As Bruxas - Roald Dahl
As Bruxas - Roald Dahl
As Bruxas - Roald Dahl
Nos contos de fadas, as bruxas sempre usam umas capas e uns chapéus
pretos ridículos, e voam em cabos de vassouras.
Mas esta história não é um conto de fadas. Esta é uma história de BRUXAS
DE VERDADE.
Há uma coisa muito importante que vocês precisam saber sobre BRUXAS
DE VERDADE. Prestem muita atenção, e nunca se esqueçam do seguinte:
BRUXAS DE VERDADE usam roupas comuns, e parecem mulheres
comuns. Elas moram em casas como as nossas e trabalham em
PROFISSÕES COMUNS. Por isso é tão difícil pegá-las.
BRUXA DE VERDADE odeia criança, com um ódio fulminante e furioso,
muito mais fulminante e furioso do que vocês poderiam imaginar.
BRUXA DE VERDADE passa o tempo todo tentando descobrir um jeito de se
livrar das crianças que moram no território dela. Seu maior desejo é acabar
com todas, uma por uma. A bruxa fica o dia todo só pensando nisso.
Mesmo enquanto trabalha como caixa do supermercado, ou escreve cartas
para algum homem de negócios, ou sai dirigindo um carrão incrementado (e
bruxa faz todas essas coisas), a cabeça dela está sempre planejando,
tramando, se agitando, se inflamando, zunindo e fervilhando de
pensamentos assassinos e sanguinários.
Ela fica o dia inteiro imaginando: “Qual será a criança que eu vou
escolher para esmagar da próxima vez?”
BRUXA DE VERDADE tem o mesmo gosto em acabar com uma criança que
vocês têm em comer um prato de morangos com creme.
Ela tem de sumir com uma criança por semana, senão acaba ficando
rabugenta e mal-humorada. Uma criança por semana são cinquenta e duas
por ano.
Triturar, trucidar e sumir com elas.
Esse é o lema de todas as bruxas.
A vítima é escolhida com todo o cuidado. Em seguida, a bruxa persegue a
pobre criança como um caçador persegue um passarinho na floresta. Vai
pisando bem de mansinho. Vai caminhando muito quieta. Vai chegando
cada vez mais perto. Aí, quando tudo está preparado… Plaft!… ela dá o
bote. Voam faíscas. Sobem labaredas até o céu. O óleo ferve. Os ratos
guincham. A pele fica toda enrugada. E a criança desaparece.
É preciso entender que bruxa não dá paulada na cabeça, não enfia faca na
barriga e nem dá tiro de revólver em criança. Gente que faz isso a polícia
prende.
Bruxa nunca vai presa. Não esqueçam que ela tem feitiço na ponta dos
dedos e maldade diabólica no sangue. Ela é capaz de fazer pedra pular feito
sapo e línguas de fogo tremularem na superfície da água.
Esses poderes mágicos são assustadores.
Felizmente, hoje em dia já não existem muitas BRUXAS DE VERDADE. Mas
elas ainda são suficientes para deixar todo o mundo preocupado. Ao todo,
na Inglaterra, talvez elas não passem de cem. Alguns países têm mais, e
outros já não têm tantas. Mas não existe país do mundo que não tenha nem
uma BRUXA.
Bruxa é sempre mulher.
Não quero falar mal das mulheres. Quase sempre elas são maravilhosas.
Mas o fato é que todas as bruxas são mulheres. Nunca existiu uma bruxa-
homem.
Por outro lado, vampiro é homem. Lobisomem também é sempre homem.
Os dois são muito perigosos, mas nenhum deles tem a metade do perigo de
uma BRUXA DE VERDADE.
Para criança, BRUXA DE VERDADE é, de longe, a criatura mais perigosa da
face da terra. E é duas vezes mais perigosa porque não parece perigosa.
Mesmo depois de conhecerem todos os segredos (vou falar deles daqui a
pouco), vocês nunca saberão com certeza se estão diante de uma bruxa ou
de uma senhora muito bondosa. Se um tigre conseguisse se transformar
num cachorrão de rabo abanando, provavelmente vocês iriam afagar a
cabeça dele. E isso seria o seu fim. A mesma coisa acontece com as bruxas.
Todas elas parecem senhoras gentis e bondosas.
Algum de vocês pode muito bem ter uma vizinha que é bruxa.
Talvez a mulher de olhos lindos que hoje de manhã estava sentada a seu
lado no ônibus fosse uma bruxa.
Aquela senhora de sorriso encantador que antes do almoço lhe ofereceu
um doce que ela tirou de um saquinho de papel pode ser uma bruxa.
Pode até ser – e isso vai deixá-los de cabelo em pé – pode até ser que sua
adorável professora, que neste exato momento está lendo essas palavras
para vocês, seja uma bruxa. Olhem bem para a professora. Talvez ela esteja
rindo do absurdo desta sugestão. Não se deixem iludir. Talvez isso faça
parte da esperteza dela.
É claro que não estou querendo dizer, nem de longe, que a professora de
vocês é de fato uma bruxa. Só estou insinuando que ela poderia ser. É
muito improvável, mas – e aí vem o grande
“mas” – não é impossível.
Ah, se pelo menos houvesse um jeito infalível de perceber se uma mulher
é ou não é bruxa! Aí então a gente pegaria todas as bruxas e as passaria
pelo moedor de carne. Infelizmente esse jeito não existe. Mas existem
alguns pequenos sinais que vocês podem tentar descobrir, pequenos hábitos
e gestos que todas as bruxas têm em comum. Se vocês os conhecerem, e
não se esquecerem de nenhum, talvez consigam escapar de ser trucidados
antes de se tornarem adultos.
Minha avó
Antes dos oito anos, eu mesmo tive dois encontros com bruxas. Da
primeira vez escapei são e salvo, mas da segunda já não tive a mesma sorte.
Vocês vão ficar apavorados quando eu contar as coisas que me
aconteceram. Mesmo assim, vou contar tudo. Nunca se deve esconder a
verdade. O fato de eu ainda estar aqui e poder falar com vocês (por mais
estranho que seja o meu aspecto) deve-se inteiramente à minha avó
maravilhosa.
Minha avó era norueguesa. Os noruegueses sabem tudo sobre bruxas,
pois as primeiras bruxas vieram da Noruega, com suas florestas escuras e
suas montanhas geladas. Meu pai e minha mãe também eram noruegueses,
mas, como meu pai tinha negócios na Inglaterra, foi lá que nasci, cresci e
comecei a frequentar a escola. Duas vezes por ano, no verão e no Natal, em
pleno inverno, nós íamos para a Noruega visitar minha avó. Se bem me
lembro, ela era nosso único parente vivo, tanto por parte de mãe como de
pai. Ela era mãe da minha mãe, e eu a adorava. Quando nós dois estávamos
juntos, falávamos norueguês ou inglês. Tanto fazia, pois éramos igualmente
fluentes nessas duas línguas. Devo confessar que eu me sentia mais
próximo dela do que de minha mãe.
Assim que completei sete anos, meus pais me levaram, como sempre,
para passar o Natal na Noruega com a minha avó. Nessa ocasião, minha
mãe, meu pai e eu íamos de carro por uma estrada ao norte de Oslo. Fazia
frio e nevava. O carro derrapou, saiu da pista e despencou por um barranco
enorme e cheio de rochas. Meus pais morreram ali mesmo. Como eu estava
no banco de trás, preso pelo cinto de segurança, só sofri um corte na testa.
Não vou contar em detalhe os horrores daquele dia. Ainda fico arrepiado
só de pensar. É claro que me levaram de volta para a casa da minha avó. Ela
me abraçou, e passamos a noite inteira chorando.
– O que vamos fazer agora? – perguntei, através das lágrimas.
– Você vai ficar aqui comigo – disse ela – e vou tomar conta de você.
– Não vou voltar para a Inglaterra?
– Não – disse ela. – Eu nunca moraria em outro lugar. O céu vai levar
minha alma, mas os meus ossos hão de ficar na Noruega.
No dia seguinte, para tentarmos esquecer nossa tristeza imensa, minha
avó começou a me contar histórias. Ela era uma ótima contadora de
histórias, e eu me encantava com tudo o que ela dizia. Mas minha emoção
chegou ao máximo quando ela começou a me falar sobre bruxas. Parecia
grande conhecedora do assunto, e deixou bem claro que suas histórias de
bruxa, ao contrário da maioria das outras, não eram imaginárias. Eram todas
verdadeiras. Eram a verdade absoluta. Eram fatos históricos. Tudo o que ela
estava me contando sobre bruxas tinha acontecido mesmo, e era bom eu
acreditar. E o pior, mas muito pior, era que as bruxas ainda estavam entre
nós. Estavam à nossa volta, e seria bom eu levar isso a sério.
– Você está mesmo falando a verdade, vovó?
Verdade verdadeira?
– Meu querido – disse ela –, você não vai durar muito nesse mundo se
não souber identificar uma bruxa.
– Mas você me disse que as bruxas parecem mulheres comuns, vovó.
Então como é que vou reconhecê-las?
– Ouça-me com atenção – disse minha avó. – Nunca se esqueça do que
vou dizer. Depois, é só fazer o sinal da cruz e rezar aos céus para que o
melhor aconteça.
Estávamos na sala de estar de sua casa em Oslo, e eu já estava pronto
para dormir. Naquela casa as cortinas nunca eram fechadas, e pela janela eu
via os grandes flocos de neve que caíam lentamente no mundo lá fora,
escuro como breu. Minha avó era bem velha e toda enrugada, e seu corpo
grande e pesado estava coberto de renda cinzenta. Estava ali sentada,
majestosa, e ocupando todos os centímetros de sua poltrona. Nem mesmo
um ratinho conseguiria se espremer para sentar-se ali ao lado dela. E eu,
com meus sete anos, estava sentado no chão a seus pés, de pijama, roupão e
chinelos.
Olhei fixamente para minha avó, sentada à minha frente como uma velha
rainha no trono. Seus olhos estavam nublados, e pareciam estar olhando
para alguma coisa muito distante dali. Naquele momento, a única coisa
verdadeira que havia nela era o charuto, e a fumaça formava nuvenzinhas
azuis que flutuavam em volta de sua cabeça.
– Mas a menininha que virou uma galinha não sumiu? – perguntei.
– Não, Birgit não sumiu. Ela viveu por muitos anos, e nunca deixou de
botar seus ovos marrons.
– Você disse que todas as crianças tinham desaparecido.
– Eu me enganei – disse minha avó. – Estou ficando velha, e não me
lembro muito bem das coisas.
– O que aconteceu com a quarta criança? – perguntei.
– O quarto era um garoto chamado Harald – disse minha avó. – Uma bela
manhã toda a pele dele começou a ficar amarelo-acinzentada. Depois ficou
dura e quebradiça, como casca de noz. Quando anoiteceu, o menino tinha se
transformado em pedra.
– Em pedra? – perguntei. – Pedra mesmo, de verdade?
– Granito – disse ela. – Se quiser vê-lo algum dia, posso levá-lo até lá. Os
pais ainda o conservam em casa. É uma estatuazinha que fica no hall de
entrada. As visitas usam Harald para apoiar seus guarda-chuvas.
Apesar de ainda ser muito novinho, eu não conseguia acreditar em tudo o
que minha avó dizia. Mas comecei a ficar na dúvida, pois ela falava com
muita convicção, muito séria, sem sorrir ou piscar.
CONVENÇÃO DA RSPCC
ENTRADA RIGOROSAMENTE PROIBIDA
ESTE LOCAL ESTÁ RESERVADO
PARA A
CONVENÇÃO ANUAL
DA
REAL SOCIEDADE
PARA A PREVENÇÃO DA
CRUELDADE COM CRIANÇAS
Depois que o gerente saiu, não senti mais muito medo. Haveria coisa
melhor do que ficar trancado num salão cheio de mulheres maravilhosas
como aquelas? Podia até falar com elas, para pedir que fossem fazer um
trabalhinho de prevenção contra a crueldade com as crianças na minha
escola, onde sem dúvida teriam muito o que fazer.
Elas foram entrando, falando pelos cotovelos. Estavam muito agitadas
procurando seus lugares, e comecei a ouvir coisas do tipo: “Milita, querida,
venha sentar-se a meu lado”, e “Olááá, Beatriz! Não nos encontramos desde
a última convenção! Mas que lindo o seu vestido!”
Achei melhor ficar ali mesmo e deixar que elas fizessem sua reunião
enquanto eu treinava meus ratinhos. Mas, enquanto elas não se
acomodavam nas poltronas, continuei espiando pela fresta do biombo.
Quantas seriam? Achei que deviam ser umas duzentas. As fileiras de trás
foram sendo ocupadas primeiro. Parecia que todas queriam sentar-se o mais
longe possível do palco.
Bem no meio da última fileira havia uma mulher com um chapeuzinho
verde, que ficava o tempo todo coçando a nuca. Ela não conseguia parar.
Fiquei impressionado pelo jeito como seus dedos coçavam furiosamente o
cabelo de trás do pescoço. Se ela soubesse que estava sendo observada,
tenho certeza de que teria ficado muito sem jeito. Fiquei imaginando que
ela devia estar cheia de caspa. De repente, percebi que a mulher a seu lado
estava fazendo a mesma coisa!
E a outra também!
E outra também!
Todas estavam fazendo a mesma coisa. Todas coçavam feito loucas o
cabelo da nuca!
Será que estavam com pulgas no cabelo?
Era mais provável que estivessem com piolho.
Airton, um colega meu, tinha apanhado piolho no semestre anterior, e a
inspetora tinha feito o menino enfiar a cabeça numa bacia cheia de
terebintina. Os piolhos morreram todos, e quase o Airton morreu também.
Ele ficou sem pele na metade do couro cabeludo.
Comecei a ficar fascinado com aquelas mulheres que não paravam de
coçar o cabelo. É sempre muito engraçado a gente pegar alguém fazendo
uma coisa nojenta, e a pessoa nem perceber que está sendo observada. É
como quando alguém enfia o dedo no nariz, por exemplo, ou coça o
traseiro. Coçar a cabeça também é uma coisa desagradável, principalmente
daquele jeito, sem parar.
Cheguei à conclusão de que elas estavam com piolho.
Foi então que aconteceu uma coisa terrível. Uma das mulheres enfiou os
dedos por baixo do cabelo, e todo o seu couro cabeludo ergueu-se de uma
só vez. A mão dela entrou por baixo dos cabelos e continuou a coçar!
Ela estava de peruca! E também estava de luvas! Olhei para todas as
outras mulheres, que agora já estavam acomodadas em seus lugares. Todas
estavam de luvas!
Meu sangue gelou. Meu corpo inteiro começou a tremer. Desesperado,
olhei para trás em busca de uma porta por onde eu pudesse fugir. Nada, não
havia porta nenhuma.
E se eu saísse de trás daquele biombo e disparasse feito um raio na
direção das portas de entrada?
Mas as portas já estavam fechadas, e havia uma mulher diante delas. Com
o corpo um pouco inclinado, ela estava prendendo uma espécie de corrente
metálica em volta das maçanetas.
Fique bem quieto, eu disse a mim mesmo. Ninguém viu você. Não há
motivo para elas virem até aqui, espiar atrás do biombo. Mas um
movimento em falso, uma tossida, um espirro, um soluço, qualquer
barulhinho que você fizer, não é uma bruxa que vai pegá-lo, são duzentas!
Nesse momento, acho que desmaiei. A situação era muito grave para ser
enfrentada por um garotinho. Mas acho que só perdi os sentidos por alguns
segundos, pois quando voltei a mim ainda estava ali, deitado no tapete, e,
graças a Deus, escondido atrás do biombo. À minha volta reinava um
silêncio absoluto.
Tremendo de medo, fiquei de joelhos e voltei a espiar pela fresta do
biombo.
Frrita como um crroquete
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o tamanho de- la. Era
muito baixinha, não devia ter nem um metro e meio. Ela parecia bem
jovem, imaginei que tivesse uns vinte e cinco ou vinte e seis anos, e era
muito bonita. Seu vestido preto era longo e muito elegante, chegava até ao
chão. Suas luvas pretas chegavam até aos cotovelos. Ao contrário das
outras, ela não estava de chapéu.
Para mim aquela mulher não parecia bruxa, mas era impossível que não
fosse, pois senão o que ela estaria fazendo lá em cima do palco? E por que,
meu Deus, todas as outras bruxas estavam olhando fixamente para ela, com
aquela mistura de adoração, medo e respeito?
Lentamente, a jovem levou as mãos até o rosto. Seus dedos enluvados
desprenderam alguma coisa por trás das orelhas, e aí… aí ela deu um
puxão, e seu rosto inteiro se desprendeu! Todo aquele rosto lindo ficou
inteirinho balançando em suas mãos!
Era uma máscara!
Assim que ela tirou a máscara, virou-se para o lado para colocá-la com
todo o cuidado em cima de uma mesinha. Quando ela virou de frente outra
vez, por um triz não deixei escapar um grito de horror.
Seu rosto de verdade era a coisa mais medonha e horripilante que eu já
tinha visto na vida. Só de olhar eu já estava tremendo dos pés à cabeça. Era
um rosto enrugado e encarquilhado, descarnado e macilento, parecia até
picles conservado em vinagre. Era uma visão terrível e apavorante. Dava a
impressão de cadáver, era um rosto asqueroso, nojento, parecia coisa podre.
Era como se estivesse literalmente se decompondo nas extremidades. Em
volta da boca e das bochechas, a pele era toda ulcerada e carcomida pelos
vermes, e era como se um monte de larvas estivesse se revolvendo por
dentro dela.
Há certas coisas que são tão tenebrosas, que nós ficamos hipnotizados,
não conseguimos desviar o olhar. Era o que estava acontecendo comigo. Eu
estava petrificado e congelado. Estava hipnotizado pelo horror indescritível
da aparência daquela mulher. Mas não era só isso. Seus olhos pareciam de
serpente, faiscando daquele jeito em cima do público.
É claro que percebi imediatamente quem era aquela mulher: era a Grã-
Bruxa em pessoa. Também percebi por que ela usava aquela máscara.
Vocês não devem ter esquecido que, enquanto tudo isso acontecia, eu
ainda estava escondido atrás do biombo, de quatro, com o olho grudado
numa fresta. Não sei havia quanto tempo eu estava ali, mas parecia que
desde sempre. O pior era não poder tossir, nem fazer nenhum barulhinho.
Sabendo disso, meu silêncio era total. Além disso, eu estava o tempo todo
apavorado com a ideia de que alguma das bruxas da última fileira pudesse
farejar minha presença com suas narinas especiais.
Minha única esperança era o fato de que já havia muitos dias eu não
tomava banho. E eu também contava com a ajuda daquela barulheira
infernal, daquela agitação e bateção de palmas que pareciam não ter mais
fim. As bruxas não enxergavam nada, além da Grã-Bruxa lá em cima do
palco, e só pensavam em seu grandioso plano para exterminar todas as
crianças da Inglaterra. Certamente não estariam farejando nenhuma criança
ali no salão. Nem nos seus sonhos mais terríveis (se é que as bruxas têm
sonhos) essa ideia lhes teria passado pela cabeça. Fiquei ali quietinho,
rezando.
A tenebrosa canção de triunfo da Grã-Bruxa tinha terminado, e o público,
enlouquecido, gritava: – Brilhante! Sensacional! Maravilhoso! Que gênio, ó
Grã-Sabedoria! Essa Ação Retardada para Fazer Ratos é uma invenção
magnífica! Vai ser o maior sucesso! E o mais incrível é que essas
criancinhas fedorentas vão ser trucidadas pelos seus próprios professores!
Não teremos de fazer nada! Nunca seremos presas!
– As brruxas nunca vão prresass! – berrou a Grã-Bruxa. – E agorra, muita
atenção! Querro todass muito atentas, pois vou ensinarr-lhess a prreparrar a
Fórrmula 86 de Ação Retarrdada parra Fazerr Ratos!
De repente, uma enorme agitação tomou conta do público. Tudo se
transformou numa grande algazarra de berros e guinchos, e vi que muitas
bruxas pulavam, apontando para o palco e gritando:
– Ratos! Ratos! Ratos! Ela nos fez uma demonstração! A Grã-Sabedoria
transformou duas crianças em ratos, e lá estão elas!
Olhei para o palco. Os ratos estavam ali mesmo, e eram dois, correndo
em círculos em volta da barra do vestido da Grã-Bruxa.
Mas não eram ratos-do-mato, nem ratos caseiros, nem ratos-de-paiol,
nem ratos-das-searas: eram ratinhos brancos! Percebi imediatamente que
eram os meus, William e Mary!
– Ratos! – gritou o público. – Nossa rainha fez dois ratos surgirem do
nada! Tragam ratoeiras!
Mandem buscar queijo!
A Grã-Bruxa se abaixou e, como não podia deixar de ser, ficou olhando
surpresa para William e Mary. Curvou-se ainda mais, para ver mais de
perto. Aí empertigou-se toda e gritou:
– Quietass!
As bruxas calaram a boca e se sentaram.
– Não tenho nada a verr com esses ratos! – disse ela, aos berros. – São
ratoss de estimação! É clarro que perrtencem a alguma crriancinha nojenta
que está hospedada nesste hotel! E deve serr um garroto, pois meninass não
costumam terr ratinhoss de estimação!
Em meio a toda aquela balbúrdia, ouvi uma bruxa, na última fileira, dizer à
que estava sentada a seu lado: – Já estou muito velha para andar subindo em
árvores atrás de ninhos de pássaros. Aquelas crocas cor de fogo sempre
fazem seus ninhos muito no alto.
– Vai ser facílimo! – gritaram todas. – Vamos atravessar com uma lança o
gafanhão-marítimo, armar uma arapuca para o esmaga-caranguejo, mandar
bala no elefante-borbotão e agarrar o gato-saltador.
Lembro-me que pensei: “Agora não tenho como escapar! Mesmo que eu
sair correndo e conseguir me desviar de todas elas, as portas estão trancadas
e acorrentadas, e não vou ter como fugir! Estou frito! É o fim! Oh, vovó, o
que elas vão fazer comigo?”
Olhei para o lado e vi o rosto tenebroso, pintado e empoado de uma
bruxa. Ela me viu, escancarou a boca e berrou, triunfante: – Aqui está ele!
Atrás do biombo! Venham pegá-lo!
A bruxa estendeu a mão enluvada e me agarrou pelos cabelos, mas
consegui me safar e saí correndo feito louco. Como eu corri! O terror me
fez criar asas nos pés! Atravessei o salão de baile numa corrida só, e
nenhuma delas conseguiu me pegar. Quando cheguei à porta, parei e tentei
abri-la, mas a corrente estava tão firme, que nem se mexeu.
As bruxas não se preocuparam em correr atrás de mim. Ficaram paradas,
em pequenos grupos, olhando para mim, pois tinham certeza de que eu não
tinha escapatória. Muitas tapavam o nariz com os dedos enluvados, e eu
ouvia seus gritos: – Que nojo! Que mau cheiro! Não vai dar para aguentar
muito tempo!
– Poiss então tratem de agarrá-lo! – berrou a Grã-Bruxa lá de cima do
palco. – Forrmem uma roda em volta do salão, e vão fechando o círrculo até
agarrá-lo! Encurralem esse fedelhinho assquerroso, agarrem-no e trragam-
no aqui parra mim!
Foi exatamente isso que as bruxas fizeram. Foram todas avançando na
minha direção. Umas vinham de uma extremidade do salão, outras me
cercavam por outro lado, outras ainda se aproximavam depois de atravessar
as fileiras de poltronas vazias. Estavam quase me pegando. Eu já estava
encurralado.
Fui tomado pelo mais puro e absoluto terror, e comecei a berrar. –
Socorro – eu gritava sem parar, virando a cabeça para a porta na esperança
de que alguém me ouvisse. – Socorro! Socorro!
S-o-c-o-r-r-o!
– Peguem esse moleque! – gritou a Grã-Bruxa. – Agarrem-no! Ele que
parre de grritarr!
Então elas avançaram para cima de mim, e umas cinco me agarraram
pelos braços e pelas pernas e me levantaram bem alto. Continuei a gritar,
mas uma delas tapou minha boca com a mão enluvada, e tive de ficar
quieto.
– Trragam-no até aqui! – gritou a Grã-Bruxa. – Trragam esse
verrmezinho esspião parra perrtinho de mim!
Fui levado para o palco com os braços e pernas imobilizados por muitas
mãos, e ali fiquei suspenso no ar, olhando para o teto. Vi a Grã-Bruxa
aproximar seu rosto de mim, arreganhando os dentes num sorriso tenebroso.
Levantou bem alto a garrafinha da Fórmula para Fazer Ratos, e então disse:
– Agorra, um pouquinho de remédio! Aperrtem sseu nariz, parra ele abrrir
bem a boca!
Dedos muito fortes apertaram com força meu nariz. Continuei com a
boca fechada e prendi a respiração, mas era impossível aguentar por muito
tempo. Parecia que meu peito ia explodir. Abri a boca para respirar
rapidamente um pouco de ar, e foi então que a Grã-Bruxa despejou todo o
conteúdo da garrafinha pela minha goela abaixo!
Ah, a dor e o fogo! Era como se uma chaleira de água fervente tivesse
sido despejada na minha boca. Minha garganta estava pegando fogo! Num
piscar de olhos, aquela sensação de brasa incandescente começou a se
espalhar pelo meu peito e pela minha barriga, logo desceu para os braços e
as pernas, e de repente tomou conta do meu corpo inteiro! Comecei a gritar
de novo, mas logo meus lábios foram tapados por uma mão enluvada. Logo
depois, comecei a sentir que minha pele estava encolhendo. Como poderei
descrever o que estava acontecendo? Era, literalmente, uma contração e um
encolhimento da pele do corpo inteiro, da ponta da cabeça até as pontas dos
dedos das mãos e dos pés! Era como se eu fosse um balão de borracha, e
alguém estivesse retorcendo a boca do balão, e ele estivesse diminuindo e
se apertando, contraindo e comprimindo. O balão ia acabar estourando!
Foi então que começou o esmagamento. Agora eu tinha a sensação de
estar dentro de um terno de ferro e que alguém estivesse apertando um
parafuso. A cada volta do parafuso o terno de ferro ia ficando menor, e eu ia
sendo espremido como uma laranja, com o suco escorrendo por todos os
lados.
Depois, veio uma sensação horrível de picadas por toda a minha pele (ou
o que restava dela), como se, a partir de dentro do meu corpo, agulhas
minúsculas estivessem abrindo caminho para chegar à superfície. Hoje sei
que aquilo eram os pelos de rato crescendo.
Lá longe, ouvi a voz da Grã-Bruxa gritando: – Cinco mil dosess! Esse
pesstinha nojento tomou cinco mil dosess, e o desperrtadorr despedaçou-se,
e o que estamos vendo agora chama-se ação instantânea!
Ouvi aplausos e gritos de alegria, e lembro-me de ter pensado: “Eu não
sou mais eu! Fui arrancado de minha própria pele!”
Percebi que o assoalho estava a poucos centímetros do meu nariz.
Percebi também um par de patinhas pequenas e peludas pousadas no
chão. E eu era capaz de mover aquelas patinhas. Elas eram minhas!
Naquele momento, percebi que eu já não era um garotinho. Eu era um
RATO.
– Agorra vamos à ratoeirra! – ouvi a Grã-Bruxa gritar. – Tenho uma aqui
comigo, e também um pedaço de queijo!
Mas aquilo eu não ia ficar esperando. Disparei como um raio pelo palco.
Minha velocidade era inacreditável! Fui driblando pés e mais pés de bruxas
à esquerda e à direita e, num piscar de olhos desci as escadas, pulei para o
assoalho do salão de baile e corri entre as fileiras de poltronas quase sem
tocá-las com as patas. O que mais me agradava era que eu corria sem fazer
barulho nenhum. Eu tinha me transformado num corredor rápido e
silencioso. E, para meu grande espanto, a dor tinha desaparecido
totalmente, e eu me sentia extraordinariamente bem. “Afinal”, pensei
comigo mesmo, “não é nada mau ser minúsculo e tão veloz quando um
bando de mulheres perigosas está querendo arrancar a pele da gente.”
Escolhi uma das pernas de trás de uma poltrona, enfiei-me ali e fiquei bem
quietinho.
Bem lá longe, a Grã-Bruxa gritava: – Esqueçam essa coisinha
dessprrezível! Não vale a pena sse prreocuparr com esse trraste! Agorra não
passa de um rato! Logo maiss alguém vai darr um jeito nele! Vamos sairr
daqui! A reunião está encerrada! Destrravem as porrtas e vamos parra o
terraço solarr, tomarr chá com aquele gerrente idiota!
Bruno
Bruno olhou para suas patas e deu um pulo. – Minha nossa – gritou ele.
– Eu sou um rato! Espere só até meu pai ficar sabendo disso!
– Talvez ele ache que você melhorou – disse eu.
– Não quero ser rato! – berrava Bruno, pulando feito louco. – Recuso-me
a ser rato! Sou Bruno Jenkins!
– Existem coisas piores do que ser rato – disse eu. – A gente pode viver
num buraco.
– Não quero viver num buraco! – gritou Bruno.
– E a gente pode subir até a despensa toda noite – disse eu – para se
regalar com pacotes de uva-passa, cornflakes, biscoitos de chocolate e tudo
o que houver. Rato pode passar a noite inteira comendo, até se empanturrar.
– Até que é uma boa ideia – disse Bruno, animando-se um pouco. – Mas
como é que vou abrir a porta da geladeira para pegar o frango e as sobras do
jantar? Eu fazia isso todas as noites na minha casa.
– Quem sabe o seu rico paizinho não compra uma geladeirinha de rato só
para você? – respondi. – Uma geladeira que você consiga abrir.
– Você disse que foi uma bruxa que me fez isso? perguntou Bruno. – E
que bruxa foi essa?
– Aquela que ontem lhe deu uma barra de chocolate no saguão do hotel –
expliquei-lhe. – Não está lembrado?
– Que vaca imunda! – berrou ele. – Ela vai ver uma coisa! Onde é que ela
está? Quem é ela?
– Esqueça – respondi. – Perca as esperanças. No momento, o seu maior
problema são os seus pais. Como é que eles vão encarar tudo isso? Será que
vão tratá-lo com bondade e amor?
Bruno ficou pensativo por um instante. – Tenho a impressão de que meu
pai vai ficar um pouco chocado – ele disse.
– E sua mãe?
– Ela tem pavor de ratos – disse Bruno.
– Então você está diante de um bom problema, não acha?
– Por que só eu? – disse ele. – Você também não está?
– Minha avó vai entender tudo perfeitamente – disse eu. – Ela sabe tudo
sobre bruxas.
Bruno deu mais uma mordida no sanduíche. – O que você sugere? –
perguntou.
– Antes de mais nada, acho melhor nós dois irmos consultar minha avó –
respondi. – Ela vai saber exatamente o que fazer.
Andei na direção das portas, que estavam abertas. Bruno foi atrás de
mim, ainda segurando um pedaço de sanduíche com uma das patas.
– Assim que chegarmos ao corredor – eu disse –, vamos sair correndo
feito loucos. Fique sempre perto da parede, e vá me seguindo. Não diga
nada e não deixe que ninguém o veja. Não esqueça: qualquer pessoa que
bater os olhos em você vai tentar matá-lo.
Arranquei o pedaço de sanduíche da pata dele e o joguei longe. – É
agora! – disse eu. – Venha atrás de mim.
Olá, vovó
– Onde foi que tudo aconteceu? – murmurou ela. – Onde está a bruxa
agora? Aqui no hotel?
– Vovó! – respondi. – Não foi uma bruxa. Foram centenas! Elas estão por
todos os lados! Neste momento, estão todas aqui no hotel!
Ela inclinou o corpo para a frente e me olhou fixamente. – Você não está
querendo dizer… você não está… você não está querendo me dizer que elas
estão fazendo a Reunião Anual aqui neste hotel?
– Já fizeram, vovó! A reunião já acabou! Eu ouvi tudo! E todas elas,
inclusive a Grã-Bruxa em pessoa, estão lá embaixo! Estão fingindo que
pertencem à Real Sociedade para a Prevenção da Crueldade com Crianças!
Estão todas tomando chá com o gerente!
– E você foi pego por elas?
– Elas sentiram meu cheiro – respondi.
– Cocô de cachorro, não foi? – disse ela, suspirando.
– Creio que sim. Mas não estava muito forte. Elas quase não conseguiram
farejar, pois fazia séculos que eu não tomava banho.
– Criança nunca deveria tomar banho – disse minha avó. – É um hábito
muito perigoso.
– Concordo plenamente, vovó.
Ela fez uma pausa, e deu mais uma tragada no charuto.
– É verdade mesmo que neste momento elas estão todas lá embaixo,
tomando chá?
– Não tenho a menor dúvida, vovó.
Houve outra pausa. Vi então aquele velho lampejo de excitação voltando
lentamente a tomar conta dos olhos de minha avó. De repente ela se
empertigou na poltrona e disse vivamente: – Conte-me tudo, desde o início.
E depressa, por favor.
Respirei fundo e comecei a falar. Contei-lhe como, no salão de baile, fui
esconder-me atrás do biombo para treinar meus ratinhos. Contei sobre o
cartaz anunciando a convenção da Real Sociedade para a Prevenção da
Crueldade com Crianças. Contei tudo sobre as mulheres que foram entrando
e tomando seus lugares, e sobre a mulherzinha que apareceu no palco e
tirou a máscara. Mas, quando tentei descrever o rosto que surgiu por baixo
da máscara, simplesmente não conseguia encontrar as palavras adequadas. –
Era horrível, vovó! – disse eu. – Oh, como era horrível! Era… era como
uma coisa que já começou a apodrecer!
– Continue – disse minha avó. – Vá em frente.
Então contei-lhe sobre como todas as bruxas tiraram as perucas, as luvas
e os sapatos, e falei do oceano de cabeças carecas e perebentas que vi à
minha frente. Descrevi os dedos das mulheres, suas pequenas garras, e seus
pés sem dedos.
Minha avó vinha cada vez mais para a frente, de modo que agora estava
sentada quase na ponta da poltrona. Suas duas mãos seguravam firmemente
o cabo dourado da bengala, em que ela sempre se apoiava ao caminhar.
Seus olhos não desgrudavam de mim um só instante, brilhando como duas
estrelas.
Então contei-lhe das faíscas incandescentes lançadas pelos olhos da Grã-
Bruxa, e de como elas tinham transformado uma outra bruxa numa nuvem
de fumaça.
Mais uma vez, minha avó voltou correndo comigo para o meu quarto, e
de lá passamos para a sacada. – Está pronto? – perguntou ela. – Agora vou
colocá-lo dentro da meia.
– Espero que eu consiga dar conta de tudo – respondi. – Afinal, sou
apenas um ratinho.
– Vai conseguir, sim – disse ela. – Boa sorte, querido.
Ela me enfiou dentro da meia e começou a me descer pela sacada.
Agachei-me e prendi a respiração. Através dos pontos do tricô eu enxergava
tudo. Ao longe, as crianças que brincavam na praia pareciam formigas. O
vento começou a fazer a meia balançar. Olhei para cima e vi a cabeça de
minha avó aparecendo por cima do parapeito da sacada.
– Está quase chegando! – gritou ela. – Vamos lá! Com jeito! Pronto,
chegou!
Senti um ligeiro baque.
– Corra para dentro! – gritava minha avó. – Depressa, depressão,
depressa! Procure pelo quarto!
Pulei para fora da meia e corri para o quarto da Grã-Bruxa. Estava
impregnado do mesmo cheiro de bolor que eu tinha sentido no Salão de
Baile. Era o fedor das bruxas, que lembrava o cheiro do banheiro público
masculino da estação da nossa cidade.
Pelo que eu via, estava tudo bem arrumado.
Tudo levava a crer que o hóspede daquele quarto era uma pessoa comum. E
nem poderia ser diferente. Nenhuma bruxa seria estúpida a ponto de deixar
espalhadas coisas que pudessem despertar a suspeita da camareira.
De repente, uma rã passou pulando pelo tapete e foi se enfiar embaixo da
cama. Também dei um pulo.
– Depressa! – gritava lá de cima a voz da minha avó. – Pegue aquela
coisa e dê o fora!
Comecei a perambular pelo quarto para ver se encontrava o que queria.
Não foi nada fácil. Eu não conseguia, por exemplo, abrir as gavetas, e muito
menos as portas do guarda-roupa. Parei de andar pelo quarto, sentei-me um
pouco no meio do assoalho e comecei a refletir. Onde a Grã-Bruxa
esconderia uma coisa tão secreta? Com certeza, não seria numa gaveta
qualquer; nem no guarda-roupa. Isso era óbvio demais. Pulei para cima da
cama, para ter uma visão melhor do quarto. “Ei”, pensei, “que tal dar uma
espiada embaixo do colchão?”
Assim que chegamos ao quarto, minha avó nos tirou da bolsa e nos
colocou em cima da mesa.
– Por que você não disse alguma coisa para o seu pai o reconhecer? –
perguntou ela a Bruno.
– Porque eu estava com a boca cheia – respondeu Bruno, pulando de
novo para dentro da cesta de bananas e pondo-se a comer.
– Que garotinho mais desagradável – disse-lhe minha avó.
– Garotinho não, vovó – disse eu. – Ratinho.
– Tem razão, querido. Mas agora não temos tempo para nos preocupar
com ele. Temos que fazer planos. Dentro de mais ou menos uma hora e
meia, todas as bruxas estarão descendo para a sala de jantar, certo?
– Certo – disse eu.
– E cada uma vai ter de engolir uma dose da Fórmula Fazedora de Ratos
– disse ela. – Como é que vamos conseguir isso?
– Vovó – respondi. – Acho que você está esquecendo que rato consegue
entrar em lugares onde as pessoas jamais conseguiriam entrar.
– Eu sei disso – falou ela. – Mas nem um rato é capaz de arrastar-se por
uma mesa carregando uma garrafa de Fórmula Fazedora de Ratos por cima
do rosbife das bruxas, e além de tudo sem ser descoberto.
– Não estou pensando em fazer nada na sala de jantar – disse eu.
– Onde, então? – perguntou ela.
– Na cozinha – respondi –, enquanto a comida delas estiver sendo
preparada.
Minha avó cravou os olhos em mim. – Meu neto querido – disse ela bem
devagar –, estou plenamente convencida de que transformado em rato você
duplicou a sua capacidade mental!
– Um ratinho – disse eu – pode vasculhar toda a cozinha, entre panelas e
caçarolas, e, se tiver cuidado, não vai ser visto por ninguém.
– Brilhante! – gritou minha avó. – Deus do céu, acho que você matou a
charada!
– O único problema – disse eu – vai ser descobrir qual é a comida delas.
Não quero colocar a fórmula na panela errada. Seria um desastre eu
transformar todos os outros hóspedes em ratos, principalmente você, vovó.
– Pois então é só você dar um jeito de entrar na cozinha, encontrar um
bom lugar para se esconder, esperar… e ouvir. Fique ali, em algum cantinho
escuro, ouvindo tudo o que dizem os cozinheiros… depois, com um pouco
de sorte, alguém vai lhe dar uma dica. Sempre que eles têm de preparar
algum grande jantar, a comida é feita separadamente.
– Tudo bem – disse eu. – É isso mesmo que vou fazer. Vou ficar
esperando por ali, escutando tudo e torcendo para ter um pouco de sorte.
– Vai ser muito perigoso – disse minha avó. – Ninguém gosta de rato na
cozinha. Se você for descoberto, vão acabar com você.
– Não vou deixar – respondi.
– Não se esqueça de que vai estar carregando a garrafa – disse ela –, e
portanto não vai poder ser tão rápido.
– Se eu correr em pé, levando a garrafinha contra o meu peito, minha
velocidade pode ser enorme – disse eu. – Acabei de fazer isso, lembra?
Corri do quarto da Grã-Bruxa até aqui carregando essa garrafa.
– E para tirar a rolha? – perguntou ela. – Pode ser meio difícil.
– Deixe-me tentar – respondi. Peguei a garrafinha e, com as duas patas
dianteiras, descobri que era muito fácil tirar a rolha.
Mais uma vez, dei um salto e enrolei o rabo na alça do cesto de lixo.
Eu tinha conseguido! Mesmo que eu nunca mais voltasse vivo para perto da
minha avó, aquelas bruxas iam engolir aquilo e se transformar em ratos! Deixei
a garrafinha vazia atrás de uma panela e comecei a pensar em como faria para
descer da prateleira. Era muito mais fácil movimentar-me sem a garrafa.
Sempre utilizando meu rabo, fui atravessando toda a prateleira, passando do
cabo de uma panela para o cabo de outra, enquanto lá embaixo continuava o
alvoroço dos cozinheiros e garçons.
Chaleiras fumegavam, panelas crepitavam, caçarolas ferviam, e eu pensava
com meus botões: “Isso sim que é vida! Que coisa incrível ser um rato e fazer
um trabalho excitante como esse!” Continuei balançando. Fui passando de um
cabo de panela a outro, e estava me divertindo tanto que me esqueci de que
estava totalmente visível para qualquer um que resolvesse olhar para cima. O
que aconteceu em seguida foi tão rápido que não tive tempo de me safar. Um
homem começou a gritar: – Um rato! Olhem aquele ratinho imundo, ali! – e eu
vi de relance, logo abaixo de mim, uma figura vestida de branco, com um
chapéu branco enorme. Percebi o brilho do aço quando a faca passou zunindo
pelo ar, e senti uma pontada de dor bem no fim do meu rabo. E eu fui caindo de
ponta-cabeça, em direção ao chão.
Já enquanto estava caindo, sabia o que tinha acontecido. Sabia que a ponta do
meu rabo tinha sido cortada, que eu ia me esborrachar no chão e que todo o
mundo na cozinha ia avançar em cima de mim. – Um rato! – todos gritavam. –
Um rato! Um rato! Não deixem escapar!
Mal cheguei ao chão, disparei feito um raio para salvar minha pele. Eu só via
enormes sapatos pretos tentando pisar em mim. Eu escapava de um lado,
escapava de outro, corria, corria, desviava para cá, virava para lá,
ziguezagueando pelo chão da cozinha. – Pega! Mata! Pisa! – eles gritavam. Era
como se todo o chão estivesse fervilhando de sapatos pretos tentando me
esmagar, e eu corria, me desviava, escapava, serpenteava, até que, por
desespero, sem saber o que estava fazendo e só querendo um lugar para me
esconder, subi pela barra da calça de um dos cozinheiros e me grudei na meia
dele!
– Ei – gritou o cozinheiro. – Minha nossa! Ele entrou pela minha calça!
Espere um pouco, desta vez você não escapa!
O homem começou a dar tapas na perna da calça, e, se eu não fosse muito
rápido, ia ser esmagado mesmo. Só havia um caminho a seguir, e era para cima.
Cravei minhas patinhas na perna peluda do cozinheiro e fui subindo. Passei pela
barriga da perna, subi pelo joelho e, quando vi, estava na coxa dele.
– Droga! – gritava o homem. – Ele não pára de subir! Já correu por toda
minha perna!
Ouvi os outros cozinheiros morrendo de rir, mas juro que eu não estava
achando nada engraçado. Estava correndo para salvar minha vida. As mãos do
homem batiam por toda parte, e ele saltava como se estivesse pisando em brasa,
e eu continuava subindo e me desviando. Logo cheguei à parte mais alta da
perna da calça. Era o fim da linha. Não havia mais para onde ir.
– Socorro! Socorro! – gritava o homem. – Ele entrou nas minhas cuecas! Está
correndo por dentro das minhas cuecas! Tirem esse rato de mim! Por favor, me
ajudem a tirar esse bicho daqui!
– Por que não tira as calças, seu palerma? – gritou alguém. – Desça as calças
e vamos dar um jeito de agarrá-lo!
Agora eu estava no meio das calças do homem, bem no lugar onde as duas
pernas se encontram! Lá dentro estava escuro, e fazia um calor horrível. Eu
sabia que não podia parar. Fui em frente e fui parar na outra perna da calça.
Desci por ela feito um raio, cheguei até a barra e saltei para o chão. Ouvi o
idiota do cozinheiro ainda gritando: – Ele está nas minhas calças! Peguem esse
bicho! Por favor, me ajudem a tirá-lo daqui antes que ele me morda!
Dei uma olhada e vi todos os empregados da cozinha em volta dele,
morrendo de rir. Por isso mesmo, ninguém percebeu quando o ratinho marrom
passou feito uma bala e entrou num saco de batatas.
Escondi-me ali, no meio de um monte de batatas sujas, e prendi a respiração.
– Deixe-me dar uma olhada – disse ela. Abaixou a cabeça e examinou o meu
rabo. – Coitadinho! – sussurrou ela. – Vou fazer uma atadura com meu lenço.
Pelo menos vai parar de sangrar.
Ela tirou um lenço rendado da bolsa e deu um jeito de enrolar o meu rabo
nele. – Agora está tudo bem – disse ela. – Tente não pensar nisso. Você
conseguiu mesmo jogar todo o líquido da garrafinha na sopa delas?
– Até a última gota – respondi. – Será que dá para você me colocar num lugar
onde eu possa vê-las?
– Claro que dá – respondeu ela. – Minha bolsa está na cadeira vazia a meu
lado, que é a sua. Vou colocar você lá. Mas tome cuidado para não ser visto. O
Bruno também está lá, mas não se preocupe com ele. Dei-lhe um biscoito, e
isso vai mantê-lo ocupado por um bom tempo.
A mão dela se fechou em volta de mim, e fui levado do seu colo para a bolsa.
– Olá, Bruno – disse eu.
– Que delícia de biscoito – disse ele, no fundo da bolsa, mastigando sem
parar. – Mas é uma pena que não tenham passado manteiga nele.
Espiei por cima da borda da bolsa. Dali eu tinha uma visão perfeita das
bruxas, que ocupavam as duas mesas compridas bem no centro da sala. Elas
tinham terminado a sopa, e os garçons estavam tirando os pratos. Minha avó
tinha acendido um dos seus abomináveis charutos pretos, e estava soltando
fumaça por todo lado. Ao nosso redor, os hóspedes do hotel estavam
tagarelando e devorando seu jantar. Cerca da metade eram pessoas velhas e de
bengalas, mas também havia muitas famílias formadas por marido, mulher e
vários filhos. Eram todos gente muito abastada. Era preciso ter muito dinheiro
para se hospedar no Majestic Hotel.
– Aquela lá é ela, vovó! – sussurrei. – É a Grã-Bruxa!
– Eu sei! – respondeu minha avó, baixinho. – É aquela mulherzinha vestida
de preto e sentada à cabeceira da mesa mais próxima!
– Ela tem o poder de nos matar! – sussurrei. – Tem o poder de matar todas as
pessoas desta sala com suas faíscas incandescentes!
– Cuidado! – cochichou minha avó. – O garçom vem vindo!
Fui para o fundo da bolsa, e de lá ouvi William dizendo: – Seu carneiro
assado, madame. E o que prefere para acompanhar, ervilha ou cenoura?
– Cenoura, por favor – disse minha avó. – Mas sem batatas.
Ouvi quando as cenouras foram colocadas no prato. Depois de uma pausa,
ouvi minha avó sussurrar: – Está tudo bem, ele já se foi – e então coloquei a
cabeça para fora outra vez. – Será que alguém vai perceber essa minha
cabecinha saindo de sua bolsa, vovó?
– Não – respondeu ela. – Acho que não. O meu problema é ter de conversar
com você sem mexer os lábios.
– Você está se saindo muito bem – respondi.
– Já contei as bruxas – disse ela. – São menos do que você pensou. Quando
você me disse que eram duzentas, estava chutando, não estava?
– É que pareciam duzentas – disse eu.
– Eu também me enganei – disse minha avó. – Achei que o número de bruxas
inglesas fosse bem maior.
– Quantas são? – perguntei.
– Oitenta e quatro – disse ela.
– Eram oitenta e cinco – disse eu. – Mas uma delas foi torrada.
Nesse momento, percebi que o sr. Jenkins, pai de Bruno, vinha na direção da
nossa mesa. – Cuidado, vovó! – sussurrei. – Aí vem o pai do Bruno!
O sr. Jenkins e seu filho
O sr. Jenkins se aproximou da nossa mesa com passos duros e com uma
cara de poucos amigos.
– Onde é que está aquele seu neto? – perguntou ele à minha avó, com
grosseria. Ele parecia muito nervoso.
Minha avó fez a cara mais gelada do mundo, e não disse nada.
– Imagino que ele e meu filho Bruno estejam aprontando alguma –
continuou o sr. Jenkins. – Bruno não apareceu para o jantar, e só uma coisa
muito séria pode levar esse menino a se esquecer de comer.
– Devo admitir que ele tem um apetite muito saudável – disse minha avó.
– Tenho a impressão de que a senhora também está metida nisso – disse
o sr. Jenkins. – Não sei quem é, e não tenho a menor vontade de saber, mas
hoje à tarde a senhora fez umas brincadeiras de muito mau gosto comigo e
com minha esposa. Colocou um ratinho imundo em cima da mesa. Tudo
isso me leva a pensar que vocês três estão aprontando alguma coisa.
Portanto, se estiver sabendo onde o Bruno se meteu, tenha a gentileza de me
dizer imediatamente.
– Eu não fiz nenhuma brincadeira de mau gosto – respondeu minha avó.
– Aquele rato que eu lhes mostrei era o seu filhinho Bruno. Eu estava sendo
gentil. Estava tentando devolvê-lo ao seio de sua família, e vocês se
recusaram a recebê-lo.
– Que idiotices são essas que está insinuando, madame? – gritou o sr.
Jenkins. – Meu filho não é um rato! – e o bigode preto do homem subia e
descia enquanto ele falava. – Vamos lá, minha senhora, onde é que ele está?
Vamos acabar com isso!
A família da mesa ao lado parou de comer, e todos olhavam para o sr.
Jenkins. Minha avó continuava sentada, fumando calmamente seu charuto
preto. – Entendo perfeitamente a sua fúria, sr. Jenkins – disse ela. –
Qualquer outro pai inglês ficaria tão perturbado quanto o senhor. Mas na
Noruega, que é o lugar de onde venho, estamos muito acostumados com
coisas desse tipo. Aprendemos a aceitá-las como parte do dia a dia.
– A senhora deve ser louca mesmo! – gritou o sr. Jenkins. – Onde está o
Bruno? Ou a senhora me conta tudo agora, ou vou imediatamente chamar a
polícia!
– Bruno é um rato – disse minha avó, com a mesma calma de sempre.
– Com toda certeza ele não é um rato – berrou o sr. Jenkins.
– É claro que sou! – disse Bruno, colocando a cabeça para fora da bolsa.
O sr. Jenkins deu um salto de quase um metro de altura.
– Olá, papai! – disse Bruno, com um sorrisinho estúpido de rato, que lhe
arreganhava todos os dentes.
A boca do sr. Jenkins se escancarou de tal forma que dava para ver todas
as obturações dos seus dentes de trás.
–Não se preocupe, papai – continuou Bruno. – Não é nada tão terrível
assim. É só evitar que eu seja agarrado por algum gato.
– B-B-Bruno! – balbuciava e gaguejava o sr. Jenkins.
– Adeus, escola! – gritava Bruno, com aquele mesmo sorrisinho idiota de
rato. – Adeus, tarefas de casa! Vou passar a vida inteira no armário da
cozinha, me empanturrando de mel e uva-passa!
– M-m-mas B-B-Bruno! – disse o sr. Jenkins, gaguejando de novo. –
Como foi que tudo isso aconteceu? – e o coitado estava totalmente
desconcertado.
– Bruxas – disse minha avó. – Foram as bruxas que o transformaram em
rato.
– Não posso ter um rato como filho! – disse quase chorando o sr. Jenkins.
– Mas agora tem – disse minha avó. – Seja muito bonzinho com ele, sr.
Jenkins.
– A mãe dele vai ficar louca! – gritou o sr. Jenkins. – Ela tem pavor de
ratos!
– Pois vai ter de se acostumar com eles – respondeu minha avó. – Só
espero que não tenham gato em casa.
– Mas nós temos! Temos mesmo! – gritava o sr. Jenkins. – Topsy é a
criatura que minha esposa mais ama neste mundo!
– Então vocês vão ter de se livrar de Topsy – disse minha avó. – Seu filho
é mais importante do que um gato.
– Sem dúvida nenhuma! – gritou Bruno lá de dentro da bolsa. – Diga para
a mamãe dar sumiço no Topsy antes de eu voltar para casa.
A esta altura, metade da sala de jantar estava olhando para o nosso
grupinho. Facas, garfos e colheres tinham sido pousados sobre as mesas, e
por toda parte muitas cabeças se voltavam para o sr. Jenkins, que não
parava de gritar e de falar confusamente. Como eu e Bruno não estávamos à
vista, todos tentavam descobrir que confusão era aquela.
– Aliás – disse minha avó –, o senhor não gostaria de saber quem foi que
o transformou em rato? – e um sorrisinho malicioso estampou-se no rosto
dela. Percebi que minha avó estava prestes a meter o sr. Jenkins numa
encrenca.
– Quem? – gritou ele. – Quem foi que fez isso?
– Aquela mulher sentada logo ali – disse minha avó. – Aquela
mulherzinha de vestido preto, sentada à cabeceira daquela mesa comprida.
– Ela é da RSPCC! – gritou o sr. Jenkins. – É a presidenta!
– Não é, não – disse minha avó. – Ela é a Grã-Bruxa do Mundo Inteiro.
– A senhora quer dizer que ela fez tudo isso? Aquela mulherzinha
magricela sentada ali? – berrou o sr. Jenkins, com um dedo imenso
estendido na direção dela. – Vou pôr todos os meus advogados em cima
dela! Ela vai pagar caro por tudo isso!
– No seu lugar, eu não me precipitaria – disse-lhe minha avó. – Aquela
mulher tem poderes mágicos, e poderia transformar o senhor em alguma
coisa ainda mais insignificante do que um rato. Talvez numa barata.
– Eu ser transformado em barata? – gritou o sr. Jenkins, estufando o
peito. – Pois ela que experimente! – e ele girou nos calcanhares e saiu
pisando duro, na direção da mesa da Grã-Bruxa. Minha avó e eu ficamos
observando. Bruno também tinha pulado para a nossa mesa, e estava de
olho no pai. A sala de jantar em peso estava com os olhos voltados para o
sr. Jenkins. Fiquei ali onde estava, espiando através da bolsa da minha avó.
Achei que seria melhor não me expor.
O triunfo
– É a Fórmula para Fazer Ratos! – gritei. – Olhe só! Algumas delas estão
ficando com a cara peluda! Por que será que está fazendo efeito tão depressa,
vovó?
– Vou dizer por quê – disse minha avó. – É porque, assim como aconteceu
com você, todas elas tomaram doses enormes. E, com isso, o despertador
enlouqueceu!
Agora todo o mundo estava em pé, para ver melhor o que estava
acontecendo. Muita gente ia se aproximando e se aglomerando em volta das
duas mesas. Minha avó ergueu Bruno e eu, para não perdermos nada do
espetáculo. Estava tão agitada, que subiu na cadeira para enxergar melhor,
por cima das cabeças da multidão.
Em poucos segundos, todas as bruxas tinham desaparecido completamente,
e as duas longas mesas compridas estavam fervilhando de ratinhos marrons.
– Bem, um rato comum só vive mais ou menos três anos – disse ela. –
Mas você não é um rato comum. Você é um rato-pessoa, e isso faz muita
diferença.
– Quanta diferença? – perguntei. – Quanto tempo vive um rato-pessoa,
vovó?
– Vive mais tempo – disse ela. – Muito mais tempo.
– Quanto tempo mais? – perguntei.
– Um rato-pessoa sem dúvida viverá três vezes mais que um rato comum
– disse minha avó. – Mais ou menos nove anos.
– Que ótimo! – gritei. – Que maravilha! É a melhor notícia que já recebi
até hoje!
– Por que você diz isso? – perguntou minha avó, surpresa.
– Porque eu nunca ia querer viver mais do que você – respondi. – Seria
insuportável viver com qualquer outra pessoa cuidando de mim.
Houve um breve silêncio. Ela tinha um jeito especial de me acariciar por
trás das orelhas com o dedo. Era delicioso.
– Quantos anos você tem, vovó? – perguntei.
– Oitenta e seis – disse ela.
– E você vai viver por mais oito ou nove anos?
– Talvez – disse ela. – Com um pouco de sorte.
– Mas você tem que viver – disse eu. – Daqui a oito ou nove anos serei
um rato velho, e você será uma vovó muito velha, e então nós dois
morreremos juntos.
– Seria perfeito – disse ela.
Depois disso, cochilei mais um pouco. Fechei os olhos, não pensei em
mais nada e me senti em paz com o mundo.
– Gostaria que eu lhe contasse algumas coisas muito interessantes sobre
você mesmo? – perguntou minha avó.
– Adoraria, vovó, por favor – respondi, sem abrir os olhos.
– No começo nem acreditei, mas parece que é a mais pura verdade –
disse ela.
– O que foi? – perguntei.
– Coração de rato – disse ela –, ou seja, o seu coração bate a um ritmo de
quinhentas vezes por minuto! Não é extraordinário?
– Não é possível – disse eu, arregalando os olhos.
– É tão verdadeiro quanto o fato de eu estar sentada aqui neste momento
– disse ela. – É uma espécie de milagre.
– São quase nove batidas por segundo! – exclamei, fazendo as contas de
cabeça.
– Certo – disse ela. – Seu coração bate tão depressa, que é impossível
ouvir as batidas separadas. Só se ouve um som suave e sussurrante.
Minha avó estava com um vestido de renda, e a renda ficava fazendo
cócegas no meu focinho.
Tive que abaixar a cabeça e colocá-la sobre minhas patas dianteiras.
– Alguma vez você já ouviu o meu coração sussurrando, vovó? –
perguntei-lhe.
– Muitas vezes – disse ela. – Principalmente quando, à noite, você está
dormindo bem pertinho do meu travesseiro.
Depois disso, ficamos muito tempo em silêncio, diante da lareira.
Estávamos pensando em todas essas coisas maravilhosas.
– Querido – disse ela, finalmente –, tem certeza de que não se importa de
passar o resto da sua vida como rato?
– Nem um pouco – respondi. – Quando temos alguém que nos ama, não
importa quem somos ou qual nossa aparência.
Ao trabalho