Versão Final - Cristiane-2
Versão Final - Cristiane-2
Versão Final - Cristiane-2
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
Novo Hamburgo
2023
CRISTIANE FATIMA LAWALL
Novo Hamburgo
2023
CRISTIANE FATIMA LAWALL
Aprovada por:
______________________________
Profa. Dra. Laura Marcela Ribero Rueda (orientadora)
Universidade Feevale
______________________________
Prof. Dr. Rodrigo Perla Martins (coorientador)
Universidade Feevale
______________________________
Prof. Dr. Rodrigo Montero
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
______________________________
Prof. Dr. Walter Karwatzki Chagas Maffazzioli
Universidade Feevale
Agradeço às minhas filhas, Victória, Natália e Rafaela, pela paciência e apoio durante
o tempo desta pesquisa, pelo amor que nos sustenta a cada dia, e impulsiona a seguirmos
sempre em frente.
Agradeço muito à professora Laura, por sua sensibilidade, e olhar atento, orientando
meu trabalho desde sua vaga ideia inicial.
Ao professor Rodrigo Perla, que, sob a luz do olhar de historiador, orientou-me e
acompanhou pacientemente nesta odisseia, de abordar um assunto tão complexo e sensível
quanto urgente que vai além de minha área de conhecimento, imagino que tenha lhe dado
alguns sustos.
Ao professor Rodrigo Montero, pelo compartilhamento de suas observações e
reflexões sobre esta traumática experiência que compartilhamos em nossos países
possibilitando-me uma mais ampla compreensão das complexidades que envolvem o tema.
Aos artistas Tchello D’Barros, Hélio Fervenza e Manoela Cavalinho que generosa e
prontamente responderam às minhas perguntas sobre seus trabalhos, respostas estas, que
iluminaram a leitura e análise das obras aqui apresentadas.
Agradeço aos professores e colegas de curso, pelos aprendizados compartilhados e
diálogos cheios de emoção. Obrigada.
Curso realizado com o apoio financeiro Proppex – Universidade Feevale.
“Nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria, quando
a arte não precisava de justificativa, quando ninguém perguntava o que uma obra de arte
dizia porque sabia (ou pensava que sabia) o que ela realizava.”
In this research we present the reading and analysis of artistic practices that address
the violence of the Brazilian civil-military dictatorship (1964 to 1985), characterized at that
time by denunciation and testimony of the social and political scenario, as well as works made
more recently as an act of countermeasure to the erasure of the memory of violence. Within
this scope, the works analyzed are characterized by the interrelationships they form between
text and visual elements. In Brazil, the transition policies of governments after the
civil-military dictatorship contribute to the forgetting of trauma, both collective and
individual, in this sense we believe it is relevant to address the construction and maintenance
of these memories, such an approach is guided by authors Maurice Halbwachs and Michael
Pollack. The works analyzed build a timeline that demonstrates the continuity of violence,
starting with works by Artur Barrio and Carlos Zílio, produced between 1967 and 1974,
continuing through the visual poem by Tchello d'Barros, made in the year 2021 and the
productions of Hélio Fervenza, 2021 and Manoela Cavalinho from the years 2019 to 2021.
Using as methodology the reading and analysis of the works guided by the authors: Ligia
Canongia (2005), Frederico Morais (1970), Artur Freitas (2007) Jan Mukarovsky (1997),
Jacques Rancière (2009, 2012) and Ricardo Basbaum (2007).
1 INTRODUÇÃO 10
2 DO PARTICULAR AO COMUM: A ARTE COMO ATO DE CONTRAMEDIDA AO
APAGAMENTO DA MEMÓRIA DE VIOLÊNCIA 13
2.1 MEMÓRIA E SOCIEDADE 13
2.2 CONSTRUÇÃO DA DESMEMÓRIA SOCIAL: COMO ELES AGEM 16
2.3 A VISIBILIDADE DA IMAGEM AO NÃO APAGAMENTO DA MEMÓRIA DE
VIOLÊNCIA 21
3 O QUE PODE A ARTE CONTRA A NORMALIZAÇÃO E O ESQUECIMENTO DA
VIOLÊNCIA 26
3.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE E LEITURA DAS OBRAS 26
3.2 A ÉTICA DA ESTÉTICA NA OBRA DE ARTUR BARRIO 29
3.2.1 Artur Barrio: transgressor e revolucionário 29
3.2.2 Trouxas ensanguentadas: a visualidade da violência 34
3.2.3 A apropriação da Palavra na obra de Barrio 41
3.3 CARLOS ZÍLIO: ARTE-MILITÂNCIA-TESTEMUNHO 43
3.3.1 Arte e militância política 43
3.3.2 Luta e desaparecimentos 47
3.3.3 Onde enterraram nossos mortos 53
4 COMO NAQUELE TEMPO: ARTE E POLÍTICA NA PRODUÇÃO DAS ARTES
VISUAIS HOJE 57
4.1 A VISUALIDADE E A PALAVRA NA POESIA DE TCHELLO D’BARROS 58
4.1.1 A infância entre o desenho e a letra 58
4.1.2 A sonoridade da imagem 59
4.2 HÉLIO FERVENZA: OS (DES) ENTENDIMENTOS DA LINGUAGEM 62
4.2.1 Um artista em diálogo com o espaço 63
4.2.2 Da subversão do signo à apreensão do sentido 63
4.3 MANOELA CAVALINHO: POR UM OUTRO OLHAR 71
4.3.1 Esqueletos no guarda-roupa: da memória da infância à impossibilidade de
insurgência ao passado 71
4.3.2 Epigramas: Uma topografia memorialística 74
4.3.3 Lugar Nenhum - Onofre, José, Enrique, Joel, Daniel e Víctor 78
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 81
REFERÊNCIAS 86
APÊNDICES 90
11
1 INTRODUÇÃO
refletimos sobre as escolhas do artista. No Brasil, cabe reforçar, a política de transição que
segue após o término da ditadura civil-militar é marcada por tentativas de apagamento dos
crimes cometidos. Dessa maneira, esta pesquisa se justifica também por se apresentar como
uma tentativa de dar visibilidade a obras que problematizam a questão.
O texto está organizado em quatro capítulos. O primeiro aborda a construção da
memória social e individual, trazendo a compreensão sobre como são construídas as
memórias de grupos e indivíduos dentro de uma sociedade. As bases teóricas para tanto são os
autores Maurice Halbwachs (2006), Michael Pollak (1989), que conduzem a percepção de
políticas de desmemória utilizadas como práticas implementadas pelo terror de Estado.
Buscamos, ainda, compreender a contextualização do golpe que estabeleceu a ditadura
civil-militar de 1964, como foi instaurado, bem como a forma pela qual foi retratado e
divulgado.
No segundo capítulo, apresentamos a obra de Artur Barrio, realizada no ano de 1970.
O artista luso-brasileiro incorporou, em sua produção, meios e suportes distintos, na tentativa
de sensibilização quanto à normalização da violência. Ainda nesse capítulo, analisamos dois
trabalhos de Carlos Zílio, de 1967 e 1974, realizados anterior e posteriormente à sua prisão
como militante político. Para refletir sobre seus elementos simbólicos, usamos outras criações
dos artistas nos quais alguns signos se repetem, a fim de melhor compreender sua poética.
No capítulo três, a pesquisa apresenta práticas artísticas que reverberam a violência de
Estado no Brasil em discussão, trazendo a análise da poesia visual do artista Tchello d’Barros
de 2001. O poema reflete o impacto que a atmosfera violenta causa ainda em sua memória.
Neste mesmo capítulo, analisamos o trabalho de Hélio Fervenza apresentado em Berlim no
ano de 2021, que reflete acerca das dicotomias de entendimento de sentidos da linguagem que
atravessam o social e político na atualidade. Apresentamos, ainda na referida seção, as séries
da artista Manoela Cavalinho1 desenvolvidas entre os anos de 2019 e 2021. Nessa produção,
observamos a tentativa de materialidade do testemunho da tortura, da identificação de locais
comuns, como cenários do horror e, por fim, o resgate da memória de presos e desaparecidos
políticos. As práticas artísticas apresentadas configuram-se, juntas, como o eixo central deste
trabalho. Elas foram escolhidas por sua multiplicidade de meios expressivos e delas partem as
reflexões que completam sua melhor compreensão.
Nas considerações finais temos o desenlace do caminho interdisciplinar, percorrido
neste processo investigativo, que perfaz aspectos históricos, políticos, sociais e simbólicos
1
Manoela Cavalinho é o nome artístico de Manoela Farias Nogueira.
13
cotejados com as análises das produções artísticas. Nessa seção do trabalho, buscamos reunir
os elementos que encontramos durante a pesquisa, e que se inter-relacionam de forma natural,
os aspectos formais observados nas obras, e seus aspectos conceituais, que são melhor
compreendidos à luz de contribuições dos autores que buscamos em campos teóricos que
extrapolam a área das artes.
14
“Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil”
(VERISSIMO, 2014, p. 7)
Para a autora Susan Sontag “Mostrar um inferno, não significa, está claro, dizer algo
sobre como tirar as pessoas do inferno” (2003, p.95), neste sentido, mostrar a violência pela
qual passaram tantas pessoas, não quer dizer que possamos curar tal trauma, ou a dor causada
pela violência, no entanto, nos parece uma ação que vai no sentido de ampliar a consciência
sobre sua existência e as feridas que deixa em uma sociedade.
Ainda citando Sontag (2003), quando fala da fotografia de guerra, captar uma imagem,
um registro do um ato violento ou dos sentimentos que atravessam uma sociedade, em
determinados momentos, e materializá-los em uma ação artística, à nosso ver, incorre em uma
tentativa de tornar tal violência um elemento inevitável do conhecimento desta sociedade
sobre ela mesma.
Para Enrique Padrós (2001) falar de memória implica em relacionar-se com o passado,
estabelecer uma relação entre o esquecimento ou a preservação, o autor ainda alerta que, a
sonegação da informação, ou da experiência de contato com algo que a recoloque inserida no
contexto social, a imposição do esquecimento, implica em mecanismos que configuram a
tentativa de seu apagamento.
Neste capítulo buscamos compreender como em um grupo social, sob o qual incide
um ou mais eventos traumáticos, formam-se e se sustentam ou não, as memórias de eventos
traumáticos, e ainda quais mecanismos podem ser usados na tentativa de apagamento destas
memórias.
Constar como sujeito vítima era compor uma parte da minoria violentada, fazendo
mais sentido que as pessoas buscassem pontos de identificação com a maior parcela dos
brasileiros, que assistiram à ditadura pela televisão – ou das sacadas e janelas de seus
apartamentos. As lembranças traumatizantes, lembranças que esperam o momento propício
para serem expressas, ficaram com as vítimas e suas famílias (POLLAK, 1989).
16
A memória que resiste é a que está em primeiro plano para um grupo de pessoas.
Assim, as experiências que envolvem um maior número de membros sociais, resultado de
suas próprias experiências ou de sujeitos de suas relações mais próximas, têm relevo. As
memórias que, por sua vez, dizem respeito a um pequeno grupo ou só um membro dele
passam para um segundo plano (HALBWACHS, 2006).
A memória individual, por seu turno, quando entra em concordância com sentimentos
e paixões inspirados por um grupo, torna-se difícil de identificar como pertencente a um
grupo, e não nossas. Ainda de acordo com o autor, “uma corrente de pensamento social é
ordinariamente tão invisível quanto a atmosfera que respiramos, somente reconhecemos sua
existência na vida normal, quando a ela resistimos” (HALBWACHS, 2006, p. 39). Ele
complementa que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória do grupo e,
assim, varia de acordo com o lugar em que o sujeito se encontra.
Nossas lembranças retêm-se no quadro pessoal, formando parte de uma coletividade
são considerados somente os aspectos que nos interessam. Nesse sentido, podemos pensar que
não interessa a ninguém lembrar de uma violência que ele mesmo não tenha sofrido.
As memórias coletivas e individuais se entrecruzam, como já observado. Importante
destacar, contudo, que a individual pode se apoiar e fundir à memória coletiva. Assim, pode
seguir seu próprio curso, incorporando e assimilando parte do todo. No entanto, a memória
coletiva acaba por envolvê-las. Os fatos sociais que ocupam um lugar na memória de uma
nação para quem não a viveu, é construída por memórias emprestadas.
Em um determinado tempo e espaço, constrói-se uma história coletiva, que deixa
traços que marcam o modo de pensar e sentir de uma geração e das próximas. Esses traços se
mantêm conservados inconscientemente e são reproduzidos, frequentemente, de modo
imperceptível. À guisa de exemplo, destacamos que basta concentrar a atenção para perceber
que os costumes que hoje cultivamos foram construídos sobre antigas camadas de
experiências.
Como afirma Halbwachs (2006), não existe uma memória universal. Toda memória
coletiva tem por suporte um grupo de pessoas que está limitado em um determinado espaço
geográfico e temporal. Sendo assim, não podemos concentrar um único quadro senão
desligando da memória dos grupos que dele guardam a lembrança de memórias coletivas
múltiplas.
Para Walter Benjamin (1940 apud GAGNEBIN, 2006, p. 40), não esquecer dos
mortos, dos vencidos, não calar, mais uma vez, suas vozes — isto é, cumprir uma exigência
de transmissão e de escritura. Para a autora, rememorar torna-se imprescindível, não para a
17
revisitá-lo. Essa sensação, no entanto, difere do sentimento despertado pela arte, que tira a
coisa do lugar comum, dando-lhe destaque. Isso causa desconforto ao impedir que dores
passem despercebidas, como uma luta contra a normalização do que não é normal.
Governos autoritários costumam usar de deslocamentos de sentido na transição
política, os quais cooperaram, no que tange aos países analisados pela referida autora, para a
construção de uma desmemória acerca dos fatos. Um deles seria a subtração da militância,
que confere às ações de forças armadas caráter de revolução. Outro refere-se à configuração
da construção de uma representação da existência real de uma guerra civil, na qual haveria
pressuposta equidade de entre os adversários. Ainda, há uma ideia de que a sociedade nunca
ofereceu apoio ou legitimou o regime militar (BAUER, 2014).
A Lei de Anistia, que iniciou plano de transição do governo militar para a abertura
política, absolveu sujeitos considerados “culpados” pelo regime – leia-se: os cidadãos que se
opuseram ao regime, artistas que protestaram, os presos, torturados. No entanto, perdoou
também os torturadores, perseguidores e assassinos. Especialmente no Brasil, o cenário que
antecedeu o golpe civil-militar contou, ainda, com o apoio da imprensa. Esta, ao tomar ciência
e se tornar vítima da censura, aos poucos, mudou seu discurso, mas não agiu no sentido de
esclarecer os fatos, conforme Juremi Machado da Silva (2014):
Diz-se que no Brasil tudo termina em pizza. Especialmente os casos que deveriam
sair do forno como prato feito para uma mudança de imaginário. Tudo termina em
pizza e em bola rolando. Aquilo que não se pode alterar vira bola no chão. Afinal,
somos o país do futebol carnavalizado e do carnaval em ritmo de dribles sinuosos
(SILVA, 2014, p. 141).
Os “cadáveres insepultos”, como cita Carlos Fico (2004), continuam nos assombrando.
Dessa maneira, a saída “à brasileira” do regime ditatorial nos deixou à mercê de um fantasma,
que parece assombrar a sociedade contemporânea. A Lei de Anistia buscava uma
reconciliação entre Estado e sociedade. Trata-se, no entanto, de uma reconciliação extorquida,
baseada no esquecimento (BAUER, 2014). Ela se deu mais no sentido de anistiar quem atuou
em nome da violência do que perdoar os “pecados” de suas vítimas, mantendo, assim,
operante o medo como forma de dominação política.
Votada em 28 de agosto de 1979, no governo do General Figueiredo, a Lei de Anistia,
promulgada em agosto de 1979, iniciou o processo de abertura política, concedeu o perdão
aos torturados e aos torturadores, propondo o esquecimento recíproco. A esse respeito,
chamamos atenção para o seguinte: “Eu não quero perdão porque perdão pressupõe
arrependimento e eu não estou pedindo a eles que se arrependam até de pegar em armas
19
contra nós. Eu apenas quero que haja esquecimento recíproco” (BAUER, 2014, p. 26).
Compreendemos, assim, que a continuidade de políticas brasileiras perpetradas pela ideologia
da reconciliação age no sentido de apagamento da memória e protelação da reparação e
justiça às vítimas da ditadura civil-militar instaurada no Brasil entre os anos de 1964 e 1985.
Segundo Halbwachs (2006), é impossível conceber os problemas da identificação e
localização da memória sem nos apoiarmos nos quadros sociais reais que servem de
referência. Nesse sentido, a construção da memória sobre as vítimas da ditadura civil-militar
precede o esclarecimento dos fatos ocorridos.
De acordo com o autor, todas as memórias que nascem dentro de um grupo apoiam-se
umas às outras. Cada membro é definido por seu lugar e a duração de tal memória limita-se à
força das coisas, na duração do grupo, e se reforçam no caso de haver pontos de contato com
outros pequenos grupos, a quem também interesse determinado fato (HALBWACHS, 2006).
Considerando que o nível da recordação apoia-se também no nível de engajamento do sujeito
com o fato, para uma maioria, influenciada pela promessa do país do futuro, a memória de
uma minoria que sonha com justiça social pode não encontrar pontos de apoio suficientes para
sustentar-se sozinha no percurso que a história faz entre jogos de poder.
Ainda segundo Halbwachs (2006), é necessário que a memória daquele determinado
sujeito continue concordando com a memória do grupo para que possa encontrá-la. Ademais,
complementa o autor:
Que me importa que os outros ainda estejam dominados por um sentimento que eu
experimentava com eles outrora, e que não experimento hoje mais? Não posso mais
despertá-lo em mim, porque, há muito tempo, não há mais nada em comum entre
meus antigos companheiros e eu. Não é culpa nem da minha memória nem da deles.
Porém uma memória coletiva mais ampla, que compreendia ao mesmo tempo a
minha e a deles desapareceu (HALBWACHS, 2006, p. 34).
Nesse sentido, há pessoas às quais interessa apenas o presente. Assim, suas ligações e
interesses com os quais estiveram envolvidas no passado, e com as quais não existe mais uma
ligação, passam a pertencer a um conjunto fechado de valores. Isso acaba influenciando nossa
memória acerca de determinado evento (HALBWACHS, 2006).
Quando falamos em esquecimentos, é preciso salientar que não se trata, no caso deste
texto, de um esquecimento voluntário ou natural, e sim de esquecimento imposto. O
esclarecimento e a justiça, nessa ordem, interessam somente a uma minoria que foi
diretamente afetada e ainda sofre as ausências e traumas causados pelos recursos violentos e
fatais empregados na ditadura civil-militar. A esse respeito, vale observar: "A organização das
20
lembranças se articula igualmente com a vontade de denunciar aqueles aos quais se atribui a
maior responsabilidade pelas afrontas sofridas” (HALBWACHS, 2006, p. 8).
A ausência de políticas de memória e reparação, durante os governos transicionais,
configuraram as políticas de desmemória e esquecimento como características desse período
(BAUER 2014, p. 134). Coube às famílias das vítimas o ônus da prova sobre a
responsabilidade do Estado nas mortes e nos desaparecimentos. Ainda segundo a referida
autora, não devemos considerar vítimas somente os torturados, mortos ou os desaparecidos.
Em sua visão, é imprescindível estender essa condição a toda uma sociedade a quem foi
imposto o limite de viver (ou morrer) em um regime autoritário. O esquecimento imposto pela
Lei de Anistia configura, como sugere Irene Cardoso, um inexistencialismo, uma realidade
que não existiu.
A autora reforça tal concepção quando cita Enrique Padrós: um dos fatores mais
importantes que explicam a eficácia da prática dos desaparecimentos é a impunidade. Sob a
ideologia da reconciliação, assegurava-se a impunidade (BAUER, 2014).
Nesse contexto, a “A teoria dos dois demônios”2 classifica a ideologia da reconciliação
pregada nas ditaduras que aconteceram na América Latina como uma equiparação ética e da
impunidade equitativa. A citada autora ainda diferencia uma ideologia de reconciliação de um
projeto de reconciliação: a primeira assenta-se não em uma realidade, mas trata de criar tal
realidade. Responsabiliza-se, nessa ordem, militares e militantes e exonera a sociedade civil.
Isso ressalta a colocação de Marcos Napolitano (2014) acerca do apoio da sociedade
civil ao regime ditatorial e enfatiza o contexto econômico que anestesiou a opinião pública à
concepção de oposição contra a violência imposta que tomou o país. Ademais, apresenta um
contexto de ambiente anterior ao golpe civil militar, em que a direita via na figura de Jango
um líder subversivo, amigo do socialismo. Suas promessas de reformas sociais, econômicas e
políticas em busca de um país menos desigual não eram bem-vistas e, nesse cenário, a subida
dos militares ao poder assegurou desenvolvimento e segurança nacional.
2
A teoria dos dois demônios surgiu na Argentina e não há uma fonte única na criação do termo (OLIVEIRA;
REIS, 2021).
21
De acordo com Daniel Aarão dos Reis (2010), as políticas de transição e a lei de
anistia defendiam a ideia de deixar o passado para trás, um desvencilhar-se. O autor ainda
afirma que contribuem, nesse sentido, a falta de análises claras sobre os acontecidos:
“Incômodas lembranças – por pessoas, grupos sociais ou sociedades inteiras – são
frequentemente colocadas entre parênteses, à espera, para que possam ser analisadas, de um
melhor momento ou do dia de São Nunca” (REIS, 2010, p. 174).
A Comissão Nacional da Verdade instituída no governo da Presidente Dilma Rousseff,
em 2011, apresentou em seu relatório, em 2012, fatos até então desconhecidos pela
população, no sentido de garantir o direito à memória e à verdade histórica. Em conciliação
com o Arquivo Nacional, Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e Comissão de
Anistia do ministério da justiça, realizou investigações que resultaram na afirmação de que se
faz necessário o enfrentamento de questões descobertas (COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE, 2015). Nesse sentido, o presente estudo busca trazer as reflexões possíveis
através de práticas artísticas capazes de contribuir para a conquista de espaço de debates nesta
disputa de memórias.
22
Abordar a produção nas artes visuais no período ditatorial brasileiro, vivido entre os
anos de 1964 e 1985, como ação de contramedida ao apagamento destas memórias, solicita
uma contextualização dos principais aspectos que levaram ao golpe. Ademais, é necessário
revisar conjunturas que o mantiveram por tão extenso período, com aval da imprensa e da
sociedade civil.
Boris Fausto (2012) traça um panorama social, político e econômico desse período e,
de acordo com o autor, o regime militar assumiu o poder com o falso discurso de proteger a
democracia das ameaças do comunismo e da corrupção. Através de Atos Institucionais
baixados pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, houve modificações na
constituição, cerceando direitos e proteções, e ampliando os poderes do governo por eles
assumido. O golpe civil-militar de 1964 aconteceu depois de um breve período democrático
experimentado pelo país a partir de 1945:
3
A revista de humor político Pif Paf foi lançada em 1º de maio de 1964, teve oito edições e inaugurou o círculo
de imprensa alternativa à censura do regime civil-militar.
24
A União Nacional dos Estudantes – UNE -, atuou como um dos agentes principais na
oposição ao golpe civil militar e à manutenção do regime. Sua sede foi atacada já no primeiro
dia após a instauração do golpe, em 1º de abril de 1964, tanto como as demais uniões
estudantis tornadas ilegais com a Lei Suplicy4. A “Sexta Feira Sangrenta” como ficou
conhecido o manifesto que resultou no saldo de 28 mortos, oficialmente três, contou com
apoio da população contra o Exército Brasileiro. Munidos de coquetel molotov e bolinhas de
gude, os estudantes enfrentaram armas, capacetes, botinas, cacetetes e toda brutalidade
policial. Marcos Napolitano (2014, p. 167), ressalta que:
4
Lei nº 4.464, de 9 de novembro de 1964,de autoria de Flávio Suplicy de Lacerda, usada para controle
das organizações e movimentos estudantis.
25
A semana de fortes protestos, em junho de 1968, forneceu uma ideia do período que
seguiu. Os militares governaram através de Atos Institucionais. O primeiro deles, o AI-1, foi
lançado uma semana após a derrubada do governo e cassou mandatos de mais de 100 pessoas.
Além disso, deliberou sobre demissões e afastamento de servidores que, na visão deles,
representavam risco à segurança do país. Instituiu, ademais, a realização de eleições indiretas
para presidente dentro de dois dias, permitindo a instauração do governo militar sob a tutela
civil. Segundo Vera Calicchio (2022) o ato institucional seguinte extinguiu os partidos
políticos então existentes, ainda seguido pelo AI-4, que definem de reorganização partidária.
O mais violento e autoritário dos atos institucionais, o AI-5, mostrou a verdadeira face
da ditadura: fechou o Congresso, Assembleias e Câmaras Municipais, extinguiu o direito a
habeas corpus, instaurou a censura prévia a músicas, filmes e peças de teatro. Após seus 10
longos anos de duração, restaram 1500 pessoas com direitos civis cassados e 950 filmes e
peças teatrais proibidos (MEMORIAL DA DEMOCRACIA, 2015).
Produções artísticas como as apresentadas ao longo desta dissertação buscaram dar
visibilidade aos crimes de lesa humanidade cometidos pelo Estado durante o regime militar,
bem como defendem a criação de espaço de debates, às marcas e traumas que deixam em
nossa sociedade. Segundo Susan Sontag (1987, p. 23), “a transparência é o valor mais alto e
libertador da arte”. Mostrando as coisas como são em sua verdade e essência, a produção dos
artistas no período denuncia sua oposição ao regime e violência dos anos de ditadura.
Contribuem, assim, para evidenciar, à opinião popular, imagens que contradizem imaginários
construídos acerca do Brasil daqueles anos. A autora reflete sobre memórias de guerra em sua
obra Diante da Dor do Outro:
Dar visibilidade aos fatos e voz às vítimas é uma preocupação no sentido de preservar,
ou até reavivar a memória, atos de contramedida ao esquecimento e à normalização, como
afirma Caroline Bauer: “Conhecer o que havia se sucedido não era necessário, pois se
considerava a ditadura ‘página virada’ e, em última instância, uma ameaça à possibilidade de
reciprocidade à anistia” (2014, p. 14), se não é do interesse dos detentores do poder, dos
responsáveis pela matança, é de interesse das vítimas, passadas e aquelas ainda presentes. Se
26
Ainda citando Jeanne Marie Gagnebin, trata-se de uma tarefa política – “lutar contra o
esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror” (2006, p. 47). Para a
autora, o historiador tem como tarefa política e comprometimento ético esclarecer fatos
históricos e manter viva a memória social. Esse conceito pode ser estendido ao artista, o qual,
com a ruptura dos padrões estéticos e representativos da arte, nos movimentos de vanguarda,
torna a arte instrumento de reflexão e denúncia.
27
O ver em um sentido mais amplo requer um grau de profundidade muito maior, porque o
indivíduo tem, antes de tudo, de perceber o objeto em suas relações com o sistema simbólico
que lhe dá significado. Silvio Zamboni (1998, p. 54).
O que parecia ser eclético sob um ponto de vista, pode ser concebido como
rigorosamente lógico de outro. A práxis não é mais definida em relação à um
determinado meio de expressão, mas sim em operações lógicas para as quais vários
meios podem ser usados... O campo oferece um conjunto ampliado (porém finito) de
posições relacionadas para um artista ocupar e explorar, e uma organização de
trabalho que não é ditada por um determinado meio de expressão (KRAUSS apud
CANONGIA, 2005, p. 20).
28
Cada período histórico produz sua própria arte, que revela tanto condições sociais,
políticas e econômicas, quanto transformações culturais, que se manifestam também no uso
das linguagens. É possível observar, principalmente no início do século XX, a presença e a
reutilização do signo verbal no campo visual, seja nas colagens e fotomontagens Dadá, na
apropriação de seus significantes por Duchamp, seja no surgimento dos Manifestos de
movimentos ou de artistas. Desse modo, tal apropriação marca a entrada do artista no campo
da crítica de arte, desautorizando e criando conceitos acerca de seu trabalho (FERREIRA;
COTRIM, 2009).
Nessa passagem do moderno ao contemporâneo, o Brasil encontrava uma identidade
no campo artístico. Os anos de 1960 e 1970 foram, para o país, vale lembrar, extremamente
violentos no campo social e político. Desse modo, grandes artistas se destacaram em
experimentações que fogem dos padrões de representação estética, tornando a arte uma ação
também política.
Usando a expressão de Germano Celant (1980 apud CANONGIA, 2005) surge na arte
contemporânea uma “Con-fusão” de linguagens em favor do discurso do artista, seja para
problematizar questões estéticas ou éticas em sua obra.
Para Mukarovsky (1997), nem todos os atos e objetos têm, a priori, atributos estéticos,
mas todos podem se tornar investidos de tal valor. Nesse sentido, citamos a respiração, que é
uma função orgânica e não tem um valor estético em si. Por outro lado, respirar lentamente ou
profundamente pode ter um valor atribuído, a depender do contexto. Essa via, entretanto, é de
mão dupla. Assim, o contrário também pode ocorrer: uma obra de arte que tem valor estético
pode ser destituída de seu valor estético. Exemplo disso é o caso de um grafite que é coberto
por uma nova camada de tinta. O valor estético, ademais, também pode fazer sentido em
determinado contexto social ou determinada época. Destacamos, além disso, que a função
estética pode se converter em um fator de diferenciação social: “A obra artística é uma
aplicação não adequada da norma estética de modo que seu estado atual não se altera por
virtude de nenhuma necessidade involuntária, mas se intencionalmente e por isso de maneira
muito sensível” (MUKAROVSKY, 1997, p. 45).
Para o autor citado, as escolhas dos artistas são orientadas, segundo sua sensibilidade,
no sentido de construir sua narrativa. Assim sendo, a estética da obra contribui com a
intencionalidade da sua elaboração. A leitura das obras também é orientada pelo pensamento
de críticos de artes, como Ligia Canongia (2005) e Frederico de Morais (1970), visto que
ambos os autores, por estarem no circuito brasileiro de artes, fornecem elementos
significativos para a compreensão de aspectos formais e conceituais dos artistas abordados.
Procuramos incluir no escopo da pesquisa obras que construam uma linha de denúncia,
testemunho, reflexão e resgate da memória da violência do regime ditatorial. Iniciamos com a
leitura da obra SITUAÇÃO T/T1 de Artur Barrio, realizada em 1970. As trouxas
ensanguentadas, jogadas no rio-esgoto, assemelham-se a corpos humanos e representam a
violência e a precariedade daquele contexto social e político.
Nas obras de Carlos Zílio, Lute (1967), por sua vez, encontramos um retrato de como
o artista intenciona despertar a sociedade contra o sistema opressor, bem como a denúncia dos
desaparecimentos como ferramenta de terror de estado na obra Identidade Ignorada (1974).
O poema visual do artista Tchello d’Barros criado no ano de 2001, vem ao encontro da
intenção de construir uma linha temporal até as obras produzidas nos anos de 2019 a 2021,
remetendo ao contexto atual. Este, cabe enfatizar, tem como marcas a falta de esclarecimento
e a ausência de reparação aos crimes cometidos durante o período. A obra Democracia
(2021), de Hélio Fervenza, representa a dicotomia de sentidos percebidos no entendimento da
linguagem nas sociedades atuais, especialmente no contexto político.
Os trabalhos da artista Manoela Cavalinho representam uma tentativa de construção de
memória social da ditadura civil-militar, através de seus Epigramas (2019). As memórias
30
individuais de vítimas ainda desaparecidas são lidas a partir das obras Onofre, José, Enrique,
Daniel, Joel e Víctor (2021). Iniciamos pela análise da obra de Artur Barrio e Carlos Zílio,
produzidas durante o período da ditadura civil-militar.
Para Susan Sontag (2003, p. 95) "Ninguém após certa idade” tem o direito à inocência
de se sentir surpreso diante do horror que o ser humano é capaz de inflingir contra outro ser
humano. Para a autora a demonstração de surpresa diante de provas e fatos dessa natureza,
demonstra imaturidade moral e psicológica (SONTAG, 2003). Ainda de acordo com Sontag,
protestar contra um sofrimento incorre no ato de reconhecê-lo.
Artur Barrio não somente resgata a violência dos porões ditatoriais do Brasil pós golpe
de 64, mas as coloca diante da sociedade, que se fazia inerte, apática. Artista da transgressão e
do precário, contesta não só as condições de fazer arte em um país subdesenvolvido, mas
também as condições de fazer arte diante do medo que permeia a atmosfera durante o
governo militar, de ações violentas, perseguições, torturas e dasaperecimentos.
O artista desponta no cenário nacional com uma arte anárquica subversiva, tanto em
meios, suportes quanto teor da narrativa, como afirma Ligia Canongia (2005, p. 85):
Trabalhos como os de Artur Barrio, que operam como interferência crítica sobre a
estrutura institucio- nal da arte, e como afronta direta ao mercantilismo burguês,
foram comuns no início da década de 1970. A obra de arte, nesse momento,
constituía-se como "produ- ção política", embora não mais da forma que os anos 60
haviam praticado, isso é, com o foco no "tema" político, literalmente associado à
realidade.
Artur Alípio Barrio de Sousa Lopes nasceu em Porto, Portugal, no ano de 1945. Ele
chegou ao Brasil dez anos depois e passou a viver no Rio de Janeiro. Iniciou seu percurso nas
artes visuais com desenhos no ano de 1966 e ingressou na Escola Nacional de Belas Artes no
31
ano seguinte. O artista permaneceu no curso por um curto período, por não concordar com as
disciplinas componentes do currículo. Assim, sua linguagem estética logo no início afastou-se
das linguagens convencionais de representação visual (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL,
2022).
O artista despontou no cenário da arte brasileira com experimentações artísticas que
questionam e expandem o conceito formal do que é arte, intervindo criticamente sobre a
estrutura institucional artística.
Com trabalhos fundamentalmente provocativos e transgressores, suas intervenções e
happenings causam grande impacto, com aspecto violento e a utilização de materiais não
convencionais. Entre eles, constam itens como papel higiênico, detritos humanos e materiais
orgânicos, como carne putrefata. Tais produções interferem no espaço urbano fazendo dele
um espaço político. Artur Barrio mantém um estreito relacionamento com a palavra. Em
1969, escreveu seu primeiro Manifesto, posicionando-se contra as categorias, instituições e
críticos de arte. O artista problematiza o uso de materiais caros em um contexto
socioeconômico de terceiro mundo, o que, segundo ele, condiciona e limita a produção
artística, neste sentido então defende o uso de materiais efêmeros e precários em nome da
liberdade de criação.
Nesse mesmo ano, surgiram as primeiras SITUAÇÕES, uma série de interferências
pelas quais deposita detritos humanos, excreções, dejetos, restos de materiais industriais,
papel higiênico e, em outro momento, pães, em espaços públicos e de arte. Esses trabalhos
são analisados neste estudo. Em 1974, período da ditadura civil-militar no Brasil, retornou a
Portugal, que também vivia sob um golpe civil militar. Nesse contexto, testemunhou, então, a
Revolução dos Cravos5, experiência que o levou a realizar novas instalações, como as
primeiras SITUAÇÕES, 4 Movimentos e 4 Pedras, Áreas Sangrentas e Metal/Sebo Frio/Calor.
Esses trabalhos também envolvem o lugar cotidiano comum, a transitoriedade do tempo e dos
materiais, que registra em fotografias e de forma escrita.
Entre 1975 e 1984, viveu em Paris, onde participou do grupo de artistas Cairn,
cooperativa criada em 1976. Essa experiência influenciou fortemente sua poética e, nesse
contexto, realizou e expôs o trabalho Livros de Carne (1978-1979)6, que consta mais adiante
neste texto por representar aspectos relevantes da relação do artista com a palavra.
5
Movimento liderado por oficiais das Forças Armadas, com apoio popular que estabelece o regime democrático,
colocando fim à ditadura salazarista (VARELA, 2012).
6
Ver mais em http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com/.
32
Figura 3 – Artur Barrio, NADA /... palavra escrita s / cartão mais pó de café .... //// , 2018.
A obra SITUAÇÃO T/T, 1 (1ª/2ª/3ª PARTES) foi realizada na cidade de Belo Horizonte,
MG. no ano de 1970. Nela, o artista preparou e deflagrou 14 objetos denominados Trouxas
Ensanguentadas (T.E.) em um rio-esgoto que atravessa o parque central da cidade, durante a
mostra Do Corpo à Terra, organizada pelo crítico de arte Frederico de Morais (1970).
Em nome de uma ética da contestação na obra analisada, o artista propôs um
tratamento de choque à indiferença da sociedade civil diante do autoritarismo e violência do
regime de governo da época. Assim, de forma transgressora e política, dissolveu os limites
entre linguagens, promovendo atravessamentos entre símbolos gráficos e visuais, entre a obra
de arte, artista e o espaço público.
A preparação das 14 trouxas foi a primeira parte da obra, feitas de pano e preenchidas
com carne, ossos e dejetos e amarrada; a segunda parte refere-se à deflagração destes volumes
no rio; e, por fim, a terceira parte do trabalho aconteceu quando o artista desenrolou 60 rolos
de papel higiênico, com o auxílio de transeuntes, na paisagem local.
35
A série que integra a obra em análise iniciou em 1969, na cidade do RJ, no Salão da
Bússola do Museu de Arte Moderna. Denominada SITUAÇÃO
ORHHHH....OU........5000.......T.E.......... em NY...........CITY, ela se divide em duas fases:
interna e externa.
Na primeira fase, o artista inseriu um saco de papel com pedaços de jornal, espuma de
alumínio e cimento velho, depositado por ele no local. A obra permaneceu no mesmo lugar
por 30 dias e, ao longo desse tempo, transformou-se através da participação do público, que
depositava sobre o material mais detritos. Após o término da exposição, o material foi levado
dentro de um saco de papel para fora do museu, onde foi deixado, sem qualquer informação,
gerando rebuliço entre os vigias e transeuntes (BALDISSEROTTO, 1999).
No ano seguinte, o artista deu continuidade à série de produção de “abjetos”, com os
quais interferiu no espaço urbano. Foram enchidos 500 sacos plásticos com diversos detritos
humanos, como sangue, restos de unha, saliva, cabelos, secreção nasal, urina, fezes, ossos e
outros materiais, como papel higiênico e absorvente feminino. Desses 500 sacos, 20%
continham o nome do artista e a data. Além disso, o material foi deixado em pequenas
quantidades em diferentes ruas da cidade do Rio de Janeiro (BALDISSEROTTO, 1999).
SITUAÇÃO T/T,1 é constituída de três partes. Na primeira, denominada pelo artista de
14 MOVIMENTOS, Barrio preparou as 14 trouxas, que chamou de “abjetos”, e registrou via
escrita suas sensações durante o processo, bem como dos materiais utilizados: sangue, carne,
ossos, barro, espuma de borracha, pano e cordas (BALDISSEROTTO, 1999).
A ação também foi registrada em imagens. Na Figura 5, a fotografia em cores
monocromáticas mostra o artista construindo os “abjetos”. A imagem captura um momento
no qual ele estava inserindo pedaços de carne nas trouxas feitas de pano.
36
A obra de Artur Barrio, para além da imagem, precisa ser vista pela multiplicidade e
convergência de meios, tais como: a inserção do corpo do artista, escolha dos materiais, o uso
das palavras e a escolha do espaço de inserção. Na terceira e última parte da obra, o artista
abriu 60 rolos de papel higiênico sobre as pedras na margem do rio, como podemos observar
na Figura 9.
A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem
tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos
possíveis do tempo. É a partir dessa estética primeira que se pode colocar a questão
das "práticas estéticas", no sentido em que entendemos, isto é, como formas de
visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, do que "fazem" no que diz
respeito ao comum. As práticas artísticas são "maneiras de fazer" que intervêm na
7
Esquadrão da Morte foi um grupo paramilitar organizado com o objetivo de capturar e torturar pessoas
consideradas potenciais inimigos do regime.
41
distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e
formas de visibilidade.
Nesse sentido, a arte de Barrio ocupa-se da política, da ética da denúncia dos fétidos
porões subalternos da ditadura civil militar, feitas de carne morta. Assim sendo, sua obra
denuncia uma realidade viva.
Os volumes de carne, ossos e sangue denunciam o desaparecimento como implantação
do terror, como cita Caroline Bauer (2014). Essa, vale reforçar, é uma estratégia de governos
militares na elaboração das políticas de desmemória e esquecimento. Todavia, não se esgotam
nesse aspecto, uma vez que tratam da transição de objetos de desejo a descartes, o transitório,
expelido pela sociedade. Existe uma relação íntima entre os objetos criados pelo artista e nós,
o que leva a perceber que a arte nos ensina muito sobre nosso próprio universo, como observa
Jorge Coli (2017).
A obra materializa aspectos violentos e precários da vida social dentro de um regime
ditatorial, expondo cruamente aspectos de uma realidade que se desejava esconder. Assim,
isso nos remete ao sentido da estética:
Cumpre referir que se trata de uma obra radical, transgressora e potente. O artista não
se subtrai de seu estado social de cidadão, direcionando seu trabalho ao resgate de uma
sociedade da inércia, da apatia quanto à sua situação de povo coagido e calado.
A leitura deste livro é feita a partir do corte/ação da faca do açougueiro na carne com
o consequente seccionamento das fibras/fissuras, etc, etc, assim como as diferentes
tonalidades, colorações. Para terminar, é preciso não esquecer das temperaturas, do
contato sensorial (dos dedos), dos problemas sociais, etc etc (BARRIO, 1999).
Os registros gráficos e visuais do processo de criação da obra, por sua vez, permitem o
acesso à concepção e à ideia, remetendo ao núcleo do trabalho do artista, capaz de dizer o
indizível, que transborda a palavra e a imagem, atravessa o corpo e transforma o espaço
público em espaço social e político. Ao adentrar o núcleo da obra através desses registros, é
possível ampliar a compreensão de seu conceito, que, na América Latina, adquire um caráter
político mais urgente, como define Artur Freitas (2007). Isso ocorre justamente, complementa
o autor, pela ligação com a necessidade de mudanças sociais.
A arte não será nem a beleza nem a novidade, a arte será a eficácia e a perturbação.
A obra de arte realizada será aquela que, dentro do meio por onde o artista se move,
tenha um impacto equivalente, em certo modo, a um atentado terrorista em um país
que se liberta (FERRARI apud FREITAS 2007, p. 52).
Freitas aborda a produção artística brasileira durante os anos de 1960 a 1973, também
chamados de anos de chumbo, no que tange aos aspectos estéticos e ideológicos. Assim, traça
um paralelo entre o surgimento de uma arte conceitual e o contexto social e político dos anos
de vigência do AI-5.
O autoritarismo do regime de governo diluía os parâmetros estéticos. O que valia,
então, era o potencial de transformação social e o espectador, assim, tornou-se participante da
obra que invadia o espaço público. Nessa ordem, o sentido era ocupar o lugar social e não
apenas o que era dito tinha importância, mas também como era dito, as transformações da arte
eram parte de um processo ético-existencial de convulsão moral necessária e urgente
(FREITAS, 2007).
A questão do choque na obra de Barrio era quebrar a apatia, recrutar a partir do
abalroamento, um desafio ético de posicionamento diante do precário, da precariedade. O
espaço público transforma-se, dessa maneira, em um espaço político e ideológico.
Nascido em Portugal, o artista chegou ao Brasil aos dez anos de idade. Antes, viveu
por três anos em diversos países da África: “onde vivenciou as contradições de um continente
oscilante entre a exuberância cultural e os mais infelizes traumas coloniais” (FREITAS, 2007,
p. 127).
O título SITUAÇÕES nos remete ao modo como algo está disposto em determinado
período, de acordo com seu significado literal no dicionário ou, ainda, o modo como alguém
ou algo se encontra em relação a outrem. Impreterivelmente associada a algo ou alguém, o
estado das coisas, da vida e da liberdade do indivíduo comum ou do artista, nada estava
seguro ou assegurado durante o governo militar.
44
Observando a consistência de sua obra, podemos notar que nenhuma escolha na sua
construção é impensada. Quando Artur Barrio denomina o ato de deixar os “abjetos” trouxas
no local como “deflagrar”, mergulha na semântica da palavra. Esta, no sentido literal,
refere-se à explosão, combustão repentina que causa ruídos, calor, chamas, no sentido literal a
surgimento inesperado e geralmente violento, escolha que reitera o aspecto violento,
componente estrutural da obra.
A esse cenário, integrou-se também Carlos Zílio. Nascido no Rio de Janeiro, em 1944,
iniciou seus estudos em artes plásticas em 1963 no Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro,
onde foi aluno de Iberê Camargo, de quem, mais tarde, herdou o ateliê, quando este último se
mudou para Porto Alegre. Em 1973, formou-se em psicologia. Já durante seu exílio na
França, fez doutorado em artes plásticas. Anos após, fez pós-doutorado em Ehess, também em
Paris. Já entre 1998 e 1999 realizou estágio com Yves-Alain Bois nos Estados Unidos, como
informa Felipe Scovino (2010).
Iberê Camargo foi uma referência importante para seu trabalho, e com o mestre Zílio
compartilhou um conflito que viveu com sua família, que sonhava que o jovem cursasse
faculdade de arquitetura. O tema rendeu a série de fotografias: Para um jovem de brilhante
futuro, realizada em 1974. A Figura 10 mostra um jovem sentado de costas em seu escritório:
seus pés ostentam sapatos muito bem lustrados e descansam despreocupadamente cruzados
sobre a mesa. Ele segura o telefone próximo à orelha na mão esquerda; a direita aponta o dedo
indicador altivo para cima. O paletó está sobre a cadeira e, em cima dos móveis e da
escrivaninha, há pilhas de papéis, pastas e uma agenda aberta próximo à câmera.
Figura 10 – Carlos Zílio, Para um jovem de brilhante futuro, 1974, fotografia 18 x 24 cm.
Figura 11 – Carlos Zílio, Estudo 9, 1970, lápis de cor sobre papel 47 x 32,5 cm.
A imagem apresentada na Figura 12, por sua vez, retrata seu sentimento de estar
próximo à morte. Intitulada A Quase Partida e datada de 1970, a obra apresenta três
perfurações de projéteis em tons de vermelho – do mais claro ao mais escuro – representando
os ferimentos. Os retângulos pretos divididos com linha larga e atravessados por duas linhas
em x, no centro, indicam um alvo. Das perfurações, respinga sangue e que se espalha. Elas
começam em tamanho menor e vão crescendo até que a inferior ocupe boa parte do último
retângulo.
48
Ao sair da prisão, o artista permaneceu por algum tempo no país, mas se mudou para a
França por receber ameaças, dirigidas também à sua esposa. Na Europa, ele cursou seu
doutorado em Artes Plásticas. Em 1974, produziu “Mamãe, Eu Fiz um Super 8 nas Calças”.
O vídeo tem duração de 1 minuto e 32 segundos. Sem som, sua produção é extremamente
simples, caracterizando, assim visto na análise da obra de Barrio, uma estética da
precariedade. Em frente à tela, passam folhas de papel branco com escritos em preto, de baixo
para cima, que, de forma irônica, denunciam a repressão e pedem o fim da ditadura.
Há signos que não se referem a uma realidade diferente deles, e no entanto o signo
significa sempre algo que se deduz naturalmente do facto de ele ter de ser
compreendido tanto por quem o emite como por quem o recebe. Porém, no caso dos
signos autônomos, esse algo não é claramente determinado. Qual é então essa
realidade indefinida a que se refere a obra de arte? É o contexto geral dos fenómenos
ditos sociais, como, por exemplo, a filosofia, a política, a religião, a economia, etc. É
por essa razão que a arte mais que qualquer outro fenómeno social consegue
caracterizar e representar uma «época» dada; por isso mesmo a história da arte foi
durante muito tempo confundida directamente com a história da cultura no sentido
mais amplo da palavra; e, ao mesmo tempo, também a história geral utiliza
frequentemente a delimitação de períodos estabelecida pela história da arte
(MUKAROVSKY, 1997, p. 13).
O trabalho de Carlos Zílio ganha destaque nesta pesquisa, uma vez que se apresenta
para além de registro testemunho de um tempo e de uma série de atos que foram cometidos.
Sua narrativa está carregada de uma verdade que sofreu a tentativa de apagamento.
No contexto desta dissertação, refletimos sobre a fala de Herbert Read em Frederico
Moraes (1970, p. 55): “a arte sempre foi a consciência que cada época tinha de si mesma”.
Inserida nessa realidade, refere-se aos artistas que marcaram uma época com sua luta contra a
violência de um regime opressor, a impunidade e a apatia social.
Alguns elementos se repetem nos trabalhos do artista, como a máscara, que não
apresenta uma identidade definida. Pode, portanto, ser uma autorreferência ou referir-se a
qualquer pessoa. Na Figura 13, a obra Visão Total, realizada em 1966, mostra um rosto vazio,
preso ao interior de um recipiente, inexpressivo e comum.
50
Figura 13 – Carlos Zílio, Visão Total, 1966, Vinílica sobre madeira, 84 x 73 cm.
Frederico de Morais, nesse sentido, cita Herbert Marcuse: "A propagação da guerra de
guerrilha no apogeu do século tecnológico é um acontecimento simbólico: a energia do corpo
humano contra as máquinas da repressão" (MORAIS, 1970, p. 59). A arte, com os
movimentos de vanguarda, aproxima-se da vida e ambas se fundem como um ato em nome da
ética, produção e política, armam-se contra quem oprime e cerceia a liberdade, fundamental
como ar que se respira. Trata-se de olhos vendados, rostos abafados, asfixiados sem
perceber-se de sua condição.
A arte ocupa-se da vida e se funde com ela: na obra de Barrio, é precária, feita de
dejetos; na obra de Zílio, de rostos anônimos e autômatos, com algumas exceções. Para Felipe
Scovino (2010), trata-se de uma arte totalmente preenchida com o mundo, em que as
vivências se deslocam para os diálogos com seus objetos.
A maneira de fazer da arte que diz respeito ao comum partilhado, e as partes
exclusivas deste comum, como revela Rancière (2009a), à máscara vedada nos remete ao
escravo de Aristóteles, que, se compreende a linguagem não a possui, a analogia que está em
jogo na política como forma de experiência, não como uma estética refém da política, mas
pela vontade da arte.
Nessa multiplicidade de sentidos, em que um pode ser o todo e o todo está na unidade,
reside uma das funções do exercício da crítica. Na constituição desses sentidos, reside a
função de viabilizar espaços de dissenso, em que habitam o comum e o múltiplo, como reflete
Calo Osorio (2005).
A experiência estética, na arte contemporânea, acontece via jogo de sentidos
engendrados por linguagens distintas que se entrecruzam e abrem um campo de possibilidades
de significação. Esta, no conceito kantiano, age como fundadora de uma abertura do sujeito ao
mundo, que, por seu turno, ocorre via estética do compartilhamento. Isso leva a notar, como
afirma Luiz Camillo Osório (2005), o nós é anterior ao eu.
Theodor W. Adorno (1970) evidencia: uma obra de arte tem como elemento
constitutivo o momento histórico em que é produzida, configurando assim uma historiografia
inconsciente. Nesse sentido, a máscara remete a uma sociedade inebriada pela promessa do
país do futuro e inerte aos desmandos do autoritarismo. Ademais, “VER” é tudo que aqueles
rostos inertes vedados não podem e configura-se, portanto, uma contradição com a ordem da
palavra. Trata-se de uma ideia semelhante à imposta pela obra A Traição das Imagens, datada
de 1926, de René Magritte: Ceci N'est Pas Une Pipe8. A obra nos mostra um cachimbo e, no
entanto, nega que o objeto observado seja o que nossa mente diz que estamos vendo – é tão
8
A frase refere-se à obra “A Traição das Imagens” de 1926, de René Magritte.
52
desconcertante quanto inevitável chegar a esta conclusão. A palavra poderia ser uma ordem
direta: “VEJA”, ou seja, é urgente e imprescindível ver, mensagem reforçada pela cor
vermelha com a qual é escrita e pela caixa alta utilizada.
A consciência, para cuja reflexão se remete toda obrigação artística, desmontou
simultaneamente a obrigação estética, afirma Adorno (1970), referindo-se aos movimentos de
vanguarda. Não há, nas obras do artista, maior preocupação com a estética do que com o
objetivo social pretendido pelo artista militante, o que ocorre também nas obras analisadas de
Barrio. Desse modo, compreendemos, trata-se de despertar o espectador para o estado social
em que se encontrava o país dois anos após o Golpe de 1964 – dois antes do AI-5.
Considerando que uma obra de arte tem o caráter de signo, buscamos, nesta análise,
explorar significados de cada elemento constitutivo enquanto unidade comunicativa de
sentido. A tentativa é desvendar, eventualmente, intenções ideológicas, sua existência
autônoma e dinâmica fundamental na estrutura da obra e na dialética com os outros
elementos.
Assim como o objeto máscara se repete, a palavra é uma constante em muitas obras do
artista, as imagens anteriores são mostradas com a finalidade de criar conexões entre os
elementos poéticos que se repetem nas obras do artista.
Na Figura 14, uma fotografia da obra Lute, de 1967, mostra uma pequena marmita de
alumínio aberta com sua tampa encostada ao lado. Dentro dela, há uma máscara amarela,
representando um rosto humano. Ela é recortada logo acima das sobrancelhas e abaixo do
queixo. Sobre a boca, consta a palavra “Lute” em caixa alta vermelha.
53
Figura 14 – Carlos Zílio, Lute (marmita), 1967, alumínio, plástico, resina plástica, 18x10 cm, 5x5cm.
A escrita agrega significados às obras dos artistas visuais contemporâneos. Para além
da imagem e dos objetos, a palavra, como signo comunicante, fala diretamente ao espectador,
como cita Rancière: a palavra faz ver, designa, convoca o ausente, revela o oculto (2009a).
A palavra "LUTE" é atribuída a um chamado do artista ao receptor, ainda
potencializado por sua forma em caixa alta e cor. Na pintura, a cor é um elemento formal, mas
também comunicativo, portador de um determinado significado, que pode ir desde um fator
emocional até uma concreção evidente neste sentido. Assim como o azul significa o céu e a
água, o vermelho carrega em si o signo da urgência e a materialidade da violência remetendo
ao elemento orgânico sangue (MUKAROVSKY, 1997).
Do objeto, foram produzidas oito unidades, na intenção de serem entregues aos
funcionários nas saídas das fábricas. A simbologia desse objeto artístico nos remete ao
alimento, mas também ao papel social do receptor – no caso, os operários. De acordo com
Mukarovsky (1997), o signo caracteriza-se por carregar um conteúdo que ultrapassa os limites
da consciência individual – o conteúdo compartilhado entre a consciência individual e
coletiva é considerado um signo.
Os elementos do sistema linguístico, em sua estrutura e valor, são analisados,
conforme o referido autor, pela ciência do espírito, que trabalha no mundo dos sentidos e na
consciência coletiva. Ainda segundo ele, a obra artística não pode ser identificada como
estado espírito do seu criador, mas é destinada a servir de intermediário entre este e a
54
Carlos Zílio evoca a realidade por meio dos múltiplos signos presentes em seu
trabalho. A segunda obra do artista que analisamos é Identidade Ignorada, é realizada em
1973. Reproduzida na Figura 15, é uma fotografia em preto e branco com tamanho de 18 x 24
cm. Apresenta fundo preto e tem, no centro, como únicos elementos, os pés de um cadáver
muito iluminados em contraste com o fundo negro. No dedo maior do pé esquerdo, há uma
etiqueta com as palavras “IDENTIDADE IGNORADA", em letras de caixa alta, na cor preta.
55
A imagem remete aos presos e desaparecidos políticos que o regime militar deixou
como saldo. Vale lembrar que a Lei n. 9140/95 estabelece critérios para que uma pessoa seja
considerada desaparecida político: são consideradas mortas as pessoas que estejam
desaparecidas após serem detidas por crimes políticos entre o período de 02 de setembro de
1961 e 05 de outubro de 1988. Em 2004, através da Lei 10.875, os critérios foram ampliados
e passaram a abarcar também pessoas feridas em protestos e que faleceram em consequência
dessa participação ou que tenham desaparecido em dependências policiais ou assemelhadas.
A Lei mais recente inclui, ainda, pessoas que cometeram suicídio diante da eminência de
serem presas ou por sequelas psicológicas resultantes das torturas a que foram submetidas.
(MEMORIAL DA DEMOCRACIA, 2015).
Pode não ser simples eliminar um corpo, mas sua identidade pode ser escondida e
confundida. De acordo com Caroline Bauer (2014), o desaparecimento foi uma ferramenta
amplamente utilizada na implantação do terror nos governos ditatoriais, reforçada por
políticas de desmemória e esquecimento, protetores de torturadores, através da censura, da
desinformação e do silêncio. Nesse sentido, a autora complementa: “Está prohibido informar,
56
A fotografia não se tornou uma arte porque aciona um dispositivo ponto a marca do
corpo a sua cópia. ela tornou-se arte explorando uma dupla poética da imagem,
fazendo de suas imagens, simultânea ou separadamente, duas coisas: os testemunhos
ilegíveis de uma história escrita nos rostos ou nos objetos e puros blocos de
visibilidade, impermeáveis a toda a narrativização, a qualquer travessia de sentido
(2012, p. 20).
Iniciamos esta seção do trabalho com a seguinte reflexão: Mas para que servem as
palavras? Para Michel Foucault (2016), as palavras designam, dão nome às coisas. Para esta
pesquisa, tomaremos a palavra como imagem, ainda assim abordada em sua epistemologia.
As palavras também constroem diálogos e, desta forma, conduzimos esta seção como um
diálogo.
Para John Dewey (2010, p. 215) “cada arte fala um idioma que transmite o que não
pode ser dito em nenhuma outra língua". O que ainda é preciso que se fale sobre o período
ditatorial de que trata esse texto é que ele ainda não está resolvido. Assim, as práticas
artísticas apresentadas nas próximas páginas demonstram o exposto.
A violência empregada pelo Estado, como ferramenta de controle social, deixa marcas
profundas no tecido social. As tentativas de invisibilidade e apagamento da memória destas
práticas somam-se ainda a esta violência. Na obra Brasil e Argentina: Ditaduras,
Desaparecimentos e Políticas de Memória, a autora Caroline Bauer (2014) analisa as
estratégias utilizadas pelo Estado para neutralizar qualquer tentativa de desconstrução das
suas bases de poder. Sua obra ainda contribui para desconstruir a ideia equivocada de que o
dano social e humano causado por governos autoritários pode mensurar-se pelo número de
vítimas.
Os trabalhos que apresentamos nesta seção, são desenvolvidos a partir do ano 2001,
até 2021. Neles, analisamos os elementos que materializam a historiografia inconsciente
mencionada por Theodor W. Adorno (1970). Analisamos, nos trabalhos, seus significantes,
relacionando-os com o aspecto de continuidade da violência perpetrada no período ditatorial.
desenho e com a escrita, que deixava fluir durante sua permanência na escola. Já na
adolescência participou de salões de desenho e recebeu como premiação uma bolsa de estudos
para curso de pintura, como informa Renata Barcellos (2020), nasceu daí o interesse pela
história da arte.
Cresceu em diversas cidades do sul do Brasil e atuou profissionalmente na indústria
têxtil de Santa Catarina. Já em 1985, foi recrutado a prestar serviço militar, período no qual
ilustrou materiais de instrução e comunicação para o exército, onde também trabalhou como
tatuador.
A obra Soneto da Ditadura foi construída no ano de 2001, 16 anos após o fim da
ditadura civil-militar. Através de contato via e-mail com o próprio artista, buscamos, então,
compreender o que o motivou a construir esse trabalho. Tchello afirmou que a violência e a
repressão do regime militar perpassaram sua infância e juventude:
Em 85, tive ainda o azar de ser selecionado para prestar o serviço militar obrigatório.
Servi no primeiro ano pós-ditatorial, mas toda a atmosfera truculenta e opressiva
ainda estava no ar, o que me permitiu sentir na pele os efeitos desse regime e
construir uma visão crítica desse período (d’BARROS, 2022).
Particularmente eu, quando me deparei com o poema pela primeira vez, ao cursar uma
das disciplinas deste curso de mestrado, senti um violento impacto. Foi como se estivesse,
naquele momento, ouvindo as rajadas de projéteis e sentindo seus impactos no meu corpo. A
sensação vivenciada foi definitiva para que tomasse a decisão de incluí-lo nesta pesquisa.
A obra consiste em um poema visual, no qual o título introduz a mensagem que seu
criador deseja passar. São quatro conjuntos de quatro linhas e cada linha é formada por dez
imagens de perfuração por arma de fogo. Entre cada conjunto de quatro linhas, há um breve
espaço vazio, compreendendo a formação de um soneto, como mostra a Figura 16.
61
Para Alberto Manguel (2001, p. 21), “As imagens, assim como as palavras, são a
matéria de que somos feitos". Nesse sentido, observamos que, no poema visual, palavra e
imagem se unem e estabelecem novas relações na criação de significantes. Cada imagem
gráfica de tiro simboliza uma sílaba métrica do poema, construindo, no conjunto, um soneto,
já enunciado pelo título, em nosso imaginário. O som se faz real, uma vez que as palavras têm
este poder: dialogar diretamente com nosso imaginário, gestando e parindo sons, imagens e
sensações. O silêncio que configura a pausa entre a sequência de imagem complementa nosso
entendimento da forma que o conjunto de signos constrói, um soneto. O silêncio, ausência de
informação, visual ou sonora, é quietude, interrompida por nova sequência de imagens.
O período do governo ditatorial terminou em 1985, com a eleição indireta para
presidente de Tancredo Neves. Porém, como afirma Pollak (1989), as memórias, muitas
vezes, esperam décadas até o momento de poderem ser expressas. Nesse sentido, o artista, em
e-mail para esta pesquisa, afirmou: “A rajada que constitui o poema visual - na estrutura de
62
Meu processo de criação em Poesia Visual consiste em criar obras dialéticas entre
palavras e imagens, a partir de temas pulsantes na sociedade e que me afetam
individualmente. Consiste em escrevinhar e garatujar sobre o assunto, até que aos
poucos vai emergindo uma criação, ora mais verbal, ora mais visual, que
posteriormente recebe um lay-out, o arquivo final (d’BARROS, 2022).
A Lei de Anistia tratou de colocar panos quentes em uma ferida aberta da sociedade
brasileira. Assim, não esteriliza, não expurga, não cura e, de tempos em tempos, as cicatrizes
doem e a ferida ameaça abrir. Susan Sontag (2003), em sua obra Diante da dor dos Outros,
provoca reflexões sobre o que nos causa o contato com as imagens de violência e guerra. A
autora questiona, ainda, se ainda nos sensibilizamos diante do horror, da violência de que o
ser humano é capaz de causar a seus semelhantes em uma sociedade extremamente exposta a
imagens. Essa pergunta é indispensável.
No entanto, práticas de arte como esta e as demais apresentadas neste trabalho vêm ao
encontro da sensibilização diante do horror, diante do que não desejamos que acompanhe a
evolução das nossas sociedades. Tornam-se, assim, essenciais para a construção de novos
sentidos e para a manutenção da memória sobre o horror já praticado, bem como sobre a
violência imposta ao outro.
Como alerta Bauer, os perpetradores da violência nos governos ditatoriais são
protegidos pela censura e desinformação: “além da conivência e da cumplicidade dos órgãos
de informação e do aparato repressivo que os resguardavam” (2014, p. 99). Assim, garantem
o esquecimento de crimes e a impunidade resguardada pelas leis de anistia. A continuidade de
práticas artísticas que retomam o tema nos alerta para a necessidade de retomar a discussão
sobre esses processos, uma vez que se configuram como um tema contemporâneo, por não
terem encontrado meios de resolução justa. Nesse sentido, Bauer ressalta:
Para Steven Levisky e Daniel Ziblatt (2018, p. 12), existem outras formas de matar
uma democracia. Uma delas, que dispensa o uso de armas, se dá via mãos de líderes, que
“subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. Para os autores, governos autoritários
utilizam-se de formas de desmantelar os aparelhos democráticos, muitas vezes, de forma
imperceptível.
A seguir, analisamos, na obra de Hélio, de que forma o artista busca dar corpo material
aos pensamentos apresentados pelos autores supracitados.
9
Imagem do acervo do artista, enviada por ele para este trabalho.
66
Na obra "Democracia: " faço alterações na posição das letras, invertendo e mudando
suas posições, de maneira a produzir erros propositais em sua escrita, e a perturbar
sua leitura e seu reconhecimento. Essas alterações possibilitam talvez colocarmo-nos
em algumas questões... (FERVENZA, 2022).
Ao primeiro olhar (e menos atento), o signo pode ser reconhecível. No entanto, nos
momentos que se seguem, desperta um maior envolvimento, nascendo, então, as proposições
desejadas pelo artista. Rancière (2009b, p. 15), nesse sentido, afirma: “o fato poético está
ligado a essa identidade de contrários, a essa distância entre uma palavra e aquilo que ela diz,
e penso então que nesta distância moram os possíveis”.
Para Foucault, as palavras que significam as coisas são substantivos (2016, p. 137).
Democracia pertence a essa classe gramatical: um substantivo feminino, que, em sua função
taxinômica, denomina um regime político no qual a vontade do povo é soberana. Sob a luz de
seu significado, e obedecendo a linguagem à lei das representações, a desconfiguração
apresentada na sua escrita mostra-nos uma realidade contextual e política, na qual a obra está
inserida, inserindo-se no tempo como um registro histórico.
Qual a distância entre a essência da palavra democracia e seu entendimento para nós?
A desordem funciona assim como um elemento ressignificante, no sentido que desfaz a
ordenação da representação, fazendo surgir uma verdade inconsciente. “Locale Signale”,
título da exposição, traduzido para o português, significa: sinal de localidade (tradução nossa).
A expressão evoca um sentido de territorialidade, remete ao Brasil e à atual deturpação do
sentido da palavra democracia. No entanto, não se refere apenas ao Brasil, afirma o artista,
que prossegue:
Para Walter Benjamin, “não se pode pensar as artes e a estética sem levar em conta a
política” (2022, p. 26). Mais de cinco décadas nos separam do golpe de 1964 e ainda são
68
necessárias reflexões sobre os sentidos que envolvem a ideia de democracia. A obra de Hélio
nos alerta para tal dicotomia:
Esse tipo de alteração nas palavras tem me interessado, por proporcionar a abertura
de um campo de investigação e criação, e por possibilitar abordar essa terrível
desorientação produzida no cotidiano e em todas as instâncias de nossa vida nos
últimos anos, a partir da degradação da linguagem, da confusão dos significados
mais básicos, e da corrosão dos sentidos. É como se a linguagem tivesse
enlouquecido, e as palavras seguidamente não correspondessem mais com as coisas
do mundo. No meu entender, é um trabalho sintomático da deterioração política e da
violência fascista em que estamos mergulhados (FERVENZA, 2022).
Democracia nos alerta que, embora sejamos parte de um todo, a memória social tem
sua partilha. A partir dos indivíduos, constrói-se o social, com o qual todos colaboram e do
qual todos dependem ao mesmo tempo. Além da palavra, a obra é constituída por sinais de
pontuação. Sobre a parede cinza, o artista insere uma vírgula em tamanho ampliado e, na cor
branca, o elemento ganha destaque. Apresentamos, a seguir, a fala do artista alemão Ottjörg
A.C. (nascido em Heidelberg no ano de 1958), que compôs a exposição juntamente com
Hélio. Suas reflexões são importantes para a compreensão do trabalho do artista:
(FERVENZA apud BLAUTH, 2013, p. 48). Podemos ler tais elementos como fronteiras,
intervalos de tempo ou espaço e, ainda, como uma pausa entre uma ideia e outra. Na arte,
cada elemento compreende um significante ao olhar atento: “A arte existe a partir do
momento em que o olhar tem por objeto um significante” (BARTHES apud CANONGIA,
2005, p. 46).
Hélio Fervenza leva a Berlim reflexões sobre o contexto social e político brasileiro,
mas que não configuram uma situação exclusiva local:
A obra Democracia foi pensada para o espaço Roam, levando em conta suas
dimensões, a altura das paredes (bem altas!), a posição na sala, o espaço vazio em
baixo da palavra, a cor das letras (brancas para realçar sobre o fundo cinza do
cimento), e ao mesmo tempo, refletia sobre algo que não era específico à esse
espaço, e que é essa espécie de desorientação e perturbação da linguagem, e do
sentido e reconhecimento da Democracia. A palavra foi propositalmente escrita em
português porque é uma ressonância do que estamos vivendo aqui, mas essa crise
não é só brasileira, como podemos verificar em muitos outros países (FERVENZA,
2022).
Assim como no Brasil, em outros países, a democracia tem lutado para manter-se viva.
Hélio Fervenza torna a palavra uma imagem, um reflexo da desorientação que observa na
sociedade, o que ainda podemos entender como desdobramento dos acontecimentos no
período do governo ditatorial. Além disso, a maneira como foram tratadas, como também já
mencionamos, as políticas de apagamento da memória de violência têm tido êxito sobre
grande parte da população, motivos que justificam trabalhos e pesquisas como esta. Na Figura
19, uma fotografia em preto e branco, vemos o artista ao lado da palavra ainda no chão.
A palavra, como signo, designa algo. No entanto, a obra Democracia nos remete ao
pensamento de Foucault: “Se, no fundo de si mesma, a linguagem tem como por função
nomear, isto é, suscitar uma representação ou como que mostrar a com o dedo ela é indicação
e não juízo” (2016, p. 146).
Democracia é um desdobramento da obra Tempos Reversos, apresentada em Porto
Alegre na Galeria Mamute, no ano de 2018, na qual Hélio constrói textos que se fazem
imagem. A proposta é uma hipótese da possibilidade de se retornar ao momento antes de um
fenômeno, uma reconfiguração de continuidades desejáveis, talvez o Brasil antes de 1500
como observa Eduardo Veras (2018).
Na Figura 20, podemos observar já a palavra democracia escrita de trás para frente
com sua posição invertida, de cabeça para baixo. Podemos ver, também, os sinais de colchetes
e a vírgula presentes na obra Democracia. Tempos reversos apresenta-se, então, como um
prelúdio dos desdobramentos que se seguem no contexto que estimula o artista a desenvolver
a obra que aqui analisamos.
De forma poética e sensível, a obra do artista Hélio Fervenza convida a uma leitura
atenta de nosso contexto social e político atual. Ainda que grande parte das pessoas não
reconheça a herança violenta que regimes autoritários deixam em sua sociedade, por apatia ou
indiferença, a imagem da obra nos fornece tal conhecimento em seu conjunto de elementos a
partir os quais podemos refletir sobre estes aspectos.
72
11
Como dito anteriormente, trata-se do nome artístico de Manoela Farias Nogueira. Nas citações e referências
deste trabalho, usamos o nome que consta em sua dissertação e, ao tratar da sua obra, em nosso texto, usamos
o seu nome artístico.
12
Militante torturado político (MAIA, 2015).
73
qual a artista imprime parte do depoimento que ouvira de um ex-guerrilheiro. A escuta, cabe
esclarecer, aconteceu por acaso e despertou memórias pessoais da artista. A frase inserida
sobre o móvel com uma mistura de cera de abelha, parafina, breu e pó xadrez, é parte do
depoimento de Paulo de Tarso Carneiro, ex-militante, sobre o período em que esteve detido.
A narrativa, assim como a memória da violência sofrida, ganha materialidade. Nesse
sentido, sua essência é testemunho reavivado. Isso se relaciona com a seguinte afirmação:
“Escrita não quer dizer simplesmente uma forma de manifestação da palavra. Quer dizer uma
ideia da própria palavra e de sua potência intrínseca (RANCIÈRE, 2009b, p. 17).
De acordo com Elizabeth Jelin (2002, p. 16), no plano coletivo, há um grande desafio
de superar os esquecimentos e abusos políticos, distanciando-se, mas ao mesmo tempo é
necessário promover debates e espaço de reflexões ativas sobre o passado de trauma, e seu
sentido para o futuro.
A imagem da Figura 22 mostra a artista quando construía a obra. O guarda-roupas de
madeira está deitado ao chão para possibilitar organização e fixação do texto. Aos pés do
móvel, Manoela organiza o texto em papel pardo e formas de plástico vermelhas. A tarefa
levou alguns dias, pela dificuldade e duração do processo.
De acordo com Manoela, os Epigramas (2021) revelam o que está por baixo de
camadas de cidade. O texto inserido pela artista identifica um espaço e age como um
determinante. A partir da leitura, não será só mais um lugar: estará, agora, na memória do
leitor como o local indicador de um fato. Não será possível apagar essa memória revelada,
ainda que, com o tempo e suas intempéries, as letras se apaguem. Nesse sentido,
apresentamos a Figura 25, a seguir.
77
13
Depoimentos das vítimas bem como a narrativa da artista sobre este momento, estão em sua dissertação, cuja
referência está na bibliografia deste texto.
78
Na Figura 26, o Epigrama com a frase “Banho de Sol” é inscrito em uma parede com
a pintura desgastada e diversas rachaduras. O pequeno texto identifica o local onde os presos
políticos ficavam ao ar livre.
79
Em Lugar Nenhum - Onofre, José, Enrique, Joel, Daniel e Víctor, Manoela adentra a
Mata Nacional do Iguaçu, localizada no estado do Paraná, levando em suas mãos ossos de
cerâmica, que intencionava prender às árvores com estruturas de cobre, procurando indícios
do provável local de desaparecimento dos cinco ex-guerrilheiros que dão nome à obra.
O trabalho consiste em instalações que a artista e sua equipe realizaram às margens do
lago Itaipu e na Mata Nacional do Iguaçu, reconstruindo um caminho por locais prováveis do
assassinato e desaparecimento de Onofre Pinto, José Lavecchia, Enrique Ruggia, Daniel
Carvalho, Joel Carvalho e Víctor Ramos, ex-guerrilheiros.
Nessas instalações, a artista buscou os locais dentro da mata que a remetessem, de
alguma forma, a cada um do grupo, através das informações que coletou durante a pesquisa e
a viagem. Escolhido o local, ela depositou os ossos e letras em bronze que formavam o nome
de cada uma das vítimas e fez um registro fotográfico. Na sequência, recolheu as letras que,
depois, compuseram a exposição no Museu de Arte Contemporânea do estado do Paraná
(MAC-PR).
Para Manoela, o ritual se tornou uma forma de conferir uma lápide mínima à memória
daqueles que a história esqueceu. O trabalho seria, em sua primeira versão, uma continuidade
de Epigramas. No entanto, a artista tomou conhecimento da história das vítimas do Massacre
do Iguaçu, ocorrida em 1974, uma emboscada para militantes que estavam na Argentina
(NOGUEIRA, 2021). Outras lembranças surgiram de sua pesquisa quando conheceu a
sobrinha de uma vítima que narrou sua vontade e dificuldade de fazer uma busca pelos rastros
do tio desaparecido, por um mateiro no rio Araguaia. Então, a obra começa a constituir-se, de
memória em memória, de história em história.
De acordo com Rancière: “Estética designa um modo de pensamento que se
desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas
do pensamento” (2009a, p. 12). Nesse sentido, os trabalhos apresentados nesta pesquisa
configuram um pensamento da arte sobre esses aspectos do político e social brasileiro, tanto
na esfera das práticas que partem do Estado, quanto na participação civil.
Os ossos foram uma solução também para o medo de perder-se na mata. Deixar trilhas
de ossos de cerâmica, que se decomporiam, misturando-se com o local, mas eles são um signo
de um corpo que já foi vivo. O fêmur, em especial, é associado ao movimento e há nele,
ainda, uma carga de significantes a mais. Na Figura 27, observamos o registro do primeiro
nome a quem é reconstruída a memória, às margens do rio Itaipu, a lápide é erguida.
80
Figura 27 – Manoela Cavalinho, Onofre, José, Enrique, Daniel, Joel e Víctor, 2021
Na fotografia colorida, a luz natural realça o nome ONOFRE, nas letras em cobre, e os
10 metros de tripa seca deitam sobre o chão de cerâmica já gasto, o facho de luz que entra
pela janela não cobre toda a área fotografada, deixando uma boa parte à sombra. No entanto, a
ação precisa seguir, os outros cinco memoriais serão feitos na mata, no outro dia, o que é
mostrado na imagem reproduzida na Figura 28.
81
Figura 28 – Manoela Cavalinho, Onofre, José, Enrique, Daniel, Joel e Víctor, 2021.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos nos primeiros capítulos, as memórias sobre o período da ditadura civil-
militar brasileira (1964-1985) e sua herança traumática não são hegemônicas. Estão, ainda,
em disputas, nas quais a memória que se configura em momentos traumáticos da história de
uma sociedade forma profundas divisões ideológicas. No contexto da ditadura civil-militar
brasileira, “a que prevalece é fundamentalmente uma memória liberal, que tende a privilegiar
a estabilidade institucional e criticar as opções radicais e extra institucionais”
(NAPOLITANO, 2014, p. 371-372).
Nesse cenário construído e cimentado pela Lei de Anistia, as memórias das vítimas de
tortura, bem como de familiares de desaparecidos, lutam para se afirmar. Nessa batalha,
entram em ação fatores já mencionados anteriormente, como a fragilidade de relações que
formam o ponto de contato do individual com o grupo, bem como a marginalização de
qualquer pessoa que se opusesse ao governo. Trata-se de fatores que convergem para uma
cacofonia de entendimentos sobre o que significa um regime democrático ou um governo
ditatorial, reverberando na nossa sociedade atual.
Essas memórias passam por processos de ressignificação, como afirma Elisabeth Jelin.
A autora aponta as complexidades na subjetividade das memórias sobre episódios sociais
traumáticos: novas conjunturas sociais e políticas não deixam de produzir modificações nos
marcos interpretativos na compreensão de experiências passadas e para construir expectativas
futuras (JELIN, 2002, p. 13, tradução nossa)14.
As obras aqui apresentadas não têm intencionalidade cumulativa, mas sim de
apresentar múltiplos olhares e vivências sob um mesmo tema, nos dando elementos de análise
14
Texto no idioma original: “Nuevos procesos históricos, nuevas coyunturas y escenarios sociales y políticos,
además, no pueden dejar de producir modificaciones en los marcos interpretativos para la comprensión de la
experiencia pasada y para construir expectativas futuras” (JELIN, 2002, p. 13).
83
Artur Barrio expande as fronteiras da arte ao tornar o corpo e o espaço meio de suporte
para sua obra. Ao explorar novas formas de linguagem e expressão, denuncia a violência e a
precariedade da vida durante o regime militar. Denuncia, ainda, a morte e o desaparecimento.
Propondo uma nova estética visual, seu trabalho explora novas linguagens e formas de
expressão, rompendo os paradigmas da produção artística em voga. Ele instaura, através de
seus Manifestos, uma relação de proximidade com o público, contrariando a mensagem do
governo de que o país ia de vento em popa no aspecto econômico. Para tanto, faz uso de
materiais precários, restos e sobras.
A obra de Carlos Zílio tenta dar conta do testemunho do horror desumano da tortura
aplicada amplamente nos porões da ditadura. Ele abandonou a arte momentaneamente para
militar e recomeçou seus desenhos de dentro mesmo da prisão, materializando memorias com
lápis de cera, papel e tinta. Assim, encontrou na arte formas de viver com o trauma. O artista,
ademais, questiona o objeto artístico e faz dele um chamamento à sociedade civil. Via uso do
simbolismo que carrega cada elemento, luta contra o regime opressor, a inércia social e a
impunidade. Além disso, ele faz da fotografia uma denúncia de grande poder de
comunicabilidade entre os elementos, carregada da realidade de quem sofre a tentativa de
apagamento, referência aos mortos e presos políticos desaparecidos.
A memória do trauma ressurge de tempos em tempos e, assim, fomos construindo uma
linha temporal que chega a obras de Tchello d’Barros. Seu poema visual e, inclusive, sonoro,
reproduz "ra ta ta ta", que não nos deixa esquecer da violência que oprime a sociedade e ecoa
nas lembranças que emergem. Nesse sentido, cabe lembrar: “as imagens assim como as
palavras, são a matéria da qual somos feitos” (MANGUEL, 2001, p. 21). Assim, a proposta
que se configura nesta dissertação é ir além do pensamento: a palavra quando se faz imagem
excede a bidimensionalidade.
Democracia, de Hélio Fervenza, relaciona-se com o espaço e com o observador,
estabelecendo um diálogo que parte do estranhamento, indo ao fundo da semântica da
linguagem. Relembra que a sociedade atual se perdeu no emaranhado de significados
confusos sobre as palavras que as cercam, que as compõem e que estruturam suas bases.
85
Toda obra de arte, portanto, precisa ser entendida não só como uma transposição,
mas também como uma maneira de lidar com o inefável. Na arte mais excelsa,
está-se sempre ciente de coisas que não podem ser ditas (as regras do “decoro”), da
contradição entre expressão e presença do inexprimível. Os recursos estilísticos são
também técnicas de esquivamento. Os elementos mais poderosos numa obra de arte
são, muitas vezes, seus silêncios (SONTAG, 2017, p. 53).
tempo ou a qualquer época. Refere-se a um determinado evento que marca a história moderna
do Brasil.
Hélio Fervenza utiliza da visualidade da linguagem para convocar a atenção aos ruídos
nas concepções de sentido, dialoga com o espaço, o que se dá via sinais e pausas, cor e
organização de elementos. Além da palavra, seu trabalho usa dos sinais – na objetividade e
simplicidade deles, muitas coisas cabem, tais como uma pausa, um parêntese, uma repetição
talvez.
Nos trabalhos de Manoela Cavalinho, a obra se desenvolve a partir da linguagem. As
palavras/testemunho ganham materialidade com a mistura de cera quente. Além do mais,
locais públicos quaisquer se tornam um espaço político identificado como cenário de
histórico. Destacamos, ademais, que nesses dois trabalhos a artista aproxima-se muito do
trabalho de Artur Barrio. Ela insere seu corpo dentro do armário, assim como Barrio insere
seu corpo na construção das trouxas. Desse modo, interfere no espaço público identificando
este como espaço político e, por fim, denuncia a desaparição. Não há, portanto, como negar o
conhecimento sobre o que houve ao nos depararmos com o trabalho destes dois artistas.
As barreiras e hierarquia se dissolvem, imagem, linguagem, objeto e o espaço físico,
são todos eles elementos estruturantes da obra. Do texto de artista ao texto como obra, os
trabalhos constroem uma narrativa que obedece somente à intuição e ao pensamento do ato
criador. Como afirma Ricardo Basbaum (2007), ainda existe um espaço a ser ocupado pela
arte dentro das novas articulações de pensamento.
87
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jan. 2023. Zilio (202-).
91
APÊNDICES
Apresentamos, aqui, a íntegra dos textos das mensagens trocadas com os artistas
Tchello d’Barros e Hélio Fervenza, para que leitores tenham acesso ao material. Cabe destacar
que as mensagens representam parte fundamental na condução da narrativa.
“Tchello d’Barros:
(Cristiane 26.07.2022):
Olá Tchello, tudo bem? Seu poema Soneto da Ditadura me despertou especial
interesse, neste momento de tensões políticas e outras tantas, estarei abordando especialmente
as artes que referem-se ao período ditatorial Brasil (64 a 85), embora seu trabalho tenha data
de 2001, acredito que ele faça referência à este período nebuloso. Gostaria se possível, de
saber o que o levou a construir este trabalho naquele momento e um pouco mais sobre seu
processo de criação. Você estava no Brasil naquele momento.
emergindo uma criação, ora mais verbal, ora mais visual, que posteriormente recebe um
layout, o arquivo final.
Sugiro especial atenção na cronologia da época, pois salvo engano, o período de
inflação galopante terá sido já no 1º mandato pós-ditadura (Sarney).
Tomo a liberdade de anexar - além do arquivo original do poema, em alta resolução -
recente ensaio (na UFRJ) sobre minha produção em Poesia Visual, que talvez lhe
complemente sua abordagem sobre meu trabalho em questão.
Para qualquer dúvida, ou informação complementar, estou à disposição. Conte
comigo!
Abç!
Tchello d'Barros. ”
“Hélio Fervenza
(Cristiane 27.08.2022)
Olá, Hélio, tudo bem?
Entro em contato porque estou construindo dissertação de mestrado, é uma
continuidade do trabalho de conclusão de curso, em que abordo as relações entre palavra e
imagem. Gostaria de falar sobre sua obra que participou da exposição Lokale Signale em
Berlim em 2001. Neste sentido, gostaria de lhe perguntar o que o motivou a desenvolver o
trabalho, e lhe pedir se tens imagens para serem inserias na pesquisa, serão acompanhadas de
leitura e reflexão.
(Hélio 07.09.2022)
Olá Cristiane,
Na obra "Democracia: " faço alterações na posição das letras, invertendo e mudando
suas posições, de maneira a produzir erros propositais em sua escrita, e a perturbar sua leitura
e seu reconhecimento. Essas alterações possibilitam talvez colocarmo-nos algumas questões,
como por exemplo: Ao que realmente essa palavra se refere? O significado continuaria ainda
conectado à palavra? Ele é ainda reconhecível? O trabalho apontaria nele mesmo uma
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incongruência? Um outro significado surgiria dessa escrita equivocada? Como essa forma de
escrita poderia interpelar nosso imaginário?
Esse tipo de alteração nas palavras tem me interessado, por proporcionar a abertura de
um campo de investigação e criação, e por possibilitar abordar essa terrível desorientação
produzida no cotidiano e em todas as instâncias de nossa vida nos últimos anos, a partir da
degradação da linguagem, da confusão dos significados mais básicos, e da corrosão dos
sentidos. É como se a linguagem tivesse enlouquecido, e as palavras seguidamente não
correspondessem mais com as coisas do mundo. No meu entender, é um trabalho sintomático
da deterioração política e da violência fascista em que estamos mergulhados.
A obra "Democracia: " foi desenvolvida a partir de obras anteriores apresentadas na
exposição "Tempos Reversos" realizada na Galeria Mamute, em 2018. Sobretudo tem relação
com algumas obras impressas com carimbos que ali mostrei. Envio em anexo algumas
imagens dessas obras e também um folder eletrônico que foi produzido na ocasião.
Um abraço,
Hélio
(Cristiane, 22.12.2022)
Olá, Hélio, como vai?
Espero que esteja bem. Retomo minha escrita sobre seu trabalho, e surgem mais
dúvidas, ficarei grata se puder me auxiliar.
Gostaria de te perguntar se a obra Democracia foi pensada e realizada para o espaço
Roam em específico. Para ser fidedigna à sua descrição.
Pesquisando encontrei a fala do artista que fez a exposição contigo Ottjörg A.C.:
"Hélio, quando criança e adolescente, podia perceber claramente como as fronteiras
são uma vez fortes e depois morrer novamente, como a percepção do espaço e do tempo são
influenciadas pelas condições um do outro. Mesmo que seu pai o considerasse um sonhador,
ele, como um espírito livre, escolheu o espaço de arte ocasionalmente ainda livre, e encontrou
belas poéticas pelas quais ele tenta lidar com os absurdos do nosso tempo. " A fala é bastante
íntima, se não for invasivo, gostaria de perguntar se vocês já se conheciam e haviam
trabalhado juntos? Penso em citá-la quando apresento uma breve biografia sua, pela questão
de seu nascimento em uma cidade de fronteira com outro país, e de características tão
diferentes de uma capital, como Porto Alegre.
Peço desculpas pelo e-mail tão próximo de datas festivas e do período de férias.
Abraços,
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Cristiane
(Hélio 22.12.2022)
Sim, a obra Democracia foi pensada para o espaço Roam, levando em conta suas
dimensões, a altura das paredes (bem altas!), a posição na sala, o espaço vazio em baixo da
palavra, a cor das letras (brancas para realçar sobre o fundo cinza do cimento), e ao mesmo
tempo, refletia sobre algo que não era específico à esse espaço, e que é essa espécie de
desorientação e perturbação da linguagem, e do sentido e reconhecimento da Democracia. A
palavra foi propositalmente escrita em português porque é uma ressonância do que estamos
vivendo aqui, mas essa crise não é só brasileira, como podemos verificar em muitos outros
países.
No período em que o trabalho foi concebido foram feitos muitos estudos e simulações
em 3D a partir das plantas e cortes arquitetônicos do espaço Roam, e para isso contei com a
ajuda de meu amigo Valdir Lara de Andrade Jr., e também com a colaboração de Richard
John para o design gráfico do texto. Esses estudos ajudaram muito. Entretanto na hora da
montagem houveram algumas pequenas alterações nas distancias em relação às paredes,
devido as juntas do concreto. Envio em anexo uma vista simulada e o projeto, ambos
graficados pelo Valdir a partir de rascunhos anteriores.
A obra Democracia pode ser apresentada em outros espaços, e para isso será
necessário levar em conta as características desse outro espaço expositivo. Isto quer dizer que
a obra se relaciona e surge dessa relação com um espaço dado, mas ela não é exclusiva de um
único espaço. Essa maneira de pensar e agir não ocorre somente com a obra Democracia, ela
é constante nas minhas apresentações e exposições.
Penso que você pode incluir o texto dele na sua pesquisa, mas é necessário que seja
feita uma revisão da tradução, de preferência por alguém da área. Irei viajar amanhã, e
voltarei em meados de janeiro. Até lá provavelmente estarei "fora do ar".
Obrigado uma vez mais pelo seu interesse pelo meu trabalho.
Um abraço, e boas festas de final de ano!
Hélio”