Pascoaes Jesus e Pã
Pascoaes Jesus e Pã
Pascoaes Jesus e Pã
UM VELHO
J7
TEIXEIRA DE PASCOAES
Fui visitar, um dia, esse velho enigmático,
D'olhos perdidos no Além, sempre cismático...
Sua fronte que o sonhar tanto empalideceu
Era a continuação nevoenta do céu.
Seu triste rosto tão pálido e desmaiado
Assemelhava um sítio ermo, despovoado...
Encontrei-o, de pé, sobre um rochedo altivo
Que par'cia tremer como se fosse vivo,
Como se fosse da alma o místico fluido
Do cérebro do velho à pedra transmitido...
Voltado para o ar que a tarde entristecia,
Ai, tudo o que eu não vejo esse velhinho via...
E palavras de luz tão baixo soletrava...
E o que pra mim era silêncio, ele escutava...
E logo conheci que ele entendia tudo
O que prós outros é escurecido e mudo...
E logo vi que havia alguma intimidade
Entre os olhos do velho e a infinda imensidade,
Que, de longe, o seu corpo estranho e singular
Havia o quer que é dum astro a cintilar...
OBRAS COMPLBTA.S
PRIMEIRA FAIvA
í9
! ! ! ! !! !
TEIXEIRA DE PASCOAES
Sinto meu coração todo mudado em brasas...
Palpitantes clarões como o bater das asas...
Que luz eu sou Luz infinita Ó luz imensa,
! !
20
! .
OBRAS COMPIvETAS
B a árvore que formou outrora este meu ser,
Quase que a sinto em mim dar sombra e flores-
[cer !...
E julgo ver os seus tecidos invisíveis...
Num íntimo acordar, tornarem-se sensíveis...
Bstou a vê-la organizar-se sup'riormente
Num cérebro, que é hoje a imagem do Oriente...
E vejo mais além... Eu vejo o frio mármore
Enternecer-se até ficar um tronco d'árvore...
E mais além ainda, ó vidente Loucura,
O Universo é uma essência etérea que fulgura...
Ó tronco meu avô, de folhagem vestido.
Como me sinto, dentro em ti, adormecido
Como sinto minha alma estranha e visionária
Viver na tua seiva, ó árvore solitária!...
E como o sangue, que meu cérebro fecunda
E que duma energia enorme todo o inunda,
Se recorda do tempo em que ele florescia
Uma árvore sob a acção espiritual do dia.
Então vivia eu, sonâmbulo, a sonhar.
Como numa pupila um raio de luar,
No oculto interior das formas e das cousas
Que hoje são para mim sensações misteriosas.
Vivia além da luz, na grande escuridão
Que era para o meu ser um enorme clarão
Que me mostrava um outro mundo nunca visto.
Vertiginoso como o espectro do Imprevisto ! . .
OBRAS. COMPIvBTAS
Perpassavam além, na pesada penumbra,
Onde o silêncio era de gelo e onde tombavam
As verdes folhas que nos troncos eriçavam
D'álgido medo, e aonde o carvalho titânico.
Sem um gesto e uma voz, petrificou de pânico
Mas, súbito, o quer que é de estranho e d'anormal
Sobressaltava a erma noite sepulcral,
E então a noite imensa oscilava, tremia...
Era o alvorecer suavíssimo do dia
Que brotava dalém da serra, ainda hesitante,
Até que o sol, um Deus, surgira triunfante!
Era um cisne de luz que este mundo esqueceu,
Orgulhoso, a nadar no lago azul do céu,
Até que vítima da seta, cruelmente,
À tarde foi cair, ferido, no Poente...
Este mundo era outro. A luz do sol reinava.
E via que essa luz meu ser aperfeiçoava...
Principiei a cavar a terra e a semeá-la,
Comecei a chamar-lhe mãe e a adorá-la.
E as florestas doutrora as Ninfas povoaram
E um perfume bendito as flores exalaram.
Na roxa luz da tarde, entre os canaviais.
Passavam corpos deslumbrantes e ideais
Que punham manchas de luar entre o arvoredo
E reflexões de rosa a abrir cheia de medo...
E atrás deles corria, em lágrimas banhado,
Branco perfil dum Deus, inquieto e enevoado.
Que ia ocultar-se, além, no verde da ramagem...
E o aroma da volúpia embriagava a Paisagem
E doce sensação o bosque enternecia,
E por fim, num desmaio, ele empalidecia...
A terra tinha um ar de alegre mocidade.
Apolo semeava o oiro da claridade,
E Diana caçava entre os matos bravios
E tinha uma paixão imensa pelos rios
Como ela se abraçava, envolta numa bruma,
Ao seu líquido corpo alvíssimo de espuma...
íris, a mensageira, era um voo luminoso,
23
.
TEIXEIRA DB PASCOABS
B o loiro Pã vivia alegre e venturoso
Pelos campos em flor, onde encontrava Flora,
Com um lírio na mão e nos olhos a aurora.
Nas grutas do Oceano habitavam sereias,
E as verdes ondas, ao luar, nas marés cheias
Pareciam temer o búzio de Tritão
Que lançava no mar a negra cerração.
Velhos Faunos, com pés de cabra, nos outeiros
Tinham sorrisos maliciosos e brejeiros,
Pra alguma Ninfa sempre a dar-se e sempre es-
[quiva.
Sempre junto-de nós e sempre fugitiva ! . .
24
! ! !
OBRAS COMPLETAS
Longas meditações duros sacrifícios,
e
Ao nosso antigo rosto alegre e descuidado
Deram-lhe a palidez, tornaram-no encovado...
Mas, dentro em pouco tempo, o claro azul do céu
Foi desbotando até que toda a cor perdeu.
E hoje já não é mais que um espaço vazio,
Desolado areal ermo, estéril e frio.
Onde outros mundos remotíssimos gravitam
E onde as brasas dos sóis, entre chamas, crepitam.
Não existe uma fé. Os homens desvairados
Vê-se que foram lá do céu precipitados
Sobre esta terra que ficou gelada e erma...
E a Humanidade sofre, a humanidade é enferma;
Consome-a uma doença enorme e tenebrosa.
Cuja cura parece ainda misteriosa.
Tremem os corações, toda a terra estremece.
Um frio desespero os rostos entristece.
Paira por sobre o mundo um crepúsculo triste.
A Fé morreu. A mocidade não existe...
E uma impressão de solidão e d'abandono
Às almas faz o que nos campos faz o outono.
Tudo ensombra, sem dó, espesso nevoeiro.
Tomba no nosso sangue a geada de janeiro
Que doença fatal Doença sem remédio
!
TBIXBIRA DB PASCOA.BS
UMA VOZ
26
! ! ! !!
OBRAS COMPI^BTAS
Pelos meus lábios fala a tempestade,
Do que não é sentido eu sou a sensação!...
Dos olhos dum profeta eu sou a claridade,
Sou o murmúrio da Revelação
TEIXEIRA DE PASCOAES
SEGUNDA FALA
28
! ! ! ! ! !
OBRAS COMPIvBTAS
Cada célula sofre uma grande agonia,
E vibram cada nervo impressões de martírio
Dir-se-á que a Natureza inteira arrependida
Hesita em continuar sua marcha triunfante...
Dir-se-á que a luz do sol, esse foco da vida,
É cansado de ser fecundo e deslumbrante!
Penetra a alma humana um nevoeiro espesso,
Os homens são do Bem os tristes fugitivos...
Nos seres há um desejo louco de regresso
Aos instintos brutais dos tempos primitivos
Dir-se-á que em cada coisa a Essência empalidece.
Que a semente do Bem está p'ra estiolar...
É o perfil da Verdade anémico arrefece,
Diluindo-se no esforço absurdo de chorar!
É nestas horas que meus olhos incendeia
A cólera divina, o desespero insano,
Quando vejo a agonia infinita da Ideia
E o frio empedernir do coração humano
Eu, que fiquei ovelha entre lobos danados
E uma inocente pomba entre sinistros corvos.
Sinto a cólera ideal dos grandes indignados
E um clarão de furor sobre os meus olhos torvos
Aos meus ouvidos vêm gritos de desespero,
E a Justiça a gritar, sozinha, por mim passa!
Vejo rostos que têm um ar medonho e fero,
O ódio é um facho a arder na noite da desgraça
Vejo, ao longe, toldar o roxo da distância
Sinistra multidão donde saem rumores...
Há rostos onde brilha uma infinita ânsia,
Há olhos ideais orvalhados de dores
Vejo corpos que vão macilentos e nus,
E vultos a pregar num gesto incendiário...
Almas todas perdão que nos lembram Jesus
E peitos a sangrar que lembram o Calvário...
Ó triste multidão de réprobos e heróis.
Negra nuvem humana a anunciar tempestade,
Desprende-se de ti um chuveiro de sóis.
Levantas, caminhando, um pó de claridade!
29
! !
TEIXEIRA DE PASCOAES
Bem conheço que lavra em ti aquela chama
Da cólera de Deus que em meu peito crepita...
Bem sei que tua voz a Verdade proclama,
Bem sei que há no teu ódio a Bondade infinita
Por isso, eu tenho em mim teu próprio sentimento,
Teu desespero turvo e revoltada dor
Quando em minh'alma lavra o teu ódio sangrento.
Sinto em mim um aspecto ignoto do Amor!...
! ! !! !
OBRAS COMPI^ETAS
UMA VOZ
TEIXEIRA PE r A S C O A E S
TERCEIRA FALA
3^
!. !
OBRAS CO^IPLETAS
Que se elevam no fazendo-o enternecer
ar,
Até às lágrimas sem fim do anoitecer.
A que distância está meu coração magoado
Do Deus que ainda não foi aos homens revelado,
E desse mundo obscuro onde as almas palpitam,
E onde através do Amor espíritos gravitam,
Xuma grande esperança e infinda ansiedade.
Onde transluz, como um relâmpago, a \'erdade!
A que distância estou desse Planeta etéreo.
Desse mundo de luz, de sonho e de mistério!...
Como tão longe sou das almas das montanhas,
Das suas sensações quiméricas e estranhas
O espaço tem pra mim um ar de indiferença,
E de mim próprio eu vivo a uma distância imensa...
Eu sou da minha alma a fria solidão.
Da minha própria luz eu sou a escuridão
Vejo meu ser passar, ao longe, na Distância,
Como sombra onde brilha uma infinita ânsia,
Como nuvem escura onde murmura o luar,
Como treva onde a luz se sente palpitar ! . .
33
!
TEIXEIRA DE PASCOAES
Deixa cair somente uma lágrima triste,
Um resumo piedoso e terno do que existe;
O símbolo do sol, a imagem dum planeta
Ou do orvalho a tremer nuns olhos de violeta...
Às vezes interrogo os vastos arvoredos.
Mas não me dizem, não, um só dos seus segredos...
B fazem-me lembrar — oh trágico desgosto! —
Uma donzela que nos volta o frio rosto
Se, por acaso, para ela caminhamos
E já de perto, com amor, nós lhe falamos...
Ou uma estátua que me causa esta tristeza
De a palpar e sentir apenas a frieza
A lágrima d'amor que meus olhos constela
Vejo-a, como quem vê uma longínqua estrela.
Como quem vê um grande sol iluminado
Nas frias névoas da Distância asfixiado!...
Quantas vezes não chega a luz aos meus ouvidos
Em murmúrios que são — oh dor! — indefinidos...
Últimos sons talvez de palavras perfeitas
Que apenas ouvem, sobre a terra, almas eleitas...
As nuvens do azul variáveis, femininas.
Não olham para mim das regiões cristalinas.
E dentro delas vive em ânsias e palpita
Do gérmen criador a Vontade infinita!...
Passo horas a aspirar o aroma duma flor,
A ver se compreendo aquele etéreo amor;
Mas essa sensação que dentro em mim eu sinto
É um pálido luar moribundo e indistinto.
Como uns lábiosque vão falar verdade à gente
No momento em que a morte os fecha, de repente I
34
.! !
OBRAS COMPLETAS
Vejo o fumo e o luar morrerem num abraço,
Tão pálido que faz entristecer o espaço ! . .
35
! ! ! ! !
TEIXEIRA DE PA SCO A ES
Ó noite imensa onde há soluços e estertores
Que o vento leva, como pétalas de flores
Onde vagueiam, como sombras. Ansiedades;
Onde há Delírios, Esperanças e Vontades
Que se elevam no azul, que agitam grandes asas,
Fazendo voar a cinzaonde agonizam brasas
Que são espectros de Desejos que arrefecem,
Ou símbolos de sóis vermelhos que anoitecem...
A noite do mistério, onde sonha e murmura
Tanta alma. Senhor, e tanta criatura,
Ksse mundo de sombra e névoa e de segredo,
Onde uma nuvem vive e onde habita um rochedo,
Produz-me uma impressão longínqua e inatingível,
Uma estranha impressão oculta, intraduzível
Perto de tanta alma e tanto coração
Só sinto, ao pé de mim, a fria solidão
Eu sou um solitário, oh triste isolamento
Das cousas vivo só no seu distanciamento!
E meu ser misterioso.
todavia este
Assim como uma flor dum tronco musculoso,
Da terra inteira, num abril, desabrochou...
E nunca mais donde saiu se recordou
Ficou um ser à parte, abandonado e triste.
Não sabendo o que foi, ignorando o que existe,
Embora noutro tempo ele andasse disperso
Por todo esse infinito e por todo o Universo.
Eu que vivi na consciência da Natura,
Que fui a sensação de cada cousa escura.
Eu que fui o ideal dos seres existentes.
Porque olham para mim, frios, inconscientes
—
Do que eu sou eu que fui o que eles são ainda,
Eu que fui um clarão da sua luz infinda?...
E porque os vejo eu também nessa impotência
De os compreender, eu que já fui a sua essência?
Porque é que deles eu fiquei tão afastado?
Porque fiquei eu duma flor tão isolado?
Tão distante da luz, das nuvens e das fontes.
Que, sempre que eu estendo o olhar p'los horizontes,
36
! ! ! !
OBRAS co:mplkta,s
Ao ver as aves e os pinheiros da montanha,
Olham-me, como se olha uma pessoa estranha
A distância a que estou das outras criaturas
É a origem do meu mal, das minhas amarguras.
Sinto que é falsa e mentirosa a minha vida,
Longe de ti, ó Natureza estremecida
Eu preciso sentir o amor e o sofrimento
Que acende a luz do sol e faz voar o vento
Por isso, eu luto sempre e sempre pra alcançar
A energia do fogo e o perdão do luar,
A doçura dum lírio e a clara suavidade
Que prende um verde ramo a toda a imensidade;
A justiça do sol e a verdade dos montes
E a harmonia que sai do murmúrio das fontes...
Nasci para sofrer a grande dor das cousas,
Pra ser a escuridão das noites silenciosas,
Pra sentir na minh'alma o vago e o indefinido
Que há num raio de sol nas ondas reflectido!...
Para viver a vida oculta e imperceptível
De cada célula consciente e inextinguível...
/Para brilhar em cada luz e crepitar
^Em cada chama, e ir, em fumo, pelo ar
Pra ser seiva e tecer os caules verdejantes,
Pra ser numa flor murcha orvalhos cintilantes
Eu nasci para ser a força da Atracção,
A chuva, o movimento, a neve e a solidão.
Uma asa, em pleno azul, a palpitar d'amor
E o perfume subtil que gera cada flor...
Nasci para viver a vida das montanhas,
Para tremer nas suas convulsões estranhas,
Para sentir do vento o infinito delírio
E a ternura que o luar tem sempre para um lírio!
Nasci para abranger os vastos horizontes,
Pra ter nos olhos meus as lágrimas das fontes,
E nos meus braços esse gesto de brandura.
De infinita bondade e infinita doçura,
Que tem um ramo em flor que, enternecido, ampara
O ninho que sobre ele uma ave edificara...
37 •
TEIXEIRA DE PASCOAES
O velho assim falou. B sem olhar p'ra mim,
Extático e absorvido em quimeras sem fim,
Com os seus olhos dilatados, como a querer
Num só olhar todo o infinito compreender,
À sua gruta penhascosa regressou,
Deixando um rasto luminoso onde passou...
B, quando para além dum cerro se escondeu,
Dir-se-ia que foi um sol que anoiteceu...
Assim doirava a serra um pálido clarão,
B eu senti na minha alma aquela solidão...
! ! ! !
OBRAS COMPIvBTA.S
UMA VOZ
39
TEIXEIRA DE PASCOAES
Eu SOU filha da Neve e irmã da Treva;
Sou a dor do Universo,
Que o faz voar, que no infinito o eleva,
Como fumo disperso!...
OBRAS COMPLEXAS
QUARTA FALA
41
! .
TEIX:^IRA DB PASCOAES
Feridas que imitais as bocas dos abismos,
Sangrentas como nm vale onde passou a guerra!...
E tu, ó coração humano, és um resumo
Da loucura do mar chamada tempestade...
Do fogo que se esconde em negro e denso fumo
Pra brilhar, de repente, em toda a claridade
És filho dos vulcões, nasceste das crateras.
Teu palpitar parece o estremecer do mundo.
Tens relances no olhar, duros como os das feras,
E negros temporais como os do mar profundo ! . .
42
! ! !
OBRAS COMPIvBT. AS
Como um lúcido alvor ou riso d 'esperança,
Nunca mais uma deusa atravessou o ar,
Desprendendo por sobre a terra a sua trança,
Num gesto que fazia os rios desmaiar
Já ninguém sabe ler nos astros do infinito...
Quem faz invocações, Pitonisa d'Endor?
Quem sabe adivinhar, feiticeiros do Egipto,
Em silêncio, a chorar, voltados prô sol-pôr?
Ó Milo, nunca mais uma Vénus divina
Nasceu, feita mulher, da brancura do mármore...
Nunca mais ninguém viu donzela cristalina,
Por desprezar um deus, ser transformada em ár-
[vore
Neptuno nunca mais mandou a esquadra sua,
Ninguém tornou a ouvir o búzio de Tritão.
Ninguém tornou a ver Diana sobre a lua.
Fatídica, emanando um pálido clarão...
Não há homem que conte um deus entre os avós,
Aquiles vingativo, Eneias piedoso!
Magras bruxas da Etrúria, o que é feito de vós,
Ó bruxas a fiar um fio misterioso?
Sibilas que, ao luar, noutros tempos, vivestes.
Falando às nuvens, aos relâmpagos e aos lagos,
Distante da cidade, em penhascos agrestes.
Com vosso ar de mistério e vossos olhos vagos!...
O que é feito de vós, ó pálidas histéricas.
Que enchestes de terror as cidades guerreiras ?
Fantasmas de luar, vagas sombras quiméricas,
Sonâmbulas, falando às lívidas caveiras;
Interrogando a noite e as sombras que passavam
Tristes, a conversar sobre grandes mistérios.
Enquanto, pelo azul, as nuvens murmuravam
E um álgido terror enchia os cemitérios
O que é feito de vós, mulheres excepcionais.
Que nas exalações bebíeis o Delírio
Que vos deixava ver os deuses imortais.
Num letárgico sono aflito de martírio?!
Profetas da Judeia, ermos anunciadores,
43
! ! !! ! ! !
44
! . ! ! !
OBRAS COMPIvBTAS
Que nos pés dumacruz a Virgem derramou?
H que silêncio é hoje a voz misteriosa
Que tu, Santa Cecília, em pleno Circo, ouviste?
Que sentimento ideal levou fera raivosa
A lamber tuas mãos, ao ver-te suave e triste?
Transformou-se essa voz no silêncio gelado
Que amplia, como um sonho, os limites do céu
No silêncio em que fica um corpo amortalhado
Quando a alma que o animou aos astros ascendeu
Mudou-se no silêncio enorme das estrelas
Que nos permite ouvir a harmonia da Luz
E o murmúrio de dor das árvores por entre elas
Ter existido, outrora, uma árvore que foi cruz
Transformou-se essa voz no silêncio d'amor
Que vive em cada ai, que existe em cada grito...
No silêncio que aumenta o cântico da Dor
Para que ele se torne um cântico infinito ! . .
45
! ! ! ! ! . ! .
TEIXEIRA DE PASCOAES
num lírio ou numa rocha
Procurai-o dura.
Vivem num ramo em flor a Justiça e a Bondade
E na água duma fonte a Beleza murmura
Ó criações da Alma Ó
símbolos de luz
!
46
! ! ! ! !
OBRAS COMPIvET;A.S
Um homem deve ser um santo solitário,
Ou deverá lutar, ébrio de mocidade?
Que devemos fazer? Lutar e trabalhar
À luz dum grande sonho onde germina a Vida?
Ou viver para Deus, absortos, a sonhar,
D'olhos fixos no céu, à entrada duma ermida?
Esta vida é o Prazer ou é o Renunciamento?
Nos lábios uma prece ou o florescer dum beijo?
No mundo existe o Mal e o Bem no firmamento?
Será uma blasfémia o grito do Desejo?
Nossa vida termina, acaso, sobre a terra?
E o mais é uma falsa e inútil esperança?
O corpo e mais a alma hão-de estar sempre em
[guerra?...
E a vitória da alma é a Bem-aventurança?...
Dentre as ondas do mar, outra vez, nascerás,
Ó Vénus, mãe do Amor e irmã da Primavera!
Jesus há-de voltar todo perdão e paz,
Uma só voz dirá ao homem : —
vive e espera
Hão-de subir ao mesmo altar Jesus e Pã...
As Ninfas beijarão os anjos do Senhor. ^
Maria há-de chamar a Vénus sua irmã
E o tronco duma cruz ainda hei-de vê-lo em flor
É preciso ligar, fundir na mesma luz
A vida deste mundo e uma existência ideal;
A alegria de Flora e a paixão de Jesus,
O beijo criador e a prece virginal
É preciso reunir na mesma comunhão
A aspereza do mundo à doçura do céu,
A leveza do lírio ao peso do alvião,
E ao canto do trabalho a tua lira, Orfeu
A alma humana há-de saber compreender
Todas as almas, tudo quanto sofre e chora...
No mesmo grande amor há-de tudo abranger.
Desde o pranto da noite aos sorrisos da aurora
Há-de ligar no mesmo abraço extraordinário
A luz dum doce olhar e o clarão duma estrela;
Uma sombria cruz erguida num calvário
47
! ! ! !
TEIXEIRA DE PASCOAES
E o corpo virginal de raística donzela...
Há-de fundir no mesmo beijo cristalino
Os lábios da mulher e a chaga dolorida;
Tudo o que é deste mundo e tudo o que é divino,
Tudo o que encerra em si o hálito da Vida
É preciso que saiba o homemconhecer,
No seu íntimo ideal, as cousas que murmuram...
Ê preciso subir aos astros e descer
Ao fundo duma flor, onde outros sóis fulguram
Preciso é ouvir a voz de todo o lábio mudo
E ver o que há de luz em cada sombra triste.
É preciso amar tudo e compreender tudo.
Só neste sábio amor a Perfeição existe
Devemos estudar, cheios de comoção,
A rosa que murchou ao fogo duma mágoa...
Que vá precipitar-se o nosso coração
Nesse abismo sem fim que há numa gota d'água!
É preciso sentir, sofrer todo o martírio.
De cada cousa obscura o espírito alcançar...
Conversar com a luz, conviver com um lírio,
Nossos lábios unir aos lábios do Luar!...
É preciso viver, Senhor, todas as vidas,
Das árvor's entender a sua língua estranha...
Ser o sangue auroreal de todas as feridas,
Ser estrela, ser luz, ser nuvem, ser montanha
Cada alma há-de sentir em si todas as almas,
Cada ser viverá a vida universal...
A vida duma estrela em doces noites calmas
E, num magoado Outono, a vida d'ermo vai'!...
A alma viverá na oculta consciência
Que brilha numa flor e nas nuvens da serra...
Nossa alma há-de viver na criadora essência
—
Que na árvore do Azul pôs este fruto a Terra!...
E a nossa alma será um infinito lar,
Donde todo o Universo, em chamas de fulgor,
O próprio coração de Deus há-de alcançar.
Irradiando a Justiça, a Verdade e o Amor!...
Só então, meus irmãos, tereis a Felicidade
48
! ! ! !
OBRAS CO]MPLBTAS
Na clara compreensão de toda a Natureza...
Felizes vivereis a vida da Verdade,
Porque só na Mentira é que existe a tristeza!...
E assim como uma bruta pedra regelada,
De tanto desejar, de tanto estremecer
Fica num coração, às vezes, transformada,
Num perfume subtil ou numa estrela a arder,
Assim o vosso humano e frágil coração.
De tanto viajar por esse azul dos céus,
Há-de alcançar, um dia, a eterna Perfeição
E sentar-se no trono etéreo de Deus
49
! ! ! .
TEIXEIRA DE PASCOAES
Eu sou a eterna voz do Belo e da Verdade
Que vai ecoar, ao longe, em murmúrios d'amor,
Derramando-se assim por toda a imensidade,
Desde o peito dum tigre ao cálix duma flor
50
!
OBRAS COMPI/BTAS
Mas, um dia, a doença o Velho definhou.
E mais ninguém, sobre os rochedos, o encontrou...
Não tornaram a vê-lo os montes, seus avós.
O bom Velho morreu; mas sua estranha voz
Ficou sempre a ecoar nas quebradas da serra,
Fazendo enternecer as raízes, sob a terra.
E o cadáver por sobre as urzes projectava
Uma sombra mortuária, onde um sol gravitava...
Uma sombra infinita onde transparecia
O quer que é dum novo e imaculado dia
Quem hoje ainda subir essa íngreme montanha,
De pé, vai encontrar aquela sombra estranha,
Com uns olhos que vão além do céu profundo,
Com os braços ainda abertos para o mundo!...