As Bruxas - Roald Dahl

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Índice

Uma observação sobre as bruxas


Minha avó
Como reconhecer uma bruxa
A Grã-Bruxa
Férias de verão
A convenção
Frrita como um crroquete
Fórmula 86 de Ação Retardada para Fazer Ratos
A receita
O sumiço de Bruno Jenkins
As mais velhas
A metamorfose
Bruno
Olá, vovó
O rato-ladrão
O sr. e a sra. Jenkins encontram Bruno
O plano
Na cozinha
O sr. Jenkins e seu filho
O triunfo
Coração de rato
Ao trabalho
Uma observação sobre as bruxas

Nos contos de fadas, as bruxas sempre usam umas capas e uns chapéus
pretos ridículos, e voam em cabos de vassouras.
Mas esta história não é um conto de fadas. Esta é uma história de BRUXAS
DE VERDADE.
Há uma coisa muito importante que vocês precisam saber sobre BRUXAS
DE VERDADE. Prestem muita atenção, e nunca se esqueçam do seguinte:
BRUXAS DE VERDADE usam roupas comuns, e parecem mulheres
comuns. Elas moram em casas como as nossas e trabalham em
PROFISSÕES COMUNS. Por isso é tão difícil pegá-las.
BRUXA DE VERDADE odeia criança, com um ódio fulminante e furioso,
muito mais fulminante e furioso do que vocês poderiam imaginar.
BRUXA DE VERDADE passa o tempo todo tentando descobrir um jeito de se
livrar das crianças que moram no território dela. Seu maior desejo é acabar
com todas, uma por uma. A bruxa fica o dia todo só pensando nisso.
Mesmo enquanto trabalha como caixa do supermercado, ou escreve cartas
para algum homem de negócios, ou sai dirigindo um carrão incrementado (e
bruxa faz todas essas coisas), a cabeça dela está sempre planejando,
tramando, se agitando, se inflamando, zunindo e fervilhando de
pensamentos assassinos e sanguinários.
Ela fica o dia inteiro imaginando: “Qual será a criança que eu vou
escolher para esmagar da próxima vez?”
BRUXA DE VERDADE tem o mesmo gosto em acabar com uma criança que
vocês têm em comer um prato de morangos com creme.
Ela tem de sumir com uma criança por semana, senão acaba ficando
rabugenta e mal-humorada. Uma criança por semana são cinquenta e duas
por ano.
Triturar, trucidar e sumir com elas.
Esse é o lema de todas as bruxas.
A vítima é escolhida com todo o cuidado. Em seguida, a bruxa persegue a
pobre criança como um caçador persegue um passarinho na floresta. Vai
pisando bem de mansinho. Vai caminhando muito quieta. Vai chegando
cada vez mais perto. Aí, quando tudo está preparado… Plaft!… ela dá o
bote. Voam faíscas. Sobem labaredas até o céu. O óleo ferve. Os ratos
guincham. A pele fica toda enrugada. E a criança desaparece.
É preciso entender que bruxa não dá paulada na cabeça, não enfia faca na
barriga e nem dá tiro de revólver em criança. Gente que faz isso a polícia
prende.
Bruxa nunca vai presa. Não esqueçam que ela tem feitiço na ponta dos
dedos e maldade diabólica no sangue. Ela é capaz de fazer pedra pular feito
sapo e línguas de fogo tremularem na superfície da água.
Esses poderes mágicos são assustadores.
Felizmente, hoje em dia já não existem muitas BRUXAS DE VERDADE. Mas
elas ainda são suficientes para deixar todo o mundo preocupado. Ao todo,
na Inglaterra, talvez elas não passem de cem. Alguns países têm mais, e
outros já não têm tantas. Mas não existe país do mundo que não tenha nem
uma BRUXA.
Bruxa é sempre mulher.
Não quero falar mal das mulheres. Quase sempre elas são maravilhosas.
Mas o fato é que todas as bruxas são mulheres. Nunca existiu uma bruxa-
homem.
Por outro lado, vampiro é homem. Lobisomem também é sempre homem.
Os dois são muito perigosos, mas nenhum deles tem a metade do perigo de
uma BRUXA DE VERDADE.
Para criança, BRUXA DE VERDADE é, de longe, a criatura mais perigosa da
face da terra. E é duas vezes mais perigosa porque não parece perigosa.
Mesmo depois de conhecerem todos os segredos (vou falar deles daqui a
pouco), vocês nunca saberão com certeza se estão diante de uma bruxa ou
de uma senhora muito bondosa. Se um tigre conseguisse se transformar
num cachorrão de rabo abanando, provavelmente vocês iriam afagar a
cabeça dele. E isso seria o seu fim. A mesma coisa acontece com as bruxas.
Todas elas parecem senhoras gentis e bondosas.
Algum de vocês pode muito bem ter uma vizinha que é bruxa.
Talvez a mulher de olhos lindos que hoje de manhã estava sentada a seu
lado no ônibus fosse uma bruxa.
Aquela senhora de sorriso encantador que antes do almoço lhe ofereceu
um doce que ela tirou de um saquinho de papel pode ser uma bruxa.

Pode até ser – e isso vai deixá-los de cabelo em pé – pode até ser que sua
adorável professora, que neste exato momento está lendo essas palavras
para vocês, seja uma bruxa. Olhem bem para a professora. Talvez ela esteja
rindo do absurdo desta sugestão. Não se deixem iludir. Talvez isso faça
parte da esperteza dela.
É claro que não estou querendo dizer, nem de longe, que a professora de
vocês é de fato uma bruxa. Só estou insinuando que ela poderia ser. É
muito improvável, mas – e aí vem o grande
“mas” – não é impossível.
Ah, se pelo menos houvesse um jeito infalível de perceber se uma mulher
é ou não é bruxa! Aí então a gente pegaria todas as bruxas e as passaria
pelo moedor de carne. Infelizmente esse jeito não existe. Mas existem
alguns pequenos sinais que vocês podem tentar descobrir, pequenos hábitos
e gestos que todas as bruxas têm em comum. Se vocês os conhecerem, e
não se esquecerem de nenhum, talvez consigam escapar de ser trucidados
antes de se tornarem adultos.
Minha avó

Antes dos oito anos, eu mesmo tive dois encontros com bruxas. Da
primeira vez escapei são e salvo, mas da segunda já não tive a mesma sorte.
Vocês vão ficar apavorados quando eu contar as coisas que me
aconteceram. Mesmo assim, vou contar tudo. Nunca se deve esconder a
verdade. O fato de eu ainda estar aqui e poder falar com vocês (por mais
estranho que seja o meu aspecto) deve-se inteiramente à minha avó
maravilhosa.
Minha avó era norueguesa. Os noruegueses sabem tudo sobre bruxas,
pois as primeiras bruxas vieram da Noruega, com suas florestas escuras e
suas montanhas geladas. Meu pai e minha mãe também eram noruegueses,
mas, como meu pai tinha negócios na Inglaterra, foi lá que nasci, cresci e
comecei a frequentar a escola. Duas vezes por ano, no verão e no Natal, em
pleno inverno, nós íamos para a Noruega visitar minha avó. Se bem me
lembro, ela era nosso único parente vivo, tanto por parte de mãe como de
pai. Ela era mãe da minha mãe, e eu a adorava. Quando nós dois estávamos
juntos, falávamos norueguês ou inglês. Tanto fazia, pois éramos igualmente
fluentes nessas duas línguas. Devo confessar que eu me sentia mais
próximo dela do que de minha mãe.
Assim que completei sete anos, meus pais me levaram, como sempre,
para passar o Natal na Noruega com a minha avó. Nessa ocasião, minha
mãe, meu pai e eu íamos de carro por uma estrada ao norte de Oslo. Fazia
frio e nevava. O carro derrapou, saiu da pista e despencou por um barranco
enorme e cheio de rochas. Meus pais morreram ali mesmo. Como eu estava
no banco de trás, preso pelo cinto de segurança, só sofri um corte na testa.
Não vou contar em detalhe os horrores daquele dia. Ainda fico arrepiado
só de pensar. É claro que me levaram de volta para a casa da minha avó. Ela
me abraçou, e passamos a noite inteira chorando.
– O que vamos fazer agora? – perguntei, através das lágrimas.
– Você vai ficar aqui comigo – disse ela – e vou tomar conta de você.
– Não vou voltar para a Inglaterra?
– Não – disse ela. – Eu nunca moraria em outro lugar. O céu vai levar
minha alma, mas os meus ossos hão de ficar na Noruega.
No dia seguinte, para tentarmos esquecer nossa tristeza imensa, minha
avó começou a me contar histórias. Ela era uma ótima contadora de
histórias, e eu me encantava com tudo o que ela dizia. Mas minha emoção
chegou ao máximo quando ela começou a me falar sobre bruxas. Parecia
grande conhecedora do assunto, e deixou bem claro que suas histórias de
bruxa, ao contrário da maioria das outras, não eram imaginárias. Eram todas
verdadeiras. Eram a verdade absoluta. Eram fatos históricos. Tudo o que ela
estava me contando sobre bruxas tinha acontecido mesmo, e era bom eu
acreditar. E o pior, mas muito pior, era que as bruxas ainda estavam entre
nós. Estavam à nossa volta, e seria bom eu levar isso a sério.
– Você está mesmo falando a verdade, vovó?
Verdade verdadeira?
– Meu querido – disse ela –, você não vai durar muito nesse mundo se
não souber identificar uma bruxa.
– Mas você me disse que as bruxas parecem mulheres comuns, vovó.
Então como é que vou reconhecê-las?
– Ouça-me com atenção – disse minha avó. – Nunca se esqueça do que
vou dizer. Depois, é só fazer o sinal da cruz e rezar aos céus para que o
melhor aconteça.
Estávamos na sala de estar de sua casa em Oslo, e eu já estava pronto
para dormir. Naquela casa as cortinas nunca eram fechadas, e pela janela eu
via os grandes flocos de neve que caíam lentamente no mundo lá fora,
escuro como breu. Minha avó era bem velha e toda enrugada, e seu corpo
grande e pesado estava coberto de renda cinzenta. Estava ali sentada,
majestosa, e ocupando todos os centímetros de sua poltrona. Nem mesmo
um ratinho conseguiria se espremer para sentar-se ali ao lado dela. E eu,
com meus sete anos, estava sentado no chão a seus pés, de pijama, roupão e
chinelos.

– Jura que não está me gozando? – perguntei.


– Jura que não é mentira?
– Ouça – disse ela –, conheci pelo menos cinco crianças que
simplesmente sumiram da face da terra, e nunca mais foram encontradas.
Foram levadas pelas bruxas.
– Ainda acho que você só está querendo me assustar – disse eu.
– Estou tentando evitar que lhe aconteça a mesma coisa – disse ela. –
Gosto muito de você, e quero que fique perto de mim.
– Conte-me sobre as crianças que desapareceram – pedi.
A única avó que eu vi fumar charuto foi a minha. Ela acendeu um charuto
comprido e preto que tinha cheiro de borracha queimada.
– A primeira criança que desapareceu – ela disse – chamava-se Ranghild
Hansen. Ranghild tinha mais ou menos oito anos na época, e estava
brincando com sua irmãzinha no gramado do jardim. A mãe, que estava
assando pão na cozinha, saiu da casa para tomar um pouco de ar.
“Onde está Ranghild?”, ela perguntou.
“Foi dar uma volta com aquela mulher alta”, respondeu a irmãzinha.
“Que mulher alta?”, disse a mãe.
“A mulher alta de luvas brancas”, respondeu a menina. “Ela pegou a
Ranghild pela mão e a levou embora.” Ninguém nunca mais viu Ranghild –
disse minha avó.
– E não foram atrás dela? – perguntei.
– Procuraram por quilômetros e quilômetros. Todas as pessoas da cidade
ajudaram, mas ela nunca mais foi encontrada.
– E o que aconteceu com as outras quatro crianças? – perguntei.
– Sumiram todas, do mesmo jeito que Ranghild.
– Como, vovó? Como foi que elas desapareceram?
– Em todos os casos, uma mulher muito estranha foi vista perto da casa,
um pouco antes de tudo acontecer.
– Mas como foi que elas desapareceram? – perguntei.
– O segundo caso foi muito esquisito – disse minha avó. – Havia uma
família chamada Christiansen. Eles moravam em Holmenkollen, e na sala
de estar da casa havia um quadro a óleo do qual se orgulhavam muito. No
quadro se viam alguns patos no quintal de uma fazenda. Não havia pessoas
na pintura, só um bando de patos no terreiro gramado da fazenda, e a casa
em segundo plano. O quadro era grande e muito bonito. Pois bem, um dia
Solveg, a filha do casal, voltou da escola comendo uma maçã. Disse que
tinha ganhado a maçã na rua, de uma senhora muito boazinha. Na manhã
seguinte, a pequena Solveg não estava em sua cama. Os pais procuraram
por todo lado, mas não conseguiram encontrá-la. Então, de repente, o pai
deu um grito: “Vejam! Lá está ela! Solveg está dando de comer aos patos!”
Ele apontava para o quadro a óleo, e era Solveg mesmo que estava lá.
Estava em pé no terreiro, jogando para os patos uns pedacinhos de pão que
ia tirando de uma cestinha. O pai correu até o quadro e tocou Solveg com a
mão, mas não adiantou. A menina simplesmente fazia parte do quadro, era
só uma figura pintada na tela.
– E você chegou a ver esse quadro com a garotinha, vovó?
– Muitas vezes – respondeu ela. – E o mais estranho era que Solveg
ficava mudando de posição na pintura. Um dia ela estava dentro da casa da
fazenda, e seu rosto aparecia olhando pela janela. No dia seguinte ela já
estava bem no canto esquerdo do quadro, segurando um dos patos no colo.

– Você a via se mexer no quadro?


– Ninguém nunca conseguiu ver. Onde ela estivesse, do lado de fora
dando de comer aos patos, ou dentro de casa olhando pela janela, estava
sempre imóvel como qualquer figura de qualquer quadro a óleo. Era tudo
muito estranho – disse minha avó. – Estranhíssimo! E o mais estranho
mesmo foi que, com o passar dos anos, Solveg foi ficando cada vez mais
velha na pintura. Depois de dez anos, a garotinha tinha se transformado
numa moça. Depois de trinta anos, era uma mulher de meia-idade. De
repente, certo dia, cinquenta e quatro anos depois de tudo ter acontecido, ela
desapareceu para sempre do quadro.
– Você quer dizer que ela morreu? – perguntei.
– Quem pode saber? – respondeu minha avó. – Acontecem coisas muito
misteriosas no mundo das bruxas.
– Você já me contou sobre duas crianças – disse eu. – E o que aconteceu
com a terceira?
– A terceira foi a pequena Birgit Svenson – disse minha avó. – Ela
morava em frente a nossa casa, do outro lado da rua. Um dia, o corpo dela
começou a ficar cheio de penas. Um mês depois, tinha se transformado
numa imensa galinha branca. Durante muitos anos os pais a deixaram num
galinheiro no jardim. Até ovos ela botava.
– De que cor eram os ovos? – perguntei.
– Marrons – disse minha avó. – Os maiores que já vi em toda minha vida.
A mãe dela fazia omeletes com eles. Uma delícia!

Olhei fixamente para minha avó, sentada à minha frente como uma velha
rainha no trono. Seus olhos estavam nublados, e pareciam estar olhando
para alguma coisa muito distante dali. Naquele momento, a única coisa
verdadeira que havia nela era o charuto, e a fumaça formava nuvenzinhas
azuis que flutuavam em volta de sua cabeça.
– Mas a menininha que virou uma galinha não sumiu? – perguntei.
– Não, Birgit não sumiu. Ela viveu por muitos anos, e nunca deixou de
botar seus ovos marrons.
– Você disse que todas as crianças tinham desaparecido.
– Eu me enganei – disse minha avó. – Estou ficando velha, e não me
lembro muito bem das coisas.
– O que aconteceu com a quarta criança? – perguntei.
– O quarto era um garoto chamado Harald – disse minha avó. – Uma bela
manhã toda a pele dele começou a ficar amarelo-acinzentada. Depois ficou
dura e quebradiça, como casca de noz. Quando anoiteceu, o menino tinha se
transformado em pedra.
– Em pedra? – perguntei. – Pedra mesmo, de verdade?
– Granito – disse ela. – Se quiser vê-lo algum dia, posso levá-lo até lá. Os
pais ainda o conservam em casa. É uma estatuazinha que fica no hall de
entrada. As visitas usam Harald para apoiar seus guarda-chuvas.
Apesar de ainda ser muito novinho, eu não conseguia acreditar em tudo o
que minha avó dizia. Mas comecei a ficar na dúvida, pois ela falava com
muita convicção, muito séria, sem sorrir ou piscar.

– Continue, vovó – disse eu. – Você falou em cinco casos. E o último,


como foi?
– Quer uma tragada do meu charuto? – disse ela.
– Só tenho sete anos, vovó.
– Não interessa sua idade. Se fumar charutos, nunca vai pegar resfriado.
– O que aconteceu com o número cinco, vovó?
– O número cinco – disse ela, mascando a ponta do charuto como se
fosse um delicioso aspargo – foi um caso muito interessante. Um menino de
nove anos, chamado Leif, foi com a família passar as férias de verão na
praia. Um dia estavam todos fazendo um piquenique e nadando perto das
rochas numa das ilhotas que havia ali por perto. Leif deu um mergulho e
seu pai, que o estava observando, percebeu que o menino estava demorando
muito para voltar à superfície. Quando finalmente ele apareceu, não era
mais o Leif.
– E o que era então, vovó?
– Ele tinha virado um golfinho.
– Não acredito! Não pode ser!
– Tinha se transformado num lindo filhote de golfinho – disse ela. – E o
golfinho mais simpático do mundo.
– Vovó – disse eu.
– O que foi, querido?
– É verdade mesmo que ele se transformou em golfinho?
– Não há a menor dúvida – disse ela. – Conheci muito bem a mãe dele, e
foi através dela que fiquei sabendo de tudo. Ela me contou que Leif, o
golfinho, passou aquela tarde toda nadando por ali, levando os irmãos e
irmãs nas costas. Depois, fez um gesto de adeus com as nadadeiras e
desapareceu, para nunca mais voltar.
– Mas, vovó – perguntei –, como eles podiam ter certeza de que o
golfinho era mesmo Leif?
– Ele conversava com eles – disse minha avó. – Ele riu e contou piadas
durante todo o tempo em que os levou nas costas.
– Mas não deu o maior alvoroço quando isso aconteceu? – perguntei.
– Não muito – disse minha avó. – Não se esqueça de que aqui na Noruega
estamos acostumados com esse tipo de coisa. Existem bruxas por toda
parte. Bem aqui, na nossa rua, quase com certeza deve morar alguma bruxa.
Está na hora de você dormir.
– Nenhuma bruxa entraria à noite pela minha janela, não é mesmo? –
perguntei, tremendo um pouco.
– Não – respondeu minha avó. – Bruxa nunca faz bobagens, como subir
pelos encanamentos ou arrombar as casas das pessoas. Você vai estar muito
seguro na sua cama. Venha, vou pôr você para dormir.
Como reconhecer uma bruxa

Na noite seguinte, depois de me dar banho, minha avó me levou de novo


até a sala de estar, para me contar mais uma história.
– Esta noite – disse a velhinha –, vou lhe contar como se faz para
reconhecer uma bruxa.
– E dá para ter certeza de que a gente nunca vai se enganar? – perguntei.
– Não – disse ela –, isso é impossível. Esse é o problema. Mas sempre é
possível arriscar uns bons palpites.
Ela estava derrubando cinza de charuto no colo, e desejei de todo o
coração que ela não pegasse fogo antes de me contar como eu poderia
reconhecer uma bruxa.
– Em primeiro lugar – disse ela –, BRUXA DE VERDADE está sempre de
luvas.
– Talvez nem sempre – respondi. – E no verão, quando faz calor?
– Mesmo no verão – respondeu minha avó. – Bruxa precisa usar luvas.
Sabe por quê?
– Por quê? – perguntei.
– Porque ela não tem unhas. Em vez de unhas, tem garras curvas e
afiadas, como de gato, e as luvas são para escondê-las. Mas, veja bem,
muitas mulheres respeitáveis usam luvas no inverno, o que significa que
isso não vai ajudá-lo muito. – A mamãe costumava usar luvas – disse eu.
– Mas não dentro de casa – respondeu minha avó. – As bruxas não tiram
as luvas nem dentro de casa. Só as tiram quando vão dormir.
– Como é que você sabe tudo isso, vovó?
– Não me interrompa – disse ela. – Trate de ouvir e entender. A segunda
coisa importante é que uma BRUXA DE VERDADE é sempre careca.
– Careca? – perguntei.
– Careca como uma casca de ovo – disse minha avó.
Eu estava chocado. Uma mulher careca era uma coisa meio esquisita. – E
por que as bruxas são carecas, vovó?
– Não me pergunte por quê – ela retrucou. – Mas garanto que em cabeça
de bruxa não cresce um único fio de cabelo.
– Que horror!
– Repugnante – disse minha avó.
– Se elas são carecas, fica fácil reconhecê-las – disse eu.
– Nem um pouco – respondeu minha avó. – BRUXA DE VERDADE sempre
usa peruca para esconder a careca. E só usa peruca das melhores. É quase
impossível perceber a diferença entre peruca de bruxa e cabelo de verdade,
a não ser que a gente dê um puxão para ver se ela sai.
– Então é isso que vou ter de fazer – respondi.
– Não seja bobo – disse minha avó. – Você não pode sair por aí puxando
o cabelo de todas as mulheres que encontrar, mesmo que estejam usando
luvas. Experimente fazer isso para ver o que acontece.
– Quer dizer que isso também não adianta – disse eu.
– Essas coisas nunca funcionam quando feitas em separado – disse minha
avó. – Só têm alguma utilidade quando se combinam. Veja bem – continuou
minha avó –, essas perucas causam um problema muito sério para as
bruxas.
– Que problema, vovó?
– Elas provocam coceiras terríveis no couro cabeludo. Quando uma atriz
usa peruca, ou se você ou eu resolvêssemos usar peruca, ela ficaria por cima
do nosso próprio cabelo. Mas no caso da bruxa é diferente, a peruca fica
diretamente sobre o couro cabeludo, e o forro dela é sempre muito áspero e
rugoso. O resultado é que as bruxas têm coceiras horríveis e ficam com a
cabeça cheia de feridas muito desagradáveis. Elas até inventaram um nome
para isso: brotoeja de peruca. Coça que não é brincadeira.
– O que mais devo observar para reconhecer uma bruxa? – perguntei.
– Olhe bem para as narinas – disse minha avó. – Narinas de bruxa são
ligeiramente maiores do que de pessoas comuns. Elas têm as bordas sempre
rosadas e encurvadas, como as bordas de certas conchas do mar.
– E por que elas têm as narinas grandes? – perguntei.
– Para farejarem melhor – disse minha avó. – BRUXAS DE VERDADE têm
faro extraordinário. Numa noite escura como breu, elas são capazes de
farejar uma criança que esteja passando pelo outro lado da rua.
– Nenhuma bruxa sentiria o meu cheiro – disse eu. – Acabei de tomar
banho.
– É claro que sentiria – disse minha avó. – Quanto mais limpo você
estiver, mais fedorento será para uma bruxa.
– Isso não pode ser verdade – respondi.
– Para uma bruxa, criança limpa exala um mau cheiro insuportável –
disse minha avó. – Quanto mais sujo você estiver, menos vai cheirar.
– Mas isso não tem sentido, vovó.
– Ora, claro que tem – continuou minha avó. – O que a bruxa fareja não é
a sujeira, é você. As bruxas ficam loucas é com o cheiro que sai direto da
pele das crianças, em ondas. Essas ondas (ondas de fedor, como dizem as
bruxas) vão flutuando pelo ar até atingir em cheio as narinas delas. Elas
ficam tontinhas.
– Espere um pouco, vovó…
– Não interrompa – disse minha avó. – Ouça bem o que vou dizer.
Quando você ficar uma semana sem tomar banho, e sua pele estiver coberta
de sujeira, é evidente que as ondas de fedor não terão força suficiente para
chegar às narinas de qualquer bruxa.
– Nunca mais tomo banho – disse eu.
– É só não tomar muitos – disse minha avó. – Um banho por mês já está
mais do que bom para uma criança ajuizada.
Nessas horas eu gostava da minha avó mais do que nunca.
– Vovó – perguntei –, como é que, numa noite escura, uma bruxa
consegue farejar a diferença entre um adulto e uma criança?
– É que os adultos não soltam ondas de fedor – disse ela –, só as crianças.
– Mas eu não exalo ondas de fedor, não é verdade? – perguntei. – Não
estou exalando mau cheiro agora, não é mesmo?
– Para mim, é claro que não – disse minha avó. – Para mim você tem um
perfume de framboesas com creme. Mas, para uma bruxa, seu cheiro seria
absolutamente insuportável.
– E eu estaria com cheiro do quê? – perguntei.
– De cocô de cachorro – disse minha avó.
Aquela foi demais. – Cocô de cachorro! – gritei. – Eu não tenho cheiro
de cocô de cachorro! Não acredito! Não posso acreditar!
– E tem mais – disse minha avó, que agora falava com um certo ar de
satisfação –, para uma bruxa, você estaria com cheiro de cocô fresco,
daquele que o cachorro acabou de fazer.
– Não é verdade, de jeito nenhum! – eu gritei. – Sei que não estou com
cheiro de cocô de cachorro, nem seco nem fresco!
– Não há o que discutir, meu querido – disse minha avó. – São coisas da
vida.
Eu estava indignado. Simplesmente não conseguia acreditar no que
minha avó estava dizendo.
– Portanto, sempre que uma mulher passar por você na rua tapando o
nariz – continuou ela –, é bem possível que se trate de uma bruxa.
Achei melhor mudar de assunto. – Diga o que mais é preciso fazer para
identificar uma bruxa – eu pedi.
– Os olhos – disse minha avó. – Olhos de BRUXA DE VERDADE são muito
diferentes dos seus e dos meus. Verifique o meio de cada olho, onde
geralmente existe um pontinho preto. Nas bruxas, o ponto preto fica
mudando de cor, e a gente vê fogo e gelo agitando-se bem no centro do
ponto colorido. É de arrepiar o cabelo!

Minha avó recostou-se na poltrona e, satisfeita, deu umas boas tragadas


naquele charuto preto e fedorento. Continuei sentado no chão, olhando
fascinado para ela. Não havia nenhum sorriso em seu rosto. Ela estava
muito séria.
– Tem mais ainda? – perguntei.
– Claro que tem – respondeu minha avó. – Parece que você não está
entendendo que bruxas não têm nada a ver com mulheres comuns. Elas
parecem mulheres. Elas falam e agem como mulheres comuns. Mas, na
verdade, são animais totalmente diferentes. São demônios em forma de
gente. É por isso que elas têm garras, são carecas, têm nariz esquisito, olhos
esquisitos, e precisam esconder tudo isso dos outros, do melhor jeito
possível.
– O que mais elas têm de diferente, vovó?
– Os pés – disse ela. – Bruxa não tem dedo no pé.
– Não tem dedo no pé? – exclamei. – O que é que bruxa tem no pé,
então?
– Só pé – disse minha avó. – Pé de bruxa tem a ponta quadrada, sem
dedo.
– E não é difícil andar assim? – perguntei.
– De jeito nenhum – respondeu minha avó. – Mas o grande problema são
os sapatos. Todas as mulheres gostam de usar sapatos pequenos e de bico
fino, mas as bruxas, com aqueles pés largos e de ponta quadrada, têm uma
trabalheira infernal para calçar aqueles sapatos bonitos, de bico fino.
– Por que então elas não usam sapatos mais confortáveis, de bico
quadrado? – perguntei.
– Elas não se atreveriam – disse minha avó. – Assim como escondem a
calvície com peruca, também precisam esconder seus pés de bruxa e enfiá-
los naqueles belos sapatinhos.
– Mas não é um desconforto terrível? – perguntei.
– É um desconforto total – disse minha avó. – Mas é um problema que
elas têm de enfrentar.
– Já que elas usam sapatos comuns, não é fácil reconhecê-las, não é
mesmo, vovó?
– É isso mesmo – disse minha avó. – Talvez dê para perceber que elas
mancam muito de leve, mas para isso é preciso estar olhando muito de
perto.
– Então são essas as diferenças, vovó?
– Tem mais uma – respondeu minha avó. – Só mais uma. – Qual?
– Saliva de bruxa é azul.
– Azul! – exclamei. – Não acredito! Não é possível que as bruxas tenham
saliva azul!
– Azul como anil – disse ela.
– Você não pode estar falando sério, vovó! Ninguém pode ter saliva azul!
– Pois bruxa pode – disse ela.
– Cuspe da cor de tinta de escrever? – perguntei.
– Exatamente – disse ela. – Algumas bruxas chegam até a escrever com
cuspe. Elas usam aquelas canetas antigas, com uma pena na ponta, e só vão
lambendo a pena.
– E dá para perceber a saliva azul delas, vovó? Se uma bruxa estivesse
conversando comigo, daria para perceber a cor azul?
– Só se você olhasse com muita atenção – disse minha avó. – Prestando
muita atenção, talvez você percebesse uma cor levemente azulada nos
dentes dela. Mas é uma coisa que quase não se vê.
– Daria para ver bem se ela cuspisse – respondi.
– Bruxa não cospe – disse minha avó.
Não era possível que minha avó estivesse mentindo para mim. Todos os
dias de manhã ela ia à igreja, e fazia uma oração de graças antes de cada
refeição. Quem faz essas coisas nunca mente. Eu estava começando mesmo
a acreditar em cada uma de suas palavras.
– É isso – disse minha avó. – Já disse tudo o que sei, e quase nada é de
muita utilidade. Continua sendo impossível dizer com certeza se uma
mulher é ou não é bruxa, só de olhar para ela.
Mas, se ela estiver de luvas, se tiver narinas grandes, olhos estranhos,
cabelo que dá a impressão de ser peruca, e se os dentes dela forem
azulados, trate de sair correndo feito louco.
– Vovó – perguntei –, você encontrou alguma bruxa quando era criança?
– Uma vez – disse ela. – Só uma vez.
– E o que aconteceu?
– Não vou contar – respondeu. – Você ficaria apavorado e teria pesadelos.
– Por favor, quero saber – implorei.
– Não – disse ela. – Há coisas que são horríveis demais para serem
contadas.
– Tem alguma coisa a ver com o fato de você não ter um dos polegares? –
perguntei.
De repente, seus lábios envelhecidos e enrugados se comprimiram como
se fossem pinças, e a mão que segurava o charuto (e onde faltava o polegar)
começou a tremer levemente.
Esperei. Ela não falava, nem olhava para mim. Estava totalmente
mergulhada em seus pensamentos. A conversa estava encerrada.
– Boa noite, vovó – disse eu, levantando-me do chão e dando-lhe um
beijo no rosto.
Ela nem se mexeu. Saí da sala na ponta dos pés, e fui para o meu quarto.
A Grã-Bruxa

No dia seguinte, chegou um homem de terno preto, com uma pasta na


mão. Ficou muito tempo conversando com minha avó na sala de estar, mas
não pude participar da conversa. Depois que ele foi embora, minha avó veio
falar comigo, andando muito devagar e parecendo muito triste.
– Aquele homem veio me mostrar o testamento de seu pai – ela disse.
– O que é testamento? – perguntei.
– É uma coisa que as pessoas escrevem antes de morrer – respondeu ela.
– Um documento em que a pessoa diz quem vai ficar com o dinheiro e as
propriedades dela. Mas o mais importante é que no testamento a pessoa
também determina quem vai tomar conta dos filhos dela, no caso de morte
do pai e da mãe.
Entrei imediatamente em pânico. – E eu vou ficar com você, não é, vovó?
– perguntei, quase chorando. – Não vou ficar com outras pessoas, não é
mesmo?
– Não – disse ela. – Seu pai nunca teria feito uma coisa dessas. Ele me
pediu para tomar conta de você enquanto estiver viva, mas também pediu
para eu levá-lo de volta para a casa de vocês, na Inglaterra. Ele quer que a
gente more lá. – Mas por quê? – perguntei. – Por que não podemos ficar
aqui na Noruega? Você odiaria morar em outro lugar! Foi você mesma que
me disse!
– Sei disso melhor do que ninguém – disse ela. – Mas há muitas
complicações envolvendo o dinheiro e a casa, coisas que você não
conseguiria entender direito. Além disso, o testamento diz que, embora toda
a sua família seja norueguesa, você nasceu na Inglaterra e começou seus
estudos lá. Seu pai quer que você continue frequentando as escolas inglesas.
– Ora, vovó – exclamei. – Você não quer ir morar em nossa casa inglesa,
eu sei que não quer!
– Não quero mesmo – disse ela. – Mas acho que não vai ter outro jeito. O
testamento dizia que sua mãe tinha o mesmo desejo, e é muito importante
respeitar a vontade dos pais.
Não tinha outra saída. Tínhamos de ir para a Inglaterra, e minha avó
começou imediatamente a preparar a viagem. – Suas aulas recomeçam
dentro de alguns dias – disse ela –, e não temos tempo a perder.
Uma noite antes de partirmos para a Inglaterra, minha avó e eu voltamos
ao nosso assunto predileto. – Na Inglaterra não existem tantas bruxas
quanto na Noruega – ela disse.
– Tenho certeza de que não vou encontrar nenhuma – respondi.
– Espero de todo coração que não encontre mesmo – disse ela –, porque
as bruxas inglesas são as mais terríveis do mundo.
Enquanto ela ficava ali sentada, fumando seu charuto fedorento e falando,
eu não tirava os olhos daquela mão sem polegar. Era impossível evitar. Eu
estava fascinado, e ficava o tempo todo tentando imaginar a coisa terrível
que teria acontecido quando ela encontrou a bruxa. Devia ter sido alguma
coisa medonha e pavorosa, senão ela teria me contado a respeito. Talvez a
bruxa tivesse desatarraxado o polegar dela, como um parafuso. Talvez a
tivesse obrigado a enfiar o dedo no bico de uma chaleira de água fervendo,
até ele evaporar. Ou será que o dedo tinha sido arrancado da mão dela como
se fosse um dente? Eu ficava o tempo todo tentando adivinhar.
– O que é que as bruxas inglesas fazem? – perguntei.
– Bem – disse ela, dando uma tragada no charuto fedorento –, sua
maldade favorita é preparar uma poção que transforma a criança num tipo
de criatura que os adultos odeiam.
– Que tipo de criatura, vovó?
– Geralmente é lesma – disse ela. – A lesma é uma de suas formas
prediletas. Depois os adultos pisam na lesma e a esmagam, sem saber que é
uma criança.

– Que coisa animalesca! – eu gritei.


– Também pode ser pulga – disse minha avó. – Elas transformam a
criança em pulga e, sem saber o que está fazendo, a própria mãe pega o
veneno contra pulgas… e era uma vez uma criança!
– Você está me deixando nervoso, vovó. Acho que não quero voltar para
a Inglaterra.
– Soube de bruxas inglesas – continuou ela – que transformaram crianças
em faisões e os soltaram no mato um dia antes de começar a estação de caça
aos faisões.
– Argh! – exclamei. – E eles foram caçados?
– Claro que sim – disse ela. – E depois foram depenados, assados e
comidos no jantar.
Imaginei-me um faisão, correndo feito louco no meio de homens
armados, desviando-me dos tiros que explodiam à minha volta.

– É verdade – disse minha avó –, as bruxas inglesas sentem o maior


prazer em ficar observando os adultos acabarem com seus próprios filhos.
– Não quero nem pensar em ir para a Inglaterra, vovó.
– Claro, eu entendo – disse ela. – Também não quero, mas infelizmente
não temos outra saída.
– As bruxas são diferentes em cada país? – perguntei.
– Completamente diferentes – disse minha avó. – Mas não sei muita coisa
sobre as bruxas estrangeiras.
– Nem sobre as bruxas dos Estados Unidos? – perguntei.
– Não – respondeu ela. – Mas ouvi dizer que as bruxas de lá são capazes
de fazer os adultos comerem seus próprios filhos.
– Essa não! – gritei. – Ah, não, vovó! Isso não pode ser verdade!
– Se é verdade ou mentira, eu não sei – disse ela. – Mas ouvi esse boato.
– Como é que elas iam conseguir fazer os pais comerem os próprios
filhos? – perguntei.
– Elas transformam as crianças em cachorros-quentes – disse ela –, o que
não deve ser muito difícil para uma bruxa esperta.
– Todos os países do mundo têm bruxas? – perguntei.
– Onde há gente há bruxas – disse minha avó. – Existe uma Sociedade
Secreta das Bruxas em cada país.
– E todas elas se conhecem, vovó?
– Não – disse ela. – Cada bruxa só conhece as bruxas do seu próprio país.
É rigorosamente proibida a comunicação com bruxas estrangeiras. Mas uma
bruxa inglesa, por exemplo, está autorizada a conhecer todas as outras
bruxas da Inglaterra. São todas amigas. Estão sempre telefonando umas
para as outras e trocando receitas mortíferas. E sabe Deus sobre o que mais
elas conversam. Odeio pensar nisso.
Fiquei sentado ali no chão, observando minha avó. Ela colocou a ponta
do charuto no cinzeiro e cruzou as mãos sobre a barriga.
– Uma vez por ano – continuou –, as bruxas de cada país fazem uma
reunião secreta. Vão todas para um determinado lugar onde assistem a uma
conferência da Grã-Bruxa do Mundo Inteiro.
– De quem? – perguntei.
– Ela é a rainha de todas – disse minha avó. – É todo-poderosa, e
totalmente impiedosa. Todas as outras bruxas ficam petrificadas diante dela,
que só pode ser vista uma vez por ano, na Reunião Anual. Ela comparece
para estimular o entusiasmo e o fervor das outras, e também para dar suas
ordens. A Grã-Bruxa percorre todos os países, participando dessas Reuniões
Anuais.
– Onde são essas reuniões, vovó?
– Correm todos os tipos de boatos – respondeu minha avó. – Ouvi dizer
que as bruxas se instalam num hotel, como qualquer grupo de mulheres
participantes de uma reunião. Também ouvi dizer que nos hotéis onde elas
ficam acontecem coisas muito esquisitas. Dizem que as camas nunca são
desarrumadas, que aparecem marcas de queimaduras nos tapetes dos
quartos, que sapos são encontrados nas banheiras, e que certa vez, na
cozinha, um cozinheiro descobriu um filhote de jacaré nadando numa
panela de sopa.
Minha avó pegou o charuto e deu mais uma tragada, levando aquela
fumaça fedorenta até o fundo de seus pulmões.
– E onde mora a Grã-Bruxa quando não está viajando? – perguntei.
– Ninguém sabe – respondeu minha avó. – Se alguém soubesse, seria
possível encontrá-la e acabar com ela. Bruxólogos do mundo inteiro têm
passado a vida tentando descobrir onde fica o Quartel-General da Grã-
Bruxa.

– O que é um bruxólogo, vovó?


– Uma pessoa que se dedica ao estudo das bruxas, e sabe muito sobre elas
– disse minha avó.
– Você é bruxóloga?
– Sou uma bruxóloga aposentada – respondeu minha avó. – Já estou
muito velha para continuar na ativa. Mas, quando eu era mais jovem, viajei
o mundo tentando seguir a pista da Grã-Bruxa. Nunca cheguei nem perto de
descobrir.
– A Grã-Bruxa é rica? – perguntei.
– Ela nada em dinheiro – disse minha avó. – Simplesmente nada em
dinheiro. Dizem que no seu quartel-general há uma máquina igualzinha à
que o governo usa para fazer o dinheiro que todos nós usamos. Afinal, as
notas de dinheiro são apenas pedaços de papel com alguns desenhos e
imagens especiais. Na minha opinião, a Grã-Bruxa faz dinheiro à vontade, e
depois o distribui entre todas as bruxas.
– E o dinheiro estrangeiro? – perguntei.
– Essas máquinas fazem até dinheiro chinês, se a gente quiser – disse
minha avó. – É só apertar o botão certo.
– Mas, vovó – perguntei –, se até hoje ninguém viu a Grã-Bruxa, como é
que você tem tanta certeza de que ela existe?
Minha avó me lançou um olhar sério e demorado.
– Que eu saiba, até hoje ninguém conseguiu ver o Diabo – ela respondeu
–, mas sabemos que ele existe.
Na manhã seguinte tomamos o navio para a Inglaterra, e logo eu estava
de volta à velha casa da nossa família, em Kent. Mas agora, só havia minha
avó para cuidar de mim. Logo depois começaram as aulas, e passei a ir à
escola todos os dias. Tudo parecia ter voltado ao normal.
No fundo do nosso quintal havia um enorme castanheiro-da-índia, e nos
seus galhos mais altos eu e Timmy (meu melhor amigo) começamos a fazer
uma maravilhosa casa suspensa.

Só podíamos trabalhar nela nos fins de semana, mas estava ficando


ótima. Tínhamos começado pelo assoalho. Colocamos umas tábuas bem
largas entre dois galhos afastados, e depois as pregamos. Um mês depois, o
chão estava pronto. Depois fomos fazendo uma grade de madeira em volta
do assoalho, e aí só faltava o telhado. Essa foi a parte mais difícil.
Num sábado à tarde, como Timmy estava gripado, resolvi começar a
fazer o telhado sozinho. Era uma maravilha estar lá no alto da árvore,
sozinho, no meio daquele monte de folhas verdinhas. Eu tinha a sensação
de estar dentro de uma caverna verde, e a altura tornava tudo mais
emocionante ainda. Minha avó sempre dizia que, se eu caísse de lá, podia
quebrar uma perna, e cada vez que eu olhava para baixo sentia um calafrio
na espinha.
Retomei o trabalho, e comecei a pregar a primeira tábua do telhado. De
repente, com o rabo do olho, percebi que havia uma mulher logo ali
embaixo. Ela não tirava os olhos de mim, e sorria de um jeito muito
esquisito. A maioria das pessoas, quando sorri, estica os lábios para os
lados. Pois aquela mulher esticava os lábios para cima e para baixo,
mostrando todos os dentes da frente e toda a gengiva, que parecia estar em
carne viva.
É sempre um choque descobrir que estamos sendo observados quando
achamos que estamos sozinhos.
Fosse lá quem fosse aquela mulher estranha, o que será que estava
fazendo no nosso quintal?
Reparei que ela estava com um chapeuzinho preto e luvas pretas, e que as
luvas chegavam quase até os cotovelos.
Luvas! Ela estava de luvas!
Meu corpo inteiro começou a tremer.
– Tenho um presente para você – ela disse sempre me olhando fixamente,
sorrindo e mostrando os dentes e as gengivas. Não respondi nada.

– Desça dessa árvore, garotinho – continuou ela –, eu vou lhe dar o


presente mais incrível que você já ganhou.
Ela tinha uma voz engraçada, que parecia barulho de raspadeira. Era um
som meio metálico, como se ela tivesse um monte de alfinetes na garganta.
Lentamente, sem tirar os olhos de mim, ela enfiou uma daquelas mãos
enluvadas na bolsa, e tirou uma cobrinha verde. Ergueu a cobra, para que eu
a visse bem.
– Ela é mansinha – disse ela.
A cobra começou a enroscar-se em seu braço. Era de um verde brilhante.
– Se você descer, a cobra é sua – disse ela.
“Ah, vovó”, pensei, “me ajude!”
Então entrei em pânico. Deixei cair o martelo e fui subindo, como um
macaco, mais para o alto da árvore. Só parei quando não tinha mais para
onde subir, e ali fiquei, tremendo de medo. De lá eu não enxergava a
mulher, pois havia camadas e camadas de folhas entre nós.
Fiquei horas lá em cima, sem mexer um dedo. Já estava escurecendo
quando, finalmente, ouvi minha avó me chamando.
– Estou aqui em cima – gritei bem alto.
– Desça já! – ela respondeu. – Já passou da hora do seu jantar.
– Vovó! – gritei. – Aquela mulher já foi embora?
– Que mulher? – perguntou minha avó.
– A mulher de luvas pretas!
A resposta foi o silêncio, o silêncio de uma pessoa que estava chocada
demais para poder falar.
– Vovó! – gritei de novo. – Ela já foi embora?
– Já – respondeu por fim minha avó –, já foi, sim. Estou aqui, querido.
Pode descer agora, que eu tomo conta.
Então desci. Estava tremendo feito vara verde. Minha avó me abraçou. –
Vi uma bruxa – falei.
– Vamos entrar – disse ela. – Estou aqui com você, agora está tudo bem.
Ela me levou para dentro e me deu uma xícara de chocolate quente com
bastante açúcar. – Conte-me o que aconteceu – pediu.
Contei tudo.
Assim que acabei de falar, quem estava tremendo era minha avó. Seu
rosto estava cinzento, e percebi quando ela olhou de relance para a sua mão
sem polegar. – Você sabe o que isso significa? – disse ela. – Significa que
tem uma bruxa morando aqui no nosso bairro. A partir de hoje, você não
vai mais sozinho para a escola.
– Você acha que ela está especialmente atrás de mim? – perguntei.
– Não – disse ela. – Não acho. Para essas criaturas, tanto faz uma criança
ou outra.
Não é de admirar que, depois disso, eu não conseguisse pensar em outra
coisa. Sempre que estava sozinho e alguma mulher de luvas chegava perto,
eu imediatamente atravessava a rua. E, como continuou fazendo muito frio
durante o mês todo, quase todo o mundo usava luvas. Por estranho que
pareça, nunca mais voltei a ver a mulher da cobra verde.
Ela foi a minha primeira bruxa. Mas não a última.
Férias de verão

Os feriados da Páscoa terminaram e começou um novo período de aulas.


Minha avó e eu tínhamos planejado passar as férias de verão na Noruega, e,
à noite, só falávamos nisso. Ela tinha reservado um camarote para cada um
no navio que ia de Newcastle a Oslo, e nossa intenção era partir assim que
terminassem as aulas. De Oslo, ela queria me levar para um lugar do litoral
sul, perto de Arendal, onde tinha passado umas férias de verão quando
criança, havia quase oitenta anos.
–Eu e meu irmão – dizia ela – ficávamos o dia inteiro no barco a remo.
Toda a costa está cheia de pequenas ilhas, e nunca há ninguém nelas.
Costumávamos explorá-las, e das rochas lisas de granito nós
mergulhávamos no mar. Às vezes, na volta, baixávamos a âncora e
ficávamos pescando bacalhaus e merlúcios. Quando pegávamos alguma
coisa, fazíamos uma fogueira numa das ilhas, e nosso almoço eram os
peixes, que fritávamos numa frigideira. Não há peixe mais delicioso no
mundo do que bacalhau fresco.
– E o que vocês usavam como isca?
– Mexilhões – disse ela. – Na Noruega, todos usam mexilhões como
iscas. Quando não pegávamos peixe nenhum, fervíamos os mexilhões numa
panela e comíamos.
– Ficava bom?
– Uma delícia – disse ela. – Os mexilhões cozidos em água do mar ficam
macios, e nem precisam de mais sal.
– O que mais vocês faziam, vovó?
– Íamos remando até bem longe para acenar para os barcos dos
pescadores de camarão que estavam voltando. Então eles paravam, e davam
um punhado de camarões para cada um de nós. Eram camarões quentinhos,
que tinham acabado de sair da panela. Meu irmão e eu tirávamos a casca
dos camarões e devorávamos todos eles.
A cabeça era a parte mais gostosa,
– A cabeça? – perguntei.
– A gente espreme a cabeça entre os dentes e suga a parte de dentro. É
uma delícia. Nós dois vamos fazer todas essas coisas neste verão, querido –
dizia ela.
– Vovó – disse eu –, mal posso esperar. Não vejo a hora de partirmos.
– Nem eu – respondeu ela.
Quando só faltavam três semanas para acabar o semestre de aulas,
aconteceu uma coisa terrível. Minha avó pegou uma pneumonia. Ficou
muito doente, e uma enfermeira veio ficar em casa para cuidar dela. O
médico me explicou que hoje em dia, graças à penicilina, pneumonia
deixou de ser uma doença muito perigosa. Mas também disse que quando
uma pessoa já passou dos oitenta anos, como era o caso da minha avó, o
perigo é maior. Nas condições em que ela estava, ele nem achava
conveniente levá-la para o hospital. Assim, ela ficou de cama em casa
mesmo, e eu ficava ali, perto da porta, enquanto balões de oxigênio e um
monte de outras coisas assustadoras eram introduzidas no quarto.
– Posso entrar para vê-la? – perguntei.
– Não, meu querido – disse a enfermeira. – Por enquanto ainda não.
A sra. Spring, uma mulher gorda e bem-disposta que vinha todos os dias
fazer faxina, também passou a dormir em casa. Ela cuidava de mim e
preparava minhas refeições. Eu gostava muito dela, mas, para contar
histórias, não chegava aos pés da minha avó.
Uma noite, dez dias depois, o médico me disse:
– Agora você pode entrar, mas só por pouco tempo. Ela está pedindo para
vê-lo.
Subi as escadas feito louco, entrei correndo no quarto da minha avó e me
joguei nos braços dela.
– Ei – disse a enfermeira –, cuidado com ela.
– Você vai ficar boa, vovó? – perguntei.
– O pior já passou – disse ela. – Logo vai estar tudo bem.
– Verdade? – perguntei à enfermeira.
– É sim – disse ela, com um sorriso. – Sua avó nos disse que precisava
ficar boa de qualquer jeito para cuidar de você.
Dei-lhe mais um abraço apertado.
– Eles não querem que eu fume meus charutos – disse ela. – Mas espere
só eles irem embora.
– Ela é mais forte que um touro – disse a enfermeira. – Daqui a uma
semana vai estar recuperada.
A enfermeira tinha razão. Uma semana depois, minha avó já andava
pesadamente pela casa, apoiada na bengala de cabo de ouro e dando
palpites nos pratos que a sra. Spring preparava para nós. – Agradeço tudo o
que fez por nós, sra. Spring – disse ela –, mas agora pode voltar para casa.
– Nem pensar numa coisa dessas – respondeu a sra. Spring. – O médico
me pediu para ficar de olho na senhora, pois ainda precisa descansar
bastante por alguns dias.
O médico também tinha dito outras coisas que acabaram com a nossa
alegria. Disse que não poderíamos, de jeito nenhum, viajar para a Noruega
naquele verão.
– Mas que droga! – gritou minha avó. – Prometi que iríamos!
– É longe demais – disse o médico. – Seria muito perigoso. Mas vou lhe
dizer o que é possível fazer. Em vez de irem para a Noruega, leve seu neto
para um belo hotel na costa sul da Inglaterra.
– Essa não! – gritei.
– Quer que sua avó morra? – perguntou o médico.
– Nunca! – respondi.
– Pois então. Ela não pode fazer uma viagem muito longa neste verão.
Ainda não está com forças suficientes. E trate de conseguir que ela pare de
fumar esses charutos pretos horríveis.
O médico acabou conseguindo impor sua vontade quanto às férias, mas
não quanto aos charutos. Dois quartos foram reservados para nós num lugar
chamado Majestic Hotel, na famosa cidade litorânea de Bournemouth.
Segundo minha avó, Bournemouth estava cheia de gente velha como ela,
pessoas que acreditavam que aquele ar revigorante e saudável as manteria
vivas por mais alguns anos.
– E isso acontece mesmo? – perguntei.
– Claro que não – disse ela. – É uma grande bobagem. Mas, pelo menos
desta vez, acho que é melhor obedecermos ao médico.
Minha avó e eu tomamos o trem para Bournemouth e nos instalamos no
Majestic Hotel. Era um edifício branco e enorme, à beira-mar, e me pareceu
um lugar muito chato para passar as férias de verão. Eu tinha um quarto só
para mim, que tinha ligação direta com o da minha avó. Assim, cada um
podia passar para o quarto do outro sem ter de sair pelo corredor.

Um pouco antes da nossa partida, minha avó tinha me dado de presente,


para me consolar, dois ratinhos brancos numa gaiola. É claro que os levei
comigo. Eles eram muito engraçados. Chamei-os de William e Mary, e
assim que nos instalamos no hotel comecei a lhes ensinar alguns truques. O
primeiro foi subir pela manga do meu casaco e sair pelo pescoço. Depois,
aprenderam a chegar até minha cabeça, subindo pela nuca. Para conseguir
isso, eu colocava pedacinhos de pão no cabelo.
Na primeira manhã que passamos no hotel, a camareira estava arrumando
minha cama quando um dos ratinhos mostrou a carinha por baixo dos
lençóis. A mulher gritou tanto, que logo apareceu uma dúzia de pessoas
querendo saber quem tinha morrido. Fui denunciado ao gerente, e no
escritório dele houve uma cena muito desagradável entre ele, minha avó e
eu.
O gerente, que se chamava sr. Stringer, era um homem de casaca preta,
todo empertigado. – Não vou tolerar a presença de ratos em meu hotel –
disse ele a minha avó.
– Como o senhor se atreve a dizer uma coisa dessas, se esta porcaria de
hotel está fervilhando de ratos? – gritou minha avó.
– Ratos! – gritou o sr. Stringer, branco de raiva. – Não tem rato nenhum
neste hotel!
– Pois hoje de manhã mesmo vi um – disse minha avó. – Passou correndo
pelo corredor e entrou direto na cozinha!
– Não é verdade! – berrou o sr. Stringer.
– Pois trate de ir arrumando já uma ratoeira – disse minha avó –, antes
que eu o denuncie ao Serviço de Saúde Pública. Com certeza está cheio de
ratos por aí, correndo pelo chão da cozinha, roubando comida das
prateleiras e mergulhando feito loucos na sopa!
– Jamais! – gritou o sr. Stringer.
– Bem que hoje cedo, no café da manhã, eu reparei que minha torrada
estava toda mordiscada nas beiradas – continuou minha avó,
implacavelmente. – Bem que eu percebi que ela estava com um gosto
horroroso de rato. Se o senhor não tomar providências imediatas, o pessoal
da Saúde vai mandar fechar este hotel, antes que todos os hóspedes peguem
febre tifoide.
– A senhora não pode estar falando sério – disse o sr. Stringer.
– Nunca falei tão sério em toda minha vida – disse minha avó. – Vai ou
não vai deixar meu neto ficar com os ratinhos no quarto?
O gerente sabia que tinha perdido a parada. – Posso sugerir um meio-
termo, madame? – perguntou ele. – Vou permitir que seu neto fique com os
ratos no seu quarto contanto que nunca saiam da gaiola. Que tal assim?
– Está muito bem – disse minha avó, levantando-se e saindo triunfante da
sala. E eu atrás dela.
É impossível ensinar alguma coisa a ratinhos presos numa gaiola, mas,
como a camareira não parava de nos espiar, não me atrevi a deixá-los sair.
Ela tinha uma chave do meu quarto, e ficava o tempo todo entrando e
saindo para ver se me pegava com os ratinhos fora da gaiola. Ela me disse
que o primeiro que desobedecesse as ordens seria afogado num balde de
água pelo porteiro do hotel.
Achei melhor procurar um lugar mais seguro para continuar o
treinamento. Era impossível que num hotel tão grande não houvesse algum
lugar vazio. Coloquei cada ratinho num bolso do casaco e saí
perambulando, à procura de um lugar secreto.
O andar térreo do hotel era um labirinto de salas especiais, e cada uma
tinha seu nome escrito nas portas com letras douradas. Passei pelo
“saguão”, pela “sala dos fumantes”, pela “sala de jogos”, pela “sala de
leitura” e pela “sala de estar”, mas não achei nada que estivesse vazio.
Atravessei um longo corredor, e no fim dele dei de cara com o “salão de
baile”. Ele tinha portas duplas e, na frente delas, havia um grande quadro de
avisos sobre um pedestal, onde estava escrito:

CONVENÇÃO DA RSPCC
ENTRADA RIGOROSAMENTE PROIBIDA
ESTE LOCAL ESTÁ RESERVADO
PARA A
CONVENÇÃO ANUAL
DA
REAL SOCIEDADE
PARA A PREVENÇÃO DA
CRUELDADE COM CRIANÇAS

As portas estavam abertas. Dei uma espiada, e vi que o espaço lá dentro


era imenso. Havia fileiras e mais fileiras de poltronas, todas voltadas para
um palco. As poltronas eram douradas e sobre cada uma delas havia uma
pequena almofada. Mas não se via uma só pessoa.
Tomando todo o cuidado, deslizei para dentro do salão.

Era um lugar secreto e maravilhosamente silencioso. A convenção da


Real Sociedade para a Prevenção da Crueldade com Crianças devia ter sido
realizada de manhã, e todos os participantes já deviam ter ido embora. E,
mesmo que de repente eles voltassem e entrassem em avalanche no salão,
sem dúvida seriam pessoas maravilhosas, que adorariam ver um jovem
treinador de ratinhos fazendo o seu trabalho.
No fundo do salão havia um biombo grande, com figuras de dragões
chineses. Para não correr nenhum risco, achei melhor fazer meu
treinamento atrás do biombo. Não que eu tivesse medo do pessoal da
Prevenção da Crueldade com Crianças, mas o sr. Stringer, o gerente, podia
aparecer de repente na porta. Se isso acontecesse, os coitados dos ratinhos
iriam parar no balde do porteiro antes que eu tivesse tempo de dizer uma
palavra.
Andando bem de mansinho, fui para o fundo do salão e me acomodei no
tapete felpudo e verde, bem atrás do biombo. Que lugar maravilhoso! Era
perfeito para treinar ratinhos! Tirei William e Mary dos bolsos, e os dois
ficaram quietinhos e bem comportados ali do meu lado.
O truque que eu pretendia ensinar-lhes era andar na corda-bamba. Não é
muito difícil treinar um ratinho inteligente e fazer dele um equilibrista da
corda-bamba, desde que a gente saiba exatamente o que fazer. Primeiro, é
preciso ter um pedaço de barbante, e isso eu tinha. Depois, é preciso ter um
bom pedaço de bolo, de preferência de bolo de passas, que é o favorito dos
ratinhos brancos. Eles são loucos por isso. No dia anterior, quando estava
tomando chá com a minha avó, eu já tinha colocado um pedaço de panetone
no bolso.
Vejam agora como se faz. Primeiro, a gente estica o barbante entre as
duas mãos, mas é bom começar com um pedaço pequeno, de mais ou
menos sete centímetros. Depois, coloca-se o ratinho na mão direita e um
pedacinho de bolo na esquerda. Assim, o ratinho só vai estar a uns sete
centímetros do bolo, e poderá vê-lo e sentir seu cheiro. Ele fica agitado e
seus bigodes não param de tremer. Ele estica o corpo para tentar alcançar o
bolo, mas não consegue. Aí percebe que, se der dois passos sobre o
barbante, chegará aonde quer. Então ele se arrisca a avançar, e põe primeiro
uma patinha sobre o barbante, e depois a outra. Se o ratinho tiver um bom
senso de equilíbrio, e isso a maioria deles tem, vai atravessar o barbante
com muita facilidade. Comecei com William, que passou pelo barbante sem
vacilar. Para despertar seu apetite, deixei que ele mordiscasse um pedacinho
de panetone, e depois o coloquei de novo na minha mão direita.
Desta vez usei um barbante maior, de mais ou menos quinze centímetros.
William já sabia o que fazer. Com ótimo equilíbrio atravessou todo o
barbante e alcançou o panetone. Foi recompensado com um pedacinho.
Logo depois, William já andava por uma corda-bamba (quer dizer, por
um barbante-bambo) de sessenta centímetros, só para ganhar seu bolo. Era
incrível, ele estava se divertindo muito. Eu mantinha o barbante sempre
perto do tapete, para ele não levar um tombo muito grande se perdesse o
equilíbrio. Mas ele não caiu nem uma vez. Sem dúvida, William era um
acrobata nato, e era o ás da corda-bamba.
Chegou a vez de Mary. Coloquei William no tapete a meu lado, e o
recompensei com mais algumas migalhas de panetone e uma uva-passa.
Então repeti tudo com Mary. Como vocês veem, minha maior ambição, o
grande sonho da minha vida, era tornar-me um dia dono de um circo de
ratinhos brancos. Eu teria um pequeno palco com cortinas vermelhas, e elas
se abririam para apresentar meus mundialmente famosos ratinhos-artistas
andando na corda-bamba, fazendo acrobacias no trapézio, dando saltos
mortais, saltando em trampolins e fazendo muitas outras coisas. Eu
apresentaria ratinhos brancos se equilibrando nas costas de ratões brancos,
que percorreriam o palco num furioso galope. Já começava a me imaginar
viajando pelo mundo inteiro de primeira classe, com meu famoso Circo dos
Ratinhos Brancos e apresentando-me diante de todos os reis e rainhas da
Europa.
De repente, quando eu já estava quase na metade do treinamento de
Mary, ouvi vozes do lado de fora do salão. O som foi ficando cada vez mais
alto, até que se transformou num agitado vozerio, saindo de muitas bocas.
Identifiquei a voz do terrível sr. Stringer, o gerente do hotel.
“Socorro”, pensei. Mas fui salvo pelo biombo. Agachei-me atrás dele e
espiei pela fresta entre duas de suas folhas. Dali eu enxergava o salão
inteirinho, mas ninguém me via.
– Bem, senhoras, estou certo de que aqui estarão muito confortáveis –
dizia a voz do sr. Stringer, que passou pelas portas duplas e entrou no salão
de casaca preta e tudo. Ele agitava os braços, enquanto introduzia no recinto
um grande número de mulheres. – Se precisarem de alguma coisa, tenham a
bondade de me chamar imediatamente – continuou falando. – O chá será
servido a todas no Terraço Solar assim que terminarem sua convenção.
Dizendo isso, o gerente fez uma reverência e saiu do salão, enquanto uma
multidão de senhoras da Real Sociedade para a Prevenção da Crueldade
com Crianças ia entrando, fazendo um grande estardalhaço. Suas roupas
eram muito bonitas, e todas estavam de chapéu.
A convenção

Depois que o gerente saiu, não senti mais muito medo. Haveria coisa
melhor do que ficar trancado num salão cheio de mulheres maravilhosas
como aquelas? Podia até falar com elas, para pedir que fossem fazer um
trabalhinho de prevenção contra a crueldade com as crianças na minha
escola, onde sem dúvida teriam muito o que fazer.
Elas foram entrando, falando pelos cotovelos. Estavam muito agitadas
procurando seus lugares, e comecei a ouvir coisas do tipo: “Milita, querida,
venha sentar-se a meu lado”, e “Olááá, Beatriz! Não nos encontramos desde
a última convenção! Mas que lindo o seu vestido!”
Achei melhor ficar ali mesmo e deixar que elas fizessem sua reunião
enquanto eu treinava meus ratinhos. Mas, enquanto elas não se
acomodavam nas poltronas, continuei espiando pela fresta do biombo.
Quantas seriam? Achei que deviam ser umas duzentas. As fileiras de trás
foram sendo ocupadas primeiro. Parecia que todas queriam sentar-se o mais
longe possível do palco.
Bem no meio da última fileira havia uma mulher com um chapeuzinho
verde, que ficava o tempo todo coçando a nuca. Ela não conseguia parar.
Fiquei impressionado pelo jeito como seus dedos coçavam furiosamente o
cabelo de trás do pescoço. Se ela soubesse que estava sendo observada,
tenho certeza de que teria ficado muito sem jeito. Fiquei imaginando que
ela devia estar cheia de caspa. De repente, percebi que a mulher a seu lado
estava fazendo a mesma coisa!
E a outra também!
E outra também!
Todas estavam fazendo a mesma coisa. Todas coçavam feito loucas o
cabelo da nuca!
Será que estavam com pulgas no cabelo?
Era mais provável que estivessem com piolho.
Airton, um colega meu, tinha apanhado piolho no semestre anterior, e a
inspetora tinha feito o menino enfiar a cabeça numa bacia cheia de
terebintina. Os piolhos morreram todos, e quase o Airton morreu também.
Ele ficou sem pele na metade do couro cabeludo.
Comecei a ficar fascinado com aquelas mulheres que não paravam de
coçar o cabelo. É sempre muito engraçado a gente pegar alguém fazendo
uma coisa nojenta, e a pessoa nem perceber que está sendo observada. É
como quando alguém enfia o dedo no nariz, por exemplo, ou coça o
traseiro. Coçar a cabeça também é uma coisa desagradável, principalmente
daquele jeito, sem parar.
Cheguei à conclusão de que elas estavam com piolho.

Foi então que aconteceu uma coisa terrível. Uma das mulheres enfiou os
dedos por baixo do cabelo, e todo o seu couro cabeludo ergueu-se de uma
só vez. A mão dela entrou por baixo dos cabelos e continuou a coçar!
Ela estava de peruca! E também estava de luvas! Olhei para todas as
outras mulheres, que agora já estavam acomodadas em seus lugares. Todas
estavam de luvas!
Meu sangue gelou. Meu corpo inteiro começou a tremer. Desesperado,
olhei para trás em busca de uma porta por onde eu pudesse fugir. Nada, não
havia porta nenhuma.
E se eu saísse de trás daquele biombo e disparasse feito um raio na
direção das portas de entrada?
Mas as portas já estavam fechadas, e havia uma mulher diante delas. Com
o corpo um pouco inclinado, ela estava prendendo uma espécie de corrente
metálica em volta das maçanetas.
Fique bem quieto, eu disse a mim mesmo. Ninguém viu você. Não há
motivo para elas virem até aqui, espiar atrás do biombo. Mas um
movimento em falso, uma tossida, um espirro, um soluço, qualquer
barulhinho que você fizer, não é uma bruxa que vai pegá-lo, são duzentas!
Nesse momento, acho que desmaiei. A situação era muito grave para ser
enfrentada por um garotinho. Mas acho que só perdi os sentidos por alguns
segundos, pois quando voltei a mim ainda estava ali, deitado no tapete, e,
graças a Deus, escondido atrás do biombo. À minha volta reinava um
silêncio absoluto.
Tremendo de medo, fiquei de joelhos e voltei a espiar pela fresta do
biombo.
Frrita como um crroquete

Todas as mulheres, ou melhor, todas as bruxas pareciam hipnotizadas.


Estavam imóveis em suas poltronas, olhando para alguém que tinha
aparecido no palco. Esse alguém era outra mulher.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o tamanho de- la. Era
muito baixinha, não devia ter nem um metro e meio. Ela parecia bem
jovem, imaginei que tivesse uns vinte e cinco ou vinte e seis anos, e era
muito bonita. Seu vestido preto era longo e muito elegante, chegava até ao
chão. Suas luvas pretas chegavam até aos cotovelos. Ao contrário das
outras, ela não estava de chapéu.
Para mim aquela mulher não parecia bruxa, mas era impossível que não
fosse, pois senão o que ela estaria fazendo lá em cima do palco? E por que,
meu Deus, todas as outras bruxas estavam olhando fixamente para ela, com
aquela mistura de adoração, medo e respeito?
Lentamente, a jovem levou as mãos até o rosto. Seus dedos enluvados
desprenderam alguma coisa por trás das orelhas, e aí… aí ela deu um
puxão, e seu rosto inteiro se desprendeu! Todo aquele rosto lindo ficou
inteirinho balançando em suas mãos!
Era uma máscara!
Assim que ela tirou a máscara, virou-se para o lado para colocá-la com
todo o cuidado em cima de uma mesinha. Quando ela virou de frente outra
vez, por um triz não deixei escapar um grito de horror.
Seu rosto de verdade era a coisa mais medonha e horripilante que eu já
tinha visto na vida. Só de olhar eu já estava tremendo dos pés à cabeça. Era
um rosto enrugado e encarquilhado, descarnado e macilento, parecia até
picles conservado em vinagre. Era uma visão terrível e apavorante. Dava a
impressão de cadáver, era um rosto asqueroso, nojento, parecia coisa podre.
Era como se estivesse literalmente se decompondo nas extremidades. Em
volta da boca e das bochechas, a pele era toda ulcerada e carcomida pelos
vermes, e era como se um monte de larvas estivesse se revolvendo por
dentro dela.
Há certas coisas que são tão tenebrosas, que nós ficamos hipnotizados,
não conseguimos desviar o olhar. Era o que estava acontecendo comigo. Eu
estava petrificado e congelado. Estava hipnotizado pelo horror indescritível
da aparência daquela mulher. Mas não era só isso. Seus olhos pareciam de
serpente, faiscando daquele jeito em cima do público.
É claro que percebi imediatamente quem era aquela mulher: era a Grã-
Bruxa em pessoa. Também percebi por que ela usava aquela máscara.

Com seu rosto de verdade, ela jamais poderia circular em público, e


muito menos instalar-se num hotel. Qualquer pessoa que a visse sairia
correndo aos berros.
– As porrtass! – berrou a Grã-Bruxa com uma voz que encheu o salão e
fez tremer as paredes. – Estão bem trrancadas e acorrentadas?
– As portas estão trancadas e acorrentadas, Vossa Majestade – respondeu
uma voz que vinha do público.
Os reluzentes olhos de cobra, incrustados no fundo daquele rosto
tenebroso, podre e carcomido pelos vermes, voltaram-se sem piscar para as
bruxas que estavam ali, sentadas diante de sua rainha.
– Podem tirrar as luvas – disse ela aos berros.
A voz dela tinha o mesmo som estridente e metálico da voz da bruxa que
tinha me procurado embaixo do castanheiro. Só que a voz da Grã-Bruxa era
muito mais estridente e possante. Sua voz raspava, rangia e rosnava,
grasnava, grunhia e guinchava.

Todas as mulheres do salão estavam agora tirando suas luvas. Comecei a


observar as mãos das que estavam na última fileira. Estava louco para ver
seus dedos, queria saber se minha avó tinha me falado a verdade. Ah!… e
não é que tinha mesmo?… Eu estava vendo várias mãos! Eram garras
marrons encurvadas nas pontas dos dedos! Tinham quase cinco centímetros
de comprimento, e eram afiadas nas pontas!
– Podem tirrar os sapatoss! – grunhiu a Grã-Bruxa.

Ouvi o suspiro de alívio de todas as bruxas do salão, que começaram a


descalçar os sapatos. Por baixo das poltronas, vi um grande número de pés,
todos eles com meias de seda, quadrados e sem dedos. Eram horríveis,
como se tivessem sido decepados por uma faca afiada.
– Podem tirrar as perrucass! – grasnou a Grã-Bruxa. Ela tinha um jeito
muito especial, parecia, e sotaque estrangeiro. Ela enrolava e engrolava o r
na boca, como se estivesse comendo torresmo quente. Prolongava o s, como
uma cobra sibilando.
– Tirrem as perrucas e recebam um pouco de ar frresco na pele nojenta de
suas cabeças! – gritou ela.
Mais um suspiro de alívio veio do público. Todas as bruxas levaram as
mãos à cabeça, e tiraram as perucas, junto com os chapéus.
Diante de mim apareceram filas e filas de carecas de mulheres, um mar
de cabeças sem um fio de cabelo. Estavam vermelhas e irritadas pelo forro
áspero das perucas. Nem sei descrever o quanto eram horríveis. Além disso,
tudo era ainda mais grotesco porque, embaixo daquelas carecas tenebrosas,
os corpos estavam vestidos com roupas da moda e muito bonitas. Era
monstruoso, era tudo muito esquisito.
“Estou perdido”, pensei. “Socorro! Que Deus tenha piedade de mim!
Cada uma dessas mulheres carecas é uma assassina de crianças, e eu estou
aqui, preso no mesmo salão, sem ter como escapar!”
Foi então que um pensamento novo e duplamente horrível tomou conta
de mim. Minha avó tinha dito que, com suas narinas especiais, elas eram
capazes de farejar uma criança do outro lado da rua, mesmo numa noite
escura como breu. Até agora, minha avó não tinha errado em nada. A
qualquer momento, então, alguma bruxa da fileira de trás ia sentir o meu
cheiro, o grito de “Cocô de cachorro!” iria tomar conta do salão, e eu ia
acabar encurralado como um rato.
Ajoelhei-me sobre o tapete por trás do biombo, sem coragem nem de
respirar.
De repente lembrei outra coisa muito importante que minha avó tinha
dito: “Quanto mais sujo você estiver”, dissera ela, “mais difícil vai ser, para
uma bruxa, sentir o seu cheiro”.
Há quanto tempo eu não tomava banho?
Há séculos. No hotel tinha banheiro no quarto, mas minha avó não estava
nem aí para bobabens desse tipo. Para falar a verdade, acho que eu não
tomava banho desde o dia em que tínhamos chegado.
Quando eu tinha lavado o rosto e as mãos pela última vez? Com certeza,
não tinha sido aquela manhã. E muito menos no dia anterior.
Dei uma olhada nas minhas mãos. Estavam cobertas de manchas de
sujeira, e sabe-se lá do que mais.
Afinal, talvez eu tivesse uma chance de me safar. Era bem possível que as
ondas de fedor não conseguissem atravessar toda a sujeira do meu corpo.
– Brruxas da Inglaterra! – rosnou a Grã-Bruxa. Percebi que ela mesma
não tinha tirado a peruca, nem as luvas e os sapatos. – Brruxass da
Inglaterra! – voltou ela a rosnar.
As bruxas ficaram inquietas, endireitando-se nas poltronas.
– Brruxas orrdinárrias! – berrou ela. – Brruxass inúteis e vagabundas!
Brruxass miserráveiss e desastrradass! Vocês não passam de um monte de
esterrco que não sserrve parra nada!
Um arrepio de pavor passou por todo o público. Não havia dúvida de que
a Grã-Bruxa estava de péssimo humor, e elas sabiam disso.
– Esstou eu tomando meu café da manhã hoje cedo – gritou a Grã-Bruxa
– e o que vejo quando olho pela janela? Estou perguntando a todass: o que
vejo? Vejo uma cena revoltante! Uma multidão de crriancinhass nojentass
brrincando na arreia! Porr pouco não vomitei meu café da manhã! Porr que
vocêss não acabarram com elass? – disse ela aos berros. – Porr que não
trrucidarram todas essas crriançass imundass e fedorrentass?
Cada palavra que ela pronunciava era acompanhada por um verdadeiro
esguicho de um líquido viscoso e meio azulado.
– Esstou perrguntando porr quê! – gritou ela.
Ninguém respondeu nada.
– Crriançass fedem! – berrou ela. – Elas empessteiam o mundo inteirro!
Não querremoss saberr de crriança nenhuma porr aqui!
Todas as cabeças carecas do público fizeram sinal de que estavam de
pleno acordo.
– Parra mim não bassta uma crriança porr ssemana – rosnou a Grã-Bruxa.
– É o máximo que vocêss conseguem fazerr?
– Vamos melhorar – murmurou o público. – Vamos melhorar muito.
– Melhorrar ainda é pouco! – guinchou a Grã-Bruxa. – Exijo o máximo
de eficiência! Parra isso, aqui esstão minhas orrdens! Quando eu voltarr
aqui, dentrro de um ano, querro que todass as crriançass deste paíss tenham
sido varridass do mapa, esganadass, trrucidadass, degoladass e chacinadass!
Estou sendo clarra?
Um murmúrio de inquietação passou por todo o público. Percebi que as
bruxas olhavam umas para as outras com uma expressão muito perturbada.
Então uma delas, que estava na primeira fila, disse bem alto: – Todas as
crianças? É impossível acabarmos com todas elas!
A Grã-Bruxa virou-se bruscamente para o lugar de onde tinham saído
aquelas palavras. Foi como se alguém lhe tivesse dado uma alfinetada no
traseiro. – Quem foi que disse isso? – perguntou ela com os olhos brilhando
de ódio. – Quem é que sse atrreve a discutirr comigo? Foi você, não foi? – e
seu dedo enluvado, com a ponta fina como uma agulha, foi apontado em
direção à bruxa que tinha falado.
– Não foi essa minha intenção, Vossa Majestade – respondeu a bruxa,
tremendo de medo. – Nem pensei em discutir nada! Só estava falando
sozinha!
– Você se atrreveu a disscutirr comigo! – rosnou a Grã-Bruxa.
– Eu só estava falando sozinha! – respondeu, chorando, a bruxa infeliz. –
Juro que não estou mentindo, Vossa Majestade – e seu corpo tremia inteiro
de medo.
A Grã-Bruxa deu um passo à frente, e, quando voltou a falar, sua voz era
tão horrível que meu sangue gelou.
– Essa brruxa estúpida que me retrruca um ssenão. Vai queimarr até seus
ossos virrarem carrvão!
– disse ela aos berros.
– Não, não! – implorava a bruxa da primeira fileira.
Mas a Grã-Bruxa continuou:
– Essa brruxa ssem nenhuma inteligência Merece queimar com toda
inclemência!
– Tenha piedade de mim! – gritou de novo a bruxa desastrada. A Grã-
Bruxa nem tomou conhecimento dela, e voltou a falar:
– Uma brruxa como você me dá assco,E vai sserr assada como
churrassco!
– Peço mil perdões, Vossa Majestade! – gritou a bruxa que tinha caído em
desgraça. Mas a Grã-Bruxa continuou sua terrível ladainha:
– Essa brruxa que de erro ousa me acusarr Porr pouco tempo entrre nóss
vai ficarr!
Assim que ela acabou de falar, seus olhos lançaram faíscas que pareciam
raios incandescentes diretamente contra a bruxa que tinha ousado contrariá-
la. As faíscas a atingiram em cheio e foram queimando todo o seu corpo.
Ela deu um grito tenebroso, e no mesmo instante começou a desaparecer no
meio de uma enorme fumaceira. O salão foi invadido por um cheiro de
carne queimada.
Ninguém se mexia. Como eu, todas estavam olhando para a fumaça, e
quando ela sumiu a poltrona estava vazia. Ainda consegui ver uma coisa
meio branca e transparente, que parecia uma nuvenzinha, subir flutuando
até desaparecer pela janela.
Um grande suspiro elevou-se do público.
A Grã-Bruxa corria o salão com os olhos.
– Essperro que, porr hoje, ninguém mais resolva me contrrariarr – disse
ela.
A resposta foi um silêncio de morte.
– Frrita como um crroquete – disse a Grã-Bruxa. – Cozida como uma
cenoura. Vocêss nunca mais voltarrão a vê-la. Agorra vamoss ao que
interressa.
Fórmula 86 de Ação Retardada para Fazer Ratos

– As crriançass são revoltantess! – berrou a Grã-Bruxa. – Vamos acabarr


com todass! Vamos varrê-las do mapa! Vamos fazerr com que sumam pelos
esgotoss!
– Isso mesmo! Isso mesmo! – respondia o público em coro. – Acabar
com todas! Varrê-las do mapa! Fazê-las sumir pelos esgotos!
– Crriançass são nojentass e fedorrentass! – trovejou a Grã-Bruxa.
– São mesmo! São mesmo! – responderam em coro as bruxas inglesas. –
São todas nojentas e fedorentas!
– Crrianças são porrcass e imundass! – berrou a Grã-Bruxa.
– Porcas e imundas! – gritaram as bruxas, cada vez mais enlouquecidas.
– Crriançass têm cheirro de cocô de cachorro! – guinchou a Grã-Bruxa.
– Que nojo! – gritou o público. – Que nojo, que coisa mais asquerosa!
– E elass são piorress do que cocô de cachorro! – grunhiu a Grã-Bruxa. –
Comparrado com as crriançass, cocô de cachorro tem um perrfume de rosas
e violetas!
– De rosas e violetas! – responderam em coro todas as bruxas. Elas
aplaudiam e explodiam em elogios a cada palavra que vinha do palco.
Pareciam totalmente enfeitiçadas pela oradora.
– Falarr sobre crriançass esstá me deixando enojada – gritou a Grã-Bruxa.
– Fico com ânsiass de vômito só de pensarr nelass! Trragam-me já um
sssaquinho plástico!
A Grã-Bruxa fez uma pausa e olhou fixamente para aquele monte de
rostos ansiosos diante dela. Estavam esperando, e queriam mais.
– Agorra ouçam muito bem! – vociferou a Grã-Bruxa. – Tenho um plano!
Tenho um plano gigantessco parra acabarr com todass asss crriançasss da
Inglaterra!
As bruxas estavam ofegantes e boquiabertas. Viravam-se umas para as
outras, arreganhavam os dentes freneticamente e trocavam uns sorrisinhos
que as deixavam com cara de vampiras.
– Sim! – trovejou a Grã-Bruxa. – Vamoss arrasá-las e massacrrá-lass, e
fazerr com que, de um só golpe, todoss esses fedelhoss fedorrentoss
desaparreçam da Inglaterra!
– Que maravilha! – gritavam as bruxas, aplaudindo sem parar. – Não há
ninguém mais sublime e brilhante do que Vossa Majestade!
– Calem a boca e esscutem! – rosnou a Grã-Bruxa. – Esscutem muito
bem, e nada de trrapalhadass!
As bruxas inclinaram-se todas para a frente, loucas para saber como seria
feita aquela mágica.
– Cada uma de vocêss – trovejou a Grã-Bruxa – vai voltarr
imediatamente parra suas casass e pedirr demissão de seus emprregoss.
Pedirr demissão! Exonerrar-se! Aposentarr-se!
– É o que vamos fazer! – gritaram elas. – Vamos todas pedir demissão!
– E, depoiss que se demitirrem de seus empregoss – continuou a Grã-
Bruxa –, cada uma vai terr que comprarr… – e nesse momento, ela fez uma
pausa.
– O que é que vamos comprar? – gritaram todas. – Diga-nos, ó
Brilhantíssima Majestade, o que é que vamos comprar?
– Confeitarriass! – berrou a Grã-Bruxa.
– Confeitarias! – gritaram elas. – Vamos todas comprar confeitarias! As
piadas de Vossa Majestade são sempre as melhores!
– Cada uma vai comprarr uma confeitarria. E vão comprarr as melhorres
e mais respeitáveis confeitarriass da Inglaterra.
– É o que vamos fazer! – responderam elas. Suas vozes horríveis
pareciam um coro de brocas de dentista rangendo todas ao mesmo tempo.
– Não querro saberr de nenhuma porrcarria de lojinha vagabunda, dessass
onde se vendem cigarros, jorrnais e doces! – disse aos berros a Grã-Bruxa.
– Querro que comprrem as maiss fi nas confeitarriass, com pilhass e mais
pilhass dos mais deliciosos docess e chocolatess!
– Só as melhores! – gritaram elas. – Vamos comprar as melhores
confeitarias da cidade!
– E não vai serr nem um pouco difícil – gritou a Grã-Bruxa –, pois vão
oferrecer um preeço quatrro vezess mais alto, e ninguém vai recusarr uma
oferrta dessass! Como vocêss sabem, dinheirro nunca foi prroblema parra
nóss, brruxas. Comigo chegarram seis caminhões abarrotadoss de dinheiro,
em notass novinhas em folha. E todas elas – acrescentou a Grã-Bruxa, com
um olhar diabólico e malicioso –, todass elas forram feitass em casa!
As bruxas na plateia gostaram da piada, e arreganharam os dentes num
sorriso.
Nesse momento, uma bruxa idiota ficou tão entusiasmada com a ideia de
ter uma confeitaria, que se levantou e começou a gritar. – As crianças virão
aos montes para a minha confeitaria, e aí vou empanturrá-las de doces e
chocolates envenenados e acabar com elas como se fossem baratas!
Um grande silêncio encheu o salão. A Grã-Bruxa empertigou seu
corpinho e ficou dura de ódio. – Quem foi que falou? – guinchou ela. – Foi
você! Você ali!
A culpada sentou-se rapidamente, e cobriu o rosto com as mãos cheias de
garras.

– Sua bessta esstúpida! – rosnou a Grã-Bruxa. – Seu animal desmiolado!


Serrá que não perrcebe que, sse começarr a envenenarr crriancinhass, vai
ser prresa em cinco minutos? Jamais em minha vida ouvi uma brruxa fazerr
uma ssugestão mais imbecil!
O público se encolheu de medo, e as bruxas tremiam inteiras. Tenho
certeza de que todas pensaram, como eu, que dali a um segundo aquelas
faíscas incandescentes iam ser disparadas de novo.
Para minha grande surpresa, não foi o que aconteceu.
– Se uma baboseirra dessass é o máximo em que conseguem pensarr –
trovejou a Grã-Bruxa –, não é de admirrar que a Inglaterra essteja
ferrvilhando de crriancinhass fedorrentas!
Fez-se mais um grande silêncio. A Grã-Bruxa encarou as bruxas sentadas
diante dela. – Vocês então não sssabem – disse ela aos berros – que nós,
brruxass, só trrabalhamos com a magia?
– Sabemos, Vossa Majestade! – responderam todas – É claro que
sabemos!
A Grã-Bruxa esfregou as mãos enluvadas e esqueléticas e gritou: – Pois
então, todas vão comprrar uma confeitarria magnífica! E, logo em seguida,
vão anunciarr, em suas vitrriness, que vai haverr uma Inaugurração em
Grrande Gala, com doces e chocolates de grraça parra todas as crriançass!
– E os fedelhos gulosos virão aos montes! – gritaram as bruxas. – Vão se
pegar aos tapas para ver quem entra primeiro!
– Em seguida – continuou a Grã-Bruxa –, vocês vão se prreparrar parra a
Inaugurração em Grrande Gala, enchendo cada doce e cada chocolate com
minha última e marravilhosa fórrmula mágica! O nome dela é FÓRRMULA 86
DE AÇÃO RETARRDADA PARRA FAZERR RATOS!
– Ação retardada para fazer ratos! – disseram todas em coro. – Vossa
Majestade já inventou mais uma de suas maravilhosas poções para matar
crianças! Como é que vamos prepará-la, ó Brilhantíssima?

– Tenham paciência – respondeu a Grã-Bruxa. – Antes de mais nada, vou


explicarr como funciona minha Fórrmula. Prresstem muita atenção.
– Estamos ouvindo! – gritaram as bruxas, pulando nas poltronas, de tanta
emoção.
– A Ação Retarrdada parra Fazerr Ratoss é um líquido verrde – explicou
a Grã-Bruxa –, e basta uma gotinha em cada doce ou chocolate.
Vejam o que acontece:
– Crriança come chocolate com Ação Retarrdada para Fazerr Ratos…
– Crriança vai parra casa se ssentindo muito
bem…
– Crriança vai parra a cama ainda se ssentindo muito bem…
– Crriança acorrda cedo, e ainda não aconteceu nada…
– Crriança vai parra esscola ssem nenhum prroblema…
– A Fórmula, como eu já lhe disse, é de ação retarrdada, e ainda não
começou a funcionarr.
– Estamos entendo tudo, ó Grã-Sabedoria – gritaram as bruxas. – Mas
quando é que começa a fazer efeito?
– Começa exatamente às nove horrass, quando a crriança esstá chegando
à escola! – gritou triunfalmente a Grã-Bruxa. – A crriança chega à escola.
Mal acabou de chegarr, a Fórmula começa a entrrar em ação. A crriança
começa a encolherr. A crriança vai ficando cheia de peloss. Um rabo
começa a crrescer na crriança. Tudo acontece exatamente em vinte e sseis
ssegundoss. Depois de vinte e seis ssegundoss, a crriança já não é maiss
crriança. É um rato!
– Um rato! – gritaram as bruxas. – Mas que ideia fantástica!
– As salas de aula esstarrão ferrvilhando de ratos! – berrou a Grã-Bruxa.
– O caos e o pandemônio tomarrão conta de todass as escolass inglesas! Os
prrofessorress estarrão pulando num pé só! As prrofessorass estarrão em
cima das mesas, ssegurrando as saias e grritando “Socorro!
Socorro!”
– É assim mesmo que vai ser! – gritava o público.
– E agorra imaginem – gritou a Grã-Bruxa –, o que vai acontecer em
todas as esscolas!
– Diga-nos! – gritaram todas. – Diga-nos sem demora, ó Grã-Sabedoria!
A Grã-Bruxa esticou o pescoço descarnado para a frente e deu um sorriso
pavoroso, deixando à mostra duas fileiras de dentes pontudos e ligeiramente
azulados. Ela levantou a voz, e berrou:
Vão ficarr cheiass de ratoeirass!
– Ratoeiras! – gritaram as bruxas.
– E queijo! – trovejou a Grã-Bruxa. – Todos os prrofessorres, afobados,
vão trazer ratoeirras, colocarr basstante queijo nelas e espalhá-lass pela
esscola toda! Os ratos começam a morrdiscar o queijo! As ratoeirrass
começam a funcionarr! Na esscola inteirra ssó sse ouvem rangidoss e
estaloss, e cabeçass de ratos vão começarr a rolarr pelo assoalho como se
fossem bolinhas de gude! Porr toda a Inglaterra, em cada uma dass
esscolass inglesas, a única coisa que se vai ouvir é o estalo das ratoeirras!
Nesse momento, a velha e asquerosa Grã-Bruxa deu início a uma espécie
de dança das bruxas. Subindo e descendo pelo palco, batia palmas e
marcava o compasso com os pés. O público também começou a bater os pés
e a acompanhar o ritmo com palmas. Era uma zoeira tão grande, que tive
certeza de que o sr. Stringer acabaria ouvindo e viria correndo bater na
porta. Mas nada disso aconteceu.
Foi então que, no meio de todo aquele barulho, ouvi a voz da Grã-Bruxa
guinchando algo que parecia uma horrível canção de triunfo:

– Que morram as crrianças! Acabem com cada uma delas!


Frritem sua pele, joguem seus ossoss em mil panelas!
Trriturrem, essmaguem, despedacem uma por uma!
Exterrminem, aniquilem, esspatifem e trrucidem cada uma!
Oferreçam-lhes docinhoss embebidoss em mágica poção,
Peçam-lhes que comam, fingindo grrande afeição!
Empanturrem todas de docinhos pegajosos,
E que comam achando que ssão maravilhososs.
Depois, bem cedinho, que esses bocós de mola
Ponham-se logo a caminho da escola.
Uma menina se sente mal, a cor vai perdendo
E começa a grritar: “Meu rabo está crrescendo!”
Então grrita um menino, que faz o mesmo currsso: “Socorro! Esstou
ficando mais peludo que um urrsso!”
Outrro grrita: “Estamos virrando monstrrinhos!
Em todos nós vão nascendo bigodess de ratinhoss!”
Um deles, quase da alturra de um caniço,
Chora e diz: “Estou encolhendo, o que serrá isso?”
De repente, quatrro perrninhass começam a despontar
Nas crrianças que antes disso ali estavam a estudarr.
E agorra, como se ratos fossem todoss os seuss paiss,
Não se vê mais uma crriança, só RATOS e nada maiss.
Porr todas as escolas, ratoss em prrofusão,
A correr pelo assoalho em grrande confusão.
E as pobrres prrofessorrass, na mais louca correria,
Dizem aos berross: “De onde saiu toda essa ratarria?”
Sobem nas carrteirrass, de onde grritam sem parrarr: “Forra, bichos
nojentos, ou um porr um vamoss matarr!
Trragam muitas ratoeirrass, porr favorr,
E vamos acabarr já com todo esse horror!”
Chegam as ratoeirrass, e muito queijo num prrato,
E a cada golpe vai esstalando uma cabeça de rato.

As ratoeirrass têm uma mola fatal e incomum


Que cai como um punhal, e lá se foi mais um!
Não há ssom que mais nos possa agrradar,
Nem melhorr música parra uma brruxa esscutarr
Ratos mortoss porr todo o chão,
Pilhass e mais pilhass de montão!
Os mestrress prrocurram depoiss da matança
Mas não há como encontrrar uma só criança!
As prrofessorrass grritam: “O que é isso?
Serrá que nessass crrianças derram ssumiço?
Já passa de nove e meia, mas é o fim!
Elas nunca se atrrasam tanto assim!”
E, como não ssabem mais o que fazerr,
Alguns prrofessorress começam a ler
Enquanto outrros se diverrtem pelo dia aforra
Levando aquele monte de ratoss embora.
VIVA!
GRRITAM AS BRUXAS NA MESMA HORRA.
A receita

Vocês não devem ter esquecido que, enquanto tudo isso acontecia, eu
ainda estava escondido atrás do biombo, de quatro, com o olho grudado
numa fresta. Não sei havia quanto tempo eu estava ali, mas parecia que
desde sempre. O pior era não poder tossir, nem fazer nenhum barulhinho.
Sabendo disso, meu silêncio era total. Além disso, eu estava o tempo todo
apavorado com a ideia de que alguma das bruxas da última fileira pudesse
farejar minha presença com suas narinas especiais.
Minha única esperança era o fato de que já havia muitos dias eu não
tomava banho. E eu também contava com a ajuda daquela barulheira
infernal, daquela agitação e bateção de palmas que pareciam não ter mais
fim. As bruxas não enxergavam nada, além da Grã-Bruxa lá em cima do
palco, e só pensavam em seu grandioso plano para exterminar todas as
crianças da Inglaterra. Certamente não estariam farejando nenhuma criança
ali no salão. Nem nos seus sonhos mais terríveis (se é que as bruxas têm
sonhos) essa ideia lhes teria passado pela cabeça. Fiquei ali quietinho,
rezando.
A tenebrosa canção de triunfo da Grã-Bruxa tinha terminado, e o público,
enlouquecido, gritava: – Brilhante! Sensacional! Maravilhoso! Que gênio, ó
Grã-Sabedoria! Essa Ação Retardada para Fazer Ratos é uma invenção
magnífica! Vai ser o maior sucesso! E o mais incrível é que essas
criancinhas fedorentas vão ser trucidadas pelos seus próprios professores!
Não teremos de fazer nada! Nunca seremos presas!
– As brruxas nunca vão prresass! – berrou a Grã-Bruxa. – E agorra, muita
atenção! Querro todass muito atentas, pois vou ensinarr-lhess a prreparrar a
Fórrmula 86 de Ação Retarrdada parra Fazerr Ratos!
De repente, uma enorme agitação tomou conta do público. Tudo se
transformou numa grande algazarra de berros e guinchos, e vi que muitas
bruxas pulavam, apontando para o palco e gritando:
– Ratos! Ratos! Ratos! Ela nos fez uma demonstração! A Grã-Sabedoria
transformou duas crianças em ratos, e lá estão elas!
Olhei para o palco. Os ratos estavam ali mesmo, e eram dois, correndo
em círculos em volta da barra do vestido da Grã-Bruxa.
Mas não eram ratos-do-mato, nem ratos caseiros, nem ratos-de-paiol,
nem ratos-das-searas: eram ratinhos brancos! Percebi imediatamente que
eram os meus, William e Mary!
– Ratos! – gritou o público. – Nossa rainha fez dois ratos surgirem do
nada! Tragam ratoeiras!
Mandem buscar queijo!
A Grã-Bruxa se abaixou e, como não podia deixar de ser, ficou olhando
surpresa para William e Mary. Curvou-se ainda mais, para ver mais de
perto. Aí empertigou-se toda e gritou:
– Quietass!
As bruxas calaram a boca e se sentaram.
– Não tenho nada a verr com esses ratos! – disse ela, aos berros. – São
ratoss de estimação! É clarro que perrtencem a alguma crriancinha nojenta
que está hospedada nesste hotel! E deve serr um garroto, pois meninass não
costumam terr ratinhoss de estimação!

– Um garoto! – gritaram as bruxas. – Um garotinho nojento e fedorento!


Vamos reduzi-lo a pó! Vamos massacrá-lo! Vamos comer suas entranhas no
café da manhã!
– Silêncio! – berrou a Grã-Bruxa, erguendo as mãos. – Vocês sabem
muito bem que, enquanto estiverrem nesste hotel, não devem chamarr a
atenção de ninguém! Vamoss fazerr o possível parra nos livrrar desse
fedelho fedorrento, mas temos que sserr absolutamente discrretass. Afinal,
não somos as respeitabílissimas senhorras da Real Sociedade parra a
Prrevenção da Crrueldade com Crriançass?
– E qual a sugestão, ó Grã-Sabedoria? – gritaram todas. – Como vamos
nos livrar desse montinho de imundície?
“Elas estão falando de mim”, pensei. “Na verdade, essas mulheres estão
tentando descobrir um jeito de acabar comigo.” Comecei a suar frio.
– Seja lá quem forr esse fedelho, não tem a menorr imporrtância –
anunciou a Grã-Bruxa. – Deixem comigo. Quando eu ssentirr sseu cheirro,
vou trransforrmá-lo num bom pintado, e vamoss todass comê-lo no jantarr.
– Bravo! – gritaram as bruxas. – Corte a cabeça dele, arranque seu rabo e
frite-o em manteiga!
Vocês podem imaginar que tudo aquilo estava me deixando com os
nervos à flor da pele. William e Mary ainda estavam correndo pelo palco, e
vi a Grã-Bruxa dar um pontapé rápido e fulminante em William. Ela o
acertou com a ponta do sapato, e ele saiu voando. Em seguida, fez o mesmo
com Mary. Ela tinha uma pontaria extraordinária, e seria uma grande
jogadora de futebol. Os dois ratinhos foram bater na parede e, por alguns
momentos, ficaram meio atordoados. Mas logo se levantaram e saíram em
disparada.
– Atenção outrra vez! – estava gritando a Grã-Bruxa. – Vou agorra
ensinarr-lhess a receita parra o prreparro da Fórmula 86 de Ação Retarrdada
parra Fazerr Ratos! Todas com lápis e papel na mão!

Bolsas se abriram por todo o salão, e de dentro delas foram tirados


montes de cadernos.
– Dê-nos a receita, ó Grã-Sabedoria! – gritava o público, impaciente. –
Transmita-nos o segredo.
– Prrimeirro – disse a Grã-Bruxa –, prrecisei descobrrir alguma coisa que
fizesse as crriançass se encolherrem rapidamente.
– E que coisa é essa? – gritaram as bruxas.
– Isso foi muito ssimples – disse a Grã-Bruxa. – Para encolherr uma
crriança, é só fazê-la olharr pelo telescópio virado ao contrário.
– Ela é uma maravilha – gritou o público. – Quem mais poderia ter
pensado numa coisa dessas?
– Porrtanto, peguem a extrremidade contrária de um telescópio –
continuou a Grã-Bruxa –, e a ponham parra ferrver até ficarr bem macia.
– Quanto tempo demora? – perguntaram as bruxas.
– Vinte e uma horrass de ferrvurra – respondeu a Grã-Bruxa. – Enquanto
ela ferrve, peguem exatamente vinte e cinco ratinhoss marronss e corrtern
seus raboss com uma faca bem afiada. Em seguida, frritem os raboss em
óleo de cabelo, até ficarrem bem tostadoss.
– E o que fazemos com os ratos de rabo arrancado? – perguntaram as
bruxas.

– Vocês vão cozinhá-loss por uma horra, em fogo brrando e em suco de


saposs – foi a resposta. – Mas ouçam bem. Até aqui, ensinei-lhess a parrte
mais fácil da receita. O grrande prroblema vai serr colocarr o que vai
resultarr numa verrdadeirra ação retarrdada, uma coisa que as crriançass
poderrão comerr, mas que ssó vai começarr a funcionarr às nove horras da
manhã seguinte, quando chegarrem às escolass.
– Qual foi a solução encontrada, ó Grã-Sabedoria? – gritaram todas. –
Conte-nos o grande segredo.
– O ssegrredo – anunciou triunfalmente a Grã-Bruxa – é um
desperrtadorr!
– Um despertador! – gritaram elas. – Que lance de gênio!
– Vocêss podem regularr um desperrtadorr de vinte e quatrro horras parra
o dia de hoje, e seu alarrme vai disparrar exatamente às nove horrass de
amanhã.
– Mas vamos precisar de cinco milhões de despertadores! – gritaram as
bruxas. – Precisaremos de um para cada criança!

– Idiotass! – berrou a Grã-Bruxa. – Quando a gente querr um bife, não


prrecisa frritar a vaca inteirra! E o mesmo acontece com oss
desperrtadorres. Um relógio é o ssuficciente parra mil crriançass.
Vejam bem o que é prreciso fazerr. Regulem o alarrme parra desperrtarr
às nove horrass da manhã seguinte. Depois levem-no ao forrno, até ficarr
bem macio e tostado. Estão anotando tudo?
– Estamos, Vossa Majestade, estamos! – gritaram elas.

– Em seguida – disse a Grã-Bruxa –, peguem o telescópio cozido, os


rabinhoss de rato frritoss e os ratoss cozidoss, misturrem tudo e coloquem
na batedeirra. Ponham na velocidade máxima, parra misturrar bem. O
resultado vai serr uma massa bem grrosssa. Enquanto a batedeirra ainda
estiverr ligada, coloquem a gema de um ovo de pássaro-croca.
– Um ovo de pássaro-croca! – gritaram as bruxas. – Ótimo! Vamos fazer
isso mesmo!

Em meio a toda aquela balbúrdia, ouvi uma bruxa, na última fileira, dizer à
que estava sentada a seu lado: – Já estou muito velha para andar subindo em
árvores atrás de ninhos de pássaros. Aquelas crocas cor de fogo sempre
fazem seus ninhos muito no alto.

– Pois então misturrem os ovos – continuava a Grã-Bruxa –, e também


misturrem, uma depois da outrra, as seguintess coisass: a garra de um
esmaga-carranguejo, o ferrão de um gafanhão-marrítimo, a trromba de um
elefante-borrbotão e a língua de um gato-ssaltadorr. Tenho cerrteza de que
não vai serr difícil encontrrar esses bichos.

– Vai ser facílimo! – gritaram todas. – Vamos atravessar com uma lança o
gafanhão-marítimo, armar uma arapuca para o esmaga-caranguejo, mandar
bala no elefante-borbotão e agarrar o gato-saltador.

– Excelente! – disse a Grã-Bruxa. – Quando terrminarrem de misturrar


tudo na batedeirra, esstarrão diante de um marravilhoso líquido verrde.
Coloquem uma gota, só uma gotinha desse líquido num doce ou num
chocolate, e às nove horas da manhã sseguinte a crriança que comê-lo vai
sse trransforrmar num rato em vinte e seiss segundos! Mas fica um aviso:
nunca aumentem a dose. Nunca ponham mais de uma gota em cada doce ou
chocolate. E nunca oferreçam mais de um doce ou chocolate parra cada
criança. Uma dose excessiva de Ação Retarrdada parra Fazerr Ratos vai
bagunçarr toda a regulagem do tempo do desperrtadorr, e a crriança vai
virrar rato antes do tempo. Uma dose maior ainda poderria ter até mesmo
um efeito instantâneo, e não é isso que vocês querrem, não é mesmo? Vocês
não iam querrer que as crriançass começassem a virrar ratoss bem ali nas
suas confeitarriass. Isso porria tudo a perrderr. Porrtanto, muito cuidado!
Nada de dosess excessivass!
O sumiço de Bruno Jenkins

Grã-Bruxa estava recomeçando a falar.


– Agorra vou prrovar parra vocêss que esta receita funciona
perrfeitamente. Vocêss já sabem que podem ajustarr o desperrtadorr parra
qualquerr horra que quiserrem. Não prrecisa ser parra as nove horrass.
Assim, ontem prreparrei pessoalmente uma pequena quantidade da fórrmula
mágica, parra fazerr uma demonsstrração pública. Mas fiz uma pequena
alterração na receita. Antes de assarr o relógio, ajustei-o para dessperrtar àss
trrês e meia da tarrde seguinte, ou seja: às trrês e meia da tarrde de hoje. E
isso vai acontecerr – disse ela, olhando para seu relógio de pulso – dentrro
de exatamente ssete minutos!
As bruxas da plateia ouviam com toda atenção, percebendo que alguma
coisa terrível ia acontecer.
– E o que é que fiz ontem com esse líquido mágico? – perguntou a Grã-
Bruxa. – Vou contarr tudo dirreitinho. Coloquei uma gotinha dentrro de
uma deliciosa barra de chocolate, e a ofereci a um garrotinho assquerroso e
fedorrento que esstava no ssaguão do hotel.
A Grã-Bruxa fez uma pausa. O público estava em silêncio, esperando que
ela continuasse.
– Fiquei olhando parra aquele fedelhinho repugnante enquanto ele
devorrava a barra de chocolate, e quando acabou perrguntei: “Esstava
bom?”, e ele disse que estava uma delícia. Assim, perrguntei de novo: “Não
querr maiss?”, e ele respondeu que sim. Então eu disse: “Vou dar-lhe seiss
barrass de chocolate iguais a essa. É ssó me prrocurrar no Salão de Baile
desste hotel amanhã à tarrde, às trrês e vinte e cinco.” “Seiss barras!”,
grritou o porrquinho imundo e guloso. “Pode me esperar? Vou estar lá sem
falta, na hora marcada!”
– Porrtanto, o espetáculo já está montado! – gritou a Grã-Bruxa. – A
prrova dos nove já vai começarr! Não se esqueçam de que ontem, antess de
assarr o desperrtadorr, ajustei-o parra disparrarr às trrêss e meia de hoje. E
agorra – ela olhou de novo para o seu relógio – ssão exatamente trrêss e
vinte e cinco, e o asquerrosinho que vai virrar rato daqui a cinco minutos já
deve estarr ali, do lado de forra da porrta!
Por todos os demônios, ela estava absolutamente certa. O menino, fosse
quem fosse, já estava mexendo na maçaneta e batendo de leve na porta.
– Rápido! – guinchou a Grã-Bruxa. – Ponham suass perrucass! Calcem
ass luvass e oss sapatoss!
Houve um grande alvoroço enquanto as bruxas, muito afobadas, punham
perucas, luvas e sapatos. A própria Grã-Bruxa pegou sua máscara e cobriu
seu rosto asqueroso. Era incrível como aquela máscara a transformava.
Como num passe de mágica, num instante ela voltou a ser uma mulher
jovem e linda.
– Quero entrar! – gritava o menino lá de fora. – Onde estão as barras de
chocolate que você me prometeu? Vim buscá-las! Quero as seis!
– Ele não é ssó fedorrento, também é muito guloso – disse a Grã-Bruxa. –
Tirrem as correntess da porrta e façam o pesstinha entrar.
O mais incrível é que os lábios da máscara se moviam com toda a
naturalidade quando a bruxa falava. Ninguém nunca iria perceber que era
uma máscara.
Uma das bruxas se levantou e soltou as correntes, abrindo as duas
grandes portas. Então a ouvi dizer: – Olá, garotinho! Que bom que você
veio! Está querendo suas barras de chocolate, não é mesmo? Estão todas
aqui, prontinhas para você. Pode entrar, meu querido.
Um garotinho de camiseta branca, short cinza e tênis entrou no salão.
Reconheci-o imediatamente. Chamava-se Bruno Jenkins, e estava no hotel
com os pais. Eu nem ligava para ele. Era um desses meninos que estão
sempre comendo alguma coisa. Quando a gente o encontrava no saguão do
hotel, ele estava com a boca cheia de pão de ló; quando passava por ele no
corredor, devorando montes de batatinhas fritas; dava de cara com ele no
jardim do hotel, e era a mesma coisa: Bruno estava comendo vorazmente
uma barra de chocolate, e outras já apontavam nos bolsos de sua calça.
Além disso, ele não parava de dizer que seu pai ganhava muito mais que o
meu, e que eles tinham três carros na família. Mas o pior não era isso. No
dia anterior eu o tinha visto ajoelhado no terraço do hotel, com uma lente de
aumento na mão. Uma fileira de formigas estava passando, e Bruno,
deixando a luz do sol atravessar a lente, estava torrando uma por uma, todas
as formigas. – Gosto de vê-las pegar fogo – ele disse. – Isso é horrível! Pare
com isso! – eu respondi. – Vamos ver se você é capaz de me fazer parar –
disse ele. Então eu lhe dei um empurrão com toda a força, e ele foi se
esborrachar nas lajes. A lente de aumento se despedaçou, e ele se levantou,
gritando: – Meu pai vai lhe dar uma surra por isso! – e depois saiu
correndo, provavelmente para ir chamar o paizinho rico. Tinha sido a última
vez que eu tinha encontrado Bruno Jenkins. Embora não acreditasse muito
que ele seria transformado em rato, confesso que, no fundo, era exatamente
isso que eu estava querendo que acontecesse. Seja como for, eu não o
invejava nem um pouco por estar ali, nas mãos de todas aquelas bruxas.
– Querridinho – disse ternamente a Grã-Bruxa, lá de cima do palco –,
seuss chocolatess estão aqui, prrontinhos parra você. Mas prrimeirro venha
até aqui e cumprrimente todass essas senhorrass encantadorras.
Sua voz tinha mudado completamente. Era suave e terna, toda melosa.
Bruno ficou olhando, um pouco assustado, mas permitiu que o levassem
para o palco. Aproximou-se da Grã-Bruxa e disse: – Muito bem, onde estão
minhas barras de chocolate?
Então vi que a bruxa que tinha introduzido Bruno no salão estava
colocando silenciosamente as correntes nas maçanetas. Bruno não percebeu
nada. Só pensava em pegar seus chocolates.
– Agorra falta um minuto parra as trrêss e meia! – anunciou a Grã-Bruxa.
– Que história é essa? – perguntou Bruno. Ele não estava com medo, mas
também não estava muito à vontade. – Que negócio é esse? – disse ele. –
Pode ir dando meus chocolates!
– Faltam trrinta segundoss! – gritou a Grã-Bruxa, agarrando Bruno pelo
braço. Bruno se soltou e olhou fixamente para ela, que por sua vez não
tirava os olhos dele, sorrindo com aqueles lábios da máscara. Todas as
bruxas da plateia olhavam para Bruno.
– Vinte segundoss! – gritou a Grã-Bruxa.
– Quero meus chocolates! – gritou Bruno, começando a desconfiar de
alguma coisa. – Dê-me os chocolates e tire-me daqui!
– Quinze segundoss! – gritou a Grã-Bruxa.

– Será que alguma dessas loucas poderia me dizer o que está


acontecendo? – disse Bruno.
– Dez segundos! – gritou a Grã-Bruxa. – Nove… oito… sete… seis…
cinco… quatrro… trrês… dois… um… zerro! Chegamos ao ponto de
ignição!
Eu podia jurar que tinha ouvido o som de um despertador. Vi Bruno dar
um salto. Saltou como se alguém lhe tivesse enfiado um alfinete no traseiro,
e gritou: – Ai!
Foi um pulo tão alto, que Bruno foi parar em cima de uma mesinha que
estava ali no palco. Lá ele ficou dando pulos, abanando os braços e
berrando sem parar. Então, de repente, ficou quieto. Todo o seu corpo se
empertigou.
– O alarrme já disparrou! – guinchou a Grã-Bruxa. – A Fórmula para
Fazerr Ratoss está começando a funcionarr! – e ela saiu pulando pelo palco,
batendo palmas com suas mãos enluvadas. Em seguida pôs-se a cantar:

– Essa coisa nojenta, esse lixo imundo


Esse asquerroso verrmezinho
Vai trransformarr-se num segundo Num adorrável RATINHO!

Bruno ia diminuindo a cada segundo. Ele encolhia a olhos vistos…


Agora parecia que suas roupas estavam desaparecendo, e pelos marrons
começavam a crescer por todo o seu corpo…
De repente, um rabo…
Depois nasciam bigodinhos…
Em seguida, quatro pés…
Tudo acontecia rapidamente…
Era só uma questão de segundos…
E, quando vi, ele não estava mais ali…
Um ratinho marrom corria por cima da mesa…
– Bravo! – gritaram as bruxas. – Ela conseguiu! Funciona mesmo!
Fantástico! Inacreditável! É o máximo! Que milagre, ó Grã-Sabedoria!
Em pé, as bruxas aplaudiam feito loucas, e foi então que a Grã-Bruxa
tirou uma ratoeira de algum lugar do vestido, e começou a armá-la.
“Não!”, eu pensei. “Não quero ver uma coisa dessas! Bruno Jenkins pode
ter sido um horror de criatura, mas não sou nenhum monstro para ficar aqui
olhando sua cabeça ser decepada!”
– Onde está ele? – disse a Grã-Bruxa, procurando pelo palco. – Onde é
que esse rato sse meteu?
Não houve jeito de achá-lo. O espertinho devia ter pulado da mesa e se
escondido em algum canto, ou quem sabe em algum buraco. Graças a Deus!

– Não faz mal! – berrou a Grã-Bruxa. – Calem a boca e todass sentadass!


As mais velhas

A Grã-Bruxa colocou-se bem no centro do palco, e seus olhos terríveis


foram passando devagarinho por todas as bruxas, tão submissas diante dela.
– Quem tiver maiss de ssetenta anos levante ass mãos! – vociferou ela de
repente.
Sete ou oito mãos se ergueram.
– Tenho a imprressão – disse a Grã-Bruxa – de que vocêss, as mais
velhass, não vão serr capazess de subirr em árrvorres muito altas em busca
de ovos de pássaro-crroca.
– E não seremos mesmo, Vossa Majestade! Achamos isso impossível para
nós! – responderam em coro as mais velhas.
– E também não consseguirrão pegarr o esmaga-carranguejo, que vive em
penhascos muito escarrpados – continuou a Grã-Bruxa. – Não consigo
imaginá-las correndo atrrás do ágil gato-saltadorr, e muito menos
merrgulhando em águass prrofundass atrrás do gafanhão-marrítimo, ou,
ainda, arrastando-se pelos pântanos deserrtoss com uma esspingarrda
debaixo do brraço parra mandar bala no elefante-borrbotão. Vocêss estão
velhas e frracass demais parra essas coisass.
– Estamos mesmo – responderam as mais velhas. – Estamos velhas,
muito velhas!
– Vocêss, as mais velhas, já me serrvirram muito bem porr muitos anos –
disse a Grã-Bruxa –, e não querro negarr-lhess o prrazerr de acabarrem com
alguns milharress de crriançass só porrque agorra ficarram velhass e
frracass. Assim, prreparrei com minhas prróprrias mãos uma cerrta
quantidade de Ação Retarrdada parra Fazerr Ratos, e vou distribuí-la às
mais velhas antes que deixem o hotel.
– Oh, obrigada, muito obrigada! – gritaram as bruxas velhas. – A
bondade de Vossa Majestade não tem limites! Quanta gentileza e atenção!
– Aqui está uma pequena amostrra do que vou lhess darr – berrou a Grã-
Bruxa. Remexeu no fundo do bolso do vestido, e de lá tirou uma garrafinha.
Ergueu-a e gritou: – Esta minúscula garrafa contém quinhentass dosess da
Fórrmula parra Fazerr Ratos! Com isso já dá parra trransforrmarr
quinhentass crriançass em ratoss!
O vidrinho era azul escuro, e era bem pequeno, quase do tamanho
daqueles vidros de remédio de desentupir nariz que a gente compra em
qualquer farmácia.
– Cada uma dass mais velhass vai ganharr duass dessas garrafinhass –
disse ela aos berros.
– Obrigada, obrigada, ó Mui Generosa Grã-Sabedoria! – responderam as
bruxas em coro. – Não vamos desperdiçar uma só dessas gotas! Cada uma
de nós promete trucidar, despedaçar e dilacerar mil crianças!
– Nossa convenção chegou ao fim – anunciou a Grã-Bruxa. – Aqui está o
esquema de atividadess parra o tempo que vocêss ainda perrmanecerrem
neste hotel: agorra, sem mais demorra, vamoss todas tomarr chá no terraço
solarr com aquele gerrente ridículo. Em seguida, às seiss da tarde, ass
brruxass muito velhass parra subir nas árrvorress atrráss de ovos de pássaro-
croca vão passarr pelo meu quarrto parra eu darr duas garrafinhass da
Fórmula para cada uma. Guarrdem bem o número de meu quarrto: 454. E
depois, às oito horras, vamoss todas noss reunirr na sala de jantarr. Somoss
as encantadorras senhorrass da RSPCC, e duas grrandess mesas forram
especialmente prreparradasss parra nóss. Mas não se esqueçam de colocarr
tampõess de algodão nos seuss narrizes. Aquela sala de jantarr vai estarr
ferrvilhando de crriancinhas fedorrentass, e sem os tampõess o cheirro vai
ficarr intolerrável. Além disso, não sse esqueçam de manterr um
comporrtamento norrmal o tempo todo. Está tudo bem claro? Alguma
dúvida?
– Tenho uma dúvida, Vossa Majestade – disse uma voz. – O que
acontecerá se um dos chocolates que vamos vender em nossas confeitarias
for comido por um adulto?
– Azarr dele – disse a Grã-Bruxa. – A reunião está encerrada! Todass
parra forra!
As bruxas se levantaram e começaram a pegar suas coisas. Continuei
olhando pela fresta do biombo, desejando do fundo do coração que elas
fossem embora o quanto antes, para eu poder me sentir são e salvo.
– Esperem! – guinchou uma das bruxas da última fileira. – Não saiam
ainda! – Aquela voz espremida ecoou pelo salão de baile como o som de
um clarinete. De repente, todas as bruxas pararam e se voltaram para a que
tinha gritado. Era uma das mais altas, e de onde eu estava dava para vê-la
em pé, a cabeça inclinada para trás e o nariz farejando sem parar. Ela
respirava fundo, abrindo e fechando aquelas narinas curvas, rosadas,
lembrando caramujo do mar.
– Esperem! – gritou ela, mais uma vez.
– O que está acontecendo? – gritaram as outras.
– Cocô de cachorro! – vociferou ela. – Estou sentindo cheiro de cocô de
cachorro!
– Impossível! – responderam as outras. – Não pode ser!
– Estou sim! –gritou a primeira bruxa.
– Que cheiro! Não é muito forte, mas está no ar! Tenho certeza! E está
bem perto de nós!
– O que esstá acontecendo aí? – trovejou a Grã-Bruxa, lançando um olhar
feroz lá de cima do palco.
– Mildred está sentindo cheiro de cocô de cachorro, Vossa Majestade –
disse-lhe uma das bruxas.
– Que histórria é essa? – gritou a Grã-Bruxa. – Ela tem é cocô de
cachorro no cérrebrro! Não há nenhuma crriança neste ssalão!
– Esperem! – gritou a bruxa chamada Mildred. – Esperem todas! Não se
movam! Estou sentindo de novo! – e suas narinas curvas e enormes se
agitavam como rabo de peixe. – Está ficando mais forte! Está me atingindo
em cheio! Como é que vocês não conseguem sentir?Todos os narizes de
todas as bruxas do salão se ergueram, e todas as narinas começaram a
aspirar e a farejar.
– Ela tem razão! – gritou mais uma voz. – Tem absoluta razão! É cheiro
de cocô de cachorro, e dos mais fortes e fedorentos!

Em questão de segundos, todas as bruxas estavam repetindo o pavoroso


grito: “cocô de cachorro”.
– Cocô de cachorro! – gritavam elas. – O salão está empesteado! Que
nojo! Que asco! Como é que não farejamos antes? Tem cheiro de esgoto!
Algum porquinho imundo deve estar escondido por perto!
– Trratem de achá-lo! – berrou a Grã-Bruxa. – Sigam ssua pista pelo
cheirro! Arranquem esse fedelho de onde ele esstiverr! Sigam os seuss
narrizess até conseguirrem achá-lo!
Meus cabelos começaram a ficar em pé como os pelos de uma escova, e
um suor frio escorria por todo o meu corpo.
– Descubrram onde está escondido esse monte de essterrco! – berrava e
guinchava a Grã-Bruxa. – Não o deixem esscaparr! Se ele essteve aqui o
tempo todo, viu coisas absolutamente secrretass! É prreciso acabarr com ele
agorra mesmo!
A metamorfose

Lembro-me que pensei: “Agora não tenho como escapar! Mesmo que eu
sair correndo e conseguir me desviar de todas elas, as portas estão trancadas
e acorrentadas, e não vou ter como fugir! Estou frito! É o fim! Oh, vovó, o
que elas vão fazer comigo?”
Olhei para o lado e vi o rosto tenebroso, pintado e empoado de uma
bruxa. Ela me viu, escancarou a boca e berrou, triunfante: – Aqui está ele!
Atrás do biombo! Venham pegá-lo!
A bruxa estendeu a mão enluvada e me agarrou pelos cabelos, mas
consegui me safar e saí correndo feito louco. Como eu corri! O terror me
fez criar asas nos pés! Atravessei o salão de baile numa corrida só, e
nenhuma delas conseguiu me pegar. Quando cheguei à porta, parei e tentei
abri-la, mas a corrente estava tão firme, que nem se mexeu.
As bruxas não se preocuparam em correr atrás de mim. Ficaram paradas,
em pequenos grupos, olhando para mim, pois tinham certeza de que eu não
tinha escapatória. Muitas tapavam o nariz com os dedos enluvados, e eu
ouvia seus gritos: – Que nojo! Que mau cheiro! Não vai dar para aguentar
muito tempo!
– Poiss então tratem de agarrá-lo! – berrou a Grã-Bruxa lá de cima do
palco. – Forrmem uma roda em volta do salão, e vão fechando o círrculo até
agarrá-lo! Encurralem esse fedelhinho assquerroso, agarrem-no e trragam-
no aqui parra mim!
Foi exatamente isso que as bruxas fizeram. Foram todas avançando na
minha direção. Umas vinham de uma extremidade do salão, outras me
cercavam por outro lado, outras ainda se aproximavam depois de atravessar
as fileiras de poltronas vazias. Estavam quase me pegando. Eu já estava
encurralado.
Fui tomado pelo mais puro e absoluto terror, e comecei a berrar. –
Socorro – eu gritava sem parar, virando a cabeça para a porta na esperança
de que alguém me ouvisse. – Socorro! Socorro!
S-o-c-o-r-r-o!
– Peguem esse moleque! – gritou a Grã-Bruxa. – Agarrem-no! Ele que
parre de grritarr!
Então elas avançaram para cima de mim, e umas cinco me agarraram
pelos braços e pelas pernas e me levantaram bem alto. Continuei a gritar,
mas uma delas tapou minha boca com a mão enluvada, e tive de ficar
quieto.
– Trragam-no até aqui! – gritou a Grã-Bruxa. – Trragam esse
verrmezinho esspião parra perrtinho de mim!

Fui levado para o palco com os braços e pernas imobilizados por muitas
mãos, e ali fiquei suspenso no ar, olhando para o teto. Vi a Grã-Bruxa
aproximar seu rosto de mim, arreganhando os dentes num sorriso tenebroso.
Levantou bem alto a garrafinha da Fórmula para Fazer Ratos, e então disse:
– Agorra, um pouquinho de remédio! Aperrtem sseu nariz, parra ele abrrir
bem a boca!
Dedos muito fortes apertaram com força meu nariz. Continuei com a
boca fechada e prendi a respiração, mas era impossível aguentar por muito
tempo. Parecia que meu peito ia explodir. Abri a boca para respirar
rapidamente um pouco de ar, e foi então que a Grã-Bruxa despejou todo o
conteúdo da garrafinha pela minha goela abaixo!
Ah, a dor e o fogo! Era como se uma chaleira de água fervente tivesse
sido despejada na minha boca. Minha garganta estava pegando fogo! Num
piscar de olhos, aquela sensação de brasa incandescente começou a se
espalhar pelo meu peito e pela minha barriga, logo desceu para os braços e
as pernas, e de repente tomou conta do meu corpo inteiro! Comecei a gritar
de novo, mas logo meus lábios foram tapados por uma mão enluvada. Logo
depois, comecei a sentir que minha pele estava encolhendo. Como poderei
descrever o que estava acontecendo? Era, literalmente, uma contração e um
encolhimento da pele do corpo inteiro, da ponta da cabeça até as pontas dos
dedos das mãos e dos pés! Era como se eu fosse um balão de borracha, e
alguém estivesse retorcendo a boca do balão, e ele estivesse diminuindo e
se apertando, contraindo e comprimindo. O balão ia acabar estourando!
Foi então que começou o esmagamento. Agora eu tinha a sensação de
estar dentro de um terno de ferro e que alguém estivesse apertando um
parafuso. A cada volta do parafuso o terno de ferro ia ficando menor, e eu ia
sendo espremido como uma laranja, com o suco escorrendo por todos os
lados.
Depois, veio uma sensação horrível de picadas por toda a minha pele (ou
o que restava dela), como se, a partir de dentro do meu corpo, agulhas
minúsculas estivessem abrindo caminho para chegar à superfície. Hoje sei
que aquilo eram os pelos de rato crescendo.
Lá longe, ouvi a voz da Grã-Bruxa gritando: – Cinco mil dosess! Esse
pesstinha nojento tomou cinco mil dosess, e o desperrtadorr despedaçou-se,
e o que estamos vendo agora chama-se ação instantânea!
Ouvi aplausos e gritos de alegria, e lembro-me de ter pensado: “Eu não
sou mais eu! Fui arrancado de minha própria pele!”
Percebi que o assoalho estava a poucos centímetros do meu nariz.
Percebi também um par de patinhas pequenas e peludas pousadas no
chão. E eu era capaz de mover aquelas patinhas. Elas eram minhas!
Naquele momento, percebi que eu já não era um garotinho. Eu era um
RATO.
– Agorra vamos à ratoeirra! – ouvi a Grã-Bruxa gritar. – Tenho uma aqui
comigo, e também um pedaço de queijo!

Mas aquilo eu não ia ficar esperando. Disparei como um raio pelo palco.
Minha velocidade era inacreditável! Fui driblando pés e mais pés de bruxas
à esquerda e à direita e, num piscar de olhos desci as escadas, pulei para o
assoalho do salão de baile e corri entre as fileiras de poltronas quase sem
tocá-las com as patas. O que mais me agradava era que eu corria sem fazer
barulho nenhum. Eu tinha me transformado num corredor rápido e
silencioso. E, para meu grande espanto, a dor tinha desaparecido
totalmente, e eu me sentia extraordinariamente bem. “Afinal”, pensei
comigo mesmo, “não é nada mau ser minúsculo e tão veloz quando um
bando de mulheres perigosas está querendo arrancar a pele da gente.”
Escolhi uma das pernas de trás de uma poltrona, enfiei-me ali e fiquei bem
quietinho.
Bem lá longe, a Grã-Bruxa gritava: – Esqueçam essa coisinha
dessprrezível! Não vale a pena sse prreocuparr com esse trraste! Agorra não
passa de um rato! Logo maiss alguém vai darr um jeito nele! Vamos sairr
daqui! A reunião está encerrada! Destrravem as porrtas e vamos parra o
terraço solarr, tomarr chá com aquele gerrente idiota!
Bruno

Dei uma espiada em volta da perna da cadeira, e vi centenas de pés de


bruxas atravessando as portas do salão de baile. Quando todas tinham saído
e tudo ficou absolutamente silencioso, comecei a explorar o assoalho com o
máximo de cuidado. De repente, lembrei-me de Bruno. Com certeza ele
estava por perto. – Bruno! – eu chamei.
Eu não esperava que, como rato, eu fosse capaz de falar, e levei o maior
susto da vida quando ouvi minha própria voz saindo da minha boquinha.
Era uma voz normal, e continuava bastante forte.
Foi maravilhoso. Fiquei emocionado. Tentei de novo: – Bruno Jenkins,
onde está você? – chamei bem alto. – Se estiver me ouvindo, dê um grito!
Não recebi resposta.
Fiquei zanzando por ali, tentando me acostumar com o fato de estar agora
tão perto do chão. Cheguei à conclusão de que a coisa até que era muito
boa. Talvez vocês estejam se perguntando por que eu não estava deprimido.
Comecei a pensar: “Afinal, o que existe de tão maravilhoso no fato de ser
um garotinho? E por que ser menino é necessariamente melhor do que ser
rato? Sei que os ratos são caçados, e às vezes são envenenados ou caem em
ratoeiras. Mas às vezes meninos também morrem. Eles podem ser
atropelados, ou morrer de alguma doença terrível. Menino precisa ir à
escola. Rato não. Rato não precisa fazer provas. Rato não precisa se
preocupar com dinheiro. Pelo que sei, os ratos só têm dois inimigos: os
gatos e os seres humanos. Minha avó é um ser humano, mas tenho certeza
de que ela vai me amar para sempre, seja eu o que for. E, graças a Deus, ela
nunca tem gatos. Quando os ratos crescem, eles não têm de ir para a guerra
e lutar contra outros ratos.” Eu não tinha a menor dúvida de que os ratos
gostam muito uns dos outros; e isso não acontece com as pessoas.
“É”, disse eu a mim mesmo, “não vejo nenhum mal em ser rato.”
Enquanto eu pensava essas coisas, perambulando pelo assoalho do salão
de baile, dei de cara com outro rato. Estava ali bem quietinho, segurando
um pedaço de pão nas patas dianteiras e mordiscando com grande
satisfação.
Só podia ser o Bruno.
– Olá, Bruno – disse eu.
Ele me olhou fixamente por uns dois segundos, e depois continuou a
comer.
– O que foi que você encontrou? – perguntei.
– Uma delas deixou cair – respondeu ele. – É sanduíche de patê de peixe.
Bom demais.
A voz dele também estava perfeitamente normal. Mesmo admitindo que
rato pudesse falar, qualquer um imaginaria que sua voz fosse fininha e
estridente. Era muito engraçado ouvir a voz forte do Bruno saindo daquela
gargantinha de rato.
– Escute aqui, Bruno – eu disse. – Agora que nós viramos ratos, acho
bom começarmos a pensar um pouco em nosso futuro.
Ele parou de comer e olhou para mim fixamente, com aqueles olhinhos
pretos.
– O que é que você quer dizer com nós? – disse ele. – O fato de você ter
virado rato não tem nada a ver comigo.
– Mas você também é rato, Bruno.

– Não seja idiota – ele disse. – Eu não sou um rato.


– Acho que é, Bruno.
– Não sou mesmo! – gritou ele. – Por que é que você está me insultando?
Não lhe fiz na da de mau! Por que você está me chamando de rato?
– Você não sabe o que lhe aconteceu? – perguntei.
– Do que você está falando? – respondeu Bruno.
– Então devo informá-lo – disse eu – de que, há pouco tempo, as bruxas
transformaram você num rato, e depois fizeram o mesmo comigo.
– É mentira! – gritou ele. – Não sou rato!
– Se não estivesse tão ocupado em se empanturrar com esse pedaço de
sanduíche – disse eu –, você já teria percebido que tem umas patinhas
peludas. Dê uma olhada.

Bruno olhou para suas patas e deu um pulo. – Minha nossa – gritou ele.
– Eu sou um rato! Espere só até meu pai ficar sabendo disso!
– Talvez ele ache que você melhorou – disse eu.
– Não quero ser rato! – berrava Bruno, pulando feito louco. – Recuso-me
a ser rato! Sou Bruno Jenkins!
– Existem coisas piores do que ser rato – disse eu. – A gente pode viver
num buraco.
– Não quero viver num buraco! – gritou Bruno.
– E a gente pode subir até a despensa toda noite – disse eu – para se
regalar com pacotes de uva-passa, cornflakes, biscoitos de chocolate e tudo
o que houver. Rato pode passar a noite inteira comendo, até se empanturrar.
– Até que é uma boa ideia – disse Bruno, animando-se um pouco. – Mas
como é que vou abrir a porta da geladeira para pegar o frango e as sobras do
jantar? Eu fazia isso todas as noites na minha casa.
– Quem sabe o seu rico paizinho não compra uma geladeirinha de rato só
para você? – respondi. – Uma geladeira que você consiga abrir.
– Você disse que foi uma bruxa que me fez isso? perguntou Bruno. – E
que bruxa foi essa?
– Aquela que ontem lhe deu uma barra de chocolate no saguão do hotel –
expliquei-lhe. – Não está lembrado?
– Que vaca imunda! – berrou ele. – Ela vai ver uma coisa! Onde é que ela
está? Quem é ela?
– Esqueça – respondi. – Perca as esperanças. No momento, o seu maior
problema são os seus pais. Como é que eles vão encarar tudo isso? Será que
vão tratá-lo com bondade e amor?
Bruno ficou pensativo por um instante. – Tenho a impressão de que meu
pai vai ficar um pouco chocado – ele disse.
– E sua mãe?
– Ela tem pavor de ratos – disse Bruno.
– Então você está diante de um bom problema, não acha?
– Por que só eu? – disse ele. – Você também não está?
– Minha avó vai entender tudo perfeitamente – disse eu. – Ela sabe tudo
sobre bruxas.
Bruno deu mais uma mordida no sanduíche. – O que você sugere? –
perguntou.
– Antes de mais nada, acho melhor nós dois irmos consultar minha avó –
respondi. – Ela vai saber exatamente o que fazer.
Andei na direção das portas, que estavam abertas. Bruno foi atrás de
mim, ainda segurando um pedaço de sanduíche com uma das patas.
– Assim que chegarmos ao corredor – eu disse –, vamos sair correndo
feito loucos. Fique sempre perto da parede, e vá me seguindo. Não diga
nada e não deixe que ninguém o veja. Não esqueça: qualquer pessoa que
bater os olhos em você vai tentar matá-lo.
Arranquei o pedaço de sanduíche da pata dele e o joguei longe. – É
agora! – disse eu. – Venha atrás de mim.
Olá, vovó

Assim que me vi fora do salão de baile, saí correndo feito um raio.


Atravessei correndo todo o corredor, passei pelo saguão, pela sala de
leitura, pela biblioteca e pela sala de estar, e finalmente cheguei à escada.
Subi correndo, saltando com muita facilidade de um degrau para o outro, o
tempo todo colado à parede. – Você está aí, Bruno? – sussurrei.
– Aqui do seu lado – disse ele.
Meu quarto e o quarto da minha avó ficavam no quinto andar. Era uma
boa subida, mas não demos de cara com ninguém, pois todo o mundo usava
o elevador. Chegando ao quinto andar, disparei pelo corredor até alcançar a
porta do quarto da minha avó. Um par de sapatos dela estava para fora, para
o engraxate do hotel limpar. Bruno estava a meu lado. – O que vamos fazer
agora? – perguntou ele.
Vi que uma camareira vinha andando pelo corredor, na nossa direção.
Percebi de imediato que era a mesma que tinha me denunciado ao gerente
por causa dos ratinhos brancos. Nas minhas condições, portanto, não era a
pessoa com quem eu gostaria de me encontrar.
– Depressa! – falei para Bruno – esconda-se num desses sapatos!

Enfiei-me num dos sapatos, e o Bruno se enfiou no outro. Fiquei


esperando a camareira passar. Mas ela não passou. Quando chegou perto
dos sapatos, curvou-se e os apanhou. Ao fazer isso, enfiou a mão direita
dentro do sapato onde eu estava escondido. Quando um de seus dedos
encostou em mim, dei-lhe uma mordida. Foi idiotice, mas fiz por instinto,
sem pensar. A mulher deu um berro que deve ter sido ouvido pelos navios
do Canal da Mancha. Ela jogou longe os sapatos e disparou feito um raio
pelo corredor.
A porta do quarto da minha avó se abriu. – O que é que está acontecendo
aqui? – disse ela. Disparei por entre suas pernas e entrei no quarto, sempre
seguido pelo Bruno.
– Feche a porta, vovó! – gritei. – Por favor, depressa!
Ela olhou para nós, dois ratinhos marrons sobre o tapete. – Por favor,
feche logo – repeti. Dessa vez ela reconheceu minha voz, percebeu que era
eu que estava falando. Ficou passada, e completamente imóvel. Todas as
partes do seu corpo, dedos, mãos, braços e cabeça ficaram duros como se
ela fosse uma estátua de mármore. Seu rosto ficou mais pálido do que o
mármore, e os olhos se arregalaram tanto, que dava para ver toda a sua parte
branca. E então ela começou a tremer. Pensei que fosse desmaiar e cair.
– Por favor, feche logo a porta, vovó – disse eu. – Aquela camareira
horrível pode entrar a qualquer instante.
De alguma forma minha avó conseguiu se recompor, pelo menos o
suficiente para fazer o que eu pedia. Encostou-se na porta e ficou olhando
para mim, pálida e tremendo toda. As lágrimas começaram a cair de seus
olhos e a escorrer pelo seu rosto.
– Não chore, vovó – eu disse. – Podia ter sido pior. Consegui fugir delas.
Ainda estou vivo, e o Bruno também.
Lentamente, ela se abaixou e me pegou com uma das mãos. Depois
ergueu Bruno com a outra mão e nos colocou sobre a mesa, onde havia uma
cesta com bananas. Bruno saltou para elas e, com os dentes, começou a
descascar uma das frutas.
Minha avó se agarrava aos braços da poltrona para manter-se firme, mas
não tirava os olhos de mim.
– Sente-se, vovó querida – disse-lhe eu.
Ela desmoronou na poltrona.
– Oh, meu querido – ela disse baixinho, e agora as lágrimas desciam por
todo seu rosto. – Oh, meu pobre e doce queridinho. O que foi que elas
fizeram com você?
– Sei o que elas fizeram, vovó, e sei em que me transformei. Mas o mais
engraçado é que, para falar a verdade, não estou me sentindo muito mal
assim. Não consigo nem sentir raiva. Para ser franco, estou me sentindo
muito bem. Sei que não sou mais um menino, e que nunca mais voltarei a
ser, mas vou estar sempre muito bem enquanto você estiver aí para tomar
conta de mim.
Eu não estava só querendo consolar minha avó. Estava sendo
absolutamente sincero. Vocês podem achar estranho que eu não estivesse
chorando. E era estranho. Simplesmente não sei explicar.
– É claro que vou tomar conta de você – sussurrou minha avó. – E quem
é o outro?
– Era um menino chamado Bruno Jenkins – contei-lhe. – Elas o pegaram
primeiro.
Minha avó tirou um charuto preto da bolsa e o levou à boca. Em seguida,
pegou uma caixa de fósforos. Riscou um fósforo, mas seus dedos tremiam
tanto que a chama não chegava direito à ponta do charuto. Quando ela
finalmente conseguiu acendê-lo, deu uma tragada e engoliu a fumaça. Isso
pareceu acalmá-la um pouco.

– Onde foi que tudo aconteceu? – murmurou ela. – Onde está a bruxa
agora? Aqui no hotel?
– Vovó! – respondi. – Não foi uma bruxa. Foram centenas! Elas estão por
todos os lados! Neste momento, estão todas aqui no hotel!
Ela inclinou o corpo para a frente e me olhou fixamente. – Você não está
querendo dizer… você não está… você não está querendo me dizer que elas
estão fazendo a Reunião Anual aqui neste hotel?
– Já fizeram, vovó! A reunião já acabou! Eu ouvi tudo! E todas elas,
inclusive a Grã-Bruxa em pessoa, estão lá embaixo! Estão fingindo que
pertencem à Real Sociedade para a Prevenção da Crueldade com Crianças!
Estão todas tomando chá com o gerente!
– E você foi pego por elas?
– Elas sentiram meu cheiro – respondi.
– Cocô de cachorro, não foi? – disse ela, suspirando.
– Creio que sim. Mas não estava muito forte. Elas quase não conseguiram
farejar, pois fazia séculos que eu não tomava banho.
– Criança nunca deveria tomar banho – disse minha avó. – É um hábito
muito perigoso.
– Concordo plenamente, vovó.
Ela fez uma pausa, e deu mais uma tragada no charuto.
– É verdade mesmo que neste momento elas estão todas lá embaixo,
tomando chá?
– Não tenho a menor dúvida, vovó.
Houve outra pausa. Vi então aquele velho lampejo de excitação voltando
lentamente a tomar conta dos olhos de minha avó. De repente ela se
empertigou na poltrona e disse vivamente: – Conte-me tudo, desde o início.
E depressa, por favor.
Respirei fundo e comecei a falar. Contei-lhe como, no salão de baile, fui
esconder-me atrás do biombo para treinar meus ratinhos. Contei sobre o
cartaz anunciando a convenção da Real Sociedade para a Prevenção da
Crueldade com Crianças. Contei tudo sobre as mulheres que foram entrando
e tomando seus lugares, e sobre a mulherzinha que apareceu no palco e
tirou a máscara. Mas, quando tentei descrever o rosto que surgiu por baixo
da máscara, simplesmente não conseguia encontrar as palavras adequadas. –
Era horrível, vovó! – disse eu. – Oh, como era horrível! Era… era como
uma coisa que já começou a apodrecer!
– Continue – disse minha avó. – Vá em frente.
Então contei-lhe sobre como todas as bruxas tiraram as perucas, as luvas
e os sapatos, e falei do oceano de cabeças carecas e perebentas que vi à
minha frente. Descrevi os dedos das mulheres, suas pequenas garras, e seus
pés sem dedos.
Minha avó vinha cada vez mais para a frente, de modo que agora estava
sentada quase na ponta da poltrona. Suas duas mãos seguravam firmemente
o cabo dourado da bengala, em que ela sempre se apoiava ao caminhar.
Seus olhos não desgrudavam de mim um só instante, brilhando como duas
estrelas.
Então contei-lhe das faíscas incandescentes lançadas pelos olhos da Grã-
Bruxa, e de como elas tinham transformado uma outra bruxa numa nuvem
de fumaça.

– Eu já tinha ouvido falar nisso! – gritou minha avó, muito alvoroçada. –


Mas nunca acreditei muito! Você é a primeira pessoa que, não sendo bruxa,
já viu isso acontecer! É o castigo mais famoso da Grã-Bruxa! É conhecido
como “fritura”, e todas as outras bruxas ficam paralisadas de medo só de
pensar nisso! Ouvi dizer que a Grã-Bruxa tem o hábito de fritar pelo menos
uma bruxa em cada Reunião Anual, sempre fazendo uma cena que deixa
todas as outras de cabelo em pé.
– Mas elas não têm cabelo, vovó.
– Sei que não têm, querido, mas continue, por favor.
Contei-lhe, então, sobre a Fórmula de Ação Retardada para Fazer Ratos,
e quando falei dos planos de transformar todas as crianças em ratos, ela
levantou-se de um pulo da poltrona, gritando: – Eu sabia! Sabia que elas
estavam tramando alguma coisa monstruosa!
– Precisamos arrumar um jeito de detê-las – eu disse.
Ela se voltou e me olhou fixamente.
– Não há como deter as bruxas – respondeu.
– Basta pensar nos poderes terríveis que a Grã-Bruxa tem só nos olhos!
Com aquelas faíscas incandescentes, ela poderia matar qualquer um de nós
quando bem entendesse! Você viu com seus próprios olhos!
– Mesmo assim, vovó, temos o dever de impedir que ela transforme todas
as crianças da Inglaterra em ratos!
– Você ainda não contou tudo. E o Bruno. Como foi que elas o pegaram?
Contei-lhe, então, sobre como Bruno Jenkins tinha chegado ao salão, se
transformando em rato. Minha avó olhou para o Bruno, que estava se
empanturrando na cesta de bananas.
– Ele nunca para de comer? – perguntou ela.
– Nunca – respondi. – Queria que você me explicasse uma coisa, vovó.
– Posso tentar – disse ela, tirando-me da mesa e colocando-me no colo.
Muito delicadamente, começou a acariciar o pelo macio de minhas costas.
Era delicioso. – O que você quer me perguntar, querido?
– O que não consigo entender – disse eu – é como eu e Bruno ainda
conseguimos falar e pensar do mesmo jeito que antes.
– É muito simples – disse minha avó. – O que elas fizeram foi encolhê-lo,
dar-lhe quatro pernas e todo esse pelo, mas não foram capazes de
transformá-lo num rato cem por cento rato. Você ainda é você mesmo em
tudo, menos na aparência. Sua mente, seu cérebro e sua voz continuam os
mesmos, e ainda bem que é assim.
– Quer dizer que, na verdade, não sou um rato comum – disse eu –, sou
uma espécie de rato-pessoa, é isso?
– É isso mesmo – respondeu ela. – Você é um ser humano dentro de um
corpo de rato. Alguém muito especial.
Ficamos sentados em silêncio por alguns momentos, enquanto minha avó
alisava delicadamente meu pelo com os dedos e fumava seu charuto com a
outra mão. O único som que se ouvia na sala era o de Bruno atacando as
bananas da cesta. Mas eu não estava inativo. Pensava sem parar, feito louco.
Meu cérebro fervilhava como nunca.
– Vovó! – disse eu. – Acho que tenho uma ideia.
– Diga, querido. Que ideia é essa?
– A Grã-Bruxa disse às outras que o número de seu quarto era 454, certo?
– Certo – respondeu ela.
– Muito bem, o meu quarto é número 554. O 554 fica no quinto andar, e
portanto o dela, 454, fica no quarto andar.
– Perfeitamente – disse minha avó.
– Sendo assim, você não acha que talvez o quarto 454 fique exatamente
embaixo do 554?
– É mais do que provável – disse ela. – Esses hotéis modernos são
construídos como caixas de tijolos. Mas e daí?
– Queria que você me levasse até a sacada do meu quarto, para eu dar
uma olhada – respondi.
Todos os quartos do Majestic Hotel tinham sacadas. Minha avó foi
comigo até a sacada do meu quarto e de lá ficamos examinando a sacada de
baixo.
– Se for esse o quarto dela – disse eu –, aposto como haveria um jeito de
descer até lá e entrar.
– E ser agarrado de novo – disse minha avó.
– Isso eu não vou permitir.
– Nesse momento – disse eu –, todas as bruxas estão reunidas no terraço
solar, tomando chá com o gerente. A Grã-Bruxa provavelmente só vai
voltar pelas seis horas, ou um pouco antes. Foi a hora que ela marcou para
distribuir aquela poção horrível entre as bruxas mais velhas, que não
conseguem mais subir em árvores para pegar ovos de pássaro-croca.
– E se você conseguisse mesmo entrar no quarto dela? – perguntou minha
avó. – O que aconteceria?
– Eu poderia tentar descobrir o lugar onde ela guarda o estoque de poção
daquela fórmula. Se conseguisse, roubaria uma garrafinha e traria para cá.
– E você seria capaz de carregá-la até aqui?
– Acho que sim – respondi. – É uma garrafinha bem pequena.
– Estou achando isso muito perigoso – disse minha avó. – E o que você
faria com essa coisa se conseguisse pegá-la?
– Uma garrafa é suficiente para quinhentas pessoas – disse eu. – Pelo
menos uma dose dupla para cada uma daquelas bruxas lá embaixo estaria
garantida. Poderíamos transformar todas elas em ratos.
Minha avó deu um pulo. Estávamos na minha sacada, e abaixo de nós
abria-se um verdadeiro abismo. Por um triz não escapei de sua mão e
despenquei daquela altura imensa.
– Cuidado, vovó – disse eu.
– Mas que ideia! – gritou ela. – É fantástica!
É incrível! Você é um gênio, querido!
– Não seria ótimo? – disse eu. – Não seria ótimo mesmo?
– Ficaríamos livres de todas as bruxas da Inglaterra de uma só vez! –
gritou ela. – E, de quebra, também acabaríamos com a Grã-Bruxa!
– Vamos tentar – disse eu.
– Ouça – disse minha avó, quase me deixando cair de novo, de tanta
afobação. – Se conseguirmos realizar essa proeza, será o maior dos triunfos
de toda a história da bruxaria!
– Temos muito trabalho pela frente – respondi.
– Sem dúvida – disse ela. – Só para começar, suponhamos que você
consiga pegar um daqueles vidrinhos. Como é que vai fazer para colocar o
líquido na comida delas?
– Isso a gente resolve depois – disse eu. – Vamos tentar conseguir a
poção primeiro. Como podemos ter certeza de que o quarto dela fica
embaixo do meu?
– Vamos verificar imediatamente! – gritou minha avó. – Venha comigo!
Não há um segundo a perder!
Levando-me na mão, ela saiu voando do quarto para o corredor,
martelando a bengala no tapete a cada passo. Descemos um lance de escada
e chegamos ao quarto andar. Nas portas dos dois lados do corredor, os
números dos quartos estavam pintados em dourado.
– Aqui está! – gritou minha avó. – Número 454.
Ela forçou de leve a porta, que obviamente estava trancada, depois olhou
atentamente para todo aquele longo corredor. – Acho que você tem razão –
disse ela. – Eu poderia jurar que esse quarto fica bem embaixo do nosso – e
ela voltou até o fim do corredor, contando o número de portas desde o
quarto da Grã-Bruxa até a escada. Eram seis.
Depois, foi para o quinto andar e fez a mesma coisa.
– É exatamente embaixo do seu! – gritou minha avó. – O quarto dela fica
bem embaixo do seu!
– Voltamos para o meu quarto, e ela me levou novamente até a sacada. –
A sacada de baixo é mesmo a dela – disse minha avó. – E, melhor ainda, a
porta que dá para o quarto está escancarada!
Como é que você pretende descer até lá?
– Não sei – respondi.
Nossos quartos ficavam na face da frente do hotel, e davam para a praia e
o mar. Lá embaixo, a dezenas de metros, havia uma grade de ferro com as
extremidades pontiagudas.
– Já sei! – gritou minha avó.
Sempre me levando na mão, ela correu até seu quarto e começou a
remexer a gaveta da cômoda. Tirou um novelo de lã azul. Uma das pontas
estava ligada a algumas agulhas e a uma meia quase pronta, que ela estava
tricotando para mim.
– Perfeito – disse ela. – Vou colocá-lo dentro desta meia e descê-lo até a
sacada da Grã-Bruxa. Mas não podemos perder um minuto! A qualquer
momento aquele monstro pode voltar ao quarto!
O rato-ladrão

Mais uma vez, minha avó voltou correndo comigo para o meu quarto, e
de lá passamos para a sacada. – Está pronto? – perguntou ela. – Agora vou
colocá-lo dentro da meia.
– Espero que eu consiga dar conta de tudo – respondi. – Afinal, sou
apenas um ratinho.
– Vai conseguir, sim – disse ela. – Boa sorte, querido.
Ela me enfiou dentro da meia e começou a me descer pela sacada.
Agachei-me e prendi a respiração. Através dos pontos do tricô eu enxergava
tudo. Ao longe, as crianças que brincavam na praia pareciam formigas. O
vento começou a fazer a meia balançar. Olhei para cima e vi a cabeça de
minha avó aparecendo por cima do parapeito da sacada.
– Está quase chegando! – gritou ela. – Vamos lá! Com jeito! Pronto,
chegou!
Senti um ligeiro baque.
– Corra para dentro! – gritava minha avó. – Depressa, depressão,
depressa! Procure pelo quarto!
Pulei para fora da meia e corri para o quarto da Grã-Bruxa. Estava
impregnado do mesmo cheiro de bolor que eu tinha sentido no Salão de
Baile. Era o fedor das bruxas, que lembrava o cheiro do banheiro público
masculino da estação da nossa cidade.
Pelo que eu via, estava tudo bem arrumado.
Tudo levava a crer que o hóspede daquele quarto era uma pessoa comum. E
nem poderia ser diferente. Nenhuma bruxa seria estúpida a ponto de deixar
espalhadas coisas que pudessem despertar a suspeita da camareira.
De repente, uma rã passou pulando pelo tapete e foi se enfiar embaixo da
cama. Também dei um pulo.
– Depressa! – gritava lá de cima a voz da minha avó. – Pegue aquela
coisa e dê o fora!
Comecei a perambular pelo quarto para ver se encontrava o que queria.
Não foi nada fácil. Eu não conseguia, por exemplo, abrir as gavetas, e muito
menos as portas do guarda-roupa. Parei de andar pelo quarto, sentei-me um
pouco no meio do assoalho e comecei a refletir. Onde a Grã-Bruxa
esconderia uma coisa tão secreta? Com certeza, não seria numa gaveta
qualquer; nem no guarda-roupa. Isso era óbvio demais. Pulei para cima da
cama, para ter uma visão melhor do quarto. “Ei”, pensei, “que tal dar uma
espiada embaixo do colchão?”

Cautelosamente, fui até a beirada da cama, e de lá fui avançando por baixo


do colchão. Tinha de usar toda a minha força para conseguir ir adiante, mas
continuei firme. Não estava enxergando nada. Estava andando às escuras
por baixo do colchão, quando de repente minha cabeça bateu numa coisa
dura que estava dentro dele. Ergui-me um pouco e, com uma das patas,
tentei descobrir o que era aquilo. Seria uma garrafinha? Era uma
garrafinha! Através do tecido do colchão, dava perfeitamente para perceber
sua forma. A seu lado, senti mais uma saliência dura, e mais uma, e mais
uma! A Grã-Bruxa com certeza tinha feito uma abertura no colchão,
colocado as garrafas lá dentro e costurado a abertura para ninguém perceber
nada. Com os dentes, comecei a rasgar freneticamente o pedaço do colchão
bem acima da minha cabeça. Meus dentes da frente eram muito afiados, e
num instante consegui fazer um buraquinho. Entrei nele e agarrei um dos
vidrinhos pelo gargalo. Empurrei-o pelo buraco do colchão e fui saindo
junto.
Andando de costas e arrastando a garrafinha, consegui chegar à beirada
do colchão. Com um empurrãozinho, a garrafinha rolou da cama para o
tapete. Eu a examinei. Era idêntica àquela que a Grã-Bruxa tinha levado
para o Salão do Baile. A que estava comigo tinha um rótulo onde se lia:
FÓRMULA 86 DE AÇÃO RETARDADA PARA FAZER RATOS. Logo abaixo estava
escrito: Esta garrafa contém quinhentas doses. Viva! Fiquei satisfeitíssimo
comigo mesmo.
Três rãs saíram pulando de baixo da cama. Ficaram agachadas ali no
tapete, olhando para mim com seus grandes olhos pretos. Encarei-as
também. Aqueles olhos enormes eram a coisa mais triste que eu já tinha
visto na vida. De repente achei que, no passado, com certeza aquelas rãs já
tinham sido crianças, até serem agarradas pela Grã-Bruxa. Fiquei ali,
segurando o vidrinho e olhando para as rãs.
– Quem são vocês? – perguntei.

Neste exato momento, ouvi uma chave girando na fechadura. A porta se


escancarou, e a Grã-Bruxa entrou no quarto. De um só pulo, as rãs voltaram
para baixo da cama. Corri atrás delas, sempre segurando a garrafa. Fiquei
bem junto da parede, enfiado através de um dos pés da cama. Ouvi passos
pelo tapete e dei uma espiada. As três rãs estavam juntinhas, bem embaixo
do centro da cama. As rãs não conseguem se esconder como os ratos, nem
correr como eles. A única coisa que as coitadas conseguem fazer é ficar
pulando, muito desajeitadas.

De repente apareceu o rosto da Grã-Bruxa, espiando. Minha cabeça


voltou feito um raio para trás do pé da cama. – Então as minhas querridas
rãzinhas estão aí? – ouvi-a dizer. – Podem ficarr onde estão até a horra em
que eu forr parra a cama, quando vou lançá-las pela janela parra serrem
devorradas pelas gaivotass!
Então, muito forte e clara, ouviu-se a voz da minha avó, através da porta
que dava para a sacada. – Depressa, querido! – gritava ela. – Venha logo!
Volte já para cá!
– Quem está chamando? – disse bruscamente a Grã-Bruxa. Espiei de
novo e vi que ela estava atravessando o tapete em direção à sacada. – Quem
esstá na minha ssacada? – resmungou ela. – O que é isso? Quem se atrreveu
a invadirr minha ssacada? – e ela atravessou a porta e foi direto para a
sacada.
– O que ssignifica esste novelo de lã pendurrado aqui? – ouvi-a dizer.
– Olá! – respondeu a voz da minha avó. – Acabei de deixar meu tricô cair
na sua sacada, mas tudo bem. Uma das pontas está aqui comigo, e vou
puxá-lo para cima. Mesmo assim, muito obrigada.
Fiquei maravilhado com a naturalidade de sua voz.
– Com quem a ssenhora esstava falando agorra mesmo? – perguntou a
Grã-Bruxa, irritada. – Quem é que a ssenhora estava mandando aprressarr-
se e voltarr logo?
– Eu estava falando com meu neto – ouvi minha avó dizer. – Ele está no
banheiro há um tempão. Ele fica lá sentado, lendo seus livros, e se esquece
completamente da vida! Você tem filhos, querida?
– Não! – gritou a Grã-Bruxa, voltando rapidamente para o quarto, e
batendo a porta da sacada com toda a força.
Eu estava frito. Meu único meio de escapar não existia mais, e eu estava
trancado naquele quarto com a Grã-Bruxa e três rãs apavoradas. Comecei a
ficar tão apavorado quanto elas. Tinha certeza de que, se fosse descoberto,
também seria agarrado e atirado pela janela para ser devorado.
Ouviu-se uma batida na porta. – Quem sserrá dessta vez? – berrou a Grã-
Bruxa.
– Somos nós, as mais velhas – respondeu uma voz muito dócil por trás da
porta. – Já são seis horas, e viemos buscar as garrafas que Vossa Majestade
nos prometeu.
Ela atravessou o tapete em direção à porta. Em seguida, abriu-a, e vi um
monte de pés e sapatos entrando no quarto. Seus movimentos eram lentos e
indecisos, como se as donas daqueles sapatos estivessem com medo de
entrar. – Entrrem logo! Vamos entrrando! – disse bruscamente a Grã-Bruxa.
– Não fiquem aí parradas e trremendo no corredor! Não tenho a noite
inteirra parra perrderr com vocêss!

Era a minha chance. Saltei dali de trás do pé da cama e disparei feito um


raio na direção da porta aberta. Fui pulando por cima de vários pares de
sapatos, e num instante estava no corredor, com a preciosa garrafinha ainda
apertada contra o peito. Ninguém tinha me visto. Não ouvi nenhum grito de
“Um rato! Um rato!” O máximo que consegui ouvir foram as vozes das
bruxas mais velhas balbuciando aquelas frases idiotas do tipo “Como Vossa
Majestade é generosa”. Disparei pelo corredor, cheguei à escada e subi
correndo os degraus. Fui para o quinto andar, e novamente atravessei o
corredor voando até chegar à porta do meu quarto. Graças a Deus, não
havia ninguém à vista. Com o fundo da garrafinha, dei umas pancadas na
porta. Tap tap tap tap. Continuei. Tap tap tap… tap tap tap… Será que
minha avó ia ouvir? Achei que sim. As batidas do vidrinho faziam um som
bastante forte. Tap tap tap… Tap tap tap… E assim continuei, pois ninguém
aparecia no corredor.
Mas a porta continuava fechada. Resolvi arriscar. – Vovó! – gritei, o mais
alto que consegui. – Vovó! Sou eu! Deixe-me entrar!
Ouvi seus passos no tapete, e a porta se abriu. Entrei como uma flecha. –
Consegui! – gritei, dando pulos no ar. – Consegui, vovó! Veja! Uma garrafa
inteira daquilo!
Ela fechou a porta, inclinou-se, pegou-me do chão e me colocou
carinhosamente nos braços.
– Oh, querido! – gritava ela. – Graças a Deus está são e salvo!
Minha avó pegou a garrafinha e leu o rótulo: – Fórmula 86 de Ação
Retardada para Fazer Ratos. Esta garrafa contém quinhentas doses!
Garotinho brilhante! Você é uma maravilha! É fantástico! Como conseguiu
se safar do quarto dela?
– Saí voando, quando as bruxas mais velhas estavam entrando – contei. –
Foi tudo meio perigoso, vovó. Eu não gostaria de ter de passar por isso
outra vez.
– E eu também a vi! – disse minha avó.
– Eu sei, vovó. Ouvi a conversa de vocês duas. Você não acha que ela é
abominável?
– É uma assassina – respondeu minha avó. – É a mulher mais maligna da
face da terra.
– Você viu a máscara dela? – perguntei.
– É incrível – disse minha avó. – Parece um rosto de verdade. Mesmo eu
sabendo que era máscara, ficava difícil acreditar. Oh, querido! – disse ela,
apertando-me contra o peito. – Achei que nunca mais ia voltar a vê-lo!
Estou tão feliz por você ter escapado!
O sr. e a sra. Jenkins encontram Bruno

Minha avó me levou de volta para o seu quarto, e me colocou em cima da


mesa. A meu lado ela colocou a preciosa garrafa. – A que horas essas
bruxas vão descer para a sala de jantar? – ela perguntou.
– Às oito – respondi.
Ela olhou para o relógio. – Agora são seis e dez – disse ela. – Temos
pouco menos de duas horas para planejar nosso próximo lance.
De repente, seus olhos voltaram-se para Bruno. Ele ainda estava dentro da
cesta de bananas. Tinha comido três bananas, e estava começando a atacar a
quarta. Estava imensamente gordo.

– Por hoje chega – disse a minha avó, tirando-o de dentro da cesta. –


Acho que está na hora de devolvermos essa coisinha à família dele. Não é
mesmo, Bruno?
Bruno lançou-lhe um olhar mal-humorado. Eu nunca tinha visto um rato
de cara feia, mas ele conseguiu. – Meus pais me deixam comer quanto eu
quiser – disse ele. – Prefiro ficar com eles, mesmo.
– Não tenho a menor dúvida – disse minha avó. – E você tem ideia de
onde seus pais podem estar neste momento?
– Estavam na sala de estar até agora há pouco – disse eu. – Quando
viemos correndo para cá, eu os vi sentados lá.
– Muito bem – disse minha avó. – Então vamos ver se ainda estão lá.
Quer vir junto? – perguntou ela, olhando para mim.
– Quero, por favor – respondi.
– Vou colocar os dois dentro da minha bolsa – disse ela. – Fiquem bem
quietinhos e não deixem ninguém ver vocês. Se resolverem dar uma espiada
aqui ou ali, nunca mostrem mais do que o nariz.
A bolsa dela era uma coisa grande e bojuda, de couro preto e com um
fecho de tartaruga. Eu e Bruno fomos colocados dentro dela. – Vou deixar o
fecho aberto – disse minha avó. – Mas façam o favor de não se mostrarem.
Eu não tinha a menor intenção de me esconder inteiro. Queria ver tudo.
Enfiei-me num bolsinho lateral dentro da bolsa, perto do fecho, de onde
podia pôr a cabeça para fora sempre que desejasse.
– Ei! – gritou Bruno. – Pode ir me dando o resto daquela banana que eu
estava comendo.
– Tudo bem, tudo bem – disse minha avó. – Qualquer coisa para você
ficar quieto – e ela deu a banana meio comida para ele. Pôs a bolsa a
tiracolo, saiu do quarto e foi andando pelo corredor, apoiada na bengala.
Descemos de elevador até o térreo e de lá, passando pela sala de leitura,
fomos para a sala de estar. E ali, não havia dúvida, estavam sentados o sr. e
a sra. Jenkins, ocupando duas poltronas separadas por uma mesinha
redonda e de tampo de vidro. Havia vários outros grupos na sala, mas os
Jenkins eram o único casal que se mantinha afastado. O sr. Jenkins estava
lendo jornal, e a sra. Jenkins tricotando alguma coisa grande e cor de
mostarda. Eu só estava com o nariz e os olhos para fora da bolsa de minha
avó, mas tinha uma magnífica visão de tudo.
Com um vestido de renda preta e martelando aquela bengala enquanto
andava, minha avó atravessou a sala de estar e parou diante da mesa dos
Jenkins. – Sr. e sra. Jenkins? – perguntou ela.
O sr. Jenkins olhou por cima do jornal e fechou a cara. – Sim – disse ele.
– Sou o sr. Jenkins.
Em que posso ser útil, madame?
– Sinto muito, mas trago notícias terríveis para o senhor – disse ela. – É
sobre seu filho Bruno.
– O que há com Bruno? – perguntou o sr.
Jenkins.
A sra. Jenkins levantou os olhos, mas continuou tricotando.
– O que é que esse moleque aprontou desta vez? – perguntou o sr.
Jenkins. – Com certeza andou invadindo a cozinha.
– É um pouco pior que isso – disse minha avó. – O senhor não se
importaria de me acompanhar até um lugar mais isolado, para eu poder lhe
contar tudo?
– Lugar isolado? – disse o sr. Jenkins. – E por que teria que ser um lugar
isolado?
– Não é muito fácil explicar – disse minha avó. – Antes de contar o que
aconteceu, acharia melhor subirmos até o seu quarto e sentarmos um pouco.
O sr. Jenkins abaixou o jornal. A sra. Jenkins parou de tricotar. – Não
tenho a menor vontade de subir até o quarto, madame – disse o sr. Jenkins.
– Estou muito bem aqui, muito obrigado pelo convite.
Era um homem grandalhão e grosseiro, e não estava acostumado a
receber ordens de ninguém. – Tenha a bondade de dizer o que quer e depois
se retirar – acrescentou ele. Parecia que estava falando com alguém que
estivesse querendo vender-lhe um aspirador de pó na porta dos fundos de
sua casa.
A coitada da minha avó, que até então tinha feito o possível para ser
delicada, começou a ficar um pouco irritada. – Aqui não dá mesmo para
conversarmos – disse ela. – Há muita gente por perto. E o assunto é muito
delicado e pessoal.
– Vou conversar onde me parecer melhor, madame – disse o sr. Jenkins. –
Vamos, desembuche logo o que tem a dizer! Se o Bruno quebrou alguma
janela ou esmagou os seus óculos, pode ficar tranquila que eu pago os
prejuízos, mas não vou arredar o pé daqui onde estou!
Um ou dois dos outros grupos na sala começaram a olhar para nós.
– Afinal, onde está Bruno? – disse o sr. Jenkins. – Diga para ele vir já
para cá.
– Ele já está aqui – respondeu minha avó. – Está dentro da minha bolsa –
e deu uma batidinha de leve com a bengala na sua bolsa de couro, grande e
desengonçada.
– Que conversa é essa? A senhora quer dizer que ele está dentro de sua
bolsa? – gritou o sr. Jenkins.
– Está querendo bancar a engraçadinha? – disse a sra. Jenkins, toda
empertigada.
– Não tem graça nenhuma – disse minha avó. – O filho de vocês teve um
problema terrível.
– Isso não é novidade – respondeu o sr. Jenkins. – Ele vive comendo
demais, e depois sai soltando gases. A senhora nem imagina o barulhão que
faz depois do jantar. Parece uma banda de música! Mas uma boa dose de
óleo de rícino é a melhor coisa para curá-lo. Onde está esse fedelho?
– Eu já disse – respondeu minha avó. – Está dentro da minha bolsa. Mas,
antes que vocês vejam como ele ficou, continuo achando melhor
conversarmos num lugar mais isolado.
– Essa mulher é louca – disse a sra. Jenkins. – Peça-lhe para sumir daqui.
– O fato – disse minha avó – é que seu filho Bruno passou por uma
alteração muito drástica.
– Alteração! – gritou o sr. Jenkins. – Que diabo a senhora está querendo
dizer com isso?
– Fora daqui! – disse a sra. Jenkins. – A senhora não passa de uma velha
louca!
– Estou tentando lhes dizer, com a máxima educação possível, que Bruno
realmente está dentro da minha bolsa – disse minha avó. – Meu neto viu,
com seus próprios olhos, quando elas fizeram tudo.
– Viu quem fazendo o quê, pelo amor de Deus? – berrou o sr. Jenkins.
Seu bigode preto subia e descia quando ele gritava.
– Viu quando as bruxas o transformaram num rato – disse minha avó.
– Chame o gerente, querido – disse a sra. Jenkins ao marido. – Faça com
que ponham essa velha louca para correr deste hotel.
Nesse momento, a paciência da minha avó chegou ao fim. Ela vasculhou
dentro da bolsa e encontrou o Bruno. Tirou-o e o depositou em cima do
tampo de vidro da mesa. A sra. Jenkins olhou para aquele ratinho gordo e
marrom, que ainda mastigava um pedaço da banana, e deu um grito que fez
retinir todos os cristais do lustre. Pulou da poltrona aos berros. – Um rato!
Sumam daqui com isso! Tenho pavor desses bichos!
– É o Bruno – disse minha avó.
– Sua velha horrorosa e atrevida! – berrou o sr. Jenkins, enxotando o
Bruno com o jornal, tentando empurrá-lo para fora da mesa. Minha avó
correu e conseguiu segurá-lo antes que ele caísse. A sra. Jenkins ainda
estava aos berros, e o sr. Jenkins, do alto daquele corpanzil, trovejava: –
Suma daqui! Como se atreve a assustar minha esposa desse jeito! Tirem já
esse rato imundo daqui!
– Socorro! – gritava a sra. Jenkins. Seu rosto estava mais pálido que a
morte.
– Pois muito bem, fiz o que pude – disse minha avó, que no mesmo
instante virou-se e saiu da sala pisando duro, levando Bruno dentro da
bolsa.
O plano

Assim que chegamos ao quarto, minha avó nos tirou da bolsa e nos
colocou em cima da mesa.
– Por que você não disse alguma coisa para o seu pai o reconhecer? –
perguntou ela a Bruno.
– Porque eu estava com a boca cheia – respondeu Bruno, pulando de
novo para dentro da cesta de bananas e pondo-se a comer.
– Que garotinho mais desagradável – disse-lhe minha avó.
– Garotinho não, vovó – disse eu. – Ratinho.
– Tem razão, querido. Mas agora não temos tempo para nos preocupar
com ele. Temos que fazer planos. Dentro de mais ou menos uma hora e
meia, todas as bruxas estarão descendo para a sala de jantar, certo?
– Certo – disse eu.
– E cada uma vai ter de engolir uma dose da Fórmula Fazedora de Ratos
– disse ela. – Como é que vamos conseguir isso?
– Vovó – respondi. – Acho que você está esquecendo que rato consegue
entrar em lugares onde as pessoas jamais conseguiriam entrar.
– Eu sei disso – falou ela. – Mas nem um rato é capaz de arrastar-se por
uma mesa carregando uma garrafa de Fórmula Fazedora de Ratos por cima
do rosbife das bruxas, e além de tudo sem ser descoberto.
– Não estou pensando em fazer nada na sala de jantar – disse eu.
– Onde, então? – perguntou ela.
– Na cozinha – respondi –, enquanto a comida delas estiver sendo
preparada.
Minha avó cravou os olhos em mim. – Meu neto querido – disse ela bem
devagar –, estou plenamente convencida de que transformado em rato você
duplicou a sua capacidade mental!
– Um ratinho – disse eu – pode vasculhar toda a cozinha, entre panelas e
caçarolas, e, se tiver cuidado, não vai ser visto por ninguém.
– Brilhante! – gritou minha avó. – Deus do céu, acho que você matou a
charada!
– O único problema – disse eu – vai ser descobrir qual é a comida delas.
Não quero colocar a fórmula na panela errada. Seria um desastre eu
transformar todos os outros hóspedes em ratos, principalmente você, vovó.
– Pois então é só você dar um jeito de entrar na cozinha, encontrar um
bom lugar para se esconder, esperar… e ouvir. Fique ali, em algum cantinho
escuro, ouvindo tudo o que dizem os cozinheiros… depois, com um pouco
de sorte, alguém vai lhe dar uma dica. Sempre que eles têm de preparar
algum grande jantar, a comida é feita separadamente.
– Tudo bem – disse eu. – É isso mesmo que vou fazer. Vou ficar
esperando por ali, escutando tudo e torcendo para ter um pouco de sorte.
– Vai ser muito perigoso – disse minha avó. – Ninguém gosta de rato na
cozinha. Se você for descoberto, vão acabar com você.
– Não vou deixar – respondi.
– Não se esqueça de que vai estar carregando a garrafa – disse ela –, e
portanto não vai poder ser tão rápido.
– Se eu correr em pé, levando a garrafinha contra o meu peito, minha
velocidade pode ser enorme – disse eu. – Acabei de fazer isso, lembra?
Corri do quarto da Grã-Bruxa até aqui carregando essa garrafa.
– E para tirar a rolha? – perguntou ela. – Pode ser meio difícil.
– Deixe-me tentar – respondi. Peguei a garrafinha e, com as duas patas
dianteiras, descobri que era muito fácil tirar a rolha.

– Perfeito – disse minha avó. – Você é realmente um rato muito esperto.


Às seis e meia – disse ela, olhando para o relógio – vou descer para a sala
de jantar, levando você na bolsa. Lá vou soltá-lo por baixo da mesa com
essa preciosa garrafinha, mas depois você vai ter que se virar sozinho. Vai
ter que abrir caminho, sem ser visto, da sala de jantar até a porta da cozinha.
Um monte de garçons vai estar circulando por ali o tempo todo. Você vai ter
de entrar rapidamente atrás de um deles, mas, pelo amor de Deus, tome
cuidado para não pisarem em você nem o esmagarem contra a porta.
– Vou fazer o possível – respondi.
– E, aconteça o que acontecer, não deixe que o peguem.
– Chega, vovó. Você está me deixando nervoso.
– Você é um sujeitinho muito corajoso – disse ela. – Tenha certeza de que
o amo muito.
– O que vamos fazer com o Bruno? – perguntei-lhe.
Bruno deu uma olhada. – Vou com você – disse ele, com a boca cheia de
banana. – Não vou perder meu jantar!
Minha avó ficou pensativa por um instante. – Vou levá-lo comigo – disse
ela –, desde que você prometa ficar em absoluto silêncio dentro da minha
bolsa.
– E a senhora vai me passando comida de sua mesa? – perguntou Bruno.
– Vou – disse ela –, desde que você prometa que vai comportar-se bem.
Você não gostaria de comer alguma coisa, querido? – disse ela pra mim.
– Não, obrigado – respondi. – Estou agitado demais para comer. E, para
todo esse trabalhão que me espera, tenho de estar em boa forma e bem
disposto.
– Você realmente tem uma grande tarefa pela frente – disse minha avó. –
Maior do que qualquer outra que já teve ou vai ter um dia.
Na cozinha

– Chegou a hora! – disse minha avó. – Chegou o grande momento! Está


preparado, querido?
O relógio marcava exatamente sete e meia. Bruno estava dentro da cesta,
acabando de comer a quarta banana. – Espere um pouco – disse ele. – Só mais
alguns bocados!
– Nada disso! – disse minha avó. – Temos de ir! – ela o agarrou firme na
mão. Estava muito tensa e nervosa, eu nunca a tinha visto daquele jeito antes. –
Agora vou colocar vocês dois dentro da bolsa, mas vou deixar o fecho aberto –
disse ela. Bruno foi colocado primeiro, e eu fiquei esperando, segurando a
garrafinha contra o peito. – Agora você – disse ela, que me pegou e me deu um
beijo no focinho. – Boa sorte, querido. A propósito, você sabe que tem um rabo,
não sabe?
– Um o quê? – perguntei.
– Um rabo. Um rabo longo e flexível.
– Pois confesso que nem tinha pensado nisso! – disse eu. – Deus do céu, e
não é que tenho mesmo? Veja só, posso mexê-lo à vontade! E é bem grandão,
não é?
– Só estou lembrando porque ele pode ser de grande utilidade quando você
estiver subindo pelas coisas da cozinha – disse minha avó. – Você pode
enroscá-lo e enganchá-lo nas coisas, além de se balançar nele e usá-lo para
descer de lugares muito altos.
– Eu devia ter pensado nisso antes – respondi. – Podia ter treinado um pouco.
– Agora é tarde – disse minha avó. – Não podemos esperar nem mais um
minuto.
Fui colocado na bolsa junto com Bruno, e imediatamente me instalei no meu
lugar preferido, dentro do bolsinho lateral, de onde podia pôr a cabeça para fora
e ver tudo o que se passava.
Minha avó pegou a bengala e saiu para o corredor. Logo o elevador chegou, e
ela entrou. Não havia ninguém além de nós.
– Ouça – disse ela. – Quando estivermos na sala de jantar, não vou poder
ficar falando muito com você, senão as pessoas vão pensar que sou dessas
velhas malucas que falam sozinhas.
O elevador chegou ao térreo e parou com um solavanco. Minha avó saiu,
atravessou o saguão e entrou na sala de jantar. Era uma sala enorme, com
enfeites dourados no teto e grandes espelhos pelas paredes. As mesas estavam
sempre reservadas para os hóspedes regulares, e muitos já estavam em seus
lugares, começando a jantar. Os garçons se agitavam por toda parte, carregando
pratos e travessas. Nossa me sa era pequena, e ficava para a direita, quase no
meio da sala. Minha avó caminhou até lá e se sentou.
Coloquei a cabeça para fora e vi que, bem no meio da sala, havia duas mesas
longas ainda desocupadas. Em cada uma, preso a um pequeno bastão prateado,
havia um pequeno aviso onde se lia: RESERVADO PARA OS MEMBROS DA RSPCC.
Minha avó olhou para aquelas mesas, mas não disse nada. Desdobrou o
guardanapo e o colocou sobre a bolsa, em seu colo. Sua mão deslizou por baixo
do guardanapo e, com toda delicadeza, ela me pegou. Com o guardanapo ainda
me escondendo, levou-me até bem perto do seu rosto e disse: – Vou colocá-lo
no assoalho, por baixo da mesa. A toalha vai quase até o chão, e assim ninguém
vai vê-lo. Está com a garrafa?
– Estou – respondi. – Tudo pronto, vovó.
Nesse momento, um garçom todo vestido de preto colocou-se diante da nossa
mesa. Por baixo do guardanapo eu via as pernas dele, e o reconheci assim que
ele começou a falar. Seu nome era William. – Boa noite, madame – disse ele. –
Seu netinho, não vai jantar esta noite?
– Ele não está se sentindo muito bem – disse minha avó –, e achei melhor ele
ficar no quarto.
– É uma pena – disse William. – Hoje temos, de entrada, sopa de ervilhas, e,
como prato principal, a senhora pode escolher entre filé de linguado grelhado e
carneiro assado.
– Sopa de ervilhas e carneiro, por favor – disse minha avó. – Mas não precisa
se apressar, William, pois hoje não estou com pressa nenhuma. Aliás, traga-me
primeiro um copo de xerez.
– Pois não, madame – disse William, e foi embora.
Minha avó fingiu que tinha derrubado alguma coisa, e, ao abaixar-se, tirou-
me do guardanapo e me colocou no assoalho por baixo da mesa. – Agora vá,
querido, vá! – sussurrou ela, voltando em seguida à posição normal.
Agora eu tinha de me virar sozinho. Continuava segurando firmemente a
garrafa, e sabia exatamente onde ficava a porta da cozinha. Para chegar até lá,
precisava atravessar quase a metade da enorme sala de jantar. “Lá vou eu”,
pensei, e disparei feito um raio na direção da parede. Atravessar a sala de jantar
seria muito arriscado; achei melhor ir andando ao longo do rodapé, até alcançar
a porta da cozinha.
Como eu corri! Acho que ninguém me viu, pois todo o mundo estava muito
ocupado com o jantar. Mas, para chegar à porta que dava para a cozinha, eu
precisava atravessar a entrada principal da sala de jantar. Justo quando eu ia
fazer isso, surgiu um grupo enorme de mulheres. Encolhi o corpo contra a
parede, segurando firme a garrafinha. No início só vi os sapatos e os tornozelos
das mulheres, mas quando levantei um pouco os olhos percebi imediatamente
quem elas eram. Eram as bruxas chegando para o jantar!
Esperei até todas passarem por mim, e então disparei para a porta da cozinha,
que estava justamente sendo aberta por um garçom. Entrei correndo atrás dele e
me escondi atrás de um cesto de lixo. Fiquei ali um tempão, prestando atenção
às conversas, em meio ao rebuliço e à agitação. Meu Deus, que lugar aquela
cozinha! Que barulho! Que fumaceira! Que barulheira de panelas e caçarolas! E
os cozinheiros só falavam aos berros! Os garçons, o tempo todo entrando e
saindo da sala de jantar, também faziam os pedidos para os cozinheiros aos
berros! “Quatro sopas, dois carneiros e dois peixes, mesa vinte e oito! Três
tortas e dois sorvetes de morango, mesa dezessete!” Era o tempo todo assim,
não parava nunca.
Não muito acima da minha cabeça, havia uma alça, de um dos lados do cesto
de lixo. Ainda segurando a garrafa, dei um pulo e, num salto mortal, agarrei a
alça com a ponta do rabo. De repente, ali estava eu balançando, subindo e
descendo, para lá e para cá. Era incrível. Adorei. “É assim”, pensei, “que os
trapezistas de circo devem se sentir, quando, bem lá no alto, cortam o ar como
um chicote.” A única diferença era que trapézio de circo só balança para a
frente e para trás. Com o meu trapézio (ou seja, o meu rabo) eu podia balançar
em qualquer direção. Quem sabe algum dia eu ainda me transformaria num rato
de circo?
Nesse momento entrou um garçom com um prato na mão, e ouvi quando ele
dizia:
– A velha megera da mesa quatorze diz que a carne está muito dura, e
mandou levar outra porção.
Um dos cozinheiros então respondeu:
– Pode deixar comigo!
Voltei para o chão e fiquei espiando por trás do cesto de lixo. O cozinheiro
tirou a carne do prato, colocou outro pedaço e então disse: – Venham, rapazes,
vamos acrescentar um pouco de molho! – e passou com o prato diante de cada
uma das pessoas. E sabem o que foi que fizeram? Todos os cozinheiros e todos
os ajudantes de cozinha cuspiram no prato da mulher! – Agora vamos ver se ela
gosta – disse o cozinheiro, passando o prato para o garçom.
No mesmo instante entrou outro garçom, e gritando: – As mulheres do grupo
da RSPCC querem que a sopa seja servida!
Fiquei de orelha em pé. Estava na hora de agir. Afastei-me um pouco do
cesto de lixo para ter uma visão mais geral do que acontecia na cozinha. Um
homem com um enorme chapéu branco, que devia ser o cozinheiro-chefe,
gritou: – Ponham a sopa da mulherada na sopeira grande de prata!
Vi quando ele colocou uma vasilha enorme sobre o balcão de madeira que
ocupava toda a extensão da parede à minha frente. “É exatamente aí que a sopa
vai ser servida”, pensei. “Também é aí que vou ter de jogar o líquido da minha
garrafinha.”
Bem no alto, perto do teto e acima do balcão, havia uma longa prateleira
cheia de panelas e frigideiras. Se eu conseguisse chegar até aquela prateleira,
estaria tudo resolvido. Eu ficaria bem em cima da sopeira de prata.
Mas antes eu precisava dar um jeito de passar para o outro lado da cozinha, e
de lá para a prateleira do meio. Então tive uma grande ideia!

Mais uma vez, dei um salto e enrolei o rabo na alça do cesto de lixo.

Depois, pendurado de cabeça para baixo, comecei a balançar o corpo, subindo


cada vez mais alto. Fiquei pensando no trapezista de circo que eu tinha visto na
Páscoa, que fazia o trapézio ir subindo, subindo, e depois se soltava e saía
voando. Então, fiz a mesma coisa. Quando meu balanço tinha chegado ao ponto
mais alto, soltei o rabo, atravessei a cozinha voando e fiz uma aterrissagem
perfeita na prateleira do meio!
“Meu Deus”, pensei, “que coisas maravilhosas um rato é capaz de fazer! E eu
sou apenas um principiante!”

Ninguém tinha me visto. Estavam todos muito ocupados com as panelas e


caçarolas. De onde eu estava, dei um jeito de subir por um cano de água no
canto da parede, e num piscar de olhos estava na prateleira de cima, perto do
teto, em meio a um monte de panelas e frigideiras. Sabia que, ali, ninguém
poderia me ver. Era uma posição perfeita, e fui caminhando pela prateleira até
ficar exatamente acima da sopeira de prata.
Destampei a garrafa, fiquei bem na beirada da prateleira e despejei todo o
líquido bem dentro da sopeira. Logo chegou um dos cozinheiros com um
caldeirão enorme e fumegante, e também despejou toda a sopa dentro da
sopeira de prata. Depois de colocar a tampa, ele gritou: – Sopa da mulherada
pronta para sair! – e logo em seguida um garçom veio e levou a sopeira.

Eu tinha conseguido! Mesmo que eu nunca mais voltasse vivo para perto da
minha avó, aquelas bruxas iam engolir aquilo e se transformar em ratos! Deixei
a garrafinha vazia atrás de uma panela e comecei a pensar em como faria para
descer da prateleira. Era muito mais fácil movimentar-me sem a garrafa.
Sempre utilizando meu rabo, fui atravessando toda a prateleira, passando do
cabo de uma panela para o cabo de outra, enquanto lá embaixo continuava o
alvoroço dos cozinheiros e garçons.
Chaleiras fumegavam, panelas crepitavam, caçarolas ferviam, e eu pensava
com meus botões: “Isso sim que é vida! Que coisa incrível ser um rato e fazer
um trabalho excitante como esse!” Continuei balançando. Fui passando de um
cabo de panela a outro, e estava me divertindo tanto que me esqueci de que
estava totalmente visível para qualquer um que resolvesse olhar para cima. O
que aconteceu em seguida foi tão rápido que não tive tempo de me safar. Um
homem começou a gritar: – Um rato! Olhem aquele ratinho imundo, ali! – e eu
vi de relance, logo abaixo de mim, uma figura vestida de branco, com um
chapéu branco enorme. Percebi o brilho do aço quando a faca passou zunindo
pelo ar, e senti uma pontada de dor bem no fim do meu rabo. E eu fui caindo de
ponta-cabeça, em direção ao chão.

Já enquanto estava caindo, sabia o que tinha acontecido. Sabia que a ponta do
meu rabo tinha sido cortada, que eu ia me esborrachar no chão e que todo o
mundo na cozinha ia avançar em cima de mim. – Um rato! – todos gritavam. –
Um rato! Um rato! Não deixem escapar!
Mal cheguei ao chão, disparei feito um raio para salvar minha pele. Eu só via
enormes sapatos pretos tentando pisar em mim. Eu escapava de um lado,
escapava de outro, corria, corria, desviava para cá, virava para lá,
ziguezagueando pelo chão da cozinha. – Pega! Mata! Pisa! – eles gritavam. Era
como se todo o chão estivesse fervilhando de sapatos pretos tentando me
esmagar, e eu corria, me desviava, escapava, serpenteava, até que, por
desespero, sem saber o que estava fazendo e só querendo um lugar para me
esconder, subi pela barra da calça de um dos cozinheiros e me grudei na meia
dele!
– Ei – gritou o cozinheiro. – Minha nossa! Ele entrou pela minha calça!
Espere um pouco, desta vez você não escapa!
O homem começou a dar tapas na perna da calça, e, se eu não fosse muito
rápido, ia ser esmagado mesmo. Só havia um caminho a seguir, e era para cima.
Cravei minhas patinhas na perna peluda do cozinheiro e fui subindo. Passei pela
barriga da perna, subi pelo joelho e, quando vi, estava na coxa dele.
– Droga! – gritava o homem. – Ele não pára de subir! Já correu por toda
minha perna!
Ouvi os outros cozinheiros morrendo de rir, mas juro que eu não estava
achando nada engraçado. Estava correndo para salvar minha vida. As mãos do
homem batiam por toda parte, e ele saltava como se estivesse pisando em brasa,
e eu continuava subindo e me desviando. Logo cheguei à parte mais alta da
perna da calça. Era o fim da linha. Não havia mais para onde ir.

– Socorro! Socorro! – gritava o homem. – Ele entrou nas minhas cuecas! Está
correndo por dentro das minhas cuecas! Tirem esse rato de mim! Por favor, me
ajudem a tirar esse bicho daqui!
– Por que não tira as calças, seu palerma? – gritou alguém. – Desça as calças
e vamos dar um jeito de agarrá-lo!
Agora eu estava no meio das calças do homem, bem no lugar onde as duas
pernas se encontram! Lá dentro estava escuro, e fazia um calor horrível. Eu
sabia que não podia parar. Fui em frente e fui parar na outra perna da calça.

Desci por ela feito um raio, cheguei até a barra e saltei para o chão. Ouvi o
idiota do cozinheiro ainda gritando: – Ele está nas minhas calças! Peguem esse
bicho! Por favor, me ajudem a tirá-lo daqui antes que ele me morda!
Dei uma olhada e vi todos os empregados da cozinha em volta dele,
morrendo de rir. Por isso mesmo, ninguém percebeu quando o ratinho marrom
passou feito uma bala e entrou num saco de batatas.
Escondi-me ali, no meio de um monte de batatas sujas, e prendi a respiração.

O cozinheiro devia estar começando a tirar as calças, pois agora todos


gritavam: – Ele não está aí! Não tem rato nenhum aí, seu bobalhão!
– Mas estava! Juro que estava! – respondia o homem aos berros. – Bem se vê
que vocês nunca tiveram um rato dentro das calças! Nem imaginam como a
gente se sente!
O fato de uma criatura minúscula como eu ter provocado tanto alvoroço entre
um bando de homens adultos me encheu de felicidade. Apesar da dor no rabo,
não conseguia deixar de rir.
Fiquei onde estava até ter certeza de que tinham se esquecido de mim. Então
fui subindo pelas batatas e, com todo o cuidado, pus a cabecinha para fora do
saco. Mais uma vez, vi a cozinha num alvoroço total, os cozinheiros e os
garçons correndo para todo lado. Vi quando voltou o garçom que tinha trazido a
reclamação sobre a carne dura. – Pessoal! – gritou ele. – Perguntei à velha
megera se a outra porção de carne estava melhor, e ela disse que estava
deliciosa! Disse que o sabor estava fantástico!
Eu precisava sair daquela cozinha e voltar para perto da minha avó. Só havia
um jeito de fazer isso. Eu precisava sair em disparada e passar pela porta atrás
de um dos garçons. Fiquei ali bem quietinho, esperando surgir uma
oportunidade. A dor no meu rabo estava insuportável. Enrolei-o, para poder
olhar. Faltavam uns cinco centímetros, e estava sangrando muito. Um dos
garçons passou carregando uma remessa de pratos cheios de sorvete cor-de-
rosa. Levava um prato em cada mão, e equilibrava outros dois, um em cada
braço. Andou até a porta, e abriu-a com um dos ombros. Saí correndo do saco
de batatas, atravessei a cozinha e fui parar na sala de jantar com a velocidade de
um raio. Só parei de correr quando vi que estava debaixo da mesa da minha
avó.
Era maravilhoso voltar a ver os pés da minha avó enfiados naqueles sapatos
pretos cheios de botões e fivelas. Subi por uma de suas pernas e me instalei no
seu colo. – Oi, vovó! – sussurrei. – Estou de volta! Consegui! Derramei todo o
líquido na sopa delas!
Ela abaixou uma das mãos e me acariciou. – Muito bem, querido! – ela
também sussurrou. – Você é demais! Elas estão tomando a sopa! – e ela retirou
a mão de repente. – Você está sangrando! – disse bem baixinho. – Meu querido,
o que foi que aconteceu?
– Um dos cozinheiros cortou meu rabo com uma faca – respondi,
sussurrando. – A dor está insuportável.

– Deixe-me dar uma olhada – disse ela. Abaixou a cabeça e examinou o meu
rabo. – Coitadinho! – sussurrou ela. – Vou fazer uma atadura com meu lenço.
Pelo menos vai parar de sangrar.
Ela tirou um lenço rendado da bolsa e deu um jeito de enrolar o meu rabo
nele. – Agora está tudo bem – disse ela. – Tente não pensar nisso. Você
conseguiu mesmo jogar todo o líquido da garrafinha na sopa delas?
– Até a última gota – respondi. – Será que dá para você me colocar num lugar
onde eu possa vê-las?
– Claro que dá – respondeu ela. – Minha bolsa está na cadeira vazia a meu
lado, que é a sua. Vou colocar você lá. Mas tome cuidado para não ser visto. O
Bruno também está lá, mas não se preocupe com ele. Dei-lhe um biscoito, e
isso vai mantê-lo ocupado por um bom tempo.
A mão dela se fechou em volta de mim, e fui levado do seu colo para a bolsa.
– Olá, Bruno – disse eu.
– Que delícia de biscoito – disse ele, no fundo da bolsa, mastigando sem
parar. – Mas é uma pena que não tenham passado manteiga nele.
Espiei por cima da borda da bolsa. Dali eu tinha uma visão perfeita das
bruxas, que ocupavam as duas mesas compridas bem no centro da sala. Elas
tinham terminado a sopa, e os garçons estavam tirando os pratos. Minha avó
tinha acendido um dos seus abomináveis charutos pretos, e estava soltando
fumaça por todo lado. Ao nosso redor, os hóspedes do hotel estavam
tagarelando e devorando seu jantar. Cerca da metade eram pessoas velhas e de
bengalas, mas também havia muitas famílias formadas por marido, mulher e
vários filhos. Eram todos gente muito abastada. Era preciso ter muito dinheiro
para se hospedar no Majestic Hotel.
– Aquela lá é ela, vovó! – sussurrei. – É a Grã-Bruxa!
– Eu sei! – respondeu minha avó, baixinho. – É aquela mulherzinha vestida
de preto e sentada à cabeceira da mesa mais próxima!
– Ela tem o poder de nos matar! – sussurrei. – Tem o poder de matar todas as
pessoas desta sala com suas faíscas incandescentes!
– Cuidado! – cochichou minha avó. – O garçom vem vindo!
Fui para o fundo da bolsa, e de lá ouvi William dizendo: – Seu carneiro
assado, madame. E o que prefere para acompanhar, ervilha ou cenoura?
– Cenoura, por favor – disse minha avó. – Mas sem batatas.
Ouvi quando as cenouras foram colocadas no prato. Depois de uma pausa,
ouvi minha avó sussurrar: – Está tudo bem, ele já se foi – e então coloquei a
cabeça para fora outra vez. – Será que alguém vai perceber essa minha
cabecinha saindo de sua bolsa, vovó?
– Não – respondeu ela. – Acho que não. O meu problema é ter de conversar
com você sem mexer os lábios.
– Você está se saindo muito bem – respondi.
– Já contei as bruxas – disse ela. – São menos do que você pensou. Quando
você me disse que eram duzentas, estava chutando, não estava?
– É que pareciam duzentas – disse eu.
– Eu também me enganei – disse minha avó. – Achei que o número de bruxas
inglesas fosse bem maior.
– Quantas são? – perguntei.
– Oitenta e quatro – disse ela.
– Eram oitenta e cinco – disse eu. – Mas uma delas foi torrada.
Nesse momento, percebi que o sr. Jenkins, pai de Bruno, vinha na direção da
nossa mesa. – Cuidado, vovó! – sussurrei. – Aí vem o pai do Bruno!
O sr. Jenkins e seu filho

O sr. Jenkins se aproximou da nossa mesa com passos duros e com uma
cara de poucos amigos.
– Onde é que está aquele seu neto? – perguntou ele à minha avó, com
grosseria. Ele parecia muito nervoso.
Minha avó fez a cara mais gelada do mundo, e não disse nada.
– Imagino que ele e meu filho Bruno estejam aprontando alguma –
continuou o sr. Jenkins. – Bruno não apareceu para o jantar, e só uma coisa
muito séria pode levar esse menino a se esquecer de comer.
– Devo admitir que ele tem um apetite muito saudável – disse minha avó.
– Tenho a impressão de que a senhora também está metida nisso – disse
o sr. Jenkins. – Não sei quem é, e não tenho a menor vontade de saber, mas
hoje à tarde a senhora fez umas brincadeiras de muito mau gosto comigo e
com minha esposa. Colocou um ratinho imundo em cima da mesa. Tudo
isso me leva a pensar que vocês três estão aprontando alguma coisa.
Portanto, se estiver sabendo onde o Bruno se meteu, tenha a gentileza de me
dizer imediatamente.
– Eu não fiz nenhuma brincadeira de mau gosto – respondeu minha avó.
– Aquele rato que eu lhes mostrei era o seu filhinho Bruno. Eu estava sendo
gentil. Estava tentando devolvê-lo ao seio de sua família, e vocês se
recusaram a recebê-lo.
– Que idiotices são essas que está insinuando, madame? – gritou o sr.
Jenkins. – Meu filho não é um rato! – e o bigode preto do homem subia e
descia enquanto ele falava. – Vamos lá, minha senhora, onde é que ele está?
Vamos acabar com isso!
A família da mesa ao lado parou de comer, e todos olhavam para o sr.
Jenkins. Minha avó continuava sentada, fumando calmamente seu charuto
preto. – Entendo perfeitamente a sua fúria, sr. Jenkins – disse ela. –
Qualquer outro pai inglês ficaria tão perturbado quanto o senhor. Mas na
Noruega, que é o lugar de onde venho, estamos muito acostumados com
coisas desse tipo. Aprendemos a aceitá-las como parte do dia a dia.
– A senhora deve ser louca mesmo! – gritou o sr. Jenkins. – Onde está o
Bruno? Ou a senhora me conta tudo agora, ou vou imediatamente chamar a
polícia!
– Bruno é um rato – disse minha avó, com a mesma calma de sempre.
– Com toda certeza ele não é um rato – berrou o sr. Jenkins.

– É claro que sou! – disse Bruno, colocando a cabeça para fora da bolsa.
O sr. Jenkins deu um salto de quase um metro de altura.
– Olá, papai! – disse Bruno, com um sorrisinho estúpido de rato, que lhe
arreganhava todos os dentes.
A boca do sr. Jenkins se escancarou de tal forma que dava para ver todas
as obturações dos seus dentes de trás.
–Não se preocupe, papai – continuou Bruno. – Não é nada tão terrível
assim. É só evitar que eu seja agarrado por algum gato.
– B-B-Bruno! – balbuciava e gaguejava o sr. Jenkins.
– Adeus, escola! – gritava Bruno, com aquele mesmo sorrisinho idiota de
rato. – Adeus, tarefas de casa! Vou passar a vida inteira no armário da
cozinha, me empanturrando de mel e uva-passa!
– M-m-mas B-B-Bruno! – disse o sr. Jenkins, gaguejando de novo. –
Como foi que tudo isso aconteceu? – e o coitado estava totalmente
desconcertado.
– Bruxas – disse minha avó. – Foram as bruxas que o transformaram em
rato.
– Não posso ter um rato como filho! – disse quase chorando o sr. Jenkins.
– Mas agora tem – disse minha avó. – Seja muito bonzinho com ele, sr.
Jenkins.
– A mãe dele vai ficar louca! – gritou o sr. Jenkins. – Ela tem pavor de
ratos!
– Pois vai ter de se acostumar com eles – respondeu minha avó. – Só
espero que não tenham gato em casa.
– Mas nós temos! Temos mesmo! – gritava o sr. Jenkins. – Topsy é a
criatura que minha esposa mais ama neste mundo!
– Então vocês vão ter de se livrar de Topsy – disse minha avó. – Seu filho
é mais importante do que um gato.
– Sem dúvida nenhuma! – gritou Bruno lá de dentro da bolsa. – Diga para
a mamãe dar sumiço no Topsy antes de eu voltar para casa.
A esta altura, metade da sala de jantar estava olhando para o nosso
grupinho. Facas, garfos e colheres tinham sido pousados sobre as mesas, e
por toda parte muitas cabeças se voltavam para o sr. Jenkins, que não
parava de gritar e de falar confusamente. Como eu e Bruno não estávamos à
vista, todos tentavam descobrir que confusão era aquela.
– Aliás – disse minha avó –, o senhor não gostaria de saber quem foi que
o transformou em rato? – e um sorrisinho malicioso estampou-se no rosto
dela. Percebi que minha avó estava prestes a meter o sr. Jenkins numa
encrenca.
– Quem? – gritou ele. – Quem foi que fez isso?
– Aquela mulher sentada logo ali – disse minha avó. – Aquela
mulherzinha de vestido preto, sentada à cabeceira daquela mesa comprida.
– Ela é da RSPCC! – gritou o sr. Jenkins. – É a presidenta!
– Não é, não – disse minha avó. – Ela é a Grã-Bruxa do Mundo Inteiro.
– A senhora quer dizer que ela fez tudo isso? Aquela mulherzinha
magricela sentada ali? – berrou o sr. Jenkins, com um dedo imenso
estendido na direção dela. – Vou pôr todos os meus advogados em cima
dela! Ela vai pagar caro por tudo isso!
– No seu lugar, eu não me precipitaria – disse-lhe minha avó. – Aquela
mulher tem poderes mágicos, e poderia transformar o senhor em alguma
coisa ainda mais insignificante do que um rato. Talvez numa barata.
– Eu ser transformado em barata? – gritou o sr. Jenkins, estufando o
peito. – Pois ela que experimente! – e ele girou nos calcanhares e saiu
pisando duro, na direção da mesa da Grã-Bruxa. Minha avó e eu ficamos
observando. Bruno também tinha pulado para a nossa mesa, e estava de
olho no pai. A sala de jantar em peso estava com os olhos voltados para o
sr. Jenkins. Fiquei ali onde estava, espiando através da bolsa da minha avó.
Achei que seria melhor não me expor.
O triunfo

O sr. Jenkins tinha avançado alguns passos na direção da mesa da Grã-


Bruxa quando um grito terrível abafou todos os outros barulhos da sala. No
mesmo instante, a Grã-Bruxa deu um salto enorme no ar!
Primeiro ela ficou em pé na cadeira, gritando…
Depois subiu na mesa, agitando os braços sem parar…
– Que diabo está acontecendo, vovó?
– Espere! – disse minha avó. – Não se mexa e preste atenção.
De repente todas as outras bruxas, e eram mais de oitenta, começaram a
gritar e a pular de suas cadeiras, como se alguém estivesse espetando
alfinetes em seus traseiros. Algumas estavam em pé nas cadeiras, outras
tinham subido na mesa, e todas se agitavam e sacudiam os braços como
loucas.
Então, de repente, todas ficaram quietas.
E depois ficaram duras. Cada uma daquelas bruxas ficou dura e silenciosa
como um cadáver. Um silêncio de morte pairava pela sala toda.
– Elas estão encolhendo, vovó! – eu disse. – Estão encolhendo do mesmo
jeito que eu encolhi!
– Eu sei – respondeu minha avó.

– É a Fórmula para Fazer Ratos! – gritei. – Olhe só! Algumas delas estão
ficando com a cara peluda! Por que será que está fazendo efeito tão depressa,
vovó?
– Vou dizer por quê – disse minha avó. – É porque, assim como aconteceu
com você, todas elas tomaram doses enormes. E, com isso, o despertador
enlouqueceu!
Agora todo o mundo estava em pé, para ver melhor o que estava
acontecendo. Muita gente ia se aproximando e se aglomerando em volta das
duas mesas. Minha avó ergueu Bruno e eu, para não perdermos nada do
espetáculo. Estava tão agitada, que subiu na cadeira para enxergar melhor,
por cima das cabeças da multidão.
Em poucos segundos, todas as bruxas tinham desaparecido completamente,
e as duas longas mesas compridas estavam fervilhando de ratinhos marrons.

Por toda a sala de jantar, mulheres gritavam, e até homens robustos e


corpulentos perdiam a cor e se punham a gritar: – Que loucura! Isso não pode
acontecer! Vamos embora daqui!
Os garçons atacavam os ratos com cadeiras, garrafas de vinho e qualquer
coisa que tivessem à mão. O cozinheiro-chefe, com seu enorme chapéu
branco, saiu correndo da cozinha empunhando uma frigideira. Outro homem,
atrás dele, brandia uma faca, enquanto todos gritavam: – Ratos! Ratos!
Ratos! Temos que nos livrar desses ratos!
Só as crianças estavam se divertindo. Era como se soubessem, por instinto,
que alguma coisa muito boa para elas estava acontecendo ali, diante dos seus
olhos. Todas batiam palmas, gritavam vivas e gargalhavam feito loucas.
– Está na hora de irmos embora – disse minha avó. – Já fizemos nossa
tarefa – e ela se levantou da cadeira, pegou a bolsa e a pôs a tiracolo. Eu
estava na sua mão direita, e Bruno na esquerda.
– Bruno – disse minha avó –, chegou o momento de devolvê-lo ao famoso
seio de sua família.
– Minha mãe não é muito fascinada por ratos – ele disse.
– Eu já tinha percebido – disse minha avó. – Mas ela vai ter de se
acostumar com você, não vai?
Não foi difícil encontrar o sr. e a sra. Jenkins. A voz esganiçada da sra.
Jenkins ecoava por toda a sala. – Herbert! Herbert, tire-me já daqui! Há ratos
por toda parte! Eles vão subir pelas minhas saias! – gritava ela, dependurada
no marido. De onde eu estava, tinha a impressão de que ela estava se
balançando no pescoço dele.
Minha avó foi até eles e colocou Bruno nas mãos do sr. Jenkins. – Aqui
está o seu garotinho – disse ela. – Ele está precisando de um bom regime.
– Olá, papai! – disse Bruno. – Olá, mamãe!
A sra. Jenkins começou a gritar mais alto ainda. Minha avó, levando-me na
mão, saiu majestosamente da sala. Foi para o saguão do hotel e de lá saiu
pela entrada principal.
Lá fora estava uma noite quente e agradável, e dava para ouvir as ondas
quebrando na praia, do outro lado da rua.
– O senhor poderia me chamar um táxi? – pediu minha avó a um porteiro
alto e uniformizado.
– Certamente, madame – disse ele, colocando dois dedos na boca e dando
um longo assobio. Fiquei olhando para ele com inveja. Eu tinha passado
semanas tentando assobiar daquele jeito, mas nunca consegui.
O táxi chegou. O motorista era um velhote de bigode preto, caído dos
lados. O bigode pendia por cima de sua boca como raízes de uma planta. –
Para onde vamos, madame? – perguntou ele. De repente me viu, um ratinho
aconchegado numa das mãos de minha avó. – Caramba! – disse ele. – O que
é isso?
– Meu neto – disse minha avó. – Tenha a bondade de nos levar até a
estação.
– Sempre gostei de ratos – disse o velho motorista. – Quando era garoto,
tinha centenas deles. Sabia, madame, que os ratos são os animais que se
reproduzem mais depressa? Portanto, se esse aí é seu neto mesmo, aposto
que dentro de poucas semanas a senhora vai estar com um monte de bisnetos!
– Tenha a bondade de nos levar até a estação – disse minha avó, toda
empertigada.
– Pois não, madame. – disse ele. – É já.
Minha avó entrou na parte de trás do carro, sentou-se e colocou-me no seu
colo.
– Estamos voltando para casa? – perguntei.
– Estamos – respondeu ela. – De volta para a Noruega.
– Viva! – gritei. – Viva, que maravilha!
– Tinha certeza de que você ia gostar – disse ela.
– Mas… e a nossa bagagem?
– E quem é que se preocupa com bagagem? – respondeu ela.
O táxi rodava pelas ruas de Bournemouth. Naquela hora do dia, as calçadas
ficavam cheias de veranistas, todos perambulando, sem nada para fazer.
– Como está se sentindo, meu querido? – perguntou minha avó.
– Muito bem – disse eu. – Maravilhosamente bem.
Ela começou a acariciar o pelo das minhas costas com o dedo. – Hoje
realizamos grandes proezas – disse ela.
– Foi incrível – respondi.– Absolutamente incrível.
Coração de rato

Era delicioso estar de novo na Noruega, na casa bonita e antiga da minha


avó. Mas agora, como eu estava tão pequeno, tudo parecia diferente, e levei
um tempão para me habituar às novas condições. Vivia num mundo de
tapetes, pernas de mesas, pernas de cadeiras e pequenos esconderijos por
trás de móveis enormes. Não tinha como abrir uma porta fechada e não
conseguia alcançar nada que estivesse em cima da mesa.
Depois de alguns dias, porém, minha avó começou a inventar algumas
engenhocas para facilitar um pouco a minha vida. Ela pediu a um
carpinteiro para fazer várias escadinhas, e encostou uma delas em cada
mesa da casa, para que eu pudesse subir sempre que precisasse. Ela mesma
inventou um fantástico abridor de portas, feito de fios, molas e roldanas, e
cheio de pesos que subiam e desciam por cordões. Em pouco tempo havia
um desses abridores instalado em cada porta. Era só eu pisar com minhas
patas da frente numa minúscula plataforma de madeira, e imediatamente
estendia-se uma mola, descia um peso e a porta se abria.

Depois ela inventou um sistema que me permitia acender a luz sempre


que entrava em algum cômodo. Não sei explicar como funcionava, pois não
entendo nada de eletricidade, mas em todos os cômodos havia, ao lado da
porta, um botãozinho introduzido no assoalho. Quando eu apertava o botão
com uma das patas, a luz se acendia. Quando eu apertava mais uma vez, a
luz se apagava.
Minha avó também me fez uma escova de dentes minúscula. O cabo era
um palito de fósforo, e nele enfiou umas cerdas bem miúdas. – Não quero
saber de cáries nesses dentes! – disse ela.
– Não posso levar um rato ao dentista! Ele ia pensar que sou louca!

– Que engraçado – disse eu –, desde que me transformei num rato passei


a detestar doces e chocolates. Assim, acho que não vou ter nenhuma cárie.
– Mesmo assim, vai escovar os dentes todos os dias depois das refeições
– disse minha avó. E foi o que fiz.
Minha banheira era um açucareiro, onde eu tomava banho todas as noites,
antes de ir para a cama. Minha avó não permitiu a presença de nenhuma
outra pessoa na casa, nem mesmo de faxineira ou cozinheira. Vivíamos
absolutamente sozinhos, e estávamos muito felizes por termos a companhia
um do outro.
Uma noite, eu estava no colo da minha avó, diante da lareira, quando ela
me disse: – Fico pensando no que terá acontecido com o pequeno Bruno.
– Eu não ficaria nem um pouco surpreso se o pai dele o tivesse dado para
o porteiro afogá-lo num balde de água – respondi.
– Receio que você tenha razão – disse minha avó. – Coitadinho.
– Ficamos em silêncio por alguns minutos, minha avó fumando o seu
charuto preto e eu enroscado no colo dela, confortavelmente envolvido pelo
calor.
– Posso lhe fazer uma pergunta, vovó? – disse eu, de repente.
– Quantas quiser, querido.
– Quanto tempo vive um rato?
– Ah – disse ela. – Já faz tempo que estou esperando por essa pergunta.
Fez-se um silêncio. Ela ficou fumando e olhando para o fogo.
– Bem – disse eu. – Quanto tempo vivemos nós, os ratos?
– Andei lendo sobre ratos – disse ela. – Tentei obter o máximo de
informações.
– Continue, vovó. Por que não quer me contar?
– Já que você quer mesmo saber – disse ela –, sou obrigada a dizer-lhe
que rato não vive muito tempo.
– Quanto tempo? – perguntei.

– Bem, um rato comum só vive mais ou menos três anos – disse ela. –
Mas você não é um rato comum. Você é um rato-pessoa, e isso faz muita
diferença.
– Quanta diferença? – perguntei. – Quanto tempo vive um rato-pessoa,
vovó?
– Vive mais tempo – disse ela. – Muito mais tempo.
– Quanto tempo mais? – perguntei.
– Um rato-pessoa sem dúvida viverá três vezes mais que um rato comum
– disse minha avó. – Mais ou menos nove anos.
– Que ótimo! – gritei. – Que maravilha! É a melhor notícia que já recebi
até hoje!
– Por que você diz isso? – perguntou minha avó, surpresa.
– Porque eu nunca ia querer viver mais do que você – respondi. – Seria
insuportável viver com qualquer outra pessoa cuidando de mim.
Houve um breve silêncio. Ela tinha um jeito especial de me acariciar por
trás das orelhas com o dedo. Era delicioso.
– Quantos anos você tem, vovó? – perguntei.
– Oitenta e seis – disse ela.
– E você vai viver por mais oito ou nove anos?
– Talvez – disse ela. – Com um pouco de sorte.
– Mas você tem que viver – disse eu. – Daqui a oito ou nove anos serei
um rato velho, e você será uma vovó muito velha, e então nós dois
morreremos juntos.
– Seria perfeito – disse ela.
Depois disso, cochilei mais um pouco. Fechei os olhos, não pensei em
mais nada e me senti em paz com o mundo.
– Gostaria que eu lhe contasse algumas coisas muito interessantes sobre
você mesmo? – perguntou minha avó.
– Adoraria, vovó, por favor – respondi, sem abrir os olhos.
– No começo nem acreditei, mas parece que é a mais pura verdade –
disse ela.
– O que foi? – perguntei.
– Coração de rato – disse ela –, ou seja, o seu coração bate a um ritmo de
quinhentas vezes por minuto! Não é extraordinário?
– Não é possível – disse eu, arregalando os olhos.
– É tão verdadeiro quanto o fato de eu estar sentada aqui neste momento
– disse ela. – É uma espécie de milagre.
– São quase nove batidas por segundo! – exclamei, fazendo as contas de
cabeça.
– Certo – disse ela. – Seu coração bate tão depressa, que é impossível
ouvir as batidas separadas. Só se ouve um som suave e sussurrante.
Minha avó estava com um vestido de renda, e a renda ficava fazendo
cócegas no meu focinho.
Tive que abaixar a cabeça e colocá-la sobre minhas patas dianteiras.
– Alguma vez você já ouviu o meu coração sussurrando, vovó? –
perguntei-lhe.
– Muitas vezes – disse ela. – Principalmente quando, à noite, você está
dormindo bem pertinho do meu travesseiro.
Depois disso, ficamos muito tempo em silêncio, diante da lareira.
Estávamos pensando em todas essas coisas maravilhosas.
– Querido – disse ela, finalmente –, tem certeza de que não se importa de
passar o resto da sua vida como rato?
– Nem um pouco – respondi. – Quando temos alguém que nos ama, não
importa quem somos ou qual nossa aparência.
Ao trabalho

Naquela noite, o jantar da minha avó foi uma omelete simples e um


pedaço de pão. Eu comi uma fatia daquele queijo de leite de cabra que os
noruegueses conhecem por gjetost, que é meio marrom. Eu adorava aquele
queijo, desde o tempo em que era garoto. Comemos diante da lareira, minha
avó na poltrona e eu em cima da mesa, com meu queijo dentro de um
pratinho.
– Vovó – disse eu –, agora que já acabamos com a Grã-Bruxa, será que
todas as outras bruxas do mundo vão desaparecer aos poucos?
– Tenho plena certeza de que vão continuar existindo – respondeu minha
avó.
Parei de mastigar e olhei fixamente para ela. – Mas elas têm que
desaparecer! – gritei. – É impossível que não desapareçam!
– Acho que vão continuar existindo – disse ela.
– Mas, se a Grã-Bruxa não existe mais, como é que as outras vão
conseguir dinheiro para viver? E quem é que vai lhes dar ordens, agitar todas
aquelas Convenções Anuais e inventar aquelas fórmulas mágicas?
– Quando morre uma abelha-mestra, na colmeia sempre existe outra
rainha preparada para substituí-la – disse minha avó. – A mesma coisa
acontece com as bruxas. No grande quartel-general onde vive a Grã-Bruxa
sempre existe outra Grã-Bruxa prontinha para entrar em ação caso aconteça
alguma coisa.
– Ah! não! – gritei. – Quer dizer que toda aquela trabalheira foi inútil!
Quer dizer que me transformei num rato a troco de nada?
– Nós salvamos as crianças inglesas – disse ela. – Eu não diria que é
pouco.
– Tudo bem, eu sei disso! – exclamei. – Mas poderia ter sido muito
melhor! Eu tinha certeza de que todas as bruxas do mundo iriam desaparecer
aos poucos assim que acabássemos com sua rainha! E agora você vem me
dizer que tudo vai continuar exatamente como antes!
– Não exatamente como antes – disse minha avó. – Por exemplo, não
existem mais bruxas na Inglaterra. Já é um triunfo e tanto, não acha?
– Mas e no resto do mundo? – perguntei. – Nos Estados Unidos, na
França, na Holanda e na Alemanha? E aqui na Noruega?
– Não pense que fiquei todos esses dias aqui sem fazer nada – disse ela. –
Tenho dedicado um tempo enorme e um monte de ideias a esse problema
específico.
Percebi que, quando ela disse isso, um sorrisinho secreto começava a se
espalhar em volta dos seus olhos e nos cantos de sua boca. – Por que está
sorrindo, vovó? – perguntei.
– Tenho umas novidades muito interessantes para você – disse ela.
– Que novidades?
– Quer ouvir tudo desde o começo?
– Quero, por favor – disse eu. – Gosto de boas novidades.
Ela já tinha terminado a omelete, e eu já tinha comigo queijo suficiente.
Minha avó limpou os lábios com um guardanapo e disse: – Assim que
voltamos para a Noruega, peguei o telefone e liguei para a Inglaterra.

– Para quem na Inglaterra, vovó?


– Para o chefe de Polícia de Bournemouth, querido. Disse-lhe que eu era
chefe de Polícia de toda a Noruega, e que estava muito interessado nos fatos
estranhos que tinham acontecido recentemente no Majestic Hotel.
– Espere aí, vovó – disse eu. – É impossível que um policial inglês
acredite que você seja o chefe da polícia norueguesa.
– Imito perfeitamente voz de homem – disse ela. – É claro que ele
acreditou. O policial de Bournemouth sentiu-se muito honrado por receber
um chamado do chefe de polícia de toda a Noruega.
– E daí, o que foi que você lhe perguntou?
– Pedi-lhe o nome e o endereço da mulher que tinha ocupado o quarto 454
do Majestic Hotel, e que tinha desaparecido.
– A Grã-Bruxa! – exclamei.
– Pois é, querido.
– E ele deu o endereço?
– É claro que deu. Um policial sempre ajuda outro policial.
– Meu Deus, você tem muito sangue-frio, vovó!
– Eu precisava do endereço dela – disse minha avó.
– Mas ele sabia o endereço?
– Sabia. O passaporte dela tinha sido encontrado no seu quarto, e nele
constava o endereço. E também havia a lista de hóspedes do hotel. Todas as
pessoas que se hospedam num hotel precisam deixar nome e endereço
registrados na portaria.
– Mas decerto no hotel a Grã-Bruxa não ia dar o nome e o endereço dela
de verdade! – disse eu.
– E por que não? – respondeu minha avó. – Além das outras bruxas,
ninguém neste mundo sabia quem era ela. Em todos os lugares, todos a
conheciam como uma verdadeira dama. Você, querido, foi a única pessoa
que, não sendo bruxa, conseguiu vê-la sem a máscara. Mesmo na cidade
onde nasceu, no lugar onde morava, as pessoas a conheciam como uma
baronesa muito rica e bondosa que dava verdadeiras fortunas para obras de
caridade. Verifiquei tudo isso também.
Eu estava começando a me entusiasmar. – E esse endereço que você
conseguiu deve ser o lugar onde a Grã-Bruxa tinha o seu quartel-general.
– E continua tendo – disse minha avó. – Com certeza, a nova Grã-Bruxa
está morando lá agora, com todas as suas Bruxas Assessoras especiais. Os
líderes importantes estão sempre cercados por um grande séquito de
assessores.
– Onde fica o quartel-general dela, vovó? – perguntei. – Você sabe onde
fica?
– Fica num castelo – disse ela. – E o mais fascinante é que nesse castelo
há uma lista de todos os nomes e endereços de todas as bruxas do mundo!
Senão, como uma Grã-Bruxa poderia controlar suas atividades? Como
poderia convocar as bruxas de todos os países para sua Convenção Anual?
– Onde fica o castelo, vovó? – perguntei, cheio de impaciência. – Em qual
país? Diga!
– Adivinhe – respondeu ela.
– Na Noruega! – gritei.
– Acertou em cheio! – disse ela. – No alto das montanhas que circundam
um vilarejo.
Era emocionante demais. Entusiasmado, improvisei uma dança ali mesmo,
em cima da mesa. Minha avó também estava começando a ficar agitada.
Levantou-se da poltrona e começou a andar para lá e para cá, batendo no
tapete com a bengala.

– Portanto, eu e você temos muito trabalho pela frente! – disse ela. –


Estamos diante de uma tarefa grandiosa! Graças a Deus você é um rato! Um
rato pode entrar em qualquer parte! Só preciso levá-lo até um lugar bem
perto do castelo da Grã-Bruxa, e de lá você vai poder entrar com a maior
facilidade, vasculhar todos os cômodos, vendo e ouvindo o que bem
entender!
– Vou fazer isso mesmo! – respondi. – E ninguém vai me ver! Andar por
um castelo vai ser brincadeira perto do que tive de fazer naquela cozinha
abarrotada de cozinheiros e garçons!
– Se for necessário, você poderá ficar dias lá dentro! – disse minha avó.
Entusiasmada, ela agitava a bengala para todos os lados, e acabou atingindo
um vaso grande e bonito, que caiu e se despedaçou. – Esqueça – disse ela. –
É só um vaso da dinastia Ming. Se você quiser, vai poder passar semanas
naquele castelo, e ninguém vai ficar sabendo da sua presença! Eu posso
alugar um quarto no vilarejo, e todas as noites você sai sorrateiramente de lá
para jantar comigo e me contar tudo o que está acontecendo!
– É mesmo! É mesmo! – gritei. – E dentro do castelo, vou poder
bisbilhotar tudo o que quiser!
– Mas, sem dúvida, nossa tarefa principal – disse minha avó – é destruir
todas as bruxas do lugar. Isso realmente será o fim de toda a organização!
– Eu, destruí-las? – gritei. – E como vou poder fazer isso?
– Você não sabe? – disse ela.
– Diga! – respondi.
– A Fórmula para Fazer Ratos! – gritou minha avó. – Mais uma vez,
Fórmula 86 de Ação Retardada para Fazer Ratos! Você vai colocar algumas
gotas na comida de todas as bruxas do castelo! Ainda se lembra da receita,
não é mesmo?
– Inteirinha! – respondi. – Você quer dizer que nós mesmos vamos
prepará-la?
– E por que não? – disse ela. – Se elas podem prepará-la, por que não nós?
É só uma questão de saber quais são os ingredientes!
– E quem vai subir naquelas árvores altíssimas para pegar os ovos de
pássaro-croca?
– Eu mesma! – gritou ela. – Eu mesma vou fazer isso! Ainda tem muita
vida no corpo desta velha raposa!
– Acho que é melhor eu cuidar disso, vovó. Você pode levar um tombo.
– Isso são detalhes! – gritou ela, voltando a agitar a bengala. – Não vou
permitir que nada se intrometa em nosso caminho!
– E o que vai acontecer depois? – perguntei. – Depois que a Grã-Bruxa e
todas as outras do castelo tiverem se transformado em ratos?
– Aí o castelo vai estar completamente vazio, e eu irei ao seu encontro…
– Espere! – gritei. – Espere um pouco, vovó!
Acabei de ter um pensamento horrível!
– Que pensamento horrível? – perguntou ela.
– Quando aquela fórmula me transformou num rato – disse eu –, eu não
virei um rato comum que se pode pegar com qualquer ratoeira. Virei um
rato-pessoa, falante, pensante e inteligente, e que nunca se aproximaria de
uma ratoeira!
Minha avó estava imóvel como uma estátua. Ela já sabia o que viria a
seguir.
– Portanto – continuei –, se usarmos a fórmula para transformar a Grã-
Bruxa e todas as outras bruxas em ratos, o castelo vai estar fervilhando de
ratos-bruxas terríveis, espertos, perigosos, falantes e pensantes! Um monte
de bruxas na pele de ratos. E isso poderia ser uma catástrofe!
– Minha nossa, você tem razão! – gritou ela.
– Isso nunca me passou pela cabeça!
– E eu certamente não seria capaz de enfrentar um castelo cheio de ratos-
bruxas – disse eu.
– Nem eu – disse ela. – A gente precisaria acabar com elas de uma vez por
todas. Seria preciso esmagá-las e despedaçá-las e cortá-las em pedacinhos,
do mesmo jeito que fizeram com elas no Majestic Hotel.
– Eu não faria isso – respondi. – Não seria capaz de uma coisa dessas.
Acho que nem você, vovó. Além disso, as ratoeiras seriam absolutamente
inúteis. Aliás, a Grã-Bruxa que me transformou em rato estava errada quanto
às ratoeiras, não estava?
– Estava, sim – disse minha avó, impaciente.
– Mas eu não estou preocupada com aquela Grã-Bruxa. O cozinheiro-
chefe do hotel já a picou em pedacinhos há muito tempo. Temos que nos
preocupar agora com a nova Grã-Bruxa, a que mora no castelo cercada por
assessoras. Se uma Grã-Bruxa já é terrível quando se disfarça de senhora
respeitável, imagine o que faria se fosse um rato! Não haveria lugar onde
não conseguisse entrar!
– Já sei! – disse eu, dando um pulo de quase meio metro. – Já encontrei a
resposta!
– Então vá dizendo o que pensou! – disse minha avó.
– A resposta são muitos GATOS! – gritei. – Que venham os gatos!
Minha avó olhou fixamente para mim. Depois deu um grande sorriso e
exclamou: – Brilhante! Absolutamente brilhante!
– É só enfiar meia dúzia de gatos no castelo – disse eu –, e em cinco
minutos eles terão acabado com todos os ratos, por mais espertos que sejam?
– Você é um verdadeiro mágico! – gritou minha avó, começando de novo
a agitar a sua bengala.
– Cuidado com os vasos, vovó!
– Os vasos que se danem! – gritou ela. – Estou tão emocionada, que para
mim tanto faz quebrar todos eles!
– Só mais uma coisa – disse eu. – Antes de soltar os gatos no castelo, você
vai ter de verificar se eu já dei o fora.
– Isso eu prometo – disse ela.
– E o que vamos fazer depois que os gatos tiverem acabado com os ratos?
– perguntei.
– Vou levar os gatos para o vilarejo, e aí então eu e você teremos o castelo
inteiro só para nós.
– E depois?
– Depois vamos examinar todos os registros e pegar os nomes e endereços
de todas as bruxas do mundo!
– E depois? – perguntei, tremendo de emoção.
– Depois disso, querido, vai começar para nós a maior de todas as tarefas!
Vamos fazer as malas e viajar pelo mundo inteiro! Em todos os países que
visitarmos, vamos procurar as casas onde moram as bruxas! Vamos
descobrir onde fica cada uma dessas casas, e, depois de descobri-las, você
vai entrar e colocar algumas gotinhas da sua fórmula mortífera no pão, nos
cornflakes, no pudim ou em qualquer outro alimento que houver. Vai ser um
triunfo, querido! Um triunfo colossal e insuperável! E vamos fazer tudo isso
sozinhos, só você e eu! Vai ser nosso trabalho para o resto da vida!
Minha avó me pegou de cima da mesa e me deu um beijo no focinho. –
Meu Deus, vamos ter muito o que fazer nos próximos anos, meses e
semanas! – disse ela.
– Acho que vamos mesmo – disse eu. – Mas vai ser divertido e
emocionante!
– Diga isso de novo! – gritou minha avó, dando-me um beijo. – Mal posso
esperar para começarmos!

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