos separatistas do início do século XIX8 e que ganharam
força na década de 1950 (tendo como marco o ano de 1956, em que foi lançado o
Movimento Pró-Criação do Estado do Tocantins, em Porto Nacional), não havia se
consolidado. Era necessário que não só a normatização sobre tal espaço fosse mais
flexível do que aquela já iniciada pelos planos de desenvolvimento da Amazônia ou
para integração nacional, mas que os poderes das elites locais e os grupos que lidera-
vam o movimento pela emancipação do Tocantins fossem rearranjados. A ocupação
territorial do Norte Goiano e a criação do Tocantins foram impulsionados pela Po-
lítica do Governo Vargas, a “Marcha para Oeste” e a construção da Belém-Brasília,
na tentativa de interiorizar o desenvolvimento capitalista no Brasil. (LIRA, 2011).
A dinamização de fluxos comerciais foi subsidiária da ocupação de terras, o que
possivelmente vem revelar que a finalidade geopolítica, expressão da valorização
política do espaço, parece prevalecer ante o aspecto econômico estrito senso da or-
8
O primeiro movimento separatista do Tocantins ocorreu em 1821, ainda quando a região era denominada
de São João de Duas Barracas, impulsionado pelos altos impostos e pouco investimento na região, que
transportava mercadorias do Vale Araguaia para o Pará. (BRASIL, 2001; LIRA, 2011).

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ganização territorial que inclui a região no circuito de trocas desiguais. Neste sentido,
a “estrutura oligárquica vem acompanhada da política de controle monopólico de
bens de produção, num contexto de altas taxas de analfabetismo, isolamento políti-
co-econômico, e burocratização dos recursos, que necessariamente perpassam o po-
der oligárquico” (EMMI, 1999, p.55). Era imprescindível quebrar o poder oligárqui-
co e permitir que a estrutura federativa estatal permeasse todo o território, de modo
que o capital estrangeiro atingisse a célula de acumulação primitiva na hinterlândia.
A organização do espaço centralizado e concentrado serve ao mesmo tempo
ao poder político e à produção material, otimizando seus ganhos. Essa centrali-
dade obedece ao modo de produção já preexistente, penetrando e subvertendo as
estruturas criadas no espaço para privilegiar um grupo hegemônico que agora se
apoia nas vias institucionais. É importante deixar claro que o que houve não foi um
rompimento político e sim uma adequação dos interesses do Estado nacional e da
oligarquia local para que pudessem caminhar juntos. No Tocantins, ainda aparecem
referências a esse poder local caracterizado por um controle paternalista, acompa-
nhado de traços de violência - cujas formas têm variado ao longo da história e se
manifestado por mecanismos que envolvem os níveis político, econômico e social.
O aumento intervencionista estatal foi possível com a reinvenção da Amazônia
Legal, implantando um centralismo administrativo na região a partir da Superin-
tendência do Plano de Valorização da Amazônia em 1953 e da SUDAM em 1965.
Os planos para a “Amazônia Tocantinense” na década de 1970 e 80 por meio da
SUDAM, POLOAMAZÔNIA (Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais
da Amazônia), SPEVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômico
da Amazônica) PROTERRA (Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo
à Agroindústria do Norte e Nordeste), PRODIAT (Projeto de Desenvolvimento
Integrado da Bacia do Araguaia-Tocantins), PRODECER, GETAT9 (Grupo Exe-
cutivo de Terras do Araguia-Tocantins) tiveram uma função mais ‘policiadora’ do
que integradora do território (LIRA, 2011).
Retoma-se o objetivo da expansão da fronteira agrícola: novos polos espaciais
de investimento e a integração dos mercados nacionais. Uma frente de expansão
maranhense se propagava no sentido norte do Tocantins, em progressivo movimen-
to em direção ao Pará, gerando uma crescente ocupação do norte deste território
recoberto à época pela mata de babaçu, dando espaço à rizicultura enquanto outra
9
Apesar de interligados pelos objetivos explicitados do avanço da fronteira na Amazônia, vale ressaltar
que planejamento de desenvolvimento e integração, visando a “recuperação” da economia da Bacia Ama-
zônica teve também como objetivo mapear as riquezas amazônicas, especialmente minerais, tal como
pode ser analisado no Projeto Carajás.

106 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015
corrente de ocupação rumava em direção ao sudeste tocantinense motivada pelos
garimpeiros maranhenses e piauienses (AJARA et. al, 1991).
A construção Belém-Brasília na década de 1960 repercutiu de imediato na inten-
sificação do fluxo de migrantes nas margens da rodovia que já vinham se deslocan-
do desde a década anterior, num movimento expansionista das frentes extrativista,
pastoril e agrícola, e ocupando de modo rarefeito a área do Tocantins-Araguaia. A
população aumentou de 328.486 em 1960 para 537.563 em 1970. Além disso, o cres-
cimento do número de cidades e dos aparatos de infra-estrutura e consumo também
levaram ao crescimento da população, que ia se modificando para uma população
majoritariamente urbana. Desde então, o Tocantins vem mantendo semelhantes ta-
xas de crescimento, chegando a uma população total de 1.478.164 em 2012 (IBGE,
2012). Mais do que o incremento populacional, a rodovia alterou, em grande parte,
o sentido de ‘espontâneo’ das frentes de expansão e a direção de ocupação do To-
cantins, que agora se aproximava da margem direita do rio. A migração não mais
ocorria como um extravasamento de atividades extensivas. Ao contrário, projetava
a privatização da terra e a mercantilização da economia regional direcionadas pelo
avanço da fronteira agrícola. Assim, a partir da década de 1970 a empresa agrícola se
cristaliza, já que o “governo considera impraticável a colonização fundamentada em
pequenos e médios proprietários frente à escala de investimentos e da organização
empresarial considerados para a rápida ocupação de uma área extensa como Ama-
zônia” (MARTINS, 1997, p.187-188). Estas empresas atraídas por incentivos fiscais
se estabelecem neste primeiro momento em especial na parte oeste, ao longo do
vale do Araguaia. Os empresários e pecuaristas desejavam ligar Santa Terezinha, no
Mato Grosso através da rodovia GO-262, à Belém-Brasília, na altura de Rosalândia
do Norte e em Goiás. Mais ao sul, a ilha do Bananal seria cortada por outra rodovia
em terras do Município de Formoso do Araguaia, em Mato Grosso, à transversal à
Belém-Brasília ao sul de Gurupi (BRASIL, 2001).
A separação do estado do Tocantins torna-se fundamental para a implemen-
tação do latifúndio e da empresa agrícola. Embora não seja objeto de análise, a se-
paração política-administrativa revelou que mais do que a expressão espontânea de
um anseio separatista de sua população empobrecida de origem nordestina baseada
por unidades de produção e padrões de interação de pequena escala que habita o
novo estado, a emancipação serviu à legitimação das elites regionais constituídas em
grande parte por goianos e mineiros ligados a interesses agropecuaristas (AJARA et.
al., 1991, FIRMINO et al, 2009).

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015 107
A criação da CONORTE – Comissão de Estudo dos Problemas do Norte Goia-
no, uma sociedade civil sem fins lucrativos criada em 1981 por um grupo elitista de
burocratas e empresários nortenses que tinham suas atividades nas capitais Goiânia
e Brasília foi fundamental para a emancipação do estado. O nascimento do estado de
Tocantins garantiria à elite local do norte goiano espaço no cenário nacional frente
ao estado de Goiás, especialmente àquela do sul do estado representada por Goiâ-
nia, que dominava a estrutura de poder e deixava o “nortão goiano” “esquecido”.
A CONORTE, marco histórico do ideário separatista, tinha como objetivo técnico
diagnosticar o potencial político e econômico da região. O argumento central era de
que a economia tocantinense “não se encontrava isolada da economia nacional, mas
a ela estava estreitamente vinculada, sobretudo enquanto fornecedora de fatores de
produção (mão-de-obra e capital)” (OLIVEIRA, 1998, p. 16). Além disso, na “Carta
ao Tocantins” a CONORTE aponta:

O Norte Goiano está consciente de que nenhum desenvolvimento é alcançado se a sua


busca não se afirmar na trilogia infra-estrutural: ENERGIA E ESTRADAS, convergindo-
-se como ponto de apoio à EXPANSÃO AGROPASTORIAL.[...] Agilizar a regularização
fundiária constitui assim, ação imediata, que o Norte Goiano reclama dos órgãos governa-
mentais. E sugere, como medida mais urgente, que se acelerem os processos discrimina-
tórios, sem perder de vista também as composições, como instrumentos indispensáveis à
incorporação de novas áreas agricultáveis ao sistema produtivo (CONORTE, 1982).

Forjada as raízes históricas e as motivações separatistas a partir de tradições in-


ventadas, nacionalismo e representação coletiva, era necessário “dividir para somar”,
garantindo o poder da bancada política do sul goiano e abrindo o território do norte
para explorar seu potencial econômico.
A elite que pertence hoje ao Tocantins venceu o embate da emancipação, e
desde então vem viabilizando o estado política e economicamente, oferecendo con-
dições políticas e de infraestrutura para a instalação do capital. Para tanto, organiza
uma legislação favorável às grandes empresas, especialmente no setor agropecuário
moderno. Assim como descrito por Becker (1982), o espaço tocantinense se reor-
ganiza a partir de uma lógica de colonização agrícola, porém ocupada por grandes
empresas; uma área de interesse nacional, mas ocupada por multinacionais; área de
expansão de pastos, mas de intenso processo de urbanização.

108 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015
Considerações Finais

A fronteira agrícola, a partir dos elementos discutidos anteriormente, reflete a


(re)produção de um espaço geográfico através de incorporação de terras sob a lógica
dos sujeitos hegemônicos do processo de reprodução do capital frente aos espaços
marginalizados.
Deste modo, a partir da expansão da frente pioneira em um espaço que se apre-
senta “receptivo” aos novos fenômenos da urbanização, o Tocantins é visto como
um espaço com pouca rugosidade (SANTOS, 2006), poucos investimentos e infra-
estruturas que pudessem dificultar a implementação de uma economia moderna. O
novo urbano, tendo como “carro-chefe” a agricultura e suas inovações técnicas, se
expande rapidamente pelo território a partir das condições criadas no meio técnico-
-científico-informacional10. É a agricultura moderna que desencadeia uma nova etapa
de urbanização na hinterlândia11, modificando as relações espaciais, ampliando as
possibilidades de comunicação e circulação no mundo através de fluxos e fixos que
aceleram o tempo, ampliando as escalas de relações e configurando espaços-tempos
diferenciados (SANTOS, 1993).
Nestas condições, as diversas frações do espaço estão ao alcance dos diversos
capitais segundo hierarquizações e lógicas diversas na busca da eficácia do lucro com
o auxílio das tecnologias e do trabalho. Quanto maior a diferença entre os tempos de
produção e de trabalho, menor é a taxa de lucro da atividade, acentuando a necessi-
10
“Meio técnico-científico-informacional é o meio geográfico do período atual, onde os objetos mais proe-
minentes são elaborados a partir dos mandamentos da ciência e se servem de uma técnica informacional da
qual lhes vem o altocoeficiente de intencionalidade com que servem às diversas modalidades e às diversas
etapas da produção” (SANTOS, 2006, p.157).
11
Não se pode perder de vista que de forma geral que “o desenvolvimento da agricultura e da indústria
“periférica” não apenas modificou a dimensão dos fluxos de comércio, mas transformou as estruturas
produtivas das diversas regiões, resultando em maior diferenciação do espaço nacional, inclusive com
aumento da heterogeneidade interna às regiões e reforço de certas “especializações”. Este fenômeno foi
intensificado na última década e meia, em razão dos distintos impactos da crise e do surgimento de peque-
nas “ilhas” de prosperidade, dentro de um contexto de estagnação. Esta crescente “especialização” foi a
contrapartida do processo de integração comandado a partir de São Paulo, uma vez que estavam bloquea-
das as possibilidades de industrializações autônomas, capazes de resultar estruturas produtivas à imagem e
semelhança da indústria paulista” (PACHECO, 1996, p.130). Santos, em sua obra “Economia Espacial”
(1979) sob um prisma um pouco diferente também aponta: “na escala nacional a estrutura centro-periferia
também aparece, desde as primeiras etapas do processo de industrialização, como uma verdadeira relação
“colonial”: a periferia contribui mais para o crescimento do polo do que dele recebe de volta. A tendência
secular dos termos de trocas inter-regionais sempre lhe é desfavorável, e ela permanece como produtora
de bens primários, sobretudo agrícolas. Esta periferia só é capaz de acolher indústrias de transformação
de matérias primas, e sua importância relativa na atividade industrial do país tende a baixar à medida que
este se desenvolve” (p.77).

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015 109
dade da simultaneidade entre a ordem (global) e a ação em espaços distantes (local).
Sobre a análise da evolução da agricultura na sociedade capitalista, Kautsky
(1986) aponta dois pilares: “a propriedade privada com referência à terra e o caráter
mercantil dos produtos agrícolas” (p.57). Do ponto de vista geográfico, a fronteira
expressa a expansão agrícola em área, a concentração fundiária, a transformação das
relações de produção, o êxodo rural, a modernização da base técnico-produtiva, a
implantação da rede de fixos (armazéns, indústrias, latifúndios, centros de pesquisa,
bancos, cidades, empresas, distribuidoras, portos, etc) e de fluxos de informação,
capitais, mercadorias e mão-de-obra, a integração espacial em diversas escalas geo-
gráficas, a extensão da fronteira urbano-industrial de um país, os conflitos fundiários
(SILVA, 2006). A teoria da expansão da fronteira é um desdobramento da expansão
territorial do capital (MARTINS, 1996).
Em suas diversas acepções, a fronteira sempre pressupõe movimento, um em-
bate de forças entre diferentes formas de reprodução da vida. A fronteira agrícola,
a partir dos elementos discutidos anteriormente, reflete a reprodução de um espaço
geográfico através de incorporação de terras sob a lógica dos sujeitos hegemônicos
do processo de reprodução do capital frente aos espaços da hinterlândia.
As mudanças da relação com a terra transformam o sertão, modificam as “terras
devolutas” do Estado em grandes propriedades privadas. Com a expansão de um
sistema viário e projetos de desenvolvimento o Estado auxilia a entrada do capital
nacional e estrangeiro no tanto na Amazônia quanto no território tocantinense. Vale
lembrar que a própria construção do Tocantins está calcada em acordos políticos das
elites locais para a manutenção do latifúndio, para a permanência dos privilégios de
classe e do avanço capitalista no campo.

Recebido em outubro de 2014, aprovado em dezembro de 2014.

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112 Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 99-112, referência 2014. Publicação 2015
Andyara Maria G. P. Schimin *
Ângelo Munhoz **

RESENHA

PRETI, O. (Org.). Educação a distância: sobre discursos e práticas. 2. ed. Brasília: Liber
Livro Editora, 2012. 192 p.

Educação a distância: sobre discursos e práticas

O organizador, Oreste Preti, é Mestre em Educação, professor do Departamen-


to de Teorias e Fundamentos da Educação do Instituto de Educação da Universi-
dade Federal de Mato Grosso – UFMT e Coordenador do curso de Pedagogia na
modalidade Licenciatura para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental do Núcleo
de Educação Aberta e a Distância (Nead) da UFMT.
O livro é uma produção conjunta com reflexões, pesquisas e práticas educativas
inovadoras valendo-se da modalidade a distância. A obra é dividida em duas partes.
A primeira, com o tema, Formação de Professores, composto de dois artigos e a segunda,
Práticas Discursivas, em quatro artigos.
No prefácio à 1ª edição, Onilza Martins, Doutora em Administração da Educa-
ção, Coordenadora Geral do Cead/Facinter (Faculdade Internacional de Curitiba),
destaca o Ensino a Distância, a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20/12/96), não apenas como instrumento de
maior democratização ao acesso às universidades, mas pelas discussões que provoca
sobre novos paradigmas educacionais.

* Mestre em Administração, na área de Gestão e Comportamento Organizacional (UNIEURO), Graduada


em Pedagogia e História pela Universidade de Brasília, com especialização em Administração de Ensino
pela Universidade de Brasília e especialista em Administração de Recursos Humanos pela Fundação Ge-
túlio Vargas de Brasília.
** Especialização em Educação a Distância (UNB), Graduação em Educação Física - Faculdade Dom
Bosco de Educação Física.

Textos&Debates, Boa Vista, n.26, p. 113-117, referência 2014. Publicação 2015 113
A formação de professores é o tema inicial de discussão no livro, com dois
artigos. O primeiro, A formação do professor na modalidade a distância: (dez) construindo
metanarrativas e metáforas, de Oreste Preti discute a (re) qualificação do trabalhador na
educação; a Educação a Distância - EaD como uma nova prática ou um novo dis-
curso; e descreve a experiência do Núcleo de Educação Aberta e a Distância (Nead)
da Universidade Federal de Mato Groso - UFMT. O autor esquadrinha a experiência
na UFMT que em construção pelo Nead permitiu (re)construir práticas e (re)signifi-
car discursos sobre a formação do professor e a modalidade a distância que trazem
no seu bojo o amadurecimento de propostas formativas ensaiadas ao longo de três
décadas e são os resultados de possibilidades construídas coletivamente em parce-
ria, que assumiram características nacionais e locais. Ressalta que esses movimentos
buscam a consolidação de novos valores, a construção de novos sujeitos, de atores e
autores de seu destino, de uma sociedade mais solidária e democrática. Finalizando
o seu discurso, conclui que se deve recuperar os vínculos entre educação, trabalho,
produção, vida cotidiana e existência. Enaltece que tal vínculo é onde está o educa-
tivo e o formativo, não importando se na modalidade presencial ou a distância.
No segundo artigo do tema formação de professores, Educação a distância e a
formação de professores: Possibilidades de mudança paradigmática, a autora Maria Neder,
Doutora em Educação e professora do Departamento de Teorias e Fundamentos
da Educação, do Instituto de Educação da UFMT afirma que o essencial da EaD
está não somente na sua adjetivação (a distância), mas também naquilo que lhe é
susbstantivo (educação). Assegura que antes de se pensar na organização do projeto
pedagógico, se presencial, semipresencial, ou a distância, é necessário pensar sobre
o significado conferido à educação. Neder percebe que ao pensar em EaD deve-
-se pensar antes em educação, como prática social que contribui para construção
de significados, reforçando e/ou conformando interesses sociais e políticos, refle-
tindo nas questões contemporâneas como violência, discriminação, desigualdade,
exclusão, e na busca de ações práticas que contribuam na formação de uma ética de
convivência mais solidária.
A segunda parte do livro apresenta quatro artigos sobre práticas discursivas. O
primeiro, Educação a distância como processo semiodiscursivo, de Lúcia Possari, Doutora
em Comunicação e Semiótica, professora do Departamento de Comunicação Social
e dos mestrados em Linguagem e em Estudos de Linguagem do Instituto de Letras
da UFMT e do mestrado em Educação da Universidade de Cuiabá (Unic), afirma
que não se prescinde da presença de um corpo para se fazer significar. Relata sobre
dois tipos de leitores, o real que parafraseia, e o virtual que avança e permite que sua

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história de leituras amplie os sentidos: o polissêmico Possari, nos diz que na EaD
permite-se a construção de aprendizagem cooperativa, com trocas de idéias, imagens
e experiências, em redes com textos plurais que propiciam a participação de sujeitos
diferentes, com expectativas e níveis culturais diversos. Ressalta que essa interação se
dá por meio de textos-signos multifacetados. Concebe a autora que o sujeito-leitor
en- “reda” -se para a construção do conhecimento, expandindo sua memória discur-
siva e sua história de leituras, integrando as redes de conhecimento e tornando-se
mais adequado às respostas esperadas.
O segundo artigo sobre práticas discursivas – A “autonomia” do estudante na educa-
ção a distância: entre concepções, desejos, normatizações e práticas, elaborado por Oreste Preti,
versa sobre a construção da autonomia do estudante e a experiência do Núcleo de
Educação Aberta e a Distância (Nead/UFMT) que oferece pistas para que o discur-
so sobre a autonomia do estudante em cursos a distância, se efetive em práticas de
autonomia. Preti enfatiza que um dos objetivos principais das instituições de EaD é
formar estudantes autônomos, não no sentido de autonomização ou de autodidatis-
mo, mas fazer da autonomia uma construção pessoal e coletiva. O autor interroga:
“Mas como conciliar a individualidade, a diversidade, com um projeto político-pedagógico institu-
cinal, coletivo?” Segundo o autor, a experiência do curso de Pedagogia a distância da
UFMT oferece caminhos para compreender as possibilidades da EaD no processo
de contrução da aprendizagem autônoma do estudante. Preti arremata afirmando
que cabe aos educadores envolvidos em cursos a distância, dar conta de sua con-
cretude, de sua existência, apesar das limitações históricas, institucionais e pessoais.
No terceiro artigo sobre práticas discursivas, A avaliação e a avaliação na educação
a distância: algumas notas para reflexão, desenvolvido por Kátia Alonso, Doutora em
Educação, professora do Departamento de Ensino e Organização Escolar e Coor-
denadora de Educação Aberta e a Distância (Nead/UFMT), afirma que a avaliação é
parte integrante da ação educativa, pois se evidencia quando se desenvolve o proces-
so de ensino/aprendizagem, podendo, se necessário, redirecioná-lo ou reelaborá-lo.
Alonso compreende que toda avaliação acontece a partir de determinados referen-
ciais, e seus resultados devem ser confrontados com critérios estabelecidos, “juizos
de valor”. Alonso, também, certifica que o desafio da avaliação em EaD está em
desvenciliar-se da relação direta professor/aluno, uma vez que o processo ensino/
aprendizagem pode ser mediado por diversos meios tecnológicos. Assim, segundo a
autora, esses elementos formam novos ambientes de aprendizagem, saindo da sala
de aula presencial. Assegura que o processo avaliativo será definido pelos projetos

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educativos e os objetivos de formação a serem atingidos, determinando seus crité-
rios e instrumentos.
O quarto e último artigo sobre práticas discursivas, Os desafios do sistema de ges-
tão em EaD, de Onilza Martins atesta que as propostas de EaD devem sediar suas
organizações, estruturas e processos de gestão de sistemas, em espaços físicos de
acesso transparente aos estudantes e à sociedade. Releva que é necessário garantir,
desde o início, a entrega dos materiais aos alunos e todas informações necessárias
para o andamento do curso e que pesquisas tem assinalado preocupações dos ges-
tores quanto ao custo-benefício em relação aos resultados alcançados pelos alunos
na aprendizagem de qualidade, a diversidade de cursos, causa provável de evasões
e a construção de estratégias para superar impasses encontrados pelos estudantes.
Encerra sua percepção apontando a importância em reconhecer que o impacto das
tecnologias digitais na sociedade e na cultura que vivemos, reacende os debates tanto
nos sistemas de ensino a distância, como no presencial.
O livro busca apontar a EaD como uma modalidade adequada à formação de
professores; que dentre os seus benefícios, contribui para a expansão e consolida-
ção da educação continuada de seus profissionais, aspecto importante para o bom
desempenho docente. Os autores em sua maioria oriundos da Universidade Federal
de Mato Grosso relatam em seus artigos experiências vividas naquela instituição
de ensino. Por outro lado, eles preocupam-se em identificar elementos que possam
facilitar a aplicação da EaD nas mais diversas instituições de ensino, uma vez que
a adequação a realidade do contexto social é fortemente mencionado por todos. A
provocação no sentido de pensar diferente sobre planejamento político-pedagógico,
formação de professores, construção do conhecimento e avaliação foi uma constan-
te em todos os artigos do livro.
A obra apresenta ao longo de seus artigos questões para reflexão e descrição de
práticas educativas em EaD que são indispensáveis aos profissionais que trabalham
com educação, não só na modalidade a distância como na presencial. Entretanto, a
leitura deverá ser feita de forma crítica e contextual evitando a panacéia para solução
de todos os males da educação. Com um “olhar” mais perquirido, questões impor-
tantes ficaram ausentes na discussão, como: problemas de evasão, qualidade dos
cursos, avaliação de aprendizagem, métodos de estudo utilizados pelos estudantes,
e a importância do sistema de gestão em EaD. Essa última mesmo tendo um artigo
sobre o assunto, não foi suficiente tendo em vista que não houve dados de pesquisas
e exemplos sobre o tema.

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De qualquer forma, a obra agrega conhecimento colaborativo à Educação quan-
do propõe a adoção da EaD na formação de professores e nas atividades de ensino,
expondo as possibilidades e dificuldades encontradas para a integração das tecnolo-
gias de informação e comunicação no caminho até a sala de aula, propondo ações
reflexivas sobre quais serão as transformações necessárias no pensamento pedagó-
gico, nas políticas educacionais e na prática docente para a melhoria da educação
usufruindo-se da modalidade a distância.

Recebido em outubro de 2014, aprovado em dezembro de 2014.

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