Textos Literários Textos Líricos - Poesia Trovadoresca

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COLÉGIO KITABU

PORTUGUÊS - 11.ª CLASSE - 2021

Textos Literários
O Género Lírico
Poesia Trovadoresca

Os Professores: Miguel Machiza e António Marcos


FICHA INFORMATIVA

O GÉNERO LÍRICO
O género lírico compreende as composições (textos) em que o sujeito poético exprime
sentimentos ou estados de espírito. O mundo exterior, quando presente, é absorvido pela interioridade
do sujeito poético e serve apenas para revelar o seu mundo interior.
Pode apresentar-se sob forma versificada - poesia integral - ou sob forma de prosa - prosa
poética - exprimindo, em ambos os casos, a emotividade do «eu» e contendo abundantes recursos
estilísticos.

Características do Género Lírico


• Centra-se no sujeito de enunciação, facto que se materializa:
- pelo uso de pronomes pessoais e possessivos na primeira pessoa;
- pelo uso de formas verbais na primeira pessoa.
• Nele predominam as funções emotiva e poética da linguagem.
• Exprime o mundo interior (o estado de espírito, os sentimentos, as emoções, as aspirações) do
emissor, facto que se consubstancia no recurso a vocábulos (adjectivos, substantivos, verbos,
advérbios e interjeições) adequados à expressão de sentimentos.
• Predomina nele a subjectividade e a linguagem conotativa.
• Os textos deste género literário não têm enredo e só têm pequenos pormenores descritivos.

Temas Explorados pelo Género Lírico ao Longo dos Tempos:


• Problemas amorosos e ansiedades da humilde donzela apaixonada, enciumada e inquieta com
a falta de notícias do amado ausente (cantigas de amigo);
• Paixão avassaladora do trovador que se considerava vassalo da sua dama, à qual votava um
amor superior, nem sempre real (cantigas de amor);
• Dor e tristeza (elegia);
• Louvor ao amor, aos heróis e à alegria da existência (ode);
• Melancolia, dor e desencanto da vida (endechas e esparsas);
• Amor simples e natural; saudade e sofrimento; dor e mágoa; ambiente cortesão com
as suas “cousas de folgar” e futilidades; exaltação da beleza de uma mulher de condição
servil, de olhos pretos e tez morena (a “Barbara, escrava”); infelicidade presente e
felicidade passada (Poesia trovadoresca);
• O amor surge como fonte de contradições, entre a vida e a morte, a água e o fogo, a esperança
e o desengano; ideal de beleza física como espelho da beleza interior (Renascimento);
• Nacionalismo, pessimismo, drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e desejos de
escapismo1 (Romantismo);
• Reivindicação, valorização do negro e da sua cultura, orgulho de ser negro, humanismo,
nacionalismo, africanismo, contestação do domínio colonial, indignação, denúncia e protesto
contra as injustiças e desigualdades sociais, desejo de paz e independência (Negritude);
• Inveja, perdão, ternura, simpatia...
1
Alívio ou distracção mental de obrigações ou realidades desagradáveis recorrendo a devaneios e imaginações.
1
Principais Formas Líricas

A. Soneto
O soneto é um poema lírico de origem italiana. É um texto de estrutura fixa: tem 14 versos
decassílabos - versos de dez sílabas métricas - ordenados em quatro estrofes, sendo duas quadras e dois
tercetos. Predomina no soneto o decassílabo heroico, ou seja, com acento métrico na 6ª e 10ª sílabas,
mas também aparece o decassílabo sáfico, com acento na 4ª, 8ª e 10ª sílabas.

B. Canção
É um poema de carácter amoroso, concebido para ser cantado. Dependendo do assunto que aborda,
a canção recebe diferentes nomes: cantata (que aborda assuntos nobres e elevados); madrigal (que
apresenta um galanteio ou um pensamento fino e espirituoso)2.

C. Écloga
É uma canção bucólica (relativa à vida do campo, pastoril) em que se cantam os animais, os
campos, os pastores e as pastoras. O ambiente das cantigas é rústico e o estilo, simples. Serve-se da
redondilha maior (verso de sete sílabas métricas).
A écloga nasceu na Grécia, propagou-se por Roma com Virgílio e foi cultivada em Portugal nos
séculos XVI, XVII e XVIII.

D. Elegia
É uma composição que exprime a dor, a tristeza. É também de origem grega. Foi cultivada pelos
romanos e por poetas portugueses do século XVI.

E. Ode
É uma composição poética de intenção laudatória, isto é, em que se tecem louvores ao amor, aos
heróis e à alegria da existência.
É também de origem grega, foi cultivada em Roma por Horácio e adquiriu muita importância em
Portugal nos séculos XVI, XVII e XVIII.

F. Vilancete
Forma poética, musical, composta a partir dum mote3 curto (2 ou 3 versos) tirado, geralmente, de
uma canção popular. Ao mote segue-se uma glosa4 de sete versos em que o poeta comenta a ideia
proposta. O último verso do mote aparece repetido no último da glosa.

G. Cantiga
É uma composição lírica curta que integra um mote de quatro ou cinco versos, em que se expõe o
assunto por desenvolver na(s) glosa(s). O assunto da cantiga é sempre amoroso.

2
A canção moçambicana aborda também temas como a guerra, a morte, a solidão, a saudade, entre outros.
3
Mote: pensamento expresso em um ou mais versos para ser desenvolvido na glosa.
4
Glosa: composição poética em que cada estrofe acaba por um dos versos do mote.
2
H. Endechas
Composição lírica que exprime sentimentos de melancolia, de dor e de desencanto da vida. Socorre-
se de versos de 5 ou 6 sílabas agrupados em quadras. Cada quadra também se chama endecha, daí o
nome «endechas» no plural.

I. Esparsa
É um poema de fundo melancólico composto de versos de seis sílabas. A esparsa tem, no mínimo,
oito versos e, no máximo dezasseis. Aborda directamente o assunto.

FIGURAS DE ESTILO

Figuras de linguagem, também chamadas figuras de estilo, são recursos especiais de que se vale
quem fala ou escreve, para comunicar à expressão mais força e colorido, intensidade e beleza
(PACHOAL, s/d: 620)5. Podemos classificá-las em três tipos: (a) Figuras de palavras (ou trapos), (b)
Figuras de construção (ou de sintaxe) e (c) Figuras de pensamento. Por ora, atemo-nos a algumas
figuras de sintaxe e de pensamento.

Figuras de Sintaxe
a. Elipse é a omissão de um termo ou oração que facilmente podemos subentender no contexto. É
uma espécie de economia de palavras. Aqui só interessa a elipse como figura de estilo.
Exemplo: “As mãos eram pequenas e os dedos, finos e delicados.” [elipse do verbo eram].

b. Pleonasmo é o emprego de palavras redundantes, com o fim de reforçar ou enfatizar a


expressão.
Exemplo: “Foi o que vi com os meus próprios olhos.” (ANTÔNIO CALADO).

c. Polissíndeto é a repetição intencional do conectivo coordenativo (geralmente a conjunção “e”).


É particularmente eficaz para sugerir movimentos contínuos ou séries de acções que se sucedem
rapidamente.
Exemplo: “Trejeita, e canta, e ri nervosamente.” (ANTÔNIO TOMÁS).

d. Inversão consiste em alterar a ordem normal dos termos ou orações com o fim de lhes dar
destaque.
Exemplo: “Passarinho, desisti de ter.” (RUBEM BRAGA).

e. Anacoluto é a quebra ou interrupção do fio da frase, ficando termos sintacticamente desligados


do resto do período, sem função. O termo sem nexo sintáctico coloca-se, em geral, no início da
frase para se lhe dar realce.
Exemplo: “Pobre, quando come frango, um dos dois está doente.” (DITO POPULAR).

f. Onomatopeia consiste no aproveitamento de palavras cuja pronúncia imita o som ou a voz


natural dos seres. É um recurso fonémico ou melódicos que a língua proporciona ao escritor.
Exemplo: “Pedrinho, sem mais palavras, deu rédea e, lept! lept! arrancou estrada afora.”
(MONTEIRO LOBATO).

Figuras de Pensamento
a) Antítese consiste na aproximação de palavras ou expressões de sentido oposto. É um poderoso
recurso de estilo.
Exemplo: “As sempre-vivas morreram.” (DORA FERREIRA DA SILVA)

5
PACHOAL, Domingos, Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, São Paulo, Companhia Editora Nacional, s/d
3
b) Apóstrofe é a interrupção que faz o orador ou escritor para se dirigir a pessoas ou coisas
presentes ou ausentes, reais ou fictícias.
Exemplo: “...a seguir, leitor amigo, contarei a história tal como sucedeu...”

c) Eufemismo consiste em suavizar a expressão de uma ideia triste, molesta ou desagradável,


substituindo o termo contundente por palavras ou circunlocuções amenas ou polidas.
Exemplo: Fulano foi desta para melhor. [= morreu].

d) Gradação é uma sequência de ideias dispostas em sentido ascendente ou descendente.


Exemplo: “é bom, é óptimo, é maravilhoso, é excepcional”.

e) Hipérbole é uma afirmação exagerada. É uma deformação ela verdade que visa a um efeito
expressivo.
Exemplo: “Chorou rios de lágrimas”.

f) Ironia é a figura pela qual dizemos o contrário do que pensamos, quase sempre com intenção
sarcástica.
Exemplo: “Há́ recessão, há́ desemprego, há miséria, mas tudo está sob controle de geniais
economistas.” (EVANDRO LINS E SILVA).

g) Personificação é a figura pela qual fazemos os seres inanimados ou irracionais agirem e


sentirem como pessoas humanas. É um precioso recurso da expressão poética. Por meio desta
figura, também chamada prosopopeia e animização, empresta-se vida e acção a seres
inanimados.
Exemplo: “Lá fora, no jardim que o luar acaricia, um repuxo apunhala a alma da solidão.”

h) Reticência consiste em suspender o pensamento, deixando-o meio velado.


Exemplo: “De todas, porém, a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se digo.”

i) Retificação. Como a palavra diz, consiste em retificar uma afirmação anterior.


Exemplo: “É uma joia, ou melhor uma preciosidade, esse quadro.” 


POESIA TROVADORESCA
Abordar a poesia trovadoresca é também mencionar o trovadorismo, um movimento literário e
poético que surgiu na Idade Média no século XI. Foi o primeiro movimento literário da língua
portuguesa, pois dele surgiram as primeiras manifestações literárias. As cantigas são os principais
registros da época, tradicionalmente divididas em cantigas de amor, de amigo e de escárnio e
maldizer. O trovadorismo português teve o seu ponto mais alto entre os finais do século XII a meados
do século XIV.
Nessa época, as poesias eram feitas para serem cantadas ao som de instrumentos musicais, como a
flauta, a lira, a viola, o alaúde, daí o nome “cantigas”. O cantor dessas composições era chamado de
“jogral”, o autor delas era o “trovador” e o “menestrel”, era considerado superior ao jogral por ter mais
instrução e habilidade artística, pois sabia tocar e cantar.
No que tange à temática elas estavam relacionadas a determinados valores culturais e a certos tipos
de comportamento difundidos pela cavalaria feudal, que até então lutava nas Cruzadas no intuito de
resgatar a Terra Santa do domínio dos mouros. Percebe-se, portanto, que nas cantigas prevaleciam
distintos propósitos: havia aquelas em que se manifestavam juras de amor feitas à mulher do cavaleiro,
outras em que predominava o sofrimento de amor da jovem em razão de o namorado ter partido para as
Cruzadas, e ainda outras, em que a intenção era descrever, de forma irónica, os costumes da sociedade
portuguesa.

4
Refira-se que a poesia trovadoresca se apresenta em dois géneros essenciais: o lírico-amoroso
(cantigas de amor e de amigo) e o satírico (cantigas de maldizer e de escárnio), que passamos a
descrever:

A. Cantigas de Amigo
Tipo de poesia originária da Península Ibérica e, mais concretamente, do território galaico-
português, com uma forte influência das cantigas populares de Provença6. Neste tipo de cantigas, o
trovador 7 exprime os problemas amorosos e as ansiedades da humilde donzela apaixonada, enciumada
e inquieta com a falta de notícias do amigo ausente.
As cantigas de amigo são poemas simples, de conteúdo pobre, espontâneos e documentam a vida da
donzela no ambiente campestre e familiar. Destinavam-se a ser cantadas.
Em síntese, pode-se aferir que nas “cantigas de amigo”, a voz lírica é feminina. Tais cantigas tinham
como cenário a vida campesina ou nas aldeias, e geralmente exprimiam o sofrimento da mulher
separada de seu amado (também chamado de amigo), vivendo sempre ausente em virtude de guerras ou
viagens inexplicadas. O “eu lírico”, materializado pela voz feminina, sempre tinha um confidente com o
qual compartilhava seus sentimentos, representado pela figura da mãe, amigas ou os próprios elementos
da natureza, tais como pássaros, fontes, árvores ou o mar.

B. Cantigas de Amor
Originárias de Provença, sul da França, as cantigas de amor transmitiam a paixão avassaladora do
trovador que se considerava vassalo8 da sua dama, à qual votava um amor superior, nem sempre real.
São cantigas artificiosas, aristocráticas, com feições mais eruditas do que as cantigas de amigo.
Destinavam-se igualmente a ser cantadas.
Nas “cantigas de amor”, a voz lírica é masculina e expõe uma experiência passional, recheada de
conflitos, como a diferença social (muitas vezes a mulher amada é inacessível por ser de estirpe alta,
enquanto o enamorado é um fidalgo decadente, por exemplo), o amor platónico, a inutilidade das
súplicas de amor.
O amante vive sempre em estado de sofrimento, também chamado de coita, visto que não é
correspondido. Ainda assim dedica à mulher amada (senhor) fidelidade, respeito e submissão. Nesse
cenário, a mulher é tida como um ser inatingível, à qual o cavaleiro deseja servir como vassalo.

C. Cantigas de Maldizer e de Escárnio


As canções trovadorescas satíricas definem o segundo segmento do trovadorismo português. Nelas,
encontram-se a perspectiva irónica (cantigas de escárnio), e a prática do insulto directo (cantigas de
maldizer).
A diferença entre os dois tipos de cantiga é bastante simples: na de escárnio, temos a ironia como
elemento principal, na de maldizer, o uso da agressividade verbal é a tónica. Na cantiga de escárnio, não
se nomeia a pessoa que é objecto de crítica, ao contrário, de forma indirecta, trabalhando com o duplo
sentido, a voz lírica deixa em aberto o alvo e, com isso, expande-o ao próprio leitor.
Na cantiga de maldizer, em lugar do duplo-sentido, explora-se a agressão directa, que nomeia seres
e acções, e faz, muitas vezes, uso de palavrões (embora também na cantiga de maldizer possa aparecer o
vocabulário chulo).

6
Região localizada a Sul de França.
7
Trovador: poeta lírico peninsular dos séculos XII e XIII.
8
No sistema feudal, indivíduo que, mediante juramento de fé e fidelidade a um suberano, dele se tornava dependente, rendendo-
lhe preito e tributo.

5
EXEMPLOS DE CANTIGAS
TEXTO A TEXTO B TEXTO C

-Ai flores, ai flores do verde pino, A Ribeirinha


se sabedes novas do meu amigo! (ou Cantiga de Guarvaya) Ai, dona fea, foste-vos queixar
Ai Deus, e u é? que vos nunca louv’en [o] meu cantar;
No mundo non me sei parelha mais ora quero fazer um cantar
Ai, flores, ai flores do verde ramo, mentre me for como me vay, en que vos loarei toda via;
se sabedes novas do meu amado! ca já moiro por vos - e ay! e vedes como vos quero loar:
Ai Deus, e u é? mia senhor branca e vermelha, dona fea, velha e sandia!
queredes que vos retraya
Se sabedes novas do meu amigo, a quando vus eu vi en saya! Dona fea, se Deus me perdon,
quel que mentiu do que pos comigo! Mao dia me levantei, pois avedes [a] tan gran coraçon
Ai Deus, e u é? que vus enton non vi fea! que vos eu loe, en esta razon
E, mia senhor, des aquel di’ay! vos quero já loar toda via;
Se sabedes novas do meu amado me foi a mi muyn mal, e vedes qual será a loaçon:
aquel que mentiu do que mi ha jurado! e vos, filha de don Paay dona fea, velha e sandia!
Ai Deus, e u é? Moniz, e ben vus semelha
d’aver eu por vos guarvaya, Dona fea, nunca vos eu loei

Vós me preguntades polo voss’amigo, pois eu, mia senhor, d’alfaya en meu trobar, pero muito trobei;
e eu ben vos digo que é san’e vivo. nunca de vos ouve nen ei mais ora já un bon cantar farei,
Ai Deus, e u é? valia d’a correa. en que vos loarei toda via;

e direi-vos como vos loarei:

Vós me preguntades polo voss’amado, dona fea, velha e sandia!
e eu ben vos digo que é viv’e sano.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san’e vivo


e seerá vosc’ant’o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv’e sano


e seerá vosc’ant’o prazo passado.
Ai Deus, e u é?
Dom Dinis (In MOISÉS, 2006, p. 28-29)

TEXTO D
Vós, que por Pero Tinhoso preguntades, se queredes
dele saber novas certas per min, poi-las non sabedes,
achar-lh’-edes tres sinaes per que o conhosceredes;
mais esto que vos eu digo non vo-lo sabia nengiu:
aquel é Pero Tinhoso que traz o toutiço niu
e traz o cáncer no pisso e o alvaraz no cuu.

Ja me por Pero Tinhoso preguntastes noutro día


que vos dissess’eu del novas, e entón non as sabía,
mais per estes tres sinaes quenquer o conhoscería;
mais esto que vos eu digo non vo-lo sabia nengiu:
aquel é Pero Tinhoso que traz o toutiço niu

e traz o cáncer no pisso e o alvaraz no cuu.

Vós, que por Pero Tinhoso mi ora iades preguntando


que vos dissess’eu del novas, non vo-las quer’eu ir contando:
achar-lh’-edes tres sinaes, se lhe ben fordes catando,
mais esto que vos eu digo non vo-lo sabia nengiu:
aquel é Pero Tinhoso que traz o toutiço niu

e traz o cáncer no pisso e o alvaraz no cuu.
6
POETAS LÍRICOS PORTUGUESES

LUÍS DE CAMÕES (1524 - 1580)

Amor é fogo que arde sem se ver Pede o desejo, Dama, que vos veja

Amor é fogo que arde sem se ver, Pede o desejo, Dama, que vos veja;
é ferida que dói, e não se sente; Não entende o que pede; está enganado.
é um contentamento descontente, É este amor tão fino e tão delgado,
é dor que desatina sem doer. Que, quem o tem, não sabe o que deseja.

É um não querer mais que bem querer; Não há cousa, a qual natural seja,
é um andar solitário entre a gente; Que não queira perpétuo o seu estado;
é nunca contentar-se de contente; Não quer logo o desejo o desejado,
é um cuidar que ganha em se perder. Por que não falte nunca onde sobeja.

É querer estar preso por vontade; Mas este puro afeito em mim se dana;
é servir a quem vence, o vencedor; Que, como a grave pedra tem por arte
é ter com quem nos mata, lealdade. O centro desejar da Natureza,

Mas como causar pode seu favor Assi o pensamento, pela parte
nos corações humanos amizade, Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
se tão contrário a si é o mesmo Amor? Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

ALMEIDA GARRETT (1799 – 1854)

A Délia Destino
Quem disse à estrela o caminho
Cuidas tu que a rosa chora, Que ela há-de seguir no céu?
Que é tamanha a sua dor, A fabricar o seu ninho
Quando, já passada a aurora, Como é que a ave aprendeu?
O Sol, ardente de amor, Quem diz à planta «Floresce!»
Com seus beijos a devora? E ao mudo verme que tece
- Feche virgíneo pudor Sua mortalha de seda
O que inda é botão agora Os fios quem lhos enreda?
E amanhã há-de ser flor;
Mas ela é rosa nesta hora, Ensinou alguém à abelha
Rosa no aroma e na cor. Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
- Para amanhã o prazer O seu mel há-de ir pedir?
Deixe o que amanhã viver. Que eras tu meu ser, querida,
Hoje, Délia, é nossa a vida; Teus olhos a minha vida,
Amanhã... o que há-de ser? Teu amor todo o meu bem...
A hora de amor perdida Ai!, não mo disse ninguém.
Quem sabe se há-de volver?
Não desperdices, querida, Como a abelha corre ao prado,
A duvidar e a sofrer Como no céu gira a estrela,
O que é mal gasto da vida Como a todo o ente o seu fado
Quando o não gasta o prazer. Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino.
in 'Folhas Caídas' Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

in 'Folhas Caídas'

7
FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)

O Amor, Quando Se Revela Não Sei Quantas Almas

O amor, quando se revela, Não sei quantas almas tenho.


Não se sabe revelar. Cada momento mudei.
Sabe bem olhar p’ra ela, Continuamente me estranho.
Mas não lhe sabe falar. Nunca me vi nem acabei.
Quem quer dizer o que sente De tanto ser, só tenho alma.
Não sabe o que há-de dizer. Quem tem alma não atem calma.
Fala: parece que mente... Quem vê é só o que vê,
Cala: parece esquecer... Quem sente não é quem é,
Ah, mas se ela adivinhasse, Atento ao que sou e vejo,
Se pudesse ouvir o olhar, Torno-me eles e não eu.
E se um olhar lhe bastasse Cada meu sonho ou desejo
Pra saber que a estão a amar! É do que nasce e não meu.
Mas quem sente muito, cala; Sou minha própria paisagem;
Quem quer dizer quanto sente Assisto à minha passagem,
Fica sem alma nem fala, Diverso, móbil e só,
Fica só, inteiramente! Não sei sentir-me onde estou.
Mas se isto puder contar-lhe Por isso, alheio, vou lendo
O que não lhe ouso contar, Como páginas, meu ser.
Já não terei que falar-lhe O que segue não prevendo,
Porque lhe estou a falar... O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

POETAS LÍRICOS MOÇAMBICANOS

RUI DE NORONHA
(Lourenço Marques, 28 de Outubro de 1909 - Lourenço Marques, 25 de Dezembro de 1943)

AMAR POR EU AMAR-TE TANTO

Amar é um prazer se nós amamos Que culpa tenho eu de amar-te assim?


Alguém que pode amar-nos e nos ama, Que culpa terás tu de o não saberes?
Amara é um prazer, se nos chama, Quem adivinha o que se passa em mim?
Alguém continuamente que chamámos. Como adivinharei o que tu queres?

Então a vida inteira a rir levamos, Oh, corações secretos de mulheres!


Que o mesmo fogo ardente nos inflama Oh, minhas ilusões, mágoas sem fim!
Os ideais da vida, o bem, a fama, Por que hei-de eu ter só mágoas não prazeres?
Mãos dadas pelo mundo procuramos. Será por tanto amar-te querubim?

No encapelado mar da existência Tudo o que à luz da Natureza existe


O amor é compassiva indulgência Alegre é num momento e noutro triste.
A culpa original dos nossos pais. … E eu sou tristeza sempre, sempre pranto…

Tudo na vida é fruto do amor O mais humilde verme que rasteja


Quem o tirar e olhar em seu redor Tem outros que o ama, afaga e beija.
Encontra só tristeza – e nada mais. … E eu nada tenho por amar-te tanto!

8
NOEMIA DE SOUSA
(Catembe, 1926 - Cascais, 2003)

Deixa passar o meu povo com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso
do rádio
Noite morna de Moçambique - let my people go,
e sons longínquos de marimbas chegam até mim oh let my people go.
- certos e constantes -
vindos nem eu sei donde. E enquanto me vierem do Harlem
Em minha casa de madeira e zinco, vozes de lamentação
abro o rádio e deixo-me embalar... e meus vultos familiares me visitarem
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os em longas noites de insônia,
nervos. não poderei deixar-me embalar pela música fútil
E Robeson e Maria cantam para mim das valsas de Strauss.
spirituals negros do Harlem. Escreverei, escreverei,
Let my people go com Robeson e Marian gritando comigo:
- oh deixa passar o meu povo, Let my people go,
deixa passar o meu povo -, OH DEIXA PASSAR O MEU POVO.
dizem.
E eu abro os olhos e já não posso dormir.
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo. Se me quiseres conhecer
Let my people go.
Se me quiseres conhecer,
Nervosamente, Estuda com olhos de bem ver
sento-me à mesa e escrevo... Esse pedaço de pau preto
(Dentro de mim, Que um desconhecido irmão maconde
oh let my people go...) De mãos inspiradas
deixa passar o meu povo. Talhou e trabalhou em terras distantes lá do norte.
Ah! Essa sou eu:
E já não sou mais que instrumento órbitas vazias no desespero de possuir a vida
do meu sangue em turbilhão boca rasgada em ferida de angustia,
com Marian me ajudando mãos enormes, espalmadas,
com sua voz profunda - minha Irmã. erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado feridas visíveis e invisíveis
Escrevo... pelos duros chicotes da escravatura…
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. torturada e magnífica
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado altiva e mística,
e revoltas, dores, humilhações, africa da cabeça aos pés,
tatuando de negro o virgem papel branco. – Ah, essa sou eu!
E Paulo, que não conheço Se quiseres compreender-me
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Vem debruçar-te sobre a minha alma de africa,
Moçambique, Nos gemidos dos negros no cais
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças, Nos batuques frenéticos dos muchopes
algodoais, e meu inesquecível companheiro branco, Na rebeldia dos machanganas
e Zé - meu irmão - e Saul, Na estranha melodia se evolando
e tu, Amigo de doce olhar azul, Duma canção nativa noite dentro
pegando na minha mão e me obrigando a escrever E nada mais me perguntes,
com o fel que me vem da revolta. Se é que me queres conhecer…
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro, Que não sou mais que um búzio de carne
enquanto escrevo, noite adiante, Onde a revolta de africa congelou
Seu grito inchado de esperança.

9
JOSÉ CRAVEIRINHA
(Lourenço Marques, 28 de Maio de 1922 - Maputo, 6 de Fevereiro de 2003)

Grito negro Poema de um futuro cidadão

Eu sou carvão! Vim de qualquer parte


E tu arrancas-me brutalmente do chão de uma Nação que ainda não existe.
e fazes-me tua mina, patrão. Vim e estou aqui!
Eu sou carvão! Não nasci apenas eu
E tu acendes-me, patrão, nem tu nem outro...
para te servir eternamente como força motriz mas irmão.
mas eternamente não, patrão. Mas
Eu sou carvão tenho amor para dar às mãos-cheias.
e tenho que arder sim; Amor do que sou
queimar tudo com a força da minha combustão. e nada mais.
Eu sou carvão; E
tenho que arder na exploração tenho no coração
arder até às cinzas da maldição gritos que não são meus somente
arder vivo como alcatrão, meu irmão, porque venho dum país que ainda não existe.
até não ser mais a tua mina, patrão. Ah! Tenho meu amor à todos para dar
Eu sou carvão. do que sou.
Tenho que arder Eu!
Queimar tudo com o fogo da minha combustão. Homem qualquer
Sim! cidadão de uma nação que ainda não existe.
Eu sou o teu carvão, patrão.

RUI KNOPFLI
(Inhambane, 10 de Agosto de 1932 - Lisboa, 25 de Dezembro de 1997)
Princípio do dia Testamento

Rompe-me o sono um latir de cães Se por acaso morrer durante o sono


na madrugada. Acordo na antemanhã não quero que te preocupes inutilmente.
de gritos desconexos e sacudo Será apenas uma noite sucedendo-se
de mim os restos da noite a outra noite interminavelmente.
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera. Se a doença me tolher na cama
Digo adeus à noite sem saudade, e a morte aí me for buscar,
digo bom-dia ao novo dia. beija Amor, com a força de quem ama,
Na mesa o retrato ganha contorno, estes olhos cansados, no último instante.
digo-lhe bom-dia
e sei que intimamente ele responde. Se, pela triste monotonia do entardecer,
me encontrarem estendido e morto,
Saio para a rua quero que me venhas ver
e vou dizendo bom-dia em surdina e tocar o frio e sangue do corpo.
às coisas e pessoas por que passo.
Se, pelo contrário, morrer na guerra
No escritório digo bom-dia. e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,
Dizem-me bom-dia como quem fecha quero que saibas, Amor, quero que saibas,
uma janela sobre o nevoeiro, pelo cérebro rebentado, pela seca veia,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro pela pólvora e pelas balas entranhadas
entre o sentir e o falar. na dura carne gelada,
que morri sim, que não me repito,
E bom dia já não é mais a ponte mas que ecoo inteiro na força do meu grito.
que eu experimentei levantar.
10
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.

(Amanhã volto a experimentar).

MARCELINO DOS SANTOS


(Lumbo, 20 de Maio de 1929)

SONHO DE MÃE NEGRA É PRECISO PLANTAR


Mãe negra É preciso plantar
Embala o seu filho mamã
E esquece é preciso plantar
Que o milho já a terra secou
Que o amendoim ontem acabou. é preciso plantar
nas estrelas
Ela sonha mundos maravilhosos e sobre o mar
Onde o seu filho irá à escola
À escola onde estudam os homens nos teus pés nus e pelos caminhos

Mãe negra é preciso plantar


Embala o seu filho
E esquece nas esperanças proibidas
Os seus irmãos construindo vilas e cidades e sobre as nossas mãos abertas
Cimentando-as com o seu sangue
Ela sonha mundos maravilhosos na noite presente
Onde o seu filho correria na estrada e no futuro a criar
Na estrada onde passam os homens
por toda a parte
Mãe negra mamã
Embala o seu filho
E escutando é preciso plantar
A voz que vem do longe
Trazida pelos ventos a razão
dos corpos destruídos
Ela sonha mundos maravilhosos e da terra ensanguentada
Mundos maravilhosos da voz que agoniza
Onde o seu filho poderá viver. e do coro de braços que se erguem

por toda a parte


por toda a parte
por toda a parte mamã

por toda a parte


é preciso plantar
a certeza
do amanhã feliz
nas caricias do teu coração
onde os olhos de cada menino
renovam a esperança

sim mamã
é preciso
é preciso plantar

pelos caminhos da liberdade

a nova árvore
da Independência Nacional.
11
SÉRGIO VIEIRA
(Tete, 1941)

ALV ORADA respondam os canhões da


(um canto de confiança) esperança,
que o Limpopo transporte
Sobre ti, convulsivas
com o sangue as carcaças de pontes,
e a tristeza que nasceu em nós, que o Zambebe se transforme em
desce a luz do dia que se faz. Rovuma de Maputo
Como morre na terra a vida, e a tua mensagem
para que outras vidas germinem faça de nós ciclone devastando o
ao sol, inimigo.
como se entrega crepitando ao fogo E queremos
o ramo forte da árvore, no amor que te damos,
assim, na fé em que te envolvemos,
vida e calor, que nos transportes ao futuro
grito novo de esperança, e faças da esperança das buganvílias
chegas tu, no mistério do luto. grite alegria na pátria
E ainda doloridas e o sangue se torne apenas
te oferecemos as nossas mãos recordação.
trabalhadoras, À Pátria que ele nos deixou
vermelhos e tristes deves acrescentar a revolução
te entregaremos os nossos olhos que a bomba
vigilantes, deixou incompleta
e as nossas vidas de combatentes e de nosso grito
mil vezes serão tuas, Independência ou morte
no grito novo e enorme queremos construída
como o flutuar da bandeira que a realidade do
içaste: Venceremos
A luta continua

e sobre ti,
com a tristeza de manhã de
Fevereiro,
com a esperança do Sol que
nasce,
com a força imensa da vida
que cresce no ventre da
mulher,
sobre ti,
desce a confiança do partido e do
povo.
A ti,
reivindicamos a purificação e
vingança
que o nosso sentido de justiça
exige,
queremos um fogo ainda maior
que ao marulhar das ondas do
Índico

12
ARMANDO GUEBUZA
(Nampula, 1943)

AS TUAS DORES SE ME PERGUNTARES

As tuas dores Se me perguntares


mais as minhas dores
Quem sou eu
vão estrangular a opressão
Cavada de bexiga de maldade
Os teus olhos Com um sorriso sinistro
mais os meus olhos Nada te direi
vão falando da revolta
Nada te direi
A tua cicatriz Mostrarte-ei as cicatrizes de séculos
mais a minha cicatriz Que sulcam as minhas costas negras
vão lembrando o chicote Olhar-te-ei com olhos de ódio
As minha mãos Vermelhos de sangue vertido durante séculos
mais as tuas mãos Mostrar-te-ei minha palhota de capim
vão pegando em armas A cair sem reparação
Levar-te-ei às plantações
A minha força
mais a tua força Onde sol a sol
vão vencer o imperialismo Me encontro dobrado sobre o solo
Enquanto trabalho árduo
O meu sangue
Mastiga meu tempo
mais o teu sangue
vão regar a Vitória. Levar-te-ei aos campos cheios de gente
Onde gente respira miséria em toda a hora
Nada te direi
Mostrar-te-ei somente isto
E depois
Mostrar-te-ei os corpos do meu Povo
Tombados por metralhadoras traiçoeiras,
Palhotas queimadas por gente tua
Nada te direi
E saberá porque luto.

Moçambique, 1977

TOMÁS ANTÓNIO GONZAGA - MOÇAMBICANO


(Porto, 1744 - Moçambique, 1810)

Marília de Dirceu - Parte I


Lira II

Pintam, Marília, os Poetas Dos rubins mais preciosos


A um menino vendado, Os seus beiços são formados;
Com uma aljava de setas, Os seus dentes delicados
Arco empunhado na mão; São pedaços de marfim.
Ligeiras asas nos ombros, Mal vi seu rosto perfeito
O tenro corpo despido, Dei logo um suspiro, e ele
E de Amor, ou de Cupido Conheceu haver-me feito
São os nomes, que lhe dão. Estrago no coração.
Porém eu, Marília, nego, Punha em mim os olhos, quando
Entendia eu não olhava:
13
Que assim seja Amor; pois ele Vendo o que via, baixava
Nem é moço, nem é cego, A modesta vista ao chão.
Nem setas, nem asas tem. Chamei-lhe um dia formoso:
Ora pois, eu vou formar-lhe Ele, ouvindo os seus louvores,
Um retrato mais perfeito, Com um gesto desdenhoso
Que ele já feriu meu peito; Se sorriu, e não falou.
Por isso o conheço bem. Pintei-lhe outra vez o estado,
Os seus compridos cabelos, Em que estava esta alma posta;
Que sobre as costas ondeiam, Não me deu também resposta,
São que os de Apolo mais belos; Constrangeu-se, e suspirou.
Mas de loura cor não são. Conheço os sinais, e logo
Têm a cor da negra noite; Animado de esperança,
E com o branco do rosto Busco dar um desafogo
Fazem, Marília, um composto Ao cansado coração.
Da mais formosa união. Pego em teus dedos nevados,
Tem redonda, e lisa testa, E querendo dar-lhe um beijo,
Arqueadas sobrancelhas; Cobriu-se todo de pejo,
A voz meiga, a vista honesta, E fugiu-me com a mão.
E seus olhos são uns sóis. Tu, Marília, agora vendo
Aqui vence Amor ao Céu, De Amor o lindo retrato,
Que no dia luminoso Contigo estarás dizendo,
O Céu tem um Sol formoso, Que é este o retrato teu.
E o travesso Amor tem dois. Sim, Marília, a cópia é tua,
Na sua face mimosa, Que Cupido é Deus suposto:
Marília, estão misturadas Se há Cupido, é só teu rosto,
Purpúreas folhas de rosa, Que ele foi quem me venceu.
Brancas folhas de jasmim.

POETAS AFRICANOS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

GABRIEL MARIANO - CABO-VERDIANO


(Ribeira Brava, S. Nicolau, 18 de Maio de 1928)
Vela do Exílio

Acendi hoje uma vela Acendi hoje uma vela.


de estearina na fina E enquanto me ela queimava
mesinha onde escrevo. por sobre a mesa pessoas
Enquanto ela me ardia vivas e mortas passavam.
da chama para os meus olhos
velhas lembranças seguiam. Vela do exílio acendida
E súbito sobre a parede na noite de Moçambique:
de velha casa onde moro pesado, inútil veleiro.
o mapa árido e breve Vela do exílio, meu filho
das ilhas de Cabo Verde. com apenas um sopro apagas
a vela, o exílio não.
Que vento não vem ou se agita
no barco em forma de vela
por dentro da casa fechada!
Que voz materna no écran
da ilha difusa difunde
meu nome em projecto?

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JOÃO MAIMONA - ANGOLANO
(Quibocolo, município de Maquela do Zombo, na província de Uíge, 1955)

Ó ANGOLA MEU BERÇO DO INFINITO onde das lágrimas de crianças crucificadas


nasceram raças de cantos de vitória
Era o seu poema. A porta das portas do jardim. raças de perfumes de alegria
Ó Angola meu berço do Infinito E hoje pelos ruídos das armas
meu rio da aurora que ainda não se calaram pergunto-me:
minha fonte do crepúsculo Eras tu que subias montanhas de exploração?
Aprendi a angolar que a miséria aterrorizava?
pelas terras obedientes de Maquela que a ignorância acompanhava?
(onde nasci) que inventariavas os mortos
pelas árvores negras de Samba-Caju nos campos e aldeias arruinados
pelos jardins perdidos de Ndalatandu hoje reconstituídos nos escombros?
pelos cajueiros ardentes de Catete A resposta está no meu olhar
pelos caminhos sinuosos de Sambizanga e
pelos eucaliptos das Cacilhas nos meus braços cheios de sentidos
Angolei contigo nas sendas do incêndio
onde os teus filhos comeram balas (Angola meu fragmento de esperança)
e deixai-me beber nas minha mãos
regurgitaram sangue torturado a esperança dos teus passos
onde os teus filhos transformaram a epiderme nos caminhos de amanhã
em cinzas e
na sombra d'árvore esplendorosa.)

CONCEIÇÃO LIMA – SÃO-TOMENSE


(Santana, 8 de Dezembro de 1961)

Quando o luar caiu Súbito e transparente chegaste


quando falsos deuses subornavam o tempo,
Quando o luar caiu e chegaste sem aviso
tingiu de escuro os verdes da ilha para despedir o defeso e o frio,
cheguei, mas tu já não eras. chegaste quando a estrada se abria
Cheguei quando as sombras revelavam como um rio,
os murmúrios do teu corpo chegaste para resgatar sem demora o principio.
e não eras.
Cheguei para despojar de limites o teu nome. Grave o silêncio agarra-se ao teu corpo,
Não eras. hostil o silêncio agarra-se ao teu corpo
mas já tomaste horas e caminhos
As nuvens estão densas de ti já venceste matos e abismos
sustentam a tua ausência já a espessura do obô resplandece em tua testa.
recusam o ocaso do teu corpo
mas não és. E não me bastam pombas dementes no teu rosto
não bastam consciências soluçante em teu rasto
Pedra a pedra encho a noite não basta o delírio das lágrimas libertas.
do teu rosto sem medida
para te construir convoco os dias Cantarei em pranto teu regresso sem idade
pedra a pedra teu retorno do exílio na saudade
no teu tempo consumido. cantarei sobre esta terra teu destino de rebelde.
As pedras crescem como ondas Para te saudar no mar e no palma
no silêncio do teu corpo. na manhã dos cantos sem represas
Jorram e rolam saudarei a praia lisa e o pomar.
como flores violentas. Direi teu nome e tu serás.
E sangram como pássaros exaustos 1986
no silêncio do teu corpo
onde a noite e o vento se entrelaçam
no vazio que te espera.

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ODETE SEMEDO - GUINEENSE

(Bissau, 7 de Novembro de 1959)

Ilha sem nome

Silhueta da desventura O meu tantã é de outros tempos


A melodia que oiço
Sou a sombra dum corpo que não existe É o crepitar de chamas
Sou o choro desesperado Confundindo-se com o roncar da fome
Sou o eco de um grito articulado E o chão onde piso
Numa garganta sem forças É uma ilha de fogo
Sou um ponto no infinito
Silhueta da desventura A minha nuvem é a fumaça
Da bala disparada
Gotas salgadas orvalham
Perdida neste espaço O meu pequeno rosto
Vagueando... finjo existir Enquanto choro
Insistem chamar-me criança Na esperança do incerto.
E eu insisto ser
A esperança do incerto

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