Ana Frazão - Função Social Da Empresa
Ana Frazão - Função Social Da Empresa
Ana Frazão - Função Social Da Empresa
TOMO 4
DIREITO COMERCIAL
COORDENAÇÃO DO TOMO 4
Fábio Ulhoa Coelho
Marcus Elidius Michelli de Almeida
São Paulo
2018
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITO COMERCIAL
DIRETOR
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
Pedro Paulo Teixeira Manus
DE SÃO PAULO
DIRETOR ADJUNTO
FACULDADE DE DIREITO Vidal Serrano Nunes Júnior
CONSELHO EDITORIAL
1.Direito - Enciclopédia. I. Campilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Alvaro. III. Freire,
André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITO COMERCIAL
INTRODUÇÃO
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................................... 2
2
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DIREITO COMERCIAL
Referências ..................................................................................................................... 33
1
Diante desse quadro, Habermas conclui que a transição do Estado Liberal para o Estado Social apresenta,
pelo menos como um dos seus objetivos iniciais, a intenção de resgatar a intersubjetividade dos direitos,
estabelecendo relações simétricas de reconhecimento recíproco com a finalidade de coordenar as diferentes
pretensões de liberdades das pessoas (HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez, pp. 323-324).
2
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 93-95.
3
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3
ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-Providência, p. 38.
4
É pertinente a observação de Isabel Vaz de que “as propriedades talvez configurem o instituto jurídico
mais visado pelas transformações sociais” (VAZ, Isabel. Direito econômico das propriedades, p. 66).
5
O pensamento de Comte é bem sintetizado por Aron: “[a] propriedade privada é necessária, inevitável,
indispensável; mas só é tolerável quando assumida, não com o direito de usar e abusar, mas como o
exercício de uma função coletiva por aqueles que a sorte ou o mérito pessoal designou para isso. Comte
assume, portanto, uma posição intermediária entre o liberalismo e o socialismo. Não é um doutrinário da
propriedade privada, concebida à maneira do direito romano. Não é um reformador que se inclina à
socialização dos meios de produção. É um organizador que deseja manter a propriedade privada e
transformar seu sentido, para que, embora exercida por alguns indivíduos, tenha também uma função social.
Essa concepção não se afasta muito de certas doutrinas do catolicismo social” (ARON, Raymon. As etapas
do pensamento sociológico, pp. 101-102).
6
No que diz respeito à sociologia, destaca-se o trabalho de Durkheim a respeito da necessária solidariedade
orgânica que deveria haver nas sociedades contemporâneas, em oposição à solidariedade mecânica
característica das sociedades arcaicas. (DURKHEIM, Emile. Coleção grandes cientistas sociais, 2001) Já
sobre a importância da doutrina social da Igreja Católica, ver: CASTAN TOBEÑAS, Jose. La idea de
justicia social.
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7
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, p. 97.
8
De acordo com José Afonso da Silva, o Estado Social “caracteriza-se no propósito de compatibilizar, em
um mesmo sistema, como anota Elías Díaz, dois elementos: o capitalismo, como forma de produção, e a
consecução do bem-estar social geral, servindo de base ao neocapitalismo típico do Welfare State” (SILVA,
José Afonso. Curso de direito constitucional positivo.).
9
MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito económico, pp. 24-25.
10
FRAZÃO, Ana. Op. cit., pp. 98-102.
11
Isso fica bem claro na lição de Orlando Gomes, para quem “apesar da imprecisão da expressão função
social e, sobretudo, da dificuldade de convertê-la num conceito jurídico, tornou-se corrente o seu uso na
lei, preferencialmente nas Constituições, sem univocidade, mas com expressiva carga psicológica, recebida,
sem precauções, pelos juristas em geral” (GOMES, Orlando. Direitos reais, p. 97).
12
FRAZÃO, Ana. Op. cit., p. 100.
13
VAZ, Isabel. Direito econômico das propriedades, p. 151.
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Contudo, a função social dos bens de produção compreende apenas uma parcela
da função social da empresa, que diz respeito a realidade complexa que não se limita ao
seu aspecto patrimonial. Vale observar que, em face da existência do poder de controle e
de sua possível dissociação da propriedade,14 a função social da empresa precisou ampliar
seu âmbito de incidência para abranger também o controle e a administração. Dessa
maneira, o foco da função social deslocou-se da propriedade dos bens de produção para
o poder de organização e controle.15
A grande dificuldade do princípio da função social da empresa é justamente a de
operacionalizar os deveres e responsabilidades advindos de tais modificações produzidas
sobre a concepção clássica de direitos subjetivos. Não obstante, o estudo dos efeitos da
função social da empresa sobre as relações privadas estabelecidas requer a harmonização
de tal princípio com as demais normas orientadoras da ordem econômica constitucional
de 1988, o que será explorado na seção a seguir.
14
Ver: BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C. The modern corporation & private property.
15
Ver: SALOMÃO FILHO, Calixto; COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade
anônima. Não é por outra razão que a Lei das S/A, reconhecendo a importância do controle como instância
autônoma de poder, imputou-lhe compromissos decorrentes da função social, conforme se verifica no §
único de seu art. 116.
6
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16
VAZ, Manuel Afonso. Direito econômico. A ordem econômica portuguesa, p. 165. Segundo Galgano, a
liberdade de iniciativa não se exaure no exercício da propriedade ou das liberdades contratuais, mas é um
quid pluris, decorrente da utilização conjunta de uma soma de direitos e liberdades para o exercício de uma
atividade organizada com o fim de produção ou comercialização de bens e serviços (GALGANO,
Francesco. Il diritto privato fra Codice e Constituzione, p. 126).
17
Vale ressaltar o seguinte ensinamento de Calixto Salomão Filho: “[n]o Brasil, a ideia de função social da
empresa também deriva da previsão constitucional sobre a função social da propriedade (art. 170, inciso
III). Estendida à empresa, a ideia de função social da empresa é talvez uma das noções de mais relevante
influência prática e legislativa no direito brasileiro. É o principal princípio norteador da “regulamentação
externa” dos interesses envolvidos pela grande empresa. Sua influência pode ser sentida em campos tão
díspares como o direito antitruste, direito do consumidor e direito ambiental. Em todos eles é da convicção
da influência da grande empresa sobre o meio em que atua que deriva o reconhecimento da necessidade de
impor obrigações positivas à empresa. Exatamente na imposição de deveres positivos está o seu traço
característico, a distingui-la da aplicação do princípio geral neminem laedere. Aí está a concepção social
intervencionista, de influência reequilibradora de relações sociais desiguais” (SALOMÃO FILHO, Calixto.
O novo direito societário, p. 132-133).
18
Ver: FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de
controladores e administradores de S/As, pp. 192-195.
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Essa é a razão da Lei 10.101/2000, no que se refere à participação dos trabalhadores nos lucros
empresariais, e da nova Lei das S/A no tocante à co-gestão, ressaltando-se que esta última acrescentou o §
único ao art. 140 da Lei das S/A (Lei 6.404/1976), passando a admitir que o estatuto das companhias
contenha regra permitindo que representantes dos trabalhadores componham o conselho de administração
de sociedades anônimas. É claro que a disciplina legal nestes dois aspectos acabou sendo tímida, uma vez
que é meramente facultativa, restando submetida à discricionariedade do empresário. Entretanto, o mero
respaldo legal para a adoção de tais iniciativas já mostra a tentativa de se operacionalizar a função social
da empresa em maior extensão (FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a
responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 195-196).
20
Como bem define Eloy Lemos Jr.: “a sustentabilidade é atualmente um conceito sistêmico, diretamente
ligado à continuidade dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais da humanidade. De tal forma
que uma empresa, através de seus membros e no contexto de sua economia regional e quiçá mundial, possa
alcançar suas necessidades e expressar seu maior potencial e, ao mesmo tempo, preservar a biodiversidade
e os ecossistemas naturais, planejando e agindo de forma a atingir eficiência na manutenção desses ideais”.
(LEMOS JR., Eloy. Empresa & função social, p. 238)
21
Calixto Salomão Filho (O novo direito societário, pp. 133-134) expressamente relaciona exemplos nos
quais o legislador cria obrigações positivas para o empresário – tais como (i) a lei antitruste, (ii) o CDC e
o regime de responsabilidade dos fornecedores de produtos e serviços e (iii) a responsabilidade do direito
ambiental mesmo sem a causação do dano, além de obrigações positivas como tratamento de resíduos
sólidos, reciclagem de determinados produtos, dentre outros – à função social da empresa, concluindo que
“todos esses exemplos demonstram a total ligação da ideia de função social à proteção de terceiros
interesses envolvidos pela grande empresa que cada vez mais influência e modifica a comunidade em que
atua. A proteção de interesses externos (e não internos) parece ser, portanto, o grande objetivo da disciplina
da função social da empresa”. Em sentido semelhante, vale ressaltar a conclusão de Eloy Lemos Jr. (Op.
cit., p. 237) em tese de doutorado sobre o tema: “[a] empresa moderna, apesar de continuar a ter como
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objetivo o lucro e o interesse de seus agentes internos e externos, é, cada vez mais, considerada o
instrumento de realização dos princípios da Ordem Econômica, conforme o art. 170 da Constituição Federal
brasileira de 1988”.
22
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 198-199.
9
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empresarial. Com isso, tal princípio tem impacto direto sobre a compreensão do interesse
social, que continua sendo questão fundamental do direito societário nos dias atuais.
O interesse social “é o parâmetro que conforma os fins e os meios pelos quais
tal atividade deve ser exercida, diante dos valores ou objetivos maiores que justificam a
existência da própria sociedade”.23 Dessa maneira, o interesse social é a baliza estrutural
e valorativa da gestão das sociedades empresárias, estando seus desdobramentos
filosóficos e técnico-operacionais em constante interpenetração.
A noção de interesse social, contudo, foi elaborada de maneiras diversas ao
longo dos tempos, destacando-se o embate entre concepções contratualistas e
institucionalistas. A abordagem contratualista do interesse social, estruturada no século
XIX, parte do pressuposto de que o interesse social corresponderia ao interesse dos
próprios acionistas.24 Com a derrocada do Estado Liberal, foram dados os primeiros
passos para a construção de uma abordagem institucionalista do interesse social, a partir
de perspectiva que considera as pessoas jurídicas como “núcleos sociais autônomos
destinados a atender finalidades socialmente úteis em torno das quais os indivíduos se
unem e criam uma organização”.25 Uma das consequências da nova abordagem, que
passou igualmente pela influência da função social da empresa, foi a de considerar que o
interesse social deve abranger interesses outros que não apenas os dos acionistas e que “a
racionalidade empresarial precisa direcionar-se igualmente para o atendimento de
padrões mínimos de justiça”,26 ainda que haja dúvidas sobre como compatibilizar os
interesses contrapostos que se projetam sobre a sociedade.
Por essa razão, o debate entre contratualismo e institucionalismo ainda mantém
relevância, ainda que sob nova roupagem.27 É o que se verifica na oposição entre o
modelo clássico (shareholder-oriented), direcionado à proteção dos interesses dos sócios,
personagens centrais no regime de governança corporativa das empresas; e o modelo de
23
FRAZÃO, Ana. Regime societário das empresas públicas e sociedades de economia mista. Estatuto
jurídico das empresas estatais: Lei 13.303, de 30.06.2016, no prelo.
24
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, p. 64.
25
Idem, pp. 110-118.
26
Idem, p. 206.
27
Lembra Jorge Manuel Coutinho de Abreu que as mais recentes teorias do shareholder value e do
stakeholder value não deixam de ser novas roupagens, respectivamente, do contratualismo e do
institucionalismo (ABREU, Jorge Manuel Coutinho. Deveres de cuidado e de lealdade dos administradores
e interesse social. Reformas do Código das Sociedades, pp. 32-33).
10
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28
HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. The Harvard Center
for Law, Economics and Business.
29
Segundo Hertig e Kanda (HERTIG, Gerard; KANDA, Hideki. Related parties transactions. The anatomy
of corporate law. A comparative and functional approach, p. 119), a regra no direito estrangeiro ainda são
as companhias controladas por acionistas, situação que apenas não ocorre nos Estados Unidos e no Reino
Unido, nos quais há controlador ou grupo de controle apenas em companhias menores.
30
HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. Op. cit.
11
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31
SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. p. 31.
32
Tal conclusão está presente, por exemplo, no estudo de Berle e Means (The modern corporation & private
property). No âmbito da doutrina brasileira, Fábio Comparato e Calixto Salomão Filho (O poder de controle
na sociedade anônima, p. 558) insistem na diferenciação entre a macro e a microempresa, assim concluindo
em relação à primeira: “No que tange, porém, à macrocompanhia de capital aberto, isto é impossível. Além
dos interesses dos acionistas, que já não são homogêneos, deve aduzir-se o dos empregados e colaboradores
autônomos da empresa, o da comunidade em que atua e o próprio interesse nacional, por vezes”.
12
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33
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 215-216.
34
Na verdade, os parâmetros objetivos para a compreensão da função social das estatais fizeram com que
o regime destas passasse a ser inclusive mais rígido do que o das companhias privadas, especialmente no
que diz respeito à possibilidade da prática de liberalidades e de outras atividades não atreladas diretamente
ao objeto social (FRAZÃO, Ana. Regime societário das empresas públicas e sociedades de economia mista.
Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303, de 30.06.2016).
35
Ensina Paula Forgioni que, contemporaneamente, o desenvolvimento das empresas liga-se cada vez mais
a sua colaboração com outras, não mais por meio de contratos de sociedade ou de intercâmbio, mas através
de instrumentos diversos das “fórmulas tradicionais oferecidas pelo ordenamento jurídico para acomodar
interesses em empreendimentos comuns” (FORGIONI, Paula. Teoria geral dos contratos empresariais, p.
173). Nesse sentido, é notável a diversidade das formas empresariais empiricamente observáveis que
procuram estabelecer relações inovadoras de gestão de riscos e de custos de transação (MÉNARD, Claude.
Économie néo-institutionnelle et politique de la concurrence les cas des formes organisationnelles hybrides.
Économie rurale, pp. 45-60).
36
DORE, Ronald. Goodwill and market capitalism. Firms, organizations and contracts, pp. 361-365.
13
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A função social, conforme construída pela doutrina italiana, não tem por
finalidade apenas a anulação de condutas antissociais, mas também o direcionamento e
orientação do exercício dos direitos para a realização do interesse público, sem
comprometer o núcleo de individualidade a eles inerente. Segundo Pietro Perlingieri,38 a
função social não serve apenas à delimitação dos limites dos interesses e direitos
subjetivos, mas também comporta uma dimensão ativa ou impulsiva.
Apesar das diferenças encontradas na doutrina sobre o aspecto positivo ou
impulsivo da função social,39 a base comum de sentido que une as várias teorias sobre o
assunto é a preocupação de que os direitos subjetivos possam e devam ser instrumentos
de construção de uma sociedade mais justa e solidária, resgatando o compromisso destes
com liberdade e a emancipação não apenas dos seus titulares, como também dos demais
membros da sociedade.
Entretanto, uma das discussões que subsiste diz respeito à necessidade da prévia
intermediação legal para a concretização da dimensão ativa da função social, sob o
fundamento de que seria mera norma programática, direcionada apenas ao legislador e
37
Nesse sentido: FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas.
38
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, p. 940.
39
A título de exemplo, no que diz respeito à função social da propriedade, pode ser citada a classificação
de Salvatore Pugliatti, que considera que a dimensão ativa da função social corresponde à finalidade
mediata do princípio, enquanto que a finalidade imediata diria respeito aos limites negativos ao exercício
da propriedade (PUGLIATTI, Salvatore. Instituzioni di diritto civile. La proprietá, pp. 149-152). Já
Ludovico Barassi considera a dimensão ativa da função social como o seu aspecto impulsivo, em contraste
com o aspecto limitativo, que se preocupa tão somente em impossibilitar o exercício da propriedade que
cause prejuízos a terceiros (BARASSI, Ludovico. La proprietá nel nuovo codice civile, pp. 80-99).
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não aos cidadãos. A prevalecer esta linha de raciocínio, o princípio não teria nenhuma
eficácia prática como cláusula geral a orientar o exercício dos direitos subjetivos.40 Tal
questão diz respeito não apenas aos enunciados constitucionais relativos à função social,
mas também a normas legais, como aquela prevista pelo art. 154 da Lei das S/A, segundo
a qual “[o] administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem
para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público
e da função social da empresa”.
Já se viu que a função social da empresa não se resume a norma programática,
mas é princípio que vincula a atividade empresarial à realização da justiça social, de
maneira a modificar a noção de interesse social para abarcar todos os sujeitos que, de
alguma forma, sejam afetados pela atividade empresarial, interna ou externamente. Logo,
resta saber a medida a dimensão ativa ou impulsiva da função social da empresa.
Se a dimensão ativa da função social consiste justamente na criação de um plus
ao princípio norteador da atividade econômica constante da Constituição de 1988,
impondo obrigações destinadas a garantir que o patrimônio, os lucros e demais recursos
da companhia sejam igualmente investidos para o atendimento dos demais interesses que
se projetam sobre a empresa,41 uma questão fundamental é saber se o princípio impõe
algum tipo de redistribuição direta dos recursos empresariais.
A melhor compreensão é que políticas distributivas devam ser feitas por
obrigações legais específicas e claras, sob pena de sujeitar os gestores das sociedades
empresárias à tarefa complexa e praticamente inexequível, com muitos efeitos deletérios,
dentre os quais: (i) o engessamento da atividade empresarial em razão da ampliação dos
deveres passíveis de responsabilização; (ii) o aumento de custos de transação em razão
da incerteza quanto à extensão dos deveres; (iii) o repasse dessas dificuldades para os
custos finais; (iv) o aumento da discricionariedade dos administradores, enfraquecendo a
prestação de contas; (v) a admissibilidade de amplo controle judicial sobre o mérito das
40
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, p. 104.
41
Idem, p. 263.
15
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42
Para Dominique Schmidt a indeterminação do conceito de interesse da empresa daria aos juízes um poder
de apreciação extremamente amplo, já que poderia ele invalidar decisões mesmo consideradas pelos
acionistas em conformidade aos seus interesses (SCHMIDT, Dominique. Les conflits d’intérêts dans la
société anonyme, pp. 18-19). No direito inglês, Wedderburn mostra que os juízes ingleses nem mesmo
estariam dispostos a assumir o papel de administrar as políticas empresariais, até por não estarem equipados
para isso. Cita, inclusive, julgado inglês de 1927, segundo o qual não é papel das cortes gerenciar os
negócios de uma companhia (WEDDERBURN, Lord of Charlton. The legal development of corporate
responsibility. Corporate governance and directors’ liabilities. Legal, economic and sociological analyses
on corporate social responsibility. Klaus J. Hopt; Gunther Teubner (org.), p. 15).
43
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 263-264.
44
Idem, pp. 263-265.
45
Idem, pp. 263-265.
16
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46
Daí a afirmação de Modesto Carvalhosa de que “o interesse legítimo dos sócios deve manifestar-se uti
socii, ou seja, em função da comunidade representada pela consecução do objeto social”, ressaltando o
autor que tal entendimento não se opõe ao contratualismo (CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei
das sociedades anônimas, p. 453).
47
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 288-289.
48
Idem, p. 291.
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novos fatos e, também, como fonte de uma série de condutas vedadas que adensam a
cláusula geral em regras de comportamento que têm por objetivo evitar a ação do
controlador em detrimento do interesse da companhia49. É importante notar que a quebra
dos deveres de lealdade nem sempre está associada a danos ao patrimônio social, mas a
situações nas quais o gestor age com base em interesses próprios ou de terceiros, em
detrimento do interesse da companhia50. É por essa razão que, em casos de violação ao
dever de lealdade, o controlador tem a obrigação não apenas de ressarcir o dano, mas de
devolver o benefício indevido.51
Embora a companhia e os acionistas, especialmente os minoritários, sejam
importantes destinatários do dever de lealdade, as reflexões propiciadas pelo
institucionalismo e pela função social da empresa alargaram o rol de beneficiados. Em
razão do princípio da função social da empresa, o espectro dos interesses a serem
observados pelo dever de lealdade ganha considerável expansão não somente em relação
aos administradores, mas também em relação aos controladores. Não é sem razão que o
art. 116, § único da Lei das S/A, chega a mencionar os deveres que o controlador tem em
relação à comunidade, cujos “direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.52
Os gestores também são submetidos ao dever de informação, na medida em que
a tomada de decisões deve estar aparelhada com todas as informações postas à sua
disposição, buscando aconselhamento próprio quando não estiverem munidos do
conhecimento necessário para realizar determinada escolha.53 Tal dever se caracteriza,
ainda, pela necessidade de os gestores desconfiarem e certificarem-se da higidez das
informações recebidas, com vistas a assegurar o cumprimento do interesse da
companhia.54 Sob essa perspectiva, o dever de informação deve projetar-se igualmente
49
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 334-354.
50
Idem, p. 338. Nesse sentido: “No que se refere ao direito brasileiro, a atual Lei das S/A, seguindo a
experiência do direito comparado, acolhe expressamente a maior parte dessas vedações, proibindo o uso
indevido de oportunidades corporativas ou a omissão em aproveitar oportunidades em favor da companhia
para atender a interesses próprios ou alheios (art. 155), o insider trading (art. 155, § 4º), bem como o self-
dealing e o conflito de interesses (arts. 115 e 156). Embora não haja regra expressa quanto à proibição de
remuneração excessiva, esta pode ser considerada uma decorrência do dever geral de lealdade e da cláusula
geral de vedação ao abuso dos poderes de controle e administração (arts. 116, §único e 154)” (Idem, pp.
338-339).
51
Idem, p. 321.
52
Idem, pp. 343-344.
53
HALF, Ek von; HOYENBERG, Philipp von. Aktiengesellschaften, p. 111.
54
RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades, p. 227.
18
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55
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 353-354.
56
Ver: FRAZÃO, Ana. Dever de diligência: novas perspectivas em face de programas de compliance e de
atingimento de metas. Jota. Como sintetiza Maddalena Rabitti, o conteúdo mínimo do dever de diligência
está contido no princípio de agir informado. Destaca-se que, com a expansão dos destinatários do dever de
diligência, a informação deve abranger igualmente os dados referentes aos outros interesses e valores que
devem ser realizados e tutelados pela atividade empresarial (RABITTI, Maddalena. Rischio organizzativo
e responsabilità degli amministratori: contributo allo studio dell’illecito civile p. 144).
57
Compliance, segundo Maurice Stucke, consiste na incorporação de um padrão ético empresarial a partir
da adoção de um conjunto de práticas corporativas que reforce anuência da empresa à legislação vigente,
tendo por objetivo prevenir infrações ou mesmo reestruturar a empresa após o cometimento de um ilícito
(STUCKE, Maurice E. In search of effective ethics & compliance programs. Journal of corporation law,
nº 769, pp. 771-772).
19
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58
FRAZÃO, Ana. Dever de diligência: novas perspectivas em face de programas de compliance e de
atingimento de metas. Jota.
59
Segundo o Código de Melhores Práticas do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC,
“Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas,
monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, Conselho de Administração,
diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas” (IBGC, Código das melhores
práticas de governança corporativa, p. 20).
60
FRAZÃO, Ana. Op. cit., pp. 361-364.
61
Um bom exemplo dessa tendência é o Código das Sociedades Comerciais português, cujo art. 64, ao
definir o dever de diligência, prevê que “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem
actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os
interesses dos sócios e dos trabalhadores”. No direito alemão, Jürgen von Kann esclarece que os atuais
desenvolvimentos do direito acionário vão além das preocupações com os direitos e obrigações dos
administradores em relação à companhia, abrangendo também os direitos e obrigações perante os credores
sociais e os acionistas como investidores de capital. Isso ficou claro com recentes inovações legislativas
visando à melhoria da proteção dos investidores, o que não deixou de ser reflexo do fato de o discurso
jurídico ter se ocupado, desde 2001, e em medida crescente, com demandas ressarcitórias de danos por
parte de credores e acionistas contra os membros do Vorstand, tal como ocorreu nos famosos casos “Bremer
Vulkan”, “Comroad” e “Informatec” (KANN, Jürgen von. Vorstand der ag: führungsaufgaben,
rechtspflichten und corporate governance, p. 99).
62
FRAZÃO, Ana. Op. cit., pp. 361-364.
20
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63
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 361-364.
64
Idem, p. 262.
65
Segundo Teubner, a ideia da co-gestão era não apenas a de harmonizar os interesses concorrentes, mas
também de determinar as obrigações dos representantes dos diferentes grupos, já que a própria companhia
21
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que o modelo de co-gestão foi iniciativa de sucesso local que não poderia ser expandido
de forma eficiente para outros ordenamentos.66 Ainda assim, a adoção de soluções
estruturais é alternativa relevante de solução das controvérsias advindas de interesses
externos à gestão, razão pela qual é possibilidade digna de reflexão.
É também da função social da empresa e de seu efeito de expansão do interesse
social que advém a legitimação da responsabilidade social voluntária, cuja possibilidade
decorre não apenas do texto constitucional, mas também da própria Lei das S/A, que no
§ 4º de seu art. 154 dispõe que “o conselho de administração ou a diretoria podem
autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da
comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais”.
A responsabilidade social diz respeito à integração voluntária de preocupações sociais à
atividade empresarial, indo além das obrigações básicas previstas pela legislação –
motivo pelo qual difere do compliance –, de sorte a conciliar o desenvolvimento social
ao desenvolvimento das empresas.67
Na esteira da legitimação da responsabilidade social, pode-se indagar a respeito
da compatibilidade de atos gratuitos com objetivos filantrópicos com relação à finalidade
lucrativa da atividade empresarial. Partindo-se do pressuposto de que as empresas têm
por objetivo precípuo o lucro, em que medida empreendimentos filantrópicos estariam de
acordo com o objeto social das empresas? Apesar de o ordenamento brasileiro franquear
a responsabilidade social voluntária, pode-se cogitar de modelos empresariais cuja
atividade social seja a própria atividade da empresa, atividade esta que serve
concomitantemente à busca pelo lucro.
Questões como essas ensejaram, em outros sistemas, a criação de modelos de
passou a ser vista como uma coalizão entre estes, que seriam integrados pela ideia de empresa e de interesse
da empresa (Unternehmensinteresse). Daí porque o autor (idem) conclui que o desenvolvimento desta
alternativa na Alemanha teve finalidade semelhante à construção dos deveres fiduciários no direito anglo-
saxão, no sentido de também buscar a delimitação das consequências para o fenômeno da separação entre
a propriedade e o controle, oferecendo diretrizes jurídicas para resolver os conflitos de interesse
(TEUBNER, Gunther. Corporate fiduciary duties and their beneficiaries. A functional approach to the legal
institutionalization of corporate responsibility. Corporate governance and directors’ liabilities. Legal,
economic and sociological analyses on corporate social responsibility. Klaus J. Hopt; Gunther Teubner
(org.), p. 155).
66
Ver: HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. The Harvard
Center for Law, Economics and Business.
67
FRAZÃO, Ana; PRATA DE CARVALHO, Ângelo Gamba. Responsabilidade social empresarial.
Constituição, empresa e mercado, p. 208.
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68
FRAZÃO, Ana; PRATA DE CARVALHO, Ângelo Gamba. Responsabilidade social empresarial.
Constituição, empresa e mercado, p. 215.
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econômico, tendo em vista que somente se pode cogitar de efetividade da função social
da empresa se o princípio da preservação da empresa for também posto em evidência.
Com isso, haverá espaço para a concretização do princípio na reconfiguração dos deveres
de cuidado e proteção dos gestores, com vistas a incluir igualmente os shareholders como
destinatários.
Além de projetar seus efeitos sobre a atividade empresarial para criar deveres
positivos a serem observados por seus gestores, a função social da empresa apresenta
também importante dimensão negativa ou passiva, direcionada à proibição do exercício
de direitos subjetivos e liberdades que, por mais que estejam em aparente conformidade
com o direito, sejam contrários às finalidades e princípios maiores do ordenamento
jurídico. Por essa razão, a dimensão negativa da função social da empresa está
intimamente relacionada à cláusula geral de vedação ao abuso de direito,69 traduzindo-se
em crítica ao formalismo e ao absolutismo da concepção liberal dos direitos subjetivos.70
Como já se comentou, os princípios constitucionais que regem a livre iniciativa
empresarial ampliam os deveres a que estão submetidos os gestores de empresas, de
maneira que o desrespeito aos imperativos de tais normas de conduta terá por
consequência a sua responsabilização pessoal. Diferentemente do que ocorre com a
infração a deveres positivos, o abuso de direito possui a particularidade de decorrer de
69
Por essa razão, Gianluigi Palombella (PALOMBELLA, Gianluigi. El abuso del derecho, del poder y del
rule of law. DOXA Cuadernos de filosofia del derecho, pp. 35-37) considera que o abuso de direito diz
respeito ao problema do “lado obscuro” dos direitos, consistindo na lesão de um interesse por parte do
titular de um direito (right) que atua em aparente conformidade com uma regra de direito, a qual é utilizada
de forma instrumental e contrária ao próprio direito em sentido objetivo (law). Não se pode esquecer que a
vedação ao abuso de direito foi marcada por diversas dificuldades, muitas das quais persistem até os dias
atuais. É o que explicita San Tiago Dantas ao advertir que “a noção de abuso de direito tem se ressentido
sempre de uma grande imprecisão de contornos, o que lhe tem valido ser invocada pelos autores e tribunais
em face das situações mais diversas, sempre que é preciso fundamentar a responsabilidade fora das bases
clássicas da culpa, ou corrigir as injustiças a que a prática dos contratos frequentemente conduz.”
(DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição, p. 96).
70
Como ensinam Atienza e Manero, a figura do abuso de direito surgiu como reação e correção ao
formalismo e ao individualismo que até então caracterizavam os direitos subjetivos. Salientam os autores
que, no common law, apesar de referências a expressões como o abuse of right ou abuse of freedom, não
houve necessidade de desenvolver o abuso de direito como instituição jurídica, na medida que, por meio
do distinguishing, os juízes podem se apartar do precedente e revisar os entendimentos passados, adaptando
o direito às novas necessidades (ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Ilícitos atípicos. Sobre el abuso
del derecho, el fraude de ley y la desviación de poder, pp. 34-35).
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suposto assento em direito,71 apesar de ser ato ilícito.72 Por essa razão, os atos abusivos
têm apuração mais difícil do que a do ato ilícito comum, mesmo porque requerem a
análise dos limites a partir do qual o exercício de determinado direito deixa de ser
legítimo.73
Em última análise, as abordagens sobre o abuso de direito têm em comum o
pressuposto de que direitos subjetivos e liberdades não podem estar restritos a uma
definição formal-legalista, mas devem ser contextualizados diante de suas finalidades
sociais, da moral, da boa-fé, dos bons costumes, da aceitação ou reprovabilidade social
das condutas, dentre outros critérios. Esses aspectos servem para demonstrar que deve
haver equilíbrio entre a liberdade do titular do direito subjetivo e os direitos dos demais
membros da sociedade, característica convergente com os ditames da função social da
empresa e sua projeção sobre o conceito de interesse social.74
Tendo em vista que os juízos de moderação, proporcionalidade ou equilíbrio
71
Essa característica é ressaltada pela doutrina de acordo com distintas nuances. Jorge Americano, refere-
se ao abuso a partir de uma aparência de direito (AMERICANO, Jorge. Do abuso de direito no exercício
da demanda, pp. 7 e 40). Fernando Augusto Cunha de Sá destaca a doutrina de Castanheira Neves, que
distingue entre os atos ilícitos formais ou ilegalidades, que representam contrariedades à estrutural formal-
definidora do direito e os atos ilícitos materiais ou abusos de direito, que implicam violação ao aspecto
axiológico da norma, à intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado.
Assim, a distinção entre o ato ilícito e o ato abusivo partiria da dimensão da ofensa à ordem jurídica
(CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do direito, p. 494). Para Martin Bernal, a particularidade que
faz com que o ato abusivo seja uma categoria autônoma do ato ilícito é o fato daquele não possuir limites
definidos, como ocorre no ato ilícito normal. Assim, o abuso possuiria uma dimensão mais ampla, até
porque o seu diagnóstico não seria automático, obrigando, para a sua configuração, uma integração da
norma jurídica muito próxima à própria criação do direito (BERNAL, Martin. El abuso del derecho, p.
140). Jorge Americano (Op. cit., p. 40) distingue o ato abusivo do ato ilícito por um critério prático, qual
seja, a aparência de direito existente no primeiro. Teófilo de Castro Duarte distingue o abuso de direito do
ato ilícito normal em razão da influência sobre o primeiro da equidade e da moral social (DUARTE, Teófilo
de Castro. O abuso do direito e as deliberações sociais, p. 38). Por último, vale ressaltar a posição de Paulo
Dourado de Gusmão, assim transcrita por Lúcio Flávio de Vasconcellos Naves: “[o] uso de direito constitui
a transgressão por parte do titular dos limites implícitos no ordenamento jurídico, enquanto que a violação
dos limites explícitos não é abuso de direito porque não chega a ser direito, sendo violação de norma jurídica
expressa” (NAVES, Lúcio Flávio de Vasconcellos. Abuso no exercício do direito, p. 133).
72
Sobre o tema, reproduz-se a lição de Marcus Elidius Michelli de Almeida de que “muito embora resida
certa celeuma sobre a natureza do abuso de direito, é certo que a maioria dos autores está convencida de
que o direito brasileiro adotou tal situação dentre aquelas onde está inserido o ato ilícito.” (ALMEIDA,
Marcus Elidius Michelli. Abuso do direito e concorrência desleal, p. 78). Independentemente da questão
doutrinária, o autor (idem, p. 88) sustenta que “o abuso do direito, tomando por base no novo Código Civil,
é classificado como ato ilícito, por força de lei”.
73
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 222-223.
74
Idem, p. 223. Eis porque o Código Civil brasileiro, concretizando esta dimensão passiva da função social
dos direitos, prevê, no seu art. 187, que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-
lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes”.
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75
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, p. 224.
76
Segundo Jorge Americano (Do abuso de direito no exercício da demanda, p. 22): “[a] culpa toma então
uma feição nova, pela qual consiste no próprio facto de desprezar o agente as precauções necessárias ao
exercício da sua liberdade, passando-se a considerar que age com imprudência ou negligência desde que se
afaste da norma jurídica, ou exceda os respectivos limites, traçados, na falta de texto expresso, pelo conceito
ordinário dos homens”.
77
FRAZÃO, Ana. Op. cit., p. 226.
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gestores devem ser lidos à luz da Constituição e, assim, reconfigurados para corretamente
endereçar a necessidade de consideração dos interesses dos diversos stakeholders.
Nesse contexto, ganha importância a figura do abuso de direito dos gestores –
tanto administradores quanto controladores, seja no exercício do poder de controle ou do
direito de voto – tanto na modalidade dolosa, como na culposa, conforme já admitido pelo
STJ,78 e, ainda, a possibilidade de abuso por omissão nos casos em que houver dever
jurídico de atuar.79 Isso porque sobre a conduta dos gestores incide não apenas a função
social da empresa, mas também a boa-fé objetiva, que da mesma maneira funciona como
parâmetro para identificação do abuso de direito ao impor uma série de deveres especiais
de proteção, de sorte que o abuso ocorrerá também sempre que houver omissão no
cumprimento de tais deveres.80 Além disso, vale notar que o abuso por omissão está muito
mais vinculado à dimensão ativa da função social do que a modalidade comissiva,
relacionada ao excesso no exercício de direito, cujo combate está mais associado à
78
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DIREITO SOCIETÁRIO. ART. 117, §
1°, DA LEI N.º 6.404/76 (LEI DAS SOCIEDADES). MODALIDADES DE ABUSO DE PODER DE
ACIONISTA CONTROLADOR. FORMA EXEMPLIFICATIVA. CARACTERIZAÇÃO DO ABUSO
DE PODER. PROVA DO DANO. PRECEDENTE. MONTANTE DO DANO CAUSADO PELO ABUSO
DE PODER DO ACIONISTA CONTROLADOR. FIXAÇÃO EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA.
POSSIBILIDADE.
O § 1°, do art. 117, da Lei das Sociedades Anônimas enumera as modalidades de exercício abusivo de
poder pelo acionista controlador de forma apenas exemplificativa. Doutrina.
A Lei das Sociedades Anônimas adotou padrões amplos no que tange aos atos caracterizadores de exercício
abusivo de poder pelos acionistas controladores, porquanto esse critério normativo permite ao juiz e às
autoridades administrativas, como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), incluir outros atos lesivos
efetivamente praticados pelos controladores.
Para a caracterização do abuso de poder de que trata o art. 117 da Lei das Sociedades por ações, ainda que
desnecessária a prova da intenção subjetiva do acionista controlador em prejudicar a companhia ou os
minoritários, é indispensável a prova do dano.
Precedente.
Se, não obstante, a iniciativa probatória do acionista prejudicado, não for possível fixar, já no processo de
conhecimento, o montante do dano causado pelo abuso de poder do acionista controlador, esta fixação
deverá ser deixada para a liquidação de sentença.
Recurso especial provido.”
(STJ, 3ª Turma, REsp 798.264/SP, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, rel. p/ acórdão Min. Nancy
Andrighi, j. 06.02.2007, DJ 16.04.2007)
79
Fábio Comparato e Calixto Salomão Filho (O poder de controle na sociedade anônima, p. 392) defendem
essa possibilidade, a partir da interpretação sistemática do art. 117 com o art. 116, § único, da Lei das S/A,
o que é igualmente aceito por Paulo César Simões na hipótese em que o controlador se omite
deliberadamente de exercer o seu poder, segundo os ditames dos arts. 116 e 117, da Lei das S/A (SIMÕES,
Paulo César. Governança corporativa e o exercício do voto nas S.A., p. 74). Todavia, é precisa a advertência
de Sanchéz Calero de que apenas se pode cogitar de abuso por omissão quando houver uma obrigação ou
dever jurídico de atuar (SANCHÉZ CALERO, Fernando. Los administradores em lãs sociedades de
capital., p. 295).
80
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 328-329.
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81
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 325-326.
82
Nesse sentido: “O abuso de minoria, portanto, verifica-se quando o sócio, por ação ou omissão (a
oposição abusiva), atua de maneira conflitante com o interesse social, entendido este como o interesse
comum dos sócios uti socii, ou em desacordo com o dever geral de lealdade societária: para a satisfação de
interesse próprio, o sócio sacrifica o interesse comum dos sócios uti socii; pratica atos meramente
emulativos; ou lesiona legítimos interesses e expectativas de outros sócios ou da sociedade de que é membro
– sendo que os legítimos interesses e expectativas tutelados são inclusive os de cunho individual dos sócios,
desde que se relacionem ou guardem relação de conexão com o fim comum ou a causa do contrato de
sociedade (abrangendo, assim o interesse comum dos sócios uti socii e os interesses individuais legítimos
ex causa societatis)” (ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria em direito societário: abuso das
posições subjetivas minoritárias, 2010).
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serve para delinear o alcance das liberdades dos gestores no que diz respeito às relações
com terceiros interessados na atividade empresarial em questão. Assim, o princípio da
boa-fé – para além de produzir deveres positivos e de realçar o dever de cuidado – impõe
que as decisões sejam tomadas por intermédio de procedimento razoável e bem
informado.83
Essa dimensão negativa da função social da empresa igualmente não se resume
a enunciados normativos gerais, mas encontra densificação em diversas regras que têm
por objetivo a limitação do exercício dos direitos e liberdades empresariais em prol do
atendimento do interesse social.
Exemplos disso são visualizados no âmbito da Lei de Recuperação de Empresas
e Falências (Lei 11.101/2005), que apresenta uma série de dispositivos destinados a
limitar atos de gestão em prol da proteção dos credores (arts. 129 e seguintes.) e, ainda,
disposições especiais acerca da proteção de detentores de créditos oriundos da legislação
trabalhista (arts. 54; 83, I; etc.).
No mesmo sentido, pode-se citar o já mencionado abuso de direito de voto,
consequência lógica do princípio maior da vedação ao abuso de direito. Tal hipótese é
regulada, ao menos para as sociedades por ações, pelo art. 115 da Lei das S/A, segundo
o qual “considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia
ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e
de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas”.
Desse modo, tem-se novamente por consequência do exercício abusivo do direito de voto
a responsabilização pessoal do acionista, ainda que o voto não tenha prevalecido, já que
mesmo esta hipótese é capaz de causar danos à companhia. Por óbvio, em razão da
importância da função conferida pelo Direito Societário aos controladores, seu voto
abusivo ou mesmo o abuso do poder de controle devem ser combatidos, com vistas a
compatibilizar adequadamente poder e responsabilidade.84
Importa notar que o voto emulativo, isto é, aquele proferido com o fim de causar
dano à companhia ou a outros acionistas, não é a única hipótese de voto abusivo descrita
pela Lei das S/A. O referido diploma também prevê a abusividade do voto que traz
83
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 400-401.
84
Idem, p. 318.
29
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85
Ver, nesse sentido: SCHMIDT, Dominique. Les conflits d’intérêts dans la société anonyme, p. 31. Vale
ressaltar que, muito embora se aproxime ao abuso de direito de voto, o conflito de interesses apresenta a
especificidade de estar relacionado diretamente com a proteção da companhia e da comunhão acionária, ao
passo que as hipóteses de abuso de direito de voto resguardam o interesse social em sentido amplo: enquanto
o abuso de direito de voto se define pela orientação do voto em sentido contrário ao do interesse social, o
conflito de interesses ocorre quando os objetivos da companhia e do acionista são divergentes (CUNHA,
Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura de interesses nas sociedades anônimas. Hierarquia e conflitos, pp.
264-265).
86
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, pp. 326-332.
87
CLARK, Robert Charles. Corporate law, pp. 123-124.
30
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6. A DIMENSÃO HERMENÊUTICO-INTEGRATIVA
88
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As, p. 260.
89
Idem, p. 260.
90
Idem, pp. 260-261.
91
Ver: HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. The Harvard
Center for Law, Economics and Business.
31
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partindo-se do pressuposto de que o interesse social não pode ser redutível apenas ao
interesse dos sócios ou acionistas, há que se admitir a consideração dos interesses dos
stakeholders. A grande questão, como já se viu, é descobrir em que medida e como tal
compatibilização pode ser realizada, sobretudo nas companhias abertas, nas quais a
dicotomia entre interesse privado e público não é tão nítida.92
Vale pontuar, novamente, que a função social da empresa não significa a
priorização de um dado grupo de interesse em detrimento de outro, mas determina a
realização de balanceamento entre os interesses dos diversos credores envolvidos. Tanto
é assim que, ao julgar ação de controle concentrado de constitucionalidade questionando,
na Lei de Recuperação de Empresas e Falências, (i) a ausência de sucessão de créditos
trabalhistas na alienação judicial de empresas; e (ii) a qualificação, como quirografários,
dos créditos oriundos da legislação do trabalho excedentes a 150 salários mínimos; o
Supremo Tribunal Federal entendeu que não haveria ofensa à Constituição, uma vez que
a Lei 11.101/2005 “objetiva prestigiar a função social da empresa e assegurar, tanto
quanto possível, a preservação dos postos de trabalho”.93
O exemplo acima serve para mostrar que a função social da empresa não tem por
objetivo minimizar ou ampliar a importância dos anseios de qualquer grupo interessado,
mas, antes de tudo, de assegurar a preservação e manutenção da atividade empresarial
como geradora de empregos, tributos e riquezas para a comunidade, fator indispensável
em qualquer formulação a respeito do interesse social. Da mesma maneira, a preservação
da empresa como parâmetro interpretativo atrelado à função social da empresa se
encontra refletida em vários pontos do ordenamento, a exemplo da possibilidade de
acordo entre sócios para a substituição de sócio falecido, em lugar da liquidação de suas
quotas pela ocasião de sua morte.94
Por fim, o caráter sistematizador do princípio da função social da empresa não
necessariamente resultará na imposição de deveres ou na responsabilização pessoal, mas
também se traduz no estímulo à remodelagem institucional das corporações, de maneira
a acolher em maior medida os interesses dos stakeholders e evitar conflitos; à
92
Ver: COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade
anônima.
93
STF, ADI 3934, Tribunal Pleno, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27.05.2009, DJe 06.11.2009.
94
Ver, nesse sentido: FRAZÃO, Ana. A morte de sócio e o problema da sucessão das participações
societárias. Revista direito empresarial, nº 3, pp. 103-124.
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REFERÊNCIAS
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__________________. Dever de diligência: novas perspectivas em face de
programas de compliance e de atingimento de metas. Jota. Disponível em
<http://jota.info/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/dever-de-diligencia-
15022017>. Acesso em 15.02.2017.
__________________. A morte de sócio e o problema da sucessão das
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__________________. Função social da empresa: repercussões sobre a
responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro:
Renovar 2011.
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