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O pastor reformado e o pensamento moderno
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O pastor reformado e o pensamento moderno
E-book399 páginas5 horas

O pastor reformado e o pensamento moderno

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Sobre este e-book

De que modo a cosmovisão cristã poderá ser melhor proclamada e defendida? A fé cristã é com frequência ridicularizada. Diz-se que ela é contrária à ciência e contraditória. Atraentes substitutos são oferecidos, muitas vezes, disfarçados em palavras da Escritura.

Como poderá o pastor guiar seu rebanho em meio a tanta confusão? Ele precisará distinguir a verdade do erro. Necessitará, especialmente, habilitar-se para discernir se os livros que lê, e os que o seu povo lê, atêm-se ao cristianismo histórico. Precisará saber como avaliar suas razões.

Por isso este livro é indispensável.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de fev. de 2023
ISBN9786559891924
O pastor reformado e o pensamento moderno

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    O pastor reformado e o pensamento moderno - CorneliusVan Til

    Capítulo 1

    O pastor reformado e a defesa do cristianismo

    A. Introdução

    O propósito primário desta discussão é construtivo, não polêmico. Esperamos demonstrar como a visão cristã da vida poderá ser mais efetivamente proclamada e defendida. De conformidade, temos em mente as responsabilidades de um jovem pastor que tem de guiar seu povo, especialmente seu povo jovem, a um aprofundamento, cada vez maior, da fé cristã. Entretanto, a fé cristã é com frequência ridicularizada. Diz-se dela que é algo puramente imaginário. Que ela é contrária a todo fato da ciência. Que é logicamente contraditória. Atraentes substitutos são oferecidos, muitas vezes, disfarçados em palavras da Escritura.

    Como poderá o pastor guiar seu rebanho, seus jovens estudantes do curso médio e superior, no meio de tanta confusão? Ele não tem tempo para ler muitos livros. Vive, às vezes, longe de grandes centros de aprendizado para usufruir de boas conversas com pessoas de igual pensamento e que tenham estudado tais matérias com maior profundidade. Ele precisará, portanto, de um critério pelo qual poderá, ele mesmo, distinguir a verdade do erro. Necessitará, especialmente, habilitar-se para discernir se os livros que lê, e os que o seu povo lê, atêm-se ao cristianismo histórico. Precisará saber como avaliar suas razões.

    Estaria, realmente, o cristianismo histórico de acordo com os fatos da ciência? Se for assim, deveria ele manter suas convicções no âmbito da religião, a despeito dos fatos da ciência? Deveria o cristianismo e a ciência serem considerados como operações de diferentes esferas?

    Novamente, estaria o cristianismo em desacordo com as demandas da lógica? Ele seria real ou aparentemente contraditório? O cristianismo realmente mantém que aquilo que é impossível, segundo a lógica, teria, de fato, acontecido?

    O pastor inexperiente poderá ficar perplexo diante dessas questões. Certamente, jamais poderá esperar conhecer tanto sobre os fatos da ciência quanto conhecem os não-cristãos peritos em ciência. Talvez possa receber ajuda de um amigo cristão, cuja tarefa de vida seja o estudo de alguma das áreas da ciência. Talvez receba alguma ajuda de seus antigos professores. Contudo, conquanto sejam peritos em seus campos de pesquisa, eles não estarão aptos para lhe mostrar como lidar com todos e cada um dos assuntos.

    B. Apologética católico-romana histórica

    Suponha que, um dia, tal pastor encontre seu amigo, o padre católico romano da paróquia local. Em outras ocasiões eles concordaram que teriam muito em comum. Da última vez, no entanto, o padre lhe passou uma cópia do livro do bispo Sheen, Religião sem Deus. Sheen cita um número de definições de religião dadas por, assim chamados, protestantes modernos. Religião é uma projeção no ruidoso arco do tempo de uma concentração ou complexo unificado de valores físicos. Fé em Deus é sinônimo de ousada esperança de que o universo seja amigável em relação aos ideais do homem.

    O padre sabia que todas essas definições subjetivas provinham, em última instância, do princípio protestante – o direito ao livre exame privado em matéria de religião. Lutero e Calvino foram responsáveis, o padre estava seguro disso, pelas divagações do protestantismo moderno. A essa altura, ele estava interessado em realçar o quanto Lutero e Calvino tinham em comum com Tomás de Aquino em termos da luta contra o subjetivismo moderno, dominado que é pela filosofia moderna, cujo pai foi Emanuel Kant.

    Somos, ambos, teístas, adiantou o padre. "Cremos no mesmo Deus. Cremos na existência objetiva de Deus. Deus não é meramente uma ‘projeção’ ou um ‘conceito limitante’ como apresentado pelos subjetivistas modernos. Certamente, juntos nos dispomos a defender nossa comum doutrina de Deus contra aqueles cujo Deus está apenas ‘em suas mentes’.

    "Ambos cremos na criação. Especialmente, cremos na criação do homem à imagem de Deus.

    Porventura, não temos nós em comum os credos da igreja primitiva? Não cremos no cristianismo histórico? Certamente, desejaremos defender as doutrinas da criação, da providência, da vera historicidade da vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, contra aqueles para os quais Cristo nada mais é do que um ideal.

    De tal maneira o padre falou ao pastor, explicando-lhe a grande importância de Tomás de Aquino na defesa do cristianismo, que o pastor concordou em ler os argumentos a favor da existência de Deus, formulados por São Tomás em seu Sobre a Verdade da Fé Católica (Summa Contra Gentiles). Assim, talvez, ele poderia ver quão razoável pode ser o cristianismo, até mesmo para aqueles que não aceitam a autoridade da igreja nem da Escritura. Concordou também em ler alguns dos livros escritos por homens como Etienne Gilson e Jacques Maritain, ambos filósofos católicos modernos.

    Em uma oportunidade, nosso pastor pediu ao padre que lhe esclarecesse um ponto. Exatamente, por que eu precisaria de autoridade e fé de qualquer espécie, ele disse, se o teísmo e, até mesmo, o cristianismo podem ser demonstrados tão razoavelmente sem eles? O padre disse que Tomás já havia respondido a questão, demonstrando que, por meio da razão, podemos saber somente aquilo que Deus não é. Uma vez que o conhecimento humano começa com a sensação, o intelecto tem de derivar princípios gerais a partir de tais sensações. Sendo o caso, o homem não obtém conhecimento de Deus dessa maneira. Antes, ele poderá apenas seguir o caminho da remoção (via remotionis ou via negativa), pela qual, em termos do conhecimento que já possui, ele é capacitado a dizer algo a respeito de Deus, dizendo algo que Deus não é. Dizemos: Deus não é finito, pois ele não tem um corpo. Ele não tem, em suma, nenhuma das limitações humanas. Contudo, a esse caminho da remoção, terá de ser acrescentado o caminho da eminência. Dizemos que Deus é perfeito no sentido em que o homem é imperfeito. Porém, se quisermos declarar todas as asserções positivas que o cristianismo faz sobre Deus, necessitamos da autoridade da igreja. Não será contra a razão, mas acima da razão, afirmar que Deus é triúno. Assegurado que podemos dizer algo positivo a respeito das perfeições de Deus, ainda resta que não poderemos afirmar mistérios, como o da encarnação, exceto baseado nessa autoridade.

    Devemos, portanto, demonstrar aos homens, cujo critério de julgamento é a própria razão, que eles mesmos poderão ver a própria necessidade de crer em Deus como Criador e controlador do universo. O teísmo é a melhor explanação para os fatos do mundo. Faz melhor justiça aos fatos conhecidos da ciência do que posições como as do panteísmo ou do deísmo. O teísmo está, também, mais de acordo com a lógica do que estão outras posições. Depois de os homens terem visto que o teísmo é mais provavelmente verdadeiro do que outras posições, porque está mais de acordo com ambos, fato e lógica, então estarão prontos para admitir que, na esfera de mistério que envolve a todos os homens, deve falar a autoridade.

    Depois desse esclarecimento dado pelo padre, nosso pastor continuou considerando se haveria maneira de evitar a batalha dos peritos. Estaria o padre ajudando-o a se ajudar. Ou seria a igreja, e particularmente o papa, o perito, cercada por um mistério, o qual seria impossível para o homem penetrar? Se a revelação natural é apenas suficientemente clara de maneira que, no máximo, pode somente fornecer bases para uma provável conclusão sobre a existência de Deus, e pode apenas dizer-nos aquilo que Deus não é, como poderá ser razoável aceitar os mistérios da fé sobre autoridade? Porventura, então, a fé não seria aceita sobre autoridade das mesmas asserções que já conhecemos? E se for assim, como poderemos demonstrar ao descrente que nossa posição objetiva seria melhor do quer qualquer posição subjetiva? Se a autoridade não puder ser demonstrada como sendo indispensável fundação do conhecimento, como, afinal, poderia ser melhor? Se a voz de Deus não é assim tão básica como pressuposição para o conhecimento humano – no sentido de que todo conhecimento deve ser construído sobre o conhecimento que Deus dá ao homem sobre ele mesmo, os outros e o mundo – então, como poderemos dizer que seja a voz de Deus? Seria, a voz de Deus, indispensável, se o homem pudesse viver consistente e inteligentemente, sem ela?

    C. Apologética reformada – Institutas, de Calvino

    Nosso pastor, então, voltou-se para alguns dos escritos dos reformadores. Cuidadosamente, ele leu o primeiro livro das Institutas, de Calvino. Algumas apresentações óbvias dos escritos de Calvino foram-lhe especialmente tocantes.

    1. A clareza da revelação

    Ele observou que Calvino, seguindo o pensamento de Paulo, insistiu sobre a clareza da revelação natural (ou geral).

    Ademais, por isso que no conhecimento de Deus está posto o fim último da vida bem-aventurada, para que a ninguém fosse cerrado o acesso à felicidade, não só implantou [Deus] na mente humana essa semente de religião a que nos temos referido, mas ainda de tal modo se há revelado em toda a sua obra da criação do mundo, e cada dia meridianamente se manifesta, que não podem [eles] abrir os olhos sem serem lançados a contemplá-lo. Por certo que sua essência transcende a compreensão, de sorte que aos sentidos humanos todos em muito [lhes] escapa ao alcance sua plena divindade. Entretanto, em suas obras todas, uma a uma, imprimiu inconfundíveis marcas de sua glória, e, na verdade, tão claras e notórias, que, por mais broncos e obtusos [que sejam], tolhida [lhes] é a alegação de ignorância.[1]

    Em outras palavras, o que a Escritura enfatiza é que mesmo à parte da revelação especial, os homens têm de reconhecer que Deus é o Criador do mundo.

    Até mesmo, a maldição de Deus, que pesa sobre a criação por causa do pecado do homem, não subtrai a clareza da sua revelação na natureza. Se o iníquo não é imediatamente punido pelo seu pecado e se o justo sofre, os homens não deveriam concluir que Deus não pode ser conhecido ou que sua revelação seja obscura. Deveriam, antes, concluir tanto que o dia do julgamento final nivelará todas as irregularidades quanto que a longanimidade de Deus não deveria ser tomada por menos.

    Em suma, nosso pastor observou que Calvino, com Agostinho, pensaria sobre Deus assim como uma pessoa pensa sobre o sol. Todas as demais luzes derivam-se do sol. Ninguém há que pense primeiro em outras luzes, embora possam ter brilho próprio, para, só então, abertamente investigar se a luz do sol realmente existe. Assim também, não deveríamos pensar primeiro sobre os fatos do universo, especialmente os da mente humana, como se eles fossem possivelmente não-dependentes de Deus, mas autossuficientes, como lâmpadas com energia própria, a fim de, então, indagar sobre a existência de Deus. Ninguém olha lâmpadas a fim de ver o sol. Da mesma maneira, não deveríamos olhar para a criação para encontrar um Criador, mas, antes, este último é o fundamento da primeira. Portanto, o verdadeiro conhecimento da criação requer um verdadeiro conhecimento do Criador.

    Todos os fatos do universo são necessariamente criados por Deus, dependentes de Deus. Portanto, os homens deveriam ver que Deus é Criador e Juiz dos homens. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis (Rm 1.20).

    Algo de especial importância a esse respeito é a visão de Calvino sobre o sensus deitatis. Ele diz:

    Que existe na mente humana, e, na verdade, por natural disposição, certo senso da divindade, damos como além de controvérsia. Ora, para que ninguém se refugiasse no pretexto da ignorância, Deus mesmo infundiu, em todos, certa noção de sua divina realidade, de que, renovando constantemente a lembrança, novas gotas, de quando em quando, instila, de sorte que, como todos, a uma, reconheçam que Deus existe e lhes é o Criador, sejam por seu próprio testemunho condenados, já que não somente lhe não renderam [o devido] culto, mas ainda a vida à vontade [lhe não] consagraram.[2]

    Aliás, desta noção até a [própria] idolatria é ampla evidência. Pois sabemos de quão mau grado se humilha o homem para que admire outras criaturas além de si [mesmo]. Quando, destarte, prefere [ele] render culto à madeira e à pedra, antes de ser havido como não tendo nenhum Deus, salta à vista veementíssima ser esta impressão acerca da divindade, que, por isso, não há de obliterar-se da mente do homem, assim que mais fácil seja quebrantarem-se as inclinações naturais, [que], dessa forma, na realidade, se quebrantam, quando, de seu nuto, desce o homem daquela natural altivez a [cousas] as mais baixas para [assim] adorar a Deus.[3]

    Confesso, sem dúvida, que a fim de mais obediente lhe terem o espírito, homens astutos muita [coisa] hão inventado em religião, mercê de que infundirem reverência ao poviléu e temor lhe inculcarem. Isso, no entanto, em parte alguma haveriam de ter conseguido, não fosse que já antes a mente humana houvesse sido imbuída. Dessa firme convicção acerca de Deus, da qual, como de uma semente, emerge a propensão para com a religião… Pois, ainda que no passado alguns hajam existido, e hoje não poucos surdem, que neguem a Deus existir, queiram [ou] não queiram, de quando em quando, acode-lhes certo sentimento [daquilo] que desejam ignorar… Voltam-se, é verdade, para com todos os esconderijos em que se ocultem da presença do Senhor, e, de novo, da memória a apaguem, contudo [quer] queiram, [quer] não queiram, [nela] enredilhados sempre se conservam. [E,] por mais que pareça por vezes desvanecer-se por algum momento, recorre, no entanto, logo depois, e com novo ímpeto irrompe…[4]

    Isto, sem dúvida, será sempre evidente aos que julgam com acerto: estar gravado na mente humana um senso da divindade que se não pode obliterar nunca. Mais, não somente que esta convicção de que há um Deus é a todos congênita de natureza, mas ainda que no íntimo encravada [lhes] é como que na própria medula… Ora, o mundo, como pouco adiante se haverá de dizer, tenta, quanto em si está, alijar para bem longe todo conhecimento de Deus e de todos os meios corromper-lhe o culto. Isto, apenas, afirmo: enquanto na mente se lhes enlanguesce [essa] obstinada dureza que os ímpios avidamente desejariam extinto.[5]

    Contudo, como atesta a experiência em todo ser divinamente implantada a semente da religião, assim também dificilmente uma em cem se acha que faça medrar o que no coração se lhe gerou, nenhum, porém, em quem chegue a maturação, muito menos que a seu tempo o fruto apareça [Sl 1.3]. De fato, seja que uns em suas [próprias] superstições se perdem, seja que outros, de propósito firmado de Deus impiamente se alienem, todos, afinal, de seu verdadeiro conhecimento degeneram… Vaidade, e certamente aliada a orgulho, nisto se percebe: em que, buscando a Deus, os desventurados seres humanos nem ascendem além de si mesmos, como seria necessário, antes o medem em conformidade com o padrão de sua carnal obtusidade e, negligenciada sólida investigação, movidos de curiosidade, transvolam a vãs especulações. Logo, não o apreendem qual se apresenta [ele], ao contrário, imaginam[-no] qual em sua temeridade [o] hão forjado… Esta depravação Paulo [a] frisa com eloquência, com dizer que fátuos se fizeram, enquanto sábios esperavam ser (Rm 1.22). [Já] antes dissera que fúteis haviam feito em suas cogitações, mas, para ninguém os eximir de culpa, acrescenta que foram, com justiça, tornados cegos, porquanto, não contentes com a sobriedade, ao contrário, arrogando-me mais do que é próprio, de si mesmo fazem que trevas [lhes] sobrevenham; mais, em sua [sua] vã e ruinosa petulância, estultos a si mesmos se rendem. De onde se segue que escusável lhes não é a estultícia, cuja causa não é simplesmente vã curiosidade, mas o desejo de saber mais do que convém, aliado à falsa presunção.[6]

    Tal senso de deidade e semente de religião é ação de Deus, fazendo-se conhecido ao homem em sua própria constituição. O homem é, e sempre permanece sendo, a autoconsciente criatura de Deus. Foi na atividade da mente do homem que a revelação de Deus no universo criado originalmente encontrou sua consumação. Portanto, exatamente na atividade de sua própria personalidade, o homem é confrontado com a clara manifestação da verdade com respeito a si mesmo fora da revelação redentiva.

    2. O lugar da Escritura

    A segunda apresentação óbvia das Institutas de Calvino, observada por nosso pastor, é o lugar designado para a Escritura. Tão-somente com base na presente revelação geral, ninguém verdadeiramente conhece a Deus como o Criador. Daí, a necessidade da Escritura.

    No entanto, para que brilhe em nós a verdadeira religião, tem-se de assim haver: que da celeste doutrina deve [ela] ter o ponto de partida, nem pode alguém provar sequer o mais leve gosto da reta e sã doutrina, a não ser que [aquele] que haja feito discípulo da Escritura. De onde, também, surge o princípio do verdadeiro entendimento: quando abraçamos reverentemente [o] que de si Deus quis nela testificar.[7]

    Até mesmo, o mundo de fato natural e histórico que lida a ciência não poderá ser verdadeiramente interpretado por ninguém que não seja cristão.

    Combinando esses dois pontos, a clara revelação de Deus no universo, tanto no ambiente do homem quanto no próprio homem, e a revelação de Deus na Escritura produzem marcantes resultados. Conforme o primeiro ponto, baseado na Epístola de Paulo aos Romanos, cada homem conhece a Deus. Ninguém pode evitar conhecer a Deus. Autoconsciência envolve imediata consciência de Deus. De acordo com o segundo ponto, ninguém conhece a Deus exceto mediante a Escritura. Ninguém conhece qualquer fato da natureza como aquilo que realmente é, como criado, dirigido e controlado por Deus, exceto por intermédio da Escritura. Ninguém sabe, exatamente, como combinar lógica e fato no universo, exceto por meio de revelação.

    Esses dois pontos marcam a posição de Calvino contra a posição de Aquino. O primeiro enfatiza que o que quer que observe, o homem é natural e inequivocamente confrontado com a face de Deus. Somente por meio da supressão da verdade é que o homem poderá não conhecer a verdade. O homem não poderá ser um pecador contra Deus a menos que conheça a Deus no sentido indicado em Romanos 1. Entretanto, o homem não poderá ser resgatado do pecado, isto é, a menos que conheça a Deus em um sentido redentor através da morte e ressurreição de Cristo, que lhe é aplicada pelo poder regenerador do Espírito Santo.

    Segundo Aquino, a criação do homem à imagem de Deus não significa que o homem inexoravelmente conheça a Deus. A revelação de Deus ao seu redor e dentro dele não lhe é tão clara que lhe torne impossível não conhecer a Deus e a si mesmo como sua criatura. O homem fará justiça à evidência interior e sobre ele, se meramente concluir que Deus provavelmente exista. Aquino argumenta que o conhecimento humano começa com a sensação. Há uma incerteza inerente nesse conhecimento de Deus derivado da sensação. Qualquer declaração positiva sobre Deus na base da revelação natural deverá, pela natureza do caso, ser uma projeção subjetiva, e como tal, será incerta. O homem finito não poderá esperar, mediante revelação natural, obter qualquer conhecimento certo a respeito de Deus. Somente poderemos estar certos daquilo que Deus não é. A ignorância de Deus não será algo culpável. Por que deveria ser o homem responsável pelo conhecimento de Deus e de seus requerimentos, se Deus não se lhe revelou de maneira suficientemente clara?

    O ponto de Calvino com respeito à absoluta necessidade da Escritura também distingue sua posição desta de Aquino. Dado que a ignorância do homem quanto a Deus é culpável, tal ignorância somente poderá ser removida mediante a obra redentora de Cristo. Somente a Escritura, a Palavra de Cristo, relata a obra redentora de Deus em Cristo. Somente mediante o espelho da Escritura, portanto, a revelação geral poderá ser vista como ela é.

    Para Aquino, entretanto, a Escritura não ocupa lugar de tal importância. Ela não seria indispensável para uma correta interpretação da natureza. A ­ignorância de Deus não seria necessariamente, pelo menos não exclusivamente, o resultado de uma má interpretação da natureza. A ignorância de Deus seria algo inerente à natureza finita do homem. Por conseguinte, sua ignorância não seria exclusivamente uma ignorância culpável. A Bíblia, como mensageira da redenção, não seria necessária para o homem, para uma adequada interpretação da revelação natural.

    3. A necessidade do testemunho do Espírito Santo

    A terceira apresentação óbvia nas Institutas de Calvino, observada pelo nosso pastor, é a ênfase na necessidade do testemunho do Espírito Santo no coração do homem, caso ele receba a Escritura como Palavra de Deus.

    A revelação especial, ou a Escritura em sua forma documentada, fornece, como ponto de fato na visão de Calvino, somente o lado objetivo da cura que ele sabe ter sido providenciada por Deus. O lado subjetivo é efetuado pelo testimonium Spirit Sancti. A Escritura providencia os óculos: somente o Espírito Santo no coração dos homens abre os olhos para que vejam através das lentes.[8]

    Não se trata de que, na visão de Calvino, as Escrituras não se manifestem claramente como sendo a Palavra de Deus. Ao contrário, Pois a Escritura manifesta claramente não menos diáfana evidência de sua verdade que de sua cor as cousas brancas e pretas, de seu sabor as doces e as amargas.[9] A natureza celestial de sua doutrina, o conteúdo de suas partes, a majestade de seus estilos, a antiguidade de seu ensino, a sinceridade de sua narrativa, seus acompanhamentos miraculosos circunstancialmente confirmados, seu continuado uso através das eras, sua seladura com sangue de mártires, claramente indicam a divindade da Escritura. Ainda assim, a Palavra não logrará fé nos corações humanos antes que seja [neles] selada pelo testemunho interior do Espírito Santo. Portanto, é necessário que penetre em nosso coração o mesmo Espírito que falou pela boca dos profetas, para que [nos] persuada de que [eles] hão proclamado fielmente [o] que [lhes] foi divinamente ordenado.[10]

    Apoquenta a certos nobres [espíritos] que [lhes] não haja à mão comprovação clara, enquanto os ímpios deblateram impunemente contra a Palavra de Deus. Como se, na verdade, o Espírito não seja chamado tanto selo como penhor [2Co 1.22] por isso, para confirmar a fé aos piedosos, porquanto até que [ele] ilumine as mentes, [elas] sempre flutuam em meio a muitas incertezas.[11]

    Isto, portanto, fique estabelecido: [aqueles] a quem o Espírito Santo interiormente ensinou aquiescem firmemente à Escritura, e esta é ­indubitavelmente… [autopiston – autenticada de si mesmo]; nem é justo sujeitar-se ela a demonstrações e arrazoados, porquanto a certeza que ela nos merece obtém[-na] do testemunho do Espírito. Pois, ainda que, de sua [própria] majestade, a si reverência espontaneamente evoque, todavia, então afim seriamente nos afeta, quando nos foi selada no coração. Portanto, iluminados pelo seu poder, que a Escritura procede de Deus já não cremos ou pelo nosso poder, ou pelo nosso julgar, ou pelo julgar de outros; ao contrário, com a máxima certeza, não menos que se nela contemplássemos a majestade do próprio Deus.[12]

    Assim, se este terceiro ponto for somado aos dois primeiros, obteremos o seguinte resultado: a revelação natural é perfeitamente clara. Dela, os homens têm de conhecer Deus, e por meio dela, ver todas as demais coisas como dependentes dele. Mas somente aquele que olha a natureza através do espelho da Escritura entenderá a revelação natural como aquilo que ela realmente é. Além disso, ninguém poderá ver a Escritura como o que ela verdadeiramente é, a menos que lhe seja dada capacitação mediante o poder regenerador do Espírito Santo. Somente aqueles que são discípulos de Deus veem a Escritura como o que ela realmente é, e a revelação de Deus na natureza como aquilo que ela realmente é. Ser um discípulo de Deus é um privilégio singular que o Pai concede apenas aos seus eleitos, os quais ele distingue da totalidade da raça humana. Ensinado por Deus, o eleito entende a Bíblia como Palavra de Deus, e interpreta a revelação natural por meio da Bíblia. O restante da humanidade, dado que não toma a Escritura como Palavra de Deus, também mal interpreta a revelação natural de Deus.

    Se Deus quis fosse reservado a seus filhos este [rico] tesouro de saber, nada [é] de admirar ou absurdo, se no comum dos homens se discerne tão grande ignorância e obtusidade. Chamo de comum [dos homens] até mesmo alguns [vultos] destacados, enquanto se não hajam inserido no corpo da Igreja. Acrescenta que Isaías, advertindo que não somente estranhos, mas até mesmo os judeus, que se queriam considerados os membros das famílias, inacreditado haveria de ser o ensino profético, aduz ao mesmo tempo e causa: porque o braço de Deus não se revelará a todos [Is 53.1]. Portanto, quantas vezes nos conturba a exiguidade [do número] dos que creem, em contraste [nos] venha à mente que não outros compreendem os mistérios de Deus senão [aqueles] a quem foi dado [entendê-los – Mt 13.11].[13]

    A essa altura, nosso pastor tomou consciência de uma diferença radical entre as aproximações de Calvino e de Aquino!

    Em primeiro lugar, há a diferença básica quanto à natureza da ­revelação. Para Calvino, a revelação é sempre clara em qualquer lugar. Os fatos da­ ­revelação natural, tanto internos quanto externos ao homem, são tão claramente reveladores de Deus que poderá lê-los, até mesmo, aquele que corre. As indicia divinitatis (marcas da divindade) da Escritura são igualmente claras. De fato, a revelação de Deus aos homens é tão clara que nenhum deles poderá fugir ao seu conhecimento. Assim, o homem está, desde o princípio, em contato com a verdade. Sobretudo, ele não poderá separar a existência de Deus do caráter de Deus. A inteligibilidade de qualquer coisa, para o homem, pressupõe a existência de Deus – o Deus cuja natureza e caráter estão delineados na revelação de Deus, encontrados em ambas, na natureza e na Escritura. É a esse Deus – o único Deus – que todo homem necessariamente conhece.

    Contra esta ideia de revelação – clara e exclusivamente baseada em e indicativa da ideia da distinção entre Criador e criatura – está a ideia de Aquino. Segundo este, a revelação de Deus ao homem não é inerentemente clara. Sendo finito, o homem vive no limiar do não-ser;[14] e em tal mistura, o conhecimento do homem é derivado dos sentidos. O homem, portanto, vive inserido em um ambiente que não é exclusivamente determinado pelo plano de Deus, mas, antes, uma combinação das forças de Deus e do caos.[15] De conformidade, Aquino pensava que o homem poderia discutir sobre a questão da existência de Deus sem, ao mesmo tempo, pressupor a natureza de Deus como revelada na Escritura. Assim, a atitude de dúvida com respeito à existência de Deus é assumida como legítima. Ignorância não é algo basicamente culpável.

    Envolvida nesta ideia da separação original da existência e da natureza de Deus, está a ideia de que, para o homem, a natureza de Deus não é exclusivamente determinada pela revelação de Deus. A natureza de Deus seria, em parte, determinada pelo próprio homem.

    Daí é que surge a noção escolástica da teologia natural. Se o homem, sem revelação especial, parcialmente determina a natureza de Deus, então a natureza de Deus será, até certo ponto, definida por supostas demandas de lógica e fato, à medida que o homem os conhece independentemente da revelação de Deus. Assim, a distinção entre a revelação de Deus ao homem e a interpretação humana dessa mesma revelação ficam obscurecidas. A revelação natural, então, tende a ser identificada com a teologia natural. A ideia da teologia natural assume que, sem a Escritura e o testemunho do Espírito Santo, os homens poderão, geralmente, ter uma medida moral

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