David Riesman - Multidão Solitária
David Riesman - Multidão Solitária
David Riesman - Multidão Solitária
Abstract: This article results from a lecture pronounced during the VIth Brazilian Congress of
Social Sciences and Health, Rio, november 2013. It deals with the biopsychic vulnerability of
people living in contemporary society, which is seen in the text as the consequence of
destruction or loss of human ties which are part of the historical grounds of human culture. This
loss conducts to the frailty of population's health, as a consequence of the denial of the other
(living human being) as our similar, who needs, to be healthy and happy, to be recognized and
respected as we ourselves are. This social process of loss and vulnerability has its source in
present capitalist institutions, mainly the economic ones. These institutions have no more links
with any ethic values. The article adopts the point of view that ethics is an essential
dimension for human existence, and its denial conducts to suffering, disease and death of
millions of people, who are getting sick of chronic and acute diseases, and dying, as a
consequence of this denial, including the increasing number of suicides each year. Seeing the
role of media in convincing and leading people to continuous – and unnecessary – consuming,
the article shows a great concern with the present destruction of human lives, but also with the
possible destruction of life in the planet as a whole, since the efforts of some civil organizations
do not seem to affect the ongoing destructive process of physical atmosphere and life in
general.
Keywords: Health; consumption; human vulnerability; social ties; social order
*
Este artigo resulta da reelaboração da Conferência de abertura do VI Congresso Brasileiro de
Ciências Sociais e Humanas em Saúde da ABRASCO, pronunciada na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, em 14 de novembro de 2013. Algumas características principais do texto da
conferência foram mantidas no artigo.
**
Graduada em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Sociologia pela Universidade Católica de
Louvain. Doutora em Política pela USP, com estágios pós-doutorais em Paris e Lisboa (2005;
2008; 2012). Professora titular aposentada da UFRJ e da UERJ. Professora colaboradora da
UFRGS e da UFF. Autora de dez livros e inúmeros artigos e capítulos de livros.
Revista EPOS; Rio de Janeiro – RJ, Vol.4, nº 2, jul-dez de 2013; ISSN 2178-700X.
A MULTIDÃO SOLITÁRIA
animais – que não conhecemos, ou pelo menos com quem não tivemos contato
prévio. Um pequeno exemplo de meu cotidiano:
A espécie humana teceu, ao longo dos milênios de seu viver, o fio que é
vínculo básico da teia da organização social: a solidariedade. A solidariedade
é o reconhecimento em ato do outro, da alteridade. Ela é que nos garantiu a
sobrevivência, mesmo em meio às lutas de grupos, etnias, Estados e blocos de
nações, como no caso das guerras e revoluções. O apoio mútuo, o socorro aos
mais vulneráveis, a percepção de que todos nós podemos estar naquele lugar
de sofrimento em algum momento, e a reação coletiva, grupal ou individual em
proveito dessa alteridade, singular ou coletiva, é uma característica que
atravessou a história de milênios da humanidade. E ainda hoje cresce, na
contramão do individualismo
O fato de nos distanciarmos deste apoio, e de incentivarmos entre nós a
desconfiança, o medo do outro, a suspeita de que o próximo é um inimigo
disfarçado, potencialmente letal, causa um dano irreparável no tecido social, e
na nossa psique! Propagandas e publicidades no comércio, nos bancos e até
em instituições públicas procuram incentivar em todos nós, todo o tempo, medo
e desconfiança de quem está ao lado, alegando motivo de segurança. Mas
segurança de quem? Do meu ponto de vista trata-se da segurança das
organizações institucionais e das empresas. Em outras palavras, trata-se da
segurança do capital e dos agentes, financeiros sobretudo, que o controlam.14
Revista EPOS; Rio de Janeiro – RJ, Vol.4, nº 2, jul-dez de 2013; ISSN 2178-700X.
Não creio que haja dano maior a uma sociedade que a perda da
esperança na justiça, seja ela social, política, jurídica, ou econômica, como
vem acontecendo no capitalismo contemporâneo, segundo alguns, fruto de
crise estrutural. Os cidadãos perdem sua crença na condição de cidadãos de
uma Nação, de membros de uma sociedade civil organizada, tornando-se uma
multidão de indivíduos não solidários, desvinculados, desorganizados.
Mas a multidão tende a se aglutinar, seja em busca de apoio ou socorro
mútuo, para conseguir o que precisa ou deseja, seja para festejar, para torcer,
para protestar, para manifestar sua raiva contida, desfilando, discursando, ou
mesmo destruindo, retornando talvez, a um patamar inicial de sociabilidade,
originado no hipotético bando primitivo. Através das redes sociais, o veículo
atual principal de comunicação entre as camadas que formam a multidão, esta
se reúne para demonstrar seu descontentamento com questões políticas e
sociais em geral, envolvendo a moralidade, a sexualidade, a solidariedade.
Embora se possa afirmar que a multidão aglutinada pelas redes sociais se
reúne mais por causas comuns do que por interesses comuns, como no caso
tradicional dos grupos e classes sociais. Por isto também, o vínculo que reúne
a multidão tende a ser provisório.
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Pois não apenas o nosso viver, como acentuei no início deste artigo,
mas o de outras espécies também está em perigo. Isto é, está em perigo a vida
do planeta como um todo. Estaremos chegando ao ocaso da humanidade, a
ponto de ter que ceder lugar na Terra a outras espécies, ou a máquinas
pensantes, como os andróides? Retomamos como advertência cultural o
imaginário da ficção científica cinematográfica, mencionado na primeira parte
do texto, e seu pessimismo, que vê o homem e sua civilização como um
empecilho à vida...
Referências bibliográficas
BALMAN, Z. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BOURDIEU, P. (Coord.). La Misère du monde. Paris: Seuil, 1993.
CASTEL, R. Les métamorphoses de la questionsociale – une chronique du salariat. Paris:
Fayard, 1995. (Col. Léspace politique.)
_____. L’ insecurité sociale Qu’est-ce qu’être protegé? Paris, Seuil, 2003
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
LUZ, M. T. Natural, racional, social – razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de
Janeiro: Campus, 1988.
_____. Fragilidade social e busca de cuidado na sociedade civil de hoje. In: PINHEIRO, R.;
MATTOS, R. A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: ABRASCO,
2004, p. 9-20.
_____. Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim
do século XX. PHYSIS: revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, n.15 (suplemento), p. 145-
176, 2005a. Reedição do artigo de LUZ, M. T. em PHYSIS, v. 7, p. 13-45, 1997.
Revista EPOS; Rio de Janeiro – RJ, Vol.4, nº 2, jul-dez de 2013; ISSN 2178-700X.
Notas
1
Para os profissionais da área “psi” em geral: psicanalistas, psicólogos, inclusive terapeutas do
corpo, bioenergéticos e socioanalíticos, a escuta do outro é a condição indispensável do
processo terapêutico.
2
O Projeto, cadastrado na UFRGS em novembro de 2011, sob o título “A ciência como cultura
no mundo contemporâneo: divulgação midiática de saberes científicos e construção do
imaginário social”, consta de estudo comparativo, em desenvolvimento em Porto Alegre e no
Rio de Janeiro, sobre periódicos de divulgação científica – centrado nas biociências – em
revistas de bancas de jornais. Encerrou fase de campo em 2013, originando um artigo
publicado em dezembro. Ver bibliografia no fim do texto.
3
Entre essas fontes de inspiração, nem sempre citadas ao longo do texto, destacam-se os
clássicos Marx, Durkhein e Weber. Entre “neoclássicos”, são fontes importantes de inspiração:
Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Robert Castel, David Riesman, Jacques Lacan, Zygmunt
Bauman, concernentes às questões relativas ao poder político e simbólico, à dissolução do
sujeito, ao consumismo individualista, e à fragilização dos vínculos tradicionais do trabalho,
temas principais do artigo. Ver Bibliografia no final.
4
Uma parte considerável de estudos epidemiológicos e qualitativos recentes sobre LER/DORT
evidencia a relação entre tempo de digitação e o surgimento desses e demais sintomas
ortoesqueléticos ou neuromotores. Outros, propriamente neurológicos, indicam déficit de
atenção, déficit cognitivo, perda de memória etc., em função de horas no computador. Não
estamos considerando aqui os danos à visão.
5
No início do milênio a agroindústria europeia experimentou com sucesso o uso de música
harmoniosa – geralmente clássica – na criação do gado leiteiro. Em certas regiões da França
utilizou-se música nas vinhas voltadas para a produção de vinho, visando ao crescimento
expansivo e harmonioso das uvas, para gerar vinho de qualidade. Por tratar-se de noticiário
impresso já passado não tenho como restaurar essas fontes, que me chamaram a atenção no
momento, nem sei se este processo continua atuante na produção leiteira ou nas vinhas.
Certamente uma busca em sites com descritores relativos a este tema trará indicações sobre a
situação atual. Não se tratando de assunto central no artigo deixo aos leitores curiosos esta
tarefa...
6
O vínculo, conexão elementar afetiva entre os seres humanos, seja de natureza interpessoal,
grupal ou coletiva é, do meu ponto de vista, o “nó básico” que está na origem do tecido social.
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Pode variar em intensidade, duração, permanência, mas é o que nos garante o “não estou só”
na vida social.
7
Escusado dizer que o rosto estampado na foto do jornal é de causar horror ao competidor por
vagas mais empedernido dentre nós... o chocante na notícia é o incentivo que a mãe da
adolescente deu à agressão: “quebra a cara dela que você é menor e não dá nada (...) ela vai
precisar de cirurgia reparadora.”
8
Não deixa de ser impressionante a repetitiva mensagem de liberdade e poder individual
veiculada na publicidade de certos itens: vestimentas, veículos, perfumes, ou aparelhos
eletrônicos. Os anúncios consumam ser ilustrados fotograficamente por jovens, considerados
os portadores da “liberdade” no consumo contemporâneo. A identidade da juventude está
reduzida a um fetiche no mercado de vendas de inutilidades em nossa sociedade, despida de
humanidade, de singularidade, identificada ao fetiche do produto que anuncia através de sua
imagem. Não creio que tenha havido, na história dos últimos séculos, uma alienação tão
profunda dos jovens: são “imaginados” por outros, mas adictos ao que não são, tendo se
tornado escravos do desejo dos que controlam os mercados do trabalhar e do consumir.
9
Deve ser feita uma relativização desta afirmação, pois ao mesmo tempo que crescem a
indiferença e o ódio aos seres em carência e sofrimento, multiplicam-se no mundo as ações
individuais e coletivas de apoio a todo tipo de necessidades humanas, e mesmo dos animais,
através de grupos e associações; tais ações são exibidas na mídia virtual, frequentemente
através das redes sociais.
10
Em recente comentário na imprensa americana, o New York Times, através do articulista
Paul Krugman, apontou o crescimento, na população mais rica de certas regiões do país,
tradicionalmente consideradas de direita, do “ódio aos pobres”, referindo-se ao sentimento,
mantido pelos mais ricos, que esta população – pobres, negros e imigrantes – está ocupando
um espaço na sociedade que não deveria ocupar, um lugar que não lhe pertence, em uma
mesa na qual não teria direito sequer às migalhas do consumo. São pessoas inoportunas,
indesejáveis, praticamente descartáveis. No que concerne à Europa, têm sido publicados, no
jornal Le Monde Hebdomadaire, e Le Monde Diplomatique, em francês, artigos sobre
discriminações e hostilidades sobre imigrantes, e trabalhadores de outros países, sobretudo
com características raciais ou culturais “exóticas”: muçulmanos, ciganos, negros, “latinos” etc.
11
A palavra “individual”, que não consta do texto do Prefácio, é uma explicitação da parte da
autora sobre de que “vontade” Marx está falando. Seu modo de teorizar, influenciado pelo
paradigma científico da época, com seu mecanicismo, sobretudo da física newtoniana, com as
categorias de leis – da natureza –, determinação, força, massa etc. é evidente no “Prefácio à
crítica da Economia Política”. Marx tinha se colocado como tarefa intelectual fundar uma
ciência da produção social, isto é, um pensamento que fosse a ciência da produção material
dos homens em suas relações histórico-sociais no produzir o modo de explicação da ação
humana – e a Economia Política tornar-se-ia enfim científica.
Observação. A tradução do texto da Editora Gallimard do francês para o português é de minha
autoria.
12
Na sua obra principal, O Capital, e no texto intitulado Introdução à Crítica da Economia
Política, em alemão publicado como GRUNDRISSE, isto é, Fundamentos da Crítica à
Economia Política, um grande “rascunho” de O Capital, Marx insiste no caráter de fetiche que a
mercadoria, transformada em necessidade de consumo, na fase da distribuição do produto,
tende a adquirir na economia capitalista. Já neste momento insiste no papel da publicidade
para o consumo. Ver bibliografia no final do texto.
13
Entre os principais filmes de ficção científica tratando das catástrofes naturais com o
extermínio da vida humana, ou da ocupação do Planeta por outras espécies, inclusive robôs,
podem ser citados: Sinais, Presságio, O dia depois de amanhã, 2012, O livro de Eli, Eu sou a
lenda, Eu, robot, e o genial Planeta dos macacos – a origem. Todos filmes de boa qualidade da
indústria cinematográfica de entertainement, dirigidos por diretores talentosos conhecidos,
embora não se trate de “obra de arte”.
14
A “sociedade de segurança”, mais presente na ficção científica e no cinema que nas ciências
sociais, supõe um projeto capitalista controlador da sociedade civil, das instituições e
organizações, pelo modelo da “security”, originada na sociedade americana desde as guerras
de invasão do Afeganistão e Iraque, e do acontecimento de 11 de setembro de 2011. Para
alguns autores, o advento desse projeto de controle vigilante da sociedade americana por
órgãos de segurança já existe desde o fim da guerra fria, em que as agências de espionagem,
como a CIA e o FBI, não teriam mais como funções centrais o controle da nação americana
Revista EPOS; Rio de Janeiro – RJ, Vol.4, nº 2, jul-dez de 2013; ISSN 2178-700X.