Tese Margareth Santos

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
ÁREA: LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURAS ESPANHOLA
E HISPANO-AMERICANA

Desastres do pós-guerra civil espanhola

Uma leitura de Tiempo de Silencio, de Luis Martín-Santos

e Nada, de Carmen Laforet

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Língua Espanhola e
Literaturas Espanhola e Hispano-americana,
do Departamento de Letras Modernas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Doutora em Letras.

Orientadora: Prof. Dr. ª Valeria De Marco.

São Paulo
2005
1

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
ÁREA: LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURAS ESPANHOLA
E HISPANO-AMERICANA

Desastres do pós-guerra civil espanhola


Uma leitura de Tiempo de Silencio, de Luis Martín-Santos
e Nada, de Carmen Laforet

Margareth dos Santos

São Paulo
2005
2

Ao Luís, a outra parte do lego.


3

Agradecimentos

Agradeço a
Valeria, por compartilhar amizade e conhecimento nesses onze anos.
Concha por sempre acompanhar minha trajetória com generosidade e comentários
agudos.
Mario por abrir-me o mundo dos estudos acadêmicos na iniciação científica e por
estar sempre presente com interesse e entusiasmo em todas as ações de seus
estudantes e orientandos.
Gênese pelos comentários, leituras e amizade imprescindíveis.
Seve, pela tutoria, apoio e carinho incalculáveis durante minha estada na Espanha.
Ivan, ¡compañero! de todos os momentos, difíceis e alegres.
Vima e Bia, por atenderem com tanta paciência aos meus inúmeros telefonemas.
Neide, Ângela, Rita e Sueli, amigas de agora e sempre.
Saulo, pela capa e pela amizade constante.
Dona Marta, tão querida!
Lu, Letícia e Luciano, por estarem sempre próximos.
CAPES, por proporcionar-me a bolsa PDEE (Programa de Doutorado no Brasil com
Estágio no Exterior), que possibilitou, entre outras coisas, uma ampla pesquisa da
fortuna crítica dos romances estudados, imprescindível para este trabalho.
4

Resumo

O trabalho propõe-se a analisar os romances Nada (1945), de Carmen Laforet e Tiempo


de Silencio (1962), de Luis Martín-Santos para examinar o traço singular da construção
de ambas obras, qual seja, a apropriação das séries de gravuras Los Caprichos e Los
Desastres de la Guerra de Goya. Em Nada, abordamos a integração do aspecto
monstruoso ao espaço romanesco, o apagamento da fronteira entre o mundo onírico e o
real, a representação fragmentária e a diluição dos limites entre o passado da matéria
narrada e o tempo da narração. Em Tiempo de Silencio, analisamos os procedimentos de
redução do espaço, o uso do extracampo, da animalização e de imagens expansivas,
caracterizados pela apropriação de imagens, procedimentos e temas provenientes do
universo goyesco. A partir da análise desses elementos, observamos que, ao
incorporarem as gravuras na composição desses dois romances, os autores criam uma
dimensão ampliada do horror da guerra e, ao mesmo tempo, sugerem uma interpretação
da história contemporânea como um movimento de continuidade do “desastre
espanhol”, desde o século XIX até o pós-guerra civil espanhola.

Palavras-chave: Nada, Carmen Laforet, Tiempo de Silencio, Luis Martín-Santos, Goya e


o romance de pós-guerra civil espanhola.
5

Abstract

The proposed study aims at analyzing the novels Nothing (1945), written by Carmen
Laforet, and Time of Silence (1962), by Luis Martín-Santos, in order to examine both
works construction singularity; that is to say, the appropriation of the engravings series
of Goya’s The Caprices and The disasters of the war. In Nada, we deal with the
integration from the monstrous aspect to the novelistic space, the suppression of the
frontier between the oneiric and the real worlds, the fragmented representation and the
dilution of the limits between the subject matter narrated and the time of narration. In
Time of Silence, we analyze the procedures of space reduction, the use of field work, of
animalization and expansive images characterized by the representation appropriation,
procedures and themes provided by the Goyan universe. Taking the analysis of these
elements into consideration, we observe that the authors, through the pictures
incorporation within the composition of these two novels, create an amplified dimension
of the horror of war, and at the same time, they suggest an interpretation of
contemporary history as a continuity movement of the “Spanish disaster” since 19th
Century up to the Spanish civil post-war.

Key-words: Nothing; Carmen Laforet; Time of Silence; Luis Martín-Santos; Goya and
the Spanish civil post-war novel.
6

Resumen

El trabajo se propone a analizar las novelas Nada (1945), de Carmen Laforet y Tiempo
de Silencio (1962), de Luis Martín-Santos para examinar el rasgo singular de la
elaboración de ambas obras, es decir, la apropiación de las series de grabados Los
Caprichos y Los Desastres de la Guerra de Goya. En Nada, abordamos la integración
del aspecto monstruoso al espacio romanesco, la extinción de los límites entre el mundo
onírico y el real, la representación fragmentaria y la dilución de los límites entre el
pasado de la materia narrada y el tiempo de la narración. En Tiempo de Silencio,
analizamos los procedimientos de reducción del espacio, el uso del extracampo, de la
animalización y de imágenes expansivas, caracterizados por la apropiación de
representaciones, procedimientos y temas provenientes del universo goyesco. A partir
del análisis de esos elementos, observamos que, al incorporar los grabados en la
composición de esas novelas, los autores crean una dimensión ampliada del horror de la
guerra y, a la vez, sugieren una interpretación de la historia contemporánea como un
movimiento de continuidad del “desastre español”, desde el siglo XIX hasta la
posguerra civil española.

Palabras-clave: Nada; Carmen Laforet; Tiempo de Silencio; Luis Martín-Santos; Goya y


la novela de posguerra civil española.
7

Relação de imagens

Figura 1 - Tipos de buril........................................................................ 29


Figura 2 - Tipos de ponta-seca.............................................................. 31
Figura 3 - “El sueño de la razón produce monstruos”…………………. 32
Figura 4 - “L'Arquebusade”.................................................................... 35
Figura 5 - “No hay remedio”.................................................................. 36
Figura 6 - Sueño y Mentira de Franco................................................... 40
Figura 7 - “Que se rompe la cuerda”...................................................... 40
Figura 8 - Guernica................................................................................ 41
Figura 9 - “Estragos de la guerra”.......................................................... 41
Figura 10 - “No te escaparás”................................................................... 57
Figura 11 - “Duendecitos”........................................................................ 61
Figura 12 - “Las resultas”......................................................................... 77
Figura 13 - “Buen Viaje”.......................................................................... 83
Figura 14 - Coloso.................................................................................... 84
Figura 15 - El entierro de la Sardina....................................................... 90
Figura 16 - “Todos caerán”...................................................................... 92
Figura 17 - “Disparate ridículo”............................................................... 96
Figura 18 - “Nada. Ello dirá”................................................................... 99
Figura 19 - El aquelarre........................................................................... 113
Figura 20 - “No hay remedio”.................................................................. 125
Figura 21 - “Tu que no puedes”............................................................... 132
Figura 22 - “¡Que pico de oro!”............................................................... 132
Figura 23 - “¿De qué mal morirá?”.......................................................... 138
Figura 24 - “Hilan delgado”..................................................................... 144
Figura 25 - “¡Fiero monstruo!”................................................................. 147
Figura 26 - “Carretadas al cementerio”.................................................... 157
Figura 27 - “No se puede mirar”……………………….......................... 161
Figura 28 - “Tampoco”............................................................................. 164
8

Figura 29 - Sueños.................................................................................... 164


Figura 30 - “¡Gran hazaña con muertos!”................................................ 167
Figura 31 - “Tristes presentimientos de lo que ha de acontecer”………. 169
9

Sumário

Relação de Imagens......................................................................................... 7

Introdução: visões e leituras em série............................................................. 10

Capítulo I: A relação entre literatura e artes plásticas..................................... 13

Capítulo II: Nada: a memória gravada............................................................ 45

A polarização do espaço público e do privado....................................... 52

Os espaços da fome e da loucura............................................................ 67

O aspecto cinzento do conhecimento...................................................... 87

Capítulo III: Tiempo de Silencio: uma sociedade visceral............................. 102

A escritura como câncer: a proliferação das palavras............................. 117

O mundo pelo avesso: ratos e ventres..................................................... 129

A imagem deformada: o momento da compreensão............................... 146

O câncer metafórico: a proliferação do fracasso..................................... 164

Palavras finais: o olhar pela fresta................................................................... 172

Referências Bibliográficas.............................................................................. 178

Apêndice: Seqüência de Los Desastres de la Guerra..................................... 192


10

Introdução: visões e leituras em série

(...) De resto, achar a beleza de uma


coisa é apenas aprofundar seu
caráter.
(Haroldo de Campos)

Este trabalho dedica-se ao estudo de dois romances importantes do período da


pós-guerra civil espanhola, Nada, de Carmen Laforet, e Tiempo de Silencio, de Luis
Martín-Santos. Nossa análise busca apresentar novas perspectivas de discussão dessas
duas obras literárias a partir de sua relação com as artes plásticas. Para tanto, a tese
centra-se na hipótese de que a construção dos romances evoca a produção artística
goyesca, sobretudo a de suas séries dos Caprichos e dos Desastres de la Guerra.1
Acreditamos que essa evocação da obra goyesca constitui-se como um dos
elementos inovadores dos romances estudados e é decisiva para dar a eles a
possibilidade de configurar a dimensão devastadora do cenário que se abria diante de
seus olhos. Esse traço dos romances permite observar um duplo movimento nas
narrativas: a apropriação das imagens goyescas e, também, a constatação de que o
momento histórico e suas características singulares propiciavam estabelecer tais

1
Goya elaborou sua obra gravada ao longo de cinqüenta e três anos. Suas primeiras gravuras foram
realizadas em 1773, com uma série de cópias de alguns quadros de Velázquez. Na década de 1790,
também chamada de “Década dos Caprichos”, o gravador passa um período no palácio de verão da
Duquesa de Alba, ali produz numerosos desenhos nos denominados Álbum A e Álbum B, dos quais
surgiram as oitenta e três estampas da série Los Caprichos, publicada em 1799. Durante o período da
Guerra de Independência contra os franceses —1808-1814 —, Goya permanece a maior parte do tempo
em Madri, onde realiza a série de Los Desastres de la Guerra, possivelmente entre os anos de 1810 a
1815. Essa obra, composta por oitenta e cinco gravuras, não foi publicada em vida.
Em 1815, empreende uma nova série de estampas, intitulada La Tauromaquia, composta por trinta e
cinco gravuras. Admirador das touradas, dedicou-se a contar a história desse espetáculo e as façanhas de
toureiros ilustres. Suas últimas séries de estampas, Los Proverbios e Los Disparates, também são datada
dessa época. Assim como Los Desastres, não foram publicadas. Consideradas de difícil interpretação,
nelas se encontram imagens que aludem, de maneira obscura, a críticas sociais e/ou políticas.
Em junho de 1824, parte para a França, a fim de cuidar de sua saúde na estância mineral de Plombières.
Finalmente, se estabelece em Bordeaux e ali, realiza algumas obras de litografia, técnica nova na época.
Em 1826 e 1827, visita Madri e no ano seguinte, morre, aos oitenta e dois anos, cercado por sua nora e
seu neto Mariano.
11

relações. Assim, ao conjugar as imagens goyescas à palavra, as duas obras literárias


plasmaram, em toda sua contundência, os desastres do pós-guerra civil espanhola.
Para comprovar essa idéia através da leitura conjunta dos romances e das
gravuras, o trabalho foi dividido em três capítulos: no primeiro, “A relação entre
literatura e artes plásticas”, discutimos as possibilidades de relação entre a pintura e a
gravura e a literatura pelo conceito de ekphrasis, entendido aqui como a capacidade de
representar e interpretar uma obra de arte por meio de palavras. Traçamos, também, a
trajetória dos Caprichos e dos Desastres, a fim de antecipar suas possíveis conexões
com as narrativas e estabelecemos a relação entre os recursos utilizados pelo gravador
com os procedimentos na estruturação dos romances.
No segundo capítulo, “Nada: a memória gravada”, analisamos o romance de
Carmen Laforet, que se estrutura através da recuperação do passado da narradora-
protagonista, Andrea. A partir da questão da memória, destacamos como sua reflexão
está mediada pela evocação das gravuras goyescas da série Los Caprichos.
Escolhemos, como estratégia de análise, acompanhar a seqüência do romance
para discutir e estudar os temas e recursos de acordo com seu surgimento. Dessa forma,
as questões que abordamos na obra de Laforet são: a integração do aspecto monstruoso
e da loucura ao ambiente doméstico e cotidiano; a representação fragmentária; a
profusão de sinestesias; a diluição dos contornos entre o tempo da matéria narrada e o
da narração; o apagamento das fronteiras entre o mundo real e o onírico; bem como a
questão da incomunicabilidade, observada tanto pela falta de diálogo entre os
personagens, como pelo cerceamento da liberdade de expressão durante a ditadura
franquista. Buscamos indicar que a autora apropriou-se de técnicas análogas à gravura e
de temas que se encontram nas séries goyescas para elaborar sua narrativa.
No terceiro capítulo, intitulado “Tiempo de Silencio: uma sociedade visceral”,
analisamos o romance de Luis Martín-Santos e expomos suas inovações técnicas e
estéticas. Assim como no capítulo anterior, a estratégia de análise consiste em
acompanhar a seqüência do romance para examinar seus temas e os recursos utilizados
em sua construção. Os principais elementos que focalizamos são: a redução do espaço; a
proliferação do traço; o uso do extracampo e de imagens expansivas; a abordagem da
morte em cena pública; o tópico do mundo às avessas; a animalização do humano e o
12

gosto pelo monstruoso. Buscamos observar que essas técnicas e temas encontram-se nas
gravuras e nos procedimentos mobilizados para construir o romance.
Na última parte do trabalho, “Palavras finais: o olhar pela fresta”, discorremos,
brevemente, sobre os pontos de interseção entre os romances e as gravuras goyescas,
bem como sobre a abordagem inovadora que essas obras literárias propõem para
interpretar o contexto histórico em que se inserem.
13

Capítulo I : A relação entre literatura e artes plásticas

A tarefa do escritor não é,


portanto, simplesmente relembrar
os acontecimentos, mas subtraí-los
às contingências do tempo em uma
metáfora.
(Marcel Proust, Em busca do
Tempo Perdido).

Um estudo interartes sempre suscita muitas perguntas. Talvez a primeira delas


seja se existe uma conexão entre a literatura e as artes plásticas, em nosso caso, entre as
gravuras de Goya e os romances estudados: Nada, de Carmen Laforet e Tiempo de
Silencio, de Luis Martín-Santos. A segunda consiste na indagação sobre estabelecer
relações entre as gravuras de um pintor do século XVIII e dois romances do século XX.
Para responder a essas perguntas fundamentais e a muitas outras que nos
fizemos ao longo deste trabalho, dispomo-nos a percorrer o caminho dos desastres do
pós-guerra e a traçar as relações interartísticas entre os romances estudados e as
gravuras goyescas.
No centro dessa relação, encontra-se a metáfora das artes irmãs, formulada
através de um antigo termo, a ekphrasis. Para discuti-lo, faremos um breve percurso
histórico e crítico de sua acepção a fim de estabelecer sua pertinência no trabalho.
A acepção “arte”, derivada do latim ars, provocou inúmeras discussões e
sofreu mudanças ao longo da história da estética, ocorridas em sua maioria pela
complexidade do tema, que, como um pêndulo, oscilou durante muito tempo entre os
sentidos de “beleza”, “ética” e “natureza”, significados que variavam de cultura para
cultura, gerando uma trama histórica complexa.
Para a cultura greco-latina, a arte não se regia pelos conceitos que hoje
conhecemos, pois designava uma atividade que requeria destreza e habilidade, o que
incluía, no âmbito artístico, numerosas profissões e trabalhos manuais díspares, como a
alfaiataria, a cerâmica, a pintura e a matemática.
Uma das razões para tal reunião estaria no fato de que os gregos não tinham
uma idéia abstrata do trabalho, mas sim concreta e, por isso, condicionada,
14

essencialmente, pelo uso do produto final e por sua funcionalidade. O valor estava na
tehknê, palavra que denominava qualquer atividade manual então realizada.
Os compêndios da época classificavam as artes em dois grandes grupos, o das
artes “liberais” — caracterizadas fundamentalmente pelo esforço mental, não se
destinavam à aquisição de dinheiro2 — e o das “vulgares”, relacionadas ao vigor físico e
que, por essa razão, recebiam menos respeito e estima. A pintura incluía-se no conjunto
das artes manuais (artes mechanicae). Já a poesia não fazia parte de tal grupo, pois era
considerada uma arte que provinha dos deuses e, por seu caráter sagrado, mantinha-se à
parte de qualquer tipo de classificação.

Con justicia se queja la pintura de que no es incluida en el número de


las artes liberales, siendo como es verdadera hija de la Naturaleza, y
operando por medio de la vista, el más digno de todos nuestros
sentidos.3

Será somente com a valorização do processo da invenção em detrimento do


produto final que a pintura ganhará seu estatuto de “arte liberal” e seu posto de honra no
mundo das artes junto a sua nobre “irmã”, a poesia. Essa mudança ocorre apenas com a
introdução da escrita. Com o advento da escritura, a poesia saiu do mundo da oralidade
para o da leitura, manipulação e reprodução, o que desencadeou a perda gradativa de
sua aura sagrada. Dessa forma, a poesia tornou-se uma arte como qualquer outra e,
portanto, sujeita a comparações.
Uma dessas primeiras comparações interartísticas surgiu com Platão, que, ao
traçar uma teoria da imagem, afirmou que o mundo que vemos é apenas aparência e que
somente no mundo das idéias encontramos a beleza mais elevada. Ele via a poesia, a
pintura e a escultura como artes de imitação, ou seja, sob o signo da mímese. No
entanto, a imitação não se dava em relação à idéia pura, mas sim em relação a
aparências naturais, que, para ele, eram indignas de permanecer na pólis, reduto da

2
Para maiores informações quanto à discussão sobre artes liberais e mecânicas, ver GALI, Neus. Poesía
silenciosa, pintura que habla. Barcelona: El Acantilado, 1999.
3
DA VINCI, Leonardo. Tratado de la Pintura. Madrid: Aguilar, 1964, p. 57.
15

razão. Sendo assim, ao defini-las como atividades miméticas, o pensador as separou da


razão, relegando-as a um território à parte, o da arte.
A reintegração da arte à pólis dar-se-á com seu discípulo Aristóteles que, em
sua Poética, estabeleceu o princípio da imitação como paradigma de toda atividade
poética, baseado não apenas na simples cópia da natureza, mas na idéia de
verossimilhança e recriação.
Mais tarde, a perda do caráter mágico da poesia abriu caminho para o aforismo
atribuído por Plutarco a Simônides de Ceos de que “a pintura é poesia muda” e “a
poesia, uma pintura falante”. A partir deste, iniciou-se uma longa discussão a respeito
da irmandade das artes visuais.
Simônides, em seu aforismo, atribui uma ligeira vantagem à poesia, pois
postula que esta não só está dotada de poder visual e simbólico, mas também é capaz de
configurar um meio visível mediante a linguagem.
Quatro séculos depois da frase de Simônides, surge a ut pictura poesis (como a
pintura, assim é a poesia), de Horácio. De enorme repercussão na teoria da arte, a
máxima horaciana propunha que as artes são parecidas em alguns aspectos e seu autor
também assinalou que alguns textos, ainda que examinados várias vezes, continuam
proporcionando-nos prazer e interesse, enquanto há outros aos quais não voltamos uma
segunda vez.

La poesía es como la pintura; habrá una que te cautivará más si te


mantienes cerca, otra si te apartas algo lejos, éste ama la penumbra
aquélla, que no teme la penetrante mirada del que la juzga, quiere ser
vista a plena luz; ésta agradó una sola vez; aquélla, aunque se vuelva
a ella diez veces, agradará.4

Amplamente analisado e distorcido, o aforismo horaciano ficou, ao longo da


história da estética, com a paternidade sobre a irmandade das artes. Não obstante, pode-
se observar, na citação de sua Epístola aos Pisões, que Horácio se ateve a dois pontos
básicos: o das limitações de ambas as artes e o da necessidade de verossimilhança.

4
HORACIO. “Epístola a los Pisones”. In: Artes Poéticas. Madrid: Cátedra, 1987, p. 361.
16

Si un pintor quisiera añadir a una cabeza humana un cuello equino e


introdujera plumas variopintas en miembros reunidos alocadamente
de tal modo que termine espantosamente en negro pez lo que en su
parte superior es una hermosa mujer ¿podríais, permitida su
contemplación, contener la risa, amigos? Creedme, Pisones, que a ese
cuadro será muy semejante un libro cuyas imágenes se representan
vanas, como sueños de enfermo, de manera que pie y cabeza no se
correspondan con una forma única.5

Para Horácio, continua vigente o conceito de mímese, pois a poesia é como a


pintura já que ambas devem ser o “espelho da realidade” e se parecem porque, ao
mimetizar a realidade, ambas têm suas limitações.
Ainda no âmbito das discussões sobre as limitações da literatura e da pintura,
Leonardo Da Vinci, em 1490, tenta reverter a desvantagem da pintura e, em seu Tratado
de Pintura, inverte o sentido das palavras de Simônides:

Si se dice que la pintura es poesía muda, entonces también se puede


llamar pintura ciega a la poesía. Ahora bien, pensemos: ¿cuál de las
aflicciones es más perniciosa, la del hombre ciego o la del mudo?... Si
el poeta sirve a los sentidos mediante el oído, el pintor lo hace
mediante el ojo, un sentido más elevado.6

Ao promover a inversão, o pintor restringe-se a apontar para as limitações de


ambas as artes, ao designar um saber para o cego e outro para o surdo, fragmentando os

5
HORACIO. “Epístola a los Pisones”. In: Artes Poéticas. Madrid: Cátedra, 1987, p. 129.
6
DA VINCI, Leonardo. Tratado de la Pintura. Madrid: Aguilar, 1964, p. 51.
17

saberes, em lugar de aproximá-los, não sem propor a superioridade da pintura, dando ao


olhar sua superioridade em relação ao ouvir.
No entanto, ao longo do Renascimento, as relações interartes continuaram
privilegiando a literatura. Um exemplo disso encontra-se em um livro contemporâneo
de Da Vinci: De pictura, de Leon Battista Alberti. Na segunda parte dessa obra, em que
discorre sobre a composição, Alberti discute o que considera a finalidade da pintura, a
representação da história.

(...) la relevancia de un cuadro no se mide por su tamaño, sino por lo


que cuenta, su historia, y que, por tanto, merece mayor alabanza por
ésta que por la grandeza de su formato.7

Para Alberti, a importância de um quadro se relacionava diretamente com a


amplitude da “palavra” em sua visualização, ou seja, a capacidade do pictórico em
“narrar” através da imagem. Essa idéia, em realidade, permeou o âmbito das artes desde
o final da Antiguidade até o século XVIII, pois a discussão quase sempre propunha o
mundo como um cenário em que as figuras humanas representavam ações retratadas em
textos de poetas reconhecidos. Daí, entendermos que grande parte da arte visual
européia, no período entre os séculos XV e XVIII, representava temas tomados de
textos escritos.
Invocava-se a doutrina da ut pictura poesis para legitimar as imagens por sua
relação com textos prévios e (con)sagrados. Com isso, a relação interartes pautava-se
pelo viés da narração, em última instância, pela literatura, pois tanto pintor como
escultor tinham como “missão” traduzir a palavra em imagens.
É certo que não compartilhamos dessa idéia de tradução de imagens, já que
buscamos, mais do que a descrição das imagens goyescas, comprovar sua presença nos
romances Tiempo de Silencio e Nada. Acreditamos que tanto nas narrativas como nas
gravuras há uma reflexão, no sentido de que artista e escritor não copiam a realidade,
mas partem de acontecimentos cotidianos e constroem imagens que permitem uma
aproximação a essa realidade de maneira não convencional.8

7
ALBERTI, Leon Battista. De la Pintura. Madrid: Cátedra, 1996, p. 18.
8
GASSIER, Pierre. Goya: life and work. Köln: Benedikt Taschen Verlag GmbH, 1994, p. 728.
18

Considerar a imagem como mera tradução da palavra, alimentada apenas por


suas afinidades literárias, configura uma visão utilitária e limitada da obra pictórica em
geral e da obra goyesca em particular, objeto de investigação neste trabalho. Tal posição
não leva em conta que o grande poder das imagens reside na capacidade do artista
plástico de reinterpretar as referências iconográficas e literárias vigentes e transformá-
las dentro de um sistema visual próprio.
Sendo assim, estreitaremos as relações entre os romances e a obra goyesca
buscando uma relação efetiva entre ambos e evitando o mero exercício de mímese e
descrição. Nos capítulos em que discutiremos a herança goyesca na literatura espanhola
contemporânea, queremos demonstrar que técnicas como a redução e fragmentação do
espaço, a proliferação do traço, o uso do extracampo e de imagens expansivas, a
abordagem da morte como espetáculo público, o tópico do mundo às avessas, a
animalização do humano e o gosto pelo monstruoso são elementos marcantes na
elaboração da série de gravuras e na construção dos romances de Carmen Laforet e Luis
Martín-Santos. Os escritores em questão souberam captar a não convencionalidade da
visão goyesca e utilizá-la para configurar um momento histórico contundente.
Essa não convencionalidade da obra do gravador centra-se no abandono do
decoro vigente em sua época. Embora estivesse fortemente marcado pelo Renascimento
e pela admiração por seus mestres, e conhecesse muito bem os cânones clássicos e
neoclássicos e o livro de Alberti9, Goya rompeu com a idéia de um modelo de bom
gosto ideal e de uma representação referencial. Quando realizou seus Caprichos e
Desastres de la Guerra, abandonou o conceito de “realidade ideal”. Tal posição
manifesta-se em seu anúncio de venda das estampas dos Caprichos no Diario de
Madrid em 6 de fevereiro de 1799, no qual estabeleceu a função de suas gravuras:

La pintura (como la poesía) escoge en lo universal lo que juzga más a


propósito para sus fines: reúne en un solo personaje fantástico,
circunstancias y caracteres que la naturaleza presenta repartidos en
muchos, y de esta combinación, ingeniosamente dispuesta, resulta

9
Durante sua juventude, Goya morou na Itália, onde se educou e formou-se como pintor. Ali, pôde
conhecer e estudar inúmeras obras sobre as artes plásticas, entre elas, o livro de Alberti.
19

aquella feliz imitación, por la cual adquiere un buen artífice el título


de inventor y no de copiante servil.10

A concepção do pintor sobre a criação artística deixa a disciplina e a cópia em


segundo plano, ao contrário do que pregavam os cânones vigentes, e, em primeiro lugar,
posiciona a criação e a engenhosidade que, unidas à fantasia, criam o que Goya chamou
“idioma universal”. O pintor estrutura em sua arte elementos do cotidiano, não para
mimetizá-los, mas sim para analisá-los, criticá-los e demonstrar, de maneira subjetiva,
uma relação dialética e não dicotômica entre a invenção e a realidade. Trata-se, então,
de uma arte que muito mais que “literaturalizar” as artes plásticas, critica um estado de
coisas vigente. Uma citação de Leon Battista Alberti serve-nos para demonstrar a
diferença que vemos entre Goya e seus contemporâneos:

La istoria, como escribía Alberti, conmoverá el ánimo del espectador


cuando cada uno de los hombres en ella representados muestre
claramente el movimiento de su alma.11

Parece, em um primeiro momento, que as obras de Goya têm tudo para


concordar com a assertiva de Alberti, não fosse pelo fato de não obedecer à
representação de textos consagrados, mas sim a de uma realidade latente.
Ao olhar seu entorno, Goya não cai na armadilha da ut pictura poesis, pois
ultrapassa a barreira imposta por Alberti da obrigatoriedade de identificar a palavra
como fonte de inspiração. Com esta afirmação, não negamos que o pintor utilize textos
famosos como elemento de inspiração, mas sim que este não é seu fim último,
sobretudo nas gravuras. As imagens não estão ali apenas para contar histórias
conhecidas e reconhecidas.
Dito isso, para terminar nossa breve história da concepção das artes irmãs,
tocaremos em duas questões: a discussão proposta por Lessing e o conceito moderno de
ekphrasis, fundamental para nosso estudo interartístico.

10
GOYA Y LUCIENTES, Francisco de. Diario de Madrid, 1799, p. 1.
11
ALBERTI, Leon Battista. De la Pintura. Madrid: Cátedra, 1996, p. 23
20

Em meados do século XVIII, Lessing, com seu livro Laocoonte, deu um duro
golpe na suposta união interartística ao opor a pintura como arte espacial e à literatura,
como temporal. Ao deslocar a discussão sobre o “modo” de representação para ocupar-
se de seu “meio” de representar a realidade, Lessing inaugurou uma nova forma de
discussão sobre a relação interartes:

La pintura “no” es como la poesía debido a que “no” representa la


misma realidad. Pero, a la vez, la pintura es a los cuerpos lo que la
poesía es a las acciones. El “es a” aquí es mucho menos obviamente
homonímico que anteriormente (...) Por tanto, aunque las artes son
similares en que son imitaciones, no imitan las mismas cosas.12

Embora tenha aberto um novo capítulo na discussão interartística, a premissa


de Lessing depende diretamente da noção de mímese e, ainda que inaugure uma relação
de meio e não de analogia entre as artes, continua apoiando-se na noção de que pintura e
literatura são “icônicas” da realidade.13
Cabe ressaltar, também, que para o autor, a oposição defendida manifesta-se,
também, na representação das ações, já que a literatura as expõe no tempo e a pintura
configura o momento no espaço.

Objetos que existem um ao lado do outro ou cujas partes existem uma


ao lado da outra chamam-se corpos. Conseqüentemente são os corpos
com as suas qualidades visíveis que constituem o objeto próprio da
pintura.
Objetos que se seguem um ao outro ou cujas partes se seguem uma à
outra chamam-se em geral ações. Conseqüentemente as ações
constituem os objetos próprio da poesia.14

12
STEINER, Wendy. “La analogía entre pintura y literatura”. In: Literatura y Pintura. Madrid: Arco
Libros, 2000, p. 43.
13
Ibid, p. 46.
14
LESSING, Epharaim Gotthold. Laocoonte. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 193.
21

Ao propor a oposição entre pintura e literatura, Lessing destronou a ut pictura


poesis, pois, embora concordasse que as bases artísticas da pintura e da literatura
estivessem próximas, os meios separavam os modos e, conseqüentemente, estas já não
tinham uma relação de irmandade.
Com isso, a máxima horaciana viu sua autoridade questionada e decaiu
paulatinamente durante o Romantismo para ressurgir com a teoria das correspondências,
propagada por Baudelaire e revitalizada posteriormente, pelo Modernismo.
No século XX, aprofundou-se a perspectiva de renovação estética, ressurgiram
importantes discussões em meio às analogias artísticas e, hoje em dia, cada vez mais
teóricos e artistas levantam relações entre literatura e pintura, freqüentemente
capitaneadas pelo conceito de ekphrasis que, revisto, adquiriu contornos modernos que
tornaram possível uma reconciliação entre as “artes irmãs”. Por meio da ekphrasis, o
debate interartístico indica o viés da interpretação como ponto em que se entrecruzam
artes plásticas e literatura.
É justamente esse viés de interpretação que esperamos discutir neste trabalho,
já que entendemos o conceito de ekphrasis como a verbalização de textos não verbais.15
Sendo assim, exporemos uma maneira de ler os romances através de seu aspecto visual,
que se revela na tentativa de compreensão de seu contexto histórico.
Nessa tentativa de percepção, gravador e escritores “cortam e contam”
histórias de forma particular; em ambas, artes plásticas e literatura, técnica e significado
são inseparáveis, pois confluem nessa visão de mundo em conteúdo e forma.
Desse modo, embora a questão tempo versus espaço esteja na base da
separação entre as artes, já que a literatura seria uma arte do tempo e a pintura e a
gravura uma arte do espaço, se consideramos os romances de Carmen Laforet e de Luis
Martín-Santos e as gravuras goyescas, acreditamos que essa visão se revela reversível,
em vários momentos. Em Nada podemos enxergar uma sucessão de estampas que se
estruturam em torno de um espaço — a casa da rua de Aribau. Já Tiempo de Silencio
fragmenta-se em uma sucessão de imagens com a clara intenção de dar uma visão
contundente da sociedade espanhola sob a ditadura franquista. E a série de gravuras, por
sua vez, constrói uma narrativa sobre o processo da Guerra de Independência e suas
terríveis conseqüências.

15
CLÜVER, Claus. Quotation, Enargeia and the Functions of Ekphrasis. Texto não-publicado.
22

Então, talvez possamos dizer, com o devido cuidado, que, muitas vezes, uma
gravura nos “conta” algo, ou muitas coisas, e que a literatura pode, sim, delinear
imagens. Assim, tentaremos mostrar que o exercício literário, pleno de visualidade,
pode assumir uma função complementar: a evocação. Os elementos para a construção
literária se organizam de tal forma que permitem evocar pinturas, gravuras e recriar em
suas linhas uma interpretação pictórica que se incorpora à narração, o que exige não só a
percepção de seu conteúdo, mas também de seu propósito estético e dos recursos
utilizados para concretizá-lo.
Com base na ekphrasis, em seu conceito moderno, consideramos que artes
plásticas e literatura não são “artes irmãs”, mas apresentam pontos de interseção,
possibilitando visualizar e interpretar como as gravuras goyescas, nos dois romances
estudados, são elementos de recriação literária de uma visão de mundo que vai além da
mímese.
A partir dessas considerações, faz-se necessário discutir, brevemente, a noção
de ekphrasis que utilizaremos neste trabalho. A concepção de ekphrasis tal como a
usamos hoje, em sua origem designava a descrição e em sua realização estava implícito
o conceito aristotélico de enargeia, ou seja, a capacidade de expressar-se com tal
vivacidade que se poderia pôr, diante do leitor, uma imagem literal do objeto ou
situação descrita.

Enargeia supõe alcançar, no discurso verbal, uma qualidade natural


ou melhor uma qualidade pictórica que seja enormemente natural.
Energeia se refere à atualização da potência, à realização da
capacidade ou habilidade, à culminação entre a arte e a retórica da
vida, dinâmica e repleta de sentido, da natureza. A poesia possui
enargeia [aristotélica] quando chega a sua forma final e produz o
prazer que lhe corresponde, quando chega a ser um ser próprio e
independente, apartado de suas analogias com a natureza ou com
outra arte, e quando se constitui como uma forma autônoma com um
funcionamento efetivo por si mesma. 16

16
HAGSTRUM, Jean. The sister arts. Chicago: University of Chicago Press, 1958, p. 23 (Tradução
minha).
23

O conceito capaz de incorporar a enargeia em um texto foi, durante muito


tempo, a ekphrasis, mas, atualmente, esta se posiciona além das fronteiras do descritivo
para alcançar um valor interpretativo, que é justamente a denominação que nos
interessa. Assim é possível pensá-la por duas vias: a de que ekphrasis is the
verbalization of real or fictitious texts composed in a non-verbal sign system,17 conceito
defendido pelo crítico Claus Clüver, e com o qual concordamos, e a idéia de ekphrasis
como uma representação da representação dentro do texto, um “duplo da mímese”18 no
discurso literário. Desse modo, ao valer-se de uma imagem plástica, o texto dá conta
não apenas do objeto em si, mas da idéia ou interpretação que o discurso faz desse
objeto.19
Acreditamos que os dois conceitos se complementam, pois ao representarem as
gravuras ou quadros de Goya, os romances estudados não tentam apenas verbalizar o
objeto, mas “interferem” nesses objetos e inferem sobre os mesmos. É o que o crítico
Michael Riffaterre chama de “a ilusão da écfrasis”:

Como el texto ecfrástico representa con palabras una representación


plástica, esta mimesis es doble. Pero también es ilusoria, ya sea
porque su objeto es imaginario, o bien porque su descripción tan sólo
hace visible una interpretación dictada menos por el objeto real o
ficticio que por su función en un contexto literario.20

Entendemos a idéia de “dupla mímese” como o desejo de envolver a imagem e


traçar uma correspondência entre ela e as palavras, apropriar-se da imagem por meio de
sua incorporação e interpretação no texto literário. Ao incorporá-la e interpretá-la, os
romances rompem as propostas narrativas de uma época, ultrapassam os limites rígidos
entre espaço e tempo ao criar uma interdependência entre ambos por meio de técnicas
como a justaposição, a simultaneidade, progressões e digressões no tempo e no espaço,
que se poderão comprovar nas técnicas narrativas utilizadas nos romances.

17
CLÜVER, Claus. Quotation, Enargeia and the Functions of Ekphrasis. p. 12, Texto não-publicado.
18
RIFFATERRE, Michael. “La ilusión de écfrasis”. In: Pintura y literatura. Madrid, Arcos Libros, 2000, p.
159.
19
Ibid, p.160.
20
Ibid, p.161.
24

Ao interpretarem, verbalmente, na narrativa, as gravuras de Goya, os romances


adquirem uma série de matizes que se perderiam se o texto prescindisse da ekphrasis,
pois o uso dessas estampas proporciona um movimento dialético entre o escrito e o visto
na construção de imagens que formam textos essencialmente visuais.
Uma vez interpretadas, tais gravuras se revelam como instrumento mediador de
uma visão particular da sociedade espanhola, de seus dilemas e silêncios no pós-guerra
e apontam para uma nova visão da literatura espanhola do pós-guerra.
Para compreender o caráter inquietante e inovador das gravuras incorporadas
por Laforet e Martín-Santos, apresentamos a seguir a gênese, trajetória e interpretação
das séries de gravuras goyescas que serão estudadas (Os Caprichos e Los Desastres de
la Guerra) e as relações interartísticas no século XX.
Para chegar à série dos Desastres e Caprichos, Goya percorreu um longo
caminho de aprendizagem técnica rumo ao que se convencionou chamar, nos dias de
hoje, o “estilo goyesco”: sua capacidade de criar uma arte atemporal, a qual muitos
artistas reproduziram, recriaram e com a qual muitos se identificaram. O percurso de
Goya começa de maneira consistente no século XVII. Nessa época, a gravura
caracterizava-se sobretudo, pela função de multiplicar originais, em geral de pinturas
conhecidas. Goya fez reproduções de quadros de Velázquez quando iniciou e elaborou
suas primeiras gravuras.
Guardadas as devidas proporções (que são amplas, sabemos), pode-se dizer que
essa multiplicação de originais em forma de gravura era, para a época, o que Walter
Benjamin chamaria de “reprodutibilidade técnica da obra de arte”. Essa afirmação
baseia-se na constatação de que, depois da imprensa, a gravura se configurava como o
21
principal meio de comunicação por imagens, utilizado em grande escala desde sua
invenção, no século XV, até o século XIX. Segundo Juan Carrete:

El grabado, inventado en el siglo XV, fue hasta el siglo XIX la única


técnica conocida para la creación seriada de imágenes, por lo que se
puede decir que fue, después de la imprenta, el medio de
comunicación visual más importante. Desde su descubrimiento se

21
Vale a pena ressaltar que temos consciência de que no âmbito dessa discussão da reprodutibilidade
técnica, há também a crítica à arte que deixa de ser criação para ser reprodução em massa.
25

utilizó por parte del poder para propagar ideas, tanto fueran del
poder político, como del religioso, o incluso para oponerse a estos
poderes establecidos.22

Nesse afã de reprodutibilidade, a gravura igualou-se aos cartões de tapeçarias,


nos quais os pintores copiavam obras de arte conhecidas e consagradas pelo “bom
gosto” vigente e que, mais tarde, tornar-se-iam grandes peças decorativas nas salas de
estar de reis e nobres.
Ao realizar suas estampas e também seus cartões para tapeçarias, Goya
distanciou-se dessa idéia de reprodutibilidade, criando uma série original e
estabelecendo uma lógica interna que se distanciava dos temas modelares da gravura da
época: a sátira, o cômico e a educação.
A sátira e o cômico incluíam-se na crítica que os intelectuais faziam aos
políticos desonestos e à Inquisição, instituição decadente, mas que ainda preservava
certo poder de pressão e de perseguição. E a educação estava relacionada a duas facções
da nobreza: a da corte, que desejava manter seu poder e os pesados impostos, e outra,
que vinha da Ilustração — liderada por uma minoria de intelectuais —, com seu desejo
de educar o povo. Em todos esses meios e contextos, a gravura se constituía como um
importante veículo de propagação de idéias e persuasão.
Goya, embora concordasse com muitas idéias de seus amigos ilustrados e se
nutrisse de leituras desse meio, trilhou um caminho independente, rumo à construção de
figuras que não se prenderam à temporalidade da sátira política, ou aos personagens
excessivamente didáticos que os jornais da época distribuíam ao longo de suas páginas.
Durante a Guerra de Independência, afastou as imagens dos Desastres de qualquer idéia
propagandística a favor do governo ou contra ele, pois em sua série se mostrou contra a
própria guerra.
Quando gravou as séries dos Caprichos e dos Desastres de la Guerra, Goya já
era pintor da Corte e tinha uma carreira sólida. Conhecia muito bem os trâmites
burocráticos e críticos que envolviam os processos de criação e aprovação artística de
seu tempo. No entanto, em vez de submeter-se às normas neoclássicas, pautou-se pela

22
CARRETE PARRONDO, Juan. “Aproximación a los Caprichos de Goya”. In: Los Caprichos: cinco
estudios. Madrid: Biblioteca Nacional, 1996, p. 9.
26

liberdade de expressão conjugada a uma ampla crítica de diferentes camadas sociais de


sua época.
Das séries de gravuras goyescas, os Desastres de la Guerra é um dos trabalhos
mais obscuros. Todos os críticos a tratam como uma obra inacabada, já que o pintor a
manteve oculta durante toda sua vida, e sua primeira edição foi publicada pela Real
Academia de San Fernando apenas em 1863, trinta e cinco anos após sua morte. O
título, nunca utilizado por Goya, surgiu apenas com essa edição. Há indícios de que este
nome tenha sido inspirado pela série Les Misères et Malheurs de la Guerre, de Jacques
Callot em 1633, já que esta apresenta muitas semelhanças e afinidades com a série
goyesca.
Goya começou a gravá-la aos 62 anos e, depois de aproximadamente dois anos,
abandonou-a, o que levanta até hoje acaloradas discussões sobre o número exato de
pranchas da série, bem como quanto a sua ordenação.
Poucas informações nos auxiliam no esclarecimento do mistério que envolve a
série, já que em apenas três pranchas (as de número 20, 22 e 27) aparece a data de 1810
gravada. Além disso, não há nenhum quadro de Goya datado de 1811, o que nos leva a
supor que o gravador se dedicou exclusivamente à série nesse período. Outra indicação
que nos ajuda a estabelecer um marco cronológico na composição da série é que, no
início dos Desastres, as representações se dedicam ao cerco a Saragoça, em junho de
1808 e, a partir da gravura 48, temos imagens que retratam a grande fome que assolou
Madri, em 1811. E, por fim, a seqüência final, a partir da gravura 65, é considerada por
estudiosos uma crítica à restauração da monarquia e da Inquisição na Espanha, após a
capitulação francesa.
Essa parte final da série, que ataca diretamente a Restauração de Fernando VII,
ficou conhecida como Caprichos Enfáticos, de acordo com o título que Goya escreveu
de próprio punho no exemplar que ofereceu a seu amigo, o historiador de arte Ceán
Bermúdez:

Fatales consecuencias
de la sangrienta guerra en España con Buenaparte
Y otros Caprichos enfáticos
En 85 estampas
Inventadas, dibuxadas y grabadas
27

Por el pintor original


D. Francisco de Goya y Lucientes
En Madrid.

Como mostra o título do exemplar de Ceán Bermúdez, originalmente a série


estava composta por 85 gravuras. No entanto, sua primeira edição apresentava apenas
80. Nos estudos contemporâneos, chegou-se a 83 gravuras. A determinação do número
exato de imagens e sua ordenação é, até hoje, como já apontamos, um dos maiores
problemas no estudo das gravuras. Para compreendê-lo, é necessário refazer, na medida
do possível, a trajetória das lâminas de cobre gravadas e das provas de estado tiradas por
Goya.
Ao terminar a elaboração das pranchas, Goya ordenou o trabalho e gravou a
numeração na parte inferior de cada uma delas. Depois disso, ofereceu o conjunto a
Ceán Bermúdez que, não se sabe se a pedido de Goya ou por iniciativa própria, sugeriu
outra ordenação, muito mais didática e clara, mas que retirava um pouco do vigor
original da série. Nesse exemplar, as legendas estão escritas a lápis. Embora haja
dúvidas se foram redigidas por Ceán ou por Goya, vários estudos puderam comprovar
que Goya as redigiu de próprio punho.
Quando ordenou o conjunto de maneira didática, Ceán Bermúdez seguiu sua
formação e inclinação neoclássica, privilegiando a racionalidade: optou por uma leitura
linear, ordenada e lógica, o que limitou a estética goyesca do fragmentário e do
proliferativo, presente na ordenação inicial das estampas. No entanto, Goya seguiu o
conselho do amigo e reordenou a série, apagando (ainda que não totalmente) a
numeração e inscrevendo a segunda na parte superior esquerda de cada prancha.
Não se sabe ao certo quantas provas de estado produziu nessa época, sabe-se
apenas que foram muitas e que, quando partiu para a França em seu exílio voluntário,
deixou as pranchas dos Desastres sob a guarda de seu filho, Javier. Anos mais tarde,
após a morte do artista, seu neto Mariano as vendeu, mas não há registro do nome da
pessoa que as comprou. Por volta de 1860, elas foram adquiridas por Román Garreta,
que, por sua vez, as vendeu para a Academia de San Fernando, que se dispôs a publicá-
las.
Nesse trajeto, cinco pranchas desapareceram, por isso a edição de 1863
apresentava 80 gravuras. Nessa mesma edição, por iniciativa da Academia, aparecem
28

gravadas nas estampas as legendas. A gravação destas seguiu o exemplar de Ceán, que
nesta época pertencia ao acadêmico Valentín Carderera.23
À medida que eram descobertas algumas gravuras que não haviam aparecido
na primeira edição, estas foram reincorporadas à série. As pranchas de cobre de “Fiero
Monstruo” (que analisaremos no capítulo referente ao romance Tiempo de Silencio) e
“Esto es lo Verdadero” foram adquiridas na França pelo artista Lefort, por volta de
1877, e ele, mais tarde, doou os cobres à Academia, mas estes desapareceram
novamente. Novas reproduções destas só surgiram em 1922, no catálogo editado na
França por Loys Delteil. Depois disso, ambas passaram a ser incluídas em todas as
edições dos Desastres com os números 81 e 82, respectivamente.
As outras três pranchas: “Tan bárbara la seguridad como el delito”, “La
seguridad de un reo no exige tormento” e “Si es delinquente que muera presto”,
conhecidas apenas pelo exemplar de Ceán Bermúdez e por três provas de estado,
supostamente tiradas por Goya e adquiridas pelo Boston Museum of Fine Arts ao longo
do século XX, nunca mais foram encontradas.24 Nenhuma delas foi até hoje incluída em
edições completas dos Desastres, sob a alegação de que tinham um formato muito
distinto das outras pranchas. No entanto, a presença destas no exemplar de Ceán supõe
a intenção de Goya de publicá-las como parte da série.
Uma prova de estado do que seria a 86ª lâmina, “Infame provecho”, que não
integrava o exemplar de Ceán, foi descoberta em 1927 por Campbell Dodgson, na
coleção particular do historiador de arte britânico Stirling-Maxwell. A técnica e o tema
estão muito próximos das outras gravuras da série e, por isso, alguns críticos a incluíram
como a 83ª lâmina, desde 1927.
Diante de todas as divergências que o problema da ordenação ainda causa,
torna-se necessário, para este trabalho, a escolha de uma ordem. Embora nenhuma
ordenação tenha se imposto como a “correta” até agora, e a de Ceán Bermúdez tenha
sido até então a mais consagrada, optamos, neste trabalho, por seguir a ordem
estabelecida originalmente por Goya, já que acreditamos que seja a que melhor

23
LAFUENTE FERRARI, Enrique. Desastres de la Guerra y dibujos preparatorios. Barcelona: Central
Hispano, 1982, p. 83.
24
Essas informações se encontram no levantamento feito por LAFUENTE FERRARI, Enrique. Desastres
de la Guerra y dibujos preparatorios. Barcelona: Central Hispano, 1982.
29

representa a linguagem plástico-revolucionária do pintor, fazendo uso de uma estrutura


bastante fragmentária, como comprovado pelo estudo de Claudette Derozier.25
Essa estrutura fragmentária está muito afinada com obras e visões
contemporâneas de arte. Qualquer idéia de causa e efeito é desobedecida por
fuzilamentos, torturas e violações que se proliferam e bombardeiam a percepção do
observador, como se ele estivesse no meio da batalha sangrenta que se travou pelos
campos madrilenos.26
Não há uma explicação extrínseca ao seu caráter fragmentário, o que nos leva a
crer que esta visão faz parte do amadurecimento técnico e conceitual de Goya. A
contemplação das diminutas figuras em branco, preto e cinza, revela fissuras que
entrelaçam o mundo real ao do pensamento, em uma busca lógica por diversas respostas
para questões que se acumulam em meio à crise de seu entorno.
Acreditamos que a ordenação original de Goya nos possibilita destacar e
compreender sua forma moderna de apreender o tempo, o espaço e o movimento,
plasmados tanto na estrutura de suas imagens como na articulação das gravuras da série.
Ao lado dessa articulação, estará o estudo das legendas, pois pensamos que elas não
devem ficar em segundo plano, já que podem aprofundar o conhecimento do processo
de criação da série e esclarecer a lógica do acúmulo de idéias representado por este tipo
de trabalho, que não se revela de forma linear e didática como na seqüência proposta
por Ceán Bermúdez.
Quanto à série dos Caprichos, acredita-se que o aspecto fragmentário na ordem
embaralhada das gravuras deve-se à censura da época. Mas o embaralhamento das
estampas parece não ter dado certo, já que a Inquisição pediu explicações ao pintor e
acusou-o de ofensa à Instituição. Essa acusação deve-se a um dos aspectos mais
interessantes das gravuras: sua forma de representar o cotidiano da época. Nas
estampas, observamos seres humanos animalizados, médicos em forma de asnos,
professores como burros, nobres retratados como inúteis e uma crítica violenta à
Inquisição e, no final da série, referências avassaladoras à guerra de Independência.

25
Seguiremos a 2ª ordem estabelecida por Claudette Derozier, que ordenou o encadeamento dos
Desastres sob seis itens: 1. Mortos e feridos; 2. fome; 3. fuga e êxodo; 4. violações; 5. execuções e
condenações e 6. guerrilha. Vide apêndice ao final do trabalho.
26
ANDERÁOS, Ricardo. A Guerra Desnuda. 1994. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 117.
30

Acusado e interrogado sobre o sentido de tais imagens, Goya viu-se obrigado a


retirar o anúncio de venda das estampas dois dias depois de publicado. Dois anos
depois, doou as pranchas à Real Academia de San Fernando em troca de uma pensão
para seu filho, Javier.
Algumas das grandes inovações no contorno das figuras de suas séries referem-
se às técnicas empregadas pelo pintor. Na grande maioria das gravuras em metal
elaboradas na Espanha da época, era utilizada exclusivamente a técnica do buril (figura
01) — um instrumento de aço com ponta em forma de losango, utilizado para traçar
linhas na chapa de cobre.

Figura 01: Tipos de buril.

Entretanto, em suas gravuras, Goya utilizou uma técnica pouco freqüente em


seu país: a água-forte. Nela, a pressão mecânica do buril sobre o cobre é substituída pela
ação química de ácidos poderosos. A chapa de metal é coberta com uma camada de
resina resistente ao ácido e, com uma agulha especial, o artista arranha a resina,
deixando algumas partes do cobre expostas. Quando o ácido é jogado sobre essa chapa,
este “morde” apenas as partes descobertas do metal. Na hora da impressão, essas partes
“mordidas” retêm a tinta que, finalmente, se deposita sobre o papel.

Esse sistema definia uma sintaxe simplificada da representação de


volumes. A trama de linhas não se preocupava com o jogo de luzes ou
as texturas dos materiais, mas apenas com as protuberâncias e
31

depressões da superfície dos objetos. O resultado final lembra as


curvas de nível dos mapas de relevo.27

O maior problema do uso da água-forte, durante sua propagação na Europa, foi


ter promovido uma estandardização da gravura, pois os gravadores, em vez de explorar
as possibilidades da técnica, como o jogo de luzes com o claro-escuro, as sombras e os
meios-tons, limitavam-se a decodificar todas as imagens através da sintaxe de linhas.
A partir do século XVII, a água-forte firmou-se no terreno das gravuras
artísticas, ainda que tivesse o inconveniente de que suas matrizes se desgastavam
rapidamente. Isso possibilitou uma longa vida ao buril, já que ele era mais utilizado em
impressos de larga escala e baixo custo.
Cabe ressaltar que esse tipo de gravura era consumido de forma abundante pela
burguesia européia e esta talvez seja uma das explicações para a pouca difusão da água-
forte na Espanha, onde o mercado para a gravura artística era escasso, tendo em vista
que a burguesia local estava preocupada em imitar a nobreza, tradicional consumidora
de pinturas e não de gravuras.
Ao longo do século XVII, a técnica da água-forte abriu grandes correntes na
Europa: uma que encarava a gravura como negócio, e outra, liderada por Rembrandt,
que combinava um uso refinado da água-forte acompanhado da ponta-seca, um
instrumento mais fino e delicado que o buril, quase um lápis (figura 02). A preocupação
era explorar livremente as potencialidades artísticas do meio. Foi seguindo a técnica do
pintor holandês que Goya começou a fazer suas gravuras.
No entanto, Goya não se contentou apenas com a água-forte e praticamente
introduziu no país o uso da água-tinta, que utilizou nos Caprichos. A água-tinta era uma
novidade naquela época e não se sabe como Goya aprendeu a usá-la. Ela consiste no
depósito de tinta, com uma boneca, sobre a chapa que, depois, é transferida para o papel
através da prensa cacográfica. Seu uso era mais freqüente para o preenchimento de
grandes espaços com coloração uniforme e consistente. Através dela, o pintor pôde ir

27
ANDERÁOS, Ricardo. A Guerra Desnuda. 1994. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 53.
32

além dos tons brancos e negros, para chegar a “semitons”. Assim, suas estampas
passavam do negro intenso a um cinza suave.28

Figura 02: Tipos de ponta-seca

Para os Desastres, Goya preferiu a aguada, uma técnica também nova para a
época, que na série se constitui como um recurso de emergência, pois naquele momento
as condições de trabalho eram precárias e havia dificuldades para conseguir material de
qualidade, uma prova disso é que sabemos que Goya não dispunha de pranchas de cobre
suficientes para gravar o número de estampas desejado. Então, aproveitou as pranchas
que tinha, algumas inclusive já gravadas, e as partiu ao meio. Tinha 41 e as converteu
em 82, nas quais expressou cenas de grande intensidade e concentração espacial.29
Discutiremos mais detalhadamente essas técnicas e sua utilização nas estampas ao
realizar a análise dos romances.
Finalmente, o artista utilizou-se de duas técnicas auxiliares para corrigir ou
acrescentar novos traços à chapa: o buril e a ponta-seca. O buril consiste em um corte
através de um instrumento de aço fixo, em forma de V, pelo qual a chapa deve
movimentar-se. O resultado é um traço de aparência fria, uniforme, de margens
regulares, com quantidade de tinta idêntica em toda a extensão e traços de mesma
espessura. Os cortes de ponta-seca são realizados manualmente por uma agulha fina.
Produz rebarbas e o movimento determinará se estas ficam do lado direito ou esquerdo

28
Vale a pena ressaltar que a passagem por esses tons está em perfeita consonância com o jogo de luzes e
sombras que o romance de Carmen Laforet apresenta.
29
É interessante pensar que Goya, para criar sua série dos Desastres, “multiplicou” suas pranchas para
conseguir o efeito desejado. Esta intenção “multiplicadora” está claramente expressa nas páginas do
romance de Martín-Santos.
33

do corte, ou dos dois lados. Os riscos, de modo geral, são superficiais e finos, não
penetram profundamente no metal como no buril.
Ao utilizar de forma predominante ou complementar tantas técnicas diferentes,
o pintor conseguiu surpreendentes jogos de claro-escuro, fundamentais para acentuar o
aspecto dramático das estampas. Um exemplo clássico e famoso desse jogo de claro-
escuro, capaz de acentuar a dramaticidade da cena, pode-se verificar no Capricho “El
sueño de la razón produce monstruos” (figura 03). Nele, vemos um homem,
provavelmente um artista, que adormece apoiado sobre uma mesa com várias folhas
escritas. Em primeiro plano, na lateral da mesa, lemos a frase que dá título à estampa.

Figura 03: Francisco de Goya y Lucientes, “El sueño de la razón produce monstruos”,
Caprichos, n. º 43, 1799, Água-forte e água-tinta, 21.8 x 15.2. Biblioteca Nacional,
Madri.

A luz se concentra no homem e na massa de animais noturnos e fantásticos: são


corujas e morcegos que o envolvem. A parte superior está totalmente inserida na
escuridão, o que torna a silhueta dos animais, que sobrevoam o artista, ainda mais
monstruosa, gerando um clima de pesadelo. Ao lado do homem, destaca-se uma coruja
34

enorme, que lhe oferece uma pena, sugerindo que este escreva algo. À direita, no canto
inferior, vemos um animal, misto de gato e leopardo que, por seu tamanho
desproporcional, acentua o caráter fantástico da imagem.
A luminosidade da cena está repleta de jogos de claro-escuro entre o primeiro e
o segundo planos e entre o plano superior e inferior, que aumentam o vigor da
representação do pesadelo. A conjunção de elementos reais e extraordinários transforma
o sonho em algo insuportavelmente próximo e, ao mesmo tempo, deslocado. É o que
Baudelaire chamou de “monstruoso verossímil”:

El mérito principal de Goya consiste en su habilidad para crear


monstruosidades creíbles y táctiles. Sus monstruos son posibles,
tienen las proporciones adecuadas. Nadie se ha arriesgado tanto en el
camino de la realidad grotesca. Todas estas contorsiones, caras
bestiales y muecas diabólicas son profundamente humanas; incluso
desde el punto de vista técnico de la historia natural, sería difícil
encontrarle fallos, ya que cada uno de estos cuerpos está
perfectamente ligado e integrado dentro de un todo. En una palabra,
es difícil precisar el punto en el que la realidad y la fantasía se
confunden. La frontera entre ambos está trazada y cruzada de forma
tal que no podemos descubrirla: el arte que esconde es tan natural y
al mismo tiempo tan trascendental.30

Esse aspecto monstruoso e familiar equilibra-se na corda bamba do


real/transcendental, e revela um mundo repleto de símbolos de morte, pessimismo,
loucura, crítica, brutalidade humana e grotesca. O conjunto está formado por figuras que
manifestam um mundo inconsciente, onde o pesadelo predomina. Como aponta
Baudelaire, é difícil precisar até onde vai o sonho ou a realidade. Não obstante, pode-se
dizer que, tanto em um como no outro, a série apresenta figuras capazes de incomodar e
sacudir o sono mais profundo e tranqüilo.

30
BAUDELAIRE, Charles. “Sobre los Caprichos de Goya”. In: Sobre estética. Cátedra, 1976, pp. 23-24.
35

Esses aspectos se configuram tanto tecnicamente como em sua criação visual.


O jogo dramático de claro-escuro do capricho configura uma instabilidade de opostos
que se complementam: luz e escuridão; real e irreal; sonho e realidade, revelando uma
estética muito próxima à do romance de Carmen Laforet, em que os limites são tão
tênues como nos Caprichos.31 Esse pluralismo de oposições, formas e luzes transita
entre o cotidiano e o mundo fantástico, gerando um apagamento de fronteiras entre
esses mundos, possibilitando uma crítica social ao ambiente em que se vive.
No universo imaginado dos Caprichos, a desumanização e a animalização
aparecem como temas freqüentes (assim como nos Desastres, ainda que de maneira
distinta) e apresentam inúmeras semelhanças com a forte visualidade do romance de
Carmen Laforet. Em Nada, a protagonista Andrea, à medida que vai se envolvendo com
os problemas e as loucuras da família da rua Aribau, começa a enxergar a crescente
desumanização de seus habitantes, que vão adquirindo características de cachorros,
porcos e gatos.
Essas imagens goyescas deslocadas do “normal” desviam o mundo de suas
bases, desequilibram o cotidiano e, conseqüentemente, transformam tudo o que nele está
em algo inadequado.32 Com esse movimento, as séries conseguem mostrar um mundo
desatinado em si, onde tudo o que ali se encontra está de alguma forma impróprio: nem
tudo em que se crê pode estar certo, nem tudo o que se vê pode ser verdade. É preciso
desviar o mundo para entendê-lo, a compreensão vem por meio da descoberta de que o
mundo cotidiano em que vivemos pode ser tão inadequado e fantástico como o dos
nossos piores pesadelos.
Para manter o espectador atento a todos os detalhes que compõem esse mundo
deslocado, Goya subjuga a perspectiva renascentista que organizava as imagens em uma
pirâmide visual, no qual as figuras tinham, de antemão, seu tamanho e posição
predeterminados. A principal preocupação clássica era a relação plano/fundo. Nas
gravuras de Goya, principalmente nos Desastres, há uma preocupação por representar
ao máximo a simultaneidade, a descontinuidade e a proximidade e, nos Caprichos,
abandonam-se essa proporção e essa posição renascentistas.

31
Todos os aspectos levantados sobre as relações entre os romances e as gravuras goyescas serão
detalhadamente discutidos no segundo e terceiro capítulos da tese.
32
BOZAL, Valeriano. Goya y el gusto moderno. Madrid: Alianza, 1994, p. 133.
36

O extremo grau de aproximação da cena criado por Goya rompe com a tradição
do tratamento panorâmico da imagem representado pela maioria dos artistas da época.
Um exemplo desse tratamento inovador vê-se quando comparamos a série Desastres
com a obra que inspirou seu título: Les Misères et Malheurs de la Guerre, conjunto de
18 pranchas de Jacques Callot, elaborada em 1633, e que representou a invasão de
Lorena pelas tropas de Luís XIII.
Na gravura que compõe a série de Callot (figura 04), o que se vê é a execução
de um homem amarrado a um tronco e, sob o olhar dos soldados e curiosos, os soldados
preparam-se para executá-lo. Callot, embora retrate as atrocidades da guerra, mantém o
distanciamento da cena. Já na estampa goyesca “No hay remedio” (figura 05),
dimensiona-se também uma cena de execução, mas de maneira totalmente diferente.
Nela, o pintor aragonês aproxima a visão e afasta qualquer componente anedótico. As
linhas que proliferam na composição atraem e sugam o olhar do espectador, e a
economia de meios confere uma maior carga emocional à cena.

Figura 04: Jacques Callot, “L'Arquebusade”, Les Misères et Malheurs de la Guerre, n.º
12, 1633, 135 x 128 mm. In : FOCILLON, Henri. De Callot à Lautrec. Paris:
Bibliothèque des arts, 1957.

Diferentemente das imagens de Callot, os personagens goyescos abandonam a


pose da batalha, preenchem todo o enquadramento, e levam o espectador ao centro dos
37

acontecimentos; ao mesmo tempo em que se deixa de lado a idealização da ação,


explora-se o instante da morte em close.

Figura 05: Francisco de Goya y Lucientes, “No hay remedio”, Desastres de la Guerra,
n. º 22. 1810-1814, Água-forte, ponta-seca, buril y brunidor, 142 x 168 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.

A imagem goyesca privilegia uma relação subjetiva entre o olhar e a imagem,


rompe o espaço clássico e elide a mediação espectador e objeto. Notamos que o olhar
indiferente à grande batalha panorâmica desloca-se para cenas diminutas, que mostram
o horror e a crueldade da guerra de maneira concentrada e próxima. Essa exposição
aproximada e terrível representa uma mudança significativa na representação da guerra,
pois introduz a violência em close-up.33
Vários desses recursos utilizados por Goya ao longo de sua série dos Desastres
aproximam-se muito da técnica narrativa no romance de Martín-Santos. Em Tiempo de
Silencio, por exemplo, nos dois momentos em que a morte aparece, leitor e narrador se
aproximam ao máximo dos corpos, os olhos de ambos seguem os movimentos dos
personagens. Nessa aproximação, a morte aparece no romance de diversas formas e em
consonância com as imagens da série de gravuras, através da luta corpo-a-corpo, da
mutilação dos cadáveres e dos enterros em valas comuns. Seu protagonista, Pedro, ao

33
ANDERÁOS, Ricardo. A Guerra Desnuda. 1994. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 118.
38

percorrer as diferentes camadas sociais, vai presenciando o tema da morte em seus


distintos aspectos, o que traz de volta ao pós-guerra civil espanhola imagens de uma
guerra ainda viva no imaginário espanhol.
Em realidade, o pós-guerra, apresentado pelos romances, muitas vezes parece
refletir uma extensão das mortes na Guerra Civil Espanhola. E não é por acaso que, no
século XIX e depois, no início do século XX, houve uma explosão de interesse pelas
gravuras goyescas, época em que mais se produziram trabalhos sobre suas séries de
gravuras.
Essa explosão de interesse pelo universo goyesco deu-se no campo artístico e
também no político. No primeiro, através da literatura e das artes plásticas e, no
segundo, em manifestações públicas que evocavam imagens goyescas.
Um exemplo literário contemporâneo às narrativas estudadas é a obra Noche
de Guerra en el Museo del Prado, peça que Rafael Alberti escreveu em 1956, em que se
resgata o momento histórico de 1936, quando os aviões que Hitler havia cedido às
tropas nacionalistas comandadas por Franco começam a despejar suas bombas sobre a
capital espanhola. O acervo do Museu do Prado corre risco de ser destruído e o governo
Republicano envia um grupo de milicianos ao Prado, com a missão de salvar suas obras.
Na peça, atribui-se a autoria da obra a los que pertenecen a los cuadros,
dibujos y aguafuertes de Goya, 34 e observamos personagens das gravuras e dos quadros
de Goya, Velázquez, Ticiano e Fra Angelico, que, acordados pelo estrondo das bombas
e metralhadoras, ganham vida e se unem aos milicianos que vigiam o interior do museu
para garantir sua defesa.

UNA VOZ.— ¡Pronto! No hay tiempo que perder. Aviones rebeldes


han arrojado las primeras bombas sobre la capital. Cualquier demora
podría ser funesta para nuestro Museo. Como medida urgente, en
espera de otras más seguras, se resguardarán las obras en los sótanos
del edificio...
AUTOR. — Y así, por orden del Gobierno de la República, se
comenzó el salvamento del Museo del Prado. Aquel primer ensueño
de mi vida se había desvanecido entre el humo y la sangre de la

34
ALBERTI, Rafael. Noche de Guerra en el Museo del Prado. Buenos Aires: Losango, 1956, p. 5.
39

guerra. (Ha aparecido en la pantalla ‘Los fusilamientos del 3 de


Mayo en la Mancha’, de Goya). Milicianos de los primeros días,
hombres de nuestro pueblo, como ésos que Goya vio derrumbarse
ensangrentados bajo las balas de los fusileros napoleónicos,
ayudaron al salvamento de las obras insignes. 1808. 1936. Tenían las
mismas causas, hervor idéntico en las venas, iguales oficios...35

Considerada pelo autor como uma água-forte — acepção que significa, em


sentido figurado, pensamento ou descrição que se caracteriza por expressão vigorosa e
incisiva36 —, a peça tem uma clara intenção de estabelecer uma ponte imaginária de
valores e motivos entre a Guerra de Independência de 1808, contra Napoleão, e a
Guerra Civil Espanhola, de 1936. No texto, evidencia-se que o povo lutou por seus
ideais nos dois conflitos.
Francisco Ruiz Ramón, em sua História do Teatro Espanhol, esclarece as
correspondências que vê entre a peça de Alberti e a ponte imaginária na representação
dos dois conflitos:

Concitado por el ruido de esta guerra se congregan para levantar una


trinchera y organizar la defensa personajes de “otra” guerra, la de la
Independencia, tal como Goya los inmortalizó en “Los fusilamientos
del 3 de Mayo” y en algunos de sus dibujos y aguafuertes. Cada uno
de ellos viene a combatir con las mismas armas de entonces en la
misma guerra en que luchó y por las mismas causas, y a morir de
nuevo con el mismo heroísmo y la misma rabia con los que ya murió.
Su guerra y la nueva guerra cuyo sonido (cañonazos, ráfagas de
ametralladora, bombardeo, sirenas de alarma) determina palabras y
acciones de los personajes, quedan identificadas dramáticamente en
una única y sola guerra: la guerra del pueblo español sitiado. Esta
estupenda metáfora en acción suscita todo un sistema de
correlaciones de sentido, obligando al espectador (o al lector) a una

35
ALBERTI, Rafael. Noche de Guerra en el Museo del Prado. Buenos Aires: Losango, 1956, pp. 10-11.
36
HOUAISS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
40

auténtica y espontánea síntesis dialéctica, mediante la cual el sitio de


Madrid del 36 se carga de todo un complejo de valencias históricas
concretas.37

É importante dizer que as correspondências entre as duas contendas, destacadas


por Alberti em sua peça, eram claras até mesmo fora da Espanha. Na Inglaterra, por
exemplo, logo após o início da Guerra Civil, um grupo de artistas plásticos organizou
diversas passeatas em apoio aos republicanos. Nessas manifestações, carregavam
estandartes reproduzindo gravuras dos Desastres.38 E em 10 de outubro de 1936, liam-
se, em um muro de Madri, dizeres que acentuam tal relação: “A Espanha será o campo
de derrota de Hitler e Mussolini, assim como foi o de Napoleão”.39
A peça teatral de Alberti é uma homenagem ao importante papel dos
Desastres na representação da guerra, já que a série funciona como uma ponte
imaginária entre dois momentos-chave da história contemporânea européia, pois eles
ajudaram a compor um arquétipo da representação da guerra e de suas fatais
conseqüências ao longo do século XX.
Picasso, entre 8 e 9 de janeiro de 1937, escreveu um poema de imagens
violentas com o propósito de ridicularizar Franco:

Apresentado como uma lesma asquerosa e peluda. Sonho e Mentira


de Franco foi escrito em espanhol, no estilo automático que abolia
todas as regras de sintaxe e gramática. Como ele dissera a Sabartés:
“Prefiro inventar uma gramática minha a me curvar às regras que
não me pertencem”. Ilustravam o texto dezoito gravuras de
proporcional violência, fúria e horror. Franco, a Besta que atacava a
Espanha, era outro emissário do destino, o arquiinimigo de Picasso.40

37
RUIZ RAMON, Francisco. Historia del teatro español. Siglo XX. Madrid: Cátedra, 1995, p. 217.
38
GLENDINNING, Nigel. Goya y sus críticos. Madrid: Gredos, p. 197.
39
ANDERÁOS, Ricardo. A Guerra Desnuda. 1994. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 250.
40
HIFFINGTON, Arianna Stassinpoulos. Picasso: criador e destruidor. São Paulo: Best Seller, 1988, p.
198.
41

No campo das artes plásticas, o título da série de gravuras intitulada Sueño y


Mentira de Franco (figura 06), de Picasso, estabelece relações explícitas com a gravura
“El sueño de la mentira e inconstancia” de Goya, que, acreditamos, ecoam na frase
estampada várias vezes ao longo do romance de Martín-Santos: que no está tan mal
todo lo que verdaderamente está muy mal.

Figura 06: Pablo Picasso, Sueño y Figura 07: Francisco de Goya y


Mentira de Franco, 1937, Água-forte Lucientes. “Qué se rompe la cuerda”,
e aguada, 45 x 24 cm, Fundación Desastres de la Guerra, n. º 77, 1810-
Pablo Ruiz Picasso, Málaga. 1814, Água-forte, aguada, ponta-seca
e brunidor, 178 x 221 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.

Há muitas semelhanças entre as séries dos dois artistas. Na imagem de Picasso,


vemos Franco como um monstro repugnante. De nádegas nuas, equilibra-se em uma
corda bamba e projeta seu imenso pênis, que toca no estandarte da Virgem do Pilar,
padroeira de Saragoça, em Aragão. Na estampa goyesca “Qué se rompe la cuerda”
(figura 07), vemos um eclesiástico que se equilibra em uma corda bamba sob o olhar de
uma multidão que o observa logo abaixo. Elas coincidem ainda na crítica satírica de
temas como autoritarismo e o poder da igreja.
Outro diálogo menos explorado entre ambos os pintores está no painel
Guernica (figura 08). Tanto a série de gravuras Sueño y Mentira de Franco, como o
quadro foram elaborados por Picasso em 1937 e dialogam com as gravuras dos
Desastres. No primeiro, Picasso embaralhou explicitamente suas imagens com as de
42

Goya; já no painel, as relações são mais veladas, mas apresentam elementos que
coincidem com a gravura “Estragos de la Guerra” (figura 09).

Pela primeira vez permitiu a presença de uma platéia enquanto


trabalhava. Eluard foi uma testemunha assídua, bem como Christina
Zervos, André Malraux, Maurice Raynal, José Bergamín, Jean
Cassou—todos, em horas diferentes, observando-o de pincel na mão,
mangas arregaçadas, a comentar o progresso de Guernica ou a falar
obsessivamente de Goya.41

Ambas imagens representam um bombardeio e mostram uma cena interna com


espaços que se abrem para o exterior. Tanto na gravura como no painel, a composição é
dominada por fortes linhas diagonais que delimitam um grande triângulo central. Não
há confronto, apenas o momento da desgraça coletiva da população civil.

Figura 08: Pablo Picasso, Guernica, 1937. 350 x Figura 09: Francisco de Goya y
782 cm, Museo Reina Sofia, Madri. Lucientes, “Estragos de la guerra”,
Desastres de la Guerra, n. º 21,
1810-1814, Água-forte e aguada
com grãos de resina, 128 x 156 mm.
Biblioteca Nacional, Madri.

41
HIFFINGTON, Arianna Stassinpoulos. Picasso: criador e destruidor. São Paulo: Best Seller, 1988, p.
199.
43

Na gravura, uma mulher seminua, com uma criança morta em seus braços,
aparece logo abaixo do centro; à esquerda do quadro, uma mulher, chorando, com os
seios à mostra, traz em seus braços uma criança morta com a cabeça caída, exatamente
como no quadro. Uma perna de mulher aparece no canto inferior direito, formando um
cruzamento com um dos lados do triângulo central. Tanto em Picasso como em Goya, o
vértice inferior esquerdo desse triângulo é marcado pelo rosto de um homem morto que
tem um braço esticado em direção ao canto inferior esquerdo da mulher. Em “Estragos
de la Guerra”, outra mulher, que aparece caindo, domina o centro da gravura. Vemos
esta mesma imagem à direita do quadro de Picasso. Na estampa, ela está de ponta-
cabeça e, no painel, está voltada para cima; no entanto, ambas têm os braços abertos e
as mãos espalmadas.
Picasso, como muitos artistas, travou um intenso diálogo com as obras do
pintor aragonês durante o século XX. Nesse diálogo, merece destaque o impacto
avassalador das imagens dos Desastres e dos Caprichos sobre artistas como Manet,
Delacroix, Cézanne, Otto Dix e Hemingway. Além do poder das imagens e do seu
aspecto inovador e incisivo, muitos artistas, engajados na defesa da República durante a
Guerra Civil Espanhola, identificaram-se com a forma como Goya representou a guerra
de Independência e as mazelas do cotidiano de sua época.
Nesse contexto de apropriação da imagem goyesca e de suas relações com a
Guerra Civil Espanhola, tentaremos mostrar que tanto Nada como Tiempo de Silencio
transcendem o ambiente sóciopolítico para transformá-lo em experiência pessoal e
estética, que capta a visão, as formas e os temas de Goya, especialmente dos Caprichos
e dos Desastres, e, com isso, convertem a trajetória dos personagens dos romances
estudados em um exercício estético. Nos romances, escritura e artes plásticas confluem
para um diálogo intertextual, em que se revelam instantâneos que ampliam os
horizontes da ficção e imprimem no texto narrativo matizes cromáticos, texturas e
relevos, recriando e re-significando as gravuras nos romances.
Ao explorar essa interseção entre as gravuras e os romances, viabilizada pela
ekphrasis, em sua capacidade de evocar imagens no escrito, pretendemos explicitar a
presença das estampas goyescas nos romances estudados. Veremos como os
personagens, habitantes de uma Madri desolada pela guerra, perdidos no anonimato da
cidade grande, adquirem contornos fantasmagóricos e alucinatórios. Observaremos
44

alguns desses aspectos em diferentes situações, seja nas ruas de um subúrbio barcelonês
de Nada, em que bêbados brigam, seja nos cadáveres que são enterrados empilhados
nos arredores da Madri de Tiempo de Silencio.
O olhar analítico que cruza texto e imagem permite perceber que, em meio ao
câncer do anonimato de Tiempo de Silencio e no aspecto fantasmagórico de Nada,
ocorre um movimento dialético entre tristes histórias particulares e o desastre coletivo.
Em muitos desses momentos, o câncer da cidade transforma a todos em um ponto a ser
analisado pelo olhar microscópico do leitor e, assim como cada estampa tem sua própria
individualidade e seu conjunto uma lógica interna, saberemos, por fim, que, no pós-
guerra, os humanos são desumanos e anônimos como todos nós.
45

Capítulo II. Nada: a memória gravada

Crónica parcial de los setenta


(fragmento)

Fue cuando la vida cotidiana derramaba


Cucarachas sobre la gente sin cesar,
Y se lloraba por todas las habitaciones
Bien al estilo Snif, bien al estilo Buá;
Fue cuando se pasaba miedo y se gritaba
Si de madrugada sonaba un timbre o un tiro
Allí por el tercero A, o B, o por error.
(...) Fue cuando el invierno se iba aproximando
Y prometía muertes, no todas naturales;
Cuando en el fondo del corazón, todos deseaban
Una llamada o una carta, y yo también.
(Bernardo Atxaga, Poemas & híbridos).

Nada é publicado em 1945, seis anos depois de terminada oficialmente a


Guerra Civil Espanhola. Carmen Laforet, então com 22 anos, escreve à mão, entre os
meses de janeiro e setembro de 1944, este que é seu primeiro romance, com o qual
obtém o prêmio Nadal.
A autora apresenta, em primeira pessoa, a história de Andrea, que rememora o
ano vivido em Barcelona, na casa de seus familiares. Ao longo do romance, dividido em
três partes, a narradora-protagonista recorda os acontecimentos do passado e reflete
sobre eles.
Sobre Andrea, pouco sabemos: é órfã; estudou em um colégio de freiras; fora
tutelada por sua prima Isabel até o término do segundo grau e, depois de um embate
mudo para livrar-se da vigilância da prima, fora a Barcelona a fim de estudar.
Ao chegar à casa de seus parentes, na rua de Aribau, suas ilusões de viver
livremente em uma cidade grande se chocam com o ambiente de tensão que impera ali.
Desse choque inicial surge uma polarização entre as relações que estabelece com o
microcosmo familiar e as que mantém com os amigos na Universidade, mais
46

especificamente na proximidade que se dá entre ela e Ena, uma estudante rica com
quem conhece o lado abastado de Barcelona.
À medida que a narrativa avança, os dois mundos convergem para uma relação
ambígua, que unirá o passado e o presente das famílias de Andrea e de Ena, o que
acarretará em um dos episódios mais tensos do romance: o suicídio de Román, tio da
protagonista.
A narrativa termina com Andrea mudando-se para Madri, a convite de sua
amiga Ena. Passado algum tempo, que não sabemos ao certo quanto, Andrea resolve
escrever o relato desse ano que passara em Barcelona. Através dessa história, repleta de
momentos dramáticos e do uso profuso de sinestesias, conhecemos a vida não apenas de
seus familiares, mas de toda uma época de frustrações, pobreza e tristezas, na qual se
configura o “nada” expresso pelo título.
Emblemático por seu laconismo, o título da obra aponta para a paisagem
desoladora da Espanha dos anos 1940, do imediato pós-guerra, marcada por perdas
humanas, fome e desespero. A Barcelona que vemos pelos olhos da protagonista vive
uma difícil realidade social, econômica e política, assim como todo o país, que se
encontrava sob a ditadura franquista.
Com esse romance, Carmen Laforet inova o cenário literário daqueles anos,
pois, sem a intenção de abarcar eventos históricos em grande dimensão —
procedimento muito freqüente nos romances anteriores à guerra civil —, é capaz de
expor o período do pós-guerra por meio da visão cotidiana dos que foram afetados pelo
conflito. As situações e os personagens são compostos de maneira fragmentária, pelo
olhar da protagonista, que revela ao leitor histórias obscuras, tristes e muitas vezes
reticentes desse período histórico, como bem observou o escritor Miguel Delibes:

Carmen Laforet, con esta novela, compuesta a base de retazos, de


situaciones fragmentarias, realiza por primera vez la experiencia de
incorporar al lector a la creación; esto es, le facilita los mimbres
precisos, la estructura, para que él la rellene y complete. La nitidez,
la prolijidad, el afán de rematar todos los cabos, tan típicos de las
novelas de anteguerra se interrumpe aquí; es el primer chispazo de
47

renovación de la técnica narrativa que puede captarse de nuestra


novelística.42

De acordo com Delibes, Carmen Laforet nega-se a discutir a sociedade da


43
época conforme as prerrogativas dos romances anteriores à Guerra Civil Espanhola,
que se pautavam pelo afã de explicar tudo ao leitor. A autora não tenta e não quer
recontar o pós-guerra através de grandes eventos. Em vez disso, ela faz um recorte
preciso, centrado no espaço doméstico e, a partir deste, apresenta o olhar que os
personagens lançam sobre o espaço público. Dessa forma, constitui a história de uma
época a partir da exploração do microcosmo doméstico e das relações que este mantém
com o espaço público. Como afirma Valeria De Marco:

Nada es una novela que se construye, se sostiene y se revela a partir


de la explotación del poder de significación del espacio de la
narrativa. El espacio absorbe, guarda e irradia los conflictos entre
personajes, sus tensiones y sentimientos; en él se entrañan las huellas
del tiempo y las señas de la Historia (…) el espacio doméstico se
constituye como centro revelador del contexto social. En él están
todas las tensiones sociales y toda especie de violencia de la
posguerra: los dolores del hambre, la locura derivada de las
frustraciones amorosas o profesionales, los resentimientos sociales y
las prácticas marginales del juego y del contrabando explotan en los
gritos de la calle de Aribau (…).44

Para narrar essa história, repleta de passagens obscuras, Carmen Laforet


escolhe uma narradora-protagonista cujo olhar estabelece uma relação intensa entre sua
história e a arte. Essa importância da arte aparece já na epígrafe, em um trecho de um

42
DELIBES, Miguel. “En torno a Nada”. In: Cuadernos del Idioma, Año I, nº. 4, Buenos Aires: Ed.
Códex, 1966, p. 52.
43
“Tras las obras naturalistas o evasivas de los años cuarenta, el realismo domina hoy en todos los
géneros literarios”. In GOYTISOLO, Juan. “Examen de conciencia”. In: El furgón de cola. Barcelona:
Seix-Barral, 1982, p. 246.
44
DE MARCO, Valeria. “Nada: el espacio transparente y opaco a la vez”. In: Revista Hispánica
Moderna, New York: Hispanic Institute Columbia University, 1996, pp. 43 e 60.
48

poema homônimo de Juan Ramón Jíménez. Ao utilizar tal fragmento, a autora manifesta
a relevância da percepção sensorial no romance:

NADA
(fragmento)
A veces un gusto amargo,
Un olor malo, una rara
Luz, un tono desacorde,
Un contacto que desgana,
Como realidades fijas
Nuestros sentidos alcanzan
Y nos parece que son
La verdad no sospechada.

Por meio da epígrafe, Laforet antecipa o “gosto amargo” do amadurecimento


da protagonista, que se revela lentamente no romance assim como os tons desacordes de
suas “realidades fixas”, expressas com o uso de imagens que nutrem a narrativa de um
vigor incomum, pois em Nada as artes são o instrumento encontrado por Andrea para
apurar sua sensibilidade e, a partir disso, entender seu entorno. Será por meio da música,
da arquitetura, da pintura e da gravura que Andrea captará e modelará sua experiência.
Através de seu contato com as artes, a narradora-protagonista evoca imagens que fazem
parte da série de gravuras goyescas, Los Caprichos, e os recursos utilizados em sua
elaboração.
Talvez a situação mais explícita da importância que a arte tem no romance seja
aquele em que Andrea, ao sair da casa de Ena, onde ouvira a mãe da amiga cantar, sente
o impulso de prolongar a sensação artística que lhe provocara a voz de Margarita.
Então, sai à rua em busca de um espaço que apazigúe esse desejo e dirige-se à catedral
gótica:

Aún no estaba segura de lo que podría calmar mejor aquella casi


angustiosa sed de belleza que me había dejado escuchar a la madre
de Ena (...) Entonces supe lo que deseaba: quería ver la Catedral
49

envuelta en el encanto y misterio de la noche. Sin pensarlo más me


lancé hacia la oscuridad de las callejas que la rodean. Nada podía
calmar y maravillar mi imaginación como aquella ciudad gótica
naufragando entre húmedas casas construidas sin estilo en medio de
sus venerables sillares, pero a las que los años habían patinado
también con un encanto especial, como si se hubieran contagiado de
belleza.45

O que leva Andrea a buscar na Igreja o contato com uma beleza estética que a
acalme não é um sentimento religioso, mas sim esta sede pela arte que o romance
alimenta e da qual a narradora extrai elementos fundamentais para sua elaboração.
Nesse movimento, destacam-se as imagens que evocam o imaginário goyesco.
Para que compreendamos esse olhar e visualizemos as imagens evocadas por
Andrea, faz-se necessário descrever a estrutura do romance e como ele é visto pela
crítica literária. Muitos estudiosos vêem em Nada apenas uma composição linear, tanto
na seqüência do enredo como na maneira de narrá-lo. Há, realmente, uma linearidade no
relato. No entanto, este se desenvolve através de inflexões, o que gera uma tensão entre
o tempo dos fatos e o tempo da narração. Talvez por isso Delibes pôde ver, atrás de sua
linearidade, um conjunto de elementos que torna a representação no romance
fragmentada.
Vários dados nos levam a pensar nessa configuração fragmentária. Por
exemplo, a constatação de que a narrativa está repleta de extensas descrições e, no
entanto, é difícil formar um retrato integral de seus personagens e dos espaços pelos
quais transitam. Sabemos que os parentes de Andrea são morenos, altos e atormentados;
que seu tio Román tem bigode e mãos ágeis; Juan tem o rosto cheio de concavidades,
como uma caveira; a avó de olhos azuis é pequena e frágil; Gloria é ruiva, branca e
magra. E o quê mais? Seria possível, com esses elementos, formar uma imagem integral
dos habitantes da casa?
Tampouco é fácil montar um mapa da disposição dos cômodos da casa da rua
de Aribau. Temos idéia de como eles são isoladamente, mas a noção espacial da casa

45
LAFORET, Carmen. Nada. Barcelona: Ediciones Destino, 2001, pp. 108-109. Todas as citações a
seguir são retiradas desta edição e indicamos junto à citação o número da página correspondente.
50

por inteiro é imprecisa, o que aponta para as difíceis relações humanas entre seus
habitantes e também nos intriga pela impossibilidade de apreensão deste espaço
fundamental do romance.
Acreditamos que esse caráter fragmentário da representação dos personagens e
do espaço romanesco tenha suas raízes na forma que a narradora-protagonista escolheu
para contar seu passado, que sequer sabemos se é distante ou próximo. Sua opção reside
na maneira como observa o cotidiano ordinário, seu olhar configura seu dia-a-dia por
meio de um recurso análogo a um procedimento próprio da gravura: o jogo de luzes.
Para compor imagens que conformem sua história, algumas vezes ilumina parcialmente
fatos do passado e em outras, os do presente. Nesse movimento de vaivém entre passado
e presente, a narrativa integra a escuridão à luz e gera efeitos estéticos na atmosfera
respirada por seus personagens:

Los primeros tranvías empezaban a cruzar la ciudad, y amortiguado


por la casa cerrada, llegó hasta mí el tintineo de uno de ellos, como
en aquel verano de mis siete años, cuando mi última visita a los
abuelos. Inmediatamente tuve una percepción nebulosa, pero tan
vívida y fresca como si me la trajera el olor de fruta recién cogida, de
lo que era Barcelona en mi recuerdo (...) (p. 21).

A partir da comparação entre a Barcelona da infância e aquela à qual Andrea


acabara de chegar, apresenta-se diante do leitor a imagem de um pós-guerra que se
divide, em um primeiro momento, entre as lembranças idílicas do passado e o cenário
devastado do presente. Nessa visão, observamos a vida de personagens que se
encontram descentrados, atormentados e sem perspectiva. No cenário devastado do
presente, a narradora-protagonista recupera, através das lembranças de Gloria, a visão
do horror vivido durante o conflito. No episódio evocado, Gloria relata seu encontro
com Juan, ocorrido imediatamente depois do fim da guerra e da entrada dos nacionais
em Barcelona:
51

Mi niño nació cuando entraron los nacionales. Angustias me llevó a


una clínica y me dejó allí... Era una noche de bombardeos terribles;
las enfermeras me dejaron sola. Tuve una infección. Una fiebre
altísima más de un mes. No conocía a nadie. No sé como el niño pudo
vivir. Cuando terminó la guerra aún estaba yo en la cama y pasaba
los días atontada (...) Una mañana se abrió la puerta y entró Juan. No
le reconocí al pronto. Me pareció altísimo y muy flaco. Se sentó en mi
cama y me abrazó. Yo apoyé la cabeza en su hombro y empecé a
llorar, entonces me dijo: “Perdóname, perdóname”, así bajito (...)
¡Estuvimos abrazados así tanto rato! ¿Cómo podía suponer yo lo que
ha venido después? Era ya como el final de una novela. Como el final
de todas las tristezas (p. 51) (Sublinhado nosso).

O encontro dos personagens parece simbolizar os reencontros e desencontros


de muitos espanhóis ao final da contenda: de um lado, a imagem nítida do horror da
guerra e, de outro, o desejo de ver terminadas todas as tristezas vividas até aquele
momento.
No entanto, no ambiente ditatorial que se instalou no país com a ascensão de
Franco, em que as meias verdades não respondiam completamente às perguntas que
pairavam no ar, em que a tristeza parecia não ter fim, a autora busca na estética dos
Caprichos uma forma de revelar esse cenário devastado.
Sendo assim, constatamos, aos poucos, que, no romance, aqueles que perderam
a guerra se movem entre os móveis amontoados e trastes esquecidos da casa da rua de
Aribau, atormentados pelas feridas ainda abertas. Nesse ambiente decadente, habitado
pela loucura e pela tristeza, Andrea conhece, perplexa e espantada, a dor de amadurecer
em um meio absurdo e cruel. Tentando sobreviver à fome e às descobertas que faz ao
longo da narrativa, a narradora-protagonista filtra, por meio da cena doméstica, uma
síntese da realidade de todo um país, visto de dentro para fora. O olhar surge angustiado
e sufocado entre os gritos e a sujeira da casa e de seus habitantes.
Esse ambiente aparece entre a opressão e a fascinação que a casa exerce em sua
vida, causando-lhe repulsa e atração ao mesmo tempo. O caráter ambivalente que subjaz
52

à construção da narrativa resulta em uma perspectiva que se projeta a partir do espaço


privado para abarcar a realidade daquele momento:

Aquel cuarto era duro como el cuerpo de Angustias, pero más limpio
y más independiente que ninguno en la casa. Me repelía
instintivamente y a la vez atraía a mi deseo de comodidad (p. 78)
(Sublinhado nosso).

Dessa e de muitas outras situações ambíguas, a narradora-protagonista extrai a


idéia de que a vida é muito mais que a superação de obstáculos; é um convívio marcado
por nuances e ambivalências que tornam o processo de amadurecimento complexo e
doloroso. Por isso, a narrativa de Laforet é capaz de gerar reflexões que levam a
narradora a apropriar-se da escritura como instrumento de descoberta de si mesma e de
seu amadurecimento.

A polarização entre o espaço público e o privado

Durante esse processo de amadurecimento, Andrea, paulatinamente, expõe-nos


seus dias em Barcelona e o convívio com os moradores da rua de Aribau. Ao entrar
nesse mundo desequilibrado, a perplexidade, mesclada à desilusão e ao assombro da
narradora-protagonista, põe-nos diante de um movimento constante de questionamento
e reflexão.
Nesse movimento, a Espanha do pós-guerra civil é representada
metonimicamente na aparência decadente da casa da rua de Aribau, um microcosmo
que se configura como imagem fraturada de uma nação, em que vencedores e vencidos
ainda têm suas feridas abertas pela contenda e buscam, cada um a sua maneira, conviver
e sobreviver em anos marcados por muitos paradoxos, como a miséria e a formação de
grandes fortunas, a fome de muitos e o desperdício de outros.46

46
“Fue la década del estraperlo, origen de sórdidas ganancias y rápidas fortunas. Surgieron así dos
nuevas clases sociales: los que no carecían de nada y los que se tenían que limitar a una frugal e
inalterable dieta de legumbres y hortalizas”. In: DE LAFUENTE, Inmaculada. Mujeres de la posguerra.
Barcelona: Planeta, 2002, p. 37.
53

Esse ambiente é o que Andrea encontra ao chegar a Barcelona. Assim, salta à


vista uma cena fundamental, que abre o romance e antecipa a entrada da protagonista no
mundo da casa de seus familiares. Com excitação e assombro, a narradora-protagonista
começa sua aventura, entre os estímulos vitais do sangue, a visão da estação de Francia
e da multidão que por ali circula. O espaço começa a penetrar-lhe por todos os sentidos,
envolvendo-a:

La sangre, después del viaje largo y cansado, me empezaba a circular


en las piernas entumecidas y con una sonrisa de asombro miraba la
gran estación de Francia (…) El olor especial, el gran rumor de la
gente, las luces siempre tristes, tenían para mí un gran encanto, ya
que envolvía todas mis impresiones en la maravilla de haber llegado
por fin a una ciudad grande, adorada en mis ensueños por
desconocida (p. 13).

Marcada pela hora das bruxas e pela sensação de aventura excitante, sua
primeira viagem solitária tem no encantamento sua marca inicial. Rapidamente, a visão
e o olfato impregnam seu corpo. Assim, conhecemos uma das primeiras referências
sinestésicas do romance: o cheiro que, em um primeiro momento, é especial, dividido
entre o barulho das pessoas e uma luz “sempre” triste:

Un aire marino, pesado y fresco, entró en mis pulmones con la


primera sensación confusa de la ciudad: una masa de casas
dormidas; de establecimientos cerrados; de faroles como centinelas
borrachos de soledad. Una respiración grande, dificultosa, venía con
el cuchicheo de la madrugada (p. 14).

O advérbio “sempre”, que concede um matiz inquietante ao “triste” da luz, é


reforçado pelos adjetivos que caracterizam o ar marinho que entra em seus pulmões
como “pesado y fresco”. Embora sutil, a conjunção desses dois elementos nos antecipa
os contrastes entre diversas situações que estão por ocorrer, pois os predicativos aludem
54

a sensações contraditórias: o peso do ar e a tristeza das luzes não condizem com o


sentimento de expectativa que percorre o corpo e a mente de Andrea.
Notamos que Nada, muitas vezes, se articula entre elementos duais, que
conjugam, simultaneamente, algo bom e ruim, como os dois lados de uma mesma
moeda: é o ar “pesado y fresco”, que gera uma sensação “confusa”, o burburinho das
pessoas sob as luzes “siempre tristes”; a respiração “grande y dificultosa”, o que nos
leva a pensar na visão dos espaços “protetores y oprimentes” que veremos na análise do
romance de Martín-Santos.
Essa dicotomia entre elementos agradáveis e desagradáveis indica-nos uma
trajetória repleta de ambigüidades, de indagações e de poucas respostas, o que, por sua
vez, coincide com a afirmação de Valeria De Marco de que a narrativa:

(...) consistiría en entender el proceso de la protagonista, y el eje del


relato, no como un itinerario hacia la construcción de una síntesis,
sino como un proceso que lleva a la comprensión de que la existencia
humana se estructura como un sistema de contradicciones que no
encuentran ni soluciones ni síntesis tranquilizadoras.47

Nesse processo de compreensão da existência humana como um sistema de


contradições, as artes plásticas abrigam uma relação simbiótica com a memória. É a
memória da arte, resgatada tanto na casa da rua de Aribau, como nas andanças da
narradora-protagonista pelas ruas de Barcelona. E é também a arte da memória, em que
se revela o desejo de reconstrução do passado. Ou seja, ao contribuir para a
reconstituição do passado, a arte preenche o vácuo da vida, selecionando, nomeando e
transformando as lembranças por meio das gravuras goyescas:

Art and memory in ‘Nothing’ establish a symbiotic relationship. Not


only is art memory and memory art, but art (outside the mind) aids
memory. Art becomes the cause and effect in the novel.48

47
DE MARCO, Valeria. “Nada: el espacio transparente y opaco a la vez”. In: Revista Hispánica
Moderna, New York: Hispanic Institute Columbia University, 1996, p. 47.
48
JOHNSON, Roberta. Carmen Laforet. Boston: Wayne, 1981, p. 63.
55

O exercício ekphrástico que acompanha toda a narrativa transforma os temas


que a compõem — como fome, morte, ilusão, luminosidade e escuridão — em um jogo
de claro-escuro que se intensifica nos momentos em que são recuperados pela memória
ao longo do romance.
Uma amostra dessa simbiose entre arte e memória é a imagem que a narradora-
protagonista guarda da casa. Nela, os espaços estão repletos de coisas amontoadas,
móveis, trastes. A memória, de certa forma, também pode ser vista como um reflexo da
casa, já que se traduz pelo acúmulo de fatos, de tempos, que Andrea, em seu processo
de rememoração, vai selecionando desse “amontoado” de lembranças que,
reorganizadas, se transformam em visões como as da casa. As lembranças funcionam
como “estampas” que sua memória vai “pinçando” e expondo ao longo das três partes
da narrativa.
Essas imagens exemplares, configuradas de maneira quase autônoma nas três
partes do romance, constituem um dos aspectos que mais chamou a atenção do poeta
Juan Ramón Jiménez que, ao terminar de ler o romance, expressou suas impressões em
uma carta dirigida a Carmen Laforet:

A mí me parece que su libro no es una novela en el sentido más usual


de la palabra, digo no por la anécdota, ni en ese otro, más particular,
de la novela estética, sino una serie de cuentos tan hermosos algunos
de ellos como los de Gorki, Eça de Queiroz, Unamuno o Hemingway49
(Sublinhado nosso).

No entanto, onde ele vê uma narrativa formada por uma série de contos, nós
adicionaríamos a idéia de um romance construído por uma série de estampas, imagens
constituídas por meio da ekphrasis, disseminadas ao longo de sua estrutura e elaboradas
através de elementos sinestésicos.
Conjugada a essa estrutura que privilegia o uso de imagens e sinestesias,
observamos o uso da fragmentação como um importante recurso de associação entre a

49
JIMENEZ, Juan Ramón. “A Carmen Laforet”. In: Cartas (1ª selección). Madrid: Aguilar, 1962, p.
396.
56

narrativa e as gravuras goyescas, pois, embora a obra constitua uma estrutura fechada,
ou seja, não nos possibilita fragmentá-la de maneira aleatória durante o processo de
leitura, como é possível com a série de gravuras, o romance também se configura como
um conjunto de partes, sobretudo pela autonomia das imagens nele criadas. Um indício
desse processo é o fato de Juan Ramón entendê-lo como uma reunião de contos.
Nesse sentido, esse aspecto fragmentário da narrativa remete-nos,
constantemente, à sensação de incompletude, seja através de suas descrições
fragmentárias ou de fatos que permanecem na penumbra. Ao incorporar as gravuras e
expor essa estrutura marcada pela fragmentação e pelo jogo de claro-escuro constituído
pelo vaivém entre o presente e o passado, acreditamos que, embora não possamos ler o
romance e ordenar suas imagens aleatoriamente, quando chegamos ao final da narrativa
podemos isolar episódios e imagens que conformam esse “conjunto de contos” visto por
Juan Ramón, ou a série de “estampas” que vemos.
Um exemplo dessas imagens marcantes que se configuram ao longo da
narrativa se encontra no momento em que Andrea, ao chegar à casa da rua de Aribau, se
vê frente a seu futuro espaço privado. Desse encontro impactante decorre a constante
polarização em que se assenta a primeira parte do romance: o choque entre as luzes da
cidade e o aspecto fantasmagórico e decepcionante de seus parentes, que em nada se
parecem às lembranças que havia guardado dos dias passados ali em sua infância:

Enfilamos la calle de Aribau, donde vivían mis parientes, con sus


plátanos llenos aquel octubre de espeso verdor (...) con gran temblor
de hierro y cristales comencé a subir muy despacio la escalera,
cargada con mi maleta.
Todo empezaba a ser extraño a mi imaginación; los estrechos y
desgastados escalones de mosaico, iluminados por la luz eléctrica, no
tenían cabida en mi recuerdo (...).
Lo que estaba delante de mí era un recibidor alumbrado por la única
y débil bombilla que quedaba sujeta a uno de los brazos de la
lámpara, magnífica y sucia de telarañas, que colgaba del techo. Un
fondo de muebles colocados unos sobre otros como en las mudanzas.
57

Y en primer término la mancha blanquinegra de una viejecita


decrépita (...).
En toda aquella escena había algo angustioso, y en el piso un calor
sofocante como si el aire estuviera estancado y podrido. Al levantar
los ojos vi que habían aparecido unas mujeres fantasmales (…) (pp.
15-16).

A surpreendente imagem da casa com seus degraus estreitos e gastos anuncia


uma mudança de espaço e ângulo: o ambiente excitante da rua, com suas luzes e vida,
dá lugar a uma casa sombria, imersa na penumbra pela falta de lâmpadas. A visão se
afunila e focaliza seus passos pela escada da casa. Há alguns instantes, tudo era luz e
animação; agora tudo se torna escuro e assustador. O assombro da excitação transforma-
se radicalmente em temor e dúvida.
É como se começasse naquele momento um pesadelo: a decadência da família
revela-se diante de seus olhos e o mundo da rua de Aribau aproxima-se da imagem de
um capricho goyesco, no qual o monstruoso, o animalizado, o sujo, as figuras noturnas,
o medo, a loucura e a incerteza unem-se para configurar a cena em que Andrea encontra
seus parentes:

(...) cuando de una de las puertas del recibidor salió en pijama un tipo
descarnado y alto que se hizo cargo de la situación. Era uno de mis
tíos, Juan. Tenía la cara llena de concavidades, como una calavera a
la luz de la única bombilla de la lámpara (...).
Detrás de tío Juan había aparecido otra mujer flaca y joven con los
cabellos revueltos, rojizos, sobre la aguda cara blanca y una
languidez de sábanas colgada, que aumentaba la penosa sensación
del conjunto.
Yo estaba aún, sintiendo la cabeza de la abuela sobre mi hombro,
apretada por su abrazo y todas aquellas figuras me parecían
igualmente alargadas y sombrías. Alargadas, quietas y tristes, como
luces de un velatorio de pueblo (...) Casi sentí erizarse mi piel al
vislumbrar a una de ellas, vestida con un traje negro que tenía trazas
58

de camisón de dormir. Todo en aquella mujer parecía horrible y


desastrado, hasta la verdosa dentadura que me sonreía (pp. 16-17).

Junto à imagem arrepiante da “empregada-bruxa” acompanhada de seu cão


negro está a de seu tio Juan, de cara de caveira. Imediatamente depois, surge o rosto
agudo e fantasmagórico de Gloria, mulher de Juan. Os adjetivos “penoso” e “quieto”
acentuam a sensação de temor e encurralamento que as figuras de seus parentes
transmitem à jovem, como se de alguma forma o mundo sombrio da casa tomasse seus
sentidos e a fizesse ver “caprichos” por toda parte.
A cena de sua chegada e de seus parentes a seu redor evoca a gravura “No te
escaparás” (figura 10). Na imagem goyesca, vemos bruxas e criaturas noturnas que
cercam uma jovem mulher, quase uma menina.

Figura 10: Francisco de Goya y Lucientes, “No te escaparás”, Caprichos, nº. 72, 1799,
Água-forte e aguada brunida, 217 x 152 mm. Biblioteca Nacional, Madri.

A moça da estampa parece querer voar, mas não sabemos se para escapar ou
para começar o vôo de uma possível iniciação ao mundo das bruxas. Ela olha com o
canto dos olhos; as figuras que a cercam lhe sorriem e a envolvem.
59

O encontro de Andrea e seus parentes evoca não apenas esse movimento de


repulsão-fascínio que a menina da gravura apresenta em relação aos monstros, mas
também recupera os personagens da gravura: Andrea é uma jovem que, cercada por
“figuras alargadas”, fantasmagóricas, não sabe se fica ou se corre.
O movimento indeciso da narradora-protagonista assemelha-se ao gesto da
gravura, pois além de privilegiar o enquadramento, já que os parentes estão próximos,
colados à protagonista, no estreito hall da casa, vemos que o desejo de fuga se confunde
com a sensação de que esses seres monstruosos e noturnos compõem um mundo do qual
a jovem fará parte; são reais, apesar de seus contornos sombrios. Este, aliás, é o adjetivo
que melhor cabe para o jogo de luzes que a protagonista vê na cena, o que se confirma
pela comparação que faz da situação com a de um velório. Essa mesma imagem mais
tarde é retomada pela cama destinada a Andrea, uma cama turca, com um lençol negro,
que mais parece um caixão.
Esse mesmo aspecto sombrio está nas figuras da gravura e na deformação dos
habitantes da casada rua de Aribau, na maneira como a protagonista os enxerga, o que
enfatiza o aspecto fantasmagórico da cena. Ao lado desse contorno fantástico está o
sorriso, presente tanto nas figuras monstruosas e noturnas da estampa como em seus
parentes quietos e sombrios, que sorriem bobamente.
Na estampa, a proximidade monstro/humano acentua-se pela posição de uma
figura alada que, de pé, se coloca ao lado da jovem. Vemos que os seres fantásticos são
capazes de estar em uma posição ereta e acompanhar de perto a menina, como se a
estivessem conduzindo a algum lugar. Suas pernas são um amálgama de lobo e humano
e, no lugar de seus braços, há asas, o que lhes proporciona a vantagem do vôo em
relação ao humano, que apenas pode andar.
Os monstros da gravura, que se assemelham aos habitantes da casa da rua de
Aribau, são seres fantásticos de caras humanas, enquanto os familiares de Andrea são
humanos com traços monstruosos, em um paralelismo às avessas.
A visão que Andrea nos transmite da casa e de seus moradores parece evocar
esse mundo soturno, de seres fantasmagóricos e animalizados, bruxas e animais
noturnos. Sua entrada na casa, aliás, sugere uma espécie de filiação àquele clã. O mundo
se inverte: as criaturas noturnas não estão na rua, espaço que deveria constituir-se como
estranho, alheio; elas estão na casa. Nela, não há aconchego ou sensação de proteção,
60

mas sim a ameaça de seres monstruosos que a cercam. Como se estivesse inserida nesse
mundo às avessas, Andrea vê invertida a noção de proteção e de estranhamento. Na rua,
sente-se feliz e excitada e, na casa, vê-se amedrontada por seres excêntricos.
Esse movimento, que começa no princípio da narrativa, gera uma ostensiva
polaridade entre o público e o privado, entre a casa em que vive e as ruas de Barcelona,
e mais tarde entre os amigos da universidade e seus parentes. Nos dois mundos, tanto no
negro como no luminoso, as gravuras goyescas estão presentes como elementos que
destacam o jogo de luzes entre os ambientes, acentuando, em um primeiro momento,
essa polaridade.
A visão do espaço privado gera um confronto desconcertante: a realidade vista
foge à regra, pois se mostra arredia e fantasmagórica, impossibilitando uma sensação
confortável. Dessa forma, choca-se com o público, carregado de excitação. Em meio ao
turbilhão desatado pelo confronto desses dois espaços, talvez a única personagem que
escape seja sua avó, que lhe abre a porta:

(...) quise pensar que me había equivocado de piso, pero aquella


infeliz viejecilla conservaba una sonrisa de bondad tan dulce, que
tuve la seguridad de que era mi abuela (p. 15).

No entanto, a doçura da avó não atenua o confronto que se dá entre o espaço


externo e o interno da casa que envolve protagonista e leitor em um clima de pesadelo,
no qual uma escuridão caótica emerge e se alastra em meio à sujeira que dá vida ao
ambiente de forma destorcida e sufocante.
A viagem de Andrea não termina na casa sonhada e lembrada de sua infância;
as figuras são tão espectrais como os monstros alados que cercam a menina da gravura
goyesca. A luz da estampa e a falta de lâmpadas na casa conformam seu clima e seu
estado: conjugam uma penumbra fantasmagórica com penúria.
Junto a esses seres estranhos, Andrea respira um calor asfixiante — muito
próximo ao que sente Pedro na pensão em que vive, em Tiempo de Silencio, como
veremos no próximo capítulo da tese —. Na casa da rua de Aribau, o calor é sufocante,
o ar estancado e podre. Metaforicamente, esse calor e o ar pesado conformam, em
61

ambos os romances, o ar que se respirava em muitas casas espanholas, sufocadas pela


ditadura franquista:

Este escamoteo de la experiencia viva, sustituida por la mención a


cosas que parecían ocurridas en el país de los sueños, es una de las
claves más importantes para entender también el desconcierto y la
ceguera de la mayoría de los jóvenes (...)
Todas las perplejidades de quien no estuviera dispuesto a comulgar
con ruedas de molino derivaban de aquella esquizofrenia entre lo que
se decía que pasaba y lo que pasaba de verdad, entre lo que se
imponía y lo que se necesitaba.50

Para configurar esse momento histórico, a narradora-protagonista escolhe o


mundo onírico dos Caprichos, pois assim é capaz de capturar a atmosfera
esquizofrênica que pairava naquele momento-chave para entender a história espanhola.
Nesse primeiro contato com seus parentes, Andrea sente-se incrivelmente suja,
e pede para tomar banho, pensando que assim escaparia do contato com aquelas figuras
fantasmagóricas. No entanto, dentro do banheiro sente-se acuada e começa a imaginar e
ver coisas. Tudo é sufocante e úmido na casa; a sensação desagradável sempre está
presente na umidade das paredes, nos móveis e no ar:

Parecía una casa de brujas aquel cuarto de baño. Las paredes


tinzadas conservaban la huella de manos ganchudas, de gritos de
desesperanza. Por todas partes los desconchados abrían sus bocas
desdentadas rezumantes de humedad. Sobre el espejo, porque no
cabía en otro sitio, habían colocado un bodegón macabro de besugos
pálidos y cebollas sobre fondo negro. La locura sonreía en los grifos
torcidos (p. 19).

50
MARTIN GAITE, Carmen. Usos amorosos de la postguerra española. Barcelona: Editorial Anagrama,
1987, p. 10.
62

A água, que poderia aliviar a sensação de cansaço e sujeira, não é capaz de


purgar as visões que invadem o banheiro. Sua imaginação prega-lhe peças e, na parede
descascada, vê imagens de bocas desdentadas e úmidas; em suas manchas, vê mãos
monstruosas, ganchudas, que marcam a parede. Como um portal que se abre ao
submundo, a parede do banheiro transforma-se em uma ala do mundo noturno,
monstruoso e opressivo da casa, no qual os objetos adquirem contornos fantásticos.

Figura 11: Francisco de Goya y Lucientes, “Duendecitos”, Caprichos, nº. 49, 1799,
Água-forte e aguada brunida, 217 x 152 mm. Biblioteca Nacional, Madri.

Nesse submundo localizado dentro do mundo noturno, ecoa a imagem do


Capricho “Duendecitos” (figura 11). Na estampa evocada, vemos três figuras vestidas
com trajes de monges; à esquerda, está um velho muito baixo que parece mastigar algo
com dificuldade, pois não tem dentes; à direita, vemos um ser monstruoso, de mãos
cruzadas e com o pé esquerdo colocado à frente do corpo; no centro da estampa, um
duende, pequeno, que segura um copo na mão esquerda, e gesticula com a direita. Essa
mão “ganchuda” é desproporcional em relação ao corpo do ser mágico. O duende
escancara sua boca; não sabemos se ri ou se grita. Talvez a segunda opção seja a mais
63

adequada, por causa do movimento violento da mão imensa. Junto à mão monstruosa,
vemos sua boca enorme e desdentada, retorcida pelo riso ou pelo grito.
A luz vem de uma janela com grades e, no plano superior, a luminosidade
difusa destaca a mão ganchuda e a cara grotesca, enquanto, no plano inferior, recai
sobre as roupas claras dos outros seres.
É interessante destacar que, no mundo noturno, os duendes são considerados
seres do submundo da bruxaria. Como “auxiliares” de demônios e bruxas, sua
especialidade é brincar com a imaginação dos seres do mundo “real”. A eles cabe
enganar a imaginação e os olhos humanos, jogar com os sentidos dos homens,
provocando-lhes sustos.
A gravura assemelha-se muito à descrição do banheiro, pois o que a
protagonista vê é a imagem de uma casa de bruxas, na qual mãos ganchudas marcam as
paredes. O adjetivo “macabro” dá o tom da visão e, acompanhando o movimento das
mãos, está o grito de desespero. O jogo de claro-escuro que o olhar de Andrea projeta
no banheiro engendra as figuras monstruosas. Tudo está impregnado pela umidade; a
cor das paredes é escura e recupera o tom ocre da gravura goyesca, criando uma
coincidência entre as imagens.
O movimento da mão ganchuda também é capturado pela descrição do
banheiro; sua marca nas paredes está unida ao movimento da boca desdentada e aberta,
como se deixasse ecoar, no ar estancado, gritos de desesperança. A configuração de
seres monstruosos invade o cômodo e o caracteriza como um mundo de bruxas,
reforçando a idéia de “filiação”, destacada no encontro de Andrea e seus familiares e na
evocação da estampa “No te escaparás”. Dessa forma, a narradora-protagonista, ao
evocar essas imagens goyescas, configura o espaço doméstico, em um primeiro
momento, como uma dimensão demoníaca do pós-guerra.
Vale ressaltar que, na cena do banheiro, há também a menção à imagem
“gravada”, “marcada” na parede, como se alguém tivesse deixado ali um sinal do
submundo noturno da casa. O banheiro não é apenas um espaço sujo e escuro, mas
também uma extensão das figuras excêntricas de seus familiares, um ambiente no qual
as manchas das paredes úmidas “brincam” com os sentidos da protagonista.
O clima de pesadelo inserido em uma realidade assustadora cria imagens que
nos remetem aos “sueños de la razón que producen monstruos”. Nestes, realidade e
64

pesadelo se misturam, transformando o absurdo em parte da vida dos moradores da rua


de Aribau. A realidade da casa se revela aos poucos: nela, Andrea conviverá com uma
família castigada duramente pela guerra; com os gritos insanos de seu tio Juan e sua
mulher Gloria; por algum tempo, com a hipocrisia de sua autoritária tia Angustias,
sempre pronta a lutar pelo controle da casa com o sedutor Román e a imperativa fome
que consumia a todos.
Terminado o banho, Andrea dirige-se ao seu futuro quarto, que descobre ser a
antiga sala de estar da casa. Como os demais ambientes, é sujo e repleto de móveis
amontoados. Ali, à sua espera, a cama turca:

No sé cómo pude llegar a dormir aquella noche. En la habitación que


me habían destinado se veía un gran piano con las teclas al
descubierto. Numerosas cornucopias (...) en las paredes. Un
escritorio chino, cuadros, muebles abigarrados. Parecía la buhardilla
de un palacio abandonado, y era, según supe, el salón de la casa.
En el centro, como un túmulo funerario rodeado por dolientes seres—
aquella doble fila de sillones destripados—, una cama turca, cubierta
por una manta negra, donde yo debía dormir (p. 19).

Em poucas horas, Andrea passa por um drástico afunilamento espacial, fazendo


com que sua visão se estreite ao máximo: da estação de trem repleta de gente e luzes, do
ar marinho pesado das ruas que percorre até uma casa sombria, caótica e suja e,
finalmente, termina em uma cama que se assemelha a um caixão. Ao mesmo tempo em
que o espaço se estreita, o foco fecha-se ao máximo, aproximando as pessoas e sua
respiração. Nesse ambiente sufocante, em meio a móveis que adquirem vida,
endiabrados, como as pessoas, Andrea, finalmente, se rende ao cansaço e adormece:

Aquel iluminado palpitar de las estrellas me trajo en un tropel toda mi


ilusión a través de Barcelona, hasta el momento de entrar en este
ambiente de gentes y muebles endiablados. Tenía miedo de meterme
65

en aquella cama parecida a un ataúd. Creo que estuve temblando de


indefinibles terrores cuando apagué la vela (p. 20).

Quando acorda, ela recupera a lembrança de infância que a trouxe a Barcelona,


o passado feliz da família, que considerava como um paraíso. Ao olhar à sua volta, tudo
lhe parece perdido no tempo, coberto de pó. O frescor da recordação se perde e desse
passado feliz resta apenas o quadro antigo que retrata seus avós ainda jovens.
Ao contemplá-lo, Andrea recorda vagamente e de forma fragmentada o
passado daquela casa, a partir da observação do quadro; ao mesmo tempo em que ela
recupera o passado da família e constata seu presente, reconstrói o contexto social de
Barcelona e da própria Espanha:

Cuando abrí los ojos vi a mi abuela mirándome. No a la viejecita de


la noche anterior; pequeña y consumida, sino a una mujer de cara
ovalada bajo el velillo de tul de un sombrero a la moda del siglo
pasado. Sonreía muy suavemente, y la seda azul de su traje tenía una
tierna palpitación. Junto a ella, en la sombra, mi abuelo, muy guapo,
con la espesa barba castaña y los ojos azules bajo las cejas rectas (...)
Así eran los dos cuando vinieron a Barcelona hacía cincuenta años.
Había una larga y difícil historia de sus amores —no recordaba bien
qué... quizás algo relacionado con la pérdida de una fortuna—. Pero
en aquel tiempo el mundo era más optimista y ellos se querían mucho
(pp. 22-23).

Nesse percurso pela história da família e da nação, Andrea recompõe o


crescimento da cidade, o envelhecimento e a decadência da casa e de seus habitantes:

(...) una radical concentración espacial abre paso a un


desplazamiento temporal. La narradora protagonista puntualiza su
historia y de su familia y anticipa el clima conflictivo que se
desarrollará en el año que tiene ella por delante. Ahí el piso funciona
66

como un fuelle que puede comprimir o liberar aire de diferentes


épocas.51

Observamos essa concentração radical do espaço que abre caminho para um


amplo percurso temporal, não apenas através do espaço restrito da casa, de seu
quarto/sala, mas, sobretudo, por meio da visão do quadro. A casa, que parece ter parado
no tempo, em meio a sua ruína, concentra-se na tela empoeirada que aglutina os traços
perdidos no tempo: o colorido da blusa da avó e seu sorriso estampado no quadro
parecem tão anacrônicos como sua roupa e a felicidade que parecem ter-se perdido no
tempo e no espaço sujo e úmido da casa decadente. Através do clima que se respira ali e
do quadro dos avós, Andrea reflete pela primeira vez sobre o desapontamento de suas
expectativas em comparação àquela realidade.
Em sua reconstituição do passado, a reflexão sobre o presente decepcionante se
dá por meio de imagens que parecem desdobrar-se a partir do quadro dos avós, que
funciona como um caleidoscópio, repleto de fragmentos da história de sua família e da
nação espanhola. Através dele, Andrea recompõe essas partes de histórias e filtra as
“estampas” de um passado feliz, apesar das dificuldades econômicas e de um presente
arruinado, insano e caótico.
Essa reconstrução/constatação de passado e presente veiculados pela arte
confirma-se quando Andrea se levanta e vai até a copa para ver de perto, e à luz do dia,
os moradores da casa. Ali, outro quadro permite que ela reflita sobre a situação penosa
em que vivem seus moradores: “Yo tenía hambre, pero no había nada comestible que
no estuviera pintado en los abundantes bodegones que llenaban las paredes (...)” (p.
25) (Sublinhado nosso).
A comida, nos anos de fome, aparece apenas pintada, uma ilusão. Na imagem
do quadro dos avós, vemos o crescimento e a ruína da família, e a de uma nação; na
natureza-morta da cozinha, descobrimos que o “nada” está, em um primeiro momento,
na fome e na penúria.

51
DE MARCO, Valeria. “Nada: el espacio transparente y opaco a la vez”. In: Revista Hispánica
Moderna, New York: Hispanic Institute Columbia University, 1996, p. 53.
67

Os espaços da fome e da loucura

De barriga vazia, é chamada para falar com sua tia Angustias em seu quarto, que
se mostra como um mundo à parte na aparência, embora totalmente integrado à casa por
sua localização. Nele, Andrea tem sua segunda desilusão, pois, uma vez no quarto de
Angustias, a protagonista descobre que a vigilância de sua prima Isabel, contra a qual
havia lutado e da qual se libertara para estudar em sua cidade sonhada, redobra-se na
figura de Angustias:

El cuarto de mi tía comunicaba con el comedor y tenía un balcón a la


calle. Ella estaba de espaldas, sentada frente a un pequeño escritorio.
Me paré, asombrada, a mirar la habitación porque aparecía limpia y
en orden como si fuera un mundo aparte en aquella casa. Había un
armario luna y un gran crucifijo tapiando otra puerta que
comunicaba con el recibidor; al lado la cabecera de la cama, un
teléfono (p. 25).

O quarto de Angustias e o de Román são os únicos cômodos da casa cuja


localização é explícita. Os outros, embora minuciosamente descritos, resultam
indeterminados geograficamente. Sabemos, com certeza, que o quarto da tia se
comunica com a copa e que tem uma sacada que dá para a rua, revelando uma posição
privilegiada de contato interno e externo, que forma o que Bachelard chamou de
dialética do “sim” e do “não”:

O exterior e o interior formam uma dialética de esquartejamento (...)


Ela tem a nitidez crucial da dialética do “sim” e do “não”, que tudo
decide. Fazemos dela, sem o percebermos, uma base de imagens que
comandam todos os pensamentos do positivo e do negativo.52

52
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 215.
68

Essa dialética, que se divide entre negativo e positivo, expressa-se pelas idéias
que Angustias tem sobre sua casa e seus parentes, sobre a cidade e seu próprio quarto.
Apresentada pela narradora como exemplo clássico da tia solteirona e intransigente,
conhecemos Angustias através de sua primeira conversa com Andrea. O diálogo
resume-se praticamente a seu sermão, no qual a tia critica a família da sobrinha: o pai de
Andrea, provavelmente de idéias republicanas, é tido como de uma família “rara”; e a
Barcelona sonhada pela adolescente é tida como um inferno.
Essa divisão simplista de valores concretiza-se sobretudo em dois momentos: na
visão da guerra e na divisão entre o espaço exterior e o interior. Se anteriormente, na
reconstituição breve da história individual e coletiva feita por Andrea, através da
contemplação do quadro dos avós, a guerra aparecia como um período de ruína para
todos, na mente maniqueísta de Angustias, e em seu discurso católico, a contenda
aparece como algo simplista, da qual os irmãos saíram descentrados, mas felizmente, a
ordem se havia restabelecido.
Embora maniqueísta, é através da perspectiva de Angustias, baseada nas leis de
seu mundo à parte, pautado por ordem e limpeza, que visualizamos a guerra como único
elemento externo a ultrapassar as grades de ferro que separam a casa da rua. Por seu
efeito devastador, o conflito invade a vida de todos e, em seu caminho, deixa seres
descentrados, com os nervos à flor da pele e famintos.53 Sendo assim, a dialética
positivo/negativo revela-se apenas aparente, pois vemos que o quarto de Angustias não
está imune aos efeitos destruidores da guerra e sua virtude não está totalmente protegida
do inferno da cidade, pois a sacada de sua janela e seu telefone a conectam com o
mundo urbano, tocando-a com seu lastro infernal.
Apesar dessa proximidade demoníaca entre o mundo urbano e a devastação que
a guerra provocou em sua família, Angustias tenta manter a todo custo o controle da
casa através de discussões com seu irmão Juan e do confronto mudo que trava com seu
outro irmão, Román, dos quais alega ter recebido em troca apenas a ingratidão:

— Tengo que advertirte algunas cosas. Si no me doliera hablar mal


de mis hermanos te diría que después de la guerra han quedado un
69

poco mal de los nervios... Sufrieron mucho los dos, hija mía, y con
ellos sufrió mi corazón... Me lo pagan con ingratitud, pero yo les
perdono y rezo a Dios por ellos (p. 37).

Ainda que seja a primeira vez que se menciona a guerra abertamente, ao longo
da narrativa há numerosas menções a ela, mas, quase sempre, discretas e veladas. Em
um episódio da narrativa, vemos Gerardo, um amigo de Andrea, apontando para
edifícios que foram destruídos pelos bombardeios e comentando que desaparecerão com
a construção de uma nova avenida. Em outro momento, também acompanhada de
Gerardo, Andrea observa as carcaças de navios afundados durante o conflito:

El gran puerto parecía pequeño bajo nuestras miradas, que lo


abarcaban a vista de pájaro. En las dársenas salían a la superficie los
esqueletos oxidados de los buques hundidos en la guerra. A nuestra
derecha yo adivinaba los cipreses del Cementerio del Sudoeste y casi
el olor de melancolía frente al horizonte abierto del mar (p. 135).

A imagem que o olhar de Andrea capta mescla abandono e melancolia: os


esqueletos dos navios estão ali para dar testemunho de um cheiro melancólico que
impregna os sentidos de todos. Parece que, de uma forma sutil, o adjetivo “melancólico”
aponta para toda tristeza que pairava na vida dos habitantes de Barcelona e anuncia a
que estava por vir.
54
Essas cenas contrariam a afirmação de alguns críticos, de que a guerra tem
pouca importância no romance. Pouco a pouco, a narrativa vai assinalando que a guerra
e todos os seus fantasmas rondam não apenas a casa da rua de Aribau, mas a todos os
habitantes daquela cidade, daquele país.

53
É interessante pensar que Goya, quando realiza sua série de Los Desastres, também busca plasmar essa
idéia de que a Guerra de Independência, por seu caráter de guerra de guerrilha, invade o cotidiano de
todos os envolvidos no conflito e os marca definitivamente.
54
DE NORA, Eugenio G. La novela española contemporánea. Madrid: Gredos, 1862. O autor considera
o romance “capaz de una hiriente percusión psíquica, pero desconexión casi completa con el mundo
objetivo en toda su extensión” (p.150); RÓDENAS DE MOYA, Domingo. “Noticia de Carmen Laforet y
Nada”. In: LAFORET, Carmen. Nada. Barcelona: Ediciones Destino, 2001. Nessa edição comentada do
romance, o crítico comenta que não há uma crítica social na narrativa e que mal se menciona a guerra (p.
240).
70

Um exemplo dessa afirmação está na copa da casa, o principal espaço em que os


efeitos da guerra se apresentam de maneira penosa. É ali onde todos se encontram.
Ainda que o espaço seja inútil — não há o que comer —, para esse cômodo convergem
as intermináveis e brutais discussões e brigas dos moradores.
Através da descrição dos espaços da casa, acompanhamos as discussões e
descobrimos as características de seus moradores. Se por um lado a descrição do quarto
de Angustias revela sua relação de austeridade com o mundo, a descrição do quarto de
Román, situado no sótão, manifesta sua postura superior e arrogante:

Román no dormía en el mismo piso que nosotros: se había hecho


arreglar un cuarto en las buhardillas de la casa, que resultó un
refugio confortable. Se hizo construir una chimenea con ladrillos
antiguos y unas librerías bajas pintadas de negro. Tenía una cama
turca y, bajo la pequeña ventana enrejada, una mesa muy bonita llena
de papeles, de tinteros de todas épocas y formas con plumas de ave
dentro. Un rudimentario teléfono servía, según me explicó, para
comunicarse con la criada. También había un pequeño reloj,
recargado, que daba la hora con un tintineo gracioso, especial. Había
tres relojes en la habitación, todos antiguos, adornando
acompasadamente el tiempo. Sobre las librerías, monedas, algunas
muy curiosas; lamparitas romanas de la última época y una antigua
pistola con puño de nácar (...) A pesar de la cantidad de cosas
menudas, todo estaba limpio y en un relativo orden
(p. 37).

Ao cruzarmos a descrição dos quartos de Angustias e Román, vemos


caracterizadas a disputa pelo poder e pelo controle da casa, e as relações desses
ambientes com o mundo exterior. A ordem do quarto de Angustias está marcada pela
presença do grande crucifixo, que se destaca no conjunto por seu tamanho; ele indica
uma ordem marcada pela austeridade, e sua localização, uma vantajosa posição nessa
luta pelo poder. Já no quarto de Román, a limpeza e a relativa ordem estão
71

caracterizadas por sua relação com a arte: ele coleciona objetos antigos, relógios,
tinteiros, moedas. Não há espaço para a austeridade e sim para a exibição dos objetos
amealhados ao longo dos anos. Além desses elementos, há a música e a pintura que
Román cultiva como estratégias de sedução.
Nas estratégias de Román de manipulação e conquista, a posição de seu quarto
lhe dá uma dupla vantagem: consegue saber o que ocorre abaixo e, dali, em uma
posição de suposta superioridade, controla a vida dos outros moradores e consegue
manter sua privacidade, já que, para saber qualquer coisa que se passa em seu quarto, os
moradores têm que subir a escada que une os dois andares, como várias vezes o fará
Gloria.
Embora a localização dos outros cômodos não seja precisa a ponto de que
possamos traçar um plano da casa, suas descrições revelam a personalidade dos
moradores e as relações que mantêm entre si.
O quarto de Gloria, além de sujo e desordenado, é visto como um “cubil de
fiera” o que expõe seu lado desastrosamente sedutor e felino. A caracterização do
cômodo representa a animalização de sua imagem e a de seu marido Juan, e manifesta a
contigüidade existente na relação entre ela e o marido, marcada por brigas descarnadas e
violentas, como se fossem animais que estivessem brigando:

La casa se quedó llena de ecos, gruñendo como un animal viejo. El


perro, detrás de la puerta de la criada, empezó a ulular, a gemir y a
su voz se mezcló otro grito de Gloria, y al llanto de ella que siguió,
otro llanto más lejano del niño.
(...) Gloria, la mujer serpiente, durmió enroscada en su cama hasta el
mediodía, rendida y gimiendo en sus sueños. Por la tarde me enseñó
las señales de la paliza que le había dado Juan la noche antes y que
empezaban a amoratarse en su cuerpo (pp. 91 e 97).

Essa luta animal e encarniçada que travam marido e mulher, com um filho
pequeno no meio, tem suas raízes na fome que assola a casa, e aponta para uma das
causas da languidez de Gloria, que, sem ter o que comer, dorme horas a fio, enquanto
deixa seu filho aos cuidados da sogra. Branca como um lençol, magra e alargada são
72

adjetivos utilizados pela narradora para descrever Gloria. Estes indicam o aspecto
sombrio e funesto da casa, e ainda denunciam a fome que todos padeciam ali.
Do cômodo destinado a Juan, além de seu “cubil de fiera”, conhecemos seu
estúdio de pintura, situado no que antes fora o escritório de seu pai. O espaço, outrora
destinado aos negócios, deixara de ser um ambiente de resoluções burocráticas para
transformar-se em um possível espaço de arte. No entanto, a arte que se vê ali se mistura
à desordem perene da casa. Entre os móveis amontoados, transformados em trastes
empoeirados, grita a arte medíocre e estridente do tio de Andréa:

Siguiendo la tradición de las demás habitaciones de la casa, se


acumulaban allí, sin orden ni concierto, libros, papeles y las figuras
de yeso que servían de modelo a los discípulos de Juan. Las paredes
estaban cubiertas de duros bodegones pintados por mi tío en tonos
estridentes (p. 35).

A desordem e os quadros de Juan funcionam como uma extensão de sua


personalidade, constantemente marcada pela fúria, em ataques coléricos contra sua
mulher, mãe e irmão. Seus ataques de raiva também estão configurados em suas
pinturas, cujas cores duras, além de revelar uma pintura medíocre, acentuam a violência
de suas relações, marcadas por gritos, pancadas e raiva.
Embora Juan se iluda com a idéia de que sua pintura sustenta sua família, sabe-
se depois que, em realidade, é sua mulher que, na mesa de jogo do bar de sua irmã no
bairro chinês, entre trapaças e escapadas noturnas, consegue por algumas vezes o
sustento e a minguada refeição diária que lhes cabe.
O quarto da avó é descrito quando ela rememora a invasão de sua casa pelos
republicanos. Naquele momento, eles buscavam Jerónimo, o chefe de Angustias que se
escondera ali. Nesse episódio, o quarto aparece vagamente apresentado como um
cômodo repleto de santos.
Ao descrever os cômodos da casa e revelar um pouco de cada personalidade de
seus habitantes, a narradora vai formando uma série de estampas interiores lapidares,
73

55
que bem poderiam lembrar os quadros do pintor holandês Johannes Vermeer, mestre
em plasmar cenas cotidianas e interiores. No entanto, na construção de suas “estampas”,
a narradora não capta a luz viva, alegre e reconfortante de Vermeer. O que se vê na casa
é um jogo de claro-escuro que se aproxima muito mais do mundo dos Caprichos, pois a
luz que passa pelas janelas, quase sempre fechadas da casa da rua de Aribau, é uma luz
estrangulada pelas frestas, sufocada pelo ar asfixiante que se respira ali:

Su desarreglo espantoso, su absoluto abandono (...) Tres años hacía


que, al morir el abuelo, la familia había decidido quedarse sólo con la
mitad del piso. Las viejas chucherías y los muebles sobrantes fueron
una verdadera avalancha, que los trabajadores encargados de tapiar
la puerta de comunicación amontonaron sin método unos sobre otros
(p. 24).

Como o próprio Román definiria, em contraste com seu quarto, as coisas na


casa não recebiam nenhum cuidado. Amontoadas e desordenadas em um ambiente
repleto de gritos, encontravam-se asfixiadas, doloridas e carregadas de tristeza.
Nesse mundo dos Caprichos que a casa apresenta, Andrea não compreende
muito bem a ordem e os motivos das discussões e, apesar do passar do tempo, continua
a se surpreender:

(...) con aquellas gentes de la calle de Aribau, por el aspecto de


tragedia que tomaban los sucesos más nimios, a pesar de que aquellos
seres llevaban cada uno un peso, una obsesión real dentro de sí, a la
que pocas veces aludían directamente (p. 65).

Paralelamente à fome que deixa todos histéricos, inclusive Andrea,


encontramos pelos cômodos da casa as histórias da família, obscuras e incompletas,
contadas vagamente e de forma fragmentada pela narradora e pelos moradores. É a voz

55
Jan (ou Johannes) Vermeer (1632-1675). O artista holandês apreendia cenas do cotidiano burguês com
uma serenidade impressionante. Primando no jogo de luz e na harmonia das texturas, conseguiu construir
uma intimidade silenciosa e reconfortante.
74

de Gloria que, com sua separação quase infantil entre o bem e o mal, narra aos poucos o
passado de todos.
Em seus relatos, parecem existir duas séries de estampas que se juntam: a
anterior à guerra e a do pós-guerra, e ambas se relacionam e revelam seu lado sombrio e
ameaçador. Não há felicidade completa em nenhuma delas, o horizonte é estreito tanto
em uma como em outra.
A narradora-protagonista cresce e amadurece quando entra em contato com os
elementos que conformam tais histórias que, por sua vez, fazem parte da história
política do país. Ela filtra sua experiência e a transforma através de um olhar singular,
resultante de uma relação pessoal e indireta entre a história e o cotidiano.
Por trás dessas histórias e das brigas histéricas, descobrimos que a disputa é o
elemento definidor de muitos comportamentos na casa: Román e Juan brigam de
maneira velada pela atenção e pelo amor de Gloria; Angustias e Román buscam o
controle da casa, de seus habitantes e da vida de Andrea. Damo-nos conta de que a
fortaleza de virtude e ordem de Angustias está erigida sobre um alicerce muito frágil, já
que alimenta ao longo dos anos uma relação ambígua com seu ex-pretendente e atual
chefe, Jerónimo, a quem escondeu durante a ocupação de Barcelona pelos “rojos”.
E por mais que Angustias tente manter-se em seu mundo à parte, situações e
elementos externos, que fogem do controle, ultrapassam as grades de ferro e a
atormentam. Andrea percebe esse “assédio” externo quando sua tia viaja e ela dorme em
seu quarto por alguns dias:

El cuarto de Angustias recibía directamente los ruidos de la escalera.


Era como una gran oreja en la casa... Cuchicheos, portazos, voces,
todo resonaba allí (p. 81).

O olhar e o ouvir são os sentidos que estabelecem a relação entre a adolescente


e seu entorno social. O sensorial confirma o papel de espectadora que a própria
protagonista se atribui. Ainda que ela tente escapar desse ambiente, ele começa a tomar
sua vida:
75

Iba dejando de tener importancia el porvenir y se iba agigantando


cada gesto de Gloria, cada palabra oculta, cada reticencia de Román.
El resultado parecía ser aquella inesperada tristeza (p. 43).

Vigiada pelos moradores da casa, e especialmente pela tia, Andrea vê que, aos
poucos, o idílio da cidade vai se desfazendo; ao passear pelas ruas de Barcelona, ao lado
de Angustias, tudo lhe parece menos brilhante e menos fascinante: “Cogida de su brazo
corría las calles, que me parecían menos brillantes y menos fascinantes de lo que yo
había imaginado” (p. 32).
Para fugir dessa falta de brilho, Andrea escapa sozinha para a rua, espaço em
que se sente livre, em que extravasa seus sentimentos. No entanto, à medida que o
tempo passa, suas fugas vão escasseando, a casa e seus moradores tomam seus sentidos
e engolem seus sonhos e ações. Por mais que tente desvencilhar-se de seu odor a podre
e suas imagens amontoadas e tristes, o espaço privado se transforma no centro de sua
vida:

¡Cuántos días inútiles! Días llenos de historias, demasiadas historias


turbias. Historias incompletas, apenas iniciadas e hinchadas ya como
una vieja madera a la intemperie. Historias demasiado oscuras para
mí. Su olor, que era el podrido olor de mi casa, me causaba náusea...
Y sin embargo, habían llegado a constituir el único interés de mi vida.
Poco a poco me había ido quedando ante mis propios ojos en un
segundo plano de la realidad, abiertos mis sentidos sólo para la vida
que bullía en el piso de la calle de Aribau. Me acostumbraba a
olvidarme de mi aspecto y de mis sueños. (pp. 42-43).

Nesse ambiente, Andrea divide-se entre a opressão e o fascínio que a casa da


rua de Aribau representa em sua vida e em suas iniciativas. Esse caráter ambivalente da
narrativa está diretamente relacionado aos questionamentos que Andrea se faz. Ao
perguntar-se sobre sua situação, descobre que a vida é muito mais que a superação de
76

obstáculos; é um convívio com nuanças e duplos que tornam o amadurecimento algo


complexo e doloroso, que não se completa totalmente, mas continua gerando reflexões.
Veremos que esse processo de maturação se revelará com mais força na
segunda parte do romance, quando Angustias sai de cena e a protagonista se vê livre de
seu controle.
A saída da tia ocorre quando se revela sua relação oblíqua com o chefe,
Jerónimo. Diante dos acontecimentos, Angustias prefere retirar-se a um convento a ter
que suportar o peso dos olhares desconfiados:

Me alegro que se vaya Angustias, porque ahora es un trozo viviente


del pasado que estorba la marcha de las cosas... De mis cosas. Que
nos molesta a todos, que nos recuerda que no somos seres maduros,
redondos, parados como ella; sino aguas ciegas que vamos
golpeando, como podemos, la tierra para salir a algo inesperado... (p.
100).

Dessa saída do mundo urbano, fica a imagem que Román tem de Angustias e,
embora se refira a ela como um ser inteiro, seu auto-exílio revela que todos na casa se
movem em águas turvas, das quais tentam sair para não se afogar. Todos parecem,
como Angustias, viver em um presente contaminado por lembranças e desejos de um
passado que já não existe. Na casa, atormentados pelos acontecimentos da guerra,
ninguém consegue liberar-se de suas águas escuras.
Seus habitantes estão afundados até a cabeça em um lodaçal do qual não
conseguem sair. Eles se debatem e, em vez de liberar-se, afundam cada vez mais.
Entorpecidos por seus próprios gritos e brigas, são incapazes de fugir desse “barco-
prisão” que representa a casa, que afunda em meio a águas paradas, profundas e sujas.
A própria protagonista é comparada a uma “rata despistada” em um barco que
afunda, tal como se encontram os moradores daquela casa, tentando agarrar-se a algo
que alimente a esperança de que a família não se autodestrua definitivamente:
77

Aquello es como un barco que se hunde. Nosotros somos las pobres


ratas que, al ver el agua, no sabemos qué hacer... Tu madre evitó el
peligro antes que nadie marchándose. Dos de tus tías se casaron con
el primero que llegó, con tal de huir. Sólo quedamos la infeliz de tu tía
Angustias y Juan y yo, que somos dos canallas. Tú eres una ratita
despistada, pero no tan infeliz como parece, llegas ahora (p. 39)
(Sublinhado nosso).

Em meio a essas águas turvas, Angustias se despede do mundo urbano e


infernal, mas, paradoxalmente, é com uma imagem fantástica e monstruosa, muito
próxima ao mundo dos Caprichos, que visualizamos sua retirada, pois, a narradora-
protagonista se apropria das gravuras para estampar uma cena do romance: transpõe
pictoricamente a visão daquele momento apoiando-se em sua leitura particular do
capricho “Las resultas” (figura 12).

Como una bandada de cuervos posados en las ramas del árbol del
ahorcado, así las amigas de Angustias estaban sentadas, vestidas de
negro, en su cuarto aquellos días (...) las que los años y los vaivenes
habían alejado y que ahora volvían aleteando al enterarse de aquella
púdica y bella muerte de Angustias para la vida de este mundo (...) La
verdad es que eran como pájaros envejecidos y oscuros con las
pechugas palpitantes de haber volado mucho en un trozo de cielo
muy pequeño (pp. 89-90).

A imagem das amigas e de sua tia em um céu muito pequeno parece referir-se
à estreiteza de suas vidas e faz alusão à de muitas outras pessoas na Espanha dos anos
de fome. Com vidas limitadas pela impossibilidade de mover-se sob uma ditadura, o
que lhes cabe é a velhice em um espaço pequeno. Impossível alçar grandes vôos.
Como corvos, pássaros que devoram restos podres, agarram o último suspiro
“social” de Angustias, que morre para aquele mundo. Essa visão de pássaros que se
concentram em negro, dentro do espaço exíguo de seu quarto, aproxima-se da gravura
78

goyesca, na qual vemos seres alados e monstruosos que chupam o sangue de uma
pessoa caída no chão.
Na imagem, os pássaros-vampiros se concentram sobre um homem no chão,
um deles chupa seu peito e outro pousa ao lado de seu ombro em busca de um pouco de
sangue também. O jogo de claro-escuro da imagem destaca o rosto assustadoramente
humano do vampiro e o rosto do homem atirado ao solo.

Figura 12: Francisco de Goya y Lucientes, “Las resultas”, Desastres de la Guerra, nº.
72, 1810 - 1814, Água-forte, 179 x 220 mm. Biblioteca Nacional, Madri.

A composição multiplica os vampiros como se eles fizessem parte de uma


engrenagem própria para sugar o sangue da vítima. A repetição das formas e as
silhuetas dos seres negros e alados que giram ao seu redor intensificam o momento. A
proximidade entre o escrito e o gravado está na sucção da vida: as amigas estão ali para
presenciar o último momento de Angustias, para sugar seus últimos instantes e
presenciar sua “morte” para o mundo. Vestidas de negro, como corvos, pousam sobre a
amiga que se vai. Ao denominá-las como pássaros que “volvían aleteando”, ou quando
se refere a elas como “pájaros envejecidos y oscuros”, cansados de voar em um céu
muito pequeno, a narradora-protagonista recupera o movimento dos pássaros-vampiros
79

de cara humana que sugam o homem da estampa, e configura a impossibilidade de


expansão e liberdade sob o céu opressor da ditadura franquista.
Na narrativa, as amigas são como pássaros, mas Angustias também. Ainda que
ela conserve a forma humana na visão da narradora, o cansaço da tia, seus cabelos
brancos e o laço de amizade que a une às mulheres-pássaros fazem dela um ser alado,
monstruoso e fantástico. É como se Angustias não apenas fosse sugada, mas também
tentasse sugar algum prazer de seus últimos momentos na cidade.
A narradora-protagonista captura o movimento de sucção do último alento de
Angustias naquele mundo e também configura a animalização dos personagens da casa
e daqueles que estão fora dos limites da rua de Aribau.
Esse recurso de animalização dos personagens ocorre em vários momentos do
romance. Constantemente, os moradores da casa referem-se uns aos outros como
animais: são cachorros, porcos, pássaros. A avó, por exemplo, é um pobre animalillo;
Gloria é mujer serpiente; Román vê todos, e inclusive a si mesmo, como ratas, e a
própria Andrea é vista como uma rata despistada.
A animalização em Nada está, muitas vezes, na degeneração dos nervos, na
decadência da casa e na conseqüente loucura de seus habitantes. Está presente na
loucura perversa de Román, na violência de Juan, na senilidade da avó, ou ainda no
conformismo levemente tolo de Gloria.
A caracterização dos personagens, com metáforas relacionadas ao mundo
animal, ressalta, algumas vezes, uma conotação pejorativa; em outros momentos, há
apenas metáforas divertidas ou definidoras de suas personalidades e ações dentro e fora
da casa. O uso constante dessas imagens metafóricas revela duas questões: a
animalização do humano e a penúria do pós-guerra:

Eres como un animal —dije, furiosa—. Tú y Juan sois como bestias.


(...) No sé qué gusto amargo y salado tenía en la boca. Di un portazo
como si yo fuera igual que ellos. Igual que todos... (...) “Ya hago
gestos nerviosos como Juan”... “Ya me vuelvo loca yo también”...
“Hay quien se ha vuelto loco de hambre”... (pp. 234-236).
80

Nessa caracterização que se vale de traços de animais, embora Andrea não


queira se parecer com os habitantes da casa de Aribau, se dá conta de que a casa e seus
moradores já haviam tomado todos os seus sentidos, ela já pertencia à casa. Identifica-se
com todos na violência e na animalização, na fome e na penúria que os deixa
enlouquecidos.
Para escapar desse mundo caótico, Andrea, longe do olhar reprovador de sua
tia, que saíra de cena, acredita que está livre para deambular pelas ruas de Barcelona,
expandir suas amizades na Universidade e poder realizar seus desejos: “(...) pues mi
único deseo de mi vida ha sido que me dejen en paz hacer mi capricho” (p. 101).
Em uma referência à obra de Goya, a frase da protagonista traça um paralelo
com os Caprichos, de cujo mundo o relato revela estar impregnado. Dessa forma, a
narrativa realiza seu capricho esteticamente pelo estreitamento das relações entre
gravura e escritura através das imagens evocadas, da plasmação de um mundo cuja
representação é fragmentada e os personagens animalizados.
Em liberdade e com novas amizades, Andrea começa a dar-se conta de que
também no mundo anônimo das ruas e nos espaços em que convive com seus amigos
nem tudo é luminoso. À medida que avança em suas relações, a polarização ostensiva
entre o público e o privado se dissipa e termina por fundir o mundo da casa da rua de
Aribau com o da universidade; passa-se da separação para a mescla.
Talvez o exemplo mais eloqüente dessa fusão esteja no baile de seu amigo
Pons que, interessado em Andrea, convida-a, na véspera da noite de San Juan, para
passar o verão com sua família e ir ao baile. Noite de bruxas por excelência, a data do
convite marcará o ponto inicial da revelação explícita do aspecto escuro e triste dos
diferentes ambientes pelos quais transita a protagonista:

— Tú mismo has dicho que tengo cinco días para contestar.


Sentí al mismo tiempo que le decía esto a Pons como un anhelo y un
deseo rabioso de despreocupación. De poder libertarme. De aceptar
su invitación y poder tumbarme en las playas que él me ofrecía
sintiendo pasar las horas como en un cuento de niños, fugada de
aquel mundo abrumador que me rodeaba. Pero aún estaba detenida
por la sensación molesta que el enamoramiento de Pons me producía
81

(...) De todas maneras la idea de asistir a un baile, aunque fuera por


la tarde —para mí la palabra baile evocaba un emocionante sueño de
trajes de noche y sueños brillantes, que me habían dejado la primera
lectura del cuento de la Cenicienta (...) (p. 188).

Esse aspecto triste plasma-se no choque entre o desejo da protagonista de


vivenciar um baile excitante e ver-se como uma Cinderela, aceita na alta sociedade
barcelonesa. Quando os olhos da mãe de Pons encontram seus sapatos velhos, a bela
Cinderela transforma-se apenas na menina “borralheira”. Envergonhada pelo olhar
fulminante da mulher, ela vê seus sapatos converterem o sonho em pesadelo:

Me acuerdo del portal de mármol y de su grata frescura. De mi


confusión ante el criado de la puerta, de la penumbra del recibidor
adornado con plantas con jarrones. Del olor a señora con
demasiadas joyas que vino a estrechar la mano de la madre de Pons y
la mirada suya, indefinible, dirigida a mis viejos zapatos, cruzándose
con otra anhelante de Pons, que la observaba.
Aquella señora era alta, imponente. Me hablaba sonriendo, como si la
sonrisa se le hubiera parado —ya para siempre— en los labios (p.
202) (Sublinhado nosso).

A ilusão de um conto de fadas termina naquele momento. Acanhada, Andrea


tenta proteger-se da presença dos que ali estavam, apoiando-se em seu amigo Pons. No
entanto, este a abandona por um período longo demais. Sozinha, a protagonista detém-
se em observar as pessoas na festa.
Como em vários momentos do romance, Andrea descreve o mundo exterior
com uma subjetividade capaz de transformá-lo em uma obra de arte, uma estampa que
ela percebe, e delineia os elementos que lhe chamam a atenção. Um dos recursos que
utiliza é justamente o congelamento das imagens que seu olhar captura, como o sorriso
que vê no rosto da mãe de Pons, que fuzila seus sapatos velhos. Em outro momento,
82

volta a congelar outras imagens, como se a festa fosse uma seqüência de estampas que
ela vai formando à medida que seu olhar costura tais imagens:

Una señora gorda está parada en mi recuerdo con la cara


congestionada de risa en el momento de llevarse a la boca un
pastelillo. No sé porque tengo esta imagen eternamente quieta, entre
la confusión y el movimiento de todo lo demás (p. 203).

Em meio às figuras que vai absorvendo e transformando em estampas de uma


festa, para ela já malograda, Andrea se vê em um espelho, sem luz ou cor alegre, em
meio a inúmeras pessoas que se divertem. Ali, no meio delas, vê os dois mundos
fundirem-se: o cinza encontra a cor, mas se destaca o primeiro pela tristeza do
momento:

No me divertía nada. Me vi en un espejo blanca y gris, deslucida


entre los alegres trajes de verano que me rodeaban. Absolutamente
seria entre la animación de todos y me sentí un poco ridícula (p. 203).

Do encontro dos dois mundos virá a consciência expressa artística e


esteticamente, reafirmando que a polarização, na vida “real”, não existe: tudo está muito
misturado. O fantástico tem algo de real; o monstruoso tem algo de humano e vice-
versa.
Nesse vaivém que, em realidade, acentua o caráter fragmentário da
representação no romance, em constante exercício ekphrástico, a narradora-protagonista
corrobora seus recursos de construção estética ao referir-se ao baile como uma série de
estampas:

La verdad es que no conocía a nadie y estaba descentrada. Parecía


como si un montón de estampas que me hubieran entretenido en
colocar en forma de castillo cayeran de un soplo como en un juego de
niños. Estampas de Pons comprando claveles para mí, de Pons
83

prometiéndome veraneos ideales, de Pons sacándome de la mano,


desde mi casa, hacia la alegría (p. 205) (Sublinhado nosso).

As estampas de ilusões, de encontros e desejos idealizados desabam como em


um jogo de cartas e o que resta para Andrea é um amontoado de ilustrações que apenas
mostram os desejos frustrados.
Um recurso que a narradora-protagonista utiliza para plasmar essa visão
estética da realidade aparece em outro momento da festa, no qual o olhar de Andrea
detecta mais um capricho goyesco. Sozinha, ouve o nome de seu amigo Iturdiaga; mas,
quando se vira, percebe que há dois homens conversando e o Iturdiaga em questão é o
pai. No diálogo que acompanha, revela-se uma faceta pouco discutida do romance, que
apenas se insinua em suas entrelinhas: a diferença de classes, estilos de vida e visões da
guerra, que, neste caso, referem-se à Segunda Guerra Mundial:

— ¿Pero usted se da cuenta de lo que puede hacernos ganar la guerra


en este caso? ¡Millones, hombre, millones!... ¡No es un juego de
niños, Iturdiaga!....
Siguieron su camino.
A mí me vino a los labios una sonrisa, como si en efecto los viera
cabalgar por el cielo enrojecido de la tarde (sobre las dignas cabezas
de hombres importantes un capirote de mago) a los lomos del negro
fantasma de la guerra que volaba sobre los campos de Europa... (p.
204).

Os dois falam da guerra como um negócio, uma maneira de ganhar dinheiro,


não se importam com vidas; o que está em jogo são os milhões que podem acumular.
Em um momento histórico em que todos naquele país tentam reerguer-se, em que
muitos se mantêm com uma dieta de legumes fervidos, Nada mostra uma realidade em
que as fortunas, principalmente as ilícitas, formam-se à custa de vidas humanas.
Nesse momento, a narradora expõe um submundo regado a champanhe e
lucros estratosféricos, cuja imagem congelada pelo olhar de Andrea aponta para a fusão
84

entre o mundo real e o fantástico, plasmada pelos traços apocalípticos de cavaleiros que
voam sobre o fantasma da guerra.
A visão criada pela imaginação de Andrea evoca a imagem do capricho “Buen
Viaje” (figura 13). Nele, vemos um pássaro monstruoso de cara humana que leva
algumas pessoas em seu dorso. Ao fundo vê-se uma sombra de difícil identificação pela
cor difusa da gravura, mas que parece ser uma criatura alada.
As figuras que estão sobre o monstro olham espantadas, cada uma em um
sentido: a da direita olha para cima, a da esquerda mantém olhar fixo em algo que está à
esquerda, mas que não podemos identificar, já que é externo à gravura, e a figura central
olha para fora do quadro. Todos têm a boca aberta pelo assombro. Abaixo, vê-se uma
paisagem de campo que sugere um ambiente distante do urbano.

Figura 13: Francisco de Goya y Lucientes, “Buen Viaje”, Caprichos, nº. 64, 1799,
Água-forte, aguada brunida e formão, 217 x 152 mm. Biblioteca Nacional, Madri.

A descrição de Andrea recupera o movimento, as figuras e a cor da gravura; o


céu avermelhado que ela vê coincide com o tom sépia avermelhado que provém da tinta
de carvalho que Goya utilizou em sua prova; o vôo, os seres monstruosos e o ser alado
85

dão o tom fantástico à cena, e o título da gravura associa-se ao desejo expresso na


conversa dos dois homens: a guerra nada mais era que uma viagem vantajosa.
Outra vez temos uma alusão explícita à guerra, o que contraria a afirmação de
que Nada ignora a questão da guerra civil ou dos conflitos externos, que de alguma
forma afetavam a Espanha. O sorriso irônico de Andrea, diante da cena, acentua a visão
do despropósito dos comentários dos personagens que negociam os lucros do conflito.
Além disso, a figura do fantasma da guerra recupera, conforme sugerido por
Roberta Johnson, a imagem do Coloso (figura 14) que Goya pintou entre 1808-1812, e
que muitos críticos acreditavam tratar-se de uma visão da Guerra de Independência que
assolava o país.

Figura 14: Francisco de Goya y Lucientes, Coloso, 1808-1812, Óleo sobre tela, 116 x
105 cm. Museu do Prado, Madri.

Goya´s Coloso, representing the specter of war over Spain and


Europe as a monstrous human figure, is conjured up in Andrea’s
imagination when she overhears two Catalan businessmen discussing
profits to be made in the Second World War.56

56
JOHNSON, Roberta. Carmen Laforet. Boston: Twayne, 1981, pp. 60-61.
86

No quadro, vemos um gigante de costas para o campo de batalha. Enquanto as


pessoas fogem espavoridas, apenas um burro permanece impassível durante a fuga em
massa. A figura do asno foi interpretada de muitas formas, desde uma evocação da
invasão napoleônica, até uma simples representação dos horrores da guerra.
É interessante ressaltar um ponto não observado por Roberta Johnson e que
acreditamos ser importante: a imagem impassível do asno recupera o simbolismo
goyesco da inversão de valores, que já mencionamos neste trabalho. Através de animais
falantes, Goya, muitas vezes, tanto nos Caprichos, como nos Desastres, simbolizou tal
inversão, o que sem dúvida aparece na imagem que Andrea vê e que associa à conversa
dos dois homens: há uma inversão de valores aqui, a guerra é vista como uma
oportunidade de lucro e não como cataclismo social.
Uma vez fora da casa, longe das visões fantasmagóricas e de estampas de
frustrações, Andrea encontra na rua a intimidade do anonimato. Ali, protegida pela
multidão indiferente e desconhecida, pode desafogar-se, chorar e dar-se conta de que
muitos outros sofrimentos que viriam depois daquele tornavam o episódio da festa algo
insignificante:

Estuve mucho rato llorando, allí, en la intimidad que me


proporcionaba la indiferencia de la calle, y así me pareció que
lentamente mi alma quedaba lavada.
En realidad, mi pena de chiquilla desilusionada no merecía tanto
aparato. Había leído rápidamente una hoja de mi vida que no valía la
pena de recordar más. A mi lado, dolores más grandes me habían
dejado indiferente hasta la burla... (p. 208) (Sublinhado nosso).

Nesse momento em que o vivido e o contado se encontram, em um explícito


movimento da memória, há uma referência à ação de escrever e de ler que, juntas,
conformam uma situação de duro amadurecimento, construída por estampas confusas,
algumas desordenadas e que, no final, unem-se para constituir um mundo de claro-
escuro. Nesse mundo, a luz e a escuridão se encontram e, fundidas, antecipam o
momento em que a protagonista se reconhecerá como um ser tão fantasmagórico como
seus parentes:
87

Me acuerdo de una noche en que había luna. Yo tenía excitados los


nervios después de un día demasiado movido. Al levantarme de la
cama vi en un espejo de Angustias toda mi habitación llena de un
color seda gris, y allí mismo, una larga sombra blanca. Me acerqué y
el espectro se acercó conmigo. Al fin alcancé a ver mi propia cara
desdibujada sobre el camisón de hilo (...) Era una rareza estarme
contemplando así, casi sin verme, con los ojos abiertos. Levanté la
mano para tocarme las facciones, que parecían escapárseme, y allí
surgieron unos dedos largos, más pálidos que el rostro, siguiendo la
línea de las cejas, la nariz, las mejillas conformadas según la
estructura de los huesos. De todas maneras, yo misma, Andrea, estaba
viviendo entre las sombras y las pasiones que me rodeaban. A veces
llegaba a dudarlo (p. 156) (Sublinhado nosso).

Nesse momento, Andrea parece querer “delinear” seu rosto, como se dessa
forma pudesse compreender a situação pela qual passa. No entanto, ao ver-se no espelho
como um fantasma, a narradora começa a “traçar” uma nova Andrea que, depois de
muitas desilusões, configura um novo contorno para sua personalidade, como se fosse
uma “estampa” cinza, através da qual representará seus atos e pensamentos dali em
diante.
Quando chegamos a essa cor cinza no romance, praticamente se apaga a linha
tênue entre passado e presente. Parece que, desse ponto em diante, tudo na narrativa
estará sob o signo dessa cor.

O aspecto acinzentado do conhecimento

Envoltas pelo cinza do fracasso, as descrições espaciais e a atitude dos


personagens convergem para uma imagem fantasmagórica, que se confirma no
momento em que Andrea se reconhece como um ser espectral, um arremedo humano
88

como os outros moradores da casa. Esse sentimento da protagonista funde sua narração
e sua reflexão, o que se expressa na cena em que se lembra dos dias passados na casa:

Me viene ahora el recuerdo de las noches en la calle de Aribau.


Aquellas noches que corrían como un río negro, bajo los puentes de
los días, y en las que los olores estancados despedían un vaho de
fantasmas (p. 157) (Sublinhado nosso).

As imagens evocadas pela narradora em suas recordações geram uma estética


sinestesicamente monstruosa, pois são os cheiros represados que expelem figuras
fantasmagóricas e noturnas.
No entanto, o monstruoso não está apenas na casa, mas também no espaço
público. Quando Andrea, junto a sua amiga Ena e seu namorado Jaime, decidem fazer
um passeio pelos arredores de Barcelona e seguem rumo à praia, percebemos esse
aspecto extraordinário nos arredores da cidade:

Ena iba al lado de Jaime. Yo, detrás, me ponía de rodillas, vuelta de


espaldas en el asiento, para ver la masa informe y portentosa que era
Barcelona y que se levantaba y esparcía al alejarnos, como un rebaño
de monstruos (p. 130).

Ao enxergar esse “rebanho de monstros”, Andrea dissipa a separação ostensiva


entre a escuridão da casa e as luzes da cidade. Integra, como nos Caprichos, o mundo da
noite e o do dia. Pouco a pouco, a Barcelona idílica transforma-se em uma cidade de
demônios, mas não os demônios religiosos de sua tia Angustias e sim seres infernais
muito humanos: a pobreza, a desilusão e a fome. Inclusive Ena, tão querida e luminosa,
mostrará seu lado maquiavélico e felino. Também Andrea, como os habitantes da casa,
começa a animalizar-se devido a sua fome crônica:

Estos chorros de luz que recibía mi vida gracias a Ena, estaban


amargados por el sombrío tinte con que se teñía mi espíritu otros días
89

de la semana. (...) la visión desenfocada de mis nervios demasiado


afilados por un hambre que a fuerza de ser crónica llegué casi a no
sentirla (...) (pp. 131-132) (Sublinhado nosso).

A protagonista sente-se como um bicho acuado quando é pega tomando o caldo


com o qual se cozinhou a verdura do almoço. Nesse momento, Andrea revela até que
ponto ia o estado de penúria da família naquela casa. Uma fome característica do pós-
guerra, quando as cidades ainda não se haviam refeito das mudanças políticas, nem das
agruras que a guerra trazia com ela: a falta de trabalho, de comida e de afeto. Apenas a
loucura alimentava aqueles seres da rua de Aribau:

En la calle de Aribau también pasaban hambre sin las


compensaciones que a mí me reportaba. No me refiero a Antonia y a
Trueno. Supongo que estos dos tenían el sustento asegurado gracias a
la munificencia de Román. El perro estaba reluciente y muchas veces
le vi comer sabrosos huesos. También la criada se cocinaba su
comida aparte. Pero pasaban hambre Juan y Gloria y también la
abuela y hasta a veces el niño (p. 120).

A fome e a desilusão, dentro e fora de casa, fazem com que Andrea enxergue o
espaço público pela fresta do privado. Ela descobre que a união desses dois mundos se
encontra no desacorde, no gosto amargo, no mau cheiro e em um contato que provoca
desalento. Tudo isso se concentra tanto no poema Nada, de Juan Ramón, como no
romance de Carmen Laforet. Não é possível buscar um significado na paz ou em
situações agradáveis, pois ele está no incômodo. E a maneira de encontrá-lo é por meio
dos sentidos, anunciado em uma estrutura que privilegia o sinestésico e a imagem. É
pelo olfato, pelo olhar e pelo tato que vislumbramos várias facetas de Nada.
Nesse percurso pela experiência sensível proporcionado pela narrativa, o
mundo noturno goyesco configura-se em uma estrepitosa realidade barcelonesa. Quando
seu tio Juan sai tarde da noite em busca de sua mulher, Andrea o segue. Nessa aventura
90

noturna, conhece o bairro chinês e ali se vê sob a luz do “brilho do diabo”, que sua tia
Angustias mencionara anteriormente:

Juan entró por la calle del Conde del Asalto, hormigueante de gente y
de luz a aquella hora. Me di cuenta de que esto era el principio del
barrio chino. “El brillo del diablo”, de que me había hablado
Angustias, aparecía empobrecido y chillón (...). Todo aquello no era
más que un marco de pesadilla, irreal como todo lo externo a mi
persecución (p. 120) (Sublinhado nosso).

À medida que adentra o bairro, a narradora expressa suas visões por meio do
sensorial; são sensações olfativas, táteis e visuais. E esses estímulos vêm através do
ruído, do cheiro a podre e a vinho, conformando um “quadro” que retrata um pesadelo
que se materializa nos corpos que roçam em Andrea.
Em Nada, as imagens mostradas vão adquirindo contornos de pesadelo
mesclado à realidade. Uma tênue linha entre o mundo onírico e o real começa a
desfazer-se diante do olhar de Andrea, cravado nas pessoas que transitam pelo bairro
chinês.
Para Andrea, a estampa do pesadelo configura-se na imagem de um carnaval
grotesco, de mau gosto e agro. Diante dessa visão, o sensorial toca o material e tudo se
torna arredio e estranho. Ao observar as pessoas daquele bairro, imagens grotescas
invadem sua retina e a memória passa a trabalhar em conjunto com a arte. As figuras
excêntricas daquele lugar evocam o carnaval assustador da infância da protagonista e
recuperam as sensações vividas por meio da visualidade captada do momento presente:

Pasando deprisa entre una ola humana que a veces me desesperaba


porque me impedía de ver a Juan, me llegó el recuerdo vívisimo de un
carnaval que había visto cuando pequeña. La gente, en verdad, era
grotesca: un hombre pasó a mi lado con los ojos cargados de rímel
bajo un sombrero ancho. Sus mejillas estaban sonrosadas. Todo el
91

mundo parecía disfrazado con mal gusto y me rozaba el ruido y el


olor a vino. Ni siquiera estaba asustada, como aquel día en que,
encogida junto a la falda de mi madre, escuché las carcajadas y las
ridículas contorsiones de las máscaras (p. 163) (Sublinhado nosso).

A conjunção entre memória e arte evoca as imagens do quadro El entierro de


la Sardina (figura 15), de Goya. Na obra, podemos contemplar a multidão e imaginar o
ruído das vozes. As fantasias e as bochechas rosadas das figuras da imagem são
evocadas na recuperação do momento da infância da protagonista. A partir da união
entre o momento vivido por Andrea no bairro chinês e sua lembrança da infância,
captam-se figuras e movimentos do quadro, e passado e presente recobrem-se de intensa
visualidade. Cria-se um amálgama impreciso, no qual as sensações do passado
misturam-se às do presente e o eco das risadas do carnaval da infância mescla-se ao do
presente, apagando seus limites e a hierarquia temporal entre um e outro.

Figura 15: Francisco de Goya y Lucientes, El entierro de la sardina, 1812-1819, Óleo


sobre tela, 82,5 x 62 cm. Museu da Real Academia de Bellas Artes de San Fernando,
Madri.
92

Monstros de contornos perigosamente humanos invadem a retina de Andrea,


mostram que o brilho do diabo, evocado por Angustias, tem muito mais de humano,
pobre e nauseante do que se poderia imaginar:

Me parecía que algunas calles tenían, diluido en la oscuridad, un


vaho rojizo. Otras, una luz azulina... (...) Me acuerdo de que íbamos
por una calleja negra, completamente silenciosa, cuando se abrió una
puerta por la que salió despedido un hombre borracho, con tan mala
suerte que cayó sobre Juan, haciéndole vacilar. Pareció que a Juan le
corría una descarga eléctrica por la espalda. En un abrir y cerrar de
ojos le propinó un puñetazo en la mandíbula, y se quedó quieto,
aguardando a que el otro se repusiera. Al cabo de unos minutos
estaban enzarzados en una lucha bestial (p. 164).

Há uma explosão difusa de cores: o hálito avermelhado do ar que se respira


mistura-se a uma luz azulada que sai de ruas negras. Em meio a esse arco-íris de cores
fortes, carregadas e noturnas, dois homens se atiram em uma luta bestial:

Luego me encontré sorprendida por la animación que súbitamente


llenó la calle. Dos o tres hombres y algunos chiquillos, que parecían
brotados de la tierra, rodearon a los que luchaban. Una puerta
entreabierta lanzaba a la calle un chorro de luz que me cegaba.
Yo estaba llena de terror y procuraba permanecer invisible. No tenía
idea de lo que podría pasar unos minutos después. Encima de aquel
infierno —como si sobre el cielo de la calle cabalgaran brujas—
oímos voces ásperas, como desgarradas. Voces de mujeres animando
a los luchadores con sus pullas y sus risas. Alucinada, me pareció que
caras gordas flotaban en el aire, como los globos que a veces dejan
escapar los niños (p. 165).
93

Figuras goyescas pairam onipresentes, em meio à briga de Juan e do bêbado: a


proximidade entre o humano e o infernal, entre os monstros e os homens, desfaz limites.
Impossível saber onde termina um e começa o outro, mesclados, sob a luz que cega,
bruxas e demônios cavalgam no céu escuro. Mais uma vez, Andrea “lê” a cena através
de um capricho.
Acreditamos que essa leitura vem da estampa “Todos caerán” (figura 16), que
captura o movimento infernal de cabeças monstruosas e voláteis. Não são demônios ou
figuras fantásticas, mas seres que flutuam sobre cabeças humanas e bestiais, lutam
incitados pelos gritos de mulheres que mais parecem bruxas.
A cena da gravura mostra seres com rostos humanos e corpos de aves. Seu título
se encaixa na situação de Juan e do homem: ambos caem ao chão, derrubam os limites
entre humano e animal e dissipa-se a fronteira entre o real e o pesadelo. Todos, entre
gritos, conformam imagens goyescas.

Figura 16: Francisco de Goya y Lucientes, “Todos caerán”, Caprichos, nº. 19. 1799,
Água-forte e aguada brunida, 219 x 146 mm. Biblioteca Nacional, Madri.
94

À estridência dos gritos une-se a violência da luta, à idéia de figuras que brotam
da terra e depois flutuam sob vozes ásperas; cria-se a imagem de um inferno na terra.
Nele, as bruxas são mulheres que freqüentam os bares do bairro, ou que vivem ali, as
caras voláteis giram ao redor da faixa de luz que cega, ilumina e concentra o olhar na
briga. Conjugados, humano e monstruoso retratam o brilho do diabo do bairro chinês,
sujo, fétido e animalizado. Ali, Andrea descobre que o demoníaco não estava apenas no
espaço doméstico, mas também no espaço público, em todas as partes, como se o pós-
guerra em si se configurasse como um mundo demoníaco.
A luta termina com a sirene da polícia. Espavoridos, todos fogem e se trancam
nos estabelecimentos mais próximos. Com a ajuda de Andrea, seu tio reergue-se e, por
fim, termina sua busca pela mulher. Ele encontra Gloria no bar da irmã e ali descobre
que ela joga cartas e trapaceia para ganhar um pouco de dinheiro para o sustento da
família.
Desse percurso pelo bairro chinês, resulta uma certa proximidade entre a
protagonista e o tio, que se revela não apenas no momento de terror e necessidade, mas
também quando se sente totalmente faminta, pois Andrea se reconhece como Juan e
chega a pensar que são parecidos, como se de alguma forma a miséria pudesse revelar
facetas próximas entre ela e os moradores da casa; como se, de repente, pobreza e fome
se juntassem e levassem a um momento híbrido de histeria e compreensão: “Pensaba
mucho en Juan y me encontraba semejante a él en muchas cosas. Ni siquiera se me
ocurría pensar que estaba histérica por la falta de alimento” (p. 132).
Quando Andrea passa a compreender o momento em que vive, ainda que
parcialmente, ele vem expresso por tintas sombrias, tão sombrias como sua fome. À
medida que o romance avança, damo-nos conta de que há uma grande concentração de
imagens que revelam uma preocupação pelo efeito estético, que impulsionam o trajeto
da narradora-protagonista rumo à compreensão, revelada, freqüentemente, de forma
conturbada e perturbadora.
Por isso, não acreditamos na afirmação de Roberta Johnson de que no romance
a arte oferece uma perspectiva de calma contemplação das paixões humanas, que a vida
continua e revela-se corrupta, enquanto a arte é permanente:
95

Art provides a soothing, contemplative calm, a permanent reality in


opposition to the passion and flux of human relationships (...) The
principal difference between life and art is that life continues and
becomes corrupt, while the work of art is permanent.57

Pensamos que a arte exerce a função de problematizar os sonhos e os


pesadelos de Andrea. Através do entrelaçamento de ambos, reconhecemos que não há
imutabilidade de conceitos ou idéias. Assim como Andrea descobre a ambivalência do
mundo e seus mecanismos, ela tenta responder a questões que ainda a inquietam através
da escritura; a arte não oferece soluções prontas, muito menos os Caprichos. Ambos,
gravuras e escritura, exercem a função de suscitar mais questões, de revelar um
processo doloroso de descoberta e amadurecimento. Assim, é difícil acreditar em uma
certa permanência ou em uma suposta imutabilidade da arte frente à vida.
Narradora e leitor compreendem o doloroso processo de aprendizagem e de
perda das ilusões juvenis através da “leitura” que a autora proporciona do momento
histórico, mediada pela presença das gravuras goyescas. Em uma sociedade em que a
desolação do pós-guerra manifesta-se pela sujeira, pelo abjeto, pela degradação dos
habitantes da rua de Aribau, será no clima claustrofóbico e na asfixia que se revelará a
corrosão da sociedade pós-guerra civil, cujas feridas acinzentadas tomam a narrativa em
sua segunda e terceira partes.
Na terceira parte, vemos Nada como uma história não só da passagem para a
maturidade de Andrea, mas também da não satisfação de seus sonhos, de suas
expectativas. Andrea aprende como “não ser”, seu amadurecimento é de contornos
58
negativos, pois, por meio dos julgamentos e reflexões que faz, observamos que a
narradora-protagonista mudou. Pelo menos em alguns aspectos. Torna-se mais
cuidadosa em suas opiniões, mais indulgente e com maior capacidade de compreender
as pessoas e suas características, mesmo quando se chocam com suas convicções.
Em meio a essa transformação/formação, um episódio intensifica o uso das
imagens como um poderoso elemento que impregna Andrea com as sensações da casa e

57
JOHNSON, Roberta. Carmen Laforet. Boston: Twayne, 1981, p. 65.
58
JORDAN, Barry. Laforet: Nada. London: Tamesis Books, 1993, p. 117.
96

de seus habitantes: a morte de seu sedutor tio Román, que se mata ao degolar-se com a
navalha de barbear.
A morte de Román ocorre em meio a dois fatos: quando é denunciado por
Gloria por atuar no mercado negro e ao descobrir que Ena se envolvera com ele apenas
para vingar sua mãe. Margarita, em sua adolescência, fora apaixonada por Román, mas
este não correspondeu a seu sentimento, desprezando-a e humilhando-a. Assim,
pressionado pela possibilidade de ser preso e tendo perdido seu poder de sedução,
decide-se pelo suicídio.
Do episódio de sua morte ficará gravada na memória de Andrea uma imagem
infernal e afetuosa ao mesmo tempo, mostrando com isso que a guerra era capaz de
compor realidades não polarizadas e sim fundidas por uma dor latente:

Era más verosímil figurarse que Román había sido el espectro de un


muerto. De un hombre que hubiera muerto muchos años atrás y que
ahora se volviera por fin a su infierno... Recordando su música,
aquella música desesperada que a mí me gustaba tanto oír y que al
final me daba la impresión exacta del acabamiento, del deshacerse en
la muerte, me sentía emocionada algunas veces (p. 203).

Por meio da arte, nesse caso a música, Andrea compreende a possibilidade de o


afeto conviver com a dor. Nesse processo, o caráter espectral da figura de seu tio
aparece, sintomaticamente, reafirmando e acentuando o aspecto fantasmagórico que
tantas vezes o romance revela. Nele, desespero e arte, emoção e dor convivem de forma
simbiótica.
É com essa dor que chegam à casa da rua de Aribau as tias de Andrea, filhas de
sua avó, que revelam o outro lado da casa, de seres que haviam escapado à sua
influência, mas não totalmente, pois um rancor doentio as acompanha:

— A nosotras no nos has querido nunca, mamá. Nos has despreciado.


Nos has humillado. Siempre te hemos visto quejarte de tus hijas, que,
97

sin embargo, no te han dado más que satisfacciones...; ahí, ahí tienes
el pago de los varones, de los que tú mimabas...
— Señora, deberá dar usted mucha cuenta a Dios por esa alma que
ha mandado al infierno (p. 206).

Desse encontro rancoroso surge uma estampa goyesca como um elemento


decisivo na construção do romance. As tias, histéricas, formam um aquelarre ao redor
da mãe, como se ela fosse a sacrificada. No entanto, a dor é de todos e, em um encontro
de bruxas às avessas, sucumbem e se destroem de alguma forma:

No creía yo a mis oídos. No creía yo tampoco las extrañas visiones de


mis ojos. Poco a poco las caras se iban perfilando, ganchudas o
aplastadas, como en un capricho de Goya. Aquellos enlutados
parecían celebrar un extraño aquelarre (p. 205) (Sublinhado nosso).

Figura 17: Francisco de Goya y Lucientes, “Disparate ridículo”, Disparates, nº. 3,


1816-1823, Água-forte, aguada e ponta-seca, 247 x 358 mm. Biblioteca Nacional,
Madri.
98

Aos olhos de Andréa, saltam as figuras do “Disparate ridículo” (figura 17).


Nele, o silêncio da noite e o gesto de quem fala parecem captar de alguma forma os
gritos histéricos do quarto que se removió con batir de alas, graznidos. Chillidos
histéricos (p. 206) das filhas que, como figuras noturnas, tentam em um último
momento sugar um pouco de amor da velha mãe que, para elas, apenas as havia
humilhado e deixado que cultivassem um grande rancor. Trata-se de mais um desastre
do pós-guerra, muito próximo também da gravura “Las resultas” (figura 12, já citada na
página 77).
A imagem criada pela narradora capta a posição e o movimento de suas tias.
Enfileiradas, uma ao lado da outra, gritam e grasnam, animalizadas e fúnebres,
barbaridades contra a mãe. A visão resgata o conjunto mórbido da gravura, ao mesmo
tempo em que recupera a caracterização de seres monstruosos e alados.
A representação de seres “aplastados” também está na gravura, pois estes se
equilibram sobre o galho da árvore e estão tão juntos que parecem formar um amálgama
de criaturas estranhas. A árvore forma um conjunto contínuo entre os corpos,
especialmente pernas e galhos, como se os seres fossem apenas um e a árvore fizesse
parte de seus corpos.
Assim como a estampa cria um momento literalmente suspenso, de estranheza
e sentimento fúnebre, a narradora captura o movimento desse instante, sua noção de
amálgama. Dessa forma, a narrativa aumenta sua aspereza através dos gritos das tias de
Andrea, o que cria uma imagem não apenas monstruosa e fantástica, mas também
dilacerante: um instantâneo de um dos desastres do pós-guerra, configurado pela dor da
humilhação e o rancor pela privação do amor materno.
Ao aumentar a aspereza da cena, a narradora-protagonista une os gritos das tias
aos das amigas de Angustias e aproxima duas estampas para plasmar um momento de
histerismo, ódio e disputa. Enfileirando os contornos das tias, como os dos seres
estranhos do “Disparate ridículo”, o romance as aproxima das silhuetas dos pássaros-
vampiros que apareceram anteriormente na despedida de Angustias. Em ambos
encontramos a mesma morbidez e os mesmos grasnidos.
Ao ver as feridas da guerra abrindo-se, entre longos silêncios e gritos
histéricos, tudo resulta ridículo, assustador e muito triste. Vemos, nesse momento, que o
“nada” pode ser muito, quando guardado, alimentado rancorosamente por anos a fio,
99

pode ser tudo quando o romance e as gravuras se unem e plasmam um momento


contundente nos cômodos de uma casa arruinada em muitos sentidos.
Depois dessa visão da ruína de sua família e daqueles que por ali passam,
chegamos à cena final do romance. Nela, vemos uma esperança em meio a tantos
acontecimentos tristes, temos um sentimento de déjà vu, já que alguns fatos se repetem,
ainda que de maneira diferente. Andrea recebe uma carta, mas já não é da prima Isabel,
e sim de Ena, convidando-a para juntar-se a ela em Madri. O comichão que sente a
narradora-protagonista se parece apenas um pouco ao do início da narrativa. Muita coisa
já mudou, principalmente sua forma de aceitação do mundo e dos acontecimentos.
Aparentemente, esses acontecimentos apontam para um fim cíclico no
romance. No entanto, Andrea levava da rua de Aribau as desilusões sofridas, o fato de
perceber que o privado e o público não estão nem podem ser divididos, mas sim que se
misturam, se fundem, o que quebra a idéia de cíclico e desvia o círculo, como se Andrea
entrasse em um labirinto, cuja saída não conhecemos.59
A fenda entre a partida da casa e a nova vida em Madri é uma lacuna que
nunca se preenche. Chegamos ao final do romance com muitas das dúvidas que
tínhamos ao iniciá-lo: não sabemos exatamente quando e de onde Andrea nos conta sua
história, não sabemos claramente por que escreve, não nos damos conta precisamente da
amplitude temporal entre as experiências e a elaboração do texto. Em Nada, a memória
não busca uma rememoração integral, mas sim analogias entre passado e presente, uma
semelhança profunda, mais forte do que o tempo que passa e que se esvai sem que
possamos segurá-lo.60
Por isso, podemos dizer que a grandeza da narrativa não está apenas em seu
conteúdo, mas na forma como estrutura a memória da experiência vivida. Daí,
entendermos que essa fenda entre a partida e a nova vida de Andrea constitui um
importante marco no desenvolvimento da história. Embora a narrativa reconstitua seu
processo de amadurecimento, não é capaz de preencher o vazio, que insiste em
permanecer oculto.

59
JORDAN, Barry. Laforet: Nada. London: Tamesis Books, 1993, p. 118. Essa idéia da quebra do cíclico
vem da discussão do autor sobre se o romance seria um exemplo de romance de formação, um
“Bildungsroman”. Concordo com crítico que não o é no sentido convencional do termo.
60
PROUST, Marcel. “À sombra das raparigas em flor”. In: Em busca do Tempo Perdido, Vol. III. São
Paulo: Editora Globo, 1995, p. 462.
100

Em Nada, embora essa fenda entre presente e passado não se preencha,


podemos afirmar que a estrutura da narrativa se revela marcada pelo uso dos Caprichos,
pois o romance configura um mundo movido pela arte, mostrado através de visões,
febres, congelamentos de cenas que constituem essa transposição pictórica. Ao
apropriar-se das gravuras, a autora as usa como elementos mediadores na elaboração de
seu texto e revela, também, sua “leitura” do conjunto goyesco, fundindo palavra e
estampa ao momento histórico vivido.
Por isso, Nada representa uma aventura rumo ao conhecimento, que termina
com contornos pessimistas, mas como diria Miguel Delibes,61 não desesperançada. De
certo modo, o ato de recuperar o que está gravado na memória — e perdoem o
trocadilho — forma estampas de um futuro possível, delineado pela dor, por descobertas
e questionamentos de um passado ainda latente.

Figura 18: Francisco de Goya y Lucientes, “Nada. Ello dirá”, Desastres de la guerra,
nº. 69, 1810 – 1814, Água-forte, buril e tinta sobre a prancha, 155 x 200 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.

Assim como a figura esquelética da gravura Nada62 (figura 18) aponta para
uma página de um livro, a experiência de Andrea transcende o ambiente sociopolítico
que a rodeia para transformá-lo em experiência pessoal, uma experiência escrita e

61
DELIBES, Miguel. “En torno a Nada”. In: Cuadernos del idioma, 4, Año I, Buenos Aires: Ed. Códex,
1966, pp. 49-50.
62
Vale dizer que o título original da gravura era apenas “Nada”, mas na primeira publicação da Real
Academia de Bellas Artes de San Fernando, em 1863, modificou-se o título. Não se sabe bem por quê,
talvez o niilismo da estampa fosse inaceitável para a época.
101

grabada. Nesse sentido, há toda uma superposição de sentidos que aí se anuncia: é o


livro da gravura Nada, é o romance Nada, é o “nada” do “gusto amargo” que fica da
verdade insuspeita que se descobre no processo de amadurecimento visto nas pequenas
histórias de tons desacordes que compõem o romance.
Na base dessas pequenas histórias está o entrelaçamento entre as gravuras e o
romance. As primeiras tidas como arte do espaço e o segundo, do tempo. No entanto,
assim como Goya, com seus Caprichos e Desastres, forma uma seqüência de pequenas
histórias, que juntas testemunham um mundo de ilusões perdidas e de horizontes
estreitos. A narrativa, ao incorporar as estampas ao seu processo de construção, subverte
essa oposição entre espaço e tempo, já que podemos ver o romance como uma sucessão
de estampas que giram em torno de um espaço, o da casa da rua de Aribau, e de um
tempo, o das memórias de Andrea.
102

Capítulo III - Uma sociedade visceral63

Insomnio64
Madrid es una ciudad de más de un millón de cadáveres
(según las últimas estadísticas).
A veces en la noche yo me revuelvo y me incorporo en este
nicho en el que hace 45 años que me pudro,
(...) Y paso largas horas preguntándole a Dios,
preguntándole por qué se pudre lentamente mi alma,
por qué se pudren más de un millón de cadáveres en esta
ciudad de Madrid, por qué mil millones de cadáveres se
pudren lentamente en el mundo.
Dime,¿qué huerto quieres abonar con nuestra podredumbre?
(Dámaso Alonso, Hijos de la ira)

Em Tiempo de Silencio, publicado em 1962, Martín-Santos narra o percurso de


Pedro, um médico-cientista que, em um estudo empírico com ratos, tenta provar que o
câncer é virótico e não hereditário. No entanto, suas cobaias morrem. Vai, então, às
favelas nos arredores de Madri atrás de Muecas, um ex-funcionário do instituto, em
busca dos ratos que este havia roubado do laboratório de pesquisas.
Ao chegar à casa de Muecas, Pedro adentra um mundo às avessas: descobre que
as filhas dele criavam os ratos, acalentando-os em seu regaço, o que faz o pesquisador
pensar em um possível contato virótico. Progressivamente, o envolvimento de Pedro
com essa família ultrapassa os limites da simples compra de ratos. Em uma noite,
quando volta bêbado para a pensão em que morava, vê-se obrigado a ajudar Muecas,
pois uma de suas filhas, Florita, sofrera um aborto. O médico, mesmo sem licença para
operar, tenta salvar a menina, que morre em seus braços. Acusado pelo crime, tenta
fugir e esconder-se, mas é capturado e preso. No entanto, é salvo pela mãe da menina,

63
Ressaltamos que o significado utilizamos da palavra visceral é relativo a vísceras, que o romance
explora, como veremos em sua análise.
64
ALONSO, Dámaso. Los hijos de la ira. Madrid: Cátedra, 1992, p. 12. A primeira edição deste livro foi
publicada em 1944 e, em 1946 foi revisada e aumentada, sendo, portanto, contemporânea a Luís Martín-
Santos.
103

que revela o verdadeiro culpado: o próprio pai molestara, engravidara e provocara o


aborto da filha.
Livre da prisão, Pedro vê seu futuro promissor escapar-lhe: perde sua bolsa de
pesquisa e cai na armadilha das donas da pensão em que morava, ao deitar-se com
Dorita, a jovem e atraente neta de Dora, a dona do estabelecimento. Mas o
envolvimento de ambos dura pouco, já que o namorado de Florita — Cartucho —
decide vingar sua morte e segue os passos de Pedro e de sua namorada, até que, em
público, em uma quermesse, apunhala a jovem. O romance termina com o protagonista
totalmente transtornado, fugindo de trem para o interior do país.
Através dessa obra, Luis Martín-Santos exige do leitor uma disposição pouco
freqüente na literatura espanhola dos anos 60. Ao lê-lo, vemo-nos obrigados a seguir
muito de perto os passos e as ações de seus personagens, como se compartilhássemos de
seus atos e situações. Se, por um lado, o romance exige do leitor esta atenção redobrada
na leitura, por outro, oferece uma narrativa que explora de maneira inédita o cotidiano
da época. Este se exibe carregado de uma visualidade eloqüente e visceral que, muitas
vezes, beira à exasperação.
Propositadamente, o texto testa nossos limites através de imagens
estarrecedoras de uma sociedade que se encontra sob o signo da desumanização. Nela,
vemos o ser humano animalizado pelas condições em que vive e por suas atitudes nas
situações-limite que o romance expõe.
Nesses momentos, a palavra se une a imagens peculiares para acentuar sua
contundência. Para tanto, a narrativa se apropria de procedimentos, temas e visões que
evocam estampas goyescas, mais especificamente, algumas gravuras de Los Desastres
de la Guerra. A escolha dessas imagens pelo autor ocorre porque a série de gravuras de
Goya também contempla situações-limite, nas quais o olhar atento do espectador se
torna imperioso. Dessa forma, tal como o pintor, o escritor estabelece uma proximidade
inusitada entre os acontecimentos narrados e o leitor, rompendo com a tradição literária
e artística de descrever atitudes e acontecimentos de forma distante e panorâmica.
Através da tensão entre palavras e imagens viscerais, a narrativa se compõe por
um jogo dialético entre o escrito e o visto e, dessa forma, propõe ao leitor que
acompanhe de perto seus personagens. Ao segui-los pelas ruas do mundo e do
submundo de Madri, cabe ao leitor conectar as ações e situações ali descritas, como se
104

estas formassem uma seqüência de diminutas estampas que podem ser entendidas
individualmente ou em conjunto. Possibilita, assim, que se constitua uma imagem
microscópica e fragmentada de uma sociedade desumanizada.
Para alcançar essa visão da sociedade, o autor compõe um constante
movimento metonímico nas descrições que decorrem de um cuidadoso trabalho de
seleção de imagens que possibilita mostrar os pensamentos dos personagens, através de
monólogos interiores, tão abundantes ao longo da narrativa. São cenas que retratam um
pós-guerra desolador, faminto e contraditório, e forjam imagens que devem muito à
estética goyesca, como quando o narrador descreve os difíceis momentos em que se
encontrava a população espanhola durante os primeiros anos do pós-guerra:

(...) a descubrir cuántos billetes para el metro vende una mujer con un
niño de pecho una mañana de invierno, a adivinar cuál es la ley
económica que permite que las cerilleras vendan pitillos uno a uno y
con el producto alimenten suficientemente sus amantes, a pensar cuál
sería la idea loca que echó a todos los ciegos a la calle hasta en esos
días que la nieve cae endurecida (...) a imaginar cómo — Dios mío —
cómo vivía este pueblo en los que ellos mismo dicen — ellos sabrán
por qué — que fueron los años de hambre (pp. 16-17) (Sublinhado
nosso).

Ao estampar a inquietude de seus personagens na década de 1940, nos


chamados anos de fome, o narrador exibe as cenas da narrativa de forma pictórica,
como pequenas imagens da vida cotidiana. Amplia, assim, os horizontes estéticos de
uma época árida e desesperançada. A ambigüidade e a ironia são os instrumentos de que
se vale o autor para fazer-nos enxergar com proximidade e intimidade o mundo do pós-
guerra. Dessa forma, vemos Madri microscopicamente, suas vísceras expostas nos
mostram as minúcias de que são formados os personagens, como se fossem uma gravura
a exigir um olhar detido para entendê-la.
Percorrendo os espaços da Madri dos años de hambre, o narrador encontra sua
representação mais dilacerante. Como células cancerígenas de que se ocupa o
105

protagonista, que proliferam vertiginosamente, a linguagem de Martín-Santos mimetiza


tal processo, conjugando desejo, solidão, fracasso e arte. Assim, revela que:

(...) un hombre es la imagen de una ciudad y una ciudad las vísceras


puestas al revés de un hombre, que un hombre encuentra en su ciudad
no sólo su determinación como persona y su razón de ser, sino
también los impedimentos múltiples y los obstáculos invencibles que
le impiden llegar a ser (...).65

Nenhuma imagem poderia ser tão violenta e apropriada como a das vísceras
para expor a inovação que representou Tiempo de Silencio na narrativa espanhola.
Marcada por uma linguagem plástica e visceral, expõe as entranhas do homem através
da construção do espaço romanesco da cidade, criando uma descrição que impõe ao
leitor o olhar desse amálgama visual formado por espaço e personagem. O romance,
conformado pela palavra que descreve e pela visualidade projetada, revela sua dinâmica
por meio de uma composição crua e cinzenta desse conjunto composto por cidade e
vísceras.
Esse diálogo com as artes plásticas chama a atenção para o mundo
representado em sua escassez e para o interior concreto dos personagens: são suas
vísceras que se mostram. E isso exige uma aproximação do leitor em que não basta
observar e acompanhar as trajetórias dos personagens, é necessário participar
efetivamente da construção da leitura.
Essa proximidade “visceral” constitui-se como ponto inicial para alcançar uma
imagem que abarque o tiempo de silencio que imperava no pós-guerra espanhol. A
intimidade do leitor com a cidade e os personagens ali descritos vai além da barreira da
ilustração de um acontecimento específico para refletir sobre uma violência silenciosa
que anula a existência humana. Nessa composição fragmentada, cidade e personagens
configuram, no espaço conflituoso, a realidade desoladora daquele contexto.
Pautados nessa visão asfixiante e contraditória da narrativa, não estamos de
acordo com os exercícios classificatórios que boa parte da crítica realizou. No âmbito

65
MARTÍN-SANTOS, Luís. Tiempo de Silencio. Barcelona: Destino, 2000, p. 17. Todas as citações a
seguir são retiradas desta edição e indicamos junto à citação o número da página correspondente.
106

dessas classificações, houve tentativas de tachá-la como existencialista, como marxista,


ou como pertencente ao realismo social, ou ainda como texto propício a leituras
psicanalíticas.66
Podemos dividir as numerosas análises propostas em dois grandes grupos: o
primeiro, daqueles que acreditam que a narrativa é uma reação a um estado de coisas, a
uma sociedade que quer mudar e o segundo, que percorre a via filosófica, buscando
conexões entre o escritor e o psicanalista, bem como suas afinidades com Sartre e
Camus.
Não queremos negar a validade de tais estudos e suas contribuições. No
entanto, acreditamos que a grande força do romance, e também disso decorre a
dificuldade em analisá-lo, resulta de uma dialética eficaz entre o individual e o social, e
do embate entre ambos por meio de uma estética altamente carregada de visualidade,
que consegue mostrar a impossibilidade de conciliação entre o projeto individual e as
contradições de uma sociedade fechada e atrasada tecnológica e socialmente.
O vigor do romance está justamente nas possibilidades que oferece para sua
interpretação. Entre elas, optamos por explorar o aspecto da visualidade, que traz
consigo uma herança goyesca.
O apelo à visualidade enriquece e reveste a narrativa de matizes até então
pouco observados pela crítica. Revela, assim, facetas praticamente inexploradas no
romance, viabilizando uma perspectiva de leitura determinada pelo uso da ekphrasis e
pela análise de recursos que conferem ao texto elementos táteis, olfativos e visuais.
Não há em Tiempo de Silencio um desejo de plasmar “objetivamente” a
realidade, mas sim, a intenção de aproximá-la dos olhos do leitor de uma maneira não
convencional. O que se pretende é expor os acontecimentos a partir de outra
perspectiva, daí a imensa importância de seu aspecto visual, cuja ênfase recai sobre
imagens que beiram o insuportável.
O mundo exposto por elas é conturbado, tudo nele revela um ar viciado pelo
silêncio imposto. Há um calor sufocante nos ambientes privados e nas ruas da cidade,

66
As questões psicanalíticas são discutidas particularmente em LABANYI, Jo. Ironía e historia en
Tiempo de Silencio. Madrid: Taurus, 1983; o existencialismo, em ROBERTS, Gemma. Temas
existenciales en al novela española de postguerra. Madrid: Gredos, 1978; o enfoque marxista está,
especialmente, em CURUTCHET, Juan Carlos. “Luis Martín-Santos, el fundador”. In: Cuadernos de
Ruedo Ibérico. París, n. º 17, 1968, pp. 29-69; o enfoque social, em GIL CASADO, Pablo. La novela
social española. Barcelona: Seix-Barral, 1968; as questões formais, especialmente em REY, Alfonso.
Construcción y sentido de Tiempo de Silencio. Madrid: Porrúa Turranzas, 1980.
107

ou seja, no ambiente que envolve o protagonista e os outros personagens. As vísceras


expostas da cidade conduzem-nos a lugares abjetos, nos quais há um “silencio macizo
como un estuche” (p. 87) que torna seus ambientes opressivamente protetores, pois os
espaços privados não apenas protegem, mas também oprimem.
Essa percepção do ambiente social é microscópica, pois focaliza o espaço para
observar com lupa a sociedade espanhola pós-guerra civil. Através de sua lente, o autor
identifica e individualiza seus personagens para revelar-nos seus fracassos e submetê-
los a uma estética paradoxal, realizada por meio de uma linguagem asséptica, que nos
expõe um meio abjeto.
Um exemplo disso está na particular apropriação da tradição de descrever
panoramicamente, como já comentamos. Na época de Goya, as cenas de batalhas e
guerras obedeciam a um tipo clássico de abordagem: eram vistas à distância, havia uma
representação monumental do fato histórico. Goya contraria tal procedimento e
aproxima o espectador que, em vez de contemplar de longe as ações, é convidado a
envolver-se de perto com elas. Já em 1962, quando surge Tiempo de Silencio, a Espanha
encontrava-se dividida entre duas propostas literárias: o realismo social dos anos 50 e o
chamado objetivismo, uma espécie de extensão do realismo social vigente, propugnado,
entre outros, pelo romancista Juan Goytisolo.
As duas correntes baseavam-se, essencialmente, na denúncia da injustiça
social. No entanto, o primeiro propunha a eliminação da voz do narrador. Pautava-se na
descrição externa do comportamento humano e na transcrição dos diálogos dos
personagens que compunham as obras. Com isso, pecava por um certo determinismo, ao
postular um mal inerente que deveria ser denunciado. Já a segunda corrente inclinava-se
para a crítica social sem explicitá-la, como se o texto pudesse “refletir” a realidade.
Esperava-se que o leitor desse uma interpretação política ao texto. Não obstante, sem a
voz interpretativa do narrador, a “realidade em si” não revelava nada e o leitor, muitas
vezes, não encontrava o sentido esperado.

Los novelistas españoles — por el hecho de que su público no dispone


de medios de información veraces respecto a los problemas con que
se enfrenta el país — responden a esta carencia de sus lectores
trazando un cuadro lo más justo y equitativo posible de la realidad
108

que contemplan. De este modo la novela cumple en España una


función testimonial que en Francia y los demás países de Europa
corresponde a la prensa, y el futuro historiador de la sociedad
española deberá apelar a ella si quiere reconstruir la vida cotidiana
del país a través de la espesa cortina de humo y silencio de nuestros
diarios.67

Tiempo de Silencio rompe com essa técnica objetivista e mostra que, para
evidenciar os problemas da sociedade espanhola e discuti-los, podem-se utilizar
diversas técnicas, que permitem ressaltar o espírito crítico sem abrir mão da qualidade
estética.
Assim, atento ao aspecto literário de seu texto, Luis Martín-Santos cria uma
voz onisciente intrusa para narrá-lo, que não apenas sabe de tudo o que ocorre, mas que
também opina e discute sobre aquilo que narra, assumindo o risco de tomar uma posição
subjetiva frente ao predomínio do realismo objetivo. O narrador de Tiempo de Silencio
nega-se a reproduzir a realidade como um produto de espelhamento, nega-se à visão
panorâmica e impassível e toma uma posição irônica e indagadora. Da mesma maneira,
podemos dizer que Goya traça um caminho semelhante na elaboração de suas gravuras:
deixa de lado a visão grandiosa, panorâmica, do fato histórico para ilustrá-lo de perto.
Ambos propõem, nos diferentes campos artísticos, uma visão próxima, cotidiana e
visceral dos momentos históricos que retratam em suas obras.
Em Tiempo de Silencio, presente e passado aparecem conjugados para explicar
e interpretar o problema intelectual e social espanhol por uma via diferente.

(...) se podría decir que ‘Tiempo de Silencio’ contiene una velada


crítica del franquismo, una denuncia de la situación social y
económica en que vivía España en los años cuarenta, una visión
crítica de la historia peninsular desde la Edad Media y una denuncia
de aquellas actitudes y teorías que no combatían ese pasado.68

67
GOYTISOLO, Juan. El furgón de cola. Barcelona: Editorial Seix-Barral, 1982, p. 34.
68
REY, Alfonso. Noticia de Luis Martín-Santos y de ‘Tiempo de Silencio’. In: Tiempo de Silencio.
Barcelona: Clásicos & Modernos, 2000, p. 237.
109

Essa crítica possibilitou uma busca pela renovação técnica, bem como a
contraposição ao dominante objetivismo. Em sua inovação, Martín-Santos explicita uma
preocupação em ser testemunha de uma época e de um pensamento, em atribuir um
significado para a realidade.
Nas palavras do autor, seu romance é uma busca pelo “realismo dialético”, por
meio do qual procurava dar uma nova orientação para a narrativa espanhola.

Temo no haberme ajustado del todo a los preceptos del realismo


social, pero verás un poco en qué sentido quisiera llegar a un
realismo dialéctico. Creo que hay que pasar de la simple descripción
estática de las enajenaciones, para plantear la real dinámica de las
contradicciones ‘in actu’.69

Ao atribuir um significado possível para a realidade, Martín-Santos elabora um


jogo de antíteses, distanciando-se das correntes literárias daquele momento. Abre uma
fenda entre o que se descreve e o que se vê e, dessa forma, aproxima ao máximo o leitor
do objeto descrito.
Tal proximidade se espelha na opção pelo estilo indireto livre e pela escolha do
monólogo interior e do solilóquio que obrigam o leitor a entrar na narrativa atento aos
julgamentos do narrador e de seus personagens.

La consecuencia inmediata de esa continua alternancia del relato


indirecto en tercera persona, en el que el narrador sirve de
intermediario entre los personajes y el lector, y el buceo introspectivo
del monólogo interior, en que el personaje habla de sí mismo en estilo
directo y en primera persona, es que el autor, (...) refleja los hechos a
través del prisma subjetivo de sus principales protagonistas.70

69
DOMENECH, Ricardo. “Luis Martín-Santos”. In: Insula. Madrid, n. º 208, marzo, 1964, p. 68.
70
VILANOVA, Antonio. Novela y sociedad en la España de la posguerra. Barcelona: Editorial Lumen,
1995, p. 420.
110

Com uma intromissão constante do narrador e um estilo prolixo, vigoroso e


irônico, a realização de Tiempo de Silencio desconcerta a crítica então vigente. Unida a
esse narrador onisciente intruso, está a redução do espaço: não importa em Tiempo de
Silencio a descrição externa do comportamento humano, mas sim ver de dentro para
fora o que ocorre na sociedade espanhola. Interessa mostrar Madri como uma
metonímia dessa sociedade, expor suas vísceras, ver a partir do interior, revelar o
público partindo do privado e, dessa forma, dar um novo significado para a realidade.
Assim, podemos dizer que tanto as gravuras de Goya como a narrativa impõem
ao espectador e ao leitor a visão de um mundo abjeto. É preciso ver de perto tanto a
guerra como suas conseqüências. Dessa observação, a contradição surge no romance
como um elemento estruturador da relação entre o ambiente e os personagens que o
habitam.

Predomina en toda la obra precisamente una conciencia insatisfecha;


insatisfecha, en todo momento, de su propia dialéctica, que insiste,
constantemente, en hacer aflorar sus propias contradicciones.
Tanto la técnica de esta novela como el tema a que está supeditada se
encaminan no a la búsqueda de una síntesis entre la novela realista y
la subjetivista, sino a demostrar la imposibilidad de tal síntesis, lo que
radica en la ambigüedad misma del fenómeno de la existencia
humana en el mundo.71

No romance, há uma impossibilidade de síntese entre o exterior e o interior, já


que a apresentação do ambiente social tenta ocultar os problemas evidentes ali. Assim, a
questão da inferioridade intelectual e científica do espanhol (amplamente discutida em
1940 no país) salta aos olhos na narrativa de Martín-Santos por meio de dois elementos
incompatíveis: a ambição pessoal e a escassez de meios para concretizá-la.
O romance inicia-se cercado por essa escassez, com Pedro no laboratório de
um instituto de pesquisas científicas. Ali, ele expõe seus sonhos de conquista do Nobel,
inspirado pela “figura do homem de barba no quadro”, Ramón y Cajal, cientista

71
ROBERTS, Gemma. Temas existenciales en al novela española de postguerra. Madrid: Gredos, 1978,
p. 192.
111

espanhol que já ganhara o prêmio. Em contraste com seus sonhos, estão a realidade e as
dificuldades da pesquisa. Sem um microscópio eletrônico e, principalmente, sem ratos
— suas cobaias, que provinham de Illinois, morreram — não há como prosseguir em
seus estudos. Para piorar, o Instituto em que pesquisava não dispunha de recursos para
comprar novas cobaias.

El retrato del hombre de la barba, frente a mí, que lo vio todo y que
libró al pueblo ibero de su inferioridad nativa ante la ciencia,
escrutador e inmóvil, presidiendo la falta de cobayas. Su sonrisa
comprensiva y liberadora de la inferioridad explica —comprende— la
falta de créditos. Pueblo pobre, pueblo pobre. ¿Quién podrá nunca
aspirar otra vez al galardón nórdico, a la sonrisa del rey alto, a la
dignificación, al buen pasar del sabio que en la península seca,
espera que fructifiquen los cerebros y los ríos? (p. 9).

Na meseta seca, cérebros ibéricos são retratados com igual esterilidade, não só
de conhecimentos, mas também de possibilidades de crescimento. Falta educação,
faltam créditos, falta comida, sobram apenas argumentos baseados em teorias raciais.

Dentro del tejido de la libertad que es la vida humana, el único


asidero sólido es precisamente el proyecto. ‘Un hombre es lo que sea
su proyecto’. Dentro de la fluente sucesión de vivencias, sólo el
proyecto fundamental subsiste durante largo tiempo con una cierta
constancia. El flujo irracional de la vida tiene un norte orientador en
el proyecto que tiende a realizar.72

A Espanha é vista como uma terra árida e pobre, em oposição à riqueza norte-
americana e ao avanço tecnológico europeu. O país luta para tornar real o sonho do

72
MARTÍN-SANTOS, Luis. Libertad, temporalidad y transferencia en el psicoanálisis existencial.
Barcelona: Seix-Barral, 1964, p. 20 (Aspas do autor).
112

progresso, mas a secura de suas terras e a falta de meios o imobiliza em seu próprio
passado, atrelado a questões raciais que não explicam nem solucionam seu problema.
Em uma época em que a expressão nacional se definia pela luta por um pedaço
de pão branco e por uma visão histórica privada de qualquer dinamismo, a elite
intelectual do regime (herdeiros da “generación del 98”) acreditava que o fracasso
espanhol era produto, em grande parte, da raça e do meio, entendido apenas em sua
dimensão geográfica, física e fixa.

Los noventaochistas y sus sucesores invocan las teorías raciales de


una manera contradictoria. Por un lado, sugieren que las virtudes
esenciales de la raza han sido corrompidas por una historia
inauténtica, y que hace falta un “redentor” que redima al pueblo, al
restaurar sus virtudes perdidas. Por otro lado, sugieren que la raza
tiene unos defectos congénitos, que no tienen remedio. En este caso, a
pesar de no ser posible la redención, el redentor todavía es necesario
para salvar al pueblo de los errores que inevitablemente comete.73

A partir dessa crença na origem do fracasso espanhol, muitas teorias raciais foram
invocadas ao longo dos anos 40, sobretudo para explicar uma suposta inferioridade
intelectual do espanhol. Martín-Santos recusou-se a aceitar tais explicações raciais, já que
entendia o problema espanhol por outras vertentes. Entre elas, aquela que associava tal
fracasso às suas bases educacionais.
Quando o narrador se refere, ironicamente, à Espanha como “un país que no es
Europa” (p. 57), aponta para a marginalidade espanhola frente ao avanço econômico e
científico dos vizinhos europeus. Através de uma cena em que descreve um quadro de
Goya, El Aquelarre (figura 19), o narrador nega uma suposta explicação racial para o
problema. Nela, satiriza, pela primeira vez, a figura de Ortega y Gasset, filósofo
defensor da teoria racial e da estratificação social, representado pela figura do grande
“macho cabrío”:

73
LABANYI, Jo. Ironía e historia en Tiempo de Silencio. Madrid: Taurus, 1983, p. 32.
113

(...) y qué listo eres tú para un pueblo que tiene las frentes tan
menguadas. Y puesto que de una más noble sustancia tú estás hecho,
oh buco, a todos nos desprecias. Sí, realmente sí, qué bien, qué bien lo
has visto: Todos somos tontos. Y este ser tontos no tiene remedio.
Porque no bastará ya nunca que la gente ésta tonta pueda comer, ni
pueda ser vestida, ni pueda ser piadosamente educada en luminosas
naves de nueva planta construidas, ni pueda ser selectamente nutrida
con vitamínicos jugos y proteicos que el turmix logra de materias
primas diversas (...) puesto que víctimas de su sangre gótica de mala
calidad y de bajo pueblo mediterráneo permanecerán adheridos a sus
estructuras asiáticas y así miserablemente vegetarán vestidos
únicamente de gracia y no de la repulsiva técnica del noroeste (p. 57).

Ao identificar o filósofo como o “macho cabrío”, o autor ridiculariza suas


teorias raciais, presentes, sobretudo, em sua obra España Invertebrada, em que aponta
“la sangre visigótica” como responsável pela decadência espanhola, ou seja, em que
atribui o fracasso à sua origem biológica. Para contestar a teoria de Ortega y Gasset, o
narrador lê explicitamente a pintura, em um exercício de transposição pictórica que não
se limita a descrever o quadro de Goya, pois gera uma atualização da imagem ao expor
uma singular interpretação do Buco.
O uso da visualidade não serve apenas para ilustrar o escrito, ou como objeto
de comparação da figura de Ortega, mas sim como uma maneira de refletir sobre o
quadro e as teorias do filósofo, pois efetua uma pausa na progressão dos fatos da
narrativa e fixa o olhar do leitor na questão da teoria racial e das teorias defendidas nos
anos em que se passa a narrativa. E essa intervenção ocorre através de uma imagem
também modificada, pois o quadro que aparece no romance não passa de um arremedo
do original:

El Goya de Matías era una gran reproducción a todo color pinchada


con chinches en la pared de su cuarto con absoluto desprecio del
mobiliario Imperio y del papel rosado que la recubría. El gran macho
cabrío en el aquelarre, rodeado de sus mujeres embobadas, las
114

recibía con un gesto altivo, con la enhiesta cabeza dominando no sólo


a cada una de las mujeres tiradas por el suelo, sino también a cuantos
inermes espectadores se atrevieran a fijar en el cuadro su mirada (p.
117).

Os espectadores “inermes” são os personagens Matías e Pedro; e também o


leitor, que acompanham o gesto altivo e caricato do diabo retratado, cuja “evocação” o
narrador descreve e interpreta, mostrando que o escrito utiliza imagens para re-
interpretar o contexto social vigente e lançar um novo olhar sobre a literatura espanhola
do pós-guerra.

Figura 19: Francisco de Goya y Lucientes. El Aquelarre, 1797-8, Óleo, 43.3 x 30.5
cm. Museu Lázaro Galdiano, Madri.
115

O quadro que incita a discussão foi pintado por Goya para os duques de Osuna
74
e apresenta uma visão satírica do tema do sabá noturno, pois oferece um conjunto
agradável e nada sombrio. Entre a combinação das montanhas azuladas com o céu
matizado de cinza, vê-se ao fundo um grupo de bruxas que rodeia a imensa figura do
diabo. Este leva uma coroa de folhas nos chifres, fazendo-nos recordar a iconografia de
Baco. Ele bendiz uma jovem que se aproxima oferecendo-lhe seu filho; junto a ela,
algumas velhas fazem o mesmo com crianças esqueléticas. O diabo, muito satisfeito
com a oferta, derrama sobre a cena um ar jocoso com sua expressão, que chega a ser
graciosa, e ao se unir aos tons suaves de rosa, amarelo e azul, dá uma certa leveza ao
conjunto.
No romance, o arremedo de quadro aparece fixado em um ambiente que destoa
da cena retratada na pintura, provocando a sensação de deslocamento entre imagem e
ambiente. Ao dispor o quadro em um ambiente inapropriado — a cópia da pintura
divide espaço com o mobiliário clássico do quarto, pregado em uma parede rosa—, a
narrativa acentua o tom jocoso da cena pictórica, que se relaciona à crítica implacável
que o narrador faz de Ortega. Para tanto, ironiza sua teoria de divisão de classes, com a
qual não concorda.

La crítica al conferenciante se basa en su egolatría—afán de


admiración y reconocimiento social que le lleva a renunciar al rigor e
incluso a su propia condición de intelectual (...) — en su visión elitista
de la sociedad; en su desconocimiento de la realidad social (...) el
narrador lo convierte en buco emisario del fracaso de la
intelectualidad española.75

Ao ironizar a teoria racial, o narrador também se opõe a um argumento caro ao


franquismo, pois o determinismo racial corroborou a idéia de que se o fracasso espanhol
era algo congênito, legitimava a necessidade de um “redentor” que tomasse as rédeas do

74
Reunião de bruxos e bruxas que, segundo superstição medieval, ocorria no sábado, à meia-noite, sob a
presidência do Diabo.
75
PEREZ MAGALLÓN, Jesús. “El proyecto acosado: el fracaso en Tiempo de Silencio de Luís Martín-
Santos”. In: Revista Hispánica Moderna. New York: Hispanic Institute Columbia University, vol. XLVII,
n. º 1, 1994, p. 139.
116

país e o conduzisse ao desenvolvimento. A manutenção de uma sociedade altamente


estratificada e marcada pela teoria racial era um discurso reiterado e alimentado por
algumas facções da Falange, uma espécie de braço político do franquismo em sua
primeira década.
O próprio Martín-Santos, certamente, testemunhou discussões exaltadas em sua
época de estudante sobre “o problema espanhol”, já que pelo menos dois de seus
professores, Pedro Laín Entralgo — que se definia falangista e humanista, autor de
España como problema de 1949 — e Juan José López Ibor, conselheiro nacional da
Falange Espanhola, autor de El español y su complejo de inferioridad, de 1951,
discutiram acaloradamente o tema.
O quadro de Goya é incorporado, então, como instrumento de contraposição a
essas teorias raciais e revela a faceta política do romance. Ao descrever o filósofo
através do Buco, o narrador traça um paralelismo crítico entre Ortega e a imagem que o
autor busca apresentar da intelectualidade espanhola. O movimento ekphrástico
realizado pela leitura e interpretação explícita do quadro aponta para possíveis fontes
imagéticas da visualidade presentes no romance, que se manifestam em sua estrutura
através da incorporação de procedimentos que provêm de gravuras e de temas de Los
Desastres de la Guerra.
Um desses procedimentos está na forma como Martín-Santos preenche suas
páginas: com um “enquadramento” que leva o espectador ao centro dos acontecimentos.
Ao explorá-los sob a visão do narrador onisciente intruso, unido aos monólogos
interiores que percorrem todo o romance, o narrador conduz a história através de uma
forma que privilegia o close em detrimento do panorama. Tanto na descrição do Buco,
como em outras que aparecem ao longo da obra, há uma preocupação em representar ao
máximo a simultaneidade, a descontinuidade e a proximidade. É desse movimento do
romance, centrado na contradição e na proliferação de palavras e imagens, que decorre a
metáfora configurada na estrutura da narrativa: o câncer.
117

A escritura como câncer: a proliferação das palavras

Tiempo de Silencio começa com um monólogo, que se transforma em


solilóquio e logo em diálogo. A construção inicial da narrativa antecipa as divisões das
formas do discurso que caracterizam a estrutura do romance. É relevante que o
monólogo interior se destaque como um de seus recursos mais utilizados: em um
ambiente no qual imperava um tiempo de silencio da ditadura franquista, nada mais
apropriado que essa forma para configurar a expressão do título.

Sonaba el teléfono y he oído el timbre. He cogido el aparato. No me


he enterado bien. He dejado el teléfono. He dicho: “Amador”. Ha
venido con sus gruesos labios y ha cogido el teléfono. Yo miraba por
el binocular y la preparación no parecía poder ser entendida. He
mirado otra vez: “Claro, cancerosa”. Pero, tras la mitosis, la mancha
azul se iba extinguiendo. “También se funden estas bombillas,
Amador”. No; es que he pisado el cable. “¡Enchufa!” Está hablando
por teléfono. “¡Amador!” Tan gordo, tan sonriente. Habla despacio,
mira, me ve. “No hay más” ¡Se acabaron los ratones! (p. 9).

Ainda que pareça contraditório, a divisão sistemática das formas discursivas,


unida à visualidade presente no romance, dilata as imagens descritas, o que, por sua vez,
esgarça de modo peculiar sua estrutura, concedendo um matiz exasperante ao exercício
de leitura.
Alguns são monólogos lógicos e ordenados tanto em idéias como na sintaxe,
outros são fora de ordem. Alguns evocam o passado, outros questionam o presente e um
possível futuro. Há ainda aqueles que vêm entre aspas. E temos, sobretudo, o que
muitos críticos chamaram de comentário, forma discursiva que se constitui como uma
das grandes inovações da narrativa de Martín-Santos:

La primera función del comentario — la función unificadora —


consiste en asegurar la transición entre el relato de los hechos y el
análisis de los sentimientos, en incorporar ambas modalidades y
118

superar así la oposición ‘objetivo’/’subjetivo’ y ‘exterior’/interior’...


En pleno relato objetivo, asoma de repente un adjetivo de poderosa
carga subjetiva, que ‘animiza’ profundamente las cosas. De manera
inversa, en monólogos o diálogos reproducidos en su materialidad
desnuda, sin el menor rastro de subjetividad.76

Em uma época em que predominava a opção por um narrador “impessoal”, que


não fazia comentários e oferecia uma visão panorâmica e pouco interpretativa da vida
cotidiana, o narrador de Tiempo de Silencio propõe uma narração que impõe o
comentário crítico.
Assim, o narrador transforma-se em uma espécie de “semipersonagem”, que
comenta, critica e acompanha de perto os personagens. Martín-Santos nega-se a
converter seu narrador em um registro mais ou menos imparcial das ações e situações
do romance. Ao descartar esse tipo de narrador, Tiempo de Silencio consegue
multiplicar as divisões de suas formas discursivas e criar uma nova relação entre os
acontecimentos e o leitor. A narrativa privilegia as descrições microscópicas que, juntas,
conformam uma seqüência, um conjunto de cenas carregadas de visualidade
assemelhando-se a diminutas estampas.
São cenas que expõem ambientes e ações de seus personagens e que almejam
mais que dizer, desejam “fazer ver” o que se diz. Um exemplo extenso e impressionante
é a descrição de Madri (três páginas e 25 orações subordinadas), que faz comparações
em forma de trampolim.77 O narrador inicia a comparação da cidade com elementos que
lhe são contíguos e, depois, vai saltando para outros que aparentemente não têm relação
entre si. Com isso, cria uma cadeia de palavras supostamente incompatíveis, mas que,
ao final, conforma um conjunto de estampas da cidade, uma imagem do papel da cidade
no romance.

Hay ciudades tan descabaladas, tan faltas de sustancia histórica, tan


traídas y llevadas por gobernantes arbitrarios, tan caprichosamente

76
GEORGESCU, Paul Alexandre. “Lo real y lo actual en Tiempo de Silencio”. In: Nueva Revista de
Filología Hispánica, nº 20. México, 1971, pp. 115-116.
77
DOLGIN, Stacey. La novela de desmitificación española. (1961-82). Barcelona: Anthopos, 1991, p.
83.
119

edificadas en desiertos, tan parcamente pobladas por una cantidad


aprehensible de familias, tan lejanas de un mar o de un río, tan
ostentosas en el reparto de su menguada pobreza, tan favorecidas
por un cielo espléndido que hace olvidar casi todos sus defectos, tan
ingenuamente contentas de sí mismas al modo de las mozas
quinceñas, tan globalmente adquiridas para el prestigio de una
dinastía, tan dotadas de tesoros —por otra parte— que puedan ser
olvidados los que no realizados a su tiempo, tan proyectadas sin
pasión pero con concupiscencia hacia el futuro, tan desasidas de una
auténtica nobleza, tan pobladas de un pueblo achulapado, tan
heroicas en ocasiones sin que se sepa a ciencia cierta por qué sino de
un modo elemental y físico como el del campesino joven que de un
salto cruza el río, tan embriagadas de sí mismas aunque en verdad el
licor de que están ahítas no tenga nada de embriagador, tan
insospechadamente en otro tiempo prepotentes sobre capitales
extranjeras dotadas de dos catedrales y de varias colegiatas mayores
y de varios palacios encantados —un palacio encantado al menos
para cada siglo (...) tan agitadas por tribunales eclesiásticos con
relajación al brazo secular, tan poco visitadas por individuos
auténticos de la raza nórdica, tan abundantes de torpes teólogos y
faltas de excelentes místicos, tan llenas de tonadilleras y de autores de
comedias de costumbres, de comedias de enredo, de comedias de capa
y espada, de comedias de café, de comedias de punto de honor, de
comedias de linda tapada, de comedias de bajo coturno, de comedias
de salón francés, de comedias del café no de comedias dell´arte, tan
abufaradas de autobuses de dos pisos que echan humo cuanto más
negro mejor sobre aceras donde va la gente con gabardina los días de
sol frío, que no tienen catedral.
Es preciso ante estas ciudades, suspender el juicio hasta un día, hasta
que repentinamente—o quizá poco a poco—aunque esto apenas es
creíble—tome forma una cosa que adivinamos que está presente y que
no vemos, hasta que esa sustancia que se arrastra ahora por el suelo
120

se solidifique, hasta que los que ahora ríen tristemente aprendan a


mirar cara a cara a un destino mediocre y dejen vacías las grandes
construcciones redondas o elípticas de cemento armado para
recogerse en la intimidad estrecha de sus casas.
Hasta que llegue ese día, con el juicio suspendido, nos limitaremos a
penetrar en las oscuras tabernas donde asoma sobre las botellas una
cabeza de toro disecado con los ojos de vidrio, (...) a hacer como que
bebemos y beber poco, a hacer como que hablamos y no decir nada, a
hacer como que vamos al cine yéndonos al cuarto de la pensión con
su colcha roja (...), a inventar un nuevo estilo literario y a propagarlo
durante varias noches en un café hasta quedar completamente
confundidos, a intentar imaginar cómo—Dios mío— cómo vivía todo
este pueblo en los que ellos mismos dicen —ellos sabrán por qué—
que fueron los años de hambre (pp. 15-17).

Com as enumerações cumulativas na descrição da cidade, o narrador cria uma


sucessão de cenas. A vida aparece fragmentada, como fragmentado é o conjunto dessas
enumerações que, como células, subdividem-se.
Ao descrever a cidade através de comparações que vão saltando de um lado a
outro, o autor faz uma auto-referência ao seu estilo inovador e aponta para o uso
freqüente do comentário crítico, revelando várias facetas de uma cidade que bem
poderia representar qualquer cidade grande espanhola ou até mesmo de outros países.
Dessa maneira, forma pequenas estampas com as facetas da cidade, específica e
universal ao mesmo tempo, confirmando a estrutura fragmentada e microscópica da
narrativa, que enquadra o espaço em ângulos fechados ao mesmo tempo em que expõe
sua visualidade.
Quando mostra a cidade nessas várias caracterizações, imagens expansivas
interagindo em trampolim, o narrador vai criando uma seqüência de visões que, por sua
121

conexão inusitada, obriga o leitor a expandir seu campo de comparações para chegar a
uma imagem final.78
A inter-relação dessas espécies de estampas gera uma fragmentação do espaço,
um movimento metonímico por meio do qual a cidade é descrita por partes que,
selecionadas, conformam um todo que transcende a simples descrição. Assim, a
narrativa explora a função metonímica de modo extremo, para que a descrição da cidade
revele sua função representativa: não se trata apenas de Madri, mas de toda uma nação.
Nessa fragmentação, a metonímia ultrapassa a noção de contigüidade que lhe é
conferida tradicionalmente e alcança concepções mais arrojadas, pois ao fragmentar
radicalmente a cidade, visualizamos “imagens metonímicas ilimitadas”.79
Essa fusão de imagens contíguas, composta nessa divisão microscópica em que
a fragmentação ocorre sob o signo de uma contigüidade extrema, leva-nos a discordar
da idéia de que se constitua uma imagem cubista, como sugeriu Eugene E. Maio:

There are obvious analogies between the structure of Tiempo de


Silencio, with its radical fragmentation of sense impressions,
narrative voices, logical sequence, and point of view, and the
destruction of outline, concreteness, and solidity in the paintings of
the cubist, expressionist, and abstract artists.80

Ainda que a leitura de Eugene E. Maio seja interessante e revele que a crítica
detectou a presença das artes plásticas no romance, acreditamos que, diferentemente da
imagem cubista, o leitor não tem aqui que decodificar cada uma das partes e reconstruí-
las mentalmente para obter sua totalidade, ou seja, trabalhar com fragmentação e
sobreposição. Em Tiempo de Silencio, é necessário seguir a seqüência aparentemente
desconexa de diferentes figuras para chegar a uma totalidade, ou seja, as imagens são

78
“Por definición, la imagen expansiva es aquella que abre una amplia perspectiva a la imaginación y en
que cada término modifica fuertemente al otro; la “interacción” que, según la teoría poética moderna, son
formas centrales del hecho poético, donde más abundantemente se dan es en la metáfora expansiva”. In:
WELLEK, René & Warren, Austin. Teoría literaria. Madrid: Gredos, 1966, p. 243.
79
“La idea de que la metonimia y la metáfora pueden ser las estructuras que caracterizan dos tipos
poéticos: la poesía de asociación por contigüidad, de movimiento dentro de un solo mundo de expresión,
y la poesía de asociación por comparación, que funde una pluralidad de mundos, y mezcla un “coktail” de
esferas”. Ibid, p. 233.
80
MAIO, Eugene E. “Tiempo de Silencio and the Aesthetics of Modern Art”. In: Critique, 30:3, 1989,
pp. 155-162.
122

expostas seqüencialmente e conformam por si só a visão total da cidade. Não são partes
formando um todo, mas “estampas”, imagens contíguas de muitos lugares que
compõem uma só cidade.
Sendo assim, a narrativa se pauta em uma lógica baseada nessa contigüidade
extrema, em que a aparente ausência de nexos lógicos nos expõe um mundo
fragmentado, tão desunido quanto as células em mitose que Pedro vê através da lente de
seu microscópio. As imagens aparecem em contigüidade e estão marcadas pelo desejo
de plasmar o instantâneo e o múltiplo, elementos primordiais na construção do romance.
Além disso, outra divergência do modo de composição do romance em relação
à construção cubista é a utilização de comparações simultâneas que constituem uma
imensa sinédoque.
Em sua descrição, o narrador “disseca” a visão da cidade ao construí-la através
de dezenas de parágrafos, centenas de palavras acumuladas que, em vez de ofuscá-la,
manifestam os inúmeros detalhes que a compõem, como um microscópio o faria.
Ao unir o uso dessa metonímia ilimitada à ação do narrador comentarista, o
romance consegue conformar uma imagem do horror de um tempo de silêncio e
aproximá-la de procedimentos e temas presentes nas gravuras de Goya.
Um exemplo dessa proximidade está no paralelismo que podemos traçar entre
a maneira como o gravador realizou o corte nas pranchas de aço de sua série de Los
Desastres de la Guerra e a proliferação das palavras no romance. Na obra goyesca, são
centenas de traços contíguos que, em vez de obscurecer a imagem, expõem uma face
definida do horror da guerra, da execução e da morte. Na narrativa, ao fazer “proliferar”
a palavra, consegue-se uma imagem inequívoca das vísceras do pós-guerra.
Além da plasticidade da narrativa, destaca-se o uso da fala telegráfica. Por
exemplo, ao longo da obra, a fala de Pedro parece enviar mensagens do que pretende
dizer. São frases estruturadas como possíveis títulos para as pequenas estampas que sua
fala entrecortada cria, como se, de alguma maneira, estivesse formando uma série de
estampas fragmentadas do pós-guerra.

Intentado dar olvido a lo que de absurdo tiene la vida. Repitiendo: No


estoy borracho. Pensando: Estoy solo. Pensando: Soy un cobarde.
Pensando: Mañana estaré peor. Sintiendo: Hace frío. Sintiendo:
123

Estoy cansado... Sintiendo: Tengo la lengua seca (...). Afirmando: La


culpa no es mía. Afirmando: Algo está mal, algo no sólo yo.
Afirmando: El mal está ahí. Interrogando: ¿Quién explica el mal? (p.
85).

Se em um quadro ou em uma gravura o título pode constituir-se como uma via


para o entendimento da imagem, aqui a fala telegráfica nos expõe visões fragmentadas,
reveladoras não só do estado de ânimo do personagem, mas também de uma idéia que
percorre todo o romance: a de que algo vai mal e não é apenas com o personagem, mas
com toda a sociedade.
Por meio da fala telegráfica, a mão do escritor se cruza com o buril do
gravador, pois o romance captura a estética das estampas goyescas não apenas em
imagens, mas em sugestões de epítetos, de pequenos títulos para situações-limite que
vive seu protagonista e, assim, revela as fissuras que entrelaçam o mundo real ao do
pensamento e conectam o dito com o visto.
Embora possa parecer contraditório, é na proliferação escrita e “vista” que
reside o silêncio dos anos de fome, o que mostra que, muitas vezes, nem sempre o que
se diz e o que se descreve condizem com o que está implícito, com o que se insinua,
com o silêncio que ressoa nas múltiplas possibilidades e sugestões manifestadas pelo
texto, como quando Pedro medita sobre as favelas:

¡Pero, qué hermoso a despecho de esos contrastes fácilmente


corregibles el conjunto de este polígono habitable! ¡De qué
maravilloso modo allí quedaba patente la capacidad para la
improvisación y la original fuerza constructiva del hombre ibero!
¡Cómo los valores espirituales que otros pueblos nos envidian eran
palpablemente demostrados en la manera como de la nada y del
detritus toda una armoniosa ciudad había surgido a impulsos de su
soplo vivificador! ¡Qué conmovedor espectáculo, fuente de noble
orgullo para sus compatriotas, componía el vallizuelo totalmente
cubierto de una proliferante materia gárrula de vida, destellante de
colores que no sólo nada tenía que envidiar, sino que incluso
124

superaba las perfectas creaciones —en el fondo monótonas y carentes


de gracia— de las especies más inteligentes: las hormigas, las
laboriosas abejas, el castor norteamericano! (p. 41).

Nesse trecho, temos um exemplo da ironia verbal81 do texto, em que as


palavras dizem algo, mas significam claramente outra coisa. O mecanismo desenvolvido
pelo narrador para ironizar e expor a contradição entre a descrição das favelas e os
personagens caracteriza-se por uma aparente lógica com argumentos assertivos e por
seu tom explicativo. Justapõe-se o uso da linguagem científica a elementos banais, de
maneira que, quando usa frases incertas, provoca tensão entre a linguagem científica e o
objeto comentado, o que explicita o paradoxo entre personagem e ambiente.

Se trata de dos tipos de ironía: ironía verbal (cuando las palabras


dicen una cosa pero significan otra) e ironía situacional (cuando las
cosas resultan ser lo contrario de lo que se pensaba o se esperaba).
La ironía da una segunda dimensión al texto.82

Por meio desse mecanismo, fica patente o movimento provocativo do narrador,


que revela situações ambíguas entre o indivíduo e os ambientes pelos quais transita. Há
uma relação dialética e irônica entre o que descreve e o que omite. Isso, muitas vezes,
coloca a lógica científica, quase sempre didática, ao lado da norma social convencional,
o que gera, algumas vezes, a ironia verbal e, outras vezes, a situacional.
No entanto, em ambas, a ironia surge como instrumento de conhecimento da
realidade. Trata-se de uma ironia que busca iluminar e inquietar, conduzindo o leitor a
entrar em seu mundo. A ironia verbal surge como parte fundamental da fragmentação
espacial, que reduz distâncias, encurrala seus personagens em espaços fechados e
degradantes e, dessa forma, aproxima-os do leitor que as observa.
A redução do espaço da narrativa é um dos procedimentos de construção do
romance que evoca os Desastres, pois, ao criar cenas cujo espaço é sensivelmente
reduzido para representar suas características viscerais e desumanizadas, a obra se

81
LABANYI, Jo. Ironía e historia en Tiempo de Silencio. Madrid: Taurus, 1983, p. 123.
82
Ibid, p. 123.
125

apropria da dimensão da gravura e plasma imagens que mostram o mundo às avessas,


mas que tenta, a todo custo, manter a aparência de normalidade. O escrito aproxima o
leitor das visões criadas e, com isso, diminui a distância entre suas cenas, dissolvendo o
caráter monumental da imagem. Com essa proximidade, não há lugar para o voyeur,
observador distante, mas sim para o olhar que penetra e, de certa maneira, vive este
mundo.
Evoca-se um movimento próximo da função que adquire o extracampo
goyesco na gravura “No hay remedio” (figura 20). Tal conceito, emprestado da
fotografia, indica tudo o que, “embora perfeitamente presente, não se ouve nem se vê”,83
operando através da extração do “continuum” espaço-temporal. As imagens são
cortadas abruptamente pelos limites do enquadramento, o que cria uma percepção
fragmentária da cena.
Romance e gravura utilizam esse recorte do “continuum visível”. Em Goya,
esse recurso reforça a percepção do surgimento da guerra de guerrilhas durante a
invasão de Bonaparte, supondo uma visão descontínua do conflito, que extrapolava o
campo de batalha e invadia o cotidiano. Na narrativa, a percepção da vida moderna
exigia que se deixasse de lado uma visão objetiva, exterior, imposta pelo objetivismo.
Com a imposição de um silêncio asfixiante, que travava as mínimas ações, era
necessário afinar o discurso narrativo a um novo tipo de sensibilidade, capaz de
configurar o momento histórico de forma instantânea e múltipla.
O extracampo está na estampa quando não vemos os agressores, apenas os
canos dos fuzis. Ao mostrar somente seu fragmento, Goya confere à imagem uma
função metonímica: não vemos os soldados que fuzilarão as pessoas, mas sabemos que
estão ali. Na gravura, há pelo menos mais uma idéia que converge para a noção de
metonímia: por tratar-se de uma série, obedece a uma lógica de conjunto, mas este
também pode ser considerado de modo fragmentário, ao examinar-se individualmente
cada uma das estampas.

83
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 13.
126

Figura 20: Francisco de Goya y Lucientes, “No hay remedio”, Desastres de la Guerra,
n. º 22. 1810-1814, Água-forte, ponta-seca, buril e brunidor, 142 x 168 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.

Além disso, há várias gravuras que, individualmente, expõem esse “corte”, o


extracampo, o qual expande a imaginação do espectador ao cortar ao meio o sujeito da
ação na cena da execução. Assim, o olhar do espectador focaliza a execução pelo ângulo
dos executados. Na estampa, as figuras estão imersas nas trevas e não na luz; a luz vem
do que está no extracampo: as pontas dos fuzis projetam a luz sobre os corpos dos que
serão executados.
Ao cortar os agressores, também se mantém o momento de suspense anterior à
morte, à execução, o que dilata o tempo e o desespero. A imagem, em seus detalhes,
constrói não apenas o momento anterior à execução, mas se expande na imaginação do
espectador para uma possível visão dos executores e o que está a seu redor. Por
paradoxal que pareça, ao cortar a imagem, o gravador a expandiu, de maneira
semelhante ao que faz o narrador, pois este, ao cortar a imagem da cidade a partir de
enumerações cumulativas, amplia sua visão final.
Assim como na estampa, também no romance, nos momentos em que ocorrem
as mortes de personagens, o extracampo aparece de forma explícita. Nessas passagens
da narrativa, enquadra-se a imagem e dilata-se o momento da morte em diferentes tipos
de corte. Na gravura “No hay remedio”, junto ao extracampo, aparece, em seu fundo
negro, o traço exacerbado, linhas horizontais compõem, paralelamente, o céu, o solo e
os homens que já foram fuzilados anteriormente. Ambos, céu e solo, formam uma linha
127

contínua com os canos dos fuzis que, por sua vez, contrastam violentamente com a luz
que vem da roupa branca daquele que será executado.
Por outro lado, quando a narrativa fragmenta a morte ou a imagem da cidade, o
narrador obriga o leitor a aproximar-se das pequenas partes para formar a imagem total,
assim como Goya obriga o espectador a juntar-se à perspectiva dos que serão fuzilados
e, dessa forma, imaginar a gravura total. Em ambos, o excesso de traços e palavras
ilumina, revela.
Outra constatação de que o excesso revela está no uso intenso do neologismo
ao longo do texto, o que transforma a palavra, desvia-a de sua norma, contamina-a,
prolifera sentidos e, por fim, ressalta o que se tinha a dizer.
A própria estrutura do romance está construída sob o signo da fragmentação
narrativa e da proliferação da palavra, se considerarmos que há no texto dois narradores:
em 1ª e 3ª pessoas. Muitas vezes, é Pedro quem nos conta algo e, em outras, é o
narrador onisciente intruso. A narração ocorre em mais de uma forma e os ângulos a
partir dos quais se vêem as situações também são múltiplos. Desse modo, o excesso —
o texto prolixo — configura a escassez e o silêncio da época.
À medida que avança, o romance apresenta, de maneira cada vez mais
evidente, um acúmulo de contradições. Estas aparecem na brecha entre o que se diz e o
que se vê em suas cenas, entre a teoria proposta por Pedro e sua prática, na descrição
dos ambientes e seus personagens e na relação que estes mantêm com seu discurso e
suas ações. Esse acúmulo de ambigüidades se revela como traço relevante do fracasso
dos personagens. Há um paradoxo na base dos projetos dos personagens que impede seu
êxito.
Pedro, por exemplo, quando vai à favela em busca de ratos para sua pesquisa,
oscila entre um procedimento científico, regrado pela ética e pela retidão, e a satisfação
de uma curiosidade mórbida. Quando está na casa de Muecas, uma construção tosca que
funciona como um criadouro de ratos infectados, essa indefinição se manifesta na
dissociação entre o que deveria ser sua conduta e seu comportamento:

Necesitaba llegar hasta el fondo de aquella empresa de cría de


ratones que—simultáneamente—era empresa de cría humana en
condiciones las que idealmente se consideran soportables (...) un
128

conjunto del que no podía apartarse fácilmente y que quería conocer


aunque en el intento hubiera tanto de fría curiosidad como de
auténtico interés, tanta necesidad de conseguir ratones para su
investigación como concupiscencia por ver la carne del hombre en
sus caldos más impuros (p. 51).

Além de expor as condições subumanas da família, a imagem da casa evoca o


tópico do mundo às avessas, tantas vezes trabalhado por Goya, e salienta a animalização
dos seres humanos em um espaço reduzido. A conduta de Pedro aponta para uma
contradição que acentua a linha tênue que separa o homem “bom” do “mau” e aproxima
os personagens do homem real em toda a amplitude da conduta humana. Dessa forma, o
romance contrapõe-se ao realismo social, que se havia convertido em um campo de
batalha entre “bons” e maus”, sem conseguir superar extremos que distorciam a
realidade em busca de uma denúncia social:

Nuestra literatura se ha transformado poco a poco en el reino de los


“buenos” y de los “malos”... Paralelamente a la pintura negra de los
opresores asistimos a una idealización de los oprimidos...84

Martín-Santos acreditava que tal ambigüidade indicava não só a conduta


humana, mas, também, a distinção entre a má literatura e a autêntica. Esta, por meio da
ambigüidade, conseguia livrar-se do maniqueísmo que muitas vezes assolou o realismo
social:

El paso de la subliteratura a la auténtica se acompaña también de un


dejar de ser “bueno o malo” cada personaje. La literatura que
aproxima al hombre en el verdadero sentido de la palabra.85

84
GOYTISOLO, Juan. “Examen de conciencia”. In: El furgón de cola. Barcelona: Editorial Seix-Barral,
1982, pp. 246-247.
85
MARTÍN-SANTOS, Luis. Libertad, temporalidad y transferencia en el psicoanálisis existencial:
Barcelona: Seix-Barral, 1964, p. 226.
129

Ao destacar o ambíguo como traço inerente à conduta de seus personagens, o


autor desvela um mundo incerto, em que nada é seguro, em que não há uma base que
sustente coisa alguma.
Nesse mundo incerto, Pedro deseja o prêmio Nobel e aceita traçar vias pouco
convencionais para consegui-lo. Além disso, pouco a pouco, mostra que seus propósitos
também não são elevados. O que lhe interessa não é livrar o ibérico de sua “inferioridad
nativa”, mas sim ganhar o sorriso do rei, ser reconhecido socialmente para fazer parte
da “alta esfera” e alimentar uma vaidade da qual não consegue esquivar-se.
No entanto, apesar de todos esses problemas, podemos dizer que o projeto de
Pedro se concretiza. Não por meio de sua pesquisa científica, mas através da estrutura
do romance. Seu estudo consiste em provar que o câncer é virótico e não hereditário. De
certa forma, essa tese comprova-se metaforicamente na estrutura da narrativa, pois ao
mostrar como seus personagens vão contaminando-se ao entrar em contato com o
mundo do câncer por diversas vias — a da pesquisa, a da venda de ratos, a quebra de
hierarquia social, a promiscuidade do leito e por fim ao “esgarçar” a linguagem — a
“virose cancerígena” se confirma como algo que sempre esteve no ar, como uma
herança social que contamina todos.
À medida que o romance avança e Pedro se envolve com o mundo das favelas
e leva consigo outras pessoas de diferentes classes sociais, não apenas quebra a
hierarquia social, mas contamina todos com elementos de um mundo de pobreza,
violência e ambição que desvela um câncer social e atinge a todos como um lodo
empapado de sangue, no qual todos se afundam.
A partir do envolvimento dos personagens com esse mundo infecto, o câncer
sai do âmbito do laboratório para adquirir contornos metafóricos e transformar-se em
um câncer social que se espalha microscopicamente ao ar livre.

O mundo às avessas: ratos e ventres

As duas primeiras vias de contaminação, a da pesquisa e a da venda de ratos,


entrelaçam-se por meio de Amador, um funcionário do laboratório em que Pedro realiza
sua pesquisa. É ele quem leva o médico até as favelas, já que ali, seu amigo Muecas,
130

que anteriormente havia roubado os ratos do laboratório, poderia propiciar-lhe a


continuidade de seu estudo.
O percurso que levará Pedro a sua iniciação no mundo das favelas adquire
dimensões épicas. Como um D. Quixote guiado por seu “escudeiro” Amador-Sancho, o
investigador nos expõe, em uma linguagem elevada e irônica, um retrato hiperbólico da
miséria dos arredores de Madri:

¡Pero, qué hermoso a despecho de esos contrastes fácilmente


corregibles el conjunto de este polígono habitable! ¡De qué
maravilloso modo allí quedaba patente la capacidad para la
improvisación y la original fuerza constructiva del hombre ibero!
¡Cómo los valores espirituales que otros pueblos nos envidian eran
palpablemente demostrados en la manera como de la nada y del
detritus toda una armoniosa ciudad había surgido a impulsos de su
soplo vivificador! ¡Qué conmovedor espectáculo, fuente de noble
orgullo para sus compatriotas, componía el vallizuelo totalmente
cubierto de una proliferante materia gárrula de vida, destellante de
colores que no sólo nada tenía que envidiar, sino que incluso
superaba las perfectas creaciones —en el fondo monótonas y carentes
de gracia— de las especies más inteligentes: las hormigas, las
laboriosas abejas, el castor norteamericano! ¡Cómo se patentiza el
brío de una civilización que sabe mostrar su poder creador tanto en la
total ausencia de medios de la meseta como en la ubérrima
abundancia de las selvas transoceánicas! (pp. 41-42).

Mais uma vez, vemos o choque entre a descrição e o objeto, a ironia verbal em
que as palavras descrevem as favelas como algo maravilhoso, mas expressam
claramente a miséria em que vivem as pessoas ali. Sua apresentação irônica servirá
como visão inicial para uma pobreza muito mais intensa que a das construções descritas,
pois, ao entrar na casa de Muecas, o investigador ver-se-á diante de um mundo em que
os valores se inverteram. Nele, os animais serão bem tratados e os humanos submetidos
131

a condições precárias; a escassez existirá apenas para estes, os restos de lixo alimentarão
sua mulher e suas filhas que, em uma terrível inversão da ordem natural, criarão os ratos
como entes do núcleo familiar. As filhas de Muecas, na favela em que vivem, acalantam
os ratos em seu regaço, o que em vez de despertar repugnância no investigador, reforça
sua tese sobre um possível contágio virótico das meninas, já que mantêm um contato
íntimo com os animais.

—Las ratoncitas, las ratoncitas —rió Florita olvidando su papel de


modestia ruborosa—. Ya lo creo que crían las muy bribonas, ya lo
creo. Mis sudores me cuesta y hasta algún mordisco.
Diciendo estas palabras desabotonó algo su vestido por el escote y
efectivamente mostró a todos los presentes, en el nacimiento de su
pecho, dos o tres huellecitas rojas que pudieran corresponder a las
estilizadas dentaduras de las ratonas en celo (p. 49).

Há uma inversão monstruosa da ordem natural: o animal se sobrepõe ao


humano. E Pedro deseja que os ratos infectem os humanos para assim provar sua tese. É
uma inversão infernal, não apenas reveladora dessa distorção, mas que expõe a miséria
humana em uma época de fome e desolação. Essa ação do animal tomando o lugar do
humano vê-se repetidas vezes nos Caprichos de Goya. Na série, observamos estampas
de homens carregando burros, ou a eles prestando devoção. Tanto no romance como nas
gravuras, essas formas de desumanização expõem a animalização dos humanos.
Na favela, a família de Muecas depende desse homem violento que, por sua
vez, submete suas filhas e mulher a um processo de animalização por meio da fome e da
criação de cachorros e, posteriormente, de ratos. Quem tem direito à comida são os
animais: “Mientras en la chabola todo el pan se lo comían los perros y las niñas
lloraban que era una delicia” (p. 32).
Essa desvalorização do humano se estende, ironicamente, ao discurso de
Muecas que, para convencer Pedro do êxito de sua “criação de ratos”, discorre
eloqüentemente sobre a manutenção dos animais.
132

Es cosa sabida, que el calor da la vida. Como en las seguidillas del


rey David. Dos doncellas le calentaban, que si no ya hubiera muerto.
Y lo mismo se echa de ver en las charcas y pantanos. Basta que
apriete el sol para que el fangal se vuelva vida de bichas y gusaparos.
No hay más que ver los viejos apoyados en las tapias en invierno
¿Qué serían de ellos si no fuera por el calorcillo de las tres de la
tarde? Ya no habría viejos. Así les pasaba a ellas. Por eso se les
hinchaban esos como testículos, con perdón, y cuando se morían que
usted se quemaba las pestañas en estudiar el por qué, no era más que
de frío (p. 49).

Sem perceber, em sua explicação exagerada, Muecas reitera essa inversão da


ordem natural, que desumaniza os entes de sua família e privilegia os ratos. Inverte-se a
ordem em dois âmbitos: o natural e o social, pois são os humanos que criam bichos
como filhos e um semi-analfabeto violento é quem dá lições ao pesquisador de como
mantê-los vivos.
Essas visões se aproximam muito do deslocamento de posições proposto por
Goya em seus Caprichos, nas gravuras “Tú que no puedes” (figura 21) e “!Qué pico de
oro!” (figura 22), em que vemos o mundo às avessas.
Em “Tú que no puedes”, vemos homens carregando burros, mesmo sem
agüentá-los, em um esforço sobre-humano; em “¡Qué pico de oro!”, vemos como os
espectadores escutam, como que em transe, as “palavras” de um papagaio. Esse
hipnotismo causado pelas palavras da ave aparece expresso nas anotações da época em
que se elaboraram os Caprichos.86

86
As anotações que se encontravam ao lado da gravura e hoje estão no Museu do Prado: “Esto tien trazas
de junta academica. Quién sabe si el papagayo estará hablando de medicina? Pero no hay q.e creerlo
sobre su palabra. Medico hay q.e q.do habla es un pico de oro y q.do receta un Érodes: discurre perf. am.
te de las dolencias y no las cura: enboba à los enfermos y atesta los Cementer.s de calaberas [Mantivemos
a ortografia original].
133

Figura 21: Francisco de Goya y Figura 22: Francisco de Goya y


Lucientes, “Tú que no puedes”, Lucientes, “¡Qué pico de oro!”,
Capricho n. º 42, 1799. Água-forte e Capricho n. º 53, 1799. Água-forte e
aguada brunida, 218 x 152 mm. aguada brunida, 218 x 152 mm.
Biblioteca Nacional, Madri. Biblioteca Nacional, Madri.

A junta acadêmica que vemos em “¡Qué pico de oro!” está formada por
“nobres” da época, magistrados, padres e frades. A ironia da cena está na atenção
devotada ao papagaio que, de acordo com as anotações da época, apenas discorre sobre
as doenças e não as cura. De forma similar, Muecas, com seus tics animalizados,
discorre sobre sua “criação de ratos”, conseguida à custa da fome de sua família.
Neste mundo às avessas, a palavra tem o poder de dissuadir e de enganar. Em
vez de resguardar os humanos, funciona como instrumento de desumanização: o
discurso serve para “justificar” que animais tomem o lugar dos homens. E, por alguns
momentos, inverte-se a superioridade intelectual e socioeconômica de Pedro:

Atónito escuchaba D. Pedro aquella teoría etiológica del cáncer


espontáneo a frigore interesado en saber qué consecuencias
profilácticas Muecas había deducido, las que habían sido hábiles no
134

sólo para conservar la vida de los ratones, sino para asegurar su


reproducción (p. 49).

Toda essa inversão se vê acentuada pela ironia verbal e situacional que o


narrador destila, ao equiparar o discurso de dois personagens, o de Muecas e o do
filósofo, na passagem em que este dá uma conferência na casa de Matías — um amigo
de Pedro da classe alta. Ali, as pessoas escutam a teoria do perspectivismo do filósofo,
que derrama sobre os ouvintes palavras vazias e de “fácil” digestão:

(....) Mientras instruía acerca de sus ideas (tal vez existentes) a su


compañera de localidad y afición filosófica, estas manos, como
animales vivientes, describían amplios giros de trayectoria
imprevisible. Sin posarse nunca ambos juguetes voladores se
perseguían y mostraban la esbeltez de una línea no deformada por
manchas de nicotina (...) Con regocijo, con júbilo, con prisa, con
excitación verbigerativa, con una impresión difusa de ser muy
inteligentes, se precipitaban los invitados en los dominios del
agilísimo criado y se posaban luego en posturas diversas, ya sobre los
asientos de las butacas gigantescas, ya sobre los brazos y respaldos
de las mismas butacas que eran capaces de dar confortable acomodo
a los pájaros culturales que encaramados en tales perchas y con un
vaso de alpiste en la mano, lanzaban sur gorgoritos en todas
direcciones, distinguiéndose entre sí las voces más que por su
contenido específico, por el matiz sonoro de los trinos. El: “¡Qué fácil
se le entiende!”, era muy pronunciado por las aves jóvenes de rosado
pico (...) (pp. 122 e 124).

Nesse trecho, além de ironizar uma metáfora utilizada por Ortega y Gasset, “el
árbol de la ciencia” e sua discussão sobre conhecimento científico, as imagens utilizadas
pelo narrador remetem ao universo da gravura “¡Qué pico de oro!”. Na gravura e no
romance, exploram-se o tema da oratória vazia e o da animalização. Na narrativa, o
135

público está formado por humanos que são vistos como pássaros ávidos por bicar o
fruto do conhecimento científico, oferecido pelo orador que apenas diz “papagaiadas”.
O filósofo oferece aos que ali estão presentes o fruto do conhecimento, a maçã,
proibida aos homens, mas permitida aos pássaros de bico rosado, e causa “sensação”
com sua grandiloqüência que hipnotiza os humanos-pássaros encantados por sua
apresentação.

Señoras (pausa), señores (pausa), esto (pausa), que yo tengo en mi


mano (pausa) es una manzana (gran pausa). Ustedes (pausa) la están
viendo (gran pausa). Pero (pausa) la ven (pausa) desde ahí, desde
donde están ustedes (gran pausa). Yo (gran pausa) veo la misma
manzana (pausa) pero desde aquí, desde donde estoy yo (pausa muy
larga). La manzana que ven ustedes (pausa) es distinta (pausa), muy
distinta (pausa) de la manzana que yo veo (pausa). Sin embargo
(pausa), es la misma manzana (sensación) (...).
Lo que ocurre (pausa), es que ustedes y yo (gran pausa), la vemos con
distinta perspectiva (tableau) (pp. 122-123).

Vemos, portanto, que o mecanismo de animalização — a metafórica, na


conferência e a real, na favela — dos seres humanos se dá em diferentes classes sociais,
tanto na “alta esfera” como na “inferior”; ouvem-se palavras vazias, desprovidas de um
sentido real, mas que são capazes de causar pasmo e envolver seus ouvintes. Como na
imagem de “¡Qué pico de oro!”, composta por magistrados e monges, na conferência, os
ouvintes aparecem encantados pelas palavras do filósofo. Assim, a oratória vazia atinge
diferentes camadas sociais. De um lado, temos Muecas com sua teoria de criação e
manutenção dos ratos e, de outro, o filósofo com seu perspectivismo. Ambos, através de
seus “picos de oro”, banalizam o conhecimento científico.
Não importa a classe social, todos se encontram em algum grau animalizados e
esse processo se acentuará cada vez mais à medida que o câncer metafórico vai
expandindo-se nesse mundo às avessas. Na denominação de parentesco, efetuada por
Muecas, está outro índice dessa inversão: não são os humanos que têm uma
136

descendência “nobre”, mas os ratos; aos humanos estão reservadas a fome e as


condições precárias; ao filósofo do perspectivismo cabe embevecer os espectadores que,
como pássaros, escutam-no e admiram seu “pico de oro”. Ouve-se, então, ao pé do
ouvido, a voz de autoridade animalizada de Muecas que, grotescamente, expõe na
favela seus conceitos “científicos” de criação de ratos.

Así los tengo, sí señor doctor, a los hijos de los hijos que no quiero
llamar nietos, ya que no parece cosa de animales reconocer tanta
parentela. Y también a los hijos de los hijos de los hijos (p. 50).

Do alto da autoridade grotesca de Muecas, vemos que, no interior das favelas,


há muito mais que pobreza e animalização, há uma hierarquização da pobreza.
Descobrimos o menosprezo de Muecas pelos chamados “coreanos”, imigrantes rurais
que, no pós-guerra, sofriam em grande número de uma doença aguda do sistema
nervoso, denominada “corea”, que os marcava para sempre com tics incontroláveis.
Embora despreze os “coreanos”, Muecas sofre do mesmo mal. Mas age e é visto,
ironicamente, pelo narrador, como um cidadão bem estabelecido.

El ciudadano Muecas bien establecido, veterano de la frontera,


notable de la villa, respetado entre sus pares, hombres de consejo
desde las alturas de su fructuosos establecimiento ganadero veía a los
que —un trapito alante y otro atrás—pretendían empezar a vivir
recién llegados, en pringosos vagones de tercera, desde el lejano país
del hambre. Una certidumbre despreciativa permitía encontrar en los
rostros de los coreanos la marca de la ignominia y de la raza inferior
(p. 55) (Sublinhado nosso).

Essa hierarquização da pobreza enfatiza a desumanização dos personagens, ao


mostrar que inclusive a sujeira e a fome, mencionada pela primeira vez de maneira
explícita no romance, podem distribuir-se hierarquicamente.
137

Junto à fome está outra forma de desumanização: a promiscuidade. No leito da


família de Muecas, no espaço apertado de seu “quarto”, dormiam todos juntos.
Amontoados em um colchão sujo, a proximidade dos corpos revelará, aos poucos, uma
lascívia inesperada:

En el suelo de esta reducida habitación había un gran colchón


cuadrado. Por un lado entraban los cuerpos del Muecas y de su
consorte, por el otro lado los más esbeltos de sus dos hijas núbiles. En
el pequeño colchón del aposento anterior en que se había sentado D.
Pedro, solía dormir un primo que ahora estaba en la mili. Pero
seguían durmiendo los cuatro juntos en el colchón grande por varios
motivos: porque los cuatro cuerpos juntos elevaban la temperatura de
la cámara estanca (así pasaban menos frío, así estaban también
mejor los ratones según la teoría del Muecas). Porque ya se habían
acostumbrado. Porque al Muecas le agradaba tropezar de noche con
la pierna de una de sus hijas. Porque así las tenía más vigiladas y
sabía dónde estaban durante toda la noche que es la hora más
peligrosa para las muchachas. Porque se necesitaban menos sábanas
y mantas para poder vivir (...). Porque el olor de los cuerpos —
cuando uno se acostumbra— no llega a ser molesto resultando más
bien confortable. Porque la consorte del Muecas le tenía algo de
miedo y no podría soportar sus cóleras sin la problemática ayuda de
la presencia muda de sus hijas. Porque la última ratio de la
reproducción ratonil consiste en conseguir el celo de las ratoncitas de
raza exótica. Porque el Muecas había dispuesto tres bolsitas de
plástico donde se metían las ratonas y eran colgadas entre los pechos
de las tres hembras de la casa. Porque creía que con este calor
humano el celo se conseguía dos veces más fácilmente. Porque no
quería que este proceso de maduración de la mucosa vaginal de las
ratonas pudiera interrumpirse si sus rapazas durmieran en la cámara
exterior donde faltando un adecuado cierre de los huecos entre los
138

tableros y la promiscuidad nocturna, el calor era más escaso (pp. 51-


52).

Mas na promiscuidade há uma ordem:

Las jaulas estaban colgadas artísticamente al tresbolillo, procurando


una distribución armoniosa de los huecos, de las luces y de las
sombras como en una pinacoteca cuyo dueño —excesivamente rico—
ha comprado más cuadros de los que realmente caben (p. 51).

O calor e os cheiros se misturam em uma fusão de luxúria e pobreza, os ratos


agora surgem comparados, ironicamente, a uma pinacoteca abarrotada de quadros. A
imagem da pinacoteca cria uma espécie de seqüência de estampas da criação de ratos
por humanos, através da qual observamos imagens de situações degradantes. Como se
fosse uma seqüência de desastres do pós-guerra revelados pela miséria.
Acreditamos que não é casual a comparação da visão dos ratos com a de uma
pinacoteca, pois esta parece sugerir que a arte, uma vez ironizada e deslocada de um
espaço adequado, é capaz de plasmar, também, o sujo e o animalizado. Na descrição do
conjunto das gaiolas com os ratos, o jogo de luzes que o envolve, o advérbio
“artisticamente” e o adjetivo “armoniosa” acentuam o aspecto degradante do ambiente,
provocando um paradoxo entre o visto e o descrito.
Em meio a esse criadouro de ratos, o transcurso dos dias na casa de Muecas é
visto com muita ironia como um mundo cor-de-rosa: “alegres transcurrían los días en
aquella casa. Sólo pequeños nubarrones sin importancia obstruían parcialmente un
cielo por lo general rosado” (p. 55). Mas, nesse ambiente, em meio à promiscuidade
noturna do colchão sujo, que extrapolava os “objetivos científicos da procriação de
ratos”, Muecas abusa de sua filha Florita e a engravida. Desesperado, diante da gravidez
inoportuna para seus negócios prósperos, tenta provocar um aborto. Malsucedido em
sua tentativa, recorre a um curandeiro charlatão.
O curandeiro é caracterizado pelo narrador como um “mago cariacontecido”, e
tal caracterização evoca a imagem de um Capricho de Goya, pois ao fracassar em suas
tentativas “terapêuticas”, o “mago” afirma simplemente que la naturaleza debía seguir
su curso, como “cualquier médico famoso del siglo XVII” (p. 99).
139

(...) la operación iniciada por el mago de la aguja tuvo su


insatisfactorio comienzo. Este mago debía haber equivocado la
trayectoria del instrumento punzante (...) Previamente a este refugio
en la fórmula oral y el exorcismo, el mago había querido completar la
acción destructora de la aguja con los medios al uso más
recomendados. Hizo sentar encima del vientre de su hija a la redonda
consorte; (...) administró bebidas sumamente cálidas de composición
secreta; (...) colocó agua fría sobre el vientre y agua hirviendo con un
poco de mostaza en la parte baja de los muslos (...) (pp. 99-100).

A ignorância do “mago cariacontecido” na cena da cura malsucedida evoca a


imagem do médico asno da gravura “¿De qué mal morirá?” (figura 23). Vemos que o
sofrimento de Florita ocorre em meio à ignorância e à crendice alimentada por sua mãe
e suas vizinhas, que assistem aos rituais inúteis do curandeiro para salvar a jovem.
A cena assemelha-se à imagem da morte assistida do moribundo na gravura. O
capricho goyesco mostra a figura de um médico asno que, sentado junto a um paciente,
toma seu pulso.

Figura 23: Francisco de Goya y Lucientes, “¿De qué mal morirá?”, Capricho n. º 48,
1799, Água-forte e aguada, 215 x 150 mm. Biblioteca Nacional, Madri. Gravado na
margem superior direita: 40.
140

Com diversas tonalidades de aguada, a gravura mostra o homem recostado sob


diversos travesseiros com o corpo rígido e a boca aberta. Por meio das cortinas da cama,
percebe-se vagamente um monge e uma mulher chorosa, que cobre o rosto com as
mãos. Na gravura, o homem morrerá pela ignorância do médico asno e, na narrativa,
Florita morre por causa do incesto, da pobreza e dos interesses escusos.
Uma vez perdido o controle da situação, Muecas se vê obrigado a buscar a
ajuda de Pedro. Bêbado, o investigador interessado no possível contágio virótico de
Florita, e sem qualquer experiência na prática da medicina, atende a seu chamado.
Durante seu percurso até a favela, vai imaginando, com esperança, a contaminação da
menina pelos ratos.

Durante el viaje, había acariciado la idea de que quizá hubiera


habido un contagio virásico debido a la íntima convivencia y riñó
cariñosamente al caballero ganadero por la forma como había
conseguido la perpetuación de la estirpe a expensas de sus propias
hijas y de sus calores vitales (p. 100).

Ao chegar à favela, depara-se com a jovem sangrando e decide fazer uma


curetagem que, malsucedida, termina com a morte desta. Durante o procedimento, o
narrador faz com que personagem e leitor acompanhem de perto o momento exato de
sua morte, pois o ângulo pelo qual a vemos é o da cureta dentro da menina. Nosso olhar
acompanha o movimento do instrumento. Entramos em Florita, assim como o faz o
médico, e ambos, leitor e personagem, guiam-se pela raspagem, através de imagens que
transmitem sensações olfativas, táteis e visuais que se materializam em elementos
viscosos expelidos pelo corpo da menina.
Reduz-se radicalmente o espaço e o ângulo de visão da narrativa. O leitor não
tem diante dos olhos uma pessoa, mas sim um movimento metonímico representado
pelo ventre da jovem. Mutilação e fragmentação se unem para configurar um momento
de violenta intrusão.
141

Es preciso primero colocarla en la adecuada posición ginecológica,


dilatar luego el cuello de la matriz agarrotado por la naturaleza
previsora y finalmente limpiar con un instrumento de aspecto de
cuchara el interior del recóndito nido. Al rozar con el instrumento
este tejido hace un ruido rugoso, rasposo, denteroso que parece
querer indicar que la materia desgarrada no es viva sino correosa,
leñosa, pedregosa (...) Don Pedro, pues, se esforzaba con gestos
deliberadamente hábiles, casi táctiles, en sentir como con un dedo, si
de la mucosa aterciopelada y sangrante no quedaba ningún
fragmento por donde pudiera escapar la vida — de la muerta. El
tiempo era largo y lento. Seguía repasando la oscura superficie
interna, imaginando la forma de la cavidad ya limpia, escuchando y
al mismo tiempo sintiendo en la mano, rígidamente transmitido por el
instrumento, el crujir de la materia rota (p. 101).

Em meio a todos os problemas causados pela busca desenfreada pelos ratos, o


protagonista constata a impossibilidade de salvar Florita. No momento em que percebe
que a menina está morta, também se dá conta de que o aborto havia sido provocado e
questiona acusadoramente o pai, que é desmascarado pela filha mais jovem como o
autor do aborto malogrado. Indignado e atordoado, Pedro deixa a favela sem emitir o
atestado de óbito, o que era impossível para um médico que não tinha licença para
operar e que mal se lembrava dos “ángulos tubáricos” que um dia estudou.
Mais uma vez o narrador mostra-nos as vísceras da cidade, agora expostas pelo
ventre de Florita. Assim, somos conduzidos a uma realidade que apenas se compreende
por meio de uma visão violenta e próxima. Para evidenciá-la, captam-se a estética e os
procedimentos dos Desastres, aproxima-se a imagem do olhar do espectador e se
oferece uma visão do horror. Na gravura, somos transportados para o campo de batalha
e, na escritura, para o interior de uma favela madrilena. Na estampa, temos um médico
asno tratando um enfermo quase morto e, no romance, um curandeiro charlatão tentando
salvar uma jovem de um aborto fracassado por meio de crendices e um médico inábil e
sem escrúpulos.
142

Esse movimento “rasposo” e a viscosidade presente na curetagem de Florita já


estavam anunciados de certa forma no percurso de Pedro pela cidade naquela
madrugada de sábado para domingo, antes de ser chamado para socorrer a jovem:

(...) prefería haber seguido evocando fantasmas de hombres que


derramaron sus propios cánceres sobre papeles blancos. Pero ya está
allí y la naturaleza adherente del octopus lo detiene. Su pico gritón ha
comenzado a cantar. (...) Ya ha saludado, ya escucha, ya las ventosas
se le adhieren inevitablemente. Ya está incorporado a una comunidad
de la que, a pesar de todo, forma parte y de la que no podrá
deshacerse con facilidad. Al entrar allí, la ciudad —con una de sus
conciencias más agudas— de él ha tomado nota: existe (p. 60).

Nessa madrugada, (algumas horas antes da operação de Florita) Pedro havia


saído com seu amigo Matías, quando entra em um café a viscosidade sabática o captura.
Sem conseguir evitar os “tentáculos” da cidade, com seus mil e um subterfúgios,
agarram-no. Pedro deixa-se levar mais uma vez pela ambigüidade entre sua teoria e sua
prática. Deixa de lado seus pensamentos sobre escritores que derramavam seus cânceres
em papéis (em uma clara auto-referência ao romance) para fazer parte do corpo social
tomado pelo câncer. Quando volta bêbado para a pensão, reincorpora-se ao calor
visceral de sua comunidade, a casa e a parede “rasposa” apresentam-se enigmáticas e
familiares ao mesmo tempo.

Hay que tantear la pared en busca de un botón que apretado alumbra.


Hay que reflexionar una vez encontrado, para saber si no será el
botón del timbre de una puerta. Hay que abstenerse a causa de la
duda y subir a ciegas contando los pisos en la oscuridad, mientras la
mano se impregna del yeso acre de la pared, siempre tan rasposo, tan
pintado de lápices, tan lleno de inscripciones enigmáticas y de dibujos
disformes (...) Entonces golpea su rostro el hedor violento y familiar
143

de la casa. (...) Se apoya en el quicio de la puerta y se detiene a sentir


el calor visceral (pp. 86-87) (Sublinhado nosso).

Uma vez na pensão, Pedro repete sua conduta ambígua ao não resistir à
tentação de entrar no quarto de Dorita e deitar-se com ela. Troca sua teoria sobre o amor
como algo iluminado, como algo superior, por uma noite de prazer. Depois de deitar-se
com a neta da dona da pensão, no sábado sabático, cai definitivamente nas garras das
matronas da pensão:

Y cerró la puerta de su cuarto más fuerte de lo que hubiera querido,


rojo palpitante, irritado consigo mismo y sintiendo bochornosamente
una vergüenza inútil ante la vieja, ante el mundo, ante sí mismo y ante
un futuro que se desdibujaba entre cánceres no hallados y
virginidades tomadas al paso con un gesto que no era suyo pero que
le pertenecía.
Echó el cerrojo. Está solo. Una alegría de varón triunfante un
momento y se encontró como un gallo encaramado en lo alto de una
tapia que lanza su kikirikí estridente contra los animales sin alas que
circulan allá abajo (...). ¡Pero si estoy borracho! (...) Contra aquella
gran copa de coñac que aún me repite. Contra toda la noche tonta.
¿Para qué? Yo para qué lo he hecho. Si yo creo que el amor ha de ser
conciencia, claridad, luz, conocimiento. Yo aquí con mi kikirikí
borracho. Como el asesino con su cuchillo del que caen gotas de
sangre (pp. 90-91) (Sublinhado nosso).

Com um misto de vergonha e orgulho, Pedro vê seu futuro perder o contorno


promissor: a imagem do prêmio Nobel é substituída pela animalização que o toma, e ele
lança seu “kikirikí” agudo ao cair na armadilha das mulheres da pensão. Finalmente, as
“tres diosas”, as “tres vulgares y derrotadas mujeres”, concretizam seu plano, “como si
las tres parcas hablaran musitando lo que el hilo de su vida significaba” (p. 39). Pedro
finalmente fora enlaçado pelo fio de uma vida que teciam para ele.
144

Todavía ha de picar. Yo creo que picará. Él es así, un poco distraído


como intelectual o investigador o porras que es. No acaba de ver
nunca claro y como no es corrido, tarda más en apreciar la categoría
de la niña. Pero el día que se vea comprometido no ha de saber
defenderse y ha de caer con todo el equipo y cumplir como un
caballero (...) (p. 39).

Como as três Parcas, as mulheres da pensão podem, finalmente, decidir o


destino de Pedro. Assim, a trama da família da pensão se vincula ao do mito das Parcas:
as mulheres se transformam em divindades deformadas, já que são descritas como
cansadas e derrotadas. No entanto, conservam semelhanças às Parcas, pois estas eram
três divindades femininas que nasceram no princípio dos tempos, filhas de Nix, a Noite,
e Érebo, o deus das Trevas. Elas engendravam e definiam a extensão dos fios das vidas
humanas. A Parca do nascimento era Cloto, jovem e bonita; a do transcurso da vida se
chamava Láquesis, de meia-idade e aspecto maternal. Com o fio que elaborava Cloto,
Láquesis tecia o destino existencial de cada pessoa. E a da morte era Átropos. Velha,
feia e magra, tinha um livro, em que registrava o destino de cada um, e um relógio que
marcava o tempo de vida de cada pessoa. Na outra mão, uma tesoura, com a qual
cortava o fio da vida.
Tais características estão representadas na descrição das três mulheres. Não
fosse pela deformação que estas apresentam, o mito poderia ser completamente
visualizado.

La primera generación era una vieja solemne, fuerte, emprendedora


(...) La segunda generación estaba gravemente oscurecida por la
prepotente y por la conciencia de su historia anterior. (...) La tercera
generación no se parecía en nada a sus antecesoras, sino en el
lenguaje, en los modismos. Era muy bella.
Dispuestas estaban las tres a ofrecer el holocausto con distintos
grados de premeditación y de cinismo (pp. 34-35).
145

Com essa descrição, a narrativa aproxima-se da visão que está no Capricho de


Goya, “Hilan delgado” (figura 24). Na imagem, três mulheres que formam uma mescla
de bruxas, celestinas87 e parcas estão tecendo um fio que, provavelmente, acabará na
captura de algum pretendente. Ao fundo, vê-se o que parece ser uma série de bonecos
atados e pendurados por um fio anteriormente tecido.
Na narrativa, evoca-se o momento da tessitura do fio e o aspecto
“celestinesco” das mulheres e sua distorção. Na imagem e na pensão, são mulheres
vulgares, deformadas, quase não se vê o encanto da armadilha que tecem; o mito aqui
aparece pobre, derrotado.

Figura 24: Francisco de Goya y Lucientes, “Hilan delgado”, Los Caprichos. Capricho
n. º 44, 1799, Água-forte, aguada, ponta-seca e buril, 219 x 153 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.

87
É interessante pensar no acentuado aspecto de alcoviteira dessas mulheres que a narrativa apresenta, e
como este se relaciona à imagem da gravura, que também mantém essa característica, que representava na
época de Goya o que se convencionou chamar “o lado escuro” do Século das Luzes.
146

Como as figuras da imagem, as mulheres da pensão são celestinas comuns,


cotidianas que, por meio de artimanhas, sedução e uma vigilância implacável, arrebatam
o “bom partido”. O fio tecido ata o pretendente tão buscado.
Quando a armadilha se fecha, a “substância sabática” contagia todos, como se
visualizássemos um paralelo à teoria de Pedro sobre o câncer virótico. Os diferentes
níveis sociais se encontram, o que gera um contato tão íntimo entre diferentes
personagens como o das meninas com os ratos, o de Muecas e o de Florita.
Para Pedro, esse encontro entre diferentes níveis sociais resulta desastroso,
pois, devido a sua intervenção cirúrgica ilegal, passa a ser caçado pela polícia. Seu
amigo Matías, um burguês rico e bon vivant, esconde-o em um bordel; no entanto, ele
acaba sendo encontrado e preso.

A imagem deformada: o momento da compreensão

O momento que precede a prisão de Pedro é um bom exemplo da tentativa do


autor de captar a simultaneidade das ações dos personagens, já que enquadra, ao mesmo
tempo, o movimento de três personagens que vão em busca de Pedro por motivos
diferentes: Amador, levado por Matías ao encontro do pesquisador; Cartucho, o
namorado ciumento de Florita que deseja vingar sua morte; e Similiano, o detetive que
está caçando o criminosos.

“Al que se esconde más debían castigarle más. Los jueces no saben o
no quieren saber lo que tienen que trabajar los modestos funcionarios
del cuerpo y los peligros a que nos exponemos o a que nos exponen.
No hay sino que callar y decir amén, y descuidando completamente la
salud de uno, en medio de la noche, como si uno fuera de hierro, que
no lo es, porque bueno estoy yo que ya ni sé cómo lo resisto y no pido
el retiro, aguantándome las ganas cuando me vienen”.
“Se creerá que me la va a dar. A mí no me la da”.
“Ese pobre Don Pedro estará achaparrado en algún agujero, eso lo
creo yo. Pero éste me diga que me está esperando a mí, eso no lo
creo. Pero que éste es capaz de haberlo escondido en su casa, tendrá
147

que verse. A ver si lo encuentro y sabemos de una vez en qué para


esto. Todo por no tener el certificado” (p. 145).

Esse procedimento de reduzir o espaço e enquadrar as várias ações e reações


dos personagens de forma simultânea torna a cena plástica pela união das diferentes
imagens dos três homens que vão encontrar o pesquisador. Configurada por seus
pensamentos, essa plasticidade vem carregada de suspense, provocado pela expectativa
do momento final da prisão.

Com Pedro na prisão, notamos que a narrativa abandona a descrição exterior e


incorpora uma complexidade plástica e interior. Reduz-se ainda mais o espaço ali:

(...) Tras del pasillo, por un momento, se atravesaba un patio lleno de


automóviles (...) Tras el que una nueva boca, ya más próxima a las
fauces definitivas, engullía con poderoso sorbo las almas trémulas de
los descendentes (...) Tras lo que nuevo serpenteante corredor, ahora
subterráneo, con luces de neón simuladoras del día, del que ya las
paredes berroqueñas son desnudamente hijas directas de la tierra (...)
La próxima boca da paso a una garganta escalonada y tortuosa a
través de la que, sin carraspeo alguno, la ingestión es ayudada por
los movimientos peristálticos del granito cayendo así —tras nuevas
rejas— en la amplia plazoleta gástrica donde se iniciara la digestión
de los bien masticados restos (...) hasta llegar al lugar exacto de su
ubicación definitiva en este infierno en el que, a diferencia de
aquellos en que más hábiles demonios atormentan estridentes
condenados, no se oyen los gritos de éstos sino que guardan un
profundo silencio (...) (p. 156) (Sublinhado nosso).

A prisão adquire contornos monstruosos, internos. São órgãos de digestão.


Pedro entra por ela como se estivesse sendo engolido por um monstro. Essa cena evoca
o Capricho “¡Fiero monstruo!” (figura 25), pois o protagonista passa primeiro pela
boca, depois, pela garganta escalonada e chega ao estômago da prisão-monstro. Aí se
encontram demônios que atormentam os presos não através de gritos agudos, mas por
meio de um profundo silêncio, que expressa a dor ali reinante. A evocação da gravura e
148

o tormento pelo silêncio adquirem um novo sentido quando recuperamos a explicação


de José Gallardo Blanco88 de que os adjetivos “fiero” e “monstruo” referiam-se à tirania
e ao despotismo, tanto no reinado de Fernando VII como na invasão de Napoleão
Bonaparte. À época da narrativa, a cidade também tem seu “fiero monstruo”, Franco,
que se valeu da ditadura para garantir uma uniformidade de pensamento e ação.

Para criar sua face de digno salvador do país, Franco recorreu à


tradição imperialista espanhola e revitalizou seus lemas — Deus,
Pátria e Família. Sobre esse tripé, o regime franquista apoiou
múltiplos mecanismos de controle social para tentar construir uma
hegemonia ideológica. Agora era neste plano, e não mais no das
armas, que se travaria a guerra do qual a ditadura precisava extrair
alguma legitimidade para suas implacáveis ações repressivas, como a
pena de morte e os campos de concentração ou de trabalhos
forçados.89

Figura 25: Francisco de Goya y Lucientes, “¡Fiero monstruo!”, Desastres de la Guerra,


n. º 81, 1810 – 1814, Água-forte; ponta-seca e buril, 175 x 216 mm. Biblioteca
Nacional, Madri. Primeira prova de estado.

88
GALLARDO BLANCO, José. Diccionario crítico-burlesco. Barcelona: Editorial Alta Fulla, 1993.
Facsímil de la ed. de Madrid, 1838.
89
DE MARCO, Valeria. “A narrativa na ditadura de Franco”. In: O ângulo doméstico no romance na era
Franco. Tese de Livre-Docência. 1999.Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, p. 9.
149

Metaforicamente, podemos aproximar a imagem do monstro à situação de


Pedro, agarrado pelos tentáculos da cidade, preso sem provas, ainda que se possa dizer
que tenha alguma culpa na morte de Florita. Além disso, evoca-se a deglutição
estampada na gravura, sua deformidade e seu excesso. Estão presentes, tanto na imagem
como na narrativa, a hipertrofia e a deformação.
No romance, a prisão se transforma em um ser que engole os presos: seus
órgãos de digestão agigantam-se, seus contornos deformam-se para engoli-los. Na
gravura, em um lugar indefinido, um animal gigantesco, que se assemelha a uma anta de
grandes dimensões, está deitado e tem alguns cadáveres dentro de sua boca e outros
fora. Imagem intrigante, pois alguns críticos afirmam que o monstro está engolindo e
outros, que está vomitando. Preferimos pensar na deglutição, já que os corpos ainda
estão inteiros.
O que, sim, se evidencia de forma unívoca na imagem é o excesso: tanto no
traço da gravura, que se concentra no monstro — há vários cortes para formar com
nitidez sua imagem —, como no número de corpos que tenta engolir, excessivo
inclusive para uma figura de suas dimensões. Sem conseguir destroçar todos os corpos,
o que fica é a imagem “de seus movimentos peristálticos”, a tentativa de devorar, assim
como a prisão traga Pedro, em silêncio.
Uma vez em sua cela, Pedro tenta não pensar, impõe-se uma terapéutica del
silencio90 (tantas vezes utilizada durante o regime de Franco), que consiste em um
exercício mental para não falar, não pensar, para manter uma calma que, apenas
aparente, faz sua cabeça continuar buscando explicações plausíveis para o que se passou
nas últimas horas.
Esse tempo na prisão, em meio a essa suposta quietude, passa por gradações:
vai de um tiempo de palabras, para um tiempo de pensamientos e por fim um tiempo de
dibujar. O primeiro ocorre durante o interrogatório, em que é exigido que diga tudo;
depois, por meio de seus pensamentos, vem a tentativa de entender o que se passa. No
entanto, percebe que pensar é inútil e, em meio ao silêncio de sua cela exígua, começa
um processo de compreensão pelo corte na parede, pelo desenho. No tiempo de dibujar,
no momento do “nada”, que é o da prisão, começa a projetar nas figuras incritas na
parede o que lhe ocorre, seu entorno e, em parte, seus atos.

90
GOYTISOLO, Juan. “Escribir en España”. In: El furgón de cola. Barcelona: Seix-Barral, 1982, p. 45.
150

El destino fatal. La resignación (...) No moverse. Aprender a estar


mirando un punto de la pared hasta ir, poco a poco, concentrándose
en un vacío sin pensamiento. (...) Dominar la angustia. (...) no hay
más que esperar en silencio (...) Estar tranquilo. Sentirse tranquilo.
Llegar a encontrar refugio en la soledad, en la protección de las
paredes. En la misma inmovilidad. No está mal. No se está tan mal.
Para qué pensar. No hay más que estar quieto. No pensar en nada (p.
160).

Cercado por paredes que só têm a oferecer-lhe manchas, um turbilhão de


pensamentos torna-se o único companheiro de Pedro. E ele começa a desenhar, primeiro
mentalmente, depois concretamente, cortando figuras na parede com uma ponta de
metal de um cadarço, que encontra caído no chão da cela, e delineia uma sereia sem
voz:

Dibujar la sirena con la mancha de la pared. La pared parece una


sirena. Tiene la cabellera caída por la espalda. Con un hierrito del
cordón del zapato que se le ha caído a alguien al que no quitaron los
cordones, se puede rascar la pared e ir dando forma al dibujo
sugerido por la mancha (p. 209).

Esse momento plasma o ato de gravar. Raspar, desenhar, cortar na parede o


silêncio que reverbera dentro e fora da prisão são movimentos reveladores de um tempo
no qual o que não se diz, o que não se pode dizer, está presente no corte contínuo.

Con el hierro pequeño del cordón del zapato de uno al que se


olvidaron de quitárselo se puede dibujar en la pared rascando poco a
poco la cal. Se rasca despacio porque hay todo el tiempo necesario.
Se va rascando poquito a poquito y el ruido desagradable, denteroso
del hierrecillo, de la pequeña hojalata doblada por alguna máquina
sobre el cordón marrón del zapato marrón, va resbalando en la pared
151

haciendo un dibujo que va tomando forma semihumana y que


acompaña porque llega un momento en que toma expresión, va
llegando un momento en que toma forma y llega por fin un momento
en que efectivamente mira y clava sobre ti—la sirena mal dibujada—
sus grandes húmedos ojos de muchacha y mira y parece que
acompaña. La cola son dos muslos cerrados, apretados. La muchacha
de la cola no está dispuesta a dividir su cola con un cuchillo porque
no ama (p. 162).

O ruído desagradável do raspar da parede faz-nos lembrar outros ruídos: o da


cureta dentro de Florita e o da parede da pensão, acre e “rasposa”, com seus desenhos
disformes e obscuros. Metonimicamente, na cena da prisão, Pedro dá forma às imagens
até então enigmáticas, por meio das quais compreende sua vida e suas relações com as
mulheres que o rodeiam, sereias mudas que o atraem não pela palavra, mas pelo
silêncio. São relações em que a “vagina dentada” não acolhe, mas atrai e destroça.
Nesse conjunto de destruição que forma a figura da sereia, está sua estranheza
sexual: são mulheres assexuadas que, embora sedutoras e detentoras do mito da beleza
feminina inalcançável, arrebatam e destroem. Mas a sereia de Pedro é duplamente
monstruosa, pois sequer possui a magia do canto. O protagonista encontra na sereia
apenas seu lado deformado.
Essa visão do protagonista, preso e “gravando imagens”, remete-nos às
gravuras em água-forte dos Caprichos e dos Desastres de la Guerra e à situação em que
Goya as produziu, confinado na Quinta do Surdo, protegendo-se da perseguição de
Fernando VII.
Preso em sua própria casa, Goya conseguiu produzir inúmeros desenhos
preparatórios que deram origem a algumas de suas séries de gravuras. Ali, “traçou” uma
saída para a incomunicabilidade que a opressão lhe impunha. Como resposta a esse
cerceamento da expressão, elaborou imagens que conjugavam uma complexa polaridade
entre horror e beleza. Encontramos essas mesmas características na imagem de Pedro
“gravando” sua sereia muda na prisão, pois ele toma elementos como a monstruosidade
e a inversão da ordem natural — afinal, trata-se de uma sereia muda — e reorganiza em
sua mente a vivência da ditadura franquista por meio da deformação.
152

Assim, podemos dizer que o corte na parede da prisão e as gravuras goyescas


se traduzem como formas de expressão de autoconhecimento do pintor e do
personagem. Nesse movimento de cortar/desenhar, cria-se uma complexa inter-relação
entre o escrito e o gravado, uma caligrafia plástica do momento em que ocorre o
reconhecimento de Pedro e de seu entorno. Como afirma Mário de Andrade:

O que me agrada principalmente, na tão complexa natureza do


desenho, é o seu caráter infinitamente sutil, de ser ao mesmo tempo
uma transitoriedade e uma sabedoria. O desenho fala, chega mesmo a
ser muito mais uma espécie de escritura, uma caligrafia, que uma arte
plástica.91

Ao configurar o silêncio e a deformação através da imagem “gravada”, o autor


une palavras e estampas para expor uma sociedade em que o fiero monstruo engole a
todos e faz suas figuras caminharem do exterior ao interior, de ruas madrilenas repletas
de gente a uma prisão plena de pensamentos e desenhos inscritos em uma parede
manchada. É a arte conjugada à palavra que aponta para o ângulo do individual que
busca a compreensão do social.
O raspar, cortar “inscripciones enigmáticas y dibujos disformes”, “inscreve” no
espaço reduzido da prisão uma imagem metonímica de uma sociedade em frangalhos,
de um corpo social contaminado pelo câncer da insistência em aparentar que tudo “no
está tan mal cuando verdaderamente está muy mal”. Um ambiente em que o indivíduo
lança seu olhar sobre a sociedade e tenta compreender o que a guerra fez dele e o que
faz agora em meio a uma ditadura que limita o que se diz, em que o não dito é o que
prevalece.
Assim, a prisão e os espaços pelos quais Pedro transita se reduzem a imagens
metafóricas ou metonímicas. A casa de Muecas é a metonímia de toda uma situação de
pobreza e condições subumanas em que vivem os migrantes e imigrantes na Espanha. A
prisão configura-se metaforicamente como o trabalho sujo da digestão, o abjeto e o
silêncio que percorre todo o romance.

91
ANDRADE, Mário. “Do desenho”. In: Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984, p. 65.
153

Espacios de confinamiento no son raros en la novela moderna (...). En


obras así, la acción se intensifica, se concentra, y la trama novelesca
va haciéndose más densa. La novela es sometida a prueba: su logro
depende de que la sensación alcance al lector y lo haga sentir,
entender la significación del espacio en que el personaje existe.92

Na clausura, a visão e o horizonte estreitam-se, o espaço se encolhe e as ilusões


se perdem. E, nesse ponto, a parede suja da prisão encontra-se esteticamente com as
pequenas gravuras goyescas. O elo constrói-se pela proximidade, pelo detalhe que a
palavra e o traço esmiuçam; pelo monstruoso, pela intimidade do toque, do raspar
contínuo na parede e do buril no metal que formam tanto a gravura como o desenho
feito a partir de manchas.
Pedro busca uma imagem que dê forma à dor e à solidão que sente. É a sereia
muda, que consegue conjugar a polaridade entre horror e beleza; é a cela que o leva a
uma inatividade corporal, mas ao mesmo tempo a um redemoinho de pensamentos que
o devora e faz suas idéias rodarem em círculo.

Los espacios no son agujeros, sino elementos complementarios de lo


que la palabra edifica. El movimiento se detiene un punto y al hacerlo
nos incita a suplir la continuación, pensando, imaginando,
estableciendo hipótesis plausibles que enlacen lo dicho con lo callado
(p. 10).

Pedro, enclausurado entre o dito, o calado e o gravado, integra sua situação ao


seu entorno. A arte de escrever, de “fazer cortes” na parede, capacita-o a “poder não
enlouquecer” como Cervantes. No momento do nada, do silêncio e do espaço fechado, a
arte leva-o a uma aguda percepção do instante vivido.
Essa expansão revela um movimento ekphrástico, já que a visão do leitor opera
em um nível duplo: o sensorial, por meio do olhar, e o intelectivo, ao criar imagens
mentais do que lê. Ocorre a passagem do sensível ao inteligível.93 A cena de Pedro

92
GULLÓN, Ricardo. Espacio y novela. Barcelona: Antoni Bosch Editor, 1980, p. 8.
93
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 86.
154

raspando a parede cria um momento suspenso, no qual temos a visão de um instantâneo,


com todo o seu potencial narrativo e dramático, inserido num momento crucial do
romance com clara intenção de transcendência.
Ao unir literatura e gravura, como nesse momento, Martín-Santos sugere a
incorporação de obras e procedimentos goyescos, que aparecem ressignificados. Assim,
palavra e imagem encontram-se e revelam uma nova maneira de ler o romance, em que
a visualidade expõe um espaço de opressão, que se manifesta como espaço de
incomunicabilidade. Ainda que as palavras se multipliquem na narrativa, cabe à imagem
a função de abrir uma fenda para o que se tem a dizer.
O elo entre a obra do pintor aragonês e a narrativa não se dá apenas na
incorporação de uma obra específica, mas também no uso de procedimentos e temas que
recuperam a deformação e a inversão de um mundo de opressão como, por exemplo, a
introdução de um espaço cujo enquadramento fechado leva o leitor ao centro dos
acontecimentos.
Interpretadas verbalmente, as visões que o autor vai construindo adquirem uma
série de matizes cromáticos, texturas e relevos que configuram um momento de
desajuste, desespero e solidão, extrapolando o narrado para unificá-lo com o gravado.
Enquanto Pedro “grava” sua sereia muda na parede de sua cela, fora da prisão,
seu amigo Matías busca auxílio, usando a influência de seu nome, mas é em vão, pois
apenas se torna mais um a se contaminar com a “substância sabática” do “câncer
metafórico”. Matías não consegue salvar seu amigo, o que nos mostra que a frustração e
o fracasso, como signos de uma época, de um lugar e de seus habitantes, podem estar
em qualquer nível social: ricos e pobres estão envolvidos nesse mal-estar, nesse
sentimento geral de derrota. Nesse momento, entendemos porque o título original do
romance era Tiempo Frustrado, pois frustrados estão todos os personagens, toda uma
nação.

Matías —menos metafísico— miraba estos objetos como quien


contempla un cuadro abstracto del que únicamente nos son accesibles
las relaciones entre sus formas, sus líneas, sus espacios y sus matices
cromáticos. Hubo de parar un momento. La luz roja lo ordenaba. Y al
sentir el remolino bramador e interminable, maelstrom que corona la
155

calle de la Montera, sintió lo que es estar solo. El recuerdo de Pedro


y su soledad se precisaron. Lo había tenido presente todo el día, pero
ahora lo comprendía mejor: “Está solo” (p. 135) (Sublinhado nosso).

Será em meio à multidão que Matías perceberá os aspectos cromáticos que o


rodeiam e denominará seu entorno como um quadro. Sentir-se-á só e compreenderá a
solidão de Pedro na prisão: dois momentos, um sentimento, o de solidão efetiva, a de
Pedro, em sua cela minúscula, e a de Matías, no âmbito fechado do quadro que imagina.
A abstração da imagem que ele vê se transforma em um elemento concreto, pois a
espécie de estampa visualizada se transforma em algo físico, na dor da solidão em meio
à multidão.
Mas Pedro não ficará preso por muito tempo, pois sua liberdade virá pela
figura de Ricarda, a mulher ignorante de Muecas, personagem quase bestial, que mais
grunhe do que articula palavras. É ela quem, antes de inocentar o médico, organiza o
enterro da filha. Dias depois, surge uma denúncia anônima do aborto e do enterro,
incorrendo na exumação do corpo da jovem. Desesperada diante de mais uma violação
do corpo da filha, Ricarda revolta-se contra o marido e acusa-o pela morte da menina.
Dessa forma, o delegado liberta o pesquisador.
A atitude desafiadora de Ricarda, sempre tão submissa e calada, contra o
marido, começa a esboçar-se quando, sozinha, consegue um enterro para sua filha.
Desesperada ante a possibilidade de que a enterrem às escondidas, busca um enterro em
solo sagrado para o corpo de Florita, ainda que à custa dos chamados enterros verticais.
A descrição do cemitério em que a enterram se parece muito à da prisão. Há
um tecnicismo que não é apropriado ao objeto descrito e do qual surge a imagem da
miséria humana depois da morte. O ato mecânico de enterrar aparece como engrenagem
de uma máquina:

Mientras una de las brigadas, que podemos designar con la letra A,


confecciona en la tierra rojiza unas fosas paralelepipédicas
rectangulares (...), otra brigada que podemos denominar C transporta
en carretillas hacia unos terrenos donde se aprovecha como relleno
156

cualquier parte sobrante (...), al par que la brigada B se dedica al


enterramiento propiamente dicho (...) De este modo, los
enterramientos verticales consiguen apilar en el menor espacio y con
el menor esfuerzo físico la mayor cantidad posible de difuntos sin que
padezcan la buena moral ni los ritos religiosos. Y el ideal —casi
inalcanzable— de un trabajo bien hecho, es conseguido sin
pedantería alguna por estos sencillos operarios.
Sometido a este destino común, el cadáver exangüe y seudovirginal de
Florita llegó al depósito antes aludido a una hora incierta y fue
depositado en la serie bien administrada de mesas sarcofágicas. (...)
Pero cuando ya la tierra que la debía acompañar en el largo viaje
había sido colocada sobre su caja con alarmantes sonidos a hueco y
tres compañeros de diverso sexo se habían acostado sobre el joven
cuerpo de Florita, llegó la orden de exhumación (...) (pp. 131-133).

Nem mesmo após a morte a promiscuidade acaba para Florita: antes, dividia a
cama com os pais e a irmã, agora, com outros dois homens; vida e morte promíscuas.
Florita estava destinada a viver e a morrer como um animal.
Quando observamos o enterro da jovem, em meio a dois corpos masculinos,
visualizamos também como o romance constrói a visão da morte em duas perspectivas:
a da concretização desta — quando Pedro faz a curetagem na menina — e a do enterro
vertical. Nesses dois momentos, a morte aparece muito próxima ao olhar do leitor; não
há uma contemplação, mas uma aproximação máxima ao momento. No caso de Florita,
a morte é vista através do ângulo da raspagem, que, ao ser acompanhada pelo olhar de
seus parentes e de seus vizinhos, transforma-se em uma morte pública. O segundo
momento está no enterro vertical, que se revela um ato não apenas público, mas
promíscuo e mecânico.
Esse processo culmina com a exumação do corpo, por causa de uma denúncia
anônima. Além de uma morte e enterro públicos, presenciamos uma decomposição
corporal pública, o que configura a animalização da figura da menina. Amontoados,
enterrados coletivamente, os homens vivem e morrem como bichos.
157

(...) De nuevo la blanda tierra hubo de ser extraída a medias por la


brigada B y C, puesto que A alegó que no era asunto de su
incumbencia y los frescos ataúdes, todavía solo manchados en su
bello color negro de humo se alienaron impúdicamente en revuelta
promiscuidad inacostumbrada, mostrando al sol lo que no debería ser
nunca visto (p. 134).

Essa morte, enterro e decomposição públicos evocam o tema da morte nos


Desastres de la Guerra, pois a maior parte das gravuras da série mostra imagens de
cadáveres que se aproximam muito da visão, no romance, dos enterros verticais. Na
série goyesca, eles aparecem abandonados, amontoados, sendo mutilados ou enterrados
tanto em cemitérios quanto em valas comuns. E o tema “mortos” aparece,
quantitativamente, em primeiro lugar no conjunto, com 34 gravuras.94
A repetição da morte tece a representação da guerra de várias maneiras: a luta
corpo-a-corpo, a mutilação dos cadáveres e os enterros em valas comuns. Ao insistir
nessas imagens, a série representa a guerra como uma grande máquina de matar,
enterrar e calar.
Na narrativa, o corpo-a-corpo, a mutilação e os enterros verticais são passagens
que se aproximam das imagens das gravuras. Pedro, ao percorrer as diferentes camadas
sociais, vai presenciando pouco a pouco a morte em seus distintos aspectos, o que traz
de volta ao pós-guerra imagens de uma batalha ainda viva no imaginário espanhol. Na
realidade, o pós-guerra mostrado no romance parece configurar-se como uma extensão
de vários elementos da Guerra Civil Espanhola: fome, repressão e mortes.
Talvez o exemplo mais expressivo dessa aproximação entre as gravuras e as
imagens da narrativa esteja na cena do enterro de Florita, que tanto em tema, como em
procedimento, assemelha-se à gravura “Carretadas al cementerio” (figura 26). Na
estampa, como na narrativa, ocorre um enterro em vala comum, caracterizado pela
rapidez, impessoalidade e mecanicismo.

94
BOZAL, Valeriano. Imagen de Goya. Barcelona: Lumen, 1983, p. 97.
158

Figura 26: Francisco de Goya y Lucientes, “Carretadas al cementerio”, Desastres de la


Guerra, n. º 38, 1810 – 1814, Água-forte, aguada, ponta-seca, buril e brunidor, 156 x
209 mm. Biblioteca Nacional, Madri.

Vemos na gravura dois homens vestidos de negro, tirando o cadáver de uma


mulher jovem de dentro de uma carroça. Um deles segura as pernas da morta, enquanto
o outro ampara seu tronco. Ela está com os pés mais altos que a cabeça, e seu vestido
branco escorrega e revela suas pernas; um pouco acima dos seios, deixa entrever as
axilas e parte de seu colo.
A cena desenvolve-se numa estranha mescla de morbidez e promiscuidade
muito próxima dos contornos dados pela narrativa ao enterro vertical de Florita. Na
estampa, dentro da carroça há vários corpos empilhados, com feições esquálidas. Mais à
direita, outros homens levam um corpo com rapidez, como se houvesse ainda muitos
corpos a transportar, o que reforça o caráter mecânico da ação já revelado pelo título,
que não deixa margem a dúvida sobre a situação que a estampa descreve. Narrativa e
gravura coincidem na visão da guerra e do pós-guerra como uma máquina de enterrar
velozmente e calar. Em ambos, estão a precisão, a urgência e o grande número de
cadáveres.
No entanto, no romance, há uma questão que torna o pós-guerra talvez mais
agudo que a guerra mostrada nas gravuras: a legitimidade dos enterros verticais. Se nas
159

estampas os enterros em valas comuns eram uma contingência atroz da guerra, na


narrativa, mais que contingentes, são autorizados pelo governo, que destina aos
miseráveis uma vala vertical, em uma espécie de promiscuidade legalizada.
Ao legalizar essa promiscuidade, a imagem da decomposição do corpo físico se
transforma na representação alegórica da nação espanhola, que se confirma pelo
movimento metonímico que vai afunilando, fechando o ângulo de visão: primeiro temos
Madri, depois a família de Muecas, mais adiante o enterro vertical de Florita, a prisão de
Pedro, a morte de Dorita e, finalmente, apenas o câncer metafórico tomando tudo e
todos. O corpo social é totalmente arrebatado: são as vísceras dos personagens e da
cidade. Seus corpos formam uma mesma imagem, a da sociedade espanhola
decompondo-se.
Diante dessa decomposição, o poema de Dámaso Alonso faz sentido:
amontoados, enterrados verticalmente, sonâmbulos pelas ruas da cidade, “se pudren
más de un millón de cadáveres en esta ciudad de Madrid”, 95 em toda a Espanha.
Nessa decomposição, vislumbramos uma gradação, que vai da alta sociedade
madrilena, passa pela família de Muecas, depois pela mutilação e pelo enterro vertical e
promíscuo de Florita e, finalmente, pela castração metafórica de Pedro através de seu
fracasso. Em Tiempo de Silencio, o que vemos é um espetáculo de cadáveres, conduzido
pela “máquina” eficiente dos enterros silenciosos e mecânicos.
Uma vez enterrada a filha, Ricarda denuncia o marido, e Pedro é posto em
liberdade. No entanto, isso pouco o ajuda, pois o período que passa na prisão o
“mancha” definitivamente e o diretor do Instituto em que pesquisa cancela sua bolsa,
impedindo-o de dar continuidade a seu estudo.
Sem bolsa, sem ratos e sem perspectiva, Pedro se apega à família da pensão e
decide render-se à armadilha do “bom casamento” que as mulheres daquele lugar lhe
preparavam. Atraído e atado, Pedro sucumbe a situações que antes abominava:
compartilha com as “três parcas” o riso fácil do teatro de revista. O pesquisador, que
antes se considerava um ser superior, ri e se envolve com o que antes considerava
“degradação moral”. Talvez, precisamente, nesse ponto, ele se dê conta de que também
está degradando-se, desumanizando-se de uma forma que não desejava.

95
ALONSO, Dámaso. Los hijos de la ira. Madrid: Cátedra, 1992, p.12.
160

Pedro también, sí Pedro también, apretado por el codo de la madre,


oprimido contra el brazo de la novia (tan terso, tan suave escabel
donde reclinar la cabeza), rodeado de pueblo por delante, por detrás,
por arriba, por abajo, frente al pueblo sublimado del escenario, bajo
el pueblo ululante del elevado gallinero, ante el pueblo vergonzante
de las filas de atrás que no paga pero grita, ríe y aplaude, oliendo el
sudor total que como una sola nube llenaba el teatro, reía y oía sus
propias carcajadas tanto por el camino externo, aéreo, por el que
llegaban anegadas en la comunidad total de la gran carcajada
colectiva, cuanto a través de sus propios huesos, a través del cráneo
duro y de la masa encefálica cuajada de neuronas estudiosas, sentía
también su carcajada más despacio, más ronca, risa cansada ya a
poco de iniciarse (p. 205).

Já totalmente tomado pelo mundo do populacho, Pedro penetra de vez nesse


ambiente ao qual não acreditava pertencer. Ao sair do teatro, ele, Dora e Dorita vão a
uma quermesse e, sem que percebam, acompanha-os de perto Cartucho, que
sorrateiramente vai se aproximando dele e de Dorita. Primeiro, há o olhar distante,
como se estivesse caçando sua vítima: “Entonces entró Cartucho por la puerta vestido
de negro y miró todo alrededor sin distinguir presa estimable hasta que se fijó
precisamente en la que tenía que fijarse” (p. 207).
À medida que Cartucho se aproxima, o ângulo pelo qual o acompanhamos vai
estreitando-se, as metonímias disseminadas pelo caminho apontam e antecipam a morte
que está por vir: na barraca do tiro ao alvo, Pedro erra, mas Cartucho acerta; na prova
do gongo, Pedro é incapaz de fazê-lo soar; Cartucho, com apenas uma mão, acende a
luz vermelha de alerta.
Finalmente, o perseguidor alcança a presa e a tira para dançar no momento em
que Pedro se separa da garota para comprar-lhe um pacote de churros. Em um corpo-a-
corpo em que algoz e vítima se encontram, como se estivessem em uma dança macabra
de um instantâneo capturado por Goya, Cartucho esfaqueia Dorita e, assim, crê vingar a
morte de sua namorada, Florita. No momento da estocada, todos os indícios convergem:
a roupa negra, a luz vermelha, o número 13 e o negro da noite confluem para o sangue
161

que escorre na morte anunciada. Com o sangue de uma inocente, paga-se o sangue de
outra. O câncer, em mitose, duplica a morte: o eco fonético dos nomes relaciona e
reitera sua condição de vítimas, atingidas pela violência que se espalha pela Madri do
pós-guerra.
Uma vez terminada a vingança, Cartucho abandona o corpo de Dorita. O que
nos resta é imaginar, como faz o assassino, a expressão de Pedro, voltando ao encontro
da jovem com seu pacote de churros nas mãos. As cenas anteriores à morte e o suspense
gerado por elas dilatam o tempo e prolongam o instante da estocada como uma grande
agonia.
A visão do horror da morte em cena pública, do sangue que escorre pelo chão,
preenche todo o “enquadramento”, conferindo à narrativa um movimento que leva o
leitor ao centro dos acontecimentos. Leitor e personagem vêem o instante da morte em
close.
Assim, o desespero de Dorita, ao gritar e sentir seu corpo contra o de Cartucho,
reverbera o momento final, o corpo-a-corpo aproxima o leitor do momento da
punhalada e o sangue que jorra ao seu redor, um charco de sangue, que enegrece com a
luz da lua, intensifica a cena. A visão é dolorosa para a vítima e para o leitor.

Entonces, Cartucho cogió el brazo de Dorita y tiró de ella diciendo,


vamos a bailar, guapa. Dorita dio un grito, pero nadie se enteró
porque fijándose bien, se oían bastantes gritos a aquella hora en el
recinto municipal acotado. Quien es usted, dijo luego Dorita y
Cartucho le contestó calla, calla de una vez, al mismo tiempo que le
clavaba en el costado su navaja abierta, en un golpe seco y decidido
que había dado más de una vez y mientras Dorita caía al suelo
llenándose de sangre poco a poco encima de un charco que de noche
parecía negro y que crecía, él se iba hacia fuera sin esperar siquiera
a ver la cara que pondría él cuando volviera con su gran paquete de
churros y se encontrara con que la venganza había sido ejecutada,
162

que no hay plazo que no se cumpla ni deuda que no se pague (p.


209).96

Evoca-se, nesse momento, o título da gravura goyesca: “No se puede mirar”


(figura 27), que também apresenta um suspense martirizante. Na narrativa e na estampa,
o olhar é doloroso tanto para o leitor e o espectador como para os que serão executados.
Na gravura, vemos um espaço fechado, cuja entrada se abre em um grande arco
à direita; a luz do dia ilumina os canos de fuzis que, ameaçadores, apontam para um
grupo formado por homens, mulheres e crianças desesperados. A luz que vem de fora
contrasta seus corpos com as trevas. Alguns se jogam no chão, outros cobrem o rosto.
Em primeiro plano, vemos um homem, que veste uma casaca e, ajoelhado e
aterrorizado, dirige suas súplicas em direção às armas.

Figura 27: Francisco de Goya y Lucientes, “No se puede mirar”, Desastres de la


Guerra, n. º 27, 1810 – 1814, Água-forte, ponta-seca, buril e brunidor, 145 x 210 mm.
Biblioteca Nacional, Madri.

Em uma cena que nos lembra muito Los fusilamientos del 3 de mayo, vemos,
no centro do jogo de luzes e trevas, uma mulher de vestido branco. Enquanto volta o

96
ZAMORA, Antonio. No hay plazo que no se cumpla ni deuda que no se pague. Barcelona: D. Juan
Francisco Piferrer, Impr., 1834. A frase de Cartucho expressa o título do drama composto no início do
século XVII, sobre a figura de don Juan Tenorio (Sublinhado nosso).
163

rosto para os céus, abre seus braços e oferece o peito para o pelotão de fuzilamento. A
boca escancarada, o rosto contorcido e as mãos abertas, com as palmas viradas para
cima, concentram o momento do grito e do desespero da cena.
Um pouco atrás dessa mulher de branco, há outra mulher que, envolta em
panos, tem as mãos unidas e protege uma menina entre os braços. A criança, de boca
aberta, estende a mão em direção ao pelotão, como se estivesse pedindo ajuda. À sua
direita, muito próximo aos fuzis, um homem, também ajoelhado, dá as costas aos seus
algozes e une as mãos como se estivesse esperando o disparo final.
Desse modo, podemos afirmar que o romance e a estampa captam a
simultaneidade dos movimentos anteriores à morte: na narrativa, a aproximação de
Cartucho, o bulício do entorno e a volta de Pedro ao encontro de Dorita intensificam o
suspense. Na gravura, os gestos concomitantes dos que serão executados e as pontas dos
fuzis, sugerindo a presença dos executores, não nos permitem intuir o momento exato
do disparo.
O traço horizontal e exacerbado da figura compõe o ambiente escuro; o solo e
os fuzis em riste, iluminados pela luz do dia, revelam o contraste de claro-escuro que
intensifica o momento anterior à morte, conferindo uma carga emotiva e desesperadora
à cena. Na narrativa, as vozes do entorno, as luzes difusas das barracas e o anonimato da
dança em meio à multidão ampliam o desespero que antecipa a morte.
Na cena da quermesse, tudo se desenvolve em instantes, o horror é que dilata o
momento da morte: temos os passos sorrateiros de Cartucho, esperando o momento do
bote, a dança, a estocada no corpo da jovem, a chegada de Pedro a qualquer momento.
A simultaneidade das ações combina elementos que configuram a morte como um
espetáculo a céu aberto, visto de muito perto, em um enquadramento que se fecha em
close-up.
Esse ângulo fechado se vê em Tiempo de Silencio nos dois momentos em que a
morte aparece. São instantes em que leitor e narrador se aproximam ao máximo dos
corpos. Os olhos de quem lê e de quem narra seguem de perto a colher (cureta) na mão
do médico, enquanto este faz a raspagem inútil em Florita. Vemos, de perto, os braços
de Cartucho enlaçando o corpo de Dorita e, depois, apunhalando-o. Em ambos, a
configuração da proximidade está marcada pelo movimento metonímico, que corta a
imagem, como se a morte pudesse ser representada pela mutilação: é a cureta, o braço
164

que enlaça o corpo, a faca que apunhala. O momento da morte aproxima vítima e
carrasco, numa luta corpo-a-corpo que quase os transforma em um só corpo.
O ângulo pelo qual vemos o momento da morte é fechado, estreito. O contraste
entre o grito de Dorita, as vozes alegres da quermesse e a iminente chegada de Pedro
possibilitam a construção de uma imagem marcada pela simultaneidade da ação e pelo
extracampo.
A inquietação na narrativa está na suposta reação de Pedro com seus churros,
diante do cadáver e do sangue, que, em charco, invade a paisagem buliçosa e alegre da
quermesse. Mas não sabemos se será assim, pois se mutila a cena; o que resta ao leitor é
a imaginação, a visualização de uma imagem expansiva que dê conta do momento
posterior à morte da menina.
As mortes das jovens se transformam em espetáculos públicos: a de Florita,
observada pelos vizinhos e pelo curandeiro; a de Dorita, pelos freqüentadores da
quermesse. Tanto na guerra como no pós-guerra, a morte não ocorre no espaço privado,
mas se transforma em um espetáculo atroz que extravasa os limites do espaço. Assim
como os cadáveres da guerra são pendurados pelo caminho como uma advertência, no
pós-guerra é o corpo que sangra em meio aos vizinhos curiosos e diante dos que passam
pela verbena.

O câncer metafórico: a proliferação do fracasso

É nesse momento de crise que chegamos ao último estágio de “contaminação


textual” do câncer metafórico. À medida que os acontecimentos se sucedem, as
onomatopéias aumentam vertiginosamente na narrativa, estendem-se, como se o
narrador perdesse o controle sobre elas e, em mitose, fosse acelerada sua divisão e
multiplicação.
As palavras de Pedro e seus pensamentos vão amontoando-se — como os
cadáveres empilhados — em extensos parágrafos, em imagens desconexas que se
juntam em um longo monólogo interior, no qual as distintas imagens do câncer vão
rodando em sua mente. Mas ele não está desesperado e exatamente por isso se
165

desespera. O silêncio, a calma, a natureza resplandecente à sua volta o conduzem ao


desespero.
Essa tranqüilidade assustadora, unida à sensação de castração e frustração do
protagonista, evoca a gravura goyesca “Tampoco” (figura 28). Nela, não vemos a
contorção desesperada do enforcado. Tudo ali é insuportavelmente calmo: um soldado
francês contempla um cadáver pendurado com as calças arriadas, em uma situação de
dupla humilhação.
A imagem do homem de calças arriadas e enforcado possuía, na época da
Guerra de Independência, uma função primordial: a de advertir aqueles que pensavam
em rebelar-se contra o invasor francês. Essa advertência é contundente na imagem, pois
atrás do corpo pendurado, que aparece em primeiro plano, vemos uma fileira de
cadáveres igualmente pendurados em uma linha que se prolonga a perder de vista.
No centro de “Tampoco” vemos um conjunto de árvores cuja folhagem se
mostra viçosa, apesar do signo de devastação representado pela fileira de cadáveres
enforcados. Nessa cena, há uma transfiguração do corpo, mutilado e “posto para secar”.
Chega-se à animalização do ser humano tanto em suas atitudes como em sua própria
figura. Ao mutilar os corpos, a imagem da gravura desumaniza o homem, pois o
transforma em um objeto, pendurado na árvore. De forma semelhante, quando o
romance transforma a filha de Muecas em um seio, um ventre, retira-lhe sua
humanidade, convertendo-a em parte da engrenagem do criadouro de ratos.

Figura 28: Francisco de Goya y Lucientes, Figura 29: Capa do livro de


“Tampoco”, Desastres de la Guerra, n. º 39, Francisco Quevedo, Sueños y
1810 – 1814, Água-forte, aguada brunida, discursos. Madri: Felipe C. R.
ponta-seca, buril e brunidor, 157 x 208 mm. Maldonado, 1972.
Biblioteca Nacional: Madri.
166

Por outro lado, quando vemos Pedro no trem, em fuga para o interior, olhando
para a natureza ao seu redor, para o céu azul, escutamo-lo dizer: “!Qué bonito día, qué
cielo más hermoso! No hace frío todavía” (p. 212). Aparentemente, não há desespero,
mas a cena mostra um homem dissecado e posto para secar na meseta. Segundo o
protagonista, o desespero encontra-se no fato de não estar desesperado, está na suposta
calmaria do entorno, semelhante ao que vemos na estampa.

(...) reseco y carcomido, amojamado hombre de la meseta puesto a


secar como yo mismo para que me haga mojama en los buenos aires
castellanos, donde la idea de futuro se ha perdido hace tres siglos y
medio y el futuro ya no es sino la carcomida morronez que va
tomando un cuerpo de buey puesto a secar y la carne vuelta mojama y
gusta la mojama y hay hombres como yo, que van acostumbrándose
poco a poco a tomar mojama con un vaso de vino.
(...) ¿Pero yo, por qué no estoy desesperado? (p. 215) (Sublinhado
nosso).

Na gravura, as feições do soldado que contempla o cadáver mostram sua


satisfação pelo que vê; parece-lhe, inclusive, algo agradável. Podemos ver um sorriso
que se insinua em seus lábios. A posição do soldado e sua cara de satisfação lembram-
nos muito a iconografia que aparece na capa do livro Sueños, de Quevedo97 (figura 29).
Há também uma similaridade entre a figura de Goya, a imagem da capa do
livro de Quevedo e a cena do sonho da razão que produz monstros. No entanto, tal
semelhança se estende apenas à posição do soldado francês recostado. Na guerra, o
pesadelo é real, a morte, tátil e a placidez, vigorosamente incisiva. Na visão da morte,
tanto nas gravuras goyescas como na narrativa, carecemos de distância, não
contemplamos as imagens, estamos metidos nelas.
Na guerra bestial que se trava nos campos e se retrata nas gravuras goyescas,
em que homens e natureza são mutilados, não há espaço para o sonho da razão, apenas
para uma crueldade silenciosa. No romance, a meseta é campo de violência dilacerante

97
QUEVEDO, Francisco. Sueños y discursos. Madrid: Felipe C. R. Maldonado, 1972. Gravura feita para
ilustrar a obra.
167

e pública. No entanto, paradoxalmente, a estridência é silenciosa, como nas gravuras


dos Desastres.
Na estampa, o homem “posto a secar” está ali não só como uma advertência,
mas também serve de espetáculo público ao soldado e a quem se atreva a olhá-lo.
Metaforicamente, o narrador evoca as imagens destroçadas das gravuras de Goya e
aproxima-as da mutilação de Pedro.
Estampa e narrativa mostram mutilações que ocorrem em duas vias: a física e a
psíquica. Em uma sociedade na qual se tenta mostrar que tudo está bem, quando está
muito mal, a mutilação estende-se não só ao indivíduo, mas também ao corpo social.
Castram-se todos de diferentes formas.

Hay algo que explica por qué me estoy dejando capar y por qué ni
siquiera grito mientras me capan (...) Es cómodo ser eunuco, es
tranquilo, estar desprovisto de testículos, es agradable a pesar de ser
castrado tomar el aire y el sol mientras uno se amojama en silencio
(pp. 216-17) (Sublinhado nosso).

A castração psíquica de Pedro nos remete à gravura “¡Gran hazaña con


muertos!” (figura 30). Na imagem, vemos em uma planície, junto a uma montanha, três
cadáveres nus atados a uma árvore. À direita, pendurado pelas pernas amarradas em um
galho, há um cadáver totalmente mutilado. Os órgãos genitais foram extirpados e ele
está sem a cabeça e os braços. Um pouco mais à direita, no mesmo galho, encontramos
sua cabeça decapitada, espetada na árvore. Logo abaixo, amarrados pelos pulsos, estão
seus braços.
Vemos, então, que o horror está no silêncio do meio, nas mutilações dos corpos
e na visão da natureza plácida que gera um mal-estar, tornando a cena ainda mais
violenta para quem a observa.
168

Figura 30: Francisco de Goya y Lucientes, “¡Gran hazaña con muertos!”, Desastres de
la Guerra, n. º 51, 1810 – 1814, Água-forte e ponta-seca, 156 x 208 mm. Biblioteca
Nacional, Madri.

A placidez, o momento de silêncio após a morte e a tranqüilidade não


condizem com o horror expressado pela imagem. Em “¡Gran hazaña!”, o horror está na
aparente harmonia entre o olhar do soldado e a equilibrada composição que forma o
corpo mutilado e a árvore. Na narrativa, a natureza é fulgurante sob o céu azul e logo
abaixo está o homem castrado.
Elementos que antes podiam simbolizar paz, alegria e sossego, tais como a
árvore, que em gravuras costumbristas traziam sombra e descanso, agora, com a guerra,
transformam-se em instrumento de violência e tortura.98 No romance, a visão do céu
azul e do dia bonito se torna dolorosa para Pedro.
A condição humana aparece enquadrada em um espaço contraditório, há um
desejo de afirmar que tudo está bem, quando está muito mal: o cientista sem escrúpulos
que deseja ganhar o prêmio Nobel, a mãe que celestinea a filha, o pai que dorme com a
filha, o rapaz rico, Matías, que se desafoga em um bordel, as contradições que
conformam uma cidade descabalada. Nessa cidade, todos, de uma forma ou de outra,
estão marcados pelo signo do fracasso, não há horizonte possível, o espaço estreitou-se,
as ilusões se perderam. O que resta é a contaminação do câncer do silêncio.

98
BOZAL, Valeriano. “El árbol goyesco”. In: Goya, nuevas visiones. Madrid: Amigos del Museo del
Prado, 1987, p. 120.
169

A guerra e o pós-guerra confirmam uma situação trágica, e suas imagens se


inscrevem em um horizonte limitado e desolador, que obriga o espectador a entrar nesse
mundo, em que não há lugar para o voyeur, mas sim para o olhar que penetra e, de certa
maneira, vive esse mundo. Em Tiempo de Silencio, observar é pouco para entender o
mundo do abjeto; é necessário senti-lo.
Para tanto, a narração, como o corpo completamente tomado pelo câncer, vai
multiplicando palavras. Na cena em que Pedro decide abandonar Madri e voltar para o
interior pelo mesmo caminho pelo qual chegara, seus pensamentos vão contagiando-se
com onomatopéias, transformando-se em um extenso monólogo pontuado por
grasnidos:

Si no encuentro taxi no llego. ¿Quién sería Príncipe Pío? Príncipe,


príncipe, principio del fin, principio del mal. Ya estoy en el principio,
ya acabó, he acabado y me voy (...) Llegué sin dinero me voy sin...
¡Qué bonito día, qué cielo más hermoso! No hace frío todavía. (...)
Esto es, vivisección, las sufragistas inglesas protestando, igual
exactamente, igual que si fuera eso, la vivisección. Ellas adivinan que
son igual que las ranas si se las desnuda, en cambio Florita, la
desnuda florita en la chabola, florecita pequeña, pequeñita, florecilla
le dijo la vieja, florecita la segunda que... ajjj...” (pp. 212-213).

A desumanização alcança a linguagem quando o homem emite grasnidos e


chega a um estado animal, já não articulando palavras. Nesse momento de
contaminação voraz, a linguagem de Pedro, antes tão pedante, encontra-se com os
grunhidos de Ricarda, e o último estágio do câncer metafórico se completa.
A esterilidade da meseta, com seus cérebros ibéricos ressecados, continua nos
homens famélicos da sociedade franquista, “protetora e opressora”. O fracasso, mais do
que nunca, está na vida de todos.
Assim como o povo espanhol, que na Guerra de Independência, passa por um
processo de animalização pelo emagrecimento, perda da honra e inclusive das roupas —
catalisado na figura do homem esfarrapado da gravura n. º 1, “Tristes presentimientos
de lo que ha de acontecer” (figura 31) —, Pedro perde seu projeto, honra, rumo e
170

capacidade de articulação. O tiempo de silencio impera e, por fim, os tristes


pressentimentos se concretizam.
A imagem de Pedro, enlouquecido e descentrado, mutilado e “posto para
secar” evoca a figura do homem esquálido da estampa. Em um lugar indefinido, ao lado
de uma pedra, ajoelha-se e abre os braços, e volta seu olhar para o céu; suas roupas
brancas, nas quais se concentra a luz, estão esfarrapadas. Ao fundo, as trevas parecem
ganhar terreno e invadem quase toda a composição por meio dos traços que proliferam
ao redor do homem.

Figura 31: Francisco de Goya y Lucientes, “Tristes presentimientos de lo que ha de


acontecer”, Desastres de la Guerra, n. º 1, 1810 – 1814, Água-forte, buril, ponta-seca e
brunidor, 178 x 220 mm. Biblioteca Nacional, Madri.

As linhas que se multiplicam na composição atraem e sugam o olhar do


espectador para a figura que não fala, apenas ergue em súplica um olhar para o céu. No
caminho inverso da proliferação de traços, estão a economia de meios, o lugar
indefinido, a magreza ao homem, o nada ao seu redor; um ar fantasmagórico preenche a
cena com uma forte carga emocional.
Em Tiempo de Silencio, a cena de Pedro, que não fala, apenas pensa
confusamente, e se limita a erguer os olhos para o céu azul, vai tornando cada vez mais
171

aguda a voz do fracasso: passa de uma vida com a ilusão do prêmio Nobel para a
descida aos infernos das favelas, do aborto, da prisão e do confinamento ao ar livre.
Esmagado entre a proteção e a opressão, o que resta a Pedro são “tristes
presentimientos de lo que ha de acontecer”, o horizonte que se desenha diante de seus
olhos em fuga não é alentador, pois, contraposta ao azul do céu, está a figura de pedra
do Escorial.
O movimento fluido do trem vai em direção a pedra estática: é Pedro (do latim
petra) que, em fuga, se depara com símbolos de uma sociedade “petrificada”. Não há
escapatória possível, aonde quer que se vá, o tempo é de desumanização, fracasso e
silêncio.

Por aquí abajo nos arrastramos y nos vamos yendo hacia el sitio
donde tenemos que pornernos silenciosamente a esperar
silenciosamente que los años vayan pasando y que silenciosamente
nos vayamos hacia donde se van todas las florecillas del mundo (p.
216).

Seu confinamento no interior do país, como um médico rural, aproxima-o de


Florita. Trata-se de outro tipo de morte em que seus pensamentos estão fadados a rodar
em redemoinho, a fazer-lhe uma autópsia metafórica para tentar compreender o que se
passou. Com sua castração simbólica, passa a fazer parte da morte em série, dos
enterros verticais, inclui-se na imensa massa que se submete a viver em um “tiempo de
silencio”.
172

Palavras finais: o olhar pela fresta

A cidade se escreve, nos seus muros, nas suas


ruas. Mas essa escrita nunca acaba. O livro não
se completa e contém muitas páginas em branco,
ou rasgadas. E trata-se apenas de um borrador,
mais rabiscado que escrito. Percursos e
discursos acompanham-se e jamais coincidem. O
paradigma do urbano, a saber, o conjunto de
oposições pertinentes que conferem um sentido a
essas coisas pode se fechar? Parece que não.
Algumas oposições, como “particularidade-
diferença”, remetendo diretamente ao “vivido”,
impedem que esse conjunto se feche.
(Henri Lefebvre, A revolução urbana).

O olhar pela fresta supõe em um primeiro momento um ponto de vista reduzido


e fragmentário, já que o campo de visão aproxima as cenas e as figuras observadas pelo
ângulo estreito em que o olho se move.
Essa noção de fragmentação se encontra nos dois romances estudados e causa
pelo menos duas sensações: a de que visualizamos algo incompleto ou algo que, devido
a seu caráter metonímico, torna-se suficiente para que se tenha uma imagem do todo. Na
estruturação do enredo, dos personagens, do espaço e do tempo, bem como nas relações
das duas obras literárias com as gravuras de Goya, nunca temos algo completo. Há uma
recorrente abordagem fragmentária que não nos permite ter um retrato de corpo inteiro.
Ao mesmo tempo, essas partes são suficientes para que formemos imagens de um tempo
de frustração, silêncio e espanto, visto através das frestas. Por elas, enxergamos figuras
que estampam medo, insegurança e que delineiam incertezas. Por isso, dizemos que o
ângulo de visão em Nada e Tiempo de Silencio se localiza entre as fendas de diversos
lugares.
Em ambos os romances, os personagens situam-se entre o mundo real, o
visceral e o do sonho, conformando uma imagem particular do momento vivido,
173

imaginado e lembrado. Nessa disposição, Nada e Tiempo de Silencio nos mostram que a
História não se compõe somente por grandes feitos, mas também pelo transcurso
cotidiano dos dias.
A partir dessas perspectivas, os autores exploram o espaço de maneira singular,
pois, através dele, expõem os conflitos entre seus personagens e suas tensões.
Metonimicamente, delineiam imagens que definem seu caráter social e histórico,
revelando a contradição entre seus personagens e os ambientes pelos quais transitam.
Em Nada, esse ambiente está impregnado pelos jogos de claro-escuro que geram,
inicialmente, uma polaridade entre os espaços percorridos por Andrea. Essa polarização,
entre as luzes da cidade e a escuridão da casa da rua de Aribau, está constantemente
matizada pelo sonho e pela alucinação. Assim, não é por acaso que o romance encontra
no universo dos Caprichos, cujo primeiro título era Sueños, a expressão de grande parte
de sua visualidade.
Uma vez dissipada essa divisão ostensiva entre esses espaços, a narradora-
protagonista parte rumo ao autoconhecimento e ao conhecimento do mundo em que
vive, tingindo a narrativa de cores ainda mais próximas das gravuras, de um aspecto
cinzento que a faz sentir-se “blanca y gris”. Rodeada por essa cor, carregada de
frustração e desilusão, Andrea chega a uma compreensão de seu entorno e de si mesma
e se vê em um enquadramento:

Yo, una muchacha española, de cabellos oscuros, parada un momento


en un muelle del puerto de Barcelona. Dentro de unos instantes la
vida seguiría y me haría desplazar hasta algún otro punto. Me
encontraría con mi cuerpo enmarcado en otra decoración (p. 236).

É pela arte que Andrea alcança e toca a face ambivalente do mundo e


compreende que a vida não é feita apenas de luzes ou sombras, mas de inúmeras cores,
como o cinza da desilusão e o verde da decadência, que percorrem todo o romance, nos
mais distintos ambientes. Ao enxergá-las, a narradora-protagonista funde o espaço da
casa e o da rua, o que, por sua vez, amplia o campo de visão desse ambiente fechado
174

para o contexto nacional: vemos que não é apenas a casa da rua de Aribau que está
povoada por demônios, bruxas, loucura, pobreza e tristeza, mas toda uma nação.
Ao enxergar essa “demonização” dos ambientes pelos quais transita, Andrea
converte a casa em um espaço metafórico: os trastes amontoados da casa transformam-
se na imagem da própria memória coletiva, acumulando lembranças de uma guerra
sangrenta, frustrações, loucura e dor. Os gritos da casa ecoam por seus cômodos, tomam
os sentidos de seus habitantes e representam uma recordação dolorida de toda uma
sociedade.
Essa dor vem plasmada por imagens que a memória constrói. Não se trata
apenas do tempo vivido, mas do lembrado, que se expande e se torna ilimitado. Assim,
lembrar é mais que viver, é tentar compreender e, por essa compreensão, o lembrado
perde suas limitações, já que se torna a chave para o entendimento do antes e do depois.
Nesse movimento de metamorfose, o sonho cumpre uma importante função,
daí a opção decisiva pela estética dos Caprichos. Ao incorporá-la à narrativa, a autora é
capaz de combinar terror, espanto e dor com monstruosidade e os aspectos fantásticos.
Tal qual no universo onírico tudo pode ser mostrado; pela recuperação da memória
quase tudo pode ser reconstruído e compreendido. Arte e memória trabalham juntas
para configurar a condição de toda uma geração, perdida entre a falta de alento e o gosto
amargo do “nada” que se impõe como horizonte.
Em Tiempo de Silencio, encurralado nesse horizonte estreito, Pedro olha para
as células cancerígenas através de seu velho microscópio. Agigantadas, as células
funcionam como metáforas que revelam a dimensão do câncer na sociedade espanhola
daquele momento. Essa visão, aumentada por sua lente, fragmenta-se em diversas
imagens que configuram a sociedade: o protagonista vê, entre os “farrapos-cortinas” da
casa de Muecas, meninas criando ratos sob o olhar resignado de uma consorte gorda e
animalizada. Desumanizados, todos invertem a ordem natural entre humanos e animais;
vivem e morrem como bichos.
Pedro ainda observa, entre os ramos da “Árvore da Ciência”, discussões inúteis
que reduzem humanos a pássaros atordoados e converte um filósofo, em um demônio
vaidoso, quase cômico, que estende sua pata em sinal de benção através de palavras
vazias. Na pensão onde vive, as figuras transformam-se em mitos distorcidos: são
Parcas derrotadas e maniqueístas, que confabulam “celestinescamente” em busca de um
175

“bom partido”. Dentro da prisão, Pedro encontra na “estampa” de uma sereia muda a
imagem emblemática do tempo de silêncio em que vive. Libertado desse espaço
reduzido, perde as ilusões e os sonhos de uma vida. Ao ar livre reconhece um tipo de
cárcere em que sempre vivera, mas que até então não havia percebido; seus horizontes
estreitam-se em uma prisão a céu aberto e da qual não é possível escapar.
Entendemos, então, porque no título Tiempo de Silencio ainda permanece sua
idéia original: Tiempo Frustrado. Complementares, esses tempos constituem um mesmo
espaço que se fraciona e se reduz ao corpo abjeto, tomado por um enxame de palavras
que, ao mesmo tempo que corrói, constrói a visão onipresente do câncer.
Nessa visão proporcionada pelo romance, a animalização e a desumanização
evocam procedimentos e temas goyescos, estampados nas gravuras dos Desastres de la
Guerra. Ao evocá-los e reformulá-los em sua narrativa, Martín-Santos nos mostra que a
cidade, sob o signo da ditadura, continua reproduzindo elementos de uma guerra
dilacerante. Expor suas vísceras através do câncer significa recuperar imagens que ainda
estão presentes em uma dor coletiva de uma sociedade em frangalhos.
Dessa exposição, multiplicadora e cáustica, vem a apropriação dos Desastres,
que contribuíram para configurar em um espaço reduzido uma reflexão sobre a guerra e
sua crueldade, sua injustiça, sua fome e seu terror. Terror aqui entendido como um
medo que não se compreende muito bem, que pode vir de qualquer parte, que está
latente no cotidiano . Assim, os mil tentáculos da ditadura franquista podem capturar a
todos e atemorizar, sustentando um discurso de aparente normalidade e inteireza que
oculta um ambiente violado.
Dividida em uma mitose voraz pela narrativa, essa sociedade se parte em
estilhaços, como se fosse vista através de um microscópio. Uma vez despedaçada, o
autor destrói a imagem de tranqüilidade, junta os cacos dos anos triunfais do franquismo
e constitui uma nova forma literária, pautada pelo caráter visceral e pela exposição das
entranhas da cidade e de seus personagens em uma nova linguagem, moldada em
imagens, temas e procedimentos goyescos, como a inversão da ordem natural, a morte
em cena pública, a fragmentação das cenas e das imagens, o corpo-a-corpo que termina
em morte e, por fim, um encolhimento de horizontes que restringe o foco do olhar a um
espaço e um tempo frustrados.
176

Assim como no romance de Laforet, em Tiempo de Silencio, o protagonista


entende seu entorno e a si mesmo através da arte. Na cela da prisão, “grava” uma
imagem definidora de seu tempo frustrado e de silêncio: sua sereia muda. Ao negar a
voz à sereia, concedendo-lhe apenas a deformação e a monstruosidade, inverte o mito e
nos mostra que a opressão está dentro e fora da prisão.
A compreensão, então, vem pela arte e pela inversão. Sendo assim, é
necessário inverter o silêncio também, falar muito, escolher um narrador intruso,
escrever muito, derramar seu câncer em páginas em branco que, repletas, plasmam a
visão do horror de um pós-guerra desolador. A cidade, por seu lado, vigia e captura com
seus mil tentáculos todos os habitantes — cadáveres sonâmbulos — que vagam por suas
ruas, que se transformam em hortos, nos quais apodrecem Floritas, Doritas, Pedros e
outros corpos que adubam seus espaços de abjeção, tomados pelo câncer da hipocrisia e
do silêncio.
Conjugados, o nada e o silêncio “estampam” em espaços obscuros e abjetos o
universo goyesco e, ao evocá-lo, apresentam-nos novas perspectivas de compreensão
desses ambientes, que vão além da visão de vencidos e vencedores para configurar o
desastre do pós-guerra em si. Nenhum dos romances é tranqüilizador e tampouco busca
respostas prontas. Mas, cada um a seu modo — exasperante ou ambíguo —, levanta
questões para que visualizemos esse tempo de ilusões perdidas e gritos sufocados.
Em Nada a indefinição do destino da narradora-protagonista no epílogo do
romance traz à tona a sensação de fracasso. Andrea não obtém todas as respostas que
buscava e tampouco nos revela seu presente. Em Tiempo de Silencio, o destino de Pedro
concentra frustração e desespero.
Nesse sentido, constatamos que os dois romances apropriam-se não apenas das
técnicas e da visualidade da obra goyesca, mas da condição que ela apresenta: dor,
desolação, fracasso e o horror da guerra que ainda se faz presente no pós-guerra. Ao
apreender as gravuras, os autores criam uma dimensão ampliada do horror da guerra,
ainda presente no pós-guerra e, ao mesmo tempo, sugerem uma interpretação da história
contemporânea como um movimento de continuidade do “desastre espanhol”, desde o
século XIX até o pós-guerra civil espanhola.
Dessa forma, podemos dizer que esse sentimento de frustração e a opção pelo
imaginário goyesco unem Tiempo de Silencio ao romance de Carmen Laforet. Ambos
177

excedem a norma vigente e inauguram, através da memória, do comentário, da


fragmentação e da apropriação de estampas goyescas, um novo fazer literário, dando ao
romance espanhol complexidade e densidade para gravar um tiempo de silencio.
178

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192

APÊNDICE: Seqüência dos Desastres de la Guerra


193

Quadro 01: Primeira seqüência de Los Desastres segundo Lafuente y C. Derozier.

Título 1º Numeração 2º Numeração


Lafuente C. Derozier
Tristes presentimientos 1
De qué sirve una taza 3 3 59
Se aprovechan 4 4 16
Sanos y enfermos 5 5 57
Tanto y más 7 7 22
Curarlos y a otra 8 8 20
Siempre sucede 8 - 8
Escapan entre las llamas 10 10 41
Caridad 11 11 27
Aún podrán servir 12 12 24
También éstos 13 13 25
Lo mismo en otras partes 14 14 23
Yo lo vi 15 15 44
Enterrar y callar 16 16 18
No se convienen 17 17 17
Ni por ésas 18 18 11
Lo mismo 18 48 3
Tampoco 19 19 10
Amarga presencia 20 20 13
Estragos de la guerra 21 21 30
Ya no hay tiempo 21 19 19
Y no hay remedio 22 22 15
No se puede saber por qué 22 2 35
Duro es el paso 23 23 14
Para eso habéis nacido 24 24 12
Será lo mismo 25 25 21
Bien se te está 26 26 6
No se puede mirar 27 27 26
Populacho 28 - 28
Y son fieras 28 28 5
Lo merecía 29 - 29
No quieren 29 29 9
Al cementerio 30 30 56
No hay quién los socorra 31 31 60
Esto es peor 32 32 37
Fuerte cosa es 32 32 31
Así sucedió 33 33 47
Las mujeres dan valor 34 34 4
194

Título 1º Numeração 2º Numeração


Lafuente C. Derozier
Por una navaja 34 1 34
No hay que dar voces 34 34 58
Si no son de otro linaje 35 35 61
Con razón o sin ella 36 36 2
Lo peor es pedir 37 37 55
Carretadas al cementerio 38 38 64
Tampoco 39 39 36
También esto 40 40 43
Algún partido saca 40 - 40
Qué valor 41 41 7
Qué hay que hacer más 42 42 33
Todo va revuelto 42 - 42
Expiró sin remedio 43 43 53
Muertos recogidos 44 44 63
Clamores en vano 45 45 54
Y esto también 45 - 45
Gracias a la almorta 46 46 51
Cruel lástima 47 47 48
Por qué 49 49 32
No llegaran a tiempo 50 50 52
Grande hazaña, con muertos 51 51 39
Esto es malo 53 53 46
Caridad de una mujer 56 36 49
Bárbaros 57 57 38
Las camas de la muerte 62 - 62
Madre infeliz 65 55 50
Que alboroto es éste 65 - 65
Extraña devoción 66* - 66

* A partir daqui, numeração única e definitiva


195

Quadro 02: Classificação temática da primeira numeração de Los Desastres, segundo C. Derozier.

1E 30 B
2E 31 B
3B 32 A-E
4A 32 A-E
5B 33 A-E
7A 34 F
8A 34 B
10 C 35 B
11 A 36 B
12 A 36 F
13 A 37 B
14 A 38 B
15 C 39 E
16 A 40 C
17 A 41 F
18 D 42 A-E
19 D 43 B
19 D 44 B
20 D 45 B
21 A 46 B
22 E 47 B
23 E 48 F
24 A 49 E
25 A 50 B
26 A 51 A-E
27 E 53 A
28 F 55 B
29 D 57 E

A: Mortos e feridos; B: Fome; C: Fuga e êxodo; D: Violações; E: Execuções e condenações; F:


Guerrilha.

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