A Propósito de Ciência e Dialética

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A PROPSITO DE CINCIA E DIALTICA

Fbio Wanderley Reis No nmero 3 da Revista Civilizao Brasileira, J. Arhur Giannotti publica um artigo dedicado a discutir o ltimo livro de Celso Furtado, Dialtica do Desenvolvimento.1 Deixando de lado o problema do acerto das opinies a mantidas com respeito ao trabalho de Furtado, o artigo de Giannotti nos parece propiciar um oportuno pretexto para a recolocao em pauta de algumas questes relativas s cincias sociais no Brasil, onde a difuso de certas concepes quanto s caractersticas que deveria manifestar uma cincia autntica do social acarreta, em nossa opinio, obstculos a serem removidos para que se possa dar sua consolidao definitiva. Alis, o prprio privilgio que merecem, entre os cientistas sociais brasileiros, as questes relativas a mtodos e enfoques, em que as cincias sociais mesmas so tomadas como tema em detrimento do trabalho orientado substantivamente para o seu objeto a sociedade , um aspecto do subdesenvolvimento e da imaturidade que entre ns caracteriza o estudo dos fenmenos sociais. O que no quer dizer, naturalmente, que as discusses relacionadas com tais questes no possam cumprir um papel positivo, e o fato de que o autor destas notas se disponha a redigi-las evidencia sua convico neste sentido. As opinies que adiante exporemos dirigem-se sobretudo a uma corrente do trabalho sociolgico em nosso pas que ganhou nitidez principalmente atravs da atividade de destacadas figuras ligadas Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, incluindo nomes como os de Fernando Henrique Cardoso, Octvio Ianni, Francisco Weffort e o do prprio Giannotti, que, sendo filsofo, no menos representativo do ambiente intelectual que ali se criou. Sem desconhecer por um momento o dbito crescente das cincias sociais brasileiras para com o trabalho desses
Publicado originalmente na Revista Brasileira de Cincias Sociais (da Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal de Minas Gerais), vol. IV, no. 1, junho de 1966. As demais citaes da Revista Brasileira de Cincias Sociais a serem encontradas abaixo referem-se tambm revista que originalmente levava esse ttulo, e no atual publicao homnima da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais (ANPOCS). 1 J. Arthur Giannotti, A Propsito de uma Incurso na Dialtica, Revista Civilizao Brasileira, no. 3, julho de 1965, pp. 101-109.

estudiosos, gostaramos de deixar claro que no nos animaramos a publicar estas notas se nos parecesse que poderiam contribuir para incentivar o estabelecimento de grupos e faces hostis entre os poucos que se dedicam, no Brasil, ao trabalho sociolgico. Se elas aqui vo, porque estamos convencidos de que h condies favorveis para um dilogo em que possam cumprir o papel positivo a que se destinam em nossa inteno, e s ele. *** Giannotti principia o artigo mencionado por uma rpida discusso das relaes entre o trabalho do filsofo e o trabalho do cientista, onde observa que, cabendo ao cientista fazer cincia, suas preocupaes filosficas no devem ficar inteiramente mostra na obra terminada, pois lhe importa antes de tudo solucionar os problemas concretos que ele mesmo se prope. No h dvida de que o testemunho sobre seu trabalho extremamente valioso para o filsofo, mas este no saber ensinar quele nem mesmo qual seja a essncia do pensamento cientfico, posto que sua busca parte da observao desse pensamento em ato. Em consequncia, adverte Giannotti, no cabe nem a um nem a outro ditar normas e solues fora de seus respectivos domnios (p. 101). Apesar de principiar por essa advertncia, o artigo de Giannotti nos parece representar um exemplo de inobservncia da mxima nela contida. Com efeito, a discusso que faz Giannotti do trabalho de Furtado no apenas redunda em mximas ditadas pelo filsofo ao cientista, mas, mais que isso, se apreciadas em seu contedo, v-se que as normas que prope Giannotti resultam em recomendar ao cientista abdicar dos princpios que orientam seu trabalho como trabalho cientfico. O ponto central da crtica que formula Giannotti reside em demonstrar como Celso Furtado, pretendendo socorrer-se de uma perspectiva dialtica na anlise da evoluo brasileira recente, na verdade adota uma perspectiva que seria prpria da tradio organicista e funcionalista em cincias sociais. Como dissemos, no pretendemos discutir o acerto dessa crtica, que pode talvez ser considerada vlida do ponto de vista dos objetivos de Furtado no trabalho
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mencionado. Interessam-nos, em vez disso, as prprias teses de Giannotti a partir do que ele entende corresponder autntica anlise dialtica quanto forma que deveria assumir o trabalho dos cientistas sociais. O problema central reside, portanto, na prpria concepo de cincia envolvida nas recomendaes de Giannotti. Assim, ao opor o esquema de explicao funcionalista ao ponto de vista dialtico, eis como Giannotti sintetiza suas observaes: De um lado, temos a tentativa de constituir as configuraes concretas a partir de categorias abstratas propostas pelo sentido das aes particulares, uma tentativa portanto de acompanhar a autoconstituio do concreto a partir de suas condies abstratas; de outro, o reconhecimento da existncia de certos todos orgnicos cujas relaes mais gerais cabe cincia reproduzir e dizer (pp. 106/7). O primeiro caso corresponderia dialtica marxista, o segundo, ao funcionalismo. No contexto do trecho transcrito, torna-se ambgua a ltima frase que o compe: que cabe cincia reproduzir e dizer. Sustenta Giannotti que haveria um campo propriamente cientfico no qual se integraria a perspectiva funcionalista e do qual estaria excludo o ponto de vista dialtico? Pretende ele indicar que essa seria a suposio dos funcionalistas? Ou busca simplesmente descrever o estilo funcionalista, sem pretender op-lo dialtica quanto ao carter cientfico? Apesar da ambiguidade dessa passagem, a superioridade manifestamente atribuda por Giannotti perspectiva dialtica no correr do artigo permite excluir, com segurana, a primeira intepretao: tratando-se da discusso de formas de interpretao da realidade social que se pretendem cientficas, no teria sentido que favorecesse Giannotti um enfoque que fosse tido por ele expressamente como estranho rea da cincia. Isso posto, a caracterizao feita por Giannotti do ponto de vista dialtico autoriza a seguinte indagao: como determinar o sentido das aes particulares que prope as categorias abstratas a serem utilizadas na constituio das configuraes concretas? Algum critrio necessrio, certamente, e Giannotti indica que esse sentido se pode determinar pelo recurso ao tipo ideal do modo de produo correspondente a tais
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configuraes concretas: O modo de produo constitui, por assim dizer, um tipo ideal em relao s sociedades particulares (...). Se cada modo de produo possui ento seus prprios fins e mecanismos especficos de integrao de suas partes, os momentos dispersos dos largos perodos da histria somente adquiriro sentido integral quando reportados a um modo determinado, ltima instncia da compreenso dialtica (p. 105). Aparentemente estamos diante de uma petio de princpio: as categorias abstratas so propostas pelo sentido das aes particulares, por um lado; por outro lado, o sentido dos momentos dispersos dado pela categoria abstrata correspondente ao tipo ideal do modo de produo. Se recusamos a circularidade, porm, a indagao acima formulada se desloca: como constituir tal tipo ideal, como encontrar o tipo ideal adequado? Uma possibilidade, sugerida de imediato pelo simples uso da expresso tipo ideal, dada pelas proposies de Max Weber com respeito construo de tipos ideais: partindo da observao das formas assumidas pela realidade emprica (as configuraes concretas de Giannotti?), apreender seus traos mais constantes e gerais e extrem-los, de modo que se possa contar com uma espcie de padro, munidos do qual poderemos voltar ao plano das configuraes concretas e determinar a medida em que se ajustam a ele. Isso corresponderia, no entanto, a uma empreitada que inclui, ao menos como primeiro passo, uma postura do tipo da que Giannotti v como caracterstica do funcionalismo e que consiste em considerar certos todos como dados, tratando-se de captar as relaes que os caracterizam. primeira vista no haveria a qualquer problema, pois Giannotti sugere a possibilidade de que os esquemas explicativos dialtico e funcionalista se completem e se entrelacem (p. 105), apesar de dar nfase ao carter mais cabal da explicao dialtica. Contudo, Giannotti afirma expressamente que o marxismo no pretende estudar cada uma das totalidades concretas para depois formular as grandes leis da histria (idem). E, apesar de que essa afirmao de certa forma se contradiga ao enunciar o autor que o que o marxismo procura determinar, na base das formaes existentes, as formas comuns de produo (idem) pois a determinao das formas comuns supe o
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conhecimento de cada uma de tais formaes , a validez do recurso ao tipo ideal do modo de produo, que preconiza Giannotti, por ele condicionada considerao desse tipo como um momento objetivo da vida social que estabelece as pressuposies gerais da existncia dos grupos particulares (idem; grifo de FWR), o que aparta o tipo ideal proposto pelo autor da concepo weberiana de tipos ideais. Mas, cuidado. Trata-se de um momento objetivo peculiar, j que por definio no se objetiva nunca: Tomemos, por exemplo, o sistema capitalista: tudo girando em volta do capital e sua forma elementar, a mercadoria, a anlise terica deve iniciar-se pelo estudo dessa mercadoria e, mantendo-se exclusivamente ao nvel das noes, reconstituir progressivamente o sistema global. Marx procede como se examinasse o funcionamento de uma mquina a partir de seus movimentos elementares. Mas a mquina capitalista no existe em sua pureza ideal, quer porque as diversas sociedades alcanaram graus diferentes de desenvolvimento, quer porque a cabal realizao do sistema implicaria na sua superao: neste alto nvel de existncia suas contradies internas atingiriam um ponto intolervel (idem). E conclui Giannotti: Dessa maneira, a explicao terica (categorial) deve ser completada pela anlise histrica dos fatores responsveis pelas configuraes sociais particulares (idem) o que, tendo em vista o anterior, significa que o que Giannotti chama de anlise histrica vai consistir em mostrar como cada configurao particular consiste numa espcie de erro ou desvio da realidade, a qual, pela interferncia de fatores diversos, se recusa a ajustar-se a um tipo ideal entendido no como padro mais ou menos artificial e destinado a servir de simples instrumento, mas como um momento objetivo jamais realizado, como um momento objetivo que deveria ser... Se com o funcionalismo, na interpretao de Giannotti, as totalidades concretas eram dadas, agora, com sua interpretao da dialtica, so elas negadas, e a realidade emprica vista somente atravs dos culos fornecidos pela concepo do que ela deveria ser. Temos, pois, a preconizao de uma empresa de constituio de tipos ideais que prescinde do estudo prvio das totalidades a que se refere e o convite objetivao e reificao deles. A realidade mesma, as totalidades
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ou configuraes concretas particulares tal como se apresentam aos instrumentos que possa elaborar o cientista, essas no passam de iluses, as iluses dos fenmenos vividos, como o revelar o pensamento abstrato ao confront-las com tipos ideais para cuja elaborao no foram levadas em conta. Assim, sustenta Giannotti, o insucesso epistemolgico de Celso Furtado reproduz uma situao muito caracterstica daqueles que, em cincias sociais, no se dispem a romper as amarras com as totalidades que se do de imediato como tais, para lanar-se nos domnios do pensamento abstrato. No final das contas, com todos os perigos que possa representar, ele nosso principal instrumento para desfazer e triturar as iluses dos fenmenos vividos (p. 109). Mas, cabe perguntar, e a cincia? No h notcia de disciplina cientfica que se tenha constitudo atravs do recurso ao pensamento abstrato sem amarras com as realidades dadas. Ao contrrio, nessas amarras reside precisamente, em certo sentido, o elemento caracterstico da cincia. E se se justificam as recomendaes de cautela ao tratar de problemas filosficos que faz Giannotti ao cientista na introduo de seu artigo, de nenhum modo se justificaria que filsofos se dedicassem a problemas de cincia com tal falta de ateno para o que caracteriza a cincia mesma. *** Haveria uma alternativa a essa forma de ver a questo, a qual se vincula a um ponto que acima destacamos: Giannotti estaria propondo que o conhecimento parcial e ilusrio que seria inerente cincia como tal deveria ser completado e superado por um conhecimento de tipo filosfico livre de certas peias a que estaria necessariamente sujeita a cincia. Mas Giannotti se refere s cincias sociais, e parece no haver dvida de que suas recomendaes se dirigem ao cientista social como tal. Por outro lado, tratase, com a dialtica, de uma perspectiva que se qualifica de cientfica, qualificao que no negada por Giannotti. O que ele busca precisamente aquilatar os mritos e demritos de duas concepes de cincia.

Contudo, o prprio Giannotti quem afirma, como transcrevemos acima, que a busca do filsofo com respeito essncia do pensamento cientfico parte da observao desse pensamento em ato. Ora, se assim, no facultado ao filsofo orientar-se simplesmente por uma ou outra concepo quanto quilo em que consiste o trabalho cientfico, mas ter que se ater, diferentemente, observao da prtica dos cientistas. O problema de decidir sobre aquilo que vai merecer o nome de cincia no um problema que possa ser solucionado aprioristicamente pelo filsofo, mas ser tambm ele, em certo sentido, um problema emprico. Posto em outros termos, o problema da definio de cincia no um problema de definio nominal, de se convencionar designar pelo termo cincia este ou aquele tipo de trabalho, mas ser um problema de definio real, de fornecer uma definio de cincia que se ajuste generalidade dos mtodos postos em prtica no que se refere ao acervo de conhecimentos em torno de cuja designao como cientficos exista consenso. Seria necessrio, assim, que a definio de cincia se aplicasse s cincias naturais bem como s sociais. A adoo consequente de tal premissa, no entanto, dificilmente permitiria a Giannotti privilegiar a perspectiva dialtica tal como por ele expressa, com o relegamento das configuraes concretas ou da realidade dada condio de iluses e com o privilgio concedido ao pensamento abstrato como forma por excelncia da cincia, pela razo muito simples de que tal postura est longe de corresponder prtica (ao pensamento em ato) da grande maioria das pessoas s quais se deve o acervo de conhecimentos cientficos de nossa poca. No campo das cincias naturais, tal afirmao evidente por si mesma. E no campo das cincias humanas e sociais h toda uma longa tradio que procura transpor para os problemas a deparados, com resultados que justificam ao menos presuno favorvel, a postura prpria do homem de cincia, que seria a mesma, no que tem de bsico, nos diferentes setores a se constituirem em objeto de estudo e portanto similar, fundamentalmente, adotada pelos cientistas da natureza. A grande exceo, embora no a nica, seria, no campo das cincias humanas, exatamente a dialtica marxista, a qual, contudo, justamente em consequncia da desateno para as realidades dadas em benefcio da adeso a princpios confusos como

os que promove Giannotti, tem sido levada esclerose e esterilidade como instrumento de aquisio de conhecimentos novos. *** Em torno disso est o ponto central de nossa preocupao. No se trata de guerra dialtica, no se trata sequer de defesa do funcionalismo como enfoque especial que . Trata-se de propugnar um compromisso mais srio com padres capazes de orientar o trabalho dos estudiosos dos fenmenos sociais num sentido em que tal trabalho possa ser fonte de aquisio de conhecimentos, e no reiterao indefinida de certas sacrossantas idias gerais. Em nossa opinio, essa orientao coincide com algumas das posies que tm sido sustentadas por Karl Popper, implicando o apego exigncia de comprobabilidade (ou de refutabilidade) dos enunciados ou proposies formuladas, o que significa que o plano simblico e abstrato do trabalho intelectual, que por certo indispensvel, deve estar referido ao plano emprico e desenvolver-se em correspondncia com ele, buscando-se sempre estabelecer com clareza as condies empricas cuja ocorrncia desconfirma ou refuta as proposies que dele provm. A intersubjetividade, entendida como a possibilidade de um policiamento rigoroso dos resultados obtidos por qualquer estudioso por parte de quem quer que se disponha a reconstituir-lhe os passos, um corolrio daquela exigncia, implicando uma atitude de cautela com respeito ao recurso incondicionado ao pensamento abstrato, por si mesmo, como forma de se atingir o enunciado de proposies que se pretendam cientficas. possvel que, assim formulados, tais princpios meream uma adeso expressa muito mais generalizada entre os que trabalham nas disciplinas sociais do que primeira vista se poderia supor. Mesmo entre os que favorecem, no pas, a perspectiva dialtica, so frequentes as declaraes orientadas no sentido de preservar a legitimidade de um momento empricoanaltico no processo de conhecimento, embora dando nfase necessidade de sua incorporao e superao atravs de um esforo de explicao totalizante que se valeria do mtodo dialtico. Nesse momento analtico seria vlido, ou mesmo necessrio, o recurso provisrio a orientaes tericas como a
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funcionalista que permitem considerar como dadas determinadas realidades e trat-las, ento, por meio de mtodos capazes de atender satisfatoriamente s exigncias acima formuladas. Mas a preocupao de resguardar a legitimidade de tais procedimentos no tende a ir muito alm de menes passageiras destinadas a mostrar que no se trata aqui de marxismo vulgar. Por outro lado, a aparente flexibilidade a envolvida mal disfara um parti pris que resulta em apresentar o trabalho emprico como consistindo, na verdade, numa tarefa subalterna: o momento verdadeiramente nobre do estudo da sociedade corresponde totalizao dialtica em que se supera o primeiro e qual cabe passar o mais depressa possvel. Isso acarreta que os dados empricos, quando existem, no sejam tratados seno como um estorvo, em relao aos quais o nico problema desembaraar-se logo deles, seja incorporando-os explicao totalizante e salientando que representam ilustraes e confirmaes das idias gerais que a orientam, seja trazendo consideraes ad hoc que permitam to explain away aqueles dados no caso de que no se coadunem com as idias gerais. Essa atitude se reflete, ainda, na resistncia assimilao e ao emprego criterioso de conhecimentos metodolgicos, no plano das tcnicas de processamento e anlise de dados, que possibilitem explorar convenientemente os resultados empricos de que eventualmente se disponha. A consequncia que autores de estatura intelectual e amplamente familiarizados com a literatura terica de seus respectivos campos apresentem um claro ponto de estrangulamento em sua atividade no desinteresse ou mesmo na insuficiente qualificao revelada quando se trata da utilizao sistemtica de material emprico. Esse parti pris e suas consequncias negativas se podem ilustrar com o estudo de Fernando Henrique Cardoso sobre o empresariado industrial no Brasil, publicado em 1964.2 O estudo resulta, em parte, de um trabalho de investigao que consistiu na aplicao de questionrios a industriais de So Paulo, Belo Horizonte, Blumenau, Recife e Salvador, tendo-se obtido um total de 288 entrevistas. Apesar disso, o texto final elaborado por Cardoso prescinde completamente da anlise estatstica do material contido nas
Fernando Henrique Cardoso, Empresrio Industrial e Desenvolvimento Econmico no Brasil, So Paulo, Difuso Europia do Livro, 1964.
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entrevistas, o qual no utilizado seno para a apresentao de umas poucas distribuies marginais com respeito a algumas caractersticas dos industriais ou de empresas ou para ilustrar um ou outro ponto das teses sustentadas pelo autor, sem que haja qualquer empenho de us-lo como meio de testar proposies especficas. Outra ilustrao se tem com um estudo recente de Francisco Weffort sobre o populismo em So Paulo, publicado tambm na Revista Civilizao Brasileira.3 O estudo pretende caracterizar o janismo e o ademarismo quanto a suas diferenas de ideologia e de posio social e tem sua principal fonte de dados em questionrio aplicado a uma amostra de eleitores tomada nos bairros paulistanos de maior penetrao populista. Interessante e sugestivo, o trabalho de Weffort deixa ver, contudo, como o autor se sente incmodo e desterrado no manuseio de tais dados. O tom geral de sua introduo um pouco o de quem se desculpa por utiliz-los, e em mais de uma ocasio Weffort julga necessrio mostrar como seu estudo se abre para uma explicao totalizante: assim, apesar de conceber o fenmeno em estudo fora de uma totalidade histrico-concreta, nossa anlise de sentido se abre para um conhecimento totalizante, pois supe a vigncia de uma totalidade histrica como seu horizonte (pp. 40-41); ou: nossa anlise, embora se atendo a um objeto muito circunscrito (a relao lder-massa), deve, pelo menos in abstractu, superar estes limites e se propor como explicao totalizante (p. 48). Por outro lado, e isto mais importante, esse pudor se faz acompanhar no obstante o trabalho em questo ainda dever ser destacado como algo positivo no quadro de indigncia metodolgica que caracteriza a sociologia brasileira por formas de manipulao dos dados que deixam muito a desejar: nenhum esforo de aprofundamento da anlise atravs da considerao simultnea de mais de duas variveis, embora isso fosse possvel com os dados disponveis (o autor usa no mximo a justaposio, na mesma tabela, de quadros com duas variveis, o que pode dar a impresso de anlise complexa); quadros redundantes, confusos e s vezes mesmo absurdos (ver especialmente tabelas 5 e 8); desconhecimento e utilizao inadequada de coisas elementares como as regras para o clculo de porcentagens na
Francisco C. Weffort, Razes Sociais do Populismo em So Paulo, Revista Civilizao Brasileira, no. 2, maio de 1965. pp. 39-60.
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determinao de relaes entre variveis (ver tabela 5, onde se determinam diferenas porcentuais com base em porcentagens tomadas sobre o total dos casos, o que no permite comparao e no tem qualquer sentido); apresentao de valores porcentuais que no se sabe de onde surgem, no guardando relao com as distribuies em nmeros absolutos (ver p. 54, propores de ademaristas e janistas com atividades por conta prpria)... *** Como corolrio do parti pris anti-emprico, outro aspecto caracterstico da postura prpria da corrente que examinamos corresponde ao fato de que ela tem um diabo: o que se faz de menos heterodoxo na sociologia dos Estados Unidos, particularmente os esforos de mensurao e quantificao dos fenmenos sociais que ali se realizam. Esse aspecto pode ser ilustrado com a discusso que faz Octvio Ianni do livro A Imaginao Sociolgica, de C. Wright Mills, em artigo de alguns anos atrs.4 Aps resumir em tom laudatrio a crtica que Mills empreende de certos vcios da prtica sociolgica norteamericana, Ianni se prope mostrar alguns senes do trabalho de Mills. Poderse-ia esperar que lhe ocorresse aqui apontar eventuais exageros nas generalizaes feitas por Mills e buscar relativiz-las, com o destaque de possveis contribuies trazidas pelos socilogos estadunidenses. Mas, no. Tendo mostrado o dbito da crtica de Mills para com os clssicos para com os ensinamentos e o universo intelectual criado pelos autores clssicos e oposto por Mills s prticas correntes na sociologia americana , sustenta Ianni que uma das deficincias do trabalho de Mills reside em no ter evidenciado as ligaes, muitas vezes diretas, imediatas, entre certas contribuies dos clssicos e os desenvolvimentos insatisfatrios ou negativos da produo sociolgica contempornea... nos Estados Unidos (pp. 202/3). A incorporao de certos componentes da teoria da ao social de Max Weber ao pensamento de Talcott Parsons e a redescoberta de mile Durkheim pelos socilogos americanos so, no entender de Ianni, ilustraes do fato de que se, por um lado, a anlise de Mills se fundamenta nas contribuies positivas dos
Octvio Ianni, A Crise do Pensamento Sociolgico, Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. I, no. 1, novembro de 1961, pp. 189-203.
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clssicos, por outro lado serve para revelar os desenvolvimentos menos notveis dos sistemas daqueles mesmos pensadores (p. 203), que so os que ocorrem nos Estados Unidos, a partir de tendncias j implcitas nas obras dos clssicos. A crtica a Mills se refere ao fato de que este ltimo aspecto silenciado em sua obra. Os clssicos so vlidos, assim, na medida em que deles se aparta a sociologia americana, o diabo. Mas so ruins, por definio, na medida em que aquela os recupera, e a quantofrenia, por exemplo, que se aponta em certas correntes da sociologia americana e que Ianni menciona, j estaria implcita, presume-se, no estudo de Durkheim sobre o sucdio, cuja exegese em um dos melhores trabalhos dos ltimos anos sobre metodologia sociolgica (Herbert Hyman, Survey Design and Analysis) citada por Ianni em conexo com seu ponto de vista. Compreende-se, naturalmente, que a inteno de Ianni relativizar a viso dos clssicos que a obra de Mills sugeriria e indicar que alguns aspectos de seu trabalho so superiores a outros, especialmente que o legado de alguns dos autores clssicos (o de Marx em particular) superior ao de outros. Mas, por um lado, por que no adotar a mesma preocupao relativista com respeito sociologia americana, onde se manifestam tantas tendncias diversas? Ianni afirma, ao contrrio, referindo-se ao trabalho de Mills, que, no que diz respeito situao da sociologia nos Estados Unidos, o diagnstico completo (p. 200). Por outro lado, pretender que a quantofrenia j estaria implcita numa obra como a de Durkheim pelo fato de que este utiliza dados quantitativos o mesmo que pretender que a esquizofrenia, por exemplo, j estaria implcita na personalidade esquizotmica, confundir a exacerbao e o distrbio de um trao com o prprio trao. -se levado, assim, a jogar fora a criana com a gua do banho, a rechaar tudo o que h de positivo no cuidado com a quantificao pelo fato de que em alguns casos pode ter efetivamente conduzido a excessos e a um jogo quantofrnico. *** Tendo em conta o favor de que goza, entre boa parcela dos especialistas brasileiros em cincias sociais, o ponto de vista dialtico, um dos problemas importantes quanto ao desenvolvimento delas em nosso pas consiste em
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afastar as resistncias que procuramos ilustrar e que, sendo conscientes ou no, se opem a que o momento emprico, cuja legitimidade tende a ser reconhecida pelo menos no nvel expresso, receba o devido cuidado. Acreditamos que um passo decisivo nesse rumo ser dado se se compreender claramente que a caracterstica fundamental que ter de manifestar qualquer trabalho que se pretenda cientfico refere-se a certa disciplina ou ascese no que concerne obteno de enunciados ou proposies de natureza substantiva. Independentemente da convico que se possa ter da necessidade de ir, de alguma forma, alm do momento emprico-analtico, e qualquer que seja a orientao geral adotada quanto s reas ou aspectos da realidade cujo papel em ltima anlise determinante ou explicativo se deveria ressaltar, o ponto crucial consiste em reconhecer a autonomia necessria do mtodo cientfico, entendido, adjetivamente, como tendo a ver com a lgica da prova, ou com o conjunto de prticas destinadas a permitir a observncia de requisitos bsicos como a comprobabilidade, a refutabilidade e a intersubjetividade. Entendida dessa forma, a expresso mtodo se distingue, como bem claro, da acepo em que utilizada quando se fala, por exemplo, de mtodo funcionalista ou mtodo dialtico, na medida em que esses rtulos envolvem suposies de natureza substantiva ou ontolgica sobre a natureza ltima da prpria realidade social. Como tal, a cincia da sociedade no estaria comprometida, assim, com qualquer dessas orientaes particulares, embora se possa discutir quanto superioridade de uma delas sobre as demais do ponto de vista da fecundidade heurstica ou quanto medida em que haveria compatibilidade ou incompatibilidade entre os diversos postulados substantivos (os supostos dialticos e funcionalistas estaro realmente em choque?). Parte-se, assim, de que a cincia se define basicamente pelo seu mtodo, o qual autnomo com respeito s orientaes gerais que possam pretender guiar sua utilizao, estando assentada em princpios aos quais se atribui validez to somente instrumental e que iro permitir a formulao de proposies substantivas especficas vistas sempre como provisrias e passveis de refutao.5 Naturalmente, poderiam surgir aqui objees do tipo
Um aspecto especfico do problema geral que merece destaque o do papel a ser cumprido pela teoria. Por certo, no se trata aqui de advogar um empirismo cego nem de negar a importncia
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das que, em outro artigo,6 o prprio Giannotti apresenta a propsito de teses sustentadas por Gilles Granger no livro Pense formelle et sciences de lhomme: a saber, que qualquer perspectiva, no campo das cincias do homem, estaria animada por tomadas de posio de carter filosfico, podendo-se pretender que isso se daria mesmo no caso do favorecimento de uma orientao metodolgica cuja caracterstica bsica precisamente o empenho em controlar aquilo que, no corpo de proposies de uma disciplina cientfica qualquer, se deva a tomadas de posio alheias cincia mesma. Contudo, a menos que se renuncie de vez ao objetivo de constituio de algo que possa merecer o nome de cincia do homem, a nica alternativa vlida a adeso quela orientao e o esforo incessante de progressivo refinamento dos instrumentos destinados a permitir o necessrio controle, alternativa que se impe tanto mais quanto mais inevitvel seja o condicionamento filosfico (para no falar de outros mais problemticos) das concepes que orientem as cincias humanas. Diante disso, como se podem comportar os que adotam a perspectiva dialtica? Podem, em nome de uma concepo de cincia que insista na necessidade de superao das iluses da realidade passvel de apreenso no momento emprico-analtico, excluir o trabalho realizado pela sociologia emprica como carecendo das diretivas que julga fundamentais e dispensar-se de se equiparem adequadamente para aquele trabalho. E o que sobra so as interminveis reiteraes dos princpios e idias gerais do marxismo diante de cada problema novo que se defronta. Jogando-se fora com a sociologia emprica e seu mtodo os fatos que ela eventualmente apresente, bem como um acervo de instrumentos teis ao estabelecimento de novos fatos,7 o
decisiva do trabalho terico, mas sustentamos apenas que a postura cientfica impe que haja correspondncia e um permanente movimento de ir e vir entre o trabalho de elaborao terica e o de pesquisa emprica. Distinguimos, contudo, entre teoria e orientaes gerais em sociologia e cincias sociais, no sentido desta ltima expresso proposto por Robert Merton e em que ela se refere a postulados que informam perspectivas amplas de abordagem dos fenmenos sociais: uma idia central subjacente presente discusso a de que tais postulados no podem se opor aos princpios bsicos relativos ao mtodo cientfico. 6 J. Arthur Giannotti, Pensamento Formal e Cincias do Homem, Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. I, no. 1, novembro de 1961, pp. 204-224. 7 Para uma discusso sistemtica de alguns desses instrumentos, ver, neste mesmo nmero da Revista Brasileira de Cincias Sociais, o artigo de Antnio Octvio Cintra, Sociologia e Cincia: Para uma Reviso da Sociologia no Brasil.

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resultado dar razo crtica de Sartre: J o marxismo tem fundamentos tericos, ele abarca toda a atividade humana, mas no sabe mais nada: seus conceitos so diktats; seu fim no mais adquirir conhecimentos, mas sim constituir-se a priori em Saber absoluto.8 Mas h uma alternativa. O socilogo que adota a perspectiva dialtica pode reconhecer de maneira consequente, e no meramente verbal, a legitimidade do momento em que se aplica a sociologia cientfica, no sentido emprico, e a autonomia do mtodo que lhe corresponde. E, do ponto de vista daquele socilogo, o problema consistir ento em dar respostas adequadas a dois tipos de questes: por um lado, como valer-se heuristicamente, para guiar-se no trabalho emprico, das representaes fundamentais da realidade social que sua orientao geral lhe fornece; por outro lado, como integrar os resultados desse trabalho num processo de conhecimento em que, mesmo realizadas as redues que sua perspectiva recomende e a anlise autorize, se reconhea o papel mediador eventualmente cumprido por certos fenmenos que a metodologia sociolgica emprica permite estabelecer. Com as reservas necessrias quanto a que essa integrao, se adquirir formas mais ambiciosas em termos dialticos ou marxistas, dificilmente poder ser pedida sociologia como tal, na medida em que o reconhecimento da legitimidade do momento que lhe corresponde, e a seu mtodo, se identifica com o reconhecimento de seu carter emprico. Vale lembrar, alis, que, segundo as posies defendidas por Sartre no volume mencionado, esta a prpria condio da integrao da sociologia pelo pensamento dialtico.

Jean-Paul Sartre, Question de Mthode, em Jean-Paul Sartre, Critique de la Raison Dialectique, Paris, Gallimard, 1960, p. 28.
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