Uma História Do Romance de 30 - Luis Bueno1
Uma História Do Romance de 30 - Luis Bueno1
Uma História Do Romance de 30 - Luis Bueno1
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UMA HISTÓRIA
DO ROMANCE DE 30
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ESP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
O1?ORA
EDITORA DA UNICAMP
Presidente
CONSELHO EDITORIAL
Paulo Franchetti
Alcir Pécora
Arley Ramos Moreno
José A. R. Gontijo
José Roberto Zan
Luis Fernando Ceribelli Madi
Marcelo Knobel
Sedi Hirano ^ Wilson Cano
Luís Bueno
UMA HISTÓRIA
DO ROMANCE DE 30
I
jivilflii O 2006 hy Luis Hucno
edusP I E D I T O R Ã~|
llnivenldatle r.latlual de
Londrina Sistema de
jivilflii O 2006 hy Luis Hucno Biblioteca*
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%
Para Inès, minha mãe, em memória
UMA HISTORIA 1)0 ROMANCE DE 30
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 11
TRÊS TEMPOS DE 30
I. ANTES DE 30 ............................................................................................................................ 83
1. Bem antes ......................................................................................................................... 83
2. precursor oficial .......................................................................................................... 83
3. Um outro precursor ............................................................................................................ 07
II. A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) ............................................... 103
1.0 tempo da dúvida honesta........................................................................................... 103
2. Saindo da dúvida ........................................................................................................... 112
3. Novidade e velharia....................................................................................................... 124
III. EM PLENA POLARIZAÇÃO: o AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-1936).............................. 159
1. A explosão do romance proletário .............................................................................. 159
, A instituição da divisão ................................................................................................... 199
, A figuração do outro: o proletário .................................................................................. 243
. A figuração do outro: a mulher ...................................................................................... 283
. A figuração do mesmo ........................................................................................................ 333
i, Outras figurações: do outro e do mesmo ...................................................................... 373
JATRO AUTORES
CORNÊLIO PENNA ................................................................................................................... 525
1. A terra ............................................................................................................................. 525
2. Isolamento e dominação ............................................................................................... 531
3. O outro, o sexo ............................................................................................................... 541
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UMA HISTORIA 1)0 ROMANCE DE 30
INTRODUÇÃO
a redação desta História foi subordinada a um critério dc alta seletividade. O leitor só en-
contrará aqui os principais autores brasileiros - o que, numa literatura ainda tão jovem
UMA IMMÓHIA 1)0 KOMANCI! I)E )0
MI «i iiiisMi, nos reduz, no período considerado, a algumas dezenas de nomes I iitluii >i o n
mencione e situe vários outros, analisa apenas estes poucos escritores, eMolliidns em
inonin com o consenso da melhor crítica e, em particular, dos estudos modernos Parti do
princípio de que a análise exaustiva do elenco integral de obras e mitotes si lei ros passou a
constituir, nesta fase dos estudos literários, uma tarefa coletiva, a set regue a equipes de
especialistas em cada gênero, estilo ou autor. Este livro náo visa a istituir esse trabalho mais
amplo e mais completo; visa precisamente a traçar aquilo • as histórias de autoria coletiva
são, por definição, menos capazes de proporcionar- t: uma perspectiva unificada (embora
não uniforme) do processo evolutivo das letras sileiras - perspectiva essa constantemente
alicerçada nas múltiplas pesquisas eruditas ire os vários estilos de época e de autor1.
Sem ilúviila, da fusão entre as pesquisas das condições em que foi elaborada, its l< ml i
imis i stéticas c um elemento subjetivo esquecido, e contudo indispensável, o gosto, >c loi ma
o verdadeiro juízo sobre a obra de arte. Mas talvez nem sempre esses três fatores I, v im t< i o
mesmo peso; talvez, quando se estuda uma literatura ainda incipiente, como • aqui o caso, se
possa, e se deva, sem cair no historicismo, atribuir maior importância às ircunstâncias do
tempo e do meio2.
i rilcrios que se querem negar, é natural que a imagem que se fará é de uma
literatura naturalista com ilhas incomunicáveis e louváveis - o que, no final,
apenas confirma a vocação empenhada de nossas letras, já que ilhas inco-
municáveis não chegam a constituir nem tradição nem sistema. Esse proce-
dimento ou visão leva a julgamentos como este, de Silviano Santiago:
#
7. Silviano Santiago, “A Aula Inaugural de Clarice”, Caderno Mais!, Folha de São Paulo, São
Paulo, 7 dez. 1997, pp. 5-12.
De fato, se olharmos para a maneira como a história literária tem carac-
INTRODUÇÃO • II
Tenho escutado várias objeções ao livro, inclusive a de que não é um romance. Con
cordo em que não seja um romance no sentido exato da palavra, mas que importância tem
isto? Por mim, gosto do ar mal arranjado, até mesmo displicente em que está armado Parece-
me uma das qualidades do livro, este ar espontâneo e vivo, esta falta de jeito c dos segredos do
“métier”, que dá a Perto do Coração Selvagem uma impressão de coisa estranha e agreste7.
O autor sabe tirar um partido extraordinário desses artifícios e embora seu “processo”
seja, às vezes, bem visível, a verdade é que não chega a perturbar a pura emoção que a obra
quer infundir. Ele não pretendeu copiar a realidade, que só toca sua imaginação pelas
situações extremas e excepcionais. E por isso é tão absurdo querer julgar sua obra, admirável
em tantos aspectos, segundo critérios ajustados às formas tradicionais do romance, do
romance realista, como condenar essa imaginação que não é matinal nem risonha8 9.
Essas considerações de Sérgio Buarque sobre Lúcio Cardoso não vão muito
longe das observações do próprio Lúcio sobre Clarice Lispector: displicência é
um dos atributos contra os quais o autor da Crónica da Casa Assassinada tem
que se defender e, portanto, aquele no qual vai apontar o que mais o agradou em
Perto do Coração Selvagem. Nem é preciso acrescentar que se trata de
“displicência” pensada a partir de um modelo específico de romance, que pri-
vilegia a ação e se distingue da lírica como a água do vinho. Antonio Candido,
numa síntese feliz, afirmou que, em Clarice Lispector, “não se trata mais de ver
o texto como algo que se esgota ao conduzir a este ou àquele aspecto do mundo
e do ser; mas de lhe pedir que crie para nós o mundo, ou um mundo que existe e
atua na medida em que é discurso literário”11. Esse tremendo impacto na prosa
de ficção daquilo que uma visão tradicional restringe à lírica também é visível
no esforço criativo de Lúcio Cardoso - sem mencionar, é claro, a prosa de
Cornélio Penna, cuja força vem em grande medida desse procedimento. O
aparato verbal de Lúcio Cardoso, que se apóia, para construir sua intensidade
febril, nos adjetivos, nos advérbios e nas repetições constantes de certas
8 Sérgio Buarque de Holanda, “À Margem da V*la”, op. cif., vol. 1, p. 326. Publicado
originalmente no Diário de Notícias em 02 mar. 1941.
9 Antonio Cândido, “A Nova Narrativa”, A Educação pela Noite e Outros Ensaios, p. 206.
INTRODUÇÃO • 21
palavras-chave, pode ser considerado por quase todo mundo mais grosseiro do
que o de Clarice Lispector, mesmo porque remete (embora também as
extrapole) a experiências poéticas muito pouco significativas aos olhos dos
leitores de hoje, como a de Augusto Frederico Schmidt. Mas isso não diminui a
força dos romances que produziu a partir de Salgueiro e, nota-damente, des sa
experiência magnificamente falhada que é A Luz tio Subsolo, em que um
determinado procedimento se estabelece de vez em nosso sistema literário,
contribuindo para dar-lhe validade - sem mencionar que produziu textos du
radouros como Mãos Vazias, Inácio e, obviamente, a Crónica da ( 'asa Assassi
nada. Foi isso que percebeu o fino juízo crítico de Sérgio Buarquc de I Iolanda
Ao contrário de Elói Pontes, que, irritado, preferiu listar os adjetivos, os ,alvei
bios e as manias vocabulares visíveis em O Desconhecido, o autor de Ral.vs do
Brasil desvendou-lhe os objetivóse pôde com muito mais acerto lal.u do eleito
dessa língua, ao invés de simplesmente estigmatizá-la10 11.
Independentemente das diferenças dos resultados a que chegai am ( lare <
Lispector e Lúcio Cardoso, o que interessa Irisar aqui é que a i nlu a podi
considerar a aula de Clarice como a melhor até o momento de seu suigiinenlo.
mas carece de legitimidade a afirmação de que Clarice inaugurou entie nos
uma ficção despreocupada de dar uma resposta imediata à realidade .............. 11
que incorporasse, em sua escrita, aspectos que uma crítica mais tnd ................ al
perceberia como adequada somente à poesia.
Quem tiver boa memória de Tal Brasil, Qual Romance?, potic i ia ol >|t i ai i
esta altura, que, ao contrário de Silviano Santiago, Flora Süssekind nao la/
questão de apontar um inaugurador. O problema para ela é que os dcs\ m . d.
uma ficção naturalista não passariam de casos isolados e a granile pergunta a si
fazer seria a seguinte:
Por que Machado de Assis, o romance dos anos Vinte, sobretudo com < lovvald d.
Andrade e sua ficção fragmentária, ou Guimarães Rosa, representam simples MU los ludi
vidualizados em meio à continuidade de uma estética naturalista? Por que min lui inani
sistema? E apenas um naturalismo se aclimata navirada do século, se repele . um alguma.
diferenças no romance de 30, e de novo como romance-reportagem? One logli ,i go sidi
à formação e às transformações do naturalismo no Brasil? Por que apenas un ............... .... • do
gia estética naturalista constitui sistema na literatura brasileira?"
Se tudo o que tivermos em mãos for apenas um autor com vis.io di 111< i a
tura próxima à de Clarice Lispector, seria fácil afirmar tratai sc de mar. um
iso ¡solacio que não diz nada sobre a constituição de um sistema alternativo i
naturalista em nossa tradição literária. Bem pesadas as coisas, no entanto, •remos
que Lúcio Cardoso não é um autor isolado nos anos 30 e se integra frleltamente a
um sistema. Insistindo na já consagrada divisão do romance e 30 em “social” e
“intimista”, Lúcio Cardoso e, depois, Clarice Lispector, inte- ram-sc a um
sistema, o “intimista”, que é bem mais numeroso e significativo o que tem sido
registrado. Tal sistema, a exemplo do que acontece com A Utgaceira em relação
ao romance social, também tem seu precursor, o esqueci- o Sob o Olhar
Malicioso dos Trópicos, de Barreto Filho; tem seus iniciadores ios primeiros anos
da década, dentre os quais se destaca José Geraldo Vieira, om seu A Mulher que
Fugiu de Sodoma, e prossegue revelando novos nomes om o passar dos anos:
Lúcia Miguel Pereira, Mário Peixoto, Cyro dos Anjos, Dctávio de Faria e
sobretudo Cornélio Penna, escritor central em sua geração. Recusando essa
divisão, podemos ir mais adiante e apontar, entre os mais bem iucedidos dos que
são considerados “sociais” ou mesmo “regionalistas”, autores ]ue escapam a esse
círculo fechado e se aproximam, em muitos momentos, desse sistema: Graciliano
Ramos, Dyonélio Machado, Érico Veríssimo ou Rachel de Queiroz. É engraçado,
por exemplo, como nos acostumamos a pensar na autora de O Quinze como uma
escritora regionalista levando em conta apenas seu romance de estréia - e nem
este é somente romance regionalista, diga-se. Embora sempre tocando em temas
que poderiam ser chamados de sociais, seus romances seguintes são mais
psicológicos do que qualquer outra coisa, a ponto de um crítico, que procurou
estudar o regionalismo como tendência geral das letras brasileiras, afirmar: “A
conclusão a que se pode facilmente chegar é de que qualquer rótulo
generalizante aplicado à ficção de Rachel de Queiroz, do tipo ‘romancista
regionalista’ ou mesmo ‘romancista social’, constitui um simplismo e uma
inexatidão”12.
A presença eventual de trechos que se distanciam do “acontecimento”, para
retomar o termo de Silviano Santiago, pode ser percebida até mesmo no mais
assumidamente social dos autores de 30, Jorge Amado. Em 1946, ao apontar uma
decadência pela qual passaria o romance brasileiro, Graciliano Ramos irá
remeter àquele que ele considera um grande momento em Jubiabá, uma
sentinela de defunto onde o que se narra - a tentativa de sedução de uma
adolescente - fica em segundo plano diante do clima fantasmagórico em que os
fatos se dão13. É um trecho que pode ser aproximado ao delírio de Luís da
*
Silva, de Angústia, ou ao clima dominante de textos do próprio Lúcio Cardoso.
Uma visão menos restrita do que seja o romance de 30, portanto, mostra que
a obra de Clarice Lispector pôde se legitimar porque cabia num sistema que,
embora não representasse propriamente o mainstream da nossa literatura de
ficção, era um sistema atuante e não marginalizado como se tende a ver hoje.
Mas é possível enfrentar a questão mesmo a partir de um elemento típico do
romance social brasileiro de 30. Como se sabe, esta vertente colaborou
grandemente para que se ampliassem as possibilidades tanto temáticas quanto da
constituição de um novo tipo de protagonista para o romance brasileiro. A
incorporação dos pobres pela ficção é um fenômeno bem visível nesse período.
De elemento folclórico, distante do narrador até pela linguagem14, como se vê na
moda regionalista do início do século, o pobre, chamado agora de proletário,
transforma-se em protagonista privilegiado nos romances de 30, cujos
narradores procuram atravessar o abismo que separa o intelectual das camadas
mais baixas da população, escrevendo uma língua mais próxima da fala. Junto
com os “proletários”, outros marginalizados entrariam pela porta da frente na
ficção brasileira: a criança, nos contos de Marques Rebelo; o adolescente, em
Octávio de Faria; o homossexual, em Mundos Mortos do próprio Octávio de
Faria e no Moleque Ricardo, de José Lins do Rego; o desequilibrado mental em
Lúcio Cardoso e Cornélio Penna; a mulher, nos romances de Lúcia Miguel
Pereira, Rachel de Queiroz, Cornélio Penna e Lúcio Cardoso.
Uma abertura desse tipo coloca para o intelectual, oriundo geralmente das
classes médias ou de algum tipo de elite decaída, o problema de lidar com um
outro. Esse problema foi vivido em profundidade pelos autores daquela década e
bem ou mal resolvido de várias maneiras diferentes. É preciso dizer, logo de
saída, neste sentido, que a experiência hoje relativamente desprezada de José
Lins do Rego é uma das vias que possibilitam o aparecimento de um cs critor
como Guimarães Rosa em nosso ambiente literário. Uma leitura atenta de
Menino de Engenho pode detectar que o modelo de narrador de (larlos de Melo,
um assumido alter-ego do autor, é, por um lado, o próprio avô mas, poi outro,
uma contadora de estórias analfabeta, a velha Totonha. E claro que essa
aproximação tem um lado muito problemático, soando como concessão <l< um
universo culto a um universo popular, numa identificação .ntilii ia! Ur resto
corroborada pela atitude de complacência e falsa valorização de < arloi
Mrln dliiiiic dos moleques que viviam no engenho de seu avô. Mas o im- ii
14 Mais uma vez, vale a pena ver a caracterização muito lintétloi c pre» Uii ilr Antonlo
Cândido a esse respeito no já mencionado artigo “A Nova Narrativa".
• UMA III H UiIA llll ItllMANU III1..1(1
o i|ti( ,i autora tinha inaugurado na literatura brasileira”15. Numa carta < un i ul.i
.i I,iicio Cardoso logo depois de sua chegada à Europa, Clarice faz o cguinte
comentário sobre aquilo que ela chama de sua vida social:
I >cu« meu, se a gente não se guarda como nos roubam. Todo mundo é inteligente, é
>onito, é educado, dá esmolas e lê livros; mas por que não vão para um inferno qualquer? n
mesma irei de bom grado se souber que o lugar da “humanidade sofredora” é no céu. Vleu
Deus, eu afinal não sou missionária. E detesto novidades, notícias e informações. Quero que
todos sejam felizes e me deixem em paz16.
análise dos autores-síntese que a encerra. Nessa questão é possível projetar, para
discuti-los, muitos dos elementos que fizeram do romance de 30 um passo
decisivo de nossa tradição literária, cujos efeitos se espalham até hoje por toda a
cultura brasileira. Do “regionalismo” de Francisco Dantas aos contos
“psicológicos” de Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll. No Cinema Novo,
de Glauber Rocha e Nélson Pereira dos Santos a Paulo Cesai Saraceni. Das
novelas da Globo a Central do Brasih Do romance político do período da
abertura, que disfarça o interesse obsessivo em revelar a realidade com a
“sofisticação” da narrativa “intimista”, à canção popular engajada, que assume o
caráter funcional da arte.
Dois Problemas Gerais
'
I
NORTE E SUL
MÜcim. Sua formulação é a de que “há duas formas do humanismo brasi- o"
expressas pela literatura de ficção em duas correntes, a regionalista, que o
homem aparece em conflito ou tragado pela terra, e a psicológica • le .m.11 i
se de costumes, em que o homem está diante de si mesmo ou de iros
homens19.
I inegável que essa formulação faz sentido e se assenta sobre outras formas
fratura da sociedade brasileira, expressas por binomios como norte-sul ou
iral-sertão. A ligação do intelectual com a realidade brasileira, sua maior ísão
aos valores do “sertão” ou, ao contrário, o apego ao seu gabinete de balho, à
atividade livresca que quase sempre o mantém ligado a uma tra- ão
intelectual própria de outros centros, tem sido um ponto crítico de cussão
desde a criação, segundo alguns, ou a implantação, segundo ou- s, do
romance no Brasil - sobretudo através da principal figura literária ¡se
momento, Alencar.
Na polêmica sobre A Confederação dos Tamoios, logo na primeira carta igida
a Gonçalves de Magalhães, esse problema é levantado por Alencar e sto no
centro de toda a discussão:
Digo-o por mim: se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e as suas ezas,
se quisesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer ■ um
momento as minhas idéias de homem civilizado.
Filho da natureza, embrenhar-me-ia por essas matas seculares, contemplaria as ravilhas
de Deus, veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do i; ouviria o
murmúrio das ondas e o eco profundo e solene das florestas.
E se tudo isso não me inspirasse uma poesia nova, se não desse ao meu pensamento :ros
vôos que não esses adejos de uma musa clássica ou romântica, quebraria a minha ia com
desespero, mas não a mancharia numa poesia menos digna de meu belo e зге país20.
•
O que Alencar parece figurar é a artificialidade do poema, sua abordagem ;
gabinete”, que procede a uma filtragem, por uma série de valores “exter- s”,
de uma realidade palpitante que precisaria ser conhecida de perto para e se
criasse uma literatura verdadeiramente nacional. Justamente por perce- r
essa fratura e tentar resolvê-la é que, segundo Roberto Schwarz, Alencar
:orporou à sua obra contradições que foram percebidas por Joaquim
Nabuco21, que, por não gostar de vê-las, o atacou mais ou menos pelas mesmas
coisas que ele atacara Gonçalves de Magalhães, embora os motivos de um e de
outro fossem diferentes: “A natureza americana ele estudou-a nos livros; as
flores na botânica [...]. Quem lê os romances do sr. J. de Alencar, vê que ele
nunca saiu do seu gabinete e nunca deixou os óculos”22.
O que interessa perceber aqui é que, na base da tradição do romance
brasileiro, a maior ou menor proximidade do intelectual em relação à realidade
brasileira, mais do que definir duas linhas independentes de desenvolvimento,
serve como parâmetro de avaliação das obras. A julgar pelo que diz Alencar
num primeiro momento, e Nabuco depois, é desejável, se não necessário, que a
obra incorpore, com a maior naturalidade possível, aspectos genuínos da
realidade brasileira - seja lá o que cada um deles entende por realidade
brasileira. A consequência necessária desse estado de coisas é que a “outra”
linha de desenvolvimento do romance brasileiro, a que não privilegia o contato
direto com essa realidade, fica sendo não uma alternativa, mas um elemento
marginal. Expressão clara disso está naquele trecho do discurso de Jorge
Amado que, para salvar Machado de Assis, acrescenta a ressalva: “sem, no
entanto, perder seu caráter brasileiro”23.
Não há como fugir, portanto, a discutir esse problema.
() v .iso brasileiro não é exatamente o mesmo, já que não podemos falar lie
havíamos construído uma civilização liberal no século XIX. Ao contrá- io, s.io os
movimentos liberais que despontam como o novo e promovem a f vi »luçao de
193025. No entanto, não é absurdo afirmar que o regime de Vargas, o decorrer
da década, ao intensificar seu caráter autoritário, se põe ao lado os regimes fortes
de direita na Europa26. De qualquer forma, seja pela situado política interna,
seja pelo fato de nossa intelectualidade se sentir ligada à luropa, entre nós
também se deu uma falência do liberalismo. A nova gera- ão, formada depois da
Primeira Guerra, sentia estar diante de duas opções penas: a extrema direita ou
a extrema esquerda.
No início da década, a percepção dessa divisão já é intuída, ainda que não e
formule radicalmente, como se as coisas não estivessem bem definidas. É o ]uc
se vê na “Explicação” com que Jorge Amado abria seu primeiro livro, O País lo
Carnaval:
Este livro é como o Brasil de hoje. Sem um princípio filosófico, sem se bater por um
tartido. Nem comunista, nem fascista. Nem materialista, nem espiritualista. Dirão talvez ]ue
assim fiz para agradar toda crítica, por mais diverso que fosse o seu modo de pensar, vias
afirmo que tal não se deu. Não me preocupa o que diga do meu livro a crítica. Este •omance
relata apenas a vida de homens que seguiram os mais diversos caminhos em ñisca do sentido
da existência. Não posso bater-me por uma causa. Eu ainda sou um que nrocura... 27 28
Não demorou muito para que ele achasse uma causa e, mais do que isso,
para que se tornasse inaceitável que um intelectual honesto não a tivesse acha-
do no Brasil. Três anos depois o mesmo Jorge Amado escreveria o seguinte, após
fazer uma rápida análise dos novos romancistas brasileiros: “Mas, afinal, esses
que se definem são honestos. O que não se admite são os que querem agradar a
todo mundo, a Deus e ao Diabo, se colocando na cômoda posição de
romancistas puros e sem cor política. Em 1934 isso não pega mais...”11
A necessidade de afirmar uma posição clara não se restringia, evidente-
mente, à literatura. Rumo, uma revista de estudantes do Rio de Janeiro, orien-
O velho regime político, nascido da revolução burguesa de 1789 e que condicionou por
mais de um século a evolução política dos povos ocidentais, nada mais tem a dar de si. Fruto
maduro e prestes a cair da árvore a mais forte vendaval. Encontra-se a humanidade ante fatal
bifurcação da história: fascismo, nazismo, integralismo ou que outro nome tenha a reação da
extrema direita, e comunismo, ou bolchevismo. O duelo de morte entre essas duas
concepções antagónicas, eis o formidável espetáculo dos tempos atuais. Não há meios
termos, soluções de acordo ou contemporização. [...] A mocidade ardente, de forte espírito
esportivo, não põe em dúvida o dilema trágico. Jovens escritores escolhem por toda parte,
resolutamente, posições de vanguarda30.
Mas foi talvez Murilo Mendes quem, mais que qualquer outro, conseguiu
sintetizar essa tendência de seu tempo:
A geração atual, isto é, a geração que está fazendo vinte anos, é uma geração sem bibelot.
É uma mocidade profundamente séria, sem precisar de ser exteriormente grave e farisaica. É
uma mocidade que assiste ao nascimento de uma nova idade, que enfrenta os mais
complexos e profundos problemas, uma mocidade que condena o ceticismo <•
ilmnnhccc a moleza d'avant-guerre. É uma mocidade que se orienta para o comunismo ou
29 Anúncio não assinado na quarta capa da revista Rumo, jul.-ago. 1934.0 comlt In eletiva
mente se realizou e, no dia 23 de agosto de 1934, a manchete de O lormil seria a seguinte
"Terminou cm pancadaria o comício realizado ontem à tarde na Praça da Harmonia" Nessa
noticia se mencionava o discurso de um líder da Juventude Comunista (provavelmente ( ailos
Lacerda, que não é mencionado na reportagem), além do fato de cinco pessoas lerem sido
lerldai c uma, morta.
30 José Maria Bello, Panorama do Brasil, pp. 17-18.
tíi • UMA HISTÓRIA DO ROMANO- DE 30
31 Murilo Mendes, “O Eterno nas Letras Brasileiras Modernas”, Lanterna Verde, nov. 1936
(4), pp. 47-48.
32 V. Eliana Dutra, O Ardil Totalitário - Imaginário Político no Brasil dos Anos 30. Nesse
estudo, a autora procura mostrar os mecanismos gerados por essa polarização política, concluindo
que, embora se colocando como visões antagónicas, esquerda e direita brasileiras tendiam a uma
sociedade una, sem fraturas, portanto totalitária.
33 V. João Luiz Lafetá, 1930: a Crítica e o Modentñmo, especialmente em seu primeiro
capitulo, e Antonio Candido, “A Revolução de 1930 e a Cultura”, A Educação pela Noite e Outros
Ensaios.
NORTE E SUL • J7
ui'. 10), Aurclinno de Figueiredo Pinto (autor de Memórias do Coronel Fal- In,
i|iie permaneceu inédito até os anos 70) e Cyro Martins.
11 H .nulo nessa questão, Antonio Candido faz uma síntese do que é central nela:
Fatos, costumes, tipos e panoramas, são as contribuições que, sem trair a verdade, m
romance pode oferecer ao mundo. De uns e de outros o autor tem a obrigação de dar onta
ao público, desde que declare na fachada estar traçando o aspecto de uma região, orém, é
necessário elucidar que só os costumes e os panoramas merecem honras de itografia, isto é,
de decalques. Os fatos e os tipos não se enquadram a esse rigor, a não ser ue o autor deseje,
e, neste caso, deve retirar da fachada do livro o nome de “romance” e ôr o de “história”. [...]
Exigir de um autor, em um texto de romance, outras finalidades como homenagem a
eterminadas documentações, não só é irritante como profundamente tolo, máxime artindo a
insistência de quem nunca andou em “certos caminhos do mundo”... 37
dade fosse o bastante, como é o caso de Jorge Amado, por exemplo, e de toda a
crítica que transformou Cacau num exemplo a ser seguido. No entanto, o que
ele faz é enfatizar a especificidade do texto literário que, aliás, é plenamente
compatível com outros objetivos, já que até mesmo uma dose de documento
caberia perfeitamente num romance.
Quem, no entanto, tratou de forma mais consistente o problema foi Mário
de Andrade, quando de sua atividade como crítico de jornal no Rio de Janeiro.
Depois de ter feito avaliações negativas de alguns livros e sofrer forte reação,
ele escreveria “A Raposa e os Tostões”, em que aponta a “pressa” e o “descuido”
da literatura de 30. Depois de afirmar a importância das obras menores, os “tos-
tões”, e de lembrar que também há, nas letras, “notas falsas”, que não podem
ser aceitas, traça o seguinte raciocínio:
O caso da literatura é por certo muito complexo porque nele a beleza se prende
¡mediatamente ao assunto e com isso não há mais barreiras para o confusionismo. Si em
pintura um crítico se preocupar exclusivamente com os problemas da forma, nenhum pintor
se revoltará; e o mesmo acontece com as outras artes plásticas e a música. [...]
Em literatura o problema se complica tremendamente porque o seu próprio material, a
palavra, já começa por ser um valor impuro [...]. E assim, a literatura vive em freqüente
descaminho porque o material que utiliza leva menos para a beleza do que para os interesses
do assunto. E este ameaça se confundir com a beleza e se trocar por ela. Centenas de vezes
tenho observado pessoas que lêem setecentas páginas num dia, valorizam um poema por
causa do sentido social de um verso, ou indiferentemente pegam qualquer tradução de
Goethe pra ler. Que o assunto seja, principalmente em literatura, um elemento de beleza, eu
não chego a negar, apenas desejo que ele represente realmente uma mensagem como na
obra de um Castro Alves. Quero dizer: que seja efetivamente um valor crítico, uma nova
síntese que nos dê um sentido de vida, um aspecto do essencial38.
^33jL M VVVJUQVC', cLev"
O que preocupa Mário de Andrade é o comportamento generalizado da
década de se valorizar ou não as obras exclusivamente pelo tema de que tratam
ou, pior ainda, pela posição assumida pelo seu autor. Não se trata, é evidente,
de uma proposta para que os escritores tomem de volta o elevador até o topo
das torres de marfim. É muito mais a percepção de que há algo que conta em
literatura além do “assunto”, ou do “problema”, de que criticar um autor da
“esquerda” não é necessariamente adesão à “direita” ou o contrário. Por conse-
quência, é a denúncia do fato de que olhar tão atentamente para aspectos que,
em certa medida, não dependem do livro em si, pode causar muito
Candido parte dessa observação, que parece até banal, analisa o Alencar do
heroísmo e o da galantería para chegar ao terceiro, o dos adultos. A partir daí
ele vai fazer um estudo não só da constituição do herói no romance
alencariano, como também do tipo de relações humanas e sociais que o consti-
tuem e dos meios de expressão de que lança mão. Percebe-se claramente nesse
capítulo da Formação um método de trabalho particularmente eficaz em ter-
renos muito minados por “verdades” estabelecidas: o de verificar se a constitui-
ção das próprias obras justifica a repetição de “conceitos divulgados”, para
Sem Rumo estava meio esquecido por mim mesmo e desconhecido dos meus leitores
atuais. De algum tempo para cá, entretanto, [...] comecei a ser pressionado, internamente e de
fora, a passar a limpo também este livrinho, pois ele, com o tempo, veio a se constituir no
primeiro elo do que o meu editor atual convencionou chamar de “trilogia do gaúcho a pé” 2®.
É claro que isso não prova que a idéia de ciclo é irrelevante para os anos 30,
mesmo porque há outros ciclos anunciados que nunca se cumpriram, como é o
caso da trilogia “A Luta contra a Morte”, de Lúcio Cardoso, ou ainda romances
cíclicos iniciados nas décadas seguintes, como os do próprio Érico Veríssimo e
de Marques Rebelo, o que serve de demonstração da importância desse tipo de
romance para aquela geração de escritores. O que se demonstra apenas é‘a
necessidade de verificar se, de fato, estamos diante de romances cíclicos ou não
e o quanto esse tipo de projeto literário é motivado por uma ênfase na literatura
social. O que ligaria livros tão diferentes como O País do Carnaval, Cacau e
Jubiabá além de uma estratégia editorial? No caso de José Lins, o quanto o fato
de ter-se assumido escrevendo um ciclo não interferiu nos rumos de sua
produção, deixando de lado Carlos de Melo, a figura central dos três primeiros, e
privilegiando o destino do engenho? Por fim, será que o romance cíclico existiu
somente enquanto tentativa de apreender grandes processos de transformação
social ou também pareceu adequado a escritores tidos como “intimistas” como
veículo para aprofundar sua “análise da alma humana” - para repetir uma
expressão muito usada no momento?
claramente o caráter cíclico de sua obra na apresentação ao úlnmo volume, Usina. V. Laurence
44 Laurence Hallewell chega a atribuir à mulher de José Olympio a idéia de dar o título
llullcwcll, O Livro no Brasil, p. 355.
geral de “Ciclo da Cana-de-Açúcar” para os romances de José Lins do Rego que, aliás, só assumiria
28. Cvro Martins, Sem Rumo, p. 8.
II
0 LUGAR DO ROMANCE DE 30
1. 22 E 30
45 Fábio Lucas, “A Angústia da Dependi mia", lolita ile Mila l'aula ( aihrno Malli, 29 de/..
1996, pp. 5-3.
ii • UMA III. I OKI A DO ROMANCE DE 30
.1« um.i ótica que põe o modernismo no centro de nossa tradição literária, a
ponto de poder definir o que há de válido no início do século, numa ação
relrospectiva que acaba escrevendo a história das exceções e que tem como
subproduto - voluntário ou não - a idéia bastante questionável de que as obras de
Lima Barreto ou Euclides da Cunha ganham sentido por suas antecipações de
certos aspectos do movimento modernista. Não é coincidência, portanto, que a
maior parte das abordagens que questionam a importância atribuída ao
modernismo venha de estudos sobre o chamado pré-modernismo, de tal forma
que já se tornou moeda corrente a idéia de que é preciso arranjar outro termo
para designar aquele momento e encaminhar uma análise dessa produção sob
outra ótica.
Por outro lado, pouco se tem falado do forte embate que houve entre a
geração surgida na década de 30 e os modernistas, e a tendência dominante é ver
o romance de 30 como um desdobramento do modernismo de 22, uma segunda
fase da literatura surgida na Semana de Arte Moderna.
Mais do que a qualquer outro crítico, coube a João Luiz Lafetá estabelecer o
modelo que vê o romance de 30 como parte integrante do movimento moder-
nista. Ele conseguiu criar uma forma de pensar que, de certa maneira, harmoniza
as diferenças entre os dois momentos. Seu ponto de partida é o de que todo
movimento estético tem um projeto estético e um projeto ideológico. No caso do
modernismo brasileiro, teria ocorrido uma ênfase maior no projeto estético
durante a fase heroica e, nos anos 30, a ênfase estaria no projeto ideológico:
Entretanto, não podemos dizer que haja uma mudança radical no corpo de doutrinas do
Modernismo [...]. As duas fases não sofrem solução de continuidade; apenas, como dissemos
atrás, se o projeto estético, a “revolução na literatura”, é a predominante da fase heróica, a
“literatura na revolução” (para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar), o projeto
ideológico, é empurrado, por certas condições políticas especiais, para o primeiro plano nos
anos 3046.
47 Idem, p. 43.
48 Idem, p. 180.
li. • IMA II Is I OKI A 110 ROMANCE DE 30
Prudente de Morais Neto, crítico muito agudo, alarmando-se justamente com a qualidade
má da nossa literatura de ficção, dizia, em 1930, que nos faltava material
li. • IMA II Is I OKI A 110 ROMANCE DE 30
5. Idem, p. 184.
*
O LUGAR DO ROMANCE DE .10 • 47
ainda aqueles que fugiram das convenções lingüísticas redutoras não foram os
parti«. i pautes do movimento modernista, mas os autores do romance de 30.
A visão que confere aos modernistas o modesto papel de destruidores é
aceita de forma geral ainda no decorrer da década de 30. É certo que o maior
gesto de recusa ao modernismo parte da direita, através do famoso número 4 do
boletim da Sociedade Felippc d’Oliveira, a revista Lanterna Verde, organizado
em 1936 por Tristão de Athayde. Mas não só: intelectuais de várias direções
artísticas e ideológicas a manifestaram - os comunistas, os regionalistas do
Recife, escritores do Rio Grande do Sul, muita gente enfim. Por exemplo: na
revista literária mais engajada à esquerda do período, Momento, encontram- se
afirmações como esta, anteriores ao balanço da Lanterna Verde:
ta teve que sair sem a posição deles. Embora abundantein ente de Andrade nem
sequer foi cogitado para dar seu testemu^h0 sobre o problema. Tiveram espaço
na revista autores surgidos na décad3 ^ ou Part'c*- pantes marginais do movimento
modernista no Rio de Janei1“0» como o poeta Manoel de Abreu e o crítico
Renato Almeida, ligados ao gruP° ^’ra<ía ^ra' nha e Ronald de Carvalho, nomes
aliás que, no contexto revista, avultam como os grandes do modernismo. Dentre
os escritores fi50 51'dernistas que haviam tido maior destaque, apenas Murilo
Mendes e Jorge de ^ma’ ^°3S cat(^' cos recentemente convertidos, são chamados a
participar do debate e ° ^azem em função de sua opção religiosa. Mesmo assim, as
quatro conc|usoes a fiuc Tristão de Athayde chega no artigo que fecha a revista, “Síiltese
> podem ser generalizadas como opinião corrente naquele momento: °
roodernismo não só existiu, mas viveu; o modernismo morreu; a herança litc rar'a
modernista foi maior em espírito do que em obras; o modemisrí10 PreParou um
renascimento literário pós-modernist 52a53. Em outras palavfas> P°de-se dizer que
a leitura da revista nos leva a conclusão próxima à de Grãciliano Ramos, o
modernismo é fato passado que, embora não tenha deixada obras importantes,
preparou o terreno para os autores que surgiriam efl1 3®- B certo fiue ou‘ tros
elementos, apontados ao mesmo tempo por Manod de ^reu e Murilo Mendes, que
reclamam da falta de profundidade espirituaJ do modernismo , não podem ser
generalizados, mas mostram que, para ã gCraÇao dos autores de 30, o
modernismo foi muito incompleto, sem chegar a nmversalidade das coisas
espirituais, básica para uns, nem à consciência dos nossos graves problemas
sociais, fundamenta] para outros.
Não seria muito diferente o resultado de um inquérito’ cuía Pr|me*ra Par" te
tratava exclusivamente do modernismo, organizado P°r Áurélio Buarque de
Holanda em 1940 através da Revista do Brasil. Foi un1 ba^anÇ° ma's amplo e muito
menos dirigido, do qual participaram, por exempl°’ Mário de Andrade, Jorge de
Lima, Jorge Amado e Álvaro Lins. As três pergUntas ab feitas eram.
Brasil?”, publicado nesse mesmo número da lanterna Verde “Apesar do S1" l H , l < " n"" 11 nismo
trazia de início o gérmen de sua fraqueza. Faltou-lhe seriedade- * •'lu" " ",0
Faltou-lhe o sentido de totalidade” (p. 35).
52 Manoel de Abreu formula assim seu pensamento no artigo
53V. Tristão de Athayde, “Síntese”, Lanterna Verde, nov. 1936 (4)> PP' ^ i 'nhoia haja
. .^ .a»« e o de Octavio dt I arm
artigos importantes neste numero da revista - como o de Murilo MePuc
- não é preciso discutir cada um em detalhe porque a síntese de Tristão de A* ayi 1 ^ *"u ailt Hl’" 1,0
geral do volume e suficiente para dar o perfil do modernismo para ad 111'*'1 Kir‘,í®0,
a .. , ■ *, c , .•A. ahou o Modemismo no
i • UMA HISTÓRIA DO ROMANCE DE 30
54 V. o anúncio do inquérito na Revista do Brasil, fev. 1940 (3a fase, III, 20), p. 84. O
inquérito acabou sendo curto, indo apenas do n. 21 ao 23 da revista, colhendo os depoimentos de
Jorge de Lima, Lúcia Miguel Pereira, Astrojildo Pereira, Álvaro^ins (n. 21), Mário de Andrade,
lorge Amado, Almir de Andrade (n. 22), Jayme de Barros, Octávio Tarqúínio de Sousa e Guilherme
Figueiredo (n. 23).
• • '' ------- - J- i--"- A ttmvittn Rn Rni«ií. ahr. 1940 (3a fase. III, 22), p. 108.
0 LUGAR DO ROMANCE DE 30 • 51
56 José Paulo Paes, “Cinco Livros do Modernismo Brasileiro”, A Aventura Literária, p. 66.
57 Resposta de Astrojildo Pereira, Revista do Brasil, mar. 1940 (3a fase, III, 21), p. 108.
58 Newton Sampaio, “Modernismo”, Uma Visão Literária dos Anos 30, pp. 192-193. Artigo
publicado originalmente no jornal O Dia, de Curitiba, em 14 de junho de 1936. É significativo que
Newton Sampaio tenha republicado esse artigo no jornal carioca A Nação no dia 15 de novembro
do mesmo ano, ou seja, dias depois do lançamento de Lanterna Verde 4. Não é coincidência que
Dalton Trevisan, num artigo publicado na revista Joaquim, em 1947, vá apontar Newton Sampaio
como o único ficcionista paranaense a interessá-lo naquele momento em que liderava uma
tentativa de renovação literária em Curitiba. V. Dalton Trevisan, “Notícia de Newton Sampaio”,
loaquim, jun. 1947 (11).
0 LUGAR DO ROMANCE DE 30 • 52
anos depois, não pode deixar de escutar no artigo de Newton Sampaio al-
V • UMA HISTÓRIA DO ROMANCE DE 30
1930.
A outra questão consiste em saber se houve vantagens no modernismo. Questão bem
tola se não tiver pontos de referências. E estes são: o incontestável avanço na emancipação
intelectual brasileira, o despertar de uma inquietação intelectual que procurava alimento para
sua fome, o desprezo pelo artifício (ainda que outras vezes recorrendo a outros tantos
artifícios...). Logo, o movimento foi benéfico. Bom ou mau, o que importa considerar é isto: o
movimento houve. O movimento foi.
A última questão refere-se à necessidade de saber se terminou ou se continua o
movimento modernista. Ora, se se considera o modernismo como um ciclo na evolução
intelectual brasileira, é evidente que não há ciclo nenhum que se feche sobre si mesmo, que
acabe e termine em si mesmo... Todo ciclo tem origens e consequências.
As origens, no caso, se confundem com as causas do movimento, já ligeiramente
indicadas aí em cima.
As consequências: o movimento modernista preparou a mentalidade brasileira para
tomar contato com a inteligência universal, para compreender - e amar - as grandes obras da
literatura e da arte mundial através de uma compreensão mais exata, isto é, fora da literatura
dos guias de museu e do turismo literário. Rompendo com as fórmulas mastigadinhas (muitas
vezes nas posições mais engraçadas, como a de um garoto vaiando), arrebentou-se os quadros
do salão da Escola de Belas Artes, reduziu-se consideravelmente a atenção pública pela poesia
dos fundos do Fon-Fon. Possibilitou-se a eclosão dos estudos brasileiros, despertou-se o
interesse por formas mais humanas - menos convencionais - de expressão dos sentimentos.
Eis o ativo do movimento modernista.
Assim é bem fácil ver como esse movimento pode ser situado na evolução intelectual
brasileira. Atualmente podemos dizer que há fome cultural no país. Não é causada pelo
modernismo, evidentemente. Mas no jogo de causas que já são conseqiiências e conseqiiên-
cias que por sua vez se tornam causas, o modernismo representa um elo considerável na
seqúência dessa evolução. Nós sabemos que um ciclo tem origens e conseqiiências... Por
conseguinte, podemos dizer que de certa maneira o movimento modernista continua a haver,
continua a ser; naturalmente não se pode admiti-lo na sua forma primitiva, que era a forma
correspondente ao tempo em que ele assim se manifestou. O modernismo continua a ser,
porque faz parte do movimento intelectual brasileiro.
Vejamos em seguida o passivo do movimento modernista.
Como disse o outro, há uma obrigação iniludível: evoluir ou perecer. Se o movimento
modernista evolui, continua a ser o modernismo, vivo... andando. Se ele estaca, desapare ce
como uma das fases mais agitadas - e nem por isso mais ricas em resultados de um processo
literário e artístico. Para considerá-lo assim, seria preciso descrer da evolução, descrer do
movimento como atributo essencial da matéria... Seria preciso, enfim, que, por motivos
variados, todos relacionados a uma convivência remota - política, eviilen temente política -, se
quisesse negar a evidência, se quisesse afirmar, por exemplo, que o modernismo não está
contido, em forma desenvolvida, na floração de grandes ro
• UMA HISTORIA DO ROMANCE DE 30
,ni> гч In.isilcíros, na eclosão de estudos sociológicos que hoje se manifesta no Brasil, i .iiinu
nlo progressivo de interesse público pela cultura, e na maneira de encarar a illin ,i ionio
património popular e não privilégio dos pequenos “Centros”, “Academias” e tipos de Amigos do
Poste da Light Ltda.
I vsuH qualidades negativas são justamente as que caracterizam os mais decididos rgadorcs
da existência e da permanência do modernismo, no Boletim da Soc. “Felippe '()liveira”. Ainda
que negando a evolução, eles estão constantemente evoluindo... para ior. Mas parados é que
não ficam, isso nunca.
Não estamos fazendo uma defesa do modernismo. O modernismo em si é uma curio- idadc
da história literária, para os futuros estudarem. Estamos tentando demonstrar:
°) que o modernismo existiu. (Essa preliminar é indispensável, pois há, entre os notáveis e
conspícuos críticos que fizeram o Boletim, quem negue a existência do modernismo.)
!“) que o modernismo continua existindo, já agora numa forma mais completa, que participa da
natureza da primeira e já é outro, pois que é um aperfeiçoamento da outra. O modernismo
ligou-se à evolução intelectual brasileira, e foi assimilado. Permitam uma comparação: a
semente modernista caiu do bico dos seus pássaros- anunciadores num terreno que a
esperava; agora a planta cresce, floresce e frutifica. Isso quer dizer que a semente já existia, a
terra já existia, os pássaros já existiam. Logo, não foi inventado. Houve uma conjunção, uma
aproximação, um contato desses elementos. Os resultados nunca são finais porque são
sempre etapas iniciais de novos resultados.
3“) que os que negam o modernismo são justamente aqueles que o modernismo - ou melhor, as
forças que o levantaram - afastaram do seu caminho. A sua negativa náo é uma negação
criadora, É uma negativa estéril, absurda: inaceitável.
59 Nicolau Montezuma, “Balanço do Modernismo”, Revista Acadfmica, jnn. I•* »7 (25), sem
numeração de página.
• UMA MIVKlRIA 1)0 ROMANCE l)E 30
Mulo. () longo texto de Octávio de Faria se abre com uma afirmação que se
ictomlo inequívoca: “Mesmo correndo o risco de escandalizar a muitos, tim*ç ai ei
por uma afirmação que não quero atenuar com nenhum subter- igio, encobrir com
nenhum véu: a meu ver, o movimento modernista não > n.10 existe mais de modo
algum, como jamais existiu”60.
No entanto, que diabos faz essa negação peremptória num artigo que, vando o
título de “Mensagem Pós-Modernista”, assume a existência de uma : ração, à qual
pertence o próprio autor, que vem depois do movimento que to existiria? Falta
convicção e sobra desejo de causar polêmica nesta postura: crítico procura se
afirmar. Mesmo porque, apenas três anos antes Octávio de iria estava publicando
outro longo artigo em que se colocava ao lado de istão de Athayde na cobrança de
que os autores nordestinos participassem i renovação artística pela qual o Brasil
passava, apontando alguns livros que mostravam que o nordeste ia tomando pé
nessa nova consciência literária icional61. É preciso notar ainda que, neste início do
artigo, Octávio de Faria refere às vanguardas internacionais. Seu julgamento sobre
o movimento no rasil é bem menos rigoroso:
Sejamos leais: na miséria de nossa literatura clássica, salvo em Machado de Assis e em }uns
poucos outros, não havia onde encontrar uma grande tradição a respeitar ou a ntinuar... Sejamos
mais francos ainda: no momento em que o modernismo varreu a >ssa literatura, o marasmo era
um fato inegável e não havia o que, dignamente, se possa nsiderar uma literatura de primeira
classe. [... ]
Prestemos ao nosso modernismo a homenagem que ele merece, lembrando que, se a a fase
inicial entre nós foi a de simples imitação dos excessos estrangeiros, cópia dos nos à máquina de
Marinetti, bebedeiras de klaxons, danças de arranha-céus, svairismos de toda espécie e sem o
menor sentido, logo o movimento como que cria ízes no país, busca os seus verdadeiros motivos,
a sua direção brasileira e assume uma ção que obriga a levá-lo em consideração62.
60 Octávio de Faria, “Mensagem Pós-Modernista”, iMnterna Verde, nov. 1936 (4), p. 49.
61 V. Octávio de Faria, “Resposta do Norte”, publicado em três partes, nos seguintes números
Literatura: 20 out. 1933 (1, 8), p. 3, 05 nov 1933, (1, 9), p. 3 e 20 nov. 1933 (I, 10), p. 3. No :fácio à
segunda edição de ¡930: A Crítica e o Modernismo, Antonio Cândido aponta a ■ilação inicial do
movimento por Faria, o que escapara às considmções de João Luiz Lafetá.
62 Octávio de Faria, “Mensagem Pós-Modernista”, Lanterna Verde, nov. 1936 (4), p. 62.
0 LUGAR DO ROMANCE DE 30 • 57
Entenda-se porém: foi uma reação por alargamento, por superação, não por negação, por
volta atrás. Ninguém voltou, está claro, a Coelho Neto. Mas também a condenação do sublime, e a
obrigação do prosaico não podiam subsistir. As barreiras arbitrárias colocadas pelos
doutrinadores do movimento, foram postas abaixo, os horizontes se alargaram, caminhos novos
se delinearam. A poesia pôde se desenvolver. O romance surgiu 63.
63 Idem, p. 63.
64 Idem, pp. 51-52. A verdadeira alergia de Octávio de Faria pela idéia de revolução, liem como
seu horror pela violência e pela subversão da ordem, já estavam no i cotio de seu Imo de estréia,
Machiavel e o Brasil.
• UMA HISTORIA 1)0 ROMANCE DE 30
iloi.i. ( omo já se viu, ele parte do princípio da continuidade: para ele não i
modernistas e pós-modernistas, como havia para os novos intelectuais is anos 30,
há apenas modernistas de duas fases. Para pensar as diferenças •nlro desse
movimento único, ele elabora a proposição de que num primeo momento o que
estava em foco era a renovação estética. Rompidas as sisténcias contra os novos
procedimentos, que findaram por rotinizar-se, geração dos anos 30 priorizou o
debate ideológico.
Para quem põe seu ponto de referência nos anos 30, não há como fugir da
»rmulação de que temos dois momentos literários distintos. Isso pode levar à
onsideração de que, para funcionar enquanto uma visão de continuidade, a
roposta de Lafetá toma em sentido bastante amplo os conceitos de projeto
Jeológico e de projeto estético.
Pensando de forma rigorosa, a sustentação da proposição segundo a qual s
transformações sofridas pela forma de fazer literatura no Brasil entre os lecénios de
20 e de 30 não constituem dois momentos diferentes, mas duas fases le um só
momento a se diferenciarem por uma ênfase maior no projeto estéti- :o ou no
ideológico, depende de se entender que existe um mesmo projeto :stético e um
mesmo projeto ideológico. Se os projetos forem outros, não faz ientido pensar em
mera diferença de ênfase. Quando um momento enfatiza um determinado projeto
ideológico (ou estético), ele só pode ser continuidade de jm momento anterior se
nesse primeiro instante for possível localizar um mesmo projeto ideológico (ou
estético), ainda que posto à sombra de um projeto estético (ou ideológico). No caso
do modernismo, é inegável que a geração dos autores que participaram da Semana
de Arte Moderna se preocupava sobretudo com uma revolução estética, enquanto
os que estrearam nos anos 30 centravam sua atenção nas questões ideológicas. Não
é muito fácil, no entanto, admitir uma continuidade dos projetos estético e
ideológico de uma geração para outra de forma a que a ênfase num ou noutro dê
conta dos desacordos que separam essas duas gerações. Seria preciso saltar as
enormes diferenças que há entre os intelectuais formados antes da Primeira Guerra
e a dos formados depois dela.
' No início de “Literatura e Subdesenvolvimento” Antonio Candido faz uma
observação sobre as formas de ver o Brasil antes e depois da Revolução de 30:
Mário Vieira de Mello, um dos poucos que abordaram o problema das relações entre
subdesenvolvimento e cultura, estabelece para o caso brasileiro uma distinção que também é
válida para toda a América Latina. Diz ele que houve alteração marcada de perspectivas, pois até
mais ou menos o decénio de 1930 predominava entre nós a noção de país “novo”, que ainda não
pudera realizar-se, mas que atribuía a si mesmo
0 I UGAR DO ROMANCE DE 30 • 59
grandes possibilidades de progresso futuro. Sem ter havido modificação essencial na distância que
nos separa dos países ricos, o que predomina agora é a noção de “país subdesenvolvido”.
Conforme a primeira perspectiva, salientava-se a pujança virtual e, portanto, a grandeza ainda
não realizada. Conforme a segunda, destaca-se a pobreza atual, a atrofia; o que falta, não o que
sobra65.
Se a distância que nos separa dos países ricos não se modificou, a mudança de
perspectiva sobre o país corresponde a um deslocamento no plano ideológico:
mudou a visão de Brasil. Mesmo com a ressalva de Antonio Cândido de que, nos
anos 30, ainda não havia exatamente uma consciência do subdesenvolvimento,
apenas uma “pré-consciência”, temos um afastamento ideológico considerável
entre a geração que fez a Semana de Arte Moderna e a que escreveu o romance de
30. Essa diferença de visão dominante do país é elemento central nas diferentes
formas de ação privilegiadas pelos modernistas e pelos romancistas de 30. Ora, a
idéia de país novo, a ser construído, é plenamente compatível com o tipo de utopia
que um projeto de vanguarda artística sempre pressupõe: ambos pensam o presente
como ponto de onde se projeta o futuro. Uma consciência nascente de
subdesenvolvimento, por sua vez, adia a utopia e mergulha na incopipletude do
presente, esquadrinhando-o, o que é compatível com o espírito que orientou os
romancistas de 30.
Tais diferenças ficaram claras muitas vezes nas relações entre os intelectuais
aparecidos nos anos 20 e os dos anos 30. Veja-se, por exemplo, o que diz Mário de
Andrade, em 1936, numa carta a Murilo Miranda, diretor da Revista Acadêmica e
também um jovem intelectual da nova geração:
Murilo: vocês entraram tarde demais no convívio duma personalidade já feita, e não têm
por isso os dados de como que foi que essa personalidade se fez, e porque ela pode afirmar, apesar
de tudo, que ainda é feliz. Vocês não sabem, por exemplo, que ao pesar sem nenhuma piedade as
minhas forças de escritor, e reconhecendo que elas eram fracas para uma eternidade, orientei
toda minha obra para uma utilidade momentânea, mesmo com o sacrifício de qualquer idéia de
perfeição. Fiz e faço “arte de ação”, como desde bem mais de dez anos venho repetindo aos
amigos, em cartas, e até já em artigo. Mas pros amigos da minha geração, essas palavras serão
mais fáceis de compreender do que para vocês, gente de após-guerra. Minha “ação” se confinou
ao terreno da arte porque, conformado numa geração e num fim-de-século diletantes, sou um
sujeito visceralmente apolítico, incapaz de atitudes políticas, covarde diante de qualquer ação
política66.
11 .ita se de uma carta bastante tensa, que pretende resolver uma briga - om
uma conciliação ou com um afastamento. Através dela se nota clara- ilc a validade
do esquema de João Luiz Lafetá quando se pensa em ter- i amplos: a arte de ação
para Mário está no plano estético, enquanto para l ilo Miranda e os rapazes de
esquerda da Revista Acadêmica - Carlos mia, Moacyr Werneck de Castro, Lúcio
Rangel - só pode ser política, s liá uma diferença, sentida por Mário de Andrade
como geracional, qua- ntransponível aí, que extrapola muito os limites em que a
ênfase no polí- > ou no estético é capaz de explicar. Para Mário de Andrade é
legítimo ir em felicidade, em alegria; para os rapazes dez ou quinze anos mais jo- is
que ele, pode ser leviandade67. Para Mário, a única opção política é ser alítico; para
seus amigos do Rio, essa é a única opção inaceitável. A natu- :a de projeto
ideológico de cada geração leva a uma diferença bastante inde de avaliação acerca
de quais opções estéticas são válidas ou não - a "erença entre o João Miramar e o
Marco Zero, para mencionar um autor mo Oswald de Andrade, cuja curva
ideológica e estética pode ser evocada ira mostrar que não há continuidade pacífica
entre 22 e 30.
Às diferenças ideológicas correspondem diferenças estéticas, é claro. O as- into
é vasto e ainda está por ser feito um estudo comparativo entre esses dois lomentos.
Mas é possível tomar um aspecto importante e ver como cada um esses momentos o
tratou - o problema de estabelecer uma língua brasileira, or exemplo.
É bastante conhecida a preocupação de Mário de Andrade com esse pro- lema.
Sua idéia de uma Gramatiquinha Brasileira diz bem disso - desde nesmo o “Prefácio
Interessantíssimo” e A Escrava que Não Era Isaura ele já olocara o problema da
gramática e sua obra de ficcionista incorpora cons- áentemente aspectos da
oralidade, da fala brasileira. Num livro como Amar, Verbo Intransitivo, por
exemplo, o narrador faz uso a todo instante das iuplas negações tão particulares do
português, mas com um sentido claramente provocador, acumulando as negativas
de forma a transformar um procedimento da fala em experiência formal, já que
ultrapassa o uso que se
67 E aqui estamos de volta àquilo que Lafetá designa como “confisco da alegria” ao tratar de
Octávio de Faria. A confusão entre seriedade e chatice ou, por outro lado, entre alegria e
irresponsabilidade se arrastaria até a próxima geração de intelectuais, a de Clima, alimentando a
polémica inaugurada com um artigo de Antonio Cândido sobre Oswald de Andrade. Na sequência,
Oswald lançaria aos rapazes de São Paulo o famoso epíteto d<A$iato-boys. V. Antonio Cândido,
"Estouro e Libertação”, Brigada Ligeira e Outros Escritos, pp. 17-32, e Oswald de Andrade, “An- . - J_
I Í —„„ y„rn" p„nta ¿e Lança, pp, 42-47.
0 I.UGAR DO ROMANCE DE 30 • 61
faz dele na fala. É o caso de uma frase repetida várias vezes no livro: “Isso
ninguém jamais não saberá!68”.
Em Mário de Andrade, o uso artístico da “língua brasileira” extrapola em muito
o mero questionamento de aspectos retrógrados da gramática tradicional - como
seria a rotinização de usos como a próclise em começo de frase ou o uso do verbo
ter em lugar do haver -, convertendo-se numa espécie de atualização radical de
potencialidades da língua falada. E como os intelectuais de 30 vão avaliar esse
procedimento? Não foi manifestação isolada a avaliação de Orris Barbosa em
Momento, já citada, segundo a qual “Macunaíma foi uma tentativa de romance
nacional, em linguagem de experiência, empanturrada de símbolos muito
complicados. Não pegou”. É mesmo interessante que, num livro sobre Jorge de
Lima, o crítico Benjamin Lima não vai se conformar com a importância que o autor
que estuda, e que tanto admira, dá a Mário de Andrade. Depois de afirmar que
recusa companhia a Jorge de Lima “quando se deixa empolgar pela sua veneração
ao papa do modernismo brasileiro” e que acharia até compreensível uma discussão
sobre alguns dos poemas de Mário, mas que era impossível aceitar que é
“Macunaíma que absorve o melhor da devoção de Jorge”, joga na cara do leitor o
julgamento sobre o livro de Mário: “Ora, como fatura esse livro é qualquer coisa de
ilegível, de insuportável”69.
Avaliações como esta mostram o verdadeiro espírito “anti-Macunaíma” que
impera na década de 30, mas ainda não dão muita clareza a respeito das causas
dessa opinião tão desfavorável. É preciso evocar, para isso, o interessante artigo de
José Lins do Rego em resposta a um texto de Sérgio Milliet que defendia a idéia de
que toda a literatura do decénio de 30 derivava do movimento modernista:
O movimento literário que se irradia do Nordeste muito pouco teria que ver com o
modernismo do Sul. Nem mesmo em relação à língua. A língua de Mário de Andrade em
Macunaíma nos pareceu tão arrevesada quanto a dos sonetos de Alberto de Oliveira. A língua que
Mário de Andrade quis introduzir com seu livro é uma língua de fabricação; mais um arranjo de
filólogo erudito do que um instrumento de comunicação oral ou escrito. O livro de Mário de
Andrade só foi bem entendido por estetas, por eruditos, e o seu herói é tão pouco humano e tão
artificial quanto o boníssimo Peri, de Alencar. A
68 O próprio Mário, com aquela sua consciência artística agudíssima, admite que
deliberadamente “forçou a nota”. Em carta de 15 nov. 1935 dirigida a Sousa da Silveira, chega a firmar:
“Essa censura que o Sr. me faz de ter uma língua que não é de ninguém, mas ‘artificial’, é perfeitamente
justa sob o ponto-de-vista da arte como da ciência da linguagem”. V. Mário de Andrade, Mário de
Andrade Escreve Cartas a Alceu, Meyer e Outros, p. 150.
69 V. Benjamin Lima, Esse Jorge de Lima!, p. 77.
• UMA IIIVI OKI A IH) ROMANCE DE 30
loicnyti é que em vez de Chateubriand, Mário de Andrade procurou a erudição alemã o.i
rubricar o seu herói sem nenhum caráter. Macunaíma é um Peri que se serviu da lindude natural,
em vez da bondade natural. Este livro de Mário de Andrade é um positório do folclore, o livro
mais cerebral que já se escreveu entre nós. Se não fosse o itor um grande poeta, seria o
Macunaíma uma coisa morta, folha seca, mais um fichá- o de erudição folclórica do que um
romance70.
70 (osé Lins do Rego, “Espécie de História Literária”, Lanterna Verde, abr. 1938 (6), p. 95. O
artigo seria inciuido no volume Gordos e Magros, de 1942. É curioso notar que a carta de Mário de
Andrade a Sousa da Silveira menciona, entre outros, o nome de José Lins do Rego como um dos
4lfc~„i«m*iiie dele. escrevem em IfnKua brasileira.
0 LUGAR DO ROMANCE DE 30 • 63
71 Resposta de Lúcia Miguel Pereira, Revista do Brasil, mar. 1940 (3* fase, III, 21), p. 107.
72 Homero Senna, República das Letras, p. 32.
73 Mário de Andrade, O Movimento Modernista, pp. 44-45.
M • (IMA HISTÓRIA DO ROMANCE DF. 30
Não, sem a revolução paulista, esse grupo, composto em boa parte de nortistas, não teria
encontrado tão franca e fácil acolhida; ao contrário, provocaria escândalo, precisaria lutar para
ser aceito. Isso no caso de se ter no mesmo sentido encaminhado. Sem entrar no mistério da
criação, das relações íntimas entre o artista e a obra, é-nos lícito perguntar se, não fora o
modernismo, teriam esses escritores abordado exatamente os mesmos temas, e da mesma
maneira. Não nos esqueçamos de que o cunho experimental, de busca da realidade próxima, de
valorização do homem comum, do negro, do^cabòclo, assim como o emprego da linguagem
coloquial - tudo isso já estava traçado, indicado esquematicamente, à espera de que, sem o
embaraço causado nos promotores do movimento de 1922 pela atitude crítica, possuísse a
disponibilidade indispensável para fundir todos esses elementos, para fazê-los passar do plano
cerebral ao humanamente criador76.
Ela vai num grande centro temático do romance de 30, o destaque dado às
figuras marginais, e até aí encontra para o modernismo um papel rele- vante - mas
atrapalhado por aquela “atitude crítica”, síntese do caráter destrutivo do
movimento, voltado portanto mais para o passado do que para o futuro, numa
postura estéril, sem continuidade. Para ela, não é difícil notar, mesmo depois do
calor da hora, considerando de forma muito mais ampla o papel do movimento,
que o modernismo não teve influência direta sobre a geração que o sucedeu, mas
estabeleceu um ambiente literário, distante do academismo e próximo de uma
atitude de busca de uma forma brasileira de fazer arte, que permitiu o
aparecimento do romance de 30. Por mais que ela consiga agora enxergar uma
integração entre o modernismo e a experiência da geração que o sucedeu, não é da
continuidade de projetos estéticos ou ideológicos que ela fala aqui, mas do impacto
do modernismo sobre nosso sistema literário. A destruição de um modo viciado de
pensar a literatura já é a construção de um sistema propício para que uma nova
produção surja na medida em que ajuda a criar aquela “simpatia clarividente do
leitor” a que se refere Antonio Candido na Formação da Literatura Brasileira.
Não estamos muito distantes aqui de uma formulação muito mais recente, de
1980, feita pelo próprio Antonio Candido, num texto em que o crítico afirma
acompanhar a tese de João Luiz Lafetá:
ou seja, atuou não sobre a feição literária do romance de 30, mas obre um sistema
78 UTÓPICO E PÓS-UTÓPICO
Sem esse princípio-esperança, não como vaga abstração, mas c orno |u i spectiva efe-
tivamente alimentada por uma prática prospectiva, não pode huvei vanguarda entendida como
movimento. O trabalho em equipe, a renúncia às parlaulaiidades em prol do esforço coletivo e do
resultado anónimo é algo que só pode ser movido pm esse motor elpídico (do grego “elpis”,
expectativa, esperança)*.
Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde <> sm sentido Nessa acepção, a
poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porqm seja pós moderna ou anti-
moderna, mas porque é pós-utópica. Ao projeto tolali/adoí de vau guarda, que, no limite, só a
utopia redentora pode sustentar, sucede a plm al uai, ao das poéticas possíveis. Ao princípio-
esperança, voltado para o futuro, sucedi o pniulpío realidade, fundamente ancorado no presente’5.
,il)f. 1 1 ii.ii numa feição presente de identidade nacional o passado que vale e
111
Iniuiii (|iic vai valer. Se olhamos para um autor como Plínio Salgado, em seu » /
%irauyeiro, veremos que em sentido diferente - e perigosamente diferente ¡ui,
adiante a utopia de fusão do primitivo com o moderno também está UesenU'.
Isse tipo de utopia é possível numa mentalidade que percebe o Brasil ain- !a
como país novo - para retomar os termos empregados por Antonio Cândido in "l
iteratura e Subdesenvolvimento”. Em certo sentido, a mesma crença ali- nentou os
movimentos sociais que desembocaram na revolução de 1930. O esultado, no
entanto, se revelou frustrante. Se é verdade que foram elimina- los certos aspectos
arcaicos da sociedade brasileira, também é verdade que oram apenas os que não
podiam mais ser sustentados, e o regime de Vargas, esultado direto da revolução,
não foi o vetor de qualquer transformação que ludesse confirmar as esperanças que
a prepararam. Quando se associa essa rustração local à mentalidade antiliberal que,
como vimos, vai dominando a ntelectualidade brasileira naquele momento, fica
fácil perceber que a visão de ms novo envelhece. Depois disso, olhar para o
presente é ver um cenário não muito agradável - o que salta aos olhos é o atraso e a
exclusão que a modernização já implementada não consegue cobrir. Daí nasce
aquela pré-consciência do subdesenvolvimento, ou seja, o início da percepção de
que o presente não se modificará sem que algo se modifique na própria estrutura
das relações sociais. A arte da década cie 30 não poderá, portanto, abraçar qualquer
projeto utópico e se colocará como algo muito diverso do que os modernistas
haviam levado a cabo. É nesse sentido que se pode dizer que o romance de 30 vai se
constituir numa arte pós-utópica.
Essa nova visada é localizável mesmo na obra dos escritores que participaram
do movimento. Oswald de Andrade muda bastante a direção de sua ficção com o
projeto do Marco Zero. Mário de Andrade planeja um livro, Café, que vai tomar
como tema a decadência de uma família a partir de 1928, bem ao gosto do romance
de 30. Para quem vê de hoje, não há como não lembrar do título do Cacau de Jorge
Amado, sugerindo um romance que se articula com o andamento - ou não-
andamento - da produção económica relacionada ao principal produto agrícola da
região que ambienta a história, o que até certo ponto se confirma na leitura do
plano apresentado em carta a Moacyr Werneck de Castro em 194181.
Do novo romance que surgiria na década de 30 está ausente qualquer crença na
possibilidade de uma transformação positiva do país pela via da modernização. É
em S. Bernardo, de Graciliano Ramos, que se encontrará a expressão romanesca
mais acabada dessa descrença na modernização, que vai junto com uma avaliação
81 V. carta a Moacyr Werneck de Castro de 6 nov. 1941 publicada em Mário de Andrade - v-‘,: oin
romance em 1929, transformou-se em libreto de ópera a ser escrita por Francisco Mignone no início
dos anos 30, voltou a ser romance em 1941 e terminou, em dezembro de 1942, tomando a forma de
um poema dramático incluído nas Poesias Completas.
37. João Luiz Lafetá já mostrou a funcionalidade do capítulo no estudo “O Muiuli > á Revelia",
publicado em sucessivas edições de S. Bernardo. Álvaro Lins, no artigo "Valores e Mtsei las das Vidas
Secas”, incluído em Os Mortos de Sobrecasaca, chegara a sugerir que o capitulo tosse tirado do
romance.
38. Graciliano Ramos, S. Bernardo, p. 37. Daqui para a frente, ao final das i ilações de obras de
ficção, será indicado apenas o número da página em que se encontra o texto tianst rito. lendo como
referência sempre a edição indicada na “Bibliourafia”.
iOMNcqÚéncia, o poder do velho major teria que cair também. O que qi.i . 1
Paulo I lonório - e mesmo alimenta a idéia de que, se ele quisesse, In ia se
reerguer rapidamente - é que a sua própria ruína se deu apesar ele ler
acompanhado e até estado à frente de um processo de moderni- Ao da produção
rural. O que o arruinou foi a falta de percepção de que nada adiantam técnicas
modernas diante de uma estrutura social que se mtém intocada - insensibilidade
U M A lll'> lOHIA 1)0 ROMANCE DE 30
E se trata de dupla derrota. Pela natureza porque, através da maleita, ela lhe matara
a mulher e lhe roubara a saúde. Pelos homens porque perdera seu <!<• mando. No
final, ao invés de levar àquele fim de mundo a civilização,
O LUGAR DO ROMANCE DE 30 • 71
tornava-se um igual aos caboclos que no fundo desprezava, obrigado a ouvir deles
conselhos para derrotar a maleita, mal que o colocava junto deles82.
Estes são apenas dois exemplos que ilustram o movimento geral. É difícil,
portanto, concordar com José Hildebrando Dacanal quando faz a seguinte
afirmação:
A afirmação de Dacanal se baseia em alguma coisa que está para além das obras
e não nelas mesmas. É correto dizer que o mundo, no romance de 30, é passível de
transformação. Mas uma facilidade de transformar o mundo simplesmente não
existe, e não é verdade nem mesmo para Jorge Amado que, sendo o mais
visceralmente engajado dos nossos romancistas naquele momento, poderia em
principio ser o mais otimista deles também. Em nenhum de seus romances existe a
representação acabada dessa facilidade de transformação do mundo. Quando Cacau
termina, a luta de Sergipano ainda está para começar: “Eu partia para a luta de
coração limpo e feliz” (p. 197).
A luta é o universo possível para Sergipano depois de todo seu percurso de
filho de industrial a alugado de fazenda de cacau. A vitória fica postergada e não é
assunto do romance. Quem vai mais longe e termina a aventura narrada já
enfronhado na luta é Pedro Bala, herói do último romance de Jorge Amado
publicado na década, Capitães da Areia:
Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não tinham existência
legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas, passados de
mão em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um militante
proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia de cinco Estados como
organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da ordem
estabelecida.
No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma noite
de terror, estes jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela liberda de de Pedro Bala,
líder de sua classe, que se encontrava preso numa colónia.
E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar, rostos se
82 Mais à frente, a crença na modernização será reposta na análise que sc fará de Senhora de
Engenho, romance de Mário Sette.
83 José Hildebrando Dacanal, op. cif., p. 15.
UMA HIVI'rtIUA DO ROMANCE DE 30
un.ii .un .ui saber da notícia. E apesar de que lá fora era o terror, qualquer daqueles i i,i mu
lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução na piilríu e urna
familia (pp. 342-343).
Sem dúvida, este final de Capitães da Areia é o que está mais próximo de D que
poderia ser chamado de otimismo ingenuo. E mesmo assim, fica mui- cluro que a
utopia da revolução se localiza num tempo mais distante, e X)is de muita luta -
portanto, um otimismo nem tão ingénuo assim. O que ta à vista é o horror da
hora presente, que precisa ser superado de alguma ma. É interessante notar como
a melhor forma de obter essa superação é o »resso na luta - mas a fuga não é de
todo descartada. É isso que se vê ao final Jubiabá: “Partir é uma aventura boa,
mesmo quando se parte para o fundo mar, como partiu Viriato, o anão. Mas é
melhor partir para a greve, para a a. Um dia Antônio Balduíno partirá num navio
e fará greve em todos os rtos. Nesse dia dará adeus também” (pp. 270-271).
O futuro sobre o qual se projetam os eventuais resultados da luta é inde- udo -
“um dia” -, o que aponta para um futuro talvez mais distante ainda i que o dos
outros romances. Mas chama a atenção sobretudo que o suicí- o possa ser visto
como solução viável, “aventura boa”, apenas um pouco enos boa que a luta
revolucionária. Ora, isso parece contraditório até à edula: o suicídio é o contrário
da luta, é a mais completa desistência. No itanto, é preciso admitir que não se trata
de suicídio simplesmente, mas m de um entregar-se ao mar. A carga simbólica
desse ato não é pequena, ntregar-se ao mar é entregar-se a Iemanjá, é mudar-se
para um mundo de erno prazer: é a utopia em seu sentido mais literal, o do ideal
fora da histó- a. Ao colocar lado a lado a luta política e o entregar-se ao mar, Jorge
Ama- o redimensiona o sentido da utopia política que alimenta seus livros, que ão
pode mais ser entendida como certeza de um devir histórico - isso'.sim, lhado de
longe, um tipo de otimismo ingénuo.
Quando se percebe essa dimensão da visão política das primeiras obras e Jorge
Amado, fica mais fácil compreender um romance como Mar Morto, om seu bordão
que não cessa de tocar em nenhum momento: “é doce mor- er no mar”. Guma, o
herói do romance, é um forte que recebe essa doce ecompensa: afoga-se ao salvar
um homem.
Graciliano Ramos, nos anos 40, fez o seguinte julgamento: “A poesia que há
leste 1 Jubiabá] muda-se em toada agradável ao ouvido, e certos estribilhos (‘É loce
morrer no mar’) dizem o contrário do que o au^r pretende sustentar”41.
A Fundação Graça Aranha errou quadradamente dando seus 2 contos destinados ao melhor
livro de 1936, ao Mar Morto de Jorge Amado.
Jorge Amado havia errado escrevendo o Mar Morto. Livro que pode ter páginas de beleza
poética, mas que é, de um modo geral, meloso e reacionário. Dizem que Jorge ficou furioso
porque esse livro foi elogiado em A Ofensiva. E o pior é que o livro mereceu esse elogio. A
poetização da vida miserável é bem demagogia verde. Plínio aconselha: sofrei sonhadores do
bem! E Ribeiro Couto, aquele meigo poeta integralista, acha que é um crime tentar acabar com os
mocambos miseráveis do Recife, porque são muito poéticos. Que apodreçam na miséria e na lama
250 mil criaturas humanas: apodrecerão poeticamente. E quando o menino ultra subalimentado
do mocambo morre, é ótimo. Ribeiro Couto faz um poemazinho bonitinho sobre o enterrozinho
do anjinho.
Jorge é moço, tem cérebro no crânio e tutano moral. Reagirá, apesar do prémio84.
Estrela matutina. No cais o velho Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez o que
nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é cia quem vai agora de pé
no “Paquete Voador”? Não é ela? Ela é, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita
para os outros no cais:
- Vejam! Vejam! É Janaína.
Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mu lher forte
que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os mai íti mos viam Iemanjá, a
dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a segunda ve/ que ele a via.
84 Rubem Braga, “Luís da Silva e Juliáo Tavares”, Revista Acailftuiai, maio 1*7 '7 (27), p. 3.
/4 • UMA HISTORIA l>0 ROMANCE DE 30
85 Lembrando que, dos cinco escritores analisados na crónica, pelo menos dois são autores
de razoável sucesso nos anos 30. Fran Martins já publicara un<iívro de contos, Manipueira, em
1933, e dois romances, Ponta de Rua (1936) e Poço dos Paus (1938). Cordeiro de Andrade, por
sua vez, já publicara os romances Cossacos (1934) e Brejo (1936).
O LUGAR DO ROMANCE DE 30 • 73
que haja drama, pra que haja romance, há sempre que estudar qualquer fracasso, um amor, uma
terra, uma luta social, um ser que faliu. Mas o que está se sistematizando, em nossa literatura,
como talvez péssimo sintoma psicológico nacional, absolutamente não é isso. Um Dom Quixote
fracassa, como fracassam Otelo e Mme. Bovary. Mas estes, e com eles quase todos os heróis do
bom romance, são seres dotados de ideais, de grandes ambições, de forças morais, intelectuais ou
físicas. São, enfim, seres capacitados para se impor, conquistar, vencer na vida, mas que diante de
forças mais transcendentes, sociais ou psicológicas, se esfacelam, se morrem na luta. E não estará
exatamente nisto, neste fracasso, na luta contra forças imponderáveis e fatais, o maior elemento
dramático da novela? Mas em nossa novelística (e é possível buscar bastante longe as raízes disto,
num Dom Casmurro, por exemplo, ou sistematicamente num Lima Barreto) o que está se fixando,
não é o fracasso proveniente de forças em luta, mas a descrição do ser incapacitado para viver, o
indivíduo desfibrado, incompetente, que não opõe força pessoal nenhuma, nenhum elemento de
caráter, contra as forças da vida, mas antes se entrega sem quê nem porquê à sua própria
insolução. Será esta, por acaso, a profecia de uma nacionalidade desarmada para viver?...86
A importância dessa sua formulação ele logo percebeu. Tanto que, um ano
depois, no primeiro número da revista Clima, dirigindo-se à intelectualidade que
surgia nos anos 40, vai dar importância central a ela - e num texto que é um
verdadeiro testamento para uma novíssima geração. Depois de reproduzir, numa
versão revista, o parágrafo de seu artigo de 1940, citado acima, acrescenta:
Quando, ao denunciar este fenômeno, me servi quase destas mesmas palavras, julguei lhe
descobrir algumas raízes tradicionais. Hoje estou convencido de que me enganei. O fenômeno
não tem raízes que não sejam contemporâneas e não prolonga qualquer espécie de tradição.
Talvez esteja no Carlos de Melo do Ciclo da Cana-de-Açúcar a primeira amostra bem típica
deste fracassado nacional. Nos lembremos ainda da triste personagem de Angústia.. .87
coloca apenas no plano dos problemas sociais, onde se nota o fenómeno com
mais clareza. Para quem, como Octávio de Faria, vê no presente o reino da
miséria moral, há também uma recusa vigorosa da facilidade em se mudar esse
presente. É sintomático que ele, no primeiro romance de um ciclo pensado
para vários volumes - encerrou-se, na década de 80, com o 13 a romance -,
mate atropelado o “anjo” Carlos Eduardo, o único dos adolescentes de Mundos
Mortos que vence as tentações com facilidade - na verdade, seria até mais
apropriado dizer que ele não vence essas tentações porque nem sequer as
sente. E mais, ele morre exatarnente no dia em que outros adolescentes, os mais
corrompidos, resolveram armar uma verdadeira armadilha para sua santidade
ao arrumar um encontro com uma bela prostituta para ver se ele seria capaz de
resistir. Com a morte impedindo esse teste, o leitor não pode nem ter certeza
se o anjo é mesmo Um anjo, já que não passou por nenhuma provação maior.
O que fica para o resto da Tragédia Burguesa são as personagens vivendo no
impasse, na dúvida, jn(j pendularmente do auto-controle à queda. É o caso de Ivo,
0
-Vejam - ia dizendo o conde: - vejam toda esta paz, esta prosperidade, este conten- amento...
Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!
E o homem de estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades lo
monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país, - ili ao pé
daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, ereto e nobre, com >s seus largos
ombros de cavaleiro forte, a epopéia sobre o coração, a espada firme, ;ercado dos cronistas e dos
poetas da antiga pátria - pátria para sempre passada, memó- ia quase perdida! (vol. 1, p. 345).
ser tão profundo, ou mais sem saída a situação, do que para aquele a quem não é
dada urna perspectiva mais ampia ou distanciada do problema.
Mas esse pessimismo todo não aponta necessariamente para uma “nacio-
nalidade desarmada para viver”, como diagnosticou Mário de Andrade. Ao
contrário, trata-se de uma nacionalidade que pretende mostrar sua força e seu
aparelhamento para a vida ao encarar e incorporar o fracasso ao invés de escapulir
para outros planos - para o plano que os próprios romancistas de 30 chamariam de
meramente estético, por exemplo.
E neste ponto já se introduz a segunda questão que o texto de Mário de
Andrade propõe, ou seja, que visão da nacionalidade o romance de 30 consagrou. E
é preciso admitir nele a ausência de projetos totalizadores. No modernismo,
produção artística e busca de uma identidade nacional estão articuladas, integradas,
tanto na obra de Mário de Andrade quanto na de Oswald de Andrade ou na dos
autores do verdeamarelismo. Tais propostas de uma visão de nacionalidade,
expostas em manifestos, eram, em geral, uma forma de articular passado e presente
que dava sustentação à utopia modernista88.
Distante da utopia da vanguarda, os anos 30 assistiram a um outro tipo de
comportamento por parte dos escritores. Ninguém propôs visões nem mais nem
menos unificadoras de Brasil. Foi uma produção atomizada. Sem ver a possibilidade
de propor algum tipo de ação prospectiva imediata, cada romancista se ocupou de
mergulhar num aspecto específico do presente. Só é possível tentar enxergar
alguma visão geral do país após uma leitura extensiva desses romances - e mesmo a
maneira pela qual Mário de Andrade percebeu a importância da figura do
fracassado demonstra isso. Não foi algo colhido em qualquer proposição
sistematizada, mas sim num processo de acumulação, na leitura de uma série de
romances, incluindo vários de que ninguém mais fala hoje. E é esse um dos maiores
problemas para o estudo do romance de 30. Sendo uma produção atomizada e
ancorada no presente, sujeita às exigências imediatas, acabou produzindo poucas
obras que as gerações de críticos que a sucederam julgaram aptas a integrar nosso
cânone literário. Somente no conjunto, extenso e muitas vezes desinteressante, é
que se pode perceber esse mergulho coletivo na compreensão do momento
presente. Não havendo projeto coletivo, há no entanto um desigual movimento
coletivo que inclui todo o regionalismo - assumido ou não, já que mesmo em livros
inequivocamente “intimistas” Lúcio Cardoso tira grande partido do ambiente das
cidadezinhas
88 Roberto Schwarz trata desta questão em Oswald de Andrade cm "A (Àirroçu, o Bonds e o
Poeta Modernista”, Que Horas São?, pp. 11-28.
no • UMA MIM ORIA DO ROMANCE DE 30
iln mlciior dc Minas, por exemplo mas também o romance urbano ambi- enloilo
lauto nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo quanto nas capilar. |>• 11 1 < ricas
ou cidades de médio porte como Santos ou Petrópolis.
Alem disso, esse interesse pelo fracassado foi responsável direto por uma .la.
maiores conquistas do romance de 30 para a ficção brasileira que viria a seguir: a
incorporação das figuras marginais, aquelas que aparecem referidas neste livro
como “o outro”.
O resultado é que, com esse procedimento anti-escola, voluntariamente ou
não, os romancistas de 30 produziram uma vigorosa força de oposição a uma visão
“total” - totalitária mesmo - de Brasil proposta por Getúlio Vargas. É um contraste
significativo o que se cria entre a visão do país como um conjunto de realidades
locais que merece ser conhecido nas suas particularidades e o modelo oficial de
unidade nacional, cuja tendência seria a de apagar as diferenças para se obter um
conceito uno de nação89. A boa recepção ao romance regionalista, por exemplo,
mesmo considerando as acanhadas dimensões de nosso público leitor àquela altura,
foi uma demonstração clara da distância de um projeto oficial unificador em
relação à visão que ia se tornando a mais viável para os próprios brasileiros, que
queriam simplesmente saber da vida nos engenhos, do drama da seca, da região
amazónica, das plantações de cacau e café, da realidade dos pampas, dos novos
bairros que surgiam em Belo Horizonte e mais.
Dessa maneira, o romance de 30 se define mesmo a partir do modernismo e
certamente não poderia ter tido a abrangência que teve sem as condições que o
modernismo conquistou para o ambiente literário e intelectual do país. N 0 entanto,
ao afastar-se da utopia modernista, terminou por ganhar contornos próprios que,
de certa forma, só seriam retomados pela ficção brasileira do pós-64, também
dominada pelo desencanto.
Três Tempos de 30
89 Quem formulou melhor esse tipo de pretensão unificadora foi o Integralismo, desde seu
manifesto de outubro de 1932. Em artigo de jornal de 194^, reproduzido por Edgard Caroneem A
Segunda República, o próprio Plínio Salgado recupera sua concordância com Getúlio Vargas acerca do
“perigo” do regionalismo para a construção dessa idéia de nação.
14 • UMA HISTORIA DO ROMANCE l)E 30
I
ANTES DE 30
1. BEM ANTES
Este livro procura fixar aspectos da vida paulista nos últimos dez anos. (...)
*
Este livro é, antes de tudo, um desabafo. Nele se notará que se quis dizer alguma cousa.
Se não atingiu o objetivo, nem por isso deixa esta crónica de ser oportuna. Pelo menos,
como depoimento, num instante de tamanha inquietude e necessidade de discussão 1.
dos pais. Ou seja: um tipo que revela a preferência por uma pobreza quase
nunca poetizada. Também a trajetória desse personagem incorpora um dos
veios temáticos mais fortes dos anos 30, o conflito entre campo e cidade. Depois
de conseguir formar-se médico, Bento vai para o interior de Minas Gerais e
temos então um certo tipo de crónica regional que conta com o registro do
cotidiano de um lugarejo no interior, e não do pitoresco de certas narrativas
regionalistas do início do século. É claro que aí ainda não surge com muita
clareza uma referência aos processos de exploração económica que já partici-
parão de A Bagaceira, e a solução para a pobreza ainda é a caridade.
Boa amostra da concretização dos impasses desse livro na linguagem em
que Ranulpho Prata o construiu pode ser obtida na maneira como o narrador
descreve sua mãe: “Minha mãe era frágil, gasta nos trabalhos da fábrica onde
vivia desde os quinze anos, descorada, de pequena estatura, só tendo como
atrativo a suave mansidão das suas feições menineiras, o que, decerto, meu pai
nunca percebera” (pp. 12-13).
Aí se misturam uma linguagem muito própria a uma abordagem realista, já
que a mãe era sobretudo “gasta nos trabalhos da fábrica”, e o vocabulário e a
adjetivação algo coelhonetianos da “suave mansidão das suas feições
menineiras”, sintetizando o duplo impulso que tensiona este pequeno romance
construído entre o mergulho na realidade brasileira e a ligação a uma literatura
com vocação para sorriso da sociedade.
2. O PRECURSOR OFICIAL
92 Luiz Costa Lima, “Regionalismo”, A Literatura no Brasil, voi. 5, p, ' 1/ Allirdo liou!
IA • UMA l imon i A DO ROMANCE DE 30
Tomei desse volume com desconfiança. Livro feio, mal impresso, em papel
ordinarissimo, repelindo o contato com as mãos e com os olhos. A dedicatória, escrita numa
letra tremida, de velho ou de doente, numa letra de homem abalado e de nervos exaustos. O
título provocando troças. “O livro deve ser como o título” não deixei de dizer de mim
comigo5.
também afirma que o fato de A Bagaceira ter se transformado em marco em nossa história literária
se deve “não tanto aos seus méritos intrínsecos quanto por ter definido uma direção formal
(realista) e um veio temático: a vida nos engenhos, a seca, o ^tirante, o jagunço”. V. História
Concisa da Literatura Brasileira, pp. 445-446.
4. Tristão de Athayde, Estudos - 2a série, pp. 103, 105-106.
c A» A tl v-ii/ ,1, . Fxturins — série. voi. 1. D. 137.
ANTES DE 30 • 87
De toda forma, era preciso que o livro desse sinais para que Tristão de
Athayde o reconhecesse como uma resposta ao seu chamado, ou seja, que ele
trouxesse algo que o diferenciasse do romance naturalista que o nordeste pro
duzira abundantemente desde o final do século XIX. E, em meio a muitas repe
tições de procedimentos, há de fato tais elementos, que aparecem num cotejo
com romances que tematizaram anteriormente o drama das secas.
Um desses elementos é a representação da pobreza ou, mais específicamen-
te, dos pobres - aqueles que nos anos 30 seriam genericamente chamados de
“proletários”. Nos romances da seca, evidentemente, a pobreza se confunde
com os retirantes. Nos romances naturalistas, de maneira geral, os camponeses
convertidos em retirantes são vistos em grandes blocos, reduzidos a uma
barbárie que os desumaniza e, mais, os descaracteriza, tornando-os todos iguais
dentro do romance. Os personagens que de fato farão parte da trama são pe-
quenos proprietários atingidos pela seca. Isso acontece tanto em Luzia-Ho
mem, de Domingos Olympio, por exemplo, pois essas são as origens sociais da
personagem-título, quanto em A Fome, de Rodolfo Teófilo, cujo protagonista
nos é apresentado da seguinte maneira: “Manuel de Freitas é o seu nome. Des
cendente de uma das mais antigas e importantes famílias do alto sertão, herda
ra do pai modesta fortuna e a influência eleitoral na localidade. Sua educação
havia sido completa para o tempo e estado do interior da província” (p. 3).
Os retirantes pobres, ao contrário, não têm história, a não ser a da set a, v
aparecem em grupo:
93 Idem, p. 138.
94Agripino Grieco, Evolução da Prosa Brasileira, pp. 160-161.
MI • 1 ' M A HIMOKIA DO ROMANCE DE 3»
A luí h.i ilos famintos parou cm frente à casa do vigário, que, embora fosse uma »1.1.*.
II.IIHI.U,Oes melhores da cidade, contudo, não se podia dizer confortável. Os reti- i .Hiles
li/eram alto e sentaram-se na rua esperando que se distribuísse a ração. A sua iiiip.iiiénciu
era percebida em todas as linhas do rosto. A fome roía-lhes o estômago, que ii.lo se podia
habituar com tão grande jejum. Uma febre nervosa exasperava-os sem contudo denunciar-se
pela temperatura da pele, que, profundamente alterada, se conservava fria. O calor do sol
não os aquecia, nem uma gota de suor eliminavam os poros; os líquidos se acumulavam
como elemento necessário a um estado mórbido que se acentuava (pp. 50-51).
Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trémulos, num
passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em
chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao
acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo.
Adelgaçados na magreira cómica, cresciam, como se o vento os levantasse. E os braços
afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando.
Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos - doentes da alimentação tóxica - com os
fardos das barrigas alarmantes.
Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais
(p. 38).
Avezados ao eito, nenhum dava por essas penas. Ao invés. Quase todos assobiavam.
Muitos cantavam. Também se adormece a fome, como às crianças, cantando.
Não se queixavam da labuta improdutiva:
- É pra castigar o corpo.
Vez por outra, levantavam os olhos ao céu, não pedindo misericórdia, mas reparando no
sol - a hora do descanso (p. 51).
- E qual a utilidade dessas pedras? Esses braços enfraquecidos pela fome, por que não
os fortalecem e depois os empregam num trabalho útil e com um salário razoável? [...]
- E que veio fazer a comissão de engenheiros?
- Estudar a causa das secas e procurar evitá-las. E sabe quanto vence cada um desses
ilustres científicos? Um conto de réis por mês! Afilhados do ministro, validos dos medalhões
do país.
- E não há uma esperança de melhoramento de sorte?
- Qual, coronel. O Brasil acostumou-se a imitar a Europa, isto é, na legislação. Quem
lê nossas leis admira a liberdade do povo e sua prosperidade. Começamos pela gramática e
acabamos pelo a-bê-cê.
- Haja vista a reforma eleitoral.
- A mascarada do empenho de honra? Tudo se reforma! A política tudo absorve! Os
nossos estadistas amam demais a encenação. Os legisladores dão às leis a maleabilidade da
cera. São feitas para serem interpretadas à vontade do governo. E se é em matéria eleitoral,
então é um verdadeiro escândalo.
-Se cuidassem no que é utilidade, havia tanto que fazer! (pp. 116-117).
vêem obrigados a tentar a sorte nos seringais do Pará: “Essa infração das le
garante aos proprietários dos seringais o meio seguro de fazerem grandes fò
tunas à custa do trabalho do engajado, sempre cearense, que, uma vez lá, muito
difícil libertar-se” (p. 209).
Em A Bagaceira, o próprio caso da punição de Xinane contribui para qi se
configure a maior novidade temática do livro em relação ao que tinha feil o
romance naturalista, e que tanto o aproximará de vários dos romances escr tos
na década de 30: a representação de uma estrutura social cruel que tinf suas
bases na exploração mais selvagem. Aqui não há lei, o que há é a vontai do
senhor de engenho. É daí, inclusive, que nasce a tensão entre pai e filh» sobre a
qual repousará toda a trama do romance. Mais do que a rivalidade n amor de
Soledade, são as diferenças entre Dagoberto e Lúcio que indicam um mudança
na forma de exploração do trabalhador rural no Nordeste. Dagobert é o senhor
típico, mandão, cultivando a terra da mesma forma que os que antecederam
naquela propriedade o fizeram, indiferente à pobreza que o cei ca, capaz de se
alegrar com a seca, que sempre faz os preços dos gêneros subirei e, portanto,
aumenta os lucros. Lúcio, ao contrário, pensa em racionalizar produção e vê com
simpatia e uma boa dose de piedade a pobreza que vive n fazenda. Antes mesmo
da chegada de Soledade não há aproximação possív« entre eles, e o livro se abre
mesmo com a descrição da distância que os afasta, t ligação dessa distância com a
forma de ver o trabalho na fazenda também nã< tarda a aparecer:
Lúcio insistia pela introdução da técnica agrícola. Com os fumos de noções prática:
adquiridas no vale do Paraíba e em usinas de açúcar de Pernambuco, intentava aplica outros
processos de aproveitamento.
Sabia que transformavam terras inférteis em oásis. E via o seu oásis tornar-se sáfarc
Conhecendo que os trechos exaustos já pouco davam de si, indicava uma área mai
repousada nas extremas do latifúndio, terrenos lavradios com fome de sementeiras:
- Na grota funda a cana é de virar.
O senhor de engenho não ia com essas idéias:
- Naquele mundão? Vá carregar!...
E o rapaz, mostrando a cana nodosa e curta:
- O Senhor prefere esse sapé. É mais leve e está em cima do engenho...
Essas intromissões na economia rural o incompatilizavam, cada vez mais, com ( gênio do
pai (p. 50).
O colégio fora o viveiro com duzentos bicos comendo no mesmo cocho e bebendo na
mesma água. (...)
Estava a toda hora com todo o mundo; só não tinha direito de ficar só, de estar consigo
mesmo. Fora o silêncio aterrador de duzentas bocas que se abriam no refeitório, sem falar. O
silêncio indiscreto do dormitório. Fora a babel de duzentas meias-línguas no recreio.
Nesse convívio de portas fechadas, o relógio tinha mais vontade do que a sua natureza:
era o horário do sono e da fome (p. 45).
No entanto, o livro não termina com todo esse otimismo: a obra de Lúcic
não é perfeita - e esse é mais um dos fatores que levam Tristão de Athayde <
valorizar o livro. Lúcio percebe a imperfeição de sua obra, o que confere un
duplo movimento no encerramento do romance. De um lado, uma vaga per
cepção de que a racionalização da vida no campo, imposição vinda de un
homem que só parcialmente pertence àquele meio, carece de autenticidade cria
outros problemas:
icmrnte, pela ignorância da plebe. Lúcio abriga alguns retirantes (na verdade
Soledade e o filho que teve com Dagoberto) na nova seca que acontece, a de
1915, e os brejeiros habitantes do engenho vêm protestar contra a admissão ilos
sertanejos na propriedade:
l.úcio espiou para baixo e viu a estrada coalhada de sertanejos expulsos de suas plagas
pelo clima revoltado.
Voltou-se para a população amotinada:
- A vossa submissão era filha da ignorância e da miséria. Eu vos dei uma consciência e
um braço forte para que pudésseis ser livres.
Relanceou a vista pela paisagem do trabalho organizado. Só a terra era dócil e fiel. Só ela
se afeiçoara ao seu sonho de bem-estar e beleza. Só havia ordem nessa nova face da natureza
educada por sua sensibilidade construtiva.
E recolheu-se com um travo de criador desiludido:
- Eu criei o meu mundo; mas nem Deus pôde fazer o homem à sua imagem e
semelhança... (pp. 162-163).
São aspectos como esse que fazem necessário aquele esforço para que se
consiga entender o quanto seria razoável a reação tão favorável de Tristão de
Athayde a que se refere Luiz Costa Lima. Isso sem mencionar a fatura do livro,
um verdadeiro monstrengo no qual o preciosismo, que revela a mentalidade de
quem considera Camilo Castelo Branco grande escritor por conta do vocabulário
que domina, convive com o registro coloquial, com a fala regional e com a prosa
fragmentária, nominal, próxima à de um Oswald de Andrade. A técnica
narrativa mistura a tendência à descrição palavrosa e pitoresca com o parágrafo
extremamente curto, que simula o corte narrativo modernista. Se em Dentro da
Vida, de Ranulpho Prata, já foi possível localizar um impasse, em A Bagaceira
esse impasse atinge um grau extremo - e não são necessários mais que os trechos
já citados aqui, sem o propósito direto de discutir esse assunto, para que se possa
percebê-lo.
A difícil pergunta que sobra, então, diz respeito à razão de esse impasse, tal
como concretizado em A Bagaceira, ter se mostrado tão fecundo. Um caminho
para respondê-la é verificar de que forma José Américo resolve o problema que
nossa literatura regionalista do início do século levantou com sua exploração do
pitoresco “segundo o ângulo duvidoso do exotismo paternalista” que cria uma
“dicotomia entre o discurso direto (‘popular’) e o indireto (‘culto’)”95. Afonso
Arinos, por exemplo, procura burlar essa dicotomia levando para o
discurso direto praticamente o mesmo registro culto do discurso indireto, como
se percebe em seu romance Os Jagunços:
Lembrando-se ainda de que sá Chica estaria por aquela hora a saborear o triunfo e a
digerir a vingança, a rapariga tinha ímpetos de indignação contra a hipócrita e fementida
enredadeira de Belo Monte.
Estrada afora, um diálogo se travou entre os dois caminhantes.
- Que hei de eu fazer agora? - perguntava a rapariga. — Não tenho mais pai nem mãe
nem marido, nem ninguém por mim. As poucas amizades que tinha, deixei-as em Canudos. E,
agora, vejo-me só no meio deste mundo96.
Coelho Neto, por sua vez, faz com que essa dicotomia se evidencie. En-
quanto o narrador se utiliza daquela linguagem que o transformou num dos
alvos preferenciais de Oswald de Andrade, as falas dos personagens sertanejos
são assim transcritas: “Ocê vai mas é p’r’u ranchu du Casimiro, cabra. Pruveita,
pruveita enquanto u bichu anda longe”97 98.
O desejo de registrar a fala “errada”, de acentuar o exotismo desse “outro”
mundo leva o escritor a exageros como grafar o artigo em “u”. São dois mundos
que não se comunicam em nenhum momento.
Mas nem sempre isso acontece de forma assim tão clara. Nos contos de
Waldomiro Silveira continua a haver essa dicotomia entre discurso direto e
indireto, mas a impermeabilidade não é total. Se por um lado, embora menos
fortemente marcada, permanece a grafia diferenciadora para o discurso dos
caboclos, por outro o narrador já faz um pequeno gesto de aproximação, mesmo
que seja com o intuito maior de carregar no sabor sertanejo da prosa, ao
incorporar um pouco da oralidade à sua própria expressão:
- Ê! Rumana: ’tou vendo que a missa me escapa! O pobre do Grande é que havéra de
ficar bem xaví, si não me visse agora. Logo mesmo agora...
O Antônio Grande, que bebia os ares por ela, desde o milho verde do ano atrasado,
esperava só acabar o empreito de formação duma invernada de morro a morro, par.i pedi-la
em casamento. O empreito havia de ser entregue por aqueles dias, e no dia da lesta ele queria
sair com ela da igreja (u’a maneira de dizer), rasgar a guaiuvira para o I.ucas das Posses, e
tratar dos papéis o mais depressa possível".
Neste texto, a grafia do discurso direto conserva muito mais as carai In i*.
ticas da norma culta do que no conto de Coelho Neto - o artigo continua
•.nulo "o" nnbora também se grafe “’tou” ou “si” ou “xaví”. O resultado é i|tu- .<
(limimii um pouco o exotismo da fala do caboclo. Quanto ao discurso indi ido, é
sintomático que o autor cuide de evitar certas colisões sonoras I "II'.I maneira”)
ao mesmo tempo em que se utiliza de expressões como “bebía os ares por ela” ou
99 Lúcia Miguel Pereira chega mesmo a afirmar, com exagero, que Waldomiro Silveira soube,
“respeitando a correção gramatical, evitar as tão desagradáveis e comuns soluções de continuidade
entre o estilo do autor e de suas criaturas”. V. Prosa de Ficção (De 1870 a 1920), p. 197. Ela também
supervaloriza esse aspecto da prosa de Mam^l de Oliveira Paiva que, não obstante a naturalidade
que obtém, faz as personagens de Dona Guidinha do Poço falarem coisas assim: “Vão vê que o cabra
fez muito bom negoço”. V. Manuel de Oliveira Paiva, Obra Completa, p. 61.
ANTKS DE 30 • 07
3. UM OUTRO PRECURSOR
A Quadragésima Porta, do sr. José Geraldo Vieira, pertence a uma certa atnuedei literária
que não foi perturbada pelo movimento renovador de Trinta, tendo lido a su origem na
100 Rachel de Queiroz, por exemplo, garante que não havia lido A Bagaceira quando CM I >
<■ •
O Quinze. V. entrevista publicada em Cadernos de Literatura Brasileira, set. 1997 (4), p ''
i • U M A H ISTÓRIA DO ROMANCE DE 30
- O seio de uma mulher que não é sua, dizia aquele amigo [Léo], é apenas um iotivo de
excitação, que você utiliza unicamente nesse fim; na hipótese mais espiritual jderá ser uma
visão de pura estética, uma admiração pagã pela forma perfeita, mas é i isso. Não se pode
comparar com o profundo respeito pela glândula nutritiva que imenta o seu filho.
- E quando não existe o filho? tinha perguntado André vivamente.
- O filho já existe desde o primeiro olhar, e ainda para os que esperam até o fim da da, ele
esteve sempre presente (p. 116).
Toda a vida de André Lins é a busca nos trópicos, um ambiente em que ido
chama pelos sentidos, por um amor moral nessa acepção. O que^o impe- : de
consegui-lo é, além da sua própria inclinação sensual, seu espírito escrutador,
que não consegue viver as experiências sem analisá-las. Em cada n dos cinco
capítulos temos a relação fracassada de André com uma mulher ferente. No
último capítulo, estando muito abalado, André volta à sua pro- ncia natal, no
nordeste, onde acaba se casando com uma moça chamada Iara. Com esse
casamento ele, ao mesmo tempo em que satisfazia o desejo de a mãe, de que
permanecesse na província, buscava o fim de sua inquietação:
101 Antonio Cândido, “O Romance da Nostalgia Burguesa”, Bagada Ligeira e Outros Escri- p. 33
102 Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, vol. VI, p. 463.
ANTES DE 30 • 99
(» iqu lioíçoamento dos seres sofre assim desses relativismos; bem diversos são os íiiiinluis
para a perfeição específica; há um ideal para as árvores grandes e livres, de niiilri.u rm e
crescerem, e alcançarem as proporções dos baobads indianos, e há um • I para as árvores anãs,
nas mãos pacientes dos jardineiros chineses. A [irmã] mais Ilm linha realizado a intenção de
sua linha racial. André procurava compará-la (neces- ilatle de justificar o seu bom-gosto) com
uma figura de algum pintor célebre, mas ilelizmcnte não conseguiu achar ninguém que
houvesse pintado um ser como esse, de ta seleção crioula, que tivesse assim esse corpo
fragílimo, sem tecidos supérfluos, todo .•xível e essencial, e esse moreno de pele que se atribui
um colorido exclusivo, e esses aços afilados do rosto, que realizaram um sentido de maciez e
suavidade sem o auxílio is linhas curvas e das massas (p. 25).
Há aí uma visível tensão entre aquele fascínio pela cultura européia e uma
ercepção de que é preciso escapar a esse mesmo fascínio. Se, por um lado, ndré,
como que para validá-la, sente necessidade de reconhecer a beleza bra- leira da
mulher em alguma criação da alta cultura, gesto típico desse fascínio, á por outro
lado, em primeiro lugar, a voz dissonante do narrador, apontan- o a
artificialidade dessa tentativa e, em segundo lugar, a falência do próprio
ersonagem, que acaba constatando estar diante de uma beleza outra, não
ncontrada no seu repertório de moço de bom gosto. Enfim, estar “sob o olhar
íalicioso dos trópicos” não é problema simplesmente porque se vive um exílio
0 mundo da verdadeira cultura. A dificuldade é muito mais ter que criar, endo
fruto intelectual da Europa, uma forma tropical de ver o mundo e o róprio
trópico.
No movimento geral da narrativa, essa leitura se confirma, seja porque s
dissonâncias desse tipo entre narrador e personagem são numerosas, seja nesmo
pelo fracasso do personagem ter sua origem justamente na sua incapacidade de
optar definitivamente pelos trópicos. Compare-se o destino de indré Lins ao de
Paulo Rigger, do livro de estréia de Jorge Amado, O País do Zar naval. André
enlouquece, enquanto Paulo Rigger volta a viver na Europa, numa clara fuga,
pedindo a Deus para ser bom. Ambos apontam para o mpasse que representa,
para uma certa classe, ser brasileiro. Ambos fracasan! na tentativa de sê-lo. Mas
um fracassa pela desistência e o outro por ívar sua tentativa até as últimas
conseqiiências. Aí está, em grande medida,
1 significado de Sob o Olhar Malicioso dos Trópicos: ser a concretização de im
desejo, ainda que difuso, de construir alguma coisa de próprio em nossa ultura e
em nossa literatura.
Isso se torna mais perceptível quando vemos quedem rápidas pinceladas, >
narrador nos dá a exata localização histórica e social de André, que é mais
ANTES DE 30 • 101
Essa “linguagem colorida” não seria aquela a que José Lins do Rego daria
estatuto de linguagem literária privilegiada pouco tempo depois? Muito pro-
vavelmente. Além disso, as marcas do cativeiro recente apontadas se aproximam
do tipo de assimilação que Gilberto Freyre assinalaria em Casa Grande &
Senzala. Mas tudo isso aparece registrado através de um olhar romântico
pretensamente sofisticado, organizado por um narrador que, apesar daquelas
dissonâncias referidas, não vai assim tão longe de André. Ou seja: tudo em Sob o
Olhar Malicioso dos Trópicos contribui para dar uma impressão geral de dúvida.
Dúvida semeada pelo narrador, dúvida cultivada pelo protagonista - e uma
dúvida insolúvel que conduz à inconsciência apenas e mais nada.
Dessa maneira, os romances tão diferentes de José Américo de Almeida e
Barreto Filho acabam se encontrando em alguns pontos - mais ou menos os
mesmos em que se encontrariam os aparentemente incompatíveis romances
social e psicológico dos anos 30. O primeiro desses pontos é a colocação da
discussão de um problema - social ou moral, mas sempre um problema, no
sentido em que Antonio Candido usou a palavra - que já aparece anunciado
III) • UMA HISTÓRIA 1)0 ROMANCE DE 30
Seria, pois, válido, avançar a hipótese de que a ampliação dos temas nos romances : explica
fundamentalmente pela definição progressiva das intenções políticas do autor, litando
Salgado termina de escrever O Esperado, a formação de um movimento ideoló- ico já estava
em seus planos desde seu retorno da Europa, enquanto O Cavaleiro de 'araré aparecerá dois
meses após a fundação da Ação Integralista, com evidente vocação olítica' 1.
um “dogmatismo marxista” que ele mesmo, de certa forma, desmente, ao assinalai o qimnlo o
personagem principal, Ernesto, é ainda um inquieto. V. Tristão de Athaydc, Estudo* Serie,
pp. 72-74.
7. V. a esse respeito Jorge Abrantes, O Pensamento Político de lackson de Figueiredo, e
Francisco Iglésias, “Estudo sobre o Pensamento Reacionário: Jackson de Figiirucdn", IhtlArin r
Ideologia.
101. • UMA HISTORIA DO ROMANO-! DE 30
.it< < crio ponto fragmentária, sem a preocupação de seguir modelos consa- gi
.idos do século XIX e numa linguagem que Agripino Grieco chegou a ca- i.u leí
izar de ascética111. De fato, há momentos em que parece estarmos lendo mn
relatório. É como se o próprio romance, ao mesmo tempo em que sublinha a
ineficácia do individualismo, estivesse ainda indefinido, como se dar mu
destaque especial a uma ou outra busca pudesse romper precipitadamente essa
inquietação que, na verdade, é preparação para algo. Se o fascismo não chega a
ser cogitado por nenhuma personagem, a opção comunista ocupa lugar
importante no livro e ajuda a caracterizar o inoportuno de urna ação precipitada
nesses tempos de indefinição. Alfredo Tavares era comunista e por isso se
destacava - não pelo comunismo em si, mas porque trocara a inquietação por
urna certeza: “Os rapazes admiravam-no e aplaudiam-no. Sobretudo, ele já
conquistara uma convicção e agia para ela” (p. 61).
O mais entusiasmado desses admiradores, Benvenuto Caminha, era um re-
voltado que, sem o apoio numa convicção sincera, acaba precipitando as coisas e
promovendo uma luta armada que leva Alfredo à morte, enquanto ele próprio
foge. Esse fracasso não é o fracasso do comunismo em si, mas de uma ação sem a
legitimidade que somente o amadurecimento da convicção poderia dar.
O culto ao passado também parece ser uma solução que se apresenta. Há
mesmo uma referência direta ao movimento regionalista de Gilberto Freyre, o
que também indica o quanto Inquietos tem de uma literatura que, mais do que
pensar na posteridade, quer operar sobre o instante presente, participar de um
debate vivo. Paulo Garcia, a personagem que costura o livro, já que sua história
abre e encerra o romance, é quem vai se aproximar temporariamente do
movimento: “No Recife, alguns rapazes começavam a defender umas doutrinas
de tradicionalismo e regionalismo. Ele pensou então que isso devia ter um
sentido profundo e se inclinou para essas tendências. Mas, era uma escola lite-
rária como as outras, e ele não tinha nada com literatura” (p. 13).
Paulo Garcia não encontrará seu caminho até o final do livro e acabará
fazendo algo parecido com o que outro Paulo inquieto - o Rigger, de O País do
Carnaval - faria: fugir, sair do Brasil. O tradicionalismo aparece como solução, e
falsa solução, para um outro rapaz, Flávio Ribeiro. Desencantado com a morte
da noiva, no Rio de Janeiro, ele volta para a velha casa dos pais, em Olinda.
Vivendo ali, formula o pensamento de que naquela arte antiga e anónima que o
passado deixou de herança para a cidade está o que o Brasil tem de
melhor. Essa visão o acaba levando a um esteticismo vazio que o consola, como
poeta, na composição de versos que remoem essa glória passada. Num curto
diálogo com Eugênio, depois de este apontar os limites da poesia do amigo,
temos a síntese da visão de Flávio e sua crítica:
Aquele franciscano humilde vivia preso à história da sua terra, desde o começo, desde a
chegada do descobridor, e arrastava consigo o culto da raça a um Deus que fora herdado de
Portugal, da civilização européia que nos criara. Ele representava, através de todas as idades, a
religião, e a religião colocava evidentemente um desejo do mais alto e do mais puro nos
espíritos que andavam sobre a terra, formulando uma alma só no aglomerado confuso dos
homens egoístas (p. 153).
Dá-se em seguida uma cena que lembra, com sentido inverso, o final de A
Estrela Sobe, de Marques Rebelo, publicado dez anos depois. Se Leniza vai em
direção a uma igreja, encontra-a fechada e percebe que ela própria não saberia
rezar, que a solução para a vida dela era lutar, Eugênio vai em direção ao
convento e encontra a igreja aberta e nela entra. Ouve os monges rezando e
também reza. No meio daquela oração em latim, pensa ouvir um refrão de sua
infância: “No céu, no céu, no céu/ Com minha mãe estarei”. Aqui, catolicismo
ancestral, na visão de Eugênio atemporal, funde-se a uma ligação com a rcgiãt»,
com a cultura popular. É impossível deixar de pensar em alguns poemas que
Jorge de Lima publicou no mesmo ano, em Novos Poemas, e um pouco depois
em Poemas Escolhidos (1932), que antecederam sua conversão definitiva ao
catolicismo, só anunciada em 1935112.
112 V. poemas como “Diabo Brasileiro”, “Louvado”, “Flos Sanctorum”, de Novos Pormos, c
Mi# • l'MA lll'.lOUIA DU ROMANCE DE 30
O que você anda sentindo eu já conhecia pelo pensamento. O que se dá com você é o
seguinte: Veio vivendo como nós todos, os brasileiros de hoje, no meio de um progresso
totalmente sem alma. Costumes incaracterísticos, arquitetura banalíssima, teorismos exó-
ticos... Temos fé? Quem sabe?... Pensamos? Queremos ganhar dinheiro por qualquer meio. E
do esforço para ganhar dinheiro pura e simplesmente, nunca vem uma civilização! Não
sabemos por onde andam nossos elementos vitais, as forças ordenadas e fecundas que sustêm
os homens (pp. 110-111).
Vamos errados. Os problemas máximos que nos hão de devorar, como a Esfinge
ameaçava ao desgraçado Édipo, não são o problema do câmbio, nem a carestia da vida, nem
tantos outros que se nos patenteiam, cada qual mais hiante no terreno político ou social.
O problema dos problemas, aquele que os cegos adoradores de Mammom não vêem,
deslumbrados pelos reflexos de ouro, ou quiçá pelo dilúvio do papel inconversível, o nosso
maior problema entre os maiores é o religioso...10
sua volta para a Europa fez com que a crítica, não desprovida inteiramente de
razão, a elegesse como a protagonista do livro, a personagem na qual se
concentraria a tal mensagem da obra. Lido dessa maneira o livro poderia sim
parecer apontando para a religião como a cura do terrível mal da dúvida já que,
como já se mencionou aqUi> paulo Rigger termina sua experiência brasileira
voltando-se para o Cristo Redentor desejando ardentemente crer115.
No entanto, a trajetória de Paul Rigger é invadida pela de outras perso-
0
115 Não se pode deixar de mencionar também que, na lógica das personagens do romance, hã
uma casta de homens superiores, à qua] pertencem os intelectuais, que se distinguem, como a água
do vinho, dos homens comuns. Ora> ¡sso corresponde a uma das linhas de raciocínio de Jackson de
Figueiredo e é uma lógica da qual parte Octávio de Faria já em seu primeiro livro, Machiavel e 0 Brasil,
também de 1931, qne ¡rja culminar na proposição, feita em Cristo e César, de 1937, de que somente os
tais homens superiores teriam o direito de aspirar à liberdade. É, portanto, perfeitamente
compreensível que os leitores aproxdflassem esses autores e considerassem lorge Amado um jovem
autor católico, como também se definia Octávio de Faria.
A 1NQUIETAÇÀ0: 30 ANTES DA POLARIZAÇÀO (1930-1932) * 1 1 1
E cada um dos membros desse grupo julga encontrar esse fim. Ricardo Braz
pensa que encontraria a felicidade no amor. Casa-se e vai morar no interior do
Piauí - onde não é feliz. Jerônimo, que não é um homem superior, apenas um
simples atraído pelo brilho de Ticiano, abre mão dessa influência e vai viver,
com alegria, ao lado de uma ex-prostituta vocacionada para esposa dedicada, e
termina sentindo necessidade de ir à missa, reencontrando, com a felicidade, a
religião. José Lopes, o único romancista entre eles, depois de fracassar na busca
de seu fim na filosofia e na religião, decide-se, é verdade que sem grande
entusiasmo, pelo comunismo. Paulo Rigger, como já vimos, deseja a via
espiritual, católica. Se houve algum equívoco de leitura na época do lançamento
do livro, foi o de se minimizar esse caráter múltiplo do romance, que não fixa
muito um único personagem principal: em O País do Carnaval Jorge Amado
repetiria um pouco a experiência de Luís Delgado, ensaiando, é claro que num
sentido muito diferente, aquilo que o obcecaria algum tempo depois, e que ele
tentaria resolver com Suor- a criação de um romance coletivo.
Quem lê o livro hoje tem sua atenção chamada para o fato premonitório de
a única personagem escritor ter optado pelo comunismo, seguindo exatamente o
caminho que o autor trilharia logo em seguida. Esse é um dos elementos que
marcam uma grande diferença entre o ambiente deste romance e o de Sob o
Olhar Malicioso dos Trópicos. No livro de Barreto Filho, todo o problema está
na esfera individual e não se cogitam soluções fora desse âmbito. Nem se fala em
materialismo e catolicismo, em comunismo e fascismo. Já em O País do
Carnaval essas soluções são as únicas possíveis. A solução individual, pela via
amorosa, é o maior de todos os fracassos. Somente a inserção num corpo maior -
uma corrente filosófica, um partido ou igreja - aponta chances razoáveis para a
obtenção, no final das contas, da felicidade pessoal.
Essa diferença também indica a distinção entre duas gerações. Paulo Rigger
ainda é uma espécie de André Lins e, em alguns momentos, sente o mesmo tipo
de insatisfação que ele:
Inteligente, [Gomes] pensava que o dinheiro saciaria a sua insatisfação. E não sabia como
o dinheiro aborrece às vezes. Ele, Paulo Rigger, tão rico, que o dissesse... O dinheiro serve
apenas para satisfazer os instintos... E o instinto (por mais que Paulo Rigger tivesse vontade
de negá-lo não podia) não é tudo na vida (p 157).
2. SAINDO DA DÚVIDA
116 Não é absurdo ler O País do Carnaval como uma espécie de autobiografia geracional. A
primeira vez em que Jorge Amado deixa isso publicamente claro é na apresentação que escreveu para
Corja, romance de João Cordeiro, onde menciona a Academia dos Rebeldes, grupo de intelectuais de
Salvador em que pontificava Pinheiro Viegas, que, a exemplo de Ticiano, era o intelectual mais
velho, cético, que ia ficando cego, e no qual navia um rapaz que, a exemplo de Ricardo Braz, fora
para o Piauí. V. Jorge Amado, “Apresentação de João Cordeiro e Policarpo Práxedes”, prefácio a João
Cordeiro, Corja, pp. xi-xv.
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 113
117 Num depoimento de 1971, José Geraldo Vieira diria: "Ora, eu urti» io ■ ' im I Jouli nem em
Minas, nem no Sul, nem no Rio de Janeiro, onde aliás fui registrado r batl/ado ao* 11e•. meses de
idade. Nasci na Atlândida, nos Açores, sou gémeo, meu mano moiii ii > om tiniu im ,
de idade, Jierdei dele a incumbência de ser seu double, antipóstumo. l’or .... .......... Invi'-, ile li .....
locais, ecológicos, trato de temas universais, do meu quadrivio existencial " I .inatido ( itti in«,
Geraldo Vieira no Quadragésimo Ano da sua Ficção, pp. 99-100.
114 • UMA HISTORIA 00 ROMANCE DE 30
Nas suas andanças atrás de dinheiro, Mário tem que se ha ve r com eles e há uma
longa cena em que se narra um encontro seu com um deles. São três páginas de
horror as dedicadas a essa figura, que chegam ao detalhe intencionalmente
abjeto:
Ajeitou-se para ouvir ou fingir que ouvia a lamúria, fez um ar de quem extrai raízes
quadradas de cor; enfiou um fósforo no ouvido e o foi rolando jeitosamente. Ao cabo de uns
minutos, enquanto Mário falava, retirou o fósforo, olhou a extremidade onde uma massa dúctil
e avermelhada aderira e o limpou na superfície dum mata- borrão, obliquamente. Depois, com
o mesmo espírito ausente, com aquele ar com que ouvia e debochava sujeitos que mandava a
protesto, pôs-se a curetar as unhas cor de nicotina, raspando-as ferozmente, bufando (p. 72).
Atitude moral e atitude física se igualam nessa figura para a qual a limpeza é
apenas a exposição da sujeira, jamais algum tipo de purificação, mesmo precária.
O vocabulário escolhido é o mais intencionalmente chocante possível: a cera do
ouvido se transforma em “uma massa dúctil e avermelhada”. Mas o melhor
exemplo é mesmo o uso deslocado de um termo médico, palavra cheia de
referências mórbidas, “curetar”, ao invés de “limpar” ou “raspar” as unhas. Sem
mencionar, é claro, a atitude de total indiferença do agiota diante de um rapaz
digno de piedade cuja miséria foi em grande parte agravada por ele mesmo.
O dinheiro está mesmo no centro dos problemas vividos pelos personagens.
Mário está preso ao jogo não apenas por uma espécie de desvio moral ou uma
“doença da vontade”, como ele próprio a classifica, mas também pelo anseio de
lucro, confessado a Lúcia logo no início do romance:
destino nem a minha sorte, embora merecesse cem vezes mais” (p. 6 8 ).
Logo se percebe que Lúcia é uma espécie de representante do que há de bom
e correto no mundo. Do lado oposto ao bem que Lúcia representa não está Mário,
apenas um infeliz, mas o homem rico, o próprio Nuno, que se apaixona e vai fazer
uso do dinheiro para chegar a ela. Contrata-a como preceptora da filha e, nessa
condição, ela passa a viver com a família. Mas, sobretudo, ele lança mão de todo
tipo de estratagema para manter Mário em Paris, incumbindo um alto empregado
seu de dar dinheiro para ele se manter por lá, assegurando- se, <• claro, de que
esse dinheiro nunca seja suficiente para que ele tome um navio de volta. Faz,
além disso, todo tipo de jogo sujo, usando de sua influência para que o consulado
brasileiro não forneça uma passagem de terceira para Mário voltai ou destruindo
a única carta que ele escreve para Lúcia. O curioso é que mesmo Nuno reconhece
nela aquela superioridade moral que Ana Maria apontara e isso o atrai, numa
espécie de ânsia de elevação:
Sabia que essa mulher era inatingível, duma escala imponderável, duma hici .1 rquin ■ I.
símbolos raros. Via nela, o prestígio dessas serenidades de exceção. Nunca lhe otis.it .1 dizer
coisa alguma, porque qualquer louvor a macularia, e em toda essa lula pai a a alcançar
pressentia o esforço do escravo para atingir a nobreza, o sacrilégio d< 11»ag.li»pa 1 a entrar num
tabernáculo (p. 316).
1 1 <•iiir. mide passara a infância e pela sugestão bíblica de sua fuga, que reto-
Sempre combativo; poucos homens já procuraram com tamanho esforço e com tamanho
afinco os esconderijos da Verdade. Esteve nos centros metalúrgicos da Alemanha, nos altos
fornos da Bélgica (se agora foi lá fazer conferências é para se penitenciar da cizânia que lá
plantou em tempos), nas fábricas do norte de França, desceu às minas da Inglaterra, pregando
doutrinas subversivas. Era um novo Vulcano iracundo, ele que havia sido um Apolo...
Antigamente, em bailes de embaixadas e recepções no Quai d’Orsay ele tinha conversado com
embaixatrizes e duquesas sobre Spencer e Carlyle; depois, nessa peregrinação pelos centros
proletários, quis incutir Engels e Marx nos operários... Vendeu suas coleções de arte para
mobiliar sedes de comités revolucionários. Há dois anos que não sei dele, mas a conversão data
já de mais de sete. Não falei ainda com ele nessa última fase, mas deve estar mudado,
decadente, místico, irremediavelmente perdido... (p. 231).
- Quando chegares ao Rio vais ter o trabalho de juntar todo o material sobre esse singular
Jackson, morto há um ano.
Mário não sabia de quem ele falava. Disse que sim, vagamente (p. 246).
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 117
Essa era a hora em que, nos quarteirões quietos, de dentro das vidraças, as famílias
espiavam o aguaceiro, mostrando-o aos filhos, que o clangor da tempestade acordara, falando-
lhes de barcos de papel, sem se lembrarem que talvez estivessem desabando pardieiros com
operários e crianças por esses morros e subúrbios, aluindo barreiras sobre estalagens de pobres,
soterrando velhos mendigos e animais de olhar resignado... (p. 119).
figuras híbridas, metade gigantes e metade escravos, que, em grupo, consertam, n.i hora plácida
das noites estivais, o asfalto das ruas e os trilhos da Light. (...) Suados, tom brl lhos de bronze
recém-lavado nos torsos nus, com os músculos retesados, pare i iam obe
d« , ri ,io comando bárbaro dum feitor invisível. (...) Eles sâo irmãos desse homem lúgu- bir que
.ii vem, sob a chuva, e são descendentes e herdeiros dos escravos que levantaram .is
pirâmides, dos prisioneiros que remaram, algemados, nas galeras do Mar Interno, dos mrn
diário* que represaram mares junto aos istmos históricos, dos párias que construí- t.im os arcos
do triunfo e os templos de altos frontões triangulares (pp. 113-114).
120 Peregrino
Júnior, “Sobre aiguns livros”, Lanterna Verde, maio 1934 (1), ,,f» ,|2
O que André propõe, como se vê, é uma espécrê de apartheid social em que
cada grupo se comportaria moralmente bem para poder viver em socie
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 121
122 De fato, para se justificar essa idéia, é comum ver citadas as palavras de < Tinto
M'Riindo iin quais “pobres sempre haverá”. Trata-se possivelmente de menção a uma
pnssugein do evangelho di São Mateus: “Com efeito, pobres sempre os tereis convosco, a mim,
porém, não me In eis •.empo" (Mt. 26, 11).
I I • UMA HISTORIA DO ROMANCE DE 30
nos ou sociais, para o egoísmo que avassala o mundo, nas filosofias sem >nis,
iiiis talhas do humano cérebro. Cristo deu a fórmula única, concisa e ui In pura
curar estas lepras: - ‘Amai-vos uns aos outros’ ” (p. 362).
() mais desconcertante, porém, neste livro, é o fato de ele, apesar de toda ua
identificação com algo que se opõe à solução de esquerda, ter vários ele- nentos
que farão dele uma espécie de precursor do romance social de esquerda |uc se
tornaria moda pouco tempo depois. Além dessa ênfase no problema - e mma
proposta de solução - o livro quer ser um documento da vida dos operá- ios, e
mais: feito de dentro, por um autor que se diz operário, como se todo o omance
fosse uma espécie de autobiografia em terceira pessoa. O livro contém im
prefácio, que tem o curioso título de “Justificando as Razões de um Porquê”, :m
que se lê:
Quis, na novela que segue, fixar impressões. Relatei, como pude, o que senti, o que vi :
ouvi entre colegas de vida, por parecer-me interessante e não tentado ainda, em língua lossa,
por operário.
Além de questões propriamente gramaticais, há falhas, bem as percebo: - assuntos episados
por mais de um personagem; matéria fastidiosa para as classes alheias, déphasage esultante da
incultura do montador.
As duas primeiras não sei como as pudesse evitar; as coisas, com maior ou menor dose le
fantasia, correram assim mesmo. Se pudesse corrigir a outra, não seria ferreiro (p. 7).
Já a segunda parte (vida dos operários no Rio) não me agrada. O sr. Lauro Palhano orce o
sentido do livro, torce a vida dos seus heróis e termina o volume em pleno socia- ismo cristão
(amai-vos uns aos outros...). Faz o operário fugir do caminho de revolta xira cair na
conformação que os padres pregam. Aí sente-se a falsidade do livro. O autor que tanto clamou
contra a situação de miséria do operariado se conforma com ela. Talvez que ao terminar a
fatura do seu romance, o sr. Lauro Palhano não fosse mais operário... 123
123 Jorge Amado, “O Gororoba”, Boletim de Ariel, dez. 1933 (III, 3), p. 71.
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 123
Não só não era mais como nunca fora, já que, segundo Temístocles Linhares,
era o engenheiro mecânico Juvêncio Campos escrevendo sob pseudónimo124. De
qualquer forma, expresso em termos de oposição ideológica, como “falsidade”,
Jorge Amado percebe o caráter não-revolucionário do livro, da mesma forma que,
por identificar simples tematização da vida dos operários com posição
revolucionária, atribui à primeira parte do volume um clamor contra a miséria,
dando conta da ambiguidade tremenda que esse livro ganha quando visto sob a
ótica de uma incompatibilidade absoluta, sem qualquer zona de comunicação,
entre religião e pensamento de esquerda que não estava ainda presente no
momento em que o livro foi lançado, mas que se torna central quando ele é
apreciado por um jovem intelectual já imerso num ambiente de cerrada
polarização. Eis aí, num golpe rápido, o resumo das diferenças entre o ambiente
literário brasileiro em 1931 e o de 1933, os anos 30 de O Gororoba e os anos 30 de
Cacau.
Por outro lado, Jorge Amado aponta, no tipo de linguagem forjada por Lauro
Palhano, um impasse entre o despojamento e a ornamentação que o remete a A
Bagaceira: “Sofre este romance de um mal que aparece também na Bagaceira.
Como o livro do sr. José Américo, O Gororoba tem trechos escritos na mais
saborosa linguagem brasileira e páginas em português puxado a clássico, caindo
na retórica tola dos discursadores baratos”125.
Não é muito fácil achar as páginas em que a “saborosa linguagem brasileira”
prevalece. Nesse sentido, O Gororoba não vai tão próximo assim de A Bagaceira
e, apesar de o autor dizer-se operário, não deixa de grafar a fala de outros
personagens desse meio com a devida diferença em relação ao narrador:
“Vamincê bota a manjuba nágua. O pexe acode friviando, uns pro riba dos otos,
mode cumê. É o engodo. No mió da festa vamincê arrocha a tarrafa: - vápote! e
bóta no samburá!” (p. 153).
Para este romance conflui um conjunto de elementos significativos, mas que
não encontram nenhum tipo de síntese - nem ideológica nem artística. No plano
ideológico, ele explora um certo desejo de assistir à libertação do prole tariado,
mas sem incluir nesse desejo a necessidade de mudança das estruturas sociais. No
plano da construção, forja, através do prefácio, uma situação nnr rativa de
autoproclamada sinceridade, em que o narrador adere aos valores de suas
personagens, anunciando até mesmo que cometeria “erros gramai i cais” por ser
um deles, mas que, na fatura concreta da obra, acaba se consti
Unido cm uina terceira pessoa distanciada, localizada num plano superior, |iu .( .(
|ui . 1 de seus personagens pela própria linguagem, e chegando mes- lin .i clcgcr
como porta-voz não um operário, como era de se esperar, mas im médico
convertido em frade.
N.lo são surpreendentes, mais uma vez, os - pelo menos para os olhos de io|c
equívocos de Agripino Grieco, Heitor Marçal e Peregrino Júnior que, •m seus
artigos, construíram uma imagem global do livro a partir de um de leus elementos
apenas, aquele que mais chamava a atenção à época, sua temática >perária -
repetindo, em outro sentido, o ocorrido com O País do Carnaval. E, ¡e são ou não
equívocos, servem da mesma maneira para indicar a novidade |ue O Gororoba
representou para a literatura brasileira naquele momento. Um confronto com O
Quinze, publicado em 1930, certamente o mais ruidoso sucesso do período, vai
pôr em relevo a novidade que representa a simples colocação do operário e de seu
meio no centro de um romance, já que mesmo num livro que pareceu muito novo
aos olhos da mesma crítica que no ano seguinte leria O Gororoba, as personagens
pobres não têm ambiente próprio, apenas gravitam em torno daqueles que, de
uma forma ou de outra, mais ou menos abastados, isso não importa, pertencem à
elite.
3. NOVIDADE E VELHARIA
126 Rachel de Queiroz menciona em suas memórias o contato com Graça Aranha. V.
Rachel de Queiroz, Tantos Anos, pp. 31 e 45.
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 125
Bom trabalho, sem dúvida, exatamente porque quase não é literatura, porque a autora,
avessa a armar tempestades no tinteiro, conduziu, talvez sem pretendê-lo, uma ofensiva contra
os lugares comuns da seca e do dramático cearense e, não realizando meeting em favor dos
flagelados, realizou algo de mais humano, que o Brasil todo pode ler e entender. [...] Numa
adolescência graciosa de tom, a narradora surpreende-nos, não pela novidade que inventa, mas
pela novidade que tira da velharia |... |
Um ano...
Dois anos...
Três anos... (p. 221).
Só Conceição, com o claro brilho de sua graça, alumiava e floria com um encanto íovo e
fino, o rude aspecto de sua vida.
De começo, o intimidara. Supôs que o visse com o mesmo olhar de compassiva
luperioridade do irmão, quando falava em sua existência elegante de moço chique, e iludia às
suas preocupações intelectuais. [...]
Só pouco a pouco foi verificando que a prima o fitava com grandes olhos de admira - :ão e
carinho; considerava-o, decerto, um ente novo e à parte; mas à parte por sua nagnífica
superioridade de varão forte, ciente de sua força, desdenhosamente ignorante las sutilezas em
que se engalfinham os miseráveis de corpo e os bizantinos de espírito, imesquinhados pelo
intrigar, amarelecidos pelo tresler... (p. 65).
- A Chiquinha me contou também uma coisa engraçada... Engraçada, não... tola... )iz que
estão falando muito do Vicente com a Josefa do Zé Bernardo...
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 127
Por mais que, em seguida, Dona Inácia atribua a revolta da neta à idade,
lembrando que ela própria tivera desses rompantes, essa oposição marca a
diferença entre o sertão e a cidade. Afinal, a avó superou esses rompantes e
passou a considerar natural o comportamento sexual dos homens de seu meio,
enquanto Conceição não consegue aceitá-lo. Na verdade, esse é apenas um
aspecto da sua relação com Vicente e o que Conceição faz, um pouco à maneira
das heroínas dos primeiros romances de Machado de Assis, é raciocinar e antever
no que daria um casamento com o primo. Colocando o sentimento de lado,
procura figurar o que seria a vida prática na companhia de Vicente:
'.cu (oiisulo é poder ser mãe adotiva de um afilhado, Duquinha, o filho m.ir. novo
de Chico Bento:
Srt I.I sempre estéril, inútil, só... Seu coração não alimentaria outra vida, sua alma não M
1'tolongnria noutra pequenina alma...
W
A vista do menino adoçou-se a amargura no coração da moça.
I’assou-lhe suavemente a mão pela cabeça; e pensou nas suas longas noites de vigília,
quando Duquinha, moribundo, arquejava, e ela lhe servia de mãe. Recordou seus cuidados
infinitos, sua dedicação, seu carinho...
E, consolada, murmurou:
- Afinal, também posso dizer que criei um filho... (pp. 226-227).
Minha tia resolveu que não chovendo até o dia de S. losé, você abra as porteiras e solte o
gado. É melhor ter logo o prejuízo todo do que andar gastando dinheiro à toa em rama e
caroço, pra não ter resultado. Você pode tomar um rumo, ou se quiser, fique nas Aroeiras, mas
sem serviço na fazenda.
Sem mais, do compadre amigo...” (pp. 31-32).
128 Compare-se a atitude de dona Marocas com a resposta exaltada de Vii enle a dona In.a
la, quando ela pergunta se ele não vai fazer o mesmo: Não, senhora! Nem que eu me ,n abe, II.IO
solto nenhum! Já comecei, termino! A seca também tem fim...” (p. III),
in • UMA HISTÓRIA DO ROMANCE DE 30
Boca dc ceder! Cedeu, mas, foi mão lá, mão pra cá... O Paroara me disse que imim laltou
pro custo da tarifa... Quase não deu interesse...
(¡hlco Bento cuspiu, com o ardor do mata-bicho:
(lambada ladrona! (pp. 44-45).
C lomo se pode ver, aqui nem mesmo o velho ataque ao governo se faz. A .
orrupção é um caso mais pessoal ainda do que em A Fome, embora, no geral, dos
dois livros fique a idéia de que a gestão moralmente correta dos recursos públicos
na ajuda aos flagelados da seca seria suficiente para resolver os problemas, e,
portanto, não há qualquer estrutura que precise ser modificada.
Depois desse primeiro obstáculo, Chico Bento tem diante de si o caminho
inóspito pelo sertão que o levará de Quixadá a Fortaleza. Ao trilhar esse caminho,
deixa para trás a cunhada, que acaba aceitando trabalhar para uma doceira de
estação de trem em troca de casa e comida, um filho fugido com os ciganos e um
outro morto por ter comido mandioca brava crua. A morte do menino, o Josias, é
bem um exemplo da novidade tirada da velharia a que se referiu Agripino Grieco.
Veja-se, inicialmente, o trecho em que temos Josias encontrando e comendo a
mandioca:
Ele então foi ficando atrás, entrou na roça, escavacou com um pauzinho no chão, numa
cova, onde um tronco de manipeba apontava; dificultosamente, ferindo-se, conseguiu topar
com uma raiz, cortada ao meio pela enxada.
Batendo de encontro a uma pedra, trabalhosamente, arrancou-lhe mais ou menos a casca;
e enterrou os dentes na polpa amarela, fibrosa, que já ia virando pau num dos extremos.
Avidamente roeu todo o pedaço amargo e seco, até que os dentes rangiram na fibra dura.
Atirou ao chão a ponta de raiz, limpou a boca na barra da manga e passou ligeiramente
pela abertura da cerca (p. 80).
♦
A extrema simplicidade da narração, feita sem qualquer emoção, é o que a
torna forte em sua dramaticidade. Marcantemente substantiva, os adjetivos e
advérbios que aparecem contribuem apenas para sublinhar a dificuldade da
operação, não estão aí para conferir ao evento um altissonante tom de tragédia:
não é preciso repetir o tamanho da fome do menino, já que sua própria ação é
resultado óbvio desse estado. Desde a primeira leitura, é fácil intuir que algo de
ruim virá daí, o que implica dizer que toda a força do trecho vem da natureza do
evento narrado, não é o narrador que procura atribuir essa força por meio da sua
própria açã^t verbal. Aqui temos um momento de novidade, o melhor de O
Quinze. Compare-se com a descrição,
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 131
< úneciçao, ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do tema da H.i, pulí
mando ingenuamente encaminhar a avó para suas idéias:
líala da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos airrnais, do
problema... (pp. 186-187).
(Contraposta mais uma vez à avó, mulher para quem ainda o apego à terra
possível, Conceição aparece como essa outra mulher, que procura sua função urna
sociedade que não é sua de origem. Desde o tipo de ligação com a religião a avó
ligada à igreja e a neta preferindo ler ao invés de ir à missa - até a clara iferença
de formação intelectual, tudo separa essas duas gerações. Não é à toa ue, logo em
seguida, o diálogo vai se encaminhar para o fato de Conceição ,âo ter se casado,
com dona Inácia achando um exagero as aspirações da neta advertindo-a de que
“moça que pega a escolher muito, acaba ficando na peça” p. 188). Assim como no
caso de Lúcio e Dagoberto, de A Bagaceira, estamos liante de algo maior que
meras diferenças geracionais. São diferenças acentu- das diante de uma nova
forma de vida que começa a ganhar espaço e força rente ao universo rural que
predominava.
Muito mais do que A Bagaceira, é O Quinze o grande marco da renovação
>ela qual passaria o romance brasileiro na década de 30, porque foi capaz de
»nstruir uma síntese de uma série de questões relevantes. No aspecto temático, ío
trabalhar com dois planos de narrativa fortemente ligados a um grande problema,
aquilo que chamamos aqui de apego à terra, Rachel de Queiroz pôde ocar no
drama da seca, na condição feminina e no processo de urbanização que começava
a se generalizar no país, a partir de uma história extremamente ampies que
pareceu a muitos críticos até simples demais. Sem explicar muito bem o que quer
dizer, Affânio Coutinho afirma que o romance tem “defeitos sérios de
estruturação e psicologia, construção e narrativa”28. Excetuando-se o caráter mais
ou menos postiço do último capítulo - mas mesmo assim de um postiço altamente
significativo, como se viu - é difícil concordar com a afirmação. Embora bastante
linear, o que parece desagradar a alguns críticos, o livro se compõe de dois planos
muito bem costurados, tanto pela questão que atravessa ambos como pelo fato de
eles não serem estanques, cruzando-se desde o princípio os personagens que
protagonizam cada um desses planos, de tal forma que se transformam em
coadjuvantes bastante ativos no plano que não encabeçam. É mesmo difícil
definir a que plano pertencem os capítulos 16,18, 19 e 20, em que as trajetórias de
Conceição e Chico Bento se encontram.
m
_ 28. Afrânio Coutinho, A Literatura no Brasil, vol. 5, p. 279.
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA P0LAR1ZAÇÀ0 (1930-1932) • 133
O Quinze caiu de repente ali por meados de 30 e fez nos espíritos estragos maiores que o
romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de
mulher nova. Seria realmente de mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no
jornal, balancei a cabeça:
- Não há ninguém com este nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser
pseudónimo de sujeito barbado.
Depois conheci João Miguel e conheci Rachel de Queiroz, mas ficou-me durante muito
tempo a idéia idiota de que ela era homem, tão forte estava em mim o preconceito que excluía
as mulheres da literatura. Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever João
Miguel e O Quinze não me parecia natural10.
129 Augusto Frederico Schmidt, “O Quinze”, As Novidades Literárias, Artística* e (ientífl cas
(1, 4), p. 1.
130 Graciliano Ramos, “Caminho de Pedras”, Linhas Tortas, p. 141. Ainda Olívlo MontencRio
insistirá, e com mais ênfase, no quanto Rachel de Queiroz se afasta do “sentimentalismo do M II
sexo”, dizendo que o “traço, ao contrário, que distingue essa romancista é o de uma pei sonalidade
viril”. V. O Romance Brasileiro, p. 273.
H • UMA HISTÓRIA IH> ROMANCE DE 30
'osio .ui lado dos melhores romances brasileiros publicados nos anos se-
iiinlcs os de Graciliano Ramos, por exemplo, ou os livros posteriores da IO|M ¡11
Rachel de Queiroz - salta aos olhos essa falta de sofisticação. Mas é lo iso atentar
para duas coisas. A primeira é que, olhando de forma exten- iv.i para a produção
dos anos 30, uma época que, em sua valorização do que i a simples e direto,
facilitou a aceitação, em seu lugar, do simplismo, não há mitos romances que
podem fazer O Quinze parecer muito pouco sofistica- o. A segunda é aquilo que
se tentou mostrar até aqui, ou seja, que essa implicidade é enganosa, já que o
universo de elementos para os quais o amance aponta é numeroso e, mais do que
isso, significativo.
Algo do destino de O Quinze foi compartilhado pelo outro romance de npacto
desse início de década, Menino de Engenho, a estréia de José Lins do .ego.
Considerado genial quando lançado, o livro foi perdendo prestígio e, na lesma
Literatura no Brasil em que Afrânio Coutinho chama a atenção para os ventuais
problemas de O Quinze, Luiz Costa Lima aponta limitações de que adeceria a
obra de José Lins do Rego. Sobretudo há em comum entre os dois amances aquela
mistura de velharia e novidade já apontada no romance de .achei de Queiroz. É
certo que o velho de Menino de Engenho é menos velho e lenos explorado do
que o romance da seca a que se filia O Quinze, o “roman- e do engenho”, de cuja
existência já é possível falar em 1932. Assim como no iso do romance da seca, não
se pode falar que o romance de engenho seja ma categoria ou mesmo um
subgênero do romance brasileiro, mas um tema ue diversos romancistas
exploraram. De certa forma, Sob o Olhar Malicioso os Trópicos já é um romance
de engenho, uma vez que nele se dá a projeção abre a velha propriedade rural
nordestina de algum tipo de esperança ou de qaectativa. É o que também se pode
dizer de A Bagaceira, não só porque antém o mesmo tipo de projeção de
expectativas mas pela exploração cons- inte de aspectos cotidianos da vida no
engenho e de sua paisagem natural, las há dois outros romances publicados
durante os anos 20 que poderíamos ansiderar os mais significativos dessa
linhagem, especialmente porque escri- >s num momento em que o tipo de
economia que permitiu o fausto dessas ropriedades está em franca decadência:
Senhora de Engenho (1921), de Mário ítte, e Os Exilados (1927), de José Maria
Bello. A importância desse debruçar í intelectualidade brasileira sobre o nordeste
dos engenhos, ou seja, aquele lais próximo do litoral, torna-o até certo ponto mais
visível que o famoso ardeste do sertão e da seca durante os anos 30. Isso acontece
num grau que Tega a levar um sociólogo cearense, Djacir Meneze^a acatar a
sugestão de ilberto Freyre e dar o título de O Outro Nordeste (1937) para o
estudo que fez
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 135
A pátria é a mesma, sim, mas a “terra” é ainda mais um pouco que a pátria. Àquela
amamos, esta queremos bem. Querer bem é uma forma enternecida de afeto, muito brasileira.
Por exemplo: o amor que eu tenha pela Guanabara, com os seus ocasos soberbos, os reflexos das
suas águas verdes, o serrilhado das suas montanhas majestosas, nunca igualará o bem querer ao
curso ingénuo do Tapinassu, riacho que flui através o meu engenho, onde, criança, me banhava
ou punha barcos de papel a vogarem na corrente... A rua em que moramos nos agrada, a casa
em que vivemos nos enleia muito mais... (pp. 38-39).
Por um lado, o tipo de relação que se estabelece entre pátria e região (“terra”)
não vai assim tão longe daquilo que se lerá no Manifesto Regionalista, e, por
outro, o universo do engenho, evocado a partir do rio, nos remete diretamente
aos romances de José Lins do Rego: em Menino de Engenho, são também as
lembranças dos banhos, das lavadeiras e das enchentes; em Usina, a forma de
pintar como uma verdadeira profanação a decisão do tio Juca de desviar o curso
do riacho do engenho para mover as máquinas.
A intencionalidade com que o narrador conduz os acontecimentos faz de
Senhora de Engenho, se não um romance de tese, pelo menos um romance
engajado na defesa veemente da superioridade do modo de vida rural sobre o
urbano. O protagonista do livro, Nestor, é um verdadeiro filho pródigo. Filho de
senhores de engenho, ainda na puberdade vai estudar no Recife c fica toma do
por verdadeira ojeriza da vida rural. Nem mesmo o Recife o satisfaz e ele
narrador: quanto mais renhida a luta, mais gloriosa a vitória. É que Hortênsia
engravida - no Rio, em nove anos de casamento, a gravidez não viera, mas ali, no
fértil ambiente da fazenda, tudo evolui muito rapidamente - e tem um parto
difícil. Depois de quase morrer e passar por longa convalescença, ela finalmente
se apercebe da superioridade da vida no campo e decide apoiar Nestor na sua
decisão de ficar ali.
O capítulo final do livro narra uma festa muito importante para a vida do
engenho, o dia da botada, ou seja, o início dos trabalhos de moagem da cana e
preparação do açúcar. Dona Inacinha, mãe de Nestor, aproveita os festejos para
passar à nora o título de senhora de engenho, o que é a culminância do trajeto
que comprova a superioridade da vida tradicional, agrária.
No entanto, é preciso notar que o romance de Mário Sette não defende a
pura e simples volta ao campo. Não há no livro qualquer intenção de se ignorar as
conquistas da modernidade. A nova geração de senhores de engenho, à qual
pertence Nestor mas cujo grande nome é Lúcio, explora a propriedade com novos
meios, tanto no que diz respeito à própria produção quanto no campo das
relações de trabalho. Isso é explicitado logo à primeira visita que Nestor faz ao
engenho do primo. Em primeiro lugar, o equipamento:
Passaram os visitantes pela garage, pelo engenho modernizado, reluzente de asseio até
chegar na “rua” - uma fila de casinhas alpendradas, antiga senzala e, agora, depósito de
instrumentos agrários, arreios, cangas... Exonerando do serviço velha “caldeira” que todos os
anos comia um dinheirão de consertos, poupando também as suas matas, Lúcio aproveitara o
riacho perene que cortava a propriedade, represando-o numa altura, improvisando queda
d’água que, desde então, começou a mover a “roda”, acionando a moenda (p. 93).
- Que quer? O coronel sente o peso dos anos. Demais, reza pela cartilha avoenga do
“sempre se fez assim”, quando se lhe sugere uma inovação. No entanto, as terras dai iam dez
vezes mais do que dão. Faremos um passeio em redor e você verá a lástima; quanta ladeira,
quanta várzea inculta, nesta época em que tudo dá dinheiro! A moagem, eslc ano, vai parar
cedo à falta de canas... [...] Demais, há muito que cuidar, ali, sob o ponto clr vista do conforto
devido aos trabalhadores: - homens como nós, tendo mulheres e lilla >iguais aos nossos,
precisam dum regime outro de vantagens, de permissões, de uirinhn. II Carecemos, agora
com o açúcar a dar preços inesperados, suavizar lhes as condiçi>es, njudá
I 1» • UMA HISTORIA DO ROMANCE DE 30
los no oTiHulclamcnto de seus tetos, facilitando-lhes essa tarefa, de qualquer modo que
li.n moni/< interesses. Foi assim que o fiz: você viu os pitorescos chalés em que moram os
meus auxiliares de labuta. E eles têm toda a liberdade de possuírem suas roças, donde i
olhem, vendem, a mim próprio às vezes. Longe de armá-los contra mim, com ódios gei
ados de maus tratos e insolências, cativo-os, tomo-os meus amigos, isto, sem cálculo, apenas
com o impulso dos meus sentimentos democráticos e fraternais (pp. 96-97).
meio onde vivera a sua infância e parte da sua adolescência - entre trabalhadores de eito,
antigos escravos, humildes e dedicados - sentia que as suas saudades o conservavam em
comunhão permanente com a gleba longínqua (pp. 16-17).
Essa descrição é bastante exata. O engenho é para Ramiz apenas uma sau-
dade, algo que pertence a um passado já perdido, e não está incluído em nenhum
de seus planos para o futuro. Na verdade, Ramiz é mais um dos “inquietos” da
ficção brasileira da virada dos anos 20 para os 30. A exemplo do Paulo Rigger de
O País do Carnaval, Ramiz tem dificuldade para se ver como brasileiro. É um
daqueles membros da elite nacional que se vê mais como um produto da cultura
européia - especialmente francesa - do que qualquer outra coisa. O que o atrai
para o Rio de Janeiro é algo diferente do que atraía o Nestor de Senhora de
Engenho: para ele, o Rio, mais do que o lugar onde se vive com mais intensidade
o ambiente urbano, é onde o Brasil mais se aproxima da Europa. Sua vida no Rio
segue como a de Nestor, sempre atrás de alguma cavação, preferivelmente que o
leve para fora do país. Começa com um emprego na Biblioteca Nacional, cujo
diretor mais tarde será político importante, candidato preferencial à presidência
da república. Casa-se, consegue um cargo diplomático, vai viver na Europa, mas
se vê obrigado a voltar por causa da eclosão da Guerra de 1914. No Rio
novamente, envolve-se com o jornalismo. No plano pessoal, relaciona-se com a
mulher de um médico, Elisa, que conhecera ainda na Europa, “quem iria dar-lhe
novo sentido à vida e encher- lhe o coração vazio” (p. 90). Passa por alguns
momentos de real felicidade, tendo conseguido prestígio como jornalista sem ter
que se submeter a jogos de influências que o repugnavam, ao mesmo tempo que
vê a possibilidade de ingressar na política de maneira honesta. Na vida pessoal, os
escrúpulos morais por ter mulher e amante são vencidos sem maiores
dificuldades: “Na sua vida, cabiam perfeitamente as duas mulheres: a esposa,
deusa doméstica, que lhe dera a felicidade dos filhos, e a amante, que lhe enchera,
afinal, o coração deserto e frio, e em cujo amor encontrara o estímulo, a alegria e
a glória de viver...” (p. 134).
Esse estado de felicidade é evidentemente efémero. A própria felicidade lhe
dá motivo para entediar-se. Além disso, dois fatos determinantes ocorrem: a
morte de Elisa, num acidente de trem no Paraná, e a exclusão de seu nome da
lista de candidatos a deputado por seu partido. Isso tudo, por um lado, abala seus
nervos, já de si fracos mas, por outro, o faz reavaliar o erro moral que cometei .i
em relação a sua mulher. Nesse estado de dissolução, decide empreender nova
viagem à Europa, escorado no parecer do médico segundo o qual uma viagem
seria necessária para curá-lo da crise nervosa por que passava. Num gesto de
Mil • UMA HISTORIA 1)0 ROMANCE DE 30
• |ii< 111 | <■. ii IHIO, na verdade, jamais voltar, decide passar algum tempo no
engenho cm i|iie nascera: “Combinaram a viagem para o mês seguinte - fevereiro.
I Vmorai se iam alguns dias em Pernambuco. Ramiz desejava rever, pela última
ve/, o velho engenho natal, que abandonara havia vinte anos...” (p. 212).
Essa visita ao engenho, último episódio do romance é, no sentido mais forte
do termo, o epílogo de uma história que é apenas uma preparação para esse
momento final. Diferentemente de Néstor, Firmo Ramiz não se reintegra- rá à
vida no engenho, mesmo porque encontrará um Juncai morto, mas ainda nas
mãos da família, dirigido que era por um primo, preso à terra, que leva o
significativo nome de Justo Ramiz:
Firmo Ramiz sentia-se mais tranqiiilo e mais feliz. O largo silêncio dos campos desertos, a
doce paz ambiente adormeciam-lhe os cuidados e acalmavam-lhe os nervos. Mas era tudo; nada
em derredor tinha mais sentido para a sua alma. Inutilmente, tentara reviver as emoções da
infância; tudo lhe parecia frio, distante, envolto em brumas (p. 215).
Não há, para ele, o que recuperar ali. Nesta altura, parece que estamos diante
de algo muito distante de Senhora de Engenho: tanto terra como homem estão
mortos, incapazes de reviver, seja por que meio for, algo que faz sentido apenas
no passado. Mesmo esse primo apegado à terra representa, para Firmo, algo
exótico, a interessá-lo “como um fenômeno psicológico” (p. 216). No entanto,
depois de uma semana, já a bordo do navio que o levará à Europa comove-se com
o espetáculo da terra afastando-se gradativamente. Somente aí se pode perceber
que a volta à terra não é possível para a geração de Firmo, uma geração de céticos
a olhar mais para fora do que para dentro: a geração seguinte, liberta desses
hábitos intelectuais artificiais poderá, sim, olhando para o Brasil, recuperar uma
tradição desprezada por puro esnobismo. Isso porque Henrique, o filho de Firmo,
que não era mais que uma referência no decorrer de todo o romance, ganha o
primeiro plano e faz o contraponto ao desencanto da geração do pai:
- Papai! Mamãe, hoje, chorou muito. Disse que nós íamos para a Europa, que não
voltaríamos mais e que tu só pensavas em viajar, não te importando com ela, nem comigo, nem
com a Luizinha. Eu não queria ir para a Europa. Desejava ser fazendeiro, como o tio Justo.
Gostei tanto do Juncai...
Ramiz comoveu-se. Sentou-se na chaise-longue e, acomodando o filho ao lado,
respondeu, não para a criança, que o não entenderia, mas para si mesmo, traduzindo a meia voz
os pensamentos que o agitavam nos último^ias:
- lua mãe não tem razão, Henriquinho. Voltaremos em breve. Hei de comprar-te .um
engenho como o Juncai, e tu poderás ser, então, o que teu pai não foi - um Brasilei
A INQUIETAÇÀO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 141
ro autêntico, identificado com a tua terra e a tua gente, feliz das suas esperanças e das suas
glórias, sem artifícios, nem literatices vãs, forte de corpo e de alma, contente de ti e do mundo
real que te cerca, que é o do teu país, que foi o dos teus avós, e que tu e os do teu tempo
sabereis fazer grande, forte e poderoso... O erro de teu pai, comum a toda a sua geração,
criando, dentro na pátria, monstruoso exílio moral, de olhos eternamente alongados sobre o
Atlântico, como se a redenção estivesse do outro lado das águas, desencantado e pessimista,
pelas incertezas da sua vontade flutuante, e na ambiência falsa dos livros estrangeiros - este, eu
te prometo, tu não repetirás... (pp. 220-222).
133 José Maria Bello, História da República (1889-1954), p. 331. Вма disi aviinv"’' al< a página
seguinte.
|1 • UMA MIMOKIA 00 KOMANCE DE 30
Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a lesma
incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não esse de longe a
enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros quémos ali- entam, a
saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atu- idade é a mesma em
todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das pirações que se transformam,
alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a esma base fantástica de esperanças, a
atualidade é uma (pp. 5-6).
A perda dos carinhos maternos, vista dessa ótica, não é mais que uma is
decepções que Sérgio sofreu e interessa como momento de transição, rrdadeiro
nascimento para a vida adulta que, afinal, é a vida propriamente ta e aquela onde
está instalado o Sérgio que narra aquela história134.
134 Mesmo Doidinho confirma as diferenças entre Carlos e Sérgio. Carlos se liberta do
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 143
Já o casamento do anjo, a tia Maria, acaba valendo como uma nova perda da
mãe. Esse sentimento de Carlos é tamanho que ele chega a pintar com as cores de
sua própria tristeza a tia, que nos aparece também triste, e não só no momento da
partida com o noivo, o que seria natural, como durante toda a cerimónia:
A tia Maria toda de branco, bem triste, olhando para o chão. A música da Paraíba tocava
no alpendre. O noivo, contente, respondendo às pilhérias dos rapazes. O meu avô, de preto,
com o seu correntão de ouro no colete e a velha Sinhazinha ringindo, na seda do vestido
comprado feito, no Recife. A casa estava cheia de gente. Era um zum zum por toda a parte.
Buliam comigo:
-Vai ficar sozinho, hein? Quem vai tomar conta dele agora é a velha Sinhazinha (p.
162).
colégio pela fuga, ou seja, pela volta ao engenho, possível ainda naquela época I nquanto Isso. Sérgio,
logo depois de narrar a fuga frustrada de Américo, um garoto “vindo da roça", passa a lialai do
incêndio que destrói O Ateneu, com frieza, centrando suas observações nas i raçOes de Ansiai i o,
sem jamais sentir que o fim do colégio o libertaria do que quer que fosse: aliual, m\n lia |>ai a onde
voltar, nem mesmo â infância, depois de sair da estufa dos amores inalemos.
4 1 • U M A IIISI <>KIA DO ROMANCE DE 30
I >.t mesma maneira que as coisas se dão com a tia Maria, toda a narrativa e i
nniaminará de um sentimento de perda. O engenho, visto em seu apogeu, » ui o
sabor das coisas perdidas para sempre, como para sempre se foi a me- aiudlicii
infância do narrador. Não há, na narrativa de Carlos de Melo, qual- 11 K I Im i ha
que nos permita identificar uma atitude restauradora como a de Meitor ou de
Firmo Ramiz. Por paradoxal que possa parecer, isso, na verdade, u aba permitindo
uma idealização ainda maior da vida patriarcal, que faz com |uc José Lins não
precise, como Mário Sette, ignorar certos aspectos da vida lo engenho, em
princípio negativos, para proceder a essa idealização.
Veja-se, nesse sentido, a questão da moral sexual. Tanto em Menino de Enge-
nho como em Senhora de Engenho, há a velha visão segundo a qual o sexo é
nioralmente condenável, exceto se dentro dos sagrados laços do matrimónio -
Carlos de Melo, por exemplo, sempre se refere à sua vida sexual, bem como à Jos
outros, especialmente os trabalhadores, como “as porcarias”, e a sensação sempre
retida é a de pecado: “Olhava muito para um São Luís de Gonzaga que a minha
Tia Maria deixara na parede do quarto. Tinha vergonha dos meus pecados na
frente do santo rapaz. Arrependia-me sinceramente daquelas minhas lubricidades
de pequena besta assanhada. E no outro dia, enquanto a chuva derramava-se lá
por fora, voltavam-me outra vez os pensamentos de diabo. Sujava os olhos do
santo com os meus atos imundos de sem-vergonha” (p. 168).
Tendo-se esta visão pecaminosa da vida sexual, não é difícil entender por que
Mário Sette transforma a casa-grande dos pais de Nestor num “ninho de amor que
se soldara há meio século”, sugerindo que o velho coronel manteve- se, a vida
toda, dentro dos limites estritos do matrimónio. Para seu projeto de glorificação
da velha vida rural que necessita de uma restauração, é preciso, de qualquer
forma, higienizá-la de qualquer traço negativo, transferindo-o para a cidade, esta
sim palco da imoralidade e do pecado.
Já no livro de José Lins do Rego, não há a menor necessidade de.se ocultar
qualquer traço do comportamento dos senhores. Assim, o tio Juca é famoso como
deflorador de caboclinhas e o venerando coronel José Paulino também havia sido
um garanhão acabado em seu tempo. É com um misto de candura e orgulho pela
macheza da estirpe que esses fatos são referidos. Embora em princípio
moralmente condenáveis, são atos justificáveis porque as coisas eram assim
mesmo e o mundo andava em tal harmonia que não há qualquer razão para serem
omitidos - não causam, portanto, qualquer tipo de conflito.
Quando saímos do plano da moral sexual e entramos no campo das relações
sociais, esse despudor, por assim dizer, atiage níveis inimagináveis. Em Senhora
de Engenho, como vimos, as inovações técnicas podem garantir,
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 145
Conheci umas quatro [ex-escravas]: Maria Gorda, Generosa, Galdina e Romana. O meu
avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas a trabalharem de graça, com a mesma
alegria da escravidão. As suas filhas e netas iam-lhes sucedendo na servidão com o mesmo amor
à casa-grande e a mesma passividade de bons animais domésticos (p. 85).
À tardinha os cabras do eito chegavam, pingando da cabeça aos pés. Vinham com as
canelas meladas de lama e as mãos engelhadas de frio. O chapéu de palha pesado de água,
gotejando. Mas, indiferentes ao tempo. Parecia que estavam debaixo de bons capotes de lã.
Levavam bacalhau para a mulher e os filhos, e iam dormir satisfeitos, como se os esperasse o
quente gostoso de uma cama de rico. Dentro da casa deles, a chuva de vento amolecia o chão
de barro, fazendo riacho da sala à cozinha. Mas os sacos de farinha-do-reino eram os
edredons das suas camas de marmeleiro, onde se encolhiam para sonhar e fazer os filhos,
bem satisfeitos. Iam com n chuva nas costas para o serviço e voltavam com a chuva nas
costas para casa. Curavam as doenças com a água fria do céu. Com pouco mais, porém,
teriam o milho verde c o ttuit n\n maduro para a fartura da barriga cheia (pp. 166-167).
• UMA HISTORIA DO ROMANCE DE JO
As casas dos moradores abertas, de porta e janela, com a família inteira no terreiro,
imando o seu banho de sol, de graça. Às vezes o carro parava para minha tia falar com ¡
comadres que vinham alegríssimas dar duas palavras com a senhora. E os meninos de imisa
comprida tomando a bênção à madrinha:
- Deus te abençoe.
E eram mesmo abençoados por Deus, porque não morriam de fome e tinham o sol, lua, o
rio, a chuva e as estrelas para brinquedos que não se quebravam (p. 98).
Embora o próprio Carlinhos sinta necessidade de ter coisas com que brin- ar,
como o seu carneirinho de estimação, os filhos dos trabalhadores não, eles ão
felizes simplesmente por estarem vivos e poderem usufruir daquilo que, intes de
ser dado pela natureza, é uma concessão do proprietário, já que é ios limites do
engenho que todos esses brinquedos que não se quebravam jodiam estar ao
alcance de suas mãos. Como acontece, aliás, com o sol, visto iqui como parte da
propriedade disponível a toda a família graças (e de gra- •a) à generosidade do
velho coronel José Paulino.
Mas o que estes dois últimos trechos subrepticiamente vão revelando é uma
fissura nessa visão tão claramente positiva que Carlos de Melo forja para o
engenho. Fica claro, para quem os lê, que o próprio narrador percebe que a vida
desses homens é precária, e que aquela justiça, em princípio tão absoluta, não é
tão grande assim. A felicidade alheia é atribuída pelo narrador, que considera por
conta própria os adultos e as crianças raítisfeitos, não dando em nenhum
momento voz a eles para exprimir sua enorme alegria por viver ali, à
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 147
sombra da proteção do velho coronel. Não é à toa que Carlinhos vai tentar
compensar sua superioridade diante dos moleques mais uma vez atribuindo algo a
eles, uma superioridade em certos aspectos da vida cotidiana:
O interessante era que nós, os da casa-grande, andávamos atrás dos moleques. Eles nos
dirigiam, mandavam mesmo em todas as nossas brincadeiras, porque sabiam nadar como
peixes, andavam a cavalo de todo jeito, matavam pássaros de bodoque, tomavam banho a todas
as horas e não pediam ordem para sair para onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor do
que a gente: soltar papagaios, brincar de pião, jogar castanha. Só não sabiam ler. Mas isto, para
nós, também não parecia grande coisa (p. 87).
O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com a sua desgraça.
Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros,
comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha com preensão da vida fazia-me
ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera e porque Deus quisera
nós éramos brancos e mandávamos neles. Man dávamos também nos bois, nos burros, nos
matos (pp. 134-135).
h . I.i/4'iicio parte da ordem natural das coisas, eles perdem qualquer carga
Mcg.iliv.i i lonlerem ao discurso do narrador uma sinceridade e uma abertura qin
llir garantem a simpatia do leitor. Afinal, como se sabe, admitir a culpa é I *<
Mito ile partida para ser perdoado. Por outro lado, essa atitude cancela qual- qiu i
possível utopia rural aos moldes daquela proposta por Senhora de Engenho c (h
Exilados ou mesmo, até certo ponto, de A Bagaceira, e rompe, portanto, com o
que há de velharia nesses romances que, nos anos 20, sonharam para o brasil um
reenraizamento no campo de uma elite aparelhada com as últimas conquistas da
modernidade. Há, é evidente, uma nostalgia sem fim do mundo harmónico que já
morreu e o desejo de pintá-lo com as melhores cores. Noutras palavras, admitem-
se os problemas, mostram-se as compensações para os prejudicados, não se toca
nas estruturas sociais e foge-se do conflito135. Mas, de uma forma ou de outra, as
contradições aparecem, mais escamoteadas no passado, mais evidentes no
presente, e conferem aos personagens pobres uma existência concreta na ficção
brasileira. Se não são os protagonistas, como se tornará corriqueiro logo depois,
estão muito longe de serem meros figurantes, e sua existência é um dos fatores a
determinar o andamento do romance.
O método de narrar de Carlos de Melo também enforma - ou é enformado
por ela, difícil dizer - essa maneira de o presente ver uma vida que já passou.
Durante toda a narrativa, há uma alternância do imperfeito e do perfeito, que dá
ao que se conta, ao mesmo tempo, tom de coisa rotineira - com o uso do
imperfeito - e única, ressaltando seu caráter de evento pontual e irrepetível - com
o uso do perfeito. É um método adequado para construir uma imagem viva do
passado, presentificando-o apenas pela narrativa, embora se destaque seu fim: o
imperfeito, com sua idéia de continuidade, narra os eventos passados como coisa
cotidiana - e de que mais é feito o presente, se não do cotidia- no? enquanto o
perfeito, ao mesmo tempo em que destaca um evento dentro do rolar do tempo,
dá a ele dimensão exclusiva no passado136.
Carlos de Melo se recusa a recuperar o tempo perdido e o encerra no passado.
Em eventos de natureza diferente esse procedimento é usado, e três deles são
suficientemente ilustrativos. O primeiro diz respeito ao funcionamento do
engenho propriamente dito e se abre no imperfeito: “Meu avô me levava sempre
em suas visitas de corregedor às terras de seu engenho. Ia ver de perto os seus
moradores, dar uma visita de senhor nos seus campos” (p. 57).
i
135 No romance Em Liberdade, pp. 113-124, Silviano Santiago faz, através da pena da
personagem Graciliano Ramos, análise precisa deste aspecto da ficção de José Lins do Rego.
136 Note-se que o narrador de Em Busca do Temp&erdido, no momento da recuperação do
tempo, vai usar o imperfeito.
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930- l<MJ) • 14«
Uma vez, numa destas nossas viagens, vi-o furioso como nunca. Entrávamos por uma
picada na mata grande e ouvimos um ruído de machado:
- Quem lhe deu ordem para botar abaixo este pau d’arco?
- Foi o Dr. Juca, respondeu mais morto do que vivo o Seu Firmino Carpina.
- Mas o senhor sabe que eu não quero que se meta machado por aqui, com seiscentos mil
diabos!
E voltou para casa sem dar mais uma palavra, sem parar em parte alguma (pp. 61-62).
Não se trata de mera estratégia criada apenas para mostrar a vida do engenho,
servindo para qualquer aspecto da vida de Carlos. Podem ser também as
brincadeiras de criança. No capítulo 19, uma aventura junto à linha do trem,
quando Carlos impede que seu primo provoque um acidente, narrada no perfeito,
é precedida do costumeiro preâmbulo: “Costumávamos ir para a beira da linha
ver de perto os trens de passageiros. E ficávamos de cima dos cortes olhando
como se fossem uma coisa nunca vista os horários que vinham de Recife e
voltavam da Paraíba” (p. 71).
Podem ser também coisas mais pessoais, como é o caso do despertar de seus
interesses sexuais. O capítulo 30 se inicia assim: “O quarto de meu tio Juca vivia
trancado de chave o dia inteiro. Ali só entrava a negra que lhe fazia limpeza c
mudava as roupas da cama. Mas quando aos domingos descansava na sua grau de
rede do Ceará, de varandas arrastando no chão, ia ter com ele” (pp. 125 126).
Não demora muito e lá vem o evento específico: “Num dia em que ele me
deixou sozinho, corri sôfrego para o objeto da proibição: uma coleção de
mulheres nuas, de postais em todas as posições da obscenidade” (p. 126).
Esse método está de tal forma introjetado no narrador que, mesmo qu.m do
não é usado está elipticamente presente. Veja-se o início do i apitulo que
trata do carneirinho de estimação: “Até que afinal conseguira o meu ........ ....ei
ro para montar” (p. 111).
()i u, esse "até que afinal” indica que se vai dar continuidade a algo que já
vinha M desenvolvendo anteriormente, dando mesmo feição de epílogo ao que M'
Ml • UMA MIS I OKI A 1)0 ROMANCE DE 30
v.il contar. Mas não. Em nenhum momento anterior se faz qualquer menção a
esse desejo do menino de ter um carneiro para montar. Embora o processo todo
que tenha culminado no recebimento do presente não tenha sido contado o que
acontecerá em seguida - o narrador se comporta como se já o tivesse sido,
movendo-se dentro da mesma estrutura imperfeito-perfeito que prevalece na
totalidade do romance. É como se o fato específico só fizesse sentido nesta
narrativa se contribuísse para circunscrever o cotidiano da infância nesse tempo
que é outro em relação ao presente. Como era de se esperar, não é sem conflitos
que essa separação tão grande entre o homem saudoso e o menino se faz. Veja-se,
por exemplo, como uma construção banal é confundida na primeira edição, mas
posteriormente corrigida. Em 1932, a primeira frase do último capítulo é:
“Amanhã tomaria o trem para o colégio” (p. 178). Já na segunda edição, aparece
assim: “No dia seguinte tomaria o trem para o colégio”.
Há luta nesse narrador, mas ele não se entrega. Esta mudança extrapola em
muito os limites da simples correção de um erro gramatical. Apanhado pela
linguagem em flagrante mergulho no passado, como se a ele voltasse numa
identificação sempre evitada entre o narrador, no presente, e o protagonista, no
passado, o autor aproveita a calma da revisão do livro já publicado para reafirmar
sua intenção de que seu narrador reviva a infância e seu ambiente apenas na
narrativa. Afinal, pôr em contato próximo demais passado e presente é perigoso
porque permite olhar criticamente aquele a partir deste e abrir uma entrada para
se questionar a santidade do patriarca.
Não importa, e mesmo reforça o caráter de esforço consciente - e, portanto
sujeito a estranhas falhas - que, ao falar da iminência da despedida de uma prima
com quem se dera admiravelmente bem, Carlos de Melo escreva, sem jamais ter
sido corrigido: “A viagem seria na terça-feira. Depois de amanhã não veria mais a
minha companheira” (p. 145 da Ia edição e p. 158 da 2a).
O esvaziamento do presente assim se completa: por mais que perceba que
aquele mundo ruiu, é a ele que o narrador se encontra ligado. E dizendo isso
estamos no centro da obra de José Lins do Rego, diante de um problema que se
coloca nela o tempo todo, mas em especial em Riacho Doce e Pedra Bonita. O
fato é que José Lins é um autor trágico e seus protagonistas têm muito de Antí-
gone: abraçam o infortúnio de seu destino, seja qual for, por sua ligação com os
valores familiares. O Antônio Bento de Pedra Bonita foi criado pelo padre Amân-
cio, vigário do Assu, só vendo a mãe de tempos em Jempos. Toma contato real
com a família, que mora no célebre lugarejo do movimento religioso do século
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (I930-IV32) • IJI
XIX, aos dezoito anos, mas só vive com eles por alguns meses. No entanto, no
desfecho do romance, instado a ir buscar um confessor para satisfazer o último
desejo do doente padre Amâncio, no caminho ele se vê literalmente diante de
uma encruzilhada. De um lado a estrada que o leva ao confessor; de outro, a
estrada que leva a Pedra Bonita, ameaçada por tropas que atacarão os seguidores
de novo líder religioso, entre os quais se encontram seus familiares. Não há meio-
termo, mas o sangue e o apego ao lugar onde estão suas raízes decidem por ele: “E
Bento partiu a galope para Pedra Bonita” (p. 392).
O padre ficou para trás porque Antônio Bento tem um lugar a salvar ou
mesmo onde morrer. O romance não se chama Pedra Bonita à toa. O lugar onde
estão fincadas as raízes é a referência máxima para os personagens de José Lins do
Rego. Ao contrário de Bento, o Carlos narrador vive fora de seu lugar, o engenho,
e jamais terá como voltar para lá: o engenho não há mais. Se é impossível vivê-lo
no presente, pelo menos é viável transportar-se para ele pela narrativa, levando
de carona o leitor. Todas as falhas e simplificações deste romance - e da obra de
José Lins do Rego de forma geral - são mais ou menos evidentes, especialmente
no confronto com obras posteriores, e já têm sido apontadas há pelo menos
quarenta anos. Mas é com esses eventuais problemas - e mesmo por causa deles -
que Menino de Engenho pôde ter a importância que teve para o romance
brasileiro. Carlos Drummond de Andrade, num artigo publicado por ocasião da
morte do romancista, já havia pressentido isso:
Só é difícil concordar com a afirmação de que José Lins tenha captado con
flitos e percebido claramente esse desgaste do sistema social em que crrsi eu, já
que o tempo todo as relações são polidas para evitar o conflito e o desgaste é
sempre atribuído à incompetência pessoal e não à percepção de que um des
moronamento estrutural estava em curso. Note-se, neste sentido, que o Santa
Uiu..i 11.10 passa por qualquer processo de decadência mais longo. Se a família du I
ui', d.i Silva, de Angústia, passa por uma decadência de pelo menos três i.isocs, ,1
de Carlos de Melo cai bruscamente por conta do envelhecimento «1« > coronel e
da incapacidade dos seus herdeiros de manter a propriedade produzindo
adequadamente. No entanto, é bem por esse despudor de afirmar o absurdo que o
livro se constituiu num passo importante da moderna ficção brasileira.
Sem a nostalgia desesperançada do passado de um lado e, de outro, a artificial
igualdade na diferença entre pobres e ricos que atravessa todo o romance e que
seria insuportável por exemplo para Graciliano Ramos, o grande romancista da
década de 30, Menino de Engenho não poderia ser a celebração máxima que é da
importância de contar histórias, bem como da necessidade de esse contar histórias
incorporar vozes diferenciadas. Se há um papel em que o proprietário se coloca
próximo de alguma das criaturas que vivem sob sua proteção, é no de contador de
histórias: as matrizes de narrador de Carlos de Melo são a velha Totonha e o
próprio avô. A velha contadora de histórias é um desses personagens que
demonstram o poder de evocação de José Lins do Rego. Materialmente, é pouco
mais que uma aparição no romance, mas aparição que marca fundo a matéria
básica do livro, a memória. Há um capítulo dedicado a ela, mas seu aparecimento
se dá um pouco antes, num curto parágrafo inserido no capítulo em que Carlos se
recorda de como era tratada a religião - especialmente durante a Semana Santa -
no engenho. A contadora popular de histórias surge na narrativa no momento em
que ela se debruça sobre as coisas sagradas: “Às vezes vinha ao engenho por este
tempo uma velha Totonha, que sabia um Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo em
versos e nos deixava com os olhos molhados de lágrimas com a sua narrativa
dolorosa” (p. 66).
Confirmando o estatuto especial da personagem, tanto este capítulo, que a
introduz na narrativa, quanto aquele a ela dedicado são inteiramente narrados no
imperfeito - e a velha Totonha se reveste das vantagens do mito, sem a volta do
romance ao fato específico para garantir-lhe um lugar apenas histórico. Mas, é
claro, o que há de mais importante a assinalar são as suas qualidades de narradora,
dentre as quais parecem ser as responsáveis pelo encanto mágico daquelas
histórias o tom pessoal, a naturalidade, a memória e a proximidade do que narra:
E as suas lendas eram suas, ninguém sabia contar corno ela. Havia uma nota pessoal nas
modulações de sua voz e uma expressão de humanidade nos reis e nas rainhas dos seus contos
(p. 79).
A velha Totonha era uma grande artista para dramatizar. Ela subia e descia ao sublime
sem forçar as situações, como a coisa mais natural deste mundo. Tinha uma memória de
prodígio (p. 79).
O que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus
descritivos. Quando ela queria pintar um reino era como se estivesse falando de um engenho
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 193
fabuloso. Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o
Paraíba e a mata do Rolo. O seu Barba-Azul era um senhor de engenho de Pernambuco (p. 80).
Unham « solução milagrosa das outras. Puros fatos diversos, mas que se gravavam nlnha
memória como incidentes a que eu tivesse assistido. Era uma obra de cronis- uliiulo de
realidade (p. 139).
Todos os retratos que tenho de minha mãe não me dão nunca a verdadeira ¡ionomia que eu
guardo dela - a doce fisionomia daquele seu rosto, daquela melan- ilica beleza de seu olhar. Ela
passava o dia inteiro comigo. Era pequena e tinha os ibelos pretos. Junto dela eu não sentia
necessidade dos me<rt brinquedos. D. Clarisse, imo lhe chamavam os criados, parecia mesmo
uma figura de estampa (p. 13).
A imagem da mãe se compõe, assim, da captação de elementos apreendidos
na vida cotidiana. Assim como o coronel José Paulino compunha a memória da
A INQUIETAÇÃO: 30 ANTES DA POLARIZAÇÃO (1930-1932) • 135
família, Carlos de Melo compõe suas memórias pessoais com dados bastante
concretos da realidade vivida: o olhar, a sensação de completude que emanava
dela, a forma como os criados a chamavam, seu tamanho e a cor dos seus cabelos.
Mas o retrato da mãe na memória de Carlos ainda não está completo. E preciso
que um outro elemento apareça, a imaginação:
Horas inteiras eu fico a pintar o retrato dessa mãe angélica, com as cores que tiro da
imaginação, e vejo-a assim, ainda tomando conta de mim, dando-me banhos e me vestindo. A
minha memória guarda detalhes bem vivos que o tempo não conseguiu destruir (p. 14).
138 Antonio Cândido, “A Revolução de 1930 e a Cultura", A Eduia^iUt /»W<i Nmir t Oulroí
Ensaios, p. 187. Recentemente, na conferência proferida no Rio de Janeiro em I I u«o, 1999, poi
• UMA HISTORIA DO ROMANCE DE JO
do que ocorreu com Mário Sette e José Maria Bello, não sentiu a menor neces-
sidade de colocar entre aspas todas as palavras com que se nomeiam as diversas
partes do engenho, como casa de purgar e mesmo casa-grande, que saltaria para o
título do livro clássico de Gilberto Freyre. Sobretudo aquela distância entre a voz
do narrador e a das suas criaturas foi diminuída e se desfolclorizou a fala dos
personagens pobres em geral. Enfim, o que se gesta nestes anos é uma nova
linguagem literária no Brasil. Em certo sentido menos explicitamente nova do
que aquela experimentada pelos modernistas, mas não menos eficaz.
Tanto Rachel de Queiroz como José Lins do Rego dialogam com uma
tradição de romançe que herdaram, ao mesmo tempo em que participam de um
movimento mais ou menos obscuro aos olhos da história literária brasileira de
hoje, composto por obras que propõem que o romance tem que se voltar para o
país, que as elites precisam fincar pé na terra ao invés de brandir um inteligente
ceticismo ou refugiar-se em Paris. Por outro lado, são obras que não conseguem
dissociar essa volta à realidade nacional da construção de um ambiente
psicológico em que ela se dá. Embora os aspectos de romance de costumes de O
Quinze e Menino de Engenho tenham chamado a atenção mais do que quaisquer
outros, não é possível fechar os olhos para o quanto há neles de exploração de
temas que os próprios intelectuais dos anos 30 chamariam de “intimistas”. O
arcabouço da narrativa de José Lins do Rego é dado pela memória. A linha central
do romance de Rachel de Queiroz é a vida amorosa de uma nova mulher que
surge e que vive o conflito de não querer se ver simplesmente como uma criatura
feita para o amor. Quando se faz um esforço de recuperar os romances que se
tornaram referências, ainda que efémeras, dessa virada de década, é que se nota a
importância daquela “outra via” do romance brasileiro, encarnada em romances
como Inquietos, Sob o Olhar Malicioso dos Trópicos ou A Mulher que Fugiu de
Sodoma.
EM PLENA POLARIZAÇÃO
0 AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-1936)
139 A Ariel Editora fez uma série impressionante de lançamentos, que incluem também
os romances Em Surdina, de Lúcia Miguel Pereira, e Almas sem Abrigo, de Miguel Olúrlo ile
Almeida, além da volta do contista Marques Rebelo, com Três Caminhos, todos ihrgtmdn no
mercado em julho e agosto, seguidos por Doidinho, em setembro. A Adersen, por N III I VC /,
Liuçit em julho a quinta edição de A Bagaceira, a primeira desde 1928.
Iiill • UMA HISTORIA t>() ROMANCE DE 30
i mi mente, como já vimos, neste momento ela passou a ser obrigatória. O (lí
balo loi grande e se estendeu, sem perda de entusiasmo, até pelo menos I'» V>,
ecatapultou ¡mediatamente Cacau e Os Cornmfras à condição de grandes best-
sellers do ano. Nesse momento se rotinizará uma leitura dos novos livros, por
parte da crítica, que partirá da adesão ou não de seu autor ao romance
proletário. No início do ano, Hugo Antunes, um crítico que se dizia
comprometido com o proletariado, havia publicado no Boletim de Ariel uma
resenha da tradução espanhola do livro de V. Polonski, La Literatura Rusa de la
Época Revolucionaria. Esse seria o segundo artigo a tratar do tema nessa revista
- o primeiro foi o já citado artigo de Heitor Marçal, de setembro de 1932. Ou
seja, ainda que presente, trata-se de um assunto ao qual não se dá maior
destaque. O romance de Pagu, Parque Industrial, publicado em janeiro de 1933,
apesar de trazer na capa a inscrição “romance proletário”, não chamou muito a
atenção e, portanto, não foi capaz de provocar um debate maior. Seria de fato
Cacau o romance a fazer isso, e o estopim foi a pequena e logo famosa nota com
que Jorge Amado abriu o volume: “Tentei contar neste livro, com um mínimo
de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das
fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?” (p. 9).
Diferentemente de Pagu, que filiara com decisão e certeza seu livro à cor-
rente da literatura proletária, Jorge Amado preferiu fazer uma pergunta, o que
acabou sendo boa estratégia, já que uma pergunta é um pedido de resposta e,
portanto, de interlocução. Mas é claro que circunstâncias de outra ordem
colaboraram para chamar a atenção sobre o romance. Ao contrário de Parque
Industrial, lançado numa edição particular, Cacau apareceu por uma editora no
exato momento em que ela se firmava como a grande casa dos novos
romancistas brasileiros. O contraste com O País do Carnaval, que terminava
com um protagonista olhando para o Cristo Redentor desejando ser bom, ou
seja, nada que indicasse qualquer possibilidade do surgimento de um autor
comprometido com o proletariado, também colaborou para criar uma certa
curiosidade a respeito do romance. O fato de o livro ter sido censurado, e pouco
depois liberado, é outro fator a acender a curiosidade, o que, aliás, o próprio
autor sublinha, considerando-o definitivo para que Cacau se tornasse seu
primeiro grande sucesso de público140. Sem mencionar a
140 “Eu vinha de publicar meu segundo romance, Cacau, mpj primeiro sucesso de
público: os dois mil exemplares da edição Ariel foram vendidos em quarenta dias - para isso
concorreu grandemente o fato do livro ter tido sua circulação proibida pela polícia, o que resultou
em farta
EM PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE 1)0 ROMANCE SOCIAL (1933-1936) • 161
[...] há uma arte nova. Mas esta arte não é simplesmente a renovação do processo de
composição, nem dos gêneros nem das formas. Há uma arte nova como conseqilência direta
da renovação do ambiente social e com íntimas diferenças de natureza que a dis
publicidade”. Jorge Amado, “Em 1933 viajei do Rio para Maceió com o objetivo único dc .. ......... ...
o romancista Graciliano Ramos”, Exu, nov.-dez. 1989 (12), p. 18.
3. Miécio Táti menciona vários artigos de imprensa dedicados a responder a Jorge Amado,
dos quais usarei aqui apenas os que pude ler na íntegra. V. Miécio Táti, lor%e Amado Vhla r
(>hiu. pp. 52-56.
4. Alberto Passos Guimaràes, “A propósito de um romance: Cacau", Holcllm </r Anel, ago.
1933 (II, 11), p. 288. Todas as citações são feitas a partir desta página.
IIW • UMA HISTORIA 1)0 ROMANCE DE 30
I.IIH
iii As liguas ilos passados conceitos de arte. Há urna arte nova, ligada ao movimento de
emancipadlo de uma classe, refletindo todos os aspectos da luta por esta emancipação.
Em volta do Sergipano, emigrado da burguesia, circula Cacau. Não há, nessa figura, os
traços fortes do revolucionário, nem o seu rosto mostra as depressões fundas dos homens
que sentem fome. Será isto no livro um defeito?
Parece que não. Para muita gente o revolucionário é o homem espadaúdo, carranca
fechada, na mão uma bomba e nos olhos uma vontade doida de esganar. Por esse figurino
não se orientou o autor.
Sergipano é o atormentado pela decomposição de sua classe, fisionomia como a de
tantos homens que não resistem ao clima moral do mundo de hoje. Tem vacilações. [...]
Mas mesmo assim, mesmo balançando dum canto para o outro sua linha de ação (o que,
até certo ponto, sua ignorância justifica), Sergipano leva até o fim a firmeza de seu ideal:
“Eu partia para luta de coração limpo e feliz”.
A esta altura já é possível notar também que, durante todo o artigo, vai-se
configurando um tipo muito preciso de crítica de valor que define o que é
qualidade ou defeito na medida em que há maior ou menor aproximação com
o romance proletário. Assim, o crítico se pergunta se as vacilações do protago-
nista são defeito e afirma que não são porque não abalam o caráter proletário
do romance. Não há aí qualquer outra consideração sobre a relação da con-
formação do protagonista com outros elementos constituintes da obra. A régua
a medir o tamanho da empreitada literária está fora da obra, fora da literatura.
A vacilação de Sergipano é válida porque faz sentido que um revolucionário
egresso da burguesia tenha tais vacilações, e não porque no universo
instaurado por aquele romance específico o caráter pouco certo do personagem
seja uma forma rentável de explorar algum conflito ou situação relevante.
O último elemento importante do romance proletário na visão de Alberto
Passos Guimarães pode ser entrevisto num dos elogios que faz ao livro:
Por Cacau tem-se bem a paisagem dos nossos campos semi-bárbaros, das nossas
fazendas, onde a ruindade dos feudos se conserva com o mesmo ardor.
Todo o livro é uma reprodução muito exata da vida de bichos, que, por este Brasil afora,
mais de três quartos da nossa população leva penosamente, com a dolorosa paciên cia de
cegos.
No entanto, quero notar uma coisa, Os Corumbás não é um romance proletário. Se faço
essa anotação é porque várias pessoas têm me afirmado que Amando Fontes realizou
literatura proletária com o seu livro.
Primeiro, acho que as fronteiras que separam o romance proletário do romance burguês
não estão ainda perfeitamente delimitadas. Mas já se adivinham algumas. A literatura
proletária é uma literatura de luta e de revolta. E de movimento de massa. Sem herói nem
heróis de primeiro plano. Sem enredo e sem senso de imoralidade. Fjxando vidas miseráveis
sem piedade mas com revolta. É mais crónica e panfleto (ver Judeus sem Dinheiro,
Passageiros de Terceira, O Cimento) do que romance no sentido burguês. Ora, acontece que
Os Corumbás é o romance de uma família e não o romance de uma fábrica. Com heróis, com
enredo, com as reticências maliciosas da literatura burguesa. A vida das fábricas de Aracaju,
os movimentos dos operários, suas ações, tudo é detalhe no livro, tudo circundando a família
Corumbá141.
141 Jorge Amado, “P.S.”, Boletim de Ariel, ago. 1933 (II, 11), p. 292.
EM PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-l»J6) • !(>'>
depois porque foi esse o motivo dado para que a venda do livro fosse tempo-
rariamente suspensa142. Enfatizar esse aspecto para negar a gratuidade das ce-
nas consideradas cruas e dar a ele um claro sentido político equivale a esta-
belecer uma posição firme diante dos críticos da direita, em geral católicos que
condenavam o uso do palavrão ou a inclusão de qualquer tipo de cena de sexo,
por imorais.
Mas o mais relevante nessas rápidas observações de Jorge Amado é apontar
os acréscimos de natureza literária que resultam de uma preocupação maior
com a revolta e com as massas, o coletivo: a ausência de enredo e o fim do
herói. Ao propor um romance esvaziado dessas categorias narrativas, ele faz
um tipo de programa estético que prega o rompimento com o elemento
definidor do romance burguês, ou seja, o conflito entre um sujeito, o
protagonista, e os valores da coletividade. Se os problemas da sociedade
contemporânea são derivados da luta de classes, portanto coletivos, não faria
mais sentido pensar em como o indivíduo lida com as estruturas sociais, é
preciso antes ver como as massas são exploradas pela burguesia e como elas
lutam para fazer cessar essa exploração. A ação individual é, nesse caso, mais
uma num conjunto amplo de ações, a merecer não mais que uma parcela da
atenção do romancista. O enredo perderia seu centro e se esfacelaria na
multiplicação de narrações dessas ações e, como todas elas fossem igualmente
importantes, a noção de herói - ou protagonista - ficaria definitivamente
prejudicada. Este artigo talvez seja o único texto em que um escritor
comprometido com a literatura proletária tenha chegado a traçar algum tipo de
programa especificamente literário. O resultado prático dessa proposta seria o
romance Suor, que forge Amado lançaria no ano seguinte.
De qualquer forma, o debate é tão significativo que dele participam tam-
bém aqueles que não estavam engajados na construção de uma arte proletária e
nem mesmo na luta revolucionária. Murilo Mendes, no mês seguinte,
setembro, escreve um pequeno texto sobre Cacau para também responder
positivamente à pergunta-prefácio de Jorge Amado. Diferentemente de outros
críticos não envolvidos de forma militante com a esquerda, Murilo Men des vê
com muita simpatia o romance, concluindo mesmo que ele coloca seu autor no
primeiro time dos novos escritores brasileiros. Sua percepçdo do problema é
bem pouco dogmática e razoavelmente matizada:
142 Em nota para a segunda edição Jorge Amado diria: “Livro discutido, Cacau
provocou escândalo quando da sua aparição, chegando a ser apreendido pela polícia como
pornográfico Não é pornográfico nem contém alusões pessoais, como disseram”. V. Jorge Amado,
< iu uu, p /
I(i(. • UMA HISTÓRIA 1)0 ROMANCE DE 30
Anlrs de muís nada precisamos de saber o que é que o autor entende como ro- m,m. r
prolriitrio. Acho que a mentalidade proletária está ainda em formação; agora é qui' o
proletário está tomando consciência de seu papel histórico; portanto, sobretudo em países de
desenvolvimento capitalista muito atrasado como o nosso, ainda não existe uma
mentalidade proletária. Naturalmente o escritor que não encontrar motivos de inspiração na
vida já em decomposição da sociedade burguesa, terá que observar a vida dos proletários, e,
se quiser ser um escritor revolucionário, terá que se integrar no espírito proletário, do
contrário fará simples reportagem. O caso recente de Pagu é típico. “Romance Proletário”,
anuncia a autora no frontispício do Parque Industrial. Houve engano. É uma reportagem
impressionista, pequeno-burguesa, feita por uma pessoa que está com vontade de dar o salto
mas não deu. [...] Parece que para a autora o fim da revolução é resolver a questão sexual 143.
143 Murilo Mendes, “Nota sobre Cacau", Boletim de&rieL, set. 1933 (II, 12), p. 317.
144 Aderbal Jurema, “Literaturas Reacionária e Revolucionária”, Boletim de Ariel, maio
1934 (III, 8), p. 211. Todas as citações sâo feitas a partir desta página.
EM PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-1936) • 167
tanto não haveria motivo para admitir a existência de urna literatura proletária
propriamente dita, somente válida num Estado proletário:
À primeira vista, parece correta a opinião do meu amigo. Analisada, porém, vei .1 que
não resiste à crítica. Com efeito, admitindo-se, como ele admite, a existência aqui no Brasil,
como em qualquer parte, da questão social, objetivada na luta de classes, nada mais lógico do
que se chamar à arte que reflete essa realidade inegável, de “arte prolelâi i.i'"' 145
145 Moacir de Albuquerque, “Arte Proletária”, Momento, ago. 1934 (I, 4), p. H.
I Ml • IlMA HISTORIA DO ROMANCE DE 30
Libertação é o tema de seu livro de viagem por excelência, Serafim Ponte Grande, onde
a crosta da formação burguesa e conformista é varrida pela utopia da viagem permanente e
redentora, pela busca da plenitude através da mobilidade.
[...]
Aí, realiza o desejo de agitação para libertar, ao explodir a rotina da vida do protagonista
por meio da existência sem compromisso a bordo dos navios que, pobco a pouco, vão saindo
da realidade para entrar nos mares do sonho. Todos lembram como o livro acaba: uma espécie
de superação total das normas e convenções, numa sociedade lábil e errante, formada a bordo
de El Durasno, que navega como um fantasma solto, evitando desembarques na terra firme
da tradição. Sob a forma bocagiana de uma rebelião burlesca dos instintos, Oswald consegue
na verdade encarnar o mito da liberdade integral pelo movimento incessante, a rejeição de
qualquer permanência".
146 Orris Barbosa, “Romances do Norte”, Momento, out. 1935 (II, 1), p. 3.
147 Antonio Candido, “Oswald Viajante”, Vários Escritos, pp. 55-56.
EM PI.ENA POLARIZAÇÃO: O AUGE 1)0 ROMANCE SOCIAI. (1933-1936) • 16«
tlt esquerda, a viagem não pode ser uma libertação, mas uma fuga inaceitável
tio front de batalha da luta de classes e não se configura, portanto, como uma
contestação, ao contrário. Daí a necessidade de renegar. Mas renegar não
significa alterar o sentido do livro em si e a posição do protagonista. É
justamente porque permanece o mesmo depois da mudança de ponto de vista
que é preciso renegá-lo.
No entanto, a leitura que se fez, em numerosos artigos, foi outra e demons-
tra bem o peso da definição política do autor no julgamento da obra. Se Oswald
se declara um escritor comunista logo no prefácio do livro, é porque se opõe à
burguesia e, dessa forma, quer ridicularizá-la. Sendo assim, o herói do livro
será um representante típico dessa classe, concentrando em si todos os seus
defeitos até tornar-se apenas uma caricatura. Noutras palavras: o personagem
Serafim Fonte Grande é colado de volta à burguesia, chegando mesmo a
representá-la exemplarmente. Aí estaria a atitude revolucionária do livro
segundo os críticos que se pronunciaram sobre ele, encontrando-a onde o autor
já não via mais nenhuma. O prefácio foi lido apenas como uma declaração de
posição política do autor, o que ele dizia sobre o livro nem sequer foi percebido
e muito menos discutido posteriormente. No mês seguinte ao lançamento do
romance, Saul Borges Carneiro faria essa leitura:
sobre Em Surdina, de Lúcia Miguel Pereira, iria pelo mesmo caminho, como
Octávio de Faria algum tempo depois e Aderbal Jurema que, naquele mesmo
148
artigo já comentado aqui, é categórico: “Já Serafim Ponte Grande vive no meio
dos graúdos e Oswald de Andrade retrata irónica e revolucionariamente todos
os gestos do grand monde em desagregação, com todas as suas fraquezas e
degenerescências”.
A degenerescência, no caso, é a que se expressa no comportamento de
Serafim. O crítico pernambucano está tão certo do caráter revolucionário, no
sentido “proletário” do termo, da obra de Oswald de Andrade que menos de
um ano depois estará cobrando dele a continuidade dessa linha revolucionária
quando da publicação de A Escada Vermelha (aquele que fora renegado antes
mesmo de ser publicado)149. Ninguém se deu conta da complicação que é um
autor publicar uma obra renegada ou do quanto há de moral burguesa na visão
de que o comportamento nada convencional de Serafim é sinal de de-
composição ou degenerescência, tremenda contradição para quem se vê tão
distante dessa moral e brande palavrões para afrontá-la. A única exceção foi
Manuel Bandeira que, num texto muito curto e, portanto, pouco conclusivo,
percebeu que nada havia de romance proletário em Serafim Ponte Grande e
apontou um dos grandes dilemas que o prefácio revelava:
O prefácio do Serafim Ponte Grande torna quase inútil qualquer crítica que se pretenda
fazer ao romance. “Epitáfio do que fui”, diz o autor. Na lista de suas obras renegadas (todas)
está incluída a mesma história de Serafim. Quem renega uma obra não a publica. O gesto do
autor, publicando-a, faz compreender a cautela do Partido Comunista que não o quis aceitar
até hoje. De fato, não se imagina ninguém mais longe da mentalidade marxista: o marxista é
um sujeito sério como o anti-marxista. O jovem Octávio de Faria se parece muito mais com
um marxista do que Oswald de Andrade.
[...]
No Serafim ainda é o palhaço da burguesia. O drama atual de Oswald é que só um
sujeito como eu, pequeno-burguês e poeta menor, pode gostar do que ele escreve. O
comunista que ruminou O Capital inteiro e o proletário que lia A Classe Proletária não o
sentem nem o entendem. Esperemos a obra futura e vejamos se o homem do Pau Brasil é
capaz de, em bem da revolução, se despojar daquele individualismo de que tanto se compraz
- acima de tudo se compraz - na deformação diletante e feroz de que o Serafim e o seu
prefácio são o último exemplo150.
148 V. Jorge Amado, “Em Surdina”, Boletim de Ariel, jan. 1934 (III, 4), p. 97, c
Octávio de Faria, “Excesso de Norte”, Boletim de Ariel, jul. 1935 (IV, 10), p. 263.
149 V. Aderbal Jurema, “Subindo a Escada Vermelha”, Boletim de Ariel, fev. 19 15
(IV, 5), p. 141.
150 Manuel Bandeira, “Serafim Ponte Grande”, Literatura, 5 ago. 1933 (I, 3), p. 3,
’ • UMA HISTÓRIA DO ROMANCE DE 30
livro, “a não ser que se trate de obra de subido valor”, como se lê na segunda
capa do seu número 2, publicou três textos subidamente elogiosos, de Jorge
Amado, que o comparou a S. Bernardo, João Cordeiro, que o classificou de
“admirável poema em prosa do Recôncavo Baiano”, e Renato Mendonça151 152. A
recepção foi tão calorosa que o livro parecia se destinar a ocupar um lugar
também subido em nossa história literária. O tom geral era de que o romance
revelara uma nova face do Brasil pela literatura. Algo estranho, no entanto,
aconteceu na Revista Acadêmica. No número 9 sairia um artigo rasgadamente
elogioso de José Bezerra Gomes, no mesmo tom dos artigos do Boletim de ArieF.
No entanto, no número 10, um jovem intelectual de esquerda tocaria o dedo na
ferida. Este artigo é importante porque revela uma das raras atitudes
verdadeiramente independentes de um crítico engajado. Naquela altura, não
havia qualquer dúvida sobre a posição ideológica desse crítico, Moacyr Werneck
de Castro. Entre outras coisas, ele se manifestara poucos meses antes em artigo
para a revista Rumo que é um dos mais interessantes testemunhos da necessi-
dade de engajamento do intelectual nos anos 30153. E é falando da esquerda que
ele alertará para o perigo dessa aprovação automática a qualquer coisa que se
apresente como romance político:
151 V. Jorge Amado, "O Alambique e Clóvis Amorim”, Boletim de Ariel, jul. 1934 (III, 9), pp.
244-245; João Cordeiro, “Notas sobre o Alambique", Boletim de Ariel, dez. 1934 (IV, 3), pp. 88- 89;
Renato Mendonça, “O Alambique”, Boletim de Ariel, maio 1935 (IV, 8), p. 221.
152 V. José Bezerra Gomes, “Nota sobre o Romance de Clóvis Amorim”, Revista Acadêmica,
s./d. (9, provavelmente de março de 1935), sem numeração de página.
153 V. Moacyr Werneck de Castro, “Literatos em Crise”, Rumo, jul.- ago. 1934 (9/10), p. 3.
154 Moacyr Werneck de Castro, “Sobre um Romance do Norte”, Revista Académica, abr.
1935 (10), sem numeração de página.
IM • U M A HISTORIA DO ROMANCE DE 30
documento, os sonhos comunistas se mostram mais fortes> Ao final> preva. lece a esperança
e o herói parte em busca d^ utopia” 155
(que Duarte iiga ao pendor realista, documental) não se esgota, antes reforça a
propa§anda) dá_lhe força. Por isso nào
parece válida a idéia de que Cacau fracassaria ao buscar uma síntese entre duas
forças que, em princípio, estariam em lugares opostos. A relação entre essas forças
já aparece definida no plano básico do Iivr0j e em seu desenvolvimento não há
desequilíbrio simplesmente pQrque entre elas nao há luta _ seu lugar é o mesmo.
Assumir a propaganda como fim de Cqcau ¿ uma forma de tentar uma
aproximação ao romance que escape da aprioristica aceitação ou recusa do livro
em si - tal como se fez na época e, com u^ sentido diferente, se faz hoje. Se
olhamos a recepção que o livro tem tido, o qUe vemos é ¡sso; ou elogios rasga_ dos ou uma
demolição radical.
No campo dos elogios, basta dar uma rápída olhada na crítica do período. Vários dos
artigos escritos por Edison Carneir0; Dias da Costa> próp Alberto Passos Guimarães,
0 r¡0
É com essas restrições - ou contra elas, até certo ponto - que Assis Duarte
dialoga. Para enfrentar esse verdadeiro consenso, sua atitude é a de tentar valo-
rizar a obra, embora admitindo aqui e ali, quando parece inevitável, que algu-
mas restrições têm razão de ser. Esse é o caso da superficialidade de construção
das personagens, por exemplo:
A utilização de personagens sem maior riqueza interior era comum na época, sobretudo
nas obras da vanguarda esquerdista. Fez-se presente com muito vigor no Expressionismo
alemão e no teatro engajado de Brecht, Piscator e Meyerhold. No entanto, cumpriam ali uma
função distinta, fruto de um projeto distinto: eram personagens estilizadas visando um efeito
alegórico. O adensamento psicológico cedia lugar à representação das relações vividas e suas
determinações históricas e económicas.
O mesmo não acontece no texto de Amado, movido por um interesse realista e que,
portanto, necessitaria de figuras humanas mais complexas e verdadeiras para atingir a
densidade simbólica própria ao gênero. Ao contrário, o personagem estereotipado em face
única não consegue exibir aquela humana dose de contradição que o aproxima da vida real.
Nesses aspectos, o livro vê enfatizado seu caráter de imaturidade, mostrando-se de fato, como
obra de aprendiz158.
157 Fábio Lucas, “Plano, com Epígrafe, de um Estudq^obre a Morte de Quincas Berro
D’Água”, em Jorge Amado, Jorge Amado Povo e Terra - 40 Anos de Literatura, pp. 179-180.
. 23. Eduardo de Assis Duarte, op. rít., pp. 61-62.
I!M PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (I933-IM36) • 177
“todos os proletários são bons, ou pelo menos desculpáveis, e o resto da humanidade que passa
no romance, umas pestes”159.
“Todos os ricos do romance são maus, velhacos, libidinosos e... católicos” 160.
“[...] esse Cacau onde todos os ‘de cima’, os ricos, são maus e onde todos os ‘de baixo’, os
pobres, são bons”161.
159 Manuel Bandeira, “Impressões Literárias”, op. cit., p. 1195. Todas as citaçAcs fcilas a
parlli desta página.
160 Arnaldo Tabayá, “Um Romance Proletário”, Boletim de Ariel, out. 193 ' ( I I I , I ), p 20
Todas as citações feitas a partir desta página.
161 Octávio de Faria “Jorge Amado e Amando Fontes”, Boletim de Ariel, out. 193 l ( I I I , I ),
M • UMA IIIM OKI A 1)0 ROMANCK DE 30
MHI lio, o dono, estava bem mais velho e mais vermelho e mais rico. A barriga era i Imlii
c »l.i soa prosperidade. À proporção que meu tio enriquecia ela se avolumava. ■.I.IV.I enorme,
indecente, monstruosa (p. 30).
() coronel possuía uma voz arrastada, demorada, cansada, de animal sagaz e uns »lhos
maus, metidos no fundo da cara enrugada pela idade. Cultivava, como meu tio, ima barriga
redonda, símbolo da sua fartura e da sua riqueza. Sabia-se que comia muito, omía
estupidamente [...] (pp. 120-122).
letários e ensinando a seus filhos uma confusa religião na qual Deus se confunde
com o patrão e onde apenas o conformismo é premiado. Como sempre, não há
exceção, e os padres compartilham o destino que os ricos em geral têm no livro
- o de serem os vilões. Mas esse não é o único aspecto da religião a ser notado no
livro. Há um outro, apontado por Arnaldo Tabayá: “Os alugados não têm
religião (será isso possível no Brasil, onde se conhece o povoado pela torre da
igreja?), no entanto os ricos são católicos, e o filho do patrão, tipo vulgar e
velhaco, vai à missa com uma fita no pescoço”.
Mais uma vez, a propaganda cria a necessidade de deixar de fora tudo
aquilo que pode afastar da visão que ela quer consagrar. Há, nesta atitude do
narrador de Cacau, mais do que uma crítica à Igreja, o desejo de suprimi-la - e
até mesmo a instauração, no universo ficcional, dessa supressão. Não custa
repetir: em princípio absurda, confrontada com a realidade brasileira, a ausência
de religião entre os trabalhadores é necessária como recurso retórico, como
argumento no sentido de convencer o leitor de que as estruturas burguesas estão
todas podres e precisam cair.
Esses três aspectos são apenas alguns dos exageros simplificatórios de Cacau,
mas são suficientes para comprovar que eles não são devidos a um descuido ou
uma incapacidade do autor: são, isso sim, programáticos. O aspecto documental
interessa apenas para reforçar a propaganda e se concentra na descrição do
trabalho árduo dos alugados. Se a figura de Honório, a maldade dos ricos e a
absoluta falta de religião da população mais pobre fogem do documental, é
porque documentar a realidade não é o grande objetivo do romance, mas apenas
uma forma de enfatizar a propaganda política.
É claro que notar que esse procedimento é intencional não implica concor-
dar com a crítica de esquerda dos anos 30 e reivindicar para Cacau um lugar de
destaque na moderna literatura brasileira. Mas também é claro que isso torna
visível o quanto é simplificador aceitarmos indefinidamente as restrições, di-
gamos automáticas, que se vêm fazendo ao livro ou mesmo ao autor.
Nessa perspectiva, o caso a se discutir a respeito de Cacau é o de se esse
projeto de romance-propaganda se concretiza, sem brechas, durante toda a obra.
O que interessa saber é se ele se mantém fiel à rede de causalidades que a propa
ganda instaura em seu interior, ou seja, se as eventuais “simplificações” v.io
sempre no mesmo caminho, construindo um todo uno. A questão moral, poi
exemplo, tão enfatizada por Jorge Amado, pode dar boas pistas. Num universo
em que as instituições sociais tradicionais são desenhadas como decadentes e
mesmo nocivas, é natural que apareça em Cacau um trecho como este: "A ou tra
foi morar com Simeão sem bênçãos desnecessárias de juiz e padre" (|>. 101).
Illii • UMA HISTORIA HO ROMANCE DE 30
[O romance é] mal colocado no seu primeiro arcabouço, porque aquele rapaz pe-
EM PIEN A POLARIZAÇÃO: 0 AUGE 1)0 ROMANCE SOCIAL (1933-1936) • IRI
queno-burgués que vira trabalhador de enxada e mais tarde vem escrever o romance é de
todo inaceitável. Não viraria trabalhador de enxada, e se porventura o fizesse não escreveria
na maneira requintada, apesar de todos os palavrões, em que se exprime Jorge Amado.
Os filhos dos coronéis são semideuses despóticos que amam deflorar, por farra, tolas
roceiras de pés grandes e mão calosas. Pernósticos, falando difícil como quem sabe gramática,
brutos e mal-educados, esses meninos me causavam um nojo medonho. Colodino também
não os tolerava e não me lembro de haver ouvido o carpinteiro responder a qualquer
pergunta dos acadêmicos (p. 161).
162 Lúcia Miguel Pereira, “Graciliano Ramos - Sãc^ernardo”, A Leitora e seus Personagens,
p. 82.
163Álvaro Lins, “Valores e Misérias das Vidas Secas”, Os Mortos de Sobrecasaca, p. 162.
EM PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-19.16) • IHA
As nuvens encheram o céu até que começou a cair uma chuva grossa. Nem uma nesga
de azul. O vento sacudia as árvores e os homens seminus tremiam. Pingos de água rolavam
das folhas e escorriam pelo homens. Só os burros pareciam não sentir a chuva. Mastigavam o
capim que crescia em frente ao armazém. Apesar do temporal os homens continuavam o
trabalho (pp. 11-12).
IM IUI, prolcl.ii io ou popular - ou seja, dando uma outra solução para o com-
plexo problema artístico que é fazer um romance de transição para a socie-
* .... ..... ... ^cntro um ambiente ainda burguês, trocando de estraté*
Não me resta a menor dúvida: o quadro que o sr. Amando Fontes nos deixa pintado no
seu romance não é mais favorável à burguesia do que o do sr. Jorge Amado. Em nada mesmo.
Mas estamos aqui diante do romancista desinteressado - que viu e que conta o que viu - do
romancista incapaz de “torcer” o menor acontecimento para fazê- lo falar pró ou contra o
partido ou a corrente a que pertence165.
Distante da propaganda política, mas não da crítica social, ao mesmo tempo
em que abre caminho na tendência forte de revelar de maneira realista o Brasil
aos brasileiros, já que sua ação se passa em Aracaju, lugar pouco ou nada
explorado por romancistas de projeção nacional, Os Corumbás pôde agradar
tanto a Octávio de Faria quanto a Jorge Amado. Em nenhum momento foi lido
como alguma coisa em cima do muro, que se subtraísse à necessidade
fundamental de tomar partido. Foi, isso sim, tido como um romance de
esquerda, como fica claro na crítica do influente João Ribeiro: “Por isso mesmo,
Os Corumbás pareceu-nos um dos raros documentos do comunismo incipiente e
fatal. É o retrato bem parecido da sociedade que se dissolve sob a erosão funesta
da civilização”166.
No entanto, o fato de se ater à elaboração de um enredo centrado na vida de
uma família de proletários em Aracaju, sem se colocar como romance de
propaganda, e no preciso momento em que se discutia Cacau justamente por
isso, Os Corumbás acabou se tornando um exemplo de romance social sem lastro
ideológico tão marcado. Esse aspecto, aliás, foi sublinhado por outros críticos
importantes, como Gilberto Amado e Alcântara Machado:
Há que louvar o autor por não ter ido mais longe na parte política, por não ter acentuado
a tendência reivindicante, a injustiça social. Isto é mister para outros. Seu papel ele o
desempenhou a contento. Mostrou-nos a vida; fez-nos viver com ela, fez-nos chorar167.
[Amando Fontes] fez obra de romancista quando tudo lhe facilitava fazer também obra
de demagogo. Demonstrou assim possuir essa coisa incomum que se chama autocrítica e
conhecer perfeitamente os limites de sua função social de escritor de ficção. Ficou na medida
justa168.
166 João Ribeiro, “Os Corumbás”, Crítica - Os Modernos, p. 153. Publicado originnlnicnti' no
fornai do Brasil de 03 ago. 1933.
167Gilberto Amado, “Os Corumbás”, Boletim de Ariel, set. 1933, (11,12), p. 'I
168 Antônio de Alcântara Machado, “Um Romancista”, recorte sem data extraído do / >ii! rio
de São Paulo (parte deste artigo vem reproduzida na orelha de várias reedições do romaoi ■ Cito de
um recorte encontrado casualmente numa edição do romance comprada em sebo),
Amando fontes aparece com a possibilidade de ser um autor político, e não um
político autor.
O esquema geral de Os Corumbás é bastante simples. Em sua primeira parte,
que só conta com quatro capítulos, somos apresentados a Geraldo Corumbá,
agricultor que vive na Ribeira, interior de Sergipe. Numa festa, ele conhece
Josefa, filha de um pequeno fazendeiro e eles terminam se casando. Anos depois
as dificuldades se avultam, há uma grande seca em 1905, o preço do açúcar cai e
todos os envolvidos no plantio se vêem numa situação difícil. Já com os filhos
crescidos, quatro moças e um rapaz, o casal decide ir para Aracaju, onde todos
poderiam se empregar nas fábricas de tecido. A segunda parte, que se abre com
uma cena impressionante pelo seu despojamento, encontramos a família já há
anos em Aracaju. Geraldo e as duas moças mais velhas, Rosenda e Albertina,
trabalham na fábrica de tecidos. O rapaz, Pedro, é empregado como mecânico
numa oficina, e as esperanças e sacrifícios de todos estão empenhados no estudo
das duas filhas mais novas, que deverão frequentar a escola normal e se
tornarem professoras, saindo, assim, daquele meio de dificuldades tão grandes
quanto as que todos enfrentavam na Ribeira. Nesta segunda parte, com seus 43
capítulos, é que se desenvolve a trama propriamente dita: uma sequência de
desgraças. Das quatro filhas, uma morre tuberculosa e as outras, uma a uma, vão
caindo na prostituição em suas formas mais ou menos degradantes. O único
filho, envolvido na luta política, acaba preso e vive as mesmas privações dos pais
no Rio de Janeiro, sem desistir do engajamento. Sem qualquer esperança, só
resta aos velhos abraçar seu fracasso e voltar à Ribeira. A terceira e última parte
do romance, na verdade um único capítulo, narra a decisão de voltar e se
concentra na cena dessa retirada, com o casal esperando tristemente a partida do
trem muito atrasado.
O enredo básico não inclui o caminho até a consciência política que o su-
cesso de Jorge Amado incluíra, mas é claro que outros fatores sublinham a
menor radicalidade política, por assim dizer, de Os Corumbás cm relação a
Cacau. Assim é com o tal senso de imoralidade, para usar a definição de Jorge
Amado para a forma como as questões de caráter sexual haviam de ser tratadas.
Embora o sexo seja tema constante em Os Corumbás, e mesmo fator central para
a desgraça das moças da família, é mais um presença dominadora do que um
assunto tratado explicitamente. Não há páfavrões nem cenas que um senso de
moral convencional consideraria escabrosas, por exemplo. Vejamos a natureza
EM PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (19331936) • 18/
de uma dessas cenas. A filha mais nova do casal Geraldo e Josefa Corumbá,
deflorada e abandonada pelo noivo, acaba por ir à polícia na tentativa de obter
reparação para o mal que lhe fora feito. Tem, obviamente, que passar por um
exame de corpo de delito, e a saída dos médicos, que encontram um conhecido
devasso de Aracaju, o dr. Gustavo de Oliveira, é narrada da seguinte maneira:
Eram os médicos legistas da polícia. O mais moço cumprimentou secamente e logo foi se
retirando. O outro, homem de quarenta e poucos anos, apertou jovialmente a mão de todos e
pôs-se a falar sobre a perícia recém-feita. Gabava, sobretudo, a belez» da jovem.
A certa altura, Gustavo de Oliveira perguntou-lhe, numa curiosidade que fazia ot seus
olhos cintilarem:
- Quase menina, então?
O médico sorriu e respondeu:
- É nova. Mas é mulher. E que mulher bonita!
- Psiu! Psiu! Fez Prado Antunes. Aí vêm elas... (p. 266).
Quando a notícia de sua fortuna e sua bondade correu mundo, toda a pobreza do
arrabalde foi lhe implorar uma qualquer coisa. Teve contato, então, com as misérias mais
dolorosas. Conheceu doentes sem alimento e sem remédio. Topou crianças nuas, gemendo de
fome ou tiritando de sezões. Viu recém-natos, cujas mães não tinham leite, morrerem
empanzinados do cozimento de farinha que ingeriam...
Comoveu-se fortemente. Fez o propósito de não deixar sem assistência a quem quer que
o procurasse. E quando deu de si, estava apaixonado, inteiramente entregue àquela missão de
lenir dores (p. 52).
O próprio narrador escolhe com critério a expressão a ser usada: lenir dores
e não curar males. Assim, quando Albertina, a filha mais velha de Geraldo e
Josefa, sofre aquilo que chamaríamos hoje de assédio sexual na fábrica em que
trabalha, a Sergipana, e acaba perdendo o emprego, é a ele que a família recorre
para que a outra fábrica, a Têxtil, a abrigue. Apesar das dificuldades, ele
encaminha a moça e obtém para ela o emprego. No entanto, isso não impedirá
que, mais tarde, sem qualquer perspectiva de vida com algum conforto, ela
acabe aceitando fugir com um namorado, que a abandonará, lançando-a à
prostituição. Isso se repetirá mais tarde com Caçqlinha, a quem a família toda
dedicou os maiores sacrifícios para que pudesse estudar e, com o salário de
professora, no futuro, assistisse os pais. O fracasso desse sacrifício acaba apare-
cendo quando, sem outro recurso, ela se vê na necessidade de deixar a Escola
EM PLBNA POLARIZAÇÃO: O AUCIE 1)0 ROMANCE SOCIAL (I933-I93A) • IH9
Normal para trabalhar no escritório da fábrica. Mais uma vez o dr. Barros
arranjará o emprego que, mais uma vez, mal resolverá a carência material mais
imediata da família. O pedido, neste caso, é mais significativo porque será diri-
gido ao advogado num momento em que sua casa recebe a visita de outras
figuras ilustres de Aracaju, que acabarão comentando o caso daquela “pobre
moça”. É o momento para que todos se posicionem diante da questão social. O
Salgado Brito, que cultiva uma fama de carbonário, grita um pequeno discurso
em que afirma que o pobre tem que fazer justiça com as próprias mãos, sem
esclarecer, é evidente, o que seria isso. O vigário apela para a Rerum Novarum.
O Carlos Pereira, deputado federal, repete o velho discurso, tão caro a alguns
escritores naturalistas que foram mencionados aqui, da saída pela legislação:
- Tudo, falta de uma legislação sábia e adequada. Muito menor, em verdade, seria o
sofrimento dos humildes, se tivéssemos leis de salários mínimos, de seguros operários, e
outras conquistas plenamente razoáveis. Eu, por mim, tenho feito nesse sentido o que é
possível. Ainda este ano apresentei longo projeto, estipulando algumas garantias indis-
pensáveis ao trabalho. Foi recebido, mereceu elogios dos colegas... e encalhou para sempre lá
num canto... (p. 149).
Nem é preciso mencionar que esse discurso tem algo de antecipador das
políticas trabalhistas que seriam implantadas pelo regime de Vargas, a revelar
uma postura que não pretende incluir de fato os pobres no corpo vivo da
sociedade brasileira, e sim mantê-los numa espécie de marginalidade decente.
Mas o pior de tudo é que, quando o capítulo termina, percebemos que nada
disso ultrapassa as intenções do papo furado, do mero desejo de brilhar numa
conversa inteligente: “E a conversa generalizou-se, tomou rumos mais amplos,
esforçando-se cada um por sustentar suas idéias a respeito da melhor
organização social do mundo” (p. 150).
Não há nada que os pobres possam esperar da elite, exceto alguma com-
paixão, que resolve certos problemas, mas não ajuda a sair do lugar. Pode-se
dizer mesmo que há neste romance verdadeira incompatibilidade entre grau des
e pequenos, colocada com todas as cores num episódio anterior, em que se
envolve Pedro. Trata-se de um rapaz sério, sisudo até, que ia subindo em sua
profissão de mecânico. Extremamente inteligente, acaba tomando gosto pela
leitura e se aproxima de um tipógrafo mais velho que ele, José Alonso, na
verdade um líder operário de Aracaju. José Afonso o apresenta â litei atu ra
naturalista e aos autores russos, enfim, a “todos os que fizeram sentii, em
I«ll • UMA IIISIORIA DO ROMANCE l)E 30
O delegado bateu os olhos. Não pôde reprimir um gesto de repulsa, que lhe contraiu os
músculos da face. Mas limitou-se a perguntar:
- E eu, dr.? O que é que devo fazer? (
169 Amando Fontes, “A Entrega do Prémio Felipe d’01iveira”, Lanterna Verde, maio I 9 M
(1), p. 112.
i»; • UMA M IM O RIA DO ROMANCE DE 30
Se há algum defeito no livro do sr. Amando Fontes é o de ser bem escrito demais. Está
tudo muito bem arrumado, sem nada a cortar, sem nada a acrescer. A forma, um tanto antiga
para um romance de hoje, correta, quase castiça, pouco muda e não se proletariza, nem
mesmo nos diálogos de operários, onde não surge, nunca, um palavrão. Os proletários de Os
Corumbás não falam, como deveriam falar, a linguagem um tanto escabrosa dos miseráveis171.
Para esse crítico próximo a Jorge Amado, que, no mês anterior, manifesta-
ra-se entusiasticamente sobre Cacau no Boletim de Ariel, a língua de Amando
Fontes é excessivamente preciosa, “literatura” demais. O novo romance brasi-
leiro para ele se confunde com o projeto de literatura proletária tal como Jorge
Amado o vinha desenvolvendo. Nessa visada, Os Corumbás é um bom livro, c
basta ver como o crítico acaba sugerindo ser difícil apontar um defeito nele para
se perceber o quanto isso é verdade. Para ser perfeito, no entanto, precisa ria ser
menos perfeito em relação aos padrões do romance burguês, faltava lhe um
pouco mais daquela radicalidade de concepção e linguagem, era prec iso que se
proletarizasse mais.
( h ( ¡¡rumbas perdem um pouco de intensidade por falta do poeta no sr. Fontes. [...] t le
lem imaginação para fazer um romance sem se voltar para dentro dele mesmo, como de.se
Manuel Bandeira, ele sabe aproximar-nos dos seus tipos sem constranger-nos com os contatos
com o artificial. Mas, quando a dor ou a alegria esperam pelo entusiasmo poético do escritor,
pelo seu poder intenso de comunicação, o sr. Fontes se encolhe, faz o que não tem força para
fazer.
Aquele fim do seu livro, com o choro convulso da velha, é bem o sinal da impotência de
um escritor.
O sr. Fontes quis fazer o doloroso e fez o patético.
[...]
Mas lhe falta aquilo que foi demais em Raul Pompéia, - a sensibilidade de um poeta, ou
melhor, o sistema nervoso de um escritor172.
Se para Dias da Costa sobra, para José Lins do Rego falta força de estilo a
Amando Fontes. O autor de Menino de Engenho seria um dos primeiros a
apontar aquilo que anos depois Álvaro Lins definiria como “indigência de estilo”
em Os Corumbás. O artigo de Manuel Bandeira referido indica que essa foi uma
crítica mais ou menos comum, da qual aliás, o poeta discordava:
A arte de Amando Fontes como escritor parece até negação da arte, tal a ausência de
artifícios, - a naturalidade do mau escritor, tenho mesmo vontade de dizer, mas será melhor
dizer do escritor despretensioso, indiferente às qualidades elegantes da expressão e só atento
ao que é essencial ao romance, ao movimento do romance, às suas exigências de construção e
de verossimilhança psicológica. [...] Alguém notou que lhe falta ao estilo o que chamou o
ouro essencial das imagens. Falta o ouro das imagens e ainda bem. Não é essencial. É curioso
notar como Amando Fontes atinge a força do estilo pelo sentido da situação 173.
172 )osé Lins do Rego, “Os Corumbás”, Momento, dez. 1933 (I, 2), p. 12. Este artigo foi
republicado em Literatura, 20 jan. 1934 (I, 14), p. 4. ^
173 Manuel Bandeira, op. cit., p. 1197.
EM PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-1936) • 195
174 Ver, por exemplo, o último capítulo, intitulado “A Lei do Estilo”, do manual de Xavia
Marques, A Arte de Escrever, pp. 200-207, em que se destaca a análise de dois versos de (àislro
Alves e é evocada a Filosofia da Composição de Edgar Allan Poe.
175 Mário de Andrade, “O Ateneu”, Aspectos da Literatura Brasileira, p, IH2,
176Ainda segundo Mário de Andrade, no mesmo texto à p. 179.
I•»<. • UMA IIIMrtKIA 1)0 ROMANCE DE 30
Um deles, o capítulo 11, poderia desaparecer de todo, ou ser reduzido a algumas linhas
de caráter complementar no meio da narração geral: é a crónica de um casamento, e nem esse
episódio nem os seus personagens vão ter influência decisiva na história dos Corumbás. Outro
trecho que poderia desaparecer igualmente é a segunda parte do capítulo 21, em que
aparecem alguns cavalheiros discutindo problemas e condições de vida social. Um deles chega
a se pronunciar nestes termos: “Ah! Se todo homem norteasse a sua vida pública pelos
mesmos rígidos principios do seu agir par ticular, este Brasil seria um país bem diferente...”.
Decididamente, toda aquela cena - não pelo seu espirito, mas pela forma - representa um
corpo estranho dentro da auténtica obra de ficção que é Os Corumbás, uma contradição com
a magistral arte dos diálogos, que se afirma no decorrer de todo o romance'1'1.
178 Álvaro Lins, Os Mortos de Sobrecasaca, pp. 248-249. Artigo originalmente pultlii mio
eia 1946, por ocasião do lançamento da 6a ed. do romance.
I'IN • UMA HISTÓRIA DO ROMANCF. DE 30
encorajados a tentar aquilo de que eram capazes e, por incrível que pareça,
encontrando ecos no público. Se em algum momento é possível dizer que nasce
um público para a literatura brasileira, esse momento é a década de 30, e isso
era perceptível já à época, como testemunhou Jorge Amado: “começa a luiver
essa coisa absurda no Brasil: um público que compra o livro e lê”179. O papel de
Os Corumbás nisso, fazendo a ponte privilegiada entre o gosto do público, que o
comprou aos milhares, e os críticos, que só encontraram para ele palavras de
elogio, não foi nada pequeno. Nos quatro anos seguintes, com os resultados mais
variados que é possível imaginar, surgiram romancistas de todas as partes do
Brasil, encorajados pelo sucesso desses romances de 1933.
Além disso, Os Corumbás confirmou e, pela importância que acabou
ganhando, contribuiu para que se solidificasse a opção do novo romance
brasileiro por uma linguagem próxima da fala. De novo é preciso lembrar de
Manuel Bandeira, que dá um conselho - que é na verdade um apoio - no final de
sua crítica, sem deixar, é claro, de beliscá-lo por ter escorregado também nesse
campo:
179 Jorge Amado, “Apontamentos sobre o Moderno Romance Brasileiro”, Lanterna Verde,
maio 1934 (1), p. 51.
180 Manuel Bandeira, op. cit., p. 1197. Na verdade, a segunda citação está incorreta: o verbo
usado no romance é “deter” e não “contar”. Nas edições revist^ a frase foi alterada: “Não houve
quem a pudesse deter” (p. 98 da 13* ed.).
RM PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-1936) • 199
2. A INSTITUIÇÃO DA DIVISÃO
penúltimo capítulo revela: “‘Nada é mais ridículo que um santo leigo’ - disse-
ra o irmão... Por que se sentia feliz com aquilo que para os outros só era
sacrifício?” (pp. 364-365).
Qual seria, então, a função daquele último capítulo? Evitar mal-entendidos,
impedir que o leitor pudesse concluir que é possível encontrar a felicidade tanto
fora dos rígidos papéis sociais destinados à mulher quanto do refúgio da religião?
Na verdade, trata-se muito mais de um apêndice, e está ali somente para colocar
Deus na história, marcar claramente uma posição que é da autora, e não da
personagem. Não seria outro o aspecto que Jorge Amado, embora o saúde como
o romance de qualidade que enfim um intelectual “da direita” escrevia, vai
destacar no livro:
Sinto também que a romancista vive presa a um círculo de idéias das quais não se pode
libertar, o que lhe restringe as possibilidades, impedindo o desenvolvimento completo do
romance, o aproveitamento de certos detalhes. Compromissos talvez, que roubam parte da
independência da escritora.
1-1
Deixa uma esperança no fim: Deus
Acho até que Deus não apareceu em todo o livro de propósito. Para ficar como
esperança. Nota-se que se ele aparecesse, se a religião influísse mais nos personagens, nem por
isso eles melhorariam e dariam outro rumo a suas vidas182.
Essas afirmações de Jorge Amado não são injustas em si. O que as torna
injustas é a total falta de percepção de que seu procedimento enquanto ro-
mancista é o mesmo que ele condena em Lúcia Miguel Pereira, ou seja, o de
produzir romance engajado, subordinando conscientemente a criação a uma
doutrina. Mas a autora de Em Surdina não é menos injusta a respeito de Jorge
Amado, como logo se verá, num artigo em que comenta a resenha do
romancista baiano acerca de Maleita, de Lúcio Cardoso, no qual dirá183:
Quem parece estar desperdiçando admiráveis dotes de romancista com essa mania de
provar, de visar um alvo, é o próprio Jorge Amado.
182 Jorge Amado, “Em Surdina”, Boletim de Ariel, jan. 1934, (III, 4), p. 97.
183 Nesse artigo, aliás, Lúcia Miguel iniciará uma polémica a respeito daquilo que ela
chamai a de romance intencional, que teve lugar durante os meses de outubro e novembro de I**
14, no jornal carioca Gazeta de Notícias, que contou também com a participação de Augusto
Predn í» o Schmidt. Infelizmente não é fácil ter acesso aos textos, uma vez que a Biblioteca Na»
lonal nao disponibiliza para consulta este jornal, de toda a década de 30. A existência »la
polémica loi registrada por Luciana Viegas em notas aos textos críticos de Lúcia Miguel Pereira
reunidos cm A Leitora e seus Personagens.
nu • UMA HISTÓRIA DO ROMANCE DE 30
Quanto às objeções que o meu contendor - termo para mim, sinónimo de amigo, porque
só discuto com quem aprecio - formula aos meus livros, declaro que sou a primeira a
reconhecer neles gravíssimos defeitos de técnica. Mas não lhes vejo parcialidade a não ser a
que decorra da simples escolha dos temas. Se houvesse, nem Maria Luiza, católica praticante,
teria enganado o marido nem Cecília, de uma bondade puramente humana, vivendo sem
Deus, achado sozinha o caminho que lhe é apontado no final5'.
A escritora fala de Em Surdina como se ele não tivesse aquele último capí-
tulo e o fim do caminho de Cecília, dado no penúltimo capítulo, fosse de fato o
fim do romance - e, de fato, se o livro acabasse uma única página antes, sua
análise seria aceitável. Ê como se aquelas palavras de Rilke não fossem mais que
uma epígrafe, um comentário posto à parte na obra, um contraponto que o autor
- mais do que o narrador - quisesse fornecer ao seu leitor. Nesse caso, por que
então caracterizá-lo como um capítulo?
Mas, ao contrário, sua leitura das cenas finais de Cacau serve bem para
indicar a parcialidade do principal romancista da esquerda àquela altura:
184Lúcia Miguel Pereira, “Romance de Tese e Individualidade”, op. cit., p. 76. Publicado
originalmente sem título em 14 out. 1934.
185 Lúcia Miguel Pereira, “Romance Intencional”, op. cit.^m. 78. Publicado originalmente
sem título em 4 nov. 1934.
EM PLENA POLARIZAÇÃO: O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-1936) • 203
186 Lúcia Miguel Pereira, “Romance de Tese e Individualidade”, op. cif., |' /7 l*ul>llciidn
originalmente sem título em 14 out. 1934.
i MIMOKIA DO ROMANCE DE 30
B.r,I.inte
para que se pudesse defini-lo claramente como autor inti-mis-
|V i o do estréia, Maleita, foi um grande sucesso de crítica. Agripino
Grieco, Uto Acido, entusiasmou-se com o volume, não poupando
elogios:
..] ainda um romance branco, um romance de simples literatura, o que é uma Note-se,
no entanto, uns quadros fortes como o da pescaria com homens nus, de te
atrapalhados no seu trabalho honesto pela voz do capitalista que vem chegan- m a
moral e um chicote. E em nome daquela, com a força deste, obriga os ho- a se
vestirem.
ei que Lúcio Cardoso não pretende parar nesses romances catolicizantes. Sei que tais
adiante, mesmo porque sua extraordinária força de romancista não se pode :r em
simples livros sem outra finalidade que divertir senhores gordos e ricos 188.
civilização àqueles homens reduzidos a uma vida animal ou seja, ele é o herói da
cena, e a força que ele aplica a contrago.slo é, em sua visão, necessária para
resgatar a dignidade daqueles homens amslumudos a viver como bichos no meio
do mato. Sem explicar o que quer di/n umi isso, Jorge Amado resume tudo de
que não gosta no livro no adjetivo "« atoli» izante”. A produção posterior de
Lúcio Cardoso comprovaria que lorge Amado não estava propriamente vendo
coisas quando apontou essa ligação com o catolicismo, o que torna naturais suas
restrições a Maleita.
O curioso é que Octávio de Faria, católico e amigo pessoal de I tu io Car-
doso, também apontasse no livro um problema que ele apontara em Cacau, ou
seja, o fato de o livro não dar conta da psicologia individual das personagens,
restringido-se a uma sucessão de ações externas e, por isso, nao merecendo a
qualificação de romance, constituindo-sc em “mera narração":
(...) Ou pelo menos, o autor só se preocupa com os traços mais ger.us d.i psicologia do
herói central narrador direto dos acontecimentos. A dos outros heróis positiva mente não
existe. Quando muito se entrevê (confessemos aliás que admiravelmente) alguns dos motivos
que fazem agir a mulher do personagem central, li o resto some completamente, absorvido
pelo interesse na narração dos fatos.
(...) Apenas, parece-me que não fica bem o nome de romance a uma narração nessas
condições189.
Essa recepção indica uma singularidade que realmente Maleita tem e que o
faz uma obra difícil de encaixar em modelos tão fechados como os que se
definiram e até se normatizaram depois de Cacau e Os Corumbás. Menos
ambíguo para os padrões da época foi Salgueiro, publicado em 1935, em que
mais uma vez Lúcio Cardoso se serve de uma ambientação típica dos romances
proletários - um morro do Rio de Janeiro - para, aí mais claramen te, tratar
daquele que seria seu grande tema: a figuração de um mundo sobre o qual
agissem criaturas sem Deus. Enfim, romance psicológico num arcabouço que
poderia ser de romance social. A confusão aí foi menor do que tinha sido com
Maleita e a recepção crítica mais uma vez mostra isso. João Cordeiro, por
exemplo, de esquerda, repudiou o livro, tomado como ponto negativo de
comparação num artigo sobre Calunga, de Jorge de Lima:
Felizmente, com Calunga, não pretendeu o sr. Jorge de Lima restaurar o romance em
Cristo. Digo felizmente porque, se tal fizesse, ao invés de um romance verdadeiro e
liniii.iiio, omm ó o seu, teria ele escrito um livro falso, tão falso como esse Salgueiro que .ri
I,I r\, i lmtc, tantas são as qualidades de romancista de seu autor, se o sr. Lúcio Car- IIIIMI não
189Octávio de Faria, “Maleita”, Boletim de Ariel, set. 1934 (III, 12), p. 322.
■m, • UMA HISTÓRIA DO ROMANCE 1)E 30
Pois a verdade continua sendo que no romance, se tudo não vier por intermédio do
homem, não vem certo. O testemunho é sempre - ou pelo menos primordialmente teste-
munho do homem. Nesse, como em muitos outros pontos, sirva de exemplo aos que estão
hesitando ou aos que precisam da lição a excelência do último romance do sr. Lúcio Cardoso:
Salgueiro...191
O que principalmente passou a caracterizar o romance novo foi o seu tom de repor-
tagem social e quase sociológica; a sua qualidade de documento; as evidências que reu-
193 V. Jorge Amado, “Em Surdina”, Boletim de Ariel, jan. 1934, (III, 4), p. 97, e Aderbal
Jurema, “Literaturas Reacionária e Revolucionária”, Boletim de Ariel, maio 1934, (III, 8), p. 211.
• UMA MIMO 1(1 A DO ROMANCE DE 30
mu ilf viilo c .m.igada, machucada, deformada por influências de natureza principal- nu nii
n niiAmica; os seus transbordamentos políticos. Tal o caso dos romances de Jor- m A tu.n In,
pi incipalmente os anteriores a Jubiabá: Cacau e Suor. O caso, até certo ponto, dm lomanccs
de José Lins do Rego, de Graciliano Ramos, de José Américo de Almeida, • Ir It.ii lu-l ile
Queiroz - formidável documentação de vida regional, do maior interesse 'nu inlógico e até
político, e suprindo a falta de inquéritos, sondagens, pesquisas sistematizadas. Quase nada
nesses “romances” é obra de ficção: apenas os disfarces; apenas a deformação para os efeitos
artísticos, sentimentais ou, em certos casos, políticos194.
O sentido de documento, de grito, é sem dúvida a coisa que surge mais clara no novo
romance brasileiro. Não é negócio de escola, besteira de grupo. É pensamento natural que não
poderia deixar de acontecer. Os novos romancistas brasileiros, não apenas os do Norte, não
acreditam mais em brasilidade e verde amarelismo. Viram mais longe. Viram esse mundo
ignorado que é o Brasil. E o Brasil é um grito, um pedido de socorro. Não falo aqui em frase de
deputado baiano na assembléia: “O Brasil está na beira do abismo”. Isso é literatura de quem
tem 6 contos por mês. Grito, sim, de populações inteiras, perdidas, esquecidas, material imenso
para imensos livros195.
A diferença significativa entre os dois textos está na ênfase dada por Jorge
Amado na revolta, com a repetição da ideia de que o novo romance é um grito.
No mais a mesma coisa: o romance é visto como documento de um Brasil pobre e
tem um caráter coletivo (“vida esmagada, machucada” ou “populações inteiras,
perdidas”). O bom dessa literatura é que é honesta, dando pistas seguras - que até
substituem as pesquisas sociológicas sistemáticas - da vida brasileira. No texto de
Gilberto Freyre, “romance” aparece entre aspas não se sabe se porque o autor
pensa que os livros que ele elogia não são propriamente romances ou se porque
ser romance já não é importante face ao caráter documental sério dessas obras. Aí
tudo vale e Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego podem aparecer
juntos, como escrevendo o mesmo tipo de literatura.
A discussão do que seja um romance ficou em segundo plano porque, na-
quele momento, era vital, para vários grupos, afirmar a importância do romance
social. Nesse sentido, quanto menos se define, melhor fica: o vago é abrangente
por natureza. Como os projetos estéticos não se articulam em termos de grupo,
cada autor estabelece para si mesmo o que pode ser um progra-
194Gilberto Freyre, “Sociologia e Literatura”, Lanterna Verde, nov. 1936 (4), p. 15.
195 Jorge Amado, “Apontamentos sobre o moderno romance brasileiro”, Lanterna Verde,
maio 1934 (1), p. 49.
EM PLENA POLARIZADO- O AUGE DO ROMANCE SOCIAL (1933-1936) • 201
ma artístico. Foi num contexto assim que romance proletário - ambient I campo
ou na cidade - romance regionalista ou romance urbano do Subúrh"° puderam
se confondir, em oposição geral ao romance psicológico F ncss -s > mos bastante
vagos que se coloca a oposição entre o romance social c o ¡nr* Ê claro que, 7
com o sucesso junto a um público crescente, isso u |!!’'" *' tornando valor de
mercado e alguns casos interessantes foram
aspectos aparentemente de menor importância. Na viradmle 19 t1 ¡y ,\m
editora Calvino Filho lançaria o único romance do escritor brtian/, |,,, ,, deiro,
que morreria precocemente em i938. Seu título primitivo umi‘’ , aliás chegou a ser
saudado no Boletim de Ariel por Dante Costa, n , /(,,, "ç"'' referência ao apelido do
protagonista Pdicarpo Praxedes. No ei,| miú \ iTj acabou, por insistência do
editor, tendo por título uma palav, , , posição por ser um coletivo e por se referir
à marginalidade sot n| , ,
Como o romance se fixa na trajetória de um protagonista bem dest u „ I, ' jm de
uma família rica que empobrece, e não explora os movimentos de m "
a mudança de título se justifica porqne ljgados à esquerda eram ........... . V','
critor, que pertencia ao grupo de Jorge Amado (autor do prefácio , '!'!,' , quanto o
editor, que mantinha emSeu catáiogo títuios com„ ( W()/, 'J' '
Partido Político Estrangeiro, de Carlos Sússekind de Mendonça t. Mal!;' /!' mo
Histórico em 14 Lições, de L. Tcheflqss. Anos depoiS) () roma|K^'
de Nestor Duarte, também muito elogiado por Jorge Amado, , , i, Ml Gado
Humano mesmo tendo como linha básica de desenv<)lvimCnto o rei r no de um
filho de fazendeiro à propriedade do pai - e não a vl(| ( d , , L ' lhador
explorado que o título sugere.Estratégia de venda, mas i.m.l,, ma de marcar em
que lado o livro eseu autor estão.
O denominador comum de todaessa corrente do minam o S(U M|,, , velação de
algum aspecto marginal -geográfico ou social da iv.ijj, | „ |' J '' sileira. Qu em
resumiu bem a situação foi Rubens do Amaral, mlm ao seu romance Terra Roxa,
de 1934: