Tese Margareth Santos
Tese Margareth Santos
Tese Margareth Santos
São Paulo
2005
1
São Paulo
2005
2
Agradecimentos
Agradeço a
Valeria, por compartilhar amizade e conhecimento nesses onze anos.
Concha por sempre acompanhar minha trajetória com generosidade e comentários
agudos.
Mario por abrir-me o mundo dos estudos acadêmicos na iniciação científica e por
estar sempre presente com interesse e entusiasmo em todas as ações de seus
estudantes e orientandos.
Gênese pelos comentários, leituras e amizade imprescindíveis.
Seve, pela tutoria, apoio e carinho incalculáveis durante minha estada na Espanha.
Ivan, ¡compañero! de todos os momentos, difíceis e alegres.
Vima e Bia, por atenderem com tanta paciência aos meus inúmeros telefonemas.
Neide, Ângela, Rita e Sueli, amigas de agora e sempre.
Saulo, pela capa e pela amizade constante.
Dona Marta, tão querida!
Lu, Letícia e Luciano, por estarem sempre próximos.
CAPES, por proporcionar-me a bolsa PDEE (Programa de Doutorado no Brasil com
Estágio no Exterior), que possibilitou, entre outras coisas, uma ampla pesquisa da
fortuna crítica dos romances estudados, imprescindível para este trabalho.
4
Resumo
Abstract
The proposed study aims at analyzing the novels Nothing (1945), written by Carmen
Laforet, and Time of Silence (1962), by Luis Martín-Santos, in order to examine both
works construction singularity; that is to say, the appropriation of the engravings series
of Goya’s The Caprices and The disasters of the war. In Nada, we deal with the
integration from the monstrous aspect to the novelistic space, the suppression of the
frontier between the oneiric and the real worlds, the fragmented representation and the
dilution of the limits between the subject matter narrated and the time of narration. In
Time of Silence, we analyze the procedures of space reduction, the use of field work, of
animalization and expansive images characterized by the representation appropriation,
procedures and themes provided by the Goyan universe. Taking the analysis of these
elements into consideration, we observe that the authors, through the pictures
incorporation within the composition of these two novels, create an amplified dimension
of the horror of war, and at the same time, they suggest an interpretation of
contemporary history as a continuity movement of the “Spanish disaster” since 19th
Century up to the Spanish civil post-war.
Key-words: Nothing; Carmen Laforet; Time of Silence; Luis Martín-Santos; Goya and
the Spanish civil post-war novel.
6
Resumen
El trabajo se propone a analizar las novelas Nada (1945), de Carmen Laforet y Tiempo
de Silencio (1962), de Luis Martín-Santos para examinar el rasgo singular de la
elaboración de ambas obras, es decir, la apropiación de las series de grabados Los
Caprichos y Los Desastres de la Guerra de Goya. En Nada, abordamos la integración
del aspecto monstruoso al espacio romanesco, la extinción de los límites entre el mundo
onírico y el real, la representación fragmentaria y la dilución de los límites entre el
pasado de la materia narrada y el tiempo de la narración. En Tiempo de Silencio,
analizamos los procedimientos de reducción del espacio, el uso del extracampo, de la
animalización y de imágenes expansivas, caracterizados por la apropiación de
representaciones, procedimientos y temas provenientes del universo goyesco. A partir
del análisis de esos elementos, observamos que, al incorporar los grabados en la
composición de esas novelas, los autores crean una dimensión ampliada del horror de la
guerra y, a la vez, sugieren una interpretación de la historia contemporánea como un
movimiento de continuidad del “desastre español”, desde el siglo XIX hasta la
posguerra civil española.
Relação de imagens
Sumário
Relação de Imagens......................................................................................... 7
1
Goya elaborou sua obra gravada ao longo de cinqüenta e três anos. Suas primeiras gravuras foram
realizadas em 1773, com uma série de cópias de alguns quadros de Velázquez. Na década de 1790,
também chamada de “Década dos Caprichos”, o gravador passa um período no palácio de verão da
Duquesa de Alba, ali produz numerosos desenhos nos denominados Álbum A e Álbum B, dos quais
surgiram as oitenta e três estampas da série Los Caprichos, publicada em 1799. Durante o período da
Guerra de Independência contra os franceses —1808-1814 —, Goya permanece a maior parte do tempo
em Madri, onde realiza a série de Los Desastres de la Guerra, possivelmente entre os anos de 1810 a
1815. Essa obra, composta por oitenta e cinco gravuras, não foi publicada em vida.
Em 1815, empreende uma nova série de estampas, intitulada La Tauromaquia, composta por trinta e
cinco gravuras. Admirador das touradas, dedicou-se a contar a história desse espetáculo e as façanhas de
toureiros ilustres. Suas últimas séries de estampas, Los Proverbios e Los Disparates, também são datada
dessa época. Assim como Los Desastres, não foram publicadas. Consideradas de difícil interpretação,
nelas se encontram imagens que aludem, de maneira obscura, a críticas sociais e/ou políticas.
Em junho de 1824, parte para a França, a fim de cuidar de sua saúde na estância mineral de Plombières.
Finalmente, se estabelece em Bordeaux e ali, realiza algumas obras de litografia, técnica nova na época.
Em 1826 e 1827, visita Madri e no ano seguinte, morre, aos oitenta e dois anos, cercado por sua nora e
seu neto Mariano.
11
gosto pelo monstruoso. Buscamos observar que essas técnicas e temas encontram-se nas
gravuras e nos procedimentos mobilizados para construir o romance.
Na última parte do trabalho, “Palavras finais: o olhar pela fresta”, discorremos,
brevemente, sobre os pontos de interseção entre os romances e as gravuras goyescas,
bem como sobre a abordagem inovadora que essas obras literárias propõem para
interpretar o contexto histórico em que se inserem.
13
essencialmente, pelo uso do produto final e por sua funcionalidade. O valor estava na
tehknê, palavra que denominava qualquer atividade manual então realizada.
Os compêndios da época classificavam as artes em dois grandes grupos, o das
artes “liberais” — caracterizadas fundamentalmente pelo esforço mental, não se
destinavam à aquisição de dinheiro2 — e o das “vulgares”, relacionadas ao vigor físico e
que, por essa razão, recebiam menos respeito e estima. A pintura incluía-se no conjunto
das artes manuais (artes mechanicae). Já a poesia não fazia parte de tal grupo, pois era
considerada uma arte que provinha dos deuses e, por seu caráter sagrado, mantinha-se à
parte de qualquer tipo de classificação.
2
Para maiores informações quanto à discussão sobre artes liberais e mecânicas, ver GALI, Neus. Poesía
silenciosa, pintura que habla. Barcelona: El Acantilado, 1999.
3
DA VINCI, Leonardo. Tratado de la Pintura. Madrid: Aguilar, 1964, p. 57.
15
4
HORACIO. “Epístola a los Pisones”. In: Artes Poéticas. Madrid: Cátedra, 1987, p. 361.
16
5
HORACIO. “Epístola a los Pisones”. In: Artes Poéticas. Madrid: Cátedra, 1987, p. 129.
6
DA VINCI, Leonardo. Tratado de la Pintura. Madrid: Aguilar, 1964, p. 51.
17
7
ALBERTI, Leon Battista. De la Pintura. Madrid: Cátedra, 1996, p. 18.
8
GASSIER, Pierre. Goya: life and work. Köln: Benedikt Taschen Verlag GmbH, 1994, p. 728.
18
9
Durante sua juventude, Goya morou na Itália, onde se educou e formou-se como pintor. Ali, pôde
conhecer e estudar inúmeras obras sobre as artes plásticas, entre elas, o livro de Alberti.
19
10
GOYA Y LUCIENTES, Francisco de. Diario de Madrid, 1799, p. 1.
11
ALBERTI, Leon Battista. De la Pintura. Madrid: Cátedra, 1996, p. 23
20
Em meados do século XVIII, Lessing, com seu livro Laocoonte, deu um duro
golpe na suposta união interartística ao opor a pintura como arte espacial e à literatura,
como temporal. Ao deslocar a discussão sobre o “modo” de representação para ocupar-
se de seu “meio” de representar a realidade, Lessing inaugurou uma nova forma de
discussão sobre a relação interartes:
12
STEINER, Wendy. “La analogía entre pintura y literatura”. In: Literatura y Pintura. Madrid: Arco
Libros, 2000, p. 43.
13
Ibid, p. 46.
14
LESSING, Epharaim Gotthold. Laocoonte. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 193.
21
15
CLÜVER, Claus. Quotation, Enargeia and the Functions of Ekphrasis. Texto não-publicado.
22
Então, talvez possamos dizer, com o devido cuidado, que, muitas vezes, uma
gravura nos “conta” algo, ou muitas coisas, e que a literatura pode, sim, delinear
imagens. Assim, tentaremos mostrar que o exercício literário, pleno de visualidade,
pode assumir uma função complementar: a evocação. Os elementos para a construção
literária se organizam de tal forma que permitem evocar pinturas, gravuras e recriar em
suas linhas uma interpretação pictórica que se incorpora à narração, o que exige não só a
percepção de seu conteúdo, mas também de seu propósito estético e dos recursos
utilizados para concretizá-lo.
Com base na ekphrasis, em seu conceito moderno, consideramos que artes
plásticas e literatura não são “artes irmãs”, mas apresentam pontos de interseção,
possibilitando visualizar e interpretar como as gravuras goyescas, nos dois romances
estudados, são elementos de recriação literária de uma visão de mundo que vai além da
mímese.
A partir dessas considerações, faz-se necessário discutir, brevemente, a noção
de ekphrasis que utilizaremos neste trabalho. A concepção de ekphrasis tal como a
usamos hoje, em sua origem designava a descrição e em sua realização estava implícito
o conceito aristotélico de enargeia, ou seja, a capacidade de expressar-se com tal
vivacidade que se poderia pôr, diante do leitor, uma imagem literal do objeto ou
situação descrita.
16
HAGSTRUM, Jean. The sister arts. Chicago: University of Chicago Press, 1958, p. 23 (Tradução
minha).
23
17
CLÜVER, Claus. Quotation, Enargeia and the Functions of Ekphrasis. p. 12, Texto não-publicado.
18
RIFFATERRE, Michael. “La ilusión de écfrasis”. In: Pintura y literatura. Madrid, Arcos Libros, 2000, p.
159.
19
Ibid, p.160.
20
Ibid, p.161.
24
21
Vale a pena ressaltar que temos consciência de que no âmbito dessa discussão da reprodutibilidade
técnica, há também a crítica à arte que deixa de ser criação para ser reprodução em massa.
25
utilizó por parte del poder para propagar ideas, tanto fueran del
poder político, como del religioso, o incluso para oponerse a estos
poderes establecidos.22
22
CARRETE PARRONDO, Juan. “Aproximación a los Caprichos de Goya”. In: Los Caprichos: cinco
estudios. Madrid: Biblioteca Nacional, 1996, p. 9.
26
Fatales consecuencias
de la sangrienta guerra en España con Buenaparte
Y otros Caprichos enfáticos
En 85 estampas
Inventadas, dibuxadas y grabadas
27
gravadas nas estampas as legendas. A gravação destas seguiu o exemplar de Ceán, que
nesta época pertencia ao acadêmico Valentín Carderera.23
À medida que eram descobertas algumas gravuras que não haviam aparecido
na primeira edição, estas foram reincorporadas à série. As pranchas de cobre de “Fiero
Monstruo” (que analisaremos no capítulo referente ao romance Tiempo de Silencio) e
“Esto es lo Verdadero” foram adquiridas na França pelo artista Lefort, por volta de
1877, e ele, mais tarde, doou os cobres à Academia, mas estes desapareceram
novamente. Novas reproduções destas só surgiram em 1922, no catálogo editado na
França por Loys Delteil. Depois disso, ambas passaram a ser incluídas em todas as
edições dos Desastres com os números 81 e 82, respectivamente.
As outras três pranchas: “Tan bárbara la seguridad como el delito”, “La
seguridad de un reo no exige tormento” e “Si es delinquente que muera presto”,
conhecidas apenas pelo exemplar de Ceán Bermúdez e por três provas de estado,
supostamente tiradas por Goya e adquiridas pelo Boston Museum of Fine Arts ao longo
do século XX, nunca mais foram encontradas.24 Nenhuma delas foi até hoje incluída em
edições completas dos Desastres, sob a alegação de que tinham um formato muito
distinto das outras pranchas. No entanto, a presença destas no exemplar de Ceán supõe
a intenção de Goya de publicá-las como parte da série.
Uma prova de estado do que seria a 86ª lâmina, “Infame provecho”, que não
integrava o exemplar de Ceán, foi descoberta em 1927 por Campbell Dodgson, na
coleção particular do historiador de arte britânico Stirling-Maxwell. A técnica e o tema
estão muito próximos das outras gravuras da série e, por isso, alguns críticos a incluíram
como a 83ª lâmina, desde 1927.
Diante de todas as divergências que o problema da ordenação ainda causa,
torna-se necessário, para este trabalho, a escolha de uma ordem. Embora nenhuma
ordenação tenha se imposto como a “correta” até agora, e a de Ceán Bermúdez tenha
sido até então a mais consagrada, optamos, neste trabalho, por seguir a ordem
estabelecida originalmente por Goya, já que acreditamos que seja a que melhor
23
LAFUENTE FERRARI, Enrique. Desastres de la Guerra y dibujos preparatorios. Barcelona: Central
Hispano, 1982, p. 83.
24
Essas informações se encontram no levantamento feito por LAFUENTE FERRARI, Enrique. Desastres
de la Guerra y dibujos preparatorios. Barcelona: Central Hispano, 1982.
29
25
Seguiremos a 2ª ordem estabelecida por Claudette Derozier, que ordenou o encadeamento dos
Desastres sob seis itens: 1. Mortos e feridos; 2. fome; 3. fuga e êxodo; 4. violações; 5. execuções e
condenações e 6. guerrilha. Vide apêndice ao final do trabalho.
26
ANDERÁOS, Ricardo. A Guerra Desnuda. 1994. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 117.
30
27
ANDERÁOS, Ricardo. A Guerra Desnuda. 1994. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 53.
32
além dos tons brancos e negros, para chegar a “semitons”. Assim, suas estampas
passavam do negro intenso a um cinza suave.28
Para os Desastres, Goya preferiu a aguada, uma técnica também nova para a
época, que na série se constitui como um recurso de emergência, pois naquele momento
as condições de trabalho eram precárias e havia dificuldades para conseguir material de
qualidade, uma prova disso é que sabemos que Goya não dispunha de pranchas de cobre
suficientes para gravar o número de estampas desejado. Então, aproveitou as pranchas
que tinha, algumas inclusive já gravadas, e as partiu ao meio. Tinha 41 e as converteu
em 82, nas quais expressou cenas de grande intensidade e concentração espacial.29
Discutiremos mais detalhadamente essas técnicas e sua utilização nas estampas ao
realizar a análise dos romances.
Finalmente, o artista utilizou-se de duas técnicas auxiliares para corrigir ou
acrescentar novos traços à chapa: o buril e a ponta-seca. O buril consiste em um corte
através de um instrumento de aço fixo, em forma de V, pelo qual a chapa deve
movimentar-se. O resultado é um traço de aparência fria, uniforme, de margens
regulares, com quantidade de tinta idêntica em toda a extensão e traços de mesma
espessura. Os cortes de ponta-seca são realizados manualmente por uma agulha fina.
Produz rebarbas e o movimento determinará se estas ficam do lado direito ou esquerdo
28
Vale a pena ressaltar que a passagem por esses tons está em perfeita consonância com o jogo de luzes e
sombras que o romance de Carmen Laforet apresenta.
29
É interessante pensar que Goya, para criar sua série dos Desastres, “multiplicou” suas pranchas para
conseguir o efeito desejado. Esta intenção “multiplicadora” está claramente expressa nas páginas do
romance de Martín-Santos.
33
do corte, ou dos dois lados. Os riscos, de modo geral, são superficiais e finos, não
penetram profundamente no metal como no buril.
Ao utilizar de forma predominante ou complementar tantas técnicas diferentes,
o pintor conseguiu surpreendentes jogos de claro-escuro, fundamentais para acentuar o
aspecto dramático das estampas. Um exemplo clássico e famoso desse jogo de claro-
escuro, capaz de acentuar a dramaticidade da cena, pode-se verificar no Capricho “El
sueño de la razón produce monstruos” (figura 03). Nele, vemos um homem,
provavelmente um artista, que adormece apoiado sobre uma mesa com várias folhas
escritas. Em primeiro plano, na lateral da mesa, lemos a frase que dá título à estampa.
Figura 03: Francisco de Goya y Lucientes, “El sueño de la razón produce monstruos”,
Caprichos, n. º 43, 1799, Água-forte e água-tinta, 21.8 x 15.2. Biblioteca Nacional,
Madri.
enorme, que lhe oferece uma pena, sugerindo que este escreva algo. À direita, no canto
inferior, vemos um animal, misto de gato e leopardo que, por seu tamanho
desproporcional, acentua o caráter fantástico da imagem.
A luminosidade da cena está repleta de jogos de claro-escuro entre o primeiro e
o segundo planos e entre o plano superior e inferior, que aumentam o vigor da
representação do pesadelo. A conjunção de elementos reais e extraordinários transforma
o sonho em algo insuportavelmente próximo e, ao mesmo tempo, deslocado. É o que
Baudelaire chamou de “monstruoso verossímil”:
30
BAUDELAIRE, Charles. “Sobre los Caprichos de Goya”. In: Sobre estética. Cátedra, 1976, pp. 23-24.
35
31
Todos os aspectos levantados sobre as relações entre os romances e as gravuras goyescas serão
detalhadamente discutidos no segundo e terceiro capítulos da tese.
32
BOZAL, Valeriano. Goya y el gusto moderno. Madrid: Alianza, 1994, p. 133.
36
O extremo grau de aproximação da cena criado por Goya rompe com a tradição
do tratamento panorâmico da imagem representado pela maioria dos artistas da época.
Um exemplo desse tratamento inovador vê-se quando comparamos a série Desastres
com a obra que inspirou seu título: Les Misères et Malheurs de la Guerre, conjunto de
18 pranchas de Jacques Callot, elaborada em 1633, e que representou a invasão de
Lorena pelas tropas de Luís XIII.
Na gravura que compõe a série de Callot (figura 04), o que se vê é a execução
de um homem amarrado a um tronco e, sob o olhar dos soldados e curiosos, os soldados
preparam-se para executá-lo. Callot, embora retrate as atrocidades da guerra, mantém o
distanciamento da cena. Já na estampa goyesca “No hay remedio” (figura 05),
dimensiona-se também uma cena de execução, mas de maneira totalmente diferente.
Nela, o pintor aragonês aproxima a visão e afasta qualquer componente anedótico. As
linhas que proliferam na composição atraem e sugam o olhar do espectador, e a
economia de meios confere uma maior carga emocional à cena.
Figura 04: Jacques Callot, “L'Arquebusade”, Les Misères et Malheurs de la Guerre, n.º
12, 1633, 135 x 128 mm. In : FOCILLON, Henri. De Callot à Lautrec. Paris:
Bibliothèque des arts, 1957.
Figura 05: Francisco de Goya y Lucientes, “No hay remedio”, Desastres de la Guerra,
n. º 22. 1810-1814, Água-forte, ponta-seca, buril y brunidor, 142 x 168 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.
33
ANDERÁOS, Ricardo. A Guerra Desnuda. 1994. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 118.
38
34
ALBERTI, Rafael. Noche de Guerra en el Museo del Prado. Buenos Aires: Losango, 1956, p. 5.
39
35
ALBERTI, Rafael. Noche de Guerra en el Museo del Prado. Buenos Aires: Losango, 1956, pp. 10-11.
36
HOUAISS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
40
37
RUIZ RAMON, Francisco. Historia del teatro español. Siglo XX. Madrid: Cátedra, 1995, p. 217.
38
GLENDINNING, Nigel. Goya y sus críticos. Madrid: Gredos, p. 197.
39
ANDERÁOS, Ricardo. A Guerra Desnuda. 1994. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 250.
40
HIFFINGTON, Arianna Stassinpoulos. Picasso: criador e destruidor. São Paulo: Best Seller, 1988, p.
198.
41
Goya; já no painel, as relações são mais veladas, mas apresentam elementos que
coincidem com a gravura “Estragos de la Guerra” (figura 09).
Figura 08: Pablo Picasso, Guernica, 1937. 350 x Figura 09: Francisco de Goya y
782 cm, Museo Reina Sofia, Madri. Lucientes, “Estragos de la guerra”,
Desastres de la Guerra, n. º 21,
1810-1814, Água-forte e aguada
com grãos de resina, 128 x 156 mm.
Biblioteca Nacional, Madri.
41
HIFFINGTON, Arianna Stassinpoulos. Picasso: criador e destruidor. São Paulo: Best Seller, 1988, p.
199.
43
Na gravura, uma mulher seminua, com uma criança morta em seus braços,
aparece logo abaixo do centro; à esquerda do quadro, uma mulher, chorando, com os
seios à mostra, traz em seus braços uma criança morta com a cabeça caída, exatamente
como no quadro. Uma perna de mulher aparece no canto inferior direito, formando um
cruzamento com um dos lados do triângulo central. Tanto em Picasso como em Goya, o
vértice inferior esquerdo desse triângulo é marcado pelo rosto de um homem morto que
tem um braço esticado em direção ao canto inferior esquerdo da mulher. Em “Estragos
de la Guerra”, outra mulher, que aparece caindo, domina o centro da gravura. Vemos
esta mesma imagem à direita do quadro de Picasso. Na estampa, ela está de ponta-
cabeça e, no painel, está voltada para cima; no entanto, ambas têm os braços abertos e
as mãos espalmadas.
Picasso, como muitos artistas, travou um intenso diálogo com as obras do
pintor aragonês durante o século XX. Nesse diálogo, merece destaque o impacto
avassalador das imagens dos Desastres e dos Caprichos sobre artistas como Manet,
Delacroix, Cézanne, Otto Dix e Hemingway. Além do poder das imagens e do seu
aspecto inovador e incisivo, muitos artistas, engajados na defesa da República durante a
Guerra Civil Espanhola, identificaram-se com a forma como Goya representou a guerra
de Independência e as mazelas do cotidiano de sua época.
Nesse contexto de apropriação da imagem goyesca e de suas relações com a
Guerra Civil Espanhola, tentaremos mostrar que tanto Nada como Tiempo de Silencio
transcendem o ambiente sóciopolítico para transformá-lo em experiência pessoal e
estética, que capta a visão, as formas e os temas de Goya, especialmente dos Caprichos
e dos Desastres, e, com isso, convertem a trajetória dos personagens dos romances
estudados em um exercício estético. Nos romances, escritura e artes plásticas confluem
para um diálogo intertextual, em que se revelam instantâneos que ampliam os
horizontes da ficção e imprimem no texto narrativo matizes cromáticos, texturas e
relevos, recriando e re-significando as gravuras nos romances.
Ao explorar essa interseção entre as gravuras e os romances, viabilizada pela
ekphrasis, em sua capacidade de evocar imagens no escrito, pretendemos explicitar a
presença das estampas goyescas nos romances estudados. Veremos como os
personagens, habitantes de uma Madri desolada pela guerra, perdidos no anonimato da
cidade grande, adquirem contornos fantasmagóricos e alucinatórios. Observaremos
44
alguns desses aspectos em diferentes situações, seja nas ruas de um subúrbio barcelonês
de Nada, em que bêbados brigam, seja nos cadáveres que são enterrados empilhados
nos arredores da Madri de Tiempo de Silencio.
O olhar analítico que cruza texto e imagem permite perceber que, em meio ao
câncer do anonimato de Tiempo de Silencio e no aspecto fantasmagórico de Nada,
ocorre um movimento dialético entre tristes histórias particulares e o desastre coletivo.
Em muitos desses momentos, o câncer da cidade transforma a todos em um ponto a ser
analisado pelo olhar microscópico do leitor e, assim como cada estampa tem sua própria
individualidade e seu conjunto uma lógica interna, saberemos, por fim, que, no pós-
guerra, os humanos são desumanos e anônimos como todos nós.
45
especificamente na proximidade que se dá entre ela e Ena, uma estudante rica com
quem conhece o lado abastado de Barcelona.
À medida que a narrativa avança, os dois mundos convergem para uma relação
ambígua, que unirá o passado e o presente das famílias de Andrea e de Ena, o que
acarretará em um dos episódios mais tensos do romance: o suicídio de Román, tio da
protagonista.
A narrativa termina com Andrea mudando-se para Madri, a convite de sua
amiga Ena. Passado algum tempo, que não sabemos ao certo quanto, Andrea resolve
escrever o relato desse ano que passara em Barcelona. Através dessa história, repleta de
momentos dramáticos e do uso profuso de sinestesias, conhecemos a vida não apenas de
seus familiares, mas de toda uma época de frustrações, pobreza e tristezas, na qual se
configura o “nada” expresso pelo título.
Emblemático por seu laconismo, o título da obra aponta para a paisagem
desoladora da Espanha dos anos 1940, do imediato pós-guerra, marcada por perdas
humanas, fome e desespero. A Barcelona que vemos pelos olhos da protagonista vive
uma difícil realidade social, econômica e política, assim como todo o país, que se
encontrava sob a ditadura franquista.
Com esse romance, Carmen Laforet inova o cenário literário daqueles anos,
pois, sem a intenção de abarcar eventos históricos em grande dimensão —
procedimento muito freqüente nos romances anteriores à guerra civil —, é capaz de
expor o período do pós-guerra por meio da visão cotidiana dos que foram afetados pelo
conflito. As situações e os personagens são compostos de maneira fragmentária, pelo
olhar da protagonista, que revela ao leitor histórias obscuras, tristes e muitas vezes
reticentes desse período histórico, como bem observou o escritor Miguel Delibes:
42
DELIBES, Miguel. “En torno a Nada”. In: Cuadernos del Idioma, Año I, nº. 4, Buenos Aires: Ed.
Códex, 1966, p. 52.
43
“Tras las obras naturalistas o evasivas de los años cuarenta, el realismo domina hoy en todos los
géneros literarios”. In GOYTISOLO, Juan. “Examen de conciencia”. In: El furgón de cola. Barcelona:
Seix-Barral, 1982, p. 246.
44
DE MARCO, Valeria. “Nada: el espacio transparente y opaco a la vez”. In: Revista Hispánica
Moderna, New York: Hispanic Institute Columbia University, 1996, pp. 43 e 60.
48
poema homônimo de Juan Ramón Jíménez. Ao utilizar tal fragmento, a autora manifesta
a relevância da percepção sensorial no romance:
NADA
(fragmento)
A veces un gusto amargo,
Un olor malo, una rara
Luz, un tono desacorde,
Un contacto que desgana,
Como realidades fijas
Nuestros sentidos alcanzan
Y nos parece que son
La verdad no sospechada.
O que leva Andrea a buscar na Igreja o contato com uma beleza estética que a
acalme não é um sentimento religioso, mas sim esta sede pela arte que o romance
alimenta e da qual a narradora extrai elementos fundamentais para sua elaboração.
Nesse movimento, destacam-se as imagens que evocam o imaginário goyesco.
Para que compreendamos esse olhar e visualizemos as imagens evocadas por
Andrea, faz-se necessário descrever a estrutura do romance e como ele é visto pela
crítica literária. Muitos estudiosos vêem em Nada apenas uma composição linear, tanto
na seqüência do enredo como na maneira de narrá-lo. Há, realmente, uma linearidade no
relato. No entanto, este se desenvolve através de inflexões, o que gera uma tensão entre
o tempo dos fatos e o tempo da narração. Talvez por isso Delibes pôde ver, atrás de sua
linearidade, um conjunto de elementos que torna a representação no romance
fragmentada.
Vários dados nos levam a pensar nessa configuração fragmentária. Por
exemplo, a constatação de que a narrativa está repleta de extensas descrições e, no
entanto, é difícil formar um retrato integral de seus personagens e dos espaços pelos
quais transitam. Sabemos que os parentes de Andrea são morenos, altos e atormentados;
que seu tio Román tem bigode e mãos ágeis; Juan tem o rosto cheio de concavidades,
como uma caveira; a avó de olhos azuis é pequena e frágil; Gloria é ruiva, branca e
magra. E o quê mais? Seria possível, com esses elementos, formar uma imagem integral
dos habitantes da casa?
Tampouco é fácil montar um mapa da disposição dos cômodos da casa da rua
de Aribau. Temos idéia de como eles são isoladamente, mas a noção espacial da casa
45
LAFORET, Carmen. Nada. Barcelona: Ediciones Destino, 2001, pp. 108-109. Todas as citações a
seguir são retiradas desta edição e indicamos junto à citação o número da página correspondente.
50
por inteiro é imprecisa, o que aponta para as difíceis relações humanas entre seus
habitantes e também nos intriga pela impossibilidade de apreensão deste espaço
fundamental do romance.
Acreditamos que esse caráter fragmentário da representação dos personagens e
do espaço romanesco tenha suas raízes na forma que a narradora-protagonista escolheu
para contar seu passado, que sequer sabemos se é distante ou próximo. Sua opção reside
na maneira como observa o cotidiano ordinário, seu olhar configura seu dia-a-dia por
meio de um recurso análogo a um procedimento próprio da gravura: o jogo de luzes.
Para compor imagens que conformem sua história, algumas vezes ilumina parcialmente
fatos do passado e em outras, os do presente. Nesse movimento de vaivém entre passado
e presente, a narrativa integra a escuridão à luz e gera efeitos estéticos na atmosfera
respirada por seus personagens:
Aquel cuarto era duro como el cuerpo de Angustias, pero más limpio
y más independiente que ninguno en la casa. Me repelía
instintivamente y a la vez atraía a mi deseo de comodidad (p. 78)
(Sublinhado nosso).
46
“Fue la década del estraperlo, origen de sórdidas ganancias y rápidas fortunas. Surgieron así dos
nuevas clases sociales: los que no carecían de nada y los que se tenían que limitar a una frugal e
inalterable dieta de legumbres y hortalizas”. In: DE LAFUENTE, Inmaculada. Mujeres de la posguerra.
Barcelona: Planeta, 2002, p. 37.
53
Marcada pela hora das bruxas e pela sensação de aventura excitante, sua
primeira viagem solitária tem no encantamento sua marca inicial. Rapidamente, a visão
e o olfato impregnam seu corpo. Assim, conhecemos uma das primeiras referências
sinestésicas do romance: o cheiro que, em um primeiro momento, é especial, dividido
entre o barulho das pessoas e uma luz “sempre” triste:
47
DE MARCO, Valeria. “Nada: el espacio transparente y opaco a la vez”. In: Revista Hispánica
Moderna, New York: Hispanic Institute Columbia University, 1996, p. 47.
48
JOHNSON, Roberta. Carmen Laforet. Boston: Wayne, 1981, p. 63.
55
No entanto, onde ele vê uma narrativa formada por uma série de contos, nós
adicionaríamos a idéia de um romance construído por uma série de estampas, imagens
constituídas por meio da ekphrasis, disseminadas ao longo de sua estrutura e elaboradas
através de elementos sinestésicos.
Conjugada a essa estrutura que privilegia o uso de imagens e sinestesias,
observamos o uso da fragmentação como um importante recurso de associação entre a
49
JIMENEZ, Juan Ramón. “A Carmen Laforet”. In: Cartas (1ª selección). Madrid: Aguilar, 1962, p.
396.
56
narrativa e as gravuras goyescas, pois, embora a obra constitua uma estrutura fechada,
ou seja, não nos possibilita fragmentá-la de maneira aleatória durante o processo de
leitura, como é possível com a série de gravuras, o romance também se configura como
um conjunto de partes, sobretudo pela autonomia das imagens nele criadas. Um indício
desse processo é o fato de Juan Ramón entendê-lo como uma reunião de contos.
Nesse sentido, esse aspecto fragmentário da narrativa remete-nos,
constantemente, à sensação de incompletude, seja através de suas descrições
fragmentárias ou de fatos que permanecem na penumbra. Ao incorporar as gravuras e
expor essa estrutura marcada pela fragmentação e pelo jogo de claro-escuro constituído
pelo vaivém entre o presente e o passado, acreditamos que, embora não possamos ler o
romance e ordenar suas imagens aleatoriamente, quando chegamos ao final da narrativa
podemos isolar episódios e imagens que conformam esse “conjunto de contos” visto por
Juan Ramón, ou a série de “estampas” que vemos.
Um exemplo dessas imagens marcantes que se configuram ao longo da
narrativa se encontra no momento em que Andrea, ao chegar à casa da rua de Aribau, se
vê frente a seu futuro espaço privado. Desse encontro impactante decorre a constante
polarização em que se assenta a primeira parte do romance: o choque entre as luzes da
cidade e o aspecto fantasmagórico e decepcionante de seus parentes, que em nada se
parecem às lembranças que havia guardado dos dias passados ali em sua infância:
(...) cuando de una de las puertas del recibidor salió en pijama un tipo
descarnado y alto que se hizo cargo de la situación. Era uno de mis
tíos, Juan. Tenía la cara llena de concavidades, como una calavera a
la luz de la única bombilla de la lámpara (...).
Detrás de tío Juan había aparecido otra mujer flaca y joven con los
cabellos revueltos, rojizos, sobre la aguda cara blanca y una
languidez de sábanas colgada, que aumentaba la penosa sensación
del conjunto.
Yo estaba aún, sintiendo la cabeza de la abuela sobre mi hombro,
apretada por su abrazo y todas aquellas figuras me parecían
igualmente alargadas y sombrías. Alargadas, quietas y tristes, como
luces de un velatorio de pueblo (...) Casi sentí erizarse mi piel al
vislumbrar a una de ellas, vestida con un traje negro que tenía trazas
58
Figura 10: Francisco de Goya y Lucientes, “No te escaparás”, Caprichos, nº. 72, 1799,
Água-forte e aguada brunida, 217 x 152 mm. Biblioteca Nacional, Madri.
A moça da estampa parece querer voar, mas não sabemos se para escapar ou
para começar o vôo de uma possível iniciação ao mundo das bruxas. Ela olha com o
canto dos olhos; as figuras que a cercam lhe sorriem e a envolvem.
59
mas sim a ameaça de seres monstruosos que a cercam. Como se estivesse inserida nesse
mundo às avessas, Andrea vê invertida a noção de proteção e de estranhamento. Na rua,
sente-se feliz e excitada e, na casa, vê-se amedrontada por seres excêntricos.
Esse movimento, que começa no princípio da narrativa, gera uma ostensiva
polaridade entre o público e o privado, entre a casa em que vive e as ruas de Barcelona,
e mais tarde entre os amigos da universidade e seus parentes. Nos dois mundos, tanto no
negro como no luminoso, as gravuras goyescas estão presentes como elementos que
destacam o jogo de luzes entre os ambientes, acentuando, em um primeiro momento,
essa polaridade.
A visão do espaço privado gera um confronto desconcertante: a realidade vista
foge à regra, pois se mostra arredia e fantasmagórica, impossibilitando uma sensação
confortável. Dessa forma, choca-se com o público, carregado de excitação. Em meio ao
turbilhão desatado pelo confronto desses dois espaços, talvez a única personagem que
escape seja sua avó, que lhe abre a porta:
50
MARTIN GAITE, Carmen. Usos amorosos de la postguerra española. Barcelona: Editorial Anagrama,
1987, p. 10.
62
Figura 11: Francisco de Goya y Lucientes, “Duendecitos”, Caprichos, nº. 49, 1799,
Água-forte e aguada brunida, 217 x 152 mm. Biblioteca Nacional, Madri.
adequada, por causa do movimento violento da mão imensa. Junto à mão monstruosa,
vemos sua boca enorme e desdentada, retorcida pelo riso ou pelo grito.
A luz vem de uma janela com grades e, no plano superior, a luminosidade
difusa destaca a mão ganchuda e a cara grotesca, enquanto, no plano inferior, recai
sobre as roupas claras dos outros seres.
É interessante destacar que, no mundo noturno, os duendes são considerados
seres do submundo da bruxaria. Como “auxiliares” de demônios e bruxas, sua
especialidade é brincar com a imaginação dos seres do mundo “real”. A eles cabe
enganar a imaginação e os olhos humanos, jogar com os sentidos dos homens,
provocando-lhes sustos.
A gravura assemelha-se muito à descrição do banheiro, pois o que a
protagonista vê é a imagem de uma casa de bruxas, na qual mãos ganchudas marcam as
paredes. O adjetivo “macabro” dá o tom da visão e, acompanhando o movimento das
mãos, está o grito de desespero. O jogo de claro-escuro que o olhar de Andrea projeta
no banheiro engendra as figuras monstruosas. Tudo está impregnado pela umidade; a
cor das paredes é escura e recupera o tom ocre da gravura goyesca, criando uma
coincidência entre as imagens.
O movimento da mão ganchuda também é capturado pela descrição do
banheiro; sua marca nas paredes está unida ao movimento da boca desdentada e aberta,
como se deixasse ecoar, no ar estancado, gritos de desesperança. A configuração de
seres monstruosos invade o cômodo e o caracteriza como um mundo de bruxas,
reforçando a idéia de “filiação”, destacada no encontro de Andrea e seus familiares e na
evocação da estampa “No te escaparás”. Dessa forma, a narradora-protagonista, ao
evocar essas imagens goyescas, configura o espaço doméstico, em um primeiro
momento, como uma dimensão demoníaca do pós-guerra.
Vale ressaltar que, na cena do banheiro, há também a menção à imagem
“gravada”, “marcada” na parede, como se alguém tivesse deixado ali um sinal do
submundo noturno da casa. O banheiro não é apenas um espaço sujo e escuro, mas
também uma extensão das figuras excêntricas de seus familiares, um ambiente no qual
as manchas das paredes úmidas “brincam” com os sentidos da protagonista.
O clima de pesadelo inserido em uma realidade assustadora cria imagens que
nos remetem aos “sueños de la razón que producen monstruos”. Nestes, realidade e
64
51
DE MARCO, Valeria. “Nada: el espacio transparente y opaco a la vez”. In: Revista Hispánica
Moderna, New York: Hispanic Institute Columbia University, 1996, p. 53.
67
De barriga vazia, é chamada para falar com sua tia Angustias em seu quarto, que
se mostra como um mundo à parte na aparência, embora totalmente integrado à casa por
sua localização. Nele, Andrea tem sua segunda desilusão, pois, uma vez no quarto de
Angustias, a protagonista descobre que a vigilância de sua prima Isabel, contra a qual
havia lutado e da qual se libertara para estudar em sua cidade sonhada, redobra-se na
figura de Angustias:
52
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 215.
68
Essa dialética, que se divide entre negativo e positivo, expressa-se pelas idéias
que Angustias tem sobre sua casa e seus parentes, sobre a cidade e seu próprio quarto.
Apresentada pela narradora como exemplo clássico da tia solteirona e intransigente,
conhecemos Angustias através de sua primeira conversa com Andrea. O diálogo
resume-se praticamente a seu sermão, no qual a tia critica a família da sobrinha: o pai de
Andrea, provavelmente de idéias republicanas, é tido como de uma família “rara”; e a
Barcelona sonhada pela adolescente é tida como um inferno.
Essa divisão simplista de valores concretiza-se sobretudo em dois momentos: na
visão da guerra e na divisão entre o espaço exterior e o interior. Se anteriormente, na
reconstituição breve da história individual e coletiva feita por Andrea, através da
contemplação do quadro dos avós, a guerra aparecia como um período de ruína para
todos, na mente maniqueísta de Angustias, e em seu discurso católico, a contenda
aparece como algo simplista, da qual os irmãos saíram descentrados, mas felizmente, a
ordem se havia restabelecido.
Embora maniqueísta, é através da perspectiva de Angustias, baseada nas leis de
seu mundo à parte, pautado por ordem e limpeza, que visualizamos a guerra como único
elemento externo a ultrapassar as grades de ferro que separam a casa da rua. Por seu
efeito devastador, o conflito invade a vida de todos e, em seu caminho, deixa seres
descentrados, com os nervos à flor da pele e famintos.53 Sendo assim, a dialética
positivo/negativo revela-se apenas aparente, pois vemos que o quarto de Angustias não
está imune aos efeitos destruidores da guerra e sua virtude não está totalmente protegida
do inferno da cidade, pois a sacada de sua janela e seu telefone a conectam com o
mundo urbano, tocando-a com seu lastro infernal.
Apesar dessa proximidade demoníaca entre o mundo urbano e a devastação que
a guerra provocou em sua família, Angustias tenta manter a todo custo o controle da
casa através de discussões com seu irmão Juan e do confronto mudo que trava com seu
outro irmão, Román, dos quais alega ter recebido em troca apenas a ingratidão:
poco mal de los nervios... Sufrieron mucho los dos, hija mía, y con
ellos sufrió mi corazón... Me lo pagan con ingratitud, pero yo les
perdono y rezo a Dios por ellos (p. 37).
Ainda que seja a primeira vez que se menciona a guerra abertamente, ao longo
da narrativa há numerosas menções a ela, mas, quase sempre, discretas e veladas. Em
um episódio da narrativa, vemos Gerardo, um amigo de Andrea, apontando para
edifícios que foram destruídos pelos bombardeios e comentando que desaparecerão com
a construção de uma nova avenida. Em outro momento, também acompanhada de
Gerardo, Andrea observa as carcaças de navios afundados durante o conflito:
53
É interessante pensar que Goya, quando realiza sua série de Los Desastres, também busca plasmar essa
idéia de que a Guerra de Independência, por seu caráter de guerra de guerrilha, invade o cotidiano de
todos os envolvidos no conflito e os marca definitivamente.
54
DE NORA, Eugenio G. La novela española contemporánea. Madrid: Gredos, 1862. O autor considera
o romance “capaz de una hiriente percusión psíquica, pero desconexión casi completa con el mundo
objetivo en toda su extensión” (p.150); RÓDENAS DE MOYA, Domingo. “Noticia de Carmen Laforet y
Nada”. In: LAFORET, Carmen. Nada. Barcelona: Ediciones Destino, 2001. Nessa edição comentada do
romance, o crítico comenta que não há uma crítica social na narrativa e que mal se menciona a guerra (p.
240).
70
caracterizadas por sua relação com a arte: ele coleciona objetos antigos, relógios,
tinteiros, moedas. Não há espaço para a austeridade e sim para a exibição dos objetos
amealhados ao longo dos anos. Além desses elementos, há a música e a pintura que
Román cultiva como estratégias de sedução.
Nas estratégias de Román de manipulação e conquista, a posição de seu quarto
lhe dá uma dupla vantagem: consegue saber o que ocorre abaixo e, dali, em uma
posição de suposta superioridade, controla a vida dos outros moradores e consegue
manter sua privacidade, já que, para saber qualquer coisa que se passa em seu quarto, os
moradores têm que subir a escada que une os dois andares, como várias vezes o fará
Gloria.
Embora a localização dos outros cômodos não seja precisa a ponto de que
possamos traçar um plano da casa, suas descrições revelam a personalidade dos
moradores e as relações que mantêm entre si.
O quarto de Gloria, além de sujo e desordenado, é visto como um “cubil de
fiera” o que expõe seu lado desastrosamente sedutor e felino. A caracterização do
cômodo representa a animalização de sua imagem e a de seu marido Juan, e manifesta a
contigüidade existente na relação entre ela e o marido, marcada por brigas descarnadas e
violentas, como se fossem animais que estivessem brigando:
Essa luta animal e encarniçada que travam marido e mulher, com um filho
pequeno no meio, tem suas raízes na fome que assola a casa, e aponta para uma das
causas da languidez de Gloria, que, sem ter o que comer, dorme horas a fio, enquanto
deixa seu filho aos cuidados da sogra. Branca como um lençol, magra e alargada são
72
adjetivos utilizados pela narradora para descrever Gloria. Estes indicam o aspecto
sombrio e funesto da casa, e ainda denunciam a fome que todos padeciam ali.
Do cômodo destinado a Juan, além de seu “cubil de fiera”, conhecemos seu
estúdio de pintura, situado no que antes fora o escritório de seu pai. O espaço, outrora
destinado aos negócios, deixara de ser um ambiente de resoluções burocráticas para
transformar-se em um possível espaço de arte. No entanto, a arte que se vê ali se mistura
à desordem perene da casa. Entre os móveis amontoados, transformados em trastes
empoeirados, grita a arte medíocre e estridente do tio de Andréa:
55
que bem poderiam lembrar os quadros do pintor holandês Johannes Vermeer, mestre
em plasmar cenas cotidianas e interiores. No entanto, na construção de suas “estampas”,
a narradora não capta a luz viva, alegre e reconfortante de Vermeer. O que se vê na casa
é um jogo de claro-escuro que se aproxima muito mais do mundo dos Caprichos, pois a
luz que passa pelas janelas, quase sempre fechadas da casa da rua de Aribau, é uma luz
estrangulada pelas frestas, sufocada pelo ar asfixiante que se respira ali:
55
Jan (ou Johannes) Vermeer (1632-1675). O artista holandês apreendia cenas do cotidiano burguês com
uma serenidade impressionante. Primando no jogo de luz e na harmonia das texturas, conseguiu construir
uma intimidade silenciosa e reconfortante.
74
de Gloria que, com sua separação quase infantil entre o bem e o mal, narra aos poucos o
passado de todos.
Em seus relatos, parecem existir duas séries de estampas que se juntam: a
anterior à guerra e a do pós-guerra, e ambas se relacionam e revelam seu lado sombrio e
ameaçador. Não há felicidade completa em nenhuma delas, o horizonte é estreito tanto
em uma como em outra.
A narradora-protagonista cresce e amadurece quando entra em contato com os
elementos que conformam tais histórias que, por sua vez, fazem parte da história
política do país. Ela filtra sua experiência e a transforma através de um olhar singular,
resultante de uma relação pessoal e indireta entre a história e o cotidiano.
Por trás dessas histórias e das brigas histéricas, descobrimos que a disputa é o
elemento definidor de muitos comportamentos na casa: Román e Juan brigam de
maneira velada pela atenção e pelo amor de Gloria; Angustias e Román buscam o
controle da casa, de seus habitantes e da vida de Andrea. Damo-nos conta de que a
fortaleza de virtude e ordem de Angustias está erigida sobre um alicerce muito frágil, já
que alimenta ao longo dos anos uma relação ambígua com seu ex-pretendente e atual
chefe, Jerónimo, a quem escondeu durante a ocupação de Barcelona pelos “rojos”.
E por mais que Angustias tente manter-se em seu mundo à parte, situações e
elementos externos, que fogem do controle, ultrapassam as grades de ferro e a
atormentam. Andrea percebe esse “assédio” externo quando sua tia viaja e ela dorme em
seu quarto por alguns dias:
Vigiada pelos moradores da casa, e especialmente pela tia, Andrea vê que, aos
poucos, o idílio da cidade vai se desfazendo; ao passear pelas ruas de Barcelona, ao lado
de Angustias, tudo lhe parece menos brilhante e menos fascinante: “Cogida de su brazo
corría las calles, que me parecían menos brillantes y menos fascinantes de lo que yo
había imaginado” (p. 32).
Para fugir dessa falta de brilho, Andrea escapa sozinha para a rua, espaço em
que se sente livre, em que extravasa seus sentimentos. No entanto, à medida que o
tempo passa, suas fugas vão escasseando, a casa e seus moradores tomam seus sentidos
e engolem seus sonhos e ações. Por mais que tente desvencilhar-se de seu odor a podre
e suas imagens amontoadas e tristes, o espaço privado se transforma no centro de sua
vida:
Dessa saída do mundo urbano, fica a imagem que Román tem de Angustias e,
embora se refira a ela como um ser inteiro, seu auto-exílio revela que todos na casa se
movem em águas turvas, das quais tentam sair para não se afogar. Todos parecem,
como Angustias, viver em um presente contaminado por lembranças e desejos de um
passado que já não existe. Na casa, atormentados pelos acontecimentos da guerra,
ninguém consegue liberar-se de suas águas escuras.
Seus habitantes estão afundados até a cabeça em um lodaçal do qual não
conseguem sair. Eles se debatem e, em vez de liberar-se, afundam cada vez mais.
Entorpecidos por seus próprios gritos e brigas, são incapazes de fugir desse “barco-
prisão” que representa a casa, que afunda em meio a águas paradas, profundas e sujas.
A própria protagonista é comparada a uma “rata despistada” em um barco que
afunda, tal como se encontram os moradores daquela casa, tentando agarrar-se a algo
que alimente a esperança de que a família não se autodestrua definitivamente:
77
Como una bandada de cuervos posados en las ramas del árbol del
ahorcado, así las amigas de Angustias estaban sentadas, vestidas de
negro, en su cuarto aquellos días (...) las que los años y los vaivenes
habían alejado y que ahora volvían aleteando al enterarse de aquella
púdica y bella muerte de Angustias para la vida de este mundo (...) La
verdad es que eran como pájaros envejecidos y oscuros con las
pechugas palpitantes de haber volado mucho en un trozo de cielo
muy pequeño (pp. 89-90).
A imagem das amigas e de sua tia em um céu muito pequeno parece referir-se
à estreiteza de suas vidas e faz alusão à de muitas outras pessoas na Espanha dos anos
de fome. Com vidas limitadas pela impossibilidade de mover-se sob uma ditadura, o
que lhes cabe é a velhice em um espaço pequeno. Impossível alçar grandes vôos.
Como corvos, pássaros que devoram restos podres, agarram o último suspiro
“social” de Angustias, que morre para aquele mundo. Essa visão de pássaros que se
concentram em negro, dentro do espaço exíguo de seu quarto, aproxima-se da gravura
78
goyesca, na qual vemos seres alados e monstruosos que chupam o sangue de uma
pessoa caída no chão.
Na imagem, os pássaros-vampiros se concentram sobre um homem no chão,
um deles chupa seu peito e outro pousa ao lado de seu ombro em busca de um pouco de
sangue também. O jogo de claro-escuro da imagem destaca o rosto assustadoramente
humano do vampiro e o rosto do homem atirado ao solo.
Figura 12: Francisco de Goya y Lucientes, “Las resultas”, Desastres de la Guerra, nº.
72, 1810 - 1814, Água-forte, 179 x 220 mm. Biblioteca Nacional, Madri.
volta a congelar outras imagens, como se a festa fosse uma seqüência de estampas que
ela vai formando à medida que seu olhar costura tais imagens:
entre o mundo real e o fantástico, plasmada pelos traços apocalípticos de cavaleiros que
voam sobre o fantasma da guerra.
A visão criada pela imaginação de Andrea evoca a imagem do capricho “Buen
Viaje” (figura 13). Nele, vemos um pássaro monstruoso de cara humana que leva
algumas pessoas em seu dorso. Ao fundo vê-se uma sombra de difícil identificação pela
cor difusa da gravura, mas que parece ser uma criatura alada.
As figuras que estão sobre o monstro olham espantadas, cada uma em um
sentido: a da direita olha para cima, a da esquerda mantém olhar fixo em algo que está à
esquerda, mas que não podemos identificar, já que é externo à gravura, e a figura central
olha para fora do quadro. Todos têm a boca aberta pelo assombro. Abaixo, vê-se uma
paisagem de campo que sugere um ambiente distante do urbano.
Figura 13: Francisco de Goya y Lucientes, “Buen Viaje”, Caprichos, nº. 64, 1799,
Água-forte, aguada brunida e formão, 217 x 152 mm. Biblioteca Nacional, Madri.
Figura 14: Francisco de Goya y Lucientes, Coloso, 1808-1812, Óleo sobre tela, 116 x
105 cm. Museu do Prado, Madri.
56
JOHNSON, Roberta. Carmen Laforet. Boston: Twayne, 1981, pp. 60-61.
86
Nesse momento, Andrea parece querer “delinear” seu rosto, como se dessa
forma pudesse compreender a situação pela qual passa. No entanto, ao ver-se no espelho
como um fantasma, a narradora começa a “traçar” uma nova Andrea que, depois de
muitas desilusões, configura um novo contorno para sua personalidade, como se fosse
uma “estampa” cinza, através da qual representará seus atos e pensamentos dali em
diante.
Quando chegamos a essa cor cinza no romance, praticamente se apaga a linha
tênue entre passado e presente. Parece que, desse ponto em diante, tudo na narrativa
estará sob o signo dessa cor.
como os outros moradores da casa. Esse sentimento da protagonista funde sua narração
e sua reflexão, o que se expressa na cena em que se lembra dos dias passados na casa:
A fome e a desilusão, dentro e fora de casa, fazem com que Andrea enxergue o
espaço público pela fresta do privado. Ela descobre que a união desses dois mundos se
encontra no desacorde, no gosto amargo, no mau cheiro e em um contato que provoca
desalento. Tudo isso se concentra tanto no poema Nada, de Juan Ramón, como no
romance de Carmen Laforet. Não é possível buscar um significado na paz ou em
situações agradáveis, pois ele está no incômodo. E a maneira de encontrá-lo é por meio
dos sentidos, anunciado em uma estrutura que privilegia o sinestésico e a imagem. É
pelo olfato, pelo olhar e pelo tato que vislumbramos várias facetas de Nada.
Nesse percurso pela experiência sensível proporcionado pela narrativa, o
mundo noturno goyesco configura-se em uma estrepitosa realidade barcelonesa. Quando
seu tio Juan sai tarde da noite em busca de sua mulher, Andrea o segue. Nessa aventura
90
noturna, conhece o bairro chinês e ali se vê sob a luz do “brilho do diabo”, que sua tia
Angustias mencionara anteriormente:
Juan entró por la calle del Conde del Asalto, hormigueante de gente y
de luz a aquella hora. Me di cuenta de que esto era el principio del
barrio chino. “El brillo del diablo”, de que me había hablado
Angustias, aparecía empobrecido y chillón (...). Todo aquello no era
más que un marco de pesadilla, irreal como todo lo externo a mi
persecución (p. 120) (Sublinhado nosso).
À medida que adentra o bairro, a narradora expressa suas visões por meio do
sensorial; são sensações olfativas, táteis e visuais. E esses estímulos vêm através do
ruído, do cheiro a podre e a vinho, conformando um “quadro” que retrata um pesadelo
que se materializa nos corpos que roçam em Andrea.
Em Nada, as imagens mostradas vão adquirindo contornos de pesadelo
mesclado à realidade. Uma tênue linha entre o mundo onírico e o real começa a
desfazer-se diante do olhar de Andrea, cravado nas pessoas que transitam pelo bairro
chinês.
Para Andrea, a estampa do pesadelo configura-se na imagem de um carnaval
grotesco, de mau gosto e agro. Diante dessa visão, o sensorial toca o material e tudo se
torna arredio e estranho. Ao observar as pessoas daquele bairro, imagens grotescas
invadem sua retina e a memória passa a trabalhar em conjunto com a arte. As figuras
excêntricas daquele lugar evocam o carnaval assustador da infância da protagonista e
recuperam as sensações vividas por meio da visualidade captada do momento presente:
Figura 16: Francisco de Goya y Lucientes, “Todos caerán”, Caprichos, nº. 19. 1799,
Água-forte e aguada brunida, 219 x 146 mm. Biblioteca Nacional, Madri.
94
À estridência dos gritos une-se a violência da luta, à idéia de figuras que brotam
da terra e depois flutuam sob vozes ásperas; cria-se a imagem de um inferno na terra.
Nele, as bruxas são mulheres que freqüentam os bares do bairro, ou que vivem ali, as
caras voláteis giram ao redor da faixa de luz que cega, ilumina e concentra o olhar na
briga. Conjugados, humano e monstruoso retratam o brilho do diabo do bairro chinês,
sujo, fétido e animalizado. Ali, Andrea descobre que o demoníaco não estava apenas no
espaço doméstico, mas também no espaço público, em todas as partes, como se o pós-
guerra em si se configurasse como um mundo demoníaco.
A luta termina com a sirene da polícia. Espavoridos, todos fogem e se trancam
nos estabelecimentos mais próximos. Com a ajuda de Andrea, seu tio reergue-se e, por
fim, termina sua busca pela mulher. Ele encontra Gloria no bar da irmã e ali descobre
que ela joga cartas e trapaceia para ganhar um pouco de dinheiro para o sustento da
família.
Desse percurso pelo bairro chinês, resulta uma certa proximidade entre a
protagonista e o tio, que se revela não apenas no momento de terror e necessidade, mas
também quando se sente totalmente faminta, pois Andrea se reconhece como Juan e
chega a pensar que são parecidos, como se de alguma forma a miséria pudesse revelar
facetas próximas entre ela e os moradores da casa; como se, de repente, pobreza e fome
se juntassem e levassem a um momento híbrido de histeria e compreensão: “Pensaba
mucho en Juan y me encontraba semejante a él en muchas cosas. Ni siquiera se me
ocurría pensar que estaba histérica por la falta de alimento” (p. 132).
Quando Andrea passa a compreender o momento em que vive, ainda que
parcialmente, ele vem expresso por tintas sombrias, tão sombrias como sua fome. À
medida que o romance avança, damo-nos conta de que há uma grande concentração de
imagens que revelam uma preocupação pelo efeito estético, que impulsionam o trajeto
da narradora-protagonista rumo à compreensão, revelada, freqüentemente, de forma
conturbada e perturbadora.
Por isso, não acreditamos na afirmação de Roberta Johnson de que no romance
a arte oferece uma perspectiva de calma contemplação das paixões humanas, que a vida
continua e revela-se corrupta, enquanto a arte é permanente:
95
57
JOHNSON, Roberta. Carmen Laforet. Boston: Twayne, 1981, p. 65.
58
JORDAN, Barry. Laforet: Nada. London: Tamesis Books, 1993, p. 117.
96
de seus habitantes: a morte de seu sedutor tio Román, que se mata ao degolar-se com a
navalha de barbear.
A morte de Román ocorre em meio a dois fatos: quando é denunciado por
Gloria por atuar no mercado negro e ao descobrir que Ena se envolvera com ele apenas
para vingar sua mãe. Margarita, em sua adolescência, fora apaixonada por Román, mas
este não correspondeu a seu sentimento, desprezando-a e humilhando-a. Assim,
pressionado pela possibilidade de ser preso e tendo perdido seu poder de sedução,
decide-se pelo suicídio.
Do episódio de sua morte ficará gravada na memória de Andrea uma imagem
infernal e afetuosa ao mesmo tempo, mostrando com isso que a guerra era capaz de
compor realidades não polarizadas e sim fundidas por uma dor latente:
sin embargo, no te han dado más que satisfacciones...; ahí, ahí tienes
el pago de los varones, de los que tú mimabas...
— Señora, deberá dar usted mucha cuenta a Dios por esa alma que
ha mandado al infierno (p. 206).
59
JORDAN, Barry. Laforet: Nada. London: Tamesis Books, 1993, p. 118. Essa idéia da quebra do cíclico
vem da discussão do autor sobre se o romance seria um exemplo de romance de formação, um
“Bildungsroman”. Concordo com crítico que não o é no sentido convencional do termo.
60
PROUST, Marcel. “À sombra das raparigas em flor”. In: Em busca do Tempo Perdido, Vol. III. São
Paulo: Editora Globo, 1995, p. 462.
100
Figura 18: Francisco de Goya y Lucientes, “Nada. Ello dirá”, Desastres de la guerra,
nº. 69, 1810 – 1814, Água-forte, buril e tinta sobre a prancha, 155 x 200 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.
Assim como a figura esquelética da gravura Nada62 (figura 18) aponta para
uma página de um livro, a experiência de Andrea transcende o ambiente sociopolítico
que a rodeia para transformá-lo em experiência pessoal, uma experiência escrita e
61
DELIBES, Miguel. “En torno a Nada”. In: Cuadernos del idioma, 4, Año I, Buenos Aires: Ed. Códex,
1966, pp. 49-50.
62
Vale dizer que o título original da gravura era apenas “Nada”, mas na primeira publicação da Real
Academia de Bellas Artes de San Fernando, em 1863, modificou-se o título. Não se sabe bem por quê,
talvez o niilismo da estampa fosse inaceitável para a época.
101
Insomnio64
Madrid es una ciudad de más de un millón de cadáveres
(según las últimas estadísticas).
A veces en la noche yo me revuelvo y me incorporo en este
nicho en el que hace 45 años que me pudro,
(...) Y paso largas horas preguntándole a Dios,
preguntándole por qué se pudre lentamente mi alma,
por qué se pudren más de un millón de cadáveres en esta
ciudad de Madrid, por qué mil millones de cadáveres se
pudren lentamente en el mundo.
Dime,¿qué huerto quieres abonar con nuestra podredumbre?
(Dámaso Alonso, Hijos de la ira)
63
Ressaltamos que o significado utilizamos da palavra visceral é relativo a vísceras, que o romance
explora, como veremos em sua análise.
64
ALONSO, Dámaso. Los hijos de la ira. Madrid: Cátedra, 1992, p. 12. A primeira edição deste livro foi
publicada em 1944 e, em 1946 foi revisada e aumentada, sendo, portanto, contemporânea a Luís Martín-
Santos.
103
estas formassem uma seqüência de diminutas estampas que podem ser entendidas
individualmente ou em conjunto. Possibilita, assim, que se constitua uma imagem
microscópica e fragmentada de uma sociedade desumanizada.
Para alcançar essa visão da sociedade, o autor compõe um constante
movimento metonímico nas descrições que decorrem de um cuidadoso trabalho de
seleção de imagens que possibilita mostrar os pensamentos dos personagens, através de
monólogos interiores, tão abundantes ao longo da narrativa. São cenas que retratam um
pós-guerra desolador, faminto e contraditório, e forjam imagens que devem muito à
estética goyesca, como quando o narrador descreve os difíceis momentos em que se
encontrava a população espanhola durante os primeiros anos do pós-guerra:
(...) a descubrir cuántos billetes para el metro vende una mujer con un
niño de pecho una mañana de invierno, a adivinar cuál es la ley
económica que permite que las cerilleras vendan pitillos uno a uno y
con el producto alimenten suficientemente sus amantes, a pensar cuál
sería la idea loca que echó a todos los ciegos a la calle hasta en esos
días que la nieve cae endurecida (...) a imaginar cómo — Dios mío —
cómo vivía este pueblo en los que ellos mismo dicen — ellos sabrán
por qué — que fueron los años de hambre (pp. 16-17) (Sublinhado
nosso).
Nenhuma imagem poderia ser tão violenta e apropriada como a das vísceras
para expor a inovação que representou Tiempo de Silencio na narrativa espanhola.
Marcada por uma linguagem plástica e visceral, expõe as entranhas do homem através
da construção do espaço romanesco da cidade, criando uma descrição que impõe ao
leitor o olhar desse amálgama visual formado por espaço e personagem. O romance,
conformado pela palavra que descreve e pela visualidade projetada, revela sua dinâmica
por meio de uma composição crua e cinzenta desse conjunto composto por cidade e
vísceras.
Esse diálogo com as artes plásticas chama a atenção para o mundo
representado em sua escassez e para o interior concreto dos personagens: são suas
vísceras que se mostram. E isso exige uma aproximação do leitor em que não basta
observar e acompanhar as trajetórias dos personagens, é necessário participar
efetivamente da construção da leitura.
Essa proximidade “visceral” constitui-se como ponto inicial para alcançar uma
imagem que abarque o tiempo de silencio que imperava no pós-guerra espanhol. A
intimidade do leitor com a cidade e os personagens ali descritos vai além da barreira da
ilustração de um acontecimento específico para refletir sobre uma violência silenciosa
que anula a existência humana. Nessa composição fragmentada, cidade e personagens
configuram, no espaço conflituoso, a realidade desoladora daquele contexto.
Pautados nessa visão asfixiante e contraditória da narrativa, não estamos de
acordo com os exercícios classificatórios que boa parte da crítica realizou. No âmbito
65
MARTÍN-SANTOS, Luís. Tiempo de Silencio. Barcelona: Destino, 2000, p. 17. Todas as citações a
seguir são retiradas desta edição e indicamos junto à citação o número da página correspondente.
106
66
As questões psicanalíticas são discutidas particularmente em LABANYI, Jo. Ironía e historia en
Tiempo de Silencio. Madrid: Taurus, 1983; o existencialismo, em ROBERTS, Gemma. Temas
existenciales en al novela española de postguerra. Madrid: Gredos, 1978; o enfoque marxista está,
especialmente, em CURUTCHET, Juan Carlos. “Luis Martín-Santos, el fundador”. In: Cuadernos de
Ruedo Ibérico. París, n. º 17, 1968, pp. 29-69; o enfoque social, em GIL CASADO, Pablo. La novela
social española. Barcelona: Seix-Barral, 1968; as questões formais, especialmente em REY, Alfonso.
Construcción y sentido de Tiempo de Silencio. Madrid: Porrúa Turranzas, 1980.
107
Tiempo de Silencio rompe com essa técnica objetivista e mostra que, para
evidenciar os problemas da sociedade espanhola e discuti-los, podem-se utilizar
diversas técnicas, que permitem ressaltar o espírito crítico sem abrir mão da qualidade
estética.
Assim, atento ao aspecto literário de seu texto, Luis Martín-Santos cria uma
voz onisciente intrusa para narrá-lo, que não apenas sabe de tudo o que ocorre, mas que
também opina e discute sobre aquilo que narra, assumindo o risco de tomar uma posição
subjetiva frente ao predomínio do realismo objetivo. O narrador de Tiempo de Silencio
nega-se a reproduzir a realidade como um produto de espelhamento, nega-se à visão
panorâmica e impassível e toma uma posição irônica e indagadora. Da mesma maneira,
podemos dizer que Goya traça um caminho semelhante na elaboração de suas gravuras:
deixa de lado a visão grandiosa, panorâmica, do fato histórico para ilustrá-lo de perto.
Ambos propõem, nos diferentes campos artísticos, uma visão próxima, cotidiana e
visceral dos momentos históricos que retratam em suas obras.
Em Tiempo de Silencio, presente e passado aparecem conjugados para explicar
e interpretar o problema intelectual e social espanhol por uma via diferente.
67
GOYTISOLO, Juan. El furgón de cola. Barcelona: Editorial Seix-Barral, 1982, p. 34.
68
REY, Alfonso. Noticia de Luis Martín-Santos y de ‘Tiempo de Silencio’. In: Tiempo de Silencio.
Barcelona: Clásicos & Modernos, 2000, p. 237.
109
Essa crítica possibilitou uma busca pela renovação técnica, bem como a
contraposição ao dominante objetivismo. Em sua inovação, Martín-Santos explicita uma
preocupação em ser testemunha de uma época e de um pensamento, em atribuir um
significado para a realidade.
Nas palavras do autor, seu romance é uma busca pelo “realismo dialético”, por
meio do qual procurava dar uma nova orientação para a narrativa espanhola.
69
DOMENECH, Ricardo. “Luis Martín-Santos”. In: Insula. Madrid, n. º 208, marzo, 1964, p. 68.
70
VILANOVA, Antonio. Novela y sociedad en la España de la posguerra. Barcelona: Editorial Lumen,
1995, p. 420.
110
71
ROBERTS, Gemma. Temas existenciales en al novela española de postguerra. Madrid: Gredos, 1978,
p. 192.
111
espanhol que já ganhara o prêmio. Em contraste com seus sonhos, estão a realidade e as
dificuldades da pesquisa. Sem um microscópio eletrônico e, principalmente, sem ratos
— suas cobaias, que provinham de Illinois, morreram — não há como prosseguir em
seus estudos. Para piorar, o Instituto em que pesquisava não dispunha de recursos para
comprar novas cobaias.
El retrato del hombre de la barba, frente a mí, que lo vio todo y que
libró al pueblo ibero de su inferioridad nativa ante la ciencia,
escrutador e inmóvil, presidiendo la falta de cobayas. Su sonrisa
comprensiva y liberadora de la inferioridad explica —comprende— la
falta de créditos. Pueblo pobre, pueblo pobre. ¿Quién podrá nunca
aspirar otra vez al galardón nórdico, a la sonrisa del rey alto, a la
dignificación, al buen pasar del sabio que en la península seca,
espera que fructifiquen los cerebros y los ríos? (p. 9).
Na meseta seca, cérebros ibéricos são retratados com igual esterilidade, não só
de conhecimentos, mas também de possibilidades de crescimento. Falta educação,
faltam créditos, falta comida, sobram apenas argumentos baseados em teorias raciais.
A Espanha é vista como uma terra árida e pobre, em oposição à riqueza norte-
americana e ao avanço tecnológico europeu. O país luta para tornar real o sonho do
72
MARTÍN-SANTOS, Luis. Libertad, temporalidad y transferencia en el psicoanálisis existencial.
Barcelona: Seix-Barral, 1964, p. 20 (Aspas do autor).
112
progresso, mas a secura de suas terras e a falta de meios o imobiliza em seu próprio
passado, atrelado a questões raciais que não explicam nem solucionam seu problema.
Em uma época em que a expressão nacional se definia pela luta por um pedaço
de pão branco e por uma visão histórica privada de qualquer dinamismo, a elite
intelectual do regime (herdeiros da “generación del 98”) acreditava que o fracasso
espanhol era produto, em grande parte, da raça e do meio, entendido apenas em sua
dimensão geográfica, física e fixa.
A partir dessa crença na origem do fracasso espanhol, muitas teorias raciais foram
invocadas ao longo dos anos 40, sobretudo para explicar uma suposta inferioridade
intelectual do espanhol. Martín-Santos recusou-se a aceitar tais explicações raciais, já que
entendia o problema espanhol por outras vertentes. Entre elas, aquela que associava tal
fracasso às suas bases educacionais.
Quando o narrador se refere, ironicamente, à Espanha como “un país que no es
Europa” (p. 57), aponta para a marginalidade espanhola frente ao avanço econômico e
científico dos vizinhos europeus. Através de uma cena em que descreve um quadro de
Goya, El Aquelarre (figura 19), o narrador nega uma suposta explicação racial para o
problema. Nela, satiriza, pela primeira vez, a figura de Ortega y Gasset, filósofo
defensor da teoria racial e da estratificação social, representado pela figura do grande
“macho cabrío”:
73
LABANYI, Jo. Ironía e historia en Tiempo de Silencio. Madrid: Taurus, 1983, p. 32.
113
(...) y qué listo eres tú para un pueblo que tiene las frentes tan
menguadas. Y puesto que de una más noble sustancia tú estás hecho,
oh buco, a todos nos desprecias. Sí, realmente sí, qué bien, qué bien lo
has visto: Todos somos tontos. Y este ser tontos no tiene remedio.
Porque no bastará ya nunca que la gente ésta tonta pueda comer, ni
pueda ser vestida, ni pueda ser piadosamente educada en luminosas
naves de nueva planta construidas, ni pueda ser selectamente nutrida
con vitamínicos jugos y proteicos que el turmix logra de materias
primas diversas (...) puesto que víctimas de su sangre gótica de mala
calidad y de bajo pueblo mediterráneo permanecerán adheridos a sus
estructuras asiáticas y así miserablemente vegetarán vestidos
únicamente de gracia y no de la repulsiva técnica del noroeste (p. 57).
Figura 19: Francisco de Goya y Lucientes. El Aquelarre, 1797-8, Óleo, 43.3 x 30.5
cm. Museu Lázaro Galdiano, Madri.
115
O quadro que incita a discussão foi pintado por Goya para os duques de Osuna
74
e apresenta uma visão satírica do tema do sabá noturno, pois oferece um conjunto
agradável e nada sombrio. Entre a combinação das montanhas azuladas com o céu
matizado de cinza, vê-se ao fundo um grupo de bruxas que rodeia a imensa figura do
diabo. Este leva uma coroa de folhas nos chifres, fazendo-nos recordar a iconografia de
Baco. Ele bendiz uma jovem que se aproxima oferecendo-lhe seu filho; junto a ela,
algumas velhas fazem o mesmo com crianças esqueléticas. O diabo, muito satisfeito
com a oferta, derrama sobre a cena um ar jocoso com sua expressão, que chega a ser
graciosa, e ao se unir aos tons suaves de rosa, amarelo e azul, dá uma certa leveza ao
conjunto.
No romance, o arremedo de quadro aparece fixado em um ambiente que destoa
da cena retratada na pintura, provocando a sensação de deslocamento entre imagem e
ambiente. Ao dispor o quadro em um ambiente inapropriado — a cópia da pintura
divide espaço com o mobiliário clássico do quarto, pregado em uma parede rosa—, a
narrativa acentua o tom jocoso da cena pictórica, que se relaciona à crítica implacável
que o narrador faz de Ortega. Para tanto, ironiza sua teoria de divisão de classes, com a
qual não concorda.
74
Reunião de bruxos e bruxas que, segundo superstição medieval, ocorria no sábado, à meia-noite, sob a
presidência do Diabo.
75
PEREZ MAGALLÓN, Jesús. “El proyecto acosado: el fracaso en Tiempo de Silencio de Luís Martín-
Santos”. In: Revista Hispánica Moderna. New York: Hispanic Institute Columbia University, vol. XLVII,
n. º 1, 1994, p. 139.
116
76
GEORGESCU, Paul Alexandre. “Lo real y lo actual en Tiempo de Silencio”. In: Nueva Revista de
Filología Hispánica, nº 20. México, 1971, pp. 115-116.
77
DOLGIN, Stacey. La novela de desmitificación española. (1961-82). Barcelona: Anthopos, 1991, p.
83.
119
conexão inusitada, obriga o leitor a expandir seu campo de comparações para chegar a
uma imagem final.78
A inter-relação dessas espécies de estampas gera uma fragmentação do espaço,
um movimento metonímico por meio do qual a cidade é descrita por partes que,
selecionadas, conformam um todo que transcende a simples descrição. Assim, a
narrativa explora a função metonímica de modo extremo, para que a descrição da cidade
revele sua função representativa: não se trata apenas de Madri, mas de toda uma nação.
Nessa fragmentação, a metonímia ultrapassa a noção de contigüidade que lhe é
conferida tradicionalmente e alcança concepções mais arrojadas, pois ao fragmentar
radicalmente a cidade, visualizamos “imagens metonímicas ilimitadas”.79
Essa fusão de imagens contíguas, composta nessa divisão microscópica em que
a fragmentação ocorre sob o signo de uma contigüidade extrema, leva-nos a discordar
da idéia de que se constitua uma imagem cubista, como sugeriu Eugene E. Maio:
Ainda que a leitura de Eugene E. Maio seja interessante e revele que a crítica
detectou a presença das artes plásticas no romance, acreditamos que, diferentemente da
imagem cubista, o leitor não tem aqui que decodificar cada uma das partes e reconstruí-
las mentalmente para obter sua totalidade, ou seja, trabalhar com fragmentação e
sobreposição. Em Tiempo de Silencio, é necessário seguir a seqüência aparentemente
desconexa de diferentes figuras para chegar a uma totalidade, ou seja, as imagens são
78
“Por definición, la imagen expansiva es aquella que abre una amplia perspectiva a la imaginación y en
que cada término modifica fuertemente al otro; la “interacción” que, según la teoría poética moderna, son
formas centrales del hecho poético, donde más abundantemente se dan es en la metáfora expansiva”. In:
WELLEK, René & Warren, Austin. Teoría literaria. Madrid: Gredos, 1966, p. 243.
79
“La idea de que la metonimia y la metáfora pueden ser las estructuras que caracterizan dos tipos
poéticos: la poesía de asociación por contigüidad, de movimiento dentro de un solo mundo de expresión,
y la poesía de asociación por comparación, que funde una pluralidad de mundos, y mezcla un “coktail” de
esferas”. Ibid, p. 233.
80
MAIO, Eugene E. “Tiempo de Silencio and the Aesthetics of Modern Art”. In: Critique, 30:3, 1989,
pp. 155-162.
122
expostas seqüencialmente e conformam por si só a visão total da cidade. Não são partes
formando um todo, mas “estampas”, imagens contíguas de muitos lugares que
compõem uma só cidade.
Sendo assim, a narrativa se pauta em uma lógica baseada nessa contigüidade
extrema, em que a aparente ausência de nexos lógicos nos expõe um mundo
fragmentado, tão desunido quanto as células em mitose que Pedro vê através da lente de
seu microscópio. As imagens aparecem em contigüidade e estão marcadas pelo desejo
de plasmar o instantâneo e o múltiplo, elementos primordiais na construção do romance.
Além disso, outra divergência do modo de composição do romance em relação
à construção cubista é a utilização de comparações simultâneas que constituem uma
imensa sinédoque.
Em sua descrição, o narrador “disseca” a visão da cidade ao construí-la através
de dezenas de parágrafos, centenas de palavras acumuladas que, em vez de ofuscá-la,
manifestam os inúmeros detalhes que a compõem, como um microscópio o faria.
Ao unir o uso dessa metonímia ilimitada à ação do narrador comentarista, o
romance consegue conformar uma imagem do horror de um tempo de silêncio e
aproximá-la de procedimentos e temas presentes nas gravuras de Goya.
Um exemplo dessa proximidade está no paralelismo que podemos traçar entre
a maneira como o gravador realizou o corte nas pranchas de aço de sua série de Los
Desastres de la Guerra e a proliferação das palavras no romance. Na obra goyesca, são
centenas de traços contíguos que, em vez de obscurecer a imagem, expõem uma face
definida do horror da guerra, da execução e da morte. Na narrativa, ao fazer “proliferar”
a palavra, consegue-se uma imagem inequívoca das vísceras do pós-guerra.
Além da plasticidade da narrativa, destaca-se o uso da fala telegráfica. Por
exemplo, ao longo da obra, a fala de Pedro parece enviar mensagens do que pretende
dizer. São frases estruturadas como possíveis títulos para as pequenas estampas que sua
fala entrecortada cria, como se, de alguma maneira, estivesse formando uma série de
estampas fragmentadas do pós-guerra.
81
LABANYI, Jo. Ironía e historia en Tiempo de Silencio. Madrid: Taurus, 1983, p. 123.
82
Ibid, p. 123.
125
83
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 13.
126
Figura 20: Francisco de Goya y Lucientes, “No hay remedio”, Desastres de la Guerra,
n. º 22. 1810-1814, Água-forte, ponta-seca, buril e brunidor, 142 x 168 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.
contínua com os canos dos fuzis que, por sua vez, contrastam violentamente com a luz
que vem da roupa branca daquele que será executado.
Por outro lado, quando a narrativa fragmenta a morte ou a imagem da cidade, o
narrador obriga o leitor a aproximar-se das pequenas partes para formar a imagem total,
assim como Goya obriga o espectador a juntar-se à perspectiva dos que serão fuzilados
e, dessa forma, imaginar a gravura total. Em ambos, o excesso de traços e palavras
ilumina, revela.
Outra constatação de que o excesso revela está no uso intenso do neologismo
ao longo do texto, o que transforma a palavra, desvia-a de sua norma, contamina-a,
prolifera sentidos e, por fim, ressalta o que se tinha a dizer.
A própria estrutura do romance está construída sob o signo da fragmentação
narrativa e da proliferação da palavra, se considerarmos que há no texto dois narradores:
em 1ª e 3ª pessoas. Muitas vezes, é Pedro quem nos conta algo e, em outras, é o
narrador onisciente intruso. A narração ocorre em mais de uma forma e os ângulos a
partir dos quais se vêem as situações também são múltiplos. Desse modo, o excesso —
o texto prolixo — configura a escassez e o silêncio da época.
À medida que avança, o romance apresenta, de maneira cada vez mais
evidente, um acúmulo de contradições. Estas aparecem na brecha entre o que se diz e o
que se vê em suas cenas, entre a teoria proposta por Pedro e sua prática, na descrição
dos ambientes e seus personagens e na relação que estes mantêm com seu discurso e
suas ações. Esse acúmulo de ambigüidades se revela como traço relevante do fracasso
dos personagens. Há um paradoxo na base dos projetos dos personagens que impede seu
êxito.
Pedro, por exemplo, quando vai à favela em busca de ratos para sua pesquisa,
oscila entre um procedimento científico, regrado pela ética e pela retidão, e a satisfação
de uma curiosidade mórbida. Quando está na casa de Muecas, uma construção tosca que
funciona como um criadouro de ratos infectados, essa indefinição se manifesta na
dissociação entre o que deveria ser sua conduta e seu comportamento:
84
GOYTISOLO, Juan. “Examen de conciencia”. In: El furgón de cola. Barcelona: Editorial Seix-Barral,
1982, pp. 246-247.
85
MARTÍN-SANTOS, Luis. Libertad, temporalidad y transferencia en el psicoanálisis existencial:
Barcelona: Seix-Barral, 1964, p. 226.
129
Mais uma vez, vemos o choque entre a descrição e o objeto, a ironia verbal em
que as palavras descrevem as favelas como algo maravilhoso, mas expressam
claramente a miséria em que vivem as pessoas ali. Sua apresentação irônica servirá
como visão inicial para uma pobreza muito mais intensa que a das construções descritas,
pois, ao entrar na casa de Muecas, o investigador ver-se-á diante de um mundo em que
os valores se inverteram. Nele, os animais serão bem tratados e os humanos submetidos
131
a condições precárias; a escassez existirá apenas para estes, os restos de lixo alimentarão
sua mulher e suas filhas que, em uma terrível inversão da ordem natural, criarão os ratos
como entes do núcleo familiar. As filhas de Muecas, na favela em que vivem, acalantam
os ratos em seu regaço, o que em vez de despertar repugnância no investigador, reforça
sua tese sobre um possível contágio virótico das meninas, já que mantêm um contato
íntimo com os animais.
86
As anotações que se encontravam ao lado da gravura e hoje estão no Museu do Prado: “Esto tien trazas
de junta academica. Quién sabe si el papagayo estará hablando de medicina? Pero no hay q.e creerlo
sobre su palabra. Medico hay q.e q.do habla es un pico de oro y q.do receta un Érodes: discurre perf. am.
te de las dolencias y no las cura: enboba à los enfermos y atesta los Cementer.s de calaberas [Mantivemos
a ortografia original].
133
A junta acadêmica que vemos em “¡Qué pico de oro!” está formada por
“nobres” da época, magistrados, padres e frades. A ironia da cena está na atenção
devotada ao papagaio que, de acordo com as anotações da época, apenas discorre sobre
as doenças e não as cura. De forma similar, Muecas, com seus tics animalizados,
discorre sobre sua “criação de ratos”, conseguida à custa da fome de sua família.
Neste mundo às avessas, a palavra tem o poder de dissuadir e de enganar. Em
vez de resguardar os humanos, funciona como instrumento de desumanização: o
discurso serve para “justificar” que animais tomem o lugar dos homens. E, por alguns
momentos, inverte-se a superioridade intelectual e socioeconômica de Pedro:
Nesse trecho, além de ironizar uma metáfora utilizada por Ortega y Gasset, “el
árbol de la ciencia” e sua discussão sobre conhecimento científico, as imagens utilizadas
pelo narrador remetem ao universo da gravura “¡Qué pico de oro!”. Na gravura e no
romance, exploram-se o tema da oratória vazia e o da animalização. Na narrativa, o
135
público está formado por humanos que são vistos como pássaros ávidos por bicar o
fruto do conhecimento científico, oferecido pelo orador que apenas diz “papagaiadas”.
O filósofo oferece aos que ali estão presentes o fruto do conhecimento, a maçã,
proibida aos homens, mas permitida aos pássaros de bico rosado, e causa “sensação”
com sua grandiloqüência que hipnotiza os humanos-pássaros encantados por sua
apresentação.
Así los tengo, sí señor doctor, a los hijos de los hijos que no quiero
llamar nietos, ya que no parece cosa de animales reconocer tanta
parentela. Y también a los hijos de los hijos de los hijos (p. 50).
Figura 23: Francisco de Goya y Lucientes, “¿De qué mal morirá?”, Capricho n. º 48,
1799, Água-forte e aguada, 215 x 150 mm. Biblioteca Nacional, Madri. Gravado na
margem superior direita: 40.
140
Uma vez na pensão, Pedro repete sua conduta ambígua ao não resistir à
tentação de entrar no quarto de Dorita e deitar-se com ela. Troca sua teoria sobre o amor
como algo iluminado, como algo superior, por uma noite de prazer. Depois de deitar-se
com a neta da dona da pensão, no sábado sabático, cai definitivamente nas garras das
matronas da pensão:
Figura 24: Francisco de Goya y Lucientes, “Hilan delgado”, Los Caprichos. Capricho
n. º 44, 1799, Água-forte, aguada, ponta-seca e buril, 219 x 153 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.
87
É interessante pensar no acentuado aspecto de alcoviteira dessas mulheres que a narrativa apresenta, e
como este se relaciona à imagem da gravura, que também mantém essa característica, que representava na
época de Goya o que se convencionou chamar “o lado escuro” do Século das Luzes.
146
“Al que se esconde más debían castigarle más. Los jueces no saben o
no quieren saber lo que tienen que trabajar los modestos funcionarios
del cuerpo y los peligros a que nos exponemos o a que nos exponen.
No hay sino que callar y decir amén, y descuidando completamente la
salud de uno, en medio de la noche, como si uno fuera de hierro, que
no lo es, porque bueno estoy yo que ya ni sé cómo lo resisto y no pido
el retiro, aguantándome las ganas cuando me vienen”.
“Se creerá que me la va a dar. A mí no me la da”.
“Ese pobre Don Pedro estará achaparrado en algún agujero, eso lo
creo yo. Pero éste me diga que me está esperando a mí, eso no lo
creo. Pero que éste es capaz de haberlo escondido en su casa, tendrá
147
88
GALLARDO BLANCO, José. Diccionario crítico-burlesco. Barcelona: Editorial Alta Fulla, 1993.
Facsímil de la ed. de Madrid, 1838.
89
DE MARCO, Valeria. “A narrativa na ditadura de Franco”. In: O ângulo doméstico no romance na era
Franco. Tese de Livre-Docência. 1999.Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, p. 9.
149
90
GOYTISOLO, Juan. “Escribir en España”. In: El furgón de cola. Barcelona: Seix-Barral, 1982, p. 45.
150
91
ANDRADE, Mário. “Do desenho”. In: Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984, p. 65.
153
92
GULLÓN, Ricardo. Espacio y novela. Barcelona: Antoni Bosch Editor, 1980, p. 8.
93
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 86.
154
Nem mesmo após a morte a promiscuidade acaba para Florita: antes, dividia a
cama com os pais e a irmã, agora, com outros dois homens; vida e morte promíscuas.
Florita estava destinada a viver e a morrer como um animal.
Quando observamos o enterro da jovem, em meio a dois corpos masculinos,
visualizamos também como o romance constrói a visão da morte em duas perspectivas:
a da concretização desta — quando Pedro faz a curetagem na menina — e a do enterro
vertical. Nesses dois momentos, a morte aparece muito próxima ao olhar do leitor; não
há uma contemplação, mas uma aproximação máxima ao momento. No caso de Florita,
a morte é vista através do ângulo da raspagem, que, ao ser acompanhada pelo olhar de
seus parentes e de seus vizinhos, transforma-se em uma morte pública. O segundo
momento está no enterro vertical, que se revela um ato não apenas público, mas
promíscuo e mecânico.
Esse processo culmina com a exumação do corpo, por causa de uma denúncia
anônima. Além de uma morte e enterro públicos, presenciamos uma decomposição
corporal pública, o que configura a animalização da figura da menina. Amontoados,
enterrados coletivamente, os homens vivem e morrem como bichos.
157
94
BOZAL, Valeriano. Imagen de Goya. Barcelona: Lumen, 1983, p. 97.
158
95
ALONSO, Dámaso. Los hijos de la ira. Madrid: Cátedra, 1992, p.12.
160
que escorre na morte anunciada. Com o sangue de uma inocente, paga-se o sangue de
outra. O câncer, em mitose, duplica a morte: o eco fonético dos nomes relaciona e
reitera sua condição de vítimas, atingidas pela violência que se espalha pela Madri do
pós-guerra.
Uma vez terminada a vingança, Cartucho abandona o corpo de Dorita. O que
nos resta é imaginar, como faz o assassino, a expressão de Pedro, voltando ao encontro
da jovem com seu pacote de churros nas mãos. As cenas anteriores à morte e o suspense
gerado por elas dilatam o tempo e prolongam o instante da estocada como uma grande
agonia.
A visão do horror da morte em cena pública, do sangue que escorre pelo chão,
preenche todo o “enquadramento”, conferindo à narrativa um movimento que leva o
leitor ao centro dos acontecimentos. Leitor e personagem vêem o instante da morte em
close.
Assim, o desespero de Dorita, ao gritar e sentir seu corpo contra o de Cartucho,
reverbera o momento final, o corpo-a-corpo aproxima o leitor do momento da
punhalada e o sangue que jorra ao seu redor, um charco de sangue, que enegrece com a
luz da lua, intensifica a cena. A visão é dolorosa para a vítima e para o leitor.
Em uma cena que nos lembra muito Los fusilamientos del 3 de mayo, vemos,
no centro do jogo de luzes e trevas, uma mulher de vestido branco. Enquanto volta o
96
ZAMORA, Antonio. No hay plazo que no se cumpla ni deuda que no se pague. Barcelona: D. Juan
Francisco Piferrer, Impr., 1834. A frase de Cartucho expressa o título do drama composto no início do
século XVII, sobre a figura de don Juan Tenorio (Sublinhado nosso).
163
rosto para os céus, abre seus braços e oferece o peito para o pelotão de fuzilamento. A
boca escancarada, o rosto contorcido e as mãos abertas, com as palmas viradas para
cima, concentram o momento do grito e do desespero da cena.
Um pouco atrás dessa mulher de branco, há outra mulher que, envolta em
panos, tem as mãos unidas e protege uma menina entre os braços. A criança, de boca
aberta, estende a mão em direção ao pelotão, como se estivesse pedindo ajuda. À sua
direita, muito próximo aos fuzis, um homem, também ajoelhado, dá as costas aos seus
algozes e une as mãos como se estivesse esperando o disparo final.
Desse modo, podemos afirmar que o romance e a estampa captam a
simultaneidade dos movimentos anteriores à morte: na narrativa, a aproximação de
Cartucho, o bulício do entorno e a volta de Pedro ao encontro de Dorita intensificam o
suspense. Na gravura, os gestos concomitantes dos que serão executados e as pontas dos
fuzis, sugerindo a presença dos executores, não nos permitem intuir o momento exato
do disparo.
O traço horizontal e exacerbado da figura compõe o ambiente escuro; o solo e
os fuzis em riste, iluminados pela luz do dia, revelam o contraste de claro-escuro que
intensifica o momento anterior à morte, conferindo uma carga emotiva e desesperadora
à cena. Na narrativa, as vozes do entorno, as luzes difusas das barracas e o anonimato da
dança em meio à multidão ampliam o desespero que antecipa a morte.
Na cena da quermesse, tudo se desenvolve em instantes, o horror é que dilata o
momento da morte: temos os passos sorrateiros de Cartucho, esperando o momento do
bote, a dança, a estocada no corpo da jovem, a chegada de Pedro a qualquer momento.
A simultaneidade das ações combina elementos que configuram a morte como um
espetáculo a céu aberto, visto de muito perto, em um enquadramento que se fecha em
close-up.
Esse ângulo fechado se vê em Tiempo de Silencio nos dois momentos em que a
morte aparece. São instantes em que leitor e narrador se aproximam ao máximo dos
corpos. Os olhos de quem lê e de quem narra seguem de perto a colher (cureta) na mão
do médico, enquanto este faz a raspagem inútil em Florita. Vemos, de perto, os braços
de Cartucho enlaçando o corpo de Dorita e, depois, apunhalando-o. Em ambos, a
configuração da proximidade está marcada pelo movimento metonímico, que corta a
imagem, como se a morte pudesse ser representada pela mutilação: é a cureta, o braço
164
que enlaça o corpo, a faca que apunhala. O momento da morte aproxima vítima e
carrasco, numa luta corpo-a-corpo que quase os transforma em um só corpo.
O ângulo pelo qual vemos o momento da morte é fechado, estreito. O contraste
entre o grito de Dorita, as vozes alegres da quermesse e a iminente chegada de Pedro
possibilitam a construção de uma imagem marcada pela simultaneidade da ação e pelo
extracampo.
A inquietação na narrativa está na suposta reação de Pedro com seus churros,
diante do cadáver e do sangue, que, em charco, invade a paisagem buliçosa e alegre da
quermesse. Mas não sabemos se será assim, pois se mutila a cena; o que resta ao leitor é
a imaginação, a visualização de uma imagem expansiva que dê conta do momento
posterior à morte da menina.
As mortes das jovens se transformam em espetáculos públicos: a de Florita,
observada pelos vizinhos e pelo curandeiro; a de Dorita, pelos freqüentadores da
quermesse. Tanto na guerra como no pós-guerra, a morte não ocorre no espaço privado,
mas se transforma em um espetáculo atroz que extravasa os limites do espaço. Assim
como os cadáveres da guerra são pendurados pelo caminho como uma advertência, no
pós-guerra é o corpo que sangra em meio aos vizinhos curiosos e diante dos que passam
pela verbena.
Por outro lado, quando vemos Pedro no trem, em fuga para o interior, olhando
para a natureza ao seu redor, para o céu azul, escutamo-lo dizer: “!Qué bonito día, qué
cielo más hermoso! No hace frío todavía” (p. 212). Aparentemente, não há desespero,
mas a cena mostra um homem dissecado e posto para secar na meseta. Segundo o
protagonista, o desespero encontra-se no fato de não estar desesperado, está na suposta
calmaria do entorno, semelhante ao que vemos na estampa.
97
QUEVEDO, Francisco. Sueños y discursos. Madrid: Felipe C. R. Maldonado, 1972. Gravura feita para
ilustrar a obra.
167
Hay algo que explica por qué me estoy dejando capar y por qué ni
siquiera grito mientras me capan (...) Es cómodo ser eunuco, es
tranquilo, estar desprovisto de testículos, es agradable a pesar de ser
castrado tomar el aire y el sol mientras uno se amojama en silencio
(pp. 216-17) (Sublinhado nosso).
Figura 30: Francisco de Goya y Lucientes, “¡Gran hazaña con muertos!”, Desastres de
la Guerra, n. º 51, 1810 – 1814, Água-forte e ponta-seca, 156 x 208 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.
98
BOZAL, Valeriano. “El árbol goyesco”. In: Goya, nuevas visiones. Madrid: Amigos del Museo del
Prado, 1987, p. 120.
169
aguda a voz do fracasso: passa de uma vida com a ilusão do prêmio Nobel para a
descida aos infernos das favelas, do aborto, da prisão e do confinamento ao ar livre.
Esmagado entre a proteção e a opressão, o que resta a Pedro são “tristes
presentimientos de lo que ha de acontecer”, o horizonte que se desenha diante de seus
olhos em fuga não é alentador, pois, contraposta ao azul do céu, está a figura de pedra
do Escorial.
O movimento fluido do trem vai em direção a pedra estática: é Pedro (do latim
petra) que, em fuga, se depara com símbolos de uma sociedade “petrificada”. Não há
escapatória possível, aonde quer que se vá, o tempo é de desumanização, fracasso e
silêncio.
Por aquí abajo nos arrastramos y nos vamos yendo hacia el sitio
donde tenemos que pornernos silenciosamente a esperar
silenciosamente que los años vayan pasando y que silenciosamente
nos vayamos hacia donde se van todas las florecillas del mundo (p.
216).
imaginado e lembrado. Nessa disposição, Nada e Tiempo de Silencio nos mostram que a
História não se compõe somente por grandes feitos, mas também pelo transcurso
cotidiano dos dias.
A partir dessas perspectivas, os autores exploram o espaço de maneira singular,
pois, através dele, expõem os conflitos entre seus personagens e suas tensões.
Metonimicamente, delineiam imagens que definem seu caráter social e histórico,
revelando a contradição entre seus personagens e os ambientes pelos quais transitam.
Em Nada, esse ambiente está impregnado pelos jogos de claro-escuro que geram,
inicialmente, uma polaridade entre os espaços percorridos por Andrea. Essa polarização,
entre as luzes da cidade e a escuridão da casa da rua de Aribau, está constantemente
matizada pelo sonho e pela alucinação. Assim, não é por acaso que o romance encontra
no universo dos Caprichos, cujo primeiro título era Sueños, a expressão de grande parte
de sua visualidade.
Uma vez dissipada essa divisão ostensiva entre esses espaços, a narradora-
protagonista parte rumo ao autoconhecimento e ao conhecimento do mundo em que
vive, tingindo a narrativa de cores ainda mais próximas das gravuras, de um aspecto
cinzento que a faz sentir-se “blanca y gris”. Rodeada por essa cor, carregada de
frustração e desilusão, Andrea chega a uma compreensão de seu entorno e de si mesma
e se vê em um enquadramento:
para o contexto nacional: vemos que não é apenas a casa da rua de Aribau que está
povoada por demônios, bruxas, loucura, pobreza e tristeza, mas toda uma nação.
Ao enxergar essa “demonização” dos ambientes pelos quais transita, Andrea
converte a casa em um espaço metafórico: os trastes amontoados da casa transformam-
se na imagem da própria memória coletiva, acumulando lembranças de uma guerra
sangrenta, frustrações, loucura e dor. Os gritos da casa ecoam por seus cômodos, tomam
os sentidos de seus habitantes e representam uma recordação dolorida de toda uma
sociedade.
Essa dor vem plasmada por imagens que a memória constrói. Não se trata
apenas do tempo vivido, mas do lembrado, que se expande e se torna ilimitado. Assim,
lembrar é mais que viver, é tentar compreender e, por essa compreensão, o lembrado
perde suas limitações, já que se torna a chave para o entendimento do antes e do depois.
Nesse movimento de metamorfose, o sonho cumpre uma importante função,
daí a opção decisiva pela estética dos Caprichos. Ao incorporá-la à narrativa, a autora é
capaz de combinar terror, espanto e dor com monstruosidade e os aspectos fantásticos.
Tal qual no universo onírico tudo pode ser mostrado; pela recuperação da memória
quase tudo pode ser reconstruído e compreendido. Arte e memória trabalham juntas
para configurar a condição de toda uma geração, perdida entre a falta de alento e o gosto
amargo do “nada” que se impõe como horizonte.
Em Tiempo de Silencio, encurralado nesse horizonte estreito, Pedro olha para
as células cancerígenas através de seu velho microscópio. Agigantadas, as células
funcionam como metáforas que revelam a dimensão do câncer na sociedade espanhola
daquele momento. Essa visão, aumentada por sua lente, fragmenta-se em diversas
imagens que configuram a sociedade: o protagonista vê, entre os “farrapos-cortinas” da
casa de Muecas, meninas criando ratos sob o olhar resignado de uma consorte gorda e
animalizada. Desumanizados, todos invertem a ordem natural entre humanos e animais;
vivem e morrem como bichos.
Pedro ainda observa, entre os ramos da “Árvore da Ciência”, discussões inúteis
que reduzem humanos a pássaros atordoados e converte um filósofo, em um demônio
vaidoso, quase cômico, que estende sua pata em sinal de benção através de palavras
vazias. Na pensão onde vive, as figuras transformam-se em mitos distorcidos: são
Parcas derrotadas e maniqueístas, que confabulam “celestinescamente” em busca de um
175
“bom partido”. Dentro da prisão, Pedro encontra na “estampa” de uma sereia muda a
imagem emblemática do tempo de silêncio em que vive. Libertado desse espaço
reduzido, perde as ilusões e os sonhos de uma vida. Ao ar livre reconhece um tipo de
cárcere em que sempre vivera, mas que até então não havia percebido; seus horizontes
estreitam-se em uma prisão a céu aberto e da qual não é possível escapar.
Entendemos, então, porque no título Tiempo de Silencio ainda permanece sua
idéia original: Tiempo Frustrado. Complementares, esses tempos constituem um mesmo
espaço que se fraciona e se reduz ao corpo abjeto, tomado por um enxame de palavras
que, ao mesmo tempo que corrói, constrói a visão onipresente do câncer.
Nessa visão proporcionada pelo romance, a animalização e a desumanização
evocam procedimentos e temas goyescos, estampados nas gravuras dos Desastres de la
Guerra. Ao evocá-los e reformulá-los em sua narrativa, Martín-Santos nos mostra que a
cidade, sob o signo da ditadura, continua reproduzindo elementos de uma guerra
dilacerante. Expor suas vísceras através do câncer significa recuperar imagens que ainda
estão presentes em uma dor coletiva de uma sociedade em frangalhos.
Dessa exposição, multiplicadora e cáustica, vem a apropriação dos Desastres,
que contribuíram para configurar em um espaço reduzido uma reflexão sobre a guerra e
sua crueldade, sua injustiça, sua fome e seu terror. Terror aqui entendido como um
medo que não se compreende muito bem, que pode vir de qualquer parte, que está
latente no cotidiano . Assim, os mil tentáculos da ditadura franquista podem capturar a
todos e atemorizar, sustentando um discurso de aparente normalidade e inteireza que
oculta um ambiente violado.
Dividida em uma mitose voraz pela narrativa, essa sociedade se parte em
estilhaços, como se fosse vista através de um microscópio. Uma vez despedaçada, o
autor destrói a imagem de tranqüilidade, junta os cacos dos anos triunfais do franquismo
e constitui uma nova forma literária, pautada pelo caráter visceral e pela exposição das
entranhas da cidade e de seus personagens em uma nova linguagem, moldada em
imagens, temas e procedimentos goyescos, como a inversão da ordem natural, a morte
em cena pública, a fragmentação das cenas e das imagens, o corpo-a-corpo que termina
em morte e, por fim, um encolhimento de horizontes que restringe o foco do olhar a um
espaço e um tempo frustrados.
176
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297-309.
192
Quadro 02: Classificação temática da primeira numeração de Los Desastres, segundo C. Derozier.
1E 30 B
2E 31 B
3B 32 A-E
4A 32 A-E
5B 33 A-E
7A 34 F
8A 34 B
10 C 35 B
11 A 36 B
12 A 36 F
13 A 37 B
14 A 38 B
15 C 39 E
16 A 40 C
17 A 41 F
18 D 42 A-E
19 D 43 B
19 D 44 B
20 D 45 B
21 A 46 B
22 E 47 B
23 E 48 F
24 A 49 E
25 A 50 B
26 A 51 A-E
27 E 53 A
28 F 55 B
29 D 57 E