ELIADE M Imagens e Simbolos PDF
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mircea eliade
IMAGENS E SÍMBOLOS
ARTES E LETRAS/ARCÁDIA
3
já publicado:
SABER VER A ARQUITETURA Bruno Zevi
AS IMAGINAÇÕES DA IMAGEM Lima de Freitas
INTRODUÇÃO À LITERATURA NO SÉCULO XX Víntila Horia
INTRODUÇÃO AO MÉTODO DE LEONARDO DA VINCI Paul Valery
A POESIA MODERNA E A INTERROGAÇÃO DO REAL — I António Ramos Rosa
MIGUEL TORGA, POETA IBÉRICO Jesús Herrero
O DEVIR DAS ARTES Gillo Dorfles
LÂMPADAS NO ESCURO David Mourão-Ferreira
IMAGENS E SÍMBOLOS Mircea Eliade
4
Sumário
PREFÁCIO À TRADUÇÃO PORTUGUESA................................................7
Prefácio...............................................................................................10
Redescoberta do simbolismo.........................................................10
Simbolismo e Psicanálise................................................................13
Perenidade das imagens ................................................................17
O plano do livro ..............................................................................21
I - Simbolismo do «centro» ................................................................27
Psicologia e história das religiões...................................................27
História e arquétipos......................................................................33
A imagem do mundo......................................................................37
Simbolismo do centro ....................................................................41
Simbolismo da ascensão ................................................................46
Construção de um centro...............................................................51
II - Simbolismos indianos do tempo e da eternidade ........................56
Função dos mitos ...........................................................................56
Mitos indianos do tempo ...............................................................59
A doutrina dos «Yugas»..................................................................61
Tempo cósmico e história ..............................................................66
O «terror do tempo»......................................................................70
Simbolismo indiano da abolição do tempo....................................72
O «ovo quebrado» .........................................................................75
A filosofia do tempo no budismo...................................................77
Imagens e paradoxos .....................................................................80
6
Redescoberta do simbolismo
1 Simplificamos o mais possível porque se trata de um aspeto das coisas que nos é
impossível abordar aqui. No que respeita a mitos e símbolos soteriológicos
comunistas, é evidente que, feitas todas as reservas acerca da elite marxista
dirigente e sua ideologia, as massas simpatizantes são estimuladas c chicoteadas
por slogans tais como: libertação, paz, ultrapassagem dos conflitos sociais,
abolição do Estado explorador e das classes privilegiadas, etc., slogans estes cuja
estrutura e função mítica já não precisam de ser demonstradas.
12
Simbolismo e Psicanálise
história não fosse uma sucessão trágica de inúmeras «quedas». Não existe
heresia monstruosa, orgia infernal, crueldade religiosa, loucura, absurdo
ou insanidade mágico-religiosa que não seja «justificada», no seu próprio
princípio, por uma falsa — porque parcial, incompleta — interpretação de
um grandioso simbolismo5.
5 Ver nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 304 sq. et passim.
18
6 Ver as ricas e penetrantes análises de Gaston Bachelard nos seus trabalhos sobre
a «imaginação da matéria»: La Psychanalyse du Feu, L'Eau et les Rêves, L'Air et
les Songes, La Terre et les Rêveries, 2 vol. (Paris, 1939-1948). G. Bachelard
baseia-se sobretudo na poesia e nos sonhos e, subsidiariamente, no folclore;
mas facilmente se mostraria como sonhos e imagens poéticas prolongam os
simbolismos sagrados e as mitologias arcaicas. A propósito das Imagens de Água
e de Terra, tal como povoam os sonhos e as literaturas, cf. os capítulos sobre as
hierofanias e os simbolismos aquáticos e telúricos no nosso Traité d'Histoire eles
Religions, pp. 168 sq., 211 sq.
21
O plano do livro
7 O IV capítulo remonta a 1938 (ver Zalmoxis, t. II, pp. 131 sq.); o III é de 1946 (ver
Revue de l'Histoire des Religions, t. CXXXIV, Julho-Dezembro, 1947-1948, pp. 5
sq.). A substância dos capítulos I e II foi objeto das nossas conferências de
Ascona, 1950-1951 (cf. Eranos-Jahrbuch, t. XIX e XX), e de um artigo do Journal
de Psychologie.
22
Simbolismo do «centro»
religiosos e, pelo simples fato de eles serem fenómenos, quer dizer que se
manifestam, se nos revelam, são cunhados, como uma medalha, pelo
momento histórico que os viu nascer. Não existe fato religioso «puro»
fora do tempo. A mais nobre mensagem religiosa a mais universal das
experiências místicas, o comportamento mais geralmente humano —
como, por exemplo, o temor religioso, o rito, a oração — singularizam-se
e delimitam-se desde que se manifestam. Quando o Filho de Deus
encarnou e se fez Cristo, teve de falar aramaico; não podia deixar de
comportar-se como um hebreu do seu tempo — e não um como yogi, um
taoísta ou um Xamã. A sua mensagem religiosa, por universal que fosse,
estava condicionada pela história passada e contemporânea do povo
hebreu. Se o Filho de Deus tivesse nascido na índia, a sua mensagem oral
teria tido que se conformar com a estrutura dos idiomas indianos e com a
tradição histórica e pré-histórica 'deste conglomerado de povos.
Reconhece-se sem dificuldade nesta tomada de posição todo o
32
História e arquétipos
1 Ver, mais adiante, o capítulo TH: O «deus ligador» e o simbolismo dos nós.
37
A imagem do mundo
eram dispostas mais para impedir a invasão dos espíritos maus do que o
ataque dos humanos3. Mesmo muito mais tarde na história, na Idade
Média, por exemplo, os muros das cidades eram consagrados ritualmente
como uma defesa contra o Demónio, a doença e a morte. Além do mais, o
simbolismo arcaico não encontra qualquer dificuldade em assimilar o
inimigo humano ao Demónio ou à Morte. Afinal o resultado dos seus
ataques, quer sejam demoníacos, quer militares, é sempre o mesmo: a
ruína, a desintegração, a morte.
Todo o microcosmos, toda a região habitada, tem aquilo a que
poderia chamar-se um «Centro», isto é um lugar sagrado por excelência. É
aí, nesse Centro, que o sagrado se manifesta de uma maneira total, quer
sob a forma de hierofanias elementares — como entre os «primitivos» (os
centros totémicos, por exemplo, as cavernas onde se enterram os
tchuringas, etc.) — quer sob a forma mais evoluída das epifanias diretas
dos deuses, como nas civilizações tradicionais. Mas não se deve encarar
este simbolismo do Centro com as suas implicações geométricas do
espírito científico ocidental. Para cada um destes microcosmos podem
existir vários «centros». Como não tardaremos a ver, todas as civilizações
orientais — Mesopotâmia, índia, China, etc. — conhecem um número
ilimitado de «Centros». Melhor ainda: cada um destes «Centros» é
considerado e mesmo designado literalmente por «Centro do Mundo».
Como se trata de um espaço sagrado, que é dado por uma hierofania ou
construído ritualmente, e não de um espaço profano, homogéneo,
geométrico, a pluralidade dos «Centros da Terra» no interior de uma só
região habitada não oferece qualquer dificuldade4. Estamos em presença
de uma geografia sagrada e mítica, a única efetivamente real e não de
uma geografia profana, «objetiva», de certo modo abstrata e não
essencial, construção teórica de um espaço e de um mundo que não se
habita e que portanto, não se conhece.
Na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real por excelência,
5 Cf. . R. Pettazzoni, Miti e Leggende, I (Torino, 1948), p. v; id., Veritá del Mito
(Studi e Materiali di Storia delle Religioni, vol. XXI, 1947-1948, pp. 104-116); G.
van der Leeuw, Die Bedeutung der Mythen (Festschrift für Alfred Bertholet,
Tübingen, 1949, pp. 287-293); M. Elíade, Traité d'Histoire des Religions, pp. 350
sq.
6 P. Schebesta, Les Pygmées (trad. fr., Paris, 1940), pp. 156 sq.
7 Cf. por exemplo, W. Gaerte, Kosmische Vorstellungen im Bilde prähistorisher
Zeit: Erdberg, Himmelsberg, Erdnabel und Welttenströme (Anthropos, IX, 1914,
pp. 956-979).
41
Simbolismo do centro
9 Cf. nosso Traité pp. 236 sq.; Le Chamanisme, pp. 244 sq.; sobre o simbolismo cristão
da Cruz = Árvore Cósmica, ver H. de Lubac, Aspets da Boudhisme (Paris, 1951),
pp. 61 sq.
45
Samhitâ, 1, 7, 9). «Na verdade, diz ainda o Taittiriya Samhitâ (VI, 6, 4, 2), o
sacrificador faz uma escada e uma ponte para atingir o mundo celeste.»
O ponto ou a escada entre o Céu e a Terra eram possíveis porque se
elevavam num Centro do Mundo. Exatamente como a escada vista em
sonhos por Jacob e que tocava no Céu. E «os anjos de Deus subiam e
desciam ao longo dessa escada» (Génesis, 28, 11 sq.). O rito índio faz
também alusão à imortalidade que se obtém por se ter subido ao Céu.
Como veremos dentro em pouco, uma quantidade de outras abordagens
rituais de um Centro equivalem a uma conquista da imortalidade.
A assimilação da árvore ritual à Árvore Cósmica é ainda mais
transparente no Xamanismo central e norte-asiático. A escalada desta
árvore para o Xamã tártaro simboliza a sua ascensão ao Céu.
Efetivamente fazem-se na árvore 7 ou 9 entalhes e subindo por eles o
xamã declara pertinentemente que subiu ao Céu. Descreve à assistência
tudo o que vê em cada um dos níveis celestes que atravessa. No sexto céu
venera a Lua, no sétimo o Sol. Finalmente no nono prosterna-se perante
Bai Ulgän, o Ser Supremo, e oferece-lhe a alma do cavalo sacrificado10.
A árvore xamânica é apenas uma réplica da Árvore do Mundo, que se
eleva no meio do Universo e no cimo da qual se encontra o Deus Supremo
ou o deus solarizado. Os 7 ou 9 entalhes na árvore Xamânica simbolizam
os 7 ou 9 ramos da Árvore Cósmica, ou seja os 7 ou 9 céus. O xamã sente-
se, aliás, solidário com esta Árvore do Mundo através de outras relações
místicas. Nos seus sonhos iniciáticos presume-se que o futuro xamã se
aproXima da Árvore Cósmica e recebe da mão do próprio Deus três ramos
dessa Árvore que lhe servirão de caixas para os seus tambores11. É
conhecido o papel fundamental desempenhado pelo tambor durante as
sessões Xamânicas; é sobretudo com o auxílio dos tambores que os xamãs
atingem o êxtase. Ora, se nos lembrarmos que o tambor é feito da própria
Simbolismo da ascensão
15 Cf. os materiais reunidos no nosso Chamanisme, pp. 248 sq. Para o simbolismo
cristão da ascensão ver Louis Beirnaert, Le Symbolisme ascensionnel dans la
liturgie et la mystique chrétiennes (Eranos-Jahrbuch, XIX, Zürich, 1951, pp. 41-
63).
49
muitos homens»; assim se exprime o Rig Veda (X, 14, 1). O caminho dos
mortos na crença popular uralo-altaica é a escalada dos montes; Bolot,
herói Kara-Kirghiz, tal como Kesar, rei lendário dos mongóis, entra no
outro mundo, à maneira de prova iniciática, por uma gruta situada no
topo das montanhas; a descida do xamã aos Infernos também se realiza
por meio de uma gruta. Os Egípcios conservam nos seus textos funerários
a expressão asket pet (asket = «degrau») para indicar que a escada de que
dispõe Ré, é uma escada real que liga a Terra ao Céu. «Está instalada, para
mim, a escada de ver os deuses», diz o Livro dos Mortos. «Os deuses
fazem-lhe uma escada para que, ao servir-se dela, ele suba ao Céu», diz
ainda aquele livro. Em muitos túmulos do tempo das dinastias arcaicas e
medievais, encontraram-se amuletos em forma de escada (maqet) ou
uma escalda. O uso da escada funerária sobreviveu algures até aos nossos
dias: diversas populações asiáticas primitivas — como, por exemplo, os
Lolos, os Karens, etc. — erguem sobre os túmulos escadas rituais que
servem para os defuntos subirem aos Céus16.
Como acabamos de ver, a escada contém um simbolismo
extremamente rico sem deixar de ser perfeitamente coerente: ela
representa plasticamente a ruptura de nível que torna possível a
passagem de um modo de ser a um outro; ou, colocando-nos no plano
cosmológico, que torna possível a comunicação entre Céu, Terra e Inferno.
E por isso que a escada e a escalada desempenham um papel considerável
tanto nos ritos e mitos de iniciação como nos ritos funerários, para não
falar dos ritos de entronização real ou sacerdotal, ou dos ritos de
casamento. Ora, sabe-se que o simbolismo da escalada e dos degraus se
encontra com muita frequência na literatura psicanalítica, o que define
que estamos perante um comportamento arcaico da psiqué humana e
não perante uma criação «histórica», uma inovação devida a um certo
momento histórico (digamos: o Egipto arcaico ou a índia védica, etc.).
Contentemo-nos com um único exemplo de redescoberta espontânea
16 Ver Traité d'Histoire des Religions, pp. 96 sq. Le Chamanisme et les techniques
archaiques de l'extase, pp. 420 sq
50
cósmicas.
17 Ver nosso estudo Durohâna and the «waking dream» (Art and Thought, A
volume in honour of the late Dr. Ananda K. Coomaraswamy, London, 1947, pp.
209 sq.).
51
Construção de um centro
18 Ver nosso livro Techniques du Yoga (Gallimard„ 1948), pp. 185 sq.; Giuseppe
Tucci, Teoria e pratica del mandala (Roma, 1949); sobre o simbolismo •do
mandala, ver C. G. Jung, Psychologie und Alchemie (Zürich, 1944), pp. 139 sq.;
id., Gestaltungen des Unbetvussten (Zürích, 1950), pp. 187 sq.
52
19 Cf. Traité d'Histoire des Religions, pp. 326 sq.; Le Chamanisme, pp. 417, 428 sq.
20 Perceval, ed. Hucher, p. 466; Jessie L. Weston, From Ritual to Romance
(Cambridge, 1920), p. 12 sq. O mesmo motivo mítico se encontra no ciclo de Sir
Gawain (Weston, ibid.)
55
2 Ver Heinrich Zimmer, Myths and Symbols in Indian Art and Civilization (edited by
Joseph Campbell, New-York, 1946, The Bollingen Series, VI), pp. 3 sq.
60
3 Cf. J. Przyluski, From the Great Goddess to Kâla (Indian Historical Quarterly, 1938,
pp. 267-74).
64
4 Sobre tudo ísto ver Le Mythe de l´Eternel Retour, pp. 170 sq. e passim.
65
5 Cf. por exemplo, Bhagavad-Gitâ, IV, 20; ver nosso livro Techniques du Yoga
(Paris, Gallimard, 1948), pp. 141 sq.
68
6 The Sayings of Sri Ramakrishna (edição de Madras, 1938), Book IV, chapter 22.
Ver outra versão deste mito segundo a Matsya Purâna, contada por H. Zimmer,
Myths and Symbols, pp. 27 sq.
70
compreendido tudo; mas aprendera uma coisa essencial: sabia agora que
a Mâyâ cósmica de Visnu se manifesta através do tempo.
O «terror do tempo»
— tal como nas línguas europeias (por ex.: «What time is now?») Nos
textos mais antigos, sublinha-se o caráter temporal de todos os universos
e de todas as existências possíveis: «O Tempo engendrou tudo o que foi e
o que será» (Atharva Veda, XIX, 54, 3). Nos Upanisads, Brahman, o
Espírito Universal,
Ser absoluto é concebido simultaneamente como transcendendo o
Tempo e como fonte e fundamento de tudo o que se manifesta no
Tempo: «Senhor do que foi e do que será, ele é, ao mesmo tempo, hoje e
amanhã» (Kena Up. IV, 13). E Krisna, manifestando-se como deus cósmico
a Arjuna, declara: «Eu sou o Tempo, que ao avançar destrói o mundo»
(Bhagavad-Gîtâ, XI, 32).
Como se sabe, os Upanisads distinguem dois aspetos de Brahman, do
Ser universal: «o corporal e o incorporai, o mortal e o imortal, o fixo
(sthita) e o móvel, etc.» (Brhadâranyaka-Upanisad, II 3,1). O que equivale
a dizer que tanto o Universo nos seus aspetos manifesto e não-manifesto,
como o Espírito nas suas modalidades de condicionado e de não
condicionado, repousam no único, rio Brahman que cumula todas as
polaridades e todas as oposições. Ora, a Madri Upanisad (VII, 11,8), ao
precisar esta bipolaridade do Ser universal sobre o plano do Tempo,
73
O «ovo quebrado»
14 Sutta Nipâta, 373, 860, etc., e outros textos recolhidos por Coomaraswamy, op.
cit., pp. 40 sq.
15 Ver Louis de la Vallée-Poussin, Notes sur le «moment» ou ksana cies boudhistes
(Rocznik Orientalistczny, op. cit., pp. 56 sq).
80
pelo «momento», que se mede o tempo. Mas este termo tem também o
sentido de «momento favorável, opportunity», e para Buda é através de
um tal «momento favorável» que se pode sair do tempo. Com efeito Buda
aconselha a «não perder o momento», pois: «lamentar-se-ão aqueles que
perderem o momento». Ele felicita os monges que «aprisionaram o seu
momento» (khano vo patiladdho) e lamenta aqueles «para quem o
momento passou» (khanâtitâ; Samyuta .Nikâya, IV, 126). O mesmo é
dizer que, após o longo caminho percorrido no tempo cósmico, através de
inúmeras existências, a «iluminação é instantânea» (eka ksana). A
«iluminação instantânea (eka-ksanâbhisambodhi) como lhe chamam os
autores mahâyânistas, quer dizer que a compreensão da Realidade se faz
subitamente, como um relâmpago. É exatamente a imaginaria verbal,
baseada no simbolismo do relâmpago, que já encontrámos nos textos
upanisadicos. Um momento qualquer, um ksana qualquer, pode
transformar-se no «momento favorável», no instante parodoxal que
suspende a duração e projeta o monge budista no nunc stans, num eterno
presente. Este eterno presente não faz já parte do tempo, da duração; ele
é qualitativamente diferente do nosso «presente» profano, desse
presente precário que surge debilmente entre duas não-entidades — o
passado e o futuro — e que se deterá com a nossa morte. O «momento
favorável» da iluminação é comparável ao relâmpago que comunica a
revelação ou com o êxtase místico, e prolonga-se paradoxalmente para
fora do tempo.
Imagens e paradoxos
Notemos que todas estas imagens através das quais nos esforçamos
por exprimir o ato paradoxal da «saída do tempo», servem igualmente
para exprimir a passagem da ignorância à iluminação (ou, por outras
palavras, da «morte» à «vida», do condicionado ao não-condicionado,
etc.). Grosso modo, podemos agrupá-las em três classes: 1º as imagens
que indicam a abolição do tempo e portanto a iluminação, por uma
81
16
Sobre estes motivos, ver A. B. Cook, Zeus, III, 2 (Cambridge, 1940), Appendix P:
«Floating Islands» (pp. 975-1016); Ananda Coomaraswamy, Symplegades
(Studies and Essays in the History of Science and Learning off ered in Homage to
George Sarton, New-York, 1947, pp. 463-488); Eliade, Le Chamanisme et les
techniques archaiques de l'extase (Paris, 1951), pp. 419 e passim.
,
83
17 Sobre a dialética do sagrado, ver nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 15 sq.
84
18 Cf. nosso Cosmical homology and Yoga (Journal of the Indian Society of Oriental Art,
Calcutta, 1937, pp. 188-203). Sobre o prânâyâma, ver Techniques du Yoga, pp. 75 e
sq.
19 Pode acontecer mesmo que a ritmização da respiração tenha consequências
consideráveis sobre a fisiologia do yogin. Não tenho qualquer competêneia
neste domínio mas fiquei impressionado em Rishikesh o algures no Himalaia,
com a admirável condição física dos yogins embora estes mal se alimentassem.
Um dos vizinhos do meu kutiar, em Rishikesh era um naga, um asceta nu, que
passava quase toda a noite a praticar o prânâyâma e que nunca comia mais do
que um punhado de arroz. Tinha a compleição de um atleta perfeito: não
aparentava nenhum sinal de subnutrição ou de fadiga. Admirava-me que ele
nunca tivesse fome. «Só vivo de dia — respondeu-me ele. — Durante a noite
reduzo o número das minhas inspirações a um décimo.» Não tenho a certeza de
ter entendido completamente o que ele queria dizer, mas talvez isso significasse
muito simplesmente que a duração vital, era medida pelo número de
inspirações e de expirações e que, assim, durante a noite ele reduzia este
número a um décimo do normal, vivendo em dez horas do nosso tempo, apenas
a décima parte, ou seja uma hora. Contado em horas-respiração, um dia de 24
horas tínha para ele apenas 12 a 13 horas-respiração, o que quer dizer que o
seu corpo gastava-se e envelhecia mais lentamente do que o nosso; assim ele
85
comia um punhado ,de arroz não todas as 24 horas mas sim todas as 12 ou 13
horas. Isto não passa de uma hipótese e por isso não insisto. Mas tanto quanto
sei ainda não foi dada uma explicação cabal da espantosa juventude dos yogins.
20 Kâlacakra Tantra, citado por Mario E. Carelli, no prefácio da sua edição de
Sekoddesatiki, pp. 16 sq.; ver Sekoddesatikâ of Nadapâda (Nâropâ), being a
commentary of the Sekoddesa Setion of the Kâlacakra Tantra (Gaekwad Oriental
Series, vol. XC, Baroda, 1941).
21 Ver os textos recolhidos por P. C. Bagchi, Some technical terms of the Tantras
(The Calcutta Oriental Journal, I, 2, Novembre 1934, pp. 75-88), spéc. pp. 82 sq.,
e Shashibhusan Dasgupta, Obscure religious culIs (Calcutta, 1946), pp. 274 sq.
86
Sabe-se que na fisiologia mística do Yoga, ida e pingala são os dois canais
através dos quais circula a energia psico-vital no interior do corpo
humano. A assimilação destas duas veias místicas ao Sol e à Lua perfaz a
operação que denominámos «cosmização» do yogin. O seu corpo místico
torna-se um microcosmos. A sua inspiração corresponde ao movimento
do Sol, ou seja ao Dia; a sua expiração à Lua, ou seja à Noite. Assim, o
ritmo respiratório do yogin consegue integrar perfeitamente o ritmo do
Grande Tempo cósmico.
Mas esta integração no Grande Tempo cósmico não anula o Tempo
propriamente dito; apenas os ritmos mudaram: o yogin vive um Tempo
cósmico, mas continua, apesar de tudo, a viver no Tempo. Ora o seu
objetivo final é sair do Tempo. É de fato o que se passa quando o yogin
consegue unificar as duas correntes de energia psico-vital que circulam
através de ida e pingala. Por um processo demasiado difícil de explicar em
poucas palavras, o yogin suspende a respiração e, unificando as duas
correntes, concentra-as e força-as a circular através da terceira «veia»,
susumna, a veia que se encontra no «centro». Ora, diz a Hathayoga-
pradipikâ (IV, 16-17), a Susumna devora o Tempo». Esta unificação
paradoxal das suas veias místicas ida e pingala, das duas correntes
polares, equivale à unificação do Sol e da Lua, quer dizer à abolição do
Cosmos, à reintegração dos contrários, o que é o mesmo que dizer que o
yogin transcende simultaneamente o Universo criado e o Tempo que o
rege. Recordemos a imagem mítica do ovo cuja casca é quebrada por
Buda. É o que acontece ao yogin que «concentra» os seus sopros na
susumna: quebra a casca do seu microcosmos, transcende o mundo
condicionado que existe no tempo. Considerável número de textos
yógicos e tântricos faz alusão a este estado não condicionado e
intemporal em que «não existe dia nem noite», em que «não há doença
nem velhice», fórmulas ingénuas e aproximativas da «saída do Tempo».
Transcender «o dia e a noite» quer dizer transcender os contrários; é o
correspondente, no plano temporal, à passagem pela «porta estreita» no
plano do espaço. Esta experiência yogico-tântrica prepara e precipita o
samâdhi, estado que se traduz usualmente por «êxtase» mas que
preferimos traduzir por «em estase». O yogin acaba por se tornar jivan-
87
22 Tal conjetura parecerá muito provavelmente vã, se não perigosa, aos olhos dos
psicólogos ocidentais. Declinando qualquer título para intervir no debate,
insistimos em lembrar, por um lado a extraordinária ciência psicológica dos
yogins e dos espirituais hindus, e por outro a ignorância dos cientistas ocidentais
quanto à realidade psicoíógica das experiências yogicas.
88
O soberano terrível
1 Georges Dumézil, Mythes et Dieux des Germains (Paris, 1939), pp. 21 sq., 27 sq.;
Júpiter, Mars, Quirinus (Paris, 1941), pp. 79 sq.; cf. Ouranós-Varuna (Paris,
1934), passim.
2 Mitra-Vartma (Paris, 1940), p. 33; Júpiter, Mars, Quirinus, pp. 81 sq.
3 Dumézil, Flamen-Brahman (Paris, 1935), pp. 34 sq.; Mitra-Varuna, pp. 79 sq.
4 Mitra-Varuna, p. 72; cf. as observações de Jean Bayet, na Rev. Hist. des Religions,
CXXIV, 1941, pp. 194 sq. Ainda segundo Plutarco, Questions Romaines 67, o
próprio nome dos litores deriva de ligare e Dumézil não vê razão para «rejeitar a
relação que os antigos sentiam entre litor c ligare: litor pode ser formado a
partir de um verbo radical ligere, não confirmado, que estaria para ligare como
dicere está para dica) e» (ibid., p. 72).
92
5 Cf. Servius, in Aen., III, 607; J. Heckenbach, De nuditate sacra sacrisque vinculis
(R. V. V., IX, 3, Giessen, 1911), pp. 69 sq.; Dumézil, Flamen-Brahman, pp. 66 sq.
6 Indicar-se-á, segundo o livro decepcionante de Heckenbach, Prazer, Taboo and
the perils of the sota, pp. 296 sq. (trad. francesa de Henri Peyre, Tabou et les
périls de l'âme (Paris, 1927, pp. 245 sq.); I. Scheftelowitz, Das Schlingen-und
Netzmotiv im Glauben und Brauch der Völker (R. V. V., XII, 2, Giessen, 1912);
,
id.; Die altpersische Religion und das Judentum (Giessen, 1920), pp. 92, sq. e os
estudos etnográficos e folclóricos indicados por Dumézil, Ouranós-Varuna, p.
52, n. 1. Sobre o nexum romano, os nós mágicos e o direito penal, cf. Henri
Decugis, Les Êtapes du droit (2.' edição, Paris, 1946), t. I, pp. 157-178.
93
O simbolismo de Varuna
1923), pp. 120 sq.; Dumézil, Ouranós-Varuna, p. 50. O mesmo atributo nos
Brâhmanasver Silvain Lévi, La Dotrine du Sacrifice das les Brâhmanas (París,
1898), pp. 153 sq.
8 Cf. Walde-Pokorny, Vergleichendes Worterbuch der indogermanischen Sprachen,
I (1930), p. 263.
9 Bergaigne, op. cit., III, p. 114; S. Lévi, op. cit., p. 153; E. W. Hopkins, Epic
Mythology (Strasburg, 1920), pp. 116 sq.
10 S. Lévi, p. 153; Dumézil, Ouranós-Varuna, p. 51, n. 1.
95
arma é sempre um meio mágico; mas isto não impede que um deus
propriamente guerreiro como Indra utilize este meio mágico em
verdadeiros combates, enquanto Varuna se serve dos seus «laços» sem
combater, sem agir, magicamente22.
Mais instrutivo é o exemplo dos outros deuses ligadores. Nirrti e
Yama, ambos divindades da morte. Os laços de Yama (yamasya padbiça,
AV, VI, 96, 2; VIII, 7, 28) são geralmente chamados «laços da morte»
(mrtyupâçâh, AV, VII, 112, 2; VIII, 2, etc.; cf. Scheftelowitz, p. 6). Nirrti, por
sua vez, prende com correntes aqueles que quer perder (AV, VI, 63, 1-2;
Taitt. Sam., V, 2, 4, 3; Çatapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 15), e pede-se aos
deuses que afastem «os laços de Nirrti» (AV, I, 31, 2), do mesmo modo
que o homem implora a Varuna que o salve dos seus «laços». Tal como,
em certos casos, Agni, Soma ou Rudra (Güntert, p. 122) são invocados
para libertar dos «laços» de Varuna, «supõe-se que Indra pode livrar não
só dos «laços» de Varuna», mas também da «amarração» dos demónios
da morte (por eXemplo, AV, IX, 3, 2-3, onde se trata de cortar os laços da
demónia Viçvavâra com a ajuda de Indra, etc.). As doenças são «laços» e a
morte o «laço» supremo. O que explica que, em Yama e em Nirrti, estes
atributos são, não só importantes, mas verdadeiramente constitutivos.
Doença e morte: estes dois elementos do complexo mágico--
religioso da «ligação» tiveram em quase todo o mundo a maior
popularidade e seria oportuno investigar se a sua difusão não é de molde
a esclarecer certos aspetos do problema que nos ocupa. Mas, antes de
deixar o domínio indiano, tentemos esquematizar os conjuntos mais
importantes que aí observámos: 1º Varuna, o Grande Asura, liga
magicamente os culpados e é-lhe pedido quer que não ligue, quer que
não desligue; 2º Vrtra prende com correntes as Águas e certos aspetos do
seu mito estão de acordo com o lado noturno, lunar, aquático de Varuna,
na medida em que estas modalidades do grande Deus exprimem o «não-
manifestado» e o «bloqueado»; 3º Indra, tal como Agni e Soma, liberta os
sq. e passim.
22 Sobre o râjanya ligado pelos deuses desde o ventre de sua mãe (o râjanya
nasceu ligado», Tratt Samhita, II, 4, 13, 1), cf. Dumézil, Flamen-Brahman, pp. 27
sq.
100
31 F. Cumont, Les Religions orientales das le paganisme romain (4.' ed., Paris,
1929), gravura XIII; corda que era feita de intestinis pullinis segundo Ps.
Augustin, Quaest., V (Cumont, Textes et Monuments relatifs aux mystères de
Mithra [Bruxelles, 18944900], II, pp. 7-8).
32 Closs, p. 566; ibid., p. 643, citando O. G. Wesendonk, Ueber georgisches
Heidentum (in Caucasica, fasc. I, Leipzig, 1924), pp. 54 sq., 99, 101. G. Dumézil,
títulos (em Rev. Hist. Relig., t. CXI, 1935, pp. 66-89), pp. 69 sq. estudo segundo
fontes geórgicas os «escravos de Georges Blanc»: «quem deseja honrar ou
apaziguar Georges Blanc tornando-se seu escravo pega numa destas correntes
amarra-a ao pescoço e faz assim, quer a pé, quer de joelhos, a volta à igreja» Cf.
também Sergi Makalathia, Einig ethnographisch-archäologische Parallelen aus
Georgien (em Mitteilungen Anthropolog. Gesellschaft Wien, 60, 1930, pp. 361-
365).
33 Num julgamento de vendetta, o culpado deve apresentar-se perante o
«tribunal» com as mãos ligadas (Closs, op. cit., p. 600).
34 Basta comparar com este complexo germano-iliro-caucasiano as cerimónias de
«união pelo sangue» (o blood-brotherhood) praticadas um pouco por toda a
Europa, para avaliarmos a distância que separa a ligação «senhor-escravo» da
ligação entre «irmãos de cruz» (a expressão é romena, fratia de cruce); cf. sobre
as fraternidades pelo sangue, A. Dieterich, Mutter Erde (1ª edição, Leipzig-
Berlin, 1925), p. 130 sq.; o livro clássico de H. C. Trumbull, The Blood Covenant
(London, 1887), e Stith Thompson, Motif-Index of Folk-Literature, II (Helsínquia,
1935), p. 125. Ser-se-ia tentado a assimilar estas formas de fraternidade às
relações religiosas que existem entre os humanos e Mitra—em comparação
com as relações bastante duras entre Varuna e os seus devotos. O que não
implica de maneira nenhuma — muito pelo contrário — que o valor religioso de
Varuna seja «pobre»!
103
Irão
35 A. Closs, op. cit., pp. 643, 668. Segundo o mesmo autor (p. 567), a ligação ritual
da vítima seria um complexo das culturas megalíticas do Sudeste da Asia.
36 J. Grimm, Deutsche Mythologie, II, 705, IV, 254; Scheftelowitz, op. cit., p. 7.
37 R. H. Meyer, Altgermanische Religionsgeschicht (1910), p. 158, 160. Mas a
personalidade destas deusas é mais complexa; cf. Jean de Vries, Altgermanische
Religionsgeschichte, II (Berlin, 1937), pp. 375 sq.
38 Ele liga os moribundos com os seus «laços da morte» (derezâ maraithyaosh,
Yasna 53,8; Scheftelowitz, Die altpersische Religion, p. 92). «Ë Astôvidhôtush
quem o liga e Vayu quem arrebata 'o ligado», Vendidad, 5, 8; H. S. Nyberg,
Questions de cosmogonia et de cosmologia mazdéennes, II (em Journal
Asiatique otobre-décembre 1931, pp. 193-244), p. 205; G. Dumézil, Tarpeia
(Paris, 1947), p. 73. Cf. Mênokê Krrat 2, 115; G. Widengren, Hochgottglaube im
Iran (Uppsala, 1938), p. 196.
104
Paralelos etnográficos
Seria vão formular qualquer conclusão geral acerca dos fatos indo-
europeus antes de ter alargado, tal como anunciámos, a nossa perspetiva
histórica e cultural e de ter integrado o complexo da «ligação» num grupo
mais vasto de simbolismos análogos ou idênticos. Mas desde já se podem
assinalar alguns paralelos etnográficos no grupo indo-europeu de deuses
e demónios funerários que «ligam» os mortos. A figura mais próxima do
par iraniano Vayu — Astôvidhôtush não é outro senão o deus chinês do
vento e da armadilha, Pauhi, que está em estreita relação com a deusa-
serpente Nakura, o que prova que ele pertence a um nível cultural tónico-
lunar40. Quanto às cordas de Yama, de Nirrti, de Astôvidhôtush e das
deusas germânicas, as suas réplicas mais exatas encontram-se no domínio
do Pacífico. Nos Aranda da Austrália, as demónias tjimbarkna atam
durante a noite as almas dos humanos e matam-nos apertando com força
a corda41. Nas ilhas Danger o deus da morte, Vaerua, liga os defuntos com
cordas e arrasta-os assim para o país dos mortos42. Nas ilhas Hervey, a
alma do defunto, descendo ao inferno por uma árvore miraculosa, avista
a rede do deus Akaanga que o espera e ao qual a alma não pode
escapar43. Em San Cristobal, o «Fisher of Soul», sentado num rochedo,
pesca as almas44. Nas ilhas Salomão, são os parentes que pescam a alma
do defunto para a colocarem numa caixa com uma relíquia corporal
40 Inone, citado por Closs, p. 643, n. 44. Cf. a lenda dos dois espíritos, Shen-t'u e
Yü-lei, que amarram as almas dos que morreram no fundo Ide uma caverna; C.
Hentze, Die Sakralbronzen und ihre Bedeutung in den frühchinesischen Kulturen
(Antuérpia, 1941), p. 23.
41 Carl Strehlow, Die Aranda-und Loritja-Stiimme in Zentral-Australien, I (Frankfurt
a. M., 1907), p. l 1.
42 W. Wyatt Gill, Life in the Southern Isles (London, 1876), pp. 181 sq.
43 W. Wyatt Gill, Myths and Songs from the South Pacific (London, 1876), pp. 161
sq.; cf. também E. S. C. Handy, Polynesian Religion (Honolulu, 1927), p. 73. Ver
M. Walleser, Religiöse Anschaungen u. Gebraüche der Bewohner von Jap
(Anthropos, VIII, 1913, pp. 607-629, pp. 612-613).
44 Dr. C. E. Fox, The Threshold of the Pacific (London, 1924), pp. 234 sq.
106
Tammuz é chamado «Senhor dos laços»51 si mas, no mito, ele próprio está
«ligado» e pede para ser salvo dos laços52. Pede-se a Marduk que livre das
cadeias e dos laços, pois ele é também um «senhor ligador». Tal como
Indra ele utiliza o laço e as cordas como deus campeão, à maneira
«heróica». No poema da Criação, Enuma Elish, distinguem-se duas
espécies de «ligação» que lembram o diptíco védico Varuna-Indra. Ea, o
deus das Águas e da sabedoria, não luta «heroicamente» com os
monstros primordiais Apsû e Mummu: ele liga-os por meio de encantos
mágicos para em seguida os matar (Enuma Elish, I, 60-74). Marduk, depois
de ter sido investido, pela assembleia dos deuses, de prerrogativas de
soberania absoluta (que até 'então pertenciam ao deus celeste Anu, IV, 4
e 7) e depois de ter recebido da mesma o ceptro, o trono e o pâlu (IV, 29),
empenha-se no combate contra o monstro marinho Tiamat e, desta vez,
assistimos verdadeiramente a uma luta «heróica»; mas a arma capital de
Marduk continua a ser a «rede», dom de seu pai Anu»53. Marduk «liga»
Tiamat (IV, 95) «acorrenta-o» e tira-lhe a vida (IV, 104). Põe em seguida a
ferros todos os deuses e demónios que tinham ajudado Tiamat, e, diz o
poema, «eles foram lançados nas redes, permaneceram nas armadilhas e
foram metidos em cavernas» (IV, 111-114, 117, 120). Marduk adquire a
soberania pela sua luta heróica, mas conserva também as prerrogativas
da soberania mágica. Se se tiver em conta também o valor mágico das
cordas, dos nós e dos laços na feitiçaria e na medicina popular (ver mais
adiante), a impressão geral que se desprende desta rápida exploração do
domínio mesopotâmico é a de uma confusão quase total. A «ligação»
parece ser um prestígio mágico-religioso que todas as «formas» religiosas
assimilam igualmente bem. Haveria interesse em que um 'especialista das
religiões mesopotâmicas retomasse o problema para determinar se se
pode reconstituir uma «história» por detrás desta confusão.
classificar-se todos os costumes que atribuem aos nós e aos laços uma
função de cura, de defesa contra os demónios, de conservação da força
mágico-vital. Já na antiguidade58 se ligava, para curar, a parte doente do
corpo e a mesma técnica é ainda nos nossos dias muito comum na
medicina popular59. Mais divulgado ainda é o costume de se defender
contra doenças e demónios com a ajuda de nós, de fios e de cordas60
especialmente durante o parto61. Um pouco por todo o mundo, se usam
nós à laia de amuletos62. É significativo o fato de se utilizarem nós e
barbantes no rito nupcial, para proteger os noivos63 quando são
justamente os nós, como se sabe, que podem impedir a consumação do
casamento. Mas esta ambivalência é das que se observam em todas as
utilizações mágico-religiosas dos nós e dos laços. Os nós provocam a
doença mas também a afastam ou curam o doente; as redes e os nós
enfeitiçam e também protegem contra a feitiçaria; impedem o parto e
facilitam-no; preservam os recém-nascidos e fazem-no adoecer; atraem a
morte e afastam-na. Em suma, o que é essencial em todos estes ritos
mágicos e mágico-médicos, é a orientação que se impõe à força que
reside numa «ligação» qualquer, em toda a acção de «ligar». Ora a
Magia e religião
Todas estas crenças e todos estes ritos nos conduzem, sem dúvida,
ao domínio da mentalidade mágica. Mas pelo fato de estas práticas
populares se relacionarem com a magia, ter-se-á o direito de considerar o
simbolismo geral da «ligação» como uma criação exclusiva da
mentalidade mágica? Não pensamos assim. Mesmo quando os ritos e
símbolos da «ligação» nos Indo--Europeus comportam elementos tónico-
lunares e, por conseguinte, revelam fortes influências mágicas — o que
não é certo — ficam por explicar outros documentos que exprimem não
somente uma experiência religiosa autêntica mas também uma
concepção geral do homem e do mundo que, essa sim, é
verdadeiramente religiosa e não mágica. Os dados mesopotâmicos que
passámos em revista, por exemplo, não se deixam reduzir em totalidade a
uma interpretação mágica. Entre os Hebreus as coisas são ainda mais
claras: é verdade que a Bíblia fala das «redes da morte» (por ex.: «os laços
da Mansão dos Mortos tinham-me envolvido, os laços da morte tinham-
me surpreendido», II Samuel, 22, 6; cf. Salmo, 18, 6; «os laços da morte
tinham-me envolvido, as angústias da Mansão dos Mortos tinham tomado
conta de mim, estava oprimido pelo sofrimento e pela dor; então
invoquei o nome do Eterno. Oh Eterno, liberta a minha alma! »; Salmo,
116, 3-4). Mas o senhor terrível destes laços, é o próprio Yahvé e os
Profetas representam-no com redes na mão, para punir os culpados:
«Enquanto eles para lá se dirigirem, estenderei a minha rede sobre eles e
fá-los-ei cair numa armadilha como aves do céu» (Oseias, 7, 12);
«Estenderei a minha rede sobre ele; ele ficará preso nos meus laços e
levá-lo-ei à Babilónia» (Ezequiel, 12, 13; cf. 17, 20); «Sobre ti estenderei a
minha rede» (ibid., 32, 3). E a experiência religiosa, tão profunda e tão
111
64 Por conseguinte estamos no direito de supor que certas alusões védicas aos
laços de Varuna também exprimem uma experiência religiosa comparável à de
Job.
65 Cf. vitae fila, Ovídio, Héroides, 15, 82. Ver o capítulo sobre os rituais e as
mitologias lunares no nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 142 sq.
112
por outro lado, que certas divindades66 são senhoras destes «fios» que,
em última instância, constituem uma vasta «ligação» cósmica.
É raro que a etimologia forneça um argumento decisivo em
problemas tão delicados como os que dizem respeito à «origem» da
religião e da magia; mas ela é frequentemente instrutiva. Schftelowitz e
Güntert lembraram que, em várias famílias linguísticas, as palavras que
designam a acção de «ligar» servem igualmente para exprimir o
encantamento: por exemplo em turco-tártaro, bag, baj, boj significa
simultaneamente «feitiçaria» e «laço, corda»67; em grego xcerccaáco
significa «ligar solidamente» e também «ligar por encanto de magia,
fazendo um nó» (donde zorrckasvp.o.; «corda, enfeitiçar», Inscr. Graec.,
III, 3, p. v.; Scheftelowitz, p. 17); o latim fascinum, «encanto, malefício» é
aparentado com fascia, «faixa, ligadura», com fascis, «feixe»; ligâre,
«ligar», ligâtura, «acção de ligar» são também «encantar» e «encanto»
(cf. o romeno legatura, «acção de ligar» e «enfeitiçar»); o sk. yukti,
propriamente «atrelar, ligar», toma o sentido de «processos mágicos», e
os poderes do yoga são por vezes compreendidos como um
encantamento por «ligação»68. Todas estas etimologias confirmam que a
acção de ligar é essencialmente mágica. Estamos aqui perante uma
«especialização» extrema: enfeitiçar, ligar por magia, fascinar, etc.
Etimologicamente, religio nota também uma forma de «ligação» à
divindade, mas seria imprudente (como o faz Güntert, p. 130)
compreender religio no sentido de «feitiçaria». Pois, como dissemos,
66 Na maior parte do tempo — mas não sempre — divindades lunares, por vezes
tónico-lunares.
67 H. Vambéry, Die primitive Kultur des turko-tatarischen Volkes (Leipzig, 1879), p.
246. A noção de «quebrar o feitiço» exprime-se pela frase «libertar dos laços»;
entre os Yoruba, a palavra edi, «ligação», tem também o sentido de «magia» e a
palavra Ewe vôsesa, «amuleto», significa «desligar» (A. B. Ellis, Yoruba-speaking
peoples, London, 1894, p. 118).
68 Por ex., Mahabhârata, XIII, 41, 3 sq., onde Vipula «tinha subjugado os sentidos
[de Rucí] por meio dos laços do Yoga» (babandha yogabandhâiç ca tasyâh
sarvendriyâni sah cf. mon Yoga. Essai sur les origines de la mystique indienne,
Paris-Bucarest, 1936, p. 151). Ver também Ananda K. Coomaraswamy, «Spiritual
Paternity» and the «Puppet-Complex» (in Psychiatry, VIII, Nr. 3, August 1945,
pp. 25-35), especialmente pp. 29 sq.
113
1934), especialmente pp. 552 sq.; John Layard, Totenfahrt auf Malekula (in
Eranos-Jahrbuch 1937, Zürich, 1938), pp. 242-291; id., Stone Men of Malekula
(London, 1942), pp. 340 sq., 649 sq. Interpretações comparativas, W. F. Jackson
Knight, Cumaean Gates (Oxford, 1936); Karl Kerényi, Labyrinth-Studien (Albae
Vigilae, XV, Amsterdam-Leipzig, 1941).
72 Ver nosso livro Techniques du Yoga, passim. No seu artigo The iconography of
Dürer's «Knots», A. K. Coomaraswamy estudou os valores metafísicos dos nós e
a sua sobrevivência na arte popular bem como em certos artistas da Idade
Média e da Renascença.
115
Simbolismo e história
73 Ver nosso livro Le Chamanisme et les techniques archaiques de l'extase, pp. 137
sq., 296 sq., 362 sq., 423 sq., e passim.
117
74 D uroh ân a and the «waking dream», in Art and Thought (A volume in Honour of
the late Dr. Ananda K. Coomaraswamy, London, 1947), pp, 209-213.
118
79 A função ritual dos nós nas religiões egeias (Arthur Evans, The palace of Minos,
I, pp. 430 sq.) não está ainda resolvida: negada por M. P. Nilsson, que a reduz a
um valor puramente decorativo (Minoan-Mycenaean Religion, Lund, 1927, pp.
137 sq., 349 sq.), esta função ritual foi recentemente confirmada por Axel W.
Persson, The Retigion of Greece in prehistoric times (Berkeley e Los Angeles,
1942), p. 38 e p. 68. Cf. também Charles Picard, Les Religions préhelléniques.
Crète et Mycènes (Paris, 1948), pp. 194-195.
121
A Lua e as águas
1 G. F. Kunz e Charles Hugh Stevenson, The Book of the Pearl (London 1908),
recolheram material documental considerável respeitante à difusão das pérolas;
J. W. Jackson, The geographical distríbution of the use of Pearls and Pearl-shells
(53 p., Manchester, 1916; monografia republicada no volume Shells as Evidence
of the migration of Early Culture, Manchester, 1917) completa as informações
de Kunz e Stevenson. Encontrar-se-á o essencial da extensa bibliografia sobre a
função mágica das conchas no artigo de W. L. Hildburgh, Cowrie-shells as
amulets in Europe (Folk-Lore, vol. 53-54, 1942-1943, pp. 178-195). CL também
as diversas contribuições para o problema publicadas na revista Man; otobre
1939, No 165, p. 167 (M. A. Murray, The meaning of Cowrie-shell, pensa que o
valor mágico do cauri lhe vem da sua semelhança tom um olho semi-fechado);
Janeiro 1940, No. 20 (Murray respondendo a Sheppard); No. 61, pp. 50-53 (Dr.
Kurt Singer, Cowrie and Baubo in early Japan, publica uma estatueta neolítica
japonesa que demonstra a assimilação da concha à vulva); No. 78 (C. K. Meek,
Cowrie in Nigeria), No. 79 (M. D. W. Jeffreys, Cowrie-shells in British Cameroun:
123
contra a hipótese de Mlle. Murray), No. 101 (Balkans), No. 102 (J. H. Huttons;
Naga Hills), No. 187 (Grigson; Central Provinces, India); 1941, No. 36 (C. K.
Meek; Nigeria); No. 37 (Fidji, Égypt, Saxons); 1942, No. 71 (M. D. W. Jeffreys:
Cowry, Vulva, Eye).
2 Peñafiel, Monumentos dei arte mexicano antiguo, p. 154, reproduzido por Leo
Wiener, Mayan and Mexican Origins (Cambridge, 1926), estampa IV, fig. 8.
3 Wiener, ibid. estampa IV, fig. 13; estampa VII, fig. 14, reproduzindo o Codex
Nuttall, p. 16, 36, 43, 49.
4 Codex Dresdensis, p. 34, etc., reproduzido por Wiener, fig. 112-116.
5 B. de Sahagun, Historia general de las cosas de Nueva España (Mexico, 1896),
vol. I, cap. 5; Wiener, p. 68; cf. fig. 75.
6 J. W. Jackson, The Aztec Moon-Cult and its relation to the Chank-cult of India
(Manchester Memoirs, Manchester, 1916; vol. 60, No. 5), p. 2.
124
7 Trad. B. Karlgren, Some fecundity symbols in ancient China (The Bulletin of the
Museum of Far Eastern Antiquities, No. 2, Stockolm, 1930, pp. 1-54), p. 36.
8 Karlgren, ibid. Cf. relações pérolas (conchas) — Lua in Granet, Danses et
Légendes de la Chine ancienne (Paris, 1926), pp. 480, 514, etc.
9 J.-J. de Groot, Les Fêtes annuellement célébrées à Emouï. Étude concernant la
religion populaire des Chinois (Paris, 1886), vol. II, p. 491. Rapports entre la lune
et l'eau, ibid., pp. 488 sq. Influence de la Lune sur les pedes, pp. 490 sq
125
Simbolismo da fecundidade
Mulher do Céu», que dança com o vestido levantado usque ad partes privatas
(como se exprime Chamberlain) e que, pelo riso que provoca, força a Deusa-Sol,
Amaterasu, a sair da caverna onde se escondera. Os naturalistas do século XVIII
baseavam, aliás as suas classificações conquiliológicas nas semelhanças com a
vulva. G. Elliot Smith, em The evolution of the Dragon (Manchester, 1919), cita
as linhas seguintes da Histoire naturelle du Sénégal (séc. XVIII) de Adamson;
«Concha Venerea sic dieta quia partem foemineam quodam modo
repraesentat: externe quidem per labiorum fissuram, interno vero propter
cavitatem uterum mentientem.»
13 Andersson, Children of the yellow earth, p. 304. Ver também C. K.: Meek, Man,
1940, No. 78.
14 Andersson ibid., p. 304. As jovens Tiagy usam a concha de um molusco como
símbolo de virgindade; ao perdê-la devem renunciar ao uso da concha.
15 Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, p. 309, citando Sourindro Mohan
Tagore, Mani-Mâlâ or a treatise on Gems (Calcutta, 1881).
127
40 Cf. Osborn, Men of the Old Stone age, pp. 304, 305.
41 Th. Mainage, Les Religions de la préhistoire. 1 L'Age paléolithique (Paris, 1921),
pp. 96-97.
42 Sir E. Wallis Budge, Amulets and Superstitions (Oxford, 1930), p. 73.
43 Sir Arthur Evans, The Palace of Minos, vol. I (London, 1921), p. 37.
135
48 Cf. Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, pp. 485 sq.
49 Stephens, Incidents of travel in Yucatan, t. II, p. 344, citado por Andree, Die
Metalle bei den Naturvõlkers (Leipzig, 1884), p. 136:
50 Cf. Metallurgy, Magic and Alchemy, p. 12 (Zalmoxis, I, p. 94).
51 Madeleine Colani, Haches et bijoux. République de l´Equateur, Insulinde,
Eurasie (B. E. F. E. O., XXXV, 1935, fasc. 2, pp. 313-362), p. 347.
52 Cf. também Hanna Rydh, On Symbólism in mortuary ceramics (Bull. of the
Museum of Far Bastem Antiquities, No. 1, Stockolm, 1929, pp. 71-121), pp. 114
sq.
53 Andersson op. cit., pp. 299 sq.; Jackson, The geographical distribution, passim.
137
77 S. Seligmann, Der böse Blick, II, pp. 126, 209; id., Die magische Heil-und
Schutzmittel, p. 199.
78 A pérola protege das epidemias, dá coragem a quem a usa, etc.; cf. M. Gaster,
The hebrew version of the Secretum Secretorum (republicado em Studies and
Texts, vol. II, London, 1925-1928), p. 812.
79 Louis Finot, Les Lapidaires indiens, p. 16; Kunz, op. cit., p. 316.
80 Karlgren, op. cit., p. 36.
81 Jackson, The Money Cowry (Cypraea moneta, L.) as a sacred objet among
American Indians, pp. 3 sq
82 Cf. The use of Cowry-shells for the purposes of currency, Amulets and Charms
(Manch. Mem., 1916, No. 13); Shells, pp. 123-194; Leo Wiener, Africa and the
discovery of America, p. 203, sq.; Helmut Petri, Díe Geldformen der Südsee
(Anthropos, 31, 1936, pp. 187-212; 509-554), pp. 193 sq. (cauris como moeda),
208 sq. (a pérola como moeda). O estudo de M. J. M. Faddegon, Notice sur les
cauris, não pôde ser utilizado (Tijdschrift van het Kon. Ned. Genootschap voos
Munt-en Penningkunde, 1905; cf. Isis, vol. 19, 1933, p. 603).
83 Karlgren, op. cit., p. 34.
144
O mito da pérola
Simbolismo e história
1942); Jean Daniélou, S. J., Sacramentam futuri. Études sur les origines de la
typologie biblique (Paris, 1950), pp. 13 20, 55 85 e passim; id., Bible et Liturgie
- -
(Paris, 1951), pp. 29-173; Louis Beirnaert, S. J., La Dimension mythique dans le
sacramentalisme chrétien (Eranos-Jahrbuch, 1949, Bd XVII, Zürich, 1950, pp.
255-286). Os belos livros de Lundberg e J. Daniélou contêm, além do mais,
copiosas indicações bibliográficas.
2 J. Daniélou, Bible et Liturgie, pp. 58-59; ver também Sacramentum futuri, pp. 58
sq.; Lundberg, op. cit., pp. 148 sq.
151
4 Henri de Lubac, Aspets da Botalhiszne (Paris, 1951), pp. 57, 66-67. Acerca deste
problema ver R. Bauerreisse, Arbor Vitae. «Lebensbaunz» und reine
Verwendung in Liturgie, Kunst und Brauchtunz cies Abendlandes (Munich, 1938,
Abhandlungen der Bayerischen Benediktiner-Akademie, III ),
158
montanha (Lubac, pp. 64-68). Estas imagens são, como bem se sabe,
fórmulas universalmente confirmadas do «Centro do Mundo». Foi como
símbolo do Centro do Mundo que a Cruz foi assimilada à Arvore Cósmica.
É a prova de que a Imagem do Centro se impunha naturalmente ao
espírito cristão. E por meio da Cruz (= Centro) que se realiza a
comunicação com o Céu e que, ao mesmo tempo, o Universo inteiro é
«salvo» (ver mais atrás na página 55). Ora, a noção de «salvação» não faz
mais do que retomar e completar as noções de renovação perpétua e de
regeneração cósmica, de fecundidade universal e de sacralidade, de
realidade absoluta e, afinal, de imortalidade, todas elas noções que
coexistem no simbolismo da Árvore do Mundo (cf. nosso Traité, pp. 234
sq.).
Que nos compreendam bem: não contestamos a importância da
história e, no caso do judaico-cristianismo, da fé, para julgar no seu justo
valor este ou aquele símbolo tal como era compreendido e vivido numa
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Eis um outro exemplo: sabe-se que o xamã desce aos Infernos para
procurar e trazer a alma do doente que foi arrebatada pelos demónios6.
Orfeu desce também aos Infernos para trazer sua mulher, Euridice, que
morrera. Existem mitos análogos noutros sítios: na Polinésia, na América
do Norte, na Ásia central (aqui o mito é parte constitutiva de uma
literatura oral de estrutura xamânica), conta-se que um herói desce aos
Infernos para recuperar a alma da esposa morta; vence nos mitos
polinésios e centro-asiáticos, conhece o mesmo fracasso que Orfeu nos
mitos norte-americanos. Não nos apressemos a tirar uma conclusão à toa.
Registemos apenas um pormenor: Orfeu é o cantor domador de feras, o
médico, o poeta e o civilizador; em resumo ele reúne exatamente as
funções que cabem ao xamã das «sociedades primitivas». Este é mais do
que curandeiro e especialista das técnicas extáticas: ele é também o
amigo e senhor das feras, imita as suas vozes, transforma-se em animal; é,
além disso, cantor, poeta, civilizador. Sublinhemos, enfim, que Jesus
também desce aos Infernos para salvar Adão, para restaurar a integridade
do homem caído pelo pecado (e uma das consequências da queda do
homem foi justamente a perda do seu poder sobre os animais).
Teremos nós o direito (de considerar Orfeu como um «xamã» e de
considerar a descida de Cristo aos Infernos como descidas semelhantes
dos xamãs em êxtase? Tudo se opõe a isso: nas diversas culturas e
religiões — siberiana ou norte-americana, grega, judaico-cristã — estas
descidas são valorizadas de maneiras muito diferentes. É inútil insistir
nestas diferenças que saltam à vista. Mas um elemento permanece
imutável e não deve perder-se de vista: é a persistência do motivo da
descida aos Infernos empreendida para a salvação de uma alma; a alma
de um doente qualquer (xamanismo strito sensu), da esposa (mitos
gregos, norte-americanos, polinésios, centro-asiáticos) da humanidade
inteira (Cristo), pouco nos importa para já. A descida, desta vez, não é
apenas iniciática e empreendida para uma vantagem pessoal: ela tem um
fim «salvifico»: «morre-se» e «ressuscita-se» não já para terminar uma
6 Para tudo isto ver nosso livro Le Chamanisme et les techniques archaiques de
l'extase (Paris, 1951).
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iniciação adquirida, mas para salvar uma alma. Uma nota nova carateriza
o arquétipo da iniciação: a morte simbólica não serve unicamente para a
própria perfeição espiritual (ou seja, em definitivo a conqulsta da
imortalidade), mas realiza-se para a salvação dos outros. Não
pretendemos de modo algum mostrar no xamã primitivo ou no Orfeu
norte-americano ou polinésio a pré-figuração de Cristo. Verificamos
apenas que o arquétipo da iniciação contém também esta valência da
«morte» (= descida aos Infernos) em proveito de um outro. (Notemos de
passagem que a sessão xamânica, durante a qual se verifica a «descida
aos Infernos», equivale a uma experiência mística; o xamã está «fora de
si», a sua alma deixou o corpo.)
Uma outra experiência xamânica fundamental é a da ascensão
celeste: por meio da Árvore Cósmica, plantada no «Centro do Munido», o
xamã penetra no Céu e aí encontra o deus supremo. Todos os místicos
como se sabe, utilizam o simbolismo da ascensão para representar a
elevação da própria alma humana e a união com Deus. Nada permite
identificar a ascensão celeste do xamã com as ascensões de Buda, de
Maomé ou de Cristo: o próprio conteúdo das experiências extáticas
respetivas é diferente. O que não impede que a noção de transcendência
se exprima universalmente por uma Imagem de elevação, e que a
experiência mística, seja qual for o berço religioso, implique sempre uma
ascensão celeste. Melhor: certos êxtases xamânicos fazem intervir
experiências (óticas que se assemelham, a ponto de se confundirem, com
experiências similares dos grandes místicos históricos (índia, Extremo-
Oriente, mundo mediterrânico, cristianismo).
Segundo os Padres da Igreja, a vida mística consiste num regresso ao
Paraíso7. Uma das caraterísticas da restauração paradisíaca será
justamente o domínio dos animais, que constitui já o privilégio dos xamãs
e de Orfeu. Ora, a reintegração do Paraíso encontra-se nos místicos
arcaicos e primitivos que se tem por hábito englobar sob a designação de
mística dos «primitivos», tal como a vida mística dos cristãos, implica a
recuperação da condição paradisíaca primordial. A equivalência vida
mística = regresso ao Paraíso não é portanto um hapax judaico-cristão,
criado pela intervenção de Deus na história; é um «dado» humano
universal de incontestável antiguidade.
Notemos, ainda aqui, que a «intervenção de Deus na história», ou
seja a revelação divina feita no Tempo, retoma e reforça uma «situação
atemporal». A revelação que o judaico-cristianismo recebe unicamente
num tempo histórico que nunca mais se repete e que chega a fazer dela
uma história de sentido único, a humanidade arcaica conserva-a nos
mitos; e todavia, tanto a experiência mística dos «primitivos» como a vida
mística dos cristãos se traduzem pelo mesmo arquétipo: a reintegração
.do Paraíso original. Vê-se bem que a história, no caso a História Santa,
não inovou nada: tanto nos primitivos como nos cristãos, é sempre um
regresso parodoxal in illud tempus, um «salto para trás» abolindo o
tempo e a história, que constitui a reintegração mística do Paraíso.
Por conseguinte o simbolismo bíblico e cristão, se bem que
carregado de um conteúdo histórico ao fim e ao cabo «provinciano» —
pois toda a história local é provinciana em relação à história universal
considerada na sua totalidade — permanece todavia universal, como todo
o simbolismo coerente. Podemos mesmo perguntar-mo-nos se a
«acessibilidade» do cristianismo não é devida em grande parte ao seu
simbolismo; se as Imagens universais que ele vai buscar por seu turno não
facilitaram consideravelmente a difusão da sua mensagem. Pois urna
questão perturba desde logo o não-cristão: como é que uma história local
— a história do povo judeu e das primeiras comunidades judaico-cristãs
— pode pretender tornar-se modelo de toda a manifestação divina no
Tempo concreto, histórico? Cremos ter esboçado a resposta; a história
santa, se bem que seja, aos olhos de um observador estranho, uma
história local, é igualmente uma história exemplar pois ela retoma e torna
perfeitas Imagens trans-temporais.
De onde vem então essa impressão irresistível, sentida sobretudo
pelos não-cristãos, de que o cristianismo fez inovações em relação à
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Símbolos e culturas