DSS e Sofrimento Psiquico
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um objetivo maior de emancipação e qualidade de vida, PEREIRA JUNIOR; OLIVEIRA, 2010). A partir dessa
e com o modo de produção neoliberal, cuja psicologia lógica unicausal, a saúde passou a ser definida como
moral de produtividade e do ideal empresarial do sujeito a ausência de doença, fazendo com que esse modelo
produz e gerencia o sofrimento (SAFATLE; SILVA se concretizasse de modo predominante na história da
JUNIOR; DUNKER, 2020). Como analisado por Bauman Medicina. A busca por novos paradigmas em saúde com
(1999), o desenvolvimento do capitalismo e a égide da base na crítica de que os fenômenos epidemiológicos
ordem e do controle geraram a construção de um modo tinham relação com a organização político-social
de vida atravessado por diferentes instituições sociais da sociedade fez com que a Saúde Coletiva criasse
que regulam as formas de existência dos indivíduos. um modelo contra-hegemônico (SOUSA; MACIEL;
Para tanto, torna-se fundamental compreender como MEDEIROS, 2018; TESSER, 2006).
as condições impostas aos indivíduos interferem em A criação da Organização Mundial da Saúde
seus meios de vivência e atentar para que não haja (OMS), no contexto do pós-2ª Guerra Mundial, permitiu
culpabilidade do sujeito quanto ao sofrimento que o surgimento do conceito de saúde como um “estado de
lhe é causado devido a falha do sistema em promover completo bem-estar físico, mental e social e não a mera
dignidade humana. De forma isolada, a área da saúde ausência de moléstia ou enfermidade” (OMS, 1946).
não consegue proporcionar vitalidade física e psíquica Leavell e Clark (1976) apresentam o modelo da História
aos indivíduos – é necessário o empenho de parte Natural da Doença a partir da lógica multicausal com
significativa da sociedade para que seja assegurada a um esquema de tríade ecológica – agente, hospedeiro
qualidade de vida ideal aos sujeitos. e meio ambiente. Emerge, então, um novo método de
A consideração dos processos históricos como promoção da saúde, a partir da prevenção e controle das
um dos geradores das problemáticas existentes acerca doenças. Apesar de reconhecer múltiplas determinações,
da saúde coletiva, formalizando a existência da interface esse modelo ainda recebeu forte influência do modelo
entre as ciências naturais e as ciências humanas, biomédico, o que levou a um reducionismo da prática
é de extrema importância para o estabelecimento médica dentro da visão preventivista e ao vácuo da
adequado da saúde mental. À vista disso, partimos do pergunta que surgia: como utilizar única e exclusivamente
pressuposto de que o reducionismo científico dificulta o modelo multicausal para o planejamento em saúde
tal dialética, o que torna necessário discutir os possíveis sem se erradicar a pobreza e dirimir a exclusão social,
fatores do adoecimento psíquico a partir da análise ou sem cair na ideologia da medicalização da sociedade
dos determinantes sociais e, assim, possibilitar uma (TESSER, 2006)?
apreensão sistemática do sofrimento mental. Foi durante a década de 1960 que, em paralelo
ao progresso tecnológico da ciência médica, a
O processo saúde-doença e sua Medicina Social se manifesta contrapondo a hegemonia
biomédica a partir das críticas apresentadas por
determinação sócio-histórica
diversos intelectuais latino-americanos (PUTTINI;
PEREIRA JUNIOR; OLIVEIRA, 2010; VIAPIANA;
A medicina de Hipócrates, iniciada nos séculos GOMES; ALBUQUERQUE, 2018). A visão de que
V e IV a.C, valorizava a observação da natureza e a epidemiologia clássica era insuficiente em abordar
explicava a origem das doenças a partir do desequilíbrio a saúde como um fenômeno que apresenta raízes na
entre as forças naturais presentes no interior e no exterior organização social dirigiu o olhar para a necessidade
dos indivíduos (GAMBA; TADINE, 2010; PUTTINI; de um novo modelo explicativo a partir da vertente
PEREIRA JUNIOR; OLIVEIRA, 2010). Para o pai da marxista, direcionando a uma práxis emancipadora.
Medicina moderna, o conceito de saúde era definido Isso, pois, o raciocínio epidemiológico tradicional do
como a expressão de um equilíbrio completo do corpo processo saúde-doença era baseado na ideia de que
humano. Com o avanço tecnológico da Medicina e, as enfermidades físicas e psíquicas existentes eram
consequentemente, a evolução da complexidade das derivadas das respectivas características individuais,
noções de causalidade, urge a necessidade de novas adotando perfis e padrões típicos de saúde (VIAPIANA;
concepções teóricas acerca do tema. GOMES; ALBUQUERQUE, 2018).
Influenciada pelos paradigmas cartesianos, a Para a superação desse cenário, a criação de
ciência médica obteve considerável progresso a partir alternativas que abordassem as dimensões do indivíduo e
dos conhecimentos oriundos da Anatomia Humana. do coletivo no processo saúde-doença viu-se necessária.
Nesse contexto, a partir do século XIX, o modelo No Brasil, durante a VII Conferência Nacional de
biomédico apresentou-se na tentativa de compreender Saúde, que ocorreu em 1986, foram discutidos os temas
os fenômenos da saúde e da doença com bases nas de reformulação do Sistema Único de Saúde (SUS),
ciências biológicas, adotando a ideia de que sempre financiamento setorial e a saúde como direito. Foi
existe um mecanismo etiopatogênico causador das adotado, então, o seguinte conceito de saúde:
enfermidades (GAMBA; TADINE, 2010; PUTTINI;
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“Em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das pelos indivíduos como obstruções aos seus modos de
condições de alimentação, habitação, educação, renda, viver a vida, tais quais são determinados pela necessidade
meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso
e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É assim,
de corresponder a certas exigências e critérios impostos
antes de tudo, o resultado das formas de organização pela sociedade.
social da produção, as quais podem gerar grandes Tais modos de vida são, portanto, dados pela
desigualdades nos níveis de vida” (BRASIL, 1986). inserção de cada indivíduo nas classes e grupos sociais
em que cada um tem uma capacidade de se apropriar
Portanto, parte-se do princípio de que o processo de objetivações humanas para seu desenvolvimento.
saúde-doença não é aleatório e arbitrariamente explicado O sofrimento psíquico é vivido como uma estagnação
apenas pela dimensão individual. A radicalidade de sua no desenvolvimento dessas pessoas, bem como
explicação se apresenta nas próprias relações sociais uma iminência de decomposição, que concorre com
que se organizam de forma a permitir determinados processos que englobam relações de exploração,
modos de vida e, a depender de como esses diferentes opressão e alienação.
modos de vida se articulam, são produzidos diferentes De forma equivalente, Zygmunt Bauman
perfis epidemiológicos que se alteram no decorrer da lança um olhar crítico para as transformações sociais
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nas notificações de faxineiras, operárias e professoras tem como base teórica o conceito de territorialidade
(ALMEIDA et al., 2019), configurando as baixas (AMARANTE, 2007). Nesse sentido, os cuidados em
condições de trabalho como psicoestressores. Pessoas saúde mental passaram a ser organizados considerando
com baixa renda estão entre as maiores portadoras dos a perspectiva de território em rede, com os Centros de
transtornos mentais (SILVA; SANTANA, 2012), sendo Atenção Psicossocial (CAPS) se mostrando à frente
possível relacionar o sofrimento psíquico às péssimas desse novo modelo. Tais centros são considerados
condições de habitação, ao desemprego e à fome, excepcionais na organização da rede de assistência em
bem como às poucas formas de acesso ao cuidado em saúde e na reinserção dos indivíduos em sofrimento
saúde. psíquico na sociedade.
Enquanto menos de 1% se beneficia das injustiças No entanto, essas políticas públicas que
do sistema capitalista, os 99% restantes tentam vinham propondo formas de cuidado e estratégias de
acompanhar o ritmo para que consigam permanecer enfrentamento individuais e coletivas ao seu processo
no mercado, estando sujeitos à exploração. Constata- de sofrimento vêm sofrendo um sucateamento ao longo
se, pois, que o sofrimento psíquico está em crescente dos últimos anos (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO,
aumento, não apenas por conta do aumento dos critérios 2020). Por trás disso, é possível analisar que há o objetivo
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percentual-de-negros-entre-10-mais-pobre-e-triplo-do-que-entre-mais-ricos.
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