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mircea eliade

IMAGENS E SÍMBOLOS

ARTES E LETRAS/ARCÁDIA
3

já publicado:
SABER VER A ARQUITETURA Bruno Zevi
AS IMAGINAÇÕES DA IMAGEM Lima de Freitas
INTRODUÇÃO À LITERATURA NO SÉCULO XX Víntila Horia
INTRODUÇÃO AO MÉTODO DE LEONARDO DA VINCI Paul Valery
A POESIA MODERNA E A INTERROGAÇÃO DO REAL — I António Ramos Rosa
MIGUEL TORGA, POETA IBÉRICO Jesús Herrero
O DEVIR DAS ARTES Gillo Dorfles
LÂMPADAS NO ESCURO David Mourão-Ferreira
IMAGENS E SÍMBOLOS Mircea Eliade
4

COLEÇÃO Artes e Letras / Arcádia


Dirigida por Lima de Freitas
TITULO ORIGINAL Images et Symboles
Lssais sur le symbolisme magico-religieux
TRADUÇÂO Maria Adozinda Oliveira Soares
CAPA E PLANO GRÁFICO Gina Martins Calado l Atelier Arcádia
REVISÃO TIPOGRÁFICA Sebastião da Costa Aboim

Direitos de reprodução e adaptação reservados para a língua portuguesa


por Editora Arcádía, S.A.R.L., Campo de Santa Clara, 160-D, 1100 Lisboa-
Portugal
C Éditions Gallimard, 1952
1.° edição em português— Setembro de 1979 Edição n.° 768
Esta edição, de que se tiraram 2000 exemplares, foi composta e impressa
por Editorial Minerva (Minígráfica, Cooperativa de Artes Gráficas,
S.C.A.R.L.), Lisboa, e acabada nas Oficinas Gráficas da Editora Arcádia
5

Sumário
PREFÁCIO À TRADUÇÃO PORTUGUESA................................................7
Prefácio...............................................................................................10
Redescoberta do simbolismo.........................................................10
Simbolismo e Psicanálise................................................................13
Perenidade das imagens ................................................................17
O plano do livro ..............................................................................21
I - Simbolismo do «centro» ................................................................27
Psicologia e história das religiões...................................................27
História e arquétipos......................................................................33
A imagem do mundo......................................................................37
Simbolismo do centro ....................................................................41
Simbolismo da ascensão ................................................................46
Construção de um centro...............................................................51
II - Simbolismos indianos do tempo e da eternidade ........................56
Função dos mitos ...........................................................................56
Mitos indianos do tempo ...............................................................59
A doutrina dos «Yugas»..................................................................61
Tempo cósmico e história ..............................................................66
O «terror do tempo»......................................................................70
Simbolismo indiano da abolição do tempo....................................72
O «ovo quebrado» .........................................................................75
A filosofia do tempo no budismo...................................................77
Imagens e paradoxos .....................................................................80
6

Técnicas da «saída do tempo».......................................................83


III - O «Deus Ligador» e o Simbolismo dos nós .................................90
O soberano terrível ........................................................................90
O simbolismo de Varuna ................................................................93
«Deuses ligadores» na Índia Antiga ...............................................97
Trácios, germânicos, caucasianos ................................................100
Irão ...............................................................................................103
Paralelos etnográficos..................................................................105
Magia dos nós ..............................................................................108
Magia e religião............................................................................110
Simbolismo das «situações-limite»..............................................113
Simbolismo e história...................................................................116
IV - Notas sobre o simbolismo das conchas.....................................122
A Lua e as águas ...........................................................................122
Simbolismo da fecundidade.........................................................125
Funções rituais das conchas.........................................................129
O papel das conchas nas crenças funerárias................................131
A pérola na magia e na medicina .................................................140
O mito da pérola ..........................................................................144
V - Simbolismo e história..................................................................147
Baptismo; dilúvio e simbolismos aquáticos .................................147
Imagens arquetípicas e simbolismo cristão .................................156
Símbolos e culturas ......................................................................167
Considerações sobre o método ...................................................170
7

PREFÁCIO À TRADUÇÃO PORTUGUESA

Sinto-me feliz por poder acrescentar algumas linhas acerca de


«IMAGENS E SÍMBOLOS», por ocasião da presente tradução e seguindo a
sugestão do Sr. Lima de Freitas. Desde a aparição deste pequeno livro as
investigações sobre as estruturas e a função dos símbolos e, sobretudo,
sobre a morfologia das imagens primordiais e o papel da imaginação
criadora conheceram uma extensão e um aprofundamento consideraveis.
Não cabe aqui resumir os resultados obtidos, nos últimos trinta anos,
por sábios trabalhando em domínios tão diferentes como a história das
religiões, o orientalismo, a antropologia cultural, a psicologia das
profundidades ou a história das ideias e a filosofia da cultura.
Para me limitar exclusivamente às contribuições publicadas em
Francês, merecem menção especial os trabalhos do grande orientalista e
hermeneuta Henry Corbin (1903-1978), em primeiro lugar
«L'IMAGINATION CRÉATRICE DANS LE SOUFISME D'IBN ARABλ (1958; 2.a
edição em 1975); «TERRE CELESTE ET CORPS DE RÉSURRETION: DE L'IRAN
MAZDÉEN À L'IRAN SHÍITE» (1961); «EN ISLAM IRANIEN: ASPETS
SPIRITUELS ET PHILOSOPHIQUES», 4 volumes (1971-1973). Por seu lado o
Filósofo Gilbert Durand, discípulo de Gaston Bachelard, depois de ter
publicado a sua tese de doutoramento «LES STRUTURES
ANTHROPOLOGIQUES DE L'IMAGINAIRE» (1960), desenvolveu e afinou a
sua via metodológica em «L'IMAGINATION SYMBOLIQUE» (1964), num
grande número de conferências lidas no ERANOS de Ascona (desde 1964)
e em «FIGURES MYTHIQUES ET V ISAGES DE L'OEUVRE» (1978).
Convem igualmente mencionar os trabalhos de Léon Cellier, Jean
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Servier, Antoine Faivre, J. Vierne e a série de monografias publicadas a


partir de 1968, sob o título «CIRCÉ: RECHERCHES SUR L'IMAGINAIRE». Pela
minha parte, prossegui as análises iniciadas em IMAGENS E SÍMBOLOS
através de vários volumes: «MYTHES, RÊVES ET MYSTÈRES» (1957),
«MÉPHISTOPHÉLÉS ET L'ANDROGYNE» (1962), «LA NOSTALGIE DES
ORIGINES» (1971), «OCCULTISME, SORCELLERIE ET MODES CULTURELLES»
(1978).
Numa fórmula sumária poderia dizer-se que as investigações
efetuadas ao longo dos últimos trinta anos confirmaram amplamente a
importância da imaginação como instrumento de conhecimento. A
experiência imaginária é constitutiva do homem, tanto quanto o são a
experiência diurna e as atividades práticas. Se bem que a estrutura da sua
realidade não seja homologavel às estrutras das realidades «objetivas», o
mundo do imaginário não é «irreal». A imaginação revela estruturas do
real inacessíveis quer à experiência dos sentidos quer ao pensamento
racional.
Foi igualmente posta em evidência a importância «existencial» da
imaginação criadora e das imagens primordiais. Com efeito, as imagens e
os símbolos constituem, para o homem moderno, outras tantas
«aberturas» sobre um mundo de significações infinitamente mais vasto
do que aquele onde vive. Bastará citar um único exemplo: mostrámos
num trabalho anterior («SYMBOLISMES DE L'ASCENSION», republicado em
«MYTHES, RÉVES ET MYSTARES», cap. VI) a solidariedade estrutural entre
as imagens ido vôo e da ascensão. Nos planos diferentes, mas solidários,
da experiência onírica, da imaginação ativa, da criação mitológica e
folklórica, dos ritos e da especulação metafísica, enfim no plano da
experiência extática, trata-se sempre de imagens da transcedência e da
liberdade. Com efeito, o simbolismo da ascensão significa sempre o
rebentamento de uma situação «petrificada», a ruptura de nível que
torna possível a passagem para um outro modo de ser; no fim de contas a
liberdade de se «mover», isto é, ,de mudar de situação, de abolir um
sistema de condicionamento. Encontramos cm contextos múltiplos —
onírico, extático, ritual, mitológico, etc. significações complementares
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mas estruturalmente solidárias que se deixam arrumar segundo um


pattern e que «fazem sistema».
Em suma, existe continuidade entre as funções desempenhadas ou
as mensagens transmitidas por certos simbolismos aos níveis mais
profundos do inconsciente e as significações que relevam do plano das
mais «puras» atividades do espírito. É certo que as imagens do «vôo» e da
«ascensão», tão frequentes nos universos oníricos e imaginários, só se
tornam perfeitamente inteligíveis no plano da mística e da metafísica,
onde elas exprimem claramente as ideias de liberdade e de
transcendência. Mas em todos os outros níveis «inferiores» da vida
psíquica tais imagens significam sempre processos homologáveis, na sua
finalidade, a atos de «liberdade» e de «transcendência».
Compreende-se assim, do mesmo passo, a importância «existencial»
dessas imagens para o homem moderno: são imagens une rebentam o
«universo 'fechado» do seu ambiente quotidiano e lhe desocultam um
mundo mais vasto e infinitivamente mais rico, carregado de significações
espirituais e de promessas.
MIRCEA ELIADE
Universidade de Chicago
Agosto de 1979
Prefácio

Redescoberta do simbolismo

A espantosa divulgação da psicanálise fez a fortuna de certas


palavras-chave: imagem, símbolo, simbolismo passaram a ser moeda
corrente. Por outro lado as pesquisas sistemáticas feitas sobre o
mecanismo da «mentalidade primitiva» revelaram a importância do
simbolismo para o pensamento arcaico e, ao mesmo tempo, o seu papel
fundamental na vida de toda a sociedade tradicional. A ultrapassagem do
«cientismo» na filosofia, o renascimento do interesse religioso depois da
primeira guerra mundial, as múltiplas experiências poéticas e sobretudo
as experiências do «surrealismo» (com a descoberta do ocultismo, da
literatura negra, do absurdo, etc.) chamaram, em planos diversos e com
resultados desiguais, a atenção do grande público para o símbolo
encarado como modo autónomo de conhecimento. A evolução em causa
faz parte da reacção contra o racionalismo, o positivismo e o cientismo do
século XIX e chega já para caraterizar o segundo quartel do século xx. Mas
esta conversão aos diversos simbolismos não é uma «descoberta
propriamente inédita, ou o mérito do mundo moderno: este, ao restaurar
o símbolo nos seus títulos de instrumento de conhecimento, não fez mais
do que retomar uma orientação que foi geral na Europa até ao século
XVIII e que é, além do mais, conatural às outras culturas extra-europeias,
sejam elas «históricas» (por exemplo as da Asia ou da América Central) ou
arcaicas e «primitivas».
Notar-se-á que a invasão da Europa Ocidental pelo simbolismo
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coincide com o aparecimento da Ásia no horizonte da história;


aparecimento que, catalizado pela revolução de Sun Yat Sen se tem visto
a afirmar sobretudo nos últimos anos; sincronicamente, grupos étnicos
que não tinham, até agora, participado na Grande História senão
fugazmente e por alusões (como os Oceanianos, os Africanos, etc.)
preparam-se por sua vez para entrar nas grandes correntes da história
contemporânea, e sentem-se já impacientes por fazê-la. Não que exista
qualquer relação causal entre o aparecimento do mundo «exótico» ou
«arcaico» no horizonte da história, e o renovo de favor verificado na
Europa, em relação ao conhecimento simbólico. Mas acontece que este
sincronismo foi particularmente feliz; estranha-se o fato de a Europa
positivista e materialista do século XIX ter conseguido sustentar o diálogo
espiritual com culturas «exóticas» quando estas, sem excepção, se
pretendem seguidoras de vias de pensamento que não o empirismo ou o
positivismo. Aí está pelo menos uma razão para esperar que a Europa não
fique paralisada perante as imagens e os símbolos que, no mundo exótico,
ocupam o lugar dos nossos conceitos ou os veiculam e os prolongam. É
extraordinário como de toda a espiritualidade europeia duas mensagens
apenas interessem realmente aos mundos extra-europeus: o cristianismo
e o comunismo. Ambos, de maneira diversa, é certo, e em planos
nitidamente opostos, são soteriologias, doutrinas da salvação e portanto
misturam «símbolos» e «mitos» a uma escala que não tem semelhante
senão na humanidade extra-europeia1.
Uma feliz conjunção temporal fez, diziamos, com que a Europa
Ocidental redescobrisse o valor cognitivo do símbolo numa altura em que
já não está sózinha a «fazer história», em que a cultura europeia, a não
ser que se feche num provincianismo esterilizante, é obrigada a contar
com outras vias de conhecimento, com outras escalas de valores que não

1 Simplificamos o mais possível porque se trata de um aspeto das coisas que nos é
impossível abordar aqui. No que respeita a mitos e símbolos soteriológicos
comunistas, é evidente que, feitas todas as reservas acerca da elite marxista
dirigente e sua ideologia, as massas simpatizantes são estimuladas c chicoteadas
por slogans tais como: libertação, paz, ultrapassagem dos conflitos sociais,
abolição do Estado explorador e das classes privilegiadas, etc., slogans estes cuja
estrutura e função mítica já não precisam de ser demonstradas.
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as suas. A este respeito, todas as descobertas e as vogas sucessivas em


relação ao irracional, ao inconsciente, ao simbolismo, às experiências
poéticas, às artes exóticas e não figurativas, etc., serviram indiretamente
o Ocidente, preparando-o para uma compreensão mais viva e portanto
mais profunda dos valores extra--europeus e em definitivo para o diálogo
com os povos não europeus. Basta pensar na atitude do etnógrafo do
século XIX perante o seu «objeto» e sobretudo no resultado das suas
investigações, para avaliar o progresso gigantesco realizado pela etnologia
ao longo dos últimos trinta anos. O etnólogo dos nossos dias aprendeu, ao
mesmo tempo do que a importância do simbolismo para o pensamento
arcaico, a sua coerência intrínseca, a sua validade, a sua audácia
especulativa, a sua «nobreza».
Melhor ainda. Começa hoje a compreender-se urna coisa que o
século XIX nem sequer podia pressentir: que o símbolo, o mito, a imagem,
pertencem à substância da vida espiritual, que se pode camuflá-los,
mutilá-los, degradá-los mas que nunca se poderá extirpá-los. Valeria a
pena estudar a sobrevivência dos grandes mitos ao longo de todo o século
XIX. Ver-se-ia como humildes, apoucados, condenados a mudar
permanentemente de aparência, resistiram a essa hibernação, graças
principalmente à literatura2. Foi assim que o mito do Paraíso Terrestre
sobreviveu até aos nossos dias sob a forma adaptada do «paraíso
oceaniano»; desde há cento e cinquenta anos, todas as grandes
literaturas europeias celebraram à porfia as ilhas paradisíacas do Grande
Oceano, refúgio de todas as felicidades, enquanto a realidade era muito
diferente: «paisagem lisa e monótona, clima insalubre, mulheres feias e
obesas, etc.» Assim também a Imagem deste «Paraíso da Oceania» era à
prova de toda a «realidade» tanto geográfica como não. As realidades
objetivas não tinham nada a ver com o «Paraíso da Oceania»: esta era de
ordem teológica; ele recebera, assimilara e readaptara todas as imagens
paradisíacas recalcadas pelo positivismo e pelo cientismo. O Paraíso
Terrestre, em que Cristóvão Colombo ainda acreditava (e até pensou tê-lo

2 Que tarefa exultante seria a de revelar o verdadeiro papel espiritual do romance


do século XIX que, apesar de todas as «fórmulas» científicas e sociais, foi o
grande reservatório dos mitos degradados!
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descoberto!) transformara-se, no século XIX numa ilha da Oceania, mas a


sua função, na economia da psiqué humana, continuava a ser a mesma:
além, na «Ilha», no «Paraíso», a existência decorria fora do Tempo e da
História; o homem era feliz, livre, não condicionado; não precisava de
trabalhar para viver; as mulheres eram belas, eternamente jovens,
nenhuma «lei» pesava sobre os seus amores. Até à nudez, que
reencontrava, na ilha longínqua, o seu sentido metafísico: condição do
homem perfeito, do Adão de antes da queda3. A «realidade» geográfica
podia desmentir esta paisagem paradisíaca, mulheres feias e obesas
podiam desfilar perante os viajantes: ninguém as via; ninguém via senão a
imagem que transportava consigo.

Simbolismo e Psicanálise

O pensamento simbólico não é domínio exclusivo da criança, do


poeta ou do desequilibrado: ele é consubstanciai ao ser humano: precede
a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspetos da
realidade — os mais profundos — que desafiam qualquer outro meio de
conhecimento. As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações
irresponsáveis da psiqué; eles respondem a uma necessidade e
preenchem uma função: pôr a nu as mais secretas modalidades do ser.
Por conseguinte o seu estudo permite-nos conhecer melhor o homem, «o
homem sem mais», aquele que ainda não transigiu com as condições da
história. Cada ser histórico transporta consigo uma grande parte da
humanidade anterior à História. Esse é um fato que, sem dúvida, nunca
foi esquecido nem mesmo nos tempos mais inclementes do positivismo:
quem, melhor do que um positivista, sabia que o homem é um «animal»,
definido e regido pelos mesmos instintos dos seus irmãos irracionais?

3 Consagrámos ao simbolismo da ilha e da nudez na obra de um dos maiores


poetas do século XIX, Mihail Eminescu, um estudo publicado em 1938 (ver nossa
Insula lati Euthanasius, Bucuresti, 1943, pp. 5-18).
14

Verificação exata, mas parcial, supeditada a um plano exclusivo de


referências. Começa hoje a ver-se que a parte ahistórica de todo o ser
humano não se vai perder, como se pensava no século XIX, no reino
animal e, ao fim e ao cabo na «Vida», mas, pelo contrário, bifurca-se e
eleva-se muito acima dela: esta parte ahistórica do ser humano tem, tal
como uma medalha, a marca da memória de uma existência mais rica,
mais completa, quase beatífica. Quando um ser historicamente
condicionado, por exemplo, um ocidental dos nossos dias, se deixa invadir
pela parte não histórica de si próprio (o que lhe acontece com muito mais
frequência e muito mais radicalmente do que ele imagina), não é
necessariamente para regredir ao estádio animal da humanidade, para
tornar a descer às fontes mais profundas da vida orgânica: imensas vezes
ele reintegra, pelas imagens e símbolos que põe em marcha, um estádio
paradisíaco do homem primordial (seja como for a existência concreta
daquele, pois este «homem primordial» afirma-se sobretudo como um
arquétipo impossível de «realizar» em qualquer existência humana).
Fugindo à sua historicidade o homem não abdica da sua qualidade de ser
humano para se perder na «animalidade»; ele reencontra a linguagem e
por vezes a experiência de um «paraíso perdido». Os sonhos, os sonhos
acordados, as imagens das suas nostalgias, dos seus desejos, dos seus
entusiasmos, etc., são outras tantas forças que projetam o ser humano
historicamente condicionado num mundo espiritual infinitamente mais
rico do que o mundo fechado do seu «momento histórico».
No dizer dos surrealistas, todo o homem pode tornar-se poeta: basta
saber abandonar-se à escrita automática. Esta técnica poética justifica-se
perfeitamente em saudável psicologia. O «inconsciente», como é
designado, é muito mais poético — e nós acrescentaríamos: muito mais
«filosófico», mais «mítico» — do que a vida consciente. Nem sempre é
necessário conhecer a mitologia para viver os grandes temas míticos. Os
psicólogos sabem-no de sobejo, eles que descobrem as mais belas
mitologias no «sonho acordado» ou nos sonhos propriamente ditos idos
seus pacientes. Porque o inconsciente não é apenas povoado por
monstros: os deuses, as deusas, os heróis, as fadas também lá habitam; e,
além do mais, os monstros do inconsciente são também mitológicos, urna
15

vez que continuam a desempenhar as mesmas funções que lhes


pertenceram em todas as mitologias: em última análise, ajudar o homem
a libertar-se, completar a sua iniciação.
A linguagem brutal de Freud e dos seus discípulos mais ortodoxos
irritou muitas vezes os leitores bem-pensantes. De fato, esta brutalidade
de linguagem resulta de um mal-entendido: não era a sexualidade em si
que irritava, era a ideologia construída por Freud sobre a «sexualidade
pura». Fascinado pela sua missão — ele pensava ser o Grande Esclarecido,
quando afinal não passava do Último Positivista — Freud não podia dar-se
conta de que a sexualidade jamais foi «pura», que ela foi sempre e em
todo o lado uma função polivalente cuja valência primeira e talvez
suprema, foi a função cosmológica; que traduzir uma situação psíquica
em termos sexuais não é de modo algum humilhá-la, pois, excepto para o
mundo moderno, a sexualidade foi em todos os tempos uma hierofania e
o ato sexual um ato integral (portanto, também um meio de
conhecimento).
A atracção experimentada pela criança de sexo masculino em
relação à mãe e o seu corolário, o complexo de Édipo, não são
«chocantes» senão na medida em que são traduzidos tal qual em vez de
serem apresentados, corno se deve fazer, corno Imagens. Pois é a Imagem
da Mãe que é verdadeira e não esta ou aquela mãe hic et nunc, como o
deixava entender Freud. É a Imagem da Mãe que revela — e só ela pode
revelar — a sua realidade e as suas funções simultaneamente
cosmológicas, antropológicas e psicológicas4. «Traduzir» as Imagens em
termos concretos, é uma operação destituída de sentido: as Imagens
englobam, sem dúvida, todas as alusões ao «concreto» trazidas à luz por
Freud, mas o real que elas procuram significar não se deixa esgotar por
tais referências ao «concreto». A «origem» das Imagens é igualmente um
problema sem objeto: como se se contestasse a «verdade» matemática
sob pretexto de a «descoberta histórica» da geometria ter saído dos
trabalhos iniciados pelos egípcios para a canalização do Delta.

4 O maior mérito de C. G. Jung foi o de ter ultrapassado a psicanálise freudiana


partindo da própria psicologia e de ter assim restaurado a sígnificação espiritual
da Imagem.
16

Filosoficamente, estes problemas da «origem» e da «verdadeira


tradução» das Imagens são desprovidos de objeto. Bastará recordar que a
atracção materna, interpretada no plano imediato e «concreto» — como
o desejo de possuir a sua própria mãe — não quer dizer mais do que
aquilo que diz; pelo contrário, se se considerar que se trata da Imagem da
Mãe, este desejo quer dizer muitas coisas ao mesmo tempo, urna vez que
ele representa o desejo de reintegrar a beatitude da Matéria viva ainda
não «formada», com todas as suas clivagens possíveis, cosmológica,
antropológica, etc., a atracção exercida sobre o «Espírito» pela «Matéria»,
a nostalgia da unidade primordial e portanto, o desejo de abolir os
opostos, as polaridades, etc. Ora como se disse e como as páginas
seguintes o mostrarão, as Imagens são, pela sua própria estrutura,
multivalentes. Se o espírito utiliza as Imagens para aprender a realidade
última das coisas, é justamente porque esta realidade se manifesta de
urna maneira contraditória e por conseguinte não poderia ser expressa
por conceitos. (Sabe-se dos esforços desesperados das diversas teologias
e metafísicas, tanto orientais como ocidentais, para exprimir
conceitualmente a coincidentia oppositorum, modo de ser facilmente e,
aliás, abundantemente, expresso por Imagens e símbolos). É pois a
Imagem como tal, na qualidade de feiXe de significações, que é
verdadeira, e não uma só das suas significações ou um só dos seus
numerosos pontos de referência. Traduzir urna Imagem numa
terminologia concreta, reduzindo-a a um só dos seus planos de referência,
é pior elo que mutilá-la: é aniquilá-la, anulá-la como instrumento de
conhecimento.
Não ignoramos que, em certos casos, a psiqué fixa uma Imagem num
só plano de referência: o plano «concreto»; mas é já a prova de um
desequilíbrio psíquico. Existem, sem dúvida, casos em que a Imagem da
Mãe não é outra coisa senão o desejo incestuoso da sua própria mãe; mas
os psicólogos são unânimes em ver nesta interpretação carnal de um
símbolo o sinal de urna crise psíquica. No próprio plano da dialética da
Imagem, Ioda a redução exclusiva é aberrante. A história das religiões
abunda em interpretações unilaterais e portanto aberrantes, dos
símbolos. ,Não se encontraria um único grande símbolo religioso cuja
17

história não fosse uma sucessão trágica de inúmeras «quedas». Não existe
heresia monstruosa, orgia infernal, crueldade religiosa, loucura, absurdo
ou insanidade mágico-religiosa que não seja «justificada», no seu próprio
princípio, por uma falsa — porque parcial, incompleta — interpretação de
um grandioso simbolismo5.

Perenidade das imagens

Não é aliás necessário fazer intervir as descobertas da psicologia de


profundidade ou a técnica surrealista da escrita automática, para provar a
sobrevivência subconsciente, no homem moderno, de uma mitologia
abundante e, quanto a nós, de uma qualidade superior à sua vida
«consciente». Pode passar-se sem os poetas ou sem os psiquismos em
crise para confirmar a atualidade e a força das imagens e dos símbolos. A
mais apagada existência está pejada de símbolos, o homem mais
«realista» vive de imagens. Para o frisar e como adiante se exemplificará
abundantemente, os símbolos nunca desaparecem da atualidade
psíquica: podem mudar de aspeto mas a sua função continua a ser a
mesma: basta retirar-lhes as suas novas máscaras.
A mais abjeta «nostalgia» oculta a «nostalgia do paraíso». Fez-se
referência às imagens do «paraíso oceaniano» que povoam livros e filmes.
(Alguém disse já que o cinema era urna «fábrica de sonhos»). Também se
pode de igual modo analisar as imagens subitamente libertadas por
qualquer tipo de música, por vezes até pela mais banal romanza, e logo se
verificará que essas imagens revelam a nostalgia de um passado
mitificado, transformado em arquétipo; que esse passado contém, além
da saudade de um tempo desaparecido, mil outros sentidos: ele exprime
tudo aquilo que poderia ter sido e não foi, a tristeza de toda a eXistência
que só é quando deixa de ser outra coisa, o desgosto de não viver na
paisagem e no tempo evocados pela romanza (sejam quais forem as cores

5 Ver nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 304 sq. et passim.
18

locais ou históricas: «bons velhos tempos», Rússia das balalaicas, Oriente


romântico, Haiti dos filmes, milionário americano, príncipe eXótico, etc.);
ao fim e ao cabo o desejo de qualquer coisa totalmente diferente do
momento presente; em suma, do inacessível ou do irremediavelmente
perdido: o «Paraíso».
O importante, nestas imagens da «nostalgia do paraíso», é o fato de
elas dizerem sempre mais do que poderia exprimir por palavras o
indivíduo que as experimentou. A maior parte dos seres humanos seria,
aliás, incapaz de descrevê-las: não que sejam menos inteligentes uns que
outros mas sim porque não dão a devida importância à nossa linguagem
analítica. E, todavia estas imagens aproximam os homens mais
eficazmente e mais realmente do que uma linguagem analítica. De fato,
se existe uma solidariedade total do género humano, ela só pode ser
sentida e «atuada» ao nível das imagens (nós não dizemos do
«subconsciente» porque nada prova que não exista também um trans-
consciente).
Não se olhou atentamente para tais «nostalgias»; não se quis
reconhecer nelas senão fragmentos psíquicos sem significado: quando
muito concordava-se que elas podiam interessar certas investigações
acerca das formas de evasão psíquica. Ora as nostalgias são por vezes
carregadas de significações que comprometem a própria situação do
homem; a este título elas impõem-se tanto ao filósofo como ao teólogo.
Só que não se levavam a sério: pensava-se que eram «frívolas»: a imagem
do Paraíso Perdido sugerida de um momento para o outro pela música de
um acordeão... que assunto para estudo tão comprometedor. É esquecer
que a vida do homem moderno fervilha de mitos semi-esquecidos, de
hierofanias decadentes, de símbolos esvaziados da sua finalidade. A
dessacralização ininterrupta do homem moderno alterou o conteúdo da
sua vida espiritual mas não quebrou as matrizes da sua imaginação: todo
um resíduo mitológico sobrevive nas zonas mal controladas.
Além do mais, a parte mais «nobre» da consciência de um homem
moderno é menos «espiritual» do que geralmente se é levado a crer.
Uma análise rápida revelaria nesta «nobre» e «alta» esfera da consciência
algumas reminiscências livrescas, muitos preconceitos de ordem vária
19

(religiosa, moral, social, estética, etc.), um punhado de ideias feitas acerca


do «sentido da vida», a «realidade última», etc. Livremo-nos de ir aí
procurar o que, por exemplo, veio a ser o mito do Paraíso Perdido, a
imagem do Homem perfeito, o mistério da Mulher e do Amor, etc. Tudo
isso entre muitas outras coisas, se encontra — e quão secularizado,
degradado e maquilhado!... — no fluxo semi-consciente da mais terra-a-
terra das existências: nos sonhos acordados, nas melancolias, no livre jogo
das imagens durante as «horas mortas» da consciência (na rua, no metro,
etc.), nas distracções e divertimentos mais variados. Apenas, e para o
repetir, este tesouro mítico reside aí, «laicizado» e «modernizado».
Aconteceu a estas imagens, o que se passou, como Freud o demonstrou
através de alusões demasiado cruas, com as realidades sexuais: mudaram
de «forma». Para assegurar a própria sobrevivência as imagens tornaram-
se «familiares».
O seu interesse nem por isso diminuiu, pois estas imagens
degradadas oferecem o ponto de partida possível para a renovação
espiritual do homem moderno. É da maior importância, assim o
pensamos, tornar a encontrar toda uma mitologia, se não uma teologia,
emboscada na vida mais «qualquer» do homem moderno: dele depende
nadar contra a corrente e redes-cobrir o significado profundo de todas
estas imagens desbotadas e de todos estes mitos degradados. Que não
nos venham dizer que este desperdício já não interessa ao homem
moderno, que isso pertence a um «passado supersticioso» felizmente
liquidado pelo século XIX, que é bom para os poetas para as crianças e
pessoas do metro saciarem-se de imagens e nostalgias, mas que, por
favor, deixem as pessoas sérias continuar a pensar e a «fazer história»: tal
separação entre a «parte séria da vida» e os «sonhos» não corresponde à
realidade. O homem moderno é livre de desprezar as mitologias e as
teologias mas isso não o impedirá de continuar a alimentar-se de mitos
decadentes e de imagens degradadas. A mais terrível crise histórica do
mundo moderno — a segunda guerra mundial e tudo o que ela
desencadeou com e após ela — demonstrou suficientemente que a
extirpação dos mitos e dos símbolos é ilusória. Mesmo na «situação
histórica» mais desesperada (nas trincheiras de Estalinegrado, nos
20

campos de concentração nazis e soviéticos), homens e mulheres cantaram


romanzas, ouviram histórias (chegando a sacrificar uma parte da sua
magra ração para as obterem); estas histórias não faziam mais que
substituir os mitos, essas romanzas estavam carregadas de «nostalgias».
Toda essa porção, essencial e imprescritível do homem que se chama
imaginação voga em pleno simbolismo e continua a viver de mitos e de
teologias arcaicas6.
Só do homem moderno depende, dizíamos «despertar» esse
inestimável tesouro de imagens que ele traz consigo; despertar as
imagens, para contemplá-las na sua virgindade e assimilar a sua
mensagem. A sabedoria popular tem frequentemente exprimido a
importância da imaginação para a própria saúde do indivíduo, para o
equilíbrio e riqueza da sua vida interior. Certas línguas modernas
continuam a lamentar o que «carece de imaginação» como um ser
limitado, medíocre, triste, infeliz. Os psicólogos, na primeira fila dos quais
se encontram C. G. Jung, mostraram até que ponto os dramas do mundo
moderno derivam de um desequilíbrio profundo da psiqué, tanto
individual como coletiva, provocado em grande parte por uma
esterilização crescente da imaginação. «Ter imaginação» é gozar de uma
riqueza interior, de um fluxo ininterrupto e espontâneo de imagens. Mas
espontaneidade não significa invenção arbitrária. Etimologicamente,
«imaginação» é solidária com imago, «representação, imitação» e com
imitor, «imitar, reproduzir». Desta vez a etimologia faz eco tanto das
realidades psicológicas como da verdade espiritual. A imaginação imita
modelos exemplares — as Imagens — reprodu-las, reatualiza-as, repete-
as sem fim. Ter imaginação, é ver o mundo na sua totalidade; pois o poder

6 Ver as ricas e penetrantes análises de Gaston Bachelard nos seus trabalhos sobre
a «imaginação da matéria»: La Psychanalyse du Feu, L'Eau et les Rêves, L'Air et
les Songes, La Terre et les Rêveries, 2 vol. (Paris, 1939-1948). G. Bachelard
baseia-se sobretudo na poesia e nos sonhos e, subsidiariamente, no folclore;
mas facilmente se mostraria como sonhos e imagens poéticas prolongam os
simbolismos sagrados e as mitologias arcaicas. A propósito das Imagens de Água
e de Terra, tal como povoam os sonhos e as literaturas, cf. os capítulos sobre as
hierofanias e os simbolismos aquáticos e telúricos no nosso Traité d'Histoire eles
Religions, pp. 168 sq., 211 sq.
21

e a missão das imagens consistem em mostrar tudo o que permanece


refratário ao conceito. Assim se explica a desgraça e a ruína do homem
que «não tem imaginação»: ele está isolado da realidade profunda da vida
e da sua própria alma.
Recordando estes princípios, quisemos mostrar que o estudo dos
simbolismos não é um trabalho de erudição pura; que, pelo menos
indiretamente, ele tem importância para o conhecimento do próprio
homem; que, em suma, esse estudo tem uma palavra a dizer quando se
fala de um novo humanismo ou de uma nova antropologia. Sem dúvida
que um estudo deste tipo sobre simbolismos só será útil se realizado em
colaboração. A estética literária, a psicologia, a antropologia filosófica
deveriam ter em conta os resultados da história das religiões, da etnologia
e do folclore. Foi pensando principalmente nos psicólogos e críticos
literários que publicámos este livro. Melhor do que ninguém, o historiador
das religiões está qualificado para fazer avançar o conhecimento dos
símbolos; os seus documentos são simultaneamente mais completos e
mais coerentes do que aqueles de que dispõem o psicólogo e o crítico
literário; eles são colhidos na própria fonte do pensamento simbólico. É,
na história das religiões que se encontram os «arquétipos»; os psicólogos
e os críticos literários só contatam com variantes aproXimativas.

O plano do livro

Os quatro primeiros capítulos do livro foram redigidos em épocas


diferentes e para público heterogéneo7. Os capítulos I e II são
acompanhados de um mínimo de notas; os documentos que eles utilizam

7 O IV capítulo remonta a 1938 (ver Zalmoxis, t. II, pp. 131 sq.); o III é de 1946 (ver
Revue de l'Histoire des Religions, t. CXXXIV, Julho-Dezembro, 1947-1948, pp. 5
sq.). A substância dos capítulos I e II foi objeto das nossas conferências de
Ascona, 1950-1951 (cf. Eranos-Jahrbuch, t. XIX e XX), e de um artigo do Journal
de Psychologie.
22

estavam já constituídos, quer nos nossos próprios trabalhos anteriores,


quer nos de outros investigadores. Pelo contrário, os capítulos III e IV
incluem um certo número de notas e referências. Os materiais aí reunidos
constituem por si sós monografias úteis independentemente mesmo da
interpretação que aí propomos. O último capítulo, que serve ao mesmo
tempo de conclusão geral, apresenta-se igualmente com um aparelho
bibliográfico reduzido. O assunto abordado era demasiado vasto para
autorizar uma exposição simultaneamente bem documentada e
extremamente concisa.
Com excepção deste último capítulo, os diversos estudos que se
seguem não foram elaborados com a finalidade de figurarem em livro:
cada um deles respondia no entanto, no pensamento do autor, a um
único e mesmo problema: a estrutura do simbolismo religioso. Cada
capítulo apresenta um simbolismo ou uma família de símbolos se bem
que a maneira de os tratar possa variar de uns para os outros. O
simbolismo do «Centro», estudado no primeiro capítulo, e que constitui o
prolongamento dos resultados de outros estudos anteriores, é exposto
sinteticamente, sem relação com os enredos da «história». A primeira
parte deste capítulo põe justamente o problema de uma tal apresentação
de conjunto do símbolo e esboça sumariamente as relações entre a
psicologia e a história das religiões.
O segundo capítulo analisa o simbolismo do Tempo e da «saída do
Tempo» numa mesma área cultural: a Índia antiga. O terceiro capítulo
aborda o simbolismo dos nós, em dois planos complementares: depois de
se ter situado nos Indo-Europeus, utilizando, sobretudo as investigações
de Georges Dumézil, tenta comparar estes dados com os simbolismos
paralelos de outras culturas arcaicas. É principalmente neste capítulo que
se avaliarão as vantagens e os limites tanto da investigação histórica como
da análise morfológica e que se compreenderá melhor a necessidade de
empregar sucessivamente estes dois métodos complementares. O quarto
capítulo, dedicado a um grupo de símbolos solidários (Lua-Agua-
Fertilidade, etc.), constitui uma descrição de tipo morfológico que se
propôs trazer à luz as estruturas. Enfim o último capítulo retoma os
resultados de todas estas pesquisas feitas de pontos de vista diferentes
23

com vista a uma integração sistemática do simbolismo mágico-religioso.


O psicólogo interessar-se-á mais pelos dois primeiros e pelo último
capítulos. O leitor apressado poderia passar sem ler todas as análises e
referências dos capítulos III e IV. Não julgámos oportuno suprimir estas
notas. O perigo dos estudos sobre simbolismo encontra-se numa
generalização precipitada. Os profanos têm tendência para se contentar
com os primeiros documentos que lhes vêm às mãos e para construir
audaciosas interpretações «gerais» dos simbolismos. Fizemos questão de
apresentar, pelo menos, dois tipos de análise dos símbolos, para sublinhar
como as coisas são, na realidade, cheias de nuances e complexidade. Por
outro lado, quisemos pôr à disposição dos psicólogos e dos críticos
literários e até mesmo dos filósofos, alguns processos suficientemente
abundantes para por eles serem utilizados, se tanto for preciso, para os
devidos fins. Não é raro encontrar nos livros dos psicólogos e dos críticos
literários uma documentação histórico-religiosa mais do que insuficiente,
francamente falível: os livros a que vão buscar material são, na maioria
das vezes, produto de amadores desprovidos de qualquer sentido crítico
ou então de «teóricos» isolados8. Os que não são especialistas

8 Freud acreditou poder descobrir a «origem» das religiões no complexo de Édipo


nascido de um parricídio primordial, parricídio ritualmente repetido nos
«sacrifícios totémicos». Ele elaborou a sua teoria — que parece manter ainda a
aprovação dos psicanalistas — em 1911-1912, utilizando a hipótese da «tribo
primordial» de Atkinson e a do «sacrifício-comunhão totémico» de Robertson-
Smith. No momento em que Freud elaborava a sua explicação do sentimento
religioso e pensava ter encontrado a «origem» das religiões, as duas hipóteses
citadas não gozavam já de crédito algum junto 'de etnólogos e historiadores de
religiões competentes. Se 'bem que Freud tenha lido Frazer e conhecesse as
conclusões a que este último chegara, 'a saber: a não-universalidade do
totemismo como fenómeno sócio-religioso (ele é desconhecido de inúmeras
tribos «primitivas») e a extrema raridade dos «sacrifícios--comunhões
totémicos» (quatro casos apenas — e ainda assim desigualmente verificados —
para várias centenas de tribos totémicas!), Totem und Tabu apareceu todavia
sob a forma de livro em 1913 e foi depois reeditado continuamente e traduzido
em muitas línguas... (poder-se-ia invocar, para a defesa de Freud, o
aparecimento em 1912 do famoso livro de Emile Durkheim, Les Formes
Élémentaires de la vie religieuse, livro precioso sob muitos aspetos, por vezes
quase genial, mas deploravelmente destituído de fundamento.
24

respondem, e com razão, que não podem substituir os etnólogos e


historiadores de religiões, que não dispõem nem de tempo para
empreender investigações de grande fôlego e que são obrigados muitas
vezes a contentar-se com obras «gerais» que têm à mão. O pior é que
quase sempre estes não-especialistas dão com as «obras gerais» mais
medíocres; e quando têm mais sorte acontece-lhes ler incorretamente ou
com demasiada pressa.
Eis porque resistimos à tentação de suprimir a bibliografia: talvez
que alguns não-especialistas sintam o desejo de tomar contato pessoal
com o conjunto das obras de etnologia e de história das religiões em vez
de se alimentarem com as elocubrações lastimáveis e ultrapassadas dos
diletantes ou dos «teóricos», que pensaram antes de mais em ilustrar as
suas próprias explicações gerais. A literatura psicológica, e muito
especialmente a produção psicanalítica, familiarizou o leitor com as
exposições proliXas .de «casos» individuais. Consagram-se
frequentemente páginas inteiras à descrição pormenorizada dos sonhos
ou dos sonhos acordados de certos pacientes. Publicou-se em Inglaterra
um volume de setecentas páginas sobre a «mitologia dos sonhos» de um
único indivíduo. Os psicólogos são unânimes em considerar indispensável
in extenso a exposição de todo o caso» particular e quando se convencem
a reduzir esse relato é quase sempre contra vontade: o seu ideal
consistiria em publicar os dossiers na íntegra. Com maioria de razão
devemos proceder do mesmo modo quando do estudo de um
simbolismo: dever-se-á apresentá-lo nas suas linhas gerais e também com
os seus cambiantes, variantes e hesitações.
O problema central e mais árduo continua a ser, evidentemente, o
da interpretação. Em princípio pode sempre pôr-se a questão da validade

Consideravelmente mais bem informado do que Freud, Durkheim caía no


mesmo erro de método, esforçando-se por encontrar no totemismo a «origem»
das religiões. Este eminente mestre teria ganho em considerar os trabalhos dos
seus colegas etnólogos e antropólogos que já tinham provado suficientemente
que o totemismo não representa a mais antiga camada das religiões
australianas e, melhor ainda, que ele está ausente de grande número de
culturas arcaicas dispersas pelo mundo).
25

de uma hermenêutica. Através de cortes múltiplos, de asserções claras


(textos, ritos, monumentos figurados) e de alusões semi-veladas, pode
demonstrar-se por partes o que «quer dizer» este ou aquele símbolo. Mas
pode ainda pôr-se o problema de outra maneira: os que se servem dos
símbolos dão-se conta de todas as suas implicações teóricas? Quando, por
exemplo, ao estudar o simbolismo da Arvore cósmica, dizemos que essa
Arvore se encontra no «Centro do Mundo», estarão todos os indivíduos
pertencentes às sociedades que conhecem tais Arvores cósmicas
igualmente conscientes do simbolismo integral do «Centro»? Mas a
validade do símbolo como forma do conhecimento não depende do grau
de compreensão deste ou daquele indivíduo. Textos e monumentos,
figurados provam-nos abundantemente que, pelo menos para certos
indivíduos de uma sociedade arcaica, o simbolismo do «Centro» era
transparente na sua totalidade; o resto da sociedade contentava-se em
«participar» no simbolismo. É aliás penoso precisar os limites de uma tal
participação: esta varia em função de um número indeterminado de
fatores. Tudo o que se pode dizer é que a atualização de um símbolo não
é mecânica: ela está em relação com as tensões e as alternâncias da vida
social e em última instância com os ritmos cósmicos.
Mas todos os eclipses ou aberrações que um simbolismo pode sofrer
pelo simples fato de ser vivido, não enfraquecem a validez da sua
hermenêutica. Para dar um exemplo de uma outra ordem de realidades:
será indispensável, para julgar o simbolismo da Divina Commedia,
interrogar o que milhões de leitores espalhados pelo mundo
compreendem ao ler este livro difícil ou, melhor, o que o próprio Dante
sentiu e pensou ao escrevê-lo? Quando se trata de uma obra poética mais
livre, quero dizer, que depende mais diretamente da «inspiração», por
exemplo os produtos do romantismo alemão, não temos sequer o direito
de nos deter no que os autores pensavam das suas próprias criações para
interpretar o simbolismo que aquelas implicam. É um fato, durante a
maior parte do tempo, um autor não esgotar o significado da sua obra. Os
simbolismos arcaicos reaparecem espontaneamente até nas obras de
autores «realistas» os quais ignoram tudo acerca de tais símbolos.
Aliás esta controvérsia em torno dos limites legítimos da
26

hermenêutica dos simbolismos é bastante vã. Já se viu que os mitos se


degradam e os símbolos se secularizam, mas eles nunca desaparecem,
nem na mais positivista das civilizações, a do século XIX. Os símbolos e os
mitos vêm de muito longe: fazem parte do ser humano e é impossível não
os encontrar em alguma situação existencial do 'homem no Cosmos.
Fazemos questão de agradecer aqui ainda ao nosso mestre e amigo,
Georges Dumézil, professor no Colégio de França, que se dignou ler e
corrigir uma primeira redacção do terceiro capítulo, e muito
particularmente ao nosso caro amigo, Dr. Jean Gouillard, que teve a
amabilidade de corrigir o resto do manuscrito.
Paris, Maio de 1952
27

Simbolismo do «centro»

Psicologia e história das religiões

Muitos profanos há que invejam a vocação do historiador das


religiões. Que outra ocupação mais nobre e enriquecedora haverá do que
frequentar os grandes místicos de todas as religiões, viver entre símbolos
e mistérios, ler e compreender os mitos ide todas as nações? Os profanos
pensam que um historiador das religiões está no seu ambiente tanto nos
mitos gregos como nos egípcios, ou na mensagem autêntica de Buda, ou
nos mistérios taoístas, ou ainda nos ritos secretos de iniciação das
sociedades arcaicas. Talvez que os profanos não deixem de ter
inteiramente razão quando imaginam o historiador das religiões solicitado
pelos grandes e verdadeiros problemas, ocupado a decifrar os mais
grandiosos símbolos e os mitos mais complexos e mais elevados da
imensa massa de fatos que se lhe oferece. Mas, de fato, a situação é
totalmente diferente. Muitos historiadores de religiões estão tão
absorvidos pela sua especialidade que não sabem muito más sobre os
mitos gregos ou egípcios, sobre a mensagem de Buda, sobre as técnicas
taoístas ou Xamanistas, do que um amador que soube orientar as suas
leituras. A maior parte nem está verdadeiramente familiarizada senão
com um pobre setorzinho do imenso domínio da história das religiões.
Infelizmente, mesmo este setor tão modesto é, quase sempre, explorado
superficialmente: decifração, edição e tradução de textos; ensaios de
cronologia e estudo de influências; monografia histórica ou reportório dos
monumentos e assim sucessivamente. Confinado num assunto
28

forçosamente limitado, o historiador das religiões muitas vezes tem a


sensação de ter sacrificado a bela carreira espiritual sonhada na sua
juventude a um dever de probidade científica.
Mas, a excessiva probidade científica desta produção acabou por lhe
alienar o público culto. Fora muito raras excepções, os historiadores das
religiões não são lidos senão no círculo restrito dos seus colegas e
discípulos. O público não lê já estes livros quer porque são demasiado
técnicos, quer porque são enfadonhos; ao fim e ao cabo não têm nenhum
interesse espiritual. À força de ouvir repetir, como, por exemplo, o fez sir
James Frazer, em algumas vinte mil páginas, que tudo o que o homem
pensou, imaginou ou desejou nas sociedades arcaicas, todos os seus mitos
e ritos, todos os seus deuses e experiências religiosas, não passam de um
amontoado monstruoso de insanidades, de crueldades e de superstições,
felizmente abolidas pelo progresso racional do homem; à força de ouvir
quase sempre a mesma coisa, o público acabou por se deixar convencer e
deixou de se interessar pelo estudo objetivo da história das religiões. Uma
parte, pelo menos, desse público tenta satisfazer a sua legítima
curiosidade lendo livros péssimos sobre os mistérios das Pirâmides, os
milagres do Yoga, as «revelações primordiais», ou a Atlântida — em
resumo, interessa-se pela medonha literatura dos diletantes, dos neo-
espiritualistas ou dos pseudo-ocultistas.
Em certa medida, os responsáveis encontram-se entre nós,
historiadores das religiões. Quisemos a todo o custo apresentar uma
história objetiva das religiões, sem nos darmos sempre conta de que
aquilo a que chamámos objetividade, seguia a moda do pensamento do
nosso tempo. Esforçamo-nos, há cerca de um século, por construir a
história das religiões como disciplina autónoma, sem termos conseguido;
a história das religiões continua como todos sabem, a ser confundida com
a antropologia, a etnologia, a sociologia, a psicologia religiosa e até
mesmo com o orientalismo. Desejando a todo o transe obter o prestígio
de uma «ciência», a história das religiões também passou por todas as
crises do espírito científico moderno: os historiadores das religiões foram
sucessivamente, e alguns deles não deixaram de o ser, positivistas,
29

empiristas, nacionalistas ou historicistas. E o que é mais é que nenhuma


das «modas» que dominaram sucessivamente a história das religiões,
nenhuma das explicações globais e sistemáticas dadas ao fenómeno
religioso, foi obra de um historiador das religiões; todas elas provêm de
hipóteses propostas por eminentes linguistas, antropólogos, sociólogos
ou etnólogos e aceites por seu turno por toda a gente, incluindo os
historiadores de religiões.
A situação apresenta-se, nos nossos dias, da seguinte maneira:
progresso considerável na informação, que é pago por uma excessiva
especialização e até por um sacrifício parcial da nossa vocação (pois
muitos dos historiadores das religiões tornam-se orientalistas, classicistas,
etnólogos, etc.); dependência dos métodos elaborados pela historiografia
ou pela sociologia moderna (como se o estudo histórico de um rito ou de
um mito fosse a mesma coisa exatamente do que a história de um dado
país ou a monografia de determinado povo primitivo). Numa palavra,
descurou-se este fato essencial: que na expressão «história das religiões»
a tónica não deve recair no termo história mas sim no termo religião. Pois
se há diversas maneiras de praticar a história — da história dos técnicos à
história do pensamento humano — há apenas uma para abordar a
religião e que consiste em fixar-se nos fatos religiosos. Antes de se fazer a
história de qualquer coisa, é importante compreender bem essa mesma
coisa em si própria e por ela. Eis porque é preciso sublinhar aqui a obra do
professor Van der Leeuw, que tanto fez pela fenomenologia da religião e
cujas numerosas e brilhantes publicações suscitaram junto do público
culto um renovado interesse pela história das religiões em geral.
De modo indireto, o mesmo interesse foi despertado pelas
descobertas da psicanálise e da psicologia de profundidade, em primeiro
lugar pela obra do professor Jung. De fato, não tardou que se verificasse
que o enorme domínio da história das religiões constituía uma mina
inesgotável de elementos de comparação com o comportamento da
psique individual ou coletiva, comportamento estudado pelos psicólogos
e pelos analistas. Ninguém ignora que a utilização de tais documentos
socio-religiosos pelos psicólogos nem sempre obteve a adesão dos
30

historiadores das religiões. Dentro em pouco examinaremos as objecções


dirigidas a tais conclusões muitas das vezes, é certo, demasiado
audaciosas. Mas, para desde já o dizer, se os historiadores das religiões
tivessem abordado o seu objeto de estudo de uma perspetiva mais
espiritual, se se tivessem esforçado por penetrar mais profundamente o
simbolismo religioso arcaico, muitas interpretações psicológicas ou
psicanalíticas, que parecem demasiado superficiais aos olhos dos
especialistas, não teriam sido sugeridas. Os psicólogos encontraram nos
nossos livros excelente material, mas raramente explicações em
profundidade e foram levados a compensar esta lacuna colocando-se no
lugar dos historiadores das religiões e avançando hipóteses de conjunto
frequentemente por demais apressadas.
Em duas palavras, as dificuldades que temos de ultrapassar hoje em
dia são as seguintes: a) por um lado, tendo optado pelo prestígio de uma
historiografia objetiva, «científica», a história das religiões é obrigada a
fazer face às abjecções que se podem dirigir ao historicismo como tal; b)
por outro lado, ela é também obrigada a responder ao desafio que acaba
de lhe lançar a psicologia em geral, e em primeiro lugar a psicologia de
profundidade que, ao começar a trabalhar diretamente com material
histórico-religioso, propõe hipóteses de trabalho mais felizes, mais férteis
ou, em todo o caso, mais retumbantes do que as que são correntes entre
os historiadores das religiões.
Para melhor compreender estas dificuldades, venhamos ao objeto
deste estudo: o simbolismo do «Centro». Um historiador das religiões tem
o direito de nos perguntar: que entende o senhor por esses termos? De
que símbolos se trata? De que povos e de que culturas? E o historiador de
religiões poderá argumentar: é sabido que a época de Taylor, de
Mannhardt e de Frazer terminou; hoje deixámos de ter o direito de falar
de mitos e de ritos «em geral», da unidade das reações do homem
primitivo em relação à Natureza. Essas generalidades são abstracções, tais
como as ido «homem primitivo» em geral. O que é concreto é o
fenómeno religioso manifestado na história e através da história. Que
sentido poderia portanto ter na história das religiões uma fórmula comum
31

como por exemplo a abordagem ritual da imortalidade? É. necessário


precisar imediatamente de que imortalidade se trata. Pois, a priori, não
estamos certos de que a humanidade ao seu conjunto tenha tido
espontaneamente, a intuição ou até o desejo da imortalidade. Falais do
simbolismo do «Centro». Com que direito na qualidade de historiador de
religiões? Poder-se-á generalizar tão aereamente? Seria necessário antes
começar por se interrogar: em que cultura e em consequência de que
acontecimentos históricos se «cristalizou» a noção religiosa do «Centro»
ou a da imortalidade? Como se integram e se justificam estas noções no
sistema orgânico desta ou daquela cultura? Como se divulgaram e através
de que povos? Depois de ter respondido a todas estas questões
preliminares, ter-se-á o direito de generalizar e de sistematizar, de falar,
em geral, dos ritos de imortalidade ou de símbolos do «Centro». Quando
não estar-se-á a fazer psicologia ou filosofia, ou até mesmo teologia —
mas não história das religiões.
Creio que todas estas objecções são justificadas, e, na qualidade de
historiador das religiões, devo levá-las em conta. Mas não as julgo
intransponíveis. Sei perfeitamente que estamos a tratar com fenómenos
-

religiosos e, pelo simples fato de eles serem fenómenos, quer dizer que se
manifestam, se nos revelam, são cunhados, como uma medalha, pelo
momento histórico que os viu nascer. Não existe fato religioso «puro»
fora do tempo. A mais nobre mensagem religiosa a mais universal das
experiências místicas, o comportamento mais geralmente humano —
como, por exemplo, o temor religioso, o rito, a oração — singularizam-se
e delimitam-se desde que se manifestam. Quando o Filho de Deus
encarnou e se fez Cristo, teve de falar aramaico; não podia deixar de
comportar-se como um hebreu do seu tempo — e não um como yogi, um
taoísta ou um Xamã. A sua mensagem religiosa, por universal que fosse,
estava condicionada pela história passada e contemporânea do povo
hebreu. Se o Filho de Deus tivesse nascido na índia, a sua mensagem oral
teria tido que se conformar com a estrutura dos idiomas indianos e com a
tradição histórica e pré-histórica 'deste conglomerado de povos.
Reconhece-se sem dificuldade nesta tomada de posição todo o
32

progresso especulativo realizado desde Kant — que deve ser considerado


como um precursor do historicismo — até aos últimos filósofos
historicistas ou existencialistas. O homem, na sua qualidade de ser
histórico, concreto, autêntico — está «em situação». A sua existência
autêntica realiza-se na história, no tempo, no seu tempo — que não é o
mesmo do do seu pai. Também não é o tempo dos seus conterrâneos de
outro continente ou mesmo de outro país. Neste caso, em que nome se
fala do comportamento do homem em geral? Este homem em geral não
passa de uma abstracção. Ele existe graças a um mal-entendido, devido à
imperfeição da nossa linguagem.
Não é este o lugar para uma abordagem à crítica filosófica do
historicismo e do existencialismo historicista. Essa crítica foi já feita e por
autores mais competentes do que nós. Sublinhemos, de passagem, que o
condicionamento histórico da vida espiritual humana retoma, a um outro
nível e com outros meios dialéticos, as teorias, hoje um pouco caducas,
dos condicionamentos geográficos, económicos, sociais e até mesmo
fisiológicos. Todos concordam que um fato espiritual sendo um fato
humano é forçosamente condicionado por tudo o que concorre para fazer
um homem, desde a anatomia e fisiologia até à linguagem. Por outras
palavras, um fato espiritual pressupõe o ser humano integral, isto é, e a
entidade fisiológica, e o homem social, e o homem económico, e assim
por diante. Mas todos estes condicionamentos não chegam para esgotar,
por si sós, a vida espiritual.
O que distingue o historiador das religiões de um historiador sem
mais, é que ele lida com fatos que, se bem que históricos, revelam um
comportamento que ultrapassa de longe os comportamentos históricos
do ser humano. Se é verdade que o homem se encontra sempre «em
situação», esta situação nem por isso é sempre histórica, ou seja,
condicionada unicamente pelo momento histórico contemporâneo. O
homem integral conhece outras situações além da sua condição histórica;
conhece, por exemplo, o estado onírico, ou de sonho acordado, ou de
melancolia e de desprendimento, ou de beatitude estética, ou de evasão,
etc. — e todos estes estados não são «históricos», se bem que sejam
33

também autênticos e tão importantes para a existência humana como a


sua situação histórica. O homem conhece, aliás, diversos ritmos temporais
e não unicamente o tempo histórico, ou seja o seu próprio tempo, a
contemporaneidade histórica. Basta-lhe ouvir boa música, apaixonar-se
ou rezar para sair do presente histórico e reintegrar o eterno presente do
amor e da religião. Às vezes basta-lhe abrir um romance ou assistir a um
espetáculo dramático para reencontrar um outro ritmo temporal —
aquilo a que poderia chamar-se tempo contraído — que, em todo o caso,
não é o mesmo que tempo histórico. Conclui-se apressadamente que a
autenticidade de uma existência depende unicamente da consciência da
sua própria historicidade. Esta consciência histórica desempenha um
papel bastante modesto na consciência humana, para não falar das zonas
do inconsciente que, também elas, pertencem ao ser humano integral.
Quanto mais uma consciência está desperta, mais ela ultrapassa a sua
própria historicidade. Basta-nos recordar os místicos e os sábios de todos
os tempos e, em primeiro lugar, os do Oriente.

História e arquétipos

Mas deixemos de parte as objecções que poderiam opor-se ao


historicismo e ao existencialismo historicista e voltemos ao nosso
problema, isto é, aos dilemas do historiador das religiões. Este, dizíamos,
esquece muitas vezes que está a lidar com um comportamento humano
arcaico e integral e que, por conseguinte, o seu papel não deveria reduzir-
se ao registo das manifestações históricas deste comportamento, ele
deveria aplicar-se também a penetrar mais profundamente os seus
significados e as suas articulações. Tomemos um só exemplo; sabe-se hoje
que certos mitos e símbolos circularam através do mundo divulgados por
determinados tipos de cultura; quer dizer que estes mitos e estes
símbolos nem por isso são descobertas espontâneas do homem arcaico
mas criações de um complexo cultural bem delimitado, elaborado e
34

veiculado por certas sociedades humanas; tais criações foram difundidas


muito longe do Seu lugar de origem e foram assimiladas por povos e
sociedades que doutro modo as não teriam conhecido.
Creio que estudando tão rigorosamente quanto possível as relações
entre certos complexos religiosos e certas formas de cultura, e precisando
as etapas da difusão destes complexos o etnólogo tem o direito de se
declarar satisfeito com os resultados das suas pesquisas. Mas este não
seria o caso do historiador das religiões: uma vez aceites e integrados os
resultados da etnologia, aquele deve ainda pôr-se outros problemas:
porquê tal mito ou tal símbolo puderam ser difundidos? Que revelavam
eles? Por que motivo certos pormenores — mesmo muito importantes —
se perdem durante a difusão, enquanto outros continuam a sobreviver?
Em suma: a que respondem estes mitos e estes símbolos para terem tido
uma tal difusão? É preciso não abandonar estas questões aos psicólogos,
aos sociólogos e aos filósofos porque ninguém está mais bem preparado
para as resolver do que o historiador das religiões.
Basta que nos demos ao trabalho de estudar o problema para
verificar que, difundidos ou descobertos espontaneamente, os símbolos,
os mitos e os ritos revelam sempre uma situação--histórica: situação
limite quer dizer: aquela que o homem descobre ao tomar consciência do
seu lugar no Universo. É principalmente ao esclarecer estas situações-
limite que o historiador das religiões cumpre a sua tarefa e vai ao
encontro das investigações da psicologia de profundidade e até mesmo da
filosofia. Este estudo é possível e, aliás, já foi iniciado. Chamando a
atenção para a sobrevivência dos símbolos e temas míticos na psiqué do
homem moderno, mostrando que a redescoberta espontânea dos
arquétipos do simbolismo arcaico é coisa vulgar entre nós, seres
humanos, sem diferença de raça e de meio histórico, a psicologia de
profundidade libertou o historiador das religiões das suas últimas
hesitações. Dentro em pouco daremos alguns exemplos de redescoberta
espontânea de um simbolismo arcaico e veremos o que eles podem
ensinar a um historiador das religiões.
Mas desde já se adivinham as perspetivas que se abririam à história
35

das religiões se ela soubesse tirar partido de todas as suas próprias


descobertas e das da etnologia, da sociologia e da psicologia de
profundidade. A encarar o estudo do homem não apenas como ser
histórico, mas também como símbolo vivo, a história das religiões poderia
transformar-se, perdoem-nos o termo, numa metapsicanálise. Porque ela
conduziria a um despertar e a uma retomada de consciência dos símbolos
e dos arquétipos arcaicos, vivos ou fossilizados nas tradições religiosas da
humanidade inteira. Arriscámos o termo: metapsicanálise pois se trata de
uma técnica mais espiritual, aplicando-se antes de mais a esclarecer o
conteúdo teórico dos símbolos e dos arquétipos, a tornar transparente o
que é «alusivo», críptico ou fragmentário. Falar-se-ia assim também de
uma nova maiêutica: tal como Sócrates no Tuteto (149 a sq., 161 e) fazia
com que o espírito desse à luz os pensamentos que aquele continha sem
o saber, a história das religiões poderia dar à luz um homem novo, mais
autêntico e mais completo; pois, através do estudo das tradições
religiosas, o homem moderno não reencontraria apenas um
comportamento arcaico; tomaria, além disso, consciência da riqueza
espiritual que implica um tal comportamento.
Esta maiêutica realizada com a colaboração do simbolismo religioso
contribuiria assim para libertar o homem moderno do seu provincianismo
cultural e, sobretudo, do relativismo historicista e existencialista. Porque,
como se verá, o homem opõe-se à própria história mesmo quando se
dedica a fazê-la, mesmo quando pretende nada mais ser do que
«história». E, na medida em que o homem ultrapassa o seu momento
histórico e dá livre curso ao seu desejo de reviver os arquétipos, ele
realiza-se como um ser integral, universal. Na medida em que se opõe à
história, o homem moderno encontra as posições arquetípicas. Até o seu
sono, as suas tendências orgíacas estão carregadas de significado
espiritual. Pelo simples fato de encontrar no mais fundo do seu ser os
ritmos cósmicos — a alternância dos dias e das noites, por exemplo, ou
Inverno-Verão — ele alcança um conhecimento mais total do seu destino
e do seu significado.
Ainda em auxílio do historiador das religiões, o homem moderno
36

poderia reencontrar o simbolismo do seu corpo, que é um antropo-


cosmos. Aquilo que as diversas técnicas da imaginação, e especialmente
as técnicas poéticas, realizaram a este respeito, não é quase nada ao pé
das promessas da história das religiões. Todos estes dados subsistem
ainda, mesmo no homem moderno; é necessário apenas reanimá-los e
trazê-los ao limiar da consciência. Ao retomar consciência do seu próprio
simbolismo antropo-cósmico — que não passa de uma variante do
simbolismo arcaico — o homem moderno obterá uma nova dimensão
existencial, totalmente ignorada pelo existencialismo e pelo historicismo
atual: é um modo de ser autêntico e maior, que o defende do nihilismo e
do relativismo historicista sem todavia o subtrair da história. Porque a
própria história poderia um dia encontrar o seu verdadeiro sentido: o da
epifania de uma condição humana gloriosa e absoluta. Basta que nos
recordemos da valorização que o judaico-cristianismo deu à existência
histórica, para nos apercebermos de como e em que sentido histórico
aquela poderia tornar-se «gloriosa» e mesmo «absoluta».
Não é pretender-se, evidentemente, que o estudo racional da
história das religiões deva ou possa ser substituído pela experiência
religiosa, e menos ainda pela experiência da fé. Mas, mesmo para uma
consciência cristã, a maiêutica pela interpretação do simbolismo arcaico
dará os seus frutos. O cristianismo herdou uma antiquíssima e muito
complexa tradição religiosa, cujas estruturas sobreviveram dentro da
Igreja, mesmo que os valores espirituais e a orientação teológica tenham
mudado. De qualquer modo, nada do que, através do Cosmos, manifesta
a Glória — para falar em termos cristãos — pode deiXar indiferente um
crente.
Enfim, o estudo racional das religiões trará à luz um fato
insuficientemente notado até agora: é que existe uma lógica do símbolo,
que certos grupos de símbolos, pelo menos, se mostram coerentes,
logicamente encadeados entre si1; que se pode, numa palavra, formulá-
los sistematicamente, traduzi-los em termos racionais. Esta lógica interna

1 Ver, mais adiante, o capítulo TH: O «deus ligador» e o simbolismo dos nós.
37

dos símbolos põe um problema de pesadas consequências; certas zonas


do inconsciente individual ou coletivo serão ou não dominadas também
pelo logos, ou estaremos perante manifestações de um transconsciente?
Este problema não poderia ser resolvido unicamente pela psicologia de
profundidade, pois os simbolismos que decifram esta última são
constituídos na maior parte do tempo, por fragmentos dispersos e por
manifestações de uma psiqué em crise, se não em regressão patológica.
Para surpreender as verdadeiras estruturas e funções dos símbolos, é
preciso que nos dirijamos ao inesgotável repertório da história das
religiões. Mas, ainda aqui é preciso saber escolher pois os nossos
documentos apresentam frequentemente formas decadentes, aberrantes
ou francamente medíocres. Se se quiser chegar a uma compreensão
adequada do simbolismo religioso arcaico é-se obrigado a fazer uma
selecção, do mesmo modo que, para se ter ideia de uma literatura
estrangeira, não se consideram ao acaso os primeiros dez ou cem livros
que se encontram na primeira biblioteca pública. Deve esperar-se que os
historiadores das religiões façam um dia o trabalho de hierarquização dos
seus documentos, tendo em conta o seu valor e o seu estado, tal como os
seus colegas, os historiadores das literaturas. Mas, mesmo assim, estamos
apenas no princípio.

A imagem do mundo

As sociedades arcaicas e tradicionais concebem o mundo em seu


redor com um microcosmos. Nos limites deste mundo fechado, começa o
domínio do desconhecido, do não-formado. De um lado existe o espaço
cosmisado, portanto habitado e organizado — de outro lado, no exterior
deste espaço familiar, existe a região desconhecida e terrível dos
demónios, das larvas, dos mortos, dos estrangeiros; numa palavra: o caos,
a morte, a noite. Esta imagem de um microcosmomundo habitado,
rodeado de regiões desérticas assimiladas ao caos ou ao reino dos
38

mortos, sobreviveu mesmo nas civilizações muito evoluídas, com as da


China, da Mesopotâmia ou do Egipto. De fato, um grande número de
textos assimila os adversários, prontos a atacar o território nacional, às
larvas, aos demónios ou às forças do caos. Assim, os adversários do Faraó
eram considerados como «filhos da ruína, dos lobos, dos cães», etc. O
Faraó era assimilado ao deus Ré, vencedor do dragão Apófis enquanto os
seus inimigos eram identificados com este dragão mítico2. Pelo fato de
atacarem e porem em perigo o equilíbrio e a própria vida da cidade (ou
ide qualquer outro território habitado e organizado), os inimigos são
assimilados às forças demoníacas, pois eles esforçam-se por reintegrar
este microcosmos no estado caótico, ou seja suprimi-lo. A destruição de
uma ordem estabelecida, a abolição de uma imagem arquetípica,
equivalia a uma regressão para o caos, para o pré-formal, para o estado
não diferenciado que precedia a cosmogonia. Notemos que as mesmas
imagens são ainda utilizadas nos nossos dias quando se trata de formular
os perigos que ameaçam um certo tipo de civilização: fala-se
nomeadamente de «caos», de «desordem», das «trevas» em que
mergulhará o «nosso mundo». Todas estas expressões, como bem se vê,
significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, de uma estrutura, e
a re-imersão num estado fluido, amorfo, caótico enfim.
A concepção do adversário sob a forma de um ser demoníaco,
verdadeira encarnação idas forças do mal, sobreviveu igualmente até aos
nossos dias. A psicanálise destas imagens míticas que ainda hoje animam
o mundo moderno, mostrar-nos-á talvez em que medida projetamos nos
«inimigos» os nossos próprios desejos de destruição. Mas este problema
ultrapassa a nossa competência. O que queremos trazer à luz é o fato de,
para o mundo arcaico em geral, os inimigos que ameaçavam o
microcosmos serem perigosos não tanto como seres humanos (em si) mas
porque encarnavam as forças hostis e destruidoras. É muito provável que
as defesas dos lugares habitados e das cidades tenham começado por ser
defesas mágicas; pois estas defesas — fossos, labirintos, muralhas, etc. —

2 Ver o nosso livro Le Mythe de l'Éternel Retour: Archétypes et Répétition


(Gallimard, Paris, 1949), pp. 68 sq.
39

eram dispostas mais para impedir a invasão dos espíritos maus do que o
ataque dos humanos3. Mesmo muito mais tarde na história, na Idade
Média, por exemplo, os muros das cidades eram consagrados ritualmente
como uma defesa contra o Demónio, a doença e a morte. Além do mais, o
simbolismo arcaico não encontra qualquer dificuldade em assimilar o
inimigo humano ao Demónio ou à Morte. Afinal o resultado dos seus
ataques, quer sejam demoníacos, quer militares, é sempre o mesmo: a
ruína, a desintegração, a morte.
Todo o microcosmos, toda a região habitada, tem aquilo a que
poderia chamar-se um «Centro», isto é um lugar sagrado por excelência. É
aí, nesse Centro, que o sagrado se manifesta de uma maneira total, quer
sob a forma de hierofanias elementares — como entre os «primitivos» (os
centros totémicos, por exemplo, as cavernas onde se enterram os
tchuringas, etc.) — quer sob a forma mais evoluída das epifanias diretas
dos deuses, como nas civilizações tradicionais. Mas não se deve encarar
este simbolismo do Centro com as suas implicações geométricas do
espírito científico ocidental. Para cada um destes microcosmos podem
existir vários «centros». Como não tardaremos a ver, todas as civilizações
orientais — Mesopotâmia, índia, China, etc. — conhecem um número
ilimitado de «Centros». Melhor ainda: cada um destes «Centros» é
considerado e mesmo designado literalmente por «Centro do Mundo».
Como se trata de um espaço sagrado, que é dado por uma hierofania ou
construído ritualmente, e não de um espaço profano, homogéneo,
geométrico, a pluralidade dos «Centros da Terra» no interior de uma só
região habitada não oferece qualquer dificuldade4. Estamos em presença
de uma geografia sagrada e mítica, a única efetivamente real e não de
uma geografia profana, «objetiva», de certo modo abstrata e não
essencial, construção teórica de um espaço e de um mundo que não se
habita e que portanto, não se conhece.
Na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real por excelência,

3 Cf. W. J. Knight, Cumaean Gates (Oxford, 1936); Karl Kerényi, Labyrinth-Studien


(Amsterdam-Leipzig, 1941, Albae Vigilae, Heft XV).
4 Nosso Traité d'Histoire des Religions (Payot, Paris, 1949), pp. 315 sq.
40

pois, tal como se provou recentemente5, para o mundo arcaico o mito é


real porque ele relata as manifestações da verdadeira realidade: o
sagrado. É em tal espaço que se está diretamente em contato com o
sagrado — seja este materializado em certos objetos (tchuringas,
representações da divindade, etc.) ou manifestado nos símbolos hiero-
cósmicos (Pilar do Mundo, Árvore Cósmica, etc.). Nas culturas que
conhecem a concepção das três regiões cósmicas — Céu, Terra, Inferno —
o «centro» constitui o ponto de intersecção destas regiões. É aqui que se
torna possível uma ruptura de nível e, ao mesmo tempo, uma
comunicação entre estas três regiões. Temos motivos para crer que a
imagem de três níveis cósmicos é bastante arcaica; ela encontra-se, por
exemplo, nos pigmeus Semang da península de Malaca: no centro do
Mundo ergue-se um enorme rochedo, Batu-Ribn; debaixo dele encontra-
se o Inferno. Outrora de Batu-Ribn elevava-se um trono em direcção ao
Céu6. O inferno, no centro da terra e a «porta» do Céu encontram-se pois
no mesmo eixo, e por este eixo se efetuava a passagem de uma região
cósmica para outra. Hesitar-se-ia em crer na autenticidade desta teoria
cosmológica entre os pigmeus Semang se não tivessemos bases para
admitir que a mesma teoria tinha sido já esboçada na época pré-
histórica7. Os Semang dizem que antigamente um tronco de árvore ligava
o cume da Montanha Cósmica, o Centro do Mundo, com o Céu. É uma
alusão a um tema mítico extremamente difundido: outrora, as
comunicações com o Céu e as relações com a divindade eram fáceis e
«naturais»; em consequência de uma falta ritual, estas comunicações
foram interrompidas e os deuses retiraram-se mais para o alto nos céus.

5 Cf. . R. Pettazzoni, Miti e Leggende, I (Torino, 1948), p. v; id., Veritá del Mito
(Studi e Materiali di Storia delle Religioni, vol. XXI, 1947-1948, pp. 104-116); G.
van der Leeuw, Die Bedeutung der Mythen (Festschrift für Alfred Bertholet,
Tübingen, 1949, pp. 287-293); M. Elíade, Traité d'Histoire des Religions, pp. 350
sq.
6 P. Schebesta, Les Pygmées (trad. fr., Paris, 1940), pp. 156 sq.
7 Cf. por exemplo, W. Gaerte, Kosmische Vorstellungen im Bilde prähistorisher
Zeit: Erdberg, Himmelsberg, Erdnabel und Welttenströme (Anthropos, IX, 1914,
pp. 956-979).
41

Só os curandeiros, os Xamãs, os padres e os heróis ou os soberanos


conseguem restabelecer, de modo passageiro e unicamente para seu
próprio uso, as comunicações com o Céu8. O mito de um paraíso
primordial perdido por causa de uma determinada falta é extremamente
importante — mas, se bem que de certo modo se relacione com o nosso
assunto, não o podemos discutir agora.

Simbolismo do centro

Voltemos pois à imagem das três regiões cósmicas ligadas, num


«Centro» por um eixo. É sobretudo nas civilizações palco-orientais que
encontramos esta imagem arquetípica. O nome dos santuários de Nippur,
Larsa e Sippar era Dur-an-ki, «ligação entre o céu e a terra». Mas é ainda
na Babilónia que se faz a ligação entre a Terra e as regiões inferiores, pois
a cidade fora edificada sobre bâb-apsi, a «Porta de apsû», designando
apsû as águas do caos antes da Criação. Encontramos esta mesma
tradição entra os hebreus. O rochedo de Jerusalém penetrava
profundamente nas águas subterrâneas (tehôm). Diz-se na Mishna que o
Templo se encontra precisamente em cima de tehôm (equivalente
hebraico de apsû). E, ainda como na Babilónia, havia a «porta de apsû»: o
rochedo do Templo de Jerusalém fechava a «boca do tehôm». Encontram-
se tradições similares no mundo indo-europeu. Nos Romanos, por
exemplo, o mundus constitui o ponto de encontro das regiões inferiores e
do mundo terrestre. O templo itálico era a zona de intersecção dos
mundos superior (divino), terrestre e subterrâneo (infernal; cf. Le Mythe
de l'Eternel Retour, pp. 32 sq.).
De fato, toda a cidade oriental se encontrava no centro do mundo.
Babilónia era uma Bâbilâni, uma «porta dos deuses», pois era aí que os

8 Cf. nosso Chamanisme et les techniques archaïques de l'extase (Payot, 1951).


42

deuses desciam à terra. A capital do soberano chinês perfeito encontrava-


se junto da Árvore miraculosa «Mastro erguido», Kien-mou, no ponto
onde se entrecruzavam as três zonas cósmicas: Céu, Terra e Inferno. E
poder-se-ia continuar a acumular exemplos indefinidamente. Todas estas
'cidades, templos ou palácios considerados como Centros do Mundo, não
são mais do que réplicas infinitamente multiplicadas de uma imagem
arcaica: a Montanha Cósmica, a Arvore do Mundo ou o Pilar central que
sustém os níveis cósmicos.
O símbolo de uma Montanha, de uma Árvore ou de um Pilar situados
no Centro do Mundo, está extremamente difundido. Recordemos o
Monte Meru da tradição índia, Haraberazaiti dos iranianos, Himingbjõr
dos Germânicos, o «Monte dos Países» da tradição mesopotâmica, o
Monte Thabor, na Palestina, (que poderia significar tabbur ou seja
«umbigo da terra», o Gólgota que, para os cristãos, se encontra no centro
do mundo, etc. (cf. Traité, pp 321 sq.; Le Mythe de l'Éternel Retour, pp. 30
sq.) Pelo fato de o território, a cidade, o templo ou o palácio real se
encontrarem no «Centro do Mundo», isto é no cume da Montanha
Cósmica, aqueles eram considerados como o lugar mais alto do mundo, o
único que não fora submergido pelo dilúvio. «A terra de Israel não foi
submergida pelo dilúvio», diz um texto rabínico. E, segundo a tradição
islâmica, o lugar mais elevado da terra é a Kâ'aba, porque «a estrela polar
prova que ela se encontra na direcção do centro do Céu» (textos do
Mythe de l'Éternel Retour, pp. 33). O nome das torres e dos templos
sagrados da Babilónia testemunha a sua assimilação à Montanha Cósmica,
quer dizer ao Centro do Mundo: «Monte da Casa», «Casa do Monte de
todas as terras», «Monte das tempestades», «Ligação entre o Céu e a
Terra», etc. A ziqqurar era, a bem dizer, uma montanha cósmica, isto é,
uma imagem simbólica do Cosmos: os sete andares representavam os
sete céus planetários; subindo-os o padre atingia o topo do Universo. Este
mesmo simbolismo está na base da construção do templo de Barabudur:
este é edificado como uma montanha artificial. A sua ascensão equivale a
uma viagem ao Centro do Mundo; ao atingir o terraço superior o
peregrino realiza uma ruptura de nível; ele transcende o espaço profano e
penetra numa «região pura». Estamos em presença de um «rito do
43

centro» (textos em Traité, pp. 323 sq.).


O topo da Montanha Cósmica não é apenas o ponto mais alto da
Terra; ele é o umbigo da Terra, o ponto onde começou a criação. «O
Santíssimo criou o mundo como um embrião», afirma um texto rabínico.
«Tal como o embrião cresce a partir do umbigo, também Deus começou a
criar o mundo pelo umbigo e daí ele expandiu-se em todas as direcções.»
«O mundo foi criado começando por Sião», diz um outro texto. O mesmo
simbolismo aparece na Índia antiga: no Rig Veda, o Universo é concebido
como adquirindo a sua extensão a partir de um ponto central (cf. Traité,
p. 324; Le Mythe, p. 36).
A criação do homem, réplica da cosmologia, teve semelhantemente
lugar num ponto central, no Centro do Mundo. Segundo a tradição
mesopotâmica, o homem foi feito no «umbigo da terra», no mesmo lugar
onde se encontra também Dur-an-ki, o «laço entre o Céu e a Terra».
Ohrmazd cria o homem primordial, Gajômard, no centro do Mundo. O
Paraíso onde Adão foi criado a partir do barro encontra-se, bem
entendido, no Centro do Cosmos. O Paraíso era o «umbigo da Terra», e,
segundo uma tradição síria, ficava «numa montanha mais alta ido que
todas as outras». De acordo com o livro sírio A caverna dos Tesouros,
Adão foi criado no Centro da Terra, no próprio local onde devia erguer-se
mais tarde a Cruz de Jesus. As mesmas tradições foram conservadas pelo
judaismo. O apocalipse judaico e o midrash precisam que Adão foi criado
em Jerusalém. Tendo Adão sido enterrado no mesmo local onde fora
criado, ou seja no centro do mundo, sobre o Gólgota, também o sangue
do Senhor o redimiu (ver Traité, pp. 323 sq.; Le Mythe, pp. 32 sq.). A
variante mais difundida do simbolismo do Centro é a Árvore Cósmica que
se encontra no meio do Universo e que sustenta, como um eixo, os três
Mundos. A Índia de Veda, a China antiga, a mitologia germânica tal como
as religiões «primitivas» conhecem, sob formas diferentes, esta Árvore
Cósmica, cujas raízes mergulham até aos Infernos e cujos ramos tocam o
Céu. Nas mitologias centrais e norte-asiáticas, os seus sete ou nove ramos
simbolizam os 7 ou 9 níveis celestes, ou seja os sete céus planetários. Não
é esta a ocasião para nos alongarmos acerca do simbolismo complexo da
44

Árvore do Mundo9. O que nos interessa, é o seu papel nos «ritos do


centro». Em geral pode dizer-se que a maioria das árvores sagradas e
rituais que encontramos na história das religiões não passa de réplica, de
cópia imperfeita desse arquétipo exemplar: a Árvore do Mundo. Quer
dizer, supõe-se que todas as árvores sagradas se encontram no Centro do
Mundo e todas as árvores rituais ou postes, que se consagram antes ou
durante qualquer cerimónia religiosa, são como que magicamente
projetados no Centro do Mundo. Contentemo-nos com alguns exemplos.
Na índia védica o poste sacrificial (yûpa) é feito de uma árvore que é
assimilada à Árvore Universal. Enquanto se abate, o padre sacrificador
dirige-lhe estas palavras: «Com o teu cimo não rasgues o Céu, com o teu
centro não firas a atmosfera...» Vê-se bem que nos encontramos aqui
perante a Árvore do Mundo. Da madeira dessa árvore faz-se o poste
sacrificial e este torna-se uma espécie de pilar cósmico: «Ergue-te, oh
Senhor da floresta ao topo da Terral», assim invoca o Rig Veda, III, 8, 3.
«Com o teu cimo suportas o Céu, com a tua parte média enches os ares,
com o teu pé seguras a Terra», proclama o Çatapatha Brâhmana, III, 7, 1,
4.
A instalação e a consagração do poste sacrificial constituem um rito
do Centro. Assimilado à Árvore do Mundo o poste transforma-se por seu
turno no eixo que liga as três regiões cósmicas. A comunicação entre o
Céu e a Terra torna-se possível por meio deste pilar. E, de fato, o
sacrificador sobe ao Céu, só ou com a mulher, neste poste transformado
ritualmente no próprio Eixo do Mundo. Colocando uma escada, o
sacrificador dirige-se à mulher: «Vem, subamos ao Céu!» «A mulher
responde: subamos!» (Çat. Br., V, 2, 1, 9). E começam a subir a escada. No
topo e tocando o capitel, o sacrificador exclama: «Chegámos ao Céu!
(Taittiriya Samhitâ, Çat. Br., etc.). Ou, escalando os degraus do poste,
estende as mãos (como uma ave estende as asas) e, chegado ao cimo
exclama: «Atingi o Céu, os deuses: tornei-me imortal!» (Taittiriya

9 Cf. nosso Traité pp. 236 sq.; Le Chamanisme, pp. 244 sq.; sobre o simbolismo cristão
da Cruz = Árvore Cósmica, ver H. de Lubac, Aspets da Boudhisme (Paris, 1951),
pp. 61 sq.
45

Samhitâ, 1, 7, 9). «Na verdade, diz ainda o Taittiriya Samhitâ (VI, 6, 4, 2), o
sacrificador faz uma escada e uma ponte para atingir o mundo celeste.»
O ponto ou a escada entre o Céu e a Terra eram possíveis porque se
elevavam num Centro do Mundo. Exatamente como a escada vista em
sonhos por Jacob e que tocava no Céu. E «os anjos de Deus subiam e
desciam ao longo dessa escada» (Génesis, 28, 11 sq.). O rito índio faz
também alusão à imortalidade que se obtém por se ter subido ao Céu.
Como veremos dentro em pouco, uma quantidade de outras abordagens
rituais de um Centro equivalem a uma conquista da imortalidade.
A assimilação da árvore ritual à Árvore Cósmica é ainda mais
transparente no Xamanismo central e norte-asiático. A escalada desta
árvore para o Xamã tártaro simboliza a sua ascensão ao Céu.
Efetivamente fazem-se na árvore 7 ou 9 entalhes e subindo por eles o
xamã declara pertinentemente que subiu ao Céu. Descreve à assistência
tudo o que vê em cada um dos níveis celestes que atravessa. No sexto céu
venera a Lua, no sétimo o Sol. Finalmente no nono prosterna-se perante
Bai Ulgän, o Ser Supremo, e oferece-lhe a alma do cavalo sacrificado10.
A árvore xamânica é apenas uma réplica da Árvore do Mundo, que se
eleva no meio do Universo e no cimo da qual se encontra o Deus Supremo
ou o deus solarizado. Os 7 ou 9 entalhes na árvore Xamânica simbolizam
os 7 ou 9 ramos da Árvore Cósmica, ou seja os 7 ou 9 céus. O xamã sente-
se, aliás, solidário com esta Árvore do Mundo através de outras relações
místicas. Nos seus sonhos iniciáticos presume-se que o futuro xamã se
aproXima da Árvore Cósmica e recebe da mão do próprio Deus três ramos
dessa Árvore que lhe servirão de caixas para os seus tambores11. É
conhecido o papel fundamental desempenhado pelo tambor durante as
sessões Xamânicas; é sobretudo com o auxílio dos tambores que os xamãs
atingem o êxtase. Ora, se nos lembrarmos que o tambor é feito da própria

10 Cf. materiais e bibliografia no nosso livro Le Chamanisme, pp. 171 sq.


11 A. A. Popov, Tavgijcy. Materialy po etnografii avamskich i vedeevskich tavgicev
(Moska-Leningrad, 1936), pp. 84 sq.; ver Le Chamanisme et les techniques
archaiques de l'extase, pp. 160 sq.
46

madeira da Árvore do Mundo, compreende-se o simbolismo e o valor


religioso dos sons do tambor xamânico: é que percutindo-o o xamã sente-
se projetado, em êxtase, para junto da Árvore do Mundo12. Estamos
perante uma viagem mística ao «Centro» e, em seguida, ao mais alto Céu.
Assim, quer trepando à bétula cerimonial com 7 ou 9 entalhes, quer
tocando tambor, o xamã inicia a sua viagem ao Céu. Mas ele não pode
obter a ruptura de níveis cósmicos que lhe permitirá a ascensão ou o voo
extático através dos Céus, senão porque se supõe estar no próprio Centro
do mundo; pois, como já vimos, é só num tal Centro que se torna possível
a comunicação entre a Terra, o Céu e o Inferno13.

Simbolismo da ascensão

É bastante provável que, pelo menos no caso das religiões centro-


asiáticas e siberianas, este simbolismo do Centro seja influenciado por
esquemas cosmológicos indo-iranianos e, em última análise,
mesopotâmicos. A importância do número 7, entre outras coisas, parece
prová-lo. Mas importa fazer bem a distinção entre o empréstimo de uma
teoria cosmológica elaborada em torno do simbolismo do Centro — como
seria, por exemplo, a concepção de 7 níveis celestes — e o simbolismo do
centro em si. Já vimos que este simbolismo é extremamente arcaico, que
é conhecido pelos Pigmeus da península de Malaca. E mesmo que se
pudesse suspeitar de uma longínqua influência indiana nestes Pigmeus
Semang, ficaria ainda por explicar o simbolismo do Centro encontrado nos
monumentos pré-históricos (Montanhas Cósmicas, os quatro rios, a
Árvore e a espiral, etc.). Melhor ainda: pôde demonstrar-se que o

12 Cf. E. Emsheimer, Schamanentrommel und Trommelbaum (Ethnos, vol. IV,


1946, pp. 166-181).
13 A ascensão iniciática de uma árvore cerimonial encontra-se também no
xamanismo indonésio, sul-americano (Araucan) e norte-americano (Pomo), cf.
Le Chamanisme, pp. 122 sq., 125 sq.
47

simbolismo de um eixo cósmico é já conhecido nas culturas arcaicas (as


Urkulturen da escola Graebner-Schmidt) e, em primeiro lugar, pelas
populações árticas e norte-americanas: a trave central da habitação
destes povos é assimilada ao Eixo Cósmico. E é na base deste poste que se
colocam as oferendas destinadas às divindades celestiais, pois é só ao
longo deste eixo que as oferendas podem subir ao céu14. Quando a forma
da habitação se altera a cabana é substituída pela yurta (como, por
exemplo, entre os pastores-criadores da Ásia central), a função mítico-
ritual do pilar central é assegurada pela abertura superior destinada esta
ao escapamento do fumo. Na altura dos sacrifícios, introduz-se na yurta
uma árvore cujo cimo sai por aquela abertura. Esta árvore sacrificial, pelos
seus 7 ramos simboliza as 7 esferas celestes. Assim, por um lado, a casa
está homologada ao Universo e por outro lado ela é vista como situada no
Centro do Mundo, ficando a abertura destinada ao fumo na direcção da
estrela polar.
Voltaremos em breve a esta assimilação simbólica da habitação no
«Centro do Mundo», pois ela trai um dos comportamentos mais
instrutivos do homem religioso arcaico. Para já fiquemos nos ritos de
ascensão que se verificam num «centro». Vimos que o Xamã tártaro ou
siberiano trepa a uma árvore e que o sacrificador védico sobe uma
escada. Os dois ritos perseguem a mesma finalidade: a ascensão ao Céu.
Um número considerável de mitos fala de uma árvore, de uma liana, de
uma corda, de um fio de aranha ou de uma escada que liga a Terra ao Céu
e por intermédio dos quais certos seres privilegiados sobem efetivamente
ao céu. Estes mitos têm, bem entendido, correspondências rituais —
como, por exemplo a árvore Xamânica ou o mastro do sacrifício védico. A
escada cerimonial desempenha igualmente um papel importante.
Contentemo-nos com alguns exemplos: Polyeno (Stratagematon, VII, 22)
fala-nos de Kosingas, padre-rei de algumas populações da Trácia, que
ameaçava deixar os súbditos subindo por uma escada de madeira até à
deusa Hera; o que prova que a dita escada ritual existia e que se supunha
que pudesse conduzir o padre-rei até ao Céu. A ascensão celeste pela

14 Ver Le Chamanisme, pp. 235 sq.


48

subida cerimonial de uma escada fazia provavelmente parte de uma


iniciação órfica. Em todo o caso voltamos a encontrá-la na iniciação
mitríaca. Nos mistérios de Mithra, a escada (clímax) cerimonial tinha 7
degraus, sendo cada degrau feito de um metal diferente. Segundo Celso
(Origines, Contra Celsum, VI, 22), o primeiro degrau era de chumbo e
correspondia ao «céu» do planeta Saturno, o segundo de estanho
(Vénus), o terceiro de bronze (Júpiter), o quarto de ferro (Mercúrio), o
quinto de «liga de moeda» (Marte), o sexto de prata (Lua), o sétimo de
ouro (Sol). O oitavo degrau, diz-nos Celso, representa a esfera das estrelas
fixas15. Subindo esta escada cerimonial, o iniciado percorria efetivamente
os 7 céus elevando-se assim até ao Empíreo — tal como se subia ao
último céu escalando os 7 andares da ziqqurat babilónica ou se
atravessavam as diferentes regiões cósmicas pelos terraços do templo
Barabudur que constituía em si próprio, como vimos, uma Montanha
Cósmica e uma imago mundi.
Compreende-se facilmente que a escada da iniciação mitríaca era um
Eixo do Mundo e que se encontrava no Centro do Universo; de outro
modo a ruptura dos níveis não teria sido possível. «Iniciação» quer dizer,
como se sabe, morte e ressurreição do neófito, ou, noutros contextos,
descida aos Infernos seguida de ascensão ao Céu. A morte — iniciática ou
não — é a ruptura de nível por excelência. E por isso que ela é simbolizada
por uma escalada e frequentemente os rituais funerários utilizam escadas
ou escadarias. A alma do morto sobe as veredas de uma montanha, ou
trepa a uma árvore, ou liana até aos céus. Esta concepção encontra-se um
pouco por todo o mundo, desde o Egipto antigo à Austrália. A expressão
habitual em assiriano para o verbo «morrer» é: «agarrar-se à montanha».
Igualmente em egípcio, myny, «agarrar-se», é um eufemismo para
«morrer». Na tradição mítica indiana, Yama, o primeiro morto, trepou à
montanha e percorreu os «altos desfiladeiros» para mostrar «o caminho a

15 Cf. os materiais reunidos no nosso Chamanisme, pp. 248 sq. Para o simbolismo
cristão da ascensão ver Louis Beirnaert, Le Symbolisme ascensionnel dans la
liturgie et la mystique chrétiennes (Eranos-Jahrbuch, XIX, Zürich, 1951, pp. 41-
63).
49

muitos homens»; assim se exprime o Rig Veda (X, 14, 1). O caminho dos
mortos na crença popular uralo-altaica é a escalada dos montes; Bolot,
herói Kara-Kirghiz, tal como Kesar, rei lendário dos mongóis, entra no
outro mundo, à maneira de prova iniciática, por uma gruta situada no
topo das montanhas; a descida do xamã aos Infernos também se realiza
por meio de uma gruta. Os Egípcios conservam nos seus textos funerários
a expressão asket pet (asket = «degrau») para indicar que a escada de que
dispõe Ré, é uma escada real que liga a Terra ao Céu. «Está instalada, para
mim, a escada de ver os deuses», diz o Livro dos Mortos. «Os deuses
fazem-lhe uma escada para que, ao servir-se dela, ele suba ao Céu», diz
ainda aquele livro. Em muitos túmulos do tempo das dinastias arcaicas e
medievais, encontraram-se amuletos em forma de escada (maqet) ou
uma escalda. O uso da escada funerária sobreviveu algures até aos nossos
dias: diversas populações asiáticas primitivas — como, por exemplo, os
Lolos, os Karens, etc. — erguem sobre os túmulos escadas rituais que
servem para os defuntos subirem aos Céus16.
Como acabamos de ver, a escada contém um simbolismo
extremamente rico sem deixar de ser perfeitamente coerente: ela
representa plasticamente a ruptura de nível que torna possível a
passagem de um modo de ser a um outro; ou, colocando-nos no plano
cosmológico, que torna possível a comunicação entre Céu, Terra e Inferno.
E por isso que a escada e a escalada desempenham um papel considerável
tanto nos ritos e mitos de iniciação como nos ritos funerários, para não
falar dos ritos de entronização real ou sacerdotal, ou dos ritos de
casamento. Ora, sabe-se que o simbolismo da escalada e dos degraus se
encontra com muita frequência na literatura psicanalítica, o que define
que estamos perante um comportamento arcaico da psiqué humana e
não perante uma criação «histórica», uma inovação devida a um certo
momento histórico (digamos: o Egipto arcaico ou a índia védica, etc.).
Contentemo-nos com um único exemplo de redescoberta espontânea

16 Ver Traité d'Histoire des Religions, pp. 96 sq. Le Chamanisme et les techniques
archaiques de l'extase, pp. 420 sq
50

deste simbolismo primordial17.


Julien Green nota no seu Diário de 4 de Abril de 1933: «Em todos os
meus livros a ideia do medo ou de qualquer outra emoção um pouco forte
parece ligada de maneira inexplicável a uma escada. Apercebi-me disso
ontem, quando passava em revista todos os romances que escrevi...
(Seguem-se as referências). Pergunto-me como pude eu repetir tantas
vezes este efeito sem dar por isso. Em criança sonhava que me
perseguiam numa escada. Minha Mãe sofreu dos mesmos temores na sua
juventude; talvez tenha permanecido em mim um pouco disso...»
Sabemos hoje por que motivo a ideia de medo, no escritor francês,
está ligada à imagem de uma escada e por que razão todos os
acontecimentos dramáticos por ele descritos ao longo da sua obra —
amor, morte, crime — tiveram lugar numa escada. A escalada ou a
ascensão simboliza o caminho para a realidade absoluta; e, na consciência
profana, a aproximação desta realidade provoca um sentimento
ambivalente de medo e de alegria, de atracção e de repulsa, etc. As ideias
de santificação, de morte, de amor e de libertação estão implicadas no
simbolismo da escada. Com efeito, cada um destes modos de ser
representa a abolição da condição humana profana, isto é, uma ruptura
de nível ontológica: através do amor, da morte, da santidade, do
conhecimento metafísico, o homem passa, como o diz a Brihadâranyaka
Upanisad, do «irreal à realidade».
Mas, é preciso que não se esqueça, a escada simboliza todas as
coisas porque se supõe erguer-se num «centro», porque torna possível a
comunicação entre os diferentes níveis do ser, porque, enfim, não é mais
do que uma fórmula concreta da escada mítica, da liana ou do fio de
aranha, da Árvore Cósmica ou do Pilar universal que ligam as três zonas
,

cósmicas.

17 Ver nosso estudo Durohâna and the «waking dream» (Art and Thought, A
volume in honour of the late Dr. Ananda K. Coomaraswamy, London, 1947, pp.
209 sq.).
51

Construção de um centro

Vimos que não só se partia da ideia de os templos se encontrarem


no Centro do Mundo mas que todo o lugar sagrado, todo o lugar que
manifestasse uma inserção do sagrado no espaço profano, era também
considerado como um «centro». Estes espaços sagrados também podiam
ser construídos. Mas a sua construção era, de certo modo, uma
cosmogonia, uma criação do mundo; absolutamente natural pois, como
vimos, o mundo foi criado a partir de um embrião, de um «centro».
Assim, por exemplo, a construção do altar védico do fogo reproduzia a
criação do mundo e o altar era ele próprio um microcosmos, uma imago
mundi. A água com que se amassa a argila, diz-nos Çatapatha Brâhmana,
(I, 9, 2, 29; VI, 5, 1 sq., etc.), é a Água primordial; a argila que serve de
base ao altar é a Terra; as paredes laterais representam a Atmosfera, etc.
(Seria necessário talvez acrescentar que esta construção implica
igualmente uma construção do Tempo cósmico, mas não temos ocasião
de abordar este problema aqui; cf. Le Mythe de l'Éternel Retour, pp. 122
sq.).
É pois inútil insistir: a história das religiões conhece um número
considerável de construções rituais de um «Centro». Notemos apenas
uma coisa, importante a nosso ver: na medida em que os antigos lugares
sagrados, templos ou altares perdem a sua eficácia religiosa, descobrem-
se e aplicam-se outras fórmulas geomânticas, arquiteturais ou
iconográficas que, ao fim e ao cabo, representam por vezes de maneira
bastante estranha, o mesmo simbolismo do «Centro». Demos um único
exemplo: a construção e a função do mandala18. Este termo quer dizer
«círculo»; as traduções tibetanas dão-no-lo quer por «centro» quer por
«o que envolve». De fato um mandala representa toda uma série de

18 Ver nosso livro Techniques du Yoga (Gallimard„ 1948), pp. 185 sq.; Giuseppe
Tucci, Teoria e pratica del mandala (Roma, 1949); sobre o simbolismo •do
mandala, ver C. G. Jung, Psychologie und Alchemie (Zürich, 1944), pp. 139 sq.;
id., Gestaltungen des Unbetvussten (Zürích, 1950), pp. 187 sq.
52

círculos, concêntricos ou não, inscritos num quadrado; neste diagrama,


desenhado na terra com fios de cores ou pó de arroz colorido, vêm
ocupar o seu lugar as diferentes divindades do panteão tântrico. O
mandala representa assim uma imago mundi e, ao mesmo tempo, um
panteão simbólico. A iniciação consiste, entre outras coisas, para o
neófito, em penetrar nas diferentes zonas e em chegar aos diferentes
níveis do mandala. Este rito de penetração pode ser considerado como
equivalente do rito bem conhecido da marcha em redor de um templo
(pradakshina), ou da elevação progressiva, 'de terraço em terraço, até às
«terras puras» do plano superior do templo. Por outro lado, a inserção do
neófito num mandala pode ser homologada à iniciação por penetração
num labirinto; certos mandalas têm, ide resto, um caráter nitidamente
labiríntico. A função do mandala pode ser considerada como sendo, pelo
menos, dupla, tal como a do labirinto. Por um lado a inserção num
mandala desenhado no chão equivale a um ritual de iniciação; por outro
lado, o mandala «defende» o neófito de todas as forças exteriores
nocivas e ajuda-o ao mesmo tempo a concentrar-se, a encontrar o seu
próprio «centro».
Mas qualquer templo indiano visto de cima ou em projecção sobre
um plano é um mandala, simultaneamente microcosmo e panteão.
Porquê construir então um mandala? Porquê a necessidade de um novo
«Centro do Mundo»? Simplesmente porque para certos devotos, que
sentiam necessidade de uma experiência religiosa mais autêntica, mais
profunda, o ritual tradicional revelava-se fossilizado: a construção de um
altar do fogo ou a ascensão dos terraços de um templo, não lhes permitia
reencontrar o seu «Centro». Diferentemente do homem arcaico ou do
homem védico, o homem tântrico tinha necessidade ide uma experiência
pessoal para reanimar na sua consciência certos símbolos primordiais.
Aliás é esta razão porque certas escolas tântricas renunciaram ao
mandala exterior, recorrendo a mandalas interiorizados. Estes podem ser
de dois tipos: 1º uma construção puramente mental, que desempenha o
papel de «suporte» da meditação ou, 2º uma identificação do mandala no
seu próprio corpo. No primeiro caso, o yogin introduz-se mentalmente no
interior do mandala realizando assim um ato de concentração e ao
53

mesmo tempo de «defesa» contra as distracções e as tentações. O


mandala «concentra»: preserva da distracção, da dispersão. A
identificação ido mandala com o seu próprio corpo revela o desejo de
identificar a sua fisiologia mística com um microcosmos. Um relato mais
pormenorizado da penetração, por técnicas yogicas no interior do que
poderia chamar-se o seu «corpo místico» levar-nos-ia longe de mais.
Basta-nos dizer que a reanimação sucessiva dos cakras, (dessas «rodas»
(círculos) que são consideradas como outros tantos pontos de intersecção
da vida cósmica e da vida mental, a reanimação dos cakras é homologada
com a penetração iniciática no interior de um mandala. O despertar da
Kundalini equivale à ruptura de nível ontológico; isto é, à realização plena
e consciente do simbolismo do «Centro».
Como se acaba de ver, o mandala pode ser ao mesmo tempo ou
sucessivamente o suporte de um ritual concreto, ou de uma concentração
espiritual, ou ainda de uma técnica de fisiologia mística. Esta
multivalência, esta capacidade de se manifestar em planos múltiplos, se
bem que homologáveis, é uma caraterística do simbolismo do «Centro»
em geral. O que é fácil de entender: pois todo o ser humano tende,
mesmo inconscientemente, para o Centro e para o seu próprio Centro, o
que lhe confere a realidade integral, a «sacralidade». Este desejo
profundamente enraizado no homem, de se encontrar no cerne mesmo
do real, no Centro do Mundo, aí onde se faz a comunicação com -o Céu —
explica a utilização imoderada dos «Centros do Mundo». Vimos mais
acima que a habitação humana era assimilada ao Universo, o lar ou a
abertura praticada para a saída de fumo correspondiam ao Centro do
Mundo. De modo que todas as casas — bem como os templos, palácios,
cidades — estão situados num só e mesmo ponto comum, o Centro do
Universo.
Mas não haverá aqui uma certa contradição? Todo um conjunto de
mitos, de símbolos e de rituais concorrem para sublinhar a dificuldade que
existe em penetrar num centro; e por outro lado, convergentemente, uma
série de mitos e de ritos estabelecem que este Centro é acessível. Por
exemplo, a peregrinação aos lugares sagrados é difícil, mas toda a visita a
54

uma igreja é uma peregrinação. A Árvore Cósmica é, por um lado,


inacessível mas por outro pode encontrar-se em cada yurta. O itinerário
que conduz ao «Centro» está semeado de obstáculos e, todavia, cada
cidade, cada templo, cada morada, se encontra no Centro do Universo. Os
sofrimentos e as «provações» atravessados por Ulisses são fabulosos e,
no entanto, todo o regresso ao lar «vale» o regresso de Ulisses a Ítaca.
Tudo isto parece provar que o homem não pode viver senão num
espaço sagrado, no «Centro». Observa-se que um grupo de tradições
atesta o desejo que o homem sente de se encontrar sem esforço no
«Centro do Mundo», enquanto um outro grupo insiste na dificuldade e
por consequência no mérito que há em poder lá penetrar. Não nos
interessa aqui estabelecer a história de cada uma destas tradições. O fato
de, a primeira dentre elas, — a que permite a construção do «Centro» na
própria casa do homem, e da «facilidade» — se encontrar em quase toda
a parte, convida-nos a considerá-la como a mais significativa. Ela põe em
relevo uma certa situação humana a que poderíamos chamar nostalgia do
paraíso. Por isto entendemos o desejo de se encontrar sempre e sem
esforço, no Centro do Mundo, no seio da realidade e, em resumo, ide
ultrapassar de maneira natural a condição humana e de recuperar a
condição divina — um cristão diria: a condição anterior à queda19.
Não queríamos terminar esta exposição sem ter lembrado um mito
europeu que, ainda que não se relacione senão de maneira indireta com o
simbolismo e os ritos do Centro, concorre para os integrar num
simbolismo ainda mais vasto. Trata-se de um pormenor da lenda de
Parcifal e do Rei Pescador20. Recorda-se a misteriosa doença que
paralisava o velho Rei, detentor do segredo do Graal. Aliás não era ele
apenas a sofrer; tudo em seu redor caía em ruínas, esboroava-se:
palácios, torres, jardins; os animais deiXaram de se multiplicar, as árvores
não davam fruto, as fontes secavam. Muitos médicos tinham tentado

19 Cf. Traité d'Histoire des Religions, pp. 326 sq.; Le Chamanisme, pp. 417, 428 sq.
20 Perceval, ed. Hucher, p. 466; Jessie L. Weston, From Ritual to Romance
(Cambridge, 1920), p. 12 sq. O mesmo motivo mítico se encontra no ciclo de Sir
Gawain (Weston, ibid.)
55

curar o Rei Pescador sem o menor resultado. Dia e noite chegavam


cavaleiros e todos começavam por perguntar novas sobre a saúde do Rei.
Um único cavaleiro — pobre, desconhecido e até um pouco ridículo —
permitiu-se ignorar o ritual da boa educação. O seu nome era Parcifal.
Sem ligar ao cerimonial de cortesia, dirigiu-se diretamente ao Rei e,
aproXimando-se dele sem preâmbulos perguntou-lhe: — «Onde está o
Graal?» Nesse mesmo instante tudo se transforma: o Rei levanta-se do
leito de dor, os rios e as fontes recomeçam a correr, a vegetação renasce,
o castelo é miraculosamente restaurado. As poucas palavras de Parcifal
bastaram para regenerar a Natureza inteira. Mas essas poucas palavras
constituiam a questão central, o único problema que podia interessar não
apenas ao Rei Pescador, mas ao Cosmos inteiro: onde se encontrava o
real por excelência, o sagrado, o Centro da vida e a fonte da imortalidade?
Onde se encontrava o Santo Graal? Ninguém, antes de Parcifal, tinha
pensado em levantar esta questão central — e o mundo morria por causa
dessa indiferença metafísica e religiosa, por causa dessa falta de
imaginação e de ausência do desejo do real.
Este pequeno pormenor de um grandioso mito europeu revela-nos,
pelo menos, um aspeto desconhecido do simbolismo do Centro: não só
existe uma solidariedade íntima entre a vida universal e a salvação — mas
basta pôr-se o problema da salvação, basta pôr o problema central, ou
seja o problema — para que a vida cósmica se regenere perpetuamente.
Pois muitas vezes a morte — como parece mostrá-lo este fragmento
mítico não é mais do que o resultado da nossa indiferença perante a
imortalidade.
56

II - Simbolismos indianos do tempo e da


eternidade

Função dos mitos

Os mitos indianos, antes de serem «indianos», são «mitos», quer


dizer que fazem parte de uma categoria particular de criações espirituais
da humanidade arcaica; por conseguinte podem ser comparados com
qualquer outro grupo de mitos tradicionais. Antes de apresentar a
mitologia indiana do Tempo, importa-nos recordar, de passagem, as
relações íntimas existentes entre o Mito, como tal, como forma original
do espírito, e o Tempo. Porque, além das funções específicas que
preenche nas sociedades arcaicas, e sobre as quais podemos dispensar-
nos de nos deter aqui, o mito é importante também pelas revelações que
nos fornece sobre a estrutura do Tempo. Como se está de acordo em
admitir hoje, um mito relata acontecimentos que têm lugar in principio,
isto é «nos princípios», num instante primordial e intemporal, num lapso
de tempo sagrado. Este tempo mítico ou sagrado é qualitativamente
diferente do tempo profano, da duração contínua e irreversível na qual se
insere a nossa existência quotidiana e des-sacralizada. Relatando um
mito, reatualiza-se de certo modo o tempo sagrado no qual se cumpriram
os acontecimentos de que se fala. (Eis porque nas sociedades tradicionais
se não pode contar os mitos em qualquer altura nem de qualquer
maneira: só se pode recitá-los nas estações sagradas, na selva e durante a
noite, ou em redor do fogo, antes ou após os rituais, etc.). Numa palavra,
supõe-se o mito passado num tempo — se nos permitem a expressão —
57

intemporal, num instante sem duração, como certos místicos e filósofos


vêem a eternidade.
Esta verificação é importante, pois segue-se que a recitação dos
mitos não é desprovida de consequências para quem os recita nem para
quem os escuta. Pelo simples fato da narração de um mito, o tempo
profano é — pelo menos simbolicamente —abolido: narrador e auditório
são projetados num tempo sagrado e mítico. Algures1 tentámos mostrar
que a abolição do tempo profano pela imitação dos modelos exemplares
e pela reatualização dos acontecimentos míticos, é como uma nota
específica de toda a sociedade tradicional e que essa nota basta, por si só,
para estabelecer a diferença entre o mundo arcaico e as nossas
sociedades modernas. Nas sociedades tradicionais as pessoas esforçavam-
se consciente e voluntariamente, por abolir periodicamente o Tempo, por
apagar o passado e regenerar o Tempo, através de uma série de rituais
que reatualizavam de certo modo a cosmogonia. Podemos deixar de
entrar aqui em desenvolvimentos que nos afastariam muito do nosso
assunto. Contentemo-nos em recordar que um mito arranca o homem do
seu tempo próprio — do seu tempo individual, cronológico, «histórico» —
e o projeta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante
paradoxal que não pode ser medido porque não é constituído por uma
duração. O que é o mesmo que dizer que o mito implica uma ruptura do
Tempo e do mundo circundante; ele realiza uma abertura para o Grande
Tempo, para o Tempo sagrado.
Pelo simples fato de escutar um mito, o homem esquece a sua
condição profana, a sua «situação histórica», como se diz hoje. Não é
absolutamente necessário participar numa civilização histórica para poder
dizer de alguém que esse alguém se encontra numa «situação histórica».
O Australiano que se alimenta de insetos e de raízes encontra-se, também
ele, numa «situação histórica», ou seja, numa situação bem delimitada,
expressa numa certa ideologia e sustentada por um certo tipo de
organização social e económica; na espécie, a existência do Australiano

1 Ver Le Mythe de l'Éternel Retour: Archétypes et Répétition (Paris, Gallimard,


1949), pp. 83 sq. e passim.
58

representa muito provavelmente uma variante da situação histórica do


homem paleolítico. Porque a expressão «situação histórica» não implica
necessáriamente «a história» no sentido maior do termo; implica
somente a condição humana como tal, isto é, uma condição regida por
um certo sistema de comportamentos. Ora, tanto um Australiano como
um indivíduo pertencente a uma civilização muito mais evoluída, um
Chinês, por exemplo, ou um Hindu, ou um camponês de qualquer país
europeu, ao escutarem um mito esquecem em parte a sua situação
particular e são projetados num outro mundo, num Universo que não é já
o seu pobre e pequenino Universo quotidiano.
Lembremos que, para cada um destes indivíduos, tanto para o
Australiano como para o Chinês e para o Hindu e o camponês europeu, os
mitos são verdadeiros porque são sagrados, porque falam dos Seres e dos
acontecimentos sagrados. Por conseguinte, recitando ou ouvindo um
mito, retoma-se o contato com o sagrado e com a realidade e desta feita
ultrapassa-se a condição profana, a «situação histórica». Ultrapassa-se,
noutros termos, a condição temporal e a suficiência obtusa que é o
quinhão de todo o ser humano pelo simples fato de todo o ser humano
ser «ignorante», quer dizer que ele identifica-se a si e identifica o Real,
com a sua própria situação particular. Porque a ignorância é, antes de
mais, essa falsa identificação do Real com o que cada um de entre nós
parece ser ou parece possuir. Um político crê que a única e verdadeira
realidade é o poder político; um milionário está convencido de que só a
riqueza é real; um erudito pensa o mesmo das suas investigações, dos
seus livros e dos seus laboratórios e assim por diante. A mesma tendência
encontra-se igualmente nos menos civilizados, nos «primitivos» e nos
«selvagens». Com a diferença de que entre estes os mitos estão ainda
vivos e, por conseguinte, os impedem de se identificarem completamente
e continuamente com a não-realidade. A recitação periódica dos mitos
arrasa os muros levantados pelas ilusões da existência profana. O mito
reatualiza continuamente o Grande Tempo e deste modo projeta o
auditório num plano sobre-humano e sobre-histórico que, entre outras
coisas, permite a este auditório aproximar-se de uma Realidade
impossível de atingir no plano ida existência individual profana.
59

Mitos indianos do tempo

Certos mitos indianos ilustram de maneira particularmente feliz esta


função capital de «quebrar» o tempo individual e histórico e de atualizar o
Grande Tempo mítico. Sobre isto daremos um exemplo célebre, tirado do
Brahmavaivarta Pararia, e que o saudoso Heinrich Zimmer resumiu e
comentou no seu livro Myths and Symbols in Indian Art and Civilization2.
Este texto tem o mérito de introduzir de improviso o Grande Tempo como
instrumento de conhecimento e portanto de libertação dos laços da
Mâyâ.
Após a sua vitória sobre o dragão Vrtra, Indra decide-se a refazer e a
embelezar a residência dos deuses. Viçvakarman, artesão divino,
consegue construir, após um ano de trabalho, um magnífico palácio. Mas
Indra não se mostra satisfeito: quer aumentar a construção, torná-la mais
majestosa, sem semelhante no mundo. Esgotado pelo esforço,
Viçvakarman queixa-se a Brahma, o Deus criador. Este promete ajudá-lo e
intervém junto de Visnu, Ente Supremo de quem o próprio Brahma não
era mais do que um simples instrumento. Visnu encarrega-se de fazer
voltar Indra à realidade. Um belo dia Indra recebe no seu palácio a visita
de um rapaz andrajoso. Era o próprio Visnu, que tomara este aspeto para
humilhar o Rei dos Deuses. Sem lhe revelar de início a sua identidade,
chama-lhe «meu filho» e começa a falar-lhe dos inúmeros Indras que até
essa altura tinham povoado os inúmeros Universos. «A vida e a realeza de
um Indra — disse-lhe ele — duram 71 eons (um ciclo, um mahâyuga
compreende 12 000 anos divinos, ou sejam 4 320 000 anos); um dia e
uma noite de Brahma, equivalem a 28 existências de Indra. Mas a
existência de um Brahma medida nos ditos dias e noites de Brahma, é de
apenas 108 anos. Um Brahma segue-se a outro Brahma; um deita-se e
outro levanta-se. Não se consegue contá-los. Não tem fim o número
destes Brahmas — para já não falar nos Indras...»

2 Ver Heinrich Zimmer, Myths and Symbols in Indian Art and Civilization (edited by
Joseph Campbell, New-York, 1946, The Bollingen Series, VI), pp. 3 sq.
60

«Mas quem poderá avaliar o número dos Universos, tendo cada um


o seu Brahma e o seu Indra? Para lá da mais longínqua visão, para lá de
todo o espaço imaginável, os Universos nascem e dissipam-se
indefinidamente. Como barcos levíssimos, estes Universos flutuam na
água pura e sem fundo que forma o corpo de Visnu. De cada poro desse
corpo, um Universo sobe um instante e desintegra-se. Teríeis vós a
presunção de os contar? Credes poder enumerar os deuses de todos estes
Universos — os Universos presentes e os Universos passados?...»
Durante o discurso do rapaz, surgira uma procissão de formigas na
sala principal do palácio. Alinhada numa coluna de dois metros de largura,
,

a massa de formigas exibia-se no soalho. O rapaz vê-as, pára e depois,


cheio de espanto, desata num riso súbito. «Porque te ris?» — pergunta-
lhe Indra. — «Vi as formigas, ó Indra», desfilando num longo cortejo. Cada
uma delas tinha sido antes um Indra. Como vós, cada uma, em virtude da
sua piedade subira outrora ao nível de um Rei dos Deuses. Mas agora;
após múltiplas transmigrações, cada um se transformou em formiga. Este
exército de formigas é um exército de antigos Indras...
Depois desta revelação, Indra compreende a vaidade do seu orgulho
e das suas ambições. Chama o admirável arquiteto Viçvakarman
recompensa-o principescamente e renuncia para sempre a aumentar o
palácio dos deuses.
A intenção deste mito é transparente. A evocação vertiginosa dos
múltiplos Universos surgindo e desaparecendo do corpo de Visnu é
suficiente, em si própria, para despertar Indra: isto é, forçá-lo a
ultrapassar o horizonte limitado e estritamente condicionado da sua
«situação» de Rei dos Deuses. Seríamos tentados a acrescentar mesmo:
da sua «situação histórica»; porque acontece ser Indra o Grande Chefe
guerreiro dos deuses num dado momento histórico, numa certa etapa do
grandioso drama cósmico. Indra escuta da boca do próprio Visnu uma
história verdadeira: a verdadeira história da eterna criação e destruição
dos mundos, ao lado da qual a sua própria história, as aventuras heróicas
sem fim culminando na vitória sobre Vrtra, parecem ser, efetivamente,
«histórias falsas», isto é, acontecimentos sem significado transcendente.
A história verdadeira revela-lhe o Grande Tempo, o tempo mítico, que é a
61

verdadeira fonte de todo o ser e de todo o acontecimento cósmico. É por


ele poder ultrapassar a sua «situação» histórica-mente condicionada e
conseguir rasgar o véu ilusório criado pelo tempo profano, ou seja pela
sua própria «história» que Indra é curado do seu orgulho e da sua
ignorância; em termos cristãos, ele «salvou-se». E esta função redentora
do mito funciona não só para Indra, mas também para cada um dos
humanos que ouve a sua aventura. Transcender o tempo profano,
reencontrar o Grande Tempo mítico, equivale a uma realização da
realidade última. Realidade estritamente metafísica que não pode ser
alcançada senão através dos mitos e dos símbolos.
Este mito tem uma continuação, à qual voltaremos. Por agora
precisemos que a concepção do Tempo cíclico e infinito, apresentada de
maneira tão atraente por Visnu, é a concepção pan-indiana dos ciclos
cósmicos. A crença na criação e destruição periódicas do Universo
encontra-se já em Atharva Veda (X, 8, 39-40). Ela pertence, aliás à
Weltanschauung de todas as sociedades arcaicas.

A doutrina dos «Yugas»

A índia elaborou no entanto uma doutrina de ciclos cósmicos


ampliando em proporções cada vez mais aterradoras o número das
criações e das destruições periódicas do Universo. A unidade de medida
do ciclo mais pequeno é o yuga, a «idade». Um yuga é precedido e
seguido por uma «aurora» e um «crepúsculo» que ligam as «idades»
entre si. Um ciclo completo ou mahâyuga compõe-se de quatro «idades»
de duração diferente, aparecendo a mais longa no início do ciclo e a mais
curta no seu fim. Os nomes destes yuga são tirados das designações dos
«lances» de dados. Krta yuga (do verbo kr, «fazer, cumprir») quer dizer
«idade cumprida», ou seja, no jogo de dados, o lance vitorioso, o que tira
o dado de quatro pontos. Pois, na tradição indiana, o número quatro
simboliza a totalidade, a plenitude e a perfeição. O krta yuga é a idade
perfeita; eis porque é também chamada satya yuga, ou seja a «idade
62

real», a verdadeira, a autêntica, a perfeita. De todos os pontos de vista é a


idade do ouro, a época beatífica onde reinam justiça, felicidade,
opulência. Durante krta yuga, a ordem moral do Universo, o dharma, é
respeitado na sua integridade. E o que é mais: é respeitado
espontaneamente, sem coacção, por todos os seres pois, durante o krta
yuga, o dharma identifica-se de certo modo com a existência humana. O
homem perfeito do krta yuga encarna a norma cósmica e por conseguinte
a lei moral. A sua existência é exemplar, arquetípica. Noutras tradições
extra-indianas, esta idade de ouro equivale à época paradisíaca
primordial.
A idade seguinte, o trela yuga, a «a tríada», assim chamada por
causa do dado de três pontos, marca já uma regressão. Os humanos não
seguem senão três quartos do dharma. O trabalho, o sofrimento e a
morte são agora o apanágio dos homens. O dever já não é espontâneo,
mas deve ser aprendido. Os modos próprios das quatro castas começam a
ser alterados. Com o dvâpara yuga (a «idade» caraterizada por «dois»), só
subsiste na terra metade dodharma. Os vícios e as infelicidades
aumentam, a vida humana diminui ainda mais de duração. No kali yuga, a
«idade má», resta apenas um quarto do dharma. O termo kali significa o
dado marcado por um só ponto, portanto o lance vencido (personificado,
aliás, num mau génio); kali significa também «disputa, discórdia» e, em
geral, o pior de um grupo de seres ou de objetos. O homem e a sociedade
atingem no kali yuga, o seu ponto extremo de desintegração. Segundo o
Visnu Purâna (IV, 24), o síndroma do kali yuga reconhece-se pelo fato de
durante essa época, só a propriedade conferir categoria social: a riqueza
torna-se a única fonte das virtudes, a paixão e a luxúria os únicos laços
entre os esposos, a falsidade e a mentira a única condição do êXito na
vida, a sexualidade a única via de prazer e a religião exterior, unicamente
ritualista, é confundida com a espiritualidade. Depois de vários milénios,
nós vivemos; bem entendido no kali yuga.
Os algarismos 4, 3, 2, e 1 denunciam simultaneamente a duração
decrescente de cada yuga e a diminuição progressiva do dharma que
resta, à qual corresponde, aliás, uma diminuição da duração da vida
humana, acompanhada, como vimos, por um desleixo progressivo dos
63

costumes e por um declínio contínuo da inteligência. Certa escola indiana,


como o Pâncarâtra, associa, aliás, à teoria dos ciclos uma doutrina da
«queda do conhecimento» (»lema bramça).
Pode calcular-se por diferentes processos a duração relativa de cada
um destes quatro yuga: tudo depende do valor atribuído aos anos, isto é,
se tratamos com anos humanos, ou anos «divinos» — cada um destes
compreende 360 dos primeiros. Contentar-nos-emos com alguns
exemplos. De acordo com certas fontes (Manu, I, 69 sq.; Mahâbhârata, III,
12. 826), o krta yuga dura 4 000 anos, mais 400 anos de «aurora» e outros
tantos de «crepúsculo»; vem em seguida tretâ yuga, de 3 000 anos,
dvâparade 2 000 anos é kali yuga de 1000 anos (mais as «auroras» e os
«crepúsculos» correspondentes, bem entendido). Um ciclo completo, um
mahâyuga, compreende por conseguinte 12 000 anos. A passagem de um
yuga a outro verifica-se ao longo de um «crepúsculo» que marca um
decrescendo mesmo no interior de cada yuga, terminando cada um deles
por uma etapa de trevas. À medida que nos aproXimamos do fim do ciclo,
isto é, do quarto e último yuga, as «trevas» adensam-se. O último yugà,
aquele em que nos encontramos atualmente, é, aliás, considerado como a
«idade das trevas» por excelência pois, por um jogo de palavras,
relacionaram-no com a deusa Kâli, quer dizer «a Negra». Kâli é um dos
muitos nomes da Grande Deusa, da Çakti, mulher do deus Çiva. Não
deiXou de se relacionar este nome da Grande Deusa com o termo
sânscrito kâla, «tempo»: Kâli seria não somente «a Negra», mas também
a personificação do Tempo3. Haja ou não razão para esta etimologia, a
ligação entre kâla, o «Tempo», a deusa Kâli e kali yuga é autorizada no
plano da estrutura: o Tempo é «negro» porque irracional, duro, sem
piedade, e Kâli, como todas as outras Grandes Deusas, é senhora do
Tempo, dos destinos que forja e cumpre.
Um ciclo completo, um mahâyuga, termina por uma «dissolução»,
um pralaya, que se repete de maneira mais radical (mahâpralaya, a
«Grande Dissolução» no fim do milésimo ciclo. Pois a especulação ulterior

3 Cf. J. Przyluski, From the Great Goddess to Kâla (Indian Historical Quarterly, 1938,
pp. 267-74).
64

ampliou e reproduziu até ao infinito o ritmo primordial: «criação-


destruição-criação», projetando a unidade de medida, o yuga, nos ciclos
sucessivamente mais vastos. Os 12 000 anos de um mahâyuga foram
considerados como «anos divinos», durando cada um deles 360 anos, o
que dá um total de 4 320 000 anos para um único ciclo cósmico_ Um
milhar de mahâyuga semelhantes constitui um kalpa («forma»); 14 kalpa
perfazem um manvantâra. Chama-se-lhe assim porque se parte do
princípio que cada manvantâra é regido por um Manu, o Antepassado-Rei
mítico.) Um kalpa equivale a um dia da vida de Brahma; um outro kalpa a
uma noite. Cem destes «anos» de Brahma, ou seja 311 000 biliões de
anos humanos, constituem a vida do Deus. Mas esta duração considerável
da vida de Brahma não chega sequer para esgotar o Tempo, pois os
deuses não são eternos e as criações e destruições cósmicas sucedem-se
ad infinitum.
O que convém fixar desta avalanche de números, é o caráter cíclico
do tempo cósmico. De fato, assistimos à repetição infinita do mesmo
fenómeno (criação – destruição - nova criação) pressentido em cada yuga
(«aurora» e «crepúsculo») mas completamente realizado por um
mahâyuga. A vida de Brahma compreende assim 2 560 000 destes
mahâyuga, retomando cada um as mesmas etapas (krta, tretâ dvâpara,
kali) e terminando num pralaya, num ragnarõk (a destruição «definitiva»,
no sentido de dissolução total do Ovo cósmico, efetuando-se no fim de
cada kalpa quando do mahâpralaya. Precisemos que mahâpralaya
implica a regressão de todas as «formas» e de todos os modos de
existência na prakr ti original indiferenciada. No plano mítico subsiste fora
do Oceano primordial, na superfície do qual vive o Grande Deus, Visnu).
Além da depreciação metafísica da vida humana como história4 que,
em proporção e pelo simples fato da sua duração, provoca uma erosão de
todas as formas, esgotando a sua substância ontológica e além do mito da
perfeição dos princípios, tradição universal que também aqui
encontramos (mito do paraíso que se foi perdendo gradualmente, pelo
simples fato de se realizar, tomar forma e durar), o que merece prender a

4 Sobre tudo ísto ver Le Mythe de l´Eternel Retour, pp. 170 sq. e passim.
65

nossa atenção nesta orgia de números é a eterna repetição do ritmo


fundamental do Cosmos: a sua destruição e a sua recriação periódicas.
Deste ciclo sem princípio nem fim, que é manifestação cósmica da mâyâ,
o homem não pode libertar-se senão através de um ato de liberdade
espiritual (pois todas as soluções soteriológicas indianas se reduzem à
libertação prévia da ilusão cósmica e à liberdade espiritual).
As duas grandes heterodoxias, o budismo e o jainismo, aceitam nas
suas linhas gerais a mesma doutrina pan-indiana do tempo cíclico, e
comparam-no a uma roda de doze raios (esta imagem é já utilizada nos
textos védicos cf. Atharva Veda, X, 8, 4, Rig Veda, L, 164, 115, etc.). O
budismo adopta como unidade de medida dos ciclos cósmicos o kalpa
(pâli: kappa), dividido num número variável do que nos textos é
designado por «incalculáveis» (asamkhyeya; pâli asankheyya). As fontes
pâlis falam em geral de quatro asankheyya e de cem mil kappa (cf. por
exemplo Jâtaka, I, p. 2). Na literatura mâhâyânica, o número de
«incalculáveis» varia entre 3, 7 e 33, e estes são relacionados com a
carreira de Boddhisattva nos diferentes Cosmos. A progressiva decadência
do homem é marcada, na tradição budista, por uma diminuição contínua
da duração da vida humana. Assim, segundo Dighanikâya, II, 2-7, na
época do primeiro Buda, Vipassi, que fez a sua aparição há 91 kappa, a
duração da vida humana era de 80 000 anos; na do segundo Buda, Sikhi
(há 31 kappa), de 70 000 anos, e assim por diante. O sétimo Buda,
Gautama, aparece quando a vida humana não passa dos 100 anos, isto é,
está reduzida ao seu limite extremo. (Voltaremos a encontrar o mesmo
motivo nos apocalipses iranianos). Todavia, para o budismo, como para a
especulação indiana no seu conjunto, o tempo é ilimitado; e o
Boddhisattva encarnará, a fim de anunciar a boa nova da salvação a todos
os seres, in aeternum. A única possibilidade de sair do tempo, de quebrar
o círculo de ferro das existências, é a abolição da condição humana e a
obtenção do Nirvâna. Aliás todos estes «incalculáveis» e todos estes éons
sem número têm também uma função soteriológica: a simples
contemplação do seu panorama aterroriza o homem e força-o a
«realizar» que deve recomeçar biliões de vezes essa mesma existência
evanescente e suportar os mesmos sofrimentos sem fim, o que provoca o
66

exacerbamento da sua vontade de evasão, isto é, obriga-o a transcender


definitivamente a sua condição de «existente».

Tempo cósmico e história

Detenhamo-nos um pouco neste ponto preciso: a visão do Tempo


infinito, do ciclo sem fim das criações e das destruições dos Universos, em
última instância o mito do eterno regresso, valorizado como «instrumento
de conhecimento» e meio de libertação. Na perspetiva do Grande Tempo,
toda a existência é precária, evanescente, ilusória. Consideradas no plano
dos ritmos cósmicos maiores, isto é no plano dos mahâyuga dos kalpa,
dos manvantâra, não só a existência humana e a própria história — com
todos os seus Impérios, Dinastias, revoluções e contra-revoluções sem
número — se revelam efémeras, de certo modo irreais, mas o próprio
Universo está vazio de realidade porque, como vimos, os Universos
nascem continuamente dos inúmeros poros do corpo de Visnu e
desapareceu tão depressa como uma bolha de ar que se desfaz à
superfície das águas. A existência no Tempo é ontologicamente uma
inexistência, uma irrealidade. E. neste sentido que se deve compreender a
afirmação do idealismo indiano, e, em primeiro lugar, do Vedânta, de que
o mundo é ilusório, que carece de realidade: carece de realidade porque a
sua duração é limitada, porque na perspetiva do eterno regresso, ela é
uma não-duração. Esta mesa é irreal, não porque não exista no sentido
próprio do termo, porque seria uma ilusão dos sentidos; pois ela não é
uma ilusão: neste momento preciso ela existe — mas esta mesa é ilusória
porque já não existirá daqui a dez mil ou cem mil anos. O mundo
histórico, as sociedades e as civilizações penosamente construídas pelo
esforço de milhares de gerações, tudo isto é ilusório porque, no plano dos
ritmos cósmicos, o mundo histórico dura o espaço de um instante. O
vedantino, o budista, o rsi, o yogi, o sâdhu, etc., ao tirarem as conclusões
lógicas da lição do Tempo infinito e do Eterno Regresso, renunciam ao
mundo e buscam a Realidade absoluta; pois só o conhecimento do
67

Absoluto os ajuda a libertar-se da ilusão, a rasgar o véu da Mâyâ.


Mas a renúncia ao mundo não é a única consequência que um
Indiano tem o direito de tirar da descoberta do Tempo cíclico infinito.
Como hoje se começa a compreender melhor, a Índia não conheceu só a
negação e a recusa total do mundo. Partindo ainda do dogma da
irrealidade fundamental do Cosmos, a espiritualidade indiana elaborou
igualmente urna via que não conduz necessariamente à ascese e ao
abandono do mundo. É, por exemplo, a via que prega Krsna na Bhagavad-
Gîtâ5: a phalatrsnavairâgya, quer dizer, «a renúncia ao fruto das suas
acções», aos lucros que se podem tirar das respetivas acções, mas não à
acção em si. É a via que traz à luz a continuação do mito de Visnu e de
Indra, cuja aventura foi contada mais atrás.
De fato, humilhado pela revelação de Visnu, Indra renuncia à sua
vocação de deus guerreiro e retira-se para as montanhas para aí se
entregar ao mais terrível ascetismo. Noutros termos, apressa-se a tirar o
que lhe parece ser a única conclusão lógica da descoberta da irrealidade e
da vaidade do mundo. Encontra-se na mesma situação do príncipe
Siddhârtha imediatamente após ter abandonado o seu palácio e esposas
em Kapilavastu e se ter empenhado nas suas penosas mortificações. Mas
podemos perguntar-nos se um Rei dos Deuses, um esposo, tinha o direito
de tirar tais conclusões de uma revelação de ordem metafísica, se a sua
renúncia e a sua ascese não colocavam em perigo o equilíbrio do mundo.
Efetivamente, pouco tempo depois, a rainha Çaci, sua mulher, desolada
por ter sido abandonada, implora a ajuda do seu padre-conselheiro,
Brhaspati. Tomando-lhe a mão, Brhaspati aproxima-se de Indra e fala-lhe
demoradamente, não só das virtudes da vida contemplativa, mas também
da importância da vida ativa, da vida que encontra a sua plenitude neste
mundo. Indra recebe assim uma segunda revelação: compreende que
cada um deve seguir a sua própria via e realizar a sua vocação, isto é, em
última instância, cumprir o seu dever. Mas como a sua vocação e o seu
dever consistiam em continuar a ser Indra, retoma a sua identidade e

5 Cf. por exemplo, Bhagavad-Gitâ, IV, 20; ver nosso livro Techniques du Yoga
(Paris, Gallimard, 1948), pp. 141 sq.
68

prossegue as suas aventuras heróicas, sem orgulho e sem fatuidade, pois


compreendeu a vaidade de toda a «situação», fosse ela a de um Rei dos
Deuses...
Esta continuação do mito restabelece o equilíbrio: o importante nem
sempre é renunciar à sua situação histórica esforçando-se em vão por
atingir o Ser universal mas sim ter constantemente no espírito as
perspetivas do Grande Tempo, continuando a cumprir o seu dever no
tempo histórico. É exatamente a lição dada, na Bhagavad-Gîtâ, por Krsna
a Arjuna. Na Índia, tal como um pouco por todo o mundo arcaico, esta
abertura para o Grande Tempo, obtida pela recitação periódica dos mitos,
permite o prolongamento indefinido de uma certa ordem, ,metafísica,
ética e social simultaneamente, ordem que não leva de modo algum à
idolatria da História; porque a perspetiva do Tempo mítico torna ilusório
qualquer fragmento do tempo histórico.
Como acabamos de ver, o mito do Tempo cíclico e infinito,
destruindo as ilusões urdidas pelos ritmos menores do Tempo, isto é, pelo
tempo histórico, revela-nos simultaneamente a precaridade e, finalmente,
a irrealidade ontológica do Universo, e a via da nossa libertação. De fato
podemos salvar-nos dos laços da Mâyâ, quer pela via contemplativa,
renunciando ao mundo e praticando o ascetismo e as técnicas místicas
aferentes — quer por uma via ativa, continuando no mundo, mas sem
gozar «do fruto das respetivas acções» (phalatrsnavairâgya). Tanto num
caso como noutro, o importante é não crer unicamente na realidade das
formas que nascem e se desenvolvem no Tempo, nunca deve perder-se
de vista o fato de tais formas não serem «verdadeiras» senão no seu
próprio plano de referência, mas que, ontologicamente, são desprovidas
de substância. Como dizíamos mais acima, o Tempo pode tornar-se um
instrumento de conhecimento, no sentido de nos bastar projetar uma
coisa ou um ser plano do Tempo cósmico para nos apercebermos da sua
irrealidade. A função gnoseológica e soteriológica de tal mudança de
perspetiva obtida pela abertura para os ritmos maiores do tempo, é
admiravelmente trazida à luz por certos mitos relacionados com a Mâyâ
de Visnu.
Eis um destes mitos, na variante moderna e popular contada por Sri
69

Ramakrishna6. Um asceta ilustre chamado Nârada, tendo obtido a graça


de Visnu pelas suas inúmeras austeridades, vê aparecer-lhe o deus, o qual
lhe promete cumprir qualquer desejo por ele emitido. «Mostra-me a força
mágica da tua mâyâ» — pede-lhe Nâranda. Visnu acede e faz-lhe sinal
para que o siga. Pouco tempo depois, tendo chegado a um caminho
deserto e ensolarado, sentindo sede, Visnu pede-lhe para andar umas
centenas de metros até uma pequena aldeia que se avista e trazer-lhe
água. Nârada precipita-se e bate à porta da primeira casa que encontra.
Uma bela rapariga abre-lhe a porta. O asceta olha-a demoradamente e
esquece o motivo que ali o levou. Entra na casa e os pais da jovem
recebem-no com o respeito devido a um santo. O tempo passa. Nârada
acaba por casar com a rapariga e conhece as alegrias do casamento e a
duração de uma vida de camponês. Passam-se doze anos: Nârada tem
agora três filhos e após a morte do sogro torna-se proprietário da quinta.
Mas no fim do décimo segundo ano, chuvas torrenciais acabam por
inundar a região. Numa só noite os rebanhos perecem afogados e a casa
desmorona-se. Segurando com uma das mãos a mulher, com a outra dois
filhos e levando o mais pequeno ao ombro, Nârada caminha com
dificuldade através da água. Mas o fardo é por demais pesado.
Escorregando, o pequeno cai na água. Nârada larga os outros dois e faz
tudo para o encontrar. Demasiado tarde: a corrente levou-o para longe.
Enquanto procurou o mais pequeno os outros desapareceram tragados
pelas águas; pouco tempo depois a mulher tem a mesma sorte. O próprio
Nârada cai e a corrente arrasta-o, inconsciente como um pedaço de
madeira. Quando desperta atirado sobre uma rocha, lembra-se das suas
infelicidades e rompe em soluços. Mas, de repente, ouve uma voz
familiar: «Filho, onde está a água que devias trazer-me? Espero-te há mais
de meia-hora!» Nârada volta a cabeça e olha. Em lugar da cheia que tudo
destruíra, vê campos desertos, brilhando ao sol. «Compreendes agora o
segredo do meu mâyâ?» — pergunta-lhe o deus.
Evidentemente que Nârada não podia afirmar que tinha

6 The Sayings of Sri Ramakrishna (edição de Madras, 1938), Book IV, chapter 22.
Ver outra versão deste mito segundo a Matsya Purâna, contada por H. Zimmer,
Myths and Symbols, pp. 27 sq.
70

compreendido tudo; mas aprendera uma coisa essencial: sabia agora que
a Mâyâ cósmica de Visnu se manifesta através do tempo.

O «terror do tempo»

O mito do tempo cíclico, isto é, dos ciclos cósmicos que se repetem


até ao infinito, não é uma inovação da especulação indiana. Como
mostrámos7, as sociedades tradicionais — cujas representações do Tempo
são de tão difícil apreensão, justamente porque elas se exprimem por
símbolos e rituais cujo sentido profundo nos é por vezes inacessível — as
sociedades tradicionais imaginam a existência temporal, não somente
como uma repitação ad infinitum de certos arquétipos e gestos
exemplares, mas também como um eterno recomeço. De fato, tanto
simbólica como ritualmente o mundo é recriado periodicamente. Repete-
se, pelo menos uma vez por ano, a cosmogonia — e o mito cosmogónico
serve igualmente de modelo a um grande número de acções: o
casamento, por exemplo, ou as curas.
Qual é o significado de todos estes mitos e de todos estes ritos? É
que o mundo nasce, desgasta-se, morre e nasce de novo a um ritmo
muito precipitado. O caos e o ato cosmogónico que põe fim ao caos com
uma nova criação são reatualizados periodicamente. O ano — ou aquilo
que se compreende por esse termo — equivale à criação, duração e
destruição de um mundo, de um Cosmos. É muito provável que esta
concepção da criação e destruição periódicas do mundo, se bem que ela
tenha sido reforçada pelo espetáculo da morte e a ressurreição periódica
da vegetação, nem por isso seja uma criação de sociedades agrícolas.
Encontramo-la nos mitos das sociedades pré-agrícolas e muito ,

provavelmente é uma concepção de estrutura lunar. A lua, efetivamente


mede as mais sensíveis periodicidades e foram os termos relativos à lua

7 Le Mythe de l´Eternel Retour, passim.


71

que serviram em primeiro lugar para exprimir a medida do tempo. Os


ritmos lunares marcam uma «criação» (a lua nova) seguida de um
aumento (a lua cheia), de uma diminuição e de uma «morte» (as três
noites sem lua). Foi muito possivelmente a imagem deste eterno
nascimento e morte da lua que ajudou a cristalizar as intuições dos
primeiros homens sobre a periodicidade da Vida e da Morte, dando mais
tarde origem ao mito da criação e da destruição periódica do mundo. Os
mais antigos mitos do dilúvio mostram estrutura e origem lunares. Após
cada dilúvio, um Antepassado mítico faz nascer uma nova humanidade.
Ora, acontece na maior parte das vezes que este antepassado mítico
tome o aspeto de um animal lunar. (Em etnologia designam-se assim
aqueles animais cuja vida mostra uma certa alternância e, em primeiro
lugar aparições e desaparições 'periódicas).
Para o «primitivo», por conseguinte, o Tempo é cíclico, o mundo é
periodicamente criado e destruído, e o simbolismo lunar de «nascimento-
morte-renascimento» é manifesto num grande número de mitos e de
ritos. Foi a partir de tal herança imemorial que se elaborou a doutrina
pan-indiana das idades do mundo e dos ciclos cósmicos. Bem entendido, a
imagem arquetípica do eterno nascimento, morte e ressurreição lunar, foi
sensivelmente modificada pelo pensamento indiano. Quanto ao aspeto
astronómico dos yuga é provável que tenha sido influenciado pelas
especulações cosmológicas e astrológicas dos babilónios. Mas estas
eventuais influências históricas da Mesopotâmia sobre a índia não nos
farão deter aqui. Interessa-nos evidenciar o seguinte fato: que, ao
aumentar cada vez mais audaciosamente a duração e o número dos ciclos
cósmicos, o Indiano tinha em vista uma finalidade sotereológica.
Assombrado com o número sem fim de nascimentos e de renascimentos
dos Universos, que se acompanhava de um número igualmente
considerável de nascimentos e de renascimentos humanos regidos pela
lei do karma, o Indiano era de certo modo obrigado a procurar uma saída
para esta roda cósmica e para estas transmigrações infinitas. As doutrinas
e as técnicas místicas que têm em vista a libertação do homem da dor e
do ciclo infernal «vida-morte-renascimento», apropriam-se das imagens
míticas dos ciclos cósmicos, amplificam-nas e utilizam-nas para os seus
72

fins de proselitismo. O eterno amor equivale, para os Indianos da época


pós-védica, isto é, para os Indianos que tinham descoberto o «sofrimento
da existência», ao ciclo infinito da transmigração regido pelo karma. Este
mundo, ilusório e passageiro, o mundo do sâmsara, o mundo da dor e da
ignorância, é o mundo que se processa sob o signo do Tempo. A
libertação deste mundoe a obtenção da salvação equivalem a uma
libertação do Tempo cósmico.

Simbolismo indiano da abolição do tempo

Em sânscrito, o termo latia é empregado tanto no sentido de


períodos de tempo, de durações infinitas, como no de um certo momento
,

— tal como nas línguas europeias (por ex.: «What time is now?») Nos
textos mais antigos, sublinha-se o caráter temporal de todos os universos
e de todas as existências possíveis: «O Tempo engendrou tudo o que foi e
o que será» (Atharva Veda, XIX, 54, 3). Nos Upanisads, Brahman, o
Espírito Universal,
Ser absoluto é concebido simultaneamente como transcendendo o
Tempo e como fonte e fundamento de tudo o que se manifesta no
Tempo: «Senhor do que foi e do que será, ele é, ao mesmo tempo, hoje e
amanhã» (Kena Up. IV, 13). E Krisna, manifestando-se como deus cósmico
a Arjuna, declara: «Eu sou o Tempo, que ao avançar destrói o mundo»
(Bhagavad-Gîtâ, XI, 32).
Como se sabe, os Upanisads distinguem dois aspetos de Brahman, do
Ser universal: «o corporal e o incorporai, o mortal e o imortal, o fixo
(sthita) e o móvel, etc.» (Brhadâranyaka-Upanisad, II 3,1). O que equivale
a dizer que tanto o Universo nos seus aspetos manifesto e não-manifesto,
como o Espírito nas suas modalidades de condicionado e de não
condicionado, repousam no único, rio Brahman que cumula todas as
polaridades e todas as oposições. Ora, a Madri Upanisad (VII, 11,8), ao
precisar esta bipolaridade do Ser universal sobre o plano do Tempo,
73

distingue as «duas formas» (dve rupe) de Brahman (isto é os aspetos das


«duas naturezas» [dvaitibhâva] de uma só essência [tad ekam], como
Tempo e Sem-Tempo (kâlaç-câkalaç-ca). Por outras palavras, tanto o
Tempo como a Eternidade, são os dois aspetos do mesmo Princípio: no
Brahman, o nunc fluens e o nunc stans, coincidem. A Maitri Upanisad
continua: «O que precede o Sol é Sem-Tempo (akâla) e não-dividido
(akala); mas o que começa com o Sol é o Tempo que tem partes (sakala) e
a sua forma é o Ano...»
A expressão «o que precede o Sol», poderia ser compreendida tanto
no plano cosmológico, como referindo-se à época que precedia a Criação
— pois nos intervalos entre os mahâyuga ou os kalpa, durante as Grandes
Noites Cósmicas, a duração deixa de existir — mas aplica-se sobretudo no
plano metafísico e soteriológico, ou seja: ela indica a situação paradoxal
daquele que obtém a iluminação, que se torna um jivanmukta, um
«libertado em vida», e por este mesmo ato ultrapassa o Tempo, no
sentido de não participai'. já na sua duração. De fato a Chândogya-
Upanisad (III, 11) afirma que para o Sábio, para o iluminado, o Sol
permanece imóvel. «Mas, após ter surgido no zénite, ele [o Sol] não se
erguerá nem se porá mais. Manter-se-á sozinho no Centro (ekala eva
madhyhe sthâtâ). Daí estes versos: «Lá [quer dizer no mundo
transcendental do brahman] ele nunca se pôs e nunca se ergueu...» Não
nasce nem se pôe; «está no céu de uma vez para sempre, para aquele que
conhece a doutrina do brahman.»
Trata-se aqui, bem entendido, de uma imagem sensível da
transcendência: no zénite quer dizer; no topo da abóbada celeste, no
«Centro do mundo», sítio onde são possíveis a ruptura de níveis e a
comunicação entre as três zonas cósmicas, o Sol (= a Tempo) permanece
imóvel para «aquele que sabe»; o nunc fluens transforma-se
paradoxalmente em nunc stans. A iluminação, a compreensão realiza o
milagre da saída do Tempo. O instante paradoxal da iluminação é
comparado nos textos védicos upanisadicos ao relâmpago. Brahman
compreende-se subitamente como um relâmpago (Kena Up., IV, 4,5) «No
relâmpago, a Verdade> (Kausitaki Up., IV, 2. Sabe-se que a mesma
,

imagem: relâmpago-iluminação espiritual, se encontra na metafísica


74

gregae e na mística cristã).


Detenhamo-nos um instante nesta imagem mítica: o zénite — que é
simultaneamente o Topo do Mundo e o «Centro» por excelência, o ponto
infinitesimal por onde passa o Eixo Cósmico (Axis Mundi). Mostrámos no
capítulo precedente, a importância deste simbolismo para o pensamento
arcaico8. Um «Centro» representa um ponto ideal, pertencente não ao
espaço profano, geométrico, mas ao espaço sagrado e no qual se pode
realizar a comunhão com o céu ou o Inferno; noutros termos, um
«Centro» é o lugar paradoxal da ruptura dos níveis, o ponto onde o
mundo sensível pode ser transcendido. Mas pelo próprio fato de
transcender-se o Universo, o mundo criado, transcende-se o tempo, a
duração, e obtém-se o êxtase, o eterno presente intemporal.
A solidariedade entre o ato de transcender o espaço e o de
transcender o fluxo temporal está muito bem esclarecida por um mito
relacionado com a Natividade de Buda. O Majjhima-Nikâya (III, p. 123)
conta que «mal nasce», Boddhisattva pousa os pés bem assentes no chão
e voltado para o Norte, faz sete passadas, abrigado por um guarda-sol
branco. Considera todas as regiões em volta e diz com voz taurina: «Sou o
mais alto do mundo, sou o melhor do mundo; este é o meu último
nascimento; doravante não haverá para mim outra nova existência». Este
traço mítico da natividade de Buda é retomado, com algumas variantes,
na literatura ulterior dos Nikâya-Agama dos Vinaya e nas biografias de
Buda9. Os sapta padâni, os sete passos que levam Buda ao extremo do
mundo, foram mesmo representados na arte e iconografia budistas. O
simbolismo dos «Sete Passos» é bastante transparente10. A expressão
«sou o mais alto do mundo» (aggo'ham asmi lokassa) significa a
transcendência espacial de Buda. De fato ele atingiu «o topo do mundo»

8 CL mais atrás pp. 52 sq.


9 Numa extensa nota da sua tradução de Mandprajñâpâramitaçastra, de
Nâgârjuna, M. Etienne Lamotte reuniu e agrupou os textos mais importantes; ef.
Le Traité de La Grande Verta de Sagesse de Nâgârjuna, t. I (Louvain, 1944), pp. 6
sq.
10 Cl. Mircea Eliade, Les Sept Pas de Boudha (Pro Regno pro Sane orado, Hommage
Vau der Leeuw, Nijkerk, 1950, pp. 169-175).
75

(lokkage) atravessando os sete andares cósmicos a que correspondem,


como se sabe, os sete céus planetários. Mas, por este mesmo fato ele
transcende igualmente o tempo pois, na cosmologia indiana, o ponto no
qual começou a criação é o topo, e por conseguinte ele é também o lugar
mais «antigo». Eis porque Buda exclama: «Eu sou o mais Velho do
mundo» (jettho'ham asmi lokassa). Porque, ao atingir o cimo cósmico,
Buda torna-se contemporâneo do começo do mundo. Magicamente ele
aboliu o tempo e a criação, e encontra-se no instante temporal que
precede a cosmogonia. A irreversibilidade do tempo cósmico, lei terrível
para quantos vivem na ilusão, deixa de contar para Buda. Para ele o
tempo é reversível e pode ser mesmo conhecido por antecipação: pois
Buda não só conhece o passado mas também o futuro. O que nos
interessa sublinhar é que Buda não só se torna capaz de abolir o tempo,
mas pode ainda percorrê-lo no sentido contrário (patiloman, skr,
pratiloman, «a contra-pêlo»), e isto será verdadeiro do mesmo modo para
os monges budistas e para os yogis que, antes de obterem o seu Nirvâna
ou o seu samâdhi, procedem a um «retrocesso» (volta atrás) que lhes
permite conhecer as existências anteriores.

O «ovo quebrado»

A par desta imagem de transcender o espaço e o tempo pela


travessia dos sete níveis cósmicos que projeta o Buda no «Centro» do
mundo e ao mesmo tempo o faz reintegrar o momento atemporal que
precede a criação do mundo, existe uma outra imagem que reúne, de
modo feliz, o simbolismo do espaço ao do tempo. Numa monografia
notável, Paul Mus chamou a atenção para o texto do Suttavibhang:11
«Quando uma galinha pôs ovos — diz Buda — e se deitou sobre eles, os

11 Suttavibhanga, Pârâjika 1, 1, 4; cf. H. Oldenberg, Le Boudha (trad. A. Foucher),


pp. 364-365; Paul Mus, La Notion de temps reversible dans la mythologie
boudhique (excerto do Annuaire de l'École pratique des flautes Études, Setion
des Sciences Religieuses, 1938-1939, Melun, 1939), p. 13.
76

manteve quentes e os chocou convenientemente, quando depois um dos


pintainhos, o primeiro, com a ponta da unha ou com o bico quebra a
casca e sai perfeito do ovo, o que se chamará a este pintainho: o mais
velho ou o mais novo? — Chamar-se-lhe-á o mais velho, venerável
Gotama, pois ele é o mais velho de todos. — Do mesmo modo ó brâmane,
entre os seres que vivem na ignorância e estão como que fechados e
aprisionados num ovo, eu quebrei a casca da ignorância, e só eu no
mundo obtive a bem-aventurança, a universal dignidade de Buda. Assim
eu sou, ó brâmane, o mais velho, o mais nobre entre todos os seres.
Como diz Paul Mus, «a imaginaria» (conjunto de imagens) de
enganadora simplicidade. Para a entender devidamente é necessário
recordar que a iniciação bramânica era considerada como um segundo
nascimento. O termo mais corrente dos iniciados era dvija: «nascido duas
vezes, twice-born». Ora as aves, as serpentes, etc. recebiam também este
nome, porque nascidos de um ovo. A postura deste era assimilada ao
«primeiro nascimento», ou seja, ao nascimento sobrenatural da iniciação.
Além disso, os códigos bramânicos não deixam de estabelecer o princípio
de que o iniciado é socialmente o superior, o mais velho, em relação ao
não-iniciado sejam quais forem as suas relações de idade física ou de
parentesco» (Mus, op. cit., pp. 13-14).
Mas ainda há mais. «Como poderia descrever-se mesmo
metaforicamente, o nascimento sobrenatural de Buda, igualando-o à
ruptura do ovo onde está fechado, em potência o «Primeiro-nascido»
(jyeshta) do Universo, sem que venha naturalmente ao pensamento dos
auditores, o «ovo cósmico» das tradições bramânicas de onde sai, na
aurora dos tempos, o Deus primordial da criação, diversamente
denominado Embrião de Ouro (Hirannyagarbha), o Pai ou o Mestre dos
Criadores (Prajâpati), Agni (Deus do Fogo ritual) ou o brahman princípio
sacrificial, «oração», texto dos hinos, etc., divinizado?» (Mus. p. 14). Ora,
nós sabemos que o «ovo cósmico» é «formalmente identificado com o
Ano, expressão simbólica do Tempo cósmico: o samsâra, outra imagem
da duração cíclica, reduzida às suas causas corresponde portanto
exatamente ao ovo mítico» (ibib., p. 14, nota 1).
Assim, a acção de transcender o Tempo é formulada por um
77

simbolismo simultaneamente cosmológico e espacial. Quebrar o


envólucro do ovo equivale, na parábola de Buda a quebrar o samsâra, a
roda das existências, isto é, a transcender tanto o espaço cósmico como o
Tempo cíclico. Neste caso também Buda utiliza imagens análogas àquelas
a que nos tinham habituado os Vedas e os Upanisads. O sol imóvel no
zénite da Chândogya Upanisad é um símbolo espacial que exprime o ato
paradoxal da evasão do Cosmos com a mesma força que o exprime a
imagem budista do ovo quebrado. Teremos ocasião de voltar a encontrar
ainda tais imagens arquetípicas utilizadas para simbolizar a
transcendência, apresentando certos aspetos das práticas yogico-
tântricas.

A filosofia do tempo no budismo

O simbolismo dos Sete Passos de Buda e do Ovo Cósmico, implica a


reversibilidade do tempo, e teremos de voltar a este processo paradoxal.
Mas é necessário que apresentemos previamente as linhas gerais da
filosofia do Tempo elaborada pelo budismo, e especialmente pelo
budismo mahâyânico12. Para os budistas também o tempo é constituído
por um fluxo contínuo (samtâna) e até pelo fato da fluidez do tempo,
toda a «forma» que se manifesta no tempo é não só precária, mas ainda
ontologicamente irreal. Os filósofos do Mahâyâna falaram
abundantemente sobre o que poderia chamar-se a instantaneidade do
tempo, isto é a sua fluidez e, em última instância, a não-realidade do
instante presente que se transforma continuamente em passado, em não-
ser. Para o filósofo budista, escreve, Stcherbatzky, «a existência e a não-

12 Encontrar-se-ão os elementos nos dois volumes de Th. Stcherbatsky, Budhist


Logic (Leningrad, 1930-1932, «Bibliotheca Budhica») e na rica monografia de
Louis de la Vallée-Poussin, Documents d'Abhidharma: la Controverse du Temps
(Mélanges chinois et boudhiques, V, Bruxelles, 1937, pp. 1-158). Ver também S.
Schayer, Contributions to the problem of Time in Indian Philosophy (Cracóvia,
1938) e Ananda K. Coomaraswamy, Time and Eternity (Ascona, 1947), pp. 30 sq.
78

existência não são as diferentes aparências de uma coisa, mas a própria


coisa» conforme diz Çantaraksita, «a natureza de tudo o que existe é a
sua própria instantaneidade (feita de um número considerável) de stases
e de destruições» (Tattvasangraha, p. 137; Stcherbatzky, Budhist Logic, I,
pp. 95 sq.). A destruição a que alude Çantaraksita não é a destruição
empírica, por exemplo de uma jarra que se quebra quando cai no chão,
mas a anulação intrínseca e contínua de todo o existente que se encontra
implicado no tempo. Por isso Vasubandhu escreve: «Porque a anulação é
instantânea e ininterrupta, não existe movimento (real)»13. O movimento,
e, por conseguinte o próprio tempo, a duração, é um postulado
pragmático tal como o Ego individual é, para o budista, um postulado
pragmático; mas como conceito, o movimento não corresponde a uma
realidade exterior, pois ele é «qualquer coisa» de construído por nós
próprios. A fluidez e a instantaneidade do mundo sensível, a sua contínua
anulação, é a fórmula mahâyânica por excelência para exprimir a
irrealidade do mundo temporal. Tiraram-se por vezes conclusões acerca
da concepção mahâyânica do tempo: que, para os filósofos do Grande
Veículo, o movimento é discontínuo, que «o movimento é constituído por
uma série de imobilidades» (Stcherbatzky). Mas como o nota, a justo
título, Coomaraswamy (op. cit., p. 60), uma linha não é feita de uma série
infinita de pontos, mas apresenta-se como um contínuo. Vasubandhu
disse: «o curso dos momentos é ininterrupto» (nirantara-ksana-utpâda).
O termo samtâna, que Stcherbatzky traduz por «série», etimologicamente
significa «continuum».
Tudo isto não constitui novidade. Os lógicos e os metafísicos do
Grande Veículo não fizeram outra coisa senão levar aos limites extremos
as intuições pan-indianas sobre a irrealidade ontológica de tudo o que
existe no Tempo. A fluidez oculta a irrealidade. A única esperança e a
única via de salvação é Buda que revelou o Dharma (a realidade absoluta)
e mostrou o caminho do Nirvâna. Os discursos de Buda retomam
infatigavelmente o tema central da sua mensagem: tudo o que é

13 Abhidharmakoça, IV, 1, citado por Coomaraswamy, op. cit., p. 58. Ver a


tradução eomentada de Louis de la Vallée-Poussin, L'Abhidharmakoça de
Vasubandhu, 5 vol. (Paris, 1923-1931).
79

condicionado é irreal; mas nunca se esquece de acrescentar: «isto não


sou eu» (na me so attâ). Pois ele, Buda, é idêntico ao Dharma, e por
conseguinte ele é «simples, não composto» (asamkhata) e «atemporal,
sem-tempo» (akâliko, como diz o Anguttara Nikâya, IV, 359-406). Muitas
vezes Buda lembra que «transcende os éons» (kappâtito... vipumatto),
que ele «não é homem dos éons» (akkapiyo), ou seja que não se encontra
realmente comprometido no fluxo cíclico do tempo, que ultrapassou o
Tempo cósmico14. Para ele, diz a Samyutta Nikâya (I, 141) «não existe
passado nem futuro» (na tassa paccha na purattham atthi). Para Buda
todos os tempos se tornam presentes (Visuddhi Magga, 411); isto é o
mesmo que dizer que ele aboliu a irreversibilidade do tempo.
O presente-total, o eterno presente dos místicos, é a estase, a não-
duração. Traduzido para o simbolismo espacial, a não--duração, o eterno-
presente é a imobilidade. E, de fato, para indicar o estado não
condicionado de Buda ou de libertado, o budismo — e como aliás o Yoga
— utiliza expressões que se referem à imobilidade, ao estase. «Aquele
cujo pensamento é estável» (thita-citto; Dîgha Nikâya, II, 157), «aquele
cujo espírito é estável (thit'attâ; ibid., I, 57, etc.), «estável, imóvel», etc.
Não esqueçamos que a primeira e a mais simples definição ido Yoga é a
dada pelo próprio Patañjali no início dos seus Yoga-Sûtra (I, 2): yogah
cittavrttinirodhah, isto é, «o Yoga é a supressão dos estados de
consciência.» Mas a supressão é apenas a meta final. O yogin começa por
«parar», por «imobilizar» os seus estados de consciência, o seu fluxo
psico-mental. (O sentido mais usual de nirodha é, aliás, o de «restrição-
obstrução», é o ato de fechar, encerrar, etc.). Voltaremos às
consequências que podem advir desta «paragem», desta «imobilidade»
de estados de consciência sobre a experiência do tempo dos yogins.
Aquele «cujo pensamento é estável» e para o qual o tempo deixa ide
correr, vive num eterno presente, no nunc stans. O instante, o momento
atual, o nunc, diz-se em sânscrito ksana e em pâli khana15. É pelo ksana,

14 Sutta Nipâta, 373, 860, etc., e outros textos recolhidos por Coomaraswamy, op.
cit., pp. 40 sq.
15 Ver Louis de la Vallée-Poussin, Notes sur le «moment» ou ksana cies boudhistes
(Rocznik Orientalistczny, op. cit., pp. 56 sq).
80

pelo «momento», que se mede o tempo. Mas este termo tem também o
sentido de «momento favorável, opportunity», e para Buda é através de
um tal «momento favorável» que se pode sair do tempo. Com efeito Buda
aconselha a «não perder o momento», pois: «lamentar-se-ão aqueles que
perderem o momento». Ele felicita os monges que «aprisionaram o seu
momento» (khano vo patiladdho) e lamenta aqueles «para quem o
momento passou» (khanâtitâ; Samyuta .Nikâya, IV, 126). O mesmo é
dizer que, após o longo caminho percorrido no tempo cósmico, através de
inúmeras existências, a «iluminação é instantânea» (eka ksana). A
«iluminação instantânea (eka-ksanâbhisambodhi) como lhe chamam os
autores mahâyânistas, quer dizer que a compreensão da Realidade se faz
subitamente, como um relâmpago. É exatamente a imaginaria verbal,
baseada no simbolismo do relâmpago, que já encontrámos nos textos
upanisadicos. Um momento qualquer, um ksana qualquer, pode
transformar-se no «momento favorável», no instante parodoxal que
suspende a duração e projeta o monge budista no nunc stans, num eterno
presente. Este eterno presente não faz já parte do tempo, da duração; ele
é qualitativamente diferente do nosso «presente» profano, desse
presente precário que surge debilmente entre duas não-entidades — o
passado e o futuro — e que se deterá com a nossa morte. O «momento
favorável» da iluminação é comparável ao relâmpago que comunica a
revelação ou com o êxtase místico, e prolonga-se paradoxalmente para
fora do tempo.

Imagens e paradoxos

Notemos que todas estas imagens através das quais nos esforçamos
por exprimir o ato paradoxal da «saída do tempo», servem igualmente
para exprimir a passagem da ignorância à iluminação (ou, por outras
palavras, da «morte» à «vida», do condicionado ao não-condicionado,
etc.). Grosso modo, podemos agrupá-las em três classes: 1º as imagens
que indicam a abolição do tempo e portanto a iluminação, por uma
81

ruptura dos níveis (o «Ovo quebrado», o Relâmpago, os Sete Passos de


Buda, etc.); 2º as que exprimem uma situação inconcebível (a imobilidade
elo Sol no zénite, a estabilidade do fluxo dos estados de consciência, a
paragem completa da respiração na prática Yoga, etc.), e, finalmente, 3º a
imagem contraditória do «momento favorável», fragmento temporal
transfigurado em «instante de iluminação». As duas últimas classes de
imagens indicam, também elas, uma ruptura de níveis, pois trazem à luz a
passagem paradoxal de um estado «normal» num plano profano (o curso
do Sol, o fluxo da consciência, etc.) a um estado «paradoxal» (a
imobilidade do Sol, etc.), ou implicam a transubstancialização que se
realiza no interior do próprio momento temporal. (Como se sabe, a
passagem da duração profana ao tempo sagrado, posta em acção por um
ritual, obtém-se igualmente por uma «ruptura dos níveis»: o tempo
litúrgico não continua a duração profana em que se insere, mas,
paradoxalmente, o tempo do último ritual realizado. (Cf. nosso Traité
d'Histoire des Religions, pp. 332, sq.).
A estrutura destas imagens não deve surpreender-nos. Todo o
simbolismo da transcendência é paradoxal e impossível de conceber no
plano profano. O símbolo mais usado para exprimir a ruptura dos níveis e
a penetração no «outro mundo», no mundo supra-sensível (seja ele o
mundo dos mortos ou o dos deuses), é a «passagem difícil», o fio da
navalha. «É penoso passar sobre a lâmina cortante da navalha, dizem os
poetas para exprimir as dificuldades do caminho (que leva ao
conhecimento supremo»), afirma a Katha Upanisad (III, 14). Recordamos
o texto do Evangelho: «Estreita é a porta e cerrado o caminho que leva à
Vida, e poucos há que o encontrem» (Mateus, VII, 14). A «porta estreita»,
o gume da navalha, a ponte estreita e perigosa não esgotam, aliás, a
riqueza deste simbolismo. Outras imagens apresentam-nos uma situação
aparentemente sem saída. O herói de um conto iniciático deve passar aí
«onde a noite e o dia se encontram», ou encontrar uma porta numa
parede que não evidencia nenhuma, ou subir ao Céu por uma passagem
que se entreabre por um instante apenas, passar entre duas mós em
contínuo movimento, entre dois rochedos que se tocam
82

permanentemente, ou ainda entre as mandíbulas de um monstro, etc.16


Todas estas imagens míticas exprimem a necessidade de transcender os
contrários, de abolir a popularidade que carateriza a condição humana,
para atingir a realidade última. Como diz A. Coomaraswamy, «aquele que
quer transportar-se deste mundo para o outro, ou voltar dele, deve fazê-
lo no intervalo unidimensional e atemporal que separa forças que se
manifestam mas que são contrárias, através das quais só se pode passar
instantaneamente» (Symplegades, p. 486).
De fato, se para o pensamento indiano a condição humana se define
pela existência dos contrários, a libertação (ou seja a abolição da condição
humana) equivale a um estado não condicionado que ultrapassa os
contrários ou, o que é o mesmo, a um estado em que os contrários
coincidem. Lembramo-nos de que a Maitri Upanisad, referindo-se aos
aspetos manifesto e não-manifesto do Ser, distingue as «duas formas» de
Brahman como Tempo e Sem-Tempo». Para o Sábio, Brahman
desempenha o papel de modelo exemplar: a libertação é uma «imitação
de Brahman». É o mesmo que dizer que para «aquele que sabe», o
«Tempo» e o «Sem-Tempo» perdem a sua tensão de opostos: deixam de
ser distintos um do outro... Para ilustrar esta situação paradoxal obtida
pela abolição dos «pares opostos», o pensamento indiano, como todo o
pensamento arcaico, utiliza imagens cuja própria estrutura inclui a
contradição (imagens do tipo: encontrar uma porta numa parede que não
evidencie nenhuma). A coincidência dos opostos é ainda mais bem
esclarecida pela imagem do «instante» (ksana) que se transforma em
«momento favorável». Aparentemente nada distingue um fragmento
qualquer do Tempo profano do instante intemporal obtido pela
iluminação. Para bem compreender a estrutura e a função de tal imagem,
é necessário recordar a dialética do sagrado: um objeto qualquer
transforma-se paradoxalmente numa hierofania, um receptáculo do

16
Sobre estes motivos, ver A. B. Cook, Zeus, III, 2 (Cambridge, 1940), Appendix P:
«Floating Islands» (pp. 975-1016); Ananda Coomaraswamy, Symplegades
(Studies and Essays in the History of Science and Learning off ered in Homage to
George Sarton, New-York, 1947, pp. 463-488); Eliade, Le Chamanisme et les
techniques archaiques de l'extase (Paris, 1951), pp. 419 e passim.
,
83

sagrado, ao mesmo tempo que continua a participar no seu meio cósmico


circundante: «uma pedra consagrada nem por isso deixa de ser uma
pedra qualquer, etc.17 Deste ponto de vista, a imagem do «momento
favorável» exprime o paradoxo da coincidência dos opostos com mais
força ainda do que o fazem as imagens das situações contraditórias (tipo:
imobilidade do Sol, etc.).

Técnicas da «saída do tempo»

A iluminação instantânea, o salto paradoxal para fora do Tempo,


obtém-se através de uma longa disciplina, que inclui tanto uma filosofia
como uma técnica mística. Recordemos algumas técnicas que têm como
finalidade a paragem do fluxo temporal. A mais comum e que é
verdadeiramente pan-indiana, é o prânâyâma, a ritmização da respiração.
Desde já uma observação que nos parece importante: se bem que o seu
fim último seja o de ultrapassar a condição humana, a prática do Yoga
começa por restaurar e melhorar esta mesma condição humana, para lhe
dar amplitude e uma majestade que parecem inacessíveis aos profanos.
Não estamos a pensar imediatamente no Hatha-Yoga, cuja finalidade
expressa consiste em alcançar um domínio absoluto do corpo e do
psiquismo humanos. Mas todas as formas do Yoga implicam uma
transformação prévia do homem profano — fraco, disperso, escravo do
seu corpo e incapaz de um verdadeiro esforço mental — num homem
glorioso: de perfeita saúde física, mestre absoluto do seu corpo e da sua
vida psico-mental, capaz de se concentrar, consciente de si próprio. É um
homem assim perfeito que o Yoga se esforça finalmente por ultrapassar, e
não somente o homem profano, o homem de todos os dias.
Em termos cosmológicos (e para penetrar no pensamento indiano é
sempre necessário utilizar esta chave), é a partir de um Cosmos perfeito
que o Yoga se esforça por transcender a condição cósmica entendida

17 Sobre a dialética do sagrado, ver nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 15 sq.
84

como tal — e não a partir de um Caos. Ora, a fisiologia e a vida psico-


mental do homem profano assemelham-se muito a um caos. A prática
Yoga começa por organizar este caos por — ousemos a palavra —
cosmisá-lo. O prânâyâma, a ritmização da respiração, transforma pouco a
pouco o yogin num Cosmos18: a respiração deixa de ser arrítmica, o
pensamento deixa de ser disperso, a circulação das forças psico-mentais
deixa de ser anárquica. Ora, trabalhando assim sobre a respiração, o yogin
trabalha diretamente sobre o tempo vivido. E não existe adepto de Yoga
que não tenha experimentado durante estes exercícios respiratórios uma
qualidade de tempo completamente diferente. Tentou-se em vão
descrever esta experiência do tempo vivido durante o prânâyâma;
compararam-na com o tempo beatífico da audição de boa música, com o
transporte amoroso, com a serenidade ou a plenitude da oração. O que é
certo é que abrandando progressivamente o ritmo respiratório,
prolongando cada vez mais a expiração e a inspiração e deixando passar
um intervalo tão longo quanto possível entre estes dois momentos da
respiração — o yogin vive um tempo diferente do nosso19.

18 Cf. nosso Cosmical homology and Yoga (Journal of the Indian Society of Oriental Art,
Calcutta, 1937, pp. 188-203). Sobre o prânâyâma, ver Techniques du Yoga, pp. 75 e
sq.
19 Pode acontecer mesmo que a ritmização da respiração tenha consequências
consideráveis sobre a fisiologia do yogin. Não tenho qualquer competêneia
neste domínio mas fiquei impressionado em Rishikesh o algures no Himalaia,
com a admirável condição física dos yogins embora estes mal se alimentassem.
Um dos vizinhos do meu kutiar, em Rishikesh era um naga, um asceta nu, que
passava quase toda a noite a praticar o prânâyâma e que nunca comia mais do
que um punhado de arroz. Tinha a compleição de um atleta perfeito: não
aparentava nenhum sinal de subnutrição ou de fadiga. Admirava-me que ele
nunca tivesse fome. «Só vivo de dia — respondeu-me ele. — Durante a noite
reduzo o número das minhas inspirações a um décimo.» Não tenho a certeza de
ter entendido completamente o que ele queria dizer, mas talvez isso significasse
muito simplesmente que a duração vital, era medida pelo número de
inspirações e de expirações e que, assim, durante a noite ele reduzia este
número a um décimo do normal, vivendo em dez horas do nosso tempo, apenas
a décima parte, ou seja uma hora. Contado em horas-respiração, um dia de 24
horas tínha para ele apenas 12 a 13 horas-respiração, o que quer dizer que o
seu corpo gastava-se e envelhecia mais lentamente do que o nosso; assim ele
85

Dois pontos nos parecem importantes na prática do prânâyâma: 1.°


o yogin começa por cosmizar o seu corpo e a sua vida psico-mental; 2.°
pelo prânâyâma o yogin consegue inserir-se quando queira em diferentes
ritmos do tempo. Patañjali recomenda, na sua maneira bastante concisa,
«o controle dos momentos e da sua continuidade» (Yoga Sidra, 3,52). Os
tratados yogico-tântricos posteriores dão mais pormenores quanto a este
«controle» do tempo. O Kâlacakratantra, por exemplo, vai bastante
longe: relaciona a inspiração e a expiração com o dia e a noite, depois
com as quinzenas, os meses, os anos, atingindo progressivamente
maiores ciclos cósmicos20. O mesmo é dizer que, pelo seu próprio ritmo
respiratório, o yogin repete e, de certo modo, revive, o Grande Tempo
cósmico, as criações e as destruições periódicas dos Universos. O objetivo
deste exercício é duplo: por um lado o yogin é levado a identificar os seus
próprios movimentos respiratórios com os ritmos do Grande Tempo
cósmico e, assim fazendo, ele realiza a relatividade do tempo e, em última
instância a sua irrealidade. Mas, por outro lado, obtém a reversibilidade
do fluxo temporal (sâra), porque volta atrás, revive as suas existências
anteriores e «queima», assim se exprimem os textos, as consequências
dos seus atos anteriores, anula estes atos para escapar às suas
consequências kármicas.
Adivinha-se neste exercício de prânâyâma a vontade de reviver os
ritmos do Grande Tempo cósmico: é de certo modo a mesma experiência
da Nârada que relatámos mais atrás, experiência realizada, desta vez
voluntária e conscientemente. Que isto é verdade, a prova temo-la na
assimilação das duas «veias místicas», ida e pingala, à Lua e ao Sol21.

comia um punhado ,de arroz não todas as 24 horas mas sim todas as 12 ou 13
horas. Isto não passa de uma hipótese e por isso não insisto. Mas tanto quanto
sei ainda não foi dada uma explicação cabal da espantosa juventude dos yogins.
20 Kâlacakra Tantra, citado por Mario E. Carelli, no prefácio da sua edição de
Sekoddesatiki, pp. 16 sq.; ver Sekoddesatikâ of Nadapâda (Nâropâ), being a
commentary of the Sekoddesa Setion of the Kâlacakra Tantra (Gaekwad Oriental
Series, vol. XC, Baroda, 1941).
21 Ver os textos recolhidos por P. C. Bagchi, Some technical terms of the Tantras
(The Calcutta Oriental Journal, I, 2, Novembre 1934, pp. 75-88), spéc. pp. 82 sq.,
e Shashibhusan Dasgupta, Obscure religious culIs (Calcutta, 1946), pp. 274 sq.
86

Sabe-se que na fisiologia mística do Yoga, ida e pingala são os dois canais
através dos quais circula a energia psico-vital no interior do corpo
humano. A assimilação destas duas veias místicas ao Sol e à Lua perfaz a
operação que denominámos «cosmização» do yogin. O seu corpo místico
torna-se um microcosmos. A sua inspiração corresponde ao movimento
do Sol, ou seja ao Dia; a sua expiração à Lua, ou seja à Noite. Assim, o
ritmo respiratório do yogin consegue integrar perfeitamente o ritmo do
Grande Tempo cósmico.
Mas esta integração no Grande Tempo cósmico não anula o Tempo
propriamente dito; apenas os ritmos mudaram: o yogin vive um Tempo
cósmico, mas continua, apesar de tudo, a viver no Tempo. Ora o seu
objetivo final é sair do Tempo. É de fato o que se passa quando o yogin
consegue unificar as duas correntes de energia psico-vital que circulam
através de ida e pingala. Por um processo demasiado difícil de explicar em
poucas palavras, o yogin suspende a respiração e, unificando as duas
correntes, concentra-as e força-as a circular através da terceira «veia»,
susumna, a veia que se encontra no «centro». Ora, diz a Hathayoga-
pradipikâ (IV, 16-17), a Susumna devora o Tempo». Esta unificação
paradoxal das suas veias místicas ida e pingala, das duas correntes
polares, equivale à unificação do Sol e da Lua, quer dizer à abolição do
Cosmos, à reintegração dos contrários, o que é o mesmo que dizer que o
yogin transcende simultaneamente o Universo criado e o Tempo que o
rege. Recordemos a imagem mítica do ovo cuja casca é quebrada por
Buda. É o que acontece ao yogin que «concentra» os seus sopros na
susumna: quebra a casca do seu microcosmos, transcende o mundo
condicionado que existe no tempo. Considerável número de textos
yógicos e tântricos faz alusão a este estado não condicionado e
intemporal em que «não existe dia nem noite», em que «não há doença
nem velhice», fórmulas ingénuas e aproximativas da «saída do Tempo».
Transcender «o dia e a noite» quer dizer transcender os contrários; é o
correspondente, no plano temporal, à passagem pela «porta estreita» no
plano do espaço. Esta experiência yogico-tântrica prepara e precipita o
samâdhi, estado que se traduz usualmente por «êxtase» mas que
preferimos traduzir por «em estase». O yogin acaba por se tornar jivan-
87

inukta, um «libertado em vida». Não podemos imaginar a sua existência


porque ela é paradoxal. A crermos, o jivan-mukta não vive já no Tempo,
no nosso tempo — mas num eterno presente, no nunc stans, termo pelo
qual Boécio definia a eternidade.
Mas o processo yogico-tântrico a que acabamos de aludir, não
esgota a técnica indiana da «saída do Tempo». De certo ponto de vista
poder-se-ia dizer que o Yoga em si persegue a libertação da escravatura
temporal. Todo o exercício de concentração ou de meditação yogica
«isola» o praticante, subtrai-o ao fluxo da vida psico-mental e, por
conseguinte, atenua a pressão do Tempo. Mais ainda: a «destruição do
subconsciente», a «combustão» dos vâsanâs pretendidos pelo yogin.
Sabe-se da importância considerável dada pelo Yoga à vida subliminal,
que se designa pelo termo vâsanâs. «Os vâsanâs têm a sua origem na
memória», escreve Vyâsa (comentário ao Yoga Sidra, IV, 9), mas não se
trata unicamente da memória individual, que para o hindu compreende
tanto a recordação da existência atual como os resíduos kármicos das
inúmeras existências anteriores. Os vâsanâs representam, além disso,
toda a memória coletiva que se transmite por meio da linguagem e das
tradições: é, de certo modo, o inconsciente coletivo do professor Yung.
Esforçando-se por modificar o subconsciente e finalmente «purificá-
lo», «queimá-lo» e «destruí-lo»22, o yogin esforça-se por se libertar da
memória, isto é, por abolir a obra do Tempo. Isto não é, aliás, uma
especialidade das técnicas indianas. Sabe-se que um místico com o valor
do Mestre Eckardt não se cansa de repetir que «não existe maior
obstáculo à União com Deus ido que o Tempo», que o Tempo impede o
homem de conhecer Deus, etc. E, a propósito, tem interesse lembrar que
as sociedades arcaicas «destroem» periodicamente o mundo para
poderem «refazê-lo» e, por conseguinte, viver num Universo «novo», sem
«pecado», ou seja sem «história», sem memória. Grande número de

22 Tal conjetura parecerá muito provavelmente vã, se não perigosa, aos olhos dos
psicólogos ocidentais. Declinando qualquer título para intervir no debate,
insistimos em lembrar, por um lado a extraordinária ciência psicológica dos
yogins e dos espirituais hindus, e por outro a ignorância dos cientistas ocidentais
quanto à realidade psicoíógica das experiências yogicas.
88

rituais periódicos persegue igualmente a «purgação» coletiva dos


«pecados» (confissões públicas, o bode expiatório, etc.), em último termo
a abolição do passado. Tudo isto prova, parece-nos, que não existe
solução de continuidade entre o homem das sociedades arcaicas e o
místico pertencente às grandes religiões históricas: tanto um como o
outro lutam com a mesma força, se bem que por meios diferentes, contra
a memória e o Tempo.
Mas esta depreciação metafísica do Tempo e esta luta contra a
«memória» não esgotam todavia a posição da espiritualidade indiana em
relação ao Tempo e à História. Relembremos a lição dos mitos de Indra e
de Nârada: a Mâyâ manifesta-se através do Tempo mas a própria Mâyâ
não é mais do que a força criadora, e sobretudo a força cosmogónica, do
Ser absoluto (= Çiva, Visnu): quer 'dizer que, em última instância, a
Grande Ilusão cósmica é uma hierofania. Esta verdade revelada nos mitos
por uma série de imagens e de «histórias», é exposta de uma maneira
mais sistemática pelos Upanisads23 e filósofos ulteriores: a saber que o
fundamento último das coisas, o Grund, é constituído simultaneamente
pela Mâyâ e pelo Espírito Absoluto, pela Ilusão e pela Realidade, pelo
Tempo e pela Eternidade. Identificando todos os «contrários» no mesmo
e único Vazio universal (çunya), certos filósofos mahâyânicos (por
eXemplo Nâgârjuna) e sobretudo as diversas escolas tântricas, tanto
budistas (Vajrayâna) como hinduístas, chegaram a conclusões
semelhantes. Tudo isto não deve surpreender, quando se conhece a sede
de espiritualidade indiana de ultrapassar os contrários e as tensões
polares, de unificar o Real, de reintegrar no primordial. Se o Tempo na sua
qualidade de Mâyâ é, também ele, uma manifestação da Divindade, viver
no Tempo não é, em si mesmo, uma «má acção»: a «má acção» é
acreditar que não existe mais n ada fora do Tempo. É-se devorado pelo
i

Tempo não porque se vive no Tempo, mas porque se acredita na


realidade do Tempo e portanto esquece-se ou despreza-se a Eternidade.
Esta conclusão tem a sua importância; tem-se demasiada tendência
para reduzir a espiritualidade indiana às suas posições extremas,

23 Cf., mais atrás, pp. 96 sq.


89

fortemente «especializadas» e, ao mesmo tempo, apenas acessíveis aos


Sábios' e aos místicos, e esquecem-se as posições pan-indianas, ilustradas
sobretudo pelos mitos. De fato a «saída do Tempo» conseguida pelo
jivan-mukta equivale a uma em-estase ou a uma extase inacessível à
maioria dos seres humanos. Mas se a «saída do tempo» continua a ser a
via principal da libertação (recordemos aqui os símbolos da iluminação
instantânea, etc.), isto não quer dizer que todos os que a não obtiveram
estão impiedosamente condenados à ignorância e à escravatura. Como o
demonstram os mitos de Indra e de Nârada, basta tomar consciência da
realidade ontológica do Tempo e «realizar» os ritmos do Grande Tempo
cósmico, para se libertar da Ilusão. Portanto, para resumir, a Ílidia não
conhece apenas duas situações possíveis em relação ao Tempo: a do
ignorante que vive exclusivamente na duração e na ilusão, e a do Sábio ou
do yogin que se esforça por «sair do Tempo»; mas ainda uma terceira
situação, intermédia: a situação daquele que, continuando a viver no seu
tempo (o tempo histórico), conserva uma abertura para o Grande Tempo,
não perdendo nunca a consciência da irrealidade do tempo histórico. Esta
situação, ilustrada por Indra após a sua segunda revelação, encontra-se
amplamente explanada na Bhagavad-Gîtâ. A mesma situação encontra-se
exposta sobretudo na literatura espiritual indiana para uso dos leigos e
feita pelos mestres da índia moderna. Tem interesse observar que esta
última posição indiana prolonga de certo modo o comportamento do
«homem primitivo» em relação ao Tempo.
90

III - O «Deus Ligador» e


o Simbolismo dos nós

O soberano terrível

Conhece-se o papel que Dumézil atribui ao Soberano Terrível das


mitologias indo-europeias: por um lado, no centro mesmo da função de
soberania, ele opõe-se ao Soberano Jurista (Varuna opõe-se a Mitra,
Júpiter a Fides); por outro lado, comparado com os deuses guerreiros que
combatem sempre por meios militares, o Soberano Terrível tem de certo
modo o monopólio de uma outra arma, a magia. «Não há portanto mito
de combates em torno de Varuna, que é todavia o mais invencível dos
deuses. A sua grande arma é a sua «mâyâ d'Asura», a sua magia do
Soberano, criadora de formas e de prestígios, que lhe permite também
administrar, equilibrar o mundo. Esta arma revela-se, aliás, na maior parte
das vezes sob a forma de um laço, do nó, das ligaduras «pâçâh» materiais
,

ou figurados. Ao contrário do deus guerreiro, é Indra, deus combatente,


deus manejados de raios, herói de duelos sem conta, de riscos
enfrentados, de vitórias disputadas. «A mesma oposição se observa na
Grécia: enquanto Zeus combate e mantém guerras difíceis, Urano não
combate, não há vestígios de luta na sua lenda, se bem que ele seja
também o mais terrível e o menos facilmente destronável dos reis: por
uma captura infalível ele imobiliza, mais exatamente "liga", arrasta para
os infernos os seus rivais que no entanto são vigorosos entre os demais.»
Nas mitologias nórdicas, «Odhinn é decerto o senhor, o chefe dos
guerreiros neste mundo e no outro. Mas nem na Edda em prosa nem nos
91

poemas édicos é ele próprio a combater...»


Ele possui toda uma série de «dons» mágicos: o dom da ubiquidade
ou, pelo menos do, transporte imediato, a arte do disfarce e o dom de
metamorfose ilimitada e, principalmente, o dom de cegar, de ensurdecer,
de paralisar os seus adversários e de retirar toda a eficácia às armas
destes...1 Enfim, na tradição romana, aos processos mágicos de Júpiter,
que intervém na batalha como um feiticeiro todo poderoso, opõem-se os
meios normais, puramente militares, de Marte2. Oposição que, na índia,
se manifesta por vezes de maneira ainda mais nítida: Indra, por exemplo,
salva, «desligando-as», as vítimas «ligadas» por Varuna3.
Como era de esperar, Dumézil prossegue a verificação desta
polaridade «ligadora» e «desligadora» nos domínios mais concretos dos
ritos e dos usos. Rómulo, «tirano tão terrível como prestigioso, ligador de
laços potentíssimos, fundador dos Lupércios selvagens e das Celeres
frenéticas» (Horace et les Curiaces, 1942, p. 68) é, no plano
«historicizado» da mitologia romana, o equivalente a Varuna, Urano e
Júpiter. Toda a sua «história» e as instituições socio-religiosas cuja
fundação lhe é atribuída se explicam a partir do arquétipo que ele
encarna de certo modo: o Soberano Mágico indo-europeu, mestre dos
«laços». Dumézil recorda um texto de Plutarco (Romulus, 26) onde se diz
que: adiante de Rómulo marchavam sempre «homens armados de
chibatas, que afastavam a multidão, e cintados com correias a fim de
ligarem imediatamente aqueles que ele mandasse ligar»4. Os Lupércios,
confraria mágico-religiosa instituída por Rómulo, pertencem à ordem dos

1 Georges Dumézil, Mythes et Dieux des Germains (Paris, 1939), pp. 21 sq., 27 sq.;
Júpiter, Mars, Quirinus (Paris, 1941), pp. 79 sq.; cf. Ouranós-Varuna (Paris,
1934), passim.
2 Mitra-Vartma (Paris, 1940), p. 33; Júpiter, Mars, Quirinus, pp. 81 sq.
3 Dumézil, Flamen-Brahman (Paris, 1935), pp. 34 sq.; Mitra-Varuna, pp. 79 sq.
4 Mitra-Varuna, p. 72; cf. as observações de Jean Bayet, na Rev. Hist. des Religions,
CXXIV, 1941, pp. 194 sq. Ainda segundo Plutarco, Questions Romaines 67, o
próprio nome dos litores deriva de ligare e Dumézil não vê razão para «rejeitar a
relação que os antigos sentiam entre litor c ligare: litor pode ser formado a
partir de um verbo radical ligere, não confirmado, que estaria para ligare como
dicere está para dica) e» (ibid., p. 72).
92

equites e nesta qualidade usam um anel no dedo (Mitra-Varuna, p. 16).


Pelo contrário os flâmines Dialis, representando a religião grave, jurídica,
estática, não podem montar a cavalo (equo dialem flaminem vetei religio
est, Aulu-Gelle, X, 15) nem «usar anel a menos que este fosse furado e
oco» (item annulo uti, nisi pervio cassoque, fas non est). «Se um homem
manietado entra [em casa dos flâmines diális], é necessário libertá-lo e
que as correias sejam levadas para o telhado pelo impluvium e de lá
atiradas à rua. Ele (o flâmine) não usa nó nem no que lhe cobre a cabeça
nem na cintura nem em nenhuma outra parte (nodum in apice negue in
cintu negue in alia parte ullum habet). Se se leva um homem para ser
vergastado e este homem se deita, suplicante, aos pés do flâmine, é um
sacrilégio bater-lhe nesse dia» (Aulu-Gelle, Notes Atticae, X, 15, trad. M.
Migon)5.
Não se trata de retomar o processo constituído e admiravelmente
avalizado por Dumézil. O que desejamos é diferente: queremos seguir,
num plano comparativo ainda mais amplo, os motivos do «deus ligador» e
da magia da «ligação», tentando tirar daí as respetivas significações e
também precisar essas funções noutros conjuntos religiosos além do da
soberania mágica indo-europeia. Não pretendemos esgotar esta extensa
matéria, que já deu lugar a várias monografias6. Mas a nossa intenção é
antes de ordem metodológica: tirando proveito, por um lado, dos ricos
repertórios de fatos acumulados pelos etnógrafos e pelos historiadores
das religiões, e, por outro lado, dos resultados das investigações
realizadas por Dumézil no domínio particular da soberania mágica indo-
europeia, perguntar-nos-emos: 1º em que sentido a noção de «soberano

5 Cf. Servius, in Aen., III, 607; J. Heckenbach, De nuditate sacra sacrisque vinculis
(R. V. V., IX, 3, Giessen, 1911), pp. 69 sq.; Dumézil, Flamen-Brahman, pp. 66 sq.
6 Indicar-se-á, segundo o livro decepcionante de Heckenbach, Prazer, Taboo and
the perils of the sota, pp. 296 sq. (trad. francesa de Henri Peyre, Tabou et les
périls de l'âme (Paris, 1927, pp. 245 sq.); I. Scheftelowitz, Das Schlingen-und
Netzmotiv im Glauben und Brauch der Völker (R. V. V., XII, 2, Giessen, 1912);
,

id.; Die altpersische Religion und das Judentum (Giessen, 1920), pp. 92, sq. e os
estudos etnográficos e folclóricos indicados por Dumézil, Ouranós-Varuna, p.
52, n. 1. Sobre o nexum romano, os nós mágicos e o direito penal, cf. Henri
Decugis, Les Êtapes du droit (2.' edição, Paris, 1946), t. I, pp. 157-178.
93

ligador» é específica, caraterística do sistema religioso indo-europeu; 2º


qual é o conteúdo mágico-religioso de todos os mitos, ritos e superstições
centrados no motivo da «ligação». Não ignoramos os perigos que tal
programa comporta, em primeiro lugar o «confusionismo» brilhante-
mente denunciado por Dumézil (Naissance de Rome, 1944, pp. 12 sq.).
Mas trata-se menos de explicar aqui os fatos indo-europeus por paralelos
heteróclitos do que levantar o mapa dos «complexos» mágico-religiosos
do mesmo tipo e de precisar, na medida do possível, as relações do
simbolismo indo-europeu da «ligação» com sistemas morfologicamente
vizinhos. Ficar-se-á assim em estado de avaliar se tal confrontação pode
apresentar interesse para a história geral das religiões e nomeadamente
para a história das religiões indo-europeias.

O simbolismo de Varuna

Depois de Bergaigne e Güntert, Dumézil recordou a força mágica de


Varuna. Este Deus é um verdadeiro «mestre dos laços», e numerosos
hinos e cerimónias não têm outro objetivo senão o de proteger ou libertar
o homem dos «laços de Varuna» (por ex. Rig Veda, I, 24, 15; VI, 74, 4; VII,
65, 3; X, 85, 24, etc.). Sâyana, comentando o verso RV, I, 89, 3, explica o
nome de Varuna pelo fato de ele «envolver, isto é, aprisionar os agentes
do mal nos seus laços» (vrnoti. pâpakrtah svakîyaih pâçair âvrnoti). «Que
libertes dos seus laços aqueles que estão amarrados!» (bandhân muncâsi
baddhakam, Atharva Veda, VI, 121, 4). Os laços de Varuna são igualmente
atribuídos a Mitra e Varuna considerados em conjunto. (RV, VII, 65, 3:
«eles têm muitos laços...», etc.) e mesmo ao grupo inteiro dos Adityas
(por ex., RV, II, 27, 16: «vossos laços abertos para o pérfido, para o
enganador...») Mas é sobretudo Varuna que tem o poder mágico de ligar
e desligar os homens à distância7; isto é tão verdadeiro que o seu nome

7 A. Bergaigne, La Religion védique d'après les Hymnes du Rig-Veda, III (Paris,


1883), pp. 114, 157 sq.; H. Guntert, Der arische Weltkönig und Heiland (Halle,
94

foi até explicado por esta faculdade de ligar; porque, renunciando à


etimologia tradicional (varvrnoti, «cobrir», «fechar»), que punha em
evidência o seu caráter uraniano, segue-se hoje de preferência a
interpretação proposta por H. Peterson e aceite por Güntert (op. cit., p.
144) e por Dumézil (Ouranós-Varuna, p. 49), e recorre-se a uma outra raiz
indo-europeia, *uer, «ligar» (skr. varatrâ, «correia, corda», «fila
ininterrupta»)8 Varuna é representado com uma corda na mão9 e, nas
cerimónias, tudo aquilo que liga, a começar pelos nós, recebe a
designação de varuniano10. Dumézil justifica este prestígio mágico do
mestre ligador pela soberania de Varuna. «Os laços de Varuna são
também mágicos como mágica é a própria Soberania; eles são o símbolo
dessas forças místicas detidas pelo chefe e que se chamam: justiça,
administração, segurança real e pública, todos os «poderes»... Ceptro e
laços, danda e pâçâh dividem entre si, na índia e noutros sítios, o
privilégio de representar tudo isso» (Ouranós-Varuna, p. 53).
Isto é certo sem dúvida nenhuma. Mas o aspeto «soberano», e até
«soberano-mágico», não esgota a natureza complexa que Varuna
apresenta desde os mais antigos textos védicos. Se não podemos
classificá-lo exclusivamente entre os «deuses do Céu», não é menos
verdade que ele possui traços caraterísticos das divindades uranianas. Ele
é viçva-darçata, «visível em toda a parte» (RV, VIII, 41, 3), ele «separou os
dois mundos» (VII, 86, 1), o vento é o seu sopro (VII, 87, 2), Mitra e ele são
venerados como «os dois poderosos e sublimes mestres do Céu», que
«com as nuvens diversamente coloridas se mostram no primeiro estrondo
do trovão e fazem chover o Céu por um milagre divino» (V, 63, 2-5), etc.
Esta estrutura cósmica permitiu-lhe adquirir muito cedo os carateres

1923), pp. 120 sq.; Dumézil, Ouranós-Varuna, p. 50. O mesmo atributo nos
Brâhmanasver Silvain Lévi, La Dotrine du Sacrifice das les Brâhmanas (París,
1898), pp. 153 sq.
8 Cf. Walde-Pokorny, Vergleichendes Worterbuch der indogermanischen Sprachen,
I (1930), p. 263.
9 Bergaigne, op. cit., III, p. 114; S. Lévi, op. cit., p. 153; E. W. Hopkins, Epic
Mythology (Strasburg, 1920), pp. 116 sq.
10 S. Lévi, p. 153; Dumézil, Ouranós-Varuna, p. 51, n. 1.
95

lunares11 e chuvosos a ponto de se ter tornado, com o tempo, uma


divindade do Oceano12. Esta mesma estrutura cósmico-uraniana explica as
outras funções e prestígios de Varuna: a sua omniscência, por exemplo
(AV , IV, 16, 2-7, etc.), e a sua infalibilidade (RV, VII, 34, 10), fórmula mítica
que faz referência às estrelas e que não pode designar, pelo menos na
origem, senão uma divindade uraniana13. Os prestígios da soberania
aumentaram e multiplicaram os prestígios celestes: Varuna vê e sabe
tudo, pois ele domina o Universo da sua morada sideral; e, ao mesmo
tempo, ele pode tudo, porque é cosmocrata e castiga «ligando» (isto é
pela doença, pela impotência) os que infrigem a lei, pois é guardião da
ordem universal. Existe assim uma notável simetria entre aquilo a que
poderíamos chamar de «camada celeste» e a «camada real» de Varuna,
camadas que se correspondem e se completam uma à outra: o Céu é
transcendente e único, exatamente como o é o Soberano Universal; a
tendência para a passividade, manifesta em todos os deuses supremos do
Céu14, responde bem os prestígios «mágicos» dos deuses soberanos que
«atuam sem agir», que operam diretamente pela «força do espírito».
A estrutura de Varuna é complexa mas existe sempre uma estrutura,
isto é, existe uma coerência íntima entre as suas diferentes modalidades.
Cosmocrata ou uraniano, ele é sempre omnividente, todo-poderoso e, se
necessário, «ligador» pela sua «força espiritual», pela magia. Mas o seu
aspeto cósmico é mais ornado ainda: ele não é apenas, como vimos, um
deus celeste, mas também um deus lunar e aquático. Houve em Varuna, e
talvez desde muito cedo, uma certa dominante «noturna», que Bergaigne
e, recentemente, Ananda Coomaraswamy15, não deixaram de sublinhar.
Bergaigne chamava a atenção (op. cit., III, p. 213) para o comentador de
Taittirîya Samhitâ, I, 8, 16, 1 segundo o qual Varuna é designado como

11 Hillebrand, Vedische Mythologie (Breslau, 1902), III, p. 1 sq.


12 S. Lévi, op. cit., pp. 158 sq.; J. J. Meyer, Trilogie altindischen Mdchte und Feste
der Vegetation (Zurich-Leipzig, 1937), III, pp. 206 sq., 269 sq.
13 Raffaele Pettazzoni, Le corps parsemé d'yeux (in Zalmoxis, I, 1938, pp. 1 sq.).
14 Ver nosso Traité d'histoire des Religions (Paris, Payot, 1949), pp. 47 sq
15 Sobretudo em The darker side of the Dawn (Smithsonian Miscellaneous Conetions,
vol. 94, N.° 1, Washington, 1935) e Spiritual Authority and Temporal Power in the
Indian Theory of Government (American Oriental Society, New Haven, 1942).
96

«aquele que envolve como a obscuridade». Esta faceta «noturna» de


Varuna não se deixa interpretar exclusivamente no sentido uraniano de
«Céu noturno», mas também num sentido mais amplo, verdadeiramente
cosmológico e mesmo metafísico. A própria Noite também é virtualidade,
germes, não-manifestação16, e foi justamente esta modalidade «noturna»
de Varuna que lhe permitiu transformar-se num deus das Águas (já em
Bergaigne, III, p. 128) e que abriu a via à sua assimilação com o demónio
Vrtra. Não é esta altura própria para abordar o problema «Vrtra-Varuna»,
e limitar-nos-emos a recordar que existe, entre as duas entidades, mais de
um traço comum. Mesmo que não se leve em conta o parentesco
etimológico provável dos seus dois nomes (Bergaigne, III, p. 115, etc.;
Coomaraswamy, pp. 29 sq.), é importante salientar que ambos se
encontram relacionados com as Águas, e em primeiro lugar com as
«Aguas retidas» («o grande Varuna escondeu o mar...», RV, IX, 73, 3), e
que Vrtra como Varuna, é por vezes chamado mâyin, «mágico» (por ex.,
II, 11, 10)17. De uma certa perspetiva, estas diferentes assimilações de
Vrtra e de Varuna, como aliás todas as outras modalidades e funções de
Varuna correspondem-se e justificam-se umas às outras. A Noite (o não-
manifestado), as Águas (o virtual, os germes), a «transcendência» e o
«não-agir» (carateres dos deuses celestes e soberanos) têm uma
solidariedade simultaneamente mítica e metafísica com, por um lado,
«laços» de toda a espécie e, por outro lado Vrtra que «reteve», «parou»
ou «encadeou» as Águas18. No plano cósmico, Vrtra é também um
«ligador». Como todos os grandes mitos, o mito de Vrtra é multivalente e
a sua interpretação não se esgota num único sentido. Pode mesmo dizer-
se que uma das principais funções do mito consiste em unificar os níveis
do real que se revelam, tanto para a consciência imediata como para a
reflexão, múltiplos e heterogéneos. Assim, no mito de Vrtra, ao lado de

16 Cf. Coomaraswamy, Spiritual Authority, especialmente pp. 29 sq.


17 Cf. [E. Benveniste] —L. Renou, Vrtra e Vrthragna (París, 1934), pp. 140-141, que
não tem razão quando afirma que na maior parte das passagens «a magia de
Vrtra responde à de Indra e dela deriva». A priori, a magia é mais um atributo
dos seres ofidianos —e Vrtra é um deles por excelência — do que um atributo
dos deuses-heróis. Mais adiante volitaremos à magia de hidra.
18 Cf. a análise do motivo das Águas em Renou, op. cit., p. 141 sq.
97

outras valências, nota-se a de um retorno ao não-manifestado, de uma


«paragem», de um «laço» que impedem o desenvolvimento das
«formas», quer dizer da Vida cósmica. Não temos evidentemente o
direito de levar demasiado longe a aproximação entre Vrtra e Varuna.
Mas o parentesco estrutural não se pode negar entre «noturno», o «não-
atuante», o «mágico» Varuna que liga (amarra), à distância, os culpados19,
e o Vrtra "que «prende com cadeias» as Águas. Tanto a acção de um
como de outro tem como finalidade «parar» a vida, trazer a morte — no
plano individual num caso, no plano cósmico noutro.

«Deuses ligadores» na Índia Antiga

Na Índia védica, Varuna não é o único deus «ligador». Dentre os que


utilizam esta arma mágica salientam-se Indra, Yama, Nirrti. De Indra, por
exemplo, diz-se que trouxe um laço (sina) para Vrtra (RV, II, 30, 2) e que o
amarrou sem se servir de cordas (II, 13, 9). Mas Bergaigne, que põe em
relevo estes textos (op. cit., III, p. 115, n. 1), observa que «não se trata
evidentemente senão de um desenvolvimento secundário do mito, cujo
sentido é o seguinte: Indra volta contra o demónio as suas próprias
manhas.» Porque não são só Varuna e Vrtra que possuem o seu mâyâ,
mas outros seres divinos também: assim os Maruts (RV, V, 53, 6), Tvashtr
(X, 53, 9), Agni (I, 144, 1; etc.), Soma (IX, 73, 5; etc.) e até os Açvins (V, 78,
6; etc.; cf. Bergaigne, III, pp. 80 sq.). Mas, por um lado estamos muitas
vezes aqui perante seres religiosos ambivalentes, no sentido de que um
elemento demoníaco coexiste neles com elementos divinos (Tvashtr,
Maruts); por outro lado, o atributo de «mágico» não é específico e só é
dado às personalidades divinas como um acréscimo de homenagem: o
prestígio do mâyin é tal que se sente a necessidade de o atribuir a toda a

19 Seríamos mesmo tentados a ver neste mundo de castigo uma extensão, um


aprofundamento do tipo mesmo de Varuna, no sentido de ele forçar o culpado a
uma «regressão ao virtual, na imobilidade», estado que ele próprio representa
de certo modo.
98

divindade que se quer honrar. É um fenómeno bem conhecido na história


das religiões, e especialmente das religiões indianas, o fato da tendência
«imperialista» que leva uma forma religiosa vitoriosa a assimilar toda a
espécie de outros atributos divinos e a estender o seu domínio às diversas
zonas do sagrado. No caso de que nos ocupamos, esta tendência para a
anexação de prestígios e de poderes estrangeiros à esfera própria do deus
é tanto mais interessante quanto se trata de uma estrutura religiosa
arcaica, a saber: o prestígio do «mágico». E aquele que maior proveito
tirou disso foi Indra. «Ele triunfou dos mâyin por meio dos mâyâ»: tal é o
leitmotiv de numerosos textos (Bergaigne, III, p. 82). Entre as «magias» de
Indra coloca-se em primeiro lugar o seu poder de transformação20; mas
talvez seja oportuno distinguir entre as suas múltiplas epifanias
particulares, homologadas (touro, etc.) e o poder mágico indefinido que
permite a um ser qualquer (divino, demoníaco, humano) revestir uma
forma animal. Bem entendido, entre a esfera da epifania mítico-religiosa e
a da metamorfose, há interferências, empréstimos, confusões, e, num
domínio tão instável como a mitologia védica, nem sempre é fácil
distinguir o que pertence a uma e a outra. Mas é justamente esta
imprecisão e esta instabilidade que são instrutivas do ponto de vista
fenomenológico, pois elas revelam bem a tendência das «formas»
religiosas para se interpenetrar e se absorverem umas às outras e esta
perspetiva dialética não pode deixar de ajudar a compreender os
fenómenos religiosos arcaicos.
Voltemos a Indra. Este não é somente em alguns casos um
«mágico»: ele «liga também tal como Varuna e como Vrtra. A atmosfera é
o seu laço, e é com este laço que ele envolve os seus adversários (AV, VIII,
8, 5-8, etc.). O seu correspondente iraniano, Verethragna, liga as mãos do
adversário (Yasht, 14, 63). Mas esses são traços secundários e que se
explicam talvez pela autêntica utilização pré-histórica do laço à maneira
de arma21. É verdade que, na perspetiva do pensamento arcaico, uma

20 Ver Jarl Charpentier, Kleine Beitrãge zur indo-iranischen Mythologie (Uppsala,


1911), pp. 34 sq.; id., Brahman (Uppsala, 1932), p. 49, n. 1; T. Renou, op. cit., p.
141.
21 Ver Kurt Lindner, La Chasse préhistorique (trad. française, Paris, 1940), pp. 53
99

arma é sempre um meio mágico; mas isto não impede que um deus
propriamente guerreiro como Indra utilize este meio mágico em
verdadeiros combates, enquanto Varuna se serve dos seus «laços» sem
combater, sem agir, magicamente22.
Mais instrutivo é o exemplo dos outros deuses ligadores. Nirrti e
Yama, ambos divindades da morte. Os laços de Yama (yamasya padbiça,
AV, VI, 96, 2; VIII, 7, 28) são geralmente chamados «laços da morte»
(mrtyupâçâh, AV, VII, 112, 2; VIII, 2, etc.; cf. Scheftelowitz, p. 6). Nirrti, por
sua vez, prende com correntes aqueles que quer perder (AV, VI, 63, 1-2;
Taitt. Sam., V, 2, 4, 3; Çatapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 15), e pede-se aos
deuses que afastem «os laços de Nirrti» (AV, I, 31, 2), do mesmo modo
que o homem implora a Varuna que o salve dos seus «laços». Tal como,
em certos casos, Agni, Soma ou Rudra (Güntert, p. 122) são invocados
para libertar dos «laços» de Varuna, «supõe-se que Indra pode livrar não
só dos «laços» de Varuna», mas também da «amarração» dos demónios
da morte (por eXemplo, AV, IX, 3, 2-3, onde se trata de cortar os laços da
demónia Viçvavâra com a ajuda de Indra, etc.). As doenças são «laços» e a
morte o «laço» supremo. O que explica que, em Yama e em Nirrti, estes
atributos são, não só importantes, mas verdadeiramente constitutivos.
Doença e morte: estes dois elementos do complexo mágico--
religioso da «ligação» tiveram em quase todo o mundo a maior
popularidade e seria oportuno investigar se a sua difusão não é de molde
a esclarecer certos aspetos do problema que nos ocupa. Mas, antes de
deixar o domínio indiano, tentemos esquematizar os conjuntos mais
importantes que aí observámos: 1º Varuna, o Grande Asura, liga
magicamente os culpados e é-lhe pedido quer que não ligue, quer que
não desligue; 2º Vrtra prende com correntes as Águas e certos aspetos do
seu mito estão de acordo com o lado noturno, lunar, aquático de Varuna,
na medida em que estas modalidades do grande Deus exprimem o «não-
manifestado» e o «bloqueado»; 3º Indra, tal como Agni e Soma, liberta os

sq. e passim.
22 Sobre o râjanya ligado pelos deuses desde o ventre de sua mãe (o râjanya
nasceu ligado», Tratt Samhita, II, 4, 13, 1), cf. Dumézil, Flamen-Brahman, pp. 27
sq.
100

homens dos laços de Varuna e das correntes das divindades funerárias:


ele «corta» ou «quebra» estes «laços», exatamente como, no mito, ele
corta e retalha, etc., o corpo de Vrtra; a par dos processos guerreiros, que
lhe são próprios e mesmo exclusivos, ele também emprega portanto, para
triunfar do mágico Vrtra, «processos mágicos»: os «laços», em todo o
caso, não constituem nele um traço fundamental, mesmo que o laço deva
ser considerado como uma das suas armas; 4º pelo contrário, os laços, as
cordas, os nós, caraterizam as divindades da morte (Yama, Nirrti) e os
demónios das diversas doenças; 5º, enfim, nas versões populares dos
livros védicos, os encantos dirigidos contra os laços destes demónios não
são menos numerosos do que os sortilégios «ligadores» voltados contra
os inimigos humanos.
Vê-se que, mesmo assim resumidas, as coisas não são simples. No
entanto, desenham-se certas linhas de força: no plano mítico façanhas
divinas, por um lado o não-agir mágico de Varuna e de Vrtra, por outro a
acção de Indra; no plano humano das doenças e da morte, a importância
dos laços e dos nós nas divindades funerárias ou nos demónios, e a
utilização mágica da «ligação» tanto na medicina popular como nos
sortilégios. Assim, desde os tempos védicos, o complexo da «ligação»,
permanecendo caraterístico, constitutivo da zona de soberania mágica,
ultrapassa-a no entanto a nível superior (nível cosmológico: Vrtra e
inferior (nível funerário: Yuma, Nirrti; nível de «feitiçaria»).
Experimentemos ver que novos contatos uma comparação com os
outros domínios indo-europeus pode trazer a este quadro.

Trácios, germânicos, caucasianos

É provável, como o mostrou Güntert (op. cit., p. 154), que o nome do


deus trácio Darzales, confirmado pelas inscrições, se explique por um
radical que contém a noção de «ligar» (av. daràzeiti, «ligar», dàl-z, «corda,
101

laço») mas ignoramos quase tudo deste deus23. A mesma etimologia é


também válida, para o nome do deus geto-trácio Derzelates, bem
conhecido em Odessos24, onde se celebravam as darzaleia destinadas a
proteger as colheitas25, e atestado também em Tomis em aneis que
ostentam a inscrição Derzo26, e ainda pelos da deusa traco-frígia Bendis27,
do lituaniano Bentis28 e do iliriano Bindus29. Infelizmente, sabe-se muito
pouca coisa destes dois últimos: o sacrifício humano praticado pelos
ilirianos teria sido ofertado a Bindus?
Mais reveladores são certos rituais que foram conservados tanto no
domínio germânico como na região traco-frígia e caucasiana. Falando da
grande festa anual religiosa dos Semnons, Tácito (Germania, 39)
acrescenta que os participantes não podiam participar nela senão depois
de terem sido amarrados (nemo nisi vinculo ligatus ingreditur). Closs (pp.
564 sq., 609 sq., 643, 668), que comentou abundantemente este rito e
citou numerosos paralelos, considera-o como testemunho de submissão
para com a divindade nacional (p. 566), enquanto Petazzoni30 o classifica
antes entre as ordálias. Seja como for há fundamento para o comparar

23 Darzales foi identificado, na região pôntica (Sinope) com Sara-pis; cf. O.


Weinreich, Neue Urkunden zur Sarapis-Religion (Tübingen, 1919), p. 7,
considerando as investigações de Rostovtzeff. Cf. Stig Wikander, Vayu, 1 ('Lund-
Leipzig, 1941), pp. 43 sq.
24 Moedas e inscrições postas em relevo por Vasile Pârvan, Gerusia (Mémoires de
l'Académie Roumaine, Setion littéraire, 1919-1920, Bucarest, 1924), pp. 9, 23,
etc.
25 Documentação na revista Istros (publicada em língua francesa em Bucarest), 1,
1934, pp. 118 sq.
26 R. Vulpe, Histoire ancienne de la Dobroudja (no volume coletivo La Dobroudja,
editado pela Academia Romena, Bucarest, 1938, pp. 35-454), pp. 233, 237. Cf.
também Kazarow, em Pauly-Wissowa, XV, pp. 277 sq.
27 Assimilada a Artemisa (Herodoto, IV, 33); a Cibele e, nos hinos órficos, a
Persefona; cf. Güntert; p. 115, n. 1; considerada como orgíaca por Strabon, X, p.
470.
28 H. Usener, Götternamen (reimpresão, Bonn, 1929), p. 80.
29 A. Closs, Die Religion des Semnonenstammes. (Wiener Beiträg zur
Kulturgeschichte und Linguistik, IV, Salzburg-Leipzig, 1936, pp. 549-673), p. 619.
30 R. Pettazzoni, 'Regnator omnium deus' (in Studi e Materiali di Storia delle
Relligioni, XIX-XX, 1943-1946, pp. 142-156), p. 155.
102

com as cerimónias mitríacas de iniciação, em que o mista tinha as mãos


amarradas atrás das costas com uma corda31. Pensa-se também no anel
de ferro que os Chatti usavam «como uma cadeia» até que tivessem
matado o seu primeiro adversário (Germania, 31), no ritual de amarrar
com correntes usado entre os Albanianos (Strabon, XI, 503), bem como
nas correntes usadas pelos geórgianos devotos de «George Blanc»32, aos
rituais de «ligação» dos reis arménios (Tácito Annales, XII, 45; Closs, p.
619) e a certos costumes albaneses contemporâneos33. De todos estes
ritos ressalta uma atitude servil, apresentando-se o crente como um
escravo ou um cativo perante o seu senhor. A «ligação» concretiza-se
assim numa espécie de ato de vassalagem34. Closs (p. 620) tem talvez

31 F. Cumont, Les Religions orientales das le paganisme romain (4.' ed., Paris,
1929), gravura XIII; corda que era feita de intestinis pullinis segundo Ps.
Augustin, Quaest., V (Cumont, Textes et Monuments relatifs aux mystères de
Mithra [Bruxelles, 18944900], II, pp. 7-8).
32 Closs, p. 566; ibid., p. 643, citando O. G. Wesendonk, Ueber georgisches
Heidentum (in Caucasica, fasc. I, Leipzig, 1924), pp. 54 sq., 99, 101. G. Dumézil,
títulos (em Rev. Hist. Relig., t. CXI, 1935, pp. 66-89), pp. 69 sq. estudo segundo
fontes geórgicas os «escravos de Georges Blanc»: «quem deseja honrar ou
apaziguar Georges Blanc tornando-se seu escravo pega numa destas correntes
amarra-a ao pescoço e faz assim, quer a pé, quer de joelhos, a volta à igreja» Cf.
também Sergi Makalathia, Einig ethnographisch-archäologische Parallelen aus
Georgien (em Mitteilungen Anthropolog. Gesellschaft Wien, 60, 1930, pp. 361-
365).
33 Num julgamento de vendetta, o culpado deve apresentar-se perante o
«tribunal» com as mãos ligadas (Closs, op. cit., p. 600).
34 Basta comparar com este complexo germano-iliro-caucasiano as cerimónias de
«união pelo sangue» (o blood-brotherhood) praticadas um pouco por toda a
Europa, para avaliarmos a distância que separa a ligação «senhor-escravo» da
ligação entre «irmãos de cruz» (a expressão é romena, fratia de cruce); cf. sobre
as fraternidades pelo sangue, A. Dieterich, Mutter Erde (1ª edição, Leipzig-
Berlin, 1925), p. 130 sq.; o livro clássico de H. C. Trumbull, The Blood Covenant
(London, 1887), e Stith Thompson, Motif-Index of Folk-Literature, II (Helsínquia,
1935), p. 125. Ser-se-ia tentado a assimilar estas formas de fraternidade às
relações religiosas que existem entre os humanos e Mitra—em comparação
com as relações bastante duras entre Varuna e os seus devotos. O que não
implica de maneira nenhuma — muito pelo contrário — que o valor religioso de
Varuna seja «pobre»!
103

razão em atribuir o ritual dos Semnons à influência iliriana e considerá-lo


como pertencente, com caráter particular, a um nível cultural lunar-
tóniano tendo o seu centro nas regiões do Sul35. Mas, para além deste
ritual, encontram-se nos Germanos outros elementos que se integram
ainda no mesmo complexo da ((ligação»: por exemplo a morte ritual por
enforcamento explica o epíteto de Odhinn, «deus da corda» (Haptagud,
Closs, p. 609); do mesmo modo as deusas funerárias germânicas puxam
os mortos com uma corda36 e as deusas guerreiras (antiga-escandinávia
Disir, antiga alta--Alemanha Idisi) atam com cordéis aqueles que elas
querem que caiam37. Estes traços são de fixar: lembram a técnica de Yama
e de Nirrti; eles esclarecer-se-ão, aliás, pelos fatos que vamos citar.

Irão

Os dados iranianos são de dois tipos; 1º algumas alusões ao demónio


Astôvïdhôtush que também amarra o homem 'destinado a morrer38; 2º os
gestos dos deuses guerreiros e dos heróis iranianos; Frêdûn, por exemplo,
amarra o demónio Azdahâk e acorrenta-o ao monte Dimâgand (Dînkard,
IX, 21, 103), o deus Tishtrya ata os feiticeiros Pairika com duas ou três
cordas (Yasht, 8, 55); Verethragna como se viu, amarra os braços do

35 A. Closs, op. cit., pp. 643, 668. Segundo o mesmo autor (p. 567), a ligação ritual
da vítima seria um complexo das culturas megalíticas do Sudeste da Asia.
36 J. Grimm, Deutsche Mythologie, II, 705, IV, 254; Scheftelowitz, op. cit., p. 7.
37 R. H. Meyer, Altgermanische Religionsgeschicht (1910), p. 158, 160. Mas a
personalidade destas deusas é mais complexa; cf. Jean de Vries, Altgermanische
Religionsgeschichte, II (Berlin, 1937), pp. 375 sq.
38 Ele liga os moribundos com os seus «laços da morte» (derezâ maraithyaosh,
Yasna 53,8; Scheftelowitz, Die altpersische Religion, p. 92). «Ë Astôvidhôtush
quem o liga e Vayu quem arrebata 'o ligado», Vendidad, 5, 8; H. S. Nyberg,
Questions de cosmogonia et de cosmologia mazdéennes, II (em Journal
Asiatique otobre-décembre 1931, pp. 193-244), p. 205; G. Dumézil, Tarpeia
(Paris, 1947), p. 73. Cf. Mênokê Krrat 2, 115; G. Widengren, Hochgottglaube im
Iran (Uppsala, 1938), p. 196.
104

adversário (Yasht, 14, 63); em certos episódios do Shah Nameh, como


notou Scheftelowitz39, Ahriman segura um laço e há também os laços do
deus do destino. A ausência de um Soberano ligador, réplica iraniana de
Varuna não é inexplicável: que o lugar de Varuna só seja ocupado, como
geralmente se pensa, pelo deus supremo Ahura Mazdâh, ou que o seja
também, como sugere Dumézil (Naissance d'Archanges, 1945, pp. 82 sq.,
100 sq.), pelo amesha spenta Asha, estamos, em ambos dos casos,
perante entidades purificadas, moralizadas pela reforma zoroástrica, na
natureza das quais seria inconcebível que se reeencontrasse a «magia» de
Varuna. Os elementos «soberanos» que sobrevivem em Ahura Mazdâh
(Widengren, op. cit., pp. 259 sq.) não deixam de maneira nenhuma
entrever uma «soberania terrível», e se ele é por vezes deus do destino
(Yasna, 1, 1; trad. pehlevi, Widengren, p. 253), esse é um traço demasiado
vulgar dos deuses supremos e uranianos para que possamos tirar
qualquer conclusão. Mas, pelo fato de ignorarmos quase tudo acerca do
que seria o equivalente iraniano do Varuna védico, antes da reforma
zoroástrica, seria imprudente e seguramente falso concluir que o caráter
«ligador» de Varuna seja devido, na índia, a uma influência anariana.
Efetivamente, o grego Urano também liga os seus rivais e, tal como o
mostrou Dumézil (Ourânos-Varuna, passim), há razões para procurar no
mito de Urano e dos Uranídeos traços de um esquema já indo-europeu.
Seja como for, os fatos iranianos atestados não cobrem senão dois dos
motivos que isolámos do conjunto indiano: 1º o deus ou o herói ligador
de demónios; 2º o demónio funerário que ata o homem antes de o levar
para a a ponte Cinvat. Em consequência, talvez da reforma zoroástrica, os
'dois outros motivos importantes do conjunto indiano a «magia» de
Varuna e a o «ligar» cosmo-lógico — deixam de aparecer.

39 Das Schlingen-und Netzmotiv, p. 9; Die altpersische Religion, p, 9Z


105

Paralelos etnográficos

Seria vão formular qualquer conclusão geral acerca dos fatos indo-
europeus antes de ter alargado, tal como anunciámos, a nossa perspetiva
histórica e cultural e de ter integrado o complexo da «ligação» num grupo
mais vasto de simbolismos análogos ou idênticos. Mas desde já se podem
assinalar alguns paralelos etnográficos no grupo indo-europeu de deuses
e demónios funerários que «ligam» os mortos. A figura mais próxima do
par iraniano Vayu — Astôvidhôtush não é outro senão o deus chinês do
vento e da armadilha, Pauhi, que está em estreita relação com a deusa-
serpente Nakura, o que prova que ele pertence a um nível cultural tónico-
lunar40. Quanto às cordas de Yama, de Nirrti, de Astôvidhôtush e das
deusas germânicas, as suas réplicas mais exatas encontram-se no domínio
do Pacífico. Nos Aranda da Austrália, as demónias tjimbarkna atam
durante a noite as almas dos humanos e matam-nos apertando com força
a corda41. Nas ilhas Danger o deus da morte, Vaerua, liga os defuntos com
cordas e arrasta-os assim para o país dos mortos42. Nas ilhas Hervey, a
alma do defunto, descendo ao inferno por uma árvore miraculosa, avista
a rede do deus Akaanga que o espera e ao qual a alma não pode
escapar43. Em San Cristobal, o «Fisher of Soul», sentado num rochedo,
pesca as almas44. Nas ilhas Salomão, são os parentes que pescam a alma
do defunto para a colocarem numa caixa com uma relíquia corporal

40 Inone, citado por Closs, p. 643, n. 44. Cf. a lenda dos dois espíritos, Shen-t'u e
Yü-lei, que amarram as almas dos que morreram no fundo Ide uma caverna; C.
Hentze, Die Sakralbronzen und ihre Bedeutung in den frühchinesischen Kulturen
(Antuérpia, 1941), p. 23.
41 Carl Strehlow, Die Aranda-und Loritja-Stiimme in Zentral-Australien, I (Frankfurt
a. M., 1907), p. l 1.
42 W. Wyatt Gill, Life in the Southern Isles (London, 1876), pp. 181 sq.
43 W. Wyatt Gill, Myths and Songs from the South Pacific (London, 1876), pp. 161
sq.; cf. também E. S. C. Handy, Polynesian Religion (Honolulu, 1927), p. 73. Ver
M. Walleser, Religiöse Anschaungen u. Gebraüche der Bewohner von Jap
(Anthropos, VIII, 1913, pp. 607-629, pp. 612-613).
44 Dr. C. E. Fox, The Threshold of the Pacific (London, 1924), pp. 234 sq.
106

(crâneo, maxilar, dente, etc.)45. Os feiticeiros das ilhas Hervey possuem


armadilhas mágicas nas quais capturam as almas dos que querem
perder46. Encontra-se o mesmo costume em outras zonas culturais47, mas
é importante notar como na Melanésia a maneira pela qual o deus da
morte «pesca» e «amarra» as almas é análoga à técnica assassina dos
feiticeiros. Esta solidariedade entre as duas magias contribui para
esclarecer o problema da «ligação».
Viu-se que, entre os indo-europeus, os motivos dos laços, nós e
cordas se repartiam por diversos conjuntos distintos: entre certos deuses,
heróis ou demónios, certos rituais, certos costumes. Já é completamente
diferente o aspeto que o problema apresenta no mundo semítico: nele, os
laços mágicos de toda a espécie são um prestígio divino (e demoníaco)
mais ou menos universal. Há deuses soberanos, como Enlil e sua mulher
Ninkhursag (= Ninlil), ou então deuses lunares como En-zu (= Sin), que
apanham nas suas redes os que se tornam culpados de perjúrio48. Mas
Shamash, o deus solar, também está armado com laços e cordas, e é-lhe
suplicado, também, que liberte quem está ligado; a deusa Nisaba ata os
demónios das doenças; por seu lado os demónios possuem laços,
especialmente os demónios das doenças (invoca-se o demónio da peste
dizendo-lhe: «com a rede, liga e aniquila os babilónicos!»)49. Diz-se a Bêl
Enlil): «Pai Bêl, tu lanças os teus laços, e cada laço é um laço hostil»50.

45 W. G. Ivens, The Melanesians of the S. E. Solomon Islands (London, 1927), p.


178; o mesmo costume em Hawai, cf. E. S. Craighill Handy, op. cit., p. 92.
46 W. Wyatt Gill, Life..., pp. 180 sq.; Mythes..., p. 171.
47 O xamâ tanguze utiliza um laço para apanhar a alma fugitiva de um doente; S.
Shirokogorow, The psychomental complex of the Tungus (Shangai-London,
1935), p. 290. O xamã imita, aliás, a técnica dos espíritos; ibid., p. 178. O mesmo
complexo cultural entre os Tchuktches. Acerca deste problema ver o nosso livro
Le Chamanisme et les techniques archaiques de l'extase (Paris, 1951).
48 L. W. King, History of Sumer and Akkad (London, 1910), pp. 128 sq.; G. Furlani,
La religione babilonese-assira, I (Bologna, 1928), p. 159; E. Dhorme, Les Religions
de Babylonie et d'Assyrie (Colletion «'Mana», II, Paris, 1945), pp. 28, 49; E.
Douglas Van Buren, Symbols of the Gods in mesopotamian Art (Roma, 1945,
Analeta Orientalia, 23), pp. 11-12.
49 Scheftelowitz, Das Schlingen-und Netzmotiv, pp. 4 sq.
50 M. Jastrow, Die Religion Babyloniens und Assyriens, vol. II (Giessen, 1912), p. 15.
107

Tammuz é chamado «Senhor dos laços»51 si mas, no mito, ele próprio está
«ligado» e pede para ser salvo dos laços52. Pede-se a Marduk que livre das
cadeias e dos laços, pois ele é também um «senhor ligador». Tal como
Indra ele utiliza o laço e as cordas como deus campeão, à maneira
«heróica». No poema da Criação, Enuma Elish, distinguem-se duas
espécies de «ligação» que lembram o diptíco védico Varuna-Indra. Ea, o
deus das Águas e da sabedoria, não luta «heroicamente» com os
monstros primordiais Apsû e Mummu: ele liga-os por meio de encantos
mágicos para em seguida os matar (Enuma Elish, I, 60-74). Marduk, depois
de ter sido investido, pela assembleia dos deuses, de prerrogativas de
soberania absoluta (que até 'então pertenciam ao deus celeste Anu, IV, 4
e 7) e depois de ter recebido da mesma o ceptro, o trono e o pâlu (IV, 29),
empenha-se no combate contra o monstro marinho Tiamat e, desta vez,
assistimos verdadeiramente a uma luta «heróica»; mas a arma capital de
Marduk continua a ser a «rede», dom de seu pai Anu»53. Marduk «liga»
Tiamat (IV, 95) «acorrenta-o» e tira-lhe a vida (IV, 104). Põe em seguida a
ferros todos os deuses e demónios que tinham ajudado Tiamat, e, diz o
poema, «eles foram lançados nas redes, permaneceram nas armadilhas e
foram metidos em cavernas» (IV, 111-114, 117, 120). Marduk adquire a
soberania pela sua luta heróica, mas conserva também as prerrogativas
da soberania mágica. Se se tiver em conta também o valor mágico das
cordas, dos nós e dos laços na feitiçaria e na medicina popular (ver mais
adiante), a impressão geral que se desprende desta rápida exploração do
domínio mesopotâmico é a de uma confusão quase total. A «ligação»
parece ser um prestígio mágico-religioso que todas as «formas» religiosas
assimilam igualmente bem. Haveria interesse em que um 'especialista das
religiões mesopotâmicas retomasse o problema para determinar se se
pode reconstituir uma «história» por detrás desta confusão.

51 Scheftelowitz, op. cit., p. 4.


52 M. Witzel, Tammuz-Liturgien und Verwandtes (Roma, 1937, Analeta Orientalia,
10), p. 140; Geo Widengren, Mesopotamian elements in Manichaeism (Uppsala,
1946), p. 80.
53 Ibid., IV, 49. Na tábua I, 83, Marduk é filho de Ea, mas seja qual for o sentido
desta filiação, ela é da essência da soberania mágica. Seguimos a tradução
francesa de R. Labat, Le Poème babylonien de la Création (Paris, 1935).
108

Magia dos nós

Consideramos agora, no seu conjunto, a morfologia dos laços e dos


nós na prática da magia. Poder-se-iam classificar os fatos mais
importantes sob duas grandes rubricas: 1º os «laços» mágicos utilizados
contra os adversários humanos (na guerra, na feitiçaria), com a operação
inversa do «corte dos laços»; 2º os nós e laços benéficos, meios de defesa
contra os animais selvagens, contra as doenças e sortilégios, contra os
demónios e a morte. Contentemo-nos com alguns exemplos. Podem citar-
se, na primeira categoria, os laços mágicos voltados contra os adversários
(Atharva Veda, II, 12, 2; VI, 104; VIII, 8, 6), as cordas lançadas pelo
príncipe no caminho dos exércitos inimigos (Kauçîtaki Samhitâ, XVI, 6), a
corda enterrada junto da casa de um inimigo ou ainda escondida no barco
deste a fim de o fazer voltar-se54, os nós, enfim, que infligem toda a
espécie de males, tanto na magia antiga55 como nas superstições
modernas56. Quanto ao «corte dos laços», este é já utilizado por Atharva
Veda (por exemplo. VI, 14, 2, sq.); e, na mesma ordem de ideias, como
meio preventivo, lê-se frequentemente na literatura etnográfica que os
homens não devem usar nenhum nó sobre si próprios em certos períodos
críticos (parto, casamente, morte)57. Na segunda categoria, podem

54 Kauçitaki Samhitâ, XLVIII, 4-5; Caland, Altindische Zauberritual (Amsterdam,


1900), p. 167; v. Henry, La Magie dans linde antique (Paris, 1903), p. 229;
Scheftelowitz, p. 12.
55 Ezequiel, 13, 18-21; C. Fossey, La Magie assyrienne (Paris, 1902), p. 83; M.
Jastrow, The religion of Babylonia and Assyria (Boston, 1898), pp. 280 sq.; etc.
56 W. Crooke, The popular religion and folklore of Northern India (Westminster,
1896), II, pp. 46 sq.; S. Seligmann, Der bõse Blick (Berlin, 1910), I, 262, 328, sq.;
Scheftelowitz, p. 14; Frazer, Taboo, pp. 301, sq. (trad. fr., pp. 251 sq.); G. L.
Kittredge, Witchcraft in Old and New England (Cambridge, Mass., 1929), pp. 201
sq.; cf. Handwõrterbuch des deutschen Aberglaubens, s. v. Schlinge, Netz, etc.;
no folclore, Stith Thompson, Motif-Index, vol. II, p. 313.
57 Tudo deve ser aberto e desfeito para facilitar o parto, Frazer op. cit., pp. 296 sq.
(trad. fr., pp. 247 sq.); mas cf. a rede como defesa contra os demónios durante o
parto, entre os Kalmuks, Frazer, Folklore in the Old Testament, III (London,
1919), p. 473. A consumação de um casamento podia ser impedida pela magia
das cordas ou dos nós, Frazer, Taboo, pp. 299 sq. (trad. fr., p. 249). Não se pode
109

classificar-se todos os costumes que atribuem aos nós e aos laços uma
função de cura, de defesa contra os demónios, de conservação da força
mágico-vital. Já na antiguidade58 se ligava, para curar, a parte doente do
corpo e a mesma técnica é ainda nos nossos dias muito comum na
medicina popular59. Mais divulgado ainda é o costume de se defender
contra doenças e demónios com a ajuda de nós, de fios e de cordas60
especialmente durante o parto61. Um pouco por todo o mundo, se usam
nós à laia de amuletos62. É significativo o fato de se utilizarem nós e
barbantes no rito nupcial, para proteger os noivos63 quando são
justamente os nós, como se sabe, que podem impedir a consumação do
casamento. Mas esta ambivalência é das que se observam em todas as
utilizações mágico-religiosas dos nós e dos laços. Os nós provocam a
doença mas também a afastam ou curam o doente; as redes e os nós
enfeitiçam e também protegem contra a feitiçaria; impedem o parto e
facilitam-no; preservam os recém-nascidos e fazem-no adoecer; atraem a
morte e afastam-na. Em suma, o que é essencial em todos estes ritos
mágicos e mágico-médicos, é a orientação que se impõe à força que
reside numa «ligação» qualquer, em toda a acção de «ligar». Ora a

morrer enquanto houver fechaduras fechadas ou ferrolhos corridos na casa


(ibid., p. 309; trad. fr., p. 257) e, em certos lugares, desatam-se os atilhos da
mortalha para assegurar o repouso da alma (ibid., p. 310; trad. fr., p. 258). Em
contrapartida, para se defender contra as almas dos defuntos, as viúvas usam,
na Nova Guiné, redes em sinal de luto (Frazer, The Belief in Immortality, I
(London, 1913), pp. 241, 249, 260, 274, 293).É ainda como defesa contra os
espíritos dos mortos que se atam os cadáveres (Frazer, La Crainte des morts,
trad. fr., 2' série, Paris, 1935, pp. 53 sq.), se bem que o significado deste
costume seja mais complexo.
58 Kauçitaki-Sam. XXXII, 3, Caland, Altindische Zauberritual, p. 104; R. C.
Thompson, Semitic magic, its origins and development (London, 1908), pp. 165
sq.
59 Scheftelowítz, p. 29, n. 1; 31; Frazer, Taboo, p. 301 sq. (trad. fr., p. 252 sq.).
60 Assyrie; Thompson, op. cit., p. 171; Furlani, La Religione babilonese-assira, II
(Bologna, 1929, p. 166; Chíne, Inde: Scheftelowitz, p. 38.
61 Inde: W. Crooke, op. cit., II, p. 36; Todas, etc.: Scheftelowitz, p. 39; Afrique: ibid.,
p. 41.
62 Frazer, Taboo, pp. 308 sq. (trad. fr., p. 255 sq.); Scheftelowitz, p. 41.
63 Scheftelowitz, pp. 52 sq.
110

orientação pode ser positiva ou negativa, quer se tome, aliás, esta


oposição no sentido de «benéfica» e de «maléfica», quer no sentido de
«defesa» e de «ataque».

Magia e religião

Todas estas crenças e todos estes ritos nos conduzem, sem dúvida,
ao domínio da mentalidade mágica. Mas pelo fato de estas práticas
populares se relacionarem com a magia, ter-se-á o direito de considerar o
simbolismo geral da «ligação» como uma criação exclusiva da
mentalidade mágica? Não pensamos assim. Mesmo quando os ritos e
símbolos da «ligação» nos Indo--Europeus comportam elementos tónico-
lunares e, por conseguinte, revelam fortes influências mágicas — o que
não é certo — ficam por explicar outros documentos que exprimem não
somente uma experiência religiosa autêntica mas também uma
concepção geral do homem e do mundo que, essa sim, é
verdadeiramente religiosa e não mágica. Os dados mesopotâmicos que
passámos em revista, por exemplo, não se deixam reduzir em totalidade a
uma interpretação mágica. Entre os Hebreus as coisas são ainda mais
claras: é verdade que a Bíblia fala das «redes da morte» (por ex.: «os laços
da Mansão dos Mortos tinham-me envolvido, os laços da morte tinham-
me surpreendido», II Samuel, 22, 6; cf. Salmo, 18, 6; «os laços da morte
tinham-me envolvido, as angústias da Mansão dos Mortos tinham tomado
conta de mim, estava oprimido pelo sofrimento e pela dor; então
invoquei o nome do Eterno. Oh Eterno, liberta a minha alma! »; Salmo,
116, 3-4). Mas o senhor terrível destes laços, é o próprio Yahvé e os
Profetas representam-no com redes na mão, para punir os culpados:
«Enquanto eles para lá se dirigirem, estenderei a minha rede sobre eles e
fá-los-ei cair numa armadilha como aves do céu» (Oseias, 7, 12);
«Estenderei a minha rede sobre ele; ele ficará preso nos meus laços e
levá-lo-ei à Babilónia» (Ezequiel, 12, 13; cf. 17, 20); «Sobre ti estenderei a
minha rede» (ibid., 32, 3). E a experiência religiosa, tão profunda e tão
111

autêntica de Job encontra a mesma imagem para exprimir o poder de


Deus: «Sabei portanto que foi Deus que me confundiu e que estendeu
seus laços em meu redor!» (Job, 19, 6). Os judeo-cristãos que sabiam que
é o demónio que «liga» os doentes (por ex. Lucas, 13, 16), falavam
todavia também do Deus Supremo como do «senhor dos laços».
Encontramos assim, no mesmo povo, uma multivalência mágico-religiosa
dos «laços»: laços da morte, da doença, da feitiçaria — e também laços de
Deus64. «Uma rede se encontra estendida sobre todos os seres vivos»,
escrevia Rabbi Aquipa (Pirqê Abôt, 3, 20; Scheftelowitz, p. 11). A fórmula é
feliz, porque não exprime uma visão exclusivamente «mágica» ou
«religiosa» da vida — mas, em toda a sua complexidade, a própria
situação do homem no mundo; para usar uma terminologia em voga, ela
exprime a condição do próprio ser existente.
De fato, o «fio da vida» simboliza em bastantes países o destino
humano. «O fio da sua vida» (lit.: a corda da sua tenda) quebrou-se!
exclama Job (4, 21; cf. 7, 6). Aquiles, como todos os mortais, «sofrirá o
que o destino, quando do seu nascimento, teceu para ele com o linho,
quando a mãe o deu à luz» (Ilíada, 20, 128; cf. 24, 210). As deusas do
destino tecem o fio da vida humana: «Aí nós o deixaremos sofrer o
destino que nos seus fusos puseram as tristes Fiandeiras, na hora em que,
de sua mãe, recebeu a vida...» (Odisseia, 7, 198, trad. V. Bérard)65. Mas há
mais ainda: o próprio Cosmos foi concebido como um tecido, como uma
enorme «rede». Na especulação indiana, por exemplo, o ar (vâyu)
«teceu» o Universo, ligando, como que por um fio, este mundo e o outro
mundo e todos os seres em conjunto (Brhadâranyaka Up., III, 7, 2), tal
como o sopro (prava) «teceu» a vida humana. («Quem teceu nele o
sopro?», Atharva Veda, X, 2, 13). Daí resulta que um simbolismo bastante
ramalhudo exprima duas coisas essenciais: por um lado que no Cosmos,
como na vida humana, tudo está ligado a tudo por uma textura invisível e,

64 Por conseguinte estamos no direito de supor que certas alusões védicas aos
laços de Varuna também exprimem uma experiência religiosa comparável à de
Job.
65 Cf. vitae fila, Ovídio, Héroides, 15, 82. Ver o capítulo sobre os rituais e as
mitologias lunares no nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 142 sq.
112

por outro lado, que certas divindades66 são senhoras destes «fios» que,
em última instância, constituem uma vasta «ligação» cósmica.
É raro que a etimologia forneça um argumento decisivo em
problemas tão delicados como os que dizem respeito à «origem» da
religião e da magia; mas ela é frequentemente instrutiva. Schftelowitz e
Güntert lembraram que, em várias famílias linguísticas, as palavras que
designam a acção de «ligar» servem igualmente para exprimir o
encantamento: por exemplo em turco-tártaro, bag, baj, boj significa
simultaneamente «feitiçaria» e «laço, corda»67; em grego xcerccaáco
significa «ligar solidamente» e também «ligar por encanto de magia,
fazendo um nó» (donde zorrckasvp.o.; «corda, enfeitiçar», Inscr. Graec.,
III, 3, p. v.; Scheftelowitz, p. 17); o latim fascinum, «encanto, malefício» é
aparentado com fascia, «faixa, ligadura», com fascis, «feixe»; ligâre,
«ligar», ligâtura, «acção de ligar» são também «encantar» e «encanto»
(cf. o romeno legatura, «acção de ligar» e «enfeitiçar»); o sk. yukti,
propriamente «atrelar, ligar», toma o sentido de «processos mágicos», e
os poderes do yoga são por vezes compreendidos como um
encantamento por «ligação»68. Todas estas etimologias confirmam que a
acção de ligar é essencialmente mágica. Estamos aqui perante uma
«especialização» extrema: enfeitiçar, ligar por magia, fascinar, etc.
Etimologicamente, religio nota também uma forma de «ligação» à
divindade, mas seria imprudente (como o faz Güntert, p. 130)
compreender religio no sentido de «feitiçaria». Pois, como dissemos,

66 Na maior parte do tempo — mas não sempre — divindades lunares, por vezes
tónico-lunares.
67 H. Vambéry, Die primitive Kultur des turko-tatarischen Volkes (Leipzig, 1879), p.
246. A noção de «quebrar o feitiço» exprime-se pela frase «libertar dos laços»;
entre os Yoruba, a palavra edi, «ligação», tem também o sentido de «magia» e a
palavra Ewe vôsesa, «amuleto», significa «desligar» (A. B. Ellis, Yoruba-speaking
peoples, London, 1894, p. 118).
68 Por ex., Mahabhârata, XIII, 41, 3 sq., onde Vipula «tinha subjugado os sentidos
[de Rucí] por meio dos laços do Yoga» (babandha yogabandhâiç ca tasyâh
sarvendriyâni sah cf. mon Yoga. Essai sur les origines de la mystique indienne,
Paris-Bucarest, 1936, p. 151). Ver também Ananda K. Coomaraswamy, «Spiritual
Paternity» and the «Puppet-Complex» (in Psychiatry, VIII, Nr. 3, August 1945,
pp. 25-35), especialmente pp. 29 sq.
113

tanto a religião como a magia contêm na sua essência o elemento


«ligação», se bem que, evidentemente, com uma outra intensidade e
sobretudo com orientação contrária.

Simbolismo das «situações-limite»

Vários outros complexos simbólicos caraterizam, quase com as


mesmas fórmulas, a estrutura do Cosmos e a «situação» do homem no
mundo. A palavra babilónica markasu, «ligação, corda», designa na
mitologia «o princípio cósmico que une todas as coisas» e também «o
suporte, a força e a lei divina que mantêm coeso o Universo»69. Do
mesmo modo Tchuang Tseu (cap. VI) fala do tao como da «cadeia de toda
a criação»70, o que lembra a terminologia cosmológica indiana. Por outro
lado o labirinto é por vezes concebido como um «nó» que deve ser
«desatado», e esta noção tem lugar num conjunto metafísico-ritual que
contém as ideias de dificuldade, de perigo, de morte e de iniciação71. Num

69 S. Langdon, Semitic Mythology (Boston, 1931), p. 109. Vários templos


babilónicos são chamados markas shamê ic irshiti, «Ligação entre Céu e Terra»,
cf, E. Burrows., Some cosmological patterns in babylonian religion (no volume
Labyrinth, editado por S. H. Hook, London 1935, pp. 45-70), p. 47-48, n. 2. Um
antigo nome sumério do templo é «dimgal da região». Burrows (p. 47, n. 7)
propõe a tradução «Great binding post»; dim «post», etc., e também «rope»;
provavelmente dim = «to bind, thing to bind to, thing to bind with». O
simbolismo da «ligação» encontra-se aqui integrado num conjunto mais vasto a
que poderia chamar-se «simbolismo do Centro»; of. mais atrás, pp. 52 sq.
70 The link of all Creation, trad. Hughes Everyman's Library, p. 193). O caráter
traduzido por «link» é hsi (Giles 4062), cujos sentidos são «dependence,
fastening, tie, link, nexus, chain, lineage, etc.», cf. A. K. Coomaraswamy, The
iconography of Dürer's «Knots» and Leonardo's «concatenation» (in The Art
Quarterly, Spring, 1944, pp. 109-128), p. 127, n. 19.
71 Cf. os labirintos em forma de nós nos rituais e crenças funerárias em Malekula;
A. Bernard Deacon, Geometrical Drawings from Malekula and other Islands of
the New Hebrides (in Journal of the Anthropological Institute, vol. LXVI, 1934,
pp. 129-175); id., Malekula. A vanishing people of the New Hebrides (London,
114

outro plano, o do conhecimento e da sabedoria, encontram-se expressões


similares: fala-se da «libertação» das ilusões (que, na Índia, tomam o
mesmo nome da magia de Varuna, mâyâ); procura-se «rasgar» os véus da
irrealidade, «desfazer» os «nós» da existência, etc. Isto dá a impressão de
que a situação do homem no mundo, seja qual for a perspetiva adoptada,
exprime-se sempre por palavras-chaves que contêm a ideia de «ligação,
de acorrentação, de união», etc. No plano mágico, o homem serve-se de
nós-amuletos para se defender dos demónios e dos feiticeiros; no plano
religioso, sente-se «ligado» por Deus, preso no seu «laço»; mas a morte
também o «liga», concretamente (o cadáver é «atado») ou
metaforicamente (os demónios «ligam» a alma do defunto). Melhor
ainda; a própria vida é um «tecido» (por vezes um tecido mágico de
proporções cósmicas, mâyâ) ou um «fio» que prende a vida de cada
mortal. Estas diversas perspetivas têm certos pontos comuns: sempre e
em toda a parte a finalidade última do homem é libertar-se dos «laços»: à
iniciação mística do labirinto, durante a qual se aprende a desatar o nó
labiríntico para se ser capaz de o desfazer quando a alma o encontrar
depois da morte, responde a iniciação filosófica, metafísica, cuja intenção
é «rasgar» o véu da ignorância e libertar a alma das. cadeias da existência.
Sabe-se que o pensamento indiano é dominado por esta sede de
libertação e que a sua terminologia mais caraterística se deixa reduzir a
fórmulas polares tais como «acorrentado-libertado», «ligado-desligado»,
«unido-desunido», etc72. As mesmas fórmulas ocorrem na filosofia grega:
na caverna de Platão os homens estão presos por correntes que os
impedem de se movimentar e de voltar a cabeça (Rep., VII, 514 a sq.). A
alma «após a queda, foi aprisionada, foi acorrentada...; ela está, diz-se,

1934), especialmente pp. 552 sq.; John Layard, Totenfahrt auf Malekula (in
Eranos-Jahrbuch 1937, Zürich, 1938), pp. 242-291; id., Stone Men of Malekula
(London, 1942), pp. 340 sq., 649 sq. Interpretações comparativas, W. F. Jackson
Knight, Cumaean Gates (Oxford, 1936); Karl Kerényi, Labyrinth-Studien (Albae
Vigilae, XV, Amsterdam-Leipzig, 1941).
72 Ver nosso livro Techniques du Yoga, passim. No seu artigo The iconography of
Dürer's «Knots», A. K. Coomaraswamy estudou os valores metafísicos dos nós e
a sua sobrevivência na arte popular bem como em certos artistas da Idade
Média e da Renascença.
115

num túmulo e numa caverna, mas, ao voltar-se para os pensamentos, ela


liberta-se dos seus laços...» (Plotin, Ennéades, IV, 8, 4; cf. IV, 8, 1: «O
caminho para a inteligência é, para a alma, a libertação dos seus laços.»)
Esta multivalência do complexo de «ligação» — que acabamos de ver
nos planos cosmológico, mágico, religioso, iniciático, metafísico,
soteriológico — é provavelmente devida ao fato de o homem reconhecer
neste complexo uma espécie de arquétipo da sua própria sivação no
mundo. Com isso ele contribui, antes de mais, para pôr um problema de
antropologia filosófica no qual a investigação propriamente filosófica
ganhará bastante em não negligenciar estes documentos respeitantes a
certas «situações-limite» do homem arcaico pois, se o pensamento
contemporâneo se gaba de ter redescoberto o homem concreto, não é
menos verdade que as suas análises incidem sobretudo na condição do
Ocidental moderno e que ele peca assim por uma falta de universalismo,
por uma espécie de «provincianismo» humano decididamente monótono
e estéril.
O complexo de «ligação» põe, por outro lado, ou melhor, constitui
um problema que interessa ao mais alto grau à história das religiões. Não
somente pelas relações que descobre entre a magia e a religião, mas
sobretudo porque nos revela aquilo a que poderíamos chamar
proliferação das formas mágico-religiosas e «fisiologia» dessas formas:
temos a impressão de assistir a uma «ligação» — arquétipo que tenta
realizar-se tanto nos diferentes planos da vida mágico-religiosa
(cosmologia, mitologia, feitiçaria, etc.) como nos diferentes níveis de cada
um destes planos (por exemplo a grande magia e a pequena magia; a
feitiçaria agressiva e a feitiçaria defensiva, etc.). Num certo sentido pode
mesmo dizer-se que se o «soberano terrível», histórico ou historicizado, se
esforça por imitar o seu protótipo divino, o «deus ligador», qualquer
feiticeiro imita também o soberano terrível e o seu modelo transcendente.
Morfologicamente não existe solução de continuidade entre Vrtra que
«acorrenta» as Águas, Varuna que «liga» os culpados, os demónios que se
apoderam dos mortos na sua «rede» e os feiticeiros que atam
magicamente o adversário ou desligam as vítimas de outros feiticeiros. A
estrutura de todas estas operações é a mesma. No estado atual dos
116

nossos conhecimentos, é difícil precisar se esta uniformidade provém da


imitação, de empréstimos «históricos» (no sentido que a escola histórico-
cultural dá a este termo), ou se ela se explica pelo fato de todas estas
operações decorrerem da própria situação do homem do mundo, quer
dizer são as variantes de um mesmo arquétipo que se realiza
sucessivamente em planos múltiplos e em áreas culturais diferentes.
Parece certo que, pelo menos no caso de alguns complexos (o da
soberania mágica indo-europeia, por exemplo), estamos perante
conjuntos mítico-rituais que são historicamente solidários. Mas a
realidade histórica do complexo indo-europeu da «ligação» não implica
necessariamente que todos os outros costumes e crenças mágico-
religiosas difundidos pelo mundo fora e relativos a um complexo similar
sejam, também, históricos (isto é, derivem de um mesmo dado ancestral,
ou resultem de influências diretas ou indiretas, de empréstimos, etc.).
Para precisar o nosso pensamento, acrescentemos que se o caso
particular indo-europeu não implica necessariamente esta conclusão,
também não a exclui e que, por prudência, a questão deve permanecer
em aberto.

Simbolismo e história

Mas, a título comparativo, poderíamos citar um caso análogo: o


complexo da ascensão ritual e do voo mágico. Se se podem distinguir
certas relações históricas (filiação, empréstimos) entre as diversas crenças
e sistemas (rituais, místicas, etc.) que incluem a ascensão como um dos
seus elementos essenciais73, a morfologia da ascensão e do simbolismo do
voo ultrapassa muito estas relações históricas. Mesmo que se chegue um
dia a identificar a fonte histórica que é responsável por todos os rituais e
simbolismos sociais da ascensão, mesmo que se esteja, por conseguinte,

73 Ver nosso livro Le Chamanisme et les techniques archaiques de l'extase, pp. 137
sq., 296 sq., 362 sq., 423 sq., e passim.
117

em estado de precisar o mecanismo e as etapas da sua difusão, ficaria


ainda por explicar o simbolismo do sonho ascensional, dos devaneios e
visões estéticas que, não só estão centrados em torno do complexo de
ascensão e do voo, mas apresentam este complexo já organizado e
carregado dos mesmos valores que revelam os rituais, os mitos e os
philosophoumena da ascensão. Já demos, aliás, os primeiros passos para
tal estudo comparativo74. Contentemo-nos em concluir que estamos
perante expressões não históricas de um mesmo simbolismo arquetípico
que se manifesta de maneira coerente e sistemática tanto no plano do
«inconsciente» (sonho, alucinação, sonho acordado) como nos do «trans-
consciente» e do consciente (visão estética, rituais, mitologia,
philosophoumena). Sublinhemos de passagem que as manifestações do
inconsciente e do subconsciente apresentam uma estrutura e valores que
se harmonizam perfeitamente com os das manifestações conscientes; e
como estas últimas são «racionais» no sentido de que os seus valores se
justificam logicamente, poder-se-ia falar de uma «lógica» sub ou
transconsciente que não seria sempre heterogénea à lógica «normal»
(por isto entendemos: a lógica clássica ou a do bom senso).
Provisoriamente aceitemos pois a hipótese de que pelo menos uma certa
zona do subconsciente é dominada pelos mesmos arquétipos que
dominam e organizam igualmente as experiências consciente e trans-
cons- ciente. Deste modo teríamos o direito de considerar as múltiplas
variantes de um complexo simbólico (nos nossos exemplos, o complexo
da «ascenção» ou o da «ligação») como uma sucessão infinita de
«formas» que, nos diferentes planos do sonho, do mito, do rito, da
teologia, da mística, da metafísica, etc., tentam «realizar» o arquétipo.
É claro que todas estas «formas» não são espontâneas nem
dependem diretamente do arquétipo ideal; muitas são «históricas», no
sentido de serem o resultado da evolução ou da imitação de uma forma já
existente. Certas variantes da feitiçaria pela «ligação» apresentam um
aspeto simiesco bastante desconcertante; tem-se a impressão de que elas
copiaram, no seu plano limitado, as «formas históricas», já existentes, da

74 D uroh ân a and the «waking dream», in Art and Thought (A volume in Honour of
the late Dr. Ananda K. Coomaraswamy, London, 1947), pp, 209-213.
118

soberania mágica ou da mitologia funerária. Mas é preciso ser prudente,


pois é um fato geral que as variantes patológicas dos complexos religiosos
apresentam também um fácies simiesco.
O que parece mais seguro, é a tendência de toda a «forma histórica»
para aproximar-se o mais possível do seu arquétipo, mesmo quando foi
realizada num plano secundário, insignificante: este fenómeno verifica-se
em todo o lado na história religiosa da humanidade. Qualquer deusa local
tende para se transformar na Grande Deusa; qualquer aldeia é o «Centro
do Mundo»; qualquer feiticeiro se pretende no rigor dos seus ritos,
Soberano Universal. É esta mesma tendência para o arquétipo, para a
restauração da forma perfeita — de que um rito, um mito ou uma
qualquer divindade não passam de variantes, muitas vezes bastante
pálidas — que torna possível a história das religiões. Sem ela a experiência
mágico-religiosa criaria continuamente formas fulgurantes ou
evanescentes de deuses, de mitos, de dogmas, etc., e o observador
encontrar-se-ia perante um pulular de tipos sempre novos, que não
permitiriam qualquer ordenação. Mas, uma vez «realizada»,
«historicizada», a forma religiosa tende a libertar-se dos seus
condicionalismos de tempo e de lugar tornando-se universal, buscando o
arquétipo. Enfim, o «imperialismo» das formas religiosas vitoriosas
explica-se também por esta tendência que leva toda a hierofania ou
teofania a transformar-se no «Todo», isto é, a esgotar, por si só, a
manifestação do sagrado, a incorporar em si a imensa morfologia .do
sagrado75.
Seja o que for que se depreenda destas vistas gerais, é provável que
o complexo mágico-religioso da «ligação» corresponda bem a um
arquétipo ou a uma constelação de arquétipos (chamámos a atenção para
alguns: a tecitura do Cosmos, o fio do destino humano, o labirinto, a
cadeia da existência, etc.). A ambivalência e heterogeneidade dos motivos
da «ligação» e dos nós, e também da «libertação dos laços», confirmam
como são múltiplos e diversos os planos sobre os quais os arquétipos se
«realizaram». Isto não quer dizer, bem entendido, que, no interior desta

75 Ver Traité d'Histoire des Religions, pp. 392 sq.


119

massa enorme dos fatos relativos aos complexos mágico-religiosos


considerados, não se possam distinguir certos conjuntos historicamente
solidários, e que não se tenha o direito de os considerar como
dependentes uns dos outros ou como saídos todos de uma fonte comum.
Foi o que Güntert, Dumézil e A. Closs fizeram, em perspetivas diferentes,
no domínio europeu. Hesitar-se-á em seguir Closs quando este cientista,
fiel aos princípios da escola histórico-cultural de Viena76, pretende
explicar tal rito ou tal mito de «ligação» americano ou melanésiano como
dependendo historicamente da fonte que deu também origem às formas
indo-europeias. Mais verosímil é a sua hipótese da origem caucasiana (p.
643) do complexo de «ligação» ritual indo-europeu: os Finno-Ugrianos e
os Turco-Tártaros ignoram tanto os ritos como os mitos da «ligação», o
que parece indicar nitidamente que a origem deste complexo deve ser
procurada nos países do Sul. De fato, os paralelos mais próximos do rito
georgiano das cadeias de «Georges Blanc» (ver mais atrás) encontram-se
na Índia: de um lado o anel de ferro que o feiticeiro (Panda) dos Gonds77
usa em volta do pescoço durante os nove dias da festa de Kâli-Dûrga
(festa chamada, entre os Gonds, de zvârâ, palavra derivada do hindi
javárâ, «aveia», o que prova a sua origem agrária); de outro lado os anéis
de ferro que rodeiam o pescoço de um ídolo feminino e de «Proto-Shiva»
encontrados em Mohenjo-Daro78. Seria, bem entendido,
imprudente encarar uma derivação direta do rito atual dos Gonds a
partir da cultura proto-histórica do Indus, mas a aproximação

76 A escola histórico-cultural de W. Schmidt e W. Koppers prestou até hoje


importantes serviços à história das religiões, mas as suas teses, levadas ao
extremo, acabam numa tal «historicização» do homem que se anula
praticamente qualquer espontaneidade espiritual. Se não se pode conceber o
homem senão como ser histórico, não é menos verdade que pela sua própria
natureza o homem se opõe à história e se esforça por a anular e reencontrar,
por todos os meios, um «paraíso» intemporal, onde a sua situação seja menos
uma «situação histórica» do que uma «situação antropológica» (ver nosso livro
Le Mythe de l'Éternel Retour).
77 Cf. W. Koppers, Zentralindísche Fruchtbarkeitsriten und itere Beziehungen zur
Induskultur (in Geographica Helvetica, I, 1946, Heft 2, pp. 165-177), pp. 168 sq.
78 Cf. J. Marshall, Mohenjo-Daro and the Indus Civilization (Londou, 1931), t. I,
estampa XII, 8, 17.
120

estabelecida por W. Koppers entre estes fatos não é desprovida de


interesse79.
Todavia, a frequência dos motivos da «ligação», dos «nós», etc., nas
camadas arcaicas das religiões mesopotâmicas está ainda por explicar.
Seria ela uma variante lateral que, ao contrário do que aconteceu com os
Indo-Europeus, não teria conseguido organizar-se num sistema teológico
e ritual e impor-se no conjunto da vida religiosa, variante que se teria
então multiplicado até ao infinito, transformada tanto em prestígio divino
como demoníaco, que teria sido anexada por toda a divindade e utilizada
por todo o feiticeiro? O que é certo é que apenas entre os Indo-Europeus,
o complexo da «ligação» se encontra organicamente integrado na própria
estrutura da soberania terrível divina ou humana, e que é só entre os
Indo-Europeus — como o demonstraram nomeadamente as investigações
de Dumézil — que nos encontramos perante um sistema coerente e de
aplicação geral aos planos ritual, mitológico, teológico, etc. Mas que,
mesmo entre os Indo-Europeus, este sistema, centrado sobre a
concepção do Soberano Terrível, não tenha esgotado o poder criador das
formas mágico-religiosas e dos simbolismos relativos à «ligação», as
páginas anteriores tentaram mostrá-lo, e tentámos até mesmo encontrar
uma explicação deste fato no plano da magia, da mitologia e da própria
religião: ele seria devido quer à própria situação do homem no mundo
(«origem» espontânea) quer a uma imitação mais ou menos servil de
formas já existentes («génese» histórica). Mas, seja qual for a explicação
que se preferir, a complexidade da concepção indo-europeia do deus
Soberano Terrível é doravante certa. Começa-se a entrever a pré-história,
está-se preparado para aí distinguir eventuais empréstimos a tradições
religiosas estrangeiras. Seria talvez impróprio definir esta concepção
como sendo exclusivamente uma concepção mágica, se bem que a sua

79 A função ritual dos nós nas religiões egeias (Arthur Evans, The palace of Minos,
I, pp. 430 sq.) não está ainda resolvida: negada por M. P. Nilsson, que a reduz a
um valor puramente decorativo (Minoan-Mycenaean Religion, Lund, 1927, pp.
137 sq., 349 sq.), esta função ritual foi recentemente confirmada por Axel W.
Persson, The Retigion of Greece in prehistoric times (Berkeley e Los Angeles,
1942), p. 38 e p. 68. Cf. também Charles Picard, Les Religions préhelléniques.
Crète et Mycènes (Paris, 1948), pp. 194-195.
121

estrutura nos convide muitas vezes a classificá-la assim: por um lado


sublinhámos, na própria índia, os valores cosmogónicos e metafísicos da
«ligação» de Varuna e Vrtra; por outro lado as experiências religiosas
provocadas, nos Hebreus, pelo mesmo complexo provam que uma vida
religiosa muito pura e muito profunda pode encontrar o seu alimento
mesmo nos «laços» de um Deus aparentemente terrível e «ligador».
122

Notas sobre o simbolismo das conchas

A Lua e as águas

As ostras, as conchas marinhas, o caracol, a pérola, são solidários


tanto das cosmologias aquáticas como do simbolismo sexual. Todos
participam, com efeito, nas forças sagradas concentradas nas Águas, na
Lua, na Mulher; são, além do mais, por diversas razões, emblemas destas
forças: semelhança entre a concha marinha e os orgãos genitais da
mulher, relações reunindo as ostras, as águas e a lua, enfim simbolismo
ginecológico e embriológico da pérola, formada na ostra. A crença nas
virtudes mágicas das ostras e dos moluscos encontra-se no mundo inteiro
desde a pré-história aos tempos modernos1. O simbolismo que está na

1 G. F. Kunz e Charles Hugh Stevenson, The Book of the Pearl (London 1908),
recolheram material documental considerável respeitante à difusão das pérolas;
J. W. Jackson, The geographical distríbution of the use of Pearls and Pearl-shells
(53 p., Manchester, 1916; monografia republicada no volume Shells as Evidence
of the migration of Early Culture, Manchester, 1917) completa as informações
de Kunz e Stevenson. Encontrar-se-á o essencial da extensa bibliografia sobre a
função mágica das conchas no artigo de W. L. Hildburgh, Cowrie-shells as
amulets in Europe (Folk-Lore, vol. 53-54, 1942-1943, pp. 178-195). CL também
as diversas contribuições para o problema publicadas na revista Man; otobre
1939, No 165, p. 167 (M. A. Murray, The meaning of Cowrie-shell, pensa que o
valor mágico do cauri lhe vem da sua semelhança tom um olho semi-fechado);
Janeiro 1940, No. 20 (Murray respondendo a Sheppard); No. 61, pp. 50-53 (Dr.
Kurt Singer, Cowrie and Baubo in early Japan, publica uma estatueta neolítica
japonesa que demonstra a assimilação da concha à vulva); No. 78 (C. K. Meek,
Cowrie in Nigeria), No. 79 (M. D. W. Jeffreys, Cowrie-shells in British Cameroun:
123

origem de tais concepções pertence muito provavelmente a uma camada


profunda do pensamento «primitivo». Mas ele conheceu «atuações» e
interpretações variadas: encontra-se ainda a presença das ostras e dos
moluscos nos ritos agrários, nupciais ou funerários, na ornamentação de
vestuário ou em certos motivos decorativos, mesmo que, mais do que
uma vez, metade dos seus significados mágico-religiosos pareçam ter-se
perdido ou abastardado. Entre certos povos as conchas continuam a ser
motivos de decoração, enquanto a sua valência mágica nem sequer já
constitui lembrança. A pérola, ontem emblema da força geradora ou
símbolo de uma realidade transcendental, conservou apenas, no
Ocidente, o valor de «pedra preciosa». A degradação ininterrupta do
simbolismo aparecerá mais nitidamente no fim do nosso trabalho.
O conjunto iconográfico Água-ostras é abundantemente atestado na
América pré-columbiana. O «Tula relief» de Malinche Hill representa uma
divindade rodeada de Água onde se banham ostras, espirais, círculos
duplos2. No Codex Nuttall predomina o complexo iconográfico Agua-
Peixe-Serpente-Caranguejo-Ostra3. O Codex Dresdensis representa a Água
quer escorrendo de cascas de ostras quer enchendo jarras formadas por
serpentes enroladas4. O deus mexicano da tempestade usava uma
corrente de ouro da qual pendiam pequenas conchas marinhas5; o deus
da lua tinha por símbolo um grande caracol do mar6.
Na China antiga o simbolismo da ostra está ainda mais bem

contra a hipótese de Mlle. Murray), No. 101 (Balkans), No. 102 (J. H. Huttons;
Naga Hills), No. 187 (Grigson; Central Provinces, India); 1941, No. 36 (C. K.
Meek; Nigeria); No. 37 (Fidji, Égypt, Saxons); 1942, No. 71 (M. D. W. Jeffreys:
Cowry, Vulva, Eye).
2 Peñafiel, Monumentos dei arte mexicano antiguo, p. 154, reproduzido por Leo
Wiener, Mayan and Mexican Origins (Cambridge, 1926), estampa IV, fig. 8.
3 Wiener, ibid. estampa IV, fig. 13; estampa VII, fig. 14, reproduzindo o Codex
Nuttall, p. 16, 36, 43, 49.
4 Codex Dresdensis, p. 34, etc., reproduzido por Wiener, fig. 112-116.
5 B. de Sahagun, Historia general de las cosas de Nueva España (Mexico, 1896),
vol. I, cap. 5; Wiener, p. 68; cf. fig. 75.
6 J. W. Jackson, The Aztec Moon-Cult and its relation to the Chank-cult of India
(Manchester Memoirs, Manchester, 1916; vol. 60, No. 5), p. 2.
124

conservado: as conchas participam na sacralização da Lua ao mesmo


tempo que prolongam as forças aquáticas. No tratado ch'un ts'iu (século
III A.C.) pode ler-se: «A Lua é a raiz de tudo o que é yin; na Lua cheia as
ostras pang e ko estão prenhes e todas as coisas yin se tornam
abundantes; quando a Lua escurece (última noite do ciclo lunar) as ostras
estão vazias e todas as coisas yin começam a faltar7. «Mo-tsï (século v
A.C.), depois de ter notado que a ostra perlífera pang nasce sem
intervenção masculina, acrescenta: Por conseguinte, se pang pode ter por
fruto uma pérola, é porque ela concentra toda a sua força yin»8. «A Lua,
escreve Liou Ngan (século 11 A.C.) é o princípio do yin. É por isso que os
cérebros dos peixes diminuem quando a Lua está vazia e as conchas dos
univalves espiralados não estão cheias de partes carnudas quando a lua
está morta». O mesmo autor acrescenta, num outro capítulo: «Os
moluscos bivalves, os caranguejos, as pérolas e as tartarugas crescem e
decrescem com a Lua»9.
O yin representa, entre outras coisas, a energia cósmica feminina,
lunar, «húmida». Assim o excesso do yin ativo numa determinada região
exaspera o instinto sexual feminino e faz com que «as mulheres lascivas
pervertam os homens» (I Chou shu, cap. 54, citado por Karlgren, op. cit.,
p. 38). Existe efetivamente uma correspondência mística entre os dois
princípios, yin e yang, e a sociedade humana. O carro do rei era
ornamentado com jade (rico em yang), o da rainha, com plumas de pavão
e conchas, emblemas do yin. Os ritmos da vida cósmica seguem o seu
curso normal enquanto a circulação dos dois princípios opostos e
complementares se processa sem entrave. Sün-tsï escreve: «Se o jade
está na montanha, as árvores da montanha darão fruto; se as águas
profundas produzem pérolas, a vegetação da margem não secará»
(Karlgren, ibid., p. 40). Ver-se-á mais adiante a mesma polaridade

7 Trad. B. Karlgren, Some fecundity symbols in ancient China (The Bulletin of the
Museum of Far Eastern Antiquities, No. 2, Stockolm, 1930, pp. 1-54), p. 36.
8 Karlgren, ibid. Cf. relações pérolas (conchas) — Lua in Granet, Danses et
Légendes de la Chine ancienne (Paris, 1926), pp. 480, 514, etc.
9 J.-J. de Groot, Les Fêtes annuellement célébrées à Emouï. Étude concernant la
religion populaire des Chinois (Paris, 1886), vol. II, p. 491. Rapports entre la lune
et l'eau, ibid., pp. 488 sq. Influence de la Lune sur les pedes, pp. 490 sq
125

simbólica jade-pérola reaparecer nos costumes funerários chineses.


Em relação à influência das fases da Lua nas ostras, a antiguidade
conheceu ideias análogas.
Luna alit ostrea et implet echinos, muribus fibras et jecur addit, dizia
Lucilius: «a Lua alimenta as ostras, enche os ouriços-do-mar, dá força e
vigor aos mexilhões». Plínio (Hist. Nat., II, 41, 3), Aulu-Gelle (Notes
Atticae, XX, 8), com vários outros escritores, pretendia ter verificado
fenómenos semelhantes. Esta tradição para-científica, herdada de um
simbolismo antigo cuja função deixara de ser compreendida, devia
perpetuar-se na Europa até ao século XVI10.

Simbolismo da fecundidade

Mais ainda do que a origem aquática e o simbolismo lunar das ostras


,

e das conchas marinhas, a sua semelhança com a vulva, contribuiu muito


provavelmente para divulgar até este ponto as suas virtudes11. A analogia
está, aliás, por vezes inscrita nos próprios termos que designam certos
moluscos bivalves como por exemplo o antigo nome dinamarquês da
ostra kudefisk (kude = vulva; cf. Karlgren, p. 34, nota). A homologação da
concha com o orgão genital feminino encontra-se também no Japão12. A

10 P. Saintyves, L'Astrologie populaire, étudiée spécialement dans les dotrines et


les traditions relativas à l'influence de la lune (Paris, 1937), pp. 231 sq.
11 Ver Aigremont, Muschel und Schnecke als Symbol der Vulva einst und jetzt
(Anthropophyteia, 1909, VI, pp. 35-40); T. J. Meyer, Trilogie altindischer Mächte
und Feste der Vegetation (Zürich, 1937), vol. I, p. 233. Cf. também a revista Man,
1939-1942.
12 Cf. Andersson, Children of the yellow earth. Studies in prehistoric China (London,
1934), p. 305. O ídolo feminino neolítico publicado pelo Dr. Kurt Singer (Cowrie
and Baubo in early Japan, p. 51) apresenta uma vulva monstruosa que não é
mais do que uma concha suspensa por uma corda. A concha bivalve
desempenha um papel no mito do renascimento de O-Kuninushi. Segundo Kurt
Singer, o ídolo poderia representar Ama-no-Uzume-no-Mikoto, «a Terrível
126

concha marinha e as ostras participam deste modo nas forças mágicas da


matriz. Nelas se exercem e estão presentes as forças criadoras que jorram
como que de uma fonte inesgotável, de todo o símbolo do princípio
feminino. Assim, usadas sobre a pele como amuleto ou ornamento,
ostras, conchas marinhas e pérolas impregnam a mulher de uma energia
favorável à fecundação, ao mesmo tempo que as protegem de forças
nocivas e da má sorte. As mulheres Akamba usam cintos ornamentados
com conchas a que renunciam após o nascimento do primeiro filho13.
Noutros sítios, as ostras constituem o mais apropriado dos presentes de
casamento. Na índia meridional as raparigas usam colares de conchas
marinhas14 e a terapêutica hindu moderna utiliza o pó de pérola pelas
suas qualidades revigorantes e afrodisíacas15: mais uma aplicação
«científica», no plano concreto, imediato, de um simbolismo arcaico de
que só já se apreende metade.
A função cosmológica e o valor mágico da pérola eram conhecidos
desde os tempos védicos. Um hino do Atharva Veda (IV, 10) exalta-os
assim: «Nascida do vento, do ar, do raio, da luz, possa a concha nascida
do ouro, a pérola, defender-nos do medo!
Com a concha nascida do oceano, a primeira de todas as coisas
luminosas, nós matamos os demónios (raksas) e triunfamos dos

Mulher do Céu», que dança com o vestido levantado usque ad partes privatas
(como se exprime Chamberlain) e que, pelo riso que provoca, força a Deusa-Sol,
Amaterasu, a sair da caverna onde se escondera. Os naturalistas do século XVIII
baseavam, aliás as suas classificações conquiliológicas nas semelhanças com a
vulva. G. Elliot Smith, em The evolution of the Dragon (Manchester, 1919), cita
as linhas seguintes da Histoire naturelle du Sénégal (séc. XVIII) de Adamson;
«Concha Venerea sic dieta quia partem foemineam quodam modo
repraesentat: externe quidem per labiorum fissuram, interno vero propter
cavitatem uterum mentientem.»
13 Andersson, Children of the yellow earth, p. 304. Ver também C. K.: Meek, Man,
1940, No. 78.
14 Andersson ibid., p. 304. As jovens Tiagy usam a concha de um molusco como
símbolo de virgindade; ao perdê-la devem renunciar ao uso da concha.
15 Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, p. 309, citando Sourindro Mohan
Tagore, Mani-Mâlâ or a treatise on Gems (Calcutta, 1881).
127

(demónios) devoradores. Com a concha (triunfamos) da doença, da


pobreza... A concha é o nosso remédio universal; a pérola preserva-nos do
medo. Nascida do céu, nascida do mar, trazida por Sindhu, esta concha
nascida do ouro é para nós a jóia (mani) que prolonga a vida. Jóia nascida
do mar, sol nascido da nuvem, protege-nos de todos os lados das flechas
dos Deuses e dos Asuras. Tu és um dos ouros ("pérola" é um dos nomes
do ouro), nasceste da Lua (Sôma), enfeitas o carro, resplandeces na aljava
das setas. Prolonga as nossas vidas! O osso dos deuses fez-se pérola; ele
toma vida e move-se no seio das águas. Tomo-te para o resto da vida, e o
vigor e a força, para a longa vida, a vida de cem outonos. Que a pérola te
proteja!»
A medicina chinesa, por seu turno, considera a pérola como uma
droga excelente pelas suas virtudes fertilizantes e ginecológicas16. De
acordo com uma crença japonesa, certos mexilhões ajudam no parto; daí
a sua designação de «mexilhões-parto-fácil» (Andersson, Children of the
yellow earth, p. 304). Na China, recomenda-se que não se dê às mulheres
grávidas certa ostra que tem a propriedade de apressar o parto (Karlgren,
p. 36). As ostras, contendo exclusivamente o princípio yin, são favoráveis
ao parto e por vezes precipitam-no. A semelhança entre a pérola que se
desenvolveu na ostra e o feto é aliás posta em relevo pelos autores
chineses. Em Pei ya (século XI) diz-se da ostra pang que, «grávida da
,

pérola, ela é como (a mulher) transportanto o feto no seu ventre, eis


porque pang se chama «o ventre da pérola» (Karlgren, p. 36).
Entre os gregos, a pérola era o símbolo do amor e do casamento17.
As conchas estiveram, aliás, desde os tempos pré-helénicos em estreita
relação com as Grandes Deusas18. Consagravam-se conchas a Afrodite, em
Chipre, para onde a deusa tinha sido conduzida após ter nascido da
espuma do mar (Plínio, Hist. Nat., IX, 30; XXXII, 5). O mito de Afrodite
nascida de uma concha marinha estava provavelmente difundido no
mundo mediterrânico. Plauto, que traduziu um verso de Dífilo — tem

16 Cf. J. W. Jackson, Shells as evidence of the migrations of early culture, p. 101;


De Groot, The religious system of China, vol. I (Leiden, 1898), pp. 217, 277.
17 Kunz e Stevenson, op. cit., pp. 307 sq.
18 Cf. Charles Picard, Les Religions Préhélléniques, pp. 60, 80, etc.
128

conhecimento dessa tradição: Te ex concha reatam esse autumnant19. Na


Síria, a deusa chamava-se a «Dama das pérolas»; em Antióquia,
Margaritô20. O complexo Afrodite-conchas é confirmado, além do mais,
por numerosas gravuras sobre conchas (Déonna, op. cit., p. 402). A
assimilação da concha marinha ao orgão genital feminino era também
sem dúvida, do conhecimento dos Gregos. O nascimento de Afrodite
dentro de uma concha ilustrava este laço místico entre a deusa e os seus
princípios. Este simbolismo do nascimento é que inspirava a função ritual
das conchas21. Graças ao seu poder criador — na sua qualidade de
emblemas da matriz universal — as conchas têm o seu lugar nos ritos
funerários. Tal simbolismo de regeneração não se anula facilmente: as
conchas que simbolizam a ressurreição em muitos monumentos
funerários romanos passarão para a arte cristã (Déonna, p. 408). Aliás
muitas vezes a morte é identificada com Vénus: esta é representada sobre
o sarcófago, de tronco nu, tendo aos pés a pomba (ibid., p. 409); por esta
identificação com o arquétipo da vida em perpétua renovação, a morte
assegura a sua ressurreição.
Em toda a parte a concha marinha, as pérolas, o caracol, figuram
entre os emblemas de amor e de casamento. A estátua de Kâmadeva é
ornamentada com conchas22. Na índia anuncia-se a cerimónia nupcial

19 W. Déonna, Aphrodite à la coquille (Revue Archéologique, novembre-decembre


1917, pp. 312-416), p. 399.
20 Déonna, p. 400. Hugo Winckler defende a origem babilónica da palavra grega
margarites que diz derivar de mâr-gallittu, por transformação do 1 em r (como
em Diglat-Tigris); cf. Winckler, Himmels-und Weltenbild der Babylonier, II ed.,
Leipzig, 1903, p. 58, n. 1. Ver enunciação das hipóteses sobre a origem da
palavra margarites em Theologisches Wõrterbuch zum Neuen Testament (G.
Kittel), t. IV, p. 476.
21 Cf. Ditionnaire des antiquités, s. v. Bucina; Forrer in Realle-xicon, s. v.
Muschelsehmuck; Pauly-Wissowa, s. v. Margaritai; Déonna, p. 406; G. Belluci,
Parallèles ethnographiques (Pérouse, 1915), pp. 25-27; U. Pestallozza, Sulla
rappresentazione di un pithos arcaico-beotico (Studi e Materiali di Storia deite
Religioni, vol. XIV, 1938, pp. 12-32), pp. 14 sq.; Hoernes-Menghin, Urgeschichte
der bildenden Kunst in Europa (Wien, 1925), p. 319, fig. 1-4 (figurinhas em forma
de concha provenientes da Trácia).
22 J. 5. Meyer, Trilogie altindischer Mdchte und Feste der Vegetation (Zürich,
129

soprando num grande búzio marinho23. Esta mesma concha (Turbinella


pyrum) é, aliás, um dos dois principais símbolos de Visnu. Uma oração
ilustra estas valências religiosas: «Na boca desta concha está o deus da
Lua, nos seus lados mora Varuna, no seu dorso Prajapati, no seu cimo o
Ganges, o Saravasti e todos os outros rios sagrados dos três mundos,
onde segundo o mandamento de Vâsudeva, se fazem abluções. Dentro
desta concha está o chefe dos brâmanes. Por isso adoremos esta concha
sagrada. Glória a ti, concha sagrada, bendita sejas tu por todos os deuses,
ó tu nascida do mar e que Visnu segura na mão. Adoramos a concha
sagrada, meditamos sobre ela. Exaltemo-nos na alegria!»24
Entre os Aztecas, o caracol simbolizava correntemente a concepção,
a gravidez, o parto25. A propósito da gravura XXVI do Codex Vaticanus
Kingsborough transcreve a explicação dada pelos indígenas, acerca da
associação do molusco (sea snail) e do parto: «...tal como este animal
marinho sai da concha, assim o homem nasce do ventre da sua mãe»26. A
mesma interpretação autótone se encontra, a propósito da gravura XI do
Codex Tetteriano Remensis (ibid., VI, p. 122).

Funções rituais das conchas

A partir do que foi dito explicam-se facilmente, pelo mesmo


simbolismo, a presença da concha marinha, das ostras e das pérolas em
muitos ritos religiosos, nas cerimónias agrárias e iniciáticas. As ostras e as

1937) vol. I, p. 29.


23 J. W. Jackson, Shell-Trumpets and their distribution in the Old and New World
(Manchester Memoirs, 1916, No. 8), p. 7.
24 Hornell, The sacred Chank of India (Madras Fisheries Publications, 1914), citado
por Jackson, The Aztec Moon-cult, pp. 2-3. Cf. também Arnould Locard, Les
Coquilles sacrées das les religions indiennes (Annales du Musée Guimet, t. VII,
pp. 292-306).
25 Jackson, The Aztec Moon-cult, passim.
26 Kingsborough, Antiquities of Mexico (London, 1831-1848), vol. VI, p. 203.
130

pérolas que favorecem a fecundação e o parto, têm também uma feliz


influência nas colheitas. A força expressa por um símbolo de fertilidade
manifesta-se a todos os níveis cósmicos.
Na índia soprava-se num búzio durante as cerimónias realizadas nos
templos e por ocasião, também, das cerimónias agrícolas, nupciais e
funerárias (ver as numerosas referências agrupadas por Jackson, Shell-
Trumpets, p. 3). Na costa de Malabar, quando da colheita dos primeiros
frutos, o padre sai do templo precedido por um homem que sopra num
búzio (ibid., p. 3). No Sião os padres sopram em conchas no início das
sementeiras (Jackson, The Aztec Moon-Cult, p. 3). A mesma função ritual
da concha se encontra entre os Aztecas: certos manuscritos representam
o deus das Flores e do Alimento levado em procissão, precedido de um
padre que toca uma concha (ibid., p. 4).
Viu-se com que precisão o búzio, conchas bivalves, e as ostras
exprimem o simbolismo do nascimento e do renascimento. As cerimónias
de iniciação incluem uma morte e uma ressurreição simbólicas; a concha
pode significar o ato de renascimento espiritual (ressurreição) tão
eficazmente como assegura e facilita o nascimento carnal. Daí o rito que
consiste, em certas tribos algônquicas, em tocar o neófito com uma
concha ao longo da cerimónia de iniciação e a mostrar-lha enquanto lhe
contam os mitos cosmológicos e as tradições da tribo27. As conchas têm,
aliás, um lugar importante na vida religiosa e nas práticas mágicas de
numerosas tribos da América (cf. Jackson, Shell-Trumpets, pp. 17 sq.). Nas
cerimónias iniciáticas da «Société Grande-Médecine» dos Ojibwa e de
«Médecine Rite» dos Winnebago, as conchas intervêm como elemento
indispensável: a morte a ressurreição ritual do candidato são conduzidas
pelo entro-chocar de conchas mágicas conservadas em sacos de pele de
lontra28.
Os mesmos laços místicos que ligam as conchas às cerimónias de
iniciação e, de modo mais geral, aos diversos ritos religiosos, encontram-

27 J. W. Jackson, The Money-Cowry (Cypraea moneta, L.) as a sacred objet among


American Indians (Manchester Memoirs, vol. 60, No, 4, 1916), pp. 5 sq.
28 Ver nosso Chamanisme, pp. 286 sq.
131

se na Indonésia, na Melanésia, na Oceania29. A entrada das aldeias do


Togo é decorada com ídolos cujos olhos são feitos de conchas e perante
os quais se amontoam oferendas das mesmas (Andersson, Children of the
yellow earth, p. 306). Noutros locais oferecem conchas aos rios, às fontes,
às árvores (ibid. p. 312). As virtudes mágico-religiosas das conchas
explicam igualmente a sua presença na administração da justiça (ibid., p.
307). Como na sociedade chinesa, nas sociedades «primitivas» o emblema
que encarna um dos princípios cósmicos assegura a justa aplicação da lei:
na sua qualidade de símbolo da Vida cósmica, a concha tem o poder de
descobrir toda a infracção à norma, todo o crime contrário aos ritmos e,
implicitamente, à ordem da sociedade.
Devido à sua semelhança com a vulva, o búzio e muitas outras
espécies de conchas passam por preservar de toda a magia, da jettatura
ou do mal'occhio. Os colares de conchas, as pulseiras, os amuletos
ornados com as mesmas ou até a simples imagem destas, defendem
mulheres, crianças e gado da má sorte, das doenças, da esterilidade, etc30.
O mesmo simbolismo — da assimilação à própria fonte da Vida universal
— alimenta a eficência variada da concha, quer se trate de perpetuar as
normas da vida cósmica ou social, de promover um estado de bem-estar e
a fecundidade, de assegurar parto fácil à mulher ou «renascimento»
espiritual do neófito durante uma cerimónia de iniciação.

O papel das conchas nas crenças funerárias

O simbolismo sexual e ginecológico das conchas marinhas e das


ostras implica, como bem nos lembramos, um significado espiritual: o
«segundo nascimento» realizado pela iniciação e tornado possível graças

29 Jackson, Shell-Trumpets, pp. 8, 11, 90; W. H. R. Rivers, The history of Melanesian


Society (Cambridge, 1914), vol. I, pp. 69, 98, 186; vol. II, pp. 459, 535.
30 Cf. numerosos exemplos em S. Seligmann, Der bõse Blick (Berlin, 1910), vol. II,
pp. 126 sq., 204 sq.
132

à mesma fonte inesgotável que sustenta a vida cósmica. Daí também a


missão das conchas e das pérolas nos costumes funerários; o defunto não
se separa da força cósmica que alimentou e regeu a sua vida. Assim, nos
túmulos chineses encontra-se jade; impregnado de yang — o princípio
masculino, solar, «seco» — o jade, pela sua natureza própria, opõe-se à
decomposição. «Se se fechar com ouro e jade os nove orifícios do
cadáver, este será preservado da putrefacção» escreve o alquimista Ko
Hung31. É no tratado T'ao Hung-Ching (século v) encontram-se as
seguintes indicações: «Se, na abertura de um túmulo antigo, o cadáver
parece vivo lá dentro, saiba-se que tanto no interior como no exterior do
corpo existe uma grande quantidade de ouro e de jade. Segundo as regras
da dinastia Han, «os príncipes e os senhores eram enterrados com as suas
vestes ornamentadas de pérolas e caixas de jade destinadas a preservar o
corpo da decomposição»32. As recentes escavações confirmaram a
afirmação de Ko Hung sobre o jade que «tapa os nove orifícios do
cadáver», afirmação que tinha parecido suspeita a mais de um autor33.
O jade e as conchas concorrem para criar um destino excelente no
além; se o primeiro preserva o cadáver da decomposição, as pérolas e as
conchas preparam ao defunto um novo nascimento. Segundo Li Ki, o
caixão era enfeitado com «cinco fileiras de conchas preciosas» e de
«placas de jade»34. Além da ostra pei o culto funerário chinês utilizava
ainda o maior e mais fino dos mexilhões: shen. Mexilhões e moluscos
bivalves eram colocados no fundo do túmulo (Karlgren, Some fecundity
symbols, p. 41). Cheng Hüan comenta assim este costume: «Antes de

31 B. Laufer, Jade, a study in Chinese Archeology and Religion (Field Museum,


Chicago, 1912), p. 299, nota.
32 Laufer, op. cit., p. 299. Cf. também Karlgren, Some fecundity symbols, pp. 22 sq.;
Giseler, Les Symboles de jade dans le taoïsme (Revue d'Histoire des Religions,
1932, t. 105, pp. 158-181).
33 C. Hentze, Les figurines de la céramique funéraire (Dresden, 1928) p. V. Ver
também C. Hentze, Les Jades archaïques en Chine (Artibus Asiae, III, 1928-1929,
pp. 96-110); id., Les Jades Pi et les symboles solaires (ibid., pp. 199-216; t. IV, pp.
35-41).
34 S. Couvreur, Li Ki, t. II (Ho Kien Fou, 2' éd., 1913), p. 252. Cf. também Couvreur,
Tso tchouan, trad., t. I, p. 259.
133

descer o caixão, deve cobrir-se de shen o fundo do túmulo a fim de evitar


a humidade» (ibid.). Metiam-se pérolas na boca do morto e o ritual
funerário utilizado para os Soberanos da dinastia Han precisa que «as suas
bocas são enchidas com arroz, pérolas e jade, como manda o costume de
há muito estabelecido para estas cerimónias»35. Encontraram-se cauris
(búzios brancos) até nas estações pré-históricas do Pu-Chao36. Como
veremos, a cerâmica chinesa proto-histórica foi também muito
influenciada pelo simbolismo da concha.
O papel das conchas nas cerimónias funerárias da Ílidia não é menos
importante. Sopra-se num búzio e semeia-se de conchas o caminho que
leva da casa do morto ao cemitério. Em certas províncias enche-se de
pérolas a boca do morto (Andersson, p. 299). O costume reencontra-se
em Bornéu, onde a influência hindu se implantou nitidamente num rito
autótone37. Em Africa estende-se uma camada de conchas no fundo do
túmulo38. Este costume era frequente entre muitas populações
americanas antigas (ver mais adiante). Encontraram-se conchas de toda a
espécie, pérolas naturais ou pérolas artificiais em quantidades
consideráveis nas estações pré-históricas, mais frequentemente nos
túmulos. Na caverna de Laugérie (vale do Vézere, em Dor-. dogne),
pertencente ao paleolítico, as escavações fizeram aparecer numerosas
conchas de espécies mediterrânicas, Cypraea pyrum e C. lurida (conchas-
de-Vénus). Sobre o esqueleto as conchas estavam dispostas
simetricamente aos pares: quatro na testa, uma sobre cada mão, duas
sobre cada pé, quatro junto dos joelhos e tornozelos. A gruta de Cavillon
continha cerca de oito mil conchas, na sua maior parte pintadas de
vermelho e um décimo das quais estava perfurada39. Por seu lado, Cro-
Magnon revelou mais de trezentas conchas de Littorina littorea

35 De Groot, Religious System of China (1892), I, p. 277.


36 Andersson, op. cit., p. 323. Os cauris encontram-se já nos túmulos do fim do
paleolítico, ver K. Singer, op. cit., p. 50.
37 Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, p. 310.
38 Cf. Robert Hertz, Mélanges de sociologie religieuse et de folklore (Paris, 1928),
p. 10.
39 Déchelette, Manuel d'archéologie préhistorique celtique et gallo-romaine, 2'
éd. (Paris, 1924), t. I, p. 208.
134

perfuradas (Déchelette, op. cit., p. 208). Algures foi encontrado um


esqueleto de mulher coberto de conchas junto de um esqueleto de
homem, com ornamentos e coroa feitos de conchas perfuradas. O
homem de Combe-Capelle estava igualmente enfeitado com um colar de
conchas perfuradas40. O que leva Mainage a interrogar-se: «Por que razão
o esqueleto de Laugerie-Basse (Dordogne) usava um colar feito de
conchas mediterrânicas e o esqueleto de Cro-Magnon um ornamento
confeccionado com conchas oceânicas? Porque é que em Grimaldi (Côte
d'Azur), os túmulos forneceram conchas apanhadas no litoral do
Atlântico? E como é que em Pont-à-Lesse, na Bélgica se encontram
conchas terciárias recolhidas nos arredores de Reims?»41 Só o nomadismo
dos quaternários basta, muito provavelmente, para explicar estes fatos;
mas é mais uma prova da importância mágico-religiosa das conchas nos
povos pré-históricos.
Também se encontraram conchas de moluscos nos túmulos do
Egipto pré-dinástico. As conchas do mar Vermelho forneceram durante
muito tempo amuletos aos Egípcios42. As escavações de Creta revelaram
uma profusão análoga de restos conquíferos. Em Phaestos, encontraram-
se num depósito neolítico, ao lado de uma imagem feminina em argila,
conchas de petunculus; o seu significado religioso não deixa dúvidas43. As
escavações de Sir Arthur Evans permitiram definir mais claramente o valor
mágico e a função cultural das conchas (cf. Palace of Minas, I, pp. 517 sq.).
Os desenhos com motivos de conchas eram, aliás, frequentes e a sua
persistência deve menos ao valor decorativo do motivo do que ao seu
simbolismo (ibid., p. 519, figs. 377, 378). Uma descoberta notável deste
ponto de vista, e que, segundo a opinião autorizada de Andersson,
asseguraria a transição entre o ciclo cultural euro-africano e a Ásia
oriental, foi feita por Pumpelly em Anu (Andersson, p. 298). Por seu turno,
Andersson encontrou conchas em Yang Chao Thun, em Sha Ching (no

40 Cf. Osborn, Men of the Old Stone age, pp. 304, 305.
41 Th. Mainage, Les Religions de la préhistoire. 1 L'Age paléolithique (Paris, 1921),
pp. 96-97.
42 Sir E. Wallis Budge, Amulets and Superstitions (Oxford, 1930), p. 73.
43 Sir Arthur Evans, The Palace of Minos, vol. I (London, 1921), p. 37.
135

deserto de Chen Fu), isto é, nas estações pré-históricas onde as urnas


funerárias atestam os desenhos tão caraterísticos que foram designados
por «death pattern» e «cowrie pattern» e cujo simbolismo: morte-
renascimento não deixa sombra de dúvida (Andersson, ibid., pp. 322 sq.).
Um antiquíssimo costume japonês explica-se por crenças semelhantes:
ungindo o próprio corpo com pó de conchas assegura-se o renascimento
(Kurt Singer, op. cit., p. 51).
O papel funerário das pérolas e das conchas parece ter sido de uma
importância decisiva entre as populações autótones das duas Américas. A
documentação recolhida por Jackson é, a este respeito, bastante
eloquente44. A propósito dos índios da Florida, Streeter escreve que «tal
como no Egipto de Cleópatra, na Florida os túmulos dos reis eram
enfeitados com pérolas. Os soldados de Soto, num dos grandes templos,
encontraram urnas de madeira onde jaziam mortos embalsamados; junto
deles havia pequenos cestos de pérolas. O templo de Tolomecco era o
mais rico em pérolas: as paredes altas e o teto eram em nácar e colares de
pérolas e de plumas pendiam das primeiras; sobre os caixões dos reis
estavam pousados os respetivos escudos ornamentados de pérolas e, no
meio do templo, encontravam-se jarras cheias de pérolas preciosas»45.
Willoughby mostrou já o papel essencial das pérolas nas cerimónias
funerárias, descrevendo as solenidades de mumificação dos reis índios de
,

Virgínia46. Zelia Nuttall descobriu, no cimo de uma pirâmide do México,


uma camada espessa de conchas, no meio da qual estavam túmulos47. E
estes são apenas alguns dos documentos existentes no que respeita aos

44 Jackson, The geographical distribution of the use of Pearls and Pearl-shells,


republicado em Shells as evidence of the migrations of early culture, pp. 72 sq.
Cf. pp. 112 sq.
45 Jackson, Shelis, pp. 116-117.
46 C. C. Willoughby, The Virginia Indians in the seven teenth century (The
American Anthropologist, vol. IX, No. 1, Jan. 1907, pp. 57-86), pp. 61, 62.
47 Cf. W. J. Perry, The Children of the Sun, p. 66. Os índios que vivem nas margens
do Golfo da Califórnia e cuja cultura se mantém primitiva, cobrem os seus
mortos com uma carapaça de tartaruga, ibid., p. 250. A tartaruga, de fato, pela
sua natureza de animal aquático liga-se estreitamente às águas e à lua.
136

índios americanos48. A presença, em certas regiões (no Yucatan, por


exemplo) de bocados de ferro49 ao lado das pérolas e das conchas, prova
que se entendia aproximar o defunto de todas as formas de energia
mágica de que então se dispunha, desempenhando o ferro, como em
Creta, o papel pertencente na China ao jade e ao ouro50.
Na caverna de Mahaxay (Laos), Madeleine Colani descobriu
machados, cristais de rocha e muitas conchas de Cypraea51 e conseguiu,
ao mesmo tempo, demonstrar o caráter funerário e a função mágica dos
machados52. Todos estes objetos eram colocados no túmulo a fim de
assegurar ao defunto as melhores condições no além.
Importantes depósitos conquíferos, de ostras e outros moluscos,
foram encontrados em muitas estações pré-históricas muito afastadas
uma das outras. Algumas Cypraea moneta, por exemplo foram
descobertas na famosa necrópole de Kuban, norte do Cáucaso (século XIV
A.C.); Outras conchas nos túmulos citas dos arredores de Kiev, que
pertencem à civilização Ananino do Ural ocidental. Depósitos análogos
foram encontrados na Bósnia, em França, em Inglaterra e na Alemanha,
na costa báltica sobretudo (onde os antigos já procuravam o âmbar)53.
A função capital das pérolas na elaboração dos diferentes rituais
mortuários avalia-se também pela presença de pérolas artificiais.
Nieuwenhuis estudou estas últimas — executadas em pedra ou em
porcelana — de que se servem frequentemente os habitantes de Bornéu.
A origem das mais antigas continua incerta; as mais recentes vêm de
Singapura, mas são, na maior parte das vezes, fabricadas na Europa, em

48 Cf. Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, pp. 485 sq.
49 Stephens, Incidents of travel in Yucatan, t. II, p. 344, citado por Andree, Die
Metalle bei den Naturvõlkers (Leipzig, 1884), p. 136:
50 Cf. Metallurgy, Magic and Alchemy, p. 12 (Zalmoxis, I, p. 94).
51 Madeleine Colani, Haches et bijoux. République de l´Equateur, Insulinde,
Eurasie (B. E. F. E. O., XXXV, 1935, fasc. 2, pp. 313-362), p. 347.
52 Cf. também Hanna Rydh, On Symbólism in mortuary ceramics (Bull. of the
Museum of Far Bastem Antiquities, No. 1, Stockolm, 1929, pp. 71-121), pp. 114
sq.
53 Andersson op. cit., pp. 299 sq.; Jackson, The geographical distribution, passim.
137

Gablonz (Boémia), Birmingham, Murano54. Madeleine Colani explica assim


o papel destas pérolas nas solenidades agrícolas, nos sacrifícios ou nas
cerimónias funerárias do Laos: «Os mortos são providos de pérolas para a
vida celeste; aquelas são introduzidas nos orifícios naturais do cadáver.
Nos nossos dias os mortos são enterrados com cintos, bonés ou fatos
enfeitados com pérolas. Depois da corrupção do corpo as pérolas
destacam-se...»55 O mesmo autor encontrou, enterradas junto dos
megalitos do Tran Ninh, uma quantidade destas pequenas jóias em vidro,
centenas por vezes: «Estas pérolas antigas desempenhavam, de acordo
com todas as probalidades, uma função importante na vida dos povos. As
que descobrimos tinham sido enterradas no solo para servir aos defuntos.
Estas são muito mais simples do que as representadas por M.
Nieuwenhuis. Teriam elas unicamente uma atribuição funerária?
Ignoramo-lo» (op cit. p. 199). Junto destas pérolas arcaicas do Alto-Laos
havia guisos em bronze. A associação metal-pérolas (conchas, etc.) é,
aliás, frequente; manteve-se em certas regiões do Pacífico. Madeleine
Colani recorda que «no Bornéu dos nossos dias, mulheres dayak usam
colares com muitos guisos» (ibid., p. 199, fig. 24).
O caso das pérolas artificiais é um exemplo certo de degradação do
sentido metafísico original e da sua evicção por um sentido secundário,
exclusivamente mágico. O poder sagrado das pérolas vinha da sua origem
marinha e de um simbolismo ginecológico. É pouco provável que todas as
populações que utilizaram pérolas e conchas nas suas cerimónias mágicas
e funerárias tenham tido consciência deste simbolismo; supondo mesmo
que tenha havido uma consciência dessas relações, esta deve ter-se
limitado a alguns membros da sociedade: este conhecimento não se
conservou sempre intato. Quer tenham tomado de empréstimo a noção
mágica da pérola às populações de cultura superior com as quais se viram
em contato, quer a sua própria noção tenha, com o tempo, sofrido, pela
intervenção de elementos estranhos, um abastardamento — o fato é que

54 Nieuwenhuis, Kunstperlen und ihre kulturelle Bedeutung (Internai. Archiv f.


Ethnographie, Bd. 16, pp. 135-153).
55 Madeleine Colani, Essai d'ethnographie comparée (B. E. F. E. O., vol. XXXVI,
1936, pp. 197-280), pp. 198 sq.
138

certas populações fizeram entrar nas suas cerimónias objetos artificiais


que pretendiam assemelhar-se aos «modelos sagrados». O caso não é
único. Conhece-se o valor cosmológico do lápis-lazúli na Mesopotâmia. O
azul desta pedra é exatamente igual ao do céu estrelado, em cuja força
sagrada ela participa56. Uma concepção análoga encontra-se, aliás, na
América pré-colombiana. Em alguns túmulos antigos de uma ilha do
Equador encontraram-se vinte e oito bocados de lápis-lazúli talhados em
forma de cilindro e maravilhosamente polidos. Mas depois foi provado
que esses bocados de lápis-lazúli não pertenciam aos aborígenes da ilha;
com toda a certeza foram deixados pelos visitantes do continente que se
dirigiram à ilha com a finalidade de praticar certos ritos ou cerimónias
sagradas57.
É importante salientar que na África ocidental se atribui também
valor excepcional às pedras artificiais azuis. Wiener recolheu ali uma
documentação muito rica58. É certo que o simbolismo e o valor religioso
destas pedras têm a sua explicação na ideia da força sagrada em que, por
virtude da sua cor celeste, elas participam. Ideia frequentemente
ignorada, ou mal entendida, ou «degradada» por certos elementos destas
populações, que frequentes vezes tomaram de empréstimo o objeto do
culto ou do símbolo de uma cultura avançada, sem lhe adoptarem o
significado normal, na maioria das vezes inacessível a essas populações.
Pode assim supor-se que as célebres falsas gemas coloridas que, do
Egipto, da Mesopotâmia, do Oriente romano, penetraram até ao
Extremo-Oriente, tiveram, em dado momento um significado mágico,
derivado, sem dúvida alguma, do seu modelo natural ou do simbolismo
geométrico que elas implicam59.

56 Ernst Darmstaedter, Der babylonisch-assyrische Lasurstein (em Studien für


Geschichte der Chemie, Festgabe Ed. von Lippmann, Berlin, 1927, pp. 1-8). Cf.
nosso livro, Cosmologie si alchimie babiloniana, pp. 51 sq.
57 George F. Kunz, The Magic of Jewels and Charms (Philadelphia.London, 1915),
p. 308.
58 Leon Wiener, Africa and the discovery of America (Philadelphia, 1920-1922),
vol. II, pp. 237-248; cf. nossa Cosmologie si alchimie babiloniana, pp. 56 sq.
59 C. G. Seligman and H. C. Beck, Far eastern glass: some western origins (Bulletin
of the Museum of Far Eastern Antiquities, No. 10, Stockholm, 1938, pp. 1-64).
139

A virtude sagrada das conchas transmite-se à sua imagem como aos


motivos decorativos de que a espiral é elemento essencial. Encontram-se
no Kansu (período Ma Chang), numerosas urnas funerárias decoradas
com «cowrie-pattern»60. Andersson, por outro lado, interpreta a figura
que predomina nas urnas de P' an Shan como um jogo de quatro
magníficas espirais61. Fato digno de relevo, este motivo é reservado quase
exclusivamente às urnas funerárias; nunca aparece nas cerâmicas de
utilização profana62. O valor metafísico e ritual do «cowrie-pattern»
(«death-pattern») fica assim bem estabelecido. ,Este motivo de
decoração, típico da cerâmica chinesa, tem papel ativo no culto dos
mortos. A imagem da concha ou os elementos geométricos derivados da
representação esquemática da concha, põem o defunto em comunicação
com as forças cósmicas que comandam a fertilidade, o nascimento e a
vida. Pois o que tem valor religioso é o simbolismo da concha: a imagem é
por si só eflciente nu culto des mortos, quer esteja presente através da
conclta, quer atue plesmente através do motivo ornamental da espiral ou
de «cowrie-pattern»63.
A função mágica deste motivo decorativo funerárlo neto Na verifica,
aliás, apenas na China. Hanna Rydh assinalou semelhanças entre o «death-
pattern» da cerâmica pré-histórica chlnesa e os desenhos gravados nas
urnas pertencentes à cultura megalítica escandinava64. Por outro lado
Andersson nota certas analogias entre as urnas de Kansu e a cerâmica
pintada da Rússia meridional (Tripolje), analogias essas igualmente
estudadas pelo professor Bogajevski. Este motivo da espiral encontra-se
aliás em muitos pontos da Europa, da América, da Ásia65. É necessário

60 Andersson, Children of the yellow earth, p. 323; On symbolism in the prehistoric


painted ceramics of China (Bulletin of the Museum of Far Eastern Antiquities,
vol. I, 1929, pp. 66 sq.
61 Children of the yellow earth, p. 324.
62 Andersson, On symbolism in the prehistoric painted ceramics, passim; Hanna
Rydh, Symbolism in mortuary ceramics, pp. 81 sq. Cf. Carl Hentze, Mythes et
symboles lunaires (Anvers, 1932), pp. 118. sq.
63 Andersson, Children of the yellow earth, pp. 323 sq.
64 Symbolism in mortuary ceramics, especialmente pp. 72 sq.
65 Madeleine Colani, Haches et bijoux, pp. 351 sq.
140

acrescentarmos, todavia, que o simbolismo da espiral é bastante


complexo e a sua «origem» ainda incerta66. Pelo menos pode-se,
provisoriamente, captar a polivalência simbólica da espiral, suas relações
estreitas com a Lua, o raio, as águas, a fecundidade, o nascimento, a vida
de além-túmulo. A concha, afinal, se bem nos lembrarmos, não se liga
exclusivamente ao culto dos mortos. Ela aparece em todos os atos
essenciais da vida do homem e da coletividade: nascimento, iniciação,
casamento, morte, cerimónias agrícolas, cerimónias religiosas, etc.

A pérola na magia e na medicina

A história da pérola é um testemunho mais do fenómeno de


degradação de um sentido inicial, metafísico. O que, num dado momento,
foi símbolo cosmológico, objeto rico em forças sagradas benfeitoras,
torna-se, por obra do tempo, em elemento decorativo, cujas qualidades
estéticas e valor económico são apreciados. Mas da pérola-simbolo da
realidade absoluta, à pérola — «objeto-de-valor» dos nossos dias, a
mudança operou-se em várias etapas. Na medicina, por exemplo, tanto
oriental como ocidental, a pérola desempenhou um papel importante.
Takkur analisa em pormenor as qualidades medicinais da pérola, que se
emprega contra as hemorragias e a iterícia, que cura os possessos e a
loucura67. O autor hindu aliás, nada mais faz do que continuar uma longa
tradição médica: médicos ilustres, como Caraka e Suçruta, recomendam já

66 Cf. as obras de Andersson e de Hentze. Ver também L. Siret, Origine et


signification du décor spiralé (XV Congresso Intern. d'Anthropologie, Portugal,
1930, pp. 465-482; explicação racionalista). Sobre o simbolismo da concha
marinha dans la théologie et l'art hindou, cf. A. Coomaraswamy, Elements of
p
buddhist Iconography (Cambridge, 1935), p. , 77.78; A new approach to the
Vedas (London, 1933), p. 91, n. 67.
67 Kunz e Stevenson, op. cit., p. 209; Jackson, Shells as evidence of the migrations
of early culture, p. 92.
141

o uso da pérola68. Narahari, médico de Cachemira (à roda de 1240) no seu


trabalho Râjanigantu (varga XIII), escreve que a pérola cura os males dos
olhos, que é um antídoto eficaz nos casos de envenenamento, que cura a
tísica, que, enfim, garante força e saúde69. Está escrito na
Kathâsaritsâgara que a pérola — como os elixires da alquimia — «expulsa
o veneno, os demónios, a velhice e a doença». A Harshacarîta lembra que
a pérola nasceu das lágrimas do deus da Lua e que a sua origem lunar —
sendo a mesma Lua «fonte de ambrosia eternamente curativa» — faz
dela o antídoto de todos os venenos70. Na China a medicina utilizava
unicamente a «pérola virgem», não perfurada, que passava por curar
todas as doenças dos olhos. A medicina árabe reconhece à pérola virtudes
idênticas71.
A partir do século vil a utilização medicinal da pérola divulga-se
também na medicina europeia, e em breve se verifica uma grande
procura desta pedra preciosa (Kunz e Stevenson, op. cit., p. 18). Albertus
Magnus recomenda o seu emprego (ibid. p. 311). Malachias Geiger na sua
Margaritologia (1637) preocupa-se exclusivamente com a utilização
medicinal da pérola afirmando que a empregou, com êxito, no tratamento
da epilepsia, da loucura e da melancolia (ibid. p. 312). Um outro sublinha
a eficácia da pérola para fortificar o coração e tratar a melancolia (ibid. p.
312). Francis Bacon inclui a pérola nas drogas da longevidade (ibid. p.
313).
É escusado dizer que o lugar da pérola na medicina de tantas
civilizações diferentes mais não faz que suceder à importância que teve,
primeiramente, na religião e na magia. Por ter sido símbolo da força
aquática e geradora, a pérola torna-se — numa época posterior— tónico

68 Kunz, ibid., p. 308.


69 R. Garbe, Die Indische Mineralien (Leipzig, 1882), p. 74.
70 Harshaçarita, trad. Cowell et Thomas, pp. 251 sq.
71 Leclerc, Traité des simples, vol. III, p. 248 (Ibn el-Beithar cite lbn Massa et Ishak
Ibn Amrân, limita-se no entanto a um só uso medicinal); Julius Ruska, Das
Steinbuch des Aristoteles (Heidelberg, 1912), p. 133; nas crenças populares da
índia e da Arábia: cf. Penzer, Ocean of Story (London, 1924 sq.), vol. I, pp. 212,
213 (o pó da pérola corno remédio para os males dos olhos, etc.).
142

geral, afrodisíaco e ao mesmo tempo remédio para a loucura e


melancolia, duas doenças de influência lunar72 portanto sensíveis à acção
de todo o símbolo de Mulher, de Água, de Erotismo. O seu papel na cura
de doenças dos olhos e como antídoto de venenos é uma herança das
relações míticas entre pérola e serpentes. Em muitas regiões pensava-se
que as pedras preciosas caíam da cabeça das serpentes ou estavam
escondidas na garganta dos dragões73. Na China, a cabeça do dragão
continua a passar por incluir uma pérola ou qualquer outra pedra
preciosa74, e mais do que uma obra de arte representa um dragão com
uma pérola na boca75. Este motivo iconográfico deriva de um simbolismo
muito antigo e assaz complexo que nos levaria muito longe76.
Significativo, enfim, o valor da longevidade que Francis Bacon atribui
à pérola. É justamente uma das virtudes primordiais desta pedra preciosa.
A sua presença sobre o corpo do homem, como, aliás a da concha, projeta
este nas próprias fontes de energia, de fecundidade e de fertilidade
universais. Quando esta imagem interior deixou de corresponder ao novo
Cosmos descoberto pelo homem, ou quando a sua recordação, por outros
motivos, se abastardou, o objeto antes sagrado conservou o seu valor,
mas esse mesmo valor definiu-se a um outro nível.
Nos confins da magia e da medicina, a pérola desempenha o papel

72 P. Saintyves. L'Astrologie populaire, pp. 181 sq.


73 Cf. nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 377, 389 (bibliografia). O essencial
encontra-se no estudo de W. R. Halliday, Of snakestones (republicado em
Folklore Studies, London, 1924, pp. 132-155). Ver também M. O. W. Jeffreys,
Snake Stones (lournal of the Royal African Society, LXI, 1942, No. 165).
74 Cf. por exemplo De Groot, Les Fêtes annuellement célébrées à Entoai, vol. II, pp.
369, 385; Gieseler, Le Mythe du dragon en China (Revue Archéologique, 5' série,
t. VI, 1917, pp. 104-170), passim.
75 Cf. Josef Zykan, Drache und Perle (Artibus Asiae, VI, 1-2, 1936, pp. 5-16), p. 9,
fig. 1, etc.
76 Cf. Alfred Salmony, The magic bali and the golden fruit in ancicnt chinese art
(Art and Tought, Hommage à Coomaraswamy, London, 1947, pp. 105-109); ver
também nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 250 sq. O estude de Marc R.
Sauter, Essai sur l'histoire de la perle à ailette '(Jahrbuch der Schweitzerischen
Gesellschaft für Urgeschichte, XXXV, Frauenfeld, 1945) foi-nos inacessível.
143

ambíguo de talismã77; o que antes dava fertilidade e assegurava um


destino ideal post-mortem torna-se pouco a pouco fonte constante de
prosperidade78. Na índia, esta concepção conservou-se até bastante
tarde. «A pérola deve sempre usar-se como amuleto dos que desejam
prosperidade», diz Budahabatta79. A prova de que a pérola entrou na
medicina por ter tido primeiro o seu papel na magia e no simbolismo
erótico--funerário, é que as conchas, em certas regiões, possuem uma
virtude medicinal. Na China elas são tão familiares ao médico como
preciosas para o mágico80. E o mesmo acontece em certas tribos da
América81.
Além do valor que lhe é reconhecido pela magia e pela medicina, as
conchas marinhas e outras foram frequentemente utilizadas como
moeda. As informações fornecidas a este propósito por Jackson e alguns
outros autores são suficientes para o provar82. Karlgren, que demonstrou
o emprego monetário das conchas na China, pensa que o costume de
colocar uma moeda sobre a testa não é mais do que uma reminiscência
dos tempos em que a concha era ainda correntemente usada como
amuleto83. O valor sagrado simbólico da concha marinha e da pérola
torna-se pouco a pouco profano. Mas, a natureza preciosa do objeto em

77 S. Seligmann, Der böse Blick, II, pp. 126, 209; id., Die magische Heil-und
Schutzmittel, p. 199.
78 A pérola protege das epidemias, dá coragem a quem a usa, etc.; cf. M. Gaster,
The hebrew version of the Secretum Secretorum (republicado em Studies and
Texts, vol. II, London, 1925-1928), p. 812.
79 Louis Finot, Les Lapidaires indiens, p. 16; Kunz, op. cit., p. 316.
80 Karlgren, op. cit., p. 36.
81 Jackson, The Money Cowry (Cypraea moneta, L.) as a sacred objet among
American Indians, pp. 3 sq
82 Cf. The use of Cowry-shells for the purposes of currency, Amulets and Charms
(Manch. Mem., 1916, No. 13); Shells, pp. 123-194; Leo Wiener, Africa and the
discovery of America, p. 203, sq.; Helmut Petri, Díe Geldformen der Südsee
(Anthropos, 31, 1936, pp. 187-212; 509-554), pp. 193 sq. (cauris como moeda),
208 sq. (a pérola como moeda). O estudo de M. J. M. Faddegon, Notice sur les
cauris, não pôde ser utilizado (Tijdschrift van het Kon. Ned. Genootschap voos
Munt-en Penningkunde, 1905; cf. Isis, vol. 19, 1933, p. 603).
83 Karlgren, op. cit., p. 34.
144

nada é atingida por este deslocamento de valor. Nele se concentrou em


todos os momentos a força, ele é força e substância; enfim, ele
permanece constantemente solidário da «realidade», da vida e da
fertilidade.

O mito da pérola

As imagens arquetípicas guardam intatas as suas valências


metafísicas a despeito das eventuais valorizações «concretas»: o valor
económico da pérola não anula de maneira alguma o seu simbolismo
religioso; este é continuamente redescoberto, reintegrado, enriquecido.
Recordemos, efetivamente, o papel considerável que a pérola
desempenha na especulação iraniana, no cristianismo e na gnose. Uma
tradição de origem oriental explica o nascimento da pérola como fruto do
raio penetrando no mexilhão84: a pérola seria o resultado da união entre o
Fogo e a Água. Santo Efrém utiliza este mito antigo para ilustrar tanto a
Imaculada Conceição como o nascimento espiritual de Cristo no baptismo
de fogo85.
Por outro lado, Stig Wikander mostrou que a pérola era o símbolo
iraniano por excelência do Salvador86. A identificação da Pérola com o
«Salvador salvado» tornava possível um duplo simbolismo: a Pérola tanto
podia representar Cristo como a alma humana. Orígenes retoma a
identificação de Cristo com a pérola: é nisto seguido por inúmeros autores

84 Cf. Pauly-Wissowa, s. v. Margaritai, col. 1692.


85 H. Usener, Die Perle. Aus der Geschichte eines Bildes (nas Theologische
Abhandlungen C. von Weizsacker... gewidmet, Freiburg i Breisgau, 1892, pp.
201-213); Carl-Martin Edsman, Le Baptême de feu (Lcipzig-Uppsala, 1940), pp.
190 sq.
86 Resumo do livro de Edsman, Svensk Teologisk Kvartalskrift, vol. 17, 1945, pp.
228-233: cf. Geo Windengren, Mesopotamian elements in manicheism (Uppsala,
1946), p. 119; id., Der iranische Hintergrund der Gnosis (Zeitschrift für Religions-
und Geistesgeschichte, IV, 1952, pp. 97-114), p. 113.
145

(Edsman, Le Baptême de feu, pp. 192, sq.). Num texto do pseudo-Macário


a pérola simboliza por um lado Cristo-Rei e por outro o descendente do
Rei, o cristão: «A Pérola, grande, preciosa e real, pertencente ao diadema
real convém unicamente ao rei. Só ele pode usar esta pérola. Não é
permitido a nenhum outro usar pérola semelhante. Assim um homem que
não nasceu de espírito real e divino, que não se tornou membro da raça
celeste e real e que não é filho de Deus — como está escrito: «Mas a
todos que a receberam, ela conferiu o poder de se tornarem filhos de
Deus» (S. João, I, 12) — não pode usar a preciosa pérola celeste, a
imagem da indizível Luz que é o Senhor. É que não se tornou filho de rei.
Aqueles que usam e possuem a pérola, vivem e governam com Cristo por
toda a eternidade» (Homilia, XXIII, 1; texto citado e traduzido por Edsman,
op. cit., pp. 192-193).
No famoso escrito gnóstico, os Atos de Tomé a busca da pérola
simboliza o drama espiritual da queda do homem e da sua salvação: um
Príncipe do Oriente chega ao Egipto para procurar a Pérola defendida por
serpentes monstruosas. O Príncipe deve vencer uma série de provas
iniciáticas para obtê-la e só consegue vencer, aliás, com a ajuda de seu
pai, o Rei dos Reis, imagem gnóstica do Pai celeste87. O simbolismo deste
texto é bastante complexo: a Pérola representa por um lado a alma
humana caída no mundo das trevas e por outro o próprio «Salvador
salvo». A identificação do homem com a pérola encontra-se em muitos
textos maniqueístas e mandeístas. O Espírito Vivo «retira o Primeiro
homem para fora da luta como uma pérola é tirada do mar» (Kephalaia,
p. 85, citado por Edsman, p. 195). Santo Efrém compara o mistério do
baptismo com uma pérola que não pode voltar a ser adquirida: «também
o mergulhador tira a pérola do mar. Mergulhai (deixai-vos baptizar), tirai
da água a pureza que nela está escondida, a pérola de onde saiu a coroa
da divindade» (citado por Edsman, p. 197).
Numa outra ocasião, discorrendo a respeito de ascetas e de monges,

87 A. Hilgenfeld, Der Künigssohn und die Perle (Zeitschrift für wissenschaftliche


Theologie, vol. 47, 1904, pp. 219-249); R. Reitzenstein, Das iranische
Erlösungsmysterium (Bonn, 1921), pp. 72 sq. (obra finda-mental); Edsman, op.
cit., p. 193, nota 4; Widengren, Der iranische Hintergrund der Gnosis, pp. 105 sq.
146

Santo Efrém compara a ascese a um «segundo baptismo»: tal como o


caçador de pérolas deve mergulhar nu no oceano e abrir caminho por
entre os monstros marinhos, assim também os ascetas penetram nus por
entre os «homens deste mundo» (Edsman, p. 198). Além do simbolismo
da nudez pode decifrar-se neste texto alusão aos monstros marinhos que
espreitam o catecúmeno durante a sua imersão baptismal (ver o capítulo
seguinte, pp. 203 sq.). A gnose está «escondida» e é difícil de atingir; o
caminho da salvação está semeado de obstáculos. A pérola simboliza tudo
isto e outras coisas ainda; a sua aparição neste mundo fenomenal é
miraculosa, a sua presença entre os seres caídos é paradoxal. A pérola
significa o mistério do transcendente tornado sensível, a manifestação do
Deus no Cosmos. Graças ao gnosticismo e à teologia cristã, este antigo
símbolo da Realidade e da Vida-sem-Morte adquire novas valências: a
alma imortal, o «Salvador salvo», o Cristo-Rei. Sublinhemos uma vez mais
a continuidade das diversas significações da pérola, desde as mais arcaicas
e elementares aos mais complexos simbolismos elaborados pela
especulação gnóstica e ortodoxa.
147

Simbolismo e história

Baptismo; dilúvio e simbolismos aquáticos

Entre os poucos grupos de símbolos solidários do simbolismo que


acabamos de apresentar, este último é de longe o mais vasto e complexo.
Tentámos isolar a sua estrutura num trabalho anterior, ao qual nos
permitimos remeter o leitor (cf. Traité d'Histoire des Religions, pp. 168
sq.) que aí encontrará as peças essenciais de um processo sobre as
hierofanias aquáticas e, ao mesmo tempo, uma análise do simbolismo
que as valoriza. Limitar-nos-emos aqui a alguns dos seus traços mais
importantes.
As águas simbolizam a soma universal das virtualidades; elas são fons
et origo, o reservatório de todas as possibilidades de existência. A imagem
exemplar de toda a criação é a Ilha que subitamente se «manifesta» no
meio das ondas. Em contrapartida, a imersão na água simboliza a
regressão ao pré--formal, a reintegração no mundo indeferenciado da
pré-existência. A imersão repete o gesto cosmogónico da manifestação
formal; a imersão equivale a uma dissolução das formas. É por isso que o
simbolismo das Águas implica tanto a Morte como o Renascimento. O
contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado
porque a dissolução é seguida de um «novo nascimento», por outro lado
porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. A cosmogonia
aquática correspondem — a nível antropológico — as hilogenias, as
crenças segundo as quais o género humano nasceu das Águas. Ao dilúvio
148

ou à submersão periódica dos continentes (mitos do tipo «Atlântida»)


corresponde, ao nível humano, a «segunda morte» da alma (a
«humidade» e leimon dos Infernos, etc.) ou a morte iniciática pelo
baptismo. Mas, tanto no plano cosmológico como no plano antropológico,
a imersão nas águas equivale, não a uma extinção definitiva, mas a uma
reintegração passageira no indistinto, seguida de uma nova criação, de
uma nova vida ou de um homem novo, conforme se trate de um
momento cósmico, biológico ou soteriológico. Do ponto de vista da
estrutura, o «dilúvio» é comparável ao «baptismo», e a libação funerária
às lustrações dos recém-nascidos ou aos banhos rituais primaveris que
proporcionam saúde e fertilidade.
Em qualquer conjunto religioso em que se encontrem, as Águas
conservam invariavelmente a sua função: elas desintegram, anulam as
formas, «lavam os pecados», simultaneamente purificadoras e
regeneradoras. O seu destino é preceder a Criação e reabsorvê-la,
incapazes que são de ultrapassar a sua própria modalidade, ou seja de se
manifestar em formas. As Águas não podem transcender a condição do
virtual, dos germes e das latências. Tudo quanto é forma se manifesta
sobre as Águas, destacando-se das Águas. Em contrapartida, desde que se
destaca das Aguas, e deixa de ser virtual, toda a «forma» cai sob a lei do
Tempo e da Vida; adquire limites, participa no futuro universal, submete-
se à história, corrompe-se e acaba por se esvaziar da sua substância, a
menos que se regenere através de imersões periódicas nas Águas e que
repita o «dilúvio» com o seu corolário «cosmogónico». As lustrações e as
purificações rituais com a água têm como finalidade a atualização
fulgurante do momento intemporal (in illo tempore) em que se deu a
criação; elas são a repetição simbólica do nascimento dos mundos ou do
«homem novo».
Um traço é aqui essencial: é que a sacralidade das Águas e a
estrutura das cosmologias e dos apocalipses aquáticos não poderiam ser
integralmente revelados senão através do simbolismo aquático, que é o
único «sistema» capaz de integrar todas as revelações particulares das
inúmeras hierofanias (ver nosso Traité p. 383). Esta lei é, de resto, a de
149

todo o simbolismo: é o conjunto simbólico que valoriza (e corrige!) as


diversas significações das hierofanias. As «Águas da Morte», por exemplo,
só revelam o seu sentido profundo na medida em que se conhece a
estrutura do simbolismo aquático. Esta particularidade do simbolismo não
deixa de ter consequências para a «experiência» ou para a «história» de
um dado símbolo.
Recordando as linhas mestras do simbolismo aquático, tínhamos
justamente em vista um ponto preciso: a nova valorização religiosa das
Águas instaurada pelo cristianismo. Os Padres da Igreja não deixaram de
explorar certos valores pré--cristãos e universais do simbolismo aquático,
correndo o risco de os enriquecer de significações inéditas relacionadas
com o drama histórico de Cristo. Algures apresentámos (Traité, p. 175)
dois textos patrísticos relativos um aos valores soteriológicos da água,
outro ao simbolismo baptismal morte-renascimento: Para Tertuliano (De
baptismo, III-V) a água foi em primeiro lugar «a sede do Espírito divino
que a preferia então a todos os outros elementos... Foi à água, antes de
mais, que foi ordenado que produzisse criaturas vivas... Foi a água a
primeira a produzir o que tem vida, a fim de que o nosso espanto cessasse
quando um dia ela desse à luz a vida no baptismo. Na formação do
próprio homem, Deus empregou a água para consumar a sua obra... Toda
a água natural adquire portanto, pela antiga prerrogativa com que foi
distinguida na sua origem, a virtude de santificação no sacramento, desde
que Deus seja invocado para esse efeito. Mal se pronunciam as palavras, o
Espírito Santo, descido dos céus, paira sobre as águas que santifica pela
sua fecundidade; as águas assim santificadas impregnam-se por seu turno
de virtude santificante... O que outrora curava o corpo cura hoje a alma; o
que dava saúde no tempo dá a salvação na eternidade...»
O «homem velho» morre por imersão na água e dá nasci-cimento a
um novo ser regenerado. Este simbolismo é admiravelmente expresso por
João Crisóstomo (Homil. in Joh., XXV, 2) que, falando da multivalência
simbólica do baptismo, escreve: «Ele representa a morte e a sepultura, a
vida e a ressurreição... Quando mergulhamos a cabeça na água como num
sepulcro, o homem velho é mergulhado, desaparece por completo;
150

quando saímos da água, o homem novo aparece simultaneamente.»


Como se vê, as interpretações dadas por Tertuliano e João
Crisóstomo harmonizam-se perfeitamente com a estrutura do simbolismo
aquático. Intervêm, portanto, nesta valorização cristã das Águas, certos
elementos novos ligados a uma «história», neste caso a História santa. Os
trabalhos recentes de P. Lundberg, Jean Daniélou e Louis Beirnaert
mostraram amplamente a que ponto o simbolismo baptismal está
saturado de alusões bíblicas1. Há, antes de mais, a valorização do
baptismo como descida ao abismo das Águas para um duelo com o
monstro marinho. Esta descida tem um modelo: o de Cristo no Jordão,
que era ao mesmo tempo uma descida às Águas da Morte. «Cirilo de
Jerusalém mostra-nos efetivamente a descida à piscina baptismal como
descida às águas da morte, que são o habitat do dragão do mar, à imagem
do Cristo entrando no Jordão, quando do seu baptismo para quebrar o
poder do dragão lá escondido: «O dragão de Behemoth, segundo Job,
escreve Cirilo, estava nas águas e recebia o Jordão nas suas fauces. Ora,
como era preciso quebrar as cabeças do dragão, Jesus, tendo descido às
águas, amarrou o (que é) forte com força, a fim de que nós adquiríssemos
o poder de caminhar sobre os escorpiões e as serpentes. Etc.»2. E é ainda
Cirilo quem adverte o catecúmeno: «O dragão está à beira da estrada
observando os que passam, tem cuidado, não te morda! Tu vais ao Pai
dos espíritos mas é preciso passar por esse dragão». (cit. Beirnaert, p.
272). Como se verá dentro em pouco, esta descida e esta luta com o
monstro marinho constituem uma prova iniciática verificada também
noutras religiões.

1 P. Lundberg, La Typologie baptismale dans l'ancienne Église (Uppsala Leipzig,


-

1942); Jean Daniélou, S. J., Sacramentam futuri. Études sur les origines de la
typologie biblique (Paris, 1950), pp. 13 20, 55 85 e passim; id., Bible et Liturgie
- -

(Paris, 1951), pp. 29-173; Louis Beirnaert, S. J., La Dimension mythique dans le
sacramentalisme chrétien (Eranos-Jahrbuch, 1949, Bd XVII, Zürich, 1950, pp.
255-286). Os belos livros de Lundberg e J. Daniélou contêm, além do mais,
copiosas indicações bibliográficas.
2 J. Daniélou, Bible et Liturgie, pp. 58-59; ver também Sacramentum futuri, pp. 58
sq.; Lundberg, op. cit., pp. 148 sq.
151

Vem em seguida a valorização do baptismo como antytipos do


dilúvio. O Cristo, novo Noé, saído vitorioso das Águas, tornou-se chefe de
uma outra raça (Justin, citado por Daniélou, Sacramentum futuri, p. 74).
Assim o dilúvio figura tanto a descida às profundidades marinhas como o
baptismo. Segundo Ireneu, ele é a imagem da salvação por Cristo e do
julgamento dos pecadores (Daniélou, Sacramentum futuri, p. 72). «O
dilúvio era portanto uma imagem que o baptismo acaba de realizar... Tal
como Noé enfrentou o mar da morte, no qual a humanidade pecadora
tinha sido afogada, e dele tinha emergido, também o novo baptizado
desce à piscina baptismal para enfrentar o dragão do mar num combate
supremo e daí sair vencedor...» (ibid., p. 65).
Mas, ainda a propósito do rito baptismal, Cristo também é colocado
em paralelo com Adão. O paralelo Adão-Cristo ocupa já um lugar
considerável na teologia de S. Paulo. «Pelo baptismo, afirma Tertuliano, o
homem recupera a semelhança com Deus» (De bapt., V). Para S. Cirilo, «o
baptismo não é apenas purificação dos pecados e graça da adopção, mas
também antitipo da Paixão de Cristo» (citado por Daniélou, Bible et
Liturgie, p. 61). A nudez baptismal também contém um significado ritual e
metafísico simultaneamente: é o abandono da «velha indumentária de
corrupção e de pecado que o baptizado despe após Cristo, aquela com
que Adão foi vestido a seguir ao pecado» (Daniélou, p. 55), mas também o
regresso à inocência primitiva, à condição de Adão antes da queda. «Oh,
coisa admirável! — escreve Cirilo — Vós estáveis nus diante de todos sem
sentir vergonha. É que na verdade trazeis em vós a imagem do primeiro
Adão, que estava nu no Paraíso, sem ter vergonha» (citado por Daniélou,
op. cit., p. 56).
O simbolismo baptismal não limita aí a riqueza das suas referências
bíblicas e sobretudo das suas reminiscências paradisíacas, mas estes
poucos textos bastam para o nosso objetivo. Tanto mais que aspiramos
menos a um enunciado do simbolismo baptismal do que a um estado das
inovações trazidas pelo cristianismo. Os Padres da Igreja primitiva
encaravam o simbolismo quase unicamente como uma tipologia:
preocupavam-se em descobrir correspondências entre os dois
152

Testamentos3. Os autores modernos inclinam-se para este exemplo: em


vez de recolocar o simbolismo cristão no quadro do simbolismo «geral»,
universalmente confirmado pelas religiões do mundo não cristão, eles
persistem em relacioná-lo unicamente com o Antigo Testamento.
Segundo estes autores, não seria o sentido geral e imediato do símbolo
que dispararia no simbolismo cristão mas sim a sua valorização bíblica.
A atitude explica-se perfeitamente. O progresso dos estudos bíblicos
e tipológicos ao longo do último quarto de século, denota uma reacção
contra a tendência para explicar o cristianismo pelos mistérios e gnoses
sincretistas, uma reacção igualmente contra o «confusionismo» de certas
escolas comparatistas. A liturgia e a simbólica cristãs ligam-se
diretamente ao judaismo. O cristianismo é uma religião histórica, com
raízes profundas noutra religião histórica: a dos Judeus. Por conseguinte,
para explicar, ou melhor, compreender certos sacramentos ou certos
simbolismos, basta procurar as suas «figuras» no Antigo Testamento. Na

3 Recordemos o sentido e o fundamento da tipologia. «O seu ponto de partida


encontra-se no próprio Antigo Testamento. De fato, os Profetas anunciaram ao
povo de Israel, no seu cativeiro, que Deus realizaria para ele, no futuro, obras
semelhantes, e maiores ainda, às que tinha executado no passado. Assim haverá
um novo dilúvio que aniquilará o mundo pecador e onde uma parte será
reservada para inaugurar uma nova humanidade; haverá novo Êxodo em que
Deus, pelo seu poder, libertará a humanidade cativa dos ídolos; haverá um novo
Paraíso onde Deus introduzirá o seu povo libertado. Isto constitui uma primeira
tipologia a que pode chamar-se escatológica, pois estes acontecimentos
vindouros são para os profetas os do fim dos tempos. Portanto o Novo
Testamento não inventou a tipologia. Apenas mostrou que ela estava realizada
em Jesus de Nazaré. Efetivamente, com Jesus os acontecimentos do fim, da
plenitude dos tempos, cumpriram-se. Ele é o novo Adão eom o qual chegaram
os tempos do Paraíso futuro. Nele está já realizada a destruição do mundo
pecador prefigurado pelo dilúvio. Nele está realizado o Êxodo verdadeiro, que
liberta o povo de Deus da tirania do demónio. A exortação apostólica utilizou a
tipologia como argumento para estabelecer a verdade da sua mensagem,
mostrando que Cristo continua e ultrapassa o Antigo Testamento: «Estas coisas
aconteceram em figura (typikôs) e foram escritas para nossa instrução» (t Cor.,
X, 11). É aquilo a que S. Paulo chama consolatio Scripturarum.» (J. Daniélou,
Bible et Liturgie, pp. 9-10).
153

perspetiva historicista do cristianismo, nada de mais natural do que isso: a


revelação teve uma história; a revelação primitiva, operada na aurora dos
tempos, sobrevive ainda entre as nações, mas está meio esquecida,
mutilada, corrompida; a única via de aproximação passa através da
história de Israel: a revelação só foi plenamente conservada nos livros
santos do Antigo Testamento. Como veremos melhor mais adiante, o
judaico-cristianismo esforça-se por não perder contato com a história
santa que, ao contrário da «história» de todas as outras nações, é a única
real e a única com um significado: pois é o próprio Deus quem a faz.
Preocupado antes de mais em ligar-se a uma história que fosse ao
mesmo tempo uma revelação, atentos para não serem confundidos com
os «iniciados» das diversas religiões com mistérios e com as múltiplas
gnoses que pululavam no fim da antiguidade, os Padres da Igreja eram
obrigados a isolar-se nesta posição polémica: a recusa de todo o
«paganismo» era indispensável ao triunfo da mensagem de Cristo.
Podemos perguntar-nos se esta atitude polémica continua a impor-se nos
nossos dias tão rigorosamente. Não falamos como teólogos: não temos a
sua responsabilidade nem a sua competência. Mas para alguém que não
se sente responsável pela fé dos seus semelhantes, é evidente que o
simbolismo judaico-cristão do baptismo não contradiz de modo nenhum o
simbolismo aquático universalmente difundido. Tudo lá está: Noé e o
dilúvio têm como par, em inúmeras tradições, o cataclismo que pôs termo
a uma «humanidade» («sociedade») com excepção de um só homem que
se tornará o Antepassado mítico de uma nova humanidade: As «Águas da
Morte» são um leitmotiv das mitologias paleo-orientais, asiáticas e
oceânianas. A água «mata» por excelência: ela dissolve, anula todas as
formas. Justamente por isso ela é rica em «germes», criadora. O
simbolismo da nudez ritual equivale à integridade e à plenitude; o
«Paraíso» implica a ausência de «vestuário», ou seja a ausência da
«usura» (imagem arquetípica do Tempo). Quanto à nostalgia do Paraíso
ela é universal, se bem que as suas manifestações variem quase
indefinidamente (cf. também Traité, pp. 327 sq.). Toda a nudez ritual
implica um modelo intemporal, uma imagem paradisíaca.
154

Os monstros do abismo encontram-se em muitas tradições: os


Heróis, os Iniciados, descem aos abismos para enfrentar monstros
marinhos; esta é uma prova tipicamente iniciática. É certo que as
variantes abundam: por vezes os dragões montam guarda a um «tesouro»
imagem sensível do sagrado, da realidade absoluta; a vitória ritual
(=iniciática) contra o monstro-guarda equivale à conquista da
imortalidade (cf. Traité, pp. 182 sq., 252 sq.). O baptismo é, para o cristão,
um sacramento porque foi instituído por Cristo. Mas nem por isso deixa
de ir buscar o ritual iniciático da prova (= luta contra o monstro), da morte
e da ressurreição simbólicas (= nascimento do homem novo). Não
estamos a dizer que o judaísmo ou o cristianismo foram buscar de
«empréstimo» tais mitos e tais símbolos às religiões dos povos vizinhos;
isso não era necessário; o judaísmo herdava uma pré-história ou uma
longa história religiosa onde todas essas coisas já existiam. Nem era
sequer necessário que este ou aquele símbolo fosse conservado
«desperto», na sua integridade, pelo judaísmo: bastava que um grupo de
imagens sobrevivesse, mesmo que obscuramente, desde os tempos
anteriores a Moisés: tais imagens eram capazes de recuperar, em
qualquer momento, uma forte atualidade religiosa.
Certos Padres da Igreja primitiva avaliaram o interesse da
correspondência entre as imagens arquetípicas propostas pelo
cristianismo e as Imagens que são o bem comum da humanidade. «Um
dos seus cuidados mais constantes é precisamente o de manifestar aos
que não crêem a correspondência entre os grandes símbolos
imediatamente expressivos e persuasivos para a psiqué, e os dogmas da
religião nova.» Aos que negam a ressurreição dos mortos, Teófilo de
Antioquia chama-lhes a atenção para os sinais que Deus coloca ao seu
alcance nos grandes fenómenos da natureza: começo e fim das estações,
dos dias e das noites. Chega a dizer: «Não há uma ressurreição para as
sementes e para os frutos?» Para Clemente de Roma, «o dia e a noite
mostram-nos a ressurreição: a noite morre, o dia nasce; o dia acaba e
chega a noite» (Beirnaert, op. cit., p. 275). Para os apologetas cristãos as
Imagens estavam carregadas de signos e de mensagens; elas mostravam o
155

sagrado por intermédio dos ritmos cósmicos. A revelação trazida pela fé


não destruía as significações «primárias» das Imagens: juntava-lhes
simplesmente um novo valor. Sem dúvida que para o crente este novo
significado eclipsava os outros: só ele valorizava a Imagem, a transfigurava
em revelação. Era a ressurreição de Cristo que importava, e não os
«indícios» que se podiam ler na natureza; na maior parte dos casos, não
se compreendiam os «sinais» senão depois de ter encontrado, no fundo
da alma, a fé. Mas o mistério da fé interessa a experiência cristã, a
teologia e a psicologia religiosa e ultrapassa a nossa investigação; na
perspetiva que escolhemos, apenas uma coisa importa: que toda a nova
valorização foi sempre condicionada pela própria estrutura da Imagem, ao
ponto que pode dizer-se de uma Imagem que ela espera o cumprimento
do seu sentido.
Procedendo a uma análise das Imagens baptismais, o R. P. Beirnaert
reconhece «uma relação entre as representações dogmáticas, as
simbolizações da religião cristã e os arquétipos ativados pelos símbolos
naturais. De que maneira, aliás, os candidatos ao baptismo poderiam
compreender as imagens simbólicas que lhes são propostas se elas não
respondessem à sua expetativa obscura?» (op. cit., p. 276). O autor não se
admira que «muitos católicos tenham reencontrado o caminho da fé
através de tais experiências» (ibid.). Bem entendido, retoma o R. P.
Beirnaert, a experiência dos arquétipos não tem nada a ver com a
experiência da fé: «Podemos encontrar-nos num comum reconhecimento
da relação dos símbolos religiosos com a psiqué e classificarmo-nos no
entanto em crentes e não crentes.
É porque a fé é uma coisa diferente deste reconhecimento [...] .

O ato de fé opera portanto no mundo das representações arque-


típicas, uma divisão. Doravante a serpente, o dragão, as trevas, Satanás,
designam aquilo a que se renuncia. Reconhece-se como únicas
representações capazes de mediatizar a salvação, as que são propostas
como tais pela comunidade histórica» (ibid., p. 277).
156

Imagens arquetípicas e simbolismo cristão

E, todavia, o R. P. Beirnaert reconhece-o, mesmo se as imagens e o


simbolismo do sacramentalismo cristão não remetem o crente «antes de
mais a mitos e a arquétipos imanentes, mas à intervenção da potência
divina na história, este sentido novo não deve fazer desconhecer a
permanência do sentido antigo. Retomando as grandes figuras e as
simbolizações do homem religioso natural, o cristianismo retomou
também as suas virtualidades e os seus poderes sobre a psiqué profunda.
A dimensão mítica e arquetípica, pelo fato de estar desde agora
subordinada a uma outra, nem por isso é menos real. O cristão pode
muito bem ser um homem que renunciou a procurar a sua salvação
espiritual nos mitos e na única experiência dos arquétipos imanentes mas
isso não quer dizer que tenha renunciado a tudo o que significam e
efetuam os mitos e as simbolizações para o homem psíquico, para o
microcosmos [...]: A retomada, por Cristo e pela Igreja, das grandes
imagens que são o sol, a lua, a madeira, a água, o mar, etc., significam
uma evangelização das potências afetivas assim designadas. Não deve
reduzir-se a Encarnação apenas à tomada da carne. Deus chegou a intervir
até ao inconsciente coletivo para o salvar e para o realizar. Cristo desceu
aos Infernos. Como poderá pois esta salvação atingir o nosso inconsciente
se ela não lhe fala na sua linguagem, se não retoma as suas categorias?»
(L. Beirnaert, pp. 284-285).
Este texto traz elementos precisos e importantes para as relações
existentes entre os simbolismos «imanentes» e a fé. Como dissemos, o
problema da fé é estranho às presentes considerações. Há, todavia, um
dos seus aspetos que nos interessa: a fé cristã está suspensa de uma
revelação histórica: é a manifestação de Deus no Tempo que assegura,
aos olhos do cristão, a validade das Imagens e dos símbolos. Mostrámos
que o simbolismo aquático «imanente» e universal não foi abolido nem
desarticulado em consequência das interpretações locais e históricas
judaico-cristãs do simbolismo baptismal. Para o exprimir de uma maneira
157

um pouco simplista: a história não consegue modificar radicalmente a


estrutura de um simbolismo «imanente». A história acrescenta
continuamente novas significações, mas estas não destroem a estrutura
do símbolo. Ver-se-a mais adiante que consequências daí decorrem para o
problema da filosofia da história e da morfologia da cultura. Para já,
detenhamo-nos em alguns exemplos.
Falámos (pp. 55 sq.) do simbolismo da Árvore do Mundo. O
cristianismo utilizou, interpretou, alargou este símbolo. A Cruz, feita da
madeira da Árvore do Bem e do Mal, substitui a Árvore Cósmica; o próprio
Cristo é descrito como uma Árvore (Orígenes). Uma homilia do pseudo-
Crisóstomo evoca a cruz como uma árvore que sobe da terra aos céus.
Planta imortal, ela ergue-se no centro do Céu e da Terra: firme
sustentáculo do universo, elo de todas as coisas, suporte de toda a terra
habitada, entrelaçamento cósmico, contendo em si toda a variedade da
natureza humana... «E a liturgia bizantina canta ainda hoje, no dia da
exaltação da Santa Cruz, a árvore da vida plantada no Calvário, a árvore
sobre a qual o Rei dos séculos operou a nossa salvação», a árvore que,
«saindo das profundezas da Terra», «se elevou no centro da Terra e
santifica até aos confins do universo»4. A Imagem da Árvore Cósmica
conserva-se espantosamente pura. Muito provavelmente o protótipo
dever-se-ia procurar na Sabedoria que, segundo os Provérbios, III, 18, «é
uma árvore de vida para os que a apreendem». Esta Sabedoria, comenta
o Padre de Lubac (op. cit., p. 71), «para os Judeus será a Lei; para os
cristãos será o Filho de Deus.» Outro protótipo provável, a árvore vista em
sonhos por Nabucodonosor (Livro de Daniel, IV, 7-15): «Vi no meio da
Terra uma árvore de grande altura, etc.»
O R. P. de Lubac concorda que, tal como o símbolo da Árvore
Cósmica das tradições indianas, a Imagem da Cruz = = Árvore do Mundo,
prolonga no cristianismo um «velho mito universal» (op. cit., p. 75). Mas

4 Henri de Lubac, Aspets da Botalhiszne (Paris, 1951), pp. 57, 66-67. Acerca deste
problema ver R. Bauerreisse, Arbor Vitae. «Lebensbaunz» und reine
Verwendung in Liturgie, Kunst und Brauchtunz cies Abendlandes (Munich, 1938,
Abhandlungen der Bayerischen Benediktiner-Akademie, III ),
158

apressa-se a pôr em evidência as inovações trazidas pelo cristianismo. Vê-


se, por exemplo, na continuação da homilia do pseudo-Crisóstomo, que o
Universo é a Igreja: «ela é o novo macrocosmos, a que é análoga, em
miniatura, a alma cristã» (ibid., p. 77). E quantas outras diferenças saltam
aos olhos entre Buda e Cristo, entre o pilar de Sanehi e a Cruz (ibid., pp.
77 sq.). Estando completamente convencido de que a utilização, pelo
budismo e pelo cristianismo, de tal Imagem «não passa, afinal, de um fato
ide linguagem» (p. 76), o eminente teólogo parece exagerar a importância
das especificidades históricas: «Mas toda a questão reside em saber quais
são, em cada caso, o género e o grau de originalidade da «versão
particular» (ibid., p. 169, n. 101).
Residirá aí efetivamente todo o problema? Estaremos de fato
condenados a contentar-nos unicamente com a análise exaustiva •das
«versões particulares», que representam, no fim de contas, uma história
local? Não teremos nenhum meio de abordar a Imagem, o símbolo, o
arquétipo na sua própria estrutura, nessa totalidade que abarca todas as
«histórias» sem no entanto as confundir? Numerosos textos patrísticos e
litúrgicos comparam a Cruz a uma escada, a uma coluna ou a uma
-

montanha (Lubac, pp. 64-68). Estas imagens são, como bem se sabe,
fórmulas universalmente confirmadas do «Centro do Mundo». Foi como
símbolo do Centro do Mundo que a Cruz foi assimilada à Arvore Cósmica.
É a prova de que a Imagem do Centro se impunha naturalmente ao
espírito cristão. E por meio da Cruz (= Centro) que se realiza a
comunicação com o Céu e que, ao mesmo tempo, o Universo inteiro é
«salvo» (ver mais atrás na página 55). Ora, a noção de «salvação» não faz
mais do que retomar e completar as noções de renovação perpétua e de
regeneração cósmica, de fecundidade universal e de sacralidade, de
realidade absoluta e, afinal, de imortalidade, todas elas noções que
coexistem no simbolismo da Árvore do Mundo (cf. nosso Traité, pp. 234
sq.).
Que nos compreendam bem: não contestamos a importância da
história e, no caso do judaico-cristianismo, da fé, para julgar no seu justo
valor este ou aquele símbolo tal como era compreendido e vivido numa
159

cultura definida; insistiremos nisso até, mais adiante. Mas não é


«situando» um símbolo na sua própria história que se resolverá o
problema essencial, a saber: o que nos revela não uma «versão
particular» dc uni símbolo mas a totalidade de um simbolismo. Desde já
se vê que as diversas significações de um símbolo se encadeiam, são
solidárias à maneira de um sistema; as contradições que se podem
distinguir entre as diversas versões particulares não são na maioria das
vezes, senão aparentes: resolvem-se desde que se considere o simbolismo
no seu conjunto, que se isole a sua estrutura. Qualquer nova valorização
de uma Imagem arque-típica coroa e consome as antigas: a «salvação»,
revelada pela Cruz, não anula os valores pré-cristãos da Árvore do Mundo,
símbolo por excelência da renovatio integral; pelo contrário, a Cruz vem
coroar todas as outras valências e significações5. Notemos, uma vez mais,
que esta nova valorização trazida pela identificação Árvore Cósmica =
Cruz, teve lugar na história c através de um acontecimento histórico: a
Paixão de Cristo. Vê-lo-emos em breve: a grande originalidade do judaico-
cristianismo foi a transfiguração da História em teofania.

5 O simbolismo foi reforçado pelo fato de a Árvore da Vida aparecer ao lado do


Veado (nas ornamentações dos baptistérios), sendo este também uma imagem
arcaica da renovação cíclica (cf. Henri-Charles Puech, Le Cerf et le Serpent,
Cahiers archéologiques, IV, 1949, pp. 17-60, especialmente pp. 29 sq.). Ora, na
China proto-histórica, no Altai, em certas culturas da América central e do Norte
(sobretudo entre os Mayas e os Pueblo), o veado é um dos símbolos da criação
contínua e da renovatio, justamente por causa da renovação periódica das suas
hastes; cf. C. Hentze, Comment il faut lire l'iconographie d'un vase en bronze
chinois de la période Chang '(Conferente I. S. M. E. O., vol. I, Roma, 1951, pp. 1-
60), pp. 24 sq.; id., Bronzegerät, Kultbauten, Religion im ältesten China der
Shang-Zeit (Antwerpen, 1951), pp. 210 sq. Nas traduções gregas o veado
renova-se comendo serpentes e matando a sede, sem demora, nas águas de
uma fonte: a armação cai e o veado fica rejuvenescido cinquenta ou quinhentos
anos (ver as referências em Puech, p. 29). A inimizade do veado e da serpente é
de ordem cosmológica: o veado está em relação com o fogo e a aurora (China,
Altai, América, etc.); a serpente é uma das Imagens da Noite e da vida larvar,
subterrânea. Mas a serpente é também um símbolo de renovação periódica, se
bem que a outro nível. De fato a oposição veado (ou águia) serpente é mais a
imagem dinâmica de um «par de opostos» que interessa reintegrar.
160

Eis um outro exemplo: sabe-se que o xamã desce aos Infernos para
procurar e trazer a alma do doente que foi arrebatada pelos demónios6.
Orfeu desce também aos Infernos para trazer sua mulher, Euridice, que
morrera. Existem mitos análogos noutros sítios: na Polinésia, na América
do Norte, na Ásia central (aqui o mito é parte constitutiva de uma
literatura oral de estrutura xamânica), conta-se que um herói desce aos
Infernos para recuperar a alma da esposa morta; vence nos mitos
polinésios e centro-asiáticos, conhece o mesmo fracasso que Orfeu nos
mitos norte-americanos. Não nos apressemos a tirar uma conclusão à toa.
Registemos apenas um pormenor: Orfeu é o cantor domador de feras, o
médico, o poeta e o civilizador; em resumo ele reúne exatamente as
funções que cabem ao xamã das «sociedades primitivas». Este é mais do
que curandeiro e especialista das técnicas extáticas: ele é também o
amigo e senhor das feras, imita as suas vozes, transforma-se em animal; é,
além disso, cantor, poeta, civilizador. Sublinhemos, enfim, que Jesus
também desce aos Infernos para salvar Adão, para restaurar a integridade
do homem caído pelo pecado (e uma das consequências da queda do
homem foi justamente a perda do seu poder sobre os animais).
Teremos nós o direito (de considerar Orfeu como um «xamã» e de
considerar a descida de Cristo aos Infernos como descidas semelhantes
dos xamãs em êxtase? Tudo se opõe a isso: nas diversas culturas e
religiões — siberiana ou norte-americana, grega, judaico-cristã — estas
descidas são valorizadas de maneiras muito diferentes. É inútil insistir
nestas diferenças que saltam à vista. Mas um elemento permanece
imutável e não deve perder-se de vista: é a persistência do motivo da
descida aos Infernos empreendida para a salvação de uma alma; a alma
de um doente qualquer (xamanismo strito sensu), da esposa (mitos
gregos, norte-americanos, polinésios, centro-asiáticos) da humanidade
inteira (Cristo), pouco nos importa para já. A descida, desta vez, não é
apenas iniciática e empreendida para uma vantagem pessoal: ela tem um
fim «salvifico»: «morre-se» e «ressuscita-se» não já para terminar uma

6 Para tudo isto ver nosso livro Le Chamanisme et les techniques archaiques de
l'extase (Paris, 1951).
161

iniciação adquirida, mas para salvar uma alma. Uma nota nova carateriza
o arquétipo da iniciação: a morte simbólica não serve unicamente para a
própria perfeição espiritual (ou seja, em definitivo a conqulsta da
imortalidade), mas realiza-se para a salvação dos outros. Não
pretendemos de modo algum mostrar no xamã primitivo ou no Orfeu
norte-americano ou polinésio a pré-figuração de Cristo. Verificamos
apenas que o arquétipo da iniciação contém também esta valência da
«morte» (= descida aos Infernos) em proveito de um outro. (Notemos de
passagem que a sessão xamânica, durante a qual se verifica a «descida
aos Infernos», equivale a uma experiência mística; o xamã está «fora de
si», a sua alma deixou o corpo.)
Uma outra experiência xamânica fundamental é a da ascensão
celeste: por meio da Árvore Cósmica, plantada no «Centro do Munido», o
xamã penetra no Céu e aí encontra o deus supremo. Todos os místicos
como se sabe, utilizam o simbolismo da ascensão para representar a
elevação da própria alma humana e a união com Deus. Nada permite
identificar a ascensão celeste do xamã com as ascensões de Buda, de
Maomé ou de Cristo: o próprio conteúdo das experiências extáticas
respetivas é diferente. O que não impede que a noção de transcendência
se exprima universalmente por uma Imagem de elevação, e que a
experiência mística, seja qual for o berço religioso, implique sempre uma
ascensão celeste. Melhor: certos êxtases xamânicos fazem intervir
experiências (óticas que se assemelham, a ponto de se confundirem, com
experiências similares dos grandes místicos históricos (índia, Extremo-
Oriente, mundo mediterrânico, cristianismo).
Segundo os Padres da Igreja, a vida mística consiste num regresso ao
Paraíso7. Uma das caraterísticas da restauração paradisíaca será
justamente o domínio dos animais, que constitui já o privilégio dos xamãs
e de Orfeu. Ora, a reintegração do Paraíso encontra-se nos místicos
arcaicos e primitivos que se tem por hábito englobar sob a designação de

7 Ver Dom Stolz, Théologie de la mystique; J. Daniélou, Sacramentum futuri. Trata-


se antes de mais de uma antecipação, pois a plenitude da reintegração do
Paraíso só será realizada depois da morte.
162

xamanismo. Mostrámos algures que o transe xamânico restabelece a


situação de homem primordial: durante o seu transe, o xamã recupera a
existência paradisíaca dos Primeiros Humanos, que não estavam
separados de Deus. De fato as tradições falam-nos de um tempo mítico
em que o homem comunicava diretamente com os deuses celestes;
escalando uma montanha, uma árvore, uma liana, etc., os Primeiros
Homens podiam subir realmente e sem esforço, ao Céu. Os deuses, por
seu turno, desciam regularmente à terra para se misturarem com os
Humanos. Em consequência de um acontecimento mítico qualquer
(geralmente uma falta ritual), as comunicações entre o Céu e a Terra
foram cortadas (a Árvore, a liana, foram cortadas, etc.), e o Deus retirou-
se para o fundo do Céu. (Em inúmeras tradições esta retirada do Deus
celeste traduziu-se pela sua transformação posterior em deus otiosus.)
Mas o xamã, por meio de uma técnica de cujo segredo é detentor,
consegue restabelecer — provisoriamente e só para seu uso particular —
as comunicações com o Céu e retomar o diálogo com o Deus. Por outras
palavras, consegue abolir a história (todo o tempo que decorreu após a
«queda», após a ruptura das comunicações diretas entre Céu e Terra);
volta para trás, reintegra a condição paradisíaca primordial. Esta
reintegração de um illud tempus mítico opera-se no êxtase: o êxtase
xamânico pode ser considerado quer como condição, quer como
consequência da recuperação da condição paradisíaca. Em qualquer dos
casos é evidente que a experiência mística dos «primitivos» está
dependente também da reintegração extática do «Paraíso»8.
Não se trata de explicar a mística judaico-cristã pelo xamanismo,
nem de identificar «elementos xamânicos» no cristianismo. Mas existe
um ponto cuja importância não pode escapar a ninguém: a experiência

8 Não se pode, bem entendido, reduzir a experiência extática do xamanismo a esse


«regresso ao Paraíso»: uma quantidade de outros elementos se encontram
nela. Tendo dedicado um livro tinteiro a este problema extremamente
complexo, não pensamos ser necessário retomar uma vez mais a discussão.
Notemos no entanto que a iniciação xamânica consiste numa experiência
extática de morte e de ressurreição, experiência decisiva que se encontra em
todas as místicas hístóricas, inclusivé a mística cristã.
163

mística dos «primitivos», tal como a vida mística dos cristãos, implica a
recuperação da condição paradisíaca primordial. A equivalência vida
mística = regresso ao Paraíso não é portanto um hapax judaico-cristão,
criado pela intervenção de Deus na história; é um «dado» humano
universal de incontestável antiguidade.
Notemos, ainda aqui, que a «intervenção de Deus na história», ou
seja a revelação divina feita no Tempo, retoma e reforça uma «situação
atemporal». A revelação que o judaico-cristianismo recebe unicamente
num tempo histórico que nunca mais se repete e que chega a fazer dela
uma história de sentido único, a humanidade arcaica conserva-a nos
mitos; e todavia, tanto a experiência mística dos «primitivos» como a vida
mística dos cristãos se traduzem pelo mesmo arquétipo: a reintegração
.do Paraíso original. Vê-se bem que a história, no caso a História Santa,
não inovou nada: tanto nos primitivos como nos cristãos, é sempre um
regresso parodoxal in illud tempus, um «salto para trás» abolindo o
tempo e a história, que constitui a reintegração mística do Paraíso.
Por conseguinte o simbolismo bíblico e cristão, se bem que
carregado de um conteúdo histórico ao fim e ao cabo «provinciano» —
pois toda a história local é provinciana em relação à história universal
considerada na sua totalidade — permanece todavia universal, como todo
o simbolismo coerente. Podemos mesmo perguntar-mo-nos se a
«acessibilidade» do cristianismo não é devida em grande parte ao seu
simbolismo; se as Imagens universais que ele vai buscar por seu turno não
facilitaram consideravelmente a difusão da sua mensagem. Pois urna
questão perturba desde logo o não-cristão: como é que uma história local
— a história do povo judeu e das primeiras comunidades judaico-cristãs
— pode pretender tornar-se modelo de toda a manifestação divina no
Tempo concreto, histórico? Cremos ter esboçado a resposta; a história
santa, se bem que seja, aos olhos de um observador estranho, uma
história local, é igualmente uma história exemplar pois ela retoma e torna
perfeitas Imagens trans-temporais.
De onde vem então essa impressão irresistível, sentida sobretudo
pelos não-cristãos, de que o cristianismo fez inovações em relação à
164

religiosidade anterior? Para um Hindu simpatizante do cristianismo, a


inovação mais espantosa (se se deixar de parte a mensagem ou a
divindade de Cristo) consiste na valorização do Tempo, e finalmente na
salvação do Tempo e da História9. Renuncia-se à reversibilidade do
Tempo cíclico, impõe-se um Tempo irreversível porque, desta vez, as
hierofanias manifestadas pelo Tempo já não são susceptíveis de
repetição: Foi uma só vez que Cristo viveu, foi crucificado e ressuscitou.
Daí uma plenitude do instante, a ontologização do Tempo: o Tempo
consegue ser, o que significa que deixa de tornar-se, que se transforma
em eternidade. Notemos desde já que não é qualquer momento temporal
que roça a eternidade, mas apenas o «momento favorável», o instante
transfigurado por uma revelação (que se chame ou não a este «momento
favorável» káiros). O Tempo torna-se um valor na medida em que Deus se
manifesta através dele, confere-lhe um significado trans-histórico e uma
intenção soteriológica: pois, em cada nova intervenção de Deus na
história, não se tratava sempre do problema da salvação do homem, isto
é, de qualquer coisa que não tem nada a ver com a história? O Tempo
torna-se plenitude pelo próprio fato da encarnação do Verbo divino; mas
este mesmo fato transfigura a história. Como poderia ser vão e vazio o
Tempo que viu Jesus nascer, sofrer, morrer e ressuscitar? Como poderia
ela ser reversível e susceptível de se reptir ad infinitum?
Do ponto de vista da história das religiões, o judaico-cristianismo
apresenta-nos a hierofania suprema: a transfiguração do acontecimento
histórico em hierofânia. Trata-se de qualquer coisa mais do que da
hierofanização do Tempo, pois o Tempo sagrado é familiar a todas as
religiões. Desta vez é o acontecimento histórico em si que revela o
máximo de trans-historicidade: Deus não intervém apenas na história,
como era o caso do judaismo; ele encarna num ser histórico para sofrer
uma existência historicamente condicionada; aparentemente Jesus de

9 Ver a conferência de Henri-Charles Puech, Temps, Histoire et Mythe dans le


christianisme des premiers siècles (in Proceedings of the VIM Congress for the
History of Religions, Amsterdam, 1951, pp. 33-52); cf. também nosso Mythe de
l'Éternel Retour, pp. 152 sq. e Karl Meaning in History (Chicago, 1949).
165

Nazaré não se distingue em nada dos seus contemporâneos da Palestina.


Exteriormente o divino saiu. ocultou-se da história: nada deixa entrever
na fisiologia, na psicologia ou na «cultura» de Jesus o próprio Deus Pai;
Jesus come, digere, sofre com a sede e o calor como qualquer outro judeu
da Palestina. Mas, na realidade, este «acontecimento histórico» que
constitui a existência de Jesus é uma teofania total; nela existe como que
um esforço audacioso para salvar o acontecimento histórico em si
próprio, concedendo-lhe o máximo de ser.
A despeito do valor dado ao Tempo e à História, o judaico--
cristianismo não desemboca no historicismo mas numa teologia da
História. Não é por si próprio que o acontecimento é valorizado; é
unicamente por causa da revelação que ele comporta, revelação que o
precede e o transcende. O historicismo em si é um produto de
decomposição do cristianismo; não pôde constituir-se senão na medida
em que se tinha perdido a fé numa trans-hitoricidade do acontecimento
histórico.
E todavia um fato há que permanece: o cristianismo esforça-se por
salvar a história; em primeiro lugar porque atribui valor ao tempo
histórico, em seguida porque, para o cristão, o acontecimento histórico,
permanecendo tal como é, torna-se capaz de transmitir uma mensagem
trans-histórica: todo o problema consiste em decifrar esta mensagem.
Pois, após a reencarnação de Cristo, supõe-se que o cristão vá procurar as
intervenções de Deus não só no Cosmos (chamando em seu auxílio as
hierofanias cósmicas, Imagens e símbolos), mas igualmente nos
acontecimentos históricos. A empresa nem sempre é fácil; decifram-se
sem demasiada dificuldade os «sinais» da presença divina no Cosmos,
mas «sinais» semelhantes estão também camuflados na História.
De fato, o cristão admite que, após a Encarnação, o milagre deixa de
ser facilmente reconhecível; tendo o maior «milagre» sido justamente a
Encarnação, tudo o que se manifestava claramente como milagre, antes
de Jesus Cristo, deixa de ter sentido e utilidade depois da vinda de Cristo.
Existe, bem entendido, uma série ininterrupta de milagres aceites pela
Igreja, mas todos foram válidos como dependentes de Cristo, e não
166

devido à sua qualidade intrínseca de «milagre». (Sabe-se que a Igreja


distingue com cuidado os milagres devidos à «magia» e ao «demónio»,
dos que são concedidos pela graça). A existência e a validade dos milagres
aceites pela Igreja, deixam todavia em aberto o grande problema da
irrecognoscibilidade do maravilhoso no mundo cristão; pois podemos
muito bem encontrar-nos muito perto de Cristo, imitá-lo sem disso
manifestar qualquer sinal visível: pode imitar-se Cristo vivendo a sua vida
histórica, aquela que, aparentemente, se assemelhava à existência 'de
toda a gente. Em suma, o cristão é levado a abordar todo o
acontecimento histórico com «receio e temor»; pois que a seus olhos o
mais banal acontecimento histórico, ao mesmo tempo que continua a ser
real (quer dizer: historicamente condicionado), pode esconder uma nova
intervenção de Deus na história; em todo o caso este acontecimento pode
ter um significado trans-histórico, talvez carregado 'de uma mensagem.
Por conseguinte, para o cristão, a vida histórica em si própria pode tornar-
se gloriosa: testemunha, a vida de Cristo e dos Santos. Com o cristianismo
o Cosmos e as Imagens já não são os únicos encarregados de representar
e de revelar — existe, além disso a «pequena história», a que foi feita por
acontecimentos aparentemente destituídos de significado10.

10 As expressões «história» e «histórico» podem originar muita confusão: por um


lado indicam tudo o que é concreto e autêntico numa existência humana, por
oposição à existência não-autêntica constituída por evasões e automatismos de
toda a espécie. Por outro lado, nas diversas correntes historicistas e
existencialistas, as expressões «história» e «histórico» parecem implicar que a
existência humana não é autêntica senão na medida em que é reduzida à
tomada de consciência do seu momento histórico. É a esta última significação,
totalitária, da história que nos referimos quando nos opomos aos
«historicismos». Parece-nos, com 'efeito, que a autenticidade de uma existência
não pode limitar-se consciência ida sua própria historicidade: não podem
considerar-se como «evasão» e «não-autenticidade» as experiências
fundamentais do amor, da angústia, do sagrado, da emoção estética, da
contemplação, da alegria, da melancolia, etc., utilizando cada uma delas um
ritmo temporal que lhe é próprio, e concorrendo todas para constituir aquilo a
que poderia chamar-se o homem integral, que não se recusa ao seu momento
histórico mas que também não se deixa identificar com ele.
167

Sem dúvida. Mas não deve perder-se de vista que o crlstianismo


interveio na história para a abolir; a maior esperança do cristão é a
segunda vinda de Cristo, que porá fim a toda u História. De um certo
ponto de vista, para cada cristão, individualmente, este fim e a eternidade
que o seguirá, o paraíso reencontrado, podem realizar-se imediatamente.
Esse tempo anunciado por Cristo é já acessível e, para aquele que o
recuperou, a história deixa de existir. A transformação do Tempo em
Eternidade começou com os primeiros crentes. Mas esta transformação
paradoxal do Tempo em eternidade não é propriedade exclusiva do
cristianismo. Encontrámos a mesma concepção e o mesmo simbolismo na
índia (mais atrás p. 106). A ksana corresponde o káiros: tanto um como
outro pode tornar-se o «momento favorável» pelo qual se «sai do tempo»
e se chega à eternidade... Em última instância, pede-se ao cristão que se
torne contemporâneo de Cristo: o que implica uma existência concreta,
na história, e a contemporaneidade da exortação, da agonia e da
ressurreição de Cristo.

Símbolos e culturas

A história de um simbolismo é um estudo apaixonaste e aliás


completamente justificado, pois é a melhor introdução ao que se designa
por filosofia da cultura. As Imagens, os arquétipos, os símbolos são
diversamente vividos e valorizados: o produto destas atualizações
múltiplas constitui, em grande parte, os «estilos culturais». Em Ceram, nas
ilhas Molucas, e em Eleusis reencontram-se as aventuras míticas de uma
jovem primordial: Hainuwele e Kore Persefona11. Do ponto de vista da
estrutura, os seus mitos assemelham-se: e todavia que diferença entre as
culturas grega e ceramiana! A morfologia da cultura, a filosofia dos estilos
11
Ver Ad. E. Jensen, Hainuwele, Volkserzühlungen von der Molukken-Insel Ceram
(Frankfurt-a-Mein, 1939); id., Die Drei Ströme Leipzig, 1948), pp. 277 sq.; C. C. Juno
e Karl Kerényi, Das götlichen Mädchen (Albae Vigilae, Heft, 8-9, Amsterdam, 1941).
168

interessar-se-ão sobretudo pelas formas particulares tomadas pela


Imagem da Jovem na Grécia e nas ilhas Molucas. Mas se, na qualidade de
formações históricas, estas culturas deixaram de ser intercambiáveis,
estando já constituídas nos seus próprios estilos, são no entanto
comparáveis ao nível das Imagens e dos símbolos. É justamente esta
perenidade e esta universalidade dos arquétipos que «salvam» em última
instância as culturas, tornando ao mesmo tempo possível uma filosofia da
cultura que seja mais do que uma morfologia ou uma história dos estilos.
Toda a cultura é uma «queda na história»; e é, simultaneamente,
limitada. Não nos 'deixemos iludir pela incomparável beleza, pela nobreza
e perfeição da cultura grega; também ela não é universalmente válida
como fenómeno histórico: tente-se, por exemplo, revelar a cultura grega a
um Africano ou a um Indonésio: não será decerto o admirável «estilo»
grego que lhes transmitirá a mensagem, mas as Imagens que o Africano
ou o Indonésio redes-cobrirão nas estátuas ou nas obras-primas da
literatura clássica. O que, para um Ocidental, é belo e verdadeiro nas
manifestações históricas da cultura antiga, não tem valor para um
habitante da Oceania; porque, manifestando-se em estruturas e estilos
condicionados pela história, as culturas limitaram-se. Mas as Imagens que
as precedem e a informam permanecem eternamente vivas e
universalmente acessíveis. Um Europeu dificilmente admitirá que o valor
espiritual geralmente humano e a mensagem profunda de uma obra-
prima grega, a Vénus de Milo, por exemplo, não reside, para três quartas
partes da humanidade, na perfeição formal da estátua, mas na Imagem da
Mulher que ela revela. E, portanto, se não conseguirmos ter em conta
esta simples verdade de fato, não há esperança nenhuma de podermos
esboçar um diálogo útil com um não-Europeu.
Em suma, é a presença das Imagens e dos símbolos que conserva as
culturas «abertas»: a partir de qualquer cultura, tanto australiana como
ateniense, as situações-limite do homem são 'perfeitamente reveladas
graças aos símbolos que sustentam estas culturas. Se se negligenciar este
fundamento espiritual único dos diversos estilos culturais, a filosofia da
,

cultura será condenada a ficar como um estudo morfológico e histórico,


169

sem nenhuma validade para a condição humana em si. Se as Imagens não


fossem ao mesmo tempo uma «abertura» para o transcendente, acabar-
se-ia por asfixiar em qualquer cultura por maior e mais admirável que a
possamos supor. A partir de toda a criação espiritual estilisticamente e
historicamente condicionada, pode atingir-se o arquétipo: Kore Persefone
tanto como Hainuwele, revela-nos o mesmo patético mas fecundo
destino da Jovem.
As Imagens constituem «aberturas» para um mundo trans-histórico.
Mas não é esse o seu menor mérito: graças a elas, as diversas «histórias»
podem comunicar. Falou-se muito da unificação da Europa medieval pelo
cristianismo. Isto é sobretudo verdadeiro se se pensar na homologação
das tradições religiosas populares. Foi através da hagiografia cristã que os
cultos locais — desde a Trácia à Escandinávia e do Tejo ao Dnieper —
foram reduzidos a um «denominador comum». Devido à sua
cristianização, os deuses e os lugares de culto da Europa inteira
receberam não só nomes comuns como encontraram de certo modo os
seus próprios arquétipos e, por conseguinte, as suas valências universais:
uma fonte da Gália, considerada como sagrada desde a pré-história, mas
sagrada pela presença de uma figura divina local ou regional, tornava-se
santa para toda a cristandade, após a sua consagração à Virgem Maria.
Todos os exterminadores de dragões eram assimilados a S. Jorge ou a um
outro herói cristão, todos os deuses da tempestade a S. Elias. De regional
e provinciana, a mitologia popular torna-se ecuménica. É principalmente
pela criação de uma nova linguagem mitológica comum às populações
que permaneciam agarradas às terras, e por isso correndo maior risco de
se isolarem nas suas próprias tradições ancestrais, que o papel civilizador
do cristianismo é considerável; porque, cristianizando a antiga herança
religiosa europeia, ele não só purificou, mas fez passar para nova etapa
espiritual da humanidade tudo o que merecia ser «salvo» dentre as velhas
práticas, crenças e esperanças do homem pré-cristão. Sobrevivem hoje no
cristianismo popular, ritos e crenças do neolítico: as papas de sementes
em honra ,dos mortos, por exemplo (a coliva da Europa Ocidentel e
egeia). A cristianização das camadas populares da Europa fez-se
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sobretudo graças às Imagens: encontravam-se por todo o lado; havia


apenas que revalorizá-las, reintegrá-las e dar-lhes novos nomes.
Que não se espere para amanhã um fenómeno análogo, susceptível
de repetir-se à escala do planeta. Pelo contrário, a entrada idos povos
exóticos na história terá em toda a parte como consequência um
aumento do prestígio das religiões autótones. Tal como dissemos, o
Ocidente está atualmente perante um inevitável diálogo com as outras
culturas «exóticas» e «primitivas». Seria lamentável que ele o iniciasse
sem ter tirado alguma lição de todas as revelações fornecidas pelo estudo
dos simbolismos.

Considerações sobre o método

Após o que acabamos ide dizer, vê-se em que sentido foi


ultrapassada a posição «confusionista» de um Tylor ou de um Frazer, que,
nas suas investigações antropológicas e etnográficas, acumulavam
exemplos desprovidos de qualquer continuidade geográfica ou histórica,
citando um mito australiano ao lado de um mito siberiano, africano 934'
norte-americano, persuadidos que se tratava sempre e em todo o lado da
mesma «reacção uniforme do espírito humano perante os fenómenos da
Natureza». Em relação a esta posição tão semelhante à de um naturalista
da época darwiniana, a escola histórico-cultural de Graebner-Schmidt e as
outras escolas historicistas registaram um incontestável progresso.
Importava, porém, não se deixar imobilizar na perspetiva histórico-ultural
e perguntar-se se, além da sua própria história, um símbolo, um mito, um
ritual, podem revelar-nos a condição humana na qualidade de modo de
existência própria no Universo. Foi o que tentámos fazer aqui e em
diversas publicações nossas recentes12.

12 Este problema será amplamente discutido no segundo tomo do nosso Traité


d'Histoire des Religions.
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Como bons positivistas, Tylor ou Frazer consideravam a vida mágico-


religiosa da humanidade arcaica como um amontoado de «superstições
pueris: fruto dos medos ancestrais ou da estupidez «primitiva». Mas este
julgamento de valor contradiz os fatos. O comportamento mágico-
religioso da humanidade arcaica revela uma tomada de consciência
existencial do homem em relação ao Cosmos e a si próprio. Onde um
Frazer não via senão uma «superstição», estava já implícita uma
metafísica, mesmo que ela se exprimisse através de símbolos em vez de
ser através da confusão de conceitos: uma metafísica, quer dizer, uma
concepção global e coerente da Realidade — e não uma série de gestos
instintivos regidos pela mesma e fundamental «reacção do animal
humano perante a Natureza»: Assim, quando, abstraindo da «história»
que os separa, comparamos um símbolo oceaniano com um símbolo da
Asia setentrional, achamos ter fundamento para o fazer, não porque
tanto um como outro possam ser produtos de uma «mentalidade infantil»
mas porque o símbolo em si próprio exprime a tomada de conhecimento
de uma situação-limite.
Tentou-se explicar a «origem» dos símbolos pela impressão sensível,
exercida diretamente sobre o córtex cerebral, pelos grandes ritmos
cósmicos (o curso do sol, por exemplo). Não nos cabe discutir esta
hipótese. Mas o problema da «origem» em si parece-nos ser um
problema mal posto (ver mais acima, p. 157). O símbolo não pode ser o
reflexo dos ritmos cósmicos na qualidade de fenómenos naturais, porque
um símbolo revela sempre qualquer coisa mais do que o aspeto da vida
cósmica que se supõe representar. Os simbolismos e os mitos solares, por
exemplo, revelam-nos também um lado «noturno», «mau» e «funerário»
do Sol que não é evidente à primeira vista no fenómeno solar em si. Este
aspeto de certo modo negativo, despercebido no Sol enquanto fenómeno
cósmico, é constitutivo, do simbolismo solar; o que prova que, desde o
início, o símbolo aparece como uma criação da psiqué. Isto torna-se ainda
mais evidente quando se recorda que a função de um símbolo é
justamente a de revelar uma realidade total, inacessível aos outros meios
de conhecimento: a coincidência dos opostos, por exemplo, tão
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abundantemente e tão simplesmente expressa pelos símbolos, não é


dada em parte alguma do Cosmos, e não é acessível à experiência
imediata do homem nem ao pensamento discursivo.
Abstenhamo-nos no entanto de crer que o simbolismo se refere
unicamente às realidades «espirituais». Para o pensamento arcaico tal
separação entre o «espiritual» e o «material» não tem sentido: os dois
planos são complementares. Pelo fato de se supor que está colocada no
«Centro do Mundo» uma casa nem por isso deixa de ser um instrumento
que responde a necessidades concretas e que é condicionado pelo clima,
pela estrutura económica da sociedade e pela tradição arquitetónica.
Recentemente ainda, a velha querela entre «simbolistas» e «realistas»
estourou de novo a propósito da arquitetura religiosa do antigo Egipto. As
duas posições só aparentemente são irreconciliáveis: no horizonte da
mentalidade arcaica, levar em conta as «realidades imediatas» não
significa de modo algum que se ignore ou despreze as suas implicações
simbólicas, e vice-versa. Não se deve acreditar que a implicação simbólica
anula o valor concreto e específico ide um objeto ou de uma operação:
quando a enxada é denominada falo (como acontece em certas línguas
austro-asiáticas) e a sementeira é assimilada ao ato sexual (como se fez
em quase todo o mundo), não se segue que o agricultor «primitivo»
ignore a função específica do seu trabalho e o valor concreto, imediato,
do instrumento. O simbolismo acrescenta um novo valor a um objeto ou a
uma acção, sem portanto danificar os seus valores próprios e imediatos.
Aplicando-se a um objeto ou a uma acção, o simbolismo torna-os
«abertos». O pensamento simbólico faz «explodir» a realidade imediata,
mas sem a diminuir nem a desvalorizar; na sua perspetiva o Universo não
é fechado, nenhum objeto é isolado na sua própria existencialidade: tudo
se mantém coeso, por um sistema cerrado de correspondências o da
assimilações13. O homem das sociedades arcaicas tomou consciência de si
próprio num «mundo aberto» e rico de significa resta saber se estas

13 Para bem compreender a transformação do mundo pelo símbolo basta recordar


a dialética da hierofania: um objeto torna-se sagrado e continua a ser ele
próprio (ver mais atrás, p. 110).
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«aberturas» são outros tantos meios de evasão, ou se, pelo contrário,


constituem a única possibilidade de acesso à verdadeira realidade do
mundo.

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