Poesia Trovadoresca
Poesia Trovadoresca
Poesia Trovadoresca
É ainda referida a língua em que essas composições foram escritas: o galego-português. Com efeito, no século XII,
quer o português quer o galego estavam em formação e não eram línguas distintas. No Norte de Portugal, na região
de Entre Douro e Minho, e na Galiza falava-se galego-português, e é nestas regiões qua a poesia trovadoresca vai
florescer, através de diferentes intérpretes.
Alguns monarcas funcionaram como um modelo a seguir, como foi o caso de Afonso X, o Sábio (1221- -1284), rei
de Leão e Castela, autor de composições profanas e de poemas religiosos – Cantigas de Santa Maria –, e de D. Dinis,
seu neto (1261-1325), que compôs diversas cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e de
maldizer.
Mas também há outros intérpretes da poesia trovadoresca e com funções distintas:
Trovador – compositor de poesia, quase sempre fidalgo (podia até ser rei).
Jogral – executor (geralmente de baixa condição) que vivia do lucro da arte de cantar ou de tanger versos próprios
ou alheios.
Segrel – cavaleiro-trovador, da pequena nobreza, que andava de corte em corte a cantar e a declamar; fazia-se
acompanhar de um jogral ou substituía-o.
Menestrel – era, no século XIII, um músico-poeta (por vezes confundia-se com o jogral, só que vivia sob a proteção
de um nobre e andava de corte em corte).
Soldadeira ou jogralesa – cantadeira ou dançarina, a soldo, que acompanhava o jogral (tinha, muitas vezes, um
comportamento de moral duvidosa).
Sendo uma manifestação cultural, a poesia trovadoresca reflete, de forma trabalhada e representada, vivências
do seu tempo, mas fá-lo subjetivamente, já que tem por base os sentimentos, as emoções, as atitudes.
Um dos temas predominantes desta poesia é o amor. No entanto, o sentimento amoroso pode assumir
diferentes matizes, que, em última análise, nos permitem distinguir dois géneros:
• cantigas de amigo – poesia autóctone, resultante da tradição lírica que existia no Norte de Portugal, entre Douro e
Minho e a Galiza;
• cantigas de amor – poesia que se desenvolveu sob influência dos poemas e temas de Provença, França.
As cantigas de amigo apresentam, na voz de uma donzela (o sujeito poético é feminino), os sentimentos por ela
vividos relativamente ao seu amigo que pode estar longe, ausente (por sua vontade ou por força das circunstâncias –
guerra, defesa da fronteira, viagem), levando-a, por isso, a manifestar saudade, tristeza, mágoa, angústia, temor.
Mas o sentimento que nutre pelo amigo pode também levá-la, noutras ocasiões, a expressar alegria, sensualidade,
confiança, em festas, romarias, peregrinações. É muito comum a donzela revelar aquilo que sente à sua mãe, às
amigas ou até à própria Natureza, funcionando todas elas como confidentes desse amor, umas vezes de forma
silenciosa, outras vezes intervindo e respondendo aos anseios, às dúvidas, aos medos da donzela. Esta ligação à
Natureza e esta vertente de confidência emprestam à cantiga de amigo uma espontaneidade e
uma naturalidade próprias.
Nas cantigas de amor, a voz é masculina e o sentimento amoroso é vivido por um homem que se coloca ao
serviço de uma mulher, regra geral, casada. A dama mostra-se distante, fria ou até indiferente e é colocada numa
posição superior ao poeta, que lhe presta um serviço de vassalagem seguindo o código de amor cortês. O sujeito
masculino vive, assim, uma paixão infeliz – coita de amor –, porque não pode ser concretizada. Nestas composições,
vamos, então, encontrar, por um lado, emoções em crescendo e que dizem respeito a esse sofrimento de amor,
como a dor, a angústia, o desespero, a loucura e a própria morte, e, por outro, emoções que fazem parte do quadro
do elogio cortês que estas cantigas reproduzem. O amador louva a sua amada, a sua senhor, e traça todo um retrato
idealizado da mesma, realçando quer as suas características físicas (cabelo loiro, pele clara), quer as suas
características morais (bom senso, bem falar). Para prestar um bom serviço à dama, o poeta deve ser discreto e não
a nomear, deve respeitá-la e deve submeter-se a ela – convenções da poesia provençal. Daí as cantigas de amor nos
parecerem, habitualmente, menos espontâneas que as cantigas de amigo.
Para além destes dois géneros, a poesia trovadoresca comporta ainda uma dimensão satírica, expressa nas
chamadas cantigas de escárnio e maldizer. Na verdade, os trovadores e os jograis sentiram também necessidade de
apontar o dedo a algumas figuras da sociedade, a algumas situações ou comportamentos, e fizeram-no ora de forma
direta, nomeando os visados e usando uma linguagem clara, satírica, por vezes até violenta e grosseira – cantigas de
maldizer –, ora de forma indireta, não especificando concretamente quem era ou qual era o alvo e recorrendo a uma
linguagem mais camuflada, irónica – cantigas de escárnio. Numas e noutras, verifica-se uma intenção crítica,
moralizadora e, por vezes, cómica.
O amor cortês e o seu carácter dramático (evidenciado na morte de amor), o ofício da criação poética, mas
também os comportamentos imorais de certos elementos do clero ou a vida miserável de alguns elementos da
nobreza são alguns dos temas destas cantigas. Nesse sentido, as cantigas de escárnio e maldizer oferecem-nos
um retrato mais completo da sociedade daquele tempo e de alguns dos seus protagonistas.
► Linguagem, estilo e estrutura
Para compreendermos o alcance desta poesia, é imprescindível considerar a linguagem, o estilo e a estrutura que
subjaz a cada um dos géneros já referidos. Embora muitos dos aspetos que se prendem com estes três tópicos sejam
mais visíveis através da leitura e da análise de cantigas específicas, o que faremos nos pontos d), e) e f), importa aqui
explicitar algumas marcas destas composições, sobretudo no que diz respeito à estrutura, ou seja, à organização, ao
arranjo que os versos assumem nas composições poéticas.
Nesse sentido, chamamos a atenção para o facto de as cantigas de amigo se caracterizarem por uma estrutura
estrófica e rítmica que aproxima a poesia da música. Esse efeito resulta do facto de estas cantigas recorrerem,
frequentemente, a dois processos (em simultâneo ou isoladamente): o refrão – repetição de um ou mais versos no
final de cada estrofe – e o paralelismo.
Sobre este último, vejamos a explicação que se segue, a partir da análise da composição de Martim Codax.
Martim Codax
(CV 884, CBN 1227)
Poesia e Prosa Medievais (seleção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira), Ulisseia, 1988
Glossário
v. 3 – verrá – virá; v. 4 – mar levado – mar bravo; v. 8 – o por que eu suspiro – aquele por quem eu suspiro
Caracterização temática
• Nesta cantiga, a amiga dirige-se às ondas do mar (apóstrofe), querendo saber novas do seu amigo. (1)
• A Natureza é, pois, confidente (personificação), mas o mar (símbolo da distância e do perigo – “mar levado”) não
responde.
• As ondas simbolizam a inquietação, o estado de espírito da menina.
• Essa confidência ao mar é acentuada pela súplica que a menina faz a Deus (“E ai Deus, se verrá cedo!” – apóstrofe).
• Por sua vez, o apelo a Deus traduz um outro sentimento: a expectativa pelo regresso do amigo.
Caracterização formal
• Dois pares de estrofes (1.ª e 2.ª coplas; 3.ª e 4.ª coplas) em paralelismo – os dois versos da 2.ª copla exprimem
praticamente o mesmo sentido dos dois versos da 1.ª copla, apresentando subtis variantes (“mar de Vigo” / “mar
levado”; “amigo” / “amado”); o mesmo se passa com a 3.ª e a 4.ª coplas. No caso destas duas, há ainda a destacar o
uso do leixa-prem, que ajuda a criar um sentido de unidade e de progressão na cantiga (o segundo verso do primeiro
e do segundo dísticos é o primeiro verso do terceiro e quarto dísticos, respetivamente).
• Cada estrofe de dois versos (dístico) é seguida de um refrão – cantiga de refrão. Concentrado apenas numa frase,
que assume sempre a mesma formulação, o refrão acentua o sentimento de ansiedade da amiga (veja-se o emprego
da interjeição e do ponto de exclamação).
Marcas das cantigas de amigo
• O sujeito poético é uma donzela que deseja saber novas do seu amigo distante.
• A Natureza é confidente da menina. É às ondas que a donzela pergunta pelo amado.
• O cenário é primitivo e singelo – o mar.
• A simplicidade da cantiga é evidente na sua estrutura repetitiva (refrão, paralelismo) e também no tipo de rima
utilizada (alternância entre as vogais -i e -a, bastante musicais).
Quanto ao estilo, podemos afirmar que diz respeito às opções que cada autor toma relativamente a vários
aspetos, entre os quais se contam, por exemplo, a seleção e o uso de recursos expressivos. Entre aqueles que
podemos encontrar nas cantigas, destacamos a comparação, a ironia e a personificação, recursos que serão
analisados em cantigas específicas.
(1) A importância do mar e todo o cenário desta cantiga permitem classificá-la como uma barcarola ou marinha.
► Cantigas de amor
Antes de analisarmos algumas cantigas de amor galaico-portuguesas, convém referir que, embora a influência da
chamada poesia provençal seja notória, houve uma adaptação da cansó provençal às formas já existentes, ou seja, à
estrutura da cantiga de amigo e também à sua sentimentalidade.
Com efeito, verifica-se o uso do refrão e, apesar do respeito pelo código de amor cortês, há uma sinceridade
superior à dos provençais.
D. Dinis
(CV 127, CBN 489)
Poesia e Prosa Medievais (seleção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha
Ferreira), Ulisseia, 1988
Glossário
v. 1 – soen – costumam; v. 3 – tempo da flor – primavera;
v. 5 – coita – sofrimento (amoroso); v. 10 – frol sazon – estação, tempo de flor; v. 14 – eno – no; color – cor
Caracterização temática
• O tema desta cantiga é a coita de amor “sen par”, ou seja, inigualável, e a morte por amor – “pois m’á-de matar”.
• O trovador compara o seu amor com o dos provençais. Embora lhes reconheça capacidade de trovar (vv. 1-2),
considera que os sentimentos que exprimem resultam mais de um artificialismo, de um fingimento, pois só trovam
na primavera (“no tempo da flor”) e fora desse tempo não (vv. 15-17).
• Logo, o trovador critica e distancia-se dos poetas provençais – vv. 3-6. E essa diferença vai sendo acentuada: na 2.ª
copla, já refere a “coita qual eu ei sen par” e na 3.ª a morte por amor (“non an, non viven en qual perdiçon / oj’ eu
vivo, que pois m’á-de matar”). O sofrimento do intérprete é verdadeiro, em oposição ao convencionalismo
provençal. Há, assim, toda uma gradação e uma reiteração de argumentos a favor da poesia do sujeito poético.
• Por isso mesmo, esta cantiga pode também funcionar como uma espécie de arte poética da arte de trovar: uma
poesia convencional e artificial (a dos provençais) e uma poética autêntica, assente na coita de amor profunda (a do
trovador). Ainda assim, o poema termina com um lugar-comum característico da poesia provençal – a morte de
amor.
Já vimos que os trovadores e os jograis não compuseram apenas cantigas de amigo e cantigas de amor. Na
verdade, para além da poesia lírica, dedicaram-se também à poesia satírica. Podemos até dizer que esta foi bastante
fecunda entre nós, revelando já então um gosto pela crítica, pelo cómico e pelo ridículo.
Segundo a Arte de Trovar (1), documento que representa uma espécie de poética da poesia trovadoresca e que
se encontra no início do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, havia dois tipos de poesia satírica.
Assim, nas cantigas de escárnio, a crítica é mais subtil, não sendo revelada a identidade de quem se critica.
Nas cantigas de maldizer, a crítica é mais direta, identificando-se o alvo visado.
Caracterização temática
• A composição apresentada enquadra-se nas chamadas cantigas de escárnio, visto que se critica, de forma indireta
(o nome nunca é referido), a atitude, o comportamento de uma dona (aludindo-se, assim, à senhor das cantigas de
amor) que quer ser louvada, apesar de não possuir atributos para tal, pois é “fea, velha e sandia”.
• Por essa razão, esta cantiga é também considerada uma paródia do amor cortês, pois é uma imitação de uma
cantiga de amor com um propósito irónico e cómico.
• A ironia é, aliás, evidente ao longo da cantiga. Vejamos:
› a dona queixou-se de não ser louvada e manifestou um grande desejo em sê-lo; o poeta parece aceder a esse
desejo – “mais ora quero fazer um cantar / em que vos loarei todavia” (1.ª estrofe); “vos quero já loar todavia; / e
vedes qual será a loaçom” (2.ª estrofe); “mais ora já um bom cantar farei / em que vos loarei todavia” (3.ª estrofe);
› no entanto, apesar de o sujeito poético louvar a dona, não o faz da maneira que esta pretenderia, uma vez que o
louvor repetido no refrão é “dona fea, velha e sandia!”, o que prova a ironia presente nesta cantiga.
• O refrão assinala, assim, o efeito cómico que se cria ao elogiar-se não uma dona bela, jovem e com bom senso,
habitualmente retratada nas cantigas de amor, mas antes uma mulher cuja imagem é extremamente negativa.
• A crítica ao objeto de louvor – “dona fea, velha e sandia” –, evitando-se a identificação direta, aponta para o
escárnio e para a sátira.
• A linguagem rude identifica-se com a poesia satírica. Veja-se, a título de exemplo, a tripla adjetivação do
refrão: “fea, velha e sandia”.
Caracterização temática
• Crítica direta e explícita a um poeta – Roi Queimado – que, nas suas composições e por causa do amor por uma
dona, anunciava a sua morte, embora continuasse a viver. Trata-se, por isso, de uma cantiga de maldizer, que põe a
ridículo o comportamento desse poeta, em particular.
• Crítica mordaz e irónica à morte de amor tão convencional das cantigas de amor:
› Roi Queimado afirmou nas suas cantigas que estava tão apaixonado por uma dona e que, por ela, morreu de amor;
› fez tudo isto para provar que era um trovador com grandes qualidades (“e por se meter por mais trobador”);
› no entanto, “ressuscitou” no terceiro dia (“mais ressurgiu depois ao tercer dia”).
• Recurso à ironia para satirizar o poder que Roi Queimado parece ter – morrer e depois viver: “mais ressurgiu depois
ao tercer dia” (alusão à ressurreição de Jesus Cristo). Aliás, na última estrofe, remate da cantiga (finda), o próprio
sujeito poético revela o desejo de também ele possuir esse poder.
• Por fim, podemos ainda considerar que os dotes poéticos de Roi Queimado são igualmente alvo de crítica, já que se
diz dele “por se meter por mais trobador” e “porque cuida que faz i maestria”.
• Esta cantiga demonstra o artificialismo dos trovadores e das convenções poéticas do amor cortês.
• Voz masculina que manifesta a sua posição crítica perante o comportamento ridículo de um poeta específico (Roi
Queimado) e perante uma convenção – a morte por amor.
• Efeito cómico, obtido através das antíteses – “morrer” / “viver” (v. 12), “morrer” / “viver” (v. 23) e da ironia.
(1) Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa (introdução, edição crítica e fac-símile por
Giuseppe Tavani), Colibri, 2002
in Escola Virtual