O Federal by Cris Araujo
O Federal by Cris Araujo
O Federal by Cris Araujo
Capa: E. S. Designer
Diagramação: Sophie Carla
Ilustração: Rosa Aguiar
Revisão: Carla Teles
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184
do Código Penal.
O Federal é um romance contemporâneo, porém, pode conter gatilhos.
Há cenas de violência física e psicológica, luto, câncer.
Caso não se sinta confortável com leituras que contenham esse tipo de conteúdo, não leia.
O Federal é uma história que me ganhou pelo personagem principal. Ele passou na frente de outros projetos e por mais que em
alguns momentos, pela complexidade do enredo e dos personagens, eu tenha pensado em desistir do livro, as constantes loucuras que os
personagens diziam na minha cabeça não me deixaram em paz.
Não foi um livro fácil, saí completamente da minha zona de conforto como escritora e muitas vezes como leitora também. Ainda
durante as pesquisas, me emocionei em como a história da personagem é uma realidade cruel na vida de muitas mulheres da vida real, as
que sagram de verdade.
Já adianto que não é só uma história de amor, é uma história sobre família. Sobre o que somos capazes de fazer para proteger quem
amamos.
Esse livro arrancou meu coração e o devolveu, quando quis, devo salientar, com uma nova perspectiva sobre histórias de amor e de
ódio
Brother/ Kodaline
Alguns meses atrás
Lancei o brinquedo preferido de Bella e assisti ao salto que ela deu para apanhá-lo no ar. Uma
menina, e uma das melhores agentes do nosso Canil.
Um Pastor-Belga Malinois.
A maioria dos cães do nosso canil era desta raça, com exceção de dois rottweilers.
Rápida. Feroz. Letal. Bela.
E irresistivelmente dócil, ao menos comigo.
— Ela está totalmente recuperada. — Társio comentou ao meu lado, cruzando os braços.
Em nossa última operação na fronteira — três meses atrás — ela tinha saído machucada, uma das
patas fora fraturada durante a perseguição aos contrabandistas. Eu não fazia parte dos agentes da
fronteira, mas quis ir nessa busca, em especial. Eu tinha localizado o ponto exato de repasse das
drogas depois de meses de investigação, queria que tudo saísse do jeito certo e que nenhum dos
traficantes conseguisse escapar, e teria sido um sucesso completo se ela não tivesse se machucado.
Foram três presos e seiscentos quilos de cocaína apreendidos.
— Vai levá-la hoje? — Ele perguntou, observando, como eu, as piruetas e o estrago que ela fazia
no coelhinho de pelúcia.
— Sim.
— E seu pai?
— Continua na mesma. Amanhã cedo vou deixar Bella aqui e sigo para Minas Gerais.
— Boa viajem, então. — Ele afastou-se para o lado onde os outros cachorros ficavam e eu
permaneci observando o cão.
Fiz um aceno e ela veio correndo com o rabo grosso dançando.
— Senta. — Pedi, tentando impedir que me derrubasse com o entusiasmo esfuziante. — Você só
vai comigo se ficar comportada, ok? — Abaixei-me perto dela e recebi lambidas por todo o
pescoço, enquanto acarinhava a sua cabeça. Bella era grande, mesmo sentada. O pelo marrom tinha
rajadas sutis de preto pelo pescoço grosso, típico da sua raça. Tirei a coleira com o nome Polícia e
caminhamos lado a lado para o Fluence estacionado perto da viatura. Ela pulou para o banco do
carona do meu carro e sentou imediatamente. Uma das coisas que mais me deixava impressionado
nos cães era a inteligência inquestionável deles, e também a lealdade que não podia ser discutida.
O canil ficava em Niterói, um pouco antes do primeiro galpão de pedágio. A pista estava vazia, e
considerando o número de carretas que geralmente aglomeravam a Br, fiquei surpreso e aliviado.
Queria chegar em casa, tomar um bom banho e me preparar para o dia seguinte, não seria um dia
fácil. E eu sei, que bem dentro de mim, eu faria qualquer coisa para adiá-lo, mas não devia e nem
podia. Os latidos de Bella ecoaram pelo carro, me sobressaltando.
— O que foi, garota? — perguntei, olhando rapidamente na direção dela. Aumentei os faróis e
freei o carro, ao entender o que ela já tinha visto.
Um corpo.
No meio da pista, a poucos metros de distância de nós. Peguei a minha arma do porta-luvas e abri
a porta para que Bella descesse primeiro, acendi a lanterna do celular e girei o corpo para uma visão
melhor. Eu estava no meio do nada. Os pelos da minha nuca se eriçaram e eu caminhei para perto de
quem quer que estivesse caído ali. Foquei a luz e abaixei perto da garota. Era apenas uma menina.
Devia ter dezesseis ou dezessete anos, cacos de vidros perfuravam a pele ensanguentada de seu
rosto, uma enorme nodoa roxa estava presente em sua testa. Toquei a base do seu pescoço em busca
da pulsação e nada. Não houve nada. A artéria tinha parado de pulsar.
Ela estava morta.
Os latidos de Bella me assustaram outra vez, ouvi o som das patas dela em alguma parte não
iluminada. Parecia estar arranhando alguma coisa, tentei iluminar todo o espaço, mas ainda assim não
consegui enxergar. Mais latidos. Caminhei, tentando segui-los. De repente ela estava ao meu lado,
mordeu o tecido da minha calça como se quisesse me levar a algum lugar. Só então eu vi o carro. Um
Corolla branco com a lateral destruída, se houve uma batida quem estava no outro automóvel devia
ter fugido, Bella começou a arranhar a janela do carona e eu corri para perto, havia outra pessoa lá.
A porta do motorista estava aberta e eu teria acreditado que a garota morta estivesse dirigindo se o
buraco no vidro para-brisa não contasse outra história.
Disquei imediatamente para os socorristas e para a Polícia Rodoviária, tentei ser o mais claro
possível com relação ao lugar exato em que estávamos e quando encerrei a ligação iluminei a outra
vítima. Entrei no carro e a observei: era uma mulher, o rosto estava coberto de hematomas, mas a
julgar pelo cinto de segurança firme em volta de seu corpo, não deviam ser frutos da batida.
Em alguns segundos minha mente trabalhou.
Devia haver mais alguém ali. Provavelmente o motorista. A garota morta devia estar, quando tudo
aconteceu, no banco de trás, e com o impacto da batida o corpo devia ter sido arremessado para fora
do carro, a pancada na cabeça ao quebrar o vidro era a provável causa do hematoma roxo e também
da sua morte. As pessoas não entendiam como um cinto de segurança fazia diferença em momentos
como esse. A julgar pela forma como apenas um lado do carro estava destruído, o motorista, que por
sinal não era nenhuma dessas duas garotas, devia ter jogado o lado do carona para o maior impacto
na batida, protegendo a si mesmo e deixando as duas por conta da sorte ou de um milagre como as
pessoas costumavam falar.
Toquei a base do pescoço da mulher ali e respirei aliviado, apesar de extremamente ferida, ela
estava viva. Iluminei seu corpo e fitei a barra de ferro perfurando sua coxa. Um pequeno gemido saiu
de seus lábios, voltei a iluminar seu rosto e um par de olhos verdes me encarou. Algo neles me fez
recuar. Havia medo, sofrimento e pânico. Emoções que eu já estava habituado a lidar, mas eram
quase gritantes nela, parecia que a garota estava olhando além de mim. Instintivamente olhei para
trás, mas não havia ninguém lá, além de Bella e do cadáver.
— Consegue sentir suas pernas? — Perguntei.
— Liz... — Gemeu, os lábios tremendo, os olhos piscando veementemente. Tentou se mexer e
ficou paralisada, provavelmente dando-se conta do ferimento na coxa.
— Não se mexa, ok? Está muito machucada, fique quieta, o socorro já está vindo.
— Liz... — O sussurro dessa vez foi fraco, ela parecia estar fazendo um esforço enorme para
manter os olhos abertos.
As sirenes do socorro chegando ecoaram pela noite e depois tudo foi muito rápido, contei o que
encontrei aos policiais ao mesmo tempo que não conseguia tirar os olhos do resgate, infelizmente a
barra de ferro estava muito fincada entre a pele e o osso da coxa, o que deixou tudo mais demorado,
ela tinha desmaiado, provavelmente por não conseguir suportar a dor, o corpo da garota morta já
tinha sido removido e uns três policiais desceram pela mata em busca de qualquer indício do motivo
do acidente. Nunca critiquei o trabalho dos agentes rodoviários, mas era estranho perceber que eles
não tinham chegado à conclusão que eu cheguei.
Aquelas duas garotas não eram as únicas ali.
Eu tinha certeza absoluta disso.
Observei aliviado o momento em que conseguiram remover o corpo dela, e caminhei para o
Fluence a fim de acompanhar a ambulância e saber seu real estado. Bella deitou no banco do carona
tomando todo o espaço e eu dei partida no carro. Parecia que o carro esperou apenas que ela fosse
removida, porque primeiro o motor começou a pegar fogo, alertando quem estava por perto a se
afastarem e em seguida toda a lataria pegou fogo.
Uma mulher. Um carro. Uma explosão. Algo familiar ao que eu tinha vivido no passado.
Acompanhei todo o processo de internamento da garota, esperei horas enquanto ela era examinada
sem ter qualquer notícia e sem saber realmente porque ainda estava ali, mas esse meu senso de dever
ainda me traria muitos problemas. Fui pela milésima vez ao balcão e pedi informações.
— Ela já foi examinada. Está sedada. E ainda passará por outros exames e por uma pequena
cirurgia se o raio x detectar ainda presença de metal no ferimento da perna. — A enfermeira
respondeu de maneira educada, depois de olhar as informações no computador.
— Eu posso vê-la? — perguntei.
— Você tem algum parentesco com ela?
Não respondi, apenas mostrei o distintivo e ela aquiesceu, saindo de detrás do balcão e indicando
para onde eu devia ir, depois de registrar meus dados e colocar um adesivo de visitante na minha
blusa.
Entrei no quarto, onde mais dois enfermos estavam, além dela e a olhei, algo estranho me deixou
arrepiado novamente.
Os olhos dela. Mesmo fechados eram marcantes.
Achava até que jamais esqueceria deles. Balancei a cabeça, talvez o estado lastimável do meu pai
estivesse me deixando sensível. Sentei diante da cama e observei o rosto machucado da mulher que
eu não fazia ideia de como se chamava, de onde vinha ou de que maneira tinha se metido naquele
acidente. Segurei sua mão, estava fria. Novamente os olhos verdes abriram-se e o mesmo efeito se
esticou dentro de mim. Uma pequena confusão, algo estranho. Pensei em outra mulher, a mulher que
amei e que tinha morrido dentro de um carro, como quase aconteceu com essa aqui, que agora me
fitava. Sinal de que a medicação não havia surtido efeito ainda.
— Liz... — ela sussurrou, uma lágrima escorreu pelo seu rosto e o bip da máquina que media sua
pulsação ficou louco, desenfreado. Os olhos dela se fecharam, mas sua mão apertou a minha com
força como se não tivesse ficado inconsciente novamente.
Médicos e enfermeiras entraram rapidamente no quarto e eu fui a obrigado a sair. Nervoso e
instável, fui até o balcão novamente.
— Qual o nome dela? — perguntei, dando-me conta de que Liz devia ser a garota morta.
— Ainda não sabemos, senhor, não foi encontrado nenhum documento no carro.
Minas Gerais
Encarei a placa de boas vindas da fazenda e respirei fundo. Fazenda Mara Ferris. Era esse o
nome do aglomerado de campos verdes e bem cuidados do meu pai. Eu tinha esquecido de como era
bonito aqui. Através do portão de madeira já era possível ver a casa grande e totalmente branca em
frente à piscina retangular infinita. Como flashes, as imagens da minha infância vieram com tudo. O
cheiro forte do café que meu pai tomava pela manhã antes de sair, o canto dos passarinhos que
entravam pelas janelas quase sempre abertas, a rotina de tirar leite das vacas, as viagens que
fazíamos até a cidade para vender os queijos. Eu devia ter treze ou catorze anos, e Nina era ainda um
bebê de dois anos. Ela e minha mãe ficavam na carroça, enquanto meu pai e eu perambulávamos pela
feira oferecendo o produto.
A sensação de nostalgia apareceu e eu me recostei no banco, ainda sem coragem de sair do carro.
Nasci em São Paulo, na capital. Mas com a morte de meu avô, meu pai recebeu um pequeno
pedaço de terra como herança. Mudamos para cá, quando eu tinha seis anos, moramos num casebre
minúsculo por um bom tempo e ele usou as economias para comprar a primeira vaca, acho que desde
aquela época meu pai já tinha um bom olho para os negócios, ele a chamava de vaca de ouro. As
coisas começaram a melhorar aos poucos, a partir daí.
Dois toques na janela chamaram minha atenção.
Minha mãe.
Meu coração se apertou, e deu uma disparada. Ela estava usando um vestido longo preto, parecia
já estar de luto. Mas era exatamente isso, minha mãe, mais do que ninguém, acompanhou a vida
deixar meu pai aos poucos. Destravei a porta e saí. Ela deixou a cesta com laranjas no chão e me
abraçou forte, deslizei a mão pelos seus cabelos pretos cheios de fios brancos e um misto de paz
junto com agonia se instalou em mim.
— Mãe... — Minha voz saiu embargada.
— Eu estava apavorada achando que você não viria — ela sussurrou, ergui seu rosto e beijei sua
testa. — Ele tem pouco tempo, filho...
— Não vamos pensar nisso. — Beijei outra vez a testa dela.
Mara Ferris olhou para mim e sorriu, os olhos azuis como os meus. Os cabelos pretos já tinham
inúmeros fios brancos, e as rugas, que na minha opinião a deixavam linda, estavam por todo o rosto
bronzeado. A pele dela era mais enrugada do que deveria, por causa dos anos de trabalho embaixo
do sol. Suas mãos seguraram meu rosto, e eu me curvei para que ela depositasse um beijo maternal
em minha testa. Calma era o sentimento que minha mãe despertava em mim, sempre foi dessa forma.
— Por que estava aqui e não entrou? — perguntou ela, apanhando a cesta de frutas do chão.
Abri a porta do carona e entrei em seguida, ligando o motor. Ela abriu o portão com o controle
remoto pequeno que estava dentro da cesta e olhou para mim. Eu não podia deixar de perceber o
quanto minha mãe tinha envelhecido em poucos meses, o sofrimento realmente corroía as pessoas, e
eu estive longe todo esse tempo. Passei uma das mãos pelo cabelo, sentindo um revirar desagradável
no estômago.
— Por que não entrou, filho?
— Não tenho coragem de vê-lo, mãe. — Meus olhos arderam.
Ela me olhou com carinho, os olhos azuis mais compreensivos que eu conhecia. Entrei na cozinha
ao seu lado e analisei como tudo estava diferente, dinheiro era o reflexo daquele lugar e mais uma
vez eu senti orgulho de como o meu pai tinha transformado um casebre e poucos metros de chão num
verdadeiro império.
— Seu pai pergunta todos os dias sobre quando você iria chegar. — Mara sussurrou, pegando um
copo de dentro do armário. Fiquei ansioso de novo. — Tadeu foi duro com você, mas ele tem orgulho
do homem que você se tornou. Todas as entrevistas que você deu durante o caso daquela moça da
Inglaterra, ele assistiu a todas. No início fingiu que não estava interessado, mas eu vi como ele ficou
orgulhoso.
Fiquei surpreso, lembrei-me de como ficava chateado com todas as coletivas que dei para a
imprensa sobre a Operação Enfermeira, de como quase enlouqueci com aquele caso. Aceitei o suco
que ela me ofereceu e dei um gole, ainda digerindo suas palavras.
— Onde ele está agora? — Perguntei.
— No escritório. Mesmo com as dores que sente não sai de lá... — Ela meneou a cabeça, um sinal
claro que já devia ter se irritado muito por conta disso.
— O que ele sabe sobre os desvios? — perguntei de forma direta, pela forma que ela estava
agindo provavelmente não me diria nada a respeito se eu não perguntasse. O seu olhar perplexo
também entregou tudo.
— Como sabe sobre isso?
— Eu passei na fábrica antes de vir para cá...
— Antônio está cuidando disso, não se preocupe — objetou e aproximou-se de mim, passando os
dedos pelos meus cabelos. — É bom ter você em casa, meu filho. — Ela beijou meus cabelos e
segurou meu queixo para olhar meu rosto. — Senti tantas saudades... seu pai também. Vá vê-lo. Não
tenha medo. — Ela beijou inúmeras vezes minha testa e depois se afastou.
Enchi-me de coragem e caminhei para fora da cozinha, apesar de toda a reforma as conexões eram
as mesmas, então não foi difícil encontrar o escritório do meu pai. Bati na porta duas vezes. Uma voz
feminina me mandou entrar. Girei a maçaneta, depois de respirar fundo e entrei no aposento
iluminado pelo céu nublado, as janelas todas abertas e os móveis claros deixavam o ambiente
agradável. Não o vi de imediato, observei a enfermeira sentada num sofá de canto com uma revista
na mão, mas ele estava na poltrona virado para a janela maior.
— Saia, Ana. — A voz dele saiu fraca, ainda assim eu reconheci o tom rude que tantas vezes usou
comigo.
A mulher deixou a revista de lado, me deu um sorriso brando e se retirou. Ainda fiquei estático no
mesmo lugar, segurando a maçaneta.
— Você veio... — Outro sussurro fraco. — E Marina?
— Nina vem depois, pai. — Fechei a porta e respirei fundo. Dei dois passos incertos em direção
ao som da sua voz e parei ao seu lado, olhando o horizonte pela janela, o ar puro tocando suavemente
meu rosto.
— É bonito, não é? — Ele apontou para os campos verdes lá fora e eu finalmente olhei para
Tadeu Ferris.
Minha primeira reação foi engolir um bolo imenso que se formou no meu estômago e subiu até a
garganta, eu já tinha ouvido falar e lido sobre o que o câncer podia fazer com uma pessoa. Como a
doença comia cada pedacinho de vida que ainda restava, mas eu, honestamente, não estava pronto
para ver de perto. Por isso me esquivei tanto, eu não queria ver. A cabeça dele não tinha mais um fio
sequer de cabelo, o corpo magro podia ser carregado por qualquer rajada de vento que entrasse pela
janela, não fosse o cobertor grosso que estava sobre suas pernas.
— Me perdoa, pai. — sussurrei, quando meus olhos arderam e ficaram tão embaçados que eu não
consegui mais enxergá-lo. — Me perdoa... — Abaixei perto dele e coloquei minha cabeça sobre seu
colo.
Senti sua mão fria no meu rosto e fechei os olhos, deixando que as lágrimas descessem pelo meu
rosto.
— Eu achei que policiais não chorassem. — Ouvi sua voz fraca numa insinuação de humor, os
dedos tocaram meus olhos. — Tenho orgulho de você.
Aquela dor de perder alguém estava ali e ele nem tinha ido ainda, mas a falta de tempo agora era
palpável, todo o tempo que eu não tive com ele. Aquela dor estava me cobrando agora, me acusando
por não ter aproveitado o suficiente.
— Fui duro com você, não é? — Os dedos frios fizeram um percurso até meu cabelo. — Eu fui.
— O carinho continuou e eu me senti um idiota por estar desperdiçando o tempo que ainda restava
deixando que ele me visse chorar, eu devia mostrar que eu era forte, que ele não devia se preocupar
com nada. — Eu te amo, filho.
— Eu te amo, pai. — Ergui os olhos para a face dele, eu tinha sentido tanto medo de ser rejeitado
por ele quando aparecesse aqui. Tinha sido um tolo por ter me afastado tanto. — Eu te amo, pai. Eu
estava com saudades.
— Eu pedi para sua mãe comprar as coisas que você gosta de comer. — Ele disse suavemente, e
eu sentei no chão, absorvendo cada minuto dele vivo e falante. Chorando e sorrindo ao perceber que
ele me conhecia mais do que imaginei, e que tinha acompanhado minha carreira também. Ele sabia
praticamente todos os nomes das operações das quais liderei. Tinha acompanhado tudo.
Passamos horas conversando até a enfermeira dizer que era o momento do banho e da
alimentação, acompanhei tudo de perto. Ele estava fraco, parecia uma criança dependente. O câncer
inicial era no estômago, mas já havia tomado quase todo o corpo, e o médico já tinha parado com
todos os tratamentos. Segundo ele, a medicina não podia fazer mais nada. Ana me chamou para levá-
lo e eu o carreguei até a cama, estava leve, muito magro. Mas os olhos estavam tranquilos, tinham até
um brilho e nos lábios um sorriso fraco. Deixei-o com ela e saí do quarto, tirando o celular do bolso.
Nina atendeu ao primeiro toque, parecia estar esperando por isso.
— Marco? — A voz era chorosa.
— Oi. Como foi a aula? — Desci a escada e saí para a área da piscina.
— Foi boa.
— Hum.... Nós precisamos de você aqui. — Sussurrei, já esperando pelos soluços dela.
— Porque? — Ela choramingou.
— Para se despedir.
Meu pai morreu dois dias depois, sentado na sua poltrona, olhando as terras que amou por toda a
vida.
1
Rio de Janeiro
Dias Atuais...
Marcone
...150, 151, 152... continuei contando mentalmente a sequência, enquanto levantava o peso.
Suar na academia, ou durante uma corrida me dava o privilégio de manter minha mente quieta por
alguns momentos. Flexionei mais uma vez os braços e travei o Power Rack, antes de colocar o
equipamento de volta ao lugar. Caminhei até o banco, onde estava minha mochila e peguei minha
garrafa quase vazia de água, virando-a em seguida na boca, peguei o iphone do bolso lateral e
retornei à ligação de Andrea de hoje mais cedo.
— Até que enfim, federal. — A voz cheia de humor me fez sorrir.
— Imagino que tenha me ligado porque tem alguma coisa para mim, não é? — retruquei, fechando
a mochila e saindo da academia direto para o elevador. Apertei o meu andar e esperei pela resposta
dela.
— Sim e não. — Pausa. — Que tal você pagar meu almoço e a gente ter uma conversa? — ela
brincou e eu suspirei achando graça.
— Ok, Andrea — anuí, saindo do elevador e tirando as chaves do bolso para abrir a porta.
— Como está Nina? — Ela perguntou.
— Está instável, é a primeira vez que ela lida com o luto. — Respondi, fazia quase quatro meses
que o meu pai tinha morrido, durante esse período descobri que a fábrica estava mais cheia de
problemas do que imaginei, o afastamento temporário que solicitei ao meu departamento teve que ser
prolongado devido a tudo que eu ainda teria que resolver, estava me dividindo entre Minas e Rio de
Janeiro por causa de minha mãe e de Nina.
Eu era agente da polícia federal há sete anos, vivi a maior parte desse tempo me mudando de
estados e superintendências, ganhei visibilidade fora do país por liderar um número considerável de
operações da Interpol e ter sucesso em todas elas. Ganhei muitos tapinhas nas costas e muitos
inimigos também, trouxe fantasmas e sombras para a minha vida e para vida das pessoas que eu
amava. O sangue que eu tinha nas mãos ainda me assustava, não era uma profissão fácil, mas eu
gostava do que fazia, a adrenalina que era estar em campo, a frieza para seguir os passos dos
criminosos mais improváveis, o gosto da vitória ao fechar cada cela com um monstro dentro. Tudo
isso me excitava.
— Conversamos durante o almoço, então.
Caminhei para o meu quarto, a falta de barulho indicava que minha irmã ou estava dormindo, ou
já tinha saído para a faculdade. A primeira opção era a mais concreta. Nina tinha vindo morar
comigo menos de um mês após a minha transferência de Brasília para cá, sem me consultar, é claro.
Numa bela manhã eu estava sentado na minha sala quando recebi uma mensagem da serelepe me
dizendo para ir buscá-la no aeroporto porque já estava em solo carioca.
Revirei os olhos com a lembrança.
Segundo minha irmã estávamos a muito tempo afastados e gostaria de me conhecer de verdade,
devo dizer que a experiência tinha saído melhor do que imaginei. Ela era terrível, chata, a pessoa
mais intragável que andava pelas ruas do bairro. Isso não é exagero. Mas ainda assim minha melhor
companhia. Na época, meus pais acharam que não ia durar, que logo ela voltaria atrás por não se
adequar à minha rotina, mas ela ainda estava aqui, eu não a deixaria saber que eu gostava disso nem
sob tortura, mas eu gostava, e não imaginava mais o apartamento vazio sem ela para me atormentar.
Deixei a mochila sobre o tapete branco e despi a camiseta e o short encharcados de suor, embolei
tudo e joguei no cesto de roupa suja como se fosse uma cesta de basquete e fui para o banheiro,
passei um bom tempo embaixo do chuveiro e quando resolvi sair me senti inteiro de novo. Vesti
calça e camisa pretas e saí do quarto. Nina estava sentada num dos bancos do balcão, bebericando
um suco verde que devia ser indicação de alguma blogueira do youtube.
Eca.
— Bom dia. — Beijei o topo de sua cabeça e analisei seu rosto. Estava corado e menos grave que
ontem. — Dormiu bem?
— Sim. — Ela sorriu e apontou para uma caçarola vermelha. — Tem ovos cozidos ali, ainda
estão quentes.
Caminhei até lá e escorri a água da panela na pia, coloquei os quatro ovos num prato e sentei ao
seu lado.
— Não precisa ir me buscar hoje na faculdade, vou para a casa de uma amiga. Vou almoçar lá. —
Avisou, dando um último gole na bebida indigesta.
— Tudo bem — anuí. — Só me avise quando for sair de lá. Não quero você andando por aí
sozinha a noite. Ela estuda com você? — perguntei sem querer ser invasivo ou chato.
— Não, nos conhecemos na biblioteca. Ela está se formando já. Vai a universidade poucas vezes.
— Onde ela mora? — arrisquei.
— Ah, não banque o federal comigo. — bufou, colocando uma mecha de cabelo curtíssimo atrás
da orelha e pulando do banco.
Não havia dúvidas que eu tinha razão sobre ela ser intragável.
— Tenho que ir, ou me atraso para a primeira aula. — A serelepe saiu, jogando coisas na mochila
e batendo a porta.
Ignorei a irritação e terminei de descascar os ovos para comer. Outro momento em que ficava em
paz, a concentração na comida impedia que os pensamentos voassem para outros lugares, ou até
mesmo para o passado, que vez ou outra ainda vinha me atormentar. Terminei a refeição e fui até o
home office, era hora de encostar o advogado na parede. Fechei a porta atrás de mim e sentei na
cadeira giratória. Abri o macbook e fiz uma chamada de vídeo para Antônio Oliveira. A cara dele
apareceu relaxada no outro lado da tela.
— Marcone. Como vai? — Ele inquiriu.
— Eu gostaria de estar melhor, Antônio. — retruquei. — Tem alguma novidade para mim? —
Provavelmente a resposta era não, pensei comigo mesmo coçando o queixo.
Ele tinha se tornado o principal suspeito dos desvios na fábrica, não que houvesse algum fato
concreto em que me baseasse, mas eu não conseguia confiar, o jeito que ele rondava a minha mãe,
sempre entretendo, sempre oferecendo, sempre por perto, ouvindo, explicando, mostrando apenas
uma parte da história. Eu já tinha lidado com pessoas como ele, a ganancia os entregava.
— Estou fazendo o que posso par..
— Não precisa fazer mais nada. — Eu o cortei, sem paciência. — Deixei você cuidar disso por
causa da minha mãe, porque ela confia em você. Mas, vou fazer as coisas do meu jeito a partir de
agora.
— Do seu jeito?
— É, do meu jeito.
— E como acha que vai fazer isso? — A voz irônica me surpreendeu, mas considerando que não
estávamos no mesmo ambiente, a evidente coragem dele estava explicada. — Você não tem ideia de
como as coisas funcionam por aqui...
— Você tem razão. — concordei. — Mas, fique tranquilo. Eu sei o que procurar.
— Pretende resolver tudo daí?
Ignorei sua pergunta e encerrei a vídeo chamada.
Saí de casa para encontrar Andrea quando já passava do meio dia, depois de tagarelar uma
enorme lista de restaurantes que poderíamos ir, resolveu pedir algo em seu apartamento mesmo. Ela
abriu a porta para mim e consertou óculos de grau antes de me dar um abraço e ir catando os livros
que estavam sobre o sofá.
— Senta aí. Já volto. — Desapareceu no corredor e eu caminhei até o aparador perto da mesa de
jantar de quatro lugares, que ela praticamente me obrigara a comprar uma igual, atraído pelo porta-
retratos que estava ali ao lado de mais três.
— Às vezes ainda acho que ela vai me ligar, ou me mandar uma mensagem me pedindo opinião
sobre que roupa vestir para sair com você. — Andrea tinha se reaproximado e eu não percebi. Senti
algo como uma pancada no peito com as palavras dela, por um tempo eu também esperei.
Esperei que meu celular tocasse e a foto dela sorrindo aparecesse no visor, esperei que o perfil
do aplicativo de mensagens dela aparecesse online e ela respondesse todas as mensagens pedindo
perdão que eu enviei durante dias seguidos.
Quatro anos sem ela. Sem Sam. Sem sua doçura, sem sua delicadeza.
Continuei olhando a foto, duas mulheres loiras fazendo careta para a câmera.
Eu conheci Andrea na faculdade, nos tornamos amigos desde então. Ela era a garota estudiosa e
esquisita que sentava sempre na primeira fileira de cadeiras e eu o garoto desorientado que não fazia
ideia do porquê estava escutando todas aquelas loucuras dos professores. Ficamos próximos
rapidamente e nos separamos depois que nos formamos para nos reencontrarmos dois anos depois,
quando me mudei para Brasília e descobri que ela era agente da mesma superintendência que eu. Foi
uma grata surpresa. No mesmo dia, ela me convidou para o aniversário de uma amiga e eu conheci
Samanta, não sei se foi amor à primeira vista. Mas assim que a olhei, ela mexeu comigo.
A beleza, o senso de humor sagaz, e sobretudo a delicadeza. Eu me apaixonei muito rápido.
Depois de um ano com ela, tive certeza que a queria para o resto da vida. Oficializamos o
noivado e eu prometi que sairia do campo, que depois do último caso que estava investigando sairia
da polícia federal e iria trabalhar na minha área de formação.
Bom, as coisas não saíram como nós planejamos e ela foi morta num atentado contra mim. Eu
estava vivo hoje por que ela tinha morrido no meu lugar, e isso me assombrava ainda. Não tive
escolha a não ser superar a dor, a agonia que não me deixava. Encontrei todos que estavam
envolvidos na morte dela, um a um. E desde então eu nunca mais parei, acho que acabei endurecendo
com as circunstâncias, fiquei cara a cara com muito criminoso temido no mundo e nunca vacilei.
Sempre fiz o que tinha que fazer.
— Ela é uma lembrança boa. — sussurrou, retirando a fotografia de minhas mãos, um sorriso
suave apareceu em seus lábios e o dedo indicador deslizou pela imagem de Sam.
No início não falávamos dela sem chorar, foi um período que desejei morrer para aplacar a dor e
o remorso. Acho que por isso me tornei tão destemido, sem medo de nada. E no meio da dor, fizemos
um pacto. Encontrar todos eles. Por trás dos óculos de grau e do ar atrapalhado, Andrea era uma
fortaleza. Ela quis se vingar junto comigo e foi até o fim. Nos aproximamos mais depois da morte de
Sam, ela era a única parte viva da minha garota. Era quem me fazia ter certeza de que Samanta tinha
sido real, que os momentos que tivemos foram de verdade.
— O que você quer comer? — Andrea colocou a fotografia de volta ao lugar e entrelaçou meu
braço me puxando para a cozinha pequena com a voz calculadamente animada.
— Achei que a essa hora você já teria pedido. — Sentei na cadeira próxima a geladeira cheia de
ímãs engraçados e a observei se movimentar em busca do celular.
Algumas coisas nunca mudavam, e a impressionante falta de organização dela continuava a
mesma.
— Onde está o Caio?
— Na casa da mãe dele, está estranho há alguns dias. — Ela finalmente achou o celular dentro da
cesta onde ficavam os pregadores na área de serviço.
Fiquei quieto e evitei alongar a conversa sobre o namorado babaca dela.
— Pedi yakissoba, deve chegar em quarenta minutos. — Colocou o celular sobre a geladeira e
saiu da cozinha, voltou minutos depois trazendo o notebook.
Andrea sentou-se ao meu lado e ligou o aparelho.
— Não achei nada sobre a garota. — objetou ela, digitando, sem olhar para mim.
— Não conseguiu entrar no sistema do hospital? — perguntei, contrariado.
— Sim, mas não há nome, nem destino da transferência. Apenas o registro de óbito, porém sem
informações sobre a identidade do cadáver.
— Quantos óbitos? — inquiri.
— Apenas um. Ela está viva, só não a localizei ainda.
— E a polícia rodoviária?
— Não estão investigando nada sobre isso, provavelmente é mais um caso que caiu na estatística
de acidente por descuido e falta de atenção.
— Havia mais alguém lá... — sibilei quase para mim mesmo.
Andrea girou um pouco o corpo para mim e sorriu de leve.
— Você fez o que tinha que fazer... salvou a vida da garota. Por que está tão mexido com essa
história?
— Acho que o fato de ela estar sangrando dentro de um carro me fez lembrar de quão vulnerável
Sam ficou quando morreu, e eu não estava lá. — Passei as mãos no rosto e a olhei. Um olhar
conciliatório foi depositado em mim. — Não consigo esquecê-la... lembro dos olhos dela.... Ela
estava com medo de alguma coisa ou de alguém. Gostaria de vê-la novamente...
— Você vai, nós vamos encontrá-la... Sempre há uma pista. — Ela sorriu e tirou sarro de mim. —
Você me ensinou isso, lembra? — Deu um aperto no meu ombro e voltou a digitar, adquirindo um ar
profissional.
Andrea era bonita, tinha cabelos loiros que geralmente estavam presos num rabo de cavalo ou
num coque frouxo e que chegavam até um pouco abaixo dos ombros. Eu os vi soltos poucas vezes.
Era o típico mulherão escondido atrás de óculos fundo de garrafa e roupas pouco atraentes.
— Eu estudei os contratos da fábrica e, bom, há alguns investimentos milionários em uma empresa
aqui do Rio de Janeiro, a maioria deles sem retorno algum. Apenas fazem um caminho de saída e
nenhum de retorno.
— Aqui? — Fiquei surpreso.
— Sim, o nome da empresa é Luxus Models e ela agencia modelos para fora do Brasil.
— É um tipo de investimento sem sentido...
— Não é a pior parte. — Ela mudou a tela e me mostrou um gráfico. — O dinheiro sai de lá e vai
para uma conta bancária na Suíça.
Antes de conhecer o mundo da corrupção em que estávamos enfiados e às vezes nem nos dávamos
conta, eu me perguntava porque todo corrupto escolhia a Suíça para enfiar o dinheiro sujo. A
resposta era o sigilo fiscal que as cadeias desses bancos internacionais possuíam, as identidades de
seus clientes não eram reveladas com facilidade. Então todo tipo de dinheiro, lavado ou não,
abundava a economia sueca.
— A empresa é de fachada?
— É provável que sim.
— E quanto às modelos?
— Essa é outra parte interessante. Ninguém ouve falar delas depois...
2
Marcone
Saí da casa de Andrea, quando Nina ligou, avisando que eu poderia ir buscá-la. Ela estava me
esperando na portaria do edifício sozinha. A raiva que eu estava sentindo diminuiu quando eu a vi.
Ela estava feliz, um sorriso espontâneo espalhou-se em seu rosto quando me viu. Ela acenou para
alguém e veio correndo para meu carro, entrou e beijou de leve meu rosto, recostando-se no banco e
olhando o trânsito a nossa frente. Havia um pouco de tinta vermelha em sua blusa e na lateral do seu
pescoço.
— Estava pintando o quê? — perguntei, quando paramos no sinal vermelho.
— Fui assistir a aula da Cami — respondeu e esfregou o lugar sujo da blusa, como se pudesse
limpá-lo, mas o efeito foi contrário, a tinta espalhou um pouco mais no tecido claro.
— Ela pinta? — Pisei no acelerador e girei o volante na curva curta para entrar em nosso bairro.
— Sim, ela tem quadros lindos, e dá aulas a crianças com câncer — contou empolgada. — É
muito bonito o que ela faz, Marco. Eu me senti tão bem em ir lá e pintar.
— Você pintou? — Olhei para ela, sentindo simpatia instantânea por essa nova amiga que tinha
tirado sorrisos da minha irmã.
— Sim. — Ela mexeu no celular e inclinou o aparelho para que eu olhasse a foto de seu quadro
pintado, era uma paisagem.
— Está muito bonito. — elogiei e parei em frente à Polis Mix. A hamburgueria que Nina gostava.
Quando eu queria agradá-la, geralmente oferecer comida era minha maior vantagem.
— Quero levá-la para a fazenda na próxima vez que formos ver a mamãe. — Ela tirou o cinto de
segurança e saiu do carro.
— Tudo bem. — Saí atrás dela e fomos para a mesa de sempre próximo ao ar condicionado.
— Oi, vão querer o de sempre? — A garçonete que sempre nos atendia, e que Nina me
infernizava dizendo que tinha uma paixão por mim, aproximou-se de nós.
— Sim — nós dissemos ao mesmo tempo e Cáren afastou-se.
— Você poderia chamá-la para sair — ela sugeriu, franzindo os lábios, com o ar petulante que me
irritava as vezes..
Minha irmã parecia comigo, os cabelos escuros, curtos na altura do queixo, algumas covinhas
perto dos lábios e os olhos da mesma cor que os meus. Azuis. O temperamento era o mesmo, ambos
irritadiços e sem paciência. Descobri isso na primeira TPM que presenciei e fiquei horrorizado em
como ela podia ser ainda mais irritante que o normal.
— Não comece, Nina — resmunguei, descansando a cabeça na mão para olhá-la de cara feia.
— Ela é bonita. — Deu de ombros, olhando para o cardápio.
— Nunca vai cansar? — perguntei, divertindo-me um pouco.
— Sim, quando você já estiver namorando outra vez. — Ela me olhou com carinho. — Achei que
seria a arquiteta...
— Francine é muito bem casada, Nina. — respondi, fazia algumas semanas que eu não falava com
ela. Não tinha contado ainda que estava no Rio. Mas sentia falta da camaradagem que construímos
em tão pouco tempo.
— O bebê dela já nasceu?
— Não, mas falta pouco.
Cáren voltou trazendo os hambúrgueres artesanais e afastou-se novamente. Comemos em silêncio
e depois fomos para casa. Fizemos uma chamada de vídeo com nossa mãe e assistimos a três filmes
seguidos no meu quarto e ela adormeceu. Depois da morte de meu pai, ela vinha se refugiar aqui
comigo. Dizia não gostar de dormir sozinha no escuro, mas eu entendia perfeitamente. Nina tinha sido
fundamental para que eu saísse da depressão que me enfiei quando perdi Sam, ela entrou aqui toda
esfuziante e alegre e me contagiou um pouco. Com o carinho, a atenção e as chatices dela. Beijei de
leve a sua testa e puxei a coberta para cobri-la.
Fitei pela terceira vez o laudo pericial. A prova de que, como eu suspeitava, o incêndio havia
sido mesmo criminoso, a presença de compostos acelerantes de combustão denunciava isso.
— Você é federal, não é? — O perito perguntou, sentado na cadeira a minha frente. — Vi você na
tevê. — Explicou.
— É, eu tive que passar por aquela tortura. — Retruquei, desinteressado. — Obrigado. — Acenei
com os papéis e apertei a mão dele.
Três dias atrás quando cheguei em Minas, o advogado da minha mãe já tinha acionado a polícia
por causa do incêndio, mas busquei meus meios de ter o laudo antes dele através de uma fonte
confiável. Meu celular tocou e a foto de Nina apareceu no visor.
— Oi, Nina. — Recostei-me na poltrona e girei a cadeira para ficar de frente para a janela
grande.
O dia estava chuvoso, mas o vento era agradável na pele.
— Marco, eu convidei a Cami para ir comigo, tudo bem?
Quem diabos era Cami?
— Nina, você já está no aeroporto? — Apavorei-me com a possibilidade de a pequena
encrenqueira ainda estar no apartamento. Já estava quase no horário do voo.
— Sim, Marco. — Ouvi sua risadinha e uma voz suave falar sobre a fila do check-in.
— Quem está aí com você? — Perguntei desconfiado e curioso.
— Cami. — Respondeu com uma pitada de impaciência na voz. — A garota dos quadros. —
Emendou ela, quando não respondi.
Ah.
— Tudo bem, um funcionário da fábrica vai estar esperando por vocês.
Ela ainda disse algo sobre eu ser chato e desligou na minha cara como de costume. Permite-me
pensar na mulher que vinha tirando meu sono. Os olhos verdes intensos eram difíceis de serem
esquecidos. Na verdade, nem mesmo eu entendia o desejo tão grande de reencontrá-la. Tinha feito
meu papel no dia em que a encontrei naquele carro. Mas ainda assim algo nela me atraia de uma
forma estranha.
Saí do escritório e fui até a cozinha, onde a minha mãe estava.
— Nina acabou de sair do Rio. — Encostei-me no batente da porta e cruzei os braços. —
Precisamos conversar, mãe.
— O que foi? — Mara perguntou, eu sempre ficava espantado em como ela me conhecia.
— O incêndio na fábrica foi criminoso. — Esclareci.
O rosto dela empalideceu, a postura dos ombros caiu e olhos ficaram marejados.
— É alguém que você confia. — Resolvi dizer logo.
— Porque Antônio não me disse nada sobre isso? — Perguntou a si mesma, sentando-se, parecia
mais cansada do que minutos antes.
— Porque ele não sabe. — Caminhei para perto dela e sentei ao seu lado. — E se eu estiver
certo, provavelmente o laudo dele virá com um resultado diferente. — Segurei sua mão e trouxe até
meus lábios.
— Acha que... Antônio... — A pergunta ficou implícita.
— Eu não confio em ninguém. Então, por favor, não comente sobre o laudo com ele. Vamos
esperar o que Antônio tem a nos dizer sobre o incêndio. — Olhei para ela, entrelaçando nossos
dedos. — Há uma coisa que quero pedir.
Mara desviou os olhos de nossas mãos e encarou meu rosto.
— Quero que venha comigo para o Rio de Janeiro. — Pedi, a sua expressão foi de surpresa e eu
sabia que a recusa viria a seguir.
— Não posso... não, aqui é meu lar. É onde me sinto mais perto do seu pai... — Ela balançou a
cabeça tristemente. — E tem a fábrica também.
— Podemos administrar a fábrica do Rio, mãe.
— Não consigo me afastar daqui. — Fungou, e colocou alguns fios que teimavam em escapulir do
coque atrás da orelha. — Você viu os desejos do seu pai, não viu?
— Sim, mãe, eu vi. — Desde que li o testamento, preferi não pensar muito nas últimas vontades
de meu pai.
— Então não me peça isso, filho.
Assenti, sem ter muito o que dizer mais. As últimas palavras do meu pai não tinham sido apenas
para ela, mas principalmente para mim. Não imaginava como ela suportava viver aqui, tudo
lembrava dele, até mesmo os sons dos animais traziam uma sensação de nostalgia tocante, ou quando
o berrante era tocado ao longe por alguém, pequenas coisas que traziam a memória de meu pai. Não
sei se isso a fazia sofrer mais ou se era acalento, mas não insisti. No fundo eu já tinha certeza que a
resposta seria essa.
Abri a primeira gaveta da cômoda e puxei uma camisa polo preta e uma calça jeans, presenciando
o milagre de não estarem amarrotadas como eu imaginei que estivessem. Vesti rapidamente e desci as
escadas, indo diretamente para o escritório do meu pai. Sentei na poltrona e abri o macbook. Fiz uma
chamada de vídeo para Andrea e relaxei, esperando que o rosto dela aparecesse na tela. A confusão
que era sua cozinha surgiu primeiro, e depois seu rosto apareceu, enquanto ela ainda colocava os
óculos.
— Oi, Andrea — sussurrei, refestelado na poltrona.
— Pela sua cara, devo esperar más notícias? — indagou ela, enfiando uma colher cheia de algo
parecido com chocolate na boca.
— O que está comendo? — perguntei, ignorando sua pergunta.
— Nutella. — Ela riu, e lambeu a colher. — É a melhor forma de perder meus quilinhos a mais.
— Onde estão os quilinhos a mais? — perguntei, incapaz de conter um sorriso.
Andrea ficou de pé e levantou a blusa para que eu visse onde estavam a gorduras localizadas,
como ela costumava chamar. Dei uma risada baixa e esperei que a cara dela voltasse a aparecer.
— E então? Más notícias? — Repetiu, deixando o recipiente de lado e focando em mim.
— Incêndio criminoso. — Retruquei e ouvi uma gritaria, girei a poltrona para ficar de frente para
a janela e vi Nina correndo para abraçar nossa mãe. Um sorriso involuntário tomou conta do meu
rosto, assisti à interação das duas e então eu a vi.
Ainda perto do carro, a garota dos olhos verdes expressivos estava parada, observando a cena a
sua frente. Parecia meio deslocada sem saber o que fazer, e como se de alguma forma pudesse me
sentir, ela olhou na minha direção. Automaticamente deu um passo para trás e cruzou os braços,
desviando os olhos. Foram frações de segundos, mas consegui reviver todas as imagens que eu tinha
dela e do carro destruído.
Era ela.
— Ainda estou aqui... — Andrea retrucou e eu me voltei para a tela, ainda incomodado.
— Nina acabou de chegar. — Expliquei. — Sabe como ela é barulhenta, não é?
Andrea riu.
— Pare de implicar com a garota. Tem sorte de ela ainda te suportar naquele apartamento. — Ela
brincou. — Você está bem?
— Estou, Andrea. — Respondi, olhei rapidamente para onde a garota estava, mas não a encontrei.
Voltei a focar minha atenção na tela.
— Eu conversei com a mãe de duas garotas que são agenciadas pela Luxus. — Ela começou. —
As duas não tem contato com as filhas há quase seis meses. Elas estão desesperadas. Podemos pensar
que se trata apenas de irresponsabilidade das garotas... mas e se não for? — Ela ajeitou a franja com
os dedos e franziu o cenho. — Não há publicidade alguma ligada a essas meninas, nenhum trabalho,
nenhum rastro fora do Brasil.
Permaneci em silêncio, pensar que algum infeliz tivesse colocado o dinheiro do meu pai numa
sujeira como tráfico humano me tirava a capacidade de pensar de forma razoável. Passamos mais
algumas horas conversando e encerramos. Girei novamente a cadeira para o lado de fora e observei
a natureza.
Então, ela se chamava Cami e pintava quadros.
A vida nunca pararia de me surpreender, eu pensava nessa garota todo dia, a necessidade de saber
se ela estava bem me consumia diariamente. Vê-la inconsciente e ferida naquele carro trouxe de volta
recordações amargas. As lembranças do corpo carbonizado da minha noiva, a sensação de
inutilidade e o remorso por tudo ser minha culpa. Se ela tivesse escolhido outro carro, eu não
existiria hoje. E essa ironia acabava comigo. Por um tempo eu culpei a Deus por tê-la tirado de mim.
Ir atrás de quem a matou me deixou ocupado por um tempo, só eu e Andrea sabíamos o que
tínhamos feito com aqueles caras, o rastro de sangue que deixamos até encontrá-los, todos que
estavam direta ou indiretamente envolvidos na morte dela, não estavam mais nesse mundo, mas
depois o luto veio com força. A dor. A realidade de que não existiria mais um nós, que eu não a veria
mais. Nunca mais. Essa dor acabava com a vida de qualquer um. E então veio Francine, quando
coloquei os olhos nela achei que tinha enlouquecido. Custei a entender como ela poderia ser tão
idêntica a Samanta. Investiguei todas as possibilidades de ambas terem algum parentesco, mas não
havia ligação sanguínea nenhuma entre as duas. Apenas uma semelhança que me deixou sem dormir
por várias noites. Essa mulher tinha virado quase uma obsessão alguns meses atrás. Mas depois eu
descobri que o meu papel na vida dela era outro. Não era uma segunda chance como imaginei que
fosse, eu estava lá apenas para livrá-la de um problema.
Voltei-me para o mackbook e toquei o touchpad para abrir uma pasta com o nome “ Ela”.
O sorriso de Sam apareceu na tela, fui avançando pelas fotos, lembrando o momento em que cada
uma delas fora tirada. A maioria eu mesmo tinha batido, algumas Andrea. Fechei a tela e esfreguei o
rosto, sentindo aquela escuridão rastejando para dentro de mim. A porta foi escancarada e Nina
entrou animada.
— Marco. — A serelepe quase gritou, com os cabelos pingando, vestida num roupão muito maior
do que ela.
— Achei que não viria me dar um oi. — Zombei, levantando-me.
— Venha conhecer a Cami. — Ela segurou a minha mão, mas não me puxou para fora da sala.
Ficou quieta, olhando para os próprios pés e depois virou-se para mim. — Seja legal com ela.
— Vou ser legal com sua amiga. — Beijei de leve os nós dos seus dedos e saí com ela.
Caminhei atrás de Nina para a cozinha e detive-me no batente da porta, observando. Cami estava
em pé perto da mesa, enfiada num roupão enorme para seu tamanho. Os cabelos castanhos
avermelhados longos até o meio das costas estavam soltos, provavelmente sob os raios de sol
ficariam quase ruivos. A boca era carnuda, desenhada de numa forma chamativa, sensual mesmo
quando ela estava distraída, como agora, e os olhos — nunca vi mais marcantes do que esses, o tom
verde mudava de acordo com a luz ambiente. Agora estavam mais claros do que na última vez que os
vi. Ela tinha uma beleza diferente, exótica. Ao mesmo tempo que os traços eram delicados, eram
marcantes na mesma proporção.
Ela olhou para mim e as bochechas ficaram coradas automaticamente. Reprimi a vontade de rir e
entrei na cozinha.
— Cami, esse é o chato do meu irmão. — Nina gesticulou para mim, olhando para a amiga. — Eu
falei dele para você, lembra?
Nina falava de uma forma carinhosa, tentando deixar a garota a vontade. De alguma forma ela era
importante para minha irmã.
— Marcone Ferris. — Estendi a mão. — Esqueça a parte do chato, minha irmã tende a ser
exagerada, às vezes.
— Camille Alencar. — Ela envolveu minha mão com a sua brevemente e depois cruzou os braços,
claramente desconfortável perto de mim.
Desisti de tentar dormir e levantei da cama, sentei na beirada e fui até a janela, atraído por um
som lá embaixo. Observei a silhueta desconhecida pular na piscina e apanhei o relógio sobre o
criado-mudo, a fim de olhar a hora. Acendi a luz embutida e observei o ponteiro sinalizando três e
seis da manhã. Vesti a calça do moletom, uma camiseta e saí do quarto. Estava frio, passei a mão
pela nuca para esquentá-la e caminhei para a área externa da casa. A luz da cozinha estava acesa e a
porta de vidro aberta. Encontrei um roupão sobre um dos sofás, talvez alguém estivesse sem sono
como eu. Observei de longe o movimento das águas e contive o impulso de ir até lá, voltei para a
cozinha, ouvindo o som do vento. Estava frio. Caminhei até a chocolateira e conferi se havia
chocolate o suficiente para duas pessoas, cliquei no botão para aquecer e fui sentar na cadeira.
O som do movimento da água na piscina cessou lá fora, houve um instante de silêncio e então ela
apareceu na porta, segurando uma toalha firmemente ao redor do corpo, olhou nervosamente para o
roupão e depois para mim.
— Não está com frio? — Perguntei de forma casual e estendi o roupão para ela.
— Agora que saí da água sim. — Reprimi a vontade de rir quando percebi seu queixo tremendo.
A voz dela era suave, doce e estava trêmula.
— Quer um pouco de chocolate quente? Vai ajudar a esquentar. — Ofereci apontando para a
chocolateira.
Camille olhou para mim e depois com curiosidade para a máquina.
— Melhor eu subir, já está... tarde... — Ela gaguejou, olhando para os próprios pés.
Aparentemente ela já tinha criado certa aversão a mim.
— Porque não coloca o roupão? Você está tremendo de frio. — Fui até a máquina, a fim de ficar
de costas para ela e aproveitei para encher duas xícaras de chocolate quente. Ouvi o farfalhar do
tecido, enquanto ela se vestia e voltei para a cadeira.
O roupão parecia engoli-la, Camille desfez o coque e deixou os cabelos caírem por seus ombros,
emoldurando o rosto bonito. Empurrei uma xícara para ela e apontei para a cadeira a minha frente.
Depois de uma breve hesitação ela sentou-se e puxou a bebida para perto de si.
— Eu a amedronto, Camille? — Perguntei, depois de um tempo, num tom suave. — Tem medo de
mim?
Ela parou de soprar o chocolate e olhou para mim, mas não respondeu.
— Acha que nos conhecemos num dia ruim? — Fiz referência ao embaraço dela mais cedo, a
forma como ficou claramente incomodada. — Marcone Ferris. — Estendi a mão para ela, pela
segunda vez hoje.
Camille fitou minha mão estendida por uns dois minutos, a nuvem de um sorriso surgiu em seu
rosto e ela a segurou de volta.
— Camille Alencar.
— Muito prazer, Camille. — Tomei um gole do meu chocolate e a olhei.
Ela realmente não fazia ideia de que eu já a conhecia. Perguntava-me se conversar sobre isso era
a coisa certa a fazer.
— Aqui é muito bonito. — Elogiou ela, depois de tomar um gole da bebida, olhando para a
madrugada negra lá fora.
— Gosta do campo? — Não consegui desviar os olhos dela, não era a beleza em si que atraia,
havia um mistério.
— É a primeira vez... — Ela olhou para mim. — Nina não exagerou quando disse que aqui era
lindo.
— Como vocês se conheceram? — Perguntei, estava realmente interessado nisso.
— Eu a vi pela primeira vez na biblioteca da faculdade, ela estava lendo um livro que minha irmã
gostava. — A postura dela mudou, e o olhar ficou inexpressivo.
— Qual era o livro? — Engoli em seco.
Luto. Era o luto que elas tinham em comum. Aquela garota morta era irmã de Camille, eu não
precisava perguntar para saber.
— O morro dos ventos uivantes. — Respondeu, com o mesmo olhar distante.
— Qual o nome da sua irmã?
Ela não respondeu de imediato, fitou a própria xícara.
— Qual o nome dela, Camille?
Os olhos verdes voltaram a me fitar, com curiosidade e desconfiança.
— Liz. — A dor em sua voz foi forte.
— Onde ela está agora? — Insisti.
Ouvi-a arfar e levantar-se abruptamente.
— Olhe... obrigada pelo chocolate. Eu... eu vou dormir agora. — Ela torceu as mãos e afastou-se
para fora da cozinha, deixando-me sozinho.
4
Camille
Subi rapidamente a escada e entrei no quarto, respirando com dificuldade. Encostei-me a porta
e fechei os olhos, minha têmpora latejava de dor. Alguns minutos embaixo da água faziam as
sensações ruins melhorarem, mas ele perguntou por ela. Por Liz. E a dor voltou, exaurindo as minhas
forças. A força que a psicóloga dizia que eu precisava ter para recomeçar. Eu estava tentando. Nina
estava ajudando, ela era tão amável comigo. Tão doce. Estar em sua companhia me fazia esquecer um
pouco da culpa que eu sentia. Aquela sensação terrível.
Ouvi o som de passos e prendi a respiração. Devia ser ele. Marcone. Senti meu rosto corar. Eu
via o rosto dele todo dia, mas por mais que eu revirasse a minha mente não sabia porquê. Eu não
esqueceria se um dia o tivesse visto pessoalmente antes. Enfiei os dedos em meus cabelos e caminhei
para a cama, sentei na beirada e tirei o roupão. Meus olhos caíram imediatamente na cicatriz
horrorosa que eu tinha herdado daquele acidente maldito que matou minha irmã. Eu a matei. Minha
irresponsabilidade. Eu não lembrava nada daquele dia, exceto de acordar e descobrir que Liz não
existia mais por minha culpa. Enxuguei uma lágrima e deitei na cama encolhida, torcendo para que
conseguisse dormir, algo raro ultimamente.
Despertei desorientada, sem saber onde estava. O canto dos passarinhos trouxe um relaxamento
instantâneo, a sensação de estar em casa, num lugar seguro. Sentei, encostando-me na cabeceira da
cama, estiquei o braço e peguei o celular sobre o criado-mudo. Levantei-me num pulo quase
deixando o aparelho cair. Já passava das onze da manhã. Como consegui dormir tanto? Ignorei as
mensagens, provavelmente da minha mãe. E corri para a minha mala perto do banheiro. Tomei um
banho rápido e fucei as roupas até encontrar algo para vestir. Optei por um vestido branco na altura
dos joelhos, ele era confortável e eu, não fazia ideia do que vestir. Fiz um rabo de cavalo, passando
os olhos pelo chão em busca das minhas sandálias, calcei-as, perfumei-me e saí do quarto.
Covardemente passei no quarto de Nina, apenas para saber que ela não estava mais lá. Respirei
fundo e desci as escadas. A casa estava envolta no silêncio, passei pela sala de jantar e estar e fui
para a cozinha, também vazia.
Caminhei para a área externa e aí o vi. Marcone estava perto da piscina, falando com alguém ao
telefone, vestido numa calça jeans e numa camisa polo branca. Ele parecia relaxado, caminhou para
mais perto da piscina e sorriu, ainda concentrado em sua conversa. Deixei que o visual dele me
invadisse, as pernas longas musculosas e os braços fortes mostravam que ele devia praticar algum
esporte ou ir à academia. Os músculos não eram exagerados, estavam dispostos na medida certa,
deixando o corpo viril acentuado de uma forma natural. De repente ele olhou na minha direção,
pegando-me no flagra, por algum instinto maquiavélico não desviei os olhos, embora estivesse
corada até o pescoço. Prendi a respiração quando o vi começar a caminhar em minha direção, ainda
respondendo a quem quer que fosse pelo aparelho. Entrelacei os dedos das mãos por puro
nervosismo e perguntei-me onde Nina estava numa hora dessas.
Antes de chegar perto de mim ele guardou o celular no bolso da calça, pela manhã os seus olhos
azuis eram mais claros, os raios de sol deixavam sua pele com um aspecto bonito e seus cabelos
ainda mais pretos, estavam úmidos, provavelmente por causa de um banho recente. Ele teria
acordado agora também?
— Bom dia, Camille. — Ele parou a minha frente e cruzou os braços, avaliando-me.
— Oi. — Respondi, e torci as mãos sem saber mais o que dizer. De perto pude ver mais
claramente seu rosto e peculiaridades que à distância e durante a noite não captei.
O seu queixo era bem pontudo, o rosto recheado de covinhas ao lado da boca pequena, o nariz
reto e os olhos incríveis. Ainda mais incríveis de perto. Mas sua postura era o que realmente era
intrigante, a palavra perigo piscava como fogos de artifícios na minha mente. Ele era perigoso, a
forma de se mover, era como se fosse um predador. O jeito altivo, determinado, intimidante.
“Eu a amedronto, Camille?”
A pergunta de ontem à noite lampejou na minha cabeça.
— Dormiu bem? — Havia um interesse genuíno na pergunta.
— Sim. — Respondi. — Nós estamos sozinhos aqui? — Perguntei, colocando uma mecha de
cabelo imaginária atrás da orelha.
Um sorriso bem-humorado surgiu nos lábios dele, mostrando os dentes alinhados.
— Sim. — Deu uma resposta curta, analisando minhas reações. — Você está com fome?
— Onde está Nina e sua mãe? — Fiz outra pergunta.
— Eu as levei para a fábrica mais cedo, ainda estão lá. — Pigarreou e enfiou as mãos nos bolsos
da calça. — Está com fome? — Voltou a perguntar.
— Já é quase meio dia. — Repliquei, mas, de fato, estava realmente faminta.
— E? — Ele arqueou as sobrancelhas.
— Estou mesmo com fome. — Rendi-me, olhando de soslaio para a cozinha, Marcone riu. Um
som gostoso de ouvir.
— Vamos lá. Nina arrancaria meus olhos se ficasse sabendo que não fui gentil com você. —
Comentou num tom debochado, que eu gostei e tocou meus ombros para que eu o seguisse de volta
para a casa.
Sentei numa das cadeiras, e o observei remexer-se pela cozinha bem equipada. Ele parecia bem
confortável, diferente de mim.
— Eu posso comer qualquer coisa.
— Não temos qualquer coisa aqui. — Retrucou ele, mexendo nas bandejas e tigelas sobre o
balcão de mármore preto. — Esses pãezinhos são meus preferidos... — Sussurrou acho que para si
mesmo, pegando um de dentro da pequena cesta e levando-o à boca. — Você quer? — Apontou para
o pãozinho.
— Sim... — Respondi, meu estômago estava mesmo cheio de fome.
— Está vendo? — Começou. — Não é qualquer coisa.
Revirei os olhos.
Devorei alguns pãezinhos, queijo, uma fatia grande de bolo de cenoura e uma caneca de café com
leite. Marcone não comeu, apenas bebericou por um longo tempo uma xícara de café preto, enquanto
me observava quando achava que eu não estava olhando.
— Alguém nunca disse para você que observar as pessoas enquanto matam a fome é falta de
educação? — Retruquei quase irritada. Eu disse quase.
A gargalhada gostosa que ele deu me fez sorrir um pouquinho.
— Bom, isso não impediu que você matasse a sua, não é? — Debochou ele, erguendo as
sobrancelhas. — Estou, inclusive, estarrecido agora. Para onde essa comida toda vai? — O
debochado inconveniente perguntou, como se quisesse de fato saber.
Meneei a cabeça, contendo um sorriso e olhei para o lado de fora. Um sol frio beijava a grama
verdinha.
— Vou dar uma olhada nos cavalos. — Ele sussurrou. — Quer vir comigo?
— Aqui tem mesmo cavalos?
— Sim.
— Quero. — Peguei-me aceitando o convite animada.
— Ponha uma calça e botas. Vai se sentir mais confortável. — Marcone explicou, olhando-me
com intensidade quando levantei.
— Acho que trouxe na mala. — Sorri, um pouco tímida pela forma como ele estava me olhando e
quando não ouvi mais nada dele, saí da cozinha em direção à escada.
Tentei frear a animação, eu não o conhecia. Já tinha acontecido isso no passado e o resultado foi
eu me dar muito mal. Sentei na cama e enterrei o rosto nas mãos, tentada a desistir e permanecer ali
sozinha. Peguei o celular sobre o criado-mudo — duas mensagens da minha mãe, uma do meu pai, e
uma que fez meu coração gelar.
Marcone
Tirei a pequena bagunça do café da manhã de cima da mesa, enquanto esperava Camille trocar de
roupa. Resolvi de última hora levá-la para ver os cavalos, na verdade eu pretendia ir ao escritório e
analisar algumas imagens das câmeras de segurança da fábrica, provavelmente Andrea estaria
chegando no fim da tarde com algumas informações que não quisera passar por telefone para mim,
mas os olhos verdes chamativos me fizeram mudar os planos. Ela tinha baixado a guarda, estava mais
relaxada perto de mim, e embora, eu não soubesse os motivos para deixá-la tão tensa na minha
presença, vê-la tranquila e sem toda resistência a mim me deixou satisfeito de alguma forma.
Consultei o relógio e subi para o quarto que eu estava ocupando, pensei que talvez fôssemos nos
esbarrar, mas a porta dela continuava fechada. Troquei o tênis por botas e peguei dois bonés pretos
com a logomarca da fábrica sobre a cômoda. Saí e parei em frente ao quarto dela. Dei duas batidas.
Silêncio.
Novamente bati duas vezes.
Mais silêncio.
Estava me virando para ir procurá-la no andar de baixo, quando a porta foi aberta. Prendi a
respiração com a mudança radical em seu rosto, os traços que até alguns minutos atrás estavam
suaves, risonhos até, agora exibiam uma tensão alarmante, os olhos estavam opacos e inexpressivos e
os braços cruzados.
— Está tudo bem, Camille? — Perguntei, minha voz saiu rouca, tensa.
Senti vontade de tocá-la e tirá-la do aparente transe, mas não o fiz. Temi assustá-la de alguma
forma.
— Tudo bem se não quiser ir. — Tentei reconfortá-la, sem nem ao menos saber o que eu tinha
feito de errado. Os olhos verdes encontraram os meus e senti-me confuso em como eles podiam
mudar em frações de segundos, em uns momentos vazios quase gelados e agora intensos,
perscrutadores.
— Eu quero. — Sussurrou simplesmente, dando um passo para frente e saindo do quarto.
Fiquei mais satisfeito do que esperava, peguei sua mão e a puxei pela escada, paramos na
cozinha.
— Solte os cabelos. — Pedi. Ela não entendeu, mas obedeceu. As madeixas castanhas caíram
como cascatas por seus ombros e costas. Coloquei suavemente o boné sobre sua cabeça, e arrumei
seus cabelos atrás da orelha. Uma desculpa vergonhosa para tocá-la. — Fica bonito em você. —
Elogiei e ganhei um sorriso do tipo “Pare com isso”. Coloquei meu próprio boné e saímos.
Andamos por quase vinte e cinco minutos, uma caminhada prazerosa por causa da paisagem.
Havia um caminho longo de coqueiros, e árvores frondosas. O ar puro nos rodeava e um sol frio
agradável tocava levemente nossa pele. As terras do meu pai eram vastas, bem cuidadas e cheias de
frutos. Uma das curiosidades que me rondava era saber quem seria eu se tivesse escolhido a vida no
campo, provavelmente estaria casado com alguma mulher daqui, deveria ter mais de um filho, afinal
no campo, além do trabalho pesado, não havia muito o que fazer. De onde estávamos vi três cavalos,
o homem que cuidava deles estava próximo ao maior, um de pelos negros brilhantes. Era o cavalo do
meu pai, o preferido dele.
— Ali, está vendo? — Apontei para a casa dos animais, Camille estreitou os olhos, observando.
— Estamos perto.
— São quantos cavalos? — Ela perguntou, segurando o boné por causa da rajada de vento,
evitando que ele caísse no chão.
— Acho que uns sete. — Respondi, olhei-a rapidamente.
— É difícil montá-lo?
A pergunta me fez olhá-la.
— Se você fizer do jeito certo, não.
Caminhamos mais um pouco e descemos uma pequena ladeira em direção ao estábulo. Nem o
capataz nem seu auxiliar estavam mais por ali. Rodeamos o local onde os cavalos estavam e os
observamos por um longo tempo, quietos.
— Posso montar um deles? — Ela perguntou, olhando-os com admiração.
— Pode. — Estudei-a. — Já fez isso alguma vez?
— Não. — Tocou na aba do boné sem qualquer efeito. — Já vi vídeos no youtube. — Admitiu
ela.
Senti vontade de rir, todavia, não fiz isso. Assenti e fui à baia. Selei o cavalo menos alto e mais
manso e a ajudei a subir nele. Ela ficou alguns minutos desengonçada sobre a cela, o que foi bastante
engraçado, mas depois, relaxou. Olhando tudo em volta, enquanto nossos cavalos nos levavam pela
área verde por ali mesmo.
Passamos um bom número de horas montando e falando sobre os cavalos, mas tivemos de voltar
para casa, primeiro porque Nina e minha mãe já deviam estar de volta e segundo porque Andrea
ligaria a qualquer minuto para eu ir buscá-la no aeroporto.
Desviei novamente o olhar do mackbook para a área da piscina através da janela e resolvi girar a
poltrona de uma vez. Nina, Camille e Ben, isso mesmo, esse puto tinha vindo junto com Andrea sem
ser convidado e estava regozijado como um moleque dentro da piscina com minha irmã. Camille
estava sentada na borda um pouco mais distante, embora soltasse algumas risadinhas das coisas
ridículas que o palhaço fazia. Detive o meu olhar nela, os cabelos estavam num coque frouxo e ela
usava um vestido vermelho justinho, apenas as pernas estavam dentro da água.
— Agora entendo porque queria tanto reencontrá-la. — O tom acusatório e debochado soou atrás
de mim, eu me virei para encará-la.
Andrea estava encostada na mesa de braços cruzados, com uma pasta entre os dedos longos,
olhando para Camille.
— Como você sabe quem ela é? — Questionei, eu não tinha contado ainda sobre ter encontrado a
garota.
Sem responder, estendeu a pasta, uma foto de Camille estava grudada na frente e sentou-se na
cadeira diante de mim.
— Consegui descobrir quem ela é, mas você foi mais rápido do que eu, a garota já está até aqui,
na sua casa. — Deu uma gargalhada debochada e voltou os olhos para Camille. — Ela é linda. —
Foi quase uma acusação admirada.
— Não foi por isso que queria vê-la outra vez. — Recostei-me na poltrona. — No momento em
que a encontrei naquele carro não tinha como saber como ela era fisicamente. Estava muito
machucada. — Voltei a analisar a garota lá fora, ela olhou em minha direção e desviou os olhos. —
Por algum motivo eu só queria ter certeza de que estava bem.
— Você não é um monge, Marcone. — Bufou, fuzilando-me com os olhos.
Mas, Andrea sabia que eu não tinha me envolvido realmente com ninguém depois de Samanta,
emocionalmente nunca. Apenas algumas saídas esporádicas com algumas mulheres que sabiam
exatamente como eu era.
— Ela me atrai, não vou negar.
— Já tinha notado. — Esclareceu ela e olhou novamente para a garota. — Considerando a forma
como ela me olhou quando chegamos, imagino que seja recíproco.
Não pude deixar de rir, embora curioso. As mulheres deviam mesmo perceber certas coisas em
relação às outras da mesma espécie.
— A forma como ela olhou para você? — Perguntei, realmente interessado. Guardei a pasta
dentro da gaveta.
— Algo do tipo: Quem é essa?
— Camille mal consegue ficar perto de mim, Andrea. Em um momento é doce e receptiva, no
momento seguinte é arisca e desconfiada. — Meneei a cabeça numa negativa. — Ela não lembra de
mim. Quero me aproximar um pouco, entender o que aconteceu naquela noite. — Expus, embora
minha mente dissesse que aquela merda não era da minha conta, gritava na verdade, algo como:
Afaste-se dela, cara.
— Entendo. — Disse, simplesmente. — Como a encontrou?
— Não encontrei. — Dei de ombros. O olhar afiado e incrédulo dela voou para a janela outra
vez.
— Você é um idiota mesmo. — Resmungou, sem me olhar.
Gargalhei e isso piorou a cara de enganada que ela estava fazendo.
— Estou falando sério. — Tentei não rir. — Camille é inacreditavelmente amiga de Nina.
Algo fez sentido para ela.
— Você bem que poderia ter vindo sozinha, não é? — Foi minha vez de resmungar.
A estressadinha riu, entendendo onde eu queria chegar.
— Aquele puto pretende colocar a língua na boca da sua irmã, se prepare para ver isso. —
Explicou satisfeita. A minha cara de nojo não passou despercebida por ela. A mulher explodiu numa
risada zombando de mim.
Depois de mais cinco minutos de zombaria resolvemos nos concentrar no que realmente
precisávamos fazer.
5
Marcone
Observei do modo mais impassível todos os rostos presentes na sala, a maioria tinha me visto
uma ou duas vezes durante as poucas visitas que fiz a essa fábrica, alguns também eram novidade
para mim. Mas, o que mais me deixava intrigado era o fato de os dois filhos de Antônio Oliveira,
serem gerentes financeiros. Eu sabia quem eram eles, tinha feito associação ao sobrenome e ao fato
de serem os mais próximos de minha mãe no enterro do meu pai, o puxa-saquismo exacerbado
daquele dia não me passou despercebido.
A reunião era para falar acerca do incêndio, minha mãe estava ao meu lado direito e Nina ao
esquerdo, enquanto Antônio e o perito justificavam o que desencadeou as chamas no sétimo andar,
senti vontade de rir quando li o documento: Incêndio causado por vapor. Não era nada diferente do
que eu já esperava, porém imaginei que ele encontraria um jeito mais concreto de tentar enganar, mas
não sei que espécie de idiota esse infeliz achava que eu era. Todavia, permaneci calado, engolindo
suas explicações, até porque de acordo com o que vinha percebendo havia algo incomum e mais
complicado por trás desses desvios, encostá-lo na parede agora não seria o certo a fazer. Eu só
precisava de uma resposta do banco suíço com relação ao titular da conta que recebia esses
depósitos. Com a certeza de que ele era o ladrão, os próximos passos seriam menos complicados,
fáceis até. E pelo que eu estava assistindo agora, o cara era extremamente burro.
Houve uma sucessão de opiniões sobre quais medidas tomar para que algo daquele tipo não
voltasse a acontecer, os engenheiros expuseram melhorias na formatação do prédio e no novo layout
do departamento financeiro e o ego, já grande, do advogado pareceu inflar ainda mais,
completamente satisfeito consigo mesmo. Minha mãe disse algumas palavras em agradecimentos aos
funcionários e logo depois os dispensou.
— Um prejuízo incalculável. — Antônio disse para nós ainda no mesmo lugar.
— Muito obrigado. — Estendi a mão para ele. Sim, eu era traiçoeiro, do tipo que dava corda para
se enforcar. Mas o homem ficou surpreso com meu cumprimento, só meneou a cabeça
afirmativamente e pediu licença para se retirar.
— Como ele pôde? — Minha mãe gemeu contrariada.
— Nós nunca conhecemos ninguém o suficiente, mãe. — Tranquilizei-a, ciente de que ela falava
do advogado.
— Vamos para casa. — Levantei-me e saí da sala com as duas.
No testamento do meu pai, seu desejo era que esse lugar nunca fosse vendido ou passado para a
direção de alguém que não fizesse parte da família, assim que isso foi lido, senti remorso automático,
não era meu lugar. Eu não me via vivendo e administrando isso aqui. A tolerância que
administradores tinham que ter em seus negócios era completamente desconhecida por mim. No
momento o que eu queria mesmo era torcer o pescoço do advogado mentiroso, esmagar a verdade na
sua cara, mas essa hora chegaria.
Saí do elevador e a primeira coisa que vi foi o filho do diabo rondando Camille, não sei o que o
sujeito estava dizendo, mas ela estava claramente desconfortável, quase apática. Os braços cruzados,
como se estivesse se protegendo, os olhos baixos tensos, e o imbecil sorrindo de lado como se
estivesse dizendo algo muito interessante. Ia começar a caminhar até lá, quando Andrea aproximou-
se com um sorriso educado e disse algo no ouvido do cara que o deixou branco como uma vela,
depois delicadamente puxou Camille para as poltronas que estavam decorando a recepção.
Nina foi direto para onde Ben estava com uma cara de boba, eu sabia que teria fortes dores de
cabeça a respeito desses dois. Aproximei-me de Andrea que lia uma revista sobre o ramo industrial
do século XXI e de Camille que estava ao seu lado. Minha mãe não estava mais por perto.
— Bom dia, Camille. — Cumprimentei-a, não a tinha visto ainda essa manhã. Vim cedo para cá e
a garota permaneceu na fazenda com Andrea e Ben.
Os olhos — a parte que eu realmente mais gostava em seu rosto — estavam claríssimos.
— Bom dia. — O rosto ficou corado, mas ela não desviou os olhos, umedeceu os lábios num
gesto mais de nervosismo que de provocação.
Andrea pigarreou de um jeito teatral, reprimi um sorriso e a olhei. Uma de suas sobrancelhas
estava arqueada de forma arrogante. Honestamente, não entendia a mim mesmo por gostar tanto dela.
— A que horas você volta para o Rio? — Dirige-me à loira, sentando-me entre as duas.
— Minha mala já está no carro. — Respondeu, voltando a olhar para a revista.
— O que você disse a ele? — Perguntei para que só ela ouvisse.
— Considerando a cara que você estava olhando para o desavisado, eu fiz um favor para o
coitado.
Cínica.
— Certo. Fez um favor dizendo o que para ele?
— Disse que enfiaria as unhas nas bolas dele caso não desse o fora.
Não consegui segurar a gargalhada.
— Você é louca. — Retruquei em meio a risada. Andrea riu também e encostou a cabeça no meu
ombro, algo já rotineiro entre nós.
Silenciosamente Camille levantou-se e caminhou para onde Nina estava com Ben. A reação me
incomodou de certa forma, talvez a garota estivesse entendendo minha relação com Andrea de uma
forma diferente do que realmente era.
— Ele entregou um laudo falso.
— Já esperávamos por isso, não é? — Ela ajeitou-se e olhou séria para mim. — Esses dias que
vai ficar por aqui, tome cuidado. O cara sabe quem você é. Todos aqui sabem, Marcone.
— Ele não é esperto. Ninguém é esperto quando se trata de dinheiro. Tudo que ele quer é uma
oportunidade para roubar mais.
Andrea lançou um olhar sombrio para o advogado que mais uma vez estava em volta da minha
mãe.
— Só tome cuidado.
Ficamos mais cerca de dez minutos ali e eu saí com Andrea para levá-la ao aeroporto.
Infelizmente, Ben não iria acompanhá-la. Ainda trocamos algumas palavras, enquanto esperávamos o
seu voo e eu voltei para a fazenda. Durante o almoço e o resto do dia, Camille não apareceu e nem se
juntou a Nina e Ben na piscina. Senti vontade de ir até seu quarto, mas achei que seria uma atitude
meio invasiva e não o fiz. Durante o jantar a garota também não apareceu, isso me deixou nervoso.
Durante a madrugada eu escutei novamente o ruído na área da piscina, sem pensar duas vezes saí do
quarto e fui até lá. Dessa vez caminhei para a piscina, novamente a madrugada estava fria, a água
devia estar um gelo e ela estava boiando de olhos fechados, o vestido estava grudado no corpo. O
mesmo vestido vermelho que ela estava usando ontem. Não falei nada para não a assustar. Sentei na
borda e coloquei as pernas para dentro da água. Arrependi-me assim que senti a umidade gelada
envolvê-las.
O rosto dela era sereno enquanto estava ali dentro, ela parecia relaxada como nunca a vi. Acabei
me sentindo intruso por estar observando seu momento. Os olhos tão marcantes abriram-se
lentamente, prendi a respiração achando que ela fosse gritar assustada, mas Camille apenas me olhou
e moveu os braços ainda submersa sob as águas. Ela afundou dentro da piscina por um longo tempo e
quando emergiu estava diante de mim, olhando-me com ar arisco.
— Oi. — Sussurrei.
— Oi.
— Porque ficou no quarto durante todo o dia? — Perguntei, movendo as pernas dentro da água.
— Tive que fazer algumas ligações. E estava com dor de cabeça.
Senti vontade de que as luzes ali fossem acesas e eu pudesse ver seu rosto direito.
— Porque vem nadar a essa hora? — Eu realmente estava curioso sobre isso.
— Gosto do silêncio.
— Minhas pernas estão congelando aqui dentro, o que acha de terminarmos a conversa lá dentro.
— Olhei por sobre os ombros para a cozinha.
Estava esperando pela recusa, mas ela assentiu. Levantei-me e esperei por ela, entramos juntos na
cozinha, ambos deixando um rastro de pingos de água pelo piso.
— Você sabe usar a chocolateira? — Perguntei.
— Sim. — Ela respondeu, franzindo as sobrancelhas de um jeito fofo.
— Pode aquecer o chocolate enquanto busco umas toalhas para nós?
— Claro. — Deixei-a tremendo e pingando água no meio da cozinha e subi a escada de dois em
dois degraus. Fui até meu quarto e peguei um roupão e uma toalha. Enxuguei-me, troquei o short
parcialmente molhado por uma calça de moletom e olhei as minhas blusas dentro da gaveta, pensando
se era uma boa ideia levar uma para que ela vestisse ou não. Puxei a primeira que vi, e desci a
escada, com um bolo de roupas nas mãos. O cheiro do chocolate já estava evidente.
Entrei em silêncio, detendo-me a soleira da porta, havia algo de fascinante em olhá-la quando ela
estava distraída, Camille mantinha o olhar concentrado, enquanto enchia uma caneca de chocolate.
— Trouxe uma toalha. — Retruquei para que ela me visse e entrei na cozinha.
Camille foi até o lavabo e voltou vestindo minha blusa, sob o roupão parcialmente aberto, com a
toalha na cabeça. Ela sentou-se diante de mim e pegou sua caneca, levando-a a boca.
— Ela morreu. — Sussurrou depois do primeiro gole.
— Hã?! — Não compreendi.
— Minha irmã. Ela morreu. — Fez uma pausa, unindo as sobrancelhas. — Você me perguntou
onde ela estava na outra noite.
— Eu sinto muito. — Tomei um gole da bebida. — O que houve com ela?
— Eu não gosto de falar muito sobre isso. — Respondeu sem me encarar, brincando com a alça
da caneca. — Não me faz bem...
— Tudo bem. Não fale, então.
Ela me lançou um olhar curioso, os olhos verdes intensos como duas esmeraldas.
— Nina diz que você é bem chato. — Ela deu um pequeno sorriso, pelo franzir de sua testa devia
estar lembrando de alguma atrocidade que minha irmã dissera sobre mim.
— Bom, no lugar dela eu também diria isso. — Dei outro gole, esperando pelo que ela iria
perguntar ou dizer.
Camille parecia ponderar sobre o assunto, ela estreitou os olhos, observando-me. E então algo fez
com que suas bochechas ficassem mais coradas.
— No que está pensando? — Inquiri, curioso.
— É bom estar aqui... eu me sinto segura. — O olhar dela foi para a madrugada lá fora, e
permaneceu por um tempo longo.
A sirene de quando algo estava muito errado soou na minha cabeça assim que ela fechou a boca.
— Você está segura aqui, Camille. — Senti a necessidade de dizer, de passar uma certeza para
ela.
— Não queria ir embora. — Ela sussurrou mais para si mesma.
— Ainda vamos passar uns dias aqui. — Tranquilizei-a.
Ela olhou para mim e assentiu, deixando a caneca de lado. Algo a incomodava, parecia
melancólica.
— Quantos anos você tem? — Perguntei, sorvendo mais um pouco da bebida.
— Quase vinte e um. — Deu de ombros, fazendo uma espécie de biquinho.
Descansei a cabeça na mão esquerda e me permiti olhá-la.
— Porque quase?
— Faço aniversário daqui a um tempinho. — Recostou-se na cadeira e suspirou. — Ela é sua
namorada? — O rosto voltou a ruborizar.
— Ela quem? — Eu sabia que Camille se referia a Andrea, mas ainda assim perguntei.
— Aquela loira...
— Não, Andrea é uma amiga e trabalha comigo também. — Respondi, o rosto dela ficou ainda
mais vermelho, digamos que, quase escarlate.
— É que ela parece bem à vontade aqui... por isso imaginei... — Retrucou, num tom quase
desinteressado, sem me encarar.
— Nos conhecemos há muito tempo.... — Expliquei. — Nina me contou que você pinta. — Mudei
de assunto, eu realmente queria conhecê-la.
— Sim, sempre desenhei, e depois comecei a pintar telas. — Um pequeno sorriso surgiu em seus
lábios.
— Gostaria de ver seus quadros.
— Claro. — Outro sorriso.
Voltamos a bebericar o chocolate, agora menos quente, em silêncio.
— A gente podia ir ver os cavalos outra vez... — Ela disse, brincando com a alça da caneca.
Achei graça.
— A essa hora? — Zombei, adorando o fato de ela propor passar algum tempo comigo.
— Não... quando amanhecer. — Os olhos esverdeados pousaram no meu rosto. — É como se eu
já conhecesse você. — Ela sussurrou, mas parecia não gostar disso.
— E isso é ruim?
— Não sei. — Perscrutou-me por um longo tempo, minha vontade era descobrir o que se passava
na sua cabeça. O olhar era desconfiado, afiado, arisco.
Camille tinha dificuldade de confiar, estava claro, desde o primeiro momento em que me viu. E
isso me levava a questionar o porquê? Ou quem? Alguém devia tê-la ferido de uma forma muito forte
para todas as atitudes defensivas que ela adotava.
— Porque não me deixa ser seu amigo? E com o tempo você escolhe se pode confiar em mim ou
não. — Toquei levemente sua mão, fazendo um leve afago com o polegar.
— Amigo. — Ela ponderou, era como se testasse o som da palavra. — Amigo. Tudo bem.
6
Camille
Acordei com o som insistente do celular. No primeiro momento meu corpo gelou, mas o alívio
foi imediato quando vi que era minha mãe. Suspirei, e sentei na cama, afastando o edredom e
aceitando a chamada.
— Mãe?
— Bom dia, filha. — Mesmo com as tentativas depois que Liz morreu, ainda soava estranha essas
demonstrações de preocupação de meus pais.
Eles nunca foram os pais mais atenciosos e presentes, estavam sempre ocupados — reuniões,
viagens de negócios, cabeleireiro, salão de beleza, eventos beneficentes — eu e Liz sempre ficamos
em segundo plano. Minha irmã e eu sempre fomos grudadas, fazíamos tudo juntas, desde o momento
em que acordávamos até a hora de dormir.
— Camille? — Minha mãe.
— Oi, está tudo bem aqui, mamãe. — Saí da cama e fui até o banheiro.
— Está se divertindo com seus amigos?
— Sim, o campo é muito bonito. Vi cavalos, fui a uma fábrica de queijos. Você e o papai iriam
gostar.
— E Nina? Agradeça a ela por mim, por conseguir te tirar de casa.
— Vou agradecer sim. — Ouvi a voz do meu pai e uma buzina.
— Seu pai está mandando beijos. Aproveite, se divirta e venha corada para casa.
— Aqui é meio frio, acho que vou ficar devendo a parte de voltar corada. — Respondi, olhando o
meu reflexo no espelho. Ainda estava com a blusa dele.
— Não esqueça de ligar mais tarde. Beijo, filha.
Restava saber se ela iria realmente atender se eu ligasse.
Encerrei a ligação e coloquei o celular sobre o mármore do banheiro, passei a mão sobre a
camisa que vestia e um sorriso involuntário surgiu em meus lábios.
O irmão de Nina surgindo em meus pensamentos, ele não era nem um pouco chato, muito pelo
contrário, era a gentileza em pessoa. Algo raro hoje em dia, principalmente quando se tratava de
homens, especialmente quando se tratava de homens.
Ouvi duas batidas na porta e saí do banheiro para abri-la.
— Vamos ao shopping? — Nina entrou animada e jogou-se na cama depois de um abraço rápido.
— Agora? — Fui sentar perto dela.
— Sim. Ben também vai e minha mãe. Vamos?
— Você se importaria se eu não fosse? — Fiz minha melhor cara de quem se desculpava.
— Se não quiser ir, tudo bem, Cami. — A mesma gentileza do irmão.
— E você e o Ben? — Coloquei uma mecha fina do cabelo curto atrás de sua orelha e afaguei de
leve a sua testa.
— Não sei, em um momento ele é todo carinhoso e no outro parece me afastar. — Bufou, caindo
de costas na cama, eu fiz o mesmo.
Ficamos quietas.
— Acho que ele tem medo do meu irmão não gostar, sabe? São amigos... Mas tenho vontade de
pular no pescoço dele. — Ela olhou para mim com uma cara de safada, mordendo o lábio inferior e
nós gargalhamos.
— Acho vocês dois bonitinhos juntos. — Comecei a afagar seu cabelo, como eu fazia com Liz
quando tínhamos nossas conversas constrangedoras como a de agora.
— Eu também. — Ela fez uma voz chorosa engraçada e eu ri baixinho.
— Seu irmão também vai para o shopping? — Perguntei da forma mais desinteressada que
encontrei.
— Acho que não, ele está trancado no escritório desde cedo.
Ficamos quietas de novo.
Nina ergueu a cabeça, sustentando-a no braço e olhou para mim.
— Ele parou de mandar mensagens? — Ela perguntou e eu me sentei, sentindo-me incomodada.
— Só ontem. — Respondi, mas queria evitar o assunto.
— O que ele queria? — A voz meio brava me fez olhá-la, Nina tinha me cativado. A forma doce,
espontânea, e marota de ser tinham me conquistado no instante em que conversamos pela primeira
vez.
Ela estava lendo O morro dos ventos uivantes na biblioteca da universidade, eu tinha aparecido
por lá apenas para pegar um livro indicado por meu orientador do Tcc e ao invés de pegar o que
queria e voltar para casa, passei horas batendo papo. Agora eu entendia que a educação e gentileza
era um traço especial da família dela. Marcone era gentil. Mara também era maravilhosa. Quando ela
me contou sobre a morte do pai, senti que tinha encontrado alguém que compartilhava da mesma dor
que eu. O luto. A dor crua e destrutiva que só quem sentia na pele conseguia entender. A afinidade foi
mútua e instantânea, eu contei sobre minha irmã e me surpreendi com o fato de ela simplesmente
ouvir, sem objeção, sem questionamentos. Ela simplesmente me ouviu.
— Na cabeça dele ainda temos uma relação. Como eu já contei para você, ele é louco. — Sentei,
abraçando meus joelhos, sentindo a angustia já conhecida aparecer.
— Sabe que pode simplesmente não falar sobre isso se não quiser, não é? — Novamente a
gentileza, a empatia que me fazia confiar nela.
— Não quero falar... — Dei um sorriso amarelo e completamente sem graça.
Nina olhou para mim e assentiu, ia voltar a deitar novamente, mas algo chamou sua atenção e ela
voltou a me analisar, os olhos curiosos e vivos. Ela parecia com o irmão, os cabelos extremamente
negros e os olhos azuis que me encaravam zombeteiros agora.
— Essa camisa é de Marcone? — Direta, sempre direta. Senti meu rosto corar até o último fio de
cabelo.
— Sim. — Peguei-me olhando para a blusa que eu vestia como se tivesse me dado conta dela
nesse exato momento também. — Ele me emprestou depois que eu saí da piscina... por que eu estava
molhada...
— Ah, você estava molhada. Porque eu não vi isso?
— Porque você já estava dormindo. — Dei de ombros e caí de costas na cama, evitando o
escrutínio dela.
— Hum... — Sussurrou, com um pequeno sorrisinho no canto da boca. Claro que ela me
infernizaria sobre o assunto de novo, e provavelmente na frente do irmão.
Alguém bateu na porta e eu me sentei, apreensiva e com o coração disparado, puxei o edredom
sobre as pernas despidas, enquanto Nina se levantou para ver quem era.
— Café. — Ouvi a voz de Ben. Revirei os olhos, geralmente perto de Nina ele mudava o tom,
soava mais carinhoso.
— Você vem? — Ela perguntou quase pulando para fora do quarto.
— Desço já. Pode ir. — Fiz um gesto com a mão para que saísse e voltei a cair na cama.
Fitei o dia lá fora, através das janelas de vidro. Um sol tímido se insinuava entre as nuvens,
deixei a cama e fui até minha mala. Sentia-me especialmente ridícula por não ter trazido nenhuma
roupa mais bonita, apenas jeans, legues, tênis, bota. Escolhi um dos poucos vestidos que havia
trazido — azul clarinho, um pouco acima dos joelhos e leve, se eu precisasse colocar botas mais
tarde casaria muito bem. Deixei-o sobre a cama, e tomei um banho longo, aproveitando da
quantidade de paz que esse lugar e essas pessoas me passavam, esquecendo os dissabores do
passado, das escolhas erradas, da imbecilidade de ter estragado longos anos, buscando uma
aprovação que tinha chegado apenas com a morte da minha irmã, quando na verdade eu já tinha
morrido há muito tempo, estava perdida, desorientada, sendo carregada pela maré e por palavras
falsas de alguém que sempre tivera êxito em me machucar, me diminuir, me enxotar para logo em
seguida dizer que me amava, que era tudo para me proteger. Acho que se não fosse minha irmã eu
ainda estaria no mesmo ciclo vicioso, tentando me afastar dele para logo em seguida ser puxada de
volta, atraída por uma dependência de um afeto que nunca existiu, que apenas me destruiu e deixou
feridas que estavam sendo difíceis de cicatrizar.
Afastei os pensamentos, tentando não estragar o dia, vesti-me, perfumei-me e saí do quarto a
procura dos outros. Com exceção de Marcone, estavam todos à mesa do café da manhã. Evitei a
pequena decepção imediata, dizendo a mim mesma para não ser idiota e sentei-me ao lado de Nina.
— Bom dia. — Disse baixinho e peguei um prato, tentando escolher pelo que começar.
Inacreditavelmente, a mesa sempre estava farta. Nina dizia que muitos funcionários da fazenda
faziam a alimentação aqui, e famílias que moravam por perto também recebiam mantimentos
diariamente, era uma fartura compartilhada. Admirei mais a mãe dela, eu não tinha crescido num
meio muito generoso, muito pelo contrário, meus pais eram extremamente sedentos de poder e status,
pouco se importavam se Liz e eu estávamos bem, felizes, limitavam-se a pagar a escola e dar uma
mesada de um valor muito superior ao que realmente deveríamos receber, o que fazíamos com o
dinheiro? Bom, nunca precisamos explicar. Eu sempre gastei com tintas, pinceis e telas. Cadernos de
desenho ou cursos de arte. A primeira tela que mostrei para eles — no meu íntimo, orgulhosíssima de
ter terminado algo em que investi um número considerável de tempo — não causou nada, nenhum
elogio, nenhum interesse. Meu pai apenas disse que tinta em telas não enriquecia ninguém. Meus
olhos ainda se enchiam de lagrimas ao lembrar. A sensação era a mesma de uma flor murchando,
perdendo a vida.
— Está gostando desses dias aqui, Cami? — Mara questionou.
— Sim. É tudo muito bonito. — Respondi, observando os olhos dela. Azuis, rodeados por rugas
que emitiam uma vasta experiência.
Ela me fez uma série de perguntas sobre a faculdade, outras sobre a forma como Nina e eu nos
conhecemos, respondi todas, completamente atenta ao lugar que permaneceu vago até o fim do café
da manhã. Minha língua estava coçando para perguntar por ele, e então Marcone apareceu, ele não
parecia em nada com o homem descontraído que esteve conversando comigo durante a noite, havia
uma energia diferente, estava irritado, enquanto saia discando no celular.
— Então, mãe. Rua? Agora? Nesse momento? — Nina afastou o prato de si, alheia ao estado de
espirito do irmão. Provavelmente, eu é quem estava prestando atenção demais.
— Que tal tirar a mesa, lavar a louça primeiro? — Mara respondeu, as rugas aparecendo no
canto dos olhos por causa do humor com que disse as palavras.
Nina murmurou um “saco” baixinho, e se levantou tirando o próprio prato da mesa.
7
Marcone
Praticamente joguei o celular sobre a mesa, ouvindo o baque estridente, recostei-me na poltrona,
lívido e sem paciência para lidar com mais nada.
Ouvi a maçaneta da porta ser girada e me endireitei, Nina e minha mãe nunca entravam aqui, não
depois da morte do meu pai. Encarei com curiosidade, esperando para ver se era quem eu realmente
estava pensando: a primeira coisa que apareceu foi a cabeça pequena, e então os olhos — verdes
como esmeraldas — analisaram o aposento até pousarem em mim.
— Você não saiu também? — Perguntei.
— Não. — Ela respondeu, fechando a porta atrás de si e observando tudo, olhou as estantes
cheias de livros. A maioria deles era sobre agropecuária, história dos queijos, mercado financeiro
internacional, entre outras coisas que meu pai tinha passado a se interessar ao longo dos anos. —
Aquele ali é seu pai?
Virei-me para olhar a fotografia de qualidade ruim pendurada na parede.
— Não, meu avô. — Olhei-a mexer nos objetos espalhados pela estante maior. — Por que você
não foi passear? É o primeiro dia quente desde que você chegou aqui.
— Eu queria ficar com você. — A voz soou baixinha, quase inaudível. Fitei-a boquiaberto. —
Aquela é sua mãe? — Outra foto, desta vez num porta-retratos que eu nunca tinha me dado conta.
Continuei a olhá-la pasmo.
— É? — Voltou a perguntar num tom zombeteiro, dessa vez.
— Sim, é ela. — Com certeza, essa garota era um poço de contradições.
— Você parecia com seu pai?
— Não, Camille, eu não parecia com ele. — Recostei-me novamente na poltrona, olhando para
onde a buliçosa iria dessa vez.
Ela estendeu um cinzeiro, mantendo-o na palma da mão.
— Ele fumava?
— Sim, isso explica o câncer que o matou. — As lembranças dele vieram como num filme.
Assustadoras. Sentado, muitas vezes, nessa poltrona em que eu estava agora. Magro, completamente
careca e consumido pela doença. — Quer dar uma volta? — Perguntei, desejando desesperadamente
afastar aquelas memórias.
— Quero.
Levantei-me, decidido a esquecer de toda aquela merda por algumas horas.
— Você trouxe biquíni? — Abri a porta, fitando o vestido fluido que ela usava, azul e curto, evitei
olhar as pernas longas para que ela não me pegasse no flagra.
— Sim. — Passou por mim, e olhou-me por sobre os ombros quando fechei a porta.
— Ponha um tênis.
— Aonde nós vamos? — Perguntou ela, estreitando os olhos, ainda andando para as conexões que
nos levariam até escada.
— Você vai ver.
O dia estava ensolarado, quente, sem chuvas ou nuvens que as denunciasse. Perfeito para o que
eu pretendia, segui-a pela escada, ainda pasmo com a insinuação direta e explicita dela.
Eu queria ficar com você...
Observei os movimentos que os seus cabelos faziam pelas suas costas, enquanto subia os degraus
atrás dela, os fios quase cor de cobre desciam suavemente até a cintura, acho que um palmo acima,
eram lisos e faziam um cacho uniforme apenas na ponta. Ela ainda me olhou por sobre o ombro antes
de abrir a porta do quarto, dei um breve sorriso e continuei meu caminho. Já dentro do aposento tirei
as roupas pesadas que estava usando, tomei um banho antes de me trocar — as roupas limpas e meus
dias estavam acabando aqui. Eu teria um ou dois dias ainda na fazenda, antes de voltar para o Rio e
para delegacia.
Coloquei uma camiseta e shorts folgado, busquei o tênis perto da poltrona e saí, não bati na porta
do quarto dela, fiz o caminho até a cozinha em busca da bolsa térmica que minha mãe devia manter
em algum daqueles armários. Arrumei uma sacola com coisas variadas que poderíamos comer e que
não estragariam caso demorássemos muito de voltar e saí para colocar tudo na picape. Ainda não
havia sinal dela, só uns dez minutos depois Camille passou pela porta de vidro, vestia uma roupa
diferente. Um short claro, camiseta e tênis, havia uma espécie de nécessaire em uma das mãos, ela
olhou ao redor antes de me ver já perto do carro. Então caminhou para onde eu estava, olhando
ansiosamente para a picape e depois para mim.
— O que tem aí dentro? — Apontei para a bolsa na mão dela.
— Algumas coisas. — Ainda olhava para o veículo.
— Vamos lá. — Abri a porta do passageiro para ela e esperei, houve um instante de hesitação,
curtíssimo, mas percebi.
Dei a volta na picape e entrei, ajustei a melhor rota no Gps e girei a chave na ignição, ligando o
motor, toquei o controle e abri o portão de saída da fazenda.
— Quer colocar uma música? — Perguntei, girando o volante e entrando na pista a nossa frente.
Ela estava sentada rígida, segurando o banco. — Coloque o cinto.
Ela obedeceu.
— O que você gosta de ouvir?
— Nunca parei para pensar nisso. — Respondi e a olhei rapidamente. — Qual o problema, Cami?
— Não gosto muito de carros... — Respondeu de olhos fechados, ainda na mesma posição. —
Sofri um acidente alguns meses atrás, minha irmã morreu e desde então, não consigo dirigir,
geralmente evito carros...
— O que aconteceu exatamente? Com você e sua irmã?
— Não lembro nada daquele dia, só acordei e ela não existia mais. — Os olhos ficaram
inexpressivos, e a postura ainda mais rígida. — Ainda é difícil para mim falar a respeito.
Assenti.
— Quer ficar em casa? — Inquiri, sem ter certeza agora se ela realmente queria fazer o passeio.
— Não. — Olhou para mim pela primeira vez, ajeitando-se melhor no banco. — Demora muito
para chegar?
— Bem menos tempo do que do aeroporto para a fazenda. — Esclareci. Tirei os óculos escuros
do porta-luvas e os coloquei. — A alguns quilômetros daqui existe uma cachoeira chamada Lagoa
Azul, logo no final dessa pista. — Apontei a estrada a nossa frente.
— Você já viu o filme? — Havia uma zombaria pouco disfarçada na pergunta.
— Algumas vezes. — Sorri, olhando-a de soslaio. — Mas acho que não tem muito a ver uma
coisa com a outra. — Fiz uma pausa. — Há um bar flutuante e a área da pousada é bem legal, você
vai gostar.
Ela deu um sorriso suave e continuou quieta, observando a paisagem a nossa volta, não estava
mais tão bonito, o trecho em que estávamos era mais seco e menos cuidado do que a área mais
próxima da fazenda.
— Com quem você vive, Camille? — Aproveitei para perguntar e saber um pouco mais sobre ela.
— Meus pais.
Girou um pouco o corpo de modo que ficou voltada para mim.
— Porque não saiu com Nina? — Voltei a indagar.
— Já falei, queria ficar com você.
Fui obrigado a desviar os olhos da pista e olhá-la, os faróis verdes me encaravam de volta, ela
deu um sorriso e passou a espiar pela janela do carro.
Uma contradição da porra.
Não retruquei, apenas continuei dirigindo, permanecemos num silêncio tranquilo por um bom
tempo, ela apenas observando as mudanças de cenário e eu desviando os olhos da estrada para olhá-
la em momentos alternados, a mão delicada enrolava a ponta do rabo de cavalo, distraidamente.
Camille só mudou a posição no banco, quando a fachada da pousada apareceu, parecia uma
chácara que sofreu um upgrade ou algo parecido, mas mantinha a aparência rústica que eu me
lembrava. Estacionei ao lado do jipe cheio de lama nas laterais, o trajeto não era tão difícil como
quando descobri esse lugar, algumas melhorias foram feitas quando a lagoa começou a atrair turistas.
Ainda me perguntava por que o nome era Lagoa Azul, se na verdade a água da cachoeira era verde,
havia a história de que no passado realmente era azul, algumas fotos que olhei no Google provava
isso.
— Costuma vir muito aqui? — Ouvi a voz dela e a encarei, Cami ainda olhava pela janela,
analisando o lugar.
— Vim uma ou duas vezes com Nina. — Saí do carro, e ela me imitou. Peguei a sacola do banco
de trás e apontei para a recepção. — Vamos pegar nosso acesso ali.
— Paga para ver a cachoeira? — Perguntou ela, seguindo-me, os dedos enrolavam a ponta do
cabelo. Uma mania, observei.
— Um valor simbólico, o acesso não é fácil por vias gratuitas.
Enquanto pagava pelo passeio no caixa, Camille perambulou olhando os penduricalhos e
artesanatos que estavam expostos por ali, provavelmente confeccionados por moradores locais. Eu
não fazia ideia. Desviei os olhos dela, quando a mulher me entregou as duas pulseiras brancas com o
nome da pousada, ainda estava escrito: Acesso Permitido, com letras pretas grandes.
— Gostou de alguma coisa? — Perguntei, quando parei no lugar onde ela estava.
— São bem interessantes. — Manteve os olhos nas peças, mordendo de leve o próprio lábio. Uma
distração e tanto para mim, eu diria.
— Me dê sua mão. — Pedi e ela me olhou, antes de estender para mim, como eu havia pedido.
Coloquei a pulseira envolta de seu pulso, e olhei novamente para o pano claro que expunha os
penduricalhos coloridos. Um colarzinho chamou minha atenção, a pedra era verde como uma
esmeralda, esculpida no tamanho de uma bola pequena, a correntinha era cobre, parecia ser bem
frágil. Essas bugigangas que levávamos como lembranças de viagens. Tirei para olhar mais de perto.
— Parece com seus olhos, eles estão dessa cor agora. — Ela demorou alguns segundos olhando
para mim antes de prestar atenção no objeto na minha mão. Algo sutil mudou na sua postura, quando
o tirou da minha mão, passando a ponta do dedo pela bolinha esverdeada.
— É lindo.
— Deixe-me colocar em você. — Tirei de suas mãos novamente e esperei que ela se virasse.
Abri o fecho com cuidado e coloquei o pequeno colar em volta do pescoço
esguio.
Achei que ela fosse retrucar ou dizer que não queria, mas foi o contrário. Os dedos só soltaram o
pingente, quando saímos da recepção da pousada, andamos em silêncio até a trilha estreita e com
algumas pedras
aparecer.
— Dez minutos andando nessa direção e estamos na cachoeira. — Apontei para o caminho e olhei
para seus pés, certificando-me de que estava de tênis.
A trilha curta até o nosso destino não era tão bonita e um pouco descuidada, infelizmente depois do
número de turistas aumentar, algumas coisas foram estragadas por aqui. As placas guiavam o
caminho certo a seguir e indicava o que encontraríamos quando chegássemos.
Além do farfalhar das folhas que pisávamos, já podíamos ouvir o som da queda da água, agradeci
por não ter ninguém ali, o que era raro, obviamente. A natureza em si sempre me trouxe uma paz
intensa, no Rio de Janeiro, um banho no mar ou poucos minutos sentado diante dele trazia um
equilíbrio ao barulho ensurdecedor que geralmente era a minha cabeça. Tinha esquecido o quanto
gostava do campo, principalmente de lugares como esse — a cachoeira parecia ainda mais bonita do
que da última vez que estive aqui, o cheiro era como se fosse paz inalável diretamente no meu
pulmão, respirei profundamente, dando-me conta de que um grande peso parecia estar aos poucos
saindo dos meus ombros, fechei os olhos e inspirei novamente, satisfeito com a escolha que fiz de vir
para cá e deixar um pouco os problemas de lado.
Flagrei Camille me encarando quando voltei a abrir os olhos, não consegui decifrar o que se
passava em sua cabeça, a expressão era indecifrável, eu só não sabia se isso era bom ou ruim. O
habitual rubor agradável alcançou suas bochechas, quando percebeu que tinha sido pega no flagra.
— Bem-vinda à Lagoa Azul.
Ela abaixou-se de um jeito lânguido, mas totalmente inconsciente para desamarrar o cadarço do
tênis e tirá-lo, três estrelinhas estavam tatuadas no peito do pé direito, as unhas pintadas de um
branco clarinho, quase transparente, delicadas. Não me lembrava de em algum momento da minha
vida já ter tido algum fetiche por pés... até agora. Deu alguns passos até o início do lago e puxou o
que quer que estivesse prendendo os cabelos no rabo de cavalo, como imaginei eles eram quase
cobre no sol, algumas mechas mais escuras, outras mais claras, faziam um contraste quase
sobrenatural com os olhos, que agora me fitavam claríssimos, totalmente diferente do tom de verde
do pingente em seu pescoço.
— Não vai entrar? — Perguntei, colocando a bolsa sobre a pedra próxima ao lugar, onde ela
ainda molhava os pés. — É uma piscina um pouco maior que a da fazenda.
— Os peixinhos estão tocando meus pés, veja. — Apontou, enrolando os cabelos e jogando-os
para trás.
Aproximei-me um pouco mais e abaixei ao seu lado, o vento jogou o cheiro dos seus cabelos na
minha direção, era uma fragrância suave, nem doce e nem forte, diferente. Ficamos alguns minutos
observando os peixes, a água era cristalina de tal forma que as algas e os peixes brincavam com
nossos dedos, imitei a garota e tirei os tênis, molhando meus pés logo em seguida. A temperatura
estava agradável, trazendo algumas lembranças da minha infância: os banhos de cachoeira, as frutas
que eu mesmo tirava do pé e comia embaixo da árvore, a paz. Estar aqui me fez lembrar o quanto eu
vivia agitado agora, parecia que um despertador invisível estava sempre tocando, impedindo-me de
relaxar, de desacelerar, mas agora uma tranquilidade me envolvia, tinha esquecido como era bom
ficar um tempo sem priorizar os problemas e me dar um pouco de conforto. Fazia um tempo longo
em que não tirava férias, sempre emendava um caso no outro, e nunca parava para respirar.
Respirar era bom, aspirei o cheiro da natureza e junto com ele veio a fragrância suave dos
cabelos cobre que estava cobrindo parcialmente o corpo da garota ao meu lado. Os olhos dela
estavam distraídos na queda da água, de onde estávamos era possível ver algumas pessoas lá em
cima, fotografando.
— Como eles vão para lá? — Perguntou ela.
— Há outras vias para chegar até aqui. — Respondi.
— Vou entrar — Retrucou ela, ficando de pé e começando a tirar a blusa, revelando a barriga lisa
e o biquíni branco, puxou o short e repetiu o mesmo processo, antes que pudesse olhar direito ela já
tinha submergido.
O corpo bonito ondulou sob a água transparente graciosamente, até sumir onde eu não consegui
mais ver na parte mais adiante e que tinha uma tonalidade verde, e não azul como o nome sugeria.
Tirei a blusa e joguei perto das roupas dela, olhando ansiosamente para o lago e ficando nervoso
porque não havia sinal dela, era como se não houvesse ninguém lá dentro. Fiquei em pé e aproximei-
me mais da água, a fim de tentar vê-la, sem sucesso, caminhei pela borda, sentindo as folhas secas
sob meus pés. Tirei o short a fim de pular na água, quando ouvi sua risada, distante. Olhei ao redor
procurando, até encontrá-la sentada embaixo da caída da água. Senti-me aliviado, e pulei na água.
Nadando em sua direção.
Passamos muito tempo na água, em alguns momentos conversando, tentei fazê-la falar mais sobre
si, e ela me contou algumas coisas sobre a infância e sobre a irmã, coisas normais de como eram suas
férias, do avô que tinha morrido dois anos atrás. Como não havia muitas pessoas visitando o lugar, o
bar flutuante estava fechado, então voltamos pela trilha para almoçar no restaurante da pousada.
Camille saiu pingando água da cachoeira e correu para suas roupas, apressando-se em colocar a
toalha que estendi em sua direção no corpo.
— Você pensa em tudo? — Perguntou ela depois de se secar.
— Tento pensar. — Brinquei, não consegui evitar e passeei os olhos pelas pernas longas, ela
percebeu e ficou vermelha, colocando a palma da mão sobre uma cicatriz que tinha na coxa. — Não
precisa esconder. — Aproximei-me e puxei sua mão, delicadamente. — Como você se machucou?
— Acidente. — Apenas um sussurro melancólico saiu de seus lábios, enquanto os olhos
observavam a minha mão sobre sua pele.
— Não deve esconder, então. É uma prova de sobrevivência, sobreviventes sempre são
marcados de alguma forma, na alma ou no corpo, alguns nos dois lugares. — Deslizei o dedo pela
marca, se fechasse os olhos ainda conseguia lembrar de como a barra de ferro tinha ferido sua pele
ali. — Gostaria que me contasse caso lembre alguma coisa sobre o acidente, sobre como aconteceu.
— Afastei minha mão dela e a encarei, Camille fez um gesto com a cabeça, assentindo.
— Você é policial, não é? — Indagou, curiosa.
— Hoje não. — Toquei seu ombro e apontei para a trilha com a cabeça, antes de me abaixar para
pegar a bolsa sobre a pedra. — Vamos comer, estou morrendo de fome.
Fizemos a maior parte do caminho em silêncio, em um momento ou outro, ela olhava para mim,
não deixei de perceber a expressão desconfiada, como se fizesse uma pergunta silenciosa a si
mesma, ou talvez pensasse em dizer algo e desistisse no fim das contas. Embora curioso em
descobrir o que se passava na cabeça dessa menina, permaneci calado, mais tarde daria uma olhada
no que Andrea tinha descoberto sobre ela.
O restaurante era rústico como o resto do lugar, embora o conjunto da decoração e a forma como
as mesas eram dispostas tornassem o ambiente elegante e descontraído ao mesmo tempo, Camille
escolheu uma mesa perto da área da piscina e eu escolhi algo menos mineiro para ela e mais
parecido com o que comíamos no Rio de Janeiro.
— Estou com fome. — Retrucou ela, olhando distraída para a cachoeira que parecia estar perto
de nós, uma ilusão visual muito bonita por sinal.
— A comida não deve demorar muito. — Uni as mãos sobre a mesa e me permiti olhá-la, percebi
pequenas pintinhas no nariz pequeno, de perto era possível ver melhor alguns detalhes. — Você
escolhe algo para bebermos.
Ela pegou o cardápio da mesa e passou a estudá-lo.
— Acha que Nina já chegou? — Perguntou ela, sem me encarar.
— Provavelmente não. Ela gosta de bater perna e gastar dinheiro.
— Se importa se não contarmos a ela?
— Não contarmos o quê? — Ela parecia sem jeito, olhando-me de esguelha.
— Sobre nosso passeio.
Dei uma gargalhada porque não pude me conter, a cara que ela estava fazendo era impagável.
— Isso aqui é escondido, então? — Provoquei, fazendo um gesto entre mim e ela.
— Não é isso, ela me convidou para sair e recusei... — Explicou. — Vai ser estranho se... bom,
você sabe...
— Estranho se ela souber que você preferiu sair comigo. — Completei, não que eu achasse o
mesmo, Nina era intragável e terrível, mas não invasiva, embora fosse extremamente chata e tivesse
uma lista interminável de defeitos. — Nesse caso sou um segredo sujo. — Provoquei, divertindo-me
do embaraço dela. — Não vou contar, fique tranquila.
Nosso almoço chegou e comemos em silêncio, não voltamos a cachoeira novamente, ficamos
refestelados nas espreguiçadeiras da área da piscina, a tranquilidade era tão grande que cochilei
algumas vezes, em alguns momentos Camille fazia alguma pergunta sobre o lugar, em outros ela
ficava em silêncio, aproveitando a calmaria como eu, espantosamente bonita sob o sol do fim de
tarde. Quando resolvemos voltar, ela estava sonolenta e um pouco mais vermelha. Ela dormiu por
todo o tempo de volta, então não conversamos. Quando chegamos em casa, Nina e minha mãe não
tinham chegado ainda, como imaginei. O carro do meu pai não estava lá, imaginei o que estavam
fazendo.
Acordei Camille alguns minutos depois de estacionar, observei-a por um tempo, tentando entender
porque ela me atraia tanto, era linda, mas não era a beleza de fato, tinha algo mais, vontade de estar
perto, ela fez um ruído e então decidi acordá-la, ou ela ficaria bem dolorida depois pela posição que
estava. Soltei meu próprio cinto de segurança e virei para fazer o mesmo com o dela, Cami disse
algo baixinho que não entendi e então toquei o rosto corado.
— Camille?
Ela murmurou novamente, dessa vez entendi meu nome, afastei-me devagarzinho, imaginando que
já havia acordado, mas os olhos mantinham-se fechados, as pálpebras tremiam levemente, beijei de
leve a testa e me afastei novamente.
— Estamos em casa, Cami... — Sussurrei, dessa vez movimentei seus ombros para que
despertasse, deu certo, os olhos dela abriram-se carregados por uma pequena confusão pós sono. —
Chegamos. — Afastei-me e esperei.
— Eu dormi? — Ajeitou-se, olhando confusa para mim.
— Sim. Você fala dormindo. — Foi uma afirmação que pareceu desesperá-la, não consegui não
sorrir, destravando as portas do carro.
— Eu falei? — Assustada.
— Sim. — Olhei-a.
— O que eu falei? — Perguntou, zangada. — Não, não quero saber.
— Não foi nada horrível. — Tranquilizei-a, achando graça.
Saí do carro e puxei a bolsa do banco de trás, ela permaneceu sentada, provavelmente ainda
irritada por ter falado algo constrangedor. Ri baixinho, para que não me escutasse e peguei a sua
necessaire. Ainda estava claro, mas a lua já tinha aparecido e estava começando a ficar frio.
Entramos em silêncio, eu liguei as luzes da cozinha e ela ficou parada, provavelmente sem saber o
que dizer.
— Porque não vai terminar sua soneca, Nina não deve demorar a chegar.
— O sono passou. — Retrucou. — Vou tomar um banho.
Estendi a necessaire para ela, e a observei se afastar, quando estava quase fora da cozinha voltou-
se para mim.
— Eu quero tomar chocolate quente hoje.
Um convite, assenti e ela saiu.
8
Camille
— Está em casa.
Olhei o prédio gigantesco a minha frente, e permaneci sentada olhando para a frente. Fazia quase
uma hora que tínhamos chegado ao Rio de Janeiro, Nina pulara para o carro de Ben assim que saímos
do aeroporto e Marcone me ofereceu carona, não que eu tivesse alguma outra alternativa: era ele ou
pegar um táxi, algo que eu evitava ao máximo, geralmente eu usava o metrô, algo inadmissível para
os meus país. Meu carro permanecia parado na garagem há meses, sentia-me mal só de chegar perto
dele.
O porteiro estava olhando na minha direção da portaria, não sei se conseguia me ver, levando em
consideração as películas que mantinham as janelas do carro escuras.
— Mora aqui há muito tempo? — Marcone perguntou, analisando o prédio.
Depois do nosso passeio em Capitólio não tínhamos mais ficado tanto tempo juntos, sozinhos, ele
passara os últimos dias trancado no escritório ou na fábrica com a mãe. Nina me disse que estavam
instalando um novo sistema na sede e por isso eles estavam passando muito tempo lá, apenas ontem
ele tinha aparecido para ficar conosco na piscina, mas também não tivemos muito contato, Nina
parecia chiclete no irmão, eu nunca tinha escutado tantas porras como o escutei dizer, enquanto
ralhava com ela por algum motivo. Porra, Nina!, ele dissera incontáveis vezes, mas logo em seguida
já estavam rindo outra vez, era parecido com o que eu tinha com minha irmã. Apesar de mais nova
que eu, ela sempre fora a razão e eu a emoção. Sempre senti demais, principalmente sentimentos
negativos, cultivei muitos deles desde que era pequena.
— E então? — Insistiu ele, esperando uma resposta.
— Não, sempre me mudei muito. Raramente algum lugar era bom o suficiente para meus pais. —
Contei, sem orgulho nenhum. Sempre tive vontade de morar numa casa de verdade que tivesse quintal
e tudo, mas sempre pulamos de edifício em edifício, acho que por isso eu tinha gostado tanto da
fazendo, parecia um lar de verdade e ver o relacionamento de Mara com os filhos despertou certa
inveja, eu não tinha um calor familiar, ou elo, não sei ao certo como dizer. O que tinha fora quebrado
quando minha irmã morreu.
Marcone ficou um tempo olhando para mim, depois pegou o iphone do porta-luvas, mexeu em
algo e entregou-o a mim.
— Coloque seu número. — Ele pediu, tranquilamente. — Caso minha irmã suma tenho para
quem ligar.
Parei de digitar e o encarei boquiaberta, ele estava se divertindo as minhas custas, é claro.
— Sempre diz isso para pedir o número das amigas de Nina? — Retruquei sem me conter,
enciumada talvez.
— Não conheço nenhuma outra além de você. — Respondeu, e me encarou de modo intenso. —
Entre, está tarde. — Curvou-se e beijou de leve minha testa, o cheiro dele era bom, masculino, forte.
Ouvi-o abrir a porta e descerrei os olhos, sentindo um quentinho por dentro, e logo depois frio,
quando ele se afastou.
Ele saiu do carro e tirou a minha bagagem, poucas coisas do porta-malas. Caminhou comigo até
que eu estivesse dentro do prédio. Fiquei sem graça, sem saber como me despedir dele. Tomando a
iniciativa, Marcone beijou novamente minha testa e acenou, enquanto a porta se fechava. Fiquei
subitamente saudosa por algo que não soube identificar de verdade. Não demorou muito para que eu
estivesse na cobertura, do hall, escutei a voz da minha mãe. Pensei em mil formas de chegar ao meu
quarto sem que ela me visse, mas seria inevitável. Ouvi a risada do meu pai, dando-me conta de que
provavelmente não estavam sozinhos.
— Camille. — Minha mãe chamou assim que saí de trás da parede do hall.
Heloisa Coimbra e Eduardo Coimbra estavam sentados com eles no sofá, os pais do meu ex-
noivo. Respirei fundo e dei alguns passos até eles, os quatro se levantaram.
— Boa noite — sorri brevemente para o casal e para meus pais.
— Sua mãe estava me contando sobre sua ida a Minas, estou feliz que esteja voltando a rotina
normal. — Heloísa sussurrou com um sorriso, mencionando minha apatia e meu desequilíbrio nos
dias seguintes a morte da minha irmã. Na verdade o quadro apenas tinha se agravado, a apatia já era
inerente a mim há bastante tempo.
— Sim, Cami conheceu um doce de menina na faculdade, isso está ajudando muito. — Minha mãe
envolveu meus ombros. Às vezes, eu sentia raiva da forma que Joice sempre tentava ser perfeita na
frente dos amigos.
Claro que ela não era, estava longe de ser.
Joice Alencar era da minha altura, alta e magra, eu me via muito nela fisicamente. Os cabelos, os
olhos, alguns traços eram muito parecidos, mas nossa personalidade não podia ser mais diferente.
Minha mãe tinha completado quarenta e sete anos alguns dias antes da morte de Liz. A festa de
comemoração fora enorme, aqueles eventos em que meu pai conseguia fechar vários contratos, não
era nada familiar, era só uma forma de aumentar o ciclo de amizades lucrativas.
— Como foi a viagem? — papai perguntou, deixando o copo com um líquido âmbar sobre a
mesinha de centro.
— Foi boa, depois eu conto tudo. — Fiz uma expressão de desculpas. — Estou cansada.
— Claro, filha.
Saí, mas não deixei de notar o olhar perscrutador de Heloisa, era sempre assim quando nos
encontrávamos, ela me mandava esse tipo de olhar, avaliando, questionando, inquirindo, esperando
algo que eu não fazia ideia do que era. O fim do meu relacionamento com Enzo não tinha sido bem
aceito nem por meus pais e nem pela mãe dele, Eduardo mais parecia uma marionete nas mãos da
mulher, nunca vi um homem mais mole.
Andei pelo corredor longo até meu quarto, abri a porta rapidamente e entrei. Revirei
imediatamente a bolsa e tirei o celular, um friozinho na barriga de expectativa.
Uma nova mensagem
De Nina.
Dei um suspiro e me sentei na cama, meio decepcionada. Revirei os olhos, sentindo-me ridícula.
De: Nina
Desculpe não ter me despedido direito, mas eu aproveitei para ficar um pouco com Ben. Você
chegou bem?
Coloquei o celular sobre o criado-mudo e caminhei para o banheiro, deixando para responder
depois do banho, aproveitei para lavar e secar os cabelos. Enrolei-me na toalha e saí, voltei para o
quarto em busca da minha bagagem, embora minha atenção estivesse no celular, em talvez escutar o
som de uma mensagem chegando. Coloquei as roupas sujas no balde costumeiro e arrumei as demais
coisas conforme ia tirando de dentro da mala, no fim guardei-a na parte superior do closet.
Sentei na cama, começando a pentear as mechas dos meus cabelos, fiz a costumeira trança que
usava para dormir e puxei o aparelho a fim de responder à mensagem de Nina.
De: Camille
Tudo bem. Seu irmão me trouxe.
Trocamos algumas mensagens e nos despedimos, caminhei até a porta que apenas eu tinha acesso
na casa e entrei, o mundo de repente deixando de existir. Acendi o led, já sentindo o cheiro das tintas,
das telas. As cores tornando o mundo lá fora insignificante diante das possibilidades ilimitadas que
eu tinha a minha frente. Caminhei até o quadro que tinha se tornado meu favorito, pensando em como
podia ser possível.
A cor, o contorno, os traços. Exatamente iguais. Devia haver um motivo, um porquê.
Olhei o ateliê ao redor, observando todas as telas, algumas delas estavam viradas para a parede,
outras penduradas, e algumas ainda inacabadas. Voltei meus olhos para a minha preferida, meus
dedos tocaram involuntariamente o pingente da correntinha no meu pescoço.
" Seus olhos estão dessa cor agora. "
Fechei os olhos e quase pude sentir a fragrância masculina, estava impregnada em meus sentidos,
o cheiro dele. Olhei novamente para a tela, perguntando-me como era possível.
— Camille?
A voz da minha mãe me arrancou de dentro dos meus desvaneios, desviei o olhar da tela
contrariada e fui encontrá-la.
Joice estava sentada na minha cama, as mãos pousadas sobre o colo numa postura ereta, elegante.
Durante minha adolescência aquilo me fascinava, mas conforme fui ficando adulta tudo mudou,
inclusive minha admiração por ela e por meu pai. Eles pareciam pedras de gelo, status e dinheiro
acima da família. A minha repugnância apenas aumentou quando eles não derramaram uma lágrima
sequer no enterro da minha irmã. Eu preferiria que eles tivessem gritado comigo, que tivessem me
culpado — afinal eu era a culpada. Mas não houve nada disso, apenas um enterro, enquanto os
amigos deles nos prestavam condolências forçadas. Eu senti vontade de dirigir sem rumo, para longe
de tudo e sobretudo deles, mas estava numa cadeira de rodas e só o pensamento de girar a chave na
ignição trazia clarões incomuns a minha mente já turbulenta. Imagine o meu desespero ao despertar e
não lembrar nada, apenas receber a notícia de que a única luz da minha vida se fora em um acidente
que eu provocara.
— Cami? — Havia afeto na voz dela.
— Mãe. — Sentei-me ao seu lado.
Tomei a iniciativa e a abracei, não éramos amigas. Nunca fomos. Eu tinha mais intimidade com
Naiá, a babá que sempre cuidou de mim e que mostrara tanta dor quanto eu no enterro de Liz, do que
com Joice. A forma espontânea que Marcone e Nina faziam carinho na mãe tinha me encantado, eu
queria aquela sensação de lar na minha casa, mas não havia. Não podia negar que eles estavam
tentando.
— É bom ter você aqui. — Sussurrou ela, afagando de forma afetuosa o meu cabelo. Eu gostei.
Ela estava tentando se aproximar.
— Também acho, mãe. — Sussurrei com sinceridade.
— Você comeu? Está com fome? — A voz dela soava estranha com aquelas perguntas.
Provavelmente porque nunca foram habituais.
— Fast-food no aeroporto. — Dei um sorriso.
Conversamos sobre a viagem, ela queria saber sobre os lugares que visitei e sobre a família de
Nina, contei tudo, sentindo-me bem em compartilhar algo com ela.
— Heloisa contou que Enzo está voltando para o Rio.
Afastei-me como se tivesse levado um choque.
Enzo Coimbra era meu ex-noivo e uma das péssimas escolhas que fiz para agradar meus pais,
nosso relacionamento acabara de forma pouco amigável, ele não aceitara e saíra da cidade, palavras
da mãe dele, para lidar melhor com a situação. Eu não me importava, não depois de tudo que tinha
me feito passar.
— Seria bom que ao menos tivessem uma conversa. Nossa família mantém essa amizade há muito
tempo.
— Não vai haver conversa alguma, mãe. — disparei, enojada.
— Não é possível que você esteja tão irredutível assim, Camille. Foram anos de namoro.
Anos perdidos.
Senti vontade de dizer, mas me contive. Ela não entenderia. Na verdade, ela não entendia nada
que não estivesse dentro dos próprios interesses.
— Nunca vou sequer chegar perto daquele homem outra vez.
— Daquele... homem? — Inquiriu, horrorizada.
— Eu estou cansada. — Encerrei a conversa e fui até a porta, escancarei-a para Joice saísse.
Ela me olhou, frustrada.
— Liz sempre foi... contra esse seu namoro. — Começou e eu já estava desesperada para que ela
se calasse. — Imagino que...
— Você não imagina nada, mãe. Nada que passe pela sua cabeça chega nem perto dos meus
porquês. — Soltei sem pensar. — Agora saia, eu quero descansar.
— Heloisa está planejando uma festa de boas-vindas e nós vamos. — Ela frisou a palavra nós,
dando a entender que já tinha decidido por mim. Talvez alguns meses atrás fosse exatamente o que
iria acontecer, eu iria com eles, mas não agora, então não fiz questão de responder apenas fechei a
porta quando ela saiu.
Perdi a vontade de pintar, então não voltei ao ateliê. Deitei sobre a cama e peguei o celular,
esperando que uma mensagem específica se materializasse ali. Todavia não aconteceu e eu acabei
pegando no sono.
Rotinas matinais.
Olhei o relógio sobre o criado-mudo, faltava um minuto para as seis da manhã. Cobri a cabeça
deixando escapar um gemido de desânimo — eu odiava acordar cedo — todavia, estava seguindo,
tentando seguir algumas regras que eu mesma criara.
Nunca gostei de rotina.
O som do despertador me dizendo que era seis em ponto aumentou um pouco mais a minha
irritação, odiei mais ainda quando me dei conta de que teria de levantar para desligá-lo, afinal, tive a
brilhante ideia de deixar o aparelho numa posição — estratégica — para que eu não o alcançasse da
cama. O barulho foi ficando mais alto e eu afastei com raiva o edredom, praticamente usei a
violência para desligá-lo, passei direto para o banheiro e me olhei no espelho grande. A trança que
fiz estava parcialmente desfeita, terminei de soltá-la e espalmei as mãos no granito nude da pia,
lembrando-me dos meus compromissos. Orientação daqui a algumas horas, almoço com Aline.
Resolvi tomar logo um banho e pesquisar algumas empresas de advocacia. Eu queria trabalhar. Isso
preencheria um pouco do meu tempo ocioso, além das aulas de pintura que eu dava no projeto Arte
Vida, eu pintava, e trabalhava no meu tcc, algo que estava me deixando de cabelo em pé. Primeiro
escolher um tema tinha sido difícil, embora o direito abrangesse várias áreas isso tornara a minha
escolha ainda mais difícil.
Enrolei os cabelos para não molhá-los e entrei no boxe. O banho foi demorado, acabei
despertando realmente embaixo da água, vesti-me e saí logo em seguida do quarto. Naiá estava na
cozinha, ela era uma criatura estranha, na verdade todas as pessoas que saiam da cama antes das seis
da manhã eram absurdamente estranhas para mim, e ela parecia não dormir. Se eu quisesse conversar
às três da manhã ela me ouvia, se eu quisesse um suco ou uma fatia da minha torta preferida, ela
estava lá. Às vezes me perguntava se ela era realmente humana.
— Minha menina. — Os olhos negros rodeados por rugas brilharam com lágrimas quando me
viram parar perto do balcão.
Abracei-a forte, sentindo-me bem, era um abraço familiar, que eu conhecia.
— Quando você chegou? — Ela afastou-se para me olhar, deu um ligeiro aperto na minha
bochecha, como se eu fosse ainda uma criança.
— Ontem a noite. — Sorri para ela. — Eu estava cansada, imaginei que estivesse dormindo, não
quis acordar você.
Sentei no banco alto diante do balcão e esperei pelo habitual suco de laranja que eu costumava
tomar pela manhã.
— Você gostou? — Inquiriu ela.
— Mais do que imaginei. — Toquei o pingente verde ainda no meu pescoço e olhei para ela. — O
homem que pintei, ele estava lá.
9
Marcone
Coloquei a xícara de café sobre a pia e fitei, curioso, a cozinha completamente organizada.
Minha irmã acordara mais cedo que o habitual, fizera café, lavara a louça e estava tranquilamente
sentada no sofá me esperando para pegar uma carona. Claro que havia algo de extremamente errado
com ela, isso significava que provavelmente eu ficaria irritado por algum motivo em breve.
Voltei ao quarto para pegar a carteira e as chaves do carro, ainda era cedo. Se o trânsito ajudasse,
eu estaria na delegacia em menos de uma hora. Chequei o distintivo sob a camisa preta, preso numa
correntinha, e saí, fechando a porta atrás de mim. Nina levantou-se e me seguiu até a porta.
— Por que está saindo tão cedo? — perguntei, tocando o botão do elevador.
Encarei-a, quando não me respondeu.
— Não quero ficar sozinha, no campus sempre tem alguém para conversar.
Acariciei de leve a sobrancelha espessa, o coração ficando apertado. A rotina mudaria daqui para
frente, eu não estaria o tempo todo por perto, fazendo companhia, checando se estava bem, talvez
fosse melhor mandá-la de volta para Minas, em Belo Horizonte ela poderia terminar a faculdade e
estaria perto da nossa mãe. A última vez que toquei nesse assunto, ela tinha ficado quase uma semana
sem falar comigo, gastei uma fortuna em comida para que a encrequeira intragável olhasse na minha
cara. Apesar dos seus dezoito anos, para mim ela não passava de uma criança.
— Você bem que podia deixar eu usar seu carro, não é? — Incitou ela, enquanto saíamos do
elevador.
— Talvez, quando você melhorar suas técnicas de direção. — Que são péssimas. Completei
mentalmente.
Ela deu uma série de bom-dias e olás, enquanto atravessávamos os saguão do prédio. Na portaria,
tirou um embrulho da mochila e caminhou até um homem de meia idade, abri a porta do carro e
encarei o sujeito, baixo, estatura mediano e rosto quadrado.
— Vamos, Nina. — Chamei-a. — Vamos acabar nos atrasando.
O homem deu um sorriso amistoso para ela e em seguida mordeu o sanduíche que minha irmã lhe
entregara. Entrei no carro passando a observar a interação dos dois através do retrovisor. Era uma
tagarela, perguntava-me onde encontrava tantos assuntos e como fazia amizade tão rápido, ele
mostrou algo no celular e um sorriso radiante surgiu no rosto dela. Liguei o motor, quando Nina
acenou e começou a caminhar para o carro.
— Ele faz dois turnos, Marco. — Começou a tagarelar, como de costume, colocando o cinto de
segurança.
— De onde você conhece esse sujeito? — perguntei, girando a chave na ignição. Dei partida no
carro e a olhei rapidamente, esperando que respondesse.
— Do prédio. — Meneou a cabeça, ligeiramente impaciente. — Ele tem uma filhinha, ela está
fazendo um tratamento muito caro, por isso ele faz dois turnos. Aqui e em outro prédio a noite. Ele
não tem tempo de comer, por isso sempre levo algum lanche para ele.
— Está sendo gentil com ele. — Sorri para ela e voltei a me concentrar na direção.
Deixei-a dentro do Campus da FMU e segui para a delegacia, parecia que fazia anos e não apenas
poucos meses que estava afastado, esse período distante me deu uma prévia de como seria minha
vida caso eu mudasse de carreira. Estacionei o carro e fiquei ainda alguns minutos quieto dentro do
veículo, pensando no que me esperava lá dentro, talvez apenas a maldita burocracia, a papelada
irritante ou algum caso interessante, deixei de lado as divagações e entrei no prédio. Estava tudo
como eu me lembrava, alguns agente para lá e para cá, o cheiro fétido de merda e estresse em
damasia, nada que eu já não estivesse habituado e depois de tanto tempo longe, devo dizer, cansado.
É, eu estava cansado disso.
— Ferris. — Artur, o perito e um dos caras mais inteligentes do departamento, chamou-me assim
que passei pela porta.
— Como vai? — Estendi a mão e ele a apertou de volta.
— Tudo do mesmo jeito, a delegada quer falar com você. — Olhou para os lados e depois para
mim, o cara era estranho, estilo nerd espinhento.
— Estava indo para a sala dela. — Acenei rapidamente e continuei caminhando, a quantidade de
vezes que meu sobrenome foi mencionado por alguém era incontável, dei atenção a alguns, passei
direto por outros, recebi alguns pêsames e tapinhas nas costas por causa da morte do meu pai e entrei
na sala dela. — Queria me ver, delegada?
Andrea me lançou um olhar enviesado por sob os óculos de grau ridículos e voltou a analisar o
que quer que estivesse em sua mesa.
— Bem-vindo de volta, federal. — Sussurrou de modo entediado, colocou duas fotos diante de
mim, uma ao lado da outra e descansou o queixo na mão. — Lembra alguma coisa?
As duas cenas eram de um assassinato, embora as vítimas fossem pessoas diferentes. Duas
mulheres, jovens, morenas, seminuas e o que provavelmente ela queria me mostrar era a marca entre
os seios das duas. Idênticas. Um W de Will, isso tinha me aterrorizado quase um ano atrás, os pelos
da minha nuca ficaram arrepiados num átimo.
— Ele fugiu?
— Pensei a mesma coisa, mas curiosamente ele foi morto. — Estendeu outra foto a minha frente.
Um caso nunca foi tão terrível para mim do que o desse monstro amarrado e decapitado na imagem
diante de mim. — O pai de uma das garotas que ele assassinou conseguiu comprar alguém de dentro
do presídio.
Will Tund, esse era o nome do americano que tinha encabeçado por anos a lista de procurados da
Interpol, acusado de estupro, assassinato e tortura ele fora rastreado em mais de quatro países, até
chegar deixar um rastro no Brasil.
— Ao que parece alguém está seguindo os passos dele. Já são seis garotas desaparecidas, duas
com confirmação de morte.... e estupro. A coisa que está por trás disso retomou a contagem. Você
lembra?
Assenti, alguns lapsos de memória vindo freneticamente. Havia uma parcela torpe de seres
humanos no mundo, uma quantidade inimaginável de abutres civilizados, eu tinha me deparado com
muitos ao longo da minha carreira, Will fora um deles. A forma fria, e até mesmo filosófica com que
se referia às vítimas despetara em mim um desejo insano de matá-lo com minhas própris mãos, não
suportei ouvi-lo contar o que fez ou por que fez, só um tempo depois consegui a gravação inteira do
depoimento escroto que ele deu. O assassino era um fanático por religião, seitas e afins, depois de
pesquisar, ao longos dos anos tudo que a história podia contar sobre o céu e o inferno, sobre a morte
e a vida, ele resolveu criar a sua própria lei, segundo ele, sagrada. Para o lunático, todas as jovens
que matara estaria esperando por ele no paraíso, um lugar onde elas sempre seriam virgens e ele
estaria sempre muito disposto, não haveria tempo ou trabalho, apenas sexo. Isso me intrigou tanto que
cheguei a pesquisar tópicos a respeito, na época. Senti-me tão enojado que desisti da ideia e resolvi
esquecer que o desgraçado e suas divagações existiam, mas o pior de tudo é que ele tinha seguidores.
Não era o certo, mas eu gostaria de parabenizar quem tinha conseguido fazer o que eu não pude,
eu teria feito o mesmo se fosse com minha irmã.
— A polícia civil está com o caso?
— Sim. As famílias estão cobrando resultados, a mídia já está em cima disso, você mais do que
ninguém sabe como é. Mas não há nada, pista alguma, absolutamente nada.
— Tem uma teoria? — perguntei, Andrea sempre tinha.
— Sim, estou cansada de lidar com mortes. — reclamou, parecendo ter estado em minha mente de
alguma forma.
— Você não é a única.
Ela devolveu as fotos para o envelope pardo e me encarou, dessa vez com um tipo diferente de
interesse, ou curiosidade.
— Como as coisas ficaram na fazenda?
— Flávio me passou um contato de confiança para instalar um sistema novo na sede, qualquer
ação excusa vai chegar diretamente a mim. É o que estou esperando.
— E a garota?
Claro que esse era o assunto x da questão.
— Deve estar na casa dela a essa hora. — Dei uma resposta vaga.
A verdade era que passei muito tempo dizendo a mim mesmo para não ligar ou mandar qualquer
mensagem aquela menina, além de ser jovem demais, a melancolia que carregava não parecia ser seu
único problema, e meu isntinto já me avisava para ficar longe.
— Sabe exatamente a que estou me referindo. — rebateu direta.
— Não, Andrea. — resolvi dar a explicação que ela queria de uma vez. — Não houve nada, não
há nada.
— Hum. — Houve um silêncio longo da parte dela, observei a bagunça espalhada por sua mesa,
esperando pelo que ela tinha a dizer. — Ela lembrou de alguma coisa?
— Não, mas há muita culpa nela quando se refere à irmã.
— Não deve ter sido uma perda fácil. — Ela olhou para mim, eu sabia exatamente o tipo de
pensamentos que se passavam por sua cabeça, aprendi a entendê-la. Questionamentos silenciosos
sobre o meu envolvimento com a garota.
— E quanto aos novatos? — Mudei de assunto, lembrando-me que alguns rostos não eram
familiares. O rosto dela assumiu um tom rosado pouco comum, uma pista de que ela já devia ter se
metido em algum problema e que provavelmente Caio já estava fora da equação, preferi não
perguntar nada a respeito.
— Já faz um mês que estão aqui. Três deles são de Brasília e um de São Paulo. — Ela tirou e
recolocou um clipe que prendia uma papelada qualquer, evitando me encarar.
Andrea já era a delegada chefe quando fui transferido para cá, ela tinha passado no concurso
muito antes de tudo desmoronar ao meu redor, e como o plano era que eu deixasse a polícia, não me
interessei em concorrer ao cargo. Eu sabia o quanto ela tinha lutado para conseguir o respeito,
pricipalmente quando se tratava de homens que teriam de seguir suas regras, claro que, apesar do ar
atrapalhado que ela tinha, ninguém precisava ajudá-la a exigir respeito, a mulher era difícil de
engolir às vezes.
— Interessante. — divaguei.
— Eu pago o almoço hoje. — Disse ela, antes de me dispensar.
Entrei no saguão do prédio ao mesmo tempo que o sujeito que tinha falado com minha irmã mais
cedo estava saindo, olhei o relógio de pulso, verificando que faltava alguns minutos para as sete,
como se minha rotina fosse sempre assim. Uma das coisas que sempre gostei em ser policial era
justamente a falta de rotina. Às vezes tínhamos dias tranquilos numa carga horária comum, outras
vezes passávamos mais de doze horas na delagacia e ainda ficávamos de sobreaviso, caso algum
plantão surgisse. Isso sempre incomodou Samanta, na verdade até hoje eu não conseguia entender
como conseguir conquistá-la em meio ao caos que era a minha vida, apesar que ela sempre fora
extremamente direta. Estevan, o pai da minha noiva, costumava dizer que ela sempre tinha o que
queria desde criança, então eu fui um sortudo por ela me querer, ainda que não fizesse ideia do
motivo ou do que ela vira em mim.
Entrei no apartamento e imediatamente fui até o quarto da minha irmã, ela estava sentada com o
notebook sobre as pernas, dei duas batidas, embora a porta estivesse entreaberta
— O que trouxe para comer? — Perguntou ela, mantendo a atenção na sacola que estava em uma
das minhas mãos.
— Venha ver. — Afastei-me ciente de que ela me seguiria. Coloquei a sacola sobre o balcão e fui
até a pia lavar as mãos, notando a organização impecavél do lugar.
O que quer que Nina estivesse aprontando devia estar sendo muito bom para ela, mas traria alguns
fios brancos para mim, essa amabilidade não era muito corriqueira.
Peguei dois pratos e os coloquei sobre balcão. Mas resolvi tomar um banho antes de comer.
Enquanto caminhava para o quarto, chequei as mensagens no celular. Nada de interessante, meus
olhos caíram no contato de Camille, fiquei tentado a dar um oi, mas não fiz. Eu mesmo sequer sabia
porquê pensava tanto nela, os seus olhos pareciam me atrair como a luz atraia os vagalumes.
Resolvi mandar uma mensagem para Francine, eu realmente estava sentindo falta dela.
Tomei um banho rápido e voltei a cozinha, Nina estava dando uma mordida no hamburguer
enorme.
— Quando você vai me contar o que está aprontando? — Contornei o balcão e enchi um copo
com a soda que estava ao lado do prato dela.
— Não estou aprontando nada. — respondeu de boca cheia.
Assenti, apenas e sentei ao seu lado no banco.
— Como você voltou para casa hoje? — Mudei de assunto.
— Táxi. — Fechou a cara e deu outra mordida. — Já tenho idade para dirigir. — Reclamou ela
pela segunda vez hoje.
— Só não tem coordenação motora o suficiente.
Ouvi o palavrão que ela soltou baixinho, mas fiquei em silêncio. Nina também não voltou a tocar
no assunto.
— Quero conversar com você. — disse baixinho, depois de assassinar a comida.
— O que você está aprontando? — inquiri, por que eu sabia que havia algo.
— Não se trata de aprontar. — Os ohos fitaram o prato. Eu a conhecia muito bem, na verdade eu
imaginava o que era e já odiava a ideia com todas as minhas forças, mas era melhor que ela me
falasse. Eu a conhecia o suficiente para saber que não haveria problema nenhum para que Nina
fizesse o que quer que estivesse aprontando escondido. — Eu gosto do Ben.
— Hum, você acha que eu não sei? — retruquei tentado não soar irritado, por que eu estava.
— Não vou pedir permissão a você. — Com o gênio que ela tinha, éramos iguais no
temperamento, não esperei que me pedisse nada.
— O que exatamente você quer que eu saiba, Nina?
— Gosto dele, Marco, quero que seja legal...
Cocei a testa, irritado, não com ela, mas porque eu conhecia a fama de Benjamin.
— O que ele disse a você?
— Que você vai matá-lo se ele encostar em mim. — retrucou num tom estridente, uma acusação, é
claro.
A ideia não era ruim.
— Amanhã vou falar com ele, quero saber que tipo de intenção ele tem. — O olhar que ela me
lançou me faria rir se eu não estivesse tão zangado.
— Você não vai fazer isso! — Soou horrorizada.
— Claro que vou. — Olhei-a de cara fechada. — Conheço aquele pu... eu o conheço há muito
mais tempo que você, tenho meus motivos.
Ela me encarou e depois saiu pisando duro. Não me importei, ela nem ao menos sabia o favor que
eu estava fazendo ao seu coração. Eu não ia proibi-la de nada, não tinha esse direito, mas eu
conhecia o infeliz, sabia o que já tinha feito a várias mulheres, inclusive na delegacia, então seria
bom avisá-lo de onde ele estava se metendo.
Recolhi a louça do balcão, por que ela não faria nada disso tão cedo. Era uma menina intragável
até o último fio de cabelo. Depois de lavar tudo, voltei ao quarto, havia uma chamada perdida de
Francine. Sentei na cama e retornei uma chamada de vídeo. O rosto dela não demorou a aparecer na
tela, mais cheio do que a última vez que a vi, também estava corada, em alguns pontos vermelhas.
— Você parece que vai explodir. — Não consegui evitar, era evidente que ela tinha ganhado
alguns quilos, o rosto estava mais redondo. Ouvi sua risada por alguns segundos e então ela me
encarou com a cara de poucos amigos.
— Você me esqueceu. — queixou-se.
Perguntei-me como as duas podiam ser tão parecidas, eu não ficava mais assustado como antes,
tinha uma sensação de alívio. Eu não pude salvar a minha Samanta, mas eu consegui ser útil para tirar
Francine de alguns problemas.
— Não esqueci, claro que não. — Sorri fácil para ela. — Como você está?
— Engordando muito. — respondeu, com ar culpado.
— Eu percebi, e o bebê?
— Crescendo, estamos bem. — Fez um afago na própria barriga, sempre achei que mulheres
grávidas tivessem um encantamento só delas, uma aura que iluminasse tudo ao redor, agora mesmo
parecia que meu quarto estava repleto de brilho, causado por um diamante raro. — Falta pouco para
cinco meses.
— É menina ou menino?
— Decidi não saber. — Ela riu outra vez, ainda afagando a barriga. Ouvi o som do mar, calmo,
tranquilizador.
— Onde você está?
— Em Angra.
Passamos algum tempo compartilhando os acontecimentos dos últimos meses, e marcamos um
almoço quando ela voltasse ao Rio
10
Camille
Ainda parecia errado voltar a rotina, voltar a ser normal. Como se a vida tivesse sido sempre
assim, como se minha irmã nunca tivesse existido. Olhei através da janela do carro, o dia não estava
tão bonito, parecia que em breve choveria, de tempos em tempos, Miguel olhava-me pelo retrovisor.
Ele era motorista do meu pai e responsável pela frota de táxis que ficavam a disposição dos
hóspedes e moradores dos Hotéis Alencar. Depois de passar quase quarenta minutos suando e
tremendo no banco do motorista, eu desisti de tentar dirigir e o chamei. No início, logo depois do
enterro de Liz, eu fazia isso de propósito, como uma forma de punição a mim mesma, e eu merecia.
Minha cabeça entrava em transe assim que eu pensava em dirigir, o medo de machucar alguém outra
vez, de matar de novo, isso me consumia. A terapia estava me ajudando, por um tempo eu não
conseguia nem ao menos entrar num automóvel, não que tudo tivesse diminuído, eu só sabia lidar
melhor com a situação.
Olhei para o celular pela trilhonesíma vez, sentindo-me ridícula por ainda checar de minuto em
minuto se havia alguma nova mensagem e quando a notificação aparecia, todos os meus músculos
pareciam ficar aquosos, traidores, esperando que fosse dele, mas nunca eram. E minha obsessão
ficava cada vez pior, a cada vez que eu olhava o quadro, os pensamentos entravam em curto-circuito
por que eu não conseguia compreender, eu não era supersticiosa, nunca acreditei nessas baboseiras
de destino, mas tudo parecia como um livro, onde o autor enchia os capítulos de pequeninas
situações incomuns.
Guardei o aparelho na bolsa e esperei que Miguel parasse o carro para descer, senti um pingo
solitário de chuva na bochecha e caminhei até o elevador privativo da cobertura, fazia algum tempo
que eu me escondia das pessoas, principalmente daquelas que sempre perguntavam se eu estava bem,
como se isso fosse realmente importante para elas. Provavelmente nunca era.
Coloquei meu dedo na leitura digital e esperei que a porta abrisse, caminhei em direção à sala e
estanquei ao ver Heloísa sentada no sofá maior da sala, apenas ela, deduzi que minha mãe ainda não
tinha retornado.
— Heloísa.
— Cami. — Ela deu um sorriso amistoso, mas continuou onde estava.
— Eu estou indo para meu quarto...
— Na verdade, eu vim por você... acho que precisamos conversar.
Estreitei os olhos, tentando entender que tipo de conversa ela queria ter.
— Sua mãe contou para você sobre a festa de Enzo? — Os dedos brancos deslizaram pelo braço
do sofá.
A sensação ruim, aquela que sempre vinha quando o nome dele era dito apareceu, para minha
surpresa eu não senti medo, apenas um nojo instável de tão grande.
— E porque você acha que devo saber disso?
Ela me olhou, avaliando-me. Por um tempo nós fomos amigas.
Não!
Eu achei que erámos. Descobri que não quando todas as minhas tentativas de diálogo, quando
todas as minhas queixas sobre as barbaridades que o filho dela aprontava eram resumidas a nada, ou
deixadas para depois.
— Por quanto mais tempo vai insistir nisso?
— Você está vendo isso aqui? — Mostrei a mão que meses atrás abrigaram uma aliança colocada
por ele, e agora estava vazia. — Não existe mais nada que me prenda ao seu filho ou a você...
A forma como ela me olhou passaria despercebida por minha mãe ou meu pai, afinal eles
enxergavam apenas aquilo que queriam ver, mas eu a conhecia. Era ela quem inventava as desculpas
mais ridículas para explicar meus sumiços, eles variavam de acordo com o tempo que levaria para
todos os hematomas que o homem que ela chamava de filho deixava em mim.
— Helô. — A voz do meu pai soou atrás de mim, estava tão ocupada encarando a mulher loira a
minha frente que não o escutei se aproximar.
— Augusto. — Ela deixou de prestar atenção e sorriu para ele.
Heloisa era atraente, eu nunca soube qual era a idade dela, vez ou outra ficava sabendo de algum
procedimento estético que ela havia feito. Silicone, botox, fora o personal que muitas vezes vi na
mansão que ela morava. Lembrei-me do que tinha acontecido comigo quando deixei que ele me
ensinasse algumas coisas na academia particular que ela tinha na casa. Um atrevimento meu, segundo
Enzo.
— Pai, vou deixar vocês conversarem. — Consegui dizer em meio a bile que subiu por minha
garganta.
— Estava dizendo a Camille que Enzo está voltando, trouxe um convite para vocês. — Ela mexeu
dentro da bolsa e retirou um envelope grande, estendeu-o em minha direção, mas eu cruzei os braços,
então ela se dirigiu ao meu pai.
— Fique, Cami. Acho que Enzo é um assunto do seu interesse. — Ele não podia estar mais
enganado.
— Tenho coisas da faculdade para fazer. — retruquei, retirando-me.
— Enzo deve chegar no máximo na próxima semana. Ele está ficando louco longe daqui. — Ouvi-
a dizer, enquanto me afastava.
Ele era louco em qualquer lugar.
Entrei em meu quarto e joguei o caderno sobre a cama, puxei o prendedor dos cabelos e enfiei os
dedos pelos fios. Entrei no estudio e acendi todos os leds, imediatamente fui atraída pela tela, eu nem
mesmo a cobria mais, perdia-me totalmente no tempo, enquanto passava os dedos por ela.
*
Abri a gaveta de maquiagens da minha mãe e busquei os itens que eu mais usava — rímel, afinal o
meu já estava seco há tempos, e o batom que eu mais gostava de vê-la uasando, era cor de vinho,
testei em mim, ainda em frente ao seu espelho, e sorri gostando de como tinha ficado, aproveitei e
pintei os cílios, meus olhos ganharam um efeito marcante, parecidos em cor com a pedra verde que
eu ainda mantinha no pescoço.
— O que está fazendo aí? — A voz de Joice veio baixinha atrás de mim, notei-a aparecer pelo
reflexo do espelho.
— Vim pegar emprestada uma de suas maquiagens.
— Você vai sair? — A insinuação de um sorriso surgiu no canto de sua boca, então ela me olhou,
desde os pés calçados com um salto preto medio até meu rosto, faltava apenas retirar a toalha dos
cabelos.
— Sim, Aline me convidou para tomar alguma coisa e eu aceitei.
— Se eu soubesse que ia sair tinha marcado uma hora para você no spa.
Minha mãe era sócia de um Spa em Copacabana e de uma clínica de estética, fazia algum tempo
que eu não colocava os pés em nenhum dos dois lugares.
— Foi de última hora, mamãe. — Voltei a examinar o rosto no espelho e tirei a toalha da cabeça,
amassando os fios, numa tentativa frustrada de pelo menos deixá-los um pouco ondulados.
— Onde vocês vão? — Ela quis saber.
— Jantar em algum lugar, ou ao cinema. Miguel vai nos levar.
Meia hora depois, Aline e eu já estavamos no carro discutindo para onde iríamos e fazendo
Miguel dirigir por muito tempo sem destino certo, quando não tinha mais graça alguma paramos em
um Pub no Jardim Botânico, segundo ela, o lugar era novo e poderíamos dançar. Acabei me
animando quando vi a fachado do lugar, fazia tempo que eu não saia, não assim.
Livre para fazer o que quisesse.
11
Marcone
Ao meu lado, Flávio chamou novamente a garçonete, a mesma que passara discretamente um
número de telefone, não sei se para mim ou para ele.
— Você precisa dormir com alguém. — Disse ele, eu o olhei, perguntando-me porque porra não
recusei o convite de vir para cá. O celular em meu bolso vibrou assim que a garota aproximou-se
diante de nós, ela era bonita, mas não do tipo que me interessava. Desbloqueei a tela do aparelho, e
abri a mensagem de Nina me avisando que estava tudo bem e que ela não era mais criança.
Meus dedos passaram por meus cabelos como que a procura de fios brancos, por que era isso que
ia aparecer em breve, eu ficaria velho antes do tempo por causa de uma garota de dezoito anos que
ainda por cima era minha irmã. Uma encrenqueira. Não respondi nada, ciente de que Ben estava
avisado do que aconteceria se ele não fizesse seu papel direito.
Quantos anos aquele puto tinha mesmo? Talvez eu devesse perguntar isso a Andrea.
— Você precisa dormir com alguém, cara. — Ele voltou a dizer, olhei em volta entediado.
Drink’s era o nome do Pub recém inaugurado de Flávio, ele era a própria máquina de fazer
dinheiro. Perguntava-me quantas outras casas como essa ele inauguraria ainda esse ano, fiz um gesto
para que a garota levasse o chope já quente e trouxesse outro, ela ainda hesitou. Bianca, li o nome
numa espécie moderna de crachá, que estava preso na blusa decotada que usava, provavelmente
esperando por algo mais. A garota tinha seios chamativos e devia saber disso, talvez eu devesse
pegar o maldito número e ligar depois, cansada de esperar qualquer reação minha, ela se afastou.
— Ela sabe que você é o dono? — perguntei, observando-a pelas costas.
— Provavelmente não, não fui eu quem a contratei. — Ele deu outro gole na bebida, olhando ao
redor.
A garota voltou novamente, mas pelo pouco tempo que passou rondando a mesa, ela tinha
entendido meu desinteresse, uma voz soou no microfone, anunciando que a pista de dança estava
liberada, e o lugar pareceu lotar ainda mais. Flávio tocou meu ombro, a essa altura era quase
impossível escutar o que quer que ele quisesse me dizer, eu o segui, tentando não esbarrar em
ninguém ou derramar a bebida, até uma área menos cheia, vip. Subi a pequena escada e passei pelo
segurança mal encarado.
As batidas da música ficaram mais distantes, imitei-o indo até a grade para olhar as pessoas lá
embaixo.
— Julia. — A voz de Flávio chamou minha atenção, voltei-me para ver a mulher loira abraça-lo
rapidamente. Ela era jornalista, tínhamos nos conhecido no final de uma coletiva de imprensa sobre
um caso que a polícia federal estava investigando. Saímos algumas vezes um tempo atrás, ela era
agrádavel, apesar da profissão. Eu não tinha muito respeito pela imprensa, eram poucos nesse meio
que eu realmente levava a sério ou dava importância, embora eles tivessem o poder de destruir ou
beatificar a imagem de alguém. Mas, ela era uma rara exceção.
— Não sabia que estava no Rio. — Depois de aceitar a bebida de uma das garotas que estavam
servindo, ela dirigiu-se a mim.
— É como se eu não estivesse. — retruquei, beijando de leve sua bochecha.
— Flávio me contou sobre o seu pai, eu sinto muito.
Em meio ao som da pista e algumas bebidas, nós conversamos sobre os furos que ela estava
perseguindo, e da guerra que estava travando com uma colega de trabalho por uma oportunidade de
ser âncora do jornal que trabalhava, não vi o tempo passar, como eu disse ela era agrádavel, por isso
tínhamos saído mais de uma vez, observando-a agora, entendia o porquê e pela forma como o
pescoço esguio estava ficando corado a cada vez que nos encarávamos, se eu fizesse um convite, ela
aceitaria. Eu estava prestes a fazer isso, até que meus olhos encontraram algo que tinha consumido o
rumo dos meus pensamentos por semanas.
Encostada na lateral do balcão, estava Camille, nas mãos uma bebida, algo como coquetel pela
coloração e a taça que ela segurava com delicadeza, os olhos perambulavam pelo ambiente, como se
estivessem fazendo uma varredura, no rosto uma expressão de prazer, como se o que estivesse
sugando pelo canudo fosse muito gostoso. Incapaz de afastar os olhos dela, permiti-me olhar a garota
por inteiro. O vestido preto justo, os cabelos levemente ondulados, diferente de como eu me
lembrava deles e os olhos, eu os reconheceria em qualquer lugar, a face estava corada e a testa meio
luminosa, provavelmente devia ter dançado, fiquei decepcionado comigo mesmo por não ter visto
isso. Um sorriso no canto dos meus lábios surgiu assim que eu percebi a correntinha que tinha lhe
presenteado na cachoeira, senti-me satisfeito por ver que ela ainda estava usando.
— Você a conhece? — A voz de Julia soou perto de mim, acusando-me da minha total falta de
educação, eu nem ao menos me lembrava o que estávamos conversando antes. De onde estávamos era
possível ver tudo que acontecia lá embaixo, de vários ângulos diferentes. Virei-me para olhá-la, ela
estava observando Camille, como eu, provavelmente estive vidrado na imagem da garota a mais
tempo do que percebi.
— Sim. — respondi baixo, não fazia ideia se ela tinha escutado, voltei a olhar para Cami, ela não
estava mais sozinha, uma mulher estava ao seu lado fazendo um gesto para que fosse atendida no
balcão.
Júlia não ficou muito tempo perto de mim, afastou sem mais perguntas e entrou numa conversa
animada com as outras pessoas que estavam ali com Flávio.
Voltei minha atenção para Camille, e como se soubesse que estava sendo observada, ela olhou em
minha direção. Foram apenas alguns segundos, antes que eu decidisse ir até lá, mas os olhos verdes
intensos pareciam me queimar, houve um misto de emoções atravessando o seu rosto: surpresa,
curiosidade, raiva e ... expectativa?
O tempo que demorei para chegar até onde ela estava tinha sido enorme, sem contar que do alto
parecia muito fácil do que realmente foi, desvencilhar-me de todas aquelas pessoas tornou tudo ainda
mais irritante. Quando voltei a colocar os olhos nela, Camille ainda estava na mesma posição, gostei
de ver que ela me procurava com os olhos. De perto, pude ver melhor, o rosto, o vestido, e o cheiro
característico dela.
— Não fazia ideia que você frequentasse esse tipo de lugar. — Foi a primeira coisa que ela disse,
dispensando as preliminares ou os olás. Ela mordeu o lábio, desistindo de tomar a bebida.
— Olá, Camille. — provoquei-a. — Esse lugar é de um amigo. — Apontei para a área vip e
percebi que Flávio estava vindo em nossa direção.
Ela ainda me olhava, os dedos brincando pelas gotinhas de água formadas na taça quase vazia que
segurava.
— O que você está bebendo? — Cheguei um pouco mais perto, o suficiente para sentir o cheiro
da pele e do xampu que vinha dos cabelos.
— Algo com morango e álcool. — Olhou de um jeito engraçado para o copo e sugou o líquido
pelo canudo, como se quisesse ter certeza do que estava dizendo.
— Posso pedir outro para você?
Assentiu, afastando os cabelos do rosto com a mão livre, o movimento deixou o cheiro já
marcante, ainda mais intenso e perceptível para mim.
— Você sumiu.
Eu a encarei, tentando entender o tom acusador, perguntei-me se ela tinha ficado ansiosa para que
eu ligasse, tão ansiosa quanto eu fiquei para ligar. Atormentado, na verdade, a cada vez que Nina
pronunciava o nome dela ao telefone meu ouvidos ficavam ligados, a procura de qualquer informação
e isso era ridículo, especialmente por ser eu. A última vez que passei tanto tempo pensando em
alguém foi meses atrás com Francine, no início foi quase uma obsessão, era como se eu pudesse
respirar melhor estando perto dela, era como se eu tivesse a chance de proteger Samanta, como eu
deveria, as duas eram idênticas em aparência e personalidade, e eu me senti bem em poder ajudá-la,
em estar por perto quando ela se metia em problemas, no fundo eu ainda não sabia ao certo o que
sentia por ela, exceto que a queria feliz como sabia que ela estava agora.
— A rotina não me deixa respirar. — Foi uma mentira grotesca, admito. Ligar ou mandar uma
mensagem não levava mais que alguns minutos. — Eu pensei em ligar, mas não liguei. — Reformulei
a resposta, ainda que não fosse aceitável.
— Hum... — Desviando os olhos de mim, ela mexeu outra vez no cabelos, eu gostava da forma
como eles caiam pelas costas estreitas, cobrindo-as quase completamente.
Senti vontade de tocar os fios, sentir a maciez que ele provavelmente possuíam.
— Essa é a Camille. — A voz alta o suficiente para sobrepor o barulho infernal da música,
quebrou o momento.
A garota que vi mais cedo estava de volta com Flávio ao lado, perguntei-me de onde os dois se
conheciam. Camille e eu nos viramos para eles ao mesmo tempo.
— Então, você é nossa pintora? — Flávio estendeu a mão para Cami, que o olhou confusa, eu
mesmo estava sem entender nada.
— Ele é o fundador do projeto, Cami. — A amiga de Camille explicou.
— Ah, que prazer conhecer você... eu sou muito fã do que você faz por aquelas crianças. —
Camille sorriu e colocou a taça sobre o balcão a fim de apertar a mão dele.
Os minutos seguintes foram de apresentações, descobri que a garota se chamava Aline e que o
projeto do qual falavam era o mesmo que Nina frequentava de vez em quando. Surpreendi-me, pois
não sabia que ele desenvolvia esse tipo de trabalho voluntário.
— Vamos subir. — Flávio convidou, apontando para a área vip, onde estávamos antes. — Lá é
mais confortável.
Subimos os quatro, minha atenção voltada para Cami, e permaneceu assim por um longo tempo,
enquanto eles falavam sobre o projeto e eu apenas ouvia, Julia também estava alheia, provavelmente
por não ter afinidade com os assuntos que Aline e Flávio discutiam. Camille estava calada, evitando
olhar na minha direção, ainda que, ocasionalmente, eu sentisse que estava me observando, sugando
ainda a bebida que eu pedira e o garçom trouxera para ela alguns minutos atrás.
— Flávio, nós temos que ir. — Aline avisou após olhar a tela do celular, instintivamente eu olhei
o meu relógio de pulso, faltava pouco para as nove da noite. — Cami e eu íamos apenas jantar, eu
que acabei arrastando nós duas para conhecer o lugar.
— Aonde vocês vão? — perguntou ele, deixando de lado o copo quadrado já vazio, o meu ainda
estava intocado.
Os olhos grudados nos movimentos que Camille fazia, a mania de enrolar a ponta do cabelo, junto
com sugar contínuo da bebida, ela respondia sutilmente quando Flávio fazia alguma pergunta, como
se não gostasse de chamar atenção, algo quase impossível. Perdi a conta do número de cabeças que
viraram para olhá-la passar até chegarmos aqui. Ela não parecia perceber isso ou não gostava.
— Em algum japonês, estou tentando mudar a visão de Camille sobre comida japonesa.
— Você não gosta? — perguntei curioso, achando engraçado o jeito que ela franziu o nariz.
— É cru. — reclamou ela, afastando apenas um pouquinho o canudo da boca.
— Nem todos são.
— Quero mostrar isso a ela. — Aline retrucou, guardando o celular na bolsa. — Vocês não
querem vir conosco? — convidou, animada.
— O que acham? — Flávio dirigiu-se a mim e a Julia..
— Por mim tudo bem, estou faminta. — Ela respondeu. — Onde fica o banheiro, Flávio?
Ele se levantou para acompanhá-la, eu os observei e então Aline se afastou para atender alguém
no celular, eu me voltei para Camille.
— Você vai? — perguntou, deixando de lado a taça.
— Você quer que eu vá? — Foi uma brincadeira, mas ela balançou a cabeça que sim. — Você sai
para balada com frequência?
Camille olhou ao redor, enquanto meneava a cabeça negativamente. Os dedos voltaram a deslizar
pela taça, formando desenhos pelo vidro.
— Não muito, faz tempo que saí assim. — Olhou-me curiosa. — E você?
— Às vezes, para tomar um chope.
Seguimos para um restaurante perto dali, Camille hesitou entre vir no meu carro ou ir com a amiga
falante e Flávio, no fim das contas as duas foram com ele. Eu conhecia o lugar, já tinha vindo aqui
algumas vezes, mas sempre sozinho.
Aline era bem falante, desde que havíamos sentado, a conversa dela com Flávio girou em torno do
tal trabalho voluntário e de crianças, o que me chamou atenção. Ele era um dos caras mais putos que
eu conhecia, nunca imaginei nada disso vindo dele, muito menos que ele realmente se interessasse em
saber. Flávio escutou tudo, perguntou sobre e chegou fazer comentários, demonstrando que conhecia
algumas das famílias que estavam inclusas no projeto. Um sentimento de orgulho surgiu, afinal, do
modo que as pessoas levavam a vida atualmente, geralmente o tipo de surpresa que aparecia eram as
desagradáveis.
Julia, por outro lado, estava mais quieta do que o habitual. Não a vi participar de nenhuma das
conversas, embora eu fosse tragicamente suspeito em fazer esse tipo de observação, a minha atenção
estava totalmente voltada para Camille, observando-a eu percebi detalhes, outros que não tinha
notado. Um sinal perto dos lábios, uma série se estrelinhas tatuadas na nuca, idênticas às que ela
tinha no pé, enquanto as mãos delicados tocavam o cabelo, totalmente dispersa dos meus
pensamentos.
— O que vai querer? — perguntei, passando o cardápio para ela, ávido por algum tipo de contato.
— Algo que não seja cru. — A resposta veio sem que ela me encarasse.
— A comida daqui é mais abrasileirada. — Apontei para um globo laranja iluminado, onde se lia
Izakaya.
— O que isso quer dizer?
— Os pratos daqui são quentes, diferente do que é servido nos restaurantes tradicionais de
comida japonesa. — Pisquei para ela, e um sorriso aliviado surgiu em seus lábios, os olhos
marcantes passaram a analisar o cardápio com um pouco mais de entusiasmo, obviamente.
— O que você pediria se nunca tivesse comido essa coisa?
Evitei uma risada.
— Katsu Sando. — Apontei para a descrição do sanduíche no cardápio. — Não é cru.
— O que você vai pedir?
— O mesmo que você.
— Quero esse então.
— E você, Camille? — Flávio depositou a atenção nela. — O que faz além de dar aulas de
pintura?
— Estudo direito.
— Está em que período?
— Prestes de apresentar a conclusão do curso.
Julia aproximou-se um pouco mais de mim, guardando o celular.
— Preciso ir embora — ela sussurrou para mim de forma que só eu escutei. — Sofia está com
febre.
Sofia era a filha dela, não me lembrava direito quantos anos a menina tinha, exceto que era muito
pequena ainda.
— Minha mãe acabou de mandar mensagem. — Ela colocou o cabelo platinado atrás da orelha, e
jogou nervosamente o celular na bolsinha a tiracolo pequena.
— Precisa de ajuda? — inquiri.
— Não precisa. — Olhou rapidamente para Camille, que ainda conversava sobre seu curso com
Flávio. — Está claro seu interesse pela garota, não deixe a noite para lá por minha causa. — Ela
sorriu de forma amistosa, agradável como geralmente ela era. — É só uma febre, minha mãe fica
nervosa e... você entendeu.
Não tive resposta válida para dar, ela se despediu de todos e eu a acompanhei até o carro,
trocamos algumas palavras e Júlia se foi. Quando voltei à mesa, os pratos já tinham chegado.
— A filha dela está febril. — Avisei, sentando-me de novo no meu lugar.
12
Camille
— Foi algo grave? — Flávio perguntou assim que Marcone sentou novamente ao meu lado.
— Ela disse que não, eu me ofereci para ir junto, mas Julia disse que não precisava,
Era um exagero me sentir desconfortável com a interação dos dois, mas me vi exatamente dessa
forma, ainda que ele estivesse me dando atenção. Eu não era burra, mas a forma como ela me avaliou
parecia e muito com o jeito que as mulheres me avaliavam nos eventos que eu costumava ir com meu
ex. Senti-me intrusa, como me sentia a maior parte do tempo, num lugar onde não deveria estar.
— E você já está trabalhando na área? — Flavio voltou a me fazer perguntas.
— Estava, mas tive alguns problemas e tive que sair.
— Nós temos um programa de estágio muito bom, se tiver interesse em conhecer.
— Claro... — O sorriso foi invóluntário, era o que eu precisava, manter a mente ocupada o
máximo que eu pudesse.
Comi o tal sanduíche japonês abrasileirado e gostei mais do que imaginei, e a noite correu bem,
mais interessante do que achei que seria. A sensação pouco comum de querer esticá-la estava lá, mas
o tempo estava passando.
— Posso ti levar para casa?
Uma das coisas que ficava cada vez mais clara, mais evidente sobre Marcone é que ele sempre
me dava uma opção. Eu podia dizer sim ou não.
— Sim. — Foi um fio de voz que deixei escapar, minha cara já pegava fogo. A cada vez que eu
olhava para Aline, via uma expressão diferente e eu sabia que ela não me deixaria em paz sem que eu
contasse quem era Marcone. — Aline veio comigo...
— Não tem problema nenhum. — Ele me olhou. — Quantas tatuagens você tem?
A pregunta veio subitamente.
— Seis. No pé e na nuca.
— Mais nenhuma? — Ele relamente voltou o tronco na minha direção.
— Não.
— Tem algum significado?
Parei um minuto para pensar, meio decepcionada. Na verdade, não tinha significado algum, era só
mais um fruto dos meus impulsos.
— Não, eu vi o desenho e gostei. Só isso.
— Gostar do desenho é um motivo e tanto, não é? — Ele sorriu, fazendo as covinhas ficarem
expostas de um jeito
atraente.
— Você tem alguma? — perguntei, Flávio tinha o braço inteiro tatuado e pelo V da camisa dava
para ver o final ou o início de outro desenho, o que me levava a entender que o peito também era
tatuado.
— Não, nenhuma.
Eu realmente não havia visto nenhuma pelo corpo dele quando estivemos na cachoeira, e eu olhei
bastante.
Não me lembrava de ter uma noite tão agradável nem de ter rido tanto, Marcone e Flávio além de
um repertório inesgotável de assuntos, eram engraçados, gentis. Depois de alguns drinks voltamos
para o pub, Aline e eu dançamos tanto que cheguei a ficar suada, a sensação de liberdade, de poder
estar em qualquer lugar e com quem eu quisesse, não tinha preço. A liberdade, o sentir-se livre não
tinha preço.
Soltei um suspiro quando a fachada do prédio foi ficando evidente.
— Obrigada, Marcone. — Aline foi dizendo, enquanto se ajeitava para sair do carro.
— Boa noite, Aline. — sussurrou ele, e virou-se para mim. — Posso falar com você?
Assenti, e fiquei nervosa quando minha amiga saiu do carro, fiz um sinal através da minha janela
aberta para que ela subisse.
— Eu gostei da noite. — Acabei dizendo, quando ele não fez nada além de me encarar.
— Eu também.
— E eu nem queria ir. — Meneei a cabeça e puxei os cabelos que eu precisaria lavar novamente.
— Porque não queria?
Dei de ombros sem saber o que responder.
— O que quer falar comigo?
— Nada, só não queria que entrasse ainda.
Mordi o lábio, escondendo um sorriso idiota.
— Por que não me ligou?
— Eu ligaria mais cedo ou mais tarde. — O tom que ele usou foi intenso, o que me fez acreditar.
Num movimento lento, ele se aproximou e deixou um beijo suave na minha testa, fechei os olhos,
aspirando o cheiro masculino, misturado com menta ou algo parecido.
— Essa é a hora que eu entro?
— Sim, Camille, é a hora que você entra.
Fiz exatamente isso, o carro negro de vidros escuros permaneceu na calçada até que entrei no
elevador privativo, fiquei encostada na parede, observando as mudanças dos andares, o celular
vibrou em minha bolsa e meu coração acelerou, abri o zíper rapidamente e entrei no aplicativo de
mensagens.
De: Marcone
Boa noite, Cami.
Mordi o lábio, escondendo um sorriso de pura satisfação, olhei inúmeras vezes, pensando em mil
maneiras diferente de dar boa noite para ele, um entusiasmo repentino agitando o meu estômago. Saí
do elevador, ainda digitando e apagando inúmeras vezes. Soltei um grito, quando esbarrei em alguém
a caminho da porta de correr que me levaria ao hall.
— Aline! — Ajeitei a bolsinha no ombro depois do susto, e olhei de cara feia para ela. — Qual o
seu problema?
— Você passou a noite inteira flertando com aquele bonitão e achou que não me daria respostas.
Revirei os olhos indignada e coloquei o dedo no leitor de digital. Eu já esperava por isso de
qualquer forma.
— Quem é ele? — A curiosa perguntou, seguindo-me.
Fiz um gesto para que falasse baixo, afinal já passava de uma da manhã, tirei a sandallia de salto
e caminhamos para a cozinha. Mesmo depois de vários drinks, eu estava perfeitamente consciente, a
cada coquetel, Marcone me entregava uma taça de água com gelo. Eu tinha gostado, não me lembrava
da última vez que saí assim.
— Quem é ele? — ela voltou a questionar, esbarrando num dos bancos altos em frente ao balcão.
Acendi o led e abri a geladeira em busca de algo gelado para beber.
— Irmão de Nina. — Tirei uma lata de coca light e enchi dois copos. — Eu o conheci na fazenda.
— Hum.. — A expressão dela ficou pensativa, talvez imaginando coisas a respeito. — E o que
rolou?
— Nada, ele foi gentil como hoje e só. — Bebi um gole da bebida, o gás entupiu
momentaneamente o meu nariz. — Você conheceu Flávio no projeto?
— Não, meu pai tem negócios com o pai dele. Eu o conheci em um desses jantares cheios de
pompa que a avó dele promove. Fiquei sabendo do projeto e quis participar.
— Mas, porque crianças com câncer? — indaguei curiosa, não questionando o motivo em si, mas
se havia algo mais pessoal por trás dele.
Geralmente minhas emoções eram as maiores culpadas das minhas atitudes, principalmente
quando elas eram ruins.
— Eu não sei, ele é meio reservado com relação à vida pessoal. Na verdade, nunca conversamos
a respeito dos porquês. — Ela terminou a bebida antes de mim e deixou o copo sobre o balcão.
— E aquela mulher? — perguntei de modo desinteressado. — Você sabe quem ela é?
Uma risada sorona soou a cozinha, e eu a olhei irritada.
— Ela é repórter, mas não sei nada além disso, sempre a vi na área vip das boates de Flavio,
mas... — Deu de ombros, por fim.
Lembrei-me da mensagem que eu não havia respondido e puxei o celular da bancada.
De: Camille
Boa noite, Marcone.
Curiosa, toquei na foto de perfil dele. Não me surpeendi que fosse com Nina, embora ela o fizesse
de gato e sapato, era nítida a ligação dos dois.
— Viu que foi bom sair hoje? — Aline sorriu, o sorriso combinado com a juba castanha,
deixavam-na ainda mais bonita.
— Foi muito bom. — concordei.
Ela acabou dormindo aqui em casa, ainda passamos muito tempo conversando no escuro, depois
do banho e não fazia ideia de em que momento adormeci.
Abaixei-me para pegar o suco de laranja que Naia trouxera, dei um gole e voltei a digitar o
documento no word, enquanto, pelo fone de ouvido, eu escutava um audiobook sobre negligência
familiar, o tema central do meu tcc. Eu tinha enviado mais cedo um e-mail para Flávio, e a ansiedade
para a chegada da resposta estava me matando. Se eu conseguisse trabalhar, mais uma mudança na
minha vida estaria concretizada, mais um passo sem depender de ninguém, mas uma escolha feita por
mim, sem que ninguém me manipulasse. Aos poucos eu estava conseguindo. O bipe no computador
indicou a chegada de um e-mail, cliquei imediatamente, tendo certeza que era uma resposta ao que eu
tinha mandado mais cedo.
Meus olhos passearam avidamente pelas letras, um endereço e um horário marcado para a
segunda, desliguei o bluetooth e tirei o fone dos ouvidos. Uma ansiedade misturada com nervosismo,
saí do quarto e caminhei para a cozinha, prendi a respiração quando percebi que a porta do quarto da
minha irmã estava entreaberta. O quarto dela ainda estava do mesmo jeito — o lençol era trocado
toda semana, o closet estava com todas as roupas dela, a escrivaninha cheia das canetas que ela
costumava colecionar, mas o cheiro, isso tinha mudado. Eu podia sentir a falta dele, a falta de vida,
acho que ela era a parte mais viva dessa casa, a energia que mais brilhava.
A garota que vinha algumas vezes na semana para fazer a limpeza saiu do quarto com o balde na
mão e sorriu rapidamente para mim. Ainda me mantive em frente à porta, agora fechada, mas fui
incapaz de entrar. Cheguei a tocar na maçaneta e desisti, voltando a seguir o meu caminho. Encontrei
Naiá na sacada, era uma parte que eu gostava de ficar. O vento de fim de tarde era agradável, sentei
na poltrona ao lado dela, espiando que livro ela estava lendo.
Orgulho e Preconceito de Jane Austen.
Sempre achei estranho esse fascínio que ela tinha por livros, em seus aniversários, levá-la para
tomar um café numa livraria era o suficiente para mantê-la feliz por um bom tempo. Eu geralmente me
encantava pelas capas, mas não passava da primeira linha, meu temperamento agitado nunca me
permitiu sentar e ler, eu era mais fã de séries e filmes.
— Tenho a impressão que você está sempre na mesma página desse livro.
Ela me ignorou, e como se fosse uma ironia, a página foi virada e eu reviei os olhos.
— Vai sair para dançar hoje de novo?
A pergunta fez-me lembrar da noite e da minha vergonha, porque já tinha virado um hábito ficar
esperando mensagens daquele homem, elas não chegavam. E isso soava como um aviso, de que as
coisas estavam como deveriam estar, afinal eu não o conhecia. Sabia o que havia por fora, o que ele
me mostrara nas poucas vezes que estivemos juntos, não era como saber quem ele era de verdade.
Mas a curiosidade e a atração me traíam, se eu fechasse os olhos podia lembrar exatamente o som
agradável que meu nome soava na boca dele. O cheiro ainda estava vivo, completamente marcado na
minha memória, nos meus sentidos. E a curiosidade me espezinhava, a sensação de que o destino
parecia brincar comigo, encher-me de pequenos acontecimentos inexplicáveis, tal qual o fato de eu
ter pintado o rosto de Marcone sem nem ao menos tê-lo visto uma única vez.
— Tenho pesquisas para concluir, e preciso estudar a empresa em que vou na segunda feira para
não passar vergonha por não saber nada sobre ela.
— Isso, é exatamente isso que deve fazer. Caminhar com as próprias pernas. — Ela fechou o
livro. Nós duas sabíamos o quanto meus pais iriam ficar irritados por isso, o combinado era que
depois da formatura eu fosse para o extreior com Enzo e voltasse para assumir uma parte dos
negócios da família, claro que ao lado do meu marido. Bufei mentalmente.
Ainda ficamos um tempo ali, enquanto Naiá me contava as fofocas do prédio e sobre os encontros
que ela tinha com senhoras da mesma idade para jogar baralho, algo que eu achava um barato. Já
tinha ido uma vez e, meu Deus do céu, as velhas eram terríveis.
No início da noite, Nina fez uma chamada vídeo contando sobre o encontro com Ben, fiquei atenta
a cada vírgula, curiosa para saber o que tinha acontecido, e mais ainda para qualquer pista sobre o
irmão dela, num momento da chamada eu escutei a voz dele, e vi parcialmente o corpo, quando ele
beijou a cabeça de Nina e os dois trocaram algumas palavras.
— Estou falando com Cami, dê um “oi” para ela.
Então o rosto dele ficou totalmente focado na tela, estava realmente fardado, o simbolo da polícia
federal estava bem visível no meu canto de visão. Os cabelos extremamente pretos estavam mais
curtos nas laterais do que ontem.
— Oi, Camille. — Um sorriso provocador surgiu e eu mordi meu lábio, mil formas de responder
passando pela minha cabeça.
— Oi. — Nunca um oi soou tão deprimente para mim.
— Você chegou bem ontem a noite?
— Sim — respondi, a cara de Nina apareceu atônita no visor.
— Estou indo trabalhar. — Ele acenou e não o vi mais, apenas o som de uma porta batendo.
— Ele trabalha em pleno sábado a essa hora?
— O que meu irmão quis dizer com — fez um sinal abrindo aspas com os dedos — “ Chegou bem
a noite? ”
— Eu o encontrei por acaso num pub ontem a noite, Aline e eu saímos e foi legal. Ele estava com
um amigo...
— Flávio? — inquiriu ela, uma expressão pensativa no semblante, olhando-me atentamente.
Assenti, recostando-me na cabeceira da cama, sem saber o que pensar por causa da forma
interrogativa que ela ainda me olhava.
— Hum... — Foi o que ela disse por fim.
— Flávio inclusive me convidou a conhecer a empresa, ele disse que tem um programa muito bom
de estágio.
Nina bateu palmas, animada, e depois me enviou dezenas de looks que printara no pinterest e que
julgava ideal para uma entevista numa multinacional.
13
Camille
DR Corporação.
O prédio alto localizado no endereço que recebi no meu e-mail tinha essa nomenclatura em tons
de chumbo, dei uma olhada na calça preta que escolhi e vi duas mulheres saindo de lá, senti-me
menos apreensiva quando notei que o que elas vestiam não era muito diferente. Olhei o relógio
digital do celular, agora faltavam apenas dez minutos para o horário marcado. Retoquei o batom e
finalmente saí do carro, andei sem olhar para trás até a entrada imponente e fiquei incomodada com o
som seco que o meu salto não parava de fazer no piso de cor gelo. Todo ambiente era decorado nos
tons de chumbo e branco, até mesmo o uniforme das seis garotas que estavam nesse primeiro piso
tinha essas caracteristicas.
A DR Corporação era uma multinacional voltada para a produção de drones e estava no mercado
desde antes de eu nascer, os países que possuiam filiais eram a Flórida, o Reino Unido e o Japão,
quase decorei tudo isso, para não acabar passando vergonha por não saber de nada.
— Camille Alencar. — A garota com traços asiáticos indicou uma poltrona para que eu me
sentasse, afinal ainda não estava na hora. O ar condicionado mantinha o ambiente gelado, agradeci a
mim mesma por ter vestido um blazer, caso contrário eu estaria congelando agora.
Às dez em ponto, a mesma garota me conduziu até o andar que eu seria recebida. Ao contrário do
que imaginei, não foi Flávio quem estava lá e sim uma mulher negra muito elegante que devia estar na
fase dos quarenta anos. Ela sorriu aparentando calma, e indicou a cadeira acolchoada para que eu
sentasse. A decoração não fugia muito do que era visto nos outros andares.
Como eu temia, depois de uma série de perguntas sobre o que eu fazia no escritório de advocacia
no qual estagiei por sete meses, Romana me perguntou o motivo de eu ter saído de lá.
— Eu tive alguns problemas pessoais no período do estágio. — Dei uma resposta, tentando soar
convincente.
Não tinha sido bem assim, o estágio era uma parte obrigatória do meu curso, mas quando a
quantidade de horas que seriam necessárias para a faculdade foi completada, o dono do escritótio me
convidou a permanecer no grupo, todavia, a situação não foi muito boa, no fim das contas. Enzo me
acusou de estar tendo um caso com o homem e num acesso de raiva me deu um soco tão forte no rosto
que cheguei a pensar que nunca mais fosse enxergar.
— Não o aborreça e saia desse emprego idiota, você sabe que não precisa de nada disso. —
Lembrei-me das palavras de Heloísa, ela dissera isso, enquanto colocava gelo no lugar onde fui
atingida. E o pior era que eu tinha um nível extremo de gratidão por ela. Nesses momentos eu sentia
como se estivesse sendo cuidada, afinal ela me dava remédios para dor, colocava gelo quando era
preciso, me ajudava a camuflar os machucados com base, ou me oferecia óculos escuros quando a
coisa estava muito feia.
Fiquei dias sem aparecer no escritório, o roxo tinha ficado tão intenso que nem mesmo a
maquiagem conseguia esconder de forma satisfatória e quando apareci por lá, foi apenas para me
desligar da minha função e fazer a vontade de todos eles.
— Temos um estagiário no nosso setor jurídico, seria muito interessante para nós ampliar o
quadro desse departamento. — Ela sorriu, retirando a caneta de metal de cima de uma folha A4 e
passando-a para mim. — O antigo escritório que você estagiou fez ótimas avaliações sobre você.
Aqui está o contrato de estágio, nele você vai encontrar informações do seu interesse. Você tem 48
horas para ler, enviar as possíveis dúvidas e até desistir da vaga.
— Eu quero a vaga...
Ela deu uma risada e levantou-se, estendendo a mão para mim.
— Fique a vontade para ler e entender tudo que está escrito aí, certo?
Saí de lá exultante, doida para chegar em casa e contar a Naiá. Miguel me esperava na mesma
vaga com o carro e seguimos pela avenida, estava tão animada, como não ficava há tanto tempo que
cogitei parar e descer em algum desses quiosques do calçadão para tomar uma água de coco. Quando
Miguel conseguiu achar um lugar viável para estacionar, uma mulher grávida chamou minha atenção,
não ela exatamente, mas o homem que segurava sua mão. Ela parecia ter acabado de sair da água. A
barriga já grande da mulher loira era acarinhada sutilmente por ela. O homem, um que eu conhecia,
entregou-lhe um coco verde e logo depois enfiou um canudo nele, a forma que ela sorriu para ele foi
tão íntima que precisei desviar os olhos. Desisti de sair do carro, temendo que me vissem,
principalmente ele. Pedi a Miguel que me levasse para casa, enquanto minha cabeça trabalhava no
que aquela mulher podia siginificar, Nina nunca me dissera que seria tia, ou que o irmão fosse ser
pai. Pelo jeito tagarela dela de ser, era uma informação que com certeza ela soltaria em alguma de
nossas conversas.
Olhei pelo retrovisor, mas não foi mais possível vê-los. Continuei tentando entender tudo ou
resolver o quebra-cabeça que tinha se formado na minha mente, mas todas as resoluções eram
desagradáveis. Gravei ao máximo as feições da mulher, eu a reconheceria se a visse outra vez, não
havia dúvida quanto a isso.
A minha animação voltou quando contei a Naiá sobre a entrevista e lhe mostrei o contrato, falei
sobre como o lugar era grande e que além de mim haveria outro estágiario, mas que eu não sabia
quando o conheceria e se seria mesmo um homem.
— Quando você pretendia contar isso a mim e a seu pai? — Joice perguntou.
— Hoje, mãe. — respondi, odiando a ideia de que ela estava escutando atrás da porta.
— Saia, Naiá.
Fiquei furiosa com o tom que ela usou.
— Ela está me fazendo companhia, mãe.
— Não, ela está enchendo sua cabeça de caraminholas. Eu quero conversar com você a sós.
Naiá saiu, sem responder coisa alguma, e eu cruzei os braços, esperando, sem muito entusiamo,
saber do que se tratava a conversa.
— Tenho a impressão de que a opinião dela seja mais importante do que a minha.
— Ela sempre se importou, mãe. — Não consegui evitar, e ela se voltou para mim magoada.
Porque ela sabia que era verdade, Liz e eu nunca fomos prioridades, as festas, os contratos, os
terrenos para construção de mais prédios, as constantes mudanças de casa para mostrar status nas
rodas da alta sociedade, isso sempre foi mais importante.
— Eu sou tão ruim assim?
Fiquei chocada com o tom que ela usou, não foi irônica nem autoritaria, apenas magoada, como se
realmente se importasse. Não tive coragem de responder, a resposta seria positiva.
— Quando sua irmã morreu, eu notei. — respondeu por si só, encarando-me de frente. — Nem
acredito que ela morreu, e não consigo me lembrar quantas vezes eu a abracei, não tenho lembranças
com ela... não lembro como ela se sentiu no primeiro dia de aula, por que não fui eu quem a levei.
Não sei qual era a comida que ela gostava, nem quem eram os amigos...
Doeu em mim porque era verdade, não tínhamos construído lembranças, nem histórias juntas.
— Eu quero construir isso com você. — disse ela, aproximando-se e sentando-se na cama. —
Quero ter uma história nossa, mas não vou conseguir sozinha, preciso que me ajude.
Observei nossas mãos, a dela pegou a minha sutilmente.
— Eu sei que Naiá esteve muito mais presente que eu, mas eu sou sua mãe. Eu quero que me trate
como tal.
Eu tinha muitas coisas engasgadas para dizer, aliás tinha motivos para gritar que ela não tinha o
direito de me dizer essas coisas, quando na verdade foi ela quem nunca realmente fez o papel de mãe
que eu precisava. Contudo, eu me contive e apenas meneei a cabeça afirmativamente.
— Eu quero que respeite as minhas escolhas, mãe. — Disse com sinceridade.
— Ok. — Ela colocou o cabelo bem cuidado atrás da orelha e me olhou. — Então, onde foi essa
entrevista?
Contei para ela tudo que havia acontecido, o nome da empresa e a forma como conheci o dono e
lhe mostrei o contrato, fomos para seu quarto, onde ela encontrou os óculos de grau e acabamos
lendo o documento juntas. Algo completamente inédito.
Durante o jantar, Joice comentou sobre o meu estágio com meu pai e não houve objeção, não
fiquei muito surpresa quando ele disse que conhecia o pai de Flávio.
Quando voltei ao meu quarto, tentei ligar para Nina, mas todas as tentativas caíram na caixa de
mensagem. Só mais tarde é que ela retornou.
— Eu estava na casa de Ben, ele trabalhou o final de semana inteiro, então acabamos nos vendo
hoje. Como foi a entrevista?
Adorei quando ela perguntou isso, a questão traria a tona a cena que vi hoje cedo.
— Estou com o contrato de estágio em mãos, já dei uma lida e estou bem animada. — Dei uma
pausa. — Na volta para casa, acho que vi seu irmão.
— Onde?
— No Leblon, ele estava com uma mulher. Ele vai ser pai?
Ouvi uma risada estrondosa, e me senti patética.
— Meu irmão respira trabalho. — disse entre algumas risadas, parei para pensar se eu não estava
louca, mas eu havia visto. — Ele não vai ser pai e não tem namorada, a última namorada dele morreu
há alguns anos e depois disso não houve outra. Você pode tê-lo confundido.
Meu cérebro parou de registrar o que ela dizia no momento em que as palavras namorada e
morreu foram ditas, tentei racapitular as conversas que tive com ele, mas em nenhuma delas ele
esboçara nada do tipo.
— Camille? Ainda está aí?
— Sim, eu estou.
Ainda falamos sobre o que aconteceu durante o dia, ela me contou que conheceu a sogra e parecia
radiante com tudo, só reclamou que o rapaz trabalhava demais, com isso descobri um pouco sobre a
rotina que o irmão dela tinha na delegacia. Não era algo fácil, noites fora, operacões de risco. A
aflicão dela era nítida. Perguntava-me porque a escolha dele tinha sido essa.
Antes de dormir naquela noite eu fui ao quarto de Naiá pedir desculpas pela forma como minha
mãe falara com ela, deitei-me ao seu lado na cama, como eu fazia quando era mais nova e estava com
medo do escuro ou trovoadas, o pijama de algodão parecia ser o mesmo daqueles anos.
— Ela esta sentindo o peso do que não foi vivido. — Referiu-se à minha mãe de modo sábio,
enquanto passeava as mãos pelos meus cabelos.
Fiquei quieta aproveitando da tranquilidade que era estar perto dela
Os dias foram passando, e uma nova rotina se estabeleceu. Meu estágio começou assim que
entreguei o contrato assinado, no mesmo dia Flávio me levou para conhecer todos os
departamentos e me apresentou às pessoas que trabalhavam no mesmo setor que eu. A minha
insegurança foi se dissipando ao longo do primeiro dia, a chefe do meu setor foi muito solícita em
todas as minhas dúvidas e acabamos tomando um café juntas no final do primeiro dia. Como Flávio
estava ciente das minhas aulas de pintura no projeto, meu contrato não era para todos os dias da
semana.
Para minha surpresa havia um café da noite me esperando, a mesa estava posta com porcelanas
delicadas e várias coisas que eu gostava estavam prontas, sorri imediatamente para Naiá e ela piscou
para mim e disse discretamente que tinha sido ideia da minha mãe.
Entrei mais na sala e encontrei Nina e Aline, ambas conversando com Joice.
— Ela chegou... — Mamãe disse, e veio em minha direção, ela usava um macacão branco
elegante, a aparência impecável como sempre. — Eu tomei a liberdade de convidar suas amigas para
tomarem um café conosco, como hoje foi seu primeiro dia de estágio... Você gostou? — Havia uma
dose imensurável de insegurança nela.
— Eu adorei, mãe. Obrigada. — Beijei de leve seu rosto e sorri para as meninas.
— Parabéns pelo primeiro dia.
Ela me abraçou, Aline fez o mesmo e depois de contar sem muitos detalhes como tinha sido o dia,
afastei-me para tomar um banho antes de me juntar a elas. Não passei muito tempo no banheiro, no
fundo eu estava animada para contar mais detalhes de como foi e estava faminta também. Vesti-me
com um vestido folgado e voltei a sala com os cabelos ainda molhados, enquanto caminhava de volta
para a sala de jantar, escutei a conversa das quatro.
— Eu achava que você era aqui do Rio mesmo. — Ouvi minha mãe dizer para Nina.
— Não, nasci em Minas, mas meus pais e meu irmão são de São Paulo.
Sentei de frente para ela e me servi de suco de laranja.
— Ainda tenho um pouco de sotaque, mas é bem pouquinho mesmo. — O tagarelar fácil dela
continuou.
Minha mãe ainda comentou com Nina sobre a adaptação dela ao Rio de Janeiro e depois voltou-
se para mim, interessada.
— E então, como foi lá?
— Foi muito bom, eu estava precisando de algo com o que ocupar a cabeça.
— Achei que o tcc estava ocupando bastante. — Aline brincou.
— Sim, mas não de um jeito bom.
Nós rimos.
— São pessoas legais, a minha chefe é muito solícita, tem muita experiência na área, acho que vou
aprender muito.
Ignorei a mensagem de Aline, dando-me conta de que os dias tinham se passado rapidamente e
que já era sábado outra vez. Embora a semana tivesse sido proveitosa, a agitação familiar de quando
minha mãe tinha um grande evento para ir, trouxe a tona algumas realidades desagradáveis — ela e
Heloísa passaram horas ao telefone, e logo depois Joice veio ao meu quarto. A festa de boas-vindas
de Enzo havia chegado, e as constantes tentativas de me convencer a participar foram muitas, tudo
aconteceria na casa de praia que eles tinham em Parati. A minha festa de noivado fora lá, eu conhecia
a casa, conhecia o lugar e sabia exatamente o tipo de gente que iria.
— Sabe que está sendo mal educada, não é? — Joice perguntou, o cheiro forte de esmalte ainda
podia ser sentido em sua unha.
Senti vontade de bufar, mas me contive, afinal, mesmo tentando me converncer a ir, em nenhum
momento ela fizera chantagem ou fora desagradável como geralmente era nesses casos, meu pai
também não insistiu. Virei-me para olhá-la e soltei um espirro, minha cabeça estava pesada e eu
realmente não queria discutir.
— Vá terminar de se vestir, mãe... — Puxei outro travesseiro e o coloquei junto com outro sob
minha cabeça.
— Tudo bem.
Suspirei aliviada assim que ela fechou a porta. Coloquei Someone You Loved na versão de Boyce
Avenue no spotify e fechei os olhos sem acreditar que estava ficando gripada. Naiá tinha ido para seu
final de semana de jogatina e eu ficaria o final de semana inteiro em casa.
14
Marcone
*
Joguei as chaves no aparador, enquanto olhava as mensagens de Nina. A encrenqueira tinha
mesmo me abandonado por aquele puto desalmado. Qual tinha sido a última vez em que assistimos a
um filme juntos ou fomos ao Poli Mix, ou simplesmente ficamos conversando sobre os sucos terríveis
que ela tomava para não ficar inchada? Era uma traidora, a maldita fase em que éramos trocados
pelos namorados. Digitei um ok em resposta para o aviso de que ia dormir fora, de que não a
esperasse e nem ficasse preocupado.
Deixei o aparelho sobre a cama e fui para o banheiro, livrando-me da calça e das botas. Desde a
morte de Samanta os impulsos para deixar de fazer o que eu fazia eram constantes, mas algo sempre
parecia me atrasar, colocar a questão em segundo plano, como se não fosse importante, mas eu sabia
que era. Encarei-me no espelho, estava cansado, depois do banho o aspecto abatido da noite sem
dormir ficaria menos aparente, ou não. Melhor que fosse dormir e deixasse para me preocupar
depois. Os olhos cheios de ódio do homem que me encarara e ameaçara não tinham saído da minha
cabeça. Por vezes me perguntava o que levava as pessoas a se tornarem o lado podre da sociedade.
Se era mesmo a falta de oportunidade ou se era algo que já vinha do berço, da parte mais intrínseca
da natureza humana. Acho que nunca teria essa resposta, muito pelo contrário, ela se tornaria uma
dúvida ainda maior com o passar do tempo, principalmente se permanecesse por muito mais tempo
dentro dessa profissão.
Por um tempo, embaixo do chuveiro permiti que a minha mente ficasse nublada o suficiente para
que nada frustrante viesse me atormentar, perguntava-me, às vezes, se a mente de todas as pessoas
era tão barulhenta quanto a minha, de alguma forma eu me tornei alguém aceso demais, era como se
sempre alguma coisa fosse acontecer, embora eu sempre acreditasse ou quisesse acreditar que não
eram traumas, no fundo eu tinha certeza que sim. Só não era honesto o suficiente comigo mesmo para
admitir isso. Peguei a toalha seca pendurada no anel de metal na saída do boxe e parei em frente ao
espelho, enquanto enxugava os cabelos. De onde estava escutei o celular vibrar, ou era Andrea ou
Flávio, geralmente quando eu estava de folga marcávamos um chope ou algo do tipo, mas hoje eu não
estava com vontade nem de uma coisa nem de outra.
Vesti uma boxer e peguei o celular, antes de sair do quarto. A mensagem, no entanto, era de Nina.
Três arquivos. Deixei fazendo download e fui até a geladeira, tinha mais água mineral do que
qualquer outra coisa, além dos ingredientes dos sucos terríveis da minha irmã. Franzi o nariz com a
última constatação e resolvi pedir alguma coisa no delivery. Peguei o aparelho e abri as fotos, a
primeira impressão que tive ao olhá-las foi do tamanho esforço que tinha feito para não pensar nessa
garota. Todas as três imagens eram de nós na piscina, no meu último dia na fazenda, tiradas no
iphone de Ben. Eu, Camille e Nina, ampliei a imagem e foquei no rosto de Cami, mesmo na foto os
olhos dela pareciam atrair um magnetismo surpreendente, o sorriso ainda mais incrível, acho que
pelo fato de ela sorrir pouco. Deixei minha mente vagar para a cachoeira, em como ela estava
relaxada, risonha, confortável perto de mim, não sei por que o simples fato dela se sentir à vontade
comigo me deixava tão elétrico, diminui a imagem para o tamanho normal e olhei seu corpo inteiro,
não sei quanto tempo permaneci olhando aquela foto, não tinha me permitido ligar nem mandar
mensagem, obviamente aquela menina já tinha passado por algum evento traumático, a linguagem
corporal, as oscilações de humor, o desconforto inicial quando estava perto de mim, havia algo de
errado.
Abri o aplicativo de mensagens e procurei o contato dela, estava off-line, a foto de perfil tinha
mudado, antes era a pintura de uma mulher negra, perguntava-me se era uma das obras dela, agora
estava seu rosto contra o reflexo do sol, os olhos claríssimos.
De Marcone:
Saudades.
Mandei antes que voltasse atrás e voltei caminhando para meu quarto, com os olhos grudados na
tela. Ela ficou on-line e eu sentei na cama, recostando-me na cabeceira estofada.
De Camille:
Marcone
De Marcone:
Sou eu. Senti saudades. Como você está?
Dessa vez ela demorou um pouco mais para responder, começou a digitar e parou umas três vezes,
ajeitei melhor os travesseiros e deitei.
De Camille:
Estou bem. Também senti saudades.
Desisti de digitar, cobri minha quase nudez com o edredom e fiz uma chamada de vídeo. Mais uma
vez ela demorou de atender — perguntei-me se eu não estava incomodando, ou se talvez ela nem
estivesse em casa. Podia estar na balada, afinal era sábado. Na segunda tentativa Camille atendeu,
mas não vi nada a não ser escuridão, parecia que o dedo dela estava tapando a câmera. Dei risada.
— O que você está fazendo? — perguntei.
Ouvi um espirro e a música suave que tocava foi desligada.
— Estou deitada. E você? — Um sussurro e outro espirro.
— Deixe-me ver você, o que aconteceu com sua câmera?
— Nada, eu estou horrível.
Eu ri, achando a ideia impossível. Uma provável blasfêmia, aliás.
— Você não ficaria horrível nem se estivesse sem um dente da frente. — Ouvi a risada abafada e
outro espirro.
— Qualquer pessoa ficaria feia sem um dente da frente.
— É, você tem razão, mas não é o seu caso, é? — Esperei, mas ela permaneceu em silêncio. —
Vamos lá, estou com saudades. Deixe-me ver você.
Aos poucos, a luz foi aparecendo e então o rosto dela.
— Está resfriada? — As maças e o nariz estavam vermelhos no rosto delicado, os olhos irritados
e um pouco úmidos, e os cabelos presos num coque frouxo, algumas mechas fugiam e decoravam o
pescoço esguio, reconheci a blusa que ela estava usando porque era minha, a mesma que lhe
emprestei numa das madrugadas em que tomamos chocolate quente juntos na fazenda, um suspiro que
apenas eu escutei saiu dos meus lábios.
— Um pouco. — Ela sorriu e deitou-se, os cabelos fugiram do coque e esparramaram-se pelo
travesseiro.
Fiquei sem saber o que dizer, encantado com o sorriso raro que ela deu..
— Posso passar aí pra ver você? — soltei sem pensar.
— Você vem mesmo? — Ela estava surpresa.
— Sim, se você quiser que eu vá. — Deixei que ela decidisse, o meneio afirmativo que ela deu
foi quase imperceptível. — Vou pôr uma roupa.
Ela fez que sim, e eu encerrei a chamada. Procurei por um jeans e uma camisa, e saí, catando o
celular, a carteira e as chaves do carro. Quando segui em direção à rua Lopes Quincas, perguntei-me
se estava fazendo a coisa certa. Afinal, eu já estava decidido a ficar longe dessa garota e de
problemas, todavia, não ia dar certo, aliás pouca coisa tinha dado certo na minha vida nos últimos
anos. Dei risada de mim mesmo e consertei o retrovisor, checando a traseira do carro. Eu estava
atraído e podia ser bem chato dizer isso, mas havia um tempo que não sentia esse tipo de atração por
alguém. Aquela sensação boa que sentíamos quando estávamos perto de alguém querido, eu podia
estar sendo equivocado, mas sabia que ela sentia o mesmo.
Em menos de dez minutos, eu estava no prédio dela. Antes de estacionar pude vê-la, usava um
vestido branco e os cabelos estavam presos num rabo de cavalo. Fiquei ridiculamente nervoso por
um momento, vendo-a na portaria. Camille olhou para o carro, e deu um passo a frente, os braços em
volta do corpo, como se sentisse muito frio. Destravei a porta para que ela entrasse, o cheiro que
estava ficando familiar tomando conta imediatamente do espaço pequeno que ocupávamos. O sorriso
que ela deixou escapar quando viu a mim, foi excepcionalmente especial. Eu não a via sorrir tão
abertamente assim,
— Oi. — A voz estava meio anasalada por causa do resfriado.
— Oi, Camille.
Por uns dois minutos tanto eu quanto ela permanecemos em silêncio.
— Há um elevador privativo. — Ela apontou para a área sinalizada por cones amarelos e eu
coloquei o carro em movimento outra vez, dirigindo exatamente para onde ela havia apontado.
Chequei a traseira do carro através do retrovisor e destravei a porta para que saíssemos.
— Como foi a primeira semana de trabalho?
Ela parou rapidamente para me olhar, provavelmente surpresa que eu soubesse da novidade.
— Foi... interessante.
Apertou o botão da cobertura e virou-se para mim, depois de entrarmos no elevador.
— Como sabe sobre o trabalho?
— Nina não segura a língua.
Ela riu baixinho, olhou e desviou os olhos de mim, como se não soubesse o que dizer. O rosto
estava mais corado do que o comum por causa da gripe.
— Flávio está sendo legal?
— Sim, todos são bem legais lá.
Ela espirrou outra vez, automáticamente coloquei a mão direita em sua testa — estava quente, ela
devia estar com febre.
— Quem está cuidando de você? — perguntei, quando ela voltou a abraçar o corpo.
A porta do elevador se abriu e nós saímos, Camille colocou o dedo indicador na fechadura
eletrônica e olhou para mim.
— Meus pais viajaram para uma festa e a minha antiga babá está de folga e foi jogar baralho na
casa de uma amiga.
— Você não foi porque não está se sentindo bem?
Olhei ao redor, quando ela acendeu os leds da sala, a decoração completamente clean, tudo muito
claro e cheio de vidros, a varanda integrada com as duas salas deixava o ambiente bem fresco, a sala
de estar e jantar eram divididas por uma parede curta de vidro.
— É bem bonito... — comentei, seguindo-a para uma das conexões.
— É bem sufocante também.
Emendou ela e subimos um pequeno lance de escadas, Cami abriu uma porta para que entrasse. O
quarto dela — completamente diferente do que imaginei — a cama estava desfeita, minha blusa sobre
ela, o perfume dela era totalmente intenso ali dentro, as cores eram mescladas entre branco e
dourado, com poucos detalhes verdes. Havia um notebook aberto sobre a escrivaninha ao lado de
uma agenda dourada.
Continuei olhando por ali, tentando ligar os detalhes à personalidade dela, as canetas estavam
espalhadas pela escrivaninha, uma cartela de comprimidos estava ali intocada, sinal de que ela não
havia se medicado. Olhei para trás, vendo-a sentar-se na cama e abraçar uma almofada estranha.
— O que tem ali dentro? — Apontei para uma porta branca.
Por favor, não entre sem que eu permita.
Era a mensagem que estava colada na porta.
— Meus quadros.
— Posso ver? — perguntei, curioso para conhecer outra parte dela. Ainda era incapaz de definir
com propriedade essa garota.
— Não. — Ela sorriu e espirrou outra vez. — Outro dia.
Fiquei ainda mais interessado por causa da recusa, perguntei-me o que ela guardava ali, surpreso
com a quantidade de coisas que queria sabre sobre ela.
Assenti e parei perto da agenda, meus olhos passaram rapidamente pela página aberta, as palavras
ali chocaram com alguns sentimentos que também tinha guardado por muito tempo, eram
questionamentos que também tinha feito diversas vezes, em muitos momentos aos gritos, como se
alguém fosse me escutar e realmente responder.
Às vezes, eu esquecia que ela tinha perdido alguém há tão pouco tempo, deixei de bisbilhotar e fui
me sentar perto dela, Camille me espaço para sentar ao seu lado.
— Por que você não foi com seus pais? — Voltei a perguntar.
Ela ponderou por algum tempo, em meio a alguns espirros.
— Não é algo que eu queira participar.
Voltei a olhar ao redor, era uma casa confortável, ela morava bem, estudava em das melhores
faculdades do Rio de Janeiro, era linda, no entanto, não parecia muito entusiasmada com nada disso,
a aversão que ela parecia sentir pela casa era notável. Lembrei do que ela dissera sobre estar na
fazenda, sobre se sentir segura lá. Quanto mais coisas eu não sabia sobre ela, mais eu ficava tentado
a descobrir, a entrar por cada nuance que ela me desse, cada brecha, cada palavra, cada peça do
quebra-cabeça que era ela. Recostei-me na cabeceira da cama e segurei com delicadeza a mão
quente.
— Eu falei sério quando disse que queria ser seu amigo. — Deixei que nossos dedos se
entrelaçassem, esperando por uma reação dela.
Camille revirou os olhos, mas não se afastou.
— Isso não é verdade. Você deseparece o tempo inteiro... — retrucou ela, mas uma dose de
constrangimento se insinuou em seu semblante.
Permaneci calado porque ela tinha razão, eu tinha desaparecido. Havia a chamada
responsabilidade afetiva que muitos pregavam e poucos de fato viviam, eu tinha certeza que se
continuássemos a nos vermos, iria passar de simples amizade — a atração já era forte da minha
parte, a beleza combinada à personalidade misteriosa que ela tinha, aos pequenos detalhes que eu já
gostava.
— Você tem razão.
Ela ficou surpresa, foi evidente.
15
Camille
— Tenho razão? — Inquiri, chocada. Tentei contar mentalmente quantas vezes alguém dissera
que eu tinha razão, ao invés de me chamar de louca.
Nenhuma vez.
— Sim, você tem. — Ele deu um sorriso suave, olhando-me, enquanto os dedos faziam um vai-e-
vem carinhoso na palma da minha mão. — Você está com febre.
— Estou me sentindo horrível, todo o meu corpo está doendo... — reclamei.
— Vou pedir um antitérmico, você devia tomar um banho frio.
Encolhi-me na cama, ainda segurando a mão dele e fechei os olhos, sentindo-os como se pesassem
toneladas.
— Você está falando como Naiá. — Tentei abri os olhos para vê-lo, mas não consegui. — De
quem você já cuidou?
— Tenho uma irmã irresponsável, Camille.
Eu ri, senti a mão dele na minha testa e então os meus cabelos foram afastados do meu pescoço.
— Está quente demais. — A voz soou preocupada, mas as minhas pálpebras estavam cada vez
mais pesadas.
Senti quando ele levantou, fiquei com mais frio. Escutei-o se mexer pelo quarto e depois a porta
ser aberta. A muito custo, abri os olhos, tentando ver se ele havia ido embora, mas Marcone voltou a
passar por ela trazendo um copo de água alguns minutos depois.
— Você precisa beber isso, está muito quente. — Aproximou-se com a água e o analgésico que
deixei sobre a mesa. Eu não era muito fã de remédios, todavia obedeci.
— Eu estou com frio. — Ao contrário do que imaginei, ele retirou o edredom da cama e aumentou
a intensidade do ar condicionado , algo como 22° C.
Mesmo um pouco letárgica, perguntei-me como ele encontrava as coisas com facilidade, eu não
fazia ideia de onde estava o controle do ar.
— Claro que está com frio. — ele zombou e voltou a sentar perto de mim. — Vou ficar aqui até
você estar melhor.
Foi o que ouvi antes de pegar no sono.
*
Antes de abrir os olhos, senti uma umidade quente em meu rosto, custei a acostumar com a luz,
embora alguns dos leds não estivessem ligados.
— Está se sentindo melhor? — A voz grave soou acima da minha cabeça.
Ergui os olhos e encontrei o rosto de Marcone, os olhos azuis sonolentos, levantei a cabeça do
peito dele, tentando ver a hora no relógio que ficava sobre o criado-mudo.
00:51.
Sentei-me, sentindo-me levemente melhor, mas extremamente suada e pegajosa, a camisa dele
estava com uma marca imensa de umidade.
— Você dormiu, a febre deve ter te deixado exausta. — Esclareceu ele, sentando-se também.
— E você ficou aqui?
— Sim. Você é extremamente falante enquanto dorme. — disse ele, parecendo satisfeito consigo
mesmo. Claro que estava zombando.
Liz dizia que eu repetia a palavra para muitas vezes, foi prestando atenção em algumas coisas que
eu falava durante o sono que ela descobrira muitas coisas.
— Eu molhei você inteiro. — Voltei a olhar a umidade que eu havia deixado na blusa dele e
toquei por reflexo, senti os músculos duros do tórax sob o tecido e prendi a respiração, uma
curiosidade grande demais para ver como era.
— Está sem febre agora, isso é importante. — Olhou-me, uma de suas mãos envolveu a minha que
o tocava e ele a beijou suavemente.
— Preciso de um banho. — Praticamente gemi, puxando o elástico do cabelo, e enfiando o dedos
por ele.
— E eu preciso ir.
Parei de mexer no cabelo e olhei para ele, seria ridículo dizer que estava cedo, afinal já passava
da meia noite, e pior, eu tinha passado a maior parte do tempo dormindo.
— Já que... quer ver meus quadros — sondei, os olhos dele ficaram mais atentos, mais do que o
natural, porque eu tinha a impressão de que ele estava sempre em alerta. — Vá assistir uma aula
minha amanhã.
Ele ponderou por um tempo.
— Não é bem uma aula, é mais um encontro com as crianças, mas tenho pinturas minhas lá...
— Hum, porém não posso ver ainda essas daqui... — Foi uma afirmação, assenti. — A que horas
é esse encontro?
— Nove.
— Ok, passo aqui antes de nove.
*
Se Naiá me visse de pé antes das oito da manhã, provavelmente ela diria que eu estava com algum
problema grave — mas, ansiedade era um problema grave, eu diria. Os espirros tinham diminuído e
a febre não tinha voltado. Caminhei para o closet para escolher algo para vestir, sem ter certeza de
como deveria parecer essa manhã.
Busquei algo fresco, já que o dia estava previsto para ser quente — vesti um macacão soltinho
longo, o tecido levinho me deixou momentaneamente relaxada. Tirei a toalha dos cabelos e fui
devolver ao cabide no banheiro, eles ainda estavam úmidos. Penteei-os rapidamente, desistindo de
usar o secador.
Saí do quarto, e segui o som do interfone na cozinha.
— Sim?
— Cami, um amigo seu está aqui.
A voz de Miguel soou baixa.
— Quem é? — Eu sabia que provavelmente era Marcone lá fora, mas não custava nada ter
certeza.
— Marcone.
Ouvi um dialógo curto entre os dois e então a respiração de Miguel ficou evidente novamente.
— Ele vai esperá-la aqui embaixo.
— Ok, Miguel. — Pensei em pedir que subisse, mas desisti.
Voltei rapidamente para meu quarto para terminar de me arrumar, e peguei o celular e a bolsa.
Encontrei Marcone no saguão, sentado numa das poltronas, pensativo.
— Você está uma hora adiantado. — disse, assim que cheguei perto dele.
— Na verdade, podemos tomar um café — sugeriu, olhando-me. — Se você quiser, é claro.
Marcone
O celular tocou no momento em que estacionei o carro diante do prédio que muitas vezes tinha
vindo buscar Nina, mas que nunca entrei para conhecer. Algumas crianças ainda estavam chegando,
junto com adultos, Aline, a moça que estivera com Camille na noite que nos encontramos no pub
estava conversando com um homem alto, que parecia se virar o tempo todo procurando por alguém.
O nome de Andrea estava piscando na tela.
— Preciso atender. — Destravei as portas e olhei rapidamente para Camille ao meu lado. — Só
alguns minutos.
— Claro, vou falar com Aline, enquanto espero você terminar.
Ela saltou do carro e eu aceitei a chamada de Andrea, enquanto observava Camille se afastar.
— Andrea.
— O que está fazendo? — Pela voz arrastada, ela ainda devia estar deitada. — Tem agenda para
almoço hoje? Já que Nina deve ter esquecido que você existe.
Filha da mãe.
— Estou na rua, Andrea, vim assistir uma aula de Camille.
A tosse histérica que ela deu do outro lado da linha, fez-me rir.
— Espero que você não morra entalada a essa hora da manhã.
— Cretino!!
Afastei o celular da orelha para não ouvir as barbaridades que ela devia estar soltando aos ventos
e vi Camille apontar na direção do carro, enquanto dizia alguma coisa a Aline, o homem alto também
olhou, por um tempo mais longo.
— Que tal tomarmos alguma coisa a noite? — Resolvi lhe dar atenção.
— Hum...
— Já tem algo marcado, imagino. — Bufei, embora ela não tivesse me contado sobre o seu
envolvimento com um dos agentes novatos, eu desconfiava.
— Não, pode ser.
Guardei o celular o bolso, depois de desligar e saí do carro.
— Marcone, esse é Tarcísio. Aline você já conhece. — Cami me apresentou ao homem que
pareceu murchar mais a cada minuto, apertei sua mão e dei uma aceno com a cabeça. — Ele é um dos
pscicólogos daqui.
Acompanhei-a para dentro do prédio, ainda surpreso que tudo aquilo fosse elaborado por Flávio,
não conhecia essa faceta generosa que ele tinha. Passamos por um lavatório, onde lavamos as mãos.
Ela abriu a porta de uma sala, e foi como um gatilho em mim, a maioria das crianças estavam
carecas, perguntei-me se realmente era saudável para elas estarem ali. Fiquei preso no lugar por um
tempo, elas me olhavam com curiosidade.
— Entra, elas devem estar querendo saber quem você é. — Cami sorriu e tocou meu ombro para
que entrasse e ela pudesse fechar a porta.
Cada cabecinha olhava na minha direção, perguntei-me como ela lidava com eles, a sala era
espaçosa e clara, resultado das inúmeras vidraças espalhadas pelas paredes.
— Olá, crianças. — Ela sorriu, e houve um coro de vozes agitadas respondendo “ oi, tia”.
Ela começou a abrir todas as janelas e por fim cruzou os braços, olhando mais demoradamente
para uma garotinha de vestido amarelo.
— Quem é ele? — a menina perguntou, olhando-me.
— Um amigo, ele se chama Marcone e vai ficar conosco hoje.
Ela contou a eles que eu era irmão de Nina e vieram perguntas de todos os tipos sobre nós dois.
Isso durou quase meia hora, então as crianças receberam algumas telas e Camille as instruiu a
desenhar detalhes de como estavam se sentindo naquela manhã, achei graça quando recebi uma tela
igual à delas, sentei meio desengonçado por causa do meu tamanho e fitei por minutos sem fim a tela
branca, sem fazer a menor ideia do que tentar desenhar, eu era péssimo em qualquer coisa do tipo.
— E então? O que está pintando? — Ouvi a voz dela uns minutos depois.
Olhei para o espaço totalmente branco a minha frente.
— Tem a ver com o que está sentindo? — Ela colocou o cabelo para trás dos ombros e curvou um
pouco o corpo para ver de perto.
— Não tenho essa criatividade. — O magnetismo verde de seus olhos pousaram em mim de um
jeito zombeteiro.
— É bom você desenhar algo, as crianças vão ti encher de perguntas. — Ela riu, e voltou a olhar
para a mesma menininha.
— Qual o nome dela? — perguntei, curioso. Além do vestido, o lenço que estava em sua
cabecinha também era amarelo.
— Isabelle.
— O que ela tem?
— Leucemia. — Camille sentou-se perto de mim e cruzou as pernas, ela parecia um pouco
diferente de quando nos vimos na fazenda pela primeira vez, parecia mais relaxada, menos arisca e
menos melancólica.
— Ela vai ficar boa? — A pergunta chamou sua atenção, ela olhou para mim tristonha.
— Eu não sei. Eu espero que sim.
— É saudável para elas estarem aqui? — Deixei o pincel de lado, olhando para a menina. Tão
nova e tão doente.
— Há médicos e pscicólogos aqui, as crianças que tem qualquer tipo de alergia ou intolerância ao
que usamos aqui participam de outras aulas, a ideia é que elas aprendam e se sintam normais, como
as outras crianças.
— São novos demais, imagino que os pais deles não devem ter paz.
Ela me imitou, observando cada um deles como eu fazia.
A menina que se chamava Isabelle era falante e excelente pintora, num dado momento da manhã
ela se sentou ao meu lado para me mostrar o que tinha pintado — uma ampulheta — ela não tinha
usado pincel, tinha feito um jogo de cores com hidrocores e lápis, parecia um desenho 3d dada a sua
veracidade. A mãozinhas finas pegaram a minha tela, enquanto eu dava uma olhada — estupefata —
no desenho perfeito dela.
— Você não fez nada. — O tom dela foi irritado, enquanto olhava-me de cara feia.
— Eu não sei desenhar e usar essas coisas...
— Não são essas coisas, são pinceis e tintas! — Ainda mais irritada.
Olhei para ela tentando desvendar se talvez ela não fosse um et. Os olhinhos lacrimejavam com
facilidade, pequenas veias finas eram bem evidentes na testa e no rostinho extremamente branco, em
toda a sua irritabilidade me dei conta de que ela era uma das crianças mais lindas que já tinha visto,
embora a falta de saúde fosse clara.
— Vou vir aqui outras vezes para você me ensinar.
Isabelle me olhou e depois sorriu docemente, estendeu a mão como se quisesse fechar um acordo
e eu a apertei com cuidado, era bem pequena e frágil. Ignorando-me por completo depois disso, ela
pegou o pincel e abriu a tampinha da tinta vermelha, molhou-o e tocou sobre minha tela.
— Tem cor de sangue — refletiu.
— Porque desenhou uma ampulheta?
— Porque eu ouvi meu pai dizendo que tenho pouco tempo, se ele não ganhar mais dinheiro. —
Ela disse com uma naturalidade inquietante, deixando-me mudo.
Abri a boca para dizer algo, mas me faltaram as palavras, concentrei-me no que ela ia
desenhando.
— Vocês são namorados? — a mudança de assunto me pegou desprevinido, eu nem mesmo tinha
digerido o que ela acabara de me dizer, porra!
Ela me olhou irritada, quando demorei de responder.
— De quem você está falando exatamente?
— De você e da tia Cami. — A olhada que ela me deu, fez-me parecer um idiota como Nina
costumava fazer comigo. — O tio Tarcísio é apaixonado por ela.
A cara murcha que o infeliz fez ao me ver mais cedo fazia sentido agora. Olhei para Camille, ela
estava colocando as telas num expositor para secar, estava completamente distraída e ainda mais
atraente, era bem possível que ela não fizesse ideia do magnetismo que emanava tão naturalmente,
sem qualquer esforço.
— Como você sabe? — Claro que eu ia perguntar isso, uma sensação estranha se insinuou, ele
passava mais tempo com ela do que eu, talvez até fizesse parte da sua rotina fora daqui. Talvez
fossem próximos, se falassem todo dia.
— Ah, eu sei dessas coisas — a menina disse, concentrada no que quer que estivesse desenhando.
— Mas ela não dá muita bola para ele. — Percebi que eu gostava dessa garotinha, parou de desenhar
e me olhou atentamente. — Ela dá pra você.
Não pude conter a gargalhada.
— Ela tá vindo pra cá. — Fez um sinal para que eu ficasse quieto, com uma carinha de anjo
pouco confiável.
— O que vocês estão cochichando aí? — Camille olhou para mim e depois para Isabelle.
— O tio Marcone disse...
Prendi a respiração com medo do que a pequena espertinha fosse dizer, afinal eu conhecia a falta
de filtro que esses pequenos tinham, revirei a minha mente em busca de alguma barbaridade que eu
pudesse ter dito, mas não lembrei nada preocupante, na verdade ela é quem não tinha segurado a
língua e estava fazendo o mesmo agora.
— ... que vai ti levar para almoçar hoje.
— O quê? — A pergunta saiu engasgada, apesar de que já tinha essa ideia em mente. A pequena
atriz, olhou-me de cara feia, quando Camille não estava prestando atenção nela.
— Foi exatamente isso que estávamos falando — admiti.
— Vocês dois estão bem estranhos. — Cami riu e depois olhou para a tela que Isabelle acabara de
pintar.
— Fiz um coração pra vocês dois.
16
Camille
Isabelle foi a última criança a sair, tagarela como sempre. Era sempre a sua vizinha que vinha
buscá-la, era a única criança que eu ainda não conhecia os pais. O pai. Ela sempre falava do pai.
Marcone me ajudou a fechar as janelas e colocar as cadeiras no lugar.
— Agora entendo por que Nina sempre vem quando pode. — Ele disse, olhando as telas pintadas,
cada uma com sua particularidade, no expositor.
— Deixe-me mostrar a você o que ela desenhou da última vez. — Fui até o armário branco, onde
ficavam as telas secas, busquei pela letra N e puxei o desenho nada bonito que ela fez dele. — Não
conte a ela que mostrei a você.
— Os segredos que você me obriga a guardar só aumentam. — retrucou ele, aproximando-se,
interessado no que eu mostraria.
Coloquei a tela sobre a mesa e meu pensamento voou para a cachoeira, para o tempo que
passamos juntos, de como fora tranquilo e do quanto eu gostaria de repetir.
— Ela disse que é você.
Os olhos azuis tornaram-se divertidos, zombeteiros, então ele soltou uma gargalhada gostosa — o
desenho de fato estava ridículo, mas muito cheio de afeto.
— Cami.
Olhei para trás e vi Tarcísio, que permanecia a soleira da porta, observando-nos taciturno.
— Oi. Está precisando de alguma coisa?
Ele tinha me ajudado muito no meu início aqui, meus traumas, a dor de perder minha irmã, a
melhor maneira de lidar com as crianças, ele era um bom amigo.
— Não, achei que você estivesse sozinha. — Dessa vez Tarcísio olhou para Marcone, fiz o
mesmo, ele observava nossa interação em silêncio.
— Marcone está me fazendo companhia, vou embora com ele. — Sorri e ele acenou com a cabeça
antes de afastar-se.
— Então, vocês são amigos? — Desviei a atenção para ele, erguendo umas das sobrancelhas.
— Sim. — Dei uma resposta simples.
— Então nada de namorados? — O olhar dele tornou-se intenso e eu só fiz que não com a cabeça.
Não ficamos mais muito tempo ali, saímos em silêncio e durante o trajeto até um restaurante que
eu escolhi, conversamos um pouco mais. As perguntas dele eram sobre mim, giravam em torno da
minha infância, mas nunca mencionava minha irmã, parecia saber que me machucaria. Era difícil não
gostar dele, Marcone e Nina tinham o mesmo nível de encantamento, um que não era encontrado com
facilidade por aí.
— É aqui? — Perguntou ele, encarando-me, depois de estacionar.
Fiz que sim e nós descemos, era simples, tranquilo e bonito. Eu gostava da comida e do lugar,
geralmente vinha quando conseguia sair sozinha sem ninguém perceber — sempre me sentava no
mesmo lugar, de frente para as vidraças de onde eu podia ver toda a movimentação diurna, as
pessoas, a risada delas, a forma como todas pareciam muito felizes, satisfeitas. Houve um período
que me senti exatamente assim, feliz, satisfeita, até mesmo egocêntrica, depois tudo desandou. O que
era encanto virou pesadelo, e o que era felicidade virou medo, inconstância, insegurança e então eu
não era mais eu, parecia submersa em algum mundo paralelo, distante de mim mesma, do que queria,
do que precisava. Escondida, presa, acorrentada, atada a circunstância doentias que no mundo que eu
tinha criado na minha cabeça eram normais, aceitáveis, o que eu merecia.
— Costuma vir aqui?
Marcone me fitava interessado, perguntava-me se ele me visse por inteiro, todas as minhas
camadas, todos os meus eus, toda a minha história, se ele continuaria sendo tão gentil comigo.
— Qual o problema, Camille? — Ele parecia frustrado, provavelmente por causa do meu
silêncio.
— Nenhum, só estava pensando algumas coisas. — retruquei, presa no rosto dele. A capacidade
que ele tinha de perceber, de ler, de ver era constrangedora, às vezes.
— Coisas ruins, suponho. — As sobrancelhas grossas se franziram e um pequeno vinco surgiu,
bem parecido com o que aparecia em Nina, quando ela estava irritada ou muito empolgada.
— Ser observador é parte do seu trabalho ou é uma qualidade natural? — Peguei um guardanapo
e comecei a dobrá-lo, sem qualquer efeito.
Ele não respondeu de imediato, apesar de não estar fitando-o, podia sentir seus olhos em mim.
— Acho que os dois.
— Você recebe treinamento para isso, você sabe quando alguém está mentindo? — Olhei-o, de
repente interessada no que ele fazia. Afinal, Nina dissera que ele respirava trabalho.
— Sim para as duas perguntas.
— E quanto a mim? — perguntei, sem saber se tinha formulado a questão com as palavras certas.
Marcone ponderou por um tempo, parecendo olhar além do que as pessoas normais me viam em
mim.
— Ainda é uma incógnita, muda de personalidade muito rápido. Às vezes, não sei bem o que
esperar. Acho que você vai fazer uma coisa e você faz outra. É inconstante e desconfiada. — Minha
piscicóloga tinha dito algo parecido, algo sobre a incostância e a minha impulsividade. — Contudo,
eu acho que vou acabar me habituando e entendendo melhor, conforme formos nos conhecendo.
Mordi o lábio, evitando um sorriso, eu não queria mostrar que tinha gostado do que ele falara e
muito menos dar asas a minha imaginação.
— Se você não desaparecer outra vez, não é?
Tentei fazer pouco caso, olhando para o cardápio, mas falhei pela risada que ele deu.
— Você pode me ligar ou mandar mensagens a hora que quiser, Camille. — disse ele, mas logo se
virou para chamar alguém para nos atender, foi bom por que eu não tinha resposta para dar.
Uma das comidas que eu mais gostava aqui eram as carnes que eles ofereciam, Marcone pediu o
mesmo que eu, apesar de nunca ter provado — podia ser ridículo, mas esses pequenos espaços que
ele dava para que eu dissesse o que achava melhor me deixavam tão bem, faziam com que eu me
sentisse útil de alguma forma.
— E então, você costuma vir muito aqui? — ele voltou a perguntar.
— Faz algum tempo que não vinha, mas é um lugar que eu gosto muito.
Senti o tempo voar de uma forma leve, agradável a comida estava boa, percebi que nunca tinha
conhecido um homem como ele, as figuras masculinas que eu conhecia não tinham nada a ver com a
personalidade dele, a diferença era gritante. Inúmeras vezes pedi ao meu subconciente para não
fantasiar nada, embora eu me sentisse ligada a Marcone de alguma forma inexplicável, até mesmo
estranha dado ao tempo em que nos conhecíamos. Subi para o apartamente satisfeita com o meu dia, e
ao mesmo tempo saudosa por vê-lo ir embora.
Entrei em casa, esperando ver Naiá em qualquer canto do apartamento, foi um alívio ouvi-la
cantarolando na sacada, lógico que havia um livro sobre a mesinha de vidro ao seu lado, sem que ela
me visse, eu abracei seu pescoço.
Marcone
Estranhei não ter precisado esperar muito para ela abrir a porta, geralmente Andrea tinha
problemas para encontrar tudo, inclusive suas chaves e seu celular, todavia, não foi ela quem me
recebeu. O novato, aquele que eu já desconfiava, estava bem na minha frente, sem blusa e
perfeitamente a vontade. Não lembrava o seu nome, apesar de já termos participado da mesma
operação mais de uma vez e de termos nos encontrado no café próximo a delegacia que geralmenmte
todos os policiais do departamento iam, ainda assim, ele me parecia familiar quando eu realmente
parava para prestar atenção nele, algo na boca, um gesto que ele fazia, como que torcendo os lábios,
era familiar de alguma forma. Olhei com certo desprezo para os pés descalços, a calça apesar de
abotoada caiam um tanto folgada nos quadris, ele definitivamente não combinava com ela. Fiz um
aceno com a cabeça e passei pelo sujeito, guardei as chaves extras que Andrea deixara comigo para
o caso de não achar as próprias, no bolso, e suspirei desconfortável.
— Onde ela está? — perguntei, olhando-o, prestando atenção, buscando na minha memória algo
que fizesse ligação com ele.
— Erick. — O homem robusto era da minha altura, um pouco mais largo, o cabelo tinha um corte
incomum que eu não tinha reparado antes. — Acho que você não lembra meu nome.
— Por acaso a gente já se conhece? — resolvi perguntar, e tirar minha dúvida de uma vez.
— Já trabalhamos no mesmo departamento em Brasília, mas nunca na mesma equipe. Entrei um
pouco antes de você sair. — Esclareceu ele, considerando o número de agentes que entravam e
saíam, eu não duvidava muito, apesar de não gostar dele, e geralmente minha primeira impressão
sobre alguém não mudava.
Assenti e sentei, sem saber porque diabos ela me chamara para fazer aqui se estava acompanhada.
— Eu quem vim sem avisar — avisou ele, sentando no outro sofá. — Vocês se conhecem há muito
tempo? — Fez um gesto em direção ao quarto de Andrea com o queixo, sinal de que ela estava lá.
— Trabalhamos juntos por um tempo longo, eu diria. — Minha relação com Andrea não era
conhecida pela maioria dos policiais do departamento, muito menos minha vida pessoal. Apenas ela
e Benjamin sabiam que eu tinha uma irmã que morava comigo, podia ser exagero da minha parte, mas
eu não confiava em ninguém. Fardado ou não. Confiança era um prato caro no meu mundo. E as
maiores trairagens vinham de quem usava a mesma farda que eu, já tinha visto isso acontecer muitas
vezes, então todo cuidado era pouco quando se tratava das pessoas que eu amava, eu tinha sofrido na
pele uma vez, não queria sofrer de novo, se alguém tivesse que ser alvo, que fosse eu mesmo.
— Costuma vir sempre aqui?
— Acho que bem menos que você. — respondi, irritado. — Onde ela está?
— No quarto.
Depois de alguns minutos de silêncio pouco agradável, Andrea apareceu, atrapalhada como
sempre, chegou a tropeçar e quase cair, honestamente, eu me surpreendia que nunca tivesse atirado no
próprio pé.
— Oi. — Ela deu um sorriso amarelo na minha direção, uma reação de quem tinha sido pega no
flagra. Andrea sabia exatamente o que eu achava sobre seus eventuais relacionamentos,
principalmente porque eu via como eles acabavam, minha camisas sofriam ensopadas de lágrimas e
meus ouvidos também com as lamentações que ela fazia, Andrea era escandalosa e dramática em
algumas situações, principalmente as que ela mesma causava.
— Oi, Andrea.
— Erick está de saída, não é? — disse docemente para ele.
Depois de me olhar por alguns minutos o homem saiu em busca do resto de suas roupas.
Ainda escutei os dois se despedindo a soleira da porta, algo lamentável.
— Meu Deus do céu... — Sibilei, ouvindo os estalos dos beijos que trocavam, então ela apareceu.
— Eu ia ti contar. — começou ela. — Não era para ele estar aqui, sabe?
Revirei os olhos, sem entender qual era o problema dela.
— Eu não gosto nem um pouco dele. — retruquei, sabendo que ela se irritaria, para num futuro
próximo me dar razão.
— Você não gosta de nenhum dos meus namorados. — rebateu ela, andando para a cozinha, fui
obrigado a segui-la.
— Sim, você tem razão. — Porque eram todos babacas que não a mereciam. Encostei-me na
geladeira cheia de bugigangas e a olhei. — Não vou chatear você quanto a isso, sabemos que no fim
não funciona, não é? — Sorri de leve e beijei sua testa, isso pareceu amolecê-la.
— Que tipo de aula você foi ver? — perguntou, sentando-se na cadeira e batendo a palma na outra
para que eu fizesse o mesmo.
— Ela pinta.
— Quadros de verdade?
— Sim, ela dá aulas a crianças com cancêr.
— E?
— Almoçamos juntos. — Olhei-a, seriamente. — Não vou me afastar dela.
Andrea me olhou por um tempo e deu um sorriso curto.
— Você está com medo, não é? — sussurrou ela, com carinho. — Medo dela entrar aqui. —
Colocou a palma da mão no meu peito, Andrea me conhecia muito bem, todas as partes mim,
inclusive as escuras, as cinzas, as menos bonitas, às vezes tinha a impressão que ela me conhecia
bem mais do que eu mesmo.
— Eu tenho meus motivos. — Motivos que ela conhecia muito bem, medo de falhar de novo, de
errar, de colocar outra vida em risco.
— Acho que existe um motivo para vocês terem se reencontrado dessa forma.
— Não sabia que você era supersticiosa. — brinquei, ainda que sem muito humor.
— Não sou.
Deixando minha vida lado, passamos a falar sobre uma pedra que já estava fazendo hora extra no
meu sapato — o advogado. Segundo algumas investigações que nós tínhamos feito, o homem possuia
alguns imóveis não reconhecidos pela receita federal, alguns deles em nome dos filhos, outros da
esposa.
— Sabe que não vai poder participar de operação nenhuma, envolvendo esse caso, não é?
Fiz que sim, nunca entenderia algumas coisas na polícia, pelo fato do crime estar envolvendo a
minha família, eu não poderia participar diretamente da investigação e de todas as buscas nesse
sentido.
Depois da troca do sistema da fábrica nada suspeito ocorreu, embora eu estivesse lidando com
todos os contratos depois de passar por Antônio, minha sorte era a grande ilusão de sagacidade que o
homem tinha, eu poderia rir de todas as pontas soltas que ele deixara em vários áspectos diferentes
nos roubos que fez. Todo o roubo era usado num esquema de lavagem de dinheiro, distribuídos em
paraísos fiscais. A minha raiva era ver que o legado do meu pai estava fazendo parte de toda a
sujeira, mesmo que indiretamente e se todas as evidências estivessem certas, o dinheiro sujo vinha
do tráfico de pessoas, meninas, mulheres, todas enganadas por acreditarem num sonho. O problema
todo de casos assim era a burocrácia, um nome que eu tinha aprendido a odiar, mesmo com provas,
nomes, evidências a prisão de qualquer indivíduo não dependia só de nós, dependia de outras
pessoas e de muitos fatores.
— Tudo que você reuniu está com o delegado de Minas — retrucou ela. — Entrei em contato com
ele hoje.
Havia uma infinidade de documentos assinados por minha mãe autorizando contratos, lançamentos
e transações pouco comuns, tudo isso porque ela confiava tão cegamento no advogado que não lia
nada, agora a grande questão era agir de uma forma que a fábrica e nem o nome da minha família
fosse ligada a nenhum dos crimes que ele estava envolvido.
17
Marcone
Era a primeira vez na semana que Nina me pedia para ir buscá-la na faculdade, isso porque
Benjamin estava em Minas Gerais com Andrea. Mexi no retrovisor para focar mais no carro negro
que estava dois autómoveis atrás do nosso, eu podia estar enganado, mas ele parecia sempre fazer o
mesmo movimento que eu. Esperei o sinal abrir e mudei a rota que sempre fazia da FMU para o
prédio.
— Eles estão nos seguindo? — Nina perguntou, parando de rabiscar no caderno pequeno e
olhando de relance para trás, ela era esperta de um jeito que me deixava orgulhoso.
— Vamos descobrir agora. — Peguei a arma do porta-luvas e coloquei sob a minha coxa,
enquanto reduzia a velocidade e parava no acostamento. Travei as portas e esperei.
O carro, um Sedan escuro, passou por nós numa velocidade moderada, de onde eu estava só pude
ver a mão tatuada de quem estava no banco do passageiro e pendia meio para fora pela janela, a
caveira desenhada tomava todo o dorso da mão, ainda tentei ver a placa do carro, mas só memorizei
as três primeiras letras — LPT.
— Já vi esse carro perto da faculdade algumas vezes. — retrucou ela, olhando-me, depois me
mostrou o que estava rabiscando. — Anotei a placa. — Deu sorrisinho convencido e fechou o
caderno, recostando-se no banco.
— Garota esperta. — Coloquei novamente o veículo em movimento. — O carro fica apenas
parado por lá?
— Eles devem ir buscar alguém que estuda na faculdade.
— Quero que me conte, caso continue acontecendo.
— Marco, não vai acontecer nada comigo. — Ela fez uma careta. — A universidade é segura.
— Lugar nenhum é 100% seguro. — Girei o volante numa curva e pisei no acelerador quando a
pista ficou livre, eram quase vinte minutos a mais no trajeto.
Quando ela resolveu vir morar comigo, optei por mudar para um prédio mais seguro do que o que
eu morava. Ela não postava localização ou fotos em tempo real nas redes sociais, o bom era que
Nina, apesar de irritante a maior parte do tempo, colaborava para a própria segurança. Não
aprontava nenhuma maluquice e nem deixava de me escutar quando eu recomendava que tomasse
cuidado. Fiz um retorno desnecessário para irmos a polimix pegar o sanduíche que ela gostava, e que
tinha se tornado praticamente o seu jantar de toda noite. Destravei a porta do carro e dei o cartão de
crédito para que ela fosse fazer os pedidos, enquanto eu esperava. Olhei o relógio de pulso,
certificando-me que já passava das seis horas da noite.
Quando voltei a estacionar o carro novamente, dessa vez no estacionamento do prédio, eu estava
oficialmente atrasado.
— Vai ficar aí? — Nina perguntou, mantendo a porta do carro aberta, enquanto catava suas coisas
e o pacote com os sanduíches.
— Subo num instante.
Ela bateu a porta e se foi em direção ao elevador, peguei o celular de dentro do porta-luvas e
encontrei o contato de Cami. Havia se tornado um hábito. Todos os dias, nesse mesmo horário eu
ligava, mesmo quando ainda estava na delegacia. Ela atendeu no segundo toque.
— Camille.
— Vai advinhar onde eu estou hoje? — O timbre cadenciado e ,agora, completamente gravado em
minha cabeça inquiriu com leveza.
Tentei escutar algo, mas estava tudo muito silencioso, exceto pela sua respiração. Todavia, era
quarta-feira, um dos dias da semana em que ela tinha estágio. Consultei novamente o relógio: 18:18.
— Você está voltando para casa, precisamente parada no sinal vermelho a duas quadras do seu
prédio.
— Como você sabe essas coisas? — Ouvi sua risada e um bufo teatral.
— Basta prestar um pouco de atenção aos detalhes, Camille. — Recostei a cabeça no banco,
preparado para escutar o que ela tinha para contar.
— O que você seria se não fosse polícial? — Era a segunda vez que ela fazia essa pergunta e eu
não tinha resposta.
— Sei lá, advogado? — Sugeri, afinal era a minha formação.
— Criminalista.
— Talvez. Ou podia ser peão, meu pai era fazendeiro.
Ela riu, provavelmente pensando a respeito, ou quem sabe, me imaginando dentro dos trajes
vergonhosos.
Camille
Coloquei o celular sobre o criado-mudo e deixei a bolsa no tapete felpudo do quarto, louca para
tirar os saltos dos pés, flexionei os dedos e estiquei as pernas, sentindo-me mais cansada do que o
normal. Além do dia ter sido realmente mais cheio, havia ainda o meu emocional que não estava no
melhor momento, durante toda a manhã na faculdade a sensação que eu tinha era a de estar sendo
observada, a cada vez que o celular tocava a mesma agonia aparecia, a sensação de entrar em pânico
junto com uma ansiedade dilacerante e tudo por causa da volta de Enzo. Perguntava-me se ele tinha
me esquecido, se tinha decidido me deixar em paz, como eu pedi tantas vezes desde o término. Olhei
o dedo agora sem aliança alguma e soltei uma respiração aliviada. O dia tinha sido tão ruim que
resolvi marcar uma consulta extra com a minha pscicóloga, geralmente depois da consulta eu estava
mais apta a resolver melhor qualquer situação.
Caminhei para o banheiro, gostando da sensação do piso frio nos meus pés, era uma das minhas
sensações preferidas, tal qual os pés na água do mar era como acalento. Despi o terninho e me
encarei no espelho, minha atenção completamente no pingente em meu pescoço. Eu também queria
falar dele para Hebe, contar sobre Marcone, de como eu me sentia atraida e tinha medo. Contar que
eu ficava ansiosa pelas ligações e mensagens dele, por todo o frenesi qua a voz grave causava no
meu íntimo, tão desconhecida e tão familiar.
Saí do banho, e fui direto para a cozinha depois de vestida. Não vi ninguém, o apartamento estava
exatamente como o habitual: parecia inabitado. Havia suco de laranja na geladeira, todavia ele não
me atraiu. Acabei sentando-me na poltrona em que Naia costumava ler, um de seus livros estava lá,
eu o ignorei e fechei os olhos, aproveitando a brisa de inicio de noite, mantive os leds apagados,
através das folhas de vidros eu conseguia ver a estrela e a lua cheia gigantesca, acabei adormecendo
ali.
No dia seguinte eu saí direto da faculdade para preparar a aula de pintura das crianças, acabei
almoçando com Aline e Tarcísio num restaurante popular próxino ao prédio, algo que fazia um
tempinho que não fazíamos. Durante a aula, a maioria das crianças estavam dispersas e Isabelle não
tinha aparecido, uma mal sinal, raramente ela faltava. Só tive notícias suas quando já estava em casa
através de Aline — a menina estivera internada por dois dias, mas já estava em casa. Eu sentia um
profundo respeito pelo pai daquela criança, imaginava que não devia ser fácil para ele, apesar que
Belle era uma menina especial, não por ter câncer, mas pelas ideias que carregava. Qualquer um que
conversasse dois minutos com ela perceberia o quanto ela era encantadora em vários sentidos, mas
principalmente no fato de nunca estar triste, isso me deixava curiosa sobre o mundo no geral, afinal
ela tinha motivos de sobra para ser introvertida e calada, mas era o contrário: ela era protagonista
sempre. Ainda me perguntava o que tanto tinha conversado com Marcone no dia em ele passara a
manhã conosco, eu teria aceitado ser uma mosca apenas para saber. Olhei para a tela do celular,
estrategicamente colocado ao meu lado na cama e percebi o relógio digital mudar de 17:59 para
18:00 em ponto, automaticamente prendi a respiração, esperando. Claro que eu demorava um tempo
para atender, ele não precisava saber que eu ficava ansiosa pelas ligações, que eu esperava por elas.
Levantei, um tanto nervosa, e entrei no estúdio. Sentei no chão frio no exato momento em que o
celular vibrou.
18:03.
— Porque esse horário? — fiz a pergunta assim que atendi, porque eu não lembrava em que
momento as ligações tinham virado um hábito com hora marcada e tudo.
— Honestamente? — A voz grave soou divertida e eu sorri automáticamente. — Não sei.
— Hoje eu estive com as crianças. — Contei, mudando de assunto. — Isabelle esteve internada
por dois dias.
— Ela melhorou?
— Para o quadro dela sim. — Suspirei, desanimada.
Ficamos em silêncio, perguntei-me onde ele estava, só me dei conta que havia feito a pergunta
quando escutei a resposta dele.
— Estou na delegacia, com um monte de evidências, relatórios, fotos espalhadas pela minha
mesa.
— Hum.
Fiquei sem saber o que dizer.
— Tem planos para amanhã a noite?
— Deixe-me olhar minha agenda — brinquei, andei até a tela em que o rosto dele estava pintado,
passeei os dedos pelas nuances das cores e encontrei o azul expressivo dos olhos atentos, não eram
em nada comparados com o que eu sentia quando os via pessoalmente, mas dava-me a impressão de
sua presença real no ateliê, principalmente agora, enquanto eu escutava sua respiração. Fiz imagens
mentais de como deveria ser o trabalho dele, imaginava o quanto de violência ele já devia ter
presenciado e participado, afinal eu morava em um dos países mais violentos do mundo e numa
cidade extremamente perigosa também. — Ela está livre.
Ouvi um suspiro arrastado e imaginei que o filho da mãe estivesse sorrindo.
— Pensei em dividirmos uma refeição. — sugeriu ele e eu revirei os olhos.
— Isso inclui sua irmã?
Ouvi a gargalhada gostosa que ele deu.
— Não, apenas nós dois. — O tom foi mais sério. — Às sete — sugeriu.
— Às oito. — Eu já me imaginava uma pilha de nervos antes mesmo do dia amanhecer.
— Ok.
Há dias, peguei-me pensando no quanto eu queria vê-lo outra vez, tudo era muito fácil perto dele,
ainda que eu não o conhecesse por muito tempo, eu sabia pouco, percebi que ele não contava muito
sobre si mesmo, na maior parte do tempo em que estivemos juntos, ele me fizera perguntas sobre
mim, mas nunca me falara realmente sobre ele.
Não sei quanto tempo passamos conversando coisas sem sentido algum, ou perguntas aleatórias
que ele fazia: tipo música preferida, comida preferida, lugar preferido da casa, eu respondi que era o
ateliê e a área da pscina e Marcone voltou a perguntar quando veria meus quadros. Eu não dei uma
resposta, é claro, então voltamos a falar de mim outra vez, giramos em torno do mundo da arte, dos
artistas que eram minha referência. Ele escutou por muito tempo. O mais encantador era o interesse
que Marcone demonstrava ter por qualquer coisa que eu dissesse, como se realmente fosse
importante para ele saber, ficamos muito tempo conectados, tomei banho, comi e quando deitei na
cama, ele ainda estava na linha. Não sei ao certo quando encerramos ou se encerramos, mas em
algum momento eu dormi.
18
Camille
Coloquei todas as sacolas no tapete do quarto e fui imediatamente abrir o closet, a moça que
geralmente vinha limpar o apartamento tinha retirado várias roupas que eu não queria mais, faziam
parte do meu passado. Eu queria construir algo novo, com tudo novo, inclusive as roupas que eu
usava. Sempre fui vaidosa, bem mais que minha irmã. Liz sempre optara pelo casual, por jeans,
moletons, camisetas — diferente de mim, sempre me enfeitei mais. Esse traço foi uma das
características que mudara radicalmente em mim, e que somente ela percebera. Os cabelos viçocos e
frequentemente brilhantes, tornaram-se sem vida, opacos, frequentemente presos, ou penteados para
trás. A maquiagem eu passei a usar para cobrir hematomas, não para realçar os meus traços e as
roupas, bom, essas foram ficando largas, folgadas, desengonçadas no meu corpo magro e cheio de
hematomas. Observando a mulher cadavérica que eu era um tempinho atrás, perguntei-me como tinha
permitido tudo aquilo acontecer. A cegueira era demais, a dependência ainda maior e meu amor
próprio bem castigado, inexistente, quimérico.
— Você não tem nem um pouco de pena de jogar tudo isso fora? — Aline perguntou, olhando as
prateleiras vázias do closet e arrastando-me para longe das lembranças.
— Não vão para o lixo, serão doadas às pessoas que precisam. Naia vai cuidar disso.
— E o encontro com o bonitão?
A pergunta fez um reboliço no meu estômago, ao mesmo tempo em que as horas pareciam estar
voando, os ponteiros conversavam lentamanete.
— Ele vem me buscar às oito. — Sentei no tapete em meio as sacolas de grifes diferentes.
Aline fez o mesmo, além de ser linda e inteligente ela era fascinada por moda, fotografia e
maquiagem. Nas poucas vezes em que eu fui a sua casa, vi os ensaios fotográficos ou assisti aos
ataques de pânico que ela tinha quando recebia respostas por e-mail das agências as quais enviava
seu portfólio. Tinha feito trabalhos em agências pequenas, participado de alguns comerciais, mas o
tão sonhado contrato internacional não tinha aparecido ainda. Ainda, como ela costumava dizer.
— Esse aqui. — Ela quase gritou, girando com um vestido vermelho em frente ao corpo. — Esse
é fatal, você vai ficar parecendo aquelas modelos da Victoria’s Secret.
— Você não existe, Aline. — Ri, retirando as peças de dentro das dezenas de sacolas. — Que
horas são?
— Falta muito para as oito ainda. — Ela parou em frente ao espelho, enfiando os dedos pela juba
castanha, ela odiava que qualquer pessoa tocasse neles.
Bufei com a brincadeira sem graça e me mantive concentrada nas roupas. Além de vestidos mais
femininos, comprei algumas peças formais para usar em dia de estágio. Aline e eu fomos almoçar,
antes de toda a bagunça ser realmente arrumada. Ela ficou parte da tarde tagarelando e tentando me
ensinar a usar cílios postiços, algo que eu odiava, foi embora, quando enfim desistiu da ideia.
Foi difícil escolher algo para vestir, acabei entrando no banho com três vestidos sobre a cama, os
cabelos estavam lavados desde o dia anterior, eles tinham aquela coisa de ficarem bonitos no outro
dia. Enquanto fazia a maquiagem, o meu celular vibrou algumas vezes. Durante a tarde, Marcone e eu
tínhamos trocado algumas mensagens bobas, nada diferente dos outros dias. Apesar de ter perguntado
a mim mesma se estava fazendo a coisa certa em aceitar, a vontade de vê-lo de novo era maior do
qualquer outra coisa. Perguntei-me se ele sentia o mesmo, se era por isso que tinha feito o convite,
deixei que um sorriso sutil surgisse no canto dos meus lábios. Eu colecionei alguns motivos para não
gostar de ser bonita, por um tempo fiz de tudo para não chamar atenção, mas hoje, o sentimento era
outro. Eu queria que ele me notasse, não como a amiga irmã dele, ou a garota que pintava quadros, eu
queria que ele me notasse como a mulher que eu sabia que era.
Deixei para passar o batom por último, nenhum dos que testei deixavam o visual do jeito que eu
queria. Saí, ainda vestida no roupão, para o quarto dos meus pais. Não bati na porta, nesse horário
raramente estavam em casa. Fui direto para a penteadeira de Joice, um papel dobrado teria passado
despercebido se não fosse o nome Elizabete Alencar escrito em negrito no envelope ao lado Meu
coração disparou imediatamente.
Soava estranho que ela se resumisse a um nome, a uma lembrança, a um papel.
Abri rapidamente para ler o conteúdo, e antes que chegasse ao final as lágrimas já estavam
escorrendo por meu rosto. Enxuguei-as e li novamente, ao mesmo tempo em que escutei alguém entrar
no quarto. Virei-me, deparando-me com meu pai.
— Vocês ganharam dinheiro com a morte dela? — Minhas mãos tremiam tanto que eu escutei o
som do papel em movimento. — É isso, pai? Há um desse em meu nome também? — Enxuguei o
rosto bruscamente, sem deixar de encará-lo.
Augusto não teve uma reação imediata. Olhou de mim para o papel e depois para a porta, por
onde minha mãe passou logo em seguida.
— Também há um seguro de vida em meu nome? — inquiri novamente.
— Há um seguro de vida para cada um de nós, Camille. — Meu pai respondeu, ainda no mesmo
lugar. — Você é praticamente uma advogada formada, devia entender como essas coisas funcionam.
— Eu nunca vou entender essa frieza de vocês. Nunca vou entender.
Esqueci-me do batom e deixei-os sozinhos. Odiando ter entrado ali. Escutei quando um deles
passou a me seguir, mas não olhei para trás para ver quem era. A apólice ainda estava na minha mão,
os picos de luz vieram trolando a minha consciência, a minha voz interior soou alta, como um alto-
falante.
— Assassina. — Era como se eu pudesse escutar perfeitamente. — Você a matou.
— Nós doamos o dinheiro para o projeto que ela dava aulas, Cami.
Ouvi a voz do meu pai e ergui o rosto para olhá-lo, sem sequer acreditar que era verdade.
— Vocês fizeram isso?
Ele assentiu, olhando-me com cuidado. Senti um pouco de alívio, era algo que Liz gostaria.
— Você vai sair? — Apontou para os vestidos sobre a minha cama, e eu assenti, dando-me conta
de que a maquiagem devia estar borrada.
— Que horas são, pai?
— Sete e trinta e três. — Augusto respondeu e continuou a me encarar por um tempo. — Vai sair
com Enzo?
— Não. — respondi rapidamente, evitando as lembranças ruins, os gatilhos e a reviravolta
desagradável no meu estômago.
Ele assentiu, e caminhou para a porta.
— Boa noite, filha.
Era como se o som do meu coração anulasse todos os outros a minha volta, assim que eu saí do
elevador. Ele tinha ligado exatamente às sete e cinquenta e nove para dizer que estava em frente ao
meu prédio. Claro que eu não estava pronta.
Conferi os cabelos no espelho mais próximo e acenei para Miguel, antes de começar a descer o
pequeno lance de escada que me levaria ao lado externo, ainda no primeiro degrau eu o vi, foi quase
involuntário sorrir fácil. Deixei-me levar pelo visual dele, os meus olhos cobiçosos passearam pelas
coxas grossas cobertas por uma calça escura e os braços, forte expostos. Os cabelos mantinham o
corte mais curto nas laterais. Ele estava relaxado encostado no carro, os olhos azuis encontraram
primeiro os meus e depois deslizaram de maneira intensa e totalmente lenta até os meus pés. E eu
gostei disso, não havia um traço sequer de malícia quando ele voltou a olhar meu rosto, apenas uma
intensidade crua, quase palpável.
— Você está mais bonita do que a última vez que nos vimos. — O elogio foi feito num tom suave,
enquanto ele abria a porta do passageiro para mim.
O cheiro de menta misturado com a colônia dele chegaram em mim junto com o toque dos seus
dedos no meu queixo, foi algo totalmente natural e familiar. Ele era familiar de alguma forma.
Somente assenti, incapaz de dizer alguma coisa. Minha vontade era dizer o mesmo, que ele estava
muito mais atraente do que da última vez. Perguntava que encanto era esse que esse homem
despertava, como podia ser possível que tudo numa pessoa atraísse? A voz, o cheiro, até mesmo o
franzir imperceptível dos lábios junto com o erguer das sobrancelhas grossas.
— Nina fez uma reserva num restaurante que ela disse que você gosta.
— Você contou a ela? — inquiri, imaginando qual teria sido a reação.
Ele deu uma gargalhada e fez um gesto para que entrasse no carro. Entrei e esperei pacientemente
pela resposta.
— Sim. Geralmente não escondo nada dela. Não quero que ela esconda nada de mim.
Era justo, pensei comigo mesma. Fiquei curiosa sobre a reação dela.
— O que ela disse? — Movi-me um pouco na direção dele, flagrei por dois minutos os olhos
atentos nas minhas pernas, se eu não estivesse presa a figura dele, não teria percebido.
— Ela disse que não sabia como não tinha pensado nisso antes. — Ele girou a chave na ignição e
piscou para mim. — Ela é uma garota estranha, não acha?
Eu ri, achando graça dele.
— Aonde nós vamos? — perguntei, ignorando o desconforto familiar por estar dentro de um
carro.
O prédio foi ficando pequeno, conforme nos afastávamos dele.
— Giuseppe.
— É meu restaurante preferido aqui no Rio. Eu ia com meu avô. — Meu vô era a minha melhor
lembrança da infância. Ele morava na praia, lembrei-me de como eu chorava quando meus pais me
deixavam o verão inteiro das férias, a lembrança me faz voltar ao passado. Eu sempre fui mais
deprimida, Liz mais enérgica. Ela não se importava com o fato de ser deixada para trás, eu sim. Me
corroía não ter a atenção dos nossos pais, me machucava que eles nem sequer ligassem para saber
como estavam sendo as férias.
— Nina me deu a informação completa. — Ele sorriu de leve, tirando-me do passado.
— Há um motivo? — Encarei-o, esperando que ele entendesse a pergunta.
— Sim, eu queria ver você outra vez.
Senti uma vontade gritante de perguntar o porquê, cheguei a separar os lábios, inquieta para saber.
— Eu também queria. — Entre perguntar e ser sincera, eu optei por expressar como me sentia há
dias. Eu queria vê-lo outra vez, ter uma oportunidade de comparar novamente o rosto dele com os
traços que eu tinha pintado.
Sentir novamente aquela onda de atração que parecia tão certa mesmo que inexplicável.
Uma das mãos dele deixou o volante e procurou pela minha sobre a minha coxa. Os dedos
afagarm levemente os meus, por segundos, enquanto os olhos passearam pelo meu rosto, mas
fixavam-se mesmo nas minhas íris. Perguntava-me se era atraente para ele como o azul intenso dos
seus olhos era para mim.
O ar a nossa volta mudou, e junto com o cheiro gostoso que vinha da pele máscula, veio o desejo
de ser beijada.
Fazia meses que eu sequer queria um homem perto de mim. Era estranha a sensação de segurança
que ele me passava, ainda que eu realmente tivesse visto como ele cuidava da mãe e da irmã. Era
uma realidade que eu não conhecia, não com toda a leveza que ele tinha. O contato visual foi cortado
quando o sinal abriu e carro retomou o movimento.
Adorei o fato dele ter reservado uma mesa na área menos circulada do restaurante, o Giuseppe
era muito bem frequentado, geralmente estava lotado a essa hora, principalmente a aréa do bar.
— Você já veio aqui antes? — perguntei, quando nos sentamos.
— Não. — Ele olhou ao redor atentamente.
— Você dorme? — Perguntei curiosa, lembrando de como ele tinha saído tarde da delegacia
alguns dias atrás.
Ele riu bem-humorado.
— Claro. Por quê?
— Nina me contou sobre algumas vezes que você chega tarde ou no dia seguinte em casa.
— Não é um trabalho fácil, mas já acostumei.
— Já pensou em fazer outra coisa? — perguntei em seguida, seria minha vez de fazer perguntas,
de conhecer o mundo dele.
Marcone pensou por um minuto, olhando-me. Era algo que eu tinha reparado, dificilmente ele
desviava o olhar.
— Sim, há muito tempo atrás.
O tom dele me fez entender que talvez houvesse algo por trás do assunto.
— Você é mesmo linda. — Elogiou novamente e eu sorri, agradecendo a mim mesma por ter
optado pelo vestido branco, sempre gostei de como a cor ficava em sintonia com minha pele.
— Você acha mesmo? — brinquei, completamente a vontade.
— Sim. — Ele me encarou por um tempo. — Sua irmã era parecida com você?
— Em nada. — Sorri com menos energia. — Sempre fomos completamente diferentes. Eu a
amava muito.
— Entendo perfeitamente o que quer dizer. — O tom dele foi compreensivo.
— Eu me sinto muito culpada pela morte dela.
— Você lembrou de algo? — perguntou ele, ainda mais atento do que o comum e um tanto quanto
confuso.
— Não. — Lembrei-me do que minha psicóloga disse a respeito da falta de lembranças. Segundo
ela, eu só lembraria quando quisesse lembrar, era como se meu subconsiente tivesse omitido tudo
para me proteger de mim mesma. Da certeza de que tinha sido eu a matá-la.
— E quanto aos dias anteriores ao do acidente, você lembra deles?
Tinham sido dias tranquilos, dias em que eu me reconectei comigo mesma. Embora Enzo não tenha
deixado de me ligar ou mandar mensagem. Ainda assim, foram dias felizes. Longe dele e de tudo que
sua presença representava.
— Sim, eu estava feliz.
Marcone assentiu, e como se quisesse mudar de assunto apontou para o cardápio.
— Não conheço a comida daqui, então aceito dicas e afins.
— É tudo muito bom, mas eu sempre pedia esse aqui. — Inclinei-me um pouquinho para tocar
com o dedo no nome do prato: Picanha Giuseppe.
— Vai ser esse então. — Como que num passe de mágica, alguém que não prestei atenção veio
pegar nossos pedidos. — Por que não se senta aqui? — Ele apontou para um lugar ao seu lado, onde
poderíamos ficar mais perto um do outro.
19
Marcone
Ela veio, e como imaginei, senti com mais intensidade a frangrância suave que vinha dela. Vê-la
murchar ao falar da irmã me fez perceber que me afetava vê-la triste, não de um jeito bom.
— Assim está melhor. — Coloquei, suavemente, uma mecha do cabelo cheiroso atrás de sua
orelha, algo que queria fazer desde que a vi. — Posso fazer uma pergunta?
— Sim.
— O que ti deixou tão incomodada em mim quando nos vimos pela primeira vez na fazenda? —
inquiri, curioso.
— É algo que você só vai entender quando eu mostrar.
— Mostrar o quê?
Ela desviou os olhos do meu rosto para as pedras grandes que resvestiam as paredes, o lugar era
acolhedor ao mesmo tempo que medieval, mas não estava realmente prestando atenção nisso.
— Não tenho certeza do que você vai achar e pode ser que não goste, então prefiro mostrar
depois.
Como sempre era quando se tratava dessa garota, minha cuirosidade se intensificou ainda mais,
mas não insisti.
— Ok. — Minha resposta chamou sua atenção, ela voltou a me encarar.
— Você é sempre compreensivo assim? — Percebi a desconfiança na pergunta.
— Não. — Dei a resposta sincera, eu não era mesmo.
Como imaginei a noite passou muito rápido, precisei admitir que entendia o porquê desse ser o
restaurante preferido dela. A comida era boa, o ambiente também, embora eu tivesse focado
completamente na companhia. Camille mostrava um pouco da sua personalidade real a cada nova
conversa, na risada, nas manias. Confesso que fiz um caminho mais longo para levá-la para casa,
apenas para passar um tempo a mais, este parecia ter ficado curto ao extremo.
A rua estava em silêncio, quando estacionei o carro diante do prédio grande.
— Está em casa.
— É.
Virei-me para olhá-la, a garota estava olhando para a entrada do prédio.
— Não foi tão ruim assim, foi?
O rosto pequeno assumiu uma expressão zombeteira e ela riu baixinho, o som reverberando dentro
do carro como encantamento.
— Claro que não. — Ela me olhou, sem nem perceber como falava com os olhos, eles gritavam
muita coisa, na verdade. — Eu gostei... muito.
— Quer repetir? — Sem conseguir evitar, eu toquei o rosto delicado e frio por causa do ar
condicionado com os dedos, os lábios bem desenhados abriram-se como se quisessem ser beijados.
Era o que eu queria fazer, todavia controlei o instinto e mantive o carinho apenas ali, por alguns
minutos, Camille fechou os olhos, com um leve maneio afirmativo de cabeça — não sabia se o gesto
era um sim para a pergunta que eu fiz ou um incentivo para que eu continuasse a tocá-la. De qualquer
forma, mantive os dedos ali e quando ficou difícil conter a vontade de beijá-la, susbitiuir por meus
lábios. Ela abriu os olhos assim que sentiu o beijo na bochecha.
— Você deveria entrar agora. — sussurei, afastando-me, ao mesmo tempo em que meu celular
vibrou e eu o ignorei.
— Está bem.
Permaneci ali até que ela entrou, só então conferi o celular. Meu sangue ferveu assim que
reconheci a notificação que eu tinha esperado por todos os últimas dias.
Rolei a página da internet até ler o final da notícia, cujo alvo era Antônio Oliveira. A notícia de
sua prisão chocou tanto sua família, que a filha mais nova do infeliz estava acabando com o nome da
minha família nas redes sociais. O pai dela, claro, era inocente. Alguns dias atrás tivemos acesso a
última movimentação dele na fábrica, a quebra de sigilo bancária foi autorizada e todos os
movimentos dele dentro e fora do Brasil estavam sendo investigados pelo polícia federal de Minas.
O enriquecimento ilícito fora um dos motivos da prisão preventiva do filho da puta, ele não tinha
como comprovar para a Receita Federal de onde o dinheiro vinha, e muitos menos a origem dos bens
que acumulara durante os últimos anos às custas do meu pai e de todas as outras merdas que estava
envolvido, é claro.
Passei o dedo pelos olhos, sentindo a dor de cabeça se espalhar.
— Você deveria dormir. — Andrea retrucou, sem tirar os olhos do próprio computador.
— Você também. — Devolvi, passando os dedos entre os meus cabelos, a dor de cabeça era tão
forte que parecia que o couro cabeludo estava dolorido também.
— Falta pouco, federal. — ela disse, fechando o notebook e se recostando na poltrona em frente a
minha.
Estávamos no escritório do meu pai, e já passava das duas da manhã. Tomei um gole da água com
gás, totalmente quente direto da garrafa e analisei com cuidado as palavras de Andrea.
— Eu acho que acaba de começar.
Ela riu, concordando e retirou os óculos para esfregar os olhos.
— A filha dele é surtada, não é? — Ela mesma tinha visto os primeiros ataques da garota mais
cedo, raramente eu acompanhava esse tipo de mídia.
— Eu não tive tempo de conhecer a advogada nova, mas é a primeira coisa que ela fará. Um
processo muito bem detalhada para cada vez que a filha dele toque no meu nome ou da minha mãe.
— Isso vai calar a boca dela.
A pedido de minha, as acusações foram direcionadas apenas a Antônio, ela dizia que tinha visto
os dois filhos dele crescerem, todavia em algum momento os dois seriam incriminados também.
— O caso é nosso. — ela mudou de assunto, e eu entendi perfeitamente a que Andrea se referia.
Às garotas.
— Ele disse algo?
— O homem é raposa velha. Ele não diz absolutamente nada. — retrucou, irritada. — É um
advogado vigarista, conhece muito bem os direitos que tem. — Ela novamente retirou e colocou os
oculos. — Acho que vou dormir.
— Vá, está tarde.
Ainda fiquei ali, e como meu pai geralmente fazia, girei a poltrona e abri a janela para receber o
vento da madrugada no meu rosto. Peguei o celular pela primeira vez no dia e vi uma ligação de
Camille no mesmo horário em que costumávamos ligar um para o outro. Ouvindo o som da água da
pisicina, lembrei-me de nossas conversas noturnas, e fiquei ainda mais curioso para saber o que ela
tinha para me mostrar. Procurei por seu contato no aplicativo de mensagens para me desculpar.
A mensagem foi curta, eu liagaria no dia seguinte.
Fechei a mala pequena e deixei perto da cama, ainda envolto na toalha de banho. Comecei a me
vestir com a atenção voltada para o celular sobre o aparador, mas ele tinha resolvido ficar em
silêncio até para as notícias ruins. Pus a roupa e saí do quarto, encontrei minha mãe e Andrea
tagarelando na cozinha, sentei-me junto com elas à mesa e servi-me de café.
— Mãe. — Olhei-a, odiando que ainda estivesse se vestindo inteiramente de preto. — Bom dia.
Com um sorriso ela fez um afago em minha testa.
— Dormiu bem?
— Sim, mãe.
— Eu estava dizendo a ela que é provável que algum meio de comunicação tente entrar em contato
para alguma entrevista. — Andrea retrucou, com a xícara de café a meio caminho da boca.
Olhei de uma para outra, completamente nervoso com toda a situação envolvendo minha mãe.
— Só se você se sentir a vontade para isso, mãe. — Tomei um gole do café e depositei a xícara
na mesa.
Mara assentiu, e eu fiquei preocupado novamente por deixá-la sozinha aqui.
— O que você acha de passar uns dias no Rio, mãe? — perguntei, no meu tom mais conciliador
possível.
— Não, filho.
— Apenas alguns dias. — insisti.
Ela meneou a cabeça numa negativa.
— Vou manter alguém aqui para sua segurança. — avisei. — É a única forma de tentar tranquilo
no Rio.
Ela tentou retrucar, mas Andrea foi sucinta em lhe dar bons motivos para isso. Liana, uma da
mulheres da região que viera para fazenda auxiliar minha mãe após a morte do meu pai, entrou na
cozinha para para avisar que uma moça tinha chegado.
— Deve ser ela. — Consultei o relógio. 9:00, ao menos era pontual. — Pode liberar a entrada.
Levantei-me e caminhei para a sala. A mulher bem vestida estava ainda de pé, olhando o jardim
através das paredes inteiriças de vidro. Os cabelos curtos e extremamente pretos, faziam constraste
com o terninho branco que ela usava.
— Celine Vilarim. — Estendi a mão e os olhos castanhos me avaliaram rapidamente.
— Isso — anuiu ela.
Conversamos por algumas horas, fizemos uma viagem até a fábrica para que minha mãe
explicasse a situação com o antigo advogado, segundo ela já tinha lido a respeito do caso.
Guardei o celular depois de atender uma ligação de Nina, ela estava na casa de Camille, então
falei com as duas. Eu estava com saudades delas.
— E a garota? — Andrea disparou, assim que encerreia ligação.
— Ela se chama Camille ou Cami, se preferir. — brinquei, atento ao painel com os voos listados.
— E está bem sim.
— Você não passa de um cretino. — Ela riu.
— Você sabe que não. — Minhas tendências eram mais tradicionais, ela sabia disso. — E quanto
a Erick? — perguntei. Por que, embora, ela fingisse não se importar, Andrea tinha uma carência
extremamente grande, não sei se era isso que a fazia se envolver com tantos homens diferentes em
pouco tempo, mas era o que me preocupava. Principalmente por que eu sabia como ela ficava depois.
— Não nos falamos hoje. Ao contrário de você, não sou tradicional. — retrucou, claramente
ativando o modo ácido e desapegado, mas completamente fajuto ao meu ver.
— Não, não é.
— Ela é interessante ou só bonita? — perguntou, interessada.
— É interessante e bonita.
A mão dela pousou sobre a minha, num gesto muito cúmplice. Não sei o que estava se passando
por sua cabeça, mas eu sabia o quanto ela torcia por mim, sempre fora assim, e eu por ela.
20
Marcone
Enquanto virava a garrafa de água na boca, vi Nina entrar na academia ainda vestida com uma
calça e um moletom de pijama e pantufas, era como se eu estivesse vendo um desenho animado. Só
ela mesmo para perambular no prédio desse jeito. As olheiras escuras em seus olhos mostravam que
não tinha dormido bem, consultei o relógio de pulso, ainda não era nem cinco da manhã, para mim o
melhor horário para malhar — não havia ninguém por ali. Encontrei alguma companhia poucas vezes.
Ela sentou num dos bancos segurando um cardeninho que raramente deixava de lado e me olhou
de maneira entediada.
— O que foi dessa vez, Nina? — perguntei, voltando a pegar o peso.
— Minha professora é louca.
Revirei os olhos, afinal, falar mal da faculdade era um dos assuntos preferidos dela.
— Por isso levantou a essa hora? Por que sua professora é louca?
— Não, tenho milhões de trabalhos para fazer. — reclamou, parecendo exasperada.
— Isso se chama faculdade. — Travei o equipamento novamente e fiz a pausa necessária. —
Quando acabar você vai sentir falta.
— Você sente?
— Claro que não.
Nós rimos muito.
— Você é ridículo. — disse ela entre uma risada e outra.
Deixei o exercício de lado e sentei-me ao seu lado no banco redondo azul. Pela parede
envidraçada era possível ver a rua e mais adiante o trânsito parado, algo incomum para o Rio de
Janeiro.
— Porque não conseguiu dormir de verdade? — inquiri, conhecendo-a como eu conhecia tinha
certeza que havia um outro motivo.
— Eu estou com muitas saudades do nosso pai.
Ela não chorava mais, isso era bom e ruim. Bom, porque ela tinha entendido o significado da
morte, ruim porque o entendimento trazia um fardo ainda maior.
— Vai ser sempre assim. — Admiti, entendendo muito bem o que ela estava sentindo. — Que tal
um café e voltar a dormir? Eu estou de folga hoje, podemos ir à Poli mix e eu te ajudo com os
trabalhos, o que acha?
— Fechado.
Saímos juntos da academia, e dividmos o elevador com uma senhora baixinha e seu cachorro,
claramente as roupas inapropriadas da minha irmã chamaram sua atenção.
Para minha alegria o puto sem coração estava de plantão, então, Nina e eu passamos uma boa
parte do domingo juntos, no final da tarde finalizamos os trabalhos que ela tinha reclamado e no fim
das contas eu concordei com ela, que a professora de fato era louca.
Mais tarde, quando fiquei sozinho no meu quarto, liguei para Camille, embora estivéssemos nos
falando todos os dias, fazia quase uma semana desde nosso encontro, e eu estava sentindo falta, muita
falta, isso ficou claro, quando o rosto dela apareceu na tela.
Camille
Meu corpo parecia saber quando era ele quem estava ligando, de alguma forma tudo ficava um
pouco diferente, soltei os cabelos que estavam presos num coque horroroso e atendi a ligação.
— Achei que ainda estivesse enrolado com Nina... — Puxei minha almofada, enquanto fitava o
rosto dele na tela, havia a sombra de barba, e os cabelos estavam numa bagunça charmosa,
desalinhados. Percebi que gostova de vê-lo assim, informal e completamente relaxado esparramado
na cama grande.
Senti vontade de saber como era o lugar que ele dormia, qual era seu lado da cama preferido, se
havia porta-retratos e objetos que me dessem mais pistas de sua personalidade marcante. Os lençóis
eram brancos, mas a cabeceira era preta estofada.
— Faz pouco tempo que terminamos. — disse ele, evitando um bocejo e ajeitando o travesseiro
embaixo da cabeça.
Fiquei sem ter muito o que dizer, dificilmente nossas conversas seguiam um padrão, era sempre
diferente, até mesmo nosso silêncio. Alguns minutos se passaram, enquanto apenas nos olhamos e
então um sorrisinho pretensioso surgiu no canto dos seus lábios, fazendo surgir uma das quatro
covinhas que ele tinha perto da boca.
— O que foi? — indaguei.
— Nada, como estão os preparativos para a formatura?
Dei um suspiro, uma loucura. Passei a contar para ele como tinha sido a entrega da minha
monografia, e que eu tinha convencido a minha mãe a não fazer festa alguma por causa da formatura,
era o tipo de evento em que metade do Rio de Janeiro, a maioria pessoas que eu sequer conhecia,
estariam presentes. Ela tinha concordado com a condição de que em meu aniversário de 21 anos
seria diferente, algo que não estava muito distante.
— Ao contrário de você, Nina diz que quer uma festa aqui e outra na fazenda. — Disse ele, e eu
ri, ela realmente tinha tocado nesse assunto comigo um dia desses. — Ela tem uma pasta no pinterest
com todas as ideias de decoração e looks para esse dia.
Eu dei risada da forma como ele revirou os olhos ao dizer o nome looks, eu conseguia visualizar a
cena perfeitamente. Senti na pele o que ela devia fazer com o irmão no dia seguinte em que saí com
Marcone.
Nina me bombardeou com todo tipo de pergunta, depois de me acusar de esconder coisas dela, é
claro.
— Ele beijou você? — Perguntou ela, marota como costumava ser.
— Não, ele não tocou em mim. — Foi a resposta que eu dei, enquanto tomávamos sol na area
privada da piscina. — Somos amigos. — Acrescentei.
— Meu irmão é um lorde.
Sim, ele era.
— Quando vamos nos ver outra vez? — A voz grave me trouxe de volta ao presente, e eu pisquei
algumas vezes, enquanto meu cérebro processava a pergunta.
Pensei numa resposta não tão clichê, mas não encontrei nenhuma, na verdade meu cérebro não
formulou nada coerente o suficiente.
— Já quer me ver outra vez? — perguntei, depois de um tempo, realmente interessada em saber a
resposta, porque eu queria. Na verdade pensava nisso todo dia.
— Sim, você não?
Meu coração disparou ante o tom e a expressão que ele fez, parecendo completamente sincero.
— Mais do que eu deveria.
Marcone ponderou por um momento.
— Quando vai me contar quem machucou você?
Faltou-me palavras, ele era extremamente inteligente e observador, mas a pergunta me
surpreendeu, era como se de alguma forma Marcone tivesse acesso a minha alma, eu só não sabia se
era bom ou ruim.
— Porque houve alguém, não foi? — ele insistiu diante da minha falta de resposta.
— Sim, mas, é diferente... com você. — sussurrei, desviando os olhos da tela.
— É diferente para mim também.
Eu mordi o lábio evitando sorrir. Falamos por muito mais tempo, nos despedimos quando chegou
a hora de ele levar a irmã para a hamburgueria. Ainda fiquei deitada, olhando o teto, arrependida de
não ter aceitado ir com eles. Ouvi dois toque na porta e pedi que entrasse, minha mãe colocou a
cabeça para dentro e fez um gesto entusiasmado com as mãos.
— Tem um moço bonito querendo ver você na sala.
Olhei para o celular e depois para ela, tentando fazer as contas de quanto tempo ele levaria para
chegar.
— Estou indo, mãe. — Sorri para ela, e Joice saiu.
Ainda ajeitei os cabelos e dei uns tapinhas no rosto, antes de sair do quarto. Meu sorriso morreu
assim que vi o homem louro na sala.
Observei a loucura, que os olhos negros abrigavam. Loucura essa que apenas eu conhecia, as
mãos estavam dispostas ao lado do corpo, mãos finas, que pareciam inofensivas, mas que eram
eficientes em machucar, em estapear, agredir, por eu ser uma menina má, por que lhe enchia a
paciência com bobagens e coisas vãs, porque os homens me olhavam e eu retribuía como uma
descarada. Eram muitas as desculpas que ele dava, eram pequenos assassinatos diários, tirando-me a
vida aos pouquinhos, o gosto por ela. Transformando-me numa boneca disposta a aceitar tudo para
ter o homem que me apaixonei de volta, o gentil, o carinhoso. Por muito tempo acreditei que a culpa
era minha, que o estorvo era eu. Demorei a descobrir que não. Foi inevitável não observar o quanto
Marcone e Enzo eram diferentes, fisicamente eram totalmente divergentes. O temperamento não podia
ser mais desigual, ainda que Marcone vivesse em meio a violência que seu trabalho envolvia, ele
nunca me machucaria. Pelo contrário, eu me sentia segura.
Observei minha mãe se afastar, como se tivesse me feito um maldito favor.
— O que você quer aqui? — inquiri entredentes.
Enquanto fitava os olhos pretos gelados, fazendo um contraste completamente ruim com o cabelo
claro herdado da mãe, perguntei-me o que me prendeu por tanto tempo a esse homem que me fizera
tão mal.
— Não é possível que depois de meses você ainda esteja ressentida. — A voz baixa e calma fez
meu estômago revirar.
O tom dele me fez reviver vários momentos dolorosos de quando ainda estávamos juntos, a
sensação sufocante de pânico de tudo que se tratava de Enzo me deixou sem ar.
— Vá embora. — sibilei, a voz saindo fraca, o emaranhado de sensações ruins que vinham junto
com esse homem deixando-me completamnte mal.
A expressão agressiva que eu conhecia surgiu num átimo, a substituição do homem carinhoso e
tolerante por um monstro perverso e desconhecido, a transformação acontecia com frenquência,
alguns meses atrás eu fazia de tudo para impedi-la de vir a tona, algumas vezes funcionava outras só
o deixavam ainda mais irado.
— Eu trouxe flores para você. — Usou um tom suave e apontou para o aparador, onde as rosas
estavam. — São as suas preferidas, eu tenho tudo gravado aqui, tudo que você gosta. — Dessa vez
ele apontou para a própria testa.
— Vá embora, por favor. — Tentei outra vez.
— Você precisa de mais tempo, é isso? — perguntou, parecendo não me ouvir.
— Eu só preciso de você bem longe de mim. Vá. Embora.
Enzo deu um passo em minha direção e eu recuei, enojada com tudo relacionado a ele, até mesmo
a beleza que muitas vezes elogiei tinha se tornado asquerosa por tudo que ele era de ruim por dentro.
Cada tapa, cada empurrão, cada chute, cada grito era apenas isso que ele representava na minha vida,
um período ruim que eu queria esquecer, embora algumas cicatrizes me fizessem lembrar sempre.
Apavorei-me, quando ele deu mais passos e senti a parede gelada em minhas costas quando não
havia mais lugar para ir, observei o vaso grande que estava perto, mas ele segurou minha mão com
força.
— Não, Cami... — Os lábios dele roçaram minha testa e eu senti o cheiro do perfume que ele
usava, até mesmo isso me enojava. — Sabemos que isso nunca acaba bem... para você. — emendou
com desdém, a forma crítica e pouco afável que costumava se referir a mim e a tudo o que eu fazia,
era como se tempo algum tivesse passado, que eu ainda estivesse presa dentro do mesmo pesadelo de
sempre. — Você é minha, entendeu? Não pense que eu desisti de nós dois... — Levantou a mão, onde
estava a aliança do nosso noivado e os olhos deles ficaram marejados. — Eu me arrependo por
tudo...
A sensação ruim me deixou letárgica, depois de um minuto passei a não escutar mais, via apenas
os lábios dele mexendo sem parar e as ágrimas inundando o seu rosto.
Esse sempre foi o meu ponto fraco. Vê-lo chorar. Acreditar numa redenção que nunca vinha.
Depois das lágrimas, ele me batia de novo, de novo, de novo era um tormento sem fim.
— Chega... — sussurrei, mas a mão livre dele me imobilizou e eu permanaci presa à parede.
— Acaba quando eu disser que acabou.
— Se você não me soltar eu vou começar a gritar e essa farsa de bom moço que você mostra para
todo mundo vai acabar. — Puxei meu braço com força diante do olhar surpreso e irado dele e me
afastei.
— A pentelha da sua irmã conseguiu fazer sua cabeça contra mim antes de morrer...
O que eu demorei a entender é que as lágrimas dele vinham tão facilmente quanto iam embora.
— Não fala dela nunca mais.
— Eu ligo para você. — disse, como se não me ouvisse, fazendo pouco caso de mim. — Nós. —
Fez um gesto entre mim e ele. — Ainda não acabou.
21
Camille
Tinha aqueles dias que até o som do lápis caindo no chão me assustava, ou o burburinho de
conversas me deixava alerta, incomodada, até mesmo minha atenção mudava, meu corpo suava com
facilidade não importava o grau do ar condicionado.
— Você me ouviu, Camille?
Além de Romana, a garota do café também estava me encarando.
— Não, me desculpe. Pode, por favor, repetir?
— Você pode tirar a xerox desse processo para mim e entregar a Flávio? Estou atrasada para uma
audiência.
— Claro. — respondi, dando-me conta das folhas que ela estendia para mim.
Antes de me levantar, desbloqueei pela milésima vez a tela do celular. Foram tantas mensagens
que recebi desde a noite passada que precisei colocar o aparelho no silencioso.
Todas dele. Furiosas, ameaçadoras, repugnantes. Perguntava-me como Enzo conseguia todos os
meus números, não importava quantas vezes eu o trocasse. Observei o relógio digital na minha mesa
e levantei a fim de ir xerocar a papelada. Durante todo o dia a sensação que eu tinha era a de estar
sendo vigiada, seguida — esse era o efeito Enzo em mim. Ele tinha uma capacidade quase expert de
me tirar a paz, uma que a muito custo estava tentando reaver.
Comecei meu trabalho metodicamente, empilhei as folhas sobre o laser e cliquei no botão branco,
ouvindo o som habitual da impressora.
— Pode...
O susto que tomei foi grande a ponto de eu colidir com quem estava atrás de mim, todas as folhas
da mão de Flávio caíram e eu me abaixei para pegá-las, murmurando inúmeros pedidos de desculpas
ao mesmo tempo.
— Ei... Tudo bem. — Ele tocou meu ombro e me ajudou a pegar todas as folhas do chão. — Está
tudo bem? — perguntou, colocando os papéis sobre o balcão branco e tentando colocá-los na ordem
numérica.
— Está sim. — respondi, ainda inquieta. — Eu faço isso, tem um processo que Romana me pediu
que entregasse a você. — Apontei para a impressora e puxei as folhas já xerocadas para entregar a
ele.
Flávio me avaliou por alguns minutos.
— Você pode vir até minha sala? — perguntou após avaliar o conteúdo da papelada.
Assenti, apreensiva e o segui ao longo do corredor até o elevador que nos levaria à presidência
da corporação. Ele não disse nada, apenas clicou no número do andar e permaneceu concentrado no
que quer que estivesse naqueles papéis.
— Houve algum problema? — perguntei, assim que ele indicou uma poltrona para que eu
sentasse.
A sala dele era enorme e com exceção de um quadro amarelo, era na mesma paleta de cores dos
outros ambientes, extremamente masculina.
— Foi minha mãe quem pintou. — disse ele, talvez por eu estar atenta aos pequenos detalhes da
obra.
— Ela é muito boa. — elogiei, o quadro era voltado a um estilo barroco, algo que eu não
costumava pintar, mas achava extremamente interessante.
— Sim, ela era sim.
O verbo no passado me fez desviar a atenção do quadro para ele.
— Infelizmente ela não está mais aqui. — Sentou-se e uniu as mãos sobre a mesa impecavelmente
limpa.
— Eu sinto muito.
Ele assentiu e voltou a me fitar.
— Você costuma ter sempre essas crises de pânico? — inquiriu ele de um jeito direto.
Primeiro fiquei sem entender, depois olhei para a tela imensa atrás de mim onde provavelmente
ele monitorava todos os departamente, perdi a conta de quantas vezes fui até a área dos fumantes para
controlar as crises de ansiedade por cada mensagem que recebi ao longo do dia, só não sabia que
estava sendo monitorada, senti vergonha de imediato.
— Faz algum tempo.
Ele assentiu.
— Sabe que há pscicologos a disposição?
— Sim, eu li no contrato — respondi. — Faço acompanhamento há algum tempo, tenho uma
sessão marcada, mas me desculpe por sair tantas vezes...
— Não é por isso que estamos aqui. — Flávio me tranquilizou. — Eu preciso saber se é algo aqui
na empresa que está te incomodando...
— Não, de jeito nenhum. — Mudei de posição na cadeira procurando as palavras certas. — São
problemas pessoais que estou tendo que lidar, não é nada aqui.
Ele assentiu mais uma vez e consultou o relógio.
— Era só isso.
Saí da sala pensando em quando tudo aquilo iria acabar, a sensação que eu tinha era a de estar
sufocada e eu queria gritar. Gritar tudo que eu estava sentindo, entrei no primeiro banheiro, incapaz
de voltar para a minha mesa, lavei o rosto e olhei bastante o meu reflexo no espelho. Puxei o celular
do bolso do terninho e prendi a respiração quando vi a luz vermelha brilhando, sinal de que havia
novas mensagens, desbloqueei e antes que eu pudesse vê-las, o nome Marcone apareceu no visor,
meu coração disparou, não de um jeito ruim como agora a pouco, mas também não do jeito que eu
gostaria. Resolvi não atender, e nem olhar as mensagens.
Marcone
Tentei ligar uma segunda vez, mas a ligação caiu diretamente na caixa. Talvez o celular estivesse
descarregando ou ela não quisesse atender. Pensei em mandar uma mensagem, mas desisti e coloquei
o celular sobre a mesa. Pus o fone plugado no notebook novamente na orelha e escutei pela milésima
vez o depoimento fajuto de Antonio, tudo no cara era falso. Minha intenção era ver de que forma ele
mencionaria o nome da minha família.
— Você vai destruir o replay. — Resmungou ela, tirando o próprio fone e massageando o
pescoço.
Ignorei, afinal uma das coisas que Andrea e Nina tinham em comum era a capacidade inumana de
me tirar do sério.
— Você vai agora, gata? — Desviei os olhos da tela para Erick, o novato. Só conseguia lembrar
dele dessa forma.
— Já disse para não me chamar assim. — Andrea retrucou de modo irritado e eu gostei,
claramente. — Nos vemos mais tarde. — Ela colocou o cara para fora da sala, ao modo dela e
voltou, devo dizer que ela estava diferente, até mesmo o cabelo vivia solto, uma mudança que eu
aprovava. O rosto ficava ainda mais bonito emoldurado pelas madeixas douradas. — O que você
está olhando? — perguntou para mim.
— Não estou olhando nada. — Desliguei o aparelho e voltei a desbloquear a tela do celular.
Não havia nada dela.
Perguntei-me o que havia acontecido, uma preocupação já comum quando se tratava de Camille
surgiu e eu me levantei para encerrar o turno, pensando seriamente em desmarcar a cerveja com
Flávio.
— Então você tem um encontro hoje... — comentei, enquanto caminhávamos pelo estacionamento
digno de filme de terror.
— Não me enche! — Ácida como sempre. — Você não tem uma garota para se preocupar? —
inquiriu ela, se não fosse Andrea eu diria que era ciúmes, mas ela não era dada a essas coisas.
— Na verdade mais de uma, uma delas é você. — Encostei no meu carro e cruzei os braços,
observando-a procurar loucamente a chave dentro da bolsa abarrotada de coisas. — Está no seu
bolso.
Ela revirou os olhos e me imitou, encostando-se no próprio carro e girando a chave no dedo fino.
— Ele é uma boa companhia, só faz perguntas demais, mas ninguém é perfeito. — Ela jogou a
bolsa no banco do carona e manteve a porta aberta, enquanto olhava para mim, provavelmente
esperando que eu dissesse mais alguma coisa.
— Boa noite, Andrea. — repliquei simplesmente, desistindo, quando se tratava de romances ela
raramente me escutava.
— Até o plantão de amanhã. — Disse ela antes de entrar no carro e dar partida.
Consultei mais uma vez o celular e girei a chave na ignição, contrariado e preocupado. Encontrei
Nina e Ben no sofá da sala, quando cheguei, eu não ia negar que tinha ciúmes da encrenqueira. Eu
tinha. Mas o engraçado mesmo era a pose de bom samaritano que meu, infelizmente, cunhado vinha
adotando ultimamente. Como se eu não o conhecesse.
Dei atenção aos dois antes de ir tomar banho e mandar uma mensagem para Flávio, avisando que
eu não iria.
— Nós vamos pedir uma pizza, você quer? — Nina colocou só a cabeça para dentro do quarto.
— Não, provavelmente vou apagar daqui a pouco. — Ajeitei a almofada, sentindo o cansaço
acumulado dar as caras, evitei um bocejo e fiz um gesto para que ela entrasse.
Nina beijou meu rosto e sentou na beirada da cama.
— Não consegui falar com Camille hoje, vocês se falaram? — perguntou ela.
— Eu liguei, mas ela não atendeu. — Peguei o celular sobre o criado-mudo a fim de ver se havia
alguma mensagem ou ligação dela.
Não havia nada.
— Vá se divertir, eu estou cansado.
Nina inclinou-se para que eu beijasse sua testa e se afastou logo em seguida.
22
Camille
— Queria falar comigo? — Joice sentou-se na minha cama e eu me perguntei se realmente era a
coisa certa a fazer.
— Sim, mãe.
Desde o dia em que Enzo esteve aqui, ela tinha me evitado. Discutimos logo após ele ir embora,
não sem me avisar que voltaria, não sem me dizer que não tinha acabado.
— Se for algo relacionado ao que houve na outra noite...
— Enzo sempre me bateu, mãe. — soltei, envergonhada.
Houve uma mudança drástica na expressão dela: primeiro surpresa e depois, o que eu já esperava,
indiferença.
— Onde você está com a cabeça. Camille? — Ela levantou, agitada.
— Você não acredita, não é? — Foi inevitável as lágrimas não surgirem.
— Eu conheço aquele menino há anos, Enzo sempre foi um exemplo de criança...
— E quanto a mim, mãe... — Eu queria gritar, mas o que saiu dos meus lábios foi apenas um fio
de voz dolorido. — Que tipo de criança eu fui?
As minhas palavras fizeram efeito nela, Joice deu um passo para trás atordoada.
— A criança que você não conheceu porque estava ocupada demais... — sussurrei ressentida e
magoada.
Joice parou completamente por alguns minutos para me olhar, e então disse algo que me rasgou
inteira:
— Eu acho que a morte da sua irmã mexeu muito com a sua cabeça.
Abri a boca algumas vezes, sem conseguir encontrar palavras para o que ela tinha dito.
— Não acredito que está dizendo isso. — Meneei minha cabeça e meus olhos ficaram cheios de
lágrimas, até mesmo meu chefe prestou atenção na crises que eu tive durante a tarde e ela vivendo
comigo nunca sequer desconfiou. Ou talvez só não se importasse o suficiente para perceber.
— O médico nos disse que você ficaria confusa por um tempo. — Ela sentou-se, mas eu me
levantei furiosa.
— Mãe, você ouviu o que eu disse?
— Sim, eu ouvi. — Fez uma pausa. — Enzo sempre fez o melhor por você, Cami. Como você
pode dizer algo desse tipo?
— Porque é a verdade. — disse horrorizada com a cegueira dela.
— Você nem ao menos lembra o que houve a você e a sua irmã...
— Isso não impede que eu me lembre de todo o resto, mãe... Por favor. — Foi quase uma súplica
para que ela me ouvisse ao menos uma vez, que me desse crédito, que prestasse atenção em mim.
— Eu quero que você descanse, Camille. — Ela encobriu o rosto com as mãos e me olhou
seriamente, perguntei-me o que se passava em sua cabeça, mas ela não disse mais nada, apenas saiu
do quarto, deixando-me sozinha.
Encarei a porta por um longo tempo, mas não houve ruído ou qualquer movimentação, mas minha
mente gritava, um pensamento atropelava o outro, os sentimentos colidiam, enquanto eu tinha a
impressão de que tudo estava murchando a minha volta, o que já não tinha cor parecia ainda menos
colorido ou interessante. Caminhei metodicamente até o meu closet e peguei um dos meus biquínis
favoritos e uma toalha no banheiro, saí sem que ninguém me visse para a piscina e passei uma boa
quantidade de tempo embaixo da água, ali eu não escutava nada, nem a mim mesma. Os meus sentidos
permaneciam completamente ligados ao movimento da água envolta ao meu corpo, nada mais
importava. Era como se eu estivesse num universo paralelo, longe de tudo e de todos.
Ousei olhar as estrelas através do teto de vidro, lembrei do que minha vó contou quando meu avô
morreu. Ela dissera que ele era uma estrela, que seria sempre a estrela maior do céu, perguntei-me se
Liz era uma também, se eles estavam juntos em algum lugar designado aos mortos ou se simplesmente
tinham deixado de existir.
Chorei sem fazer barulho, as lágrimas misturaram-se à água gelada da piscina, o tempo ficou
indeterminado e quando saí dali não fazia ideia de quanto tempo tinha se passado. Não vi ninguém,
quando caminhei pelo corredor, parei em frente ao quarto de Liz, ciente de que estava pingando, mas
sem realmente me importar.
Pela primeira vez desde que ela morreu, eu girei a maçaneta, demorei a ter coragem de entrar, mas
quando o fiz, meu coração parecia estar sufocado pela saudade. Tudo estava ali, menos ela, liguei o
interruptor, enquanto o meu próprio lamento enchia o ambiente.
Deitei na cama no lado que geralmente disputavámos quando vínhamos assistir filmes juntas, a
sensação era péssima, como se faltasse um pedaço de mim, a parte mais forte. Por quantas vezes ela
não me abrira os olhos, quantas vezes não fora ela a enxugar minhas lágrimas. Ela era só uma menina,
tinha tanto pela frente.
Liz abriu a porta de uma vez e eu me encolhi com a cena, Enzo sobre Nadja, a garota que ele
dizia nunca ter chegado perto. Quantas brigas tivemos e em quase todas elas eu tinha apanhado.
Um tapa, um soco, um empurrão, e depois a mão carinhosa em meus cabelos, dizendo que era
culpa minha, que eu o pressionava demais, que eu o julgava com minhas desconfianças por que eu
era a adultera da relação, e então eu me via dando explicações para erros que não cometia. De
vítima passava a ser algoz da história, suplicando de forma deprimente que ele acreditasse em
mim, que eu era fiel, que nunca o trairia.Eu estava morrendo aos poucos, sendo sacrificada pela
minha própria ignorância, pela esperança que aquele homem mudasse, que voltasse a me amar
como antes.
Senti asco. Dele e de mim.
— É essa vida que quer? — Liz objetou para mim, olhando-me com desespero. Minha irmã de
apenas dezessete anos, dando-me uma lição de moral, como todas as outras que já havia me dado.
Enquanto eu sempre fui fraca, sabotando a mim mesma, buscando aprovação, carinho e
atenção de meus pais e de qualquer ser que respirasse, desdobrando-me para agradar, para dizer
sim, quando o que eu realmente queria era romper aquele casulo deprimente de condescendência,
ela sempre fora luz, razão, independência, desapego. E eu a amava, era a parte bonita da minha
vida.
Fechou a porta, no entrosamento que estavam não nos perceberam ali, mas Heloísa surgiu
subindo a escada e encarando-nos, como se as erradas fôssemos nós.
— Eu disse que ele estava dormindo. — ralhou entre dentes.
— Você é ainda pior do que ele. — Liz cuspiu as palavras com desprezo. Heloisa sabia de tudo
que eu já havia sofrido nas mãos do filho, mas nunca fizera nada. Dava apenas advertências a
mim.
“ Não o aborreça, Camille.”, “ Homens são assim.”, “ Ele não faz por mal, cubra isso com
maquiagem.” , “ Ele só está em um dia ruim, as coisas não foram bem na empresa.” ,“ Quando
você deixar de viver emburrada, ele vai parar de procurar outras mulheres. ”
Meus olhos encheram de lágrimas, os ruídos que vinham do quarto estavam doendo como tapas
certeiros no meu rosto. Antes que me desse conta encarei a aliança no meu dedo, vendo-a como
uma espécie de prisão. Uma muito amarga, por sinal. Tirei-a, deixando Heloisa e Liz mudas por
um tempo, expectando as minhas reações, aquela coisa parecia estar me queimando, segurei-a
entre o polegar e o indicador, encarando-a. Percebendo o dano que estava fazendo a mim mesma,
insistindo tanto nisso, desviei o olhar para Heloisa.
— Não é a vida que quero ter. — sussurrei, e estendi o objeto sem valor algum para mim agora.
Ela permaneceu estática, então deixei a aliança cair no chão aos seus pés.
— Todas as marcas que Enzo já deixou na minha irmã, ele vai pagar por cada uma delas.
Fui puxada pela mão e me deixei levar, ainda desnorteada com o clarão que se abriu em minha
cabeça, as palavras de Liz fazendo sentido, os gemidos daquela garota provocando uma repulsa
ainda maior do que jamais senti por ele. Não era amor. Era dependência e uma da pior espécie.
O que eu estava fazendo?
Entrei no carro e dei a ré para sair da garagem assim que minha irmã entrou no banco, dirigi,
sentindo a angustia sendo tirada de mim a cada distância imposta entre mim e aquela casa onde
eu nunca mais poria meus pés.
Abracei a almofada, e enxuguei os olhos com as costas das mãos. Terminar o noivado tinha sido a
coisa mais sensata que fiz na minha vida. Levantei e fui até a escrivaninha, o livro que ela mais lia
estava lá: O morro dos ventos uivantes. Tinha perdido a conta de quantas vezes ela finalizara e
reiniciara a leitura, uma vez perguntei o motivo para ler tantas vezes.
— São personagens intragáveis, eu leio para tentar entender porque fazem tão mal uns aos
outros e a si mesmos. — Liz dissera, e eu senti ainda menos vontade de ler.
Mas havia os mocinhos perfeitos, ela também me falava deles, do amor romântico e de relações
saudáveis. Pensei em Marcone, e em todas as ligações que eu tinha recusado, um medo absurdo de
que a história se repetisse, de que talvez ele não fosse tão bom com parecia. Afinal, eu precisei de
quanto tempo para realmente conhecer Enzo?
Meu coração ficou apertadinho com a ideia de não vê-lo mais, eu gostaria de tê-lo conhecido
antes de tudo. Peguei o porta-retratos com a foto dela e voltei a me encolher na cama, deslizei o
polegar pela imagem, lembrando de muitas coisas, boas e ruins.
— Eu não sei o que eu faço. — Solucei, olhando a fotografia como se ela pudesse me responder.
Lembrei-me de quantas vezes ela citou a polícia e medidas que o deixasse longe de mim, eu
mesma já estudei a lei Maria da Penha, entendia como funcionava, só não sabia se na prática era fácil
como estava escrita no papel. Enzo nunca seria preso por nada, a influencia e dinheiro que a família
Coimbra tinha nunca deixaria que isso acontecesse. Coloquei o porta-retrato de volta ao lugar e olhei
ao redor, saí um tempo depois.
Tomei um banho quente assim que cheguei ao meu quarto, sequei os cabelos e fiz uma trança
neles, retirei o celular do carregador e olhei as notificações, não havia nenhuma ligação de Marcone,
apenas uma mensagem solitária.
De: Marcone
Me diga apenas se está tudo bem.
Estou com saudades.
Senti uma vontade súbita de ouvir a voz dele, ao menos um pouquinho e meus dedos traidores
fizeram a ligação, a expectativa transformu-se em decepção quando ele não atendeu.
Marcone
Abaixei-me para tirar o coturno e caminhei devagar até o meu quarto, onde eu sabia que Nina
estaria dormindo, como em todas as noites em que eu tinha plantão. Dei uma olhada na encrenqueira
e tomei um banho demorado, frio e despertador. Deixei a farda separada para mandar para
lavanderia e saí do quarto na ponta do pé, indo em direção à cozinha. Eu quase conseguia sentir o
gosto do café na boca. Enquanto procurava uma caneca, desbloquei a tela do celular e vi
imediatamente uma ligação de Camille, senti um alívio indescritível.
04:04 da manhã.
Não era uma boa hora para retornar a ligação, enviei uma mensagem boba e fui surpreendido pela
resposta imediata.
De: Marcone
Ainda acordada?
De: Camille
Sim, não consigo dormir.
De: Marcone
O que aconteceu?
De: Camille
Estou triste hoje.
De: Camille
A gente pode tomar um café amanhã?
De: Marcone
Claro, na hora e no lugar que você quiser.
23
Marcone
Olhei mais uma vez o relógio, ela estava atrasada. Estava curioso para saber o motivo de
Camille recusar que eu fosse buscá-la, embora a cafeteria fosse realmente perto de seu prédio e num
lugar péssimo para estacionar, precisei deixar o carro um pouco longe dali.
Desviei os olhos da entrada para analisar o lugar em volta, era pequeno e receptivo em tons de
rosa e verde. No lado oposto ao meu duas adolescentes usando ainda a farda do colégio dividiam
uma fatia de torta.
— Olá, Cami. — A garota que já tinha vindo me perguntar mais de uma vez o que eu iria pedir,
sorriu gentilmente para a entrada e eu fiz o mesmo.
Camille usava shorts jeans e uma camiseta branca, a sandália baixinha decorada com imitações de
pedras preciosas deixavam a tatuagem a mostra. O pé dela era realmente lindo, eu só não lembrava
há quanto tempo essa parte do corpo feminino tinha passado a chamar minha atenção dessa forma.
Enquanto ela estava distraída conversando com a menina do caixa, ainda alheia a minha presença,
pude observá-la pelo tempo que quisesse. Era impossível não notar as olheiras no rosto livre de
maquiagem, o fato dos cabelos estarem presos num rabo de cavalo deixou em evidência o colar que
eu tinha lhe presenteado em seu pescoço. Fiquei surpreso pelo fato dela ainda usar, principalmente
pelo valor que a peça tinha.
Olhando ao redor, ela me encontrou e sorriu, disse alguma coisa a menina e caminhou para onde
eu estava, de perto eu pude dar uma boa olhada nas pernas longas, disfarcei como pude, é claro.
Levantei-me para abraçá-la e senti o cheiro já característico que vinha da pele e dos cabelos dela.
— Eu te fiz esperar muito? — Sentou-se ao meu lado, passando rapidamente os dedos pelos fios
de cabelos fora do rabo de cavalo.
— Não, exatamente. — Sorri para ela, pensando que eu realmente tinha sentido sua falta nos dias
em que não nos falamos. — É bom você pedir alguma coisa, a garota já veio trilhões de vezes e deve
estar aborrecida porque ainda não fiz pedido nenhum.
Camille riu e me deu uma olhada engraçada.
Logo em seguida ela fez os pedidos, percebi o modo educado que ela se dirigia às pessoas, algo
que eu admirava.
— O que houve para não atender minhas ligações? — perguntei, quando a garçonete se afastou.
— Tive dias ruins. — Sussurrou ela, e o olhar desconfiado estava ali, foi impossível não
perceber.
— Eu posso ajudar?
Ela fez que não e correu os olhos pelo cardápio.
— Você não gosta de cappucino? — perguntou ela, mudando de assunto.
— Com exceção ao chocolate quente, eu prefiro café preto. — As estrelinhas tatuadas entre sua
orelha e nuca chamaram minha atenção.
— Você gosta de tatuagens? — inquiriu, quando percebeu para onde eu olhava.
— Faz pouco tempo que descobri que sim. — Passei o polegar pela pele pintada, sentindo o
relevo do desenho. — Pensa em fazer mais alguma?
— Talvez sim. — Ela pegou o celular da bolsa pequena e abriu uma pasta com arquivos e
inspirações de tatuagens.
— Em que lugar dessa vez? — Segurei seu aparelho e passei as olhar as imagens, em grande
maioria eram delicadas: borboletas ou frases de traços finos.
A garçonete trouxe o meu café, o cappucino e a fatia de torta dela.
— No pulso. — Indicou o lugar, e eu passei o dedo, imaginando alguns dos desenhos ali. — Você
gostou de alguma? — Tomou um gole da bebida e passou a acompanhar as fotos junto comigo.
— Essa aqui. — Girei um pouco o celular para que ela visse a frase.
“ Com minha própria vida. ”
— Gosto também. — Ela me olhou sorrindo, o canto da boca sujo com um pedaço minúsculo de
chocolate. — Você faria?
— Sim. — Usei o polegar para limpar seus lábios e coloquei o resquício de chocolate na minha
própria boca, os olhos intensos me fitaram por um longo tempo e eu estava curioso para saber o que
se passava em sua cabeça, da mesma forma que queria entender o motivo de seu sumiço.
— Por que não experimenta? — Ofereceu, apontando o garfo para a torta, aceitei e ela colocou
um pedaço na minha boca. — Gostou?
Conforme o tempo foi passando, e a hora dela ir embora foi chegando, percebi que eu queria um
pouco mais de tempo. Para tudo. Para as conversas, para o sorriso dela, para as manias e os gestos
repetitivos que ela fazia em alguns momentos, para a intensidade verde dos olhos calorosos que me
hipnotizavam. Eu queria mais tempo com ela, já tinha passado da hora de admitir isso e de saber se
ela queria o mesmo. Fiquei subitamente nervoso, enquanto caminhávamos para onde meu carro
estava estacionado.
Camille estava me convidando para o jantar que sua mãe promoveria por conta da formatura, a
expressão corporal dela mudava quando citava a mãe, não era a primeira vez que havia notado.
Todavia, eu não estaria de folga para comparecer, pedi que ela tirasse fotos e me mandasse todas.
— Pode me levar para outro lugar? — pediu ela, depois que liguei o motor do carro.
Olhei-a, talvez tendo uma resposta de que o que eu vinha sentindo era correspondido.
— Para onde quer ir? — Perguntei, mudando a rota que nos levaria para o seu prédio.
— Porque não me mostra onde você mora? — perguntou naturalmente, enquanto colocava o cinto
de segurança.
— Nina nunca levou você lá? — Fiquei curioso e surpreso, apesar de raramente minha irmã
aparecer com alguma amiga a tiracolo, com exceção do puto que ela chamava de namorado.
— Não, nunca deu certo, geralmente ela vai a minha casa. — Ajeitou a bolsa no colo atenta aos
prédios que nos rodeavam.
— Ok.
A garota estava atenta a tudo.
— Somos praticamente vizinhos. — sussurrou ela, achando graça, quando fiz um gesto para que
ela descesse do carro já no estacionamento.
— Praticamente. — concordei e segurei seu braço, puxando-a em direção ao elevador.
Não sabia se Nina estava em casa ou não, ainda não tinha parado para checar as mensagens do
celular. Enfiei a mão no bolso do jeans e peguei as chaves para em seguida abrir a porta, dei espaço
para que ela entrasse e fechei a porta atrás de mim, observando-a parar no meio da sala, olhando
tudo.
— Quer beber alguma coisa? — perguntei e ela se virou para mim, nas bochechas uma coloração
rosada e atraente, tal qual ela era. Atraente de modo muito natural. Camille fez um gesto que sim e eu
fui até a cozinha.
Camille
Observei-o afastar-se e fui até o aparador, onde alguns porta-retratos estavam espalhados, além
de uma chave solitária. O apartamento era extremamente masculino, com toques femininos sutis como
algumas flores em lugares estratégicos, mas o tom predominante era escuro. Fui atraída por uma foto
em que Nina estava abraçada com ele, em outra Mara e Tadeu, o pai de Marcone. Senti uma conexão
familiar muito grande vendo aquelas fotografias. Uma vez, ouvi numa série o mocinho dizer que
família era poder. Na verdade o que me fazia assitir era justamente a essência familiar que a trama
tinha, a forma como um protegia ao outro.
Com a própria vida.
Deixei as fotos de lado, quando senti um vento agradável no meu braço. Percebi que vinha da
sacada, a porta larga de vidro estava aberta assim como as persianas. Caminhei até lá e fiquei sem
fôlego com a vista dali, era como se as estrelas estivessem muito perto, como se fosse possível tocá-
lás.
Fechei os olhos, sentindo o vento fresco do início da noite em meu rosto, e só voltei a abri-los
quando senti o braço de Marcone roçar o meu, muito perto de mim.
— Vinho? — perguntei aceitando a taça que me estendeu.
— Sim. — Ele bebericou a própria bebida e manteve os olhos no meu rosto.
— É tão bonito aqui de cima — comentei, mudando a taça para a mão esquerda e consertando a
bolsa no ombro.
— Eu gosto também, foi um dos motivos que me fez comprar o apartamento. — respondeu, ainda
olhando meu rosto.
— Onde morava antes?
— Nesse mesmo bairro, mas num prédio inferior a esse. Quando Nina resolveu vir morar no Rio,
resolvi me mudar. Aqui é mais seguro.
Família era poder.
Encaramo-nos por muito tempo, eu queria decifrar esse homem, queria ser tão atenta quanto ele
era em ver a minha alma. Ainda em silêncio, Marcone tocou meu ombro e eu o segui de volta a sala,
sentei no sofá, sentindo-me completamente nervosa por estar ali sozinha com ele. Tomei um gole da
bebida e coloquei a taça na mesinha ao lado do sofá, sem saber onde colocar as mãos, ou o que dizer,
como se eu nunca tivesse estado sozinha com um homem. Todavia, eu nunca estive sozinha com um
homem como ele.
— Relaxe, Camille. — Ouvi-o dizer num tom suave, mas sério. — Quando você quiser ir é só me
dizer.
Ele tomou o líquido inteiro da taça num só gole, e a colocou na mesa ao lado da minha, o
movivento deixou meu corpo muito próximo ao dele por um momento, e a atração que quis tanto
evitar estava ali, fazendo o ar a nossa volta mudar. Não sei se Marcone também notou, mas a forma
como me olhou me fez prender a respiração e morder a lábio.
— Eu me pergunto o tempo inteiro o que se passa na sua cabeça. — Emendou ele e afagou
levemente meu rosto, senti minhas bochechas quentes imediatamente, ao mesmo tempo que quis
fechar os olhos e aproveitar o toque dele, eu queria olhar o seu rosto, sorver cada pequeno detalhe
dele e das mudanças sutis que estavam acontecendo em seus olhos.
— Ultimamente? — Tive coragem de perguntar, olhando para as íris azuis atentas a mim. — Você.
— confessei, porque era a verdade, não havia um dia sequer que eu não pensasse nesse homem, e que
eu não inventasse desculpas para continuar com o que quer estivéssemos fazendo, por que não tinha
nome, além de amizade. Era o que ele tinha proposto quando nos conhecemos, sermos amigos. Eu não
sabia se passava disso para ele, porque eu começava a ver de maneira diferente.
Os lábios dele tocarem minha testa e eu fechei os olhos, sentindo, como que atraída pousei minha
mão esquerda no seu pescoço, imaginando que mais tarde talvez o perfume dele permanecesse em
meus dedos, fazendo-me lembrar daquilo que já estava completamente registrado pelos meus
sentidos. Havia, porém, uma necessidade maior.
Conhecer o sabor. Saber se era tão gostoso quanto o cheiro.
— Me beija... — pedi, abrindo os olhos e afastando-me um pouco para ver o rosto dele. Os olhos
azuis estavam escuros de uma forma que nunca os tinha visto antes, meu coração ficou agitado de tal
forma que temi que Marcone pudesse escutá-lo.
Os dedos continuaram a afagar cada parte da minha face, como a descobrir cada traço, desde a
sobrancelha até meu queixo. Prendi a respiração quando o rosto dele ficou mais próximo do meu,
todavia, como numa tortura silenciosa ele beijou o canto dos meus lábios, enquanto roçava o nariz
atrás da minha orelha.
Quase automaticamente minhas mãos se fecharam ao redor de sua nuca e então ele me beijou, as
mãos grandes envolveram a minha cintura e no segundo seguinte eu estava em seu colo. O gosto do
vinho recente misturado ao seu gosto natural tornaram o beijo quase afrodisíaco, senti cada parte de
mim ficar arrepiada, entregue, enquanto a língua explorava meus lábios, meu coração antes disparado
agora estava louco, completamente audível, afastei-me, tentando organizar as sensações, mas tudo
ficou mais intenso quando a boca dele encontrou meu pescoço e eu gemi sem querer. Os afagos
suaves em minha cintura continuaram, enquanto eu recuperava o fôlego, sem me desgrudar dele.
— Eu queria fazer isso há muito tempo... — disse ele, baixinho, e eu gostei de saber que não era a
única afetada.
— Eu também. — Ergui o rosto para beijá-lo outra vez, defazendo-me em seus braços, em mil
pedacinhos.
O beijo era gostoso, mais do que imaginei, como se minha boca fosse feita exatamente para
encaixar na dele, aproveitei para tocá-lo, meus dedos passearam pelo peito rígido, forte, a barba
crescendo, embora ainda invísivel espetaram-me levemente.
— Eu preciso passar mais tempo com você. — sussurrou em meu ouvido e fechei os olhos,
abraçando-o mais forte, de forma que meus seios ficaram colados ao peito dele, o prazer nublando os
meus pensamentos. — É só você dizer que quer também.
Afastei-me apenas o suficiente para ver seu rosto, perdi-me por um momento na escuridão
incomum dos seus olhos.
— Seus olhos estão... diferentes... — O que disse soou num fio de voz.
— Os seus também — Dessa vez ele sorriu, como se soubesse de algo e eu não. Beijou
delicadamente meu queixo. — Só vou me afastar se você quiser.
Ajeitei-me no seu colo.
— Eu não quero... — Admiti, eu não queria que ele se afastasse, muito pelo contrário, eu queria
sentir aquela sensação nova que ele despertava, o nervosismo agradável, o prazer de apenas estar
por perto, essas coisas simples que eu não lembrava que existiam.
Tentei me afastar dele quando ouvi o trinco da porta, mas Marcone me impediu, segurando-me
pela cintura, e me mantendo em seu colo. Olhei para a entrada do apartamento, esperando pela irmã
dele, só podia ser ela e era. Nina abriu e fechou sem nos perceber ali e quando viu a cena, primeiro
estancou. A cara dela fez Marcone rir, não houve som, mas senti a vibração do seu tórax.
O filho da mãe riu.
— Acho que eu cheguei na hora errada. — retrucou ela, escondendo um sorriso.
— Você tem toda razão. — Marcone disse, o nariz brincou atrás da minha orelha, e fiquei
dividida entre beijá-lo outra vez ou me enterrar em um buraco.
Carinhosamente e sem mais brincadeiras, Nina beijou meu rosto e se afastou para o corredor que
devia levar aos quartos.
— É melhor eu ir. — Embora eu quisesse mesmo o contrário.
Ele entrelaçou nossos dedos e beijou minha mão algumas vezes antes de assentir.
A viagem até meu prédio foi rápida demais, ficamos a maior parte do tempo em silêncio, um
muito agradável por sinal. Quando o carro estacionou, eu me virei para ele, assisti a mão grande
deixar o volante e tocar meu rosto. E como se ali fosse o meu lugar, fui para o colo dele, não o beijei,
encostei a testa na sua. Essa naturalidade toda entre nós me deixava surpresa e confortável ao mesmo
tempo.
— Vamos nos ver amanhã? — perguntou baixinho, senti minha pele inteira arrepiar, e uma
necessidade instável de ficar mais perto, as mãos dele afagaram minhas costas, espalhando calor por
elas.
— Sim. — A resposta foi acompanhada de um selinho curto.
— E depois? — insistiu, num tom divertido, mas ainda assim sério.
— Também. — Sorri.
Não sei direito quanto tempo trocamos beijos dentro do carro, e quando o veículo escuro se
afastou, eu só desejei que a noite passasse logo para que pudesse estar com Marcone de novo, no dia
seguinte.
24
Camille
Nina abriu a porta do banheiro de Marcone e depois de colocar uma toalha seca no anel
metálico, deixou-me sozinha para tomar banho. Nós tínhamos passado o dia juntas, almoçamos no
shopping e assistimos a um filme no cinema. Uma estréia tão chata que eu não tinha sequer prestado
atenção de verdade. Entrei no boxe e liguei chuveiro, regulando a água para ficar morna. Marcone
estava há três dias fora, e eu começava a entender a angústia que Nina sentia quando falava do
trabalho do irmão e de Ben, não era saudável para eles, muito menos para quem os esperava em casa.
A possibilidade que talvez não houvesse volta, isso consumia e estragava tudo, fazia-me questionar
por quais motivos alguém escolhia essa profissão. Fazia quase três semanas desde que ele me beijou,
desde então não deixamos de nos falar, nem de nos vermos. A afinidade que tínhamos era surreal até
mesmo para mim. Embora fôssemos completamente diferentes em algumas coisas, éramos iguais em
outras. E quanto mais tempo juntos passávamos, mais eu me ressentia por mim mesma de ter chegado
a cogitar que ele fosse igual a Enzo. Não podia ser mais diferente
Tudo era diferente, o jeito que ele me olhava, o jeito que falava comigo, a forma que se
comportava quando estávamos em público, sem tentar me retrair, muito pelo contrário, ele ria das
minhas besteiras. Deixava-me completamente a vontade, livre para que eu fosse quem quisesse ser. E
era esse motivo que me deixava indecisa sobre contar a ele sobre Enzo, medo que ele mudasse
comigo, que me olhasse diferente.
Saí do banho com esses pensamentos e fui até a minha bolsa sobre a cama, raramente eu entrava
nesse quarto, exceto quando Marcone me pedia para pegar alguma coisa, mas eu conseguia enxergá-
lo em cada detalhezinho, a personalidade forte estava presente em cada móvel e escolha de cor.
Coloquei o vestido e caminhei até o closet dele, o cheiro do homem estava ali, como se ele estivesse
presente, usei um pouco do perfume que estava em evidência na primeira prateleira e fui encontrar
Nina na cozinha. Ela tinha me avisado que pediria pizza, sentei no balcão, observando-a abrir a caixa
retangular com uma logo imensa e laranja.
O cheiro estava maravilhoso.
— Qual sabor você gosta? — Ela pegou duas latas de refrigente da geladeira e colocou no balcão
junto com dois copos.
— O que tem aí? — Inclinei-me para ver e Nina sentou-se ao meu lado.
— Pedi três sabores diferentes. — Ela apontou para a caixa aberta, servindo a si mesma logo em
seguida.
Passamos as horas seguintes vendo tevê, um episódio atrás do outro, algo que eu não fazia antes
por causa do tcc.
Marcone
Bati a porta do carro e me abaixei para tirar a coleira de Bella e afagar a cabeça grande.
Disciplinada, ela me seguiu até o elevador específico para moradores que tinham animais de
estimação. Enquanto os números mudavam até parar no meu andar, ela permaneceu sentada, a língua
para fora da boca indicava que ela estava cansada e com sede, o que não era de surpreender depois
dos três dias de trabalho que nós tivemos. Às vezes eu preferia trabalhar com ela que com um agente
humano, nos comunicávamos muito melhor.
Fui imediatamente até meu quarto, onde eu sabia que Nina estaria dormindo e me surpreendi ao
ver que ela não estava sozinha. Eu teria um infarto fulminante se não tivesse visto a cabeleira
castanha de Camille sobre o meu travesseiro, ambas dormiam tranquilamente, não cheguei perto para
não acordá-las, apenas apreciei a cena, gostando muito do que via e da ligação inquestionável das
duas. Tomei um banho e me troquei tentando fazer o mínimo de barulho, quando ia sair do banheiro,
notei a calcinha branca rendada pendurada. Antes que eu pudesse pensar a respeito, peguei a peça
pequena entre os dedos, minha mente fértil imaginando de várias formas como devia ficar em
Camille, pelo tamanho não cobria nada. O sangue esquentou como um louco, e eu devolvi o pedaço
de pano diabólico para onde estava antes.
Ainda olhei para as duas antes de sair e encostar a porta, coloquei água para Bella e tomei um
copo de refrigerante, enquanto uma fatia de pizza esquentava no micro-ondas.
O cheiro já conhecido me fez olhar para trás, Camille e Bella se encaravam a uma distância
razoável, o tamanho do animal realmente assustava a quem não lidava com ele sempre, esperei para
ver como uma reagiria a outra, mas tudo que Bella fez foi ir até a garota e cheirar ao redor, como que
conhecendo o terreno. Achei graça do olhar amedrontado que Camille me lançou, como se se sentisse
encurralada.
— Venha, ela não vai machucar você. — Estendi a mão e ela veio, sendo seguida pelo cachorro
que sentou-se, olhando para nós dois.
— Ele assusta. — reclamou, um tanto receosa.
— Ela. É uma femea. — Fiz um sinal e Bella se aproximou.
Camille se meteu entre minhas pernas e eu ri, aproveitando da proximidade para beijar o pescoço
perfumado e frio. Os olhos sonolentos desviaram do cachorro para o meu peito nu, e as mãos
curiosas passaram por ali, em seguida ela me encarou. As íris dilatadas, lembrei-me do que ela
dissera sobre meus olhos estarem diferentes na noite em que nos beijamos pela primeira vez, os meus
eram um reflexo indêntico dos dela, ambos dilatados, cheios de desejo.
Baixei a cabeça para tocar os lábios carnudos com os meus, sentindo a conexão familiar. Isso me
surpreendia muito, a necessidade de estar perto dela, embora uma parte de mim ainda me chamasse
de egoísta, uma que eu não queria escutar. Senti o corpo macio perto do meu, os seis redondos, que
eu calculava serem pequenos, embora não os tivesse tocado ainda, estavam apertados contra o meu
peito, fazendo meu sangue esquentar.
O ruído resignado que Bella soltou, fez-me afastar apenas um pouquinho de Camille, ela me
abraçou.
— Acha que ela está com ciúmes? — perguntou.
Achei graça, abaixei-me diante de Bella e Camille fez o mesmo.
— Essa é Camille — apresentei, acariaciando a cabeça peluda.
O olhar entediado que ela lançou nos fez rir, logo em seguida correu para o tapete perto da
entrada da sacada, o lugar onde ela gostava de ficar quando estava aqui.
— Você demorou. — sussurrou ela, sentando-se num dos bancos e tomando um gole da bebida do
meu copo. — É sempre assim?
— Depende da investigação.
Coloquei a pizza aquecida no prato e sentei ao seu lado, realmente faminto. Enquanto eu comia,
ela me contou sobre a tarde com Nina, que decidira de última hora domrir aqui, em alguns momentos
meus olhos se permitiam olhá-la com mais atenção e o pensamento de como ela ficava dentro do
maldito pedaço de pano voltava a minha mente. A garota realmente não fazia ideia do quanto era
atraente. Assim que terminei a fatia de pizza, acabamos no sofá, ela trouxe um lençol fino que pouco
ajudaria caso ela estivesse mesmo com frio e se remexeu até ficar numa posição boa em cima de
mim, dado ao pouco espaço do móvel.
— O que é isso?
Segui seu olhar, encontrando uma cicatriz que tinha ganhado de um dos assassinos de Sam, um
canivete escondido e que perfurara superficialmente um pouco abaixo da minha costela. Pensar nisso
com Camille perto de forma tão íntima, encheu-me de pesar. Avoz imaginária me chamando de
egoísta aparecendo e trazendo ainda mais desconforto.
— Ganhei numa briga. — Segurei o queixo delicado e beijei a boca tentadora, isso a manteve
calada por um tempo.
Cami suspirou, aconchegando-se mais a mim.
— Você não tem medo? — perguntou de olhos fechados, os dedos curiosos espalhando-se por
todo canto: meu tórax, meu peito, meu queixo. Ela gostava de tocar onde não devia e isso era um
problema, porque o tempo inteiro eu tentava me segurar ao máximo com ela. Camille era especial
demais, e eu não queria apressar nada, embora ela não me ajudasse em nada nisso. Os olhos da
garota se tornavam febris durante os beijos e embora não fosse proposital, ferrava com a minha
cabeça e meu autocontrole.
— De que? — inquiri, curioso.
— De morrer.
Ponderei a pergunta seriamente, na verdade eu nunca tinha parado para pensar a respeito. Para
mim era pior para quem ficava, para quem tinha que enfrentar a dor da perda e o luto.
— Acho que a morte prefere as pessoas que eu amo à mim, Camille. — Ela levantou a cabeça
para me olhar, um pouco de dor enchendo os seus olhos, talvez estivesse pensando na irmã.
Era um pensamento que tinha há muito tempo, várias coisas horríveis poderiam ter acontecido
comigo ao longo desses anos, mas nunca me feri de verdade, não fisicamente. Apenas meu coração
fora destruído e a dor era bem pior, muito pior do que qalquer dor física. As pontas dos dedos
apenas pararam quando ela dormiu, a posição que eu estava era muito desconfortável, ainda assim
permaneci do mesmo jeito, para poder olhá-la.
Uma das coisas que eu realmente apreciava no Rio de Janeiro eram as praias, eu costumava dizer
que não havia cartão postal mais relevante que um retrato da praia num final de semana. Camille
consertou o boné, que com certeza ficava mais atraente nela do que em mim e sugou mais uma vez a
água de coco pelo canudo verde. Depois de um empate no vôlei contra Nina e Ben, viemos beber
algo no quiosque, ela preferiu a água, eu uma cerveja, enquanto os outros dois estavam no mar.
O calor era infernal.
Parecia fazer um século que eu tinha um final de semana tão tranquilo quanto este. Depois de
acordar e tomar o café da manhã com Nina e Camille, fiz uma ligação de vídeo para minha mãe e a
advogada e me acalmei, ainda que parcialmente, por saber que estava tudo bem por lá. Depois do
início do processo, a filha de Antônio tinha parado com os ataques nas redes sociais e minha mãe
tinha recebido apenas o jornal principal de Minas, tinha sido um conselho da advogada para manter a
imagem da fábrica completamente limpa por conta da prisão e dos crimes de Antônio, já que era uma
das principais fontes de emprego e economia da região. Após isso, entrei em contato com o delegado
responsável pelo caso e obtive informações a respeito dos pedidos de liberdade provisória que os
advogados de Antônio já tinham solicitado várias vezes e que haviam sido negadas.
O dia tinha começado bem, viemos para a praia em seguida.
Bella colocou a cabeça grande na coxa de Camille e ela afagou levemente, ainda receosa.
— Acho que ela está me dizendo que aceita dividir você, não, é Bella? — Cami sugeriu num tom
divertido.
— Isso é um grande passo para o relacionamente de vocês. — brinquei e tomei outro gole de
cerveja.
Relacionamento.
Embora não tivéssemos conversado realmente sobre nós dois, era isso que estávamos fazendo,
não era? Construíndo um relacionamento, soava até estranho. Eu não imaginava que ficaria sozinho
para sempre, mas nunca imaginei que me envolveria tão intensamente outra vez, ainda que eu não
soubesse nominar o que sentia por essa garota, tudo que se referia a ela me afetava, a melancolia que
vez ou outra deixavam-na quieta e retraída, a forma carinhosa como ela se referia a minha irmã e que
de certa forma eu entendia o porquê, Nina era, talvez, uma extensão da relação que Camille tinha com
a irmã. Ainda havia desconfiança, era como se ela esperasse por alguma atitude minha,
principalmente quando conversávamos. Outra coisa que percebi é que a relação dela com os pais não
era das melhores, havia mágoa quando Camille se referia a eles. Todavia o que me deixava surpreso
era que ela tinha um jeito peculiar de demonstrar que me queria, ao modo dela, os beijos, os olhares,
a voz, o sorriso era tudo muito genuino, puro.
Ela era preciosa, como uma predrinha de brilhante.
— Olha.
Ouvi sua risada e vi Bella lamber a sua perna, um ato de carinho. Ao que parecia ela tinha
conquistado minha irmã, a mim e à Bella.
— Ela gosta de você. — Segurei sua mão livre e beijei com carinho, estava salgada. — Vamos
dar um mergulho, está muito quente. — sugeri.
Caminhamos de mãos dadas até o mar agitado, a onda molhou primeiro nossos pés. De longe, vi
Nina e Ben saindo da água. Segurei a cintura de Camille, quando passei a conduzi-la para um lugar
em que dificilmente seus pés tocariam no chão.
A boca dela veio ávida até a minha, as mãos que a até então estavam ao redor do meu pescoço
subiram pela minha nuca até os meus cabelos, o movimento arrepiou meu corpo todo, a sensação de
pele contra pele, sem muito tecido impedindo o contato. Os olhos ariscos abriram-se, quando segurei
com um pouco mais de força a cintura fina, fazendo-a sentir, talvez, como tinha me deixado, eu podia
sentir o seu coração acelerado, a respiração mais acentuada, a pele arrepiada sob meus dedos. Voltei
a beijá-la, e inebriada como eu, ela retribuiu.
Não soube precisar quanto tempo ficamos ali, entre um beijo e outro, além das conversas
paralelas, perguntas que ora ou outra ela fazia. Sobre meu trabalho e sobre a cicatriz novamente, ela
encontrara outra em meu queixo, uma que eu nem percebia mais quando me olhava no espelho e que
tinha uma história não tão sombria. Era uma herança do garoto levado que eu tinha sido na infância,
isso a fez rir.
— Minha mãe tinha minis infartos sempre que eu chegava machucado. — contei, segurando-a
firme, por conta do balanço mais forte do mar.
— Eu nunca teria saído de lá. — confidenciou ela, ainda com o polegar sobre a cicatriz.
Estreitei os olhos, sem entender.
— Da fazenda, eu nunca teria deixado aquele lugar.
— Por que?
— Tem vida.
Encostei os lábios na testa quente, pensando a respeito. O fato de eu não pensar assim tinha me
afastado do meu pai por muitos anos, mas as palavras dela tinham um sentido, eu estava sentindo uma
falta maior do que o habitual da calma daquele lugar. Minha casa. Lembrei-me de quando ela se
referiu a se sentir segura lá.
— Porque você veio para cá? — perguntou ela, substituindo o dedo pela boca em meu queixo.
— Eu tive que fazer uma escolha, ficar lá e seguir os passos do meu pai ou ir atrás do que eu
queria.
Depois de alguns minutos em silêncio, ela voltou a fazer perguntas.
— Porque escolheu ser policial?
O questionamento me fez voltar a muitos anos atrás, quando eu era ainda um menino frazino e
ingênuo.
— Nem sempre nós tivemos dinheiro, Camille — referi-me a mim e a minha família. — Coisas
ruins acontecem com pessoas pobres, ás vezes. E até que meu pai construísse tudo que ele construiu
muitas coisas ruins aconteceram com ele e com minha mãe.
Situações humilhantes que muitas vezes quem havia apaziguado era alguém de farda, os homens
fardados pareciam os heróis da minha infância, claro que depois de me tornar um deles descobri que
nem sempre era assim, pelo contrário, alguns eram vilões também.
— Você ama o que faz... — Foi uma afirmação.
— Já amei. — Peguei um pouco de água com a mão direita e joguei pelo colo avermelhado pelo
sol, fiz isso repetidas vezes. — Hoje em dia me pergunto porque ainda não parei.
— Você já pensou nisso?
— Há muito tempo atrás. — Segurei o queixo delicado e beijei a boca curiosa, beijá-la era muito
melhor do que imaginei, a boca parecia ter sido feita para isso.
O dia seguiu tranquilo, quando eu a deixei em casa já era noite. Sentir-me inquieto assim que ela
ia embora vinha sendo uma constante.
25
Marcone
— As botas impedem que a gente saiba qual é a exata altura dele. — Andrea apontou para o
vídeo e eu cliquei na tela para paralisar e prestar atenção no que ela estava dizendo.
Mais uma garota tinha sido morta, e a internet ressucitou o caso de Will Tund, as comparações
eram muitas, alguns bairros estavam pedindo mais segurança e até especificando um toque de
recolher para mulheres entre as faixas de dezoito a vinte e cinco anos. Soltei o vídeo novamente,
mantendo em câmera lenta. O filho da puta parecia saber exatamente onde cada câmera de segurança
estava focalizada, em todos os momentos nos quais ele deixava a garota morta o rosto nunca deixava
de estar coberto pelo capuz preto, as mãos tinham luvas também pretas e o corpo estava vestido com
calça e moletom da mesma cor, nem ao menos um fio de cabelo ou uma digital fora encontrado no
corpo da vítima pelos peritos.
— O que você acha? — perguntou ela.
— Que outras vão morrer. — Levantei-me e fui até a mesa de café, Andrea tinha me chamado
quando eu já estava indo embora para ver o vídeo do caso bizarro que a polícia civil estava
investigando.
A ideia de serial killers era muito fantasiosa para as pessoas, era até para mim, isso mudou
quando tive que lidar com um deles. Não era bonito, muito pelo contrário do que achavam não tinha
nada de loucura nessas pessoas, eu me recusava a considerá-los doentes. Havia era muita maldade e
um perfil padrão. Geralmente eram pessoas que nunca levantariam suspeitas, bem vistas na
sociedade, o próprio Will era manipulador de tal forma que conseguiu milhares de seguidores e
simpatizantes, podia ser qualquer um deles e podia estar em qualquer lugar.
Enzo
Acionei o botão do carro para abrir a janela do lado do motorista, sem suportar mais o perfume
enjoativo da mulher ao meu lado, completamente arrependido da ideia de levá-la a um motel
qualquer. Virei a cara para me afastar das tentativas repetitivas dela beijar meu pescoço e vi uma
silhueta que eu conhecia muito bem do outro lado da avenida.
Os cabelos, o formato do corpo, o sorriso.
Eu a reconheceria até no inferno, meu corpo enrijeceu assim que o homem que estava ao seu lado
limpou algo em seu rosto e a beijou, o primeiro impulso que tive ao ver a cena foi pegar a arma no
porta-luvas, desejando enfiar uma bala na cabeça dos dois. A mulher insignificante ao meu lado
soltou um grito de susto quando passei a buzinar loucamente com o cano do objeto, como se eles
pudessem ouvir e parar com as carícias.
— Saia do carro. — Gritei com ela fora de mim, ao invés de me obedecer, deu outro grito, o que
me deixou ainda mais irado. — Saia.
Ouvi-a me chamar de babaca, enquanto batia a porta com força, deixando para trás o cheiro
insuportável, não sei quanto tempo observei os dois. Pensando em como ela era uma puta da pior
espécie, a forma como estava vestida, o jeito que se deixava beijar, sem pudor algum.
Marcone
— Onde está Bella? — Cami perguntou, sentando-se no sofá e olhando para o tapete vazio.
— No canil. — Sentei ao seu lado, puxando as pernas longas para o colo e segurando o pé
delicado. — Ela tem exercícios regulares. — Meu polegar acariciou a tatuagem chamativa. Dessa
vez as unhas estavam pintadas de um vermelho intenso, tal qual o batom que ela retocara minutos
antes de virmos para o apartamento.
— Estou me sentindo cheia. — comentou, ajeitando-se de um jeito mais confortável no sofá da
sala.
— Massa e milkshake não combinam muito. — Sem conseguir evitar o fascínio que eu tinha pelos
pés dela, plantei um beijo no lugar tatuado. — Venha aqui.
Ela veio ajoelhada e enlaçou meu pescoço, todavia não permitiu que eu beijasse sua boca, deu
uma série de beijos no meu rosto e então afastou-se para mexer na bolsa jogada ali perto no chão e
tirar o celular de dentro. Camille voltou e sentou-se com as pernas abertas no meu colo, procurou
minha boca e afastou-se com um sorriso, mirou o celular no meu rosto e eu ouvi o click da foto sendo
registrada. Ela riu, olhando o próprio celular e depois voltou a me beijar, ouvi outro disparo e então
ela se afastou novamente.
Afaguei a cintura fina, vendo-a deslizar o dedo pela tela do aparelho, a boca vermelha totalmente
borrada pelos beijos que trocamos, fazia dias que meu autocontrole vinha sendo colocado a prova.
Ela era a tentação em pessoa, e completamente inconsciente quanto a isso. , — Venha cá. —
chamei novamente.
— Espera. — Ela mirou outra vez em meu rosto e ouvi os clicks, já impaciente para tê-la de novo
em meus braços.
Sentei-me, comprimindo-a contra mim, segurei-a pela nuca e a beijei, delineando os lábios com a
língua, ouvi-a gemer e se mexer agitada em meu colo. Tornando o beijo mais intenso, com o esfregar
inconsciente que sua agitação causava entre nossos corpos.
— Olha. — Sem fôlego, ela interrompeu o beijo para me mostrar as fotos, meu rosto cheio de
marcas dos beijos dela, outra não se podia ver nada além dos seus cabelos.
Ela ajeitou os meus cabelos com a ponta dos dedos, e me deu outro selinho de forma que a foto
ficasse perfeita.
— Você gostou dessa? — Observei as fotos junto com ela, algumas totalmente distorcidas. —
Quando vai buscar Nina?
— Ela vai me ligar. — Afastei os cabelos do ombro dela, um pouco vermelho por causa da
minha, inexistente barba, mas que ela reclamava de lhe arranhar. — Eu gostei dessa.
Camille deu alguns toques no aparelho e colocou a foto como descanso de tela.
— Vou colocar no seu também. — disse, arrebitando o nariz. — Para afastar as agentes de você,
já que eu não estou na delegacia.
O comentário me fez gargalhar, ela era possessiva, eu já tinha reparado antes. A forma sutil que
marcava território.
— Meu celular. — Afastei-me a contra gosto, imaginando ser alguma mensagem de Nina, ela
tivera uma apresentação a noite na faculdade e ficara de me ligar para ir buscá-la.
Todavia, não era ela.
Era uma chamada de vídeo de Estevan, o pai de Samanta.
— Quem é? — Cami perguntou, esticando-se um pouco para olhar.
— Um amigo, preciso atender.
Curvando-se, ela tirou da bolsa um pequeno pacotinho de lenços umidecidos e passou por todo o
meu rosto, fez o mesmo com a própria boca, enquanto eu atendia a ligação.
— Estevan? — inquiri quando vi apenas o mar ao fundo, sinal que ele ainda estava navegando.
Depois de vender quase tudo o que tinha, após a morte da filha, ele tinha sumido pelos mares do
mundo, eram meses e meses velejando. Uma espécie de terapia.
— Veja que lugar incrível.
Ouvi apenas sua voz, senti alívio por perceber nenhum indício de que estava bebendo.
As estrelas e o mar tomavam a tela do meu celular, Camille ficou em um canto do sofá que não
pudesse ser vista na ligação.
— Em que lugar do mundo você está? — perguntei.
— Caribe, filho — respondeu, mostrando finalmente o rosto na câmera. Saudável.
Nunca perdemos o contato, mesmo quando eu deixei Brasília, ele e Andrea eram os únicos
vínculos que ainda existiam com a vida que eu tinha lá.
— Você está bem? — inquiri.
— Sim. — Vi-o estreitar os olhos.
— Venha cá. — Chamei Camille para que ela ficasse perto de mim e os olhos dele se iluminaram.
— Que bela. — Ele disse, ressucitando o charme há muito apagado. — La chica es tuya[i]?
Ele perguntou na língua nativa, embora Samanta fosse brasileira, os seus pais eram espanhóis que
se naturalizaram no Brasil.
— Sí[ii].
— Eu estou entendendo. — disse ela, e nós dois rimos.
— Essa é Camille, Estevan.
Depois de observá-la por bastante tempo, ele fez algumas perguntas, esquecendo que eu estava ali
também, levantei para beber água e tomar um banho e deixei os dois conversarem.
Camille
Diante do espelho, eu toquei os meus lábios, inchados, sem qualquer vestígio de batom. Se eu
fechasse o olhos ainda conseguia sentir a sensação da boca dele na minha, do corpo sólido perto do
meu. Era inquestionável o tanto que esse homem mexia com minha cabeça, despi o vestido,
recordando as sensações, ainda que não tivesse sido pele com pele. Ainda que fossem apenas beijos,
a química era diferente, intensa, quase dolorosa. Deitei na cama ainda molhada do banho rápido,
desliguei a luz e procurei com os dedos a parte mais agitada do meu corpo, bastava pensar nele para
todo o frenesi voltar, toda a vontade, o coração disparando a medida em que eu revivia a sensação
do que era nós dois juntos.
*
Acariciei levemente a cabecinha careca de Isabelle, as olheiras estavam fundas e a boca
extremamente ressecada, ela estava há alguns dias sem aparecer nas aulas de pintura, e eu resolvi
visitá-la, o pai dela não estava, Belle estava sob os cuidados de uma vizinha.
— Meu papai trabalha demais. — disse ela.
— Não fala muito, amor. — Continuei o afago.
— Vocês são namorados agora? — inquiriu, com teimosia, olhando para Marcone atrás de mim.
Olhou para meu dedo e depois novamente para ele com ar bravo.
Já havia notado que a menina mexia com ele, talvez pelo fato do seu pai ter morrido com a mesma
doença. Desde que havíamos chegado, ele estava quieto, totalmente diferente do habitual.
— Você não deu um anel para ela. — continuou a tagarelar, o tom vivo da voz, fazia um constraste
imenso com a aparência apática. Segundo a mulher que estava com ela dissera, a quimeoterapia às
vezes deixava a menina fraca assim, era um tratamento difícil.
— Ainda não tive tempo de comprar. — respondeu ele, e segurou a sua mãozinha.
Nos minutos seguintes ela nos contou sobre as coleguinhas que faziam o mesmo tratamento que
ela, fomos embora antes do seu pai chegar.
— Ela é especial. — sussurrei, enquanto saíamos do bairro mal iluminado.
Marcone segurou minha mão e beijou de leve, fazendo um meneio afirmativo com a cabeça.
Acabei fazendo outra comparação, numa situação como essa Enzo nunca me acompanharia, muito
menos me deixaria vir, para ele seria um vínculo sem ganho, com pessoas que nada tinham a oferecer
para mim.
Recostei minha cabeça no banco, pensando que talvez o amor romântico que minha irmã falava
existisse mesmo, talvez eu tivesse encontrado um mocinho que se perdera fora de um livro de
romance. Lembrei-me de como estive certa de que o melhor era me afastar dele, sentindo-me boba
por ter pensado nisso. Não havia olhares de reprienda e sim de admiração. Uma das coisas que eu
mais gostava quando programávamos algo para fazer juntos, era o jeito que ele me olhava,
principalmente quando achava que eu estava distraída. Ele não me acusava de chamar atenção ou
reclamava quando eu ria alto, tudo parecia muito certo, natural até.
Eu queria que Liz estivesse aqui para eu contar como ele era, e como eu me sentia tranquila, e
sobretudo protegida. Ele me passava segurança e não medo, eu não precisava ficar pisando em ovos
a cada palavra que eu fosse soltar ou a cada gesto que eu fizesse, eu nunca tinha me sentido tão
minha, tão livre para não me envergonhar da minha personalidade.
O celular dele tocou e após uns segundos vibrando e ele atendeu, uma voz feminina preenchendo o
carro.
— Andrea.
— Eu não consigo encontrar minhas chaves. — Ela soltou alguns palavrões antes de dizer a
frase completa.
— Deve estar no seu bolso, Andrea. — Ouvi-o rir, porém tudo que eu senti foi ciúmes, o gosto
amargo dele.
— Não está, porra.
— Eu não estou sozinho, então cuidado com o que você vai falar. — Ele consultou o relógio de
pulso. — Onde você está?
— Dentro do carro pronta para passar na sua casa e pegar a chave extra.
— Eu passo aí.
Ele encerrou a ligação e olhou rapidamente para mim.
— Há quanto tempo vocês se conhecem? — perguntei, curiosa.
— Mais de dez anos.
Parei para pensar a respeito, era um bom tempo.
— Muito tempo.
— Fizemos faculdade juntos, escolhemos a mesma carreira. — Ele sorriu, talvez lembrando do
passado. — São muitas histórias em comum. — Ele girou o volante, entrando numa rua que eu não
conhecia, mas muito arborizada. — Você vai gostar dela.
Não demorou muito para que o acesso dele fosse permitido e entrássemos no estacionamento
grande, de longe eu vi a loura encostada num carro branco que combinava muito com ela. Andrea
olhou imediatamente para o lado do carona, embora a janela escura impedisse que ela me visse.
Fiquei curiosa para saber o motivo dele ter uma chave do apartamento dela.
Andrea aproximou-se e se debruçou na janela, quando foi aberta.
— Como vai, Cami? — Ela sorriu e eu sorri de volta.
— Tudo bem.
— As chaves, Andrea. — Ele colocou na palma da mão dela e a olhou de modo rabugento.
— Obrigada, federal. — Ela piscou para mim. — Amanhã vou tirar outra cópia e devolver a
você. Vocês querem subir?
— Outro dia. — respondeu ele.
Saímos dali direto para meu prédio, eu tinha muitas coisas do trabalho para fazer, então não
poderia ficar mais tempo com ele.
— Está em casa. — Ele olhou para mim e eu me inclinei para beijar o seu pescoço.
Soltei o cinto de segurança e sentei de lado em seu colo, entrelaçando nossos dedos.
— Você precisa mesmo trabalhar? — O dedo indicador fez um caminho curto do meu lábio até
meu queixo.
— Sim. — Dei um selinho e me afastei. — Sou uma advogada formada agora.
Beijei-o novamente antes de sair do carro, notando só então que o carro da minha mãe estava
parado ali desde que chegamos. Joice me acompanhou antes que eu entrasse no elevador.
— Com quem você estava? — perguntou ela, encarando-me pelo espelho do elevador.
Senti vontade de não responder, a mágoa por ela não ter acreditado em mim ainda estava doendo
muito, doeu por muitos dias seguidos.
— Porque a pergunta?
— Porque não é a primeira vez. — O tom arrogante que ela usava quando achava que não devia
pedir desculpas, era assim que ela agia quando sabia que tinha me machucado.
— Me surpreende que você esteja prestando atenção. — Saí do elevador, ouvindo o som dos
saltos altos dela fazendo eco pelo corredor.
Entrei na sala sem esperar, e sem paciência alguma para conversar com Joice. Ela era a última
pessoa com a qual eu queria falar sobre ele. Fui direto para o meu quarto, disposta a realmente
trabalhar e buscando não me arrepender de ter vindo para casa ao invés de ter ficado com ele.
— Quem é ele, Camille? — Ela entrou no meu quarto e eu tive que olhá-la.
— Como sabe que é ele?
— Miguel me disse. — Ela sentou na minha cama. — Ao contrário do que você pensa, eu me
preocupo com você.
Contive a vontade de revirar os olhos.
— É alguém que eu gosto, mãe. — Cruzei os braços.
Ela assentiu.
— Eu gostaria de conhecê-lo.
26
Marcone
Bebi mais um gole do café preto, um vício que adotei aos longos dos anos e ouvi o banco ao meu
lado ser movido e ocupado. Mantive minha atenção na foto que Camille me enviara logo pela manhã,
mostrado-me como tinha acordado. Os cabelos mantinham uma trança quase desfeita e os olhos meio
inchados apresentavam um brilho matinal intenso. Senti uma pequena euforia ao ligar a foto ao fato
de ela pensar em mim ao acordar. Ridículo, eu sei. Mas analisando cada parte delicada e marcada
pelos lençóis do seu rosto, eu constatei que eu queria sim fazer parte de cada pensamento que ela
desse ao longo do dia, não era isso que ela vinha fazendo comigo?
Ignorei a xícara onde o café jazia frio, o que me fez perder completamente o interesse e passei a
repassar o almoço em que conheci os pais de Camille no último domingo, a maneira como fizeram
questão de saber o quanto de dinheiro minha família tinha não me passou despercebido, era como se
a condição social fosse o que eles colocassem em primeiro lugar, acima de tudo, inclusive da índole,
que para mim era muito mais importante e muito mais válida. Entendi, até mesmo, o motivo do
almoço: sondar se o homem pelo qual a herdeira estava interessada não era um fracassado, não pelo
bem da garota, pelo que percebi. Passei a entender melhor o que Camille queria dizer quando falava
em sufocamento.
— Minha mãe vai fazer um jantar legal lá em casa, Nina falou com você?
Desviei a atenção do celular e olhei para Benjamim, que havia se sentado ao meu lado.
— Sim. Há algum motivo especial?
— Ela quer reabrir o restaurante, precisa de algumas cobaias para provar o tempero.
Eu ri.
— O tempero dela é ótimo. — Era verdade, eu lembrava muito bem do sucesso que era o
restaurante.
— Então, fechado? — Ele me olhava, desconfortável.
— Fechado.
— O plantão é seu hoje?
— Não. — Coloquei uma nota sob a comanda no balcão disposto a sair dali. — Não vejo a hora
de ir para casa.
Ainda falamos sobre o vólei na praia e depois eu voltei à delegacia e à burocracia, assim que
entrei no carro recebi outra mensagem.
De: Camille
Não encontrei nenhum filme legal em cartaz.
De: Marcone
Quer desistir do cinema?
Enviei, imaginando que talvez ela não quisesse me ver hoje. Travei as portas e liguei o motor
deixando o carro em ponto morto.
De: Camille
Não sei, podemos decidir quando você já estiver aqui?
De: Marcone
Ok.
Camille
As mãos dele subiram pela lateral do meu corpo, espalhando calor e calafrios, meus seios
queimaram esperando pelos seus dedos, mas a mão parou na minha cintura. Eu me sentia uma tarada,
perto desse homem, perguntava-me de onde ele tirava tanto autocontrole.
— Seus hormônios vão acabar me matando. — Suspirou ele, encostando a cabeça no banco do
carro, quando me afastei para olhá-lo.
— Vou ficar quieta da próxima vez. — Tentei me afastar, mas as suas mãos me mantiveram no
mesmo lugar.
— Eu quero que você continue assim...
A barba por fazer, fez um caminho gostoso, enquanto ele beijava meu pescoço, fechei meus olhos,
enfiando as mãos nos cabelos espessos, esperando que a boca dele encontrasse a minha. Eu não
conseguia descrever como eu gostava do beijo desse homem, era como se minha boca fosse feita
para se moldar a dele, tudo encaixava. Meu corpo ardia numa necessidade que me atormentava, a
cada beijo, a cada vez que a mão dele me tocava de um jeito mais íntimo, tudo em mim, clamava por
ele, por satisfação, por atenção. Eu não podia negar, estava apaixonada, louca. Toda noite, ele era o
meu último pensamento, toda manhã o primeiro. Cada momento que passávamos juntos, cada
mensagem, cada ligação, tudo isso me embrulhava num turbilhão de emoções que eu sabia nominar.
Era amor, conexão emocional, entrega, e quando eu dormisse com ele pela primeira vez não haveria
mais volta para mim.
— Que boquinha gostosa... — Todo o meu corpo ficou arrepiado, mexi-me como pude para me
grudar mais nele. — Os faróis do carro do meu pai clarearam o estacionamento, e embora eu
soubesse que não podíamos ser vistos por causa das janelas insufilmadas, deitei minha cabeça no
peito dele, meu cabelo chegou a cobrir meu rosto, por pouco tempo. Marcone colocou-os atrás da
minha orelha e beijou minha testa.
— Sobe um pouco. — Pedi. — Ainda é cedo.
Ele consultou o relógio de pulso e me olhou rapidamente.
— Tudo bem.
Ainda trocamos alguns beijos antes de sairmos do carro de mãos dadas. Observei-o olhar em
direção ao meu carro — um Volvo Xc60 — eu sentia falta da liberdade que era dirigir.
— É meu. — contei para ele, e paramos diante do carro. A aparência dele era assustadora para
mim, o medo de dirigir era um dos traumas que aquele acidente tinha me deixado.
— Você costuma tentar dirigir? — perguntou ele, andando ao redor do veículo para ver todos os
ângulos.
— Algumas vezes, mas, não consigo...
— Talvez você precise de um incentivo. — Disse ele, colocando as mãos no bolso e vindo para o
meu lado novamente. — É uma sequela do acidente, não é?
Fiz que sim, ele me olhou mais atentamente, como se quisesse me dizer mais alguma coisa, por
fim, estendeu a mão e saímos dali.
— Eu gostaria de tentar de novo, mas é tão ruim... — Lembrei-me da sensação esmagodora. — É
como se eu fosse reviver tudo de novo... mesmo sem lembrar.
Marcone levou minha mão aos seus lábios e no olhamos pelo reflexo do espelho, enquanto o
elevador se movimentava.
— Eu me pergunto porque você tem medo de lembrar.
Mais uma vez ele acertou em cheio, o polegar afagou levemente minha mão, não soube dizer o que
se passava na cabeça dele, havia uma frustração evidente em sua expressão.
— Podemos tentar juntos se você quiser. — ofereceu ele com carinho.
Apenas assenti, assim que a porta do elevador abriu, vi Heloísa parada, provavelmente esperando
para descer, por um momento ela pareceu não me ver, enquanto olhava o homem ao meu lado. Olhar
não, comer com os olhos. Demorou alguns instantes antes que ela me visse ali, e quando isso
aconteceu, ela voltou a encará-lo com um pouco mais de interesse.
— Camille. — cumprimentou, uma curiosidade crua estampada na cara dela.
Fiz um aceno completamente desgostoso e segurei com mais força a mão de Marcone.
— Que pena que não estava aqui para jantar conosco, sua mãe conversou algumas coisas comigo.
— Abriu a bolsa e tirou um cartãozinho, estendeu-o para mim.
Meus olhos encheram-se de lágrimas com a possibilidade de Joice ter contato a ela sobre o que
eu tinha falado sobre Enzo, vendo que eu estava parada encarando a mulher loira e bem vestida a
minha frente, Marcone pegou o cartão e leu rapidamente.
— Porque está dando o cartão de um psiquiatra a ela? — ele perguntou e eu senti as lágrimas
descerem, nunca senti um ódio tão cru e violento por alguém como sentia agora por essa mulher.
Heloísa encarou-o, os olhos azuis frios como gelos.
— Talvez você tenha que perguntar isso a mãe dela.
O que senti foi como uma punhalada nas costas, perguntava-me como Joice podia duvidar de mim
a esse ponto e como uma noite tão linda tinha se transformado completamente em algo tão dolorido,
era como se eu tivesse me tornado uma estátua: incapaz de encará-lo, completamente envergonhada
das pessoas que faziam parte do meu mundo e que eram tão diferente do mundo dele.
— Tenham uma ótima noite.
Soltei a mão dele e cruzei os braços imediatamente, pedindo várias vezes mentalmente que ele
não fizesse perguntas, eu não queria mentir, mas também não queria expor nada do lado feio da minha
vida para ele, não para ele. Era como se algo puro fosse ser manchado por sangue, pelo meu sangue.
O clima que era tranquilo até ela aparecer, se tornou pesado, quase impossível. Havia um peso
tão grande nos meus ombros que levantar a cabeça para olhá-lo não era algo fácil de fazer.
Sem dizer nada, caminhei para a porta, o reconhecimento da digital parecia estar demorando mais
tempo que o comum. Eu sentia os olhos dele nas minhas costas, ultrajada pelas lágrimas e pela cena
patética de Heloísa, em pouco tempo Enzo saberia que eu estava acompanhada por outro homem e o
inferno retornaria. O meu inferno particular. Não soube identificar o que o silêncio de Marcone
queria dizer, todavia eu sabia que ele não era idiota, muito pelo contrário, era inteligente e atento
demais para não ter percebido que algo estava fora do lugar. Eu só me perguntava porque ele não
tinha começado com as perguntas ainda.
Para meu alívio apenas Naiá estava a vista, pelo oolhar carregado que me lançou as coisas
realmente não eram boas.
— Você ainda me quer aqui?
A despeito do que imaginei, a voz dele soou baixa, suave.
Virei-me para olhá-lo, mesmo temendo encontrar desprezo ou qualquer outro sentimento negativo
que por muitas vezes despertei em Enzo.
— Sim.
Até mesmo ele parecia aliviado por não encontrarmos ninguém. Esperei que Marcone sentasse na
minha cama, para tirar os saltos e me aninhar ao seu corpo como fazíamos sempre que estávamos
juntos aqui, dessa vez ele não mexeu em nada como costumava faber, nem mesmo mencionou ver
meus quadros.
— Sabe que precisamos conversar, não é? — perguntou com suavidade, afagando meu cabelo.
— Sim, mas não agora. — retruquei, fechando os olhos e aspirando o perfume dele, agora tão
misturado ao meu.
— Diga-me apenas quem ela é então. — insistiu ele, mas não me incomodou realmente.
— Ela é amiga dos meus pais há muito tempo e mãe do...
— Do o quê?
— Fui noiva do filho dela.
Isso o incomodou, senti o corpo dele tensionar.
— Eu prometo conversar sobre isso, mas, por favor, hoje não. — Pedi, desejando voltar aos
momentos antes de encontrarmos aquela megera.
Ele assentiu, embora contrariado e num humor bem diferente do de horas atrás, mesmo quando
tudo que queria era esquecer o passado, ele vinha me lembrar que existia e que eu não o deixaria
para trás tão cedo.
— Só não minta para mim, é algo que eu não sei lidar. — pontuou após um tempo, e nesse instante
eu percebi que eu não era a única que podia sair machucada dessa história, ele também podia.
Consegui enxergar certa vulnerabilidade, algo que ele nunca deixara a mostra antes, percebi que
dentro do homem forte, havia outro machucado.
A verdade é que eu era numa verdadeira mentirosa, da pior espécie. Sempre menti para encobrir
meus próprios hematomas, para manter a imagem impecável de homem de negócios sob nenhuma
suspeita que Enzo nunca fora, eu mesma criei um monstro, fingi uma felicidade tão real que agora era
difícil convencer até mesmo minha mãe do contrário, embora Liz nunca tenha acreditado.
— Me abraça.
Enquanto os braços dele me envolviam e o cheiro grudava em mim, senti certo medo de perder
esse conforto, e essa tranquilidade, ergui o rosto, oferecendo minha boca a ele, ansiosa pelo gosto
característico que ele tinha, se beijo podia viciar, eu, claramente, estava viciada. Consegui escapulir,
de modo que fiquei por cima, as mãos dele subiram pelas minhas costas e uma delas parou em torno
da minha nuca, enquanto a outra manteve meu cabelo afastado do meu rosto, reconheci nos olhos dele
o que praticamente vinha transbordando em mim: luxúria.
Cada parte do meu corpo respondeu, cada pelo ficou arrepiado e involuntariamente meus olhos
fecharam, mas ele nem mesmo tinha me tocado, não com as mãos, apenas o pensamento do que ele
poderia fazer comigo me deixava assim, senti a boca em meu queixo e me movimentei para ser
beijada, se o beijo dele me deixava assim, eu imaginava o que todo o resto faria.
— Você sente isso? — A voz rouca tão nublada de desejo, deixou-me ainda mais arrepiada.
— Sim... — Soei num fio de voz, completamente inebriada por ele.
Deixei que minhas mãos descobrissem o que havia por baixo da blusa branca que ele usava, os
músculos duros e nem sequer um fio de cabelo, pelo tato eu pude visualizar o tanquinho perfeito que
ele tinha.
— Onde você encontra tempo para malhar? — perguntei, sentindo a dureza dos músculos dele nos
meus dedos, olhei para cima e vi a expressão debochada em seu rosto.
— Meu dia tem mais de 24 horas. — Ele brincou, e o olhar ficou mais intenso, o dedo correu por
minha bochecha de um jeito suave e então ele ergueu o meu queixo. — Você não faz ideia do quanto
está se tornando importante para mim.
Eu queria dizer o mesmo, mas minha voz permaneceu escondida em um lugar inalcansável por
alguns instantes, perdida nas muitas emoções e no sentido que cada letrinha significava.
A porta foi aberta por Naia, e eu tentei sentar da forma mais decente possível.
— Vim ver se vocês precisavam de alguma coisa. — Disse ela, aparentemente alheia ao meu
estado de espirito.
— Não, eu também já estou indo.
Marcone respondeu, e beijou de leve a minha testa.
— Está tarde, nós dois temos compromissos amanhã. — reforçou ele.
Assenti e nos despedimos.
— Foi uma boa ideia ter aparecido aqui agora. — Bufei, caindo na cama, Naiá sentou-se, depois
de trancar a porta.
— Sua mãe passou muito tempo trancada no escritório com aquela mulher. — Disse baixinho, eu
procurei uma posição melhor para me sentar e abracei meus joelhos.
— Eu sou burra por achar que ela me ouviria.
Naiá me lançou um olhar condescendente e postou-se atrás de mim, alcançou a escova no meu
criado-mudo e passou a pentear os fios dos meus cabelos. Ela sempre fora muito cuidadosa comigo,
muito mais do que era com minha irmã. Segundo Naiá, Liz sempre tivera vida própria, desde muito
pequena, eu não.
— O que os médicos disseram aos meus pais sobre a minha cabeça? — perguntei, sentindo o
relaxamento por todo o corpo conforme ela partia e penteava as mechas do meu cabelo.
— Eles disseram que você poderia ficar confusa, misturar acontecimentos, confundir realidade
com coisas que não aconteceram.
Fechei os olhos com força, buscando, onde só havia o vazio, lembranças daquele dia.
— Não tente se lembrar, criança. — Ela sussurrou, como das outras vezes em que eu forçava
minha mente para isso.
— Eu preciso.
27
Enzo
Virei o litro de bourbon na boca e senti o líquido quente rasgar minha garganta, seco e cru, sem
conseguir tirar os olhos das malditas fotos — algumas me deixavam pior que outras, como ela podia?
Vendo seu sorriso no papel, era como se eu conseguisse ouvir suas risadas, sendo distribuídas
livremente para outro homem.
— Eu não entendo que tipo de controle essa garota tem por você, mas isso é deprimente. —
Heloisa soou.
Há dias eu sequer conseguia olhar na cara dela ou de qualquer pessoa. Desde quando voltei,
passei a seguir todos os passos de Camille, ver a forma como ela estava vivendo a vida bem,
enquanto eu só piorava com a distância, a saudade que eu tinha acabava comigo, mas até aí foi
tolerável. Imaginei que ela precisasse de tempo para entender que seu lugar era ao meu lado.
Até vê-la com o desgraçado, um estranho tocando no que era meu.
O pior de tudo foi ver o quanto ela estava gostando, parecia outra, não a garota sóbria e rígida que
eu tive do lado por tanto tempo.
— Eu a vi hoje, e ela está muito bem. — Parou na minha frente, como a própria visão do inferno.
Eu a olhei pela primeira vez.
— Eu suponho que você deixe essa menina em paz, Enzo.
— Não consigo. Ela está aqui. — Apontei para minha cabeça, como o louco que até mesmo eu
reconhecia que era agora. — O tempo todo.
— Para que você a quer de volta, para marcá-lá de novo? Como um animal?
— Cala a boca! — O litro que estava em minha mão voou até a parede e se quebrou em mil
pedaços.
Heloisa não se afetou, já acostumada com meus acessos de raiva e descontrole.
— Limpe a bagunça.
Foi o que ela disse, antes de me lançar um olhar cruel e me deixar sozinho.
Peguei o celular disposto a ligar para aquela vagabunda, mas como acontecia há dias a chamada
nem mesmo era completada, ela estava cortando todos os vínculos.
Camille nunca entendeu a profundidade do que eu sentia por ela, minha mãe dizia que era doença,
eu chamava de amor. Tudo que fiz foi prova disso, e bater nela era apenas um meio que encontrei de
ter controle, era isso que meu pai fazia, eu vi muitas vezes que ele calava Heloisa com tapas e então
ela obedecia. Embora as coisas tivessem mudado ao longo dos anos, ultimamente quem dava a última
palavra em tudo era a minha mãe. Eu desconhecia o motivo da mudança, ele andava silencioso,
retraído e afastado dos negócios, até isso Heloísa conseguira. Eu só não sabia que tipo de bruxaria
ela tinha feito para conseguir esse resultado.
Peguei a foto que mais me enojava, obeservando a maneira como ela estava abraçada a outro
homem, um que eu já odiava sem nem ao menos saber o nome.
Marcone
Encostei a cabeça na cabeceira da cama, ainda agitado e irrequieto, embora cansado. Todavia, eu
não conseguia parar de pensar no ambiente tóxico que Camille parecia viver, os pais não passavam
de pessoas fúteis e aparentemente alheios e pouco preocupados com o que acontecia na cabeça dela,
e agora aquela mulher. Peguei o cartãozinho com o número do psiquiatra ainda tentando entender a
forma estranha como tudo parecia ser quando se tratava daquela menina.
Abri mais uma vez o aplicativo de mensagens em que nos falamos até meia hora atrás quando ela
reclamara de sono e me dera boa noite. Reli as nossas conversas, revi suas fotos, as muitas
fotografias que ela tirava e me mandava.
A visão da foto dela foi interrompida por uma ligação de um número desconhecido.
— Alô?
— Senhor Ferris? — A voz feminina tinha um tom totalmente profissional.
Num primeiro momento pensei ser referente à fazenda e ao caso de Antônio.
— Ele está falando. Do que se trata?
— Sou advogada de Estevan Rissol, estou ligando para avisar do seu falecimento.
Bati uma vez na porta e ouvi a voz dela dizendo que eu podia entrar, girei a maçaneta e entrei,
Camille estava sentada, digitando no notebook, vestindo uma camiseta e shorts folgados, um rabo de
cabelo nada convencional, dado aos fios fora do lugar, e ainda assim adorável. A aparência
completamente diferente da mulher que jantara comigo na noite passada e que ficara tanto tempo
montada no meu colo.
— Naiá. — sussurrou ela, sem se virar, ainda concentrada no documento que digitava no word. —
Nai... — Dessa vez ela virou, o rosto completamente limpo de maquiagem, delicado.
Em meio a sua surpresa e a um sorriso, que o meu ego costumava dizer que ela dava só para mim
— Camille pulou no meu colo, as pernas descobertas prenderam-se ao redor da minha cintura, se não
fosse a parede atrás de nós, provávelmente estaríamos no chão, os braços envolveram o meu pescoço
e uma série de beijos estalados foram depositados pelo meu rosto e pescoço. Esse não saber o que
esperar dela, era uma das coisas que eu mais gostava entre nós dois, de alguma forma ela sempre
conseguia me surpreender, me prender, me atiçar e isso era natural.
— Você não estava na delegacia?
Equilibrei-me com ela pendurada em mim e sentei na cama e antes que eu pudesse responder, a
boca dela já estava procurando a minha, as mãos finas subindo sob a minha blusa. Afastei-me,
quando nossas respirações já estavam alteradas, aceleradas.
— Eu vou precisar viajar.
Isso chamou sua atenção, ela se afastou alguns centímetros para me olhar, claramente surpresa.
— Para onde você vai? — Quis saber.
— Brasília.
— Porque?
Os olhos me estudando, ela era problemática e ciumenta as vezes, sempre desconfiada, sempre
esperando por ser passada para trás, ela não dizia com todas as letras, mas era a impressão que
passava.
— Estevan... morreu, ele é importante. — Toquei de leve o seu queixo, vendo a expressão dela
mudar, provavelmente lembrando do homem com quem havia conversado outro dia..
— Quando você vai?
— Hoje a noite. — Beijei levemente seu pescoço, tentando não chateá-la, afinal seu aniversário
seria dali a dois dias, se tudo não fosse resolvido com facilidade, talvez eu ainda não estivesse de
volta. A parte mais complicada era dizer que Andrea iria comigo, ela nunca dissera isso, mas o
ciúme era bem claro. — Andrea também vai.
Como eu já imaginava, ela saiu do meu colo, torcendo as mãos, um bico quase imperceptível
formado na boca um tanto quanto inchada pelos beijos.
— Quando você volta?
— Eu espero que no máximo depois de amanhã. — Estendi a mão para que ela voltasse para perto
de mim. — Eu e Andrea éramos o que ele tinha de mais próximos nos últimos anos.
— Eu sinto muito. — Camille me deu um selinho e voltou para o meu colo.
A ideia de levá-la comigo passou pela minha cabeça, mas a incerteza de como eu reagiria me fez
desistir, em Brasília muitos dos meus pesadelos eram vivos, lembranças, lugares, histórias, assim
que eu estivesse fora do avião — uma realidade da qual eu fugia estaria me esperando, coisas que eu
tinha deixado para trás. Talvez fosse o momento de realmente deixar no passado, de resolver o que
precisava ser resolvido. A hora de recomeçar, do jeito certo, sem culpa, sem dor, sem ter algo me
recriminando sempre que eu me sentia feliz.
— Vou sentir saudades. — Ela disse, os dedos brincando no meu cabelo.
— Eu também. — Entrelacei nossos dedos e beijei de leve sua mão. — O que estava fazendo?
Ela olhou em direção a escrivaninha, e depois de volta para mim.
— Uma defesa, minha chefe me pediu. — Ela estava orgulhosa de si mesma, o tom de voz dizia
isso. — Já está feita, só estava formatando, acho que é a pior parte.
Eu ri e olhei o relógio — 15:22.
— Eu vou viajar a noite, a gente pode passar o resto da tarde juntos se você quiser.
Camille envolveu meu pescoço e me deu um beijo suave no queixo.
— Eu quero mostrar uma coisa a você. — sibilou ela, embora estivesse visivelmente indecisa.
Claro que isso incitou a minha curiosidade.
— O que é?
Sem responder, ela me puxou pela mão até a porta inacessível do seu quarto, aquela que ela
sempre negava quando eu pedia para entrar. Esperou que eu entrasse e então acendeu o led e foi até
uma das telas coberta, perdi o fôlego quando o tecido foi puxado e eu vi meu rosto ali, como se eu
estivesse diante de um espelho tal qual era a perfeição indêntica dos traços.
— Faz um tempo que queria mostrar, mas eu não sabia como você reagiria. — Ela tocou a tela
com a ponta dos dedos, como às vezes fazia em meu rosto.
— Porque eu reagiria mal? — Cheguei mais perto da tela, ainda surpreso com a riqueza dos
detalhes. — É linda...
— É a minha preferida. — Ela sorriu para mim, ficou na ponta do pé e me deu um selinho.
Olhei todas as telas, o cheiro de tinta era forte, porém era um canto agradável para estar. A
iluminação da folha de vidro deixava o ambiente claro, e a profusão de cores que cada tela possuía
fazia um contraste bonito com o tom branco das paredes. Após olhar cada uma delas, eu sentei e a
trouxe para perto de mim.
— Há quanto tempo você pintou? — Ela recostou a cabeça em meu peito, esparramando-se entre
minhas pernas.
— Um tempo depois que minha irmã morreu.
Endireitei-me para olhá-la, alarmado.
— Eu só escolhi as cores e pintei. Não entendi o motivo de ser um rosto.
Ela voltou-se para mim, desenhando meus traços.
— Eu fiquei muito amedrontada quando vi você pela primeira vez na fazenda. — Deu um suspiro,
perdida em pensamentos. — Você acredita em destino?
A verdade era que nem mesmo eu sabia, ou entendia. Eu podia tê-la reencontrado, através de
dados, de investigações, mas por ironia do tal destino, minha irmã a tinha achado primeiro, e ela
viera naturalmente parar na minha vida. Se era destino, isso eu ainda não sabia. Nem mesmo tinha
certeza se era realmente uma ligação saudável, para mim e para ela, dado aos meus traumas e aos
dela. Porque eu sabia que ela os tinha, as tempestades nos olhos bonitos diziam muito sobre eles, a
cena que presenciei na noite passada também.
— Não sei, Camille. Ainda não entendo a intesidade disso tudo em tão pouco tempo.
28
Marcone
Assim que cheguei em Brasília, um turbilhão de pensamentos passou a jorrar na minha mente:
recordações, dores, uma vida que eu tinha deixado para trás. Todavia, aqui ainda era tudo muito
vivo, tudo muito cheio de lembranças, não havia um canto que eu olhasse que não me fizesse sentir a
nostalgia por lembrar de algum fato do passado.
Andrea parecia estar dentro do mesmo conflito, estava quieta, aliás ela permaceu em silêncio
desde que eu liguei para avisar da morte de Estevan. Além de sermos os únicos realmente próximos
a ele, éramos os únicos citados no testamento, além da governanta que cuidara da casa por tantos
anos.
— Vou tomar um banho, tentar dormir... sei lá... — Ela jogou o casaco nos ombros e levantou-se,
deu um último gole no expresso que tinha pedido na recepção.
Fazia mais ou menos uma hora que havíamos chegado, embora a chuva fizesse parecer ser bem
mais tarde, ainda não era nem nove horas da noite. Consultei o relógio para confirmar e a encarei.
— Faça isso, Andrea.
Esperei que ela saísse e enfiei a mão no bolso da calça do jeans, onde além da chave do meu
carro, que ficara estacionado no aeroporto do Rio de Janeiro, havia uma outra que trancava um baú
de recordações. Tirei-a do bolso e a analisei, pensando seriamente se era uma boa ideia voltar lá
depois de tanto tempo.
Liguei para recepção e pedi um táxi, demorou menos de dez minutos para que retornassem. Saí
dali ainda indeciso, todavia não hesitei em sair quando o veículo parou diante do meu antigo prédio.
Olhando-o ali era como se o tempo não tivesse passado, muito menos que aquela tragédia tivesse
acontecido, o peso incomodo da nostalgia encheu meus ombros assim que passei pela portaria, com
exceção do porteiro que me reconheceu, não havia nenhum rosto conhecido. Passei por ele e ao invés
de entrar no elevador, preferi ir pelas escadas. Subi um degrau de cada vez, seriam cinco lances, eu
sempre morei no quinto andar. Samanta costumava dizer que era o número da sorte dela.
Tirei a chave do bolso, quando fiquei diante da porta e a abri.
Num primeiro momento imaginei que ainda fosse sentir o cheiro dela ali, ou ouvir sua voz mesmo
que imaginária, como várias vezes aconteceu no passado. Mas não houve nada, apenas o cheiro de
casa fechada e escuridão.
Dei um passo a frente, revivendo fortemente emoções passadas e ainda vivas dentro de mim.
A dor. O luto. O remorso.
Juntos podiam enlouquecer qualquer pessoa, e talvez se eu não tivesse usado a vingança como
remédio, era o que teria me tornado: louco ou demente.
Lembrei-me de como foi o enterro dela, não consegui ir, não vi o que ela estava vestindo, embora
o caixão estivesse fechado a cerimonia inteira, não reconheci o corpo, não pude fazer nada disso. O
corpo inteiro fora queimado na explosão.
Dei um passo a frente e procurei pelo interruptor que ficava do mesmo lado do aparador, as luzes
se acenderam e uma parte do meu passado se desenhou na minha frente.
Anos atrás
Abri a porta, tentando fazer o máximo de silêncio possível. Antes que entrasse realmente senti o
cheiro de casa limpa e melhor: o cheiro dela. Coloquei a mochila no chão, tirei o revolver do
coldre e o coloquei num pote ridículo que ela me obrigava a guardá-lo sempre, ainda que a
espertinha soubesse atirar. Ela fazia isso muito bem, fiquei fascinado quando fizemos tiro ao alvo
juntos pela primeira vez.
Meus olhos subiram pelo banco alto, encontrando as pernas extremamente brancas e a polpa
da bunda a mostra, enquanto Samanta se equilibrava tentando colocar um quadro novo na nossa
sala, vestindo um de seus blusões brancos. Os cabelos loiros estavam parcialmente presos num
coque frouxo, se eu enfiasse os dedos pelos fios, soltaria-os facilmente. Eu diria que o colorido ali
era ela, sempre fora ela. Desisti da ideia de surpreendê-la para não vê-la cair.
— Cheguei. — sussurrei, tentando não fazer alarde.
— Me ajude aqui. — chamou ela sem se virar, ainda segurando o quadro na mesma posição. —
Acho que estou caindo.
Eu sorri, reconhecendo uma de suas brincadeiras e a segurei, mantendo-a sentada no banco e
soltando os cabelos fartos.
— Acabou? — perguntou ela, abraçando meu pescoço, referindo-se a minha saída da Polícia
Federal.
Fiz que sim e a beijei.
— Está suado — reclamou, tocando a base do meu pescoço. — Nós vamos comemorar hoje.
Permiti que se afastasse após alguns beijos, ela correu para o quarto e eu a segui.
— Aonde você vai? — perguntei, vendo-a tirar o blusão que vestia.
— Contar ao meu pai que vamos nos casar essa semana. — gritou, eufórica e eu ri.
— Essa semana? — Abracei-a quando se aproximou, vestindo apenas a calcinha cor de rosa.
— Sim, não precisamos mais esperar. — Olhou a própria aliança e então os olhos verdes me
encararam. — A não ser que você queira esperar, por mim, pode ser amanhã ou hoje, ou agora. —
Enquanto falava, os lábios deixavam beijos pelo meu rosto.
Acabamos no banho e depois na cama, eu só não sabia que seria a última vez.
Esfreguei os olhos úmidos, ainda fitando o quadro, que permanecia na mesma posição que anos
atrás. Tudo estava igual, com exceção dos móveis que estavam cobertos, mas a disposição deles era
a mesma. Parecia que tínhamos apenas passado uma temporada fora. Ao longo dos anos recebi
muitas propostas para vendê-lo, não aceitei nenhuma, sequer ouvi. Não queria outras pessoas ali,
substituindo nossas lembranças. A verdade é que eu nunca quis dizer adeus ao que vivemos, mas
agora olhando para todo o espaço vazio, para o silêncio ensurdecedor, eu percebia que era preciso.
Encerrar definitivamente o ciclo, eu nunca a esqueceria, talvez nunca me perdoasse, mas eu
precisava deixar tudo isso para trás. Embora a dor e o remorso fosse me acompanhar sempre.
Anos atrás
— Vá dormir, temos uma noite longa. — sussurrou Samanta, desvencilhando dos meus braços e
me deixando sozinho na cama.
— Vai ver seu pai? — perguntei, realmente cansado.
— Sim, e outra pessoa.
Ela fez um rabo de cavalo torto e vestiu um vestido vermelho soltinho, sentou-se cama para que
eu fechasse o ecler e parou para pentear os cabelos desalinhados.
— Quem é a outra pessoa? — Arrumei a almofada embaixo da minha cabeça, observando-a, vi
quando ela revirou os olhos bonitos.
— Andrea.
— Ela está aqui?
— Sim, eu sou muito amada. — disse em tom de brincadeira, mas visivelmente emocionada.
Voltou para perto de mim e me abraçou. — Nem acredito que essa tortura acabou, não vou mais
ficar com medo de você não voltar para casa.
— Não, não vai. — Confirmei, e beijei novamente os lábios macios.
E então ela se foi, para um destino que era meu.
Precisei esfregar mais de uma vez o coração sob a blusa, numa tentativa de aliviar a dor que a
lembrança trouxe de volta. Parecia que tudo estava acontecendo outra vez, se eu fechasse os olhos eu
podia escutar tudo novamente, a sirene, as pessoas gritando, meu descontrole, e o pior: a descoberta
de que não havia sido apenas ela que perdi.
Anos atrás
Desisti da ideia de dormir e fui até o closet procurar o que vestir, pensando no que ela estava
aprontando para mais tarde. Uma fita de cetim branco chamou minha atenção, em uma das
gavetas que ela usava, abri, imaginando ser uma calcinha nova e me deparei com um sapatinho de
bebê. Por um momento, não entendi, mas meu coração já estava disparado quando eu segurei o
envelope pardo com o nome da clinica que geralmente Samanta fazia exames de rotina.
Com a respiração suspensa e os dedos trêmulos eu abri o envelope e vi o resultado positivo de
um exame de gravidez. Olhei milhares de vezes para ver se realmente era o nome dela: Samanta
Rissol.
O meu celular tocou sobre o criado-mudo e eu o atendi, ainda segurando o papel.
— Alô.
— Graças a Deus. — Ouvi a voz de Andrea, o tom duas vezes mais alto, amedrontado e aliviado
ao mesmo tempo.
— Ela contou a você? — perguntei, eufórico e completamente alheio. — Eu vou ser pai,
Andrea. Ela contou a você?
Ouvi um soluço estridente do outro lado da linha.
— Quem estava dirigindo seu carro? — perguntou ela, o tom tão dolorido, que tive medo de
responder.
— Sam...
Só então eu passei a realmente escutar o que se passava do outro lado da linha, as buzinas, os
gritos das pessoas, a sirene. E o choro dela.
— O que aconteceu, Andrea?
Mas não houve resposta, apenas choro, lamento, algo tão dolorido que eu soube ali mesmo, que
o que quer que tivesse acontecido não tinha mais conserto.
Tudo ainda estava ali, o sapatinho, o papel meio apagado. Um serzinho que sequer conheceu o
mundo. Peguei a caixinha com a minha aliança, a dela fora destruída na explosão, coloquei-a no meu
bolso. Saí do quarto, incapaz de permanecer ali, sufocado por coisas que não voltariam mais, nunca
mais. Iriam se passar anos, uma quantidade sem fim deles, mas essa culpa eu sempre carregaria.
29
Marcone
Encarei a lápide, ainda digerindo a morte dele, o afogamento aconteceu porque ele estava
bêbado. A bebida fora consumida por ele desde o momento em que meu ex-sogro recebera a notícia
da morte de Sam, um vício que costumava tirá-lo do ar. Dei dois passos e parei diante da lápide
dela, o nome estava gravado no mármore escuro com letras elegantes e douradas, onde algumas
folhas secas eram deixadas pelo vento.
Samanta Rissol.
Abaixei-me e coloquei a rosa vermelha, o sentimento de pesar era gigantesco, parecia sufocar.
— Você quer ficar sozinho? — Andrea perguntou, a voz estava afetada, ela com certeza não
queria mais ficar ali.
— Sim. — Ouvi o som das folhas sendo pisadas, enquanto ela se afastava.
Olhei ao redor, o lugar era realmente bonito, embora não me transmitisse paz alguma, pelo
contrário, eu imaginava todas as histórias inacabadas que estavam enterradas ali. Todos os amores
perdidos, a felicidade e os sonhos que iam para debaixo da terra junto com os mortos. Não sabia
exatamente o que dizer ou como me expressar, mas no meu íntimo eu tinha necessidade de explicar,
não pela primeira vez, como eu gostaria que as coisas tivessem sido diferentes. Para mim e para ela.
— Eu faria qualquer coisa para ver você só mais uma vez. — A culpa misturada com a dor já
conhecida fez um trabalho impecável de me desestabilizar, numa intesidade menor do geralmente
acontecia quando eu vinha aqui, mas ainda assim penosa. — Só queria saber se existe alguma
possibilidade de você estar feliz, Sam... — Eu realmente gostaria de ter certeza disso, seria muito
mais fácil se soubéssemos o que acontecia depois.
A noite tinha sido absurdamente ruim, saí do apartamento num estado deplorável, e quando recebi
uma ligação de Camille percebi que o mal estar ia além da dor antiga, outro tipo de culpa vinha se
acumulando dentro de mim desde que coloquei os olhos nessa menina. A culpa por estar seguindo em
frente, por estar construindo novas lembranças, por estar amando outro cheiro, outro beijo, por
pensar nela o tempo todo. O passado e o presente estavam me pressionando, obrigando-me a
escolher: permanecer preso ao passado ou dar um passo a frente e viver o presente, todas as
emoções conflitantes que estavam me rodeando desde de que cheguei aqui, me deixavam num humor
deprimente.
Meu peito estava pesado de um jeito fora do comum. Impedindo-me de respirar normalmente,
numa angústia sem fim.
— Eu não quero mais sentir culpa por estar feliz. — lamentei baixinho, esperando que ela
ouvisse, onde quer que estivesse. Que o vínculo que sempre tivemos fosse forte o suficiente para
isso. — Se eu pudesse fazer qualquer coisa para mudar o que aconteceu, eu faria. Eu faria qualquer
coisa. — repeti, veementemente. Fiz uma pausa, tentando controlar o turbilhão de emoções. — Eu te
amo, Sam. Acho que o amor ganha a imortalidade no nosso caso.
Meus olhos arderam por causa do que iria contar.
— Eu conheci alguém... — Aos poucos minha respiração foi voltando ao normal. — Ela é...
especial. — Sentei na grama meio úmida por causa da chuva do dia anterior. — Preciosa.
O táxi parou em frente a mansão que Estevan vivera junto com Samanta desde que ela era uma
criança, a mãe de Sam morreu, enquanto ela ainda era pequena. O turbilhão de sensações ruins, junto
com as lembranças que eu amava vieram em cheio quando o portão branco foi aberto e eu vi o jardim
que minha noiva cuidou, mesmo depois de se mudar para o meu apartamento. Bloqueei todos os
pensamentos, uma habilidade que era capaz de me livrar de muitos conflitos internos e saí do táxi.
Perguntei-me porque Estevan nunca havia me contado sobre não ter vendido essa casa, talvez pelo
mesmo motivo em que eu ainda mantinha o apartamento.
A antiga governanta abriu a porta para mim e Andrea, e me abraçou em prantos assim que me
reconheceu, isso durou alguns bons minutos, antes dela se afastar enxugando os olhos com o
antebraço.
— Tudo bem, Amália. — Pousei a mão em seu ombro, tentando confortá-lá.
Após alguns minutos, lamentando a morte do patão e repetindo não acreditar no que tinha
acontecido, ela indicou onde a advogada estava. Andrea a seguiu, eu permaneci ali.
Caminhei em voltas pela sala e parei diante da janela imensa de vidro, lembrando-me da conversa
que Estevan e eu tivemos alguns anos atrás, num momento em que compartilhávamos da mesma dor.
Não fazia ideia se era pior para mim ou para ele, mas de alguma forma eu tive força e incentivo para
continuar de pé.
Estevan não.
Anos atrás
— Estão todos mortos. — disse eu, olhando as costas magras do homem que um dia foi robusto
e cheio de vida.
— Se sente melhor, filho?
A pergunta me fez ofegar, embora visivelmente abatido, ele me deu colo muitas vezes, eu
precisei, nós precisamos.
— Ela não vai voltar.
Depois de tudo que havia passado nos últimos meses, a constatação daquela maldita verdade
me desorientou.
Ela não voltaria nunca mais.
Não pense que foi planejado, eu tenho vivido bem os últimos dias. Conheci um lado da vida que
não sabia que existia, e vivi satisfeito até agora.
Um dia, todos nós iremos partir, acho que chegou a minha vez.
Não tenho muito o que dizer, filho. Mas não faça como eu, não deixe a vida escorrer pelos seus
dedos.
Use o dinheiro para construir uma vida longe da violência.
Eu espero que você possa se apiaxonar de novo, se sentir jovem outra vez. Fazer alguma garota
feliz, como fez a minha filha, enquanto ela ainda respirava.
Apenas, seja feliz.
Tenho certeza que é isso o que Sam diria a você se ela pudesse.
Adeus, filho.
Dobrei o papel e o coloquei de volta ao envelope, engolindo o bolo imenso que se formou na
minha garganta.
Construir uma vida longe da violência.
— Eu vou parar, Andrea. — Encarei os seus olhos úmidos. — Eu já devia ter parado.
Ela dobrou o papel e o guardou, como eu fiz e enxugou o os olhos.
— Quando terminarmos esse caso, eu vou parar.
Foi a mesma frase que eu disse a Samanta no passado.
— Você faz bem. — A voz foi um sussurro cansado.
Amália entrou trazendo café e alguns biscoitos, mas nada daquilo me atraiu. O meu sangue parecia
estar correndo mais rápido do que o normal, a mente não parou por um minuto sequer. Naquela tarde,
eu voltei ao cemitério para deixar minha aliança e dizer adeus aos dois, não foi fácil, por mais tolo
que isso parecesse. Não foi fácil.
*
Consultei o relógio, enquanto observava pela janela o pouso do avião, eu ainda tinha algumas
horas antes de vê-la.
— Não vejo a hora de chegar em casa. — Andrea retrucou, endireitando-se para levantar.
— Eu também. — Entre outras coisas.
Daspedi-me dela e passei numa joalheria antes de ir para casa, encontrei o apartamento vazio.
Havia um traje sobre a minha cama e um bilhete, reconheci de imediato a letra de Nina.
Tão carinhosa.
Era um smoking, eu não fazia ideia de como colocar esse tipo de gravata. Olhei para o traje, e me
peguei imaginando como Camille estaria vestida e se tinha sentido minha falta como eu senti a sua,
tirei a caixinha do bolso, perguntando-me se ela gostaria do presente.
30
Marcone
Camille
Assim que saímos do quarto me deparei com um número muito maior de pessoas do que eu havia
colocado na lista de convidados, suspirei de forma inaudível e segurei a mão de Marcone, um tanto
quanto arrependida de ter concordado com a festa. Minha mãe tinha uma noção distorcida quanto ao
que significava poucos convidados, se ela tivesse seguido a minha lista, seriam pouquissímos.
— Eu quero beber alguma coisa. — sussurrei, assim que vi Georgia. A mulher era amiga de Joice
e colunista de um blog de fofoca, desagradável e invasiva como a maioria das pessoas desse meio
eram.
Lembrei-me do quanto meu pai surtou com as especulações que ela fizera sobre o fim do meu
noivado, a notícia fora retirada a pedido de Joice, é claro, mas isso não impediu que outras mídias
fizessem suposições a respeito.
— Posso roubar seu namorado por dois minutos? — Ouvi a voz do meu pai, quando segurei um
copo com um drink qualquer.
Franzi o cenho, um tanto territorialista.
— Não demoro a devolver.
Assenti, Marcone ainda olhou para trás e eu senti pena dele. Desde que meu pai soube da
influência que a família do meu namorado tinha em Minas, as tentativas de incluí-lo nas rodas de
conversas sobre política e negócios eram muitas.
— Feliz aniversário.
O susto que levei ao reconhecer a voz, fez com que um pouco do líquido do copo fosse derramado
no chão.
— O que faz aqui? — perguntei, olhando para ele e em seguida para onde Marcone estava.
— Sua mãe convidou a minha, ainda que não tenha estendido o convite a mim. — Fez um gesto de
pouco caso com os lábios, e eu realmente o observei.
Notei a barba que não lhe era comum, os olhos vermelhos, idênticos a quando ele bebia das
bebidas que tinham um cheiro e gosto fortes demais. Desesperei-me com a possibilidade de ele fazer
uma cena ali, ainda que não fosse seu estilo, ele era perfeito diante das pessoas e um monstro longe
delas, eu tinha visto a transformação muitas vezes.
— Sinto sua falta.
O revirar no meu estômago piorou quando o vi apertar com mais força o corpo de vidro que
segurava.
— Vá embora. — supliquei, e quando olhei novamente para onde Marcone estava, para meu
desespero ele olhava atento na nossa direção. — Vá embora.
— Quando podemos conversar?
— Nunca.
Enzo passou a mão livre nos cabelos visivelmente perturbado, e virou o um pouco da bebida na
boca. O rosto branco ganhou uma tonalidade rosada quando ele engoliu.
— Apenas uma conversa.
Na minha mente houve um eco dessa mesma frase, como se eu já tivesse a ouvido antes, mas não
era a voz dele perto de mim, era numa mensagem. Recuei um passo, dando-me conta que podia ser
uma lembrança, fragmentos. Neguei com a cabeça. Senti uma mão grande na minha cintura,
apertando-me de forma possessiva, pela reação automática do meu corpo eu sabia que era ele.
O rosto de Enzo passou de rosado a vermelho como uma pimenta, ele virou novamente o copo na
boca, os olhos grudados em quem estava ao meu lado, uma adrenalina estranha passou a correr
livremente pelo meu corpo.
— Qual é o problema? — Ouvi o tom irritado de Marcone e congelei, sem saber ao certo se me
sentia aliviada ou encrencada.
— Nenhum, meu filho certamente não está encontrando a saída.
Nunca senti tanto alívio ao escutar a voz de Heloísa, ela sorriu falsamente para nós e o motorista
dela, o homem que era sua sombra tocou o ombro de Enzo, ele me olhou por um momento e depois se
afastou, não sem antes olhar para trás.
— Sua festa está linda, querida. — Heloísa disse e afastou-se.
Eu não o olhei de imediato, se ele fizesse as contas, e Marcone faria, com certeza agora ele sabia
exatamente quem era meu ex-noivo.
— O que ele fazia aqui? — perguntou, como eu imaginava.
— Não foi por um convite meu. — respondi, ainda abalada com a lembrança e com a cena tosca
que trouxe gatilhos terríveis. Virei-me para encará-lo e então percebi que algumas pessoas nos
olhavam, inclusive Joice. — Pode vir comigo? — pedi, segurando sua mão.
Antes que houvesse resposta eu o puxei pela mão, sem me importar com as pessoas que nos
olhavam. Eu só voltei a encará-lo quando entramos no elevador que me levaria ao meu lugar
preferido do prédio.
— O que nós tínhamos não era saudável, não me fazia bem, machucava muito... — Contei, porque
era o certo e porque eu queria que ele confiasse em mim.
— Isso ficou claro pela cara que você está fazendo até agora. O que ele queria? — A pergunta foi
direta.
— Ele disse que queria conversar. — falei a verdade.
Os olhos deles se estreitaram, temi o que Marcone podia estar pensando. Envergonhada com
relação doentia que mantive com Enzo por tanto tempo.
— Você ainda sente alguma coisa por ele? — perguntou, impaciente.
— Sim. — Os seus olhos ficaram surpresos, visivelmente. — Eu o odeio. Todos eles. — Referi-
me a Enzo e a família inteira.
A surpresa transformou-se em preocupação, um vinco se formou entre as sobrancelhas dele. Mas
era exatamente isso, diziam que odio e amor eram muito próximos, se era verdade tudo de bom que
um dia senti por aquele homem tinha se transformado em repulsa. Marcone segurou meu queixo,
fazendo com que eu o encarasse, como se estivesse avaliando as minhas palavras, o significado
delas.
— Eu não quero que isso acabe... — sussurrei sem saber o que se passava em sua cabeça, não
havia nada além de sinceridade no que eu disse, senti o afago carinhoso dele em meu queixo e fui
encorajada a abraçá-lo, não havia um lugar que me sentisse tão segura quanto ali, nos braços dele.
— Não vai... — Ele beijou minha testa e nos viramos quando o elevador abriu e saímos no
terraço, onde ficava a piscina infinita. O único som ali era o som do meu salto.
— É um dos lugares preferidos aqui. — Sussurrei, segurando a barra do vestido, Marcone olhava
para o teto de vidro, com certa curiosidade.
As estrelas pareciam estar especialmente mais bonitas essa noite.
— Acho que suas tatuagens não são tão fora de propósito. — sussurrou ele, e eu o imitei.
Olhei para o céu estrelado, pensando que realmente eu tinha certo fascínio pelas estrelas e ali,
elas pareciam escolhidas a dedo para forrar o céu e torná-lo mais bonito.
Senti a mão quente segurar minha nuca e fechei os olhos, meus cabelos foram afastados e eu senti
o dedo esfregar delicadamente os desenhos que eu tinha ali, as minhas próprias estrelas. Logo os
dedos foram substituídos pela boca e meu corpo inteiro ficou arrepiado, senti um ardor intenso entre
as pernas, conforme os beijos eram deixados ali, quentes como se pudessem me marcar tal qual as
tatuagens.
— Você cheira muito bem... — sussurrou ele, o nariz roçou atrás da minha orelha até embrenhar-
se nos meus cabelos. E virou-me, grudando os lábios nos meus. As mãos subiram pelas costas até a
minha nuca, e a necessidade de me esfregar nele cresceu consideravelmente.
— Me leva para outro lugar... — pedi, ofegante, sem ver qualquer motivo em comemorar o meu
aniversário com todas aquelas pessoas que eu nem conhecia, se tudo o que eu queria era ficar com
ele.
Marcone ainda roçou os lábios nos meus, mordendo-os de leve, antes de segurar meu rosto e me
olhar por alguns minutos.
— Para onde?
— Qualquer lugar.
31
Marcone
— Nós somos as pessoas mais bem vestidas daqui. — sussurrou ela em meu ouvido, enquanto
soltava uma risada descontraída.
Se havia um som mais fascinante que esse eu não lembrava.
Só mesmo essa menina para me fazer entrar numa boate vestindo um smoking e uma gravata
borboleta ridícula, só mesmo ela para me fazer achar isso divertido na minha idade. Talvez fosse
desse sentir-se jovem que Estevan mencionara na carta, o apenas sentir sem pensar demais. A euforia
de curtir o momento sem dramas desnecessários, ou renunciáveis. Observei o corpo gracioso mover-
se no ritmo da música agora mais sensual, e tudo que minha mente pervertida, porque eu não
conseguia mais controlar os instintos, pensou foi como seria se não houvesse o tecido do vestido
separando a pele macia da minha, se ela dançasse enquanto estivéssemos ambos nus, sem todas essas
pessoas. O pensamento me fez segurá-la com mais força contra meu corpo e minha boca avançou
mais uma vez sobre a dela, sorvendo o gosto dos drinks que ela já havia tomado.
Como uma diabinha, ela escapuliu para seguir o ritmo da música, os movimentos sensuais e
absurdamente lentos, e pelo sorriso safado que ela lançava, Camille sabia exatamente o que estava
fazendo.
Seduzindo, como se fosse preciso mais.
Saímos de lá quando já estava amanhecendo, ela estava sonolenta agarrada a mim, enquanto
caminhávamos para o carro estacionado no início da rua, o único lugar vago na noite passada.
Ela tirou as sandália assim que entrou no carro, encostou a cabeça no banco, os cabelos
parcialmente úmidos por causa das horas dançando esparramaram-se sobre os seios. Desviei da
entrada que faria o trajeto para o prédio dela, e dirigi para meu apartamento, ela não notou, sonolenta
como estava. Acariciei de leve a bochecha fria, mas Camille continuou de olhos fechados,
provavelmente cansada demais para esboçar qualquer reação.
Camille
Quando abri os olhos demorei para entender onde estava, perguntei-me se ainda era noite já que
tudo estava tão escuro. Passei a mão pela cama, reconhecendo o cheiro que vinha dali, um tanto
preguiçosa, senti a maciez dos lençóis enroscados em minha coxa despida.
Revirei-me sobre a cama, tentando acostumar meus olhos à escuridão. Ouvi um ruído vindo do
lado de fora e sentei, notando que eu vestia apenas um short de pijama e uma camiseta.
— Ela ainda está aqui comigo, Joice. — Ouvi a voz de Marcone e uma luz entrou pela fresta da
porta, que ele abriu apenas um pouquinho.
Que horas são? Olhei ao redor a procura de algum relógio, mas não havia nenhum, e eu não estava
com meu celular.
— Boa noite, Joice.
Enfim ele abriu a porta e entrou no quarto, estancando ao me ver acordada.
— Que horas são? — perguntei confusa, lembrando-me apenas de termos saído da boate.
— Faltam poucos minutos para 18:30. — Marcone sentou-se perto de mim e eu observei o torso
nu e o short folgado que ele vestia.
— Eu dormi muito? — Evitei um bocejo.
— Sim, por todo o dia praticamente. — Ele me olhou divertido. — Está cansada ainda?
— Eu estou com fome. — sussurrei, e me arrastei até estar perto o suficiente para abraçá-lo. — O
que aconteceu com meu vestido?
— Nina ajudou você a tomar um banho, ela deve ter deixado na lavanderia do prédio quando saiu.
— Uma das mãos dele afastaram meus cabelos do rosto. — Como você se sente?
— Faminta, mais velha também. — sussurrei, lembrando de como tinha sido a madrugada inteira,
fazia tempo que eu me divertia tanto desse jeito.
Marcone deu risada, e as covinhas que eu amava surgiram.
— Você só tem 21 anos. — Ele fez uma pequena bagunça nos meus cabelos e me olhou mais sério.
— Sua mãe ligou mais de uma vez.
— Eu estraguei a festa, ela está preocupada com isso. — Bufei.
Joice devia estar irritadíssima com o que ia aparecer nos sites de fofoca sobre o aniversário da
única herdeira Alencar, era a forma como se referiam a mim desde que minha irmã morreu.
— Não acho que seja só isso. — Disse ele, e eu revirei os olhos. Tentando me encaixar melhor no
seu colo, aproveitando que ele estava sem blusa, a pele fresca estava quente sob meus dedos.
— Eu vou pensar nisso quando estiver em casa. — Aproveitando, eu me inclinei para beijá-lo,
várias vezes, sem nunca me cansar.
— Você não quer ir embora agora, quer? — Ouvi-o perguntar, os lábios a centímetros que os
meus.
— Não. — Olhei o quarto ao redor, pouco iluminado.
— Que tal por uma roupa? Quero fazer algo para comermos, mas não tenho todos os ingredientes.
Voltei a encará-lo, achando graça e curiosa com o fato dele cozinhar. Tentei imaginá-lo de avental
na cozinha e as imagens foram bem sacanas, acabei rindo.
— Tem alguma roupa minha aqui? — perguntei, saindo do colo dele.
— Sim, naquela gaveta. — Ele apontou.
Encontrei o vestido que tinha esquecido em umas das muitas tardes que passei com ele, e fui para
o banheiro, ficando estranhamente nervosa de repente. Acendi o led e me olhei no espelho, enquanto
me despia.
Tomei um banho longo, vesti o vestido e abri o closet em busca de algum moletom dele, encontrei
um que praticamente me engoliu.
Marcone
Camille
Vi-o afastar-se e levantei do banco, um tanto quanto curiosa para saber o que ele iria cozinhar.
Coloquei o vinho e o queijo na geladeira e saí catando as sacolas para enfiá-las na última gaveta do
armário. O chão gelado deixou-me arrepiada, a porta de vidro que dava para a sacada estava aberta,
as cortinas dançando junto com o vento forte. Parecia ter diminuído a chuva, caminhei até lá e fechei
parcialmente a porta, a temperatura ficou agradável, nem fria e nem quente. Perambulei até o quarto
de Marcone, a fim de pedir seu celular para ligar de uma vez para Joice, mas detive-me e prendi a
respiração, pela fresta da porta do banheiro vi o corpo dele — molhado, os músculos saltando
enquanto se ensaboava, alheio a mim ali espiando.
Minha boca ficou seca imediatamente, tudo nesse homem me enlouquecia, desde os beijos quentes
aos olhares intensos, ainda que ele nunca tivesse avançado o sinal, ele sempre me respeitou, ou
talvez não me quisesse dessa forma. Afastei os pensamentos ridículos, não fazia nem 24 horas que
ele me disse que seu coração era meu, e se era desse jeito, todo o resto também devia ser. E era o
que eu queria, todo ele, de todas as formas. Meu corpo latejou inteiro só por imaginar, os bicos dos
meus seios foram enrijecendo, enquanto eu o imaginava sugando-me inteira.
Tirei rapidamente o moletom, jogando-o num canto qualquer do quarto, em seguida deslizei a alça
do vestido, fiz tudo isso com a respiração suspensa, devorando o corpo cheio de músculos nu na
minha frente. Não havia parte alguma nesse homem que não mexesse comigo.
Tudo inebriava, incendiava lenta e dolorosamente. Não me lembrava de já ter sentido algo assim
por ninguém, apesar de não ter nada bom o suficiente para comparar.
Dei alguns passos em direção ao banheiro, completamente nua, demorei-me apenas em enrolar os
cabelos para cima a fim de não molhá-los. Não fiz barulho ao entrar, de perto observei melhor o seu
corpo inteiro, a bunda e as pernas rijas, as costas largas, as mãos grandes e os braços onde veias
saltavam, o que me excitou ainda mais.
Marcone não me notou, apenas quando entrei no boxe e deslizei os dedos pelas suas costa é que
ele se virou devagar. Senti os pingos de água fria espalharem-se entre mim e ele, meu corpo já
arrepiado eriçou-se ainda mais. O que eu vi em seu rosto deixou minhas pernas fracas. Os olhos
azuis atentos, e agora, incrivelmente escuros, passaram lentamente pela minha pele, como se
estivesse apreciando cada polegada do meu corpo, Marcone apenas olhou por um longo tempo.
Senti-me queimar inteira, como se fossem as mãos grandes a passear pela minha pele, quando na
verdade ele não havia nem me tocado ainda.
— Você é perfeita demais... — foi o que ele disse, engoli em seco tamanha a ansiedade que me
tomou, o tom soou grave, quase contigo. E num movimento rápido, Marcone me puxou pelo braço
para estar mais perto, quase completamente colada a ele. — Eu imaginei você assim muitas vezes...
mas nada chegou perto. — Os olhos permaneceram vidrados em meus seios por muito tempo.
Uma de suas mãos subiu pela minha cintura até tocar a lateral do meu seio esquerdo, apenas o
polegar tocou o mamilo já durinho, rodeando-o, fazendo-o ficar ainda mais eriçado, gemi baixinho,
sentindo uma necessidade acumulada entre as pernas. Pousei as mãos em seu peito, sem saber
exatamente onde tocá-lo primeiro, eu queria sentir todas as partes dele sob meus dedos e minha boca.
Ele regulou a água para ficar morna e diminuiu o jato, perguntei-me se ele iria me tomar ali
mesmo, contra o boxe do banheiro, ou se me levaria para cama. A verdade era que eu não me
importava desde que meu corpo fosse preenchido pelo dele.
Todo ele.
Deixei minha mão escorregar pelo tórax em direção a sua virilha, ainda sem olhar para baixo,
embora eu pudesse sentir claramente como ele estava duro, e saber que era eu a deixá-lo assim, me
dava um prazer quase perverso.
Marcone segurou minha mão suavemente e levou aos lábios, em seguida colocou-as sobre o peito,
senti-o batendo loucamente tal qual o meu estava.
— Me deixe só sentir como está... — pedi, lambendo os meus próprios lábios tamanho o meu
desejo.
Os dedos longos soltaram os meus pulsos e eu voltei pelo mesmo caminho que o tórax me levaria,
sem desviar os olhos dos dele, sentindo todo o corpo ficar ainda mais duro por onde meus dedos
passavam, mordi o queixo pontudo, e então desviei os olhos para baixo quando rodeei os dedos no
pênis intumescido, sentindo as veias, o sangue correndo, ouvi o gemido baixo que ele soltou, mas não
o olhei, continuei a massageá-lo. Fazia tempo que eu queria fazer isso, seria louca se não admitisse,
senti vontade de provar com a boca, mas agora tudo que eu queria era ele em outro lugar, o sabor eu
sentiria depois.
— Você sabe o que faz com a minha cabeça, não é? — Uma de suas mãos segurou meu queixo,
obrigando-me a olhá-lo.
Não respondi, fiquei na ponta dos pés, oferecendo minha boca e tudo o mais para ele. Marcone
me ergueu, fazendo-me abraçar seu quadril com as pernas, o contato íntimo, pele com pele, fez-nos
gemer aos mesmo tempo, boca contra boca. O beijo foi diferente, tão carregado de tesão que eu tremi
inteira, um arrepio atrás do outro, enquanto eu me sentia cada vez mais molhada e necessitada entre
as pernas. Forcei meu quadril contra o dele, sentindo a pele rija de seu pau friccionar meu clitóris de
um jeito tão gostoso que mordi a boca dele para não transformar o gemido alto num grito.
Sustentando-me entre os braços fortes, ele me carregou para o quarto, ambos molhados ainda,
colocou-me sobre a cama e não se afastou, abri ainda mais as pernas e rocei nele para meu próprio
prazer, ouvi o seu gemido em meu ouvido.
— Quer parar? — ele perguntou, ainda me dando uma opção, mas eu já estava ensandecida há
muito tempo, e ele também. Não estaria tão duro se não estivesse.
Fiz que não com a cabeça, e entreabri os lábios, esperando que Marcone me beijasse e ele beijou,
sugou minha boca inteira, avidamente. Não só a boca, o pescoço foi beijado, mordido, e os meus
seios foi onde ele mais demorou.
Chupou tanto cada um deles que eu quase enlouqueci, temendo não aguentar muito, meu corpo
parecia dissolver conforme ele me tocava em todas as partes.
Meus dedos subiram por cada pedacinho sólido do corpo dele, cada suspiro, cada gemido desse
homem me levavam ao um grau extremo de loucura.
Senti o dedo dele deslizar pelas minhas pernas até alcançar o meio delas, parei de corresponder
ao beijo, expectando a sensação, sentia-me pulsar violentamente, enquanto o dedo dele me penetrava.
— Tão molhada, meu amor... — O sussurro soou como um gemido em meus ouvidos, isso me
enlouqueceu ainda mais, as carícias junto com as sacanagens que ele falava em meu ouvido. Tudo me
levou a um limite extremo, e tremi inteira, enquanto sentia o gozo me encharcar ainda mais.
A boca dele escorregou pela minha barriga, enquanto uma de suas mãos abriram um pouco mais a
minha perna, colocando-a sobre seu ombro, senti os beijos na parte inferior da minha coxa, as
mordidas. Se havia uma maneira de meu coração bater ainda mais rápido, ele bateu assim que a
língua dele brincou com meu clitóris e em seguida com a minha entrada.
Meu corpo contraiu agitado, senti-me suar sob suas mãos, disse coisas que nem mesmo eu entendi,
enlouquecida com todas as sensações, com os picos de prazer.
Ainda com minha perna sobre o seu ombro, ele me penetrou lentamente, eu quis gemer, mas não
ouvi som algum sair da minha boca, apenas da dele, um gemido forte, e eu me abri mais, querendo o
corpo inteiro sobre o meu, sentir o peito quente contra os meus seios.
— Vem... — chamei baixinho, sentindo cada arremetida nublar um pouco mais o meu raciocínio.
Eu o abracei assim que o corpo forte pairou sobre o meu, minhas unhas arranharam suas costas e
seus braços, enquanto o meu sexo sugava cada pedaço do seu pau, Eu o senti inteiro, enquanto a boca
mordia os mamilos dos meus seios. Eu podia imaginá-los cobertos de manchas vermelhas no dia
seguinte, mas não me importava de ser marcada, não desse jeito.
Senti o gozo vindo novamente, desfazendo-me em mil pedaços, e quando nos olhamos, eu percebi
que não esqueceria nunca esse homem, mesmo se quisesse.
32
Camille
Meu coração demorou a voltar ao normal, por alguns minutos eu apenas relaxei, enquanto
Marcone me massageava e beijava minha nuca suada, murmurando palavaras carinhosas, eu poderia
ficar muito tempo naquela posição, mas queria olhar para seu rosto. Virei-me, ainda nua, e coloquei o
queixo sobre o peito dele. Olhamo-nos por muito tempo, sem dizer nada, apenas algumas carícias
dele em meu rosto e minhas em seu peito.
— Eu quero dormir com você hoje... — sussurrei, inclinando-me para beijá-lo, o movimento fez
os meus cabelos soltarem-se do coque já frouxo.
Marcone apenas sorriu, contra minha boca, a mão delizou pelo meu braço suavemente. Repassei
em minha cabeça o que havíamos feito, mais de uma vez, em posições diferentes, era como se o
desejo viesse a flor da pele no mesmo instante de novo.
Perguntei-me se com ele era da mesma forma.
— Nós temos muito tempo. — Soou como uma promessa.
Eu sorri, concordando.
Depois de um banho de verdade juntos, eu sentei num dos bancos do balcão da cozinha
observando-o.
— Quem ensinou você a cozinhar? — perguntei, depois de bebericar o vinho super gelado.
— Eu passei a morar sozinho muito cedo, tive que aprender a me virar rápido. — Ele olhou-me
rapidamente e acrescentou uns temperinhos que já estavam picados e separados na panela sobre o
cooktop. — Eu sempre fui muito curioso, e nunca gostei muito de depender de alguém para fazer
algo. Já queimei muita comida, já fiz coisas que nem eu consegui comer.
Nós rimos.
— O que está fazendo? — Aproximei-me dele, esticando-me para olhar o que tanto ele mexia ali,
o aroma estava delicioso.
— Risoto, você gosta? — A mão livre alisou meu cabelo e ele beijou minha testa com carinho.
— Sim, mas acho que vou gostar especialmente desse.
Marcone riu baixinho, convencido.
— Não falta muito, eu comecei a preparar quando você estava dormindo. — Explicou ele e
apontou para um armário aéreo branco. — Que tal escolher onde quer comer? Há pratos ali e
talheres lá. — Apontou para um gaveteiro, e eu peguei dois pratos e os talheres, levei-os para a mesa
de centro.
Mais ou menos quarenta minutos depois eu dei a última garfada na comida, incrivelmente boa,
olhei-o divertida, ciente de que Marcone tinha prestado atenção em todas as minhas reações,
esperando por elogios obviamente.
— E então? — inquiriu, depois de beber o que restava de vinho em sua taça e colocá-la sobre a
mesinha de vidro diante de nós.
— Hum... — Fingi estar pensando a respeito. — Está horrível. — Menti.
A expressão dele oscilou entre estar supreso e decepcionado e eu ri. Arrastei-me até onde ele
estava e beijei de leve o peito nu, eu gostava da sua versão informal: cabelos desalinhados, e poucas
roupas ou nenhuma.
— Mentirosa. — Ouvi-o dizer e beijei novamente o peito quente, minha boca gelada arrepiando-
o.
— Estava uma delícia. — Enrosquei-me nele, de forma que Marcone mudou de posição para me
manter em seu colo. — Eu não sei fritar um ovo.
— Isso é inaceitável. — ele disse e eu ri, achando graça do tom um tanto quanto ultrajado.
— Não me lembro de uma única vez eu ter preparado meu próprio café da manhã. — contei,
entrelaçando nossos dedos, gostando do calor dele contra minha pele.
— Isso ti deixa dependente. — refletiu ele, e eu concordei.
Por muito tempo fui exatamente isso: dependente.
— Você tem razão. — Puxei os cabelos que cobriam meu pescoço para que ele beijasse ali e
fechei os olhos.
Permanecemos em silêncio, um agradável.
O celular dele tocou sobre a mesa e eu pude ver quem foi, quando ele pegou o aparelho e recusou
a ligação. Julia. Fiquei incomodada. A língua agitada para perguntar o que eu queria saber desde
quando os vi no Pub.
— Por que não atendeu? — perguntei, sem conseguir evitar.
— Não dever ser algo importante. — Os beijos continuaram por meu ombro e pescoço.
— Você e ela... vocês já ficaram juntos? — Eu me virei para olhá-lo, Marcone ficou sério.
Claramente desconfortável com a pergunta.
— Sim, algumas vezes, mas faz tempo.
Fechei a cara, odiando saber. Afastei-me um pouco dele, irritada e sentei no sofá, fazendo
suposições do motivo da ligação.
Marcone
Suspirei, quando ela se afastou. Uma das coisas que eu realmente tinha esquecido a respeito de
relacionamentos era a parte chata, eu tinha ficado alguns bons anos sem precisar dar explicação a
ninguém, exceto, é claro, quando minha irmã resolvia me irritar.
— Você preferiria que eu mentisse? — Perguntei, seriamente e recebi uma olhada nada amigável.
Camille era realmente problemática, às vezes. Não que eu a culpasse, lembrei-me do ciúme
exagerado que senti ao ver o ex-namorado dela rondando-a na festa do dia anterior. Ciúme não era
algo que eu gostasse de sentir, era amargo como o fel.
— Ela sabe sobre nós? — perguntou enciumada.
— Provavelmente não. Não a vejo desde aquele dia. — Referi-me ao dia em Camille também
estava presente. — Venhá cá.
Estendi uma das mãos e ela a segurou, não sem hesitar primeiro, puxei-a novamnete para o meu
colo, mantendo-a ali, onde ela deveria ficar.
— Sabe que não precisa sentir ciúmes. — Ela realmente não precisava, fazia tempo que a maior
parte dos meus pensamentos eram dela, beijei de leve a orelha pequena, enfiando a outra mão pela
cabeleira castanha.
— Não estou com ciúmes.
Mentirosa.
— É mesmo? — Mordi levemente o pescoço esguio, era algo que ela gostava. A pele inteira
ficava arrepiada.
— Sim. — Camille virou-se ficando de frente para mim, a expressão ainda contrariada. Beijei a
boca carnuda, envolvendo a cintura fina com uma mão e a nuca com a outra.
O beijo parecia ficar cada vez melhor, e meu fascínio por ela maior. Recordei o fato de não
termos usado camisinha, eu não parei para pensar na hora, o tesão tinha sido tão violento, que não
pensei em nada. Encostei a testa na dela, quando nossa respiração acelerou. Havia uma sensualidade
gritante nessa garota, não sei se ela tinha alguma ideia disso.
— Está sem calcinha? — Procurei o tecido e não o encontrei sob a minha camisa que ela tinha
escolhido para usar.
Ela fez que não, mordendo o lábio inferior com a insinuação de um sorriso safado. E era essa
transparência que eu amava nela, o lado carinhoso, aberto, que eu sabia que ela não entregava a todo
mundo. Beijei-a novamente, uma de minhas mãos envolveu um dos seios pequenos por cima do
tecido da blusa . Eles tinham exatamente o tamanho que eu imaginava, cabiam perfeitamente na minha
mão.
— Marcone... — Foi um sussurro curto, quando eu mordi de leve o bico durinho sob a camisa.
Impaciente como uma gata arisca, ela tirou a blusa e a jogou no sofá, ficando nua no meu colo, em
seguida veio me beijar de novo. Fizemos isso por muito tempo, só me afastei para olhá-la, absorver
cada detalhe da visão que era ela. Os dedos delicados brincavam perto do meu umbigo.
— Você já se tocou pensando em mim? — perguntei, observando o trajeto que as unhas vermelhas
faziam pelo meu torax, um contraste com a pele rosada da boceta dela.
Olhei-a, quando não obtive resposta, o rubor nas bochechas, no entanto, gritavam que sim, ela já
havia feito isso.
— Sim? — provoquei.
Houve apenas um meneio quase imperceptível de sua cabeça, assentindo. Mas os dedos, eles não
pararam até chegarem onde queriam. Afastei suas mãos e levantei com ela no colo, caminhei em
direção ao meu quarto.
Coloquei-a na cama, e beijei levemente a testa, a ponta do nariz, o queixo delicado. Senti as mãos
finas passando pelo meu corpo, as pernas abertas, esperando por mim. Beijei a barriga, minha língua
brincou no umbigo quente, senti os dedos dela entrarem pelos meus cabelos. Alcancei a fenda
molhada, sentindo o sabor gostoso da sua excitação. Camille gemeu baixinho, quando minha língua a
penetrou, ela sequer sabia o que acontecia com a minha cabeça quando ela gemia assim, tão entregue,
os olhos dela nunca me deixavam. A beleza exótica do seu rosto tornava-se quase selvagem junto
com a nudez do corpo gostoso. E o sabor dessa mulher? Era afrodisíaco. Mantive minha língua ali,
lambendo os pontos que a excitavam mais, os quadris rebolavam na minha língua. Senti-me ficar duro
como nunca, chegava a doer de tanto tesão que essa garota despertava.
A química era surreal, e parecia que ficaria cada vez melhor.
Mais quente e mais gostoso.
Ela afastou-se, ainda gemendo, os dedos ansiosos tocaram o tecido do meu short. Deixei que ela
tirasse. A mão pequena se fechou ao redor do meu pênis e eu gemi, deixando que ela brincasse com
ele. Os olhos intensos olhavam-me de um jeito que me tirava a sanidade.
— Vá devagar, se não quiser que eu goze. — Ela parou os movimentos, ajoelhou diante de mim e
me beijou, mordeu minha boca, lambeu meu pescoço.
Deitamos juntos, a cabeça do meu pau colou-se a entrada molhada, sem penetrá-la. Camille se
contorceu agitada, gemendo. As unhas fizeram um estrago em minhas costas.
— Você me deixa louco demais. — Belisquei o bico de um dos seus seios e em seguida chupei
cada um deles. Sentindo a entrada dela, apertar a cabeça do meu membro.
Ela era apertada demais, porra.
— Você também — ela arfou, afetada como eu.
— Essa boceta apertada... Gostosa demais...
Ouvi o seu choramingo longo, enquanto entrava em corpo, nossos dedos se entrelaçaram, enquanto
nosso corpo grudava loucamente, o ir e vir tornou-se insano, enquanto eu inchava cada vez mais
dentro dela, ouvindo seus gemidos, o meu nome na sua boca. Beijei os lábios tentando manter o
controle, mas só me deixou ainda mais louco. A forma como ela correspondia às carícias, aos beijos,
o jeito como me olhava sem pudor algum, sem vergonha, os murmúrios incoerentes, a mão curiosa
que não deixava de me tocar por um segundo sequer, a maneira que se abria para me receber,
deixando que eu entrasse cada vez mais fundo, tudo isso me enlouquecia. Meu corpo reagia como o
de um adolescente na primeira transa.
Parei um minuto, tentando recuperar o fôlego e a coloquei por cima.
A expressão que ela fazia ao me sentir entrar e sair, era algo que eu lembraria a cada minuto do
meu dia, deixei que ela escolhesse o ritmo que queria, apenas observando os seios movendo-se junto
com o corpo. Camille ora me olhava, ora olhava a fusão dos nossos corpos o que a excitava ainda
mais, seus olhos pareciam ser chamas, senti seu sexo me apertar ainda mais, as leves contrações que
precediam e acompanhavam o gozo, puxei-a pelo braço quando senti o corpo dela estremecer e os
gemidos mais altos, entrecortados. Deitei sua cabeça em meu peito, alisando o seu cabelo meio
úmido, o corpo inteiro tremia, e o sexo me esmagava contraindo na intensidade do orgasmo, por
pouco não gozei também.
Todavia, segurei, eu não queria que acabasse rápido demais.
Deixei minhas mãos deslizarem pelas costas suadas até a nuca, ela me beijou, em meio a alguns
gemidos, e depois ficou quietinha.
— Cansou? — perguntei, ela fez que não, olhando-me sob os cílios longos. Eu beijei novamente a
testa, a boca, o ombro. Abri a gaveta do criado-mudo e tirei uma camisinha de lá, ela olhou com
curiosidade. E rolou para o lado, saindo de cima de mim.
Cobri-me com o látex e a puxei de volta. Viciada como eu, Camille procurou por minha boca.
Ainda trêmula, suada, beijei-a novamente em todos os lugares. E a penetrei de lado, apertando um de
seus seios, e mordendo a orelha, o pescoço. A intensidade voltou novamente, o prazer me atingiu, e o
corpo dela vibrou, junto com o meu, a cada arremetida, os nossos gemidos se misturaram, os beijos
ficaram ainda mais molhados, nossos corpos ficaram grudados, num roçar inebriante, quente,
gostoso.
Ela dormiu logo em seguida, cansada, eu não consegui. Olhando o rosto adormecido ao meu lado,
afastei os cabelos da face vermelha, ainda endiabrada, tendo a certeza de duas coisas: a primeira eu
não me imaginava mais sem essa garota. E a segunda, eu faria qualquer coisa por ela.
33
Camille
Mudei de posição e passei a mão pela cama, buscando o corpo do homem com quem dormi a
noite inteira, mas não encontrei nada. Senti apenas o cheiro forte de café e um calor gostoso na pele
das costas. Espreguicei-me e só então abri os olhos, acostumando-me a claridade. O calor vinha de
uma janela aberta que eu nunca havia notado por conta das persianas que permaneciam sempre
fechadas, notei que havia uma sacada ali também. Soltei um suspiro e sentei esfregando os olhos,
meu corpo estava dolorido em muitas partes, como se minha boca e meus seios estivessem
extremamente inchados.
Ergui meu rosto e vi Marcone assistindo ao meu despertar, o cheiro de café vinha da caneca que
ele segurava, senti-me muito nua e muita descabelada, enquanto ele parecia recomposto e adulto ao
extremo. Puxei o lençol branco para cobrir a minha nudez sem fazer ideia se era tarde ou ainda
manhã.
— Que horas são? — perguntei, ele estava vestido todo de preto, parecia maior dentro da camisa
e calça escuras.
— Ainda é cedo. — Ele sentou perto de mim e colocou a caneca sobre o criado-mudo. — Se eu
não precisasse trabalhar, estaria como você. — O sorriso que ele deu me fez sorrir também.
Soltei o lençol e cheguei mais perto dele, de um jeito que pude sentar no seu colo. O tecido
áspero da calça arranhou um pouco onde já estava dolorido na minha coxa.
— Por que precisa ir trabalhar? — Beijei de leve o queixo pontudo e puxei a corrente que estava
em seu pescoço a fim de ver o que havia preso nela.
Polícia Federal.
— Eu tenho alguns boletos para pagar. — Ele riu, olhando-me como se eu não fosse normal. —
Diga-me se está tudo bem.
— Sim, está. Eu posso ficar aqui mais um pouco? — Na verdade, eu não queria voltar para casa
ainda, queria ficar mais um pouco dentro dessa bolha. Como se não houvesse nada para se preocupar
lá fora.
A impressão que tive durante todo o fim de semana é que eu passaria meses escondida com esse
homem, em qualquer lugar do mundo. Eu não queria voltar para casa, apenas passar o dia inteiro
revivendo os nossos momentos.
— Claro que pode. — Fez uma pausa e afastou algumas mechas do meu ombro. — Mas sozinha?
Nina não vai aparecer tão cedo.
— Eu sei, eu gosto de ficar sozinha. Não quero ir para casa ainda.
— Ok, então.
Subi as mãos por sob a sua camisa e o beijei, o gosto do café ajudou a me despertar um pouco
mais.
— Eu preciso ir — disse ele, baixinho, em seguida beijou minha testa e me colocou de volta na
cama que parecia muito maior sem ele comigo.
— Há um cartão de crédito e uma chave extra em cima do aparador da sala, se você quiser pedir
alguma coisa ou sair. A chave está lá — Ele foi dizendo, enquanto colocava o relógio no pulso. — O
telefone da cozinha funciona, então ligue para os seus pais e avise que ainda está aqui. — O tom foi
mais autoritário dessa vez.
— Que horas você vai chegar? — perguntei, desejando voltar novamente para o nosso final de
semana.
Ele deu um sorriso contido . Os olhos fixaram-se no meu rosto
— Eu não sei, amor. — respondeu, mais sério e voltou a sentar. — Na polícia não temos uma
rotina estável, tudo depende do rumo dos acontecimentos durante do dia. Eu posso ter um dia de
burocracia ou vários mandados de prisão para cumprir. Tudo depende de ordens, aprovações,
mandados. Enfim, nada que precise se preocupar. Vá dormir. — Ele ajeitou minha cabeça no
travesseiro e bejiou meu seio antes de cobri-lo com o lençol.
— Me beija outra vez. — pedi, fazendo um beicinho. Ele achou graça, beijou-me e saiu logo
depois.
Encolhi-me sob o lençol e abracei o travesseiro dele antes de pegar sono de novo.
Acordei horas depois mais disposta, vesti a camisa dele e caminhei até a sacada que eu nunca
havia notado, era a mesma vista da sala. Havia uma tranquilidade incrível aqui, espreguicei-me,
sentindo as dores em partes significativas do meu corpo: na parte inferior da coxa, na bunda. Rastros
do final de semana intenso que tivemos.
Analisei o interior da geladeira dele, sentindo um pouquinho de fome, peguei o queijo que
havíamos comprado no sábado, achando realmente estranho essas coisas simples. Em minha casa
tudo já estava pronto quando eu me sentava à mesa, e na casa de Heloísa não era diferente. Fiquei na
ponta do pé para abrir o ármario e pegar um prato. Montei um sanduíche, e o mordi, enquanto
perambulava pelo apartamento. Eu já conhecia a maior parte dos cômodos, mas a curiosidade por
estar ali sozinha pela primeira vez me fez voltar ao quarto de Marcone.
Abri a gaveta do criado-mudo, onde havia camisinhas, encontrei várias delas, o que me deixou
enciumada, embora fosse ridículo. Ele tinha um passado, do mesmo jeito que eu tinha o meu.
Voltei a morder o pão e me afstei dali, indo em direção ao closet. A maiorias das roupas dele
eram escuras, até mesmo o roupão era preto. O cheiro dele era intenso ali, peguei outra de suas
blusas para vestir depois que tomasse banho e encontrei um mackbook dentro de uma gaveta,
coloquei sobre a cama, a fim de dar uma olhada nas notícias depois.
O banho que tomei foi demorado, ensaboei o corpo inteiro, todas as partes doloridas, lembranças
de todas as vezes em que ele esteve dentro de mim. Eu reconhecia cada marca deixada, por beijos ou
por mordidas, nunca achei a vermelhidão do meu corpo tão excitante. Lavei o cabelo com o xampu
dele e os penteei já dentro da camisa cheirosa, deixei para que secassem naturalmente.
Voltei ao quarto, abri o notebook, e sentei na cama, recostando-me na cabeceira estofada. Entrei
em alguns sites em que o nome da minha família fazia parte das notas, procurando por algo a respeito
da festa do meu aniversário. Havia uma foto minha e de Marcone no site de Georgia, a fofoqueira
questionava a identidade do meu namorado, algo que os curiosos desse meio já deviam saber agora.
Na mesma nota ela relembrava o fim do meu noivado com Enzo e ainda fez uma comparação com
uma foto antiga em que pousei com ele em algum evento que etivemos juntos.
Não me reconheci na imagem.
O meu cabelo estava preso num coque, sengundo Enzo passavam um ar de mulher comprometida,
meus cabelos soltos eram apenas para ele, quando estivéssemos a sós. O meu sorriso era mecânico,
travado, ferido, o medo que passei a sentir de cometer algum deslize nessas festas me deixava tensa
durante todo o tempo.
Senti um mal estar terrível olhando aquela foto, perguntando-me como acreditei que Enzo que me
amava, aquilo definitivamente não era amor, era ódio ou algo parecido.
Não encontrei mais nada a nosso respeito, se havia antes, Joice já tinha dado um jeito para que
retirassem. Fechei a aba e estava prestes a desligar o aparelho quando uma pasta com o nome “ Ela ”
chamou minha atenção. Cliquei e esperei que as fotos carregassem, eram muitas, e conforme algumas
delas surgiam completamente nítidas, meu coração ia ficando pequenininho. Um sentimento de posse
crescento violentamente. E o ciúme tão intenso que temi não consguir respirar.
Era Marcone e outra mulher, a mesma que eu vi na praia. Grávida... com ele. A mesma.
Perguntei-me que espécie de brincadeira ele e Nina estavam fazendo comigo, repassei nossas
conversas em nenhuma delas ele mencionara o nome de uma mulher ou falara sobre algum
relacionamento recente, muito menos um filho. Houve apenas a conversa sobre Julia, mas não era ela
quem estava em todas essas fotos.
Meu estômago embrulhou com a constatação do quanto ele parecia feliz nas imagens, cheio de
sorrisos ou caretas. Perdi a vontade de ficar ali, e me levantei, colocando o mackbook de qualquer
jeito na cama, sentindo-me extremamente trouxa. Enganada. Novamente.
Achei o vestido que Marcone pegara na lavanderia do prédio no domingo, vesti-o e fui até a
cozinha, a fim de ligar para Miguel me buscar.
Marcone
Camille
Ela seguiu me mostrando roupinhas e mais roupinhas de bebê. Todas clarinhas e muito pequenas,
a barriga estava enorme demais, muito maior do que quando eu a vi na praia, segundo ela a criança
iria nascer na semana seguinte. Eu não conseguia deixar de olhá-la, perguntando-me como seria
possível. E pior, perguntando-me o que ele sentia quando olhava para ela. Se era saudade da noiva
morta.
Faz anos que eu a perdi
Havia dor na frase, e não era pouca. Comecei a me arrepender de ter aceitado vir aqui, nos porta-
retratos espalhados pela casa havia inúmeras fotos dela com um homem idêntico a ele. Informações
demais para a minha cabeça.
— Vocês brigaram? — Francine era o seu nome, ela recolocou um conjuntinho branco dentro de
um plástico transparente e voltou-se para mim.
— Acho que sim, casais brigam, não é?
Ela sorriu e sentou com alguma dificuldade.
— Depende dos motivos. Ele parece apavorado. — Ela riu como se achasse divertido. — Meu
marido geralmente fica assim quando faz alguma coisa que sabe que eu vou odiar.
— Eles são parecidos. — disse o óbvio. — Você a conheceu? — perguntei.
— Não, mas ele me contou algumas coisas. — Ela olhou para teto parecendo lembrar de alguma
coisa. Fiquei ressentida, porque se eu não tivesse visto as fotos ninguém me garantia que ele me
contaria.
Nunca tinha carregado um sentimento de posse tão grande como o que eu tinha por esse
homem. Eu não gostava do passado dele, queria ter estado lá, queria ser a única que ele pensasse e
era egoísta, eu sabia, mas eu não queria ser perfeita. E não era.
— Ele me contou sobre você. — Isso chamou minha atenção, retribuí pela primeira vez o sorriso
que ela me ofereceu. — Ele disse que você é a garota mais especial que ele já tinha conhecido, agora
eu entendo. — Ela tocou a própria barriga e suspirou, parecendo cansada.
— Eu gosto dele. Muito. — confessei.
— Então deixe que o passado dele fique no passado, Marcone está fazendo isso, caso contrário
nem teria trazido você aqui.
*
— Ela parece com sua noiva e você parece com o marido dela. — Quebrei o silêncio
desagradável. — Como isso é possível?
— Em algum momento a nossa árvore genealógica deve ter se cruzado. — Refletiu ele após
alguns segundos. — Isso é mais comum do que você imagina. Não somos um caso isolado.
— O que você sente por ela? — perguntei, incapaz de segurar a língua. Se me perturbava olhá-la,
eu imaginava o que ele podia sentir.
— Nós somos amigos, eu me importo com ela e sei que ela se importa comigo.
Olhei-o, sentindo a sinceridade das palavras. Todavia havia outras perguntas, muitas engrenagens
estavam se movendo juntas na minha cabeça.
— Não pense demais, e não se afaste de mim também.
Eu não queria me afastar, mas também não queria me magoar de novo.
— Eu não quero me magoar. — Fui sucinta e honesta.
— Eu também não.
Olhei-o rapidamente e flagrei o seus olhos em minha direção, detestando ter olhado aquelas fotos,
ter visto quem ele era com outra. Questionando-me até, se o que ele sentia por mim era pelo menos
um pouquinho parecido, com o que obviamente ele sentira ou ainda sentia por ela.
— É diferente.
— Não, não é. — Ele estacionou o carro e recostou a cabeça no banco. — Porque você acha que
demorei a me aproximar de verdade de você?
Não tive resposta alguma, por que eu não sabia, na verdade eu não entendia os sumiços dele, eles
me frustravam muito.
— Não sei. — sussurrei.
Marcone deu um suspiro, parecendo triste agora. Isso deixou meu coração pequeninho,
involuntariamente coloquei a mão sobre seu ombro, ele a segurou e colocou no próprio rosto, beijou
a palma delicadamente.
— Eu não queria sentir tudo que estou sentindo agora. — confessou, olhando-me com pesar, havia
culpa nele, igual ou maior do que a que eu sentia quando pensava na minha irmã.
Ele devia se sentir culpado pela morte dela.
Soltei o cinto de segurança e fui para seu colo, eu não gostava de vê-lo sofrer, não queria ser a
causa do seu sofrimento. Nunca.
— Ele está batendo outra vez, por você. — Ele guiou minha mão até seu coração, e eu senti-o
disparado como o meu.
Havia culpa e fascínio ao mesmo tempo.
— Eu sinto coisas que achei que não fosse sentir de novo.
Tive a impressão de que ele estivesse dizendo tudo que eu sentia, meu coração estava batendo de
novo. Por ele. E eu sentia desejos, sentimentos, que imaginei nunca mais sentir. Embora não
parecesse Marcone tinha a sua vulnerabilidade, coisas que ele me disse faziam sentido agora.
A morte tinha levado quem ele amava: a noiva, o pai. Se era o destino ou não, eu queria continuar
fazendo o seu coração bater forte, tal qual o meu batia.
— E toda vez que eu ti olhava, desde o primeiro momento, eu tive medo de causar a você o
mesmo destino que causei a ela. — Ele tocou os meus lábios com os dele, levemente, apenas um
roçar suave. — Mas eu estou aqui inteiro para você.
O único medo que senti foi de que em algum momento no futuro as palavras dele se perdessem, ou
o significado delas mudasse. Eu o queria inteiro, exatamente como ele era. Porque com a ajuda do
destino ou não, fora exatamente cada detalhe, por menor que fosse que me deixou apaixonada. Eu não
queria que mudasse nada.
— Eu também estou inteira para você.
Ao contrário do que pensei Marcone não me beijou, delineou por muito tempo os traços do meu
rosto, algo que ele fazia sempre. Como se precisasse diversas vezes gravar os detalhes que estavam
ali.
— Se algo algum dia acontecer a você por minha causa...
Eu o silenciei com os lábios, sentindo de repente um medo repentino do mundo dele. Eu não tinha
parado para pensar no perigo que ele corria o tempo todo, e eu senti medo. Não por mim, mas por
ele. Medo que talvez algum dia ele saísse e não voltasse mais, como eu já havia visto nos notíciarios.
Era um medo tão grande que algumas lágrimas rolaram pelo meu rosto, ele as enxugou, beijando o
meu rosto, sentindo o gosto delas.
— Por que você não sai da polícia e começa de novo, fazendo outra coisa? — perguntei, deitando
a cabeça no seu ombro.
Nina me dissera algumas vezes que ninguém da polícia a conhecia, exceto Ben e Andrea, que ela
não colocava muitas fotos nas redes sociais, inúmeras coisas que não fazia por ser irmã dele, mas ela
não reclamava e obedecia para a própria segurança.
— Eu vou fazer isso em alguns meses.
O alívio foi imediato, sorri e levantei a cabeça para olhá-lo.
— Promete?
— Sim, eu prometo. — As mãos dele alisaram os meus cabelos e eu o beijei algumas vezes.
Eu passei a noite com ele novamente, mas havia sido diferente. Os beijos, as carícias, a forma
como ele me olhou, havia mais que desejo, eu senti a entrega, ele se entregou inteiramente para mim,
como havia dito e eu para ele.
Marcone
Bebi um pouco do refrigerante e olhei outra vez para minha irmã e Camille, ambas ajudavam a
mãe de Ben a colocar a mesa, a serelepe parecia estar em casa aqui, perfeitamente a vontade. Fazia
tempo que eu não vinha aqui, observei algumas mudanças na casa, o assoalho e o teto estavam
diferentes, resultados do intuito de Ben em dar conforto a mãe. O pai dele havia fugido com outra
mulher, com todo o dinheiro que ela havia guardado ao longo dos anos, isso tinha acontecido antes
dele entrar na polícia.
— Andrea disse alguma coisa a você sobre vir? — ele perguntou, o infeliz ficava cheio de dedos
comigo agora, como se eu não o conhecesse.
— Não nos falamos hoje. — Passei o dia fora da delegacia.
A campainha soou e Biana surgiu com um pano de prato para abrir, de onde estava, eu ouvi a voz
de Andrea e depois do homem que ela havia trazido a tiracolo.
Andrea entrou e no momento seguinte parecia que todas as mulheres estavam falando ao mesmo
tempo, elas eram extremamente barulhentas e cheias de novidades, a mãe de Ben era a que falava
mais alto, tomei outro gole do refrigerante. Eu preferia que fosse uma cerveja, mas nada alcoólico
entrava na casa, depois de ser abandonada Biana tivera sérios problemas com o álcool.
— Mais que pedaço de homem. — Biana dizia, enquanto rondava o novato, achei engraçado. Eu
já tinha passado por isso. Como se advinhasse meus pensamentos ela virou para mim. — Você não
fica atrás. — Ela jogou charme para o terror de Ben, eu pisquei para ela, ciente de que iria irritá-lo.
35
Marcone
O tempo era sem dúvida um Deus, na verdade era uma das coisas mais importantes na vida das
pessoas, algo que eu tinha aprendido a respeito é que na verdade o tempo não curava nada, ele ti
dava a falsa impressão de esquecimento, quando na verdade tudo ainda estava lá. Do mesmo jeito.
Você só passava a sentir de um jeito mais maduro. Era isso que o tempo permitia — o
amadurecimento de sentimentos bons e ruins.
Guardei a chave de volta ao bolso quando já estava dentro do apartamento e fui até a cozinha
beber água, olhei para a sacada onde três quadros de Camille secavam e caminhei para o meu quarto
onde eu sabia que a preguiçosa estava. Tinha descoberto algumas coisas sobre ela durante esse
tempo em que estávamos juntos.
Quase três meses.
Ela odiava acordar cedo, odiava a ponto de se irritar de verdade. As tpms dela eram piores que a
da minha irmã, então eu me preparava assim que via os primeiros sinais. Ela era ciumenta, mas eu
também era e já havíamos brigado por isso, algumas vezes. Não que demorasse muito para fazermos
as pazes, eu realmente não gostava de ficar longe dela, principalmente quando estávamos chateados
um com o outro. Ela era uma péssima cozinheira e provavelmente não havia salvação para isso.
Além de tudo, meu cachorro não era mais meu, ela parecia ter lançado o mesmo feitiço que lançou
em mim nele.
Bella entrou no meu campo de visão primeiro, ela seguia Camille por todo o canto quando estava
aqui, havia um quadro dela pendurado na parede do meu quarto, destoando completamente da
decoração, mas eu não me importava. Dei mais um passo e entrei no meu quarto, Camille estava na
sacada, usando uma blusa minha, que provavelmente já estava manchada de tinta como tantas outras,
ela estava pintando de novo.
Observei-a por um tempo, Bella já estava empoleirada novamente perto de Camille. Os pés
delicados estavam descalços no chão que imaginei estar gelado. A blusa branca que ela vestia não
cobria nem a metade das pernas compridas, notei apenas o cabo do pincel prendendo parte dos
cabelos avermelhados.
Camille me notou e sorriu, olhando-me dos pés a cabeça, era a primeira vez que ela me via de
farda. A safada deu um sorriso como se aprovasse e deixou o pincel que usava no banco ao seu lado
— ela tinha forrado um dos bancos da cozinha para ter um auxiliar para os objetos que usava. Meu
apartamento estava de pernas para o ar, claramente.
— Eu não sabia que eu gostava de homens fardados. — provocou ela, ainda me olhando, as mão
subiram pelo meu peito e ela me beijou devagarzinho. — Não vai voltar mais?
— Na verdade eu estava aqui perto e resolvi subir por uns dois minutos, eu vou chegar tarde hoje.
Ela murchou um pouco, a cada noite que eu passava fora, a cada plantão, a cada vez que eu
chegava esgotado demais, ela me questionava sobre a minha saída da polícia. Era algo que eu tinha
prometido e que achei que levaria menos tempo, todavia não estava sendo do que jeito que imaginei.
Depois de algumas explicações sobre o porquê eu chegaria tarde, eu voltei para a delegacia.
Camille
Terminei de vestir o vestido e sorri para Bella, até mesmo para o banheiro ela me seguia, como
uma sombra quando estava aqui. Marcone dizia que ela era dócil quando não estava em horário de
trabalho, eu ria. Certa vez ele me contara como era a rotina dos cães farejadores, dos cuidados, que
alguns morriam para salvar seus parceiros, falou também da disciplina e inteligência deles. No início
imaginei que um cachorro desse tamanho nunca me obedeceria, demorou mais que uma visita dela
aqui para que eu perdesse o medo e entendesse que ela não me machucaria.
Bella saiu e voltou trazendo a sua coleira , a esperta queria sair, além de deixar a coleira perto
dos meus pés, ela latiu algumas vezes.
— Você quer sair, não é?
Peguei a chave extra sobre o aparador da sala e treinei com ela as palavras que Marcone me
ensinou a usar para que ela obedecesse.
Fica. Senta. Vem.
Ela obedecia sempre.
— Vamos lá. — Abri a porta e ela me acompanhou por todo o caminho até saírmos do
apartamento, andou do meu lado sem necessidade da coleira, embora eu trouxesse sempre.
O passeio foi pelo jardim botânico, ele não ficava muito perto e nem tão longe do prédio. Havia
algumas crianças ali e casais, não era nem quatro da tarde ainda, eu me sentei em um dos bancos e
deixei que Bella brincasse por ali.
Embora o lugar estivesse tranquilo, a sensação que passei a ter era que estava sendo observada,
afastei os pensamentos e continuei sentada. Tentando relaxar um pouco ao ar livre.
No caminho de volta a impressão aumentou, e o percurso pareceu ficar mais demorado do que a
ida, um carro escuro estava desde a pracinha fazendo o mesmo percurso que o meu. Abaixei-me e
coloquei a coleira em Bella, apenas para dar o tempo que o carro se afastasse e eu tivesse certeza de
que não estava me seguindo. Ele se foi e eu suspirei aliviada, não era como se não tivesse pessoas na
rua, havia muitas, mas, embora eu estivesse cada vez mais tranquila do que costumava ficar, ainda
existia uma garota amendrontada dentro de mim.
Só fiquei realmente mais tranquila quando a fachada do prédio ficou evidente. Demorei tempo
demais para ver que o mesmo carro estava estacionado ali em frente e que eu conhecia o motorista.
Enzo.
Ele vestia um terno preto, que lhe dava a aparência de um empresário engomadinho. Os cabelos
loiros lambidos o faziam parecer até mesmo inofensivo, mas os olhos pretos, eram eles que
mostravam realmente o homem que ele era. Como já sabia exatamente que iríamos entrar, Bella
correu adiantada para dentro do prédio e eu dei um passo de cada vez, imaginando se ele teria
coragem de fazer uma cena ali na frente.
Fazia algum tem que eu sequer ouvia seu nome ou penasava nele, até mesmo minha mãe não
tocava nesse assunto. Até mesmo ela não interferia na minha relação com Marcone, embora a
amizade com Heloísa continuasse. Eu sempre tive a sensação de estar sendo observada, no trabalho,
no projeto, até mesmo quando saia com Marcone e Nina, mas sempre achei que fosse fruto da minha
imaginação, tanto que quando ele me perguntava por que estava olhando tanto para algum lugar
especifico eu dizia que não era nada. Mas em alguns momento eu sabia que ele também percebia
algo, era quando ele se tornava ainda mais atento ao que acontecia ao nosso redor.
— Então é aqui que você tem se escondido. — Foi uma afirmação cheia de sarcasmo.
Eu não gostei. Os olhos avaliaram meu rosto e meu corpo inteiro, da mesma forma como fazia
quando não gostava de alguma roupa que eu vestia e me obrigava a tirar, ou quando puxava meu
cabelo para que eu o prendesse. Eu não entendia como alguém tão doente.
— Se você não for embora eu vou chamar a polícia — sussurrei, olhando para os lados.
— E vai dizer o que? — objetou ironicamente. — Um cidadão de bem não pode ocupar a calçada
do prédio do filho da puta que está dormindo com você? — Os olhos tornaram-se crueis, igualzinhos
a quando ele iria falar algo que me ofenderia. — É só isso, Camille. Em breve ele vi se cansar.
Me feriu, era o que o esse homem sabia fazer.
Tentei passar por ele e entrar no prédio, mas Enzo segurou meu braço com força. Cheguei a pensar
que alguém que estava passando na rua iria intervir, mas ninguém fez nada, apenas olhavam e não
faziam nada.
— Me solta. — Debati-me freneticamente, mas Enzo me segurou com ainda mais força.
— Você contou a ele? Contou, sua puta? — Segurou meu queixo com força, ficaria a marca, eu
senti os dedos dele machucarem de verdade a minha pele. — Ele pode estar fazendo o que quer com
você agora, mas eu fui o primeiro.
Eu me senti tão pequena e usada, senti nojo de todas as vezes que eu o tinha deixado me tocar.
Nojo de mim mesma, e mesmo sem querer chorar na frente dele, algumas lágrimas escorreram pelo
meu rosto e ele sorriu.
— Chore mesmo. — Ele beijou minha testa, mantendo-me completamente presa.
— Me solta, por favor. — Em meio a todas as coisas que já me atormentavam, eu não sabia se
alguma das pessoas que passava por ali conhecia Marcone, e o que diriam a ele, mas elas não faziam
nada. Comecei a me debater ainda mais, e então eu ouvi um rosnado, consegui me afastar quando a
atenção dele se deteve no cachorro enorme que estava com todos os dentes para fora, encarando-o.
Dei mais alguns passos para trás, o coração batendo tão forte que parecia que ia sair pela boca.
Bella desviou os olhos dele e me encarou, sem mostrar os dentes, como que esperando uma ordem
minha. Eu olhei o homem que já havia me marcado de todas as formas ruins que uma pessoa podia
imaginar, no corpo e na alma. Eram cicatrizes imensas que eu colecionava, ele olhava pasmo para o
animal, mas sem sentir medo.
— Vai. — A palavra saiu entredentes, e Bella voltou a rosnar e mostrar os dentes para ele.
Eu não vi onde ela o mordeu, ou quantas mordidas tinham sido, mas o ouvi gritar e me xingar,
gritar de dor como eu já havia feito várias vezes por causa dele. Se era errado ou não, eu não me
importei no momento, eu queria feri-lo da mesma forma que as palavras dele fizeram comigo, se
deixaria cicatrizes, ele havia deixado muitas em mim também.
Apenas quando me dei conta de que alguns curiosos começaram a parar e olhar, é que chamei
Bella e corri para dentro do prédio, sem olhar para trás, ouvi apenas ele dizer que me mataria.
Percebi que várias pessoas que trabalhavam no prédio estavam olhando também, curiosos
desgraçados que não tinham feito nada. Cliquei no andar com os dedos trêmulos, e como se notasse o
meu estado de espirito Bella encostou a cabeça na minha mão, como se quisesse carinho, eu abaixei-
me a abracei.
— Obrigada. — Beijei a cabeça dela e permaneci assim até que a porta do elevador se abriu.
Ela estava visivelmente agitada, os pelos permaneciam eriçados. Perguntei-me se havia alguma
coisa que devia fazer. As horas seguintes eu passei andando de um lado para outro, escutando
repetidamente as palavras ferinas dele. Enzo era um monstro, da pior espécie, por que ninguém
imaginava o gênio ruim que ele tinha, eu sempre fora a louca da equação.
Assustei-me quando a porta foi aberta, e Nina entrou falando com alguém ao celular,
provavelmente o namorado. Ela desligou a chamada e me encarou por alguns minutos.
— O que aconteceu? — perguntou como se soubesse.
— Enzo esteve aqui. — contei, e então eu chorei. — Não sei o que fazer para isso acabar... —
Toda vez que eu imaginava que nunca mais saberia dele, a sua soombra voltava a aparecer, como um
fantasma. Parecia saber sempre mais do que eu imaginava que ele soubesse. — Não entendo como
ele pode saber onde me encontrar. — murmurei, enxugando as lágrimas, eu odiava chorar, odiava.
— É óbvio que ele tem ti seguido. — Nina meneou a cabeça, um vinco entre as sobrancelhas tal
qual a que aparecia no rosto do irmão de vez em quando. Ela aproximou-se mim e sentou ao meu
lado, Bella a cheirou e como não teve atenção voltou ao tapete que ela gostava. — E se ele tem ti
seguido, ele sabe que você está com meu irmão.
Não respondi nada, lembrei-me das palavras cruéis.
— Você contou a Marcone sobre ele? — inquiriu ela, o institinto protetor que Marcone tinha por
ela, era o mesmo que Nina tinha por ele.
Admirei que fossem assim um com o outro desde o início.
— Não tudo, não contei que eu apanhava, que eu era tratada como um lixo e que eu deixava, não
disse nada disso. — Exasperei-me, e mais lágrimas vieram. — Eu não quero que ele mude se eu
contar... eu gosto do jeito que ele olha para mim, tenho medo que mude.
Nina me olhou, compreensiva. As mãos dela buscaram as minhas.
— Meu irmão não é Enzo, Camille. — ela suspirou, e eu sabia que eu não ia gostar do que ela
diria. — Eu amo vocês juntos, adoro. Mas se você não contar tudo, inclusive o que aconteceu hoje,
eu conto. — Nina me olhou como Liz me olhava. — Já passou da hora de você expor esse cara e
agora não é só você. Meu irmão pode se prejudicar por algo que ele nem sabe, ser pego
desprevinido.
Ela tinha razão.
Eu só estava colocando-o dentro de um problema que eu sustentei por muito tempo.
— Eu vou contar. — Enxuguei o rosto e assenti. — Eu só preciso saber como fazer isso e não
causar ainda mais problema.
— Foi ele? — Ela apontou para o meu rosto e eu fiz que sim, agora tendo certeza de que os dedos
dele tinham marcado minha pele. Nina se levantou e voltou trazendo algumas pedras de gelo. —
Quem ti ajudou?
— As pessoas não se importaram, ele poderia ter me matado ali e ninguém teria feito nada. — As
coisas não deviam ser assim, mas elas eram. Enzo nunca me agredida em público, o fato disso ter
acontecido hoje só me fazia entender que ele estava pior do que antes. — Bella me protegeu.
Ela veio para perto de nós assim que ouviu o nome ser pronunciado, Nina a olhou com carinho e
afagou sua cabeça.
— Eu acho que você precisa ir realmente a polícia.
Eu não disse nada.
Já havia pesquisado sobre isso, nem sempre os homens iam presos e quando iam o valor da fiança
era ínfima para fortuna daquela família.
— Você já arrumou suas coisas. — perguntou ela, quando não disse nada.
— Sim, já estão arrumadas
No dia seguinte nós iríamos para a fazenda, meus pais infernizaram a vida de Marcone até que ele
encontrasse uma brecha para que eles pudessem conhecer minha sogra e claro, as terras deles, não
que isso tivesse sido dito com clareza. Mas eu estava tão feliz por voltar para lá que o motivo
ridículo dos meus pais não me importava, Marcone não havia comentado nada comigo, mas ele não
era idiota para acreditar que eles queriam conhecer Mara. Meu pai não despediçava nenhuma
oportunidade de negócios. Essa era a verdade.
36
Marcone
Quando estacionei na garagem do prédio era mais tarde do que imaginei chegar em casa hoje,
Nina e Camille estavam vendo uma série qualquer na têve e Bella estava deitada no tapete de
sempre. Eu teria de levá-lá ao canil antes de viajar para Minas, aliás eu precisava fazer muitas
coisas antes disso. Meu celular tocou assim que entrei na sala, era minha mãe querendo falar com
Camille e obviamente preocupada por que ia receber os pais dela.
— Oi, tia. — Ela me seguiu para o meu quarto, respondendo a uma série de perguntas que minha
mãe parecia fazer uma trás da outra.
Tomei um banho rápido e me vesti, enquanto elas ainda se falavam. Notei uma mancha vermelha
no queixo dela e passei o polegar por ali, senti-a retrair e parei de tocá-lá. Após um tempo
interminável de conversa, Camille me devolveu o celular. Ainda troquei algumas palavras com minha
mãe sobre a hora que chegaria — Nina, Camille e os pais dela iriam primeiro, eu só chegari no dia
seguinte.
Camille veio para perto de mim assim que coloquei o aparelho sobre o criado-mudo, o pequeno
hematoma chamou a minha atenção outra vez, eu segurei seu queixo e beijei os lábios macios.
— Vocês querem pizza de que sabor? — Nina entrou no quarto sem ao menos bater, isso me
irritava ao extremo e ela sabia.
— Qual o problema de bater na porta?
— Pare de implicar com ela. — Camille sussurrou, mas riu baixinho, com o rosto escondido no
meu peito.
A encrenqueira sentou na cama como se eu não tivesse dito nada e me deu o celular no aplicativo
de delivery. Eu com certeza chegaria a falência se ela morasse comigo por muito mais tempo. Nós
três escolhemos os sabores e enquanto a pizza não chegava, as duas conversaram sobre os episódios
da série que estavam assistindo antes de eu chegar, era a mesma que eu e Nina já havíamos
maratonado uma vez quando ela estava de férias da faculdade, eu só comentei alguma coisa quando
umas das duas me perguntava algo. A pizza chegou quase quarenta minutos depois.
A noite passou rápido, acordamos mais cedo por conta da viagem, eu teria que deixar as duas no
prédio de Camille antes de ir para a delegacia. Notei minha irmã embrulhar um sanduíche a mais,
enquanto tomávamos café da manhã.
Assim que terminamos a campaínha soou e eu fui atender, era o homem que Nina costumava dar os
sanduíches, mas ele nunca vinha aqui, com exceção de quando trazia alguma correspondência, mas
não havia nada em suas mãos. Deduzi que ele devia estar querendo o café da manhã de todo dia.
Todavia, ele estava nervoso, como se não esperasse que eu estivesse aqui ou talvez fosse o
nervosismo por ter mais afinidade para lidar com minha irmã.
— Quer falar com Nina? — Perguntei, estudando o homem um pouco mais. Ele assentiu com a
cabeça e eu fiz um gesto para que entrasse.
Deixei-o na sala e voltei para o meu quarto, onde Camille penteava os cabelos já pronta para ir.
— Você bem que podia esperar para ir comigo. — Beijei de leve o pescoço esguio, e ela se virou
para me beijar com gosto de creme dental.
— Porque não me disse antes?
Respondi com mais beijos.
— Ah, qual é, nós vamos nos atrasar. — Ouvi a voz da serelepe e revirei os olhos, Camille riu e
me beijou de novo depois de fazer uma careta para Nina.
Camille
Assim que desci da picape o ar bucólico me envolveu, o verde, e a paz que eu sentia ali. A nova
advogada tinha ido nos buscar no aeroporto, e havia uma movimentação diferente na fazenda.
Marcone disse que haveria alguns festejos durante esses dias, estava curiosa para ver como era.
Olhei ao redor, matando a saudade do verde e do ar totalemnte diferente do Rio de Janeiro. Nina e eu
caminhamos juntas para onde Mara já nos esperava, meus pais vinham um pouco mais atrás junto
com Celine. Depois das apresentações e de algumas conversas paralelas, Mara realmente me
abraçou, era a primeira vez que eu a via após ficar de verdade com Marcone, nosso contato desde
então era pelo celular dele, mas cara a cara era diferente, eu me senti subtamente envergonhada
principalmente por ele não estar ali. Quanto aos meus pais, eles pareciam desnorteados com a beleza
do lugar.
Nina e eu subimos para tomar banho e os deixamos na cozinha.
— O que vai acontecer aqui? — perguntei, indo até a janela.
Numa área plana a alguns quilômetros da casa havia algumas barracas armadas, eu diria que a
distância era bem maior do que parecia.
— Todo ano meu pai fazia uma festa enorme para o povoado. — Ela aproximou-se e olhou na
mesma direção que eu. — Em agradecimento aos frutos que a terra sempre nos deu. — Ela fez uma
pausa e apontou para as barracas. — As pessoas têm oportunidade de ganhar algum dinheiro, os mais
velhos contam lendas, as mulheres dançam. Eu sempre adorei. — Por fim ela olhou para mim. —
Depois de anos é a primeira vez que Marcone vem.
— Ele me contou que tinha algumas diferenças com o pai de vocês.
— Papai era arcaico. — Ela sorriu tristemente, mas sem perder a vivacidade. — Ele queria que
Marcone assumisse a fábrica e tudo na fazenda. Mesmo após a morte, é o que ele ainda deseja. Está
no testamento como último pedido.
Fiquei arrepiada e olhei novamente para os arbustos, o verde intenso das folhas e da grama, senti
o ar puro.
— É aberta ao turistas? — Referi-me à festa.
— Sim, vários gatinhos aparecem por aqui.
Eu a olhei divertida.
— Ben vai gostar muito de saber disso.
Ela não respondeu, mas riu, espevitada e marota.
O resto do dia passou rápido, depois do almoço Mara e eu fomos até onde estavam as barracas,
como eu havia suspeitado era mais longe da casa do que parecia. Percebi o respeito que todos ali
tinham por ela, eles não chamavam Marcone pelo nome, chamavam-no de primogênito de Tadeu. Eu
passei a tarde inteira com ela, enquanto escutava como tinha surgido a festa da colheita, a história de
vida deles era muito bonita. Havia um impacto muito grande no legado que o pai de Marcone havia
deixado e não se tratava apenas de dinheiro e sim da lealdade que as pessoas pareciam ter, do
respeito profundo, preciosidades que não se compravam. Totalmente diferente do jogo de interesses
que acontecia na capital e que inclusive era o que meu pai estava fazendo aqui.
A noite, após o jantar, ela contou algumas histórias de Nina e Marcone de quando eram crianças e
eu vi alguns albuns, a maioria das fotos de quando eles eram muito pequenos estavam gastas, a
semelhança que ele e Nina tinham era muito grande, embora houvesse uma diferença grande de anos
entre o nascimento de um e de outro.
37
Marcone
Camille
Abri os olhos assim que ouvi o ruído da porta, acendi o abajur no criado mudo ao lado e vi
Marcone, na verdade só a cabeça dele dentro do quarto. Olhei para trás e ouvi a respiração de Nina,
baixinha, ela estava dormindo. Eu, todavia, não tinha conseguido pregar o olho desde que chegamos
da festa. Marcone tivera que conversar com os homens que faziam a segurança da fazenda e da mãe
dele, então não tive escolha a não ser vir para o quarto onde estavam as minhas coisas desde que
cheguei.
Afastei as cobertas, a noite aqui era muito fria e nem estava chovendo. Tentei não mexer muito na
cama e nem fazer barulho. Só soltei a respiração quando estava fora do quarto, ele tinha trocado de
roupa, estava com cheiro de sabonete e café preto.
— Vai me levar para tomar chocolate quente? — perguntei, segurando a mão dele. Relembrando
as madrugadas de quando o conheci, parecia fazer séculos, mas não tinha se passado tanto tempo
assim..
— Não, vou ti levar para meu quarto. — Ele abriu uma porta no final do corredor e esperou que
entrasse.
Estava escuro, mas a janela de frente para a noite negra dava uma visão espetacular da lua cheia,
era a única iluminação ali. Caminhei até a janela aberta e o vento frio arrepiou-me inteira.
Senti os braços dele ao meu redor e fechei os olhos.
— Você já pensou em morar aqui de novo? — perguntei, ecostando a cabeça no peito dele, os
dedos correram pela trança que eu havia feito no cabelo.
— Acho que será inevitável em algum momento.
Não havia contrariedade na voz dele.
— Você viria comigo? — perguntou, após um momento.
— Se você me pedisse em casamento... — brinquei, sem dar a resposta que ele queria.
— Então você quer um anel? — Aos poucos os dedos foram desfazendo a trança e cobrindo
minha pele de arrepios.
— Não, eu quero você. — sussurrei a verdade.
Era verdade. Quanto mais eu ficava com ele, mas queria isso. Gostava das cores que o mundo que
ele me mostrava tinha.
O afago em meus cabelos parou e Marcone me virou para ele, antes que ele me beijasse, introduzi
os dedos pelos seus cabelos, estavam do jeito que eu gostava, totalmente desfeitos, faziam-no
parecer mais jovem.
— Isso você já tem. — Ao contrário do que imaginei ele não beijou minha boca imediatamente,
os lábios dele tocaram o meu dedo anelar, aquele que receberia uma aliança caso algum dia
casássemos.
E eu quis isso. Imaginei como seria vê-lo no altar esperando por mim. Ter seu nome.
Ele encostou a testa na minha e os dedos afagaram a minha bochecha com delicadeza.
— Princesa.
Entreabi instintivamente minha boca para receber a dele, deixando-me ser beijada, ficamos muito
tempo abraçados.
— Trouxe chocolate quente. — Ele sussurrou quando se afastou e me puxou para a cama. — Mas
deve estar frio.
Achei graça e sentei, peguei a caneca que ele me estendeu e dei um gole. Até mesmo o chocolate
aqui tinha o gosto melhor aqui.
— Eu estava com muita saudade. — confidenciei, sentando de um jeito mais confortável na cama .
Marcone riu e acendeu o abajur na mesinha ao lado, colocou a caneca dele ali e tirou a blusa.
Eu me sentia muito tarada por ele, se tinha uma coisa que realmente apreciava era vê-lo nu. Todos
os músculos definidos, todo o vigor masculino, combinado com a cara de homem que ele tinha. Era
muita tara.
Ele fez um sinal para que eu fosse para perto e eu bebi um gole grande do chocolate e coloquei a
caneca no chão, fui para seu colo, e passei o dedo do peito até a cicatriz que ele tinha na costela.
— Isso doeu muito? — perguntei, mantendo a palma ali, ele estava deixando beijos por todo o
meu pescoço.
— Na hora eu não senti, só depois. — Olhou a minha mão ali. — Você gosta dela?
— Não gosto da ideia de alguém te machucando.
O que eu disse o fez sorrir e me beijar de leve na boca.
— Isso faz tempo, amor.
Quem sorriu fui eu dessa vez, gostava quando ele me chamava assim.
— É fácil ganhar uma briga?
Agora eu estava falando de mim e não dele.
— Depende de quem é o seu adversário. — A mão dele fez a alça da minha camiseta escorregar
pelos meus ombros e meus seios ficaram expostos ao vento que entrava pela janela aberta e à boca
dele.
— Se ele fosse um homem.
Marcone estreitou os olhos para mim, mas as mãos não deixaram de beslicar meus mamilos.
— Você não tem músculos, teria que bater primeiro e com muita força. Forte o bastante para que
ele desmaiasse e você conseguisse fugir. — Ele puxou minha cintura de modo que grudamos um
pouco mais, meus seios tocaram a musculatura rígida do seu peito, e fechei os olhos, apreciando o
contato, quase esquecendo por completo das perguntas que queria fazer.
— Onde eu teria que bater?
Ele parou com os toques e me encarou, toda vez que Marcone me olhava assim era como se
descobrisse cada parte da minha alma, achei que ele não fosse responder, que fosse fazer perguntas.
— Aqui. — Fechou minha mão em punho e a colocou na própria têmpora. — Se for forte o
suficiente ele vai desmaiar ou ficar muito desorientado, e se for com um objeto pesado pode matar.
— Senti um frio na barriga quando ele disse “ matar ”. Ele defez o punho e manteve apenas meu dedo
indicador e o médio esticados. — Aqui. — Colocou a ponta dos meus dedos na própria garganta. —
De punho fechado ou com os dedos, se for exatamente aqui, ele vai desmaiar. — Beijou meus dedos
e segurou meu queixo, o polegar foi exatamente onde Enzo tinha marcado, mas a mancha já havia
sumido, e eu sabia que era isso que ele estava procurando, o dedo chegou a esfregar o lugar.
— E aqui? — Procurei pelo eixo rijo sob a calça de moletom, para distraí-lo e por que eu
também queria provocá-lo, todavia eu tinha entendido algumas coisas sobre esse homem: ele não
esquecia de nada, mesmo se não fizesse perguntas a respeito na hora. Ele nunca estava distraído, e
era possível que Marcone já soubesse de muitas coisas sem eu sequer ter contado.
— Assim? Do jeito que está fazendo? — Ele soou excitado, as mãos se fecharam ao redor do meu
pescoço e ele me beijou, tão gostoso como sempre.
Marcone
Delizei as mãos para o ombro dela, observando as reações da garota. A forma como ela fechava o
olhos e molhava os lábios com a própria língua, deixando-me mais excitado a cada momento. Por
que era assim que eu me sentia com ela, sempre a ponto de gozar, antes mesmo de estar dentro dela.
Camille conseguia preencher cada pequena lacuna exposta que eu tinha, ela parecia entrar pelos
meus poros e fazer morada ali, como se fosse seu habitat natural.
Coloquei a garota na cama, ansioso pelo contato da pele quente e pela delicadeza das curvas
tentadoras. Deixei-a nua, vendo a pele branquinha ficar toda arrepiada por causa do vento que
entrava pela janela, despi-me também e cobri seu corpo com o meu, sugando sua boca e em seguida
deixando um rastro pela pele eriçada, até chegar ao meio de suas pernas.
Um dos lugares que mais gostava de beijar e lamber no seu corpo, enfiei a língua por ali,
ouvindo-a soluçar, e mexer os quadris em direção a minha boca, agitada como geralmente ficava
durante o sexo.
Vez ou outra eu deixava marcas, meus dedos, minha boca, minha barba, deixavam pequenas
lembranças pelo corpo delicado, Camille também deixava as suas em mim, algumas pelo meu corpo,
mas a maioria eram mais profundas, no coração, nos pensamentos que eu dava ao longo do dia, em
como ela ganhava espaço e tomava para si, aquilo que eu achei que nunca mais daria a ninguém.
A intensidade característica dos seus olhos que me tiravam a razão, a voz, as vezes arisca, rouca,
bem diferente da fragilidade instantânea que suas curvas demonstravam, chamando por mim,
gemendo por mais, oferecendo-me algo, que eu já tinha como meu.
Ela era minha.
Cada pedacinho dela, cada nuance, inclusive as imperfeitas.
Eu queria tudo que ela quisesse me dar, e eu devolveria com a mesma intensidade.
Virei-a de bruços e afastei as suas pernas, introduzindo a língua por trás, provocando o clitóris
inchado e a entrada toda molhadinha, repeti a carícia até ouvi-lá gemer sem fôlego e apertar as coxas
prendendo minha cabeça ali, enquanto gozava na minha boca. Deixei beijos pelas coxas, pela
barriga, sentindo meu pau latejar, tamanha a vontade de estar dentro dela. Alcansei os seios eriçados
novamente, sugando o bico de cada um deles, ouvia-a gemer, e envolver as pernas ao redor dos meus
quadris, puxando-me, mostrando-me o que queria. Afastei-me apenas um pouco, para encaixar o meu
membro na entrada quente e receptiva e a penetrei devagar, tentando prolongar as minhas sensações e
as dela.
Ainda me enlouquecia o fato de Camille ser tão apertada, sentia meu pau todo esmagado e
molhado por ela.
— Não vou demorar a gozar...— sussurrei em seu ouvido, entre uma mordida e outra, os nossos
corpos estavam tão colados que nem saía mais realmente de dentro dela.
A penetração tornou-se curta, rápida, meu pau nem saia mais direito tamanha a velocidade que ele
encontrva novamente a boceta dela, tornando tudo mais intenso: o ritmo, os nossos gemidos, o prazer
quase doloroso que fazia meu coração bater ensandecido. As mãos dela apertaram minha bunda como
se quisesse me puxar ainda mais, do jeito que estávamos não era mais possível. Empurrei ainda mais
fundo quando senti as contrações em volta de mim, e os gemidos baixinhos que ela deixou escapar,
enquanto gozava, como se estivesse preocupada que alguém pudesse ouvi-la. Beijei a boca gostosa,
abafando os meus próprios gemidos, enquanto gozava dentro dela.
Lembrando-me tarde demais da camisinha.
38
Marcone
Não dormi de imediato, eu nunca dormia logo após fazer amor com ela. O sangue ainda
demorava a parar de correr furioso nas veias, o cérebro mantinha-se preso a adrenalina e ao prazer,
quando Camille pedia mais descansávamos juntos, mas, às vezes, ela só queria que eu a abraçasse
por muito tempo, até que dormisse. Olhei o rosto adormecido no meu peito, iluminado pela luz do
abajur. A pequena manchinha havia sumido, mas ela a cobrira com maquiagem, apesar de eu ter visto
vermelho vivo se transformar em roxo quando Camille achava que eu não estava observando.
Cheguei a pensar que fosse uma inflamação acneica, as mulheres tinham horrores a isso e outras
frescuras. Mas ela se incomodava sempre que eu tocava o lugar. Diria até que tentava me enrolar nos
próprios dedos, e conseguia, é claro, mas eu não era burro.
Senti vontade de tomar café preto, todavia não queria me afastar dela e sair daqui, dado ao sono
leve e irrequieto que Camille tinha, acordaria assim que me afastasse.
— Eu espero que não esteja escondendo nada de mim. — Mas, a minha intuição e as perguntas
dela me respondiam por si só. Talvez fosse a hora de conversar sobre o ex-noivo dela e saber que
diabos ele pretendia na festa de aniversário, eu tinha certeza que não era achar a saída. Esperei que
ela me contasse por espontânea vontade sobre ele e sobre a mãe do infeliz, mas foi uma espera
falida. Camille sequer tocou no assunto. E ainda havia as situações em que ela ficava assustada como
se achasse que alguém a observava, a mesma sensação que eu tinha às vezes.
Contornei com os dedos o rosto delicado e sem marcas, então a lembrança de como a encontrei no
carro naquele acidente brilhou como fogos. O rosto machucado, roxo nos olhos, a boca partida. O
que eu senti foi tão ruim que coloquei a cabeça dela sobre o travesseiro e saí da cama, precisando de
um pouco de ar. Minha cabeça começou a criar mil teorias, nenhuma delas tinha a ver com o acidente
e sim com o que tinha acontecido antes dele. Se ela ao menos se lembrasse, de qualquer coisa. Vesti
as roupas que estavam caídas sobre o tapete e saí do quarto. Desci mecanicamente a escada e fui
para a área da piscina, depois de encher uma caneca de café um tanto quanto morno, mas a minha
necessidade de cafeína me fez ignorar o detalhe.
Tomei um gole grande da bebida, tão ou mais nervoso do que no dia em que vi Camille pela
primeira vez. Enfiei os dedos entre meus cabelos exasperado — ela tinha certo receio por homens,
isso ficou claro quando me conheceu, embora tenha dito que o que a assustou mesmo tivesse sido o
fato de ter me desenhado sem nunca ter me visto. Mal sabia ela que já tinha me visto sim, só não
lembrava. Lembrei-me da expressão horrorizada que ela fazia ao encarar o ex-noivo na festa de
aniversário, não me passou despercebido também a conversa quase silenciosa entre eles, e então a
forma como ela admitiu odiá-lo.
Todos eles. Foram as palavras dela.
Esfreguei os olhos e bebi outro gole de café, acabei vendo o sol nascer sentado ali, o céu fez suas
mudanças até o sol substituir a lua.
— É impossível dormir até tarde aqui. — Ouvi a voz do pai de Camille e não consegui esboçar
nenhum tipo de reação, puto como estava.
— Que horas são? — perguntei, quando a homem antipático se sentou do meu lado, decidido a
permanecer ali.
— Faltam alguns minutos para as cinco — disse ele, retirando um relógio igual aos que eu via em
filmes de época, do bolso da calça preta de tecido.
Fiquei em silêncio, Augusto sempre falava de negócios comigo, nunca houve sequer uma conversa
séria sobre o meu envolvimento com Camille, claro que eu estava sendo sincero com ela, mas acho
que todo pai devia fazer perguntas inteligentes a quem chegava perto de uma filha.
Eu faria.
— Quanto tempo Camille esteve noiva? — perguntei.
— Apenas três meses, mas era quase uma criança quando começou o namoro.
— E porque terminaram?
Augusto me olhou com um pequeno sorriso no canto dos lábios, como se soubesse o motivo das
perguntas.
— Estão com problemas? — Ele parecia realmente preocupado, eu só não sabia se era pelos
motivos certos. — Camille parece gostar de você.
— Eu não estou com dúvidas do que ela sente. Eu quero apenas entender como as coisas
aconteceram.
Augusto pensou por um tempo, talvez estudando meu interesse no assunto. Deu uma resposta
pouco convincente em seguida. Claro que o infeliz sabia de algo.
— Eu não sei, ela e a irmã eram fechadas no mundinho delas.
— E você não faz ideia do porque elas eram assim? — Senti raiva dele.
Augusto compreendeu meu tom.
— Não, elas tinham tudo. A melhor escola, os melhores brinquedos, companhias aceitáveis para a
nossa classe social. Não era como se elas tivessem do que reclamar.
Senti vontade de perguntar onde ele e a mãe delas entravam em tudo que ele tinha mencionado,
mas não o fiz. Fiquei em silêncio outra vez.
— Camille sempre foi mais frágil que a irmã. Elas eram como fogo e gelo, óleo e água, chuva e
sol. — Ele olhou na minha direção falando como um pai pela primeira vez. — Camille sempre fez de
tudo para agradar a mim e a Joice, Elizabete não, sempre o contrário do que queríamos. — Fez uma
pausa. — Não sou hipócrita, sei o que está pensando, sei que me acha um pai horrível, e eu sou. Não
sei ser um bom pai. Joice e eu nunca planejamos crianças, mas também nunca nos cuidamos o
suficiente para evitá-las.
— E isso te dá o direito de ser um pai relapso? — Era o que eu queria dizer há muito tempo. —
Você não faz ideia do ambiente tóxico que a casa de vocês representa para ela, eu vejo como ela não
se encaixa lá. E os melhores brinquedos, as melhores escolas, as pessoas certas para a classe social
de vocês, não substituem o afeto.
— Pode parecer que não, mas eu amo a minha filha. — Minhas palavras o feriram e era o que eu
queria mesmo.
— Eu ouvi do meu pai que ele me amava pela primeira vez, quando ele estava morrendo. — Um
bolo desagradável se formou na minha garganta com a lembrança. — Não desejo isso para nenhum
filho.
Levantei-me pior do que quando tinha me sentado, sem paciência alguma para ficar ali com ele,
enchi um copo de água e subi com ele disposto a tomar um comprimido para dor de cabeça. Quando
entrei no quarto, Camille ainda dormia numa posição diferente da que estava quando saí, procurei
pela cartela de comprimidos dentro da minha mala e joguei na boca, em seguida bebi a água.
Fechei a janela para que a claridade não me tirasse a concentração para dormir e deitei perto
dela, ouvi baixinho o meu nome e ela veio se aconchegar ainda dormindo. A garota falava muitas
coisas dormindo. Já havia falado que eu estava apaixonada, eu fiquei me sentindo um bobo idiota é
claro, o tom de voz dela mudava radicalmente enquanto dormia, ficava muito mais agudo. Segurei-a e
encostei meus lábios na testa morna, beijando-a de tempos e tempos, até pegar no sono.
Quando voltei a realidade novamente, o quarto estava um quase iluminado. O blackout tinha sido
movido apenas um pouco para a direita, quebrando a escuridão. Camille estava segurando um porta-
retrato com uma foto minha ainda moleque e com aparelho nos dentes, ela estava distraída, dividida
entre olhar a foto e tocar algumas medalhas que ganhei durante corridas de cavalos. Não fiz barulho,
permaneci calado, enquanto ela bisbilhotava tudo. Quando terminou voltou-se para cama e assustou-
se ao me ver acordado.
— Puxa vida, você poderia ter dito um oi. — reclamou de um jeito engraçado, vindo se sentar
perto de mim.
— Estava interessante observar.
— Você usava aparelho?
— Sim, esses dois dentes eram um pouco tortos. — Toquei o dedo para que ela visse.
— Você está com dor de cabeça? — Ela olhou de relance para a cartela de comprimidos sobre a
mesinha.
— Estava, não dormi direito.
Como costumava fazer sempre, ela veio para debaixo da coberta e puxou meu braço para que eu a
abraçasse, estava frio realmente, pela falta de claridade vinda do lado de fora era possível ver que o
dia seria nublado.
Ficamos em silêncio, se ela não estivesse arranhando meu braço de leve com as unhas, pensaria
que estava dormindo.
— Estou com fome.
— Vamos descer. — Estiquei-me para pegar o relógio e enxergar a hora. 9:27.
Eu não tinha dormido tanto.
Após um banho, nós descemos, estava chovendo realmente. E embora, não fosse o horário
habitual para o café da manhã aqui, minha mãe, os pais de Camille e Celine estavam ainda sentados a
mesa.
A impressão que tive foi a de que estavam falando de nós dois, considerando a forma como nos
olharam e pararam de falar. Puxei uma cadeira para Camille e sentei ao seu lado, sem muita
paciência para interagir com ninguém, ver os pais dela fez minha dor de cabeça voltar.
— Tem o bolo de milho que você gostou. — disse para ela num tom baixo.
Era um bolo de milho cremoso que minha mãe fazia, era o preferido do meu pai.
— Coloque para mim. Grande. — Eu a olhei achando graça e peguei o prato de sobremesa mais
próximo.
— Eu estava pensando em irmos a capital, Cami. — Augusto disse, colocando o garfo sobre o
prato. — O turismo aqui é muito forte, quem sabe não ampliamos a redes de hotéis para cá?
Camille
Marcone me deu o prato e eu me mantive quieta, esperando para ouvir algo mais do meu pai. Mas
ele não disse nada, apenas houve um silêncio, como se eu precisasse dizer algo.
— Eu quero ver os cavalos, pai. — respondi depois de um tempo, haveria uma exposição de
cavalos depois do almoço e um evento que se chamava cavalhada, uma encenação de luta medieval
com o uso dos cavalos. Marcone havia me falado sobre o evento no dia em que chegou.
— O que você acha, Marcone? — Augusto inquiriu e olhou para meu namorado.
Era exatamente isso que ele fazia quando queria que Enzo ficasse do lado dele e ridicularizasse as
minhas vontades.
— O que você quer fazer hoje, Camille? — Marcone perguntou para mim.
— Eu quero ver os cavalos — respondi, cada vez ficava mais fácil dizer não para o que não
queria.
— Está respondida a pergunta. — Marcone foi incisivo, ele estava nervoso, eu podia ver pela
forma como os lábios estavam franzidos. Algo estava deixando-o incomodado. — Ela já tem idade o
suficiente para fazer escolhas, não cabe a mim responder no seu lugar.
— Vocês poderiam vir outro dia já para essa finalidade. — Nina quebrou o clima um tanto quanto
pesado. — A cavalgada não é algo que se possa perder na festa da colheita, vocês vão adorar.
Ela continuou a tagarelar, mas Marcone permaneceu taciturno, mais calado do que o normal.
Nervoso, até mesmo durante todo o evento, acabei associando ao fato dele não ter dormido bem.
Voltamos para o Rio de Janeiro no dia seguinte a noite.
— Não quer dormir comigo mesmo? — Marcone beijou de leve minha testa, quando eu tirei o
cinto de segurança.
Meus pais já tinham subido.
— Eu tenho que desfazer as malas, ver os e-mails do trabalho, ver com Aline sobre as
atualizações do projeto. — Respondi, contendo um sorriso.
Beijei-o levemente, um roçar apenas, mas ele aprofundou o beijo, segurou meu rosto e me beijou
com força, acentuando a nossa respiração.
— Nós precisamos conversar — ele disse, não num tom que me causasse preocupação, mas ainda
assim fiquei tensa. Perguntei-me se Nina tinha falado alguma coisa a ele, ou até mesmo alguém do
prédio.
— Eu sei. — Encostei a boca na dele de novo, dessa vez por menos tempo. — Não vai subir um
pouco?
— Não, nos vemos amanhã. — O seu tom foi brando, carinhoso, todavia ele ainda estava nervoso
e inquieto.
— Está bem.
39
Marcone
Saí pela porta de vidro da delegacia e liguei para Camille, ela me atendeu no primeiro toque.
— Está livre agora? — perguntei, entrando no meu carro dentro do estacionamento da delegacia.
Não houve resposta imediata, apenas a respiração dela foi ouvida por alguns minutos.
— O gato roubou sua língua? — Esperei que ela risse, mas não aconteceu. — E então?
— Estou com a crianças agora.
Estranhei num primeiro momento, não a resposta, mas o tom que usou par aresponder.
— Tudo bem, nos vemos a noite, então.
Decidi ir encontrá-la no projeto, fazia tempo que eu não via aquelas crianças e a tagarela da
Isabelle. Assim que estacionei o carro diante do prédio, vi Tarcísio ajudando algumas crianças a
descerem de um veículo grande, ele não me viu. Percebi que a infraestrutura do lugar era
maravilhosa, mas não muito segura. Eu não tive problema nenhum em entrar sem que ninguém me
visse. Passei pelo lavatório para lavar as mãos e fiz o mesmo caminho de um tempinho atrás quando
vim com Camille.
Todavia a sala estava vazia.
— Marcone. — Ouvi a voz de Aline e me virei. — Que surpresa.
— Oi. — Olhei por sobre o ombro para a sala novamente, certificando-me se era o lugar certo. —
Camille me disse que estaria aqui, então eu resolvi passar para ver as crianças, faz um tempinho que
não apareço.
Aline franziu um pouco as sobrancelhas e mudou o caderno que segurava de um lado para o outro.
— Faz muito tempo que ela disse isso para você?
— Não muito, ela já foi embora.
— Não, na verdade ela não apareceu aqui hoje ainda.
Enfiei as mãos nos bolsos e olhei da porta para Aline, repassando a ligação e o que a mentirosa
tinha me dito.
— Ela não veio? — insisti.
Ela negou com a cabeça, a expressão assumindo um ar preocupado.
— Aconteceu algo?
— Eu devo ter entendido errado, então. — repliquei, após um tempo.
*
Recuei assim que escutei as vozes das duas, Nina colocava uma calça jeans na mochila e Camille
estava de pernas cruzadas, observando-a. Meu coração chegou a ficar aquecido, encantado com a
ligação das duas. Mas logo em seguida me lembrei das mentiras dela, do fato de ter me sentido um
trouxa mais cedo. Deixei-as ali, e fui ao meu quarto a fim de tomar um banho rápido, ainda sentindo-
me frustrado. Buscando entender a mentira dela, talvez até buscando desculpas para as omissões e
mentiras.
Deixei o quarto e caminhei para o escritório, não demorou muito para que a porta fosse aberta.
Nina entrou de maneira sonsa, iria para a casa do puto e ficava envergonhada por isso, as bochechas
da encrenqueira chegavam a corar.
— Marco, estou indo... não venho dormir em casa... — Beijou de leve meu rosto, mas parou um
minuto me encarando, provavelmente percebendo que eu não estava num dos meus melhores dias.
— Como você vai? — Desviei a atenção de Camille, que permanecia em pé olhando nossa
interação.
— Ben está aí embaixo me esperando.
— Ok. — Beijei de leve a cabeça dela. — Não esqueça de ligar para nossa mãe. — Ela me
abraçou rapidamente, disse algumas palavras a Camille e saiu logo em seguida, deixando-nos a sós.
— Oi. — Cami fechou a porta e sorriu de leve para mim, por um momento quase esqueci porque
estava zangado e desisti de questioná-la.
Apenas por um momento.
— Onde você esteve essa tarde, Camille? — perguntei, desconfortável, é claro.
O seu rosto ficou completamente confuso, caminhei até onde ela estava e cruzei os braços,
parando em sua frente.
— Eu disse para você.
Mentirosa.
— Estranho, eu estive lá e Aline não fazia ideia de onde você estava. — A confusão transformou-
se em outra coisa. Vergonha, talvez. — Na verdade, ela me disse que você sequer esteve lá hoje.
— Você está me vigiando? — perguntou horrorizada, os olhos ficaram marejados como se
estivesse enxergando algo muito ruim em mim.
— Não, não estou. Apenas quis passar a tarde com você e resolvi fazer uma surpresa já que tinha
me dito que estaria lá. Por que você mentiu? — Descruzei os braços e ela deu um passo para trás,
assustada.
Foi minha vez de ficar horrorizado, ela estava achando que eu ia agredi-la?
— É melhor eu ir para casa. — sussurrou, os olhos piscando veementemente, afastando-se de
mim.
— Prefere se afastar a me dizer por que mentiu? — inquiri, incrédulo.
— Eu vou para casa, quero ficar sozinha.
Encarei-a, a frustração se transformando em raiva.
— Então vá. — Apontei para a porta e dei-lhe as costas voltando para a cadeira.
Quando voltei a encará-la a decepção era muito clara no seu rosto, esperava outra reação minha,
obviamente. Ainda ficou quieta, e depois saiu, engoli em seco, imediatamente arrependido, impelido
a ir atrás dela. Ouvi a porta ser aberta e fechada, e esfreguei os olhos.
— Caralho. — grunhi e levantei, pegando as chaves do carro.
Saí rapidamente para a sala no intuito de encontra-lá antes que entrasse no elevador. Todavia,
Camille ainda estava ali, encostada na porta, ela ergueu o rosto para mim e eu notei a face
extremamente vermelha, ela não estava chorando, mas estava com vergonha. Muita vergonha.
— Estou apaixonada, Marcone... — sussurrou, e então apenas uma lágrima escorreu por sua face,
ela enxugou imediatamente. — Você já quis ser perfeito para alguém? — Dessa vez ela fechou os
olhos com força e quando os abriu havia uma mistura gritante de sentimentos, o mais evidente era a
insegurança.
— Sim. — Eu queria ser para ela.
Ela tirou um pequeno cartão do bolso do jeans e deu alguns passos até entregá-lo a mim.
Hebe Duarte. Piscicóloga.
Senti-me tolo por um momento, mas ela também não tinha facilitado as coisas, seria muito simples
ter simplesmente dito a verdade.
— Minha irmã me convenceu a fazer terapia.
Senti vontade de abraçá-la tamanha a vulnerabilidade que ela estava esboçando, mas pelo tom de
voz que falava Camille me afastaria, ela estava fazendo esforço para não chorar.
— Não há problema nenhum em fazer terapia ou acompanhamento com um pscicólogo, eu também
faço.
Ela meneou a cabeça numa negativa, a língua passando nervosamente pelos lábios.
— Você é diferente de tudo que eu já estou habituada. — Ela estava triste. — Às vezes, nem
acredito que seja real e eu tenho medo que acabe. — Fez uma pausa. — Estou mentindo para você,
escondendo coisas que não devia...
— Eu sei. — Dei um passo incerto em direção a ela, temendo que por algum motivo ela recuasse.
Consegui abraçá-la, mas o corpo pequeno estava rígido, tenso. — Você achou que eu fosse te bater?
— inquiri, mesmo antes de ela responder eu já estava com vontade de matar o desgraçado. O rosto
dela ficou ainda mais vermelho, cheio de ultraje, vergonha.
Perguntei-me que tipo de merda tinham feito com ela.
— Eu nunca machucaria você. — Ergui o seu rosto, a boca vermelha tremia levemente. — Foi ele
quem machucou seu rosto.
Ela sabia de quem eu estava falando, mas não respondeu e algumas lágrimas rolaram pelo rosto
dela e eu soube que sim.
— Porque não me contou?
— Eu queria contar, eu queria, mas fiquei com medo. Eu estou com medo. — Ela ficou nervosa, a
voz chegou a ficar alta. — Se não fosse Bella, ele teria me arrastado pelas ruas e ninguém teria feito
nada. As pessoas não se importam, nem minha mãe acreditou em mim... — Entendi a mágoa que ela
tinha da mãe. — Ela não quis nem me ouvir.
— E você achou que seria o mesmo se me contasse?
— Você é diferente do que estou habituada. — Ela voltou a dizer as mesma palavras, e os dedos
tocaram o meu rosto. — Eu gosto do jeito que você me olha, as coisas que me fala... é um mundo
diferente do que estou acostumada... eu achei que podia mudar. Que você começasse a me enxergar
de outro jeito...
O pior de tudo era ver que ela se considerava culpada.
Camille
Aceitei o copo com água que Marcone me deu, ainda com vergonha de encará-lo. Expor o que eu
sentia era tão ultrajante que parecia errado, fui chamada por tanto tempo de louca que simplesmente
admitir que estava prestes a entrar num consultório para uma terapia de rotina era difícil, era como
concordar que eles estavam certos. Que eu era louca de verdade.
— Quando você pretendia contar para mim?
Não havia acusação no tom dele, nem condescendência. Ele estava chateado e provavelmente
desde a nossa viagem a Minas estivesse ligando pontos. Marcone era inteligente.
— Eu ia contar, eu só não sabia como. — Olhei-o disposta a contar tudo. — Eu menti por ele,
fingi ser o que não era, insisti numa relação falida, me apeguei desesperadamente à minha esperança
de que ele mudasse em algum momento....
— E o que te fez mudar de ideia?
— Minha irmã, ela transformou a vida dele num inferno até terminarmos.
Marcone apenas assentiu, perguntei-me o que ele estava pensando, nunca tinha visto seu rosto tão
duro e tão severo. O que quer que se passasse em sua cabeça não era bom.
— Porque nunca abriu um processo? — perguntou ele, depois de um momento.
— Nós vamos agora a uma delegacia. — A voz de Liz soou tão irritada, mas tudo o que fiz foi
tapar os ouvidos, completamente cansada de toda a gritaria.
Evitei olhar o rosto no espelho, horrorizada com a dor intensa no olho direito. Minha boca
parecia estar mil vezes maior, inchada e escoriada.
— Ela não vai sair daqui, porra. — A voz colérica demonstrava o tanto de álcool que ele devia
ter ingerido.
Eu não chorei, só me senti morrer mais um pouquinho, como vinha acontecendo. Uma pequena
dose de morte dia após dia. Era o que eu vinha consumindo desde que o deixei entrar na minha
vida.
Pisquei com a lembrança, eu não tinha dúvida alguma que fosse uma lembrança. Fragmentos
sendo unidos pouco a pouco, a sensação que senti naquele dia veio tornando aquela parte da minha
vida mais real do que eu gostaria.
— O que foi, Camille? — ele perguntou, aproximando-se instantaneamente.
— No dia em que minha irmã morreu, eu o vi. Mas eu não consigo entender como e porque. —
soei confusa, sem consegui ordenar os pensamentos.
— Você se lembrou?
— Não exatamente, estão vindo cenas embaralhadas, fora de ordem. — Enrolei os cabelos para
cima e peguei o copo de água sobre a mesa, bebi o que restava de uma vez.
Uma pontada na testa me fez fechar os olhos e as mãos dele tocaram meus ombros.
— O que lembrou?
— Ele me bateu, mas minha irmã estava lá. Ela disse que me levaria a polícia...
— E o que mais? — Ele beijou minha têmpora, parecendo saber exatamente onde estava doendo.
— Só isso...
Ele suspirou e manteve a boca encostada na minha testa.
— Tente se lembrar. — sussurrou com carinho, e eu o abracei, em segundos estava em seu colo.
Não respondi nada, aproveitei do cheiro e do carinho dele no meu cabelo, só algum tempo depois
eu parei para pensar no que podia acontecer se Marcone fosse confrontá-lo, não era o que eu queria e
eu tinha medo do resultado.
— Pode me prometer uma coisa? — Levantei a cabeça para olhá-lo, e eu vi a tensão no rosto
bonito.
— Eu não vou prometer nada se for relacionado a aquele desgraçado. — respondeu irritado e eu
senti ainda mais medo.
— Eu não quero que essas pessoas entrem na sua vida por minha causa. — referi-me a todos que
faziam parte da minha vida, até mesmo meus pais.
Ele sorriu, não o sorriso que eu gostava. Era mais o sorriso de um homem que já tinha passado
coisas dolorosas.
— Você é muito jovem ainda. — Marcone beijou minha testa, o dedo tocou levemente a ponta do
meu nariz e logo depois fez o contorno da minha sobrancelha.
— Não sou tão jovem, tenho 21 anos.
Marcone riu, o polegar afagou minha bochecha, e os olhos ficaram tão intensos que perdi a
respiração por um momento.
— Então, está apaixonada?
Senti-me subitamente tímida, tentada a esconder o rosto dele.
— Eu também estou. — A afirmação fez meu coração dar um pulo e uma onda de nervosismo me
percorrer inteira, como se minha corrente sanguínea estivesse bombeando mais sangue que o normal
para o meu peito, houve um formigamento geral no meu corpo até o último fio de cabelo. — Acho
que desde quando vi você pela primeira vez. — O dedo longo puxou o meu cabelo do coque.
— Na fazenda? — inquiri, sem conseguir conter um sorriso. Ele sorriu também, e negou com a
cabeça o que me deixou confusa.
— Antes disso.
40
Marcone
Estacionei o carro diante do prédio em que Camille estagiava e encarei por um tempo o arranha-
céu, nos últimos dias eu estava sempre com ela, exceto, é claro, quando a garota não dormia comigo,
o que estava se tornando cada vez mais raro. Já tinha pensado em dar outro passo no relacionamento,
mas preferia esperar até estar fora da polícia, algo que estava atrasado devido a falta de provas e de
avanços na investigação da Luxus, quanto mais procurávamos, menos informações tínhamos, e era a
falta de ponta solta que atrasava o nosso trabalho.
Saí do carro e caminhei até a entrada do prédio grande, tinha vindo aqui poucas vezes. Uma das
garotas que me conhecia levou-me até a sala de Flávio, o puto estava regozijado diante das telas de
onde monitorava até mesmo as moscas que voavam pelos andares.
— É preciso fazer sua namorada trabalhar num sábado para você aparecer. — ele bufou, quando
viu que era eu.
— Minha rotina é igual ou pior que a sua.
— Pior, eu diria.
Flávio fez um gesto, oferecendo-me uma bebida, mas eu recusei com a cabeça.
— Onde ela está?
Ele apontou um controle pequeno para tela e centralizou a câmera no andar que Camille estava,
ela parecia guardar alguns documentos numa pasta vermelha, vestia uma calça jeans e uma blusa
branca, uma roupa diferente dos terninhos que geralmente vestia durante a semana.
— Não sei o que ela viu em você. — O bastardo disse, assistindo, como eu, ao que ela estava
fazendo.
— Eu também não sei — concordei e ele riu.
Conversamos mais um pouco e eu fui encontrá-la, permaneci uns bons minutos sem surpreendê-la,
apenas observando a forma mecânica como ela separava os documentos e os guardava em
classificadores de cores diferentes. Como se tivesse a mesma eficiência caso precisasse fazer de
olhos fechados.
— Que tal ir para casa? — perguntei, quando percebi que ela não me veria ali.
Uma das pastas caiu da sua mão por causa do susto, abaixei-me para pegá-lá e devolvi a ela.
— Há quanto tempo está aqui? — perguntou, guardando tudo num armário branco e aproximando-
se, ela olhou para os lado para ver se havia alguém e encostou a boca na minha, mal sabia que Flávio
devia estar vendo tudo no zoom.
— Algum tempo. Vim buscar você.
Saímos alguns minutos depois.
— Eu preciso comprar um presente para Aline. — Camille disse de forma aleatório, como se
tivesse acabado de lembrar desse detalhe.
Ela abriu o fecho da anabella que usava nos pés e os trouxe para cima do banco, as tiras da
sandália deixaram marcas vermelhas na pele branca.
— Vai passar no shopping?
— Sim, a gente pode almoçar.
Eu fiz o retorno e depois de quase vinte minutos parei no lava-jato a alguns quilômetros de
distância do nosso destino. Ela me olhou sem entender.
— Vou deixar o carro para lavar — expliquei.
Enquanto esperava que ela colocasse as sandálias novamente nos pés, vi a mãe de Enzo a uma
distância não tão grande de nós, o mesmo homem que havia tirado o filho dela da festa de Camille
estava ao seu lado. Ele tocou a cintura da mulher de modo íntimo e ela deu um sorriso antes de entrar
no carro branco que ainda ficou parado por um tempo antes de sair dali.
Olhei rapidamente para Camille, mas ela continuava o trabalho de recolocar as sandálias nos pés.
— Aquele homem que estava com Heloísa no seu aniversário...
— Ele é motorista dela, mas está mais para sombra — retrucou, colocando a alça da bolsa no
ombro.
Ou amante, pensei comigo mesmo.
Caminhamos de mãos dadas até o prédio grande e lotado. Ela estava falando sobre uma festa que
iríamos hoje que eu sequer sabia, antes era apenas o presente de Aline que tínhamos que comprar,
mas depois de entrarmos em duas lojas de perfumes importados, ela se lembrou que também
precisava de um vestido novo e talvez outro salto e outras coisas que eu parei de acompanhar quando
ficou difícil saber o que cada nome significava.
— Eu quero algo branco... — explicou para a garota uniformizada que a seguia para lá e para cá.
— Um vestido? — A vendedora caminhou até uma vitrine e trouxe algo.
Camille entrou mais uma vez no provador e pela demora ou ela tinha gostado muito ou odiado.
Coloquei as sacolas no tapete e fui até lá, quando ela me chamou para fechar o zíper do macacão.
Ajudei-a a fechar e olhei seu reflexo. As pernas estavam nuas, o tecido não chegava nem ao joelho.
— O que achou desse? — perguntou ela, colocando minhas mãos na própria cintura.
Ao invés de responder, passei a mão pelo tecido até encontrar o decote discreto e deslizar o dedo
pelo meio dos seios dela.
— Está linda. — Puxei de leve os cabelos castanhos para o lado e beijei de leve ali, estava frio
por causa do ar condicionado.
Ela sorriu e a expressão tornou-se zombeteira.
— Eu preciso repor as suas camisas que mancho de tinta.
Não respondi, apenas dei risada porque era verdade. As minhas opções de camisas estavam cada
vez mais reduzidas, ela manchava todas. Eu podia contar uma ou duas situações constrangedoras que
já havia passado por causa disso.
Depois de fuçar todas as roupas masculinas, ela encontrou uma camisa branca para mim, do
mesmo modelo esporte que eu costumava usar.
— Eu posso tirar uma foto de vocês dois? — a garota perguntou já com o celular na mão.
— Claro. — Cami respondeu.
Nós posamos para a foto segurando a sacola com o logotipo da loja e então saímos para procurar
um lugar para almoçar.
— Eu pago hoje. — ela disse animada.
— Vou escolher algo bem caro já que é você quem vai pagar.
Camille riu e trouxe a cadeira para mais perto da minha. Passou muito tempo me dando beijinhos
no rosto, enquanto esperávamos a comida chegar. Ela pegou meu celular e trocou minha foto no
aplicativo de mensagens para uma nossa que ela acabara de tirar.
*
As oito em ponto, estacionei o carro diante do prédio de Camille. Não sabia que Aline morava no
mesmo lugar, fiquei surpreso quando ela me contou. Fomos para o décimo sexto andar, Camille
segurava o pequeno embrulho em uma das mãos e a outra estava entrelaçada na minha.
— Ela está completando que idade? — perguntei, apontando com o queixo para o perfume
embrulhado, segundo ela o preferido da amiga.
— Não é aniversário dela. — Camille riu, e num gesto distraído afastou os cabelos dos ombros.
— Aline vai embora, conseguiu um contrato com uma agência de modelos fora do Brasil.
Ela passou a me contar sobre os trabalhos de Aline, as loucuras que já tinha feito para chamar
atenção nesse meio. No apartamento, havia uma quantidade grande de pessoas, vi Flávio assim que
entramos, ele conversava com senhor bem vestido.
Camille
Segui Aline até o quarto dela para retocar a maquiagem e deixei Marcone com Flávio.
— Porque Nina não veio? — ela perguntou, ajeitando a juba cacheada com os dedos.
— Ela deve chegar a qualquer momento. — Abri minha bolsinha e tirei o batom vinho para
retocar a aplicação.
— Nem acredito ainda. — Deu alguns gritinhos e depois voltou a retocar o rímel.
— Seu pai está louco, não está?
Ela deu risada.
— Estou com medo que no último momento ele não me deixe entrar no avião.
Acabei rindo também, enquanto devolvia o batom para a bolsinha.
Saímos e encontramos Tarcísio, ele parecia estar esperando por nós ali, no corredor perto do
quarto dela.
— Você vai mesmo? — ele questionou para ela, evitando-me por alguns minutos. Isso estava
acontecendo há algumas semanas.
— Claro. — Aline só faltou dar alguns pulinhos de felicidade outra vez.
— Vai fazer falta. — Ambos se abraçaram.
Ela pareceu entender naquele momento que realmente estava indo embora, porque olhou para nós
e em seguida ao redor, o rosto foi mudando gradativamente, entendendo que estava se despedindo de
uma vida para começar outra.
— Eu ainda não consegui assimilar o que eu estou fazendo. — O rosto ficou um pouco vermelho e
foi minha vez de abraçá-la.
— Não era isso que queria?
Ela fez que sim e bebeu um gole do drink que segurava, alguém a chamou e eu acabei ficando com
Tarcísio ali parada, sem saber o que dizer, afinal ele vinha me ignorando.
— Então, é sério?
Ouvi sua voz, mas não entendi a que ele se referia. Apenas quando apontou para Marcone com o
queixo é que me dei conta do sentido da pergunta.
— Por que não seria?
Tarcísio ponderou por alguns minutos e me encarou em seguida.
— Achei que fosse demorar um pouco mais para se envolver com alguém.
Fiquei irritada, não com o comentário, eu também imaginei que ficaria mais tempo sozinha,
cheguei a pensar que nunca mais ficaria com ninguém. O que me irritou mesmo foi o tom de
reprovação que usou, como se tivesse algum direito.
Permaneci em silêncio.
— Eu devia ter dito a mais tempo... — a forma como ele se virou na minha direção, me fez dar um
passo para trás.
— Não quero escutar nada. — Desde que comecei a dar aulas para as crianças, eu via a forma
como ele me olhava demais. Aline chegou a me encorajar a dar abertura, mas nunca senti nada,
exceto amizade e gratidão à forma com que os dois me acolheram lá.
— Se eu tivesse dito antes, se tivesse me aproximado, mostrado minhas intenções. — Ele segurou
meu braço, não com força, mas de um jeito invasivo que eu não gostei.
— A resposta seria não.
Ao contrário do que imaginei, ele não me soltou.
— Solta, porra! — A voz de Marcone soou tão irritada que eu me encolhi.
Eu encarei Tarcício com raiva, ele soltou meu braço imediatamente e eu me perguntei quando uma
mulher seria respeitada a ponto de não precisar de um homem por perto. Se fosse eu a pedir ele não
teria soltado, muito menos me deixado em paz.
— Sai.
Como um cachorro com o rabo entre as pernas, Tarcísio saiu sem olhar para trás, eu me virei para
Marcone, o rosto dele suavizou quando olhou para mim e eu me senti extremamente privilegiada por
ter o seu lado humano, vez ou outra eu conseguia ver por trás das camadas, dos sorrisos, e da beleza
o homem que tinha matado por vingança. Mas não o temia. Eu achava uma causa justa.
Eu não era perfeita e ele também não, tínhamos nossos passados, não me orgulhava do meu. Ele
sofria com o dele, de alguma forma nós dois estávamos marcados, a vida tinha nos presenteado com
cicatrizes eternas.
— Eu acabei de receber uma mensagem no instagram da recepcionista da Luxus. — Aline disse,
aproximando-se junto com Flávio, alheia ao que tinha acabado de acontecer.
— Como é? — Senti Marcone enrijecer atrás de mim. — Você disse Luxus?
Aline nos encarou e assentiu lentamente, sem entender o tom de voz dele.
— O que diz a mensagem? — ele perguntou.
Aline mostrou o texto para nós, ainda mais confusa.
— Ela está me pedindo para pensar melhor na proposta, parece que quer que eu desista.
Flávio segurou o aparelho e o rosto ficou tão branco que achei que ele teria um treco.
— Bruna.
— Você a conhece? — Marcone perguntou, e eu dividi minha atenção entre um e outro sem
entender nada.
— Infelizmente sim. — Flávio respondeu.
— Eu não estou entendendo. — Aline soou alarmada. — Eu fiz alguma coisa de errado?
— Não, mas você vai precisar responder algumas perguntas na delegacia.
— O que?
41
Camille
— O que aconteceu? — perguntei a Marcone quando estávamos voltando para casa, Flávio saiu
assim que terminaram uma conversa rápida sobre a tal Bruna, eu não entendi direito também, mas
Flávio a conhecia.
— Estamos investigando essa agência.
— Mas por quê?
Ele me olhou por um momento, antes de responder.
— Tráfico humano.
— O que? — Fiquei horrorizada.
— O depoimento da sua amiga e encontrar essa mulher vai nos ajudar em muita coisa e acabando,
eu estou livre da Polícia Federal.
Ele sorriu parecendo animado e eu retribuí.
Marcone
Três dia depois da festa de Aline, localizamos o endereço de Bruna. Pelos dados que tínhamos ela
não morava no Brasil, vivia na Califórnia, mas estava no país há quase seis meses, isso por si só já
soava estranho.
— O que você acha? — Andrea perguntou, quando terminei de ouvir o depoimento da mulher.
— Eu acho que ela sabe do esquema, mas acredito que ela não faça parte. Se fizesse não teria
motivos para tentar fazer Aline mudar de ideia.
Andrea enfiou os dedos pelos cabelos e olhou os papéis sobre a mesa.
— Mas... é um depoimento decorado. Como se ela já estivesse preparada caso isso fosse
acontecer. — Bruna parecia saber exatamente como responder as perguntas, e não mudava o
discurso, era sempre as mesma respostas, sem desviar por um momento sequer do que havia dito
anteriormente, parecia que tinha ensaiado exatamente o que dizer. E nos olhava com raiva como se
nós fôssemos os suspeitos e não ela.
— Tenho a mesma impressão. — Ben disse, girando o lápis no dedo.
Andrea tinha batizado a investigação como o nome de Operação Luxus Rio, já havia um quadro
montado com o caminho a seguir, o nome Antônio Oliveira estava no centro, claro que o imbecil não
respondia nada relacionado ao volume de dinheiro que colocava e retirava dessa empresa, ele falava
exatamente o necessário.
Antes de sair da delegacia, Bruna lançou um olhar mortal para mim, o caminho agora era seguir os
passos dela, onde ela ia, com quem conversava, o celular já estava grampeado, mas não havia nada
no histórico de ligações ou mensagens. Nada que nos ajudasse.
Investigações paralelas tomaram uma parte da minha manhã, embora eu olhasse de minuto a
minuto a hora, querendo com todas as forças que desse logo duas da tarde e eu pudesse ir embora,
Camille e eu tínhamos combinado de passar a tarde juntos. Assim que entrei no estacionamento para
ir para casa meu celular tocou. Estranhei quando eu vi o nome Flávio na tela.
— Alô.
— Estão seguindo ela. — Escutei sua voz e imediatamente olhei para trás, como se ele estivesse
falando de algo acontecendo perto de mim. — Desde que Bruna saiu da delegacia.
— Onde você está, porra?
— Estou perto do posto de gasolina, ela abasteceu o carro e entrou numa lanchonete aqui perto.
A voz de Flávio estava ansiosa, ao que parecia a mulher mexia com ele, embora não houvesse me
dito qual era realmente a história com ela, mas não devia ser boa.
— Há um homem perto do carro dela.
Caralho!
— Me manda a localização.
Encerrei a ligação e esperei que Andrea chegasse mais perto.
— Estão atrás dela. — Avisei e ela estreitou os olhos. — Flavio me mandou a localização, vou
dar uma olhada.
— Como ele sabe?
— É o que vou descobrir. — Passei as chaves do meu carro para Andrea, havia alguns dias em
que o carro dela estava na oficina. — Pode pegar Nina e Camille? Elas estão no projeto. — Enviei a
localização para o celular dela.
— Como você vai chegar lá?
— Dou um jeito.
O táxi me deixou no lugar exato em que Flávio me indicou, paguei a corrida e bati no vidro do
carro dele. A cara de merda que ele tinha feito desde quando viu a mulher estava ainda pior do antes.
— Porque porra você está seguindo ela? — perguntei irritado, ciente de que se alguma merda
estourasse ele ia pelos ares junto.
— Eu não sei, essa mulher acabou comigo no passado, sumiu no mundo e agora eu... não sei
explicar, cara.
Fiquei sem ter certeza do que dizer, o puto parecia desolado. Coloquei o óculos escuros que
pendia na minha blusa e ajeitei o boné.
— Ela ainda está lá dentro?
— Sim, um deles entrou e outro rondou por muito tempo o carro, chegou a forçar a porta e depois
voltou para aquele gol preto.
Olhei para os lugares que ele ia apontando.
— Em que merda ela está envolvida? — perguntou bruscamente, parecendo irritado por se
importar.
— Uma das grandes. — admiti. — Olha, eu não sei o que aconteceu entre você e ela... — Desisti
de dar qualquer conselho, afinal eu não era a melhor pessoa para isso. Abri a porta e ele fez menção
de vir junto. — É melhor você ficar aqui por enquanto, eu não sei se ela realmente foi seguida ou se
está no meio de uma reunião, então... — Ele pareceu ficar ainda mais horrorizado.
Caminhei de cabeça baixa até a lanchonete, o lugar era simples, tal qual essas lanchonetes de
beira de estrada. Não foi difícil encontrar a mulher morena sentada em uma das últimas mesas,
sozinha. O visual completamente negro e os cabelos presos num rabo de cavalo me passaram a exata
personalidade dela: a mulher que de alguma forma destruiu o coração do meu amigo, talvez ele
tivesse feito o mesmo com o dela, em algumas histórias todos eram algozes em algum momento.
Antes de realmente me aproximar da mesa onde Bruna estava, observei o máximo que pude o
ambiente, havia um homem sentado em um dos bancos e de vez em quando olhava na direção dela,
esse devia ser o sujeito sobre o qual Flávio falara.
Sentei diante dela e a mulher me lançou um olhar mordaz. Era bonita de um jeito que realmente
podia causar problemas na vida de um homem. Como imaginei Bruna fez menção de sair da mesa,
mas segurei seu braço.
— Se eu fosse você, ficaria aí.
Ela olhou com raiva para o braço que eu segurava e a soltei.
— Isso é oficial? Acabei de dar um depoimento, qual o problema agora?
Suspirei, sem paciência alguma.
— Não, não é oficial. Digamos que temos um amigo em comum.
Ela estreitou os olhos e olhou ao redor, pela primeira vez se deu conta do homem mau encarado
sentado ali perto e me olhou de forma interrogativa.
— Sente.
Ela obedeceu, a contragosto, é claro.
— Quem você está protegendo e porque mentiu no depoimento?
O rosto da mulher ficou branco, mas logo depois ela ergueu o queixo me desafiando.
— Não sei do que está falando.
— Certo. — Uni as mãos sobre a mesa e fiz um gesto para a garçonete, pedi um café. — Você
percebeu que foi seguida até aqui?
Com nervosismo, ela olhou ao redor.
— Se concentre em olhar para mim.
— Por que você se importa?
— Aí é que está, eu não me importo. — Menti e ela ficou tensa, claramente. — Mas temos um
amigo em comum. — Recostei-me no assento da cadeira e bebi um gole da bebida quente, o que só
fez piorar o calor da tarde. — Você foi seguida desde quando saiu da delegacia, há um homem lá fora
te esperando e outro aqui dentro te vigiando, eu me pergunto o que você tem que eles querem.
— Não quero sua ajuda. — A mulher ainda teve coragem de dizer.
— Ok. — Chamei a garçonete e paguei pelo meu café e o de Bruna. — Boa sorte.
Levantei-me da cadeira e ouvi a voz, agora aflita dela.
— Espera.
Mordeu a própria boca e segurou a bolsa com força, como se sua vda estivesse ali.
— Me dê as chaves do seu carro.
Sem pestanejar, ela passou para mim e se levantou para me seguir até a saída. Não houve
movimentação nenhum atrás de nós. De longe vi que Flávio tinha estacionado o carro dele ao lado do
dela. Fiquei curioso por um momento para saber qual seria a reação dos dois cara a cara, mesmo sem
saber que porra havia acontecido com eles. Ela olhou com curiosidade quando a porta do carro dele
foi destravada e deu um passo para trás quando o viu descer, houve um momento de tensão e então
Flávio fez um gesto com a cabeça para que ela entrasse no carro e para a total queda do meu queixo,
ela obedeceu.
O homem que estivera o tempo todo dentro da lanchonete saiu em direção ao carro que Flávio
apontara mais cedo, o veículo ainda ficou um tempo parado, e eu cogitei que talvez tivesse sido uma
idiotice minha vir aqui sozinho.
— Você me segue para a delegacia. — instruí. — Eles podem ou não nos seguir.
Camille
Nina me ajudou a terminar de colocar os quadros no expositor e saímos para esperar por Marcone
no lado exterior do prédio.
— Camille. — Ouvi a voz de Tarcísio e respirei fundo antes de me virar, Nina continuou andando
sem perceber que eu já não estava mais do seu lado. — Me desculpa. — ele disse e fez menção de
tocar meu braço, mas eu me afastei. — De verdade, me desculpa.
— Nenhuma amizade te dá direito algum de opinar sobre a minha vida.
— Eu sei, e é por isso que estou pedindo desculpas.
Assenti sem ter realmente o que dizer mais. Quando cheguei ao lado de fora, o carro de Marcone
já estava estacionado na vaga que ele geralmente ocupava quando vinha me buscar, abri a porta e
deparei-me com Andrea ao volante.
— Está decepcionada? — a loira brincou e eu ouvi Nina rindo no banco de trás. — Ah, claro que
está. — ela mesma respondeu a pergunta e tirou a bolsa para que eu sentasse, jogando-a no banco de
trás.
— Onde ele está? — perguntei, acomodando-me.
— Ele está resolvendo um problema, mas não deve demorar. — Andrea deu partida no carro,
dirigindo com muita facilidade, como se não fosse a primeira vez. Era ridículo, mas me incomodou.
Eu podia estar enganada, mas mulher sempre sabia. Ela não era minha inimiga, mas com certeza o
que Andrea sentia por Marcone não se resumia só a amizade.
— E o bonitão? — Nina perguntou e eu me lembrei do namorado dela.
— Vou sair com ele hoje, pela primeira vez o infeliz me chamou para fazer algo fora do meu
apartamento.
Nina e eu rimos, foi inevitável.
— Então vamos ao shopping, Marco espera um pouco. — Nina disse animada. — Não é sempre
que essas coisas acontecem.
— Ah, meu Deus, faz tempo que não vou ao shopping mesmo. — Ela mudou a marcha. —
Marcone pode esperar.
Três mulheres juntas num shopping center, com cartões de crédito só podia acabar em algum
rombo no final do mês, o nosso objetivo era achar um vestido para Andrea. Um vestido com cara de
encontro.
— Olha esse aqui. — Nina me mostrou um modelo justo preto, extremamente sexy.
Nós duas olhamos ao mesmo tempo para Andrea .
— Isso não vai caber em mim. — disse ela, referindo-se a ser gorda, o que para mim era uma
mentira.
— Claro que vai.
Com o assunto vestido resolvido, fomos ao spa que a minha mãe era sócia. Ela passava mais
tempo lá do que em casa, como suspeitei Joice estava lá.
Depois de algumas apresentações, cada uma de nós fomos ao lavatório lavar os cabelos.
— Nunca vou dizer que somos amigas por isso, mas sempre esperei por esse dia. — Nina
brincou. — Ficar novinha em folha sem pagar nada.
Eu ri, enquanto Alecia, a funcionária mais antiga dali, massageava meu couro cabeludo. Relaxei,
ali sentada. Meus cabelos foram lavados, hidratados e depois escovados. Ficaram mais lisos do que
já eram normalmente. Logo em seguida fomos para a sala de massagem, meus cabelos estavam cheios
de prendedores para manter as pontas cacheadas.
Foi uma tarde agradável e engraçada, Andrea era espirituosa e escandalosa, às vezes, e Nina
ficava pior do que normalmente era perto dela. Quando saímos do shopping já estava escuro, e o
horário de pico dificultou ainda mais a chegada até o apartamento.
Marcone
Deduzi que Andrea ainda estava no prédio quando saí do táxi e vi Erick olhando distraído para a
entrada suntuosa, estava imerso em pensamentos de tal maneira que sequer viu quando me aproximei.
— Está esperando Andrea?
Ele olhou-me surpreso, mas não se assustou.
— Sim, ela disse que estaria aqui. — Foi sucinto.
Andrea apareceu um segundo depois, completamente transformada. Os cabelos estavam com um
corte diferente, os fios mais volumosos e mais loiros, mas o que me surpreendeu foi o vestido sexy
que ela usava, nada das calças jeans e camisas sociais que usava na delegacia, estava extremamente
feminina. Antes de nos ver ela retirou os óculos de grau e ajeitou os cabelos. Era realmente um
mulherão escondida por trás das roupas formais e dos óculos fundo de garrafa. Eu devia retirar
minhas observações sobre o idiota ao meu lado, afinal ela estava diferente desde que se envolvera
com ele.
Andrea pareceu ficar envergonhada ao me ver ali também, nada natural para ela.
— Você está linda. — Erick elogiou, tocando de leve os cabelos dela.
— Você é linda. — Corrigi e dei um pouco de espaço aos dois. Ela sorriu para mim e depois
olhou meio nervosa para ele. — Boa noite e Andrea, obrigada.
Observei, enquanto eles partiam e depois segui para meu andar, assim que entrei no apartamento
ouvi as risadas de Nina e Camille, não devia esperar nada bom disso, é claro. Fui direto para o meu
quarto, chequei as mensagens que Flávio mandara dizendo estar tudo bem e fui tomar um banho. O
carro de Bruna só havia sido liberado, depois de completamente revistado e uma viatura os
acompanhou para onde quer que ele tivesse levado a garota.
Saí, enrolado na toalha e ouvi uma batida na porta. Abri rapidamente para ver quem era e vi a
serelepe descalça e totalmente maquiada, os cabelos brilhavam tanto que pareciam estar mais pretos
que o comum.
— Você está muito bonita, aonde vai assim? — Perguntei, abrindo a porta para que ela entrasse.
— Ver meu namorado e minha sogra.
Revirei os olhos e passei a procurar uma roupa decente no closet.
— O que vocês fizeram a tarde inteira?
— Fomos ao spa. — Ela chegou mais perto para que eu visse a sua sobrancelha, como se eu
entendesse algo a respeito. — Está perfeita. Você não poderia ter arranjado uma namorada melhor.
Eu não pude deixar de rir.
— Inclusive você deveria levá-la para jantar, ela está linda.
Olhei as sacolas de compras do lado da cama e pedi que ela saísse para eu me vestir e matar a
curiosidade, eu tinha passado o dia inteiro querendo estar com ela.
Encontrei Camille no meio da sala, quando saí do quarto, os cabelos estavam com as pontas
cacheadas e os olhos ainda mais intensos e marcantes por conta da maquiagem, vestia um vestido
vinho, tinha percebido que era um dos tons que ela gostava de usar nas unhas e na boca.
Deixamos Nina na casa de Ben e ao contrário do que imaginei, Camille quis sair. Preferiu pedi r
um jantar em casa mesmo.
— Andamos o dia inteiro no shopping. — disse ela, deixando a taça de vinho quase vazia sobre a
mesinha de centro.
Fiz o mesmo e a puxei para ficar no meu colo no sofá, cheirei os cabelos e passei a pentear os
fios com os dedos, eles estavam mais sedosos do que o natural.
— O que você foi resolver?
— Um problema com uma testemunha.
Ela endireitou-se e se virou de maneira que pudesse ver meu rosto. Achei que Camille fosse me
perguntar mais alguma coisa, contudo ela encostou a boca na minha, fez o mesmo com meu queixo.
Os dedos prenderam-se ao redor da minha nuca.
— Como foi com as crianças?
Não tinha esquecido por nenhum segundo sequer que ela veria o imbecil durante a tarde.
— Como sempre. — Fez uma pausa e me beijou outra vez. — Tarcísio me pediu desculpas.
— Era o mínimo, não é?
Lembrei do infeliz tocando nela, minha vontade era quebrar a mão que ele tinha usado para fazer
isso, todavia havia um limite para tudo, esse limite, porém, não se estendia ao ex-noivo de Camille.
O filho da puta parecia ter se enfiado num buraco como os ratos faziam. Quando eu pensava que ele
tinha vindo até aqui para ameaçá-la qualquer lucidez sumia automaticamente, e a raiva só aumentava
conforme eu demorava de encontrá-lo, o infeliz tinha sumido. Não aparecia na sede da empresa de
turismo que dividia a presidência com a mãe, não ia a academia há algumas semanas e nem estava na
mansão que vivia com os pais. Depois de observar a vida do infeliz, me dei conta de que ele não
passava de um mauricinho filho da puta.
— Ele avançou o sinal alguma vez? — inquiri, voltando ao assunto.
— Não, sempre foi legal.
A expressão de contrariedade dela, fez-me ver que não havia realmente nenhum tipo de interesse
da parte dela, não escondi que sentia ciúmes dos dois, principalmente por causa do que a pequena
tagarela da Isabelle havia dito. Camille achava engraçado, é claro, eu nunca achei. E não estava
errado em implicar também.
A garota era totalmente alheia a si mesma, e principalmente ao estrago que fazia a minha cabeça.
Na verdade eu começava a acreditar que havia muitos Tarcísios por aí.
— Quantos namorados você já teve? — Fiquei curioso para saber.
— Você é o único. — Ela sorriu e me abraçou apertado, a safada sabia me enrolar direitinho e eu
gostava.
Segurei a nuca para beijar a boca gostosa e era o início da minha perdição do prazer, admitia
estar viciado nela e em tudo que ela representava, desde um recomeço a uma paixão tão intensa como
nunca imaginei que pudesse sentir. Forte ao ponto do meu coração disparar somente por pensar nela e
agora parecia tão certo que me sentia idiota por ter demorado tanto a realmente me aproximar.
Afastei o cabelo longo dos seus ombros e encostei a cabeça no colo descoberto pelo decote
redondo do vestido, o cheiro ali era intenso demais — uma mistura do cheiro natural dela com um
perfume meu que Camille usava algumas vezes quando dormia aqui. E era excitante demais sentir um
cheiro característico meu na pele dela, tal qual quando fazíamos amos, os nossos corpos grudavam
de tal forma que o cheiro dela se misturava ao meu.
— Você tem um cheiro, menina.
Ela não disse nada apenas beijou minha testa, e o gesto foi tão afetuoso que me deixou um pouco
mais encantado por ela. O nariz pequeno roçou levemente no meu, antes dela dela me beijar outra
vez, as mãos finas tocaram o zíper do meu jeans, mas ela não o abriu, manteve um um aperto ali pelo
tempo que durou nosso beijo.
Em segundos a alça do vestido estava fora do lugar e os seios pequenos apareceram, apontando
para mim, não os beijei de imediato, rocei o rosto por eles, sabendo que os marcaria com os pelos de
barba que estavam crescendo, ela só suspirou baixinho, trazendo as mãos pelos meus braços até
enfiá-los por dentro dos meus cabelos, eu gostava quando ela fazia isso, na verdade eu gostava de
tudo nela. Alcancei o zíper na lateral do vestido e puxei, devagar para deixá-la apenas com a
calcinha de renda branca, ela levantou-se para que o tecido deslizasse até o chão e ficou de pé na
minha frente. Havia algo de sobrenatural na beleza dela, não parecia com nada que já tivesse visto,
exótica e fascinante.
Ainda vestindo a calcinha, ela ajoelhou entre minhas pernas com uma mão em cada coxa minha, a
boca voluptuosa entreaberta chamou-me para mais beijos, perdi as contas de quantos foram, enrolei
os cabelos dela no meu pulso e mantive os seus lábios presos aos meus por muito tempo, cada
respiração, cada batida mais forte no peito, tudo acompanhava o tesão que ela despertava. As mãos
delicadas faziam um trabalho incrível no meu membro sobre a calça, ele já estava tão duro que
começava a incomodar preso dentro do jeans.
Ela abriu o botão e em seguida puxou o zíper, num movimento sem jeito, Camille tentou puxar a
calça. Ergui um pouco o quadril e ela puxou de vez o tecido grosso levando a boxer junto. Eu achava
engraçada a cara que ela fazia quando me via nu.
O rosto dela ficou imediatamente vermelho.
— Venha cá.
Ela sentou de lado no meu colo e eu tirei minha blusa para o contato pele com pele. Acariciei o
sexo quente com os dedos sobre a calcinha e ela encostou a cabeça no meu pescoço, abrindo um
pouco as pernas, friccionei o polegar no clitóris inchado e ela gemeu baixinho.
— Meu tesão. — Sussurrei no ouvido dela, mordiscando a orelha vermelha. — Olhe para mim...
Os olhos verdes ganhavam uma ferocidade inacreditável quando ela estava excitada, a íris
ganhava um tom tão escuro que a pele do rosto parecia ficar um pouco mais clara.
Levei-a para o quarto e coloquei-a sobre a cama, ainda passei a mão sobre a calcinha, antes de
retirá-la e deixar alguns beijos na boceta dela, ainda me enlouquecia o quanto essa garota era
apertada, chupei cada um dos seios eriçados, enquanto deslizava lentamente para dentro dela,
sentindo-a me apertar inteiro, como se quisesse me sugar ainda mais para dentro.
A expressão dela se transformava quando ela gozava, nunca era igual, havia sempre algo novo
para que eu me lembrasse o tempo todo. Os olhos ficavam ferinos, a boca mais inchado e vermelha e
a boceta tão molhada que arrasava com qualquer juízo que ainda restasse em mim.
42
Camille
De: Marcone
Minhas melhores noites são com você.
Mordi o lábio inferior, evitando sorrir. Pelas minhas contas eu já tinha relido essa mensagem
mais de quinhentas vezes, e em todas elas eu ficava um pouco mais apaixonada. Coloquei o celular
sobre a mesa e olhei para Isabelle, ela estava distraída e não quisera pintar nada durante a aula de
mais cedo. A menina estava estranhamente quieta, o que não era habitual. Sentei ao seu lado e segurei
a mão pequena.
— Sua vizinha demorou hoje, não foi? — Puxei assunto.
Ela deu de ombros, e continuou quieta.
Olhei o relógio do meu pulso e já passava da dezoito e trinta, não demoraria para Marcone vir me
buscar.
— Você tem o número dela para eu ligar? — perguntei, não havia mais ninguém no prédio além de
nós duas, como era aniversário de uma das crianças resolvemos fazer uma festinha durante a tarde.
— Ela não tem celular. — respondeu, baixinho, balançando as perninhas.
— Hum. — Ajeitei o lenço em sua cabecinha. — Que tal mais uma fatia de bolo, enquanto
esperamos por ela?
Ela deu um sorriso gracioso e segurou minha mão. Naiá fizera um bolo de chocolate com muita
calda. Cortei uma fatia grande para ela e uma fina para mim.
— Quem vai te levar pra casa? — perguntou ela, a boca meio suja de chocolate.
— Marcone.
A menina olhou para a minha mão, provavelmente em busca de um anel.
— Ele não veio mais aqui. — objetou ela de boca cheia, parecia contrariada.
— Ele trabalha muito, mas vou pedir que abra um brecha na agenda para vir ver você.
Isabelle sorriu.
A vizinha dela chegou alguns minutos depois para pegá-la, reclamou de que o trânsito estava ruim
e os ônibus lotados demais. Assim que elas saíram meu celular vibrou com uma mensagem de
Marcone, reclamando da mesma coisa. Aproveitei que ele iria demorar um pouco mais e passei a
colocar algumas das telas secas no lugares vagos no expositor, não tirei por um segundo sequer a
atenção do celular caso recebesse alguma ligação.
Ouvi um ruído da porta se abrindo e não me virei, esperei para fingir surpresa quando ele se
aproximasse, continuei arrumando os quadros.
— Eu esperei que a menina saísse.
Foi como um tapa na cara ouvir a voz de Enzo ali, o quadro que eu estava colocando caiu e por
pouco não acertou meu pé. Ouvi o primeiro e o segundo passo, e então pela sombra no chão eu
percebi que estava a poucos centímetros de mim.
— Eu só vim conversar. — Ele segurou uma mecha do meu cabelo e eu me retraí, esse tom e essa
calma eram um presságio para uma tragédia.
Tentei me afastar, mas ele me virou, puxando-me pelo braço, e eu soltei um grito e cobri minha
boca com a mão livre. Havia uma cicatriz imensa no lado do seu pescoço, ainda não completamente
sarada.
— Está vendo o que aquele cachorro fez? — Ele apertou meu braço com mais força como se
quisesse quebrá-lo e a outra mão segurou minha nuca, puxando-me para ver de perto a escoriação
medonha. — Eu devia fazer o mesmo com você, te cortar inteira e depois mandar os pedaços para o
desgraçado que te come.
Soltei um gemido esganiçado, enquanto a dor lancinante se espalhava pelo meu braço inteiro.
Os olhos dele ficaram marejados de lágrimas, algo que no passada me deixava profundamente
culpada e confusa, agora eu não sentia nada, tudo que minha mente gritava era que eu precisava
correr o mais rápido que eu pudesse.
— O que será que ele faria? — perguntou ele, apertando ainda mais, cheguei a ficar na ponta do
pé por causa da força com que ele me segurava. — O que ele faria? — Ele riu, um sorriso cruel
daqueles que vinham acompanhados de palavras mortais. — Ele não faria nada, sabe porque? —
Dessa vez, ele puxou meu cabelo para trás de modo que pudesse encará-lo de frente. Todos os traços
do seu rosto estavam tensos, a pele suada, e a barba por fazer. — Porque ninguém, escute bem,
absolutamente ninguém consegue te amar de verdade. Você nasceu para ser um passatempo, daqueles
bem chatinhos que não jogamos fora por pena, ou para o caso de precisar novamente. — Ele deu um
sorriso maldoso, sabendo o que esse tipo de comentário fazia comigo.
Enzo conhecia todas as minhas fraquezas, eu era uma criança deprimida quando ele se aproximou
e eu me apaixonei, me apaixonei pelo que eu achava que ele era, pelo que eu queria que fosse, e ele
foi por um tempo. Esse desgraçado não começou me batendo, no início eram flores e palavras
bonitas. Carinhos, afagos e tardes de sorvete e filmes de comédia romântica.
Esse era o começo de um fim inevitável, talvez o ideal fosse que ele me matasse mesmo, a doença
dele se encerraria com a minha morte. Ou talvez o ideal é que fosse eu a matá-lo, tal qual ele fizera
com várias partes de mim.
— Ele te mataria. — respondi, por fim à pergunta que ele fizera.
Os olhos dele fitaram a minha boca e com a mão livre ele me deu um tapa tão forte no meu rosto
que acabei ferindo minha própria língua, senti o gosto do sangue.
— Ele te mataria, seu desgraçado! — No meu descontrole, comecei a socar várias vezes o peito
dele, o que só o irritou mais. Com raiva, Enzo me empurrou e caí de costas, por pouco não bati a
cabeça na ponta da cadeira.
Ele me rondou, enquanto eu ainda estava no chão e eu olhei para todos os lados em busca de algo
pesado para atirar nele, mas tudo estava distante. Imaginava exatamente o que ele faria, chutar meu
ventre até que eu desmaiasse de dor, como já acontecera antes.
— Eu vou matá-lo antes. — Enzo se abaixou perto de mim e a sua mão acariciou o meu cabelo. —
Ele, a irmã dele, o cachorro e depois nós vamos embora. Só eu e você.
A ideia me deixou desesperada e eu sentei rapidamente, peguei o quadro que havia caído das
minhas mãos e tentei acertá-lo na têmpora como Marcone havia dito, mas ele foi mais rápido e se
afastou, só tive tempo de correr até a porta, mas Enzo me agarrou pela cintura e me prensou na
parede, os olhos pretos estavam tão coléricos que pareciam estar saindo pelas órbitas.
— Diz que me ama. — sussurrou ele, causando-me asco. — Diz. — Dessa vez ele gritou,
enlouquecido, as veias do seu pescoço ficaram alteradas, puxou tão forte o meu cabelo que o couro
cabeludo parecia estar queimando.
— Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. — Repeti isso tantas vezes mentalmente, que fazê-lo em
voz alta foi libertador.
Vi a forma como ele engoliu em seco, os olhos ficaram vermelhos como brasas, mostrando o
monstro que poucas pessoas conheciam. O ser humano violento e irascível que ele era. O puxão no
meu cabelo diminuiu, e houve um afago rápido no meu pescoço, e embora qualquer um pudesse
pensar que ele iria me soltar e ir embora, eu sabia que o pior dele viria a seguir.
Geralmente o carinho precedia as piores agressões, os socos mais fortes, as palavras mais
agressivas, os momentos mais angustiantes.
O toque suave transformou-se num aperto sufocante em meu pescoço.
— Eu vou matar você e ninguém vai ver.
Enfiei minha unhas nos braços dele numa tentativa frustrada de causar-lhe alguma dor, mas ele
parecia ter se transformado em pedra, os olhos estavam tão vidrados nas minhas reações que parecia
não sentir nada. Todas as minhas tentativas de gritar foram em vão, o aperto só ficava mais forte, e
minha falta de ar maior.
— Você não tem ideia do quanto eu amo você. — Ele desfez um pouco o aperto e eu tossi
veementemente buscando o ar que me faltava, as mãos desceram pelo meu ombro e meu pânico
cresceu com a possibilidade dele me tocando, senti um asco fora do comum.
— Me deixa ir... — supliquei em meios as tosses, algumas lágrimas foram descendo e o medo de
morrer crescendo.
— Nós vamos. — disse ele, a mão alisou meu cabelo e eu me encolhi. — Para um lugar onde
ninguém nunca vai nos achar. Só nós dois, eu já planejei tudo.
Enquanto ele ia contando as loucuras, eu fechei meu punho e me concentrei, tentando pensar no
tanto de força eu teria de ter para fugir de um homem do tamanho dele. Encostei a cabeça em seu
ombro, sentindo por um momento o perfume que um dia apreciei, mas que agora me causava repulsa.
Enzo, no entanto, entendeu errado o meu gesto, ele baixou a guarda e eu acertei uma joelhada no meio
de suas pernas com o máximo de forças que eu consegui reunir.
Ele deixou escapar um grito e me soltou curvando-se, foi minha chance de correr.
Marcone
Estacionei na vaga de sempre e permaneci sentado, atento a entrada do prédio. As luzes estavam
quase todas desligadas, peguei um halls dentro do porta-luvas e liguei para avisar que estava
esperando, chamou algumas vezes, mas ela não atendeu. O homem que geralmente ficava ali nesse
horário para vigiar o lugar, não estava na guarita. Desisti de esperar e saí do carro, percebi o carro
estranho estacionado do outro lado da rua, estranhamente silenciosa. O som dos meus passos na
calçada tornaram-se agourentos, a porta de vai e vem do prédio foi aberta em um rompante e Camille
esbarrou em mim, completamente descontrolada, chorando, suada, descabelada.
— Eii... — Segurei-a pelos ombros, tentando fazê-la me olhar, e então eu vi o estrago em seu
rosto.
Ela olhou para mim como um animal machucado, as lágrimas eram tantas, uma após a outra sem
cessar, mas não havia som nenhum, nenhum lamento, nenhum gemido, nada, apenas lágrimas
silenciosas. O lado esquerdo do rosto tinha uma marca vermelha enorme, a boca carnuda estava
inchada, partida e o pescoço, os dedos do desgraçado estavam visíveis ali.
Engoli em seco, imaginando toda a cena e foi como se toda a minha visão se tornasse vermelha, o
lado ruim, o pior, aquele todo ser humano tinha, ele veio completamente a superfície.
Considerando a forma como ela tinha saído desesperada, o desgraçado ainda estava lá dentro, dei
um passo em direção a entrada, mas ela segurou meu braço e se agarrou de forma tão desesperadora
que eu abracei de volta.
— Não vai... — foi uma súplica, vi o medo e a vergonha no semblante dela, o corpo pequeno
estava tremendo tanto que eu temi que ela caísse caso eu a soltasse.
A porta se abriu outra vez e o miserável saiu, estancou ao nos ver ali, o rosto foi assumindo uma
expressão quase demoníaca tal qual a dos assassinos que eu já havia prendido ou matado. Eu a soltei,
foi instintivo.
— Você bateu nela, porra?
O primeiro soco que eu dei o fez cair de costas na calçada, ouvi um grito assustado de Camille,
mas não parei, foram vários, um atrás do outro, ele não teve nem chance de revidar.
— Marcone... — Foi só um soluço, e eu parei. Minha mão já estava suja do sangue do miserável,
eu me virei para ela e pelo seu rosto eu vi que agora ela realmente conhecia cada parte de mim, todas
elas, inclusive as menos bonitas, as que eu não gostaria que ela visse.
Enquanto eu a olhava, ouvi o miserável se levantar as minhas costas, e então o clique da arma
sendo destravada soou e eu me virei para ele. A cara cheia de sangue exibia um sorriso de triunfo.
— Não, por favor... — Agora ela estava chorando de verdade, ouvi um soluço e em seguida ela já
estava entre nós dois. — Por favor, por favor... não..
— Desculpa, mas eu ti avisei. — Ele cuspiu o sangue e foi o momento de distração mais ridículo
que já presenciei na vida.
Consegui tirar a arma das mãos dele, mas ela disparou.
43
Marcone
O tiro acertou em cheio a parede do prédio, e uma raiva irracional tomou conta de cada sentido
meu, antes que ele pudesse pensar já estava no chão outra vez, dessa vez eu tinha a arma apontada em
sua testa, a mão livre apertava tão forte seu pescoço que os olhos do desgraçado pareciam que iam
sair para fora, eu queria que as marcas ficassem ali da mesma forma que estavam no pescoço dela.
A vontade que eu tinha era apertar o gatilho, descarregar todas as balas nele, livrar o mundo de
mais um infeliz, mas não na frente dela, todavia Enzo não sairia dali sem marcas. Não depois de
encher essa menina de cicatrizes na alma, ele também ganharia uma ou mais.
— Eu deveria te matar agora. — grunhi e os seus olhos ficaram ainda mais arregalados, o dedo
chegou a pesar toneladas dada a vontade que sentia de acabar de uma vez com o infeliz. — Se você
encostar nela de novo, você está escutando, porra? — Ele balançou a cabeça afirmativamente com
veemência, a cara dele me enchia de repulsa e raiva. — Não chegue perto dela de novo ou eu vou te
matar.
Mirei a arma na mão que ele tinha usado para machucá-la.
— Não, cara. — Ainda foi capaz de gemer.
— O que você disse?
Atirei, e os gritos dele de dor não causaram nenhum tipo de compaixão em mim, muito pelo
contrário, ele merecia mais. Retirei as balas da arma metodicamente e joguei perto dele
descarregada, tirei meu celular do bolso e liguei para Andrea.
Aproximei-me dela com cautela, temendo que talvez Camille quisese se afastar com medo de
mim. Os lábios dela tremiam muito e eu lamentei que tivesse vivido por tanto tempo esse tipo de
trauma, não queria que ela me associasse a violência ou ao infeliz que ainda estava gemendo no chão.
— Nós precisamos ir a uma delegacia agora. — Ela olhou para Enzo e depois baixou a cabeça.
Temi que dissesse que não, mas Camille deu um meneio afirmativo com a cabeça, quase
imperceptível. Guardei as balas no bolso e com a mão limpa toquei levemente o ombro dela, levei-a
até o carro e esperei do lado de fora até que a viatura chegasse para levar o miserável. Andrea já nos
esperava quando chegamos a delegacia, e eu estava nervoso e frustrado, Camille não havia dito nada,
sequer uma palavra, estava quieta, calada, só chorava em alguns momentos, ainda assim sem fazer
barulho, como se tivesse repetido isso por muito tempo. Sentir dor calada. Não contar nada a
ninguém.
A primeira coisa que Andrea olhou quando chegamos foi para a minha mão, lançou-me um olhar
de censura.
— Você precisa contar o que aconteceu a delegada, Camille. — disse num tom razoável e
preocupado. — Ela já está esperando por você.
Na sala, a delegada indicou uma cadeira para que Camille sentasse, permaneci em pé. Conforme
ela ia dizendo o que tinha acontecido, eu me arrependia um pouco mais de não ter acabado com o
filho da puta ali mesmo quando tive chance. E eu sabia que me arrependeria de não ter feito
exatamente isso. Em seguida fomos ao IML, onde ela faria uma série de exames que comprovaria as
agressões.
— O que você fez com ele? — Andrea perguntou, enquanto esperávamos do lado de fora do
consultório.
Eu já havia lavado minhas mãos no banheiro masculino, assim que Camille entrara na sala.
— Ele está vivo, Andrea.
O suspiro de alívio que ela deu me deixou com raiva.
— E o sangue?
Eu a encarei, irritado, nervoso e com medo do que talvez Camille estivesse pensando de mim.
Talvez me achasse igual ao ex.
— Ele atiraria em nós dois, Andrea.
Ela meneou a cabeça negativamente.
— Não quero que acabe machucado. — Ela me olhou com a cumplicidade que nós tínhamos há
muitos anos.
Antes que eu pudesse dizer algo, a legista colocou a cabeça para fora e eu imaginei que fosse a
mim quem ela estava chamando, todavia a mulher fez um gesto para Andrea. Ela entrou e saiu uns
minutos depois com um pouco de pesar e preocupação.
— Ela quer que eu a leve para casa.
Olhei instintivamente para a porta e depois fitei Andrea, pensando o pior, é claro.
— Ela está com medo de mim?
Andrea quase sorriu, mas meneou a cabeça negativamente ficando séria novamente.
— Ela está com vergonha, Marcone. Ela mal consegue me olhar de frente. — Cruzou os braços e
para minha surpresa os olhos dela ficaram cheios de lágrimas, mas ela os enxugou antes e se
recompôs, como já era acostumada a fazer. — Ela é uma menina muito machucada, principalmente
por dentro.
Eu sabia, porra. E era justamente por isso que eu queria, precisava, aliás, cuidar dela.
— Vá esfriar a cabeça. — O celular dela tocou e enquanto trocava algumas palavras com quem
quer que estivesse na outra linha ela pareceu ainda mais preocupada.
— O que foi? — perguntei.
— A mãe dele já pagou a fiança. O advogado apresentou o porte de armas que ele tem, e Enzo
nem chegou a ir para a cela. Está no hospital em cirurgia. — Ela colocou a mão sobre o meu ombro,
tentando me confortar de alguma forma. — Ela vai precisar de um bom advogado. Vou cuidar dela,
não se preocupe.
Como se fosse possível eu deixar de me preocupar, ela estava ferida, machucada e não me queria
por perto. Não era o fim de noite que eu havia planejado. Do meu carro, vi o momento em que
Andrea a ajudou a entrar no veículo e deu partida, segui as duas a distância, embora eu soubesse que
em algum momento Andrea tivesse percebido.
Fiquei surpreso quando percebi que ela estava dirigindo para o próprio endereço e não para a
casa de Camille, vi o momento em que as duas entraram, meu coração ficou apertado e agoniado em
ver como Camille parecia triste, desolada e machucada. Perguntava-me como o filho da puta tinha
coragem de machucá-la daquele jeito, tocar em algo tão precioso para ferir e não dar carinho.
Encostei a testa no volante sem paciência alguma, e decidi ir embora, girei a chave na ignição e dei a
partida no carro, dirigi mais devagar do que normalmente faria. Minha mente não parava, o rosto
dela aparecia o tempo inteiro, ora perfeito e lindo como era, ora machucado e escoriado, a
combinação não tinha um efeito bom. Tudo que eu sentia vontade era de ir atrás do desgraçado e
machucá-lo lenta e dolorosamente, de uma forma que ele nunca esquecesse. Mas não foi o que fiz,
voltei para o meu apartamento e encontrei Bella, era uma surpresa para Camille, todavia ela não
estava aqui agora. Até mesmo o animal ficou triste quando percebeu que eu estava sozinho, de modo
carinhoso ela colocou a cabeça na minha coxa, quando me sentei no sofá e fechei os olhos.
— Está sentindo falta dela, não é? — Acariciei o pelo macio e Bella ronronou, como se me
entendesse.
E ela entendia, não conhecia um animal mais sensível que os cães.
Pensando nela, acendi o bloqueio de tela no celular para ver a foto que Camille mesmo tinha
colocado ali — era uma fotografia nossa de quando tínhamos acabado de acordar, era incrível como
ela parecia luminosa pela manhã. Detestei a sensação de inutilidade que sentia naquele momento.
Desbloqueei a tela e acessei o aplicativo de mensagens no contato de Camille. No perfil dela
também era uma foto nossa, a mesma que ela tinha colocado no meu. Revi algumas fotos dela e enviei
uma mensagem solitária, mas não chegou.
Caminhei para o meu escritório e tirei a pasta que Andrea havia me dado e que eu desistira de
olhar mais de uma vez para não invadir sua privacidade. Abri a pasta e tirei de lá o dossiê — nome,
idade, altura, endereço, rotina, tudo ali. O nome do desgraçado já estava como ex-noivo, o que me
fez voltar ao acidente dela. O mau pressentimento ligando novamente a tragédia ao desgraçado: ela
havia lembrado que estivera com ele no dia, a irmã dela o odiava, o rosto dela estava machucado,
sinal de agressão e ele desaparecerá logo em seguida.
Encarei por bastante tempo a foto dele, um monstro civilizado. A sociedade estava cheia deles.
Camille
— Você precisa parar de chorar. — Andrea disse pela terceira vez, ou quarta, eu já tinha perdido
a conta. — Não sei o que dizer quando alguém está chorando. — continuou ela baixinho, porém
exasperada. — Então não chore...
— Ele disse que vai matar Marcone, Nina e depois vai me levar para um lugar onde ninguém
nunca vai nos achar. — contei, sentindo uma angústia ainda maior repetir o que ele havia dito, depois
de ver Enzo apontando aquela arma para nós, eu tive certeza que o que ele dissera era real.
Ele teria atirado.
— Ninguém vai machucar você, não vamos deixar.
Eu a olhei, querendo acreditar nela.
— Eu trouxe essa confusão para a vida dele, se Enzo tivesse atirado... se ele estivesse baleado
agora por minha causa... eu não me perdoaria jamais.
— Mas não aconteceu, Marcone está inteiro e preocupado com você, magoado porque você não
quis vê-lo. — Ela tirou o óculos de grau e só então eu percebi que seus olhos eram azuis. — Ele acha
que você está com medo dele.
Relembrei o momento em que ele bateu em Enzo, o único sentimento que tive foi de vingança. Eu
me senti de certa forma vingada e o que me assustou foi exatamente a minha falta de compaixão.
— Eu não tenho medo dele, ele nunca me faria mal. — Enxuguei os olhos com as costas das mãos
e olhei para ela, disposta a dizer o que eu pensei por todo o caminho em que fizemos para esse
apartamento. — Eu vou terminar com ele, vou me afastar, e vou sair do país.
— E isso vai ser melhor para quem? — inquiriu ela, depois de um tempo. — Para Enzo?
— Para todos.
Ela colocou o óculos e levantou-se, foi até uma escrivaninha e trouxe de lá o notebook branco.
— Eu mostrar uma coisa a você, quero que preste muita atenção e depois você decide o que quer
fazer. — Ela ligou o aparelho e entrou em algum site desconhecido, rolou a página e depois virou a
tela de modo que eu visse o conteúdo. Eram várias fotos de mulheres, a maioria jovens. — Todas
elas estão mortas. — Ela foi rolando a página e vários rostos femininos continuaram a aparecer,
loiras, morenas, pretas, ruivas, jovens, de meia idade, senhoras. — Elas foram mortas pelo
namorado, marido, ex-marido, ex-namorado, noivo, ex-noivo.
Conforme eu ia lendo as legendas na foto ficava mais difícil respirar.
— Marta é uma estatística. Amanda é uma estatística, Soraia é uma estatística. As mulheres que
são morta viram isso, uma estatística.
— Para. — pedi, trazendo a situação para a minha realidade, quantas eu vezes eu realmente não
achei que fosse morrer e mesmo assim eu o perdoava depois, achava que ia mudar, que eu realmente
não facilitava as coisas.
— Você é uma advogada formada, Camille. Sabe os direitos que tem, faz parte de uma minoria,
você tem direitos e leis que ti protegem. Estudou isso, não estudou?
— Sim, eu estudei.
— Então está na hora de você usar o que sabe para resolver os seus problemas, se Marcone não
tivesse aparecido ou se você estivesse realmente sozinha, qual seria o final da história?
Eu estaria morta ou em algum lugar com ele. Enzo me mataria, eu vi com meus próprios o olhos o
prazer que ele estava sentindo quando apertou meu pescoço, foi um prazer perverso, tal qual ele
demonstrava todas as vezes em que me bateu.
— Não vai mudar nada se você for para outro país ou outro planeta, se ele for louco como eu
imagino, ele irá atrás de você. — Ela suspirou. — Não machuque o meu amigo, nós nos tornaríamos
inimigas se você fizesse isso.
— Você gosta dele? — perguntei, porque eu desconfiava desde o início. E isso não saia hora
nenhuma da minha cabeça, os dois pareciam ser íntimos demais e isso me incomodava de várias
formas.
Ela me olhou, primeiro sem entender e depois com um pouco de humor.
— Claro que eu gosto, que tipo de pergunta é essa?
— Você entendeu a pergunta.
Ela ficou mais séria, e arrumou o lençol que já estava impecável.
— Eu estive com Marcone em todos os momentos marcantes da vida dele, desde os mais felizes
aos mais violentos, nós protegemos um ao outro, nós amamos um ao outro. — Ela olhou para a porta
do quarto, talvez relembrando algo. — Eu o vi sofrer por anos por algo que não foi culpa dele, e ver
o que ele está construindo com você agora é surreal, eu duvidei que isso fosse acontecer um dia.
Engoli em seco, ela estava sendo realmente sincera.
— Então não estrague o que vocês têm. — Dessa vez ela me olhou. — Não jogue fora e não o
machuque.
— Mas é justamente por isso que quero deixá-lo para não machucá-lo. — Eu não conseguia
entender porque as coisas precisavam ser tão difíceis para mim. — Enzo sabe quem Nina é, sabe
onde Marcone mora, nos seguiu por dias. Podia ter nos matado ou mandado alguém nos matar.
O rosto dela endureceu, e ela ficou com o mesmo ar sombrio que as vezes eu via em Marcone.
— Quando minha melhor amiga morreu, destroçada dentro do carro do homem que ela amava, eu
entendi que as coisas simplesmente acontecem. — Ela sussurrou com calma. — Nós não temos
controle, a vida força as situações e nós temos que superá-las. — Olhou diretamente nos meus olhos
e um sorriso mórbido e repentino surgiu. — Existe uma coisa chamada legítima defesa, ela, às vezes,
é mais justa que as leis.
44
Camille
Não consegui dormir, minha conversa com Andrea me deixou ainda mais dividida entre o que eu
achava que era certo e o que eu queria, quando acordei estava péssima. As marcas dos tapas estavam
piores, e as dores também, tomei um comprimido para dor logo após o café da manhã simples e
maluco que ela ofereceu, Andrea parecia ser viciada em doces, algo que se enchia e ficava
arrependida depois. Ela me deu um café extremamente doce e uma fatia de torta de coco que
claramente havia comprado pronta em alguma padaria aqui de perto.
Durante o percurso até meu prédio, ela atendeu o celular mais de uma vez. Eu sabia que era
relacionado a mim, porque de vez em quando ela olhava na minha direção.
— Enzo pagou ao vigia para deixá-lo entrar e dar um passeio, enquanto ele estava lá dentro. —
Ela deu um suspiro longo como se estivesse sem paciência. — A mãe dele pagou a fiança, isso quer
dizer que ele não está preso.
Nem ficaria nunca, Heloísa não deixaria isso acontecer.
— Eu preciso ir para a delegacia, Camille. — explicou ela. — Se precisar de qualquer coisa,
ligue para mim.
Quando entrei em casa não encontrei ninguém na sala ou no hall, mas me assustei ao ver Heloísa
no meu quarto.
— O que você faz aqui? — indaguei, tentando entender como ela tinha entrado.
— O que você fez? — ela soltou com raiva, exigindo como no passado que eu desse explicações
sobre atitudes do filho dela. — Enzo está ferido Camille, passou por uma cirurgia na mão, mas os
médicos não garantem que ele tenha o movimento dela novamente. O que você fez, garota?
Era como se todos os hematomas no meu rosto não existissem para ela, que as minhas dores não
fossem válidas, que eu não merecesse atenção. O filho dela sim, eu demorei muito a vê-lo como um
agressor doente, mas era isso que ele era, e ela se igualava por cobrir todas as pequenas e grandes
falhas dele.
— Você deveria estar do meu lado. — sussurrei já sem forças, eu sabia de cor e salteado todas as
acusações que ela faria, a lavagem cerebral que viria para que eu me sentisse errada. Era o mesmo
maldito discurso do filho, quem a via nas rodas da alta sociedade não imaginava o ser humano
mesquinho que ela era.
— Vá embora, Heloísa. — sibilei, querendo apenas tomar um banho e dormir mais um pouco,
meu couro cabelo ainda parecia queimar por causa dos puxões de cabelo, minhas costas latejavam
por causa da minha queda, meu pescoço estava dolorido e eu estava exausta, parecia que todos os
anos, todos os meses, tudo tivesse resolvido se amontoar sobre mim no intervalo da noite anterior e
dessa manhã, e pesava muito. Cada decisão ruim, cada conselho que não escutei, cada perdão que
concedi. Tudo pesava, machucava e me tirava a esperança de que algum dia fosse acabar.
— Você foi a pior desgraça que aconteceu na vida do meu filho.
Ela já havia me dito isso antes, em um dos jantares que, às vezes, ela promovia, porque mesmo
depois de apanhar Heloísa queria que eu fosse a noiva perfeita, e tão sobrecarregada como estava na
época, comecei a chorar durante o jantar e todos viram, todos questionaram e claro que não fui eu a
responder o motivo.
— Retire as acusações, retire tudo, pare o processo ou...
— Ou o quê? — Cruzei os braços, com raiva. — Você vai me matar? Vai precisar entrar na fila
por que eu seu filho já prometeu fazer isso. Vai me espancar? Olhe a minha cara, olhe o que ele fez
comigo. Você não vê?
— O que você esperava que ele fizesse depois de sair desfilando com outro por aí?
Recuei chocada, ela era um monstro como o filho. A fruta não caia muito longe do pé, não é?
— Ele tem o mesmo sangue ruim que você.
— Sim, e você tem o mesmo sangue ruim que seus pais. Somos todos iguaizinhos, Camille. — Ela
olhou ao redor, e eu sabia que ela iria me ferir um pouco mais. — Que tipo de mãe não percebe o
estado mental fragilizado que a filha está? — Eu sabia que ela se referia a Joice. — E que tipo de pai
vende a própria filha? Você não passa de um negócio, Camille. Seu pai está na merda há muito
tempo, tudo isso é status por que ele não admite e nem aceita a falência. Você seria o melhor negócio
dele, ou você acha que ele não sabe exatamente quem Enzo é? Eu fui você um dia, o pai de Enzo fazia
o mesmo comigo. E seu pai e sua mãe sabiam, e faziam vista grossa, do mesmo jeito que fizeram com
você.
O gosto amargo que senti na boca, não era pior do que o estado esfolado que eu estava por dentro.
— O que seu pai fez com o dinheiro do seguro de vida de Liz?
A essa hora eu não conseguia mais enxergá-la, nem conseguia falar mais nada. O choro estava me
sufocando por que eu não queria permitir que ele saísse, eu não queria chorar, eu não queria ser um
negócio, no momento eu não queria nem ser eu.
— Talvez não seja eu ou Enzo a matá-la, há um seguro no seu nome também, não há? — Ela fez
menção de se aproximar, mas eu me afastei e peguei o primeiro objeto pesado que vi, um vaso de
porcelana branco, a mulher manteve a frieza de sempre. — Retire a queixa, desfaça a merda que fez
ou eu não vou fazer nada quando Enzo decidir machucar quem você gosta, porque é o que ele vai
fazer assim que sair do hospital. — Ela caminhou para a porta, mas me olhou antes de sair. — Pode
ser difícil acreditar, mas no fundo não quero seu mal. Nunca quis.
Ainda fiquei um tempo olhando para a porta, sem saber realmente quem eram as pessoas que
viviam comigo. Eu não fazia ideia, mas muito do que ela dizia fazia sentido. Nunca recebi amor dos
meus pais, nunca me senti realmente desejada por eles. Ouvi uma batida na porta e segurei com mais
força o objeto pesado, sabendo que podia ser ela novamente, mas não era.
— Ah, amiga, eu sinto muito. — Era Aline, com minha bolsa que eu havia deixado no prédio
ontem. Ela me abraçou com carinho, e embora tivesse causado um pouco de dor, me senti
reconfortada. — Eu fiquei preocupada quando Flávio me ligou dizendo que a polícia precisaria ir até
o prédio.
— É o mesmo pesadelo outra vez. — Sentei na cama e ela fez o mesmo, retirando o vaso da
minha mão..
— Marcone já sabe?
— Sim, eu não sei como lidar com ele agora. Eu sinto que estou sendo um estorvo, um problema.
Estou envergonhada. — Abracei os meus joelhos, mas desisti quando doeu muito e me deitei de lado.
— O que ele disse?
— Não conversamos ainda depois, não tenho coragem de encará-lo. É constrangedor, Aline. Você
não imagina como essa situação é constrangedora. — Olhei para a porta e depois para ela. — Como
entrou?
— Heloísa estava saindo, Naiá está no supermercado com Miguel e seus pais estão em Parati.
Sandra me disse quando eu perguntei se você tinha aparecido.
Sandra era uma das funcionárias mais antigas do meu pai, além de Miguel e Naiá.
— Se essa história vazar, a imprensa não vai te deixar em paz.
Aline ainda ficou um pouco comigo, mas foi embora um tempo depois. Tomei outro banho, vesti
uma roupa folgada e tirei o celular da bolsa para colocá-lo para carregar. Enquanto isso saí do meu
quarto e fui até a suite dos meus pais, eu não sabia exatamente o que estava procurando ou por que,
mas as palavras de Heloísa não saiam da minha cabeça. Nunca imaginei que o pai de Enzo fosse
agressivo, o homem parecia mais uma marionete nas mãos dela, mas também nunca sequer pensei que
meus pais fossem ainda piores do que imaginei. O envelope com a apólice de seguro de Liz não
estava mais onde eu tinha encontrado da outra vez, abri algumas gavetas que eu sabia que meu pai
usava, mas não havia nada. Nada que realmente me desse algo para pensar. Minha cabeça começou a
latejar por algo pior que a dor física, o medo começou a ser mais um dos motivos.
— Talvez não seja eu ou Enzo a matá-la, há um seguro no seu nome também, não há?
Mesmo que eu não quisesse fazer associações, mesmo que eu não quisesse ficar pensando no que
ela falara, essa frase não parava de voltar a minha mente, irritante como o som de sinos, repetitiva e
enfadonha. Olhei o quarto em volta completamente frio, nunca um lugar pareceu tão frio, tão pobre de
sentimento, tão sem vida. Era completamente diferente da avalanche de sentimentos que eu
vivenciava quando saía do meu mundo e entrava no mundo de Marcone, era tão diferente. Ele estava
cercado de pessoas que o amavam: a mãe, a irmã, Andrea, Bella havia muito mais calor, muito mais
vida. Eu não conseguiria me acostumar sem isso outra vez, todavia seria egoísta em permanecer na
vida dele, levando problemas, angustias que eu tolerei e engoli por muito tempo. O mais certo era ir
embora, para longe, sem ninguém saber, nem mesmo Naiá.
Ninguém.
Voltei para meu quarto e peguei a mala maior, coloquei as primeiras roupas que encontrei pela
frente, sem nem ao menos saber qual seria meu destino. Liguei o celular e algumas notificações
começaram a chegar, eu sabia que fraquejaria caso fosse lê-las, sabia que havia mensagens dele ali.
O som da notificação era diferente, eu sabia quando era ele. Cheguei a parar de colocar as roupas
para olhar o celular, quase o peguei, mas respirei fundo e continuei a encher a mala. Chequei minha
bolsa com documentos e conferi se o passaporte estava lá, quando vi que estava ok, abri o notebook
e entrei no site para comprar as passagens. Eu tinha algum dinheiro no banco, nunca precisei gastar
muito, teria como me manter por alguns meses, eu era fluente em mais de um idioma, então não seria
difícil sobreviver em qualquer país.
Optei por uma passagem noturna, por volta das oito da noite. Eu só precisava sair sem ser vista,
sem que ninguém fizesse perguntas. Passei as mãos no rosto reconhecendo a loucura que eu estava
preste a fazer.
Voltei a pensar nos meus motivos, nas ameaças, em quem eu não queria que saísse machucado ou
ferido, saí da cobertura e fui até a recepção do prédio, Sandra estava lá com uma mulher que eu
nunca tinha visto, mas que também estava uniformizada.
— Cami. — Ela sorriu, mas ficou séria ao olhar meu rosto. — O que houve com seu rosto?
Eu estava acostumada a mentir, na verdade era a primeira vez que eu não cobria as marcas para
interagir com outras pessoas. Fiquei sem saber o que responder, mentir eu não iria, nunca mais.
— Eu preciso da chave de uma apartamento desocupado. — Ignorei a pergunta e estendi a mão
para que ela andasse rápido.
— Eu preciso olhar no sistema... — ela gaguejou sem saber se continuava a me olhar ou se fazia o
que tinha de fazer.
Depois de alguns minutos, Sandra me deu a chave do apartamento 103 no décimo andar.
— Eu devolvo logo.
Sair do prédio foi mais fácil do que imaginei, menti para Naiá dizendo que iria passar uns dias na
casa de Marcone, ela não estranhou, também não contei o que aconteceu. Como no passado usei a
maquiagem para camuflar a agressão. Enquanto o táxi se afastava do prédio, eu comecei a sentir um
pouco de falta de ar e vontade de chorar, mas não fiz, engoli o choro como já tinha feito várias vezes
e fechei os olhos até que chegássemos ao aeroporto. Ao contrário do que eu queria, comprei uma
passagem para São Paulo, lá conseguiria ver como estavam a minhas contas e decidir o que faria a
seguir. Cheguei com meia hora de antecedência, acabei fazendo o check’in pelo celular no caminho
para o aeroporto.
Sentei num dos bancos e coloquei a bolsa ao meu lado, eu nunca conseguiria sair do prédio com
uma mala daquele tamanho sem que ninguém desconfiasse. Na bolsa tinha o básico, em São Paulo eu
teria tempo de comprar algumas roupas.
O celular na minha mão vibrou mais uma vez e eu fechei os olhos, a cada minuto que se passava o
pânico crescia. Os motivos para ir e para ficar criavam um conflito tenebroso dentro de mim e eu
comecei a sofrer mesmo antes do avião ter decolado, por que assim que isso acontecesse não teria
volta. Eu teria que recomeçar em outro lugar, longe de tudo. Engoli em seco com a possibilidade de
que talvez nunca mais fosse ver Marcone.
Ouvi a primeira chamada do voo e meu coração disparou, algumas pessoas começaram a levantar,
mas eu parecia estar presa no banco. Meu corpo começou a tremer como se estivesse com muito frio.
A segunda chamada ecoou e eu segurei a bolsa, o coração acelerando outra vez. Eu não queria ir.
Não queria.
Ouvi a terceira chamada e a sala estava praticamente vazia, deixei a mochila cair no chão e o
baque veio junto com o som de alguns passos. O banco ao meu lado foi ocupado, mas fui incapaz de
ver através das lágrimas que se formaram, mas pelo cheiro, pela reação automática do meu corpo. Eu
sabia que era ele.
— Eu sabia que você não iria.
Enxuguei os olhos, inconscientemente, porque não tinha percebido que haviam lágrimas. Pude
enxergar o rosto dele, e não havia desprezo ou raiva como imaginei, apenas carinho, preocupação e
cuidado.
— Eu não queria ir... — admiti, sem ter muito o que dizer. — Mas eu também não quero que você
se machuque por minha causa.
Marcone sorriu e se voltou na minha direção, segurou meu rosto e encostou a testa na minha, e eu
me perguntei como ficaria longe de tudo eu ele representava para mim.
— É exatamente por isso que você não pode ir.
— Ele disse coisas horríveis... — Envolvi o pescoço dele, o alívio misturando-se ao medo.
Medo de dar tudo errado no final.
— Nós vamos conversar, agora não chore mais. — sussurrou ele com carinho, afastou-se e tocou
o meu rosto, o lado machucado, mas foi um toque tão suave que não senti dor, só vontade que ele não
parasse de me tocar. — Você comeu alguma coisa?
Lembrei-me que não, passei a tarde inteira numa briga interior tão grande que não tinha comido
nada além do café da manhã com Andrea. Balancei a cabeça que não e ele olhou ao redor.
— Vou te tirar daqui.
Marcone beijou levemente a minha testa e pegou a minha mochila, antes de saírmos dali,
passamos na agência de viajem para estornar a passagem.
45
Marcone
Coloquei a mochila de Camille no banco de trás do carro e abri a porta do passageiro para que
ela entrasse, meu corpo ainda reagindo a todo tipo de sentimento controverso que essa menina
despertava.
Fui do desespero ao alívio, enquanto assistia de longe se ela entraria ou não naquele voo. Mas
Camille escolheu ficar. Eu teria implorado se fosse o caso, teria pedido milhares e milhares de
vezes, mas ela tinha decidido ficar por vontade própria, e esse era um prêmio imenso para quem já
tinha perdido tudo no passado. Sentei no banco do motorista e me virei para ela, puxando-a pelo
braço para perto, no instante seguinte ela estava no meu colo, abraçando meu pescoço e me dando
selinhos curtos com os olhos abertos, com se quisesse ter certeza de que era eu mesmo.
— Como você sabia?
Beijei sua testa e passei a acariciar o cabelo farto caído pelos seus ombros.
— Andrea me disse o que você estava pensando em fazer.
Ela encostou a testa no meu ombro como se não quisesse me encarar, aproveitei para beijar sua
cabeça.
— Você não é um problema, não é um estorvo. — As palavras foram saindo acompanhadas de
carinho e alguns beijos. — Você é importante, e está aqui. — Coloquei a palma da sua mão no meu
peito.
Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto um pouco inchado, perguntei-me quantas vezes ela não
devia ter chorado pelos motivos errados, imaginava ainda o tipo de tortura pscicológica que ela já
sofrera.
— Não vou me machucar, não por sua causa — salientei, porque nada era culpa dela e Camille
precisava entender isso. Beijei mais uma vez seus lábios, com cuidado, ainda estavam inchados.
Andrea me falou sobre o laudo médico, sobre como o filho da puta quase quebrou o braço dela. —
Vamos sair daqui e conversar em casa.
Camille voltou para o banco de passageiro e eu dei partida no carro. Na noite anterior tive tempo
de ver todas as notícias sobre a família de Camille, além das informações de Andrea. Pelas fotos era
completamente visível a apatia e falta de felicidade da garota, nas fotos ela não parecia em nada com
a minha Camille, do riso solto, carinhosa e maliciosa. Parecida rígida e frequentemente preocupada,
até mesmo o sorriso era forçado. Perguntava-me como os pais dela não enxergaram isso. Olhei em
sua direção, ela espiava pela janela os carros que passavam por nós.
— Quem foi a primeira pessoa que você viu após o acidente? — perguntei e ela me olhou
confusa.
— Ninguém, eu fui transferida e meus pais apareceram no dia seguinte.
Assenti e meus dedos apertaram involuntariamente o volante. Ela estava ferida, assustada, sem
lembrar de nada e sozinha. Eu tinha minhas diferenças com meu pai, mas vendo a falta de prioridade
que Camille tinha na vida de Joice e Augusto, minha relação com meu pai me parecia muito saudável.
— Eu vou entrar primeiro. — disse eu, já colocando a chave na porta do meu apartamento. —
Bella pode te derrubar se você entrar agora.
— Ela está aqui? — Sorriu.
— Sim, ela está. — Abri a porta e fiz um gesto para que Bella ficasse parada, ela sentou,
farejando no ar que eu não estava sozinho. O rabo grosso dizia claramente que sabia quem estava
comigo, ele balançava furiosamente. — Vem. — Afastei-me para que Camille passasse e tranquei a
porta atrás de mim.
— Oi, Bella. — Cami disse e abaixou-se devagar para acariciar o pelo do cão animado. Deixei
as duas ali e fui até meu quarto colocar a sua mochila.
Meu celular tocou e eu atendi quando vi que era Nina.
— Encontrou ela? — perguntou.
— Sim, encontrei. Ela está aqui.
— Acho que você precisa dar uma olhada no que está passando na TV. — A voz de Nina foi
preocupada. — Está nos jornais o que aconteceu, a foto de vocês está circulando na internet.
Olhei de relance para fora do quarto e Camille permanecia com Bella, as duas completamente
entrosadas era algo que eu nunca imaginei, principalmente pelo tamanho do animal, era imenso.
— Fique tranquila, Nina. — tranquilizei-a, era inauguração do restaurante da mãe de Ben, e ela
estava lá por isso. — Está tudo bem.
Finalizei a chamada e disquei para Andrea, ela atendeu no primeiro toque.
— Foi você, não foi?
O suspiro audível do outro lado da linha repondia minha pergunta.
— Julia precisava de um furo de reportagem e você de uma boa história. — Ela hesitou por um
momento. — Você leu as informações sobre ela?
— Li.
— Então você sabe, esse louco é de uma das famílias mais ricas do país. Tenho certeza que não
vão hesitar em comprar a imprensa toda e distorcer o que aconteceu. — Fez uma pausa. — Você vai
ser o policial violento e ciumento e ele o ex pacífico e ferido que estava no lugar errado e na hora
errada.
Andrea tinha razão.
— Ela está com você? — perguntou, ante o meu silêncio.
— Sim, vou tentar fazê-la comer alguma coisa.
— Ok.
— Obrigado, Andrea.
— Não há de quê, federal.
Encerrei a ligação e coloquei o celular no bolso do jeans, Camille entrou no quarto seguida por
Bella. Primeiro ela olhou o quarto ao redor, depois veio até mim e me abraçou.
— Acho eu estou com fome. — admitiu ela e eu achei graça.
— Vou providenciar algo. — Beijei sua cabeça e saí do quarto, deixando-a sozinha.
Pedi uma pizza no delivery e busquei na internet pelo que Nina dissera, até mesmo a foto que nós
dois tínhamos tirado no shopping estava nos sites. Camille era citada como a herdeira Alencar, a
maioria das notas, na verdade, não passava de sensacionalismo barato. Deixei o aparelho de lado e
voltei ao meu quarto, segui o barulho do chuveiro e encontrei-a sob a ducha. De onde estava vi
algumas marcas em suas costas, no braço e no pescoço. Todas saindo do tom vermelho para o roxo.
Fechei os olhos com força. Não entendia como alguns homens faziam isso e nem porque algumas
mulheres aceitavam.
— Você pode lavar meus cabelos?
Abri os olhos, percebendo que ela estava me encarando. Sem responder, eu me despi e entrei no
boxe, segurei o xampu que estava nas suas mãos e derramei o líquido nas minhas.
— Ainda está doendo. — ela sussurrou e entrou embaixo do chuveiro para molhar os fios longos,
percebi a careta de dor que estava fazendo.
— Então me diga como fazer para não machucar mais. — Esperei que ela desligasse o jato de
água e espalhei o líquido transparente pelo comprimento de todo o cabelo, vendo a espuma aparecer,
tive cuidado quando cheguei ao couro cabeludo, espalhei devagar o xampu. — Está doendo?
— Não. — Ela sorriu de olhos fechados, dando-me o controle absoluto.
Liguei novamente a água para tirar toda a espuma e passei a lavar o corpo, cada parte dele. As
costas estavam formando uma nódoa roxa imensa, o braço também, lavei-a como se estivesse
tocando um diamante muito delicado e ela era, era assim que eu a via.
Depois do banho, entreguei um roupão meu a ela e vesti um moletom para atender o interfone,
autorizei a subida do delivery e coloquei a pizza sobre o balcão da cozinha, peguei dois pratos e dois
copos. Minha mente trabalhando em como ela reagiria a todo o circo que estava acontecendo na
internet. Andrea tinha razão, a imprensa se vendia facilmente. Ainda assim era exposição demais.
Ouvi-a sentar no banco ao meu lado e eu a olhei. Ela tinha vestido uma de minhas blusas e penteado
os cabelos para trás. A falta de maquiagem no rosto me deu uma ideia de outro hematoma no lado
esquerdo do rosto, isso me fez lembrar do que Camille dissera no aeroporto.
— Está se sentindo melhor agora? — perguntei, fui até a geladeira e peguei a cuba de gelos.
Coloquei algumas pedras nos dois copos e devolvi para o congelador.
— Muito melhor. — Ela segurou uma fatia da pizza, sem escolher o sabor e mordeu, parecendo
realmente faminta.
Fiquei em dúvida sobre conversarmos tudo ou deixá-lá descansar, eu realmente não queria vê-lá
chorar hoje outra vez.
Sentei ao seu lado e me servi também. Além de olhar tudo o que consegui a respeito da família do
ex-noivo dela, eu retornei ao hospital em que Camille tinha sido internada. E para minha surpresa
quem apareceu nas filmagens logo após eu ter saído de lá foi o mesmo policial responsável pelo
resgate dela e que, para mim, tinha feito um péssimo trabalho. Afinal, eles não investigaram como
deveriam. Mas o pior de tudo foi ver quem apareceu um tempinho depois, o pai dela.
— Heloísa foi a minha casa hoje. — Camille tomou um pouco do refrigerante e me olhou. — Ela
disse coisas horríveis e eu estou com medo, não sei no que acreditar, não sei porque as pessoas são
assim...
Infelizmente o que ela via era ainda pouco perto do que algumas pessoas eram capazes de fazer,
eu lidava com isso há anos.
— O que ela disse?
— Ela quer que eu retire as acusações...
— De jeito nenhum. — retruquei, irritado.
— Me escuta. — Ela fez uma pausa e eu senti o medo que ela tinha dessa família. Isso só me fez
odiá-los um pouco mais. — Enzo sabe quem você é, sabe quem Nina é, ele sabe. E ele disse que ia...
— Fale. — incitei, apesar de já imaginar o que o idiota havia dito.
— Ele disse que ia matar você e depois me levar para um lugar onde ninguém nunca mais me
encontraria.
Apesar do esforço para disfarçar, a menina estava apavorada.
— Por isso eu queria ir embora. — Desviou os olhos assim que a primeira lágrima apareceu, ela
agia como se fosse errado chorar, tanto é que raramente fazia algum barulho durante o choro. — Ele
pode machucar você, ele nunca vai ficar preso, não vai... — Camille ficou agitada.
Ele só estava cavando a própria cova. Não disse isso a ela, é claro, mas era exatamente isso que
o imbecil estava fazendo. Saí do meu banco e fiquei de frente para ela, segurei o queixo redondo
para que ela me olhasse.
— Você está sofrendo por algo que não aconteceu. Eu estou aqui.
Ela meneou a cabeça numa negativa e segurou o meu braço, como se quisesse que eu realmente
prestasse atenção.
— Você não conhece ele. Enzo sente prazer em machucar, eu vi os olhos dele, vi o prazer que ele
estava sentindo, enquanto eu me debatia sem respirar. Ele é doente...
Não disse nada, apenas abracei o corpo dela. Estava tremendo, talvez por causa das lembranças,
então decidi que o melhor era deixá-la descansar havia muito estresse pela frente.
Camille
Abri os olhos devagar e me virei de bruços sem querer acordar ainda, senti a mão de Marcone no
meu cabelo. Pelo cheiro que estava em todo o quarto, ele já tinha tomado banho.
— Você precisa levantar.
Ouvi-o dizer e continuei fingindo que ainda estava dormindo. Ele me beijou algumas vezes nas
costas e deu um suspiro, provavelmente já estava sem paciência. Marcone era extremamente chato
pelo manhã.
— Quer acordar, amor? — soou suave e eu me virei para olhá-lo.
— Aonde nós vamos? — perguntei, vendo como ele estava vestido, jeans e camisa preta.
— Flávio quer falar comigo e com você, um dos advogados dele vai representá-la durante o
processo.
Assenti, sem querer realmente sair da cama, estava dolorida e cansada. Sentei e abracei os meus
joelhos, descansei a cabeça sobre eles.
— Você não vai trabalhar?
— Meu expediente já começou. — Ele sentou perto de mim e tocou minha bochecha com as costas
dos dedos. — Está com muita dor?
— O remédio amenizou. — Olhei para a minha mochila e depois para o closet dele, algumas
roupas minhas já estavam lá. A maioria era vestidos que ele gostava que eu vestisse e roupas íntimas
que acabava esquecendo quando dormia aqui. — Eu posso ficar uns dias aqui? — Segurei a mão que
me acariciava, mantendo-a no meu rosto. — Só alguns dias.
Eu queria tempo para ficar tranquila e em casa não conseguiria, não depois das coisas horríveis
que Heloísa falara sobre os meus pais.
46
Marcone
— O que acontece agora? — Flávio perguntou, quando eu caminhei com Camille para fora da
casa.
— Ela vai entrar no programa de proteção a testemunha. — Abri a porta para que Camille
entrasse no carro e me virei para ele. — Se for pega vai ser morta, sabe demais.
— Não vou deixá-la sozinha agora.
— Eu imaginei que não. — Dei dois tapinhas no seu ombro e entrei no carro.
A volta para o Rio de Janeiro foi mais rápida de certa forma, e antes de voltar para o
apartamento, dirigi para a delegacia. Deixei Camille dentro do carro e entrei no prédio imponente,
fui imediatamante para a sala de Andrea.
Coloquei o pen drive sobre a mesa e ela me encarou.
— Temos uma testemunha.
— Bruna?
Assenti e os olhos dela brilharam animados. Eu não podia negar, havia uma adrenalina
inexplicável no nosso trabalho, um sentimento que só quem sentia entendia.
Levei o pen drive até a sala de inteligência e fiz uma cópia dos arquivos para que fosse
decodificados.
— Eu preciso que você grampei essas linhas. — Tirei o papel do bolso do jeans e entreguei a
Ben. — Quanto mais rápido melhor.
Ele assentiu e voltou a trabalhar no pen drive, quanto mais rápido esse caso fosse encerrado, mais
rápido eu poderia sair da polícia, algo que eu devia ter feito há muito tempo. Não demorei muito
mais tempo ali, voltei para o apartamento com Camille e assim que entramos pela porta, notei Joice
sentada no sofá da sala ao lado de Nina, ambas caladas. O ambiente estava tão tenso que poderia ser
tocado.
Procurei por preocupação no rosto da mãe de Camille, mas o que vi foi um tipo incomum de
desapontamento, quase decepção.
— Veio por causa das notícias? — Camille perguntou assim que fechei a porta, os olhos tão
inexpressivos que me perguntei se eram realmente as mesmas íris verdes que me encaravam com
tanta intensidade.
— Você está expondo todos nós — a mulher foi capaz dizer, sem vergonha alguma. — Seu pai e
eu não temos mais paz desde que tudo isso explodiu na mídia, Camille, pense na repercução negativa
que isso trará para os negócios.
Houve um minuto de silêncio sepulcral, tamanho o choque que senti.
Camille
Heloísa era uma das piores pessoas que eu conhecia, mas algo que sempre admirei nela era como
a mulher se tornava uma leoa quando se tratava do filho. Não importava se ele estivesse errado, não
importava qual fosse a situação, ela fazia o que tivesse ao seu alcance para resolver. Eu sabia disso
porque convivi anos com os dois, talvez fosse esse o motivo dele ser o monstro que era, as
sucessivas vezes em que ela passara a mão pela sua cabeça, todavia Heloísa o amava. Isso eu não
podia duvidar, sequer colocar em questão.
— Vocês podem nos dar licença? — pedi, minha voz saiu tão indiferente que me perguntei se era
assim mesmo que me sentia por dentro. A resposta era não, eu estava um pouco mais destruída.
Observei o rosto de Marcone se contrair, provavelmente furioso pelos motivos dela ali, mas eu
precisava lutar minhas próprias guerras. Um dos motivos que me fizera aceitar tanto de tantas
pessoas era a pouca habilidade que tinha de lutar por mim mesma, de buscar soluções individuais.
— É bom que Marcone fique. — Ouvi-a dizer e olhei para ela com raiva, nunca seus modos
extremamente educados e formais tinham me incomodado tanto, tudo nela estava me incomodando,
até mesmo a voz. Até mesmo o fato de Joice ser minha mãe.
Olhei significativamente para Nina e Marcone e após um minuto de hesitação eles saíram.
— Camille, seu pai está louco. — Ela se levantou, deixando a bolsa sobre o sofá e torcendo as
mãos, preocupada demais com seu mundinho para se dar ao trabalho de simplesmente me perguntar
se eu estava bem. — Estamos a um passo de perder um acordo milionário por conta desse escândalo.
— Ela se aproximou com as mãos estendidas.
Eu quase acreditei na sua farsa após Liz morrer. Construir histórias juntas, senti vontade de rir.
Joice continuava igualzinha, preocupada com os próprios interesses. Com o dinheiro e o status, as
futilidades que estavam acima de tudo, inclusive da família.
— Não encosta em mim. — Recuei, cruzando os braços. — Eu me pergunto quem você e meu pai
são de verdade. — Era realmente algo que eu tinha curiosidade. — Você sempre soube, não é? —
referi-me as agressões de Enzo.
Ela me encarou surpresa, e deu um suspiro longo.
— Eu só quis evitar um escândalo. — admitiu e eu senti meus olhos marejarem, dei-lhe as costas
para que não visse o quanto tinha me magoado.
— O status de família perfeita sempre foi mais importante, não é? — consegui dizer ainda sem me
virar. — Ostentar a falta de problemas familiares quando sempre tivemos vários deles, mãe.
— Você fala como se eu e seu fôssemos monstros. — ela explodiu, erguendo a voz. — Sempre
tiveram tudo, escola, roupas, casa, carro. O que mais vocês queriam?
Irritei-me por ela usar o plural, como se Liz ainda estivesse viva, mas ela não estava. Não estava
mais.
— Amor? Afeto? Férias normais como todas as crianças têm? — Virei-me para encará-la. Mas,
Joice não se moveu.
Ela abriu a boca, mas não tinha o que argumentar. O que diria? Nada, por que não havia
explicação mais clara que simples negligência.
— Nós precisamos que retire as acusações, Camille. — Ela ainda teve coragem de dizer. — Nós
podemos resolver tudo de outra forma, sem mídia, sem exposição.
— Porque, mãe? O que vocês ganham com isso?
Vi a nuvem da vergonha atravessar seu rosto, por pouco tempo, mas eu vi.
— Seu pai está prestes a fechar um acordo... a empresa é extremamente antiquada e com toda essa
movimentação na internet com o nosso sobrenome, eles resolveram adiar.
Dinheiro.
Status.
Posição social.
Essas coisas sempre viriam antes de tudo.
— É melhor você ir agora, Joice. — A voz de Marcone foi contida, embora a severidade em seu
rosto mostrasse exatamente qual era seu estado de espirito. Ele tinha escutado tudo.
Não parei para ver a reação dela, entrei no quarto dele e bati a porta, trancando-me do lado de
dentro.
Não chorei, a sensação era pior. As lágrimas trariam alívio, eu estava longe de sentir isso.
47
Marcone
Abri a porta, quando ouvi ser destrancada e entrei no quarto. Não vi Camille na cama, passei
pela porta aberta da sacada, se eu não tivesse certeza que ela estava ali não a teria visto,
considerando a forma como estava sentada encolhida.
— Eu sinto muito... por tudo. — Sentei ao seu lado e coloquei uma mecha de cabelo atrás de sua
orelha, um pretexto para ver seu rosto.
Camille não estava chorando, e eu até gostaria que ela o fizesse, que colocasse para fora. As
dúvidas que eu tinha sobre os pais dela não existiam mais, eram dois seres desprezíveis. E se era o
dinheiro que eles tinham como bem maior, eram exatamente isso que eu faria de tudo para que eles
perdessem.
Olhei para ela, parecendo tão frágil, machucada demais.
Por dentro e por fora.
Na carne e no coração.
Aos poucos fui me aproximando, e quando cheguei perto ela veio se encolher no meu colo, mas
não chorou, ficou em silêncio.
— Não há problema em chorar, sabia? — Encostei a boca na sua testa, segurando-a. Querendo
mantê-la sempre assim, protegida e longe de tudo que lhe fizesse mal. — Desabafar, colocar para
fora.
— Não consigo. — respondeu após um tempo, agarrada a mim. — Eu não consigo sentir nada. —
Ela ergueu os olhos e o que vi, foi diferente de tudo que já tinha visto nela. — É errado odiá-los?
Todos eles?
Ódio era um sentimento forte, e às vezes destrutivo demais.
— Ela nem ao menos perguntou como eu estava. — sussurrou, a dor foi real.
Senti-me incomodado, inútil por não ter como resolver tudo da forma e na velocidade que eu
queria.
— Eu vou cuidar de você. — prometi, era o que eu iria fazer. Cuidaria dela com minha própria
vida. — E vou ti ensinar a cuidar de si mesma. — Camille precisava aprender.
— Sempre? — inquiriu, desconfiada. Sem acreditar em mim.
— Enquanto eu estiver vivo.
Ela relaxou e descansou a cabeça no meu peito, parecendo exausta demais e devia estar, todavia
não chorou e nem dormiu, só não quis que eu me afastasse. Não me afastei e enquanto estávamos
envolvidos no silêncio, eu passei a pensar em tudo que eu precisaria fazer daqui para frente.
Eram muitas coisas a serem resolvidas e pouco tempo, esse nunca me pareceu tão escasso.
Enzo, os pais dela, a conclusão da investigação.
Queria tirá-lá do Rio de Janeiro o mais rápido que pudesse, dar a ela o que queria. Viver na
fazenda, saber o que era ter uma família de verdade, viver os próprios sonhos. Ser amada, acho que
ela nunca tinha se sentido assim. Amada. Deixei beijos suaves em sua cabeça, querendo ser
suficiente para ela.
Fazê-la feliz. Era isso que eu queria.
Cobri o corpo de Camille com o edredom e desliguei a luz do abajur antes de deixar o quarto.
Nina estava sentada no tapete da sala, em meio a cadernos e folhas de ofício. Sentei ao seu lado no
tapete e ela deixou o que estava fazendo de lado e me deu um beijo na bochecha.
— O que você vai fazer? — perguntou, encostando-se no encosto do sofá como eu fazia. — Não
quero que se machuque.
— Não vai acontecer nada comigo.
Já tinha me livrado de tanta coisa que era difícil acreditar que algo aconteceria agora, logo agora.
O meu celular tocou sobre o balcão da cozinha e eu me levantei para atender. Era Benjamin.
— Ben.
— Não há nenhum número de telefone fixo ou celular cadastrado no cpf de Heloísa Coimbra.
— E o marido e o filho?
— Sim, não foi fácil, mas já estão grampeados.
Eu sabia que não seria fácil.
— O motorista, então. — Nada me tirava da cabeça que a relação dele com Heloísa ia além da
profissional.
— O ex-civil?
— Sim.
*
Tirei os óculos escuros e sentei diante do agente que conduzira o resgate e a locomoção de
Camille até o hospital na noite do acidente.
— Ferris? — Parecia surpreso e curioso com a minha visita.
— Eu não vou fazer rodeios, então... — Olhei ao redor, até parar no rosto do homem. Eu me
lembrava muito bem dele. — Eu imagino que você lembre do acidente que aconteceu alguns meses
atrás...
— São tantos acidentes.
— Claro, mas você não me vê em todos eles, então eu suponho que se lembre exatamente do
acidente que estou me referindo.
Ele estreitou os olhos, mas o ar cínico não mudou. Tirei o celular do bolso e mostrei o vídeo a
ele. Mostrando que assim que eu saí, o infeliz tinha rondado o lugar, feito perguntas sobre o estado da
garota. Vi a expressão altiva mudar.
— Se você esteve todo esse tempo lá, por que não houve nenhum tipo de investigação sobre o que
aconteceu?
De repente ele suou um pouco, claro que se eu não tivesse evidência nenhuma. Sergio, não teria
respondido nada.
— O pai da garota não quis. O estado da menina não era dos melhores, ele não quis.
Recostei-me na cadeira, perplexo.
— Mas por que o interesse? — inquiriu ele, talvez notando a minha preocupação.
— Alguém estava lá com elas, fugiu, não chamou o socorro, isso é crime e devia ter sido
investigado. — O homem se empertigou na cadeira, desconfortável.
Lidar com a corrupção na polícia era como nadar no meio de um rio de piranhas, dificilmente
você conseguia sair vivo.
— Eu me pergunto porque você não fez seu trabalho, porra.
— Eu já disse, o pai dela não fez nenhum boletim e não quis. — revidou a mesma raiva que eu
estava sentindo.
Levantei-me e encarei bastante a cara dele. Dirigi para o prédio dos Alencar e como já me
conhecia, Miguel liberou minha entrada assim que entrei no saguão. Nunca os números de um
elevador demoraram tanto para mudar. Naiá abriu a porta para mim, parecendo aliviada em me ver.
— Onde Augusto está? — perguntei, antes que ela começasse com perguntas sobre Camille, elas
viriam. Ao que parecia a senhora era a única que realmente se importava com ela.
— No escritório.
— Onde fica?
Ela apontou, parecendo aflita agora.
Caminhei até lá e abri a porta sem bater. Augusto estava sentado atrás da mesa de mogno escura,
levantou-se imediatamente assim que me viu.
— Era com você mesmo que eu queria conversar. — Ele disse, com o ar arrogante de sempre,
ajeitando freneticamente a gravata.
— Não diga. — Fechei a porta atrás de mim e realmente olhei para o homem desprezível a minha
frente. — Onde você estava na noite do acidente das garotas que moravam nessa casa? Não sei se
posso chamá-las de suas filhas. — perguntei sem rodeios.
— É sério isso? — questionou, depositando toda a atenção em mim.
— Mais sério do que você imagina.
Augusto recostou-se no assento da poltrona e me encarou, talvez tentando entender se eu estava
falando sério mesmo.
— Se você tem alguma coisa a ver com aquele acidente, é bom que me diga agora. — explodi
ante a falta de resposta dele.
— Está me ameaçando?
— Entenda como quiser. — Cruzei os braços. — Porque não quis que investigassem?
— Eu devia pedir que investigassem a minha própria filha?
— Como é? — inquiri, sem entender.
— Camille estava dirigindo. O que eu devia fazer? Eu deveria pedir que a polícia a acusassem de
assassinar a irmã?
— A polícia disse que ela estava no volante? — Abri o vídeo que Sérgio aparecia pela segunda
vez e mostrei para ele. — Esse policial?
— Sim.
Guardei o celular novamente, ser inteligente quando a pessoa que você amava era o alvo tornava
tudo diferente, você não conseguia pensar friamente. O sentimento se metia no meio da razão, era
tudo mais complicado.
— Como sabia onde ela estava, como soube do acidente?
— O rastreador. Quando as duas não voltaram para casa, Miguel foi até lá, o último lugar em que
o carro esteve. Encontrou apenas os destroços da explosão.
Respirei fundo.
Virei-me para sair.
— Preciso pedir algo a você. — disse ele.
Fiquei curioso e parei por um momento, esperando o que ele diria.
— Peça para Camille...
— É bom que você nem termine o que ia dizer, porra.
O homem murchou, ficando vermelho, não sei se de medo ou de vergonha. Também não me
importava.
— Não consigo entender como uma mulher como ela é filha de pessoas como vocês. — Meneei a
cabeça numa negativa, enojado em como algumas pessoas ricas eram ricas apenas de dinheiro
mesmo. — Ela é diferente de tudo isso aqui. — Olhei com desprezo o lugar ao redor. — Ela vale
mais do que qualquer dinheiro, como não consegue ver isso?
O rosto de Augusto ficou rubro de raiva, e eu esperei pelo momento em que ele iria jogar a merda
no ventilador.
Foi exatamente o que ele fez.
— O único lucro que Camille nos deu foi o relacionamento com um homem rico e que me rendeu
muitos contratos, fora isso sempre foi uma garota problemática e grudenta. Como se o mundo tivesse
que girar ao seu redor.. — Ele ousou dizer sem nenhum sentimento. — Poderia estar a frente dos
negócios da família, mas veja o que ela está fazendo. Pintando quadros com crianças moribundas,
que não trarão nenhum benefício.
Cheguei a avançar alguns passos, perdendo a cabeça por alguns minutos, mas ele não valia os
problemas que me traria, e eu já tinha problemas demais.
— Você não vale a pena. Eu espero que um dia Camille possa esquecer de vocês. — Eu desejava
mesmo. — Esquecer que vocês existem.
Augusto ainda resmungou algo, mas não parei para ouvir, querendo sair desse lugar o quanto
antes. Naiá, que parecia estar atrás da porta escutando, começou a chorar quando saí. Não estava
com paciência, mas de todos ali, ela era a única que realmente merecia alguma atenção. Abracei com
cuidado os ombros da senhora e beijei a testa enrugada como a da minha mãe era.
— Como está minha menina? — perguntou, enquanto caminhávamos para a cozinha.
— Ela vai ficar bem em breve — tranquilizei-a.
— Eu ouvi o pessoal do prédio comentando, ela não me contou nada. Só disse que ia passar uns
dias com você. — lamentou, baixinho.
— Ela estava com tudo pronto para fugir, ir embora do Brasil. — Segurei a mão pequena, cheia
de rugas e pintinhas. Eu tinha um carinho instantâneo por ela, o jeito tranquilo parecia muito com o da
minha mãe. E eu era profundamente grato pelo interesse que ela demonstrava ter por Camille, ao
menos alguém nessa casa tinha sentimentos. — Eu vi quando ela estava entrando no táxi e a segui até
o aeroporto. Camille está comigo.
— Graças a Deus.
Naiá me olhou e colocou a palma da mão no meu rosto.
— Eu preciso que me diga uma coisa. O que aconteceu no dia em que Liz morreu?
— Eu não estava aqui, fui jogar baralho nesse dia. — Fez uma pausa e olhou para a porta,
certificando-se se estávamos sozinhos. — Mas, depois... depois um médico veio aqui com aquela
mulher.
— Quem é aquela mulher?
— Heloísa.
— O que ela queria?
— Fingir que se importava, mas eu tenho certeza que o filho dela causou o que aconteceu as
minhas meninas.
Eu compartilhava da certeza dela.
48
Marcone
Assisti o momento exato em que Enzo parou para fazer alguma declaração a um dos jornalistas
que o esperavam no lado externo da clínica — como imaginei, Heloísa e o motorista estavam com
ele, ela inclusive fez questão de dizer algumas palavras. Abri um dos sites que estavam ali para ver
se a entrevista era ao vivo, mas não encontrei nada. Estava curioso demais para saber o que ele diria.
Segui-os a distância, o infeliz estava a caminho da delegacia, estacionei em uma vaga qualquer e
saí do carro, queria que ele me visse e se lembrasse do que eu havia dito. Não entrei na delegacia,
esperei pacientemente encostado no carro até que Enzo saísse, queria que ele se sentisse encurralado
como tinha feito com Camille.
E quando saiu, a primeira coisa que o mauricinho viu foi a mim, eu não estava perto da saída, mas
como se soubesse, como se tivesse certeza de que alguém o esperava, ele olhou exatamente para
onde eu estava, da distância em que fiquei não pude ver claramente seu rosto, a expressão que ele
fez, mas tanto a mãe quanto o motorista também olharam na minha direção, sinal de que alguma
comunicação aconteceu entre eles. O mauricinho filho da puta entrou no carro, deixando-me
desapontado. Queria muito que ele fizesse algo, que agisse como o homem violento que eu sabia que
o infeliz era, todavia, ele parecia guardar a fúria para mulheres indefesas, de força e tamanho muito
menor que o dele.
O carro passou por mim e eu vi o rosto da mãe dele, tão diabólico quanto o do filho. Deviam ser
iguais em maldade e caráter, pensei, relembrando o que Naiá falara sobre ela.
Meu celular vibrou no bolso e eu entrei no carro para atender a chamada de Flávio. Bruna estava
sendo levada para a casa da avó dele e estaria sob proteção da polícia até que a data do seu
depoimento oficial chegasse.
— Flávio — atendi e liguei o motor.
— Acabamos de chegar. — avisou.
— Ok.
Encerrei a ligação e segui para a delegacia. O dia seguiu exaustivo, e sem muitas surpresas, saí no
horário de sempre para almoçar no restaurante ali perto mesmo e no final do dia, saí sem falar com
Andrea, raramente fazia isso. Mas, ultimamente minha ansiedade de voltar para casa era maior do
que qualquer coisa. Irritei-me com o trânsito como já era habitual e subi para o apartamento. Assim
que entrei vi Camille sentada no sofá com o celular na mão.
— Oi. — Olhei-a por inteiro para ver se estava bem e caminhei para sentar ao seu lado.
— Até que enfim. — Ela sorriu, encostando em mim.
— Até que enfim mesmo. — concordei e beijei de leve a boca carnuda e depois a testa fresca e
perfumada.
— Vou voltar para o estágio e para as aulas. — avisou ela, após entrelaçar nossos dedos. —
Romana me ligou e conversamos muito durante a tarde, com a medida protetiva que ela solicitou
Enzo não pode chegar perto de mim.
— Ele saiu hoje da clínica. — Olhei-a, preocupado. Todavia, não ia mantê-la presa aqui. — Eu
gostaria que esperasse mais um pouco, mas não vou impedi-la de fazer o que quer.
Camille assentiu apenas.
Deixei-a sozinha para ir tomar banho e logo depois saímos para jantar ali perto, fomos a pé
mesmo. Segundo ela estava ficando trancada no apartamento o tempo todo e queria um pouco de ar
fresco.
— Você podia trazer Bella permanentemente para cá — disse ela, enquanto caminhávamos de
volta para o prédio.
Eu ri e beijei a mão que segurava.
— Agora não dá. Bella tem treinamentos diários, exercícios e eu não teria tempo para cuidar dela
com a rotina que temos.
— Nunca tive um cachorro. — Lembrou ela, pensativa.
O comentário me fez lembrar das merdas que Augusto havia falado, um completo idiota.
— Você devia fazer uma lista de coisas que nunca fez e nunca teve — sugeri e ela sorriu gostando
da ideia.
Alguns dias se passaram, mais calmos do que imaginei. Assim que saiu da clínica Enzo fez
declarações ridículas sobre o que aconteceu e ainda foi capaz de dizer que provaria sua inocência.
Após essa declaração, eu consegui o vídeo em que ele havia agredido Camille na calçada do prédio
e a advogada anexou ao processo, depois disso o idiota foi chamado novamente para prestar
esclarecimentos, mas estava extremamente silencioso. O que para mim era pior. Camille voltou a dar
aulas e trabalhar, mas eu não conseguia relaxar, o tic tac na minha cabeça não parava momento
nenhum.
— Cara, você precisa ouvir isso. — Ben apareceu, nervoso e eu o segui para a sala de
inteligência. Aceitei o fone e sentei ao seu lado.
Durante os dias, as únicas coisas que eu tinha descoberto sobre os Coimbra era que Heloísa de
fato tinha um caso com o motorista e o mais engraçado de tudo, o pai de Enzo também tinha um caso,
mas com um dos estagiários da própria empresa. Pelas conversas aleatórias que acabei escutando,
era com essa informação que ela o dobrava. Todos eram eram doentes e tóxicos uns com os outros.
O chiado inconfundível da linha grampeada soou antes das vozes.
— Ele esteve aqui perguntando sobre a garota. — Pausa. — Acho que está investigando por
conta própria.
— Ele não vai chegar a lugar nenhum.
Ao contrário do que imaginei não foi a voz de Enzo que escutei e sim de Heloísa.
— Mesmo se ela lembrar o que aconteceu, ninguém nunca vai acreditar, quem acreditaria.
Quais são as provas?
— E quanto a ele?
— Ele vai procurar e não vai encontrar nada. Quais provas ele tem? — questionou ela. —
Quais pontas soltas?
— A ponta solta é que ela continua viva. E ele tem um vídeo em que eu apareço.
— Decubra qual o preço dele. Camille não deve ser tão importante assim. E mesmo se for, as
pessoas costumam perder o valor diante de uma boa quantia de dinheiro.
— Já ouviu falar dele? Ele é odiado por muita gente justamente por não ter um preço.
— Toda pessoa tem um preço, se os pais dela têm, porque ele não terá? Suspirou. — E quanto
ao que vai chegar? — ela mudou de assunto.
— Na sexta-feira depois das onze.
— Passe o endereço para Calixto.
Peguei uma folha de papel e anotei o endereço que ele havia passado.
Tirei o fone quando a ligação foi encerrada.
— Era o telefone de quem?
— Calixto. — Tirou o próprio fone. — Você vai até lá?
— Sim.
— Eu vou com você.
Ainda fiquei um tempo sentado, o estômago revirado com tudo que podia ter acontecido com
Camille se talvez eu não tivesse chegado ao local antes de alguém ir terminar o que quer que tenham
feito. E o pior de tudo era o fato da escuta ser ilegal, não serviria em nada para efeito de prova.
Como também não tinha me contado a história toda, só confirmou o que eu já tinha certeza. Não foi
um acidente comum.
Peguei o celular do bolso e liguei para Camille sentindo a necessidade de saber que ela estava
bem, e odiando a quantidade de pessoas ruins que ela tinha convivido.
— Não diga que já está vindo me buscar. — ela brincou, e por um momento não tive reação.
Agora mais do que nunca eu queria que ela se lembrasse do que havia acontecido. — Marcone?
Aconteceu alguma coisa?
— Não, eu só queria saber se está tudo bem.
— Na verdade não. — Ouvi o tom divertido. — Isabelle está reclamando por você não aparecer
aqui para vê-lá.
— Mande um beijo meu para ela.
— Oi, tio. — Eu sorri assim que escutei a voz da pequena tagarela. — Eu não gosto de beijos
por telefone.
— Ok, vou passar aí para dar um beijo pessoalmente, só não vou prometer o dia.
— Legal.
— Você acaba de deixá-la mais feliz. — Camille voltou para a linha.
Ainda nos falamos um pouco e eu voltei minha atenção para Benjamim.
— O que acha que eles estão esperando? — ele perguntou, brincando com o fio do carregador de
celular ao seu lado.
— Não deve ser nada bom.
*
Sentei na cama para colocar o outro tênis, sob o olhar preocupado de Camille.
— Aonde você vai? — perguntou ajoelhando atrás de mim na cama. Fazia pouco tempo que eu
tinha chegado da delegacia, deveria ter ido de lá mesmo, mas a preocupação que só crescia conforme
os dias passavam me fez vir para casa primeiro, ficar um pouco com ela e depois ir descobrir o que
eles estavam esperando.
— São coisas de trabalho.
— Todos esses dias você está trabalhando até tarde. — reclamou ela.
— Logo isso vai acabar. — Virei-me para ela e segurei o rosto pequeno entre as mãos, beijei de
leve a boca e a atesta e ela me abraçou, como se não quisesse que eu fosse. — Eu não vou demorar.
Camille me acompanhou até a porta, com o mesmo ar aflito, beijei novamente a sua boca e saí.
Durante a semana eu já tinha rondado o lugar, passei de carro algumas vezes, nada mais era que
um galpão abandonado no meio do nada. Uma área um tanto quanto desvalorizada do Rio de Janeiro.
— Vamos lá. — Entrei no carro de Benjamin e ele seguiu a avenida.
Seguimos em silêncio, ao que parecia Ben estava tão ansioso quanto eu, curioso na verdade.
Consultei o relógio, passava das dez. Ben estacionou o carro num canto mais escuro, a alguns
quilômetros de distância do galpão. As horas começaram a passar e eu cheguei a questionar se
estávamos no lugar certo. Cheguei a olhar no Google Mapas se estávamos realmente onde
deveríamos.
Um caminhão grande estacionou perto do galpão, um instante depois, e dois homens desceram,
desconhecidos. Eles conversaram alguma coisa, mas mesmo com o vidro aberto não consegui
escutar. Ben tirou uma foto da placa do caminhão e em seguida passou a observar a movimentação
estranha, como eu.
— Será que são só dois? — inquiriu ele, esticando um pouco a cabeça.
Um dos caras se afastou para urinar e o outro se aproximou do galpão, estudando-o por fora, antes
de abrir o portão.
Juntos eles abriram o baú de carga, e então o som de muitas vozes apareceu. Línguas diferentes,
inglês, espanhol. Falavam de forma agitada, porém não consegui acompanhar e entender as palavras,
além do vento cortar as palavras, a distância em que estávamos era considerável.
— Caralho! — Ben se remexeu no banco, e passou a tirar foto de cada mulher que desceu do
caminhão, estavam amarradas uma nas outras, muito bem vestidas, como se tivessem acabado de
descer do avião. — Cárcere privado.
— Tráfico.
De tudo que eu podia pensar, não imaginei que seriam mulheres a sair dali. Não nessa
circunstância.
— Será que são só dois?
Passamos cerca de uma hora ali, observando. Contei treze mulheres. Ao que parecia passariam a
noite ali, um deles trancou as garotas e voltaram para o caminhão, cheguei a pensar que iriam deixá-
las ali, mas se passou mais quarenta minutos e o veículo permaneceu parado.
Meu celular vibrou e o nome de Camille apareceu no visor, fiz um sinal para que Ben fechasse as
janelas do carro e atendi a chamada.
— Oi, amor.
— Quando você vai chegar? — perguntou ela, parecendo irritada e com razão, eu não imaginava
que iria demorar tanto.
— Vou demorar mais um pouco, por que não vai dormir? — Consultei o relógio. Quase uma da
manhã.
Ela encerrou a ligação sem responder, sinal de que eu estava com problemas. Mais problemas, na
verdade.
— Vamos lá. — Tirei a arma do coldre e esperei que Ben destravasse a porta para sair do carro.
Não estávamos tão longe do veículo, mas fomos cautelosos para não fazer barulho, o chão de terra
extremamente escorregadio, e barulhento por causa do solado dos nossos calçados. Fiz um sinal para
que Ben fosse pelo lado contrário ao meu do caminhão, a finalidade era surpreender aos dois de uma
vez só. Conforme me aproximava percebi que a janela estava aberta, melhor para nós.
Ouvi o trinco da porta ser aberto e dei um passo para trás, recuando. Vi a perna do homem, e em
seguida o corpo cheio ficou evidente. Provavelmente o infeliz tinha escutado algo e saído para
conferir, todavia desarmado.
— Fica aí. — Apontei a arma e o desavisado olhou chocado na minha direção, como se esperasse
por qualquer coisa, menos alguém com uma arma apontada para sua cabeça. — Ben. — Gritei,
preocupado.
— Tenho o controle.
— Quem é você? — perguntou, olhando para os lados, talvez procurando pelo dono da voz que
havia me respondido, ou por uma viatura.
— Não interessa. — Revistei-o, tendo o cuidado de manter a arma apontada ainda em sua
direção, checando se ele estava armado, encontrei sua carteira e coloquei no meu próprio bolso. —
Estou curioso para saber o que todas essas mulheres estão fazendo aqui.
Depois de algemar os dois homens e revistar o caminhão inteiro, além das armas e de um pacote
pequeno de cocaína, todos os passaportes das garotas estavam com eles. No baú do veículo algumas
malas, água e comida. O reforço chegou um tempo depois.
Na delegacia, todas as mulheres foram ouvidas. Para a sorte de cada uma, se livraram do destino
terrível antes de realmente sentirem na pele o que estava esperando por elas. O tráfico de pessoas
era um dos crimes mais rentáveis do mundo, perdia apenas para o tráfico de drogas e de armas e era,
na minha opinião, o mais desumano também.
— Como vocês chegaram a isso? — Andrea perguntou, parecendo exausta depois de pedir a
autorização para prisão preventiva dos dois homens.
Não queríamos alarde e muito menos a imprensa sabendo de nada.
Não respondi de imediato, procurei o arquivo da conversa entre Heloísa e Sergio e soltei para
que ela ouvisse.
— Grampeou a linha deles pela garota? — inquiriu ela depois de ouvir.
— Sim, depois do que aconteceu, eu preferi ficar de olho no que eles estavam tramando.
— Vou pedir autorização para uma escuta legal. Ela está acabada. — Referiu-se a Heloísa. Com
um ar sombrio, aquele que nos fazia ser muito parecidos. — Resta saber se o filho também está no
meio dessa merda.
— Duvido muito que não.
*
Assim que abri a porta do apartamento encontrei Camille andando de um lado para outro,
torcendo as mãos. A cada noite que eu passava fora por causa do trabalho mais ela se tornava
possessiva e irrequieta, eu já tinha vivido isso antes com Samanta. As cobranças para que parasse de
viver no meio do fogo cruzado, não era algo novo para mim, todavia estava mais perto do que nunca
agora.
— Desculpa.
Esquecendo da raiva, ela veio me abraçar, os olhos inchados, provavelmente por causa do sono
que tinha evitado para me esperar chegar.
— Porque demorou tanto? — inquiriu, grudada em mim.
— As coisas acabaram fugindo do controle. — Observei os olhos preocupados e beijei de leve a
testa franzida. — Vou tomar um banho e vamos dormir. — Soou como uma piada, se fôssemos
realmente calcular as horas, não faltava muito para termos que levantar.
Tomei um banho rápido e me deitei com ela, Camille não demorou muito a dormir, realmente
cansada. Eu fiquei acordado até ver o dia nascer, chegava a pensar que só dormiria realmente quando
tudo acabasse.
Algumas coisas precisam acontecer...
Para o Bem
Ou para o Mal
49
Marcone
Os dias que se passaram foram atolados de trabalho, os arquivos do pen drive que Bruna me
dera foram decodificados e era exatamente o que eu esperava, nele estava tudo que precisávamos
principalmente a ligação entre as mulheres encontradas no caminhão e garotas contratadas pela Luxus
desaparecidas. A lista de todos que estavam envolvidos estava nos arquivos, assim como o nome,
endereço e informação das respectivas famílias das garotas que eram traficadas.
Ameaçar a família de cada uma delas era a forma que encontravam de mantê-las caladas.
Além de Heloísa ser uma das cabeças da organização, a Coimbra Turismo facilitava o envio para
outros países e a chegada de garotas no Brasil.
Depois de uma reunião com todos os agentes que estavam trabalhando na investigação de alguma
forma, eu e Andrea saímos para tomar um café no bar perto da delegacia.
— Você vai comigo. — disse ela depois de bebericar o café.
Isso estava me incomodando, eu não queria me afastar daqui e deixar Camille e Nina sozinhas no
apartamento. Ainda que fosse seguro, nada me fazia esquecer que o infeliz tinha agredido Camille
diante do prédio e que nada tinha sido feito por ninguém, nem ao menos chamaram a polícia.
Todavia, fazer Antônio Oliveira falar o que sabia da organização era importante para que tivéssemos
todo tipo de prova antes de realmente incriminar todos os culpados. Ele e Bruna eram peças chaves
para a conclusão do caso, ela vinha dando trabalho a Flávio e aos policiais com algumas teimosias a
cerca da própria segurança, segundo Flávio a mulher tinha um gênio difícil.
As linhas telefônicas dos Coimbra e de Calixto, o motorista e amante de Heloísa, seguiam
grampeadas, assim como a de Sérgio. Todas as ligações e mensagens via whattsapp eram
monitoradas pela inteligência e o engraçado era que eles se achavam tão intocáveis que mesmo após
terem certeza que o caminhão e as garotas não tinham chegado ao destino, mantiveram os mesmos
hábitos de comunicação. Como se fossem intocáveis e não houvesse possibilidade alguma de serem
descobertos.
— Ben cuida das duas. — ela disse, perecendo adivinhar o que eu estava pensando.
Ele cuidaria, mas Ben não era eu. As duas eram as mulheres da minha vida, não suportaria que
nada acontecesse a nenhuma delas.
Nem a Camille e nem a Nina.
— Nina está com a mãe dele desde o início da semana. — A serelepe estava ajudando a sogra no
restaurante.
— E Camille está com você no apartamento. — afirmou. — Os pais dela?
— A mãe tentou subir para falar com Camille, mas eu não permiti. Eles servem apenas para
colocar merda na cabeça dela. — Pensei no que Heloísa havia falado sobre ninguém acreditar em
Camille caso ela se lembrasse do que aconteceu na noite do acidente.
Por um tempo imaginei que conforme fôssemos passando tempo juntos, ela se lembraria, não
contava que lembrasse de mim, afinal estava escuro e ela estava ferida, com dor, quase inconsciente,
mas do que ocorrera, isso eu imaginava que ela lembraria, mas ainda não tinha acontecido.
E eu não sabia de que forma contar que eu estava lá. Não sabia se ela ia gostar ou se ia odiar a
omissão.
Encontrei-a pintando na sacada quando cheguei ao meu apartamento, a noite. Parei um instante
para observá-la, Camille sempre parecia estar em outra dimensão quando pintava, mesmo sendo
silencioso ela me notou ali e sorriu, mas continuou trabalhando no desenho.
Caminhei até onde ela estava e beijei seu pescoço, a reação de Camille foi encostar a cabeça no
meu ombro, deixando por minha conta o peso do seu corpo.
— Quanto tempo leva para terminar? — perguntei, ela gostava quando eu me interessava por suas
pinturas.
— Acho que dois dias. — Colocou o pincel dentro do suporte e virou-se para me abraçar,
deixando um beijo no meu pescoço. — Você está suado. — retrucou passando a língua no mesmo
lugar beijado.
Ao invés de responder, beijei a boca carnuda, apertando-a contra mim.
— Vamos sair hoje? — perguntou ela, ávida por atenção, afinal os últimos dias eu não estava
parando em casa.
— Sim. — Puxei o pincel que ela costumava prender os cabelos para vê-los soltos ao redor do
rosto delicado. — Vou para Minas amanhã. Há uma pessoa que precisa ser interrogada lá, não vai
passar disso. — Expliquei tudo, antes que ela ficasse agitada. — Não é nada perigoso.
— E quando você volta?
— Não vou passar mais do que um dia lá. — Não queria e nem podia.
Com uma delicadeza que só ela tinha, encostou os lábios novamente nos meus.
— Vou tomar um banho e já venho.
Ainda estava sob o chuveiro, quando ela entrou no banheiro nua, caminhou na ponta dos pés para
dentro do boxe, como se o piso estivesse gelado demais. Achei graça.
— Eu preciso de alguém para lavar minhas costas. — O tom foi divertido, ela ficou de costas
para mim.
Olhei a bunda empinada e passei a palma da mão por ela, sentindo a maciez.
— Eu só quero que lave as minhas costas... — disse, enquanto me olhava por sobre os ombros. A
cara safada dizendo outra coisa.
— Ah, sei... — Beijei o ombro já arrepiado. — Não quer um carinho também?
Olhei o rosto adormecido de Camille, certificando-me se ela ainda permanecia dormindo dado ao
seu sono leve, coloquei sua cabeça sobre o travesseiro e me virei para pegar o controle do ar
condicionado. Meu corpo coberto de suor ainda agitado, fazia tempo que eu não sonhava com
Samanta, esse pesadelo me assombrou por muito tempo. Eu fazia de tudo para não dormir, passei
muitas noites em claro, vi muitas manhãs nascerem, apenas para não sonhar com ela. Morta e
queimada. Era assustador. Na maioria das vezes eu acordava aos gritos, procurando por ela, achando
que tudo fazia parte do pesadelo, inclusive a morte prematura dela e do nosso filho.
Aumentei a intensidade do ar e fiquei de lado, olhando para a mulher adormecida e ainda nua, o
bico dos seios ficaram eriçados por causa do ar frio e falta do meu calor, apoiei-me no cotovelo,
vidrado na figura dela, sempre que a olhava me perguntava como alguém tinha coragem de machucá-
la, como o filho da puta tinha coragem de agredi-lá do jeito fazia. Não fazia sentido nenhum para
mim.
Meus dedos correram pelo espaço entre os seios dela e senti-a se mexer, falando algo
ininteligível baixinho, as mãos tatearam na cama me procurando, eu gostava disso nela, dessa
intensidade peculiar que ela tinha e de como tudo entre nós dois era extremamente natural e fácil
como respirar. Inclinei-me e cobri o bico eriçado com a boca, fazendo um desenho nele com a língua,
ela ficou agitada ainda dentro sono. Puxei o edredom para cobri-lá e saí da cama, ainda nervoso. Fui
para o banheiro e parei em frente ao espelho, olhando o meu reflexo. Liguei a torneira e lavei meu
rosto, respirei fundo algumas vezes, sentindo um súbito mal estar.
— Por que saiu da cama? — Vi o reflexo de Camille no espelho, esfregando os olhos, ainda nua.
Ela me abraçou por trás, sonolenta, evitando um bocejo. Num movimento rápido eu a coloquei
sobre a pia e me enfiei entre suas pernas, ela pousou as mãos no meu peito e olhou para mim, os
olhos verdes como esmeraldas, enormes.
— O que foi?
— Tive um sonho ruim. — admiti, e apoiei as mãos no mármore, uma de cada lado do seu corpo.
Camille segurou o meu rosto e me beijou, as mãos subiram para o meu cabelo fazendo uma
bagunça por eles, proposital, dado ao sorriso que ela deu em meio ao beijo.
— Eu esqueço de tudo quando estou com você. — sussurrei em seu ouvido.
A garota tinha se transformado num dos meus meios favoritos de respirar, e de um modo tão
natural que eu não vi acontecer. Quando percebi já estava sentindo, e ela também.
— Eu também. — As mãos carinhosas pararam no meu ombro e ela ofereceu os lábios outra vez,
dessa vez colei nossos corpos e a segurei pela nuca, tendo controle do beijo.
Como se tivesse vida própria escorreguei para dentro dela, nossos gemidos se misturaram,
tornando-se um pouco mais altos por conta do eco do banheiro, conforme o ir e vir acontecia, ela
abria mais as pernas e se pendurava em mim, parecendo querer ficar ainda mais perto do que já
estávamos, o sexo contraindo o tempo inteiro ao redor de mim, como se fosse gozar a qualquer
momento.
Saí de dentro dela e a peguei no colo, sentindo a pele inteira arrepiada e agora quente. Coloquei-a
sobre mim na cama, e ainda mais agitada ela se encaixou no meu membro, abrindo a boca carnuda
conforme me sentia entrar inteiramente nela, quente e gostoso. Como se quisesse ainda mais contato,
ela deitou sobre mim para me beijar, enquanto os quadris continuavam a se mover, buscando o
próprio prazer. Os cabelos longos rasparam o meu o ‘meu peito, arrepiando-me inteiro, introduzi os
dedos por ele, sentindo-a me sugar completamente, o que me deixava numa vontade louca de gozar.
— Você é a coisa mais deliciosa que já coloquei as mãos. — A resposta dela foi um gemido
longo, e um beijo sôfrego, mais um roçar de lábios quente e molhado, tal qual a boceta dela estava.
Segurei o seu quadril, mantendo-a parada, a mão livre subiu por suas costas até embrenhar-se pelo
cabelo liso, com os olhos febris ela passou a me dar selinhos curtos.
— Como pode ser tão gostoso assim? — sussurrou ela, baixinho, sem parar com os beijos, eu
mudei de posição ficando sobre seu corpo, mantendo a penetração.
— Química. — respondi, havia muita entre nós desde o início.
— E amor?
Parei por apenas um segundo, buscando as íris exóticas, tentando identificar o tipo de emoção que
estava nelas.
Amor também.
A conexão que nós tínhamos era além da sexual. Muito além do prazer carnal.
— Também... o amor deixa ainda mais gostoso...
Afastei a bagunça que tinha se tornado o cabelo farto do seu rosto e a beijei outra vez, era algo
que eu não me cansava hora nenhuma, voltei a entrar e sair do seu corpo, ouvindo os seus gemidos,
minha própria respiração irregular e o som do roçar dos nossos corpos, era muito fácil saber quando
ela ia gozar, eu sentia as contrações, sentia tudo. E depois ela ficava mole, preguiçosa, suada e
grudada em mim.
Deixei beijos cálidos atrás de sua orelha, incapaz de me afastar, e fechei os olhos, aproveitando
da calma e da tranquilidade que estar perto dela me oferecia, sua respiração.
50
Marcone
Nunca estive tão ansioso para chegar em casa, como hoje. Andrea ainda tentou parar num
restaurante qualquer do aeroporto para comermos algo, mas não quis e ela estava devorando um fast
food, enquanto eu dirigia pelo trânsito insano de tão devagar do Rio de Janeiro. A viagem a Minas
tinha sido proveitosa, o infeliz resolvera falar, não sem antes fazer uma série de imposições que não
foram aceitas, é claro. Antônio desejava cumprir a pena em regime semiaberto, mas a oferta era
apenas para a redução da pena, o que eu já achava muito para ele.
Não era a primeira vez que eu lidava com o tráfico humano, mas fazendo uma observação
repetitiva, era desumano.
De maneira prática, ele falou sobre cada nome que estava na lista, disse tudo, como as mulheres
chegavam e saiam do país, não fiquei surpreso quando ele citou os Coimbra como os cabeças da
organização do Rio de Janeiro, a empresa de turismo deles facilitava a entrada e a saída das garotas
do país, além de serem os responsáveis pelos leilões de garotas menores de idade, essas eram as
mais valiosas, principalmente se ainda fossem virgens. Antônio era o responsável por falsificar os
passaportes, esses voltavam para ele quando as garotas chegavam ao destino: mortas ou vivas. O
idiota chegou a debochar em algumas partes e disse nome a nome dos envolvidos, afinal ele já estava
na merda. As redes sociais facilitavam a vida dele e o deslumbramento de muitas garotas também.
A maioria que conseguia fugir e tentava denunciar eram mortas, não só elas como os familiares
também, e isso amontoava os casos sem solução dentro da polícia, apenas estatísticas que iriam para
o jornal na manhã seguinte e que os responsáveis apenas ouviriam e nada em suas vidas mudaria,
esse era o retrato fiel da impunidade no Brasil.
Consultei o relógio, quase quatro da tarde, as conexões que fizemos no voo de volta fizeram a
viagem demorar mais do que deveria, o que me deixou ainda mais nervoso. Meu celular vibrou e eu
conectei o bluetooth para atender, quando vi o nome da minha irmã no visor.
No primeiro momento não houve som algum, apenas o silêncio.
— Nina — chamei.
Houve mais silêncio, contudo eu conseguia ouvir a respiração baixinha, entrecortada.
— Nina — inquiri novamente, um mar de buzinas soando ao mesmo tempo. Toquei o botão para
que as janelas subissem, atento a qualquer ruído, senti o desespero aparecer quando ouvir um
suspiro, quase um chorinho baixo. Se o trânsito não estivesse parado, com certeza eu teria deixado o
carro morrer, ante a ansiedade que me tomou.
Já pressentindo que havia algo errado e tinha, o silêncio pouco comum do outro lado da linha me
dava certeza disso.
— Marco... Marco, tem alguém aqui.
Engoli em seco, Andrea parou o hambúrguer a meio caminho da boca, encarando-me.
Olhei o trânsito a minha frente, tentando calcular, o tempo que eu levaria para chegar ao
apartamento antes que quem quer que estivesse lá, conseguisse o que queria, o resultado não era
animador. Eu não estava nem perto do meu bairro.
— Tem alguém aqui... eu consigo escutá-los. — outro sussurro cheio de medo.
O primeiro pensamento que veio a minha cabeça foi: quem? Quem estava lá?
— Escute com atenção, ok? — Tive que despertar o lado polícial, porque o irmão dela estava
morrendo de medo.
Medo por ela. E medo do desconhecido. Afinal, o prédio era extremamente seguro, pessoas
estranhas não subiam sem ser anunciadas. A menos que...
— Eles vão ti encontrar. — admiti para ela, porque era o que ia acontecer. Não havia a mínima
chance de eu chegar antes disse. Se havia algém com intenção de lhe fazer mal, faria, antes que eu
conseguisse chegar em casa. O trânsito não andava, e eu não estava em uma cena de filma em que
conseguiria sair correndo e chegar lá a tempo de resolver a situação. Do meu lado, ouvi Andrea em
contato com Ben, ao que parecia o filho da puta não estava atendendo. — Não vou chegar a tempo...
— Não, Marco.
— Coloque no viva voz. — Se eu não agisse com frieza agora, ia ser difícil ter detalhes para
descobrir quem era.
Nina o fez...
— Ela não está aqui. — Ouvi a voz desconhecida, nada que eu já tivesse ouvido antes.
— Eu vi quando a cadela entrou. — outra voz, também diferente. Nada que trouxesse qualquer
tipo de lembrança ou familiaridade.
— Daqui a alguns minutos eles vão te encontrar — avisei, porque era uma verdade.
— Marco, não... — um som de desespero, que me congelou inteiro. Fiquei sem saber o que pensar
ou o que dizer, nunca me depare com uma situação como essa.
— Eu te amo — ouvi o sussurro, seguido por um soluço baixinho.
Então a ligação caiu, e um inferno se instalou a minha volta. Era como se tudo que tentei evitar
fosse acontecer novamente, porque eu não sabia quem eles eram e qual o motivo de estarem lá, fechei
os olhos sem conseguir imaginar alguém machucando minha minha irmã.
— Nina! — ainda tentei, mesmo sabendo que a ligação fora encerrada brutalmente.
— Isso não está acontecendo. — Andrea retrucou paralisada. — Ben, não atende. — ela disse
exasperada. — Erick!, — soou desesperada, com o telefone ainda na orelha. — Onde você está?
Eu não escutei o diálogo, na minha cabeça apenas a imagem de Nina, e a raiva de mim mesmo por
todos os detalhezinhos errados que eu deixei acontecer, começando por aceitar que ela morasse
comigo, e todos os outros. Deixá-la sozinha agora, meu pensamento voltou para Camille, nesse
horário ela ainda estava no estágio. Mas poderia ser as duas ao mesmo tempo.
Assim que o trânsito ganhou movimento novamente, eu dirigi muito mais rápido do que algum dia
fiz na minha vida, não conseguia ver nada na minha frente. E quando cheguei ao prédio, ao contrário
do imaginei tudo estava tranquilo, como se nada tivesse acontecido, como se minha irmã não tivesse
me ligado amedrontada. Andrea foi pelo elevador e eu pela escada, dentro de mim uma pontinha de
esperança para que tudo não passasse de uma brincadeira dela, todavia Nina nunca me dera trabalho
quando o assunto era sua segurança.
Cheguei ao meu andar antes de Andrea, saquei a arma da cintura, mas para minha surpresa a porta
não estava arrombada, tirei a chave do meu bolso com cautela e abri a porta devagar: não havia nada
além do silêncio. Fui imediatamente ao quarto dela, tendo certeza de que estaria vazio e estava, no
chão uma gota de sangue. Fechei os olhos, sem querer imaginar a origem dele.
— A porta não estava arrombada. — retruquei, quando ouvi os passos de Andrea. — Quem entrou
aqui tinha a chave.
Eu esperava que Ben tivesse uma boa explicação.
— Quem tem acesso a essas câmeras? — perguntei ao gerente geral do prédio, quando notei que
todas as filmagens do meu andar e da entrada de serviço estavam desligadas entre o momento que
alguém entrou e saiu com Nina.
— Eu, e alguns funcionários da portaria e da recepção.
— Eu quero todos aqui, enquanto eu não souber que porra aconteceu com minha irmã, ninguém
entra e ninguém sai daqui.
— Mas... — o homem tentou retrucou, mas desistiu assim que olhou para minha cara.
— Não vai sair ninguém. — reforcei entre dentes.
Dez minutos depois todos os funcionários do prédio estavam na minha frente.
— Falta um. — Lembrei do porteiro que Nina entregava lanches, ele não estava entre os outros.
— Falta um. — repeti e encarei o homem engravatado que parecia ficar mais vermelho a cada vez
que eu o olhava.
— Todos os funcionários estão aqui.
— Há um porteiro que não está aqui.
O sujeito pensou por um tempo e, então, fez uma expressão de quem se lembrava de algo.
— O único funcionário que não está aqui pediu demissão faz quase uma semana.
Andrea entrou na sala um tanto quanto apertada e fez um gesto negativo com a cabeça para mim,
eu queria saber onde o idiota do Ben tinha se enfiado, a minha vontade era torcer seu pescoço até
matá-lo.
— Ninguém viu nada. Ninguém sabe de nada — ela avisou assim que me aproximei.
Em meio a sensação de irrealidade, surgiu uma dor de cabeça terrível, como se meu cérebro fosse
explodir a qualquer momento.
— Nós vamos encontrá-lá. — Andrea disse baixinho, pousando a mão no meu ombro.
— Quem garante isso, Andrea? — respondi com raiva, eu não devia ter ido com ela. O sonho com
Samanta tinha sido um aviso.
Um aviso de que eu viveria um inferno parecido.
— Ela pode já estar morta. — O pensamento me congelou inteiro, mas era verdade.
O fato de entrarem na minha casa e a tirarem de lá, não fazia sentido nenhum para mim. Pensei em
todos os casos que estive envolvido nos últimos meses, mas a única coisa que vinha a minha cabeça
era o que Camille me disse sobre Enzo, sobre o filho da puta ser louco.
O que eu diria a minha mãe?
— Eu liguei para a DR — ela mudou de assunto. — Camille ainda está lá. Vou pedir que Erick vá
buscá-la. Eu pedi que a perícia viesse.
Não faria diferença alguma, eu já tinha olhado tudo e os desgraçados não tinham deixado pista
alguma, apenas o sangue da minha irmã.
Camille
O policial chamado Erick me conduziu para dentro do prédio, as pessoas que estavam barradas lá
fora não ficaram nada felizes. Não consegui entender nada direito, exceto que havia algum problema.
E pela cara dos policiais não era nada bom. Assim que cheguei ao andar de Marcone, vi Andrea ao
telefone, ela fez um gesto para que eu esperasse e disse ainda algumas palavras antes de guardar o
aparelho e cruzar os braços, olhando para mim.
— O que aconteceu? — inquiri, olhando ao redor, a movimentação de policiais e de funcionários
do prédio que pareciam assustados e curiosos.
— Alguém levou Nina.
— O que? — Não entendi o sentido da palavra levou naquele momento. — Você quer dizer,
sequestro, é isso? — meu tom ficou alto por que eu não conseguia entender realmente.
Andrea meneou a cabeça e coçou a sobrancelha, visivelmente preocupada e cansada.
— Não sabemos, Camille. Alguém a tirou daqui hoje, um tempo atrás. — Fez uma pausa e olhou
de relance para a porta aberta. — É bom você ir falar com ele. Ele está precisando de um abraço
agora.
Assenti ainda processando a informação, tentando colocar tudo no seu devido lugar. Caminhei
devagar para dentro do apartamento, não havia sinal dele na sala, mas estava revirada, como se tudo
tivesse a um passo de ter sido destruído. Respirei fundo antes de abrir a porta do quarto dele e só
então o vi.
Respirei fundo, porque eu sabia a quantidade de amor que ele tinha pela irmã, Marcone estava
sentado com o rosto enterrado nas mãos. Não fosse a respiração forte e acelerada dele, o quarto
estaria completamente silencioso, totalmente alheio ao inferno que estava lá fora.
Aproximei-me sem saber o que dizer, nunca tínhamos invertido a posição, sempre fora ele a me
acalmar, a pedir calma, a me dar consolo e segurança. Não sabia direito o que dizer ou fazer.
Introduzi os dedos pelos cabelos escuros, quando cheguei perto dele e nesse momento Marcone
ergueu os olhos, percebendo que eu estava ali.
Já tinha visto vários sentimentos nele: raiva, dor, mas nada se igualava ao que eu via agora, havia
culpa numa quantidade inimaginável. O que quer que tivesse acontecido, ele se via como
responsável. Sem dizer nada, Marcone envolveu minha cintura com os braços e encostou a testa na
minha barriga, visivelmente perturbado.
— Levaram minha irmã, Camille. — o sussurro foi tão doloroso que fechei os olhos. — Ela me
ligou e eu não consegui chegar a tempo...
— Você não tinha como saber. — Não sabia se eram as palavras certas, ele respirou pesadamente
outra vez e me soltou, deitando de costas na cama com o antebraço sobre os olhos.
Eu sabia que todo ser humano tinha a sua vulnerabilidade, mas parecia errado vê-lo assim,
Marcone afastou o braço do rosto e eu vi uma transformação que me fez perder a respiração, era ele,
mas não era.
— Eu vou tirar você daqui.
— O que você vai fazer? — perguntei, com medo e com um mau pressentimento horrível.
Ele não respondeu, levantou-se. Vi-o pegar a carteira e a arma, que eu nunca tinha visto, não a
dele. Meu coração disparou, sentindo de verdade o que a profissão dele representava. Perigo. Para
Marcone. E para quem estava perto também.
— O que você vai fazer?
— Achar minha irmã, Camille. — Com pesar, ele colocou uma mecha do meu cabelo atrás da
minha orelha.
Senti um frio insuportável, vendo-o se afastar um pouco de mim, enquanto se transformava em
outra pessoa. Odiando o pesar que não abandonava os seus olhos. A culpa que parecia pesada
demais.
— Não é culpa sua... — insisti, tocando o seu ombro, para meu alívio ele me abraçou, e eu o senti
tenso — Não é...
Não sei quanto tempo ficamos abraçados.
— Eu vou enlouquecer se eu não encontrar a minha irmã, e se algo acontecer com você.
Marcone beijou minha testa, e afastou-se para me olhar. A fraqueza dele eram as pessoas que ele
amava, e quem estava com ela sabia disso.
51
Marcone
— Eu vou te levar para um hotel, não pode ficar aqui. — Era arriscado demais, o medo de que
algo acontecesse com minha irmã estava me deixando irracional de tal forma que a dificuldade para
pensar era grande demais. Uma das coisas que sempre ouvi dos agentes da policia federal era que eu
tinha uma inteligência acima da média, que a minha capacidade e o caminho que eu fazia para chegar
ao resultado de 2 + 2 era completamente diferente da lógica deles, mas agora nada disso parecia ter
relevância, não conseguia pensar em nada, que dirá fazer essa soma. A preocupação de que algo
pudesse acontecer a Camille também tornava o sentimento ainda pior, e isso tudo se mesclava a raiva
que eu estava sentindo de mim mesmo e do infeliz que estava por trás disso.
— Mas e você? — perguntou assustada, agarrando-se a mim com um desespero igual ou maior do
que o que eu estava sentindo, eu só não tinha tempo para explicar demais, para fazer-lhe entender que
quem estava com minha irmã podia ir atrás dela também, se fosse uma tentativa de me atingir e
provavelmente era.
— Eu vou ficar bem, mas eu preciso manter você em segurança.
— Eu posso ficar na no apartamento de Aline. — Não gostei da ideia, todavia depois de entrarem
aqui do jeito que tinham feito hoje, eu duvidava que algum lugar fosse realmente seguro.
Ouvi dois toques na porta e vi Andrea.
— Ben está aqui. — A frase foi dita com cautela, porque se havia alguém que eu estava com raiva
era ele. — Não faça nada com ele. — Reconhecendo o meu gênio, ela avisou logo. — Ele trouxe
Nina para cá porque ela queria esperar por você aqui.
— E porque ele a deixou sozinha?
Transtornado como estava, eu não confiava em ninguém.
— Ele já está se culpando, não faça isso você também. — Fez uma pausa.
Optei por escutá-la, Andrea era a única pessoa que eu realmente confiava dentro da polícia,
tínhamos o mesmo tato, pensávamos do mesmo jeito, tínhamos o mesmo gênio e se houvesse mentira
no que quer que ele tivesse dito, ela teria percebido.
Não alonguei minha conversa com Ben, ele realmente não estava melhor do que eu, mas não tinha
nada que me fizesse ter uma direção que me levasse a algum lugar, segundo ele não havia nada
diferente quando chegou ao prédio com Nina. Mas, havia sim, ele só não tinha notado. Eles já
estavam observando desde quando ela entrou, sabiam que Nina estava sozinha.
Enquanto dirigia até o antigo prédio de Camille, percebi a agitação dela, as pernas e as mãos não
ficavam paradas hora nenhuma, senti-me mal por ser responsável por isso, cobri seu joelho com
minha mão e imediatamente ela reagiu ao toque.
— Não fique preocupada, não vai acontecer nada com você. — prometi.
— E se acontecer com você ou com Nina? — O tom foi alto tamanho o nervosismo dela. — E se
for uma armadilha para machucarem você?
Eu contava que fosse exatamente isso, porque o alvo seria eu e a chance da minha irmã estar viva
era maior. Mas eu não diria isso a Camille, não estava suportando vê-la chorar por minha causa.
— Não chore. — encostei o carro no acostamento, vendo Andrea nos ultrapassar e a puxei para
meus braços, numa tentativa de que os soluços diminuíssem, todavia eles ficaram piores. E Camille
disse coisas que não compreendi, mas que doeram mesmo assim, era como se todo o controle que
achei que tinha tivesse escorrido pelos meus dedos e se transformado num inferno real e irrefutável.
Coloquei o carro novamente em movimento, sem ter outra escolha, enquanto ainda a ouvia chorar.
Andrea já estava no prédio, quando chegamos. Camille se manteve abraçada a mim dentro do
elevador como se não quisesse me deixar a ir a lugar algum.
— Você avisou que viríamos? — perguntei, demonstrando uma calma que não existia dentro de
mim. Ela assentiu em silêncio.
A pior parte foi quando tive que deixá-la sozinha. Andrea passaria a noite ali, não tinha como
confiá-la a outra pessoa.
De volta ao meu apartamento, eu deixei minha chave sobre o aparador e uma coisa mínima me
chamou atenção. A chave extra não estava lá, apenas o cartão de crédito. Camille não a usava,
porque para onde quer que fosse ela ia comigo e voltava comigo, fiz uma retrospectiva dos últimos
dias, de todas as pessoas que tinham entrado aqui.
Joice. Benjamin.
— Desgraçado!
O porteiro também tinha aparecido aqui, suando como um porco.
Assim que terminamos, a campainha soou e eu fui atender. Era o homem que Nina costumava
dar os sanduíches, mas ele nunca vinha aqui, com exceção de quando trazia alguma
correspondência, mas não havia nada em suas mãos. Deduzi que o sujeito devia estar querendo o
café da manhã de todo dia, notei que ele estava nervoso, como se não esperasse que fosse eu a
abrir a porta.
— Quer falar com Nina? — perguntei, estudando o homem um pouco mais. Ele assentiu com a
cabeça e eu fiz um gesto para que entrasse.
Deixei-o na sala e voltei para o meu quarto, onde Camille penteava os cabelos já pronta para
ir.
— Desgraçado. — Fui até a mesa onde Andrea tinha colocado a relação com o nome de todos os
funcionários do prédio, a ficha completa deles, nome, endereço, telefone. Tentei o telefone do infeliz,
mas sequer chamou, caiu diretamente na caixa. Gravei o endereço dele no Gps do celular e saí do
apartamento, desesperado para que eu o encontrasse. Porque não tinha sido coincidência, se alguém
tinha pegado aquela chave, esse alguém era ele. Afonso, o nome do desgraçado.
O endereço era em um bairro de periferia do Rio de Janeiro, embora não fosse o pior que
houvesse nessa cidade, pelo fato do carro ser escuro, eu desci antes de entrar no bairro. Dependendo
do tipo de vizinhança que tivesse ali, ele poderia ser metralhado apenas por isso.
Não foi difícil achar a casa dele, era extremamente acabada e num pedaço da rua totalmente mal
iluminado, bati na porta mais de uma vez, não havia uma alma viva na rua, sinal que o lugar era
perigoso mesmo. Rodeei os fundo da casa, dando-me conta de que estava realmente vazia. A cortina
da janela lateral da casa ao lado, foi aberta e fechada rapidamente. Fui até a frente da residência e
bati na porta, ela foi semiaberta como a janela.
— Não precisa abrir — avisei sem paciência. — Só me responda se conhece o homem que mora
nessa casa.
— Essa casa foi abandonada faz quase um ano — respondeu baixo, a curiosidade sendo maior
que o medo, a porta abriu mais um pouco, de forma que pude ver o interior da casa. Péssimas
condições.
— E para onde o dono foi?
— Não sei, moço. Ele tentou vender, mas o bairro é ruim, difícil achar comprador.
Cerrei os punhos, irritado. Nada tinha sido levado do apartamento, apenas ela, o que realmente
era precioso para mim, um ódio irracional correu furioso pelas minhas veias. Quando eu colocasse
as mãos nele.
Enquanto colocava o carro novamente em movimento, tentei repassar o que Nina já me contara
sobre o sujeito. Quase nada. Ele tinha uma filha doente, se dividia em mais de um trabalho para tentar
pagar o tratamento. Não fazia sentido nenhum. Nada de valor tinha sido levado, até mesmo o cartão
de crédito permanecia lá, o objetivo dele era a chave. O fato das câmeras terem sido desligadas fazia
sentido agora. Apertei com mais força o volante, odiando o pressentimento ruim que começava a me
sufocar. Lembrei-me do sonho, um sinal de que alguma merda ia acontecer. Soquei o volante, furioso,
fazendo a buzina soar loucamente e pisei no acelerador, para voltar ao prédio.
Camille
A noite parecia não passar, a todo momento eu ficava presa ao celular, esperando que ele ligasse
para me dar uma notícia sequer, mas não aconteceu. Marcone não ligou nem para mim e nem para
Andrea, e eu me perguntava como ela podia estar tão tranquila sabendo que ele estava correndo
perigo, que Nina estava correndo perigo. Às vezes, a loira me assustava, a frieza com que lidava com
algumas coisas parecia pouco natural.
— Ele sabe se cuidar, Camille. — disse ela, quando andei pela milésima vez pela sala do
apartamento, ao invés de ir realmente para a casa de Aline, eu usei a chave do apartamento que tinha
pedido quando planejei fugir. — Ele quer que fique tranquila.
— Eu não estou tranquila, não vou ficar tranquila. — Quase gritei exasperada.
Ela deu um suspiro, e percebi muito rapidamente que também estava preocupada. Mas Andrea era
boa em não demonstrar as coisas. Toda essa história só me fazia lembrar de Enzo e do que Heloísa
disse sobre ele machucar as pessoas que eu gostava. Estremecia apenas com a possibilidade dele
fazer com ela metade das coisas que já fizera comigo, amedrontava-me pensar que podia ser ele a
estar com ela.
— Quem você acha que é? — inquiri, querendo que ela tivesse ao menos uma pista.
— É o que Marcone está tentando descobrir agora.
— E por que você não vai ajudá-lo? Ele está sozinho!
Andrea me lançou um olhar que não entendi e suspirou novamente.
— Marcone sabe se cuidar.
O celular dela tocou e ela se afastou para atender, a conversa foi rápida e baixa de modo que não
consegui escutar e nem acompanhar.
Não lembro bem, mas eu devia ter dormido por algumas horas, porque quando acordei já estava
claro. Andrea estava sentada, parecia estar apenas esperando que eu acordasse.
— O que aconteceu? — perguntei, antes de qualquer coisa, sentando-me.
— Não aconteceu nada, Camille. Você só dormiu. — Ela fez uma pausa e digitou algo no celular.
— Dois agentes vão vir para cá. — Abri a boca para retrucar, mas ela fez um gesto. — Vão ficar lá
fora — completou. — A delegacia está um inferno, e há pendências que só eu posso resolver.
— E ele?
— Não tenho notícias ainda.
Os dois agentes subiram apenas para que eu os visse, não usavam fardas e nem havia qualquer
indício de que fossem policiais, e para piorar a situação Joice entrou no apartamento um tempo após
eles saírem.
— Soraia me disse que estava aqui. — Limpou as mãos no vestido, sem qualquer efeito, mas
parecendo muito envergonhada. — Você poderia ter ido para casa, Camille.
Casa.
Soava até estranho saindo da boca dela, todavia eu estava muito cansada para discutir. Só queria
que ela fosse embora.
— Vá embora, mãe. — Sentei no sofá exasperada e cobri o rosto com as mãos.
— Não sou sua inimiga, filha.
Olhei para ela com raiva, considerando-a doente, e ela percebeu. Porque o rosto tornou-se mais
grave, cheio de pesar. Mas, eu já tinha visto essa máscara antes e pouco me importava.
— Eu disse coisas horríveis... — admitiu.
— Não é o momento, mãe. — Minha cabeça não estava funcionando direito, não com tudo que
estava acontecendo.
A falta de notícias estava me enlouquecendo, na minha cabeça só surgiam imagens dos dois
machucados. Nina e Marcone. Levantei, incapaz de ficar sentada e passei a andar de um lado para o
outro, sem saber que direção tomar.
— Aconteceu alguma coisa, não foi? — inquiriu como se tivesse alguma importância para ela.
— Que tipo de negócio vocês têm com Enzo, mãe? A ponto de me envolver?
Pela forma como me olhou, diria a verdade.
— Ele pagou todas as dívidas do seu pai. Cada uma delas.
Eu ri. Uma risada completamente desprovida de humor, foi ácida, irônica.
— Por isso o silêncio esse tempo todo?
— Não foi desse jeito que está pensando.
Sem qualquer paciência, eu fui até a porta e a escancarei para que ela saísse.
— Não interessa a forma que foi, só saia.
Assisti-a sair e caminhei para a janela, onde pude ver o dia nublado. O tempo feio se igualando a
como eu sentia por dentro, cheia de emoções ruins e desesperadoras, não senti fome e nada parecido,
não sei se fiquei minutos ou horas ali, mas só me afastei quando vi ao longe o carro preto que já
conhecia surgir na rua, assim como o sol apareceu. Prendi a respiração e corri para a porta, sem
conseguir esperar que ele entrasse. Fiquei em frente ao elevador, esperando que os números
mudassem, e quando o vi notei as olheiras, a raiva, o cansaço. Ele não devia ter dormido, quem
dormiria nessa situação?
Abracei-o, aliviada por ele estar inteiro. Olhei-o, e Marcone fez um gesto negativo com a cabeça,
sinal de que ainda não tinha notícia nenhuma de Nina, a sensação foi terrível, parecida com a que
senti quando acordei e descobri que eu não tinha mais uma irmã.
— Quem está fazendo isso? — meneei a cabeça numa negativa, olhando os dedos dele, ainda
podia ver pequenas cicatrizas, heranças dos socos que ele dera em Enzo, meu coração gelou com a
certeza de era ele.
Era ele. Só podia ser ele.
— Tenho inimigos, Camille. — foi uma resposta simples, mas eu me perguntava se por dentro ele
estava calmo, porque embora a voz soasse controlada, os olhos azuis estavam cheios de cólera. —
Alguns que nem faço ideia.
E eu tinha trazido mais um, devia ter ido embora quando tive a chance. Teria evitado essa
desgraça, se algo acontecesse com ela ou com Marcone, nunca me perdoaria. O problema era meu,
não deles.
Ele não merecia nada disso, ela também não.
Meus olhos arderam tão cheios de lágrimas que a imagem de Marcone ficou distorcida, tudo a
minha volta ficou.
Eu causei isso.
— Não vai acontecer nada com você. — o tom dele foi firme, todavia pouco me importava o que
ia ou não acontecer comigo, eu só conseguia pensar que eu era a causa de todo esse tormento.
Mais uma vez Enzo interferia da pior forma na minha vida, e só havia um jeito de acabar com
aquilo. Dar ao desgraçado o que ele queria.
Encostei os lábios nos de Marcone, enquanto todas as lágrimas escorriam por meu rosto.
— Eu não estou indo embora. — garantiu, interpretando mal o que quer que estivesse vendo em
mim.
Quem iria embora era eu.
52
Camille
Marcone não ficou muito tempo, e me doeu tanto que cheguei a pensar que estava morrendo por
dentro, não sabia se iria vê-lo outra vez. Senti vontade de chamá-lo, de contar tudo. Mas não o fiz, eu
devia saber que a nossa história não teria um final feliz. Queria tanto tê-lo conhecido antes. Antes de
permitir que aquele monstro entrasse na minha vida e destruísse tudo.
Incluindo a mim.
Arrastei-me até a janela para assistir ao momento em que o carro dele se afastou, desaparecendo.
Voltei para onde estava meu celular e liguei para a recepção, pedi que Soraia mandasse um táxi para
o estacionamento privativo da cobertura e que pedisse aos agentes que subissem ao meu andar. Só
tive tempo de correr para fora do apartamento e entrar no elevador. Apertei o andar do
estacionamento e fiz orações para que eu não cruzasse com nenhum deles, que conseguisse sair antes
de ser notada.
Só fiquei tranquila quando entrei no táxi e disse o endereço, o lugar o qual eu tinha prometido
meses atrás nunca mais voltar a colocar os pés. A medida em que o carro se aproximava da mansão
grande, meu corpo dava sinais de reconhecimento de tudo de ruim que senti nessa casa, cada situação
constrangedora e mal resolvida. Cada lágrima, cada perdão que concedi, a falta de esperança, a falta
de amor próprio, tudo me esmagou. Eu não conseguia achar mais aquela garota aqui dentro, não
conseguia mais entender como permiti que Enzo fizesse certas coisas comigo.
Mas essa doença precisava acabar.
Paguei a corrida e digitei o código da garagem, continuava o mesmo. Tive certeza quando o
portão abriu, dois carros estavam lá: um deles era de Enzo, o outro desconhecido, a medida em que
avançava minha respiração se acelerava, tudo ali me fazia mal, até mesmo a beleza do lugar.
Estava calmo, tudo calmo, como se não houvesse um inferno acontecendo na minha vida, com os
dedos trêmulos, eu encostei o indicador na leitura digital da porta, parecida com a da minha casa.
Fiquei aliviada quando a porta abriu. Eles não tinham mudado absolutamente nada. Entrei,
estranhando não ver nenhum dos empregados, não eram poucos. Olhei ao redor, entrando realmente
na sala clara e silenciosa, as chaves do carro de Enzo estavam na mesinha de vidro alta, e um papel
que parecia uma intimação, cheguei mais perto para ler, mas o som de passos me chamou atenção.
Era ele.
— O que você fez com ela? — inquiri, enojada.
Ele estava engravatado, pude ver o curativo grande na mão esquerda, a que ele usava para me
bater e que usara para apontar a arma para mim.
— Você veio. — Quase sorriu, como se mesmo que eu não tivesse vindo teria ido ao inferno me
buscar.
Olhei para os lados, procurando algum vestígio de que ela estivesse aqui, qualquer um.
— Fale, Enzo! Cadê ela.
Com uma calma que me irritou, ele colocou uma pasta sobre o sofá.
— Ele acabou com tudo, sabia? — disse, sem fazer qualquer sentido para mim, os olhos irados,
como se tivesse lembrado de algo e de repente estivesse furioso. — O que ele tem que eu não tenho?
— inquiriu, e eu senti vontade de chorar, reconhecendo a loucura que esse homem carregava.
Odiando-o ainda mais por causa do que eu iria fazer. Trair a mim mesma. Trair a Marcone e a
tudo que eu sentia por ele.
— Eu fico com você. — As palavras saíram engasgadas, ácidas, como se tivessem gosto de
veneno. — Só diga onde ela está ...
O rosto dele foi mudando, ficando vermelho .
— Faria isso? — Deu um passo a frente.
— Faria qualquer coisa por ele. — Não devia falar isso, era uma provocação que o deixaria fora
de si. Mas, eu queria mostrar a verdade, deixar claro que não tinha nada a ver com ele. Muito pelo
contrário, eu faria a pior coisa que poderia fazer a mim mesma pelo amor que sentia por outro
homem e pela minha irmã, era dessa forma que eu via Nina.
O que eu disse o deixou transtornado, mas ao contrário do que pensei, um sorriso sádico surgiu
em seu rosto e ele me encarou com um prazer diabólico estampado na cara.
— Ele vai morrer, Camille. — Fez a imitação de um revolver com a mão boa e mirou na minha
cabeça. — Hoje. E nós vamos embora. Eu e você.
Recuei um passo e depois outro, encostando-me na porta. A minha respiração soando alta e rápida
demais, encarei-o com ódio, vendo a forma como estava assistindo as minhas reações. Enzo sentia
prazer no meu sofrimento, estava claro.
— O que você fez? — inquiri, precisando me apoiar na mesinha por causa dos tremores do meu
corpo. — O que você fez, seu desgraçado?
— O que eu devia ter feito desde a primeira vez que vi vocês dois juntos.
Olhou para o relógio de pulso e sorriu, divertindo-se.
— Tic. Tac. Tic. Tac. — Sorriu mais uma vez. — O tempo está passando. Depois que eu tiver a
confirmação podemos viver livres dele, eu tenho certeza que você vai voltar a me amar como antes.
A ideia me deixou letárgica, apoiei-me novamente na mesa, ouvindo gritos que não sabia mais
serem dele ou se eram lembranças, mais fragmentos delas. Eu estive aqui. Antes do acidente, estive
aqui. Peguei um vaso pequeno de porcelana, e joguei em sua direção acertando-o em cheio na testa.
Catei as chaves do carro e saí correndo, ouvindo-o me xingar e mandar alguém que eu não tinha visto
vir atrás de mim. Coloquei o código da garagem às pressas e me detive ao perceber que se eu
quisesse sair dali teria que dirigir. Senti o suor escorrer pelo meu rosto, sintoma do mal estar que
esse homem me causava.
O carro prata parecia ser muito maior do que era, ouvi a voz dele mais perto e não tive outra
alternativa a não ser entrar e travar as portas. Abri a bolsa e tirei o celular de lá, discando
furiosamente para Marcone, mas apenas chamou, e fui tomada por um medo irracional de que
houvesse acontecido alguma coisa com ele.
Girei a chave na ignição e o som do motor sendo ligado, trouxe clarões incomuns a minha mente.
O momento da batida.
Era o que eu sempre revivia, apenas ele, todo o resto ficava esquecido, mas dessa vez as imagens
antes distorcidas foram fazendo sentido.
E eu me lembrei.
Lembrei de tudo, dos socos que Enzo me deu. Das palavras de Heloísa. Da briga dentro do carro
que fez o motorista perder a direção e nos fazer bater na lateral de uma carreta.
Lembrei de tudo. Do medo de morrer.
Mas, sobretudo eu me lembrei dele.
Marcone estava lá.
Agora toda a conexão fazia sentido, eu não estava louca.
Meses atrás
De: Enzo
Será apenas uma conversa, quero ver você só um pouquinho.
Ouvi o impacto de um murro no vidro e pisei no acelerador, voltando para o presente e deixando
Enzo para trás, mas o outro carro logo me seguiu e eu senti medo de não conseguir chegar a tempo.
Peguei novamente o celular e dessa vez liguei para Andrea.
— Você está com ele? — inquiri, sem saber se estava fazendo sentido.
— Estou saindo do banho. Está precisando de alguma coisa?
Então, ninguém sabia ainda que eu tinha saído do prédio.
— Enzo fez alguma coisa, Andrea... Você precisa avisar a ele... — Acabei chorando e me
culpando.
— Onde você está e do que está falando? — Ouvi-a xingar e depois o barulho como se estivesse
se vestindo muito rápido.
— Enzo disse que ele vai morrer.
Marcone
Caminhei a passos largos para o carro que havia deixado estacionado diante do prédio há quase
duas horas atrás, quando passei a olhar o sistema de seguraça dos últimos três dias. Como havia
suspeitado, Afonso estava no prédio no dia em que Nina fora sequestrada, uma câmera lateral no
estacionamento pegou o momento em que o infeliz entrou empurrando o carrinho de compras de uma
moradora, provavelmente por conhecê-lo da portaria, ela não estranhou nada. Isso foi alguns minutos
depois de Nina e Ben chegarem. O som estridente de uma buzina me fez olhar para o lado, estreitei
os olhos, tentando focar no motorista.
Era ela.
Se eu não estivesse vendo com meus próprios olhos, não teria acreditado.
Era Camille na direção de um carro. Ela parecia estar gritando, fazendo gestos nervosos e
precipitados, enquanto segurava o volante com uma mão só. Um arrepio severo na minha nuca me
congelou.
Era um aviso.
O carro estava chegando perto, e numa brecada ele parou e ela começou a correr. Correr para
mim. Numa fração de segundos, eu passei a realmente avaliar o que estava para acontecer.
Minha morte.
Um carro com os vidros insufilmados estava parado do outro lado da rua, três homens estavam
saindo de lá. Armados. Ao que parecia não tinham me notado ainda. Meu pânico cresceu
consideravelmente, ela ia ficar na mira também. Eu já tinha visto cenas como essas em filmes de
ação e todas elas acabavam com alguém morrendo, era como se o ar estivesse faltando, não pelo
medo do poderia acontecer comigo, e sim com o que aconteceria se ela chegasse perto de mim. Eu
não conseguiria acertar aos três de uma vez só. Se tivesse um pouco de sorte, acertaria um deles sem
ser atingido. Puxei a arma do coldre discretamente escondido na minha cintura, Camille estava perto.
— Volte! — Gritei para ela, quando um tiro deles acertou meu ombro de raspão, a expressão dela
foi de pânico. Camille olhou para o outro lado da rua e ao invés de me obedecer começou a correr
mais rápido, um carro freou, cantando pneus na minha frente e eu consegui atingir um deles, parecia
que tudo ao redor tinha se tornado um inferno fora de hora, pessoas correndo, e tentando se proteger.
Sem ter o que fazer corri na direção dela, no intuito de arrastá-la para trás do carro mais próximo. As
lágrimas silenciosas escorriam pelo seu rosto, meu coração batia de um jeito louco, então nos
encontramos no meio do caminho e ela caiu nos meus braços, depois do som oco de uma bala. Tive
tempo de olhar seus olhos, as duas esferas verdes, arregaladas, enquanto a vida escorria junto com as
últimas lágrimas. Minha mão ficou úmida a bala tinha atravessado e acertado Camille. Abaixei-me
com ela atrás de um veículo, desesperado, os seus olhos ainda estavam semiabertos.
— Foi você... — sussurrou, com os olhos nublados, sinal de que a inconsciência estava próxima.
— Pelo amor de Deus, que porra você veio fazer aqui? — Minha voz não saiu brava como pensei.
Foi um sussurro cheio de dor. Amparei-a com apenas uma mão, enquanto tirava a blusa com
dificuldade. O peso dela tinha aumentado, sinal de que já estava inconsciente. O barulho dos tiros
tinha diminuído. — Meu Deus... De novo não... Camille, amor... Meu Deus... — Coloquei a blusa
embaixo da minha mão para estancar o sangue e olhei ao redor. Um deles estava vindo, apontando a
arma para mim, tudo pareceu estar em câmera lenta e então, o som do tiro. Esperei que a dor bruta
viesse, mas não veio. O sujeito caiu de joelhos e depois o corpo inteiro foi ao chão. Andrea veio
correndo para perto de mim, depois de guardar a arma.
— Você está ferido. — Foi uma afirmação, mas eu não sentia nada, não na minha carne, todavia
sentia-me esfolado por dentro. Ela evitou olhar para Camille. Provavelmente sem querer acreditar no
que estava vendo, mas as lágrimas silenciosas que desceram pelo seu rosto me mostravam a
realidade nua e crua. — Temos que tirá-la daqui. — Continuou, num tom agressivo, uma reação
automática que ela tinha a momentos como esses.
Ergui-me do chão com a garota mole nos meus braços, minha camisa já estava ensopada. Não tive
coragem de olhar sua pulsação. Minha mente só pedia para que se houvesse um Deus realmente, que
ele não a levasse, que não me fizesse passar pelo inferno de novo. E novamente a culpa era minha.
Sempre tive um alvo nas costas, tinha que tê-la mantido longe de mim.
Estou apaixonada, Marcone...
O tom de voz doce que ela usou para me dizer isso foi como uma punhalada no meu peito agora.
Eu também estava. Estava apaixonado. E devia ter sabido desde o primeiro beijo que a nossa história
terminaria assim. Homens como eu não tinham finais felizes. O que eu esperava? Viver feliz com ela?
Com todos os inimigos que eu tinha? Eu realmente esperava isso?
Já tinha socorrido agentes baleados, vítimas, mas o sentimento agora era outro, a dor era
lancinante, parecia que não estávamos saindo do lugar, que não chegaríamos a tempo à clínica.
Atravessei as portas da recepção desesperado, Alexandre estava saindo por uma porta branca e
estancou ao me ver.
— Faça alguma coisa por ela... — Eu implorei assim que cheguei perto dele. — Por favor...
Os olhos dele deixaram os meus e encontraram o rosto inconsciente de Camille. Minha Camille.
Os seus dedos longos pousaram no lugar onde não tive coragem de colocar os meus.
— Por favor...
— Doutor. O helicóptero está esperando. O voo para São Paulo está marcado para daqui a vinte
minutos. — Uma voz extremamente profissional soou atrás dele, não sei se ela estava ciente do que
estava acontecendo, e também não fiz questão de olhar para ela.
— Cancele, Julie. — Ele disse, colocando a maleta que carregava sobre o balcão e acenando
para alguém atrás de mim. — Venha.
Eu o segui cegamente pelo corredor, sem me importar com as pessoas que olhavam de mim para
ele. Alexandre abriu uma porta e deu espaço para que eu passasse, coloquei Camille sobre a cama,
uma garota toda vestida de branco entrou trazendo alguns utensílios, luvas, uma touca. A sala era
esmagadoramente branca, cheia de equipamentos, o cheiro de éter estava me deixando com uma
sensação forte de ansiedade e sufocamento.
— Você está sangrando também. — A voz forte fez um eco na minha cabeça. — Chame Lucas para
tirá-lo daqui, Julie. Ele também está perdendo sangue.
Olhei para ele, provavelmente com cara de poucos amigos.
— Ela não pode morrer, você ouviu?
— Não pode ficar aqui — disse com cautela. — Vai ter de confiar em mim.
Olhei para Camille, as duas enfermeiras já estavam cortando o vestido ensanguentado dela. Insisti
olhando para seu rosto, esperando que ela abrisse os olhos. Que aquela intensidade verde me fitasse
agora. Todavia, não aconteceu.
Não houve sinal, ou reação.
53
Marcone
Pela décima vez, ou talvez passasse disso, eu levantei a cabeça ao ouvir passos, imaginando ser
Alexandre ou qualquer médico para me dizer como ela estava, mas estava enganado novamente. Os
minutos transformaram-se em horas sem notícia alguma que me desse alguma esperança de que
Camille estivesse bem... ou viva. Durante esse tempo todo o que fiz foi amaldiçoar a mim mesmo por
não ter enfiado uma bala na testa de Enzo quando tive oportunidade. Antes de sair do hospital
completamente desnorteada, Andrea me contara o que Camille lhe dissera ao telefone: que eu iria
morrer, que Enzo havia feito alguma coisa. Senti o peso da culpa, uma que estava difícil carregar. A
possibilidade de ele estar com Nina passou pela minha cabeça não uma vez só, mas várias e devia
ter passado pela de Camille também, mas ao invés de dividir comigo, tentou resolver sozinha. E mais
uma vez alguém se machucou no meu lugar, a dor parecia pesar toneladas, nem mesmo os furos de
bala estavam doendo tanto quanto a culpa e a raiva que me rasgava o peito. E pensar que se ela não
tivesse agido pelas minhas costas eu estaria morto agora, era como se a história estivesse se
repetindo, como se a vida perversa como era tivesse me dado um pequeno pedaço do paraíso, para
depois me jogar direto no inferno.
Porque era exatamente o que eu estava sentindo agora.
Ouvi passos novamente, mas dessa vez permaneci com a cabeça baixa, irritado demais comigo
mesmo e com a cabeça imersa em merda, incapaz de qualquer raciocínio lógico.
As circustâncias nunca estiveram tão contra mim, ao mesmo tempo que eu precisava ficar, tinha
consciência que a cada minuto que passava a vida da minha irmã estava mais em jogo, a cada
segundo ela podia estar sendo machucada, Nina devia estar com medo, perguntando-se se eu não iria
encontrá-la.
Recusava-me a pensar que ela podia já estar morta.
Considerando que eu não fazia ideia das motivações que levaram aquele filho da puta a levá-la.
Ele era completamente ficha limpa, até mesmo as restrições encontradas em seu cpf era relacionada
aos remédios da filha, aos tratamentos dela. Reunindo uma força que não sabia existir em mim,
levantei-me do canto gelado em que estava e olhei ao redor, procurando pela garota que Alexandre
chamara de Julie.
— Há alguma notícia? Qualquer uma... — inquiri à outra garota, li o nome Samanta em seu crachá
e chegou a parecer uma piada mórbida.
Ela fez que não, parecendo realmente triste por não ter nenhuma notícia para me dar e claramente
com pena de mim. Nesse momento vi Naiá entrar pelas portas de vidro da recepção, fora um pedido
meu a Andrea, avisar a babá de Camille sobre o que tinha acontecido. Os pais dela entraram logo
atrás da senhora.
— Ela está bem? — ela me perguntou, chorando, tal qual uma mãe faria.
— Ainda não há notícias. — Abracei-a com cautela.
— Foi ele, não foi? — Fungou, soluçando.
Não respondi, o único culpado era eu, foram pequenos errinhos inocentes, o pior deles fora deixar
aquele moleque vivo, um erro que eu consertaria logo que saísse daqui, eu queria vê-lo sangrar.
Viramo-nos quando ouvimos o som de passos, a cara de pesar de Alexandre quase me fez recuar,
imaginando o pior e tudo ao redor me incomodou, a conversa de visitantes na recepção, a claridade
do sol que entrava pelas portas duplas de vidro — como ele podia brilhar desse jeito num dia como
esse, nuvens que precediam tempestades eram mais adequadas e aceitas nesse momento.
Era como eu me sentia por dentro, uma tempestade sem fim.
— Ela perdeu muito sangue. — Ele se dirigiu a mim.
— Somos os pais dela. — Joice o interrompeu, mas não consegui nem sentir raiva dela, apenas
medo do que ele tinha a dizer.
— Quase perdemos sua filha. Ela perdeu muito sangue. — Fez uma pausa e me encarou, prestes a
falar sobre o real estado dela.
Parei de escutar quando ele disse as palavras: coma e muito grave. De repente tudo escureceu e
eu só conseguia pensar que estava revivendo o passado.
Outra vez.
Sem conseguir assimilar o que era presente e o que era passado, saí dali, desnorteado. Ainda ouvi
Alexandre e o choro de Naiá, mas continuei andando, mesmo sem saber para onde.
Era a mesma sensação de culpa, a mesma dor dilacerante e o remorso, esse me esmagava
duramente, fazendo-me reviver meus piores momentos do passado. A dor, a vingança, o fundo do
poço e a forma como saí dele, todavia dessa vez eu não me via seguindo em frente caso toda essa
merda não fosse revertida. Passaria cada um dos meus dias me culpando por ela e por Nina, a minha
incompetência em protegê-las me seguiria sempre, o sangue de cada uma delas me sujaria a ponto de
nunca esquecer. De nunca sequer conseguir dormir sem que o rosto das duas me assombrasse, porque
eles não saiam da minha cabeça agora.
A lembrança do que me foi tirado.
Minha irmã e minha mulher.
De dentro da viatura, vi o momento em que o idiota saiu do carro, empertigado num terno caro,
agindo como se não fosse um assassino, um traficante e uma pessoa, se é que podia chamá-lo assim,
da pior espécie. Como se tivesse vida própria, meu dedo roçou o gatilho da glock, um desejo insano
de dar um fim no sujeito. De fazê-lo sangrar tal qual ele fizera com a garota que eu amava.
Queria ter dito isso a ela. Queria ter dito que a amava. Queria ter dado um anel, dito com todas as
letras que a queria para mim e para sempre. Enquanto nós estivéssemos vivos. Recusava-me a
pensar que poderia nunca mais ver a intensidade que transbordava dos seus olhos quando me
encarava, a risada que me fascinava.
Todo o encanto inconsciente que ela tinha.
Eu não podia perder isso.
Não podia perdê-la.
— Como está seu ombro? — Andrea perguntou, olhando para o infeliz. Outra viatura parou atrás
de nós.
— Não estou com dor, Andrea. — Não dor física.
Ela respirou fundo e eu fiz um gesto para a viatura de trás, dois agentes saíram de lá e o
abordaram, mas o que fez o homem enlouquecer foi me ver saindo do carro.
Era como se estivesse vendo um fantasma, alguém que deveria ter feito a passagem para o além
uma hora dessas. Meu lábio chegou a curvar num sorriso cheio de significado, não tinha a ver com
humor e sim com raiva. A pior delas.
Era pessoal. Tanto para mim, quanto para ele. A adrenalina, aquela que corria pelas veias quando
eu sabia que uma merda ia acontecer.
Foi o que senti.
Como se eu soubesse o que Enzo iria fazer.
E como um louco ele sacou a arma da cintura e mirou em mim, com a mão ruim, a mão
machucada. Duvidava muito que ele conseguisse apertar o gatilho de maneira que realmente me
acertasse.
— Eu espero que você não erre. — Andrea disse ao meu lado.
Tanto eu quanto ela já sabíamos que o idiota faria uma cena como essa, esperávamos por isso.
As pessoas começaram a correr quando o viram armado, em um momento ele estava apontando
para mim, no outro já estava descontrolado, percebendo tarde demais que estava cercado, sem
opções. Girando como um louco com a arma em punho, correndo o risco de acertar qualquer um que
passasse pela sua frente. Foi nesse momento em que mirei nele, esperando que o infeliz olhasse na
minha direção, queria que ele soubesse que era eu a lhe dar o fim que merecia.
E foi o que aconteceu.
A minha noite foi passada em claro, diante da casa de Afonso. Era o endereço mais recente dele,
era o que estava nas informações que Benjamin conseguira durante a tarde. A internet e a mídia
estavam tão empenhadas em expor a prisão de Heloísa Coimbra e os crimes da mulher, que a morte
do filho dela a caminho do hospital passara quase despercebida. Assisti a coletiva de imprensa que
Andrea deu, logo após a prisão da traficante classuda e arrogante sem prazer algum, realmente
cansado de tudo isso. E pela primeira vez, pensando que talvez o melhor para minha vida tivesse
sido seguir o caminho do meu pai, como ele queria. Nina estaria segura agora, longe de toda a
violência que girava em torno de mim. Analisei a rua deserta e mal iluminada, reconhecendo o lugar,
mas sem me lembrar em que momento estive aqui. A residência também não era estranha, apenas
quando a mulher da casa ao lado saiu para colocar o lixo é que recordei quando estive aqui. Semanas
atrás com Camille, para visitar uma garotinha. A constatação de que Isabelle podia ser a mesma
menina da qual Nina me falara me deixou nervoso e ainda mais confuso. Que sentido final teria ele
estar com minha irmã? Dinheiro? E porque ainda não havia entrado em contato?
A mulher, e vizinha de Isabelle assustou-se com o som da batida da porta do carro.
Provavelmente, temendo o pior, ela tentou andar depressa para entrar em casa, mas eu fui mais
rápido que ela.
— Não vou machucar você — avisei, quando cheguei perto já na calçada. — Sou policial.
A mulher olhou para os lados, e depois relaxou um pouco mais. Imitando-a, eu entendi que meu
reconhecimento inicial não se dava apenas pela visita que Camille e eu fizemos a Isabelle, esse era
um dos bairros que adotara o toque de recolher por causa dos assassinatos em série. Minha cabeça
latejou com a possibilidade... recusei-me a pensar na ideia.
Não podia ser.
A idade. As características físicas. Tudo nela batia com as outras vítimas, se eu não tinha chorado
antes, meus olhos arderam apenas com essa possibilidade.
— A garotinha... — comecei, tentando raciocinar para encontrar logo esse infeliz e ter uma ideia
de que merda havia acontecido.
O homem era acima de qualquer suspeita. Mas os pscicopatas não eram assim?
— Isabelle? — sussurrou e olhou na direção da casa.
— Sim, onde ela está?
— Com o pai. — Olhou-me atentamente. — Lembro de você, esteve aqui com aquela moça gentil
que dá aulas de pintura.
— Sim, e então me diga. Onde eles estão? A menina e o pai?
— Ele me deu um endereço, disse a mim que se ficasse muito tempo sem dar notícia, eu devia ir
até lá e buscar a criança.
Um fio de esperança, agarrei-me a ele.
— Então me dê esse endereço.
A mulher parecia dividida e amedrontada, sem saber se confiava em mim ou não.
— Eu nunca machucaria aquela garotinha. — Não podia dizer o mesmo do pai dela.
A mulher assentiu e fez um gesto para que eu entrasse na casa, a primeira vista era possível ver a
pouca condição, telhado ruim, paredes cheias de rachaduras, um estado lastimável. Ela entrou num
cômodo fechado por um cortina velha e voltou trazendo o papel dobrado, provavelmente ainda
estava exatamente como recebeu.
— Ele fez algo de errado? — perguntou ela, abraçando o corpo como se sentisse frio.
A resposta era sim, mas não respondi, pelo contrário, fiz outra pergunta.
— Isabelle tem alguma família além dele?
Ela fez que não.
— A mãe dela morreu ao dar a luz, são apenas os dois. Aquele homem vive para aquela garotinha.
Suprimi a solidariedade que insistiu em crescer em mim, ele não passava do homem que era
responsável pelo sumiço da minha irmã, o que acontecesse a ela, aconteceria com ele também.
54
Marcone
O terreno cheio de pedras que me levou até o destino escrito no pedaço do papel, ficava numa
cidadezinha do interior do Rio de Janeiro chamada Magé, com exceção de conhecer a história da
estrada de ferro construída pelo Barão de Mauá, eu não sabia nada sobre aquele lugar e nem
conhecia ninguém. Não era distante, em menos de uma hora eu já estava passando pela entrada da
cidade. Também não foi difícil encontrar a casa estranha e distante do centro, embora houvesse
supermercados pequenos e farmácias por perto.
Estacionei o carro num lugar onde quem estivesse dentro da casa não me veria, o chão cheio de
capim alto dava a impressão de que não havia ninguém para cuidar realmente do lugar. A casa era
média, num estilo que denotava a herança histórica da cidade. O silêncio que na maior parte do
tempo era agradável para mim, tornou-se agourento, ensurdecer de algum modo. Conferi se a arma
estava carregada e me aproximei da casa, antes de entrar observei os fundos, se havia mais de uma
porta que desse acesso ao interior e opções de fuga para quem quer que estivesse ali dentro.
Para minha surpresa a porta da frente estava aberta, não fez barulho ao ser aberta, mas o assoalho
sim, esse gemeu com a minha entrada. Na mesa baixa também de madeira, alguns esboços de
desenhos estavam empilhados, junto com três lápis coloridos, sinal que a menina realmente estava
aqui. Andei pela sala, observando ao redor. Apesar de velho e gasto tudo parecia muito limpo, uma
janela grande estava aberta para que o vento entrasse e tomasse o espaço.
— Você conhece o meu papai? — Ouvir a voz da criança me fez paralisar por um momento, a
inocência da pergunta me deixou um tanto quanto envergonhado por tudo que pensei em fazer com seu
pai quando o encontrasse. Guardei a arma na cintura para que ela não visse e me virei devagar,
absorvendo a imagem da menininha careca.
— Sim. — admiti e me aproximei. Eu gostava dela. Era uma garotinha especial. — Onde ele está?
— Olhei em volta, tentando escutar qualquer barulho dos outros cômodos.
Isabelle estreitou os olhinhos antes de responder, como se soubesse que minhas motivações não
fossem boas.
— Ele foi comprar tomates pra fazer molho.
Com a espontaneidade que já lhe era habitual, a menina se sentou no sofá. Tranquila, como se um
inferno não se passasse na minha cabeça.
— Você gosta de macarrão com molho de tomate, tio Marcone? Meu pai faz e é muito bom.
— Sim, eu gosto. — Abaixei-me perto dela, com a cabeça quente e nervoso. — Eu estou
procurando uma garota. Peguei o celular e procurei uma foto de Nina e mostrei à pequena. — Você a
viu com seu pai?
Isabelle olhou a foto e os olhos se iluminaram.
— Sua irmã. — Fiz que sim, implorando a Deus ou a qualquer Ser Superior que a menina me
desse uma pista, qualquer uma. — Não vi.
A porta da frente se abriu e eu me levantei, esperando que o sujeito me visse e quando isso
aconteceu as sacolas de compras que estavam em suas mãos caíram no chão. Meu primeiro impulso
foi de torcer seu pescoço, no entanto eu não ia machucá-lo na frente da criança.
— Onde ela está, Afonso? É assim que se chama, não é?
Com uma aparência lastimável, o homem me olhou permanecendo quieto como se o gato tivesse
comido sua língua.
— Deixe minha filha ir embora. — o tom foi cansado, após um tempo e o medo de eu fazer
alguma coisa com a criança verdadeiro. — Eles a machucaram? — perguntou, parecendo preocupado
de verdade.
Pela janela, vi o momento em que Andrea se aproximou da entrada da casa, não demorou muito
para que ela entrasse.
— Quem se machucou, papai?
Isabelle não devia estar ali, porra. Não devia. Andrea e eu trocamos um olhar e ela aproximou-se
da criança com calma, e a tirou dali, todavia a menina só saiu quando o pai a encorajou.
— Eles a machucaram? — voltou a perguntar e minha raiva aumentou um pouco mais.
Eles.
— Onde está minha irmã? — perguntei, ignorando a pergunta ridícula e sem sentido.
— Eu não sei, eu juro que não sei. — respondeu, nervoso, suando e... arrependido.
— A quem você se refere quando diz eles?
O sujeito suou mais e permaneceu quieto, cheguei a me perguntar se ele tinha realmente me
escutado.
— Quem são eles? — Quase gritei dessa vez e a falta de resposta me fez perder a cabeça e
avançar, segurando o infeliz pelo pescoço. A coloração do rosto branco e gordo tornou-se vermelho
vivo.
— Alivie vai matá-lo. — Ouvi Andrea dizer, nem mesmo tinha percebido a entrada dela. —
Alivie agora! — disse com mais força quando não me movi.
Soltei-o abruptamente de modo que ele se curvou tossindo.
— Ela fazia lanches para você. — Gritei, com raiva. Minha voz se sobrepondo às tosses
estéricas. — Ela admirava você. — Lembrei-me da forma orgulhosa como Nina tinha se referido ao
fato de Afonso trabalhar várias horas por dia para pagar o tratamento caro da filha. — Ela admirava
você. — repeti, extremamente cansado.
Passei por Andrea e saí da casa, precisando desesperadamente respirar. A minha respiração
estava acelerada, meus batimentos cardíacos da mesma forma. A sensação que eu tinha era que iria
enfartar a qualquer momento, cansado de toda a merda ao redor. A esperança de ver minha irmã outra
vez escorrendo por meus dedos a cada minuto que passava, e eles estavam voando. Procurei me
acalmar e não olhar para a menininha dentro do carro distante dali. Voltei para dentro a tempo de
escutar o que ele estava dizendo a Andrea.
— Era ela ou a minha filha. — Os olhos do infeliz diziam a verdade e as lágrimas que ele deixava
escapar também.
— Dois homens. — Encarou-me. — Eu os abordei por ficarem muito tempo em frente ao prédio e
no mesmo dia eles apareceram na porta da minha casa... ameaçaram a minha filha. — Olhou a porta
agora fechada e depois me encarou novamente. — Era sua irmã ou Isabelle. Eu nunca quis machucá-
la.
Ele estava curvado, como se estivesse carregando um grande peso nas costas.
— Nunca quis machucá-lá — repetiu mais de uma vez, deixando-me nervoso outra vez.
— Porque não me disse? — inquiri.
— Eles disseram que saberiam se eu contasse a você. — Endireitou o corpo, ficando de pé.
— Você vai conosco, vai dar todas as características deles.
Afonso meneou a cabeça negativamente várias vezes, como se tivesse alguma alternativa.
— Vão machucar a minha filha... — suplicou.
— Você vai. E eu espero para o seu bem que não esteja mentindo.
Observei através do vidro a figura inconsciente de Camille, parecendo miúda e vulnerável demais
presa a todos aqueles aparelhos, vê-la desse jeito era tornar real a possibilidade de perdê-la.
— Ela é jovem e saudável. Vai se recuperar. — Ouvi a voz de Alexandre, mas não olhei para o
lado.
Permaneci atento a todos os detalhes que me diziam que o coração dela ainda estava batendo.
— A coluna dela... — O medo de que a bala deixasse sequelas irreversíveis era outra coisa a me
atordoar.
— Não houve lesão — disse num tom sério. — O primeiro impacto da bala foi na sua mão, isso
mudou de alguma forma o caminho dela.
Meneei a cabeça ainda custando a acreditar que ela tinha levado um tiro no meu lugar.
— Foi uma emboscada?
— Sim, ela só não devia estar lá.
— E quem fez isso?
— Está morto. — Olhei para ele pela primeira vez, encontrando pela primeira vez a semelhança
que tanto Francine como Camille viam em nós dois. — Era importante? — referi-me ao voo que ele
perdeu para cuidar da minha garota.
— Digamos que sim.
— Obrigado.
Ele assentiu uma vez.
— Já estive em seu lugar.
Embora não fizesse muito tempo que minha história cruzou com a dele, tudo que vinha
acontecendo de maneira rápida demais dava a impressão de que anos já tivessem se passado.
— Acho inclusive que devíamos parar de nos encontrarmos em situações como essas. Um chope
no final de semana é algo mais normal.
Concordei em silêncio.
Saí dali direto para meu apartamento, a fim de tomar um banho e ir para a delegacia. Ainda sem
saber o que fazer com Isabelle, não podia simplesmente entregar a menina a vizinha e deixá-la à
própria sorte, até porque se o que o pai da menina disse fosse verdade eles já deviam saber que eu
estava com ele e tanto ela quanto o pai corriam risco também.
A caminho do meu quarto, detive-me a soleira da porta de Nina. Estava aberta, entrei, com
saudades da encrenqueira, observando as coisinhas dela, sentindo uma dor tão insuportável a ponto
de me fazer sentar na cama pequena, que parecia caber apenas ela.
A vida podia mudar drasticamente em um segundo. Num piscar de olhos.
Uma pontinha prateada chamou minha atenção no canto em que a cama estava encostada na parede
embaixo da prateleira. Afastei os lençóis revirados para ver o que era e encontrei o celular dela,
toquei a tela, mas não houve resposta: descarregado. Saí do quarto com o aparelho na mão e o
conectei ao meu carregador. Deixei-o ali e fui tomar um banho, o momento em que o meu corpo me
lembrava de que eu tinha dois furos de bala. Assim que saí da ducha, tomei os comprimidos para dor.
Ainda enrolado na toalha, liguei o aparelho de Nina e coloquei a minha digital, que ela tinha
cadastrado para desbloqueio além da dela. Olhei imediatamente as últimas ligações — eu tinha sido
o último contato, a sua última ligação. A primeira pessoa que ela pensou em pedir socorro. E até
agora eu não havia feito nada para trazê-lá de volta. O histórico de chamadas girava em torno de
ligações da nossa mãe, Ben e eu. Pensar em Mara deixou meu coração apertado e ainda mais
preocupado, eu não ficava um dia sequer sem entrar em contato com ela, mas o medo de como minha
mãe iria reagir a tudo que estava acontecendo me fez ser cauteloso. Coloquei o celular sobre a mesa
e esfreguei os olhos, o movimento fez o ferimento do ombro queimar. Peguei novamente o aparelho
sem saber ao certo o que estava procurando nele, mas algo me chamava. Abri a galeria com as fotos
e vídeos e acessei a pasta de arquivos recentes.
Abri um vídeo que estava no topo, o mais recente dos arquivos — primeiro o rosto dela apareceu,
os olhos inchados, a expressão provando que estava chorando, embora não fizesse som algum. Um nó
que ameaçou me asfixiar se formou no meu estômago, esfriando-me completamente de dentro para
fora e parou na minha garganta, quando me dei conta de que aquele vídeo devia ser do momento em
que ela fora pega. O rosto de Nina sumiu quando ela ajeitou o aparelho na prateleira, deixando-o ali
e caminhando para a porta do quarto com a intenção de impedir quem a estava forçando de entrar,
provavelmente. O que não deu certo.
— Minha garota esperta. — Ela queria que eu soubesse quem eles eram. — Esperta demais.
O empurrão que o homem deu, fez minha irmã cair e bater a mão no alicate de unha, o que devia
explicar a gota de sangue. Pausei o vídeo no momento em que ele abaixou-se para segurá-la. A
tatuagem de caveira na costa da mão. Um reconhecimento que me gelou inteiro, corri para o quarto
dela em busca do caderninho que raramente via longe de Nina e onde ela escrevera a placa do carro
que nos seguia, agora eu tinha certeza.
Semanas atrás
— Eles estão nos seguindo? — Nina perguntou, parando de rabiscar no caderno pequeno e
olhando de relance para trás, ela era esperta de um jeito que me deixava orgulhoso.
— Vamos descobrir agora. — Peguei a arma do porta-luvas e coloquei sob a minha coxa,
enquanto reduzia a velocidade e parava no acostamento. Travei as portas e esperei.
O carro, um Sedan escuro, passou por nós numa velocidade moderada, de onde eu estava só
pude ver a mão tatuada de quem estava no banco do passageiro e pendia meio para fora pela
janela, a caveira desenhada tomava todo o dorso da mão, ainda tentei ver a placa do carro, mas
só memorizei as três primeiras letras — LPT.
— Já vi esse carro perto da faculdade algumas vezes. — retrucou ela, olhando-me, depois me
mostrou o que estava rabiscando. — Anotei a placa. — Deu sorrisinho convencido e fechou o
caderno, recostando-se no banco.
— Garota esperta. — Coloquei novamente o veículo em movimento. — O carro fica apenas
parado por lá?
— Eles devem ir buscar alguém que estuda na faculdade.
— Quero que me conte, caso continue acontecendo.
— Marco, não vai acontecer nada comigo. — Ela fez uma careta. — A universidade é segura.
— Lugar nenhum é 100% seguro.
Revirei o quarto em busca do caderno e o encontrei junto com seus livros da faculdade, fui
passando as folhas rapidamente e só consegui respirar outra vez quando encontrei o número da placa
escrita ali.
Pior que temer pela vida de alguém, era ter certeza absoluta de que algumas situações eram
irremediáveis.
— Nós vamos encontrá-la. — Benjamin repetiu veementemente, como se quisesse acreditar em si
mesmo. A pena que senti dele só não foi maior da que sentia de mim mesmo.
— Vou avisar a minha mãe.
Desde que Nina fora levada eu não atendia e nem ligava para Mara, não tinha palavras para
contar a ela o que havia acontecido. Mas agora não tinha mais como esconder, tudo se tornava pior a
cada descoberta. Olhei para a ficha do dono do carro na tela do computador.
Marck Tund.
A expressão severa do homem de meia idade não dizia nada para mim, o sobrenome dele sim.
Dizia muito na verdade. Que talvez o corpo da minha irmã fosse o próximo a ser encontrado e
provavelmente com alguma mensagem explícita para mim.
Uma vida por uma vida.
Não haveria pedidos de resgates, seria apenas uma execução, uma vingança relacionada a um
caso de anos atrás. Marck era primo de primeiro grau de Will Tund e tão fanático quanto ele, após
algumas buscas não foi difícil encontrar a ligação. Ele estava no Brasil quando Wiil foi preso, ele
apareceu em algumas poucas fotos publicas do primo. Ignorei a vontade de vomitar e levantei
abruptamente, fazendo a cadeira cair.
Eu só conseguia pensar que iria enfartar a qualquer momento, eram muitas emoções guardadas,
que eu não conseguia colocar para fora. Minha vontade era gritar até perder a voz.
— Aonde você vai? — Andrea inquiriu preocupada demais, até mesmo ela parecia ter perdido
qualquer esperança quanto a vida da minha irmã.
— Eu preciso ficar sozinho. — Saí dali desnorteado, como se cada esforço que fiz durante anos
tivessem sido em vão.
Vi-me como num livro onde os vilões esperavam o momento certo de atacar, de mostrar que eles
estavam ali, que eles prestavam atenção em silêncio, que algumas coisas aconteciam para o nosso
mal e para o mal de quem nós amávamos. Só percebi que estava chorando quando ficou difícil
demais enxergar o trânsito a minha frente, os carros nada mais eram que borrões vermelhos e
amarelos, enxuguei o rosto com o pulso, sabendo exatamente para onde estava indo, embora
duvidasse muito que o desgraçado estaria lá.
Entrei no prédio de pouca qualidade e segurança, havia apenas uma senhora de cabelos
extremamente brancos na recepção estranha e mal decorada. De imediato mostrei o meu distintivo a
ela, o que a deixou assustada e curiosa ao mesmo tempo.
Sem muita hesitação a senhora me deu a chave extra do quarto de Marck.
Deixei a arma pronta se fosse o caso, e abri a porta. A sala estava vazia, silenciosa. O último
cômodo em que entrei foi o quarto e esse me deu uma ideia de quem ele era.
— Fanático do caralho!
Em todas as paredes havia uma foto de Will e num quadro os recortes de todas as notícias
vinculadas aos assassinatos dele. A certeza que minha irmã estava com ele me deixou sem chão, sem
ter mais certeza do que aconteceria com ela ou até mesmo se ela ainda estava viva. Relembrar o
estado deplorável que as garotas estavam quando eram encontradas, deixou meu coração gelado.
Imaginar qualquer um dos abusos acontecendo com Nina me tirava o controle, o raciocínio.
Abri a porta do armário e retirei o notebook de lá, havia fotos de Nina, do prédio e dela
conversando com Afonso. Sinal de que o homem estava falando a verdade, eles acompanharam a
rotina dela, e de alguma forma souberam que eu não estaria em casa naquele dia e naquela hora.
Vasculhei tudo em busca de qualquer indício de onde ela pudesse estar, mas não encontrei
realmente nada que me levasse a algum lugar. Os arquivos eram apenas fotos, não havia e-mails
trocados, conversas paralelas, apenas fotografias.
Voltei para sala quando escutei o ruído de porta sendo aberta e encontrei o infeliz parado a
soleira, como se soubesse que alguém estava ali. A aparência e porte físico dele fez-me lembrar de
outra pessoa, o corte de cabelo, os olhos iguais aos de Will continham o mesmo brilho cruel.
Com calma, ele fechou a porta atrás de si, parecia completamente tranquilo quanto a eu estar ali.
Como se soubesse.
— Não vai me matar enquanto não souber onde sua irmã está, não é? — O sotaque deixava a voz
ainda pior. — Confesso que estou impressionado. Como me encontrou?
Sem paciência alguma para qualquer uma de suas perguntas, eu mirei a arma na sua cabeça, sem
saber ainda se teria coragem de matá-lo se ele era a única pessoa que podia me dizer onde Nina
estava.
— Cadê ela? — inquiri.
Marck me estudou por alguns segundos.
— O desespero que sentimos quando algum ente querido morre é... terrível. — filosofou, com
evidente prazer. — Mas, o que você está sentindo é infinitamente pior. O estresse antes de ter um fato
concretizado, a esperança misturada ao medo de achá-la viva... ou morta, isso é pior. — Coçou o
queixo ainda no mesmo lugar.
Ele tinha razão. Era exatamente isso.
— Claro que o fato de você ser o culpado deixa as coisas piores.
— Fala onde ela está, porra! — Gritei, atingido pelas palavras que eu dizia a mim mesmo com
frequência.
O culpado era eu.
— Sabe que não vou dizer. — A calma num momento como esse era pior que a violência, o que
Marck demonstrava era que não tinha nada a perder.
Eu sim.
Demonstrando uma fraqueza que eu não queria, encarei o desgraçado.
— Ela está viva? — O meu tom fez o homem sorrir, gostando do meu tormento.
Houve um momento de tensão e então ele tirou a própria a arma da cintura, no entanto ao contrário
do que esperei ele mirou na própria cabeça.
— Você nunca vai saber.
O som da bala junto com o tombo do corpo dele no chão, manteve-me sem reação por muito
tempo, o que me tirou do estado letárgico foi o toque do celular dele, caminhei até o corpo inerte,
vendo o sangue se espalhar pelo assoalho e encontrei o aparelho em um dos bolsos.
Atendi a ligação e a voz do outro lado da linha me fez olhar de novo para o morto. Percebendo
somente agora porque todos os meus alertas gritavam contra um sujeito em especial. Entendendo
porque eu o reconhecia mesmo sem saber de onde, o quebra-cabeça se encaixando perfeitamente. Os
motivos pelos quais eles sabiam da viagem. Porque sabiam da minha irmã.
— Ele está morto. — A raiva falou por mim, ouvi o silêncio sepulcral do outro lado da linha
ciente de que Erick reconheceria a minha voz. Após um engolir em seco audível a chamada foi
encerrada.
Após uma ligação minha para os civis, o prédio foi tomado pela polícia, dei o meu depoimento e
saí dali. Questionei minha confiança em Andrea pela primeira vez, meu lado racional me dizia que
ela nunca armaria contra mim e estava sendo tão enganada quanto eu. A minha parte irracional, essa
dizia que eu não devia confiar em ninguém.
55
Nina
Outro jato de água caiu sobre mim e meu corpo tremeu ainda mais, cada vez que a água caia ela
parecia estar mais gelada, de forma que todos os meus músculos retraiam, eu conseguia ouvir os
meus dentes batendo. A outra garota estava desacordada, eu já tinha tentado sair da posição em que
estava para tentar acordá-la, mas tudo doía só de pensar nisso, e então mais água vinha, molhando-
me inteira, escorrendo pelo meu corpo nu desde os cabelos até os pés.
Uma purificação.
Foi o que Erick dissera, que eu precisava estar pura para morrer. Estava rouca de tanto gritar e
perguntar o porquê dele estar fazendo isso ou chamar pelo meu irmão. Eu me recusava a dormir.
Tinha certeza que ele viria. Voltei a contar de um a mil, uma forma de deixar meu cérebro ligado e
tirar a atenção das dores que sentia, ainda assim algumas lágrimas vieram. Elas sempre vinham
quando eu ouvia passos, o medo de que ele me matasse porque era o que iria acontecer segundo ele.
Não havia escapatória ou lugar a ir.
Marcone
Além de Andrea, Benjamim e mais três agentes estavam na sala de inteligência da delegacia. O
meu estado de espírito passou despercebido para os outros, mas não para ela. A mulher me conhecia
demais, a arma que eu carregava também foi vista por ela dado ao olhar letal que me lançou.
— Que porra aconteceu? — inquiriu ela, olhando-me.
— Onde está Erick, Andrea?
Analisei cada reação dela, mas não houve nada agressivo. Ela só me encarou por muito tempo,
como se o nome do homem com quem vinha dormindo não significasse nada. Mas notando em mim a
desconfiança, éramos iguais em muitas coisas.
— Onde? — Dessa vez eu gritei, alterado e os homens ao redor não entenderam.
— Eu acho melhor você esfriar a cabeça. — Foi o que ela disse, e com o rosto totalmente
contorcido veio até mim, senti vontade de me afastar. Doendo-me por dentro só de imaginar que ela
fizesse parte disso tudo. — Calma. — Contrariando tudo que imaginei, ela segurou meu rosto e me
fez olhá-la nos olhos. — Calma. — repetiu.
— Ele está com ela. — Muitas emoções passaram por seu rosto, desde a incredulidade a raiva,
mas nenhuma condescedência.
O celular dela tocou e eu vi o nome dele, assisti sua mão tremer levemente e com um toque ela
atendeu a ligação no viva-voz.
Primeiro houve silêncio, cheguei a me perguntar se o desgraçado não iria falar nada.
— A essa hora você já sabe. — o sujeito disse do outro lado da linha. — Você não se apaixonou
por mim, se apaixonou?
Visivelmente ultrajada, ela colocou o celular sobre a mesa mais próxima e cruzou os braços,
demonstrando uma vulnerabilidade que raramente via nela.
— Ah, claro que não... — o miserável respondeu a própria pergunta, olhei para o aparelho, assim
como ela fazia. Vi a movimentação de Ben para rastrear a chamada. — Ele está aí, não está? — Ouvi
uma risada baixa, que pôde ser ouvida devido ao silencio mortal na sala. — Ele sabe, minha bela?
Senti-me congelar por dentro, sem saber o que esperar.
— Não se atreva. — Andrea reagiu pela primeira vez, entre dentes, como se soubesse exatamente
o que Erick diria.
— Tão durona e tão carente, não é, Andrea?
— Onde ela está? — perguntei, odiando as coisas que ele estava dizendo, um mal pressentimento
se formando dentro de mim, acumulando-se a todos os outros.
— Ele nunca te enxergou, não é? — O miserável continuou, ignorando-me por completo. — Como
você consegue? Toda essa lealdade?
O silêncio seguiu áspero como se pudesse ser tocado.
— E você, Marco? — dirigiu-se a mim. — Nina grita esse nome o tempo todo aqui. Como se
você pudesse escutar ou fazer alguma coisa.
Mesmo indiretamente o desgraçado me deu certeza de que ela estava viva, agarrei-me a
informação e olhei para Benjamin, ele fez que não. Sinal de que não tinha conseguido rastrear nada.
— Mas estou curioso. — Fez uma pausa. — Nunca percebeu que ela é apaixonada por você?
Perdi a voz, ou qualquer reação, meu pescoço girou automaticamente para onde Andrea estava.
Pálida, nervosa, fitando o aparelho como se fosse destruí-lo com as próprias mãos. Lentamente os
olhos dela encontraram o meu rosto, e eu soube que ele não estava mentindo. O peito dela subiu e
desceu de um jeito descompassado, o tempo pareceu parar, enquanto eu a observava. A vergonha, a
humilhação, e uma espécie de ultraje doloroso cobriam a face extremamente branca. Num estopim,
Andrea saiu dali correndo, deixando-me totalmente confuso e com um ódio muito maior desse cara.
— Consciente ou inconscientemente, você conseguiu ferir todas elas. Todas as três mulheres da
sua vida. — Fez uma pausa. — Claro que eu tinha um plano muito melhor para a sua garota, mas
chegaram antes de mim. Como você se sente? Sem controle, sem direção, sem saber de onde vem o
próximo golpe? Estou louco para saber. Porque foi assim que eu me senti quando meu pai foi preso...
e depois morto como um animal.
Pai.
— Ele era um estuprador, porra! — O lado extremo, moldado na raiva e na dor começava a
emergir, a ganhar espaço. Puxei o ar com força, sentindo-me um imbecil de marca maior. Ele tinha
razão, eu tinha ferido as três, a culpa era minha. — Eu vou caçar você como se caça a um rato, e
quando eu te encontrar...
— Você vai me matar? Há coisas piores do que a morte... Por exemplo, você ser o responsável
pela morte da sua irmã... Vai conviver com isso? Sabe o que é ver sua mãe adoecer e perder o juízo
porque o marido não voltou para casa?
— E quanto às meninas que ele estuprou e matou? Que também não voltaram para casa?
— Elas estão num lugar melhor, purificadas e vivendo para o prazer.
O filho da puta carregava a mesma loucura do pai. A mesma loucura. As mesmas crenças. A
mesma insanidade.
A ligação foi encerrada, um bolo desagradável se formou na minha garganta, permaneci encarando
o aparelho, sentindo um peso inumano nas costas.
Saí dali, sentindo-me um crápula, Andrea estava encostada no próprio carro, consertou os óculos
assim que me viu.
— Quanto tempo, Andrea? — No fundo, eu tinha medo da resposta.
— Vai considerar as merdas que aquele... — Ela desviou o olhar, talvez entendendo que era
melhor dizer a verdade. — Muito tempo.
Senti um soco no estômago. Muito tempo. E eu não percebi.
— Antes de Sam.
Travei o maxilar, passando uma das mãos pelos meus cabelos.
— Como eu nunca percebi, Andrea? — Aproximei-me, temendo que as coisas mudassem a partir
de agora.
— Porque eu nunca quis que soubesse. — Ela tirou os óculos e os colocou novamente. — Você é
o meu melhor amigo. — Encostou o rosto no meu peito e eu a abracei. — É assim que tem que ser. —
Ela afastou o rosto para me encarar. — Não muda nada.
Em pensar que num momento irracional cheguei a desconfiar dela.
Com pesar ela se afastou, olhando para um canto qualquer do estacionamento.
— Eu estava literalmente dormindo com o inimigo. — Olhou para mim. — Chegou a pensar que
eu soubesse?
— Sim. — admiti e ela se retraiu ofendida.
— Vocês são minha família.
— Eu sei.
Entreolhamo-nos e ela veio me abraçar outra vez. Deixei-me levar pelo conforto, não me
lembrava a última vez que tinha dormido ou respirado de verdade, muitas coisas aconteceram ao
mesmo tempo.
— A mãe dele pode saber onde ele está. — disse ela de repente.
— Você a conhece? — inquiri, lembrando-me de como Erick havia se referido a mãe, como
alguém sem juízo.
— Sim, já estive com ela algumas vezes.
Andrea dirigiu dessa vez, segundo ela precisava descarregar a raiva.
— Como descobriu? — inquiriu ela, mostrando-se agitada atrás do volante.
— Marck se matou na minha frente, e vê-lo pessoalmente me lembrou que sempre achei Erick
familiar, eu só não lembrava quando o tinha visto, mas ele é idêntico ao pai e a Marck. O mesmo
cabelo, a cor dos olhos, os traços e o fanatismo. Ele está matando essas garotas, fazendo o que o pai
fez. — fiz uma pausa. — Ele sabe como trabalhamos, Andrea.
— As perguntas dele fazem todo sentido agora. Se eu não o tivesse levado a aquele jantar na casa
de Ben, Erick não saberia sobre ela.
— Ele sabia muito antes disso, estavam acompanhando a nossa rotina há muito tempo. — Olhei-a.
— Ele não quer me matar, Andrea. Se quisesse já teria feito. — Não foram poucas as operações em
que estivemos na mesma equipe. — Ele mataria vocês três, apenas para me enlouquecer.
Camille. Nina. Andrea.
As três mulheres da minha vida.
Cada uma delas tinha uma parte de mim, da minha lealdade e do meu amor.
Em posições diferentes, mas com valores exatamente iguais.
— A clínica em que Camille está é segura? — inquiriu ela, preocupada.
Nenhum lugar era.
— Não a deixei sozinha lá.
Embora Camille não soubesse, havia pessoas que a amavam. Naia e Miguel. O motorista e mais
dois seguranças não deixavam de vigiá-la hora alguma, revezavam-se entre si, e não havia sido eu a
pedir. Eles se ofereceram. Ela precisava acordar para descobrir o quanto era querida.
A senhora que abriu a porta da casa para nós era extremamente magra e cheia de rugas, não havia
nada do filho nela, só um ar de bruxa. Das piores. Assim que entrei na sala senti-me no território do
inimigo, porque a mulher não deixava de olhar minha cara. Ela sabia quem eu era. Sabia que havia
sido eu a entregar o marido dela a prisão que ele merecia.
Percebi também que ela era brasileira com traços indígenas.
— Rute.
Andrea chamou a sua atenção, mas a senhora não moveu sequer um músculo para deixar de me
encarar. Eu, todavia, olhei todos os cantos que podia — era uma casa grande e se ele estivesse
exatamente aqui? Dei um passo a frente e a velha recuou, como se fosse eu o monstro. Para ela eu era
o vilão e talvez fosse, afinal estávamos de lados opostos. Ela enxergava os fatos ao modo dela,
sendo condescendente com os crimes do marido. A conclusão que cheguei é que eram todos doentes:
ela, o marido e o filho.
— Onde está seu filho? — inquiri, estava se tornando uma pergunta chata. Porque a resposta que
eu queria nunca aparecia.
— Eu não sei. — disse, finalmente.
A sala ficou em silencio, e eu escutei o som de água caindo. Como num chuveiro grande.
— Você está aqui sozinha? — inquiri, olhando em direção ao corredor escuro, sem saber
exatamente de onde vinha o som.
— Não tenho obrigação de responder nada ou de dizer onde está meu filho. — respondeu de
forma grosseira. — Mas, fique a vontade para procurar.
Finalmente o ressentimento estava ali escancarado, não os julgava por me odiarem, mas que
tivessem feito mal a mim e não a alguém inocente. As motivações deles tinham a ver com a família,
nesse momento às minhas também. Então não me importava quem eu teria de machucar até encontrar
o desgraçado.
— De onde vem o som da água que está caindo? — inquiri, sem me importar se ela daria outra
resposta ácida.
— Há um vazamento no banheiro, a água escorre o tempo inteiro. — Olhou-me com raiva. — Mas
meu filho não está aqui para consertar. — gritou fora de si. Mas não senti pena, a essa altura eu não
tinha nem tempo para isso.
Nesse momento senti vontade de ter os mesmos sentidos de Bella, eu sentiria o cheiro de Nina se
ela estivesse aqui. Ouviria seus gritos se fosse o caso.
Andrea caminhou para o corredor e desapareceu, talvez indo checar o que a velha tinha dito.
Encaramo-nos por muito tempo, a tensão parecia que ia fazer a casa ir pelos ares.
— Não tem ninguém aqui. — Andrea avisou, voltando por onde havia ido.
Ainda assim continuei a encarar a mulher, minha intuição mandando que eu a apertasse até que
algo saísse, recusando-me a sair dali sem uma resposta.
— Você viu o que aconteceu com seu marido. — Cruzei os braços realmente curioso. — Porque
acha que vai ser diferente com seu filho?
Esperei ver medo, receio e até raiva nela, todavia o que ela respondeu soou num tom calmo.
— Se você sentir um pouquinho do que sentimos, e eu sei que sente. Erick não se importa de
morrer...
Eram todos loucos, porra.
— Se minha irmã morrer, você não vai vê-lo nem para enterrar.
Saí da casa e antes de entrar no carro tirei o celular do bolso e fiz uma chamada para Benjamin.
— Conseguiu a localização dele? — inquiri, ouvindo Andrea atrás de mim.
— Não, cara.
Cerrei os dentes e me virei para olhar a casa atrás de mim. Vi a infeliz doente olhando na minha
direção através da janela, como em um filme de terror do caralho.
— Eu quero que você traga Bella.
Guardei o celular no bolso, após encerrar a ligação e virei para Andrea, ela parecia perdida,
desorientada.
— É como se eu estivesse num pesadelo. — disse ela, a beira das lágrimas, sem olhar realmente
para lugar algum, afastando-se de mim ela se curvou para vomitar em um canto qualquer.
Aproximei-me para segurar os seus cabelos e ampará-la.
— Eu dormi com ele. — lamentou, como se sentisse nojo de si mesma. — Você entende o que isso
significa? Eu dormi com ele...
— Significa que você não fazia ideia.
Olhou-me, lamentando e meneou a cabeça numa negativa.
— Você me avisou.
Ela olhou para a casa e eu a imitei no momento em que a mãe de Erick fechou o cortina da janela.
— Ele está aí. — Eu sentia, tinha certeza disso.
Andrea me olhou alarmada, dividindo-se entre me olhar e encarar a construção a nossa frente.
— Como? Eu olhei...
— O som da água vem de alguma parte subterrânea, de baixo e não do banheiro.
Parecendo se dar conta do que falei, ela olhou para o terreno em que nós pisávamos.
— São todos doentes. — Concluí.
Olhei a extensão do terreno e da casa. Se ele estivesse aqui, e eu tinha certeza que estava, essa
merda acabaria hoje.
— Se acontecer alguma coisa comigo...
— Não vai acontecer nada. — ela me cortou, sem me encarar.
— Eu quero que você tire Nina daí e fuja para o mais longe que puder, até ter certeza que ele está
morto. — Encarei-a, quando não obtive resposta. — Prometa.
— Não. — Num gesto cúmplice como anos atrás, quando ela decidiu que iria comigo atrás dos
homens que mataram Samanta, Andrea segurou minha mão. — Nós três vamos sair daí vivos.
56
Marcone
Benjamin chegou quase duas horas depois no lugar exato em que indicamos nem longe e nem
muito perto da residência, Andrea e eu nos afastamos da casa dando a impressão a velha que
tínhamos ido embora. No entanto, a casa ainda era possível ser vista de onde estávamos — a noite
escura e algumas árvores no davam essa vantagem. O que me levou a pensar no porquê de morarem
distantes assim dos bairros que a maioria dos policiais moravam. Ele não ganhava mal.
Assim que Bella pulou do carro fiz um sinal para que ela não latisse, abaixei-me para afagar a
cabeça grande e colocar o colete nela. Uma roupa high-tech [1]para facilitar a nossa comunicação,
mesmo que estivéssemos longe um do outro, eu a ouviria e poderia acompanhar onde estava através
do celular.
— Você trouxe o que pedi? — indaguei.
Benjamin lançou um vestido de Nina, Bella já conhecia seu cheiro, todavia ela precisava saber
exatamente o que procurar.
— Você vai encontrá-la, não vai? — Afaguei a cabeça de Bella, enquanto ela inspirava o cheiro
do vestido, começando a ficar agitada. O estado de espírito parecido com o meu.
Ergui-me e vesti o colete a prova de balas que Ben trouxera, recarreguei a arma e acoplei o
supressor de som.
— Acha que ele está sozinho?
A pergunta veio de Andrea.
— Alguém estava no carro junto com Marck. Então mesmo que ele esteja sozinho, ainda há outro.
— Olhei para Ben. — Você cuida da mãe dele.
— Se tiver câmeras, ele já sabe que estamos entrando. — Ela apontou para o telhado da casa.
Bati na porta e ela foi aberta imediatamente, como se a infeliz estivesse esperando alguém, assim
que viu que era eu tentou empurrá-la para fechar, mas fui mais forte.
— Saia. — Apontei para fora da casa com o cano alongado da glock.
Bella rosnou para mulher, enquanto ela saia tentando se manter o mais longe possível do animal.
— Ela já está morta — a mulher cuspiu quando se viu longe de mim, preparando-se para correr,
mas Ben a segurou. — Já está no inferno... — continuou a gritar, enquanto era arrastada.
Mantive o autocontrole, dizendo a mim mesmo que ela estava mentindo para me fazer perder a
cabeça, todavia isso não impediu meus batimentos cardíacos de ficarem loucos de raiva.
Dando as costas para a mulher, eu pisei com força no assoalho de madeira da sala, observando os
passos de Bella, a agitação dela era a prova que minha irmã tinha estado aqui. A forma como ela
caminhava, refazendo todos os pontos pelos quais Nina passara, segui-a quando ela foi para o
corredor. Andrea ligou as luzes e Bella começou a arranhar veementemente uma porta. Andrea me
cobriu, enquanto eu a abria.
Vazio.
A respiração de Bella estava completamente ofegante, eu podia ouvi-la perfeitamente bem pelo
comunicador pequeno no meu ouvido. Ela farejou em círculos.
— Vamos lá, garota.
Depois de ir e voltar pelo espaço não tão grande, ela se sentou diante do armário grande que
tomava toda a parede e olhou para mim, esperando que eu fizesse alguma coisa que desse a ela
acesso ao que quer que estivesse do outro lado, porque com certeza havia algo.
Aproximei-me do móvel e segurei a borda, testando o peso para ver se era possível puxá-lo. A
madeira clara dava a impressão de que era pesado, consegui afastá-lo e pude ver o início de uma
porta.
— Me ajude aqui. — Estendi a arma para que Andrea segurasse. E forcei mais um pouco o móvel
pesado, sentindo a mão e o ombro baleados arderem.
— Seu ombro está sangrando.
Senti o curativo sob a blusa ficar úmido, a minha grande sorte era o fato de ter sido de raspão.
Esfolara apenas a carne, não chegou a atingir o osso. Ouvi com mais clareza o som de água, quando
consegui tirar o móvel do lugar. Um misto de alívio e medo ao mesmo tempo, alívio por estar certo
quanto ao desgraçado talvez estar aqui, medo por não saber se encontraria minha irmã viva ou morta.
Os latidos de Bella me fizeram forçar a porta, para meu alívio não estava trancada sequer havia
alguma fechadura. Assim que a abri Bella correu furiosa para o lugar escuro, deixando-nos para trás,
embora eu a ouvisse pelo comunicador.
— Como nos velhos tempos. — Andrea sussurrou atrás de mim e eu me virei para olhá-la,
certifiquei-me se ela estava de colete e a puxei para um abraço, encostei os lábios na testa um pouco
úmida.
— Se a encontrar antes de mim, sabe o que fazer. — sussurrei. — Você foge.
Andrea não respondeu, só me seguiu para a escuridão. Liguei a lanterna do celular e desci os
degraus da escada mal feita de madeira para o subsolo da casa. Encontrei uma lâmpada pendente e a
acendi. Fiz um sinal para que Andrea descesse. Olhei ao redor do lugar, dando-me conta que apenas
alguém louco teria tempo de fazer algo do tipo.
O chão de terra longo dava a impressão que Erick tinha cavado todo o terreno da casa, não vi
Bella, embora a escutasse. O som da água ficava cada vez mais perto de onde ela estava. Segui o
som em passadas largas, não havia som algum, além de nossos passos e da água caindo, perguntei-me
onde o infeliz estava escondido. Não havia apenas uma entrada, mas vários caminhos a seguir, como
se ele tivesse feito com o propósito exato de confundir quem descobrisse o lugar.
O som de um tiro me fez correr, eu só não sabia se era aqui embaixo ou na parte de cima, os sons
ficaram confusos, o eco distorcido e a má iluminação do lugar deixava tudo ainda pior. Um tanque
grande ligado a uma mangueira grossa me deu uma ideia de onde vinha o barulho da água, corri mais
um pouco e olhei para trás, dando-me conta que Andrea não estava mais atrás de mim.
Meu coração disparou quando vi uma silhueta jogada sob os jatos de água que caiam e
respingavam em mim, tentei entender o que fazia a água cair até que encontrei a transmissão e
aproximei-me para fechar. Abaixei-me perto do corpo, gelado e nu, os cabelos extremamente pretos e
nenhum sinal vital. Me faltou ar, tirei os fios molhados do rosto e me dei conta que não era minha
irmã. Mas era tão nova e tão frágil quanto. Os lábios da garota já estavam roxos, assim como uma
parte do seu rosto, sinal de que ela já estava morta há algumas horas.
— Desgraçado doente. — Sem outra alternativa, eu deixei o corpo inerte da garota ali.
Peguei o celular do bolso para iluminar ao redor, o soco que levei sem esperar me fez cair de
costa no chão duro. Senti o gosto de sangue na boca e me concentrei para ouvir os passos do
desgraçado já que o celular tinha caído e eu não conseguia enxergar direito. Com sorte a arma ainda
estava na minha mão.
— Você é insistente, porra. — grunhiu ele, e eu tive uma ideia de que lado ele estava.
Dei um chute que pareceu pegar em sua coxa e o peso de Erick tombou no chão.
— Você achou mesmo que eu não ia te encontrar? — Peguei o celular e o iluminei.
— Uma pena que tenha encontrado tarde demais.
As palavras me gelaram por dentro.
— Ajoelha. — Minha voz soou calma, considerando o tumulto desgovernado que eu estava por
dentro.
— Ela está morta. Morta. — sibilou como um infeliz doente. — Como o meu pai! — dessa vez
gritou, agitado, como se não estivesse na mira de uma arma.
— Agora, porra, ajoelha.
— Eu estou pronto para conhecer meu criador — zombou, ajoelhando-se e colocando as mãos
atrás da cabeça. — Você está?
Ignorei a pergunta, dando-me conta de que ele era realmente doente. Um psicopata doente.
— Me diga onde ela está, Erick — pedi, foi um pedido. — Minha irmã não tem que sofrer por
algo que não fez. — Fiz uma pausa. — Machuque a mim. Ela não.
O desgraçado sorriu de lado.
— Morreria por ela, não é? — afirmou, achando que eu estava distraído e tentado pegar uma
pedra perto de seu joelho. Atirei, e o tiro foi tão silencioso que Erick só se deu conta quando a bala
furou o chão perto da sua perna. — É exatamente por isso que é divertido. Enfiar uma bala no seu
peito seria uma benção para você. — Deu um sorriso perverso. — Assistir ao seu desespero é muito
melhor, saber que você vai sofrer é muito melhor. A morte é fácil, é até bonita.
Ele tinha assistido a tudo que aconteceu assim que cheguei ao prédio e não encontrei mais minha
irmã. Estava assistindo o meu sofrimento, tivera certeza da minha fraqueza.
— Agora é muito pior do que o passado. — insistiu em me provocar. — Quem garante que hoje
ou amanhã outra pessoa não dê um tiro na cabeça da sua garota? Ou que alguém entre naquela clínica
e desligue os aparelhos que a mantêm viva.
— E quem garante que sua mãe não esteja morta agora? — Eu sabia que a velha doente estava
viva, mas tive necessidade de feri-lo.
As minhas palavras o atingiram em cheio, num movimento rápido ele jogou o corpo pesado contra
o meu, a arma caiu. E Erick voltou a me socar no ombro machucado mais de uma vez.
— Eu a matei e enterrei num lugar que nunca vai achar. — Puxei o canivete pequeno que sempre
mantive no bolso e acertei em cheio suas costas, fazendo-o sair de cima de mim e procurar o objeto
fincado na sua carne como um louco. Antes que pudesse levantar e pegar a arma, Andrea a pegou e
mirou nele. As duas, tanto a minha quanto a própria.
— Não atire. — pedi, eu conhecia a expressão que ela fazia.
Andrea estava machucada. Ele a tinha machucado.
— Ele não vai dizer. — As mãos dela chegavam a tremer, tamanho o descontrole que se
encontrava. — Podemos torturá-lo a noite inteira e esse desgraçado não diz.
— Não há o que dizer. — Erick gritou furioso. Talvez por causa da dor. — Qual a dificuldade de
vocês acreditarem que ela esta morta? As pessoas morrem, em cada canto desse lugar há ossos de
garotas como Nina. — Tentou mais uma vez tirar a lâmina das suas costas, falhando novamente.
— Ele não vai dizer. — ela olhou para mim, com cara de quem se desculpava.
Ela tinha razão.
Ele já havia dito.
Só não queríamos acreditar.
Eu não queria acreditar.
Nina podia estar na mesma situação da outra garota, morta há horas. O corpo só não tinha sido
encontrado ainda. Fechei os olhos com força, enquanto uma lágrima só escorreu por meu rosto, uma
certeza absoluta me esmagando. Não escutei o tiro, mas ouvi o tombo do corpo de Erick no chão.
— Eu espero que ele encontre o pai no inferno. — As palavras de Andrea foram cuspidas.
Abracei os meus joelhos ficando sem direção, memórias de quando a serelepe veio morar
comigo, de tudo que fizemos juntos, de como ela conseguia me irritar e me deixar feliz ao mesmo
tempo. Ouvi quando Andrea também se sentou, diferente de mim, o choro dela podia ser ouvido,
tornando o lugar pior do que era. Tornando a escuridão ainda mais densa, e o eco ensurdecedor. Ela
tinha muitos motivos para chorar. Fiz uma retrospectiva da minha carreira, e a única pergunta que
soava com insistência era se tinha valido a pena. Se as minhas perdas valiam cada ano que me
comprometi a servir ao meu país.
Um dos países mais corruptos do mundo.
A dor que sentia agora dizia que não.
A morte de Erick não traria a minha irmã de volta.
Da mesma forma que os homens que matei no passado não trouxeram Samanta de volta.
Erick tinha razão, a morte era fácil. Era pior para quem ficava vivo, quem tinha que se readaptar,
quem não veria mais a pessoa. Não escutaria mais a voz. Não sentiria mais o cheiro. Não se irritaria
mais.
Era pior para quem perderia um pedaço de si.
O uivo de Bella me tirou do transe, e eu enxuguei os olhos com o antebraço. Ela uivou novamente
e me levantei. Quando os cães uivavam assim era porque eles queriam reunir a matilha.
Ela estava me chamando.
Peguei o celular e busquei a câmera que a mostraria, Bella estava deitada perto de uma caixa
grande de madeira.
O corpo da minha irmã.
— Não vou conseguir, Andrea. Não dá...
— Você é forte. — Ela enxugou o próprio rosto. — Precisamos levá-la para casa. Fazer as coisas
do jeito certo, vê-la pela última vez.
Pela última vez.
Bella uivou novamente e contrariando como eu me sentia por dentro, corri junto com Andrea para
o lugar distante dali. O miserável tinha cavado além do próprio terreno. Assim que vi a forma como
Bella estava deitada em cima da caixa, protegendo o havia ali dentro, tive a sensação de que meu
coração estava sendo arrancado fora. Aproximei-me devagar e tateei a madeira. Puxei o trinco de
ferro e abri a tampa, uma respiração forte saiu dos meus pulmões quando eu vi o corpo inerte e nu da
minha irmã, os cabelos molhados como os da garota que encontrei antes. Tirei os cabelos do seu
rosto e toquei a testa gelada, ainda molhada. Beijei-a ali, vendo como a pele estava branca demais.
Segurei a base do pescoço e então senti a pulsação. Meu coração que parecia ter parado no tempo
fora do meu corpo, retornou ao seu lugar e voltou a bater.
— Nina. — Dei tapinhas no seu rosto. — Nina.
— Ela está com sinais? — Andrea perguntou, já discando no próprio celular, embora fosse ser
difícil que ele pegasse aqui embaixo.
Soprei o ar na boca da boca da minha irmã, e toquei o coração. Ele ainda batia. Sem abrir os
olhos ela começou a tossir e colocar água para fora, como se fosse apenas isso que tivesse ingerido.
— Graças a Deus. — Coloquei-a sobre a caixa e me desfiz do colete e da blusa para vesti-la. O
corpo inteiro tremia.
— Você veio... — foi um sussurro seguido por tosses, quando seus olhos realmente pousaram em
mim.
— É, estou aqui.
57
Dias depois
Marcone
Algumas feridas seriam sempre nossas, mesmo que dias, anos se passassem, mesmo cicatrizadas
sempre seriam nossas.
Elas mostrariam quem nós éramos, de onde vínhamos e para onde iríamos.
Era uma parte intrínseca, a nossa parte mais íntima, aquela que ninguém via.
Os dias que se passaram foram como anos, dolorosos e lentos. Absurdamente lentos, como se o
ponteiro do relógio não mudasse nunca, ou mudasse numa condição errada. A minha impressão era
que tinha chegado ao clímax da vida, o momento em que todas as bombas explodiam para depois vir
a calmaria, o problema era que a calmaria não tinha vindo ainda.
Minha irmã estava viva, contudo era como se a parte mais bonita dela tivesse sido apagada. Ela
não me disse o que o miserável lhe fizera, as marcas das correntes que ficara presa embaixo da água
permaneceram em seu braço definitivamente como se fosse para lembrá-la do que acontecera.
Nina não quis a mim e nem a Benjamin, apenas a nossa mãe nos primeiros dias.
Mara estava conosco aqui no Rio de Janeiro, ela não me culpou, apenas disse que enterrar meu
pai era uma dor interminável, que não viveria muito se um de seus filhos morressem também. E
chegou perto disso.
— Quando vamos poder vê-la? — Nina perguntou, apertando a minha mão, olhando a tela grande
da têve na recepção da clínica onde Camille ainda estava internada.
— Daqui a pouco a enfermeira vem nos chamar. — Beijei os dedos frios e encarei o rosto pálido,
estranho pela falta de vivacidade característica dela.
Na tevê, Andrea estava dando mais uma coletiva de imprensa sobre a Operação Luxus, tinha sido
como uma caçada às bruxas, todos os mandados de prisão que o juiz emitira, todos os depoimentos
que a polícia registrara, todos os acusados que estavam com bens bloqueados e impedidos de saírem
do país. Acabei me afastando do caso, embora soubesse que ainda havia um trabalho a fazer. Ainda
havia a promessa que fiz a Bruna, localizar a sua irmã e trazê-la para casa. O que não seria fácil,
principalmente porque a garota poderia já estar morta. Esfreguei os olhos, sentindo-me exausto. Era
como se eu quisesse deixar todos os anos que dediquei a polícia atrás de uma porta vermelha que
nunca mais teria acesso. As pessoas que matei, que prendi, que investiguei, nada disso tinha
significado agora, tudo que eu queria de verdade era uma vida normal. Sem precisar estar alerta
sempre, embora em um país como esse o perigo estava em qualquer esquina, mesmo quando você não
tinha inimigos declarados.
— Senhor Marcone? — A garota chamada Julie nos guiou até o quarto.
Camille não estava mais sedada, tudo dependia de como o seu organismo iria funcionar daqui
para frente, Alexandre me dizia que o pior já tinha passado, mas eu me sentia tão traumatizado que
passava as horas esperando pelo pior. Que o quadro regredisse e ela piorasse de novo, ou que eu só
recebesse a notícia que não tinha mais o que fazer.
Embora eu quisesse tocar Camille em todas as partes possíveis, apenas para sentir o sangue
correndo sob sua pele, o pulsar do coração e o calor que me garantia que ela estava viva, deixei que
Nina fizesse isso primeiro. Era a primeira vez dela aqui, apenas depois da minha irmã passar por um
pscicólogo é que realmente contei tudo que tinha acontecido.
— Ela está dormindo — garanti, quando vi o bico que ela estava fazendo para chorar, as mãos
pequenas alisavam os cabelos de Camille.
Sempre que entrava aqui esperava que os olhos dela se abrissem, esperava ver a intensidade
verde que mexeu comigo desde o primeiro instante em que a vi, mas não acontecia. Saber que
algumas pessoas passavam anos nessa situação, vivendo uma realidade alternativa dentro da
inconciência me deixava louco.
Ultimamente eu não sentia raiva, apenas medo. Medo de não ter por perto as pessoas que eu
amava.
As visitas geralmente precisavam ser curtas, embora eu sempre permanecesse na recepção
depois, já conhecia a maioria dos funcionários, dado ao tempo que passei aqui nos últimos dias. Vez
ou outra eu encontrava Joice ou Augusto, mas não queria contato algum com eles. Era visível que
estavam sofrendo, mas eu não dava a mínima, eles mereciam por cada pedido de socorro que
negaram. Eles tinham uma parcela de culpa para o estado em que Camille estava agora. Quem
realmente cuidava da minha garota como se fosse uma mãe era Naia, ela penteava os cabelos, trazia
flores para tirar o ar de hospital do quarto, contava sobre os livros que estava lendo, ou sobre algum
filme, a senhora quase sempre saia chorando. O que me deixava pior, sem esperanças.
Quando Nina resolveu sair, eu pedi que esperasse por mim na recepção. Sentei na pontinha da
poltrona, como geralmente fazia e segurei a mão da minha garota, não estava fria, coloquei-a contra
minha face. Como se fosse ela a fazer esse carinho.
Não suportava vê-la assim, com um aspecto tão sem vida.
Imóvel. Sem reação.
Desenhei os traços tão marcantes de seu rosto com os dedos, já tinha perdido as contas de quantas
vezes chorei aqui. Porque era para ser eu e não ela.
— Você precisa acordar. — sussurrei, e encostei os lábios em sua testa. — Precisa fazer a lista
das coisas que nunca fez e que quer fazer... — beijei novamente a testa morna. — E eu preciso dizer
que te amo. — Dessa vez, eu encarei se rosto, esperando que houvesse algum sinal.
Parecia ser simples nos desenhos animados, o problema era que eu estava na vida real.
Beijos, lágrimas, e eu te amos não tiravam ninguém do coma.
Não funcionava assim.
— Eu te amo — era o que eu mais repetia aqui, era uma necessidade de que ela soubesse. Ela
precisava saber, e precisava viver isso.
Nós merecíamos viver isso. Ela ainda mais do que eu. Sempre soube o que era ser amado,
Camille não. Os problemas de rejeição que ela tinha não se limitavam a um namorado doente, que lhe
mostrara apenas o lado negativo que uma relação podia ter, passava disso. Havia também a
crueldade dos pais, a vida mascarada que eles tinham, a idealização de perfeição pouco alcançável.
O amor deles era pelo dinheiro e talvez fosse isso que os levasse a loucura em algum momento.
— Eu preciso levar Nina para casa, mas eu volto para você mais tarde
*.
Naquele mesmo dia fui ao hotel onde Isabelle e o pai estavam, eu tinha pedido a Alexandre que
encontrasse um médico capaz de realmente cuidar da menina, um tratamento que realmente fosse
eficaz ao tipo de câncer que ela tinha. Depois de ver de perto a situação em que viviam e o medo que
Afonso tinha de perder a filha, percebi que a decisão dele de entregar minha irmã fora a única que
tinha. Quem faria diferente? Decidi pagar um tratamento que realmente fosse eficaz para a garota, que
conseguisse trazer sua saúde de volta, que desse a chance do pai vê-la crescer como qualquer
garotinha normal.
Assim que fechei os olhos meu celular tocou sobre a mesa de centro, o sofá havia se tornado o
lugar onde mais passava tempo quando estava no apartamento. Depois de trocar todas as fechaduras
e instalar um sistema interno de câmeras, eu resolvi que não me livraria dele. Meu coração disparou
quando vi que a ligação era da clínica, antes de atender levantei já procurando as chaves do carro e
minha carteira.
Era Julie pedindo que eu retornasse a clínica, tinha passado as duas horas anteriores lá, mas
parecia que algo havia mudado, eu só não sabia se para melhor ou pior.
A forma como fui recebido pelas garotas, que já estavam cansadas da minha cara na clínica, criou
em mim uma certa esperança. Esperança de que talvez a notícia fosse boa. Senti meu coração parar e
dar uma disparada quando cheguei diante da porta do quarto dela e a intensidade verde, aquela que
me enfeitiçou desde o primeiro momento, os olhos confusos extremamente grandes estavam abertos.
Focados no que Alexandre falava.
Embora o que eu quisesse mesmo fosse estreitá-la em meus braços, ter certeza de que Camille
estava viva, acordada e bem, permaneci onde estava, apenas apreciando algo que por pouco não fora
tirado de mim.
— Consegue sentir as pernas? — perguntou ele, enquanto tocava um ponto da perna dela com um
objeto que não soube identificar.
Camille fez que sim, e pela expressão concentrada tentou mexê-la sem sucesso. Prendi a
respiração.
— Calma. — ele usou um tom suave. — É uma questão de readaptação, você esteve muitos dias
em coma.
Vi quando ela abriu a boca mais de uma vez para falar, todavia sem conseguir, emitia apenas
alguns sons arranhados, como se a garganta estivesse muito seca. O bip do aparelho ficou
extremamente descontrolado. Sem conseguir ficar mais tempo longe, eu entrei no quarto.
Camille
Coma?
Muitos dias?
Tudo que eu conseguia pensar era no que tinha acontecido com Marcone, como as coisas tinham
acabado naquele dia. Se ele estava bem. Senti as lágrimas se formaram e escorrerem pelo meu rosto,
por mais que eu tentasse meu corpo ainda não reagia. A voz não saia, os músculos pareciam pesar
toneladas.
E Nina?
Eu queria perguntar, queria saber o que estava acontecendo e porque eu estava aqui.
Fechei os olhos com força, sentindo mais lágrimas descendo. Meu coração estava completamente
descontrolado.
— Shii... fique quietinha. — Abri os olhos assim que ouvi a voz dele.
Agitada, tentei me mexer para abraçá-lo, mas não consegui. Com carinho, Marcone colocou meu
braço ao redor do seu pescoço, eu conseguia sentir tudo, mas os membros pareciam não querer me
obedecer.
— Você... está... — tentei falar, embora doesse a garganta inteirinha.
— Vivo — completou ele, deixando beijos pela minha cabeça. — Sim, eu estou. Por sua causa.
— vi uma lágrima escorrer pelo rosto dele, os olhos azuis tinham um brilho que não consegui
descrever. — Eu te amo muito mesmo. — Os lábios tocaram os meus com gentileza e mesmo com
dores, com medo, eu me senti segura da forma como eu só me sentia quando estava com ele.
Por mais que tentasse não fechar os olhos, acabei dormindo de novo. Não sei por quanto tempo,
mas quando acordei ele ainda estava lá, parecendo tão aliviado quanto eu.
— Quantos dias se passaram? — perguntei, embora ainda fosse difícil falar estava mais fácil do
que horas atrás.
— Vinte e oito. — Ele tocou meu rosto, talvez para me ajudar a processar a notícia. — Foi uma
bala nas costas, por pouco não lesionou sua coluna.
Processei tudo, mas havia outras coisas que eu precisava saber.
— Nina? — inquiri.
— Ela está bem. — Franzi a testa, respirando aliviada e ele tocou o polegar exatamente no lugar.
— Enzo. — Pensar nele me deixou agitada outra vez, absurdamente cansada de tudo que o
envolvia.
— Ele está morto. — O dedo longo tocou o meu queixo. — Não vai mais chegar perto de você.
Nunca mais.
As lágrimas que deixei escapar foram de alívio, e pouco importava se era certo ou errado. A
prisão invisível que permaneci mesmo quando resolvi me separar dele parecia ter sido finalmente
quebrada, como se eu pudesse respirar de verdade. Marcone não me contou como ou o motivo, mas
sabia que tinha sido ele. A impressão que eu tinha era que não haveria outra forma da minha história
torta com Enzo acabar, seria ele ou eu em algum momento. O estado lastimável em que eu estava
agora provava isso. Ele morreu dentro da própria doença, porque não era amor, era qualquer outra
coisa. Amor não.
O amor não machucava, claro que ás vezes podia doer, doer muito, mas não da maneira como me
sentia destruída. Amor mesmo era o que eu via no rosto do homem que me encarava agora. Os olhos
dele brilhavam tanto que cheguei a duvidar se era mesmo por minha causa. Amor era o que eu sentia
quando ele me tocava, a intensidade pouco contida do que eu me tornava quando estava nos braços
dele e não tinha haver com sexo, tinha a ver com quem nos tornávamos quando estávamos juntos:
pelados ou não.
E se eu pudesse voltar no tempo, eu teria feito tudo exatamente igual. Teria corrido para ele, por
que eu sabia que Marcone teria feito o mesmo. Teria me guardado, como havia feito desde o primeiro
dia em que nos conhecemos. Quando ele me encontrou naquele carro, com a alma e o corpo
destroçados. Desde aquele momento ele cuidou de mim.
Marcone estava ali para ser meu.
Esqueci de tudo, menos dele. Tinha sido um rosto sem nome, que não se encaixava em nada, mas
que representava tudo.
Tudo de mais lindo que eu queria para minha vida.
— Foi você. — repeti o que havia tentado dizer antes de ser sugado para um buraco negro no dia
em que fui baleada. — Você estava lá...
Emocionado, ele fez que sim com a cabeça. Mostrando que sabia exatamente do que eu estava
falando.
— E nunca me disse. — consegui dizer, entre um pigarro e outro.
— Eu queria que você lembrasse.
— Mas eu nunca esqueci. — Era verdade, de alguma forma eu sempre reconheci um tipo de
conexão. — Não de você.
— Você vai entrar porque ela quer isso. — Ouvi uma pausa, e alguns segundos depois Marcone
continuou. — Pense bem no que vai dizer.
Houve um silêncio do lado de fora, eu podia escutá-los porque a porta estava parcialmente aberta,
meia hora atrás a enfermeira me avisara que meus pais estavam aqui. Não era algo que eu esperasse.
Saber de tudo que Enzo e Heloísa estavam envolvidos me fez entender o medo que ela tinha dele
ser investigado, saber que foi ela quem estava por trás do acidente para mim foi um choque, eu sabia
que a mulher era cruel, mas nunca imaginei que fosse capaz de algo do tipo. E nem que ela e o filho
fizessem parte de uma organização criminosa. Não conseguia nem imaginar que Heloísa cheia de
classe e dona de um nariz empinado pudesse estar agora atrás das grades. Pensei em muitos finais
para ela, mas nunca foi algo desse tipo, muito pelo contrário, sempre a achei intocável tal qual o
filho parecia ser.
Nunca estive tão enganada.
— Somos os pais dela. — Ouvi a voz de Augusto e quase revirei os olhos, minha cabeça doeu um
pouquinho.
— Isso não fez diferença alguma durante todos esses anos.
Em muitos momentos eu me sentia sortuda por ter o lado manso de Marcone, ele parecia ter duas
faces: a que protegia e a que machucava.
Eu tinha a melhor delas: a que amava.
Apenas alguns minutos depois, a porta realmente foi aberta e eu os vi. Augusto e Joice. Era muito
claro perceber que não estava bem, além de algum tipo de preocupação havia também vergonha. O
pior tipo de vergonha.
— Oi, filha. — Joice foi a primeira a dizer alguma coisa, aproveitei que eu realmente não estava
conseguindo falar como queria e apenas balancei a cabeça. — Eu juro que nós não sabíamos da
gravidade de tudo.
Como se isso mudasse algo.
— Acho que precisamos pedir perdão, Joice. Sem explicações. — Foi meu pai quem disse.
Contudo, eu não senti nada. Não queria pedidos de perdão. Talvez eu realmente os escutasse
depois.
Com certa hesitação, os dois aproximaram-se da cama.
— Eu nunca senti tanta culpa. — Vi-a realmente chorar, como nunca tinha visto antes, nem quando
minha irmã morreu.
Mas observando os dois, tudo que pensei foi que se um dia eu gerasse uma criança, ela seria o
centro da minha vida, seria para mim tudo que nunca fui para eles. Estaria em primeiro lugar.
Tudo que dei para meus pais foi o silêncio, desde o momento em que entraram até a hora que
saíram. Surpreendi-me quando ainda escutei a voz da minha mãe, ela já estava fora do quarto.
— Cuida da minha filha. — Foi o que ela disse.
58
Camille
Ao contrário dos outros dias, um sol tímido tocava as minhas pernas. Após a fisioterapia
geralmente Marcone me colocava numa parte do jardim em que o sol estivesse mais quente, e quando
estava chovendo ficávamos sentados no sofá longo, observando a natureza.
— Que tal tomar banho e vestir algo mais quente? Vai esfriar. — ele disse baixinho, beijando a
parte tatuada da minha nuca.
— Hum... — ronronei com preguiça.
Tinha se passado quase um mês, passei todos os dias inteirinhos com ele, só não estava perfeito
porque eu ainda não estava totalmente recuperada. No início foi assustador, parecia que o corpo não
era meu. Que as pernas não eram minhas, e que eu nunca mais ficaria normal novamente. Alexandre e
Marcone me pediam calma, mas eu sentia que ele também tinha medo que fosse irreversível. Aos
poucos todos os movimentos foram voltando, o meu cérebro e os meus músculos voltaram a ter
sincronia. Todavia, ainda não era absolutamente normal, sentia muitas dores nas costas,
principalmente quando ficava muito tempo numa mesma posição.
Saímos dali quando realmente esfriou, como em todos os dias, ele me pegou no colo para subir as
escadas até nosso quarto.
Nosso.
No início soava estranho, nós viemos para a fazenda quando Alexandre me liberou para viajar,
segundo ele não haveria riscos, a essa altura eu já estava realmente melhor. Não fui eu a pedir para
vir para cá, ficaria em qualquer lugar com ele.
Marcone ficou muito perturbado, principalmente nos primeiros dias em que acordei sem os
movimentos dos membros inferiores, tudo o deixava nervoso, minhas dores, a minha falta de sono ou
sono em excesso. Tudo o amedrontava, como se minha vida fosse escapar entre seus dedos. Eu o
entendia, se fosse o contrário teria enlouquecido.
Beijei seu pescoço, sentindo-me em casa.
Na minha casa.
— Eu te amo. — disse baixinho, quando chegamos ao último degrau.
Ele me colocou no chão e me beijou, até seus beijos eram cuidadosos.
Como se eu fosse completamente quebrável.
— Eu também, meu amor.
Beijou-me outra vez e segurou algumas mechas do meu cabelo, exteriorizando o fascínio que tinha
por eles.
Tomamos um banho juntos e ao invés de ir procurar algo para vestir ele sentou na cama, com a
toalha enrolada nos quadris. Fui até meu lado do closet recém projetado ali e fiquei com a respiração
suspensa quando encontrei uma caixinha vermelha ali, minha boca abriu algumas vezes, meus dedos
avançaram para pegá-la e recuaram várias vezes.
— É seu. — ele soou atrás de mim, e eu mordi meu próprio lábio, enquanto meus dedos
finalmente tocaram a caixinha de veludo com o nome Chopard. Abri devagar, mas estava vazia.
Temi me voltar para olhá-lo, eu sabia que Marcone estava atrás de mim.
— Eu preciso te dar o que estava na caixa. — A voz dele soou aveludada, como se eu precisava
de incentivos a me apaixonar mais.
Senti o esquentar gradativo da minha bochecha até o meu pescoço, um frio na barriga como se
fosse um primeiro encontro, como se não tivéssemos vivido tantas coisa. Virei-me e o vi ajoelhado,
ainda enrolado na toalha, mas eu tinha certeza que nunca veria uma cena tão linda quanto essa. Havia
outra caixinha em sua mão, aberta. As lágrimas me impediram de ver o que realmente estava lá
dentro.
— Estou suando... — disse baixinho, talvez achando que eu não fosse ouvir. — Eu te amo,
Camille.
Sim, eu sabia. Sentia tal qual o vento que entrava pela janela aberta e tocava a minha pele.
Enxuguei os olhos e enfiei os dedos pelos seus cabelos úmidos, e fartos, não me lembrava de em
algum momento desde que nos conhecemos vê-los tão grandes. Apenas sussurrei que também o
amava. Sentia-me como se tivesse nascido para isso.
Amá-lo.
Ser dele.
— Eu quero viver cada fase com você. — Minha mão foi beijada. — Namoro, noivado,
casamento, filhos. Quero que seja minha para sempre, basta você querer também. E se você disser
sim, eu prometo que vou tentar ser o melhor homem para você, o melhor amante, o melhor amigo, o
melhor marido, o melhor pai para nossos filhos. — A essa altura, eu já tinha dito sim mais de uma
vez, mas ele não parou de falar. E eu sabia, ele seria o melhor em tudo.
Marcone já era o melhor para mim.
O melhor homem. O melhor amante. O melhor marido.
Ele já era era o melhor que eu poderia encontrar.
Três semanas depois
Camille
Marcone
Quando a música começou a tocar, eu prendi a respiração. Primeiro vi Augusto e depois toda a
minha vida entrou no meu campo de visão. O vestido branco e cheio de pérolas davam a ela uma
beleza quase sobrenatural, os cabelos estavam parcialmente presos por uma pequena coroa que
brilhava conforme os raios de sol tocavam-na, por um minuto fiquei sem saber se ela era real ou a
visão de um dos melhores sonhos que eu provavelmente teria na vida. A reação do meu corpo ao vê-
la sorrir me deu certeza que eu estava muito acordado, a cada passo que ela dava, o meu amor
parecia crescer mais, Camille não desviou os olhos do meu rosto por um segundo sequer, parecia
estar dentro do mesmo encantamento que eu. Como se apenas nós dois estivéssemos ali.
Aproveitei que o caminho enfeitado com flores e tecidos delicados era longo, para registrar todos
os detalhes daquele momento.
A expressão que ela me olhava.
A forma como o vestido de noiva a deixava delicada e ao mesmo tempo sensual, uma
característica natural. Algo que ela não se esforçava muito para ser.
O sorriso que estava em seus lábios, como se ela fosse a mulher mais feliz do mundo, e eu
esperasse que fosse exatamente isso. Porque tinha certeza de que eu era o homem mais feliz e sortudo
do mundo.
Foi difícil afastar os olhos dela quando a cerimônia começou
Augusto me disse algumas palavras, mas eu não ouvi, não consegui tirar os olhos dela, de cada
parte perfeita que era ela.
Enquanto a cerimônia acontecia, eu pude reviver todos os nossos momentos, cada um deles,
inclusive os ruins.
Se era o destino ou não, nunca saberíamos, mas era como se essa garota realmente fosse feita para
mim, como se nossos traços e nossas cicatrizes se completassem de alguma forma.
Camille
Marcone me colocou no chão apenas quando já estávamos dentro da suíte, não sei como ele
conseguiu, afinal eu ainda estava vestida de noiva. Mas, como nas cenas mais clichês de filmes
românticos que envolviam casamentos e lua de mel, ele me carregou nos braços até o nosso destino
final. Nunca parei para pesquisar de onde vinha essa tradição ou se de fato era realmente uma
tradição. Contudo, adorei cada minuto.
Os dedos dele tocaram os botões arredondados que mantinham a parte de trás do vestido fechada.
— Sempre fantasiei isso. — Devagar, de modo que fiquei toda arrepiada, ele começou a tirar
alguns grampos que prendiam parte do meu cabelo, os cachos foram caindo pelos meus ombros e
braços, queria ver seu rosto, encarar cada emoção que se passasse por seu semblante, tal qual
quando caminhei para ele horas atrás.
Eu vi tudo: amor, desejo, felicidade.
O tecido pesado do vestido foi empurrado e eu me vi quase nua, não fosse pelo espartilho, cinta
liga brancos e os saltos. Senti uma energia completamente erótica por estar vestida desse jeito, e foi
intencional. Eu levei a sério quando ele me disse que seria o melhor amante, era o que eu queria ser
também. Fechei os olhos quando a palma da mão desceu pela minha nuca até fazer uma carícia
despretensiosa na minha bunda.
A outra mão passou a puxar com delicadeza os cachos do meu cabelo, deixando-os ondulados.
— Olhe para mim agora. — foi um pedido baixinho, como se a voz estivesse carregada demais
para sair no tom normal.
Fiz o que ele mandou, sem evitar sorrir, um sorriso safado como ele costumava dizer em alguns
momentos.
— Você parece uma pintura feita especialmente para mim... — Os olhos azuis subiam e desciam
por meu corpo, despertando a ardência conhecida entre minhas pernas, a carência que todos os dias
em que não tivemos contato íntimo fez crescer e tomar forma dentro de mim.
O beijo que trocamos foi quente, como se fosse o primeiro. Gostoso como sempre era e infinito
porque agora pertencíamos um ao outro, a aliança e o sobrenome dele eram provas disso.
Camille Alencar Ferris.
Soava bem. Queria gritar isso, queria que todos soubessem.
— Você é meu agora... — sussurrei, no meio de outro beijo que me deixou sem fôlego, as mãos
dele passavam por todos os lugares, deixando um rastro quente sobre o tecido fino que ainda cobria
minha pele, cada polegar cobria um de meus seios, friccionando-os de forma lenta e gostosa. — Só
meu... Para sempre.
— Sim, só seu.
Sem pressa, ele me fez sentar na cama, a intenção era terminar de me despir. As tiras delicadas
dos saltos foram abertas e ele as retirou dos meus pés. Os dedos fizeram uma massagem suave e
depois foram substituídos por seus lábios.
— Você é linda demais, meu amor... — gemeu ele, enfiando o rosto entre minhas pernas, o polegar
fez alguns movimentos circulares sobre o meu clitóris sobre a calcinha da liga.
Gemi, abrindo mais as pernas e deitando sobre a cama grande.
Deitada, assisti-o se despir, enquanto me olhava, como se ainda não quisesse me ver sem a
lingerrie provocante. Cada músculo do corpo dele foi ficando a mostra, as coxas, o abdômen, o
membro rijo que me deixou ainda mais excitada. Tudo nele me excitava. Não tinha como ficar sem
esse homem. Apoiei-me nos cotovelos e abri mais as pernas quando ele aproximou-se novamente. O
roçar do membro duro contra meu sexo sobre o tecido, deixou-me agitada, o coração aumentando as
batidas. Desejando-o dentro de mim, como fazia algum tempo que eu não sentia.
— Eu teria enlouquecido sem você... — a boca dele estava a centímetros da minha, o corpo
encaixado no meu, era errado que eu ainda estivesse vestida, que minha pele não estivesse
completamente grudada a dele.
Escorreguei as mãos por suas costas até introduzi-las entre os seus cabelos macios, puxando-o
para que me beijasse, uma prova de que estava aqui com ele.
Marcone terminou de me despir, deixando apenas as meias longas, e como se estivesse
desesperado para me sentir, ele penetrou a minha carne, consumando aquilo que já estava
consumado. Tomando para ele algo que já lhe pertencia, que já era seu.
Os seus gemidos, a sua respiração irregular, as arremetidas longas e dolorosamente quentes tudo
tirava-me o juízo, passei a nem mais entender o que pedia para ele. Se era mais do seu pau, se era
que ele fosse mais rápido, ou simplesmente que não parassa. Qua não saíse de dentro de mim.
Entreguei tudo que tinha para ele, meu corpo, minha boca, meu amor, meu maior desejo.
Tudo era dele, e Marcone era todo meu.
59
Camille
Assim que Marcone estacionou o carro na garagem principal da fazenda, eu notei o veículo
estranho. Tínhamos passado quase quinze dias em Amsterdã, fora o lugar que escolhemos passar a
lua de mel. Eu me sentia completamente feliz, leve, e satisfeita. Sempre quis fazer quis fazer essa
viagem, era um lugar rico em arte e cheio de artistas que eu admirava.
Uma cidade para todas as idades. Era isso que as pessoas de lá nos diziam.
Desviei os olhos do carro escuro e estranho e me virei para Marcone, percebendo que ele estava
tenso, pela forma como a testa estava franzida.
— Qual o problema? — perguntei, soltando-me do cinto de segurança.
— Vamos conversar daqui a pouco. — Como se não quisesse entrar ainda, ele me beijou,
fazendo-me lembrar de todas as descobertas que fizemos juntos durante essa viagem.
Todavia, eu sabia que não gostaria do que quer que estivesse esperando por nós lá dentro.
Caminhamos juntos para o interior da casa, e além de Mara, Andrea e dois homens vestidos num
terno escuro estavam ali. A primeira coisa que me veio a cabeça foi a curiosidade de quem eles
eram.
— Agente Ferris. — o homem mais alto o cumprimentou, e minha reação foi ficar inquieta. O
assunto era trabalho, com certeza.
— Está tudo bem, Camille. — Os lábios tocaram minha testa, mas eu sabia que não ficaria bem se
ele voltasse para a polícia, não depois de tudo.
Marcone cumprimentou a mãe e Andrea, e depois voltou-se para os dois homens.
— Já está tudo pronto para a operação, só precisamos de você.
Eles não ficaram ali, foram para o escritório e eu pedi que a funcionaria de Mara preparasse uma
bandeja de café para que eu levasse. Assim que entrei, ouvi um deles dizer o nome Interpol e
operação arriscada, quase deixei a bandeja cair, olhei para Marcone com raiva.
Ele tinha prometido.
Marcone
Entrei no quarto ainda sem saber o que dizer. Pela forma como saíra do escritório, Camille devia
estar furiosa.
— Você vai, não é? — Perguntou ela, o tom ácido, sem me encarar.
Olhava a garoa através da janela.
— Eu preciso ir, amor.
Fechei a porta ao mesmo tempo em que ela me encarou, eu já fazia ideia do que viria a seguir:
uma acusação que eu merecia.
— Você prometeu que ia parar. — O queixo tremeu um pouquinho, meu peito angustiou-se com a
ideia de deixá-la nesse momento.
Pelas informações que eles trouxeram, a operação seria arriscada, podia levar poucas semanas ou
meses, dependendo do cenário que encontraríamos. Os mapas que estavam nos arquivos que Bruna
me entregara, ajudaria no resgate de várias garotas traficadas.
— Não vá... — Em menos de um minuto, ela estava diante de mim, abraçando minha cintura,
olhando-me com os olhos verdes que eu amava. A intensidade era suplicante, uma lágrima rolou e o
pior era que eu também estava com medo.
Medo de talvez não voltar para ela, considerando tudo que tínhamos vivido — o sequestro de
Nina, o estado lastimável em que Camille ficou entre a vida e a morte, meu medo, minha loucura, o
estado deprimente em que fiquei por medo de perdê-las. Tudo ainda vívido para mim e para ela.
Camille tinha visto meu pior lado, e tinha permanecido ao meu lado — ela era boa, preciosa, acho
que aquela luz que todos diziam existir no fim do túnel, finalmente consegui alcançar a minha.
— Por mim, não vá... — repetiu atordoada, colou o rosto no meu peito e fechou os olhos.
Eu ia machucá-la outra vez.
— Eu tenho que ir. — Aquela baboseira sobre estar entre a cruz e a espada faziam sentido agora.
Tinha uma promessa a cumprir, embora as chances da irmã de Bruna ser encontrada viva fossem
pouco animadoras, tinha feito uma promessa e depois de ter quase perdido a minha irmã, eu sabia
exatamente o inferno que ela estava enfrentando. Pelo pouco que percebi da moça intrigante e
geniosa, ela não ia parar de procurar e acabaria morta no processo. Conhecia esse tipo de
determinação. — E depois acaba, vamos para o lugar que você quiser, desaparecemos.
— E se você não voltar? — Afastou-se de mim com raiva, magoada. — Qual sentido terá tudo
isso? Eu, você, o que sentimos? Nós casamos há menos de um mês, pelo amor de Deus...
— Eu vou voltar. — Caminhei com cautela até onde Camille estava em pé, rígida, contrariada e a
tomei nos braços, ela resistiu, tentando se afastar, mas aos poucos relaxou e me abraçou e volta.
— Você vai precisar voltar para o Rio, é isso? — inquiriu já ficando vermelha, sinal que iria
chorar de verdade.
— Não, meu amor. — Dei beijos alternados na cabeça quente. — Alguns países.
Ela se afastou, realmente assustada.
— Quando você vai?
A tensão foi terrível, a decepção dela seria ainda pior.
— Amanhã.
Camille deixou escapar uma respiração entrecortada, e sentou na cama devagar, processando a
informação.
— Me deixa sozinha.
— Camille...
— Sai.
Ainda olhei por um tempo para ela, mas fiz o que me pediu. Ela estava com raiva, e eu estava
nervoso, então era melhor dar um tempo para esfriar os ânimos.
Desci a escada e encontrei minha irmã na piscina, Nina tinha trancado a faculdade para ficar aqui,
isso deixou sua relação com Benjamin complicada. Na noite em que a encontramos, se não fosse ele
seríamos pegos de surpresa por outro louco, o homem que estava no carro com Marck e que a mãe de
Erick estava esperando. Ela estava presa, acusada de ser cúmplice de homicídio e cárcere privado.
O que Erick dissera sobre haver ossos naquele lugar terrível não era mentira, a polícia civil
encontrou vários corpos em decomposição, meninas que estavam na lista de desaparecidas, mas que
nunca mais voltariam para casa. Ouvi a risada de Nina, fazendo as próprias loucuras dentro da água e
me senti extremamente aliviado. Ela estava em casa, ao poucos voltando à sua personalidade e eu era
grato por isso.
— Achei que você não iria, que aproveitaria esse tempo fora para pedir exoneração. — Andrea
disse.
— Não fosse a promessa que eu fiz a mulher que praticamente nos deu todas as informações para
fecharmos o caso, eu não iria. — O meu senso de dever me colocava em maus lençóis, às vezes.
— Camille está chateada? — Sentou-se ao meu lado, observando, como eu, os mergulhos da
minha irmã.
— Sim, e com razão. Eu já tinha prometido que iria deixar toda essa merda para trás. — respondi,
frustrado.
— Converse com ela, lembre-se que não tem muito tempo. Vamos viajar amanhã.
Sem mais palavras, ela levantou-se e foi para onde Nina estava. Saí dali e fui até a garagem tirar
as bagagens da viagem do carro. Deixei as malas diante da porta e dei dois toques antes de entrar.
Camille não estava no quarto, ouvi o som do chuveiro e girei a maçaneta da porta. Ela estava sob o
chuveiro. Despi-me rapidamente e entrei no boxe, sentindo de imediato o cheiro da pele molhada,
lembrando-me que a primeira vez que fizemos amor tinha sido exatamente assim, começara no banho,
a diferença é que ela tinha ido atrás de mim, diferente de agora.
Eu não suportava ficar muito tempo brigado com ela. Pousei as mãos em seus ombros, Camille
não se moveu, ouvi apenas um suspiro. A pele inteira tornando-se arrepiada.
— Está com medo? — inquiri, beijando a cabeça por trás.
Finalmente, ela me encarou. A raiva não estava mais lá.
— Tenho medo de não estar com você...
Segurei o rosto delicado e a beijei, um mal estar repentino se instalando dentro e fora de mim. A
ideia de que talvez o que tínhamos fosse perdido era insuportável para mim. Quantos agentes iam
nesse tipo de missão e voltavam dentro de um caixão?
— Isso não vai acontecer... — tranquilizei-a, embora não tivesse um controle absoluto sobre isso.
— Você não tem como saber. — retrucou, não com raiva, apenas decepcionada.
Ela tinha razão. Depois de tudo que acontecera nas últimas semanas, a única certeza que eu tinha
era que nada estava sob controle. As coisas mudavam em segundos. Nunca cheguei a temer qualquer
uma dessas missões, mas agora era diferente.
Não tinha muito o que dizer, então a beijei. Explorei os lábios voluptuosos, enquanto a água
morna cobria os nossos corpos, não que isso trouxesse alguma calma ou refrigério, muito pelo
contrário, a tensão permaneceu mesmo quando já estávamos na cama, isso não impediu o desejo, o
tesão, tornou tudo um pouco mais intenso. A tensão, o medo, a saudade. Eu não queria deixá-la, nem
agora e nem nunca, todavia nunca fui um homem de correr de alguma responsabilidade. Ela
entenderia e se eu não voltasse, cheguei a estreitá-la mais por causa da sensação ruim que o
pensamento me causava — se eu não voltasse, ela não estaria sozinha.
O relacionamento que ela tinha com minha irmã e minha mãe, me garantia isso.
— Eu te amo. — As palavras deixaram-na tensa, diferente do que geralmente acontecia, não
houve sorrisos e sim lágrimas.
— Eu tenho a impressão de que está se despedindo... — a voz foi sussurrada, quase um gemido.
Uma de suas mãos entraram por entres os fios do meu cabelo e a outra fazia um vai e vem
carinhoso pelas minhas costas. Segurei seu rosto, encarando-a, ainda dentro dela, sentindo o seu
lugar mais íntimo me sugar inteiro.
— Não, eu quero que se lembre... todos os dias, eu vou lembrar... até estar de volta.
60
Camille
Ele não me olhou nos olhos, enquanto beijava a minha testa, também não disse nada. As mãos
alisaram meu cabelo e Marcone voltou a beijar minha cabeça e em seguida abraçou a irmã, ela
estava chorando, algo que eu não conseguia fazer, era como se estivesse tudo trancado por dentro.
Depois de dizer algo no ouvido dela, Nina sorriu um pouquinho e enxugou os olhos. Logo depois ele
se dirigiu a mãe, ela não estava chorando, eu me perguntava de onde essa mulher tirava tanta força.
— Sua benção, minha mãe.
— Eu já enterrei seu pai, não quero enterrar você também. — Mara disse num tom baixo, mas eu
ouvi, e a minha aflição só cresceu ainda mais. Os latidos de Bella só deixaram a situação ainda pior,
o animal estava agitado, como se soubesse que ele ia viajar. Marcone assentiu, olhou uma última vez
para mim e se abaixou para falar com o cachorro, afagando a cabeça grande. Afastou-se em direção
ao carro em passadas largas, ele estava tenso, eu o conhecia.
Quanto mais meu marido se afastava, mais eu tinha a impressão de que não havia me despedido
direito, a cada passo parecia que um pedaço do meu coração era cortado e levado junto com ele.
— Espera... — Não sei se meu tom foi alto ou um sussurro, mas Marcone olhou para trás, e eu
corri, corri como se não houvesse muito tempo. Ele me enlaçou assim que me joguei em seus braços.
— Promete que você vai voltar para mim... — Foi um pedido ofegante, encostei os lábios nos
dele.
— Sim, eu vou voltar logo.
— Eu te amo.
O que eu disse o fez sorrir, ele me beijou outra vez.
— Eu também, eu te amo muito. — Encostou a testa na minha e em seguida eu me afastei,
deixando-o entrar no carro de onde Andrea observava tudo.
No momento em que o carro deixou de ser visto, foi como se meu coração tivesse ido junto com
ele, e então as lágrimas, várias delas apareceram. Se algo acontecesse, se ele não voltasse, o sentido
de muita coisa se perderia.
Todo o estresse dos últimos meses começou a me esmagar, eu quase tinha morrido, Nina tinha
sido sequestrada, ele fora baleado mais de uma vez, era um mundo feio, e eu não queria passar o
resto da minha vida com medo dele não voltar.
*
Os dias que se seguiram foram horríveis, Marcone e eu nos comunicávamos por ligações ou
chamadas de vídeo, mas nada disso me tranquilizava. E para piorar, a cada vez que a tevê era ligada
havia a notícia de que algum policial fora morto. Essas notícias sempre existiram, mas eu só tinha
passado a prestar atenção nelas agora. Porque eu amava um policial, as coisas mudavam de
significado quando era com um dos nossos. Mas a cada notícia dessas, eu só conseguia pensar nas
esposas, nos filhos, nas mães. Mara era uma fortaleza, embora cada uma de suas rugas contasse uma
história diferente e talvez dolorosa, ela em nenhum momento fraquejou ou mostrou a mesma aflição
que eu.
— Mulheres são naturalmente fortes, Camille. — ela me dissera, quando passei mal na tarde
anterior. — Homens precisam aprender com o tempo.
A tontura foi tão forte que cheguei a cogitar estar grávida, mas o teste de farmácia apontou que
não. Não ficaria surpresa, embora eu não desejasse engravidar agora, mas Marcone e eu nunca fomos
completamente cuidadosos quanto a evitar que isso acontecesse.
Observei as estrelas pela janela do nosso quarto, perguntando-me se ele as via da mesma forma
que eu estava vendo agora, se no país em que meu marido estava era noite ou dia. E quando ele
voltaria.
Ouvi um ruído e vi Nina colocar a cabeça para dentro, sorri para ela, incentivando-a a entrar.
— Mamãe está chamando você, já passou muito tempo aqui sozinha.
Durante o dia, eu perambulava pela casa ou montava a cavalo, mas quando a tarde ia chegando ao
fim tudo ia ficando pior, principalmente quando não havia ligações dele, a impressão que eu tinha era
a de que algo ruim havia acontecido.
Mara estava sentada na cama grande, com alguns álbuns sobre a cama, na mesinha ao lado, notei
as três canecas de chocolate quente.
— Marco disse que você gosta de chocolate. — Nina pulou na cama da mãe, e eu fiquei feliz que
sua habitual tagarelice tivesse voltado.
Sentei na cama e aceitei a xícara, sendo atraída por um álbum grande de fotos, a maioria delas
desgastada pela tempo, mas ainda assim visíveis.
— Olha como eu era bebê. — Nina passou algumas páginas e virou para que eu visse.
— Você era linda e gordinha.
Passamos muito tempo tomando chocolate e vendo fotos antigas, com as conversas eu fui
descobrindo a origem dessa família que agora também era minha. Mara me tratava como filha, numa
naturalidade tão grande que era como se eu morasse aqui há muito tempo. Em uma das tardes em que
fiquei trancada no quarto minha sogra me convidou para ir a fábrica com ela e Nina.
— Você é advogada, não é? — inquiriu, enquanto entrávamos no andar em que ficava sua sala,
Celine estava lá. Ela estreitou um pouco os olhos, como se não esperasse me ver ali.
— Sim.
— Acho que você pode me ajudar com alguns contratos, então.
Segui-a, olhando ao redor. Eu tinha vindo poucas vezes aqui com Marcone, desde que viemos
para cá. Mas olhando tudo agora, eu senti uma admiração ainda maior por minha sogra. A forma
como ela tinha assumido o lugar do marido, como lutava para não deixar que o legado dele se
perdesse.
Eu queria ser forte como ela era.
Passei a acompanhá-la todos os dias até lá, e as conversas que mais escutava era sobre as mães
que trabalhavam na produção de queijos e que às vezes não tinham com quem deixar os filhos no
período em que eles não estavam no colégio.
— Tia. — Abri ligeiramente a porta, notando a expressão preocupada que Mara fazia.
Observei as notícias que estavam passando. Ele estava se expondo demais, quase todas as vezes
em que algo foi mencionado nos jornais com relação a operação que a polícia federal e a interpol
brasileira estavam lidando junto com a polícia de outros países, o nome de Marcone foi citado, em
alguns momento ele também aparecia, ás vezes junto com Andrea, em outras sozinho. Eu não
conseguia entender por que tanta exposição, se era tudo que não queríamos.
— Entre, querida.
— Ele não entrou em contato hoje também — lamentei e me sentei na cama. A mãe do meu marido
sorriu, pude ver traços semelhantes aos dele.
— Meu filho nunca fez escolhas tolas, ele deve saber o que está fazendo.
Conversar com ela sempre me acalmava de alguma forma, coloquei uma mecha de cabelo atrás da
orelha, lembrando-me do porque estava ali.
— Eu acabei ouvindo algumas conversas sobre os filhos das mulheres que trabalham na fábrica.
Mara assentiu, incentivando-me a continuar.
— Eu poderia dar aulas de pintura nos horários em que as crianças ficam dispersas. Sem custo
algum.
Ela sorriu, animada.
— Do que precisaria?
— Um lugar para reunir as crianças, tintas, telas...
— Faça uma lista. — disse ela, com evidente orgulho. — É uma excelente ideia. Lugar temos de
sobra aqui.
Trabalhamos por uma semana nisso, entre arrumar o lugar. Nina me ajudou muito nisso e no
cadastro de todas as crianças que fariam as aulas, tendo o cuidado de especificar os horários. Fiquei
assustada quando percebi que era um número muito maior do que estava habituada no projeto. Foi
montada uma cabana branca, rústica numa área da fazenda. Ali seria seguro para mim e para as
crianças e não seria dificultoso para os pais irem buscá-las no final do dia ou das manhãs.
O primeiro dia foi o mais difícil, quase não pintamos. Passei a maior parte do tempo conversando
e descobrindo quem eles eram, a sala cheia fez-me lembrar de Isabelle. Pensar nela me fez sentir
ainda mais orgulho do meu marido, pelas conversas que eu tive com o pai da menina havia alguma
esperança para ela, pensar que Marcone estava pagando o tratamento, mesmo depois de ter certeza
que Afonso esteve envolvido com o rapto de Nina, ainda que indiretamente, só me fazia ver o quanto
ele era humano. E o quanto eu era sortuda também.
Naquela noite, depois de dias sem contato, ele fez uma chamada de vídeo. Parecia que anos
tinham se passado desde que ele saíra daqui.
— Quando você vai voltar? — era a pergunta que eu mais fazia nessas chamadas.
— Logo. Estamos quase no final. — ele aproximou-se da tela, como se pudesse me tocar ou estar
aqui se chegasse mais perto. — Como você está, meu amor?
— Com saudades — admiti. — Contando as horas para que você volte logo. — Toquei seu rosto
na tela, desejando sentir realmente a textura da sua pele.
— Não vai demorar mais. — garantiu ele, sorrindo, as covinhas lindas aparecendo.
— Eu te amo. — beijei a ponta dos meus dedos e toquei a tela.
— Eu também.
61
Camille
Como acontecia em todas as manhãs, Bella me seguiu pelo quarto desde a hora em que levantei
da cama até o momento em que desci para tomar o café da manhã. E eu adorava isso, adorava a
lealdade dela. Nunca entendi muito bem o encanto que os cães despertavam até conhecê-la, ela agora
era nossa.
Ela deitou no seu tapete habitual e eu me sentei à mesa do café da manhã. Estava me servindo,
quando a funcionária de Mara apareceu, trazendo o telefone para mim. Estranhei num primeiro
momento, era raro alguém me ligar, com exceção de Aline, Naiá e às vezes meu pais.
— Alô? — Segurei a xícara, pronta para dar o primeiro gole.
— Eu sinto muito, filha. — Minha mãe. Num primeiro momento imaginei que algo tivesse
acontecido ao meu pai, pelo que eu via nos jornais, ele não estava lidando muito bem com a
quantidade de dinheiro que estava perdendo.
— O que houve, mamãe?
— Você ainda não assistiu aos noticiários? — inquiriu surpresa. — Seu marido está
desaparecido, houve uma explosão em uma das boates e ninguém o encontrou mais... Aquela mulher
loira está falando agora na tevê.
O baque da xícara sobre o vidro da mesa soou ensurdecedor, alguns cacos feriram meus dedos e
não fosse a armação de madeira, eu estaria com as pernas inteiras cortadas.
Ainda com o telefone na orelha, fui a até a sala de tevê, ignorando o ardor que se espalhou pala
minha mão por causa do ferimento. Liguei o monitor, e aumentei o som quando encontrei o canal ao
qual Joice se referia.
— Eu não consigo acreditar que algo assim aconteceu com ele. Ainda tenho esperanças que há
algum mal entendido, só vou acreditar quando todos os escombros forem retirados. Por enquanto
ele está desaparecido, não há morte ou perda confirmada.
— Camille.
A voz de Nina foi a última coisa que escutei, antes de sucumbir totalmente à escuridão.
Desespero.
Nunca pensei que fosse descobrir o significado real da palavra dessa forma. Assim que despertei
parecia que todos os telefones da casa estavam tocando junto com os latidos de Bella, ela estava
agitada, não sei se por causa do meu estado ou porque sentia algo.
Talvez a mesma dor que eu.
Nesse mundo de ligações ninguém conseguia se comunicar com ninguém. A única pessoa que
realmente conseguimos falar foi com Benjamin, mas ele sabia tanto quanto nós. Eu só conseguia
chorar, enquanto a sensação de não conseguir acreditar me inundava e me deixava. Nós tínhamos nos
falado ontem. Não era possível que...
Evitei o pensamento.
Celine apareceu trazendo um copo de água, mas recusei. Eu não queria nada disso, queria apenas
meu marido em casa.
Subi para o quarto, detestando tudo que estava sentindo. Enviei dezenas de mensagens para o
celular dele, mas nenhum chegou realmente. Minhas mãos tremiam tanto, tanto, todo o corpo tremia.
Eu não conseguia ficar sentada, ou deitada, só queria que alguém me desse alguma notícia, qualquer
uma.
Torci os dedos, eu devia ter implorado para que ele não fosse. Devia ter dito mais vezes que o
amava, devia ter feito tantas coisas. Mesmo sem querer, algumas lágrimas vieram, eu me recusava a
acreditar que uma desgraça desse tipo pudesse ter acontecido com ele.
Explosão. Escombros. Desaparecido.
Era tudo que eu lembrava do que Andrea havia dito.
Explosão. Escombros. Desaparecido.
Meu cérebro ficava repetindo isso o tempo todo, tentando encontrar um meio termo, algo que não
me fizesse pensar que ele podia estar morto. Talvez tivesse sido uma explosão pequena.
Horas se passaram, a noite chegou e não recebemos notícia alguma, nenhum sinal. Tomei um
banho, tentando me acalmar e me sentei na cama com os olhos fechados, olhando atentamente para o
celular, esperando um sinal e evitando entrar em sites de notícias.
Ouvi passos do lado de fora e coloquei o aparelho sobre o criado-mudo, ciente de que não era eu
apenas sofrendo aqui. Nina e Mara também estavam, permaneci quieta quando a porta foi aberta, já
ensaiando a desculpa que eu daria para continuar ali sozinha e não descer para comer.
— Você bem que podia falar comigo, não é?
Fechei os olhos com força, temendo estar dentro de uma pegadinha do meu próprio cérebro.
— Me dar um oi, ou quem sabe até dizer que estava com saudades. — A voz grave soou, tão
carinhosa, que senti as lágrimas descerem por meu rosto, várias delas. O cheiro dele já preenchendo
o quarto, como se não estivesse fora há semanas. — Me perdoa, meu amor. — sussurrou ele,
introduzindo os dedos entre meus cabelos, enquanto eu ainda não tinha coragem de abrir os olhos e
ver que era mentira, que ele não estava ali. — Calculamos tudo errado, eu achei que a notícia só
sairia quando já estivesse aqui com vocês.
Reunindo toda a coragem que eu tinha, abri os olhos devagar, enquanto minha respiração se
acelerava. Meus dedos tatearam pelo corpo dele, para que eu tivesse certeza de que era mesmo
Marcone ali. Minha boca procurou a dele e todo mal estar se dissipou completamente, como se ele
fosse um remédio perfeito e ele era.
Para mim ele era.
— O que aconteceu? — inquiri, sem conseguir desgrudar dele, buscando uma forma de me
encaixar no seu colo.
— Houve realmente uma explosão, mas eu não estava lá. — Enquanto falava, ele afagou todo o
meu rosto, desde a sobrancelha até o queixo. — Policiais se feriram, alguns morreram. — Fez uma
pausa. — Agora acabou. Não quero mais nada desse tipo na nossa vida. Acabou de verdade.
— Jura?
Ele assentiu e me beijou outra vez.
— Andrea sabia?
— Sim, ela já está no Brasil também.
— E a irmã de Bruna? — inquiri, porque foi esse o real motivo dele tar ido.
— Ela está bem. É tão esperta quanto a irmã.
Marcone
Nunca senti tanto medo de morrer na minha vida, e devo dizer que em alguns momentos chegou
perto. Só o pensamento de não vê-la mais me desestabilizava, não só por mim, mas pela decepção
que lhe causaria, o sofrimento, a angustia, embora eu soubesse que mesmo sem mim, Camille jamais
estaria sozinha.
— Eu achei que iria morrer quando ouvi o que Andrea disse. — Tudo que eu não queria era vê-la
chorar e ainda mais por minha causa. — Achei que não fosse mais ver você.
— Foi uma mentira que precisou ser contada. — segurei o rosto dela e beijei os lábios trêmulos.
— Agora está tudo bem.
Camille assentiu e me abraçou apertado.
— Eu te amo. — ela repetiu. — Te amo de verdade, chega a doer aqui. — ela colocou a minha
mão sobre o próprio coração, que batia descompassado. — Não quero me afastar nunca mais...
— Isso não vai acontecer. — Beijei-a. — Nunca mais.
Olhei dentro das suas íris verdes, os olhos estavam úmidos pelas lágrimas e foi como se eu
pudesse ver passado e o futuro, ambos se cruzando como se fossem apenas um, a vida me fez
entender as cicatrizes, mesmo as mais dolorosas. Em algum momento eu entendi porque doeu mesmo
sem aceitar, eu seria estúpido e mentiroso se dissesse que aceitava. Muito pelo contrário, cada marca
deixada pela vida seria sempre lembrada, eu nunca esqueceria meu passado, mas agora eu não
conseguia viver sem o meu presente, se ele fazia parte do meu destino ou se eu estava predestinado,
era algo que nunca entenderia.
Mas a minha maior certeza era a de que eu a amava, amava a forma como ela entrara na minha
vida, amava a forma como aprendemos a nos amar, amava a forma como não tínhamos pulado fase, o
que aconteceu entre nós foi construído, um tijolo de cada vez. Cada ligação, cada mensagem, cada
café, cada jantar, a primeira vez que fizemos amor, a primeira briga. Tudo tinha sido
milimetricamente construído, mesmo quando estávamos distraídos em questionamentos secundários.
Os meus momentos com ela eram únicos, seriam sempre únicos. Tínhamos tempo.
Epílogo
Marcone
Dois anos depois...
Virei a poltrona para a janela, como geralmente meu pai fazia quando estava vivo. Ele passava
muito tempo nesta mesma poltrona olhando essas terras, devo admitir que com o passar do tempo
passei a entender o que tanto o fascinava aqui.
A paz.
Fazia dois anos que saí da polícia e passei a viver aqui, longe de toda loucura que era o Rio de
Janeiro e a maioria das capitais do Brasil, durante esse tempo, permaneci ao lado da minha mãe em
todas as decisões tomadas com relação a fábrica, tudo estava ampliado, além da sede aqui em Minas,
agora havia um projeto em andamento para abertura de outra fábrica em Ouro Preto, e eu assumiria
por lá.
Peguei o celular que vibrava com uma mensagem de Andrea, ela parecia ter colocado finalmente a
cabeça no lugar. Ela era a única coisa que me fazia sentir falta da polícia. A nossa cumplicidade,
tudo que já tínhamos passado juntos, ela era uma parte ácida e doce da minha vida.
— Você não ia me contar, não é? — inquiri, quando percebi que Andrea iria embora sem sequer
se despedir de mim, dois anos atrás, depois de uma das piores operações que já participei na vida.
Não pelo perigo que era estar lá e sim por tudo que eu perderia se eu não voltasse para casa.
— Sabe que sou péssima com despedidas...
— Para onde você vai, Andrea?
— Gastar a fortuna que herdei. — Ela fez graça e eu me aproximei, tinha muitos motivos para
agradecer a ela, inúmeros motivos.
Assim como eu, ela também resolveu sair. O que aconteceu com Erick, acabou deixando-a
completamente cética com relação a algumas coisas. Principalmente dentro da polícia.
Abracei-a, já sentindo sua falta, pensando seriamente nós nunca tínhamos passado um dia
sequer sem nos falarmos, sem nos vermos.
— Obrigado por tudo, Andrea.
Essa tinha sido a última vez que nos vimos e raramente eu a encontrava no celular, era como se
Andrea realmente estivesse se reconstruindo, se adaptando a uma outra vida.
Longe da polícia e longe de mim.
De: Andrea
Está tudo bem. Eu espero que seu filho seja menos insistente que você.
Foi impossível não rir, a mensagem ácida por conta das três ligações que eu havia feito e que ela
não atendera a nenhuma.
De: Marcone
Só queria ter certeza que está tudo bem.
Pela janela vi Camille caminhando de mãos dadas com Isabelle, e Bella ao lado das duas. Depois
de muito fazer rodeios o pai da menina tirou coragem do amor que sentia por ela para me pedir um
emprego, depois de um ano e meio de tratamento a menina estava praticamente curada, mas ainda
havia riscos de a doença voltar. Sorri ao me lembrar da ligação de vídeo que nós fizemos, quando
ela recebera alta do tratamento.
— Eu queria que você me visse com cabelo, tio.
Até mesmo a lembrança fazia meus olhos encherem de lágrimas. A menina era extremamente
especial. Ela e o pai estavam em Minas Gerais desde que o tratamento dela chegou ao fim, Afonso
estava trabalhando na produção da fábrica. Meu pai já tinha ajudado muitas pessoas da região
quando estava vivo, isso explicava a lealdade que esse povo tinha por ele e minha mãe. De alguma
forma eu me sentia bem em dar assistência aos dois, com todo o dinheiro que Estevan deixara para
mim, precisava usar ao menos um pouco para ajudar alguém.
Minha mulher e a menina acenaram para mim. A barriga de Camille estava cada dia maior,
embora algumas pessoas ainda não percebessem. Mas para mim era evidente, eu conhecia cada pinta
que ela tinha no corpo.
Grávida há três meses.
E praticamente sem sintoma nenhum. Sem enjoos matinais. Sem cansaço excessivo, todavia
parecia estar sempre de tpm. Tudo a deixava brava, pelo menos o que eu fazia, é claro. Camille
acariciou a barriga distraidamente, ainda era surreal que algo tão precioso estivesse crescendo
dentro dela, um fruto de nós dois. Do amor que sentíamos um pelo outro. Ela não quis engravidar
rápido, embora não fôssemos cuidadosos de verdade, ela esquecia de tomar os remédios para evitar,
e eu achava que tinha até demorado para acontecer.
Ela queria viajar, trabalhar, pintar e me amar. Era o que Camille costumava dizer e eu
concordava. A minha garota era muito jovem quando nos casamos, e ainda era. Ela merecia viver
plenamente, fazer tudo o que tinha vontade antes de ter um filho meu.
Um filho.
Eu estava louco para saber se era menino ou menina. Nina já estava dando ideias de temas e
brincadeiras para fazer no chá de revelação, revirei os olhos ao lembrar da serelepe. Minha irmã não
mudava. Ela estava estudando em Belo Horizonte, fazendo novos amigos, vivendo novas
experiências, aproveitando as fases da vida, isso incluía seus términos e reconciliações com
Benjamin. O infeliz era cheio de defeitos, todavia ele gostava realmente dela, eu admitia isso.
— Vá dar um beijo nele, seu pai já deve estar chegando.
Virei-me para a entrada do escritório e vi Camille dar passagem para Isabelle entrar, a garotinha
tinha crescido um pouco, os cabelos extremamente pretos batiam no seu queixo, cheios de cachos.
Curiosa como sempre era quando entrava aqui, ela primeiro mexeu no que não devia antes de vir me
dar um beijo de tchau.
— Sabe, tio. Hoje a tia Cami deixou que eu desse aulas no lugar dela. — A menina passou a
tagarelar de modo doce com uma expressão estranha. — Acho que ela está cansada por causa do
bebê que está na barriga.
Camille e eu rimos.
— Vamos lá, Belle. O beijo e tchau. — O tom maternal que minha mulher usou para falar com a
menina me deu uma pista de como ela seria com nossos filhos. A ideia me agradou.
Isabelle me deu finalmente o beijo e em seguida saiu correndo, como já era o costume.
— Você passou o dia todo aí? — inquiriu ela, e veio se sentar no meu colo, algo que seria
praticamente impossível se a barriga estivesse realmente grande.
— Não — respondi, levantando o tecido fino da sua blusa para ver a barriga redondinha que se
formava. — Tive que ir à cidade e fui a fábrica também.
Introduzi os dedos pelos cabelos fartos, ainda mais compridos, embora ela tivesse aparado as
pontas uma semana atrás, a cor cobre estava mais evidente, uma mudança natural que eu gostava. A
cor pouco comum em conjunto com os olhos mais expressivos que eu conhecia, deixavam-me sempre
bobo quando eu a olhava. Mal podia esperar para vê-la com a barriga maior.
— Me leva para o quarto no colo. — Ela fez um biquinho gostoso, era melhor do que estar
irritada, pensei comigo mesmo.
Parei o carro na vaga de sempre e caminhei para dentro da escola de ballet, acho que todos ali
sabiam exatamente a hora que eu chegava para deixar e buscar minha filha, sempre com dez minutos
de antecedência, como se eu sempre tivesse sido um homem pontual, mas quando se tinha crianças
em casa tudo mudava drasticamente. Ainda tive tempo de ver o final da aula, esse era um dos
motivos para chegar sempre antes, admirar um pontinho cor de rosa dançando no salão grande.
Alícia era a criança menor nesse horário, aliás, horário era outra coisa que me enlouquecia
ultimamente.
Horário de aula.
Horário do ballet.
Horário do banho.
Havia hora para tudo.
— Papai!! — A pequena e serelepe arteira, como a tia, sempre me via e vinha correndo para que
eu a pegasse no colo.
Eu diria que esse momento tinha se tornado um dos preferidos do meu dia, havia outros também.
Chegar em casa e encontrar a minha muler, era um exemplo.
— E então, meu amor, como foi o ballet? — A pergunta de sempre.
— Foi bom, papai. Eu dancei sozinha hoje.
— Sério? — Beijei a bochecha macia, equilibrando-a em meu colo.
Ela era extremamente parecida com a mãe. Tudo. Os olhos, o formato do rosto. Só os cabelos que
não tinham herdado o tom cobre, eram mais parecidos em cor e textura com o meu.
— Tchau, tia Luci — brinquei, sabendo que minha filha me imitaria, num tom muito mais alto.
— Tchau, tia Luci — foi o que ela fez, enquanto acenava efusivamente.
Saímos, enquanto ela tagarelava sobre ter ficado com vergonha de dançar sozinha na aula. Alícia
estava tendo uma aula a mais na semana por causa das apresentações de final de ano.
— A gente vai buscar a mamãe? — inquiriu ela, observando enquanto eu fazia o retorno no
estacionamento.
— Sim, meu amor.
Tínhamos nos mudado para Ouro Preto há dois anos, por causa da filial da fábrica que abrimos
aqui e também por causa da escola de arte de Camille, agora ela tinha a própria escola. Além de ser
um fenômeno no mundo da arte, seus quadros estavam nos maiores museus do mundo. Todavia ela
nunca mostrou o rosto, era a anônima mais famosa no meio artístico.
Camille costumava dizer que amava sua vida normal, ficar famosa só mudaria isso e traria
exposição para todos nós.
Do carro pude vê-la conversando com Barbara, sua sócia e uma das poucas amigas que Camille
tinha aqui na cidade. Minha garota tinha se transformado numa mulher maravilhosa, embora a menina
que me encantara estivesse dentro nela, fazendo com que eu me apaixonasse cada dia mais. Por ela e
pela família que nós tínhamos.
— Ela tá demorando, papai. — Alícia reclamou, impaciente, às vezes eu não sabia de quem tinha
herdado esse temperamento. Camille reclamava que eu era exatamente igual a nossa filha,
principalmente pela manhã, quando as duas me tiravam do sério na hora de levantar cedo. — A tia
Barby tá namorando com o vizinho nosso.
Dei risada da forma como ela falou e meneei a cabeça, ainda observando minha mulher de longe.
— E ela conta tudo a mamãe.
Ri de novo.
— Você é fofoqueira e terrível como sua tia.
A menina franziu a testa sem entender e voltou a olhar para a mãe, que dessa vez caminhava para
o carro. Os olhinhos da minha pequena chegavam a brilhar e um sorrisinho imperceptível surgiu na
boca pequena quando Camille entrou no carro.
— Amor. — Ela beijou de leve minha boca e depois se virou para olhar nossa filha, sentada na
cadeirinha no banco de trás. — Filha.
— Oi, mamãe.
Durante todo o caminho até em casa, minha filha contou para nós como seria a apresentação de
final de ano e que ela iria dançar sozinha.
— Mas só se eu tiver coragem, papai. — Era o que ela repetia o tempo todo.
Assim que entramos em casa, Bella veio nos receber como acontecia sempre, embora não tão
efusivamente como antes. Ela já estava envelhecendo, com menos energia. A nossa casa era grande,
Camille queria ter um quintal já que não estávamos mais na fazenda. Queria ter plantinhas para regar
e um pouco de verde. No projeto incluímos um jardim de inverno enorme na sala. Além da luz do sol,
a ideia de verde dentro de casa dava um ar de tranquilidade e paz.
Almoçamos os três na cozinha, geralmente tanto Camille quanto eu trabalhávamos apenas na parte
da manhã, nossa família sempre viria antes de tudo. A primeira coisa que minha mulher me disse
quando nossa filha nasceu é que ela nunca deixaria nosso bebê sob os cuidados de alguém que não
fosse um de nós dois. A relação dela com os pais nunca melhorou, embora em um momento ou outro
tanto Joice quanto Augusto tentassem se aproximar, ela não os rejeitava completamente, mas também
não os tinha como prioridade.
Naquela noite, enquanto eu colocava minha filha na cama para dormir, me dei conta de que não
imaginava que um dia viveria isso. Segurei a mãozinha pequena e cheia de pulseirinhas coloridas que
ela não tirava por nada, questionando-me se eu merecia realmente tudo que eu tinha: uma esposa
linda, uma filha adorável, amor, era o que mais tínhamos. Várias coisas do passado ainda me
machucavam, machucavam bem lá no fundo, na parte mais íntima que havia dentro de mim, e seria
sempre assim. Mas eu era extremamente grato e satisfeito com o que tinha agora, o meu final poderia
ter sido completamente diferente do que eu vivia agora se eu recusasse o que tinha sido oferecido a
mim pelo destino. Se eu deixasse o medo e o receio falarem mais alto.
Umas das coisas que mais tinha mexido comigo na carta de Estevan, anos atrás, foi a forma que
ele usou para me dizer que eu tinha feito sua filha feliz enquanto ela respirava.
Enquanto ela respirava.
Enquanto ela estava viva.
Após a morte nada mais podia ser feito. Os mortos não escutavam os eu te amos que eram
deixados no caixão, muito menos sentiam o cheiro das flores que eram colocadas lá e carregadas
pelo vento.
Depois que o coração parava de bater, nada mais era visto. O funeral era para os vivos e não para
os mortos.
E era essa constatação que me levava a fazer tudo o que podia para deixar Camille e Alícia
felizes, colocando-as sempre em primeiro lugar. Aproveitando de cada respiração que elas dessem,
de cada batida do coração, usufruindo de cada momento, entendendo que tudo podia mudar num
segundo.
— Ela demorou para dormir? — Ouvi a voz de Camille e beijei a mãozinha de Alícia antes de me
afastar dela.
Fiz que não.
— O que foi, então? — Ela me sondou quando me aproximei e a abracei, enterrando o rosto no
pescoço perfumado.
Eu a amava. E era fácil como respirar.
— Estava pensando que eu amo muito vocês — admiti, segurando o queixo delicado, os olhos
febris, ariscos e cheios de brilho me encararam de volta. — Não consigo imaginar um futuro
diferente desse que temos.
— Foi escrito para ser assim, exatamente do jeito que é. — Ela ficou na ponta do pé para me
beijar, cada beijo dessa mulher me deixava mais enfeitiçado. — Você precisava ser meu e eu
precisava ser sua, exatamente do jeito que é...
Fazendo uma retrospectiva de tudo que vivemos, eu me dei conta de que minha mulher tinha razão.
Nas linhas do destino, o nosso final já estava escrito.
Escrito para ser exatamente assim.
Beijei a boca carnuda, admirando o que o tempo tinha feito conosco, ele só tinha tornado tudo
mais intenso.
O amor e o desejo que eu tinha por essa mulher pareciam não ter fim.
— Eu te amo. — repetiu ela, oferecendo novamente os lábios.
Eu também a amava.
Com a minha própria vida.
Cris Araújo vive no interior da Bahia. Além de ser uma leitora ávida e apaixonada pela escrita,
é também fascinada por música, filmes e seriados. Começou a ler aos doze anos, e a partir daí a
paixão pelo universo da literatura aconteceu. A escrita também começou cedo, caneta e papel sempre
foram seus companheiros inseparáveis. Em suas histórias tenta esboçar tudo o que gosta de encontrar
nos seus filmes e livros prediletos: histórias capazes de gerar identificação entre os leitores e os
personagens, conexões essas baseadas na construção de personalidades cativantes, fortes e sobretudo
reais.
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[1]
A roupa foi desenvolvida para aprimorar a atuação de cachorros durante um resgate, o dispositivo facilita a comunicação entre cão e
treinador através de sensores, câmeras mesmo a distância.
[i]
A garota é sua? (Tradução de expressão em espanhol)
[ii]
Sim (Tradução de expressão em espanhol)