Recortes - Antonio Candido

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DADOS DE ODINRIGHT

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Antonio Candido

Recortes
Para Clarisse, Laura, Dora, Maria Clara, Antonio, Elisa e Teresa
Capa
Folha de Rosto

Explicação

1. Drummond prosador
2. Fazia frio em São Paulo
3. A vida ao rés do chão
4. O mundo desfeito e refeito
5. Os dois Oswalds
6. Oswaldo, Oswáld, Ôswald
7. O diário de bordo
8. Navio negreiro
9. Cartas de um mundo perdido
10. Erico Verissimo de 1930 a 1970
11. Mestre Alceu em estado nascente
12. Fernando de Azevedo
13. Aquele Gilberto
14. Um crítico fortuito (mas válido)
15. Dialética apaixonada
16. O gosto pela independência
17. Roger Bastide e a literatura brasileira
18. Machado de Assis de outro modo
19. Acerca de André Gide
20. À roda do quarto e da vida
21. As transfusões de Rimbaud
22. Realidade e realismo (via Marcel Proust)
23. Os brasileiros e a nossa América
24. O olhar crítico de Ángel Rama
25. Em (e por) Cuba
26. Discurso em Havana
27. Cuba e o socialismo
28. Lucidez de Cruz Costa
29. Bettarello
30. A força do concreto
31. Lembrança de Luís Martins
32. Discreto magistério
33. Sobre a retidão
34. O companheiro Azis Simão
35. Arnaldo
36. Dispersão concentrada
37. Hélio versus demônio
38. Censura-violência
39. Salinas no cárcere
40. Literatura comparada
41. O recado dos livros
42. Cinematógrafo
43. Um verão, em Berlim
44. Nas Arcadas
45. O barão
46. Mário e o concurso
47. Patrimônio interior
48. Caipiradas
49. O mundo coberto de moços
50. Abecedários

Registro das primeiras publicações


Explicação

Os ensaios que andei reunindo em livro pela vida afora eram


relativamente longos e presos por afinidades temáticas, seja no
conjunto, como em Tese e antítese, seja nas partes, como em A
educação pela noite. Além disso, eles tendiam em geral ao estudo,
por causa do cunho analítico mais sistemático. Eu os coligi de
preferência aos mais breves porque sempre achei que estes
deveriam ficar na publicação de origem, devido ao seu caráter
circunstancial de artigo, resenha, prefácio ou texto de fala. Penso
que não tinha razão, pois muitas vezes um crítico se realiza bem
nos escritos de circunstância, tanto quanto nos mais elaborados.
Foi o que me decidiu a juntar esses recortes, que, ao contrário dos
anteriores, formam um livro solto, com textos mais numerosos
sobre assuntos os mais variados, embora alguns se aparentem com
os vizinhos imediatos. E são curtos, pois poucos têm mais de dez
páginas e na maioria não passam de quatro ou cinco. Outra
diferença é que vários têm tonalidade pessoal, seja na evocação de
amigos mortos, seja no relato de acontecimentos ligados à minha
vida. Salvo meia dúzia de inéditos, os demais apareceram em
publicações que vão devidamente registradas no fim do livro.

Antonio Candido de Mello e Souza


São Paulo, maio de 2004
1. Drummond prosador

Linguagem da província — Numa personalidade literária tão


forte quanto a de Carlos Drummond de Andrade, o que primeiro
fixa a atenção é mesmo a singularidade do traço. Ele é dos poucos
autores brasileiros cuja escrita parece saliente no seu modo
discreto, emergindo da página com relevo inconfundível.
No entanto, há também nele certo ar de família em relação a
outros escritores do mesmo tempo e província. Talvez tenham tido
em comum alguns pontos de partida na concepção do estilo; ou
aquela aura difícil de definir que envolve os textos, mesmo
dessemelhantes, devido a preocupações marcadas pelo timbre do
lugar e do tempo. Estou pensando, é claro, na cidade ainda
provinciana que foi Belo Horizonte até os anos de 1940, quando o
prefeito Juscelino Kubitschek a sacudiu com manifestações
culturais inéditas, semeou edifícios revolucionários na beira da
Pampulha e plantou o Teatro Municipal, que ficou se arrastando
como um esqueleto na verdura do parque. Naquela altura as linhas
aéreas começaram a funcionar e encurtaram a distância do Rio,
antes só alcançado por meio de viagens trabalhosas e empoeiradas,
de trem ou de automóveis ainda lerdos nas estradas de terra.
Num dos Contos de aprendiz aparece o contato possível do poeta
com a jovem capital, pela mediação de um personagem que vai
para o internato, como ele foi para o famoso Colégio Arnaldo, cujo
prestígio era grande na imaginação dos meninos do interior, não
apenas devido aos postais vistosos de propaganda, mas pelo nome
inusitado da ordem religiosa que o dirigia, os Padres do Verbo
Divino:
[…] em 1916, a cidade teria apenas cinquenta mil habitantes,
com uma confeitaria na rua principal e outra na avenida que
cortava essa rua. Alguns cafés completavam o equipamento
urbano em matéria de casas públicas de consumação e
conversa, não falando no espantoso número de botequins,
consolo do pobre. As ruas do centro eram ocupadas pelo
comércio de armarinho, ainda na forma tradicional do salão
dividido em dois: fregueses de um lado, dono e caixeiros do
outro; alfaiates, ourivesarias de uma só porta, agências de loteria
que eram ao mesmo tempo pontos de venda dos jornais do Rio
e ostentavam cadeiras de engraxate. Um comércio miúdo, para
a clientela de funcionários estaduais, estudantes, gente do
interior que vinha visitar a capital e com pouco se deslumbrava.

Nessa rua principal (da Bahia) cortada pela avenida (Afonso


Pena), o menino sofre a penosa decepção do sorvete, que se revela
de um insólito intragável. E foi ali mesmo que o escritor cumpriria
a fase mais crepitante da sua formação intelectual, nas livrarias,
confeitarias e bares, convivendo com um grupo de amigos mais ou
menos da mesma idade, cujo modo de praticar o humor, alinhar a
frase, ver e comentar o mundo forma a aura meio vaga e nem
sempre homogênea a que me referi.
Quase todos marcaram forte o seu tempo, e falavam, como se
fosse um arcanjo, de um deles que morreu cedo, Alberto Campos.
(“Alberto puxa a fieira”, dirá o nosso poeta referindo-se aos
companheiros mortos.) Eram: Carlos Drummond de Andrade,
Milton Campos, Abgar Renault, Pedro Nava, Emílio Moura, João
Alphonsus e alguns mais, a que se podem juntar os caçulas Cyro
dos Anjos e Guilhermino César, que vieram pouco depois e
arrancharam.
Como acontece na província, fez parte da formação deles algum
atraso de gosto, misturado ao interesse ativo pela novidade. Assim,
ainda poderiam discutir longamente sobre quem era melhor, Eça
de Queirós ou Camilo Castelo Branco, e se impregnavam de
Anatole France. Mas absorviam igualmente textos mais chegados a
uma certa pré-modernidade, como os dos pós-simbolistas
franceses; e em alguns deles a leitura de Remy de Gourmont
instilou a liberdade nas preferências. De tal modo, que receberam
e adotaram com sofreguidão a Semana de Arte Moderna, a ponto
de formarem com os paulistas o eixo mais radical da vanguarda
brasileira, que, na linha da vocação municipal dos mineiros, logo se
desdobraria em Cataguases com os meninos-prodígio do grupo
Verde.
Talvez daí tenha ficado neles uma certa disposição dupla para a
ousadia das inovações e a fidelidade (embora transformadora) ao
passado literário. Um escritor como Abgar Renault pertence à
família exigente dos buriladores, que publica parcimoniosamente e
cultiva os valores tradicionais. Por isso, recorta os seus sonetos
com um rigor de fatura que surpreende quando comparada à
liberdade do projeto e à fantasia do seu humor; por isso, os seus
versos livres se dispõem com uma severidade que parece
enquadrá-los na nostalgia de alguma métrica ausente. Nenhuma
experiência é mais reveladora de certos aspectos desse grupo de
Minas do que presenciar a luta de Abgar com as palavras, na
redação aparentemente neutra (do ponto de vista estético) de um
ofício ou certificado. O cacófato, a colisão, a assonância indiscreta,
vislumbres de repetição, a suspeita de exatidão menor — são
ponderados, depois triturados pelo trabalho forçado da pena, até o
documento sair limpo, correto, exemplarmente destilado.
Pedro Nava é um caso à parte, porque, ao contrário dos outros,
é tão abundante quanto Guimarães Rosa, foge ao escorço e não
tem medo do labirinto. No entanto, a sua escrita imaginosa e
torrencial é tão necessária que nenhum leitor consciente lhe
pediria para suprimir algum pedaço dessa musculatura “diversa e
ondulante”. Ora, por muitos lados Pedro Nava é um homem das
coisas antigas, fanático de genealogia, perito em brasões, nutrido
de velhas leituras e petite histoire; mas inversamente — que
modernidade extraordinária na sua irreverência, na visão
desmistificadora que derruba com a mão esquerda o que a direita
parecia consolidar de vez. Assim, usos, costumes, fatos, parentes,
figurões, hierarquias, solenidades sofrem de repente a rasteira das
suas conclusões desabusadas e dos seus palavrões justiceiros.
Outros, como Cyro dos Anjos, entram por uma porta diferente
no espaço desses autores corretos e cheios de riqueza: entram pelo
atalho da alusão; da elipse, amiga do humor; do ranço purista,
meio sério-meio gozativo, numa espécie de ironia pela metade,
“grande maior metade que seja”. Em Cyro, como de certo modo no
mais ácido Guilhermino César, vislumbra-se a curiosa
modernidade mineira, feita com o sumo dos clássicos, temperada
na leitura atenta mas divertida de velhos livros, que eles sabem
transformar em adubo da prosa mais atual. Próxima desta linha
ficaria a escrita mordente e humorística de Rodrigo Melo Franco
de Andrade; e foi também alguma coisa do mesmo tipo que Carlos
Drummond decantou ao máximo, obtendo a sua variante, que não
exclui, todavia, o imponderável ar de família.

A prosa dos poetas — Há quase quarenta anos, resenhando


Confissões de Minas no meu rodapé semanal da Folha da Manhã
(atual de S. Paulo), anotei a diferença que me parecia haver entre os
poetas e os romancistas brasileiros daquele momento com relação
à escrita que praticavam fora da poesia e do romance. Quase todos
os romancistas ficavam abaixo do que eram capazes de fazer no
plano do imaginário, enquanto os poetas produziam
invariavelmente prosa da melhor qualidade, desde a seca de
Manuel Bandeira até a úmida de Vinicius de Moraes, passando
pelo alto maneirismo de Mário de Andrade e a limpidez contida de
Drummond.
Confissões de Minas foi o seu primeiro livro de prosa, e nele está
a gama da sua virtuosidade fora do verso. Há crítica literária,
estudos de personalidade, comentário lírico e anedótico sobre o
cotidiano, mostrando que ele não é um cronista no sentido estrito,
como são Rubem Braga, ou Rachel de Queiroz e Fernando Sabino
quando fazem crônica. O que ele próprio chama assim são escritos
de latitude maior, e por isso não houve espanto quando pouco
depois publicou a novela O gerente, em modesto opúsculo das
Edições Horizonte. Parecia que a ficção pura tinha saído
naturalmente de um universo rico em imaginário e, ao mesmo
tempo, penetração analítica. Universo cujos elementos ele
modulou desde cedo a partir de um comando cada vez mais seguro
da linguagem. Alguns anos mais tarde os Contos de aprendiz
reuniam os seus escritos de ficção e o leitor tinha nova
oportunidade para verificar este fato.
Na sua obra a prosa de ficção parece ter um papel indispensável,
na medida em que constitui o ponto intermédio na gama que vai
da poesia à crônica. Isto não quer dizer que haja isolamento entre
os diversos tipos da sua produção, pois, ao contrário, muito da sua
obra é constituída por um trânsito de mão dupla entre eles. Eles se
interpenetram com efeito frequentemente, nem é novidade
assinalar que na poesia de Drummond há um gosto acentuado pelo
elemento narrativo, desde a tonalidade de romance popular (“O
caso do vestido”) até o poema notícia (“A morte do leiteiro”), com
matizes que passam pela efabulação marcada (“O padre e a moça”)
e o relato como projeção pessoal (“A morte no avião”). Isso, para
não falar nos limites fluidos da crônica propriamente dita, onde
poesia e ficção se misturam a fim de produzir figuras variadas em
torno da anedota, o caso singular, a cena de rua. Digamos que
numa ponta ficam as estruturas especificamente poéticas, com
função própria; na outra, certas prosas de cunho reflexivo ou
polêmico, nutridas de ideia, protesto, denúncia, como as que têm
atraído de maneira crescente esse escritor capaz de atuar com
firmeza, mas sem brutalidade nem grosseria — coisa muito rara
hoje. E, na base, o dom de uma prosa lírica e firme, correta sem
afetação, que foi ganhando transparência mágica e ultimamente
sabe incorporar com naturalidade o que há de mais expressivo nos
torneios coloquiais e no vocabulário da nossa língua em mudança
rápida. A partir da matriz possivelmente mineira, Drummond
extraiu de um corte clássico do idioma os movimentos mais livres.

A ponte ficcional — Pensemos um pouco na prosa de ficção,


para justificar se for possível a hipótese proposta. Seja um trecho
no começo do conto “Beira-rio”:

Sete da manhã e o trabalho principiando no campo. O


apontador chegava ainda com escuro, porque não conseguia
dormir na casinha de pau a pique onde ele, mulher e filhos
viviam como que em depósito, à espera de vaga na vila
proletária. Os mosquitos resistiam a tudo, e o fio de som que
emitiam no voo lento, indo e vindo, tecia sobre a cama uma
espécie de cortinado. A mão, levantando-se, dilacerava a trama,
que contudo logo se recompunha, e tão constante no seu dom
de irritar que, se por acaso cessasse um momento, o silêncio
feria por sua vez, de inesperado. Então, o apontador ia acordar o
balseiro, e os dois, cortando o rio, presenciavam calados o
nascimento do sol, que do campo em ruínas, na outra margem,
ia tirando pouco a pouco uma usina em construção.

O que logo sobressai é a poderosa metáfora da teia, baseada


num “equívoco”, como diziam os antigos: o fio de som gera a ideia
de tecido formado por ele, como se um sentido próprio se
materializasse a partir do sentido figurado. Em torno da metáfora
gira o trecho e ela lhe confere um toque de linguagem poética,
situando-o para o lado da poesia. No entanto, é igualmente forte o
elemento de referência ao real, que funciona como nível
informativo ao modo de uma notícia: o empregado, que vive
miseravelmente numa casa de pau a pique, atravessa o rio de balsa
e vai para a construção da usina, onde é apontador — e aqui
estamos perto dessas crônicas que fixam o cotidiano. Mas o trecho
não é poema nem crônica, embora possa ser visto como oscilando
entre ambos: é ficção, que talvez seja tão boa devido à presença de
elementos ricos em poesia e singela realidade.
Para sentir o funcionamento desses aspectos na economia da
escrita, registremos que o trecho é construído segundo uma
descontinuidade temporal: a faina está começando, mas o
apontador já tinha chegado antes dos outros porque não conseguiu
dormir (o que constitui cronologicamente a terceira parte da
sequência). Por enquanto, não sabemos a causa da insônia
(primeira parte cronológica) nem como ele chegou ao trabalho
(segunda parte cronológica). O esclarecimento deste último dado
fica suspenso até sabermos em retrospecto o que aconteceu
durante a noite (isto é, antes de tudo mais) para impedir o sono do
apontador. O retrospecto separa a informação sobre o presente da
narrativa em dois momentos cronologicamente invertidos (terceiro
antes do segundo), e privilegia a linguagem figurada como fonte
principal do discurso. A sua força é grande no plano da estrutura e
no da linguagem, cujo curso inflete. Observe-se, com efeito, que o
primeiro segmento do trecho (cronologicamente terceiro) é
redigido em linguagem referencial; o segundo segmento
(cronologicamente primeiro) se apresenta em linguagem figurada;
o terceiro segmento (cronologicamente segundo) mistura
referencialidade e figuração. Em termos drummondianos, é como
se a partir dos dados informativos iniciais entrássemos surdamente
no reino das metáforas, com o fio de som que tece um cortinado
fantástico; e nele estamos no segmento final, onde o elemento
informativo que faltava é revelado pelo poder criador do sol. Como
se a irrupção da metáfora contaminasse todo o discurso, parece
que agora o resto da informação não pode mais trilhar a via direta.
Por isso, a realidade sai do bojo da imagem, na medida em que o
sol transforma (o que parecia) umas ruínas, tirando delas a usina em
construção. Graças a este jogo de linguagem referencial e
linguagem figurada, dispostas segundo uma estrutura de
descontinuidade temporal, Drummond institui a sua matéria na
confluência da poesia e da crônica. Eis por que ficou dito que na
variedade da sua obra, e apesar do baixo contínuo de um tom
peculiar, a ficção pode ser posta idealmente no meio geométrico,
vinculando os dois extremos.

Crônica entre aspas — Drummond chama de crônica ao resto


dos seus escritos em prosa, mas creio que é preciso fazer algumas
distinções para poder aceitar esta designação, a meu ver
extremamente modesta. A julgar pelas coletâneas em livro, ela só
pode ser considerada plenamente válida depois de Fala,
amendoeira, pois o cronista foi se decantando a partir de uma
atividade mais complexa, refletida nos livros iniciais, Confissões de
Minas e Passeios na ilha, constituídos, como vimos, por uma série
de escritos de natureza variada.
Entre estes, há alguns que têm características de estudo e
manifestam um aspecto muito próprio de Drummond: a solidez da
informação, que ele atenua por meio do tom ocasional, como se
aquilo estivesse brotando à medida que a pena corre. É o caso da
“Carta aos nascidos em maio” (Passeios na ilha), onde o
conhecimento quase erudito se dissolve na gratuidade coloquial.
Mas noutros lugares não ocorre este disfarce modesto; veja-se, no
mesmo livro, “Rosário dos homens pretos”, que deixa patentes a
investigação documentária e a força da interpretação histórica. De
fato, a dinâmica da sociedade mineira do século XVIII é analisada do
ângulo da luta de classes, através das confrarias religiosas, e no fim
surge o material documentário, para estaquear a argumentação e
tirar qualquer dúvida ao leitor. Cronista? Só se for nalgum velho
sentido de expositor penetrante dos fatos.
Poder-se-ia então dizer que em Drummond há entre outras uma
vocação monográfica, disfarçada às vezes pelo relato
impressionista. Lembro, sempre em Passeios na ilha, a longa e
admirável “Contemplação de Ouro Preto”, onde o leitor
dificilmente pensaria noutra coisa além do simples registro de uma
excursão, mas que traduz a realidade passada e presente, artística e
social, religiosa e lúdica da velha cidade. Aliás, todos os escritos
desta parte do livro, a que chamou “Província, minha sombra”,
formam um ciclo de interpretação da sua terra, com um
discernimento lúcido e um saber que nem sempre consegue ficar
latente.
Isso faz lembrar que alguns dos escritos desta parte servem para
nos referirmos a outra modalidade de crônica, ligada a uma das
obsessões do autor: a evocação da cidade de Itabira e da sua
infância itabirana. Se leio “Antigo”, na mesma série, concordo que
pode ser uma crônica propriamente dita, pois nutre-se apenas da
lembrança e das impressões, que fazem surgir imagens e
transfiguram as cenas; a informação eventual está embutida. Mas
quanto ao escrito seguinte, “Notícias municipais”, fica meio difícil
decidir se se trata de um trecho de memórias, uma notícia sobre a
cidade ou uma livre divagação. Na verdade, deve haver lembrança
individual, informação de terceiros, investigação documentária e
interpretação da vida de uma comunidade em certo momento do
tempo perdido, dando a ideia de que o escritor parou, consultou
papéis, verificou datas e ocorrências a fim de elaborar um escrito
que vai além da crônica sem perder o encanto da sua leveza.
Essa vertente da memória, como todos sabem, é um dos
mananciais de Drummond e responde pelas variações que ele
efetua a partir dos gêneros estabelecidos, criando modalidades que
escapam às classificações, insinuando poemas no conjunto das
crônicas de Caminhos de João Brandão ou Poder ultrajovem, dando
tonalidades de crônica aos três Boitempo, As impurezas do branco, A
paixão medida. Neste último caso, quando ele sai à busca de si
mesmo na contracorrente do tempo, as fronteiras literárias se
esbatem e tudo vira poema a seu modo, ligando a crônica à
linguagem e procedimentos da poesia.
Assim, mesmo em escritos rotulados de crônica, muitos perdem
o toque dominante da gratuidade ocasional (que costumamos
associar ao gênero) e vão caminhando para outra coisa: poema,
estudo, autobiografia — ou um certo tipo de reflexão, em geral
bem disfarçada, que deixa para trás o pretexto imediato e mostra
uma dimensão imprevista. Esta última modalidade leva a pensar
que ele pratica ao seu modo aquilo a que Montaigne chamava
ensaio, ou seja, o exercício em profundidade do pensamento, a
partir de estímulos aparentemente fúteis ou desligados do que
acaba sendo a matéria central. É em Montaigne que penso quando
vejo Drummond, numa prosa que se apresenta como algo
irrelevante, deslizar do papo para reflexões de um alcance e
densidade que nos fazem incluí-lo na família mental dos que
ensaiam o pensamento, a pretexto de motivos inesperados; mesmo
quando ele volta de repente a algo que parece insignificante, como
se quisesse, por meio desse particular corriqueiro, quebrar o ensaio
e refazer a crônica. Ainda nisto lembra Montaigne, que pode partir
da dor de dentes de um guerreiro antigo, em seguida filosofar
sobre o estoicismo e acabar contando pormenores da sua
administração doméstica ou dos seus males de entranha. Por isso,
quando na crônica “Antigo” fala em “humana contingência”, o
leitor pressente alguma afinidade no ar e acaba lembrando a
humaine condition. E aí concluímos que a designação crônica pode
ser tão arbitrária em Drummond quanto ensaio em Montaigne.
Num caso e noutro, os movimentos livres do pensamento e da
imaginação vinculam estreitamente o detalhe insignificante à
reflexão cheia de consequências, de um modo que escapa às
classificações.
Além dessas modalidades, há outras. Qualquer leitor percebe
que em Drummond, como aliás ocorre nos cronistas, a crônica é
pretexto para pequenas criações ficcionais, escorregando não
apenas para sketches, mas para verdadeiros contos, como “A
bolsa”, que abre o livro A bolsa e a vida com os seus quatro
episódios. Em sentido diverso, referindo-se à unidade de tom de
Fala, amendoeira, Rubem Braga diz que, “bem pensando, poderia
ser uma novela ou pequeno romance de costumes”. Foi a partir
dessa altura, todavia (meados dos anos de 1950), que o cronista,
que existiu nele desde sempre, foi se tornando mais puro,
crescendo a quantidade de escritos que não hesitamos em chamar
crônicas. E já vimos por alto que nos anos de 1960 ele começaria a
intensificar a prática daquela modalidade de poemas que bem
caberiam na definição Versiprosa. Aí, crônica em mais de um
sentido, ficção e poesia se combinam sob a referência desta,
mostrando a livre circulação de um autor que, sendo altíssimo
poeta e não menos alto prosador, pode transitar entre os gêneros e
acima deles.

Trabalho dividido — Se for assim, talvez seja prudente apagar


os esquemas e divisões sugeridos nesta introdução. Como diria
Jean Paulhan, “mettons que je n’ai rien dit” e pensemos sem maior
preocupação na prosa admirável de Drummond como um dos
modos dele exprimir a sua visão de si mesmo, dos outros, do
mundo, variando-os segundo a ocasião e os desígnios pessoais.
Mesmo porque, talvez só haja um Drummond, nem poeta, nem
ficcionista, nem cronista, instalado na posição-chave da sua
competência soberana, a partir da qual variam os modos de
penetrar no meandro da “humana contingência”.
Por isso, é claro que na sua poesia há ficção e crônica; na sua
crônica, poesia e ficção; na sua ficção, crônica e poesia — tudo
formando o que para ele decerto são tentativas, mas para nós são
realizações completas e exemplares. Tentativas por meio das quais
dá vulto às mesmas fixações, cacoetes e nostalgias; às mesmas
frustrações, mas também aos deslumbramentos; e afinal às
convicções fortes e contidas. Na sua obra surgem a cada instante a
terra natal, a família, o mal-estar pelo desconserto do mundo, o
desejo de vê-lo humanizado, a revolta com as coisas como estão, o
divertimento em face do ridículo, a matreira redução da pompa à
piada. Para não falar nas pulsões que vêm não se sabe de onde,
como é o senso da mutilação, que pode estar numa crônica, nos
poemas da mão suja ou nas mordidas afiadas da novela O gerente,
cujas consequências são tremendas.
Isto faz pensar em certa divisão do trabalho literário, segundo a
qual a prosa serviria para repassar a mesma matéria da poesia, mas
num nível de menor tensão. A prosa de Drummond em geral
distende o leitor e por isso é de excelente convívio. A sua poesia,
ao contrário, força o leitor a se dobrar em torno de si mesmo como
um punho fechado. E isto está de certo modo em harmonia com a
natureza dos dois veículos. A poesia é mais tensa, porque depende
de uma exploração constante da multiplicidade de significados da
palavra. Nela, cada palavra é e não é o que parece, e na escolha
semântica predominante, efetuada pelo poeta, fervem os
significados recalcados, de maneira a estabelecer com frequência a
dificuldade, a obscuridade essencial, solicitando a mobilização de
todas as disponibilidades de compreensão do leitor. Já na prosa, o
peso da mensagem a transmitir atenua na maioria dos casos a força
tensorial, cada palavra encontrando o leito por onde corre mais
livre. Em tese, é claro.
Por isso, sobre a base da personalidade literária de Drummond
os poemas recolhem a parte mais tensa, e a prosa, a parte mais
distendida. Ambas decantam a integridade do seu impulso criador,
que recompõe, todavia, a unidade básica por meio daquela
interpenetração de poesia, crônica, ficção que já ficou assinalada e
ele procura muitas vezes demonstrar, fazendo “versiprosa”,
misturando os gêneros e jogando com a sua variada singularidade.

2. Fazia frio em São Paulo


Em 1934 Carlos Drummond de Andrade saiu daquela Belo
Horizonte tranquila, traçada com régua meticulosa mas cheia de
encanto, que ainda vive em romances de Eduardo Frieiro e Cyro
dos Anjos, para ser chefe de gabinete do ministro Gustavo
Capanema, no Rio de Janeiro. Veio o golpe de Estado em
novembro de 1937 e ele continuou na mesma função, abrindo um
capítulo curioso da relação entre o cargo que um escritor exerce e
a sua liberdade de pensar e escrever. Ninguém ignorava que
Drummond era então simpatizante das posições comunistas, que o
Estado Novo proscrevia e perseguia, pois um dos pretextos para a
sua instalação foi, justamente, o alegado perigo que elas
apresentariam para a Nação, a Ordem, a Família e outras
maiúsculas. Assim, o chefe de gabinete do ministro da Educação
viveu, no exercício das funções, a fase mais ativa da sua militância
intelectual de poeta comprometido com ideais de esquerda.
Os governos são mais ou menos elásticos quanto à liberdade de
pensamento dos funcionários, de acordo com uma equação
instável na qual se equilibram os seus interesses de segurança e a
necessidade de recrutar quadros burocráticos capazes. Não
esqueçamos que durante o Estado Novo Portinari pôde cobrir com
afrescos revolucionários as paredes do novo edifício do ministério,
projetado por dois arquitetos de esquerda. E que o próprio
ministro dava mão forte a artistas e intelectuais, sem indagar qual
era a sua posição ideológica.
De 1940 é o livro Sentimento do mundo, onde a poesia chamada
participante ganhou no Brasil uma tonalidade diferente, pois o
poeta conseguia exprimir o estado de sua alma de um jeito que
importava simultaneamente em negar a ordem social dominante,
não faltando poemas nos quais eram visíveis a adesão ao socialismo
e a negação do sistema capitalista. Tudo isso em chave de lirismo,
como alguma coisa que vem de dentro e existe antes de mais nada
enquanto modo de ser; mas revelando tão claramente a posição
política, incompatível com as funções do chefe de gabinete, que
não foi possível lançar o livro no mercado, naquele momento de
censura total. Ele saiu numa tiragem fora do comércio, de 150
exemplares, que, no entanto, se difundiram razoavelmente por
meio de cópias feitas por leitores de empréstimo.
Eu era aluno de segundo ano na Faculdade de Filosofia da
Universidade de São Paulo, onde apareceu certo dia um colega
arvorando a preciosidade. O exemplar pertencia a Rubem Braga,
com dedicatória e tudo, mas andava rodando de mão em mão e,
por confiança do colega, parou nas minhas uns dois ou três dias. A
impressão dominante foi de coisa nova, inclusive naquele terreno
difícil onde os moços do meu tempo procuravam uma solução que
convencesse, para além da geralmente fraca poesia participante. Era
como se o poeta tivesse afinal conciliado de maneira exemplar “os
óleos inconciliáveis da verdade e da beleza”, encontrando o quid
que poderia gerar a verdadeira poesia política, por meio da sua
incorporação ao modo de ser e, sobretudo, de dizer.
Em 1943 escrevi a Drummond sem conhecê-lo, pedindo
descaradamente colaboração para uma revista de jovens de que eu
fazia parte. Ele respondeu com extraordinária cortesia, mandando
palavras de estímulo e alguns poemas admiráveis, que depois
apareceriam quase todos em Rosa do povo. Escolhemos três, que só
foram sair dali a um ano, porque a revista passou por longo eclipse.
Mas antes de acabar para sempre, no fim de 1944, pôde publicar
em primeira mão um dos poemas mais belos e importantes da
literatura brasileira contemporânea: “Procura da poesia”.
De permeio, no dia 9 de novembro de 1943, os estudantes de
direito fizeram contra a ditadura da época uma passeata de
protesto, que foi dissolvida a bala pela polícia, com morte de um
rapaz, ferimento de vários outros e dezenas de prisões. Como a
censura à imprensa e ao rádio era absoluta, resolvi mandar a
amigos do Rio uma informação sobre os acontecimentos, a fim de
desmascarar ao menos para algumas pessoas responsáveis as
deformações previsíveis da versão oficial. Foi o que fiz com a ajuda
de uma colega no fim daquela tarde, contando inclusive que o dia
estava cinzento, frio, com vento e uma chuvinha ocasional.
Tiramos várias cópias a máquina, em papel fino, e mandamos à
gente com a qual estávamos ligados, remetendo também uma para
Drummond. Pensando na coisa, vejo agora que nunca soube se o
relato chegou aos destinatários; mas tempos depois recebi de
Drummond a cópia de um poema novo, “O medo”, dedicado a
mim e com epígrafe tirada de um artigo meu daquele ano — o que
me encheu de um desvanecimento que se pode imaginar. Ora, lá
aparecem uns versos que sempre supus alusivos ao relato dos
acontecimentos daquela tarde de repressão violenta, embora nunca
tenha me certificado a respeito com o autor:

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em S. Paulo.

Fazia frio em S. Paulo…


Nevava.

Naquele tempo Drummond difundia os seus poemas políticos


impublicáveis por meio de cópias remetidas aos amigos; estes, por
sua vez, as multiplicavam e elas corriam o país, datilografadas e
mimeografadas. Assim se espalharam: “Depois que Barcelona
cair”; “Carta a Stalingrado”; “Telegrama de Moscou”; “Com o
russo em Berlim”; “Mas viveremos”; “Visão 944” — recolhidos
mais tarde em Rosa do povo, menos o primeiro. Por este meio o
chefe de gabinete exercia uma atividade constante e decidida,
animando muita gente com o exemplo de uma participação tão
alta, naquele momento que para muitos deveria levar ao “mundo
novo” que um dos poemas queria ajudar a nascer.
3. A vida ao rés do chão
A crônica não é um gênero maior. Não se imagina uma literatura
feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos
grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em
atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse.
Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.
Graças a Deus, seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica
mais perto de nós. E para muitos pode servir de caminho não
apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura,
como dizem os quatro cronistas deste livro[1] na linda introdução
ao primeiro volume da série. Por meio dos assuntos, da
composição solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma
assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente
porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de
ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta
humanização lhe permite, como compensação sorrateira,
recuperar com a outra mão certa profundidade de significado e
certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma
inesperada embora discreta candidata à perfeição. É o que o leitor
verá em muitas que compõem este volume e os que o precederam
na mesma série.
Mas, antes de chegar nelas, vamos pensar um pouco na própria
crônica como gênero. Lembrar, por exemplo, que o fato de ficar
tão perto do dia a dia age como quebra do monumental e da ênfase.
Não que estas coisas sejam necessariamente ruins. Há estilos
roncantes mas eficientes, e muita grandiloquência consegue não só
arrepiar, mas nos deixar honestamente admirados. O problema é
que a magnitude do assunto e a pompa da linguagem podem atuar
como disfarce da realidade e mesmo da verdade. A literatura corre
com frequência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a
possibilidade de ver as coisas com retidão e pensar em
consequência disto. Ora, a crônica está sempre ajudando a
estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas.
Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de
adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma
grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é
amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e
também nas suas formas mais fantásticas, sobretudo porque quase
sempre utiliza o humor.
Isto acontece porque não tem pretensões a durar, uma vez que
é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa.
Ela não foi feita originariamente para o livro, mas para essa
publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é
usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da
cozinha. Por se abrigar nesse veículo transitório, o seu intuito não
é o dos escritores que pensam em ficar, isto é, permanecer na
lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é
a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés do
chão. Por isso mesmo, consegue quase sem querer transformar a
literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um; e, quando
passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua
durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava. Como no
preceito evangélico, aquele que quer salvar-se acaba por perder-se;
e aquele que não teme perder-se acaba por se salvar. No caso da
crônica, talvez como prêmio por ser tão despretensiosa, insinuante
e reveladora. E também porque ensina a conviver intimamente
com a palavra, fazendo que ela não se dissolva de todo ou depressa
demais no contexto, mas ganhe relevo, permitindo que o leitor a
sinta na força dos seus valores próprios.
Retificando o que ficou dito atrás, ela não nasceu propriamente
com o jornal, mas só quando este se tornou cotidiano, de tiragem
relativamente grande e teor acessível, isto é, há pouco mais de um
século e meio. No Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia
dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela
naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que
aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi
folhetim, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia —
políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da seção “Ao
correr da pena”, título significativo a cuja sombra José de Alencar
escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855.
Aos poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade,
certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita
importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e
encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.
Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção
de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para
ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve,
mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica
argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro.
Creio que a fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um
toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa
o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo
mesma.
No século passado, em José de Alencar, Francisco Otaviano e
mesmo Machado de Assis, ainda se notava mais o corte de artigo
leve. Em França Júnior já é nítida uma redução de escala nos
temas, ligada ao incremento do humor e certo toque de gratuidade.
Olavo Bilac, mestre da crônica leve e aliviada de peso, guarda um
pouco do comentário antigo, mas amplia a dose poética, enquanto
João do Rio se inclina para o humor e o sarcasmo, que
contrabalançam um pouco a tara de esnobismo. Eles e muitos
outros, maiores e menores, de Carmen Dolores e João Luso até os
nossos dias, contribuíram para fazer do gênero este produto sui
generis do jornalismo literário brasileiro que ele é hoje.
A leitura de Bilac é instrutiva para mostrar como a crônica já
estava brasileira, gratuita e meio lírico-humorística, a ponto de
obrigá-lo a amainar a linguagem, a descascá-la dos adjetivos mais
retumbantes e das construções mais raras, como as que ocorrem
na sua poesia e na prosa das suas conferências e discursos. Mas que
É
encolhem nas crônicas. É que nelas parece não caber a sintaxe
rebuscada, com inversões frequentes; nem o vocabulário opulento,
como se dizia, para significar que era variado, modulando
sinônimos e palavras tão raras quanto bem-soantes. Num país
como o Brasil, onde se costumava identificar superioridade
intelectual e literária com grandiloquência e requinte gramatical, a
crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que
atingiram o ponto máximo nos nossos dias, como se pode ver nas
deste livro.
O seu grande prestígio atual é um bom sintoma do progresso de
busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e
aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do
nosso tempo. E isto é humanização da melhor. Quando vejo que os
professores de agora fazem os alunos lerem cada vez mais as
crônicas, fico pensando nas leituras do meu tempo de secundário.
Fico comparando e vendo a importância deste agente de uma visão
mais moderna na sua simplicidade reveladora e penetrante.
No meu tempo, entre as leituras preferidas para a sala de aula
estavam os discursos: exórdio do sermão de são Pedro de
Alcântara, de Monte Alverne; trechos do sermão da Sexagésima, de
Vieira; Oração da coroa, de Demóstenes, na tradução de Latino
Coelho; Rui Barbosa sobre o jogo, o chicote, a missão dos moços.
Um sinal favorável dos tempos é esta passagem do discurso, com a
sua inflação verbal, para a crônica e seu tom menor de coisa
familiar.
Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se
consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um
número crescente de escritores e jornalistas, com os seus
rotineiros e os seus mestres. Nos anos de 1930 se afirmaram Mário
de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e
apareceu aquele que de certo modo seria o cronista, voltado de
maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga.
Tanto em Drummond quanto nele, observamos um traço que
não é raro na configuração da moderna crônica brasileira: a
confluência, na maneira de escrever, da tradição, digamos clássica,
com a prosa modernista. Esta fórmula foi bem manipulada em
Minas (onde Rubem Braga viveu alguns anos decisivos); e dela se
beneficiaram os que surgiram nos anos de 1940 e 1950, como
Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. É como se
(imaginemos) a linguagem seca e límpida de Manuel Bandeira,
coloquial e corretíssima, se misturasse ao ritmo falado da de Mário
de Andrade, com uma pitada do arcaísmo programado pelos
mineiros.
Neles todos, e nalguns outros que não estão aqui, como, por
exemplo, Rachel de Queiroz, há um traço comum: deixando de ser
comentário mais ou menos argumentativo e expositivo para virar
conversa aparentemente fiada, foi como se a crônica pusesse de
lado qualquer seriedade no tratamento de problemas. Mas
observem bem as deste livro. É curioso como elas mantêm o ar
despreocupado, de quem está falando coisas sem maior
consequência e, no entanto, não apenas entram fundo no
significado dos atos e sentimentos do homem, mas podem levar
longe a crítica social. Veja-se a extraordinária “Carta a uma
senhora”, de Carlos Drummond de Andrade, onde a menininha
que não possui nem vinte cruzeiros faz desfilar na imaginação os
presentes que desejaria oferecer à sua mãe no Dia das Mães. É
como se ela estivesse do lado de fora de uma vitrine imensa, onde
se acham os objetos maravilhosos que a propaganda criadora de
aspirações e necessidades transformou em bens ideais. Ela os
enumera numa escrita que o cronista fez ao mesmo tempo
belíssima e liricamente infantil. A impressão do leitor é de
divertida simplicidade que se esgota em si mesma; mas por trás
está todo o drama da sociedade chamada de consumo, muito mais
iníqua num país como o nosso, cheio de pobres e miseráveis que
ficam alijados da sua miragem sedutora e inacessível:
Mammy, o braço dói de escrever e tinha um liquidificador de 3
velocidades, sempre quis que a Sra. não tomasse trabalho de
espremer laranja, a máquina de tricô faz 500 pontos, a Sra.
sozinha faz muito mais. Um secador de cabelo para Mammy!
gritei, com capacete plástico mas passei adiante, a Sra. não é
desses luxos, e a poltrona anatômica me tentou, é um estouro,
mas eu sabia que minha Mãezinha nunca tem tempo de sentar.
Mais o quê? Ah sim, o colar de pérolas acetinadas, caixa de
talco de plástico perolado, par de meias etc.

Veja-se depois, no limite do patético, firme e discretamente


evitado pelo autor, a “Última crônica”, de Fernando Sabino: a
família pobre que vai ao botequim celebrar o aniversário da menina
com um pedaço de bolo onde o pai finca e acende três velinhas
trazidas no bolso. Não será a mesma criança que escreveu a carta
mirífica do Dia das Mães? Diz o cronista:

Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo do seu disperso


conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de
ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta
perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer
nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico,
torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem
mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo o meu café,
enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu
queria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem
assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem
os assuntos que merecem uma crônica.

É quando vê o casal com a filhinha e assiste ao ritual modesto.


Mas as suas reflexões, a maestria com que constrói a cena e todo o
ritmo emocionado sob a superfície do humor lírico — constituem
ao mesmo tempo uma pequena e despretensiosa teoria da crônica,
deixando ver o que sugeri, isto é, que por baixo dela há sempre
muita riqueza para o leitor explorar. Dizendo isto, não quero
transformar em tratados essas peças leves. Ao contrário. Quero
dizer que por serem leves e acessíveis talvez elas comuniquem,
mais do que poderia fazer um estudo intencional, a visão humana
do homem na sua vida de todo o dia.
É importante insistir no papel da simplicidade, brevidade e
graça próprias da crônica. Os professores incutem muitas vezes
nos alunos (inclusive sem querer) uma falsa ideia de seriedade;
uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e
que consequentemente a leveza é superficial. Na verdade,
aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos
da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo
persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz
amadurecer a nossa visão das coisas.
Este livro está cheio de exemplos disso; é quase só isso, de
começo a fim. Nele são raros os momentos de utilização da crônica
como militância, isto é, participação decidida na realidade com o
intuito de mudá-la, coisa que apenas perpassa em “Luto da família
Silva”, de Rubem Braga, cujo assunto é a grande maioria dos
homens que sua e pena para fazer funcionar a máquina da
sociedade em benefício de uns poucos:

A gente da nossa família trabalha nas plantações de mate, nos


pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas
minas, nos balcões, no mato, nas cozinhas, em todo o lugar
onde se trabalha. Nossa família quebra pedra, faz telhas de
barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola
o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro
dos bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha.
Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo.
Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é
mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala
comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há
de subir na política […].

Aliás, este é um bom exemplo de como a crônica pode dizer as


coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do zigue-zague de
uma aparente conversa fiada. Mas igualmente sérios são as
descrições alegres da vida, o relato caprichoso dos fatos, o desenho
de certos tipos humanos, o mero registro daquele inesperado que
surge de repente e que Fernando Sabino procura captar, como
explica na crônica citada mais acima. Tudo é vida, tudo é motivo de
experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de
esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou
da piada que nos transporta ao mundo da imaginação, para
voltarmos mais maduros à vida, conforme o sábio.
Para conseguir este efeito, o cronista usa diversos meios. Neste
livro há crônicas que são diálogos, como “Gravação”, de Carlos
Drummond de Andrade, ou “Conversinha mineira” e “Albertina”,
de Fernando Sabino. Outras parecem marchar rumo ao conto, à
narrativa mais espraiada, com certa estrutura de ficção, como “Os
Teixeiras”, de Rubem Braga; ou parecem anedotas desdobradas,
como “A mulher do vizinho”, de Fernando Sabino. Nalguns casos o
cronista se aproxima da exposição poética ou de certo tipo de
biografia lírica, como vemos em Paulo Mendes Campos: “Ser
brotinho” e “Maria José”, ambas admiráveis.
“Ser brotinho” é construída por enumeração, como certos
poemas de Vinicius de Moraes. Parece uma divagação livre, uma
cadeia de associações totalmente sem necessidade, que deveria
resultar em simples acúmulo de palavras. Mas eis que o milagre da
inspiração (isto é, o poder misterioso de fazer as palavras
funcionarem de maneira diferente em combinações inesperadas)
vai organizando um sistema expressivo tão perfeito, que no fim ele
aparece como a própria necessidade das coisas:
Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como
um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido
das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar
sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência
e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a
bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos
tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da
natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma
sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa
que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho
é a inclinação do momento.

O leitor fica perguntando se ser brotinho não é um pouco ser


cronista — dando aos objetos e aos sentimentos um arranjo tão
aparentemente desarranjado e na verdade tão expressivo, tirando
significados do que parece insignificante. “[…] dar sentido de
repente ao vácuo absoluto” é a magia da crônica.
Parece às vezes que escrever crônica obriga a uma certa
comunhão, produz um ar de família que aproxima os autores num
nível acima da sua singularidade e das suas diferenças. É que a
crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral lírica,
irônica, casual, ora precisa, ora vaga, amparada por um diálogo
rápido e certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo.
Nos autores deste livro percebemos tanto essa comunidade
quanto o vinco da sua maneira pessoal. Apenas um deles é cronista
puro, ou quase: Rubem Braga. Mas todos escrevem como se este
fosse o seu veículo predileto, embora sintamos em cada um a
presença nutritiva das suas outras atividades literárias: a precisão
de Drummond, o movimento nervoso de Fernando Sabino, a larga
onda lírica de Paulo Mendes Campos. Provindos de três gerações,
eles se encontram aqui numa espécie de espetáculo fraterno,
mostrando a força da crônica brasileira e sugerindo a sua
capacidade de traçar o perfil do mundo e dos homens.
4. O mundo desfeito e refeito
Como estudar o texto literário levando em conta o seu vínculo
com as motivações exteriores, provindas da personalidade ou da
sociedade, sem cair no paralelismo, que leva a tratá-lo como
documento? A única maneira talvez seja entrar pela própria
constituição do discurso, desmontando-o como se a escrita gerasse
um universo próprio. E a verificação básica a este respeito é que o
autor pode manipular a palavra em dois sentidos principais:
reforçando ou atenuando a sua semelhança com o mundo real.
A semelhança é reforçada quando ele escreve, por exemplo: “as
nuvens pairavam no alto céu”; e é atenuada quando escreve:
“bandos de carneiros corriam no campo azul”. Neste caso, as
nuvens lembram lã de carneiro e a sua quantidade pode evocar a
ideia de rebanho; como os rebanhos circulam nos campos, o céu se
equipara a um campo.
Nesta comparação, como em qualquer outra, há um duplo
movimento: de um lado ela garante o nexo com o mundo, pois as
nuvens são parecidas com carneiros, animais que conheço e posso
observar diretamente; mas, de outro, perturba este nexo, pois as
nuvens deixam de o ser no momento em que viram carneiros e,
reciprocamente, estes não são mais carneiros, porque são nuvens.
Daí uma tensão cheia de ambiguidade, da qual surge a linguagem
poética, que a explora e incrementa, levando-a às últimas
consequências, muito além do nível informativo.
Portanto, na comparação, sobretudo em sua forma mais radical,
a metáfora, o mundo está e não está presente. De fato, graças a ela
o escritor acentua a intensidade da analogia até parecer que não há
mais mundo, mas sim uma mensagem com vida própria, podendo
inclusive não se referir a algo que a experiência comprove.
Explorando um pouco mais o que foi dito acima: este processo de
desfazer a semelhança com o mundo pode dar-se pela substituição
convencional ou pela substituição não convencional. Usando agora
exemplos tirados de textos literários, lembremos, no primeiro
caso, o poema “Booz adormecido”, de Victor Hugo, baseado numa
narrativa bíblica. Deitada ao relento entre os ceifadores, Ruth, com
os olhos semicerrados sob os véus, vê o firmamento como vasto
campo de trigo, no qual algum deus, algum ceifador divino deixou
cair a foice quando ia embora:

[…] et Ruth se demandait,

Immobile, ouvrant l’oeil à moitié sous ses voiles,


Quel dieu, quel moissonneur de l’éternel été
Avait, en s’en allant, négligemment jété
Cette faucille d’or dans le champ des étoiles.

Belíssimo, mas enquadrado nos limites que a poética tradicional


impunha para tornar aceitáveis as comparações, pois, de fato, o
crescente lunar parece uma foice, e o céu estrelado uma campina
cor de ouro.
Já num dos “Poemas da negra”, de Mário de Andrade, a
substituição insólita exige do leitor certo esforço de adaptação:

Ai momentos de físico amor,


Ai reentrâncias de corpo…
Meus lábios são que nem destroços
Que o mar acalanta em sossego.

A luz do candeeiro te aprova,


E… não sou eu, é a luz aninhada em teu corpo
Que ao som dos coqueiros ao vento
Farfalha no ar os adjetivos.

No embalo da ternura física, os lábios do amante são destroços


boiando na ondulação dos gestos, enquanto o corpo amado, em vez
de fazer jus a louvores, os produz ele próprio, como adjetivos
espalhados pelos coqueiros ao vento.
As fases de transformação literária trabalham sobretudo esta
segunda modalidade, enquanto nas fases estáveis predomina a
primeira, mais conservadora. Mas a distinção é relativa, porque o
anticonvencional de hoje poderá ser a rotina de amanhã.
Neste processo de desfazer a realidade o mundo vai se
desfigurando e o objeto referido pela palavra parece passar dele
para dentro do discurso. Aparentemente, não é mais o mundo, é
outra coisa, que parece não existir fora dos limites do texto.
Para obter este efeito o escritor pode recorrer a diversos meios.
A sua finalidade é encontrar recursos para dar realce ao discurso,
no campo sonoro ou no campo semântico, sendo certo que as
modificações ou singularidades no campo sonoro têm um poder
singular de conferir toques semânticos. O resultado é a criação de
um sistema específico de sentido, que pode ser convergente,
paralelo ou divergente em relação ao sistema do mundo.
Como se vê, estou bordando à roda do ponto de vista de
Jakobson, que se poderia simplificar dizendo que o discurso
poético é aquele que chama a atenção sobre si mesmo. No limite
(acrescentemos) ele tanto chama a atenção sobre si que faz
esquecer o mundo, tornando-se outro mundo. Ora, para isso são
fundamentais não apenas os efeitos de alteração sintática, mas
também os de ritmo e sonoridade, que formam a base para as
alterações no terreno da analogia ou do nexo, por sua vez atuantes
no significado.
Vejamos um trecho do capítulo inicial, “Origens, memória,
contato, iniciação”, n’A idade do serrote, de Murilo Mendes:

O dia, a noite.
*
Adão e Eva — complementares e adversativos.
Meus pais: Onofre e Elisa Valentina, Adão e Eva
descendentes.
*
A multiplicação dos pais. A multiplicação dos peitos. A
multiplicação dos pães. A multiplicação dos pianos.
*
O jardim-pomar da casa paterna, limite traçado ao meu
incipiente saber. O sabor das frutas. A árvore da ciência do bem
e do mal ao meu alcance. Um esboço de serpente pronta para
armar o bote. Outros jardins-pomares da casa de tias e primas.

O princípio que rege este texto é a assimilação alegórica do


mundo nascente do narrador ao mundo nascente descrito pelo
Gênese. Os pais, novos Adão e Eva, se multiplicam gerando o
filho, que tem por menagem o Éden-pomar, onde estão as frutas
reais e as frutas metafóricas das iniciações, junto às primas que
também vivem a descoberta da vida em seus pomares edênicos. O
recurso principal de escrita é a elipse, que sugere a experiência
fragmentária e desconexa da infância, condicionando uma
realidade aproximativa e descontínua, que parece residir mais nas
palavras do que nas coisas que elas designam. O mundo da
experiência racionalizada foi desfeito, reduzido a impressões
fugidias incompletas, nascidas da percepção embrionária do
menino pequeno. Mas a seguir foi refeito pela palavra, tratada
como se sobre ela, não sobre a realidade, repousasse o significado
profundo.
Interessante sob este aspecto é o terceiro segmento, que
representa de maneira mais pura o processo de desfazer-refazer,
porque somos embalados pela sua sonoridade antes de pensarmos
com rigor no sentido. A mesma palavra (multiplicação) é repetida
quatro vezes, multiplicando-se efetivamente, sempre ligada a
outras irmanadas por uma homofonia feita de rimas quase toantes
e entrelaçadas: pais-pães, peitos-pianos. É como se a palavra
propusesse um mundo refeito por ela, de tal modo que o discurso
parece propor-se como finalidade de si mesmo, ao chamar a
atenção sobre si por meio dos recursos de sonoridade e
simbolização.
Portanto, a lógica fônica parece antepor-se à outra, criando uma
razão específica, antes de deixar ver a sua razão enquanto
referência à realidade externa. Um discurso como este garante e ao
mesmo tempo perturba o nexo com o mundo. Mas,
milagrosamente, a perturbação torna o nexo mais significativo,
porque ao destacar o discurso dá maior expressividade ao mundo.
Aqui o mundo é o do nascimento, do aleitamento, das percepções
iniciais. Mas para um católico como Murilo Mendes é também o
senso do milagre (multiplicação dos pães, extensiva a outros
níveis), que infunde transcendência ao cotidiano. E é senso de
absurdo, exprimindo a nutrição espiritual através da arte, na
proliferação surreal dos pianos, isto é, da sua sonoridade captada
pelo menino. Talvez a articulação se deva a nexos de tipo
associativo: o leite conduz ao pão (alimento); este é assimilado ao
milagre da sua multiplicação por Jesus; o milagre por sua vez abre a
possibilidade da multiplicação metonímica dos pianos. E assim
vemos de que maneira um elemento ideológico, a religião, permite
infletir o discurso no rumo do insólito, resultando o sentimento do
cotidiano como milagre possível, ideia cara aos surrealistas e, por
motivos em parte diferentes, a Murilo Mendes. É como se o
sentido interno passasse de algum modo ao primeiro plano, pois dá
vida especial ao sentido externo, isto é, o que garante a relação do
discurso com o ser e com o mundo.
O processo de desfazer a semelhança da palavra com o mundo
pode ir mais longe, a ponto da realidade interna do discurso, a sua
autorreferência (se for possível dizer isto), parecer maior do que a
referência externa. Veja-se como somos arrastados pela lógica
própria das associações, sempre com base na repetição e na
analogia sonora, neste outro trecho do mesmo capítulo inicial d’A
idade do serrote:

As têmporas de Antonieta. As têmporas da begônia.


As têmporas da romã, as têmporas da maçã, as têmporas da
hortelã.
As pitangas temporãs. O tempo temporão. O tempo-será. As
têmporas do tempo. O tempo da onça.
As têmporas da onça. O tampão do tempo.
O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulheres
temporãs.
O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensão,
e que não é aquele tempo. Temporizemos.

Tudo se ordena ao redor da palavra tempo, segundo um critério


sonoro, não lógico, pois as afinidades fônicas regem as associações
que constituem o discurso, exprimindo o sentimento do tempo
passado por meio de evocações em revoada da experiência infantil.
Uma referência do parágrafo anterior amarra um pouco o
significado, de outro modo completamente solto: “[…] no tempo
em que não era antropófago, isto é, no tempo em que não devorava
livros […] as têmporas de Antonieta me tentavam e me alienavam,
a mim o atento: que tento tenho, e quanto”.
Neste trecho já se esboçava a dominância fônica da dental T,
mas interessa mais notar que o menino se impressionou com as
“têmporas” de Antonieta, fragmento da sua pessoa que se estende
sobre o resto do mundo, porque tudo o mais passa a possuir
têmporas, e a memória abrange todas as impressões remotas (isto
é, do “tempo da onça”, que foi “temporão” para ele) por meio de
associações desencadeadas pela obsessão inicial. Resulta um
universo fantástico, afastado do nosso, embora nascido
rigorosamente dele em todos os seus elementos.
Portanto, o poeta efetuou uma substituição do mundo real por
meio da força criadora da palavra. Poderíamos dizer que o mundo
real está presente com a sua riqueza de gentes, frutas, folhagens,
emoções, mas foi refeito no movimento da recordação, que
transfigura. Tanto assim, que chegamos a perguntar se o verbo
final, “temporizemos”, significa mesmo o que os dicionários
indicam: “adiemos”, “demoremos”, “aguardemos ocasião mais
favorável”, “contemporizemos”. Não estará o poeta criando outro
sentido, qualquer coisa como “mergulhemos no tempo para
refazer o passado perdido”; ou “nos transformemos em tempo a
fim de captar o passado”? Neste caso, seria qualquer coisa
equivalente a um fictício verbo tempar. Mas o fato é que Murilo
Mendes abre muitos significados possíveis, alguns virtuais,
mostrando a capacidade que a palavra tem de refazer um mundo
desfeito pelo impacto da imaginação.

5. Os dois Oswalds
Sempre me pareceu que Oswald de Andrade era dividido ao
meio, como homem e como escritor, e foi o que comecei a dizer
em artigos desde 1944. Eu escrevia que a sua obra ficcional era
avançada e criadora nas duas narrativas que englobei depois sob a
designação de “Par” — Memórias sentimentais de João Miramar e
Serafim Ponte Grande. E era inesperadamente passadista, apesar da
técnica, na “Trilogia”, isto é, os três romances subordinados ao
título geral de A trilogia do exílio, mais tarde substituído pelo do
primeiro, Os condenados. Finalmente, achava que a série Marco zero
(inacabada), prevista como coroamento de sua obra ficcional (já
então com o intuito de fazer literatura engajada, como se dizia), era
mal realizada e se aproximava da “Trilogia” como teor e qualidade.
As restrições dos artigos iniciais não agradaram obviamente
Oswald, que se defendeu me atacando de rijo num artigo depois
recolhido no volume Ponta de lança. Mas ao ver que eu continuava
analisando a sua produção de maneira objetiva voltou às boas, e a
partir do desentendimento as nossas relações, antes apenas
cordiais, tornaram-se amizade estreita.
Concordo que é banal dizer de alguém que é dividido, porque
no fundo todos somos. Mas há divisão e divisão. Mário de Andrade
disse num verso conhecido: “Eu sou trezentos, sou trezentos e
cinquenta, […] Mas um dia afinal eu toparei comigo”, e procurou
cumprir este programa. De fato, o seu esforço foi sempre buscar
unidade na vida e na obra, podendo dizer-se que tentou
arduamente a coerência sem desconhecer as incoerências, como
convinha a homem tão lúcido e reflexivo.
Oswald, ao contrário, era espontâneo e intuitivo, mentalmente
brilhante, mas pouco ordenado. Por isso, nunca procurou domar
racionalmente o jogo das contradições. Viveu com elas e elas
formaram os dois blocos opostos a que aludi e indicam certa
incoerência, que, aliás, parecia não perturbá-lo. Com sua enorme
força de vida, ele sempre arrastou tumultuosamente as
contradições não solucionadas.
Procurando sugeri-las, começo por verificar rapidamente o que
ocorre em sua obra narrativa, a única que abordarei, lembrando
que ele é quase sempre excelente na poesia, no teatro e no debate
de ideias.
No “Par” dominam uma linguagem condensada e fulgurante,
um estilo de tendência fragmentária admiravelmente adequado à
visão anticonvencional, à completa ausência de sentimentalismo,
ao sarcasmo e ao mais acerado humor. Na “Trilogia” parece que
esta escrita, aparentemente a mesma, perdeu as asas, pois não se
ajusta à concepção do mundo e dos personagens, tornada
convencional e sentimental, séria entre aspas, própria da literatura
de tônus baixo. O “Par” corresponde a um modo modernista e
avançado, enquanto a “Trilogia” corresponde a um modo meio
pelintra de origem decadentista, isto é, aquelas raízes indiscretas
que Oswald não conseguiu liquidar de todo. Por isso, no “Par” as
imagens são novas, ousadas e criadoras, mas na “Trilogia” são
artificiais e grandiloquentes. Entretanto, os dois grupos de obras
foram compostos praticamente lado a lado, intercalando-se como
se o autor se desdobrasse num modernista e num passadista, num
escritor aparentado às vanguardas europeias e num escritor ligado
tanto à écriture artiste quanto à retórica neossimbolista.
Nessa diferença de modos, a presença ou ausência do humor
deve ter sido decisiva, sendo certo que uma das grandes lições do
nosso Modernismo foi o papel profilático, regenerador e
humanizador do humorismo. “O claro riso dos modernos” (título
de um artigo de Ronald de Carvalho) operou prodígios de higiene
mental e social, caracterizando os grupos esteticamente coerentes,
enquanto os escritores mais convencionais se revestiram de uma
seriedade pouco séria que deve ter contribuído para levá-los a
posições reacionárias a partir de um modernismo equivocado. Na
literatura brasileira dos nossos dias há notória e lamentável
decadência do humor, que agora só é cultivado pelos humoristas
propriamente ditos, deixando de ser a brilhante senha que foi para
tantos escritores avançados do período entre as duas guerras. É o
caso, por exemplo, das vanguardas dos últimos decênios, que são
compenetradas e sem graça, porque se levam a sério demais; e isso
pode ser um perigo na vida intelectual.
Com os modernistas de 1922 era diferente, e nenhum deles
mais do que Oswald usou o “claro riso” como ingrediente
libertador, que nele foi também condição de excelência. Sempre
que pôs de lado o humor, na “Trilogia” ou no Marco zero, a tensão
baixou, e do Oswald rebelde e criador desprendeu-se um
surpreendente Oswald sentimental, bem menos certeiro.
Mas as contradições não existiam apenas na obra narrativa;
estavam presentes também no seu comportamento, no seu modo
de ser e até de falar. Um traço que só pode ser avaliado pelos que o
conheceram pessoalmente era o seu jeito empolado de dizer
poemas e fazer discursos. Eu o vi diversas vezes nessas atividades e
pude verificar que usava uma dicção cantada, modulando a voz
como se estivesse imitando oradores canastrões. Nesse tom fez,
por exemplo, o belíssimo discurso na sessão de encerramento do I
Congresso Brasileiro de Escritores (1945), como se dentro do
iconoclasta irreverente da Semana sobrevivesse o orador oficial
(que de fato foi) do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito, o
XI de Agosto.
Também na vida pessoal Oswald denotava contradições
interessantes. Ele casou seis vezes, geralmente com alguma
formalidade de tipo legal ou religioso, e isso lhe deu fama de
imoral e antifamiliar na esfera das classes média e alta de São
Paulo. Ora, eu o ouvi dizer mais de uma vez, meio sério, meio
brincando, mas com visível intuito de afirmar a sua natureza,
coisas como: “Eu sou família!”. Ou: “Eu sou o brasileiro que mais
respeita o casamento. Quando quero uma mulher, caso com ela, ao
contrário da maioria dos homens, que só têm uma mulher legal,
mas muitas amantes sucessivas”.
Vejo nesta atitude não apenas paradoxo, mas também mais
respeito pela mulher e pela família do que é habitual na sociedade
brasileira. A prova era a organização da sua vida doméstica, o ritmo
dos eventos familiares, com festas, reu­niões, almoços; ou o
interesse pelo desenvolvimento mental de suas companheiras, que
estimulava o que podia no terreno da cultura; ou, ainda, a
dedicação e o profundo amor pelos filhos. Significativamente,
estes, oriundos de três casamentos, acabaram sempre ficando com
ele nos casos de separação, não com as mães, o que é índice do seu
sentimento de responsabi­lidade familiar.
Concluo que havia nele o respeito pela mulher num plano
essencial. Daí o fervor com que preconizava a sua liberdade e
valorizava o seu papel. Verdadeiro precursor, queria vê-la como
eixo da sociedade, remontando para justificar-se a teorias mais ou
menos válidas sobre o matriarcado, que lhe serviram como ponto
de apoio para condenar o patriarcalismo autoritário e abrir a
perspectiva de um estado de coisas onde a preponderância
feminina permitiria a igualdade econômica e o fim da violência.
Convenhamos que, a ser o Barba Azul da lenda, seria um curioso
Barba Azul familiar e feminista…
Talvez valha também a pena aludir à religião, pois nesse
contundente adversário dos padres e da Igreja oficial, que dava a
impressão de ter superado inteiramente a ideia de Deus, havia um
substrato de fé, traduzido no acatamento por hábitos e práticas
próprios de pessoas observantes. Os seus livros, até A estrela de
absinto (1927) inclusive, terminavam pela fórmula de louvor a
Deus: Laus Deo. Sabe-se que eventualmente rezava e houve quem
o visse usando bentinhos debaixo da camisa. É provável que na raiz
dessas sobrevivências estivesse a lembrança arraigada de sua mãe,
que o educou na mais estrita fé católica e cuja memória ele sempre
venerou.
Menos importante, mas ainda assim valendo menção, é a
prosápia genealógica desse rebelde igualitário, que a partir de 1930
foi comunista militante e atacou de vários modos a burguesia e
suas pompas. Com ar de estar fazendo blague, nunca deixava de
mencionar por escrito ou em conversa, quando fosse o caso, que
era descendente do capitão-mor Tomé Rodrigues Nogueira do Ó,
fundador de Baependi no começo do século XVIII e tronco de uma
importante família mineira depois alastrada por São Paulo e Rio,
com marqueses, condes e barões no império. Isso, do lado do pai,
José Oswald Nogueira de Andrade. Pelo lado da mãe se orgulhava
de descender dos “Sousas de Mazagão”, defensores desta última
praça-forte portuguesa em Marrocos, aos quais contava que o rei d.
José I mandara “dar o Pará”, depois de Pombal lhe haver dito, em
resposta a uma pergunta desdenhosa, que eram “tão nobres quanto
Vossa Majestade”.
Finalmente, o iconoclasta que ria das instituições oficiais
ensaiou duas vezes candidatar-se à Academia Brasileira de Letras e
quis ser professor universitário, fazendo em 1945 um concurso de
literatura brasileira do qual saiu livre-docente, e ensaiando outro
de filosofia no começo dos anos de 1950. Eu diria para brincar um
pouco que naquela altura ele estava se contradizendo ao querer ser
chato-boy, isto é, equivalente aos rapazes segundo ele estudiosos,
sensatos e sensaborões, entre os quais eu… Aí, Oswald parecia
querer entrar na pele da engraçada alcunha que inventou para
caçoar dos jovens universitários de São Paulo.
Passo agora a outro tópico, cuja exposição pode dar elementos
para ilustrar o anterior.
Em 1926 ele fez uma viagem ao Oriente Próximo, na companhia
do filho mais velho (único naquele tempo) José Antônio Oswald
(Nonê), da então esposa Tarsila do Amaral, e dos casais Altino
Arantes e Cláudio de Souza, gente do tipo mais convencional que
se possa imaginar. Altino Arantes — católico piedoso, autor de um
escrito sobre A devoção mariana perante a razão e o coração — foi
político importante, inclusive presidente do estado de São Paulo
de 1916 a 1920, orador, membro da Academia Paulista. Cláudio de
Souza passou bem cedo da medicina aos negócios e ganhou fama
como autor de algumas peças de êxito, como Flores de sombra. Era
da Academia Brasileira de Letras e foi depois mentor do PEN Clube
do Brasil, caracterizando-se como literato do tipo homem de sala.
Ninguém imagina hoje esta companhia tão estranha para um
Oswald que as gerações atuais imaginam como um ser à margem
da vida burguesa. Mas, à maneira de outros modernistas, ele tinha
ligações normais com ela e as manteve mesmo depois de entrar na
luta comunista.
Os viajantes embarcaram em Marselha no vapor Lotus,
visitaram Nápoles, Pompeia, a Grécia, Rodes, Chipre, a Síria, a
Palestina e o Egito. A excursão rendeu duas representações
literárias: uma ficcional de Oswald de Andrade, que é a viagem em
escorço pitoresco de seu personagem Serafim Ponte Grande; e um
relato de Cláudio de Souza, o livro De Paris ao Oriente (Rio de
Janeiro: Gráfica Sauer, 1928), dois volumes.
O escrito de Oswald está na parte do romance intitulada por
antífrase “Os esplendores do Oriente”. São poucas páginas de
prosa sintética, costurada de imagens em cascata, nas quais um
Oriente esquálido é cenário de vertiginosa perseguição erótica das
duas moças, Pafuncheta e Caridad Claridad, pelo protagonista. A
experiência da viagem é transfigurada em substância de ficção.
De Paris ao Oriente parece contar a viagem como ela ocorreu,
mas sem exatidão documentária, pois começa por suprimir o
menino e as três senhoras. O narrador é anônimo e os nomes dos
companheiros são discretamente alterados: Altino Arantes é
Amaral, e Oswald, Gonçalo, não havendo, porém, razão para
pensar que tenha havido distorção essencial dos fatos, além de
toques literários inevitáveis. É possível que Cláudio de Souza
alterasse o real pela imaginação, mas, se assim foi, ele o fez com
grande propriedade, porque sentimos o tempo todo em Gonçalo a
maneira de Oswald. Imagino que as diferenças (também sensíveis
em muitos trechos) se devam ao fato de Cláudio de Souza reduzir
ao seu jargão próprio o que fez e disse o companheiro de excursão,
ou de descrever como efetivo o que pode não ter passado de
possibilidade.
Assim, há um momento em que Gonçalo, aborrecido pela falta
de banho no hotel, em Atenas, resolve lavar-se na torneira do
corredor, nu em pelo (v. I, p. 51). Pode-se supor que Oswald tenha
ameaçado burlescamente fazê-lo e Cláudio de Souza aproveitou
para construir a cena. No caso das falas é provável que tenha
procurado reproduzi-las com exatidão, acabando, no entanto, por
deformar sem querer, ao passá-las pelo coador medíocre da sua
prosa. Daí haver quase sempre um ar de dife­rença na semelhança.
Mas isso posto, volto a observar que a invenção, o pastiche ou a
paródia eventuais correspondem ao que era Oswald, permitindo
considerar De Paris ao Oriente documento válido no geral. Com
uma ressalva, todavia: quem está em cena é um Oswald em plena
atividade de “espantar o burguês”, pois é provável que em face
daqueles dois monumentos acadêmicos bem-pensantes a sua verve
se sentisse espicaçada e ele assumisse no dia a dia o
comportamento de choque, criando o escândalo possível.
Desde o começo sentimos a sua presença em Gonçalo, como
ele gordo, alegre, exuberante, iconoclasta e brinca­lhão, mas com
um toque mais carregado de futurismo, talvez a maneira de
Cláudio de Souza receber a mensagem modernista, sempre
assimilada aos padrões de Marinetti pela opinião média. Ao jeito de
Marinetti, Gonçalo tem horror dos monumentos, da arte
tradicional, não ressalvando nada. E, à maneira de Oswald, usa a
cada momento o paradoxo como arma de ataque e provocação. Por
exemplo, quando reabilita o porco ou desqualifica a porta, que
segundo ele é uma contradição, ao abrir o acesso de um espaço, a
casa, feito para ser fechado (I, 8-9). Blagues de Oswald? Paródias
pertinentes?
Também marinettiano é o constante louvor que Gonçalo faz à
vida tumultuosa, às paisagens convulsas, contrapostas aos
equilíbrios serenos, atitudes mentais que correspondem a um
modernismo de programa. Mais característico é o comportamento,
como em certa brincadeira na Síria, quando os viajantes são
surpreendidos por um “Viva o Doutor Amaral, futuro Presidente
da República do Brasil”, partido em português de um grupo de
árabes. Era um sírio que vivera em Minas e fora emprazado por
Gonçalo… (I, 96). Bem oswaldiano é o episódio em Chipre, onde
os viajantes são ciceroneados por um estudante grego que amava
certa moça cipriota, cujo pai o rejeitava por não lhe conhecer a
família. Então Gonçalo arquitetou o plano de apresentar-se com os
amigos como sendo parentes, e ante o aspecto bem-posto do grupo
o pai consentiu no casamento (I, 85). Quem conheceu Oswald ou
leu as suas memórias sente a realidade provável do relato.
Tipicamente oswaldiana é a observação de Gonçalo no vale de
Josafá, depois de ter avaliado as suas dimensões: “Estamos livres
do júri final. O espaço não chega nem para a população da Palestina
que é de oitocentos mil habitantes” (I, 193).
Ou também a sua recusa de participar de uma excursão pelo
Nilo, alegando que ela estava toda no folheto turístico. E como
prova expôs por escrito o que seria a banalidade do passeio,
terminando assim:

O Egito, a Grécia, Roma antiga, et coetera, et coetera, são pedras,


são litíases, são cálculos renais a que os ureteres deram formas
exóticas de Partenons, de Pirâmides, de Mesquitas, de
Coliseus, do diabo a quatro e estão obstruindo a alma estética
universal como fenômenos de retenção que acabarão em uremia
grave. (II, 110)

Cláudio de Souza começa a alegada transcrição dizendo: “Dou a


seguir as notas que ele jura nunca me haver enviado”. Isso talvez
queira dizer que, se neste caso ele deixou ver que se tratava de
paródia, talvez nos outros tenha mesmo efetuado o registro, tão
fiel quanto foi capaz de realizar, dos atos e ditos de Oswald. É o
que sentimos em certos momentos que correspondem ao que ele
era e fazia.
Na igreja de Pompeia, por exemplo, o narrador vê com surpresa
o irreverente Gonçalo rezando. “A um olhar meu respondeu com o
seu sorriso de sempre: — Com isto não se brinca, meu caro.
Futurismo é lá fora!” (I, 31).
Em Jerusalém Gonçalo demonstra possuir sobre tapetes
orientais um saber que causa admiração aos companheiros. Mas
“descobrimos, depois, que se servia de um catálogo da Oriental
Carpet Co. que trouxera de Esmirna” (II, 33).
Com efeito, a informação apressada e fragmentária,
transformada em aparente erudição, era habitual em Oswald, leitor
impaciente e salteado, que às vezes cortava apenas partes de um
livro, sobre o qual podia não obstante falar com pertinência, graças
ao talento excepcional e à capacidade de pegar no ar. Do mesmo
modo, é fiel o tom de certas tiradas de ênfase desconcertante; ou
de certas fórmulas que transitam da pompa verbal à melhor
expressividade, como dizer que o Oriente é “hoje uma oftalmia
purulenta que se enxuga às fraldas da miséria” (II, 173). Para não
falar em achados e trocadilhos notáveis, mesmo filtrados pela
escrita acadêmica do narrador, e é o caso das velhas prostitutas
egípcias, com tabuletas indicando idades ficticiamente reduzidas:
“Foi para saber ao certo a idade dessas mulheres — gritou Gonçalo
— que Pitágoras inventou sua tábua de multiplicação quando
esteve em Alexandria!…”.
Ou o caso deste arranjo da famosa tirada de Napoleão sobre as
pirâmides: “Atenção, amigo, em cada uma dessas mulheres quase
um século vos contempla!…” (II, 160-161).
Em Nazaré (cidade que estimula a literatice devota e sen­­ti­men­-
tal)

Gonçalo saiu a passeio e logo voltou trazendo a seguinte


descrição oral:
Escuro. Ladridos. Tropeções em pedras soltas. Quem vem
lá? D. Juan que vai à caça… Au…ão…ão…ão… Ouve-se uma
corneta: Ta…te…re…ti… Quartel de polícia: ti…ri…ti…ri…ti…
ri… Canta um galo: Ki…ki…ri…ki…ki…i…i… Responde-lhe
uma galinha: Cô…cô…ré…có…
E afirmou categórico:
— Quem ao ouvir esta descrição não “sentir” uma noite em
Nazaré, é um animal bípede com cérebro de quadrúpede. (I, 119)

Ainda aqui: reprodução mais ou menos fiel? Paródia? Gonçalo é


um Oswald possível e deve corresponder com certa fidelidade ao
que foi o viajante singular no meio dos dois figurões solenes que o
viam com certa condescendência compreensiva… E o relato
documenta o que eram capazes de perceber nele. Ainda aqui,
portanto, pode-se dizer forçando a nota que há dois Oswalds,
embora noutro sentido: o de verdade e o Oswald visto pela
sociedade dominante, meio perplexa com a sua rebeldia genial.

6. Oswaldo, Oswáld, Ôswald


Oswáld de Andrade, cujo nome completo era José Oswáld de
Souza Andrade (já se verá por que estou acentuando), achava graça
na lenda segundo a qual ele teria alterado por excentricidade
modernista o verdadeiro prenome, supostamente Oswaldo.
Imaginem o que diria se pudesse saber que hoje é chamado cada
vez mais — Ôswald, com acento na primeira sílaba… Paulo Emílio
Sales Gomes disse certa vez que os homens da nossa idade
estavam assistindo ao nascimento de um mito, tão afastado da
realidade que até revestia designação própria, fazendo Oswáld
virar Ôswald…
Portanto, Oswáld ou Oswaldo, como se dizia correntemente,
achava graça no boato, e para mostrar a sua insubsistência
explicava (segundo escreveu depois nas memórias) que herdara os
prenomes do pai, José Oswáld (não Oswaldo) Nogueira de
Andrade, e que esta forma peculiar fora iniciativa da avó, natural de
Baependi e leitora do romance Corina, de Madame de Staël, onde
a heroína assim chamada sofre e morre de amor por Oswald, lord
Nelvil, escocês romântico que, como se sabe, é transposição
ficcional do guapo português cosmopolita d. Pedro de Sousa
Holstein, futuro duque de Palmela, amigo íntimo e mais que isto
da autora. Mas tudo faz crer que o gosto não era individual, apenas
da avó de Oswáld, porque naquele canto do sul de Minas tornou-se
frequente usar os nomes dos dois protagonistas. Ainda mais: houve
gente com a mesma singularidade de adotar a forma inglesa, como
se vê pela lista dos eleitores de Aiuruoca, cidade vizinha de
Baependi, onde figura nos anos de 1880 um João Oswáld Diniz
Junqueira. (Ver o Almanak sul-mineiro para 1984, organizado por
Bernardo Saturnino da Veiga.)
Esta forma inglesa se manteve na família do nosso escritor por
três gerações, sempre pronunciada Oswáld, à brasileira (como
certamente pronunciaria também, mas aí à francesa, Madame de
Staël), até o pintor Oswáld de Andrade Filho, que se chama José
Antônio Oswáld. Portanto, se excentricidade houve foi da avó, em
meados do século passado, não do neto.
Essa avó era Antônia Nogueira Cobra, trineta pelo pai do
capitão-mor Tomé Rodrigues Nogueira do Ó, ilhéu da Madeira,
que casou em Guaratinguetá com Maria Leme do Prado e foi pró-
homem em Baependi no começo do século XVIII, fundando uma
família enorme, espalhada até hoje por Minas, São Paulo e Rio.
Oswáld gostava de falar (e escrever) que por causa desse patriarca
estava registrado na Genealogia paulis­tana “do racista Silva Leme”
— onde, aliás, aparece como “Oswaldo, preparatoriano em 1905”.
(“Preparatoriano” quer dizer que estava “tirando os preparatórios”,
isto é, cursando as matérias do secundário.)
Dona Antônia casou em Baependi com Hipólito José de
Andrade, de outra imensa família daquela zona, fazendeiro que
perdeu os bens e abriu para sobreviver um pequeno hotel em
Caxambu (Oswáld conta nas memórias a tristeza dele vendo as
filhas servirem a mesa dos hóspedes). Para São Paulo veio um filho
do casal, o referido José Oswáld Nogueira de Andrade, conhecido
como seu Andrade, que depois de muita luta se destacou, foi
vereador, fez fortuna com iniciativas de loteamento e urbanização
arrojadas para o tempo. Já maduro casou com Inês Inglês de Sousa,
paraense, irmã do autor d’O missionário. Oswáld gostava de falar e
escrever também sobre a família materna, contando que descendia
dos últimos defensores da praça de Mazagão no Marrocos, aos
quais o rei d. José I teria mandado “dar o Pará” num rompante,
depois de Pombal lhe ter dito: “São tão nobres quanto Vossa
Majestade”. Recentemente outro da mesma fonte e paragem, o
escritor Márcio Souza, me confirmou a autenticidade da origem e
a persistência da anedota.
Mas aqui não interessa a genealogia, e sim o nome, que como
ficou dito é usual em famílias da zona de Baependi desde a geração
de seu Andrade, e se espalhou com as migrações dessas famílias. É
provável que muitas pessoas de lá, a partir de 1820, tenham lido ou
ouvido falar do romance de Madame de Staël, e por isso deram
com certa frequência aos filhos a denominação dos protagonistas.
Nas famílias Nogueira e Andrade, que eram as de Oswáld pelo
lado do pai, e também Junqueira, muito ligada a ambas,
encontramos diversos xarás dele, mas (com uma ou outra exceção)
na forma vernaculizada. Por exemplo: nas Memórias e tradições da
família Junqueira, de Frederico de Barros Brotero, vemos em 1883
um José Oswaldo Diniz Junqueira pedir dispensa para casar com
parenta. Folheando por alto este livro, vemos que surgem depois:
um quase homônimo, José Oswaldo de Andrade Junqueira, dois
Oswaldos de Andrade Junqueira, um Oswaldo Martins de
Andrade. Dezenas de outros tinham o nome e não o sobrenome,
como os seguintes parentes dele, registrados em Silva Leme:
Domingos Oswaldo Gorgulho Nogueira, Oswaldo Gomes
Nogueira, Oswaldo Gomes de Carvalho. Atualmente, um dos mais
famosos peritos e criadores de cavalo manga-larga se chama José
Oswaldo Junqueira. Por aí vemos que daquela zona saiu e se
espalhou um gosto acentuado pelo prenome de lord Nelvil, isolado
ou combinado a outros.
Pensando sempre na informação de Oswáld sobre a escolha da
avó, conclui-se que ela tem maior alcance e vale também para
explicar um gosto que é grupal e regional; e a favor disto há uma
contraprova: na mesma zona, nessas e outras famílias, aparecem
Corinas que são irmãs, primas, tias de Oswaldos, podendo daí
saírem casais, por causa da endogamia. O referido Oswaldo Gomes
de Carvalho, por exemplo, primo de Oswáld em terceiro grau, era
casado com uma tia, Corina Nogueira Cobra, prima em segundo
grau de Oswáld. Na escolha de nomes para os filhos, o dos
personagens femininos de ficção costumava acompanhar os
masculinos, como as Floripes irmãs dos Oliveiros e dos Roldões,
com base na História do imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de
França. Ou, já no século XX, as Lígias irmãs dos Vinícius e/ou dos
Petrônios, numa trinca que seguia a voga imensa do romance Quo
vadis? de Sienkiewicz.
De modo que a imaginação romanesca de dona Antônia
Nogueira Cobra se enquadra na imaginação do seu meio e grupo,
aos quais ela e mais alguma outra mãe talvez tenham querido dar
certa satisfação, ao compensarem o preciosismo da forma inglesa
pela junção pacificadora dos banais João ou José. Conta Oswáld nas
memórias que no caso de seu pai foi exigência do vigário, que
recusou batizá-lo com nome estranho ao hagiológio corrente sem a
compensação de um mais garantido. E isto mostra que aquelas
senhoras de Baependi e Aiuruoca estavam sendo inovadoras,
estavam introduzindo um nome antes inexistente por lá e que
depois se tornou quase banal. Seja como for, a combinação de José
com Oswáld constitui uma discrepância associada a uma
transigência, para formar o nome que seria no futuro de um grande
rebelde.
No uso corrente formou-se uma transigência a mais durante a
vida deste, porque toda a gente, como ficou dito, retificava na fala
Oswáld para Oswaldo. Ligado ao sobrenome o prenome gerou
ainda outro compromisso, que levava a aumentar a indecisão
quanto à grafia, pois a pronúncia desprevenida era e é Oswál’ de
Andrade. Mas sempre, como se vê, com a tônica na segunda sílaba,
até que começasse essa bobagem de Ôswald, que com certeza vai
ficar e predominar, como tantas outras. Na peça sobre os “alegres
rapazes e a sua semana de arte moderna” Carlos de Queiroz Telles
já a tinha denunciado implicitamente. Nela, quando o chamam
Ôswald, o personagem brada de mau humor: “Oswáld!”.
Estas considerações e informações não são tão intempestivas
quanto podem parecer. É preciso fazê-las, porque senão a moda
pega e na próxima geração, quando estiver sendo por sua vez
devidamente trabalhado pela lenda, Drummond pode virar
Drúmon, se algum sabido decidir que a pronúncia do seu nome
escocês deve ser reajustada.

7. O diário de bordo
Quem leu as memórias de Oswald de Andrade, Um homem sem
profissão, ficou sabendo que em 1918, com a situação em casa já
atrapalhada, ele alugou um apartamento para receber mulheres e
amigos, uma garçonnière, como se dizia, na rua Líbero Badaró.
Nele, abriu-se uma espécie de registro, do tipo “livro em branco”,
anunciado pelas papelarias, formato grande, grossa capa preta
cartonada, duzentas páginas numeradas a máquina, desses usados
para registros em cartório, atas, apontamentos comerciais. Cada
amigo que ia lá podia escrever alguma coisa que viesse à cabeça,
encadeando-a frequentemente com a deixa da nota precedente:
coisas internas do grupo, coisas externas da cidade, gozações,
máximas pitorescas, trocadilhos, divagações, desenhos, além da
colagem de recortes. Um verdadeiro diário de bordo, intitulado
por um dos frequentadores O perfeito cozinheiro das almas deste
mundo. Na parte final das memórias, Oswald aproveitou alguma
coisa do que escreveu, transcrevendo, ampliando, tomando como
esteio da narrativa. Creio que então já se sentia cansado e, em vez
de elaborar mais discursivamente as recordações, como fez até
certa altura do livro, passou a transcrever notas diretamente. Foi aí
que o cadernão ajudou.
A Editora Ex-Libris está lançando dele uma edição fac-similar, a
primeira, que é verdadeiro prodígio gráfico, reproduzindo
exatamente o amarelado do tempo, as manchas, os recortes
colados, os rabiscos soltos, a cor das tintas de escrever: roxo,
verde, vermelho. “Há um sinal de grampo enferrujado na página
57”, diz Oswald nas memórias. Pois o leitor poderá vê-lo tal e qual
nesta edição, que, além do mais, é amparada e esclarecida por
estudos de dois profundos oswaldianos, Mário da Silva Brito e
Haroldo de Campos.
Tanto quanto lembro, Oswald de Andrade sempre usou
cadernos, não apenas para notas e reflexões, mas para esboçar e
redigir as narrativas e os poemas. Inclusive cadernos do tipo desse
“livro em branco”. Em todos é constante o talhe da letra meio
garranchosa, dando a impressão inicial de pouco legível, mas de
fato perfeitamente clara na sua irregularidade regular de caligrafia
vertical. Mas esse diário de bordo é dele apenas em parte, porque
todos os do grupo escreviam, inclusive a moça com quem tinha no
momento um caso amoroso, apelidada Cíclone, “com acento na
primeira sílaba”, esclarece nas memórias. Em torno dela girava
meio enamorado um bando de rapazes, alguns dos quais também
ficariam famosos: Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Leo
Vaz, Vicente Rao. Todos a celebram, lamentam a sua ausência,
fazem alusões sentimentais e alegres, resultando um texto
entrecortado que vai da piada à retórica, com alguma filosofice
jocosa, o gosto pelo jogo de palavras e muita ingenuidade pelo
meio. Do ponto de vista visual, o conjunto é uma festa.
Cíclone era uma figura singular de moça liberta, em choque
com os costumes e a família. Doente, acabou morrendo
tuberculosa pouco depois, não antes de Oswald, num gesto
cavalheiresco e generoso, muito seu, ter casado com ela
praticamente em artigo de morte, sepultando-a, quando chegou a
hora, no jazigo de sua família. A garçonnière, que acabou nessa
altura, ficava por perto do Hotel Carlton, do Café Paraventi, do Bar
Franciscano. Tudo isso evaporou, mas ela, graças ao diário de
bordo, ficará “intacta, suspensa no ar”, como o quarto do poeta na
Lapa carioca.
Muita coisa registrada pelos frequentadores já parece menção
sem objeto claro, pois aí também o tempo comeu. O famoso
usurário será para o leitor de agora um nome vago, em vez da
figura real que viveu tanto tempo entrincheirada no seu antro. A
burrice de fulano, a solenidade vazia de beltrano serão mera
referência descarnada. Poucos poderão, inclusive, apreciar direito
uma curiosa montagem verbal de Oswald, assimilando o lugar
distante para onde fora a namorada ao misterioso (para nós)
Tipperary de uma canção inglesa de guerra, ainda popular no anos
de 1920:

It’s a long way to Tipperary,


It’s a long way to go,
It’s a long way to Tipperary,
To the sweetest girl I know.

Mas, de um modo ou de outro, tudo compõe com encanto a


atmosfera daquele universo provinciano em mudança. Na São
Paulo de uns 500 mil habitantes, a garçonnière não é só o refúgio
cerrado, mas também um eco do mundo. É o lugar de onde
podemos observar os tipos e fatos da cidade, as viagens ao interior,
o movimento das artes — tudo parecendo girar em torno do
ambiente criado pela sociabilidade imperiosa de Oswald, homem
que não sabia ficar só e precisava dos outros para se estimular, rir,
brigar, passar o tempo, como se a falta de convívio fosse o próprio
mal, o vazio insuportável da privação. Ele vivia convidando para a
sua casa e correndo para a dos amigos, pendurado no telefone,
consultando, sugerindo, movimentando. Neste sentido, esse diário
de bordo é um signo do seu modo de ser, porque reúne as pessoas,
leva todos a pensar e escrever em comum, a não isolar-se, nem
ante a aventura amorosa de Oswald e Cíclone, presenciada e
comentada pelos amigos. De fora chega o rumor da cidade, tão viva
na obra de Oswald, que sabia modular a autonomia da escrita e o
registro da realidade, praticado de maneira escrupulosa e paciente.
Por isso, São Paulo está incrustada na sua obra muito mais do que
se diz.
Um dia, pela altura de 1950, ele foi à nossa casa, situada no
encontro de Aclimação, Cambuci e Glória. Na saída eu o
acompanhei, para ajudá-lo a pegar um táxi. Atravessamos a rua
Pires da Mota e entramos na Conselheiro Furtado. Era uma tarde
fresca, azul e sossegada, como ainda havia naquele tempo. Oswald
explicava com detalhes alguma coisa sobre a sua obra. Ouvindo, eu
olhava o renque de casinhas baixas, encardidas. E de repente me
pareceu estar numa rua de romance dele, Os condenados ou A
estrela de absinto, vogando na ficção junto com o autor, que seria ao
mesmo tempo um dos seus personagens. Foi apenas um segundo,
durante o qual senti sem poder explicar que estávamos ambos no
mundo da sua narrativa. Mas não disse nada. O táxi passou, ele
subiu e foi embora. A sensação permaneceu em mim como
lembrança, e estou certo de que, no leitor interessado apenas em
fruir, permanecerá também a sensação de ter penetrado na
atmosfera fechada e aberta da garçonnière, que o diário de bordo
construiu acima do tempo e esta edição impecável revela setenta
anos depois.

8. Navio negreiro
“O navio negreiro” de Castro Alves faz jus ao subtítulo,
“Tragédia no mar”, mas este aspecto ligado ao assunto não deve
atrapalhar a percepção do que ele é como incrível feito de
composição poética. Tragédia no mar, sem dúvida, como é
evidente pela descrição do que acontece a bordo da nau celerada:
os escravos obrigados a dançar para manter certa forma física e
mental, e assim diminuir o número de mortes; as crianças famintas
penduradas no peito sangrento das mães; a crueldade dos
marinheiros que os açoitam. Esta cena é o núcleo, o centro
dramático do poema, organizado em torno dele, pois o que vem
antes é preparo e o que vem depois é consequência. Mas a cena só
é forte e impositiva porque o poeta organizou toda a matéria do
poema de modo igualmente perfeito, dispondo as palavras com
sabedoria plástica e conceitual.
O que chama a atenção em primeiro lugar são os ângulos e as
distâncias. O observador que narra, postado idealmente na altura,
vê ao longe um veleiro e ouve cantigas. Para saber o que é, pede
figuradamente emprestadas as asas ao albatroz, “águia do oceano”,
e chega perto. Agora está no meio dos movimentos e pode ver
diretamente o horror da cena.
É, portanto, através de perspectivas, distâncias e aproximações
que o assunto é apresentado. Mas tão importantes quanto elas são
o espaço e os elementos que o povoam: mar, céu, noite, lua, ondas,
estrelas formam um quadro adequado ao titanismo da composição.
Esses elementos emprestam uma dimensão enorme à cena e aos
protagonistas, e seu efeito provém da maneira pela qual são usados
como recursos de fatura, que parece baseada numa espécie de lei
fundamental: o jogo de extremos, que se aproximam, se cruzam ou
se repelem, criando grandes contrastes, que Castro Alves
aprendeu com seu mestre Victor Hugo. Sob este aspecto, o
princípio que serve de esteio ao poema é uma antítese implícita:
liberdade × escravidão. A partir dela se organizam outras, que vão
aparecendo aos poucos.
No começo, as oposições se harmonizam e desse jogo nasce a
sugestão poética. Na primeira estrofe, por exemplo, a lua e sua
luminosidade são comparadas a uma borboleta dourada, lá no alto;
cá embaixo, as ondas correm paralelamente. Mas na segunda
estrofe céu e mar se misturam, se cruzam, pois os astros são
mostrados como espumas de ouro (e espuma é coisa do mar),
enquanto no mar as ardentias parecem astros (e astro é coisa do
céu). Distantes, mas aproximados pelas imagens, na terceira
estrofe eles se espelham reciprocamente e acabam irmanados. O
cenário está misteriosamente unificado e pronto para o que vai
acontecer: “Qual dos dois é o céu? qual o oceano?”.
Nas estrofes seguintes o observador ideal vê o brigue e ouve os
cantos, imaginando que devam ser expansão da alma dos
marinheiros deste ou daquele país, cujas características evoca,
sugerindo talvez que todos eles poderiam ser agentes do drama
que ainda ignora. Mas não se trata disso, e a primeira impressão de
harmoniosa beleza é transformada em oposição de extremos
inconciliáveis: a música está ligada a um espetáculo de
inconcebível crueldade, e ao perceber isto nós chegamos ao cerne
da tragédia a cuja volta se ordena o poema. O contraste aqui é
insolúvel e não haverá meio de unir os opostos, como tinham sido
unidos metaforicamente o céu e o mar. Trata-se de homens que
antes eram livres no deserto, caçando e vivendo a sua vida, mas
agora, por serem “negros como a noite”, estão acorrentados, a
caminho do trabalho escravo. Indignado pelo contraste que fere os
direitos da condição humana, o observador ideal não apenas
manifesta a sua perplexidade diante de Deus, na famosa apóstrofe
— “Senhor Deus dos desgraçados!” —, mas subverte o cenário do
início, convocando a noite, os astros, os furacões do mar para se
desencadearem como protesto cósmico sobre a iniquidade:

Ó mar, porque não apagas


Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…

Depois disso, só falta a peroração ainda mais famosa, antes da


qual é preciso, todavia, dizer que o que mencionei até agora
constitui o conjunto dos ingredientes básicos do poema, mas não
toda a sua riqueza, cuja dimensão só aparece se aludirmos a outras
coisas que os versos contêm, como, logo no começo, a vela do
navio comparada às andorinhas ou aos corcéis, o vento do mar que
não levanta pó. No preparo da cena, quando o poeta imagina quem
será que está cantando, vem a evocação dos povos com suas
características, lendas e heróis. Na cena propriamente dita avultam
o tombadilho ensanguentado, as lanternas avermelhadas pelo
reflexo do sangue, os grilhões, as chibatas e, sobretudo, o essencial
do poema, isto é, os escravos que elas tangem. Convém então
prestar atenção em um elemento unificador que anima essa
poderosa visão plástica: a ideia de movimentos coleantes, embora
antagônicos, de cujo choque brota um dos aspectos tenebrosos da
tragédia no mar. Senão, vejamos.
Os escravos estão acorrentados e saracoteiam na dança
macabra, formando filas sinuosas; os chicotes, igualmente longos,
sinuosos e flexíveis, caem sobre eles como instrumentos de
tortura. Ora, ao evocar o estado anterior de liberdade o poeta os
tinha mostrado soltos, caçando tigre e leão, guerreando, enquanto
as mulheres procriavam ou cismavam na cabana. A escravidão
chega e os arruma na fileira agrilhoada pelos preadores, na unidade
coleante da caravana de prisioneiros, cujo desfecho é a imagem da
serpente que “faz doidas espirais” no tombadilho:

Prende-os a mesma corrente


— Férrea, lúgubre serpente—,
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite… Irrisão!…

Somando mentalmente as descrições e as imagens homólogas


que representam pessoas presas umas às outras, reduzidas a “uma
só cadeia”, tangida pelo chicote formalmente análogo, o leitor
percebe a força com que o poeta soube sugerir o estado de
escravidão.
A partir disso acrescentamos o efeito de certas antíteses que
exprimem a antítese básica liberdade × escravidão e se encontram
na quinta parte do poema: movimento livre do guerreiro ou
caçador × restrição imposta pelas cadeias; espaço aberto que serve
de imenso abrigo × porão apertado, infecto e imundo; perigo
afrontado voluntariamente na caça às feras × perigo imposto das
doenças do cativeiro; existência como força de vida × morte no
navio e sepultamento no mar. Este movimento das antíteses, das
oposições que não se cruzam nem se unificam, gera estrofes
admiráveis:

Ontem a Serra Leoa,


A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão!
Hoje… o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar…
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar…

Desde a vastidão do espaço, do céu, do mar e das estrelas, até a


algema e o chicote, o poeta povoou plasticamente o seu universo
com uma variedade de coisas e situações convergindo
magistralmente para o objetivo, que desfecha depois da cena e
depois da invocação dos elementos da natureza, pois é então que
surge o problema das responsabilidades, fundamentais neste
poema de intenção ética e social.
Nutrido de indignação humanitária, o poeta pergunta quem
promove e quem acoberta essa monstruosidade. A resposta está no
epílogo terrível: o comércio atroz é feito à sombra da bandeira de
seu próprio país, o “auriverde pendão” mencionado tantas vezes
desde os tempos da Independência, mas transformado por ele em
propriedade única e legítima, graças ao poder inédito do contexto
onde o situou.
E como desfecho surge o contraste final: o Novo Mundo fora
celebrado dois anos antes em “O livro e a América” como
continente da liberdade e do saber, mas a ação dos negreiros,
protegida pela oficialização do regime servil, se ergue como vitória
da tirania mais feroz, da mais feroz espoliação. Como é possível
(brada o poeta) que a mesma bandeira das lutas pela libertação
nacional (alusão provável e implícita ao “Dois de Julho”, que ele
celebrou numa ode), como é possível que ela própria venha agora
servir de cobertura para iniquidade deste porte? Os versos finais
eletrizam o poema com o apelo ao descobridor do continente e ao
patriarca da nossa Independência. Depois vêm didaticamente o
lugar e a data de composição: “São Paulo, 18 de abril de 1868”.
A nós, resta imaginar o entusiasmo que devia despertar o moço
baiano, declamando com ênfase esses versos nos pobres teatrinhos
de São Paulo, aos quais trazia a teatralidade heroica do cenário de
mares e firmamentos, varridos de tempestade, semeados de
estrelas. Adotando a maneira empolada daquele tempo,
poderíamos dizer que essas tempestades eram menos intensas, e
essas estrelas brilhavam menos do que a flama da sua
generosidade, sacudida pelo horror da tragédia no mar.

9. Cartas de um mundo perdido


Um dos encantos d’A correspondência de uma estação de cura, de
João do Rio, romance leve e agradável, é a sua inatualidade —
dessas inatualidades que acabam sendo atuais, porque conservam
para o leitor de agora o tom e o sabor da vida que passou. O mundo
descrito nele supõe o prestígio e a função peculiar das cidades
hidrominerais, que hoje pouco significam, não apenas como
recurso terapêutico, mas como ambiente privilegiado de
convivência.
As cidades hidrominerais foram muito importantes durante
séculos, desde os romanos, inventores do período de 21 dias para a
cura, que podia ser tratamento de alguma doença por meio das
águas, ou apenas vilegiatura, como é o caso dos personagens de
João do Rio. Montaigne foi até a Itália atrás de banhos termais,
Madame de Sévigné escreveu cartas nas suas temporadas em
Vichy, Lamartine cantou o lago de Aix-les-Bains. Os reis, os
elegantes, os grandes do mundo frequentavam as estâncias da
Alemanha, da França, da Itália, da Boêmia, onde d. Pedro II marcou
o ponto em Karlsbad.
As do Brasil tiveram voga dos meados do século passado aos
meados deste. Muitas fontes de Caxambu ainda têm nomes de
membros da família imperial, pois a princesa Isabel ia lá tentar a
solução da sua prolongada esterilidade, o que de fato alcançou. Não
por causa das águas, com certeza, mas quem sabe devido à
mudança temporária de comportamento e modo de ser que a
estação acarretava. Eram dias fora do ramerrão, eufóricos,
movimentados, durante os quais, como no Carnaval, podiam
acontecer coisas diferentes do cotidiano.
Os leitores deste livro verão de que maneira os visitantes,
concentrados nos hotéis, travavam relações novas, conheciam
gente variada, tinham oportunidades de namoro e aventura,
tentavam a sorte nos cassinos, dançavam diariamente nas matinês,
soirées e bailes formais. Podiam estar lado a lado com gente fora da
rotina — personalidades, artistas da noite, concertistas famosos,
atores, dançarinas, moças de vida alegre, tudo concentrado
densamente em pequeno espaço, durante um período curto. A
estação de águas era uma espécie de festa prolongada para os que
nela iam passear e ali viviam num mundo diferente. Os que iam
apenas para se tratar costumavam ficar fora do ritmo mundano:
Não há ninguém doente. As mazelas, os reumatismos, as
seborreias — o mobiliário estragado da sociedade fica por aí
noutras hospedarias. Estamos num hotel snob. Avisos por todos
os lados participam aos doentes de verdade que o lugar não os
admite. É exclusivamente de cura mundana.[2]

Por isso, os enfermos preferiam muitas vezes ir no intervalo, os


meses menos concorridos, quando tinha lugar a estação do baú,
como era chamada em Poços de Caldas, caracterizando o tipo de
clientela pela modéstia arcaica da bagagem.
O resultado era que a temporada concentrava em ritmo
intensificado o movimento das classes média e alta, nas suas
paixões, na sua ambição, nos seus cálculos, na exibição
frequentemente simulada de sua prosperidade. Esse mundo
acabou, ou só existe em livros como o de João do Rio.
Das estâncias brasileiras, a mais famosa no século passado foi
Caxambu; neste século foi Poços de Caldas, que chegou a ter a sua
temporada estrangeira de argentinos e uruguaios. Quando João do
Rio a tomou para cenário de romance ela estava em pleno fastígio,
que foi duradouro e chegou ao máximo com os requintes do
decênio de 1930, depois que o governo de Minas remodelou a
cidade e construiu as Termas Antônio Carlos, o Palace Hotel, o
Palace Cassino. Mas foi lugar procurado desde o outro século, e
muita gente graúda de fora fez lá as suas casas para passar algum
tempo cada ano. No decênio de 1880 surgiram os chalés, tão
adequados ao cenário da montanha, que deram o tom da
arquitetura local por muito tempo, enchendo de encanto alpino as
encostas e o vale. Eles foram devidos a um arquiteto tirolês,
Panzini, que traçou neste estilo as primeiras termas, o primeiro
hotel mais ou menos confortável (da Empresa), casas para
vilegiatura, como as do conde do Pinhal, dos barões de Miranda e
Itacuruçá, e os lindos chalés Procópio das famílias Azevedo e
Oliveira, fazendeiros na vizinha São João da Boa Vista. Na virada
do século, contrastando com a leveza dessas estruturas,
implantaram-se casarões compactos e pesados, como os de
Martinho Prado Júnior (Martinico) e do conde Prates; em seguida,
os da Rainha do Café, dona Iria Junqueira, e outros grandes
fazendeiros.
Durante a temporada essas casas se enchiam de convidados,
que formavam constelações com os hóspedes dos melhores hotéis.
Primeiro, o da Empresa; no tempo do romance de João do Rio, o
recente Grande Hotel, encostado no Teatro Politeama, construídos
ambos, assim como as novas termas, pela Empresa de
Melhoramentos (referida neste livro), presidida por um filho do
mencionado Martinico, Cássio da Silva Prado.
Esses hotéis tinham cassino próprio, além dos que havia soltos
na cidade, um dos quais, o Gibimba, figura no romance. Era um
vasto casarão de esquina, ainda de pé, ponto quente do jogo, das
danças, das aventuras galantes, ativo até depois da construção dos
grandes edifícios modernos entre 1926 e 1930.
Na trepidação diária da vida de estação desenrolavam-se
namoros, formavam-se noivados sensacionais (como o deste livro),
estouravam escândalos, perdiam-se fortunas no pano verde. Lindas
ou banais, circulavam as mulheres, desde as mocinhas
comportadas até aventureiras de todo nível, sem contar as
senhoras comedidas que ali, por algum tempo, soltavam as rédeas
e abriam hiatos na rotina. De permeio havia o espetáculo dos
figurões, inclusive, no tempo da monarquia, um dos príncipes de
Saxe-Coburgo-Gotha, neto do imperador, e sua bela amante,
aninhados num chalé. Aliás, o próprio d. Pedro II lá esteve com a
imperatriz para inaugurar a estrada de ferro, em 1886.
Na República Velha (que interessa por ser a época deste livro)
não faltaram os grandes políticos, os escritores e artistas famosos,
as senhoras que davam o tom à alta sociedade do Rio e de São
Paulo. Passou tudo por Poços de Caldas, fazendo da cidade uma
caixa mágica e privilegiada de ressonância: Rui Barbosa, Rodrigues
Alves, Campos Sales, Pinheiro Machado, José Carlos Rodrigues,
João Pinheiro, Afrânio de Melo Franco, Olavo Bilac, Alberto de
Oliveira, Coelho Neto, a “Marechala da Elegância” dona Laurinda
Santos Lobo. O teatrólogo, cronista e pintor França Júnior não só
ia lá, como lá morreu e foi enterrado. Gustavo Salvini e sua
companhia representaram Ibsen em italiano no Politeama. Batista
da Costa pintou suavemente os morros e campos do Planalto de
Caldas. Mário de Andrade, em moço, lá passeou a cavalo como os
personagens de João do Rio, indo como eles ao Posto Zootécnico,
à Cascata das Antas, à Caixa-d’água, à Fonte dos Amores, cantada
em maus versos por Félix Pacheco.
Não espanta com isso tudo que Poços de Caldas tivesse atraído
o interesse dos escritores. Em 1901, por exemplo, Olavo Bilac
veraneou por lá e escreveu uma crônica de louvor, “Nas Caldas”,
depois recolhida no livro Ironia e piedade. Nela conta um pouco da
história local, descreve a beleza do sítio e o contato veludoso da
água sulfurosa, além de mencionar Pedro Sanches de Lemos, figura
tutelar da cidade, grande médico e homem de cultura cuja
biblioteca era simplesmente extraordinária em história, filosofia,
literatura, estudos sociais e políticos. Nessa crônica Bilac lançou a
expressão “fonte de juventa”, para exprimir o poder curativo e
reparador atribuído às águas minerais.[3]
Ela parece deixa para Coelho Neto, que em 1905 publicou a
novela Água de juventa, onde descreve em tom meio caricatural o
movimento do Hotel da Empresa, destacando a lua de mel de um
casal elegante, prejudicada porque o marido estava impossibilitado
de cumprir os deveres específicos. Por isso, foi a Poços de Caldas
tentar a cura com o dr. Lino, transposição que mal disfarça Pedro
Sanches de Lemos. Afinal, já desanimado, o casal faz uma excursão
ao morro e, perto da Fonte dos Amores (não indicada pelo nome),
no meio do mato e sua força seivosa, o rapaz recupera as
capacidades, simplesmente suspensas pela depressão nervosa
como vira o dr. Lino.
Mas foi João do Rio que escreveu o romance mais completo
sobre a vida dos forasteiros em Poços, A correspondência de uma
estação de cura, sob a forma de cartas não comentadas remetidas
por diversos “banhistas”. Sem querer avançar os limites do tempo,
lembro que em 1948 foi publicado um romance que inverteu a
perspectiva dos anteriores, O céu entre montanhas, de Jurandir
Ferreira. Não se trata explicitamente de Poços, mas de uma
estância com nome suposto que no fundo é ela mesma,
transfigurada pela elaboração ficcional e vista de dentro para fora,
isto é, do ângulo do morador, não do banhista. Agora, aparece a
vida própria da cidade, o seu ritmo cotidiano, embora
condicionado pela interferência das temporadas.
A correspondência de uma estação de cura foi escrito em 1917
durante uma estadia do autor em Poços de Caldas e “publicado
parceladamente n’O País, antes de sair em volume”.[4] É dos
raríssimos romances epistolares da nossa literatura, e de um tipo
especial, porque não há troca de cartas entre duas ou mais pessoas,
nem reunião das cartas de uma só pessoa, como era usual; há as
cartas remetidas por um grupo de veranistas, sem as respostas dos
destinatários.
Alguns homens e mulheres escrevem a conhecidos do Rio,
Petrópolis e São Paulo relatando o que está acontecendo, e essa
variedade de fatos e perspectivas vai formando o enredo. Há várias
linhas narrativas cruzadas, mas pouco a pouco predomina uma
delas, referente à corte habilidosa de um diplomata carioca,
Olivério Pereira Gomes, caça-dotes lançado com outros rapazes à
conquista da milionária paulista Olga da Luz, da qual acaba noivo.
Estes e mais alguns formam a alta-roda, com os seus cavalos de
raça, sua elegância e sua mentalidade de grupo fechado. A
propósito diz o missivista Antero Pedreira: “O nosso (grupo) é o
único com interesse real — porque as senhoras vestem no mesmo
costureiro da Rua da Paz e os homens fazem o possível para fingir a
peça francesa do boulevard”.
Outras cartas exprimem a burguesia comercial endinheirada, os
artistas de teatro e cabaré, os jogadores profissionais e
aventureiros, até uma mulher fácil. O tom de cada uma varia,
compondo uma espécie de coro social que o escritor ordena com
bastante competência. Graças ao ritmo próprio das temporadas essa
gente que em geral vive separada se encontra lado a lado no espaço
dos hotéis, clubes e cassinos:

[…] é a mistura mais completa de que há memória: dançam,


comem, jogam etc., os chauffeurs e os deputados, os roleteiros
gatunos do interior e os moços milionários de São Paulo, as
mulheres mais sem vestido e as mulheres mais cheias de joias.

Variando o tom de cada missivista, João do Rio caracterizou de


maneira direta cada grupo ou tipo, bem como a sua maneira de ver
as coisas. Esse uso plural da técnica epistolar é a qualidade básica
do livro. Outra, é a compreensão do que era a vida própria das
estações de águas, gerando o estado de exceção que modifica a
rotina e abre possibilidades novas de relação e aventura. E não falta
ao livro um traço peculiar do autor: o senso dos aspectos
escondidos que a sociedade procura dissimular sob a superfície
apresentada como única ou principal.
Na sua carreira João do Rio foi ficando cada vez mais inclinado
para o lado oficial e desfrutável da vida, mas no começo era
sensível às injustiças e mostrou interesse pelo pobre, o irregular, o
humilhado. Este romance tem traços disto: ao lado do cronista fútil
surgem o observador misericordioso da desgraça e o espectador
compreensivo da malandragem. Algumas das melhores cartas são
devidas aos problemas de um agenciador de artistas, mordedor e
bom sujeito; e a cena mais elaborada está na carta de um
neurastênico de alta sociedade que descreve a visita a uma pobre
velha deformada pelo reumatismo, desfigurada por chagas e
pústulas, na pior miséria. Isso forma um pouco do ritmo
contraditório de João do Rio, escritor mais complexo do que
mostraria a superfície convencional de cinismo e ironia que ficou
predominando na opinião.
Assim, indica o que podia estar por baixo da camada brilhante
da estação de cura: a doença, que quebrava a euforia aparente e era
visível pela manhã, nos estabelecimentos de banhos sulfurosos:

À tarde, quando vejo os cavalheiros bem-vestidos, rindo nos


passeios ou conversando nos salões da roleta; à noite, quando
encontro pintadas e estridentes, em torno das mesas de bac ou
de campista, as damas, lembro-me das manhãs. Vês aquele
rapaz que dá gargalhadas? Foi retirado de uma banheira quase
morto. Vês aquela linda mulher, cheia de joias? Inteiramente
perdida.

Poços de Caldas era centro de tratamento do reumatismo,


doença que se podia declarar; mas também das moléstias venéreas,
cujo nome não se pronunciava. Os males secretos do corpo e o
furor da jogatina formavam o purgatório daquela superfície
brilhante, e por vezes o romancista os junta. A propósito das joias
que os velhos ricaços davam às cocotes e elas torravam na roleta,
diz um dos correspondentes:

Não é, ao lado das fontes de enxofre que saram dos males da


Luxúria, o holocausto de todos os vícios, de todos os crimes, de
todas as ganâncias, da podridão humana, ao Deus Moloc do
jogo?

Nas estâncias daquele tempo o jogo era o grande negócio: “Fica


no fundo uma roleta, que parece complemento e é a oração
principal. Tudo aí não se paga — os licores, o café, os charutos, as
águas”.
Por isso, o jogo envolvia a cidade numa espécie de teia invisível,
que João do Rio traduz por meio de imagens sonoras:

Duas horas depois de chegar comecei a ouvir o rumor das


fichas, compassadas pelos sons roucos dos ancinhos nos panos
verdes. Era o hotel […]. Saí. E o som das fichas continuou a
seguir-me. Às vezes vem de cima e parece um regato saltando
nas pedras de uma cascata; quase sempre é nos rés do chão e
temos de costeá-lo como se ao lado das ruas fosse molemente
de encontro às paredes a vaga de um oceano. O terrível
Aristófanes fazendo falar os pássaros como ao pobre Eurípides,
inventava palavras onomatopaicas. Eu ouço agora a linguagem
das fichas. Mais do que em Nice. Mais do que em Monte Carlo,
onde só se ouve as fichas quando se quer. Para exprimir esse
ruído seria preciso inventar, como Aristófanes, uma série de
onomatopeias sem sentido. É uma eterna e irônica música, uma
cavatina diferente e cínica.[5]

As vigarices, o roubo, a falência, a própria morte podiam estar


incrustados nesse barulho, como a doença estava por baixo do
ritmo festivo, inclusive o lençol subterrâneo de treponemas e
gonococos, subprodutos do prazer. Muita gente ia aos banhos
sulfurosos para dar mais eficácia ao tratamento pela famosa injeção
antissifilítica “914”, o neosalvarsan que reinava na terapêutica com
as suas ampolas solitárias e avantajadas, em caixinha própria. De
fato, aqueles rapazes brilhantes, circulando nos cassinos e
dançando com alegria, eram muitas vezes poços de moléstias do
sexo, prontos para transmiti-las gentilmente às esposas e amantes
conquistadas nos passeios e nas festas. Mas nesse setor João do Rio
passa discreto, deixando a carga para as entrelinhas que o leitor do
tempo decifrava sem dificuldade, ao ler trechos como um dos
citados acima (com alusão à luxúria), ou aquele outro onde um
correspondente descreve os médicos enfileirando para a injeção os
inumeráveis doentes do mesmo mal.
Porém, o que avulta no livro é a euforia de superfície, a luta pelo
amor, o dinheiro, o sucesso mundano em compasso de comédia,
no quadro da incomparável natureza caldense, muito bem descrita
neste romance marcado pela topografia, o sentimento dos lugares
e até os itinerários, não faltando um relato movimentado e
interessante sobre a viagem de trem. Estão presentes a chuva
manhosa de março, naquele tempo o mês supremo da estação; o
inesperado frio dos 1200 metros de altitude; os pinheiros hoje
desaparecidos; as manhãs “de azul e prata” e o encanto do “célebre
luar de Poços, de uma doçura de lírios diluídos”, segundo um
missivista.
Aí se desenrolam os problemas de cada um, criando em número
relativamente pequeno de páginas uma narrativa atraente, que o
leitor apreciará melhor se fizer (como deve) duas leituras, porque
na segunda já estará familiarizado com a identidade dos
personagens e poderá apreciar a eficiência com que João do Rio
varia o tom de um e de outro.
O livro é apenas agradável, mas o senso das desarmonias
compensa de certo modo a sua frivolidade. O tom narrativo é bom,
mesmo levando em conta certos defeitos de linguagem, como o
lusitanismo do vocabulário, desnecessário e quebrando a
naturalidade que João do Rio queria alcançar. Esse lusitanismo se
explica não só pela influência dos escritores portugueses, então na
mais alta voga, mas pelo desejo de estabelecer maior comunicação
com a colônia portuguesa, à qual o nosso autor era muito ligado; e
quem sabe também com o público de além-mar, onde estavam
alguns dos seus editores. Assim é que usa os detestáveis “mamã” e
“papá”, que nunca ninguém usou no Brasil a não ser certos
escritores desfrutáveis daquele tempo; assim é que chama a sala de
jantar, “casa de jantar”, o carro de cavalos, “tipoia” ou “trem
d’animal”, o trem de ferro, “comboio”, o terno de roupa, “fato”, e
outros que tais. Mas no geral o estilo fluente de cronista e a
capacidade de se interessar pelo real tornam a leitura fácil e
compensadora.
A técnica epistolar era pouco usada nas literaturas do tempo,
como ficou dito, depois de ter tido o seu grande momento no
século XVIII e algum relevo no seguinte. Na literatura brasileira,
antes do romance de João do Rio, só lembro o de Júlia Lopes de
Almeida, Correio da roça, publicado em 1914.
Os que estudaram esta modalidade narrativa indicam entre as
suas características a proximidade maior com o leitor, que parece
estar vendo a realidade se formar à medida que o missi­vista
escreve. Isto ajudaria a verossimilhança, porque o missivista é uma
espécie de testemunha fidedigna da informação. Quando ele é
apenas um, como no Werther, de Goethe, a revelação da sua
personalidade pode ser mais profunda; quando há troca de cartas,
como em Gente pobre, de Dostoiévski, estabelece-se uma dualidade
de visão que ilumina os fatos narrados; quando os correspondentes
são muitos, como n’As ligações perigosas, de Laclos, forma-se um
contraponto de perspectivas.
Entre as diversas modalidades de narrativa epistolar (um
estudioso chega a identificar doze), a escolhida por João do Rio é
das mais raras: diversas pessoas escrevem a amigos que não
respondem. Mais raro ainda, se não único, é o truque de
verossimilhança do desfecho: as cartas não foram enviadas, porque
um empregado maluco do Grande Hotel as reteve… Com isso o
autor tencionava certamente dar uma nota realista, explicando
como aquele material todo permaneceu reunido, indo cair afinal
nas mãos de um dos missivistas, que o remete a Godofredo de
Alencar, personagem-heterônimo em vários escritos de João do
Rio, como se sabe.
Não havendo primeira pessoa privilegiada que escreve, nem
editor fictício que organiza as cartas e pode manifestar-se sobre
elas no prefácio ou nas notas, este livro é um exemplo puro de
técnica epistolar funcionando pela própria força: têm a palavra
apenas os missivistas. E como eles são treze, pertencentes a
diversos tipos humanos e sociais, resulta um contraponto animado
e vário, que mostra a vida excepcionalmente diversificada da
estação de águas, por meio da pluralidade de focos. E ainda: visto
que mais de um missivista alude às mesmas pessoas e aos mesmos
fatos, nós temos um enriquecimento de visão, pois os ângulos são
múltiplos em relação ao mesmo objeto. Assim, a jovem grã-fina
Olga da Luz se julga amada sinceramente por um Olivério Pereira
emocionado e discreto; este, por sua vez, revela a frieza calculista
da sua estratégia de caça-dotes, tratando o casamento como um
trunfo; os concorrentes suplantados o veem como aventureiro sem
sentimentos, além do mais ferindo o bairrismo paulista, porque vai
levar para o Rio a bela herdeira; d. Maria de Albuquerque vê tudo
com a bonomia de velha senhora da sociedade que sabe avaliar a
função convencional do casamento no equilíbrio burguês — e
assim por diante.
Essa visão múltipla era novidade na literatura brasileira do
tempo. João do Rio a manipula bem, elaborando uma espécie de
contraponto narrativo anterior à difusão desta técnica na literatura
contemporânea. Com isso quebrou a rotina, e esta escolha deve ter
nascido duma espécie de combinação espontânea das suas próprias
variedades: a qualidade de jornalista convencional; de repórter
curioso dos grupos e tipos sociais; de deslumbrado cronista
mundano; de contista atraído pelas situações estranhas; de autor
teatral sensacionalista; de escritor de fôlego curto, mais ajustado
aos quadros restritos. N’A correspondência de uma estação de cura
parecem combinadas estas várias faces, ajudadas pela capacidade
imitativa, que nele chegava ao plágio e se ajeitava bem à
necessidade de variar a expressão segundo o missivista. Por ser um
ponto de encontro dos aspectos de João do Rio, este romance
funciona bem, somando de maneira coerente as suas qualidades e
os seus defeitos.
Apesar de esta opção pela narrativa epistolar não decorrer de
uma verdadeira consciência técnica, é fora de dúvida que João do
Rio percebeu a originalidade com que estava inovando no
ambiente literário do Brasil daquele tempo. É o que se vê no artigo
com que respondeu aos reparos de Viriato Correia, que apesar de
simpático, o censurava por não ter feito narrativa unificada (de tipo
realista convencional).[6]
Ora, foi a narrativa plural, descontínua até certo ponto, que
assegurou a eficiência do livro. Esta não provém da descrição física
da cidade, nem da descrição social dos banhistas — ingredientes
essenciais, mas não fator decisivo. O fator decisivo é a técnica
epistolar, que divide a visão segundo cada missivista e multiplica a
penetração no real, encarnando em nível literário a verdade
profunda da estação de águas como era — lugar onde a
promiscuidade febril conservava o toque de mistério das relações
novas, em situações cheias de inesperado, de dúvida quanto à
intenção das pessoas e ao significado dos seus atos. Cada missivista
desmascara o outro, mas todos estão mascarando por meio do
outro a sua própria realidade. O jogador profissional se apresenta
como desinteressado amigo, quando na verdade articula golpes; o
aventureiro que vive de expedientes age com ar de dedicação, mas
o que quer é dinheiro. Neste livro, pode-se dizer que a felicidade
do método é superior à relativa banalidade do tom e da visão de
mundo.
A correspondência de uma estação de cura não foi praticamente
levado em conta pela crítica, no momento da publi­cação e depois.
Viriato Correia no artigo citado (que só conheço pelas indicações
de Raimundo Magalhães Júnior) tratou-o bem, embora cobrando o
afastamento da norma realista. Pelo mesmo motivo entre outros,
trinta anos mais tarde Lúcia Miguel Pereira o desqualificou
drasticamente, como exercício superficial que não chegava ao
estatuto de obra de ficção.[7] Mas nada igualou a incompreensão
agressiva de Monteiro Lobato numa resenha de 1918, onde mostra
má vontade cheia de preconceito, citando frases soltas para
distorcer o sentido e sugerir uma tolice que não há no texto, além
de descer a alusões racistas, numa grosseria tacanha que contrasta
com o lado generoso do seu caráter.[8]

10. Erico Verissimo de 1930 a 1970


Nas últimas páginas d’O resto é silêncio, há uma espécie de
simultaneidade dentro do simultâneo. O livro retomara a técnica
de contraponto usada alguns anos antes com maestria em
Caminhos cruzados. No final, o romancista faz uma espécie de
chamada dos personagens, em torno da execução da Quinta
sinfonia de Beethoven no Teatro São Pedro de Porto Alegre.
Culminando a tentativa de fixar no relato a simultaneidade
presente (o que é de certo modo espacializá-la), eles são postos
lado a lado no mesmo momento e no mesmo lugar, os seus fluxos
de consciência e os seus problemas se cruzam, alguns dos seus
atos se misturam, outros apenas se justapõem, mas todos vivem os
mesmos instantes. E nessa apoteose da sincronia, um dos
figurantes, o escritor Tônio Santiago (talvez um porta-voz, ou alter
ego do autor), tem uma espécie de fulgurante visão diacrônica. Ao
som de uma partitura tradicionalmente associada ao Destino, ele
imagina o destino do seu Estado, ao imaginar as raízes longínquas
dos ouvintes reunidos no teatro; e recapitula uma série de etapas e
paisagens, cuja concatenação o enche de confiança.
Para quem leu, anos depois, o primeiro volume da série O tempo
e o vento, este final de romance ficou parecendo uma espécie de
programa do romancista, uma primeira ideia ou uma primeira
comunicação ao público do projeto de saga rio-grandense que
haveria de representar a culminação de sua obra.
Mas o que interessa agora é apenas verificar o brusco lampejo
de sucessão temporal no momento onde parece triunfar a
dimensão por assim dizer espacial, para concluir que na obra e na
própria visão ficcional de Erico Verissimo há uma espécie de jogo
fecundo entre ambas, pois são possivelmente dois eixos da sua
sensibilidade. Com efeito, elas representam, de um lado, o desejo
de descrever a vida como ela é num instante único do tempo,
multiplicada por todos que a vivem; de outro lado, representam o
desejo de entender de que maneira os atos dos homens se
engrenam com o que veio antes e o que virá depois, levando o
observador a pensar nas sequências longas, não nos momentos
limitados.
O seu primeiro livro, Clarissa, focalizava uma menina e os que
se relacionavam com ela. Quase todos aparecerão em outros livros,
e alguns em quatro deles, mostrando da parte do escritor o intuito
de acompanhar os fios verticais da vida, de observar como o tempo
age e transforma os indivíduos. Mas Caminhos cruzados se voltava
para os fios horizontais, para o entrosamento ou a simples
justaposição dos destinos num fragmento insignificante do tempo.
Mostrando o intuito de observar a variedade fabulosa do real e
constatar o que há de fortuito, de inexplicável, nas vidas
contempladas ao acaso.
Se n’O resto é silêncio o devaneio do personagem mistura as duas
linhas, é porque a técnica do romancista já tinha amadurecido a
ponto de jogar livremente com ambas e fazê-las convergir para
uma visão mais completa do real, como se veria na composição
impecável d’O continente, que parece realizar a visão de Tônio
Santiago. E é interessante notar que a metade inicial de Olhai os
lírios do campo constitui a primeira tentativa de combinar os dois
eixos (sincrônico e diacrônico) no plano da narrativa: enquanto o
protagonista vai de uma estância a Porto Alegre, tentando alcançar
ainda viva no hospital a mulher que amou e abandonou, o narrador
intercala a história da sua vida até o momento exato da ação
presente, de modo que o eixo do passado venha se dissolver no do
presente.
O continente (e depois, com menos êxito, O arquipélago) é
construído segundo esta projeção de um eixo sobre o outro, que
faz a ação atual inserir-se na continuidade do tempo histórico. Mas
para ele, ao contrário de Olhai os lírios do campo, o romancista
transpôs de Caminhos cruzados o enfoque no grupo, mais do que
no indivíduo. O desejo de optar pelo cole­tivo em relação ao
individual se combina agora, todavia, ao senso penetrante dos
destinos individuais apreendidos na sua totalidade, de tal forma
que cada personagem é ele próprio, mas também um elo na
história da família, enquanto esta, por sua vez, é um elo na história
da província.
O paradoxo aparente (isto é, enxerto de uma técnica da
simultaneidade no fluxo linear do tempo histórico) se justifica por
essa perspectiva recíproca entre pessoal e social. Talvez a
eminência d’O continente na obra do autor seja devida em grande
parte a motivos de ordem técnica, representando a fusão das suas
obsessões com as suas melhores experiências artesanais. O
indivíduo e a sua história pessoal; a interferência ou a coexistência
das histórias pessoais; o grupo como trama de histórias pessoais; a
história como destino dos grupos.
Essas perspectivas e opções técnicas pressupõem uma
concepção do homem e da arte literária. Pressupõem, talvez, a
vontade de testemunhar, mais do que simplesmente narrar; de
apreender o sentido dos atos, mais do que apenas descrevê-los,
captando os nexos à primeira vista inexistentes no acaso do
contraponto humano, até transformá-los pouco a pouco numa rede
interdependente de significados.
Sob este aspecto, Erico Verissimo é um escritor marcado pelo
decênio de 1930. Decênio onde ele se definiu como autor e os da
minha geração se definiram como seus leitores. Decênio a cujas
inquietudes ele se manteve singularmente fiel, sem prejuízo de
toda a evolução da sua arte; e cujo espírito aparece transfigurado
no romance com que abriu corajosamente a sua atividade neste
decênio de 1970: Incidente em Antares.
Em 1930 nós vivemos o problema do Realismo, ou
Neorrealismo, socialista ou não, bem como a incorporação daquilo
que as vanguardas do decênio anterior tinham proposto como
inovação. Vivemos um grande surto do romance, ligado aos pontos
de vista postos na moda pela sociologia e a antropologia, como um
triunfo do social contraposto às tendências espiritualistas e
religiosas. Houve dilaceramentos e disputas, com a formação de
um antipolo metafísico e as mais rasgadas polêmicas que marcaram
todos nós. Quando comecei a fazer crítica literária, pouco depois
de 1940 (auge do Estado Novo, da censura e do arrocho), senti que
uma das tarefas era fornecer blindagem ideológica para os
romancistas mais significativos do decênio de 1930 — coisa que
hoje há de parecer incompreensível, pois eles se tornaram
incorporados aos hábitos de leitura como coisa óbvia. Mas basta
lembrar a vigorosa e não raro brilhante campanha de um escritor
de direita, Otávio de Faria, contra eles e os modernistas de 1922.
Basta lembrar as celeumas levantadas pelo clero de então e pela
opinião bem-pensante. O próprio Erico foi atacadíssimo no seu
estado pelos porta-vozes de uma potente ordem religiosa, lá por
1943 ou 1944; e eu lembro de ter escrito a seu favor um artigo de
blindagem que não pôde ser publicado, porque (nada é novo) havia
autocensura nos jornais e o redator achou melhor não arriscar.
Naquele tempo, 1930 e 1940, alguns modernistas se
empenharam a fundo na reflexão ideológica ou mesmo na ação
política, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade. E isto nos
aproximava deles, porque o nosso entusiasmo pela Semana de 1922
era em parte devido ao fato de terem esses próceres feito
semelhante evolução; e ao fato de se ligar ao espírito deles o
grande poeta político que foi naquele momento Carlos Drummond
de Andrade, um de cujos livros, Sentimento do mundo, teve de sair
em edição restrita e privada, e cujos poemas posteriores sobre
matéria social circulavam datilografados. Talvez tenhamos até
ficado mais com o modernismo como crítica do que com o
modernismo como invenção. O primeiro afastamento em relação a
esta perspectiva foi o dos poetas da chamada “geração de 1945”,
que atacavam os homens de 1922 por motivos estéticos, como
quem já não está mais interessado no radicalismo que julgávamos
inseparável da verdadeira literatura naqueles decênios radicais de
1930 e 1940.
A eles, como disse, Erico Verissimo está ligado por algumas das
suas (nossas) mais constantes preocupações. Inclusive as que se
tornaram bastante superadas, seja na sua essência, seja na maneira
de serem propostas, como é o caso dos dilemas arte ou vida; beleza
ou verdade; contemplação ou participação. Todos sabíamos, é
claro, que não há oposição real e que um polo tende a completar o
outro; mas na prática havia uma espécie de opção latente, que
levava, sendo preciso, a tender ao segundo termo de cada um dos
pares mencionados. O decênio da depressão econômica, das
agressivas vanguardas artísticas, do dilema fascismo ou comunismo,
da vacilação e do acovardamento da democracia — gerou uma
espécie de estética anestética, que nos marcou profundamente e
transparece nas concepções de Erico Verissimo.
N’O continente, bem no começo, o missioneiro Pedro, acolhido
pelos Terras, os surpreende e perturba com a sua flauta, a sua
imaginação mística, o colorido das suas histórias. Os pioneiros
ásperos resistem, sentindo-se talvez obscuramente ameaçados por
essa invasão de gratuidade no meio da sua faina. E há um
momento, depois de o missioneiro Pedro ter contado a história da
mulita que deu leite ao Menino Jesus, em que o patriarca observa:
“Bobagens […]. É uma história que nunca sucedeu”. Mas a mulher
emenda:

— Pode ser bobagem […]. Mas é bonito.


— E sem serventia, comentou o marido, sem serventia como
quase tudo que é bonito.

Esse remorso por mergulhar na beleza, com a disposição


consequente de só aceitá-la se vier justificada por uma razão de
ordem prática, uma “serventia”, é típico do decênio de 1930 e
entra como componente na ficção de Erico, influindo porventura
na sua escolha da técnica de contraponto, que permite traçar os
panoramas sociais e desenhar o retrato complexo dos grupos.
Note-se que, enquanto o praticante para nós mais famoso dessa
técnica naquele tempo, Aldous Huxley, usou o corte horizontal
para descrever a vida de um grupo restrito das classes privilegiadas
da Inglaterra, Erico a democratizou de certo modo, ajustou-a ao
espírito de 1930, ao incorporar tanto o rico quanto o pobre e assim
transformar a amostra em sondagem. N’O continente, o terceiro
estrato da narrativa é formado pelos comentários líricos em grifo,
no fim de cada capítulo. É uma espécie de presença do coro
anônimo, e este é composto pelo deserdado, o miserável, o
explorado, introduzindo o povo ao lado das classes que têm
história e amainando, por meio da face comum dos inominados, a
forte individualização dos atores principais.
Em quase todos os livros de Erico há um ou mais de um
personagem raisonneur, geralmente escritor ou intelectual com
força suficiente para debater. Em Caminhos cruzados e Um lugar ao
sol, esta função é atribuída ao par Fernanda-Noel, que encarna os
dois polos mencionados mais acima: Noel, sonhador, seduzido
pela beleza e a gratuidade; Fernanda, prática, puxando-o para os
problemas feios da vida. Quando ela fala, parece-nos entrar no
cerne da estética anestética dos anos 1930:

Que importa que um romance tenha arte se não tem


humanidade? O que importa é a humanidade.
[…]
Ninguém bocejará se você fizer uma história humana. Deixe
de literatura. Faça um romance moderno.
[…]
O romance deve ser um hino… hino não, é um termo muito
convencional, deve ser uma exaltação da coragem, do espírito
de camaradagem. Deve ser uma esperança de dias melhores
para os que sofrem e para os que lutam… E deve também ser
um libelo… […] aos que por egoísmo, por descuido, por
ganância ou por qualquer outra razão não compreendem que
todos têm direito de viver decentemente…

Mas para Noel o Realismo parece “uma traição ao seu sonho de


arte”.
Esses problemas de opção aparecem nos outros livros e são
formulados longamente pelo escritor Tônio Santiago n’O resto é
silêncio. Mas talvez eles ganhem sentido forte quando são
propostos num contexto ligado diretamente à vida política, como
em Saga ou nas duas partes finais d’O tempo e o vento, sobretudo O
arquipélago, marcado pela presença do fascismo e do comunismo,
da ditadura e do liberalismo. O escritor Floriano Cambará, filho do
segundo Rodrigo, desempenha nele uma função meio coral, que a
coletividade dos deserdados desempenhava n’O continente. O seu
“Caderno de pauta simples”, em grifo, é uma espécie de
consciência dele e do grupo, e ali encontramos uma das expressões
mais completas que o sentimento de culpa no intelectual não
participante encontrou na obra de Erico. Ele se acusa por ter
ficado tomando sol em Copacabana, enquanto a miséria grassava à
roda e a ditadura se instalava. Era novembro de 1937, quando
ocorreu o golpe que estabeleceu o Estado Novo, e na praia uma
americana lhe pergunta por que tudo aquilo acontecera sem
violência nem sangue:
Então eu, de olhos semicerrados, acariciando os ombros da
rapariga, murmurei com sorriso preguiçoso: “é muito simples,
darling. O brasileiro é avesso à violência”. E passamos a outros
assuntos. No entanto, é bem possível que naquela mesma hora
os “especialistas” da Polícia estivessem aplicando nas suas
vítimas os seus requintados métodos de tortura. Tu ouviste falar
neles… Arrancavam as unhas dos prisioneiros com alicates…
esmagavam-lhes os testículos com martelos… aplicavam-lhes
pontapés nos rins… Sim, e metiam buchas de mostarda nas
vaginas das mulheres dos prisioneiros políticos, ou então as
sodomizavam na frente dos maridos… Nós, os moços da praia,
ouvíamos falar nessas brutalidades da Polícia, mas preferíamos
achar que tais rumores não passavam duma mórbida ficção,
produtos dum sinistro folclore em processo de formação…
Recusávamos aceitar essa realidade não poética.

Os que leram e escreveram em 1930 e 1940 encontrarão aqui,


de maneira grave e penetrante, um dos temas da geração, elevado a
paradigma por uma crônica famosa de Genolino Amado, “Os
inocentes do Leblon”, e um poema homônimo de Carlos
Drummond de Andrade:

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo bom
que eles passam nas costas, e esquecem.

E assim se criou na literatura daquele tempo uma espécie de


waste land carioca, a dos “moços da praia” de Erico, símbolos de
uma mentalidade de burguesia colonial eufórica e incon­sciente,
que parecia aos escritores a própria maldição da inteligência. Por
isso, compreende-se ter havido tamanha tensão, que parece falsa
vista de hoje, entre beleza e verdade, fruir e agir etc. E
compreende-se que Erico tenha ficado com uma desconfiança
invencível e injustificada ante os escritores mais requintados, que,
encontrando no discurso a sua justificativa mais alta, pareciam não
enfrentar os problemas do mundo, preferindo os primeiros termos
das nossas mal formuladas antinomias. Na sua obra há uma espécie
de curioso ciclo anti-Proust, que ainda no último romance,
Incidente em Antares, aparece ao lado de Joyce e Kafka num
contexto nitidamente satírico. E já numa palestra de 1938 Erico
falava dele como de um mal a que felizmente escapara,
manifestando o espírito de 1930, participante, realista e social:
“Corri o perigo de ficar sendo o resto da vida um introvertido, uma
espécie de Marcel Proust (em imitação Sloper, é claro…)”.
Essa palestra, “Confissões de um romancista” (publicada no
livro As mãos de meu filho), não apenas dá indicações que permitem
ligar à biografia do nosso autor algumas atitudes assumidas pelos
personagens e algumas características da obra, mas ajuda a
esclarecer a natureza das relações entre arte e moral, que influiu na
sua opção por um estilo não artístico, comparado por ele à roupa do
homem bem-vestido, que não se nota. Do mesmo modo, o escritor
que preferiu dar relevo maior à vida disfarça seus recursos e parece
estar escrevendo casualmente; e assim vemos como se chega a um
tipo de atividade estética a partir de uma disciplina de ordem ética,
para a qual Erico orientou inclusive os pendores de ironia e
ceticismo que o impediram de se tornar um fanático do que quer
que seja.
Um empenho ético tão pronunciado não poderia deixar de
conduzi-lo aos problemas maiores da sociedade, como os da
miséria e do desamparo, que sobressaem em Olhai os lírios do
campo, mas ocorrem em quase todos os seus livros, sobre o baixo
contínuo da revolta contra a desigualdade econômica. Inseparável
deles, surge o problema da violência na vida individual e na vida
social, como preocupação constante que faz frequentemente da
sua obra uma espécie de celebração horrorizada da brutalidade.
Sob este aspecto, ela representa uma verdadeira premonição, como
se desde os anos de 1930, e sobretudo a partir d’Um lugar ao sol,
ele sentisse qual era o papel que ela viria a ter nos nossos dias.
Nos primeiros livros ela aparece menos, e talvez esteja latente
por contraste na preocupação com o homem inerme, posto à
margem pela aspereza da vida, como os da galeria de Caminhos
cruzados, desde o esmagado Maximiliano até os sonhadores,
pobres como João Benévolo, ou ricos como Noel. E é curioso que o
personagem masculino tratado com maior carinho pelo escritor na
primeira fase da sua obra, Vasco, seja um violento que rejeita a
violência e prefere escapar pela arte, até o dia em que se alista
como soldado, na Guerra da Espanha, para usar a violência contra
as suas formas piores.
Neste domínio, uma constante na obra de Erico é o
caudilhismo gaúcho, que ele incorporou à nossa literatura de ficção
e cujos costumes de brutalidade já horrorizam Clarissa em Música
ao longe:

Ora, preleções cívicas! Os coitadinhos não entendem nada


desses assuntos de pátria, de bandeira, de civismo. O que eles
querem é brincar. Não se devia meter nas cabecinhas deles
essas histórias de guerras. Porque eles vão aprendendo que
matar e ser valente é muito bonito e muito bom. Quando
ficarem grandes acabam degoladores como muitos que conheço
aqui na minha terra.

Esta página do seu diário de professorinha reflete o que


observou em casa, onde aparecem para visitar uns “senhores
graves, de cabelos brancos, com caras carrancudas ou sorridentes,
falando com toda a gente, respeitados por todos”, mas que podem
provocar o seguinte comentário: “Esse é um bandidão de marca
maior. Um dia em 93 mandou degolar cinco homens na fazenda do
Jacó Alemão”. O que leva o dono da casa a dizer “com ar de
repreensão”:

— Sim, titia, mas ele é macho! No combate da Praça do Conde


terçou armas com dois federalistas e derrubou os dois. Que ele
é macho, é mesmo!

E vêm outras histórias. Revoluções, combates nas coxilhas


abertas, no inverno, o minuano cortando como navalha e
gemendo como um ferido abandonado no campo. Entreveros,
correrias, cabeças esfaceladas, cavalos com a boca espumando.
Cargas de cavalaria, o barulho das patas, os urros dos
guerreiros. As lagoas que se tingem de sangue. Lenços
vermelhos e verdes. Lanças enristadas, palas voando. E
combates, e mais combates. E nomes, coronéis, generais,
soldados. E outros degolamentos. E frases de entusiasmo:
“Aquilo é que era homem, seu!” “Macho legítimo!” “Índio
taura!”.

Este trecho corresponde a uma das matrizes da obra de Erico,


um dos seus focos obsessivos, que o levará, em quase todos os
livros, a traçar retratos impiedosos de velhos caudilhos
aposentados, e o levará também a refazer a história do Rio Grande
do Sul através da ficção n’O tempo e o vento.
O caudilho é feroz, mas tem uma razão de ser histórica. A
violência é atroz, mas pode combinar-se tanto com o bem quanto
com o mal. Como? Por quê? A resposta está na vida dos Amarais e
dos Cambarás, dos Campolargos e dos Vacarianos, tanto os
pioneiros que conquistam e defendem a terra quanto os coronelões
que a desfrutam e oprimem, ou os doutores e negocistas que saem
deles para levar a sua marca à política do Estado e da nação.
Eles se parecem bastante uns com os outros, porque
correspondem a fixações humanas e estéticas. Há até uma certa
indeterminação que dissolve os indivíduos na categoria, como o
uso flutuante do nome descritivo Campolargo, equivalente a um
símbolo do espaço gaúcho. Na cidade de Jacarecanga, de Vasco e
Clarissa, há um decrépito general Justiniano Campolargo, tirano
local e degolador emérito que, todavia, se torna Chicuta numa
pequena macchietta incluída n’As mãos de meu filho. E, no Incidente
em Antares, Campolargo é nome de um clã de “pica-paus”,
aparecendo vários deles, que nunca são Justiniano nem Chicuta; e,
aliás, a cidade é outra. A fixidez do nome na variação dos
personagens, do tempo e do lugar revela o caráter quase simbólico
e o desejo de estabelecer o tipo social, que n’O resto é silêncio se
chamará Quim Barreiro e será um antigo caudilho de Santa Marta
fenecendo em Porto Alegre.
Esses guerreiros que dominam municípios durante trinta anos
mandam marcar a ferro os desafetos, degolam os inimigos,
ameaçam castrar as autoridades, entram pelas terras dos outros e
arrebanham gado alheio, formam uma espécie de casta soturna e
pitoresca na obra de Erico Verissimo, que se ocupa em
acompanhar a sua decadência e a sua ressurreição nos filhos
urbanizados, adaptados às mudanças para continuarem a mandar
de outro jeito. Homens ainda abrutalhados e rurais, como Tibério
Vacariano (Incidente em Antares), ou refinados, como Aristides
Barreiro (O resto é silêncio), ou, sobretudo, o segundo Rodrigo
Cambará (O retrato e O arquipélago) — que acertam o passo com a
sinuosa música política posterior a 1930.
De certa maneira, O senhor embaixador é uma extensão desse
tipo na escala continental, e todos formam uma galeria curiosa de
ativistas gonádicos, parecendo condensar nas funções do sexo
certa vitalidade misteriosa que o transcende, para se confundir
com a espécie de princípio vital, cuja representação simbólica é o
retrato de Rodrigo Terra Cambará, feito num momento de
inspiração pelo pintor Don Pepe.
Neste sentido, o próprio nome Terra e sua mais alta
representante, Ana, seria outro elemento simbólico dessa energia
perturbadora que o romancista procura exprimir através do ritmo
histórico de seus caudilhos e políticos, de seus amorosos e
guerrilheiros. À medida que a obra caminha, vai se acentuando
nela uma sorte de exaltação fálica, que coroa a guerra e a violência,
mas também a fecundidade e a criação. Uma espécie de ilusão
etrusca, no sentido de D. H. Lawrence, aliás, evocado por um dos
personagens d’O arquipélago para explicar como força vital
genérica a virilidade tumultuosa do segundo Rodrigo.

Entende-se, por isso, que o romancista tenha usado a Morte


como suprema sátira às formas corruptas de vida. Ela tem na sua
obra uma presença frequente, à medida que a exacerbação da vida
também cresce, através do sexo e da continuidade das gerações. A
história da província se desenrola, em parte, como hecatombe;
mas a morte que aparece no último romance vem coberta de riso,
ironia e sarcasmo dilacerante, porque envolve as formas mais
torpes e negativas da violência: as da tortura política.
N’O retrato, o pintor Don Pepe acha que a imagem que fixou de
Rodrigo, pela altura de 1910, correspondia a um homem iluminado
pela sede total da vida. Mas este homem mudou e deixou de
equivaler à própria imagem. Portanto, traiu a verdadeira natureza
que o retrato surpreendera. Então o espanhol sentencia: “Vou
dizer-te um segredo, Cuca. O tempo é como um verme que nos
está roendo despacito, porque é do lado de cá da sepultura que
nosotros começamos a apodrecer. Não te iludas. Já estás metade
podre, Cuca. Eu também”.
Por vários ângulos (sobretudo na primeira parte) Incidente em
Antares recapitula satiricamente alguns dos romances anteriores,
sobretudo O tempo e o vento, numa espécie de paródia do
romancista a si mesmo. E culmina com a visão dos vivos pelos
mortos, de maneira a formar um cruzamento moral: os mortos se
decompõem fisicamente e o seu mau cheiro sufoca a cidade; mas,
do coreto da praça, desvendam uma realidade que faz os vivos
parecerem mais decompostos do que eles, com um mau cheiro de
consciência pior que o deles.
E aqui a violência perde qualquer conotação positiva, não é mais
como a dos velhos caudilhos que jogavam a vida. É a brutalidade
sistematizada, transformada em instrumento de uma classe que
finge renegá-la, mas alicerça nela os seus privilégios. A tortura
policial, cuja descrição cresta a ironia do livro e desfaz o riso a cada
instante, atinge indiscriminadamente, pois sua força consiste na
cegueira com que estabelece o terror. Os privilegiados não a
praticariam, evidentemente, com as próprias mãos; mas não a
dispensam e, pelo contrário, a encorajam. A denúncia moral dos
mortos insepultos se torna denúncia política, nesse acontecimento
fantástico de um 13 de dezembro, acrescentando uma dimensão
profunda à fábula admiravelmente arquitetada por Erico Verissimo.
No mundo dos vivos estão os moralmente mortos; os que
aceitam tudo para garantir os próprios interesses e, no romance,
estão à espera de um definitivo golpe salvador que acabe com as
greves e assegure as posições (o ano do incidente é 1963). Nas
árvores, os jovens se solidarizam com os mortos, não com os vivos.
E, na atmosfera mágica do insólito, o bisturi finíssimo do autor vai
recortando em molde realista a figura da verdade, com a mesma
coragem serena, o mesmo engajamento desencantado e firme, a
mesma crença irônica e inabalável dos seus livros precedentes, que
vieram marcando, de 1930 a 1970, o caminho do humano, nunca
demasiado humano.

11. Mestre Alceu em estado nascente


O livro Afonso Arinos, editado em 1922, foi o primeiro de Alceu
Amoroso Lima e interessa ainda hoje não apenas pela qualidade,
mas pelo que revela do autor, naquela altura um jovem intelectual
começando a fazer nome.
Muito bem escrito, com a fluidez clara que ele conservaria pela
vida toda, é excepcional para o tempo e com certeza a melhor
monografia de escritor até então publicada no Brasil. Sobretudo
pelo travamento das ideias, que fazem dele, harmoniosamente, um
estudo de personalidade, uma análise de corrente literária, uma
vista sobre a literatura brasileira e um exercício de método.
No prefácio Alceu caracteriza a sua posição crítica como
“expressionista”, decerto a partir do conceito de “expressão” de
Benedetto Croce, em cuja obra foi buscar a epígrafe e que
privilegia como teórico. Mas é necessário prestar atenção na
maneira pessoal com que é manipulado o famoso conceito.
Para Alceu, “expressionismo” define um modo de penetrar
afetivamente na obra para apreender o seu “espírito”, através do
qual o crítico poderá chegar à “alma do autor”, isto é, identificar-se
o quanto possível a ele, a fim de verificar em que medida se
exprimiu, ou expressou o seu modo de ser mais íntimo,
nascedouro de tudo. Por isso, é requisito pôr em movimento a
“alma do crítico”, da qual depende a capacidade de penetração
afetiva. Esta se realiza por meio de uma “operação capital”, a
leitura, desdobrada em duas etapas: uma leitura “de prazer” e,
depois dela (depreendemos), uma leitura de investigação, “que
comenta e anota”. Deste modo Alceu faz a primeira tentativa
teórica de superar, no Brasil, as modalidades críticas anteriores,
que segundo ele partiam da inteligência reflexiva, não da
afetividade, e por isso ficaram no acessório, ou seja, coisas como as
“causas” ou “funções” da literatura, deixando escapar o essencial.
A crítica afetiva, nascida da intuição, pode chegar numa segunda
etapa a estes problemas, importantes, mas não principais. Para
Alceu, esta “crítica expressionista” aproveita meio ecleticamente
das outras o que for preciso, no momento adequado; mas supera
todas elas.
Tal precaução metodológica é importante, porque o
preconizado mergulho na “alma do autor”, através do “espírito” da
obra, tendo como estímulo o prazer da leitura e como guia a
intuição, não deve resultar em arbítrio impressionista, e sim numa
avaliação baseada no “estudo final e necessariamente objetivo da
obra”, inclusive através da manipulação dos aspectos propostos
pelas outras modalidades críticas, de vez que, situados no devido
lugar, eles podem servir como elementos de informação e
interpretação. Para percorrer este caminho o crítico precisa ser
artista, pois então alcançará a única modalidade realmente
“moderna”: uma crítica artística, cuja sugestão Alceu foi buscar
numa das cartas mais bonitas de Flaubert a George Sand.
Subentende-se que este “artístico” se aproxima do psicológico,
na medida em que é um jorro da “expressão”, isto é, se confunde
com o produto de um modo de ser transformado em manifestação
literária. A forma aparece como o produto linguístico dos impulsos
e intuições; uma forma, portanto, quase sem medida comum com
a dos formalistas.
Consequência do “expressionismo” é que, embora acentue o
caráter da literatura como arte, ele conduz na prática a uma
concentração no sujeito, cuja “expressão” se procura definir. Para
atingir a sua “alma”, importa mais a intuição sobre esta do que a
análise propriamente dita da obra, porque o objetivo real é uma
identificação afetiva crítico-autor. Por isso, consideradas de modo
estrito, as análises deste livro tendem a continuar o que se fazia
antes, isto é, transcrever textos para ilustrar uma argumentação em
torno, não uma descrição por dentro deles. Já aqui percebemos que,
apesar do extremo bom gosto e da capacidade segura de avaliar,
este grande crítico tinha interesse limitado pelo estudo da forma,
vendo no texto sobretudo uma descarga de significados.
Encarada como de certo modo idêntica à “expressão”, a forma
se confunde com os movimentos da “alma”, captados pela intuição
do crítico. E o livro de Alceu parece escorregar para a crítica de
fatores, que desqualificara em princípio, mas ressurge quando ele
vai buscar a matéria que foi “expressa”. Ora, como esta matéria é a
vida, ele começa por descrever a sensibilidade de Arinos e depois a
refere ao sertão onde se criou, para em seguida apresentar os
textos como resultado desta formação.
Mas note-se que, ao fazer isto, transforma e supera a velha
correlação determinista, porque recorre à psicanálise e define o
apego do escritor ao sertão como manifestação de uma dupla libido,
um de cujos aspectos, a “concupiscência da pequena pátria”, é
recalcado em benefício do outro, a “concupiscência do grande
mundo”, e se traduz como sublimação na obra sertaneja. Assim,
biografia e influência do meio são vistas de maneira nova, pois o
meio se torna algo interior e se traduz em forma, quebrando-se o
mecanicismo da crítica precedente.
A partir daí passa a outro nível e insere os textos num conjunto
maior: a literatura sertaneja, que estuda de modo realmente
magistral, com excelente informação e uma grande acuidade para
caracterizar as obras. Finalmente, enquadra as tendências
regionalistas na literatura brasileira, analisando a sua função — e
nessas macroanálises é inigualável. Afonso Arinos surge então
como um caso individual e, ao mesmo tempo, um momento do
processo literário. Parece, pois, que a “expressão”, estritamente
pessoal por sua natureza, ganha sentido maior e pode ser também
expressão de um país através da sua literatura.
Indo além da identificação afetiva, a investigação biográfica,
mais o estudo da articulação da personalidade com o meio, e da
obra com a literatura nacional, dão objetividade ao trabalho crítico
e superam o eventual impressionismo, que não passa de uma das
suas possíveis etapas. Ao longo do estudo Alceu mostra qualidades
críticas notáveis, a despeito do tributo pago a certas posições
negativas do tempo — como o excessivo recurso ao todo da
literatura para chegar a um autor; laivos de patriotismo
sentimental e a crença no caráter estritamente mimético do texto,
além da complacência com traços anedóticos.
Sob este último aspecto, talvez sejam criticamente sem
importância as referências ao convívio dele e da sua família com
Afonso Arinos; mas elas servem, em compensação, para mostrar
como via em profundidade a identificação do crítico com o autor
estudado. Verdadeiro feito, de grande rendimento interpretativo,
foi o mencionado recurso à psicanálise, através do conhecimento
de Freud e de Jung. Graças a esta visão (moderníssima para o Brasil
daquele tempo), ele não apenas comprovou, mas deu poder de
convicção à ideia de que a expressão se nutre da relação do escritor
com o meio formativo, e, como vimos, renovou o que fora um dos
cavalos de batalha do positivismo crítico.
Também do maior interesse é o movimento de carretilha com
que vai e vem de um autor ao conjunto da literatura brasileira,
analisando o seu grau de representatividade sem transformá-lo em
produto de um mecanismo externo, nem vê-lo como exemplo.
Graças a esta análise em duas escalas, que percorre todo o livro,
Alceu dá uma rara força expressiva à dialética do geral e do
particular, nódulo segundo ele do nosso processo literário sob as
espécies do cosmopolitismo e do regionalismo.
Este ponto de vista aparecerá nos seus escritos posteriores e já
tinha sido comentado nos artigos semanais com que iniciou em
1919 a carreira de crítico (reunidos no volume Primeiros estudos).
Em Afonso Arinos o sentimento das tensões é um elemento
constante de força crítica, pela capacidade que ele demonstra de
exprimi-las através de pares significativos. Alceu experimentou
como poucos, no mais íntimo do ser, a tensão Europa-Brasil, de
que Joaquim Nabuco lhe parecia o paradigma. E talvez tenha sido
ela que o guiou para penetrar no “espírito” da obra e na “alma” de
Afonso Arinos, pois este encarnava de maneira representativa o
jogo dos dois polos, que noutro nível são vistos também como a
oposição Cidade-Sertão.
Para Alceu esta era um dos motores da nossa literatura, e ele a
estudou mais tarde por meio da análise contrastiva de escritores
identificados a um polo em detrimento de outro, como Euclides da
Cunha e Machado de Assis, cujas posições caracterizaria num
estudo incorporado ao volume Três ensaios sobre Machado de Assis
(1941). Ao contrário do nacionalismo ornamental e provinciano,
dominante na época, ele não pregava a opção pelo polo regional,
por achar que ambos eram aspectos constitutivos de uma
realidade, segundo a qual podia ser mais fecunda ou mais oportuna
a manifestação, ora do cosmopolitismo, ora do regionalismo. E
ninguém situou melhor do que ele, até hoje, esta obsessão de que
não conseguimos nos desprender no trabalho crítico.
O livro inaugural já mostrava, portanto, a força de mestre
Alceu, que não cessaria de se construir e se reconstruir dali por
diante, percorrendo as mais variadas contradições, até se tornar
um dos maiores homens de pensamento e de militância
intelectual, além de uma das mais completas organizações morais
que o Brasil conheceu.

12. Fernando de Azevedo


A autora deste excelente estudo escolheu o caminho mais
difícil: não simplificar a personalidade de Fernando de Azevedo.[9]
É visível que ela o admira e que aprecia tanto a sua obra quanto a
sua ação, mas isso não a leva a ignorar as dificuldades teóricas da
sua posição, nem os elementos contraditórios que ela contém. O
resultado é um livro compreensivo e inteligente, solidamente
preparado e escrito com sóbria lucidez, do qual emerge o traçado
de uma das figuras mais poderosas que o Brasil teve neste século.
Maria Luiza Penna escolheu bons ângulos de visão e analisou a
obra educacional de Fernando de Azevedo com muita capacidade
interpretativa, produzindo o primeiro estudo sistemático sobre ele.
O impulso generoso que anima o humanismo de Fernando de
Azevedo é assinalado desde o título do livro, alusivo ao ânimo
transformador desse grande liberal que adotou a perspectiva
socialista em virtude dos problemas suscitados pela sua luta:

Não achou impossível, republicano e liberal, uma conciliação da


justiça social com a liberdade, do socialismo com as ideias e
instituições democráticas: nessa conciliação deverão
concentrar-se todos os seus esforços. (p. XXIV)

Inicialmente, a autora mostra a natureza do idealismo


pragmático de Fernando de Azevedo, que acreditava na força
predominante das ideias como fator de mudança social, mas não
separava a sua atuação das transformações simultâneas na esfera
econômica. A propósito, cita com pertinência um conceito de
Jorge Nagle, para quem a reforma dirigida por Fernando de
Azevedo no então Distrito Federal, entre 1927 e 1930, se distingue
das que foram empreendidas noutros lugares, no decênio de 1920,
pelo aspecto social. Para ele não havia reforma pedagógica pura,
isto é, mudança nos métodos e atitudes educacionais, pois esta
deveria pressupor uma visão nova das relações com a sociedade.
A preocupação com o social é um dos temas do estudo de Maria
Luiza Penna, que a focaliza de vários lados e procura mostrar os
seus aspectos por vezes contraditórios. É o que vemos, por
exemplo, nas observações sobre a escola comunitária segundo
Fernando de Azevedo, ou na análise do problema das elites, central
no seu pensamento. Nessa intrincada dialética, Maria Luiza Penna
vislumbra incoerências potenciais, inclusive quando, ao chegar às
consequências práticas, aos modos de atuar, assinala o conflito
entre a grande aspiração democrática e alguns traços autoritários
do reformador.
No entanto, a sua própria análise mostra como não havia, nele,
incompatibilidade entre a concepção de elite e a forte linha
democrática. Como não previa uma educação revolucionária, mas
sim a educação viável numa sociedade de classes e privilégios, o
seu esforço era assegurar o recrutamento mais amplo possível das
capacidades reais, a fim de que as elites se renovassem com base
nelas, em vez de se perpetuarem pelo privilégio. Bastante
impressionado pela “teoria da circulação das elites”, de Vilfredo
Pareto (muito em voga na sua geração), e pelas teorias do
“peneiramento” (que estudou em seu livro Sociologia educacional),
ele preconizava o máximo de mobilidade entre as camadas por
meio de oportunidades educacionais efetivas, o que permitiria
atender a um critério que por vezes chamava “biológico”, termo
que Maria Luiza Penna estranha com razão mas que, à luz dos
contextos, equivale a “pessoal”, “próprio de cada um”. Assim, a
educação democrática seria o advento da “carreira aberta ao
talento”, não a preservação das camadas de privilégio por meio de
uma instrução tradicionalista.
Maria Luiza Penna menciona diversas vezes as dificuldades
desta concepção. E embora reconheça o sopro de igualitarismo, o
profundo desejo de justiça social que há na obra de Fernando de
Azevedo, deixa claras algumas dúvidas quanto à solidez de
conceitos que repousam demais sobre a razão, vista como alavanca
mestra, na linha da tradição ilustrada. Ela sentiu bem que Fernando
de Azevedo foi sobretudo um herdeiro desta tradição, tendo
chegado ao socialismo pela coerência da luta, que lhe fez ver como
as reformas educacionais são precárias sem reformas sociais
concomitantes.
É preciso lembrar, como faz este livro com justeza, que ele não
foi propriamente um educador, mas um pensador que encarou a
educação à luz da política, afirmando que o necessário era uma
política educacional, não apenas a implantação de novas técnicas
pedagógicas (e é este o sentido da observação de Jorge Nagle). Isso
o levou a pensar a educação em correlação estreita com a
sociedade, segundo uma perspectiva tríplice.
Em primeiro lugar, procurou a base objetiva, estudando os fatos
educacionais como fatos sociais, conforme Durkheim, em cuja
obra foi iniciado nos anos 1920 por Júlio de Mesquita Filho e da
qual se tornou o principal expoente no Brasil. Daí resultou como
fruto maduro o livro que Maria Luiza Penna considera com razão o
mais importante que escreveu, Sociologia educacional.
Em segundo lugar, escolheu os métodos adequados à instrução
moderna, que levassem o imaturo a se integrar na escola como
grupo e a participar ativamente no processo de ensino e
aprendizagem. Foi o que encontrou nas teorias da chamada Escola
Nova, que adotou com vários outros educadores e pensadores
brasileiros do seu tempo, decorrendo uma posição a favor da escola
pública laica, científica e adequada a cada meio, sob a égide de um
pensamento geral unificador.
Em terceiro lugar, definiu uma política educacional efetiva,
dinâmica e renovadora, a ser implantada em todos os níveis dentro
das condições possíveis. Em fases sucessivas ele passou pelos três
níveis, primário, secundário e técnico, universitário, em posições
de liderança que assinalaram transformações profundas.
Ora, as referidas condições possíveis dependiam de beneplácito
governamental, estavam na dependência da política geralmente
interesseira e atrasada do Brasil, e o único recurso era penetrar
pelas brechas ocasionais. A luta de Fernando de Azevedo foi dura,
pertinaz, perigosa (pois rendeu inclusive atentados à sua vida), e
no seu decurso ele desenvolveu um senso de mando e decisão sem
os quais teria sido impossível mudar alguma coisa. Profundamente
político na visão geral, ele nada tinha de partidário, por isso
aceitou os vários tipos de regimes e governantes que dessem
oportunidade para realizar os seus ideais. O autoritarismo, que
Maria Luiza Penna focaliza como contrapeso da vocação
democrática, podia ser, na verdade, instrumento para realizá-la.
Tanto assim, que mais uma vez foi alijado sumariamente dos
postos de mando, por governantes que pareciam perceber, de
repente, a radicalidade potencial das suas posições.
Desenvolvendo um pouco certas premissas sugeridas por Maria
Luiza Penna, eu diria que estas e outras contradições inegáveis de
Fernando de Azevedo não eram apenas o sinal de sua
personalidade poderosa e complexa, mas o reflexo da sociedade
onde atuou. Ele foi o reformador “travado” (na boa expressão da
autora), porque agia com ímpeto renovador num meio social que
no fundo não queria renovar nada, mas apenas reajustar um pouco.
O seu drama foi o de todo homem de mentalidade transformadora
obrigado a atuar em conjuntura não revolucionária, pois as
conjunturas revolucionárias são quase sempre as únicas que
permitem mudar de fato a educação.
No entanto, foi notável o que conseguiu fazer, graças à flama
que o animou até o fim da vida e Maria Luiza Penna sintetiza
assim:

A racionalidade é o caminho por excelência, porque


verdadeiramente revolucionário, para a consecução de seus
ideais sociais e humanistas. A defesa dessa racionalidade seria
dever dos que querem modificar a realidade, não dos que
querem manter uma ordem imutável nas coisas. (p. 97)

13. Aquele Gilberto


O Gilberto Freyre que desejo lembrar no momento de sua
morte é o que vai de 1933, publicação de Casa-grande & senzala,
até 1945, quando foi eleito, pela Esquerda Democrática, deputado
à Assembleia Nacional Constituinte. Esse foi o Gilberto Freyre da
nossa mocidade, cujo grande livro sacudiu uma geração inteira,
provocando nela um deslumbramento como deve ter havido
poucos na história mental do Brasil. Os velhos amigos ainda
falavam dele como um homem despretensioso, cheio de humor,
irreverente até a molecagem, misturando à linha aristocrática uma
grande simpatia pelo povo, que o levava a combater as ditaduras e
acreditar nas virtudes de mestiçagem como fator democrático, que
deveria produzir nestes trópicos uma civilização ao mesmo tempo
requintada e popular, herdeira da Europa e criadora de um nobre
timbre próprio.
Esse Gilberto se empenhou com rara coragem na luta contra a
ditadura, enfrentando sob os mais graves riscos o interventor de
Pernambuco Agamenon Magalhães, que o mandou prender junto
com seu pai, o professor Alfredo Freyre, moveu contra ele uma
campanha de difamação e procurou tornar impossível a sua vida
em Recife. Mas Gilberto resistiu, unido a tantos democratas
daquele velho reduto sempre disposto a lutar pelas melhores
causas. Resistiu à perseguição torpe do governo e à mobilização
assanhada dos reacionários locais, um de cujos apoios eram padres
da Companhia de Jesus, então muito retrógrados e tacanhos. E
estava ao lado de Demócrito de Sousa Filho no comício em que
este caiu morto por uma bala que talvez se destinasse ao grande
sociólogo inconformado. Depois disso, no correr dos anos, mudou
bastante. Mudou demais. Mas naquele momento foi um dos
maiores exemplos de resistência e de consciência radical no Brasil.
De fato, para a minha geração, ele funcionou nos anos de 1930 e
1940 como um mestre de radicalidade. O que nos fascinava era a
maneira extremamente liberta com que desmontou a concepção
solene da história social, falando com saboroso desafogo de sexo,
relações de família, alimentação, roupa. Era o discernimento
iluminado com que sugeria a importância dos traços menores, dos
fatos humildes: o cumprimento, a receita de doce, a festa de
padroeiro, o bigode, o anúncio de jornal, a anedota. Era sobretudo
a franqueza com que mostrou a presença do negro no cerne da
nossa vida, chamando a atenção de todos para a necessidade de
estudá-lo, revolver a sua contribuição cultural e social, marcar o
seu papel na formação do Brasil. O I Congresso Afro-Brasileiro foi
planejado e orientado por ele em Recife no ano de 1934, logo
depois de Casa-grande & senzala ter revolucionado a visão do
brasileiro sobre a sua própria realidade. Mais tarde se veria o
quanto o livro tinha de extrapolação e arbítrio. Naquela hora, o
sentimento foi de choque revelador.
Isso, porque rasgava um horizonte novo, obrigando todos a
encarar de frente a herança africana, deslocando o eixo
interpretativo da raça para a cultura, dosando com extraordinária
inventividade o papel simultâneo da paisagem física, da casa, do
regime alimentar, das relações domésticas, do sistema econômico,
das formas de mando, do sadismo social. Antes dele tinham sido
destacados alguns desses fatores, como a mestiçagem por Sílvio
Romero desde os anos de 1870. Mas ninguém, como ele, tinha
sabido fundir os pontos de vista numa visão, de tal modo sugestiva,
que a perspectiva da classe dominante, na qual se situava, adquiria
um poder interpretativo que funcionou como força renovadora.
Ele foi naquele tempo um caso raro de pensador e sociólogo
aristocrático abrindo não obstante horizontes de marcada
radicalidade, apesar de implicações no sentido oposto que também
já se percebiam e eram apontadas no tecido compósito do seu
pensamento. O importante era que ele estava quebrando tabus e
propondo um modo desabusado de ver as coisas.
Por isso, foi tido e tratado como radical, inspirou revisões,
acabou de vez com a visão baseada na suposta hierarquia das raças,
consagrou o respeito à arte do povo, à sua cozinha, ao seu dia a dia.
E tudo por meio de uma escrita surpreendente, nova, de uma
beleza como não se tinha visto antes nem se viu depois nos
estudos sociais, tornando pálidos os estilos à sua volta. Escrita
marcada pelos ritmos proustianos, abundante e necessária,
sugerindo a complexidade do real no caprichoso arabesco da sua
marcha. Escrita de Casa-grande & senzala, Nordeste, Sobrados e
mocambos, os grandes livros que naquele tempo empolgaram os
moços, formando um maciço que com o passar do tempo seria
contestado, mas que dificilmente poderá ser rejeitado, porque,
como diz Álvaro Lins, representou uma “descoberta do Brasil”.

14. Um crítico fortuito (mas válido)

Não sou decerto literato — muito menos literato


voluptuosamente acadêmico e voluptuoso da arte de construir
convencionalmente bem as suas frases. Que me perdoem,
porém, a insistência ingênua e afinal inócua em me considerar
escritor, admitindo a distinção entre escritor e literato.

Nestas palavras serenamente irônicas Gilberto Freyre propõe


uma autodefinição a que se tem apegado com pertinácia. Apesar do
caráter especializado da sua obra de base, do ânimo de investigação
com que a construiu, nota-se nela da primeira à última linha um
quase pavor de parecer técnico no sentido acadêmico. Mais forte
do que as convenções, do que a tentação de se encaixar numa
corporação científica rotulada, age nele a pressão viva de um
pluralismo que ataca vorazmente a realidade, disposto a esclarecê-
la e mesmo transfigurá-la a qualquer preço, isto é, sem
preconceitos metodológicos. Este impulso é o seu demônio, o gênio
pessoal que o demarca entre os investigadores sociais e torna
difícil aplicar-lhe um rótulo — grave inconveniente para os que se
sentem inseguros ao perderem o fio rígido dos fichários.
“Escritor” é realmente a designação adequada, porque na
orgulhosa e mesmo cavilosa modéstia com que a reivindica ele fica
menos comprometido com os especialismos e mais disponível para
a sua liberdade.
Uma vez constatado que é difícil e desnecessário classificá-lo,
dada a natureza da sua personalidade intelectual, dada a fecunda
diversidade da sua vocação, compreendemos melhor a
ambiguidade criadora presente na sua obra. Nela, quando saímos à
busca do sociólogo deslizamos para o escritor, e, quando
procuramos o escritor, damos com o sociólogo. Se procurarmos
especificamente o crítico, acharemos quase sempre o estudioso
que utiliza impuramente a literatura para os fins da sua
manipulação sociológica; mas a impura utilização torna-se de
súbito tratamento vivificante, que retorna sobre a literatura a fim
de esclarecê-la, porque a sociologia de Gilberto Freyre, sendo
estudo rigoroso, é também visão, e a este título a expressão
literária se crava no seu cerne, como recurso de elucidação e
pesquisa.
Não espanta, portanto, que nele os instantes de reflexão
filosófica ou crítica sejam pontos de congraçamento dos dois veios
da sua personalidade intelectual, separados para argumentar: o
sociológico, isto é, o científico, e o literário, isto é, o artístico. E
assim percebemos o sentido profundamente dialético da sua teima
em considerar-se escritor.
Dado este entrosamento, é difícil delimitar na sua obra o que há
de especificamente crítico, pois certos trabalhos ostensivamente
literários são também contribuições ao pensamento sociológico,
enquanto os de sociologia vêm permeados de arte literária e
pensamento crítico, como é o caso das páginas admiráveis de
Sobrados e mocambos sobre o nosso Romantismo. Mas em todos os
da primeira categoria notam-se algumas constantes de ponto de
vista e fatura, inclusive um senso equilibrado dos limites da
sociologia na investigação literária, como se poderá ver pela
seguinte transcrição:

Com tais sugestões, não se pretende reduzir a crítica ou a


história de uma literatura, ou dentro dessa literatura, a obra de
um escritor, a ramo da sociologia ou da psicologia social. Gênio
e obra literária de gênio pedem compreensão também literária;
e não principalmente sociológica ou psicológica. Ainda há
pouco, um crítico inglês, o professor David Daiches, reavivou
em páginas lúcidas esse critério de interpretação da obra
literária — o principalmente literário; mas sem desprezo pela
sociologia ou pela psicologia que explique origens ou descubra
raízes da obra ou do autor considerado.

Daí falar no

auxílio que à interpretação de uma literatura ou da obra ou da


personalidade de um escritor de gênio ou simplesmente de
talento criador ou renovador pode trazer a interpretação
sociológica e psicológica da cultura e do meio dentro dos quais
tenha se desenvolvido, nem sempre passivamente — às vezes
até à rebours —, o gênio desse escritor ou o espírito dessa
literatura. Pois nem escritores nem literaturas se realizam no
vácuo; ou num espaço sobrenaturalmente estético ou
puramente literário que prescinda de todo da história como que
natural — como dizia o mestre dos mestres franceses de crítica
literária — desses escritores e dessas literaturas.

A longa citação, extraída do estudo sobre Alencar, é necessária


para esclarecer o ponto de vista do autor e, ao mesmo tempo, fixar
o melhor conceito a respeito da contribuição que as disciplinas
humanas podem trazer ao estudo das letras.
A partir desta posição-chave, Gilberto Freyre se comporta com
liberdade, dentro de certos rumos gerais que marcam também a
sua obra de sociólogo e de historiador da cultura. É o caso do
nacionalismo, que o liga aos românticos e o leva a preferir, nas
obras, a busca do que contribui para a descoberta ou confirmação
de aspectos especificamente brasileiros; do que conduz a uma
visão literária do Brasil. Este traço não é tendência latente, mas
clara tomada de posição, como se pode ver no citado estudo,
quando mostra a ligação de Alencar com os renovadores do
decênio de 1920, seus continuadores no Nordeste e no Sul. Daí
uma procura incessante de conteúdos, para poder avaliar, segundo
eles, a densidade humana e o significado social da obra. Para
Gilberto Freyre, o significado estético deriva em parte deste lastro.
Veja-se, por exemplo, no artigo sobre Manuel Bandeira, o
comentário sobre a “Evocação do Recife”, onde fala da sua
“riqueza de substância”, ajuntando: “Cada palavra é um corte
fundo no passado do poeta, no passado da cidade, no passado de
todo homem, fazendo vir desses três passados distintos, mas um
só verdadeiro, um mundo de primeiras e grandes experiências de
vida”.
Dadas essas premissas, não espanta o seu interesse pelos
valores de personalidade na obra, que o leva a ser frequentemente
um crítico de autores, mais que de livros, pois vê naqueles um
interesse superior a estes. “Ele vive principalmente pela sua
personalidade”, escreve de Euclides da Cunha, “que foi criadora e
incisiva como poucas. Maior que Os sertões.” A sua crítica oscila
entre o estudo do autor, num extremo, e a função social da obra,
no outro, havendo casos, como no belo ensaio sobre Whitman,
onde tudo converge para esta, pondo de lado os aspectos mais
puramente artísticos. A um vivo interesse pelo social através do
literário, junta, pois, uma fina percepção do homem que criou a
obra, tendendo ao perfil, técnica muito sua de estudar literatura.
Se passarmos ao modo de elaborar a matéria crítica, veremos
que não difere essencialmente do que predomina no resto da sua
obra, garantindo uma unidade básica que funde a diversidade dos
pontos de vista. Refiro-me aos recursos de aproximação, ao jogo de
toques e retoques, como se nada pudesse ser exposto como algo
acabado e fixo, constituindo uma flutuação permanente de
conceitos e imagens que sugere o inexplicável das coisas, dos
homens, das ideias, depois que a inteligência e a sensibilidade
chegaram ao limite da sua força. Esta atitude fecunda é responsável
pelas repetições, delongas, recapitulações, que se cruzam por
vezes intrincadamente no seu estilo e já têm provocado a
estranheza de vários estudiosos, embora sejam organicamente
próprias ao seu modo de escrever, isto é, à sua própria visão do
mundo. Apesar de ser ele um temperamento eminentemente
plástico, dir-se-ia que esse processo — caprichoso apenas na
aparência e coerente na sua lógica profunda — lembra o da
composição musical. Os seus toques e retoques são motivos que
vão sendo propostos, desenvolvidos, retomados, combinados,
variados, até se esgotarem as possibilidades expressivas do tema.
Veja-se, no penetrante artigo sobre Augusto dos Anjos, o jogo de
masoquismo, sadismo, cientificismo, ascetismo, dureza, doença —
propostos, repetidos, retomados com sentidos novos,
enriquecendo-se até comporem a atormentada figura do poeta
num conjunto móvel e complexo.
Ao longo desse tratamento da matéria crítica, notamos, como
no restante da sua obra, uma combinação permanente de análise e
intuição; de intervenção ativa da inteligência e de abandono
emocional — o que aumenta a sensação de mobilidade e de tateio
harmônico da sua composição. E manifesta uma inquietude ligada
com certeza ao referido pluralismo, que parece constituir um dos
alicerces da sua personalidade intelectual, e de que soube extrair
um dos métodos mais fecundos para analisar a sociedade e a
cultura da sua terra.
Esse enfoque plural gera uma extrema riqueza de imagens, que
exprimem por vários lados a realidade abordada: comparações
reveladoras, como a que aproxima Os sertões do drama wagneriano;
imagens visuais, gustativas, que dão carne ao conceito e o
envolvem numa cascata exuberante de metáforas e digressões.
Sirva de exemplo a página saborosa na qual mostra pelo processo
negativo o ascetismo de Euclides da Cunha, arrolando o que de
folgada e pitorescamente brasileiro não estava no seu modo de ser:
Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem
almoços à baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à
pernambucana, nem vinho, nem aguardente, nem cerveja, nem
tutu de feijão à paulista ou à mineira, nem sobremesas finas
segundo velhas receitas de iaiás de sobrados, nem churrascos,
nem mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, açaí, sopa de
tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias de Semana
Santa, nem ceias de siri com pirão, nem galos de briga, nem
canários do Império, nem caçadas de onça ou de anta nas matas
das fazendas, nem banhos nas quedas-d’água dos rios de
engenho — em nenhuma dessas alegrias caracteristicamente
brasileiras Euclides da Cunha se fixou.

Por aí se vê a técnica de envolvente redemoinho visado no jogo


das imagens que, aparentemente desligadas do assunto, acabaram
por esclarecê-lo mais do que uma discussão abstrata.
As imagens são portanto essenciais ao seu processo analítico,
que se nutre do apoio sensorial por elas proporcionado, como
quando para sugerir a paixão de Euclides da Cunha pelas palavras,
fala no efeito que tinham, “primeiro sobre os ouvidos, depois
sobre os olhos pervertidos em ouvidos”, do grande escritor. É a
imagem que, ao lado da recapitulação temática, serve melhor ao
seu desígnio, puxando o conceito para a expressividade das coisas
vivas. Ela prolonga e de certo modo refaz o conceito, como se pode
ver a propósito de Felipe de Oliveira, rio-grandense descendente
de pernambucanos: “A turbulência, tão da maioria dos gaúchos, se
disciplinara nele em alegre vivacidade esportiva. É que em suas
mãos a sinistra faca de ponta de Pasmado se alongava em florete
elegante”.
Outras vezes, conceito e imagem se fundem sinteticamente:
“[…] era um autêntico libertador dentre os que fizeram a
‘Revolução de 30’ não com valentia de boca mas com coragem de
corpo inteiro”. E não raro a imagem tem por função dar ao leitor a
essência da análise ou da verificação crítica, sintetizando o trabalho
prévio da investigação, como quando diz da “Evocação do Recife”,
de Manuel Bandeira: “O poema é compacto; tem alguma coisa de
um bolo tradicional do Norte chamado ‘Palácio encantado’, bolo
muito rico, bolo de casa-grande de engenho, com sete gostos
profundos em cada fatia que se corta dele”.
Lembremos ainda as grandes imagens diretoras, as imagens
gerais que estruturam todo um estudo crítico, como, no que
escreveu sobre Alencar, a contraposição entre ambiente aberto do
campo e ambiente fechado de sala, encarnando os polos do
brasileirismo e do urbanismo europeizante, mas também da tirania
doméstica e da liberdade revoltosa, segundo os quais se ordena a
sua obra. Essas imagens duais abundam em Gilberto Freyre e
servem para mostrar o seu movimento dialético e integrador,
sempre deslizando entre a casa-grande & a senzala, o sobrado e o
mocambo, a ordem e o progresso, a precisão racional e a fantasia, a
análise técnica e as liberdades artísticas da intuição e do prazer
estético.

15. Dialética apaixonada


Otto Maria Carpeaux poderia ter sido o que quisesse: cientista,
professor, crítico de arte, de música ou de literatura, líder político,
doutrinador. Por circunstâncias da vida teve de sair do seu país, a
Áustria, acossado pelo nazismo, e no Brasil se tornou uma espécie
de polígrafo, um herói civilizador, diria Roberto Schwarz (como
Anatol Rosenfeld ou Roger Bastide). O seu instrumento principal
foi o jornal, adaptado à variedade das vocações, e nele exerceu,
além da função profissional de redator, a de escritor e de lutador
político. A partir dele se abriu para os livros orgânicos que
escreveu, feitos para formar e informar: Pequena bibliografia crítica
da literatura brasileira (1949), Uma nova história da música (1958), A
literatura alemã (1964) e a notável História da literatura ocidental[10]
Além de ser um homem apaixonado, voluntarioso e combativo,
Carpeaux era desses casos raros de capacidade universal, pois lia e
aprendia muitas vezes mais do que os outros. Foi o que mostrou
desde logo no Brasil, para onde veio em 1939. Graças a uma troca
ocasional de cartas, o grande crítico Álvaro Lins o descobriu e o
fixou no Rio, apoiando-o fraternalmente com todo o seu prestígio
e a sua generosidade, ambos grandes. Assim, contribuiu mais do
que ninguém para incorporar à nossa vida intelectual um estudioso
do mais alto nível, que ele apresentou ao público no artigo “Um
novo companheiro”, de 19 de abril de 1941, recolhido na segunda
série do Jornal de crítica (1943).
Nele contava quem era Carpeaux e o caracterizava com traços
certeiros, começando por prever que “a sua atuação, na nossa vida
literária, vai constituir um acontecimento de excepcional
significação”. Dizia ainda que se tratava de, “ao mesmo tempo, um
homem e um escritor; um homem moralmente muito forte, em
harmonia com um escritor intelectualmente muito poderoso”.
Adiante mencionava o universalismo de Carpeaux, ligado quem
sabe à vocação supernacional de seu país e expresso pelo
conhecimento de muitas línguas e literaturas, praticadas com
ânimo comparativo e integrador. E dizia (no mesmo estilo de
ressonâncias queirosianas):

[O seu] estilo é muito pessoal, muito direto, muito denso. O


conhecimento de tantas literaturas, fundamente assimiladas,
imprimiu-lhe, ao mesmo tempo, um máximo de variedade e
concentração. Notar-se-á que é um estilo vivo, preciso e
ardente. Às vezes, enérgico e áspero. Nestas ocasiões,
sobretudo, este estilo está confessando um temperamento de
inconformista, de panfletário, de debater. O temperamento de
um homem que, monologando ou dialogando, está sempre
numa atitude de luta: ou a luta interior, consigo mesmo, ou a
luta exterior, com os seus adversários.
Carpeaux adquiriu com rapidez muitos conhecimentos sobre o
Brasil e passou a escrever diretamente em português. A partir de
1941 publicou no Correio da Manhã artigos que o puseram
rapidamente na primeira plana e foram reunidos em parte nos
livros Cinzas do purgatório (1942) e Origens e fins (1943). Os da
minha geração lembram-se com certeza do impacto renovador
causado por esses ensaios densos, que informavam sobre coisas
desconhecidas ou pouco conhecidas, mostrando hábitos mentais e
pontos de vista diferentes dos que reinavam aqui.
De fato, predominavam naquele tempo a influência e a visão
francesas, que selecionavam e filtravam para nós o resto do mundo.
Carpeaux salientou a importância da cultura espanhola e o
sentimento do Barroco literário, coisas tão próximas da nossa
cultura que era estranho não serem mais presentes e atuantes na
vida intelectual. Carpeaux mostrou, além disso, a força quase
desconhecida aqui dos italianos, dedicando ensaios ou fazendo
referências a Vico, De Sanctis, Croce, Verga e procurando
transmitir a aura peninsular. Revelou escritores e coisas do mundo
eslavo, húngaro, escandinavo e foi o primeiro no Brasil a escrever
sobre Kafka, além de avaliar com muito discernimento os ingleses
e norte-americanos.
No campo do pensamento, não apenas comentou Nietz­sche,
mas revelou aspectos de Burckhardt, explicou quem era
Lichtenberg, abordou os então quase desconhecidos Dilthey, Max
Weber, Mannheim. Sobrevoando tudo, uma espécie de gosto
infuso por Croce e a paixão por Hegel. E mais a novidade de um
catolicismo progressista. Tudo isso, dentro da sua incrível vocação
pedagógica no sentido mais completo: aquele que significa
transformação por meio do conhecimento, tornado força de vida.
Tais elementos estão na base desta História da literatura
ocidental, com a sua visão abrangente, múltipla e una, que permite
mostrar a literatura, acima das fronteiras nacionais e linguísticas,
como expressão (por assim dizer) da alma de um complexo de
cultura. E que, portanto, nos obriga (como obrigavam os artigos
dos anos de 1940) a despir o provincianismo empobrecedor, pai de
antagonismos e segregações, para abrir caminho às grandes visadas
universais, que, elas sim, possibilitam o contato construtivo entre
os homens, através de uma cultura mental transformada em bem
comum. Grande humanista, Carpeaux trabalha aqui neste rumo.
É curioso, mas não insólito, que a paixão humanística o tenha
levado nos anos de 1960 a sair (ao menos em intenção) da
literatura, onde tinha passado a vida. Evoluindo de um catolicismo
empenhado nos problemas sociais, mas de conotação antes liberal,
chegou a uma militância intelectual de cunho revolucionário
socialista, que decantou o político que havia nele. Intervindo na
vida pública do Brasil, lutando bravamente contra o imperialismo,
defendendo as posições avançadas do operário e do estudante,
tornou-se um ativista pela pena e esteve no centro dos esforços
radicais dos anos de 1960. Processado, ameaçado de ter de sair do
país, boicotado nos jornais, não cedeu e se pôs acima da
adversidade. Foi quando assumiu pontos de vista extremamente
políticos na apreciação da literatura, como é patente no artigo que
escreveu para o famoso número de Temps Modernes sobre o Brasil,
organizado por Celso Furtado. E é o que declara com a costumeira
franqueza na nota introdutória a Vinte e cinco anos de literatura
(1968), a propósito do conteúdo do livro:

[…] só escolhi trabalhos que, por este ou aquele motivo, ainda


hoje possam inspirar interesse ao círculo dos amigos da
literatura.
Mas já não me incluo nesse círculo. Considero encerrado o
ciclo. Minha cabeça e meu coração estão noutra parte. O que
me resta de capacidade de trabalho, pertence ao Brasil e à luta
pela libertação do povo brasileiro.

É
É preciso lembrar essas coisas para compreender que a História
da literatura ocidental, escrita em 1944-1945 e revista no momento
da publicação de cada volume a partir de 1959, corresponde a um
momento da história mental de Carpeaux.
Este livro é um esforço para apresentar no conjunto a literatura
europeia e mais as que o autor considera com razão os seus galhos,
isto é, as do Novo Mundo. Ele parte de uma distinção, também
justa, entre as “chamadas grandes literaturas: grega, romana,
italiana, espanhola, francesa, inglesa, russa, alemã” e as que, sendo
mais modestas, são valiosas e compõem com as outras o panorama
literário do Ocidente no que ele tem de significativo: as
escandinavas e

mais três tão tradicionais quanto aquelas: a portuguesa, a


holandesa e a polonesa; depois, (as) literaturas provençal e
catalã, importantíssimas na Idade Média, e hoje novamente
representadas por grandes valores; depois, (os) ramos
americanos de algumas literaturas europeias: a norte-americana,
a hispano-americana e a brasileira.

Finalmente, a tcheca, a húngara e alguns nomes centrais da


romena, da finlandesa e da galega (p. 34).
A sua visão universal permite transpor as limitações eventuais
do nacionalismo crítico, cuja função histórica é importante em
certos momentos, mas não deve servir para obliterar a dimensão
verdadeira do fenômeno literário, que por sua natureza é tanto
transnacional quanto nacional. Carpeaux demonstra noutros
lugares como a literatura do Brasil ganha em ser vista de uma
perspectiva dupla, como esta sua, capaz de aumentar o
discernimento e quebrar a rotina. Lembremos as esclarecedoras
subdivisões críticas da Pequena bibliografia e a leitura renovadora
que fez de Augusto dos Anjos.
O intuito desta História não é justapor as literaturas, mas
apresentar o todo orgânico formado por elas. Daí algumas decisões
metodológicas importantes, como abolir as divisões por
nacionalidade, ignorar as distinções entre gêneros, articular os
nomes realmente significativos. Isso porque o critério é apresentar
os autores e as obras de maneira inseparável dos grandes
movimentos criadores, marcados por traços comuns e
manifestando-se nos diversos lugares em dada parcela do tempo.
Uma das originalidades do livro é, portanto, privilegiar o tempo
sobre o lugar; não sob a forma de referência cronológica, mas
como grande unidade espaçotemporal dinâmica, definida pela
integração das manifestações literárias e do contexto histórico-
social.

A literatura é, pois, estudada nas páginas seguintes como


expressão estilística do Espírito objetivo, autônomo, e ao
mesmo tempo como reflexo das situações sociais. (Daí) um
método estilístico-sociológico, (o qual) tem de provar, pela sua
aplicação à literatura, a capacidade de explicar as relações entre
os fatos literários, substituindo-se a enumeração
biobibliográfica dos fatos pela interpretação histórica. (pp. 35-
36)

Este “Espírito objetivo”, encarnado nas diversas criações sociais


e culturais, mostra imediatamente a raiz hegeliana atuando em
Carpeaux através de mediações, entre as quais a de Dilthey, a de
Croce, a da sociologia do conhecimento mas sobretudo a de um
agudo empenho histórico. Em suma, um idealismo dialético
fecundo, porque a tônica recai no segundo termo. A composição
manifesta um movimento incessante entre os opostos,
considerados não alternativas ou opções, mas condições bem-
vindas de uma investigação que encara a verdade como busca da
verdade.
Quanto a esta disposição mental, acho útil citar uma carta que
Carpeaux me escreveu em 24 de maio de 1944, quando começava a
redigir a sua grande obra. No comentário de uma distinção que
estava elaborando entre “Realismo” e “Naturalismo”, com vistas a
discutir o impasse do romance contemporâneo, observa o
seguinte:

A distinção entre a realidade vivida e a realidade autônoma da


arte torna-se mais urgente do que antes. Sei, ou acredito, que o
seu ponto de vista sobre tudo isso será bastante diferente do
meu. Mas é justamente isso que me leva a perguntar-lhe a sua
opinião. Sou um espírito “dialógico”, e o diálogo só é fértil
quando entre posições dialeticamente opostas. A dialética é a
minha obsessão, esforço-me em pensar sempre dialeticamente,
e atribuo a isso muitos dos equívocos aos quais hoje me vejo
exposto.

No caso da história literária, pensar assim importava em


abranger, num amplo movimento interpretativo unificador, tanto a
autonomia da obra (concebida como manifestação concreta do
Espírito objetivo) quanto a sua dependência em relação à sociedade
no tempo e no espaço (concebida como matéria-prima da
observação e da imaginação). Nos termos da carta citada, trata-se
de considerar simultaneamente a realidade autônoma e a realidade
vivida. Deste modo, fica assegurado o respeito ao mundo próprio
da literatura, sem desconhecimento da sua inserção no mundo.
Para manter a integridade da visão dialética, Carpeaux rejeita a
ordenação das obras e autores em séries cronologicamente
paralelas, segundo a concatenação interna de cada gênero
(separadamente, poetas, romancistas, contistas, dramaturgos etc.).
Mais ainda: rejeita, como vimos, a própria separação entre países e
línguas, o que fica mais evidente nos volumes ulteriores, que lidam
com a multiplicidade das literaturas nacionais; mas já neste faz
coisas como abordar Plauto e Terêncio no quadro da literatura
grega (pp. 69-71). O que lhe importa é mostrar os grandes
conjuntos orgânicos que exprimem o ritmo criador das épocas,
vistas na totalidade da sua cultura, da qual a literatura se destaca.
Daí a importância do tempo, não em seu aspecto mecânico e
limitante, que é a cronologia, mas como princípio de organização
do material estudado. Tudo isso ele mostra por meio de uma
extrema mobilidade entre o todo e a parte, graças ao senso das
mediações, que podem ser também os diversos estados da
sociedade e do pensamento nas diversas épocas. (Sobre o seu
eficiente método integrativo, ler na “Introdução” as páginas 33-
36).
O resultado é o interesse constante do seu leitor, que vê
desenrolar-se o movimento dos conjuntos e sente ao mesmo
tempo a presença viva dos autores e das obras, registrados em
sínteses de grande segurança, originalidade e penetração. Tanto
mais quanto Carpeaux mostra possuir um requisito essencial em
livros desse tipo: a larga informação, não apenas literária, mas
sobre filosofia, arte, história política e social.
Como exemplo da sua originalidade na análise dos movimentos
literários, lembro a maneira pela qual incorpora a poesia litúrgica
da alta Idade Média ao que chama a “herança” formadora da
literatura do Ocidente (parte I, cap. III). Quanto à caracterização
dos escritores, que sabe fazer em escorços prodigiosos, veja-se
como considera Lucrécio e Catulo os maiores poetas romanos, não
Virgílio e Horácio, cujo perfil ideológico era mais conveniente e
por isso os situou na primeira plana da reputação (p. 86). Veja-se
ainda a extrema valorização que lhe merece Prudêncio, “o maior
poeta da antiga Igreja Romana. Já foi comparado a Horácio, mas é
mais sério, e a Píndaro, mas é mais humano” (p. 113). Ousadia
intelectual e julgamento firme não faltam a esse grande crítico que
descarta as meias-palavras.
Certas vezes o toque pessoal aparece na maneira diferente de
ordenar os autores, como quando prefere estudar os três grandes
trágicos gregos não na ordem cronológica tradicional, que
corresponderia também a uma secularização progressiva das suas
obras, ou seja: Ésquilo, Sófocles, Eurípides; mas na ordem que
poderia ser qualificada de ontológica, baseada em análises mais
sutis das características de cada um: Ésquilo, Eurípides, Sófocles.
Outras vezes, a caracterização se liga a uma referência metafórica
reveladora, como nesta síntese elaborada a partir da dinâmica dos
opostos, ou, se quiserem, sobre uma estrutura paradoxal:

É significativo: no pórtico da literatura romana estão dois


autores, nenhum dos quais era escritor profissional. Um
arquiteto e um general: Vitrúvio e César. Do ponto de vista
literário, não são “grandes escritores”; mais exato seria dizer
que não pertenciam à literatura. São os representantes mais
típicos da “construção”, em oposição à qual nasceu a literatura
romana.
Caius Julius Caesar não é escritor profissional, já se disse. Só
escreve para explicar os seus fins políticos. Só dá fatos, a
realidade nua. Os Commentarii de Bello Gallico estão cheios de
vozes de comando: aos soldados, aos povos subjugados, aos
politiqueiros vencidos, à língua. No fim dos relatórios, a Gália e
a Itália estão organizadas. O seu contemporâneo Vitruvius
Pollio dá vozes de comando às colunas; é criador daquela
arquitetura oficial que até hoje forma os centros das nossas
capitais […]. Em César e Vitrúvio Roma está construída. (p. 78)

Trechos assim mostram a força de Carpeaux neste livro


admiravelmente realizado, sem concessões (ao ponto de não dar a
tradução das citações em latim, ou em alemão, francês e italiano
medieval), mas que atinge os seus fins com uma competência e um
poder de sugestão realmente notáveis. A sua leitura é
indispensável por ser uma das melhores introduções possíveis ao
mundo da literatura, como fica mais evidente à medida que o leitor
vai conhecendo os volumes sucessivos.

16. O gosto pela independência


Anatol Rosenfeld impressionava, entre outras coisas, pela
determinação tranquila de só fazer, na vida intelectual, o que não
afetasse em nada a sua tremenda independência. Às vezes, por
caminhos inesperados. Assim é que realizava palestras para grupos
de senhoras da sociedade que, penso eu, deviam estar, na maior
parte, inteiramente por fora da sua atmosfera mental. Imagino
também que, apesar da presença dele, a coisa tivesse um vago ar de
futilidade, que quem sabe o divertia. No entanto, recusava os
convites para ensinar em faculdades oficiais. Talvez porque as
palestras semimundanas não atrapalhassem o seu desejo de ficar
disponível e aberto, enquanto as faculdades trazem uma carga de
envolvimento institucional que amarra o indivíduo mais do que
este percebe. Nós, que passamos a vida nelas, não sentimos bem o
peso da coluna de ar que comprime de encontro ao chão; mas
quem sabe, do lado de fora, Anatol percebesse melhor e se
esquivasse…
Por outro lado, numa exceção aparente que confirma a regra da
sua vida, a certa altura aceitou uma função docente na Escola de
Arte Dramática. Naquele tempo a escola era um ambiente livre e
desvinculado, que Alfredo Mesquita imaginou e realizou com
muito rigor, mas nenhum convencionalismo. Dela se poderia dizer
que, enquanto esteve sob a orientação do seu criador, possuía as
vantagens, mas não os males, das instituições universitárias. Foi o
que Anatol deve ter sentido, porque nela se integrou com rara
eficácia e dedicação.
Animados pelo que parecia mudança de critério, alguns
voltaram então a lhe oferecer uma cadeira de literatura aqui, outra
de filosofia ali; mas ele, polida e inflexivelmente, agradecia e
recusava. A sua escolha estava feita e era mantida.
Penso que gostava das tarefas que lhe permitissem ser útil sem
quebra da liberdade de movimento, como no caso de certas formas
de diálogo, real ou virtual, que permitem desdobrar as ideias e
plantá-las no mundo. Assim foi que aceitou a seção de letras
alemãs no “Suplemento Literário” d’O Estado de S. Paulo, desde o
seu início em 1956; e este foi o veículo que revelou ao país o
grande intelectual até então só conhecido pelos amigos e os
frequentadores de seus cursos privados. Décio de Almeida Prado
diz com razão que o fato de haver lançado e apoiado sempre Anatol
Rosenfeld, na qualidade de diretor do “Suplemento”, é um dos
seus motivos de orgulho.
Como se deu a sua entrada para letras alemãs? Quando
estávamos planejando o “Suplemento”, foram feitas consultas a
diversas pessoas qualificadas, para nos ajudarem na escolha do
corpo de colaboradores; e Egon Schaden sugeriu o nome de
Anatol. Por quê?
Porque na casa de Schaden funcionava uma espécie de discreta
tertúlia, formada por amigos que se reuniam aos sábados para
discutir filosofia, literatura, cultura. Além do anfitrião, lembro
apenas os nomes de Anatol Rosenfeld e Erich Arnold von
Buggenhagen, atual professor emérito do Instituto de Biociências,
Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto (Unesp).
Schaden e eu tínhamos o hábito, que durou longos anos, de
almoçar na cidade às quartas-feiras; nessas ocasiões, ele não apenas
me inoculava o seu gosto pelos livros de Joseph Conrad, mas
comentava as reuniões, salientando o valor dos companheiros,
inclusive Anatol. E eu me interessava muito pelo relato dessas
conversas sobre Kant ou Thomas Mann.
Às vezes Anatol ia ver Schaden na faculdade; assim nos
conhecemos e tivemos alguma troca de ideias. Quando Schaden,
depois de pesar uns tantos nomes, afiançou que ninguém melhor
do que ele poderia se encarregar da seção de literatura alemã, a
sugestão caiu em terreno favorável e foi aceita por Décio de
Almeida Prado e por mim. Deste modo, o quase desconhecido
redator de notas em alemão do Deutsche Nachrichten (ou seria
Deutsche Zeitung?) entrou no circuito da vida intelectual brasileira e
nele ficou para sempre numa posição de alto relevo.
No fim da sua vida, em 1973, tivemos convívio intenso no
conselho de redação da revista Argumento, ideada e editada por
Fernando Gasparian, como uma espécie de outro nível da luta
pertinaz que vinha mantendo no jornal Opinião. Tratava-se, ante as
difíceis condições do momento, de forçar quanto possível uma
atitude de oposição ligada ao esforço de aprofundamento analítico.
Anatol entrou para o grupo quando o primeiro número estava
sendo preparado, e dali por diante, apesar do sofrimento físico
crescente, foi até sua morte, na altura do terceiro número, um
participante assíduo das nossas reuniões semanais, como Fernando
Henrique Cardoso ou Paulo Emílio Sales Gomes, além, é claro, de
Fernando Gasparian e a equipe que realizava a publicação: Maria
Hermínia Tavares de Almeida, Pedro Paulo Poppovic, Elifas
Andreato.
O terceiro foi o último número a circular, pois o quarto ficou
retido por ordem da Censura Federal, certamente alarmada com o
êxito da revista, cuja tiragem inicial de 25 mil subiu imediatamente
a 45 mil exemplares. Anatol já não estava vivo para participar da
nossa luta pela sobrevivência, sob o comando do grande diretor
responsável, Barbosa Lima Sobrinho. Recorremos, procuramos
figurões, fomos a Brasília ouvir mentiras, apertamos o governo
Médici através da Justiça — mas nada impediu o nosso
esmagamento final, por meio de uma aplicação do AI-5.
Argumento foi, portanto, a última tarefa de que Anatol partilhou,
consagrando-se a ela com o ardor e a esperança de quem vê uma
oportunidade para exercer a inteligência crítica na luta contra as
irracionalidades e as brutalidades deste mundo.
17. Roger Bastide e a literatura brasileira
No Brasil, Roger Bastide se interessou a fundo pela nossa arte e
a nossa literatura, tornando-se um crítico militante e um estudioso
que pesou de maneira notável na interpretação de fatos, ideias e
obras. É preciso, portanto, começar lembrando a sua condição de
colaborador constante dos jornais — registrando livros novos,
comentando exposições, debatendo teorias e, inclusive,
estabelecendo com homens do porte de Mário de Andrade e
Sérgio Milliet polêmicas amistosas e construtivas, num exemplo
de compostura e amor pela verdade que não é frequente no
gênero. Durante a Segunda Guerra Mundial, aumentou esta
participação, dizendo aos alunos e amigos que era a sua maneira de
trabalhar pela presença e atuação da cultura francesa, mostrando-a
empenhada nos problemas da brasileira.
Os referidos artigos, e também os estudos mais sistemáticos,
eram de intuito predominantemente literário, mas quase sempre
entrava neles a visão sociológica como alicerce teórico ou
componente interpretativa, tornando Roger Bastide um dos
poucos a usar com segurança e felicidade essa combinação difícil.
O seu critério dominante, sempre ressaltado nas conversas, era
emitir juízos de realidade, não de valor, afastando o problema de
avaliar méritos para ficar nas verificações objetivas. De um lado,
isso gerava certa boa vontade universal, principalmente com
referência à produção do momento; mas, de outro, assegurava à
crítica a função de análise da cultura.
Os seus artigos são numerosos e tiveram influência no meio
intelectual daqueles anos. Muitos foram reunidos em livro, mas na
maioria estão dispersos pelos periódicos onde apareceram.
Inclusive o estudo magistral sobre Machado de Assis, de que se
falará adiante.
Além da produção escrita, foi grande a sua influência através do
contato direto com amigos e alunos. Eu, pessoalmente, lhe devo
muito e às vezes me surpreendo, relendo a anos de distância algum
escrito dele, ao verificar até que ponto certas ideias que julgava
minhas são na verdade não apenas devidas à sua influência, mas já
expressamente formuladas por ele. Se for permitida uma
informação de cunho pessoal, contarei que a sua opinião foi
decisiva para eu optar entre a sociologia e a literatura como
atividade universitária. Consultei-o a propósito nos primeiros anos
do decênio de 1950 e ele disse francamente que me achava mais
qualificado para a segunda.
Mas muita gente melhor recebeu também a sua influência
intelectual, inclusive Mário de Andrade, cujas ideias sobre a
gênese da literatura popular foram certamente redefinidas graças a
ele.
Para dar uma ideia da sua atividade crítica em relação à nossa
literatura, tratarei de quatro tipos de estudos que realizou e podem
ser denominados do seguinte modo: incorporação dos temas do
negro à poesia brasileira; presença das componentes africanas no
processo criador dos escritores brasileiros; aculturação da
literatura europeia no Brasil; dissociação entre o pitoresco e a ideia
de autenticidade da literatura brasileira.
A sua posição a respeito do primeiro tópico está exposta de
maneira sistemática no estudo “Incorporação da poesia africana à
poesia brasileira” (Poetas do Brasil. Curitiba: Guaíra, 1944, pp. 7-
38).
Essencialmente, o intuito é pesquisar nos textos os assuntos
relativos ao negro, a partir da verificação de que eles são versados
por poetas brancos (diríamos, com maior precisão, por poetas
considerados brancos segundo os nossos padrões e se
comportando como tais). Para isto, procede a uma análise
diferencial, mostrando como os referidos assuntos vão penetrando
cada vez mais profundamente. Com efeito, sendo a princípio mera
ocorrência temática, eles passam a suscitar a participação afetiva
do poeta, em seguida provocam o aparecimento da consciência do
drama social para, finalmente, se tornarem verdadeira
incorporação no nível da forma. E nós percebemos que o seu
critério central e extremamente sutil é estudar este processo como
interiorização progressiva dos traços sociais na estrutura da obra,
em função das etapas da evolução histórica.
Na parte analítica, mostra que inicialmente, na literatura do
período colonial, o negro aparecia como elemento estranho, de
fora, e o mestiço, embora considerado integrante da sociedade,
como algo inferior. E, ainda assim, apenas em gêneros também
reputados menos nobres, sobretudo a sátira. São exceções, no fim
do século XVIII, o poemeto épico Quitúbia, de Basílio da Gama,
celebrando um chefe angolano fiel aos portugueses, e a referência a
Henrique Dias na epopeia de Durão, Caramuru.
O século XIX e o Romantismo modificaram este estado de
coisas, com a presença temática do negro em gêneros que então
adquiriram a primeira plana, como a poesia lírica. A princípio,
aparecendo como elemento pitoresco ou objeto de simpatia e
compreensão, o que representa para Roger Bastide uma etapa
menos significativa do que a seguinte, manifestada de modo
superior na obra de Castro Alves. Ela se caracteriza pela
consciência do drama social do negro, indicando passagem nítida
da simpatia à revolta em face da escravidão.
Nessa incorporação que se vinha processando, a abolição
possibilitou um incremento, que é nítido nos poetas
contemporâneos. A este propósito, Bastide aponta a reduplicação
dos temas, mostrando como o do navio negreiro, tratado de
maneira grandiloquente por Castro Alves, reaparece em Cassiano
Ricardo despojado de retórica, reduzido ao essencial, como
experiência do poeta e não como assunto a ser desenvolvido. No
mesmo sentido analisa o tratamento, por Jorge de Lima, do tema
castro-alvino dos Palmares. Em tais casos, verifica-se a entrada do
espírito da poesia dos africanos na técnica poética; e o que era
social se torna a própria essência do fazer: incorporação dos ritmos
de marcha, de tambor, de canto, em substituição, ou ao lado dos
ritmos eruditos.
A “Introdução” d’A poesia afro-brasileira (São Paulo: Martins,
1943, pp. 7-15) é uma exposição sistemática sobre a presença das
componentes africanas no processo criador dos escritores
brasileiros, tema que, aliás, se difunde por todo o livro, cujo
material é formado pela obra dos poetas considerados mestiços e
negros, ao contrário do anteriormente citado, que estuda, como
vimos, os poetas considerados brancos.
O intuito é verificar de que maneira a origem racial e a condição
social decorrente interferem na elaboração das obras. Partindo das
referências meramente temáticas para chegar às impregnações
mais sutis da forma, Bastide trabalha numa gama extensa,
procurando captar esta passagem difícil. Mas as dificuldades não o
intimidam, e ele põe em jogo a sutileza e a penetração
costumeiras, para aferir o papel dos elementos inconscientes e o
condicionamento da forma pelas origens do escritor.
O seu ponto de partida é a convicção de que a origem racial dá
lugar à formação de certos traços profundos da personalidade
literária, que escapam à consciência mas interferem decisivamente
na criação. Entretanto, a sua pesquisa não se orienta pela
psicanálise, pois não se trata de libido nem das fixações infantis
recalcadas, embora elas possam ser levadas em conta. Interessa-lhe
a atuação de elementos sociais e psíquicos condicionados pela raça
e comprováveis pelo conhecimento da biografia ostensiva e da
sociedade.
A hipótese de trabalho é que a aparência ocidental de um texto
não deve enganar quanto às impregnações profundas, pois ela pode
recobrir, e quase sempre recobre, a atuação de fixações devidas à
origem racial e à condição social derivada, sendo preciso levá-las
em conta para entender o escritor.
Com este roteiro teórico, estuda diversos autores, maiores e
menores; mas a realização mais cabal são os “Quatro estudos sobre
Cruz e Sousa”, ainda hoje os mais importantes a respeito do poeta
e verdadeiros clássicos da nossa crítica. Eles se baseiam em
análises e interpretações refinadas sobre a cor, a luz, os cabelos na
imagética e no temário, mostrando como manifestavam
componentes pessoais de fundo africano. Através da leitura em
profundidade, o racial, o social e o estético são apresentados pelo
crítico na coesão de uma fatura poética peculiar e permitem a
reavaliação do poeta, que ele, com exagero generoso mas
injustificável, associa a Mallarmé e a Stefan George para formar
uma espécie de tríade simbolista.
O problema da aculturação da literatura europeia no Brasil foi
tratado de maneira menos desenvolvida que os anteriores, mas
aparece em diversos escritos. Assim, é referido de passagem nos
capítulos I, II e III d’A poesia afro-brasileira e enforma parte do curso
mimeografado do Instituto de Altos Estudos da América Latina:
Études de littérature brésilienne (1955). A formulação sistemática se
encontra no artigo “Sociologie et littérature comparée”, publicado
em Cahiers Internationaux de Sociologie, v. XVII, 1955, pp. 93-100,
reproduzido sob o título “L’Acculturation littéraire”, com o título
anterior como subtítulo, no livro Le Prochain et le lointain (Paris:
Cujas, 1970, pp. 201-209).
Nele, propõe uma revisão conceitual das chamadas influências
de uma literatura sobre outra, à luz dos pontos de vista da
sociologia e da antropologia, mostrando que nunca se verifica o
fato puro e simples da cópia, porque os traços são sempre
redefinidos. A propósito, efetua uma revalorização de Gabriel
Tarde, indicando a importância da sua teoria da imitação para o
estudo de problemas deste tipo. Daí, parte para uma crítica da
antropologia cultural à luz da sociologia, assinalando que o
fenômeno da difusão não é apenas cultural, mas também social,
devendo-se levar em conta a natureza dos contextos para uma
compreensão adequada.
Estribado neste critério, faz algumas observações importantes
sobre a nossa literatura, lembrando, por exemplo, que é errado
encarar o movimento arcádico como “imitação servil”, ou
transposição artificial da moda europeia. Com efeito, histórica e
sociologicamente, ele assume — através da adoção de formas
cultas e requintadas, elaboradas noutro contexto — a função de
afirmar a capacidade do intelectual da colônia e, por extensão, a de
toda a colônia. Tanto assim, observa Bastide, que esses escritores
supostamente artificiais e desligados da realidade, devido a uma
imitação aparentemente mecânica, são, na verdade, os mesmos
que se envolvem no projeto político da Inconfidência.
Igualmente fecunda é a sua visão do indianismo romântico
enquanto recurso ideológico da classe média em formação, na qual
se encaixou o mestiço, e que teve por isso necessidade de elaborar
uma noção compensatória, descartando a mestiçagem com o negro
(elemento servil do momento) por meio da valorização da
mestiçagem com o índio, que a podia substituir como disfarce.
Deste modo, apesar da origem francesa, o indianismo, visto do
ângulo da sua função social, foi redefinido e se tornou algo
necessário na sociedade brasileira.
Muito brilhante é o estudo, feito do mesmo ângulo, sobre o uso
por Castro Alves da antítese como recurso de composição, não
mera figura poética. É certo que ele a tomou de Victor Hugo, mas
no Brasil ela assumiu outra dimensão, pois a sociedade local se
caracterizava por certas grandes antíteses sociais, cuja existência
lhe deu nova funcionalidade: Independência × Escravidão; Senhor
branco × Escravo negro. Daí a possibilidade de um funcionamento
peculiar, de significado diverso e sociologicamente muito mais
relevante, que afasta a ideia de imitação mecânica.
Outro caso é o do Barroco, igualmente redefinido e
transformado em via de expressão do mulato, e que Bastide
focaliza em termos que coincidem essencialmente com a famosa
análise de Mário de Andrade, no estudo sobre o Aleijadinho.
O estudo da dissociação entre o pitoresco e a ideia de
“autenticidade” da literatura brasileira constitui mais um caso de
afinidade com Mário de Andrade, talvez configurando certa
interinfluência dos dois autores, como se vê no ensaio que talvez
seja a maior contribuição de Roger Bastide aos estudos de
literatura brasileira: “Machado de Assis, paisagista”, Revista do
Brasil, 3a fase, n. 29, nov. 1940, pp. 3-14.
É um artigo capital, que nos influenciou decisivamente e
marcou uma reorientação na maneira de conceber certos aspectos
fundamentais da nossa literatura. Influência tanto maior quanto a
ideia central do artigo era uma dessas convicções que Roger
Bastide sabia cultivar com paciência obstinada e suave firmeza,
repetindo-a frequentemente nas aulas, nas conversas, nos debates,
e que pode ser expressa do seguinte modo: ao contrário do que se
diz, o cunho de “autenticidade” da literatura brasileira não
depende da descrição ostensiva de traços característicos do país. O
descritivismo, a presença indiscreta da paisagem e dos tipos
exóticos podem constituir, ao contrário, visão externa, ponto de
vista de estrangeiro, e não compreensão profunda e autêntica.
Estudando Machado de Assis, Bastide elabora uma espécie de
paradoxo metódico, ou estratégico, provando que nele a paisagem
está presente com grande força, ao contrário do que sempre se
afirmou; só que está na filigrana, tão intimamente entrosada com a
caracterização e a condução do enredo, que não fere a atenção do
leitor. Interiorizada, incorporada à estrutura narrativa, ela é muito
mais “necessária” do que nos escritores paisagistas, indiscretos no
abuso das “pinturas”, prejudicando a narração pela descrição.
Assim, seria possível dizer, como ele nos dizia em aulas e
conversas, que Machado de Assis podia até ser considerado “mais
brasileiro” do que, por exemplo, Alencar ou Euclides da Cunha,
porque nele a paisagem do Brasil se torna algo essencial à
economia profunda da obra, insinua-se no gesto do personagem,
na fisionomia, no sentimento, na ação, como uma espécie de
presença virtual.
Este artigo decisivo convergiu com a longa argumentação
desenvolvida mais ou menos no mesmo sentido por Mário de
Andrade desde o decênio de 1920. E, de certo modo, disse a
palavra final, na medida em que demonstrou por meio de um caso
aparentemente indemonstrável — como é o do comedido,
introvertido Machado de Assis.
Os exemplos indicados dão uma ideia da grande contribuição
de Roger Bastide para os estudos sobre a literatura brasileira. Ao
mesmo tempo, sugerem algumas das suas posições no campo da
sociologia da arte e da literatura, sistematizadas no livro Arte e
sociedade (São Paulo: Martins, 1945), que contém a matéria dos
seus cursos de 1939 e 1940.
Trata-se de um tratamento objetivo dos fatos artísticos, que leva
em conta o condicionamento social e a atuação da arte sobre a
sociedade, mas evita a rigidez dos determinismos. Isto porque se
mostra igualmente atento à “vida das formas”, à sua dinâmica
própria, e quebra a ideia de causalidade unilateral. Esta
flexibilidade e abertura do pensamento de Bastide lhe permitiram a
posição compreensiva com que analisou os fatos da literatura
brasileira, indicando o seu inter-relacionamento com a sociedade e
a cultura e procurando mostrar a tradução estética dos fatores
“externos”.

18. Machado de Assis de outro modo


O ensaio de Roger Bastide sobre Machado de Assis[11] tem sido
ignorado pelos estudiosos, embora seja não apenas de alta
qualidade, mas singularmente precursor, se levarmos em conta os
hábitos críticos do momento em que foi publicado e, sobretudo, se
pensarmos que o seu autor era sociólogo, e naquele tempo a
sociologia podia ser uma presença tirânica e algo deformadora nos
estudos literários.
Se não me engano, este é o primeiro ensaio que trata a obra de
Machado de Assis de modo realmente contemporâneo, pois não se
refere à biografia, nem à psicologia, nem à correção da língua, mas
à própria natureza do discurso, propondo explicitamente o
conceito de latência e encarando a realidade exterior como matéria
de construção literária. De fato, Bastide mostra como o texto
comporta uma carga de mundo que atua graças à organização
efetuada pela composição literária, não à simples referência
temática ou conceitual.
Este ensaio, somado a outros do mesmo autor, bem como ao
seu ensino e ao seu convívio, teve muita influência em mim, coisa
que custei a perceber. Quando o reli há tempos, depois de muitos
anos, senti que foi uma das fontes de várias ideias que estão na
base da minha concepção de literatura brasileira. Os pontos de
vista de Bastide se incrustaram de tal modo na minha mente, que
perdi a noção do quanto lhe devo.
Para sentir a importância do artigo, é preciso lembrar que
naquele tempo, faz meio século, o problema do nacionalismo ainda
era central em nossa crítica, sob os mais variados aspectos. Para o
estudioso, era importante, por exemplo, averiguar quando
começou exatamente a literatura brasileira; até que ponto era
diferente das outras; quais os elementos que permitiam considerá-
la realmente nacional e outras questões que perderam o sentido.
Um dos cavalos de batalha ainda era a presença ou ausência de cor
local, dos costumes, das regiões consideradas mais características.
O nacionalismo romântico sobrevivia, portanto, e segundo a
opinião geral Euclides da Cunha era mais brasileiro do que
Machado de Assis. Foi contra esta tradição gasta e já duvidosa que
Roger Bastide se manifestou, e costumava dizer que, pelo
contrário, a haver opção, Machado seria o mais brasileiro dos dois,
porque na sua obra o Brasil estava presente no miolo, não na
aparência. Este ponto de vista anima o artigo que vou comentar,
cujo pressuposto é refutar a alegação, verdadeiro lugar-comum da
crítica tradicional, de que Machado de Assis não se interessou pela
paisagem nem soube descrevê-la. Diz Bastide:

Entretanto, reputo Machado de Assis um dos maiores


paisagistas brasileiros, um dos que deram à arte da paisagem na
literatura um impulso semelhante ao que se efetuou
paralelamente na pintura, e que qualificarei, se me for
permitido usar uma expressão “mallarmeana” de presença, mas
presença quase alucinante, de uma ausência.

“Presença na ausência” é de fato o critério requintado de que


lança mão para mostrar como a paisagem brasileira está embutida
no discurso machadiano, não como enquadramento mostrado pela
descrição, mas como elemento essencial da fatura, relativo, seja à
natureza dos personagens, seja à ordenação da narrativa.
De início, Bastide mostra que Machado de Assis era capaz de
descrever convencionalmente a paisagem, à maneira de qualquer
outro, como se vê na sua poesia, sobretudo as Americanas. Mas que
tomou posição deliberadamente contrária à visão exótica do Brasil,
encarando o paisagismo dos românticos como perspectiva de fora
para dentro, à maneira dos estrangeiros, que se interessam
sobretudo pelo pitoresco. Esta posição de grande maturidade
destoava do nativismo de seu tempo e é um dos motivos pelos
quais tratou a natureza de maneira peculiar. O “que procurou
realizar nos seus romances” foi

não permitir descrições para divertimento, verdadeiros enfeites


postiços no livro; é preciso que a natureza seja uma personagem
que represente o seu papel, que a paisagem tenha significação e
finalidade próprias, que sirva para facilitar a compreensão dos
homens ou auxiliar o desenrolar da ação, e não seja um mero
quadro rígido.

Bastide cita um artigo de Machado sobre Coelho Neto, onde


escreve que em certo livro deste o “que lhe agrada […] é que a
natureza está em toda a parte”. Bastide trata este juízo como se
fosse um mote e faz a glosa, recorrendo a um critério que se
chamaria hoje de intersemiótico.
Com efeito, toma a Elie Faure uma importante observação
sobre a evolução da paisagem na pintura, onde ela foi primeiro
fundo de quadro e depois ganhou autonomia. Nessa altura deu-se o
que Faure chama “transposição”, conceito querido de Bastide, que
o empregava com frequência nos seus cursos de sociologia da arte.
Ela “consiste em revestir os indivíduos das cores e nuanças da
natureza que os cerca, em pôr o colorido das geleiras, as
cintilações do mar, o castanho ou o ocre da terra natal sobre a pele
e as roupas dos personagens”. Segundo o mesmo Faure,

para o pintor espanhol, a laranja do cesto do vendedor se


reproduz no alaranjado dos crepúsculos de Castela, a neve da
sierra nos vestidos das infantas. Para o pintor holandês, o irisado
do arenque no balcão da peixaria de Amsterdam se encontra
nos andrajos dos mendigos ou nas fontes de um rabino dos
bairros pobres.

E Bastide comenta: “A natureza pode, pois, parecer ausente de


uma tela, estando na realidade estranhamente presente, no homem
vestido de água, de céu, de terra”. E completa a seguir, citando o
crítico Roger Clément:

Para que a fusão seja perfeita e a presença (da natureza)


realmente absoluta é necessário que no retrato a paisagem se
faça sentir como que virtualmente presente na própria
arquitetura da face, na qualidade da luz — a grande unificadora,
o meio universal —, na escolha das cores, na sua transparência,
na espessura da tinta.

Segundo Eugênio d’Ors (prossegue Bastide), foi o que fez


Cézanne, cujos modelos

trocam com a natureza ambiente “tantos sinais, tantas


mensagens, tantas influências, realizam com ela tantos mútuos
compromissos”, que, “como as naturezas-mortas, esses retratos
são, no fundo, paisagens”. Pois bem, eu quereria demonstrar
que foi um processo do mesmo gênero que Machado de Assis
imprimiu à literatura; a natureza, nele, não é ausente, mas ele
soube suprimir o intervalo que a separava das personagens,
misturando-a com estas, fazendo-a colar-se-lhes à carne e à
sensibilidade, integrando-a na massa com que constrói os
heróis de seus romances.

Bastide mostra então como Machado de Assis foi lentamente


elaborando a “transposição” e a “fusão”, num processo de
amadurecimento que já está claro numa frase de Iaiá Garcia: “A
alma cobiçava um banho azul e ouro, e a tarde esperava-a trajada de
suas púrpuras mais belas” — pela qual se vê que “a mulher não se
separa da paisagem, mas aproveita-a, une-se a ela e a traz em si”.
Eis um trecho expressivo do ponto de vista de Bastide:

O que caracteriza a natureza carioca são a vegetação sensual, as


voluptuosas noites quentes de verão, e sobretudo a presença do
mar. Ora, esses três elementos são transpostos para se tornarem
carne, sangue e vida, para integrar a arquitetura da face, para
correr nas veias e bater docemente no pulso, sob a delicadeza
de uma pele feminina. As laranjeiras perfumadas das chácaras,
os recantos de sombra úmida sob as árvores, a vida vegetal dos
trópicos, que talvez não descreva, inscrevem-se no andar dessas
mulheres-vegetais, dessas mulheres-paisagens. As noites do Rio
se tornam cabeleiras, cabelos soltos, perfumados, mornos,
voluptuosos, “cortados da capa da última noite”.

E logo a seguir:

[…] os olhos das heroínas de Machado de Assis, olhos verdes,


olhos de ressaca, olhos de escuma com reflexos irisados, são
feitos da própria cor do oceano que banha as praias do Brasil,
guardando em suas vagas o encanto de Iemanjá, o apelo dos
abismos, a carícia e a traição. Não se deve buscar alhures a
descrição da natureza brasileira; temo-la pintada por
transposição, transparente através dessas mulheres vegetais e
marítimas, que deixam no leitor um gosto de sal, de jardim
adormecido ou de noite tépida.

Noutros momentos do ensaio, mostra a “presença ausente” da


paisagem no nível da narrativa. No conto “O enfermeiro”, por
exemplo, no qual registra que

sem nenhum pitoresco, sem digressões nem alusões ao meio,


toda a oposição entre o litoral e o sertão mineiro se descobre na
simples mudança dos gestos, na loucura sombria que sobe,
numa espécie de surda angústia que terminará em crime.

E lembra também o conto “Só”,

ritmado pela chuva interminável, a chuva dos trópicos,


empapando o jardim da chácara, mas que também se infiltra
pelas janelas, pelas paredes úmidas, pelos forros, pela carne,
gotejando no coração, caindo sem tréguas no cérebro, até
transformar a alma do herói numa interminável chuva tropical.
Roger Bastide vai mais longe, e encara os romances da fase
madura como permeados de natureza implícita, natureza não
descrita, mas atuante sob a forma de presença virtual ou de
metáfora reveladora, tanto na psicologia dos personagens quanto
no processo narrativo. Sob este aspecto, o que mais o impressiona
é a força do mar, misturado à vegetação e funcionando ambos
como elementos da composição. Diz, por exemplo:

E o mar banha Dom Casmurro nas suas ondas salgadas, verdes e


turvas; ondas que vêm morrer em cada linha, deixando sobre
cada palavra flocos de espuma, canções noturnas. Não está
somente nos olhos de Capitu […] mas liga ainda, com a sua
branca orla, suas linhas sinuosas, todas as partes do romance.
Como o caminho das eglantinas do Côté de chez Swann de
Marcel Proust, o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo
une com a sua areia úmida, sua geografia oceânica e
sentimental, a casa de Casmurro e a de Escobar; todos os
acontecimentos do drama se situam em dois planos
estreitamente misturados, doçura da luz na água e nos espíritos,
tempestades nos corações e nas águas; constantemente o olhar
do leitor é dirigido para as ondas furiosas ou acariciantes. A
ligação é tão completa que o ciúme do herói só se precisa pouco
a pouco, depois de se desviar, de hesitar entre o mar e o amigo;
é o mar que se encarregará da vingança, vingança ainda
ignorada, palpitando ainda nas profundezas aquáticas do
inconsciente, o “mar perverso”, o “mar desencadeado”, o que só
restitui os cadáveres; são os olhos oceânicos que virão buscar o
afogado, arrastá-lo, levá-lo para o palácio das lembranças como
se fora o mágico palácio das sereias: “Momento houve em que
os olhos de Capitu fitaram o defunto, quase os da viúva, sem o
pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga
do mar lá fora, como se quisessem tragar também o nadador da
manhã”; todo o estilo de Machado de Assis torna-se marítimo;
“[…] os nossos temporais eram agora contínuos e terríveis.
Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros
de pouca dura; não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro
e o mar chão, onde abrimos novamente as velas que nos
levavam às ilhas e costas mais belas do universo, até que outro
pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos
outra bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total,
próxima e firme.
Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que
deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram
também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim, posto sempre
fosse homem de terra, conto aquela parte de minha vida, como
um marujo contaria o seu naufrágio”.

Bastide menciona ainda a “confusão de líquido e plantas” no


Dom Casmurro, superpondo as pessoas e a paisagem em fusões que
ele aproxima do que faria depois a técnica cinematográfica.
Estes exemplos bastam para mostrar de que maneira superou a
visão óbvia, isto é, considerar como sentimento da natureza e sua
exploração literária a descrição explícita da paisagem. Procurou
mostrar que em Machado de Assis a paisagem do Brasil está
presente de maneira mais poderosa, porque não é enquadramento
descrito, mas substância implícita da linguagem e da composição,
inclusive como suporte das metáforas. Em vez de procurar o tema
foi descobrir o modo de elaborar o discurso, cuja latência mostrou
de maneira moderna e forte para o estado da crítica nos anos de
1940.

19. Acerca de André Gide


Em 1972 Roger Bastide reuniu num pequeno volume[12] alguns
ensaios inéditos e outros que tinha publicado em várias datas sobre
André Gide, formando com eles um todo coerente, útil para
conhecer o seu método crítico cheio de sutileza, múltiplo nas
abordagens e marcado pelo senso dinâmico do texto.
O seu propósito é apresentar as linhas básicas de uma obra
caleidoscópica e fugidia, que ele chama de “Labirinto sem fio de
Ariadne”. O pressuposto é que obra e personalidade se integram
num conjunto indissolúvel, o que o leva a se desinteressar da obra
de Gide como texto para vê-la como experiência criadora,
expressão de uma personalidade extremamente complexa, embora
possuindo constantes, linhas principais que ele procura descobrir.
Isso porque, se há certa imobilidade na estrutura, há variação
permanente na sua sucessão, sendo preciso focalizar as duas
coisas. Com esta finalidade procura determinar qual é a estrutura
básica e, simultaneamente, vê-la como expressão das variações de
uma personalidade múltipla.
Quem conhece a obra de Gide pode avaliar a dificuldade e a
ambição deste propósito, pois trata-se de autor que procurou dar a
impressão de busca sem fim, instabilidade e revisão permanentes
das posições, o que se pode ver no ritmo contraditório de sua vida:
desinteresse pela política e, mais tarde, denúncia vigorosa do
colonialismo francês; prática de uma estética do desligamento e, ao
mesmo tempo, obsessão pelos problemas morais; adesão ao
comunismo e, a seguir, rejeição por meio de uma denúncia
rumorosa etc.
Como em nossos dias a crítica literária sofreu o impacto da
linguística, desenvolvendo por isso grande sensibilidade em
relação aos valores ambíguos da palavra, com base na
arbitrariedade do signo, é preciso ter em mente que Bastide não
procura determinar em Gide as manifestações de ambiguidade
devidas a este aspecto. As “duas leituras possíveis” de que fala a
seu respeito fundam-se na personalidade do escritor, levando o
crítico a proceder por meio de análises temáticas sempre referidas
a ela. Por isso, rejeita a crítica descritiva (tão em moda graças aos
estruturalistas, quando publicou o seu livro), pois para ele
descrever uma obra seria apresentar a sua “matéria bruta” e isto
levaria ao caos, porque o significado ficaria de fora. Por outro lado,
descrever o autor implicaria desligá-lo do ato criador, como sendo
algo anterior a ele, o que equivaleria a falar de um vazio, isto é,
justamente aquilo que é preenchido pelo ato criador. De modo que
a crítica descritiva faria que tanto a matéria quanto o autor
acabassem escapando ao crítico. Então, o que deve fazer este?
Segundo Bastide, ficar entre uma coisa e outra, a fim de apreender
a matéria estruturada pelo espírito. Por outras palavras, o que
interessa não é a estrutura da matéria, nem a estrutura do espírito,
mas o processo dinâmico por meio do qual o espírito cria a sua
matéria. Deste modo é possível chegar a sentir a beleza da matéria
e a originalidade do criador.
O propósito de Bastide é, portanto, descobrir a lei estrutural
que rege a formação da obra pela ação do espírito criador sobre a
matéria criada. A descoberta disso só pode ser feita através da
dinâmica da obra, sendo preciso descobrir nela quais são os que
Bastide chama “esquemas”, por meio dos quais se dá a ação
organizadora do espírito criador. Na obra de Gide ele descobre
quatro desses esquemas: “alternância”, “desdobramento”,
“multiplicação”, “simbolismo”, cujo estudo permite chegar à
compreensão do que significa a obra criada e estruturada por meio
deles.
Embora estes esquemas se apliquem à obra de Gide, é claro que
para Bastide o procedimento corresponde a uma possibilidade
metodológica geral: para cada caso particular, isto é, para cada obra
e cada escritor, é preciso procurar quais são os esquemas adequados
e qual é o conjunto que formam. No caso, estes se aplicam a um
autor extremamente móvel, variado e contraditório, sendo o
intuito de Bastide mostrar que, no fundo, ele tem alguns traços
básicos, permitindo entrever a sua unidade profunda na
diversidade das manifestações.
Como se vê, esta posição é muito diferente da que o
estruturalismo pôs em voga quando a maioria dos artigos que
compõem este livro já estava publicada, embora não os últimos. De
fato, o estruturalismo tende a assimilar a estrutura a um modelo
intemporal e imutável que, sempre o mesmo, engendra (por assim
dizer) obras diferentes. Bastide propõe um conceito mais
dinâmico, pois para ele a estrutura, longe de ser a unidade
profunda e algo estática, é na verdade mutável e sucessiva nas
diferentes obras, variando no tempo e não tendo a rigidez dos
modelos. Ele diz que na obra de Gide a realidade (o que está
escondido) é a “unidade múltipla”; a aparência são as “mudanças”.
Por conseguinte, não se deve avaliar Gide como um
experimentador inconstante, mas como alguém que possui uma
unidade básica, embora manifestada de maneiras variadas. Assim,
o método se ajusta à natureza da obra e da personalidade em
estudo.
Por isso, Bastide prefere ver na obra de Gide não uma expressão
do labirinto, isto é, da estrutura complexa na qual o espírito se
perde, mas uma partitura musical, onde cada nota só significa em
relação às vizinhas, e cuja natureza consiste na variação, ao fim das
quais a unidade fica patente e o espírito se encontra. Diz ele que na
obra de Gide o expresso é inconstante, mas o oculto é constante,
sendo a variedade uma busca incessante de si mesmo, isto é, da
unidade na multiplicidade. A identidade é estrutural, porque
abrange todas as transformações parciais que não podem ser
rejeitadas, pois fazem parte do roteiro, da busca, sendo expressões
contingentes da unidade essencial.
Em consequência, Bastide estuda a obra de Gide através de
temas, dos quais escolhe alguns. Cada tema possui a sua
individualidade, mas ao mesmo tempo se integra na partitura geral
que é a obra. Neste livro ele estuda os seguintes: o “furto”, a
“montanha”, o “olho furado”, o “ato gratuito”, o “filho de pai
incógnito”, a “propriedade”.
Eles aparecem de maneiras diferentes e contraditórias ao longo
da obra de Gide, segundo os “esquemas” já mencionados
(“alternância”, “desdobramento”, “multiplicação”, “simbolismo”),
que regem a maneira segundo a qual se manifestam os “temas”.
Vejamos, portanto, rapidamente como funcionam os esquemas
diretores.
A “alternância” desenrola no tempo a contradição dos “temas”,
que se sucedem, opondo-se, segundo uma dialética onde
aparecem, não como simples contrários, mas como contradições
entre as quais não há conciliação possível. Por isso, há que alterná-
las, mostrar uma depois da outra, transformando o simultâneo em
sucessivo. Esta seria a primeira lei estrutural da criação de Gide,
tendo por consequência uma harmonia sem síntese, porque a
única unidade é a do movimento. Assim, a sua obra revela uma
posição “naturalista” em face da natureza: amor pelas formas
vegetais, curiosidade pela vida dos animais, contemplação exaltada
da paisagem, como a que aparece desde Les Nourritures terrestres.
Mas ao mesmo tempo este “naturalismo” é uma busca do sentido
espiritual da vida; e Bastide diz que as “nourritures terrestres”
podem ser, no fundo, “nourritures celestes”. Mais ainda: a visão
“naturalista” privilegia o olhar e portanto o olho. Mas em obras
seguintes aparecerá o tema da cegueira, que nega a contemplação
natural. O personagem gidiano Édipo se cega, e há outros cegos na
sua obra, como Alissa em La Symphonie pastorale, sem falar nos
cegos morais. Ao longo dos seus livros alternam-se a visão (natural)
e a cegueira (espiritual).
Os esquemas de desdobramento e multiplicidade explicam de que
modo os temas se opõem e vão gerando formas de oposição,
desdobrando-se no seu contrário e se multiplicando em
manifestações sucessivas. É por isso que Roger Bastide escolhe na
obra de Gide os mencionados temas e os acompanha de livro a
livro, como se isolasse uma célula germinal e fosse seguindo as
suas divisões. Em cada livro aparece um elemento diferente, que
modifica o tema e que a análise vai definindo.
Usados repetidamente, os temas se tornam símbolos, por isso
devem ser tratados primeiro de maneira descritiva, ao longo do seu
desdobramento; depois, como conjuntos de imagens que
manifestam incansavelmente a mesma verdade. O símbolo se
caracteriza por esconder o que revela e revelar o que esconde.
Como vemos, a estrutura é um processo de transformações que
nunca se estabilizam em “sistema”. Este seria a unidade básica da
obra e da personalidade do autor, mas Bastide diz que não
pretende chegar até ele. No entanto, no fim do seu estudo vemos
que aponta claramente para o que seria o “sistema” de Gide: passar
por todas as formas do “haver”, a fim de conseguir “ser”. A sua
obra e a sua personalidade são inseparáveis, porque a sua vida foi
uma procura constante do “ser”, uma tentativa de se compreender
a si mesmo a fim de alcançar a autenticidade possível, banindo a
hipocrisia nos textos e nos atos.

20. À roda do quarto e da vida


Todos lembram a nota “Ao leitor” na abertura das Memórias
póstumas de Brás Cubas:

Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás


Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de
Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo.
Pode ser.

No “Prólogo da terceira edição”, comentando a observação de


Antônio Joaquim de Macedo Soares, que o livro lembrava as
Viagens na minha terra, de Garrett, Machado conclui, depois de
citar as palavras acima, atribuídas ao seu personagem: “Toda essa
gente viajou: Xavier de Maistre à roda do quarto, Garrett na terra
dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode talvez
dizer que viajou à roda da vida”.
Sterne é ilustre na literatura mundial; Garrett é ilustre nas de
língua portuguesa; Xavier de Maistre é obscuro mesmo na
francesa. Nada mais natural, portanto, que a gente só pense no
primeiro quando encontra os capítulos pontilhados do Brás Cubas
(55 e 139), os seus capítulos relâmpagos (como 102, 107, 132 ou
136), o garrancho de Virgília no capítulo 142. No entanto, Xavier
de Maistre, que adotou muitas esquisitices de Sterne mas foi quem
usou os pontilhados, pode ter influenciado Machado de Assis tanto
ou mais do que ele, a julgar por alguns indícios que veremos
adiante. E talvez até haja servido de mediador entre ambos, graças
à presença dominadora da literatura francesa no Brasil.
Quando Machado fala em “maneira livre”, está pensando em
algo praticado por De Maistre: a narrativa caprichosa, digressiva,
que vai e vem, sai da estrada para tomar atalhos, cultiva o a
propósito, apaga a linha reta, suprime conexões. Ela é facilitada
pelo capítulo curto, aparentemente arbitrário, que desmancha a
continuidade e permite saltar de uma coisa a outra. Em vez de
coordenar a variedade por meio de divisões extensas, o autor
prefere ressaltar a autonomia das partes em unidades breves, que
ao facilitarem o modo difuso enriquecem o efeito do todo com o
encanto insinuante da informação suspensa, própria do fragmento.
Nos romances de Machado de Assis este modo corresponde ao
ingresso na segunda etapa. Os quatro primeiros que publicou são
feitos de capítulos relativamente longos, engatados segundo a
lógica normal do tempo. Os cinco últimos são feitos de capítulos
breves, frequentemente ligados de maneira aleatória devido ao
cunho de aparte, intercalação ou desvio. A hipótese, repito, é que a
passagem de um modo ao outro poderia ter sido ajudada pela
leitura da Viagem à roda do meu quarto (1794), de Xavier de Maistre,
composto deste modo, cuja marca é visível no Brás Cubas. Dela
poderia ter passado para este muito da técnica livre, regendo uma
obra difusa; poderiam ter passado algumas situações ficcionais,
quem sabe até certos aspectos da ironia e certo refinamento meio
precioso na sua naturalidade, que Machado assimilou por lhe ser
afim, mas enxaguou nos seus vitríolos. Quanto à matéria, é
evidente, por exemplo, que o capítulo 154, “Os navios do Pireu”,
repete uma anedota mencionada no capítulo 37 da Viagem, que
Xavier de Maistre teria extraído de Fontenelle segundo leio na
nota de uma edição do seu texto feita na Itália. Mas para o meu
palpite o mais importante é a questão dos atos involuntários, que
em Xavier de Maistre são um apoio central da narrativa e aparecem
episodicamente no Brás Cubas, mas de um jeito a não deixar
dúvida quanto à transposição.
Seria o caso de lembrar que a Viagem à roda de meu quarto é um
momento significativo no processo de tomada de consciência, pela
literatura, da personalidade dividida, tema de importância notória
no Romantismo, que chegaria a ter força avassaladora no nosso
tempo. Aliás, não é este o único traço precursor na obra de Xavier
de Maistre, mas aqui só ele me interessa.

O conde Xavier de Maistre (irmão mais moço e afilhado do


famoso pensador reacionário Joseph de Maistre) nasceu em 1763 na
Saboia, região de língua francesa que pertencia então ao Reino da
Sardenha, de cujas Forças Armadas foi oficial. Mais tarde emigrou
para a Rússia, onde casou, chegou a general, viveu a maior parte da
vida e morreu em 1852, velhíssimo. Por causa de uma transgressão
disciplinar quando era tenente, foi preso durante dias numa
fortaleza do Piemonte e descreveu com engenho e graça a viagem
imaginária em torno do seu quarto-prisão. Este e outros escritos
dele tiveram certo êxito na França, a cuja literatura pertence apesar
de estrangeiro que só conheceu Paris já entrado em anos. Por
ocasião desta visita Sainte-Beuve escreveu sobre ele um artigo
elogioso, que figura na edição Garnier da sua obra completa, em
um volume.
A Viagem (obviamente influenciada pelo Tristram Shandy e a
Viagem sentimental, de Sterne) descreve como se fossem etapas os
seus movimentos no quarto, o levantar e o deitar, as refeições, os
quadros e objetos, os pequenos incidentes, a sua cadela Rosina e o
seu criado Joanetti, tudo recheado de digressões e reflexões das
quais se destaca o interesse pelos atos involuntários, inclusive os
que mais tarde seriam chamados falhos.
Esses atos pressupõem desacerto entre os níveis da vida
psíquica, como se dentro de nós houvesse mais de um ser e eles
pudessem eventualmente entrar em discordância e até conflito.
Xavier de Maistre explica a divisão por meio de uma lei filosófica
que alega humoristicamente ter descoberto, a saber: dentro do
homem convivem de modo nem sempre pacífico “a alma” e “o
animal” (la bête), também chamado “o outro”. A “alma” é a razão e
a consciência, nos sentidos psicológico e moral; o “animal” são os
instintos, mas também a espontaneidade dos sentimentos e dos
atos. Ao longo de casos e incidentes divertidos, vai sugerindo que
as relações entre ambos são complicadas e finge estar sempre
solidário com a “alma”, mas em muitos casos é evidente a sua
complacência maior com as manifestações do “animal”.
Trecho curioso é o que relata uma polução noturna, típica
estripulia do “outro”, severamente encarada pela “alma”, mas não
obstante analisada com tolerante simpatia. Mais tarde, já instalado
na respeitabilidade, Xavier de Maistre reprovou esta ousadia
literária e manifestou o desejo de que se suprimisse o respectivo
capítulo em edições futuras — sendo ouvido nos nossos dias pelo
pudico organizador da mencionada edição italiana.
A “alma” e o “outro” podem assim atuar como se fossem
independentes, mantendo relação caprichosa ilustrada por
acidentes e distrações que vão parecendo tão significativos e
próprios do ser quanto os atos conscientes. É como se Xavier de
Maistre estivesse inaugurando mais de um século antes de Freud
algo parecido ao que este chamaria “psicopatologia da vida
cotidiana”, baseada na análise dos lapsos.
Exemplo: o narrador conta que, saindo de casa para ir ao Palácio
Real, em Turim, mergulhou numa meditação sobre a pintura e
quando deu por si estava chegando à casa de uma beldade (com
quem estaria sonhando muitas páginas adiante quando aconteceu a
polução). Eis o trecho final do capítulo:

Enquanto minha alma fazia estas reflexões, o outro ia indo por


sua conta, e Deus sabe onde ia! — Em lugar de ir à corte,
conforme as ordens recebidas, desviou-se de tal maneira para a
esquerda, que no momento em que minha alma o alcançou ele
estava na porta de Madame de Hautcastel, a meia milha do
palácio real.
Pense o leitor no que teria acontecido se ele entrasse
sozinho na casa de uma senhora tão formosa.

O narrador insinua o tipo de comportamento solto que o


“outro” teria para com Madame de Hautcastel sem o controle da
razão, mas o que o leitor brasileiro pensa é que já leu alguma coisa
parecida, no capítulo 66, “As pernas”, das Memórias póstumas de
Brás Cubas, onde o “defunto autor” conta de que maneira,
pensando na amante, elas o levaram sem que percebesse ao hotel
onde costumava fazer refeições:

Sim, pernas amigas, vós deixastes à minha cabeça o trabalho de


pensar em Virgília, e dissestes uma à outra: — Ele precisa
comer, são horas de jantar, vamos levá-lo ao Pharoux; dividamos
a consciência dele, uma parte fique lá com a dama, tomemos
nós a outra, para que ele vá direito, não abalroe as gentes e as
carroças, tire o chapéu aos conhecidos, e finalmente chegue são
e salvo ao hotel.
Aqui, ao contrário do texto citado há pouco, o automatismo faz
o certo, não o errado, mas o mecanismo é o mesmo, assim como as
implicações e a tonalidade do humor.
Parece claro, portanto, que houve impregnações de Xavier de
Maistre na virada narrativa de Machado de Assis, como este sugere
na citada nota ao leitor. Talento de envergadura infinitamente
superior, ele percebeu que na modesta e encantadora Viagem a
teoria do outro era um recurso ameno para ilustrar sem pedantismo
a complexidade e as contradições do comportamento e da mente.
Na sua obra o automatismo, aqui e noutros lugares, se engrena
com um tratamento muito mais rico e expressivo das divisões do
ser, mas nem por isso é menor a dívida em relação ao oficial
escritor que hoje poucos consideram e alguns chegam a desprezar,
como André Gide em certo trecho do Diário, onde (como se
estivesse pensando com acrimônia em Machado de Assis) escreve
que nada o irritava mais do que certo espírito convencional
“gênero Sterne e Xavier de Maistre”…

21. As transfusões de Rimbaud


No meu tempo de moço, quatro poetas franceses formavam
uma espécie de constelação privilegiada, que servia de referência
para conceber a poesia: Baudelaire, Mallarmé, Verlaine e Rimbaud.
O interesse por outros não tinha a mesma intensidade nem
(sobretudo) funcionava tanto como bússola. Baudelaire era caso à
parte, planando numa altura matriz. O gosto pelos três mais
recentes variava, sendo Verlaine lido com maior frequência, pois é
acessível e se entronca na tradição média. Por isso, teve desde logo
bons tradutores e era sabido de cor por muita gente, inclusive
porque estava nas antologias escolares. O Mallarmé apreciado era o
menos hermético. Pouca gente enfrentava o Coup de dés, que, aliás,
era de difícil acesso, porque não vinha incluído nas edições
correntes.
Quanto a Rimbaud, menos conhecido e menos apreciado que
os outros dois, toda a gente conhecia no mínimo o soneto das
vogais, Le Bateau ivre e Une Saison en enfer. A certa altura os
rapazes católicos o valorizaram como poeta das transcendências
misteriosas, a golpes de exegese bastante deformadora. É que a
irmã Isabel mais o cunhado Paterne Berrichon tinham incluído na
sua biografia uns toques religiosos, explorados ao máximo por
gente como Paul Claudel. Vidente, mago, telegrafista do inefável,
ele foi encaixado a martelo no catolicismo estético dos anos de
1930, quando, dizia bem André Gide, Deus tinha entrado na moda.
Hoje em dia não sei como andam as coisas. Creio que no Brasil
Mallarmé é bastante cotado, inclusive graças à mediação dos seus
admiradores de vanguarda, enquanto Rimbaud e sobretudo
Verlaine saíram de cena. Pelo jeito, a famosa tríade simbolista, que
tanto condicionou a poesia contemporânea, na França e fora dela,
se absorveu no astro solitário de Mallarmé.
As vanguardas europeias do começo do século prezavam muito
Rimbaud. No Brasil, o grande manifesto que justificava os
sucedâneos locais, A escrava que não é Isaura, de Mário de
Andrade, começa pelo que ele chama de parábola: durante séculos
a poesia foi recoberta por uma sucessão de disfarces e enfeites que
a obliteraram completamente, até que de repente alguém os
arrancasse e lhe restituísse a pureza e a autenticidade. Este alguém
foi Rimbaud. Do seu lado, na busca de raízes justificativas, os
surrealistas o incluíram no seu elenco privilegiado, identificando
nele, com certa razão, um discurso feito de associações que
pareciam emanar do inconsciente.
Além disso, a sua vida e a de Verlaine sempre despertaram a
atividade dos biógrafos, devido ao contingente de escândalo,
irregularidade e aventura, ao contrário da de Mallarmé, pacata e
apagada, sem elementos que estimulassem a curiosidade. Sorte de
Mallarmé, porque assim a atenção se concentrou cada vez mais na
sua obra, enquanto as dos outros têm sido frequentemente
descartadas em benefício da bisbilhotice. Rimbaud colegial de
gênio, Rimbaud ferido a tiro por Verlaine, Rimbaud malandro
irrecuperável, Rimbaud mau-caráter, Rimbaud vagabundando pelo
mundo, Rimbaud traficante na Abissínia — eis o que interessa à
maioria.
Mas muito acima disso está a sua obra difícil, feita para
despistar leitores e desanimar intérpretes, que geralmente são
obrigados a ficar nas aproximações e hipóteses vagas, propondo
leituras que logo se desfazem, porque a relação da textura
vocabular com as mensagens é tão brilhantemente arbitrária, e ao
mesmo tempo tão necessária, que o leitor percebe sem perceber e,
a não ser nos poemas mais claros, nunca tem certeza. Mas, no meu
tempo de moço, era justamente isto que fascinava, como iniciação
a um tipo novo de poesia, que alterava os hábitos e propunha
modalidades insólitas de percepção. Neste artigo, tenciono falar
apenas de um aspecto dessas nossas reações, procurando indicar a
tensão que a obra de Rimbaud estabelece entre mostrar e esconder
o mundo visível. Mundo que é tão atuante na linha e na entrelinha
desse familiar das estradas, amigo do relento, cavaleiro da lua e dos
descampados.
Rimbaud soube sugerir de maneira muito pessoal que a poesia é
capaz de elaborar um tipo próprio de comunicado, não regido pela
necessidade de transmitir mensagens explícitas. Para a
sensibilidade pós-simbolista, quando um poema apresenta o
comunicado em estado de pureza, isto é, quando o confunde com
a mensagem explícita, parece que o efeito poético diminui. Neste
caso, o poema pode alcançar um teor expositivo ou demonstrativo
que tem o seu encanto, mas perde o toque imponderável dos
textos que parecem liberar sentido próprio, feito não apenas de
informação, mas de um halo nascido de ritmos, sonoridades,
palavras usadas fora do nexo habitual. Esse significado por assim
dizer autônomo aparece em Rimbaud como fluidez encantada, que
embala a percepção e sustenta o discurso acima da necessidade de
captar logicamente o sentido. Penso em textos como “L’Esprit”
(segunda parte de “Comédie de la soif”), cujo começo é assim:

Éternelles Ondines,
Divisez l’eau fine;
Vénus, soeur de l’azur,
Emeus le flot pur,

Juifs errants de Norwège,


Dites-moi la neige;
Anciens exilés chers,
Dites-moi la mer.

Neste poema em cinco partes curtas, o poeta fala da sede que o


assalta e das bebidas que lhe propõem. Há, portanto, um tema, que
repousa sobre a interação entre o sentido próprio e o sentido
figurado do vocábulo sede. Mas, além dele, há o tecido de palavras,
imagens, alusões, que geram o significado paralelo a que me referi
e de certo modo independe do tema, situando-se além dele. Nestas
estrofes há ondinas, Vênus (nascida das ondas), judeus errantes
numa arbitrária Noruega (singularizada pelo W transposto das
línguas no Norte) que se justifica pela neve, vagos seres eLivross
que podem exprimir a magia do mar que os levou e segrega. E há
verbos insólitos: o movimento das ondinas divide as águas; o
surgimento de Vênus comove as ondas, talvez em dois sentidos:
agitar e causar emoção. Acima de tudo, há a translação da água,
que é mar e também neve; e, como técnica, a enumeração com
força vocativa, figurando a circulação nos espaços do mundo.
Nestas estrofes o tema está ausente, substituído por uma
realidade feita de seres fantásticos ou remotos, que o projetam e
envolvem, deslocando a atenção do leitor. Mas há mais: a realidade
natural está presente, tanto quanto a outra, e entre elas ocorre a
oscilação, o vaivém entre esferas, a que me referi. De fato, o leitor
percebe a água, a neve, o mar, mas transferidos da sua natureza, na
medida em que estão ligados a ondinas, deusas, personagens
lendários. A força do mundo visível e a força do mundo imaginário
se combinam para formar uma realidade ambígua acima do tema,
trazido de volta pelas estrofes seguintes (e finais):

Moi — Non, plus ces boissons pures,


Ces fleurs d’eau pour verres;
Légendes ni figures
Ne me désaltèrent;

Chansonnier, ta filleule
C’est ma soif si folle
Hydre intime et sans gueules
Qui mine et désole.

Mas Rimbaud vai mais longe e pode criar um espaço no qual a


natureza do mundo cede lugar a uma natureza feita de elementos
factícios. Nesses espaços novos o mundo natural continua a existir,
mas fundido num quadro artificial, que transporta a sensibilidade
para um plano diferente de realidade. A eficiência de tais poemas é
devida ao fato de conservarem a referência ao mundo (que é
sempre um ímã para a nossa percepção), mas promovendo a
invenção de outro mundo, que de certo modo o suplanta e satisfaz
o nosso desejo de ir além do real. Num poema em prosa das
Illuminations, chamado “Fleurs”, é perfeito o encontro do universo
factício (cuja lei é a ordenação arbitrária de componentes
convencionais) com o universo natural, porque a comparação que
gera as imagens é feita como se o termo metafórico tivesse uma
vida independente do termo metaforizado. Ou, por outra, como se
a imagem se tornasse objeto convencional do mundo novo:
De um pequeno degrau dourado — entre cordões de seda, os
cinzentos véus de gaze, os veludos verdes e os discos de cristal
que enegrecem como bronze ao sol —, vejo a digital abrir-se
sobre um tapete de filigranas de prata, de olhos e de cabeleiras.
Moedas de ouro amarelo espalhadas sobre a ágata, pilastras
de mogno sustentando uma cúpula de esmeraldas, buquês de
cetim branco e de finas varas de rubis rodeiam a rosa d’água.
Como um deus de enormes olhos azuis e formas de neve, o
mar e o céu atraem aos terraços de mármore a multidão das
rosas fortes e jovens.[13]

Aqui, os tecidos, metais, joias se dispõem em torno de


elementos da natureza vegetal, que são apenas três, mas
funcionam de maneira decisiva, porque amarram cada segmento
do poema e permitem a transfusão dos dois mundos, o natural e o
factício. São eles: a flor digital, a rosa d’água, as rosas. O mar e o
céu, estes foram metamorfoseados em deus, enquanto os olhos e
as cabeleiras são realidades extraídas do contexto, desempenhando
papel ornamental de joia ou fibra. Reciprocamente, a flor brota de
um tapete.
A lei deste texto é a inversão de funções, o que constitui um
paradoxo a seu modo, pois normal é o conjunto dos elementos
artificiais, que constroem um nexo próprio; anormal é a aparição
espaçada e estratégica dos elementos da paisagem. No mundo dos
tecidos, joias, metais, a flor e a água são desvios que criam o
impacto poético. Em que mundo estamos, no fim das contas?
Estamos no mundo complexo e ambíguo, ao mesmo tempo real e
inventado, onde Rimbaud institui o seu discurso, que é
simultaneamente referência e não referência. Nele, sentimos o real
como presença poderosa, mas subvertido pelo fulgor dos
elementos artificiais. Um sentido desliza para outro e o leitor fica
suspenso entre a impressão de que entende e não entende, capta e
não capta, recebendo não obstante uma mensagem válida, mesmo
quando salpicada de ininteligível do ponto de vista lógico.
Nestes casos, podemos notar a força de Rimbaud, cuja sedução
formal vai de par com uma virulência que subverte a ordem do
mundo, mesmo quando parece apenas recriá-lo. Isso não ocorre
apenas nos textos mais óbvios sob este aspecto, cheios de sátira e
sarcasmo, de inconformismo e desespero, mas também noutros de
aparente gratuidade, que, no entanto, sugerem um mundo de
pernas para o ar devido à revisão poética, geradora de várias
percepções possíveis. Em “Fleurs”, a água e as flores parecem da
mesma essência que a ágata, o tecido, o ouro, o mogno, o rubi,
cuja eventual natureza metafórica foi atenuada por uma transfusão
que os faz funcionar como termos próprios, não figurados. Mas
não tenho certeza se é mesmo assim.

22. Realidade e realismo (via Marcel Proust)


A busca da verdade na literatura (verdade convencional da
ficção) se norteia frequentemente pelo esforço de construir uma
visão coerente e verossímil, que seja bastante geral para ir além da
particularidade e bastante concreta para não se descarnar em
abstração. Por isso, é decisiva a maneira pela qual são tratados os
elementos particulares, os pormenores que integram uma
descrição ou uma narrativa, seja da vida interior, seja do quadro
onde vivemos.
Ora, este tipo de enfoque tem uma das suas modalidades
principais no Realismo, que para alguns é o único e para outros um
dos muitos caminhos possíveis. Se considerarmos Realismo as
modalidades modernas, que se definiram no século XIX e vieram
até nós, veremos que elas tendem a uma fidelidade documentária
que privilegia a representação objetiva do momento presente da
narrativa. No entanto, mesmo dentro do Realismo, os textos de
maior alcance procuram algo mais geral, que pode ser a razão
oculta sob a aparência dos fatos narrados ou das coisas descritas, e
pode ser a lei destes fatos na sequência do tempo. Isso leva a uma
conclusão paradoxal: que talvez a realidade se encontre mais em
elementos que transcendem a aparência dos fatos e coisas descritas
do que neles mesmos. E o Realismo, estritamente concebido como
representação mimética do mundo, pode não ser o melhor
condutor da realidade.

O Realismo se baseia nalguns pressupostos, inclusive o


tratamento privilegiado dos pormenores, pelo seu acúmulo ou pela
sua contextualização adequada. O que pretendo é discutir alguma
coisa a respeito, começando por lembrar que a visão realista
pressupõe (1) a multiplicação do pormenor, (2) a sua especificação
progressiva e (3) o registro de suas alterações no tempo.
O uso do pormenor tem uma função referencial e uma função
estrutural. A primeira consiste em reforçar a aparência de realidade
(verossimilhança) e, portanto, dar credibilidade à existência do
objeto ficcional — como quando se descreve a verruga no nariz de
um personagem ou as coisas que desfilam na sua mente. A segunda
resulta do arranjo e qualificação dos elementos particulares que, no
texto, garantem a formação do seu sentido específico e a
adequação recíproca das partes (coerência). No Realismo ambas
estão correlacionadas de maneira indissolúvel, pois a eficiência de
uma depende da eficiência da outra.
Portanto, a especificação do pormenor é um dos fatores que
institui o discurso ficcional, estabelecendo nexos sucessivos que
vão ancorando a particularidade dos elementos na generalidade do
significado, como se pode ver pela decomposição de um texto de
Proust a partir da primeira palavra, vazia de sentido ficcional:

O sol
O sol/ iluminava
O sol/ iluminava/ até meia altura
O sol/ iluminava/ até meia altura/ um renque de árvores
O sol/ iluminava/ até meia altura/ um renque de árvores/ que
margeava a estrada de ferro.[14]

Mas a visão realista só se completa graças ao registro das


alterações trazidas ao pormenor pelo tempo, que pode ir de
algumas horas até um século — e ao introduzir a duração introduz
a história no cerne da representação da realidade. As coisas, os
seres, as relações existem na medida em que duram; por isso,
muito da sua especificação realista consiste em mostrar o efeito do
tempo sobre os detalhes, mesmo porque a suprema especificação
pode ser essa marca temporal. Como diz Auerbach:

A imitação da realidade é a imitação da experiência sensorial da


vida na terra, uma de cujas características principais é sem
dúvida possuir uma história, mudar, desenvolver-se; seja qual
for a liberdade que se der à arte da imitatio, o artista não tem o
direito, na sua obra, de privar a realidade dessa característica,
que pertence à sua própria essência.[15]

O Realismo se liga, portanto, à presença do pormenor, sua


especificação e mudança. Quando os três formam uma combinação
adequada, não importa que o registro seja do interior ou do
exterior do homem; que o autor seja idealista ou materialista. O
resultado é uma visão construída que pode não ser realista no
sentido das correntes literárias, mas é real no sentido mais alto,
como acontece na obra de Proust, que negava qualquer sentido
realista à chuva de pormenores formada pelo seu grande livro. Ele
tinha uma teoria não realista da realidade, que acabava numa
espécie de transrealismo, literariamente mais convincente do que
o Realismo referencial, por permitir o curso livre da fantasia e,
sobretudo, o uso transfigurador do pormenor, como se ele criasse
uma realidade além da que experimentamos. Através dos seus
textos verifica-se que o enfoque literário do mundo interior ou
exterior ganha sentido quando a especificação do detalhe se
integra numa generalização que o transfigura. O detalhe funciona
então como tecla que, ao lado das outras, permite modular a linha
expressiva da representação ficcional.
Aliás, a obra de Proust delineia uma teoria que pressupõe nesta
o tratamento simultâneo da estrutura e do processo, ou, nos
termos da presente discussão, do pormenor integrado em
configurações expressivas, e sua alteração no tempo como lei do
significado. Resulta um paradoxo aparente, pois ele descreve a
mudança incessante de seres, relações e coisas no fluxo temporal,
mas encontra o significado nas permanências que essa mudança
revela — o que vem definido no citado volume final de Em busca do
tempo perdido, carregado de teoria da arte e da literatura.
Logo no começo o narrador conta que, estando de visita ao
castelo de uns amigos, leu por acaso um trecho inédito do famoso
Diário dos irmãos Goncourt, que transcreve. Na verdade é um
pastiche admirável, uma ficção de segundo grau dentro da ficção,
onde Edmond de Goncourt fala, como se fossem pessoas vivas, de
certos personagens de Proust: o casal Verdurin e os frequentadores
da sua casa.
O pastiche é surpreendente enquanto reprodução das
peculiaridades de estilo e da concepção de vida e arte de Edmond
de Goncourt. Mas a sua finalidade é estabelecer de modo irônico a
opinião negativa de Proust sobre o Realismo como escola, a
propósito de sua modalidade extrema, o Naturalismo. Para tanto
usa um método de grande eficiência: mostrar os personagens, que
conhecemos desde o começo da obra através da maneira
proustiana, segundo a maneira própria de Goncourt, como visão
alternativa que podemos comparar com a outra. A comparação
revela uma discordância fundamental, que o narrador ressalta com
falsa modéstia cheia de subentendidos irônicos, mostrando-se
estrategicamente mortificado por não ter sabido ver aquilo que o
famoso naturalista vira.
A diferença entre ambos é que Goncourt (no pastiche, mas
também na obra real) só enxerga detalhes exteriores, que lhe
bastam como fundamento da interpretação e como imagem do
mundo. Ou seja: o seu olhar para na superfície. Já o narrador
enxerga, num nível além dos detalhes externos, uma
“semiprofundidade” (como diz) caracterizada pela unificação, não a
soma dos pormenores. Nesse nível os detalhes deixam de ser
parciais e isolados para exprimirem uma totalidade, una e
coerente, que serve de base verdadeira da interpretação.
Ironicamente, o narrador lamenta que, ao contrário de Goncourt,
veja coisas que não prestam para a “observação” (a perspectiva
documentária realista). Mas logo abaixo a sua falsa modéstia se
desfaz, quando fica evidente que isto ocorre porque vai mais
fundo, em busca do que se poderia chamar uma visão.
O nó da diferença está em que o Goncourt do pastiche via em
todos os pormenores um momento determinado do Salão
Verdurin, enquanto o narrador deseja procurar a sua identidade
fundamental nos diferentes lugares e momentos em que
funcionou. Nesse nível é que os detalhes desaparecem como
registro documentário para formarem o alicerce de uma visão
unificadora, obtida por meio do descarte do acessório, que ele
compara ao trabalho do geômetra em busca do “substrato linear”.
A fim de obtê-lo, vai “despojando os corpos das qualidades
sensíveis”.

[…] o que me causava um prazer específico, era a descoberta


dos pontos comuns a vários seres. Só ao vislumbrá-los, meu
espírito — até então sonolento, mesmo sob a aparente
vivacidade das palavras cuja animação, na conversa, mascarava
para outrem um completo torpor espiritual — lançava-se de
súbito à caça, mas o que nesses momentos perseguia — por
exemplo a identidade em diversos lugares e épocas diversas do
Salão Verdurin — situava-se a certa profundidade, para além da
aparência, em zona um pouco mais recuada.[16]

Esta posição explica por que Marcel Proust, considerado


colecionador de minúcias, negava ser um artista do detalhe e dizia
o seguinte em carta a seu amigo Louis de Robert:

Você fala da minha arte minuciosa do detalhe, do imperceptível


etc. O que realizo, ignoro, mas sei o que desejo realizar; ora, eu
omito (salvo nas partes de que não gosto) todos os detalhes,
todos os fatos, não me prendo senão ao que me parece
(conforme um sentido análogo ao dos pombos-correios; um dia
que estiver me sentindo menos mal eu explico isto melhor)
revelar alguma lei geral. Ora, como isto nunca nos é revelado
pela inteligência, como devemos pescá-lo de algum modo nas
profundezas do nosso inconsciente, é com efeito imperceptível,
porque é distante, difícil de perceber, mas de modo algum é um
detalhe minucioso. Um pico entre as nuvens pode, no entanto,
embora pequenino, ser mais alto que uma fábrica próxima. Por
exemplo, você pode achar imperceptível esse sabor de chá que a
princípio não identifico e no qual encontro de novo os jardins
de Combray. Mas não é de modo algum um detalhe
minuciosamente observado, é uma teoria inteira da memória e
do conhecimento.[17]

Vemos então que o pastiche de Goncourt serve para mostrar


como a laboriosa descrição realista constrói uma imagem colorida
e animada, mas no fundo não passa de um acúmulo de pormenores
que valem pouco enquanto possibilidade de compreensão efetiva.
Ela estende aos seres a mesma mirada externa com que se dirige
aos objetos, apresentando-os como unidades autônomas de
significado único, que produzem uma simples aparência de
sentido. Comparando as impressões de Goucourt com o que já
sabemos sobre os personagens, vemos que tudo é errado,
lamentavelmente errado, por se basear no efeito imediato que eles
causam, em função de critérios tão mascaradores quanto a
predisposição favorável do escritor devido à lisonja que lhe dirigem
etc. O olhar de tal escritor para na superfície e não discrimina em
perspectiva, nem correlaciona as impressões com referência a um
princípio integrador. Daí cada pessoa ou objeto adquirir um valor
por assim dizer absoluto, que se esgota na descrição ou no juízo.
Ao contrário, a arte do narrador (Proust) pretende descrever de
muitas maneiras, recomeçar de vários ângulos, ver o objeto ou a
pessoa de vários modos, em vários níveis, lugares e momentos, só
aceitando a impressão como índice ou sinal. É uma visão dinâmica
e poliédrica, contrapondo-se a outra, estática e plana.
Noutros trechos do livro citado fica bem claro, teórica e
praticamente, que a visão reveladora da realidade tende a uma
síntese baseada na analogia entre os detalhes, desvendando o seu
significado unitário. O detalhe em si não interessa. Interessa como
estímulo para procurar a sua afinidade com outros, por meio da
analogia. Daí a importância da metáfora, mais que da descrição,
porque ela mostra as analogias e vincula uma variedade de
pormenores. A ligação destes em nível fundo configura o
significado real — rede oculta inacessível à topografia realista
positiva, como é a de Goncourt. Daí a mencionada “certa
profundidade”.
Mas a ligação entre objetos, lugares e pessoas não ocorre apenas
num momento; ela se desdobra no tempo. Por isso, o narrador não
está interessado na minuciosa descrição realista do Salão Verdurin
como ele é no dia em que o visitou (à maneira do pseudo-
Goncourt). E sim na dos seus vários momentos, em diversas
épocas, a fim de ir, além da superfície, até o nível revelador, onde o
particular se recompõe na fisionomia geral de um modelo. Surge
então o paradoxo: ver as coisas no tempo é vê-las de modos
diversos, em várias etapas; portanto, é atingir um maior grau de
generalidade, que define a permanência (relativa) da estrutura sob
o processo que a constitui. De tal forma que o caso singular ganha
certa generalidade acima do tempo que o gerou e do qual emerge.
Estrutura e processo, estático e dinâmico se unem na síntese de
uma visão integrativa.
Há, portanto, vinculações ocultas que ligam os pormenores e
compõem uma espécie de modelo permanente no meio da fuga do
tempo. Elas seriam a base do projeto de Proust, ao provarem que é
possível a luta da arte contra a dissolução operada por ele. O
escritor procura recuperar a poeira das recordações porque a
memória, permitindo remontar ao passado, mostra, meio
contraditoriamente, que o que passa só ganha significado ao
desvendar o que permanece; e este permite refluir sobre o
pormenor transitório, o particular relativo, para compreendê-lo. As
vinculações fazem aparecer o desenho do modelo, como os
números ligados pela ponta do lápis vão delineando uma figura nos
livros infantis.
Assim, o narrador encontra o barão de Charlus, já velho, e o
confunde primeiro com um ator, depois com um pintor que eram
homossexuais como ele. Compreende então que a “revolução do
seu vício” o havia transformado ao ponto de atenuar as
características individuais para deixar emergir o modelo geral do
invertido. O barão, o pintor, o ator são manifestações de um
padrão, e descrever isoladamente cada um em si deve levar a
descobrir a realidade profunda.

O sr. de Charlus afastara-se tanto quanto possível de si mesmo,


ou melhor, mascarara-se tão completamente com o que não só a
ele, mas a muitos invertidos pertencia, que à primeira vista,
andando assim atrás de zuavos em pleno bulevar, parecera-me
outro que não o sr. de Charlus, que não um grande senhor, que
não um homem de imaginação e de espírito, outro cuja
semelhança com o barão se cifrasse àquele ar comum a todos,
que agora, ao menos para quem não se detinha em examiná-lo,
inteiramente o recobria.[18]

Pelo mesmo motivo o sobrinho do barão, Saint-Loup, que era


completamente diverso, começa a apresentar analogias espirituais
com ele ao se tornar também um invertido; e começa a parecer
“um sucessor”, “numa outra geração, num outro ramo” (op. cit.,
pp. 45-46). De modo a podermos concluir que (paradoxalmente)
quando o personagem é visto à luz da sua categoria os traços da sua
singularidade realçam melhor, porque são referidos a uma lei que a
rege.
Assim, é na relação dinâmica entre o tempo e o modelo que os
detalhes adquirem o verdadeiro sentido. Mostrando o vínculo
entre eles, a especificação, ao articular o discurso, tece a rede dos
significados, que está subjacente como o geral sob o particular e
pode ou não ser atingida pelo olhar do escritor, conforme ele pare
na superfície (Goncourt) ou alcance a profundidade (narrador). Em
tudo isso se destaca a dimensão temporal, deixando ver a
permanência do gênero sob a mudança das coisas, dos atos, das
pessoas; e mostrando também que a narrativa ficcional é capaz de
focalizar simultaneamente a estrutura e o processo.

23. Os brasileiros e a nossa América


É curioso pensar de que maneira os dois grandes blocos
linguísticos da América Latina têm pensado um no outro e têm
visto um ao outro. Encarada com objetividade a situação é de
acentuada assimetria, porque o bloco luso, isto é, o Brasil, se
preocupa mais com o bloco hispano do que o contrário.
Os motivos são muitos, a começar pela importância diferente
das duas metrópoles colonizadoras. A Espanha foi potência
europeia decisiva em certo momento, e sua cultura pesou na
civilização do Ocidente. Portugal foi sempre um pequeno estado
marginal, voltado para o mar e o vasto mundo, sem presença
ponderável nos centros da civilização comum, sem nenhum Filipe
II para assombrar a Europa, sem nenhum Cervantes para mudar os
rumos da literatura. Enquanto a Espanha, com o Quixote e a
picaresca, abria caminho para o romance, isto é, um gênero
inovador que serviria para exprimir o moderno, Portugal produzia
Os Lusíadas, de Luís de Camões, num gênero, a epopeia, destinado
a perder atuação rapidamente. Em consequência de tudo isso e
outras coisas que não cabe discutir agora, o espanhol tende a
supervalorizar a sua cultura e a impor a sua língua, enquanto o
português aprende docilmente as dos outros. Pensemos em nós,
herdeiros deles: ainda hoje, se for, por exemplo, à Bolívia, um
brasileiro se esforçará por falar portunhol, enquanto um boliviano
no Brasil falará tranquilamente o seu bom castelhano.
Língua de cultura, o espanhol se tornou neste século
indispensável aos brasileiros, que conheceram boa parte da
produção intelectual de que necessitavam através da mediação de
editoras da Espanha, Argentina, México, Chile, que nos traziam os
textos dos filósofos, economistas, sociólogos, escritores. O ensino
superior do Brasil dos anos de 1940 a 1960 teria sido praticamente
impossível sem essas traduções, de maneira que o espanhol existe
para nós como língua auxiliar, enquanto o português pouco serve
neste sentido aos que vivem no bloco hispânico. Por isso, no Brasil
há ensino de espanhol nas escolas secundárias e há cadeiras de
literatura hispano-americanas em universidades, nada havendo de
semelhante em relação à nossa língua na América de fala
espanhola.
Portanto, assimetria em todos os níveis, apesar da boa vontade
de muitos e da ação de alguns — tudo agravado pelo fato de cada
um dos nossos países ainda viver mais voltado para a Europa ou os
Estados Unidos do que para o seu vizinho. Pensando nestas coisas
é que devemos considerar a presença da América Latina na
literatura e no pensamento do Brasil. Aqui, não darei mais do que
uns poucos exemplos.

Um certo sentimento da América espanhola ocorreu cedo na


literatura brasileira, talvez em parte por influência francesa. Penso
na grande voga da tragédia Alzira, de Voltaire, de assunto peruano,
ou mesmo d’Os incas, de Marmontel, que punham em circulação
nas metrópoles culturais os temas da América e os preparavam
através deste prestígio para refluir sobre nós.
Poema dos mais importantes do século XVIII brasileiro foi O
Uraguai (1769), de Basílio da Gama, que descreve uma situação de
sentido continental: o choque de culturas entre o colonizador e o
indígena, com visível simpatia por este apesar da celebração
ostensiva daquele, a propósito de uma expedição militar luso-
espanhola para destroçar as missões jesuíticas. O mesmo Basílio da
Gama escreveu um soneto de exaltação da rebeldia nativista de
Tupac Amaru, mostrando assim o sentimento da América como
consciência precoce da cultura esmagada. No mesmo sentido deve
ter sido escrita a perdida tragédia Atahualpa, já na geração
seguinte, por José da Natividade Saldanha, que foi secretário de
Bolívar e morreu em Caracas no ano de 1832.
Com a Independência em 1822 e o Romantismo logo a seguir,
tomou corpo o que se pode chamar de projeto americano na
literatura, com o enorme e convencional poema épico Colombo
(1866), de Araújo Porto-Alegre, e O guesa errante (1866), de
Joaquim de Sousa Andrade (Sousândrade). Ambos, mas sobretudo
este, estão cheios de sentimento continental, que aparece também
em poemas menos extensos de Castro Alves e Fagundes Varela.
Em contrapartida, lembremos que um dos principais teóricos do
nacionalismo literário no Brasil, no decênio de 1840, foi Santiago
Nunes Ribeiro, chileno que veio menino para o Rio de Janeiro e
aqui teve grande influência intelectual, infelizmente cortada pela
morte precoce.
O período que nos interessa vai do fim do Império ao
amadurecimento da República, entre 1880 e 1920, digamos. Foi
nele que se desenvolveu a reflexão mais sistemática sobre a
América Latina, em escritos devidos a homens de elevado porte
mental, como Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Eduardo Prado,
Oliveira Lima e um menos ilustre mas sem dúvida mais lúcido
neste terreno, Manoel Bomfim.
Os historiadores informam que a Guerra da Tríplice Aliança
contra o Paraguai contribuiu para difundir no Brasil as ideias
republicanas, sobretudo a partir do exemplo argentino, tendo
contribuído também para aumentar o interesse dos brasileiros
pelos vizinhos do Sul — uruguaios, argentinos, paraguaios, além
dos chilenos mais distantes. A Proclamação da República em 1889
abriu uma era de forte influência norte-americana, e com isso
estimulou a reflexão sobre a posição brasileira em face de todo o
continente. A tradição que vinha da Independência era que o
regime monárquico se justificava perante a opinião liberal
brasileira porque assegurava a unidade, impedindo o
fracionamento e a turbulência que marcaram o destino da América
espanhola. Esta era vista como cadinho de agitadores e caudilhos,
cujo caso extremo e sempre temido seria a ex-colônia francesa do
Haiti, exemplo de sublevação dos escravos que deveria ser evitado
a todo custo numa economia escravista como a brasileira.
A propósito ganha interesse o livro de Joaquim Nabuco,
Balmaceda (1895), que estuda as vicissitudes deste estadista
chileno, com desconfiança pelos aspectos populares da sua obra e
visível simpatia pela ordem aristocrática, que garantiria uma
estabilidade equivalente à do regime monárquico no Brasil. A
democracia das elites seria deste modo uma solução republicana
para a América Latina, ideia que contraria em parte o decidido
cunho democrático e popular que o mesmo Joaquim Nabuco
assumira nos anos de 1870 e 1880, quando foi um dos líderes da
campanha antiescravista, culminada pela Abolição em 1888.
Monarquista como Nabuco, Eduardo Prado (A ilusão americana,
1893) via nas repúblicas da América espanhola sobretudo a
anarquia disfarçada em liberdade, sob a ação dissolvente do
imperialismo norte-americano. Para ele, a vantagem estaria… no
imperialismo inglês, que era monárquico e europeu!… Eduardo
Prado tinha graves preconceitos em relação à América Latina.
Segundo ele o Brasil fora exceção enquanto durou a monarquia
unificadora, mas estava destinado também à fragmentação e ao
caos, inclusive porque também ele era povoado por mestiços
inferiores (“luso-indo-negroides”). Com visível aversão pelos
países do subcontinente, descreve como coisa inevitável os
conflitos entre eles e adere à linha oficial da nossa historiografia, ao
acreditar no papel civilizador do Brasil no Prata, contra caudilhos
que considera “monstros”, como Rosas e López. Conclusão: o
Brasil deveria orientar-se no rumo da Europa, pois com os países
da América Latina não tinha afinidades nem interesses comuns.
A violenta oposição de Eduardo Prado aos Estados Unidos, que,
além de opressores, davam o mau exemplo da república =
desordem e da federação = atomização, era uma divergência em
relação à ideologia da República brasileira, fascinada pela grande
potência do Norte e disposta a ser parceira da sua política
imperialista, como de fato foi, apesar de afirmações em contrário.
Era o tempo do pan-americanismo, aceito em princípio como a
melhor fórmula de convivência e progresso pelos governos e
muitos intelectuais da estatura de Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e
Rio Branco. É certo que na prática um estadista como este
procurava temperar a dependência estimulando o crescimento da
solidariedade latino-americana e fomentando o conhecimento
recíproco.
Decididamente crítico da política oficial foi Oliveira Lima, cujo
livro Pan-americanismo (1907) define o caráter imperialista e os
perigos da Doutrina de Monroe, opondo-lhe a posição mais livre
da Argentina com a Doutrina Drago. Diz ele:
A doutrina de Monroe sempre foi, desde o seu primitivo
estádio, uma doutrina egoísta, que visava reservar a América,
econômica e diplomaticamente, para apanágio da sua posição
preponderante, em vez de continuar a depender das suas velhas
metrópoles, não mais exclusivistas do que a nova.[19]

Dos intelectuais do começo do século, Oliveira Lima foi


provavelmente o que mais se interessou pela análise diferencial das
Américas, a saxônica e a latina, e o que melhor aprofundou o
problema do relacionamento entre os nossos diversos países,
graças ao conhecimento que tinha deles. Com bastante
clarividência, apesar da posição conservadora de inclinação
monarquista, lembrou que o predomínio dos Estados Unidos
poderia ser enfrentado não por meio de declarações e tratados,
mas pelo progresso efetivo do subcontinente: “Os verdadeiros
obstáculos a opor à conquista americana são os da nossa própria
valia e do nosso próprio progresso”.[20]
Posição parecida foi a de José Veríssimo, cujo interesse pela
literatura da América espanhola era quase único em seu tempo.
Desde o decênio de 1890 ele publicou artigos sobre escritores
como Rodó, Carlos Reyles, Rufino Blanco Fombona, Manuel
Ugarte, além de discutir o tema do pan-americanismo e o das
relações entre o Brasil e os países de fala espanhola, cuja vida
intelectual procurou conhecer bem. Bastante pessimista, encarava
todo o subcontinente como um universo de miséria, ignorância e
violência, incapaz de formular as suas aspirações. Este papel cabia,
portanto, à pequena elite instruída e civilizada, que poderia formar
uma espécie de comunidade esclarecida acima das fronteiras.[21]
Do movimento político do pan-americanismo resultou de
qualquer modo maior aproximação cultural entre os países latino-
americanos. Talvez se possa atribuir ao espírito que o animava
coisas como Rubén Darío e Santos Chocano traduzindo poetas
brasileiros, enquanto o argentino García Mérou publicava o livro
El Brasil intelectual (1900).
A política de aproximação entre os países do subcontinente se
manifestou no Brasil através de um empreendimento importante: a
Revista Americana, que durou de 1909 a 1919. Feita visivelmente
por inspiração de Rio Branco, ministro das Relações Exteriores de
1902 a 1912, dirigida na fase melhor pelo jovem diplomata Araújo
Jorge, seu objetivo era promover maior conhecimento recíproco
das nações latino-americanas, diminuindo inclusive a obsessiva
fixação com a Europa. Embora os Estados Unidos estivessem
tacitamente incluídos no projeto, a matéria é sempre latino-
americana, publicada em português e espanhol. A coleção da
revista deixa ver que as relações culturais se estabeleceram
sobretudo com quatro países: Argentina, Uruguai, Chile e Peru;
mas havia colaborações de outros, como a do dominicano Max
Henriquez Ureña, e até versos de uma poetisa de Honduras. O
subtítulo indicava o âmbito visado: Ciências. Artes. Letras. Política.
Filosofia. História. A impressão é que os alvos eram o pan-
americanismo e a Doutrina de Monroe, geralmente defendidos,
interpretados e explicados.
A análise das colaborações mostra quatro linhas, começando
pela produção própria de cada país e exprimindo a sua cultura
através da poesia, narrativa e ensaio. Por exemplo: poemas de
Vicente de Carvalho, Herrera y Reissig, Maria Eugenia Vaz
Ferreira, Santos Chocano; narrativas de Alberto Nin Frías ou
Eduardo Acevedo Díaz; estudos de José Ingenieros, Francisco
García Calderón, Sílvio Romero, Farias Brito.
Uma segunda linha era a que punha em jogo dois ou mais países
no mesmo escrito, destacando-se sempre o tema geral do pan-
americanismo. É o caso de dois estudos muito adversos ao Brasil
da autoria de argentinos, um sobre o federalismo no subcontinente
e outro sobre a Guerra da Tríplice Aliança (este, de Ramón
Cárcano).
Mais raros são artigos preocupados com a prática efetiva da
integração continental. E há uma quarta linha, a dos escritos
manifestando interesse pela cultura europeia, com impregnação
profunda dos seus valores, como um longo estudo de Ernesto
Quesada sobre Goethe e poemas em francês do brasileiro Pethion
de Villar (pseudônimo de Egas Moniz de Aragão) ou do argentino
José María Cantilo.
No conjunto foi um esforço notável de aproximação
continental, a começar pelo bilinguismo e sem esquecer a
equanimidade com que eram publicados artigos severos em relação
ao Brasil. A colaboração brasileira foi naturalmente mais
abundante; a hispano-americana, embora abrangendo muitos
autores secundários, chama a atenção pela presença de vários
eminentes, ou que seriam eminentes, como, além dos já citados,
José Enrique Rodó, Ventura García Calderón, Francisco Romero.
O amparo oficial permitia distribuição generosa. Um anúncio de
janeiro de 1912 (ano III, n. 1) mostra o desejo de realmente penetrar
na opinião:

A maior publicação mensal em todo o Continente. Publicação


mensal. Distribuição gratuita em todos os estabelecimentos de
ensino europeus e americanos, cafés, hotéis, restaurantes,
barbearias, gabinetes de leitura, transatlânticos ingleses,
franceses, alemães, italianos etc. Colaboração de todos os
homens de letras e políticos mais notáveis da América.

(A gente pensa: teria sido mesmo assim na prática?)


Colaborador eminente da Revista Americana, falecido no
próprio ano de sua fundação, foi Euclides da Cunha, que, no
entanto, manifestou em vários momentos da sua obra uma posição
pouco receptiva quanto às relações com a América espanhola.
Tendo vivido pessoalmente os problemas de fronteira na
Amazônia, experimentou a apreensão de uma guerra que lhe
parecia iminente com o Peru, e viu os nossos contatos com os
vizinhos à luz de um pessimismo sem remédio. Para ele o Brasil,
graças à monarquia, fora mais ordeiro e normal, quisera assegurar a
civilização no subcontinente, mas via-se por isso mesmo arriscado
a entrar em conflitos sérios com ele. Melhor então isolar-se,
segundo escreve na altura de 1903: “A República nos tirou do
remanso isolador do Império para a perigosa solidariedade sul-
americana”, que mais adiante qualifica de

belíssimo ideal absolutamente irrealizável, com o efeito único


de nos prender às desordens tradicionais de dois ou três povos
irremediavelmente perdidos, pelo se incompatibilizarem às
exigências severas do verdadeiro progresso […]. Sigamos — no
nosso antigo e esplêndido isolamento — para o futuro […].[22]

Como se vê, o grande escritor era cético ante a tendência de


seu tempo, de reforçar os vínculos entre os países do
subcontinente, por cima das discórdias constantes e dos riscos de
fazer o jogo do imperialismo norte-americano. Ele acreditava na
tradição historiográfica que legitimava a política exterior do
Império, vendo no Brasil um fator daquilo que Batista Pereira
chamaria mais tarde luta da civilização contra a barbárie.
(Sarmiento não imaginaria que a sua famosa distinção, feita para
descrever as condições internas da Argentina, serviria no futuro
para situar esta no lado mau da dicotomia…)
Isto nos leva aos teóricos nacionalistas mais exaltados, que
celebravam a alegada missão civilizadora do Brasil, pondo ordem
nas fronteiras meridionais contra a turbulência dos caudilhos —
modo de ver que predominou até pouco. É preciso não esquecer
que o período do pan-americanismo foi marcado por conflitos e
tensões entre países do subcontinente, além das revoluções
internas. No Brasil, a política de Rio Branco conseguiu legalizar as
fronteiras e assim liquidar de vez os problemas atinentes. Mas isso
não passou sem graves tensões com a Bolívia, o Peru e sobretudo a
Argentina, suscitando um estado de animosidade recíproca que
influiu nas posições intelectuais, como vimos em Euclides da
Cunha, e é mais agressivo em autores chauvinistas, tanto aqui
quanto lá. E é preciso não esquecer que o Brasil sempre foi alvo de
desconfiança e mesmo animosidade por parte dos vizinhos, que o
suspeitavam de intuitos imperialistas e, depois, também de
subserviência aos desígnios norte-americanos, em detrimento dos
interesses da comunidade ideal dos países latino-americanos.
Um exemplo de desconfiança e até aversão do lado brasileiro se
encontra na obra de Elísio de Carvalho, curioso nacionalista que
começou anarquista e terminou perto do que seria o fascismo, nos
anos de 1920. Muito interessado na América Latina, escreveu
estudos sobre Rubén Darío e Rufino Blanco Fombona, mas por
outro lado via por toda a parte animosidade e perfídia contra o
Brasil, desenvolvendo como reação uma atitude de orgulhoso
nacionalismo, militarista e mesmo belicista, como se vê em ensaios
do seu livro Bastiões da nacionalidade (1922), onde estuda a
literatura antibrasileira do Uruguai e da Argentina. Caso extremo
foi o de Gustavo Barroso, que se tornaria nos anos de 1930 um dos
líderes mais agressivos do fascismo brasileiro. Desde os anos de
1920 publicou em diversos volumes narrativas patrióticas sobre as
guerras do Sul entre 1816 e 1870, apresentando-as como ações
beneméritas de um Brasil mais civilizado e altruísta que os seus
vizinhos. A tese foi sistematizada na monografia O Brasil em face do
Prata (1930).
Pensemos agora naqueles que enfrentaram o problema do
americanismo sem paixão nacionalista, de um ângulo que procura
superar a visão unilateral das elites e das versões convencionais.
Foi o caso raro de Manoel Bomfim, que publicou em 1905 A
América Latina, livro duro para com os preconceitos do tempo, que
ficou esquecido e nunca teve o merecido apreço. Vale a pena
lembrar a sua origem remota.
Em 1897 o diretor da Instrução Pública do Distrito Federal,
Medeiros e Albuquerque, instituiu o curso de História da América
nas escolas de formação de professores, abrindo concurso para
escolher o melhor compêndio a ser especialmente escrito com este
fim. Apresentou-se um único concorrente, o jovem historiador
Rocha Pombo, cuja obra foi aceita em 1899 com base em parecer
de Manoel Bomfim. Este parecer é o gérmen do seu livro futuro e
já marca divergência com pontos de vista tradicionais (alguns dos
quais aceitos por Rocha Pombo), inclusive ao discordar da
apresentação negativa de Rosas, Francia e López, o que no Brasil
daquele tempo era uma prova da mais extrema liberdade de
espírito.
Os adversários de Manoel Bomfim diziam que a sua informação
na matéria se limitava ao que lera em Rocha Pombo. Não será toda
a verdade, mas é parte dela, como se verifica inclusive pela
repetição dos mesmos erros do compêndio em A América Latina.
Mas o fato é que Bomfim tinha uma imaginação histórico-social
que faltava a Rocha Pombo e lhe permitiu construir com
informação limitada e mesmo insuficiente uma visão profunda e
renovadora.
O seu intuito é expor o atraso da América Latina e averiguar
quais teriam sido as causas. Uma das mais alegadas no tempo se
prendia à teoria da desigualdade biológica das raças, aceita como
verdade científica pelos evolucionistas. A América Latina seria o
que era (um continente atrasado, turbulento, desorganizado)
porque era povoado por índios, negros e mestiços incapazes de
alcançar o nível da raça branca superior dos colonizadores. Bomfim
afasta esta hipótese, chegando a afirmar que a mestiçagem não
significa inferioridade e pode ser inclusive fator de superioridade.
Para ele, os “males de origem”, como os chama, são devidos às
características sociais dos países colonizadores, que se refletiram
no processo de colonização. Este foi marcado pelo “parasitismo”,
conceito-chave em seu pensamento, que transpôs da biologia. O
parasitismo se realiza por meio do trabalho escravo, que gera
formas desumanas de convivência e incapacita a sociedade para os
regimes que possam assegurar progresso e liberdade. Daí o caos
permanente da América Latina.
Segundo ele o parasita degrada o explorado, que chega a
defendê-lo e a morrer por ele, sob a forma de apaniguado ou
soldado, nas lutas internas e nas guerras, em vez de rebelar-se e
tentar abolir o estado de iniquidade social. Mas, vivendo à custa da
exploração completa do parasitado, o parasita acaba incapaz de
sobreviver sem ele, degrada-se ele próprio e cai, dando lugar a
novos elementos dirigentes. Deste modo se mantém a
continuidade da estrutura na mudança dos agentes e nunca se
criam as condições para o trabalho realmente livre, que permite o
bem-estar e o equilíbrio social.
Como as elites tendem a se perpetuar pela persistência da
estrutura, as sociedades latino-americanas são essencialmente
conservadoras, e o seu esforço principal consiste em assegurar o
predomínio das elites através da mudança aparente dos regimes.
Este ponto de vista de Manoel Bomfim fica bem claro no que se
poderia chamar a sua “teoria da independência”: no começo do
século XIX a separação das colônias latino-americanas em relação às
metrópoles foi na verdade o recurso usado pelas elites a fim de
perpetuar a sua dominação, mantendo intactas as instituições
fundamentais, sobretudo o trabalho servil, mesmo quando se
aboliu formalmente a escravidão. Por isto, a lei fatal do
desenvolvimento latino-americano foi o conservantismo.
No estudo do conservantismo Bomfim chega a posições
originais para o tempo (o livro foi escrito em 1903),
desmistificando as posições da historiografia dominante. Ele
mostra que o conservantismo na América Latina foi tanto mais
forte, quanto inconsciente, por ser visceral. Arraigado na alma e na
afetividade de cada um, ele atua a despeito das convicções
aparentes. Estas podem ser liberais e até radicais, exprimindo-se
por meio de leis e discursos avançados, que na verdade servem
para mascarar o essencial, isto é, o mecanismo de permanência das
oligarquias baseadas na espoliação econômica das massas
trabalhadoras, mediante uma capacidade excepcional de
acomodação e transigência, do tipo mudar para continuar.
Talvez esta ideia seja a mais importante do livro e uma das mais
fecundas para o estudo das sociedades latino-americanas,
sobretudo quando o autor a ilustra por meio de uma curiosa
tipologia política. Segundo ele, na América Latina não vingam os
tipos extremos, que desejam a transformação real ou a conservação
absoluta. O que há é uma gradação imperceptível entre os dois
extremos, manifestada nos seguintes tipos, que ele analisa a
propósito dos movimentos de independência no começo do século
XIX: os radicais, que desejavam alterar essencialmente o sistema
colonial; os adiantados, que reconheciam esta necessidade, mas
queriam esperar o momento propício, pois eram “intransigentes
mas cordatos”; os liberais, que desejavam a liberdade, mas, como
isto é vago, se acomodavam em diversas modalidades de
compromisso; os moderados, que eram pacíficos, cautelosos ou
neutros, conforme a necessidade; os conservadores, que se
situavam entre os moderados e os reacionários dissimulados; os
reacionários, isto é, os irredutíveis, que desejavam manter tal e qual
o estado de coisas.
Por isso, houve sempre na América Latina o que ele chama
“deturpação da revolução”, com a vitória dos conservadores sobre
os radicais, gerando toda a sorte de obstáculos ao progresso. O
conservantismo, fruto direto do parasitismo, é assim a causa
principal, o grande “mal de origem”. Numa fórmula excelente, diz
que na América Latina os verdadeiros conservadores são os
moderados, que encontram as acomodações necessárias. Nos dias
em que o livro foi escrito e publicado, eles acolhiam com retórica
enganadora o imperialismo norte-americano, contra o qual Manoel
Bomfim tem páginas duras, desmascarando o pan-americanismo e
É
a Doutrina de Monroe. É natural que o seu nome não figurasse
entre os colaboradores da Revista Americana…
Uma das coisas boas de seu livro é a firme consciência
continental. Ele fala não só como brasileiro, mas como latino-
americano, animado por uma solidariedade fraterna e procurando
exprimir a posição do subcontinente espoliado e atrasado. Mais
tarde modificaria esta posição no livro O Brasil na América (1929),
onde mantém a análise radical da independência, mas atenua a
avaliação da mestiçagem, ao minimizar a presença do africano na
constituição racial do Brasil, exagerando a do índio. Atenua
também o sentimento continental, devido a uma espécie de
patriotismo que o leva a situar o Brasil acima dos outros países,
porque nele a fusão das raças teria sido mais profunda e
igualizadora; e sobretudo porque tinha conseguido uma unidade
inexistente na dispersão da América hispânica. Este problema da
unidade excepcional da América portuguesa levou Manoel Bomfim
a substituir a análise objetiva pelo orgulho nacional. Mas, se
pensarmos no livro de 1903, veremos que nenhum outro foi tão
lúcido e tão latino-americano quanto ele no estudo dos nossos
problemas comuns.
A América Latina remava contra a corrente pan-americanista,
muito forte naquela época. Como era pouco fundamentado, mal
escrito e sobretudo mal composto, não teve a capacidade de se
impor como discurso divergente. E, como contrariava a ideologia
aceita pela maioria dos intelectuais, suscitou uma reação cuja
violência contribuiu para jogá-lo na sombra, pois ela foi devida a
ninguém menos que Sílvio Romero, que era um dos críticos e
pensadores mais ilustres do Brasil.
Irritado, Sílvio Romero escreveu uma série de artigos acerbos,
reunidos em volume no ano de 1906: A América Latina (Análise do
livro de igual título do dr. Manoel Bomfim). É uma obra prolixa e
exibicionista, negando qualquer valor ao adversário, hipertrofiando
questões secundárias para fazer parada de erudição e, no fundo,
nada propondo de mais convincente, na obsessão de contestar os
conceitos de Manoel Bomfim e sublinhar, além da evidente pouca
informação deste, a dependência exagerada em relação ao
historiador português Oliveira Martins. No entanto, é curioso que
hoje o livro mais erudito de Sílvio Romero nada signifique,
enquanto o mal composto, pouco fundamentado mas genialmente
inspirado de Manoel Bomfim esteja cada vez mais vivo.

24. O olhar crítico de Ángel Rama


Quando conheci Ángel Rama em Montevidéu, no ano de 1960,
ele me declarou a sua convicção de que o intelectual latino-
americano deveria assumir como tarefas prioritárias o
conhecimento, o contato, o intercâmbio em relação aos países da
América Latina, e manifestou a disposição de começar este
trabalho na medida das suas possibilidades, seja viajando, seja se
carteando e estabelecendo relações pessoais. Foi o que passou a
fazer de maneira sistemática, coroando as suas atividades quando,
eLivros na Venezuela, ideou e dirigiu a Biblioteca Ayacucho,
patrocinada pelo governo daquele país, que se tornou uma das
mais notáveis empresas de conhecimento e fraternidade
continental através da literatura e do pensamento. Inclusive
porque foi a primeira vez que o Brasil apareceu num projeto deste
tipo na proporção adequada.
Pelo Brasil ele tinha um interesse pouco frequente entre
intelectuais latino-americanos de fala espanhola e chegou a
conhecer realmente bem a nossa cultura e em especial a nossa
literatura, com a capacidade quase incrível de leitura e a rapidez de
percepção que caracterizavam a sua inteligência luminosa. Em
1973 deu um curso breve e memorável na Universidade de São
Paulo, além de participar conosco dos trabalhos da revista
Argumento, que a ditadura militar cortou no quarto número e nós
tencionávamos transformar numa publicação de cunho e âmbito
latino-americano. Em 1980 e 1983 esteve na Universidade Estadual
de Campinas em atividades de integração latino-americana — e
em cada uma dessas viagens comprava mais livros, abria novos
campos de interesse e demonstrava conhecimento crescente e
profundo a respeito do Brasil.
Estas indicações servem para mostrar como estava bem situado
para a reflexão teórica sobre as literaturas da América Latina e
como pôde contribuir neste campo com trabalhos de grande
importância. Inclusive porque sabia elaborar com igual maestria as
análises particulares e as visões sintéticas, ou “panoramas”, como
as qualificava. Isso o imunizou contra o perigo das generalizações
esquematizadoras e impediu que o interesse pelos conjuntos
matasse o essencial do trabalho crítico, ou seja, o desvendamento
dos textos.
A reflexão teórica a que aludi tem problemas peculiares, que se
impõem ao estudioso latino-americano. Antes de mais nada, o
conceito de literatura nacional, que os europeus adotaram em
virtude da sedimentação histórica de que resultaram as
nacionalidades e países da Europa, mas que tem aspectos
diferentes na América Latina, com suas nações formadas há
relativamente pouco tempo, segundo causas por vezes ocasionais.
Outro problema nosso é o da relação com as literaturas dos países
centrais, que pode levar alguns críticos a afirmar uma
especificidade absoluta que não existe, porque, como bem via
Rama, somos parte da mesma civilização. E há muitas outras
questões — como a produção em línguas indígenas, importante
em alguns dos nossos países, ou saber se os gêneros considerados
literários são os mesmos aqui e lá.
A posição de Rama em face de problemas deste tipo se
manifestou em estudos de grande força sugestiva e, poderíamos
dizer, cada vez mais corretos e precisos, pois ele costumava rever
os próprios escritos, elaborava versões diferentes e ampliava tanto
a capacidade de penetração quanto o ânimo integrador. A morte o
surpreendeu numa fase de amadurecimento e progresso que ia
levá-lo a novos trabalhos e conclusões da mais alta importância.
Por isso, costumo dizer que foi dos raros homens insubstituíveis,
porque sem eles as coisas não se farão mais tão bem como se
fariam com eles.
O meu intuito é expor a sua posição em face de alguns dos
muitos problemas que podemos considerar especialmente
relevantes para o estudo das literaturas latino-americanas,
requerendo tratamento próprio. São os seguintes: (1) a posição do
escritor e o imperativo da atitude política; (2) a situação das
literaturas nacionais ante uma eventual literatura integrada do
subcontinente; e (3) a relação entre as sugestões literárias dos
países centrais e as condições próprias dos nossos países na
dialética do processo cultural. Como amostra, usarei apenas alguns
dos seus escritos. O livro La generación crítica, de 1972, que
engloba e refunde escritos dos anos de 1950 e 1960; o artigo “Diez
problemas para el novelista latinoamericano”, de 1964; o artigo
longo “Medio siglo de la narrativa latinoamericana (1922-1972)”, de
1973.

Um traço saliente das literaturas latino-americanas é o cunho


militante do escritor, levado com frequência a participar da vida
política e dos movimentos sociais, em boa parte porque as
condições do meio o empurram neste sentido. Isto produz duas
consequências. A primeira é que a atividade intelectual se torna
em si mesma, pelo simples fato de existir, um ato de participação,
por vezes quase de militância, na medida em que é uma afirmação
de cultura em meios pouco desenvolvidos culturalmente; de modo
que a produção intelectual, em particular a literária, se torna
(numa perspectiva “ilustrada” que vem de longe) contribuição para
construir a nação, dando-lhe um timbre de grandeza. A segunda
consequência é que o intelectual tende com frequência a se
politizar no sentido estrito, mais do que nos países cuja sociedade
e cuja cultura estão sedimentadas de longa data, como na Europa,
ou nos países que transpuseram com maior fidelidade os padrões
metropolitanos, como os Estados Unidos.
Nesta ordem de ideias é importante a contribuição de Rama no
livro La generación crítica, onde estuda a situação do Uruguai nos
anos de 1940 a 1960, como caso extremo de participação dos
intelectuais, em particular dos escritores, no processo da vida
social em transformação, de maneira a configurar o que ele chama
de “função intelectual”. No Uruguai, explica Rama, em vez de
movimentos espontâneos e emocionais, como em tantos países da
América Latina, houve uma “planificação intelectual” manifestada
pela intensa sindicalização, que atingiu não apenas trabalhadores,
mas estudantes, escritores, profissionais liberais. Ela levou a um
verdadeiro poder paralelo ao governo e, em seguida, à formação de
vanguardas revolucionárias recrutadas entre intelectuais, como os
tupamaros.
A base deste estado de coisas foi a pequena burguesia, cujas
condições de bem-estar econômico e formação cultural foram
favorecidas pelo regime do presidente Batlle y Ordóñez, sobretudo
depois de 1911. Constituiu-se então uma estrutura política
democrática e civilista que deu a impressão de ter realizado um
sistema liberal e igualitário estável. Os problemas (prossegue
Rama) surgiram depois de 1930, quando tais setores médios
exigiram a igualitarização econômica prevista pelo batllismo, mas
em seu próprio benefício. Sentiu-se então que o proletariado
estava excluído dessa “revolução da classe média”, cujos setores
esclarecidos se uniram aos operários. Quando chegou a crise dos
anos de 1950 esta tendência gerou movimentos sob a liderança da
pequena burguesia, bem formada devido à excelente instrução
secundária. Daí o caráter dirigente da referida “função intelectual”
exercida por esta camada, que chegou inclusive a traçar os
métodos de tomada eventual do poder.
Sempre conforme a exposição de Rama, a participação dos
intelectuais pequeno-burgueses se deu de dois “modos”,
diferentes e nem sempre harmonizados: “imaginação criadora” e
“consciência crítica”. A “imaginação criadora” se consagra a
perceber as rachaduras do sistema dominante e a propor a imagem
do sistema futuro. Diferente da imaginação romântica, centrada no
eu, ela se volta para a sociedade, valendo-se dos conhecimentos,
mas também da ficção e da poesia.
Do seu lado, a “consciência crítica” desenvolve uma atitude de
oposição e propõe os termos da luta. Ela determina a “função
crítica”, que numa primeira etapa visa a regular os processos
criativos de uma sociedade que ela mantém sob vigilância e
procura orientar. Mas quando os organismos dirigentes a repelem,
querendo que seja espectadora sem intervir, ela passa, numa
segunda etapa, à atitude militante, gerando interpretações e
fundamentações ideológicas para orientar o confronto. Neste caso,
a consciência crítica dos intelectuais se torna uma arma
extremamente destruidora. Foi o que aconteceu no Uruguai a
partir de 1939, mais ou menos, com a que Rama denomina
“geração crítica”, também chamada lá “geração de Marcha”, nome
do semanário (notabilíssimo semanário, digo eu) que foi o órgão de
todos esses intelectuais (1939-1969). Atuaram nele escritores como
Carlos Quijano e Juan Carlos Onetti, praticando uma crítica
corrosiva, exigente, além da mudança que imprimiram ao
romance, sob o impacto da urbanização e dos problemas
individuais. A crítica literária era exercida por homens de
orientação muito diversa, mas dotados da capacidade de fazer
análise desmistificadora, como Ángel Rama, Emir Rodríguez
Monegal, Mário Benedetti.
O elemento comum a esta geração crítica foi a consciência do
fracasso inevitável do regime liberal, devido ao enfraquecimento
de suas bases econômicas, injustas e mascaradoras. Daí o terem
denunciado e atacado, depois de terem percebido aos poucos a sua
verdadeira natureza. Por isso, começaram por uma crítica chamada
“construtiva”, mas depois formularam propostas renovadoras, que
levariam ao fim do regime liberal, cujos “coveiros”, segundo Rama,
foram os intelectuais.
Um traço importante de La generación crítica é que ele não
estuda este processo por meio da análise das ideias, mas pelas
manifestações da “imaginação criadora” e da “consciência crítica”
no ensaio, na crítica literária, no teatro, na narrativa, na poesia, que
foram infiltrados por esse espírito. Diz Rama:

Quando uma cultura se incorpora ao espírito crítico, não deixa


nenhum resquício das manifestações intelectuais sem contágio
deste empenho: um poema erótico, um quadro de cavalete, um
romance sentimental dão resposta ao mesmo impulso que
estimulou um estudo histórico, um artigo de fundo, um
diagnóstico sociológico.

Esta consciência crítica do intelectual, que o leva a participar,


surge da insatisfação com o estado de coisas e não se prende
necessariamente a nenhum estilo (realista, por exemplo), ou a uma
filosofia (o marxismo, por exemplo). Mais forte nela do que um
alvo preciso é o sentimento constante da desilusão e o desejo de
transformar. Daí poder manifestar-se através de alienação aparente,
como na obra de Onetti, onde sentimos o protesto por meio do
isolamento. Esta consciência se manifesta na literatura de duas
maneiras: (1) demolição do mundo literário precedente e (2)
desenvolvimento de fermentos críticos que este mundo continha.
Segundo Rama, naquela altura a primeira maneira predominou no
Uruguai e a segunda na Argentina.
Um traço interessante que ele destaca é o seguinte: esta geração
foi acusada de “estrangeirismo”, de traição ao ideal latino-
americano, porque efetuou uma substituição radical de influências,
passando a assimilar intensamente os livros europeus e norte-
americanos modernos. Mas, paradoxalmente, deu-se o contrário: o
universalismo levou a um contato muito maior com este ideal,
porque tais escritores se fixaram no mundo cultural latino-
americano para mostrar que possuíam a seu modo o timbre
nacional que lhes era contestado. Assim, transformaram a cultura
latino-americana numa fecunda mediação entre a dimensão
nacional e a dimensão universal, em lugar da posição retórica e
sentimental do passado.

São valiosas as ideias de Rama sobre o problema das literaturas


nacionais do subcontinente. Por exemplo, as que manifesta no
artigo “Diez problemas para el novelista latinoamericano”,
publicado na revista Casa de las Américas, de Havana, n. 26, out.-
nov. 1964.
O pressuposto é perfeito e manifesta a melhor posição ante esse
problema, sobretudo levando em conta o nativismo por vezes
deformador que faz boa parte da crítica latino-americana escrever
como se a nossa criação literária fosse puramente autóctone. Para
Rama, visto que a América Latina faz parte do “fenômeno
civilizatório ocidental”, aquilo que consideramos próprio da sua
literatura é na verdade comum à literatura do Ocidente, embora
com marcas diferenciais próprias. Isso não impede que o
funcionamento da literatura tenha entre nós características que
devem ser ressaltadas. Por exemplo: o romancista aqui não teve,
até bem pouco, uma carreira, tanto assim que os seus livros eram
produtos isolados, sem sequência, salvo raras exceções.[23] Isso se
deve à ausência de profissionalização, devida por sua vez à falta de
relações com o público, o que seria requisito para a existência da
carreira. Segundo ele, o romancista latino-americano escreve para
os setores médios e altos da classe média, da qual geralmente se
origina; não para os seus segmentos inferiores nem para o
operariado. Daí, no panorama latino-americano, uma ausência de
romance do “áureo meio”. De fato, ou o romancista se dirige a um
setor refinado e restrito, como Jorge Luis Borges, ou tenta captar o
gosto regionalista, fazendo para este fim obras esquemáticas e
rústicas, como Jorge Icaza.
Para explicar este estado de coisas, Rama adota o conceito de
“sistema literário”, de cuja constituição dependem as literaturas
propriamente ditas, denominadas por ele “literaturas nacionais”.
Na sua opinião elas inexistem na América Latina, com exceção do
Brasil e, parcialmente, do México e de Buenos Aires (não a
Argentina em geral). Para ele, os sistemas literários são totalidades
coerentes, “nitidamente diferenciáveis, com estrutura interna
própria, constelação temática, sucessão estilística, operações
intelectuais peculiares e historicamente reconhecíveis”.
As literaturas latino-americanas são divisões puramente
históricas da atividade literária segundo cada nação, mas a
realidade é transnacional e se prende a certas regiões que foram
despedaçadas pela “balcanização” a que ele chama “comarcas”.
“Comarca” é um segmento do subcontinente onde há
homogeneidade de “elementos étnicos, natureza, formas
espontâneas de sociabilidade, tradições da cultura popular, que
convergem em formas parecidas de criação literária”. Exemplos: o
Caribe; a área pampiana, englobando trechos de Argentina,
Uruguai, Brasil; a área correspondente ao antigo Tihuantisuyo dos
incas, transbordando as fronteiras do Peru, do Equador e da
Bolívia. Dentro de tais “comarcas”, a literatura desempenhou um
papel de aproximação entre países, sobretudo a mais embebida de
cultura popular.
No entanto, há um elemento que transcende todas as comarcas
e pode servir de critério para delimitar um universo literário: a
língua. Levando-a em conta, Rama define o mundo hispano-
americano como um corpo separado, do qual fica fora o Brasil. Por
isso, existem lado a lado dois grandes sistemas literários separados
pela língua e quiçá por elementos constitutivos de vária natureza.
Posteriormente Rama atenuou esta dicotomia América
hispânica/Brasil, chegando a uma visão unificadora em outros
estudos, como o admirável “Medio siglo de narrativa
latinoamericana (1922-1972)”, escrito em 1972 e publicado no ano
seguinte em italiano. Em espanhol apareceu apenas em 1982, com
retoques feitos em 1975.
Neste ensaio ele joga com dois níveis que se interpenetram, o
hispano-americano e (mais amplo) o latino-americano. Parece-lhe
que a partir de 1910 mais ou menos a América Latina desenvolveu
o seu sistema literário próprio, em dimensão continental,
formando o que chama “um único sistema literário comum”, do
qual o Brasil é parte integrante e não mais corpo paralelo, como na
concepção anterior. Mas este sistema único é bastante
diferenciado, de maneira a constituir uma estrutura dual. Como é
frequente nos escritos de Rama, este ensaio é riquíssimo,
fervilhante de ideias, cheio de pontos de vista originais e
reveladores, dos quais destacarei apenas os tópicos ligados à
dialética da vanguarda e do regionalismo, que ele desenvolve de
maneira magistral e, ao que penso, decisiva para esclarecer o
terceiro tema teórico a que me referi: a relação entre as influências
dos países centrais e as necessidades expressivas próprias da
América Latina. Ele o aborda com uma originalidade e uma
penetração absolutamente singulares, que parecem dar a palavra
final sobre um tema comprometido pelos rios de tinta rala que tem
feito correr em considerações quase sempre inócuas.
Segundo ele, os dois focos principais da vanguarda na América
Latina foram São Paulo e Buenos Aires, e em ambos verifica a
ocorrência de algo que é comum a todo o subcontinente: a
existência do que chama “dois modos”. O primeiro deles é a pura
formulação vanguardista, representando ruptura radical com o
passado e referência a uma realidade virtual que se projeta no
futuro. Este modo se vincula diretamente às vanguardas europeias,
que serviram de estímulo e, mais do que isso, de modelo,
representando uma direção “universalista”. No entanto, este
“modo” não foi alienador, como tinham sido as tendências
decadentistas na passagem do século XIX para o século XX: “O que
(as vanguardas latino-americanas) recuperaram em Paris foi a
originalidade da América Latina, a sua especificidade, o seu
timbre, a sua realidade única”.
O segundo “modo” foi a penetração na realidade local, que
tende ao realismo, suscita o regionalismo e portanto a
continuidade com o passado, pois o regionalismo pressupõe a
valorização das tradições e certo sentimento conservador de
nostalgia, que resiste às inovações do mundo contemporâneo.
Mas, como as tendências renovadoras se exprimiram por vezes nos
termos do regionalismo, houve na América Latina uma “dupla
vanguarda”, gerando certa duplicidade difícil de solucionar. Ela
produziu no escritor de vanguarda um dilaceramento do qual os
brasileiros escaparam melhor, devido ao cunho fortemente
nacional de sua literatura, o que não ocorria noutras partes do
subcontinente. Neste sentido, Rama considera Macunaíma, de
Mário de Andrade, “a articulação mais feliz do sistema literário
brasileiro”.
Mas a partir daí assinala uma consequência que pode ser
considerada o traço mais original e fecundo das nossas literaturas
no período atual, e que se produziu como desdobramento da
“dupla vanguarda”: a penetração do espírito e das técnicas
renovadoras no universo do regionalismo, condicionando a obra
singular de autores como José Maria Arguedas, Juan Rulfo, Gabriel
García Márquez, João Guimarães Rosa. Elas pressupõem a fusão
dos dois “modos” conflitantes, superando-os mediante uma
síntese inesperada (que talvez, podemos inferir, seja o motivo
principal do impacto da nossa narrativa no tempo do famoso
boom). Isto foi sem dúvida uma criação própria do nosso universo
literário, e ao defini-lo tão lucidamente Rama deu formulação
madura e superior a pontos de vista que tinham sido percebidos
por outros críticos de maneira parcial e incompleta, e nunca
haviam sido expostos com originalidade, força integradora e
capacidade explicativa tão fortes.

25. Em (e por) Cuba


Estive em Cuba durante 25 dias de janeiro a fevereiro de 1979,
como membro de uma das comissões julgadoras do prêmio anual
Casa de las Américas. São prêmios de romance, conto, poesia,
ensaio, literatura infantil, testemunho — para autores latino-
americanos ou residentes em país da América Latina. A partir de
1979 incluíram-se novos prêmios de poesia e ficção para escritores
antilhanos de língua francesa e inglesa. A partir de 1980 haverá
para os brasileiros um prêmio em língua portuguesa nos diversos
gêneros. Um dos significados mais importantes desse prêmio é o
fato de promover anualmente o encontro de intelectuais de todos
os países da América Latina, sem ser sob a égide de algum país
imperialista.
Fiz parte da comissão do prêmio de ensaio com mais quatro
companheiros: um argentino, um cubano, um porto-riquenho e
uma russa. Indicamos três obras, das quais uma deveria ser
escolhida; mas acabaram sendo as três, porque havia vagas devidas
a prêmios não atribuídos. Os autores premiados foram um porto-
riquenho de orientação marxista; um guatemalteco meio
goldmanniano, com algum Bakhtin e certo estruturalismo; uma
mexicana que seguia a tradição das monografias de cunho positivo,
sem qualquer referência ideológica intencional.
A estadia foi fascinante, mas trabalhosa, porque havia muita
matéria para ler em poucos dias. Por isso, não foi possível
aproveitar todas as oportunidades oferecidas pelos anfitriões:
visitas a instituições educacionais, assistenciais, culturais;
exposições, espetáculos, concertos, conferências, projeções de
filmes; visitas a fazendas e cooperativas etc. Não foi possível
sobretudo andar à vontade pelo interior, conviver mais
intimamente com o povo, penetrar pelo cotidiano adentro com a
curiosidade natural de quem visita pela primeira vez um país
socialista e quer ver como funciona. O que valeu foi a leitura prévia
dos livros recentes de brasileiros como Fernando Morais, Jorge
Escosteguy e Ignácio de Loyola. (Só na volta li o de Antonio
Callado.) Os dois primeiros tinham ido lá para observar e escrever,
em tempo integral; mas Ignácio de Loyola, não sei como pôde
funcionar ativamente numa comissão de prêmio e ainda por cima
ver e anotar tanta coisa para o seu livro. Os três tornaram possível
uma preparação relativa para a visita.
Ajudou também muito César Vieira, que estava na comissão
para obras teatrais e, já tendo antes visitado Cuba com o seu grupo
de teatro, conhecia bem as coisas. Além disso me vali de conversas
e andanças com brasileiros residentes lá, alguns fazia muito tempo;
de colegas das comissões que tinham experiência do país; dos
próprios cubanos, sempre prontos a informar, discutir, ouvir.
Não foram, portanto, 25 dias despreparados. Além disso, em
circunstância como esta ocorre uma espécie de experiência
condensada, por causa da capacidade de ver e assimilar mais do
que em períodos normais. A convivência ganha um toque de
intensidade, a observação se aguça, os poros da mente ficam mais
abertos e a curiosidade calça botas de sete léguas na percepção. Por
isso, tenho certa confiança nas minhas impressões.
Sendo programadas pelos hospedeiros, as nossas experiências
se concentraram nos aspectos positivos do país. Quanto aos
outros, que sempre há, seria pedir demais que os cubanos
chamassem a atenção sobre eles. Em todo o caso, os aspectos
positivos são surpreendentes nos setores que pude ver: vida
cultural, escola, organização assistencial e agrícola, artes. Nada vi
da indústria nem dos mecanismos do governo. Mas, nas brechas
dos programas e tanto quanto permite a dificuldade dos
transportes urbanos, andei pelas ruas, fui a restaurantes, vi alguma
coisa dos Comitês de Defesa da Revolução, tive certos contatos
com a zona residencial atulhada do centro de Havana. E muitas
conversas de rua, fáceis entre gente tão amável e comunicativa.
Estive mesmo quase participando de uma discussão de jardim,
sobre se 1 trilhão é mil vezes ou cem vezes mais do que 1 bilhão,
sendo que o defensor da primeira hipótese explicava com o seu ar
de aposentado que no mundo “hay millonarios, hay billonarios, pero
no hay trillonarios”. Todos mais velhos do que eu, alegres, talvez
um pouco bebidos, de charuto na boca, tomando a fresca da tarde à
sombra da estátua velha de Martí.
O cubano que encontramos na rua e nas reuniões parece em
geral alegre, desanuviado, altivo e sem sombra de cafajestismo.
Nunca se tem a impressão de povo acabrunhado ou constrangido,
que chama a atenção do visitante em certos países. É como se a
igualdade social, abolindo as classes privilegiadas, suprimisse
também o impulso de as macaquear, a vontade deprimente de
parecer com elas; e assim instaura um modo de ser ao mesmo
tempo natural e confiante. No caso de Cuba isto é devido também
ao fato de todos terem adquirido uma espécie de orgulho
confortador por causa das vitórias sobre el enemigo (e que inimigo,
ali a uns poucos quilômetros, com a maior força do mundo). E por
causa da superação das fases mais duras na luta pela construção do
país socialista.
Quando estávamos voltando para Havana, depois de quase uma
semana perto de Cienfuegos, fomos até a baía dos Porcos ver o
local e o museu relativo à fracassada invasão de expatriados,
custeada e orientada pelos Estados Unidos no tempo de Kennedy.
Foi quando Jesus Díaz, excelente contista e cineasta, se pôs a
relatar as manobras de forças convergindo para enfrentar o
desembarque, algumas por aquele caminho, outras pela redondeza.
Ele, que era então muito jovem, comandava um pelotão. Quando
estava dizendo isto, levantou-se e veio vindo o encarregado do
ônibus (que fica perto do motorista) e confraternizou, dando
também as suas informações. Era mais velho que Jesus, tinha um
tipo popular decidido e também comandara um pelotão de outra
unidade, no mesmo combate decisivo.
Entre aqueles homens expansivos, formados na atmosfera
heroica e exaltante da luta pelos melhores ideais, que condicionou
uma geração de cubanos, podia-se ter a ideia nítida do que são
Forças Armadas construídas nesse nível humano e ideológico; o
quanto elas dão de realidade à metáfora geralmente vazia do “povo
em armas”; e como tudo isso deve ter contribuído para a
serenidade firme que se observa nas pessoas.
(No Hotel Passacaballo, perto de Cienfuegos, eu já tinha feito
camaradagem com o encarregado do ônibus, apreciando as suas
ideias desabusadas sobre a violência eventualmente necessária na
implantação do socialismo, na hora certa e na dose certa, dizia ele.
E citava o exemplo de Allende como da tolerância excessiva que
acaba dando vitória ao inimigo e, assim, provocando violência
maior, porque o terror branco é o que sabemos.)
Outro fator para o modo de ser que estou comentando é com
certeza a tranquilidade em relação às necessidades básicas — que a
Revolução Cubana de fato resolveu. É impressionante como
amigos e inimigos do regime concordam neste ponto fundamental:
que em vinte anos os problemas cruciais foram solucionados e o
povo cubano tem o que precisa, de maneira satisfatória, em
matéria de alimentação, saúde, instrução, previdência; de modo
menos satisfatório, mas suficiente, em alojamento. A revolução
acabou com a miséria e os extremos da desigualdade, dando a
todos oportunidades mais ou menos equivalentes. Falta resolver
em bom nível a questão da moradia, cuja solução é sempre difícil e
mais vagarosa nos países que instauram a igualdade econômica,
mostrando como a privação e a desigualdade neste setor são
incríveis nas sociedades de classes. Ao contrário de antes, agora
todos os cubanos têm onde morar com decência, mas o espaço
habitacional ainda é parco e há desconforto. Pelo que depreendi,
no ritmo atual de construções Cuba poderá levar ainda muitos
anos para dar moradias realmente boas a todos. Também o
transporte urbano deixa a desejar, havendo poucos ônibus, e táxis
mais do que vasqueiros. Mas, repito, todos sabem que o essencial
está resolvido.
O trabalhador que volta para a sua casa modesta, depois de
muito tempo na fila e um trajeto em veículo apinhado, tem apenas
que enfrentar o mau humor e o cansaço desta dificuldade. As
grandes causas materiais de desespero não existem mais para ele,
porque não lhe falta o essencial: alojamento, comida, roupa,
assistência médica, instrução para os filhos, dinheiro. Supondo que
more como um operário brasileiro e que, como este, se esfalfe nos
longos percursos, tem sobre ele um feixe decisivo de vantagens,
que permitem paz de espírito e alívio das tensões corrosivas.
Nas velhas casas subdivididas do centro de Havana, no fim da
tarde, os trabalhadores estão sentados na sua cadeira, banho
tomado, conversando com o vizinho, enquanto vão chegando da
escola os filhos bem nutridos, bem uniformizados, com todo o
material necessário, com as oportunidades de qualquer menino
cubano, seja filho de camponês ou oficial, de operário ou ministro,
de motorista ou escritor. A impressão do estrangeiro passeando é
que de fato está num outro sistema; que o socialismo está se
construindo e com ele um timbre diferente de humanidade.
Se esse estrangeiro resolver caminhar por uma estrada ou
descampado; se quiser andar longamente pelas ruas num passeio
noturno, de volta ao hotel, não correrá risco maior de assalto nem
de ser estripado por causa do relógio de pulso. A delinquência é
por assim dizer normal, na taxa inevitável que se imagina em
sociedade bem organizada. (Não ouvi falar em nada pior do que
roubo de óculos escuros, máquinas fotográficas, bolsas, um ou
outro conto do vigário, raros erros intencionais de conta e
propostas de câmbio negro, inofensivas para o turista, graves para
o proponente. As penas para desonestidade são pesadas.) Uma
segurança destas, que vem de todos, da base, do dia a dia, espanta
e tranquiliza o visitante acostumado às nossas e outras paragens;
ao mesmo tempo revela a transformação do homem, junto com a
transformação da sociedade, uma coisa condicionando a outra.
Essa novidade no homem, incrível na América Latina, pode ser
verificada nas atividades mais diversas, desde a realização quase
miraculosa de uma terapia redentora para as moléstias mentais, até
o funcionamento dos Comitês de Defesa da Revolução — como eu
vi mais de um, de noite, ao ar livre, num trecho de rua
transformado em auditório, com os renques de cadeiras, a mesa
diretora, a tribuna, os holofotes e alto-falantes. Aí se vê realmente
o povo discutir, deliberar e influir — em assuntos que vão desde a
comida ruim de um restaurante do bairro até as prepotências de
um funcionário. Então, o observador começa a sentir a
extraordinária liberação de energia que o socialismo acarreta. Para
a massa enorme que a desigualdade econômica sufoca e mutila
espiritualmente, ele abre as possibilidades para a realização de cada
um, que se torna imediatamente realização de todos. Em Cuba
este processo correu paralelo a outro, de grande alcance, e que foi
uma sorte grande histórica: o êxodo de inimigos, a saída voluntária
da burguesia, com a sua cauda longa de parasitas e corruptos,
livrando o país de grande parte dos elementos que teriam
suscitado continuadamente os problemas mais graves. Deu-se em
boa parte uma substituição de classes, que foi uma das condições
do seu desaparecimento progressivo; e como a revolução pôde
vencer o assalto daquela parte adversa, a República ficou de fato
mais limpa. Talvez seja impressão, mas parece haver uma nitidez
acentuada nas pessoas, na atmosfera cotidiana, nas regras do jogo.
Para quem passou a vida lendo o socialismo nos livros e fazendo
alguma força para o seu advento longínquo, a experiência é das que
exaltam e compensam.
Assim, Cuba está conseguindo renovar o homem, sobre a base
duramente construída das grandes garantias essenciais à vida —
coisa que nenhum outro país latino-americano sequer esboçou até
agora. Noutros países socialistas há uma retórica acentuada sobre
esta re-formação humana; mas frequentemente fica parecendo que
objetivos imediatos de natureza técnica e econômica são postos
antes, de modo a jogarem para muito adiante (e, portanto, quem
sabe torná-la impossível) essa humanização que em Cuba parece
tão presente e realizada.
Daí a impressão de um socialismo mais desafogado e flexível do
que fariam supor certas formulações oficiais. Inclusive uma
liberdade de experiência, cujos traços originais divergem do que é
rígido na prática de outros países socialistas. Talvez devido a
peculiaridades da história de Cuba.
Na Biblioteca Nacional, em Havana, assisti a uma conferência
de Roberto Fernández Retamar, seguida de debates com os
participantes duma espécie de curso nacional cujos melhores
alunos, todos adultos, estavam ali para discutir a figura de José
Martí. Falou-se do seu radicalismo quase socialista, configurando
um verdadeiro precursor da situação atual, como se ele fosse o
equivalente latino-americano dos radicais russos do século passado
— homens como Herzen, Tchernichévski, Dobroliúbov. Pensei
então que Cuba talvez seja um caso único entre os países latino-
americanos pela capacidade precoce de formular posições
verdadeiramente revolucionárias; e não com o sentido meramente
autonomista dos outros países, determinado pelas classes
dominantes, que mantiveram o jugo e sua justificação ideológica
apesar da mudança de estatuto. Martí teria sido na verdade um
precursor orgânico (não um mero símbolo); e o peso da sua
atuação influi na maneira pela qual os cubanos assimilaram o
marxismo e praticam o socialismo. Isso é diferente do que
aconteceu no resto da América Latina, pois nos outros países o
papel de patriarca coube a conservadores, ou a vocações de rei sem
coroa. A originalidade das soluções cubanas (pensava eu ouvindo
os debates) está enraizada no processo histórico da luta pela
libertação nacional. Por isso, Martí é situado em plano teórico
depois de Marx, e Fidel Castro se considera o seu seguidor.[24]
O teste de uma revolução (de verdade) é a relação entre o seu
custo humano e o seu saldo social. A conclusão a respeito é que
Cuba realizou um máximo de igualdade e justiça com o mínimo de
sacrifício da liberdade. Trata-se de um regime voltado para a
libertação do povo, a fim de promover a sua atuação efetiva na
transformação da sociedade. Portanto, teve e tem de neutralizar
inimigos, evitar retrocessos, usar a força para realizar o que é a
solução mais humana para o homem. O intelectual de um país
onde a burguesia domina com força bastante para permitir o jogo
das opiniões; mesmo o intelectual de um país como o Brasil, que
só recentemente readquiriu um pouco do direito a este jogo, pode
estranhar, por exemplo, a severa arregimentação social do trabalho
em Cuba, as limitações da sua imprensa, a dureza com os
adversários. Mas ao mesmo tempo verifica que enquanto nos
nossos países há uma prática democrática de superfície, porque
está baseada na tirania econômica e alienadora sobre a maioria
absoluta, em Cuba há uma restrição relativa na superfície e, em
profundidade, uma prática da democracia em seus aspectos
fundamentais, isto é, os que asseguram não apenas a igualdade e a
libertação da miséria, mas o direito de deliberar nas unidades de
base e dialogar com os dirigentes, resultando a conquista dos
instrumentos mentais que abrem as portas da vida digna.
Tenho lido e ouvido restrições a Cuba, e de fato algumas são
justas. Não é positivo saber que há intelectuais sofrendo sanções
por delito de opinião; nem ver que os nomes de escritores infensos
ao regime, cubanos e estrangeiros, são omitidos nos jornais em
contexto puramente literário; e a imprensa em geral é insípida (falo
de traços relativos ao meu setor).
Ora, creio que não haveria a menor necessidade disso, porque
Cuba possui uma tal abertura mental, uma tal universalidade de
experiências, ao lado da serena autoconfiança nacional, que a
discordância seria perfeitamente digerível. No caso, a arma
adequada seria a resposta, o debate; não a supressão. Penso que
nesses casos Cuba superestima a importância e o efeito das
divergências, desconfiando ao mesmo tempo sem razão das
próprias forças. O país que nunca oficializou cânones estéticos
nem adotou o realismo socialista; que cobre as paredes dos prédios
públicos com quadros das tendências mais diversas; que pratica o
experimentalismo na música e produz os cartazes mais livres e
bonitos que se podem imaginar — tal país não precisa proscrever
livros, temer os críticos ou fazer dura a vida dos intelectuais em
desacordo. Desde, é claro, que não trabalhem efetivamente pela
contrarrevolução, pois o Estado que não preserva as suas
conquistas humanizadoras falha no compromisso com o povo. Lá o
saldo é tão grande e positivo, que tudo isso poderia ser tratado de
outro modo.
Quando consideramos um país ou um regime, o nosso olhar se
orienta pelas nossas convicções. Como socialista, acho que as
falhas da Revolução Cubana são pequenas em face do enorme
saldo positivo — que é o êxito na construção do socialismo. E de
um socialismo aberto, inteligente, fraterno. O conservador e
mesmo o liberal de corte tradicional verão com certeza de outro
modo, porque pensam sempre na estrutura em si, e não no
processo, que dá o sentido real das coisas.
Com pouco discernimento desse processo e com uma visão
formalista parecem estar diversos críticos de valor, como, para
citar apenas um, o escritor espanhol Juan Goytisolo, que em artigo
deste ano enumera as restrições mais correntes nos meios
intelectuais, inclusive esquerdizantes ao seu modo. Trata-se de
uma resenha do livro Cuba: Order and Revolution, de Jorge I.
Dominguez, no New York Review of Books (v. XXVII, n. 4, 22 mar.
1979).
Deixando de lado a análise e o pormenor dos reparos, fixemos a
conclusão, que é justamente onde o autor se encontra com muitos
outros. Depois de reconhecer que a Revolução Cubana acabou
praticamente com o desemprego; que teve êxito espetacular nos
setores fundamentais da instrução, saúde, habitação para os
pobres; depois disso chega ao que lhe parecem ser os grandes
pontos negativos. Assim, diz que na região do Caribe sempre
houve quatro pragas: (1) monocultura; (2) caudilhismo; (3) governo
militar e ditadura; e (4) dependência em relação aos Estados
Unidos. Segundo ele, nada disso se alterou essencialmente em
Cuba, com a diferença que a dependência passou a ser com relação
à União Soviética.
Trata-se de uma reflexão de caráter formal, no sentido em que
cada tópico é visto como um traço autônomo e não em seu nexo
com a realidade. Ou por outra: é visto pela aparência lógica, não na
totalidade do contexto, que permite determinar o significado
verdadeiro.
De fato, a monocultura do açúcar continua — mas
desapareceram as suas consequências negativas para a sociedade,
inclusive a concentração da riqueza em mãos de uma oligarquia e o
desemprego na entressafra; ou por outra — o açúcar não é mais
fator de concentração de riqueza em poucas mãos, nem de
subordinação ao imperialismo, nem de uma desigualdade
monstruosa, nem de desamparo do trabalhador, que antes era
jogado periodicamente na miséria.
Existe a liderança continuada de um homem, mas ela não é
imposta pelos interesses econômicos a fim de manter a
desigualdade. Além de controlada por diversos órgãos, é
sancionada a cada momento pelo diálogo com a massa e o desejo
das organizações, porque corresponde às aspirações populares e às
necessidades sociais. Fidel Castro é um líder extremamente
humano que funciona de fato como mandatário, inclusive pela
capacidade excepcional de consulta direta às bases e de fidelidade
aos órgãos da revolução. Daí o seu desempenho ser um vasto
serviço de natureza consensual. Como disse Alceu Amoroso Lima,
é sem dúvida o maior líder latino-americano deste século, com a
estatura dos grandes libertadores do século passado.
Quanto ao terceiro ponto, a simplificação formalista, chega a
fazer sorrir. O Exército cubano nasceu de guerrilha, da luta
revolucionária, sendo realmente uma extensão do povo em armas.
(La más roja flor del pueblo, como no velho canto republicano
espanhol.) Ele fez a revolução e em certa medida é condição dela; a
participação no poder é a sua cota de serviço, ao lado da de outros
setores. Querer compará-lo aos exércitos sangrentos e fratricidas
do Caribe, da América Central e da do Sul; querer assimilar a sua
atuação no poder à violência policial a serviço das classes
dominantes, que se observa nesses casos, é quase cômico.
Finalmente, sabe-se que a União Soviética e outros países
socialistas (de um socialismo menos atraente que o de Cuba)
apoiaram a Revolução Cubana e tornaram possível em grande parte
a sua sobrevivência. Mas os próprios estudiosos adversos
reconhecem que, apesar da fidelidade a esses países, ditada pela
comunhão de propósitos e pela gratidão, Cuba tem mantido uma
independência notável na sua política, inclusive a contrapelo de
preferências soviéticas, como no caso do auxílio a Angola e
Moçambique. É o que se pode ler, entre outros lugares, nos
insuspeitos Problems of Communism, publicação oficiosa norte-
americana (v. XXVII, nov.-dez. 1977). Mas, ficando para argumentar
no terreno esquemático do Goytisolo, poder-se-ia dizer: muito
bem, suponhamos que Cuba passou de fato da dependência
americana para a soviética. O que lhe valia a primeira? O que lhe
vale a segunda? Enquanto os Estados Unidos a tinham
transformado de maneira aviltante num apêndice semicolonial, por
intermédio de sucessivas organizações políticas da oligarquia;
enquanto ainda hoje sustentam de maneira direta ou indireta toda
a sorte de Duvaliers e Somozas, para perpetuarem os regimes mais
sinistros da América; enquanto isso a União Soviética ajuda Cuba a
construir um socialismo humano, que resolveu os problemas que
sufocam todos os outros países latino-americanos.
A conclusão, para quem realmente quer ver a justiça social, é
que se Cuba for apoiada por um grande número de países não
precisará depender deste ou daquele, podendo desabrochar com
mais desafogo. Portanto, trata-se de apoiar, e não rejeitar; de
reconhecer as enormes qualidades, e entender os defeitos; de
promover em cada um dos nossos países os movimentos de apoio,
que pressionem os governos no sentido do reconhecimento
diplomático e do intercâmbio. Se puder manter relações normais
com um grande número de outros Estados, Cuba será cada vez
mais aberta, menos monocultora, menos atenta à sua segurança,
mais democrática e próspera. Porque nenhum outro povo latino-
americano tem tantas condições quanto o cubano para alcançar o
máximo de justiça social realizável. Em Cuba está o melhor da
América.

26. Discurso em Havana


É a primeira vez que um brasileiro fala nesta solenidade
inaugural do Prêmio Casa de las Américas. A pessoa não tem
importância, mas o fato é sem dúvida cheio de significado. Antes
de mais nada, porque corresponde a algo novo: a inclusão da língua
portuguesa no prêmio, como oportunidade para os escritores do
meu país concorrerem em pé de igualdade com os de língua
espanhola, francesa e inglesa, exprimindo em toda a sua amplitude
o horizonte cultural da América Latina e do Caribe. E corresponde
também, sem dúvida, a uma resposta da Casa de las Américas à
acolhida entusiasta que o estabelecimento dos prêmios em língua
portuguesa recebeu no Brasil.
Foi como se os escritores do meu país estivessem esperando
uma oportunidade para demonstrar o seu apreço pelas iniciativas
culturais de Cuba, bem como o seu desejo de entrar em contato
com ela. Além disso, foi como se sentissem o imenso conteúdo de
fraternidade continental que a Revolução Cubana põe nessas
iniciativas, de maneira a fazer do Prêmio Casa de las Américas um
ritual de solidariedade.
A inclusão do Brasil no prêmio é um novo exemplo do espírito
que caracteriza a Revolução Cubana no nível das relações entre os
povos, isto é, a disposição ativa de solidariedade, manifestada no
respeito pelos que a respeitam e no apoio aos que, como ela, lutam
pela libertação nacional, contra as tiranias do mundo
subdesenvolvido e a voracidade do imperialismo. Em tudo isso há
um modo militante de conceber a amizade, que não recua ante o
sacrifício e procura orientar o seu próprio interesse pelo interesse
comum. Comum à América Latina e às aspirações de igualdade
verdadeira no mundo, que a Revolução Cubana tem procurado
servir, desde o entendimento através do intercâmbio, até a
solidariedade por meio das armas. A história registrará como fato
novo esse esforço para ajudar aqueles países do Terceiro Mundo
que em nossos dias procuram edificar a si mesmos com
independência e justiça, libertando-se da herança imperialista. A
história registrará igualmente como, nos momentos mais difíceis
da sua própria luta revolucionária, Cuba desenvolveu os trabalhos
deste admirável centro que é a Casa de las Américas, um dos
instrumentos mais nobres e eficazes de integração cultural da
América Latina. Desses trabalhos, o prêmio, cada vez mais amplo,
é uma projeção e um luminoso sinal.
É preciso acompanhar essa atividade notável em suas diversas
etapas para avaliar a função histórica de integração e solidariedade
que a Revolução Cubana desempenhou, e se projetará no futuro de
um modo que podemos vislumbrar, se extrapolarmos tomando
como base a importância já assumida em nossos dias.
Lembremos, por exemplo, uma iniciativa de consequências
importantíssimas: a integração, feita pela Casa de las Américas, do
Caribe de línguas não hispânicas à comunidade da arte e da
literatura hispano-americanas. Lembremos, também, o
fortalecimento da unificação cultural da América ibérica em seus
dois grandes ramos linguísticos, através do prêmio para os
brasileiros em sua própria língua.
Ora, a integração mais íntima do Caribe de língua francesa e
inglesa, assim como do Brasil de língua portuguesa, significa a
consagração de um fato escamoteado ou desvirtuado pela visão
imperialista e colonizadora, e que começa a adquirir novo sentido
para a consciência progressista da América. Este fato é o
reconhecimento da existência de uma vasta unidade que articula
os países marcados pela herança africana e que funciona, este
reconhecimento, em sentido homólogo, embora diverso, do que
caracterizou a consciência da herança indígena, alterando o
esquema tradicional (e também oficial) das concepções que
levaram em conta quase exclusivamente a herança europeia do
colonizador.
Graças a um grande esforço cultural, centralizado inicialmente
pelo México, impuseram-se ao continente a realidade e o ideal de
uma Indo-América, destinados a enriquecer a perspectiva de um
contraponto cultural cuja ideia diretora tinha sido até então, de
maneira às vezes tirânica, a da Euro-América.
Graças à Cuba revolucionária, sentimos agora, como parte
essencial do nosso universo, o Caribe de tantas marcas africanas,
completado por um modo novo de nos vincularmos à África. Cuba
não se dirigiu ao continente africano movida pelo desejo de abrir
mercados ou assegurar fontes de abastecimento, mas para lutar
lado a lado com os africanos contra a exploração imperialista, com
um espírito fraterno e não paternal. Graças a tais fatos de
transcendente importância Cuba abre a nova era mencionada
acima, desenvolvendo a consciência de uma Afro-América que será
revalorizada no conjunto do continente, em nível de dignidade
igual à das outras heranças que compõem a nossa realidade. Um
país revolucionário, que eliminou as classes e liquidou ao mesmo
tempo as tiranias culturais, traz para o nosso concerto social a
presença do mundo afro-americano, como componente que o
sistema de castas havia mutilado, a ponto de apresentá-lo sob as
formas degradadas do pitoresco exótico e da marginalidade
cultural.
Devido a uma recuperação integradora deste tipo, de que Cuba
é a grande protagonista e, por assim dizer, a orquestradora,
podemos vislumbrar uma espécie de redenção cultural ao lado da
redenção social. Nelas, a luta contra o imperialismo e o capitalismo
se confunde com a luta por uma cultura integrada, popular, que
não renega as suas fontes metropolitanas, mas recebe em seus
níveis mais altos a seiva criadora dos que foram os maiores
oprimidos de nossa história continental: os chamados povos de cor.
E isso, não com o objetivo de retroceder a uma cultura folclórica,
mas para integrar na cultura, sem qualificativos, a riqueza de uma
herança múltipla, da mesma maneira por que se integrou e se
integrará em nosso sangue a diversidade das raças. A Revolução
Cubana, ao abolir as classes, abriu a etapa que conduz não apenas
de direito, mas de fato, ao requisito de todo processo
revolucionário na América Latina: o fim da supremacia efetiva dos
mais claros sobre os mais escuros.
Peço desculpas aos companheiros de diversos países latino-
americanos por insistir neste tema, que se refere sobretudo a
alguns, inclusive o meu. Eu me permito fazê-lo devido à nova
maneira pela qual o Brasil está presente no Prêmio Casa de las
Américas desde 1980. Por isso, acho oportuno assinalar que, ao
contribuir de modo decisivo para trazer ao nível da consciência de
todos essa configuração cultural afro-americana, Cuba está
delineando uma figura especial no conjunto de nossa América.
Sem afetar a harmonia total, está promovendo a emergência de
afinidades e solidariedades de um tipo mais particular, entre ela
própria, os países caribenhos, certos países centro-americanos
como Belize e Panamá, e nações sul-americanas como Suriname,
Venezuela e Brasil.
Neste sentido, gostaria de registrar com naturalidade uma
impressão comum aos brasileiros que vêm a Cuba: a semelhança
visível de muitos aspectos dos nossos dois países, desde a
composição racial até o ritmo da música, passando por uma certa
abertura das maneiras. Temos muitos interesses econômicos em
comum, ligados a nossos produtos agrícolas; mas acima deles
temos essas afinidades humanas, que mostram até que ponto
poderemos nos entender no futuro em nível também oficial,
quando forem eliminadas as barreiras criadas pelas condições
atuais, que esperamos desapareçam dentro de pouco tempo.
O relativo isolamento de Cuba na América é um contrassenso.
Mas é fora de dúvida que os mutilados somos nós, que
pertencemos aos países que não mantêm relações normais com
ela. Somos nós os amputados de uma convivência que exprime o
sentido verdadeiro da solidariedade latino-americana, baseada na
livre determinação dos povos e na luta pela igualdade econômico-
social, de que a República de Cuba é a grande protagonista, ao
assumir fraternalmente a responsabilidade de um interesse que é
de todos os nossos povos, oprimidos em graus diversos pelas suas
classes privilegiadas e pelo vampirismo imperialista. Daí a
profunda amizade que Cuba desperta em todos os setores dos
nossos países que aspiram às grandes transformações da justiça na
sociedade.
No meu país, a chamada grande imprensa, o rádio, a televisão
costumam omitir ou transmitir de maneira lacônica as notícias
sobre ela. Mas tornam-se singularmente derramados em
pormenores quando surge a possibilidade de dar informações e
comentários desfavoráveis, não apenas deformando os fatos, mas
utilizando-os, assim deformados, como pretexto para saturar a
opinião pública com uma visão negativa, que se pretende sugerir
como exemplar.
No entanto, entre os trabalhadores, estudantes, intelectuais; em
revistas de estudo e publicações progressistas; em grupos
esclarecidos e movimentos realmente democráticos, o interesse
positivo é constante e se traduz nas mais diversas atividades. Há
semanas de estudo sobre Cuba em instituições docentes; há cursos
de divulgação; há solicitação permanente de conferências e
debates em escolas, associações, sindicatos; há números especiais
de revistas; houve o curso memorável de Florestan Fernandes na
Universidade Católica de São Paulo, repetido na Estadual a pedido
dos estudantes e publicado depois em livro de alta qualidade. Os
brasileiros que viveram em Cuba e experimentaram a fraterna
hospitalidade revolucionária, ou os que a têm visitado, são objeto
de solicitações ininterruptas por parte de um público ávido de
contato através de informação fidedigna. E a abertura deste Prêmio
Casa de las Américas para a língua portuguesa despertou, como já
disse, uma reação entusiasta, demonstrada pelo número dos
participantes. E isto, apesar da publicidade difícil e mal-
intencionada da imprensa, que chegou à sabotagem de informação.
Porque a amizade por Cuba constitui um movimento espontâneo
nos povos latino-americanos, o que provoca temor nos donos do
poder.
No âmbito desta amizade continental, a atividade da Casa de las
Américas é um fator extraordinário, mantendo o intercâmbio entre
intelectuais e artistas, ajudando-os a construir, acima das barreiras
nacionais, uma fraternidade militante que vivifica as melhores
tendências espirituais da nossa América.
Esta fraternidade se traduz numa espécie de entendimento
tácito entre os que participaram de tais atividades e que, quando
voltam a seus diversos países, conservam a força de um grande
vínculo. Para nós, brasileiros, geralmente tão separados dos irmãos
de fala espanhola, Cuba tem sido a grande mediadora, ao criar a
possibilidade de entendimentos que se formam aqui e se
desenvolvem fora, tecendo uma rede fraterna que envolve o
continente com as suas possibilidades de compreensão e
intercâmbio.
Neste sentido, lembro o interesse de Haydée Santamaría, que
em janeiro de 1979, numa conversa breve, manifestou a intenção
de estabelecer o prêmio em português e traçou com segurança
algumas hipóteses práticas para o seu funcionamento. Penso que é
justo terminar estas palavras com a evocação da grande lutadora, à
qual os povos da América Latina e do Caribe devem um dos mais
belos esforços de integração cultural jamais realizado entre nós,
esforço que é a razão de ser desta admirável Casa de las Américas,
que todos nós saudamos com a mais carinhosa admiração.

27. Cuba e o socialismo


Um triste espetáculo é a alegria feroz com que os políticos e
cidadãos que se dizem democratas, os jornais, o rádio, a TV
descrevem as dificuldades de Cuba, na alvoroçada esperança de
uma derrocada do seu regime. Parece que lhes dá prazer noticiar e
comentar que faltam alimento e roupa, as máquinas agrícolas estão
sendo puxadas por animais, a bicicleta substitui o automóvel. Com
certeza esperam que o regime odiado acabe na fome, na miséria e
na desgraça coletiva, a fim de pagar os sustos que deu.
Um dos pressupostos desta atitude é que o socialismo não
funciona. Provavelmente, para esses críticos eufóricos o que
funciona é a “democracia” brasileira, que só pode ser mencionada
entre aspas, pois tem não apenas mantido, mas cultivado e
agravado a miséria de um povo que, cinco séculos depois do
Descobrimento, não sabe ler, vive doente, sofre todas as privações
e, portanto, serve de boa massa para os demagogos elegerem
quanto aventureiro consiga vender a sua deteriorada mercadoria
política. Isso, quando as classes dominantes não resolvem salvar a
pátria por meio do singular instrumento democrático que são os
golpes mais ou menos militares.
Mas o fato é que (repita-se pela milésima vez) o regime cubano
conseguiu o que nenhum outro tinha conseguido na América
Latina: tirar o povo da sujeição torpe e dar-lhe o sentimento da
própria dignidade, graças à aquisição dos requisitos indispensáveis
— saúde, alimentação, relativa equivalência de oportunidades,
afastamento mínimo possível entre os salários mais altos e os mais
baixos. Note-se que isso não é uma vaga esperança; é uma
realidade. E mesmo que dure apenas o tempo de uma geração, o
regime cubano terá mostrado que o socialismo é possível nesta
parte do mundo, permitindo uma vida de teor humano em
contraste com a iniquidade mantida pelas oligarquias.
Não há dúvida de que existem em Cuba muitos erros e
violências, como os há infelizmente em toda a parte, mesmo nos
momentos em que predominam as boas tendências de
humanização do homem. Em Cuba é negativo haver coisas como
governante imutável, hegemonia de um partido único, pouca
liberdade de opinião, imprensa sem vida, dissidentes podados
quando ultrapassam os apertados limites estabelecidos. Os
cubanos sabem disso e com certeza já teriam adotado medidas de
desafogo e correção se não vivessem praticamente em estado de
guerra, numa espécie de acampamento sitiado, com uma guarnição
norte-americana plantada na ponta ocidental da ilha e todo o
poderio militar dos Estados Unidos a cento e tantos quilômetros,
mais ou menos como daqui a Guaratinguetá.
No entanto, embora seja importante discutir se há ou não
métodos democráticos em Cuba, creio que neste momento é ainda
mais importante perguntar se o regime cubano propiciou ou não
um modo de vida que pode ser considerado socialista. A resposta é
afirmativa, porque ele realizou nesta parte do mundo o que os
regimes oligárquicos conservadores nunca fizeram, e na verdade
nunca quiseram efetivamente fazer. E realizou mediante a tentativa
de um novo tipo de Estado, que se relaciona de maneira diferente
com a sociedade, demonstrando a possibilidade de superar o
capitalismo predatório a que estamos acostumados.
Para esse fim, é certo que teve de trocar de dependência, pois
no mundo contemporâneo, cada vez mais interligado, quase não há
lugar para os pequenos países, obrigados a integrar-se em sistemas
mais amplos. Antes, Cuba pertencia à esfera dos Estados Unidos.
Depois da revolução de 1959 pôde não apenas sobreviver, mas
cumprir o seu programa nacional, ligando-se à União Soviética.
Qual a diferença, admitindo que se trate de duas dependências
configuradas? A diferença é que no primeiro caso ela vivia, como
os demais países latino-americanos, tutelada pelo capital
devastador de uma grande potência que mantinha as estruturas
oligárquicas de espoliação, inclusive a mais importante, a mais
rendosa e decisiva: o abismo entre rico e pobre, que faz do rico um
súdito da grande potência e do pobre um servo espoliado. A
passagem para a esfera soviética permitiu as conquistas
humanizadoras que todos conhecem e reconhecem. Enquanto os
Estados Unidos apoiam e cevam os Batistas, os Somozas, os
Estradas Cabreras, a União Soviética facilitou a atividade
construtora e transformadora de um grande e generoso líder
popular.
No entanto, é errado considerar a República de Cuba como
Estado-satélite da União Soviética. Trata-se de dependência
econômica baseada em muitos interesses comuns, inclusive o
intercâmbio comercial, as afinidades ideológicas, as metas sociais.
Mas, nesta ligação, Cuba não só guardou a liberdade de
movimentos, como definiu procedimentos políticos próprios, que
asseguraram o êxito do seu programa socialista. Eu diria que ela
sempre manteve a sua maneira peculiar de fazer a revolução,
inclusive porque esta foi em grande parte continuação de um
projeto nacional, que tinha sido desviado do seu curso pelas
oligarquias, sob controle imediato dos Estados Unidos, titulares do
direito de intervir no país por obra de uma emenda constitucional
por eles imposta.
O projeto nacional de Cuba fez com que a sua ligação com a
União Soviética não fosse, como foi noutros países, uma
subordinação, mas de fato uma cooperação. Tal projeto se baseia na
tradição das guerras da Independência, a partir das quais
formaram-se um conceito e uma prática de povo armado, que mais
tarde renasceram na guerrilha revolucionária e asseguraram uma
espécie de democracia de acampamento, da qual emergiu o tipo
singular de relação do povo com os líderes. (Leia-se a respeito o
livro notável de Florestan Fernandes, Da guerrilha ao socialismo: A
Revolução Cubana.) Homens como Che Guevara e Fidel Castro
representam uma formação política singular e aparentemente
impossível: a transformação, ou melhor, a sublimação do
tradicional caudilho latino-americano em líder autenticamente
popular. Nos países sem tradição democrática formal, desprovidos
das instituições comunitárias que asseguram desde o nível mais
miúdo o perfil da democracia do Ocidente, podem surgir outros
meios de realização dos interesses do povo. Assim como em Cuba
o caudilho potencial se transformou em líder responsável,
comprometido com o socialismo, a tradição radical, vinda de
pensadores como José Martí, permitiu ajustar o marxismo à
realidade do país, fazendo de Cuba um caso raro no quadro das
nações que buscam a realização do socialismo no Terceiro Mundo.
Por tudo isso, ela pôde efetuar uma síntese original e realizar
nesta América encharcada de iniquidade uma vida mais justa e
mais igualitária, que representa algo insuportável para a
prepotência imperialista. Por isso, Cuba desperta em todos os
conservadores um ódio quase irracional, que agora se traduz na
alegria selvagem que ficou assinalada no começo deste artigo. Mas
a coesão do povo cubano e a sua capacidade de resistência são
simplesmente fenomenais. Esperemos que graças a elas possa
vencer este momento difícil e despertar no resto da América
Latina a solidariedade indispensável para a sobrevivência e o
aperfeiçoamento do seu regime, impedindo o retrocesso sangrento
com o qual contam os seus inimigos.

28. Lucidez de Cruz Costa


Sempre lúcido, João Cruz Costa define discretamente como
“depoimento” o seu livro Pequena história da República. De fato, é
uma excelente resenha da história do Brasil republicano feita de
ângulo pessoal e quase caprichoso. Cruz Costa registra os fatos
indispensáveis, mas só destaca e privilegia os que servem para
compor sua visão, dosando-os segundo uma perspectiva definida,
pois o que lhe interessa é esclarecer o momento em que escrevia e
ao qual dedica maior atenção. O passado serve para compreender
como o presente saiu dele, parecendo às vezes funcionar como
pano de fundo. Para isso, o método usado é o mais simples e
honesto possível: recurso a certos autores-chave, cujos textos são
apresentados quase como fichas de leitura ordenadas em vista da
diretriz escolhida.
Este livro foi composto no tempo do regime militar em sua
primeira e menos sinistra fase, durante a qual não obstante Cruz
Costa sofreu grandes pressões, parecendo que o escolheram com
mais alguns colegas para servir de exemplo, isto é, para intimidar os
intelectuais. Em 1964 foi submetido a inquérito policial-militar
(IPM), baseado na lista de denúncias fornecida pela reitoria da
Universidade de São Paulo e elaborada por três professores, um de
medicina, um de direito e um de engenharia, cujos nomes, assim
como o do reitor, não vale a pena lembrar, devido ao princípio de
deixar os mortos em paz. Era claro que estavam cobrando a
independente irreverência de Cruz Costa, a sua posição de
esquerda e a influência que exercia sobre os jovens. Levando tudo
isso em conta, são notáveis a serenidade com que elabora a matéria
e a firmeza com que expõe os descaminhos do militarismo e do
autoritarismo, bem como a solércia brutal das classes dirigentes.
No fim de 1964 fui lecionar na França e de lá escrevi bastante a
Cruz Costa, com o intuito de distraí-lo e apoiá-lo. As suas
respostas eram serenas e amargas ao mesmo tempo, com muito
desencanto e alguns momentos de profunda mágoa diante do que
lhe estava acontecendo. Nesta correspondência, lembro de ter
aludido mais de uma vez à firmeza com que ele arrostava a situação
tempestuosa sem perder a discreta serenidade. Uma resistência
tranquila de inconformado permanente que não recuava, como se
patenteara em 1958 no incidente de que resultou a sua punição
pelo atrabiliário governador Jânio Quadros. Numa das minhas
cartas, disse-lhe que o seu modo de ser me fazia lembrar o que
Gustave Lanson escrevera de Ernest Renan, aludindo à “doce
inflexibilidade com que esse homem sabia praticar o respeito do
seu pensamento”.
Realmente, a comedida polidez de Cruz Costa nunca significou
acomodação ou transigência. Os fatos que acabo de mencionar
provam isto, e talvez não seja inoportuno contar que certa vez tive
de me interpor para impedir a luta corporal dele com um
intelectual de ideias opostas que estava ficando impertinente.
Pensemos, pois, na relação entre este livro e a quadra em que
foi organizado e publicado. Perseguido pela repressão, Cruz Costa
mantém a calma e encara sem distorções as forças que
despencaram sobre o país, buscando compreender as coisas
presentes por meio de um recuo analítico ao passado. Daí o tom
pessoal e vivaz da escrita, graças ao qual vai construindo a história
da República brasileira sobretudo à luz dos acontecimentos,
concatenados num processo onde vemos a contradança do
autoritarismo cerceando as liberdades, o jogo político contrariando
os interesses nacionais e o povo invariavelmente posto de lado. No
desfecho se encontra a parte mais elaborada, na qual o autor apela
para a sua própria observação e traça um retrato animado da fase
1945-1965. A Pequena história da República é uma elucidação
conscientemente orientada dos fatos que desfecharam no Golpe
Militar de 1964, como consequência de um processo que poderia
ter sido diferente, mas acabou se deformando no rumo desse crime
político-social que abriu a fase da qual estamos procurando sair.
Portanto, estuda a dificuldade de o Brasil ser uma nação
democrática, porque as classes dominantes e a maioria absoluta
dos dirigentes não abandonam o esquema decididamente
espoliador que está na raiz da nossa sociedade, impedindo as
transformações socioeconômicas sem as quais os regimes políticos
não mudam na essência.
Cruz Costa foi meu professor e meu amigo. Era um homem
adorável, delicadíssimo, sempre de bom humor, disfarçando as
pesadas amarguras da vida por meio não apenas de uma educação
impecável, mas da ironia irreverente. Convivemos muito e até
fomos juntos ao Uruguai para um curso de férias — ele sempre
tratando o antigo aluno com a maior solicitude.
Era informadíssimo, tinha uma cultura densa e múltipla,
nascida da curiosidade por vários setores: filosofia, sociologia,
literatura, história. Filho único de pais abastados, a sua formação
foi a do gentleman culto que lê, observa, segue cursos aqui e fora,
viaja, como quem está se preparando interminavelmente para algo
que não sabe direito o que possa ser. Depois de ter começado e
largado o curso médico no decênio de 1920, já tinha trinta anos
quando este algo apareceu sob a forma da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Cruz Costa foi o
inscrito número um e mais tarde o orador da primeira turma, cujo
ato de formatura sacudiu a classe média e os intelectuais da São
Paulo provinciana de 1937, por causa do discurso do paraninfo,
Júlio de Mesquita Filho, homem sem papas na língua, que fez
reflexões consideradas acintosas pelas faculdades tradicionais, pois
mostrava que a de Filosofia vinha inaugurar finalmente o saber
desinteressado, que não separa o ensino da pesquisa e se torna
fonte de novos saberes. O discurso de Cruz Costa fere com mais
discrição teclas parecidas, dizendo coisas como: “Era necessário,
portanto, que o nocivo regime individualista de autodidatas tivesse
fim, pois mostrava-se incapaz de constituir base para a cultura
nacional”. Por isso, tinha dito antes, prefigurando a própria
carreira:

A nossa missão, quaisquer que sejam os caminhos que agora


tenhamos de trilhar, está intimamente ligada aos destinos da
Universidade. Interessa-nos altamente a sua existência e a sorte
que lhe está reservada, porque o seu destino se confunde com o
nosso.

De fato, o rapaz meio diletante, que se orientava na cultura


segundo o capricho das veleidades, começava a viver uma coisa
nova no Brasil, para ele e para tantos mais: a carreira no setor das
Humanidades. Muito amigo de Jean Maugüé, professor vindo com
a Missão Francesa, nascido como ele em 1904, começou em 1939 a
ensinar ao seu lado, ao mesmo tempo que Lívio Teixeira. Dali por
diante o seu destino se fundiu ao da instituição, à qual prestou os
maiores serviços, contribuindo de maneira decisiva para
desenvolver o ensino da filosofia em bases mais amplas e
profundas, que permitiram formar algumas gerações de estudiosos
da mais alta qualidade, graças ao sistema de relações culturais que
estabeleceu com a França. Cruz Costa foi um caso típico da
sucessão harmoniosa de etapas na história da cultura superior
brasileira: tendo iniciado a formação filosófica na fase do
autodidatismo, completou-a, quando estava amadurecendo, pela
aquisição do saber disciplinado. Por isso, encarnou tão bem o que
ele chamaria as “vicissitudes” do pensamento no Brasil.
O resultado foi, na sua vida profissional e na sua obra, uma
espécie de flutuação constante e a ausência de rigidez. Era aberto,
mas persistente; cético, mas atuante; irreverente, mas cheio de fé
na instituição. Não acreditava nas coisas muito sistemáticas e com
isso estimulava a posição ensaística. No entanto, detestava a
inconsequência e por aí sabia valorizar a seriedade do trabalho
aplicado. Sobretudo, creio que desconfiava da especulação pela
especulação e tendia à análise das situações concretas, o que o
arrastou para a perspectiva histórica.
Com efeito, não foi só na Pequena história da República que ele
manifestou esta inclinação. Foi também nos estudos sobre o
positivismo e em geral o pensamento brasileiro; foi na tese sobre
Francisco Sánchez; foi na sua obra principal, Contribuição à história
das ideias no Brasil, mediante a qual se inscreveu numa constelação
fraterna de pensadores latino-americanos dedicados à mesma
disciplina em relação aos seus respectivos países, como, entre
outros, Leopoldo Zea no México, Francisco Miró Quesada no
Peru, Arturo Ardao no Uruguai, Arturo Roig na Argentina.
Pensador ancorado na história, cético empenhado nos
problemas sociais, Cruz Costa consolidou a sua personalidade
intelectual no momento em que se definiu como homem de
esquerda e como estudioso que desejava pensar a realidade do
nosso país. Sob a displicência por assim dizer programada que
gostava frequentemente de assumir como defesa, era visível nele a
espinha dorsal desta linha, que acabou dando estrutura à sua antiga
disponibilidade de moço. À maneira inesperada de um dos mestres
da sua juventude, Anatole France, ele tinha o verso e o reverso
curiosamente ligados, e para ele o ceticismo foi o caminho do
engajamento.
Por isso mesmo, sofreu tanta pressão depois do Golpe Militar
de 1964, quando as autoridades viram nele uma espécie de
doutrinador dissolvente e perigoso. Na verdade, era um professor
que sugeria a cada um que assumisse a responsabilidade de
intelectual em país atrasado. O que passava aos alunos não era esta
ou aquela posição política: era a disposição básica de concentrar a
reflexão e a pesquisa nos problemas do país. Neste sentido, a sua
influência foi ampla, sobretudo porque chamava a cada instante a
nossa atenção não apenas para a necessidade de pensar o Brasil,
mas também para a importância de termos consciência política,
fosse qual fosse o tipo de atividade mental. Sem ter militado no
enquadramento partidário, ele próprio assumiu posições definidas
no campo chamado progressista e aceitou diversos encargos neste
sentido. E era tal o seu empenho nessa quase cruzada pela
aplicação do conhecimento ao país, que podia chegar a certos
exageros estratégicos, como dizer que valia mais produzir um
estudo sobre determinado aspecto da nossa sociedade ou da nossa
cultura do que ficar lidando com os filósofos europeus. Ele os
conhecia bem, é claro, com preferência por alguns como, entre os
clássicos, Espinosa; mas tinha noção definida e intransigente sobre
a função de uma jovem faculdade em país como o nosso. Daí,
apesar da sua tolerância, o esforço para encaminhar a energia
intelectual dos moços no rumo das tarefas que lhe pareciam
preliminares e urgentes.
No entanto (como acontece muitas vezes), esse mestre fecundo
não era grande professor. Na sala de aula parecia meio intimidado,
hesitava entre os diversos caminhos possíveis, falava baixo e
acabava frequentemente optando pela conversa. Na verdade, era
um conversador emérito e a sua ação se exercia de preferência nos
corredores, antes e depois da aula, nos encontros casuais de
livraria, na casa de amigos, na sua própria. Gostava muito de
receber e sempre teve sua roda semanal de interlocutores, no
ambiente da vasta biblioteca que formou durante a vida inteira e
era o seu nicho predileto.
Nesses contextos informais dava largas à sua facúndia, ao seu
incrível senso de humor e a uma vocação pedagógica que não
obedecia ao padrão impositivo do pai (modelo tradicional), mas à
relação desafogada do companheirismo, expressa mais pela
insinuação do que pela explanação, por meio de capilaridades e
osmoses insuspeitadas. A influência de Cruz Costa era quase
imperceptível, envolvente e duradoura, pressupondo a constância
dos pontos de vista sob a aparente dispersão do colóquio. Como
quem não quer, ele se interessava pelos trabalhos do aluno e pela
sua vida, sondava o seu modo de ser e avaliava as possibilidades de
cada um, desde que sentisse terreno receptivo. Percebendo
qualquer resistência ou desinteresse, fechava-se na sua impecável
polidez. E como era solidário, cheio de boa vontade, podia pegar
bondes errados e dar a mão a quem intelectualmente não estava à
altura.
Por isso, não era mestre para todos, mas apenas para aqueles
com os quais afinava e se aproximavam dele percebendo o quanto
tinha para ensinar. Foi o meu caso. O convívio com ele me ajudou
a equilibrar a atividade mental como aluno e depois assistente de
sociologia, mais interessado no entanto pela literatura. Cruz Costa
estimulava as heterodoxias de carreira, e, enquanto alguns podiam
achar que não ficava bem um docente de sociologia fazer crítica
literária, ele me animava neste sentido. Com a sua notável
generosidade, chegava a dizer que os meus artigos, analisando a
produção corrente, eram mais úteis, por serem um tipo de
conhecimento da realidade cultural. E, quando decidi passar do
ensino da sociologia para o da literatura, recebi dele um apoio
caloroso e eficiente, tendo sido dos que mais trabalharam para a
criação da disciplina que vim a ensinar.
Um homem assim não pode ser avaliado apenas pela produção
escrita e pelo ensino. Nem pelo cunho insinuante do seu
magistério informal. É também preciso ressaltar a sua rara
qualidade humana, a fidelidade aos princípios, o dom da amizade e
o calado estoicismo. Poucos foram tão estimados quanto ele, e
poucos souberam ser tão dignos de estima. Para muitos foi um dos
símbolos da Faculdade de Filosofia, como projeto que a partir dos
anos de 1930 procurou renovar e de fato renovou as nossas
perspectivas culturais. Para alguns foi companheiro, amigo e
modelo.
29. Bettarello
Vi Bettarello pela primeira vez no corredor da Faculdade de
Filosofia, cujas seções de Letras e Ciências Humanas funcionavam
no terceiro andar do Instituto Caetano de Campos. Seria lá por
1940. Ele chegava de Itapira, em cujo Ginásio do Estado era
professor de francês, e ficava esperando Ungaretti. Depois saíam
ambos, iam devagar pelas ruas, parando a cada instante a fim de
apurar a conversa e dar grandes risadas.
A princípio o seu desejo era dedicar-se à literatura brasileira, o
que o levara a se aproximar de intelectuais nacionalistas que lhe
pareciam exprimir uma certa busca de autenticidade do país. Ele
exagerava a importância dessas coisas, num fervor aculturativo de
filho de estrangeiro, de “menino do Brás”, como dizia brincando.
Antes tinha estudado violino, em anos de esforço aplicado no
aperfeiçoamento de uma clara vocação, que lhe permitiu tocar bem
o instrumento difícil. E talvez antes disso, talvez desde sempre,
fizera versos, lutando com a palavra para dispô-la em figuras
especiais.
Patriotismo, música, poesia — formaram a base do seu apego
apaixonado à literatura, que para ele era questão de vida e que se
recusava a estudar secamente. Submetido ao tufão Ungaretti, só
pôde confirmar esta posição, menosprezando as convenções,
manifestando uma impaciência crescente pela norma universitária,
tentando quebrar a rotina por meio de um ritmo mais próximo da
inspiração e seus caprichos. Era de fato extremamente livre, sem
respeito humano; queria a arte e a literatura como alguma coisa
misturada à experiência, antes de ser artefato bastante em si. Era
capaz de conversar horas em torno disso, e, naquele tempo de São
Paulo seguro, tranquilo (1941, 1942, 1943), passamos mais de uma
noite andando pelo centro deserto, esperando o primeiro bonde da
madrugada, falando, falando e muitas vezes discutindo. Ele tinha
uma acentuada concepção estética dos estudos críticos,
influenciada pelas análises de Ungaretti em aula, pelo cânon
crociano modificado e filtrado através da teoria da poesia pura e,
logo depois, da estilística, cujo conhecimento desenvolveu mais
tarde por outras vias, inclusive o contato com Terracini, professor
visitante aqui. Os seus ídolos eram Mallarmé, Valéry e Ungaretti,
com Baudelaire e Poe ao fundo, Leopardi mais longe. Eu tinha
naquela altura um ponto de vista diferente e mais tosco, muito
impregnado de historicismo; e, aliás, o exagerava, para espicaçar o
meu amigo e me divertir com o seu rompante intransigente.
Em 1942, quando Ungaretti foi embora, ele publicou em nossa
revista Clima uma seleção dos seus poemas com a tradução ao lado.
Isso foi motivo para longas conversas, consultas, correções,
dúvidas, em casa de Décio de Almeida Prado, na rua, na Faculdade.
Já então ele pensava em fazer um estudo sério sobre o grande
poeta, mas era intelectualmente muito enrolado, desses que ficam
ruminando, burilando, desfazendo, começando de novo, hesitando
em pôr no papel o que vai na cabeça. Em 1946 ou 1947 apareceu a
oportunidade para apertá-lo: o efêmero e interessante Colégio
Livre de Estudos Superiores, fundado por Vicente Ferreira da
Silva, que cedeu para o seu funcionamento uma espécie de
garagem adaptada na rua General Jardim. Bettarello se interessou
muito por aquelas reu­niões onde eram expostos e debatidos os
mais variados assuntos de ciência, filosofia e literatura; e fez uma
boa série de palestras conversadas sobre Ungaretti, centralizadas
pela exegese de alguns poemas. Lembro que trabalhou bem os
textos de “Leda” e “Pietà”.
No começo dos anos de 1950 foi para a Itália preparar, escrever
e defender a tese de doutorado. Lá viveu num deslumbramento;
durante certo tempo, num convento em Florença (embora tenha
defendido a tese em Turim). Ficou íntimo dos frades, fez relações
com intelectuais que admirava daqui, conviveu com De Robertis,
um dos seus modelos de analista; modelo da análise sutil e
penetrante que desejava.
Por aquela altura houve também a compra da casa em herança
jacente, no então remoto Tremembé. Uma casa velha, meio largada
e encantadora, cercada de um terreno enorme onde o mato e as
árvores andavam soltos. Íamos lá a toda hora, ver, ponderar, avaliar,
calcular, fazer projetos. Ele comprou, com a coragem lírica que
sempre teve, sem desfalecimentos; e passou a viver como
demiurgo naquele paraíso, suscitando plantas, fazendo brotar
folhagens, abrindo sendas, projetando a sua poesia no espaço. O
jardim se tornou um prodígio de gosto, fantasia e recolhimento,
parente dos que aparecem com frequência na poesia e no romance
italianos do começo do século, “fra l’agreste e il gentilizio”. Lá
recebia os amigos ao lado de Otávia e dos filhos, em reuniões e
visitas dominicais, em festas sucessivas, com uma generosidade e
uma largueza de coração difíceis de encontrar iguais. Reflexos
dele, que nunca vi sequer esboçar ou pensar um ato mesquinho,
que seria impossível para a sua natureza.

Italo Bonfim Bettarello nasceu em Atibaia em 26 de fevereiro de


1912 e morreu em São Paulo em 2 de setembro de 1973. Seus pais
foram Dante Bettarello e Josefina Bonfim Bettarello. Terminou o
curso de letras na Universidade de São Paulo em 1938 e ficou mais
ou menos adido à cadeira de Italiano, mas sobretudo à pessoa de
Ungaretti, do qual foi o aluno predileto. Em 1940 passou a morar
em Itapira, regendo a cadeira de Francês do Ginásio do Estado; um
ano depois passaria para a de Português, da qual foi dispensado em
março de 1942 para ser nomeado primeiro assistente de língua e
literatura italiana na Faculdade de Filosofia da Universidade de São
Paulo. Em Itapira morava numa república de colegas, onde
Ungaretti foi hóspede mais de uma vez, participando de igual para
igual da atmosfera de alegria e troça dos rapazes. Quando entrava
na brincadeira Ungaretti era o mais moço e irreverente.
O ano de 1942 foi decisivo para Bettarello: o seu mestre voltou à
Itália por causa da guerra e, sendo difícil lhe arranjar um substituto
por causa das hostilidades entre os dois países, ele ficou
provisoriamente no seu lugar. Pouco depois casou com Otávia de
Barros e foi morar (durante muitos anos) na rua Adolfo Gordo. Em
março de 1943 foi indicado para reger a cadeira em caráter
interino, e nela ficou até a morte, trinta anos depois, com
designações que variaram ao sabor das reformas e regulamentos.
Os seus últimos anos foram cheios de altos e baixos de saúde,
alguns bem graves, tornando o trabalho um verdadeiro sacrifício.
Bettarello nunca pensou em fazer carreira e, muito menos, fazer
currículo, como está na moda. Mas, apesar de desinteressado e
alheio a qualquer forma de autopromoção, publicou trabalhos de
qualidade. Alguns recolhidos em volume, como os estudos sobre
Vico, Ungaretti, Virgílio; outros, dispersos em jornais e revistas,
inclusive umas notas de mocidade sobre Fagundes Varela, poeta
que prezava muito. Houve tempo em que se associou a um novo
jornal de cultura e, sempre entusiasmado com as ideias novas, foi
coprodutor de um filme. Mas o seu ritmo nessas coisas era antes
poético: lá pelos anos de 1940 e tantos recebeu uns atrasados e
ficou indeciso entre comprar um pequeno automóvel Fiat ou uma
coleção da Enciclopédia Trecani. Acabou vencendo o automóvel.
Eu diria que o principal dele não foi o que escreveu, mas o que
fez como professor e como intelectual que acreditava na
importância dos contatos humanos. Foram a sua sinceridade, a sua
candura e a sua paixão, a sua capacidade de ir direto às coisas, sem
subterfúgios mas com imensa doçura. Tinha uma coragem simples,
tenaz, que podia levar os outros à exasperação e não cedia a
caretas. Era capaz de ser bastante peremptório quando necessário
e não vacilava na defesa dos seus pontos de vista, porque era
naturalmente ardoroso. Quando achava que uma coisa devia ser
feita, fazia-a com persistência inesperada. Certa vez na Itália
praticou a façanha de obter para a Faculdade de Filosofia a doação
de uma biblioteca inteira de literatura italiana, que tinha sido de
um centro cultural em Bucareste e estava amontoada num porão
de ministério. Sozinho, tranquilo, estrangeiro e teimoso, deu com
os livros aqui e até hoje eles constituem o principal da biblioteca
de italiano.
Num tempo em que dominavam entre nós concepções críticas
que oscilavam entre o impressionismo e o positivismo, entre a
aventura sem rumo e a crença em determinismos externos ou nos
milagres hermenêuticos da pura erudição, ele brigou pelas
orientações estéticas. Croce, Spitzer, Vossler foram desde cedo os
seus enquadramentos principais. Leopardi, Poe, Baudelaire,
Mallarmé, Valéry, Ungaretti, os seus guias de rumo. Poesia pura,
estilística, engenharia do poema foram obsessões que superpôs ao
substrato crociano, com muito interesse por uma história aberta à
imaginação, nutrida de Vico, uma das suas grandes manias.
Com isso, e sobretudo com a sua obstinada paixão pela
literatura, pôde ter grande influência sobre mais de uma geração
de rapazes e moças, entre os quais alguns dos melhores que a
Faculdade de Filosofia produziu. Na sua salinha da rua Maria
Antônia, atopetada de livros, e a primeira a ser mobiliada com
certo requinte de gosto, por exigência dele, reunia-se com os
alunos e amigos para seminários e discussões que eram conversas
livres, onde as ideias se encadeavam sem esquematismo em torno
de textos escolhidos ou de pretextos inspiradores. Tinha birra de
sistematizações, esquemas e definições, censurando-me porque eu
me apegava a eles. Aludindo a um professor francês muito estrito,
dizia que eu estava me reduzindo a uma cadeia de grand A, grand
B, grand C e petit a, petit b, petit c, como nas classificações do
quadro-negro…
Era, portanto, um espírito vivo e móvel, que às vezes chocava a
rotina acadêmica e nunca aceitava as suas imposições. Daí ter sido
muitas vezes incompreendido. E também porque era franco, sem
astúcia, valorizando o que no homem é fluido e variado, como ele
mesmo no seu amor pela vida.
30. A força do concreto
Anos atrás, talvez uns quinze, Caio Prado Júnior me propôs ir
com ele de automóvel até o Piauí, para ver a obra social de um
padre, que lhe parecia do maior interesse. Recuei espantado, ante a
perspectiva de tantos mil quilômetros por esse mapa imenso e
perdido. Não podia, mas também não queria, por falta de
disposição. Ele riu e dali a tempos foi sozinho, pilotando o seu
Volkswagen, que considerava um carro incrível, porque em
qualquer canto do Brasil era possível arranjar peças dele, caso
alguma quebrasse — o que já tinha verificado nos confins de Mato
Grosso e Goiás. Na volta, contou minuciosamente a experiência
longínqua, como tempos antes havia contado outra expedição até o
sertão da Paraíba, ou de Pernambuco (não lembro bem), onde fora
passar uns tempos na fazenda de gado pertencente a pessoas
ligadas a parentes seus.
A esta primeira indicação, acrescento que mais de uma vez ele
me disse alegremente não saber história, no sentido de ignorar
uma quantidade de fatos, se embrulhar nas dinastias, esquecer
datas e dar pouca importância a batalhas e detalhes. O que lhe
interessa são a vida diária, a produção, o movimento dos negócios,
as técnicas de plantio, os costumes, o mecanismo de transmissão
da propriedade, e coisas assim.
Dessas duas dimensões do seu gosto é fácil inferir o tipo de
historiador que é, grande historiador que retificou as perspectivas
sobre a nossa formação e mostrou uma série de aspectos
esquecidos ou ignorados — como a qualidade real da população da
colônia, a presença do marginalizado, a natureza mercantil da
empresa agrícola, situando a família das classes dirigentes na
devida escala e quebrando o perfil aristocrático traçado por uma
ilusão complacente.
Esse historiador notável é, portanto, alguém voltado para a
realidade concreta, interessado em pesquisar os aspectos
fundamentais da sociedade, afastando os aspectos que afloram para
ir até as forças que regem de fato. Por isso, foi sempre tão ligado ao
corpo físico do Brasil, que conhece palmo a palmo e varejou por
todos os quadrantes. De modo que o seu conhecimento não se
formou por via indireta, mas pelo contato primário e insubstituível
da experiência pessoal. Quando compulsa um regulamento, analisa
uma estatística de produção ou estuda o povoamento, não procede
como o estudioso que parte da abstração para em seguida procurar
comprovantes. Ele já está previamente embebido por estes e efetua
de maneira produtiva a abstração como fruto maduro. O
conhecedor de história e de economia do Brasil se confunde na sua
personalidade intelectual com o insaciável viajante e observador,
ao espírito sempre aberto para o fato do dia, ao leitor sistemático e
microscópico dos jornais — que se escandalizou mais de uma vez
por eu não ter visto nas páginas de economia, agricultura ou
política o que ele absorvia e depois transformava em material de
interpretação. Por isso, foi o primeiro de quem ouvi, no começo
dos anos de 1970, que o tal milagre brasileiro era uma jogada
artificial, nutrida pelo endividamento irresponsável, e que dentro
de alguns anos o país se encontraria no beco sem saída dos
compromissos insolúveis.
Não espanta, assim, que Caio Prado Júnior tenha um interesse
constante pela geografia e se comporte como geógrafo que partiu
do substrato físico (como se dizia no meu tempo) para chegar ao
universo das instituições. Ouvi dele mais de uma vez o relato de
suas relações com Pierre Deffontaines, de quem foi aluno na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, em cuja subseção de Geografia e História foi o primeiro
matriculado, no ano de 1934.
Aos domingos saía com Deffontaines pelos arredores de São
Paulo e ia aprendendo a ver a terra que antes apenas olhava.
Aprendeu a classificar o relevo, notar a qualidade dos solos,
conhecer o revestimento vegetal e sobretudo entender a relação
entre o meio físico e o trabalho humano, traduzido em formas
específicas de ocupação e exploração. Naquele ano se fundou a
Associação dos Geógrafos Brasileiros (São Paulo), que em 1935
publicou quatro números da excelente revista Geografia,
interrompida talvez porque no fim do ano Caio foi preso, como
presidente da Aliança Nacional Libertadora, Seção de São Paulo.
Ele fazia parte da Comissão de Redação e era dos maiores
animadores da associação.
Logo no primeiro número apareceu um artigo de sua autoria,
“Distribuição da propriedade fundiária rural no estado de São
Paulo”, onde conceitua a pequena, média e grande propriedades
em termos precisos, que foram fundamento da sua concepção
pessoal e fecunda sobre os problemas agrários do Brasil. Todos
sabem como teve de divergir das ortodoxias do seu partido, o
Comunista, sobre esta questão difícil; e como a razão esteve
sempre com ele.
No segundo número publicou duas notas bem diferentes: uma,
de geografia física, sobre “O movimento dos glaciares”, na verdade
uma breve informação crítica sobre certo método de medição
deste fenômeno. A outra, muito pessoal e interessante, é a
“Contribuição para o estudo das influências étnicas no estado do
Paraná”, onde condensa as suas observações sobre povoamento,
habitação e transporte dos imigrantes no planalto de Curitiba,
antecipando estudos futuros de antropologia social, como os de
Emílio Willems.
O número 3 mostra de maneira impressionante a marca da sua
atividade e da sua presença construtiva na Associação dos
Geógrafos. Há um sólido estudo sobre “O fator geográfico na
formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo”, que é um
modelo de fusão dos pontos de vista do geógrafo e do historiador.
A seguir, nada menos de sete notas sobre diversos temas, desde a
adaptação da raça branca ao trópico até o loess do norte da China.
Depois, foi a prisão seguida pelo exílio, com volta apenas em
1939, precedendo de três anos o lançamento de sua obra maior, na
qual tanto trabalhou, a Formação do Brasil contemporâneo, que em
1942 veio coroar um decênio de extraordinário progresso nos
estudos sobre o Brasil. Em 1933 a minha geração havia sofrido o
primeiro impacto da sua influência pelo livro Evolução política do
Brasil, que abriu a fase dos estudos marxistas na visão panorâmica
do país. Mas em 1942 estavam maduras as qualidades a que aludi,
de estudioso ligado estreitamente ao concreto pelo conhecimento
do meio físico, das populações, da sua distribuição no espaço, das
suas formas de produção, tomados como suporte para a análise das
instituições. Deixando longe a tradição ainda meio idealizadora
que preponderava, Caio Prado Júnior fundava solidamente uma
história de inspiração marxista, aberta, atenta ao real, sem
esquemas nem a imposição de prejulgamentos.
Acho que é preciso levar essas coisas em conta para entender a
dimensão rara desse grande intelectual, que reúne a solidez da
experiência concreta, a penetração na leitura dos documentos e a
firmeza das convicções que iluminam a interpretação. Caio Prado
Júnior é sem dúvida um grande homem, dos raros que merecem
esta qualificação no Brasil contemporâneo. Grande homem,
porque além da capacidade intelectual possui a maior nobreza de
caráter e a integridade inflexível das convicções, das quais sempre
deu testemunho e pelas quais sofreu toda a sorte de pressões e
punições, sem atenuar um instante o traçado do seu propósito de
militante, através da ação política e do exercício do talento.

31. Lembrança de Luís Martins


Luís Martins morreu há dez anos num desnecessário desastre
de automóvel. Alguns meses antes eu lhe havia escrito de Poços de
Caldas, comentando as suas excelentes memórias de vida boêmia
na Lapa carioca e aproveitando para evocar episódios da nossa
convivência em São Paulo nos anos de 1940, quando o conheci.
Conheci, mas não fizemos amizade imediata. Ele e os amigos
tinham certa desconfiança em relação à turma de que eu fazia
parte, o chamado “grupo de Clima”, do nome de uma revista que
editamos entre 1941 e 1944. Não lembro se foi ele ou Rubem Braga
quem falou numa crônica sobre “essa estranha geração de jovens
professores que namoram para casar e casam mesmo”. Segundo
Rubem Braga éramos circunspectos, bem-comportados, bebedores
de leite maltado, malted milk, sinal sumamente negativo para
boêmios dados ao uísque (na verdade, o que bebíamos mais era
chá). Daí piadas e bicadas recíprocas. Vistas bem as coisas, éramos
mais divertidos do que lhes parecia, e eles, bem menos do que
desejavam ser. Luís falou em crônica desses equívocos, logo
dissipados na mais cordial camaradagem, que nos ligou a todos na
mesma aura de afinidade. Juntos atuamos na Associação Brasileira
de Escritores (ABDE), no Partido Socialista Brasileiro, convivendo
alegremente em casas amigas.
Quem se deu bem com ambos os grupos desde sempre foi
Sérgio Milliet, com quem Luís travou não obstante mais de um
debate pela imprensa sobre questões de arte, porque era inclinado
à controvérsia, embora sem agressividade.
Em 1944 escreveu um artigo onde dizia temer que a tendência
crítica dos jovens, nutrida de sociologia segundo ele, viesse a
produzir uma geração seca e sem poesia. Naquele tempo eu era
crítico titular (espécie extinta) da Folha da Manhã, e dediquei à
réplica um rodapé cordial, procurando mostrar que ele não tinha
razão. Inclusive porque, somando tudo, era em crítica mais
sociológico do que ninguém, baseando muitas vezes as suas
interpretações no condicionamento social.
Além da psicanálise, adotada como critério central de
interpretação, há, por exemplo, espírito sociológico penetrante e
compreensivo no seu belo estudo injustamente esquecido, O
patriarca e o bacharel, sobre o sentimento de culpa dos jovens
republicanos depois da queda da monarquia, ante a figura paterna
encarnada em Pedro II. A primeira versão saiu em 1942 na Revista
do Arquivo. Estimulado pelo interesse que despertou, inclusive o
de Gilberto Freyre, Luís desenvolveu o texto em duas conferências
feitas na Biblioteca Municipal, a primeira das quais foi publicada
no último número de Clima, o 16o, em novembro de 1944.
Finalmente a versão definitiva, bastante ampliada e elaborada,
apareceu em 1953 no livro que tem o mesmo título do artigo
inicial. Eu gostei muito e disse a Luís que ia escrever a respeito.
Mas não cheguei a fazê-lo. Então, anos a fio, quando calhava ele
fazia menção risonha às promessas não cumpridas.
A nossa amizade durou sem nuvens até a sua morte, mas a
convivência só foi regular nos anos de 1940 e parte dos de 1950.
Em política trabalhamos juntos um pouco. Certa vez ele foi
candidato a vereador pelo Partido Socialista Brasileiro, como eu
fora a deputado estadual, porque frequentemente éramos
convocados para completar as chapas, sem a menor pretensão nem
mesmo desejo de ser eleitos. Mas o engraçado foi que Luís
embalou, gostando da remotíssima perspectiva de uma impossível
vitória. Trabalhou razoavelmente, nos termos minguados dos
nossos recursos financeiros, que eram ínfimos, mesmo levando em
conta que naquele tempo o coeficiente eleitoral era pequeno e o
custo modesto. Mais de uma vez saímos juntos para colar cartazes.
Lembro da noite em que ele, eu e os então jovens estudantes
Oliveiros da Silva Ferreira e Wilson Cantoni nos dedicamos ao
bairro da Lapa, entrando pela madrugada afora em alegre tarefa,
enquanto Luís nos expunha a maneira singela segundo a qual
concebia o socialismo, condizente com a sua aberta simpatia
humana, pois no fundo era o desejo de ver todos providos de
conforto e boas coisas.
Ele tinha posição política definida e chegou a pagar por ela
depois da instauração do Estado Novo em 1937, quando foi preso e
perdeu o emprego (isso, no Rio, antes de vir para São Paulo). Mas
não tinha disposição para a militância e pouco ia às reuniões da
nossa unidade partidária, o Grupo Profissional n. 1, que se reunia
todas as semanas no escritório de Arnaldo Pedroso d’Horta na rua
Bráulio Gomes, com a função principal de elaborar documentos e
preparar os números da Folha Socialista.
Em 1945 participamos do I (e memorável) Congresso Brasileiro
de Escritores, como membros da delegação paulista, e, em 1947, do
II, em Belo Horizonte. Neste formou-se um grupo divertidíssimo,
que varava a noite em cantorias, piadas e invenções esdrúxulas,
com base de operações no Bar Pinguim. Membros indefectíveis
eram Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de
Andrade, Arnaldo Pedroso d’Horta, Décio de Almeida Prado e eu.
Outros eram esporádicos. Mas Luís quase não apareceu,
preferindo paradoxalmente dormir cedo no Grande Hotel, onde
estávamos hospedados, a exemplo de outro boêmio sempre de
plantão noutras ocasiões, Sérgio Milliet…
Aqui em São Paulo frequentamos juntos muito bar, na
companhia de outros que também já se foram, como Arnaldo, Luís
Lopes Coelho, João Leite. Certa noite, num deles situado na
esquina de Barão de Limeira com General Osório, o Rostov, onde
havia balalaicas tangidas por duas moças russas, severas e vestidas
a caráter, tendo na portaria um latagão solícito uniformizado de
cossaco, João Leite saiu mais cedo e deixou na lapela do terno
branco de Luís o distintivo vistoso de delegado. Luís, com
distintivo e tudo, continuou imperturbável a dizer em francês
perfeito rondéis de Charles d’Orléans, caprichando nos arcaísmos:

Le temps a laissié son manteau


De vent, de froidure et de pluye,
Et s’est vestu de brouderie
De soleil luysant, cler et beau.

A boa pronúncia denotava a educação de rapaz da classe média


instruída do Rio, no tempo dele a mais urbanizada do Brasil. Muito
fino, com jeito meio acanhado no primeiro momento, era de uma
cortesia exemplar e bastante brincalhão, apesar da amarga
melancolia que podia assaltá-lo quando a noite ia envelhecendo e o
uísque tinha operado os seus sortilégios.
Culto e bem informado, conhecia não apenas a literatura do
tempo, mas a da Belle Époque, sobretudo francesa, sabendo muito
poema de cor. Como era frequente entre os cariocas, a influência
do Modernismo foi nele menos demolidora. Por ter maior tradição
cultural que São Paulo, o Rio não foi varrido tão intensamente pela
maré da vanguarda e manteve com o passado imediato certa
ligação de continuidade, visível em Ronald de Carvalho, Cecília
Meireles, Augusto Frederico Schmidt, aos quais correspondiam do
lado paulista os dois modernistas parciais que foram Guilherme de
Almeida e Ribeiro Couto, ambos presos ao grupo do Rio. Luís
tinha um pouco deste veio, por isso conservou fidelidades que
naquela altura pareciam injustificáveis mas que, vistas de hoje,
mostram o seu bom discernimento. Foi o caso do interesse
constante pela obra de João do Rio, que valorizou e chegou a
selecionar em antologia, quando ela ainda estava no ostracismo.
Com o correr dos anos mudou muito de comportamento, mas
conservou o apego aos amigos, a emoção fácil e a necessidade de
companhia. Casou maduro (talvez ele preferisse — sur le tard, à
carioca) e, quem diria, ficou mais família e bem-comportado que os
rapazes dos quais troçava na mocidade. Então, a boemia deixou de
ser para ele critério de qualidade humana e se tornou matéria de
evocação literária.
Nessa fase desenvolveu uma atividade regular de cronista que
lhe deu enorme projeção, porque encontrou um jeito encantador,
cheio de naturalidade, de escrever como quem está conversando
com o leitor, que graças a isto se sentia agradavelmente iniciado
numa espécie de confidência. Assim, pôde tratar anos a fio dos
assuntos mais variados, sempre com alguma alusão à sua pessoa,
pois tinha o vezo juvenil de falar candidamente de si, que é um dos
caminhos da boa crônica.
Dez anos depois de sua morte, é preciso não esquecer que
marcou a nossa ficção com alguns romances expressivos do
espírito social que era então força inovadora. Que produziu ensaios
de valor sobre pintura e analisou com originalidade e espírito
inventivo a crise de consciência das elites, no país recentemente
republicano. Não há dúvida de que o amigo Luís Caetano Martins
foi alguém de peso na literatura brasileira.

32. Discreto magistério


Febus Gikovate possuía uma inteligência poderosa e precisa de
bom enxadrista, que foi na mocidade. Ela lhe permitia equacionar
um problema com rigor, indo diretamente ao nó. E para desfazer
nós não lhe faltavam imaginação nem ânimo de agir. Grande
capacidade de ação racional foi o que sempre demonstrou na vida
política esse clínico eminente, esse admirável professor de
medicina. Talvez porque na política pôde aplicar a sua lucidez
surdamente fervorosa, fazendo render ao máximo o ânimo
construtivo com que sabia ao mesmo tempo fazer cumprir as
tarefas e respeitar a particularidade de cada um. Tudo isso referido
ao interesse coletivo, que ele punha com naturalidade espontânea
no primeiro plano. Não o fazia por esforço ascético ou violência
contra o próprio modo de ser, mas porque era a maneira segundo a
qual realizava a sua natureza visceralmente nobre e aberta para o
próximo. Gikovate foi um excepcional líder socialista democrático
porque as suas convicções eram os seus sentimentos mais fundos.
Para ele o socialismo era uma concepção de vida e uma conduta
que humaniza; não um programa político-econômico a ser
aplicado.
Eu o conheci em 1945, quando ele aderiu a um pequeno grupo
político que nós tínhamos fundado pouco antes — a União
Democrática Socialista (UDS). Nela se reuniram inicialmente jovens
que tinham militado na clandestina Frente de Resistência, cujo
ponto de apoio principal estava na Faculdade de Direito da USP e
era integrada por liberais combativos e certo número de socialistas
independentes (muito anti­stalinistas), sobre a base comum da
oposição ao Estado Novo. Como se sabe, em tempo de
fechamento, união; em tempo de abertura, divisão. Quando veio a
abertura em 1945, houve uma decantação natural, indo os moços
liberais da Frente para a recém-fundada UDN, enquanto nós, de
esquerda, fundávamos a pequena UDS, cujos principais teóricos e
orientadores foram Paulo Emílio Sales Gomes em primeiro lugar,
Antonio Costa Correia, Paulo Zingg e alguns outros, com a
assistência discreta mas eficaz de um litógrafo austríaco que estava
morando aqui, Eric Czaskes, marxista de observância estrita e
antistalinista ferrenho.
Gikovate se criou e se formou no Rio, onde militou no Partido
Comunista de 1932 a 1934; mas se desgostou com o stalinismo e
passou à “oposição de esquerda”, trotskista. Lutou em 1935 na
Aliança Nacional Libertadora, esteve preso quase dois anos, como
se pode ver nas Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, que
respeitava e admirava esse brilhante dissidente. Quando saiu, em
1937, veio para São Paulo, mas se afastou também do trotskismo e
ficou longe da política durante a maior parte do Estado Novo,
concentrando-se com êxito na medicina e no magistério. Como
tantos outros sofreu o trauma dos terríveis processos de Moscou,
que revelaram as perversões totalitárias da revolução, e se
convenceu da necessidade do socialismo democrático.
Em 1945 pensou em entrar para o sobrevivente Partido
Socialista Brasileiro, que, tendo sido fundado em 1933, fora
proscrito em 1937 e procurava reorganizar-se sem grande êxito.
Mas Azis Simão, seu amigo de muitos anos, estava saindo deste
partido e vindo para a nossa UDS. Veio e trouxe diversos
companheiros, entre os quais Gikovate, que se impôs
imediatamente como teórico e militante da mais alta categoria.
A UDS teve a adesão de um pequeno grupo de operários,
sobretudo metalúrgicos, e desenvolveu uma atitude bastante
lúcida. Mas as forças eram fracas e as tarefas muito grandes.
Resolvemos então aderir a um agrupamento em formação no Rio, a
Esquerda Democrática, da qual Gikovate se tornou bem cedo uma
das figuras destacadas. Com outros, contribuiu para transformá-la
em agosto de 1947 no Partido Socialista Brasileiro, por cessão da
sigla do pequeno remanescente deste, que tinha aderido à nova
agremiação.
O Partido Socialista Brasileiro de 1947 foi o mais amplo,
articulado e atuante de quantos usaram o nome no Brasil, desde o
fim do século XIX. E nele Gikovate sempre foi um dos líderes mais
constantes e capazes.
O PSB, que durou até a repressão posterior a 1964, quando
Gikovate foi preso, tendo sido também detido pela sinistra OBAN
em 1969, elegeu senadores, deputados federais e estaduais,
prefeitos e vereadores, exercendo influência apreciável sobretudo
nos meios intelectuais, estudantis e da classe média modesta, com
alguma repercussão no operariado. Contava com mais apoio
popular do que se costuma pensar e dizer, e pôde assumir a
iniciativa de medidas e campanhas de grande alcance, como a do
petróleo. O jornal partidário em São Paulo foi a Folha Socialista,
onde Gikovate publicou a maioria dos seus escritos políticos,
sempre com uma segurança de princípios e uma clareza de
raciocínio que, associadas ao seu ascendente natural e discreto,
faziam dele para todos nós um mestre de socialismo.
Muitos de nós foram ficando pelo caminho. Uns cansados,
outros cheios de dúvidas ou desinteressados da ação — não tendo
mesmo faltado a dissidência de uma ala no fim dos anos de 1950.
Mas diversos militantes da primeira hora permaneceram até o fim,
e entre eles, na linha de frente, Gikovate, que acabou encarnando
de certo modo o partido em São Paulo, como teórico e líder. Se o
socialismo democrático atuante perdurou aqui, foi em grande parte
graças a ele, que orientou diversas levas de militantes e
simpatizantes. A sua morte em 1979 foi uma perda enorme,
inclusive porque se preparava, nos seus setenta anos incrivelmente
moços, para voltar à luta e trabalhar mais uma vez pelas suas
convicções, com aquela serenidade inflexível e profundamente
humana que admiramos nele durante tantos anos.

33. Sobre a retidão


No meu tempo de moço, usava-se a palavra anarquista como
hoje se usa subversivo, isto é, para designar de maneira pejorativa e
indiscriminada as pessoas e os atos que questionam a ordem social.
Os sentidos próprios eram raros nos ambientes de classe média,
salvo circunstâncias peculiares.
Na nossa casa, por exemplo, apesar de seu feitio convencional,
as coisas se passavam de maneira algo diversa, porque meu pai
tinha um tio anarquista, excêntrico e inventivo, que eu nunca vi e
do qual ele contava histórias divertidas. Mas acho que esse tio,
chamado paradoxalmente Teófilo, nunca foi além do reino das
ideias e das declarações, ao contrário de um primo de meu avô por
aliança (padrasto de minha mãe), o combativo jornalista radical
Nereu Rangel Pestana, tido na família como anarquista e de fato
simpático ao movimento. Ele entrou bravamente em muitas lutas e
desmascarou as classes dirigentes num livro terrível, A oligarquia
paulista, sob o pseudônimo de Ivan Subirof. Depois da Revolução
Russa, aproximou-se do comunismo e participou do grupo Clarté
brasileiro.
Um anarquista lírico era o poeta Martins Fontes, colega de meu
pai, que ali por 1934 vi na nossa casa, em Poços de Caldas, gabando
a doutrina com exuberância tropical. Num ato de aliciamento, deu
para minha mãe ler O anarquismo, de Kropotkin, em cuja folha de
guarda ele havia escrito uma quadra louvando o grande
revolucionário. Era a recente edição da Unitas, de capa preta e
amarela; lembro que minha mãe leu e comentou com simpatia.
Essa simpatia tinha alguma coisa a ver com o seu temperamento
avesso à obediência; talvez ela encontrasse, neste e noutros textos,
certa esperança utópica de insubmissão institucionalizada. Basta
dizer que uma das suas citações prediletas era a frase de Diderot
que os anarquistas subscreveriam: “La nature n’a fait ni maître, ni
serviteur; je ne veux ni donner, ni recevoir des ordres”.
Mas havia outro motivo para esta boa vontade em relação à
doutrina que no consenso da maioria era a própria expressão da
bagunça: a amizade afetuosa e a convivência quase diária de sua
queridíssima dona Teresina Carini Rocchi, socialista ardorosa
muito simpática ao anarquismo, que, segundo ela, era em princípio
a posição mais coerente e avançada. Morava perto de nós, e na sua
casa meus pais conheceram Edgard Leuenroth, que os encantou
pela delicadeza, dignidade e firmeza de convicções.
Também através dela conhecemos outro velho militante
anarquista, com quem tive muito contato: o áspero Adelino
Tavares de Pinho, que depois duma vida agitada foi parar em Poços
de Caldas, onde vivia mais do que pobremente de uma escolinha
para filhos de trabalhadores. Era português e creio que nos anos de
1950 voltou à pátria, para morrer.
Edgard Leuenroth me contou que Pinho fora motorneiro, e
analfabeto até a idade adulta. Instruindo-se por conta própria,
graças à intensa paixão cultural dos meios anarquistas, tornou-se
relativamente bem informado, como se vê pelos numerosos artigos
e alguns folhetos que escreveu. Escrevendo e falando era violento,
intransigente e apaixonado. Dizia de Stálin que era “um monstro
com os bigodes pingando sangue” e considerava o marxismo uma
palhada totalitária, admirando sobretudo os racionalistas e
evolucionistas do século XIX. Em Campinas, onde militava, atuou
na famosa greve da Companhia Paulista (1906).
Através dele pude sentir a extraordinária fidelidade dos
anarquistas daquele tempo às convicções; a tenacidade com que as
defendiam pela vida afora, mantendo elevada a temperatura da
paixão libertária. E também a retidão com que viviam —
honestíssimos, puritanos, achando que os valores morais eram
requisitos da revolução social e abominando o maquiavelismo da
vida política.
Esta integridade, temperada de muita candura, se traduzia
inclusive pela sinceridade em todas as circunstâncias; e isto me faz
lembrar um episódio de que participei.
A partir de 1946 a guerra fria motivou nos países subordinados
aos Estados Unidos a caça aos comunistas. Por extensão, o
aumento da repressão aos movimentos populares em geral. No
Brasil, o Partido Comunista, depois de breve legalidade, foi
fechado em 1947, com toda a sorte de violências paralelas.
Inclusive restrição ou interdição de manifestações públicas que
não agradassem ao governo. De modo que no Primeiro de Maio só
o trabalhismo oficial pôde­aparecer.
Nós, do Partido Socialista Brasileiro, que geralmente nos
reuníamos a outras organizações para encorpar as atividades deste
tipo, ficamos sós. Não tendo capacidade de mobilização suficiente
para furar o cerco por conta própria, fizemos o que era possível:
reuniões em nossa sede do Brás.
Numa delas, 1947 ou 1948, o presidente do ato anunciou que
via com prazer na assistência o companheiro Edgard Leuenroth, e
lhe deu as boas-vindas.
Festejado por uma salva de palmas, Edgard se levantou, vibrante
e risonho, com a sua franzina silhueta de uma distinção rara, e
agradeceu. Disse que, como velho revolucionário, não quisera ficar
em casa no Primeiro de Maio; e verificara que só no Partido
Socialista poderia comemorá-lo dignamente; por isso, estava ali.
No entanto, era dever de honestidade declarar que discordava
essencialmente dos companheiros socialistas. Na qualidade de
libertário, rejeitava a própria ideia de partido, assim como a luta
para participar de organismos do Estado, do qual preconizava não a
transformação, mas a abolição. Com serenidade calorosa, foi assim
expondo as suas posições para justificar as divergências; e concluiu
que, apesar destas, sentia-se bem entre os companheiros
socialistas, aos quais agradecia a hospitalidade, que lhe permitira
comemorar a data maior em que os trabalhadores afirmam os seus
ideais e o seu ânimo de luta.

34. O companheiro Azis Simão


Azis Mathias Simão e eu ficamos amigos no começo de 1939.
Mais precisamente, na aula das cinco da tarde do professor Jean
Maugüé, que também morreu em 1990, aos 86 anos. Maugüé era
um mestre extraordinário, brilhante e inspirador, capaz de tornar
atraente o pensamento filosófico mais abstruso, inclusive graças às
correlações que sabia fazer com domínios diversos, estimulando a
nossa reflexão a partir das fitas que víamos, dos romances que
líamos, dos acontecimentos e ideias políticas da hora. Por isso,
vinham ao seu curso não apenas os regularmente inscritos, como
eu, mas veteranos de turmas anteriores e ouvintes de vária espécie,
entre os quais Azis. Duas vezes por semana lá estava ele na
Faculdade de Filosofia, para ouvir conosco o curso sobre teoria das
emoções, baseado nos textos de Freud e Max Scheler. Todos nós
apreciávamos fascinados o trânsito constante de Maugüé entre as
ideias e a sociedade, sob o estímulo de um marxismo bastante
liberto, raro naquela altura. A influência que recebemos dele foi
decisiva. Inclusive porque a sua abertura confirmou em muitos de
nós uma vocação de crítica e ensaísmo que nos foi levando a deixar
de lado filosofia e sociologia, para nos aninharmos na literatura e
nas artes. Mas este não foi o caso de Azis.
Azis (que os companheiros mais antigos chamavam Simão, e
alguns, Mathias) me impressionou desde logo pela claridade
mental e a fluência da expressão. Tudo o que abordava ia ficando
interessante, e lembro a atenção com que o ouvi explicar, em nossa
primeira conversa, certos pormenores da teoria atômica. (Na
revista Problemas, de cujo grupo participou, publicara anos antes
artigos sobre ciência, do ângulo marxista, ainda impregnado pela
Dialética da natureza, de Engels.) Do átomo passou a outros
assuntos e acabou explicando a importância da alimentação para a
saúde dos dentes, com voz calorosa mas velada, envolta na mais
atraente simpatia, pois o seu magnetismo era grande e atuava de
imediato. Assim ficamos amigos à primeira vista, nos bares, em
casa, nos grupos políticos, na universidade.
Quando nos conhecemos ele ainda enxergava mais ou menos
com um dos olhos, mas piorou bastante no começo dos anos de
1940. Formado em farmácia, frequentava como ouvinte as aulas da
nossa Faculdade, para a qual prestou vestibular em seguida, com
licença de escrever as provas à máquina. Aprovado, fez o curso
com brilho e formou-se no ano de 1950, tornando-se
imediatamente auxiliar de ensino da cadeira de Sociologia II, a
convite de Fernando de Azevedo, que tinha por ele a mais afetuosa
admiração. Houve então uma luta difícil para a admissão ao quadro
regular de um docente sem vista, que acabou afinal admitido por
ato do governador.
A partir de então a sua atividade política mudou de sinal, como
veremos. Antes, desde a adolescência, ela havia sido dedicada e
intensa. Formado entre anarquistas e comunistas dissidentes,
refugou desde sempre o duro enquadramento do Partido
Comunista e procurou preservar o que lhe parecia o bem maior, o
requisito fundamental em política: liberdade de pensamento e
respeito às opiniões divergentes. Por isso, orientou-se para o
socialismo democrático e se inscreveu em 1933 no então fundado
Partido Socialista Brasileiro.
A sua fórmula ideológica era complexa, com doses de
anarquismo, trotskismo e muita preocupação ética, sobre o pano
de fundo do marxismo meio sumário frequente no Brasil daquele
tempo. O antistalinismo ferrenho o levou, como a muitos outros, a
admitir soluções de tipo liberal, que ao menos assegurassem o
debate das ideias e a livre organização, tanto sindical quanto
partidária.
Além disso, no começo dos anos de 1930 esteve ligado aos
movimentos de inconformismo e renovação na literatura, que
vinham de antes e adquiriram então certo toque político. Jornalista
e boêmio, viveu com alegria aquela era de conversa infindável nas
mesas de mármore do cafezinho, da média ou do chope em todo o
território do centro, participou de organizações como o Clube dos
Artistas Modernos (CAM), frequentou Pagu e Oswald de Andrade,
com os quais o seu fraternal amigo Miguel Macedo redigiu O
Homem do Povo. Muitas vezes, à tarde, no fim do expediente do
São Paulo Jornal (onde trabalhava sob a direção de Cândido Mota
Filho), ele e os colegas de redação diziam, pegando o paletó:
“Vamos dar uma prosa com o seu Mário”, isto é, Mário de
Andrade. E lá iam rumo ao Diário Nacional. Pela mesma altura
ligou-se por atividades políticas e culturais ao sindicato dos
gráficos, que foi sempre o seu contato maior no campo operário e
onde militou ao lado do grande João da Costa Pimenta e outros,
como Storti e Dalla Dea (João).
Quando o conheci os partidos estavam proibidos desde o golpe
de Estado de 1937, de modo que só em 1945 ele retomou a
atividade partidária na União Democrática Socialista (UDS),
constituída por membros socialistas da clandestina Frente de
Resistência, como Antonio Costa Correia, Paulo Emílio Sales
Gomes (autor do manifesto e principal coordenador), Paulo Zingg,
eu. A nós se juntaram muitos outros, de procedência variada, que
também queriam definir um combativo socialismo independente.
Assim, vieram alguns membros do Partido Socialista de 1933,
como Azis e Jacinto Carvalho Leal; vieram antigos trotskistas,
como Febus Gikovate e Fúlvio Abramo; veio um grupo de
militantes negros (como o jornalista Geraldo Campos de Oliveira),
entre os quais uns poucos metalúrgicos, por exemplo, o meu xará
quase completo, Antonio Candido de Mello; e neófitos, como
Edgard Carone.
Azis gostava de discutir tudo exaustivamente, estabelecer
distinções, objetar, sugerir alternativas, sempre com o intuito de
obter a posição mais consciente e eficaz. Por isso, Paulo Emílio
disse um dia brincando: “O Azis é o divisionista típico”. Um de
nós, completando a brincadeira, pôs nele o apelido de “general de
divisão”, que o divertia muito.
A UDS foi um excelente rebolo, onde afiamos a nossa concepção
de socialismo independente de base marxista, convicto de que no
processo político transformador cabe posição-chave à classe
operária, antistalinista sem ser trotskista (o primeiro grupo em São
Paulo nestas condições), achando que democracia não é coisa
formal e que no Brasil é preciso encontrar soluções adequadas, sem
acatar palavras de ordem feitas para outros contextos. Mas a UDS
não tinha condições de sobreviver. Por isso, acabamos aderindo à
bem menos radical Esquerda Democrática (ED), fundada no Rio em
meados de 1945.
Na constituição da Esquerda Democrática em São Paulo Azis
foi elemento decisivo, lutando para introduzir os nossos pontos de
vista ao lado de novos companheiros que se juntaram ao grupo e
militaram ativamente com ele, como Arnaldo Pedroso d’Horta e
Lourival Gomes Machado. Em 1947 a ED se transformou em
Partido Socialista Brasileiro (PSB), recebendo os sobreviventes
deste, que cederam o nome; de modo que Azis acabou voltando à
origem, embora em organização bem diferente da antiga. Mas,
como vimos, a partir de 1950 deixou praticamente a atividade
partidária regular e se concentrou na universidade, onde exerceu o
ânimo militante em vários sentidos, inclusive atuando na
memorável greve de 1979, em seguida à qual presidiu a ADUSP num
momento difícil de transição.
Mas eu diria que a sua principal militância universitária foi a
constância com que manteve como tema de ensino e pesquisa os
problemas do proletariado, inspirando jovens e organizações. O
seu estudo pioneiro sobre o voto operário ficou justamente
famoso, pelo rigor da investigação, a sábia utilização dos dados e a
solidez da interpretação. Seu livro Sindicato e Estado é um clássico.
Note-se que ao transitar do partido para a universidade ele
continuou fiel às posições de base. No professor brilhante, no
notável orientador e despertador de vocações permaneceu vivo o
fermento de revolta.
Quem conhecesse Azis notava logo dois traços, um dos quais
surpreendente: a cordialidade jovial e a exata percepção do mundo
exterior. A perda da vista, parcial na altura dos dezessete anos,
praticamente total a partir dos trinta, em vez de fechá-lo, abriu-o
para fora. Ele compensou a grave limitação desenvolvendo uma
inesperada capacidade de absorver o que lhe ia em torno — pela
intuição certeira, pela reconstituição mental baseada na
experiência anterior de vidente, pela imaginação da coisa e o
apaixonado interesse por tudo. Os seus dedicados acompanhantes,
sobretudo sua mulher, Nena, o iam informando de maneira
minuciosa, e ele construía a visualização submetendo os dados ao
seu revelador mental.
Quando expuseram aqui o painel Tiradentes, de Portinari,
Lourival Gomes Machado passou uma tarde descrevendo-o com
minúcia para Azis. Palmo a palmo, cor por cor, desmontou
verbalmente a composição, analisou a estrutura e os movimentos,
comentou a concepção, esclarecendo à medida que Azis
perguntava, cada vez mais senhor do painel. Lourival, um dos
homens mais inteligentes, sensíveis e generosos que conheci,
tinha como ninguém a capacidade de fazer ver as obras de arte, que
depois da sua análise pareciam entregar os segredos. Graças a ele
Azis viu o painel de Portinari, elaborando-o interiormente, e
passou a comentá-lo por conta própria com incrível segurança,
inclusive criticando os que lhe pareceram certos vazios da
composição.
O que possibilitava esse domínio da realidade talvez fosse o
fervor com que se interessava pelas coisas, as pessoas, as ideias, e
que lhe dava uma energia inquebrantável. O fervor era nele forma
de conhecimento e modo de apreensão, graças ao qual assimilava
tudo com uma intensidade que iluminava o entendimento. Essa
força expansiva formava par com o dom de se concentrar a fundo e
a mais elevada capacidade de reflexão, na qual mergulhava
manobrando frequentemente com as mãos uns palitos de fósforo,
enquanto moía com o cérebro os dados e conceitos. O seu
raciocínio era concatenado, firme, muito preciso e descobridor,
capaz de imaginar hipóteses depressa e a partir delas criar
maneiras de compreender melhor. Qualquer questão que
enfrentasse saía iluminada pela sua poderosa máquina de pensar,
alimentada pela faculdade de extrair o máximo de uma informação
forçosamente limitada para quem dependia dos textos em braille e
da leitura feita por terceiros. Mas não apenas sabia escolher o
essencial, como tudo o que lhe caísse no conhecimento ficava
armazenado para sempre nos refolhos de uma memória prodigiosa,
como arsenal da meditação.
A isso é preciso ligar o seu equilíbrio mental e emocional. A sua
mente era limpa e sadia; o seu modo de ser, tão natural que não
comportava inibições nem os freios da timidez. Azis encarava o
mundo e as pessoas com retidão, tranquila ou indignada conforme
o caso, mas invariável. Por isso, estava sempre soberanamente à
vontade, fosse onde fosse e com quem fosse. Penso que se um dia
tivesse de jantar no palácio de Buck­ing­ham ele se comportaria com
a mesma naturalidade espontânea, a mesma cortesia
despretensiosa com que iria a uma festinha de estudantes ou a uma
quermesse na sua cidade de Bragança.
Como tinha em alto grau o dom da amizade e o amor pelos
amigos, viveu cercado por eles, dando-lhes em dobro o afeto que
recebia, com uma fraternidade cheia de carinho e do mais
generoso desprendimento. Graças a isso, nunca faltou quem o
ajudasse a andar, a ver, a ler, a pensar. E ele transformava essas
relações em magistério, porque no percurso, na conversa ou na
leitura em comum ele ensinava e esclarecia. Com ele o papo virava
debate, que gerava análise e desaguava em sugestão; ele era sempre
mestre, aumentando a humanidade e o saber dos que conviviam
com ele. Um espetáculo admirável era vê-lo traduzir um texto,
explicar os seus labirintos, compará-lo a outros e, no fim, mostrar a
ideia central luzindo claramente.
Esse amigo que irradiava compreensão e solidariedade não era,
todavia, um cordeiro. Pelo contrário. Apesar de preferir a
conciliação e o entendimento, sempre com muito tato, era
esquentado e tomava facilmente o pião na unha. Certa manhã de
domingo, na velha sede do Partido Socialista (o de 1947), num
primeiro andar apertado e encardido da praça da Sé, durante uma
sessão dedicada não lembro mais ao quê, travou-se uma daquelas
discussões intermináveis que azedam as relações nos grupos
políticos, fazendo os correligionários parecerem inimigos e pondo
todos a dois dedos do pugilato. Não havia muita gente, de modo
que as cadeiras estavam vazias em boa parte. Azis, na ponta
esquerda da primeira fila, perto da mesa diretora, fez uma
exposição. Um companheiro desconhecido por nós, no lado direito
de uma das filas de trás, se pôs a fazer críticas descabidas em tom
meio desagradável. Azis rebateu umas tantas vezes; o outro
insistiu, mais impertinente, até dizer qualquer coisa pior. Azis
virou-se aos brados para o lado de onde vinha a voz (pois não podia
ver a pessoa) e, desafiando o malcriado, foi atropelando cadeiras
vazias, pronto para lhe dar uns tapas. Mas foi contido a tempo,
enquanto o imprudente metia a viola no saco. Assim era Azis,
vivendo as convicções e os sentimentos com a energia dos
temperamentos fortes.
Ali por 1945 ou 1946 houve um almoço para angariar fundos
destinados ao jornal Vanguarda Socialista, dirigido no Rio por
Mário Pedrosa. O lugar era uma cantina na rua do Seminário e a
grande mesa foi posta ao ar livre, debaixo de uma latada. O método
consistia em leiloar coleções encadernadas do jornal, sendo
animadora Patrícia Galvão, a Pagu, nossa companheira de partido.
Tendo ela aludido mais de uma vez a Azis como Simões, alguém
observou didaticamente que era Simão, mas Pagu respondeu com
vivacidade: “Não senhor, é Simões mesmo, porque ele é plural!”.
Fechemos com isto a evocação desse homem dotado de
qualidades as mais diversas, arguto e simples, cheio de dedicação
generosa e discreto estoicismo, divertido amador de piadas mas
profundamente sério, compreensivo e deferente, embora inflexível
na hora da luta, que tinha uma incrível lucidez política e a
mentalidade mais abrangente e penetrante que se possa imaginar.
Azis era dessas pessoas cuja morte despovoa demais o mundo.

35. Arnaldo
Arnaldo Pedroso d’Horta lutava muito para conservar certos
hábitos, certos lugares, certas instituições. Lutava com teimosia,
aliciava, impunha aos amigos, como afetuoso tirano que sempre
foi. Quando achava que uma coisa boa estava sendo perdida, se
irritava como quem protesta contra um desperdício e fincava o pé.
Assim foi que manteve, impôs, fez desenvolver o Museu de Arte
Moderna, quando achou que o estavam liquidando sem razão.
Assim foi que forçou a sobrevivência do barzinho que antes fora do
dito museu. Assim era que observava religiosamente certos pontos
de encontro, cultivava certas rodas em dias certos. Quando, ao
contrário, se convencia de que uma coisa não tinha mais o sentido
que tivera, ou que ele supusera que ela tivesse, largava-a de
repente. Foi como largou a antiga Associação Brasileira de
Escritores, foi como se desinteressou dos congressos de
intelectuais e da atividade partidária. Uma vez (há uns vinte anos)
eu insistia com ele para tomar parte numa realização cultural que
me parecia importante, e estranhava que um homem participante
como ele se abstivesse. A resposta foi lapidar: “O bem que eu
poderia fazer é muito menor do que o mal que eu faria a mim
mesmo”.
No fundo de tudo isso, estava a necessidade ansiosa de contato
humano verdadeiro. Era gregário, sendo solitário de modo visceral.
Nunca fez uma confidência na vida, mas não podia passar um dia
sem ver amigos. Falava pouco, mas exigia muita fala, muito riso em
volta de si. Era áspero e quando calhava podia ser bruto, no
entanto transbordava sempre de uma ternura que nadava em
lágrimas nos seus olhos claros e salientes.
Era um homem de amizades e era um homem de tarefas. Tendo
muito de fanático, se afastou desde cedo das posições que erigiam
o fanatismo em norma de conduta. O dele era um fanatismo da
liberdade, uma paixão (rara) da responsabilidade, uma
intransigência ríspida. Por isso, foi militante admirável,
profissional perfeito e artista exigente, que escolhia sempre os
fazeres mais difíceis e minuciosos. Creio que desconfiava de tudo o
que era fácil, e quem sabe, paradoxalmente, foi por isso que pôde
ser incomparável no jornalismo, onde a facilidade é a norma e o
pão de toda hora. Ele se matava para fazer bem, para fazer melhor,
orgulhoso e persistente. Em compensação, era exigentíssimo com
os outros, não aceitando deles senão o mais raro, cobrando com
agressividade as descaídas, as mancadas, a irresponsabilidade. Era
preciso vê-lo numa reunião partidária, jogando lentamente as
palavras como pedras, vermelho e espinhado, pedindo conta dos
deslizes, algumas vezes meramente supostos pela sua vigilante
desconfiança. E era preciso também vê-lo passar os dias e as
noites, duas, três, quatro, chefiando um setor de trabalho,
controlando as tarefas, distribuindo material — paciente, cortante,
incansável —, bebendo uma cerveja e comendo um vago
sanduíche, aferrado como maníaco tranquilo à tarefa, à obrigação,
ao que era preciso fazer, ao que pesava inelutável porque era um
compromisso. Arnaldo custava a tomar as suas resoluções bovinas,
mas quando as tomava, era isso.
Uma personalidade recortada de tal modo não podia ser feita
para ter respeito humano, e só respeitaria a opinião de quem se
respeita. Daí não ter tido medo de ir contra as normas, fossem
quais fossem, nem de aceitar raciocínios do tipo “assim é mais
tático”, “a coerência partidária manda”, “o objetivo redime o
método” etc. Ou por outra: aceitou tudo isso quando era bem
moço, mas logo caiu em si e desenvolveu uma integridade
individual que tomava a consciência como medida, e não obstante
era capaz de entrosá-la com outras consciências livremente
dispostas ao mesmo fim. Por isso, era capaz de uma disciplina e
uma dedicação acessíveis apenas a quem respeita o próximo com
severidade. Não espanta que tivesse ficado tão incapaz de atuar em
agrupamentos, e tão capaz de atuar com a mais destemida bravura
como se representasse um enorme agrupamento: o dos homens
que desejam ser realmente livres, e que ele via acima e à parte das
filiações rotuladas. Creio que poucos homens souberam como
Arnaldo, nestes tempos politicamente tão lamentáveis em que
vivemos, exprimir anseios e cóleras, esperanças e protestos
comuns a gente da direita, do centro e da esquerda, distinções que
para ele acabaram sendo não inócuas, mas menos válidas do que
aquela espécie de comunidade da consciência inconformada, que
era no fundo a sua meta quem sabe inconsciente de solitário
gregário, de contestador sem partidos.
Para ser assim, e para ter podido modular a sua vida em gamas
tão extensas e variadas, é claro que Arnaldo tinha de ser, como era,
um homem excepcionalmente dotado, com sensibilidade
trepidante, discernimento infalível, largo e articulado raciocínio,
vontade sólida, íntegra. Abrangia e discriminava todas as sutilezas
do Ulisses, de Joyce, que releu quem sabe umas dez vezes. Tinha o
faro exigente dos leitores que não brincam de ler e sabia desossar
os textos políticos com uma clarividência da estrutura só
comparável às eventuais discordâncias fulminantes com que podia
arrasar as conclusões. E, mesmo embirrado, lia com afinco e
atenção, porque era a tarefa do momento, o empenho do seu ser
sequioso e desesperado naquele instante do tempo que importava
consumir.
Passamos juntos por muita mudança, lutamos horas sem conta
em lutas sem perspectivas, esperamos sem esperança colheitas que
não brotaram, ficamos homens numa ditadura e envelhecemos
noutra. Ultimamente, creio que talvez discordássemos mais do que
concordaríamos, se fôssemos dar um repasso nas posições de base.
Mas, acima das concordâncias ou das discordâncias, diante de um
homem desses haverá outra atitude além do preito? Porque são
esses homens — que não querem dar exemplo, que brigam se
alguém os quer louvar —, são esses os homens realmente
exemplares e dignos de louvor.

36. Dispersão concentrada


Ruy Coelho tinha uma versatilidade extraordinária. Só que em
vez de estar associada à informação superficial, como de costume,
ela desaguava sempre no conhecimento a fundo. É que ele possuía,
além da capacidade de concentração em alto grau, uma força de
análise que lhe permitia chegar ao nó do problema, sem falar na
mais prodigiosa das memórias, dessas que registram tudo com
exatidão e para sempre. Outra cabeça desse tipo, só conheci a de
Sérgio Buarque de Holanda, com quem Ruy Coelho tinha em
comum, além das afinidades mentais, o humor, o gosto pela
boemia do espírito e pelas infindáveis conversas noite afora. Tanto
as leituras quanto os papos eram favorecidos pelo ritmo peculiar do
seu sono, que o fazia deitar-se lá pelas quatro ou cinco da
madrugada. Assim, dispunha diariamente de muitas horas de
quieta solitude, amiga dos livros e da reflexão.
Ele sempre soube muito mais coisas do que nós, seus amigos e
companheiros de mocidade. Inclusive porque tinha o dom da
disponibilidade intelectual e uma curiosidade que o fazia
interessar-se pelas coisas mais inesperadas, graças ao caprichoso
movimento de assunto-puxa-assunto. Por exemplo: no meado dos
anos de 1950 resolveu reler com rigor o Ulisses, de Joyce, e isso o
levou à Odisseia, que percorreu com todo o cuidado, interessando-
se pela questão complementar das navegações dos gregos,
inclusive o estudo da construção naval, desde a madeira até a
calafetagem, tendo como consequência o desejo de saber alguma
coisa sobre os vernizes, pois aconteceu que estava planejando
meticulosamente uma vitrola (aparelho de som, como se diz hoje),
e para isso queria conhecer os melhores materiais. Assim, a
madeira relacionada com as águas homéricas se associou à madeira
relacionada ao som mecânico do nosso tempo, resultando dessas
digressões acréscimo de informação e muito divertimento.
A isso é preciso juntar a variedade dos seus dons naturais, que
lhe permitiam apreciar e conhecer de maneira excepcionalmente
aguçada a literatura, a música, as artes figurativas, a filosofia, a
história, as técnicas materiais, a heráldica, os vinhos, a culinária. E
não esqueçamos a notável competência em matéria de romance
policial e de cinema, cuja crítica exerceu em moço. Quanto ao
fervor e à intensidade das leituras, uma simples prova material: o
estado dos dez volumes de seu Balzac da Pléiade — estragadíssimo
pela frequência do manuseio.
Tudo isso convergiu de maneira original para enriquecer o seu
ofício de sociólogo e antropólogo, baseado numa formação
rigorosa, embora liberta e flexível. Formado em filosofia no ano de
1941, e em ciências sociais no de 1942, foi em 1945 para os Estados
Unidos com bolsa junto à Northwestern University, onde teve
professores de alta qualidade, ligando-se sobretudo a seu
orientador, Melville Herskovits, e a Irving Hallowell, sob cuja
direção aplicou, numa pesquisa de campo entre os índios ojibwas
de Lac du Flambeau, estado de Wisconsin, as técnicas projetivas
para estudo da personalidade, que aprendera em 1946 num curso
do Instituto Rorschach de Nova York e o marcaram em definitivo.
Isso foi importante para orientá-lo no rumo dos estudos de
personalidade-e-cultura, que naquele tempo eram novidade
palpitante na antropologia e seriam o seu campo predileto. Logo a
seguir recebeu uma verba para estudar os caraíbas negros de
Honduras, país onde morou durante um ano, de 1947 a 1948,
recolhendo material para a tese de doutorado, aprovada em 1954.
Em Honduras aproveitou como sempre para canalizar o
interesse intelectual segundo o estímulo do momento. Leu
toneladas de literatura espanhola e hispano-americana nos
intervalos da pesquisa, residindo às vezes em palafitas: o
Romancero, toda a picaresca, os grandes do Siglo de Oro, muito do
caudaloso Perez Galdós. Vem daí o seu conhecimento da América
espanhola, reforçado pela estadia de 1949 a 1950 na Universidade
de Porto Rico, como professor assistente de antropologia. De 1950
a 1952 foi antropólogo da UNESCO, em Paris, e de volta ao Brasil foi
nomeado em 1953 assistente da cadeira de Sociologia II, regida por
Fernando de Azevedo, de quem fora aluno e a quem sucedeu por
concurso em 1964. Sempre ligado a instituições estrangeiras,
ensinou durante alguns anos do decênio de 1970 na Universidade
de Aix-en-Provence e outros tantos na de Coimbra nos anos de
1980.
Mas não pretendo acompanhar a carreira universitária de Ruy
Coelho. Esses dados sumários servem de mero quadro para
compreender os rumos da sua produção intelectual, iniciada em
1941 com um longo ensaio sobre Marcel Proust, no primeiro
número da revista Clima. No rapaz de vinte anos, era a prova
singular e precoce de saber e capacidade crítica.
A tese de doutorado, The Black Caribs of Honduras, publicada
em tradução portuguesa no ano de 1964 com o título Os Karaib
negros de Honduras, mostrava o toque pessoal ao discrepar da
rotina do gênero. Seria em princípio a clássica monografia de
comunidade segundo o modelo americano então reinante, mas
virou coisa diferente nas suas mãos. No começo, tudo normal:
dados históricos, meio físico, capítulo abrangente sobre
organização social; mas a seguir vinha a inflexão. Em vez de
desenvolver sistematicamente os vários aspectos da organização,
ele se concentrou num tópico, que lhe parecia esclarecer de
maneira mais profunda a cultura em estudo: as crenças e a vida
ritual, com destaque para o comportamento do indivíduo no
contexto da cultura e da sociedade. Foi desse material que extraiu
dois artigos de repercussão internacional: o primeiro, publicado
em 1949 na revista Man, “The Significance of the Couvade among
the Black Caribs”, propunha uma nova interpretação deste
costume e foi louvado por Lévi-Strauss; o segundo, “Le Concept
de l’âme chez les Caraibes noirs”, saiu em 1952 no Journal de la
Société des Américanistes.
O interesse pelos estudos de personalidade-e-cultura não o
deixaria mais e seria de certo modo o eixo da sua atividade
universitária em cursos, pesquisas e escritos. É curioso ver como
circula à sua volta por meio de uma ida ao passado no livro
seguinte, Indivíduo e sociedade na obra de Augusto Comte,
investigação teórica visando a indicar certas raízes do
estruturalismo antropológico, predominante naquela altura. A
formação que tivera na Universidade de São Paulo com os
professores franceses se apoiava bastante na obra de Durkheim,
que por sua vez fecundara a orientação comtiana. Foi o caminho
que seguiu neste trabalho, tese de livre-docência publicada em
1963, para mostrar o entroncamento do estruturalismo naquela
tradição, indicando de que maneira uma leitura adequada permitia
encontrar na obra de Comte subsídios importantes para entender a
personalidade a partir da sociedade. Ao mesmo tempo,
contraditava afirmações rotineiras sobre a atitude antipsicológica
do fundador do positivismo.
Preocupação do mesmo tipo está no cerne de Estrutura social e
dinâmica psicológica, tese de cátedra defendida em 1964 e publicada
em 1969. É um livro magistral onde, segundo o seu modo predileto
de proceder, parecido nisso com o de seu mestre Roger Bastide,
ele começa pela análise das teorias, passa à sua crítica e termina
por apresentar o tema central. Assim, parte do conceito de
estrutura e expõe o pensamento de autores sensíveis à dimensão
psicológica, como Marcel Mauss e Lévi-Strauss. A seguir estuda o
ponto de vista de Radcliffe-Brown e seus discípulos Firth e Nadel
(este, professor com quem conviveu e que o influenciou),
terminando pelos norte-americanos, cuja posição considera
“estruturalista-funcionalista”. Isso feito chega onde queria e expõe
o seu modo de ver, sob a forma de uma apresentação do lado
psicológico das teorias estruturalistas. É o momento mais pessoal
do livro, no qual entra pelo estudo da personalidade à luz do
processo de integração social, terminando pela visão sintética da
sua relação com a estrutura da sociedade.
Como se vê, a atividade intelectual, e sobretudo profissional
desse homem aparentemente dispersivo se ordenava segundo uma
linha mestra — enriquecida pela informação sempre atualizada em
campos como a epistemologia, a psicanálise, a filosofia da
linguagem. Uma das suas últimas publicações, se não a última, foi
o brilhante estudo “Planos da cognição e processos culturais” (na
revista Tempo Social, 1989), onde analisa segundo um ângulo novo
os mecanismos sociais e culturais envolvidos no processo de
conhecer, em sentido amplo e em vários níveis. Uma coletânea
(que se impõe) dos seus dispersos mostraria a riqueza da sua
atividade intelectual, na variedade dos temas e dos métodos.
Mostraria como nele o antropólogo e o sociólogo eram ao mesmo
tempo um homem de saber universal, capaz de circular com toque
próprio, servido por um admirável estilo, da literatura à lógica, da
sociologia ao cinema.
Quanto ao modo de ser, há de ficar na lembrança dos que o
conheceram a marca da sua retidão tranquila mas inflexível e o
profundo desinteresse por qualquer sombra de fama, poder ou
mesmo notoriedade. Praticamente, só escrevia premido por
compromisso e não cuidava sequer de dar aos amigos os textos
publicados. Talvez a sua única vaidade tenha sido a de saber, saber
muito, saber mais, estar em dia. Fechado no escritório,
mergulhado nas leituras insones da vida inteira, o mundo da
inteligência foi para ele essa atividade mental depurada,
desinteressada no sentido mais alto e mais completo da palavra,
enquanto no mundo das relações o seu dia a dia se caracterizava
pelo exercício da tolerância apaziguadora e por uma invariável boa
vontade.

37. Hélio versus demônio


O leitor deste livro admirável fica achando que o poeta mais
afim ao gosto de Hélio Pellegrino[25] era Carlos Drummond de
Andrade. Mas muita coisa aqui parece levar para o lado de Murilo
Mendes, que quando se tornou católico militante no começo dos
anos de 1930 decidiu criar o escândalo da transcendência,
mostrando que a religião é revolta e não comodismo, que o Cristo
vivo é o dos pobres, que a fé se aparenta com a negação da ordem e
o milagre está solto na rua. Em Murilo a consciência propriamente
social veio depois. Mas o seu cristianismo sempre foi do outro
lado.
Mais moço uma geração, Hélio Pellegrino já começou
pressupondo a união indissolúvel da fé e da justiça. As decisões do
Vaticano II e mais tarde a Teologia da Libertação o encontraram
navegando neste rumo havia muito, contra as ortodoxias da
religião e da política, contra a esclerose das hierarquias,
apaixonadamente a favor do contra. Cristão, por ser
revolucionário. Revolucionário, por ser cristão.
À maneira de Murilo Mendes, ele se afirma através do choque e
da observância dos contrários. Nele, o que frequentemente parece
contraditório é redenção, de tal forma que pode ser católico e
marxista, como pode ser extremamente racional e respeitar as
forças obscuras do ser. A sua temperatura de fusão é alta, e graças a
ela pôde construir uma visão coerente de todas as diversidades.
Paixão e lucidez animam juntas cada uma dessas páginas.
A burrice do demônio é uma coleção de artigos de jornal sobre
vários assuntos, unificados não apenas pela recorrência de temas,
mas pela tensão constante da inteligência, que permitiu a Hélio
Pellegrino inventar um gênero novo no Brasil: a reflexão filosófica
na escala da crônica. Há muitos anos, na França, Alain usava o
artigo breve, o propos, para veicular a mais densa reflexão,
frequentemente, a partir dos temas de atualidade. Hélio fez coisa
aparentada, embora seja o anti-Alain, porque não amaina, não
contemporiza e não pacifica. Pelo contrário, agride, expõe a ferida
e escandaliza abertamente, numa opção pelos extremos que condiz
com a sua personalidade sedenta.
Homem de formação científica rigorosa e muita leitura, ele
denota o gosto pela abstração e a capacidade de lhe dar vida pelo
recurso aos temas do cotidiano, aproveitando como oportunidades
um livro novo, um acontecimento, uma ideia em voga. Tudo serve
de deixa para ele refletir e transformar a reflexão em ato vivo, que
se comunica ao leitor como experiência concreta graças à escrita
fulgurante, tecida de metáforas, percorrida por fórmulas
admiráveis, desdobrando-se num ritmo de veemente liberdade. A
pertinência dos temas e a força da linguagem concorrem para
unificar o livro, que no fim aparece como um todo coerente, quase
um livre sistema, sob aparência do contrário. Não conheço outro
exemplo de tensão reflexiva disciplinando com tanta eficácia o
ritmo caprichoso do artigo periódico.
Por isso, creio que A burrice do demônio convida o leitor à
releitura. Não de cabo a rabo, mas como convivência parcelada:
hoje um artigo, amanhã outro — como acontece com as obras que
podem ser breviário e inspiração. Num tempo em que tudo se
desfaz no consumo imediato e a releitura é quase uma lembrança
perdida, é notável esta característica, sinal de que o leitor poderá
encontrar aqui um apoio constante para pensar o nosso tempo.
Os pontos de referência de Hélio Pellegrino são a psicanálise, o
marxismo e o cristianismo, que ele compatibiliza a cada instante, a
propósito das mais variadas situações de vida e de pensamento,
como quem alcançou uma posição acima das contradições,
justamente porque as aceita e faz delas trampolim para descartar as
visões simplificadas. A inspiração arrebatada lhe permite alcançar
uma difícil posição de unificador que sabe ressaltar
paradoxalmente a diversidade.
Um dos temas básicos destas páginas é o da liberdade, que para
Hélio Pellegrino é ao mesmo tempo risco e redenção do homem,
obrigado a escolher e a criar a cada instante, pois, ao contrário do
animal, nasce despreparado e precisa de equipamentos para suprir
a inferioridade dos instintos.

Nós, humanos, nascemos prematurados, desequipados, sem


fortes instintos que nos costurem ao mundo, fazendo dele,
desde o começo, a nossa casa. Somos ruptura com a ordem
cósmica e, por isto mesmo, criadores de civilização. Somos, em
nossa origem, desgarramento, derrelição, extravio, liberdade.
Somos, em nosso centro ontológico, falta, fenda, spaltung. (p.
17)

De certo modo, tudo isso tende à liberdade, que, no entanto, é


constantemente negada, ou seja: aquilo que constitui a essência da
nossa condição humana é o que a má organização da sociedade
procura descartar de todas as maneiras, pelos recalques interiores,
pelos preconceitos que mutilam e isolam, pelas tiranias que
esmagam. Por isso, sentimos que na filosofia de Hélio Pellegrino a
ânsia de libertação é coextensiva ao senso de dignidade do homem,
e serve de metro para avaliar a atuação das igrejas, dos governos,
dos partidos. O que conduz a ela é legítimo, e negá-la faz parte das
artimanhas do demônio, que está sempre por aí, na opressão, na
tortura, no obscurantismo e onde menos se espera.
As forças de afirmação da liberdade, interior e social, são o que
há de positivo, e aparecem inclusive no prazer, que expande o ser
até o seu limite e por isso mesmo é tão perseguido pelas normas
sociais e religiosas. O prazer perpassa por este livro como presença
e como latência, por vezes em contraponto ostensivo ou virtual
com a morte, que segundo Hélio é a companheira perene, o termo
e o mistério, ao mesmo tempo terrível e redentora, porque é
conatural e gera mitos compensadores. A força da vida provém da
luta contra a morte, mas não pressupõe ignorá-la. Prazer e morte
são polos deste livro, e a sua relação baliza a experiência total do
homem, que procura a plenitude no prazo que a morte lhe
concede. São positivas as formas de convivência e organização
social que permitem a vida plena. Segundo Hélio, esta pressuporia
no plano individual o acordo do ser consigo; no plano social, o
acordo entre os indivíduos, para além dos mecanismos de
subordinação, exploração e aniquilamento. O socialismo lhe
aparece como possibilidade desta vida mais harmoniosa, onde o
homem compensaria a sua irremediável limitação.
Política, religião, consciência, amor se unificam por isso no seu
texto, dando lugar a visões unitárias que superam as visões
parceladas, incompletas, próprias de quem vê o homem reduzido a
algum dos seus aspectos, não conforme a integridade de quem
aspira à plenitude. Neste sentido, Deus se revela na matéria e o
corpo físico do mundo pode ser a dimensão do divino. Em sentido
oposto, o demônio é parcial, divisionista, ou, como diz ele,
“redutivista e analítico, em regime de tempo integral”, incapaz de
remontar o que desmontou. Por isso, “é incuravelmente burro”.
(pp. 121 e 123)
Hélio Pellegrino, ao contrário, é integrador por excelência e
consegue, como ficou dito acima, unificar os próprios contrários.
Pode ser católico e espinafrar o papa, admitir a luta de classes e a
visão psicanalítica da personalidade, porque busca no ser e na
sociedade a integração, tentativa de plenitude. Daí o seu
cristianismo revolucionário, apresentado com um poder de
expressão que tem momentos de gênio e parece devido a uma
liberdade criadora que prefigura o mundo onde fossem vencidos os
demônios.

38. Censura-violência
A censura é uma forma eficaz e profunda de violência, e a
violência se tornou em nosso tempo horizonte e limite. Não
afundemos demais no lugar-comum, mas registremos o fato de que
neste fim de século a sua penetração e a sua explosão fazem
realmente pensar. Sobretudo porque, ao contrário do que ocorreu
noutras épocas e noutras civilizações, ninguém gosta de assumi-la
francamente; os seus próprios autores e executantes não apenas a
renegam ostensivamente, como a condenam. Haja vista na
instância suprema os países ricos, que vendem armas aos outros,
cultivam os pontos de conflito no mapa-múndi, mas não obstante
lançam apelos veementes e patéticos a favor da paz.
Talvez isso venha desde sempre, pelo menos no Brasil, que é
um país pacífico, sendo qualquer violência, no dizer das autoridades
e respectivos ideólogos, “contrária à índole do nosso povo”.
Quando os homens da minha geração começaram a ler e
aprender, reinava na educação caseira e escolar uma concepção
tecida sutilmente de violência inculcada, mas logo negada, e que
por isso mesmo se incrustava a fundo em nossa consciência
burguesa. Esse padrão comportava o que se pode chamar um
refinamento estético da violência, com o culto do penacho, do
uniforme vistoso, do rompante heroico, do gesto marcial
cristalizado no quadro ou na estátua, do movimento coreográfico
das batalhas de museu — e uma insensibilidade coletiva em face da
maioria esmagada pela miséria, vista como fato natural. Nós
entrávamos por aí com soldadinhos de chumbo, espadas e
capacetes de folha e a ideia de uma profunda nobreza da força.
“Assim nos criam burgueses”, como diz o poeta.
Mas, ao mesmo tempo, impunha-se a ideia de um Brasil
pacífico por natureza, cordato e generoso, inimigo desta mesma
força, com uma história onde o sangue belicoso só corria
derramado no campo da honra para defender o solo invadido ou
ameaçado, dos holandeses aos paraguaios. Hoje as modas são
outras entre os intelectuais, e talvez até se exagere a brutalidade da
nossa história, que apenas não fica devendo nada à de outros países
sob este aspecto. No entanto, creio que ainda predomina a velha
barragem ideológica, mantida com uma pertinácia que chega a
espantar, nessa era de violência desmascarada; e que decerto
alcança com eficiência os seus fins mistificadores, como
autossugestão consciente ou inconsciente.
Se não me engano, o primeiro historiador que mostrou a
concatenação da violência na história republicana foi Edgard
Carone, não faz muito tempo. Na sua obra, é impressionante a
sucessão ininterrupta da ferocidade, numa cadeia de chacinas,
conflitos sanguinolentos, intervenções armadas cheias de
selvageria. Em outros historiadores isso tudo, quando aparecia,
aparecia esbatido ou isolado, facilitando a ideologia da exceção
lamentável. Não há dúvida de que a clava do hino nacional, se nem
sempre foi justa, é invariavelmente forte. Seja como força física de
compressão, seja como pressão sobre a inteligência e a
criatividade, que é o caso da censura.
Violência física e violência mental são na verdade violência
social, como fica mais evidente neste fim de século especialmente
bruto. Ela é fruto da desigualdade econômica, que requer força
para se manter, porque sem força a igualdade se imporia como
solução melhor, que na verdade é. Hoje, é espantoso ouvir e ler os
pronunciamentos das autoridades de todos os níveis, que falam
com veemência crescente que a miséria do povo é intolerável, que
a concentração da riqueza deve ser mitigada, que a pobreza é um
mal a ser urgentemente superado — não raro com estatísticas
demonstrativas. É espantoso, porque até pouco tempo tais
afirmações eram consideradas coisa de subversivos; e é espantoso
porque isso é dito, mas quem diz faz tudo para que as coisas
fiquem como estão, e para que os que querem mudar sejam
devidamente enquadrados pela força. Não há dúvida de que a
censura funciona como retificação, como dolorosa ortopedia feita
para lembrar aos incautos a obrigação de não passar da demagogia
à luta real pela democracia. A ideia, a palavra, a imagem podem ser
instrumentos perigosos aos olhos dos que desejam apenas
escamotear, operando conscientemente no plano da ideologia para
abafar a verdade. Censura, portanto, e censura como arma para
formar com outras o arsenal de manutenção da desigualdade —
econômica, política, social. Por isso, mais em nosso tempo do que
em outros, nos quais eram menos variados e atuantes os meios de
expressão, devemos estar cada vez mais preparados para lutar
contra a violência dentro da qual vivemos em todos os níveis.
Inclusive a da censura.
Há certas expressões significativas: “O fato é homem e a palavra
é mulher; um homem vale vinte mulheres”; ou: “Contra fato não
há argumento”. Elas querem dizer que, diante da evidência do real,
não cabem as argumentações abstratas em contrário, o que em
princípio parece estar certo. Mas, na verdade, significam também
coisas como “o que vale é a força” ou “ideia não resolve”. Assim,
pregam o reconhecimento do fato consumado, a capitulação diante
do que se impôs no terreno prático, negando o direito de discutir,
de argumentar para mudar a realidade. E então se tornam sinistras.
Sob este aspecto, o papel do intelectual consiste em fazer o
contrário do que tais expressões postulam. Em não aceitar o fato
como necessidade inelutável, nem considerar inapelável a
circunstância que o formou. Em 1973, instigados por Fernando
Gasparian, alguns intelectuais se juntaram a ele para fundar uma
revista, a que deram o nome de Argumento, para marcar o direito
da razão em funcionar contra a força. Os tempos eram bem mais
duros do que agora e a censura à imprensa era maciça. Por isso
mesmo, a nossa decisão foi não aceitar o fato como inevitável, mas
lutar na medida das forças para mudar, sugerir alternativas, abrir. A
apresentação foi escrita por Paulo Emílio Sales Gomes e acabava
assim:

Nascemos sem ilusões e não está no nosso programa nutri-las.


A independência custa caro e não encoraja as subvenções. Não
temos propriamente o que vender mas nos achamos em
condições de propor um esforço de lucidez. Esta não é artigo de
luxo ou de consumo fácil mas em qualquer tempo é alimento
indispensável pelo menos para alguns. Sua raridade é, aliás,
sempre provisória; tudo que a lucidez revela tende a se
transformar em óbvio.
Contra fato há argumento.

No terceiro número a revista recebeu o aviso de que deveria ser


submetida à censura prévia, e, como não quisemos aceitar, ficamos
impedidos de publicá-la e ela acabou, afinal, depois de uma luta
que obrigou o presidente da República a baixar decreto, cortando a
nossa possibilidade de recorrer à Justiça. Portanto, o resultado final
parece ter sido — que contra fato não há mesmo argumento. Mas
talvez seja possível interpretar de outro modo, dizendo que tanto
há argumento contra fato, que os zeladores do fato consumado, da
situação intolerável, usam toda a força contra a lucidez da razão,
para apagarem o argumento correto e manterem o fato distorcido.
De certo modo, isso é o resumo das aventuras da cultura em face
da censura, no Brasil de hoje.
O que esta vem representando como sufocação é incrível. Nem
é possível avaliar o que significa na deformação da mentalidade de
toda uma geração, crescida em regime de censura drástica de
rádio, televisão, teatro, jornal. Censura acompanhada de medidas
coercitivas, que vão até a morte, como foi o caso de Vladimir
Herzog.
Vlado foi a maior vítima da liberdade de opinião e o seu
sacrifício representa simbolicamente da maneira mais nobre a luta
por ela. Representa a atuação da inteligência em frente da força
bruta que se arma para esmagá-la. E até a sua fragilidade física faz
pensar no texto famoso de Pascal:

O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza,


mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro
se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota d’água bastam para
matá-lo. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o homem seria
mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que
morre e sabe a vantagem que o universo tem sobre ele; o
universo não sabe nada disso.

A diferença é que os agentes da tortura em que se prolongou a


censura sabem que matam, na sua força enorme em relação ao
intelectual frágil — e isso agrava infinitamente a sua culpa. Mas
permanece a imagem do homem isolado, débil, armado da
inteligência e da razão, sabendo que elas são mais nobres, mais
fortes na escala de valores do que a força que se armou para
destruí-lo. Vlado foi, por isso, o eixo em torno do qual a violência
de um certo momento girou e declinou. Um frágil caniço pensante
que encarnava toda a dignidade e alcance do pensamento.
Reagir e lutar, portanto, sem ilusões excessivas, como diz a nota
de Paulo Emílio. Nesta reta de chegada do século, as contradições
sociais são tão evidentes, que as soluções de igualdade se impõem.
Daí o esforço redobrado dos que as querem esmagar, desviar ou
desfigurar, mesmo quando as usam demagogicamente nos seus
pronunciamentos. Assim, a perspectiva é de luta, não de
tranquilidade. Haverá alguns oásis no vasto deserto e momentos de
miragem, antes de se atingir o alvo, que é distante. Por isso, é
preciso afirmar a razão, condenar a repressão que no campo da
inteligência é censura e, como vimos, vai até a morte dos
discrepantes. Estamos no fim de um passado que começou a ser
dissolvido com a revolução industrial e no começo de um futuro
assinalado pela liberação da energia atômica. É urgente pensar
segundo esta escala, enfrentando a violência, que é o esforço
desesperado para desviar o futuro, mediante os salvados
indesejáveis de um passado moribundo.

39. Salinas no cárcere


O livro infelizmente póstumo de Luiz Roberto Salinas Fortes,
Retrato calado, pertence ao gênero fascinante dos escritos que
mostram o homem à busca de si mesmo. Feito para os outros, ele
nasce, todavia, de uma necessidade irremediável de
autoconhecimento, sendo ao mesmo tempo descrição de fatos e
revelação do ser. À medida que o autor narra os seus encontros
com a repressão policial e militar, nós vamos presenciando o
desvendamento da sua própria natureza. Como a escrita é
excelente, resulta um livro marcado pela originalidade forte dos
que não procuram ser originais.
Luiz Roberto conta primeiro as suas duas detenções por
suspeita de envolvimento na luta contra a ditadura militar, no
começo dos anos de 1970. A seguir, transcreve páginas de um
diário dos anos de 1950, quando veio do interior para estudar na
Universidade de São Paulo. Finalmente, conta duas outras
detenções em meados do decênio de 1970, por suposta
participação no tráfico de drogas. Aparentemente casual, a
disposição da matéria é perfeita como esquema narrativo, porque
apresenta situações armadas de fora, mas dá elementos para avaliar
como é por dentro o indivíduo arrastado nelas, e cuja integridade
elas põem à prova. Forçando a nota, pode-se dizer que as páginas
confessionais, postas no meio, simbolizam pela simples posição a
pessoa apertada entre duas conjunturas repressoras.
Como é o narrador? As páginas do diário, intituladas “Suores
noturnos”, mostram a sua angústia, a sua fragilidade consciente,
permitindo assim avaliar o efeito sobre ele da brutalidade descrita
na primeira e na terceira partes, intituladas “Cena primitiva” e
“Repetição”. Através das três, notamos como constante a lucidez
pungente de quem se observa e analisa, procurando compreender
a própria natureza nos termos da conhecida atitude pascaliana —
“procurar gemendo”.
Muitos passaram pela aventura pavorosa do cárcere e da tortura
no regime militar. Alguns relataram a sua experiência, mas poucos
o terão feito com a sobriedade de Luiz Roberto, que nem por um
instante procura se valorizar, dar-se como exemplo ou vítima. Uma
serenidade incrível anima o seu modo de escrever, como se ele
procurasse desprender-se de si e encarar-se como outra pessoa,
desdobrando-se a fim de que a reflexão pudesse extrair todo o
significado possível daqueles momentos, não obstante tão pessoais
e tão pessoalmente expostos. O tempo todo ele parece estar no
centro sem chamar atenção, simultaneamente sujeito e objeto,
graças à maestria da escrita e à invariável dignidade intelectual.
Resulta uma espécie de curiosidade aparentemente
desapaixonada, à força de ser lúcida, procurando os limites da
personalidade. E a descida aos infernos se torna oportunidade para
pensar o ser.
Talvez uma das chaves do livro esteja na página 27, onde Luiz
Roberto alude à tortura que sofreu e à marca deixada por ela,
prevendo que poderia causar no futuro a sua morte — como
parece que de fato causou. Ele sugere então o dever de expor o que
aconteceu a tantos, transbordando a sua singularidade para
exprimir o destino de outros. O que sofreu, muitos sofreram, e
quem sabe sofrerão; por isso, a sua experiência representa um
estado mais geral de coisas e justifica o aparente relevo dado ao
indivíduo falando na primeira pessoa. O destino possível de outros
leva a testemunhar:

Daí a necessidade do registro rigoroso da experiência, da sua


transposição literária. Contra a ficção do Gênio Maligno oficial
se impõe o minucioso relato histórico e é da boa mira neste alvo
que depende o rigor do discurso.

Na execução do plano, Luiz Roberto trabalhou com uma


serenidade que faz o horror crescer para nós. Na medida em que
não deblatera, em que não transforma os repressores em puros
monstros, nem as vítimas em heróis, ele faz a realidade assumir
uma espécie de gratuidade cruel, como se do cotidiano mais
normal emergisse a fenomenologia da bestialidade. A realidade lhe
serve para investigar a fragilidade do indivíduo e o desnorteio geral
da vida, a implacável dificuldade de acertar, o deslizamento
inexplicável entre as esferas do comportamento. O que sou eu? O
que é você? O que são eles? Por que fazemos tudo tão mal? Por
que fazem eles as coisas tão às cegas? No meio da perplexidade, o
drama do ser mistura-se aos dramas do mundo e o narrador parece
alguém que soube, através da palavra, construir-se e ao mesmo
tempo denunciar, com a inteireza dos que não enfeitam nem
deformam.
Retrato calado elabora em alto nível a experiência dos anos de
ditadura militar, porque nele a dimensão do indivíduo e o
panorama do momento se fundem graças ao poder da escrita. Não
é um simples testemunho, nem uma evocação de tormentos. É
uma tentativa de mostrar e conhecer melhor o ser e a sua
circunstância nos momentos de crise, quando a relação entre
ambos se torna cruciante e pode aguçar a ponta do conhecimento.
Isso tudo, repito, foi feito sem nenhuma autocomplacência, mas
também sem qualquer autoflagelação. Trata-se de uma empresa de
lucidez, servida por escrita expressiva, cheia de fórmulas felizes e
momentos de grande inspiração, que permitiram a Luiz Roberto
manifestar a sua notável sinceridade, adequada a um estudioso de
Rousseau e revelando, no seu caso, a mais completa limpeza de
alma. Foi pena ter se acabado tão cedo esse homem
exemplarmente reto na sua dignidade angustiada, de que dá
testemunho Retrato calado, leitura fundamental para sentir um lado
importante do Brasil contemporâneo. Luiz Roberto parecia haver-
se finalmente conciliado consigo mesmo. Mas, ironicamente, a
recompensa do longo esforço para se encontrar foi a morte.

40. Literatura comparada


Há mais de quarenta anos eu disse que “estudar literatura
brasileira é estudar literatura comparada”, porque a nossa produção
foi sempre tão vinculada aos exemplos externos, que
insensivelmente os estudiosos efetuavam as suas análises ou
elaboravam os seus juízos tomando-os como critérios de validade.
Daí ter havido uma espécie de comparatismo difuso e espontâneo
na filigrana do trabalho crítico desde o tempo do Romantismo,
quando os brasileiros afirmaram que a sua literatura era diferente
da de Portugal.
O primeiro sinal disso se encontra na mania de referência por
parte dos críticos. Eles pareciam sentir melhor a natureza e a
qualidade dos textos locais quando podiam referi-los a textos
estrangeiros, como se a capacidade do brasileiro ficasse justificada
pela afinidade tranquilizadora com os autores europeus,
participantes de literaturas antigas e ilustres, que, além de
influírem na nossa, vinham deste modo dar-lhe um sentimento
confortante de parentesco.
De fato, praticamente desde as origens da nossa crítica até
quase os nossos dias, um dos critérios para caracterizar e avaliar os
escritores tem sido a alusão paralela a autores estrangeiros. Assim,
Joaquim Norberto evoca Walter Scott a fim de justificar a
transformação do índio em nobre cavaleiro; Fernandes Pinheiro
qualifica os Cânticos fúnebres de Gonçalves de Magalhães
comparando-os às Contemplações de Victor Hugo; Franklin Távora
puxa Gustave Aymard e Fenimore Cooper para desmerecer José de
Alencar. Nem faltou certo comparatismo disciplinar, expresso na
volúpia tão brasileira de denunciar plágios, só igualada pela de
reivindicar primazias; e foi o caso de Sílvio Romero apontando sete
adaptações de Victor Hugo, sem menção dos originais, na obra de
João Salomé Queiroga. Mesmo em análises mais recentes, feitas
em momentos de maior autoconfiança nacional, a referência surge
como técnica de caracterização crítica. É o caso de Ronald de
Carvalho aproximando da irreverência e da boemia desbragada de
François Villon o universo de Gregório de Matos. E vejam que
tudo isso não ocorria em contextos formalmente comparatistas,
mesmo porque na maioria dos momentos a que aludo não se falava
ainda de literatura comparada. Tudo flui espontaneamente, ao
correr da reflexão, como se o discurso crítico se constituísse por
meio dessas aproximações reconfortantes. Uma espécie de
comparatismo não intencional, elementar e ingênito. Essa
tendência dos críticos correspondia ao comportamento dos
escritores, sempre inclinados a apoiar-se nos textos das literaturas
matrizes. Sem falar das traduções, capítulo privilegiado nos
estudos comparatistas, lembro, ainda no tempo do Romantismo, o
jogo abundante das epígrafes de autores estrangeiros
contemporâneos.
O poeta dos períodos clássicos geralmente incorporava
diretamente ao texto as evocações ou citações de autores nos quais
desejava se amparar, fundindo-as com o seu próprio discurso,
porque naquele tempo a imitação era timbre de glória, não havia o
sentimento exacerbado de originalidade e as pessoas cultas tinham
sempre em mente um certo estoque de alusões eruditas, que se
podiam ajeitar como engastes. Assim, Tomás Antônio Gonzaga
incorporava diretamente os traços de Anacreonte que lhe
interessavam; Basílio da Gama transpunha para O Uraguai, quase
ipsis litteris, versos de Virgílio, Petrarca ou Torquato Tasso — o
mesmo Tasso cujos versos sobre a Musa religiosa frei Francisco de
São Carlos costurou no Assunção. Tudo, é claro, sem alusão aos
originais.
Já o poeta romântico, filho de uma era que proclamava a
singularidade de cada um e o valor da novidade, desliga do texto a
referência e a empurra para o destaque da epígrafe, onde ela
aparece com o nome do seu autor e a forma exata, assumindo
plenamente o caráter de referência. E, sem descartar de todo os
autores antigos, o romântico prefere os contemporâneos
estrangeiros, revelando a impregnação direta das fontes externas e
o novo universo do intercâmbio intelectual mais dinâmico. Em
Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo, homens de muita leitura,
mas também nos outros, de equipamento modesto, o texto poético
é posto sob a tutela da epígrafe. Por vezes, de várias epígrafes. A
moda veio de fora, e Victor Hugo foi useiro dela. Mas no Brasil ela
se transformou, repito, na referência sistemática aos autores
europeus do tempo, escolhidos como apoio. Schiller, Goethe,
Novalis, Jean-Paul, Hoff­mann, Byron, Moore, Cowper, Lamartine,
Vigny, Musset, George Sand, Victor Hugo — patrocinam textos
nacionais.
Estes são exemplos de uma difusa tendência que favorecia o que
se pode chamar de ânimo comparatista, mesmo antes da
instauração e divulgação da literatura comparada. Ou, em seguida,
manifestado por quem não tinha informação sobre ela. Mas há
outra modalidade que coincide com a sua difusão e é algo mais
sistemático, embora desligado do ensino e de atividades
institucionais. Refiro-me ao interesse pelo estudo monográfico de
autor estrangeiro, marcando ainda aqui as obsessões da referência
inevitável. O ensaio de Sílvio Romero sobre Émile Zola, por
exemplo; o de Araripe Júnior sobre Ibsen; o de Tasso da Silveira
sobre Romain Rolland; os de Tristão de Athayde e Jorge de Lima
sobre Proust — este último, aliás, tese de concurso.
Esses exemplos procuram mostrar a existência de uma vocação
comparatista espontânea e informal, como algo coextensivo à
própria atividade crítica no Brasil. Literatura comparada
propriamente dita, só quando o século XX já estava chegando à
metade, apesar de ter havido manifestações anteriores, inclusive o
uso um pouco novidadeiro da designação, por parte de quem
pensava sem fundamento estar praticando a matéria, como foi o
caso do agitado Almáquio Diniz. Não conheço bem a marcha
desses estudos, para falar a verdade. Tanto quanto sei, foram
aparecendo por aí como Deus quis, com ou sem o rótulo
específico, e todos dentro dos critérios tradicionais. Lembro que
um polígrafo inteligente e curioso, Afrânio Peixoto, se interessou
por estas coisas, e nos anos de 1920 escreveu a respeito de
eventuais influências d’O fidalgo aprendiz, de d. Francisco Manoel
de Mello, sobre Le Bourgeois gentilhomme, de Molière. O mesmo
Afrânio Peixoto, nos anos de 1940, quase aplicou corretamente a
categoria do pré-romantismo (que conhecia pelo livro de Van
Tieghem, de 1924), ao estudar José Bonifácio e Borges de Barros
nas suas relações com textos românticos e pré-românticos
europeus.
Mas nessa altura já tinha entrado em cena outro baiano, que
talvez possa ser considerado o primeiro comparatista
propriamente dito na crítica brasileira: Eugênio Gomes.
Comparatista, entenda-se, sem vínculo universitário nem etiqueta
profissional, que começou publicando nos anos de 1930 um livro
sobre escritores ingleses. E que a partir do mesmo decênio
elaborou os notáveis estudos sobre influências inglesas em
Machado de Assis.
Assim, viemos vindo desde as alusões espontâneas anteriores à
disciplina até a sua prática regular, podendo-se concluir que a
referência ao texto estrangeiro parece um modo constitucional da
crítica brasileira.
Quero agora mencionar o primeiro curso de literatura
comparada de que tenho notícia no Brasil, e que, aliás, nem sei se
passou de projeto. Denominava-se História Comparada das
Literaturas Novo-Latinas e compunha o currículo da Faculdade
Paulista de Letras e Filosofia, fundada em 1931 sob a orientação de
Antônio Piccarolo. Ele próprio se encarregou da matéria, além de
língua e literatura latina, e em 1932 deu uma aula inaugural
(reproduzida em boletim) que servia a ambas, denominada “O
parnasianismo na literatura romana”. É possível que a ideia de
estabelecer a disciplina tenha decorrido do impacto causado pela
presença de Arturo Farinelli no ano de 1927 em São Paulo, onde
fez conferências que foram reunidas num volume em 1930.
A Faculdade Paulista encerrou as atividades em 1934, quando se
fundou a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, que
não incluiu no seu currículo literatura comparada, cujo ensino,
segundo as pouquíssimas informações que tenho, deve ter
começado no Rio de Janeiro, embora, ao que parece, sem grande
continuidade. Sei que em 1936 Sérgio Buarque de Holanda foi
assistente do professor francês Henri Tronchon, que ensinava
literatura comparada na efêmera Universidade do Distrito Federal;
e que Tasso da Silveira a ministrou desde aquela altura até não sei
quando na Universidade do Estado da Guanabara.
Quanto à Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo,
houve o que se pode chamar de prática apendicular, isto é, a de
fazer trabalhos de literatura comparada para atender a requisitos de
outras disciplinas. O começo disso foi uma tese de concurso à
cadeira de literatura brasileira em 1945, de autoria de Antônio de
Sales Campos, meu excelente professor de literatura no Colégio
Universitário. Como matéria de teses de doutorado ela apareceu na
de Keera Stevens sobre viajantes ingleses em Portugal, orientada
nos anos de 1950 pelo professor Fidelino de Figueiredo, que
publicou naquela época estudos comparatistas, inclusive um sobre
Shakespeare e Garrett. Para ficar nos decênios de 1950 e 1960,
seguiram-se a de Carla de Queiroz sobre Metastasio e os árcades
brasileiros, em literatura italiana; a de Marion Fleischer em
literatura alemã, sobre obras publicadas em alemão no Rio Grande
do Sul; a de Onédia de Carvalho Barboza, em literatura inglesa,
sobre traduções de Byron no Brasil; a de Maria Alice Faria, em
literatura francesa, sobre Musset e Álvares de Azevedo — e
diversas outras. Como disciplina autônoma, a literatura comparada
apareceu na Universidade de São Paulo em 1961, por iniciativa
minha, casada à teoria literária; mas só em 1969 foram dados os
primeiros cursos regulares, em nível de graduação; aliás, sem
prosseguimento imediato. Eles se consolidaram a partir de 1971 em
nível de pós-graduação, aos cuidados de Onédia de Carvalho
Barboza, que, além de assegurar a continuidade do ensino,
orientou valiosas dissertações e teses.
A partir de então o interesse e as atividades em literatura
comparada começaram a se manifestar regularmente nas
universidades brasileiras, das quais só mencionei o caso paulista,
por conhecer mal a situação em outros estados. Mas faltava algo
importante, e eu diria decisivo: a consciência profissional
específica, que se fortalece pelo intercâmbio, os periódicos
especializados e a vida associativa, marcada por encontros,
simpósios e congressos. Foi o que começou com a Associação
Brasileira de Literatura Comparada, que equivale a uma certidão de
maioridade da disciplina no Brasil. De fato, ela encerra a era que
começou pelas manifestações ocasionais, passou à prática regular,
mas individual, antes de obter reconhecimento institucional, que
ainda assim não a tirou da situação marginalizada, em que existia
sobretudo como subproduto do ensino das literaturas estrangeiras
modernas. A partir de agora ela poderá afinal assumir o papel que
lhe cabe num país caracterizado pelo cruzamento intenso das
culturas, como é o Brasil.

41. O recado dos livros[26]


Nas universidades brasileiras, mesmo de bom nível, as
bibliotecas ainda não receberam a atenção devida.
A biblioteca deveria ser equivalente ao laboratório como centro
da universidade, formando ambos a sua dupla fonte de energia. No
Brasil isto não costuma ocorrer devido a critérios insatisfatórios de
investimentos e prioridades. De fato, preferimos muitas vezes
gastar mais com os prédios do que com os livros. E preferimos
também fazer uma política de pessoal sem cuidar de uma política
paralela de equipamento.
Não podemos, é claro, seguir o exemplo de certos países do
Primeiro Mundo, nos quais geralmente uma instituição de ensino
superior só começa a funcionar depois de plenamente equipada. O
nosso ritmo é diverso, as nossas possibilidades são outras, e há que
deixar margem à capacidade brasileira de improvisar, que tem os
seus lados positivos. Mas podemos e devemos estabelecer na
estratégia universitária uma proporção mais justa entre a política
de instalação, a política de pessoal e a política de equipamento.
Quanto à biblioteca, os dois aspectos básicos são a constituição
de acervo adequado e a presença de pessoal competente. É
constrangedor ver as nossas instituições de ensino superior
começarem o trabalho sem os livros necessários; e, quando estes
são conseguidos, vê-las sem meios de aproveitá-los corretamente,
ampliar o acervo e manter um ritmo normal de atualização.
Igualmente penoso é ver a desqualificação relativa da função de
bibliotecário, que apesar das melhorias ainda não teve o
reconhecimento, a formação e a remuneração que merece. Nas
nossas bibliotecas não é frequente a figura do bibliotecário-
bibliógrafo, isto é, aquele capaz de dominar textualmente a
bibliografia de um dado setor e de trabalhar sobre ele com um tipo
de competência equivalente à dos professores, podendo inclusive
publicar a respeito trabalhos de especialista.
Neste sentido é preciso repensar a relação entre docentes e
bibliotecários, dando a estes um relevo que poucas vezes lhes é
atribuído. É preciso sobretudo lembrar que o corpo docente só
deveria ser ampliado quando o corpo de bibliotecários estivesse
plenamente constituído e pudesse também ser enriquecido de
modo proporcional.
Uma inauguração como a de hoje mostra que a Universidade
Estadual de Campinas tem consciência da importância do
problema, e que na moldura dessas excelentes instalações se
desenvolverá uma boa política de biblioteca, com a noção
finalmente madura do papel que desempenha o bibliotecário no
processo de aquisição e desenvolvimento do saber.
Para encerrar esta primeira parte do meu discurso, conto um
fato pessoal. Quando organizamos o Instituto de Estudos da
Linguagem, já havia aqui um sólido grupo de linguistas e o começo
de um quadro de professores de literatura. Pedi então ao reitor
Zeferino Vaz que quanto a estes garantisse a contratação em tempo
integral de mestres e doutores em número suficiente para a
primeira fase, e assim foi feito. Surgiram então as candidaturas de
novos elementos e a possibilidade de absorvê-los, mas eu me opus,
lembrando que o momento era de formar biblioteca e canalizar
para ela os recursos eventuais. Pude então exprimir o ponto de
vista de que o investimento em livros e bibliotecários capazes é tão
importante quanto o investimento em professores, contrariando a
tendência brasileira de inflar o corpo docente antes de resolver os
problemas de equipamento, sem o qual os docentes não podem
realizar de maneira satisfatória os seus projetos de ensino e
pesquisa. Devo dizer que até hoje não mudei este modo de pensar.

Com isto passo ao segundo tópico, relativo ao interesse que


pode ter o estudo das coleções formadas por compra ou doação de
bibliotecas pessoais, que chegam íntegras, com a sua fisionomia
própria, sendo mantidas assim em vez de se dissolverem no todo.
Por quê? Porque o estudo de tais coleções vem a ser um
instrumento útil para investigar a formação das mentalidades num
dado momento histórico. A evolução da cultura de um homem se
evidencia nos livros que leu. Através desta cultura é possível
esclarecer a história intelectual de um período, pois a formação de
uma biblioteca equivale geralmente à superposição progressiva de
camadas de interesse, que refletem a época através da pessoa.
Na inauguração de hoje temos dois exemplos, em dois níveis
bem diferentes qualitativa e quantitativamente, pois serão abertas à
consulta a notável biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda,
homem ilustre cujo nome é um patrimônio nacional, e a modesta
biblioteca doada por meus irmãos e por mim, compreendendo
livros que pertenceram a nossos pais e a nós próprios. A respeito
desta coleção, que conheço bem, tomo a liberdade de ilustrar o
que sugeri, tentando reconstituir através dela a evolução mental de
meu pai no terreno das humanidades. No terreno da medicina, sua
profissão, eu não poderia fazer o mesmo por falta de
conhecimentos; aliás, a sua biblioteca médica foi doada em 1960
por minha mãe à Faculdade de Ribeirão Preto. Ressalvo que,
tratando-se de história intelectual, é válido estudar não apenas a
formação dos homens ilustres, como Sérgio Buarque de Holanda,
mas também a de um simples profissional culto, do tipo que foi
meu pai, Aristides Candido de Mello e Souza.
Para fazer semelhante investigação é preciso conhecer mais ou
menos a biografia do sujeito, mas, mesmo quando esta falta no
todo ou em parte, a verificação da entrada dos livros no acervo,
pela data de aquisição, é elemento importante. No caso presente,
levo a vantagem de conhecer a vida de quem formou e possuiu a
biblioteca, cujos livros trazem frequen­temente elementos que
permitem datar a sua aquisição. Um requisito básico seria que a
biblioteca estivesse completa, o que não acontece com esta de que
falo, pois ela inclui apenas parte dos livros de meus pais e seus
3500 volumes correspondem à minoria do nosso acervo familiar.
Mas, como conheço o todo, posso trabalhar com a parte. E, antes
de proceder rapidamente à demonstração por meio de amostras
significativas, repito os termos da minha sugestão: estudar a
formação de uma cultura pessoal por meio da biblioteca, vista
como estratificação de sucessivas camadas sedimentadas ao longo
do tempo de uma vida, que pode servir de índice para o
conhecimento da época. No caso de meu pai, vida relativamente
breve, pois ele morreu com 56 anos, mas suficiente para se ter um
panorama da adolescência à plena maturidade. E entre parênteses
uma ressalva: não mencionarei as grandes obras clássicas que estão
presentes em toda biblioteca de algum relevo e entraram na de
meu pai desde o tempo do ginásio: as de Homero, Virgílio, Dante,
Camões, Cervantes, Milton, Shakespeare etc.
A primeira camada se formou aqui em Campinas, nos anos de
1901 a 1903, quando ele estudava no Ginásio do Estado, que mais
tarde readquiriu o nome inicial de Culto à Ciência. O local e a data
de compra dos volumes são frequentemente reconhecíveis pela
etiqueta da Casa Genoud e o carimbo que o adolescente apunha
nas folhas de guarda ou de rosto. Há um núcleo de divulgação
filosófica e científica, um núcleo de história e um núcleo de
literatura. O primeiro deles é constituído por obras tributárias do
evolucionismo e do materialismo corriqueiro, como as Mentiras
convencionais da civilização, de Max Nordau, O homem e a ciência,
de Luís Büchner, os opúsculos de Herbert Spencer como Lei e
causa do progresso, Classificação das ciências etc., tudo em traduções
portuguesas. Em história, a obra completa de Oliveira Martins. Em
literatura, Eça de Queirós, destacando-se O crime do padre Amaro,
anotado com lápis anticlerical, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira.
Sem falar na grande novidade do momento, Os sertões, de Euclides
da Cunha, que foi no moço ginasiano o impacto inicial dos
problemas do país.
A este primeiro estrato campineiro formador se superpõe de
1905 a 1910 um segundo estrato, agora carioca, que demonstra o
amadurecimento do estudante de medicina. Os textos básicos que
nutriam o materialismo evolucionista são nesta fase mais densos e
importantes, todos em traduções francesas: A origem das espécies,
de Darwin; História da criação dos seres organizados, de Haeckel;
Princípios de biologia e Princípios de sociologia, de Spencer, aos quais
se junta o Curso de filosofia positiva, de Augusto Comte. O
estudante consolidava o seu materialismo ateu e em literatura
mergulhava nos céticos e ironistas: Anatole France, Machado de
Assis, Alphonse Daudet. O setor brasileiro era representado
sobretudo pelos críticos, historiadores e sociólogos: Sílvio
Romero, José Veríssimo, Oliveira Lima, Manoel Bomfim — este,
anotado com particular interesse.
Uma terceira camada se formou de 1911 a 1914, centralizada por
uma estadia do médico recém-formado na Suíça e na França, de
dezembro de 1911 a dezembro de 1912, que favoreceu uma
acentuada inflexão nos interesses. Aparecem, por exemplo,
traduções francesas de Goethe e Schiller, os romancistas
prediletos são agora de tendência analítica, como o esquecido
suíço Édouard Rod, ou então reconstrutores do passado, como
Maxime Formont e Dmitri Merejkovski, este último, portador de
um toque místico. Comparecem também os livros de Tolstói e de
escandinavos na moda, como Knut Hamsun e Selma Lagerlöf,
além dos italianos Verga e Fogazzaro. Traço novo são os livros
sobre música e estética, de Édouard Schuré, Henri Lichtenberger,
Camille Mauclair, Charles Lalo. Os filósofos lidos têm agora corte
idealista: Fouillée, Guyau, Boutroux, Séailles e alguns hoje
esquecidos de todo, como Gabriel Dromard e o pai de Jean
Paulhan, Frédéric Paulhan. As novas leituras mostram que a
experiência europeia estava fazendo o jovem médico sair do
materialismo corriqueiro e do ceticismo. E que no terreno da
poesia tinha adquirido o gosto, que iria perdurar, por As flores do
mal, de Baudelaire.
O momento decisivo da camada seguinte, que é a quarta, são os
anos de 1915 e 1916, quando ele fez o famoso curso de
Manguinhos, sob a direção de Oswaldo Cruz. Então, não apenas
reviu a sua formação científica em doze meses de trabalho intenso,
mas descobriu os autores que dali por diante seriam prediletos, a
ponto de eclipsarem os citados antes: Ibsen, mas sobretudo
Dostoiévski, Nietzsche e Bergson. Tendo partido do materialismo
entremeado de ceticismo; tendo recebido a seguir certa influência
do idealismo e do esteticismo, o jovem médico chega com trinta
anos ao interesse pelo impulso vital, aguçado pelo sentimento
trágico, o drama das opções morais e o senso das profundezas do
ser, tudo resultando numa visão bem mais complexa da vida. Até o
fim da sua, lerá e relerá esses autores, encontrando neles o
alimento intelectual de que necessitava. E, como era o tempo da
Primeira Grande Guerra, a sua biblioteca se enche de obras sobre
os problemas históricos, políticos e sociais ligados ao conflito.
Livros de Bülow, Bernhardi, Neumann, Tannenberg, Le Bon,
Lavisse, Santayana, além de biografias e memórias dos generais de
ambos os lados. Surgem também os livros sobre a Revolução Russa
de 1917, de Kautski, Landau-Aldanov, Roger Levy, biografias de
Lênin e Trótski. Lê também então com grande interesse o poeta
belga Émile Verhaeren e descobre Romain Rolland, cujo idealismo
pacifista o atraiu e cuja obra adquiriu toda.
Quinta camada seria a dos anos que vão de 1920 a 1928,
formada na maioria por autores brasileiros do momento, como
Antônio Torres, Monteiro Lobato, Gilberto Amado, Gastão Cruls
e outros, além das publicações sobre o momento político (objeto
constante do seu interesse) e as obras de Oliveira Viana, cujo
Populações meridionais do Brasil o apaixonou.
De novembro de 1928 a dezembro de 1929 Aristides de Mello e
Souza passou mais um ano na Europa, atualizando os
conhecimentos médicos. É curioso verificar que não entram nessa
altura novos livros de filosofia, como se os de Nietz­sche e de
Bergson continuassem bastando. Em compensação ocorre uma
atualização da literatura francesa, com livros de Marcel Proust,
Paul Valéry, Paul Morand, Francis Carco, Jean Cocteau, Jules
Romains entre outros, que formam a sexta camada da sua
biblioteca de humanidades. Dali por diante não aparecerão mais
nela, por sua iniciativa, novos livros de literatura em escala
apreciável, mas continuou comprando obras de crítica sobre
Dostoiévski e Nietzsche.
A sétima camada corresponde ao decênio de 1930, último que
viveu integralmente, pois morreu no começo de 1942. Avultam
nela livros de tema político, que sempre apaixonaram esse
democrata liberal. São obras sobre o nazismo e o fascismo, a Rússia
soviética, o perigo da guerra, os problemas brasileiros do
momento, além de muitos da grande produção que naquela altura
se avolumou sobre a nossa história e vida social, como Casa-grande
& senzala, de Gilberto Freyre, e os volumes de vária natureza da
Coleção Brasiliana, organizada por Fernando de Azevedo na
Companhia Editora Nacional.
No campo da filosofia, um traço novo: certo interesse pela obra
de Keyserling, mas sobretudo pela dos existencialistas cristãos
russos Berdiaev e Chestov, que conheceu através dos livros que
escreveram sobre Dostoiévski. Sobre Dostoiévski, aliás, foi a sua
última leitura, deixada em meio pouco antes de morrer: a biografia
escrita por Henri Troyat, o primeiro a revelar em língua francesa os
novos materiais informativos divulgados pela crítica soviética.
Com isto eu quis sugerir o interesse que pode haver na
exploração das coleções, dentro das bibliotecas gerais, para o
estudo da história mental de um dado período, através da
sedimentação das leituras de uma pessoa representativa, eminente
ou não. No caso de meu pai há um esclarecimento a fazer: a sua
grande cultura humanística não substituiu a cultura médica, mas
formou-se ao mesmo tempo que ela e com ela coexistiu sempre.
De fato, a maioria absoluta de sua biblioteca era formada pelos
livros e revistas de medicina; eram as leituras de medicina que
ocupavam a maior parte do seu tempo e quanto a elas procurava
estar rigorosamente atualizado. Uma segunda observação sobre o
seu caso, esta, de ordem geral: uma investigação como a que
apenas sugeri serviria também para mostrar qual era o tipo de
formação ideal visada pela sua geração de médicos — formação que
naquele tempo de medicina relativamente menos científica era
inseparável da cultura humanística. Esta era a tradição que vinha
de Francisco de Castro e se manifestava de maneira brilhante em
dois eminentes professores, ambos mortos precocemente na
quadra dos quarenta anos, que influíram em meu pai na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro: seu tio por aliança Pedro de
Almeida Magalhães e seu concunhado Miguel Pereira, de quem foi
interno, assistente e fiel discípulo.
Terminando, eu diria que uma investigação do mesmo tipo
poderia ser feita em relação à biblioteca pessoal de minha mãe, da
qual uma parte foi agora doada à Universidade Estadual de
Campinas. Tal investigação mostraria de que maneira uma moça
educada em colégio de freiras no começo do século XX passou das
leituras pour jeunes filles a Paul Bourget, dele a Stendhal e Balzac,
destes a Péguy, Claudel, Bernanos, Simone Weil; e de um
catolicismo convencional à posição avançada do movimento
Economia e Humanismo, através das revistas e dos livros dos
dominicanos franceses renovadores. Mas isto seria ir longe demais
nesta circunstância. O que desejei foi apenas aproveitar a
inauguração desta nova biblioteca a fim de sugerir o
aproveitamento possível das coleções individuais para investigar a
nossa história mental.

42. Cinematógrafo
A minha primeira noção de cinema foi vaga e por ouvir dizer.
Seria ali por 1924, em nossa empoeirada cidadezinha de Cássia, no
sul de Minas: alguém disse que naquele dia passava um novo
episódio de Parisete. O nome ficou na minha imaginação como algo
raro e dourado. Eu sabia sem saber que era um filme e tudo parecia
mágico. Pouco depois incorporei termos como “fita em série”,
“mocinho”, “bandido”, Eddie Polo, Mantilha prateada, “Raio de
Luar”. Quanto à mantilha, esclareceram mais tarde que (se bem me
lembro) era uma fita onde Charles Hutchinson saltava enormes
valas com a motocicleta; o segundo era nome do cavalo branco de
um caubói, talvez Fred Thompson. Mas acima de tudo pairava no
universo dos meninos o nome fantástico de Tom Mix, que fazia
prodígios incríveis com o revólver, o soco e o cavalo. Eu ouvia a
sereia do cinema tocar lá embaixo (sereia nos dois sentidos, de
apito e de tentação), ouvia os foguetes de praxe anunciarem o
começo do espetáculo — e só. 1924, 1925.
A segunda noção foi ainda por ouvir dizer a meus pais as suas
preferências e experiências no Rio, onde moravam antes. Minha
mãe admirava Francesca Bertini, segundo ela a mulher mais bonita
do cinema; e também George Walsh, a cujo filme Brutalidade
costumava aludir. Havia ainda um Valdemar Psilander, uma Pina
Menichelli e o cômico Max Linder. (No ano de 1912 meu pai estava
certa noite no Café de la Paix, em Paris, e se viu aplaudido com
entusiasmo por uma porção de gente que o tomava pelo dito Max
Linder, com o qual teria vaga semelhança.) Meu pai falava do
caubói William Hart, segundo ele o maior, e gostava muito de
Carlitos, que minha mãe detestava, achando-o afetado e sem graça.
De sua parte, um empregado nos explicava que Carlitos era irmão
de Charles Chaplín (acento no í), não a mesma pessoa. E que a
melhor comédia do primeiro se chamava Timedeus bigodinho.
Só o terceiro momento foi de experiência direta. Começou
creio que em 1926 e abriu a fase onde o cinema foi a minha maior
paixão. Meus irmãos e eu íamos todos os domingos à matinê,
“grandiosa” segundo o programa distribuído previamente por um
compridão meio aluado, o Zé Pango. Sereia, foguetes, pano
molhado por grandes jatos d’água, luzes acesas e apagadas várias
vezes ao som da campainha, tentativas goradas da máquina, com
estalos correspondidos pelo berreiro dos meninos, enquanto a
orquestrinha de três membros experimentava pacientemente os
instrumentos. Afinal começava o galope da fantasia nas imagens
em movimento, mudas e fascinadoras.
Geralmente a sessão abria com uma comédia em duas partes,
qualificada de “hilariante” no programa. Depois vinham os dois
episódios do seriado, que tinha de doze a dezesseis. Alguns
ficaram gravados em mim, como A conquista do amor e da fortuna,
complicada história da construção de uma ferrovia atrapalhada pela
sabotagem dos vilões, cujo principal era o próprio capataz, Mack
Touro segundo o letreiro traduzido. Ou Os filhos do sol (francês),
sobre guerrilhas no Marrocos entre rebeldes e o Exército. Mais
tarde verifiquei que o “mocinho”, um tenente, era ninguém menos
que Pierre Fresnay, no começo da carreira. Havia também O hindu
misterioso, do qual só lembro a figura do próprio, de fraque e
turbante, barbudo, o olhar em chamas. Para terminar a sessão às
vezes passavam a fita da véspera à noite, mas no geral era uma
curta de caubói: Buck Jones, Fred Thompson, Art Acord, Fred
Hume, Hoot Gibson e outros, inclusive um desconhecido moço
alto, rolando pela ribanceira abaixo agarrado a uma sela: o recente
Gary Cooper.
No ano de 1926, se não me engano, começou a sair a revista
Cinearte, de Ademar Gonzaga, que colecionei desde o primeiro
número até 1928, quando fomos para outras plagas.
Às vezes, a partir de 1927, nossos pais nos levavam às sessões
noturnas (“elegante soirée”, dizia o programa), podendo o tiro sair
pela culatra, como quando vimos Lon Chaney n’O fantasma da
ópera, que nos apavorou durante meses. Nessas sessões da noite,
raras para nós, tivemos experiências cheias de impacto. Por
exemplo: Amai-vos uns aos outros (contra a guerra), com Pola Negri
e Clive Brook; O barqueiro do Volga (simpática à Revolução Russa),
com William Boyd e Eleanor Boardman (ou Fair); Monsieur
Beaucaire, com Bebé Daniels e Rodolfo Valentino, do qual virei fã e
cuja morte, em 1927, me trespassou de mágoa.
Mas talvez a mais amada e influente dessas fitas haja sido para
nós o primeiro Beau Geste, com Ronald Colman, Neil Hamilton e
Ralph Forbes, representando três irmãos que iam para a Legião
Estrangeira. Meus dois irmãos e eu nos projetamos neles de tal
maneira, que um destes meus irmãos, soldado combatente na Itália
em 1944-1945, escreveu sobre a sua experiência de guerra um livro
no qual o filme querido é motivo condutor.
Beau Geste preenchia as aspirações da meninada: aventura,
exotismo, guerra, cavalheirismo e amor apenas de leve. As
histórias acentuadamente amorosas eram em geral menos vistas e
menos apreciadas por nós, chegando a irritar quando havia muito
beijo, daqueles indiscretos e prolongados que imperavam antes do
Hay’s Office entrar na dança. No interior de Minas daquele tempo
o beijo não existia no comportamento ostensivo. Daí a algazarra da
galeria quando eles avultavam na tela. Muitos meninos indagavam
nas conversas como era permitida aquela pouca-vergonha, e certo
dia um deles trouxe a explicação, devida ao pai: sendo muito
safados, os galãs aproveitavam os momentos de distração do
diretor para agarrar e beijar as artistas. Uma hipótese, como
qualquer outra.
Além dos filmes, é preciso lembrar os fotogramas isolados,
fragmentos de rolos arrebentados que o operador punha fora e
algum auxiliar dava aos meninos. Nós os olhávamos contra a luz,
imaginando como aqueles pedacinhos de celuloide podiam na tela
ficar tão grandes e animados. Fotogramas azuis e verdes das horas
noturnas, amarelos dos desertos, avermelhados das cenas de
incêndio. E havia os cartazes coloridos, anunciando filmes futuros
ou criando a nostalgia dos que ficaram para trás sem nós vermos.
Em frente do Cineteatro Santa Rita era a confeitaria do mesmo
dono. Nela, um cartaz que encheu a nossa infância de expectativa,
mistério e saudade do não acontecido: o do filme A cidade eterna,
com Barbara La Marr, morta de tuberculose anos antes. Ele
mostrava uma mulher esguia vestida de azul, nos olhando
altivamente. E nós esperávamos sem esperança que um dia o
desejado filme baixasse em nossa terra. A lenda era a seguinte: na
noite da estreia, fazia muitos anos, o Emílio (dono do cinema)
começara a projeção com o charuto aceso na boca. O celuloide
pegou fogo e tudo se queimou. Mas certamente viria outra cópia e
a cidade haveria de vê-la, aplacando a frustração. 1926, 1927, 1928.
Nada. Enquanto isso, hierática e remota, Barbara La Marr nos
olhava do cartaz ancorado melancolicamente na parede da
confeitaria.
Essas experiências eram entremeadas por outras, porque todos
os anos íamos ao Rio e lá fazíamos orgias de cinema nas matinês
diárias, vendo fitas novas em folha (as da nossa cidade levavam às
vezes três anos para chegar depois da estreia nas capitais). No Rio
vimos praticamente a inauguração das grandes salas novas e
contíguas na que então se chamou Cinelândia, situada onde fora o
velho Convento da Ajuda: Odeon, Glória, Capitólio, Império. Para
nós, quatro ambientes de sonho e alto luxo, com tapetes, poltronas
confortáveis, cortinas de veludo, vaga-lumes fardados. E íamos
também aos velhinhos famosos de outrora, o Pathé, o Parisiense.
Na Cinelândia, depois da sessão, ia-se à nova, flamante sorveteria e
confeitaria Americana, com a novidade sensacional dos sundaes,
cuja opulenta complicação superava a simplicidade tradicional dos
meros sorvetes.
Amostra dos filmes que vimos no Rio entre 1926 e 1928: Sangue
e areia, O Águia, O filho do Sheik, com Rodolfo Valentino; Os três
mosqueteiros, O pirata negro, Dom Q, o filho do Zorro, com Douglas
Fairbanks; Amor de boêmio, A fera do mar (numa versão posterior,
Moby Dick), com John Barrymore; Tesouro de prata, com George
O’Brien, e quantos mais.
Nessa altura eu já estava sabido em cinema, e lia não apenas
Cinearte, Seleta, Cena Muda, mas a recente e portentosa
Cinelandia, editada em espanhol por alguma grande companhia
internacional, com papel glacê e ilustrações incríveis.
Foi mais ou menos quando meu primo Sílvio e eu inventamos
um meio de produzir (ou re-produzir) os nossos próprios filmes.
Comprávamos as revistas em duplicata, recortávamos as figuras,
que íamos buscar também noutras publicações e nos jornais,
procurando reunir o maior número possível de cenas do mesmo
filme. Cortávamos pelo meio folhas de almaço e formávamos com
elas longas tripas nas quais eram coladas as figuras, entremeadas
pelos diálogos e informações em letra caprichada. Resultava um
rolo, preso em cada extremidade por uma barrinha de madeira;
desenrolado, ele ia mostrando a sequência. Uma caixa de sapato
sem tampa nem fundo fornecia o enquadramento, onde
encaixávamos o rolo, que íamos desdobrando para o público
formado por nossos irmãos menores. Pouco depois deste invento,
no fim de 1928, meus irmãos e eu fomos para a França e lá tivemos
a experiência que quero registrar como fecho.
O caso foi que antes de viajar li na Cinelandia o resumo
ilustrado de um filme de guerra aérea, com Gary Cooper e se não
me engano Collen Moore. Chegando a Paris vimos o cartaz dele
num cinema do boulevard Haussmann e não sossegamos enquanto
não fomos assisti-lo, com uma prima mais velha. E aí se deu o fato
estranho. A fita corria, a orquestra tocava. Tudo sem dúvida melhor
do que em nossa cidadezinha, mas no fundo a mesma coisa.
Entretanto, chegada a hora dos combates aéreos, a música parava e
se ouvia um barulho de metralhadoras latindo. Quando atingido de
maneira fatal, o avião caía com um longo silvo e arrebentava
embaixo num estouro sufocado. Intrigados, nós nos consultamos
em voz baixa e concluímos: eram os músicos que imitavam tudo
admiravelmente bem, sobretudo com a caixa (tá-tá-tá-tá-tá), a
flauta (fííííííí) e o bumbo (bum!). Como esses franceses são
danados!
Pois não era nada disso. Mais tarde, bem mais tarde, soube que
se tratava de um dos primeiros filmes sincronizados, com
momentos de som reproduzindo barulhos, mas o resto mudo…
Sem saber, estávamos assistindo, longe da querência, ao
nascimento de uma “nova arte”, como a chamou com razão o
teórico Jerôme Keim. Estava acabando o mundo da tela silenciosa,
estavam acabando os músicos tão oportunos que nos embalavam,
estava acabando a nossa infância. De volta ao Brasil, em 1930,
vimos o cinema falar, cantar, berrar, tocar. Transferi o fervor para o
modo novo, mas nunca mais tive a paixão maníaca de antes. Era
outro mundo, para o adolescente e para a arte do cinema. E nunca
mais se falaria em cinematógrafo.

43. Um verão, em Berlim


No ano de 1929 passei algum tempo em Berlim com a minha
família. Meu pai, homem estudioso e apaixonado pela profissão,
estava fazendo pela segunda vez na Europa o que se chama hoje
uma “reciclagem” dos seus conhecimentos de medicina. Meus
irmãos e eu passávamos o tempo lendo e brincando no
apartamento ou passeando com nossa mãe, o que já dava para
sentir no ar um certo militarismo e o espírito de desforra. Como
éramos três meninos, geralmente vestidos de marinheiro,
conforme o uso, não raro algum passante se dirigia a ela para dizer
com efusão risonha, como um cumprimento: “Drei Soldaten,
gnädige Frau!”. Três soldados! Minha mãe, pacifista, germanófoba e
ainda traumatizada pela recente guerra de 1914-1918, fechava a
cara, indignada e vagamente apreensiva com aquela perspectiva
macabra da sua prole transformada em bucha de canhão (o que,
aliás, aconteceria com meu irmão caçula, combatente na Segunda
Guerra Mundial).
Ela não perdia vaza para desfazer na cidade, na gente, no que
lhe parecia a vulgaridade ostentatória dos monumentos. Sobretudo
em Bismarck, que se via por todo o lado em estátuas, bustos,
quadros, com a sua carranca temível. Mas eu até que não fui muito
na onda. Desenvolvi um culto por Frederico II — “o velho Fritz”,
“o Grande”, “o único” — e comprava postais com o retrato dele.
Fiquei fascinado pelas lendas do Reno, nos livros juvenis; e mesmo
por Bismarck formei uma certa simpatia. Tanto assim que alguns
anos depois, apesar da influência francesa ainda avassaladora na
minha geração, o primeiro artigo que publiquei, num jornalzinho
de ginásio, foi sobre história alemã, gabando o “Chanceler de
Ferro”.
Mas isso não vem ao caso. Vem ao caso mencionar o que muito
mais tarde ficou sendo uma curiosa experiência retrospectiva e
indireta do nazismo em ascensão. Não do nazismo com ar de que
ia prevalecer, porque no norte da Alemanha isto só aconteceu bem
depois. Naqueles meses de 1929, véspera da quebra de Wall Street,
a miséria, o desemprego, a desclassificação social ainda não tinham
engrossado o caldo de cultura dos camisas-pardas. Quanto a mim,
só tive noção de Hitler lendo uma reportagem do Diário de São
Paulo ali por 1931 ou 1932 e, logo em seguida, o livro
impressionante de Knickerbocker, A Alemanha, fascista ou
soviética?, em tradução, editada pela Livraria Globo, de Porto
Alegre. Só então reparei melhor num número especial da revista
Vu, de Lucien Vogel, que havia em nossa casa. Nela se lia uma
reportagem importante sobre o nacional-socialismo, incluindo a
predição tranquila, baseada numa lógica aparentemente perfeita,
que o antissemitismo era fogo de vista e não levaria a nada… Nesse
número especial, Vu en Allemagne, localizei a fotografia de uma
coisa que eu tinha visto anos antes em Berlim sem prestar maior
atenção e sem saber o que era; mas desta vez ficou tudo claro,
como uma experiência infantil que de repente ganha significado
verdadeiro na adolescência.

Foi o seguinte. Nós morávamos numa pensão confortável da


Kurfürstendamm, cuja proprietária era uma simpática senhora
polonesa. Perto morava um rapazinho de Rio Preto, Miguel, muito
doente, confiado a um enfermeiro espanhol que seguia o seu
complicado tratamento. Não tinha mãe, e o pai, que era
fazendeiro, trançava entre o Brasil e a Alemanha.
Esse menino contava que um dia, na fazenda, estava comendo
melancia e trocando empurrões de brincadeira com o filho de um
colono. Vai empurrão, vem empurrão, um caroço errou de
caminho e em vez de descer o esôfago entrou pelo seu brônquio.
Criado na polpa vermelha da melancia, decerto gostou da polpa
móvel e porosa do pulmão e ali se ajeitou. Não sei por que
alquimias, estragou tudo em volta e foi liquidando o pobre Miguel.
Quando o conhecemos ele tinha catorze anos e um número
incrível de operações sucessivas. Acho que sete. Era magro,
arcado, pálido, usava sempre calças de golfe e paletó de lã naquele
forte verão berlinense e acabou morrendo uns anos depois, depois
de mais operações. Nós nos víamos muito. Ele ia em casa e às
vezes saíamos com o espanhol, que era um homem ainda moço,
calado e amável.
Numa dessas andanças, longe da Kurfürstendamm, foi que
vimos e estranhamos o que depois o número de Vu me esclareceu:
num muro, a tinta preta, o desenho insólito e bonito da cruz
gamada, tendo por baixo as palavras — Judas den Tod. O espanhol
não soube explicar o que era, mas traduziu: “Morte a Judas”.
Miguel e eu ficamos olhando e depois seguimos, especulando
sobre o que seria. “Deve ser coisa de Sábado da Aleluia”, disse ele.
Achei a ideia razoável e logo esqueci a novidade, que só fui
encontrar de novo três anos depois nas reportagens e sobretudo na
fotografia da revista, que focalizava uma inscrição semelhante.
Tinha sido um encontro neutro com o desenho vistoso, que não
indicou nem poderia indicar aos dois meninos brasileiros a carga
de desgraça e catástrofe que estava anunciando.

O nosso apartamento dava para a avenida larga e agradável que


era a Kurfürstendamm. Meus irmãos e eu gostávamos de ficar
debruçados na sacada da sala, vendo o movimento. Assim foi que
um dia vimos o enorme dirigível Graf Zeppelin passar lentamente
em voo baixo, como um charutão boiando ao longo da avenida.
Tratava-se, nada mais nada menos, da sua partida para a primeira e
célebre viagem de circum-navegação.
Outro dia vimos um incêndio bem perto, no mesmo lado do
nosso quarteirão. Dali a pouco a dona da pensão veio prevenir que
havia perigo de o fogo alastrar e era bom fazer as malas, para uma
possível retirada. Ordens do Corpo de Bombeiros. Minha mãe fez
o recomendado, mas antes telefonou avisando meu pai, que
trabalhava até as três horas da tarde no hospital Charité. Ficamos
em bastante tensão durante umas duas horas, com as malas
prontas, até avisarem que não havia mais perigo. A senhora
polonesa comentou que em pouco tempo já era o terceiro ou
quarto incêndio na área. Meu pai chegou e fomos almoçar, como
fazíamos diariamente, às quatro da tarde. Então ele contou que
comentara o alarme com os colegas de hospital e eles tinham
informado que os judeus é que estavam ateando esses incêndios.
Lembro o ar intrigado de minha mãe: os judeus, mas por quê? Meu
pai respondeu que não sabia.
Também nesse caso, só muito mais tarde entendi o significado
do que tinha visto: era um episódio da famosa sequência de fogos
postos pelos próprios nazistas, para jogar a culpa nos judeus e
assim levantar a opinião contra eles. Parece que os colegas de meu
pai consideravam a explicação natural, correspondendo a uma
“judiação” no sentido próprio; a um malefício do povo contra o
qual existe quase sempre no homem de formação cristã ou
muçulmana (isto é, nos filhos espirituais do judaísmo) uma espécie
de teimosa e lamentável brasa dormida, fácil de reacender com um
sopro de demagogia, sempre que for preciso suscitar o bode
expiatório.

Em relação ao nazismo não lembro mais nada daquele tempo,


salvo talvez alguma coisa bem lateral, referente a uma das suas
vítimas ilustres: Erwin Piscator, expatriado depois que Hitler
chegou ao poder.
Sérgio Buarque de Holanda também estava na Alemanha àquela
altura, e viveu lá até 1931. Quando o conheci nos anos de 1940 ele
contou muita coisa que um menino como eu não saberia
interpretar. Viu manifestações, viu caminhões cheios de nazistas
ululantes, presenciou o espancamento de um judeu. Sendo
francamente inclinado para a esquerda, pôde avaliar desde então o
significado do que estava acontecendo.
Por sinal, Sérgio morava pertíssimo de nós e com certeza
cruzamos muitas vezes sem nos conhecermos. A nossa pensão era
próxima da Uhlandstrasse, e dobrando esta rua ficava o
apartamento dele, em cima de um café-concerto chamado
Uhlandeck, na frente do qual passávamos quase todo dia. Foi
Sérgio quem me revelou que o nosso prédio era vizinho do teatro
de Piscator, então numa grande fase. E aí eu tive outra iluminação
retrospectiva, que é a seguinte.
A certa altura saímos daquele apartamento de frente e fomos
para outro, no fundo, mais sossegado, com um banheiro de
mármore verde que me encantava. Ao lado morava com sua
mulher um moço magro e sério, de barba (coisa rara naquele
tempo), que batia à máquina o dia inteiro. Era um escritor; un
auteur, explicava com respeito a senhora polonesa.
Ali brincávamos e brigávamos muito com o pobre Miguel, que
gostava de caçoar de mineiro para nos aperrear, inclusive cantando
a canção antibernardista que então era velha só de sete anos:
“Queijo de Minas tá bichado, seu Mé”. Nós tínhamos ouvido
nossos pais e os visitantes brasileiros comentarem de modo
apreensivo a situação do café e dos fazendeiros paulistas. Então um
dos meus irmãos, também chamado Miguel, teve um surto de
inspiração diabólica e replicou, na mesma melodia: “Café de São
Paulo tá carunchado, seu Mé” — que meu outro irmão e eu
repetimos com entusiasmo selvagem. A reação do nosso amigo foi
incrível. Baixou nos seus olhos uma nuvem de tristeza, ele calou a
boca e, em vez de replicar e dar seguimento ao jogo bairrista de
gozação recíproca, amuou e foi sentar muito melancólico no
rebordo largo da janela, com as pernas estendidas de comprido.
Ficamos todos murchos e dali a pouco ele foi embora. Com certeza
sabia pelo pai o que a sua doença custava às finanças da família, e o
que uma situação difícil do café significaria para o seu futuro de
inválido. Talvez já houvesse entre os fazendeiros algum prenúncio
da crise, que estourou dali a pouco. Não sei. Mas, como era mais
velho do que nós e diretamente envolvido, sentiu o lado triste da
brincadeira.
Pois esse pátio para o qual ele parecia querer cair era de um
teatro vizinho. Nós ficávamos horas, calados, vendo a atividade lá
embaixo: roupas arejando; gente serrando madeira ou carregando
apetrechos; desenhistas traçando cenários a carvão em grandes
painéis de lona estendidos no chão, que um senhor vinha
comentar e alterar. Dava para ver que eram os fundos de um teatro.
Mas, como disse, foi Sérgio quem revelou que tínhamos vivido ao
lado do grande Piscator e talvez o tivéssemos visto alguma vez na
sua faina estético-política.
Em outubro de 1929 voltamos a Paris, onde estávamos desde
1928. No trem, meu pai interrompeu a leitura do jornal para
comunicar a morte de Gustav Stresemann, explicando quem era. E
que se tratava de uma grande perda. Chegando ao hotel, veio nos
receber como a hóspedes antigos o gerente, que tinha os mesmos
olhos saltados, o mesmo pescoço enfartado do estadista alemão; e
pediu a meu pai informações médicas sobre a sua morte. Meu pai
explicou, subimos para o nosso apartamento do entresol, separado
do corpo do hotel, e ele disse penalizado: “O Georges está
apreensivo porque tem a mesma doença e vai morrer do mesmo
jeito”.
A morte de Stresemann foi o fim da fase esperançosa para a
República de Weimar, inclusive porque coincidiu com a crise
mundial. Depois dele veio a avalanche, que não se previa naquele
momento — como eu não pudera decifrar o que eram a cruz
misteriosa, os incêndios em cadeia e as atividades do teatro
vizinho. Eu vira tudo com “o olho inocente”; mas no futuro
pensaria muito a respeito.

44. Nas Arcadas


Quem lê os volumes de Almeida Nogueira sobre a Faculdade de
Direito de São Paulo, a “Academia”, como era chamada, tem por
vezes a impressão de que ela era uma espécie de grêmio. Para ser
admitido era preciso adotar certos hábitos, escolher uns tantos
padrões de convivência, optar por duas ou três modalidades
políticas permitidas. No fim, por cima das diferenças e das
divergências, todos saíam com o sentimento de que a terra lhes
pertencia de certo modo e eles eram a sua melhor pitada de sal. O
recrutamento não era de todo exclusivo, porque não abrangia
apenas os filhos de fazendeiros, comerciantes, políticos ou
bacharéis, embora a maioria correspondesse a este requisito. Mas
havia um pressuposto tácito: quem entrava, fosse qual fosse a
origem, devia conformar-se aos traços essenciais das classes
dominantes e sair como se em princípio fizesse parte delas ou
estivesse adaptado a elas. A Academia de Almeida Nogueira parece
uma poderosa máquina de fabricar, manter e, se necessário,
transformar elites.
Obviamente, hoje não é mais assim; ela não é mais o lugar
aonde vão os dirigentes de toda a vida do país, desde a economia
até a literatura. Mas talvez ainda houvesse alguma coisa daquele
passado quando estudei lá, do primeiro ano pré-jurídico (o fugaz e
excelente Colégio Universitário, primeira seção) ao quinto do
bacharelado, entre 1937 e 1943. A faculdade continuava a sentir
uma grande responsabilidade em face da sociedade, sobretudo das
suas classes dominantes, e atuava como se ela viesse lhe pedir
contas. Sentia uma espécie de obrigação de produzir políticos,
funcionários, intelectuais e até figuras de ornamento, como então
ainda se necessitava. Durante o meu curso, fui contemporâneo de
um futuro presidente da República, dois governadores do estado,
futuros ministros e secretários, senadores, deputados em legião. A
vida política do Centro Acadêmico XI de Agosto parecia um ensaio
geral constante. Os candidatos a arquivista no primeiro ano seriam
candidatos a secretário ou tesoureiro no segundo, a vice-
presidente no terceiro e a presidente no quarto, ficando
subentendido que entre eles deveriam ser recrutados depois os
dirigentes da nação.
É verdade que este esquema claudicou durante o meu período,
que coincidiu inteiramente com a outra ditadura, a do Estado
Novo, que não tinha eleição, Congresso nem Assembleia. Isso
estimulou na faculdade a formação de vários movimentos e
atitudes de contestação. Havia, naturalmente, os adesistas, os
conformados e os indiferentes; mas também uma trepidação de
inconformismo, que era sem dúvida a melhor parte. Fundaram-se
partidos e grupos oposicionistas, muitos rapazes protestavam
individualmente ou em bando pelos meios possíveis, inclusive o
que se poderia chamar de atividade paralela, como o
aproveitamento de festas, comemorações, reuniões, para jogar
alguma pedra na situação dominante.
A minha turma entrou no pré-jurídico em 1937, ano da
implantação da ditadura, com fechamento dos partidos, prisão de
adversários, demissão de recalcitrantes e uma censura terrível, que
não deixava filtrar nada. Se lembro bem, os primeiros tempos do
Estado Novo foram de certo marasmo entre os estudantes
oposicionistas, que só começaram a se articular um pouco mais
tarde, talvez com a fundação do Partido Libertador em 1939 (não
confundir com a organização de âmbito nacional do mesmo nome;
tratava-se de agrupamento interno da faculdade, que, aliás,
degenerou mais adiante). Depois, tudo foi num crescendo, com
momentos realmente notáveis de agitação, como a greve que
impediu a atribuição do título de doutor honorário ao ditador; as
manifestações pela entrada do Brasil na guerra; a passeata de
protesto que acabou em descargas da polícia, morte, ferimentos,
prisões em massa. E muita coisa mais.
A repressão era menos vasta e eficiente do que veio a ser, e
pelas suas malhas podiam se esgueirar os rapazes contestadores.
Mas mesmo assim havia risco, inclusive de prisão e perseguições
de vário tipo. Não obstante, muitos entraram na luta com firmeza,
e alguns com certo penacho romântico, certa esportividade
aristocrática que faz pensar no espírito de agremiação mencionado
no começo destas notas a propósito de Almeida Nogueira. Desse
espírito possuíam traços característicos, como o civismo, o ar de
sociedade secreta, a boemia, a retórica, que os vinculavam a um
certo tipo de passado. Talvez tenha sido aquele o último momento
na história de São Paulo em que componentes da burguesia
tradicional deram o tom (que se estendeu a companheiros de outras
proveniências) a uma luta política voltada não só para os interesses
de classe, mas também para os de toda a coletividade, como era o
combate contra a opressão ditatorial.
Dentre esses rapazes, menciono apenas alguns com os quais
tive maior contato e que mais tarde se projetaram na política do
estado e do país, como o governador Abreu Sodré, o secretário
Arrobas Martins, os deputados Geminal Feijó, Israel Dias Novais e
Wilson Rahal. Mas poderia mencionar outros igualmente capazes
e combativos, que não chegaram ao conhecimento do grande
público, como Antonio Costa Correia.
Esses rapazes eram destemidos, coerentes e a sua ação norteava
a atuação caudatária ou periférica de nós outros. A minha
participação efetiva foi tardia e se definiu quando surgiram
agrupamentos mais complexos, nos quais jovens liberais e
socialistas de dentro e de fora da faculdade se uniram contra o
inimigo comum, a ditadura, alvo que possibilitou uma grande e
sincera margem de solidariedade e cooperação.
Foi o caso em 1943, quando eu já estava no quinto ano e
bastante desligado das Arcadas, da Frente de Resistência, na qual
predominavam elementos da faculdade, estudantes e recém-
formados, mas onde havia gente de outras (Politécnica, Medicina,
Filosofia, Odontologia). Ela publicou um jornalzinho clandestino,
Resistência, no qual colaborei, e quando veio a dissolução do Estado
Novo, no começo de 1945, o grupo se dividiu, indo os liberais para
a recém-fundada UDN e nós, esquerdistas, para a efêmera UDS,
União Democrática Socialista, que depois se fundiu na Esquerda
Democrática, transformada a seguir em Partido Socialista
Brasileiro.
Ao lado dessas atividades políticas, que eram então a honra da
faculdade, convém lembrar a literária, desprovida da preeminência
que tivera até o começo do século, mas sempre presente. Ali por
1940, por exemplo, Ulisses Guimarães, poeta ele próprio, dirigiu a
publicação de uma coletânea, Poesia sob as Arcadas, que refletia a
produção da casa naqueles anos. O lugar central era ocupado pelos
versos e o retrato de Pero Neto, estudante morto em 1937 e objeto
de um culto afetuoso. Mas a antologia continha poesia de
qualidade melhor, devida a Afrânio Zuccolotto, Domingos
Carvalho da Silva, Mário da Silva Brito, Péricles Eugênio da Silva
Ramos. Deste se incluiu o belo poema “Propiciação”, que se não
me engano tinha saído inicialmente num jornal estudantil. Péricles
foi meu colega de turma e era o maior estudante, um estudantão,
como se dizia noutros tempos, detentor de prêmios, sabedor de
línguas antigas e modernas, erudito incrível. Em nossa turma, a de
1943, havia outros escritores, como o citado Mário da Silva Brito e
Rômulo Fonseca, além de atores que fizeram parte do movimento
de renovação do teatro brasileiro em São Paulo: Waldemar Wey,
Ruy Afonso Machado, Carlos Vergueiro (este, como eu, não
terminou o curso). Lembro vagamente das publicações estudantis,
jornais e revistas intermitentes ou efêmeras, como Arcadas e Onze
de Agosto, na qual publiquei, creio que em 1940, o meu primeiro
artigo em São Paulo, sobre a poesia de Mário de Andrade.
Além do curso jurídico, a faculdade possuía naquele tempo a
referida primeira seção do Colégio Universitário, instituição
excelente. Em princípio, equivalia ao curso colegial de agora, mas
com a duração de dois anos; e a circunstância de ser feito na
universidade elevava o seu nível e aumentava o senso de
responsabilidade de professores e alunos. Vindos de cursos
ginasiais muitas vezes fracos, era a oportunidade para firmarmos a
informação e abrir o espírito para a cultura superior. Alguns
docentes eram de primeira ordem e exerceram influência em nós,
como Aroldo de Azevedo em geografia humana, Castro Neri em
história da filosofia, Damasco Pena em psicologia, Sales Campos
em história da literatura. E havia a notável biblioteca da faculdade,
que se podia frequentar depois das aulas ou nos buracos de
horário, e onde li horas sem conta, ano após ano, livros não tanto
de direito, confesso, quanto de filosofia, literatura, crítica e
história.
A faculdade não correspondia à minha vocação e, a partir de
1939, cursei simultaneamente a de Filosofia, que acabou me
absorvendo a tal ponto que, já seu assistente, cheguei ao quinto
ano jurídico e não me bacharelei. Mas, se olho para trás, vejo que
ela foi importante na minha formação e deu a muitos, além de
instrumentos de cultura, o ambiente de fermentação política que
nos decidiu a lutar, segundo as forças, contra a ditadura, ou
melhor, as ditaduras, no plural.

45. O barão
No começo de 1941, estando de férias na casa de minha família
em Poços de Caldas, onde meu pai era médico, conheci um de
seus clientes, que ele convidara para almoçar conosco. Tratava-se
de um velho miúdo, notável por dois traços: enormes bigodes
brancos que lhe cobriam a boca, idênticos na forma aos de
Nietzsche, e o fato de andar penosamente aos pulinhos, freado por
uma artrite brava. Naquele tempo ainda tinha prestígio o
antiquíssimo tratamento hidromineral e Poços era um lugar
famoso para o do reumatismo, graças às suas águas sulfurosas.
“Poços de Caldas como centro antirreumático” é o título de um
trabalho de meu pai.
O tal cliente era um diplomata austríaco refugiado no Brasil,
depois que Hitler abocanhara o seu país, e viera tratar-se
recomendado por um médico ilustre do Rio, Silva Mello. Meio
século depois, penso não contrariar o rigoroso escrúpulo de meu
pai em matéria de ética profissional publicando umas cartas que
achei não faz muito tempo entre os seus papéis:

Meu prezado colega e amigo dr. Aristides de Mello e Souza


Escrevo para recomendar-lhe muito particularmente o barão
d’Andrian de Werburg, antigo embaixador da Áustria e escritor
de grande renome na Europa. Ele está como refugiado no
Brasil, aguardando os acontecimentos. Sofre há quase vinte
anos de uma artrite crônica, doença bastante frequente na
Europa e quase refratária aos tratamentos, como bem
demonstra esse caso tratado pelos melhores médicos do
mundo. Ele pretende ir a Poços de Caldas, em parte para fugir
ao calor do Rio. Infelizmente que, na situação atual, está
cercado de dificuldades econômicas. Pediu-me uma
recomendação e é com imenso prazer e segurança que o coloco
em suas mãos, não só como médico, mas também como amigo
e quase protetor. Ele lhe vai escrever pessoalmente e disse-lhe
que o podia fazer sincera e abertamente. Provavelmente vai
solicitar para lhe arranjar um hotel decente, de média categoria,
com preços não excessivos. É o que lhe peço atender. Além
disso, quando aí chegar procure não examiná-lo além da
questão da artrite, pois que é bastante hipocondríaco e tem
receio dos médicos encontrarem novas doenças. Eu próprio o
examinei aqui e o seu estado de saúde é excelente. Pelo
exposto, peço-lhe ainda ser muito modesto e camarada nos
honorários, pelo que lhe ficarei muito e sinceramente
agradecido. Somos hoje grandes amigos e desejaria que o
recebesse principalmente [três palavras ilegíveis].
Um grande abraço do colega e sincero amigo
Silva Mello
2.I.41

De fato, o barão mandou logo a seguir as seguintes cartas, que


traduzo do francês em que foram escritas:

Rio de Janeiro, Hotel Vistamar, 3 de janeiro de 1941

Monsieur,
O professor Silva Mello, ao escrever-lhe a meu respeito,
disse-lhe também, penso eu, que estou à procura de um hotel.
Tomo a liberdade de acrescentar que me dirigi por razões de
economia ao hotel Lealdade, cuja diária é de 25$000, pedindo-
lhes para reservarem um bom quarto, o que espero tenham
feito.
Tenciono chegar em P. de C. no fim da próxima semana e
tomarei a liberdade de procurá-lo num dos primeiros dias.
Creia-me, caro senhor doutor, o seu dedicado
d’Andrian

Pelo carimbo no envelope, vê-se que esta carta chegou no dia 8,


apesar de remetida por via aérea, e portanto a resposta de meu pai
deve ter cruzado com a seguinte, que, numa rapidez excepcional
para o tempo, chegou um dia depois daquele em que foi postada e
mostrava a grande aflição do remetente:

Rio de Janeiro, Hotel Vistamar, rua Cândido Mendes,


10 de janeiro de 1941

Monsieur,
Desculpe-me por dirigir-lhe mais umas palavras, mas de fato
não sei o que fazer, e de outro lado o meu médico e amigo,
professor A. Silva Mello, cuja carta deve ter recebido, me anima
a recorrer à sua ajuda, dizendo que não me quererá mal por isso.
Eis a minha situação: eu estava pronto para seguir para Poços de
Caldas e minha partida estava marcada em princípio para
quinta-feira próxima, mas não posso fazer reserva no trem para
São Paulo, porque os hotéis aos quais escrevi para obter um
quarto — o hotel Guimarães e o hotel Lealdade não respondem.
Até os meus telegramas com resposta paga ficaram sem
resposta, o que até aqui nunca me acontecera com nenhum
hotel. Ora, o prof. Antonio S.M. me aconselha com razão a não
partir sem ter pouso certo, e eu não quero me expor a
encontrar, chegando aí, seja acomodações inteiramente
desproporcionadas à minha bolsa de refugiado, seja uma biboca
sórdida (des galetas ignobles)… Eu já tinha combinado em
princípio com o hotel Lealdade faz alguns meses o preço de
25$000 por dia, mas diversos negócios me prenderam aqui, e
agora que provavelmente têm muitos hóspedes, nem me
respondem, o que me parece nada delicado como
procedimento. Se não for possível atualmente encontrar um
pouso decente a preço razoável, renunciarei com muita tristeza
à minha cura e me contentarei em fugir desta fornalha e me
refugiar nalgum lugar seguro e relativamente fresco no estado
de Minas — Barbacena, por exemplo. Mas antes de me decidir
por esta solução extrema, gostaria de pedir-lhe a “grande
bondade” de telefonar inicialmente ao gerente do hotel
Lealdade, e se não houver nada desse lado, averiguar se há outra
possibilidade; por exemplo, alugar um quarto perto de algum
restaurante, onde pudesse fazer as refeições. Infelizmente, em
consequência da minha artrite, fiquei pouco lépido e portanto
não posso enfrentar grandes distâncias, nem para ir aos banhos,
nem para as refeições.
Se souber de alguma coisa, tenha a gentileza de mandar-me
um telegrama curto, pois gostaria de ir logo que for possível.
Eu lhe suplico mais uma vez que “desculpe a minha
insistência” e aceite, caro senhor doutor, o penhor da minha
distinta consideração.
d’Andrian

Afinal veio e se acomodou no Hotel Lealdade, onde deve ter


ficado bastante tempo. Na cidade, então pequena, chamava
atenção a dificuldade com que era visto mover-se na rua, a
caminho do balneário. Em nossa casa almoçou algumas vezes e nos
encantou, tanto pela conversa vivaz quanto pela polidez do tipo
avant guerre, como se dizia, com referência não à que estava em
curso, mas à de 1914. Informou que era natural do Principado de
Liechtenstein e fora secretário da legação imperial austro-húngara
no Rio de Janeiro nos primeiros anos do século, quando era
ministro plenipotenciário aqui o conde Forgách. Daí talvez a
escolha do Brasil como refúgio.
Creio que meu pai não contou que ele era escritor, como
informara Silva Mello; ou, se contou, não prestamos atenção, mas
lembro que nos falava sobre a sua grande cultura. Nos tais almoços
nós pudemos apreciar a sua urbanidade e senso de humor,
expressos num francês absolutamente perfeito, ao menos para
estrangeiro ver. Eu aproveitava para lhe fazer sobre história política
perguntas que respondia com segurança. Lembro ter ele explicado
que a nobreza da Polônia (onde vivera tempos em missão do
Império Austro-Húngaro) aceitava em geral bem o domínio russo,
sendo menos separatista do que se pensava e ela alegou depois.
Outra vez informou que não tinha muito sentido diagnosticar
“nomes judeus” nos países de língua alemã, porque na maioria
eram comuns a famílias cristãs, ilustrando com Schwarzenberg,
que era o de uma das casas da mais alta nobreza austríaca. Lembro
ainda que achava curioso o gosto brasileiro pelos pomposos nomes
gregos, sobretudo porque podiam contrastar com a condição
modesta do portador. “Imagine, minha senhora”, disse a minha
mãe, “que no hotel o criado de quarto se chama Diógenes, o
porteiro, Alcibíades e o copeiro, Temístocles!” E manifestava
burlescamente o seu acanhamento por ter às ordens personagens
tão ilustres (acrescentando talvez de si para si que o seu médico se
chamava Aristides…). Quando saí de Poços no fim das férias ele
ainda estava lá. Um ano depois meu pai morreu e não pensamos
mais no barão.
Mas dali a uns tempos, lendo um dos volumes de
Approximations, de Charles du Bos, minha mãe encontrou
referência a certo poeta do grupo de Hofmannsthal, Leopold
Andrian. Chamou a minha atenção e ficamos cismados:
coincidência de nome? Logo a seguir li um artigo onde Otto Maria
Carpeaux aludia ao mesmo grupo, dizendo que o seu último
representante, “o meu eminente amigo barão de Andrian”, vivia no
Rio de Janeiro. Não havia dúvida: era o nosso homem.
Mas, como fui sempre muito ignorante em literatura austríaca,
só no começo dos anos de 1950 pude avaliar o seu porte, através de
livros sobre Stefan George, como o de Robert Boehringer e o de
Edgard Salin. No primeiro, vi inclusive a sua fotografia em moço,
no fim do século XIX, de fraque, cartola e os mesmos bigodões que
conheci brancos em 1941. Aprendi que fora colaborador, como
Hofmannsthal, da revista dirigida por George, Folhas pela Arte, mas
por pouco tempo, porque os dois austríacos se afastaram logo do
solene vate renano, que antes disso dedicara a Andrian um poema,
“O irmão”, recolhido no livro O tapete da vida.
Aí, andei procurando em dicionários de literatura e encontrei
alguns dados: nasceu em 1875 e morreu em 1951, teve de fato
importância, pertencia a uma família de alta qualificação artística e
intelectual, sendo neto materno do compositor Giacomo
Meyerbeer. Com o tempo foi deixando de lado a literatura
(segundo Claude David era “um eco vienense de Wilde e Barrès”)
pelo ensaísmo político-filosófico, em sentido católico e
conservador, muito preocupado com o problema da independência
da Áustria depois da guerra de 1914-1918.
Recentemente, pude afinal saber qual foi a natureza da sua
atuação graças ao livro de Carl E. Schorske, Viena fin-de-siècle:
Política e cultura, traduzido por Denise Bottmann e editado pela
Unicamp e a Companhia das Letras. Nele se vê que Leopold,
Freiherr (barão) von Andrian zu Werburg, tratado como paradigma
da época, foi estrela de uma constelação destacada, inclusive
porque a sua narrativa O jardim do conhecimento (1895) é
considerada por Schorske típica do extremado esteticismo
decadentista vienense, grande sementeira de cultura. (Leio no
livro de Edgard Salin, Um Stefan George: Erinnerung und Zeugnis,
que apesar da rusga, George continuou admirando muito este
livro, a ponto de traduzi-lo para o holandês com Albert Verwey.)
No entanto, o que vive em mim não é a mensagem literária fin-
de-siècle de um escritor que nunca li; nem o perfil do aristocrata
circulando nas rodas culturais de Viena, como relata Schorske. É
mesmo o velhinho franzino e quase entrevado que andava de
arranco, sempre com o mesmo terno cinza, trazendo atravessada
de um bolso a outro do colete a corrente do relógio carregada de
miniaturas das suas condecorações; e que uma vez me disse com
seriedade humorística: “Eu soube que ontem o senhor andou na
troça (vous avez fait la noce) em companhia do farmacêutico…”. “O
farmacêutico” era o meu grande amigo Oscar Nassif (pai do
jornalista Luís Nassif ), com quem eu tinha estado na véspera no
Grill-Room do Cassino e que ia aplicar-lhe injeções no hotel.
Oscar, rapaz inteligente e culto, bom cronista, era naquela altura
da nossa mocidade farmacêutico em começo de carreira e
infelizmente já morreu. Isso me faz pensar, só agora, que nunca lhe
contei as minhas descobertas sobre a identidade do barão, que
conheci apenas como cliente de meu pai, fugindo do calor carioca
e ansioso por se acomodar a preço módico num hotel a 1200
metros de altitude, cheio de empregados com sonoros nomes
gregos.

46. Mário e o concurso


Em 1944 anunciou-se que a Faculdade de Filosofia da
Universidade de São Paulo ia pôr em concurso a cadeira de
literatura brasileira, regida em caráter interino por Mário Pereira
de Souza Lima. Houve certo rebuliço e muita gente começou a se
embandeirar. O diretor da faculdade era um biólogo de grande
cultura, André Dreyfus, que, desejando assegurar um nível elevado
ao corpo docente, sugeriu a Mário de Andrade que concorresse.
Mário recusou de maneira peremptória, dizendo que, como
autodidata, não se abalançaria. Mas muitos mais afoitos se
abalançaram, inclusive eu, com o rompante dos meus 26 anos. No
fim, nos inscrevemos seis, entre os quais o regente interino.
Na verdade eu não tinha grande esperança de conquistar a
cadeira, sendo como era um principiante. Mas, pela legislação em
vigor, mesmo não a conquistando poderia obter o título de livre-
docente, caso fosse aprovado. Eu era assistente de sociologia e
praticava paralelamente a crítica, mas já me convencera de que o
que desejava mesmo era ficar apenas no domínio das letras. Ora, se
fosse livre-docente, poderia no futuro fazer carreira universitária
em literatura, caso surgisse oportunidade (ela surgiu, doze anos
depois). Então resolvi correr o páreo e comecei a me preparar,
enfrentando vários problemas, entre os quais a escolha do assunto
para a tese. Hesitei entre alguns e cheguei a começar um estudo
comparativo sobre Álvares de Azevedo e Byron, mas não me senti
preparado para ele e a certa altura recorri a Mário de Andrade
pedindo sugestões. Ele me escreveu então a seguinte carta, que
não está datada mas deve ser dos meados de 1944:

Antonio Candido
Andei imaginando em assuntos de teses, como você me
pediu. É muito difícil isso, quando se trata dos outros, porque
muitas vezes, mesmo sempre, um indivíduo tem uma
determinada soma de conhecimentos e juízos seus
armazenados sobre um assunto determinado que o outro
ignora. Enfim, vai aqui uma lista de sugestões que talvez possa
dar ensejo a você se recordar dum assunto já seu, ou mais seu.
1. “Graça Aranha”
2. “Alcântara Machado” (o senador)
3. “Amadeu Amaral”
4. “Vicente de Carvalho”
(Confesso que não tenho muita simpatia, ou nenhuma, pelos
dois assuntos 1 e 2. Mas não tem dúvida que todos os quatro são
assuntos quase virgens. O Graça creio que será impossível
estudar biograficamente, mas eu imagino sempre que a
filosofice dele é mais respeitável, do que nós a pensamos. Os
outros três, foram escolhidos porque me parece possível
consultar a família deles, e assim concorrer na tese com
documentação inédita de arquivos particulares. O Alcântara
literariamente renderá pouquíssimo, e se botei o nome dele é
porque lhe conheço os filhos.)
5. Relações entre a Ideia e o Verso no Parnasianismo
(Talvez seja o tipo da tese que agrade a uma banca acadêmica.
Depois implica forma e fundo. Estudar por exemplo, todos os
transbordamentos (enjambement), o ritmo ternário no
alexandrino e no decassílabo (“Pequeninos, elásticos,
chineses”), etc. E estudar, por outro lado, as limitações
impostas à ideia pela metrificação e pela rima. V.g. Dois
hemistíquios feitos de substantivo e qualificativo cada um; as
ideias fechadas obrigatoriamente em dísticos, nos poemas
alexandrinos rimados aos pares; a rima rica, implicando retorno
obrigatório das mesmas palavras (olhos, abrolhos, escolhos,
refolhos; pedra, redra, Fedra, etc.) e consequentemente das
mesmas ideias. A generalização do soneto meramente
descritivo, pra se conseguir émaux et camées. O assunto não é
muito vasto, dá uma tese de bom tamanho.)
6. A Composição no Romance Brasileiro do Século XIX
(Talvez um bocado sutil demais pra uma banca de
acadêmicos. Mas creio que seria uma tese apaixonante, que,
sem dar muito trabalho, poderia se tornar fundamental. Não me
lembro de estudo metódico neste sentido feito em nenhuma
língua. A noção de princípio, meio e fim; até mesmo aplicação
da forma clássica do ditirambo grego, em cinco partes, fixada
por Terpandro; e suas consequências espirituais, apresentação
de personagens, centralização do enredo, desenlace. Só o
assunto de conceituação do capítulo creio que dava pra
observações interessantíssimas e originais: o que José de
Alencar, Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis
entendem por capítulo, a maneira com que o dividem e
aplicam, são fortemente diversas. O problema também da
intensidade: o crescendo < do assunto até o desenlace; ou,
voltando ao ditirambo, a forma crescendo e diminuendo <> de
mais bela e nobre allure. Enfim, as dificuldades de solução
espiritual e formal, resultante do assunto e do enredo:
verossimilhança, intervenções aleatórias do sobrenatural, o
compère, os personagens transitórios. O monotematismo e o
bitematismo: o assunto único convergente dramático; os dois
casais, um sério, outro cômico, um de posição outro de gente
baixa (empregados, etc.)
7. O Rural e o Urbano no Romance (Poesia) do Séc. XIX
O Realismo…
A Imposição da cidade…
(Dentro de assuntos assim imagino ser possível construir
tese de caráter histórico e sociológico.)
Parnasiana
8. O Subjetivismo na Descrição Romântica da Natureza
(Ou que nome tenha, não estou pra imaginar títulos
eufônicos, se arranje. Não estou bem certo, mas imagino que
estudar, sobretudo nos poetas românticos o valor subjetivo se
intrometendo na contemplação, compreensão e descrição da
natureza, rendia uma tese de valor. Talvez se pudesse por aí,
não sei bem, verificar além de fatalidades gerais — a ideia de
Deus, p. ex. — algumas constâncias da psicologia nacional, a
falta de objetividade, por exemplo, o individualismo
exacerbado, não sei.)
9. Evolução da Ideia de...... na Poesia Brasileira Romântica
(Ou de toda a poesia, ou do Séc. XIX. Ideia de pátria, por ex.,
de religião, de Deus, do indivíduo, não sei nem posso assim de
chofre imaginar o que rende.)
10. Psicologia do Português (do africano, do índio, do
estrangeiro, do mestiço) no Romance Brasileiro do Séc. XIX
(Certamente dava uma tese de muito interesse, sobretudo do
português e do estrangeiro. Mestiços, negros e índios estão mal
explorados mas já muito explorados, e cheira um bocado a
moda. Imagino que a psicologia do português é uma forma de
xenofobia entre nós, tradicionalizada no romance. Ao passo que
em geral, no séc. XIX, qualquer outro estrangeiro é tratado com
simpatia.)
E aqui me fico. Se lembrar mais sugestões, lhe mandarei.
Mário

Observe-se que Mário propôs alguns temas de tipo mais


convencional, como os quatro primeiros, ou o 9; outros mais
complexos, como o 7, o 8 e o 10, e dois extremamente requintados,
como o 5 mas, sobretudo, o 6, que mostra a modernidade da sua
visão crítica naquela altura. Note-se ainda que ele abria os temas
em leque, sugerindo alguns de pura análise formal e outros de
cunho sociológico, passando pelo meio-termo (falando
teoricamente) das monografias de autor.
Mas afinal não aceitei nenhuma dessas sugestões. Todas
exigiam muito trabalho, algumas estavam francamente acima das
minhas luzes e, sobretudo, o tempo era curto: menos de um ano
para escrever e entregar a tese. O melhor era seguir o preceito de
Mário sobre ser melhor aproveitar o conhecimento acumulado.
Era, para mim, o caso de Sílvio Romero, cujos livros li na
biblioteca de meu pai desde menino. Decidi por ele e em cerca de
dez meses mal-amanhei um trabalho sobre o seu método crítico.
Para acabar, vamos ao desfecho do concurso. Éramos, como
disse, seis candidatos. No fim, os cinco examinadores me
indicaram para o primeiro lugar, mas dois deles indicaram também
Souza Lima, e um, também Oswald de Andrade; ou seja, eu tinha
cinco indicações, sendo duas só minhas e três empatadas. Os
examinadores que nos haviam empatado desempataram contra
mim, ficando então eu com dois votos, Souza Lima com dois,
Oswald com um. Aí, a decisão foi para o Conselho Universitário e
este desempatou a favor de Souza Lima, que já era interino e ficou
com a cadeira.
A coisa causou certa comoção. Tive manifestações e artigos a
meu favor, inclusive um de Lúcia Miguel Pereira no Rio e outro de
Décio de Almeida Prado em São Paulo. Mas não havia recurso
viável e eu acabei no final das contas com o que era aliás o meu
alvo inicial: a livre-docência, passaporte eventual para as letras.
Jamil Almansur Haddad, um dos concorrentes e meu amigo,
garantia que a famosa Bucha da Faculdade de Direito havia atuado
a favor do vitorioso. É possível. O certo é que houve pedidos e
pressões pelo menos antes e durante o concurso, como se pode ver
inclusive pelo que narra nas suas memórias Afonso Arinos, um dos
examinadores. Oswald, por exemplo, procurou-o pedindo
abertamente o seu voto, que não obteve (Afonso Arinos votou
apenas em mim); Altino Arantes, personagem de alto relevo em
São Paulo, ex-presidente do estado, autor entre outros escritos de
um intitulado A devoção mariana perante a razão e o coração, o
visitou em nome do cardeal-arcebispo d. Carlos Carmelo de
Vasconcelos Mota, solicitando a indicação de Souza Lima. Um
líder católico disse ao meu editor e amigo José de Barros Martins
que “nós (católicos) não podemos permitir que uma cadeira dessa
importância vá parar nas mãos de um socialista agnóstico como o
Antonio Candido”…
Mas Mário não pôde ver nada disso, porque morreu em
fevereiro de 1945 e o concurso foi em julho. Como tinha horror a
concursos, se fosse vivo talvez tivesse achado no caso mais um
argumento para o seu ceticismo a respeito. Quem sabe?

47. Patrimônio interior


Para mim o Patrimônio Histórico foi sobretudo uma questão de
amizade, a partir dum grupo de pessoas integradas em certa
atmosfera e certo modo de ser, que comecei a descobrir meio de
longe ali por 1940, quando, por causa dum curso de Roger Bastide
sobre Sociologia Estética, entrei em contato com o restaurado
Convento de Embu e o jovem Luís Saia. Através dele tomei
conhecimento do pessoal do Sphan, na sua luta difícil para
preservar acervos cujo valor era ignorado ou desprezado, sendo
certo que vários bispos e padres mandavam arrancar as madeiras
trabalhadas das igrejas, ou jogar fora as imagens barrocas a troco de
outras de gesso, enquanto sacristães fundiam castiçais de prata
para fazer correntinhas de canivete, com a orelha de couro na
ponta.
Depois, percebi que o Patrimônio era antes de mais ninguém
Rodrigo Melo Franco de Andrade, que conheci no I Congresso
Brasileiro de Escritores em 1945 e de quem fiquei para sempre
amigo fervoroso. Era tamanha a importância dele, que em 1943,
quando os mineiros lançaram o famoso Manifesto, primeiro
choque na ditadura do Estado Novo, não o deixaram assiná-lo,
porque sabiam que as represálias viriam (como vieram), e a tarefa
desempenhada por ele era de tal monta, que o interesse do país
não permitia arriscar a sua permanência no Patrimônio.
Rodrigo era um homem notável sob todos os pontos de vista,
desde a inteligência luminosa até a coragem sem limite, passando
pela paciência e a capacidade de negociar. A sua dedicação era
total, chegando à renúncia das próprias veleidades. Ele procurava
inclusive apagar-se atrás da tarefa, desprezando qualquer brilho ou
vantagem, como se quisesse dissolver-se no cumprimento do
dever, concebido com o mais exigente rigor e apresentado, no
entanto, como se fosse mera obrigação corriqueira. Sempre que ia
ao Rio eu dava um pulo até o seu amplo escritório no Ministério da
Educação, onde encontrava gente como Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Prudente de Moraes, neto. Rodrigo
mostrava processos das lutas em curso, fotografias de santos e
prédios, e dava números da preciosa revista, que teve na minha
geração um papel iluminador. Em torno dele, da sua energia e do
seu raro encanto, gravitava o Patrimônio, empenhado num
trabalho sério de gente disposta a fazer as coisas com ânimo
salvador e a maior competência.
Em São Paulo convivi com Luís Saia, o tipo do que os franceses
chamam (ou chamavam) bourru bienfaisant, isto é, o sujeito de
coração de manteiga que finge impaciência e mau humor, a fim de
disfarçar a disposição de ajudar sempre, sempre se dedicar, mas
parecendo contrariado e adverso. Saia foi meu amigo e me deu
como presente de casamento uma das suas telas de amador, feita
no entanto com mão de mestre. É um quadrinho lindo, cheio de
inspiração no seu toque de surrealismo e mistério, onde figurou
em atmosfera tempestuosa três mulheres misturadas a um
empinado cavalo branco. Em contexto muito original, parece fusão
de poema de Murilo Mendes com perspectiva de De Chirico.
No tempo de que estou falando, a seção paulista do Sphan
funcionava numas salas da rua Marconi, onde Mário de Andrade
tinha a sua mesa e onde fui diversas vezes, inclusive na companhia
de Vinicius de Moraes, que em São Paulo (creio eu) fazia lá o seu
pião. Certa manhã, sentado na mesa de Mário, Vinicius escreveu
para mim, com letra nítida e firme, em papel timbrado do
Patrimônio, a “Balada do mangue”.
Dois ou três dias depois da morte de Mário, em fevereiro de
1945, cheguei lá e encontrei Luís Saia com os olhos verdes mais
arregalados do que nunca no rosto moreno: tinha encontrado
sobre a mesa do amigo um envelope grande endereçado a mim
com a letra dele. Abrimos num estado de emoção que se pode
imaginar: eram poemas datilografados do inédito Lira paulistana,
inclusive a vasta “Meditação do Tietê”. Ainda sob o impacto da
morte inesperada, foi como se recebêssemos uma mensagem de
além-túmulo.
De 1948 a 1951 passei anualmente temporadas em Belo
Horizonte, e lá tive a sorte de ser acolhido de maneira fraterna
pelo casal Lúcia e Antônio Joaquim de Almeida, além de manter
relações amigas com Sílvio Vasconcelos, chefe local do Sphan.
Mais de uma vez fui com Antônio Joaquim a Sabará, onde fica o
Museu do Ouro, do qual era diretor. No velho casarão ele
comentava as quatro partes do mundo pintadas no forro, explicava
o processo de fatura e timbre das barras, entre arcas reforçadas
feitas para contê-las. Na biblioteca folheávamos publicações
encadernadas num pano grosso e áspero, típico do Patrimônio.
Bem da escola de Rodrigo, Antônio Joaquim parecia sempre
acanhado de saber as coisas, e era como se pedisse desculpas
implícitas por estar tão bem informado.
Foi ele quem me iniciou de modo direto no universo da arte
mineira antiga, revelando, por exemplo, na igreja do Carmo, os
dois santos tensos que se defrontam na sua carne de madeira
pintada — são João da Cruz e são Simão Stock. Ele me explicou a
importância dos púlpitos ondulados e dos atlantes, esclareceu o
significado pioneiro da igreja da Conceição, terminando no alto da
colina pela miniatura iluminada da igrejinha do Ó. Nas manhãs
frias, eu imaginava que o calçamento tosco de Sabará, entrando e
saindo das dobras do morro num jogo de esconde-esconde, era o
mesmo por onde acabara de passar o piquete dos dragões de
Minas, que, no começo d’O mestre de campo, de Afonso Arinos, já
vai a caminho da Vila Nova da Rainha, atual Caeté, cuja sólida
matriz também me foi mostrada por Antônio Joaquim.
Na sua casa de Belo Horizonte, no alto da rua Tomé de Sousa,
ele continuava discretamente a me instruir, com ar de quem vai
deixando cair sem querer informações óbvias, que, no entanto,
eram sempre reveladoras. E os olhos marítimos de Lúcia pareciam
trazer o espaço que Minas não possui, com o qual sonha, e onde
ela situou o mundo mágico das suas histórias. Sem contar que a
própria Lúcia contribuiu muito para me instruir, com os seus belos
livros sobre Sabará e Diamantina.
Como disse no começo, o Patrimônio para mim foi sobretudo
uma questão de amizade e afeto, uma oportunidade de convivência
e conhecimento devidos a bons amigos. Mas bem sei que um
estudo objetivo mostraria como esses amigos, e todos os
funcionários que não conheci nem conheço, realizaram
profissionalmente com a inteligência e o coração uma das obras
mais notáveis que este país já viu.

48. Caipiradas
Este disco põe o ouvinte no centro de um mundo cultural
peculiar, que está se acabando por aí: o mundo caipira.[27]
A gente que vive na cidade procurou sempre adotar modos de
ser, pensar e agir que lhe pareciam os mais civilizados, os que
permitem ver logo que uma pessoa está acostumada com o que é
prescrito de maneira tirânica pelas modas — moda na roupa, na
etiqueta, na escolha dos objetos, na comida, na dança, nos
espetáculos, na gíria. A moda logo passa; por isso, a gente da
cidade deve e pode mudar, trocar de objetos e costumes, estar em
dia. Como consequência, se entra em contato com um grupo ou
uma pessoa que não mudaram tanto assim; que usam roupa como a
de dez anos atrás e respondem a um cumprimento com certa
fórmula desusada; que não sabem qual é o cantor da moda nem o
novo jeito de namorar; quando entra em contato com gente assim,
o citadino diz que ela é caipira, querendo dizer que é atrasada e
portanto meio ridícula. Diz, ou dizia; porque hoje a mudança é tão
rápida que o termo está saindo das expressões de todo o dia e serve
mais para designar certas sobrevivências teimosas ou alteradas do
passado: música caipira, festas caipiras, danças caipiras, por
exemplo. Que, aliás, na maioria das vezes, conhecemos não
praticados por caipiras, mas por gente que finge de caipira e usa a
realidade do seu mundo como um produto comercial pitoresco.
Nem podia ser de outro modo, porque o mundo em geral está
mudando depressa demais neste século, e nada pode ficar parado.
Hoje, creio que não se pode falar mais de criatividade cultural no
universo do caipira, porque ele quase acabou. O que há é impulso
adquirido, resto, repetição — ou paródia e imitação deformada,
mais ou menos parecida. Este disco é um esforço para fixar o que
sobra de autêntico no mundo caipira, através da difícil
permanência ou da modificação normal, devida à influência
inevitável da cultura das cidades.
Aliás, a cultura do caipira não é nem nunca foi um reino
separado, uma espécie de cultura primitiva independente, como a
dos índios. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil e
portanto veio na maior parte de fora, sendo sob diversos aspectos
sobrevivência do modo de ser, pensar e agir do português antigo.
Quando um caipira diz “pregunta”, “a mo’que”, “despois”,
“vassuncê”, “tchão” (chão), “dgente” (gente), não está estragando
por ignorância a língua portuguesa; mas apenas conservando
antigos modos de falar que se transformaram na mãe-pátria e aqui.
Até o famoso erre retroflexo, o erre de Itur ou de Tietêr, que se
pensou devido à influência do índio, viu-se depois que pode bem
ter vindo de certas regiões de Portugal. Como vieram o desafio, a
fogueira de são João, o compadrio, o jogo de cacete, a dança de são
Gonçalo, a Festa do Divino, a maioria das crendices, esconjuros,
hábitos e concepções. Quantas vezes ouvi caipiras improvisando na
viola quadras bonitas que anos depois encontrei em coleções de
folclore português! Lá por 1946, creio que num sítio perto de Rio
das Pedras, me senti transfixado pelos versos admiráveis de um
deles sobre a pureza da Virgem Maria, recebendo no seio o
Espírito Santo sem a mancha do nosso velho pecado. Mais tarde,
numa coletânea de poesia popular portuguesa, li quase a mesma
coisa, identificando a fonte que o cantador ignorava tanto quanto
eu e com a qual se comunicava por participar na sequência de uma
longa tradição.
Portanto, é preciso pensar no caipira como um homem que
manteve a herança portuguesa nas suas formas antigas. Mas é
preciso também pensar na transformação que ela sofreu aqui,
fazendo do velho homem rural brasileiro o que ele é, e não um
português na América. “Tabaréu”, “matuto”, “capiau”, “caipira” ou
o que mais haja, ele é produto e ao mesmo tempo agente muito
ativo de um grande processo de diferenciação cultural própria. No
Norte, talvez esteja mais perto do português pela língua e pela
tradição, apesar da mistura maior com as raças ditas de cor. No Sul
está mais afastado, mais transformado pela contribuição do índio.
Na extensa gama dos tipos sertanejos brasileiros, poderia ser
considerado “caipira” o homem rural tradicional do sudoeste e
porções do centro-oeste, fruto de uma adaptação da herança
portuguesa, fortemente misturada com a indígena, às condições
físicas e sociais do Novo Mundo.
Na verdade, o caipira é de origem paulista. É produto da
transformação do aventureiro seminômade em agricultor precário,
na onda dos movimentos de penetração bandeirante que acabaram
no século XVIII e definiram uma extensa área: São Paulo, parte de
Minas e do Paraná, de Goiás e de Mato Grosso, com a área afim do
Rio de Janeiro rural e do Espírito Santo. Foi o que restou de mais
típico daquilo que um historiador grandiloquente mas expressivo
chamou de “Paulistânia”.
Nessa linha de formação social e cultural, o caipira se define
como um homem rústico de evolução muito lenta, tendo por
fórmula de equilíbrio a fusão intensa da cultura portuguesa com a
aborígine e conservando a fala, os usos, as técnicas, os cantos, as
lendas que a cultura da cidade ia destruindo, alterando
essencialmente ou caricaturando. Não se trata, portanto, de um ser
à parte, mas de um irmão mais lerdo para quem o tempo correu tão
devagar que frequentemente não entra como critério de
conhecimento, e que em pleno século XX podia viver, em parte,
como um homem do século XVIII. Quem esteve em contato com
ele sabe, por exemplo, o quanto é impreciso sobre a própria idade
e como não consegue pôr datas na lembrança, além de não saber o
que se passa na sociedade maior, cujos sinais podem estar ao seu
lado sob a forma de jornal que ele não lê, de cinema que não vê, de
rádio que não escuta, de trem que não toma. “Como vai o
imperador?”, perguntou-me em 1948 o nonagenário nhô Samuel
Antônio de Camargo, nascido no Rio Feio, atual Porangaba. “Vai
bem”, respondi. E ele, com uma dúvida: “Mas não é mais aquele
veião de barba?”. E eu: “Não, agora é outro, chamado Dutra”.
Em compensação, no quadro da sua cultura o caipira pode ser
extraordinário. É capaz, por exemplo, de sentir e conhecer a fundo
o mundo natural, usando-o com uma sabedoria e uma eficácia que
nenhum de nós possui. No ano de 1954, na zona rural de Bofete,
eu me atrasei para um encontro com nhô Roque Lameu, marcado
para as dez horas. O meu relógio indicava dez horas e quinze
minutos e eu comentei que estava desacertado. “Está pouca coisa”,
disse ele, “porque pelo sol deve ser nove e meia.” Quando dali a
pouco acertei o relógio, vi que estava adiantado quarenta e cinco
minutos, e que o velho caipira não apenas calculara a hora com
absoluta exatidão, mas achava que três quartos de hora não era
coisa apreciável, além de não me corrigir, com a constante polidez
de caboclo, lembrando que, ao contrário, eu tinha chegado antes
da hora marcada.
Com o seu perfil adunco, cor bronzeada e barba rala na face
magra, nhô Roque podia ser um mameluco apurado. Do ancestral
português herdara com a língua e a religião a maioria dos costumes
e das crenças; do ancestral índio herdara a familiaridade com o
mato, o faro na caça, a arte das ervas, o ritmo do bate-pé (que
noutros lugares se chama cateretê), a caudalosa eloquência no
cururu.
O cururu e a dança da Santa Cruz são dois exemplos muito
bons do encontro das culturas. Parece terem sido elaborados sob
influência dos jesuítas, que aproveitaram as danças indígenas e o
gosto do índio pelo discurso e o desafio para enxertar doutrina
cristã. Nada mais caipira do que cururu e dança da Santa Cruz, que
só existem em áreas de forte impregnação originária dos antigos
piratininganos. E nada mais misturado de elementos portugueses e
indígenas, como tanta coisa que observamos nas cantigas, nas
histórias, nas técnicas do homem rural pobre e isolado de velha
origem paulista.
Faz muito tempo que não ando pelos lugares perdidos do
interior, e nem sei se eles ainda existem como tais depois da
multiplicação das estradas e ônibus. Quando eu andava — entre
1943 e 1955 — o caipira ainda era uma realidade cultural definida,
apesar de ser cada vez maior a sua ligação com a cultura urbana,
aceleradamente modernizada. Era espoliado e miserável na
absoluta maioria dos casos, porque, com o passar do tempo e do
progresso, quem permaneceu caipira foi a parte da velha população
rural sujeita às formas mais drásticas de expropriação econômica,
confinada e quase compelida a ser o que fora, quando a lei do
mundo a levaria a querer uma vida mais aberta e farta,
teoricamente possível.
Foi então que o caipira se tornou cada vez mais espetáculo,
assunto de curiosidade e divertimento para o homem da cidade,
que, instalado na sua civilização e querendo ressaltar este
privilégio, usava aquele irmão miserável para provar como ele tinha
prosperado, como era triunfalmente diverso. A vida do caipira
ficou sendo então, para ele próprio, uma privação terrível, porque
podia ser comparada a outras situações; e para o citadino, um
divertimento que lhe dava a confortável sensação de haver mudado
para algo melhor e mais alto.
A partir daí, o canto e a música caipira sofreram, não as
influências normais e por assim dizer orgânicas que sempre
sofreram das suas congêneres cultas; mas a deformação caricatural
e alienante que as desfigura, e que corrompe o gosto médio como
vingança involuntária do espoliado contra o seu espoliador.
A tarefa, portanto, é procurar o que há nele de autêntico.
Autêntico não tanto no sentido impossível do originariamente
puro, porque em arte tudo está mudando sempre; mas no sentido
de buscar os produtos que representem o modo de ser e a técnica
poético-musical do caipira como ele foi e como ainda é; não como
querem que ele seja, mais ou menos caricaturado para espetáculo
dos outros.

49. O mundo coberto de moços


Na história da Faculdade de Filosofia da Universidade de São
Paulo, o período da rua Maria Antônia foi uma espécie de eixo em
torno do qual giraram as concepções de ensino e o relacionamento
de alunos e professores, entre si e com a sociedade. Quando
mudamos para lá, creio que em 1949, mal se imaginava que haveria
transformações tão profundas, porque os primeiros dez anos foram
de continuação do mesmo espírito que predominava nos prédios
anteriores.
Pode-se definir mais ou menos este espírito dizendo que ele se
constituíra a partir da concepção positiva da universidade francesa,
com a sua forte componente idealista. Segundo ela, o saber é uma
atividade que se justifica a si mesma, embora tenha como alvo a
aplicação prática. Mas esta não cabe aos que o produzem e
difundem, e sim a instâncias meio indefinidas que permanecem
entre parênteses. Consequentemente, o professor fala para
transmitir, o estudante ouve e absorve. E ambos formam um
segmento especial, sem compromisso obrigatório com os
problemas imediatos. Isso não impede, é claro, que professores e
alunos, enquanto cidadãos, atuem individualmente cada um a seu
modo nos outros segmentos da sociedade.
O que aconteceu na Maria Antônia foi a passagem dessa atitude
neutra e relativamente contemplativa para um empenho da
faculdade enquanto faculdade, mobilizada para participar nos
problemas da hora. Não mais individualmente através dos seus
membros, mas como grupo. E até com certo esforço para superar o
espírito corporativo, que mantinha professores e estudantes como
setores separados e paralelos, com tipos específicos de atuação.
Esse processo começou a fermentar no fim dos anos de 1950.
Em 1957-1958 ocorreu o primeiro movimento coeso dos
professores da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (que
abrangia da Matemática à Educação), no seu relacionamento com a
sociedade: a resistência ao sempre prepotente governador Jânio
Quadros, devida à punição por ele imposta ao professor João Cruz
Costa. Pela primeira vez, o corpo docente se uniu em absoluta
maioria na oposição a um ato do Executivo, que feria a dignidade e
a autonomia de uma instituição de ensino superior. Logo a seguir,
nova mobilização da faculdade, desta vez articulada com outros
grupos: a memorável campanha pelo ensino público. Ao mesmo
tempo, começavam as primeiras iniciativas comuns de docentes e
alunos, como a comissão paritária que estudou as condições do
ensino com vistas a uma reforma e cujo fecho foi o notável
relatório da autoria de Florestan Fernandes, que fora o mais
combativo e dedicado lutador na campanha mencionada.
Nos anos de 1960 a faculdade já estava envolvida de maneira
mais direta nos problemas do momento, e com acentuada
fermentação interna. Contribuiu para isso a nova composição do
corpo docente, agora formado em maioria por brasileiros, com a
retirada dos fundadores estrangeiros que não se haviam fixado aqui
e eram mais distantes da ação externa, pela própria condição de
hóspedes. Traço decisivo foi o advento da leva de jovens docentes,
que fazia pouco eram alunos e agora, chegados ao
amadurecimento, se mostravam capazes de produção intelectual
que consolidou e ampliou o trabalho dos decênios iniciais. Além
disso, havia a atmosfera popular e nacionalista do governo João
Goulart. Os estudantes e os jovens docentes embalaram nos
grandes movimentos mais ou menos radicais, interessando-se pela
cultura do povo e para o povo, através do teatro, do cinema, da
poesia, dos métodos renovados de ensino elementar, sobretudo o
de Paulo Freire, que de certo modo simbolizou o espírito
transformador daquele momento de grande mobilização da
inteligência brasileira.
A Maria Antônia se tornou um dos centros dessa mentalidade
renovada, que a ligou em profundidade a outros grupos sociais.
Sobretudo à noite, na hora dos cursos noturnos, dava a impressão
de ser um quartel-general que enquadrava a convivência inquieta
de jovens da casa e de fora; estes, atraídos pela sua capacidade de
aglutinar, e todos enchendo as calçadas e os bares vizinhos em
debates sem fim.
Por isso mesmo, quando veio o Golpe Militar de 1964, ela foi
imediatamente invadida pela polícia, com alunos e professores
detidos, inquéritos abertos — num vasto movimento de
intimidação e repressão. Mas o fermento interno não baixou. Na
fase menos áspera da ditadura, de 1965 a 1968, ele continuou a
subir, até desfechar no ano decisivo de 1968.
Ano que há de ficar na crônica do século como o da mocidade,
representada pelos estudantes a partir das agitações da
Universidade de Berkeley em 1964. O moço se transformou
durante algum tempo na força mais viva da sociedade, parecendo
inclusive substituir o operário como fator principal na
transformação revolucionária das instituições. Politicamente,
culturalmente, ética e até esteticamente o moço abalou as
concepções e os costumes — substituindo o respeito pela
irreverência, a organização cristalizada pela ação espontânea, o
cálculo pela inspiração, a compostura pelo desalinho, a seleção pela
invasão, o “bom gosto” pelo frenesi. Toda autoridade pareceu de
repente sórdida, e as palavras mais pejorativas passaram a ser
elitismo, paternalismo, autoritarismo. Para substituir o modelo pai-
filho que regia a sociedade e sobretudo o ensino, propôs-se um
modelo do tipo irmão-irmão, que repercutiu na concepção de
universidade e abalou o cerne das normas didáticas.
Ao mesmo tempo, foram questionados os métodos e
concepções da transformação social, com o descrédito do
stalinismo e as dúvidas crescentes sobre o marxismo oficial. Um
marxismo lírico e heterodoxo se misturou a fragmentos de
neoanarquismo e aos novos avatares do cristianismo radicalizado,
para gerar uma mentalidade geral de demolição, a que não eram
estranhas certas inspirações da “Revolução Cultural” chinesa,
além de largas doses de Marcuse.
Foi esse espírito geral da mocidade que deu forma à convivência
dos jovens na Maria Antônia em plena ditadura militar, enquanto o
ensino seguia na sua rotina, dando poucas indicações de querer
acertar o passo com o tempo.
Em 1967, se não me engano, rompeu um indício de explosão
iminente: inconformados com a falta de vagas, que os deixava de
fora apesar de aprovados, candidatos ao curso de psicologia
invadiram o saguão e acamparam nele sob as vistas atônitas dos
porteiros dona Floripes e seu Portela, despertando a agitada
indignação do zelador Carlos, que, aliás, se suicidaria por outros
motivos no ano seguinte.
As agitações estudantis de maio de 1968 na França, que quase
derrubaram o governo, deram aos jovens uma esperança ilimitada e
utópica de revisão profunda e regeneradora da cultura, do ensino,
das relações sociais. No Brasil elas repercutiram logo, sendo que a
partir de julho, em São Paulo, com a Maria Antônia no epicentro.
Passeatas, reivindicações avançadas, ocupação dos prédios, nos
quais se instaurou uma espécie de república provisória, levando a
administração da faculdade a funcionar em contato com os órgãos
estudantis e os alunos a trabalharem com os professores no sentido
de modificar o ensino. Paralelamente, as comissões paritárias, as
departamentais e a geral, punham a discussão sobre a reforma
universitária na dependência da colaboração estreita de docentes e
estudantes.
Foi ao mesmo tempo o apogeu e o canto de cisne da Maria
Antônia, que caiu junto com os restos de democracia no fim do
ano. Em frente dela a Universidade Mackenzie representava a
mentalidade conservadora, e os conflitos surgiram quando os
estudantes da Maria Antônia estabeleceram o pedágio da rua e
tomaram posse do seu espaço. Nessa altura já estava em preparo a
fase terrível da ditadura, cujos promotores se serviram
provavelmente da disputa entre os dois lados da rua para desfechar
a pancada mortal no lado de cá. Aos olhos da opinião convencional
a coisa devia se configurar mais ou menos assim: no Mackenzie, a
ordem, os bons costumes, a tradição, escorados em mestres
confiáveis e estudantes vindos de famílias bem organizadas; na
Maria Antônia, a subversão, a baderna, a ameaça à estabilidade, por
parte de uma juventude solta no mundo, sem amparo familiar, mal
orientada por professores rebeldes. É pouco mais ou menos o que
está dito num pronunciamento bem-pensante e untuoso da reitora
do Mackenzie na ocasião, professora Ester de Figueiredo Ferraz.
As “forças da ordem” não hesitaram e resolveram o conflito
estudantil como se o Mackenzie fosse o Bem e a Faculdade de
Filosofia o Mal. Invadiram-na, fecharam-na, forçaram a sua
mudança. A Maria Antônia tinha acabado e, com ela, a fase mais
amena da ditadura. Quase ao mesmo tempo veio o AI-5 e, logo
depois, vieram as aposentadorias punitivas de professores, a
prisão, o expatriamento de professores e estudantes.
Vendo com olhos de hoje a Maria Antônia, a impressão poderia
ser que nada deu certo. A faculdade foi praticamente expulsa por
uma decisão governamental que sucedeu à violenta repressão da
polícia. O resultado do laborioso trabalho das comissões paritárias
foi ignorado. As vivas discussões entre alunos e docentes, no
prédio ocupado pela rebelião estudantil, deram alguns frutos, mas
nada de profundo. A reforma universitária que veio a seguir foi
insatisfatória. Grande número de estudantes e professores foram
excluídos.
No entanto, tudo mudou e se abriu um questionamento sem
fim do ensino universitário, das relações aluno-professor, dos
vínculos com a comunidade. Na Maria Antônia (que estou
analisando apenas sob este ângulo) amadureceu e explodiu a
mentalidade de transformação que ainda não encontrou as boas
soluções, mas lançou a universidade no caminho da renovação.
A Faculdade de Filosofia, a partir da sua fundação em 1934, foi
um fermento de radicalização intelectual no quadro do ensino
superior de São Paulo. Um quarto de século depois, a Maria
Antônia, sempre dentro dos limites da classe média, foi o sinal de
uma radicalização mais ampla, que lançava pontes para o mundo da
ação política e do operariado. Ela promoveu uma substituição de
radicalismos dentro do novo espírito que vem quebrando os
conceitos e as normas tradicionais, de maneira a dar espaço vital ao
jovem, à mulher, ao negro, ao homossexual, num mundo que antes
estava cristalizado em torno do homem adulto, branco,
sexualmente ortodoxo, e que fazia dessas características um
requisito para o exercício do poder. Na atmosfera trepidante da
Maria Antônia dos anos de 1960 questionaram-se os tabus e os
jovens mostraram pela primeira vez o seu poder de fogo em
setores decisivos, inclusive provocando nos professores uma
divisão que, a partir de então, marcou a política universitária. De
fato, houve os que aceitaram o movimento e procuraram inserir-se
nele criticamente; e houve os que o negaram com horror como se
fosse o fim do mundo, formando desde então uma nítida direita
cultural. Assim, os movimentos de 1968 foram o apogeu cheio de
méritos e deméritos de um processo de revisão da cultura e do
comportamento na universidade, a fim de situá-la no centro da
grande aventura modernizadora que, nesta segunda metade do
século, vem se processando sobretudo no terreno dos valores e da
conduta em sociedade. Apesar das suas fraquezas e incoerências, a
Maria Antônia foi (sejamos solenes neste instante) um marco
histórico.

50. Abecedários
No Compêndio narrativo do peregrino da América, de Nuno
Marques Pereira, cuja primeira edição é de 1728, lemos certas
quadras que o narrador caracteriza do seguinte modo:

E para acabar este discurso, vos quero repetir uns versos pelas
letras do A, b, c que dizem se acharem escritos no testamento,
com que faleceu um homem no Reino de Portugal, nos quais
deixou um extrato com que se haviam de governar seus filhos
[…].

Cada quadra corresponde a uma letra do alfabeto e contém um


preceito ajustado às normas mais conformistas, destinando-se a
incutir respeito à tradição e à ordem vigente (faltam as letras J, U e,
obviamente, K, W, e Y).
O Peregrino da América teve grande popularidade no século XVIII
(seis edições em 37 anos) e o ABC devia circular amplamente por
via oral e cópias manuscritas, sendo possível existirem ainda
muitas delas, com variantes diversas segundo é inevitável neste
tipo de registro. Aqui desejo falar de uma versão algo diferente,
transmitida por tradição oral e cópias manuscritas através das
gerações, em certos ramos de uma família de Paracatu, Minas
Gerais, que sempre o considerou obra de um antepassado.
Conheço três dessas cópias. Uma, do século XIX, tem o seguinte
cabeçalho: “Abecedário moral do coronel João José Carneiro de
Mendonça”. As outras, já do século XX e uma delas bastante
imperfeita, trazem esta indicação precisa: “ABC composto pelo
coronel João José Carneiro de Mendonça, no ano de 1810”.
Mas tal atribuição é evidentemente insustentável, porque
apesar de diferenças trata-se da mesma obra, e João José nasceu
mais de meio século após a publicação do Peregrino. Os poucos
descendentes que perceberam isto em nossos dias ficaram
surpresos e decepcionados, não faltando quem quisesse resolver o
impasse, como o eminente historiador Marcos Carneiro de
Mendonça, que para isso recuou a hipotética autoria até um
passado indefinido, conforme se lê na página 12 do seu opúsculo
Do Arraial da Meia Pataca à Fazenda Itamarati (Rio de Janeiro:
Gráfica Tupy, 1960):

O Peregrino da América, em seu famoso livro, sem lhe citar a


origem, transcreve um ABC, que segundo velha tradição tem sua
autoria em nossa família, com o tempo atribuída ao meu bisavô,
tenente-coronel João José Carneiro de Mendonça, cuja lápide
pode ser encontrada no Mosteiro de São Bento do Rio de
Janeiro.

Acho improvável e creio que antes de mais nada importa


verificar a diferença entre as duas versões, pois a da família
Carneiro de Mendonça não é simples cópia da versão do Peregrino.
A fim de deixar isto claro, transcrevo-as em colunas paralelas,
usando para a da esquerda a primeira edição do livro de Nuno
Marques Pereira, feita em Lisboa “Na Oficina de Manoel
Fernandes Costa, Impressor do Santo Ofício, Ano de M DCC XXVIII”
(nas sucessivas edições há raras e pequenas variantes, de modo que
o texto do ABC se manteve íntegro). Para a coluna da direita uso o
opúsculo de Marcos Carneiro de Mendonça, que traz a única
reprodução impressa da versão conservada em sua família. Para
retificar um ou outro lapso que ela contém, recorri às referidas
transcrições manuscritas.

A, B, C DE EXEMPLOS ABC

A A
Amor de Deus seja estudo Amor de Deus seja o estudo
Da vossa melhor lição, De vossa melhor lição;
Propondo no coração Proponde no coração
Amar a Deus sobre tudo. Amar a Deus sobre tudo.

B B
Bom homem, será razão Bom homem, bom cidadão
Vos faça o procedimento Vos faça o procedimento
Sendo o principal intento Sendo o principal intento
Fazer por ser bom cristão. Fazer por ser bom Cristão.

C C
Cortês sede; que é defeito Cortês tirai com proveito
Faltar este aviso humano: O chapéu a aviso humano,
Por um chapéu mais cada ano Mas sobretudo cada ano
Comprai agrado e respeito. Comprai agrado e respeito.

D D
Dai; que é tributo de nobre Dar é tributo do nobre,
Quanto no avaro baixeza. Pois ser avaro é baixeza,
Dai ao maior por grandeza: Dai ao maior por grandeza,
Dai por caridade ao pobre. Dai por caridade ao pobre.
E E
Espelho seja o conselho Espelho seja o conselho
Nos claros a vós atento, Do sábio e a ele atento
Compor o procedimento Componde o procedimento
Pelo lume deste espelho. Pelo lume desse espelho.

F F
Fiel a Deus, e ao Rei dado; Fiel a Deus, e ao rei dado
Porque Deus assim ordenou: É conselho que vos dou,
A Deus, porque vos criou; A Deus porque vos criou,
Ao Rei, de quem sois criado. Ao rei de quem sois criado.

G G
Graças, e equívocos sós, Graça, aqui entre nós,
O que natural cair: A que natural sair;
Que é mau o fazer rir, Porquanto é mau fazer rir
Podendo-se rir de vós. Podendo-se rir de vós.

H H
Honra, é joia que mais val, Honra é joia sem igual,
A tudo o mais preferida: A tudo o mais preferida,
Pela honra se arrisca a vida; Pela honra se arrisca a vida,
Que a honra é vida imortal. A honra é vida imortal.

I I
Ira, fiquei-vos de aviso, Ira, vos fique de aviso,
Não vos domine a razão; Não vos domine a razão;
Onde governa a paixão, Onde governa a paixão,
Não obra livre o juízo. Não obra livre o juízo.

L L
Livros não fechados, lidos, Livros, não fechados, lidos,
São só para o que se têm; Para isso é que se têm;
Que livros que se não lêm Livros que se não lêm
São tesouros escondidos. São tesouros escondidos.

M M
Mentir na realidade, Mentir, na realidade,
Leva dos vícios ao cabo: Leva dos vícios ao cabo;
Pai da mentira é o Diabo; O pai da mentira é o diabo
E Deus é suma verdade. E Deus a suma verdade.

N N
Namorar, só deve ser, Notícia má, novidade,
Quando hajais de namorar Nunca transmitas à toa;
A mulher para casar, Sem certeza nem à boa
E nunca para ofender. Convém dar publicidade.

O O
Olhai, em tudo que obrais, Olhai em tudo que obrais
O incerto fim que tereis; Ao fim certo que tereis,
Que logo atrás tornareis, Pois logo atrás tornareis,
Se adiante não olhais. Se adiante não olhais.

P P
Pecar, é grave delito: Pecar é grande delito;
Mas se pecas, filho, quando Se pecas filho querido,
A Pedro imitas pecando, Imita Pedro arrependido,
Imita a Pedro contrito. Imita a Pedro contrito.

Q Q
Quem sois, é simples Quem sois… é simples
vaidade, vaidade
Que trazeis no pensamento; Que trazeis no pensamento.
Que o melhor procedimento O melhor procedimento
É só melhor qualidade. É a melhor qualidade.

R R
Razão em toda a ocasião Razão em toda sazão
Vos assegura de ultraje; Vos assegura de ultraje,
Que armas levais de vantage, Armas levais de vantage
Se vos armais de razão. Se vos armais de razão.

S S
Soldado sede, e servi, Soldado sendo, servi,
Pois nisso vos ocupais; Aos perigos não corrais,
Aos perigos não fujais, Mas ao dever não fujais;
E à ociosidade fugi. À ociosidade fugi.

T T
Terra melhor é a Corte: Terra melhor é a Corte,
Tudo o melhor se acha nela; Tudo melhor está nela;
Mas vivei nesta, ou naquela, Mas viver nesta ou naquela,
Que tudo é pátria de sorte. Tudo é pátria, tudo é sorte.
V V
Vivendo sempre ajustado, Viver, mas sempre ajustado
Conforme a renda, ou
Conforme a renda a despesa;
despesa,
Gastar menos, é baixeza; Gastar menos é baixeza,
Gastar mais, será pecado. Gastar de mais é pecado.

X X
Xadrez, e os mais jogos, arte Xadrez, qualquer jogo, ofício
São de engenho; mas o ofício Não é, mas simples parte;
De jogar sempre é vício; Saber jogar é uma arte,
Sabê-los jogar é parte. Mas nunca o façais por vício.

Z Z
Zelo vos advertirei Zelo convém que tenhais
Da fé: é bem que se dê Pela fé, por ser honrado;
Vossa vida pela Fé, Mas por zelo exagerado,
Vossa honra pela Lei. Sem razão não ofendais.

Pelo que sei, na tradição oral e cópias manuscritas da família


Carneiro de Mendonça aparecem algumas vezes as duas versões da
letra N. No fim das cópias mais recentes, às quais me referi acima,
lê-se:

Falta a letra J, e para a letra N há a segunda parte que se segue:

Namorar só deve ser


Quando hajais de namorar
A mulher para casar,
Mas nunca para ofender.
Uma leitura atenta mostra que a versão da mencionada família é
quase sempre de melhor qualidade, pela organização do
pensamento, a escolha das palavras, a eufonia e a clareza. E é
preciso registrar que tanto na transmissão oral quanto nas cópias
manuscritas as diferenças são nela mínimas (sem contar erros
evidentes), ao contrário das que a separam do ABC do Peregrino da
América. Isto sugere que a relação entre a primeira e a segunda
coluna é menos a de um texto e suas variantes que a de duas
versões configuradas, que podemos denominar Versão A (do
Peregrino) e Versão B (da família Carneiro de Mendonça).
Com efeito, observe-se para começar que a letra N de uma nada
tem a ver com a de outra. A seguir, que para as letras C, F, P, S, X e
Z as diferenças vão fundo, produzindo modos diversos e por vezes
não coincidentes de definir o preceito. Noutros casos a
coincidência é quase completa e, aí sim, as discrepâncias poderiam
justificar-se por flutuações devidas à reprodução oral ou erros de
cópia, isto é, duas fontes normais de variantes. Note-se finalmente
que nem uma só quadra é exatamente igual nas duas versões.
À vista disso, vejo três hipóteses possíveis para explicar a
existência da Versão B. Primeira: haveria um arquétipo do qual
ambas derivaram independentemente. Segunda: não houve
arquétipo e a Versão A corresponderia ao original, alterado pela
Versão B. Neste caso, as alterações poderiam até ter sido feitas por
uma única pessoa, pois parecem obedecer a um propósito de
aperfeiçoamento, e seria contrário ao que sabemos sobre o destino
dos textos supor que o simples acúmulo de variantes, surgidas ao
acaso, pudesse levar a isso. Sendo assim, João José poderia ter
copiado o trabalho de outro e os descendentes lhe atribuíram por
conta própria a autoria, com o correr do tempo e as confusões que
ele costuma acumular. A terceira hipótese é que o próprio João
José tenha feito as modificações, e isto explica a tradição familiar,
pois, ao lhe atribuírem com tanta segurança e boa-fé a autoria
plena do ABC, os descendentes estariam apenas exagerando sem
querer o seu verdadeiro e limitado papel.
Seja como for, a Versão B deve ser bem posterior, pois, além da
linguagem mais simples e moderna, há nela pelo menos três
momentos que parecem trazer a marca do século XVIII tardio. É o
caso do primeiro verso da segunda quadra, “Bom homem, será
razão”, que na Versão B é assim: “Bom homem, bom cidadão”.
Na quadra da Versão A predomina a tônica religiosa como
critério único para definir o “bom homem”. A da Versão B destaca
também as virtudes cívicas, próprias do “bom cidadão”. Talvez
caiba notar que a palavra cidadão denotava antes o morador de
cidade, gozando das franquias municipais, o “burguês”; mas no fim
do século XVIII não apenas o seu uso se generalizou no mundo
português, como ela ganhou conotação mais forte, de “cidadania”,
ligada à consciência política, podendo, depois da Revolução
Francesa, adquirir um toque de cunho subversivo para os padrões
do tempo e do regime.
No caso da letra F, a Versão A recomenda fidelidade a Deus e ao
rei “Porque Deus assim ordenou”. Mas a Versão B atenua o
absoluto desta ordenação divina e introduz um elemento
contingente de oportunidade, que pode até parecer estratégico: “É
conselho que vos dou”. Como quem diz: “Seja fiel a Deus e ao Rei
porque é conveniente”. Mas é claro que ambas mantêm o elemento
de submissão, como não poderia deixar de ser na época.
Mais interessante é o caso da quadra Z. Na Versão A a devoção à
fé (católica, subentende-se) aparece como algo absoluto, devendo-
se dar por ela não apenas a vida, mas a própria honra, que na
quadra H aparece como valor supremo. Com efeito, no contexto,
lei deve significar lei de Deus, religião. A Versão B (onde, aliás, a
quadra está melhorada como fatura e clareza) introduz um
elemento de tolerância que também só se manifestou no mundo
português com o século XVIII já indo para o fim, e mesmo assim
timidamente. De fato, a quadra preconiza o zelo pela fé, como a
outra, mas aconselha a não lesar terceiros por causa dela: “Mas por
zelo exagerado,/ Sem razão não ofendais”.
Portanto, reconhece que há limites para o fervor religioso,
cabendo respeito por outras maneiras de pensar.
Não quero dizer com isso que a Versão B seja ideologicamente
mais avançada, mas que acolhe conceitos bem posteriores à
publicação da Versão A, portanto modernos para o tempo,
atenuando, embora de leve, o caráter conservador e conformista
do “ABC de exemplos”. Nessa ordem de ideias ganha relevo a data
de 1810 (quando João José o teria composto, segundo a tradição
familiar), pois ela corresponde a um momento em que era cabível
dirigir conselhos pensando em “cidadão” tolerante, e não, como
no texto do Peregrino, apenas um “súdito” que aceita sem discutir a
autoridade do rei e da Igreja. Por isso, a data de 1810 dá certa
verossimilhança à hipótese da intervenção modificadora de João
José.
Mas, modificador, ou simples copista do que outro modificara,
o certo é que ele não pode ter sido autor de um ABC impresso mais
de meio século antes do seu nascimento. Qual teria sido então o
mecanismo da atribuição plena, que persiste até hoje? Imagino que
João José deveria citar o ABC com frequência, dando-o como
paradigma de conduta para a família. Os filhos, ao prosseguirem
nesse hábito, diriam coisas do tipo — “como diz o ABC de meu
pai”, querendo dizer “o ABC que meu pai nos ensinou”. Na geração
dos netos a confusão já estaria instalada e “o ABC de meu avô”
passara a significar de perfeita boa-fé “escrito por meu avô”, o que
foi sendo mencionado nas cópias manuscritas.
No entanto, seja qual for a origem da Versão B, sem João José
ela não seria conhecida. Isto leva a dar alguma informação a seu
respeito, inclusive como subsídio para quem quiser mexer no
assunto, que não é transcendente, longe disso, mas tem o seu
encanto.
João José Carneiro de Mendonça era filho de Bento José
Carneiro de Mendonça e sua mulher Úrsula Ferreira da Cunha.
Nascido em 1786, no tempo em que teria composto o ABC começava
uma carreira próspera em Paracatu, sendo genro de um ricaço
local, José Batista Franco. Em 1812 era escrivão da Câmara,
redigindo com fluência. Em 1820 (referido como capitão) era
vereador; em 1821, eleitor, escolhido com a maior votação, ao
contrário do que ocorreria em 1833, quando o elegeram para a
mesma função com apenas um voto (Livros da Câmara Municipal
de Paracatu, Arquivo Público Mineiro, respectivamente Livros 6, 7
e 9). Nessa última data era coronel-chefe da Legião da Guarda
Nacional de Araxá, onde tinha propriedades, já endinheirado e pai
de prole numerosa que soube estabelecer bem. Seus descendentes,
por via masculina e feminina, se espalham hoje pelos estados de
Minas, Rio e São Paulo, além dos descendentes de colaterais dele
nestes e em Goiás. Sua família, vinda de uma freguesia de São José,
situada no bispado de Mariana, era enorme e em geral abastada,
com terras de mineração e pecuária estendendo-se por todo o
território da vasta comarca de Paracatu, desde esta localidade, ao
norte, até Desemboque, ao sul, perto da serra da Canastra; e
entrando por Goiás na direção oeste.
Um de seus genros, Antonio Paulino Limpo de Abreu,
magistrado formado em Coimbra, começou como ouvidor de
Paracatu e acabou sendo o político que foi mais vezes ministro no
Segundo Reinado, nada menos de doze, uma das quais como
presidente do Conselho. Tendo chegado na carreira judiciária a
ministro do Supremo Tribunal, foi também membro do Conselho
de Estado, senador e presidente do Senado (onde, segundo
Machado de Assis, “redobrou a disciplina do regimento”), recebeu
o título de visconde de Abaeté, com a categoria de Grandeza, e
morreu honestamente pobre em 1883.
O filho mais velho de João José, João Carneiro de Mendonça,
nascido em 1809, formou-se em 1834 na Faculdade de São Paulo,
foi promotor de Araxá e juiz de direito de Cavalcanti, Goiás, cargo
no qual faleceu solteiro, antes de 1850. Tendo sido amante da
famosa dona Beija, teve com ela uma filha e anda hoje deformado
de maneira incrível em romances e telenovelas, assim como o pai e
a mãe, transformados em personagens de ficção sem nenhum
vínculo com o que realmente foram, salvo os nomes.
Dona Beija, que acabou matrona respeitável, aparece aliada a
João José num caso de violência em Araxá, que indico segundo
Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário histórico-geográfico de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 1971, verbete sobre essa cidade:

Em 1840, tendo-se ausentado o Juiz, assumira o cargo o juiz


municipal, Antonio da Costa Pinto. Deveria, então, presidir as
sessões do júri, que estavam marcadas. E, nesse júri, deveria ser
julgado um réu protegido pelo Tte. Cel. João José Carneiro de
Mendonça. Este, com seus filhos e genros e com apoio do
Coronel. Chefe da Legião local, Antonio Ribeiro da Silva, do
Juiz de Paz em exercício, Manoel Gonçalves Pinheiro, do
vigário da Paróquia, Pe. Francisco José da Silva, e da própria
Dona Beija, reuniram [sic] cerca de quarenta jagunços,
dispostos, segundo se dizia, a impedir a realização do júri. Nada
mais do que uma arruaça, fruto da época. Mas os boatos mais
alarmistas se espalharam com rapidez. Assim, todos os
camaristas e o Juiz interino fugiram para o Desemboque. Ali,
em sessão permanente, dirigiram diversos apelos ao Presidente
da Província, nos quais se falava em sedição.

Logo depois João José se meteu em complicação mais séria: a


Revolução Liberal, de que sua família participou ativamente no
oeste e noroeste da província, como se pode ver nos documentos
reunidos na História da Revolução de Minas Gerais em 1842, Rio de
Janeiro, 1843 (Anônimo) e no livro do cônego José Antônio
Marinho, ele próprio revolucionário militante: História do
movimento político que no ano de 1842 teve lugar na província de
Minas Gerais, Rio de Janeiro, 1844.
João José, sua enérgica mulher, os filhos e os genros estiveram
entre os principais dirigentes na região de Araxá. Na sede da
família, Paracatu, onde a rebelião triunfou por algum tempo,
presidiu a Câmara rebelde seu sobrinho José Carneiro de
Mendonça. Em Araxá houve combate, com dois mortos da parte
legalista e parece que muitos mais da outra, além dos feridos de
ambos os lados, destacando-se como um dos comandantes da
coluna revoltosa (cuja base de operações era a sua fazenda) seu
filho Joaquim, nascido em 1817, ativo aliciador de partidários e
combatentes. Foragido este, a estratégia da defesa no processo
(cuja cópia parcial devo à gentileza de Leon Kossovitch) consistiu
em lhe atribuir, e ele assumir, toda a culpa, a fim de livrar os pais,
irmãos e amigos.
A mulher de João José, em solteira Josefa Maria Roquete Batista
Franco, fora humilhada e presa por mais de dois meses em
enxovia, assim como o filho mais velho, João, e o genro José
Antônio Pestana de Aguiar, que quase foi fuzilado. Segundo o
promotor que a denunciou, sendo ela “de gênio varonil e belicoso,
desempenhou admiravelmente as funções de um dos chefes da
sedição, cabendo-lhe muitas responsabilidades no presente
processo” (segundo Sebastião Afonseca e Silva e Aires da Mata
Machado Filho, História do Araxá. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1964, p. 22). João José (que na fase preparatória estivera no
Rio conspirando com o genro Limpo de Abreu, então
desembargador e deputado geral) escapou dos vexames e da prisão
(mas não do processo), porque se escondeu, como os filhos e
outros parentes. Limpo de Abreu, apesar de vacilante, fora um dos
principais articuladores do movimento, “o oráculo dos planos
sediciosos”, segundo um ofício da Câmara legalista de Patrocínio,
citado na História da Revolução, já mencionada, p. 260. Não
espanta, portanto, que tenha sido desterrado para Portugal.
É provável que esses contratempos (incluindo saque e confisco
de propriedades) hajam, se não causado, pelo menos ajudado a
decisão de mudar para a província do Rio de Janeiro, onde ele
tinha ligações de parentesco. O fato é que mudou no decênio de
1840 com a maioria dos filhos, comprando a Fazenda da Posse, ao
norte do povoado então recente de Petrópolis, no qual construiu
casa e comprou outra fazenda, Itamarati, hoje integrada no
perímetro urbano. Dali por diante levou vida pacata até morrer, no
começo de 1853, deixando bens cujo montante declarado no
inventário (devo a cópia do mesmo a Vera de Assis Ribeiro) era de
201:427$025, ou seja, duzentos e um contos, quatrocentos e vinte
e sete mil e vinte e cinco réis.
Este montante abrangia as duas fazendas da província do Rio e,
na de Minas, cinco menos valiosas em Patrocínio e Paracatu, além
de uma chácara em Araxá. E ainda: uma fábrica de sabão e duas
casas em Petrópolis, 64 escravos, muito gado vacum e outros bens
(cavalos, carros, móveis, prata, dívidas ativas etc.).
Hoje, passados mais de duzentos anos do nascimento, João José
pode ser visto sob o aspecto de um velhote plácido, ao lado da
mulher carrancuda, num belo grupo de família daguerreotipado no
decênio de 1840. Deixado para trás o seu sertão, com jagunços,
tropelias e revoltas, ele parece mesmo um seguidor conformista do
ABC, que pode ter registrado em versão diversa ou, mais
provavelmente, modificado para melhor. Mais não sou capaz de
dizer, até novas informações.
Registro das primeiras publicações

1. “Drummond prosador”, Revista do Brasil, ano I, n. 2, 1984.


2. “Fazia frio em São Paulo”, O Estado de S. Paulo, Cultura, 3 out.
1982 (com o título: “Apenas lembrando”).
3. “A vida ao rés do chão”, prefácio a Carlos Drummond de
Andrade et al., Crônicas. São Paulo: Ática, 1980. (Para Gostar de
Ler, v. 5).
4. “O mundo desfeito e refeito”, Cadernos de Estudos Linguísticos,
Univer­si­dade Estadual de Campinas, n. 22, 1992 (Homenagem
a Carlos Franchi).
5. “Os dois Oswalds”, Itinerários, Faculdade de Ciências e Letras
de Ara­raquara (Unesp), n. 3, 1992.
6. “Oswaldo, Oswáld, Ôswald”, Folha de S. Paulo, 21 mar. 1982.
7. “O diário de bordo”, Folha de S. Paulo, Livros, 12 dez. 1987.
8. “Navio negreiro”, prefácio a Aldemir Martins, O navio negreiro,
Castro Al­ves. São Paulo: Strudioma, 1992.
9. “Cartas de um mundo perdido”, O Estado de S. Paulo, Cultura, 8
abr. 1989.
10. “Erico Verissimo de 1930 a 1970”. In: Flávio Loureiro Chaves
(Org.). O contador de histórias: 40 anos de vida literária de Erico
Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972.
11. “Mestre Alceu em estado nascente”, O Estado de S. Paulo,
Cultura, 28 ago. 1983.
12. “Fernando de Azevedo”, Folha de S. Paulo, 13 fev. 1988 (com o
título, dado pelo jornal: “A personalidade contraditória de
Fernando de Azevedo”).
13. “Aquele Gilberto”, Folha de S. Paulo, 19 jul. 1987.
14. “Um crítico fortuito (mas válido)”. In: Gilberto Freyre: Sua
ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962
(com o título: “Gilberto Freyre crítico literário”).
15. “Dialética apaixonada”, Leia Livros, ano II, n. 3, 1979.
16. “O gosto pela independência”, O Estado de S. Paulo, Cultura, 22
abr. 1984 (com o título: “A inteligência crítica e o gosto pela
independência”).
17. “Roger Bastide e a literatura brasileira”, Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, n. 20, 1978.
18. “Machado de Assis de outro modo”, II Colóquio UERJ — A
interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1990 (em versão algo
diferente, como comentário de uma comunicação de Dirce
Cortes Riedel).
19. “Acerca de André Gide”, inédito, é parte de uma palestra sobre
a crítica de Roger Bastide, feita na Escola de Comunicações e
Artes (USP) em 1987.
20. “À roda do quarto e da vida”, Revista USP, n. 2, 1989.
21. “As transfusões de Rimbaud”, Folha de S. Paulo, Letras, 9 set.
1991 (com o título: “Transfusões”).
22. “Realidade e realismo (via Marcel Proust)”, In memoriam
Eurípedes Si­mões de Paula. São Paulo: FFLCH, 1983.
23. “Os brasileiros e a nossa América”, inédito (1989).
24. “O olhar crítico de Ángel Rama”, inédito.
25. “Em (e por) Cuba”, Encontros com a Civilização Brasileira, n. 18,
1979.
26. “Discurso em Havana”, Leia Livros, ano IV, n. 42, 1981.
27. “Cuba e o socialismo”, Brasil Agora, n. 2, 1991.
28. “Lucidez de Cruz Costa”, prefácio (sem este título) a Cruz
Costa, Pequena história da República. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
29. “Bettarello”, prefácio (sem este título) a Italo Bettarello, A
poesia italia­na atual, Boletim n. 15 (Nova série), Faculdade de
Filosofia USP, 1977.
30. “A força do concreto”. In: Maria Angela d’Incao (Org.). História
e ideal. Ensaios sobre Caio Prado Júni­or. São Paulo: Brasiliense,
1989.
31. “Lembrança de Luís Martins”, O Estado de S. Paulo, Cultura, 13
abr. 1991.
32. “Discreto magistério”, Folha de S. Paulo, 19 out. 1980 (com o
título: “O mestre”).
33. “Sobre a retidão”. In: Antônio Arnoni Prado (Org.).
“Libertários e militantes: Arte, memória e cultura anarquista”,
Remate de Males, Instituto de Estudos da Linguagem
(Unicamp), n. 5, fev. 1985.
34. “O companheiro Azis Simão”, Revista USP, n. 9, 1991.
35. “Arnaldo”, inédito, destinava-se ao número 5 da revista
Argumento, interrompida no número 4 pela censura do regime
militar (1974).
36. “Dispersão concentrada”, Revista USP, n. 6, 1990.
37. “Hélio versus demônio”, Jornal do Brasil, Ideias, 10 dez. 1988
(com o título “A favor do contra”, dado pelo jornal).
38. “Censura-violência”, Palavra Livre: Jornal da Comissão
Permanente de Luta pela Liberdade de Expressão, ano I, n. 1, São
Paulo, abr. 1979.
39. “Salinas no cárcere”, prefácio (sem este título) a Luiz Roberto
Salinas Fortes, Retrato calado. São Paulo: Marco Zero, 1988.
40. “Literatura comparada”, Anais do I Congresso da Associação
Brasileira de Literatura Comparada, Porto Alegre, v. I, 1988.
41. “O recado dos livros”, Jornal da Unicamp, ano III, n. 34, 1989.
42. “Cinematógrafo”. In: Julieta de Godoy Ladeira (Org.).
Memórias de Hollywood. São Paulo: Nobel, 1987.
43. “Um verão, em Berlim”, Shalom, ano XVI, n. 19, maio 1982 (com
o título: “Antes de qualquer política”).
44. “Nas Arcadas”, Jornal do XI, ano 75, n. 1, 1978.
45. “O barão”, inédito.
46. “Mário e o concurso”, Memória, ano V, n. 17, jan.-mar. 1993.
47. “Patrimônio interior”, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Naci­o­nal, 1987.
48. “Caipiradas”, texto no estojo dos dois discos Caipira, raízes e
frutos. São Paulo: Estúdio Eldorado, 1980.
49. “O mundo coberto de moços”, Maria Antônia. In: Maria
Cecília Loschiavo dos Santos (Org.). Uma rua na contramão. São
Paulo: Nobel, 1988.
50. “Abecedários”, inédito.
Notas

1 Este escrito é prefácio do livro Crônicas, v. 5 da série Para Gostar


de Ler, da Editora Ática.
[ «« ]

2 As citações não identificadas por nota de rodapé são trechos do


próprio romance.
[ «« ]

3 Depois da morte de Pedro Sanches, em 1915, a crônica foi


editada num bonito folheto de pequeno formato, vendido para
angariar fundos destinados à fatura do seu busto.
[ «« ]

4 Raimundo Magalhães Júnior, A vida vertiginosa de João do Rio.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 298. O romance
apareceu sob a forma de livro em 1918 pela Editora Leite Ribeiro,
do Rio de Janeiro.
[ «« ]

5 A referência a Aristófanes está errada. Há onomatopeias do


coaxar das rãs na primeira parte da comédia deste nome, mas não
aludem a Eurípides, satirizado na segunda parte. Na comédia Os
pássaros não há nada disso.
[ «« ]

6 Raimundo Magalhães Júnior, op. cit., pp. 299-300.


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7 Lúcia Miguel Pereira, Prosa de ficção (de 1870 a 1920). História da


literatura brasileira. Dir. de Álvaro Lins. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1950, v. XII, pp. 275-276.
[ «« ]

8 Monteiro Lobato, “A correspondência de uma estação de cura”,


Revista do Brasil, n. 32, ago. 1918. Recolhido em Crítica e outras
notas. São Paulo: Brasiliense, 1965, pp. 38-43. Agradeço a Marisa
Lajolo a indicação e comunicação deste escrito.
[ «« ]

9 Maria Luiza Penna, Fernando de Azevedo: Educação e


transformação. São Paulo: Perspectiva, 1987. (Coleção Estudos, n.
101).
[ «« ]

10 Otto Maria Carpeaux, História da literatura ocidental. 2. ed. rev.


e atual. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, v. I.
[ «« ]

11 Roger Bastide, “Machado de Assis, paisagista”, Revista do Brasil,


3a fase, v. III, n. 29, nov. 1940.
[ «« ]

12 Roger Bastide, Anatomie d’André Gide. Paris: Presses


Universitaires de France, 1972.
[ «« ]

13 Tradução de Ledo Ivo, com pequena modificação, data venia.


[ «« ]

14 Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, v. VII, O tempo


redescoberto. Trad. de Lúcia Miguel Pereira. Rio de Janeiro; Porto
Alegre; São Paulo: Globo, 1956, p. 112.
[ «« ]

15 Erich Auerbach, Mimesis: A representação da realidade na


literatura ocidental. Trad. de George Bernard Sperber. São Paulo:
Perspectiva, 1971, p. 163. (Fiz algumas modificações na tradução
deste trecho.)
[ «« ]

16 O tempo redescoberto, op. cit., p. 16.


[ «« ]

17 Louis de Robert, Comment Débuta Marcel Proust. Nouvelle édition


revue et augmentée. Paris: Gallimard, 1969, pp. 60-61.
[ «« ]

18 O tempo redescoberto, op. cit., p. 48.


[ «« ]

19 Oliveira Lima, Pan-americanismo: Monroe. Bolívar. Roosevelt. Rio


de Janeiro; Paris: Garnier, 1907, p. 39.
[ «« ]
20 “A conferência pan-americana de Buenos Aires”, artigo de 1911,
em Oliveira Lima, Obra seleta. Org. de Barbosa Li Sobrinho. Rio de
Janeiro: INL, 1971, p. 510.
[ «« ]

21 Ver José Veríssimo, Cultura, literatura e política na América


Latina. Sel. e apres. de João Alexandre Barbosa. São Paulo:
Brasiliense, 1986. Esta importante coletânea reúne a produção de
Veríssimo no assunto.
[ «« ]

22 “Solidariedade sul-americana”, em Contrastes e confrontos


[1907]. Intr. de Olímpio de Sousa Andrade etc. São Paulo: Cultrix,
1975, pp. 107 e 110.
[ «« ]

23 Um brasileiro poderia observar que o raciocínio de Rama não se


aplica ao Brasil, pois aqui sempre houve carreiras contínuas,
nutridas por produção regular, como foram as de Macedo, Alencar,
Machado de Assis, Aluísio Azevedo, apesar de não serem eles
propriamente profissionais.
[ «« ]

24 Num importantíssimo livro a sair, cujos originais pude ler,


Florestan Fernandes analisa com profundidade e larga informação
os aspectos originais da tradição revolucionária de Cuba.
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25 Hélio Pellegrino, A burrice do demônio. Rio de Janeiro: Rocco,


1988.
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26 Discurso proferido na cerimônia de inauguração das novas
instalações da Biblioteca Central da Universidade Estadual de
Campinas.
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27 Caipira: Raízes e frutos. Selo Eldorado, 1980.


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Guilherme Maranhão/ Arquivo do IEB-USP, Fundo Antonio Candido,
código de referência: AC-FA0088

Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro, em


1918. Crítico literário, sociólogo, professor, mas sobretudo um
intérprete do Brasil, foi um dos mais importantes intelectuais
brasileiros. Candido partilhava com Gilberto Freyre, Caio Prado
Jr., Celso Furtado e Sérgio Buarque de Holanda uma largueza de
escopo que o pensamento social do país jamais voltaria a igualar,
aliando anseio por justiça social, densidade teórica e qualidade
estética. Com eles também tinha em comum o gosto pela forma do
ensaio, incorporando o legado modernista numa escrita a um só
tempo refinada e cristalina. É autor de clássicos como Formação da
literatura brasileira (1959), Literatura e sociedade (1965) e O discurso e
a cidade (1993), entre diversos outros livros. Morreu em 2017, em
São Paulo.
© Ana Luisa Escorel, 2024

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Este volume tomou como base a quarta edição de Recortes (Rio de


Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012), elaborada a partir da última versão
revista por Antonio Candido. Em casos específicos, e a pedido dos
representantes do autor, a Todavia também seguiu os critérios de
estilo da referida edição.
O texto de orelha, redigido originalmente pelo próprio Antonio
Candido, foi mantido.

capa
Oga Mendonça
composição
Maria Lúcia Braga e Fernando Braga,
sob a supervisão da Ouro sobre Azul
preparação e revisão
Huendel Viana
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Candido, Antonio (1918-2017)


Recortes [recurso eletrônico] / Antonio Candido. — 1. ed. — São Paulo : Todavia,
2024.
Dados eletrônicos (1 ePub).

ISBN978-65-5692-584-4
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub

1. Literatura brasileira. 2. Ensaio brasileiro. I. Título.

CDD B869.4

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira B869.4

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB 10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
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Antonio Candido na Todavia.
www.todavialivros.com.br/antoniocandido

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