Manual Antirracista Encarceramento

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1

“Quando a gente
é trans, a mili-
tância não é uma
opção.

É um imperativo
ético sobre as
nossas vidas: ou
a gente luta ou
a gente morre.

E mesmo lutando
a gente morre”

Leilane Assunção, doutora, funda-


dora da RENFA e primeira professora universitá-
ria trans do Brasil, no departamento de História
da UFRN e pesquisadora de pós-doutorado.

Leilane era militante árdua da luta por direitos e


democracia. Por sua atuação tornou-se uma das
mais conhecidas ativistas da causa LBGTQI+
e da defesa dos Direitos Humanos no Brasil.
Leilane também ajudou a fundar a Rede Latino
Americana de Pessoas que Usam Drogas.

Leilane Assunção era natural da cidade de Cea-


rá-Mirim, no Rio Grande do Norte, e nos deixou
dia 13 de novembro de 2018 aos 37 anos de
idade. Dedicamos a ela esta revista.

2 3
MANUAL FEMINISTA ANTIRRACISTA
PELO DESENCARCERAMENTO
índice
6 Apresentação
As experiências da Agenda Feminista Pelo Desencarceramento 7 Onde estamos
8 Carta de Princípios da RENFA
3ª edição da Revista da RENFA | 2019 10 Equipe de execução
Organização: Ingrid Farias | Diagramação: Maira Baracho 11 Modo de usar esse manual
12 Metodologia
14 O perfil das mulheres presas provisoriamente
em Recife e no Rio de Janeiro
15 Como aconteceu em cada cidade
30 Incidência jurídica da Agenda Feminista Pelo
Desencarceramento
38 A prisão domiciliar no ordenamento jurídico
brasileiro
44 Incidência política e articulações
50 A luta abolicionista vivida
58 Reflexões para a descolonização
85 Arte para espantar a morte
87 Muitas mãos | Contribuições das Voluntárias
da Agenda Feminita Pelo Desencarceramento
124 Ações da RENFA pelo desencarceramento
129 Nossas micro revoluções
134 Pra começar o trabalho
135 Contos africanos
147 Agradecimentos
148 Anexos
149 Manual do Habeas Corpus
158 Referências

Realização RENFA
rede nacional de feministas
antiproibicionistas

Parceria Apoio

6 5
apresentação onde estamos

D urante um ano e meio, militantes da Rede Nacional de Feministas An-


tiproibicionistas (RENFA), pesquisadoras e advogadas parceiras se dedicaram a
entender, acessar e incidir politicamente sobre o encarceramento feminino, nas
cidades de Recife (Pernambuco) e Rio de Janeiro. O objetivo estava nítido e ali-
nhado com aquilo a que se propõe a RENFA desde sua criação: contribuir para o
fortalecimento da luta e das mulheres, em especial mulheres negras e pobres para
alteração de realidades das opressões dominantes que se estruturam através do
racismo, machismo e pobreza.

O Manual Feminista Pelo Desencarceramento é o resultado dessa experiên-


cia. Nessa publicação compartilharemos desde o passo a passo de como as militan-
tes da RENFA se reuniram em torno da Agenda Feminista Pelo Desencarcamento,
uma das pequenas revoluções construídas a muitas mãos dentro dessa rede. Aqui,
então, compartilharemos as denúncias, os dados, a incidência política e jurídica de-
senvolvida nesse projeto e, o mais importante, ecoaremos as vozes das mulheres
privadas de liberdade, com as quais conversamos no último ano e meio e das quais
nos comprometemos a não soltar a mão.

A revolução será antirracista, anticapitalista, antipatriarcal e antiproibi-


cionista. Ou não será.

É nisso que a acredita a RENFA: uma organização política feminista, antir-


racista, não partidária, instituída em 2014 e fundada em 2016 para atuar em rede
na luta pelo direitos das mulheres, em especial das mulheres usuárias de drogas,
mulheres encarceradas, moradoras de rua, profissionais do sexo, LGBTQIA+, se
articulando em parcerias com movimentos de mulheres feministas e os diversos
movimentos sociais com vistas à consolidação de direitos sociais e alteração de
modelos de controle estabelecidos pelos sistemas de opressão racista, patriarcal e
capitalista.

@feministasantiproibicionistas /renfantiproibicionistas [email protected]

6 7
Carta de Princípios
Com o objetivo de orientar e aperfeiçoar permanentemente os modos de atuação, organi- A RENFA atua diretamente na perspectiva antimanicomial, que defende e promove o cuidado
para as pessoas que usam drogas a partir da estratégia da Redução de Danos que afirma direitos
zação e funcionamento da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, a I Reunião Nacional do
e garante autonomia no cuidado;
Comitê Político (Agosto, 2018) aprovou que fosse estabelecida esta Carta, com base nas proposi-
ções resultantes das articulações e debates locais realizadas pela RENFA, e focando nas propostas
político-organizativas debatidas Encontro Nacional de Feministas Antiproibicionistas realizado em A RENFA se compromete a promover a auto-organização das mulheres usuárias de drogas
setembro de 2017. como sujeitos políticos da luta contra a dominação, opressão e exploração das mulheres, e da luta
por transformação social;
Os Princípios contidos nesta Carta devem ser respeitados por todas as mulheres que parti-
cipam da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, que é uma rede composta por mulheres A RENFA se compromete em produzir solidariedade com os principais gru-
feministas antiproibicionistas, antirracistas e usuárias de drogas, que se organizam em coletivos pos e territórios vítimas das violações de direitos promovida pela guerra às drogas;
locais da RENFA e atuam através das diretrizes e compromissos que têm pautado a prática política
desde a fundação em 2016 e articulada por esse grupo de fundadoras desde 2014. Orientações para organização local RENFA:

A RENFA define como seus objetivos permanentes Unidade na diversidade, princípio concretizado no compromisso com a autono-
mia organizativa e política dos coletivos locais que integram a RENFA, e com o deba-
A RENFA estabeleceu e mantém compromisso com a luta antirracista, com o re- te democrático das perspectivas teórico-políticas-vivênciais que orientam sua prática;
conhecimento e fortalecimento do feminismo negro decolonial, o respeito à diversi-
dade étnica e a luta contra o eurocentrismo, defendendo a autodeterminação dos po- Democracia interna pautada numa institucionalidade não burocrática; relações
vos, defendendo projetos de liberdade para todas, uma sociedade sem prisões. e processos decisórios horizontais e participativos marcados pela produção de consen-
A RENFA se posiciona como articulação feminista abolicionista penal, por compreender que sos na ação; tomada de decisão por consenso com base em ampla maioria (2/3) e res-
dentro deste sistema, especialmente em seu estágio atual de mundialização do capital e hegemo- peito ao direito de minoria de modo a tornar sempre possível rever decisões majoritárias;
nia da sociedade das prisões, os modelos punitivistas atingem diretamente as mulheres negras e
empobrecidas; Diálogo, articulação e livre adesão como método de organização das lutas feministas na
RENFA e nas lutas coletivas organizadas com outras redes e articulações do feminismo e do movi-
A RENFA defende a liberdade afetiva, sexual e de expressão de gênero de todas as pessoas, mento de mulheres brasileiro e internacional;
contrapondo-se à norma patriarcal da heterossexualidade e cisgeneridade e à prática da bifobia, Autocuidado enquanto metodologia política, compreendendo que muitas das mulheres
lesbofobia, transfobia e dos modelos patriarcais de controle dos corpos das mulheres; que compõem a rede vivem as violências decorrentes do patriarcado, do racismo e da guer-
ra às drogas. Além disso, autocuidado com objetivo de proporcionar auto reflexão, para
A RENFA defende o direito à autodeterminação reprodutiva para as mulheres e o direito ao construir o modo como se desenvolve o ativismo e a luta feminista antiproibicionista;
aborto legal, seguro e gratuito e condena a exploração e mercantilização de nosso corpo e sexua-
lidade; A RENFA reúne, articula e é integrada por mulheres feministas usuárias de drogas
que atuam, em seus diferentes espaços de participação, em nome próprio e pelas coletivas locais
A RENFA atua para promover processos de alternância de poder, alterando as formas de exer- de mulheres da RENFA;
cício do poder no Estado e na sociedade, e mantém-se comprometida em alterar a cultura política
patriarcal e racista e na defesa da laicidade do Estado, desenvolvendo novas concepções e práticas
de fazer política; Onde estamos
Atualmente a RENFA está presente em 13 (treze) estados do Brasil (Alagoas, Pernambuco, Paraíba,
A RENFA combate todas as formas de violência e luta pelo fim da violência contra as mulheres, Mato Grosso do Sul, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Brasília, Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro,
seja em espaços institucionais ou nas relações interpessoais. Mantém-se na defesa sem trégua da Minas Gerais, Rio Grande do Sul) com 9 (nove) coletivas locais. Os estados que estão organizados
autonomia e liberdade para as mulheres; em núcleo são: Bahia, Ceará, Distrito Federal, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro
e São Paulo e Rio Grande do Sul. A RENFA também está presente na América Latina, através da
TEIA Feminista Antiproibicionista Latino Americana, contando com a presença de 6 (seis) países,
Uruguai, Argentina, Chile, México, Colômbia e Brasil.

8 9
Equipe de execução Modo de usar esse manual
AGENDA FEMINISTA PELO DESENCARCERAMENTO Queremos dividir com você como nosso fortalecimento acontece

A RENFA, através da execução do Projeto AGENDA FEMINISTA PELO DESENCARCERAMEN-


TO, está tendo a oportunidade de publicar esse material, que tem como objetivo contribuir para
RECIFE Ana Beatriz Voluntárias o fortalecimento da luta e das mulheres, em especial mulheres negras e pobres para alteração de
Brisa Lima realidades das opressões dominantes que se estruturam através do racismo, machismo e pobreza.
Debora Aguiar Ana Claudia
Debora Fonseca Joana Dias Esse manual utiliza a metodologia
Ingrid Farias
Isabela França
Lídia Lins de código aberto, pois acreditamos
Luciana Paiva
Luisa Lins Luiza Lindozo que apenas compartilhando po-
Priscilla Gadelha Maria Daniela Mendonça der (conhecimento), é que vamos
Sara Oliveira
Elivânia Santos
Silvia Rocha alternar e democratizar o poder!
Stela Francisco
Tânia Nascimento
Aqui você vai encontrar o passo a passo de como as mulheres da RENFA em PE e no RJ com
apoio das companheiras de outros estados, se reuniram para escrever pequenas revoluções e sub-
metê-los a editais em busca de sustentabilidade para essa luta pelo em especial pelo desencarce-
ramento e direitos das mulheres privadas de liberdade. O projeto teve como objetivos: 1. Produzir
denúncias através dos dados sobre a machismo e racismo institucional no judiciário; e a relação
com o aumento de mulheres presas; 2. Incidir na opinião pública e organizações da sociedade civil
empenhadas na agenda nacional e local pelo desencarceramento e pela reforma da política de dro-
gas e da segurança pública no Brasil a partir de uma perspectiva feminista e antirracista; 3. Produzir
ativistas da RENFA formadas, capacitadas e instrumentalizadas como defensora de direitos para
reproduzir a partir das parcerias locais o processo de incidência junto ao poder judiciário através da
Agenda Feminista pelo Desencarceramento. 4. Divulgar resultados qualitativos da pesquisa sobre o
perfil das mulheres presas provisoriamente nas cidades de Recife e do Rio de Janeiro.
RIO DE JANEIRO
O recurso recebido no projeto fortalece atividades que já estava sendo realizada através da
Voluntárias nossa doação de tempo, energia e muitas vezes, recursos próprios das mulheres que militam nessa
Flavia Medeiros
rede. Por isso, antes de tudo, queremos que você acredite que se você está junto com outras mu-
Isa Pimentel Alice Magalhães lheres, sua força e seus sonhos ficarão muito mais fortes, potentes e todos os sonhos possíveis.
Kathleen Feitosa Natália Brandão
Luana Martins Rebeca Lima É muito importante ressaltar que as atividades planejadas e desenvolvidas no projeto foram
Maira Baracho João Victor Abreu pensadas de acordo com as condições de cada lugar, as parcerias para execução local foram das
Mariana César
mais diversas, e mesmo desenvolvendo o projeto juntas no RJ e PE, houve atividades e metodolo-
gias que foram diferentes, para responder às demandas de cada territórios. Então, se você deseja
reproduzir a AGENDA FEMINISTA PELO DESENCARCERAMENTO e as atividades que vamos compar-
tilhar, lembre-se que cada mundo é um mundo, com subjetividades e culturas diferentes, o racismo,
machismo e a pobreza não permitem as mesmas oportunidades para todes, então, faça só aquilo
que fizer bem a vocês e à luta feminista antirracista, e lembrem: tudo que vocês fazem, pode até
parecer pequeno, mas faz parte de um ciclo de transformação que acontece com nossas pequenas
contribuições: de tempo, de vida, de sonhos, de energia de trabalho, são nossas pequenas revolu-
ções que alteram as realidades!

Ingrid Farias | PE
Feminista negra nordestina, mãe e antiproibicionista | Fundadora da RENFA

10 11
Metodologia 4. Realizamos também várias ações de fortalecimento interno da RENFA, desde discus-
sões sobre o tema, até especialmente a possibilidade de discutir as dinâmicas e prioridades

1.
políticas para atuação;

5.
Em novembro de 2017 o Fundo Brasil de Direitos Humanos publicou um edital para coletivos
e organizações atuarem na pauta pelo desencarceramento, em especial prisão provisória. Reuni-
mos 6 mulheres da RENFA com 02 companheiros da REFORMA e escrevemos uma proposta juntes Por fim, sabemos que a aprovação de um projeto requer também a responsabilidade
para submeter ao edital. Construímos uma metodologia para realização da pesquisa e incidência com suas demandas, inicialmente no primeiro ano não houve coordenação no projeto, ten-
jurídica construindo a Agenda como agente mobilizador e potencializador das ações para fortaleci- tamos realizá-la de forma colegiada, implicando todas as mulheres que estavam na equipe
mento da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) junto a outros estados da Rede executora a dar conta das atividades propostas, dos relatórios parciais e finais, narrativos
e construindo possibilidades de fortalecimento interno e identidade com ação feminista, antirracista, e financeiros, a serem entregues nos prazos, mas esse formato promoveu vários atrasos
anticapitalista, abolicionista, antipunitivista e antimanicomial, a partir de uma construção coletiva na execução de atividades previstas assim como na prestação de contas e entrega de
e horizontal, mas não sem responsabilidade e reconhecimento. O resultado do edital veio no ano relatórios. Sempre realizamos reuniões onlines e presenciais para alinhar e dividir nossa
seguinte, em janeiro de 2018, e com o resultado chegou também a hora de fazer da Agenda uma demanda, houve dificuldade de comunicação entre estados pelas plataformas online, e o
ação coletiva e em defesa dos direitos das mulheres privadas de liberdade; tempo todo a premissa foi a realização das ações e decisões de forma coletiva.

6. Orçamento
2. Para dar condições de fortalecer a executabilidade do projeto, foi essencial a nossa cons- Tipo de despesa Atividade Valor soliticado
tante articulação e incidência da pauta de drogas, raça e gênero junto aos movimentos e organi- Pesquisadoras, diagramado- R$ 77.000,00
zações da sociedade civil. As parcerias com a Agenda Nacional Pelo Desencarceramento, Frente Recursos Humanos ra, advogadas, articuladoras,
Estadual Pelo Desencarceramento RJ, Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, Coletivo revisora, designer, escritoras,
de Mães Feministas em PE, Articulação de Mulheres Brasileiras, Rede de Mulheres Negras de PE, poetas no RJ e PE
Grupo de Mães da Saudade PE, Fórum Popular de Segurança Pública de PE, Coletiva das Vadias Material Gráfica Adesivos, camisas, bottons, R$ 4.500,00
panfletos, banner, cartoes,
PE, SOS Corpo, Elas Existem RJ, Amotrans PE, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Vio-
faixa
lência RJ, ONG Criola, ISER, Associação Elas Existem, Comitê estadual de prevenção e Combate
à tortura foram fundamentais. Destacamos, desta articulação a participação no grupo de traba- Estrutura Lançamento Lançamento do Manual em 3 R$ 9.000,00
lho dedicados à questão de mulheres e prisão, no âmbito da Frente pelo Desencarceramento RJ estados
e a parceria junto com a ONG Criola, no qual apoiamos a formação de um grupo de mulheres
que estiveram presas, o Todxs Unidxs. E parceiros que foram fundamentais para consolidação
da Agenda em especial a REFORMA, que foi o parceiro responsável em receber os recursos do Atividades Oficinas, debates, visitas às R$ 6.000,00
projeto e nos apoiar na gestão, pois a RENFA é um movimento social e não tem CNPJ, e a UFF mulheres privadas de liber-
que através do INCT-InEAC compartilhou infraestrutura e viabilizou o fortalecimento do projeto; dade

3.
Editora Impressão de 2mil revistas R$ 15.000,00

A execução do projeto foi um processo de troca, tanto da equipe que estava executando as
atividades do projeto com militantes anticárcere e familiares de pessoas privadas de liberdade. Mas Transporte terrestre e aéreo Lançamento do Manual no R$ 21.000,00
também encontramos muitas dificuldades, especialmente para acessar os dados e para garantir o encontro da Agenda Nacional
acesso às unidades prisionais. O contexto político brasileiro que se instalou a partir das eleições Pelo desencarceramento, par-
de 2018 provocaram um forte revisão das agendas prioritárias dos movimentos sociais. A RENFA ticipação em encontros pelo
desencarceramento
precisou se voltar para o fortalecimento coletivo junto a frentes de defesa da democracia e contra o
pacote de retirada de direitos. Além dos desafios internos encontrados no compromisso das ativistas
e voluntárias com as atividades e ações do projeto, aprofundando discussões sobre horizontalidade Imposto Imposto sobre recebimento de R$ 4.000,00
e responsabilidade; doação

Taxas Bancárias Administrativo R$ 2.500,00

VALOR TOTAL R$ 139.000,00

12 13
PESQUISA | AGENDA FEMINISTA PELO DESENCARMENTO COMO ACONTECEU EM CADA CIDADE
O PERFIL DAS MULHERES PRESAS PROVISORIAMENTE Mulheres entre grades
em Recife e no Rio de Janeiro
em um Recife de garras colonias
Nesta etapa foi necessário se debruçar sobre o compromisso firmado através do projeto no
tocante a PESQUISA, que era de realizar o levantamento de dados sobre o encarceramento feminino RECIFE | POR DEBORA FONSÊCA BARBOSA E ANA CLÁUDIA OLIVEIRA DA SILVA
em duas capitais brasileiras, Rio de Janeiro e Recife, traçando o perfil e histórias dessas mulheres
para gerar contribuições na incidência e na luta pelo desencarceramento feminino.
E m primeiro lugar, é muito difícil escrever esse texto sobre mulheres que não podem estar
O primeiro passo foi realizar uma reunião inicial do projeto com as mulheres de Recife e do aqui falando, não apenas por questões materiais, mas, sobretudo, porque a muitas não foram da-
Rio de Janeiro com objetivo de alinhar a metodologia da pesquisa para a produção de dados e ações das condições mínimas para um desenvolvimento sadio e livre, além de terem sido colocadas em
de incidência. A presença de militantes da RENFA com trajetória profissional no campo de articu- caixinhas de estigmas negativos que as levam a crer que são incapazes de compor esses espaços
lação política e acadêmico foi fundamental, pesquisadoras que já tinham outras experiências com de produção de conhecimento, historicamente hegemônicos. Embora tenha sido ponto central, na
pesquisas no campo institucional e que puderam contribuir com a descolonização da referência de presente produção, a preocupação para que as mulheres então visitadas se comunicassem dire-
pesquisar, mobilizando uma proposta que inova no levantamento de dados a partir do referencial tamente com as pessoas que receberão este manual, porque o lugar delas é aqui (como se pode
também da política vivida na luta feminista pelo desencarceramento. Nessa etapa foi fundamental ver em outras seções), é importante ressaltar para as leitoras que quem lhes escrevem são meras
a articulação e parcerias com a Defensoria Pública, Ministério Público, Tribunal de Justiça, organiza- interlocutoras, pessoas que jamais traduzirão fielmente a realidade ora retratada. Neste sentido,
ções da sociedade civil como GAJOP, ITTC, INEGRA, Frente Estadual pelo Desencarceramento, da deve-se ressaltar que buscou-se agregar uma perspectiva feminista (HARAWAY, 1995) na presente
Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, da ONG Criola, do ISER, da Associação Elas pesquisa qualitativa, onde a necessidade de problematizar o papel e a relação da pesquisadora com
Existem, do Comitê estadual de prevenção e Combate à tortura. Em ambas cidades, constituímos as pesquisadas funciona como um dos elementos centrais da discussão, podendo assumir suas sub-
grupos de estudos para análise bibliográfica, com a discussão de textos e relatórios sobre o tema jetividades sem perder os elementos científicos da objetividade, validade e confiabilidade.
do projeto bem como o alinhamento de nossas possibilidades de atuação. Ainda, no Rio de Janeiro,
via articulação com a Universidade Federal Fluminense (UFF), conseguimos consolidar a parceria Em Recife/PE o pesquisa teve início em abril de 2018, com foco de atuação na única unida-
do projeto através de um projeto de extensão coordenado pela pesquisadora Flavia Medeiros, pelo de prisional feminina da cidade, a Colônia Penal Feminina Bom Pastor, localizada na zona oeste da
qual se viabilizou acesso à infraestrutura da universidade e uma contrapartida às voluntárias que cidade do Recife, recebendo mulheres de todo o estado de Pernambuco. Vamos compartilhar a con-
participaram do projeto. textualização do campo, abordando as considerações sobre as cidades, os fóruns e as varas crimi-
nais visitadas; falaremos também dos objetivos da pesquisa e escolhas metodológicas tais como foi
A pesquisa ocorrida nos estados de Pernambuco e Rio de Janeiro estão organizadas separa- pensado o método empenhado para a coleta dos dados, a construção de aplicação de questionário;
damente em relação ao seu desenvolvimento, porque embora o os objetivos sejam os mesmos, tra- análise e apresentação dos dados coletados, a parte que chamamos corpus da pesquisa, ou seja, o
tam-se de grupos de pesquisadoras, interlocutoras e contextos diferentes. Neste sentido, ao longo material que foi escolhido para compor o quadro de informações a serem lidas e interpretadas; e,
da execução do projeto, as equipes foram autônomas para resolver conjuntamente quais formatos, por fim, conclusões propostas pela equipe da presente pesquisa.
técnicas e estratégias aplicar para melhor execução do projeto.
CAMPO
A seguir seguem, respectivamente, o relato e as propostas das experiên- A proposta do campo de abrangência da pesquisa foi, a princípio, a cidade do Recife, que, no
entanto, precisou contemplar todo o estado de Pernambuco pelo fato de que as mulheres privadas
cias práticas em Pernambuco e, em seguida, no Rio de Janeiro.
de liberdade no Bom Pastor vêm de toda região. Como a iniciativa planejava uma atuação sobre as
mulheres estavam em situação provisória de prisão, o locus da pesquisa agregou os fóruns, varas
criminais e varas únicas das cidades mapeadas no estado.

Para o mapeamento das varas, foi necessário um amplo levantamento pelas voluntárias do
projeto sobre todos os processos, instaurados entre o biênio 2017 e 2018, que respondessem a
todos os pré-requisitos necessários à impetração de HC para reforçar o HC coletivo deferido por Le-
vandowsky, quais sejam (art. 112, §3, L. 13.769/2018): i) não ter cometido crime com violência ou
grave ameaça à pessoa; ii) não ter cometido crime contra seu filho ou dependente; iii) ter cumprido
ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior; iv) ser primária e ter bom comportamento
carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento; e v) não ter integrado organização crimi-
nosa.
Em Pernambuco, o levantamento encontrou 120 processos de prisões
14 PESQUISA_ 15
preventivas de mulheres, distribuídos por 64 varas, entre Apesar da pesquisa focar nos dados oriundos dos questionários aplicados, sem dúvida a par-

44 cidades, são elas: Abreu e Lima, Água Preta, Alfredo, Arcoverde, Barreiros, Belo Jardim,
te mais rica e importante para o desenvolvimento do presente manual foi a aproximação e as vivên-
cias experienciadas junto às mulheres privadas de liberdade no nosso estado, potencializando suas
Bonito, Buíque, Cabo, Canhotinho, Caruaru, Chã Grande, Cortês, Cupira, Ferreiros, Garanhuns, Gló- perspectivas e reflexões a partir de outros referenciais coletivas. Poder ouvir delas mesmas suas
ria do Goitá, Goiana, Gravatá, Ipojuca, Ipubi, Igarassu, Itamaracá, Itapsuma, Jupi, Lagoa dos Gatos, histórias, suas reclamações, seus clamores e indignações foi fundamental para trazermos aquelas
Limoeiro, Nazaré da Mata, Olinda, Paulista, Panelas, Pedra, Petrolina, Recife, Ribeirão, São Caetano, mulheres para mais perto dos textos aqui desenvolvidos e publicizados, assim como da luta por
São Lourenço da Mata, Serra Talhada, Taquaritinga do Norte, Timbaúba, Toritama, Venturosa, Vi- direitos que passa pela retomada da liberdade mas também pela equidade no acesso aos direitos.
cência e Vitória de Santo Antão.
METODOLOGIA
Nessas diferentes cidades, que se organizam em seu judiciário de forma diversa, às vezes A pesquisa proposta pelo projeto teve como principal objetivo coletar dados sobre as mulhe-
dispondo de vara especificamente criminal, às vezes dispondo de vara única (na qual os processos res privadas de liberdade preventivamente no estados e aferir os requisitos legais para impetração
de todos os tipos - cíveis, tributários, trabalhistas, criminais, etc. - correm na mesma vara sob a de Habeas Corpus (HC). Essa proposta levou em conta, em primeiro lugar, a ausência de dados
regência do mesmo juiz) a relação com os agentes estatais que aí trabalhavam também foi diversa. prisionais no estado de Pernambuco e, consequentemente, a necessidade de saber quem são as
Efetivamente, não tivemos condições materiais de alcançar todas as varas levantadas, inclusive por mulheres privadas de liberdade em nossos territórios, para podermos realizar uma atuação mais
conta de dificuldades no acesso à informação, como será colocado na parte sobre o jurídico do pro- direcionada para essa população, bem como, e sobretudo, atingir o problema do superencarcera-
jeto, e consequentemente, precisamos abrir mão de alguns processos. Dentre as cidades visitadas, mento feminino, no qual, enquanto uma realidade que se observa em toda América Latina (BINDER
destacamos as varas criminais de Recife e Olinda, por terem recebido mais visitas desta equipe, et al., 2015), boa parte das prisões são em situação provisória.
bem como a de Itamaracá, que teve uma peculiaridade muito interessante, qual seja, encontrava-se
deliberadamente fechada no dia da nossa visita. Na maior parte das vezes, a consulta aos dados do A pesquisa dividiu-se nas seguintes etapas: a primeira correspondeu ao contato com órgãos
processo ocorria sem maiores constrangimentos, são arquivos públicos (não corriam em segredo de que dispusessem de dados sobre o aprisionamento de mulheres em PE; a segunda visava fazer o
justiça) e apenas quando estavam para julgamento, concluso no gabinete do juiz/a, ficavam com o levantamentos de dados virtuais dos processos, por meio de consulta pública online no site do Tri-
acesso restrito. É importante ressaltar também que o acesso dos processos foi facilitado nas vezes bunal de jurisdição responsável, qual seja, o Tribunal de Justiça de Pernambuco; a terceira parte da
que não chegamos com muitas explicações sobre a pesquisa, sem ofício, e éramos identificadas pesquisa foi a verificação in locu, ou seja, indo pessoalmente às varas onde corriam os processos
enquanto advogadas ou estudantes pesquisadoras. Já nas vezes que apresentamos o projeto, nos triados, para aplicação dos questionários; a quarta fase correspondeu à catalogação, leitura e inter-
colocando enquanto feministas antiproibicionistas e a favor do desencarceramento, surgiam entra- pretação desses dados, cujas conclusões serão exploradas no próximo ponto.
ves e muitas vezes a necessidade do/a servidor/a consulta um/a superior.
A opção pelo emprego de um questionário, criado conjuntamente pelos grupos de Recife
Nestes espaços, era comum circularem policiais, pessoas respondendo a processos a cami- e do Rio de Janeiro, para avaliar os processos, se deu, principalmente, porque essa estratégia foi
nho da audiência, mães (sempre mães) em busca de notícia sobre o processo de seus filhos (que considerada mais eficaz para coletar dados documentais de forma já organizada, pela estrutura do
realmente representam, em números totais, um volume ainda maior de acusados em relação às próprio questionário, e que permitiria mais facilmente localizar as questões chave à consecução do
mulheres), que às vezes vinham até nós comentar algo sobre o caso ou mesmo tirar algumas dúvi- objetivo proposto, qual seja, impetrar o HC. Outro fato também que ajudou a optar pela aplicação
das. É importante pontuar que a maior parte das voluntárias que dirigiam-se às varas já eram advo- dos questionários, é o fato de que muito possivelmente o grupo que analisaria os dados ali dispos-
gadas ou cursavam a graduação em direito, ou seja, mesmo além das vestimentas que se impõem tos, não teria sido o mesmo grupo a colhê-los, o que facilitaria a comunicação e a leitura dos dados.
para entrar nesses lugares (como roupa abaixo do joelho, homens não podem usar bermuda, entre Quanto à estrutura do questionário, ela foi pensada de forma a contemplar aspectos além dos re-
outras regras), as pesquisadoras carregavam uma indumentária e uma postura de advogadas, de- quisitos básicos para impetração do HC, com questões abertas e fechadas, que sempre dialogavam
talhe que precisa ser questionado porque consideramos sempre quem somos (ou o que queremos entre si, considerando que para determinada mulher ser privada de sua liberdade é necessária a
transmitir aos olhos dos outros) para pensar o lugar que estamos. combinação de vários fatores, que evidentemente não vinham todos respondidos explicitamente
nos autos do processo, mas que com as questões objetivas e subjetivas elencadas, se comple-
Completando de forma crucial o campo da pesquisa, onde usamos largamente nossa obser- mentavam de forma a oferecer um suporte coerente para as questões que estávamos levantando,
vação participante e uma perspectiva etnográfica que valoriza o contato e as vozes das interlocuto- reforçado pelo opção de redigir um questionário complexo, com 43 questões a serem respondidas.
ras da pesquisa, foi a unidade prisional do Bom Pastor, lugar onde todas essas mulheres (mesmo as Isso também levava às pesquisadoras a investigarem e estudarem os processos de uma forma mais
que respondiam a processo no interior) ficavam aguardando julgamento e, portanto, presas. Para aprofundada, realmente aptas a compreender o que tinha ocorrido caso a caso.
esse espaço a proposta não era a coleta de dados formais, mas sim realizar contato e atividades
com as internas a partir da necessidade, trazida enquanto proposta da pesquisa, de saber quem DADOS COLETADOS
eram as mulheres que estavam por trás daqueles processos que estávamos lidando e como elas Como mencionado, os questionários foram elaborados de modo a abranger a complexidade
queriam ser ouvidas. Essa parte do campo não será trazida em números na parte da leitura dos da situação das mulheres encarceradas, tendo suas aplicações ocorrido em circunstâncias nem
questionários, mas foi fundamental para a análise desses dados, pois os textos nada mais são que sempre favoráveis. Dito isto, passamos a apresentar os dados coletados, numa perspectiva crítica,
abstrações se não devidamente conectados à realidade e à vida das pessoas. tentando compreender a realidade encontrada nos processos à luz de reflexões sobre o encarcera-
Em Recife, não conseguimos a realização das entrevistas, pois tivemos muita dificuldade de entrar mento no Brasil.
no sistema para encontrar as mulheres com a justificativa da realização de uma pesquisa. Os ór-
gãos de segurança apresentaram grande resistência a qualquer ação que culminasse da produção De um modo geral, a pesquisa demonstrou o que nossas hipóteses já indicavam: embora as
de dados que pudesse fragilizar o discurso do Estado. Sendo assim focamos nosso contato com as determinações legais apontem o caminho para o desencarceramento de presas provisórias que são
mulheres privadas de liberdade em conversas coletivas e oficinas. Foram ao todo 5 meses de visitas, gestantes, mães ou responsáveis legais, a realidade dessas mulheres é bastante diferente. As res-
com um encontro por mês.
16 PESQUISA_ PESQUISA_ 17
postas aos questionários levantadas através das informações contida nos processos disponíveis de filhos menores, ré primária, que, sob o argumento do magistrado de que a mesma era “drogada”,
forma pública no fóruns e varas, esse levantamento aponta dados muito relevantes para a pesquisa, não admitiu a prisão domiciliar1. Outro caso é o da jovem que, mesmo tendo uma filha de 7 meses
tornando-se impossível resumi-los em poucas páginas. Entretanto, elencamos algumas categorias de idade, não havia sequer uma referência à criança nos autos.
analíticas que pensamos ser imprescindível para tratarmos dessa questão, considerando a centrali-
dade de cada uma delas nesse processo. A maternidade dos casos acima, bem como de outros casos, conforme descoberta das pes-
quisadoras, veio a constar nos processos mais adiante. Levando-se em consideração que o processo
AS MULHERES ENCARCERADAS SÃO, EM SUA MAIORIA, JOVENS de defesa é demorado, em nossa análise, esse é um dos principais motivos que dificultam a aplica-
Os dados coletados demonstraram que as presas provisórias são, em sua maioria, bastante ção do direito das mulheres terem as prisões preventivas convertidas em prisão domiciliar.
jovens. O número de mulheres nascidas na década de 1990 é maioria entre os processos analisa-
dos, anunciando que o perfil das mulheres privadas de liberdade em Pernambuco repete o padrão TIPOS DE CRIMES PRATICADOS PELAS MULHERES
De acordo com o levantamento mais recente do INFOPEN, os crimes que mais levam pesso-
a grande maioria das
nacional jovem de quase todos os estados da federação, com
mulheres encarceradas entre 18 e 29 anos, conforme dados do Le-
as às prisões no Brasil são aqueles relacionados ao tráfico de drogas e crimes patrimoniais, como
No caso do tráfico de drogas, é responsável por
roubos e furtos.
28% da população encarcerada total, enquanto roubos e
vantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres, do Departamento Peniten-
ciário Nacional (BRASIL, 2014).

Interessante observar que essa é a faixa etária onde se encontra o período de maior potencial
furtos, somados, chegam a 37% nas prisões. Os dados presentes nos
questionários analisados em nossa pesquisa vão na mesma direção, uma vez que as mulheres, com
produtivo da vida das mulheres, nos mais variados aspectos, tanto social quanto economicamente,
exceção de uma única que estava presa por tentativa de homicídio, respondem por roubo e furto,
e que o encarceramento, fruto de uma cultura preocupada com a “Segurança Nacional”, cultua uma
também nas modalidades de tentativa, e tráfico de drogas. Estes ocorreram, em alguns casos, em
atuação repressiva e promove uma penalização ainda maior para essas mulheres. Tal cultura do en-
concurso com o crime de corrupção de menores.
carceramento não apenas aprofunda, mas fabrica as desigualdades sociais (BELICE, 2017). Não por
acaso, esse recorte etário nas prisões consolidam as desigualdades, visto que, em vez de penas que
É notável, a partir dessa constatação, o quanto a prática de crime diferencia-se de sistema
possibilitem a reinserção dessas mulheres no campo do trabalho e da prática social, aprofunda-se o
penal. Ora, sabe-se que crimes são cometidos por pessoas pertencentes a qualquer classe social,
abismo com a privação de suas liberdades.
inclusive oriundas dos estratos mais abastados da sociedade, de diferentes e múltiplas formas e
tipos, embora a proporção de aprisionados seja escandalosamente diferente entre elas. Ocorre que
AS APRISIONADAS SÃO MULHERES PERIFÉRICAS
os crimes cometidos por ricos, a exemplo dos crimes trabalhistas, de “colarinho branco”, ou mesmo
A medida que íamos avançando na análise dos questionários, fomos nos certificando de
volumosos transporte de drogas ilícitas, onde o sujeito ativo é o empregador, empresário, ou tem in-
que os processos desiguais já referidos permeiam as vidas das mulheres aprisionadas em diversos
fluência na estrutura de poder, recebem pena bem menores, e, muitas vezes, tem a substituição por
aspectos, até mesmo geográficos. Todas as mulheres cujos processos analisamos eram moradoras
penas alternativas ou mesmo sequer chegam a responder pelos crimes. Os tipos penais comumente
dos bairros das periferias de Olinda e Recife ou viviam em situação de rua.
associados a esse grupo social, como a corrupção, o tráfico de influência, a fraude de concorrência,
a sonegação previdenciária e a fraude processual, somados, correspondem a apenas 0,2% da po-
A cidade, dividida entre áreas centrais e periféricas, apresenta uma espécie de criminalização
pulação carcerária (BRASIL, 2014). Ou seja, não há justa relação quantitativa entre o cometimento
de determinados territórios, cujas populações que já moram às margens do sistema (das políticas
de crimes e ocupação do sistema penal.
de saúde, habitação, saneamento, cultura, etc.), sofrem cotidianamente o peso da mão punitiva
do Estado que, mesmo tão ausente na garantia de políticas públicas para essas comunidades, não
O que se percebe, no entanto, é o encarceramento em massa da população pobre, negra,
se exime de dispor de políticas de controle sobre essas mesmas populações. Aqui, fazemos uma
jovem e com baixíssimo grau de escolarização. Rosa Del Olmo (1973, p. 84), em seus estudos sobre
analogia em diálogo a perspectiva de cidade estilhaçada (LEFEBVRE, 1999), que se apresenta frag-
criminologia, escreveu sobre a cada vez mais evidente necessidade de “fomentar uma criminologia
mentada em hierarquizações sócio-espaciais que culminam em processos de segregação e violên-
crítica” que se debruce sobre o questionamento de “o que é o delito e quem é um delinquente”,
cia. Aos espaços deteriorados e excluídos, fruto da não atuação dos poderes públicos, soma-se a
buscando identificar os processos e os responsáveis por essa situação e por suas implicações na
formalização de tipos penais que sancionam quem é o delinquente, o outro, na sociedade.
sociedade.
Ainda mais vulnerável é a situação das mulheres que vivem em situação de rua, ocupantes
de espaços degradados nos centros urbanos, diante do caos e de completa ausência de dignidade
A PRISÃO PREVENTIVA COMO REGRA
humana. Para Belice (2017, p. 44) escolhem-se exatamente “aqueles das zonas societárias mais
Nos questionários analisados, pudemos observar que a maior parte das mulheres não esta-
baixas, aquele setor de marginalizados sociais, como deveras qualificadas para a intervenção estig-
vam cumprindo prisão preventiva, embora algumas delas ainda estivessem. Em razão da audiência
matizante do sistema punitivo estatal”.
de custódia, a maioria das mulheres, mesmo presas em flagrante, não tiveram suas prisões conver-
tidas em preventivas. Um dado interessante que possivelmente está relacionado com tal ocorrência
INFORMAÇÕES SOBRE FILHOS/DEPENDENTES NO AUTO DE PRISÃO
é o fato dessas mulheres serem rés primárias e possuírem residência fixa, uma vez que, como vi-
Um ponto que nos chamou bastante durante o estudo dos dados, foi o fato de que em boa
mos, em alguns casos havia desconhecimento sobre a maternidade das mesmas.
parte dos processos não havia qualquer informação a respeito de dependentes e filhos, o que po-
Entretanto, existem varas onde nenhuma das mulheres, ainda que congregando todos os
deria ter evitado, para muitas mulheres, meses de encarceramento.
requisitos necessários, foi beneficiada com a liberdade provisória. Em uma delas, até mesmo, isso
ocorreu por exclusiva decisão discricionária do magistrado, que também comprometeu o acesso das
Dois casos nos chamaram especial atenção. O primeiro trata-se de uma mulher com quatro
1 Posteriormente, a acusada teve a prisão preventiva revogada e foi encaminhada para acompanhamento pelo CAPS.
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pesquisadoras aos processos e a realização da coleta de dados naquela vara. modernidade e o capital emergem sob nossos ombros, nossas costas, nossos corpos e nossas vidas.
A prisão, enquanto mecanismo formal de uma estrutura baseada em um Estado forte, que perse-
POLICIAIS COMO TESTEMUNHAS NOS PROCESSOS gue os próprios interesses, quais sejam, das classes que o tem dominado historicamente e sempre
No que concerne às testemunhas, é digno de nota a quantidade de processos analisados nos servindo a burguesia colonial (para dentro e para fora do país), têm incidido contundentemente
quais os policiais figuram como tal. Não são poucos os casos de flagrantes onde os policiais respon- sobre as mulheres ao longo dos séculos, de tantas formas diferentes quantas são possíveis dizer.
sáveis pela prisão aparecem como testemunhas, muitas vezes únicas, do crime cometido. As instituições prisionais são o aspecto mais radical da exclusão social dessas pessoas, que já são
Em que pese a jurisprudência ser pacífica no sentido de afirmar a validade da prova testemunhal limitadas e privadas de vários direitos e liberdades, e que têm suas vidas definitivamente marcadas
do policial, afastando o impedimento dos policiais em razão da legitimidade presumida dos atos da pela intervenção criminalizadora do Estado.
Administração Pública, é temerário o peso de prova desse testemunho. Não apenas pelo óbvio en-
volvimento do policial com a ocorrência e seu interesse na condenação, mas também pelos inúme- Essa pesquisa se desdobrou sempre buscando o contradiscurso, a ocupação de todos os
ros casos de abusos de autoridade, torturas e humilhações, forjamento de flagrantes, entre outros espaços de poder, o diálogo e a escuta das sujeitas historicamente silenciadas, à margem da his-
ilícitos amplamente conhecidos pelas populações periféricas. tória, das pesquisas e dos projetos das sociedades ocidentalizadas2. Neste sentido, o que se pode
apresentar aqui é um dos muitos passos possíveis para caminharmos em direção a uma sociedade
Como anteriormente mencionado, o tráfico de drogas, responsável pelo encarceramento em mais justa e sem grades, catracas e barreiras invisíveis. A explanação dos dados levantados tinha
massa nos presídios brasileiros, é um dos crimes mais presentes nos processos que investigamos. por proposta a construção de dados intermediários qualitativos, o que acredita-se ser de suma im-
Note-se que parte significativa dos sentenciamentos em razão desse tipo penal baseia-se, de forma portância considerando os objetivos estabelecidos pelo projeto.
exclusiva, no testemunho dos policiais que efetuaram a apreensão e não é diferente nos casos sob
os quais nos debruçamos nesta pesquisa. Há, pelo menos, um caso de condenação onde o processo Por fim, enfatizamos que impactos do encarceramento das mulheres-mães são extremamen-
se baseou na prova testemunhal dos policiais que efetivaram a prisão em flagrante da mulher, mes- te nocivos para o bem-estar físico e emocional das crianças, especialmente na primeira infância.
mo diante da alegação de inocência da ré. Desse modo, o encarceramento precisa ser evitado sempre que for possível o cumprimento da pena
em formas alternativas ou em prisão domiciliar, conforme determinação do Habeas Corpus coletivo.
Diante disso, além do constante debate com a sociedade sobre a retirada da matéria das Para tanto, além das reformas no ordenamento jurídico brasileiro, se faz necessária a diligência do
drogas do âmbito penal, ainda se faz necessário que o Processo Penal caminhe bastante no sen- Estado no sentido de garantir a efetivação desse direito pelos agentes do judiciário, reduzindo ao
tido de atingirmos um nível minimamente racional e humanizado do sistema de justiça criminal. mínimo a discricionariedade na tomada de decisão pelos juízes.

OS PEDIDOS DE PRISÃO DOMICILIAR E OS ARGUMENTOS JURÍDICOS


Os questionários ainda nos possibilitaram ter acesso a informações sobre a conversão das
prisões preventivas em prisões domiciliares, em razão do Habeas Corpus coletivo. Em mais da me-
Mulheres e Liberdade: narrativas e subjetivi-
tade dos processos constam pedidos de conversão em prisão domiciliar por parte da Defensoria
Pública e dos advogados particulares. Contudo, para nosso espanto, em nenhuma delas o pedido foi
concedido, inclusive nos casos em que o Ministério Público deu o parecer favorável à alteração. O
dades nas prisões femininas do Rio de Janeiro
Ministério Público, entretanto, em algumas situações, não apenas não deu parecer favorável, como
usou argumentos desqualificadores em relação ao comportamento das mulheres, como veremos. RIO DE JANEIRO | POR FLÁVIA MEDEIROS E LUANA MARTINS
Os pareceres desfavoráveis à possibilidades das presas provisórias cumprirem pena em prisão A PESQUISA ETNOGRÁFICA E O CAMPO ENTRE PROCESSOS E PRISÕES
domiciliar tinham, em comum, os argumentos de conveniência da instrução criminal e salvaguarda A pesquisa no Rio de Janeiro consistiu na análise de processos judiciais e na realização de en-
da aplicação de lei penal por existência de prova do crime e indício suficiente da autoria. Outros trevistas com mulheres no sistema prisional. Para análise dos processos tomamos como ferramenta
discursos, como a garantia da ordem pública, também aparecem para fundamentar a decisão pela os formulários construídos em conjunto entre as equipes do Rio e Recife. Apesar de ter como fina-
não concessão. Estes argumentos, ainda que, em nossa leitura, sejam insuficientes para justificar a lidade dados quantitativos, priorizamos o tratamento qualitativo dos dados, olhando cada processo
não aplicação da determinação da prisão domiciliar, possuem critérios que arrazoam tecnicamente como resultado do registro, seleção e organização burocrática-institucional de fatos relacionados à
a decisão. vida dessas mulheres, submetidos ao julgamento moral e penal dos atores dos sistemas de justiça
criminal e segurança pública. Neste sentido, construímos uma abordagem que levasse em conta
Todavia, alguns argumentos utilizados pelos juízes e membros do Ministério Público para a cada processo não apenas como uma fonte, mas como um documento que incide na vida de mu-
negativa foram em uma direção moralizante, fazendo juízo, inclusive, sobre a capacidade materna lheres que, em decorrência daqueles processos judiciais, estavam sendo submetidas aos controles
de algumas mulheres, em razão de sua experiência com o crime. Entre eles podemos citar os argu- arbitrários e punitivos do Estado.
mentos de periculosidade das pessoas em situação de rua, a incapacidade de cuidar da filha em ra- Foi por esses motivos que nossa pesquisa tomou os processos judiciais como parte do cam-
zão de ter cometido crime, ser “drogada” e, ainda, que a simples maternidade de filho menor de 12 po, seguindo a tradição antropológica de produção do conhecimento etnográfico. Inspirados por
anos não cabe automaticamente prisão domiciliar. Nota-se, portanto, que muitas vezes as mulheres trabalhos que propõem a construção de uma etnografia dos documentos (FERREIRA e NADAI,
são mantidas em prisão preventiva em razão da opinião pessoal do magistrado ou dos membros do 2015; EILBAUM, 2006) observamos nestes registros oficiais elementos que pudessem nos ajudar a
MP, mesmo preenchendo os requisitos para serem beneficiadas com a prisão domiciliar. analisar e compreender os modos pelos quais o controle estatal era direcionado contra essas mulhe-
2 Ocidentalizadas como um processo além da geografia política do mundo, considerando que a disposição geográfica como
CONCLUSÕES PRELIMINARES se conhece é um projeto europeu de dominação do mundo, e que, por tanto, não coloca o Brasil literalmente no ocidente; além
A história da proibição dos corpos e das vidas das mulheres não é algo novo. Na verdade a disso, o projeto do “ocidente” é, na verdade, um projeto político de “desenvolvimento” e dinâmicas coloniais; portanto, acredita-
mos ser legítimos dizer que o Brasil não é ocidente, mas sim “ocidentalizado”.
PESQUISA_
20 PESQUISA_ 21
res de forma específica e quais categorias eram acionadas para justificar e legitimar este exercício em sua maioria presas pela primeira vez, com pouca assistência jurídica, e sem visita, revelavam a
de poder sobre, e contra elas. ansiedade que a prisão provoca em suas primeiras semanas. Saudades dos filhos, ausência de no-
tícias, escassos produtos de higiene pessoal, a utilização do boi3 e a expectativa de uma audiência
É importante destacar que a análise via questionários se deu pela consolidação em uma única que definiria os próximos anos daquelas mulheres marcaram os dias no Joaquim Ferreira.
lista, a partir de 3 fontes diferentes que foram fornecidas por parcerias e diálogos interinstitucionais.
A dificuldade na aplicação dos questionários sobre os processos decorreu da identificação de que Aquelas que não saiam nas primeiras semanas eram transferidas para o Nelson Hungria, que
este não foi elaborado de forma coerente com as especificidades dos processos judiciais, tal como é uma unidade mista, entre sentenciadas e não sentenciadas. As sentenciadas que ali estão foram
acessados por nós a partir da consulta online do TJRJ. Foi diante de tais dificuldades, que passamos condenadas a penas leves. Do contrário, são transferidas para a Penitenciária Talavera Bruce, uma
a buscar outras questões nos processos que pudessem servir como insumos relevantes para a cons- unidade só para quem tem “cadeia alta” ou para as grávidas, que ficam em uma “cela especial” e
trução da pesquisa, a atuação jurídica e nossa articulação política. Tais análises foram utilizadas e seguem com seus filhos, após o parto, para a Unidade Materno Infantil, até que eles completem,
estão apresentadas neste manual nos textos da equipe do Rio de Janeiro que trabalharam conosco. pelo menos, seis meses.4

Além deste olhar atento e de estranhamento aos processos judiciais, a pesquisa no Rio de Ao fim, progredindo de regime para o semiaberto ou aberto, as mulheres seguem para o
Janeiro priorizou as atividades de campo com viés etnográfico, o que pressupõe uma relação de “último cadeado”, o Oscar Stevenson. Esta é a única unidade que fica fora da região do Complexo
interlocução direta com as mulheres privadas de liberdade e uma construção conjunta dos proble- de Gericinó, estando localizada no bairro de Benfica. Ali, muitas mulheres, depois de longos anos
mas e questões. Para tanto, num primeiro momento nós conjugamos atividades de pesquisa, como encarceradas, conseguem ouvir o carro do ovo que passa anunciando suas vendas do lado de fora
reuniões, entrevistas e conversas informais com agentes envolvidos na questão do (des)encarcera- da unidade, ou o som do “Bar do Ricardo”, também do lado de fora. A proximidade da cadeia com o
mento de mulheres que atuam na Defensoria Pública, no Ministério Público, na Secretaria de Admi- “extramuros” é muito distinta das unidades do Complexo. Algumas das mulheres que conhecemos
nistração Penitenciária (SEAP) e no Conselho Penitenciário. Também passamos a integrar atividades no Talavera Bruce e depois acompanhamos no Oscar Stevenson relataram a emoção de ouvir esses
de articulação junto a outros movimentos sociais nos quais atuam familiares, militantes e ativistas sons depois de tantos anos.
pelo desencarceramento, especialmente na Frente Estadual pelo Desencarceramento.
Cada unidade prisional guarda suas peculiaridades que são marcas importantes no fluxo
Para o contato direto com mulheres submetidas aos regimes de privação de liberdade, bus- dessas mulheres dentro do sistema prisional. Apesar da pesquisa inicialmente se restringir a mulhe-
camos o caminho institucional da SEAP - RJ. Após a submissão do requerimento para realização de res presas provisoriamente, acabamos conhecendo mulheres que já estavam sentenciadas ou que
pesquisa em sete unidades prisionais, selecionadas considerando o perfil de mulheres lá encarce- cumpriam pena por uma processo, enquanto aguardavam provisoriamente o julgamento de outro
radas, particularmente, mulheres presas provisoriamente, aguardamos por cerca de 7 meses (de na prisão. Tivemos a oportunidade de acompanhar alguma delas nesse caminho, que ao chegarem
junho de 2018 a janeiro de 2019) até a aprovação do pedido de realização de pesquisa. Após a au- no “último cadeado” sentiam que a pena estava “andando”, mais próximas, portanto, do final da
torização formal da SEAP, entramos em contato direto com as unidades prisionais selecionadas para cadeia. A rua se aproximava, não só pelos sons que se pode ouvir de dentro da prisão, mas pela
definição de dias e horários possíveis para realização de entrevistas direta com as mulheres. Em expectativa dos benefícios como o Trabalho Extramuros (TEM), quando se pode trabalhar fora e
cada unidade prisional, a cada visita, constantemente havia a necessidade de negociar e confirmar voltar para dormir na cadeia, e a Visita Periódica a Família (VPF), que permite sete dias em casa em
a possibilidade de nossa entrada, ainda que diante da autorização formal. cinco datas comemorativas ao longo do ano.

Apesar de obtermos a autorização de pesquisa para sete unidades da SEAP, uma delas, o AS ENTREVISTAS
Hospital Psiquiátrico Roberto de Medeiros, deixou de receber mulheres antes de iniciarmos o traba- Em nossas entrevistas, inicialmente estávamos orientadas por um questionário de perguntas
lho. As demais eram as unidades femininas localizadas no Rio de Janeiro, sendo uma delas masculi- construídos coletivamente com as equipes de Rio e Recife. No Rio de Janeiro, optamos por aplicá-los
na, mas que recebem como internas as mulheres trans e travestis, o Evaristo de Moraes, e que por de forma semi-indireta, a partir de conversas individuais conduzidas por nós, pesquisadoras, junto
questões alheias a nossa vontade, só conseguimos realizar parte de uma entrevista, em uma única às mulheres em situação de privação de liberdade. Ao construirmos esta interlocução, buscávamos
visita à unidade. informações com essas mulheres, que por meio de suas narrativas, nos relatavam sobre sua condi-
ção social, sua relação com o crime, seu processo judicial, acesso à saúde, educação e trabalho e o
Na Unidade Materno Infantil (UMI), apesar de termos visitado duas vezes, não conseguimos que mais fosse a ela relevante de ser compartilhado.
realizar entrevistas, porque a diretora não autorizou que ficássemos sozinhas com as internas, que
quando fomos somavam seis mulheres com seus filhos recém-nascidos. Diante da impossibilidade A partir da narrativa dessas mulheres, buscamos trazer para reflexão a relação delas com
de garantia da privacidade de nossas interlocutoras e dos constrangimentos e riscos daí derivados, a prisão, o crime, a justiça, com drogas e suas experiências de sobrevivência e sofrimento. Ao co-
se tornou inviável a condução da pesquisa nessa unidade prisional. Assim, a interlocução direta com nhecer suas perspectivas sobre o encarceramento enquanto mulheres, mães, usuárias de drogas
as internas se deu em quatro unidades: Joaquim Ferreira (JF), Nelson Hungria (NH), Talavera Bruce tentamos acessar como elas compreendem o sistema de justiça de criminal e nas entrevistas, cada
(TB) e Oscar Stevenson (OS), nesta ordem. Nelas conhecemos e conversamos com 93 mulheres ao uma a sua maneira, os diálogos eram preenchidas de muitos momentos, nomes, histórias e lugares.
longo de 6 meses, entre mulheres presas provisoriamente e mulheres que já estavam cumprindo Compartilhados com emoção, choros e silêncios, era também na trocas de olhares, nos apertos de
pena. mão e até mesmo nos impedidos abraços que também nos comunicávamos com estas mulheres. Ao
mesmo tempo, na nossa apresentação, sempre descrevíamos o projeto, seus objetivos e a atuação
Por questões metodológicas e também pela localização das unidades, seguimos o fluxo das
3 Nome dado ao local em que são realizadas as necessidades básicas, quando não há vaso sanitário, o que ocorre em algu-
mulheres na prisão, na ordem acima descrita. Começamos pela unidade provisória JF, na qual as mas unidades femininas.
mulheres não sentenciadas aguardam julgamento. O choro e angústia de quem está buscando com- 4 A partir dos seis meses, as crianças podem ser separadas das mães e, preferencialmente, são encaminhadas para seus
preender sua nova situação e o sofrimento de estar distante de seus entes e familiares: mulheres, familiares que estão fora. Se não houver ninguém na família que possa cuidar da criança, elas podem ser encaminhadas para uma
adoção provisória ou para abrigos, em último caso.
PESQUISA_ PESQUISA_
22 23
da RENFA. Junto de nossos cadernos, tínhamos um folder da RENFA que usávamos para mostrar
quando perguntadas sobre a rede, sua proposta e agenda de luta. Questões sobre feminismo, po-
lítica de drogas e antropologia também eram parte das questões que elas nos faziam e ainda que
nosso objetivo principal fosse sempre escutá-las e, portanto, incentivá-las a falar, boa parte das nos-
sas entrevistas era também neste diálogo mútuo, onde não só fazíamos perguntas, como éramos
perguntadas também.

Como descrevemos acima, em cada unidade prisional a forma de se fazer a pesquisa se al-
terava e, após pré-combinado o acesso (dias, horários, regras de convívio), o desafio era identificar
junto a direção onde e como seria adequado para que fizéssemos as entrevistas. Dentre os diversos
espaços, utilizamos sala da defensoria pública, da assistente social, biblioteca, sala de audiovisual,
igreja desativada e, até mesmo, a sala da segurança. A nossa única exigência ao espaço cedido
é que fossemos apenas nós e as mulheres as pessoas presentes nos espaços, garantindo assim a
privacidade da conversa. Algumas vezes, por ocasião de outras atividades ou por impedimentos
Carla tinha 24 anos, mãe de três crianças, o mais velho com 7 anos, o do meio com
2 anos e 8 meses e mais novo com 1 ano e meio. Mulher negra, estava grávida de 8 meses do ca-
eventuais, não conseguimos usar a sala e, por isso, fomos impedidas de entrar na unidade. Uma çula quando foi presa sob acusação de tráfico de drogas, depois de flagrada entrando com 200g de
única vez, participamos da atividade como convidadas, como foi no evento em celebração ao Dia da cocaína numa unidade prisional no Complexo de Gericinó, onde seu marido cumpria pena por roubo.
Mulher, que foi organizado pela UNP (Universal nos Presídios), um segmento da Igreja Universal do Carla ganharia R$ 500 pelo trabalho. Conversei com Carla em duas oportunidades. Na primeira, ela
Reino de Deus que atua nas unidades prisionais. chegou para a entrevista acompanhada de outras 3 mulheres presas, Josi, Tânia e Lana. Todas elas
mulheres negras, duas delas acusadas de tráfico e outras duas de roubo.
A seguir, vamos apresentar brevemente narrativas de algumas dessas mulheres com o obje-
tivo de trazer suas experiências e percepções sobre a forma como a vida dessas mulheres têm sido Na segunda vez que conversamos Carla chegou por solicitação à guarda. “Oi, você de novo!”,
atravessada pelo cárcere. As conversas foram realizadas por cada uma de nós de forma individual e eu disse e ela respondeu: “Sim, eu pedi pra guarda me trazer aqui”. Na medida que fomos conver-
decidimos manter os relatos da maneira que registramos pessoalmente, garantido o anonimato de sando, eu retomava alguns dados que ela já tinha compartilhado anteriormente. Ela me explicou
nossas interlocutoras. que naquele dia estava sentindo muito cólica pois fazia mais de 3 anos que ela não menstruava pois
estava grávida e depois amamentando seu segundo filho quando engravidou de novo. Ela estava há
cerca dois meses sem amamentar, tempo que havia sido afastada do seu filho depois que foi detida
grávida. Para ela, sair da cela servia para se distrair e tentar conseguir medicamentos no ambulató-
rio para amenizar a dor.

Perguntei como ela ia fazer com os absorventes higiênicos e ela disse que já tinha conseguido
alguns com a Igreja Universal do Reino de Deus. A dificuldade de materiais de higiene é uma ques-

“Narrativas tão que faz parte da precária realidade do sistema prisional feminino, pois o serviço prestado pelo
estado que encarcera estas mulheres não atende as suas necessidades básicas, fazendo com que
elas sofram uma série de restrições como a limitação de recursos. Ao mesmo tempo, aquelas que
conseguem o mínimo, como Carla, tem que contar com doações e a ação caritária especialmente de
igrejas evangélicas para poder se manter.

e trajetórias
Carla relatou, entre outras violações que sofreu, sobre quando foi medicada com uma inje-
ção para “secar o leite” depois do nascimento de seu terceiro filho, quando ela já estava na prisão.
Ele foi levado com “2, 3 meses” e ficou 15 dias sob custódia do conselho tutelar até que sua sogra,
que trabalha como camelô e cuida de seus outros dois filhos, conseguisse a guarda da criança.
Carla havia se recusado a ficar com a criança na Unidade Materno-Infantil pois “não queria meu
filho preso comigo”. No período da entrevista, Carla não recebia mais visitas e nem cartas. Ela sabia
que o marido estava em progressão de pena, cumprido regime semi aberto, mas não tinha ideia de

de mulheres quando ela conseguiria sair da prisão, apesar das tentativas de sua família em buscar assessoria na
defensoria pública para a sua prisão domiciliar.

no cárcere”
24 25
Estava sentada na sala onde fazia entrevistas sozinha, após me despedir de uma mulher que
voltava para sua cela, enquanto eu registrava nossa conversa em meu caderno. Algumas mulheres
grávidas passaram por mim e uma delas me perguntou se eu era da Defensoria Pública, como era
frequente, já que naquela unidade, usava a mesma sala que a defensora. Respondi, como sempre,
que não, e que era pesquisadora e estava conversando com mulheres que estivessem presas na
unidade. Uma delas, com uma postura considerada ousada pelos olhares das demais que a acom-
panhavam se aproximou de mim e se sentou na cadeira que estava em frente à mesa que usava
Havia anos que Nilza não saía da prisão. Era sua segunda passagem pela cadeia, e
ao todo já se iam quase 15 anos presa. Já havia passado diversas vezes por instituições de inter-
de apoio para escrever: “eu quero falar, o juiz prendeu meu corpo, e não minha língua”. Assim nação em sua infância e adolescência, ora por colégios internos administrados por freiras, ora pelo
sistema socioeducativo, quando era pega “fazendo alguma coisa errada” na rua. Em sua primeira
passagem pela prisão, há muitos anos atrás, teve sua filha que ficou sob a guarda de sua irmã.
Carolina se apresentou.
Estava grávida de cinco meses, tinha vinte anos, e já tinha um filho. Dividia uma cela especial
Nilza é uma mulher negra que dizia não conseguir bons trabalhos na prisão em virtude de sua “apa-
rência”. Ela trabalhava lavando os latões que recolhiam o “lixo de toda a cadeia”. “Eu sei que minha
aparência atrapalha. Já pedi para trabalhar em outros lugares, mas só me colocam para trabalhar
na unidade com outras gestantes. Foram muitas as vezes que encontrava com ela pelo corredor
no lixo. Aqui embaixo (referindo-se a trabalhos na parte administrativa da prisão) só [tem] brancas,
aguardando atendimento no ambulatório, indo para a igreja católica, ou a caminho da psicóloga. Às
isso dói na gente, eu sinto isso aqui dentro de mim. [...] Só presa bonita aqui, os dragão tá tudo
vezes conversávamos em pé nesse corredor ou também na sala que a conheci. “Elas falam que eu
escondido”.
nem me sinto presa, sei que tô presa, mas já estou num lugar muito negativo, não posso ficar com
a cabeça mais negativa que o lugar”, ela me dizia explicando porque sempre estava transitando de
Tive a oportunidade de conversar com Nilza antes e depois de ela ter passado sete dias na
um lado para outro na prisão. “Não vou deixar me abater, se a cadeia me abater, eu vou me afundar.
rua em virtude do benefício de Visita Periódica à Família. Eram anos sem pisar “na rua” e ela estava
Não deixo a cadeia me abater”.
ansiosa para sair, mesmo que só por uns dias. Quando voltou e nos encontramos na cadeia, ela me
disse que ficou “meio perdida” na rua e acrescentou “não reconheci direito o lugar que morava”,
Carolina já conhecia a cadeia, porque visitava, antes de ser presa, seu marido, mas dizia que
porque havia muitas mudanças.
a prisão feminina era muito pior. “Já fui visita, já vi os dois lados da moeda”, e agora sabia o que
seu marido passava. Era sua primeira passagem como interna, e ainda aguardava julgamento, presa
Ela mora em uma região da cidade do Rio que tem sido marcada por muitas operações po-
provisoriamente, por um roubo de celular. Em sua primeira audiência, apesar de sua primariedade e
liciais com o uso, inclusive, de helicópteros, o que para ela era uma novidade em termos de inten-
gravidez, o juiz responsável compreendeu que ela deveria ser encaminhada a prisão preventivamen-
sidade de ocorrência “na época que estava na rua não tinha tanta operação como tá tendo hoje”.
te, devido à sua “periculosidade”, pois foi utilizada uma arma durante a abordagem, em conjunto
Não saiu da casa da irmã nos dias fora da prisão, porque tinha medo de ser baleada na rua ou ser
com outra mulher, que também foi presa. Havia sido seu primeiro roubo. A vítima era uma mulher,
caracterizada pela polícia como bandida e perder o seu benefício: “cheguei lá e já tinha um morto
porque Carolina teve receio de que se tentasse roubar um homem, pudesse apanhar. “Agora tô me
sendo velado, não fui nem ver”. Sua fala sobre sua ida para casa se resumia a tiroteios, morte, medo
sentido a bandidona, presa por um celular”, dizia achando graça de uma imagem que lhe foi atribu-
e operações – “Quem mora em comunidade, é por necessidade. Dou graças a Deus por ter aquele
ída que não acreditava ser adequada a sua postura.
lugar cheio de bala lá”.
Em um desses nossos encontros pelo corredor, Carolina estava abatida, encostada na porta
Esses relatos dolorosos não vinham sem algumas risadas que marcavam nossas conversas,
do ambulatório. Ao me ver, perguntou se eu “estava presa”, porque vivia ali dentro. Sorri e disse que
sempre provocados por Nilza, que possui um senso de humor envolvente. O assunto sobre os dias
não, mas que estava sempre por lá a trabalho. Seu semblante mudou e ela me contou que havia
em casa caminhou para uma comparação com a prisão na qual ela ressaltava seu lado protetivo: “a
perdido seu filho. Recebi a notícia com muito pesar, porque sabia, depois de algumas conversas
verdade é que aqui a pessoa está guardada, não vai ter bala perdida, a polícia não vai sair atirando
que tivemos, que já não era a primeira vez que isso havia acontecido. Sua gravidez era arriscada e
lá do alto pra cá”, e acrescentou: “ Lá fora, você não pode nem olhar de certa forma para as pesso-
passar por ela com a estrutura de atendimento médico que ela possuía ali parecia carecer de um
as, aqui elas não têm arma, no máximo um estilete”.
milagre. Foram muitas ocorrências de sangramento e idas a UPA de Gericinó, muitas delas em vão,
“o médico nem tocou em mim”, frase comum de todas as mulheres que passavam por lá.
Toda essa conversa me chamou muita atenção pela dimensão do horror das condições de
vida para além da prisão, que de tão brutais apresentam os muros da prisão como uma proteção
Carolina me narrou seu percurso até chegar a um hospital da rede pública de saúde, já em
possível. Os muros que prendem são também os que protegem. Hoje, Nilza segue cumprindo sua
trabalho de parto, com um feto ainda em formação. Não havia muito a ser feito. A frase com a qual
pena e tem expectativa de sair e começar vendendo balas para, aos poucos, aumentar o lucro e
ela se apresentou a mim parecia ganhar um tom perverso: o aprisionamento de seu corpo foi fatal
vender coisas mais lucrativas até conseguir montar um pequeno comércio, sabendo da dificuldade
e sua vontade de falar aumentou. Dias depois do ocorrido, ela foi transferida para a unidade provi-
de conseguir um emprego já tendo passado pela cadeia.
sória, Joaquim Ferreira, já que agora não estava mais grávida e não era sentenciada, não havendo
razão para permanecer na cela das gestantes. Após sua audiência de instrução em julgamento,
conseguiu um alvará de soltura para aguardar sua sentença em liberdade.

26 27
A “ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO”
Foram muitas as narrativas de mulheres, de diferentes histórias, vivências e encarceradas
sob diversas acusações. A amostragem em relação às mulheres entrevistadas não pode ser tomada
como representativa do conjunto total de mulheres presas pois, como descrevemos, quem eram
as mulheres que entrevistamos dependia das decisões da direção e dos agentes responsáveis pela
segurança de cada unidade, ou de situações imprevisíveis que dependiam da dinâmica da prisão.
Maria tinha 20 anos, negra e bissexual. Na data da entrevista, ela tinha dois filhos
e estava grávida do 3º. Ela tinha uma aparência jovem, usava chinelo, bermuda abaixo dos joelhos e
É importante enfatizar os casos daquelas mulheres acusadas com os crimes de tráfico (art.
33) ou de associação ao tráfico (art. 35) eram a maioria e chamava atenção o uso da expressão
camiseta e foi minha primeira entrevistada naquela unidade. Estava sendo acusada de roubo, artigo
“rodar na escuta” para explicar a acusação sob artigo 35, que tem criminalizado diversas mulheres
157, sobre o qual ela afirmou: “eu fiz, cometi um erro e não fiz sozinha”. Ela e um parceiro roubaram
de forma particular. Muitas vezes essa incriminação se dá por motivos relativos a relações pessoais
um ônibus numa rodovia na região metropolitana do Rio de Janeiro sendo a sua função recolher os
que essas mulheres têm com pessoas que atuam no mercado de substâncias psicoativas ilícitas ou
objetos roubados. Após o roubo, ambos foram presos em flagrante.
decorrentes de seu contexto social, moradia, contatos interpessoais, como seus filhos, companhei-
ros, genros ou ex genros, pais de seus filhos e netos. Além das mulheres presas por relação com
Maria trabalhava como faxineira junto com a irmã mais nova e no momento que foi presa
seus companheiros, também há aquelas mulheres que atuavam como varejistas no comércio de
estava grávida de cerca 16 semanas. Essa foi sua primeira prisão. O roubo se deu a convite de seu
substâncias psicoativas tratadas como ilícitas, Para parte delas, este tipo de atividade se configu-
vizinho e parceiro do crime, e ela topou participar “para levantar dinheiro para comprar o enxoval
rava como um trabalho mais razoável pois atuam perto de casa, o que as permite cuidar dos filhos
do bebê”. Depois do crime, antes ainda da chegada da polícia, Maria foi agredida pelos passageiros
e não ser submetida aos constrangimentos diários do transporte público, baixos salários, horários
do ônibus, junto com seu parceiro de roubo que usava uma arma falsa. Com a chegada da polí-
sacrificantes.
cia federal, no momento em que foi presa, Maria levou um chute na barriga. Ela informou a seus
Para além dessas dinâmicas, ao longo da pesquisa pudemos identificar um lugar da criminali-
agressores que estava grávida e eles desacreditaram dela e a chutaram de novo. Ela pediu para ser
zação específica às mulheres que sofrem com o impacto como usuárias de drogas. Muitas delas que
levada a um hospital mas teve atendimento médico negado. Já detida, na audiência de custódia,
formalmente teriam o direito a prisão domiciliar ou a aguardar seu julgamento em liberdade mas
Maria mais uma vez foi desacreditada. Ela contou que o juiz desconfiou dela, especialmente por
que, pelo fato de serem usuárias de drogas, eram submetidas ao cárcere, como foi o caso de
sua aparência com cabelo curto e roupas largas: “Dei nome, idade deles, mas o juiz não deixava
eu falar. Na hora que eu fui falar, comecei a chorar, eu estava nervosa. Perguntaram do filho, se eu
tava grávida mesmo. Pensaram que eu tava mentido que tinha filho, por causa do meu cabelo. Ele,
o juiz, falou, cala a boca que você está presa. Você tem filho mesmo?”. Ela relatou essa experiência
em meio a lágrimas e disse que depois de insistir conseguiu que fossem pedidos exames de sangue,
os quais ela aguardou por quase 1 semana na unidade JF. Devido às agressões que sofreu em sua
Inês
e 35:
, usuária de drogas que foi presa grávida de 3 meses, acusada pelos arts. 33

prisão, ela sentia dores na barriga e apesar das solicitações não conseguiu atendimento médico.
Somente 3 semanas depois, foi “pautada” e encaminhada a UPA, onde fez exames “aí o médico lá M
“ inha mãe era usuária de drogas, se prostituia. Ela dava para o cara sem camisinha,
me disse que tá tudo bem com o bebê. ele mexe, eu sinto, então tá tudo bem. eu espero”, me falou engravidou de mim e dos meus irmãos. Ele expulsou ela de casa, ela tava com nós dois e grávida,
enquanto acariciava a barriga. Durante quase toda a entrevista, Maria se manteve com a camiseta embaixo da ponte. Alguém denunciou e o conselho tutelar tirou a gente. Quando fui adotada, não
levantada e a mão sobre a barriga exposta. Só depois fui saber que aquela era uma ação impedida tinha documento. Eu acho que tinha 6 ou 7 anos. (...) Nasci em Magé, de um útero alcoólatra. Meu
pelas guardas que assim que viram Maria nesta posição mandaram ela abaixar a camisa. Ela seguiu irmão nasceu com problema de cabeça, esquizofrenia e toma até hoje remédio de tarja preta. A
a orientação e depois olhou pra mim piscando um dos olhos, o que entendi como um sinal de que gente foi adotado junto. O mais novo era bebê e foi adotado pela dona do orfanato. (...) Quando fui
estava tudo bem e que ela estava acostumada a receber este tipo de ordem. presa, foi assim. Uma menina foi presa, eu fiquei na casa de um morador. Eu era atividade, mas ia
sair de moradora. Passei, eles me chamaram, me levaram de testemunha. Na delegacia, a delegada
Desde que foi presa, Maria iniciou um quadro de depressão, com 2 tentativas de suicídio. Ela mulher começou a conversar com a gente, a ameaçar. A menina, de menor, assumiu tudo, já foi
é usuária de drogas e na adolescência já tinha sido atendida por uma CAPS, tendo acompanhamen- presa antes. Ela tinha 14 anos. Eu falei pra delegada que era usuária, viciada e que me prostituía.
to psicossocial desde os 13 anos de idade. Na prisão, ela recebia atendimento com uma psicóloga Eles me prenderam. Mas na audiência de custódia a menor falou que a droga era minha. (...)Eu não
duas vezes por semana e aguardava seu advogada sobre o seu pedido de HC. Maria não tem visita gosto de homem, eu fui no baile, bebi, fiquei doida e aconteceu. Eu achei que ele tinha fugido da
e seus filhos estão separados. Um sob os cuidados de sua mãe e outro com o pai, quem tem a guar- responsabilidade de pai, eu não sabia. Os caras da boca achavam que eu tava escondendo ele, que
da da criança. Depois de tudo que estava sofrendo, seu grande receio era ter seu filho na prisão e eu sabia onde ele tava. Eu não sabia que ia ficar presa por usar droga. (...) Eu acho melhor passar
ela estava decidida a abrir mão da guarda da criança para não ter que “ficar presa com meu filho como prostituta e usuária de drogas do que bandida. Aí as meninas falava isso para mim, e saíram.
aqui dentro”. Eu já era usuária, já tinha passado pelo CAPS. Eu ficava me cortando, às vezes falava sozinha, com
15, 16 anos, eu comecei a fugir de casa. Fui em vários médicos, não conseguia me alimentar direito,
tomava remédio. Eu gostava de fazer CAPS. (...) Eu brigava com a minha mãe, ela entrou na igreja
e depois eu comecei a participar também. O pastor me deu uma revelação e no dia seguinte eu saí
de casa. Deixei uma carta para minha mãe não me procurar que eu ia me virar sozinha. Nunca mais
voltei, aí vim parar aqui. (...) Eu acho que vou entregar meu filho antes dele se apegar a mim. Falam
que a criança até morre, como se fala, não é depressão, a criança se sente solitária, sente que não
SUBJETIVIDADES
é a mesma coisa, E MORALIDADES
fica esquisita.”
Como tentamos demonstrar de forma breve, o encarceramento de mulheres não pode ser

28 29
tratado como um fenômeno isolado que diz respeito à punição e à criminalização dessas pessoas Dentre essas 42 mil mulheres, 45% não haviam sido ainda julga-
de forma específica e individual. A executabilidade da política criminal proibicionista tem sido eficaz
na desarticulação de famílias e comunidades negras e pobres nas periferias e favelas das grandes das e condenadas. (Dados do INFOPEN Mulheres).
cidades, que atinge de forma particular mulheres jovens e mães, usuárias de drogas e trabalhadoras
precarizadas. Na prisão, essas mulheres sofrem subjetivamente com punições diversas e específicas Nesse sentido, diminuir o aprisionamento provisório, como se vê, é uma das medidas que
que criminalizam seus corpos, e moralizam suas práticas e suas relações afetivas e familiares. Para têm o potencial de impactar no superencarceramento no país. A prisão preventiva é um instrumento
elas, a pena de prisão recai de diferentes formas, sob a intersecção do seu lugar de mulher, negra, que vem sendo utilizado muitas vezes, na prática, para antecipar a condenação, de forma despro-
pobre, mãe, jovem. Buscamos, ao longo da pesquisa conhecer essas mulheres e reconhecer com porcional, mas essa não deveria ser a lógica.
elas suas prioridades bem como a quais violências elas estão sendo submetidas.
Não se termina aqui nossa interlocução e ação mas, ao contrário, se abrem caminhos práti- É importante lembrar que a) a prisão preventiva já é uma flexibilização do princípio da
cos e criativos possíveis que tenham como perspectiva e agenda de pesquisa e luta pela liberdade presunção de inocência, o qual impõe que a pessoa só poderá ser presa após o término do seu
das mulheres. processo; b) justamente pelo risco de prender acusadas/os que, ao final da ação penal, podem ser

Flavia Medeiros é Cientista Social, Antropóloga, Pesquisadora de Pós-Doutorado GEPADIM/INCT-InEAC/UFF. Professora


Assistente Departamento de Segurança Pública/UFF. Pesquisadora voluntária do projeto Agenda Feminista pelo Desen-
considerados inocentes, A LIBERDADE É A REGRA (deveria ser).
carceramento, membra da RENFA - RJ.
E, para a prisão preventiva ser decretada é necessário indícios de autoria e prova do delito; a
Luana Martins é Bacharel em Letras e em Direito, Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF). Doutoranda PPGSD/ medida pode ser fundamentada na necessidade de “garantia da ordem pública ou econômica”, pela
UFF. Pesquisadora do PsicoCult/INCT-InEAC/UFF. Pesquisadora voluntária do projeto Agenda Feminista pelo Desencar- “conveniência da instrução processual”, e “para assegurar a aplicação da lei penal”.
ceramento, membra da RENFA - RJ.

Ainda, poderá ser aplicada em casos de crimes dolosos (quando há intenção de praticar a
conduta) cujas penas sejam maiores que 4 anos; se a/o ré/réu for reincidente em crime doloso;
se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso,
incidência jurídica enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa
DA AGENDA FEMINISTA PELO DESENCARMENTO ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado
imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manuten-
ção da medida. Pode-se observar que há determinadas normas que devem ser observadas para a
No âmbito jurídico, o objetivo da Agenda Feminista pelo Desencarceramento foi levantar prisão ser legal e que os textos da lei possuem uma redação bastante aberta, por exemplo: o que
seria ordem pública?
dados dos processos de mulheres que tiveram sua prisão provisória decretada entre janeiro de 2017
a janeiro de 2018 nas cidades de Recife e do Rio de Janeiro. Além do próprio levantamento de in-
formações judiciais e sociais, tivemos como objetivo verificar a viabilidade de impetração de habeas A escolha política por termos vagos possibilita que o Judiciário dê vazão a uma série de es-
corpus para soltura dessas mulheres e capacitar companheiras/os, coletivos e organizações para tereótipos que norteiam o imaginário dos atores jurídicos acerca de quem deve ou não estar preso
serem defensoras/es dos direitos das mulheres privadas de liberdade. antes do trânsito em julgado do seu processo (quando não há mais possibilidade de interpor ne-
nhum recurso).
Apesar de numericamente existir muito mais homens encarcerados que mulheres, estas são
vulnerabilizadas no processo de criminalização deles, ao desempenhar um papel na sustentação do Ademais, a lei não prevê um tempo máximo que a/o cidadã/ão pode permanecer presa/o
encarceramento masculino. preventivamente. Porém, há o entendimento de que esse tempo não pode ser desproporcional ou
excessivo. A essa altura, já deu para perceber quantas violações de direito não ocorrem nessas si-
Isso porque o Estado explora o trabalho das mulheres, em sua maioria negras, ao não pro- tuações, não é mesmo?
porcionar efetivamente os serviços de manutenção necessários para o próprio empreendimento
prisional: são as mulheres que suprem essa ausência da estrutura do Estado, levando roupas, comi- Nesse sentido, o habeas corpus é uma ação judicial que visa proteger o direito de liberdade
das, utensílios pessoais, etc., para os presídios masculinos; são elas que acompanham o processo de locomoção lesado ou ameaçado por ato abusivo de autoridade. Além disso, o habeas corpus
judicial, além da possibilidade de extravasamento da tensão sexual através de relações sexuais pode ser impetrado por qualquer pessoa, mesmo que ela não seja jurista.
voluntárias ou das múltiplas formas de violência a que são submetidas.
Isso possibilita que tanto as pessoas voluntárias que participaram do projeto e que não são
Além de serem afetadas pelo encarceramento masculino, quando precisam visitar e acom- juristas aprendessem sobre como fazer um habeas corpus, como que essa experiência aqui relatada
panhar seus filhos, companheiros e parentes, as mulheres são vulnerabilizadas pelas condições possa ajudar outras pessoas a defenderem o direito de liberdade de mulheres e homens encarcera-
específicas de sua própria criminalização. das/os.

Em Junho de 2016, a população prisional feminina atingiu a marca de 42 mil mulheres priva- Sendo assim, em meados de 2018 formaram-se as equipes jurídicas no Recife e no Rio de
das de liberdade, o que representa um aumento de 656% em relação ao total registrado no início Janeiro e a nossa primeira etapa consistiu no levantamento de quais eram as mulheres privadas
dos anos 2000, quando menos de 6 mil mulheres se encontravam no sistema prisional. de liberdade que se encontravam privadas de liberdade preventivamente a partir de jan/2017 até
jan/2018, bem como seus respectivos processos, para poder, a partir da análise dos autos judiciais,

30 INCIDÊNCIA JURÍDICA INCIDÊNCIA JURÍDICA 31


identificar os casos em que fosse viável a impetração de habeas corpus: prisão provisória com ex- cução do projeto, muitas mulheres já haviam sido sentenciadas ou postas em liberdade ou, lhe foi
cesso de prazo, situações que as mulheres poderiam fazem jus à substituição da preventiva por concedida prisão domiciliar, ou seja, perderam sua qualidade de presa provisória.
domiciliar, etc.
Além disso, apesar de as mulheres se encontrarem em estabelecimento prisional na Capital,
Desde o início deste projeto, o Código de Processo Penal Brasileiro (CPP) já havia passado muitos processos correm nas comarcas do interior, onde ocorreram os delitos, o que também difi-
pela com alteração promovida pelo Estatuto da Primeira Infância, em 2016, quando passou a trazer cultou o acesso aos autos dos processos de boa parte delas.
previsão de possibilidade de se conceder prisão domiciliar às mulheres gestantes ou com filho de
até 12 (doze) anos de idade incompletos. As cidades de Água Preta, Arcoverde, Barreiros, Belo Jardim, Bom Jardim, Bonito, Buíque,
Canhotinho, Chã Grande, Cortês, Cupira, Ferreiros, Glória do Goitá, Ipubi, Jupi, Lagoa dos Gatos,
Assim também, já havia sido concedida a ordem de Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, de Limoeiro, Panelas, Petrolina, Ribeirão, São Caetano, São Lourenço da Mata, Taquaratinga do Norte,
Relatoria do Min. Ricardo Lewandoski (STF), que determinou a substituição da prisão preventiva Toritama, Venturosa e Vicência, por exemplo, cada uma delas, tinha apenas um processo que se
pela domiciliar de todas as mulheres presas gestantes, puérperas, ou mães de crianças e deficien- enquadrava, em tese (pois seria necessário analisar os autos físicos em cada comarca para saber a
tes sob sua guarda, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave viabilidade de impetração de HC), no objetivo do projeto. A ida às varas também foi comprometida
ameaça, contra seus descendentes. pois à época da pesquisa as/os servidoras/es do TJPE estavam fazendo paralisações semanais como
forma de luta por seus direitos trabalhistas.
RECIFE | POR BRISA LIMA DA SILVA E STELLA FRANCISCA DO NASCIMENTO Ainda assim, aplicamos o questionário em alguns casos da região metropolitana do Recife,
relatados na sessão de experiência da pesquisa do projeto, mas,em virtude da falta de dados pelos
Em Recife, pesquisamos quantas e quais mulheres estavam presas preventivamente em obstáculos das idas às varas, como também da não realização das entrevistas, não impetramos HCs.
tempo excessivo, nos reunindo com diversos órgãos de atuação, como a Defensoria Pública do Es-
tado de Pernambuco, a qual atua no interior da Colônia Penal Feminina Bom Pastor, ou Instituto Pro RIO DE JANEIRO | POR MARIANA CÉSAR E ISA PIMENTEL
Bono, a fim de pensar estratégias de atuação.

No decorrer da execução do projeto, a maior dificuldade enfrentada foi ter acesso aos dados A contribuição da equipe do jurídico no Rio de Janeiro se pautou, principalmente, em
dos processos das mulheres em situação de privação de liberdade provisória, pois, na maioria da acompanhar e analisar os processos criminais de mulheres presas provisoriamente. Quando da
vezes, não tivemos retorno dos diversos órgãos para os quais encaminhamos ofícios solicitando as elaboração da proposta da Agenda Feminista, os processos foram pensados a partir da lógica do
informações. Após muitas tentativas conseguimos duas listas através de um pedido de acesso à excesso de prazo, ou seja, da ideia de que a maioria das mulheres presas estaria acautelada há de-
informação enviado em parceria com o GAJOP ao CAOP Criminal (Centro de Apoio Operacional às masiado período de tempo sem a finalização da prestação jurisdicional. A partir daí, concretizamos
Promotorias de Justiça Criminal do Ministério Público de Pernambuco) e outra fornecida pelo CADHu que o melhor meio de atuação seria a impetração de habeas corpus em nome dessas mulheres, a
(Coletivo de Advogados de Direitos Humanos). fim de pleitear sua liberdade e, uma vez livres, transformá-las em agentes políticos.

Diante disso, separamos das listagens fornecidas, a relação de mulheres encarceradas pre- Para tanto, a equipe se reuniu mensalmente junto com o núcleo da RENFA no RJ e a Rede
ventivamente, consultamos os seus processos para saber se foram privadas de liberdade entre Jurídica pela Reforma da Política de Drogas – REFORMA durante o passar de vários meses para a
jan/2017 a jan/2018 e se ainda se encontravam detidas, bem como coletamos as informações construção colaborativa de um modelo de habeas corpus que não só apontasse exclusivamente o
processuais através do questionário estabelecido no início do projeto, identificamos em qual estabe- direito e requeresse a liberdade dessas mulheres, mas também evidenciasse o sintoma catastrófico
lecimento prisional tais mulheres estavam recolhidas, dividimos os processos por comarcas, e, jun- que levou a necessidade de um projeto com a proposta da Agenda Feminista pelo Desencarcera-
tamente com as voluntárias, nos dividimos em grupos para coletar o questionário junto ao Judiciário mento em um país que ocupa a 4ª posição no ranking de maiores populações prisionais femininas
para, então, avaliarmos a viabilidade de impetração de habeas corpus caso a caso. do mundo (INFOPEN Mulheres 2016).
A demora de acesso aos dados, contudo, afetou o cronograma do projeto e própria viabilidade de
impetração dos habeas corpus, já que apenas conseguimos formar uma tabela com a relação de Por conta disso, concluímos a necessidade de iniciar todos os habeas corpus com uma expli-
mulheres privadas de liberdade preventivamente em abril de 2019. cação preliminar, que identificava o corpo jurídico e político da Agenda, para o qual demos o título
“DA PRESTAÇÃO JURÍDICA PRO BONNO DE ACESSO À JUSTIÇA”.
120 mulheres presas preventiva-
Assim, chegamos ao número de
O sistema carcerário brasileiro é palco de constantes violações de direitos humanos, e apesar
mente entre entre jan/2017 a jan/2018 e que ainda se en- de recentes iniciativas de pesquisas sobre a realidade do encarceramento feminino, que encara a
indisponibilidade de material de higiene específico e a solidão imposta pelo abandono da família e
contravam presas no início de 2019, cujos processos, na consulta pública, companheiros, esta problemática ainda é muito inviabilizada. A preliminar suscitada vem justamente
continham poucas ou nenhuma informação sobre o tempo da prisão cautelar, ou se as mulheres
ressaltar ao Judiciário as vulnerabilidades e especificidades dos casos das mulheres presas proviso-
eram mães, por exemplo. Dados estes necessários para averiguar a viabilidade de impetração de
riamente, a fim de identificar exatamente qual o nosso objetivo com o referido remédio constitucio-
HC.
nal.
Em alguns casos já havia HC ou pedido de revogação de prisão preventiva. Todavia, em
Assim sendo, partimos para a análise dos processos a fim de aferir as ilegalidades que seriam
praticamente todos os casos tais pleitos de liberdade foram indeferidos. Ainda, no decorrer da exe-
posteriormente objeto de contestação. Após superar alguns obstáculos, possível graças à articula-
32 INCIDÊNCIA JURÍDICA INCIDÊNCIA JURÍDICA 33
ção e colaboração de parcerias, a equipe teve acesso à lista de mulheres mães presas oriunda do imperiosidade da prisão do paciente, mostrando-se suficiente, por
levantamento de dados de mulheres no sistema prisional para o processo de julgamento do HC co- ora, a imposição das medidas cautelares elencadas no art. 319 do
letivo 143.641 pelo Supremo Tribunal Federal e outra lista de mulheres que se encontravam presas Código de Processo Penal.3
entre janeiro/2017 e janeiro/2018 oriunda do sistema do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, que foram consolidadas em uma única lista. Além disso, analisamos também processos de Por fim, tivemos dois habeas corpus cuja ordem foi concedida e as “Pacientes” postas em
mulheres que foram entrevistadas pelas pesquisadoras da Agenda Feminista dentro das unidades liberdade. Ambos pelo crime de tráfico. Uma das mulheres estava presa há 1 ano e 4 meses à época
carcerárias cariocas, identificando casos em que seria possível pleitear a liberdade. da concessão e a outra há quase 2 meses. No habeas corpus concedido com fulcro no reconheci-
mento do excesso de prazo, o voto do desembargador argumentou que, in verbis:
Conforme dito anteriormente, nossa hipótese inicial foi de que as mulheres presas no Rio de
Janeiro se enquadravam no argumento de excesso de prazo. Entretanto, se essa é a realidade mas- Perlustrando os autos, se observa que a acusada se encontra cus-
culina no sistema de justiça criminal, o mesmo não pode ser integralmente afirmado em relação às todiada desde setembro de 2017, não tendo sido até o momento
mulheres. Em grande parte dos processos analisados, elas foram presas, julgadas e condenadas no encerrada a instrução processual.
decorrer de alguns meses. No caso do processamento do crime de tráfico de drogas nas Comarcas Conforme as informações prestadas pela autoridade coatora, em
do interior, cuja instrução criminal se encerra geralmente após a primeira audiência, o tempo entre 10/05/2018 foi proferida decisão recebendo a denúncia. Ainda de
a prisão em flagrante e a publicação da sentença condenatória chegava a ser inferior a um ano. acordo com o Juízo de primeiro grau, nos dias 22, 23 e 31 de
outubro de 2018 foram realizadas audiências de instrução e julga-
Sendo assim, o número de processos que estariam sujeitos à impetração de habeas corpus mento, sendo designada nova audiência de continuação para o dia
por excesso de prazo ficou menor do que esperado pelas advogadas. Por outro lado, foi notória a 11/04/2019.
demanda de processos que tratavam de mulheres mães, posto que uma das listas era relativa ao Como se verifica, tal delonga não pode ser imputada à paciente,
HC, o que acarretou a necessidade de aprofundar a discussão sobre prisão domiciliar na peça. Além que não pode ficar presa preventivamente, por mais de 1 ano e 4
disso, os processos analisados de 2017 a 2018 demonstraram uma modificação substancial quanto meses, por problema administrativo na tramitação do feito.
à essa matéria. Isto posto, adotamos o perfil da mulher mãe, gestante ou presa sem conclusão da Como sabido, a entrega da prestação jurisdicional deve ser efetiva,
instrução criminal, que não tivesse HC recente impetrado pela defesa e obrigatoriamente assistida adequada e principalmente tempestiva, sendo atribuição do Estado
pela Defensoria Pública. alcançar este objetivo, não restando dúvidas de que o prazo de tra-
mitação do processo objeto deste habeas corpus deixou há muito
Ao final, foram oito habeas corpus efetivamente impetrados, sob os argumentos de constran- de ser razoável, caracterizando ilegal constrangimento à paciente
gimento ilegal por configuração de excesso de prazo e de substituição pela prisão domiciliar. pelo excesso de prazo.
Desse total, 4 eram Pacientes mães, sendo 2 gestantes. No quesito crime, 3 foram presas por tráfico Isto posto, JULGO PROCEDENTE o pedido, para substituir a prisão
de drogas (art. 33 da Lei 11.343/2006), 1 por roubo majorado (art. 157 do Código Penal), 3 por cautelar pela medida prevista no artigo 319, I, do Código de Pro-
homicídio (art. 121 do Código Penal), 1 por associação criminosa (art. 2º da Lei 12.850/2013) e la- cesso Penal, sendo certo que o primeiro comparecimento deverá
vagem de dinheiro (art. 1º da Lei 9.613/1998). As mulheres cujo argumento usado foi o do excesso ocorrer em 05 (cinco) dias úteis após a sua libertação no juízo de
de prazo estavam presas há mais de 1 ano. primeiro grau, com expedição de alvará de soltura se por al não
estiver presa e termo de compromisso.”4
Os processos criminais tramitavam nas Comarcas da Capital, Volta Redonda, São Gonçalo,
Valença, Duque de Caxias e Miguel Pereira. Os habeas corpus foram distribuídos entre todas as Câ- Na oportunidade da segunda concessão, restou confirmado os fundamentos da liminar. Con-
maras Criminais do TJRJ, exceto a Sétima Câmara. O tempo, em média, para o julgamento definitivo forme mencionado no voto do relator, “entendo que a ordem pública pode ser assegurada, no caso
foi de 2 meses. concreto, pela imposição de medidas cautelares alternativas à prisão, previstas no art. 319 do Có-
digo de Processo Penal”.5 O perfil dessa mulher solta era jovem, estudante de universidade federal,
Em sete casos, o pedido de liminar foi denegado. Em todos eles foi ressaltado que “não há com carteira assinada e primária.
como se extrair, de plano, alguma ilegalidade ou constrangimento ilegal a ensejar a concessão de
liminar”1. Esse fundamento é derivado da dificuldade que tivemos em instruir o habeas corpus com Nos casos em que o habeas corpus foi denegado, foi afirmado recorrentemente que:
os documentos pessoais como de identificação, comprovante de endereço e/ou de exercício de ati-
vidade laborativa lícita. No caso da liminar concedida, tratava-se de uma mulher que, no momento Eventual excesso de prazo da prisão cautelar não pode ser avaliado
da prisão em flagrante, declarou-se como “mula”2. Sendo assim, o relator se pronunciou no seguinte com base em mero cálculo aritmético, devendo se exigir do Juiz,
sentido: apenas, que zele pela regularidade e normal desenvolvimento do
(...) inexiste qualquer indicativo nos autos de que, em liberdade, a processo, o que efetivamente ocorreu no caso dos autos.6
paciente colocará em risco a ordem pública, a instrução criminal ou Sua consideração há de ser feita de modo conjuntural, compromis-
a aplicação da lei penal, mormente considerando as suas condições 3 HABEAS CORPUS nº 0065176-91.2018.8.19.0000. Rel. Des. Paulo Baldez. Quinta Câmara Criminal. TJRJ. 29/11/2018.
pessoais favoráveis – vez que se trata de ré primária e possuido-
ra de bons antecedentes (...) Nesse contexto não se vislumbra a 4 Habeas Corpus nº 0067601-91.2018.8.19.0000. Rel. Des. Fernando Antonio de Almeida. Sexta Câmara Criminal. TJRJ.
1 HABEAS CORPUS Nº 0067600-09.2018.8.19.0000. Rel. Des. Luciano Silva Barreto. Quinta Câmara Criminal. TJRJ. 29/01/2019.
03/12/2018. 5 HABEAS CORPUS nº 0065176-91.2018.8.19.0000. Rel. Des. Paulo Baldez. Quinta Câmara Criminal. TJRJ. 08/03/2019.
2 Pessoa que transporta material entorpecente, mediante pagamento ou coação. Reconhecida pela jurisprudência como 6 Habeas Corpus n.º 0067536-96.2018.8.19.0000. Rel. Des.Katya Maria Monnerat. Primeira Câmara Criminal. TJRJ.
“partícipe do crime de tráfico”. 05/01/2019.
34 INCIDÊNCIA JURÍDICA INCIDÊNCIA JURÍDICA 35
sado e responsável, observando-se as peculiaridades da situação considerado excepcionalíssimo”. 12

jurídica posta. (...) não vislumbro na espécie qualquer delonga ir-


responsável e despida de razoabilidade, não havendo, pois, falar-se Conforme visto, os desembargadores têm apontado diferentes razões para rejeitar a con-
em excesso de prazo (Súmula 21 do STJ7)8. cessão do benefício às mães encarceradas, tais como a falta de documentos, envolvimento com o
tráfico de drogas, periculosidade da ré, a garantia da ordem pública ou a (não) existência de avós
Ocorre que no ordenamento jurídico brasileiro não há definição expressa do tempo que ca- (ou responsáveis adultos) que possam se encarregar dos cuidados das crianças.
racteriza o excesso de prazo para a prestação jurisdicional, o que nos causou graves empecilhos Diante da análise dos aspectos jurídicos da atuação da Agenda Feminista no Rio de Janei-
para convencimento do Judiciário, pois fica sujeito ao Magistrado a ponderação quanto a comple- ro, tecemos agora algumas impressões. Nosso objetivo inicial era, primordialmente, reivindicar a
xidade dos fatos juntamente com a dificuldade da instrução e o número de réus. Essa temática liberdade das mulheres presa provisoriamente e, uma vez soltas, estabelecer uma aproximação de
foi, inclusive, objeto de um grupo de estudos constituído no âmbito do projeto, que se dedicou a forma a trabalhar com elas o pensamento político, como uma espécie de reparação social.
pesquisar e analisar jurisprudências, normativas internacionais e o debate sociológico. Verificou-se,
portanto, que não há consenso sobre esse “prazo” e ele acaba sendo resultado de uma série de Entretanto, muitos foram os percalços pelo caminho. Inicialmente, constatamos que a maio-
fatores, o chamado “tempo metafísico” (Ludmila Ribeiro). ria dos processos criminais objeto de HC eram físicos, portanto o acesso era exclusivo no cartório da
respectiva vara. Conforme listado anteriormente, a maioria dos processos tramitavam em comarcas
Na mesma toada interpretativa identificamos os fundamentos para concessão da prisão do- distantes e alguns em segredo de justiça, o que impossibilitou a equipe de acessá-los. Por conta
miciliar, principalmente quando aludido o HC coletivo 143641 e a exceção prevista nos casos de disso, encontrou-se prejudicada a coleta de documentos pessoais das presas para melhor instruir e
“situações excepcionalíssimas”. Nesse contexto, além do julgamento moral quanto a maternidade, informar o HC, impossibilitando que nossas alegações fossem de pronto comprovadas, uma vez que
o desembargador também é norteado pela política de guerra às drogas. Impossível desassociar não conseguimos contato com nenhum parente ou familiar que pudesse fornecer esses documen-
essas duas temáticas, uma vez que a mulher se torna alvo fácil, já que “seu papel no tráfico é o de tos.
transporte, vigilância e manutenção dos entorpecentes em suas casas – atividades que permitem
conciliação com as responsabilidades de cuidado e domésticas”9, deixando-as assim mais expostas Por fim, também não fomos bem sucedidas no contato com as mulheres presas. A mulher
ao controle penal. É exatamente o que identificamos no seguinte trecho: cuja prisão foi relaxada por excesso de prazo não quis manter contato. Apesar de ser uma frustração
em termos de alcance de resultados em nome da Agenda Feminista, é de todo compreensível que,
(...) a considerável quantidade de entorpecente apreendida após libertada, a mulher não mais queira relembrar a prisão devido a sua experiência traumática.
em poder da ora paciente dentro de sua própria residência,
mostra que sua colocação em prisão domiciliar não servirá para Apesar de não alcançado todos os objetivos ousados que nasceram com a Agenda Feminista
reduzir o risco da reincidência delitiva, o que representa perigo pelo Desencarceramento, não podemos minorar a conquista de ter conseguido restaurar a dignida-
concreto não só para seus filhos, como para a sociedade em de e liberdade de duas mulheres. Principalmente quando constatamos, ao consultar o andamento
geral.10 do processo, que em um caso a instrução criminal ainda não se findou e no outro, apesar de profe-
rida sentença condenatória, a pena foi substituída por restritiva de direitos. Portanto, deparamo-nos
com casos onde a prisão provisória se mostrou excessiva e causadora de um dano irreparável na
Assim sendo, os fundamentos para denegar o acautelamento domiciliar são enquadrar o caso vida delas.
como “situações excepcionalíssimas” ou na exclusão por força de crime praticado com violência ou
grave ameaça previstos no acórdão da decisão do STF. Esse se torna uma forma dos Tribunais ga-
rantirem uma certa “segurança jurídica”, conforme aduz a seguinte passagem do acórdão da Quarta
Câmara Criminal:
(...) Fazer leitura diversa é conceder salvo conduto a todas as mu-
lheres que possuam filhos menores de doze anos para praticar de-
litos, com a certeza que não serão presas, o que configuraria uma
evidente situação de instabilidade e absurdo jurídico.11

Vale ressaltar que a menção do STF sobre “situações excepcionalíssimas” na verdade criou
uma brecha para que os Tribunais deixassem de aplicar o benefício da domiciliar para as mulheres
que cumprem todos os requisitos da decisão. São “casos indeferidos irresponsavelmente”, confor-
me rebate a advogada Eloísa Machado, membro do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos
(CADHu), grupo que atuou no HC coletivo.“Tráfico de drogas é a regra do sistema. Não pode ser
7 Súmula 21 do STJ: “Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de pra-
zo na instrução”
8 Habeas corpus nº 0067549-95.2018.8.19.0000. Rel. Des. Carlos Eduardo Roboredo. Terceira Câmara Criminal. TJRJ.
29/01/2019..
9 Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação
de prisão. Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. -- Brasília: Ministério da Justiça, IPEA, 2015, pg. 76.
10 HABEAS CORPUS Nº 0032236-39.2019.8.19.0000. Rel. Des. Celso Ferreira Filho. Segunda Câmara Criminal. TJRJ.
18/06/2019. 12 VITAL, Danilo. Com brecha do Supremo, tribunais resistem a aplicar HC coletivo a mães presas. ConJur. 26/05/2018.
11 HABEAS CORPUS Nº 0067548-13.2018.8.19.0000. Rel. Des. João Ziraldo Maia. Quarta Câmara Criminal. TJRJ. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-mai-26/brecha-stf-tjs-resistem-aplicar-hc-coletivo-maes-presas. Acesso em 30 de
19/02/2019. agosto de 2019.
36 INCIDÊNCIA JURÍDICA INCIDÊNCIA JURÍDICA 37
seus filhos durante o período de amamentação.

LINHA DO TEMPO: A Lei n. 12.403, de 04 de maio de 2011, a chamada Lei das Medidas Cautelares, alterou o
CPP e inseriu a possibilidade do Juiz substituir a Prisão Preventiva em casos do agente com mais de
a prisão domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro 80 anos, debilitado por doença grave; imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6
anos de idade ou com deficiência e no caso de gestante a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo
esta de alto risco.

Em março de 2016, surge o Marco Legal da Primeira Infância com a Lei 13.257/2016, que
Durante a pesquisa realizada pela Agenda Feminista pelo Desencarceramento no Rio de busca estabelecer princípios e diretrizes para formulação de políticas públicas para a primeira in-
Janeiro, 410 de processos criminais foram analisados e recolhidos dados sobre crime imputado, fância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento
maternidade, peças de defesa, número de audiências de instrução e julgamento e, principalmente, infantil e no desenvolvimento do ser humano, em consonância com os princípios e diretrizes do Es-
sobre o teor das fundamentações para deferimento (ou não) dos diversos pedidos de liberdade. tatuto da Criança e do Adolescente (art. 1º). O referido diploma legal determina a atual redação do
Diante dessa análise, destacaram-se as decisões judiciais que negavam o pleito defensivo pela subs- CPP que inclui que a gestante em qualquer estágio da gestação e independente de possibilidade de
tituição da prisão preventiva pela domiciliar. Por essa razão, dedicamos o presente texto a abordar risco, bem como mulher com filho de até 12 anos incompletos poderá ser beneficiada com a prisão
brevemente como a legislação se desenvolveu com o passar da última década e como se deu a domiciliar.
percepção desse instituto pela óptica dos Magistrados nos processos trabalhados.
Segundo o texto legal, “poderá ”o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o
Como bem lembra Luciana Simas (2015, pg. 548), a “prisão feminina expõe especificidades agente for:
correlacionadas ao gênero – como questões de saúde reprodutiva e infantil, de proteção e assistên- “I – maior de 80 (oitenta) anos; II – extremamente debilitado por
cia social à maternidade e à infância nesse ambiente”. Para tanto, a Constituição Federal da Repú- motivo de doença grave; III – imprescindível aos cuidados espe-
blica (CF) garante, entre outros direitos, o de proteção à maternidade e à infância (art. 6º). ciais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;
IV – gestante; V – mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade
Antes mesmo de qualquer legislação pátria mais favorável à questão da mulher mãe ou ges- incompletos; VI - homem, caso seja o único responsável pelos cui-
tante presa, o Brasil já era signatário dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e participava dados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.
da implementação dos planos resultantes da Conferência Internacional da ONU sobre População e
Desenvolvimento (CIPD) (CAIRO, 1994), que tratou das questões de direitos e saúde reprodutiva e Argumenta-se com a literalidade do art. 318, caput, que ao regular a matéria diz que o juiz
das famílias, incluindo a população carcerária (BRASIL, 2005), bem como das Regras de Bangkok, “poderá” substituir a prisão preventiva pela domiciliar, e então, conclui-se que não basta que a pes-
das Nações Unidas, para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade soa presa preventivamente se encaixe em qualquer dos modelos listados no tipo. Sustenta-se que
para mulheres infratoras (ONU, 2010). o juiz deve avaliar aspectos de ordem subjetiva atrelados à pessoa custodiada – caso a caso –, e
só após, deferir ou não a substituição da custódia clássica pela domiciliar. Ainda no seu Parágrafo
De acordo com as Regras de Bangkok, “deve ser priorizada solução judicial que facilite a uti- Único estabelece que para a substituição o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos no
lização de alternativas penais ao encarceramento, principalmente para as hipóteses em que ainda artigo.
não haja decisão condenatória transitada em julgado”1, sob o viés da redução do encarceramento
feminino provisório. Em maio de 2017, uma ação foi protocolada pelo Coletivo de Advogados em Direitos Huma-
nos (CADHu) e pela Defensoria Pública da União, em favor de “ todas as mulheres que ostentam a
Segundo levantamento da Fundação Oswaldo Cruz e do Ministério da Saúde, em 2017, um condição de gestantes, de puérperas ou mãe de crianças com até 12 anos de idade sob sua respon-
censo carcerário revelou o perfil das detentas que tiveram filho na prisão. Quase 70% delas tinham sabilidade”. O principal argumento utilizado pela defesa foi que a gestação dentro do cárcere pode
entre 20 e 29 anos; 70% são pardas ou negras e 56% solteiras.2 impor riscos à saúde da mãe e da criança, devido à falta de acompanhamento e espaços adequados,
além do maior risco de doenças.
No Brasil, a prisão cautelar domiciliar substitutiva da prisão preventiva, prevista pelo artigo
317 do Código de Processo Penal, “consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua resi- No Julgamento do HC coletivo 143.641/SP pelo Supremo Tribunal Federal em 20 de fevereiro
dência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial.” de 2018, a 2ª Turma concedeu o HC nos termos do pedido. Os ministros estenderam a decisão às
adolescentes em situação semelhante do sistema socioeducativo e mulheres que tenham sob cus-
Esse instituto possibilita, dentre outras, restringir cautelarmente a liberdade do indivíduo pre- tódia pessoas com deficiência.
so em razão da decretação de prisão preventiva, sem, contudo, submetê-lo às conhecidas mazelas
do sistema carcerário, podendo ou não serem aplicadas concomitantemente medidas alternativas Na oportunidade do julgamento do mérito, o relator Min. Ricardo Lewandowski ressaltou a
previstas no art. 319 do CPP. Permite, ainda, respeito à integridade física e moral da presa (CF, art. seguinte ponderação:
5º, XLIX), bem como assegurar às mulheres presas condições para que possam permanecer com Estatisticamente, não há dúvidas de que são as mulheres negras
1 REGRAS DE BANGKOK: Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de e pobres, bem como sua prole – crianças que, desde seus primei-
liberdade para mulheres infratoras. 2010. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/a858777191da- ros anos de vida, são sujeitas às maiores e mais cruéis privações
58180724ad5caafa6086.pdf. Acesso em 30/08/2019.
2 BANDEIRA, Regina; ANDRADE, Paula. Levantamento do CNJ aponta 622 grávidas ou lactantes em presídios do Brasil.
de que se pode cogitar: privações de experiências de vida cruciais
Agência CNJ de Notícia. 25/01/2018. Disponível em https://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86062-brasil-tem-622-gravidas-ou-lactan- para seu pleno desenvolvimento intelectual, social e afetivo – as
tes-em-presidios. Acesso em 19 de agosto de 2019
38 LINHA DO TEMPO LINHA DO TEMPO 39
encarceradas e aquelas cujos direitos, sobretudo no curso da ma- Retomando o ensejo da Audiência de Custódia, citada no relatório da DPGE, aludimos aqui à
ternidade, são afetados pela política cruel de encarceramento a que decisão da juíza da custódia, em 05/01/2018, ao converter a prisão em preventiva:
o Estado brasileiro tem sujeitado sua população. (HC n. 143.641/
SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, SEGUNDA TURMA, Dje As circunstâncias do fato são graves, já que em tese a custodiada
20/02/2018) exercia o tráfico junto com seu filho menor, dentro de casa, tendo
sido encontrado grande quantidade de maconha e cocaína, fazendo
O Habeas Corpus deverá substituir a prisão preventiva pela domiciliar a todas as mulheres com que seja necessária a prisão como garantia da ordem pública.
nestas condições, com exceção daquelas que tenham cometido crimes mediante violência ou grave
ameaça, contra os próprios filhos, ou, ainda, em situações excepcionalíssimas — casos em que o Na mesma toada, é imperioso citar o posicionamento do Ministério Público, em abril de 2018,
juiz terá de fundamentar devidamente a denegação do benefício. São essas hipóteses de exceção pelo indeferimento do pleito domiciliar por entender que “devolver as crianças à guarda de sua ge-
que contribuíram para que a maioria dos pedidos de prisão domiciliar analisados fosse negada, es- nitora é, indiretamente, violar seu direito ao desenvolvimento sadio”, uma vez que estaria demons-
pecialmente quando o Magistrado está convencido da sua excepcionalidades, conforme aludimos trado nos autos ser “profundamente inserida na prática do crime de tráfico ilícito de drogas”. Valéria
em breve. havia sido presa em flagrante, juntamente com seu marido, com 17g de cocaína. Respondeu todo
o processo presa. Foi condenada em 1ª instância por tráfico de drogas. Permaneceu afastada de
Por outro lado, vale também mencionar que, em dezembro de 2018, foi promulgada a Lei. seus filhos durante 2 anos e 2 meses até ser absolvida em 2ª instância por insuficiência de provas.
13.769/2018, que incluiu no CPP os artigos 318-A e 318-B. Eles positivaram as exceções menciona-
das do HC coletivo 143.641. Os dispositivo estabelecem o seguinte: Por outro lado, não se pode negar que, em alguns dos processos analisados, o Magistrado foi
sensibilizado pela condição ímpar da ré e a prisão domiciliar foi concedida, principalmente balizada
“ Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que nas disposições da Lei n.º 13.257/2016 e a interpretação conferida a esta pelo STF no Habeas Cor-
for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência pus Coletivo 143.641.
será substituída por prisão domiciliar, desde que:
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a Em decisão de 07/03/2018, o juiz concedeu a prisão domiciliar mesmo diante da manifesta-
pessoa; ção desfavorável do Ministério Público. A decisão seguiu o seguinte fundamento:
II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.”
“Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A Quanto a eventual indispensabilidade de sua presença no seio fa-
poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das miliar, impende destacar o que restou assentado no voto do Min.
medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código.” Nefi Cordeiro, no HC 362922/PR, no sentido de que os cuida-
dos maternos com a criança se consubstanciam em condi-
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro publicou, em 2019, seu relatório sobre o ção legalmente presumida. Portanto, salvo hipóteses excepcio-
perfil das mulheres gestantes, lactantes e mães atendidas nas audiências de custódia entre Agos- nalíssimas, a presença da mãe junto de seu filho é condição
to/2018 e Janeiro/2019. De acordo com o estudo, das mulheres apresentadas neste perfil, 36% fundamental para a proteção do menor e, bem assim, para
tiveram sua prisão em flagrante convertida em preventiva, 57% mulheres receberam liberdade a preservação de seu desenvolvimento psicológico. Nessa
provisória e para 7% foi concedida a substituição pela prisão domiciliar. Além disso, o relatório ainda esteira destaca-se a recente decisão proferida pela Segunda
demonstra que 28% das mulheres que cometeram crimes sem violência ou grave ameaça continu- Turma do Supremo Tribunal Federal, atribuindo primazia
aram presas.3 ao direito à dignidade das mães e das grávidas e, sobre-
tudo, aos interesses do menor, notadamente relativos ao
O relatório chega a conclusão que, apesar do arcabouço legislativo e da atual decisão do STF, convívio familiar e a educação. (...) Nessa conformidade, deve-
muitas das mulheres que fariam jus ao benefício da prisão domiciliar tem o mesmo negado pelos -se atribuir primazia aos interesses voltados à proteção de crianças,
juízes da custódia. Essa lógica encarceradora que parece guiar o Judiciário também foi percebida que não podem ser punidas com o afastamento da mãe. (grifamos)
durante a análise dos processos criminais feita pela equipe do Rio de Janeiro da Agenda Feminista.
Passamos agora a elucidar brevemente alguns dos fundamentos mais recorrentes na apreciação do Outro processo analisado que não pode ser olvidado e que demonstra o impacto da decisão
pedido de acautelamento domiciliar encontrados nos processos analisados. do STF na percepção do instituto da prisão domiciliar pelos Magistrados foi o de Roberta, acusada
inicialmente de cometer o crime de associação ao tráfico (art. 35, da Lei 11.343/06) e tortura (art.
Assim como mencionamos no texto da experiência do jurídico no Rio de Janeiro, o Magistrado 1º, “a” c/c § 4º, III, da Lei 9.455/97). Ela foi presa por mandado judicial quando estava no início da
não se furta de tecer julgamentos morais sobre a maternidade, principalmente quando invocada gravidez. Importante mencionar que nove magistrados atuaram nesse processo desde sua distribui-
no contexto dos crimes da Lei 11.343/2006, a Lei de Drogas. Essa tendência fica clara quando é ção, em 2016.
invocada a exceção prevista no acórdão do HC 143.641 referente às “situações excepcionalíssimas”.
Nesses casos, fica latente que o Judiciário acolhe a garantia pela ordem pública em prejuízo dos Na oportunidade do primeiro pedido pela substituição para prisão domiciliar, em 25/10/2017,
direitos à vida e à saúde de mães e bebês, como aleitamento materno e formação de vínculos afe- o Juiz indeferiu o referido pleito da seguinte maneira:
tivos. Tudo isso reforçado pela desigualdade do sistema de justiça criminal e pela forma seletiva e
hipócrita pela qual se dá a repressão do tráfico de drogas (LIMA, 2019, p. 73). Compulsando os autos, observa-se que permanecem presentes os
requisitos autorizadores da manutenção da medida cautelar, tendo
3 Relatório DPGERJ: Perfil das mulheres gestantes, lactantes e mães atendidas nas audiências de custódia pela Defensoria em vista sua imprescindibilidade para garantia da ordem pública
Pública do Rio de Janeiro. Publicado em 01/04/2019.
40 LINHA DO TEMPO LINHA DO TEMPO 41
e da aplicação da lei penal. (...) Conforme se infere da leitura do família: deterioração da situação financeira, desagregação das re-
´caput´ do artigo 318, do Código de Processo Penal, tal medi- lações de amizade e de vizinhança, enfraquecimento dos vínculos
da é uma faculdade do juiz, e não um dever, de modo que cada afetivos, distúrbios na escolaridade dos filhos e perturbações psico-
caso deve ser analisado à luz de suas especificidades. Conquanto lógicas graves decorrentes do sentimento de exclusão aumentam o
existam provas de que a acusada é gestante, esta condição fardo penal (WACQUANT, 2004, p. 221)
isoladamente não justifica a substituição requerida, eis que não foi
comprovada a inadequação do estabelecimento prisional à sua Verifica-se portanto enorme resistência por parte do Judiciário em fazer cumprir o entendi-
condição de gestante ou lactante, não caracterizando, por- mento do STF no que tange a excepcionalidade na aplicação da prisão cautelar. As explicações para
tanto, necessidade extrema. (grifamos) casos de denegação argumentam em sua maioria a excepcionalidade prevista no julgado atribuindo
portanto a nao concessao do beneficio.
Transcorrido dois meses, a Defesa protocolou pedido de reconsideração do requerido an-
teriormente, que foi apreciado dessa vez por uma Juíza. Entretanto, restou mantida a decisão de Nestes casos, a resistência na implementação do HC coletivo, além de contribuir para o
indeferimento da prisão domiciliar, a qual foi fundamentada que “conforme informações da Direção superencarceramento promove o nascimento de crianças dentro do cárcere. Em muitos casos de
da Penitenciária Talavera Bruce, a unidade prisional é adequada para gestantes, possuindo todo tipo tráfico de drogas observa-se o caráter moralizador da decisão que desaprova a conduta da paciente
de assistência necessária. Portanto, a gestação da ré não é condição que obste sua cautela”. e denega seu benefício.
Por fim, foi juntado novo pedido demonstrando a gravidez de já 6 meses. Finalmente, em 20/03/2018,
a mesma Juíza que apreciou o requerimento anterior, apesar da manifestação contrária do Ministé-
rio Público, proferiu a seguinte decisão:

(...) tenho que, já agora, firmado o entendimento da Suprema


Corte, no Habeas Corpus Coletivo, cujo voto do relator encon-
tra-se nos autos, e cuja decisão, em boa hora, busca contemplar
os direitos mínimos de gestantes e puérperas, impõe-se se
substitua a cautela por medidas mais brandas. E não só por isso, já
que, da análise da d. decisão que impôs prisão preventiva a todos
os acusados, dessume-se que a acusada teve a medida extrema
contra ela decretada pelo fato de estar então foragida, o que já
não mais subsiste. Além disso, a ela não se imputam atos propria-
mente violentos, porém, mera participação, somente no crime de
tortura, e exclusivamente por incitação. Assim é que, ponderados
os interesses em jogo, notadamente a condição da ré - que
suporta medida decretada cujos efeitos podem se estender a ser
humano ainda em formação e totalmente alheio ao fato em apu-
ração, além de manifestamente inocente -, tenho que a adoção de
medidas substitutivas à prisão se mostra mais razoável e adequada
à situação pessoal e processual da ré, cuja demanda por cuidados
específicos e fora do ambiente carcerário, na hipótese, se sobrepõe
à salvaguarda dos meios e dos fins do processo. (grifamos)

Imprescindível realçar que não se trata de pesquisa sobre a tendência do Judiciário ao se


deparar com a situação da mulher presa mãe ou gestante, mas apenas ilustrar nossas impressões
com a experiência que tivemos ao analisar as centenas de processos criminais de mulheres presas
provisoriamente.

Não obstante, é notório que o cenário precário ao qual as mulheres grávidas são inseridas
quando detidas bem como a manutenção das prisões preventivas, configura grave violação às crian-
ças, com base em seu direito ao desenvolvimento integral e à convivência familiar.
Ao comparar as dificuldades já existentes na rotina de uma grávida, nota-se que o sistema prisional
é ainda mais incapaz de manter cuidados mínimos necessários para gestantes e puérperas. O cár-
cere ainda inviabiliza e dificulta a relação com filhos em idade infanto-juvenil.

O impacto danoso do encarceramento não age apenas sobre o de-


tento, mas também, e de modo mais insidioso e injusto, sobre sua

42 LINHA DO TEMPO LINHA DO TEMPO 43


nal, que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência, sem
incidência política e articulações prejuízo da aplicação das medidas alternativas previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal
(CPP).
DA AGENDA FEMINISTA PELO DESENCARMENTO
Em nossos eventos e atividades buscamos trazer a através da organização coletiva, partici-
POR PRISCILLA GADELHA MOREIRA (PE) E FLÁVIA MEDEIROS (RJ) pação e protagonismo das pessoas com vidas atravessadas pelo cárcere, na perspectiva de garantir
reverberação de suas vozes, em aprendizado mútuo, sendo este um fundamento da RENFA. “Nada
A Rede Nacional de Feministas Antiproibicionista aborda neste capítulo a construção de sobre nós sem a nossa participação”. Essas construções nos levaram a ações de questionamento a
parcerias, ações e interlocuções a partir da Agenda Feminista pelo Desencarceramento, que se narrativa posta, pautando o que se passa entre a guerra do Estado e o povo, através do cenário de
apresenta atualmente com ações em Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Ceará, disputa de territórios, subjetividades e construções de país.
a partir de Fóruns e Agenda nacionais, com foco na segurança, movimento social e territórios em
guerra. Além da base de protagonismo, entendemos como fundamental o compartilhamento de nos-
sas experiências, informações de pesquisas e proposições, que são elaboradas junto com as pes-
A partir do lançamento de nossas atividades em Recife e Rio de Janeiro, iniciamos nossas soas que estiveram submetidas a prisão, justamente para refletir em perspectiva sobre o momento
ações a partir do judiciário, através do Ministério Público (MPPE/MPRJ) e da Defensoria Pública atual pelo qual passam as mulheres encarceradas no sistema penitenciário do Rio de Janeiro e em
(DPPE/DPRJ), que apresentaram as realidades construídas até o momento e como poderíamos en- Recife.
contrar intersecções.
Falar de prisão, portanto, é tratar desta forma de exercício de poder por parte do estado que
Mesmo contando com a parceria da Universidade Federal Fluminense e Rede jurídica pela Re- constitui um reforço ao padrão constituído pelo patriarcado colonial e capitalista, de masculinidade
forma da Política de Drogas, a visibilidade das mulheres privadas em liberdade se apresentou como violenta estereotipada e de um controle abusivo de corpos femininos, que historicamente busca a
um elemento não desejado pelas esferas do estado, o que demonstrou ser ainda mais necessária imposição da submissão de existências e de vulnerabilização de vidas.
a continuidade e incidência na sociedade sobre este grupo, visto que boa parte da população nega
existência e humanidade dessas mulheres, bem como negam as violações e omissões judiciais na É na resistência a essas formas de manifestação do poder e na luta pela vida e pela auto-
vida delas e de seus grupos familiares. nomia dos corpos que a Agenda Feminista pelo Desencarceramento busca incidir com mulheres
encarceradas, com usuárias de drogas, com mulheres que atuam no mercado de drogas. Visamos
Entre nossas preocupações, estava em tornar visível corpos e histórias, mas sem fragilizar, construir um projeto de política de drogas que atenda às demandas reais e direitos dessas mulhe-
estigmatizar ou desproteger qualquer forma, diante das diversas possibilidades, complexidades e res, sendo essa a incidência que fazemos por acreditamos ser possível.
problemáticas existentes para cada processo.
Realizar a Agenda Feminista pelo Desencarceramento nos mostra que nos
meses da
Em consonância com nossos objetivos em promover e construir processos de habeas corpus
para mulheres, que são instrumentos jurídicos acessíveis à população, atuamos principalmente na intervenção federal no Rio de Janeiro houve um aumento
desconstrução e na quebra do distanciamento provocado pelo sistema de justiça. Buscamos propa-
gar e ampliar a compreensão sobre esse olhar jurídico e cívico, para novas formas de ação e inter- de 34% no número de pessoas mortas pela polícia, com cresci-
venção popular, onde a população possa ser protagonista de ações libertárias e autônomas, diante mento no número de operações policiais cujos contingentes mobilizados não são divulgados, mas
de suas realidades diversas. Os custos
o terror e a violência nas comunidades do Estado são assistidos diuturnamente.
por cada operação, segundo dados do Ministério da Defe-
sa, variam entre R$ 472 mil e R$ 1,7 milhão, por operação.
Entre os objetivos da Agenda Feminista pelo Desencarceramento, queremos trazer a tona a
possibilidade de reflexão sobre as formas sanção penal, onde por vezes se limita e valoriza a pena
de privação de liberdade em regime fechado. Nega-se a utilização de outras modalidades e regimes O número de chacinas, mortes e denúncias de violações, que vão desde agressões verbais e físicas,
inclusive já previstos em lei, entre eles o direito de cumprir a pena em casa, que visa conciliar o lu- a abuso de poder, balas perdidas e cerceamento do direito de ir e vir dentro das comunidades tam-
gar de um supostamente ter praticado crime com a garantia de direitos de cidadania - reconhecendo bém esteve presente nos índices.
que isso ainda é insuficiente para a liberdade e plenitude do exercício digno de cidadania que luta-
mos. Procuramos e reforçamos medidas que sirvam para desafogar o já fracassado sistema penal,
e também promover cidadania e cumprimento das regras jurídicas, garantindo a permanência das “Ele não viu que eu estava
pessoas em seus territórios e núcleos familiares. com a roupa da escola, mãe?”
frase de Marcos Vinícius, 14 anos, morador da fa-
Com esta proposta, produzimos junto às voluntárias, às parcerias do projeto, às mulheres vela da Maré. O adolescente usava fardamen-
privadas em liberdade, às instituições e movimentos, um caminho palpável de acesso à informação to da escola e logo em seguida a essa frase mor-
e conquista de direitos garantidos. Saindo da lentidão do sistema para potência e proposição de re nos braços da mãe, com um tiro de fuzil.
ações integradas e emancipatórias, podendo através do acesso, minimizar maus tratos e quebra de
acordos jurídicos pacificados no sistema justiça brasileiro, entre eles o cumprimento da decisão do Nessas operações policiais, os moradores das comunidades denunciam o que é conhecido
Superior Tribunal Federal – STF, que concedeu Habeas Corpus (HC 143641) coletivo para determinar como “Caveirão aéreo”: aeronaves que compõem a abordagem covarde e violenta da polícia e so-
a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mulheres presas, em todo o território nacio- brevoam comunidades disparando milhares de projéteis contra o povo negro que ali reside. Contra

44 INCIDÊNCIA POLÍTICA E ARTICULAÇÕES INCIDÊNCIA POLÍTICA E ARTICULAÇÕES 45


as crianças, mães, idosos, trabalhadoras e trabalhadores. Depois de várias denúncias, a juíza da 6ª teve o lançamento oficial na Câmara dos Deputados e na semana de atividades pós Marchas das
Vara da Fazenda Pública do RJ indeferiu o pedido de liminar feito pela Defensoria e pelo Ministério Margaridas e a Marcha das Mulheres Indígenas, contando com a presença de diversos coletivos e
Público para impedir o uso dos Caveirões aéreos. movimentos feministas, referendando esta iniciativa inovadora, já que está será a primeira frente
mista com o poder legislativo e a participação popular.
O massacre cotidiano nas favelas do Rio e de todo o país é falsamente justificado por uma
guerra que se diz contra substâncias e seu comércio, mas é na verdade mais uma tentativa do Es- Dentre as atividades e ações propositivas, registramos o abraço do movimento feminista a
tado de continuar exterminando a população negra, pobre, trans e a juventude. pauta das mulheres privadas de liberdade, quer seja pela visibilidade da pauta no 8 de março, onde
buscamos ampliar o olhar sobre as vivências das mulheres, principalmente as que não podem estar
A RENFA somou junto a diversas vozes e movimentos no RJ como a Rede Nacional de Mães e presentes. Tendo com um dos eixos do 8 de Março em Recife o desencarceramento de mulheres.
Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado, o Coletivo Fala Akari e Rede de Comunidades e Movi- Além deste evento anual, construímos parceria com outros espaços de atuação feminista, entre
mentos Contra a Violência, a campanha “Caveirão Não! Nossas vidas importam. Nossos mortos têm elas construção local com os movimentos para nossa campanha “Cartas para Elas”, que vem sendo
voz” em Recife nossa a ampliação e articulação com a também foi fundamental, nos organizamos um catalisador de emoções entre mulheres dentro e fora do sistema penal, aproximando vivências
com o Grupo de Mães da Saudade, GAJOP, Fórum Popular de Segurança Pública, Rede de Mulheres e pontes de oportunidades. Com a Coletiva das Vadias, além de levarmos a pauta das mulheres e
Negras de Pernambuco, Salão AfroAnastacya, Coletiva das Vadias, Fórum Nordeste de Segurança do sistema justiça, denunciando o racismo estrutural, utilizamos do espaço para mobilizar materiais
Pública, Coletivo de Mães Feministas, Fórum de Mulheres de Pernambuco, Articulação de Mulheres para as visitas as mulheres, com produtos básicos de higiene e bem estar, sendo este um diferencial
Brasileiras, Observatório de Segurança de Maranguape. E hoje seremos muitas e muitos gritando de sensibilização a mais pessoas na sociedade.
por nossas vidas.
A campanha #CartaParaElas_ que possibilita uma ponte de diálogo com as mulheres da Co-
Entre as atividades prioritárias de nossa agenda enquanto rede está a luta antimanicomial e lônia Penal Feminina do Recife e as mulheres que estão em liberdade nos apresentou experiências
a defesa da reforma psiquiátrica brasileira que é outro formato de cárcere, referendado por teorias emocionantes com a troca das cartas, relatos de reconhecimento das histórias levando suas vidas
de mercado, da medicina e de modelos manicomiais. ao papel e a outras pessoas. Mobilizamos mais de 60 pessoas #CorrespondentesAfetivas de todo
Brasil, enviando cartas para as mulheres encarceradas de Recife. Até o momento entregamos 22
Articulamos em Recife uma integração ainda maior entre a Marcha da Maconha Recife e luta cartas, e devolvemos 14 respostas, em ações mensais na colônia feminina. Queremos ampliar nosso
antimanicomial, na defesa do cuidado em liberdade e neste ano, realizando a Marcha da Maconha projeto e promover ações em outras unidades, onde também poderemos levar mensalmente doa-
Recife no dia 18 de maio, dia nacional da luta antimanicomial. Abraçando o tempo da história, ções arrecadadas de itens de higiene, beleza e roupas para as mulheres.
entendemos que além de irmos às ruas precisávamos trazer a tona uma forte força política pela Entre toda potência da ação entendemos que é importante ressaltar que o Relatório do Desenvol-
liberdade, pelos direitos humanos e pela diversidade. Com a reformulação e o sancionamento da vimento Humanos nos trouxe há algumas décadas atrás, onde afirma que “ “a pobreza tem o rosto
LEI Nº 13.840, DE 5 DE JUNHO DE 2019, que tem foco específico na abstinência, com a violação da de uma mulher – de 1.3 bilhão de pessoas na pobreza, 70% são mulheres.” Não existe criminoso.
lei 11343/2006, que adota a política de redução de danos e nesta nova formatação, tenta limitar e Existe criminalizado.
apagar sua potência ação direta nos territórios e serviços públicos do SUS e SUAS. Com este novo
decreto, também vemos a violação a Lei 10216/2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica, que versa sobre Na Bahia, no Rio de Janeiro e Minas Gerais, tivemos incidências nos Fóruns Estaduais de
a proteção e os direitos das pessoas com sofrimento psíquico, onde podemos perceber com o lobby Desencarceramento, onde pautamos em universidades e junto aos movimentos sociais encontro e
político e de lideranças da bancada evangélica, que pautam a inserção das Comunidades Terapêuti- debates, entre eles ressaltamos o momento que aconteceu na UFBA, sobre “Superencarceramento,
cas no recurso público quanto ao cuidado com pessoas que usam drogas e com sofrimento psíquico, raça e gênero no Brasil”, que fez parte da disciplina Polêmicas Contemporâneas da UFBA, com Vilma
trazendo a tona o pior em nossa sociedade, onde a permissão a violações de direitos e torturas são Reis e o seminário “Mulheres e Liberdade: A Agenda Feminista pelo Desencarceramento” na UFF.
dados reais, entre elas a liberdade religiosa, trabalhos forçados e tutela das pessoas. Além de toda
problemática, muitas destas instituições por ora clínica, centro ou comunidades são de caracterís- Em parceria integral e conectada a realidade do sistema, tivemos as atividades do julho das
ticas asilares, vedadas pela lei de 2001, desprovidas de estrutura para os pacientes, afrontando pretas, onde realizamos a Ação da Agenda Feminista Pelo Desencarceramento na Colônia Penal
toda luta pelo SUS e ao movimento movimento antimanicomial, que através de muita resistência Feminina Bom Pastor em Recife. Contamos com a presença da Rede de Mulheres Negras de Per-
conseguir reverter o cenário de horror que era posto da reforma psiquiátrica. Equipamentos para nambuco e com o Salão Afro Anastacya, com ações sobre feminismo negro antiproibicionista e abo-
eletroconvulsoterapia (ECT, popularmente conhecidos como “eletrochoque”) retornam à esfera do licionista. O tema central do encontro indagava: “Qual o lugar da mulher negra?”, sendo além de um
campo médico, relembrando os horrores do chamado Holocausto Brasileiro, assim como citada na momento de informativo, também produtor de auto estima e fortalecimento da identidade racial,
obra da jornalista Daniela Arbex de 2013. despertando reflexões e novos olhares, sendo esta uma atividade propositiva com organizações e
movimento de mulheres negras, em celebração do 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Negra
No Rio de Janeiro, protagonizamos junto a outras mulheres a roda de conversa sobre Mulhe- Afro Latina-americana e Caribenha.
res, Loucura e Antiproibicionismo, com Helisleide Bonfim, Presidenta da Associação de Usuários de
Saúde Mental Metamorfose Ambulante (AMEA) e membra da RENFA Bahia; Flávia Fernando, médica As ações do 25 de julho se estenderam também para a Bahia, onde apresentamos uma série
psiquiatra, mestre e doutoranda em Psicologia pela UFF e membra da RENFA RJ e Melissa Oliveira, de motivos para acabar com as prisões no Brasil, pois o modelo encarcerador atinge especialmente
doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e militante do Núcleo Estadual da Luta Antimani- as mulheres negras e pobres, através de Cine-debates com o Filme “Estado de Proibição”, da Pla-
comial do RJ, com a coordenação de Flavia Medeiros. taforma Brasileira de Política de Drogas e produzido em parceria com a Panamá Filmes, e retrata o
dilema das mulheres negras periféricas que necessitam dos medicamentos feitos com componentes
Entre as atividades e articulações realizadas a partir de nossa agenda, referendamos a cria- da cannabis, a negação da saúde pública para a população negra e pobre, o estigma do racismo
ção Frente Parlamentar Feminista Antirracista com participação popular no Congresso Nacional, que sobre a maconha, e os impactos do encarceramento e do genocídio juventude negra, fruto do proi-

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bicionismo e da cultura punitivista seletiva no Brasil. Este documentário foi idealizado e produzido são privadas de vários direitos Humanos.
junto a companheiras da Renfa, onde pudemos estar presentes nos relatos e na construção de todo
este material, que poderá ser base para ampliar a discussão em todo Brasil. Lemos nosso projeto como MULHERES QUE LIBERTAM MULHERES, mais importante ressal-
tar que nesta ação tivemos parceiros centrais e de grande contribuição, o que nos dá a certeza de
Continuando as ações na Bahia, em Salvador, organizamos junto a Comissão de Direitos Hu- estarmos trilhando caminhos para o bem viver no hoje, onde pudemos garantir a volta de mais uma
manos da Assembleia Legislativa da Bahia, a discussão sobre o encarceramento da juventude negra mulher pra casa, em que esta era suspeita de associação ao tráfico e após um ano e dois meses
no Estado, que se mostra como resultado do conjunto de ausências de políticas públicas capazes como presa provisória, o habeas corpus impetrado pela equipe do projeto conseguiu que ela aguar-
de enfrentar o racismo, de incluir e criar oportunidades para a nossa juventude negra e pobre, além de o processo em liberdade. Neste dia nossa Agenda Feminista pelo Desencarceramento realizada
de mecanismos jurídicos que contribuem para o não acesso ao devido processo legal, de defesa, e em Recife e Rio de Janeiro com o apoio da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Fundo Brasil
até do conhecimento do processo por parte das famílias desses jovens. Registramos as mazelas da de Direitos Humanos contribui de forma direta e objetiva na vida de uma mulher, sua família e co-
política proibicionista sobre drogas, aliada à cultura da violência e da punição, dirigidas especifica- munidade.
mente para a população negra, fazendo com que o estado brasileiro siga reproduzindo uma lógica
maciça de encarceramento como via principal de respostas às questões da nossa juventude negra Importante registrar o Lançamento da Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas
e pobre, sendo este um projeto que precisa ser derrotado em todas as instituições do Estado e na Gerais, onde tivemos discussões potentes, protagonizadas principalmente, por mulheres negras que
sociedade. estão construindo em seus territórios, suas cidades, outras narrativa em torno do sistema penal bra-
sileiro. Um processo de discussão sobre responsabilização em torno de algo nomeado como “crime”
Na ocasião, referendamos a leitura do Atlas da Violência do Ipea em 2019, onde além do que se dá a partir da construção popular de resolução de conflitos.
sofrimento cotidiano nos territórios onde vivem as pessoas negras nas áreas urbanas, onde vivem
os povos das florestas, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores e marisqueiras, é preciso A parceria com o Sindicato dos Servidores do Ministério Público, a partir das pautas de mu-
apresentar como os dados e a construção da política que encarcera e mata vem atuando e apro- dança na política de drogas foi fortalecida, onde realizamos a apresentação pública do projeto a
fundando formatos no Brasil, na tentativa de afastar qualquer tentativa de diálogo e da garantia de toda sociedade Na ocasião uma discussão sobre Sistema de Justiça e alternativas antipunitivas:
vida, inviabilizando programas e agentes de direitos humanos. Quais caminhos para o desencarceramento? , com participação do GCASC - Grupo Comunidade
Assumindo suas Crianças e das Mães da Saúde, de Peixinhos/ Olinda, a Justiça Global e a Frente Es-
A política de endurecimento da criminalização das drogas, o investimento na polícia ostensi- tadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro, a Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas,
va, nas intervenções militares, no encarceramento e da liberação do porte de armas, contribui com a LANPUD – Rede Latino Americana de pessoas que usam drogas, o IBCCRIM - Instituto Brasileiro
o aumento do feminicídio por arma de fogo, no fato de 75% dos homicídios no Brasil, vitimaram de Ciências Criminais e a Reforma - Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas
pessoas negras, no aumento do número de mortes violentas contra a população LGBT, dados ofi- E por fim, a construção e participação nas Conferência e Pré Conferências Populares de Segurança
ciais que precisam ser traduzidos em política pública de enfrentamento a violência endêmica que Pública de Pernambuco, em parceria com outras 40 organizações, e diversos movimentos sociais,
vivemos, bem como a epidemia de encarceramento assolado em nosso pais. bem como estivemos na consolidação do Fórum Popular de Segurança de Pernambuco e na incidên-
cia e construção do Fórum Nordeste de Segurança Popular, este ainda em construção e na perspec-
Com os movimentos sociais da política de drogas, endossamos e demos continuidade a cons- tiva de consolidação regional, a ser realizado no Ceará onde a RENFA também está participando e
trução das Marchas da Maconha em todo o país, onde a pauta do encarceramento foi ampliada em construindo ações para a Agenda Feminista pelo Desencarceramento.
todo território nacional, desde o questionamento ao sistema justiça, a denúncia contínua do racismo
estrutural, quer seja na necessidade de mudança urgente na política de drogas, ou na amplitude A incidência política do projeto nos aponta importância de permanecer em rede para realizar
do cuidado em liberdade, não referendando de forma alguma o cárcere, que viola e mata pessoas nossa atuação, e também confirma que apenas através da participação popular e democracia pode-
e territórios em todo estado brasileiro. Entre os temas: “LEGALIZAR PARA NÃO ENCARCERAR” remos construir alternativas ao estado penal que executa seu projeto de morte atualmente refletido
em projeto que tramitam nas câmaras federais para aumentar o poder da política que mata e per-
Ressaltamos também a parceria com o vereador Ivan Moraes no Recife, onde publicamos petua um sistema de racismo estrutural que provoca o genocídio do povo negro. Por isso a RENFA
uma cartilha sobre drogas chamada “Fique Suave”, que traz em seu conteúdo informações sobre a vem atuando junto a Frente Parlamentar Feminista Antirracista no Congresso Nacional para junto as
história da política de drogas, redução de danos e como agir em uma abordagem policial, na pers- deputadas que defendem um projeto de segurança pública e paz possam incidir sobre os absurdos
pectiva de evitar encarceramento com informação e direitos. propostos pelos militares e conservadores representado nesse pacote da morte (pacote anticrime)
apresentado pelo atual governo. Estamos atentas e atuando de forma articulada lutando pelo direito
Importante ressaltar a parceria presente e contínua da Rede Nacional de Feministas Anti- à vida, pelo direito a existir!
proibicionistas com a Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e a Universidade Federal
Fluminense, que possibilitaram e viabilizaram este projeto e esta agenda importante e que já marca
nossa rede, bem como na construção do feminismo que pauta uma sociedade pelo bem viver a to-
das as pessoas, protagonizada pelas mulheres afetadas pelo modelo vigente de guerra e genocídio
diário do povo negro, para elaboração de atividades que se espalharam por todo país, ampliando o
que seria a ação em duas cidades Recife e Rio de janeiro, se transformando em ações integrais e
contínuas em Minas Gerais, Ceará e Bahia.

Através do fortalecimento da qualidade de vida através da realização de ações de estímulo ao


bem estar e autocuidado para essas mulheres, que além de estarem privadas de liberdade também

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SENZALA | AUTORAS: JOY THAMIRES E RALINE SANTANA

A luta abolicionista vivida A história que vou contar não é de conto de fadas
É uma vivência de uma mulher preta, mãe e favelada
Em um inferno chamado prisão,
no país que tem a terceira maior população carcerária do mundo, Brasil.
Reservamos esse capítulo para compartilhar e oferecer um Sobrevivo em uma cela trancada
Com mais 30 mulheres;
acervo de iniciativas de mulheres feministas antirracistas que dez grávidas
quinze inocentes
resistem frente aos modelos encarceradores e punitivistas. e cinco ditas culpadas.
Culpadas de que ?
Se na hora da fome

Queremos disseminar outras formas de um teto digno


comida para os pirraia
fazemos de um tudo para sobreviver.
resistir e se organizar na luta por direi- Documentário bagatela já assistiu, não?! então vai lá e paga pra ver, a desigualdade desse país es-
tampada na cara , de bandeja entregue pra você.

tos, por outras formas de se organizar. Aqui estou artigo 33 quinze anos eu peguei
Eles me chamam de traficante, drogada, irresponsável e marginal. Afinal quem já viu, mulher de
fuzil no lugar de no fogão lá da dondoca da capital?
Convidamos ativistas, escritoras periféricas, poetas, artistas, Já eu me chamo de sobrevivente,
Não me orgulho disso
mães, mulheres negras a compartilhar com a gente suas re- Mas de onde eu vim
flexões e resistências. Quais as escolhas que eu tinha se acesso a direitos passam longe daquele lugar todos os dias?

APRECIE
Comida ruim,
Banho mau tomado
fazer miolo de pão de absorvente, dar de mamar pela grade sendo taxada de deliquente.
Tudo isso para que o Banco Mundial se sinta mais seguro enquanto o povo acha pouco eu aqui
sendo tratada como animal.
Sempre escutando que não valemos nada
mulher de traficantes

O TRABALHO
vagabundas e putas, abusos, estupros toda a violência passada pra conseguir um shampoo. Parece
a época da senzala né, mar né não, é só a democracia funcionando a plenos pulmões
Todos os dias eles nos lembram
de como pode ser lá fora

Me diz o que será de mim?


O medo de sair

DE MULHERES!
E ter o mundo todo com dedo
apontado pra mim.
Se antes me olhavam torto
Mudavam de calçada
Agora nem gente eu sou.
Se antes não arrumava emprego
por não ter a Ficha 19
Agora me diz que emprego consegue uma ex- presidiária?
Eu tenho” sorte”
Por que sei que vou sair daqui a 10 anos
E minhas comparças
50 51
Que ainda nem foram julgadas
Estavam aqui a mais de anos MAIS DE 42 MIL AMÉLIAS | AUTORA: ANA LUIZA VOLTOLINI UWAI - ITTC
Foram pegas a noite
Nos becos e vielas Existem quarenta e duas mil,
Sem dizer nada, foram algemadas trezentos e cinquenta
Continuam aqui *sem serem ouvidas com a raiva crescendo e a solidão sangrando, e cinco mulheres presas no Brasil.
o esquecimento é foda.* Vocês sabem disso.

Tenho medo Na prisão, todas as mulheres são identificadas


O primeiro é que meu filho entre nessa vida, ser tratado que nem lixo pela polícia, por números.
O segundo é a fome, Vocês também sabem disso.
essa maldita que nos persegue e nos consome
O terceiro é voltar pra esse inferno Vocês sabem o número do seu processo?
Dizem que é o pão que o diabo amassou O número da sua matrícula?
Eu não acho não, Quanto falta para acabar a sua pena?
Aqui é a mesma senzala irmão, que a tempos atrás o homem branco criou. Vocês sabem disso?

Quem é você?
Quantos filhos você tem?
Eles não sabem disso.

TIRAÇÃO | AUTORA: TANIA NASCIMENTO A Amélia é uma das quarenta e duas mil, trezentas e cinquenta e cinco mulheres presas no
Brasil. Ela casou novinha e teve um filho, mas o pai largou dele pequeno, quando ele tinha um
Os homi vende as armas ano. Não deu mais as caras, nem pensão, nem nada. No dia que ela foi presa, tinha brigado
E depois espera nos se matar com o dono da casa por conta do aluguel. Nessa hora, as meninas passaram, e então ela disse
Depois sobe o morro “eu vou”.
Disfarçados de anjos da justiça
E os corpos da favela eles vem tirar. Ela tinha duzentos e cinquenta reais em casa, era menos que o aluguel do mês que passou.
Quando não atiram em cabeça de criança “Deus sabe” porque ela foi com as meninas, ela disse: “eu fui roubar pra dar comida para o
Igual fizeram com Mário meu filho”.
Que é desse mesmo lugar
É muito tiro pra pouca vida Tem juiz que acha que ela e as meninas fizeram isso porque não têm vergonha na cara, porque
É muita vida pra pouca esperança elas queriam voltar pra esse lugar. Mas muitas vezes não. Ela disse, “a gente sai daqui e não
É muito corpo preto tem uma única oportunidade de emprego, mas a gente tem criança, tem família, tem aluguel
Pra pouco espaço. pra pagar e acaba fazendo tudo de novo, porque as pessoas fecham a mente pra pessoa que
É muito espaço branco! é presa”.
Muito barulho e muito silêncio
Muito som do passinho O coração da Amélia endureceu nesse lugar. Tem gente que fala que o mundo para, mas isso
Na acústica dos morros não é verdade. “O que para é a gente”, ela disse. Ela sonha menos, não tem vontade de querer
É muito tiro e bagulho doido! as coisas.
Onde só correr não resolve
E trabalhar muito menos Faz sete meses que ela não vê a mãe, porque é ela que cuida do neto. Elas conversam por
Esse dinheiro sujo e pequeno cartas. Ela queria ver o filho, mas nas duas vezes que ele escreveu para ela, disse que estavam
Que não cabe bem, mas o cartão dela tinha sido bloqueado. Quando o choro vem, a companheira de cela é
Dentro de uma bolsa de leite que conversa com ela: “não fica assim”, ela diz. Mas ela também sabe como que é, ela também
E suar já não dá mais tem filho lá fora.
Tem que suar muito
E se pá, suar até sangrar Agora a Amélia tirou as fotos do filho da parede, porque tava pesando pra ela. Toda vez que
Exigem demais de nós ela olhava, lembrava dele, e quando chegava a noite ela dizia pra Deus “oh meu Deus, como
E quase nada a oferecer tá meu filho?”.
E quando oferece é a esmola do dever.
A Amélia é uma mulher trabalhadora, uma boa mãe, boa filha, boa amiga, até boa vizinha ela
é (de casa e de cela). O problema é que o juiz só conhece a Amélia pelo número do processo
dela. Só vendo no papel, ele não sabe o que está acontecendo.
52 53
Ela pensa que, quem sabe, ele olhando pra ela e ela podendo contar tudo o que realmente acon- Nos negam a humanidade
tece, o que ela tá passando, quem sabe ele não poderia compreendê-la melhor, estar mais do lado Nos diminuindo e matando
dela. Se ele a chamasse, ela diria: “eu não sou um problema pra sociedade, eu vou falar a verdade, Nosso lugar subestimando
não vou mudar em nada meu depoimento. Só queria uma oportunidade de poder falar”.“Nossa O racismo institucionalizando
senhora”, ela diz, “poder falar com o juiz, ou pelo menos com a defensoria pública, melhoraria. Enquanto nossa alma grita.
Melhoraria muito!”.
Gritam também as crianças
Ela queria saber o que tá acontecendo no processo, enquanto o filho dela tá lá com a avó, parece Crianças negras sem esperança
que ele tá jogado e ela aqui angustiada. Ela quer saber quando ela vai embora, se ela vai embora, Tendo as mães aprisionadas
se ela vai ficar, quanto tempo. Por uma guerra demasiada
Que diz-se ser contra as drogas
Ela diz que sonha menos aqui dentro, mas ela ainda sonha com a prisão domiciliar, sabe? Mas que na verdade
A Amélia quer poder construir coisas lá fora. E não é só questão de sonhar, porque so- Só encarcera e mata pretos e pretas como se fosse moda.
nhar todo mundo pode sonhar, mas se ela tiver uma oportunidade ela sabe que consegue vol- O extermínio é epidemia
tar a estudar, consegue um emprego pra pagar o aluguel e sustentar o filho. Ela sabe que se O encarceramento do nosso povo também
tiver uma oportunidade, isso também vai ser uma oportunidade pra ela ser mãe. Porque Então nos vemos trancadas
ela sabe, mais do que o juiz, mais do que a defensoria pública, mais do que eu, quem ela é. Totalmente violadas em prisões decadentes
Que nos torna dementes

LUTA | AUTORA: JOANINHA DIAS E que não garante


Nem o direito básico de sermos gente

Estamos aqui hoje Sozinhas, encarceradas


Pra mostrar nosso poder Com nossas relações de afeto criminalizadas
Ocupamos esses espaços Higiene e saúde são luxos
Pra direito nenhum perder Dentro do absurdo que é ser mulher e negra nesse país
Estamos sempre na luta E essa guerra às drogas
Pra que essa vida bruta Só serve como manobra
Não nos faça perecer. Pra nos reprimir.

A nossa pauta é longa Mas ainda estamos aqui


O retrocesso nos assombra Nossa luta não cessa
Sempre querendo tirar Gritamos bem alto sim
O que lutamos muito pra ter E uma nova política de drogas queremos exigir
Ameaçando nosso futuro Uma política coerente
Com vários golpes duros Que não faça da vítima
Nos fazendo guerrear pra tentar sobreviver! O algoz que dizem perseguir.
Ouçam nossa voz
O racismo que nos persegue Exigimos atenção
Apaga nossa história Parem de nos matar
Nos trata como verme Encarcerar
Mulheres negras estão abaixo de tudo Subestimar
Mesmo, dessa sociedade, sendo o cerne. O racismo valida o crime
E não vamos nos calar
Tudo fazem pra nos desmerecer Estamos aqui fortes
E toda mulher negra sabe Juntas e com enfoque
Que resistir é um ato de coragem em sobreviver e lutar!
E mansas jamais voltaremos a ser Aguentem a rebordosa
Se no quilombo éramos lutadoras Pois a revolução é nossa
Hoje somos transgressoras E o feminismo antirracista e antiproibicionista vai reinar!
Lutando até morrer.

Não respeitam nossa ancestralidade


Tentam retirar nossa identidade

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Era pra ser um canto de liberdade e é –
ERA PRA SER UM CANTO DE LIBERDADE | AUTORA: FLAVIA FERNANDO É um grito, um uivo,
um oceano revolto no olho
(às mães que perderam os seus filhos, às mulheres encarceradas de tantas formas) Um suspiro, um cansaço
Um suspiro, um cansaço
da violência do não pertencimento
da expropriação de nós mesmas
Era pra ser um canto de liberdade Do saque de todo dia
Um canto, ainda que chamuscado, das faíscas que queimaram os corpos de nossas irmãs, outrora
Aquelas, curandeiras, sabedoras de si
Dos seus feitiços fizeram argumentos de acusação do mal Mas esse canto, rouco, torto, tonto
Só se faz ponto
se firma ponto
Era pra ser um canto de liberdade Se um verso de uma chama o tambor do coração da outra
e é assim, meio tonto, meio vertigem Pelo desejo de liberdade de existir, de ser quem a gente é
canto de banzo, de maresia De não negar as diferenças, negociar os nossos egos privilégios
canto de navio, de sequestro, de corrente E seguirmos
de fel da diáspora Escapando da morte e da prisão
pedaço de saia Do patriarcado e do racismo
boneca sem olho Fabricando outros espaços tempo respiração, juntas – VIVAS!
brinquedo acalanto
nas noites do mar

Era pra ser um canto de liberdade


e foi estilhaçado de espelho, sífilis, de roubo, dizimação
Canto silenciado, negado
sem lugar em meio às violências todas, os tantos açoites
É também um canto quase réquiem
pelos companheiros que se foram
os filhos levados
o sumiço das nossas histórias

E delas fazem
Ficha policial, estatística, categoria diagnóstica

Tentam se apossar
Do nosso útero, da nossa cabeça, do nosso desejo
Da ancestralidade que nos funda
Tentam, mas não conseguirão!

Era pra ser um canto de liberdade


e foi trincado
Trincado pelas grades
dos manicômios e prisões

Disseram-nos bruxas, loucas e histéricas


Dizem-nos drogadas, perigosas, macumbeiras, vadias
E somos mesmo

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decolonial, antipunitivista, feminista, antirracista, abolicionista e antiproibicionista. Mulheres como

REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO Aqualtune, Maria Felipa, Luiza Mahín, Acotirene, Teresa de Benguela, Maria Firmina, Carolina de Je-
sus, Lelia Gonzalez, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Grada Kilomba, Dina Alves,
Militância feminista antiproibicionista Juliana Borges, Angela Davis, Bell Hooks, Nadja Carvalho, Flavia Medeiros, Luana Malheiros, Midiãn
Noely, Joy Thamires e muitas outras. Os trabalhos e apontamentos dessas mulheres são respostas
Aqui compartilhamos algumas reflexões realizadas por mulheres que estão no dia a dia da militância para nosso contexto tão duro.
feminista antiproibicionista. Mulheres que ousam fazer a defesa de seus e de direitos coletivos e da
cidadania das pessoas que são atingidas pelos modelos de guerras as drogas, atuando através da Que a coluna Discursos Não Pacificados seja veículo para romper os silêncios, como nos
luta feminista antirracista. ensina Conceição Evaristo. Romper os silêncios até então invioláveis das opressões, em especial as
opressões veladas como oportunidades. Que possamos compreender quais nossos lugares de fala

MULHERES NÃO PACIFICADAS DESCOLONIZANDO A POLÍTICA e quais as contribuições que temos responsabilidade de dar para alterar realidades cristalizadas
pela colonização. É necessário colocar privilégios à disposição, ação fundamental no processo de
POR INGRID FARIAS (PE) (Texto escrito para coluna semanal no portal online @justificando)
entendendimento da urgência em alternar o lugar da fala que tem referência, que tem credibilida-
de, que tem poder, pois muitas são as estratégias do racismo e machismo para nos deslegitimar.
Discursos Não Pacificados, a mais nova coluna do Portal Justificando, nasce em meio a “Ao atribuir “agressividade” à fala de uma mulher negra, você a
um levante feminista e pretende trazer, às terças-feiras, reflexões sobre os modelos de pacifi- desumaniza. É uma estratégia sexista caracterizar mulheres dessa
cação das sujeitas historicamente silenciadas. O primeiro texto trouxe detalhes da maior mobi- forma… No geral, mulheres localizadas em lugares e em espaços
lização das mulheres nos últimos anos, a realização da Marcha das Margaridas, Marcha das In- que não são socialmente construídos para elas é que vão sentir
dígenas e agendas das mulheres na política e dos direitos sexuais e reprodutivos. Hoje quero como essa caracterização da agressividade, enquanto depreciação
refletir sobre reivindicar o direito à fala, além de colocar este espaço como de acolhimento de é, na realidade, uma ferramenta para lhes retirar a credibilidade.
toda produção feminista, antirracista, antiproibicionista, antipunitivista, abolicionista e decolonial. A raiva, nesse discurso, exerce o papel de desvalorização das po-
tencialidades dessas mulheres porque ela vem acompanhada de
“E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as uma ideia de ausência de auto-controle.” Winnie Bueno, 2017.
implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados
(infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala Somos mulheres não pacificadas, e estamos descolonizando as formas de fazer política, nos
na terceira pessoa, porque falada pelos adultos) que neste trabalho aquilombando e reescrevendo nossa história. E como a “ARTE MATA A MORTE” compartilhou a poe-
assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa” sia declamada por Djamila Ribeiro na música Manifesto do grupo de rap feminino Rimas e Melodias.
Lelia Gonzales

Eu sou Ingrid Assunção Farias, uma mulher nordestina, negra, periférica e mãe, que junto Romper silêncios é o primeiro passo para a cura
com as mulheres da RENFA (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas), ousamos construir Quanto tempo você não escuta o som da própria voz?
outras perspectivas de organização, reflexão e ação política. A RENFA atua há 5 anos em 14 estados Por medo de incomodar, a gente cala as justiças.
brasileiros, organizando mais de 200 mulheres usuárias de drogas, com o desafio de afirmar e ter Mas dá pra promover mudanças no conforto?
Assumimos, então, que trazemos narrativas de incômodo.
reconhecido o lugar político de fala das mulheres usuárias de drogas. Fortalecer nossa contribuição
Queremos que nossas palavras cortem como navalha a sua indiferença.
na construção de um projeto de sociedade que não perpetue uma política de drogas através do Deixe a sua consciência intranquila, cause conflitos e tempestades
racismo, genocídio e encarceramento. Eparrei!
Desconforto é incômodo necessário.
Atualmente, no Brasil e no mundo, as mulheres usuárias de drogas são catalogadas como O som das nossas rimas vai perturbar o teu sono.
Desestabilizar a sua calma.
dois sujeitos: primeiro, no papel de criminosas, perigosas, desumanizadas em nome do projeto ge-
E ao mesmo tempo mostrar a nós a força da quebrada.
nocida e encarcerador, ou consideradas doentes, incapazes, vulneráveis, para serem patologizadas A felicidade de se autodefinir.
e manicomializadas. Em ambos papéis os corpos dessas mulheres são totalmente passíveis de vio- Sim, vou olhar para mim
lência e abuso, assim como em outros contextos de guerra no mundo. A sociedade machista, racista E desta vez vou gostar do que eu vejo.
e proibicionista nega outro papel social às mulheres usuárias de drogas, organizando essas sujeitas E direi para mim o quanto eu sou incrível.
Vou falar, gritar e me emocionar quando enxergar Dandara em mim.
sociais a partir da raça e da classe. O discurso feito por Sojouner Truth na Convenção de Mulheres E essa voz vai ser coletiva, vai ultrapassar fronteiras, tirar a venda dos meus olhos.
nos EUA em 1851, questionando se ela, uma mulher negra, não era uma mulher nos aponta que, Conceição Evaristo um dia disse: Nossa voz estilhaça a máscara do silêncio
um século depois, ainda fazemos a mesma pergunta. Então fale, destranque, deságue
Dá medo, eu sei, mas fale
Por isso, quando negrito o conteúdo a ser debatido nesse espaço, falo sobre a agenda de um Às vezes a gente acha que o muro é muito alto
Mas pule, garota
projeto político de pautas historicamente negadas até mesmo em nosso campo progressista. Que- Você não vai nem arranhar os joelhos
remos jogar luz em questões fundamentais para refazer nosso projeto de sociedade, descolonizar
nossos conteúdos e referências. Queremos nos basear no conjunto de práticas e teorias cujo obje-
tivo é descortinar situações de opressão diversas. Muitas são as mulheres, em especial as mulheres
negras, que têm produzido e se tornado referência no campo da produção intelectual e de prática
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em cárcere era negro ou pardo. O que nos leva a refletir sobre a sociedade em que vivemos, que é
A MATERNIDADE PRETA PERIFÉRICA E DIFÍCIL DEMAIS impossível, que um determinado grupo racial seja mais propenso a violar normas penais que outros.
POR LARISSA THEMONIA (PE) Logo se faz necessário uma breve caminhada pela história do Brasil para entender como isso se liga
com a questão do racismo.

Antes quando minhas irmãs pretas mães diziam “amiga você ainda vai ver como é difícil Os negros chegam às terras do pau brasil, para serem escravizados, são tratados como ani-
suas amizades vai sumir” pior que é verdade. Só quem tá comigo mesmo, não digo tirando fotinha, mais, que não possuíam alma e assim se passaram mais de três séculos. Enquanto o Brasil vivia o
sei que quem tá comigo de verdade me ajudando, me incentivando a sempre melhorar e nunca me sistema escravagista, o sistema capitalista se alastrava, logo o fim da escravidão se dar no processo
fazem esquecer que eu tenho potencial sim, que consigo mesmo minha cabeça dizendo ao contrá- burocrático, em prol do capitalismo que se expandia pelo mundo. Porém esquecem de ressaltar
rio. O pior de tudo são as falsas amizades que fingem se importar mas na primeira oportunidade que para além do sistema escravocrata falido, o que impulsionou também essa “liberdade”, foram
que tem pra nós julgar, nos fuder de verdade, aproveita. Isso que eu não entendo, não tenho nada escravos, negros libertos e brancos, que lutaram, foi criado o quilombo, símbolo de resistência até
a não ser minhas riquezas que são minha família e meus amigos reais e verdadeiros. E mesmo assim os dias de hoje, que possibilitou as fugas dos escravizados, se tornaram frequente ações judiciais
a inveja, disputa, egocentrismo me rodeiam. Não quero mais esse círculo vicioso nem pra mim e para reivindicar por liberdade e conseguiram números significativos e tantas outras formas de burlar
nem pra minha cria, até porque chega um momento que não faz bem e nos adoece. Nos faz ser o sistema para chegar até a Lei Áurea.
oco por dentro, com conceitos de valores e atenção muito banais sabe. Não entender que tenho
um filho e que preciso dar uma vida digna a ele e muito sem noção. Principalmente achar que vou Essa massa de escravos na pós abolição passa a ser tida como um corpo estranho da realida-
sair da minha casa levando meu filho pra fazer um trampo e chegando lá não receber por isso, ou de brasileira que incomodava, isso se prolonga até hoje, com os impedimentos de inserção do povo
receber e quem não foi receber igual, é uma tremenda falta de respeito e consideração com meu negro em nossa sociedade. Isso faz com que em sua história, possua todas as limitações possíveis
corre, com o meu filho e mais ainda comigo. E é assim que enxergo que essas pessoas não dá valor para construir uma trajetória pessoal e coletiva digna das suas condições materiais de existência.
ao meu esforço minha caminhada, o tanto que eu lutei pra conseguir chegar ali sabe, onde muitas
vezes saio sem ter o que comer em casa e o aluguel pra pagar, ganhando apenas 100 pra pagar Em toda a história do povo negro no Brasil foi utilizado arcabouços teóricos para embasar o
um aluguel de 400 reais e ainda comer. Como minha saúde mental fica, quando chego em casa com racismo, como a teoria evolucionista, passando pelo darwinismo que influenciou a teoria eugenista,
esses 100, sem nada pra comer em casa,, e não podendo gastar essa grana por que tenho que tendo sempre a Europa como modelo de uma sociedade superior e civilizada. Até que nos anos de
pagar a dívida do aluguel. Como manter a mente sã desse jeito? 1930 surge o discurso de democracia racial, não existe racismo no Brasil “Que maravilha!”. Daí que
Florestan (1972) vai dizer que a democracia racial tinha como intuito manter a ordem social vigente
E olhar ao meu redor e ver quem eu mais admiro e quero construir algo de verdade, pra mu- na época. O preconceito contra pessoas negras só vem começar a ser reconhecido nos anos 40 a
dar não só as nossas vidas mas a vida de outras pessoas também, sendo as primeiras pessoas a não 60.
se importar se estou bem , ou se meu filho está bem . Me faz enxergar que pra algumas pessoas que
está ao seu redor, eu só tenho valor quando estou lhe dando ou fazendo algo chegar a até aquela A questão é que apesar de todas as teorias, de marginalizar os negros, de lhe deixarem sem
pessoa sabe. E quando isso não acontece nem existo pra ela. não quero conviver com pessoas as- aparato nenhum na sociedade, não impediu que os negros hoje sejam mais da metade da popula-
sim, não quero meu filho convivendo com pessoas assim. Agradeço todos os dias ter encontrado na ção, sendo o Brasil o país com mais negros fora da África. Porém ainda somos tidos como minoria,
minha vida, nessas idas e vindas da luta minhas irmãs pretas que não me deixam cair sabe. Que não estamos nos lugares de representação, de tomadas de decisão, passamos ainda pelo processo
eu sei que posso contar pra tudo e elas sabem que pode contar comigo, ter essas mulheres nessa colonizador e do embranquecimento. Isso me leva a reflexão da fala de Neusa Santos (1983) a
rede de amor, afeto, carinho e cuidado e muito importante não só pra mim mas também pro meu pessoa se torna negra e chegar nesse processo de tornar-se negro, “é viver a experiência de ter
filho que tá crescendo e que elas vão ser os espelhos de amor e afeto. sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetidas a exigências,
compelida a expectativas alienadas. Mas é também e sobretudo, a experiência de comprometer-se
a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades”.

E como é mesmo, que nós sendo a maioria da população, eles conseguem ter o “controle”?
Através da opressão e política do medo, através da criminalização da cultura e práticas das pesso-
as negras, encarcerando sobretudo a nossa juventude, lhes tirando a oportunidade de ascensão e
VIOLAÇÃO DA LIBERDADE DO CORPO E VIDA DO NEGRO NO BRASIL, colocando no lugar estereotipado de “bandido”, traficante”, sem expectativas, e marginalizado pela
sociedade. Quando não se está preso, está na mira da arma da polícia ou do seu igual, sendo este
ENCARCERAMENTO E A URGÊNCIA DO DESENCARCERAMENTO NO PAÍS pela política de odiar a sua própria imagem no outro e usando como argumento a necessidade de se
POR JAQUELINE RIBEIRO (PE) mostrar superior e imbatível para conseguir respeito dentro do modelo de sociedade em que vive.

Logo o presídio se tornou estratégico, para encarcerar por exemplo a mão de obra excedente
Q uem devia estar preso é quem dá a sentença. Quem legitima a pessoa que dá a sentença? do mercado, para que esse excedente não se rebele contra o sistema, o presídio é uma forma de
A sociedade brasileira que foi estruturada na base do racismo, do patriarcado, machismo, sexismo, controlar a natalidade, através do genocídio do povo preto, através por exemplo da negação de um
heterossexismo e tantos ismos que sufocam. banho de sol do/a detento/a que é tão essencial a nossa melanina, e assim vão se apropriando de
táticas para minar nossas vidas.
Para falar sobre o desencarceramento, se faz necessário falar sobre encarceramento, que
segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em 2016, cerca de 65% da população As prisões no Brasil hoje possuem superlotação, saúde e higiene precárias. Mais de 40% dos

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presos ou estão sem condenação ou não sabem de nenhuma informação de seu processo, tornando Assim como dados gerais sobre o encarceramento no Brasil, a população carcerária feminina
este lugar um depósito de pessoas, principalmente negras, com o discurso punitivista. Tanto o siste- passa pelas mesmas questões (62% apenadas por tráfico de drogas, 68% negras, 50% jovens,
ma carcerário quanto o aparato penal é repressivo, caracterizado por massacres, torturas e mortes. 57% solteiras, apenas 10% possuem ensino fundamental completo), somadas às de assimetria de
E como consequência disso temos as rebeliões, onde já morreram milhares de detentos e com eles gênero. A maioria das mulheres encarceradas é mãe (80%) e provedora do lar, muitas vezes não
a possibilidade de “ressocialização” e de um país mais justo e igualitário. contando com a ajuda dos genitores de seus filhos, estando em regime fechado, longe de seus lares
e seus dependentes, muitas vezes abandonadas por seus companheiros. Em casos em que a mulher
O Brasil está em 3° lugar no ranking dos países com maior população carcerária, segundo encontra-se grávida, é submetida a condições degradantes e indignas, colocando em risco sua vida
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018 contava com 812.564 pessoas encarceradas. Tendo e da criança. Com dificuldade de acesso ao emprego formal, ingressam no tráfico em pequenas
ainda 366,5 mil mandados de prisão pendentes de cumprimento. Essa realidade é ainda mais cruel atividades varejistas e/ou, de transporte e logística do tráfico interestadual e internacional.
se tratando da nossa juventude, são cerca de 29 mil adolescentes internados, além do caráter mas- De recente passado escravocrata, o cada vez mais fechado e exigente mercado brasileiro limita a
sivo, perpassa pela caráter seletivos do sistema prisional, onde 80% dessa população são pobres, classe trabalhadora, em sua maioria negra, que sem escolas e baixa escolaridade, acumula-se cada
periféricos e pretos. Esse cárcere é perseguidor de corpos negros (mulheres e homens), não poden- vez mais nas filas de emprego e nos cadastros de desemprego da mais valia. É justamente esta
do negar o racismo estrutural. faixa populacional que, fora do mercado formal, busca a informalidade e o comércio ilícito de dro-
gas. Em tempos onde o aumento do número de famílias chefiadas por mulheres (30%) é notório o
Por tanto é para ontem a necessidade de “fechar as comportas do sistema penal e estancar crescimento de 503% em 15 anos da taxa de aprisionamento feminino. As mulheres negras, pobres
as “veias abertas”, com redução de medidas efetivas de encarceramento de abertura do cárcere e mães, população extremamente vulnerabilizada, buscam a subsistência de suas famílias e uma
para a sociedade e de enfrentamento concreto as violências estruturais enquanto houver prisões’’ melhor remuneração, no comércio ilícito de drogas.
ainda segundo o sociólogo Godói, “é preciso fortalecer as defensorias públicas não só por meio da
contratação de mais profissionais, mais pela melhora da capacidade de identificar os problemas Dentro deste contexto, merece cuidadosa atenção para o recorte de pessoas transgêneras,
locais e de agir para solucioná-los”. em especial as mulheres trans e travestis. Constitui-se num grupo de alta vulnerabilidade, com
direitos básicos negados a exemplo do nome em acordo com identidade de gênero, afeto familiar,
Uma das pautas defendidas pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento, para que isso aceitação social, escolaridade e mercado de trabalho. Violações profundas e direitos cerceados
ocorra, é necessário a suspensão de verbas destinadas a construção de novas unidades prisionais, de diversas formas superam as violências carcerárias convencionais, resultados da transfobia e
limitação das prisões cautelares, redução das penas e de descriminalização de condutas, principal- transmisoginia. Sendo o Brasil, o país que mais mata mulheres trans e travestis, e mais acessa
mente relacionado à política de drogas, a ampliação da garantia da execução penal e abertura do pornografia envolvendo mulheres transgêneras, tem-se o preconceito como impeditivo ao ingresso
cárcere para a sociedade, a não privatização do sistema prisional, combater a tortura e desmilitari- ao mercado formal de trabalho. Com mais de 90% deste recorte estigmatizadas na prostituição,
zação das polícias, política e da vida. esta é praticamente a única atividade laboral lícita e minimamente lucrativa de sustento. Apesar de
não criminalizada, é considerada indigna e discriminada em nossa sociedade. Associada à questão
de gênero e a identidade sexodivergente, a prostituição perpetua a existência das mulheres trans
profissionais do sexo em ambientes imbuídos na criminalidade. Assim, a sociedade marginaliza, cau-
sando um processo de exclusão contínuo, tornando o cárcere uma conseqüência quase inevitável,
concebida pela sociedade como merecida, para uma população que se dedica a uma atividade tida
como imoral e indigna. Para este grupo identitário, o consumo e o comércio de drogas ilícitas torna-
DESENCARCERAMENTO FEMININO VERSUS POLÍTICA DE DROGAS -se banal diante do convívio frequente, tornando-se atividades de interesse recreativo, terapêutico
e econômico.
POR MARIA DANIELA SILVEIRA (PE)
Conceitua-se como droga, todo tipo de substância natural ou não, que se introduzida no
Atualmente no Brasil, grande parte da população carcerária cumpre pena por tráfico ou organismo provoca mudanças físicas ou psíquicas. De acordo com a Farmacologia, é qualquer subs-
tância que previne ou cura doenças ao causar alterações fisiológicas no organismo. A história das
porte de drogas (28%), é negra (64%) e têm entre 18 e 29 anos (55%). Num país marcado pelas
desigualdades sócio-econômicas, as leis são fomentadas por políticos eleitos sob uma frágil demo- drogas é bastante remota e confunde-se com a da própria humanidade. A raça humana sempre
cracia manipulada por grandes grupos econômicos. Nosso Congresso Nacional é composto por 85% conviveu com as drogas e seus diversos aspectos. Porém, no Brasil, com o fim da escravidão, uma
de parlamentares homens, sendo 96% de brancos, com ganhos exponenciais em relação a maioria das formas de controle da população negra, foi sua criminalização, até então, naturalmente utiliza-
esmagadora da nossa classe trabalhadora. O poder econômico se mantém balizado por uma política das pela sociedade. Assim cria-se uma lei proibicionista de algumas substâncias/drogas, a fim de
excludente em um estado patriarcal, de exceção e economia neoliberal. Não é difícil de perceber controle populacional, e manutenção do poder; lei esta excludente, necrótica, que não permitiria
que aos olhos da classe dominante, o poder econômico deve ser mantido às custas das/dos tra- a inclusão de pessoas pretas e seus descendentes. Proibiu-se a umbanda, o samba, a capoeira, e
balhadoras/es. O bolo econômico não é para todas/os, no entanto, é preciso que haja quem gere assim como a maconha, diversos elementos culturais desta população. Além disto, com a expansão
riqueza dentro da lógica capitalista de maximização dos lucros. industrial, via-se na Cannabis, uma matéria prima potencialmente concorrente das indústrias têxtil,
petroquímica, farmacêutica, tabagista, de celulose, bebidas etc, sendo a exploração da planta po-
Discriminadas no mercado de trabalho, as mulheres têm suas cidadanias limitadas ao âmbito tencial possibilidade de diminuição nos lucros destes grupos econômicos.
familiar. Mesmo com o espaço alcançado a partir do século XX, ainda ocupam menos da metade dos
postos formais de trabalho, 44% em 2016, apesar de representarem 51,03% da população. Veri- Não é difícil perceber que, para uma população sem direitos, não há porque cumprir deveres,
fica-se também que, apesar de mais escolarizadas que os homens, a desigualdade salarial aponta principalmente quando as privações econômicas levam a subcondições de vida, miséria e fome. Se
para a discriminação por gênero no mercado de trabalho brasileiro. o desemprego assola a população, a informalidade é solução, e a enorme demanda do mercado

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consumidor de drogas ilícitas torna-se atraente. A tênue linha entre o lícito e ilícito torna-se volátil
diante das precárias condições de vida da população marginalizada que, sem garantias econômicas, E u sempre olhei a minha mãe como uma super heroína, como aquela mulher que aguenta
aglomera-se nas periferias. O mercado de drogas surge então como uma alternativa de subsistência tudo, que fala sem medo e que trabalha como se não houvesse amanhã. Quando fui mãe comecei
para esta ampla camada populacional. Desta forma, o proibicionismo e a “guerra às drogas” crimi- a castelar sobre essa visão que eu tinha sobre a minha mãe, que reflete muito em o quanto nós
nalizam a pobreza e são utilizados para o controle social de forma política e ideológica. mulheres negras e faveladas somos direcionadas a ser e vistas como mulheres fortes, mulheres que
a tudo suportam e que tudo enfrentam.“Vivemos na pele a proibição de expressar o que sentimos
Qual o intuito de uma lei proibicionista que sustenta a ilegalidade de certas drogas? Proteção e ser de quem somos”
da família? Diminuição da criminalidade? Contenção de um suposto “surto de drogas”? A diferença
entre o tóxico e o medicinal, não é a substância, mas a quantidade. Drogas não são vilãs, não come- Cresci vendo minha mãe esconder o que sente, eu podia ver isso no sorriso cansado que ela
tem crimes e não adoecem/destroem/matam. Se por um lado a guerra às drogas e o tráfico ceifam me dava quando chegava da faxina e nas incontáveis vezes em que eu peguei ela enxugando as
e destroem famílias, por outro ele é fruto de uma política de proibição a diversas substâncias. Se lágrimas enquanto lavava os pratos. Com a minha mãe aprendi que Deus provém tudo e a prova
estas adoecem, é uma questão de saúde pública. Se atrativas, é uma questão social e econômica. disso era que sempre que faltava tudo (comida) mainha sempre falava “Deus proverá” e Ele sempre
provia mandando uma vizinha levar uma sopa lá em casa ou fazendo uma faxina aparecer e apesar
O proibicionismo e o encarceramento da população ao invés de propor uma solução para a de sempre questionar sobre o Deus branco e que não parecia em nada com as pessoas que eu co-
criminalidade e o consumo de drogas ilícitas; incentiva o tráfico e fomenta uma guerra às drogas nhecia, naquele momento eu entendia que não era sobre mim mas sim sobre acreditar e acreditar
que a cada dia mata mais civis e militares, aumenta os índices populacionais das unidades prisio- que Ele faria algo era a única esperança que a minha mãe tinha.
nais, causando enormes problemas para a sociedade como a superpopulação carcerária, destrói
a vida das pessoas encarceradas e transforma a população em criminosas/os devido ao uso e/ou Hoje aos 25 anos me pego fazendo o mesmo, preciso acreditar em algo e que esse algo vai
porte destas substâncias ilícitas. No encarceramento feminino, o quadro é mais complexo e danoso. me fazer voltar bem do corre, eu preciso acreditar que esse algo vai fazer com que eu pense em
Sendo a quinta maior do mundo, a população carcerária feminina brasileira cresce sob índice bas- uma nova estratégia de resistência ou em mais uma receita que use pouco e me faça alimentar todo
tante elevado. Com predominância de mães (80%) e responsáveis pelo sustento de seus lares, são mundo sem que eu tenha que me render ao tráfico.
privadas do cuidado à família, filhas e filhos. Condenadas por crimes não violentos, 70% são rés
primárias, sendo muitas presas provisórias. Todos os dias sentimos na pele a angústia de lidar com mais uma porta de trabalho fechada,
com mais uma faxina mal paga, com a decisão de no final do mês ter que escolher entre pagar o
Dentro da lógica do sistema carcerário, é importante chamar atenção para a situação das aluguel e com medo de perder seus filhos. É como diz Racionais: “A gente reza, foge e continua
pessoas transgêneras, grupo mais afetado por violações dentro do cárcere como compartilhamento sempre nos mesmo problemas”.
de celas com homens, desrespeito a expressão de gênero, abuso sexual, etc.
Em meio a tantos prazos, aluguéis atrasados, contas de energia, fraldas, feridas, dores, cho-
Apreciando o artigo 5º da Constituição Federal que versa sobre os Direitos e Deveres Indivi- ros escondidos e corres loucos nós mulheres mães do front sobrevivemos a noites em claro entre
duais e Coletivos, fica a pergunta: qual a razão, o motivo, e o efeito produzido pela atual lei de dro- mamadeiras, preocupações, dias sonolentos e de muito trabalho. Vivo sempre cansada, e o moti-
gas? Quais os benefícios desta lei que criminaliza, adoece, encarcera e mata? Quais as justificativas vo desse cansaço não é só físico mas de uma extrema exaustão mental, o corre é tão insano que
para manter-se uma lei que a única finalidade aparente é criminalizar pessoas vulnerabilizadas e sempre sabotamos nosso próprio limite, não temos tempo para pensar em como estamos, porque
marginalizadas socialmente, pelo uso de uma planta medicinal? Qual a explicação para transformar pensar em nós não faz o aluguel ser pago, não coloca comida na mesa e muito menos comprar o
mães de família, responsáveis por toda a mantença de seus lares, que não se adéquam ao modelo sapato novo que nosso filho precisa.
imposto de dona de casa, em criminosas, apenas por exercerem autonomia sobre seus corpos, se-
não o racismo e a luta de classes? Construindo o projeto Agenda Feminista pelo Desencarceramento eu tive a certeza de que
muito antes de cometer qualquer crime a nossa sentença de culpada já havia sido assinada, são
Cabe ao nosso poder legislativo rever nosso código penal antidrogas, assim como ao judiciá- aquelas mulheres de nome e endereço tão parecidos com o meu, com o da minha mãe e com o das
rio, fazer a análise destes casos, e buscar medidas alternativas com celeridade, não apenas para mi- minhas amigas que vivem o gosto amargo do cárcere, são elas que tem a maternidade questiona-
nimizar a penalização de famílias inteiras, mas por uma questão de reparação social às assimetrias das e definidas pelas circunstâncias, não por quem são. por que quando uma cai sempre tem outra
de gênero. É preciso que estudiosos da criminologia se voltem para esta realidade, contribuindo mulher do corre precisando daquela grana e ocupando aquele espaço na ponta de tudo.
para as múltiplas vertentes feministas, construindo estratégias alternativas às práticas ineficazes e
atuais do Estado. Vivo e vejo as minhas vivendo até o fim da linha para poder construir um novo começo, por
sentir na pele a exaustão de se criar em solidão, mesmo sabendo que no corre é tudo ou nada e
que assim como nossas ancestrais somos tiradas da liberdade de ver nossas crescerem.

MÃES ANTIPROIBICIONISTAS - O CORRE DA VEZ


POR DÉBORA CARLA BARBOZA DE AGUIAR (PE)

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de crianças com até 12 anos de idade. O Habeas Corpus anuncia a substituição da prisão preventiva
A PROBLEMÁTICA DAS PRISÕES PROVISÓRIAS NO ENCARCERAMENTO FE- pela domiciliar a todas as mulheres nestas condições, com exceção daquelas que tenham cometi-
MININO E AS POSSÍVEIS FORMAS DE REDUZIR DANOS do crimes mediante violência ou grave ameaça, contra os próprios filhos, ou, ainda, em situações
excepcionalíssimas — casos em que o juiz terá de fundamentar a negativa e informar ao Supremo
POR ANA BEATRIZ SILVA SENA (PE) a decisão. A turma determinou o prazo de 60 dias para que os tribunais cumpram integralmente a
decisão.
O encarceramento provisório é uma problemática que os países latino americanos enfren- Neste toar, faz-se importante analisar as disposições do ordenamento jurídico brasileiro, bem
tam de forma crônica. No Brasil, por exemplo, há uma população prisional de 726.712 mil presos,
como dos tratados internacionais aderidos pelo Brasil, além da jurisprudência dos tribunais para,
sendo 40% destes presos provisórios, conforme dados do levantamento de informações penitenci-
desse modo, observar as discrepâncias entre o que as legislações brasileiras, as convenções, os
árias 2016 do Depen (Departamento Penitenciário Nacional).1
tratados e os pactos internacionais, jurisprudência emanam e o que, de fato, acontece na realidade
do sistema prisional brasileiro.
Nesse sentido, considerando as especificidades em torno do cárcere feminino, verifica-se
que, em 2016 o Brasil atingiu a marca de 42 mil mulheres encarceradas.2 Ocorre que, 45% dessas
Sabe-se que, no Brasil, impera uma política de encarceramento provisório e de punitivismo,
mulheres privadas de liberdade não haviam sido ainda julgadas e condenadas. É importante pon-
sendo a justiça operada como linha de montagem, no qual há decisões proferidas em série, sem a
tuar, ainda, a ausência de dados sobre mulheres em carceragens de delegacias. A lacuna de dados
análise minuciosa dos casos e sem a efetiva individualização que pressupõe o processo penal.
com recorte de gênero sobre os espaços de custódia administrados pelas forças de segurança públi-
Desse modo, é comum observar uma série de decretações de prisão preventiva, sem que haja o
ca pode agravar um quadro de dificuldade de acesso à justiça que, ainda que observado em relação
preenchimento dos requisitos que demonstram a sua efetiva necessidade, o que demonstra, mais
ao conjunto da população prisional, apresenta especificidades significativas em relação às mulheres.
uma vez, a operação punitivista do sistema de justiça criminal que, antes mesmo de apurar os fatos
e julgar, cerceia a liberdade do acusado, ainda que o mesmo não represente ameaça à sociedade
No ordenamento jurídico brasileiro, existem três tipos de prisão provisória: a prisão em
ou ao curso do processo penal.5
flagrante, a prisão temporária e a prisão preventiva. A prisão em flagrante é decretada durante o
ato do crime ou logo após que o crime ocorreu, não podendo exceder ao limite de 24 horas, tor-
Verifica-se, assim, que essa prática comum à justiça brasileira está em contradição com o
nando-se, depois disso, ilegal. A prisão temporária, por sua vez, é aquela utilizada durante uma
que dispõe o próprio código de processo penal nos artigos 315 e 3166, acerca da necessidade de
investigação, tendo o prazo de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco dias. Por fim, tem-se a pri-
motivação da prisão preventiva:
são preventiva, que corresponde ao tipo de prisão mais comum no quadro de presos provisórios no
“Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada.
sistema penitenciário brasileiro3. Desse modo, este trabalho irá tratar, principalmente, desse último
(Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
tipo de prisão provisória, a prisão preventiva.
Art. 316. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de
motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.”
É importante ressaltar, ainda, que o enorme contingente populacional carcerário sofre com a
violação de direitos fundamentais expressos na Constituição Federal brasileira de 1988. Além disso,
Dessa forma, verifica-se claramente a distância entre o que se dispõe na legislação penal
o atual quadro do sistema penitenciário demonstra a não correspondência a diversas demandas e
brasileira supostamente garantista do que, de fato, se observa na jurisprudência e nas práticas do
exigências de tratados internacionais que o Brasil adere. Desse modo, verifica-se, portanto, diversas
sistema de justiça criminal do Brasil.
violações aos Direitos Humanos, fazendo deste tema pertinente à proteção internacional dos direi-
tos humanos.
Como forma de cumprimento, finalmente, da Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH) e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), as audiências de custódia
Entende-se como importante observar, também, algumas soluções jurídicas possíveis na re-
foram implementadas no Brasil em 2015, por meio da Resolução 213/2015 do CNJ, após a deci-
dução desse encarceramento provisório, atentando, contudo, ao distanciamento da pretensão e
são do Supremo Tribunal Federal, as audiências representaram um grande avanço no combate ao
concretização fática das propostas de um sistema de justiça criminal predominantemente machista,
encarceramento provisório, na medida em que permite a condução do preso – apenas o flagrante,
seletivo, racista e classista.
atualmente – à presença de um magistrado, um promotor e um defensor ou advogado, no qual será
decidido sobre a legalidade da prisão e sobre a necessidade de decretação ou não de uma prisão
Para isso, cabe analisar a questão da implementação das audiências de custódia como rele-
preventiva.
vante mecanismo de correspondência a demandas de protocolos internacionais, na pretensão de
verificar a legalidade de prisões, reduzir o encarceramento provisório, além de coibir a prática de
É necessário pontuar, todavia, que, apesar de uma das pretensões das audiências de cus-
tortura em relação aos presos. 4
tódia ser a de redução do encarceramento provisório, na medida em que haveria uma verificação
mais ágil da real necessidade de manutenção da detenção de um preso, observa-se que não houve
Além disso, pode-se pontuar também, jurisprudência voltada à redução do encarceramento
redução da quantidade de prisões preventivas decretadas.
provisório feminino, como a decisão do Habeas Corpus coletivo (HC 143641 / SP) impetrado pela
Defensoria Pública da União, destinado à todas as mulheres presas provisoriamente grávidas e mães
Conforme dados do Poder Judiciário brasileiro, desde o início da implementação das audi-
1 BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional; Ministério da Justiça. Levantamento nacional de informações penitenciárias ências de custódia até janeiro de 2017, foram realizadas 186.455 audiências de custódia em todo
(INFOPEN). Brasília, 2016. o país; destas, em 54.11% - ou seja, em 100.887 casos – a prisão preventiva foi decretada. Este
2 INFOPEN Mulheres, 2018.
3 PACCELI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 18ª edição. São Paulo: Atlas, 2014. 5 Valença, Manuela Abath Julgando a liberdade em linha de montagem: um estudo etnográfico do julgamento dos habeas
4 LOPES, Tarcila Maia; MILFONT, Marília Silva Ribeiro. Um ano de audiência de custódia na Justiça Federal no Recife: Uma corpus nas sessões das câmaras criminais do TJPE / Manuela Abath Valença.
Visão a Partir dos casos da Defensoria Pública da União. 6 BRASIL. Código de Processo Penal Brasileiro: promulgado em 3 de outubro de 1941.
66 REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO 67
índice de confirmação da prisão preventiva chega a quase metade nos 22 estados do país e Distrito
Federal.7 MULHERES MÃES FAVELADAS LIVRES DO CÁRCERE
POR SARA RAQUEL RODRIGUES (PE)
Tal situação demonstra que a decretação de prisão preventiva, que devia se dar em caráter
excepcional, continua sendo aplicada de forma indiscriminada. Durante as audiências de custódia,
as autoridades judiciais determinam a procedência da prisão preventiva motivados “pela gravidade Existe uma ferida muito grande que a guerra às drogas, o encarceramento em massa e o
do crime, a ordem pública ou os antecedentes criminais das pessoas acusadas” ao invés de justificar genocídio do povo preto e pobre causa em nós moradores e moradoras de periferia, perdemos nos-
conforme os artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal brasileiro. sos amigos, familiares, irmãs e irmãos que a rua nos dá, vemos nossas tias chorando nossas mães
preocupadas na verdade parece que nunca vai sarar. O projeto Agenda feminista pelo desencarce-
Isso aponta a discricionariedade na atuação dos magistrados, revelando não somente a prá- ramento mexeu muito nessa ferida mas não trazendo mais dor, na primeira reunião que tivemos eu
tica punitivista do sistema de justiça criminal, mas também a faceta inquisitiva do processo penal já senti os gatilhos mas não pensei que mudaria minha vida assim.
brasileiro, no qual o réu já tem sua liberdade cerceada antes mesmo do fim da instrução criminal,
sem que haja justificativa plausível, o que é uma expressa violação de direitos fundamentais. Participei como pesquisadora e foi incrível tudo que pude aprender com minhas compa-
nheiras, nas idas às varas entrar nos fóruns como pesquisadora causou confusão e surpresa nos
Nesse toar, é imprescindível, novamente, tratar do perfil dos operadores do sistema de justiça policiais. Uma mistura de sentimentos, até hoje não consigo explicar o que senti de me apresentar
criminal que se assemelha a um moinho de gastar gente. É preciso fazer um apontamento sobre como pesquisadora de um projeto tão extraordinário. Muitas das vezes eu e Carol que somos mu-
a branquitude dos magistrados, promotores e defensores que atuam na seara criminal, sobre seus lheres mães não tínhamos com quem deixar as crianças acredito que isso fez um diferencial enorme
privilégios e vivências absurdamente distanciadas como um abismo das verdadeiras demandas dos nos processos do projeto assim como toda nossa vivência. Quando começou a fase de recolher os
alvos do sistema de justiça criminal. dados das mulheres encarceradas me senti em casa entendendo todo processo de solidão de como
esses crimes aconteciam, de como as mulheres negras e faveladas são vítimas desse sistema racis-
Isso se dá de forma ainda mais expressiva quando tratamos das mulheres, afinal, o Poder ta e machista, ficava perdida naquele tanto de folhas e termos técnicos mas minhas amigas Luísa,
Judiciário brasileiro é formado majoritariamente por homens brancos, reproduz uma cultura sexista, Carol, e Stela estiveram comigo me ensinando na maior paciência elas faziam parte do meu grupo,
patriarcal e seletiva, na qual a mulher costuma ser punida pela sua própria condição de mulher, além todas voluntárias, elas são advogadas e estudantes de direito. Um juiz extremamente abusivo daqui
de qualquer imputação delituosa. Com isso, observa-se uma enorme quantidade de decretação de do recife da 4º vara do Fórum de Joana Bezerra não permitiu que fizéssemos a pesquisa, fomos lá
prisões preventivas, sem levar em consideração quaisquer especificidades da mulher, da mãe, dxs pedir mais uma vez autorização no atendimento e ele só provou mais uma vez de como o sistema
filhxs, entre tantas outras questões, como o isolamento do cárcere feminino, a privação do convívio judiciário trata as mulheres encarceradas com desprezo e irresponsabilidade, as mulheres que esta-
familiar e os danos decorrentes da perversão do sistema carcerário. vam na vara dele eram mães e de acordo com a lei nem deveriam estar presas mas ele falou essas
palavras “Eu sou o juiz mais antigo daqui, esse negócio de soltar não é comigo, soltar ninguém,
Observa-se, então, que o Brasil, apesar de ter construído uma constituição com alicerces a o negócio é prender” nesse dia saímos de lá arrasadas eu e a Brisa uma companheira advogada
assegurar as garantias fundamentais, as liberdades e direitos dos cidadãos, apresenta uma legis- que tentou de todas as formas que ele entendesse o objetivo do projeto. No dia 15 de junho teve
lação ordinária visivelmente incompatível, uma vez que traz um direito penal e processual penal um visita, quando chegamos fiquei ansiosa e muito emocionada sentia que poderia estar ali, toda
autoritário, impondo prisões provisórias como regra e não como exceção como deveria ser. Tal fato burocracia para poder entrar me deixava mais nervosa sentia que tinha algo pra acontecer, em um
autoriza o Judiciário a aplicar a legislação de forma arbitrária, colidindo frontalmente com os precei- momento lá depois que entramos olhei pra frente e vi chegando em minha direção uma amiga de
tos da Constituição Federal e com os demais Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil. infância que se chama Priscila Silva ela veio olhos nos meus olhos e me abraçou, choramos juntas
Desse modo, faz-se necessário a manutenção constante da vigilância sobre a ação do Estado brasi- em silêncio não sabia que ela estava ali fazia tanto tempo que não a via, enxugamos as lágrimas ela
leiro referente às prisões provisórias e ao tratamento dos presos no sistema penitenciário brasileiro disse “Sara me ajuda a sair daqui, tudo que fiz foi pelos meus filhos”. Em seguida me contou que
que, conforme as mais recentes pesquisas e dados estatísticos, encontra-se absolutamente fracas- caiu com 10 pedras de crack que estava vendendo mas que não eram suas e sim do seu companhei-
sado, tendo em vista que não há mínimas condições do cumprimento de sua função ressocializado- ro. Todo aquele corre era para a compra de leite para os filhos que são 3, contou sobre o abandono
ra, principalmente quando se trata de mulheres encarceradas. que quando sua família soube nunca tentou visitá-la, eu lembrei da mãe dela que sempre estiveram
juntas e ela me falou que ela tinha morrido naquele ano, choramos muito eu entreguei o kit pra ela
Afinal, faz-se imprescindível a erradicação da prisão preventiva como ferramenta de controle e acabou nosso tempo. Eu saí dali sem conseguir levantar a cabeça me sentindo impotente, mas
social ou pena antecipada. Sendo necessário ao Brasil, intensificar esforços e assumir a vontade as mulheres voluntárias disseram que iam aplicar o Habeas corpus e que daria certo, fui atrás de
política necessária para reorientar as políticas públicas. Assim, o Projeto Agenda Feminista pelo alguns dados dela e o tempo passou eu fiquei sabendo que ela tinha saído pra cumprir domiciliar na
Desencarceramento surge pelo fim das prisões provisórias. Pela abolição das prisões. Pela vida das hora meu coração encheu de alegria, esses dias eu voltei lá na comunidade da Bomba do Heméterio
mulheres. Pelo antiproibicionismo, tendo em vista que grande parte das mulheres encarceradas são onde nós duas crescemos e avistei Priscila na frente de casa sorrindo com os cabelos molhados, o
por crimes ligados à Lei 11.343/06. É necessário buscar estratégias cada vez mais firmes para lutar tempo meio que paralisou e o sorriso dela renovou minhas forças, novamente tive esperança.
contra o patriarcado, sexismo e reduzir danos desse sistema de justiça criminal perverso.
Tudo isso foi possível através desse Projeto que foi o mais incrível que conheci, todas as
mulheres envolvidas tornaram realidade o que estava escrito eu sou imensamente grata por toda
revolução que elas causam nesse mundo e dentro das pessoas. Priscila com certeza está mais viva
do que nunca e procurando novas alternativas de sobrevivência. Liberdade a todas as mulheres
encarceradas e abandonadas pelo estado. Vida longa a todas mulheres de luta da Rede Nacional de
7 Conselho Nacional de Justiça do Brasil, “Dados Estatísticos / Mapa de Implantação de audiências de custódia”, janeiro de Feministas Antiproibicionistas ao Fundo Brasil de Direitos Humanos e Faculdade Federal Fluminen-
2017
68 REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO 69
se. Sou formada em Direito e ao final do projeto - impulsionada por ele - me tornei advogada.
Durante minha graduação estagiei numa vara criminal em que todas pessoas eram brancas, e quem
comandava era uma juíza - mulher cis branca. E trago um breve relato de qual é o perfil de quem
está sendo responsável pelo encarceramentos: a juíza trabalha presencialmente naquela vara ape-
nas quatro dias por semana, no máximo 6 horas por dia, tendo assessoras para elaborar os despa-
chos e sentenças. Que saía mais cedo para dar tempo do pintor que trabalhava em sua casa tirar as
O PACTO NARCÍSICO DA BRANQUITUDE E O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL latas de tinta do carro. Que enquanto uma mulher vítima de estupro fazia seu depoimento, ela está
preocupada em olhar para fotos de flores da sua casa de praia. Que também mantém mulheres - ne-
POR LUISA SALES DE MELO PESSOA LINS (PE)
gras e pobres - presas sem provas além da palavra de policiais que não estavam na hora do fato do
crime. Uma mulher que chamava de doida toda pessoa que se colocava contra suas posições. Elei-
Ao pensar em escrever algo para este manual fiquei me perguntando o que eu poderia tora de Bolsonaro. Que mantinha prisão preventiva de jovens negros por furtos equivalentes a 100
reais, mas que deixou um homem branco responder em liberdade após ter atropelado uma mulher
acrescentar em meio a tantas colaborações que dão conta de mostrar de diversas formas como o
encarceramento é uma das ferramentas na realização do genocídio da população preta e periférica. que estava a caminho do trabalho e nunca teve nenhum dano reparado. Este homem branco além
A minha experiência na Agenda Feminista Pelo Desencarceramento de Mulheres e minha participa- de responder em liberdade teve sua pena mais leve por ser taxado de doente por vício em cocaína,
ção na RENFA constantemente me colocam na necessidade de reconhecer o meu lugar nas relações ao mesmo tempo que pessoas negras têm sua pena aumentada inclusive pelo consumo de álcool
de poder mediadas pela Justiça Criminal, enquanto mulher cis branca, e daí penso ser importante que é legalizado. O abolicionismo que eu defendo era completamente ignorado pela magistrada, e
não apenas apontar quem está sendo vítima do encarceramento em massa, mas também expor ainda colocado como coisa de louco pelos demais servidores.
quem está sendo responsável por esse processo.
O pacto narcísico da branquitude então vai para além do magistrado, mas também por quem
O “pacto narcísico da branquitude” é uma expressão trazida por Maria Aparecida Bento tem condições de trabalhar naquele espaço via concurso público. O pacto também se fortalece a
(2002) em sua tese de doutorado que - de uma forma mais elaborada - diz respeito a como pes-
8 cada vez que a maioria das pessoas brancas que respondiam a algum processo - geralmente este-
soas brancas se protegem e se promovem de diversas formas para manter seu privilégio e evitar lionato - em liberdade, ou como no caso do rapaz citado, eram dignas de empatia e humanidade.
responsabilização sobre o racismo. O que se percebe então é esse pacto, assim como o racismo, E aí não tenho dados além da minha experiência, mas enquanto usuária de drogas reconheço a
sendo estrutural e institucional. A institucionalidade nesse caso é criada para mascarar e dar ares de seletividade desde a ponta do sistema criminal uma vez que apesar de usar maconha em diversos
neutralidade para um processo que por um lado mata, humilha e tortura o povo preto, e por outro, lugares públicos da cidade foram poucas às vezes que fui abordada por policiais ou outro agente
promove a supremacia branca, pois como trarei a seguir os dados, até os dias atuais o magistrado de segurança. O último episódio marcante que fui diretamente e nitidamente posta frente ao meu
é ocupado principalmente por homens brancos ricos. privilégio branco foi numa festa de interior, a festa da cidade, para entrar tinham alguns seguranças
particulares contratados pela gestão revistando as pessoas… eis que eu tinha um potinho com uma
Ano passado (2018) o Conselho Nacional de Justiça - CNJ9 lançou um relatório sobre o perfil quantidade de maconha, a segurança abriu, cheirou, olhou para mim e devolveu. Estou certa que
das pessoas que ocupam o magistrado, e o que dados mostram, em oposição a realidade da popu- aquela quantidade é de usuária, mas também sei que mulheres negras são presas por flagrantes
lação carcerária, é de uma maioria branca, de homens e de família com alta escolaridade. De acordo implantados pela própria polícia, enquanto comigo a “repressão” foi uma olhada de desaprovação.
com o relatório, a divisão por sexo com posição na carreira 62% é masculino e 38% é feminino. Em
relação à cor/raça 80,2% se declaram brancos, 18% negros (16,5% pardos e 1,6% pretos) e ape- Esse é o primeiro texto que faço sobre o assunto, nem tenho grandes pesquisas no tema o
nas 11 indígenas. Ainda 1,6% se declarou de origem asiática. Quanto ao grau de escolaridade do que acaba fazendo o tema ter sido apresentado de forma mais amadora e superficial. O que me re-
pai dos magistrados, 51% têm escolaridade alta, 20% escolaridade média, 24% escolaridade baixa, força a necessidade do compromisso que nós brancas devemos ter com estudar e entender a nossa
apenas 4% sem escolaridade formal e 1% não soube informar. 51% do magistrado tem parentes branquitude, o nosso papel enquanto mulheres brancas e como isso tem atuado na manutenção do
em outras carreiras do Direito. É importante também trazer os dados etários que apontam que 51% racismo e do privilégio branco. Assim como a institucionalidade, nós acabamos por nos colocar no
dos magistrados têm 46 anos ou mais. papel de neutras, de não racializadas e isso é um dos nossos problemas. Sendo sabido desse nosso
lugar, é preciso refletir também qual é o nosso papel - e acredito que um dos caminhos é de nos
A pesquisa ainda demonstra que ao passar dos anos essa configuração do magistrado per- colocarmos entre as nossas e os nossos que têm sido responsável pela perpetuação do encarcera-
manece quase a mesma, assim atestando o sucesso do pacto narcísico da branquitude que cria mento e nos posicionar e atuar pelo desencarceramento.
condições de se manter no poder dentro de uma sociedade capitalista, patriarcal e racista que se
alimenta da produção de desigualdades. Percebemos também como as mulheres são minoria no Concluo reforçando que a nossa luta no enfrentamento ao sistema deve romper com os
sistema judiciário, mas temos também de questionar qual o papel dessas mulheres no sistema, se modos atuais colonizadores, feitos para exclusão. Portanto devemos levantar as bandeiras do anti-
é de quebrar com as estruturas violentas ou se é apenas de se igualar aos homens da sua mesma punitivismo, do desencarceramento e do abolicionismo penal. E ainda pela legalização de todas as
condição social. Enquanto mulher cis entendo que não basta ser mulher, que a possibilidade da drogas, pois a proibição é uma das maiores causas de encarceramento de mulheres e a guerra às
transformação social se dá na organização e prática política feminista antissistêmica (e portanto drogas mata todos os dias - sobretudo a população negra e periférica, pois os políticos brancos en-
anticapitalista, antipatriarcal e antirracista). riquecem com o tráfico de drogas e das armas. Também, relacionado ao tema, lembrar da urgência
da legalização do aborto pois a criminalização gera desinformação e medo, o que leva pessoas a
abortarem de forma clandestina, sozinha e inseguras - resultando na morte e traumas em diversas
8 BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no
poder público. 2002. Dissertação (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) - USP, São Paulo, 2002.
mulheres cis e também de todas pessoas com capacidade de gestar - mais uma vez principalmente
9 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros em 2018. Brasília, 2018. Dis-
das pretas pobres, pois as brancas ricas acessam formas seguras.
ponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/09/49b47a6cf9185359256c22766d5076eb.pdf>, acessado em
03/09/2019.
70 REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO 71
gas (Brasil, 2015); [...] e, em geral, acontece através da ocupação
de posições subalternas ou coadjuvantes no crime (Soares e Ilgen-
fritz, 2002; Frinhani, 2004; Moki, 2005; Guedes, 2006; Braunstein,
2007). [...] Outros estudos apontam a aplicação de penas mais
duras às mulheres envolvidas com o tráfico de drogas pela justiça
PROIBIÇÃO DOS CORPOS FEMININOS E REAÇÃO EM REDE (Boiteux, 2015; Silva, 2015). A polícia também passou a perseguir
mais contundentemente pessoas do sexo feminino, principalmente
POR DÉBORA FONSÊCA BARBOSA (PE)
em ações rotineiras em áreas urbanas de grandes e médias cidades
(Silva, 2015; Fraga, 2015). Em relação ao plantio, a maior partici-
No cenário caótico e opressor em que vivemos, como tem funcionado no Brasil, sobretudo pação feminina está atrelada ao aumento da produção no modo de
agricultura familiar em virtude de sua reorganização por conta da
em contexto de novas guerras, que é o caso da “Guerra às Drogas”, a vida das mulheres tem sido
atingida de incontáveis maneiras, é como se no fim das contas sempre sobrasse para nós, que repressão policial (Fraga, Cunha e Carvalho, 2014) (FRAGA e SIL-
quando não estamos na linha de frente, estamos segurando os corpos de pais, filhos, irmãos e VA, 2017, p. 137).
companheiros que tombam pela manutenção dessa política. Onde tá Elizabeth Gomes da Silva? Que
foi na 15ª DP, na Gávea (RJ), no dia 28 de março registrar o desaparecimento do seu companheiro, Mesmo diante de dados estarrecedores sobre a população feminina encarcerada (aumentada
Amarildo, trabalhador que morava na Rocinha e desapareceu pelas mãos do Estado durante a “apu- 567% nos últimos 15 anos)14 (INFOPEN, 2015), o que sai no jornal diariamente é o corpo masculino,
ração de crimes de tráfico de drogas”, pela viatura da UPP (FRANCO, 2014, p. 109). E como está que, de fato, representa uma parte significativa nessa guerra, mas, no entanto, não é o único grupo
Bruna da Silva, mãe de Marcus Vinícius? Com que recursos essa mulher está lutando judicialmente atingido por ela, conformando a falta de atenção e cuidado que deveria se dar por meio de políticas
para provar a responsabilidade direta desse mesmo Estado pelo assassinato de seu filho? públicas às populações específicas.15

A carta suja de sangue que o Estado brasileiro usa para que seu braço armado promova Esse processo de invisibilização16 tem grande colaboração de uma mídia coorporativa, que
verdadeira barbárie social e étnica é justamente a lei antidrogas nº 11.343 de 2006, cujo caráter in- persegue seus próprios interesses, e que para se manter na esfera do poder da comunicação de
tervencionista, repressivo e proibicionista foi ainda mais alargado no presente ano, com a alteração massa, opta por esconder processos que possam provocar fissuras e deslocamentos nas relações de
dada pela lei n° 13.840 de 2019. Neste sentido, é importante entender que o proibicionismo é ori- poder, atuando por meio de discursos que mascaram os diversos tipos de violência contra as mulhe-
ginado a partir de uma política paternalista da proibição, do não permitido, fundado sob um Estado res, blindam várias formas de exploração sobre nossos corpos e ocultam nossos processos sociais
forte que, para ser aplicado, pressupõe uma relação subordinação (CERVERA, 1988), e quem dita de luta e resistência (SILVA, 2016), atuando em parceria com o Estado, que também finge não ver e
as regras são os grupos que há muito ocupam o aparelho estatal. nega responsabilidade nesse processo. Essa relação, de falta de atenção e atuação governamental
e aumento da vulnerabilidade social dessas mulheres, faz parte de um contexto de violência mais
A proibição não atinge todo mundo, tem, em sua essência, a ideia de proibição dos corpos abrangente, no qual a violência que irrompe sobre o feminino se manifesta tanto nas formas de
que podem ser proibidos, todos aqueles que não seguem padrões formais, os outsiders (BECKER, destruição corporal sem precedentes como nas formas de tráfico e de comercialização do que estes
2008), ou que pela estrutura da sociedade se encontram à margem dela. Neste sentido, o corpo corpos podem oferecer até o último limite. Apesar de todas as vitórias no campo do Estado e da
feminino 10é alvo histórico da tutela do Estado brasileiro, que até hoje não se desfez da carga moral multiplicação de leis e de políticas públicas de proteção às mulheres, sua vulnerabilidade frente à
cristã que desde sempre habita nossos códigos formais (as leis), que já promoveu a censura à pre- violência aumentou, especialmente a ocupação depredadora dos corpos femininos ou feminizados
sença dos nossos corpos em vários espaços públicos, bem como ainda dispõe contundentemente no contexto das novas guerras (SEGATO, 2014, 342).
sobre os limites dos nossos corpos, agregando obrigatoriedade de reprodução (via criminalização
do aborto)11, marcas que refletem na nossa cultura perpetuando uma lógica de raiz colonial. De fato, pode-se afirmar que a participação feminina no mundo e “submundo” das drogas
intensificou-se nos últimos anos, especialmente na última década, bem como tem sofrido todo tipo
A política de drogas, desta forma, ataca populações específicas e procura os desviantes, de conseqüência e violação em virtude disso. Mas, nesse momento, também emerge um fenômeno
aqueles seres sociais que ameaçam a ordem social posta (patriarcal, heteronormativa e cristã), o social de resistência, como uma resposta que passar a ser fundamental para as novas perspectivas
que coloca as mulheres na condição de outro (BOUVOIR, 1970; LÉVINAS, 1983)12, assim como a sobre políticas de drogas e encarceramento feminino, estruturado enquanto uma teia horizontal e
população negra e indígena, as religiões de matriz africana, as pessoas LGBTQIA+,13 entre outros de colaboração, a rede antiproibicionista.
grupos contra-hegemônicos e politicamente minoritários. O proibicionismo tem atuado para limar
essas vidas, agindo historicamente por meio de regras que prevêem a limitação desses corpos, As pautas, agora, são visível e progressivamente interseccionadas, buscando uma maior
que para as mulheres por muito tempo reservou os hospitais psiquiátricos e hoje, principalmente, representatividade dos atores e atrizes sociais historicamente silenciados(as) e invisibilizados(as),
é empurrado para instituições prisionais, sendo o cárcere a expressão máxima da incidência dessa que, no entanto, sempre foi a principal população afetada pela política antidrogas, bem como parece
política sobre nossos corpos. ter encontrado na figura da mulher uma possibilidade mais concreta dessa almejada representação.
Estatísticas prisionais e pesquisas acadêmicas evidenciam a trajetó- Isso se justifica de forma simples considerando o fato de estarmos sob a égide de uma estrutura
ria ascendente do encarceramento de mulheres (sobretudo por trá- 14 Em que 86% desse volume corresponde a mulheres que respondem por delitos enquadrados na lei antidrogas
fico), ressaltando-se a inserção delas nos mercados ilícitos de dro- 11.343/2006. Dados do Sistema Integrado de Informação Penitenciária - InfoPen 2015; e se comparados com os demais crimes
10 Cf. coletânea de textos em “O Corpo Educado” (LOURO, 2000). que mais prendem as mulheres, a discrepância é ainda maior, vejamos: 9% furto, 8% roubo, 7% homicídio, 3% latrocínio, 2% pelo
11 Para uma história sobre a perseguição legal às mulheres desde a formação do Estado moderno, início da acumulação estatuto do desarmamento, 1% receptação e 1% formação de quadrilha/bando (INFOPEN, 2015).
primitiva de capital na Europa e colonização nas Américas, cf. “Calibã e a Bruxa” (FEDERICI, 2017). 15 Para mais informações sobre esse processo, cf. SESTÓKAS e OLIVEIRA, 2018.
12 Equiparo esses grupos contra-hegemônicos levando em consideração que jovens, negros e mulheres constituem os gru- 16 Esse processo de invisibilização tem grande colaboração da mídia, como parte de um “procedimento tradicional da mídia
pos focalizados pela atual política de encarceramento no país, segundo o Mapa do Encarceramento (BRASIL, 2015). corporativa de ocultamento dos processos sociais de luta e resistência das mulheres”, que tem “espetado” o patriarcado provocan-
13 Sigla para “lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersexos e assexuados”. do fissuras e deslocamentos nas relações de poder (SILVA, 2016, p.10).
72 REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO 73
genuinamente patriarcal, na qual as mulheres são inexoravelmente sujeitas contra hegemônicas e, Neste sentido a atuação da RENFA – BAHIA tem se direcionado na construção de estratégias
em especial as mulheres em confronto com a lei demandam um pensamento subversivo capaz de de proteção e luta compartilhada entre mulheres de diversas condições sociais e experiências de
reinterpretar a si e ao mundo (SILVA, 2016). Em outro momento da história, Angela Davis identi- enfrentamento ao horror colonial da guerra às drogas. São mulheres com trajetória de rua, egressas
ficou a aproximação vital entre as causas do povo negro e do movimento de mulheres, a exemplo do sistema prisional, moradoras de ocupação, profissionais do sexo, mães de vítimas do Estado,
da afirmação do movimento anti escravatura e o nascimento dos direitos das mulheres nos Estados mulheres que constrõem suas narrativas a partir da superação ao horror da violência policial, são
Unidos em meados do século XIX, na fala da autora: mulheres em situação de rua violentadas por agentes de segurança pública, mães que tiveram que
enterrar os seus filhos ainda jovens vitimados nesta guerra e mulheres que não puderam ser mãe,
Quando a verdadeira história da causa da anti-escravatura for es- pois tiveram o seu filho retirado na maternidade tendo como justificativa o seu uso de drogas. To-
crita, as mulheres ocuparão um largo espaço nas suas páginas, das essas histórias são ferramenta básica para a construção de um conjunto de estratégias para o
porque a causa dos escravos foi peculiarmente uma causa de mu- enfrentamento da violação de direitos no ambiente de Guerra às Drogas.
lheres” Frederick Douglass;
Entendemos com Milton Santos (1997) que descolonizar é: “olhar o mundo com os próprios
Estas são as palavras de um ex-escravo, um homem que se associou de forma próxima ao olhos”, neste sentido as respostas e estratégias pensadas no âmbito da RENFA são formuladas a
movimento “women’s right´s man” (século XIX) – (“homem defensor dos direitos das mulheres”). partir de vivências das mulheres nos territórios de guerra. Para a realização das nossas ações no
Frederick Douglass abolicionista negro foi também um homem que defendeu a emancipação das âmbito da Agenda Feminista pelo Desencarceramento elencamos territórios cruciais, no centro da
mulheres. Inúmeras vezes foi ridicularizado publicamente por isso. Douglass assumiu-se anti-sexista cidade de Salvador, onde estávamos identificando casos de violação de direitos a mulheres usuárias
e referiu-se ao rótulo “women’s rights man … estou contente por dizer que nunca tive vergonha de drogas. Utilizamos da estratégia de ocupar esses espaços com intervenções políticas, reuniões
por ser assim designado”. A sua atitude pode ter sido inspirada pelo seu conhecimento que as mu- periódicas e atividades de mobilização política para dessa forma afastar a incidência da violência
lheres brancas foram chamadas de “nigger-lovers” (amantes de pretos) na tentativa de tirá-las da policial contra a vida e o corpo das mulheres. Compreendemos que são nesses territórios que o
campanha anti-escravatura. E ele sabia que essas mulheres eram indispensáveis para o movimento encarceramento começa a acontecer por conta de perseguição de agentes da segurança pública a
abolicionista – pela sua quantidade e pela “sua eficiência na contestação da causa dos escravos” mulheres usuárias de drogas e/ou integrantes da RENFA.
(DAVIS, 2016, p.31).
No Conjunto Penal Feminino, passamos a desenvolver ações aos sábados, mesclando forma-
ção política com dinâmicas lúdicas para movimentar o corpo, já que essa era uma grande demanda
que nos era apresentada. Realizamos arrecadação de materiais de higiene para as mulheres presas
que não recebiam visitas, e assim fomos entrando em contato com um conjunto de violação de
direitos às mulheres que estavam presas. As violações eram desde a total alienação com relação
REFLEXÕES PARA DESCOLONIZAR A POLÍTICA SOBRE DROGAS: ao seu processo, as punições e ameaças das agentes, além de inúmeros relatos de prisões ilegais:
mulheres estavam sendo presas pelo crime de tráfico sem ao menos apresentar o flagrante.
OCUPAR E RESISTIR EM TERRITÓRIOS DE GUERRA
POR LUANA MALHEIRO (BA) A constante demanda de acesso à justiça nos permitiu nos aproximar mais de órgãos como a
Defensoria Pública do Estado e o Ministério Público. Neste sentido a nossa intensa articulação com
a Ouvidoria Geral do Estado a partir da companheira Vilma Reis, nos ajudar a costurar caminhos de
O debate da decolonialidade do saber proposto por teóricas como Curiel (2014) nos aponta proteção às mulheres e jovens negra/os do Centro da cidade de Salvador que estavam sendo ame-
para uma disputa de produção de conhecimento e de epistemologias construídas a partir da açados de morte pela polícia. Os casos de retirada do direito a maternidade, via perca do poder de
emergência de sujeitos colonizados. No contexto da reflexão crítica sobre a política de drogas, nos guarda de crianças nascidas de mães usuárias de crack, é também uma das nossas grandes pautas
cabe perguntar, quais epistemologias têm sido consideradas válidas? Quais narrativas são tomadas de luta, que nos fez sensibilizar Ministério Público, Ouvidoria da Defensoria e Defensoria Pública no
como pressupostos para se pensar esse complexo fenômeno? sentido de pactuar um fluxo de garantia do direito a maternidade. Foi preciso que a RENFA ocupasse
diversos espaços de debate sobre direitos sexuais e reprodutivos, para alertar com relação a um
A partir de Quijano (2005) compreendemos que a produção de conhecimento tem partido fluxo que estava sendo invisibilizado no sistema de justiça: a retirada/sequestro de bebês de mães
da colonialidade do poder e em seguida, do saber. O movimento de retorno a outro modelo de usuárias de crack.
produção de conhecimento proposto por Quijano nos aproxima da necessidade de descolonizar o
saber para a emergência de outras narrativas e da própria experiência vivida na comunidade para a Em debate com a Ouvidoria da Defensoria, a partir da nossa intervenção no debate do orça-
produção do conhecimento e práticas que inspirem políticas públicas que atendam às necessidades mento participativo, pautamos a criação de um Núcleo Especializado em Políticas sobre Drogas na
de sua população. Defensoria Pública do Estado da Bahia. A proposta do Núcleo tem a função de atuar em diversas
esferas de violação de direitos no contexto da guerra às drogas como por exemplo: atuar em casos
Tem se mostrado urgente a necessidade de operar outras formas de se fazer política, como de violência policial em abordagens policiais com pessoas que usam drogas com fins a reparar da-
diz Kilomba (2010) é preciso criar novos papéis fora da ordem colonial, e dessa forma promover não nos decorrentes de abordagens violentas, garantir o acesso ao cuidado humanizado e sem violação
apenas um discurso, mas uma prática descolonizante como nos ensina Cusicanqui (2010:62). Para de direitos a pessoas que usam drogas, atuar na garantia do direito à maternidade a mulheres em
isso se faz necessário o retorno as comunidades, família e pessoas diretamente afetadas por essa situação de rua e uso de drogas, a partir da defesa dos direitos e articulação da rede socioassis-
guerra às drogas. Vivências e experiências de quem conseguiu produzir conhecimentos a partir do tencial; realizar levantamento de presos (a)s provisórios, pressionar e contribuir para a celeridade
enfrentamento em territórios de guerra as drogas precisam aparecer nas formulações atuais sobre na resolução dos casos e realizar mutirão de desencarceramento; atuar em defesa do direito de
políticas de drogas, mais do que isso precisam também pensar essa política. imagem e privacidade de usuário/as de drogas e pessoas em situação de vulnerabilidade expostas

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indevidamente pela mídia; prestar assistência jurídica extrajudicial às pessoas que usam drogas e pacientemente, sentada na mesa dos professores, dividindo a atenção entre mim e o computador.
seus familiares, entre outros. Deu 30 minutos extras para encher a sala, enquanto preparava os slides e o datashow para a oficina
que iria ministrar para estudantes de psicologia. O tema, “Redução de Danos”. Na camiseta, o perfil
Dos Caminhos de Mariele Franco, vereadora morta no Rio. No momento de começar, sob os olhares admirados de
No cotidiano da militância estamos em um reaprender a construir a luta constantemente, a universitárias que já a conheciam, dos que a viam pela primeira vez e da observação atenta da pro-
partir da compreensão de que cada mulher tem o seu tempo de formulação e entendimento. Passa- fessora que a tinha convidado, ela se apresenta: “Eu sou a Juma. Sou redutora de danos, prostituta,
mos a integrar as diversas agendas feministas e antiracistas na cidade de Salvador, com a preocupa- moradora de rua e usuária de drogas”.
ção de realizar sempre um alinhamento conceitual antes de cada mobilização e de cada evento. Foi
dessa forma que participamos ativamente de atividades do Dia Internacional de luta das Mulheres, PATINHO FEIO
8 de março, realizando antes da caminhada uma roda de conversa para partilhar entendimentos 20 anos antes de apresentar aquela palestra para universitários, Juma Santos costumava ser
sobre esse dia; participamos do Dia Internacional da Mulher Negra latina e caribenha com formação Gilmara. Ela explica que só teve duas idades na vida: 16 e 33 anos. “Às vezes eu me esqueço da
na sede do movimento população de rua, bem como oficina de cartazes na rua, em cenas de uso minha idade. Aí, tenho que perguntar pro meu marido”, e ri, alto e livremente. O motivo é comercial:
em dois dias. Realizamos atividades de formação no dia do novembro negro, no dia internacional são as melhores idades para uma garota de programa. Com pouco mais de 1,60 metro , cabelos
pela legalização do aborto e nas manifestações em defesa da democracia. Estas atividades foram loiríssimos (“A gente não fica velha, fica loira!”) e um sorriso travesso, Juma possui a tranquilidade
um campo de aprendizado para mim e para outras mulheres que já possuíam uma trajetória de luta dos fortes. Feminista, ela é devota de Nossa Senhora Aparecida, madrinha e “mãe da rua”, como diz.
feminista anterior, pois foi necessário produzir uma dinâmica através do qual fosse possível parti- “Sempre fui muito católica, mesmo quando era prostituta. Uma coisa não exclui a outra”. Seu corpo
lhar os diversos entendimentos acerca de tema que já estava posto para nós: debatemos o aborto, é marcado por história; uma armadura de pele e sangue que enfrentou violência, noites de frio ao
a partir do relato das mulheres sobre suas vivências e compartilhamos noções sobre democracia, relento, brigas e fome.
fascismo, Estado, partidos políticos, etc.
Os olhos às vezes ficam cansados e se umedecem ao falar não dos horrores que já presen-
Acreditamos então, na construção do nosso projeto contra-hegemônico de despatriarcalizar ciou, mas da mãe. “Eu já não te falei que não queria mais falar desse assunto?”, reclama comigo.
e descolonizar o Estado, as políticas públicas bem como a militância antiproibicionista. Não há mais Natural de Brasília, Juma passou a infância em Alexânia, um município no interior de Goiás a 88 km
tempo de produz luta invisibilizando as mulheres negras, indígenas e empobrecidas. É urgente que do DF. Filha única, ela morava com a mãe, conhecida como Dona Inês, em uma casa com um quintal
toda a sociedade possa se voltar para a produção de resistências em territórios onde o Estado se pequeno, uma goiabeira, galinhas sob uma amoreira e um pé de mamão. Ela e a mãe costumavam
mostra presente através do extermínio da sua população. É urgente que possamos denunciar o fazer caminhadas pelo mato, iam à feira e Juma ouvia. “A gente não conversava, não, mulher, era só
racismo estrutural que funda uma política de drogas que protege pessoas brancas e criminaliza ‘Sim, senhora’, ‘Não, senhora’. Eu era até corcunda!”. Mas Dona Inês gostava de contar histórias da
pessoas negras. Estamos vivas e prontas para subverter a ordem colonial. É tempo de produzir o Mula-Sem-Cabeça, Saci e Curupira. Dona Inês era analfabeta, mas tinha um espírito empreendedor:
feminismo achado na rua, como Maria Lucia nos ensinou e dessa forma produzir um projeto de so- para sustentar a si e a filha, vendia pamonhas no terminal de ônibus de Alexânia e lavava roupa.
ciedade onde ninguém fique de fora.
Da horta que tinha em casa, tirava cheiro verde, tomate e alface para vender. Conseguiu ajuda do
padre local para garantir que Juma frequentasse uma escola de freiras. Uma das lembranças favo-
ritas é das vezes em que os ciganos passavam pela cidade trazendo música e dança e montavam
acampamento sob o pé de pequi na frente de sua casa.

ENTREVISTA COM JUMA OLIVEIRA, FUNDADORA DA RENFA A VIDA ATROPELADA


Mas a infância no interior terminou de maneira abrupta e violenta quando Dona Inês foi atro-
E PERCUSSORA DA REDUÇÃO DE DANOS NO BRASIL pelada e morta por um caminhão em Alexânia. Estranhamente, a avó de Juma, que tinha problemas
POR ALEXANDRA KALOGERAS (DF) 17 de alcoolismo, morreu de maneira semelhante. O dinheiro da indenização pela morte da avó cons-
truiu a casa com a horta e a goiabeira onde Inês morava com a filha. Subitamente sozinha, Juma,
que não tinha outros parentes, acabaria indo para o orfanato. “Além de ter medo do orfanato, eu
Nacapitaldopaís,elavivenciouastrêssituaçõesdemaiorvulnerabilidadeparaumamulher: achava que era lugar de criança ruim”. Decidida, ela pegou os pertences e retornou para a Brasília
prostituição, encarceramento e a vida nas ruas. Hoje, Juma é redutora de danos, militante de carona em caminhões. “Naquela época, eu não sabia das coisas, não entendia o perigo”, analisa.
e figura de liderança para ajudar quem passa por dificuldades semelhantes às que já viveu. Apesar do risco, nada de mau lhe aconteceu durante a viagem e ela chegou à Rodoviária do Planalto
Central sã e salva. “Que linda que era aquela rodoviária em (19)85!”, sorri.
“Me chamo Juma Santos, fundei a Tulipas do Cerrado, faço parte de outros mo-
vimentos feministas nacionais, como a Rede Nacional de Feministas Antiproi- A primeira coisa que fez ao chegar foi procurar uma escola para se matricular. Na Escola Clas-
bicionistas. Hoje, venho à frente de uma ala feminista das mulheres daqui de se da 104 norte, a diretora, Graça, recusou-se a matriculá-la por causa da falta de documentação e
Brasília na Marcha da Maconha. Sou referência no Movimento de Trabalhadores Se- de adultos que se responsabilizassem por ela: Juma só trazia, consigo a certidão de nascimento e o
xuais e pretendo me formar em Assistência Social porque o Estado não permi- boletim escolar do colégio de freiras. “Nesse momento, o Estado falhou comigo! Porque eu queria
te que eu assine minha carteira de Redutora de Danos sem meu ensino completo”. estudar e eles não me deixaram”. Sem ter para onde ir, Juma não aceitou a negativa. “Por uma sema-
na, eu dormi na porta da escola, até ela aceitar me matricular!”, lembra em um momento de orgulho.
A palestra estava marcada para 10h, mas Juma estava pronta no campus Darcy Ribeiro da A diretora cedeu e fez a matrícula “por baixo dos panos” e ficou responsável por ela até a 6ª série.
Universidade de Brasília desde 7h. Os alunos entravam na sala aos poucos, mas ela aguardava Assim, Juma voltou a frequentar as aulas que eram dividas entre a Escola Classe e a Escola Parque.
17 Entrevista originalmente publicada em: https://medium.com/@alexa.calogeras/a-invenc%C3%ADvel-juma-fe38b84f4b55
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Sem ter onde ficar, Juma passava os dias na escola e as noites no Hospital Regional da Asa aprendeu a fina e dura arte da sobrevivência. “Eu aprendi a usar as armas que tinha, minha palavra,
Norte (HRAN). “Dormia nas cadeiras, com um cobertorzinho”. Quando, por um motivo qualquer, era meu corpo, minhas idéias”.
impedida de dormir nos bancos do hospital, Juma escalava um pé de manga que ficava em frente
e lá mesmo passava a noite. “Tinha medo daquelas coisas que minha mãe contava, do Saci, Mu- Ela lembra da primeira vez em que levou um tapa na cara e que aquilo lhe causou vergonha.
la-Sem-Cabeça, dos fantasmas da minha infância, mas também do Homem. Da maldade humana, “A gente tava numa roda cheirando cola, não sei qual foi a lombra do moleque”, diz. Até bater de
sabe?”. volta, Juma conta que levou inúmeras outros tapas como aquele. A primeira briga em que não hou-
ve opção a não ser lutar foi depois de levar uma coronhada na cabeça. “Mulher sozinha na rua, não
Assistir às aulas lhe trazia alegria e foi por isso que Juma suportou virar alvo dos colegas. vive. Não precisa nem ter beleza. Você tinha que arrumar um homem pra ficar do seu lado, senão
“Aquilo era normal. Adolescente bater em uma menina do cabelo ‘ruim’ que não tinha casa”. Um virava massacote dos outros. As pessoas falam, ‘ah mulher gosta de bandido’. A gente é obrigada a
episódio em particular que ficou marcado na memória aconteceu durante a aula de artes. A tarefa ficar do lado dessas p***!”.
era criar uma história em quadrinhos e seus colegas fizeram a deles que relatavam agressões contra
Juma do lado de fora da Escola Parque, depois das aulas. Ao ver o trabalho exposto aos olhos de Juma abandonou a cola por causa de uma estranha profecia. Passou a ter visões do mundo
todos no mural da escola, Juma tirou o cartaz da parede, rasgou-o e levou para a diretora. “Aí, eu, acabando toda vez que a cheirava. “A cola e o tíner tiram a gente dessa realidade. Eu acho que eles
revoltada, falei, ‘Diretora, eles ‘tão falando de mim! Sou eu que apanho todo dia, nessa historinha! mostram seu medo ou o que você tem de melhor. Quando eu via o mundo acabando, pensava, ‘pelo
A escola inteira ‘tá rindo de mim!’. Você acredita que a desgrama da diretora da Escola Parque me amor de Deus, eu não quero morrer agora’”.
fez colar o cartaz de volta, todinho? Ridícula”.
Na adolescência, o álcool tornou-se seu principal entorpecente, mas hoje é a droga que ela
Ironicamente, foi a mesma Escola Parque palco de outro acontecimento marcante: o primeiro considera mais perigosa. “Todas as violências que eu passei, tirando a primeira, foram por causa do
beijo de Juma, em um garoto do qual ela lembra o nome e sobrenome e que tinha olhos muito ver- álcool. Às vezes não era nem eu quem consumia, mas as pessoas próximas. Hoje, com R$ 1,50 a
des. Naqueles dias, as crianças faziam uma brincadeira com nome de flor, na qual quem perdesse gente mata uma mãe de família dentro de casa”.
tinha que pagar um castigo. E o castigo dele foi ter que beijar o ‘patinho feio’ da escola.
LUZES DA CIDADE
NOITE DE HORROR Nos final dos anos 80, Brasília era uma cidade glamourosa onde boates como a Bataclan e a
Em junho de 1985, uma chuva torrencial caiu, mas o vigia noturno do Hospital Regional da Zoom no Gilberto Salomão, que chegou a receber celebridades como Xuxa e Pelé. No Conic, o Cine
Asa Norte (HRAN) não se sensibilizou com o clima e não permitiu que Juma dormisse lá. Por cau- Ritz, que passava filmes pornôs, funcionava a pleno vapor e as garotas de programa dominavam a
sa da chuva pesada, o refúgio no pé de manga também não era uma opção. Juma, então com 13 noite. Uma delas, Madonna, foi quem encorajou Juma a fazer seu primeiro programa.
anos, ao se ver subitamente sem ter onde passar a noite, retornou para a rodoviária. Em busca de
um lugar seguro, dirigiu-se ao posto da Polícia Militar. Naquela noite, havia sete guardas de plantão. Na época com 15 anos, Juma ganhou 5 mil cruzeiros. “Fiquei com medo, mas fiquei maravi-
“Eu ainda mandei um migué (uma mentira) e disse que tinha perdido o ônibus, mas eles devem ter lhada quando vi o dinheiro na minha mão”. A violência passada na rodoviária a deixou indiferente
percebido que eu era da rua, que eu não tinha ninguém”. Os homens que deveriam garantir sua para relações sexuais. “Hoje, eu entendo, mas naquela época achava que era só abrir as pernas”.
segurança durante a noite se revezaram para violentá-la e espancá-la.
O dinheiro saía com a mesma rapidez com que chegava: vaidosa, Juma comprava casacos,
Questionada pela Revista Esquina, a Assessoria da PMDF não tem informações sobre o epi- roupas e sapatos novos, além dos entorpecentes que a mantinham sã. Ela se lembra dessa época
sódio relatado, já que nenhuma denúncia foi registrada à época, mas a corporação garante que com carinho e um sorriso divertido. “A vida noturna de Brasília era muito rica! Quando comecei
“ao longo do tempo, vem aperfeiçoando seu processo seletivo para inclusão de novos policiais” e o trabalho sexual no Conic, era um luxo (…) O crack foi o que destruiu a vida noturna do Conic”.
que “todo desvio de conduta é apurado rigorosamente pela Corporação”. Entre as fases do exame Quando a cocaína não mais lhe satisfazia, Juma também passou a usar merla, entrando em uma
para ingressar na PM, hoje, estão inclusas avaliação psicológica e investigação da vida pregressa do espiral de decadência paralela à da cidade que tanto adora. Acabou indo dormir com os ratos em
candidato. bocas de bueiro. Uma noite, enquanto ela dormia sob efeito da droga, alguém colocou fogo nela. “A
merla baixou muito minha guarda. Foi assim que eu acabei com 40% do meu corpo queimado, fui
Quando o dia raiou, a chuva havia parado e Juma chorava deitada no chão da rodoviária. As esfaqueada, baleada…”.
dores e as feridas permaneceriam. Quando confrontada com a crueldade e a indiferença que se se-
guiu a ela, a mulher na qual a menina se tornou não parece saber qual a machucou mais. “Ninguém
olhou para mim!”, revolta-se e seus olhos se enchem d’água por trás dos óculos escuros.

Foi um menino, também em situação de rua, que se aproximou dela, solidário com outra
vítima da mesma violência que deve tê-lo atingido em alguma de suas noites. Tudo o que ele tinha
era uma lata de tíner, um solvente para tintas que foi, por muito tempo, usado como o entorpecente
favoritos das crianças. Então, foi isso que ele ofereceu. “A droga entrou na minha vida como um
pedido de socorro e por um bom período foi fundamental na minha sobrevivência. A cola e o tíner
foram fundamentais na minha infância pra poder crescer junto com as outras crianças, aqui no Pla- Na pré-adolescência nas ruas, Juma teve a primeira e única filha. Naquele tempo, além de
no Piloto e Rodoviária”, explica. tentar manter a si e a filha em segurança, tinha que fugir do Serviço Social que via como “um mons-
FIM DO MUNDO tro que podia lhe tomar a criança”, visão que ela afirma ser muito comum entre pessoas em situação
Juma abandonou a escola na 6ª série e foi para uma escola diferente, a das ruas, onde de rua.

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Quando dormia, Juma colocava um pedaço de madeira sob a cabeça para garantir a proteção entre Juma e Marcos veio aos poucos e, então, subitamente. “Gostei da personalidade dela”, conta
das duas. Uma noite, Juma relata, o pedaço de madeira foi usado contra um homem que ela, ao 13 anos depois, sentado no sofá da casa na Vila Planalto que os dois dividem com dois gatos e
acordar, viu levantar o vestido da filha. “Tentaram violar minha filha e eu acabei tendo que defendê- uma cachorra recém-adotada. Ele também foi visitá-la quando Juma estava encarcerada. Anos de
-la. Mas mulher moradora de rua não tem direitos, viram que eu quase matei o cara de paulada, mas parceria e companheirismo construíram a relação que se mantém até hoje. Na casa aconchegante,
ninguém viu a defesa”. Juma acabou encarcerada e enviada para a PFDF (Penitenciária Feminina do Juma mantém nas paredes fotos da filha, da mãe, do neto e do casal. No quarto, uma penteadeira
Distrito Federal ), a Colmeia. “Sofri muito no sistema penitenciário, mais do que na rua. Porque na com maquiagem e cosméticos. “Maquiagem é tudo, menina”.
rua você passa por várias violências, mas a liberdade nos proporciona algumas saídas”.
APÓS A PRISÃO
A GAIOLA Em 2002, recém-saída da Colmeia, Juma lembra que tinha medo de ser pega na rua após seu
Entre beliches e colchões espalhados pelo chão, Juma dividiu uma cela com mais 60 mulhe- toque de recolher, às 22h, pois isso significaria perder a liberdade provisória. Uma noite, enquanto
res. Ela ficou 2 anos e 8 meses encarcerada, período em que sofreu com a abstinência da merla. fazia programa no Conic, um homem a abordou com uma proposta diferente: ele lhe perguntou se
Sua filha foi adotada por uma mulher que já tinha dois filhos, mas queria uma menina e que cuidou ela queria um trabalho. “Eu tinha o segundo grau, mal fiz a 6ª série, usuária de droga, sem dente
dela até mesmo depois de Juma ter sido solta. na boca! Moradora de rua! Ex-presidiária! ‘Que emprego é esse, doido?’”.

Nesse período, a maconha se fez importante para ajudá-la com as dores físicas, a rotina do O homem era Claudiney Alves, um dos primeiros redutores de danos de Brasília e conhe-
sistema prisional e o difícil processo de abstinência da merla. Uma droga tranquilizante, Juma afir- cia Juma como uma figura de liderança entre seus pares da rua, vendo ali uma possibilidade de
ma que a maconha entra com facilidade dentro do sistema prisional para apaziguar os ânimos dos alcançar mais pessoas através dela. A primeira reunião foi numa sexta-feira, pela manhã. “Ou eu
encarcerados. “Eu comecei a usar maconha de manhã e de noite, e aquilo me fez bem. Ela tirava comprava o meu miojo, ou comprava um reloginho pra não perder a hora da reunião. Comprei o
minhas dores e resgatava algo que tinha morrido em mim”. Hoje, Juma é militante pela legalização reloginho, olha aí a oportunidade de um empreguinho, bixa. (risos). Acordei 4h30 da manhã, doida,
da maconha e está à frente da ala feminista da Marcha da Maconha de Brasília. peguei uma carona e desci no posto de saúde. Banguela, toda sem-graça, daquele jeito. Vamos ser
redutora de danos”.
Quando foi solta, Juma não tinha família e nem para onde ir e acabou voltando para a rua.
“O Estado é assim: te prende e depois te joga na rua”. No primeiro dia em liberdade condicional, O programa de Redução de Danos do DF nasceu em 1999, vinculado à Secretaria de Saúde
rumou para o Conic, lugar que por tanto tempo tinha sido o centro de seu mundo. Lá, tomou uma e, inicialmente, visava prevenir a contaminação de AIDS. Os primeiros redutores distribuíam camisi-
cerveja gelada e reviu os amigos. Um em especial, Parazinho, tinha um quiosque durante o dia e nhas e kits de seringa para impedir a contaminação entre os usuários de drogas injetáveis. Em 2013
pela noite, uma barraca de cachorro-quente que alimentava as profissionais do sexo. Ele arrumou quando a atuação do SUS foi intensificada no DF, a redução de danos passou a abordar também
para ela um quartinho para alugar em Brasilinha por R$ 50. outras questões. “Redução de Danos não é um tratamento, ela compõe um tratamento que a pes-
soa deseja. Se a pessoa quiser abstinência, a redução compõe essa abstinência. se a pessoa quer
A filha, ela optou por deixar na casa da mulher evangélica que se dispôs a cuidá-la, visando mudar de droga, a redução compõe esse tratamento”, explica Juma durante a palestra.
poupá-la do estilo de vida duro que levava. “Eu ainda estava muito fragilizada e ela estava numa
estrutura tão boa financeiramente. Era melhor do que a rua”. Contudo, Juma sempre se recusou a O programa de redução de danos complementa o sistema de saúde para as populações mais
assinar os papéis oficiais que dariam a guarda da menina para a mãe adotiva definitivamente, e ia vulneráveis, e tenta compreender e satisfazer as necessidades dessas populações. Seus princípios
visitá-la com frequência, levando-a consigo por alguns dias para a rua e devolvendo-a à casa depois. básicos são a defesa do usuário. “É chegar em alguém da rua e não querer saber da droga dele,
“Buscava pra passar o fim de semana comigo na rua. “Participei muito da vida dela. Fui virada pra mas da boca dele que tá machucada. Explicar que ele pode pegar AIDS ou hepatite , dividindo o
escola, na formaturazinha dela, toda fedida de fumaça de cigarro. Cheguei com uma roupa horro- cachimbo, o baseado. Na hora eles perguntam ‘como? por quê?’, porque a gente pode até morrer de
rosa. Foi arrasante esse dia, minha filha me chamou pra ir lá pra frente de mão dada e eu morta de facada, de tiro, mas morador de rua nenhum quer morrer em cima de uma cama de hospital”, conta
vergonha”, recorda. Hoje, mãe e filha mantêm contato diariamente e Juma tem um neto e que lhe Juma. Assim, ela explica, as pessoas em situação de rua veem que a preocupação principal não é
provoca sorrisos sempre que é mencionado. a droga que eles consomem, mas eles enquanto seres humanos. “A sociedade enxerga o cachimbo
de merla, mas temos que enxergar a pessoa por trás daquele cachimbo. E isso ninguém enxerga.
Foi o mesmo finado Parazinho, de quem Juma se lembra com carinho, que lhe apresentou Eu falo isso porque senti na pele. Se bem que hoje eles enxergam, a loira platinada sentada na rua,
o homem que hoje é marido dela. Funcionário público criado em uma família de militares, Marcos caríssima (risos)”.
conheceu Parazinho por causa do carrinho de comida que o comerciante mantinha em frente ao
Ministério no qual ele trabalhava, onde vendia café e lanche. Pelos primeiros seis meses, Juma trabalhou sem retorno financeiro, mas o pagamento veio
de outra forma. Ser ouvida e respeitada por quem era e pelo que tinha vivido abriu as portas para
Na noite em que os caminhos de Juma e Marcos se cruzaram, ela parou na barraca de Para- seu processo de empoderamento. “Não me exigiram nada, só o compromisso de estar presente nas
zinho com as amigas. “As raparigas queriam ir pro Barulhos”, lembra, em referência ao local onde ações. Só queriam que a minha história servisse pra me aproximar das pessoas. E isso era o que eu
hoje funciona o Bar Barulhos no Parque da Cidade. Marcos acabou sendo a carona, e chegou na tinha pra dar, eu não tinha outra coisa”, diz. “Eu comecei a sentir prazer nessas coisas, no trabalho,
boate com o carro cheio de garotas de programa. Parazinho, que era amigo de Marcos, confiou em em ajudar as pessoas. Em ser elogiada no serviço. Isso pra mim era melhor do que os R$ 250 que
Juma para tomar conta dele naquele universo desconhecido. eu passei a receber”.

Desde o início, Marcos nunca foi um cliente, mas Juma o viu como um investimento a longo Através da Redução de Danos, ela se tornou militante e entrou para o REBRADE, um projeto
prazo. “Via no sexo oposto uma oportunidade, então usava meu corpo e minha sensualidade. No da UnB que durou um ano e acolheu 3500 usuários de drogas. Os redutores de danos chamados
momento em que bati o olho no Marcos, eu o vi como uma oportunidade de sair da rua”. O amor para o projeto eram todos igualmente usuários e tinham patologias como HIV e hepatite. Juma é

80 REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO 81


a única membra sobrevivente. “Eram pessoas que o Estado não queria e que nunca teriam oportu-
nidade de trabalho, mas fizeram um trabalho muito grande. A Redução de Danos de Brasília existe
graças a eles”.

BATALHA
Hoje, Juma continua seu trabalho como redutora de danos na ONG Namastê, vinculada à ALIMENTO PRA ALMA
Revista Traços (um projeto social e jornalístico com pessoas em situação de rua). Além disso, faz POR IVANIR MENDES (RJ)
visitas semanais ao Setor Comercial Sul e entornos para trabalhar junto aos “pares” (como gosta de
chamar as pessoas com quem trabalha) e oferecer a eles dicas para tratar feridas, reforçar a impor-
tância de beber água, oficinas de cuidados com a saúde e DST’s, ou mesmo companhia e um bom Tenho 46 anos, nasci em Ceará Mirim, no Rio Grande do Norte e me mudei pro Rio de Ja-
papo. Ela é membra da Diretoria da Associação de Redutores de Danos e representante da entidade neiro quando tinha 18 anos. Depois de uns anos morando aqui fui morar no morro do Cantalago e
no DF. “A rua ´tá sempre com a gente. A gente sai dela, mas a rua nunca sai da gente”. lá conheci a Assembleia de Deus. Comecei a fazer um trabalho dentro do sistema penitenciário e
depois fui pra Igreja Batista, onde virei Capelã. Continuei o trabalho no sistema, levando comida,
Por iniciativa própria, ela terminou os estudos no supletivo em 2007 e chegou a fazer um a palavra e produtos de higiene (que na época ainda podiam entrar). Conheci meu marido nessa
curso de brigadista. Ela criou a ONG Tulipas do Cerrado, que visava continuar o trabalho de redu- época, ele estava preso, era pastor lá dentro. Dois anos depois reencontreivele na rua e ajudei ele
ção de danos do antigo REBRADE, mas adicionando entre seu público as profissionais do sexo. “É a tirar os documentos. Foi aí que nos aproximamos e ficamos juntos.
muito difícil a gente falar da mulher em situação de rua, ou falar de redução de danos sem falar de
profissionais do sexo. Quantas mulheres tem seus direitos violados por que essa profissão não é Depois disso ele foi preso de novo e aí eu virei familiar de preso. Tudo mudou totalmente.
regulamentada? Porque não é ilegal ser prostituta, mas é ilegal procurar um ambiente seguro para Na fi la eu via o sofrimento e pensava que tinha que fazer alguma coisa. Pela igreja você só vê
trabalhar. Quando corremos atrás do direito dessas mulheres, lembramos que essas mulheres são um pouco, mas como familiar você vê o todo. Eu já era da militância da economia solidária e do
trabalhadoras, são mães”, explica. feminismo, mas quando meu marido voltou pra prisão eu entrei na Frente Pelo Desencarceramento,
porque precisava saber meus direitos e saber como agir. Ele fi cou 16 dias no isolamento e eu
A Tulipas do Cerrado atua desde 2005 em Brasília, mas não possui CNPJ porque não há uma precisava de ajuda.
sede, exigência para oficializar uma ONG. Além do trabalho na ONG Namastê, Juma faz palestras
e leva estudantes de psicologia e serviço social a viagens de campo junto a moradores de rua e Pra quem tá aqui fora, às vezes uma comida é só uma comida, mas lá não. O momento fami-
usuários de drogas para apresentar os próximos redutores de danos a seus pares. Ela participa de liar, o momento da visita é muito sagrado pros dois. A alimentação pra nós, que conhecemos deus, é
projetos como o Cine Rua, que leva sessões de cinema para pessoas em situação de rua por todo o algo muito sagrado. Quando interno vê uma comida de rua, como a gente chama, é uma coisa que
DF com uma tela e um projetor. não tem preço. Eu levava 1 kg de carne e comiam 10 pessoas. Sempre fi z pensando no próximo.

Por causa da nova exigência de um diploma de graduação em Serviço Social para quem atua E pra mim comida signifi ca um gesto de carinho, sempre fi z com a alma. Não é fazer por
em sua área, ela iniciou o curso de Serviço Social na UnB. Orgulhosa de sua herança e sua trajetó- fazer, é botar o amor. Tenho certeza que quando a pessoa come lá dentro ela sente a preocupação
ria, ela teme que a nova exigência desanime ou impeça outros redutores de danos nativos das ruas de quem tá fora. É uma ligação com o mundo aqui fora pra quem tá isolado ali. É mais do que a
a fazer o que ela faz. “É muito cruel que digam pra mim hoje, ‘você tem que ter um diploma pra comida é “essa pessoa lembrou de mim”. E lá dentro começa a ser algo muito sagrado. Aquela
trabalhar’, sendo que eu passei minha vida inteira estudando na rua. A rua foi a melhor faculdade comida tem uma história.
da minha vida”. Hoje, ela é considerada a última redutora de danos nativa da rua. “Eu tenho muito
orgulho de ser redutora de danos. Mas eu acho que eu vou ser a última”. A familia as vezes não tem condições e faz o esforço, faz um ensopado, bota uma batata pra
render. Tem família que tem condições, mas tem famílias que não tem. Eu sempre levei comidas que
Logo quando nos conhecemos, ela me disse: “Eu não suporto que me coloquem como mu- rendessem e dessem pra outras pessoas também, não só pro meu marido.
lher vulnerável. ‘Ah, tadinha daquela menina lá. Coitada dela’. Não existem pessoas vulneráveis na
rua, pelo contrário: somos muito fortes, principalmente as crianças. Olha eu aqui, moro nas ruas Eu vou escrever um livro de receitas junto com a RENFA no Rio de Janeiro, porque nesses
desde os 10 anos de idade, ‘tô viva e saudável. Não tenho nenhuma patologia, fora ser um pouco anos todos aprendi muita coisa e quero compartilhar. Em Bangu, por exemplo, entra comida. Em
louca (risos)”. água santa não entra. Eu entrava com dois potes de comida, tem lugar que só entra no saco. Cada
lugar tem uma norma, tem que tirar osso, espinha, porque eles não deixam. Também tem que saber
Naquela mesma oficina que ela ministrou na UnB, Juma confessa que, às vezes, até ela se o que usar, não podemos usar massa de tomate que estraga mais rápido, por exemplo. Agente vai
sente cansada. “Mas aí, eu penso: o que vai acontecer com essas pessoas se eu não conseguir mais aprendendo e quero levar isso adiante.
fazer essa caminhada?”. Nos slides, ela nos mostra fotos de conhecidos e amigos e nos conta as
histórias dessas personagens beckettianas: um senhor que foi abandonado pela família e está nas Escolhi duas receitas pra compartilhar nessa publicação, porque são fáceis, baratas e dá pra
ruas há 40 anos, um homem que aprendeu a usar sacos plásticos para absorver o calor do sol e comer no outro dia. A sobrecoxa, porque é R$ 8 e é gostosa. E a carne seca com aipim, que a gente
espantar o frio, um menino de 11 anos que é usuário de crack e para quem eles fizeram uma festa diz que é comida de começo de mês porque é R$ 25 o quilo. As vezes o aipim só pega o cheiro da
junina de presente, uma jovem de 18 anos que estava grávida do 9º filho quando foi levada para carne, mas dá pra muita gente comer. Sei o quanto é difícil pra uma mulher ter seu companheiro
fazer o primeiro teste de HIV, uma mulher trans que ela conheceu quando era um garoto que dormia encarcerado e sei que a RENFA é ligada às mulheres. Quero compartilhar com elas o que aprendi.
na Rodoviária. Histórias reais e cheias de humanidade.

REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO REFLEXÕES PARA A DESCOLONIZAÇÃO


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Sobrecoxa assada acebolada

ARTE
Ingredientes

1 kg de sobrecoxa com pele


3 dentes de alho
3 cebolas pequenas
1 banda de limão
sal e shoyu a gosto

Modo de preparo

Bata no liquidificador o alho descascado, o sal, uma cebola, o suco do limão e o shoyu
para afastar a morte
Tempere as sobrecoxas com a pele, coloque as duas cebolas e deixe descansar um pouco
Leve no forno até fi car dourada, cerca de 35 minutos

Carne seca com aipim

Ingredientes

1 kg de carne seca cortada em cubos


½ kg de aipim descascado e cortado em cubos pequenos
2 dentes de alho descascados
1 cebola branca e uma roxa
½ pimentão
Molho de tomate a gosto
Pimenta de cheiro a gosto
Cheiro verde a gosto
Água
Óleo

Modo de Preparo

Deixe a carne seca dessalgando com água na geladeira durante o dia, trocando a água três vezes
Corte as cebolas e separe a branca da roxa
Misture o alho e o pimentão picados e reserve
Em uma panela de pressão aqueça o óleo, doure a carne, cubra com água quente e deixe cozi-
nhar por 10 minutos
Abra a panela, acrescente o alho, a cebola branca, o pimentão e o aipim e cozinhe por mais 15
minutos
Abra novamente, coloque o molho pronto e uma pitada de açúcar
Abaixe o fogo e acrescente a cebola roxa e o cheiro verde
Confira o sal e desligue o fogo

Bom apetite!

Trabalho de colagem realizado com as mulheres privadas de liberdade em Recife,


na Colônia Penal Feminina Bom Pastor

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Muitas mãos
CONTRIBUIÇÕES DAS VOLUNTÁRIAS DA AGENDA FEMINISTA PELO DESENCARCERAMENTO

DROGA E MORAL
POR ALICE MAGALHÃES RIBEIRO E REBECA SOPHIA LIMA AZEVEDO

Trataremos aqui da parte do projeto “Agenda Feminista pelo Desencarceramento” respon-


sável pela análise qualitativa de processos judiciais acessados no site do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) de mulheres que se encontram na cadeia pública Joaquim Ferreira
de Souza, localizada no Complexo de Gericinó. Focaremos naqueles que as acusam de prática, as-
sociação e condutas afins ao tráfico de drogas porque aparecem com maior frequência e são os de
maior número.

Pensamos estes processos enquanto registro oficial que justifica e legitima o encarceramento
dessas mulheres à medida que constroem uma “verdade jurídica” (FOUCAULT, 1974) materializada
nos documentos gerados ao longo do processo judicial. Nesse sentido, buscamos entender os argu-
mentos formulados pelos juízes e promotores que ajustam a realidade dos fatos vividos em relatos
por escrito e ganham forma na produção da burocracia (EILBAUM, 2006) e na criminalização dessas
mulheres.

Investigaremos mecanismos de legitimação empenhados na manutenção da prisão de mu-


lheres e que aparecem na elaboração dos documentos dos processos. Sendo eles: as narrativas
policiais, a criminalização do território e a criminalização das acusadas, bem como a carga moral que
atravessa todos estes mecanismos e que edifica e destaca os casos de tráfico de drogas.

Para o desenvolvimento deste trabalho, foi necessária uma capacitação mediada pela ajuda
de outras integrantes do projeto, à medida que, como bacharéis em Direito e advogadas, nos trei-
naram, explicando sobre os movimentos dos processos, os termos jurídicos utilizados, a forma como
procurar determinado processo (por nome, por número, entre outros) em nosso campo de trabalho,
que consiste na análise de processos digitais acessados ao site do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro.

Na consulta online ao TJRJ encontramos uma listagem de todos os movimentos que ocorrem
no processo e os documentos gerados, sendo os principais: (1) a íntegra da audiência de custódia;
(2) a denúncia do Ministério Público, (3) a íntegra da audiência de instrução e julgamento; (4) a
sentença; (5) os recursos da defesa; (6) os despachos e (7) os mandados. No acesso aos processos,
nosso intuito foi identificar quais são os elementos que constroem esses documentos, como, porque
e com qual frequência aparecem.

Narrativa policial
A narrativa dos policiais, que na maioria dos casos são as únicas testemunhas do processo,
posiciona-se de forma central e decisiva para a manutenção da prisão dessas mulheres. A descri-
ção dos acontecimentos pela voz policial é repetidas vezes escrita nos documentos, constando pelo
menos na denúncia e na sentença. O juiz, muitas vezes credibiliza esta versão, a legitimando e a
usando como base na condenação da acusada.

Para tanto, muitas vezes utilizam-se do mecanismo da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do


86 MUITAS MÃOS 87
Rio de Janeiro, que dispõe: “Súm. 70, TJRJ: O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de A questão do território
autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação” (fonte). A citação do território nos processos, bem como a questão do ambiente em que vive a ré, é
Podemos observar no caso da sentença de MADALENA, condenada há 5 anos e 10 meses de reclu- algo recorrente que aparece como argumento na denúncia do Ministério Público e no recebimento
são e 583 dias-multa, que o juiz utiliza o depoimento policial como prova decisiva sobre a autoria do de tal pelo juiz. O “espaço” em que vivem pode definir a acusação final às rés em inocentes ou
delito quando para construir a sentença escreve: “No que tange a autoria do delito de tráfico ilícito culpadas, baseando-se na forma como a localidade é classificada na geografia espacial e racial da
de substâncias entorpecentes imputada à acusada, insta aduzir que os depoimentos dos poli- cidade, que vê certos territórios (favelas, periferias e subúrbios) como perigosos, de risco e conta-
ciais militares, tanto em sede policial, como em juízo, sendo estes já sob o crivo do contraditório, minados. O Ministério Público, vale ressaltar, reproduz na denúncia os inquéritos policiais apensados
são seguros e firmes para corroborar o decreto condenatório contra a ré.” (grifos nossos) aos processos, em que o juiz, por sua vez, acata os argumentos proferidos e age conforme a decisão
do promotor. Isso explica porque e como a questão do território se faz tão presente.
No processo da acusada AUGUSTA, o juiz reitera a importância do judiciário dar crédito aos A principal forma de utilização como argumento em relação ao território seria a criminalização
depoimentos policiais: atrelada a si. A associação da ré com o local “criminoso” fica muito evidente em casos como o de
Ademais, os policiais são servidores públicos e que, até que se pro- AUGUSTA, em que o fato da ré morar em local qualificado pelo juiz como criminoso a faria uma
ve o contrário, se presumem verdadeiras suas declarações, haven- criminosa também:
do, deste modo, presunção juris tantum de idoneidade. Até porque,
não há sentido no Estado credenciar seus policiais para o Além disso, a localidade em que a acusada foi presa em flagrante
combate ao crime e depois lhes negue crédito as suas ver- delito, segundo o relatório apresentado pelo Grupo de Apoio aos
sões. Nesse sentido, há reiteradas decisões do Egrégio Tribunal Promotores de Justiça às fls. 40/44 e o depoimento dos policiais
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. É ler: ´PENAL - TRÁFICO militares, é dominada pelo Terceiro Comando, sendo inegável, por-
DE ENTORPECENTES PROVA - DEPOIMENTO DE POLICIAL - INTE- tanto, que o réu integra organização criminosa.
RIOR DO PRESÍDIO - CAUSA DE AUMENTO RECONHECIDA PROVA
DEPOIMENTO DE POLICIAL - VALIDADE: O depoimento de policial Na localidade há ainda, segundo exposto pelos policiais, “pichações” referentes a um grupo
é válido como qualquer outro, podendo servir de base para uma de facção criminosa, o Terceiro Comando Puro, além da referência de que o bairro é “totalmente
sentença condenatória, mormente quando a defesa não apresenta dominado pela facção”, segundo própria fala dos policiais, tentando comprovar o argumento para
no curso da instrução qualquer tipo de prova que pudesse levar o acusação. Outro argumento presente nessa fala foi: “No dia dos fatos, policiais militares que es-
julgador a desconsiderá-lo. Na verdade, não é razoável que o tavam em patrulhamento perceberam uma movimentação de pessoas característica de tráfico de
Estado pague mensalmente aos policiais para que guarne- drogas em uma via pública no Morro do Quiabo, Bairro Belo Horizonte.” O que caracteriza de fato tal
çam a ordem de pública, e, depois, quando os chama para que trânsito de pessoas como ligado ao tráfico de drogas? A fala por extenso dos policiais nos comprova
prestem contas do trabalho realizado, não venha a lhes dar crédito. que há a classificação, a diferenciação e hierarquização de indivíduos, considerando o lugar que vive
ou frequenta.
Foi identificada a frequência de discursos proferidos pelos juízes e inscritos nos processos
que apela para a razoabilidade do estado e assim alinham a necessidade do judiciário credibilizar o A ação se repete em outros casos, como o de GIOVANA, em que por ser mãe e, portanto,
testemunho dos policiais, pois entendem que essa postura possibilita que estes trabalhem na ga- tendo direito ao habeas corpus coletivo, que contempla mães com filhos menores de 12 anos, não
rantia da ordem pública, estabelecendo ligação direta e comprometida entre o judiciário e a ação pode usufruir do recurso da defesa porque mora em área dominada pelo tráfico, o que pela lógica
policial. De um lado, há presunção de idoneidade caracterizando o julgamento em relação aos de- do judiciário, a tornaria reincidente no crime de tráfico de drogas:
poimentos policiais e legitimando sua ação, de outro há o apagamento e a fragilização dos depoi-
mentos das acusadas. Dessa forma, a gravidade concreta dos delitos e a intensa relação
das indiciadas com o Comando Vermelho não autorizam a prisão
Ao contrário da exaustiva repetição da narrativa policial, os depoimentos das acusadas pouco domiciliar, até porque elas ficarão expostas às investidas de ou-
aparecem documentadas nos processos, assim como as falas das testemunhas da defesa. Quando tros membros da facção. Diante do exposto, mantenho as prisões
aparecem são desqualificadas e deslegitimadas, mesmo aquelas que se encontram em consonância preventivas de GIOVANA, indeferindo o pedido de substituição por
com a versão apresentada pelos policiais. prisão domiciliar.

No caso do processo de GIOVANA, acusada juntamente com outra mulher, ela admite que Em outro caso, DANIELA, a ré não pode ter concedida a revogação da prisão preventiva sob o
transportava drogas, dizendo que o fez apenas aquela vez, devido à falta de emprego e dinheiro e a argumento de que demonstrava perigo aos moradores da localidade em que foi pega em flagrante:
necessidade destes. Mesmo com o depoimento de confissão o juiz o define como “frágil” na sentença e “[...] sendo o local da prisão área originalmente residencial, que foi subjugada, dominada por facção
escreve: “Como se observa, as acusadas tentaram diminuir suas responsabilidades penais, na medida criminosa que aterroriza e ameaça os moradores da localidade (Favela da Linha), já há anos. Assim,
em que as confissões se encontram dissociadas da integralidade da prova coligida aos autos, deven- o restabelecimento da liberdade da custodiada oferece risco à ordem pública, assim considerado
do ser acolhidas apenas em parte, com diversos temperamentos”. E apesar de diversas testemunhas o sentimento de segurança, prometido constitucionalmente, como garantia dos demais direitos
de defesa terem prestado depoimento em prol da liberdade das acusadas, em especial ao pedido de dos cidadãos.” Dessa forma, pode ser considerado que há também a criminalização da ré baseada
prisão domiciliar devido serem mães de crianças menores de 12 anos, o juiz escreve “As testemu- na construção do “sujeito perigoso” que,como influente no espaço em que vive, contribui para a
nhas arroladas pela Defesa não presenciaram os fatos e nada trouxeram de relevante.” retirando as suposta desordem no local.
contribuições dos depoimentos da decisão do processo. A ré foi condenada às penas de 11 anos, 1 Ambos os casos anteriores nos mostram como é possível ser feita a criminalização de sujeitos
mês e 23 dias de reclusão, em regime inicial fechado, e 1720 dias-multa no valor unitário mínimo. pela criminalização do espaço. Nos processos, identificamos como isso afeta a liberdade dessas

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mulheres que moram em áreas nos quais se faz presente o varejo de substâncias psicoativas ilícitas no entendimento do Ministério Público, a demora no excesso de prazo para execução do processo
que estigmatiza sujeitos, populações e território perante a sociedade externa a esses locais e como por si só já seria de bom grado, uma pena não oficial, mas ainda assim vista como justa diante das
a Justiça reproduz de valores morais e preconceitos que as privam de conviver e habitar esses luga- premissas e moralidades envolvidas. O que dá o direito e a liberdade de o próprio Ministério Público
res. condenar essa mulher pode ser a relação de proximidade entre o promotor e o juiz, acarretando na
produção de uma verdade que é composta apenas pela visão da justiça, e não dá ré.
Além dessa questão, há também outro tipo de relação com o espaço. Observado com mais
frequência em cidades pequenas no interior do estado do Rio de Janeiro, em que pode haver até Mesmo que não oficialmente, a narrativa de que há a proximidade entre os agentes da jus-
mesmo apenas uma única vara dentro da única comarca do município, há o argumento de que a tiça e da segurança pública pode ser afirmado novamente pelo fato de que nem sempre haverá na
cidade propicia uma relação mais íntima e próxima entre seus moradores, o que é visto como um denúncia uma “sentença” propriamente dita, mas implícitas em falas jurídicas que legitimam esse
fator para o impedimento à concessão de liberdade a essas mulheres. GABRIELA foi presa em fla- discurso errôneo e que não se volta para o entendimento à acusada.
grante e não lhe foi concedida a liberdade provisória/revogação da prisão preventiva pela seguinte
alegação: “[...] Ademais, considerando ser esta cidade uma localidade pequena, na maioria das ve- Partindo desse pressuposto, há muito o que se falar na relação das moralidades que per-
zes os familiares residem próximos uns dos outros, facilitando os cuidados e assistência às crianças. meiam todas as alegações presentes nos processos de tráfico de drogas aqui retratados. Podemos
Sendo assim, levando-se em consideração o constante dos autos, o caso em tela não comporta a relacionar duas prerrogativas que se encaixam no mesmo eixo referente ao discurso do judiciário:
aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, eis que a custódia da indiciada se faz plenamen- ao de que apenas a palavra da justiça é validada na produção de verdade nos documentos do pro-
te necessária, uma vez que adequada à gravidade e às circunstâncias dos supostos ilícitos. Portanto, cesso e as moralidades sobre o tráfico de drogas que acabam criando mecanismos para manter a
em que pesem os argumentos apresentados pelo ilustre e zeloso patrono, não há como ser deferido, prisão de mulheres envolvidas em tal.
nesse momento, o pedido de Liberdade Provisória.” Vale ressaltar que a ré havia para si a guarda
do filho de 2 anos, sendo então seu dependente. Droga e moralidades
Voltando ao caso de MADALENA já no primeiro documento que consta no processo que jus-
A denúncia do Ministério Público tifica a conversão do flagrante (a partir dos autos da polícia) em prisão preventiva a juíza inscreve
Como já citado, a denúncia do Ministério Público é fruto do inquérito policial, este por sua “Há que se ressaltar que o tráfico de drogas é dos crimes mais nocivos do meio social, pois traz
vez apensado ao processo mas não disponibilizado na consulta online do TJRJ, apenas em sua ver- consigo outros delitos de grande impacto como homicídios e roubos, sendo que a liberdade, indu-
são física nas varas. No recebimento da denúncia, o juiz acata a decisão do promotor, e seguindo bitavelmente, representará fonte inesgotável de intranquilidade e insegurança para a sociedade,
essa linha de raciocínio, o castigo e a punição já começam no flagrante em que a polícia realiza a contribuindo para a descrença na Justiça e estímulo à reiteração de condutas criminosas”. Assim,
prisão e por meio da ação do delegado, a autoridade policial, profere a sua versão condenatória associa a prática pela qual a ré é acusada (tráfico de drogas) a outros delitos (homicídios e roubos)
produzindo a verdade que será escrita nos documentos oficiais justificando e legitimando a prisão dos quais não tem nenhuma relação com o processo, a colocando como uma “pessoa perigosa” e
dessas mulheres. Como essa relação se dá de forma muito próxima, interpessoal, as competências que, portanto, não deve estar em contato com a sociedade.
e instâncias atribuídas a cada um dos atores envolvidos vão sendo embaralhadas e incorporadas
umas às outras. O Ministério Público, portanto, profere a sentença, ou sua sugestão para tal que Depois disso, a defesa fez um pedido de liberdade, indeferido pela mesma juíza que continua
será aceita, claramente, que pune a acusada na denúncia. no mesmo movimento de criminalização da ré:

A fala do Ministério Público, presente na decisão do juiz à ré ANA representa de forma clara Quanto ao periculum libertatis, embora não se trate de crime come-
tal fundamento: tido mediante violência ou grave ameaça, é despiciendo ressaltar
que tal delito - tráfico de entorpecentes - é dotado de grande re-
Outrossim, a princípio, caso venha a ser condenada, não se tem jeição social. Demonstra-se que se a acusada estiver em liberdade
certeza se, de fato, a ré terá a pena privativa de liberdade substi- tem a grande possibilidade de voltar a associar-se à traficância,
tuída por restritiva de direitos, uma vez que isso se confunde com colocando em risco a ordem pública; e que, mantida a custódia
o mérito, de molde a ser enfrentado, na hipótese de eventual pro- cautelar, a conveniência da instrução criminal e a garantia da futura
cedência do pedido acusatório, no momento da dosimetria da pena aplicação da lei penal, estarão resguardadas”
atento às diretrizes traçadas no art. 44 da Lei 11.343/06, de modo
que não há que se falar, definitivamente, em violação ao princí- E concluiu invocando o judiciário enquanto instituição que deve promover a punição:
pio da homogeneidade, bem como adentrar em eventual discussão
quanto à aplicação do redutor do art. 33, §4º da mesma Lei. Além Entende este Juízo, que o vertiginoso crescimento do tráfico de
do mais, se encontra preservado o requisito estampado no art. 313, drogas na região, crime hediondo e que leva à prática de vários
I do CPC, já que a pena máxima do crime em questão supera os outros crimes, não pode fazer com que a sociedade se acostume
quatro anos. com a sensação de impunidade, merecendo que o Poder Judiciário
A ré foi condenada a não ter a prisão preventiva revogada ou a liberdade provisória concedi- atue não só na apuração escorreita dos fatos trazidos à baila, mas
da sob a premissa de que havia a possibilidade de que, quando fosse condenada, não seria atribuída também dê respostas à sociedade, que não raras vezes desacredita
a cumprir com medidas cautelares como um exemplo de uma pena restritiva de direitos, mas sim no Poder Judiciário como Órgão da Justiça, pelo que se faz presen-
deveria cumprir com uma pena de total privação de liberdade, pois o Ministério Público entende que te a necessidade de garantia da ordem pública.
a ré deve permanecer na prisão para pagar por algo que ainda não lhe foi condenado ou destinado Neste caso, a ré foi acusada de ser encontrada com drogas em sua residência, evidências es-
a cumprir. Há ainda o detalhe de que a pena mínima para esse tipo de conduta é de 4 anos. Ou seja, tas apreendidas pelos policiais gerando laudo de apreensão de entorpecentes que aparece repetidas

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vezes no processo. Não foi flagrada com mais nada além das drogas, e mesmo assim é associada à espectro político específico – no contexto do Brasil, à esquerda -, trata-se de agenda que transcende
outros tipos de crimes nos discursos proferidos pelos juízes, a qualificando enquanto criminosa de polarizações ideológicas. Na República Federativa do Brasil, exigir a redução das desigualdades so-
“alta periculosidade” e justificando o seu encarceramento. ciais não é ser socialista, comunista ou anarquista: é meramente lutar pela fiel aplicabilidade do tex-
to constitucional, evitando que este se torne, consoante preconizado por Ferdinand Lassalle, “mera
No caso de CARLA pode-se encontrar mais um exemplo de como a conduta do tráfico de folha de papel”. Com efeito, mormente após a influência do neoconstitucionalismo, não há que se
drogas é associada como a “raiz” para outras infrações: “Aliás, consigne-se que a nocividade duvidar da imperatividade das normas constitucionais, cujo cumprimento vincula o Poder Judiciário,
social do crime de tráfico de drogas é elevadíssima, constituindo um dos maiores flagelos da o Poder Legislativo, bem como o Poder Executivo - no caso deste último, independentemente de
sociedade contemporânea, sendo esse delito a matriz de muitos outros crimes, circunstâncias estas qual plano de governo tenha emergido vitorioso nas eleições.
que impõem a manutenção da custódia cautelar dos acusados para se resguardar a ordem pública.”,
tratando o fato de que tal conduta causaria uma “epidemia social”. Aqui, a ré foi presa em flagrante Neste ponto, impende ressaltar que a Teoria da Separação dos Poderes, tornada célebre
em conjunto com outra pessoa. por Montesquieu, indica que os Estados modernos devem configurar-se de forma a atribuir as fun-
ções estatais a esferas distintas. Efetivamente, as experiências históricas que desencadearam, por
Em grande parte dos processos os argumentos que constroem e justificam a condenação são exemplo, na Independência das Treze Colônias e na Revolução Francesa, demonstraram o perigo
atravessados pela carga moral dedicada ao tráfico e consumo de drogas. Categorias morais e técni- da concentração destas funções. Sendo assim, o art. 2o, da CRFB/88 preconiza que “São Poderes
cas se entrelaçam na composição dos documentos, conformando um cenário que coloca as drogas da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
como um dos principais malefícios da sociedade e portanto a necessidade de combate e punição,
que no caso do judiciário se dá através do encarceramento. Ocorre que, inobstante a especialização das funções em esferas distintas, as atividades legis-
lativa, executiva e judiciária emanam de um mesmo Estado, uno e indivisível. Com vistas a, dentre
outras coisas, obstaculizar sobreposições perenes de um dos Poderes sobre os demais, conceituou-
Alice Magalhães Ribeiro é graduanda em Antropologia (UFF), voluntária da Agenda Feminista pelo Desencarceramento, -se o sistema de Checks and Balance, isto é, freios e contrapesos, que asseguram a atuação harmô-
Pesquisadora do GEPADIM/INCT-InEAC/UFF. nica e o controle recíproco entre as esferas estatais.
Rebeca Sophia Lima Azeredo é graduanda em Segurança Pública e Social (UFF), voluntária da Agenda Feminista pelo
Desencarceramento, Pesquisadora do LAESP/INCT-InEAC/UFF Contudo, um elemento adicional há que ser considerado para a homeostasia do funciona-
mento da Tripartição dos Poderes. Este consubstancia-se no controle popular, que deve ser exercido
de forma direta e indireta. É neste contexto que iniciativas como a Agenda Feminista pelo Desen-
carceramento revelam sua vital importância. Isto porque é inegável o imperativo de participação
ativa da sociedade civil, na forma de fiscalização, para o adequado funcionamento da Tripartição dos
Poderes.

Neste diapasão, pode-se questionar como o projeto em comento teria o potencial de con-
AGENDA PELO DESENCARCERAMENTO: tribuir para a concretização dos objetivos constitucionais anteriormente mencionados. Breve aná-
lise dos indicadores sociais no Brasil demonstra que o sistema penitenciário é tema central para a
OBJETIVOS E DESAFIOS DO CONTROLE SOCIAL DO ESTADO compreensão e, em última medida, para a desarticulação das assimetrias sociais. Efetivamente, o
POR LUIZA DUARTE LINDOSO estudo das estatísticas relativas ao fenômeno da criminalidade indica que, conquanto setores deter-
minados – a exemplo da mídia -, ordinariamente, desejem orientar políticas criminais com base em
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 possui, como eixo axiológico, o
delitos como homicídio, estupro e outros que causam grande repulsa popular, os tipos penais mais
praticados no Brasil ocorrem no âmbito patrimonial e no contexto do tráfico de drogas.
postulado da dignidade humana. Tal princípio encontra-se positivado em diversos dispositivos cons-
titucionais e está previsto já em seu art. 1o, que, no inciso III, reconhece que a dignidade da pessoa
Desta forma, a veiculação de narrativas de populismo penal é operacionalizada como sub-
humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.
terfúgio para distrair a sociedade do fato de que o fenômeno da criminalidade no Brasil ainda está
intimamente relacionado a questões sociais. Reflexo disso é o fato de que a população carcerária
Trata-se de previsão que reverbera em diversos níveis, a exemplo do fato de que “construir
no país tem cor e classe1. Partir de tal premissa leva à inexorável conclusão de que investimentos
uma sociedade livre, justa e igualitária” constitui-se como objetivo fundamental do Brasil, nos ter-
em políticas públicas de qualidade, como de educação, saúde, cultura, moradia, dentre outras, con-
mos do art. 3o, I, da Carta Magna. Outrossim, o mencionado artigo, em seu inciso III, prevê como
substanciam instrumento essencial ao combate aos índices de violência.
objetivo “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Ademais, em seu art. 23, X, a CRFB/88 registra que “combater as causas da pobreza e os fatores de
Destarte, torna-se evidente a importância de inciativas como a Agenda pelo Desencarce-
marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos” é competência comum
ramento, a qual, ao debruçar-se sobre o tema da prisão provisória nas cidades do Recife e do
de todos os entes federativos. É dizer, cabe à União, Estados, Distrito Federal e Municípios articular
Rio de Janeiro, fornece sua contribuição na busca pela materialização dos objetivos fundamentais
esforços no afã de concretizar os citados fundamentos.
positivados na CRFB/88. Cumpre salientar que, para além do impacto imediato do projeto, com a
impetração de habeas corpus em favor de presas provisórias, a Agenda pelo Desencarceramento
Como se vê, restam evidentes a cautela e o compromisso do poder constituinte originário
em dar status constitucional à matéria da defesa da dignidade humana, vinculando a essência do 1 Em 2018, 61,7% dos presos eram pretos ou pardos, apesar de 53,63% da população brasileira pertencer a essa cate-
Estado de Direito no Brasil à materialização – a curto, médio e longo prazo – destas finalidades. goria. Ao revés, os brancos são 37,22% dos presos, inobstante representarem 45,48% da população em geral. Relativamente ao
tema, vide: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-
Infere-se, pois, que, conquanto haja propensão de identificar estas pautas como pertencentes a um -brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao.
92 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 93
alçou contribuição ainda mais ampla, vez que se propôs a produzir o presente Manual, objetivando sempre presente, o que pressupõe a efetivação das previsões legais relativas à publicidade e trans-
incentivar e orientar ações similares em outras cidades. parência, sem as quais resta impossibilitado qualquer esforço de fiscalização da atividade estatal.

Sendo assim, a integridade do Estado de Direito e o comprometimento com a materialização A vivência da Agenda pelo Desencarceramento permitiu concluir que projetos como o ora em
dos direitos fundamentais pressupõe, necessariamente, uma sociedade civil vigilante. Conforme fri- desenvolvimento são instrumentos essenciais na luta pela materialização dos direitos fundamentais
sado alhures, trata-se de elemento essencial à homeostasia da Tripartição de Poderes. Ocorre que e, para além de pertencerem a espectro político específico, buscam nada mais que a concretude
a fiscalização pressupõe publicidade e transparência. A CRFB/88, em reiterado compromisso com a das previsões constitucionais. O estudo dos indicadores sociais concernentes à população carcerária
soberania popular, positivou, no caput do art. 372, que o princípio da publicidade deve ser observado é elemento chave para a compreensão das desigualdades sociais. Ainda que indispensável, a aná-
nas práticas administrativas. Ademais, no inciso II do § 3º do mesmo dispositivo, a Carta Magna lise por si só não basta: deve, sim, embasar articulação de ações práticas, compondo verdadeira
preconiza que lei disciplinará “o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações dialética, no afã de enfrentar as assimetrias socioeconômicas no Brasil. Encerra-se este ciclo na viva
sobre atos de governo (...)”. Tal disposição foi regulamentada pela Lei. no 12.527/2011, conhecida esperança de que a presente iniciativa frutifique contribuições para esta Agenda.
como Lei de Acesso à Informação.

Não obstante, o sistemático desrespeito às referidas disposições normativas configurou obs-


táculo à fluidez do projeto já em sua fase inicial. Com efeito, fez-se necessária verdadeira cruzada
para o fim de obter-se dados oficiais acerca das mulheres em situação de prisão provisória na cidade
do Recife. Tratava-se de informação essencial para o desenvolvimento da Agenda, eis que a lista
embasaria a pesquisa e, ato contínuo, a atuação judicial do projeto, com consequente impetração SER MÃE INFRATORA NO CÁRCERE
de habeas corpus em favor das presas provisórias. POR MARIA LUÍZA M. D. CABRAL

Surpreendentemente, além da dificuldade de acesso à lista das presas provisórias em Re-


cife, novo entrave foi outorgado às atividades da Agenda pelo Desencarceramento. Antecipando O retrato da mulher presa muito tem a dizer sobre o insucesso do Sistema Penal brasileiro.
obstáculos que poderiam ser vivenciados na fase de coleta de dados, emitiu-se ofício, o qual fora É que, o Estado Democrático e Social de Direito, assim definido por meio da Constituição Federal
entregue em todas as varas, descrevendo o projeto e relacionando os processos que seriam alvo de (CF), somente estará concretizado quando, além das prestações positivas que servem para assegu-
consulta pelas voluntárias. rar um mínimo existencial aos seus tutelados, estabelece um Direito Penal como ultima ratio.

Apesar de, em algumas varas, as voluntárias terem logrado êxito em consultar os processos O baixo índice de criminalidade entre as mulheres fez com que, durante séculos, os Estados
sem maiores dificuldades, tendo, inclusive, encontrado os autos já separados, a maioria deparou-se se mantivessem alheios à necessidade de criação de unidades prisionais voltadas exclusivamente
com realidade que fere de morte as referidas previsões legais. Isto porque os atendentes recusa- para mulheres.
vam-se a apresentar os processos para consulta, alegando, muitas vezes, “falta de tempo”. Ante
eventual apresentação da voluntária como advogada, estas mesmas pessoas viam-se obrigadas a Em sua origem, o sistema prisional feminino foi administrado pelas freiras da Congregação
disponibilizar os autos. Ora, verifica-se que, na prática, os operadores do Poder Judiciário esperam do Bom Pastor, fundada na França em 1835 por Santa Maria Eufrásia Pelletier, que atuou na admi-
que o interlocutor pertença a categoria profissional específica, como condição para o acesso aos au- nistração de cárceres femininos nos quatro continentes do globo, desde o início do século XIX até
tos processuais. Por conseguinte, infere-se que há uma perspectiva falaciosa de que apenas grupos final do século XX. 3
sociais determinados dispõem de interesse quanto aos dados ali constantes, ignorando o direito e
dever de todo cidadão de exercer a fiscalização da atividade estatal. Somente na década de 1930, é que a institucionalização do encarceramento feminino no
Brasil foi iniciada e até hoje ecoam as sequelas de um sistema que foi pensado sem qualquer pers-
Impende registrar que a maior parte dos processos listados não tramitava em segredo de pectiva de gênero.
justiça. É evidente que, neste cenário, o acesso ao teor dos atos processuais deve ser facilitado não
só para as partes, como também para a sociedade em geral. Isto porque, para além da natureza De acordo com o primeiro Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen
pública dos dados, a aferição da adequação e eficiência da prestação jurisdicional deve ser feita Mulheres 2014), realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da Jus-
com o auxílio dos usuários do Poder Judiciário - efetivos e potenciais -, os quais, ao personificarem tiça, o Brasil conta atualmente com uma população carcerária de 37.380 mulheres, apresentando,
o elemento teleológico do serviço em si, dispõem de lugar de fala privilegiado para a avaliação do a quinta maior população carcerária feminina do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos,
sistema de justiça. Após sucessivas experiências desagradáveis, verificou-se que a identificação China, Rússia e Tailândia.4
prévia como voluntária de projeto, mormente um que conta com o termo “feminista” no nome, não São, em maioria, mulheres jovens, de etnia negra, com baixo nível de escolaridade, pobres e
era estratégico no contexto da atuação nas varas. enquadradas, principalmente, em crimes que guardam relação como o tráfico de drogas e contra o
patrimônio. Daí a conjectura de que o sistema punitivo atual adota uma política criminal discrimina-
Em suma, a clássica Tripartição de Poderes, com o sistema de freios e contrapesos, de per si, tória e seletiva, impactando de forma desproporcional as mulheres pobres e suas famílias, em uma
não basta para manter íntegro o Estado de Direito. É dizer, a previsão de controles recíprocos entre 3 KARPOWICZ, Débora Soares. Prisões Femininas No Brasil: Possibilidades de Pesquisa e de Fontes. In: ENCONTRO ESTA-
o Poder Judiciário, o Poder Executivo e o Poder Legislativo, conquanto de evidente importância, DUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH RS, 22., 2016, Santa Cruz do Sul. Anais eletrônicos... Santa Cruz do Sul: UNISC, 2016. p. 1-14.
deve ser complementado pela atuação de uma sociedade civil vigilante. O controle social deve estar Disponível em: < http://www.eeh2016.anpuh-rs.org.br/resources/anais/46/1469038254_ARQUIVO_ArtigoANPUHRegional-Final.
pdf>. Acesso em: 26 out. 2017, p. 2.
2 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos 4 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias, INFOPEN –
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014, p.1-42. Disponível em:< http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-
(...). -da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf/view>. Acesso em: 12 out. 2017, p. 5.
94 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 95
constante ofensa ao princípio da isonomia. com filho de até 12 anos de idade incompletos.

O art. 37 da Parte Geral do Código Peal abarca a regra do regime especial direcionado à Percebe-se, com isso, que o legislador buscou preconizar a manutenção da convivência fami-
mulher alicerçado na CF, determinando que “as mulheres devem cumprir pena em estabelecimento liar entre a mãe infratora e sua prole fora do sistema.
próprio, observando os deveres e direitos inerentes à sua condição pessoal” (BRASIL, 2018, on-li-
ne). Cerca de dois anos depois, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o órgão de cúpula do
Poder Judiciário, a quem compete, precipuamente, a guarda da Constituição, conforme definido
Por direitos inerentes à sua condição pessoal compreendem-se todos aqueles provenientes em seu bojo, concedeu, no dia 20 de fevereiro de 2018, ordem de Habeas Corpus Coletivo nº
de sua condição de mulher, incluído o direito à maternidade. Nesse diapasão, buscou-se estudar a 143.641-SP, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, para determinar a substituição da prisão
realidade das mães infratoras privadas liberdade sob a ótica da legislação brasileira com o objetivo preventiva pela domiciliar de todas as mulheres presas gestantes, puérperas, ou mães de crianças
de constatar se o tratamento dispensado pelo Estado está em adequação com a vontade do legis- e deficientes sob sua guarda, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência
lador. ou grave ameaça, contra seus descendentes.

Como ponto de partida, imprescindível aduzir que, pelo princípio da intranscendência da Dentre os fundamentos, estão todos os pontos de dissociação da realidade carcerária femi-
pena (a pena não pode transcender a uma pessoa além do próprio indivíduo apenado), embora as nina e da legislação constante do ordenamento jurídico pátrio, sobretudo a evidência que a manu-
mães infratoras tenham transgredido a lei penal, sua prole não pode receber nenhum tipo de dano tenção de prisão preventiva de mulheres e de suas crianças em ambiente inadequado e superlotado
ou punição em nenhuma hipótese. afronta sistematicamente os princípios da intranscendência e da primazia dos direitos da criança.

Essa dicção nos coloca diante de uma situação paradoxal: separação dos sujeitos versus ins- Dez meses depois, a Lei nº 13.769, de 19 de dezembro de 2018, acrescentou o art. 318-A
titucionalização da criança. no Código Penal Brasileiro, colocando, pois, em enfoque, uma possível saída para o cenário até
então paradoxal construído pelo ordenamento jurídico: passou a estabelecer como norma cogente
A realidade do sistema brasileiro demonstra que ausência de condições propícias para o de- a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou res-
senvolvimento da criança não só afeta sua capacidade de aprendizagem e de socialização, como ponsável por crianças ou pessoas com deficiência.
também vulnera gravemente seus direitos constitucionais, legais e convencionais.
De outro lado, entre as mulheres mães infratoras, existe um sentimento comum: a dor da separação Maria Luíza M. D. Cabral é pernambucana, advogada, feminista antiproibicionista.
-, pois a legislação brasileira apenas permite que a permanência dos seus filhos na unidade até no
máximo sete anos de idade.

A maior tristeza está no fato dessas mães não poderem acompanhar o crescimento de seus
filhos, participar de fases importantes de suas vidas e, por conseguinte, não tendo elas cumprido
seu papel na educação convencional, tornarem-se apenas uma vaga lembrança estampada em fo-
tografias ou esperança de reencontro.
AS HISTÓRIAS POR TRÁS DOS MUROS:
Por ter como escopo basilar a regulamentação da execução das penas e das medidas de A POLÍTICA DE SOCIOEDUCAÇÃO DA PONTE PRA CÁ
segurança, a Lei de Execução Penal (LEP) é, sem dúvida, a codificação que traz mais proteções à POR LÍDIA LINS
maternidade e outros direitos a ela correlatos.

Alterações promovidas em seu bojo pela Lei nº 11.942, de 28 de maio de 2009, elencaram Começo esse texto dizendo que a minha liberdade de escrever não me permite torná-lo
regras criadas justamente no intuito de assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mais um texto acadêmico cheios de dados e de distanciamento total da realidade. Aqui nós teremos
mínimas de assistência. dados, mas junto a eles todos os sentimentos possíveis das experiências que já tive dentro do Cen-
tro de Internação, onde as adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativa de Internação
Muito embora exista um vasto conjunto de previsões legais que visam proteger a maternida- estão neste exato momento em Pernambuco. Por isso, deixo as (os) leitoras (es) cientes de que não
de e os direitos da mulher mãe infratora e de sua prole, a realidade o país é um cenário de constante tenho a pretensão de provar uma falsa separação entre as coisas que estão diretamente relaciona-
afronta aos direitos e garantias fundamentais desses envolvidos. das, como é sugestionado na produção científica. Ano passado, tive a oportunidade de começar um
estágio em uma Organização Não Governamental (ONG) que atua prioritariamente como centro de
Dentro desse contexto de precariedade estrutural e aparato necessário à garantia dos direi- defesa dos direitos da Criança e do Adolescente, no monitoramento da política de socioeducação
tos da mãe infratora e de sua criança, conclui-se que uma melhor possibilidade de exercício de ma- em pernambuco e nas pautas relacionadas à segurança pública, o Gabinete de Assessoria Jurídica
ternidade ocorrerá sempre fora da prisão. Reforçada, portanto, a importância de, numa crescente às Organizações Populares (GAJOP). Desde então venho acompanhando as incidências do GAJOP
busca por uma maior igualdade de gênero, se conferir atenção especial a essas mães infratoras. dentro das unidades de internação do estado, além de participar das mais diversas atividades que
vai desde o advocacy com os atores do sistema de justiça juvenil até as discussões sobre a política
Tanto é assim que o Código Processual Penal, no ano de 2016, com alteração promovida pela de socioeducação, a política de drogas, entre outros temas ligados a política de segurança pública
Lei nº 13.257, denominada de Estatuto da Primeira Infância, passou a prever em seu art. 318 que, no Brasil, desenvolvendo um intercâmbio com outras Organizações da Sociedade Civil (OSC) com
o juiz poderá substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante ou mulher atuação semelhante.

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Segundo os dados fornecidos pela Fundação de Atendimento Socioeducativo (FUNASE), a Fez um ano desde a primeira vez que entrei no CASE Santa Luzia, nesse mesmo ano que
instituição responsável pela execução da política de socioeducação, a população feminina aumentou estava estampado nos noticiários locais que o Ministério Público de Pernambuco começaria a investi-
cerca de 6% no ano de 2018, seguindo um ritmo contrário aos três anos anteriores, essa população gar acusações de abusos sexuais e violências físicas praticadas por três agentes socioeducativos em
representa 4% total de adolescentes atendidos pelo sistema socioeducativo. Ainda neste relatório, desfavor de reeducandas. De lá para cá o problema da superlotação da unidade, que tem capacida-
temos a notícia de que do total de adolescentes em “conflito com a lei” atendidos pelo sistema socio- de para 20 adolescentes, mas já estive com 40, foi impulsionado a ser resolvido depois da decisão
educativo 89% são negros e pardos, cerca de 69% tem entre 15 e 18 anos, 54% tem renda familiar liminar do Habeas Corpus (HC) coletivo 143988 proposto pela Defensoria Pública do Espírito Santo
de 1 a 3 salários mínimos e 80% só cursaram até o ensino fundamental. Munida dessas informações concedido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, em maio deste ano, contra a
eu entrava a primeira vez no Centro de Atendimento Socioeducativo - CASE Santa Luzia. Lembrando superlotação no sistema socioeducativo. A população reduziu e as histórias? As histórias continuam
desse episódio, me veio em mente, que o som que poderia embalar esse momento era exatamente se cruzando com as minhas. São adolescentes que no limite das possibilidades que lhe são apre-
a seguinte frase de uma das músicas de Djonga, um rapper mineiro: “olho corpos negros no chão, sentadas sonham, desejam, planejam. A cada encontro trocamos nossas experiências, nos reconhe-
me sinto olhando o espelho”. Olhava aquelas adolescentes com seus corpos aprisionados e negados cemos umas nas outras, eu aprendo e ensino sobre direitos humanos, direito à cidade, feminismo,
e me via olhando o meu, poderia ter sido meu corpo aprisionado ali há uns anos atrás se no pro- racismo, LGBTfobia e sobre todos os outros direitos e deveres que nós temos formalmente, mas
cesso de falha e ausência de todas as outras políticas públicas eu não tivesse sido salva pela dança que são violados para a nossa manutenção na base da pirâmide e as opressões estruturantes. Nos
e a cultura popular, poderia ter sido meu corpo. Cresci em um das Unidades Residenciais (URs) tida empoderarmos juntas naquelas horas mínimas de trocas, afinal o empoderamento é coletivo. No
como uma das mais violentas do bairro do Ibura | COHAB, localizado na periferia da zona sul de fim, quando cruzo o portão para rua o peito aperta e o sentimento de impotência predomina, eu sei
Recife. Então os dados que dizem que a maioria das adolescentes que estão ali são pretas e pobres que toda presa é presa política e a socioeducação no Brasil está longe de ter um caráter pedagógico
só fecha o ciclo das violências que eu sempre vi os meus e minhas (vizinhas, parentes, conhecidas, como prevê o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Mas nem sempre vamos
amigas) serem acometidas. A realidade é que o embrulho no estômago que eu sinto todas as vezes conseguir atender os olhares que muitas vezes pedem socorro, não poderemos voltar ao tempo e
que reflito sobre isso só confirma que eu sabia desses dados antes de consultar qualquer relatório. cessar as violações de direitos vividas e muitas vezes temos que tentar dar conta de minimizar as
Essa é a realidade explícita para nós. nossas dores e violações individuais. Nos nossos encontros não nos prometemos nada, porque eu e
elas sabemos que como nós ensinou Racionais Mc’s “o mundo é diferente da ponte pra cá” e do nos-
Quando eu estava na frente do muro pela primeira vez eu não sabia quais eram os rostos so lado da ponte temos esgoto a céu aberto, barreiras que deslizam, companheiros que são mortos
que eu encontraria do outro lado, se teria algum rosto familiar, mas eu sabia que as histórias que eu e encarcerados, falta de iluminação pública, nossas mães solos fora do lar por mais de 12 horas para
encontraria de algum modo se cruzariam com a minha e até hoje a sensação é sempre a mesma. trazer comida para casa, falta de creche para nossas crianças, falta de iluminação pública, postos de
Quando cruzo aqueles portões um sentimento terrível de vigilância e perseguição me acompanham, saúde que não funcionam, escolas sem professores… Uma lista infinita de problemas para enfrentar.
não consigo deixar de sentir. Embora eu esteja sempre vestida de uma maneira “branca”, como Eu sigo sonhando por um mundo que a juventude negra não esteja nem morta nem encarcerada,
quando colocamos disfarces achando que estamos blindados, tentando usar o máximo de peças porque o direito a revolução ninguém me tira, e enquanto o sonho não se realiza eu luto por mim e
de roupas sociais possível, os olhares dos agentes do Estado são sempre na tentativa de nos cons- por elas, se há uma coisa que nós sabemos fazer é verdadeiramente não soltar as nossas mãos.
tranger, são questionadores, estampando o racismo institucional nosso de cada dia. Um dia li um
relato de uma companheira jovem, negra, pobre e estudante de direito como eu dizendo que ao
sair de uma atividade realizada em uma unidade prisional feminina foi confundida com uma das
custodiadas, tenho certeza de que se alguma pessoa branca ler o que estou escrevendo não saberá
do que falo, não saberá do medo que sentimos da mão punitiva do estado mesmo sem ter feito
absolutamente nada contrário à lei. Assim como nos sentimentos coibidas nos espaços de poder,
como quando cheguei fui a primeira vez em um fórum e enfrentei várias dificuldades para acessar BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRISÃO PREVENTIVA
processos de mulheres privadas de liberdade, precisava obter dados para as atividades do proje-
to Agenda Feminista pelo Desencarceramento, mas os questionamentos e olhares dos servidores E O ENCARCERAMENTO DE MULHERES
eram infinitos, como assim uma pesquisadora negra? Como assim estudantes de direito negra? POR AMANDA SALGADO ROCHA
Como assim uma advogada negra? Quando vejo colegas brancas da universidade relatarem que já
se apresentam como advogadas nos fóruns sem enfrentar dificuldades, acessam o que precisam e A prisão preventiva é uma das espécies de medidas cautelares da ação penal previstas
seguem normalmente, me pergunto: o princípio da publicidade serve para todas e todos? Nossos no ordenamento jurídico brasileiro. O instituto, em teoria, busca o asseguramento dos interesses
corpos incomodam e inquietam as estruturas e isso é um fato. Além disso, no Brasil se declarar da jurisdição penal privando o sujeito provisoriamente de liberdade a fim de que seja garantida da
feminista e participar do movimento de direitos humanos ameaça sua segurança, por vezes pelo efetividade da persecução criminal.
próprio Estado. Marielle presente! Pensar no racismo institucional passou a me consumir ainda mais
quando percebi que, mesmo quando eu estou rodeada de pessoas brancas, os olhares sobre o meu Em específico, a prisão preventiva, tem como objetivo frustrar que determinada conduta de
corpo pesam e que aquelas adolescentes, privadas de liberdade, sem blindagem alguma em uma suposto autor ou terceiro possa colocar em risco a efetividade da persecução criminal, tanto na fase
sociedade punitivista deveriam sentir e vivenciar experiências que eu jamais saberei. Entendam, o de investigação quanto na instrução processual. Contudo, por ser medida que restringe liberdade
que relato aqui está para além do exercício da empatia só quem viveu da ponte pra cá saberá do antes de uma sentença que anuncie condenação, sua decretação fica restrita à requisitos elencados
que falo. Quase quatro séculos de escravização nos rendeu de herança liderar as estatísticas que no arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal.
apontam as violações de direitos, estamos disparadas como as maiores vítimas de violência física
e sexual, somos nós mulheres negras que temos as menores remunerações, somos nós que mais A legislação penal brasileira não prevê prazo expresso para a duração das medidas cautela-
morremos, somos nós que vivemos a solidão em suas diversas facetas, somos nós que estamos com res, e consequentemente, da prisão preventiva, tendo como única exceção às condutas praticadas
os nossos corpos aprisionados. por organizações criminosas. Ainda assim, a prisão preventiva, assim como as demais cautelares,
deve ter sua duração adequada à existência das causas da sua fundamentação.
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A doutrina jurídica coloca como existente três requisitos a serem avaliados, quais sejam: a seguido de 15% nos casos de roubo, 10% nos casos de furto e 37% de outros crimes.
complexidade do caso; a atividade processual do interessado; e a conduta das autoridades judiciá- O recorte traçado pelo perfil de mulheres encarceradas no país, apesar da diferença em relação aos
rias. No entanto, a ausência de um prazo fixado na legislação para o término da prisão preventiva homens, revela as consequências de uma política de encarceramento em massa construída por um
deixa o acusado em maior risco de ficar à disposição da vontade do Estado e à violação de direitos sistema penal seletivo, evidenciando igualmente a pré-condenação das acusadas e por quais tipos
e garantias. de delitos.

Assim, foi elaborado pela jurisprudência o entendimento de que no caso de réu preso provi- Além da realidade trazida com a observância do panorama carcerário pela questão da prisão
soriamente durante o processo, seria considerado como estimativa para o término da prisão o perío- preventiva no âmbito do encarceramento de mulheres, o Projeto Agenda Feminista pelo Desencar-
do total dos prazos previstos em lei para a prática dos atos processuais no curso da ação processual ceramento trouxe também o reconhecimento de uma série de dificuldades práticas quanto a atua-
penal, sob pena de constrangimento ilegal e com a possibilidade de impetração de habeas corpus, ção jurídica.
com fundamento no art. 648, II, do CPP, o qual considera ilegal a coação “quando alguém estiver
preso por mais tempo do que determina a lei”. Evidentes foram os obstáculos em relação a coleta de dados acercas das mulheres que esta-
vam presas provisoriamente no estado de Pernambuco, a dificuldade em relação ao acesso dos au-
O prazo previsto para o encerramento da instrução criminal, em que se utilizava para a tos tendo em vista serem processos físicos, restrições quanto a informações disponíveis em consulta
questão já pacificada e sumulada pelas supremas cortes (Súmula 21 e 52 do Superior Tribunal de pública online, o deslocamento às varas (principalmente as localizadas no interior), dentre outras
Justiça), era de 81 dias, até o advento da Lei nº 11.719/08, que trouxe a modificação dos ritos complexidades melhores expostas nos relatos acerca do Projeto.
processuais penais, alterando a contagem para aplicação da jurisprudência, devendo então serem
consideradas as particularidades e complexidades de cada caso. Todas essas circunstâncias permeiam a retirada de direito às prerrogativas constitucionais
mínimas no processo penal de determinados acusados no Brasil, imputando-se a estes o peso dos
Nesse contexto, o risco se concretiza e a prisão preventiva chega, por muitas vezes, a violar efeitos da pena antes mesmo de um julgamento.
valores e garantias que são estabelecidos por este próprio ordenamento jurídico como a dignidade
da pessoa humana, impondo uma pré-condenação ao acusado. E isso se dá pela discricionariedade Isto porque mediante o controle e vigilância do Estado disciplinador sobre a vida do sujeito,
dos requisitos legais para a duração da preventiva e o impasse do prazo estabelecido pela juris- não mais importa sobre o que é a acusação. E sim, a existência de um processo, que padroniza
prudência, bem como a possibilidade de seu uso de forma indiscriminada, tendo em vista que os aquele indivíduo através de um estereótipo, guia suas condutas, determina seus saberes, conferin-
requisitos para sua decretação podem ser colocados de forma ampla e subjetiva, por exemplo, a do-lhe apenas as características daquele que comete uma conduta desviante.
“garantia da ordem pública” em que não se sabe ao certo o que pode ser ou não enquadrado como
risco de tal garantia. Os efeitos da prisão se reproduz na vida de qualquer acusado: sua pré-condenação pela
impossibilidade de defesa proporcionada pelo próprio Estado, a imposição do estigma de acusado
De acordo com os dados do INFOPEN Mulheres 5referentes ao levantamento de junho de em compor um processo penal, o controle e gerenciamento dos corpos exercido pelo Estado, ainda
2016, existiam 42.355 mulheres privadas de liberdade no sistema prisional do País, sendo 1.672 mu- que sem a pena privativa de liberdade. O Estado, através do Judiciário, age de modo totalitário na
lheres do estado de Pernambuco. O número pode não parecer alarmante se comparado aos 32.884 violação da dignidade da pessoa humana e retira do indivíduo a liberdade de convívio social e de
homens privados de liberdade no estado, mas o fato é que as prisões femininas seguem o mesmo autonomia do corpo.
cenário nacional em relação a prisão preventiva por tempo ilegal e sem julgamento.
Cerca de 45% das mulheres que fazem parte da população prisional, que correspondem a 19.223 Desse modo, demonstra-se a fragilidade na proteção de determinados indivíduos, em espe-
mulheres, são pessoas privadas de liberdade sem condenação, número o qual nem equivale ao cífico de mulheres negras e homens negros, e a notória quebra do princípio constitucional da digni-
percentual para as presas com condenação em regime fechado, que é de 32%, correspondendo a dade da pessoa humana, um dos mais fundamentais ao sujeito de direitos, quando se observam os
13.538 mulheres. Vale salientar que a categoria “presas sem condenação” compreende as mulheres dados acerca da situação dos encarcerados do sistema penal brasileiro e das leis regulamentadoras
privadas de liberdade que não foram julgadas e não receberam decisão condenatória. de institutos como o da prisão preventiva, revelando-se então os mecanismos de poder do Estado e
Em Pernambuco, as presas privativas de liberdade sem condenação chegam a 942 mulheres, o controle dos corpos indesejados da sociedade, que por tais práticas são colocados como se nada
sendo 56% da população carcerária do estado, e as presas com condenação em regime fechado merecessem além da pré-condenação, da punição e do consequente e permanente estigma do pro-
chegam a 398 mulheres, o que é equivalente a 24%. cesso penal.

Tais números demonstram a existência de um sistema penal descompensado, em que mulhe- Amanda Salgado Rocha é advogada voluntária do Projeto Agenda Feminista pelo Desencarceramento - Recife/PE. Pós-
res sem julgamento compõem a maior parte da população carcerária. E também traçam um perfil -graduanda em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio. Bacharela em Direito pela Faculdade Damas (FADIC).
dessas mulheres que estão presas e por quais tipos de crimes cometidos.

Observa-se que dentro desse espectro 65% das mulheres que encontram-se encarceradas
no Brasil são negras, ou seja 25.581 mulheres das 42.355, e especificamente no estado de Pernam-
buco, esse percentual é de 88% de 1.672 mulheres. Pela distribuição nacional dos crimes tenta-
dos/consumados entre os registros das mulheres privadas de liberdade, 62% são relacionados ao
A MATERNIDADE NA INSTRUÇÃO CRIMINAL:
tráfico. Especificamente no estado de Pernambuco, o percentual para tráfico de drogas é de 27%, DIREITOS, PROCESSOS E MORALIDADES
5 Fonte: Levantamento de Informações Penitenciárias - INFOPEN, Junho/2016. Senasp, 2015. Fórum Brasileiro de Seguran-
POR JOÃO VITOR FREITAS DUARTE ABREU E NATÁLIA BARROSO BRANDÃO
ça Pública, 2015. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.
pdf
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Introdução de de concessão da prisão domiciliar.
O objetivo desse artigo é apresentar breve discussão a respeito de como e quando a materni-
dade aparece na instrução criminal e em quais situações é concedida ou não a liberdade provisória Esta ausência de informações nos processos é também uma construção e é importante aten-
e/ou a prisão domiciliar à mulher gestante ou mãe, assim como das justificativas e moralidades que tar para o que é produzido no processo a partir das ausências, uma vez que todos os documentos
orientam as decisões dos juízes e desembargadores nos casos concretos. apresentam um recorte, dentre vários possíveis, da realidade social. Adriana Vianna, ao realizar
etnografia de documentos judiciais, buscou compreender como estes são construídos ao mesmo
Tal discussão será realizada a partir de considerações acerca de pesquisa de campo reali- tempo que constroem o mundo social. Entende que “é no desenho sinuoso da produção de faltas
zada na Central de Audiências de Custódia no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Janeiro (TJRJ), e parcialidades que devemos procurar sua riqueza específica, sua força como constructo e como
na Central de Audiências de Custódia na Cadeia de Benfica e também em um Fórum Regional da agente social, como marcas que nos indicam os mundos de onde emergem, mas também os novos
Cidade do Rio de Janeiro entre junho de 2017 e maio de 2018 e a partir do acompanhamento de mundos que fazem existir”. (Vianna, Adriana, p. 46 – p. 47). A referida autora aponta para o fato
processos criminais eletrônicos referentes a mulheres presas provisoriamente no estado do Rio de de que: “(...)as “biografias” cristalizadas na escrita do processo têm por função tanto construir re-
Janeiro, processos estes presentes na lista de mulheres mães presas do processo de julgamento do presentações – reputações, pode-se dizer – sobre e para todos os envolvidos quanto intervir nos
HC coletivo 143.641/SP e em outra lista oriunda do sistema informativo do Tribunal de Justiça do próprios rumos do processo e da decisão judicial que o encerra.” (Vianna, p. 54)
Estado do Rio de Janeiro a respeito de mulheres que se encontravam presas entre janeiro de 2017 Um caso que exemplifica a ausência desta informação no processo e suas consequências é o de J.
e janeiro de 2018. C.,7 que teve a prisão temporária decretada em 24/08/18 sob acusação de envolvimento em homi-
cídio qualificado. Na decisão que decretou a prisão temporária de J. C. não há informação alguma a
Conforme redação do art. 318 do CPP, a partir da alteração do inciso IV6 e da inclusão dos respeito dos filhos da acusada, assim como na decisão que prorrogou a prisão temporária e a que
incisos V e VI pela Lei 13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância), o juiz poderá substituir a determinou a prisão preventiva desta. Em 20/07/19 foi proferida decisão determinando a substitui-
prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante; mulher com filho de até 12 anos de ção da prisão preventiva pela prisão domiciliar e J. C. saiu da instituição prisional no dia 28/08/2019.
idade incompletos ou homem, caso seja ele o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 Mesmo nesta sentença não há informações a respeito dos filhos da acusada, apenas referência ao
anos incompletos. Ainda a respeito da substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, a Lei instituto legal que autoriza a concessão do benefício:
13.769/18 acrescentou o art. 318-A, que aduz que a prisão preventiva será substituída por prisão
domiciliar desde que a acusada não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça à pessoa A despeito da COTA MINISTERIAL de fl. x, considerando as dispo-
e que o crime não tenha sido cometido contra seu filho ou dependente; e o art. 318-B, que aduz que sições da Lei n. º 13.257/2016, conhecida como Marco Legal da
a substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação Primeira Infância, e a interpretação conferida a esta pelo STF no
das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP. Habeas Corpus Coletivo 143.641, determino que a acusada J. C.
seja colocada em PRISÃO DOMICILIAR. Certifique a serventia que
A respeito da aplicabilidade deste dispositivo legal foi impetrado habeas corpus coletivo (HC há nos autos comprovante de residência atualizado desta acusada,
143.641/SP) ao Supremo Tribunal Federal, que decidiu por conceder a ordem para determinar a já que a medida determinada deve permitir ao Poder Judiciário a
substituição da prisão preventiva pela domiciliar de todas as mulheres presas gestantes, puérperas, possibilidade de efetivo monitoramento. Esclarece-se de plano à
mães de crianças de até 12 anos ou responsável por pessoa com deficiência – nos termos do art. 2º SEAP que PRISÃO DOMICILIAR é modalidade prisional. Por não
do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto Legislativo 186/2008 e se confundir com LIBERDADE PROVISÓRIA, REVOGAÇÃO DE PRE-
Lei 13.146/2015) - elencadas no referido HC pelo DEPEN e outras autoridades, excetuados os casos VENTIVA ou RELAXAMENTO DE PRISÃO, dispensa o procedimen-
de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou em to junto ao SARQ-POLINTER.
situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que
denegarem o benefício. Tal ordem foi estendida, de ofício, às demais mulheres em situação idêntica, No caso descrito, a acusada não é apresentada como mãe em nenhum dos documentos
assim como às adolescentes sujeitas a medida socioeducativa. presentes no processo, nem mesmo na decisão que concede a ela o benefício. Outras informações
a seu respeito, entretanto, constam em todas as decisões, especialmente as que fazem referência
Da invisibilidade da maternidade nos processos à periculosidade e a suposta “personalidade violenta”, personalidade assim descrita em virtude da
No que diz respeito à análise dos processos eletrônicos, uma questão que chamou a nossa relação da acusada com o tráfico de drogas da localidade em que reside.
atenção está relacionada aos momentos em que a maternidade aparece no processo. Nas peças
processuais e decisões disponíveis para a consulta no sistema eletrônico do TJRJ pudemos perceber Há também casos em que a questão da maternidade é abordada na audiência de custódia
que, muitas vezes, a informação a respeito da gestação ou existência de filhos menores de 12 anos e, não sendo entendida como suficiente para a concessão do benefício, só é debatida novamente
da acusada só aparece quando provocada pela defesa, geralmente a partir do pedido da substitui- na sentença, estando ausente em todas as outras decisões proferidas no processo. Em alguns jul-
ção da prisão preventiva pela domiciliar embasado no art. 318 do CPP. Tal pedido muitas vezes é gamentos de Hcs os desembargadores fazem referência a esta informação estar presente apenas
feito somente após a Audiência de Instrução e Julgamento, sendo apreciado apenas na sentença no inquérito policial, mas esta peça não está disponível no sistema de consulta eletrônica do site do
pelo juiz responsável ou na segunda instância em caso impetração de HC. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Em diversos processos analisados as informações acerca da maternidade só passaram a Da observação das audiências de custódia
constar no processo muitos meses após a decretação da prisão preventiva da acusada. A ausência Os dados aqui apresentados foram coletados a partir de uma pesquisa de campo na Central
de informações sobre a maternidade implica, geralmente, a não discussão a respeito da possibilida- de Audiências de Custódia no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Janeiro (TJRJ), posteriormente
6 O inciso IV do art. 318 do CPP permitia a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar caso se tratasse de
na Central de Audiências de Custódia na Cadeia de Benfica, e também em um Fórum Regional da
gestante a partir do sétimo mês de gestação ou sendo esta de alto risco. A alteração trazida pela Lei 13.257/2016 excluiu estas 7 Como não é do nosso interesse identificar os processos analisados, assim como as pessoas neles envolvidas, optamos por
condicionantes, passando a figurar no referido inciso apenas a palavra “gestante”. utilizar iniciais para substituir os nomes e a letra x para substituir as datas.
102 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 103
Cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa de campo foi realizada entre junho de 2017 e maio de 2018. criminais. A situação processual de primariedade técnica
Ao todo, foram observadas 160 audiências de custódia e 125 audiências de instrução e julgamento, por si só poderia ensejar a incidência da regra do tráfico
totalizando 285 audiências criminais. privilegiado, nos moldes do art. 33, §4º da Lei de Drogas,
mormente em não se verificando neste primeiro momento a figura
As decisões dependem da composição da audiência (juiz, promotor e defensor) e do contexto da habitualidade ou dedicação a atividades criminosas pela custo-
da realização das audiências no dia. O resultado dela pode romper a relação de empatia entre o pro- diada. Nesta toada, urge atentar que a maior quantidade de en-
motor e o juiz. Quando isso acontece, é imprescindível ao juiz reestabelecer essa relação para que torpecente carregada pela custodiada não tem o condão de
suas opções não sejam restringidas pelo promotor, causando-lhe constrangimento ao decidir. Ainda afastar o beneplácito acima mencionado, já que por força
que a decisão pela punição contra a argumentação do MP esteja prevista no art. 385 do Código do art. 42 da Lei de Entorpecentes, deve ser relevada como
de Processo Penal8, a doutrina jurídica e a discussão acadêmica têm condenado a utilização desse verdadeira circunstância judicial como de eventual dosime-
instituto, considerando que a sua utilização compromete a imparcialidade esperada dos juízes. tria da pena. Também a causa de majoração prevista no art. 40,
inc. III da Lei de Drogas não serve para afastar o eventual tráfico
Ou seja, dependendo do resultado de uma audiência, a decisão de uma posterior pode ser privilegiado. Assim não se pode descartar uma possibilidade ou um
influenciada diretamente pelos atores que a compõe e dos conflitos que podem surgir durante o dia viés de que em eventual caso futuro de condenação, a custodiada
entre juízes, promotores e defensores. Especialmente quando estão envolvidos juízes e promotores, poderá suportar pena diversa da privativa de liberdade. Algumas
esses conflitos podem influenciar o resultado de uma audiência em si e daquelas posteriores do dia, nuances merecem especial enfoque especialmente a com-
por exemplo. provação nos autos de que a custodiada é mãe de quatro
crianças, sendo a menor com meros 10 meses de idade e a
A audiência em questão tratava de uma mulher que teria tentado entrar no presídio com 200 filha mais velha contando atualmente com 5 anos. A hipóte-
gramas de cocaína escondidos na vagina. O promotor de justiça pediu pela conversão da prisão em se vertente é mesmo aquela do art. 318, inc. III do CPP, já que não
flagrante em preventiva. Segundo o promotor, a entrada no sistema prisional com drogas é causa de se pode descartar que a presença da custodiada é imprescin-
aumento de pena. Para fundamentar sua posição, ele fez uso do APF, no qual a custodiada teria afir- dível aos cuidados especiais ao menos em relação à crian-
mado, em sede policial, que receberia mil reais para o transporte da droga para seu marido detido ça em fase de aleitamento. O pré-requisito do parágrafo único
na unidade prisional onde a custodiada foi presa em flagrante. O defensor público argumentou que - prova idônea da maternidade - foi preenchido pelo esforço da
a custodiada era primária e de bons antecedentes e que a quantidade só poderia ser considerada nobre Defesa, neste ato, com a juntada da documentação respecti-
quando fosse feita a dosimetria da pena, ou seja, depois de condenada. Disse que faltava o “princí- va. Assim, embora a conduta, em tese, perpetrada pela custodiada
pio da homogeneidade”, pedindo a aplicação das medidas cautelares, e que caso fosse indeferido, seja em um primeiro exame desprezível e inconsequente, por todos
que o juiz ao menos considerasse a aplicação da prisão domiciliar, citando, como exemplo, a ex-pri- os argumentos trazidos pelo Parquet, não se pode tornar letra
meira dama do governo estadual. A custodiada também tinha quatro filhos menores de 12 anos e morta ou esvaziar a orientação trazida pela Lei da Primeira
era o pai da filha mais nova que estava preso. Infância que tem como principal escopo zelar pelo Melhor
Interesse da Criança. A bem da verdade a referida norma ten-
O juiz, nesse caso, tendo em vista a primariedade da custodiada, decidiu pela prisão do- ta reverter ou evitar um enorme déficit social com a deturpação
miciliar e comparecimento mensal em juízo. A custodiada foi proibida de se ausentar da comar- da família. No caso dos autos as crianças não possuem pais
ca de residência, como também foi proibida de ingressar em qualquer unidade prisional como presentes sendo que uma delas tem o pai presidiário. Levar
uma das medidas cautelares. A última medida cautelar foi objeto de discussão, uma vez que a mãe também à situação de presidiária seria manter cres-
restava ao marido da custodiada cerca de seis anos de pena para cumprir. No entanto, o juiz cente este fator no âmbito familiar, de modo que as crian-
manteve a medida. Para ele, com o pai e a mãe presos, as crianças perderiam as suas refe- ças perderiam toda e qualquer referência. Observando-se ain-
rências familiares. Segundo o magistrado, “com pai presidiário, mãe presidiária, os qua- da, as condições pessoais da custodiada, no momento verificadas
tro filhos serão presidiários”, não sem antes dar um sermão na mulher: “Aconselho à senhora e, suposto fato delituoso praticado, sendo a prisão cautelar medida
a não mais se envolver em relacionamentos com presidiários – vá cuidar das suas crianças”. excepcional, passível de ser decretada, somente quando não possa
Abaixo a decisão na íntegra: ser substituída pelas medidas cautelares colocadas pelo Legislador
à disposição do Magistrado. Dessa feita, fica afastado o periculum
DECISÃO: Inicialmente, cumpre consignar que não foi relatada libertatis, como condição imprescindível para a conversão da prisão
agressão física no ato prisional, pela custodiada. Compulsando os em flagrante em preventiva. Não estando presentes, no momento,
autos, verifico que a custodiada foi presa em flagrante delito pela os elementos e fatos que motivam a decretação da prisão cautelar,
prática, em tese, do crime tráfico ilícito de drogas, na forma des- que constitui medida excepcional a ser adotada. Assim, DEFIRO à
crita pelo Parquet, em sua manifestação oral colhida neste ato. A custodiada a prisão domiciliar prevista no art. 318, inc. III do CPP,
regularidade do flagrante encontra-se presente. No que diz respeito sem prejuízo das medidas cautelares substitutivas abaixo, median-
à conversão da prisão, entende este Magistrado que a mesma não te Termo de Compromisso, firmado neste ato, de comparecimento
se demonstra necessária e proporcional, diante das circunstâncias mensal ao Juízo ao qual o feito for distribuído, sempre entre o 1º
da prisão. Não existem informações de anotações anteriores e o 10º dia de cada mês, bem como em todos os atos processuais
em desfavor da custodiada em sua folha de antecedentes vindouros em que a sua presença faça-se necessária, até o trânsito
8 Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha em julgado definitivo. Fica também a custodiada impedida de au-
opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
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sentar-se da Comarca de Itaboraí, sem prévia autorização judicial. não vou ficar aqui dando murro em ponta de faca”, referindo-se à audiência anterior da mulher que
Mais que isso, fica a custodiada, desde já, impedida também de tentou entrar com drogas no presídio.
ingressar em qualquer unidade prisional na qualidade de visitan-
te, ciente desde já que o descumprimento das condições impostas O juiz demonstrou visivelmente que a decisão não era a que mais lhe agradava, mas foi to-
acarretará na revogação do benefício e imediata repristinação do mada por um constrangimento que diz respeito à sua imagem profissional e à reputação dentro da
decreto prisional. Expeça-se o alvará de soltura (grifos nossos). Central de Audiência de Custódia: “Eu que não vou ficar dando murro também, se você não pede a
liberação, não ia soltar. Não vou ser o carrasco que prende todo mundo na custódia”.
Essa decisão tem caráter excepcional por fugir ao modelo das decisões proferidas em au-
diências de custódia. Na audiência em questão, a fundamentação presente na decisão foi ditada Nesse conflito específico entre promotor e juiz, ficou claro como a insatisfação do promotor
pelo juiz. O próprio TJRJ reconhece, em julgamento de habeas corpus, a falta de fundamentação com o resultado da primeira audiência, e, por outro lado, o constrangimento do juiz com sua repre-
jurídica em decisões proferidas em audiência de custódia que convertiam a prisão em flagrante em sentação dentro da CEAC, influenciaram diretamente no resultado da segunda audiência, que seria
prisão preventiva. Ao descrever as audiências de instrução e julgamento no Centro Integrado de um caso típico de conversão da prisão, de acordo com a prática recorrente. Alguns juízes preocu-
Cidadania, Jacqueline Sinhoretto descreve situação semelhante em que o juiz dita a decisão na qual pam-se com sua imagem perante os outros operadores. Esse juiz, em específico, ainda que tivesse
afirma ser sobre um ato do poder, uma vez que a reflexão decide o futuro das partes (SINHORETTO, o poder de decidir contra a manifestação do Ministério Público e da Defensoria Pública, sofreu um
2005b). Coube ao defensor público explicar a decisão para a custodiada, que na condição de mera constrangimento ao tomar sua decisão. Por conta de uma preocupação com sua imagem profissio-
espectadora não entendeu o rito judicial que ali se passava. nal, decidiu de forma contrária ao que desejava.

O promotor de justiça ficou visivelmente irritado com a decisão. O defensor explicou para a Da análise dos processos eletrônicos
custodiada o resultado da audiência e a importância do cumprimento das cautelares para que ela Além das restrições elencadas em lei para a concessão da prisão domiciliar, os juízes utilizam
não tivesse sua prisão preventiva decretada no curso do processo. As audiências prosseguiram e, muitos outros argumentos para fundamentar o não deferimento do benefício. Os principais argu-
posteriormente, ficou explícito como o desconforto do promotor com essa decisão do juiz influen- mentos estão relacionados à ausência de documento que comprove a condição de mãe ou gestante
ciou no resultado da audiência seguinte. no processo, à gravidade do crime, à periculosidade da acusada (associada à existência de “maus
antecedentes”, mesmo que ré primária) e ao entendimento de ser a acusada prescindível à criação
Nela, também se tratava de um caso de prisão em flagrante enquadrada no crime de tráfico, do filho por haver outra pessoa que pode assumir os cuidados (geralmente mãe, irmã ou compa-
previsto no art. 33 da Lei de Drogas. Segundo os fatos narrados no APF, o custodiado havia sido nheiro da acusada). Exemplos destes argumentos são os presentes nas seguintes decisões:
preso em flagrante em “atitude suspeita” portando 16g de maconha, 91g de cocaína e 6g de crack,
além de um rádio transmissor em uma “localidade conhecida pelo comércio de drogas”. Esse caso “ (…) a nocividade social do crime de tráfico de drogas é elevadís-
se enquadra no padrão das prisões por tráfico e, por isso, raramente as prisões desse tipo são rela- sima, constituindo um dos maiores flagelos da sociedade contem-
xadas. porânea, sendo esse delito a matriz de muitos outros crimes, razão
pela qual a prisão domiciliar deve ser indeferida”
Para a surpresa de todos na sala de audiência, inclusive do custodiado, o promotor iniciou
sua argumentação dizendo que apesar da “conduta ser reprovável”, não se faziam presentes os re- “Não há nenhum comprovante nos autos de que a custodiada se
quisitos legais para a conversão da prisão em flagrante em preventiva. Alegando que o custodiado encontra grávida bem com, fisicamente, não se pode constatar tal
era primário, o promotor pediu pela concessão da liberdade provisória com a aplicação das medidas condição, inclusive, a mesma narra supostamente que estaria grá-
cautelares, deixando explícita que sua posição nesse caso feria o “princípio da isonomia”. A defesa vida de 02 meses, o que em análise superficial da sua aparência
ratificou a manifestação do MP. Durante a argumentação do promotor de justiça, o juiz 4 se direcio- não permite visualizar o estado gravídico. ”
nou a secretária e disse:
“O periculum libertatis, por sua vez, encontra-se na extrema peri-
– “Faz a liberdade!” referindo-se ao modelo do alvará de soltura. culosidade das acusadas, que investiram contra a vida de pessoa
Ficou claro que o magistrado havia mudado sua decisão durante a audiência. Ao término, ele anun- do convívio de ambas, fato grave e que conspurca a ordem pública,
ciou sua decisão ao custodiado. Dessa vez, sem ditar a fundamentação. visualizada pelo trinômio gravidade da infração, periculosidade do
agente e repercussão social do fato pela sensação de insegurança
- Olha só. O que você tá vendo aqui hoje é pra agradecer mesmo. causada na comunidade local. ”
Você tá ganhando na mega sena! Se você voltar aqui outra vez, vai
ficar preso, porque já tem essa anotação. Então, agarra essa opor-
tunidade! Abraça esse alvará de soltura, meu irmão, e não vacila! Para além destes argumentos, alguns magistrados embasam suas decisões utilizando como
Porque por muito menos, as pessoas ficam presas aqui. Você tá argumentos valorações morais a respeito da conduta criminosa imputada à acusada e mesmo à per-
entendendo? (J4). sonalidade desta, assim como da compatibilidade destas condutas e personalidades com o papel de
mãe. Estes argumentos são diversos, uma vez que diretamente relacionados com a opinião pessoal
A audiência foi encerrada e o custodiado saiu sorrindo da sala. Enquanto isso, o juiz virou do magistrado que profere a decisão. Alguns exemplos:
para o promotor e disse: “Se você não pede a soltura, eu ia deixar preso”. O defensor percebeu a
situação que lhe era favorável e interveio jocosamente: “Ah, o Dr. Promotor é um cara sensato”. “Resta patente, assim, a soltura das rés não contribui para o de-
O defensor saiu da sala e deixou promotor e juiz em uma discussão, na qual o promotor reagiu: “Eu senvolvimento saudável das crianças. Pelo contrário, a soltura das

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MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 107
denunciadas pode, inclusive, prejudicar o desenvolvimento das fundamento para a decisão, como a ausência de antecedentes criminais e a presença nos autos de
crianças, especialmente pelo fato de as crianças e as drogas, su- documentação dos filhos e comprovantes de endereço fixo e trabalho lícito. Algumas poucas deci-
postamente, dividirem o mesmo espaço. ” sões tecem comentários sobre a importância de tal benefício principalmente para as crianças, que
seriam as principais beneficiadas. Alguns exemplos de decisões nesse sentido:
“Não restou comprovado que as crianças, filhas das rés, estejam
desassistidas, muito pelo contrário. Ficou demonstrado que as acu- Concedida a prisão domiciliar por HC, por força do Marco da Primei-
sadas, quando da prisão em flagrante, em pleno final de semana, ra Infância, uma vez que a ré tem 2 filhos de 02 e 04 anos, além de
não estavam tutelando ou cuidando das crianças. ” ser primária e não ter cometido crime contra descendente, confor-
me aduz o HC 143.641.
“Registre-se, ainda, que no momento da prisão havia uma criança
com 05 anos de idade dentro do veículo em que estavam a reque- A ré se enquadra em uma das hipóteses previstas no art. 318 do
rente e o denunciado I. S., o que, à toda evidência, constitui um CPP, haja vista que é mãe de uma criança de 1 ano e 5 meses de
péssimo exemplo a ser adotado e, tampouco, existe qualquer docu- idade de iniciais L.A.B.S conforme certidão de nascimento acostada
mento que comprove que S.M. amamentava o seu filho” à fl. x. Outrossim é evidente que a criança se encontra em fase de
nutrição e cuidados específicos para seu crescimento, necessitan-
“Não há como supor a presença de senso de responsabilidade do indubitavelmente da presença da ré, devendo ser considerado,
pessoal e autodisciplina capazes de justificar que os condenados ainda, que o referido período ainda compreende a amamentação e
aguardem em liberdade o julgamento de eventual recurso”. é crucial para a criação de laços eternos entre mãe e filho, sendo
certo que a separação poderá trazer impactos de difícil reparação à
O pedido de concessão de liberdade provisória da indiciada E.V., criança. Tal situação aliada ao fato de que o genitor da criança tam-
formulado pelo ilustre Defensor Público, por quem nutro profunda bém se encontra acautelado deixam cristalina a indispensabilidade
admiração em razão de sua zelosa atuação profissional, informa da ré para os cuidados a serem dispensados à criança. Nesta seara,
que a mesma se encontra no sétimo mês de gravidez, não sendo ressalta-se que há informação nos autos de que a interrupção do
recomendada a sua custódia cautelar. Entretanto, ouso discordar alimento única e exclusivamente oferecido pela lactante ocasionou
no nobre defensor público: gravidez é sinônimo de saúde! Não se a necessidade de apresentação da criança a um profissional médi-
pode utilizar o argumento de uma gravidez para justificar que uma co, estando a consulta comprovada à fl. x, o que corrobora a im-
mulher que, possivelmente praticou o grave crime de associação prescindibilidade da mãe para o cuidado da criança neste momento.
para o tráfico, apoiando a conduta criminosa de seu companhei- Mister salientar que o cerne da questão passa pelo reconhecimento
ro, possa ser colocada em liberdade. Saliente-se que em nenhum da doutrina da proteção integral e do princípio da prioridade abso-
momento dos autos há comprovação de que sua gravidez, embora luta, insculpidos no art 227 da Carta Magna, no ECA e, ainda, na
de gêmeos, seja de risco, havendo tão somente uma declaração Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada pelo
da própria indiciada de que seria tal situação. Pelo contrário, o Decreto Presidencial n. 99.710/90. (…) ressaltando que não há até
que temos nos autos são receituários/laudos médicos antigos (fls. o momento, comprovação nos autos de que o cumprimento da cus-
x), dando conta de sua gestação e de um problema respiratório tódia em regime domiciliar pode acarretar perigo à ordem pública,
alérgico. Não há informação médica atual acerca de seu estado à conveniência da instrução criminal e/ou à aplicação da lei penal.
de saúde. O que podemos afirmar, de acordo com os depoimentos
prestados, é que a nacional E. V., encontrava-se na rua, em horário ”(…) no sentido de que os cuidados maternos com a criança se
já avançado, possivelmente praticando e apoiando condutas relati- consubstanciam em condição legalmente presumida. Portanto, sal-
vas ao crime de tráfico e associação para o tráfico de entorpecen- vo hipóteses excepcionalíssimas, a presença da mãe junto d e
tes, o que demonstra que seu estado de saúde não era tão ruim seu filho é condição fundamental para a proteção do menor e, bem
quanto o informado. Ora, se seu estado fosse realmente de risco assim, para a preservação de seu desenvolvimento psicológico. E
e necessitando repouso, a indiciada estaria em casa repousando e também o HC coletivo 143.641/SP, do qual ressalta a “primazia ao
não andando pela rua em uma noite de sexta feira! (...) E chega a direito à dignidade das mães e das grávidas e, sobretudo, aos in-
ser estarrecedor ver uma mulher grávida, em seu sétimo mês de teresses do menor, notadamente relativos ao convívio familiar e a
gestação, possivelmente não apenas apoiar a atividade criminosa educação”
do marido, mas também participar de tal atividade, colaborando
com o tráfico, recolhendo o dinheiro auferido com a venda das dro- Concedo a prisão domiciliar, por força do cumprimento dos requisi-
gas, guardando-o, provavelmente para o caso de, em uma batida tos listados pelo HC 143.641, uma vez que se trata de ré primária,
policial, nada ser encontrado com seu companheiro! mãe de criança de 2 anos e que possui residência fixa.

No que diz respeito à concessão do benefício, a fundamentação geralmente está estrita- Ainda que em muitas situações os juízes ou desembargadores utilizem o HC 143.641/SP para
mente relacionada ao disposto no art. 318 do CPP e a não observância das restrições previstas no justificar a concessão da prisão domiciliar à acusada ou mesmo para negar tal benefício (nos casos
art. 318-A. Entretanto, alguns outros elementos não previstos nestes artigos são utilizados como em que o STF entende não ser viável a concessão da prisão domiciliar, a saber, em caso de grave

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ameaça ou violência contra a pessoa e de crime cometido contra o descendente, além de situações
excepcionalíssimas não descritas), muitos demonstram em suas decisões discordar do acordado no
referido HC.

Em certas decisões, os magistrados expressam sua opinião pessoal de discordância em rela-


ção ao HC 143.641, como é possível perceber nos casos seguintes:
CONTRA O ENCARCERAMENTO DAS MULHERES
Hipótese que, no entanto, a despeito da aguda gravidade dos fa- POR REDE DE MULHERES NEGRAS DE PERNAMBUCO
tos criminosos, impõe observância das diretrizes estabelecidas
pelo Supremo Tribunal Federal, no HC Coletivo 143.641, julgado
em 20.02.2018, o qual, com ressalva da concepção pessoal O Racismo é um sistema de opressão, que confere privilégios a um determinado grupo
do Desembargador-Relator, firmou orientação no sentido de racial e mantém outros grupos em situação de subalternidade e de exploração. O racismo funda-
substituir a prisão preventiva pela domiciliar, de todas as mulheres mentou toda a construção do Estado e da sociedade brasileira e até hoje estrutura as desigualdades
presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças com até 12 anos, nas relações e nas condições de vida das pessoas. Raça, gênero e classe se sobrepõem para manter
sob sua guarda. Exceções previstas nas diretrizes do STF que não a população negra sempre em condição de subordinação. E quando se fala das mulheres negras, é
parecem se amoldar ao caso presente, sobretudo porque a gra- preciso destacar que estas são atingidas mais fortemente tanto pelo sexismo quanto pelo racismo,
vidade concreta do fato não parece ser impeditiva ao gozo de tal sem contar outras formas de discriminação que permeiam a sociedade.
benesse. (grifo nosso)
No quadro geral das desigualdades, as mulheres negras ocupam sempre as piores posições.
(…) a acusada é genitora de filhos menores de 12 anos, conforme Estão em desvantagem em relação aos homens brancos, em relação às mulheres brancas e também
documentos de fls. 337/338, e suas condições se enquadram nos em relação aos homens negros. As mulheres negras superam os homens negros apenas no item
parâmetros fixados no temerário ´Habeas Corpus´ coleti- Educação, porque tem mais anos de estudo, na média geral.
vo 143641, julgado pela 2ª Turma do Supremo Federal, que de-
terminou, com eficácia ´erga omnes´ e vinculante, a substituição O atual modelo de guerra às drogas no Brasil se transformou numa guerra perversa dirigida
das prisões preventivas de mulheres nas situações previstas no art. às pessoas pobres e negras nas periferias, essa guerra exige um investimento milionário do Estado
318, III, IV e V, do Código de Processo Penal, por prisões domici- em treinar policiais para matar e prender jovens nas comunidades pobres do país. Quando avalia-
liares. Diante do exposto, DEFIRO A SUBSTITUIÇÃO DA PRISÃO mos essa realidade para as mulheres o impacto é ainda mais cruel, a atual legislação de drogas (Lei
PREVENTIVA POR PRISÃO DOMICILIAR. (grifo nosso) 11.343/2006) se expressa de diversas formas: através do massivo encarceramento de mulheres
nos últimos anos; na perda de seus filhos e filhas em razão do extermínio promovido pelo Estado
Impende salientar que a alteração do Código de Processo Penal da população negra e periférica; na violação do direito do exercício da maternidade, no momento
pela Lei 13.257/2016 se deu para proteção de crianças, sendo certo em que seus filhos são retirados de seu cuidado em razão do estigma associado ao uso de drogas
que, caso a criança (no caso, o filho da ré) esteja sendo cuidada por ilícitas; entre outros exemplos. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen),
outra pessoa, não pode a ré obter o benefício, razão pela qual há de nos últimos 16 anos a população carcerária feminina aumentou mais de 700%, enquanto a popula-
provar, para obtenção da substituição pleiteada, que não há outra ção masculina aumentou cerca de 200%. Isso configura uma diferença de mais do que o dobro do
pessoa em condição de cuidar de seu filho. Aliás, se for interpre- aumento de encarceramento de mulheres em relação aos homens. Sendo assim, é impossível não
tado o art. 318, V, do CPP no sentido de que toda e qual- reconhecer a proibição das drogas como uma questão que impacta a vida das mulheres, que são
quer mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos em sua maioria chefes de família.
faz jus à substituição da prisão preventiva por domiciliar,
certamente o caos seria implantado no país, em especial Diante do contexto apresentado, é urgente dirigir o olhar ao desencarceramento feminino,
no Estado do Rio de Janeiro, cujo índice de criminalidade é considerando que são as mulheres que constituem a população cuja taxa de crescimento foi mais
extremamente alto. (grifo nosso) acelerada nos últimos anos. É preciso que o movimento feminista esteja atento a defender os di-
reitos e a vida dessas mulheres que estão sendo encarceradas no Brasil, a garantia dos direitos
Estes são alguns exemplos das diversas decisões nas quais os magistrados expressam sua humanos é fundamental para um ambiente democrático. Precisamos produzir narrativas sobre as
opinião pessoal em relação ao HC Coletivo, assim como ao estatuto jurídico que implementou tal condições de vida das mulheres encarceradas denunciando essas situações e possibilitando dar
benefício, discordando destes. Tal discordância evidencia um juízo moral que é feito pelos magistra- voz à essas mulheres. A atual política de encarceramento em massa usando o motivo das drogas é
dos no que concerne a lei e a decisão de órgãos superiores, juízo este que é usado para orientar e racismo e machismo promovido por um grupo de pessoas ricas e poderosas que deseja controlar o
embasar suas decisões a despeito das orientações legais. povo negro e higienizar nossa presença das ruas.
João Vitor Freitas Duarte Abreu é doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais (PPGSD/UFF). Mestre em Sociologia e
Direito (PPGSD/UFF). Bacharel em Segurança Pública e Social (UFF). É pesquisador do INCT-InEAC e do Núcleo de Pes-
quisa em Sociologia do Direito (NSD)

Natália Barroso Brandão é doutoranda em Antropologia (PPGA/UFF). Mestre em Antropologia (PPGA/UFF). Graduada em
Direito (UFF). É pesquisadora do INCT-InEAC.

110 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 111


dências expansivas em relação ao controle do corpo social. Ainda mais quando falamos dos corpos
MANTA DO LUTO, COBRINDO O BAIRRO DE PEIXINHOS das mulheres e, principalmente, das mulheres negras. Projeto histórico de manutenção de posições
POR ELISÂNGELA MARANHÃO e relações sociais, limitando e direcionando o caminho para alguns setores; constituindo um mar
de escolhas e privilégios para outros setores. Para esse sistema funcionar, temos uma legislação

E ssa semana os acontecimentos foram bem perversos e nos fizeram mais uma vez pergun-
disciplinadora e punitivista, contando com os esforços dos órgãos de fiscalização (na teoria, pois,
na prática, são órgãos que funcionam para desenvolver guerras de baixa intensidade) fazendo valer
tar o valor de uma vida. A morte de um jovem travesti e sua mãe abalou as estruturas da comuni- todas as leis possíveis e mais um pouco, apenas para determinado recorte da população. Um con-
dade, que clama por políticas preventivas de segurança pública. junto de leis que não passa de uma estratégia de guerra e que, como em toda guerra, possui os
seus alvos. Algo incontestável diante não somente de dados e estatísticas. Ao olho nu que percebe
Os meios de comunicação, que divulgaram de forma visceral esse episódio na noite do acon- a realidade à sua volta tudo está bastante evidente. Ao olho nu que vai às prisões e não conseguiria
tecido e no dia seguinte, mostram mais uma vez a cruel realidade de se naturalizar fatos como estes negar o óbvio: a população pobre e negra são os alvos dessa guerra.
que corriqueiramente acontecem. O choro desesperado dos filhos (Breno e Bruno) naquele momen-
to não impactou as pessoas que estavam na cena do crime. Curiosos falantes comentavam sobre Uma das formas de aplicação dessa estratégia é o encarceramento em massa. E a realidade
Reinaldo, que foi alvejado. Comentários frios e preconceituosos sobre um jovem que pelo fato de ser brasileira é um dos casos mais alarmantes em todo o mundo. Enquanto, em alguns outros países, o
gay era tratado com desprezo. Algumas pessoas falavam que era um “frango viado que se vestia de desencarceramento é tratado como uma medida para o agora, o Brasil segue na contramão.
mulher safado”, que vendia droga e praticava pequenos furtos, que “não prestava pra nada” e que No período que vai de 2000 a 2016, o encarceramento de mulheres sobe vertiginosos 455%. É
por causa dele a mãe morreu também. Relembramos inúmeras cenas de assassinatos de jovens na a maior variação na taxa de aprisionamento no mundo. O país em segundo lugar é a China, que
comunidade, e percebemos que a necessidade de sensibilizar as pessoas sobre a importância da possui um aumento de 105% neste mesmo período. Números assustadores que parecem passar
vida do outro é mais que necessária. batidos, sem alarde e problematizações entre boa parte da população.

Esta semana nitidamente as mães, jovens, alguns educadores e a coordenadora do GCASC Segundo dados do Infopen Mulheres de 2018, o encarceramento ocorre majoritariamente a
ficaram apáticos, sem brilho no olhar, com o coração fechado de batimentos doloridos. Os dias dessa partir da punição ao tráfico de drogas; são 62% dos casos. E o perfil segue uma linha específica.
semana ficaram sombrios, o vento nos trouxe ciscos que prejudicaram nossa visão, as pessoas nas 74% das mulheres privadas de sua liberdade são mães, 62% são solteiras e 62% também são
ruas estavam com olhar de dúvida sobre quem será o próximo... Foi uma das piores terças-feiras negras. Temos mulheres negras, periféricas, mães, que desempenhavam atividades no comércio
para nós que estamos de frente com o projeto Mães da Saudade (MDS). Mesmo diante deste ce- ilegal de drogas para garantir a sobrevivência da família, provedoras de seus lares. Parte delas para
nário nos reunimos com os jovens e as MDS e resolvemos realizar uma caminhada da manta do complementar a renda insuficiente de um emprego formal ou informal. 70% são rés primárias. A
luto. Com muitas ideias construímos o planejamento desta ação em favor da vida, articulando só realidade se torna mais absurda quando se constata que 45% das mulheres encarceradas ainda não
parceiros comprometidos pela justiça social e as diversas frentes de movimentos, que na maioria é foram julgadas e condenadas, mas já vivem a sua punição.
representada pelas mulheres. O Fórum Popular de Segurança Pública e a RENFA se disponibilizaram
a estar conosco para mostrarmos até onde esta manta está chegando e quem está sendo coberta No Brasil, a construção de instrumentos e dispositivos jurídicos para o desencarceramento de
por ela. Não são só as 12 áreas de Peixinhos que vivenciam o descaso da dignidade humana, e sim mulheres esbarra na “falta de vontade” do Poder Judiciário. Temos exemplos bem recentes como
todos que de alguma forma incentivam e naturalizam esse extermínio. Essa manta cobre não só as o Marco Legal da Primeira Infância, de 2016, e o Indulto do Dia das Mães, de 2017. Ambos com
vitimas e seu sangue que se alastram nos becos e ruas da comunidade, mas também a surdez e resultados muito tímidos e inexpressivos diante da realidade de encarceramento em massa.
cegueira de muitos que poderiam fazer as políticas públicas prevalecerem na vida dos excluídos. O Marco Legal foi executado em raros casos, como no caso de Adriana Ancelmo, mulher branca,
com privilégios de classe, advogada, ex-primeira dama do estado do Rio de Janeiro, alguém com
Devemos compreender as trajetórias vividas pelas MDS e suas famílias os jovens e seus de- visibilidade nacional. Cenário que, nem de longe, não é a realidade da maior parte das mulheres
safios pela luta pra continuar vivo. O bairro de Peixinhos grita por novos caminhos. Não podemos que hoje estão presas.
deixar que o nosso bairro vire um lugar sombrio, onde o medo e as drogas sejam o caminho que
necrosa as crianças, adolescentes e jovens. Pois o uso de cola, droga que levou nos anos 80 muito Já o indulto de 2017, que deveria garantir a saída das prisões para mais de 14 mil mulheres,
deles a se tornarem moradores de rua e seguir a vida até o desenlace fatal, é hoje o que resta para dentre as 42 mil em privação de liberdade, contemplou o caso de apenas 488. São 3,5% do previsto
os jovens, juntamente com o crack e o álcool. e 1% de toda a população carcerária feminina, de acordo com denúncia da Pastoral Carcerária.

Este é um sentimento que compartilho com vocês, amigos, diante deste cenário tão triste e No Brasil, coletivos e movimentos sociais que lutam pelo desencarceramento estão cum-
cheio de ódio e vingança contra nós que queremos ver todos vivos e bem. prindo a árdua função de tentar garantir direitos básicos que são negados a quem, historicamente,
esteve na linha de frente de toda a violência estrutural, praticada não somente pelo Estado, mas
também através dos sistemas de opressões de uma sociedade com valores racistas, misóginos,
classistas, homofóbicos e transfóbicos.

O ANTIPROIBICIONISMO COMO AÇÃO CONTRA O CÁRCERE DE MULHERES Como o encarceramento em massa atinge grupos mais vulneráveis, como as mulheres po-
bres e negras, cis ou trans, ações de coletivos e movimentos sociais que visam dar execução aos
POR MARCHA DA MACONHA RECIFE
possíveis casos de habeas corpus e que promovem saúde, na medida do possível, dentro das unida-
des prisionais, mostram um caminho a ser seguido para quem diz acreditar na justiça, mas nada faz
Vivemos numa sociedade com um projeto de poder estabelecido, funcionando, com ten- em relação a esta realidade extremamente violenta e brutal. De acordo com o relatório de 2018 do

112 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 113


Infopen Mulheres, a taxa de suicídio entre mulheres presas é 20 vezes maior do que entre as que O impacto da prisão de uma mulher não fica só na vida dela, ao contrário, todo o seu círculo
estão em liberdade. social está envolvido. Quando a chefa de família vai presa, toda a estrutura familiar se deteriora,
criando um novo ciclo de miséria para os dependentes dessas mulheres. Sem a principal cuidadora
É necessário conferir quem compõe o Poder Judiciário, afinal, um dos motivos mais recor- em casa, os que estudam deixam a escola para trabalhar, os que já trabalham tem que se desdobrar
rentes para a não aplicação do indulto de 2017 é a adição de critérios que não estavam previstos para aumentar a renda, dificultando a vida de todos do núcleo familiar.
no decreto. Segundo dados dos Tribunais de Justiça, a cada 4 pedidos de declaração de indulto, 3
são negados. As defensorias públicas também estão pouco dispostas. O número de requerimentos Ainda sem nenhuma surpresa, vale ressaltar que, aqui em Pernambuco, mais de 80% das
realizados pelo órgão é baixo levando em consideração o caráter de urgência das medidas de de- presas são negras11, chegando a 100% em alguns estados. Essas mulheres, que nem de longe são
sencarceramento. as que mais lucram com o tráfico, são as que mais são presas. A relação entre política de drogas e
encarceramento de mulheres negras não é de hoje, e desde sempre serviu como uma campanha
Sendo a máquina estatal composta, em sua maioria, por pessoas brancas de classe média, contra a nossa dignidade. Não precisa ser inteligente pra perceber que a atual política de drogas
não é nenhuma surpresa essa timidez no desencarceramento. A classe média branca brasileira, no não contribui em nada para a diminuição da violência urbana ou até mesmo para desmantelar os
seu dia a dia, através de seus cargos administrativos dentro do Estado, prende, tortura e assassi- mercados internacionais. Na prática, o encarceramento em massa do povo pobre e negro serve para
na aquelas pessoas de quem têm medo ao sair na rua. Cruamente e sem sono pesado. Prática a causar a impressão de que o Estado está ‘fazendo algo’, mesmo que de forma aparente. O objetivo
guerra e a violência sob o discurso de uma “justiça” descaradamente seletiva. Não há vergonha e principal de todo esse espetáculo penal é tentar passar alguma legitimidade para o racismo, uma
nem culpa pelas consequências de sua cultura e prática diária de punição e encarceramento. Ignora das principais estruturas de nossa sociedade.
soluções apresentadas e finge que não há um grande problema.
Como isso impacta a vida das mulheres negras
A legalização de todas as drogas, por exemplo, já seria um avanço muito significativo na luta Os mecanismos racistas da nossa sociedade se empenharam ao longo das décadas numa
das mulheres. Ou seja, não somente a descriminalização, mas a liberdade imediata de todas pes- verdadeira campanha de difamação contra as mulheres negras, nos ridicularizando e reafirmando
soas presas por crimes relacionados às drogas e uma política de reparação para quem está presa e sempre que o nosso lugar é distante da humanidade. A política proibicionista de drogas nasce com
para toda a população que tem sido vítima da guerra às drogas. A Marcha da Maconha Recife va- o objetivo de fortalecer esse discurso, desta vez com o peso de lei. Acontece que, atualmente, os
loriza e pauta o desencarceramento como algo urgente, pois entende o aprisionamento como mais presídios servem para fazer a gestão da miséria entre aqueles que o capitalismo não consegue ab-
uma ação política e que essa realidade não deve ser tolerada e sim combatida por todas as forças sorver como mão de obra. Explico.
que acreditam na injustiça e seletividade do sistema carcerário.
É inerente a sociedade capitalista a existência de um contingente de pessoas que jamais irão
encontrar algum emprego formal. Para essas pessoas, a insegurança do desemprego e informalida-
de é a única alternativa, porque a tendência é que o trabalho seja cada vez mais mecanizado e que
mais e mais pessoas percam seus empregos. E não, isso não é só em momentos de crises. A exis-
tência de desempregados serve como coerção para aqueles que trabalham não reclamem de suas
condições de trabalho nem reivindiquem seus direitos. É o que chamamos de exército industrial de
PRENDER É BOM PRA QUEM? reserva.
COLETIVO FALA ALTO
POR ANA CAROLINA BARROS No Brasil, país que foi colonizado e que até hoje é de economia dependente, sua formação
econômica foi pautada na exclusão dos negros, remanescentes dos mais de 300 anos que tivemos

Os dados sobre encarceramento no Brasil mostram um quadro triste e sem previsão de de escravidão. De lá até os dias de hoje, a ideologia dominante tenta justificar de diversas formas
no senso comum a exclusão dos negros dos espaços de poder e de decisão. O capitalismo, que por
melhora em curto prazo: o crescente encarceramento de mulheres e o aumento da miséria entre si só já é cruel e desumano, se utiliza das opressões de gênero e raça para aumentar seu grau de
elas. Segundo reportagem do A pública9, os recentes cortes nas áreas sociais jogam mais e mais exploração contra o nosso povo.
mulheres em situações de violência doméstica e pobreza. Por outro lado, o número de mulheres A atual política de drogas é um resultado direto disso. Para isso, vou trazer 3 pontos para reflexão:
presas aumentou em mais de 600% em menos de 20 anos.10 Esse aumento está relacionado com a 1- A nossa legislação atribui ao tráfico de drogas o caráter de crime equiparado ao hediondo, o que
política de drogas escolhida por nosso Estado, que, longe de resolver o problema, intensifica ainda coloca o início do cumprimento das penas em regime fechado.
mais opressões de gênero e raça numa sociedade de classes. 2- Em alguns estados, os policiais recebem uma bonificação em seus salários caso alcancem uma
meta x de apreensão de drogas. Esses estados também aumentaram consideravelmente sua popu-
Quem é que está sendo presa? lação carcerária após adotar essa política.
Aqui em nosso país, 60% das mulheres presas ali estão por delitos relacionados a drogas. O 3- Vem sendo ventilada a ideia de que a privatização dos presídios é a solução tanto para desafogar
perfil é o mesmo: pobres, sem escolaridade, no desemprego ou informalidade e quase sempre são a superlotação, quanto para trazer economia para o Estado na hora de punir.
elas que seguram todas as necessidades de alimentação, vestuário e educação de suas famílias. Sem Sabendo que o racismo é uma das pedras fundamentais da nossa sociedade e que é bem mais fácil para
muitas chances de sobreviver de outras formas, fazer bicos no tráfico de drogas é a solução para a polícia prender negros e pobres do que os ricos, os preconceitos muitas vezes estão a frente tanto
problemas financeiros a curto prazo. Quem já passou fome sabe: ela não espera, ela tem pressa. das abordagens quanto das prisões. Para um policial que quer bater sua meta, qualquer jovem negro
9 https://apublica.org/2019/03/cortes-em-programas-sociais-devolvem-mulheres-a-miseria-e-a-violencia-domestica-dizem-
pode ser um traficante, mesmo que de fato não seja. Um jovem negro, morador de comunidade, em
-especialistas/ situação de vulnerabilidade, seja por não conhecer seus direitos seja por não ter uma rede de apoio para
10 https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/brasil/2018/06/numero-de-mulheres-presas-cresce-656-em-relacao-aos- protegê-lo, é um alvo perfeito para o ‘forjado’, tão conhecido infelizmente pela nossa juventude negra.
-anos-2000.html 11 https://www.brasildefato.com.br/2017/03/08/em-pernambuco-81-das-mulheres-encarceradas-sao-negras/
114 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 115
A lotação dos presídios não é por acaso, é um projeto. A barbárie cada dia salta aos olhos e adequada em relação ao trabalho e o acesso aos serviços básicos, todos a um custo razoável”.
é aí onde entram as alternativas liberais para solucionar. Criar mais presídios, passar para a inicia-
tiva privada. Os presídios passam a ser um negócio, mais e mais pessoas vão presas apenas para Por ser um direito assegurado pela Constituição, o Governo tem, em tese, a obrigação de
garantir o lucro e assim vidas vão se acabando pela mão racista do capital. garanti-lo. Entretanto, assim como em 1888, isso não é feito e é nesse ponto que entra o papel das
ocupações. Muitas vezes assessoradas pelo MST, MTST, e outras organizações que realizam esse
A lei de drogas serve hoje como o caminho para um projeto sombrio de destruição de vida trabalho, centenas de famílias ocupam terrenos e prédios que deveriam estar sendo utilizados de
dos negros e pobres. Por ser um crime onde muitas vezes a única prova é o depoimento do policial acordo com a função social.
(aquele mesmo que vai ganhar uma grana a mais no fim do mês por ter levado aquela pessoa para
delegacia), fica fácil atribuir sua prática a qualquer pessoa que já carregam estereótipos de crimina- Tais ocupantes se encontram em situação de vulnerabilidade; o discurso midiático e do gran-
lidade. Por ser um crime que não deixa vestígios por não ter uma vítima específica (basta ter um ‘kit de capital, muitas vezes endossado por parte da população, é de trazer para si o caráter de “va-
forjado’), diferente de um homicídio, estupro, etc, a prisão de mais e mais pessoas por essa suposta gabundos e marginais”. O que não é visto é a luta dessas pessoas pela sobrevivência e por ter um
conduta é um negócio perfeito para o lucro dos banqueiros e empresários. espaço para que possam viver com dignidade. Este, inclusive, é um dos princípios da Constituição.
O que não é visto é a luta de tantas mulheres para garantir o sustento e uma casa para sua família,
Lota-se os presídios hoje, privatizam-se os presídios amanhã. A conta macabra do sistema, como por exemplo a Ocupação Marielle Franco, organizada e dirigida apenas por mulheres, mas que
que só vê nossas vidas como números que podem manipular para fazer dinheiro, se orienta pela por serem excluídas socialmente acabam por sofrer também com a marginalização.
completa falta de compromisso com o nosso povo.
A partir dessa visão, é importante analisar um dos casos visto por nós do Najup em uma de
Outra forma de viver é possível nossas atuações. Uma moradora de uma ocupação em que assessoramos relatou já ter sido presa.
Não quero concluir esse texto com coisas óbvias. Quero deixar a reflexão sobre a necessida- Porém, na ocasião, essa prisão havia sido forjada através de um flagrante feito pela polícia, no qual
de da construção de um mundo novo, onde nossas necessidades sejam respeitadas e que ao invés colocaram drogas no mato e a acusaram. Ela foi à audiência de custódia, e, em razão de estar grá-
de um número, nós sejamos pessoas. vida e já ter uma criança, teve prisão preventiva convertida em prisão domiciliar com rastreamento
eletrônico (tornozeleira). Entretanto, assinou o documento que estava no nome de outra pessoa, e
É mais do que evidente que o Estado que temos hoje não passa de uma máquina de moer por isso, não conseguiu colocar a tornozeleira.
gente. E é justamente por isso que nós precisamos pensar numa nova forma de sociedade. De-
nunciar o projeto genocida que estão nos impondo é essencial para a construção de alternativas Infelizmente, o caso dessa moradora é apenas um reflexo do que ocorre constantemente
de sobrevivência, e, principalmente, organização popular, para resistir de pé a tudo que jogam nas nas comunidades e ocupações do grande recife. Um dos fatores que impulsionam essa crise é o
nossas costas. Juntos a gente vira esse jogo. programa de segurança Pacto pela Vida, criado em 2007 com o intuito de diminuir a criminalidade
e os homicídios em Pernambuco. Esse programa opera por meio de dois viés: a investigação, com
o objetivo de prevenir o crime, e a resolução de problemas por meio de evidências e informações.
Para colher as evidências, o Pacto pela Vida dá bonificação especial para todos os policiais civis e
militares, que fazem parte do programa, para que atinjam a meta de redução de mortes definida.
Essa bonificação extra fomenta os flagrantes forjados praticados pelos policiais militares, pois, per-
cebe-se que alguns desses policiais atuam de forma incorreta para garantir um dinheiro extra no
final do mês. Percebe-se então que o desrespeito a esse direito abre caminho para a impunidade e
MULHERES DA OCUPAÇÃO E O CENÁRIO DE GUERRA ÀS DROGAS a política de encarceramento para o Estado.
NAJUP MS
POR YASMIN CORDEIRO Atualmente o que se vive no país é uma guerra às drogas, onde estas são colocadas como
grandes inimigas e, com isso, o encarceramento tem cada vez mais crescido, em que, de acordo os

O processo de favelização ocorre no Brasil desde 1888, com a Lei Áurea, que libertou os
dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, há em média 38 mil presas, das
quais 68% detidas por crimes não violentos, como o tráfico de entorpecentes.
escravizados e escravizadas, mas não lhes deu nenhum tipo de suporte para construir uma vida
digna. Excluídos e excluídas dos centros urbanos pelos altos preços, se dirigiram para as periferias Estudos foram feitos sobre o perfil das mulheres que adentram no mundo do tráfico como
das grandes cidades no intuito de sobreviver. Fazendo um paralelo com os dias de hoje, é possível o do Instituto Terra Trabalho e Cidadania e o que se percebeu foi que essas mulheres têm o perfil
perceber que esse cenário não tem se alterado. Cada vez mais pessoas com menores condições fi- parecido: “Baixa escolaridade, vivem em condições de pobreza e são responsável pelos cuidados
nanceiras são excluídas do centro devido ao alto curso; tudo isso para atender os anseios do capital de filhos, filhas, jovens, pessoas idosas ou com deficiência”. Tendo em vista isso, percebe-se que o
imobiliário. encarceramento feminino afeta não só as mulheres em si, pois há vidas que dependem diretamente
delas. Geralmente ocupam os menores postos como os de vendedoras das drogas, com o intuito de
A Constituição de 1988, denominada Constituição cidadã, trouxe diversos pontos que bus- conseguir uma renda para sua família, por isso, o debate sobre o encarceramento de mulheres se
cam tornar menos individualista a noção de terra, como o instrumento da função social. Com faz importante diante do cenário atual.
este, se uma terra não é aproveitada, sua perspectiva de propriedade é relativizada. A Consti-
tuição traz também o conceito de moradia e garante o direito a ela no Artigo 6°. No entanto,
moradia não é simplesmente ter um teto sobre a sua cabeça, mas segundo Flávio Pansieri: “O
direito a uma moradia adequada significa dispor de um lugar onde se possa asilar, caso o dese-
je, com espaço adequado, segurança, iluminação, ventilação, infraestrutura básica, uma situação
116 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 117
madas e nuas, foram levadas por homens no fundo de um caminhão de metal sem respiração, para
GRITOS DE SOBREVIVÊNCIA: AUSÊNCIA DE ACESSO À SAÚDE encontrar uma prolongação de sua agonia em mais uma etapa no trajeto quase inalcançável de um
atendimento extramuros. O acesso a essa qualidade péssima de cuidado encontrada na UPA e no
DAS MULHERES PRESAS NO RIO DE JANEIRO transporte, com o que há de mais extremo ao corpo, dependeu de mais um atraso. O pedido de
POR JOÃO MARCELO DIAS E NATÁLIA DAMÁZIO PINTO FERREIRA socorro da unidade prisional foi atendido incialmente pelo Grupo de Intervenção Tática, entendendo
que uma emergência era uma rebelião. Foram três horas de choro, grito, desatenção e falta de fluxo
mínimo, até que as 15 horas da tarde, elas chegam finalmente à rede pública, pela primeira vez
A saúde no sistema penitenciário fluminense tornou-se, em especial nos últimos anos, transportadas por uma ambulância. Depois de alguns dias de luta desses corpos assassinados pela
questão inadiável para debates, criação e prática de políticas que possam resolver, ou ao menos negligência tão violenta do Estado, ambas morreram deixando para trás filhos, família e a juventude
abrandar, os prejuízos causados pela atual forma como é gerido o acesso a esse direito fundamen- que possuíam. A dor dessas mulheres que em necessária dororidade (Piedade, 2018) deve atingir a
tal. Como reflexo de uma política de segurança pública cada vez mais centrada em conceitos de todas e todos, não está isolada na máquina genocida carcerária.
guerra e orientada por um poder racista e classicista, o parque prisional do estado do Rio de Janeiro
tornou-se uma imensa máquina que produz cadáveres em escalas perturbadoramente industriais. Relatórios produzidos pelos órgãos responsáveis por monitorar espaços de liberdade para
Em 2018, a população encarcerada chegou a ultrapassar a marca dos 53.000 enquanto produziu prevenir e combater violações aos Direitos Humanos – como o MEPCT/RJ e a Defensoria Pública
229 óbitos. – indicam que são comuns relatos de que para conseguir atendimento médico é preciso estar à
beira da morte. Este parece sempre chegar quando já é tarde demais. Em maio de 2018 uma presa
Em meio à população majoritariamente masculina e confinadas em um ambiente hipermas- passou mal dentro de uma cela do Instituto Penal Oscar Stevenson em Benfica, unidade que só em
culinizado, as mulheres sofrem duplamente a insígnias gestadas por este poder de morte instituído nome é de regime semi-aberto. A direção da unidade informou que antes de falecer, ela foi atendida
como propulsor do sistema penitenciário fluminense: relegadas a sofrer as mesmas mazelas dos ho- naquela manhã no ambulatório pela segunda vez. Um vídeo, que acabou divulgado em matérias
mens, mulheres ainda possuem um índice maior de desassistência, sendo preteridas hodiernamente jornalísticas e redes sociais, mostrava a mulher estirada (possivelmente já em óbito) enquanto suas
para atendimentos já escassos para população masculina, como também tendo suas especificidades companheiras de cela relatavam que ela vinha reiteradamente pedindo para ser atendida uma vez
de cuidado seja por seu gênero seja por raça completamente invisibilizadas. que não estava bem há muitos dias. Foi pautada pela direção por mais de cinco vezes para aten-
dimento, o SOE nunca chegou. Na SEAP, é falha disciplinar pedir que um atendimento extramuros
Pouco se discute que em 2014 foi emitida pela então Secretaria de Políticas para Mulhe- móvel de emergência entre nas unidades. Quando as presas já haviam feito procedimento de res-
res da Presidência da República a Portaria Interministerial 210, que institui a Política Nacional de suscitação sem sucesso, os bombeiros chegaram para recolher seu corpo já sem vida. A espera foi
Atenção às Mulheres em Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE) que ao guiada pela angústia do apelo de todas as mulheres presas da unidade. A ausência de uma política
menos prevê, em tese, o acesso à saúde da mulher privada de liberdade, entendendo por isso uma de saúde minimamente eficiente, demonstrada na demora em conduzir uma interna a uma unidade
complexidade de eventos que afetam a existência da mulher em uma sociedade patriarcal como de atendimento médico, é diametralmente oposta à presença de uma política de segurança marca-
a prevenção de todos os tipos de violência contra mulher, a obrigatoriedade de acesso integral ao damente punitiva, salientada na rapidez da condução da mulher que gravou o vídeo para responder
direito à saúde, e a coleta de dados sobre saúde da mulher (inclusive causa do óbito, incidência de em isolamento pela posse de aparelho celular (MEPCT/RJ, 2018a; 2018b).
hipertensão, número de gestantes, entre outros).
Por sua vez, as trans e travestis sofrem da absoluta invisibilidade no sistema: para os dados
Apesar de a Portaria ter estruturado relativamente como uma apenada deve ter o acesso à oficiais elas e seus corpos não existem. Na realidade, para além dos números, essas estão localiza-
saúde no mesmo modo que as mulheres que não estão fisicamente privadas de liberdade - incluin- das prioritariamente nos piores presídios estaduais, como o Presídio Evaristo de Moraes e o Insti-
do-as em uma série de serviços disponíveis no SUS - mesmo que de modo precário, o atual cenário tuto Plácido de Sá Carvalho, em um sistema cisgenerizado incapaz de lidar com as especificidades
aponta que entre a política e a prática existe um abismo. Não há sequer ginecologista em nenhuma de sua identidade de gênero que lhes dá direito a ter nome social respeitado e acesso a quaisquer
unidade prisional feminina ou obstetra nas unidades que abrigam gestantes. tratamentos que desejem para que possam acessar a expressão de gênero mais próxima ao modo
como ela se sente. São relatados na porta de entrada agressões em seus seios para que os silicones
O corpo feminino, especialmente o negro, encontra na naturalização da dor sentida a ferra- sejam estourados, cujo tratamento sequer é disponibilizado na rede pública (MEPCT/RJ, 2018d).
menta de desumanização. Este processo racista-masculinista encontra seu ápice no sistema prisio- Trans são assim sentenciadas a morte de seu direito de serem castigadas de modo irreversível caso
nal. Um caso em especial ocorrido em abril de 2018 merece ser relembrado à exaustão para que não aceitem tal sentença.
entendamos que para parte das mulheres as sevícias inquisitoriais e da escravidão não cessaram.
Durante uma das visitas do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura[3]12 (MEPCT/ As gestantes, por sua vez, também passam pela supressão absoluta de seus direitos. A
RJ, 2018 b; 2018 d) a UPA Hamilton Agostinho no Complexo de Gericinó foi possível de longe ouvir Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu Relatório sobre saúde materna apontou a
os berros e uma correria entre os técnicos de enfermagem. Duas presas com corpos quase comple- discriminação como ponto crucial para o impedimento de acesso a saúde adequada, podendo gerar
tamente queimados chegavam ao local para atendimento, após um incêndio no isolamento da Peni- mortalidade e morbilidade materna, assim como danos permanentes à saúde da mulher, já que tais
tenciária Nelson Hungria. A unidade não pode conter o fogo, pois não havia extintores funcionando índices se encontram desproporcionalmente localizados em mulheres pobres, negras e indígenas.
e tampouco mangueiras. No atendimento da UPA, os remédios para a dor não eram os necessários No mesmo documento é apontado que uma das formas principais de garantir a integridade física
para a que era produzida em seus corpos. Tampouco lhes foi garantido um transporte adequado: das mulheres é potencializando seu acesso à rede de saúde, especialmente gestantes e puérperas
elas esperaram por quase uma hora a chegada do transporte na unidade, e não de uma ambulância para o acompanhamento pré e pós-natal, fornecendo serviços adequados e acessibilidade a esses
que as levasse direto ao hospital, mas sim o carro da Serviço de Operações Especiais. Elas, quei- sem discriminação. A acessibilidade, por sua vez, para ser efetiva deve respeitar quatro eixos fun-
12 O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura foi criado pela Lei nº 5778/2010, devendo inspecionar as
damentais, quais sejam, isonomia no acesso e qualidade equiparada para todas as mulheres; aces-
unidades de privação de liberdade do Rio de Janeiro e propor em articulação com instituições, sociedade civil e movimentos sociais sibilidade geográfica; acessibilidade financeira; acesso à informação. Colocam ainda que o horário
políticas pública de respeito a direitos humanos para pessoas privadas de liberdade.
MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS
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disponível de atenção, a falta de equipamento, a falta de médicos ou medicamentos adequados para se sustentem”. Nos rebelemos, então, porque o ciclo de violência mortífera do sistema prisional só
atender as emergências que podem ocorrer durante a gestação, o parto e/ou pós-parto, assim como cessará quando a última mulher estiver livre.
treinamento de pessoal capacitado para lidar com emergências obstétricas, constituem barreiras
do acesso adequado à saúde materna. A própria forma de tratamento dado pela equipe médica é João Marcelo Dias é historiador pela PUC-Rio, cursa direito na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ) e é assessor do
considerada como um fator determinante na desistência de busca de atenção adequada. O respeito Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
à saúde materna no âmbito do parto inclui também enfatizar a obrigatoriedade de garantir que a Natália Damazio Pinto Ferreira é advogada, mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do
mulher possa ter um consentimento informado sobre o tipo de parto que deseja acessar.13 Segundo Rio de Janeiro (UERJ), doutora em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio e integrante do Mecanismo
o Escritório das Nações Unidas para Combate ao Crime Organizado, mulheres grávidas ou com fi- Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.
lhos dependentes somente deveriam ser encarceradas caso absolutamente necessário, ou seja, em
casos excepcionalíssimos.

Internamente, a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Privação de Liberdade e Egres-


sas do Sistema Prisional (PNAMPE) prevê diretrizes específicas no que diz respeito a presas ges-
tantes e mães de recém-nascidos dentro do sistema prisional, que inclui desde direito a um parto
humanizado, acompanhante, rede cegonha, e até cuidados no puerpério e pós-parto. O QUE A POLÍTICA DE DROGAS TEM A VER COM A LUTA
Na prática, gestantes sofrem as mais diversas formas de violência obstétrica no decurso de sua PELO DESENCARCERAMENTO FEMININO?
permanência na prisão: trabalho de parto algemada, com sua retirada apenas no momento em que POR INSTITUTO TERRA TRABALHO E CIDADANIA
se chega ao hospital já na fase de expulsão em franca contrariedade à lei estadual14; ter como seu
único acompanhante um agente homem do SOE, que a faz beber água da pia; atraso de seu parto
porque o mesmo estava com a arma apontada para ela; e até a solidão absoluta que a faz acreditar
que o bebê iria cair da maca (MEPCT/RJ, 2018). Isso tudo, para esperar que um ano depois sua
O aumento exponencial do encarceramento feminino trouxe a necessidade de entender
diversas vertentes de um cenário amplo e cada vez mais complexo. Nos últimos anos, o número de
criança seja forçadamente retirada de seu convívio, com danos imensuráveis à saúde mental do mulheres presas aumentou mais de 700%, segundo o levantamento oficial do governo, o Infopen.
bebê e de si mesmo. Hoje, o tráfico de drogas é o fator que mais tem encarcerado mulheres: mais da metade delas está
presa sob a acusação de crimes relacionados a drogas.
Novamente, podemos lançar mão de um caso emblemático para patentear o quão distante
a realidade fática do sistema penitenciário fluminense está de garantir acesso minimamente ade- A sentença tripla – conceito criado pela pesquisadora mexicana Corina Giacomello – foi
quado a direitos básicos específicos para mulheres. No dia 11 de novembro de 2015, o Núcleo de observada ao longo da atuação do ITTC. Ela parte de que a desigualdade de gênero já está esta-
Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública (NUDEDH) realizou visita fiscalizatória de rotina belecida e é apenas acentuada quando a mulher entra para o sistema prisional (criado por e para
na Penitenciária Talavera Bruce em Gericinó, ainda hoje unidade de referência para gestantes no homens), e determina um estigma que essa mulher em conflito com a lei irá carregar depois de sair
sistema. O fato que motivou a fiscalização nesta data foi o caso que veio ao público através de no- da prisão, seja pela falta de acesso a serviços básicos, como saúde, educação e transporte, e pela
tícias jornalísticas de uma mulher encarcerada em período avançado de gestação e com sofrimento dificuldade para encontrar emprego formal.
psíquico, que estava em uma cela do setor de isolamento sem sequer possuir um colchão. Com ber-
ros nunca ouvidos, realizou o próprio parto sozinha. A inspeção constatou as condições estruturais Para entender como as desigualdades de gênero afetam mulheres de diferentes forma, o
degradantes, com relatos de mulheres que contam que apesar de terem implorado por atendimen- ITTC lançou em 2015 o Projeto Gênero e Drogas. Naquele mesmo ano, o Projeto Estrangeiras com-
to, chegando a “balangar”15 a cadeia no decorrer da madrugada, não foram atendidas. pletou 15 anos de atuação direta com mulheres migrantes em situação de prisão, também em sua
Dentro deste tópico, insta recordar que na Ação Civil Pública ajuizada pelo NUDEDH16 foi necessário maioria acusadas de tráfico de drogas.
recurso à sentença denegatória em 2016 na qual a juíza responsável justificava de modo inteira-
mente desarrazoado sua negativa afirmando que fornecer o serviço às mulheres presas configurava Os impactos resultantes principalmente da Nova Lei de Drogas (de 2006), vão para além do
quebra de isonomia, uma vez que as mulheres em liberdade tinham dificuldades em acessar os aumento do encarceramento. A população jovem e negra enfrenta também fora das prisões os im-
serviços. pactos da chamada guerra às drogas por meio da ação repressiva e violenta da polícia, assim como
do sistema de justiça.
Os exemplos se repetem de modo incessante no cotidiano do cárcere fluminense, no qual o
ciclo do genocídio racista e masculinista se mantém: todos os meios possíveis de insalubridade e Revendo o percurso e as trajetórias de mulheres que o ITTC acompanhou ao longo de seus
violência atingem mulheres confinadas em celas ainda de chapão, sem chuveiro ou vaso sanitário 20 anos, em 2017, o Projeto Gênero e Drogas lançou a animação “A política de drogas é uma ques-
como no Presídio Talavera Bruce, garantindo a deterioração contumaz de sua saúde. Quando sua tão de mulheres”, retratando nove histórias de violações institucionais decorrentes da política de
saúde se degrada ao ponto de sua sobrevivência estar em risco, nega-se o acesso ao serviço, ga- drogas vigente.
rantindo, assim, o fechamento de um ciclo de morte por demais evitáveis. Audre Lorde (1973) bem
nos avisou “que a árvore da raiva possui tantas raízes que os galhos se despedaçam, antes que Questões como uso de drogas, revista vexatória, maternidade no cárcere, pessoas LGBT em
13 Para mais, vide http://cidh.org/women/SaludMaterna10Sp/SaludMaternaINDICE.htm. conflito com a lei e violência de Estado são exploradas na animação com o intuito de mostrar a mul-
14 Lei n. 13.434, de 12 de abril de 2017. tiplicidade de maneiras (diretas e indiretas) com as quais mulheres podem ser atingidas pela guerra
15 “Balangar”, no vernáculo prisional fluminense, é quando o efetivo prisional coletivamente se levanta, fazendo barulho e
batendo nas grades em geral para emergências médicas e outras questões que são consideradas coletivamente como injustas ou
às drogas.
erradas.
16 A ação pleiteava a disponibilização de profissional médico e especialista na área ginecológica em tempo integral assim Lutar pelo combate ao encarceramento de mulheres é também assumir a missão de erradicar
como a realização dos exames preventivos periódicos para todas as mulheres do sistema.
120 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 121
a desigualdade de gênero. Nessa perspectiva, lutar por uma nova política de drogas é criar novos válida que esse sistema de poderes que faz com que os nossos esqueçam de onde vieram.
caminhos para se pensar a garantia de direitos e de assistência, e enxergar o cenário para além da
questão da segurança pública. Esse já é meu terceiro artigo, o mais engraçado disso é que não sei nem pra onde vai essa
parada, nada que tem nesse sistema faz com que eu me sinta pertencente. Todos os lugares que
estou, falta algo, é como olhar no espelho e não se reconhecer. Continuo sem entender porque te-
mos que seguir pessoas que não constroem com o povo negro, não dá pra acreditar em quem não
analisa isso. É serio que vocês acreditam no fim da escravidão? Como é tranqüilo falar de classe e
A REVOLUÇÃO SERÁ PRETA gênero quando o maior veneno ainda circula em todo país? Estão preocupados com a volta da dita-
POR MARIA JANIELLY (PE) dura, só que nas favelas, ela nunca acabou.

A população negra não consegue enterrar os seus filhos assassinados na porta da escola,
Quando se é mulher preta, tudo envolve o racismo e alguns dias tenho escutado de mulhe- eles sempre dão um jeito de barrar a nossa entrada em qualquer lugar.
res próximas, e que me inspiram, que não somos só racismo.
Como compreender o desejo de “igualdade” de gênero, e logo, por conseqüência do racismo,
Eu sei, mas ainda não sei não falar dele, e pior, na minha cabeça acontece da seguinte forma: um homem negro é assassinado a cada 23 minutos num pais racista, onde seu atual presidente
não dá pra não falar de uma parada que nos para. abre a boca pra dizer que racismo não existe e que 80 tiros é incidente? Como podemos desejar
igualdade de gênero se os números de mulheres negras crescem do cárcere às suas mortes?
Quando recebi o convite para escrever pra essa revista, a irmã me disse que poderia falar de Enquanto não for posto como pauta, enquanto não for assumido que esse país foi e é construído em
política, lgbtq+, feminismo e racismo. Acredito que, por isso, não consegui produzir antes, minha cima de extermínio da população negra. Enquanto as pessoas da política legislativa, movimentos so-
cabeça virou um carrossel, aprendi a falar de racismo em todos os âmbitos. Na política, racismo no ciais, pessoas civis, não entenderem que a partir do racismo são construídos os maiores males dessa
lgbtq+, racismo no feminismo, racismo, racismo e racismo. sociedade, não teremos como não falar de racismo. Não dá para ser só cota, não cabe mais isso.

Eu sei que não somos só racismo, que vivemos outras coisas, e que perpassa o racismo. Eu Em todos os lugares que venho OCUPANDO, escuto a necessidade de alternância de poder,
vivi isso ontem, na casa da minha filha, no aniversário do seu filho. Estávamos em família, o amor que nada mais é que pretxs e faveladxs ocupando os lugares que sempre nos foi negado. Pois é,
fez da gente uma família, somos família de dores, luta e vitórias. Criando as crias para um futuro. como diz a poeta Adelaide Santos, compositora e cantora do grupo de rap Femigang: “A revolução
Mesmo assim, o racismo parou a gente lá, de novo. Ficamos segundos parados, era uma ligação será PRETA! Ou não será. Vai ser pela MULHER PRETA! Ou não será.”
avisando que um dos irmãos tinha sido levado pela polícia, só por ser negro e estar caminhando na
rua. Ser negro, dentro dessa sociedade, faz da gente um alvo ambulante. Vocês que dizem aliados e não tem a pele preta, abram caminhos. Façam reparações. Deixem
os nossos falarem. Nos deixem passar. Não escondam as bolsas, nem as carteiras, sabemos traba-
Não sei se vocês vão conseguir compreender o porque preciso falar de racismo sempre. Ele lhar, sabemos escrever, sabemos falar, sabemos fazer por nós. E mais, sabemos o que é nosso.
está nesse sistema todo, peço desculpas a minha companheira Jéssica Lopes e a minha filha Joy
Thamires, mas ainda não sei não falar/escrever e não lutar contra o racismo. Como disse a nossa ancestralidade Carolina de Jesus: “O Brasil precisa ser governado por
Poderia começar esse texto falando sobre política, sobre o legislativo, sobre a constitucionalidade uma pessoa que já passou fome.”
ou sobre estar numa construção política com minha família e pensando numa construção horizontal,
dentro do coletivo A Quilomba. É dolorido, mas nossos corpos políticos estão em jogo há bastante tempo, sempre fomos o
alvo, de bala perdida, ou de estatísticas. O jogo está virando, os nossos corpos, hoje, estão chegan-
Poderia começar esse texto falando da minha pré-candidatura a vereadora de Jaboatão, jun- do onde vocês jamais acreditaram que chegariam. Um salve a todas as mulheres que são nossas
to com as irmãs Jaqueline Ribeiro, Débora Aguiar e Joy Thamires, ou também falar dos pré-candi- inspirações para continuar na luta.
datos de Recife com minha irmã Ingrid Farias, Larissa Carla e meu filho Stilo santos, mas o racismo
tenta nos parar até aqui. Como anunciar uma pré-candidatura se na porta desses três poderes, tem
sempre um branco impedindo nossa entrada? Maria Janielly é mulher preta, mãe, casada com uma mulher preta, candomblecista, juremeira, articuladora social, in-
Como falar de política legislativa sem nos adoecer? tegrante do coletivo periféricas, integrante do Espaço Cultural das Marias e da A Quilomba, pré-candidata a vereadora
De todas essas guerras, de tudo que passamos diariamente, a cada segundo, em todas do município de Jaboatão. Jaboatão dos Guararapes, 02 de setembro 2019.
as áreas que nossos corpos políticos estejam circulando é o racismo que vai nos parar. E é muito
fod@$% ver os nossos sendo barrados na porta de entrada. Não importa qual seja a porta, não
importa qual seja a nossa partida, a nossa chegada é sempre uma porrada para eles, que seguram
as suas bolsas quando entramos em alguns lugares, com os olhos e os dentes trincados, com a
sensação de estarmos invadindo mais uma senzala para libertarmos os irmãos. Para nós, tristeza,
quando nos deparamos com pessoas que, na teoria, deveriam estar ao nosso lado, mas preferiram
construir e apoiar racistas, ou comer qualquer que seja a fatia pensando que é bolo.

Dessa questão toda de política legislativa, a única certeza que trago no meu peito é de cons-
truir com os meus, e eu sei quem são os meus, e que a política que construímos na favela é mais

122 MUITAS MÃOS MUITAS MÃOS 123


FOTOS_

VISITA ÀS MULHERES PRIVADAS DE LIBERDADE EM RECIFE | PERNAMBUCO

AÇÕES
AÇÕES
DA RENFA
DA RENFA
PELOPELO
DESENCARCERA-
DESENCAR-
MENTO
CERAMENTO OFICINA DE TRANÇAS NAGÔ E TURBANTES

OFICINA DE COLAGEM E LEITURA DE CONTOS


COM MULHERES GESTANTES E LACTANTES

124 125
PARTICIPAÇÃO NOS ATOS DO
8 DE MARÇO

PARTICIPAÇÃO NAS MARCHAS DA MACONHA

126 127
NOSSAS
micro revoluções
CAMPANHA #CARTAPRAELAS
POR ANA BEATRIZ E INGRID FARIAS

E m junho de 2016, a população prisional feminina atingiu a marca de 42 mil mulheres


privadas de liberdade, o que representa um aumento de 656% em relação ao total registrado no
início dos anos 2000 (INFOPEN Mulheres, 2018). Faz-se imprescindível pontuar, ainda, que 74% das
mulheres presas no Brasil são mães, são solteiras e quase não recebem visitas. Tais informações
ajudam a explicar como o encarceramento costuma ignorar, tanto as especificidades da mulher pre-
sa, quanto a invisibilidade, o silenciamento e o menosprezo por questões de gênero como parte da
própria lógica do poder punitivo e da construção social excludente e opressora.

Identificou-se, então, a necessidade de uma busca por troca de afetos com essas mulheres
privadas de liberdade que, por sua vez, são marginalizadas e responsabilizadas para além da aplica-
ção da pena objetiva, na medida em que são socialmente estigmatizadas e excluídas. Desse modo,
verificou-se como uma possibilidade de via de comunicação, construção de laços e troca de afetos
PARTICIPAÇÃO NAS FRENTES PELO DESENCARCERAMENTO (MG) o uso das cartas.

O #CartaspraElas surge, portanto, de uma demanda de compreensão do peculiar universo


do cárcere feminino, caracterizado pelo abandono afetivo, culpabilização e desumanização das mu-
lheres, fruto de uma cultura patriarcal e sexista que se faz presente de forma expressiva no sistema
de justiça criminal e, consequentemente, no sistema carcerário nacional. Também de visibilizar os
nomes, sobrenomes e histórias das mulheres encarceradas, que sistematicamente são tratadas
como números ou por “vulgos”.

Lançada em 2019, a campanha mobilizou mais de 60 pessoas de todo o Brasil para enviarem
cartas para as mulheres encarceradas de Recife/PE. Para isso, utilizou-se de endereço eletrônico
amplamente divulgado nas redes da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, a fim de atrair
o maior quantitativo possível de correspondentes afetivas.

Com o recebimento das cartas, física ou eletronicamente, fez-se necessário organizá-las e


entregá-las durante as ações mensais realizadas na Colônia Penal Feminina do Recife, o Bom Pastor.
Essas ações, por sua vez, acontecem periodicamente todo mês e há a entrega de doações de itens
de higiene pessoal, beleza e roupas; das cartas e também há a realização de oficinas e debates que
tratem sobre o racismo, sexismo, patriarcado, seletividade, punitivismo, capitalismo, entre outras
temáticas pertinentes ao cárcere e às mulheres.

E NA FRENTE PARLAMENTAR Às mulheres privadas de liberdade que recebem as cartas, é facultado que redijam respostas
FEMINISTA ANTIRRACISTA aos seus correspondentes afetivos. Assim, para quem tem interesse, oferecemos materiais necessá-
rios para a redação das respostas e nos responsabilizamos por enviar ao respectivo correspondente.
COM PARTICIPAÇÃO POPULAR Desse modo, as cartas consagram em seu conteúdo a troca de afetos, informações, acolhimento e
NO CONGRESSO NACIONAL compreensão entre mulheres anteriormente desconhecidas e com histórias diversas possibilitando
o exercício da empatia e alteridade inerentes ao feminismo para além das grades.

Na colônia penal o nosso maior contratempo foi com a lista de voluntárias para as visitas, que
por vezes não correspondia à lista disponível na portaria, isso por conta da burocracia genuína ao
funcionamento do órgão, o que, no entanto, não chegou a comprometer as visitas, mas podemos
128 NOSSAS MICRO REVOLUÇÕES 129
ressaltar que uma das vezes uma companheira nossa foi barrada devido a uma postura transfóbica uma outra sala, que ocorreu durante o Julho das Pretas, e em homenagem ao Dia Internacional da
da instituição, inerente à sua estrutura, que não aceitou a identidade com o nome de registro, tendo Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha, contamos com a colaboração de outras iniciativas que
em vista que ela tinha enviado o nome social para a lista de entrada no recinto. participaram de forma voluntária do espaço, com a presença de Joaninha, da Rede de Mulheres
Negras de Pernambuco, e com as integrantes do salão Afro Anastácia; neste dia, a companheira
Vale ressaltar que a transfobia é exercida ainda mais fortemente sobre os homens trans que da Rede começou com imagens de mulheres negras e provocou “quais são as mulheres negras
também são internos no Bom Pastor, pois são tratados como mulheres cis e têm o direito a sua importantes da sua vida”? e os relatos foram inúmeros, muitas referências à mães e avós e, sobre-
identidade negado - e todas outras questões ligadas isso não atendidas. tudo, um que chamou atenção foi o relato de uma jovem do interior, branca, de olhos e cabelos
claros, que fez questão de levantar a mão e saudar sua grande amiga, mulher negra, que estava
Uma outra forma que a burocracia do Estado se mostrou ativa em desestimular nossas ativi- cuidando da sua filha enquanto ela estava privada de sua liberdade; no segundo momento, as
dades foi com a demora para nos deixar entrar, o que comprometeu o curto espaço de tempo que companheira do AfroAnastácia fizeram tranças e turbantes nas colegas, que fizeram uma grande
dispomos lá dentro. Então a hora da nossa chegada e da entrada tinha sempre uma espera inexpli- fila e ficaram bem contempladas com a possibilidade de mudar e cuidar do visual; por fim, houve
cada. a distribuição do livro “Jesus e os Direitos Humanos”, quando também algumas manifestaram in-
teresse pela doação de mais livros e apontaram para mais uma carência que acontece lá dentro;
Neste espaço interagimos com um número maior de atrizes e atores sociais, como as assis-
tentes sociais do presídio, com quem combinamos nossas visitas e nos prestavam apoio para rea- iii) a quarta visita foi também em parceria com a Rede de Mulheres Negras, que se tornou
lização das atividades, bem como as e os agentes carcerários, na maioria mulheres, mas também parceria fixa nas visitas ao Bom Pastor. A atividade foi novamente com o grupo de gestantes e de
alguns homens, com os quais tivemos que ter algum jogo de cintura, pois tentavam nos intimidar mães de recém-nascidos, foi feita uma contação de história, uma conversa sobre maternagem - com
de uma forma ou de outra. Os policiais, do mesmo modo, comumente ironizavam nossa ida ao enfoque nas mulheres negras - e também realizamos uma oficina de colagem com as internas, para
presídio. Ao verem os lanches que levávamos, importante instrumento de troca e aproximação com que elas se representassem, sensibilizando para as formas de expressão possíveis naquele espaço.
as internas, diziam frases como “hoje vai ter festa, olha!”. Mas guardávamos nossas energias para Ainda distribuímos um livreto sobre ancestralidade africana, com contos, jogos, figuras e a cartilha
focar no trabalho com as mulheres que tínhamos ido visitar. Quanto às mulheres privadas de liber- “Fique Suave”, produzida e elaborada em parceria com o mandato de Ivan Moraes, sobre a política
dade, nossa vontade era dar prioridade às internas que não recebiam visita da família no último ano. de drogas e redução de danos.
Estas representavam 10% da população do presídio. Isso foi possível em parte, porque, em alguns
momentos, fizemos contato com as gestantes e as recém-mães que ficavam com a tutela do seu iv) A quinta visita, realizada no dia 17 de setembro de 2019, seguiu em parceria com a Rede
filho até os 6 meses, quando então a guarda era passada para um parente, caso houvesse alguém de Mulheres Negras de Pernambuco, mais uma vez sendo realizada para um grupo maior e diver-
disponível. Em outro momento, encontramos com mulheres mistas, de todas as idades (a partir so, numa sala com cadeiras utilizada para atividades educativas. Ingressamos na Unidade Prisional
de 21 anos), algumas gestantes e algumas que não recebiam visitas. Sempre fomos muito bem com roupas e itens de higiene pessoal para doação, recolhidas durante nossa campanha nas redes
acolhidas pelas mulheres, algumas mais tímidas, outras mais abertas. Suas demandas materiais e sociais e em parceria com alguns coletivos, como a Marcha das Vadias.
imateriais não tinham fim, todas sonhando com o dia em que sairiam dali e lamentando os motivos
que as fizeram entrar, o que, sabemos, não são tão objetivos para serem explicados assim. É válido, pontuar, contudo, que tivemos certa dificuldade ao ingressar na Unidade, tendo em
vista que há restrição em torno de alguns itens que levamos para a ação, à exemplo de roupas pre-
Em Recife, não previmos a realização das entrevistas, pois focamos nosso conta- tas, que não podem ser doadas para as mulheres privadas de liberdade, sob o argumento de que
to com as mulheres privadas de liberdade em conversas coletivas e oficinas. Foram ao todo 9 podem ser confundidas com as/os agentes penitenciário. Também há restrições quanto aos itens de
meses de visitas, com um encontro por mês, nos quais realizamos as seguintes atividades: higiene pessoal, à exemplo de sabonetes com coloração, desodorantes aerosol, entre outros. Além
disso, é necessário que tudo esteja colocado em sacolas transparentes. Em sendo assim, ao entrar
i) dia 06 de maio, nossa primeira visita, quando nos encontramos na ala de gestantes e na Colônia, tivemos que desfazer alguns kits que já estavam prontos e destinados às mulheres
inicialmente nos apresentamos, compartilhamos sobre nossa proposta e escutamos as mulheres privadas de liberdade, contendo cartilha de redução de danos juntamente com os itens de higiene
presentes sobre quais seriam suas demandas mais específicas para nossa atividade conjunta. Nesse pessoal. Assim, foi preciso distribuir de forma não tão organizada como prevíamos durante a ação.
momento inicial apresentamos o projeto #CartaParaElas, entregando as primeiras cartas, lendo em Resolveu-se, então, fazer uma fila e entregar alguns itens a cada uma que estivesse presente.
voz alta e compartilhando o significado dessa troca entre nós mulheres, estejamos presas ou aqui
fora. Nesse momento pelo curto espaço de tempo que tivemos, não conseguimos já responder as Anteriormente à entrega das doações, fizemos as apresentações, onde cada uma informou
cartas, o que ficou acertado para colhermos na segunda visita; como se identifica e de onde era, em seguida, foram feitas algumas provocações e houve um debate
sobre a política de drogas atual e o racismo, o que foi muito relevante, afinal, a grande maioria das
ii) dia 26 de junho tivemos nossa segunda vista, onde já trouxemos algumas cartas res- mulheres que participavam da atividade eram presas provisórias por delitos ligados à lei 11.343/06,
pondidas. Para nossa surpresa - positiva - algumas das mulheres que tínhamos encontrado na a atual lei de drogas, que encarcera mulheres expressivamente no nosso país.
primeira visita já se encontravam em prisão domiciliar, e fizemos a atividade com um novo grupo
de mulheres. Muitas se identificavam com o conteúdo das cartas, para as que quiseram responder, De início, algumas se manifestaram alegando não acreditar na existência do racismo propria-
auxiliamos com a elaboração da carta de resposta, outras só quiseram guardar para si a carta para mente, tendo em vista a miscigenação do Brasil, entretanto, após as provocações das integrantes
ler em outros momentos. Nesse encontro continuamos a apresentação da luta antiproibicionista e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, que trouxeram exemplos cotidianos nos quais se faz
abolicionista (isto é, pelo fim das prisões), e discutimos o impacto da política de drogas e do encar- presente uma seletividade policial através da cor, um julgamento social racista, entre outros, foi
ceramento em nossas vidas; oportunizada uma identificação e reconhecimento de que há um racismo estrutural vigente e que,
por vezes, é invisibilizado por essa falsa ideia de democracia racial.
ii) na terceira visita já nos encontramos com um grupo maior e diverso de mulheres, em

130 NOSSAS MICRO REVOLUÇÕES NOSSAS MICRO REVOLUÇÕES 131


A partir disso, a companheira Joaninha, recitou poemas potentes que emocionaram à todas e

MANDE
traziam a questão da raça e empoderamento negro fortemente. Em seguida, iniciamos a distribuição
das cartas, para oportunizar às mulheres privadas de liberdade a troca afetiva com outras mulheres
que enviaram as cartas e contribuíram para a ação como correspondente afetivas.
É importante pontuar, também, que algumas companheiras se disponibilizaram para auxiliar o
processo de leitura e de escrita, compreendendo que ainda há um percentual de mulheres que não
sabem ler/escrever e que não poderiam ser excluídas ou intimidadas com o processo.

UMA
Com relação à troca das cartas, foi uma experiência extremamente gratificante, pois, confor-
me relatado por muitas das mulheres que receberam cartas e tiveram a oportunidade de responder,
era uma sensação de acolhimento, de reconhecimento e até mesmo de percepção de que não são
descartáveis e de que não estão esquecidas. Além disso, em alguns casos, houve até mesmo iden-
tificação com parte do conteúdo da carta/experiência relatada pela correspondente afetiva.

Ao dar início a distribuição de lanches, roupas e produtos de higiene pessoal, ficou ainda

CARTA!
mais visível o déficit estatal para dar conta das demandas e das especificidades dessas mulheres.
Como se sabe, o cárcere foi criado, inicialmente, com uma perspectiva voltada ao atendimento de
homens, portanto, tem toda sua estrutura predominantemente masculina, falhando em dar conta
de demandas básicas femininas, como o fornecimento de absorventes, à exemplo. A doação das
roupas também nos fez atentar para parte das pessoas que estão ali internas que na verdade se
identificam no masculino, como homem trans, e a necessidade de levar roupas próprias. Nestes
casos anotamos o nome para providenciar para as próximas arrecadações e visitas.

No tocante às mulheres que não recebem visita e não são acompanhadas por advogado
constituído, recolhemos os dados para verificar as possibilidades de intervenção jurídica, assistência
ou acompanhamento. Alguns dos processos que verificamos, a maioria eram de presas preventivas
que estavam aguardando julgamento.

É preciso apontar, entretanto, que temos certa dificuldade para dar retorno de informações
à essas mulheres, tendo em vista que, por conta do expressivo número de mulheres sem visita, há
uma relativa rotatividade de mulheres presentes nas nossas ações.

Observamos que haviam mulheres de outros estados presas na Colônia e verificamos que
respondiam também à processos ligado a Lei de Drogas e estavam detidas longe dos seus familia-
res, sem a possibilidade de receber visita, que é um direito fundamental para a ressocialização que
- ao menos deveria ser - o princípio vetor da Execução Penal. De acordo com o art. 41, inciso X, da
LEP (Lei de Execuções Penais), constitui direito do preso “visita do cônjuge, da companheira, de
parentes e amigos em dias determinado”. Contudo, o que está na lei é bastante divergente do que
encontramos na realidade e não só no tocante ao direito de visita.

Um caso feliz que acompanhamos, foi de uma senhora que recolhemos os dados e ao consul-
tar eletronicamente no TJPE, verificamos que sua preventiva havia sido revogada e em breve teria
sua liberdade provisória concedida. É válido frisar que ela também era mais um alvo da guerra às
drogas, que, na realidade, é uma guerra contra pessoas, respondendo, portanto, aos crimes pre-
vistos no artigo 35 e 33 da lei 11.343/06, de associação para o tráfico e tráfico de entorpecentes,
respectivamente.

Apesar da pesquisa focar nos dados oriundos dos questionários aplicados, sem dúvida a
parte mais rica e importante para o desenvolvimento do presente manual foi a aproximação e
as vivências experienciadas junto às mulheres privadas de liberdade no nosso estado. Poder ou-
vir delas mesmas suas histórias, suas reclamações, seus clamores e indignações foi fundamental
para trazermos aquelas mulheres para mais perto dos textos aqui desenvolvidos e publicizados.

132 NOSSAS MICRO REVOLUÇÕES NOSSAS MICRO REVOLUÇÕES 133


PARA
COMEÇAR
O TRABALHO
Compartilhamos com vocês a cartilha produzida em
parceria com a Rede de Mulheres Negras de Per-
nambuco para realizar atividades com as mulheres
privadas de liberdade no Recife.

A proposta do livreto é provocar questões sobre a


identidade racial e resgate histórico a resistência
negra.

Tire cópias, faça atividades com mulheres do seu


bairro, da sua escola, da sua família! Use para pro-
vocar reflexões e ampliar mentes na luta pelo de-
sencarceramento!

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Agradecimentos
Agradecemos a todas as pessoas, em especial às mulhe-
res que se dedicaram a realização desse projeto e aquelas
que compartilharam conosco sua vida e sua luta.

Seguimos acreditando que a luta transforma vidas e


altera realidades.

“No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mo-


ver contra a dominação, contra a opressão. No momento em que
escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberda-
de, a agir de formas que libertam a nós e aos outros.” bell Hooks

“Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revol-


tada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os pa-
trões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode
ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque nin-
guém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que
Deus quiser. Eu escrevi a realidade.” Carolina Maria de Jesus

“Não pode ser seu amigo quem exige seu silêncio ou atrapalha seu
crescimento.” Alice Walker

146 147
ANEXOS
MANUAL DO HABEAS CORPUS
Para entender o passo a passo para produzir e impetrar um habeas corpus.

MODELO

PARA
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.

Impetrante: nome completo de quem está escrevendo o habeas corpus


Paciente: nome completo da pessoa presa

CONTRIBUIR
Autoridade Coautora: vara que decretou a prisão
Processo nº.: numeração do processo criminal pelo qual a pessoa presa responde

(Nome de quem está fazendo o habeas corpus), brasileiro, (estado civil), (profissão), identidade
número XXXXXXX, e nº CPF sob o n XXXXXXXX, (endereço profissional ou residencial), vem, res-
peitosamente, ante a presença de Vossa Excelência, requerer

COM SUAS
HABEAS CORPUS COM PEDIDO DE LIMINAR

em favor de (nome da ré), brasileira, (estado civil), portadora do RG nº. XXXXXXX, inscrito no CPF
sob o nº. XXXXXXX, residente e domiciliado na Rua XXXX, nº. XX, apartamento nº. XX, situado no

AÇÕES
Bairro XXXX, (cidade) /RJ, tendo em vista as seguintes razões de fato e de direito a seguir expos-
tas.

Data máxima venia, apontando como Autoridade Coatora o Juízo da Vara XX de (cidade onde o
crime foi supostamente cometido), pelos fatos e fundamentos que abaixo se aduzem;

I - SÍNTESE DOS FATOS

PELO
A Paciente (nome da ré) foi presa em flagrante dia XX/XX/XXXX, sob a acusação de praticar o
crime (nome do crime e/ou número do crime no Código Penal). Por ocasião da audiência de Cus-
tódia, em XX/XX/XXXX, a defesa requereu a liberdade provisória da Paciente, que foi negada, não
obstante a natureza garantista do instituto (se for o caso).
Observa-se que os fundamentos que sustentam a decretação da prisão preventiva demonstram-se
equivocados e em dissonância com os preceitos basilares da Carta Magna e do Código de Proces-
so Penal.

DESENCARCERA-
II) DA POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE MEDIDAS DIVERSAS DA PRISÃO PARA GA-
RANTIA DA LEI PENAL

Não existe, no caso em tela, nenhum elemento indicando que o Paciente colocará em risco a
ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei. A segregação cautelar da Paciente não

MENTO
se mostra razoável ou proporcional, consistindo, efetivamente, na imposição de pena antecipa-
da. Mediante a aplicação de medida cautelar diversa da prisão, a Paciente poderá (ex: concluir o
semestre letivo, curso ou voltar ao trabalho).
Como se sabe, por força do art. 5º, LVII, da CRFB, a prisão antes do trânsito em julgado da deci-
são é medida excepcional e apenas se admite de forma cautelar, quando presentes os requisitos
legais exigidos, consistindo em uma verdadeira afronta a presunção de inocência, sendo indispen-
sável a presença de tais requisitos em sua totalidade e devidamente expostos.

148 149
III - DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DA ACUSADA sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade
A Paciente é primária (se for o caso), sem maus antecedentes (se for primária), emprego fixo (se de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”
for o caso descrever onde), cursando (escola, curso técnico, profissionalizante, universidade), com
residência fixa devidamente atestada pelos documentos anexos e também comprovada, possuindo Quem pode fazer: qualquer pessoa pode escrever e impetrar (apresentar) um habeas corpus.
(quantidade de filhos se tiver ou gravidez). Basta seguir as instruções a seguir.
(Explicar sua importância nas atividades dos seus filhos ou qualquer outro dependente, o prejuízo
que sua prisão vai causar aos filhos e a vida familiar) Quem se beneficia: qualquer pessoa presa. Essa cartilha foi pensada para as pessoas presas
que já foram apresentadas na Audiência de Custódia, que ainda não tiveram uma Audiência de
IV - DO DIREITO Instrução e Julgamento ou que se encontram presas há muito tempo sem sentença.
Não devemos esquecer da inteligência da Lei 12.403/11, repaginando-se, assim, as medidas
cautelares que se fazem necessárias a reduzir os danos de mais de 44% de pessoas presas provi- O que ele garante: Principalmente, a liberdade. Se os desembargadores concordarem, a “ordem
soriamente que, como é sabido, poderiam e deveriam responder criminalmente com o mínimo de será concedida”. Ou seja, a pessoa será solta.
liberdade.
Nesse mesmo sentido, não se verificou, a partir do exercício da autoridade coatora, o respeito
às alternativas possíveis que deveriam ser analisadas antes de se decretar a prisão cautelar da
PASSO A PASSO
A partir de agora detalharemos cada um dos pontos do modelo de habeas corpus:
Paciente, algo que se extrai da harmonia do artigo 282, §6º do CPP, ao estabelecer que a prisão
preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar
1) Endereçamento: será sempre na primeira linha em letras maiúsculas.
e do artigo 319 do CPP, que elenca as medidas cautelares diversas da prisão.
“EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO”
V - DA ORDEM LIMINAR
Apontada a ofensa à liberdade de locomoção do paciente, encontra-se presente, in casu, o fumus
2) Partes: são as pessoas que estão participando do habeas corpus. Você que está escreven-
boni iuris.
do (impetrante), quem está preso (paciente) e a vara criminal que decretou a prisão (autoridade
No mesmo sentido, verifica-se a ocorrência do periculum in mora, a liberdade da Paciente, consi-
coautora)
derando que sua permanência o cárcere, além de prejudicar seu trabalho (e/u curso), comprome-
te as atividades em seu núcleo, no qual desempenha papel fundamental (explicar o que deixará
3) Introdução: essa parte será sempre igual! Você deverá apenas substituir os espaços com os
de fazer pelos filhos ou dependentes se houver. Ex: levar e buscar na escola, a ausência de outro
seus dados pessoais e os dados da pessoa presa, assim como da Vara Criminal.
familiar para a substituir nessas atividades se for o caso)
Ante o exposto, requer a concessão da LIBERDADE PROVISÓRIA em prol da requerente, com a
4) Síntese dos fatos: Nessa parte você deverá escrever sobre a prisão da pessoa. Importante
expedição do competente alvará de soltura, fixando-se, assim, a (s) medida (s) cautelar (es) que
ser breve. São informações essenciais: o dia da prisão, dia da Audiência de Custódia (se teve),
se fizerem necessárias a possibilitar o andamento processual da paciente em liberdade.
explicar como aconteceu a prisão, se foi flagrante ou mandado judicial, qual crime foi acusado,
se teve Audiência de Instrução e Julgamento, quanto tempo está preso. Sinta-se à vontade para
VI- DO PEDIDO
copiar o texto do modelo!
Ante o exposto, requer a Vossa Excelência:
1. Que seja Decretado a REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA, já que se verifica a ausência de
5) Da possibilidade de aplicação de medidas diversas da prisão para garantia da lei penal: aqui
pressupostos para a concessão de tal prisão, conforme exposto e fundamentado, aplicando, em
pedimos para a pessoa presa cumpra outras ações, como por exemplo, comparecer no cartório
última análise, se for o caso, MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO;
mensalmente. Não esqueça de preencher o texto do modelo para encaixar melhor na situação da
2. Que seja procedida de forma imediata a expedição do Alvará de Soltura em favor da requerente
pessoa.
e o recolhimento do mandado de prisão preventiva que pesa em desfavor da Paciente.
6) Das condições pessoais do(a) acusado(a): preencha no texto as características da pessoa
Termos em que pede deferimento.
presa. Mencione se for primária (sem processo criminal anterior). Insira aqui qual atividade ele
(Cidade), (dia) de (mês) de (ano).
desempenha, qual emprego, onde, qual função, onde estuda, qual curso, desde quando. Só men-
cione aquilo que possa provar com documentos.
Nome (de quem fez o habeas corpus)
7) Do direito: essa é a parte onde se usam os argumentos jurídicos. Vamos citar alguns aqui.
Assinatura (de quem fez o habeas corpus)
Você precisa ver quais deles se aplicam ao caso do seu familiar/amigo!
Advogados populares e a Defensoria Pública podem te ajudar! Você pode re-
• Para o caso de pessoa com comprovação de trabalho: “O Paciente não voltará a cometer
correr a eles primeiro para elaboração ou orientação sobre habeas corpus.
crimes pois seu sustento não tem origem ilegal.”
Porém, qualquer cidadão pode escrever e apresentar um habeas cor-
• Para o caso de preso há muito tempo: “O Paciente se encontra preso há (insira o tempo)
pus. Demonstraremos como fazê-lo nesta cartilha. Leia com atenção!
sem que tenha se encerrado a instrução criminal. Se ainda não teve a primeira Audiência de Ins-
trução e Julgamento (AIJ), mencione isso!! Se já teve, mencione quando foi a última. Sendo as-
O que é um habeas corpus: é o meio pelo qual se pede a liberdade de uma pessoa presa
ilegalmente. A Constituição Federal diz que “Art. 5º, inciso LXVIII - conceder-se-á habeas corpus

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sim, fica configurado o constrangimento ilegal pelo excesso de prazo para conclusão do processo.
Trata-se, portanto, de prisão ilegal, devendo ser o Paciente posto em liberdade imediatamente.”
• Você poderá pedir a prisão domiciliar se a pessoa presa for: responsável por filho menor de
12 anos ou por pessoa portadora de deficiência, grávidas, doenças graves, idosos maiores de 80
anos. Lembrando que só se aplica aos casos de crimes sem violência ou grave ameaça.
Sugestão de texto: “Trata-se de Paciente (insira aqui qual das opções acima ele se encaixa). Ex-
plique um pouco a situação. Portanto, o Paciente faz jus a substituição da prisão preventiva pela
prisão domiciliar, nos termos dos arts. 318 a 318-B do Código de Processo Penal e do HC coletivo
143.641 (mencionar o HC somente se for caso de mulher mãe de filho menor de 12 anos ou ges-
tante).”
APENAS PARA EXEMPLO: Trata-se de mulher mãe de dois filhos de X e X anos, cujos cuidados
dependem exclusivamente dela. As crianças estão assustadas e desassistidas desde a prisão da
Paciente, sendo imperioso que se permita que a mesma retorne ao seu domicílio para cuidar de
seus filhos.

8) Da liminar: Liminar significa que a liberdade pode ser concedida antes de analisar os motivos
escritos do habeas corpus. Para isso, é essencial que todos documentos importantes tenham sido
juntados!

9) Do pedido: o pedido será sempre o mesmo, a liberdade! Não é necessário alterar o modelo.
Importante lembrar que o pedido de prisão domiciliar só deve ser incluído se a pessoa presa for
uma daquelas citadas anteriormente.

7) Data e assinatura: o habeas corpus deve ser finalizado exatamente como está escrito no
modelo. Você preencherá os espaços com o nome da cidade e data de quando terminou o habeas
corpus. Não esqueça de assinar!

ROL DE DOCUMENTOS
Finalizada a escrita do habeas corpus, você deverá tirar cópia de todos os documentos da pessoa
presa que comprovem o que você disse. Eles deverão ser grampeados junto com o habeas corpus.
Os documentos obrigatórios são:
1. Identidade e CPF
2. Comprovante de residência
3. Carteira de trabalho (emprego formal) ou qualquer declaração que ateste o trabalho (em-
prego informal)
4. Certidão de nascimentos dos filhos (se tiver filhos)
5. Comprovante de gravidez (se for pessoa gestante)
6. Comprovante de estudo (se for estudante, pode apresentar certificado ou declaração da
escola, curso técnico, superior ou outro)

PROCESSAMENTO
Pronto! Agora você tem o habeas corpus e os documentos necessários. O próximo passo é levá-
-los ao Judiciário. Para isso, você deverá se encaminhar ao Fórum mais próximo e se dirigir ao
PROGER. Qualquer funcionário poderá te informar onde ele se localiza. Lá, você entregará o habe-
as corpus. A partir daí, você poderá acompanhar o andamento pelo site www.tjrj.jus.com.br.

ATENÇÃO: O habeas corpus deverá ser, preferencialmente, impresso! Se isso for impossível, po-
derá ser manuscrito. Mas lembre! Tenha sempre duas cópias. Uma ficará no Fórum e a outra com
você, ela será sua comprovação.

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de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais me-
didas cautelares, e dá outras providências. [Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
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ventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas
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