Versão Final - Cristiane-2

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UNIVERSIDADE FEEVALE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS

CRISTIANE FATIMA LAWALL

AINDA SOMOS SUBVERSIVOS: ARTE CONTEMPORÂNEA NO BRASIL


CONTRA A NORMALIZAÇÃO E O ESQUECIMENTO DA MEMÓRIA DE
VIOLÊNCIA

Novo Hamburgo

2023
CRISTIANE FATIMA LAWALL

AINDA SOMOS SUBVERSIVOS: ARTE CONTEMPORÂNEA NO BRASIL


CONTRA A NORMALIZAÇÃO E O ESQUECIMENTO DA MEMÓRIA DE
VIOLÊNCIA

Dissertação apresentada como requisito parcial


à obtenção do grau de Mestra em Processos e
Manifestações Culturais da Universidade
Feevale.

Orientação: Professora Dra. Laura Ribero Rueda

Coorientação: Professor Dr. Rodrigo Perla Martins

Novo Hamburgo
2023
CRISTIANE FATIMA LAWALL

Dissertação do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, intitulada “Ainda


somos Subversivos: arte contemporânea no Brasil contra a normalização e o esquecimento da
memória de violência”, submetida à banca examinadora como requisito parcial à obtenção do
título de Mestra.

Aprovada por:

______________________________
Profa. Dra. Laura Marcela Ribero Rueda (orientadora)
Universidade Feevale

______________________________
Prof. Dr. Rodrigo Perla Martins (coorientador)
Universidade Feevale

______________________________
Prof. Dr. Rodrigo Montero
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

______________________________
Prof. Dr. Walter Karwatzki Chagas Maffazzioli
Universidade Feevale

Novo Hamburgo, março de 2023.


AGRADECIMENTOS

Agradeço às minhas filhas, Victória, Natália e Rafaela, pela paciência e apoio durante
o tempo desta pesquisa, pelo amor que nos sustenta a cada dia, e impulsiona a seguirmos
sempre em frente.
Agradeço muito à professora Laura, por sua sensibilidade, e olhar atento, orientando
meu trabalho desde sua vaga ideia inicial.
Ao professor Rodrigo Perla, que, sob a luz do olhar de historiador, orientou-me e
acompanhou pacientemente nesta odisseia, de abordar um assunto tão complexo e sensível
quanto urgente que vai além de minha área de conhecimento, imagino que tenha lhe dado
alguns sustos.
Ao professor Rodrigo Montero, pelo compartilhamento de suas observações e
reflexões sobre esta traumática experiência que compartilhamos em nossos países
possibilitando-me uma mais ampla compreensão das complexidades que envolvem o tema.
Aos artistas Tchello D’Barros, Hélio Fervenza e Manoela Cavalinho que generosa e
prontamente responderam às minhas perguntas sobre seus trabalhos, respostas estas, que
iluminaram a leitura e análise das obras aqui apresentadas.
Agradeço aos professores e colegas de curso, pelos aprendizados compartilhados e
diálogos cheios de emoção. Obrigada.
Curso realizado com o apoio financeiro Proppex – Universidade Feevale.
“Nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria, quando

a arte não precisava de justificativa, quando ninguém perguntava o que uma obra de arte

dizia porque sabia (ou pensava que sabia) o que ela realizava.”

(SONTAG, 1987, p. 13).


RESUMO

Nesta pesquisa, apresentamos a leitura e análise de práticas artísticas que abordam a


violência da ditadura civil-militar brasileira (1964 a 1985), caracterizados naquele momento
pela denúncia e testemunho do cenário social e político, bem como trabalhos realizados mais
recentemente como um ato de contramedida ao apagamento da memória da violência. Dentro
deste escopo, as obras analisadas se caracterizam pelas inter-relações que formam entre texto
e elementos visuais. No Brasil, as políticas de transição de governos pós ditadura civil-militar
contribuem para o esquecimento do trauma coletivo e individual. Nesse sentido, acreditamos
ser relevante abordar a construção e manutenção dessas memórias. Tal abordagem é orientada
pelos autores Maurice Halbwachs e Michael Pollack. As obras analisadas constroem uma
linha do tempo que demonstra a continuidade da violência. Iniciamos com obras de Artur
Barrio e Carlos Zílio, produzidas entre os anos 1967 e 1974, dando continuidade através do
poema visual de Tchello d’Barros, realizado no ano de 2021, e as produções de Hélio
Fervenza, 2021 e Manoela Cavalinho dos anos de 2019 a 2021. A metodologia utilizada é a
leitura e análise das obras, orientada pelos autores: Ligia Canongia (2005), Frederico Morais
(1970), Artur Freitas (2007) Jan Mukarovsky (1997), Jacques Rancière (2009ª, 2009b, 2012)
e Ricardo Basbaum (2007).

Palavras-chave: Arte Contemporânea Brasileira. Memória. Ditadura civil-militar.


ABSTRACT

In this research we present the reading and analysis of artistic practices that address
the violence of the Brazilian civil-military dictatorship (1964 to 1985), characterized at that
time by denunciation and testimony of the social and political scenario, as well as works made
more recently as an act of countermeasure to the erasure of the memory of violence. Within
this scope, the works analyzed are characterized by the interrelationships they form between
text and visual elements. In Brazil, the transition policies of governments after the
civil-military dictatorship contribute to the forgetting of trauma, both collective and
individual, in this sense we believe it is relevant to address the construction and maintenance
of these memories, such an approach is guided by authors Maurice Halbwachs and Michael
Pollack. The works analyzed build a timeline that demonstrates the continuity of violence,
starting with works by Artur Barrio and Carlos Zílio, produced between 1967 and 1974,
continuing through the visual poem by Tchello d'Barros, made in the year 2021 and the
productions of Hélio Fervenza, 2021 and Manoela Cavalinho from the years 2019 to 2021.
Using as methodology the reading and analysis of the works guided by the authors: Ligia
Canongia (2005), Frederico Morais (1970), Artur Freitas (2007) Jan Mukarovsky (1997),
Jacques Rancière (2009, 2012) and Ricardo Basbaum (2007).

Keywords: Brazilian Contemporary Art. Memory. Civil-military dictatorship.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa da revista Pif Paf 1ª edição 1 a 21 de maio de 1964 22


Figura 2 – Evandro Teixeira, sem título, 1968 23
Figura 3 – Artur Barrio, NADA /... palavra escrita s / cartão mais pó de café .... //// 2018 32
Figura 4 – Artur Barrio, Cadernosliros, 1978 32
Figura 5 – Artur Barrio, SITUAÇÃO T/T1 1ª parte, 1970 35
Figura 6 – Registro do procedimento e materiais 36
Figura 8 – Fotografia do público 37
Figura 7 – Artur Barrio, SITUAÇÃO T/T1 2ª parte, 1970 37
Figura 9 – Artur Barrio, SITUAÇÃO T/T1 3ª parte,1970 38
Figura 10 – Carlos Zílio, Para um jovem de brilhante futuro, 1974, fotografia 18 x 24 cm. 44
Figura 11 – Carlos Zílio, Estudo 9, 1970, lápis de cor sobre papel 47 x 32,5 cm 46
Figura 12 – Carlos Zílio, A Quase Partida, 1970, 47 x 32 cm 47
Figura 13 – Carlos Zílio, Visão Total, 1966, Vinílica sobre madeira, 84 x 73 cm 49
Figura 14 – Carlos Zílio, Lute (marmita), 1967, alumínio, plástico, resina plástica, 18x10 cm,
5x5cm. 52
Figura 15 – Identidade Ignorada, Carlos Zílio, 1973, fotografia, 18x24 cm 54
Figura 16 – Soneto da Ditadura, Tchello d’Barros, 2001 60
Figura 17 – Hélio Fervenza, Democracia, 2021 64
Figura 18 – Hélio Fervenza, Democracia, 2021 66
Figura 19 – Hélio Fervenza, Democracia, 2021 68
Figura 20 – Hélio Fervenza, Série Inversões,46 x 60 cm e 40 x 55 cm, 2018 69
Figura 21 – Hélio Fervenza, relógios, 2015. 70
Figura 22 – Manoela Cavalinho, Esqueleto no guarda-roupa, 2021 72
Figura 23 – Esqueletos no guarda-roupa, Manoela Cavalinho, 2021 73
Figura 24 – Manoela Cavalinho, Epigramas, 2019 75
Figura 25 – Manoela Cavalinho, Epigramas, 2020 76
Figura 26 – Manoela Cavalinho, Epigramas, 2022 77
Figura 27 – Manoela Cavalinho, Onofre, José, Enrique, Daniel, Joel e Víctor, 2021 79
Figura 28 – Manoela Cavalinho, Onofre, José, Enrique, Daniel, Joel e Víctor, 2021 80
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10
2 DO PARTICULAR AO COMUM: A ARTE COMO ATO DE CONTRAMEDIDA AO
APAGAMENTO DA MEMÓRIA DE VIOLÊNCIA 13
2.1 MEMÓRIA E SOCIEDADE 13
2.2 CONSTRUÇÃO DA DESMEMÓRIA SOCIAL: COMO ELES AGEM 16
2.3 A VISIBILIDADE DA IMAGEM AO NÃO APAGAMENTO DA MEMÓRIA DE
VIOLÊNCIA 21
3 O QUE PODE A ARTE CONTRA A NORMALIZAÇÃO E O ESQUECIMENTO DA
VIOLÊNCIA 26
3.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE E LEITURA DAS OBRAS 26
3.2 A ÉTICA DA ESTÉTICA NA OBRA DE ARTUR BARRIO 29
3.2.1 Artur Barrio: transgressor e revolucionário 29
3.2.2 Trouxas ensanguentadas: a visualidade da violência 34
3.2.3 A apropriação da Palavra na obra de Barrio 41
3.3 CARLOS ZÍLIO: ARTE-MILITÂNCIA-TESTEMUNHO 43
3.3.1 Arte e militância política 43
3.3.2 Luta e desaparecimentos 47
3.3.3 Onde enterraram nossos mortos 53
4 COMO NAQUELE TEMPO: ARTE E POLÍTICA NA PRODUÇÃO DAS ARTES
VISUAIS HOJE 57
4.1 A VISUALIDADE E A PALAVRA NA POESIA DE TCHELLO D’BARROS 58
4.1.1 A infância entre o desenho e a letra 58
4.1.2 A sonoridade da imagem 59
4.2 HÉLIO FERVENZA: OS (DES) ENTENDIMENTOS DA LINGUAGEM 62
4.2.1 Um artista em diálogo com o espaço 63
4.2.2 Da subversão do signo à apreensão do sentido 63
4.3 MANOELA CAVALINHO: POR UM OUTRO OLHAR 71
4.3.1 Esqueletos no guarda-roupa: da memória da infância à impossibilidade de
insurgência ao passado 71
4.3.2 Epigramas: Uma topografia memorialística 74
4.3.3 Lugar Nenhum - Onofre, José, Enrique, Joel, Daniel e Víctor 78
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 81
REFERÊNCIAS 86
APÊNDICES 90
11

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa surge como um desdobramento do meu Trabalho de Conclusão de Curso


de graduação em Artes Visuais, no qual abordo as relações que se formam entre a palavra e
imagem na passagem dos períodos modernos ao contemporâneo. Nesse contexto, as artes
visuais passaram por profundas mudanças. Um dos principais propulsores de tais
transformações foi o Dadaísmo, movimento de vanguarda europeia. Esse movimento
promove uma hibridização de meios expressivos nas produções artísticas e se caracteriza por
suas fortes críticas à incoerência e à violência da primeira guerra mundial.
Este trabalho tem como objetivo analisar produções visuais de cinco artistas em dois
contextos diferenciados. No primeiro contexto temos as obras realizadas por Artur Barrios no
ano de 1970 e duas obras de Carlos Zilo realizadas entre 1967 e 1974. Estas obras têm como
tema a ditadura civil-militar. A arte por muitas vezes, tem sido indispensável instrumento de
reflexão e resistência da sociedade sobre sua realidade, o que ocorre não só, mas
potencialmente, em momentos de crises sociais e políticas. Entre eles, cabe citar: governos
opressores, autoritários e suas heranças violentas.
Esta pesquisa se justifica pelas relações que estabelece entre um momento histórico de
mais de cinco décadas passadas e produções nas artes visuais atuais, como uma tentativa de
compreensão dos fatores que promoveram tal continuidade no Brasil. A busca é por
identificar os meios que artistas encontraram para dar visibilidade ao terror de Estado
implementado pelo governo militar. Nesse sentido, as obras aqui apresentadas constroem uma
linha temporal de denúncia, testemunho e exercícios de memória de vítimas daquele período,
muitas das quais ainda constam como desaparecidas.
A passagem do período moderno ao contemporâneo é marcada por profundas
transformações nas artes visuais, período que compreende os finais dos anos de 1960 e início
dos anos de 1970. Ao incorporar tais transformações, os artistas apropriam-se dessas
inovações e buscaram dar materialidade ao contexto social e político do País aqui em questão,
aspecto analisado nas obras produzidas no período ditatorial até os trabalhos mais atuais
apresentados nesta dissertação. Como instrumentos de análise, são exploradas as
possibilidades que se apresentam ao artista quando incorpora ao seu trabalho o signo gráfico.
Nesse sentido, todas as obras aqui apresentadas e analisadas integram a palavra como
elemento constituinte.
A metodologia deste estudo compreende uma leitura de aspectos formais das obras,
bem como sua contextualização social e histórica. Via análise de seus aspectos conceituais,
12

refletimos sobre as escolhas do artista. No Brasil, cabe reforçar, a política de transição que
segue após o término da ditadura civil-militar é marcada por tentativas de apagamento dos
crimes cometidos. Dessa maneira, esta pesquisa se justifica também por se apresentar como
uma tentativa de dar visibilidade a obras que problematizam a questão.
O texto está organizado em quatro capítulos. O primeiro aborda a construção da
memória social e individual, trazendo a compreensão sobre como são construídas as
memórias de grupos e indivíduos dentro de uma sociedade. As bases teóricas para tanto são os
autores Maurice Halbwachs (2006), Michael Pollak (1989), que conduzem a percepção de
políticas de desmemória utilizadas como práticas implementadas pelo terror de Estado.
Buscamos, ainda, compreender a contextualização do golpe que estabeleceu a ditadura
civil-militar de 1964, como foi instaurado, bem como a forma pela qual foi retratado e
divulgado.
No segundo capítulo, apresentamos a obra de Artur Barrio, realizada no ano de 1970.
O artista luso-brasileiro incorporou, em sua produção, meios e suportes distintos, na tentativa
de sensibilização quanto à normalização da violência. Ainda nesse capítulo, analisamos dois
trabalhos de Carlos Zílio, de 1967 e 1974, realizados anterior e posteriormente à sua prisão
como militante político. Para refletir sobre seus elementos simbólicos, usamos outras criações
dos artistas nos quais alguns signos se repetem, a fim de melhor compreender sua poética.
No capítulo três, a pesquisa apresenta práticas artísticas que reverberam a violência de
Estado no Brasil em discussão, trazendo a análise da poesia visual do artista Tchello d’Barros
de 2001. O poema reflete o impacto que a atmosfera violenta causa ainda em sua memória.
Neste mesmo capítulo, analisamos o trabalho de Hélio Fervenza apresentado em Berlim no
ano de 2021, que reflete acerca das dicotomias de entendimento de sentidos da linguagem que
atravessam o social e político na atualidade. Apresentamos, ainda na referida seção, as séries
da artista Manoela Cavalinho1 desenvolvidas entre os anos de 2019 e 2021. Nessa produção,
observamos a tentativa de materialidade do testemunho da tortura, da identificação de locais
comuns, como cenários do horror e, por fim, o resgate da memória de presos e desaparecidos
políticos. As práticas artísticas apresentadas configuram-se, juntas, como o eixo central deste
trabalho. Elas foram escolhidas por sua multiplicidade de meios expressivos e delas partem as
reflexões que completam sua melhor compreensão.
Nas considerações finais temos o desenlace do caminho interdisciplinar, percorrido
neste processo investigativo, que perfaz aspectos históricos, políticos, sociais e simbólicos

1
Manoela Cavalinho é o nome artístico de Manoela Farias Nogueira.
13

cotejados com as análises das produções artísticas. Nessa seção do trabalho, buscamos reunir
os elementos que encontramos durante a pesquisa, e que se inter-relacionam de forma natural,
os aspectos formais observados nas obras, e seus aspectos conceituais, que são melhor
compreendidos à luz de contribuições dos autores que buscamos em campos teóricos que
extrapolam a área das artes.
14

2 DO PARTICULAR AO COMUM: A ARTE COMO ATO DE CONTRAMEDIDA AO


APAGAMENTO DA MEMÓRIA DE VIOLÊNCIA

“Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil”
(VERISSIMO, 2014, p. 7)

Para a autora Susan Sontag “Mostrar um inferno, não significa, está claro, dizer algo
sobre como tirar as pessoas do inferno” (2003, p.95), neste sentido, mostrar a violência pela
qual passaram tantas pessoas, não quer dizer que possamos curar tal trauma, ou a dor causada
pela violência, no entanto, nos parece uma ação que vai no sentido de ampliar a consciência
sobre sua existência e as feridas que deixa em uma sociedade.
Ainda citando Sontag (2003), quando fala da fotografia de guerra, captar uma imagem,
um registro do um ato violento ou dos sentimentos que atravessam uma sociedade, em
determinados momentos, e materializá-los em uma ação artística, à nosso ver, incorre em uma
tentativa de tornar tal violência um elemento inevitável do conhecimento desta sociedade
sobre ela mesma.
Para Enrique Padrós (2001) falar de memória implica em relacionar-se com o passado,
estabelecer uma relação entre o esquecimento ou a preservação, o autor ainda alerta que, a
sonegação da informação, ou da experiência de contato com algo que a recoloque inserida no
contexto social, a imposição do esquecimento, implica em mecanismos que configuram a
tentativa de seu apagamento.
Neste capítulo buscamos compreender como em um grupo social, sob o qual incide
um ou mais eventos traumáticos, formam-se e se sustentam ou não, as memórias de eventos
traumáticos, e ainda quais mecanismos podem ser usados na tentativa de apagamento destas
memórias.

2.1 MEMÓRIA E SOCIEDADE

A nossa relação com o passado é orientada pelas memórias coletivas e individuais.


Nesse sentido, no Brasil, a história do passado recente é marcada pelo período ditatorial e
muitos de nós, hoje adultos, vivemos aquele momento. Nossas memórias, todavia, são
distintas, definidas pelas classes em que nos encontrávamos, posições políticas e mesmo
localização geográfica. Ainda assim, salientamos, fazemos parte de uma mesma nação.
15

Segundo Maurice Halbwachs (2006), a memória apoia-se em pontos de referência que


exercem poderes de forças diferentes. A memória social, dessa maneira, estrutura-se em
hierarquias e ordem de classificação, definindo o que é comum ao grupo e o que o diferencia
de outro. Ainda segundo o autor, toda memória é seletiva e negocia constantemente sua
conciliação com a memória coletiva. É necessário, portanto, haver pontos de contato entre
uma e outras memórias para constituírem-se.
Predominou, no período do governo ditatorial brasileiro, a construção de um
imaginário bélico salvacionista, em que se impunha a desconfiança de que todo sujeito é
suspeito. Estabeleceram-se, assim, curtos limites de convivência e afetividades, o que
concorre para que pontos de contato estruturantes da memória coletiva fragilizam-se. A
consequência disso é o individualismo e a desconstrução da memória coletiva. Nesse sentido,
as imagens e obras de artistas que perduram desde o citado momento têm potencial de se
transformarem em memórias vivas de fragmentos que falam de todas as vítimas da ditadura
civil-militar no Brasil. Isso se estende ao todo da sociedade, que teve seu processo de
democratização violentamente estancado, embora perseguidos, ameaçados, torturados ou
mortos sejam marcas especialmente cruéis do período.
Como já mencionado, as diferentes memórias que convivem em uma sociedade estão
subjugadas à hierarquias e classificações, que caracterizam grupos e os diferenciam dos
outros. Nesse sentido, classificar as vítimas de tortura como “sujeitos sem direitos”, o que de
fato ocorre no governo militar, os coloca em grupos das minorias, dos subvertidos, fato que
contribui para que tais memórias venham a fragilizar-se. De acordo com Michael Pollak, “as
memórias subterrâneas, das minorias, seguem seu trabalho de subversão no silêncio”,
aflorando em momentos de crise. A esse respeito, prossegue:

Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem


entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a
significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre
Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais frequência esse
problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante (POLLAK,
1989, p. 5).

Constar como sujeito vítima era compor uma parte da minoria violentada, fazendo
mais sentido que as pessoas buscassem pontos de identificação com a maior parcela dos
brasileiros, que assistiram à ditadura pela televisão – ou das sacadas e janelas de seus
apartamentos. As lembranças traumatizantes, lembranças que esperam o momento propício
para serem expressas, ficaram com as vítimas e suas famílias (POLLAK, 1989).
16

A memória que resiste é a que está em primeiro plano para um grupo de pessoas.
Assim, as experiências que envolvem um maior número de membros sociais, resultado de
suas próprias experiências ou de sujeitos de suas relações mais próximas, têm relevo. As
memórias que, por sua vez, dizem respeito a um pequeno grupo ou só um membro dele
passam para um segundo plano (HALBWACHS, 2006).
A memória individual, por seu turno, quando entra em concordância com sentimentos
e paixões inspirados por um grupo, torna-se difícil de identificar como pertencente a um
grupo, e não nossas. Ainda de acordo com o autor, “uma corrente de pensamento social é
ordinariamente tão invisível quanto a atmosfera que respiramos, somente reconhecemos sua
existência na vida normal, quando a ela resistimos” (HALBWACHS, 2006, p. 39). Ele
complementa que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória do grupo e,
assim, varia de acordo com o lugar em que o sujeito se encontra.
Nossas lembranças retêm-se no quadro pessoal, formando parte de uma coletividade
são considerados somente os aspectos que nos interessam. Nesse sentido, podemos pensar que
não interessa a ninguém lembrar de uma violência que ele mesmo não tenha sofrido.
As memórias coletivas e individuais se entrecruzam, como já observado. Importante
destacar, contudo, que a individual pode se apoiar e fundir à memória coletiva. Assim, pode
seguir seu próprio curso, incorporando e assimilando parte do todo. No entanto, a memória
coletiva acaba por envolvê-las. Os fatos sociais que ocupam um lugar na memória de uma
nação para quem não a viveu, é construída por memórias emprestadas.
Em um determinado tempo e espaço, constrói-se uma história coletiva, que deixa
traços que marcam o modo de pensar e sentir de uma geração e das próximas. Esses traços se
mantêm conservados inconscientemente e são reproduzidos, frequentemente, de modo
imperceptível. À guisa de exemplo, destacamos que basta concentrar a atenção para perceber
que os costumes que hoje cultivamos foram construídos sobre antigas camadas de
experiências.
Como afirma Halbwachs (2006), não existe uma memória universal. Toda memória
coletiva tem por suporte um grupo de pessoas que está limitado em um determinado espaço
geográfico e temporal. Sendo assim, não podemos concentrar um único quadro senão
desligando da memória dos grupos que dele guardam a lembrança de memórias coletivas
múltiplas.
Para Walter Benjamin (1940 apud GAGNEBIN, 2006, p. 40), não esquecer dos
mortos, dos vencidos, não calar, mais uma vez, suas vozes — isto é, cumprir uma exigência
de transmissão e de escritura. Para a autora, rememorar torna-se imprescindível, não para a
17

conservação do passado, mas do apelo à felicidade do presente. "Articular historicamente o


passado não significa conhecê-lo 'tal como ele propriamente foi'. Significa apoderar-se de
uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo".
Buscar a verdade sobre o passado, a verdade de uma nação, de um grupo ou mesmo de
uma personalidade, tem como alicerce mais uma ética da ação presente do que uma
problemática da adequação (pretensamente científica) entre "palavras" e "fatos"
(GAGNEBIN, 2006). Nessa ordem, lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar
contra a repetição do horror, ajuda a enterrar os mortos e dar um túmulo àqueles que dele
foram privados. Ainda segundo a autora, o compromisso com a verdade do passado nos
permite viver a verdade no presente.

2.2 CONSTRUÇÃO DA DESMEMÓRIA SOCIAL: COMO ELES AGEM

Este subcapítulo concentra-se em aspectos que contribuem para a construção da


memória social. Além disso, o foco, aqui, recai sobre fatores empregados no apagamento de
outras determinadas memórias, ou seja, lembranças que não interessam às classes dominantes,
especialmente sobre períodos e fatos que estas desejam deixar na escuridão.
O exposto é abordado por Caroline Silveira Bauer (2014), em sua obra Brasil e
Argentina: Ditaduras, Desaparecimentos e Políticas de Memória. De acordo com a autora, as
leis de anistia e o longo período de transição política, que, no caso Brasil, estende-se dos anos
de 1979 a 1986, contribuem para a imposição de uma normalização social dos atos de
violência praticados, no sentido de justificar os crimes de sequestro, tortura e, em muitos
casos, morte, como uma necessária medida de saneamento moral.
Segundo Carlos Fico (2004), foi construída a ideia de que o país vivia uma derradeira
crise moral, e que somente uma intervenção higienizadora seria capaz de resolver. O discurso
ético-moral do governo no período ditatorial brasileiro vendeu a imagem de que somente um
governo militar poderia conduzir correta e serenamente o Brasil para o futuro. Na época, eram
veiculados comerciais que mostravam relações familiares idealizadas e vendiam a ideia de
progresso, prosperidade e segurança. Instaura-se, assim, uma guerra psicológica no
imaginário popular.
Ainda segundo Bauer (2014), outro fator que torna o esquecimento uma espécie de
processo de cicatrização. Ele, semelhante ao que ocorre em cortes na pele, constitui-se sobre a
imagem da perda e da melancolia. Assim, para continuar a vida, é preciso esquecer. O fato
que fica no passado desvincula-se, então, da memória, gerando um estranhamento ao
18

revisitá-lo. Essa sensação, no entanto, difere do sentimento despertado pela arte, que tira a
coisa do lugar comum, dando-lhe destaque. Isso causa desconforto ao impedir que dores
passem despercebidas, como uma luta contra a normalização do que não é normal.
Governos autoritários costumam usar de deslocamentos de sentido na transição
política, os quais cooperaram, no que tange aos países analisados pela referida autora, para a
construção de uma desmemória acerca dos fatos. Um deles seria a subtração da militância,
que confere às ações de forças armadas caráter de revolução. Outro refere-se à configuração
da construção de uma representação da existência real de uma guerra civil, na qual haveria
pressuposta equidade de entre os adversários. Ainda, há uma ideia de que a sociedade nunca
ofereceu apoio ou legitimou o regime militar (BAUER, 2014).
A Lei de Anistia, que iniciou plano de transição do governo militar para a abertura
política, absolveu sujeitos considerados “culpados” pelo regime – leia-se: os cidadãos que se
opuseram ao regime, artistas que protestaram, os presos, torturados. No entanto, perdoou
também os torturadores, perseguidores e assassinos. Especialmente no Brasil, o cenário que
antecedeu o golpe civil-militar contou, ainda, com o apoio da imprensa. Esta, ao tomar ciência
e se tornar vítima da censura, aos poucos, mudou seu discurso, mas não agiu no sentido de
esclarecer os fatos, conforme Juremi Machado da Silva (2014):

Diz-se que no Brasil tudo termina em pizza. Especialmente os casos que deveriam
sair do forno como prato feito para uma mudança de imaginário. Tudo termina em
pizza e em bola rolando. Aquilo que não se pode alterar vira bola no chão. Afinal,
somos o país do futebol carnavalizado e do carnaval em ritmo de dribles sinuosos
(SILVA, 2014, p. 141).

Os “cadáveres insepultos”, como cita Carlos Fico (2004), continuam nos assombrando.
Dessa maneira, a saída “à brasileira” do regime ditatorial nos deixou à mercê de um fantasma,
que parece assombrar a sociedade contemporânea. A Lei de Anistia buscava uma
reconciliação entre Estado e sociedade. Trata-se, no entanto, de uma reconciliação extorquida,
baseada no esquecimento (BAUER, 2014). Ela se deu mais no sentido de anistiar quem atuou
em nome da violência do que perdoar os “pecados” de suas vítimas, mantendo, assim,
operante o medo como forma de dominação política.
Votada em 28 de agosto de 1979, no governo do General Figueiredo, a Lei de Anistia,
promulgada em agosto de 1979, iniciou o processo de abertura política, concedeu o perdão
aos torturados e aos torturadores, propondo o esquecimento recíproco. A esse respeito,
chamamos atenção para o seguinte: “Eu não quero perdão porque perdão pressupõe
arrependimento e eu não estou pedindo a eles que se arrependam até de pegar em armas
19

contra nós. Eu apenas quero que haja esquecimento recíproco” (BAUER, 2014, p. 26).
Compreendemos, assim, que a continuidade de políticas brasileiras perpetradas pela ideologia
da reconciliação age no sentido de apagamento da memória e protelação da reparação e
justiça às vítimas da ditadura civil-militar instaurada no Brasil entre os anos de 1964 e 1985.
Segundo Halbwachs (2006), é impossível conceber os problemas da identificação e
localização da memória sem nos apoiarmos nos quadros sociais reais que servem de
referência. Nesse sentido, a construção da memória sobre as vítimas da ditadura civil-militar
precede o esclarecimento dos fatos ocorridos.
De acordo com o autor, todas as memórias que nascem dentro de um grupo apoiam-se
umas às outras. Cada membro é definido por seu lugar e a duração de tal memória limita-se à
força das coisas, na duração do grupo, e se reforçam no caso de haver pontos de contato com
outros pequenos grupos, a quem também interesse determinado fato (HALBWACHS, 2006).
Considerando que o nível da recordação apoia-se também no nível de engajamento do sujeito
com o fato, para uma maioria, influenciada pela promessa do país do futuro, a memória de
uma minoria que sonha com justiça social pode não encontrar pontos de apoio suficientes para
sustentar-se sozinha no percurso que a história faz entre jogos de poder.
Ainda segundo Halbwachs (2006), é necessário que a memória daquele determinado
sujeito continue concordando com a memória do grupo para que possa encontrá-la. Ademais,
complementa o autor:

Que me importa que os outros ainda estejam dominados por um sentimento que eu
experimentava com eles outrora, e que não experimento hoje mais? Não posso mais
despertá-lo em mim, porque, há muito tempo, não há mais nada em comum entre
meus antigos companheiros e eu. Não é culpa nem da minha memória nem da deles.
Porém uma memória coletiva mais ampla, que compreendia ao mesmo tempo a
minha e a deles desapareceu (HALBWACHS, 2006, p. 34).

Nesse sentido, há pessoas às quais interessa apenas o presente. Assim, suas ligações e
interesses com os quais estiveram envolvidas no passado, e com as quais não existe mais uma
ligação, passam a pertencer a um conjunto fechado de valores. Isso acaba influenciando nossa
memória acerca de determinado evento (HALBWACHS, 2006).
Quando falamos em esquecimentos, é preciso salientar que não se trata, no caso deste
texto, de um esquecimento voluntário ou natural, e sim de esquecimento imposto. O
esclarecimento e a justiça, nessa ordem, interessam somente a uma minoria que foi
diretamente afetada e ainda sofre as ausências e traumas causados pelos recursos violentos e
fatais empregados na ditadura civil-militar. A esse respeito, vale observar: "A organização das
20

lembranças se articula igualmente com a vontade de denunciar aqueles aos quais se atribui a
maior responsabilidade pelas afrontas sofridas” (HALBWACHS, 2006, p. 8).
A ausência de políticas de memória e reparação, durante os governos transicionais,
configuraram as políticas de desmemória e esquecimento como características desse período
(BAUER 2014, p. 134). Coube às famílias das vítimas o ônus da prova sobre a
responsabilidade do Estado nas mortes e nos desaparecimentos. Ainda segundo a referida
autora, não devemos considerar vítimas somente os torturados, mortos ou os desaparecidos.
Em sua visão, é imprescindível estender essa condição a toda uma sociedade a quem foi
imposto o limite de viver (ou morrer) em um regime autoritário. O esquecimento imposto pela
Lei de Anistia configura, como sugere Irene Cardoso, um inexistencialismo, uma realidade
que não existiu.

A forma como foi realizado o processo de transição política na Brasil, tema


abordado no próximo capítulo, contribuiu para que a experiência de terrorismo de
Estado não fosse simbolizada, ou, quando isso ocorreu, fosse deslegitimada,
permanecendo fora da memória oficial e da construção da história recente
brasileira.47 Essa situação justifica as resistências ao uso do termo “terrorismo de
estado”, amplamente utilizado por pesquisadores em razão das evidências, para
designar e qualificar a ditadura civil-militar brasileira (BAUER, 2014, p. 43).

A autora reforça tal concepção quando cita Enrique Padrós: um dos fatores mais
importantes que explicam a eficácia da prática dos desaparecimentos é a impunidade. Sob a
ideologia da reconciliação, assegurava-se a impunidade (BAUER, 2014).
Nesse contexto, a “A teoria dos dois demônios”2 classifica a ideologia da reconciliação
pregada nas ditaduras que aconteceram na América Latina como uma equiparação ética e da
impunidade equitativa. A citada autora ainda diferencia uma ideologia de reconciliação de um
projeto de reconciliação: a primeira assenta-se não em uma realidade, mas trata de criar tal
realidade. Responsabiliza-se, nessa ordem, militares e militantes e exonera a sociedade civil.
Isso ressalta a colocação de Marcos Napolitano (2014) acerca do apoio da sociedade
civil ao regime ditatorial e enfatiza o contexto econômico que anestesiou a opinião pública à
concepção de oposição contra a violência imposta que tomou o país. Ademais, apresenta um
contexto de ambiente anterior ao golpe civil militar, em que a direita via na figura de Jango
um líder subversivo, amigo do socialismo. Suas promessas de reformas sociais, econômicas e
políticas em busca de um país menos desigual não eram bem-vistas e, nesse cenário, a subida
dos militares ao poder assegurou desenvolvimento e segurança nacional.

2
A teoria dos dois demônios surgiu na Argentina e não há uma fonte única na criação do termo (OLIVEIRA;
REIS, 2021).
21

De acordo com Daniel Aarão dos Reis (2010), as políticas de transição e a lei de
anistia defendiam a ideia de deixar o passado para trás, um desvencilhar-se. O autor ainda
afirma que contribuem, nesse sentido, a falta de análises claras sobre os acontecidos:
“Incômodas lembranças – por pessoas, grupos sociais ou sociedades inteiras – são
frequentemente colocadas entre parênteses, à espera, para que possam ser analisadas, de um
melhor momento ou do dia de São Nunca” (REIS, 2010, p. 174).
A Comissão Nacional da Verdade instituída no governo da Presidente Dilma Rousseff,
em 2011, apresentou em seu relatório, em 2012, fatos até então desconhecidos pela
população, no sentido de garantir o direito à memória e à verdade histórica. Em conciliação
com o Arquivo Nacional, Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e Comissão de
Anistia do ministério da justiça, realizou investigações que resultaram na afirmação de que se
faz necessário o enfrentamento de questões descobertas (COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE, 2015). Nesse sentido, o presente estudo busca trazer as reflexões possíveis
através de práticas artísticas capazes de contribuir para a conquista de espaço de debates nesta
disputa de memórias.
22

2.3 A VISIBILIDADE DA IMAGEM AO NÃO APAGAMENTO DA MEMÓRIA DE


VIOLÊNCIA

Abordar a produção nas artes visuais no período ditatorial brasileiro, vivido entre os
anos de 1964 e 1985, como ação de contramedida ao apagamento destas memórias, solicita
uma contextualização dos principais aspectos que levaram ao golpe. Ademais, é necessário
revisar conjunturas que o mantiveram por tão extenso período, com aval da imprensa e da
sociedade civil.
Boris Fausto (2012) traça um panorama social, político e econômico desse período e,
de acordo com o autor, o regime militar assumiu o poder com o falso discurso de proteger a
democracia das ameaças do comunismo e da corrupção. Através de Atos Institucionais
baixados pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, houve modificações na
constituição, cerceando direitos e proteções, e ampliando os poderes do governo por eles
assumido. O golpe civil-militar de 1964 aconteceu depois de um breve período democrático
experimentado pelo país a partir de 1945:

As eleições de 1945 despertaram um grande interesse na população. Depois de anos


de ditadura, a Justiça Eleitoral ainda não ajustara o processo de recepção e contagem
dos votos. Pacientemente, os brasileiros formaram longas filas para votar. Nas
últimas eleições diretas à presidência em 1930, tinham votado 1,9 milhão de
eleitores, representando 5,7% da população total; em dezembro de 1945 votaram 6,2
milhões, representando 13,4% da população (FAUSTO, 2012, p. 219-220).

Ainda segundo o autor, após o momento de repressão que antecedeu as eleições


diretas, o interesse e envolvimento da população na eleição presidencial mais que dobrou em
termos percentuais. No meio militar, crescia o sentimento de que a resolução dos conflitos
sociais e econômicos não seria alcançada pelo governo Goulart e que, necessariamente,
passaria por uma revolução armada.
Como afirma Napolitano (2014), o Brasil dormiu em um regime democrático e
acordou na ditadura civil-militar, em seu livro 1964 História do Regime Militar Brasileiro. O
governo de João Goulart era visto como fraco pela esquerda e perigoso pelas elites de direita.
Fraco por não conseguir implementar as amplas reformas prometidas e perigoso por contar
com apoio do Partido Comunista do Brasil, PCB. Soma-se a isso o sucesso dos
revolucionários cubanos e a visão de um Brasil Comunista que se formou no imaginário
social. Conforme Fausto (2012, 0. 49):
23

A vitória da Revolução Cubana demonstra aos olhos de determinados setores


militares a implantação, no mundo subdesenvolvido, de uma guerra revolucionária
que corria paralelamente ao confronto entre dois grandes blocos de potências. Para
esses militares, a guerra revolucionária, cujo objetivo final seria a implantação do
comunismo, abrangia todos os níveis da sociedade e usa como instrumentos desde a
doutrinação e a guerra psicológica até a luta armada. Por isso mesmo era necessário
opo a ela uma ação com a mesma amplitude.

A teoria da eminência de um golpe comunista nasceu dentro da Escola Superior de


Guerra – ESG, bem como em órgãos como Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais – Ipes e o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática – Ibad. Assim, foi se delineando um regime político
capaz de resistir à subversão da ordem, garantindo o desenvolvimento econômico, ameaçado
por um cenário com inflação alta e declínio do Produto Interno Bruto – PIB (FAUSTO, 2012).
As reações vieram logo em seguida. Dirigida por Millôr Fernandes, em maio de 1964
foi lançada a primeira edição da revista Pif Paf3. Assim, seu humor político enfrentava o
regime ditatorial na imprensa alternativa. A fim de ilustrar o exposto, reproduzimos, na Figura
1, a capa da referida edição.

Figura 1 – Capa da revista Pif Paf 1ª edição 1 a 21 de maio de 1964.

Fonte: Memórias da Ditadura.

3
A revista de humor político Pif Paf foi lançada em 1º de maio de 1964, teve oito edições e inaugurou o círculo
de imprensa alternativa à censura do regime civil-militar.
24

A União Nacional dos Estudantes – UNE -, atuou como um dos agentes principais na
oposição ao golpe civil militar e à manutenção do regime. Sua sede foi atacada já no primeiro
dia após a instauração do golpe, em 1º de abril de 1964, tanto como as demais uniões
estudantis tornadas ilegais com a Lei Suplicy4. A “Sexta Feira Sangrenta” como ficou
conhecido o manifesto que resultou no saldo de 28 mortos, oficialmente três, contou com
apoio da população contra o Exército Brasileiro. Munidos de coquetel molotov e bolinhas de
gude, os estudantes enfrentaram armas, capacetes, botinas, cacetetes e toda brutalidade
policial. Marcos Napolitano (2014, p. 167), ressalta que:

A população, tomada pelo sentimento de medo e revolta diante da violência real ou


simbólica dos criminosos e da lentidão da justiça brasileira, sentia-se vingada
quando um bandido era morto. De vingança em vingança, a segurança pública se
deteriorou, inclusive sob a guarda do regime democrático posterior a 1988, ano da
“Constituição Cidadã”. A batalha contra os direitos humanos, encampada por
radialistas ligados ao mundo policial entre os anos 1970 e 1980, alimentou-se dos
valores da extrema-direita, acuada em todas as outras frentes políticas. Ao criticar os
direitos, voluntária ou involuntariamente, legitima-se o extermínio dos marginais,
desde que pobres. Por desinformação, preconceito ou desespero do cidadão comum,
a cultura antidireitos humanos conseguiu apoio entre as classes médias baixas das
periferias e entre pequenos comerciantes, os setores mais expostos às ações do
crime.

Considerada imagem ícone da ditadura, a fotografia de Evandro Teixeira, reproduzida


na Figura 2, mostra um momento em que, segundo Zuenir Ventura (1997), as tropas passaram
limpando a avenida.

Figura 2 – Evandro Teixeira, 1968.

Fonte: Projeto Testemunha Ocular. Instituto Moreira Salles.

4
Lei nº 4.464, de 9 de novembro de 1964,de autoria de Flávio Suplicy de Lacerda, usada para controle
das organizações e movimentos estudantis.
25

A semana de fortes protestos, em junho de 1968, forneceu uma ideia do período que
seguiu. Os militares governaram através de Atos Institucionais. O primeiro deles, o AI-1, foi
lançado uma semana após a derrubada do governo e cassou mandatos de mais de 100 pessoas.
Além disso, deliberou sobre demissões e afastamento de servidores que, na visão deles,
representavam risco à segurança do país. Instituiu, ademais, a realização de eleições indiretas
para presidente dentro de dois dias, permitindo a instauração do governo militar sob a tutela
civil. Segundo Vera Calicchio (2022) o ato institucional seguinte extinguiu os partidos
políticos então existentes, ainda seguido pelo AI-4, que definem de reorganização partidária.
O mais violento e autoritário dos atos institucionais, o AI-5, mostrou a verdadeira face
da ditadura: fechou o Congresso, Assembleias e Câmaras Municipais, extinguiu o direito a
habeas corpus, instaurou a censura prévia a músicas, filmes e peças de teatro. Após seus 10
longos anos de duração, restaram 1500 pessoas com direitos civis cassados e 950 filmes e
peças teatrais proibidos (MEMORIAL DA DEMOCRACIA, 2015).
Produções artísticas como as apresentadas ao longo desta dissertação buscaram dar
visibilidade aos crimes de lesa humanidade cometidos pelo Estado durante o regime militar,
bem como defendem a criação de espaço de debates, às marcas e traumas que deixam em
nossa sociedade. Segundo Susan Sontag (1987, p. 23), “a transparência é o valor mais alto e
libertador da arte”. Mostrando as coisas como são em sua verdade e essência, a produção dos
artistas no período denuncia sua oposição ao regime e violência dos anos de ditadura.
Contribuem, assim, para evidenciar, à opinião popular, imagens que contradizem imaginários
construídos acerca do Brasil daqueles anos. A autora reflete sobre memórias de guerra em sua
obra Diante da Dor do Outro:

A memória da guerra, porém, como qualquer memória, é sobretudo local. Os


armênios, na maioria em diáspora, mantêm viva a memória do genocídio armênio de
1915; os gregos não esquecem a sangrenta guerra civil que assolou a Grécia, ao
longo da década de 1940. Mas para uma guerra ultrapassar sua esfera imediata e
tornar-se objeto da atenção internacional, precisa ser vista como uma espécie de
exceção entre as guerras e representar algo mais do que o choque de interesses dos
próprios beligerantes (SONTAG, 2003, p. 33).

Dar visibilidade aos fatos e voz às vítimas é uma preocupação no sentido de preservar,
ou até reavivar a memória, atos de contramedida ao esquecimento e à normalização, como
afirma Caroline Bauer: “Conhecer o que havia se sucedido não era necessário, pois se
considerava a ditadura ‘página virada’ e, em última instância, uma ameaça à possibilidade de
reciprocidade à anistia” (2014, p. 14), se não é do interesse dos detentores do poder, dos
responsáveis pela matança, é de interesse das vítimas, passadas e aquelas ainda presentes. Se
26

as políticas públicas em favor da memória social corrompem-se aos interesses de minorias no


poder, a arte não. Ricard Vinyes (apud BAUER, 2014. p. 23), salienta que:

Silveira Bauer prueba en su investigación que el único análisis posible para


comprender lo sucedido es el de la estrategia que desarrolla el Estado dictatorial para
evitar cualquier posibilidad de democratización que pueda cambiar la estructura de
poder. Lo que la autora denomina «cultura del miedo» no reside en balances de
asesinatos, torturas y desapariciones sino en la instauración de un sistema
premeditado de expansión del terror, el miedo, donde la desaparición, tortura y
muerte tienen la función de advertencia y disuasión. La cultura del miedo alcanza al
Estado democrático en la medida en que asume la amenaza, y evita la protección de
un derecho civil complejo, el derecho a la memoria.

Ainda citando Jeanne Marie Gagnebin, trata-se de uma tarefa política – “lutar contra o
esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror” (2006, p. 47). Para a
autora, o historiador tem como tarefa política e comprometimento ético esclarecer fatos
históricos e manter viva a memória social. Esse conceito pode ser estendido ao artista, o qual,
com a ruptura dos padrões estéticos e representativos da arte, nos movimentos de vanguarda,
torna a arte instrumento de reflexão e denúncia.
27

3 O QUE PODE A ARTE CONTRA A NORMALIZAÇÃO E O ESQUECIMENTO DA


VIOLÊNCIA

O ver em um sentido mais amplo requer um grau de profundidade muito maior, porque o
indivíduo tem, antes de tudo, de perceber o objeto em suas relações com o sistema simbólico
que lhe dá significado. Silvio Zamboni (1998, p. 54).

Até os movimentos modernistas europeus, a arte ocidental foi produzida em um


processo evolutivo, através de movimentos de contestação estética a aspectos anteriores.
Exemplos disso são a sobriedade do neoclassicismo em contraposição aos excessos do
barroco; o romantismo, ao excesso de rigor do neoclássico. Nesse sentido, o surrealismo foge
à racionalização da era industrial segundo Ligia Canonglia (2005).
As transformações nas artes visuais não se restringem, contudo, aos aspectos estéticos,
de modo que as questões sociais e políticas tornam-se a motivação nas produções de muitos
artistas. A busca por uma independência formal dos movimentos modernistas resulta em
formas artísticas que apresentam aspectos híbridos, com conceitos mais elásticos,
problemáticos e complexos, que se voltam contra a normatização e regulamentação de
identidades, posições sociais e políticas, bem como modos de viver e fazer arte.
A partir da relação entre os símbolos de ordem visual e gráfica, analisamos como a
hibridização que constitui a arte contemporânea, inaugurada no movimento Dadaísta,
ultrapassa os movimentos de vanguarda e dissolve os critérios dicotômicos de sua ortodoxia
estética. Isso insurge nas artes contemporâneas como somatização de recursos em favor do
discurso do artista, como o grito agonizante do ready-made contra os sistemas racionalistas
(CANONGIA, 2005).
Os trabalhos SITUAÇÃO T/T1 (1970), de Artur Barrio, Lute (1967), e Identidade
Ignorada (1974), de Carlos Zílio, que apresentaremos no decorrer deste capítulo, têm
multiplicidade de meios que se totalizam na potência visual e discursiva de sua arte:

O que parecia ser eclético sob um ponto de vista, pode ser concebido como
rigorosamente lógico de outro. A práxis não é mais definida em relação à um
determinado meio de expressão, mas sim em operações lógicas para as quais vários
meios podem ser usados... O campo oferece um conjunto ampliado (porém finito) de
posições relacionadas para um artista ocupar e explorar, e uma organização de
trabalho que não é ditada por um determinado meio de expressão (KRAUSS apud
CANONGIA, 2005, p. 20).
28

Cada período histórico produz sua própria arte, que revela tanto condições sociais,
políticas e econômicas, quanto transformações culturais, que se manifestam também no uso
das linguagens. É possível observar, principalmente no início do século XX, a presença e a
reutilização do signo verbal no campo visual, seja nas colagens e fotomontagens Dadá, na
apropriação de seus significantes por Duchamp, seja no surgimento dos Manifestos de
movimentos ou de artistas. Desse modo, tal apropriação marca a entrada do artista no campo
da crítica de arte, desautorizando e criando conceitos acerca de seu trabalho (FERREIRA;
COTRIM, 2009).
Nessa passagem do moderno ao contemporâneo, o Brasil encontrava uma identidade
no campo artístico. Os anos de 1960 e 1970 foram, para o país, vale lembrar, extremamente
violentos no campo social e político. Desse modo, grandes artistas se destacaram em
experimentações que fogem dos padrões de representação estética, tornando a arte uma ação
também política.
Usando a expressão de Germano Celant (1980 apud CANONGIA, 2005) surge na arte
contemporânea uma “Con-fusão” de linguagens em favor do discurso do artista, seja para
problematizar questões estéticas ou éticas em sua obra.

3.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE E LEITURA DAS OBRAS

Nas produções das artes visuais contemporâneas, meios expressivos se tensionam e


convergem. A tríade objeto, artista e espectador é problematizada e, por vezes, deslocada.
Assim como em outros países, artistas brasileiros questionam o status do objeto artístico,
invocam a participação do espectador e invadem espaços públicos, tornando-os espaços de
arte, espaços políticos. Neste hibridismo, a palavra se incorpora à obra. Nesse sentido,
analisamos as relações que se formam entre o símbolo gráfico e os demais constituintes dos
trabalhos, narrativa, atravessamentos e completudes.
Como metodologia de pesquisa, utilizamos pesquisa bibliográfica e análise de obra de
arte orientada pelos autores: Ligia Canongia (2005), Frederico Morais (1970), Artur Freitas
(2007), Jan Mukarovsky (1997), Jacques Rancière (2009a, 2009b, 2012) e Ricardo Basbaum
(2007).
Diante dessas problematizações, buscamos nas obras desses autores ferramentas de
análise dos elementos formais e conceituais para a leitura dos trabalhos, observando
transformações de meios, bem como a função da ética e da estética da arte na codificação da
vida e do cotidiano do indivíduo que vive em sociedade.
29

Para Mukarovsky (1997), nem todos os atos e objetos têm, a priori, atributos estéticos,
mas todos podem se tornar investidos de tal valor. Nesse sentido, citamos a respiração, que é
uma função orgânica e não tem um valor estético em si. Por outro lado, respirar lentamente ou
profundamente pode ter um valor atribuído, a depender do contexto. Essa via, entretanto, é de
mão dupla. Assim, o contrário também pode ocorrer: uma obra de arte que tem valor estético
pode ser destituída de seu valor estético. Exemplo disso é o caso de um grafite que é coberto
por uma nova camada de tinta. O valor estético, ademais, também pode fazer sentido em
determinado contexto social ou determinada época. Destacamos, além disso, que a função
estética pode se converter em um fator de diferenciação social: “A obra artística é uma
aplicação não adequada da norma estética de modo que seu estado atual não se altera por
virtude de nenhuma necessidade involuntária, mas se intencionalmente e por isso de maneira
muito sensível” (MUKAROVSKY, 1997, p. 45).
Para o autor citado, as escolhas dos artistas são orientadas, segundo sua sensibilidade,
no sentido de construir sua narrativa. Assim sendo, a estética da obra contribui com a
intencionalidade da sua elaboração. A leitura das obras também é orientada pelo pensamento
de críticos de artes, como Ligia Canongia (2005) e Frederico de Morais (1970), visto que
ambos os autores, por estarem no circuito brasileiro de artes, fornecem elementos
significativos para a compreensão de aspectos formais e conceituais dos artistas abordados.
Procuramos incluir no escopo da pesquisa obras que construam uma linha de denúncia,
testemunho, reflexão e resgate da memória da violência do regime ditatorial. Iniciamos com a
leitura da obra SITUAÇÃO T/T1 de Artur Barrio, realizada em 1970. As trouxas
ensanguentadas, jogadas no rio-esgoto, assemelham-se a corpos humanos e representam a
violência e a precariedade daquele contexto social e político.
Nas obras de Carlos Zílio, Lute (1967), por sua vez, encontramos um retrato de como
o artista intenciona despertar a sociedade contra o sistema opressor, bem como a denúncia dos
desaparecimentos como ferramenta de terror de estado na obra Identidade Ignorada (1974).
O poema visual do artista Tchello d’Barros criado no ano de 2001, vem ao encontro da
intenção de construir uma linha temporal até as obras produzidas nos anos de 2019 a 2021,
remetendo ao contexto atual. Este, cabe enfatizar, tem como marcas a falta de esclarecimento
e a ausência de reparação aos crimes cometidos durante o período. A obra Democracia
(2021), de Hélio Fervenza, representa a dicotomia de sentidos percebidos no entendimento da
linguagem nas sociedades atuais, especialmente no contexto político.
Os trabalhos da artista Manoela Cavalinho representam uma tentativa de construção de
memória social da ditadura civil-militar, através de seus Epigramas (2019). As memórias
30

individuais de vítimas ainda desaparecidas são lidas a partir das obras Onofre, José, Enrique,
Daniel, Joel e Víctor (2021). Iniciamos pela análise da obra de Artur Barrio e Carlos Zílio,
produzidas durante o período da ditadura civil-militar.

3.2 A ÉTICA DA ESTÉTICA NA OBRA DE ARTUR BARRIO

Para Susan Sontag (2003, p. 95) "Ninguém após certa idade” tem o direito à inocência
de se sentir surpreso diante do horror que o ser humano é capaz de inflingir contra outro ser
humano. Para a autora a demonstração de surpresa diante de provas e fatos dessa natureza,
demonstra imaturidade moral e psicológica (SONTAG, 2003). Ainda de acordo com Sontag,
protestar contra um sofrimento incorre no ato de reconhecê-lo.
Artur Barrio não somente resgata a violência dos porões ditatoriais do Brasil pós golpe
de 64, mas as coloca diante da sociedade, que se fazia inerte, apática. Artista da transgressão e
do precário, contesta não só as condições de fazer arte em um país subdesenvolvido, mas
também as condições de fazer arte diante do medo que permeia a atmosfera durante o
governo militar, de ações violentas, perseguições, torturas e dasaperecimentos.
O artista desponta no cenário nacional com uma arte anárquica subversiva, tanto em
meios, suportes quanto teor da narrativa, como afirma Ligia Canongia (2005, p. 85):

Trabalhos como os de Artur Barrio, que operam como interferência crítica sobre a
estrutura institucio- nal da arte, e como afronta direta ao mercantilismo burguês,
foram comuns no início da década de 1970. A obra de arte, nesse momento,
constituía-se como "produ- ção política", embora não mais da forma que os anos 60
haviam praticado, isso é, com o foco no "tema" político, literalmente associado à
realidade.

Para a autora, o trabalho de Barrio confronta a logica elitista do sistema de arte da


época, para Artur Freitas , a arte de Artur Barrio vai além da descontrução do fetichismo do
objeto artístico, envolve a possibilidade de entender a arte como algo que vai além do senso
estético, o que permite a exploração de situações sociais e políticas (FREITAS, 2007). Neste
capítulo abordamos estes dois aspectos do trabalho de Artur Barrio.

3.2.1 Artur Barrio: transgressor e revolucionário

Artur Alípio Barrio de Sousa Lopes nasceu em Porto, Portugal, no ano de 1945. Ele
chegou ao Brasil dez anos depois e passou a viver no Rio de Janeiro. Iniciou seu percurso nas
artes visuais com desenhos no ano de 1966 e ingressou na Escola Nacional de Belas Artes no
31

ano seguinte. O artista permaneceu no curso por um curto período, por não concordar com as
disciplinas componentes do currículo. Assim, sua linguagem estética logo no início afastou-se
das linguagens convencionais de representação visual (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL,
2022).
O artista despontou no cenário da arte brasileira com experimentações artísticas que
questionam e expandem o conceito formal do que é arte, intervindo criticamente sobre a
estrutura institucional artística.
Com trabalhos fundamentalmente provocativos e transgressores, suas intervenções e
happenings causam grande impacto, com aspecto violento e a utilização de materiais não
convencionais. Entre eles, constam itens como papel higiênico, detritos humanos e materiais
orgânicos, como carne putrefata. Tais produções interferem no espaço urbano fazendo dele
um espaço político. Artur Barrio mantém um estreito relacionamento com a palavra. Em
1969, escreveu seu primeiro Manifesto, posicionando-se contra as categorias, instituições e
críticos de arte. O artista problematiza o uso de materiais caros em um contexto
socioeconômico de terceiro mundo, o que, segundo ele, condiciona e limita a produção
artística, neste sentido então defende o uso de materiais efêmeros e precários em nome da
liberdade de criação.
Nesse mesmo ano, surgiram as primeiras SITUAÇÕES, uma série de interferências
pelas quais deposita detritos humanos, excreções, dejetos, restos de materiais industriais,
papel higiênico e, em outro momento, pães, em espaços públicos e de arte. Esses trabalhos
são analisados neste estudo. Em 1974, período da ditadura civil-militar no Brasil, retornou a
Portugal, que também vivia sob um golpe civil militar. Nesse contexto, testemunhou, então, a
Revolução dos Cravos5, experiência que o levou a realizar novas instalações, como as
primeiras SITUAÇÕES, 4 Movimentos e 4 Pedras, Áreas Sangrentas e Metal/Sebo Frio/Calor.
Esses trabalhos também envolvem o lugar cotidiano comum, a transitoriedade do tempo e dos
materiais, que registra em fotografias e de forma escrita.
Entre 1975 e 1984, viveu em Paris, onde participou do grupo de artistas Cairn,
cooperativa criada em 1976. Essa experiência influenciou fortemente sua poética e, nesse
contexto, realizou e expôs o trabalho Livros de Carne (1978-1979)6, que consta mais adiante
neste texto por representar aspectos relevantes da relação do artista com a palavra.

5
Movimento liderado por oficiais das Forças Armadas, com apoio popular que estabelece o regime democrático,
colocando fim à ditadura salazarista (VARELA, 2012).
6
Ver mais em http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com/.
32

Em 28 de outubro de 1978, lançou um novo Manifesto, Mitos Vadios, juntamente com


Dinah Guimaraens y Lauro Cavalcanti, no qual criticam a 1ª Bienal de Arte Latina Americana
(INTERNATIONAL CENTER FOR THE ARTS OF THE AMERICAS AT THE MUSEUM
OF FINE ARTS, 2019). Dias depois, aconteceu, em São Paulo, o evento homônimo
organizado por Ivald Granato. A atividade envolveu artistas famosos e desconhecidos em uma
ação defendendo a liberdade de criação em um momento de censura e opressão do regime
ditatorial (PAULA, 2008).
SITUAÇÃO T/T, 1, 1970, inicia a análise das obras neste texto. A peça foi produzida
no contexto mais violento da ditadura civil-militar, instaurada com o golpe de 1964, após o
AI-5. Vale lembrar que, através dos atos institucionais, o governo foi exterminando,
gradualmente, a liberdade e os direitos civis. Assim, o medo e a violência foram instaurados
pelo governo e legitimados pelo silêncio da sociedade. Qualquer pessoa que se opusesse ao
governo militar era classificada como ameaça à ordem social, perseguida e torturada, dadas
como desaparecidas ou sua morte divulgada como tentativa de fuga.
Nesse cenário de opressão e cerceamento de liberdades e direitos, o artista surgiu com
uma arte radical desde o princípio, utilizando de recursos precários, narrativa de choque que
denunciam o horror e a violência instaurados pelo regime de governo. Sua produção é ativa
até os dias atuais e seu trabalho pode ser acessado através do seu blog pessoal, no qual
encontramos imagens e informações sobre exposições e publicações atualizadas.
Nesta pesquisa, analisamos, ainda, as relações com a palavra em sua narrativa, seus
atravessamentos e completudes. Seus manifestos criticam os padrões estéticos resistentes a
aspectos relevantes do contexto da produção artística, defendendo o uso de materiais que,
segundo ele, são mais apropriados à realidade em que está inserido. Estreitam-se, assim, laços
entre obra e espectador, internalizando a função da crítica.
Os registros construídos em seus Cadernoslivros discorrem sobre seus processos, suas
escolhas e completam a obra. Portanto, são, em si, obra ou trabalho – este último é o termo
preferido pelo artista. Neles, ficam claramente definidas as nomeações, aspecto crucial na
obra do artista.
Na Figura 3, observamos a palavra como obra em si mesma. Trata-se de NADA
(2018), que consiste na escrita da palavra, em letras caixa alta, em cor preta, sobre um
pequeno pedaço de papel cartão branco, depositada no chão da galeria, e coberta parcialmente
por pó de café, que é espalhado também pelo entorno.
33

Figura 3 – Artur Barrio, NADA /... palavra escrita s / cartão mais pó de café .... //// , 2018.

Fonte: Barrio ([entre 2008 e 2022]).

A Figura 4, a seguir, reproduzimos uma fotografia da página de um de seus


Cadernoslivros, no qual podemos observar que o artista denomina o material como suporte e
documentação sobre seu trabalho.

Figura 4 – Artur Barrio, Cadernosliros, 1978.

Fonte: Barrio ([entre 2008 e 2022]).


34

Artur Barrio estabeleceu novos paradigmas na arte contemporânea no Brasil. Além


disso, a potencialidade e o caráter político de seus trabalhos na década de 70 transformam as
experimentações artísticas, como afirma a crítica de arte Ligia Canongia (2005, p. 83): “Artur
Barrio desponta na cena nacional em plena efervescência das transformações que abalaram
aquele entre décadas. E logo impõe um novo paradigma, uma referência inaugural, no que
tange à radicalidade de seus processos”.
Um questionamento recorrente diz respeito ao que pode ser definido como arte.
Trata-se de uma pergunta, cabe lembrar, constituinte do fazer artístico do movimento dadaísta,
o artista questiona os limites da arte em sua criação com materiais pobres, sobras, restos,
resíduos deixados, aquilo que sobra, como o que restará após a destruição, conforme indica
Ana Flávia Baldisserotto (1999).
Artur Barrio se tornou referência, salientamos, em análises que abordam a produção
das artes visuais no período da ditadura civil-militar brasileira. No entanto, esta pesquisa tem
como objetivo abordar a interferência da palavra na constituição de seu trabalho. Delineamos,
primeiramente, uma abordagem mais ampla da obra objeto desta análise.

3.2.2 Trouxas ensanguentadas: a visualidade da violência

A obra SITUAÇÃO T/T, 1 (1ª/2ª/3ª PARTES) foi realizada na cidade de Belo Horizonte,
MG. no ano de 1970. Nela, o artista preparou e deflagrou 14 objetos denominados Trouxas
Ensanguentadas (T.E.) em um rio-esgoto que atravessa o parque central da cidade, durante a
mostra Do Corpo à Terra, organizada pelo crítico de arte Frederico de Morais (1970).
Em nome de uma ética da contestação na obra analisada, o artista propôs um
tratamento de choque à indiferença da sociedade civil diante do autoritarismo e violência do
regime de governo da época. Assim, de forma transgressora e política, dissolveu os limites
entre linguagens, promovendo atravessamentos entre símbolos gráficos e visuais, entre a obra
de arte, artista e o espaço público.
A preparação das 14 trouxas foi a primeira parte da obra, feitas de pano e preenchidas
com carne, ossos e dejetos e amarrada; a segunda parte refere-se à deflagração destes volumes
no rio; e, por fim, a terceira parte do trabalho aconteceu quando o artista desenrolou 60 rolos
de papel higiênico, com o auxílio de transeuntes, na paisagem local.
35

A série que integra a obra em análise iniciou em 1969, na cidade do RJ, no Salão da
Bússola do Museu de Arte Moderna. Denominada SITUAÇÃO
ORHHHH....OU........5000.......T.E.......... em NY...........CITY, ela se divide em duas fases:
interna e externa.
Na primeira fase, o artista inseriu um saco de papel com pedaços de jornal, espuma de
alumínio e cimento velho, depositado por ele no local. A obra permaneceu no mesmo lugar
por 30 dias e, ao longo desse tempo, transformou-se através da participação do público, que
depositava sobre o material mais detritos. Após o término da exposição, o material foi levado
dentro de um saco de papel para fora do museu, onde foi deixado, sem qualquer informação,
gerando rebuliço entre os vigias e transeuntes (BALDISSEROTTO, 1999).
No ano seguinte, o artista deu continuidade à série de produção de “abjetos”, com os
quais interferiu no espaço urbano. Foram enchidos 500 sacos plásticos com diversos detritos
humanos, como sangue, restos de unha, saliva, cabelos, secreção nasal, urina, fezes, ossos e
outros materiais, como papel higiênico e absorvente feminino. Desses 500 sacos, 20%
continham o nome do artista e a data. Além disso, o material foi deixado em pequenas
quantidades em diferentes ruas da cidade do Rio de Janeiro (BALDISSEROTTO, 1999).
SITUAÇÃO T/T,1 é constituída de três partes. Na primeira, denominada pelo artista de
14 MOVIMENTOS, Barrio preparou as 14 trouxas, que chamou de “abjetos”, e registrou via
escrita suas sensações durante o processo, bem como dos materiais utilizados: sangue, carne,
ossos, barro, espuma de borracha, pano e cordas (BALDISSEROTTO, 1999).
A ação também foi registrada em imagens. Na Figura 5, a fotografia em cores
monocromáticas mostra o artista construindo os “abjetos”. A imagem captura um momento
no qual ele estava inserindo pedaços de carne nas trouxas feitas de pano.
36

Figura 5 – Artur Barrio, SITUAÇÃO T/T1 1ª parte, 1970

Fonte: Barrio ([entre 2008 e 2022]).

A Figura 6, a seguir, mostra uma fotografia da página de um catálogo de exposição, na


qual é possível observar os registros escritos que correspondem à primeira fase do trabalho
analisado.
37

Figura 6 – Registro do procedimento e materiais

Fonte: Barrio ([entre 2008 e 2022]).

A segunda parte da obra consistiu em conduzir e deflagrar os “abjetos” em um


rio/esgoto no Parque Municipal na cidade de Belo Horizonte em Minas Gerais, o que ocorreu
no início da manhã. Na Figura 7, observamos em destaque uma das Trouxas Ensanguentadas.
38

Figura 7 – Artur Barrio, SITUAÇÃO T/T, 1 2ª parte, 1970.

Fonte: Barrio ([entre 2008 e 2022]).

Na Figura 8, a seguir, o registro fotográfico, realizado quando os volumes encontram a


margem. A situação chamou a atenção de quem estava no parque, devido ao seu aspecto.
Como já mencionamos, parecem corpos, o que faz com que sejam acionados a polícia chegou
e o corpo de bombeiros (BARRIO, 1996).

Figura 8 – Fotografia do público.

Fonte: Barrio ([entre 2008 e 2022]).


39

A obra de Artur Barrio, para além da imagem, precisa ser vista pela multiplicidade e
convergência de meios, tais como: a inserção do corpo do artista, escolha dos materiais, o uso
das palavras e a escolha do espaço de inserção. Na terceira e última parte da obra, o artista
abriu 60 rolos de papel higiênico sobre as pedras na margem do rio, como podemos observar
na Figura 9.

Figura 9 – Artur Barrio, SITUAÇÃO T/T 1 3ª parte, 1970.

Fonte: Barrio ([entre 2008 e 2022]).

Trata-se de um material ordinário, utilizado para a higiene do que o corpo expulsa,


mas também pode ser visto como uma analogia à miserabilidade de um país de terceiro
mundo. Esse conceito foi empregado também por Glauber Rocha no cinema novo, no qual
expunha as contrariedades de um país subdesenvolvido com estruturas precárias que
idealizava um conceito de primeiro mundo americanizado. Barrio, assim como Glauber e
Hélio Oiticica, leu Frantz Fanon, o que o torna consciente das contradições de um país
colonizado, consciente de sua posição de homem negro, artista subversivo em uma sociedade
normativamente branca.
Assim como Oiticica problematiza a miséria levando os Parangolés da favela para
dentro do museu, Barrio atua no limite tensional entre arte e política, dando visibilidade aos
restos sociais que o governo militar deixava para o país. O volume de panos ensanguentados
denuncia corpos calados, esvaziados de palavras e eliminados. Já os materiais precários
40

denunciam a precariedade que devora a liberdade do indivíduo, como o artista deixa


registrado em seus manifestos.

Partindo desse aspecto sócio-econômico, faço uso de materiais perecíveis, baratos,


em meu trabalho, tais como: lixo, papel higiênico, urina, etc. É claro que a simples
participação dos trabalhos feitos com materiais precários nos círculos fechados de
arte provoca a contestação desse sistema em função de sua realidade estética atual.
Devido ao meu trabalho estar condicionado a um tipo de situação momentânea,
automaticamente o registro será a fotografia, o filme, a gravação etc. Portanto, por
achar que os materiais caros estão sendo impostos por um pensamento estético de
uma elite que pensa em termos de cima para baixo, lanço em confronto situações
momentâneas com o uso de materiais perecíveis, num conceito de baixo para cima
(BARRIO apud CANONGIA, 2005, p. 145).

Diante do exposto, uma questão surge: qual a intencionalidade do artista ao envolver a


paisagem com um material ordinário, comum como papel higiênico, desenhando pequenos
espaços e linhas através dos elementos locais, pedras, terra, água e o vento? Naquele
momento, entre o fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, o país vivia um crescimento
econômico. “Nunca fomos tão felizes’’ foi slogan amplamente utilizado para legitimar ações
do governo militar e proteger o país da ameaça comunista (NAPOLITANO, 2014). Contudo,
apesar do desenvolvimento, a maior parte da sociedade não tinha acesso aos frutos dessa
prosperidade. As desigualdades, nessa ordem, tornavam-se material para produções visuais,
cinematográficas e musicais.
Desde o golpe de 1964, o país enfrentava o período mais opressor e violento do regime
militar, após a instituição do AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968. No referido contexto, o
direito a habeas corpus por crimes políticos foi extinto. Ademais, foi instaurada a censura
prévia a músicas, filmes e peças de teatro (MEMORIAL DA DEMOCRACIA, 2015).
Como afirma Jacques Rancière, “[...] as artes podem ser percebidas e pensadas como
artes e como formas de inscrição do sentido da comunidade” (2009a, p. 18). Entendemos,
assim, que nas conjunturas violentas da sociedade do período, os volumes ensanguentados
poderiam ser qualquer coisa, inclusive corpos de torturados e desaparecidos, remetendo ao
Esquadrão da Morte7. Rancière (2009a, p. 17 - 17) ressalta que:

A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem
tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos
possíveis do tempo. É a partir dessa estética primeira que se pode colocar a questão
das "práticas estéticas", no sentido em que entendemos, isto é, como formas de
visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, do que "fazem" no que diz
respeito ao comum. As práticas artísticas são "maneiras de fazer" que intervêm na

7
Esquadrão da Morte foi um grupo paramilitar organizado com o objetivo de capturar e torturar pessoas
consideradas potenciais inimigos do regime.
41

distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e
formas de visibilidade.

Nesse sentido, a arte de Barrio ocupa-se da política, da ética da denúncia dos fétidos
porões subalternos da ditadura civil militar, feitas de carne morta. Assim sendo, sua obra
denuncia uma realidade viva.
Os volumes de carne, ossos e sangue denunciam o desaparecimento como implantação
do terror, como cita Caroline Bauer (2014). Essa, vale reforçar, é uma estratégia de governos
militares na elaboração das políticas de desmemória e esquecimento. Todavia, não se esgotam
nesse aspecto, uma vez que tratam da transição de objetos de desejo a descartes, o transitório,
expelido pela sociedade. Existe uma relação íntima entre os objetos criados pelo artista e nós,
o que leva a perceber que a arte nos ensina muito sobre nosso próprio universo, como observa
Jorge Coli (2017).
A obra materializa aspectos violentos e precários da vida social dentro de um regime
ditatorial, expondo cruamente aspectos de uma realidade que se desejava esconder. Assim,
isso nos remete ao sentido da estética:

A palavra “estética” não remete à uma teoria da sensibilidade, do gosto ou do prazer


dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que
pertence à arte, ao modo de ser dos seus objetos. Esse sensível, subtraído a suas
conexões ordinárias, é habitado por uma potência heterogênea, a potência de um
pensamento que se tornou ele próprio estranho a si mesmo [...] (RANCIÈRE, 2009a,
p. 32).

Cumpre referir que se trata de uma obra radical, transgressora e potente. O artista não
se subtrai de seu estado social de cidadão, direcionando seu trabalho ao resgate de uma
sociedade da inércia, da apatia quanto à sua situação de povo coagido e calado.

3.2.3 A apropriação da palavra na obra de Barrio

Em sua ética da contestação, o artista interfere no espaço urbano, requisitando a


participação do público, fazendo-o mergulhar na obra de arte. Assim, seu trabalho é uma
construção fluida que converge linguagens e apropria-se do corpo e do espaço, em que a
palavra percorre lado a lado os demais elementos, atravessando suas narrativas.
Sua obra reconhece e denuncia a violência sistêmica instaurada pelo regime militar e
legitimada pela sociedade da época. Além disso, em evidente contestação à
institucionalização da arte, contrapõe uma arte pobre à estética nobre que agradava a elite
42

governamental da época. Nesses intercâmbios entre significantes e significados, está a relação


entre o visual e a linguagem escrita na obra do artista – uma inexiste sem a outra.
Em seus Cadernoslivros, que registram os processos realizados pelo artista, nos títulos,
na inserção de seu nome ou como na composição da obra, o artista conduz a imagem o mais
próximo do olhar de quem a observa. Em os LIVROS DE CARNE, 1974, a escrita se forma
através do corte da faca do açougueiro, que revela as linhas que são construídas pelas fibras
dos tecidos:

A leitura deste livro é feita a partir do corte/ação da faca do açougueiro na carne com
o consequente seccionamento das fibras/fissuras, etc, etc, assim como as diferentes
tonalidades, colorações. Para terminar, é preciso não esquecer das temperaturas, do
contato sensorial (dos dedos), dos problemas sociais, etc etc (BARRIO, 1999).

Barrio não se furta de meios capazes de promover a completa apreensão do sentido de


seus trabalhos. Os diferentes signos, igualmente diferentes em qualidades, na presença um do
outro, deixam de ser puros e se tornam partes. Rompem, assim, qualquer hierarquia,
remetendo ao pensamento de Ricardo Basbaum (2007) sobre o hibridismo na arte
contemporânea.
Na obra SITUAÇÃO T/T1, de 1970, o registro escrito que o artista faz do processo de
construção dos volumes, bem como das sensações que experimenta, permite mergulhar mais
profunda e humanamente na construção do trabalho. Nas nomeações que confere aos
elementos, como por exemplo os “abjetos”, e o ato de deflagar, quando coloca os volumes no
rio, dão ênfase à intencionalidade a eles atribuídas.
A ruptura e apoio entre as linguagens visual e escrita, na produção do artista, orienta a
escolha da obra para esta pesquisa, uma vez que envolve o texto no qual ele registra suas
escolhas e relata suas percepções sobre o processo, tornando a palavra parte constituinte na
sua obra. No entanto, ao isolar a imagem das trouxas ensanguentadas nas margens do rio,
remetendo a corpos abandonados, ausentando qualquer nomeação, ou orientação do que se
trata, constrói registros visuais que permanecerão.
A imagem das trouxas ensanguentadas choca com sua estética do horror. A partir
disso, é possível conjecturar sobre sensações causadas em transeuntes que, ao passearem
tranquilamente pelo parque, depararam-se com elas. Pela via da palavra, a obra aprofunda seu
conceito e permite ao leitor participar de sua construção. Assim, é possível compreender o
que está dentro dos volumes, sem vê-los por dentro. Cabe esclarecer, nesse sentido, que o
público não teve acesso ao conteúdo das trouxas naquele momento.
43

Os registros gráficos e visuais do processo de criação da obra, por sua vez, permitem o
acesso à concepção e à ideia, remetendo ao núcleo do trabalho do artista, capaz de dizer o
indizível, que transborda a palavra e a imagem, atravessa o corpo e transforma o espaço
público em espaço social e político. Ao adentrar o núcleo da obra através desses registros, é
possível ampliar a compreensão de seu conceito, que, na América Latina, adquire um caráter
político mais urgente, como define Artur Freitas (2007). Isso ocorre justamente, complementa
o autor, pela ligação com a necessidade de mudanças sociais.

A arte não será nem a beleza nem a novidade, a arte será a eficácia e a perturbação.
A obra de arte realizada será aquela que, dentro do meio por onde o artista se move,
tenha um impacto equivalente, em certo modo, a um atentado terrorista em um país
que se liberta (FERRARI apud FREITAS 2007, p. 52).

Freitas aborda a produção artística brasileira durante os anos de 1960 a 1973, também
chamados de anos de chumbo, no que tange aos aspectos estéticos e ideológicos. Assim, traça
um paralelo entre o surgimento de uma arte conceitual e o contexto social e político dos anos
de vigência do AI-5.
O autoritarismo do regime de governo diluía os parâmetros estéticos. O que valia,
então, era o potencial de transformação social e o espectador, assim, tornou-se participante da
obra que invadia o espaço público. Nessa ordem, o sentido era ocupar o lugar social e não
apenas o que era dito tinha importância, mas também como era dito, as transformações da arte
eram parte de um processo ético-existencial de convulsão moral necessária e urgente
(FREITAS, 2007).
A questão do choque na obra de Barrio era quebrar a apatia, recrutar a partir do
abalroamento, um desafio ético de posicionamento diante do precário, da precariedade. O
espaço público transforma-se, dessa maneira, em um espaço político e ideológico.
Nascido em Portugal, o artista chegou ao Brasil aos dez anos de idade. Antes, viveu
por três anos em diversos países da África: “onde vivenciou as contradições de um continente
oscilante entre a exuberância cultural e os mais infelizes traumas coloniais” (FREITAS, 2007,
p. 127).
O título SITUAÇÕES nos remete ao modo como algo está disposto em determinado
período, de acordo com seu significado literal no dicionário ou, ainda, o modo como alguém
ou algo se encontra em relação a outrem. Impreterivelmente associada a algo ou alguém, o
estado das coisas, da vida e da liberdade do indivíduo comum ou do artista, nada estava
seguro ou assegurado durante o governo militar.
44

Observando a consistência de sua obra, podemos notar que nenhuma escolha na sua
construção é impensada. Quando Artur Barrio denomina o ato de deixar os “abjetos” trouxas
no local como “deflagrar”, mergulha na semântica da palavra. Esta, no sentido literal,
refere-se à explosão, combustão repentina que causa ruídos, calor, chamas, no sentido literal a
surgimento inesperado e geralmente violento, escolha que reitera o aspecto violento,
componente estrutural da obra.

3.3 CARLOS ZÍLIO: ARTE-MILITÂNCIA-TESTEMUNHO

Contemporâneo à Artur Barrio, Carlos Zílio representa a violência e a tortura, da qual


ele próprio torna-se vítima. Artista de multiplos meios, como objeto de arte, pintura, desenho
e fotografia, denuncia, desde a apatia social, à tortura e o desaparecimento durante o regime
militar que incia com o golpe de 1964.
Através da observação dos elementos que constituem seus trabalhos, uma leitura do
contexto social e político do período de governo ditatorial, pode ser realializada. O uso das
máscaras expressivas, palavras de dor e convocação e a escolha de cores, e elementos chave,
sugerem uma construção do cenário em que vivia o Brasil naquele período.
Ao perceber que sua arte não alcançaria o efeito de mobilização ou mudança que
acreditava necessário, Zílio atua como militante político diretamente contra a opressão do
governo militar.
Ao entregar panfletos contra o governo é alvejado e gravemente ferido, preso realiza
diversos trabalhos que retratam o cotidiano de torturas na prisão, trabalhos que ganharão
espaço e visibilidade mais de vinte anos depois.
Neste capítulo apresentamos o artista e ativista político, buscando compreender os
possíveis significantes presentes em sua obra, guiados pelos críticos Felipe Scovino,
Frederico de Moraes, Jan Mukarovskye Jacques Ranciere.

3.3.1 Arte e militância política

Os anos de 1960 e 1970, como já mencionamos, provocaram profundas


transformações estéticas nas artes visuais. A partir da apropriação de inovações promovidas
pelos movimentos de vanguarda europeia, especialmente o Dadaísmo, em nome de ideais
sociais, os artistas inauguram com toda força um novo período.
45

A esse cenário, integrou-se também Carlos Zílio. Nascido no Rio de Janeiro, em 1944,
iniciou seus estudos em artes plásticas em 1963 no Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro,
onde foi aluno de Iberê Camargo, de quem, mais tarde, herdou o ateliê, quando este último se
mudou para Porto Alegre. Em 1973, formou-se em psicologia. Já durante seu exílio na
França, fez doutorado em artes plásticas. Anos após, fez pós-doutorado em Ehess, também em
Paris. Já entre 1998 e 1999 realizou estágio com Yves-Alain Bois nos Estados Unidos, como
informa Felipe Scovino (2010).
Iberê Camargo foi uma referência importante para seu trabalho, e com o mestre Zílio
compartilhou um conflito que viveu com sua família, que sonhava que o jovem cursasse
faculdade de arquitetura. O tema rendeu a série de fotografias: Para um jovem de brilhante
futuro, realizada em 1974. A Figura 10 mostra um jovem sentado de costas em seu escritório:
seus pés ostentam sapatos muito bem lustrados e descansam despreocupadamente cruzados
sobre a mesa. Ele segura o telefone próximo à orelha na mão esquerda; a direita aponta o dedo
indicador altivo para cima. O paletó está sobre a cadeira e, em cima dos móveis e da
escrivaninha, há pilhas de papéis, pastas e uma agenda aberta próximo à câmera.

Figura 10 – Carlos Zílio, Para um jovem de brilhante futuro, 1974, fotografia 18 x 24 cm.

Fonte: Zilio (202-).


46

O trabalho de Carlos Zílio é acompanhado de reflexões teóricas sobre as


transformações que ocorrem nas produções de artistas visuais naquele período, bem como
sobre o circuito da arte, que, durante o governo militar, foi afetado pelo fechamento de
espaços de arte e pelas interferências dos censores nas escolhas das obras e exposições.
Sua atuação política, entretanto, não se restringiu à produção artística. Em 1969,
entrou para a militância política propriamente dita. Em entrevista concedida ao canal do
Youtube do Instituto Tomie Ohtake, o artista falou um pouco sobre sua prisão. Conforme
relatou, atuava na proteção de pessoas, na organização de documentos e na distribuição de
panfletos. Zílio, nesse contexto, foi gravemente ferido e preso pela polícia militar. Levou três
tiros que feriram seu rosto e abdômen – ele ficou entre a vida e a morte durante uma semana.
Isso não impediu que fosse removido do hospital público no qual foi socorrido e encaminhado
ao hospital militar, apenas três dias após o incidente, em graves condições de saúde (ZÍLIO,
2018).
Durante os dois anos que ficou na prisão, desenvolveu desenhos e pinturas que só
foram expostos em 1996, na exposição Arte e Política no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro – MAM-RJ.
A Figura 11 apresenta um desenho em lápis de cor sobre papel, nas cores preto e
vermelho. A imagem nos fornece um testemunho das múltiplas torturas que Zílio sofreu
durante sua prisão. Na parte central, há uma caveira à frente de uma espécie de aparelho, que
possui uma alavanca na parte superior. Do aparelho, saem cabos de fios grossos que o
conectam ao órgão genital. Abaixo, o artista retrata o ambiente: uma cela carcerária. A
expressão “AAAIIII” é escrita duas vezes, novamente em letras de caixa alta na cor vermelha.
Os símbolos entre parênteses, negativo e positivo, remetem a uma bateria que dispara corrente
elétrica.
47

Figura 11 – Carlos Zílio, Estudo 9, 1970, lápis de cor sobre papel 47 x 32,5 cm.

Fonte: Zilio (202-).

A imagem apresentada na Figura 12, por sua vez, retrata seu sentimento de estar
próximo à morte. Intitulada A Quase Partida e datada de 1970, a obra apresenta três
perfurações de projéteis em tons de vermelho – do mais claro ao mais escuro – representando
os ferimentos. Os retângulos pretos divididos com linha larga e atravessados por duas linhas
em x, no centro, indicam um alvo. Das perfurações, respinga sangue e que se espalha. Elas
começam em tamanho menor e vão crescendo até que a inferior ocupe boa parte do último
retângulo.
48

Figura 12 – Carlos Zílio, A Quase Partida, 1970, 47 x 32 cm.

Fonte: Zilio (202-).

Ao sair da prisão, o artista permaneceu por algum tempo no país, mas se mudou para a
França por receber ameaças, dirigidas também à sua esposa. Na Europa, ele cursou seu
doutorado em Artes Plásticas. Em 1974, produziu “Mamãe, Eu Fiz um Super 8 nas Calças”.
O vídeo tem duração de 1 minuto e 32 segundos. Sem som, sua produção é extremamente
simples, caracterizando, assim visto na análise da obra de Barrio, uma estética da
precariedade. Em frente à tela, passam folhas de papel branco com escritos em preto, de baixo
para cima, que, de forma irônica, denunciam a repressão e pedem o fim da ditadura.

3.3.2 Luta e desaparecimentos

De acordo com Mukarovsky, a obra de arte é um signo autônomo, caracterizado pelo


poder de comunicabilidade entre os membros de uma coletividade. No entanto, o autor alerta
que não deve ser ignorado seu contato com a realidade:
49

Há signos que não se referem a uma realidade diferente deles, e no entanto o signo
significa sempre algo que se deduz naturalmente do facto de ele ter de ser
compreendido tanto por quem o emite como por quem o recebe. Porém, no caso dos
signos autônomos, esse algo não é claramente determinado. Qual é então essa
realidade indefinida a que se refere a obra de arte? É o contexto geral dos fenómenos
ditos sociais, como, por exemplo, a filosofia, a política, a religião, a economia, etc. É
por essa razão que a arte mais que qualquer outro fenómeno social consegue
caracterizar e representar uma «época» dada; por isso mesmo a história da arte foi
durante muito tempo confundida directamente com a história da cultura no sentido
mais amplo da palavra; e, ao mesmo tempo, também a história geral utiliza
frequentemente a delimitação de períodos estabelecida pela história da arte
(MUKAROVSKY, 1997, p. 13).

O trabalho de Carlos Zílio ganha destaque nesta pesquisa, uma vez que se apresenta
para além de registro testemunho de um tempo e de uma série de atos que foram cometidos.
Sua narrativa está carregada de uma verdade que sofreu a tentativa de apagamento.
No contexto desta dissertação, refletimos sobre a fala de Herbert Read em Frederico
Moraes (1970, p. 55): “a arte sempre foi a consciência que cada época tinha de si mesma”.
Inserida nessa realidade, refere-se aos artistas que marcaram uma época com sua luta contra a
violência de um regime opressor, a impunidade e a apatia social.
Alguns elementos se repetem nos trabalhos do artista, como a máscara, que não
apresenta uma identidade definida. Pode, portanto, ser uma autorreferência ou referir-se a
qualquer pessoa. Na Figura 13, a obra Visão Total, realizada em 1966, mostra um rosto vazio,
preso ao interior de um recipiente, inexpressivo e comum.
50

Figura 13 – Carlos Zílio, Visão Total, 1966, Vinílica sobre madeira, 84 x 73 cm.

Fonte: Zilio (202-).

No referido trabalho, encontram-se nove máscaras dispostas em fileiras de três, todas


cobertas por uma camada plástica transparente, causando uma sensação de sufocamento,
semelhante àquele perceptível em Lute (1967), quando a máscara é presa dentro do recipiente.
A imagem pode ser lida como o sentimento de estar vivendo dentro de um núcleo regido por
um governo opressivo – é a sensação de sujeito sem liberdade. Entre elas, consta a palavra
“VER”, novamente em letras de caixa alta e na cor vermelho intenso.
Das nove máscaras, oito têm os olhos cobertos por uma faixa larga preta, que cobre
seus olhos. Estes são vendados e inexpressivos. A continuidade, porém, é quebrada pelo rosto
que não tem seus olhos cobertos e não carrega uma feição inexpressiva. Esse rosto mostra um
claro descontentamento; os olhos e sobrancelhas tensionados têm um aspecto circunspecto; a
boca também demonstra aborrecimento.
A máscara tridimensional que compõe muitos dos trabalhos do artista na década de
1960, é usada como um recurso poético que identifica suas obras do período. A forma como
se apresenta, um negativo de rosto, deixa em aberto a possibilidade de ser o molde do rosto do
artista ou um múltiplo representando qualquer pessoa de uma multidão.
51

Frederico de Morais, nesse sentido, cita Herbert Marcuse: "A propagação da guerra de
guerrilha no apogeu do século tecnológico é um acontecimento simbólico: a energia do corpo
humano contra as máquinas da repressão" (MORAIS, 1970, p. 59). A arte, com os
movimentos de vanguarda, aproxima-se da vida e ambas se fundem como um ato em nome da
ética, produção e política, armam-se contra quem oprime e cerceia a liberdade, fundamental
como ar que se respira. Trata-se de olhos vendados, rostos abafados, asfixiados sem
perceber-se de sua condição.
A arte ocupa-se da vida e se funde com ela: na obra de Barrio, é precária, feita de
dejetos; na obra de Zílio, de rostos anônimos e autômatos, com algumas exceções. Para Felipe
Scovino (2010), trata-se de uma arte totalmente preenchida com o mundo, em que as
vivências se deslocam para os diálogos com seus objetos.
A maneira de fazer da arte que diz respeito ao comum partilhado, e as partes
exclusivas deste comum, como revela Rancière (2009a), à máscara vedada nos remete ao
escravo de Aristóteles, que, se compreende a linguagem não a possui, a analogia que está em
jogo na política como forma de experiência, não como uma estética refém da política, mas
pela vontade da arte.
Nessa multiplicidade de sentidos, em que um pode ser o todo e o todo está na unidade,
reside uma das funções do exercício da crítica. Na constituição desses sentidos, reside a
função de viabilizar espaços de dissenso, em que habitam o comum e o múltiplo, como reflete
Calo Osorio (2005).
A experiência estética, na arte contemporânea, acontece via jogo de sentidos
engendrados por linguagens distintas que se entrecruzam e abrem um campo de possibilidades
de significação. Esta, no conceito kantiano, age como fundadora de uma abertura do sujeito ao
mundo, que, por seu turno, ocorre via estética do compartilhamento. Isso leva a notar, como
afirma Luiz Camillo Osório (2005), o nós é anterior ao eu.
Theodor W. Adorno (1970) evidencia: uma obra de arte tem como elemento
constitutivo o momento histórico em que é produzida, configurando assim uma historiografia
inconsciente. Nesse sentido, a máscara remete a uma sociedade inebriada pela promessa do
país do futuro e inerte aos desmandos do autoritarismo. Ademais, “VER” é tudo que aqueles
rostos inertes vedados não podem e configura-se, portanto, uma contradição com a ordem da
palavra. Trata-se de uma ideia semelhante à imposta pela obra A Traição das Imagens, datada
de 1926, de René Magritte: Ceci N'est Pas Une Pipe8. A obra nos mostra um cachimbo e, no
entanto, nega que o objeto observado seja o que nossa mente diz que estamos vendo – é tão
8
A frase refere-se à obra “A Traição das Imagens” de 1926, de René Magritte.
52

desconcertante quanto inevitável chegar a esta conclusão. A palavra poderia ser uma ordem
direta: “VEJA”, ou seja, é urgente e imprescindível ver, mensagem reforçada pela cor
vermelha com a qual é escrita e pela caixa alta utilizada.
A consciência, para cuja reflexão se remete toda obrigação artística, desmontou
simultaneamente a obrigação estética, afirma Adorno (1970), referindo-se aos movimentos de
vanguarda. Não há, nas obras do artista, maior preocupação com a estética do que com o
objetivo social pretendido pelo artista militante, o que ocorre também nas obras analisadas de
Barrio. Desse modo, compreendemos, trata-se de despertar o espectador para o estado social
em que se encontrava o país dois anos após o Golpe de 1964 – dois antes do AI-5.
Considerando que uma obra de arte tem o caráter de signo, buscamos, nesta análise,
explorar significados de cada elemento constitutivo enquanto unidade comunicativa de
sentido. A tentativa é desvendar, eventualmente, intenções ideológicas, sua existência
autônoma e dinâmica fundamental na estrutura da obra e na dialética com os outros
elementos.
Assim como o objeto máscara se repete, a palavra é uma constante em muitas obras do
artista, as imagens anteriores são mostradas com a finalidade de criar conexões entre os
elementos poéticos que se repetem nas obras do artista.
Na Figura 14, uma fotografia da obra Lute, de 1967, mostra uma pequena marmita de
alumínio aberta com sua tampa encostada ao lado. Dentro dela, há uma máscara amarela,
representando um rosto humano. Ela é recortada logo acima das sobrancelhas e abaixo do
queixo. Sobre a boca, consta a palavra “Lute” em caixa alta vermelha.
53

Figura 14 – Carlos Zílio, Lute (marmita), 1967, alumínio, plástico, resina plástica, 18x10 cm, 5x5cm.

Fonte: Zilio (202-).

A escrita agrega significados às obras dos artistas visuais contemporâneos. Para além
da imagem e dos objetos, a palavra, como signo comunicante, fala diretamente ao espectador,
como cita Rancière: a palavra faz ver, designa, convoca o ausente, revela o oculto (2009a).
A palavra "LUTE" é atribuída a um chamado do artista ao receptor, ainda
potencializado por sua forma em caixa alta e cor. Na pintura, a cor é um elemento formal, mas
também comunicativo, portador de um determinado significado, que pode ir desde um fator
emocional até uma concreção evidente neste sentido. Assim como o azul significa o céu e a
água, o vermelho carrega em si o signo da urgência e a materialidade da violência remetendo
ao elemento orgânico sangue (MUKAROVSKY, 1997).
Do objeto, foram produzidas oito unidades, na intenção de serem entregues aos
funcionários nas saídas das fábricas. A simbologia desse objeto artístico nos remete ao
alimento, mas também ao papel social do receptor – no caso, os operários. De acordo com
Mukarovsky (1997), o signo caracteriza-se por carregar um conteúdo que ultrapassa os limites
da consciência individual – o conteúdo compartilhado entre a consciência individual e
coletiva é considerado um signo.
Os elementos do sistema linguístico, em sua estrutura e valor, são analisados,
conforme o referido autor, pela ciência do espírito, que trabalha no mundo dos sentidos e na
consciência coletiva. Ainda segundo ele, a obra artística não pode ser identificada como
estado espírito do seu criador, mas é destinada a servir de intermediário entre este e a
54

coletividade. A máscara sem a venda pode representar o indivíduo já tocado, estimulado a


experienciar a realidade de uma forma mais crítica e autônoma. Ativa, assim, a sua
capacidade de transformá-la. Mukarovsky (1997), ademais, chama a atenção para o fato de
que nem toda função extraestética se cumpre quando é percebida, mas vai adquirindo um
sentido durante a sua percepção.
Em relação ao tema, o mesmo autor afirma que ele tem a característica de estabelecer
uma relação unívoca dos signos com a realidade. Além disso, cria uma estreita relação entre
os outros componentes da obra. Exemplo disso é quando algum dos elementos se liga, por
associação psicológica, a um fenômeno exterior à arte. Nesse sentido, observamos, nos dois
exemplos dessa relação, o material plástico que cobre as máscaras: remete ao sufocamento.
Os cabos com signos de positivo e negativo ligado ao órgão sexual remetem a práticas de
tortura, amplamente comprovadas por meio de depoimentos.

3.3.3 Onde enterraram nossos mortos

Carlos Zílio evoca a realidade por meio dos múltiplos signos presentes em seu
trabalho. A segunda obra do artista que analisamos é Identidade Ignorada, é realizada em
1973. Reproduzida na Figura 15, é uma fotografia em preto e branco com tamanho de 18 x 24
cm. Apresenta fundo preto e tem, no centro, como únicos elementos, os pés de um cadáver
muito iluminados em contraste com o fundo negro. No dedo maior do pé esquerdo, há uma
etiqueta com as palavras “IDENTIDADE IGNORADA", em letras de caixa alta, na cor preta.
55

Figura 15 – Carlos Zílio, Identidade Ignorada, 1973, fotografia, 18x24 cm.

Fonte: Zilio (202-).

A imagem remete aos presos e desaparecidos políticos que o regime militar deixou
como saldo. Vale lembrar que a Lei n. 9140/95 estabelece critérios para que uma pessoa seja
considerada desaparecida político: são consideradas mortas as pessoas que estejam
desaparecidas após serem detidas por crimes políticos entre o período de 02 de setembro de
1961 e 05 de outubro de 1988. Em 2004, através da Lei 10.875, os critérios foram ampliados
e passaram a abarcar também pessoas feridas em protestos e que faleceram em consequência
dessa participação ou que tenham desaparecido em dependências policiais ou assemelhadas.
A Lei mais recente inclui, ainda, pessoas que cometeram suicídio diante da eminência de
serem presas ou por sequelas psicológicas resultantes das torturas a que foram submetidas.
(MEMORIAL DA DEMOCRACIA, 2015).
Pode não ser simples eliminar um corpo, mas sua identidade pode ser escondida e
confundida. De acordo com Caroline Bauer (2014), o desaparecimento foi uma ferramenta
amplamente utilizada na implantação do terror nos governos ditatoriais, reforçada por
políticas de desmemória e esquecimento, protetores de torturadores, através da censura, da
desinformação e do silêncio. Nesse sentido, a autora complementa: “Está prohibido informar,
56

comentar o hacer: referencia a temas relativos a hechos subversivos, la aparición de cadáveres


y las muertes de elementos subversivos” (BAUER, 2014, p. 101).
A obra de Carlos Zílio trata desses desaparecimentos. Os pés sem nome são um signo
que representa as pessoas que nunca mais voltaram para casa, as quais as famílias talvez ainda
esperem, na eterna presença da ausência. A violência do silêncio abissal impera nesta
imagem, na cor preta do fundo. O tema desta imagem, como já citado e como afirma
Mukarovsky (1997), funciona como um eixo de cristalização de força comunicativa entre seus
componentes. Assim, conecta as obras analisadas nesta pesquisa: a tentativa de denúncia, a
resistência a violência e autoritarismo, característicos do regime militar vigente naquele
período.
Ainda na obra de Carolina Bauer, que trata das ditaduras brasileira e argentina,
encontramos fragmentos de narrativas daquele país que se aproximam do nosso contexto: “No
le busque más a Elena, ya dejó de sufrir, ojalá que esté en el cielo” (2014, p. 103). Há
informações desencontradas e inverdades no ensejo de desorientar e desestimular a família em
sua busca. Nesse sentido, prossegue, com frieza e cinismo, quando a família volta a procurar a
filha ou solicitar seu corpo para ter a quem enterrar o militar: “Los cadáveres no se
entregan…”. Em outras palavras, trata-se da prática do desaparecimento como implementação
do terror: os cadáveres não são entregues nem identificados. “El tema del desaparecido es
difícil porque te niegan todo. Es una negatividad. Te han negado la vida y después te han
negado la muerte” é o relato do marido de uma vítima de tortura. Neste outro fragmento,
Bauer (2014, p. 108) traça paralelos entre o regime ditatorial e suas políticas no Brasil e
Argentina.
Segundo Mukarovsky (1997), a estrutura da arte é constituída por um conjunto de
normas que estão na consciência coletiva e em constante contato com ela, atuando sobre
outros sistemas além do da arte, como sistemas linguísticos, de normas ou de ética. Dessa
maneira, evoca o conceito de arte e concepção de mundo. Nessa perspectiva, através dela, o
indivíduo, artista ou receptor, toma atitudes diante da realidade do mundo que observa na obra
com a qual tem contato.
A representação dos pés do cadáver sem identificação não cessa seu significado
naquele período histórico, como já mencionamos. A marginalização do sujeito, implementada
pelos discursos salvacionistas do governo ditatorial, fertiliza, no imaginário popular, a ideia
de que qualquer opositor a medidas higienizadoras promovidas se tornava um inimigo, uma
ameaça ao Brasil do futuro próspero e sua aniquilação era uma consequência das ações
necessárias. Acerca do exposto, Marcos Napolitano afirma: "A população, tomada pelo
57

sentimento de medo e revolta diante da violência real ou simbólica dos criminosos e da


lentidão da justiça brasileira, sentia-se vingada quando um bandido era morto” (2014, p. 167).
A imagem nos faz refletir, ainda hoje, sobre as vítimas de perseguição que continuam
desaparecidas. Ademais, tenta dar conta de buscar respostas, preenchendo lacunas na história
deixadas abertas pela Lei de Anistia.
A fotografia, acusada há tempos de tornar os corpos simulacros sem alma, na obra de
Carlos Zílio, torna-se a própria emanação dos corpos, requisitando que devolvam seus nomes,
sua história, uma imagem como discurso recontando a história. A esse respeito, cumpre
observar o exposto por Rancière:

A fotografia não se tornou uma arte porque aciona um dispositivo ponto a marca do
corpo a sua cópia. ela tornou-se arte explorando uma dupla poética da imagem,
fazendo de suas imagens, simultânea ou separadamente, duas coisas: os testemunhos
ilegíveis de uma história escrita nos rostos ou nos objetos e puros blocos de
visibilidade, impermeáveis a toda a narrativização, a qualquer travessia de sentido
(2012, p. 20).

Na relação que se forma entre visualidade e significações, a narrativa, na fotografia,


invoca uma presença e, neste trabalho, soma-se ao texto na etiqueta ostentada pelo dedo do
pé. Assim sendo, faz emergir do silêncio no fundo negro a ideia de que daqueles pés
humanos, que um dia percorreram caminhos, tiveram sua identidade roubada. Do mesmo
modo, foram roubadas a sua história, juntamente com sua vida. No vácuo negro, morre com o
sujeito todas as lembranças que não puderam ser relatadas.
58

4 COMO NAQUELE TEMPO: ARTE E POLÍTICA NA PRODUÇÃO DAS ARTES


VISUAIS HOJE

É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer


a morte” Gal Costa Divino Maravilhoso. Composição: Caetano
Veloso e Gilberto Gil (1969)

Como mencionado anteriormente, o processo de transição política que configura a


saída do Brasil da ditadura civil-militar do período de 1964 a 1985 foi marcado por uma série
de continuidades, garantidas pela ausência de políticas de memória, de justiça e de reparação
dos crimes cometidos pelo Estado durante o período. Dentre tais crimes, citamos sequestros,
seguidos de tortura física e psicológica e, por fim, os desaparecimentos. Estes últimos são
crimes contínuos, que “suspendem a vida e a morte”, o que afeta sujeitos de forma individual
e coletiva. Além disso, no contexto dos desaparecimentos, a impunidade forma a impressão
de um passado que nunca passa (BAUER, 2014, p. 36).
No início do presente texto, abordamos a construção das diferentes memórias que
entram em disputa em um grupo social, que atravessa experiências de conflitos e traumas. De
acordo com Maurice Halbwachs (2006), nestas disputas, acaba por prevalecer aquela que se
encontra em primeiro plano, pensamento complementado por Michael Pollak (1989), que
afirma que as memórias das minorias continuam seu trabalho em silêncio.
As obras que abordadas na próxima seção cumprem o que Jeanne Marie Gagnebin
(2006) chama de necessidade de transmissão e escritura, na contramão da tentativa de
normalização, e apagamento da memória de violência. Seria agora o momento mencionado
por Daniel Aarão Reis (2010) de analisar claramente as “incômodas lembranças” do período
ditatorial brasileiro, soterradas pelo esquecimento imposto através da Lei de Anistia?
A despeito de tais tentativas de invisibilidade, a arte contemporânea continua a trazer
este tema à pauta. Neste capítulo, apresentamos obras produzidas desde os anos de 2001 a
2021, dos artistas Tchello d’Barros, Hélio Fervenza e Manoela Cavalinho. São analisados,
ainda, seus elementos formais e sua contextualização, reafirmando o compromisso com a
verdade do passado.
59

4.1 A VISUALIDADE E A PALAVRA NA POESIA DE TCHELLO D’BARROS

Iniciamos esta seção do trabalho com a seguinte reflexão: Mas para que servem as
palavras? Para Michel Foucault (2016), as palavras designam, dão nome às coisas. Para esta
pesquisa, tomaremos a palavra como imagem, ainda assim abordada em sua epistemologia.
As palavras também constroem diálogos e, desta forma, conduzimos esta seção como um
diálogo.
Para John Dewey (2010, p. 215) “cada arte fala um idioma que transmite o que não
pode ser dito em nenhuma outra língua". O que ainda é preciso que se fale sobre o período
ditatorial de que trata esse texto é que ele ainda não está resolvido. Assim, as práticas
artísticas apresentadas nas próximas páginas demonstram o exposto.
A violência empregada pelo Estado, como ferramenta de controle social, deixa marcas
profundas no tecido social. As tentativas de invisibilidade e apagamento da memória destas
práticas somam-se ainda a esta violência. Na obra Brasil e Argentina: Ditaduras,
Desaparecimentos e Políticas de Memória, a autora Caroline Bauer (2014) analisa as
estratégias utilizadas pelo Estado para neutralizar qualquer tentativa de desconstrução das
suas bases de poder. Sua obra ainda contribui para desconstruir a ideia equivocada de que o
dano social e humano causado por governos autoritários pode mensurar-se pelo número de
vítimas.
Os trabalhos que apresentamos nesta seção, são desenvolvidos a partir do ano 2001,
até 2021. Neles, analisamos os elementos que materializam a historiografia inconsciente
mencionada por Theodor W. Adorno (1970). Analisamos, nos trabalhos, seus significantes,
relacionando-os com o aspecto de continuidade da violência perpetrada no período ditatorial.

4.1.1 A infância entre o desenho e a letra

O artista Tchello d’Barros explora as possibilidades visuais do signo gráfico enquanto


significante através de diversas linguagens, entre elas: literatura, artes visuais e cinema.
Nascido em Brunópolis, no estado de Santa Catarina, em 1967, teve sua infância e
adolescência marcadas pela ditadura. Mesmo não vivendo geograficamente nos centros dos
acontecimentos e confrontos, como os dois artistas citados anteriormente, esse fato que não
embaçou a potência visual de sua obra a respeito da temática analisada nesta pesquisa.
Em seus primeiros anos da infância, gostava de observar a escrita gótica do seu avô
materno de origem germânica. Nessas oportunidades, desenvolvia uma proximidade com o
60

desenho e com a escrita, que deixava fluir durante sua permanência na escola. Já na
adolescência participou de salões de desenho e recebeu como premiação uma bolsa de estudos
para curso de pintura, como informa Renata Barcellos (2020), nasceu daí o interesse pela
história da arte.
Cresceu em diversas cidades do sul do Brasil e atuou profissionalmente na indústria
têxtil de Santa Catarina. Já em 1985, foi recrutado a prestar serviço militar, período no qual
ilustrou materiais de instrução e comunicação para o exército, onde também trabalhou como
tatuador.

4.1.2 A sonoridade da imagem

A obra Soneto da Ditadura foi construída no ano de 2001, 16 anos após o fim da
ditadura civil-militar. Através de contato via e-mail com o próprio artista, buscamos, então,
compreender o que o motivou a construir esse trabalho. Tchello afirmou que a violência e a
repressão do regime militar perpassaram sua infância e juventude:

Em 85, tive ainda o azar de ser selecionado para prestar o serviço militar obrigatório.
Servi no primeiro ano pós-ditatorial, mas toda a atmosfera truculenta e opressiva
ainda estava no ar, o que me permitiu sentir na pele os efeitos desse regime e
construir uma visão crítica desse período (d’BARROS, 2022).

Particularmente eu, quando me deparei com o poema pela primeira vez, ao cursar uma
das disciplinas deste curso de mestrado, senti um violento impacto. Foi como se estivesse,
naquele momento, ouvindo as rajadas de projéteis e sentindo seus impactos no meu corpo. A
sensação vivenciada foi definitiva para que tomasse a decisão de incluí-lo nesta pesquisa.
A obra consiste em um poema visual, no qual o título introduz a mensagem que seu
criador deseja passar. São quatro conjuntos de quatro linhas e cada linha é formada por dez
imagens de perfuração por arma de fogo. Entre cada conjunto de quatro linhas, há um breve
espaço vazio, compreendendo a formação de um soneto, como mostra a Figura 16.
61

Figura 16 – Tchello d’Barros, Soneto da Ditadura, 2001.

Fonte: Tchello d’Barros (2009).

Para Alberto Manguel (2001, p. 21), “As imagens, assim como as palavras, são a
matéria de que somos feitos". Nesse sentido, observamos que, no poema visual, palavra e
imagem se unem e estabelecem novas relações na criação de significantes. Cada imagem
gráfica de tiro simboliza uma sílaba métrica do poema, construindo, no conjunto, um soneto,
já enunciado pelo título, em nosso imaginário. O som se faz real, uma vez que as palavras têm
este poder: dialogar diretamente com nosso imaginário, gestando e parindo sons, imagens e
sensações. O silêncio que configura a pausa entre a sequência de imagem complementa nosso
entendimento da forma que o conjunto de signos constrói, um soneto. O silêncio, ausência de
informação, visual ou sonora, é quietude, interrompida por nova sequência de imagens.
O período do governo ditatorial terminou em 1985, com a eleição indireta para
presidente de Tancredo Neves. Porém, como afirma Pollak (1989), as memórias, muitas
vezes, esperam décadas até o momento de poderem ser expressas. Nesse sentido, o artista, em
e-mail para esta pesquisa, afirmou: “A rajada que constitui o poema visual - na estrutura de
62

um soneto clássico – remete às muitas execuções e desaparecimentos da Ditadura brasileira,


forma de governo que ocorreu também em vários outros países latino-americanos”
(d’BARROS, 2022).
O artista complementa nos falando sobre seu processo de criação:

Meu processo de criação em Poesia Visual consiste em criar obras dialéticas entre
palavras e imagens, a partir de temas pulsantes na sociedade e que me afetam
individualmente. Consiste em escrevinhar e garatujar sobre o assunto, até que aos
poucos vai emergindo uma criação, ora mais verbal, ora mais visual, que
posteriormente recebe um lay-out, o arquivo final (d’BARROS, 2022).

A Lei de Anistia tratou de colocar panos quentes em uma ferida aberta da sociedade
brasileira. Assim, não esteriliza, não expurga, não cura e, de tempos em tempos, as cicatrizes
doem e a ferida ameaça abrir. Susan Sontag (2003), em sua obra Diante da dor dos Outros,
provoca reflexões sobre o que nos causa o contato com as imagens de violência e guerra. A
autora questiona, ainda, se ainda nos sensibilizamos diante do horror, da violência de que o
ser humano é capaz de causar a seus semelhantes em uma sociedade extremamente exposta a
imagens. Essa pergunta é indispensável.
No entanto, práticas de arte como esta e as demais apresentadas neste trabalho vêm ao
encontro da sensibilização diante do horror, diante do que não desejamos que acompanhe a
evolução das nossas sociedades. Tornam-se, assim, essenciais para a construção de novos
sentidos e para a manutenção da memória sobre o horror já praticado, bem como sobre a
violência imposta ao outro.
Como alerta Bauer, os perpetradores da violência nos governos ditatoriais são
protegidos pela censura e desinformação: “além da conivência e da cumplicidade dos órgãos
de informação e do aparato repressivo que os resguardavam” (2014, p. 99). Assim, garantem
o esquecimento de crimes e a impunidade resguardada pelas leis de anistia. A continuidade de
práticas artísticas que retomam o tema nos alerta para a necessidade de retomar a discussão
sobre esses processos, uma vez que se configuram como um tema contemporâneo, por não
terem encontrado meios de resolução justa. Nesse sentido, Bauer ressalta:

O tema dos desaparecidos políticos possui uma contemporaneidade, não somente


por seu caráter de crime continuado, que se perpetua, mas também pelas medidas e
políticas que vêm sendo adotadas pelos governos argentino e brasileiro no sentido de
fazer lembrar, reparar ou esquecer (BAUER, 2014, p. 29).

No entanto, enquanto na Argentina houve uma ruptura com o passado violento, no


Brasil ainda vivemos uma série de continuidade, de acordo com a referida autora. A violência
63

apresentada na poesia visual de d’Barros ainda segue sem esclarecimentos e causando


disputas entre as memórias dos que não foram vítimas direta da violência da tortura e dos
desaparecimentos. Isso ocorre, sobretudo, no contexto de teorias criadas no período ditatorial,
como a “teoria dos dois demônios”, citada anteriormente, que enquadra o sujeito que
questiona o autoritarismo, as políticas totalitárias como um marginal, um delinquente.
A arte não precisa de motivos para existir, como afirma Sontag na obra Contra a
Interpretação: "Uma obra de arte vista como obra de arte é uma experiência, não uma
declaração, nem uma resposta a uma pergunta. Uma obra de arte é uma coisa no mundo, não
apenas um texto ou comentário sobre o mundo" (1987, p. 31). A arte, assim, é algo no mundo
e sobre “o mundo”. Através dessas obras, continuamos a olhar para este mundo de forma mais
sensível e crítica.
A violência apresentada pela imagem das perfurações em sequência, desenvolvida
pelo artista tanto tempo depois de o governo democrático ser restabelecido, nos sensibiliza
quanto à existência dos tempos ditatoriais. Em outras palavras, se alguns já esqueceram
dessas violências ou as significaram como algo do passado, a imagem poética de d’Barros nos
recoloca diante de um passado de vilanias, assim como os demais trabalhos artísticos
apresentados neste capítulo.

4.2 HÉLIO FERVENZA: OS (DES) ENTENDIMENTOS DA LINGUAGEM

Na intencionalidade de dar materialidade à confusão de sentidos percebida no contexto


político da sociedade atual, o artista gaúcho Hélio Fervenza desenvolve o trabalho
apresentado nesta seção.
A obra Democracia (2021) representa em um espaço geográfico distante um aspecto
perceptível do processo de busca pela democratização da política no Brasil, como se inverter a
ordem das coisas dos signos materializasse a busca da própria ordem dos significantes. O
diálogo entre os elementos significantes que o artista propõe entre obra, espaço e espectador
nos levam ao estranhamento necessário à tomada de consciência da proposição do artista.
Como lembra Foucault (2016), a palavra é um enunciado universal de atribuição.
Nesse sentido, Napolitano (2014, p. 10) afirma: “Nesta visão de mundo marcada pelo
anticomunismo visceral, qualquer projeto político que mobilizasse as massas trabalhadoras,
ainda que a partir de reivindicações justas, poderia ser uma porta de entrada para a
“subversão” comunista”. O autor se refere ao contexto no qual instaurou-se o golpe de 1964,
que iniciou o período ditatorial. No entanto, a fala cabe ainda ao contexto político atual.
64

Para Steven Levisky e Daniel Ziblatt (2018, p. 12), existem outras formas de matar
uma democracia. Uma delas, que dispensa o uso de armas, se dá via mãos de líderes, que
“subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. Para os autores, governos autoritários
utilizam-se de formas de desmantelar os aparelhos democráticos, muitas vezes, de forma
imperceptível.
A seguir, analisamos, na obra de Hélio, de que forma o artista busca dar corpo material
aos pensamentos apresentados pelos autores supracitados.

4.2.1 Um artista em diálogo com o espaço

Dando continuidade à pesquisa, chegamos em trabalhos produzidos mais recentemente


que envolvem, ainda, a temática da liberdade e seguridade de direitos civis. Dentre eles,
analisamos a obra Democracia, do artista Hélio Fervenza, apresentada na cidade de Berlim,
Alemanha, no ano de 2021, na exposição "Lokale Signale".
Hélio Fervenza, atualmente, é professor na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), no departamento de Artes Visuais na graduação e no departamento de
Pós-Graduação, bem como pesquisador, coordenando o grupo de pesquisa Veículos da Arte.
Ele nasceu em Sant'Ana do Livramento, neste estado, cidade que faz fronteira com o país
vizinho Uruguai.
Antes de iniciar seu percurso nas artes visuais, frequentou o curso de Arquitetura, que
abandonou no ano de 1983. Iniciou, então, sua formação em arte no Atelier Livre de Porto
Alegre, onde permaneceu até 1985. Já no ano de 1984, Hélio foi agraciado com o Prêmio:
“Proposição” e em “Gravura”, no XII Salão do Jovem Artista, RBS na cidade de Porto
Alegre, Brasil. Em 1989, graduou-se pela Ecole des Arts Décoratifs de Strasbourg. Em 1990,
tornou-se mestre em Artes Plásticas pela Université de Sciences Humaines de Strasbourg; em
1995, doutor em Artes pela Université de Paris I Panthéon-Sorbonne. Apresentou seus
trabalhos nas Bienais de Amsterdã, Holanda, em 2009; na XXX Bienal de São Paulo em
2012; e, no ano de 2013, participou da 55ª Bienal de Veneza, Itália (FERVENZA, 2022).

4.2.2 Da subversão do signo à apreensão do sentido

Na obra Democracia, de 2021, Hélio Fervenza dispôs, no espaço da galeria,


imagem/texto e sinais de pontuação, ampliados e impressos em papel adesivo. No texto que
ganha destaque, coloca em evidência a palavra Democracia; em outra parede, próximo à
65

janela, uma vírgula. Na instalação, o artista articula os elementos gráficos como


palavras/texto. Explorando sua visualidade como signo, desorganiza e inverte de modo
intencional a disposição das letras, buscando provocar questionamentos acerca de seus
possíveis significados.
Democracia, como trabalho de pesquisa artística, carrega, em sua visualidade,
significados, ou proposições outras, além daquela que seu signo de origem intencionava
designar. Na imagem da Figura 17, podemos observar, na parte superior, da esquerda para a
direita, a palavra democracia. O vocábulo é escrito em adesivos na cor branca e colado na
parede cinza. A primeira letra, “d”, está no sentido correto, ou original, o que facilita o
reconhecimento do signo. No entanto, todos os demais caracteres encontram-se invertidos,
gerando um efeito como de um espelhamento:

Figura 17 – Hélio Fervenza, Democracia, 2021.

Fonte: Hélio Fervenza (2022)9.

É possível reconhecer a palavra, a proposição gerada pelo estranhamento da aparente


desordem, que confronta seu significado anteriormente conhecido. Dessa maneira, coloca em
movimento o imaginário, movimenta o domínio do conhecimento claro, tornando-o confuso.
Além disso, tal disposição questiona a lógica, ao mesmo tempo em que a aprisiona. É difícil
imaginar outra palavra se não a de origem, o que leva seu significado ao centro da obra. Vale
lembrar a citação de Rancière (2009b, p. 17), quando revisita o filósofo Platão acerca dos

9
Imagem do acervo do artista, enviada por ele para este trabalho.
66

significados da palavra: “sabe-se que a escrita não é simplesmente a materialidade do signo


escrito sobre um suporte material, mas um estatuto específico da palavra”.
Entramos em contato com Hélio Fervenza via correio eletrônico, perguntando-lhe
acerca de suas motivações para o desenvolvimento do trabalho e outras informações
importantes para sua inserção nesta pesquisa. Estabelecemos, então, um diálogo, cujos
excertos são apresentados nesta dissertação, a fim de orientar a leitura da obra e seu
entendimento:

Na obra "Democracia: " faço alterações na posição das letras, invertendo e mudando
suas posições, de maneira a produzir erros propositais em sua escrita, e a perturbar
sua leitura e seu reconhecimento. Essas alterações possibilitam talvez colocarmo-nos
em algumas questões... (FERVENZA, 2022).

Ao primeiro olhar (e menos atento), o signo pode ser reconhecível. No entanto, nos
momentos que se seguem, desperta um maior envolvimento, nascendo, então, as proposições
desejadas pelo artista. Rancière (2009b, p. 15), nesse sentido, afirma: “o fato poético está
ligado a essa identidade de contrários, a essa distância entre uma palavra e aquilo que ela diz,
e penso então que nesta distância moram os possíveis”.
Para Foucault, as palavras que significam as coisas são substantivos (2016, p. 137).
Democracia pertence a essa classe gramatical: um substantivo feminino, que, em sua função
taxinômica, denomina um regime político no qual a vontade do povo é soberana. Sob a luz de
seu significado, e obedecendo a linguagem à lei das representações, a desconfiguração
apresentada na sua escrita mostra-nos uma realidade contextual e política, na qual a obra está
inserida, inserindo-se no tempo como um registro histórico.
Qual a distância entre a essência da palavra democracia e seu entendimento para nós?
A desordem funciona assim como um elemento ressignificante, no sentido que desfaz a
ordenação da representação, fazendo surgir uma verdade inconsciente. “Locale Signale”,
título da exposição, traduzido para o português, significa: sinal de localidade (tradução nossa).
A expressão evoca um sentido de territorialidade, remete ao Brasil e à atual deturpação do
sentido da palavra democracia. No entanto, não se refere apenas ao Brasil, afirma o artista,
que prossegue:

Ao que realmente essa palavra se refere? O significado continuaria ainda conectado


à palavra? Ele é ainda reconhecível? O trabalho apontaria nele mesmo uma
incongruência? Um outro significado surgiria dessa escrita equivocada? Como essa
forma de escrita poderia interpelar nosso imaginário? (FERVENZA, 2022).
67

As palavras/texto e sinais de pontuação, elementos da obra de Hélio, se relacionam


com o ambiente onde são inscritos. São carregadas de associações e conotações culturais,
sociais e econômicas (FERVENZA, 2013, p. 48), característica deste e de outros trabalhos do
artista.
Democracia foi pensada para o ambiente da galeria Roam Space, em Berlim,
Alemanha, onde foi exposta. Para o projeto, Hélio contou com o apoio de Valdir Lara de
Andrade Jr. e colaboração de Richard John para o design gráfico do texto. Na Figura 18,
podemos observar que a imagem é colocada a uma altura considerável do chão. A palavra é
escrita totalmente em letras minúsculas, desobedecendo às regras do idioma, que determina
que iniciemos com letra maiúscula, os caracteres que seguem estão de ponta cabeça.

Figura 18 – Hélio Fervenza, Democracia, 2021.

Fonte: Hélio Fervenza (2022).

Para Walter Benjamin, “não se pode pensar as artes e a estética sem levar em conta a
política” (2022, p. 26). Mais de cinco décadas nos separam do golpe de 1964 e ainda são
68

necessárias reflexões sobre os sentidos que envolvem a ideia de democracia. A obra de Hélio
nos alerta para tal dicotomia:

Esse tipo de alteração nas palavras tem me interessado, por proporcionar a abertura
de um campo de investigação e criação, e por possibilitar abordar essa terrível
desorientação produzida no cotidiano e em todas as instâncias de nossa vida nos
últimos anos, a partir da degradação da linguagem, da confusão dos significados
mais básicos, e da corrosão dos sentidos. É como se a linguagem tivesse
enlouquecido, e as palavras seguidamente não correspondessem mais com as coisas
do mundo. No meu entender, é um trabalho sintomático da deterioração política e da
violência fascista em que estamos mergulhados (FERVENZA, 2022).

Dessa forma, a arte torna-se testemunho de um tempo, de uma sociedade e de seu


contexto social e político, das percepções individuais e do todo compartilhado, como observa
Rancière:

Pelo retorno de constituição estética deve-se entender aqui a que dá forma a


comunidade. significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e,
inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é,
portanto, o modo como se determina o sensível a relação entre um conjunto comum
partilhado e a divisão de partes exclusivas (2009a, p. 7).

Democracia nos alerta que, embora sejamos parte de um todo, a memória social tem
sua partilha. A partir dos indivíduos, constrói-se o social, com o qual todos colaboram e do
qual todos dependem ao mesmo tempo. Além da palavra, a obra é constituída por sinais de
pontuação. Sobre a parede cinza, o artista insere uma vírgula em tamanho ampliado e, na cor
branca, o elemento ganha destaque. Apresentamos, a seguir, a fala do artista alemão Ottjörg
A.C. (nascido em Heidelberg no ano de 1958), que compôs a exposição juntamente com
Hélio. Suas reflexões são importantes para a compreensão do trabalho do artista:

Hélio, quando criança e adolescente, podia perceber claramente como as fronteiras


são uma vez fortes e depois morrem novamente, como a percepção do espaço e do
tempo são influenciadas pelas condições um do outro. Mesmo que seu pai o
considerasse um sonhador, ele, como um espírito livre, escolheu o espaço de arte
ocasionalmente ainda livre, e encontrou belas poéticas pelas quais ele tenta lidar
com os absurdos do nosso tempo10.

Complementamos esse pensamento com a fala do próprio artista: “Uma parte


importante do seu trabalho desenvolve-se através do uso da pontuação e da palavra”
10
Informação verbal no Berlin Art Week, em 17 de setembro de 2021. Em e-mail para esta dissertação, Fervenza
(2022) repassou o texto original: “Hélio, as a child and adolescent, could perceive clearly how borders are
once strong and then die again, how the perception of space and time are influenced by the conditions of each
other. Even if his father considered him a dreamer, he, as a free spirit, chose the occasionally still free space of
art, and found fine poetics by which he tries to deal with the absurdities of our time”.
69

(FERVENZA apud BLAUTH, 2013, p. 48). Podemos ler tais elementos como fronteiras,
intervalos de tempo ou espaço e, ainda, como uma pausa entre uma ideia e outra. Na arte,
cada elemento compreende um significante ao olhar atento: “A arte existe a partir do
momento em que o olhar tem por objeto um significante” (BARTHES apud CANONGIA,
2005, p. 46).
Hélio Fervenza leva a Berlim reflexões sobre o contexto social e político brasileiro,
mas que não configuram uma situação exclusiva local:

A obra Democracia foi pensada para o espaço Roam, levando em conta suas
dimensões, a altura das paredes (bem altas!), a posição na sala, o espaço vazio em
baixo da palavra, a cor das letras (brancas para realçar sobre o fundo cinza do
cimento), e ao mesmo tempo, refletia sobre algo que não era específico à esse
espaço, e que é essa espécie de desorientação e perturbação da linguagem, e do
sentido e reconhecimento da Democracia. A palavra foi propositalmente escrita em
português porque é uma ressonância do que estamos vivendo aqui, mas essa crise
não é só brasileira, como podemos verificar em muitos outros países (FERVENZA,
2022).

Assim como no Brasil, em outros países, a democracia tem lutado para manter-se viva.
Hélio Fervenza torna a palavra uma imagem, um reflexo da desorientação que observa na
sociedade, o que ainda podemos entender como desdobramento dos acontecimentos no
período do governo ditatorial. Além disso, a maneira como foram tratadas, como também já
mencionamos, as políticas de apagamento da memória de violência têm tido êxito sobre
grande parte da população, motivos que justificam trabalhos e pesquisas como esta. Na Figura
19, uma fotografia em preto e branco, vemos o artista ao lado da palavra ainda no chão.

Figura 19 – Hélio Fervenza, Democracia, 2021.

Fonte: Hélio Fervenza (2022).


70

A palavra, como signo, designa algo. No entanto, a obra Democracia nos remete ao
pensamento de Foucault: “Se, no fundo de si mesma, a linguagem tem como por função
nomear, isto é, suscitar uma representação ou como que mostrar a com o dedo ela é indicação
e não juízo” (2016, p. 146).
Democracia é um desdobramento da obra Tempos Reversos, apresentada em Porto
Alegre na Galeria Mamute, no ano de 2018, na qual Hélio constrói textos que se fazem
imagem. A proposta é uma hipótese da possibilidade de se retornar ao momento antes de um
fenômeno, uma reconfiguração de continuidades desejáveis, talvez o Brasil antes de 1500
como observa Eduardo Veras (2018).
Na Figura 20, podemos observar já a palavra democracia escrita de trás para frente
com sua posição invertida, de cabeça para baixo. Podemos ver, também, os sinais de colchetes
e a vírgula presentes na obra Democracia. Tempos reversos apresenta-se, então, como um
prelúdio dos desdobramentos que se seguem no contexto que estimula o artista a desenvolver
a obra que aqui analisamos.

Figura 20 – Hélio Fervenza, Série Inversões, 46 x 60 cm e 40 x 55 cm, 2018.

Fonte: Hélio Fervenza (2022).


71

Nesta mesma exposição o artista ofereceu instrumentos performáticos, chamados paus


de chuva, objetos em acrílico preto com sinais de colchetes, que, quando movimentados,
produzem uma trilha sonora, em cada extremidade um parêntese, como que abrindo espaços
de tempo. A Figura 21 apresenta o exposto.

Figura 21 – Hélio Fervenza, relógios, 2015.

Fonte: Hélio Fervenza (2022).

De forma poética e sensível, a obra do artista Hélio Fervenza convida a uma leitura
atenta de nosso contexto social e político atual. Ainda que grande parte das pessoas não
reconheça a herança violenta que regimes autoritários deixam em sua sociedade, por apatia ou
indiferença, a imagem da obra nos fornece tal conhecimento em seu conjunto de elementos a
partir os quais podemos refletir sobre estes aspectos.
72

4.3 MANOELA CAVALINHO: POR UM OUTRO OLHAR

No cenário das artes visuais gaúchas, abordamos os trabalhos que Manoela


Cavalinho11 desenvolveu durante seu curso de mestrado, entre os anos de 2020 e 2021. O
tema norteador da artista foi o apagamento das memórias da ditadura civil-militar. Em meio à
sua pesquisa, a artista deparou-se com memórias pessoais involuntárias, que a levaram a
perceber sua proximidade com os acontecimentos daquele período.
Em três séries de trabalhos, Manoela busca abordar tanto suas memórias no campo
privado, quanto memória social. Esqueletos no guarda-roupa, de 2021, trazem impressões
privadas do regime ditatorial. Em Epigramas, de 2019, a artista inseriu, no espaço público,
inscrições que o identificam como obra ligada, de alguma forma, à ditadura. Por fim, consta
uma viagem que realiza por prováveis locais de assassinato e desaparecimento de cinco
militantes, relatada por Manoela Nogueira (2021, p. 5).
Manoela Farias Nogueira nasceu no ano de 1981, na cidade de Porto Alegre, quando o
processo de abertura política se consolidava a partir da Lei de Anistia. Ao ouvir uma
entrevista de Paulo de Tarso Carneiro12, no qual o militante reconhecia o Palácio da Polícia
como centro de detenção e tortura, a artista recordou que seu pai trabalhara naquele local nos
anos de 1980 e 1990.
Formada em artes visuais em 2017 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), é mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do estado de São
Paulo (PUC-SP) e mestre em Artes Visuais pela UFRGS. Seus trabalhos se desenvolveram a
partir da utilização de meios diversos, instalações que utilizam a inserção de textos e outros
materiais e interagem com o espaço físico, fazendo deste um espaço artístico e político.
Assim, aborda suas memórias pessoais em intersecções com a memória social e histórica.

4.3.1 Esqueletos no guarda-roupa: da memória da infância à impossibilidade de


insurgência ao passado

A primeira proposição artística que apresentamos é também a primeira que inaugura as


outras duas, que se constroem como uma linha rizomática de tentativa de resgate de memórias
particulares se inserem no social. Esqueleto no guarda-roupa, de 2021, é uma instalação na

11
Como dito anteriormente, trata-se do nome artístico de Manoela Farias Nogueira. Nas citações e referências
deste trabalho, usamos o nome que consta em sua dissertação e, ao tratar da sua obra, em nosso texto, usamos
o seu nome artístico.
12
Militante torturado político (MAIA, 2015).
73

qual a artista imprime parte do depoimento que ouvira de um ex-guerrilheiro. A escuta, cabe
esclarecer, aconteceu por acaso e despertou memórias pessoais da artista. A frase inserida
sobre o móvel com uma mistura de cera de abelha, parafina, breu e pó xadrez, é parte do
depoimento de Paulo de Tarso Carneiro, ex-militante, sobre o período em que esteve detido.
A narrativa, assim como a memória da violência sofrida, ganha materialidade. Nesse
sentido, sua essência é testemunho reavivado. Isso se relaciona com a seguinte afirmação:
“Escrita não quer dizer simplesmente uma forma de manifestação da palavra. Quer dizer uma
ideia da própria palavra e de sua potência intrínseca (RANCIÈRE, 2009b, p. 17).
De acordo com Elizabeth Jelin (2002, p. 16), no plano coletivo, há um grande desafio
de superar os esquecimentos e abusos políticos, distanciando-se, mas ao mesmo tempo é
necessário promover debates e espaço de reflexões ativas sobre o passado de trauma, e seu
sentido para o futuro.
A imagem da Figura 22 mostra a artista quando construía a obra. O guarda-roupas de
madeira está deitado ao chão para possibilitar organização e fixação do texto. Aos pés do
móvel, Manoela organiza o texto em papel pardo e formas de plástico vermelhas. A tarefa
levou alguns dias, pela dificuldade e duração do processo.

Figura 22 – Manoela Cavalinho, Esqueleto no guarda-roupa, 2021.

Fonte: Nogueira (2021, p. 29).


74

O móvel escolhido representa a particularidade da memória e tem, para a artista, uma


carga simbólica que remete às lembranças de sua infância (NOGUEIRA, 2021). Em nossa
leitura, representa também a intimidade de memórias que ainda se encontram guardadas.
Para Caroline Bauer, tanto na ditadura argentina quanto na brasileira, a ideologia da
reconciliação determina “a equiparação entre os crimes promovidos pelo Estado, caso do
terrorismo, com as ações desenvolvidas pelas organizações guerrilheiras ou pela violência
revolucionária. Nessa lógica, ambos são culpados, portanto deve-se incentivar o esquecimento
recíproco” (2014, p. 120).
Depois da frase fixada, o móvel foi colocado de pé próximo ao vidro. Ele se tornava
visível ao público quando a luz externa contemplava o interior da Casa de Cultura Mario
Quintana, centro cultural na cidade de Porto Alegre, onde a instalação foi realizada. O espaço,
naquele momento, encontrava-se fechado para o público como medida sanitária de
enfrentamento à pandemia de Covid-19. A Figura 23 reproduz imagem da instalação.

Figura 23 – Manoela Cavalinho, Esqueletos no guarda-roupa, 2021

Fonte: Nogueira (2021, p. 43).

Narrativas como a do ex-guerrilheiro Carneiro excedem as palavras e imagens que nos


são conhecidas. No entanto, situam-se no espaço entre a necessidade de lembrar e
75

impossibilidade de esquecer. No encontro com a sensibilidade da arte, materializam


testemunhos de um horror que precisa ser contado para não ser repetido.
As letras impressas com a mistura tomaram coloração vermelha opaca. É preciso
algum esforço para vê-la, assim como a verdade exige um quê de vontade para se tornar
visível. Em Inconsciente Estético, Rancière afirma: “Estética designa um modo de
pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas
consistem enquanto coisas do pensamento” (2009b, p. 12-13). A proposição de dar
visualidade ao testemunho, na construção da obra e na sua leitura, configuram, nesse sentido,
um pensar como um reparo, um dever social para com uma parte de seu todo que estava
calada, ofuscada.
Para Sontag, “o trabalho da memória não corre o risco de rebelar uma população
doméstica insatisfeita contra a autoridade. Ter um museu para narrar o grande crime que foi a
escravidão africana nos Estados Unidos da América seria reconhecer que o mal esteve aqui”.
(2003, p. 74 - 75). A afirmação da autora não é apresentada, aqui, para abrir outro assunto,
mas como argumento sobre a necessidade de visibilizar essas memórias, para que estas
situações não voltem a ocorrer.

4.3.2 Epigramas: Uma topografia memorialística

Ainda na tarefa de resgate da memória do governo ditatorial, na série Epigramas, que


inicia no de 2019, Manoela percorre a cidade de Porto Alegre descobrindo e identificando
locais que, de alguma maneira, estão ligados aos acontecimentos daquele período.
A artista inseriu, nestes locais, pequenos textos com letras em adesivo autocolante, que
os identificavam, localizando-os na história e construindo uma cartografia da ditadura na
cidade. Seu trabalho tem como característica a sensibilidade e impermanência. Nada garante
quanto tempo permanecerá ou por quem será visto, mas a identificação pública estará feita na
reconstrução da memória histórica que alguns tentam apagar. A efemeridade, para a artista,
também é uma medida de segurança em caso de ser surpreendida durante a execução do
trabalho.
A série de proposições iniciou em 2019 e o primeiro local escolhido para a inserção foi
o Auditório Araújo Viana, lugar em que Manoel Raymundo Soares foi preso em 1966
(NOGUEIRA, 2021, p. 27). Na Figura 24, apresentamos uma fotografia colorida cujo foco é
as mãos da artista realizando a colagem das letras na calçada do auditório. O texto diz: “Local
de captura de Manoel Raymundo”.
76

Figura 24 – Manoela Cavalinho, Epigramas, 2019.

Fonte: Nogueira (2021, p. 52).

De acordo com Manoela, os Epigramas (2021) revelam o que está por baixo de
camadas de cidade. O texto inserido pela artista identifica um espaço e age como um
determinante. A partir da leitura, não será só mais um lugar: estará, agora, na memória do
leitor como o local indicador de um fato. Não será possível apagar essa memória revelada,
ainda que, com o tempo e suas intempéries, as letras se apaguem. Nesse sentido,
apresentamos a Figura 25, a seguir.
77

Figura 25 – Manoela Cavalinho, Epigramas, 2020.

Fonte: Nogueira (2021, p. 57).

As resoluções governamentais tomadas no período de transição foram


condescendentes com idealizadores e executores de perseguições, torturas e mortes ocorridas
durante o regime militar, orientadas pelo medo de confrontos, como ainda vigente governo
militar. Assim, fica a cargo do tempo questões mais sensíveis, como a dos desaparecidos.
Como afirma Caroline Bauer, isso ocorre “de modo a evitar um confronto direto com os
militares e não alterar suas relações com os civis, em nome de uma estabilidade política (2014
p. 127). Ainda de acordo com a autora, isso não extingue a necessidade social de trabalhar
com esses temas.
Ricardo Basbaum afirma que existe um espaço a ser ocupado pela arte, dentro das
novas formas de articulação do pensamento citando Félix Guattari e Michel Maffesoli: uma
nova ética está se construindo, uma ética da estética (2007, p. 107). A arte de Manoela
abarcou os quatro cantos de Porto Alegre, norte, sul, leste e oeste. Nos anexos deste trabalho,
consta a lista dos Epigramas disponibilizada na dissertação da artista. Em lugares que ela
julgava correr maior risco, inseria seus textos com o apoio de uma placa de acrílico ou outro
material com que pudesse contar. Epigramas desdobra-se na instalação apresentada durante a
exposição Território Provisórios, no espaço da Fundação Cultural e Assistencial Ecarta, em
Porto Alegre, na qual a artista recebe ex-presos políticos, no ensejo de abrir espaço para o
acolhimento de seus testemunhos13.

13
Depoimentos das vítimas bem como a narrativa da artista sobre este momento, estão em sua dissertação, cuja
referência está na bibliografia deste texto.
78

O trabalho se encontra ainda em desenvolvimento. Seu último local de inscrição foi na


Ilha das Pedras Brancas, popularmente conhecida como a Ilha do Presídio, uma pequena ilha
no Rio Guaíba. O lugar abriga, ainda, o presídio agora desativado que, no período ditatorial,
serviu de local de detenção para militantes. Na viagem que a artista realizou até a ilha, Paulo
de Tarso Carneiro e Raul Pont, que estiveram presos na ilha, a acompanharam. Juntamente
com Manoela, eles percorreram o local, identificando pontos que fizeram parte de sua rotina
enquanto estiveram ali. A Figura 26 mostra uma imagem que se refere à visita.

Figura 26 – Manoela Cavalinho, Epigramas, 2022.

Fonte: Nogueira (2021, p. 103).

Na Figura 26, o Epigrama com a frase “Banho de Sol” é inscrito em uma parede com
a pintura desgastada e diversas rachaduras. O pequeno texto identifica o local onde os presos
políticos ficavam ao ar livre.
79

4.3.3 Lugar Nenhum - Onofre, José, Enrique, Joel, Daniel e Víctor

Em Lugar Nenhum - Onofre, José, Enrique, Joel, Daniel e Víctor, Manoela adentra a
Mata Nacional do Iguaçu, localizada no estado do Paraná, levando em suas mãos ossos de
cerâmica, que intencionava prender às árvores com estruturas de cobre, procurando indícios
do provável local de desaparecimento dos cinco ex-guerrilheiros que dão nome à obra.
O trabalho consiste em instalações que a artista e sua equipe realizaram às margens do
lago Itaipu e na Mata Nacional do Iguaçu, reconstruindo um caminho por locais prováveis do
assassinato e desaparecimento de Onofre Pinto, José Lavecchia, Enrique Ruggia, Daniel
Carvalho, Joel Carvalho e Víctor Ramos, ex-guerrilheiros.
Nessas instalações, a artista buscou os locais dentro da mata que a remetessem, de
alguma forma, a cada um do grupo, através das informações que coletou durante a pesquisa e
a viagem. Escolhido o local, ela depositou os ossos e letras em bronze que formavam o nome
de cada uma das vítimas e fez um registro fotográfico. Na sequência, recolheu as letras que,
depois, compuseram a exposição no Museu de Arte Contemporânea do estado do Paraná
(MAC-PR).
Para Manoela, o ritual se tornou uma forma de conferir uma lápide mínima à memória
daqueles que a história esqueceu. O trabalho seria, em sua primeira versão, uma continuidade
de Epigramas. No entanto, a artista tomou conhecimento da história das vítimas do Massacre
do Iguaçu, ocorrida em 1974, uma emboscada para militantes que estavam na Argentina
(NOGUEIRA, 2021). Outras lembranças surgiram de sua pesquisa quando conheceu a
sobrinha de uma vítima que narrou sua vontade e dificuldade de fazer uma busca pelos rastros
do tio desaparecido, por um mateiro no rio Araguaia. Então, a obra começa a constituir-se, de
memória em memória, de história em história.
De acordo com Rancière: “Estética designa um modo de pensamento que se
desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas
do pensamento” (2009a, p. 12). Nesse sentido, os trabalhos apresentados nesta pesquisa
configuram um pensamento da arte sobre esses aspectos do político e social brasileiro, tanto
na esfera das práticas que partem do Estado, quanto na participação civil.
Os ossos foram uma solução também para o medo de perder-se na mata. Deixar trilhas
de ossos de cerâmica, que se decomporiam, misturando-se com o local, mas eles são um signo
de um corpo que já foi vivo. O fêmur, em especial, é associado ao movimento e há nele,
ainda, uma carga de significantes a mais. Na Figura 27, observamos o registro do primeiro
nome a quem é reconstruída a memória, às margens do rio Itaipu, a lápide é erguida.
80

Figura 27 – Manoela Cavalinho, Onofre, José, Enrique, Daniel, Joel e Víctor, 2021

Fonte: Nogueira (2021, p. 142).

Na fotografia colorida, a luz natural realça o nome ONOFRE, nas letras em cobre, e os
10 metros de tripa seca deitam sobre o chão de cerâmica já gasto, o facho de luz que entra
pela janela não cobre toda a área fotografada, deixando uma boa parte à sombra. No entanto, a
ação precisa seguir, os outros cinco memoriais serão feitos na mata, no outro dia, o que é
mostrado na imagem reproduzida na Figura 28.
81

Figura 28 – Manoela Cavalinho, Onofre, José, Enrique, Daniel, Joel e Víctor, 2021.

Fonte: Nogueira (2021, p. 145).

A artista busca, novamente, uma forma de reparar o esquecimento histórico. Ao longo


da sua viagem, descobertas vão acrescentando novos desdobramentos ao projeto inicial, que
vai alcançando novas percepções e agregando significantes em seu trabalho. Junto aos ossos,
Manoela colocou os nomes das vítimas em letras de bronze, na intencionalidade de lhes
oferecer um espaço na história: “Em Onofre, José, Enrique, Daniel, Joel e Vítor, assim como
naquele trabalho sem título de 2020, recorro a essa inscrição tumular, buscando, entre outros,
uma possibilidade de memória” (NOGUEIRA, 2021, p. 63).
A artista adentra suas memórias privadas, procurando descortinar conversas que
lembrava ouvir em família de forma entrecortada, diante de muitos sentimentos e receios de
como reagiriam caso familiares se deparassem com seu trabalho. Esses pensamentos são
relatados pela artista em seu texto. Diante dessa nova forma de ressignificação memorial e por
todos os aspectos já mencionados sobre a necessidade de reconstrução e fortalecimento da
memória social sobre esses fatos, consideramos que os trabalhos da artista aqui apresentados,
mesmo que de forma mais breve, poderiam contribuir para esta pesquisa.
82

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

"Quando eu falava dessas cores mórbidas


Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não escutou"
(Lô Borges e Milton Nascimento, 1972)

Como vimos nos primeiros capítulos, as memórias sobre o período da ditadura civil-
militar brasileira (1964-1985) e sua herança traumática não são hegemônicas. Estão, ainda,
em disputas, nas quais a memória que se configura em momentos traumáticos da história de
uma sociedade forma profundas divisões ideológicas. No contexto da ditadura civil-militar
brasileira, “a que prevalece é fundamentalmente uma memória liberal, que tende a privilegiar
a estabilidade institucional e criticar as opções radicais e extra institucionais”
(NAPOLITANO, 2014, p. 371-372).
Nesse cenário construído e cimentado pela Lei de Anistia, as memórias das vítimas de
tortura, bem como de familiares de desaparecidos, lutam para se afirmar. Nessa batalha,
entram em ação fatores já mencionados anteriormente, como a fragilidade de relações que
formam o ponto de contato do individual com o grupo, bem como a marginalização de
qualquer pessoa que se opusesse ao governo. Trata-se de fatores que convergem para uma
cacofonia de entendimentos sobre o que significa um regime democrático ou um governo
ditatorial, reverberando na nossa sociedade atual.
Essas memórias passam por processos de ressignificação, como afirma Elisabeth Jelin.
A autora aponta as complexidades na subjetividade das memórias sobre episódios sociais
traumáticos: novas conjunturas sociais e políticas não deixam de produzir modificações nos
marcos interpretativos na compreensão de experiências passadas e para construir expectativas
futuras (JELIN, 2002, p. 13, tradução nossa)14.
As obras aqui apresentadas não têm intencionalidade cumulativa, mas sim de
apresentar múltiplos olhares e vivências sob um mesmo tema, nos dando elementos de análise

14
Texto no idioma original: “Nuevos procesos históricos, nuevas coyunturas y escenarios sociales y políticos,
además, no pueden dejar de producir modificaciones en los marcos interpretativos para la comprensión de la
experiencia pasada y para construir expectativas futuras” (JELIN, 2002, p. 13).
83

e reflexão. Os artistas Artur Barrio e Carlos Zílio, apresentados no terceiro capítulo,


desenvolveram seus trabalhos durante o regime militar, baseando suas obras em investigações
visuais e experienciais, alinhados às propostas de avanços que permeiam o circuito
internacional de arte, dando um caráter de crítica e denúncia do contexto político e social no
país.
A condução amistosa pela qual o Brasil retomou seu processo de redemocratização foi
marcada por uma série de continuidades. Cabe lembrar, ademais, que foi um longo período de
21 anos no qual o governo militar ficou no poder. Assim, a manutenção da estabilidade
democrática ainda hoje é um desafio.
A Comissão de Anistia, criada em 2001, prossegue com seu objetivo em busca
reparação dos direitos humanos violados em atos do Estado entre 1946 e 1988. Através dessas
reparações, é que se reconhece o erro do estado. No entanto, a responsabilização de
idealizadores e executores desses atos ainda não foi efetiva. Os recentes atos de 08 de janeiro
de 2023, denominados como "terroristas", demonstram a emergência de reflexões sobre qual
Brasil estamos construindo. Nesse sentido, Levitsky e Ziblatt referem: “uma coisa é clara ao
estudarmos colapsos ao longo da história, é que a polarização extrema é capaz de matar
democracias” (2018, p. 18). Sendo assim, cabe destacar que o cenário político atual ainda
ferve e artes brasileiras ainda refletem sobre ele.
As reflexões apresentadas pelos autores que abordam a construção de um projeto de
apagamento dessas memórias nos possibilitam o entendimento de fatores que contribuíram
para o esquecimento dos crimes cometidos e do trauma que deixou em nossa sociedade. O
discurso de que o país vivia uma crise moral pautou o terreno social para o golpe. O governo
ditatorial que o seguiu, por sua vez, promoveu a fragilidade dos laços familiares e sociais,
tornando o sujeito que era contrário ao autoritarismo um marginal.
O Estado perseguiu e prendeu cerca de 50 mil pessoas, matou mais 400 e deixou um
saldo de 434 mortos e desaparecidos, segundo dados do relatório final da Comissão Nacional
da Verdade (2015). Diante disso, entendemos que não é possível seguir adiante em nosso
processo democrático sem esclarecimento dos fatos e reparação às vítimas, família e toda a
sociedade. Isso significa responsabilizar idealizadores e executores, pois, sob a impunidade, o
desaparecimento se torna uma arma muito eficaz (PADRÓS apud BAUER, 2014).
No entanto, é preciso, ao menos, imaginar a potência artística no Brasil, sem a censura
e a violência assombrando seus criadores, como alerta Claudia Calirman, na obra Arte
Brasileira na Ditadura Militar: (2013, p. 143):
84

Ainda que os trabalhos comentados neste livro tenham surgido de um desejo de


resistir ao regime, de provocá-lo e de denunciar os horrores cometidos em seu nome,
seria absurdo dar qualquer crédito à ditadura como um estímulo à produção artística
pode-se somente imaginar a Riqueza da produção artística que poderia ter florescido
no Brasil não fosse o medo da repressão e se o país não estivesse sido subjugado
pelos militares.

Artur Barrio expande as fronteiras da arte ao tornar o corpo e o espaço meio de suporte
para sua obra. Ao explorar novas formas de linguagem e expressão, denuncia a violência e a
precariedade da vida durante o regime militar. Denuncia, ainda, a morte e o desaparecimento.
Propondo uma nova estética visual, seu trabalho explora novas linguagens e formas de
expressão, rompendo os paradigmas da produção artística em voga. Ele instaura, através de
seus Manifestos, uma relação de proximidade com o público, contrariando a mensagem do
governo de que o país ia de vento em popa no aspecto econômico. Para tanto, faz uso de
materiais precários, restos e sobras.
A obra de Carlos Zílio tenta dar conta do testemunho do horror desumano da tortura
aplicada amplamente nos porões da ditadura. Ele abandonou a arte momentaneamente para
militar e recomeçou seus desenhos de dentro mesmo da prisão, materializando memorias com
lápis de cera, papel e tinta. Assim, encontrou na arte formas de viver com o trauma. O artista,
ademais, questiona o objeto artístico e faz dele um chamamento à sociedade civil. Via uso do
simbolismo que carrega cada elemento, luta contra o regime opressor, a inércia social e a
impunidade. Além disso, ele faz da fotografia uma denúncia de grande poder de
comunicabilidade entre os elementos, carregada da realidade de quem sofre a tentativa de
apagamento, referência aos mortos e presos políticos desaparecidos.
A memória do trauma ressurge de tempos em tempos e, assim, fomos construindo uma
linha temporal que chega a obras de Tchello d’Barros. Seu poema visual e, inclusive, sonoro,
reproduz "ra ta ta ta", que não nos deixa esquecer da violência que oprime a sociedade e ecoa
nas lembranças que emergem. Nesse sentido, cabe lembrar: “as imagens assim como as
palavras, são a matéria da qual somos feitos” (MANGUEL, 2001, p. 21). Assim, a proposta
que se configura nesta dissertação é ir além do pensamento: a palavra quando se faz imagem
excede a bidimensionalidade.
Democracia, de Hélio Fervenza, relaciona-se com o espaço e com o observador,
estabelecendo um diálogo que parte do estranhamento, indo ao fundo da semântica da
linguagem. Relembra que a sociedade atual se perdeu no emaranhado de significados
confusos sobre as palavras que as cercam, que as compõem e que estruturam suas bases.
85

Toda obra de arte, portanto, precisa ser entendida não só como uma transposição,
mas também como uma maneira de lidar com o inefável. Na arte mais excelsa,
está-se sempre ciente de coisas que não podem ser ditas (as regras do “decoro”), da
contradição entre expressão e presença do inexprimível. Os recursos estilísticos são
também técnicas de esquivamento. Os elementos mais poderosos numa obra de arte
são, muitas vezes, seus silêncios (SONTAG, 2017, p. 53).

Embora o trabalho de Hélio construa-se a partir de silêncios dos quais a palavra


emana, bem como do vazio entre os espaços físicos e semânticos, retrata o ruído da ausência
de entendimento, transborda as contradições do inexprimível, o que necessitaria de mil outras
palavras para se expressar.
Através de memórias privadas, a artista Manoela Cavalinho realiza um percurso no
tempo, emprestando materialidade ao testemunho de quem sobreviveu ao incomunicável, a
tentativa de extermínio. Sua obra Epigramas se insere no circuito comunitário e social da
cidade de Porto Alegre e a marca da história da qual fez parte não nos deixa esquecer nem
ignorar que o terror esteve ali e fez uso daquele espaço. Por fim, aventura-se em mata
desconhecida, vencendo o medo, o tempo e o apagamento. Então, confere à Onofre, José,
Enrique, Joel, Daniel e Víctor uma lápide mínima, um memorial, na tentativa de restituir aos
ex-guerrilheiros seu espaço no corpo social.
À revelia da tentativa de apagamento e de esquecimento, a arte soma-se aos diversos
esforços de diversas forças que buscam uma reparação. Há, ainda, um aspecto a abordar
acerca dos trabalhos apresentados nestas últimas linhas e que os interliga: a palavra. Desde os
manifestos do precário de Barrio às memórias reconstruídas de Manoela, o signo gráfico
soma-se à totalidade dos trabalhos.
Em Artur Barrio, existe a apropriação do texto, que comunica diretamente ao
observador da obra, a palavra como obra e significante. Em sua ética da contestação, seu
trabalho é uma construção fluida, que converge linguagens e apropria-se do corpo e do
espaço, em que a palavra percorre lado a lado, atravessando suas narrativas.
Na obra de Carlos Zílio, a palavra é elemento chave que se integra à visualidade,
orientando a construção de sentido. A etiqueta presa no pé do que nos parece ser um cadáver
identifica o conceito chave da obra: a busca, o desconhecimento, denunciando o
desaparecimento usado como ferramenta de extermínio. A palavra LUTE, dentro de um
objeto carregado de valor simbólico, a marmita que alimenta o operário, chama o cidadão
comum para ação.
Assim como Barrio, o poema visual de Tchello d'Barros se conecta ao tema pelo título
Soneto da Ditadura, o enunciado comunica que é uma rajada de tiros, não pertence a qualquer
86

tempo ou a qualquer época. Refere-se a um determinado evento que marca a história moderna
do Brasil.
Hélio Fervenza utiliza da visualidade da linguagem para convocar a atenção aos ruídos
nas concepções de sentido, dialoga com o espaço, o que se dá via sinais e pausas, cor e
organização de elementos. Além da palavra, seu trabalho usa dos sinais – na objetividade e
simplicidade deles, muitas coisas cabem, tais como uma pausa, um parêntese, uma repetição
talvez.
Nos trabalhos de Manoela Cavalinho, a obra se desenvolve a partir da linguagem. As
palavras/testemunho ganham materialidade com a mistura de cera quente. Além do mais,
locais públicos quaisquer se tornam um espaço político identificado como cenário de
histórico. Destacamos, ademais, que nesses dois trabalhos a artista aproxima-se muito do
trabalho de Artur Barrio. Ela insere seu corpo dentro do armário, assim como Barrio insere
seu corpo na construção das trouxas. Desse modo, interfere no espaço público identificando
este como espaço político e, por fim, denuncia a desaparição. Não há, portanto, como negar o
conhecimento sobre o que houve ao nos depararmos com o trabalho destes dois artistas.
As barreiras e hierarquia se dissolvem, imagem, linguagem, objeto e o espaço físico,
são todos eles elementos estruturantes da obra. Do texto de artista ao texto como obra, os
trabalhos constroem uma narrativa que obedece somente à intuição e ao pensamento do ato
criador. Como afirma Ricardo Basbaum (2007), ainda existe um espaço a ser ocupado pela
arte dentro das novas articulações de pensamento.
87

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jan. 2023. Zilio (202-).
91

APÊNDICES

Apresentamos, aqui, a íntegra dos textos das mensagens trocadas com os artistas
Tchello d’Barros e Hélio Fervenza, para que leitores tenham acesso ao material. Cabe destacar
que as mensagens representam parte fundamental na condução da narrativa.

Diálogos com artistas:

“Tchello d’Barros:

(Cristiane 26.07.2022):
Olá Tchello, tudo bem? Seu poema Soneto da Ditadura me despertou especial
interesse, neste momento de tensões políticas e outras tantas, estarei abordando especialmente
as artes que referem-se ao período ditatorial Brasil (64 a 85), embora seu trabalho tenha data
de 2001, acredito que ele faça referência à este período nebuloso. Gostaria se possível, de
saber o que o levou a construir este trabalho naquele momento e um pouco mais sobre seu
processo de criação. Você estava no Brasil naquele momento.

(Tchello 26.07.2022) Oi, Cristiane!


Obrigado por entrar em contato. E, parabéns por sua pesquisa! Já estive em Novo
Hamburgo e, oxalá, minha arte possa somar em sua dissertação.
O referido poema visual de fato alude a Ditadura que assolou nosso país naquele
período (no qual vivi toda minha infância e adolescência). Em 85, tive ainda o azar de ser
selecionado para prestar o serviço militar obrigatório. Servi no primeiro ano pós-ditatorial,
mas toda a atmosfera truculenta e opressiva ainda estava no ar, o que me permitiu sentir na
pele os efeitos desse regime e construir uma visão crítica desse período.
A rajada que constitui o poema visual - na estrutura de um soneto clássico - remete às
muitas execuções e desaparecimentos da Ditadura brasileira, forma de governo que ocorreu
também em vários outros países latino-americanos.
Meu processo de criação em Poesia Visual consiste em criar obras dialéticas entre
palavras e imagens, a partir de temas pulsantes na sociedade e que me afetam
individualmente. Consiste em escrevinhar e garatujar sobre o assunto, até que aos poucos vai
92

emergindo uma criação, ora mais verbal, ora mais visual, que posteriormente recebe um
layout, o arquivo final.
Sugiro especial atenção na cronologia da época, pois salvo engano, o período de
inflação galopante terá sido já no 1º mandato pós-ditadura (Sarney).
Tomo a liberdade de anexar - além do arquivo original do poema, em alta resolução -
recente ensaio (na UFRJ) sobre minha produção em Poesia Visual, que talvez lhe
complemente sua abordagem sobre meu trabalho em questão.
Para qualquer dúvida, ou informação complementar, estou à disposição. Conte
comigo!
Abç!

Tchello d'Barros. ”

“Hélio Fervenza

(Cristiane 27.08.2022)
Olá, Hélio, tudo bem?
Entro em contato porque estou construindo dissertação de mestrado, é uma
continuidade do trabalho de conclusão de curso, em que abordo as relações entre palavra e
imagem. Gostaria de falar sobre sua obra que participou da exposição Lokale Signale em
Berlim em 2001. Neste sentido, gostaria de lhe perguntar o que o motivou a desenvolver o
trabalho, e lhe pedir se tens imagens para serem inserias na pesquisa, serão acompanhadas de
leitura e reflexão.

(Hélio 07.09.2022)
Olá Cristiane,

Na obra "Democracia: " faço alterações na posição das letras, invertendo e mudando
suas posições, de maneira a produzir erros propositais em sua escrita, e a perturbar sua leitura
e seu reconhecimento. Essas alterações possibilitam talvez colocarmo-nos algumas questões,
como por exemplo: Ao que realmente essa palavra se refere? O significado continuaria ainda
conectado à palavra? Ele é ainda reconhecível? O trabalho apontaria nele mesmo uma
93

incongruência? Um outro significado surgiria dessa escrita equivocada? Como essa forma de
escrita poderia interpelar nosso imaginário?
Esse tipo de alteração nas palavras tem me interessado, por proporcionar a abertura de
um campo de investigação e criação, e por possibilitar abordar essa terrível desorientação
produzida no cotidiano e em todas as instâncias de nossa vida nos últimos anos, a partir da
degradação da linguagem, da confusão dos significados mais básicos, e da corrosão dos
sentidos. É como se a linguagem tivesse enlouquecido, e as palavras seguidamente não
correspondessem mais com as coisas do mundo. No meu entender, é um trabalho sintomático
da deterioração política e da violência fascista em que estamos mergulhados.
A obra "Democracia: " foi desenvolvida a partir de obras anteriores apresentadas na
exposição "Tempos Reversos" realizada na Galeria Mamute, em 2018. Sobretudo tem relação
com algumas obras impressas com carimbos que ali mostrei. Envio em anexo algumas
imagens dessas obras e também um folder eletrônico que foi produzido na ocasião.
Um abraço,
Hélio

(Cristiane, 22.12.2022)
Olá, Hélio, como vai?
Espero que esteja bem. Retomo minha escrita sobre seu trabalho, e surgem mais
dúvidas, ficarei grata se puder me auxiliar.
Gostaria de te perguntar se a obra Democracia foi pensada e realizada para o espaço
Roam em específico. Para ser fidedigna à sua descrição.
Pesquisando encontrei a fala do artista que fez a exposição contigo Ottjörg A.C.:
"Hélio, quando criança e adolescente, podia perceber claramente como as fronteiras
são uma vez fortes e depois morrer novamente, como a percepção do espaço e do tempo são
influenciadas pelas condições um do outro. Mesmo que seu pai o considerasse um sonhador,
ele, como um espírito livre, escolheu o espaço de arte ocasionalmente ainda livre, e encontrou
belas poéticas pelas quais ele tenta lidar com os absurdos do nosso tempo. " A fala é bastante
íntima, se não for invasivo, gostaria de perguntar se vocês já se conheciam e haviam
trabalhado juntos? Penso em citá-la quando apresento uma breve biografia sua, pela questão
de seu nascimento em uma cidade de fronteira com outro país, e de características tão
diferentes de uma capital, como Porto Alegre.
Peço desculpas pelo e-mail tão próximo de datas festivas e do período de férias.
Abraços,
94

Cristiane

(Hélio 22.12.2022)
Sim, a obra Democracia foi pensada para o espaço Roam, levando em conta suas
dimensões, a altura das paredes (bem altas!), a posição na sala, o espaço vazio em baixo da
palavra, a cor das letras (brancas para realçar sobre o fundo cinza do cimento), e ao mesmo
tempo, refletia sobre algo que não era específico à esse espaço, e que é essa espécie de
desorientação e perturbação da linguagem, e do sentido e reconhecimento da Democracia. A
palavra foi propositalmente escrita em português porque é uma ressonância do que estamos
vivendo aqui, mas essa crise não é só brasileira, como podemos verificar em muitos outros
países.

No período em que o trabalho foi concebido foram feitos muitos estudos e simulações
em 3D a partir das plantas e cortes arquitetônicos do espaço Roam, e para isso contei com a
ajuda de meu amigo Valdir Lara de Andrade Jr., e também com a colaboração de Richard
John para o design gráfico do texto. Esses estudos ajudaram muito. Entretanto na hora da
montagem houveram algumas pequenas alterações nas distancias em relação às paredes,
devido as juntas do concreto. Envio em anexo uma vista simulada e o projeto, ambos
graficados pelo Valdir a partir de rascunhos anteriores.

A obra Democracia pode ser apresentada em outros espaços, e para isso será
necessário levar em conta as características desse outro espaço expositivo. Isto quer dizer que
a obra se relaciona e surge dessa relação com um espaço dado, mas ela não é exclusiva de um
único espaço. Essa maneira de pensar e agir não ocorre somente com a obra Democracia, ela
é constante nas minhas apresentações e exposições.

Conheço o Ottjorg há vários anos, e já havíamos participado de outras exposições


antes, no Brasil e na Alemanha. Eu escrevi sobre seu trabalho anteriormente, em 2015, e na
exposição no espaço Roam em 2021 havia algumas dessas obras sobre as quais trato no texto.
Para a ocasião então, esse meu texto foi reimpresso e distribuído ao público. Dessa forma,
houve uma troca de textos: eu escrevi sobre suas obras, e ele sobre as minhas.
95

Penso que você pode incluir o texto dele na sua pesquisa, mas é necessário que seja
feita uma revisão da tradução, de preferência por alguém da área. Irei viajar amanhã, e
voltarei em meados de janeiro. Até lá provavelmente estarei "fora do ar".
Obrigado uma vez mais pelo seu interesse pelo meu trabalho.
Um abraço, e boas festas de final de ano!

Hélio”

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