Deus Trindade, Unidade Dos Homens

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COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL

Deus Trindade, unidade dos homens

___________________________________

O monoteísmo cristão contra a violência

ÍNDICE GERAL

Nota preliminar

APRESENTAÇÃO

CAPÍTULO I. Suspeitas acerca do monoteísmo [1-18]

1 . A experiência religiosa do divino [1-2]


2 . Monoteísmo e violência: um nexo necessário? [3-9]
3 . Politeísmo tolerante? Uma metáfora discutível [10-14]
4 . A responsabilidade atribuída à nossa fé [15-18]

CAPÍTULO II. A iniciativa de Deus no caminho de homens [19-42]

1 . A aliança com Deus, destinada a todos os povos [19-23]


2 . Discernimento cristão da antiga revelação [24-30]
3 . Praticar o amor, observar a justiça [31-35]
4 . A fé no Filho, contra a inimizade entre os homens [36-42]

CAPÍTULO III. Deus, para nos livrar da violência [43-66]

1 . Deus Pai salva-nos pela Cruz do Filho [43-47]


2 . A superação da violência, no Filho [48-53]
3 . A carne do homem, destinada à glória de Deus [54-59]
4 . A esperança dos povos, a fé da Igreja [60-66]

CAPÍTULO IV. Fé em face da amplitude da razão [67-84]

1 . A via do diálogo e o nó do ateísmo [67-68]


2 . O confronto sobre a verdade da existência de Deus [69-72]
3 . A crítica da religião e o naturalismo ateu [73-75]
4 . O empenhamento da razão: o mundo criado, o Logos de Deus [76-77]
5 . Transcendência divina e relações no e com o Deus único [78-84]

CAPÍTULO V. Os filhos de Deus dispersos e reunidos [85-100]

1 . A dignidade do ser humano individual e o liame dos muitos [85-87]


2 . Deus corrobora a paixão pela justiça, reabre a esperança da vida [88-92]
3 . A purificação religiosa da tentação do domínio [93-96]
4 . A força da paz com Deus, missão da Igreja [97-100]

___________________________________

NOTA PRELIMINAR

No seu lustro 2009-2014, a Comissão Teológica Internacional levou a cabo um estudo


de certos aspectos do discurso cristão sobre Deus, defrontando-se sobretudo com a
tese segundo a qual haveria uma relação entre monoteísmo e violência. O trabalho
desenvolveu-se no seio de uma Subcomissão, presidida pelo Rev. Philippe Vallin e
composta dos seguintes membros: Rev. Peter Damian Akpunonu, P. Gilles Emery,
O.P., S.Excª Revma Savio Hon Tai-Fai, S.D.B., S.Excª Revma Charles Morerod, OP,
Rev. Thomas Norris, Rev. Javier Prades López, S.Excª Revma Paul Rouhana, Rev.
Pierangelo Sequeri, Rev. Guillermo Zuleta Salas.

As discussões gerais sobre este tema realizaram-se em vários encontros da


Subcomissão e durante as Sessões Plenárias da Comissão, que tiveram lugar entre
2009-2013. O presente texto, de título "Deus Trindade, unidade dos homens. O
monoteísmo cristão contra a violência", foi aprovado pela Comissão "em forma
específica" a 6 de Dezembro 2013, e entregue, em seguida, ao Presidente, SE Bispo
Gerhard L. Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que autorizou a sua
publicação.

APRESENTAÇÃO
O texto de reflexão teológica que apresentamos destina-se a evidenciar alguns
aspectos do discurso cristão sobre Deus que, no contexto actual, exigem um
esclarecimento teológico específico. A ocasião imediata deste esclarecimento é a
teoria, exposta com argumentos de índole diversa, segundo a qual existe uma relação
necessária entre o monoteísmo e as guerras de religião. A discussão em torno deste
liame revelou numerosos motivos de incompreensão da doutrina religiosa, a ponto de
obscurecer o autêntico pensamento cristão do único Deus.

Poderíamos resumir o fito do nosso discurso numa dupla pergunta: (a) Como é que a
teologia católica se pode confrontar criticamente com a opinião cultural e política que
estabelece uma relação intrínseca entre monoteísmo e violência? (b) Como é que a
pureza religiosa da fé no único Deus se pode reconhecer como princípio e fonte do
amor entre os homens?

A nossa reflexão pretende apresentar-se em chave de testemunho argumentado, e não


de contraposição apologética. A fé cristã vê e reconhece, de facto, na excitação à
violência em nome de Deus a máxima corrupção da religião. O cristianismo desemboca
nesta convicção a partir da revelação da própria intimidade de Deus, que nos chega
através de Jesus Cristo. A Igreja dos crentes é consciente do facto de que o
testemunho dessa fé exige ser honrado por uma atitude de conversão permanente: que
implica igualmente a "parresía" (ou seja, a franqueza corajosa) da necessária
autocrítica.

No Capítulo I, propusemo-nos clarificar o tema do "monoteísmo" religioso na acepção


que recebe e adquire em certas orientações da hodierna filosofia política. Estamos
conscientes de que tal evolução exibe, hoje, um espectro muito diferenciado de
posições teóricas, que vão desde o fundo clássico do ateísmo dito humanista às formas
mais recentes do agnosticismo religioso e do laicismo político. A nossa reflexão visaria,
antes de mais, sublinhar que a noção de monoteísmo, não destituída de significado
para a história da nossa cultura, permanece ainda demasiado genérica, quando se
utiliza como cifra de equivalência das religiões históricas que professam a unicidade de
Deus (identificadas como Judaísmo, Islamismo, Cristianismo). Em segundo lugar,
formulamos a nossa reserva crítica em face de uma simplificação cultural que reduz a
alternativa à escolha entre um monoteísmo necessariamente violento e um politeísmo
supostamente tolerante.

De qualquer forma, nesta reflexão sustém-nos a convicção, que por motivos vários
consideramos partilhada por muitíssimos contemporâneos nossos, crentes e não-
crentes, de que as guerras interreligiosas, como também a guerra contra a religião, são
de todo insensatas.
Em seguida, como teólogos católicos e à luz da verdade de Jesus Cristo, procurámos
ilustrar o nexo entre revelação de Deus e humanismo não-violento. Fizemo-lo mediante
a reexposição de algumas implicações da doutrina peculiarmente apropriadas para
iluminar o debate actual: quer no tocante à autêntica compreensão da confissão
trinitária do Deus único, quer no que diz respeito à abertura da revelação cristológica
para a recuperação do vínculo entre os homens.

No Capítulo II, indagamos o horizonte da fé bíblica, com especial atenção ao tema das
suas "páginas difíceis": aquelas em que a revelação de Deus surge envolvida nas
formas da violência entre os homens. Tentamos identificar os pontos de referência que
a própria tradição escriturística realça – no seu seio – para a interpretação da Palavra
de Deus. Com base neste reconhecimento, oferecemos um primeiro esboço de
enquadramento antropológico e cristológico dos desenvolvimentos da interpretação do
tema, requeridos pela condição histórica actual.

No Capítulo III, propomos um aprofundamento do evento da morte e da ressurreição de


Jesus, na chave da reconciliação entre os homens. A oikonomia é aqui essencial à
determinação da theologia. A revelação inscrita no acontecimento de Jesus Cristo, que
torna universalmente relevante e apreciável a manifestação do amor de Deus, permite
neutralizar a justificação religiosa da violência com base na verdade cristológica e
trinitária de Deus.

No Capítulo IV, a nossa reflexão empenha-se na clarificação das aproximações e


implicações filosóficas do pensamento de Deus. Abordam-se aqui, antes de mais, os
pontos de discussão com o ateísmo actual, largamente presente e concentrado nas
teses de um naturalismo antropológico radical. Por fim – também em prol do confronto
interreligioso sobre o monoteísmo – propomos uma espécie de meditação filosófico-
teológica sobre a integração entre a revelação da íntima disposição relacional de Deus
e a concepção tradicional da sua absoluta simplicidade.

No Capítulo V, por último, condensamos os elementos da especificidade cristã que


definem o empenho do testemunho eclesial na reconciliação dos homens com Deus e
de uns com os outros. A revelação cristã purifica a religião, no próprio momento em
que lhe restitui o seu significado fundamental para a experiência humana do sentido.
Por isso, no nosso convite à reflexão temos bem presente a necessidade especial –
sobretudo no horizonte cultural de hoje – de tratar sempre conjuntamente o conteúdo
teológico e o desenvolvimento histórico da revelação cristã de Deus.

CAPÍTULO I
SUSPEITAS SOBRE O MONOTEÍSMO

1. A experiência religiosa do divino

1. Juntamente com uma multidão imensa de homens e mulheres, que habitam e


habitaram este planeta, reconhecemos em “Deus” o “princípio e o fim” da existência de
cada pessoa e de toda a comunidade humana[1]. A Igreja, iluminada pelas Sagradas
Escrituras, afirma que o ser humano, na mediação racional da experiência, é
naturalmente capaz de reconhecer Deus como criador do mundo e interlocutor do
homem[2]. Neste sentido podemos entender também o que significa a descrição do ser
humano como homo religiosus.

2. A abertura ao divino está tão profundamente inscrita no homem que já em si mesma


se pode lobrigar – embora ainda indistintamente – como uma forma de experiência
religiosa. O alcance universal desta experiência (atestada no pensamento de muitos
grandes pensadores do Ocidente e do Oriente como, por exemplo, Platão ou Confúcio)
é desde sempre um tema de reflexão e de pesquisa nas culturas do humano. Como
pessoas que se esforçam sinceramente por viver o espírito e a prática da autêntica
religião, vemo-nos, por isso, intimamente unidos a todos os que albergam e
aprofundam na mente e no coração este sentido fundo e forte do divino. Estamos
convencidos de que, no próprio facto da religião, em que todos os povos da terra estão
originariamente radicados e plasmados, se pode reconhecer o testemunho de uma vida
divina que precede todas as coisas e da qual cada coisa, em última análise, depende:
material ou espiritual, conhecida ou desconhecida.

2. Monoteísmo e violência: um nexo necessário?

3. O núcleo da fé religiosa, através dos mitos e dos ritos, das crenças e das devoções,
dá testemunho da experiência misteriosa de Deus e interpela na profundidade todos os
seres humanos. Deus é princípio e fim de todas as coisas. E nada é como Deus. O
“monoteísmo” foi assim, durante muito tempo, também reconhecido, sob o ponto de
vista da história da civilização, como a forma culturalmente mais evoluída da religião: a
saber, o modo de pensar o divino mais congruente com os princípios da razão. A
unicidade de Deus, acessível à filosofia, foi identificada como princípio da razão
natural, que precede as tradições históricas das religiões. O pensamento puramente
racional da unicidade de Deus, como ponto de convergência da razão e das religiões,
servira justamente para regulamentar cultural e civilmente os conflitos confessionais e
inter-religiosos da modernidade. Todavia é verdade que, no decurso da história e da
própria modernidade ocidental, essa configuração da religião, que as filosofias e as
ciências da cultura concordaram, em seguida, em chamar “monoteísmo judeo-cristão”,
foi utilizada ideologicamente, na perspectiva de um directo paralelismo teológico-
político para justificar a forma monárquica do poder soberano.

4. De qualquer modo, é indubitável que esse pensamento filosófico de Deus


desenvolveu, entretanto, uma imagem – filosófica e política – do monoteísmo
amplamente autónoma em face da autêntica revelação cristã, que tende para o
deísmo, em parte atenuando, entre os próprios crentes, a originalidade da revelação
cristã; em parte, desenvolvendo uma ideia do absoluto divino em tensão, se não em
conflito aberto, com a interpretação coerente da fé. A cultura ocidental contemporânea,
em reacção a um certo predomínio da unidade do ser e do verdadeiro, que caracterizou
a maior parte das concepções filosóficas e políticas da própria modernidade, tende
agora a privilegiar a pluralidade do bem e do justo: gerando uma significativa tensão
entre o reconhecimento do pluralismo e a teorização de um princípio relativista. Sem
mais, a consciência e o respeito das diferenças representa uma vantagem para a
valorização das singularidades e para a abertura a um estilo hospitaleiro da
convivência humana. Ao mesmo tempo, a evolução desta abertura deixa emergir
também a sua contradição, ou seja, a incomunicabilidade dos mundos humanos, que
assim são induzidos à desconfiança – se não à indiferença – perante o empenho em
buscar o que é comum à dignidade do homem. A resignação ao relativismo radical
como horizonte último e insuperável da demanda do verdadeiro, do justo, do bem, não
constitui de facto uma melhor garantia para a satisfação e a cooperação da convivência
humana. Ele transforma-se, de facto, inevitavelmente num motivo de justificação para a
indiferença e a desconfiança recíproca acerca de qualquer tema da vida e de qualquer
responsabilidade da política. Quando a busca da verdadeira justiça e o empenhamento
pelo bem comum caiem sob a suspeita do conformismo e da constrição, a autêntica
paixão pela igualdade, pela liberdade e pelos liames bons, acaba por ser radicalmente
desencorajada. Não só. Semelhante perda de confiança e de motivações, provocada
por um sentir relativista total, abandona as relações humanas a uma gestão anónima e
burocrática da convivência civil. E não por acaso, uma parte conspícua da crítica social
assinala hoje, juntamente com o crescimento de uma imagem pluralista da sociedade,
a afirmação de um desígnio totalitário do pensamento único.

5. Na trilha deste paradoxo, o ideal – a própria ideia – da verdade é objecto de uma


radical denúncia. A ideia de que a busca da verdade, além de necessária para o bem
comum, possa ser pensada como empreendimento comum, partilhado pacificamente e
atestado de forma respeitosa, é tida por ilusória e não realista. A verdade, nesta
perspectiva, não surge pensada como princípio de dignidade e de união entre os
homens, que os subtrai ao arbítrio e à perversão dos seus fechamentos egoístas,
indiferentes à justiça do humano que é de todos. Pelo contrário, ela é, por vezes,
explicitamente indicada como uma ameaça radical para a autonomia do sujeito e para a
abertura da liberdade, sobretudo porque a pretensão de uma verdade objectiva e
universal, de referência para todos, se bem que acessível ao espírito humano, é
imediatamente associada a uma pretensão de posse exclusiva por parte de um sujeito
ou grupo humano. Ela levaria assim à justificação do domínio do homem que reivindica
a sua posse sobre o homem que, de acordo com essa pretensão, dela está privado.
Em virtude desta representação da verdade, que a considera inseparável da vontade
de poder, também o empenhamento na sua demanda e a paixão do seu testemunho
são vistos a priori como matrizes de conflito e de violência entre os homens. Em
semelhante enquadramento, a preocupante retomada do que chamamos comummente
– e também de modo muito genérico – “fundamentalismos religiosos” é aceite como
prova evidente e definitiva desta relação.

6. O colapso do panorama moderno é inesperado: o monoteísmo é, agora, arcaico e


despótico, e o politeísmo criativo e tolerante. De qualquer forma, a classificação
sumária do judaísmo, do cristianismo e do islamismo como as três grandes “religiões
monoteístas”, pretende indicar assim a razão do perigo que elas representam para a
estabilidade e o progresso humanista da “sociedade civil”. Mas não podemos passar
em silêncio o facto de que, em certas partes intelectualmente relevantes da nossa
cultura ocidental, a agressividade com que é reproposto este “teorema”, se concentra
sobretudo na denúncia radical do cristianismo, ou seja, justamente da religião que,
naquela fase histórica, surge realmente como protagonista da instância de um diálogo
de paz, e para a paz, com as grandes tradições da religião e com as culturas laicas do
humanismo. O facto de assim serem descaradamente associados a uma
representação da fé no Deus Único como “semente da violência” fere, sem dúvida,
milhões de autênticos crentes. E não apenas cristãos. Nos discípulos do Senhor induz
certamente elementos de desconcerto e de embaraço, devido ao facto de a hodierna
consciência cristã lhes aparecer muito afastada da pregação da violência. Podemos,
por isso, compreender o espanto dos cristãos ao verem ser-lhes atribuída uma vocação
religiosa à violência perante os fiéis de outras religiões ou também os propagandistas
da crítica à religião: sobretudo se considerarmos que, em muitas partes do mundo, os
cristãos são maltratados com a intimidação e a violência só por causa da sua pertença
à comunidade cristã. Nas próprias sociedades democráticas e laicas, o vínculo com a
pertença cristã foi, muitas vezes, apontado como uma ameaça para a paz social e para
o livre confronto cultural, mesmo quando as argumentações apresentadas, em apoio de
opiniões que concernem à esfera pública, apelam para recursos da racionalidade
comum.

7. Não pode, decerto, negar-se o reacendimento, à escala mundial, do preocupante


fenómeno da “violência religiosa”, não desprovido de significativas conexões com
políticas de subversão étnica e de estratégia terrorista. Nem podemos ignorar, ao
considerar a própria história do cristianismo, o desvairo e o desconcerto das nossas
culposas e repetidas passagens pela violência religiosa. Como se introduz, na fé em
Deus, a semente da violência? E como se perverte a bênção do reconhecimento do
Deus único na maldição que arroja para o caminho da violência “em nome de Deus”? A
nossa reflexão pretende essencialmente oferecer elementos de compreensão da
qualidade cristã do monoteísmo, em vista de uma explícita acentuação do seu nexo
intrínseco com o mistério da intimidade trinitária de Deus, revelado na incarnação do
Filho de Deus feito homem. A conversão do nosso espírito e da nossa mente à melhor
transparência da fé deve suscitar o generoso impulso do testemunho da singularidade
desta fé: que a conjuntura histórica exige com especial urgência. Ao mesmo tempo,
com as nossas reflexões, propomo-nos explicitar para todos “a razão da esperança que
existe em nós” (1 Pd 3, 15), mediante o mais claro discernimento do apoio que a fé
cristã torna disponível para a reconversão da razão ocidental ao espírito de um
humanismo melhor.

3. Politeísmo tolerante? Uma metáfora discutível

8. A ideia de uma intrínseca conexão e consequência entre monoteísmo e violência,


que um certo número de intelectuais tem por evidência cultural, contribui para
aprofundar a brecha da desconfiança social em face das culturas religiosas. Este facto
rouba dignidade de representação ao pensamento autêntico da religião e dos crentes.
A aplicação metafórica do politeísmo religioso à democracia civil, como antídoto à
violência, afigura-se, por vezes, extravagante do ponto de vista histórico, sociológico e
também teórico. Quando falamos da corrupção da religião que faz dela uma semente
da violência, falamos decerto de um fenómeno grave e bastante sério. Mas este
fenómeno não foi realmente estranho ao politeísmo das antigas lutas entre os deuses.
Pensemos também, para permanecermos no âmbito da história bíblica, na violenta
perseguição do imperialismo helénico perante a religião judaica (cf. 1 Mac 1-14; 2 Mac
3-10). Por sua vez, a religião politeísta do Império Romano, com toda a extraordinária
modernidade do seu conceito de cidadania e da sua estrutura multi-étnica e multi-
religiosa, perseguiu com especial encarniçamento o cristianismo, culpado de rejeitar a
veneração do imperador como figura divina. A resposta expressou-se no testemunho
não violento e na aceitação do martírio cristão.

9. O mesmo mundo ocidental, tão orgulhoso da sua civilização secularizada, é hoje


obrigado a medir-se com um crescente e desconcertante desabrochamento de estilos
de vida e de comportamento inspirados na violência: espontânea, imediata, destrutiva.
Sempre cada vez mais inconsciente de si mesma e até eticamente justificada. Em
semelhante quadro suscita decerto surpresa que as “religiões monoteístas” sejam
apontadas como uma das principais matrizes de um absolutismo violento e
desestabilizante para a harmonia civil. Este esquematismo surge, com demasiada
evidência, ligado ao preconceito – típico do modelo racionalista – segundo o qual,
também no plano existencial e social, existe um único modo de afirmar a verdade:
negar a liberdade ou eliminar o antagonista.

10. A prática actual desta crítica é, de qualquer modo, significativamente diferenciada.


De facto, vai além da abstracta dedução da “violência monoteísta”, discutindo
reiteradamente aspectos diferentes da relação entre convicção religiosa e razão
política. O Judaísmo, enquanto religião, é geralmente subtraído a uma acusação
directa, quer pelo facto, de todo compreensível, de que o judaísmo suscita até
demasiado claramente a vergonhosa memória da inominável violência sofrida; quer
pelo facto de que não existe a percepção de um empenhamento virado para a missão e
a conversão (proselitismo). Quanto ao Islão, o reflexo do conflito histórico entre domínio
cristão e domínio islâmico, é prevalentemente interpretado em chave geopolítica, mais
do que teológica. De facto, a questão crucial da relação entre observância religiosa e
legislação civil é um tema de discussão e de pesquisa acerca do qual todas as culturas
religiosas estão ainda muito divididas e oscilantes no seu seio. Os excessos do
“fundamentalismo” religioso, no Ocidente e no Oriente, surgem radicalmente
problemáticos também do ponto de vista da sua genuína inspiração religiosa. Trata-se,
pois, de um tema de discussão comum às religiões. A sua correlação com a crença
monoteísta revela-se, por isso, como uma simplificação excessiva, pretensiosa, que
oculta e obscurece a questão mais fundamental da relação entre transcendência
religiosa e secularização civil[3]. De facto, esta simplificação origina excessos de
ressentimento “fundamentalista” por parte da crítica racional e política frente à religião,
que não contribuem para a cultura da democracia e do diálogo.

11. No âmbito da cultura teórica e crítica do racionalismo ocidental, o cristianismo é


que é preferentemente analisado como caso exemplar da inclinação despótica do
monoteísmo religioso. Em semelhante perspectiva, as qualidades do cristianismo que
inspiraram também a melhor cultura humanista ocidental são esquecidas e ignoradas
pela geral interpretação da fé como renúncia à liberdade de pensamento e fanatismo
da identidade.

12. A constante e pertinaz identificação do cristianismo católico como o obstáculo a


abater, na luta contra o monoteísmo que difunde a violência religiosa no mundo não
deixa, todavia, de causar espanto e surpresa. O cristianismo é, desde há muito, a
religião que deveria ser mais bem conhecida na moderna cultura ocidental e, por isso,
esta deveria ser aparentemente a última a ser suspeita de ignorância em face dos
factores fundamentais do cristianismo. A original e inédita conjunção do amor de Deus
e do amor do próximo, ancorada metafisicamente, e não de modo retórico no dogma da
incarnação do Filho de Deus para a redenção e reconciliação dos homens foi sempre –
e continua a ser – uma pedra angular da teologia cristã. É difícil ignorar esta diferença
em boa fé. Ela persistiu como a cifra identificadora do cristianismo em todas as épocas:
um dado que, se torna ainda mais escandalosas as práticas deformadas, deve
igualmente fazer reflectir sobre a sua milagrosa continuidade. O cristianismo coaduna-
se com esse fundamento: pretender eliminá-lo ou também apenas redimensioná-lo
seria alterar toda a sua narrativa fundadora e todo o seu fundamento dogmático.

13. A modernidade ocidental alimentou-se também amplamente e serviu-se desta


singularidade religiosa e da sua firme estabilidade no tempo, quando percorreu os
caminhos – religiosa e filosoficamente inéditos – da dignidade pessoal de cada
indivíduo e da igualdade entre os seres humanos. Não parece casual, de facto, que a
animosidade da tomada de distância – e da polémica – em face do cristianismo, que
hoje utiliza instrumentalmente a chave da sua redução (filosófica e política) ao
estereótipo do monoteísmo violento, seja acompanhada de um enfraquecimento
contextual, na própria conduta e atitude ocidental, do respeito pela vida, pela intimidade
da consciência, pela salvaguarda da igualdade, pela paixão racional por um
empenhamento ético partilhado e pelo respeito da autêntica consciência religiosa. A
extenuação do Ocidente, sob o perfil dos laços sociais – deplorada como degradação
dos valores partilhados ou saudada como preço da liberdade individual – é, de resto,
objecto de um diagnóstico crítico amplamente convergente. O crescimento da
conflitualidade no seio da conduta social difundida não pode deixar de ter alguma
relação com este enfraquecimento do ethos civil, que se alimentava da solidez da fé
cristã no ideal da proximidade.

14. De facto, a denúncia arvorada contra o monoteísmo surge decerto mais


transparente nas suas verdadeiras motivações quando se desdobra a partir das
premissas de um ateísmo claramente professado, em defesa de uma concepção
imanentista e naturalista do humano. O ateísmo civil, por outro lado – os mais atentos
percebem-no claramente – deve, por seu turno, prover-se das necessárias cautelas
filosóficas e também políticas. A experiência dos “ateísmos de Estado” permanece bem
viva na consciência ocidental. De facto, mesmo se nos convencermos de que não
existe um Deus perante o qual todos os homens são iguais, o horizonte do pensamento
de Deus é, apesar de tudo, tão indispensável à consciência humana que ele,
“esvaziado” do seu legítimo ocupante, permanece à disposição do delírio de
omnipotência do homem. Alguém ou até algo (a raça, a nação, a facção, o partido, a
tradição, o progresso, o dinheiro, o corpo, o gozo) acaba por ocupar o lugar deixado
vazio por Deus. A revelação bíblica anuncia-o e a história demonstra-o: o homem hostil
ao Deus bom e criador, na obsessão de se “tornar como Ele”, converte-se num “Deus
perverso” e depravado em face dos seus semelhantes. Do politeísmo destas
contrafiguras narcisistas do “Deus perverso”, que dimana do pecado desde a origem,
nada pode vir de bom para a pacífica convivência entre os homens.

4. A responsabilidade atribuída à nossa fé


15. Nesta nossa exposição permaneceremos fiéis aos limites indicados da nossa
posição, que visa a ilustração do sentido autêntico da confissão cristã do único Deus.
Nós, teólogos cristãos, estamos, por outro lado, conscientes de termos efectivamente
realizado, com todos os crentes, um longo caminho histórico de escuta da Palavra e do
Espírito para purificar a fé cristã de toda a ambígua contaminação com as potências do
conflito e da sujeição. E estamos muitos conscientes da nossa obrigação constante de
apelar para a mais escrupulosa vigilância em face do perigo sempre recorrente, que a
degradação da paixão da fé no espírito de domínio representa para o autêntico
testemunho evangélico[4]. A conversão não é apenas uma decisão inicial, é um estilo
de vida. Mas podemos testemunhar, com toda a firmeza e humildade necessária, que a
radical advertência perante o uso despótico e violento da religião pertence de um modo
ímpar e absoluto ao núcleo originário da revelação de Jesus Cristo: e representa um
dos seus aspectos mais inauditos e emocionantes, na história da expectativa da
manifestação pessoal de Deus e da experiência religiosa da humanidade. A confissão
do facto de que o único Deus, Pai de todos os homens, se deixa histórica e
definitivamente reconhecer justamente na unidade do supremo mandamento do amor,
a cujo respeito os próprios discípulos do Senhor aceitam ser julgados, ilumina a
autêntica fé no Único Deus que pretendemos professar. Ela anuncia e pratica com
todas as suas forças a unidade de origem, de caminho e de destinação do género
humano, em vista da redenção e da consumação oferecidas por Deus. Toda a visão do
mundo que exclui esta suprema unidade do mandamento – apresente-se como religião
ou como irreligião – é invenção dos homens. E nada salva. É, sem dúvida, tarefa e
incumbência do cristianismo tornar rigoroso e credível o seu testemunho desta verdade
salvífica do Único Deus. É a propósito deste núcleo da revelação do Filho, hoje mais do
que nunca essencial, que desejamos confirmar a fé. E é à esperança que daí promana
para a reconciliação dos homens, apesar da interessada hostilidade das potências
mundanas, que desejamos restituir pensamento e confiança.

16. A oposição da revelação de Jesus ao perfil de uma religião que induz separação e
aviltação entre os seres humanos é um traço profundo da originalidade da fé cristã, que
aqui queremos explicitar. Ele representa um tema de anúncio decisivo, para a
esperança em Deus da humanidade inteira. E é um princípio de incomensurável
alcance para a redenção de uma religião que queira ser “pura e sem mancha” (Tg 1,
27). A Lei, mesmo a mais santa, e a Profecia, mesmo a mais elevada, não bastam para
combater a degradação de uma religião que se afasta da adoração de Deus “em
Espírito e verdade” (Jo 4, 24). A pureza da religião, e da sua justiça, vem da fé em
Jesus Cristo. “O sábado é para o homem”, não para si próprio (Mc 2, 27). E a profecia
mais exaltante “nada vale sem o amor” (1 Cor 13, 2).
17. A unidade indissolúvel do mandamento evangélico do amor de Deus e do próximo
estabelece e afere o grau de autenticidade da religião. Em toda a religião. E também
em todo o pretenso humanismo, religioso ou não religioso. Os Evangelhos apresentam
Jesus Cristo na unicidade da Sua relação pessoal com o Pai. N’Ele reconhecemos
Deus, que se torna visível, justamente no momento em que contemplamos a perfeição
do homem que corresponde intimamente à relação com Deus. Na sua paixão e
ressurreição Jesus traz a redenção do pecado, restituindo ao homem, de modo não
revogável e não superável – o acesso do amor de Deus. O autêntico anúncio de Cristo,
a partir da narrativa evangélica da sua manifestação, é uma chave fundamental para a
discussão hodierna sobre o monoteísmo e as suas falsas interpretações.

18. Na tradição da Igreja o princípio desta verdade cristológica de Deus nunca se


perdeu, com o risco de pôr o cristianismo em contradição entre a sua práxis histórica e
a sua autêntica inspiração, para estimular – não sem a dolorosa passagem pelo
escândalo de práticas deformadas – a sua renovada conversão à pureza do seu
fundamento. Consideremos também, honestamente, que o reconhecimento desta
contradição originou, na época actual da Igreja, um salto irreversível de qualidade, na
doutrina e na praxis, que agora é inseparável do futuro do cristianismo e também do
ideal de uma religião autêntica. Por esse motivo, como teólogos cristãos e católicos,
pensamos que este aprofundamento representa uma real oportunidade de
repensamento da ideia de religião. É-o para as culturas seculares do Ocidente,
tentadas pelo repúdio do cristianismo, e da religião, à custa da resignação ao niilismo.
Sê-lo-á também para as religiões no mundo, de novo tentadas pelo fechamento sobre
si próprias, e até atravessadas por horríveis presságios de guerra.

CAPÍTULO II
A INICIATIVA DE DEUS NO CAMINHO DOS HOMENS

1. A aliança com Deus, destinada a todos os povos

19. O monoteísmo, em sentido estrito, que representa um elemento essencial da


religião de Israel entre as antigas religiões, definiu-se, na realidade, no termo de um
longo processo histórico. Em termos teológicos, apresenta-se como fruto de uma
revelação progressiva. Historicamente, o culto das tribos israelitas a JHWH, o Deus
salvador que faz sair da escravidão do Egipto, parece ter convivido com outras formas
de culto (Js 24, 16-24). Com o tempo, impôs-se gradualmente a forte exigência de uma
“monolatria”, em correspondência com o “privilégio” que se deve conceder, em relação
a qualquer outra figura divina, ao culto do Deus da libertação e da especial aliança com
o povo de Israel. Embora o nome de JHWH seja conhecido e usado no período que
antecede o Êxodo, Ele surge identificado com o “Deus pessoal de Israel” à luz da
conexão entre os dois grandes acontecimentos fundadores da identidade teológica de
Israel: a promessa feita a Abraão (Gn 12, 2-3.15) e a libertação do Êxodo (Ex 19-20).
Por outras palavras, Israel conhece JHWH como Salvador do povo ainda antes de o
reconhecer como Criador do mundo. O princípio desse conhecimento é a libertação de
Israel da escravidão. Neste sentido, o Deus da Aliança espera, da parte do povo que
Ele fez nascer e renascer, uma relação exclusiva de pertença e de amor: “Eu serei o
teu Deus e tu serás o meu povo” (Ex 6, 6; Jr 31, 33). A existência de outros deuses,
que são próprios de cada um dos outros povos não é por isso automaticamente
negada. Israel, pelo que lhe diz respeito, está absolutamente certo de que a sua
existência, a sua salvação, o seu futuro dependem exclusivamente de JHWH. “Todos
os povos marcham cada um em nome do seu deus; quanto a nós, caminhamos apenas
em nome de JHWH, o nosso Deus, exclusivamente e para sempre” (Mq 4, 5). Daí a
afirmação da consciência de ter de reservar para JHWH um culto exclusivo. Esta
exigência está claramente expressa em Dt 5,6-9: “Eu sou JHWH, o teu Deus, que te fez
sair do país do Egipto, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás imagens esculpidas de nada que se assemelhe ao que está no alto dos
céus, ou debaixo da terra, ou nas águas. Não te prostrarás diante desses deuses e não
os servirás. Porque eu, JHWH, o teu Deus, sou um Deus ciumento” (cf. ainda Ex 20, 3-
5).

20. Graças à experiência do exílio, Israel compreende que JHWH, o seu Deus, lhe está
de algum modo – e em toda a parte – próximo. A sua presença e a sua acção salvífica
não estão limitadas a uma lugar determinado (a Terra prometida ou o Templo), mas
são verdadeiramente universais. Esta ampliação corresponde ao emergir da doutrina
da criação. O grande mistério, que progressivamente vem à luz, é justamente a
percepção do facto de que o Deus de Abraão e do Êxodo é aquele que “no princípio...
criou o céu e a terra” (Gn 1,1). No horizonte desta abertura (o Deus dos Pais e do
Êxodo é o Senhor de todo o criado) Deus é Aquele que está destinado a ser conhecido
– e reconhecido – pelos povos da terra como Deus da salvação para todos os homens.
Israel compreende também que JHWH não se assemelha em nada aos deuses “das
nações” . Estes surgem como deuses impotentes para dar a salvação: também àqueles
que neles confiam: “Iludem-se, enganam-se os que transportam os seus deuses de
madeira e rezam a um deus que não pode salvá-los. [...] (Is 45, 20b-22): cf. 1 Sm 5, 2-
5; 1 Rs 18, 33-35). No termo desta lenta maturação, o Deutero-Isaías pode pregar o
monoteísmo rigoroso que confessa e professa a unicidade absoluta de Deus e, por
conseguinte, nega a existência dos outros deuses: “Assim fala JHWH, Deus de Israel,
JHWH Sabaoth, o seu redentor: Eu sou o primeiro e o último e além de mim não existe
outro Deus. Haverá um deus além de mim? [...] (Is 44, 6.8) Baruch exorta
repetidamente o povo a não ter medo dos ídolos e a não ceder à sua sedução: “não
tenhas medo, não são deuses” (Br 6, 14.22.28.64). O Livro da Sabedoria completa o
processo, desvelando a origem puramente humana dos ídolos e dos falsos deuses: “Os
ídolos não existiam na origem e jamais existirão; a superficialidade dos homens é que
os fez entrar no mundo (Sb 14, 13-14). JHWH foi sempre, e para sempre permanecerá
o único Deus.

21. A unicidade de Deus, criador do mundo, adquire o seu sentido “absoluto”


contextualmente na abertura do sentido “universal” da sua oferta de salvação. Quanto
mais se afirma o carácter “exclusivo” do laço de Deus com o antigo Israel, testemunha
eleita do seu poder e do seu amor, tanto mais se acentua a destinação “universal” da
sua aliança com a criatura. O fio desta destinação da revelação estava já entrelaçado
com a antiga promessa feita a Abraão, no seio da qual “todas as nações da terra”
estavam já abençoadas (Gn 12, 3); e resplandecia já no arco-íris, que selava
simbolicamente a promessa feita a Noé, a favor de todas as criaturas da terra (Gn 9, 8),
até se tornar o motivo dominante de uma verdadeira e genuína “escatologia da
aliança”, que abre o tempo da expectação. Quando o povo, testemunha de Deus,
receber um “coração novo” (Jr 31, 31s; Ez 16, 59), ao monte do Senhor “virão muitos
povos”, pedindo ao “Deus de Jacob” que lhes indique e acompanhe os seus caminhos
(Is 2, 3). Por fim, a grande profecia de Israel abre – e indica-nos – o horizonte do pleno
afirmar-se da unicidade de Deus no cenário (messiânico, escatológico, apocalíptico) de
uma definitiva conciliação entre os homens (cf. Is 66, 18-21). Quando Deus for
reconhecido, entre todas as gentes, como o criador poderoso, o justo juiz e o salvador
misericordioso de todos os homens, “ um povo já não levantará a espada contra outro
povo” (Is 2, 4). Segundo Ezequiel, no “dia do Senhor”, todos “os habitantes das cidades
de Israel sairão a queimar e a entregar às chamas as armas, os broquéis e os escudos,
os arcos e as flechas, as lanças e os dardos; com tudo isso farão lume durante sete
anos” e já não terão de ir procurar lenha nos campos e nos bosques (Ez 39, 9-10; cf. Sl
46, 8-10). Por último, o rei-messias do profeta Zacarias, que realizará o nome-símbolo
de Jerusalém, será um rei de paz: “Ele é justo e vitorioso; vem, humilde, montado num
jumento, sobre um jumentinho, filho de uma jumenta. Exterminará os carros de guerra
da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será quebrado.
Proclamará a paz para as nações” (Zc 9, 9-10). O esplendoroso senhorio do único
Deus que acompanha Israel (Is 9, 1) abriu caminho ao longo da história mediante laços
de amor que fizeram nascer um povo como testemunha a partir “do nada” (Is 41, 14),
por meio do qual envolve na sua bênção todos os povos da terra (Is 65, 18-24). A
grande atestação desta decisiva abertura encontra-se no Deus do Deutero-Isaías, com
a sua impressionante antecipação do Servo de JHWH que leva a justiça a todos os
povos (Is 42, 1-4), até aos confins da terra (Is 49, 6b). E não sem passar pela prova do
martírio (Is 50, 4-9; 52, 13-53, 12).
22. A fé bíblica da aliança de Deus com o antigo Israel atesta, por fim, a singular
escolha de Deus, criador e Senhor de todas as coisas: a de se dar a conhecer a todos
os homens mediante a longa e quotidiana frequentação de um pequeno grupo humano,
chamado a habitar, dia após dia, o caminho da justiça que reconcilia o ser humano com
a vida de Deus. A fidelidade exclusiva reivindicada à testemunha desta revelação do
Deus Único está destinada a fazer crescer na história a adesão da mente e o abandono
do coração ao amor do único Deus.

23. Na sua exploração do mistério da Igreja, o Concílio Vaticano II empenhou-se no


aprofundamento da relação da Igreja com o povo de Israel, através da referência
explícita à tradição de Abraão como “início” da revelação do Deus único. A Declaração
sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs recorda “o vínculo com que o
povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à estirpe de Abraão”[5]. O valor
desta realização singular da história salvífica do antigo Israel, na sua relação com a
história dos povos e de toda a família humana, esteve sempre muito presente à
consciência cristã. De modo exemplar, podemos mencionar duas grandes aberturas:
Paulo, com a sua apaixonada teologia da vocação de Israel e com a sua audaz
interpretação do ágnostos theós (o “deus desconhecido”) no Areópago de Atenas (cf.
Act 17, 28); os Padres da Igreja com a sua fiel guarda do sentido permanente e pleno
das Escrituras bíblicas, e com a sua luminosa teologia das “sementes da Palavra de
Deus” reconhecíveis no mundo e na história[6]. Tal convicção, apoiada pela fé bíblica,
não deixa de embater na experiência universal. Todas as grandes elaborações do
pensamento deram incessantemente voz à busca do infinito, do absoluto, do mistério
da origem e do enigma do destino. Não conhecemos, até agora, nenhuma civilização
que tenha nascido e crescido fora desta característica dimensão do espírito, que é a
busca de Deus.

2. Discernimento cristão da antiga revelação

24. A revelação de Deus, na formação do antigo Israel, abriu caminho no cenário das
tensões, dos conflitos e até dos excessos violentos, que acompanham a história de
todos os povos em demanda do seu destino histórico. A revelação, por outro lado,
conhece igualmente todos os íntimos matizes e os tons fortes do amor, da amizade, do
cuidado materno e até do eros passional.

25. De qualquer modo, o discernimento revela-se necessário também para a teologia


cristã, por causa do valor de revelação autêntica que ela reconhece e concede às
antigas Escrituras bíblicas. Comecemos por lembrar que a sumária oposição entre um
Deus perverso “da ira e da guerra” e um Deus bom “do amor e do perdão”, tomada
como chave hermenêutica discriminatória entre a revelação judaica (a repudiar) e a
evangélica (a acolher), foi rejeitada desde os inícios da era cristã[7]. Foi sobretudo
recusada, com firme determinação, a oposição radical entre um Deus mau do Antigo
Testamento e um Deus bom do Novo Testamento. A rejeição – firme e imediata – deste
dualismo surge de certo modo até como surpreendente, tendo em conta a aparente
vantagem apologética que teria podido representar: quer para se libertar das
incómodas páginas da “violência de Deus” que fazem parte da Bíblia, quer para
marcar, em termos aparentemente resolutivos, a diferença da “nova religião”
relativamente ao judaísmo. Com efeito, é sobretudo surpreendente que esta
simplificação grosseira continue ainda hoje a ser utilizada no seio de certa apologética
popular (e até na alta cultura).

26. As Sagradas Escrituras contêm, sem dúvida, páginas que permanecem também
para nós, crentes, muito perturbantes e muito difíceis de decifrar. Alguns exemplos:
Deus castiga o género humano com o dilúvio (Gn 6-7) e destrói Sodoma e Gomorra
com o fogo. Deus inflige uma série de duras punições ao Egipto, que culminam com a
morte dos seus primogénitos e com a aniquilação dos seus guerreiros (Ex 7-13). No
período da conquista da Terra prometida ouvimos, mais vezes, ressoar a ordem de
extermínio (anátema) de exércitos e de cidades inteiras (cf. Gn 6, 21; 8, 22-25; 1 Sm
15, 3). As formas de violência sacrificial, no contexto das guerras de conquista, surgem
também como promessas feitas a Deus em vista do seu apoio para a vitória. O
extermínio que se segue à vitória e a conquista é decerto uma prática sacrificial
praticada também pelos outros povos. Como ainda os sacrifícios humanos
propiciatórios, que estão presentes na própria história do antigo Israel (Lv 20, 2-5; 2 Rs
16, 3; 21, 6). Atesta-o justamente o facto de que, no último período profético, estas
práticas, que a mesma releitura deuteronómica denuncia como típicas de Canaã (Dt
12, 31), são duramente condenadas (Mq 6, 6-8; Jr 19, 4-6).

27. As formas da violência que coimplicam directa ou indirectamente Deus, nas


Escrituras bíblicas, são um tema complexo que se analisa com cuidado já no plano
histórico-literário. A reescrita teológica dos acontecimentos, que visa acentuar a
presença e o juízo de Deus na história, utiliza formas de “reconfiguração” narrativa,
mais livres do que as nossas, para relatar a revelação da vontade divina nos sinais da
história e nos projectos do povo. Noutros casos, os estereótipos da “prova”, da “cólera”
ou do “juízo” de Deus sobre a fé do homem realçam o apelo à conversão e à fidelidade.
Para a plena decifração teológica do tema da violência sagrada nas páginas bíblicas a
reflexão teológica recorre tradicionalmente a dois critérios. Por um lado, a tradição
teológica sublinha o carácter pedagógico da revelação histórica que deve abrir caminho
num contexto de recepção duro e tribal, muito diferente daquele que plasma a nossa
sensibilidade actual. Por outro lado, põe em relevo a historicidade da elaboração da fé
atestada nas escrituras bíblicas, assinalando a evidência de uma dinâmica evolutiva
dos modos em que a violência é representada e julgada: na perspectiva da sua
progressiva superação, do ponto de vista da fé no Deus da criação, da aliança, da
salvação. Estas linhas de clarificação contêm decerto, em termos gerais, um discurso
de verdade. Por um lado, como o próprio Jesus recorda, também os intérpretes mais
autorizados da palavra de Deus – a começar pelo próprio Moisés (Mc 10, 1-12) –
permaneceram inevitavelmente condicionados por um quadro antropológico e cultural
profundamente entrosado com o ethos – para nós insuportavelmente violento – de uma
concepção arcaica-sacral da honra e do sacrifício, do conflito e da represália, da guerra
e da conquista. Por outro lado, uma correcta hermenêutica histórica e teológica tem
necessariamente em conta os estereótipos culturais e linguísticos das narrativas de
revelação. A própria releitura bíblica das tradições, no seio das Sagradas Escrituras,
reconfigura e discerne o significado teológico contido na história do testemunho,
indicando claramente um processo de purificação da fé na Palavra de Deus. A obra da
reconfiguração da memória, através do trabalho redaccional e da reelaboração
retrospectiva da experiência, orientam o sentido da revelação para a sua síntese
completa. E é a partir desse ponto que se deve indicar o sentido do processo inteiro.
Nós próprios assimilamos, cada vez com maior clareza, à luz do evento de Jesus Cristo
e da iluminação que o Espírito não cessa de oferecer à Igreja, a diferença que se deve
reconhecer entre a autêntica doutrina da Palavra de Deus e os estereótipos linguísticos
e culturais do mito, da cosmologia e da antropologia, da ética e da política, da
religiosidade popular e do senso comum, em que – inevitavelmente – estes
estereótipos transmitem, simplificando-a, a consciência da presença e da acção de
Deus na história.

28. O sentido postremo da aliança de Deus com o antigo povo continua a ser a
revelação da sua misericórdia e da sua justiça. Pense-se, por exemplo, no inspirado
repensar da tradição deuteronomista acerca do sentido e da má compreensão da
aliança com Deus, mais associada à qualidade da fé do que ao formalismo da lei; ou no
contributo da tradição Profética em vista da crítica da auto-exaltação da instituição
político-religiosa, que prejudica o primado da fé e a busca da justiça de Deus; ou ainda
na imensa releitura da antiga experiência de Deus e da história de Israel, que a
tradição da Sabedoria indaga na óptica da “aliança originária” de Deus com a vida do
homem inscrita na constituição do “mundo criado”: abrem para o confronto da Palavra
de Deus com a beleza e com o drama da universal condição humana.

Ao longo deste eixo, pode facilmente definir-se e reconhecer-se a centralidade da


mensagem bíblica acerca do mistério do amor de Deus: que aceita fazer-se interlocutor
do homem para o restituir à sua liberdade e tornar-lhe apreciável e valiosa a sua
justiça. É impossível esquivar-se ao poder de Deus e à sua justiça: isto sabe-o cada
religião. Deus quer ser livremente apreciado e responsavelmente correspondido: quer
ser amado no livre dom de si, não de imediato como um poder inelutável do destino. O
modo como o homem recebe a manifestação do seu poder e do seu amor faz parte da
revelação. A fé em que ela é recebida e transmitida fala inevitavelmente na linguagem
e nas imagens dos homens, à qual é impossível conter em perfeita transparência a
verdade última do laço de amor e do pode em Deus. Persiste o facto de que a
originalidade da Palavra de Deus, que herdamos das Sagradas Escrituras da revelação
bíblica, deixa uma herança essencial e não equívoca. A palavra derradeira sobre a
verdade do mistério de Deus na história do homem há-de deixar-se e confiar-se ao
poder do amor. O crente bíblico sabe que não erra quando assim retoma a sua fé:
mesmo quando não é capaz de decifrar pontualmente as palavras e os sinais.

29. De resto, o amor do poder nunca foi sequer a primeira palavra de Deus. Pelo
contrário, foi a palavra da tentação e do delírio de omnipotência do primeiro Adão, que
removeu a evidência da criação e contaminou para sempre – mas não de modo
insuperável – a linguagem da humana teo-logia. Escreve S. Paulo: “Pois, embora
vivamos numa natureza frágil, não lutamos por motivos humanos (en sarki 2 Cor 10, 3).
As armas do nosso combate não são de origem humana (kata sarka, 2 Cor 10, 4), mas,
por Deus, são capazes de destruir fortalezas. Destruímos os sofismas e toda a altivez
que se levanta contra o conhecimento de Deus e cativamos todo o pensamento para o
conduzir à obediência a Cristo” (2 Cor 10, 3-5). Numa passagem como esta (e outras
afins: cf. Ef 6, 10-17) está bem documentada a definitiva conquista de uma mudança de
linguagem que decide a interpretação cristológica do conflito que põe em causa a
religião. Esta viragem é, de resto, como que prefigurada pelo fruto maduro da antiga
profecia. A cena do drama é doravante toda a história do pecado no mundo: por meio
do qual as potências malignas que nos dominam obscurecem a justiça de Deus,
derramando o sangue dos homens e alimentando hostilidades entre os povos. A luta
pela verdade de Deus contra a incredulidade dos homens e o pecado do mundo
consiste no próprio acto do anúncio do amor, que muda a realidade da história
mediante o testemunho vivido da fé. A resposta da fé à violência humana liberta-se
assim do equívoco de uma violência religiosa que pretende antecipar o juízo
escatológico de Deus. Por outras palavras, não pode tornar-se – sem se contradizer
gravemente – guerra de religião entre os homens e violência homicida em nome da fé.

30. Não estavam, por isso, tão longe do justo juízo os Pais da nossa fé quando se
empenhavam – embora com algum excesso da alegoria – a interpretar, na “figura” dos
antigos incitamentos divinos à luta contra os inimigos, a “verdade” escatológica do
apoio de Deus na luta contra as potências do mal, que importunam e asssediam a paz
com Deus e entre os homens[8]. Vale a pena, no entanto, completar estas reflexões
com algumas ulteriores precisões que sugerem também necessários aprofundamentos.

3. Praticar o amor, observar a justiça

31. A evolução moderna da diferença entre religião e política – decerto propiciada pela
cultura do cristianismo – é igualmente um processo de maturação hermenêutica no
interior da leitura da revelação. Apesar de tudo, a enigmática palavra de Jesus acerca
do Reino “que sofre violência”, e no qual se entra com um “acto de força” (cf. Mt 11,
12), adverte-nos sobre o facto de que o amor permanece exposto à violência. No fim de
contas, seria também preciso afastar-se da aparente sensatez de uma cultura que
censura toda a paixão pela sua justiça como propensão à violência. As palavras da fé
bíblica, que se deixam instruir pelas metáforas do “ciúme” de Deus pelo seu povo (de
certo modo retomadas pelo “zelo” da casa de Deus a que alude o gesto simbólico de
Jesus, cf. Jo 2, 17; cf. Sl 69, 9), não devem esvaziar-se de todo o significado. Por
último, a sua hermenêutica mais comovente pode captar-se no seio da própria Bíblia,
no instrutivo diálogo entre Deus e Abraão (Gn 18, 18-22), que intercede por um povo
que nem sequer é o seu; ou entre Deus e Moisés (Ex 32, 32), que rejeita a oferta de
ser separado do povo rebelde.

32. O amor autêntico não se confunde, pois, com a falta de coragem, nem se aponta
como irresponsável ingenuidade de todo ignara da dialéctica do Espírito e da força. As
narrativas de vocação, como as de Abraão (Gn 12, 1-3), Moisés (Ex 3, 1-10) e
Jeremias (Jr 1, 4-10), instruem-nos do modo mais eloquente acerca do perfil “forte” das
histórias de amor do crente com Deus, a favor dos homens. A dialéctica da obediência
e da liberdade que empenha a testemunha é uma dramática séria, e de alto perfil, na
lógica do amor de Deus. Por fim, muitas parábolas do Reino, e igualmente as
representações simbólicas da escatologia neotestamentária, recordam-nos que,
embora tenhamos de deixar à justiça de Deus a derrota da violência pecaminosa do
homem contra o homem, o juízo e a vitória do amor de Deus se apresentam também
sempre no horizonte de um acto do testemunho que resiste, com a força do Espírito, à
injustiça da história: confirmando a irrevogável consumação e realização da justiça de
Deus. O amor – que, até ao último dia, abre o caminho da conversão e da misericórdia,
à custa da sua própria vida – mantém assim a sua promessa para o povo das Bem-
aventuranças disseminadas entre as gentes. E abre, com o seu poder, o lugar e o
tempo do resgate e da protecção de Deus para as vítimas da violência prevaricadora
(Ap 21). O seu abandono julgará os povos (Mt 25).

33. Uma justiça de Deus sem amor ressoa sempre como uma condenação inevitável
para o homem pecador. Sê-lo-ia também uma promessa do amor de Deus sem a
resolutiva eficácia da sua justiça, que abriga definitivamente a vítima das potências
mundanas pela violência que sofreu[9]. A nossa cultura corre, sem dúvida, o grave
risco de uma drástica separação entre o amor e a razão, e também entre o amor e a
justiça. Esta dupla separação alimenta-se de uma retórica muito sedutora, que se
arrisca a legitimar o esmagamento do outro como a tendência perfeitamente natural da
afirmação de si. E induz ainda, por outro lado, uma grave confusão entre a não-
violência do amor e o abandono do outro à injustiça.
34. O primado teologal do amor, que desvaloriza radicalmente a violência religiosa (da
qual essencialmente aqui falamos), não é uma alternativa – mais ainda, é um
encorajamento – à busca de boas políticas do direito e da justiça (das quais aqui não
nos ocupamos[10]). A difusão de uma certa cultura radical conduz à suspeita frente a
toda a figura da autoridade e da lei consideradas como formas mascaradas de
perversão e manipulação, sempre inaceitáveis. O correspondente simétrico a este
fundamentalismo crítico é uma retórica sentimental do amor que se subtrai a todo o
juízo ético e a todo o empenhamento sério com a justiça. Esta dupla simplificação é de
fácil conquista demagógica e alimenta um conformismo da liberdade hostil a toda a
responsabilidade e a toda a vinculação. Incrementa decerto o nível de tolerância e de
resignação perante a violência difundida, que aumenta o risco de todos.

35. O nosso empenhamento específico, como crentes, continua a ser, acima de tudo, o
de invocar o Espírito e a força essenciais ao anúncio da justiça do amor de Deus:
detendo o ressentimento da injustiça e aceitando o risco do testemunho[11]. A firmeza
da oposição religiosa à violência deve recusar – precisamente enquanto tal – a
justificação teológica de toda a forma de perversão. Nesta fase histórica, a evidência
desta contraposição torna-se um factor de primeiro plano para o discernimento acerca
da qualidade da experiência religiosa.

4. A fé no Filho, contra a inimizade entre os homens

36. A tradição da fé bíblica, de acordo com a sua vocação originária, abre o horizonte
da salvação de Deus para todos os homens. É este o tema fundamental sobre o qual a
fé cristã instaura o seu diálogo com todas as épocas. O sentido autêntico desta
abertura é selado no evangelho do Filho Crucificado que torna para sempre
contraditória a violência entre os homens “em nome de Deus”. O próprio cristianismo,
em virtude da palavra e da acção de Deus que continuamente o incita e solicita, é
reconduzido sempre de novo à fidelidade deste significado da verdadeira fé no Deus
único. A oposição da fé ao ódio religioso encontra a sua força no testemunho da sua
derrota em Jesus crucificado (1 Cor 2, 2). A história da salvação brota da iniciativa de
Deus para o homem. O próprio Deus torna possível o nosso encontro com Ele. A
própria fé faz parte do dom. Na disposição ao testemunho, a fé cristã anuncia o Senhor
Jesus Cristo a cada homem. Desta fé ninguém é “senhor” (2 Cor 1, 24), e todos os
discípulos são “servos” (Lc 17, 10). A tendência para transformar a graça da eleição em
privilégio étnico ou preconceito sectário deve ser combatida e vencida.

37. O cristianismo explicitou o sentido universal da relação de reconciliação que, na


morte de Jesus, se estabelece entre Deus e a história do homem[12]. Todos são
pecadores (Rm 5, 12), todos se devem deixar reconciliar com Deus (2 Cor 5, 20).
Quando nós próprios éramos “seus inimigos” (Rm 5, 10), o Filho morreu pelo pecado
de todos, para que todos fossem libertos do pecado (Rm 8, 32; 1 Cor 15, 3).

38. O crente cristão, ao preservar a fé nesta revelação, aceita entrar no mistério do


Corpo de Cristo: no qual a inimizade entre os homens é combatida e vencida no
sacrifício de si. O discípulo deve estar pronto a honrar o seu apelo, completando “o que
falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 24). De facto, é à
plenitude do único Deus naquele único Corpo que a Igreja vai buscar o seu caminho, a
sua vida, a sua verdade. Na morte de Jesus Cristo torna-se definitivamente claro que a
luta não é entre os povos: pela supremacia de uma etnia sobre a outra, de uma cultura
sobre a outra, de uma religião sobre a outra. A nossa luta, na realidade, “não é contra
os seres humanos…, mas contra os Principados, as Autoridades, os Dominadores
deste mundo de trevas, e contra os espíritos do mal que estão nos céus” (Ef 6, 12). E
oportunamente o Apóstolo conclui: “Mantende-vos, portanto, firmes, tendo cingido os
vossos rins com a verdade, vestido a couraça da justiça e calçado os pés com a
prontidão para anunciar o Evangelho da paz” (6, 14-15). O povo testemunha edifica-se
a partir de todas as nações, na fé em Jesus Cristo: ou seja, segundo o Espírito, e não
segundo a carne. Na ekklesia tou theou Deus fez doravante “dos dois” – o povo da
aliança e as nações da terra – “um só povo”. Doravante, quem está unido a Deus em
Jesus Cristo não está separado de ninguém. Na sua carne, por meio da cruz, Jesus
destruiu em si mesmo toda a separação do homem em relação a Deus. Deste modo,
derrubou o muro da inimizade entre os herdeiros da promessa de Deus e todos
aqueles a quem a promessa da salvação está destinada, graças ao Cristo de Deus
crucificado (cf. Ef 2, 14-16). Sobre este ponto, que é crucial para a relação entre
monoteísmo e messianismo, a tradução paulina da prática e da pregação de Jesus é
transparente. O acesso à salvação do único Deus já não sofre excepções de pessoa
segundo a carne (a proveniência, a cultura, a história).

39. Na esteira desta revelação, o cristianismo mantém firme a sua convicção da


possibilidade, para cada homem, de encontrar Deus[13]. Em virtude do evento de
Jesus Cristo, cada homem que crê na justiça de Deus e pratica a justiça entre os
homens, pode encontrar a salvação, seja qual for o povo ou a nação a que pertence
(Act 10, 34-36). O discípulo de Cristo – a Igreja – confirma a amizade de Deus, que se
revelou na carne do Filho, a quem desejar adorar Deus em espírito e verdade.

40. Persiste o facto de que a impensável excedência cristológica da aliança de Deus


com o homem, que conflui na encarnação de Deus num homem, por amor do homem,
surge também como um excesso da graça difícil de acolher, no seio de um
pensamento elevado e rigoroso da transcendência de Deus. Nós próprios, com o olhar
fixo em Jesus e em humilde frequentação do testemunho dos discípulos, devemos
cada dia interceptar a voz do Pai e a instrução do Espírito: para por Ele sermos
apoiados na confissão da inaudita verdade de Jesus como Senhor da história e Filho
eterno (cf. Mt 17, 5). Sem ferir e lesar de algum modo o pensamento da unidade e da
unicidade de Deus, que as tradições religiosas crescidas na senda da fé de Abraão
pretendem justamente preservar.

41. A abertura do pensamento trinitário de Deus, em que se desdobra a revelação da


intimidade do Filho com o Pai, que a nós se comunica no Espírito, pode de muitos
modos ser mal interpretada como uma degradação virtualmente politeísta da unicidade
de Deus. Não só o Judaísmo, mas sobretudo o Islão, porfia e insiste neste mal-
entendido, considerando-o, de certo modo, insuperável. Apresentam ainda esta reserva
muitas filosofias religiosas seriamente empenhadas no pensamento do absoluto divino.
Longe de subvalorizar a seriedade deste risco, a teologia cristã não ignora ter chegado
a noções essenciais para um autêntico pensamento do ser divino, a partir de uma
tradição filosófica que se mostrou particularmente hospitaleira e acolhedora da
concepção da transcendência e da unidade (unicidade) de Deus radicalmente
pressuposta pela tradição do monoteísmo bíblico. A teologia cristã pode, por seu turno,
recordar também que a formação da doutrina sobre Deus, nos primeiros séculos da era
cristã, esteve particularmente empenhada no aprofundado e escrupuloso exame das
possíveis más interpretações do pensamento “trinitário”: justamente com o fito de
excluir a corrupção da fé na unidade/unicidade de Deus.

42. A encarnação do Filho e a missão do Espírito revelam o mistério último da unidade


de Deus como amor. Na relação Deus “não se perde”, precisamente porque Deus “se
encontra” na relação. A clarificação da confissão cristã no Deus único, tornada
particularmente necessária no contexto da actual discussão com as ideias filosóficas
sobre Deus e as tradições religiosas do monoteísmo, sugere, pois, a continuação e o
prosseguimento da nossa reflexão.

CAPÍTULO III
DEUS, PARA NOS SALVAR DA VIOLÊNCIA

1. Deus Pai salva-nos pela Cruz do Filho

43. O Deus único é, em primeiro lugar, Pai de todos os homens. A palavra da antiga
profecia já o prefigura: “Porventura, não temos nós todos um único pai? Não foi o
mesmo Deus que nos criou? Por que razão, pois, somos nós pérfidos uns para com os
outros, profanando a aliança de nossos pais?” (Ml 2, 10). Mediante o envio do Filho na
carne e por meio do dom do Espírito, esta paternidade de Deus Pai estende-se a todos
os homens, cuja salvação Ele deseja (cf. 1 Tm 2, 4), na aliança definitivamente selada
pela encarnação e pela Páscoa do Senhor. “Mas, quando chegou a plenitude do
tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei,
para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a
adopção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito
do seu Filho, que clama: "Abbá! - Pai!” (Gl 4, 4-6; cf. Rm 8, 15).

44. A revelação trinitária do Deus único está intrinsecamente ligada à oferta, feita a
todos os homens[14], de serem redimidos no mistério pascal de Jesus Cristo, a fim de
participarem na relação filial de Jesus perante o Pai, por meio do dom do Espírito
Santo, e poderem ser acolhidos entre os membros da única Igreja de Cristo, que reúne
e congrega os filhos de Deus “desde Abel” – como diziam os antigos Padres da fé[15] –
até “ao mais pequenino” entre todos aqueles que aguardam o regresso do Senhor no
fim dos tempos.

45. No seu sacrifício pascal, o Filho, Cristo Jesus, tomou literalmente sobre si a
violência do pecado e o sofrimento dos homens. “Ele levou os nossos pecados no seu
corpo, para que, mortos para o pecado, vivamos para a justiça: pelas suas chagas
fostes curados” (1 Pe 2, 24-25). A violência é o fruto do homem pecador e atinge o
próprio Deus: não na sua divindade, mas nos dons do seu amor. Atinge-o no coração
da paz que Ele quer entre os homens, atinge-o no próprio corpo do Filho. A antiga
doutrina cristã, com assombro e admiração, proclamou solenemente a impressão desta
revelação, que leva além do limite do pensável a antiga profecia do Servo sofredor do
Deutero-Isaías (52, 13-53, 12): “Aquele que foi crucificado na carne […] é um da
Trindade”[16]. Unus de Trinitate passus est. Na morte de Jesus, em que o próprio Filho
sofreu a violência do “pecado do mundo”, que corrompe toda a religião e obscurece
toda a compaixão, está de algum modo oculto – e por isso mesmo revelado – o
mistério da “salvação do mundo”. O nosso pecado e o nosso mal estão sepultados com
Cristo, a nossa cura e a nossa redenção ressurgem com Ele. Na sua morte e na sua
ressurreição, Ele rompe o círculo do nosso destino de criaturas mortais e abre o
caminho da nossa destinação à própria intimidade de Deus[17].

46. O acontecimento da Cruz, que manifesta a amor de Cristo pelo Pai e pelos seus
irmãos e irmãs (Rm 5, 5-8) até à consumação perfeita (Jo 13, 1), está no centro da boa
nova. O ingente acontecimento em que o Filho de Deus foi “foi ferido por causa dos
nossos crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades” (Is 53, 5), permanece
para todos os séculos. Como escreveu o beato John Henry Newman: “Não foi – não
podia ser – um simples acontecimento da história do mundo [...]. Se este desmesurado
evento foi aquilo que nós cremos, o que sabemos que foi, então deve permanecer
presente, apesar do seu ser passado: deve constituir um facto que deve permanecer
actual em todas as épocas”[18].
47. A tradição da fé, sobre o fundamento da revelação feita em Jesus e confiada aos
Apóstolos, reconheceu no acontecimento da “morte de Cristo”, ao mesmo tempo, a
trágica verdade do excesso do pecado, do qual só Deus nos pode salvar, e a exaltante
verdade do excesso da graça, em virtude do qual só Deus pode ir além do abismo do
mal, sem se deixar contaminar pelo”pecado do mundo” (cf. Jo 1, 29) e sem diminuir o
seu “amor pelo mundo” (cf. Jo 3, 16-17). É necessário, para a mesma fé cristã,
entender sempre de novo, e em profundidade, a revelação desta morte (cf. 1 Cor 2, 7-
8) que o cristianismo confessa como o fundamento da redenção que subtrai o género
humano à impotência perante a sua história de perdição (cf. Fl 2, 6-11). Falamos,
naturalmente, de uma compreensão que, de algum modo, pode aclarar o mistério da
liberdade de Deus do qual provém a encarnação redentora do Filho: mas trata-se
sempre de um acontecimento cujo mistério está oculto “com Cristo” em Deus (cf. Cl 3,
3; Ef 3, 8-12). E todavia, o mistério está inscrito na história de acontecimentos que “os
nossos olhos viram, os nossos ouvidos escutaram, as nossas mãos apalparam” (cf. 1
Jo 1, 1-3).

2. A superação da violência no Filho

48. Na perspectiva sintética da nossa reflexão, desejamos oferecer, antes de mais, nas
considerações que se seguem, uma chave útil de acesso à manifestação deste mistério
segundo a memória evangélica. Fazemo-lo atendendo directamente ao
aprofundamento do nexo entre revelação, religião e violência, que se deixa perceber no
gesto da auto-entrega de Jesus. No acto inaugural de tal entrega – no Jardim das
oliveiras – Jesus proíbe duramente aos discípulos análoga reacção violenta,
justamente enquanto os subtrai à forçada auto-implicação na sua condenação (“Jesus
disse a Pedro: Mete a espada na bainha. Não hei-de beber o cálice de amargura que o
Pai me ofereceu?”, Jo 18, 11). Eles próprios, quando chegar o momento de honrar a
livre obediência da fé, abandonar-se-ão às consequências do seu fiel testemunho
(“bebereis o meu cálice”, Mt 20, 23).

49. Jesus entrega-se a si mesmo e não os seus discípulos. Ao mesmo tempo, retira
espaço a uma alternativa igualmente dramática e aparentemente insuperável. Ou
redimensionar a altíssima pretensão da sua revelação, ou aceitar o conflito cruento
com a parte hostil. No primeiro caso, trata-se de renunciar à obediência da verdade
recebida do Abbá-Deus; no segundo, de aceitar a lógica da guerra religiosa. Em ambos
os casos o evangelho seria revogado. Jesus liberta-se do embaraço desta alternativa,
optando por pôr nas mãos de Deus o destino da sua revelação e confirmando a sua
irrevogável fidelidade ao evangelho da justiça de Deus: o qual “não quer a morte do
pecador, mas que se converta e viva” (Ez 18, 23-52; 33, 11). O Senhor Jesus, que
advertira os discípulos sobre aquilo que o Filho espera dos que decidem segui-Lo (“Se
alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”, Mt 16, 24),
na hora extrema do perigo põe-se no meio e afasta-os (“Jesus replicou-lhes: Já vos
disse que sou Eu. Se é a mim que buscais, então deixai estes ir embora”, Jo 18, 8). O
Filho, que tinha duramente desmascarado a parte violenta dos seus opositores
religiosos (“Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos
comunicou a verdade”, Jo 8, 40), no próprio momento da sua morte insta com o Pai
para suspender o juízo (“Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem”, Lc 23, 34).

50. Jesus anula radicalmente o conflito violento que ele próprio poderia encorajar, em
defesa da autêntica revelação de Deus. Confirma assim, de uma vez por todas e para
sempre, o sentido autêntico do seu testemunho relativamente à justiça do amor de
Deus. Esta justiça não se cumpre mediante a legitimação da violência homicida em
nome de Deus, mas por meio do amor crucificado do Filho a favor do homem (cf. Rm 8,
31-34)[19]. No gesto da entrega de si ao supremo sacrifício, que poupa o sangue dos
discípulos e dos opositores, refulge o poder radical do amor de Deus. “O centurião que
estava em frente dele, ao vê-lo expirar daquela maneira, disse: Verdadeiramente este
homem era Filho de Deus!”, Mc 15, 39).

51. Não há semelhança entre o poder do pecado e o da graça; não há afinidade entre a
obsessão do poder, que perverte também a religião, e a força da fé, que vence o
mundo; (1 Jo 5, 4; Jo 16, 33). Não só o poder redentor da graça supera a força
destrutiva do pecado, mas a sua eficácia opera sob um signo radicalmente diferente. O
pecado celebra o seu domínio aumentando o seu poder mundano com sacrifícios
humanos, a graça barra o caminho à multiplicação da violência: poupa o sangue do
outro, oferecendo-se a si mesma em sacrifício de amor. A verdade da revelação de
Deus é, em Jesus, subtraída ao imemorável dispositivo da represália em nome de
Deus. O evento cristológico falsifica – na raiz – todo o apelo à justificação religiosa da
violência, justamente ao querer impor a Deus que a confirme. O Filho, no seu amor
pelo Pai, atrai a violência sobre si, poupando amigos e inimigos (ou seja, todos os
homens). O Filho, que arrosta e vence a sua morte ignominiosa, preparada como
demonstração da sua impotência, aniquila num só acto o poder do pecado e a
justificação da violência. Por meio do Espírito podemos, por nossa vez, honrar o dom
recebido (cf. Ef 2, 18), realizando e completando em nós próprios “o que falta” à paixão
do Filho (Cl 1, 24).

52. A esta luz é possível compreender melhor também o sentido autêntico das fórmulas
em que a tradição da fé cristológica preservou a profundidade e o significado universal
do vínculo entre a morte do Senhor e a redenção do homem. A palavra do credo cristão
sobre o sangue do Filho que nos redime ilumina-se, na sua exactidão, mediante a
contemplação do gesto do Filho que evita o derramamento de sangue de uns contra os
outros.
53. A purificação das categorias religiosas tradicionais do sagrado, que se afirma nesta
revelação, encontra-se já inteiramente ilustrada por um dos mais antigos escritos da
sua tradição neotestamentária. A Carta aos Hebreus concentra-se no sacrifício de
Jesus, em virtude do qual Cristo se manifesta como o único e eterno Sumo-sacerdote.
Cristo entra no “Santo dos Santos” de uma vez por todas [...] com o seu próprio
sangue” (9, 12), oferece-se a si mesmo e carrega sobre si os pecados de todos (9, 28).
O sumo-sacerdote, aqui, oferece-se a si mesmo como vítima da violência dos homens.
O Cordeiro sacrificial, aqui, é o Inocente que responde à violência com a mansidão, ao
ódio com a bondade, à agressão com o perdão. Não busca vingança sobre os seus
agressores, antes oferece-se a si mesmo com “fortes gritos e lágrimas” (Heb 5, 7). O
coração trespassado do Filho vaza de si mesmo a violência que dá a morte,
transformando-a no dom total da vida (cf. Jo 19, 33-37). Estava escrito na antiga
profecia: “... Ele, o justo, justificará a muitos, porque carregou com o crime deles [...]
porque ele próprio entregou a sua vida à morte, e foi contado entre os pecadores,
tomando sobre si os pecados de muitos, e sofreu pelos culpados (Is 53, 11-12). É a
partir daqui que se há-de compreender literalmente o sentido da palavra cristã “agape”:
em nome de Deus, o verdadeiro crente oferece a Deus a sua vida (cf. Rm 12, 1).

3. A carne do homem, destinada à glória de Deus

54. O Ressuscitado, ingressado já na sua glória “à direita do Pai”, “pode agora salvar
perfeitamente os que por meio dele se aproximam de Deus” (Heb 7, 25). Mediante a
graça da adopção filial, os homens são no baptismo associados a Cristo morto e
ressuscitado (Rm 6, 1-12), incorporados em Cristo (cf. 1 Cor 12, 27) e obtêm na
esperança a herança da vida eterna (Tt 3, 7). Esta incorporação em Cristo é
conformação com Ele, na comunhão com os seus sofrimentos, para alcançar a sua
própria ressurreição (Fl 3, 10-11). As narrativas da instituição da Eucaristia põem
concordemente em evidência a passagem através da nova Páscoa do Senhor. “Fazei
isto em memória de mim” (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25). Jesus dá-se a si mesmo e, além
disso, torna sempre actual, para todos nós, o seu próprio dar-se. Este acontecimento
ilumina-se na perspectiva do evangelista S. João, que interpreta o realismo
sacramental da Eucaristia por meio do discurso de Jesus sobre o” pão da vida”: o pão
que Ele dá é a sua carne “para a vida do mundo” (Jo 6, 51). “Assim como o Pai que me
enviou vive e Eu vivo pelo Pai, também quem de verdade me come viverá por mim” (Jo
6, 57). O Filho encarnado recebeu do Pai, sem medida, o seu Espírito (cf. Jo 3, 34).
Desde o momento da sua concepção como homem no seio de Maria é o Cristo, o
Ungido do Espírito Santo (cf. Mt 1, 20: Lc 1, 35). No momento solene do Seu baptismo,
o Espírito Santo sela o seu destino como Messias e Servo[20]. E no mistério da sua
Ressurreição, a humanidade santa de Jesus Cristo, liberta de toda a violência, é
plenamente glorificada (Act. 3, 13). A plenitude de santidade, de conhecimento e de
amor de Deus que cumulam a alma humana de Jesus reflectem-se no seu corpo
ressuscitado, o qual compartilha já a glória divina para nos tornar participantes do seu
Espírito. “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em
vós, Ele, que ressuscitou Cristo de entre os mortos, também dará vida aos vossos
corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 11).

55. Em Jesus sentado à direita do Pai – donde nos é enviado o Espírito da vida nova –
a carne do homem mortal é transfigurada na vida bem-aventurada da Trindade. “Cristo,
ressuscitado de entre os mortos, já não morrerá; a morte não tem mais domínio sobre
Ele” (Rm 6, 9; cf. Act 13, 34). A sua vida “vive para Deus” (Rm 6, 10). Mediante a sua
Ascensão, Cristo é estabelecido “no trono celeste na sua qualidade de Deus e
Senhor... segundo Ef 4, 10”[21]. Elevado junto do Pai, na comunhão divina do Espírito
Santo, Cristo não perde a sua condição humana. Mais ainda, “ao ser o primeiro a entrar
no Reino, dá aos membros do seu Corpo a esperança de se unirem a Ele”[22]. O laço
entre Deus e o homem em Jesus Cristo – posto à prova pela violência infligida “em
nome de Deus” – permanece irrevogável e sai vitorioso da prova. Selado com sangue,
ele põe – “em nome de Deus” – um limite insuperável à violência, a favor de toda a
história humana. A contradição entre os dois sinais opostos do “nome de Deus” fica
definitivamente ligada à história. Não há filosofia que consiga remediar a nossa
milenária impotência de amor, nem religião que consiga conceber esta desmesura do
amor de Deus (cf. Ef 1, 18-21). E nós próprios, que reconhecemos este mistério oculto
em Deus desde o início da criação do mundo (cf. Ef 3, 5-12), não podemos reconhecer
a verdade desta conciliação de Deus, querer a sua realização em nós, excepto na
graça do Espírito, que nos guia e leva a compreender a sua manifestação em Jesus
crucificado e apoia a nossa comunhão com o Senhor ressuscitado.

56. A fé no Deus-Trindade, que se pode iluminar inteiramente a partir do acontecimento


cristológico da redenção do homem e da comunhão com Deus (cf. 2 Cor 13, 13), é
portanto radicalmente inclusiva da reconciliação do homem com Deus e em Deus. O
agir de Deus que nos liberta do mal e da violência encontra o seu fundamento no ser
trinitário de Deus. Para a fé cristã, a doutrina da libertação e da salvação dos homens
sobrepõe-se exactamente com a doutrina do Deus-Trindade.

57. A acção de Deus no mundo e na história dos homens (a “economia divina”) é a


nossa única via de acesso ao mistério de Deus-Trindade. Não há duas economias:
uma especial e privilegiada para os cristãos, e outra mais vaga e genérica para os não
cristãos. Há uma só oikonomia em que a salvação é oferecida a todos os homens nos
mistérios da carne de Cristo Jesus e do dom do Espírito que ensina a dizer Abbá-Deus.
“O fim último de toda a economia divina é o ingresso das criaturas na unidade perfeita
da Bem-aventurada Trindade”[23]. Mediante o amor de Deus que nos amou primeiro (1
Jo 4, 19) ou seja, por meio do Espírito Santo (cf. Rm 5, 5) que faz de nós filhos de
Deus virados para o Deus-Abbá (Rm 8, 15), a verdadeira vida realiza-se desde agora
no amor fraterno: “Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos
os irmãos” (1 Jo 3, 14). Aqui se revela plenamente a vocação dos homens ao
seguimento de Cristo: participar na própria vida da Trindade, viver de Deus e em Deus
(cf. 1 Jo 3, 24; 4, 13.16), no próprio vínculo que Jesus, o Filho, instituiu com cada
homem na sua própria carne mediante a sua encarnação[24].

58. Só podemos manter firme a verdade deste mistério da condescendência evangélica


de Deus, que nos liberta da aparente necessidade de salvar a nossa vida destruindo a
vida do outro, invocando – nós próprios – a graça de podermos crer firmemente na
justiça do amor de Jesus Cristo. Sem esta graça, não podemos conciliar-nos
interiormente, com a “altura e a profundidade, a extensão e a largueza” deste
irrevogável nexo do amor de Deus e do próximo. Por fim, não podemos conferir
realidade à feliz realização que uma vida liberta do mal e da morte, a não ser no Filho,
que conferiu realidade a esta destinação da nossa vida.

59. No mistério trinitário de Deus há “lugar” e “duração” para a vida eterna da criatura
(“Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, como teria dito Eu que
vos vou preparar um lugar? E quando Eu tiver ido e vos tiver preparado lugar, virei
novamente e hei-de levar-vos para junto de mim, a fim de que, onde Eu estou, vós
estejais também” (Jo 14, 2-4). Na guarda da palavra e dos gestos do Senhor (Lc 2,19),
na fidelidade à entrega da sua paixão redentora (Jo 19, 25-27), na continuidade da
graça e do testemunho do Filho até ao regresso do Senhor, a comunidade dos
discípulos não pode deixar de reconhecer a presença e a acção da Mãe de Jesus.
Maria inaugurou – de um modo único e irrepetível – a forma acolhedora do Corpo de
Cristo, que é a Igreja[25]. Por meio da sua Assunção ao céu vive – alma e corpo – na
glória da Santíssima Trindade. Na oração incessante pelos membros do Corpo do Filho
sobre a terra, entre inumeráveis perigos e tentações, acompanha-os rumo à união final
na vida da Trindade. A maternidade de Maria é a própria forma do seu vínculo especial
com Deus, que a fé justa e audazmente formula com o título de “Mãe de Deus”. A
passagem do Filho Unigénito, que se fez homem, através desta geração revela um
traço da co-implicação de Deus com a forma humana do “vir ao mundo”, que deveria
inspirar ainda mais profundamente o pensamento humano da intimidade de Deus e da
sua afeição pelos filhos do homem. Desta inspiração, a Mãe do Senhor é a referência
insubstituível e a fonte inesgotável (cf. Jo 2, 1-11).

4. A esperança dos povos, a fé da Igreja

60. A encarnação redentora do Filho introduz na história religiosa do homem uma


transformação de incalculável alcance. A fórmula popular da catequese sintetiza, de um
modo feliz, a tradição cristã, quando indica os mistérios principais da fé: unidade e
trindade de Deus, Pai, Filho e Espírito; encarnação, paixão, morte e ressurreição de
Jesus Cristo e efusão do Espírito Santo.

61. A iluminação e o poder transformador da semente evangélica, no plano da história


colectiva da sociedade e da cultura (como também da própria religião) destinam-se,
porém, a produzir o seu fruto em conexão com a maturação da consciência histórica,
ou seja, em cada época, em relação com as condições do terreno. O ensinamento da
famosa parábola do semeador, proposta e pormenorizadamente explicada por Jesus
aos seus (Mt 13, 1-23; Mc 4, 1-20; Lc 8, 4-15) vale ainda para a história colectiva dos
povos e das épocas. Em seguida, a solene promessa do envio do Espírito Santo, que
“o Pai mandará em meu nome” e que “vos ensinará todas as coisas, recordando-vos
tudo o que eu disse” (Jo 14, 25-26), indica claramente um horizonte para toda a história
da fé, em que a preservação da memória, a escuta do Espírito e o progresso da
inteligência são incessantes.

62. Hoje, graças à nova visibilidade mediática dos acontecimentos e à rapidez da


comunicação global, impõe-se com inédita força também a evidência das manipulações
da religião, que são instrumentalmente dirigidas ao conflito de civilização e ao ódio
étnico. A imensa massa dos homens religiosos, que se identificam com a qualidade
espiritual e o apoio moral do seu credo religioso e do seu respeito do divino, sofre o
envilecimento – e, amiúde, os efeitos devastadores – do incitamento religioso à
violência. E milhões de homens e mulheres, filhos e filhas, aos quais a violência
anticristã retira, muitas vezes, a palavra e a representação, reconhecem na busca dos
caminhos de Deus e na necessidade de reconciliação com Deus, um motivo supremo
de ligação entre os homens. O aprofundamento desta nítida evidência faz ainda
sobressair mais o apelo que ela objectivamente dirige ao testemunho cristão do
especial nexo do amor de Deus e do amor do próximo, que encontra em Jesus Cristo a
razão última da sua verdade e do seu adimplemento (cf. Jo 13, 34). Em particular, o
sofrimento e o envilecimento dos povos por causa da violência religiosa e anti-religiosa,
que hoje levanta de novo a cabeça no mundo globalizado, encontrarão motivo de
esperança e de redenção na nova vitalidade da forma eclesial da fé cristã[26].

63. Pela vitalidade e transparência da verdade de Deus, que é Pai de todos, a missão
cristã que aponta para a qualidade evangélica da forma eclesial, em que todas as
gentes estão persuasivamente representadas na comunhão da fé, é um verdadeiro
kairòs do Espírito, ou seja, o momento favorável para a proximidade de Deus em Jesus
Cristo. Nesta fase histórica, o cristianismo é posto – e exposto – como um ponto de
referência global e inequívoco para a denúncia da radical contradição de uma violência
entre os homens, exercida em nome de Deus. Enquanto tal, é chamado a purificar e a
fortalecer o seu ministério de reconciliação entre os homens: sejam eles religiosos ou
também não religiosos. Isto comporta verosimilmente algumas prioridades de
empenhamento, reflexivo e prático.

64. Em primeiro lugar, trata-se de ver no kairòs da irreversível despedida que o


cristianismo faz das ambiguidades da violência religiosa o traço de viragem epocal que
ele consegue objectivamente instituir, no actual universo globalizado. Semelhante
despedida, adequadamente argumentada em recinto de reflexão teológica e de
hermenêutica da tradição (que vai buscar ao seu tesouro “coisas novas e velhas” [cf.
Mt 13, 52]), há-de encarar-se como um florescimento da semente evangélica destinada
a dar fruto para a nova etapa da evangelização e do testemunho. A Igreja pode nela
reconhecer a graça de um discernimento que inaugura uma nova fase da história da
salvação que prossegue: uma graça de purificação e de transparência da novidade
cristológica de Deus; um passo em frente no caminho da actualização eclesial do
mistério da redenção que, em cada época, indica à obediência da Igreja inteira o
complemento “daquilo que falta”, da nossa parte, “à paixão de Cristo” (Col 1, 24). A
assimilação coerente desta graça comporta necessariamente o humilde
reconhecimento das muitas resistências, omissões e contradições que, de uma forma
culpada, impediram o acabamento desta maturação. O rigor da obediência da fé,
acompanhado pela humilde conversão do coração e pelo sincero reconhecimento do
pecado não é obstáculo, antes um apoio decisivo. A Palavra de Deus que vem a nós,
que nos chega das Sagradas Escrituras não nos deixa sem discernimento e sem apoio,
quando nos instrui – de mil modos – acerca das infidelidades do povo na aliança com
Deus e da vulnerabilidade e exposição dos discípulos à tentação e à traição do Senhor.

65. Semelhante despedida da Igreja da violência religiosa tem a força de uma semente
destinada a produzir especiais frutos na nossa época, ameaçada pelo refluxo de uma
concepção arcaico-sacral do ódio étnico-político. Destes frutos, com a assistência do
Espírito, devemos partilhar o entusiasmo e aprender a suportar os riscos. A superação
de toda a ambígua justificação religiosa da violência deverá elaborar com a máxima
determinação também a crítica da violência anti-religiosa. O apoio cultural e político
que a intimidação e a repressão anti-religiosa receberam, na época da modernidade
findada, assinalou um dos pontos de mais dolorosa contradição da época moderna. Há,
de resto, também excessos destruidores da razão secularizada, económica e política,
que os poderes do domínio financeiro e a potência da tecnocracia mediática podem
tornar devastadores.

66. A fé revelada do cristianismo introduz um fermento de viragem radical para a


concepção da religião e do humanismo, de modo indissoluvel. Esta fé é hoje chamada
a antecipar a época da expurgação definitiva do “nome de Deus” da sua profanação
mediante a justificação religiosa da violência. Na revelação trinitária, a reconciliação de
Deus com o género humano encontra o seu fundamento irrevogável e o seu princípio
transparente. “Graças à Economia, é-nos revelada a Teologia; mas, inversamente, é a
Teologia que ilumina toda a Economia. As obras de Deus revelam quem Ele é em si
mesmo; e, inversamente, o mistério do seu Ser íntimo ilumina a inteligência de todas as
suas obras”[27]. Desta fé brotam também ilustrações decisivas sobre as aberturas e os
pressentimentos da razão humana na demanda da verdade de Deus: às quais
desejamos agora dedicar alguma atenção.

CAPÍTULO IV
A FÉ EM FACE DA AMPLITUDE DA RAZÃO

1. A via do diálogo e o nó do ateísmo

67. O pensamento bíblico do Deus único deparou providencialmente com um processo


de purificação humana da ideia do divino que, no seio da filosofia antiga, estava
orientado para a unificação do divino num sentido afim ao monoteísmo. É
compreensível que o encontro da incipiente religião cristã com a teologia filosófica
racional tenha sido captado como uma oportunidade para o pensamento da fé.
Semelhante encontro com a filosofia abrira já caminho, em parte, na tradição judaica.
Em parte atravessará, também ao longo do tempo, a tradição islâmica. No espaço
deste confronto filosófico e interreligioso, prosseguido no seio da teologia e da cultura
ocidental, irrompeu, por fim, o ateísmo “moderno”, orientado primeiramente no sentido
anti-cristão.

68. Na época antiga e até à contemporaneidade, o ateísmo aparecera, em diversas


formas, como opção teórica de pensadores individuais, incapaz de determinar um
verdadeiro e genuíno sistema cultural alternativo, à aceitação religiosa e filosófica do
pensamento de Deus. Agora, pelo contrário, pela primeira vez na história, o ateísmo
constituiu-se como sistema cultural fundado na racionalidade humana. Esta orientação
esteve culturalmente associada ao rigor do procedimento racional do saber crítico, e à
emancipação humanista da pretensa alienação religiosa. Por outras palavras, a
orientação ideológica implantou na cultura actual, como se de um dado científico se
tratasse, a ideia de que “Deus” é uma invenção do homem: imaginação securizante e
apaziguadora perante o medo da morte e a impotência do desejo que, por fim, se
transformou num fantasma de um poder humilhante e opressivo do qual é necessário
libertar-se. Na esteira deste processo de desconstrução da ideia de Deus, orientam-se
muitas formas de agnosticismo, indiferentismo, relativismo, que denunciam como
ilusório – projectivo, e, por último, despótico – todo o pensamento da qualidade
espiritual e do sentido transcendente do humano. Muitas formas do reducionismo
antropológico, ideologicamente extraído das ciências da natureza, como também as
formas do laicismo político, que teorizam a remoção do pensamento religioso do
diálogo democrático da esfera pública, são manifestações extremas – e não raro
intolerantes – do empobrecimento do humanismo que acompanha o pensamento
niilista sobre Deus.

2. O confronto sobre a verdade da existência de Deus

69. Na verdade, a própria teologia cristã confrontou-se sempre criticamente com o


problema da possibilidade e do valor do pensamento humano sobre Deus: quer em
relação à teologia filosófica da cultura ocidental, quer perante as outras culturas
religiosas do mundo. Por outro lado, a fé permanece convencida de que a plena
verdade sobre Deus vai infinitamente além do que a razão humana pode aferir e
afirmar: neste sentido, a sua revelação supera a possibilidade da filosofia. Por este
motivo a teologia católica não renuncia a buscar o seu caminho acerca desta dupla
instância: a da harmonia da fé com os princípios da razão, por um lado e a da
ultrapassagem da filosofia por parte da fé. Na linguagem da tradição antiga, que hoje
se interpreta bem, para não suscitar mal-entendidos, a fé cristã era entendida também
como “verdadeira filosofia”. Pretendia-se assim aludir à síntese e não à alternativa
desses dois pólos: a fé cristã superava a filosofia elaborada pelo homem, enquanto se
empenhava em honrar a consonância da verdade recebida na revelação com a
verdade buscada na filosofia. A distinção fundamental do cristianismo, como obra de
Deus, e da filosofia, como obra do homem, permanecia, de qualquer forma, muito
sólida e, no entanto, o carácter marcadamente sapiencial e moral e o carácter espiritual
e existencial do exercício filosófico antigo, favorecia a percepção de uma certa analogia
e a plausibilidade do confronto com a atitude religiosa. Seja como for, a polaridade de
fé e razão está presente desde o início da teologia cristã. S. Paulo afirma claramente
que Deus manifestou o seu poder à nossa inteligência nas suas obras (ao ponto de a
recusa de reconhecê-Lo não conseguir argumentar a sua justificação; cf. Rm 1, 18-25).
Por outro lado, revela-se igualmente decisivo, ao afirmar que a revelação salvífica de
Deus, centrada no Crucificado, surge como loucura aos olhos da sabedoria humana: e
todavia, ela revela uma sabedoria infinitamente mais profunda (cf. 1 Cor 1, 21-25).

70. Recordemos agora, por simples acenos, os elementos essenciais do pensamento


de referência comum, no seio da tradição católica, acerca da distinção e da correlação
entre a “cognoscibilidade” filosófica de Deus e a inteligência “teológica” da sua
revelação. S. Tomás de Aquino, a propósito dos papéis respectivos da filosofia e da
teologia, elaborou uma teoria destinada a tornar-se clássica. No seu modelo de
solução, é inconcebível uma verdadeira contradição entre o que ensinam a fé e a
razão, visto que os princípios da razão – tal como a verdade revelada – também
derivam do único Deus. Mais ainda, S. Tomás sente-se impelido a afirmar a
necessidade de um conhecimento das criaturas sempre mais aprofundado, justamente
em função do mais rigoroso conhecimento de Deus. Semelhante necessidade depende
do facto de que “o erro nas coisas criadas induz ao erro nas coisas divinas”[28]. O
conhecimento das criaturas diversifica-se, sem dúvida, em relação ao modo de acesso:
na teologia elas são conhecidas no seu nexo com Deus e a partir da revelação, ao
passo que na filosofia são conhecidas por si mesmas e interrogadas quanto à
possibilidade de, em si mesmas, nos conduzirem a um certo conhecimento de Deus.

Na linha do modelo aperfeiçoado por S. Tomás, a filosofia pode aceder ao


conhecimento da existência de Deus e de algumas perfeições de Deus (como a sua
unicidade, a sua providência, o seu carácter pessoal). Embora não seja capaz de
conhecer o que deriva estritamente da revelação (como a Trindade), a filosofia pode
ajudar a pensar o que foi recebido por revelação e a rejeitar as objecções que se
movem contra a possibilidade de a fé ser pensada[29]. É igualmente verdade que, no
âmbito de algumas verdades importantes para a vida do homem, acessíveis em si à
filosofia, a fé oferece o apoio de uma confirmação mais directa, de uma certeza mais
profunda, aberta a um mais amplo número de pessoas. A fé não brota, pois, de um
simples conhecimento intelectual, mas de uma escolha na qual incide a orientação do
desejo: este desejo não desempenha automaticamente um papel de perturbação do
conhecimento intelectual, mas de per si ajuda-o e acompanha-o com muita eficácia.

71. A Constituição Dei Filius do Concílio Vaticano I rejeitará igualmente os excessos do


racionalismo e do fideísmo, e define a possibilidade de um conhecimento de Deus
mediante a razão, que permaneça aberto ao salto qualitativo e quantitativo da
revelação. Embora se afirme que o conhecimento da existência de Deus mediante a
razão é possível, isso não significa que este resultado seja fácil. Por um lado, exige-se
a cada homem, desde agora, a responsabilidade da decisão. Por outro, o seu alcance
existencial é determinado pelas orientações do desejo, plasmadas pelas condições
ambientais e pelo contexto cultural. A incidência destes factores é, claro está, um tema
de discernimento necessário: não só para a clarificação racional da fé, mas ainda para
a compreensão crítica do ateísmo. Neste sentido se expressara já Pio XII, antes do
Concílio Vaticano II: “As verdades que concernem a Deus e às relações entre os
homens e a Deus transcendem inteiramente a ordem das coisas sensíveis; quando, em
seguida, se fazem entrar na prática da vida e a enformam, então exigem sacrifício e
abnegação. [...] Acontece que os homens nestas coisas de bom grado se persuadem
de que é falso, ou pelo menos duvidoso, o que eles não querem que seja
verdadeiro”[30].

72. O Concílio Vaticano II intima o apuramento do Vaticano I [31], e atribui aos próprios
crentes uma especial responsabilidade pela origem do declínio do desejo de Deus que
alimenta também o ateísmo. «Nesta génese do ateísmo, os crentes podem ter uma
parte não irrelevante, na medida em que pelo descuido da sua educação na fé, ou por
causa de enganadoras apresentações da doutrina, como também por causa das
debilidades da sua vida religiosa, moral e social, acabam realmente por velar – mais do
que revelar – o autêntico rosto de Deus e da religião»[32]. Um dos grandes obstáculos
à credibilidade da fé – sobretudo após as «guerras de religião» – é justamente a
violência religiosa: “Se quiserdes assemelhar-vos a Jesus Cristo, sede mártires e não
carniceiros”[33]. A reacção ao grave equívoco que se seguiu a este género de conflitos
(embora não exclusivamente ligados ao dissídio religioso) foi formulada com nitidez na
Declaração sobre a liberdade religiosa [34]. Neste documento, o Concílio denuncia a
contradição inscrita na relação da verdade com a violência, que a crítica filosófica
vigorosamente realçou e reencontra no próprio núcleo do ensinamento evangélico o
motivo de um nítido distanciamento relativamente a toda a contaminação equívoca da
lógica da fé com a do domínio. «Cristo, de facto, nosso Mestre e Senhor, doce e
humilde de coração, convidou e atraiu os seus discípulos com paciência [...]. Deu
testemunho da verdade, mas não a impôs pela força àqueles que o contradiziam. O
seu Reino, na verdade, não se guarda com a espada, mas afirma-se com a escuta da
verdade e por meio do testemunho»[35]. O papa João Paulo II completou esta
Declaração na celebração de 12 de Março de 2000, quando pediu perdão por todas as
culpas com que os cristãos se mancharam na qualidade de membros da Igreja[36].

3. A crítica da religião e o naturalismo ateu

73. O debate acerca da existência de Deus é hoje fortemente estimulado pelo êxito de
publicações de explícita propaganda do ateísmo. Os filósofos teístas – e, naturalmente,
os filósofos cristãos – contrapõem muitos argumentos. Em primeiro lugar, a própria
existência do mundo que não pode encontrar em si mesmo a razão da sua existência.
Em seguida, a evidência da organização que torna possível a existência e a vida do
mundo reclama inegavelmente o pensamento de uma inteligência ordenadora. A
evidência da ordem, na verdade, deve argumentar-se de modo não ideológico e
determinista, para não entrar em contradição com a compreensão da liberdade e da
casualidade dos acontecimentos; e também – ao invés – a fim de evitar a construção
de um sistema da fatalidade e da necessidade do mal. Neste âmbito, importa sobretudo
ter todo o cuidado de seleccionar e escolher os inumeráveis equívocos que brotam –
em ambas as frentes – da pura e simples confusão dos métodos e das linguagens:
entre o plano da análise científica do dado e o da elaboração filosófica da experiência.
Mas não existe, com tudo isto, nenhuma razão que obrigue a renunciar à experiência
da admiração e do assombro que a própria existência das coisas e a maravilhosa
organização da natureza suscitam na mente do homem. Logo que a questão ideológica
– seja ela constrição da ciência, seja constrição da filosofia – cede o lugar à
honestidade intelectual do saber, esta admiração surge como uma constante da
experiência do cientista e do filósofo. Esta admiração é também sempre o efeito
repetido do conhecimento: que se aprofunda, em ambos os domínios da razão,
encontrando sempre novas correspondências na realidade. A inteligibilidade do mundo
surge verdadeiramente como inesgotável: e a experiência desta inteligibilidade
confirma que a nossa espontânea confiança na capacidade do mundo de corresponder
à racionalidade do homem é bem fundada.

74. A eliminação de Deus, estabelecida com base numa razão «naturalista», associa-
se hoje, amiúde, à dissolução «biológica» da liberdade humana. Nesta perspectiva, o
nosso cérebro construiu para si o pensamento de Deus por razões ligadas a um
determinado estádio evolutivo: em função do governo da complexidade, para
compensar a inevitabilidade da frustração, como dispositivo de neutralização da morte.
Com argumentos análogos é esvaziada a experiência espiritual da liberdade e a
intencionalidade ética da consciência. A refutação deste reducionismo, que pretenda
honrar a atestação universalmente difundida do homem moral – no direito e na arte,
nos afectos e na espiritualidade – não deve limitar-se a «sobrepor» ao mundo natural
um mundo «espiritual». Não existe, para a tradição cristã, um saber da realidade
“naturalmente” ateu, ao qual se pode eventualmente acrescentar a convicção de uma
realidade «espiritual» que não existe na natureza. Trata-se antes de mostrar como, ao
testemunho religioso da existência de Deus, corresponde uma experiência da realidade
do homem aliás inominável e inexplicável. A remoção desta atestação espiritual e
religiosa do mundo empobrece todo o plano de realidade em que sempre se viveu e
vive o ser humano. Neste sentido pode dizer-se que a renúncia a pensar a questão de
Deus é “uma abdicação da inteligência humana que, deste modo, renuncia
simplesmente a pensar, a buscar uma solução para os seus problemas”[37].

75. A ideia de Deus não é inata, no sentido de um saber conceptualmente


preconstituído em relação à experiência do homem. No entanto, a disposição para o
reconhecimento de Deus traz à consciência uma presença que, precedendo-a, a
acompanha. Nesta perspectiva, o sentido religioso do homem, como também a
existência efectiva das religiões, permanecem temas essenciais para a elaboração
cultural da doutrina católica sobre Deus e a realidade. A noção pre-metafísica, ou pre-
filosófica, de que Deus não é, de facto, irrelevante para a inteligência realista da
experiência religiosa. O pensamento racional sobre Deus, como realidade que está no
início e no fim de todas as coisas, ilumina a experiência pre-crítica, elaborando o seu
horizonte de verdade[38]. A conexão entre a experiência religiosa universal e a
demonstração filosófica da existência de Deus confere densidade e consistência ao
pensamento que tematiza e assere o realismo do Ser divino: irredutível a ideia ou a
coisa que se deixa construir pela mente ou constatar pelos sentidos; mas nem por isso
reconduzível à projecção do sujeito ou à alucinação do desejo. O disseminado mal-
entendido das célebres “vias tomistas” em que se articula a coerência racional do
pensamento da existência de Deus surgiu também por causa da extrapolação
intelectualista desse percurso demonstrativo, que acabou por separá-lo do seu nexo
com o conhecimennto de Deus, embora natural e confuso, que é próprio do sentido
humano da vida. O poder da realidade de Deus solicita a razão e suscita a liberdade do
homem.

4. O empenhamento da razão: o mundo criado, o Logos de Deus

76. A ordem que se faz perceber e achar pela razão precede sempre aquela que a
razão tenta aplicar. E mais ainda, torna-a possível. Não há nada de mais emocionante
do que este reconhecimento, na aventura do conhecimento. No fim de contas, perante
a hodierna «crise ecológica», podemos ainda reconhecer-nos na acutilante observação
de S. Tomás de Aquino, que já considerara digna do máximo assombro a misteriosa
ordem das correspondências que estabelece afinidades reconhecíveis nos elementos
do criado. As realidades individuais do mundo criado não são capazes de fixar, apenas
com base na sua constituição interna, as compatibilidades e as congruências do
conjunto[39]. O hiato entre a limitação intrínseca e a sua auto-organização, e a lógica
unitária do todo em que se inscrevem, excede a nossa capacidade de decifrar a sua
chave derradeira. Este hiato e, respectivamente este excesso, podem interpretar-se
como um indício do mistério da criação de Deus: que não se deixa inteiramente
obscurecer ou aniquilar pela experiência da desordem e do mal. O mal leva-nos a
tomar consciência justamente da nossa incapacidade de dominar e de recompor
perfeitamente a relação do universo com os seus próprios elementos e com a nossa
existência.

77. “Quando nos interrogamos: ‘Porque cremos em Deus?’, a primeira resposta é a da


nossa fé [...]. No entanto, esta fé num Deus que se revela encontra apoio nas
argumentações da nossa inteligência”[40]. Por outro lado, é verdade que afirmar a
existência de Deus como causa do Universo deixa em aberto numerosas questões.
Quem é este Deus? Que incidência tem ele, concretamente, na minha vida? Que quer
de mim? Que faz por mim? Os cristãos argumentam e tematizam estas perguntas, no
horizonte partilhado da reflexão filosófica, também para mostrar a coerência do
ensinamento da fé com a interrogação do homem acerca do sentido. Este dinamismo
do nosso humano interrogar impõe uma abordagem mais rigorosa e precisa àquilo que
a fé realmente pensa, elaborando as condições da sua humana inteligibilidade. Não
basta, por exemplo, afirmar simplesmente que Deus é único. Trata-se de compreender
em que sentido se entende esta afirmação: há que estabelecer, pois, como Deus é
único, e o que isso significa para a sua relação com o mundo e com os homens. A
tarefa eclesial da teologia inclui, sem dúvida, o empenhamento intelectual desta
clarificação.
5. Transcendência divina e relações no e com o Deus único

78. Deus é único: não há outros deuses. E Deus é uno em si mesmo: nele não há
divisão. Nesta parte conclusiva, traçaremos as linhas da exposição cristã da absoluta
simplicidade de Deus. Justamente em referência a tal simplicidade, entendida de modo
correcto, há que ressaltar o sentido cristão da união de Deus com as criaturas a que
ele quis ligar-se. A clarificação da gramática essencial desta correlação pode ajudar
hoje, e muito, a clarificação de um certo mal-entendido, filosófico e também religioso,
devido à suspeita de que a ênfase cristã na encarnação de Deus, como também a
relação trinitária na vida de Deus, tenham lugar à custa da perda da pureza e da
transcendência, da perfeita simplicidade de Deus. A nossa afirmação fundamental é,
pois, esta: a pureza da unicidade de Deus não deve perder-se. E, todavia, a fé cristã na
criação do mundo e na encarnação do Filho pode receber-se e acolher-se como uma
confirmação e não como uma lesão do pensamento da unidade de Deus.

79. Os grandes pensadores cristãos, perante as várias doutrinas filosóficas e religiosas,


sublinharam vigorosamente que Deus não apresenta os diversos tipos de composição
que encontramos nas coisas criadas. Tudo o que existe em Deus é o próprio Deus.
Como Santo Agostinho formulou, no contexto da fé trinitária, Deus “é o que ele tem”
(quod habet hoc est)[41]. O reconhecimento da simplicidade de Deus, no cristianismo,
não é, pois, o simples substrato de uma tradição filosófica: é o fruto do pensamento
rigoroso da unicidade e da unidade do Deus Trindade. A simplicidade de Deus torna
compreensível o sentido autêntico da doutrina trinitária. Na Summa Theologiae de S.
Tomás de Aquino, a simplicidade é o primeiro dos atributos divinos que aparece
examinado: dele depende a coerência de todos os outros atributos de Deus e a
correcta inteligência do próprio mistério trinitário. Prolongando a afirmação agostiniana,
S. Tomás explica que não só Deus “é aquilo que tem”, mas afirma que “aquilo que
Deus é” (a sua “natureza” ou “essência”) se identifica com a sua existência (o seu acto
de ser)[42]. Neste sentido, não existe categoria nem conceito que possa abraçar do
mesmo modo, ou como numa única realidade, Deus e as criaturas: Deus não está
contido num “género” que o poria ao mesmo nível das criaturas. Daqui deriva o
pensamento irrenunciável da incompreensibilidade radical de Deus, juntamente com a
necessidade (e a possibilidade) de recorrer à analogia para falar de Deus, sem violar a
sua incomparável singularidade em relação a todo e qualquer outro possível termo de
conhecimento. Por outro lado, permanece bem firme o facto de que, quando Deus age
(criação, providência, salvação), não entra em composição com o mundo. Deus
persiste essencialmente distinto de tudo o que não é Deus, e existe sem qualquer
divisão em si mesmo.

80. A fé trinitária não altera esta unidade de Deus, pelo contrário, manifesta a sua
impensável e insondável profundidade. O Pai, o Filho, o Espírito Santo são o Deus
“uno”, porque “são” a mesma essência (ou substância) divina. Neste sentido, a fé cristã
professa justamente uma “Trindade consubstancial”[43]. A riqueza e a profundidade da
unidade trinitária foram expressas de modo eficaz pela noção de “pericorese”, que João
Damasceno desenvolveu, indo buscar a sua perspectiva à palavra do Senhor: “Eu
estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14, 10-11). A pericorese das três hipóstases, ou
seja, as pessoas divinas entendidas por Tomás de Aquino como “relações
subsistentes”, põe em relevo a sua perfeita consubstancialidade juntamente com a sua
distinção pessoal. Portanto, as três pessoas são “um só Deus” e não “três deuses”.
Uma é, de facto, a essência, uma a divindade, uma a eternidade de Deus. Sobre esta
base, é possível também definir melhor as relações que Deus entretém com o mundo:
“o Pai e o Filho amam-se a si mesmos e a nós pelo Espírito Santo”[44]. Deus não está
“fechado em si mesmo”: pelo contrário, justamente a partir do seu ser comunhão
dispõe-se à criação do mundo, ao exercício da sua providência, à intimidade da sua
presença nas criaturas. A sua criatura é o seu interlocutor por puro amor, não à força.

81. O monoteísmo bíblico é a raiz desta perspectiva, porquanto nos põe diante de um
Deus que se revela com sabedoria e amor, que fala e escuta, que envia os seus
mensageiros e os seus profetas, que se apresenta “em pessoa” na encarnação do
Filho e no envio do Espírito Santo. A tradição bíblica afirma que Deus criou todas as
coisas na sua sabedoria e no seu amor (Pr 3, 19; Sb 7, 22; 11, 24-26). Ao reconhecer
que Deus criou todas as coisas na sua Sabedoria, afirma-se que Ele não produziu o
mundo por uma necessidade da natureza. De igual modo, quando dizemos que Deus
criou por amor, pretendemos afirmar que Ele não criou o mundo e o homem por
qualquer razão estranha à sua intenção. Fê-lo, pelo contrário, para comunicar a sua
bondade: ou seja, com afecto inteiramente livre e gratuito. Poderia, este Deus, ser
hostil aos homens? A omnipotência de Deus será uma ameaça para a autonomia do
homem? A suspeita sugerida pela serpente da origem, segundo a narrativa bíblica (cf.
Gn 3, 4-5), é insidiosa, mas desprovida de fundamento. A fé na omnipotência de Deus,
que resiste ao mal, é justamente aquilo que nos protege destes fantasmas angustiantes
e persecutórios. «Tu tens compaixão de todos, pois tudo podes» (Sb 11, 21-23). Na
bela fórmula litúrgica «Abençoe-vos Deus todo-poderoso» já está tudo dito, com a
simplicidade do essencial.

82. Deus, ao criar o homem à sua imagem e semelhança, inteligente e livre, constituiu-
o como interlocutor e aliado no adimplemento e ultimação da criação. Deus instaura
uma relação em que o homem é convocado na dignidade do seu ser singular e livre.
Para este Deus pessoal pode o homem virar-se pessoalmente. A criatura humana
surge, pois, constituída na faculdade de reconhecer e amar Deus, em virtude da sua
capacidade pessoal de amar e de ser amada, e não apenas porque constrangida a
sofrer e a suportar a lei despótica do ser mais forte ou a pulsão de sujeição do ser
inferior. Não tem nada a ver com a escravidão do sagrado primordial (as forças
ingovernáveis da natureza), e a sujeição às divindades míticas (as potências
despóticas da política). Os crentes hão-de ser capazes de defender com firmeza e
ilustrar adequadamente esta diferença radical, que os acusadores pós-modernos da
unidade e da unicidade do divino ignoram com demasiada facilidade.

83. A elaboração coerente da radical simplicidade do ser divino ilumina a profundidade


da relação que co-implica Deus e o homem segundo a revelação. Explicitemo-lo com
brevidade, exemplificando. Na sua pura e simples perfeição, Deus não deve entrar em
competição com as criaturas. Pelo contrário, na sua bondade e sabedoria, Ele
concedeu às criaturas a “dignidade de ser causa” (dignitas causalitatis) [45]: Faz que a
criatura participe na sua ilimitada capacidade de fazer-ser[46]. Deus – é esta a
explicação – dá às criaturas a existência, o poder de agir e a própria acção (“É Deus
quem, segundo o seu desígnio, opera em vós o querer e o agir” (Fl 2, 13). Deus actua,
por isso, em todo o agir das suas criaturas, mas não actua como uma causa entre as
outras. Na formulação clássica, Deus age como “causa primeira” e transcendente. As
criaturas exercem a acção que lhes é própria – no caso do homem, uma acção
inteligente e livre – como “causas segundas”, associadas à acção de Deus[47].

84. A fecundidade deste modelo integrado – filosófico e teológico – de clarificação da fé


no Deus revelado surge particularmente eficaz também no âmbito de temas que
concernem directamente aos aspectos fundamentais da experiência religiosa, como,
por exemplo, o da oração que “pede a Deus”. A oração, sob este aspecto, surge como
uma realização alta e sugestiva desta estrutura fundamental da relação entre Deus e o
homem, no âmbito de uma disposição afectiva particularmente intensa do vínculo. A
oração surge, de facto, como uma realização eminente da “dignidade do ser-causa”
que nos foi concedida por Deus. A oração que dirigimos a Deus não tem, decerto, a
finalidade de “o informar” sobre uma necessidade nossa ou um desejo de bem que Ele
“ignora”; nem, por outro lado, se pode imaginar “forçar” a Sua vontade de bem, com o
propósito de fazê-la mudar. A verdade é que a nossa oração, justamente ao afundar as
suas raízes na nossa fé no amor de Deus, pode compreender-se muito bem como uma
colaboração real na acção do amor de Deus que realiza o bem: em nós, para nós e
connosco. Por outras palavras, “Rezamos para pedir o que Deus dispôs que seja
levado a cabo pelas orações”[48].

CAPÍTULO V
OS FILHOS DE DEUS DISPERSOS E REUNIDOS

1. A dignidade do ser humano individual e o liame dos muitos


85. Criado à imagem de Deus em Cristo (cf. Gn 1, 26-27 à luz de Cl 1, 15-17; 1 Cor 8,
6; Jo 1, 1-3.10; Hb 1, 1-2.10; Rm 5, 14)[49] o homem é pessoa e relação,
individualidade e comunhão. A fé monoteísta apoia e sustenta o valor da unicidade e
da unidade de cada pessoa humana. Ao estabelecer cada pessoa singular em relação
directa com o Deus único, seu criador e destinação última da sua vida, e ao pedir ao
crente para amar este Deus único “com todo o seu coração, a sua alma, as suas
forças” (Dt 6, 5), o monoteísmo favorece uma ética da unificação da pessoa humana,
do mesmo modo que sustenta a sua relacionalidade constitutiva. Ambas as dimensões
da experiência concreta do homem – pessoa e comunidade – se exigem numa unidade
que é dom divino e não produto das nossas forças[50]. O enfraquecimento, na cultural
actual, do fundamento cristológico e trinitário da criação do homem teve evidentes
recaídas também na antropologia: a cultura actual surge imbuída de uma difusa
incapacidade de articular os aspectos constitutivos do humano. O pensamento
antropológico empenhado em dar razão das qualidades humanas mais elevadas – em
termos de “sensibilidade” e “espiritualidade”, de “criatividade” e “transcendência” – não
é considerado apenas pobre: é até acusado de ser abstracto e sentimental, ideológico
e não científico. A remoção de um pensamento elevado da origem e do destino do
homem, que interpreta os temas da sua experiência partilhada, pode reconhecer-se
como a raiz da difusão de um agnosticismo resignado e niilista, que esvazia as novas
gerações de forças e energia. Os efeitos deste declínio humanístico põem em causa a
visão cristã do homem. O Concílio Vaticano II restituiu grandeza de visão à
interpretação cristã da dignidade do homem, indicando abertamente, na verdade
cristológica de Deus, o princípio da sua redenção: “só no mistério do Verbo encarnado
encontra verdadeira luz o mistério do homem [...] Cristo, que é o novo Adão,
justamente ao revelar os mistérios do Pai e do seu amor, desvela também plenamente
o homem ao homem e dá-lhe a conhecer a sua altíssima vocação[51].

86. Na óptica do mistério do Filho, o ponto de máxima profundidade do laço que


subsiste entre Deus, a origem incriada, e o homem, a criatura vivente, pode captar-se
justamente na geração: transmissão da vida, constituição da alteridade. Na revelação
trinitária, a geração do Filho é a raiz incriada e insuperável da intimidade de Deus. Na
constituição do humano, o nascimento ilumina-se com o mistério da geração do Filho.
Perante a ilusão antiga e moderna do homem que “se faz a partir de si”, uma teologia
da criação do homem que se aplicasse com nova determinação à iluminação deste
nexo do ser-humano com o ser-filho (em última análise, com o Filho-em-Deus)
restituiria um elevado perfil também à diferença sexual do homem e da mulher e à
componente relacional da maturação pessoal. A hodierna busca de uma coerente
composição humanista do “privado” e do “comum”, quando deriva do pressuposto de
uma absolutização do “Si” mesmo individual, revela precisamente a dificuldade em
produzir e suscitar a integração procurada. O mistério revelado da origem divina, que
culmina na unidade trinitária de Deus, sustenta e apoia a abertura do humanismo à
intrínseca correlação entre o elemento positivo do Si mesmo e o elemento positivo do
outro, que confluem inseparavelmente na constituição do humano pessoal.

87. De qualquer modo, na perspectiva da visão cristã, a nossa filiação adoptiva no Filho
é o sinal mais eficaz de um Deus que é a fonte da nossa liberdade: libertação no
Espírito de toda a escravidão (cf. Gl 4, 7; Jo 8, 36) e adopção de filhos no Filho.

2. Deus corrobora a paixão pela justiça, reabre a esperança da vida

88. O dom redentor do Filho e do Espírito, por meio da comunicação sacramental no


baptismo e na eucaristia, faz verdadeiramente dos homens filhos de Deus por adopção
e irmãos entre si (cf. Gl 3, 26-27; 1 Cor 11, 23ss). S. Paulo estava disso bem
consciente quando pedia e exigia a força da unidade dos irmãos, entendendo-a como
koinonia dos diferentes e dos seus dons, na comunhão do único Corpo do Senhor e do
único Espírito que em todos actua. Esta unidade, irredutível à abstracta igualdade de
identidades separadas, é símbolo real e impulso eficaz para a cultura humana dos
laços sociais e a superação da inimizade entre os povos. O Apóstolo exortava a
reconhecer a pertença recíproca, porque somos “membros uns dos outros” (cf. Ef 4,
25), até à fórmula, cheia de força no original grego, que proclama: “sois um (eis) só em
Jesus Cristo” (cf. Gl 3, 28). Toda a teologia paulina está profundamente inspirada por
este radical princípio da fé cristã. O nosso “ser um só” em Cristo possibilita o início de
uma nova história de solidariedade e de subsidiariedade partilhada entre os homens,
até à verdadeira e genuína caridade fraterna.

89. Tendo presente tudo o que já se disse sobre a criação no capítulo precedente, é
bom recordar que a lógica correspondente à unidade do Deus vivo, na sua presença e
na sua acção entre os homens, é a de “agápe”. O poder divino está ordenado à
sabedoria e à bondade de um Deus que é em si mesmo amor[52]. Desde a
comunicação do ser à criatura até à oferta da amizade do Filho, a revelação de Deus
espelha e reflecte a intimidade de uma vida cuja unidade é inteiramente atravessada
pela disposição relacional do amor[53].

90. O monoteísmo trinitário consegue explicar a eterna positividade e dignidade do


outro, porque as três pessoas subsistem no único Deus segundo uma ordem de
referência do Logos e da Agape. Uma interpretação cristã correcta está, pois, muito
longe dos excessos da tendência para realçar unilateralmente a impotência ou a
debilidade como um sinal característico – e mais ainda, a verdade essencial – do ser-
de-Deus. Nesta tendência – que se pode apreender como resposta aos excessos
racionalistas da teodiceia – pode entender-se mal a fundamental revelação cristã da
kénosis salvífica do Filho, na qual assoma o excesso da agape de Deus. Existe o risco
de levar o raciocínio ao ponto de fazer coincidir a qualidade divina com uma espécie de
despotenciação radical do ser, que – no seu fundo – se rende irrevogavelmente, e sem
poder de redenção, à injustiça e à prevaricação. Como se a essência do amor de Deus
coincidisse em si mesma com uma espécie de “ética da impotência”, fundada numa
“metafísica do envilecimento”, que pronuncia a última palavra sobre o sentido
derradeiro do sacrifício do Filho[54]. Sem a referência ao poder do amor de Deus e à
sua inconciliabilidade com o mal, a disponibilidade kenótica do Filho transformar-se-ia
em simples proximidade sentimental. E a redenção acabaria por coincidir pura e
simplesmente com a resignação à aviltação e ao derrame do sangue. O mal-entendido
teológico desta interpretação revelar-se-ia, por fim, como maior do que o que,
presumivelmente, pretende corrigir. A recaída simbólica desta interpretação acabaria
por alinhar de novo, paradoxalmente, com a deriva dolorista da teologia que atribui um
automático valor de redenção ao derrame do sangue enquanto tal: sem dar a entender
explicitamente que esse valor deriva e brota justamente da caridade com que o Filho,
como Servo de Deus, “dá a sua vida em sacrifício pelo pecado” (Is 53, 10). Deus
condena o homicídio do Inocente, mas acolhe a oferenda que Cristo faz de si mesmo.
Este sacrifício, de valor absoluto e infinito, sela e encerra, no seu definitivo
adimplemento, todos os sacrifícios da antiga aliança.

91. Na verdade, na sua kénosis, o Filho de Deus aceita habitar, até ao extremo, a
impotência e a debilidade do homem pecador: ao atrair sobre si o poder incontível e
destruidor do pecado, que o homem não consegue vencer (cf. Rm 8, 3; 2 Cor 5, 21). O
Filho de Deus aceita assumir e viver, até extremo, a forma dramática da condição
humana (cf. Gl 3, 13), em vez de permanecer simplesmente na glória intacta e imutável
da sua condição divina. A eficácia salvífica deste esvaziamento está justamente ligada
ao facto de que Aquele que a “incorpora” é o Unigénito de Deus, que partilha
eternamente a plenitude da vida de Deus, o poder do seu senhorio, a força da sua
infinita estranheza ao mal. A paixão do Filho feito homem, que assume até ao fundo a
debilidade humana para o nosso resgate e redenção, revela justamente assim o poder
do amor do Pai que nada impedir (“Sim, se foi crucificado na sua fraqueza, agora está
vivo pelo poder de Deus. Nós também somos fracos nele, mas viveremos com Ele pelo
poder de Deus que actua em vós”, 2 Cor 13, 4).

92. A ressurreição de Jesus Cristo crucificado atesta o poder do amor de Deus, que
restitui, inclusive, a carne e o sangue à vida do Espírito (“E se o Espírito daquele que
ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo de
entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu
Espírito que habita em vós”, Rm 8, 11). Nenhuma força do mal e nenhum poder da
morte podem subtrair o Filho aos laços do Pai e do Espírito em que Deus vive. E nada
pode separar o homem de Deus, porque nada pode separar Deus de si mesmo (“Se
Deus está por nós, quem pode estar contra nós?”, cf. Rm 8, 31-39).
3. A purificação religiosa da tentação do domínio

93. A conjunção kenótica do poder e da doação indica, da forma mais precisa, a


singularidade cristã da concepção do Deus único. A pregação do Cristo crucificado,
separada do anúncio do Cristo ressuscitado, não restabelece a verdade da revelação
cristã de Deus. A livre entrega do Filho ao mundo por parte do Pai, como também a
vitoriosa reentrega do mundo ao Pai, por parte do Filho, ocorrem, na unidade do
Espírito idêntico, propter nos homines et propter nostram salutem (cf. Jo 3, 16-17; 1 Cor
15, 20-21). O Crucificado Ressuscitado desafia o poder aparentemente invencível dos
inimigos do homem: o diabo, o pecado e a morte (cf. Rm 6, 3-11). O poder de Deus é a
verdade do seu amor, o amor de Deus é a verdade do seu poder[55].

94. A religião dos homens nunca pode considerar-se apenas ao abrigo da tentação de
trocar o poder divino por um poder humano, que desemboca, por fim, no caminho da
violência. Os evangelhos recordam claramente que esta foi uma tentação que Jesus
rejeitou. E que ele próprio explicitamente mandou aos seus discípulos que a
rejeitassem (cf. Mc 10, 35-45; Lc 22, 24-27). Por isso, não pode negar-se que a própria
religião sempre precisou, em si mesma, de contínua purificação[56] que permita
reconduzi-la sempre de novo à sua destinação mais própria, a saber, à adoração de
Deus em espírito e verdade, como princípio de reconciliação com Deus e de fraterna
convivência entre os homens (cf. Jo 4, 23-24).

95. A corrupção da religião, que acaba por pô-la em contradição com o seu sentido
autêntico, é decerto uma ameaça temível para a humanidade do homem. Infelizmente,
esta possibilidade permanece sempre actual, em cada época. Deve ser reconhecido
claramente, por todas as comunidades religiosas, e por todos os responsáveis da sua
custódia, que o recurso à violência e ao terror é, com toda a certeza e evidência, uma
corrupção da experiência religiosa. O reconhecimento da contradição que assim se
realiza com o espírito universal da religião, é uma possibilidade concreta no âmbito de
cada tradição histórica. A traição do espírito religioso é, por outro lado, mais facilmente
manifesta nas formas de violência inspirada por interesses económicos e políticos, que
se serve instrumentalmente da sensibilidade religiosa dos povos. Instrumentalização
análoga, de resto, à que busca a opressão do testemunho religioso, com base em
interesses económicos e políticos pretensamente revestidos, para benefício das
massas, de elevadas finalidades humanísticas.

96. Por último, a pretensão de autodomínio do homem, que chega ao ressentimento


contra Deus, não pode deixar de lesar a dignidade humana e de ter consequências de
sujeição violenta do homem sobre o homem. As relações conjugais, de geração e de
cuidado, de filiação e de fraternidade – como todas as formas dos afectos e laços
humanos quando se fecham ao acolhimento do dom divino – permanecem expostos à
inversão e ao colapso da sua justiça. O cuidado do humano vulnerável – porque
pequeno, porque débil, porque diferente – perde importância frente ao egoísmo do
cuidado de si. O poder redentor de Deus, inscrito na livre doação de amor – só ele –
põe de novo em jogo a herança da promessa contra a herança do pecado.

4. A força da paz com Deus, missão da Igreja

97. No tempo da nossa história, a condição do povo cristão – e assim de cada fiel – é
caracterizada pela expectativa escatológica e, portanto, pela sua condição constitutiva
de ser um povo a caminho[57]. Contra todos os milenarismos, o cristão não tem
nenhuma pretensão de forçar os tempos do fim da história e do fim do último dia, que
só o Pai conhece (cf. Mc 13, 32). E vive o tempo como dom precioso de Deus, grande
sinal da sua benevolência e generosidade, com a consciência de que o tempo se faz
breve (cf. 1 Cor 7, 29)[58]. Paulo sente, pois, que o amor de Deus urge e constringe o
tempo perante os outros homens, para evangelizar aqueles que ainda não conhecem o
desígnio bondoso do Pai (cf. 1 Cor 9, 16; 2 Cor 5, 14ss).

98. Para o povo cristão, o conteúdo do tempo e da história consequente ao envio do


Filho e do Espírito tem um nome próprio: missão. Enquanto durar o tempo da história, a
unidade visível dos redimidos torna-se semente de novidade na construção do laço
social [59], até alcançar todas as suas dimensões, de acordo com um desígnio que só
ao Pai pertence (cf. Rm 16, 26; 1 Cor 2, 7; Ef 1, 4-10).

99. A comunhão eclesial institui um termo de comparação e um princípio de juízo sobre


a realidade dos laços sociais: proclama a dignidade incondicionada da pessoa
humana[60]; encoraja a abertura universal (catholica) a todos os homens[61]; escora e
sustenta as razões de subsidiariedade e solidariedade que devem inspirar a
organização civil[62]. A demanda de tal comunhão não se cansará de considerar a
gravidade das divisões entre os cristãos, dedicando-se com paixão sincera à causa
ecuménica. O florescimento da semente lançada pela unidade dos crentes em Cristo,
em virtude da acção do Espírito que sustenta e fomenta a laboriosa e apaixonante
concepção da nova criação, também no seio da geração e da regeneração dos
vínculos humanos e civis, pode saudar-se como antecipação do mundo definitivo, onde
finalmente Deus será “tudo em todos” (cf. 1 Cor 15, 28). O horizonte que ilumina
inteiramente esta tensão constitutiva do homem é, por fim, o mistério do apelo a
participar da vida de Deus mediante a vida da Igreja[63]. Por isso, é na vida autêntica
da Igreja, na evidência da fraternidade eclesial gerada pela fé em Jesus Cristo, que se
há-de reconhecer a plena conciliação entre a dignidade individual de cada pessoa e a
responsabilidade partilhada dos laços sociais. Na graça da communio, que
generosamente reabre sempre de novo a liberdade humana aos laços de Deus, existe
um princípio de libertação frente à alternativa entre a responsabilidade da realização
própria e o cuidado do humano partilhado: a sua separação torna inabitável o mundo e
extingue o espírito. Para tornar persuasivo o apelo de Deus à reconciliação entre os
homens, é indispensável restituir à communio eclesial uma nova transparência no palco
da história.

100. A confissão da fé perante o ateísmo militante e a violência religiosa é, hoje,


conduzida pelo Espírito na fronteira profética de um novo ciclo religioso e humano dos
povos. O ícone eclesial deve, por seu lado, suscitar a imagem de uma religio que se
despediu definitivamente – em antecipação à história que se seguirá – de toda a
sobreposição instrumental da soberania política e do Senhorio de Deus. Esta
despedida pode e deve ser vivida por todas as comunidades cristãs da época presente,
como o advento do tempo estabelecido pelo Senhor para a maturação da semente
evangélica. A perfeita comunhão com a intimidade da vida de Deus, “enxugadas todas
as lágrimas”, será simplesmente a morada do homem (Ap 21, 3-4). O tempo da
perseguição deve ser suportado, na expectativa da conversão esperada para todos.
Desta paciência, deste suportar, desta força dos “santos” em carregar com a tribulação
da espera, estamos em dívida de reconhecimento para com muitos irmãos e irmãs
perseguidos pela sua pertença e identidade cristã. Honramos e lembramos o seu
testemunho como a resposta decisiva à demanda e à pergunta sobre o sentido da
missão cristã a favor de todos. A época de uma nova evidência no tocante à relação
entre religião e violência entre os homens é aberta pela sua coragem. Deveríamos
sabê-la merecer. A Mãe do Senhor há-de considerar-se como a protecção
insubstituível do advento desta nova época e dos frutos do Espírito que se irão seguir.
A consciência e a invocação da sua especial intercessão deverão ser um tema especial
da nossa conversão e da nossa oração; e um ponto de força para a comunicação e a
assimilação jubilosa deste horizonte da promessa entre os homens e as mulheres do
nosso tempo, para “dirigir os nossos passos pelo caminho da paz” (Lc 1, 79).

[1] CONCÍLIO VATICANO I (1869-1870), Constituição dogmática Dei Filius, cap. 2 (DH
3004): “[…] Ecclesia tenet et docet, Deum, rerum omnium principium et finem, naturali
humanae rationis lumine e rebus creatis certo cognosci posse”.

[2] Cf. ibid. DH 3001-3002.

[3] BENTO XVI, Discurso no Aeroporto Internacional Ben Gurion, Tel Aviv, 11 de Maio
2009: “A ordem justa das relações sociais pressupõe e exige o respeito pela liberdade
e dignidade de cada ser humano que, segundo a fé dos Cristãos, Muçulmanos e
Judeus, foi criado por um Deus amoroso e destinado à vida eterna”. E ainda BENTO
XVI, Discurso na Esplanada das Mesquitas. Jerusalém, 12 de Maio 2009: “Enquanto
Muçulmanos e Cristãos continuam o diálogo respeitoso que já iniciaram, rezo para que
eles possam indagar como a Unicidade de Deus está inextricavelmente ligada à
unidade da família humana”.

[4] Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Memória e reconciliação. A Igreja


e as culpas do passado (2000).

[5] CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965), Declaração Nostra aetate, 4.

[6] Veja-se a documentação patrística recolhida em COMISSÃO TEOLÓGICA


INTERNACIONAL, O cristianismo e as religiões (1997), 41-44.

[7] S. Justino, citado por S. IRENEU, rejeita as teses marcionitas: “Et bene Justinus in
eo libro qui est ad Marcionem ait quoniam Ipsi quoque Domino non credidissem
alterum Deum annuntianti praeter

Fabricatorem et Factorem et Nutritorem nostrum” (Adversus Haereses IV, 6,2; e ainda


Adv. Haer. IV, 20, 4; Sources Chrétiennes, vol. 100, 441). Igualmente TERTULLIANO,
Adversus Marcionem, passim.

[8] Um belo exemplo de exegese tipológica de Ex 27, 8-26, sem excessos alegóricos,
encontra-se em S. JUSTINO, Diálogo com Trifão, 131, 4-5 e 111, 1-2.

[9] Cf. BENTO XVI, Encíclica Spe salvi, 43.

[10] Veja-se, a propósito, COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Em demanda


de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural (2009), cap. 4.

[11] S. TOMÁS MORO, Carta escrita na prisão à filha Margarida, Liturgia das Horas,
Ofício de Leituras, na festa do Santo (The English Works of Sir Thomas More, London
1557, p. 1454).

[12] “Não há, não houve, nunca haverá nenhum homem pelo qual Cristo não tenha
sofrido” (CONCÍLIO DE QUIERZY (853, DH 624); cf. Catecismo da Igreja Católica,
605).

[13] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, 16.
[14] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 22, § 5.

[15] Vejam-se entre outros: S. IRENEU DE LEÃO, Adv. Haer. IV, 34,4; S.
AGOSTINHO, Sermo 341, 9, 11; S. GREGÓRIO MAGNO, Homilia in Evangelium 19, 1;
S. JOÃO DAMASCENO, Adversus Iconocl. 11.

[16] II CONCÍLIO DE CONSTANTINOPLA (553), DH 432.

[17] S. AGOSTINHO, De civitate Dei, Liber XII, cap. XX, 4: “Quapropter quoniam
circuitus illi jam explosi sunt quibus ad eadem miserias necessario putabatur anima
reditura”.

[18] Beato J. H. NEWMAN, Meditations and Devotions, London, 1893, 561.

[19] “Deus ama tanto o homem que, ao fazer-se Ele próprio homem, o segue até à
morte e reconcilia assim a justiça e o amor”: BENTO XVI, Encíclica Deus caritas est,
10.

[20] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 486 e 535-536.

[21] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, III, q. 57, a. 6.

[22] Festa da Ascensão do Senhor, Prefácio I.

[23] Catecismo da Igreja Católica, 260.

[24] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 22, § 2;
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, O Cristianismo e as religiões (1997), 46-
48.

[25] Beato JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater (1987), 7-24.

[26] Beato JOÃO PAULO II, Carta apostólica Novo Millennio Ineunte, 43: “Fazer da
Igreja a casa e a escola da comunhão: eis o grande desafio que se nos apresenta no
milénio que começa, se quisermos ser fiéis ao desígnio de Deus e responder também
às expectativas profundas do mundo”.

[27] Catecismo da Igreja Católica, 236.

[28] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa contra Gentiles, lib. II, cap. 4.


[29] Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa contra Gentiles, lib. I, cap. 9.

[30] PIO XII Encíclica Humani generis (1950), Introdução (DH 3875).

[31] Cf. CONCÍLIO VATICANO I, Constituição dogmática Dei Filius, cap. 2; CONCÍLIO
VATICANO II, Constituição dogmática Dei Verbum, cap.1. Cf. COMMISSÃO
TEOLÓGICA INTERNACIONAL, A Teologia hoje (2013).

[32] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes,19.

[33] VOLTAIRE, Trattato sulla tolleranza (cap. XIV) Editori Riuniti, Roma, 1966. p. 99.

[34] CONCÍLIO VATICANO II, Declaração Dignitatis Humanae, 7, § 3 e Declaração


Nostra Aetate, 5.

[35] CONCÍLIO VATICANO II, Declaração Dignitatis Humanae,11.

[36] Cf. Beato JOÃO PAULO II, Homilia e Oração universal (confissão das culpas e
pedido de perdão). Santa Missa para o dia do perdão do Ano Santo 2000 (Domingo, 12
de Março 2000); COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Memória e
reconciliação. A Igreja e as culpas do passado (2000).

[37] Beato JOÃO PAULO II, Audiência geral, Quarta-feira, 10 Julho 1985.

[38] Cf. Beato JOÃO PAULO II, Encíclica Fides et ratio (1998), 1, e todo o capítulo III
(24-35), sobretudo a partir do 30 em diante. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa
Theologiae, Ia, q. 2, a. 1, ad. 1.

[39] Cf. S. JOÃO DAMASCENO, De fide orthodoxa, lib. I, cap. 3 (Sources Chrétiennes
535, p.142-149); S. TOMÁS DE AQUINO, Sententia Metaphysicae, lib. 12, lectio 12.

[40] Beato JOÃO PAULO II, Audiência geral, Quarta-feira, 10 Julho 1985.

[41] S. AGOSTINHO, De civitate Dei, XI, 10, 1 (Corpus Christianorum Series Latina 48,
330).

[42] Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia, q. 3, a. 4.

[43] II CONCÍLIO DE COSTANTINOPLA (553, DH 421).

[44] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia, q. 37, a. 2.


[45] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia, q. 22, a. 3; q. 23, a. 8, ad. 2; I
Sent., dist. 45, q. 1, ad. 3, ad. 4 (“causandi dignitas”).

[46] S. IRENEU DE LEÃO realçava a acção da omnipotência divina que capacita o


homem para colaborar na sua perfeição: ““Non enim tu Deum facis, sed Deus te facit.
Si ergo opera Dei es, manum artificis tui exspecta opportune omnia facientem,
opportune autem quantum ad te attinet qui efficeris. Praesta autem ei cor tuum molle et
tractabile et custodi figuram qua te figuravit artifex (…) custodiens autem
compaginationem ascendes ad perfectum” (Adv. Haer., IV, 39, 2; Sources Chrétiennes,
100, 967. E ainda o famoso trecho de IV, 20, 7: “Gloria enim Dei vivens homo, vita
autem hominis visio Dei” (Sources Chrétiennes, 100, 648)

[47] Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Comunhão e serviço. A pessoa


humana criada à imagem de Deus (2004), 69.

[48] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, IIa-IIae, q. 83, a. 2

[49] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Dei Verbum, 3-4; Catecismo
da Igreja Católica, 291, 1701.

[50] Cf. Beato JOÃO PAULO II, Carta apostólica Mulieris dignitatem (1988), 6-8;
Catecismo da Igreja Católica, 1702.

[51] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 22, § 1; Cf.
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Comunhão e serviço. A pessoa humana
criada à imagem de Deus (2004).

[52] Cf. CONCÍLIO VATICANO I, Constituição dogmática Dei Filius, cap. 2 (DH 3004).

[53] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Dei Verbum, 2; BENTO XVI,
Encíclica Deus caritas est (2005) 9-11; ID., Encíclica Caritas in veritate (2009), 1-9.

[54] COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Dignidade e direitos da pessoa


humana (1983), sobretudo A, II, 3 (O homem redimido por Cristo).

[55]Cf. BENTO XVI, Encíclica Caritas in veritate (2009), 2.

[56] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, 8 § 3 e 40 §


1.
[57] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, cap. VIII (48-
51).

[58] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 668-676.

[59] “Ele [Cristo] é sempre jovem e fonte constante de novidade. A Igreja não cessa de
se assombrar em face da «profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de
Deus» (Rm 11, 33)”: FRANCISCO, Exortação apostólica Evangelii gaudium, 11.

[60] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 15-17.

[61] Cf. Beato JOÃO PAULO II, Encíclica Fides et ratio, 70-72; Encíclica Veritatis
splendor (1993), 1-3.

[62] Cf. BENTO XVI, Encíclica Caritas in veritate, 35-40; 57-58.

[63]Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, 2-4.

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