Livro China Hoje
Livro China Hoje
Livro China Hoje
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento
e Socialismo de Mercado
456p.
Inclui bibliografia
Copyright © 2012
Direitos desta edição:
Revisão de textos
Gilberto Gasparetto
Maria Lucília Ruy
Capa
Cláudio Gonzalez
Assessoria editorial
Zandra de Fátima Baptista
Presidente
Adalberto Monteiro
Secretário-geral
Augusto César Buonicore
Diretora de Formação
Nereide Saviani
Diretor de Cultura
Javier Alfaya
Universidade Estadual da Paraíba
Profª. Marlene Alves Sousa Luna
Reitora
Prof. Aldo Bezerra Maciel
Vice-Reitor
Editora da
Universidade Estadual da Paraíba
Diretor
Cidoval Morais de Sousa
Coordenação de Editoração
Arão de Azevedo Souza
Conselho Editorial
Célia Marques Teles – UFBA
Dilma Maria Brito Melo Trovão – UEPB
Djane de Fátima Oliveira – UEPB
Gesinaldo Ataíde Cândido – UFCG
Joseilda de Sousa Diniz – UEPB
Joviana Quintes Avanci – FIOCRUZ
Marcionila Fernandes – UEPB
Rosilda Alves Bezerra – UEPB
Waleska Silveira Lira – UEPB
A minha companheira LUCIANA.
11
“Uma imagem vale mais
que mil palavras”
13
Sumário
AG R A D E C I M E NT O S .......................................................... 25
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................57
15
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
16
Sumário
17
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
18
Sumário
19
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
20
Sumário
6. CONCLUSÕES/REFLEXÕES...............................................................403
BIBLIOGRAFIA........................................................................................415
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR.......................................................427
21
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
TABELAS
Tabela 1 – Crescimento econômico da China, 1978-1990 (%).................212
Tabela 2 – Crescimento econômico da China, 1991-1999 (%).................212
Tabela 3 – Crescimento econômico da China, 2000-2009 (%)................212
Tabela 4 – Quadro comparativo entre crescimento chinês, mundial e de
alguns países selecionados, 2003-2007 (%)..................................................214
Tabela 5 – Composição e dinâmica do PIB chinês, 1978-2007..............217
Tabela 6 – Contribuição de cada setor da economia ao crescimento chinês,
1990-2007 (%)......................................................................................................219
Tabela 7 – Dinâmica de população e emprego na China, anos selecionados
entre 1952 e 2005 (em milhões)........................................................................221
Tabela 8 – Trabalhadores empregados nas Empresas de Cantão e Povoado,
anos selecionados (em milhões).......................................................................223
Tabela 9 – Total de valor agregado nas empresas de Cantão e Povoado,
anos selecionados (unidade: 1 milhão de yuans)..........................................227
Tabela 10 – Participação das ECPs nas exportações (em 100 milhões de
yuans e em %)......................................................................................................230
Tabela 11 – Estatais vs. privadas na China: número de empresas, participação
da produção industrial e população empregada, 1998-2007 (%)................238
Tabela 12 – Empresas chinesas no ranking da Fortune 500.........................239
Tabela 13 – Índices de produtividade e lucratividade entre empresas estatais
e privadas (em 10.000 yuans).............................................................................242
Tabela 14 – Índices básicos em ciência e tecnologia na China, 2003-
2007........................................................................................................................244
Tabela 15 – Aplicação de recursos em P&D mais participação de gastos go-
vernamentais, 2007 (em %).................................................................251
Tabela 16 – Reservas internacionais da China, 1980-1990 (em bilhões de
US$)…......................................................................................................……..266
Tabela 17 – Reservas internacionais da China, 1991-2001 (em bilhões de
22
Sumário
US$)................................................................................................................266
Tabela 18 – Reservas internacionais da China, 2002-mar/2010 (em bilhões
de US$)..................................................................................................................267
Tabela 19 – Cotação do yuan diante das principais moedas estrangeiras
(unidade: cem yuans)………………................................................................…276
Tabela 20 – Fluxo de IEDs na China, 1984-1996 (em bilhões de US$)........278
Tabela 21 – Fluxo de IEDs na China, 1997-2009 (em bilhões de US$)........278
Tabela 22 – Exportações, 1978-1994 (em bilhões de US$).............................288
Tabela 23 – Exportações, 1995-2000 (em bilhões de US$).............................288
Tabela 24 – Exportações, 2001-2008 (em bilhões de US$)..............................288
Tabela 25 – As grandes multinacionais chinesas no século XXI.......................298
Tabela 26 – China: os dez maiores receptores de IED chinês, 2004-2008
(em milhões de US$)…..............…………………………………………………303
Tabela 27 – China: distribuição internacional de IEDs, 2004-2008 (em %)..... 305
Tabela 28 – China: participação/composição nos ativos, por tipo de instituição,
1993-2004 (bilhões de US$)..............................................................................318
Tabela 29 – Investimentos em construções básicas, 1953-1999 (aumento
dos investimentos em % entre Leste, Centro-Oeste, Central e Oeste)..........335
Tabela 30 – Produção de grãos, 1978-1987 (em milhões de toneladas).....361
Tabela 31 – Produção de grãos, 1988-1998 (em milhões de toneladas).....362
Tabela 32 – Produção de grãos, 1999-2008 (em milhões de toneladas)......362
Tabela 33 – Evolução da área irrigada, consumo de fertilizantes, estações
hidroelétricas e consumo de energia elétrica na zona rural chinesa (anos
selecionados).................................................................................................364
Tabela 34 – Alcance geral do Sistema de Medicina Cooperativa..................371
MAPAS
Mapa 1 – China: divisão político-administrativa................................................139
Mapa 2 – China: elevações topográficas............................................................139
Mapa 3 – Localização de Chongqing em relação a Guangdong...................262
Mapa 4 – Escala de preferência da política regional chinesa (1980)............344
Mapa 5 – Escala de preferência da política regional chinesa (1984).............344
23
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
GRÁFICOS
Gráfico 1 – População chinesa ano 1-2030......................................................... 117
Gráfico 2 – Investimentos em ativos fixos por tipo de empresa, jan-2006 a out-
2009 (% sobre o total dos investimentos realizados no país)......................240
Gráfico 3 – Balança comercial chinesa com Leste Asiático e Japão................267
Gráfico 4 – Resultado em conta corrente na China, 1990-1998 (em % do
PIB)..................................................................................................................268
Gráfico 5 – Dívida externa líquida da China, 1990-1998 (em % das expor-
tações)..........................................................................................................269
Gráfico 6 – China: fluxo e estoque de IED no exterior, 1990-2008 (em bilhões
de US$)...................................................................................................................301
Gráfico 7 – Estoque de ativos financeiros na China, 1994-2004 (% do
PIB).....................................................................................................................326
Gráfico 8 – Desigualdade interprovincial (PIB e consumo)................................347
Gráfico 9 – Crescimento médio anual das províncias do oeste da China, 1978-
1998 e 1998-2008 (%)...........................................................................................355
Gráfico 10 – Total de ativos das instituições e cooperativas de crédito rural,
2003-2008 (em bilhões de yuans)..................................................................378
24
Agradecimentos
Agradecimentos
27
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
28
Agradecimentos
29
Apresentação
31
Apresentação
33
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
34
Apresentação
35
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
36
Apresentação
ARMEN MAMIGONIAN
Professor livre-docente dos programas de pós-graduação
em Geografia na USP e na UFSC
37
Prefácio
39
Prefácio
41
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
42
Prefácio
43
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
44
Prefácio
45
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
46
Prefácio
47
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
48
Prefácio
49
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
50
Prefácio
51
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
52
Prefácio
53
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
54
Prefácio
uma luta que escapou aos observadores mais artificiais, mas cuja im-
portância se manifesta com uma evidência cada vez maior. Os EUA e
seus aliados esperavam reafirmar uma divisão internacional do traba-
lho nesta base: a China teria que se limitar à produção, a baixo preço,
de mercadorias desprovidas de real conteúdo tecnológico. Por outras
palavras, estavam à espera de conservar e acentuar o monopólio oci-
dental da tecnologia: nesse plano, a China, como todo o Terceiro Mun-
do, deveria continuar a sofrer uma relação de dependência em relação
à metrópole capitalista. Percebe-se bem que os comunistas chineses
interpretaram e lutaram para fazer fracassar esse projeto neocolonia-
lista como a continuação da luta de libertação nacional; não há uma
verdadeira independência política sem independência econômica;
pelo menos os que se reclamam marxistas deviam estar de acordo
com esta verdade!
Graças à manutenção cobiçada do monopólio da tecnologia, os
EUA e seus aliados pretendiam continuar a ditar as leis das relações
internacionais. Com o seu extraordinário desenvolvimento econômi-
co e tecnológico, a China abriu a via para a democratização das rela-
ções internacionais. Os comunistas e também todos os verdadeiros
democratas deviam congratular-se com esse resultado. Atualmente
há melhores condições para a emancipação política e econômica do
Terceiro Mundo.
Neste ponto, convém desembaraçarmo-nos de um equívoco que
torna difícil a comunicação entre o PCCh e a esquerda ocidental no
seu conjunto. Mesmo no meio de oscilações e contradições de todo
tipo, desde a sua fundação a República Popular da China se empe-
nhou em lutar contra não uma, mas duas desigualdades: uma de ca-
ráter interno e a outra de caráter internacional. Na sua argumenta-
ção da necessidade da política de reforma e de abertura que desejava,
Deng Xiaoping, numa conversa de 10 de outubro de 1978, chamava
a atenção para o fato de que o “fosso” tecnológico estava em vias de
se alargar em comparação com os países mais avançados. Estes se
desenvolviam “a uma velocidade terrível”, enquanto a China corria
o risco de ficar cada vez mais para trás (Selected works, vol. 3, p. 143).
Mas se falhasse no processo de internalização da nova revolução tec-
55
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
DOMENICO LOSURDO
Professor titular de História da Filosofia da
Universidade de Urbino, Itália.
56
1. Introdução
57
Introdução
aaaaaaaaaaaa
59
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
60
Introdução
aaaaaaaaaaaa
61
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
62
Introdução
63
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
64
Introdução
65
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
66
Introdução
mas algo que interliga cada formação a uma ideia estanque de modo de produção.
Formação social, nesse caso, transforma-se em teoria e método na medida em que
abarca, sob a sua categorização, as múltiplas determinações do concreto (geografia,
economia, direito, natureza, filosofia etc.). Não existe Economia Política con-
sequente fora do estudo radical da formação social. A análise do processo
de desenvolvimento é – em primeira instância – a análise da história do processo
de desenvolvimento. Assim procuramos acumular também no sentido de colocar a
invalidade teórica de modismos, como o “sistema-mundo”. Desta forma, investigar
os meandros da dinâmica da formação social chinesa nos instrumentaliza de ins-
trumentos poderosos para a compreensão de uma realidade tão peculiar.
Se as relações de produção e as forças produtivas são produtos do tempo e do espaço,
logo, como expressões deste mesmo tempo e espaço, também devem ser observadas
categorias como o mercado e a propriedade privada. Assim como o próprio socialismo.
São três categorias que devem ser vistas à luz da história. Somente o desenvolvi-
mento das forças produtivas pode dar prazo de validade histórica ao mercado e à
propriedade privada. A questão não é moral, nem a de busca de um mundo perfeito,
do “homem novo”. O desenvolvimento das forças produtivas enceta não um mun-
do longe de contradições, mas relações sociais que denodam a própria superação
da pré-história da humanidade. E o mercado e a propriedade privada, como
marcos históricos, devem estar a serviço não somente do capitalis-
mo, mas também do socialismo. O contrário disto é pura ladainha religiosa,
temperada pela busca de uma sociedade jamais sonhada pelos clássicos do mate-
rialismo histórico.
O Estado nacional chinês tem dado cabo de um projeto nacional capaz de mu-
dar qualitativamente a correlação de forças no mundo com seu desenvolvimento.
Trata-se de uma razoável assertiva da qual tentamos dar consequência neste livro.
Tal Estado reinaugurado em 1949 não é um produto de si mesmo ou mesmo da
divindade de um homem. É um Estado construído ao longo de pelo menos 2.500
anos, fruto de uma precoce economia de mercado e causa e consequência de uma di-
visão social do trabalho que desde então alçava as massas camponesas ao leme do
curso político. Um Estado que surge diante de desafios que a própria geografia lhe
impôs. Esta mesma geografia que impele a moderna República Popular a enfrentar
o nó górdio de vastas regiões do país ainda atreladas à perificidade e ao atraso. Con-
67
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
dições tais que estão sendo objeto de amplo enfrentamento. Enfrentamento que se
dá com o auxílio da técnica, do moderno poderio financeiro chinês e da disposição
política de colocar o país na vanguarda do século presente.
Esta mesma formação social, cujos limites só seriam postos à prova com a
ocupação estrangeira, buscou soluções para seus problemas de coesão estatal, e for-
matação de sua superestrutura em formas de administração que seriam adotadas
na Europa, somente em meados do século XIX. É irresistível perceber que o moder-
no planejamento chinês e o processo de formação dos quadros governantes de seu
Estado guardam muito da minúcia e da engenharia de grandes obras milenares e
de um nada rústico planejamento urbano. Planejamento este que se mostrou capaz
de projetar uma cidade como Pequim na mesma época histórica em que a Europa
se afogava em sangue de guerras religiosas. O projeto nacional, o desenvolvi-
mentismo e o socialismo com características chinesas têm na essência
a milenaridade do Império Chinês.
Como se poderá perceber, as partes 2, 3 e 4 deste livro estão amplamente dedi-
cadas a uma discussão de fundo sobre o socialismo, a formação social chinesa e a
dinâmica desta formação sob os auspícios do desenvolvimento com características
chinesas. Falar em desenvolvimentismo chinês deve seguir-se de uma teorização
também da dinâmica das diferentes formações econômico-sociais em conflito e
suas relações no território. A transformação do país se acentua com sua entrada
na Divisão Internacional do Trabalho, o que faz com que o comércio exterior passe a
ser a variável estratégica do processo. Variável esta capaz de dar lubrificação para
que as “transições dentro da grande transição” ocorram a um ritmo e velocidade
pautados pelo Estado. O centro desta transição interna está na transferência de
recursos para a economia de mercado. Esta transição de recursos não se restringe à
questão financeira, mas refere-se principalmente a pessoas que deixam a economia
de subsistência para adentrarem na produção mercantil e/ou socializada. Enfim, o
processo de desenvolvimento tem como ponto de avaliação inicial a dinâmica da
entrada ou saída de pessoas da economia de mercado.
A transição para o socialismo, do ponto de vista interno, se mede
pela entrada de contingentes de trabalhadores na economia socializa-
da. A economia socialista de mercado pode ser vista como uma lei de
68
Introdução
aaaaaaaaaaaa
69
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
Existem dois processos históricos que se imbricam. É muito recorrente neste tra-
balho expor que a siderurgia está para o “modelo soviético” da mesma forma que
o sistema financeiro está para o socialismo de mercado na China. A implantação
da siderurgia correspondeu à afirmação do desenvolvimento e da independência
nacional em certo momento histórico. É a chave da compreensão do que chama-
mos de “via prussiana” de tipo socialista – a dita revolução pelo alto, da qual a
siderurgia é uma forte expressão. Nos tempos atuais, a consagração de um sistema
de intermediação financeira é o imperativo para qualquer projeto nacional de de-
senvolvimento, seja ele socialista ou capitalista. A política de Reforma e Aber-
tura em curso desde 1978 é o processo histórico em que se caminha da
formação de empresários a partir da permissão da acumulação cam-
ponesa (“via dos produtores” ou “via americana”) para a formação de
um sistema financeiro, produto da fusão do banco com a siderurgia
formada nos tempos de Mao.
Quando trabalhamos o empírico na quinta parte do trabalho, queremos de-
monstrar que o atual processo de crescimento chinês está cimentado
num poderoso sistema financeiro. O futuro de temas importantes, que vão
desde a inserção externa chinesa, a solução dos impasses agrários – totalmente
relacionados com uma base financeira sólida que capacite a transição da pequena
produção mercantil para formas superiores de produção (cooperativas) –, a moder-
na questão regional e os óbices ambientais, está amplamente relacionado com a
adoção de novas e superiores formas de planejamento. Formas novas de planejamento
diferenciadas pelo assentamento numa verdadeira fortaleza financeira. Eis o novo
no processo chinês (e na própria história do socialismo), amplamente debatido na
quinta parte deste livro. Não se compreende o “socialismo do século XXI”
fora do escopo da necessidade de se adotar um sistema financeiro na-
70
Introdução
cional capaz de dar solução aos imensos desafios impostos pela reali-
dade. Trabalhar estas questões sob a máxima da relação entre sistema financeiro
e soberania no século XXI é o objetivo da quinta parte deste livro.
aaaaaaaaaaaa
E o futuro? O que dizer do futuro? Na resposta a esta questão é que nos re-
metemos ao segundo processo histórico indicado acima. Trata-se de algo análogo ao
processo de formação do poderio norte-americano no século XX. O poderio norte-
americano assenta-se no processo histórico de formação de uma imensa economia
continental na América do Norte na segunda metade do século XIX. A Pax Ame-
ricana e o moderno imperialismo são fruto deste processo que se cristaliza com um
capitalismo centrado em grandes oligopólios industriais e financeiros. Até hoje, e
por muito tempo, estamos condenados a curtir os efeitos deste processo.
Remetendo-nos ao exemplo histórico da formação da economia continental
norte-americana e seu papel na consolidação do capitalismo em escala internacio-
nal, pode-se dizer que o século XXI – e sua história – trará em seu bojo transforma-
ções qualitativas que incidem diretamente no processo de transição capitalismo – socia-
lismo em escala global. Este segundo processo histórico a que nos referimos se baseará
em dois fatos históricos interdependentes: o primeiro na transformação da China em
uma potência financeira em escala global. Se a indústria foi fator de concorrên-
cia entre imperialismo e projetos nacionais autônomos (socialistas e
capitalistas) no século XX, e o próprio capital financeiro capitalista
foi a variável que desequilibrou o jogo, é na formação de uma potência
financeira capaz de superar o legado de Bretton Woods (FMI, Banco
Mundial) – sob a forma de imensos investimentos chineses na peri-
feria – que se conformará uma das bases materiais da transição. Um
país das dimensões da China, necessariamente, caminha para ser um polo gravi-
tacional, na mesma proporção que um dia Marx se referiu à transição mundial ao
socialismo pela gravitação do mundo em torno de Alemanha, França e Inglaterra.
O futuro da periferia (e da solução de diferentes “questões nacionais”) está nesse
processo. Processo não mais ligado a laços ideológicos e políticos que se fragilizam
71
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
72
2. O método e a busca do
sentido histórico da transição
e do “socialismo de mercado”
73
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
75
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
pos teóricos de validade discutível, sendo a mais comum delas uma determinada
análise da inserção chinesa num chamado “sistema-mundo”. Ou seja, “um convite
ao desenvolvimento” feito pelo imperialismo hegemônico, desencadeando grandes
deslocamentos geográficos de cadeias produtivas, que, de um lado, servem ao aten-
dimento da reprodução do capital e, de outro, ao desenvolvimento acelerado das
forças produtivas no país “convidado”1.
O ponto de encontro da absoluta maioria dessas análises encontra-se na ob-
servação de uma “restauração capitalista” em curso na China: algo em andamento
e absolutizado, dadas as relações de profundidade que o país mantém com o ca-
pital internacional e sua respectiva interação interna, com consequências para a
base econômica chinesa. Como tentamos demonstrar ao longo do livro, de forma
imediata cabe aos observadores da “conversão capitalista chinesa” a observação de
Ignacio Rangel endereçada a Jacob Gorender e seu “escravismo colonial”2:
Se, em vez de cientista social, o Sr. Gorender fosse químico, por exemplo, não
poderia, pelo visto, compreender como é que certos grupos de átomos – os radi-
cais – podem passar de uma molécula para outra, sem perderem sua identidade,
isto é, como se fossem simples átomos.
A formação arcaica ou primária de nosso globo contém ela mesma uma série de
estratos de diferentes idades, e dos quais um está superposto a outro; a formação
arcaica da sociedade nos revela igualmente uma série de tipos diferentes, que
formam uns com os outros uma série ascendente, que caracteriza as épocas pro-
gressivas. A comunidade rural russa pertence ao tipo mais recente desta cadeia.
O cultivador já possui nela a propriedade privada da casa que habita e da horta
que constitui seu complemento.
1
Uma crítica à ideia de “sistema-mundo” em comparação ao arcabouço teórico e metodológico
da categoria de “formação social” será apresentada mais adiante.
2
RANGEL, I. “Dualidade e escravismo colonial”. In RANGEL, I. Obras Reunidas. Vol. 2. p. 626. RJ,
Contraponto, 2005.
3
Citado por: SERENI, E. “La categoría de formación económico-social”. In, Cuadernos de Pasado y
Presente, n. 39, pp. 60-61. Córdoba, Siglo XXI, 1976.
76
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
77
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
78
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
b) o planejamento.
79
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
80
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
81
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
82
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
humano não têm determinação universal, mas sim se revelam de forma diferente
em diferentes locais do globo10.
aaaaaaaaaaaa
83
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Logo, as leis econômicas, seu caráter, sua objetividade, alcance histórico, modo
de ação, relações mútuas e suas consequências nas múltiplas determinações do
concreto são o objeto de estudo da economia política.
O desenvolvimento científico da economia política, historicamente, está ligado
aos interesses de determinadas classes progressistas. Seu desenvolvimento inicial
remonta ao momento histórico em que se verificava na burguesia um reservatório
de ideias avançadas. Em primeiro lugar, a economia política desenvolveu-se no qua-
dro da superação do feudalismo pelo capitalismo e em associação com a burguesia
progressista de então. Na medida em que a oposição capital-trabalho tornou-se a
contradição principal – e com o surgimento do imperialismo, esta contradição prin-
cipal criou um aspecto principal residido nas relações centro-periferia –, a ciência
em questão tornou-se associada aos interesses da classe operária e dos movimentos
de libertação ocupados não somente com a libertação nacional em si, mas também
com a apreensão dos mecanismos essenciais de planejamento econômico aos seus
programas de reconstrução nacional.
Assim, a economia política pôde se desenvolver e, em compasso com outras
ciências, dar maiores contribuições à busca da síntese das relações entre homem
e natureza.
12
STÁLIN, J. Problemas econômicos do socialismo na URSS. Anita Garibaldi, 1991, pp. 3-4.
84
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
85
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
assim como a economia política para Engels, “uma ciência pautada pela matéria
histórica”15.
Marx utilizou, de forma muito genérica, a categoria de formação social, como
se vê no Prefácio à crítica da economia política, no qual emprega esta expressão no
mesmo sentido que deu à categoria de sociedade. A expressão e/ou categoria de
formação social ganha força na análise estruturalista, porém de forma ainda muito
pobre, pois a relaciona sem muito rigor à categoria de modo de produção que, em
muitos casos – como frequentemente se pode observar em Althusser –, acaba ne-
gando a unidade dialética de continuidade e descontinuidade do tempo histórico.
Em oposição à leitura estruturalista, Emilio Sereni aufere que a noção de formação
social permite revelar o funcionamento lógico-estrutural e/ou sociológico de uma
dada sociedade. Assim, em Sereni, a categoria de formação social ganha mais cor-
po e mais legitimidade epistemológica. Porém, numa visão particular, é em Milton
Santos que essa categoria atinge sua maturidade e ápice como unidade científica,
pois, para ele, mesmo que a formação social seja intrinsecamente ligada à categoria
de modo de produção, ela está ligada à evolução de uma dada sociedade em sua
totalidade histórica. Segundo Milton16:
A localização dos homens, das atividades e das coisas no espaço explica-se tanto
pelas necessidades externas, aquelas do modo de produção puro, quanto pelas
necessidades internas, representadas essencialmente pela estrutura de todas as
procuras e a estrutura das classes, isto é, a formação social propriamente dita.
Pela inclusão da localização dos homens como uma determinação que pode
e deve ser abarcada pela categoria de formação social é que Armen Mamigonian
(1996, p. 202) lembra que Milton Santos:
(...) percebeu que formação social e geografia humana não coincidem completa-
15
Idem à nota 14; p. 221. Sobre a categoria de formação econômico-social ler: SERENI, E. “La
categoria de formación económico-social”. In Cuadernos de Pasado y Presente, n. 39. Córdoba. Siglo
XXI, 1976; SANTOS, M. Sociedade e espaço: A formação social como teoria e como método. Espaço e
Sociedade. Vozes, 2a ed., Petrópolis, 1982; MAMIGONIAN, A. “A geografia e a formação social
como teoria e como método”. In, SOUZA, M. A. A. (org.): O mundo do cidadão, o cidadão do mundo.
Hucitec. São Paulo, 1996.
16
SANTOS, M. “Sociedade e espaço: A formação social como teoria e como método”. In, Espaço
e sociedade. Vozes. Petrópolis, 1982, p. 11.
86
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
mente, menos pelas teorias que embasam aquela categoria marxista e esta área
do conhecimento acadêmico do que pela prática indispensável de localização da
geografia, nem sempre usada nos estudos de formação social, daí ter proposto a
categoria de formação social.
aaaaaaaaaaaa
87
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
88
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
cada por Braudel que, em suas periodizações históricas (ciclos históricos), abstraiu,
por exemplo, os ciclos de curta (Juglar-Marx) e longa duração (Kondratiev). Tal
negação dos “ciclos econômicos” pode redundar na própria negação do processo de
acumulação ou, na pior das hipóteses, relacionar-se com ele, tal como fez Wallers-
tein: confundindo a acumulação capitalista em si com o processo de acumulação
primitiva a partir do século XVI.
A verdade marxista elementar demonstra que o processo de acumulação capi-
talista opera segundo leis intrínsecas do modo de produção capitalista, sendo que
o processo de acumulação primitiva, engendrado na Europa a partir do século XVI,
criou certas condições objetivas à transição ao capitalismo na Europa dominada
pelo feudalismo. A diferença entre um caso de acumulação e outro reside no modo
de produção em si, pois se a acumulação capitalista é possível somente pela via da
apropriação privada do excedente econômico, que é síntese de uma forma social
de produção, na acumulação primitiva o excedente é, via comércio, ancorado em
diferentes formas de estabelecimento de preços em diferentes modos de produção
do mundo por meio das rotas comerciais, então integradas.
Ao não apreender de forma séria o marxismo, Wallerstein deixa-se levar por
uma definição de capitalismo muito genérica, sintetizada na ideia de produção para
a venda no mercado, em que o objetivo é o lucro máximo. Dessa forma, Wallerstein apro-
xima-se muito mais da economia política produzida por Adam Smith do que da
crítica a ela produzida por Marx. Somente um deslocamento do marxismo – em
sua forma radical –, em detrimento de uma caduca economia política, pode servir
de base a uma falsa totalidade hegeliana (afinal, pode-se vislumbrar o todo mesmo na
parte) e à esquematização e estratificação (logo, não observando historicamente o proces-
so de formação e desenvolvimento das nações) do mundo em centro, semiperiferia
e periferia, acreditando que processos autônomos de desenvolvimento só podem
existir com “autorização” (ou “convite”) e a serviço dos interesses do centro.
Resumindo, tal perspectiva metodológica (que pressupõe a existência do capi-
talismo na Europa do século XV) só pode evoluir devido a outro – mais um – deslo-
camento: o do eixo do capitalismo, da análise do processo produtivo à análise do processo
de circulação. Algo, aliás, muito conhecido entre nós no Brasil, acostumados com as
“hegemonias” cepalina, da teoria da dependência, das ideias de Caio Prado. Por
89
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
20
Idem à nota 23; p. 72.
21
VIEIRA, Graciana M. E. D. Formação social brasileira e geografia: Reflexões sobre um debate interrom-
pido. Dissertação de mestrado apresentada ao PPGEO/UFSC. 1992, p. 92.
22
DOBB, M. A evolução do capitalismo. Zahar. 1976, pp. 155-156.
90
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
23
Sobre as duas formas de transição, ler: MARX, K. “Considerações históricas sobre o capital
comercial”. In: O capital. Tomo 3, vol. 6. e LENIN, V. “Prefácio à 2a Edição”. In: El desarrollo del
capitalismo en Rusia. Ariel História. Barcelona, 1974.
91
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
(...) a mais flagrante evidência das limitações das teses que caracterizaram os
antigos regimes do Leste como foi (é) dada pela própria crise geral que se insta-
lou nesses países com sua derrocada. Afinal, se essas sociedades já eram capi-
talistas, por que estão sendo necessárias rupturas políticas, econômicas, sociais
e culturais tão profundas e traumáticas para adequar seu desenvolvimento à
“normalidade” do mundo capitalista? (...) Basta lembrar que a superação dos
regimes nazifascistas na Europa do pós-guerra não produziu crise semelhante.
Enfim, nos termos da teoria marxista, fica evidente que os países do Leste estão
passando por um processo de profunda ruptura sistêmica [grifo do autor],
e não de mera transformação superestrutural.
Segundo Wallerstein24:
92
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
93
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
94
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
95
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
26
MAMIGONIAN, A. “Desenvolvimento econômico e questão ambiental”. In Cadernos da VII
Semana de Geografia. Universidade Estadual de Maringá. Junho de 1997.
96
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
97
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
instituição. Esta tradição comercial pode-se fazer sentir tanto na expansão territorial
chinesa quanto nas centenas de expedições feitas pelo mundo por chineses (diga-se
de passagem, os chineses foram os inventores da caravela) entre o século XII e o XV.
Tais zonas de pequena produção mercantil (vales do rio Yang-Tsé e Amarelo)
e seu atual desenvolvimento, capaz de puxar à frente a locomotiva chinesa (vales
do Yang-Tsé, Xangai e Guangdong), se enquadram perfeitamente na ideia marxista
– já citada – de “via revolucionária” para o capitalismo, de transformação em capi-
talistas não de comerciantes e sim de pequenos produtores28. É evidente que uma
revolução burguesa não ocorreu na China, mas dessa constatação podemos tirar
algumas outras conclusões. Exploremos melhor essas questões abaixo.
aaaaaaaaaaaa
De certa forma, fica subentendido que Mao Tsetung apoiou-se nos camponeses
pobres para levar a cabo a Revolução Nacional-Popular que liderou. Agora, resta uma
questão prenhe de respostas, que avalia em quais forças sociais Deng Xiaoping29 pôde
se apoiar para levar adiante seu audacioso programa de modernização da China, e
inclusive para ter resistido aos ventos contrarrevolucionários do final da década de
1980, mantendo a China no mesmo rumo traçado em 1949 e retificado em 1978.
Ao longo do tempo, das análises e de conversas feitas no Brasil e na Chi-
na, constatamos que na base de um novo processo de acumulação de novo tipo
(socialista)30, iniciada com a política de Reforma e Abertura, está toda uma classe
de camponeses médios, com comprovada capacidade de iniciativa empresarial, ca-
28
Sobre esta forma de transição feudalismo-capitalismo, ler artigos de Maurice Dobb em res-
posta a Paul Sweezy em A transição do feudalismo para o capitalismo. Paz e Terra, 5ª ed., São Paulo,
2004, 247 p.
29
É mister salientar que Deng Xiaoping valeu-se de sua experiência revolucionária (aos 25 anos,
já era general do Exército Vermelho) e de dirigente (desde o início da década de 1950, era
membro do Politburo do PCCh) para colocar a China no rumo que se encontra em nossos dias.
Como homem que viveu “por dentro” o século XX, pôde-se basear, e muito, nos erros e acertos
de processos como o próprio processo chinês, bem como o soviético.
30
Dizemos de novo tipo, pois, ao contrário do modelo soviético, em que a relação entre campo e
cidade – a formação de poupança – era marcada pelo desfavorecimento do campo, as reformas
de 1978, inspiradas na NEP de Lênin, são caracterizadas pela inversão desta prioridade. Esta in-
versão de prioridade, no caso chinês, deve-se não somente a fatores econômicos, mas principal-
mente a fatores de ordem política, pois os camponeses, desde 1928, são a base social do PCCh.
98
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
pacidade esta recriminada desde o período que vai do início da década de 1950 até
1978. A pujança econômica chinesa explica-se muito pela liberação dessas energias
camponesas esmeradas por séculos de pequena produção mercantil. Não é de es-
tranhar que mais de 70% dos atuais empresários de nacionalidade chinesa eram
camponeses médios em 1978, e que somente na cidade sulista de Shenzen (espelho
maior das reformas pós-1978) cerca de 90% dos empresários o eram em 197831.
Em resumo, pode-se auferir que ao caso atual da China é perfeitamente plau-
sível a aplicação da ideia leniniana que relaciona a implantação do socialismo em
formações periféricas com a “ressurreição” do espírito empreendedor, a energia e a
ousadia empresarial típicas da pequena produção mercantil, que há muito tempo
havia sido sufocada pelo advento do monopólio32.
99
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
100
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
101
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Uma sociedade comunista que não se desenvolveu sobre sua própria base, mas
de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista (...), portanto,
apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelec-
tual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede.
37
Para os chineses, sua etapa primária durará pelo menos até 2050, ano este em que se terá
completada sua modernização.
38
MARX, K. “Crítica ao programa de Gotha”. In Obras escolhidas de Marx e Engels. Vol. 1 Alfa-
Omega. São Paulo. 1977. p. 231.
102
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
cias socialistas do século passado – e seus malogros – são prova cabal disso.
De posse dessas particularidades, fica plausível denominar como uma economia
de mercado sob orientação socialista a formatação de uma base econômica em transição
como a chinesa. Para termos uma ideia, em Marx, somente na fase superior da
sociedade socialista (comunismo) é que se reuniriam condições objetivas para a
superação do direito burguês, e assim se passar a regular a distribuição não mais
em acordo com o que cada um trabalhou e sim em concordância com as próprias
necessidades39. A razão disso, em Marx, encontra-se na necessidade de se gerar,
ainda sob o socialismo, formas que contemplem o rápido desenvolvimento das for-
ças produtivas como forma de se passar de uma situação de escassez para outra
marcada pela abundância40.
Daí a necessidade e a utilidade do mercado – como forma de regular a escassez
e alocar os recursos – e de múltiplas formas de propriedade, nucleada pela proprie-
dade estatal ou coletiva durante a complexa transição de um modo de produção a
outro de novo tipo.
De forma generalizada, eis os pilares do que se convencionou chamar de “so-
cialismo de mercado”41.
103
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
42
Uma síntese dessas formas de transição feudalismo-capitalismo pode ser encontrada no Pre-
fácio à 2ª edição de O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, escrito por Lênin.
104
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
aaaaaaaaaaaa
105
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Cabem ainda mais abstrações. Por exemplo, na simpatia de Gramsci pela via
43
XIAOPING, D. “Respect the knowledge, respect trained personal”. In Selected works of Deng
Xiaoping. Foreign Language Press. Pequim, 1982. Vol. 2, pp. 54-57.
44
REBELO, Aldo & PAULINO, Luís. “Os 60 anos da Revolução Chinesa”. In Revista Princípios. São
Paulo, n. 104, nov.-dez/2009.
106
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
da NEP, como algo que poderia deixar de lado a violência e a virulência, como vis-
to tanto em processo de acumulação por expropriação dos meios de produção em
posse dos camponeses (Inglaterra, por exemplo), e mesmo as “revoluções pelo alto”
e/ou “passivas” em detrimento da chamada “via americana”, mais sutil, vamos
dizer, como algo mais próximo da NEP. Tem grande fundo de verdade a relação
direta entre uma chamada “guerra de posição” – não somente para ilustrar uma
tática defensiva do movimento comunista – e os rumos soviéticos (conjuntura de
isolamento internacional) no final da década de 1920. Assim como, nessa esteira,
também caracterizar o processo soviético pós-NEP como uma “revolução pelo alto”,
de caráter defensivo ante o cerco imperialista, dando primazia à indústria pesada.
Nessa mesma linha gramsciana é plausível ver o bonapartismo como consequência
de processos tortuosos e complexos (URSS e China), personificado em figuras como
Stálin e Mao Tsetung45. Enfim, eis, a nosso ver, a via prussiana socialista (modelo
soviético) espraiada em outras experiências, inclusive a da China, com média de
crescimento anual entre 1950 e 1978 de 6,5% mesmo diante de conjunturas como a
do Grande Salto Adiante e a da Revolução Cultural.
107
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
a uma lógica de industrialização pautada pela indústria pesada, que tinha como
grande objetivo imediato a preparação para a Segunda Guerra Mundial. Abrindo
parêntese, existem ainda duas questões puramente de ordem histórica – quase não
percebidas quando o assunto é a execução de projetos socialistas – que, sob o nosso
ponto de vista, estão diretamente relacionadas tanto com a construção do socialis-
mo até os dias atuais quanto com os limites do “modelo soviético”, expresso numa
necessária “revolução pelo alto”. Portanto, “demonizar” figuras como Stálin e Mao
Tsetung por conta somente da tomada desse tipo de caminho de desenvolvimen-
to pode redundar numa grande “filosofia de brincadeira”, idealista. Advogar, por
exemplo, o caminho da NEP (“via americana”) sem perceber que ele demanda
contatos e comércio exterior desenvolvidos também pode redundar num idealismo
(tal qual foi vítima Bukharin no final de sua vida), o que não justifica analisar e
tampouco apontar os excessos cometidos por tais estadistas supracitados.
A primeira questão reside no fato histórico de o projeto socialista ser o primeiro
a objetivar a abolição da exploração do homem pelo próprio homem, o que não é
qualquer determinante, afinal durante milhares de anos o progresso humano e o
caminho para o rumo da civilização (sociedade pautada pela urbanização e o traba-
lho social na manufatura) dependeram dessa forma de exploração. O segundo fato
histórico era perceptível para qualquer classe que almejasse tanto o poder político
no âmbito das transições anteriores (escravismo-feudalismo e feudalismo-capita-
lismo) e (demandava-se tal condição), quanto o posto de classe dominante economi-
camente. Ora, fica sobremaneira complicado trabalhar a ideia de transição capita-
lismo-socialismo fora dessas determinações. E também pode se tornar a-histórico
e economicista não compreender os limites das primeiras experiências socialistas,
deixando de lado tais parâmetros lastreados historicamente, inclusive as demandas
conjunturais por detrás do “modelo soviético” e da “revolução pelo alto”.
Pois bem, esse caminho de desenvolvimento, intitulado “acumulação primiti-
va socialista”, foi trabalhado por Evgeni Preobrazhenski. Ele foi o mais destacado
teórico da chamada “oposição de esquerda” do Partido Bolchevique46. Brilhante
economista ganhou notoriedade a partir de seus textos sobre a relação entre infla-
ção e industrialização em países atrasados. Como já exposto, foi o primeiro teórico
marxista a expor o que comumente se chama (principalmente pelos chineses) de
46
Sobre indicações de leitura sobre este tema e Preobrazhenski, ler nota 35.
108
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
aaaaaaaaaaaa
Como algo dado historicamente, esse modelo deve ser visto por duas fases: de
ascensão e de queda. De um lado, capaz de transformar países como URSS e China
de formações semifeudais a potências industriais num tempo muito curto em com-
paração com os países capitalistas centrais. Sua fase de dinamismo levou a URSS a
quebrar o monopólio anglo-germânico de aviões a jato em 1932, financiou o maior
esforço de guerra da história moderna, lançou o homem ao espaço antes dos EUA,
além de condicionar o país a adentrar a III Revolução Industrial. Na China, foi
109
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
110
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
111
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
112
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
É verdade, nós estamos construindo o socialismo, mas isso não significa que
o que nós conquistamos até agora corresponde ao padrão socialista. Não antes
50
XIAOPING, Deng. “To uphold socialism we must eliminate poverty”. In, XIAOPING, Deng.
Selected works. Foreign Languages Press, Beijing. 1994. Vol. 3, pp. 221-223.
113
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
da metade do próximo século, quando nós tivermos atingido o nível das nações
moderadamente desenvolvidas, poderemos dizer que realmente construímos o
socialismo e declarar de forma convincente que o socialismo é superior ao capi-
talismo. Nós estamos avançando rumo a essa conquista.
Essa estratégia, que foi capaz sobreviver à débâcle do bloco socialista no início
da década de 1990, guarda em si algumas ideias-força, entre elas: a ideia, elaborada
ainda por Mao Tsetung, do chamado socialismo com características chinesas e a da
teorização – já mencionada conforme citação anterior do economista russo Evgeni
Preobrazhenski – de uma determinada etapa primária do socialismo, sintetizada sobre
uma base econômica privada e mercantil, porém hegemonizada pelo setor socialis-
ta da economia sob a égide de uma superestrutura de poder popular, cuja síntese pode
ser vista na essência de um chamado (nada paradoxal) socialismo de mercado. Este
conjunto de ideias e conceitos trabalhados minuciosamente é parte de um todo que
envolve uma grande política de Estado nascida em 1978, cujas palavras de ordem
estão expostas segundo as chamadas Quatro Modernizações51.
De forma concreta, as expostas ideias-força implicaram o reconhecimento da
impossibilidade de uma Terceira Guerra Mundial, envolvendo o capitalismo e o so-
cialismo e abrindo condições políticas internas a um amplo processo histórico e
geográfico de inserção soberana chinesa na chamada “globalização” como forma
– em um mundo marcado pelo rápido desenvolvimento das forças produtivas (de-
cadência do modelo fordista com grandes impactos negativos sobre a URSS e o
nascimento da III Revolução Industrial centrada no Japão) –, reprojetando o país
no rol das grandes nações. Faz-se necessário salientar que esse processo de retifica-
ção de curso baseou-se em dois movimentos, um interno e outro externo, capazes de
moldar as duas molas propulsoras iniciais do projeto chinês, a saber:
à ciência e tecnologia. Essa ideia surge elaborada inicialmente pelo outrora primeiro-ministro
Zhou Enlai em 1964.
114
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
aaaaaaaaaaaa
115
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
116
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
1 000 000 –
100 000 –
10 000 –
0–
50 –
100 –
150 –
200 –
250 –
300 –
350 –
400 –
450 –
500 –
550 –
600 –
650 –
700 –
750 –
800 –
850 –
900 –
950 –
1000 –
1050 –
1100 –
1150 –
1200 –
1250 –
1300 –
1350 –
1400 –
1450 –
1500 –
1550 –
1600 –
1650 –
1700 –
1750 –
1800 –
1850 –
1900 –
1950 –
2000 –
2030 –
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.
A população chinesa ainda não atingiu seu pico (ver gráfico acima). O início
de sua curva decrescente deverá ocorrer por volta de 2030, quando o país poderá
chegar a 1,5 bilhão de habitantes.
Apesar de a economia da China ter superado a japonesa em 2010, tornando-se
o segundo maior PIB do mundo, sua economia ainda se encontra muito atrás do
conjunto norte-americano e da União Europeia. A China – apesar das duplicações
do PIB pós-1978 – ainda se situa entre as economias de baixa renda per capita. É
sempre relevante colocar em pauta o fato de, com 1/5 da população mundial, a Chi-
na contar com somente 6% das terras em condições de plantio no planeta.
No campo de análise da produção industrial e do caráter extensivo caracte-
rizado por um grande aporte de capital e trabalho, em detrimento da incorporação de
novas tecnologias, podemos afirmar que esse tipo de produção é grande fonte de
contradições, cuja superação é determinada pela incorporação de novos paradig-
mas tecnológicos capazes de acelerar a produtividade do trabalho. Não somente
isso – conforme o desenvolvimento interno do país vem nos mostrando –, também
é necessário aprofundar a mudança em curso do modelo, o que implica o fortale-
117
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
53
BUSTELO, Pablo. “China 2006-2010: hacia una nueva pauta de desarrollo”. In Revista electró-
nica de la Fundación Real Instituto Elcano. Madrid: n. 127-2005 – 26-10-2005. Acessado em 25-03-
2007.
54
BEI Jin. “From concept to implementation: a scientific concept of development”, Time, 24-
01-2007. Disponível em: http://www.safea.gov.cn/english/content.php?id=12742807. Acessado
em 03-03-2008.
118
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
em larga medida, assentados numa grande inflexão externa do regime, dada sua
não autonomia financeira e tecnológica. O que a China e seu projeto têm a favor na
atual contenda é o fato de as suas soluções estarem ao alcance de uma economia
já calcada em bases industriais sólidas, com uma política ativa em ciência e tecno-
logia e – o principal – nos marcos de uma solidez financeira sem precedentes em
sua história.
Essa conjunção de fatores é condição objetiva para o lançamento de novas e
superiores formas de planejamento, como expressão prática e em correspondência aos
objetivos e desafios colocados pela conjuntura à atual geração dirigente. Um plane-
jamento de nível superior que signifique a utilização do acúmulo financeiro chinês
no combate às desigualdades sociais e regionais num outro patamar e que seja
capaz de aproveitar a oportunidade dada pela história. O momento atual se carac-
teriza pela convivência em um mesmo mundo de milhares de cabeças, homens
dedicados à ciência. Homens esses que em nenhum momento da história foram
contemporâneos – tanto nossos, quanto de si mesmos – e que à sua disposição con-
tam, especialmente no centro do sistema, com recursos materiais inimagináveis e
capacidade de dar curso às suas elucubrações mediados por um planejamento estatal
e privado cada vez mais milimétrico.
Ora, se a prática é o critério primário capaz de auferir a verdade, é muito claro
que novas abordagens em matéria de planejamento estão altamente inseridas em
projetos como os relacionados ao desenvolvimento do oeste e à recente reforma fi-
nanceira que possibilitou reduzir a “zero” os impostos sobre os camponeses (tendo
como resultado a colheita recorde de grãos de 528,5 milhões de toneladas em 2008).
Tais abordagens planificadoras podem ser registradas inclusive no atual aproveita-
mento da oportunidade aberta pela crise financeira dos EUA para a compra, por
parte de chineses, de ativos bancários tanto norte-americanos quanto europeus.
No plano da política, isso se expressa em novas ideias-força, entre elas o obje-
tivo de construção de uma “sociedade socialista harmoniosa” e a transformação do
“conceito científico de desenvolvimento” em política de Estado.
Enfim, se podemos falar de um legado que se clarifica no passar dos últimos
30 anos, pode-se registrar que, como uma civilização milenar, os chineses pude-
ram tanto modelar seu próprio projeto revolucionário quanto adaptar os tentos da
Revolução Industrial inglesa com as próprias formas rurais de industrialização,
119
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
55
Sobre o mercado e a lei do valor, no suplemento ao Prefácio do Tomo 3 de O Capital, F. Engels
escreveu: “Mas a troca de mercadorias remonta a uma época pré-histórica que nos reporta, no
Egito, a pelo menos 3.500, talvez 5.000, na Babilônia, a 4.000 e talvez 6.000 anos antes de nossa
era; a lei do valor reinou por conseguinte durante um período de 5.000 a 7.000 anos”. Já Mau-
rice Dobb, em seu clássico A evolução do capitalismo (p. 129 da 7a edição), deixa claro que: “No
correr de suas notas sobre o capital mercantil, Marx assinalou que este, em seu estágio inicial,
tinha uma relação puramente externa com o modo de produção. Que permanecia independente
e intocado pelo capital: o mercador era apenas o ‘homem’ que ‘removia’ os artigos (...) para
ganhar com as diferenças de preço entre as diversas zonas produtoras”. Enfim, o que determina
a característica do processo é a produção e não a circulação como muitos pensadores consagrados
(I. Wallerstein, P. Sweezy, C. Prado etc.) colocavam ou colocam. Giovanni Arrighi, em Adam
Smith em Pequim (p.35), de forma quase brilhante, numa leve crítica a Gunder Frank e outros
“teóricos da dependência”, remete-nos à seguinte reflexão: “Até a década de 1960, nenhum teó-
rico marxista de algum relevo havia aceitado o convite de Marx para ‘deixar por algum tempo a
esfera barulhenta (do mercado), onde tudo acontece na superfície e à vista de todos os homens,
e seguir (o possuidor do dinheiro e o possuidor da força de trabalho) até a morada oculta da
produção’, onde, prometia, ‘descobriremos finalmente o segredo da força do lucro”.
120
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
121
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
122
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
123
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
camente falando – está sob comando da política que, por seu turno, tem seu centro
imediato na correlação de forças.
aaaaaaaaaaaa
124
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
Como se vê, para os ultraliberais a economia política não é uma ciência voltada
à matéria histórica, onde o fenômeno é visto como problema histórico e a busca de
sua essência passa por sua historicização. Daí o caráter místico, idealista e coisifi-
cador do pensamento liberal.
A essência do materialismo histórico encontra-se na demonstração de que as
leis e categorias da economia política não são imutáveis como as leis da natureza,
mas sim o resultado das relações econômicas entre os homens no curso do pro-
cesso social de produção, distribuição e troca dos meios materiais. Logo, as leis da
economia política – e as relações sociais que dela derivam – têm prazo de validade
determinada pela história.
Para os ultraliberais, a propriedade privada dos meios de produção é requisito
fundamental tanto para a alocação racional dos recursos como para a liberdade de
escolha dos consumidores.
Tomando a observação acima e agregando que, na cultura liberal, o processo
econômico é regido por leis de cunho universal (logo, negando a formação econô-
mico-social), com a finalidade de colocar em xeque a hegemonia exercida atual-
mente no mundo por esse “corpo teórico”, podemos questionar:
125
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
126
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
127
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
128
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
rem à razão auferida das utilidades marginais e dos preços dessas mercadorias67.
A apreensão de automação industrial é a condição objetiva principal ao êxito
desse processo de longo prazo. Além do já escrito, a automação industrial permite
a libertação do homem do jugo da máquina: é o fim do processo de educação do
proletariado que, enfim, poderia gerir a produção à sociedade.
Mas vale dizer que o processo descrito acima – concebido pelos clássicos e
melhor decifrado por pensadores como Oskar Lange – deve ser passível de prova no
âmbito da formação econômico-social. Eis o “x” da questão. O exposto é o genérico,
mas – ao contrário do momento em que se generalizou o modelo soviético – o salto
metodológico reside no estudo do objeto de análise. Na China, em nosso caso.
129
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Aliás, talvez seja nesta relação entre “local e global” que Marx tenha superado
os tratados liberais. Para os liberais, as leis econômicas são universais e servem de
parâmetro tanto para analisar o funcionamento da Bolsa de Nova York quanto da
economia natural do deserto da Austrália. A história, a formação social e a exis-
tência da matéria, precedendo o pensamento, estão fora do escopo da chamada
“economia vulgar” (os monetaristas de hoje). Assim também cabe ao socialismo.
Ora, não é incomum a relação direta entre o projeto socialista com propostas ultra-
estatizantes ou, nas palavras de Gramsci, a “estatolatria”. O “modelo soviético” e a
própria III Internacional, além de seus partidos-satélites pelo mundo, contribuíram
muito para essa lógica da primazia da indústria pesada e da completa estatiza-
ção dos meios de produção, partindo de princípios maniqueístas quanto ao papel
histórico da propriedade privada. Modelo com potencialidades comprovadas pela
história recente teve – dentre outros limites – na escassez do investimento privado
um sério problema, pois ao sobrecarregar o Estado em investimentos prioritários
como a indústria pesada e depender, em demasia, de safras camponesas, acabava
afetando gravemente a demanda.
Carlos Aguiar de Medeiros expõe esse problema como se segue68:
68
MEDEIROS, Carlos A. de. “A China como um duplo polo na economia mundial e a recentra-
lização da economia asiática”. In Revista de economia política. Vol. 26, n. 03, julho/setembro de
2006.
130
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
131
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
132
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”
ferramental teórico de certa forma inaugurado por Oskar Lange, podemos traçar,
mesmo que de forma inicial, um esboço do modelo socialista de mercado chinês.
Sob outra ótica, uma maneira mais tranquila e científica de se compreender
a experiência chinesa, suas escolhas pós-1978 e atuais contradições (inerentes a
qualquer processo social) depende, em grande monta, de um olhar historicizado,
trabalhando uma sofisticação metodológica intrínseca à junção de história, geogra-
fia, economia e política.
Algo que pode deixar de lado a sedução tanto do historicismo quanto do econo-
micismo, ambos viciantes e anticientíficos.
133
3. Estado, desenvolvimento
e a dinâmica da
formação social chinesa
135
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
137
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
138
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
Heilongjiang
Jilin
Liaoning
Xinjiang
Mongólia Interior Pequim
Gansu Tianjin
Hebei
Ningxia Shanxi Shandong
Qinghai
Jiangsu
Shaanxi Henan
Xizang Xangai
Chengging Anhui
Hubei
Sichuan Zhenjiang
Jiangxi
Hunan Fujian
Guizhou
Taiwan
Yunnan
Guangxi Guangdong
Hong Kong
Hainan
Fisicamente, o país faz lembrar uma escada com três degraus, começando com
uma média de 4 mil metros no Platô Qinghai-Tibete, localizado no noroeste do
país, planaltos e bacias ao centro com altitude variando de mil a 2 mil metros aci-
ma da linha do mar e terminando com regiões montanhosas e planas com menos
de mil metros de altitude, conforme o mapa 2:
Mapa 2 - China: elevações topográficas
<0
0 - 500
500 - 1000
1000 - 2000
2000 - 3000
3000 - 4000
4000 - 5000
5000 - 6000
> 6000
139
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
140
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
141
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
menos e de forma diferenciada ao longo dos anos: não existe um índice padrão de
chuvas para a área norte do país, o que ocasiona, de tempos em tempos, grandes
secas, tendo provocado há muitas décadas grandes motins camponeses em função
da seca e da fome.
Por outro lado, seguindo orientação de John King Fairbank em seu clássico
sobre a China1, torna-se irresistível citar algumas comparações procedidas por ele e
que são muito caras a geógrafos e marxistas. A complexidade que constatamos na
formação social chinesa reside não somente em questões puramente históricas e
populacionais – e isso fica mais latente nas devidas comparações. A título de exem-
plo, segundo Fairbank e Goldman, e constatadas por nós2:
(...) Cada uma das três regiões ao longo do curso do rio Yang-Tsé – a província
de Sichuan a oeste, as províncias gêmeas de Hubei ao norte e Hunan ao sul, e o
delta do baixo Yang-Tsé – é comparável com a Alemanha em extensão, e todas
elas são maiores em termos populacionais.
Por isso, no sentido de atingir o objetivo deste relato, faz-se necessário relacio-
nar essa complexidade “norte-sul” com a própria topografia do país, pois percebe-
mos que a China (mais precisamente no Tibete) se transforma no maior altiplano
do mundo, local onde nascem grandes cadeias de rios em obediência a uma decli-
vidade até as áreas planas do litoral, de leste para oeste; sinal de grandes enchentes,
de milhares de habitantes em situação de risco; risco de plantações se perderem.
Daí o chamado à relação entre exercício de poder estatal na China e o “domínio das
águas”. Além disso, as condições naturais e seu poder de influência sobre diferentes
regiões do país fazem emergir diferentes questões regionais, sociais e políticas.
Resumindo, as condições naturais do país, no passado e no presente, nos re-
servam convincentes respostas à necessidade milenar da presença de um Estado
centralizado e forte e de um desenvolvimento econômico contínuo para abarcar as
necessidades materiais do país. É a história e a conjuntura impondo desafios que
somente nos marcos do binômio Estado e desenvolvimento são passíveis de enfren-
tamento. Vejamos um pouco da história dessa relação, no sentido de compreender
o presente.
FAIRBANK, J. K. & GOLDMAN, M. China: Uma nova história. L&PM. Porto Alegre, 2006.
1
2
Idem, p. 23.
142
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
Em primeiro lugar, assumamos não ser algo fácil nem tampouco tranquilo
caracterizar o processo de desenvolvimento. Afirmamos isso porque, assim como a
economia política não é a mesma para todos os países e regiões, o processo de de-
senvolvimento – e sua análise – não deve ser enfrentado partindo-se de princípios
teórico-metodológicos generalizantes. Podemos, sim, dizer que o processo de de-
senvolvimento, como um processo histórico, engendra transformações de variadas
ordens, entre elas o movimento populacional, a forma de produção e apropriação
da riqueza, a técnica, a divisão social do trabalho etc.
Não nos restrinjamos a tais fatores. Sendo o homem produto da base ma-
terial de seu tempo, questões de ordem subjetiva também seguem em marcha
adiante, entre elas a própria visão que o homem guarda de si mesmo e sua pos-
tura diante de seu entorno, algo como uma crescente preocupação enquanto in-
divíduo (e parte de um conjunto humano em pleno desenvolvimento de suas
particularidades), por exemplo, perante a nação. Daí, o surgimento de questões
143
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e mor-
re, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da
Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá
por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro
dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves
problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes
disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos
e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos.
144
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
145
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
146
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
147
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
148
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
comercial da região e em plena competição, por esse mesmo centro tributário, com
o Japão. Sob outra ótica, os dois sistemas (asiático e europeu) poderiam ser diferen-
ciados, por um lado, pela não existência de um centro de poder nítido na Europa,
dando origem à guerra como forma de solução de seus impasses, e, por outro, pela
indiscutível centralidade da China no sistema asiático, o que levou o campo da
concorrência entre os Estados asiáticos, desde então, ao campo do comércio. Mas a
relação entre os desequilíbrios de poder como explicação para certa “paz duradou-
ra” não encerra a discussão. Arrighi, amparado por outros pesquisadores, coloca a
questão do “caminho ao desenvolvimento” verificado na Europa e Ásia como outra
fonte de explicação que retomaremos, mais adiante, na discussão sobre o processo
de acumulação na China.
Como sempre gostamos de salientar, além de uma economia de mercado com
mais de 3 mil anos de existência, o instituto do concurso público para seleção de
quadros ao serviço público existe há 1.500 anos, moldando não somente desta for-
ma as bases de um grande Estado nacional, mas também a própria e atual Repúbli-
ca Popular. A própria assertiva acerca da variável “trabalho escravo” perde sentido
ao se estudar, com a alma menos armada, as grandes rebeliões camponesas que
sacudiram o Império Chinês ao longo dos últimos 25 séculos.
Antes de continuarmos nosso raciocínio, outro parêntese se faz necessário e
tem relação direta com o dinamismo chinês. Acerca do processo de formação e con-
solidação da nação chinesa, é oportuna a seguinte observação de Armen Mamigo-
nian, que busca contrastar a equivocada ideia segundo a qual o processo de forma-
ção da referida nação deu-se baseado em um único ponto geográfico. Segundo ele6,
Por volta de 2100 a.C. as organizações pré-dinásticas (de 5000 a 1700 a.C.) come-
çaram a ceder lugar às chamadas dinastias antigas, Xia, Zhang, Zhou e ao perí-
odo das Primaveras e Outonos e ao período dos Reinos Combatentes, ainda du-
rante os quais o rei do Estado de Qin partiu para encarniçadas lutas de conquista
de numerosos Estados rivais e concluiu a unificação da China, conferindo-lhe
um sentido de nacionalidade (dinastia Qin: 221 a 207 a.C.). Portanto, deve-se
insistir na ideia de que houve um longo período histórico de milênios para que
culturas nascidas lentamente ao longo dos rios Amarelo e Azul, em Shaanxi e
outros pontos desde 5000 a.C. e não num único lugar como se pensava no início
6
Idem à nota 4.
149
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Seja em pontos da obra de Marx e Engels ou mesmo nos – até então am-
plificados – manuais de economia política editados na URSS, aprendíamos que o
desenvolvimento das forças produtivas é expressão exata do nível de relação entre
o homem e a natureza, e que a própria técnica nada mais é do que expressão da do-
minação humana sobre o meio natural. Além disso, constatávamos que a própria
superação das formas atrasadas de produção depende, sobremaneira, da forma em
que se dão na relação entre os próprios homens.
Esse tipo de elaboração guarda grande sentido na compreensão da historicida-
de do desenvolvimento chinês, pois se a relação entre homem e natureza terá nas
forças produtivas e na técnica sua ulterior expressão, nunca é demais lembrar do
próprio ambiente natural que deu vazão ao surgimento da civilização responsável
pela origem do antigo e atual Estado moderno chinês. É importante sublinhar os
motivos do surgimento e da sobrevivência desse Estado ao longo dos séculos e de
sua base natural, conforme segue abaixo:
150
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
151
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
ao fato de, naquele tempo, a alta produtividade agrícola localizada em meio a uma
rota comercial (Rota da Seda) guardar muito mais vantagens do que um comércio
baseado nas regiões costeiras11.
Porém, pelos motivos já expostos acima, encetou-se a transformação do vale
do Yang-Tsé numa região densamente povoada; atributo este – causa e consequên-
cia – de um grande aumento da produtividade do trabalho no país, emoldurando-
-se um quadro do que viria se tornar uma superestrutura, já no século XVIII, que
se autodenominava “Centro do Mundo”. Com o passar dos tempos, a expansão po-
pulacional e o início das invasões por tribos pelo norte motivaram a transferência
populacional a outras regiões, sobretudo ao sul e ao sudeste, o que tornou, por volta
do século XII, o vale do Yang-Tsé uma região densamente povoada e o colocou em
vias de rápido desenvolvimento econômico. Na atualidade, esta região tem servido
como um ímã de investimentos crescentes por parte de grupos de empresários de
Taiwan.
Essa viragem ao sul ganhou ímpeto com o incentivo a tecnologias relacionadas
a estaleiros e produção dos navios mais rápidos do mundo até então, possibilitando
inclusive uma passagem do navegador Zheng pelas Américas, antes mesmo dos eu-
ropeus. Esse momento de ameaças externas e de prejuízos financeiros por conta da
pressão vinda do norte demarca o início de um processo de maior interação chinesa
com seus vizinhos próximos e de aumento da importância da tributação ao comér-
cio marítimo privado, e de momentos em que inclusive estatizou-se esta forma de
intercâmbio. Esse período evidencia o exposto acima, acerca da não militarização
das relações entre os países da Ásia. A concorrência era puramente comercial, po-
rém contraditória. Aqui, um breve parêntese: a argumentação de que esse “dese-
quilíbrio de poder” não seria suficiente para uma “paz duradoura” (apesar de ter
havido paz duradoura na Ásia) encontra amparo nas investidas militares japonesas
no século XIV. Eis aí um ponto acerca da dinâmica chinesa que nos leva também a
crer na existência de ciclos de crescimento – tanto econômicos como institucionais
– “para fora” e “para dentro”, utilizando a feliz observação de Prebish e Ahumada
acerca do processo de substituição de importações.
11
WOO, Wing Thye & BAO, Shuming: “China: case study on human development progress towards
the millennium development goals at the sub-national level”. In Human development report office.
Occasional Paper. PNUD, 2003.
152
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
aaaaaaaaaaaa
153
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
154
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
155
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
156
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
confucianos (senso de hierarquia e respeito aos mais velhos) aliados a uma rebeldia
típica taoista.
157
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Os grandes vales férteis do rio Amarelo e do rio Azul (China), Ganges (Índia),
Nilo (Egito), e dos rios Tigre e Eufrates (Mesopotâmia), são considerados como os
berços civilizacionais. “Civilizacionais” no sentido mais amplo do termo, pois a
tranquila convivência entre homem e natureza permitiu tanto saltos espetacula-
res no desenvolvimento das forças produtivas (surgimento precoce, cerca de 4 mil
anos atrás, de economias mercantis, dados os crescentes excedentes de produção
agrícola e da invenção do arado de boi) quanto (e consequentemente) o surgimento
de filosofias tolerantes e civilizatórias (taoismo, confucionismo e hinduísmo). No
Oriente o indivíduo é parte da natureza, que, por sua vez, é o centro do mundo. Na
China, por exemplo, a influência desse tipo de expressão filosófico-ideológica pode
ser percebida nos inúmeros quadros e desenhos que se vendem em lojas ou mesmo
nas ruas, onde uma verdadeira “ode à natureza” é apresentada.
Abrindo parêntese, eis o sentido histórico da proclamada “sociedade socialista
e harmoniosa” perseguida pelos atuais herdeiros de Mao Tsetung no poder central
do país. Harmonia entre homem e natureza.
É curioso notar que Sócrates, Platão e Aristóteles, fundadores da moral oci-
dental, sistematizaram propostas comportamentais semelhantes e quase con-
temporâneas às de Confúcio e Lao-Tsé. Cabe a nós nos perguntar, pesquisadores
ou simplesmente curiosos: se o confucionismo e o taoismo se encontram ainda
presentes e vivos na formação moral do povo chinês, por que no Ocidente os
fundadores da moral ocidental (filosofia clássica grega) estão devidamente co-
locados na lata de lixo da história? Interessante questionamento. De imediato,
deixamos a dica para irmos além de Michel Foucault que, apesar de descobrir
brilhantemente o desdobramento da subjetividade ocidental na lógica do “vigiar
e punir”, não apontou os verdadeiros mecanismos do desenvolvimento histórico
dessa anomalia superestrutural.
Mudando o foco, analisando-se os fenômenos dessa forma não é difícil enten-
der que o surgimento de filosofias do tipo “destino manifesto”, “povo eleito”,e afins
seja produto de regiões do globo onde o homem teve de arduamente dominar a na-
tureza, por exemplo, do Mediterrâneo Oriental até a Europa Ocidental. Esse tipo de
relação dominadora diante da natureza levou o homem europeu ocidental a transi-
tar do escravismo ao feudalismo, daí até a pequena produção mercantil num ritmo
histórico muito mais lento que nos “berços civilizacionais”; porém, com resultados
158
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
aaaaaaaaaaaa
159
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
160
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
de Jiang Zemin, ao contrário do que ocorre com Hu Jintao e Wen Jiabao, muito
populares por conta da atual disposição de enfrentar as desigualdades. A questão
social ganha força no país, daí a figura de Mao encontrar-se cada vez mais em des-
taque em grandes centros como Xangai e mesmo Shenzen, nos “fundos” de Hong
Kong. Não foram poucas as pessoas, com as quais pudemos conversar na China,
que relacionaram esse “ressurgimento” ao culto de Mao Tsetung aos problemas do
desenvolvimento, afinal a China está muito longe de ser um paraíso. Nesse sentido,
a questão cultural impulsiona mudanças de postura da superestrutura de poder
para com o desenvolvimento e suas implicações.
A história demonstra que mudanças de postura dos condomínios de poder
instalados advêm somente de pressões “de baixo”. E a própria história chinesa é
testemunha concreta desse tipo de movimento.
161
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
a) Será que a simpatia do chinês comum pelo marxismo não tem ligação
direta com o fato de o próprio desenvolvimento capitalista ter sido nega-
do ao país como forma de se retomar um chamado “rejuvenescimento”
da nação chinesa diante da brutalidade ocidental entre 1839 e 1949?
b) Existe contradição entre o discurso socialista e o nacionalista, na me-
dida em que a história recente tem demonstrado que somente pela via
socialista seria possível o “rejuvenescimento” da nação chinesa?
c) Qual a contradição da máxima da III Internacional sobre a junção entre
162
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
163
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
sobre o próprio conceito de desenvolvimento, como algo que deve estar plenamente
relacionado com o desenvolvimento nacional na periferia, conforme tentamos de-
monstrar. Retornando a Marx e Engels, se o desenvolvimento das forças produtivas
expressa determinados níveis de relações entre o homem e a natureza e entre os
homens consigo mesmos, o imperioso deste capítulo é expor as condições naturais
que baseiam a formação e o desenvolvimento dessa nação; causa e consequência do
“socialismo em um só país”. Num outro nível de análise, podemos concluir (como
exposto no capítulo) o entrelace entre a questão nacional na periferia após a Segun-
da Guerra Mundial e o desenvolvimento.
Assim sendo, pode-se concluir tranquilamente, para o caso chinês, que o de-
senvolvimento é o ponto de fusão entre o socialismo com características
chinesas e o próprio projeto nacional chinês. Como exemplo, esta relação é
muito clara na necessária demonstração da concentração territorial da população
chinesa e da porcentagem das terras em condição de plantio do país. Foi uma for-
ma demonstrada, neste capítulo, de colocar o leitor a par do imperativo do de-
senvolvimento na China, assim como o próprio imperativo do socialismo, único
caminho possível para o desenvolvimento – em forma quase de via prussiana com
características socialistas, e numa “via dos produtores”, maximizando a capacidade
empreendedora do camponês chinês. São formas de desenvolvimento condiciona-
das pela história e a conjuntura.
Além de alguns mapas descritivos, lançamos mão de um pouco de nossas ex-
periências pelo país como forma de proporcionar maior vivacidade ao livro e à pró-
pria descrição num ponto de encontro entre o concreto e o abstrato e entre o teórico
e o empírico. Tentamos, então, colocar em sua devida medida a capacidade de pôr à
prova nossa própria experiência naquele país e inclusive nossa própria visão daque-
le processo singular, que não se limita aos números e aos relatórios oficiais. Acre-
ditamos que neste capítulo muitas de nossas visões acumuladas foram expostas,
inclusive enfrentando uma polêmica nada periférica com alguns pontos da grande
obra de Giovanni Arrighi.
Com alguns exemplos, também tiramos algumas conclusões acerca do Estado
nacional chinês, tentando deixar nítido que, sobre uma base natural “x”, capaz
de elevar substancialmente o nível de desenvolvimento das forças produtivas do
país, surgiu um Estado – conforme a própria topografia do país exige – planejador,
164
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
165
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
166
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa
167
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
168
4. O desenvolvimentismo
chinês com características
socialistas
169
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
171
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
2
STALIN, J. “The foundations of leninism”. In Works of Joseph Stalin. Foreign Languages Pu-
blishing House. Moscou, 1953. Vol. 6, p. 121.
172
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
173
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
é buscar a essência da NEP aplicada por Lênin e, em seguida, de posse dessa es-
sência, compreender sua aplicação à China. Algo fora de parâmetros modelares e
com grande serventia à explicação de processos de desenvolvimento e transição em
formações sociais agrárias e periféricas. O que significa, para nós, compreender a
essência da transição encetada sob uma pequena produção mercantil, variando
formas de acumulação e tendo como objetivo o próprio socialismo. Neste caso, o
“socialismo de mercado” é o meio por onde as forças produtivas terão ambiente
superestrutural para sua maximização.
aaaaaaaaaaaa
174
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
175
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
176
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
6
Apesar de utilizar outras denominações ou slogans (“combate à inflação”, “responsabilidade
fiscal” etc.), a grande verdade é que a teoria das vantagens comparativas é o grande pano de
fundo das políticas econômicas monetaristas. Concretamente, isso se dá a partir da adoção de
políticas, monetária e fiscal, que sustam o desenvolvimento de um sistema financeiro nacional.
Ou seja, ao inviabilizarem a fusão entre capital bancário e industrial (a partir de “teorias” que
contemplam a não existência de poupança interna na periferia), pelo caminho da abertura co-
mercial (pela via da liberalização do câmbio) e compressão da demanda (altas taxas de juros),
o que se busca é uma lógica de desenvolvimento que leva às últimas consequências o legado da
utilização das vantagens comparativas. É neste momento que o direito ao desenvolvimento ga-
nha contornos políticos e cores revolucionárias (questão nacional na periferia x imperialismo).
177
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
7
Sobre essa problemática e a relação entre desenvolvimento periférico, trocas entre campo e
cidade, economia monetária e transformação da pequena produção mercantil em indústria, su-
gerimos, de Lênin, entre tantos trabalhos:
LÊNIN, V. El desarrollo del capitalismo en Rusia. Ariel História. Barcelona. 1974. 581 p.
________. “Economics and politics in the era of the dictatorship of the proletariat”. In LÊNIN
V. Collected works, 4th English Edition. Progress Publishers. Moscou, 1965. Vol. 30, pp. 107-117.
________. “How to organize competition?”. In LÊNIN V. Collected works, 4th English Edition.
Progress Publishers. Moscou, 1965. Vol. 26. pp. 404-415.
________. “Sobre o imposto em espécie (O significado da nova política e as suas condições)”. In
Lênin, V. Obras escolhidas. Editora Alfa-Omega. São Paulo. 2004. Vol. 3, pp. 492-520.
178
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
8
LÊNIN, V. “Sobre o imposto em espécie (O significado da nova política e as suas condições)”. In
Lênin, V. Obras escolhidas. Editora Alfa-Omega. São Paulo. 2004. Vol. 3, pp. 493 e 508-509.
179
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
• pequena produção mercantil (que inclui a maioria dos camponeses que ven-
dem cereais);
• capitalismo privado;
• capitalismo de Estado;
• socialismo.
Citação dada, o passo seguinte deve refletir a análise dos diferentes níveis de
transição nesta formação social complexa. Neste mesmo documento, Lênin assinala
o papel dominante da formação econômica e social socialista no conjunto da eco-
nomia. Essa hegemonia deve-se em função do controle estatal sobre, basicamente,
fulcros de monopólio na indústria, no setor de comunicações, sistema financeiro,
ferrovias e solo urbano e rural, além, é claro, do – mais importante – encerrado no
condomínio do poder estatal monopolizado pelo Partido Bolchevique. Por outro
lado, de grande importância é a sua percepção dialética da impossibilidade de uma
transição direta ao socialismo numa formação social com essas características.
Essa “percepção dialética” de Lênin, na verdade, não constitui novidade na
literatura clássica desde então. Independentemente de Marx e Engels não terem
elaborado algo acabado sobre o problema da transição, é muito clara essa tendência
de não possibilidade de transição em linha reta, o que o próprio documento sobre
o Programa de Gotha deixa claro. No caso de Lênin, com sua teoria sobre o impe-
rialismo e o caráter de “aspecto principal da contradição principal” tomada pela
“questão nacional na periferia”, é de grande interesse sua proposição de tomada
de consciência acerca do grande avanço correspondente à introdução e ao aprofun-
damento de mecanismos de capitalismo de Estado tomando o exemplo alemão,
como a última matéria nesse sentido. Algo que, segundo nosso entendimento, tem
grande valia para casos de transição em formações sociais de certa complexidade,
entre elas a China. Ilustramos uma síntese dessa matéria (capitalismo de Estado),
na segunda observação sugerida mais acima, conforme Lênin:
180
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
não temos forças para realizar a passagem direta da pequena produção ao socia-
lismo, o capitalismo é em certa medida inevitável, como o produto espontâneo
da pequena produção e da troca, e, portanto, devemos aproveitar o capitalismo
(principalmente dirigindo-o para a via do capitalismo de Estado) como elo in-
termédio entre a pequena produção e o socialismo, como meio, via, processo ou
método de elevação das forças produtivas.
181
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
182
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
Não, do mesmo modo que as forças produtivas existentes não podem ser multi-
plicadas de um só golpe na medida necessária para a instituição da comunidade
dos bens. A revolução do proletariado que, com toda a probabilidade está para
se produzir, só poderá, portanto, transformar gradualmente a sociedade atual e
só poderá abolir a propriedade privada quando tiver criado a massa de meios de
produção necessária para isso.
183
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
184
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
185
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
advento das reformas econômicas no campo chinês com a transição de uma eco-
nomia centralmente planificada para outra regida pelo mercado. Trata-se de uma
meia verdade, afinal transitou-se de uma economia onde o poder do consumidor
estava atrelado a um planejamento central ocupado em gerir o número de um de-
terminado produto produzido numa província a “x” quilômetros de Pequim para
outra forma onde o mercado determinaria o que seria produzido. Porém, pouco se
percebe que esse papel do mercado é definido regionalmente, no sentido de que:
186
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
Se existe, nem sempre correta, uma quase relação entre setor privado e econo-
mia de mercado, o mesmo fato pode-se auferir da relação entre economia estatal e
planejamento. Planejamento este que, para muitos, repetindo-se, foi proscrito com
as reformas de 1978, opinião que não resiste à própria prova da história. Como
exemplo, é muito raro relacionar as lutas de libertação nacional como expressão do
desejo de se desenvolver. Mais raro ainda é surgirem relações que mesclem esses
níveis (libertação nacional, socialismo e desenvolvimento) com o próprio desejo
de planejar esse desenvolvimento. O preconceito é muito comum por se relacionar
o ferramental do planejamento com esquemas sovietizados de “economia de co-
mando”. Além de não dialética, essa falsa relação esconde que, assim como existe
mercado no socialismo, o próprio planejamento vai se transformando em necessi-
dade de um modo de produção cujas crises demonstram os limites da anarquia da
produção e do próprio comércio internacional. Se subtrairmos a necessidade de
programação econômica para a própria sobrevivência, poderemos nos ver pergun-
tando qual o sentido, dessa forma, da obra de Keynes e Schumpeter.
Essa relação entre planejamento e Estado insere-se na lógica da “construção
consciente da sociedade”. Afinal, não existe desenvolvimento fora dos marcos da ação
estatal, pois, se a ilusão do laissez-faire baseia-se numa escalada de desenvolvimento
onde a ação individual tinha guarida em relações propícias entre homem e natureza,
não é ilusório supor que o desenvolvimento contínuo (desenvolvimento da técnica,
por exemplo), e que dará contornos à divisão social do trabalho, vai depender, em
medida cada vez maior, do apoio estatal a empreendimentos privados. Abrindo parên-
tese, pode ser polêmico, mas assim se procede no capitalismo e também no socialismo
13
Um exemplo do desenrolar dessa relação, mediada pelo mercado, entre os setores estatais,
está em nossa visita à fábrica de alimentos Fulin. A Fábrica Fulin é uma joint venture entre capi-
tais chineses, de Hong Kong (Noble Group) e investimentos individuais provindos de chineses
étnicos de Cingapura. Com apenas cinco anos de existência, ela já tem um porto próprio em
Nanjing e alcança um faturamento de US$ 11,6 bilhões. Na palestra oferecida por executivos da
empresa, destacou-se a presente concorrência interna com estatais do mesmo setor de atividade,
como dínamo para a busca de uma constante modernização nos dois setores.
187
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
188
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
189
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
e da mão de obra como fatores de primeira ordem. Tudo isto tem valor, mas temos
certeza de que não é capaz de explicar o processo histórico em curso, que conjuga
pontos de encontro de diferentes níveis de desenvolvimento no país e da utilização
de instrumentos não coetâneos, como o planejamento e o mercado, denunciando
inclusive essa formação social complexa chamada China. Resumindo, o país é, uti-
lizando a genial elaboração de Ignacio Rangel, expressão de contemporaneidades
não coetâneas. É esta a visão inicial que devemos ter do processo em tela.
Mesmo aqui, neste trabalho, utilizamos o termo “modelo”, seja para tratar o
socialismo com características chinesas, seja para tratar o desenvolvimento chinês.
Sempre entre aspas, claro, pois não é novidade a aplicação deste termo sem a devida
noção de cientificidade das leis da economia, da sociedade, da natureza e da própria
ciência. Seria como atribuir o processo chinês a algo como “ao deus dará”, tornando
ininteligível qualquer minúcia maior da análise do fenômeno concreto e abstrato.
Como se percebe ao longo dos primeiros capítulos deste trabalho, o “modelo
chinês” é algo que deve ser buscado e analisado na história. Ao lado disso, é mister
salientar o próprio desenvolvimento como algo baseado em leis e como expressão
política e ideológica da plena utilização das leis econômicas em propósito do desen-
volvimento. Já desenvolvimentismo de tipo socialista, pode ser visto e definido como
a aplicação de processos desenvolvimentistas anteriores – e com relativo sucesso em
países capitalistas – para uma formação social hegemonizada por uma força política
que inicia, como objetivo estratégico, a consecução do socialismo e do comunismo.
Visto que, com certa demasia, já apontamos caracteres históricos suficientes
capazes de auferir uma elaboração mais profunda sobre esse modelo e que estamos
a apontar atores e formas do processo, faz-se importante neste momento demons-
trar outra gama de caracteres importantes para o objetivo do trabalho.
O principal atributo do “modelo” chinês encontra-se em sua perifericidade.
Sem dúvida, há diversas perifericidades, mas o fato é que países como China, Bra-
sil, Rússia e Índia – os chamados Bric – guardam uma perifericidade diferente;
uma perificidade industrial, com certa autonomia, inclusive de financiamento e
tecnologia em algumas áreas. Porém, o principal é saber que a condição de país pe-
riférico deve ser utilizada para compreender que a China, neste caso, desenvolve-se
gravitando em torno de um centro de capitalismo do sistema. Abrindo parêntese,
por mais que a China esteja prestes a se converter em outro polo gravitacional,
190
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
Até aqui, é bastante clara a utilização, por nós, da noção smithiana de divi-
são social do trabalho e do desenvolvimento como expressão de sua conforma-
ção conjuntural e histórica. Sabe-se que o processo de desenvolvimento também
191
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
é marcado pela liberação da mão de obra para a indústria. Logo, para se ter uma
noção próxima da exatidão acerca do processo de desenvolvimento na China faz-se
urgente ter consciência, como Lênin fizera em seu tempo, das diferentes formações
econômico-sociais que se relacionam no processo. Assim, certamente estaremos
capacitados tanto para melhor auferir o alcance do desenvolvimento chinês quanto
para termos com clareza em que tempo se dá a transição de uma economia agrária
para outra, industrializada e socializada.
aaaaaaaaaaaa
192
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
193
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
194
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
195
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
196
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
197
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
198
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
199
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
200
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
A China não é socialista por ter uma mão de obra superexplorada por em-
presas estrangeiras. Se o problema é esse, deixemos a palavra para ninguém mais
ninguém menos que o maior revolucionário de todos os tempos, Vladimir Lênin18:
17
China Statistical Yearbook para todos os anos.
18
HAMMER, A. & LYNDON, N. Hammer: um capitalista em Moscou. Best Seller. São Paulo, 1988,
pp. 121-130.
201
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
202
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
Essa taxa de exploração verificada no socialismo tende a ser de grau mais ele-
vado na medida em que nenhum país socialista dispôs ou dispõe de colônias exter-
nas, logo todo o peso de se desenvolver a “passos de cavalo” recaiu ora nos ombros
camponeses (no modelo soviético), ora no dos trabalhadores urbanos e com um duro
preço político a se pagar21. Enfim, analisando por essa ótica a “superexploração do
trabalho”, tal fator não é privilégio somente da China, mas também da URSS e de
qualquer país socialista que queira se desenvolver partindo de atraso absoluto. Não
é demais lembrar que a natureza, a sociedade e a economia são regidas por leis ob-
jetivas e espontâneas e fora do alcance de alteração pelo homem. Logo, não existe
“fórmula mágica” para a construção de uma nova e avançada sociedade.
É fato que existe uma alta taxa de exploração na China, dadas as circunstân-
cias históricas, a luta de classes em âmbito mundial e a necessidade de se indigeni-
zar tecnologias concentradas no exterior, pois sem tecnologia é impossível superar
o estágio da exploração do trabalho (não da exploração do homem pelo homem).
Porém, daí a argumentar que o trabalhador chinês seja ultraexplorado constitui
uma distância considerável, pois nesse cálculo devem ser auferidas as múltiplas
determinações que envolvem a produção e o consumo de mercadorias, entre elas a
capacidade de consumo permitida por seu salário, as escalas de produção, a quan-
tidade de crédito à disposição para consumo das massas populares e também a
consideração de que a lei do valor pode ser universal, mas sua aplicação deve levar
em conta as vicissitudes da formação social. Exemplo disso é o fato de se calcular
o PIB em concordância com o poder de compra da população; o PIB chinês fica so-
mente atrás do norte-americano, afinal um dólar na China não é mesma coisa que
um dólar nos EUA ou na Europa Ocidental.
A análise pormenorizada de todas as determinações elencadas acima e outras
não incluídas, em comparação com outros países em tempos históricos diferentes,
não oferece margem de manobra para afirmar que o trabalhador chinês seja ultra-
explorado.
21
Sobre as vicissitudes do modelo soviético de desenvolvimento, um anexo de nosso livro China:
Infraestruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006. 256 p.) é dedicado a esse tema.
203
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
22
The Bank of China Journal. Número 677, 08-15 de abril de 2004.
204
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
papel que temos guardado para a ciência histórica e para uma teoria justa capaz
de contemplar tal alvo. Neste capítulo, intentamos trazer à tona uma teoria capaz
de explicar o processo de transição ao socialismo numa escala nacional complexa,
além de compreender o desenvolvimento chinês por meio da interação de diferen-
tes setores da economia nacional.
Em primeiro plano vale expor, porém, as conclusões acerca do que significa o
processo de desenvolvimento em economias agrárias. Para isso, resgatamos as cola-
borações de dois autores muito presentes em nosso pensamento e ação intelectual.
Referimo-nos a Vladimir Lênin e Ignacio Rangel. Sobre o lastro desses dois pensa-
dores lapidares, algumas conclusões podem ser expostas, entre elas:
205
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
e apesar de não termos conhecimento de nenhum texto dos clássicos que corrobo-
re a centralidade da estatização do comércio exterior sob o socialismo (apesar da
grande importância que Lênin atribuía a esse aspecto), ousamos afirmar – dada a
ação constrangedora da lei do desenvolvimento desigual e combinado sobre pro-
jetos desenvolvimentistas de caráter periférico – que a primeira ação de qualquer
governo que inicia o socialismo (ou mesmo projetos nacionais autônomos) deve ser
o de estatizar/institucionalizar o comércio exterior. Essa ação é parte de um todo
que envolve a institucionalização da reserva de mercado para empresas nacionais.
É no campo das relações externas de produção que se dá o embate entre imperia-
lismo e projetos nacionais autônomos ou de caráter socialista. Afinal, um aspecto
fundamental da contradição principal do mundo de hoje se encerra nos díspares
interesses do imperialismo diante de projetos nacionais autônomos, principalmen-
te aqueles que guardam objetivos estratégicos de cunho socializante. Obviamente
a estatização da taxa de câmbio guarda centralidade nesse processo, como demons-
tramos anteriormente.
Acerca do processo de transição ao socialismo em formações sociais comple-
xas, sociedades onde convivem formas díspares de produção e diferentes tempos
históricos, se pode concluir que:
206
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas
207
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Por fim, o arguidor ou mesmo o simples leitor deve ter estranhado o fato de
termos tratado, ainda neste capítulo, da questão do trabalho na China. Em primei-
ro lugar, nossa tentativa foi – utilizando um tema polêmico e candente – “pousar
no concreto” de forma definitiva, preparando o terreno para a próxima seção, dessa
vez encarregada de aspectos puramente empíricos do processo. Em segundo lugar,
é interessante chamarmos a atenção para a superutilização de um fator para a
explicação de todo um processo, mais complexo do que as ingênuas almas liberais
acreditam.
208
5. O desenvolvimento e
suas faces na China
209
O desenvolvimento e suas faces na China
A creditamos ter sido necessária uma longa explanação colocando certa ordem
teórica e histórica como forma de expor nossa visão geral desse processo
de extrema importância, encerrado no presente caso chinês. Seria normal um ca-
minho inverso, mais voltado a um mínimo de história e teoria e a um máximo de
observações empíricas. Porém, preferimos o caminho contrário e, neste momento,
caminhando ao final do trabalho, fica a possibilidade de as coisas serem postas
nos lugares com maior clareza e objetividade. Passa-se, assim, à discussão de fatos
e números e, enfim, do que realmente significa o processo de desenvolvimento da
China, do socialismo e de seu projeto nacional.
É o momento de expor as mais amplas faces desse processo.
211
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
212
O desenvolvimento e suas faces na China
A princípio, o que significam esses números? Bem, com uma média de cresci-
mento de 9% ao ano, pode-se perceber que a economia chinesa dobra de tamanho
a cada 10 anos, assim como dobra sua própria oferta de serviços – o que por si só
corrobora sua “grande estratégia”, cuja condição de viabilização depende de suces-
sivas duplicações do PIB até o ano de 2020.
A sustentabilidade de seu crescimento econômico pode ser vista na própria
relação entre dívida externa e PIB que, em 2006, era de 22,1%. Com relação às ex-
portações, essa dívida externa tinha em 1990 uma relação positiva de 83%, caindo
em 2008 para 98% negativos1. Logo, pode-se admitir por meio desses dados o gran-
de grau de autonomia do desenvolvimento chinês. Autonomia tanto no sentido
político quanto econômico do termo. O processo de conquista desse largo grau de
autonomia ocorreu – diga-se de passagem – em um tempo em que várias realidades
da periferia capitalista conviviam com as chamadas “condicionalidades” impostas
de cima para baixo por ideologias e políticas econômicas de instituições, como o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, redundando – via de
regra – na impossibilidade de muitas nações gerirem seus próprios destinos.
De um ponto de vista mais estratégico e histórico, se tomamos a tarefa de
recuperação de espaços perdidos pelo país no mundo desde o início das agressões
estrangeiras em 1839, fica evidente o andamento rápido desse processo: em 1820,
a participação chinesa no PIB mundial era de 33%, caindo para 17% em 1870, e
para 13% em 1913. Entre 1949 e 1975, essa participação manteve-se na casa dos
5%, chegando a 12% em 2001, com previsão de alcançar 20% em 20202. É muito
provável que, no ano de 2049, quando a Revolução Nacional/Popular completar seu
centenário, estejam cumpridos os objetivos colocados tanto por Mao Tsetung em
1949, quanto os expostos por Deng Xiaoping em dezembro de 1978. Nesse sentido, é
oportuno abrir um parêntese e expor um quadro comparativo entre o crescimento
chinês e o de alguns outros países no período 2003-2007:
1
CUNHA, André M. & ACIOLY, Luciana. “China: Ascensão à condição de potência global – ca-
racterísticas e implicações. In CARDOSO JR, José C.; ACIOLY, Luciana; MATIJASCIC, Mico..
Trajetórias recentes de desenvolvimento. Ipea. Brasília-DF, 2009, p. 396.
2
Conselho Empresarial Brasil China. www.cebc.org.br.
213
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
O período compreendido na tabela acima inclui o ano de 2005, que foi marca-
do pela suplantação da Alemanha pela China no posto de 3ª economia do mundo,
atrás somente dos EUA e do Japão. Consideremos, diante desses dados, um país
que, em 1949, tinha uma indústria siderúrgica incipiente e que, em 2007, produziu
o volume de 530 milhões de toneladas de aço, ou seja, cinco vezes mais do que o
produzido pelos EUA. Dessa quantia produzida, cerca de 80% são utilizados pelo
próprio mercado interno do país. Num outro escopo de comparação, a tabela acima
comprova algumas verdades. A primeira está diretamente relacionada aos países
com projetos nacionais sólidos (China, Índia, Vietnã): todos eles obtêm, ao longo
dos anos, taxas contínuas de crescimento baseadas em uma política cambial admi-
nistrada. Os dados explicitam também que o dínamo econômico do mundo não é
mais o centro do sistema, e sim os países periféricos, entre eles os já citados casos
da China e da Índia.
214
O desenvolvimento e suas faces na China
Outros países, como Brasil e África do Sul, são levados a conviver com es-
quemas de stop-and-go, crescendo ano sim, ano não, expressando (nesses dados)
grandes disputas no âmbito de suas superestruturas e afogando-se em políticas
econômicas de “combate à inflação”. Por exemplo, da mesma forma que na cor-
te czarista conviviam em pleno conflito anglófilos e germanófilos, no núcleo da
superestrutura brasileira estão em plena disputa aqueles favoráveis à inserção no
mundo, subordinados aos interesses norte-americanos, e outros que ainda tentam
retomar um projeto nacional nascido com a Revolução de 1930 e interrompido com
a eleição de Collor em 1990.
Por fim, há ainda um grupo de países que crescem sob os auspícios das cres-
centes demandas do crescimento de China e Índia, como, por exemplo, a Nigéria,
grande produtora de petróleo.
Retornando ao tema anterior à análise comparativa do crescimento mundial
e chinês, a taxa de inflação na China em 2008 foi de 4,3%. Este dado nos leva a
uma análise mais acurada do próprio processo de desenvolvimento recente do país
que, após iniciar suas reformas econômicas, conviveu, principalmente no final da
década de 1980, com surtos inflacionários (daí uma das razões para as baixas taxas
de crescimento entre 1987 e 1990)3, afinal é sabido por todos que a demanda tende
a crescer de forma mais rápida que a oferta. O diferencial chinês, neste caso, com
relação às imposturas do Consenso de Washington, fica na relação entre a visão
estratégica do processo e a negação do planejamento pela via de políticas – conhe-
cidíssimas pelos brasileiros – de buscas anuais de “metas de inflação” que, via de
regra (e de acordo com o credo liberal), devem ser alcançadas pela manipulação
cega da taxa de juros e de câmbio, que sufocam a demanda.
Em nossa opinião, a forma mais justa e progressista de se combater a inflação
3
A queda na taxa de crescimento chinês nos referidos anos também guarda razão na não uni-
dade do PCCh com relação à amplitude das reformas, pois, de um lado, havia os partidários de
Deng Xiaoping e, de outro, aqueles segundo os quais a economia de mercado deveria estar res-
trita aos ditames do plano. Somente em 1992, em meio ao conhecido périplo de Deng Xiaoping
ao sul da China, é que a confiança interna no futuro do país se cristalizou, chegando ao ponto
em que, no 14º Congresso do PCCh realizado em 1992, a “teoria de Deng Xiaoping” foi alçada ao
mesmo grau de importância do marxismo-leninismo e do pensamento de Mao Tsetung. Outros
problemas podem ser elencados nas consequências internacionais do trágico desfecho da rebe-
lião contrarrevolucionária de junho de 1989 na Praça da Paz Celestial, momento aquele em que
o G-8 impôs sanções ao governo chinês.
215
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
216
O desenvolvimento e suas faces na China
217
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
correspondia a quase 50% do PIB. Isso só vem a confirmar que, entre 1949 e 1978,
com a taxa média de crescimento acima dos 6% ao ano, criou-se a verdadeira
base para o salto visto nos últimos 30 anos. Ou seja, o processo de combinação
da chamada “via dos produtores” com a “via prussiana” dá-se sob o amparo de
um longo processo de “desenvolvimento pelo alto”, ou seja, a partir da constitui-
ção de um poderoso Departamento 1 da economia, ou melhor, de máquinas que
reproduzem máquinas.
Outro elemento a se considerar nesse conjunto é o crescimento do setor pri-
mário da economia entre os anos de 1978 e 1984. Isso quer dizer que teve sucesso
a estratégia de mudança dos preceitos do dito “modelo soviético”, pautado por uma
industrialização sustentada pela agricultura e impondo relações desiguais entre
campo e cidade. A inversão dessa relação na China está diretamente associada ao
aumento da participação do setor primário na composição do PIB nos anos citados.
Por outro lado, também tem serventia na contra-argumentação àqueles que colo-
cam o “modelo chinês” como algo sustentado pela demanda externa em detrimen-
to da demanda interna e que as primeiras medidas do processo de reforma de 1978
concorriam para o fortalecimento de indústrias voltadas ao mercado exterior. Esta
tabela demonstra o contrário: os incentivos ao consumo interno (como veremos
no assunto “agricultura”) precederam a própria instalação das Zonas Econômicas
Especiais (ZEEs). Nesse caso, é muito claro que o fortalecimento do setor terciário
(serviços) inicia-se de forma rápida a partir de 1985, ano marcado pelos sucessos
iniciais da implementação das primeiras ZEEs no litoral chinês, quase totalmente
voltadas para o mercado externo. Enfim, existe uma grande lógica para a relação
entre o fortalecimento do mercado interno num primeiro momento e a implemen-
tação, num segundo, de um modelo disposto a enfrentar o mercado internacional,
cuja expressão é a diversificação industrial e o aumento de musculatura do setor
terciário (serviços).
Por fim, vejamos a expressão da grande contradição da China contemporânea,
encerrada no fato de, apesar de 55% da população ainda viverem no campo, o setor
primário da economia corresponder a apenas 11,3% do total do PIB. Abrindo um
leque de possibilidades à abstração, podemos elucubrar que uma situação contradi-
tória dessas abriga, por exemplo, a resposta para problemas como o da diferença de
218
O desenvolvimento e suas faces na China
renda entre campo e cidade, afinal as atividades manufatureiras são mais rentáveis
do que as atreladas à agricultura. Também coloca em relevo o problema do fosso
entre as zonas rurais e as zonas litorâneas desenvolvidas e em íntima relação com
o mundo exterior. Como desenvolveremos no decorrer do trabalho, não é à toa que
a questão da renda rural ainda é o centro da problemática da governança chinesa
e motivo de sucessivas reformas empreendidas pelo governo ao longo dos últimos
30 anos.
Apreciemos agora, também, para fins de conformação ao que foi dito acima, a
contribuição de cada setor para o crescimento do PIB a partir de 1990:
A tabela acima nos permite ter uma visão de conjunto maior das partes que
integram os fatores do crescimento acelerado chinês. Por exemplo, confirma-se a
219
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
4
Vejamos o caso brasileiro, onde as limitações infraestruturais são fator central para a não con-
tinuidade de crescimento desde os fins da década de 1970, amiúde termos completado nossa
industrialização com a implantação de um novo Departamento 1.
5
MADDISON, Angus. Chinese economic performance in the long run. Development Centre Studies.
OECD. Second Edition. 2007, p. 84.
220
O desenvolvimento e suas faces na China
221
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Outra observação a que a tabela 7 nos remete é que, sendo a China um país
ainda com forte essência rural, essa “essencialidade” pode estar expressa no baixo
custo de produtos alimentícios e no baixo impacto no orçamento familiar em com-
paração a outros países, principalmente aqueles onde, como no Brasil, o monopólio
da compra de alimentos direto do produtor é feita por oligopsônios/monopsônios
que, por sua vez, manipulam para cima o preço dos alimentos6. É notório o papel
que o preço dos alimentos cumpre na lógica não inercial da inflação brasileira,
reduzindo a capacidade de consumo de milhões de famílias. Esse problema (oligop-
sônios/monopsônios) não ocorre na China e por isso constitui uma vasta reserva
de mercado para um tipo de crescimento cujo papel de consumo tende a aumentar
cada vez mais em detrimento do mercado externo, como a própria crise financeira
em andamento nos demonstra.
6
Cerca de 50% da inflação no Brasil têm como causa primária a alta dos alimentos.
222
O desenvolvimento e suas faces na China
223
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
7
Em nosso trabalho China: Infraestruturas e crescimento econômico – publicado em 2006 – relatamos
o projeto chinês de implantar, até o ano de 2020, linhas de metrô em mais de 20 cidades do país.
Além, é claro, de estender linhas existentes e construir novas linhas em cidades onde o metrô
já é uma realidade. Grande impressão nos causou a verificação desse progresso em matéria de
metrô na China desde nossa primeira visita em 2004 até as visitas seguintes, ocorridas em 2007
e 2009.
224
O desenvolvimento e suas faces na China
8
FAIRBANK, J K. & GOLDMAN, M. China: Uma nova história. L&PM. Porto Alegre, 2006, p. 366
225
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
quem teve oportunidade de visitar algumas unidades fabris desse tipo, que seu es-
copo de atuação dentro do país esteja diretamente voltado para nichos de mercado
não explorados por estatais e empresas privadas9, o que denuncia por si só – nas
ECPs – uma escolha racional de maximização de um tipo de manufatura com carac-
terísticas chinesas voltadas ao crescimento econômico.
Outra constatação particular que corrobora nossa tese de distintas formas de
transição numa mesma formação social: ao contrário das estatais moldadas pelo
“modelo soviético”, o que explica em grande parte seu dinamismo inicial, é exata-
mente o porte pequeno dessas empresas, sua flexibilidade (dada a não interferên-
cia estatal direta) e, principalmente, sua vocação de produzir diretamente para o
mercado, sem mediações estatais e nem obrigações de cotas impostas à produção
agrícola diretamente voltada tanto para o abastecimento das cidades quanto para a
realização particular de lucro.
Sua natureza, no âmbito geral, é municipal e coletiva, constituindo-se numa
nova forma “socialista” de propriedade, muito semelhante aos kolkhozes soviéticos,
mas muito mais dinâmica, eficiente e autônoma. Daí ser um novo campo privile-
giado de acumulação e – do ponto de vista estratégico – o motor de uma visão de
longo alcance de urbanização, que impede a China de assimilar o que de pior a
anarquia da produção demanda na agricultura de tipo capitalista: as crises de
superpopulação e as crises de superprodução na agricultura. Abrindo
parêntese, um grande ponto de estrangulamento de um país periférico em desen-
volvimento é quando o problema de superpopulação agrária se transforma em crise
urbana de superpopulação (favelização). Talvez isso explique em parte a razão por
que a China (apesar de sua imensa população) não possui esse problema crônico
de habitação tão comum não somente em países como o Brasil, mas também nos
Estados Unidos. O “x” da questão reside na absorção de mão de obra sobrante no
âmbito da aldeia.
Sobre a questão da propriedade, não se pode chegar a conclusões peremptórias
a partir de observações marginais. Isso quer dizer que a rapidez das transformações
da estrutura de propriedade de economia chinesa constitui um grande obstáculo
para auferir de fato o nível de transformação da estrutura de propriedade das ECPs.
9
Exemplo disso está na fabricação de embalagem para alimentos.
226
O desenvolvimento e suas faces na China
Mas já se sabe que a mesma evoluiu no mesmo ritmo que as estatais no sentido
de trabalhar com capital inteiramente coletivo, com joint ventures com empresas
privadas nacionais e estrangeiras e com o lançamento de ações no mercado de va-
lores. Desconhecemos estatísticas e esse respeito, mas no geral são empresas não
estatais e não privadas. Do ponto de vista do financiamento, um traço interes-
sante é a mínima participação de bancos estatais no processo de financiamento
da produção. Segundo um gerente de banco de uma aldeia que visitamos em 2009
na província de Zhejiang, “os créditos totais nacionais para as ECPs não passam
de 10% dos créditos empenhados por bancos estatais”. Interessante é que, nessa
mesma aldeia, numa das respostas que recebemos de um integrante de uma ECP
voltada para a produção de autopeças, afirmou-se que a principal fonte de financia-
mento desse tipo de empresa na China está no reinvestimento quase total de lucros,
descontadas a participação dos trabalhadores no lucro e os encargos municipais e
provinciais. Em outras palavras, são empresas coletivas alimentadas por poupança
privada. Daí seu caráter complexo de ser algo nem estatal, nem privado. Outra nota
interessante é que a questão da propriedade nesse tipo de empresa tipicamente
rural não guarda grande relevância, pelo fato de a terra, na China, não ser objeto
de regulação privada; isso sim é o que importa e tem consequência num mercado
de tipo socialista.
Retornando à questão que envolve a participação das ECPs no cômputo geral
da economia chinesa, segue abaixo uma tabela que muito poderá dizer a esse res-
peito, num aparente contraponto à tabela 8:
227
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
10
Mais adiante trataremos da questão da agricultura.
11
MASIERO, Gilmar. “China: Origens e desenvolvimento das Township and Village Enterprises
(TVEs) chinesas”. In Revista de economia política. Vol. 26, n. 3 (103), pp. 425-444. São Paulo, julho-
-setembro de 2006.
228
O desenvolvimento e suas faces na China
12
Exemplo disso no Brasil está no papel complementar entre os criadores de pintinhos e sua
relação com complexos como o da Sadia. Sobre isto, ler: ESPÍNDOLA, Carlos J. As agroindústrias
no Brasil: o caso Sadia. Grifos. Chapecó, SC. 1999.
229
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
230
O desenvolvimento e suas faces na China
de peso das ECPs: a crescente participação desse tipo de empresa no mercado in-
ternacional. Ao falarmos – conforme vimos fazendo desde o início – do trabalho
de planejamento do comércio exterior como expressão de uma grande estratégia,
convém salientar que esse tipo de planificação que obedece a certa historicidade do
desenvolvimento não se restringe a políticas monetárias que induzem a esse tipo
de enfrentamento. O complemento desse círculo deve ser remetido à formação de
empresas, conglomerados. No caso da China, os conglomerados estatais obedecem
à dominância do processo, mas nichos de mercado externo não explorados pelas
estatais estão sendo devidamente preenchidos por ECPs.
O apoio a este tipo de estratégia internacional pode estar diretamente rela-
cionado ao fato de ECPs como a Haier (detentora de 50% do mercado de pequenos
frigoríficos nos EUA), a Galanz (detentora de 33% do mercado mundial de micro-
-ondas), a Legend (20% do mercado internacional de placas para computadores) e a
China International Marine Containers (40% do mercado internacional de contêi-
neres refrigerados)13, conforme apontam os números entre parêntese, fazerem cada
vez mais parte do dia a dia de empresas e pessoas pelo mundo.
Eis o “x” do processo.
13
“How fit is panda?”, The Economist. Print edition. 27 de setembro de 2007.
231
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
232
O desenvolvimento e suas faces na China
16
Dados do Banco Mundial.
17
VIEIRA, Flávio V. “China: Crescimento econômico de longo prazo”. In Revista de economia polí-
tica. Vol. 26, n. 3 (103), pp. 401-424. São Paulo, julho-setembro de 2006.
233
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
234
O desenvolvimento e suas faces na China
235
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
19
Interessante colocar que mesmo um economista situado no mainstream tem chamado a aten-
ção para a necessidade de se buscar a compreensão do processo chinês tendo como um dos
pressupostos as diferentes formas de produção inseridas no país, como expressão de algo em
correspondência com os diferentes níveis de desenvolvimento percebidos e observados na Chi-
na. Referimo-nos a Dani Rodrik. Sobre isto, ler: RODRIK, D. “Make room for China in the world
economy”. Paper prepared for the AEA session on Growth in a partially de-globalized world, chaired
and discussed by Philippe Aghion. Disponível em: <http://www.hks.harvard.edu/fs/drodrik/Re-
search%20papers/Making%20room%20for%20China.pdf> . Acessado em 5 de março de 2010.
236
O desenvolvimento e suas faces na China
237
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
238
O desenvolvimento e suas faces na China
Alguns detalhes chamam a atenção para a lista acima. O primeiro, com certo
destaque, é o fato de todas essas empresas serem estatais. Talvez por isso essa lista
não tenha obtido no Brasil grande destaque. Não é difícil perceber as razões, pois
no Brasil o debate econômico, pautado pelo grande partido político da imprensa
ultraliberal, é altamente ideologizado. Essa ideologização ganhou terreno na mes-
ma proporção em que os postulados neoliberais careciam de sofisticação e base
empírica e histórica. Esse é um fato a ser abordado neste debate. Por outro lado, essa
tabela coloca a nu a força desses conglomerados recém-criados na China. A força de
empresas siderúrgicas, bancos estatais, empresas de construção e infraestrutura –
além das gigantes petrolíferas – está na vanguarda do processo de desenvolvimento
chinês.
239
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Essa lista nos permite ainda alguns exercícios de futuro: primeiro, são todas
empresas que já enfrentam com êxito a concorrência internacional; segundo, em
sua maioria já contam com grandes somas de investimentos fora da China, aliás,
um fenômeno previsível mas recente; terceiro e último, estão concentradas, em
alguns casos, em setores-chave para a continuidade do crescimento chinês, sobre-
tudo construções, energia e infraestrutura.
Outra forma de medir o peso entre o estatal e o privado encontra-se na fonte
de investimentos. Como já dito, essa taxa na China já alcançou casados 45%, logo
a questão que deve ser respondida gira em torno do papel das diferentes formas de
propriedade. O gráfico abaixo, apesar de seu nível de generalização, municia-nos
para enfrentar essa discussão:
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0
jan/06
abr/06
jul/06
out/06
jan/07
abr/07
jul/07
out/07
jan/08
abr/08
jul/08
out/08
jan/09
abr/09
jul/09
out/09
Privadas Estatais
Outras Estrangeiras
Fontes: Dragonomics
Fonte: Macro China (fonte primária: Dragonomics). Elaborado pelo Conselho Empresarial Brasil
China (www.cebc.org.br).
240
O desenvolvimento e suas faces na China
241
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Empresas privadas
Empresas privadas (total) 48,1 32,5
Empresas privadas nacionais 41,7 23,7
Empresas de capital estrangeiro 54,2 41,0
Conglomerados estatais
Conglomerados públicos/estatais 68,7 90,8
Uma apreensão mais geral dos dados expostos na tabela acima sugere um
elemento ou, talvez, uma generalização: as empresas estatais concentram a
fina flor de algo intensivo em capital, enquanto as empresas privadas
se encarregam de setores intensivos em mão de obra. Trata-se de uma
abstração com alto grau de correção, na medida em que as estatais estão passando
por um processo de organização em torno de conglomerados, apesar de muitas
delas ainda existirem sob a forma de pequenas e médias indústrias de tipo “Depar-
tamento 1” que ainda não foram fundidas por outras de porte maior. Da mesma
forma, percebe-se que as empresas privadas passaram a ser dominantes em setores
como o têxtil, e outras onde a intensidade em trabalho é a tônica, o que coloca em
evidência a afirmação exposta anteriormente sobre o papel das iniciativas empre-
sariais particulares num país que necessita gerar 13 milhões de empregos por ano.
Outro ponto menos superficial a ser observado é que uma grande transição entre
242
O desenvolvimento e suas faces na China
uma economia de tipo “modelo soviético” para outra baseada em relações de merca-
do está em andamento na China, porém mediada por um grande planejamento de
caráter estratégico e menos micro. Argumentamos (novamente) que, no atual estágio
de desenvolvimento chinês, já pautado por uma sólida condição financeira, a busca
por novas e superiores formas de planejamento passa a ser um imperativo. Assim sendo,
essa transição para um modelo de múltiplas formas de propriedade sob a égide da pro-
priedade pública é uma verdadeira arte contornada por uma ciência: o planejamento.
A formação de conglomerados estatais e a transferência de setores inteiros da
economia para a iniciativa privada em absoluto foram uma obra do mercado, do laissez-
-faire. São escolhas políticas e estratégicas do Estado em consonância tanto com uma
superestrutura voltada para objetivos estratégicos de longo alcance (socialismo) quan-
to a uma base econômica fluida, em rápida transição e transformação qualitativa.
243
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Antes de uma análise fria dos números, é conveniente uma explanação sobre
esta questão que envolve o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Em primei-
ro lugar, a ciência e a técnica não surgem do nada, mas sim de onde se dão con-
dições para tal. Em segundo, relacionando com a categoria de modo de produção,
“não foi a máquina a vapor que inventou o capitalismo, foi o capitalismo que criou
a máquina a vapor”, o que significa dizer que a ciência frutifica em concomitância
244
O desenvolvimento e suas faces na China
245
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
246
O desenvolvimento e suas faces na China
Para bem dizer, a importação de tecnologia, por mais notoriedade que tenha
obtido nos últimos tempos, já existe desde o momento em que o “novo mundo” foi
posto em contato com o “velho mundo” (tal trânsito de tecnologia da metrópole
para a colônia é parte integrante da origem de formações sociais complexas na peri-
feria do capitalismo, como expressão do funcionamento simultâneo de diferentes
formas e modos de produção numa mesma formação social periférica). Nesses dois
processos históricos referidos, diferentes formas de importação de tecnologia ga-
nham corpo; dois níveis qualitativos de importação de tecnologia são sobrepostos,
obedecendo a níveis distintos de desenvolvimento cuja fronteira está, necessaria-
mente, ligada à fusão da indústria com o banco; a uma revolução socialista capaz
de centralizar todos os recursos da nação, ou a um simultâneo processo envolvendo
tanto uma revolução socialista como a fusão do capital bancário com o capital industrial,
como parece ser o caso da China pós-1949 e acelerada no pós-1978.
O processo de substituição de importações engendra importações de tecnolo-
gias e sua respectiva substituição de importação. Isso gera aumento de produtividade
suficiente para a construção, de forma lenta ou rápida, de determinado edifício in-
dustrial, caso, por exemplo, de máquinas e equipamentos que num dado momento
levam à internalização de um determinado centro dinâmico produtivo, como, por
exemplo, o Departamento 1. Nesse momento, o país se capacita a não somente copiar
o criado no estrangeiro, mas passa a uma condição produtiva de acompanhamento
da inovação tecnológica no mundo. Como processo histórico, percebe-se assim a dife-
rença entre um Departamento 1 de tipo artesanal e um Departamento 1 moderno,
capaz de produzir e criar máquinas. Nesse caso, importar “quinquilharia da tecno-
logia” não mais interessa ao desenvolvimento. É o momento em que o processo de
reprodução do sistema depende da fusão de interesses entre banco e indústria, e a
própria tecnologia – para os projetos nacionais autônomos – passa a ser um problema
essencialmente financeiro24 e não mais de pura contabilidade industrial.
24
Conforme: RANGEL, I. “O papel da tecnologia no Brasil” (1982). In RANGEL, I. Obras reunidas.
Vol. 2. Contraponto, RJ, 2005, p. 337.
247
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
248
O desenvolvimento e suas faces na China
25
Durante nossa última visita, pudemos ter acesso a informações acerca de uma possível compra
de todo o escritório de P&D da Siemens alemã por parte da China por valores em torno de US$
30 bilhões. Os valores podem parecer exagerados, mas o fato em si não causa grande surpresa.
249
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
(em busca de sua sobrevivência no “salve-se quem puder” das fusões e aquisições),
enquanto no socialismo a busca de inovação é a tônica tanto nos conglomerados
estatais (siderurgias, por exemplo) quanto nas pequenas e médias empresas pri-
vadas em expansão (setor de energia limpa, por exemplo). De forma genérica, o
caráter conservador do oligopólio capitalista dá margem de manobra ao próprio oli-
gopólio de tipo socialista e mesmo em outros projetos nacionais periféricos de tipo
capitalista. Eis outra forma, nada superficial, de responder ao dinamismo chinês e
compará-lo com o dos Estados Unidos26.
aaaaaaaaaaaa
250
O desenvolvimento e suas faces na China
251
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
252
O desenvolvimento e suas faces na China
Mas a China ainda está muito abaixo de países como Coreia do Sul, Estados
Unidos, Alemanha e Japão. Apesar disso, a diferença tende a cair rapidamente. Por
exemplo, em 2003 1,13% do PIB foi destinado às atividades correlatas de C&T; em
2010, 2% do PIB. O interessante é que esse aumento sensível num curto prazo de
tempo se dá justamente alguns anos após a China ter completado seu processo de
industrialização com a implantação de uma moderna indústria mecânica pesada.
Esse feito nos fora anunciado em 2004 por um engenheiro empregado na Compa-
nhia Municipal encarregada do planejamento da expansão do metrô de Pequim
para as Olimpíadas de 2008. Segundo ele, “acabou o tempo de copiar o modelo
alemão da Siemens ou o francês da Alston, ou mesmo os da antiga União Soviética.
Chegou o tempo de construir nosso próprio modelo de trem rápido para transporte
urbano”. Se, na China, eles partiram para o financiamento pesado de pesquisas
para trens novos, modernos e competitivos, no Brasil partiu-se para a compra de
trens espanhóis, escadas-rolantes da Coreia do Sul e de trilhos da China. Isso num
país que, em 1975, inaugurou o trem mais moderno do mundo (São Paulo) com
componentes todos nacionais (Mafersa). Uma apostasia evidente e em nome da
“sagrada concorrência” e da estabilidade monetária.
Para um salto dessa monta, seriam necessários aportes financeiros por parte
não somente do Estado, mas também, cada vez mais, das empresas. É nesse ponto
de transição – entre uma forma de inovar pela própria cópia ou transferência de
tecnologia via joint ventures em determinados setores (transportes, por exemplo) e
outra, centrada na empresa – que estava a China de meados de 2000 e o Brasil da
década de 1980. O salto era a necessidade da própria sobrevivência.
Os dados da tabela 14 são interessantes e elucidativos: os fundos para ativida-
des em C&T via Estado aumentaram em pouco mais de 100% entre 2003 e 2007.
Por outro lado, esse tipo de financiamento via empresa alcançou um aumento aci-
ma de 250%, enquanto os empréstimos bancários subiram pouco mais de 50% e os
investimentos em P&D no total nacional, cerca de 230%; no âmbito das empresas, o
salto foi de quase exatos 300%. Em suma: os chineses transitaram de forma rápida
e dinâmica, saindo do centro do gasto governamental para a hegemonia do gasto
empresarial nessa matéria, num processo contemporâneo da formação de 149 con-
glomerados industriais no final da década de 1990, o que significa uma consolida-
ção do próprio núcleo duro do socialismo com características chinesas. Esse salto,
253
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
repetindo mais uma vez, foi o que faltou para o próprio projeto nacional brasileiro
fundado pela Revolução de 1930 e prejudicado pelo imperialismo (Consenso de
Washington), com a eleição de Collor em 1989, derrotando o então candidato da
Frente Brasil Popular, Luiz Inácio Lula da Silva.
aaaaaaaaaaaa
254
O desenvolvimento e suas faces na China
27
GABRIELE, Alberto. The role of the State in China`s industrial development. MPRA Paper n. 1451.
Munique. Abril de 2009, p. 12.
255
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
desenvolvimento; buscar uma síntese desses três conceitos que melhor diagnos-
tique do que se trata o chamado “modelo chinês”. O importante também não é
somente relacionar esse trinômio com crescimento acelerado, mas também com
outros caracteres construídos historicamente, pois a afirmação da soberania pode
dar-se não somente com o centro no desenvolvimento, mas também por outros
meios e maneiras.
Entre 1949 e 1978 a China, conforme já colocado, afirmava-se no mundo
com um crescimento médio de 6,5% ao ano. Mas era um momento em que o
desenvolvimento não estava no centro da problemática chinesa, apesar de ser
um imperativo enfrentado pela 1ª geração dirigente. A problemática da luta de
classes foi alçada ao centro desde o enfrentamento na Coreia, que redundou em
uma conjuntura de cerco e isolamento diplomático, econômico e financeiro do
país. Nessa conjuntura de comércio internacional reduzido ao bloco socialista,
não soa estranho afirmar que o comércio internacional, como proporção do PIB,
nunca tenha atingido 10%, chegando ao piso de 5% durante a Revolução Cultural
– o que demonstra a incorreção das afirmações acerca do completo isolamento
chinês, afinal os insumos industriais para o seu projeto megaindustrial da época
davam-se por contatos comerciais, sobretudo com a URSS –, e próximo dos 60%
na atual quadra28. Nesse conjunto histórico, fica óbvio que sua política externa
não estava voltada para a acumulação de capital; afinal, a acumulação primitiva
pelas relações desiguais entre campo e cidade era a forma primária de acumulação de
capital na China pré-1978.
Nos marcos dessa forma de acumulação e das hostilidades internacionais, fi-
cam inviáveis a plena realização e o amadurecimento de uma economia de tipo
monetária. Assim, o comércio exterior chinês era monopolizado por instituições
mediadoras que repassavam ao mercado interno, em concordância com o plane-
jamento centralizado, deduzidos os custos sociais anexos, incluindo aí os próprios
custos com a exportação de equipamentos que, por sua vez, eram “abatidos” com a
exportação de petróleo (a China foi o maior exportador de petróleo do leste asiático
até meados da década de 1980) e de gêneros alimentícios.
28
CUNHA, André M. & ACIOLY, Luciana. “China: Ascensão à condição de potência global – ca-
racterísticas e implicações”. In: CARDOSO JR, José C.; ACIOLY, Luciana; MATIJASCIC, Mico.
Trajetórias recentes de desenvolvimento. Ipea. Brasília-DF, 2009, p. 358.
256
O desenvolvimento e suas faces na China
257
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
atualmente verificada não são sinônimos de “inserção chinesa à luz dos esquemas
de poder norte-americano na Ásia e no mundo”. Os movimentos imediatos podem
muito bem nublar qualquer análise de longo prazo.
aaaaaaaaaaaa
258
O desenvolvimento e suas faces na China
tantes, tendo epílogo somente no início da década de 1990, com o fim da União
Soviética e a campanha norte-americana contra a candidatura chinesa aos Jogos
Olímpicos de 2000. Os Estados Unidos apresentavam-se como o “caminho natural”
para as ambições estratégicas chinesas, tanto pela capacidade de isolamento do ini-
migo soviético muito mais próximo espacialmente como pela concentração – nos
EUA – do que de mais avançado existia em matéria de mercado para seus produtos,
com tecnologias novas em matéria de capacidade produtiva e de técnicas modernas
de administração. Além, obviamente, do acesso a créditos internacionais ultrane-
cessários ao projeto de modernização do país.
O chamado “primeiro movimento” pode ser dividido em três etapas. A pri-
meira, a partir do já citado encontro de Mao com Nixon em 1972, seguido do rea-
tamento de relações comerciais; a segunda, com o reatamento de relações diplo-
máticas plenas em 1979, e a terceira, com Bill Clinton, quando a China obteve o
tratamento de “nação mais favorecida” comercialmente.
Nessa cadeia de acontecimentos, vale expor que já em 1979 a China se tornara
o maior exportador de têxteis para os EUA, mesmo fora do Gatt; além disso, a en-
comenda de três Jumbos 747, mais o envio de centenas de estudantes chineses aos
Estados Unidos, denunciavam a verdadeira feição da inserção chinesa no exterior
pautada por meios e maneiras de absorver tecnologia ocidental. Acerca dos citados
créditos externos, a reaproximação com os EUA logrou à China acesso a emprésti-
mos internacionais em condições altamente favoráveis. Por exemplo, com o Japão,
obtido em 1979 com juros de 7,25% ao ano a serem pagos em cinco anos; outros US$
30 bilhões de bancos de exportação-importação avalizados por governos ocidentais;
e mais US$ 18 bilhões provenientes de 14 bancos de variadas nacionalidades29. Do
ponto de vista da grandeza, a extensão de seu mercado passou rapidamente a signi-
ficar um grande poder de barganha ante seus objetivos de largo alcance.
A China estava prestes a aproveitar a oportunidade não oferecida a Lênin em
seu tempo. Porém, para ambos foi reservada a razão pela visão larga de política,
economia, transição e socialismo.
Já o “segundo movimento” tem relação direta e acelerada com a hendaka japo-
nesa, que colocou a China e a conquista de seu mercado no centro da concorrência
29
JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas e crescimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006,
p. 53.
259
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
260
O desenvolvimento e suas faces na China
30
Estivemos em Shenzen em janeiro de 2007 e em setembro de 2009. Se a cidade-epicentro da
Revolução Russa levou o nome de Lênin, se a cidade-símbolo da resistência vietnamita foi re-
batizada com o nome do grande líder revolucionário, Ho Chi Minh, não seria nenhum exagero
batizar Shenzen como a “Cidade de Deng Xiaoping”. Expressão disso é o fato de ser Shenzen,
até o ano de 1982, uma vila de apenas 300 mil habitantes, e atualmente com cerca de 8 milhões,
e que, a partir de então, transformou-se numa das grandes metrópoles asiáticas, onde se en-
contra um terço das companhias estrangeiras na China e onde se concentram 9% da atividade
econômica do país. Seu PIB atualmente é de US$ 80 bilhões, com crescimento médio nos últi-
mos 25 anos de 28% ao ano. Conseguiu, em 2005, praticamente igualar o volume de comércio
exterior de um país com as dimensões do Brasil: o valor arrecadado de exportações foi de US$
127 bilhões e suas importações alcançaram a cifra de US$ 96 bilhões.
261
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
formando condições objetivas para uma Rota da Seda versão século XXI.
Na China, além das províncias e das regiões autônomas, existem as chamadas
municipalidades diretamente subordinadas ao poder central. São beneficiárias de
políticas e repasses orçamentários diretamente elaborados e executados por Pe-
quim. Entre 1949 e 1992, existiam três destas municipalidades: Pequim, Xangai
e Tianjin. Desde 1993, Chongqing – situada no meio oeste chinês, encravada na
província de Sichuan, com 30 milhões de habitantes, com grandes reservas de gás
natural, uma poderosa indústria química e um território maior que o da Bélgi-
ca – passou a desfrutar do mesmo status das três cidades citadas acima. Vejamos
no mapa abaixo a localização estratégica de Chongqing em relação à província de
Guangdong – berço das primeiras experiências de ZEEs.
COREIA DO NORTE
Pequim
Huangcun Bahai
Mar
Amarelo
C H I N A
CHONGQING Xangai
SICHUAN
Chengdu Shuangxi
Chongqing
Taipei
GUANGDONG TAIWAN
MIANMAR Guangzhou Shenzhen
Hong Kong
VIETNÃ
LAOS Mar do Sul da China
TAILÂNDIA 750 km
262
O desenvolvimento e suas faces na China
lidade diretamente subordinada ao governo central não tenha relação alguma com
uma futura política agressiva de inserção do oeste chinês no território econômico
da nação. O mapa 5 demonstra isso. Sua localização, necessariamente, nos remete
ao papel cumprido por Chicago na expansão ao oeste dos Estados Unidos na segun-
da metade do século XIX31. Nessa perspectiva, na primavera de 1999, é lançado pelo
então presidente chinês Jiang Zemin o Programa de Desenvolvimento do Oeste.
aaaaaaaaaaaa
31
Trabalhamos intensamente essa questão do desenvolvimento ocidental chinês em nossa dis-
sertação de mestrado. Maiores detalhamentos em: JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas e cres-
cimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006.
263
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
264
O desenvolvimento e suas faces na China
265
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
32
BELLUZZO, Luiz G. “Prefácio”. In JABBOUR, Elias: China: Infraestruturas e crescimento econômi-
co. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006.
266
O desenvolvimento e suas faces na China
250000
200000
150000 Importações
US$ Milhões
Exportações
100000
Saldo
50000
-50000
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
Fonte: MEDEIROS, Carlos A. de. “A China como duplo polo na economia mundial e a recentraliza-
ção asiática”. In: Revista de economia política, vol 26, n. 3.
267
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Esse exemplo da relação chinesa com os Estados Unidos, estendida a seus vizi-
nhos, serve como amostra da capacidade da manipulação do câmbio como variável
estratégica e da capacidade de transformá-la em dividendos políticos. Entre esses di-
videndos, os angariados com a política responsável dos dirigentes chineses em não
desvalorizar sua moeda em meio aos vendavais da crise financeira asiática em 1997, o
que poderia gerar um novo processo de tipo “bola de neve” em torno de desvaloriza-
ções competitivas. Em vez disso, o governo chinês, naquele momento, deu preferência
à alternativa da via do estímulo de gastos públicos em infraestrutura como forma de
adensar seu mercado interno. Enfim, ao mesmo tempo em que mostraram respon-
sabilidade ao seu entorno, os chineses combateram a possibilidade de crise interna,
mas não com políticas de contenção ao consumo, tão caras ao Brasil e outros seguido-
res do Consenso de Washington. Ao contrário: a expansão de seu mercado doméstico
passou a ser o centro da solução de seu problema. Somente com uma política cambial
planejada é que o país poderia girar o compasso de seu processo desenvolvimentista
do exterior para o interior, afinal sem reservas cambiais dificilmente qualquer país do
mundo tem condições de sustentar uma taxa de juros atraente ao crédito e o consu-
mo. Suas reservas internacionais possibilitaram esse giro, conforme os dois gráficos
abaixo demonstram, comprovando o quão correta é a lógica da estabilidade monetá-
ria como consequência e não causa do desenvolvimento. Tal estabilidade monetária,
diga-se de passagem, resulta de uma política cambial justa.
12,0
10,0
8,0
6,0
4,0
2,0
0,0
-2,0 1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001 2004 2007
-4,0
-6,0
Fonte: International Monetary Fund Database. Elaborado por Luciana Acioly e André Cunha.
268
O desenvolvimento e suas faces na China
50
0
1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008
-50
-100
-150
Fonte: International Monetary Fund Database. Elaborado por Luciana Acioly e André Cunha.
Sob o risco de uma grosseira ingenuidade, não poderíamos esperar que políti-
cas baseadas em manipulação cambial como forma de diminuir as assimetrias en-
tre “pobres” e “ricos” no mundo fossem recebidas com naturalidade por governos e
policemakers de países como os Estados Unidos. A lembrança de Alemanha, Japão e
Coreia do Sul colocando sob pressão a competitividade econômica norte-americana
ainda é muito recente na memória. Por outro lado, em momentos de tensões cau-
sadas por crises financeiras, é complicado definir o papel que a integração – da
269
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Belluzzo faz uma genial observação: “o yuan desvalorizado é a outra face da supre-
macia do dólar”34. O caso da integração econômica, e inclusive macroeconômica, en-
33
BELLUZZO, Luiz G. “A China e a resistência cambial”. Valor econômico, 07-04-2010. Sobre essa
problemática cambial chinesa, o professor Belluzzo já escreveu diversos artigos muito interes-
santes e elucidativos.
34
_________________. “Nos limites da Chimérica”. Carta capital nº 573. São Paulo, SP, 25-11-
2009, pp. 62-63.
270
O desenvolvimento e suas faces na China
tre Estados Unidos e China é um desses em que a história acaba por demonstrar a
própria incapacidade de uma ou outra nação – ou mesmo de um modo de produção
em relação a outro – levar às últimas consequências essa integração. Os limites do
escravismo romano ficaram mais expostos na proporção em que aumentava a in-
tensidade comercial com tribos germânicas; o capitalismo de tipo inglês sucumbiu
diante de sua incapacidade de levar adiante formas diferenciadas de exportações de
capital, insistindo em não acompanhar as tendências do capitalismo de tipo ame-
ricano (demonstradas no início do século XX por Lênin em Capitalismo e agricultura
nos Estados Unidos da América), e acreditando na postergação de formas radicais de
relações centro x periferia.
Já os norte-americanos perceberam que, quanto à periferia pós-Segunda Guer-
ra Mundial, o próprio desenvolvimento dela dependia de graus maiores de “coe-
ficientes de abertura” (a reconstrução do pós-guerra foi um dos estopins daquilo
que muitos acadêmicos classificaram como Revolução Técnico-Científica ou, para
nós, III Revolução Industrial). É claro que, nos marcos deste avanço civilizacional, a
abertura planificada abria possibilidades enormes para o desenvolvimento econômi-
co, mesmo para países com grandes constelações de recursos como URSS, Estados
Unidos, China e o próprio Brasil35. Por outro lado, concomitante com a aparição de
projetos nacionais autônomos nos dois lados da Cortina de Ferro, essa tendência
à externalidade ganhou corpo e se transformou no próprio imperativo do equilíbrio
macroeconômico do capitalismo norte-americano, de uma democracia cada vez me-
nos baseada na subjetividade das pequenas propriedades das 13 colônias e mais na
própria capacidade de endividamento das famílias. Os Estados Unidos utilizaram
ao máximo essa perspectiva de alargamento de fronteira do próprio capitalismo,
valendo-se inclusive da imposição do dólar como reserva internacional em detri-
mento do ouro, num grande golpe contra o sistema internacional e a própria razão.
Ações unilaterais desse tipo, como lastrear a própria moeda como reserva in-
ternacional (em detrimento de idealismos economicistas), foram fatores de proa
para a emersão de algo que poderia estar naufragando diante da força econômica
japonesa, alemã e da própria URSS. A elevação de suas taxas de juros na década de
35
RANGEL, I. “A Polônia e o ciclo longo”. S/L, S/D. Artigo especial para Encontros com a civiliza-
ção brasileira. Trata-se de um texto praticamente desconhecido de Rangel, não estando sequer
incluído em suas Obras reunidas. Essencial para os interessados em analisar diferentes processos
históricos e o papel do comércio internacional na transição capitalismo-socialismo.
271
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
272
O desenvolvimento e suas faces na China
273
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Afora essas questões, vemos um jogo muito perigoso nessa pressão exercida
pelos EUA pela valorização cambial chinesa. Nele, existe o próprio movimento de
pressões diretas sobre a China. O outro movimento envolve a cooptação de ter-
ceiros países – como o Brasil –, “prejudicados”36 pela cotação da moeda chinesa.
Objetivamente, fica uma ponderação: qual economia do mundo poderia dispor da
escala necessária para colocar, no mercado estadunidense, mercadorias a um preço
tolerável dentro dos parâmetros e limites da própria democracia norte-americana?
Vietnã, Malásia?
Fica evidente, com certa capacidade de se observar o problema dentro de um
determinado conjunto, o fundo puramente político da intentona norte-americana
contra a taxa de câmbio chinesa. E política internacional sem fundo econômico
se torna algo sem consequência, beirando a desmoralização, como a própria des-
moralização do poder americano diante de um mundo em que Venezuela, Bolívia,
Equador podem começar a deixar de ser exceções para se constituírem em regra.
aaaaaaaaaaaa
274
O desenvolvimento e suas faces na China
colocando inclusive que tal acordo “faz pouco sentido” no que se refere à indução
do desenvolvimento em países pobres.
Fica subentendido que a flexibilização desse acordo significa maior liberdade
de manobra, principalmente cambial, para que os países pobres possam manejar
suas políticas industriais. Independentemente da posição política e ideológica clara
que sustentamos neste livro e do próprio reconhecimento do progressismo desta pro-
posta, a verdade é que não devemos encará-la de forma excessivamente eufórica.
E isso do ponto de vista não só estratégico e das questões econômicas, mas princi-
palmente político, social, cultural e ideológico que aqui apresentamos e que envol-
ve a “bandeira do desenvolvimento”. Esta proposta tem, porém, pelo menos dois
problemas. O primeiro está diretamente relacionado com a política internacional e
a correlação de forças no mundo. Avançar na implementação de algo dessa natureza
demanda um acúmulo de forças por parte dos países periféricos capaz de colocar em
xeque a própria estrutura de poder mundial; e não somente isso, como também a
própria lei do desenvolvimento desigual e combinado perderia eficácia e o capitalismo
perderia a razão mater de sua sobrevivência como sistema socioeconômico. Isso
redundaria, consequentemente, na proscrição do poder norte-americano e, logo,
da própria OMC. A implementação de algo dessa natureza causaria o fim da hege-
monia dos Estados Unidos. Possibilidade que, segundo nosso entendimento, não
é plausível de ocorrência num horizonte tão próximo. Isso independe da vontade
dos catastrofistas de plantão, que desde sempre têm previsto a derrocada norte-
americana (Samir Amin, por exemplo).
Com relação à política cambial chinesa e o impacto de uma medida dessa
monta, é muito difícil fazer qualquer prognóstico mais justo. A sugestão de Rodrik
é tão impraticável no plano imediato que, no momento histórico viável à aplicação
dessa medida, a própria China já teria reunido todas as condições objetivas para a
proscrição do ferramental cambial.
Já pensando no concreto presente, essa opinião de Rodrik guarda certo nível de
inconsequência. Por quê? Porque uma opinião desse cunho também pode servir
à fuga da discussão do principal fator dos desequilíbrios econômicos acumulados
desde o momento em que o dólar passou a ser lastreado não mais por tratados como
Bretton Woods, e sim pelo poderio militar dos EUA: a hipertrofia do sistema finan-
ceiro em detrimento da esfera produtiva, da economia real.
275
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
O problema da valorização do yuan não será solucionado sob marcos não con-
vencionais ou, melhor dizendo, sob intensa pressão. Não vemos grande evidência
empírica a partir daqueles que colocam a valorização do yuan como fronteira do
crescimento da demanda interna chinesa em detrimento de sua estratégia ex-
portadora, pois uma valorização do yuan poderia provocar uma queda nos preços
internos de tradables. Na verdade, a questão da demanda interna e de seu alarga-
mento depende de altos níveis de investimentos e é algo que não se anula com
uma “política exportadora”, na medida em que se planifica a própria capacidade de
investimentos tanto em setores poupadores de mão de obra como naqueles mais in-
tensivos em capital. Por outro lado, depende – também – da relação entre aumentos
salariais e inflação no país que, desde a década de 1990, tem se situado favorável
aos salários; afora isso, existe um sistema de crédito pautado por baixíssimas taxas
de juros. Enfim, o movimento interno já ocorre independente da forma como a
China se coloca no mercado internacional. Por outro lado, a tabela abaixo demons-
tra uma tendência interessante em matéria de política cambial na China:
276
O desenvolvimento e suas faces na China
5.2.2.2 Os IEDs em si
277
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
278
O desenvolvimento e suas faces na China
279
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
da China está na mesma proporção do de um país com renda per capita três vezes
superior a ela. Alusões a vantagens comparativas, sendo uma das principais delas
o custo de produção, são as explicações mais disseminadas, como se determinadas
vantagens – como já expusemos anteriormente – não estivessem presentes, e em
melhores condições, em outros pontos do globo. Por outro lado, está ficando muito
clara a tendência ao acerto de uma política de IEDs em que a transferência de tec-
nologia guarde centralidade40.
Na verdade existem, a nosso ver, duas “vantagens competitivas”: a primeira, já
densamente debatida neste livro, está no câmbio voltado aos interesses nacionais e
sociais chineses. A segunda “vantagem” está no controle absoluto do fluxo de
capitais. Voltemos, porém, ao assunto câmbio. Um economista da lucidez de Dani
Rodriksustenta, corretamente, que o que está em andamento em grande medida
na China são políticas industriais capitaneadas pelo Estado. Coloca ainda que o que
deve ser posto em questão não é a existência dessas políticas, mas a forma como
elas têm sido implementadas41. Nesse rumo, por exemplo, política industrial deve
ser acompanhada de políticas educacionais e fiscais correspondentes às necessida-
des do projeto. Insistimos, porém, que essa política industrial só tem consequência
na China sob uma política de câmbio administrado e de controle do fluxo de ca-
pitais.
Citando ainda Dani Rodrik, a utilização de um câmbio do tipo chinês é parte
de uma forma de política industrial, que – com as contradições anexas – tem dado
resultados na China. Mais do que isso, o mesmo Rodrik coloca que a utilização – no
pós-guerra – de taxas de câmbio desvalorizadas em países pobres redundou, ne-
cessariamente, em crescimento. Exemplo disso pode ser visto no próprio conjunto
do Bric, onde existem, de um lado, países como Brasil e Rússia, que privilegiaram
a liberalização financeira e cambial e têm nos produtos primários seus principais
itens de exportações, enquanto, de outro, Índia e China vêm ganhando gradação
tecnológica para sua pauta de exportações na mesma proporção em que têm traba-
lhado fora de marcos liberalizantes.
40
Idem à nota anterior.
41
RODRIK, Dani. “Make room for China in the world economy”. Paper prepared for the AEA
session on Growth in a partially de-globalized world, chaired and discussed by Philippe Aghion.
Disponível em: <http://www.hks.harvard.edu/fs/drodrik/Research%20papers/Making%20
room%20for%20China.pdf>. Acessado em 05/03/2010.
280
O desenvolvimento e suas faces na China
aaaaaaaaaaaa
281
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
passiva de análise puramente econômica, dado as influências que ela pode irradiar.
Há, porém, outro aspecto que afeta diretamente os IEDs na China. Confor-
me já colocado, mecanismos de manipulação cambial e controle sobre os fluxos
de capital atendem somente a disposições genéricas, porém vitais ao processo de
desenvolvimento. Além disso, estão claros neste livro os aspectos da superestrutura
lastreadores do desenvolvimento, pois o desenvolvimento não resulta da livre ação
de agentes econômicos por intermédio do mercado.
O círculo se fecha com a elaboração e aplicação de todo um aparato jurídico-
-institucional capaz de utilizar as formas de ação de determinadas leis econômicas
em prol do desenvolvimento setorial de uma economia em expansão, algo em con-
formidade com o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Isso é o que a
literatura econômica convencional chama, na forma de leis e regulamentos, de
utilização de políticas industriais. Geralmente, o conteúdo desse tipo de política
envolve subsídios para exportadores, proteção legal a determinados setores e meios
para indigenização de novas e novíssimas tecnologias.
Desde 1982 o Conselho de Estado da República Popular da China publica o
Catálogo Orientador do Investimento Estrangeiro43. Nosso intento não é demonstrar mi-
nuciosamente os efeitos e os setores beneficiados por esse tipo de regulamento.
O que é importante é o desenrolar dessa regulamentação, que envolve a própria
história do desenvolvimento recente chinês. Por exemplo, no âmbito da política regio-
nal, o Catálogo de 1982 privilegiava IEDs no litoral do país em detrimento de um
interior onde as ECPs avançavam sobre nichos de mercado que o setor estatal da
economia não conseguia abranger, onde os camponeses estavam em acelerado pro-
cesso de acumulação de riqueza. Além disso, naquele momento histórico políticas
de elevações planejadas de preços de grãos, além da permissão à comercialização
de excedentes, davam conta de um crescimento quantitativo acelerado e pautado mui-
to mais pelo consumo que pelo investimento. Esse cenário muda com o lançamento
do já citado Programa de Desenvolvimento do Oeste no final da década de 1990.
Em 2000, um encarte especial do Catálogo foi publicado no sentido de liberar joint
43
Tivemos acesso a esse documento a partir da seguinte publicação: KE, Ma & JUN, Li. El co-
mercio en China. China Intercontinental Press. Pequim, 2008. 487 p. Sobre esse tema, indicamos
também a leitura de: CUNHA, André M. & ACIOLY, Luciana. “China: Ascensão à condição de
potência global – características e implicações. In CARDOSO JR, José C.; ACIOLY, Luciana; MA-
TIJASCIC, Mico. Trajetórias recentes de desenvolvimento. Ipea. Brasília-DF, 2009.
282
O desenvolvimento e suas faces na China
283
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
46
RODRIK, Dani. “Devemos distinguir entre estímulo de crescimento econômico e sustentá-lo”.
Valor econômico, 22-09-2004.
47
Uma caricatura disso pode estar na reação da mídia brasileira para qualquer “mexida” mí-
nima na política monetária em curso. A simples utilização de um mecanismo fiscal, como o
Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), foi suficiente para alguns jornalistas iniciarem um
verdadeiro clima de terror em torno do governo brasileiro. Os “déficits” com a previdência social
são tratados de forma nitidamente fascista, enquanto o fato de cada 0,5% a mais na taxa Selic
corresponder a aumento de US$ 5 bilhões é tido como símbolo de responsabilidade. É nesse
clima interno que o projeto nacional brasileiro vem sendo postergado, e o governo que tentar
implementá-lo e torna-se passível de ser derrubado.
284
O desenvolvimento e suas faces na China
(o que demonstra que o comércio exterior chinês cresceu em média anual de 16%),
em 2008 as exportações chegaram próximas a 9%, e as importações, a 6,9% do
montante mundial. As exportações mundiais em 1980 equivaliam a 20% do PIB
mundial e, em 2008, a 32%48. Isso demonstra que a China associou o desenvolvi-
mento interno ao poderio nacional, dado o papel cumprido na elevação da relação
PIB/exportações mundiais e no alavancamento da demanda internacional, princi-
palmente de commodities.
A força política da China se concentra, assim, na crescente gravitação de
países da periferia em torno dela. Do ponto de vista estratégico, essa relação entre
a China e o Terceiro Mundo é vital para um país pronto a disputar, inclusive no
campo moral, a hegemonia internacional49. O outro lado dessa relação está na
crescente dependência, por empresas norte-americanas e europeias, das vanta-
gens de estarem instaladas na China. Sanções contra as práticas industrializan-
tes do governo chinês poderiam respingar nas próprias corporações, que mantêm
em pé a superestrutura do imperialismo e do próprio financiador de seus déficits
gêmeos, além, é claro, do papel cumprido pela produção chinesa para o controle
inflacionário nos EUA.
Outro fator para se refletir está na relação entre o acúmulo de reservas cam-
biais e a formação de uma potência financeira como consequência da crescente
demanda chinesa por produtos primários. Nesse sentido, é importante lembrar que
a liquidez da economia internacional em meio à presente crise financeira está sen-
do mantida graças à capacidade chinesa de substituir, gradualmente, entidades
cada vez mais desmoralizadas – como FMI e Banco Mundial – como financiadoras
internacionais de primeira instância. Esse tipo de movimento diz muita coisa e nos
ajuda a responder as questões levantadas acima.
48
Dados extraídos de China Statistical Yearbook e IMF World Report.
49
Em 2003 a China “zerou” as tarifas de importação para os 35 países mais pobres do mundo.
Além disso, esses mesmos países tiveram perdoadas suas dívidas externas para com ela. Ne-
nhum desses dois movimentos foi até agora acompanhado nem pelos EUA, nem pela União
Europeia.
285
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
50
KWONG, Peter. China and US are joined at the hip: The chinese face of neoliberalism. Counterpush,
7 e 8 de outubro de 2006.
51
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim. Boitempo. São Paulo, 2008, p. 360.
52
POCHMANN, Márcio. “Os Bric e a globalização da pobreza”. Valor econômico, 14-04-2010.
286
O desenvolvimento e suas faces na China
veis e pobres, o retrocesso poderia ser ainda mais grave. Na comparação de 2005
com 1981, percebe-se, por exemplo, que o universo de miseráveis do mundo com
renda mensal per capita atual de até R$ 61,20 passou de 1,9 bilhão (52,2% da
população em 1981) para 1,4 bilhão de pessoas (25,7% da população em 2005).
A diminuição de 26,8% na quantidade de miseráveis globais (meio milhão de
indivíduos) ocorreu fundamentalmente pelo fator China, com a saída de 627,4
milhões de pessoas da condição de miseráveis entre 1981 (835,1 milhões) e 2005
(207,7 milhões).
Essa fantástica queda de 75,1% no número de miseráveis chineses foi acompa-
nhada pelo aumento da quantidade de pessoas na condição de miseráveis no
resto do mundo. Ou seja, sem a China, o mundo apresenta uma adição de 114
milhões de pessoas miseráveis, tendo em vista o aumento de 1,1 bilhão de pes-
soas nessa condição em 1981 para 1,2 bilhão em 2005. Mesmo com o aumento
médio anual de quase 5 milhões de miseráveis no mundo sem a China, a taxa
de miseráveis caiu 29%. Entre os anos de 1981 e 2005, a taxa de miseráveis do
mundo baixou de 40,4% para 28,7% da população, sem a China, em virtude do
crescimento demográfico para o segmento fora da condição de miserabilidade.
aaaaaaaaaaaa
287
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
288
O desenvolvimento e suas faces na China
aaaaaaaaaaaa
A intenção até aqui não foi diminuir o papel dos IEDs no contexto do projeto
nacional chinês. Desde o início deste livro, nossa proposta, apoiada em visitas re-
centes à China, é explicar o processo chinês como síntese de complexidades como
causa e consequência do desenvolvimento. Temos exatos 15 anos de estudos sobre
um tema que tem sofrido a primazia do “simplismo” para explicar algo com muito
mais profundidade do que se imagina. Isso se coaduna com uma época histórica de
rebaixamento da ciência em prol de métodos que, no máximo, aproximam-se de
um economicismo tacanho.
Dessa forma, os IEDs são superlativados em detrimento de determinações
mais amplas e de fundo, entre elas a elaboração e a execução de um projeto na-
54
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim. Boitempo. São Paulo, 2008, p. 359.
289
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
55
Em nossa visita ao complexo siderúrgico Baosteel em janeiro de 2007, foram-nos apresentados
cinco “engenheiros de produção” com as mesmas funções de qualquer profissional análogo em
qualquer país do Ocidente. O detalhe: nenhum deles tinha diploma universitário e todos traba-
lhavam no ramo siderúrgico há pelo menos 20 anos.
56
Agradeço a Luciana Acioly, chefe da Coordenação de Estudos das Relações Econômicas Inter-
nacionais do Ipea, pela liberação de dados e informações atualizados sobre esse tema e recente-
mente sintetizados em um estudo intitulado A internacionalização das empresas chinesas.
290
O desenvolvimento e suas faces na China
291
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
com elas? É óbvio que ela joga as regras colocadas pelo centro do sistema capita-
lista (EUA). Em primeiro lugar, não existe disposição para o desenvolvimento fora
dos marcos do comércio de tipo capitalista. Ela pode estar colocando em contra-
dição a forma anárquica de comércio internacional com um comércio de novo tipo
(planificado). Se esse contato entre as duas formas de praticar o jogo do comércio
internacional vai gerar ou não uma transição satisfatória para o socialismo é algo
que somente a história poderá dizer. Porém, é diante dos marcos da hegemonia
norte-americana que a China acabou por se tornar um player de primeira grandeza
nas relações internacionais, o que demonstra a correção de sua forma planificada
de fazer comércio internacional e a transição em curso. Afora isso, o tipo autárquico
de gerar desenvolvimento mostrou seus limites no próprio “modelo soviético”. Há
um momento do processo de desenvolvimento em que a necessidade de fatores ex-
ternos de produção torna-se imperativa à reprodução do processo; exemplo disso está
na própria necessidade chinesa de importar petróleo, apesar de o país ser o quinto
maior produtor mundial desse hidrocarboneto.
Assim sendo, o reordenamento das relações centro-periferia se dá nos marcos
do que Bernardo Kocher chama de “diplomacia financeira”58. Esse tipo de diplo-
macia ocorre como forma de contornar os limites de uma potência emergente, mas
sem correspondência no plano militar ou ideológico, em comparação com seu com-
petidor estratégico, o imperialismo norte-americano. Para compreender o pro-
cesso histórico de formação de condições objetivas para essa forma
de diplomacia, é importante ter em mente toda a macroeconomia da
inserção chinesa, sobretudo voltada à formação de grandes reservas em moeda
estrangeira, à viabilização de um poderoso sistema financeiro estatal e levando em
conta as próprias dimensões do país, capazes de alterar, significativamente, o preço
das principais commodities e de abrir condições para outro paradigma de desenvol-
vimento, contraposto ao Consenso de Washington, o chamado Consenso de Pe-
quim59. No mesmo rumo do Consenso de Pequim, em seguida à ascensão, ao poder
58
KOCHER, Bernardo. “Do Terceiro para o Segundo Mundo. China: suas transformações econô-
micas e as relações internacionais”. In Seminário REDEM Buenos Aires, 2006.
59
Esse termo “Consenso de Pequim” foi lançado em 2004 por Joshua Copper Ramo (disponível
em: <http://joshuaramo.com/_files/pdf/The-Beijing-Consensus.pdf>). Esse texto é obrigatório
aos ocupados em compreender o mundo em transição de uma época de “fim da história” para
outra em que o desenvolvimento intrínseco ao projeto nacional chinês coloca o mundo diante
de um novo paradigma econômico, político, social e ideológico.
292
O desenvolvimento e suas faces na China
60
Sobre a concepção de “Ascensão Pacífica”, ler: BIJIAN, Zheng. “China`s ‘Peaceful Rise’ to
great power-status”. Foreign affairs. vol. 84, n. 5, set./out. de 2005. Zheng Bijian é assessor do
presidente Hu Jintao e um dos mais proeminentes intelectuais da China de hoje. Nesse artigo,
além da conceituação de “Ascensão Pacífica”, o leitor terá acesso a um amplo leque de limites e
potencialidades do “modelo chinês”.
61
Segundo essa teoria, o mundo estaria dividido em “três mundos”, porém com diferenciação,
dada a transformação da URSS de então numa potência de tipo imperialista ou, no dizer dos
chineses, “social-imperialista”. Portanto, no Primeiro Mundo estariam os Estados Unidos e a
URSS, no Segundo Mundo os países capitalistas e socialistas desenvolvidos e no Terceiro Mundo
os países capitalistas e socialistas periféricos, inclusive a China.
293
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
62
KOCHER, Bernardo. “Do Terceiro para o Segundo Mundo. China: suas transformações econô-
micas e as relações internacionais”. In Seminário REDEM, Buenos Aires, 2006.
294
O desenvolvimento e suas faces na China
das dívidas externas dos países mais pobres do mundo. Existem questões acerca
das posições chinesas em todos os fóruns globais (OMC, ONU, Conferências do Cli-
ma etc.), em que o país se coloca em defesa dos interesses periféricos. Claro que, por
trás desse movimento, existem questões como o suprimento energético e de outras
matérias-primas, além da busca de apoio dos países periféricos à causa chinesa no
Tibete e Taiwan. Mas também existem relações financeiras entre a China e seus
parceiros periféricos nas quais o “interesse mútuo” é respeitado, com empréstimos
sem condicionalidades e transferências de tecnologia jamais imaginadas por países
acostumados com formas “democráticas” de relações bilaterais63. Além do mais, a
China tem problemas internos grandes e suficientes – entre eles, uma desigualdade
social até certo ponto assustadora, além de problemas ambientais – para não gastar
energias em assuntos de outros países. Tudo pode ser resolvido pelo diálogo e por
seu poderio financeiro.
Não estamos colocando aqui que as relações internacionais chinesas com os
países periféricos ocorram sem traumas, sem contradições, nem muito menos isen-
tas de conflitos de interesse. O passado imperial chinês e sua condição de país
periférico suscitam questões que somente o futuro poderá responder.
O que supomos, neste caso, é a não proscrição da “teoria dos três mundos”. O
que existe, a nosso ver, é uma sofisticação de uma prática de relações internacio-
nais não mais pautadas em ajuda a guerrilhas falimentares e nem a movimentos
de libertação. Atualmente, com uma poderosa indústria endógena e um crescente
poderio financeiro e planejamento de seu comércio externo, o que existe é uma
sofisticação dessa política para um mundo altamente financeirizado e onde os cri-
térios de validação de presença internacional assentam-se muito mais em parâ-
metros econômicos que propriamente políticos. Há toda uma dialética envolvendo
política e economia, mas no caso chinês a política continua no comando. Entretanto,
dialeticamente, a política está ancorada em poderosos instrumentos econômicos
pautados em formas quase clássicas de inserção externa. Dizemos “clássicas” com
63
A questão da transferência de tecnologia para países pobres com “custo zero” é perceptível
nas intervenções de diplomatas chineses, por exemplo, na última Conferência do Clima, em Co-
penhague. Em contraposição, vale observar o pacote de “ajuda” do Banco Central Europeu e do
FMI à Grécia e as condicionalidades anexas, algo impensável de ser praticado pela diplomacia
chinesa.
295
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
a intenção de expor que as guerras de ocupação não fazem parte do repertório dos
chineses em sua política externa.
O papel das multinacionais, de seu sistema financeiro de novo tipo e, conse-
quentemente, dos IEDs, está no leme do processo. Pode parecer “mais do mesmo”,
mas quem leva a sério demais esse esquema pode estar equivocado.
296
O desenvolvimento e suas faces na China
297
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
298
O desenvolvimento e suas faces na China
Vamos nos ater ao que é geral e essencial no que se refere aos IEDs chineses.
Os IEDs da China no exterior seguem um parâmetro bem previsível, pelo menos
no aspecto da busca por fontes de energia. São sofisticados na medida em que lan-
çam mão de diferentes formas de se inserir no mercado internacional. Por exem-
plo, utilizando desde joint ventures, passando por uma visão estratégica de busca de
oportunidades no setor financeiro (serviços) e por fusão e aquisições, sobretudo em
momentos de crise de liquidez internacional65.
Outra forma de investimentos externos é a utilização de mecanismos finan-
ceiros externos para alavancar economias externas e partir para compras em eco-
nomias centrais e periféricas. Por exemplo, o recente pacote de U$ 586 bilhões
ajudou a atenuar a queda de economias como a da Alemanha, beneficiária da
demanda chinesa por maquinários e autopeças (somente no “giro alemão”, são
mais de US$ 10 bilhões em 36 pedidos com fabricantes de automóveis como Audi,
Volkswagen, BMW e Daimler. Ainda na Alemanha, foi feita uma oferta de US$
30 bilhões pelo escritório de P&D da Siemens, conforme informação exposta por
nós anteriormente).
Outros US$ 10 bilhões foram repassados à Petrobras em negócio mediado pelo
65
Mais uma vez, agradecemos a Luciana Acioly pela troca de ideias e disposição de dados.
299
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
China Development Bank (o maior banco de fomento do mundo), onde foi em-
penhado o pagamento em petróleo da camada do pré-sal. Nessa área de petróleo,
outros US$ 25 bilhões foram concedidos à Rússia para pagamento em óleo cru nos
próximos 20 anos. Além disso, acordos envolvendo US$ 12 bilhões foram fechados
com a Venezuela para o fornecimento de 1 milhão de barris de petróleo/dia até o
ano de 201566.
66
“Comendo pelas beiradas”. Estado de Minas, 22-02-2009.
300
O desenvolvimento e suas faces na China
150 –
140 –
130 –
120 –
110 –
100 –
90 –
80 –
70 –
60 –
50 –
40 –
30 –
20 –
10 –
-–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008
Fluxo Estoque
301
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
va em grande velocidade. Porém, não nos esqueçamos do que já foi dito acerca da
imediata tarefa de ocupar espaços internos.
Como se observa no gráfico, o salto acontece, principalmente, a partir de 2002
e entre 2006 e 2008. A principal razão está na institucionalização de um chamado
going global, referendado no 16° Congresso Nacional do PCCh, onde todos os tipos
de incentivos políticos e financeiros foram lançados como suporte a essa nova orien-
tação, já baseada em uma larga base financeira. Um ponto que não se pode deixar
de lado é essa expansão seguir o mesmo ritmo de certa ousadia em política exter-
na. Para ilustrar, se em 1990 a China fez vistas grossas à participação da ONU na
Guerra do Golfo, atualmente ela tem-se oposto a uma solução de força contra o Irã.
Sugestivo.
67
ACIOLY, L. & LEÃO, Rodrigo P. F. “A internacionalização das empresas chinesas”. In Carta
Sobeet. São Paulo. Ano XII, n. 54, abril/2010.
302
O desenvolvimento e suas faces na China
303
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
304
O desenvolvimento e suas faces na China
Devemos ser minuciosos. Os dados cedidos a nós por Luciana Acioly sugerem
outras formas de análise. Por exemplo, se descontados os investimentos em praças fi-
nanceiras como Hong Kong, Cayman e Ilhas Virgens, o valor “sobrante” fica em US$
37,2 bilhões, investidos em 170 países, em mais de 10 mil projetos empenhados por
cerca de 5 mil investidores. O quadro muda em 2008, para 51,6% dos investimentos
na Ásia e Oceania (regiões ricas em petróleo, gás natural e minério de ferro), 21% na
África, 13,7% na Europa, 9,7% na América do Norte e 3,8% na América Latina.
Em todos esses casos, o interesse central se concentra nos hidrocarbonetos,
além de produtos dos países da Asean69, que recebem cerca de 30% dos investimen-
tos chineses e, além de petróleo e gás, recebem também investimentos em setores
relacionados ao agronegócio.
Porém, é com a África que a China mantém relações continentais e onde joga
todo o peso de sua diplomacia, transformando-a num laboratório de sua política
externa. Dentro de uma visão de processo histórico, a China – na atualidade – vai
construindo algo que se coloca como a antítese das resoluções da Conferência de
Berlim de 1885, marcada pela partilha do continente africano entre algumas potên-
69
A Associação de Nações do Sudeste Asiático é composta pelos seguintes países: Tailândia,
Filipinas, Malásia, Cingapura, Indonésia, Brunei, Vietnã, Mianmar, Laos e Camboja.
305
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
306
O desenvolvimento e suas faces na China
ma de financiamento a partir das bases de uma república de tipo popular que busca
a superação do atraso e da condição periférica sob o manto de um “socialismo com
características chinesas”. O futuro tanto do capitalismo quanto do socialismo está
no papel do sistema financeiro. Daí trabalharmos a hipótese de um século XXI
pautado por, pelo menos, dois paradigmas:
aaaaaaaaaaaa
307
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
308
O desenvolvimento e suas faces na China
73
BELLUZZO, Luiz G. “A peste holandesa”. Valor econômico, 18-08-2009.
74
Recentemente, o presidente norte-americano Barack Obama convocou para uma reunião os
donos dos 14 maiores bancos norte-americanos. Nenhum deles compareceu.
309
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
310
O desenvolvimento e suas faces na China
311
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
312
O desenvolvimento e suas faces na China
que seu crescimento ainda tenha muito de transferência orçamentária, mas tendo
também um papel crescente do setor financeiro. Como exemplo, sua taxa média de
crescimento entre 1978 e 1997 foi de 5,7% e, desde então, subiu para a média atual
de 11,7%76.
Sua grande demanda nasce de uma massa salarial resultante de uma transfe-
rência anual pelo governo central, desde 2001, de US$ 20 bilhões na forma de infra-
estruturas em energia e transportes. Já o crescimento de seus depósitos bancários
tem média anual de 12%77, o que por si só vai se tornando uma base financeira
para o seu suporte futuro de crescimento. A transição de uma economia baseada
na agricultura de seu entorno e na indústria do gás natural para outra multiforme
é outra face que revela inclusive a necessidade de captação de recursos por institui-
ções financeiras baseadas localmente. Em Chongqing – por mais que as agências
bancárias das quatro instituições mencionadas estejam em grande expansão – os
incentivos de abertura de conta corrente e de depósitos em cooperativas de crédito
rural e urbano (voltadas ao suporte de, por exemplo, ECPs) são a tônica em jornais,
rádios e televisão. Um exame mais meticuloso das razões por detrás desses tipos
de campanha nos levou a perceber que o volume de crédito oferecido por essas co-
operativas está diretamente relacionado aos depósitos existentes. Os depósitos são
os lastros dessas instituições, enquanto os negócios envolvendo títulos da dívida
pública têm cumprido (ao lado dos depósitos) seu papel para a liquidez dos quatro
grandes bancos chineses.
Atualmente, percebe-se em Chongqing uma grande corrida atrás de crédito
para formação de ECPs como indústrias ancilares às que se deslocam para a re-
gião, como a siderúrgica, a automobilística e a alimentícia. Boa parte da busca por
créditos na municipalidade está direcionada à formação de bases produtivas com-
plementares às novas indústrias que chegam à região (em torno de 25%, segundo o
gerente de crédito do Banco da China que entrevistamos em Chongqing em 2004).
Assim, alarga-se o escopo de atuação dessas cooperativas, principalmente em cida-
des localizadas no oeste do país.
De Chongqing, partimos para Yichang, cidade-sede da usina hidrelétrica de
Três Gargantas, situada a algumas dezenas de quilômetros de Chongqing. Tínha-
76
Chongqing Statistical Yearbook, para todos os anos.
77
Chongqing Statistical Yearbook, para todos os anos.
313
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
314
O desenvolvimento e suas faces na China
parlamentares foi designado para visitar a China, ficando a nosso cargo a elabora-
ção do roteiro e instituições a serem visitadas juntamente com representantes da
embaixada. Evidentemente, fizemos o possível para visitar órgãos relacionados a
obras de infraestruturas, além de conhecer cidades do interior (como Chongqing),
onde esse tipo de investimento andava a todo vapor. O interesse não era por menos.
O objetivo era impressionar nossos parlamentares, além de procurar investigar me-
lhor os meandros do problema do financiamento, que ainda não estavam claros.
Um ministério-chave a ser visitado seria o relacionado ao transporte sobre
trilhos, o poderoso Ministério das Ferrovias. O primeiro momento da visita foi a
exposição dos objetivos do 11º Plano Quinquenal (2006-2010), em execução. Aqui
no Brasil, se comentava bastante sobre o projeto ferroviário Pequim-Xangai. Po-
rém, nessa visita, pudemos perceber que essa obra é apenas parte de um todo que
envolve gastos de US$ 128 bilhões no setor. Um passo gigantesco será dado com o
objetivo de unificar o território econômico chinês, por meio da construção de 2,5
mil novos quilômetros de trilhos por ano. Cerca de 60% das obras estão direciona-
das para o oeste do país, seja com o objetivo de unificar mercados regionais, seja em
prol da já citada unificação territorial e econômica do país.
O momento propício para saber de onde sairiam os recursos e – consequen-
temente – para delinear um debate menos superficial sobre a questão do finan-
ciamento se deve a um ponto levantado durante nossa audiência nesse mesmo
ministério, onde fomos recebidos por Chen Juemin, chefe do Departamento de Co-
operação do Ministério das Ferrovias, acompanhado de sua equipe de economistas,
todos com menos de 40 anos de idade.
Após Chen Juemin repetir as informações sobre os principais investimentos
e o valor a ser investido pelo setor, houve oportunidade de questionar acerca dos
canais de financiamento de tais investimentos, tendo em vista que o orçamento
do ministério não comportava tal cifra, e que as concessões de serviço público a
empresas públicas, por si só, não seriam capazes de, com sua capacidade de busca
de fundos para as obras, “fechar a conta” dos investimentos previstos e em an-
damento. O que acontece, nas palavras dele, é que “os ministérios responsáveis
por gerir grandes empreendimentos têm cerca de 60% do orçamento dotado pelo
Estado e pelos governos provinciais. A outra parte do orçamento cabe aos bancos
emprestarem aos ministérios”.
315
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Tal medida parece ser algo no mínimo novo para o vocabulário econômico da-
queles que habitam num país onde as palavras “investimento” e “crédito” somente
agora estão voltando a ser mais usuais. Porém, se percebermos que os empreendi-
mentos – dadas as necessidades imediatas do país – têm altíssimo índice de liqui-
dez, o retorno do investimento é garantido. O ressarcimento do crédito bancário
pode variar de 15 a 20 anos, com juros não revelados. Para aqueles que acreditam
em alguma “caixa-preta” como sinônimo de financiamento da produção na China,
essa relação entre bancos e ministérios pode ser algo no mínimo elucidativo.
Trabalhemos melhor, a partir desses exemplos, essas formas de financiamento
citadas.
Por outro lado, utilizando os exemplos, cabem ainda outras ponderações que
julgamos necessárias. A primeira: a China rapidamente vai fechando o processo
histórico, de uma fase em que o orçamento cumpre centralidade na execução de
investimentos para outra em que as instituições financeiras passam a tomar seu
posto no processo de reprodução nacional e industrial. O papel do mercado de
316
O desenvolvimento e suas faces na China
78
LEÃO, Rodrigo. Padrão de acumulação e desenvolvimento da China. Dissertação de mestrado no
Instituto de Economia da Unicamp sob a orientação do professor Carlos Alonso Barbosa. Cam-
pinas, 2010, p. 87.
317
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
318
O desenvolvimento e suas faces na China
bens de capital; sua liquidez provém de aportes do Ministério das Finanças79. Com
a separação de atividades entre sete bancos diferentes se criaram condições para a
proscrição do Plano Central de Crédito, criado na era anterior a 1978.
O controle pelo Estado do sistema financeiro já era garantia mais do que su-
ficiente da capacidade da instauração de novas e superiores formas de planejamento
capazes de administrar tanto a taxa de investimentos quanto outras questões, que
vão desde a banda cambial até a obtenção de uma política de juros adequada a essa
nova complexidade bancária. Isso quer dizer que, a partir da subordinação total
dos policy banks à lógica dos objetivos dos planos quinquenais, o Big Four, atuando
dentro do escopo das leis do mercado, deveria ser o norte a ser seguido no sentido
de adequar o sistema financeiro chinês a padrões internacionais de excelência,
num processo de médio e longo prazo, dados os problemas de financiamento de
estatais, sendo as mais problemáticas delas o complexo siderúrgico do nordeste do
país. Rodrigo Leão resume essa transição controlada da seguinte forma80:
319
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
81
Exemplo dessas instituições com ações em Bolsa no mercado doméstico de capitais são o Bank
of Communications, o Shanghai Pudong Development Bank, o Shenzen Development Bank, o
China Merchants Bank e o China Minsheng Banking Corporation.
320
O desenvolvimento e suas faces na China
82
KE, Ma & JUN, Li. El comercio en China. China Intercontinental Press. Pequim, 2008, p. 92.
321
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
depósitos seja suficiente para tal, é muito sugestiva a visão estratégica embutida na
“via dos produtores” com características socialistas e chinesas: por um lado, ela surge
a partir de uma institucionalidade que permite o acúmulo individual de riqueza e do
apoio provincial; por outro, se transforma em condição objetiva (no médio e longo
prazo) para a viabilização de um poderoso instrumento de intermediação finan-
ceira pela composição de um complexo sistema financeiro estatal. Como nos disse
um estudante de economia da Universidade de Pequim, por conta dessa política
estratégica, “perde-se hoje, para se multiplicar os ganhos amanhã”. Eis um daqueles mo-
mentos em que se percebe o papel de uma política fiscal baseada em objetivos de
pequeno, médio e longo prazo.
O aprofundamento do sistema financeiro chinês nas duas últimas décadas
também deve ser visto sob o prisma do processo de admissão do país na OMC em
2001, processo iniciado em 1993. O direcionamento de três instituições financei-
ras para o crédito a áreas-chave, a redução dos créditos podres e a abertura de
capital em algumas instituições – inclusive a flexibilização à instalação de ban-
cos estrangeiros no país – são parte desse processo. Apesar de amiúde o capital
bancário estrangeiro ser residual, mesmo após as reformas dos últimos anos, ele
ajudou no fortalecimento do poder estatal sobre o crédito. O capital privado e
estrangeiro se inserem muito mais num esquema de otimização e modernização
de métodos administrativos e gerenciais do que propriamente são parte de algo
que gere um desmonte da capacidade do Estado em enfrentar – a partir de seu
setor bancário – os desafios postos na contemporaneidade, inclusive a presente
crise financeira.
Pela evolução inserida na tabela 29, deve ficar claro o processo de aprofunda-
mento das reformas no sentido de dotar a China de um sistema de intermediação
financeira completa e em correspondência com os objetivos e diferentes estágios do
processo de acumulação do país.
322
O desenvolvimento e suas faces na China
83
LEÃO, Rodrigo. Padrão de acumulação e desenvolvimento da China. Dissertação de mestrado no
Instituto de Economia da Unicamp sob a orientação do professor Carlos Alonso Barbosa. Cam-
pinas, 2010, p. 94.
323
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
324
O desenvolvimento e suas faces na China
84
Processo descrito em JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas e crescimento econômico. Anita Ga-
ribaldi. São Paulo, 2006.
85
LEÃO, Rodrigo. Padrão de acumulação e desenvolvimento da China. Dissertação de mestrado no
Instituto de Economia da Unicamp sob a orientação do professor Carlos Alonso Barbosa. Cam-
pinas, 2010, p. 95.
325
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
180
% do PIB
120
60
0
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Fonte: CINTRA, Marcos A.M. “As instituições públicas no sistema de financiamento da China”. In:
ROCHA FERREIRA, F. & MEIRELLES, B. B. (org.). Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janeiro.
BNDES, 2009, p. 139.
CHA FERREIRA, F. & MEIRELLES, B.B. (org.). Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janeiro.
BNDES, 2009, p. 138.
326
O desenvolvimento e suas faces na China
chegou à beira do colapso na década de 1990. Não devemos ser laudatórios com o
sucesso chinês, afinal assim como os louros do sucesso chinês são os louros da su-
perioridade do socialismo ante o capitalismo, os problemas chineses contemporâneos
de todas as ordens também devem ser creditados aos próprios problemas de uma al-
ternativa ao capitalismo. Uma alternativa que ainda não alcançou 100 anos de vida.
A questão é saber se esses problemas estão sendo enfrentados ou não. Afir-
mamos que sim, e os montantes que envolvem a transferência de recursos e inves-
timentos ao interior do país são parte disso. Entre 2002 e 2008, US$ 320 bilhões
foram investidos na estruturação de uma nova previdência social. Outros US$ 103
bilhões, em programas de massificação educacional e viabilização de serviços pro-
vinciais e locais de saúde pública87. Todas essas modalidades de investimentos tive-
ram aumentos anuais – desde 2002 – médios de 17,2%.
A contradição é o motor do processo.
aaaaaaaaaaaa
87
China Statistical Yearbook para todos os anos citados.
327
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
328
O desenvolvimento e suas faces na China
dessa ao socialismo. Significa perceber que, apesar da queda extraordinária dos ín-
dices de pobreza no país, 83% de sua população que ainda vive abaixo da linha da
pobreza residem nas vastidões interioranas do país. Significa enfrentar o desafio de
soerguer suas minorias étnicas das raias da pré-história, pois 85% da pobreza ex-
trema do país atingem diretamente essas minorias, o que conforma um problema
político e social permanente.
Um contato direto com dados de tal envergadura pode levar a uma atitude
pessimista com relação ao quadro pintado para o desenvolvimento do centro-oeste
da China propagado pela imprensa, diuturnamente, dando conta da existência de
“dois países”. Os índices demográficos mais gerais e os índices de pobreza não de-
vem ser suficientes para se esboçar um quadro do problema. O importante é que
essa região está em pleno crescimento e esse deve ser o ponto de partida da análise,
conforme os dados no início deste subtítulo nos demonstram.
Por outro lado, no âmbito regional trabalhamos com a hipótese de que o de-
senvolvimento local deve se subordinar a um esquema mais amplo de desenvolvi-
mento que atenda as necessidades mais gerais do país. Do ponto de vista da teo-
ria, isso remete ao imperativo da quebra de esquemas rígidos de divisão social do
trabalho, que impossibilitam o pleno desenvolvimento de um país das dimensões
seja da China, do Brasil ou da Índia. Em tese, o processo de desenvolvimento em
um país periférico de dimensões continentais pode ser compreendido como uma
“caixa vazia” sendo preenchida. Esse preenchimento pode ser sintetizado no avan-
ço da divisão social do trabalho, na otimização das possibilidades regionais e na
consolidação de uma ampla economia de mercado. Afinal, a questão regional e sua
solução são partes indissolúveis do desenvolvimento.
Nesse caso, a percepção das demandas externas de regiões que devem ser afe-
tadas por um amplo processo de desenvolvimento nacional e regional é o primei-
ro passo89. Por exemplo, o pleno desenvolvimento da região autônoma de minoria
89
RANGEL, I. “Breves notas com vista a um plano de desenvolvimento econômico para a Bahia”.
In Revista de desenvolvimento econômico. Ano 3, n. 3. Salvador, janeiro de 2000. Texto escrito em
1963, porém publicado somente em 2000. Trata-se de uma contribuição de grande monta à
literatura marxista sobre o desenvolvimento regional. Nele, Rangel, em polêmica aberta com
Furtado, demonstra os limites da programação econômica levada a cabo pela Sudene e – num
outro patamar – denuncia os limites teóricos do estruturalismo, o que torna atual seu conteú-
do. A questão das “demandas externas” no processo de desenvolvimento é um dos conceitos
utilizados por Rangel como afronta aos esquemas preconcebidos de então e, de certa forma, em
voga até os dias de hoje.
329
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
330
O desenvolvimento e suas faces na China
331
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
92
LANE, Kevin. “One step behind: Shaanxi in reform, 1975-1995”. In CHEUNG, P., CHUNG, Jae
Ho., LIN, Zhimin. Provincial strategies of economic reform in post-Mao China: Leadership, politics and
implementation”. Armonk, Nova York, 1998, p. 213. Para localização geográfica das províncias,
consultar o Mapa 1.
332
O desenvolvimento e suas faces na China
Alguns exemplos devem ser citados acerca do método em torno dessa políti-
ca regional. Por exemplo, a instalação de complexos militares nas províncias do
centro-oeste, notadamente Qinghai. Instalado o complexo industrial, o governo
central ainda tinha a incumbência de promover investimentos sociais em diversas
áreas, dentre as quais educação e saúde. Passo importante para o sucesso desse
esquema é perceptível na disseminação de indústrias leves pelo interior (a raiz das
ECPs), substituindo os complexos de médio porte do litoral. Dessa forma, como
mais um exemplo, a implantação completa da Segunda Companhia Automobilís-
tica e das indústrias correlatas de autopeças na província de Hebei que, a despei-
to dos problemas inerentes a esse tipo de instalação em uma província distante,
encontra-se atualmente na vanguarda na construção de motores e montagem de
automóveis.
Nesse esquema de regionalização industrial de Chongqing, na era Mao, atual-
mente não deve causar surpresa a existência de uma forte indústria automobilística
nacional e uma das maiores fabricantes de motocicletas do mundo. As indústrias
de insumos industriais deveriam estar próximas às fontes de matérias-primas. As-
sim, entende-se o surgimento de uma grande indústria química e de fertilizantes
na região de Sichuan e dos primórdios de indústria petroquímica nessa mesma
Sichuan (Chongqing), na Mongólia Interior e em Xinjiang. Uma simetria pode ser
observada na herança do “modelo soviético” de descentralização industrial na anti-
ga república soviética do Cazaquistão, fronteiriça da região autônoma do Xinjiang:
o Cazaquistão é uma das maiores potências industriais na área petrolífera e gasí-
fera da Ásia.
Esse processo se acelera na década de 1960, com a institucionalização de uma
chamada defesa de “três frentes”: a litorânea, a central e a oeste, sendo que um
grande complexo militar industrial foi edificado no centro-oeste do país, nas mon-
tanhas que circundam o platô tibetano na província de Qinghai.
O complemento desse aparato reside na institucionalização de um instru-
mento central da planificação de tipo soviética, o sistema nomeado de Hukou, que
é uma instituição de controle de migração interna entre campo e cidade. Histo-
ricamente, desde aproximadamente o século X, as dinastias chinesas recorriam
a instrumentos de controle semelhantes a esse como forma de dimensionar, por
exemplo, o nível de taxação fiscal referente a cada família camponesa (mais uma
333
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
334
O desenvolvimento e suas faces na China
335
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
ces do 1° Plano Quinquenal com 35,5% (ante 36,9% no 1° Plano), e entre 1976 e 1980
se inicia o processo de reversão do período começado com o 2° Plano Quinquenal.
No 5° Plano Quinquenal, o share das construções básicas no leste da China chegou
a 42,2%, enquanto na região centro-oeste atingiu os menores índices desde 1958,
com exatos 50%, e no oeste, com 19%.
A explicação para o início dessa reversão reside, principalmente, na distensão
entre China e Estados Unidos com a visita de Nixon a Pequim em 1972 e o início do
processo de reatamento pleno das relações diplomáticas entre os dois países. Entre
1972 e 1980, o comércio bilateral cresceu a taxas médias de 13,2% ao ano. Esse é o
início, sob a direção de Mao Tsetung, de uma transição com vistas à inserção chine-
sa no mercado internacional.
Outra determinação nesse processo reside na porcentagem reservada às pro-
víncias interioranas entre o 1° e o 3° Plano Quinquenal. No período de 1952 a 1956,
do total dos investimentos realizados no país, 56% foram destinados ao interior.
Esse índice se eleva, no período seguinte, que se estendeu até 1962, para 59%. Esse
número chega a 71% entre 1966 e 1970, como resultado dos esforços de construção
da “terceira frente”.
Para ilustrar, entre 1952 e 1958 o crescimento do PIB per capita de algumas
províncias do oeste da China foi o seguinte: Xinjiang ,7,4%; Mongólia Interior,
7,7%; Shaanxi, 6,8%, e Qinghai, 7,1%. Percebe-se a diferença em comparação com
algumas províncias costeiras, como Guangdong (4,5%), Fujian (5,2%), Zhejiang
(3,3%) e Hebei (1,4%)93.
Do ponto de vista mais geral, pode-se ter, a partir desses números, uma visão
do processo que envolveu a execução de uma política regional na era pré-reforma.
Vamos agora finalizar essa análise com outra forma de observar o período.
Não é tarefa simples fazer uma síntese dos limites e potencialidades dessa
abordagem em matéria de desenvolvimento regional. Deve-se compreender, em
um primeiro momento, as próprias potencialidades e limites do “modelo soviético”.
93
China Statistical Yearbook para todos os anos.
336
O desenvolvimento e suas faces na China
Uma típica “revolução pelo alto” sentida diretamente pelas províncias mais pobres
da China nos primeiros tempos de República Popular.
A questão a ser pautada em discussões profundas deve englobar os esquemas
de financiamento possíveis para a economia de uma nação cercada militarmen-
te, isolada politicamente e estrangulada financeiramente, com índices baixos de
comércio exterior. Não se tem respostas consequentes para o problema regional
chinês da época de Mao fora da resposta a essas questões, algo que já foi discutido
no segundo capítulo deste livro.
A dita autossuficiência regional fora levada “quase” às últimas consequências.
Colocamos o “quase” entre aspas como forma de expor que, na ponta do processo,
o desenvolvimento regional chinês – como hoje – era ancilar a grandes projetos e
diretrizes, encetados pelo planejamento central. Apesar disso, a produção agrícola
dessas províncias deveria ser suficiente para o abastecimento alimentar local ao
mesmo tempo em que excedentes deveriam ser remetidos ao governo central.
O alto índice de crescimento das províncias interioranas é produto primário
da reforma agrária universal, que foi executada pelo governo popular no início
da década de 1970. Assim, a produção agrícola chinesa sai de um patamar de 164
milhões de toneladas de grãos em 1952 para 195 milhões em 1957, repetindo esse
mesmo índice em 1962, chegando a 240 milhões de toneladas em 1970 e alcan-
çando 285 milhões em 197594. Essa produção agrícola foi a base, ao lado da grande
ajuda financeira e técnica da União Soviética até 1962, para a escalada do cresci-
mento econômico e da taxa de investimentos no período maoista. Se o crescimento
médio entre 1952 e 1978 foi acima dos 6%, o da produção industrial alcançou 11%
no mesmo período. O traço marcante do “modelo soviético” está no crescimento
anual médio de 15,3% para a indústria pesada, o que demandou uma queda da par-
ticipação da agricultura no montante do PIB de 58%, em 1952, para 33% em 1978;
porém, a força de trabalho continuou concentrada em atividades primárias: caiu de
83,5% em 1952, para 73,3% em 197895.
Pode-se discutir que as colheitas poderiam ser maiores, mas a melhora nas
colheitas passaria por uma total mudança nas relações de produção entre Estado e
94
China Statistical Yearbook para todos os anos.
95
Idem.
337
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
96
Esse dado foi comentado em conversa com Chen Muqiao, técnico do Ministério da Constru-
ção, a 13 de janeiro de 2007.
97
Encontramos na cidade de Xian um grupo de estudantes de administração de empresas as-
sistindo a uma palestra (de um ex-trabalhador dessa planta industrial, de 72 anos de idade)
na subsidiária da Baosteel na cidade sobre o funcionamento do complexo administrativo dessa
planta industrial. Perguntado, por nós, sobre o seu nível de escolaridade, respondeu que era
de um nível de instrução semelhante ao que no Brasil corresponderia a um curso de torneiro
mecânico no Senai.
338
O desenvolvimento e suas faces na China
339
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
esse problema nos marcos anunciados tende a uma grande dose de “vontade” em
detrimento da objetividade das leis econômicas. Em curtas palavras, se tornou uma
obsessão na China pós-1956 a busca de uma solução rápida para o problema da cor-
respondência entre uma superestrutura de novo tipo, superior à capitalista, e uma base
econômica e material muito atrasada em relação tanto ao sistema capitalista quanto
ao socialista (URSS).
O desprezo de uma subjetividade camponesa que há milhares de anos traba-
lhava em torno da realização particular pela acumulação de excedentes foi, “de
cima para baixo”, subvertido em prol de formas comunais de produção. Essas for-
mas comunais de produção podem ser descritas como a essência negativa da pro-
dução regionalizada e autossustentada. O objetivo de passar a produção industrial
inglesa em apenas 10 anos (somente ultrapassou no ano de 2006), a partir de fornos
de fundo de quintal e o “arrocho” sobre a produção de excedentes agrícolas – num
país que ainda hoje convive com formas de produção na agricultura do século XVII
–, foi a senha para verdadeiros desastres como “O Grande Salto à Frente” (1956-
1962) e a própria Revolução Cultural (1966-1976), que ceifaram a vida de milhões
de camponeses e abalaram as relações entre Estado e base camponesa, que foi res-
tabelecida somente com a subida ao poder de Deng Xiaoping em 1978. Como tudo
se relaciona, queremos repetir a necessidade de se perceber o papel do externo na
busca por soluções internas e o papel que essas experiências tiveram para uma
convergência virtuosa em torno do arranque pós-1978.
Pedimos licença para uma reflexão profunda. Temos colocado que o desenvol-
vimento da divisão social do trabalho demanda a expansão da técnica, a especia-
lização produtiva, a maximização de fatores internos e, por fim, as necessidades e
fatores externos de produção. O fortalecimento da economia de mercado é a essência
desse processo. São fatores que dão causa para o surgimento de economias de esca-
las regionais e, num segundo momento, nacionais, que por seu turno concorrem à
unificação econômica de territórios e regiões. Essa é parte da história da transição
feudalismo-capitalismo, dos processos de unificações nacionais na Europa da pri-
meira metade do século XIX. Essa lógica quase mecânica prossegue na construção
do socialismo em países continentais. Sendo a superação da divisão social do tra-
balho o principal objetivo da transição socialismo-comunismo, a industrialização
regionalizada linkada com objetivos nacionais mais gerais determinados pelo plano
340
O desenvolvimento e suas faces na China
100
Lênin dedicou cerca de 45 artigos à temática da questão regional. Consideramos que o mais
didático e acessível deles seja As tarefas imediatas do poder soviético, escrito no início da Guerra Civil
(1918). Pode ser encontrado em suas Obras completas, tomo 16.
341
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
pelo seu Exército de Libertação Popular e a espera por retomar Hong Kong depois
do fim do último contrato de arrendamento com a Inglaterra (1997). Sua atitude
para com a burguesia nacional e a pequena burguesia era de estreita aliança. Após
1956, “encontrou-se” com o Stálin da coletivização forçada, da “revolução pelo alto”,
da “via prussiana socialista”.
Expusemos a abstração acima para pontuar que as escolhas em matéria de po-
lítica econômica e política regional – seja no capitalismo, seja no socialismo – não
se encerram na “loucura” desse ou daquele dirigente. O século XX teve poucos esta-
distas da estatura de Mao Tsetung e a China de hoje é prova disso. A circunstância
faz o homem, e o homem constrói a circunstância. Os problemas da abordagem
industrial e regional da era maoista devem ser vistos dentro do escopo da gestação
de um sistema de novo tipo, que ainda não havia completado 50 anos. E também
de uma conjuntura internacional que levou esse processo de industrialização a ser
marcado por uma divisão social do trabalho quase estática; expressão disso é a pró-
pria ausência de mobilidade de mão de obra pelo país (sistema hukou). Isso explica,
por exemplo, certos óbices, entre eles a quase não-existência de economia de escala
na China entre 1949 e 1978, apesar do crescimento da produção local.
Outro fator que concorre contra o pleno sucesso de uma política industrial
regionalmente planificada é o dos custos de transporte. Um sistema de transportes
é a essência da integração produtiva nacional, ao lado do mercado consumidor,
evidentemente. O baixo nível de acumulação de capital numa realidade como a
chinesa pré-1978 demanda uma concentração excessiva num ramo industrial (o
siderúrgico, no caso). Afora isso, numa conjuntura em que a troca internacional
é plenamente prejudicada, a utilização de mecanismos de economia monetária com
vistas à acumulação de capital se torna algo exangue. Por exemplo, atualmente
a China caminha para uma malha ferroviária de 80.000 km, sendo que, das fer-
rovias construídas pós-1978 (principalmente após 1995), 73% ligam cidades com
mais de 700 km de distância. Entre 1949 e 1978, a China saiu de um patamar de
21.800 km de ferrovias para 48.600 km. Um salto gigantesco101.
Por fim, sendo as economias de escala produtos de um processo de especializa-
ção produtiva, e sendo a especialização uma necessidade de mercado, dada a concor-
101
Dados disponibilizados, a 12-01-2007, pela gerência de relações internacionais do Ministério
das Ferrovias da República Popular da China.
342
O desenvolvimento e suas faces na China
rência, o grande limite desse modelo regional de industrialização pode ser notado
pela plena restrição de ação das leis típicas de uma economia de mercado. A acumu-
lação camponesa como o start de uma acumulação necessária para a posterior ex-
plosão da indústria não ocorreu em sua plenitude na China de Mao. Eis a essência
dos óbices dessa forma de gerir a industrialização e, consequentemente, a questão
regional. Afinal, existem ônus e bônus em escolhas que enfatizam a equidade em
detrimento da eficiência.
343
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
China shp
0
1
2
3
China shp
0
1
2
3
344
O desenvolvimento e suas faces na China
China shp
0
1
2
3
Fonte: RUIZ, Machado Ricardo. “Desenvolvimento econômico e política regional na China”. Relató-
rio do projeto “Diretrizes para formulação de políticas de desenvolvimento regional e de ordenação do território
brasileiro”. Ministério da Integração Regional. Brasília/DF. Julho de 2004.
345
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
102
OVERHOLDT, W. The rise of China – How economic reform is creating a new superpower. Cultural
Difusion. Nova York. 1993, p. 65.
346
O desenvolvimento e suas faces na China
tinha caído para 26%, enquanto as empresas coletivas e privadas rurais passaram a
gerar, respectivamente, 50% e 24% da renda rural103.
Na década de 1990 se percebe, porém, uma estabilização da renda rural e a
expansão da concentração não somente no litoral chinês, mas também em polos
rurais afetados, de um lado, pelo sucesso das ECPs e, de outro, pela disparidade
da própria produção agrícola. O gráfico abaixo demonstra esse processo de con-
vergência de renda na década de 1980, enquanto na década de 1990 as diferenças
regionais passaram a aumentar no mesmo ritmo do aumento (da desigualdade) no
nível de consumo:
0,4
0,35
0,3
Desigualdade (G)
0,25
0,2
0,15
0,1
0,05
0
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
Ano
PIB Consumo
Fonte: Lu, M. & WANG, E. “Forging ahead and falling behind: Changing regional inequalities
in post-reform China”. Growth and change 33 (1). 2002, p. 31.
347
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
das próprias províncias. Mas o planejamento regional seguia seu curso. O processo
de desenvolvimento expunha problemas que, em seu tempo, seriam devidamente
enfrentados.
O programa de desenvolvimento do oeste e a formação de uma economia con-
tinental unificada estavam entrando na ordem natural dos acontecimentos.
Pode-se vaticinar que o fim da URSS coincidiu com a expansão de zonas aber-
tas aos IEDs. Sim, pode ser, porém a escalada continental da economia chinesa
dependia da expansão industrial para zonas de fronteira, coincidentemente com a
da antiga URSS, que era a segunda potência industrial do mundo. O desmanche
da indústria soviética e a necessidade de abrir as portas chinesas para um capital
que poderia ter como destino natural uma economia em franca desregulamentação
levaram o país a expandir seu escopo de atuação industrial e territorial.
Observemos os mapas a seguir:
China shp
0
1
2
3
348
O desenvolvimento e suas faces na China
China shp
0
1
2
3
China shp
5.3 - 6.5
6.5 - 7.5
7.5 - 8.1
8.1 - 8,7
8.7 - 11.5
Fonte: RUIZ, Machado Ricardo. “Desenvolvimento econômico e política regional na China”. Rela-
tório do projeto Diretrizes para formulação de políticas de desenvolvimento regional e de ordenação do território
brasileiro. Ministério da Integração Regional. Brasília/DF. Julho de 2004.
349
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
350
O desenvolvimento e suas faces na China
351
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
na ponta do processo, não permite sair da superfície e observar que, por detrás do
atraso relativo e absoluto, existe – em muitos casos – um dinamismo próprio. Exem-
plo disso é o caso da província mais pobre da China, o Tibete. Analisando-se em
perspectiva mais histórica, os dados demonstram que, entre 1951 e 2007, sua econo-
mia cresceu 59 vezes sobre a base de 1951, com crescimento médio de 8,9%. Entre
2000 e 2007, seu PIB aumentou em 297%107.
Não estamos tentando pintar um quadro que não existe, em relação à reali-
dade do oeste da China. Sem nenhuma dose de presunção, talvez sejamos um dos
poucos brasileiros que teve contato profundo com a realidade do oeste chinês. O
atraso de algumas regiões mais inóspitas tem caráter absoluto e relativo. Em alguns
casos, há uma diferença gritante diante do que se observa no litoral. Mas a leitura
deve ser historicizada, o que significa considerar que a população ocidental da China
– na atualidade – vive em condições muito melhores que a de seus antepassados.
Essa percepção geracional do problema (e de sua solução) é um dos elementos que
dão suporte à unidade nacional chinesa.
aaaaaaaaaaaa
352
O desenvolvimento e suas faces na China
em províncias mais pobres, como Gansu e Tibete, além do petróleo e do gás natural
de Xinjiang, Sichuan e Mongólia Interior, tiveram o mesmo peso que a formação
das ECPs nas proximidades do litoral chinês e no vale do rio Yang-Tsé. Vale notar
que o surgimento de ECPs em seu início dependia – dentre outros fatores – de uma
forte densidade populacional, dado o caráter intensivo do trabalho em determi-
nadas indústrias, entre elas a têxtil. Diferentes realidades, diferentes formas de
inserção.
De certa forma, quando trabalhamos questões como a execução de novas e
superiores formas de planejamento, a “dinâmica territorial da ‘abertura ao exterior’”,
do processo de recentralização financeira, a relação entre os custos de transpor-
te e o baixo nível de acumulação de capital – além de questões que giram em
torno da necessidade da pobreza concentrada em regiões habitadas por mino-
rias étnicas e do imperativo das demandas externas e o desenvolvimento regional
– buscávamos provocar, mesmo que subjetivamente, um raciocínio que levasse a
exploração das potencialidades do oeste da China à nova fronteira, quase natural,
capaz de sustentar por décadas seu projeto nacional. Não somente sustentar, mas,
principalmente, consolidar e cumprir – por inteiro – os objetivos que levaram o
PCCh ao poder em 1949.
Esse processo planificado de unificação deve ser analisado sob três ângulos, a
saber:
353
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
com a Índia (rival histórico dos chineses), onde nascem os principais rios chineses.
Logo, é do Tibete que saem as principais linhas de suprimento de água. Xinjiang,
com grandes reservas de hidrocarbonetos, tem-se transformado na principal base de
uma malha de dutos voltada para o suprimento da China, numa ligação que se inicia
praticamente no Oriente Médio, chegando até o Pacífico. O Tibete – estrategicamente
– está destinado a ser base de uma ampla rede rodoviária e ferroviária ligando-o ao
conjunto territorial chinês e à própria Ásia Meridional, explorando assim enormes
possibilidades comerciais. Mas ainda sobram elucubrações sobre as possibilidades
internacionais abertas com a solução das questões regionais chinesas. Entre a cidade
de Wuhan (situada no interior do país) e Guangzhou (próxima de Hong Kong) já
funciona uma ferrovia com trens que chegam a 350 km/hora. Nenhum trem japonês
ou coreano alcança essa velocidade. A ideia estratégica por detrás desse tipo de em-
preendimento está na construção de 8 mil quilômetros de ferrovias de alta velocida-
de, capazes de ligar a China a mais de 16 países, reprojetando, em pleno século XXI,
a chamada Rota da Seda108, e com impacto sobre o entorno chinês (principalmente a
Rússia e seus interesses na Ásia Central) ainda em fase de cálculo.
O caso do Tibete encerra um exemplo dessa política de integração regional
pautada pela ampliação do sistema de transportes (ferrovia Qinghai-Tibete, a mais
complexa obra de engenharia do mundo moderno). Por exemplo, a carne produzi-
da no Tibete passou a ser consumida em cidades como Pequim, Xangai e Shenzen
após a conclusão dessa obra. Do ponto de vista da integração pela troca de capital
e tecnologia do litoral pela energia do oeste, fica o exemplo do gasoduto oeste-leste
ligando Xinjiang a Xangai, obra que custou US$ 20 bilhões. Outro exemplo está na
exploração máxima da capacidade hidrelétrica do centro-oeste do país (a 2ª maior
reserva de hidroeletricidade do mundo, atrás apenas do Brasil) e na construção de
hidrovias ligando o país aos seus vizinhos do Sudeste Asiático. Entre 1998 e 2004,
foram investidos cerca de US$ 1 trilhão em cerca de 10 mil obras de médio e grande
porte no oeste da China109.
De certa forma, o gráfico a seguir clarifica os avanços em matéria de cresci-
108
LIU, Melinda; NEMTSOVA, Anna; MATTHEWS, Owen. “A nova Rota da Seda”. In: Especial
China – CEO Exame. Edição n. 6. Junho/2010.
109
Investimentos, financiamentos e obras detalhados em JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas
e crescimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006. 256 p.
354
O desenvolvimento e suas faces na China
14
12,2 12,2
13
11,2 10,8 11,4 11,2 11,4
12 11,1
10,3 10,6
11 10,6
9,9 9,8
10
9,9 10,2
9 9,7 10,1 9,5
9,5 9,3 9,3
9,0 9,5 8,9 9,0 9,6
8
7
7,1
6
g n u n e i u í a g r i a A
qin ichua uizho unna Tibet haanx Gans ingha ingxi injian nterio uangx Chin CHIN
ong S G Y S Q N X ia I G e da
Ch ó l
st
ng Oe
Mo
Fonte: “West China: Significant growth and development”. In: People`s Daily. 17-09-2009. Disponí-
vel em: (http://english.peopledaily.com.cn/90001/90776/90882/6760223.html).
O gráfico diz muito: enquanto o crescimento médio da China nos dois períodos
variou de 9,6% para 9,8%, o do oeste do país subiude 9,5% para 11,4%. Todas as pro-
víncias e regiões autônomas crescem com média superior à nacional. Pelo menos três
destaques: o gigantesco salto verificado na Mongólia Interior (de crescimento médio
de 10,2% para 16%), no Tibete (que variou de 9,3% para 12,2%) e em Qinghai (que
saiu de um patamar de 7,1% para 11,4%). No caso da Mongólia, a construção de um
gasoduto que vai até Pequim e depois para Xangai, aliada a uma política de royalties
(que aumentaram em 120% desde 1999) para as províncias produtoras, explica em
grande medida esse salto. O Tibete deve seus grandes índices de crescimento, além
dos investimentos públicos, ao alargamento da demanda do leste do país de seus pro-
dutos primários (diretamente relacionado à construção da ferrovia Qinghai-Tibete).
355
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Esses dados não encerram por si o papel dos investimentos públicos nesse pro-
cesso. Existem outros níveis de indução. Verificamos, por exemplo, quando estive-
mos em Lhasa (capital do Tibete) e em Hohhot (capital da Mongólia Interior), em
2004, que, em comparação com Pequim e Xangai, para se comprar desde carros a
eletrodomésticos, o número de prestações é muito maior, chegando a até 100 vezes,
enquanto no litoral do país essas prestações não passam de 72. As taxas de juros
para esse tipo de compra chegam a ser negativas no interior do país, enquanto no
litoral variam de 0% a 0,2% ao mês. O crédito bancário é muito menos burocrati-
zado no interior que no litoral, com taxas de juros “japonesas”, ou seja, negativas.
As políticas de aumento de depósitos compulsórios ou aumento da taxa de juros,
utilizadas para conter o aquecimento da economia, não são aplicadas no interior
do país110.
Do ponto de vista da política, essa inversão de prioridades também expressa
a subida ao poder, no ano de 2002, da dupla Hu Jintao e Wen Jiabao. Trata-se de
dois homens altamente experimentados em matéria de governança em províncias
no interior da China. Hu Jintao, por exemplo, administrou entre 1986 e 1998 as
duas províncias mais pobres da China (Tibete e Gansu). Tudo isso influencia na
radicalização de certas políticas, entre elas as sintetizadas em alguns dados que so-
mente há alguns meses vieram a público, notadamente pela publicação da OCDE,
Economic survey of China, 2010.
Independentemente dos “conselhos” desse grupo de países (desmoralizados
pelo alcance da crise financeira) para privatizar o sistema financeiro chinês, nesse
relatório veio à baila uma grande notícia: entre 2005 e 2010 o ritmo de aumento
das desigualdades entre campo e cidade não somente foi estancado como também
começou a regredir. Nada que obedecesse a conselhos da OCDE: utilizando o índice
de Gini, a China saiu de um patamar de 49,6 em 2005 para 40,8 em 2007, tornan-
do-se um país menos desigual que Brasil, México, Rússia e África do Sul, ficando
atrás de países como Estados Unidos (ligeiramente à frente da China), Coreia do
Sul, Reino Unido e Japão.
Entre 2002 e 2009, segundo esse relatório, os investimentos em educação subi-
ram 122%; em saúde, 235%, além do dado já exposto neste livro, e confirmado pelo
110
Informações extraídas em conversas e entrevistas em lojas de departamentos no litoral e
interior da China, e com pelo menos 20 gerentes de bancos das citadas regiões.
356
O desenvolvimento e suas faces na China
357
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
caído para 39,6%. Nesse mesmo ano, apenas 5,1% das importações chinesas eram
de produtos agrícolas, enquanto a participação nas exportações caiu para 2,8%111.
Uma análise pautada por pura matemática pode levar a uma visão do processo
não condizente com a realidade, pois todos os índices apontam para uma perda de
importância absoluta da agricultura na economia chinesa. Embora isso seja verda-
de, não encerra o fato de a maioria dos chineses ainda viver na zona rural; o que
permite colocar que até hoje a questão agrária e camponesa é a variável estratégica
no que concerne ao desenvolvimento da própria superestrutura de poder na China.
111
China Statistical Yearbook para todos os anos.
358
O desenvolvimento e suas faces na China
359
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
de carros nas ruas, linhas de metrô em construção etc. Por outro lado, outro pro-
cesso nos assustava e nos chamou a atenção: a quantidade de mendigos e pedintes
pelas ruas da cidade.
A observação do problema social urbano, seja na China ou em qualquer lugar
do mundo, deve ser pautada pela existência de outros problemas, notadamente a
transformação da crise agrária de superpopulação em crise social urbana. O quadro era
desolador com a produção agrícola em queda, problemas ambientais afetando a
vida de milhares de famílias camponesas e corrupção no rumo de se tornar en-
dêmica, tendo como resultado problemas sociais urbanos e a eclosão, somente em
2003, de cerca de 70 mil protestos capitaneados por camponeses. Era o segundo
ano de governo da geração centrada em Hu Jintao – homem que, por ter governado
as duas províncias mais pobres do país (Gansu e Tibete), trazia consigo a meta de
reverter essa situação.
Nesse mesmo ano, 2004, a Academia Chinesa de Ciências Sociais interpelou
109 dos mais notáveis intelectuais da China sobre questões diversas que afetavam
o desenvolvimento do país. Do total, 73% manifestaram urgência para questões
relativas ao complexo agrário chinês. Já em 2005, em meio à sessão anual da Asso-
ciação para as Regiões Subdesenvolvidas, o então ministro do Comércio, Bo Xilai,
confirmou essas preocupações com o anúncio de que 90 milhões de chineses ti-
nham renda anual de US$ 112. Desses 90 milhões, cerca de 75 milhões viviam na
zona rural112.
As notícias que vinham do campo, como as acima colocadas, eram as piores
possíveis. Os números mostravam a mesma situação, com a queda contínua das
colheitas. Em 1999, atingiu seu pico com a produção de 508,4 milhões de toneladas,
chegando a uma depressão de 430,7 milhões de toneladas em 2003113.
Essa grande variação descendente tem razões diversas. Entre elas, as enchen-
tes que varreram o país em 1998, o avanço das construções urbanas na zona rural
– além de ferrovias, estradas e autoestradas. Um problema mais sério é a deserti-
ficação. Em 2002, a aridez do solo chinês alcançou 1,71 milhão de km2, ou 20%
de sua superfície territorial. A cada ano, 3.400 km2 tornam-se arenosos, causando
112
OLIVEIRA, Amaury P. Terceira Revolução Agrária na China. Versão mimeografada a nós oferecida
pelo autor.
113
China Statistical Yearbook.
360
O desenvolvimento e suas faces na China
114
China ABC, 2004. Chapter 9: “Environment`s protection”. In: www.china.org.cn.
115
Idem.
361
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
362
O desenvolvimento e suas faces na China
aaaaaaaaaaaa
Podemos dispor de pelo menos três ciclos de produção agrícola recente na Chi-
na. O primeiro, tratado acima, está diretamente relacionado com os incentivos à
acumulação particular do final da década de 1970. Por essa forma de relaxamento
das relações de produção, a China pôde alcançar – e manter – patamares de produção
saindo em 1978 de algo acima de 300 milhões de toneladas de grãos para quase
alcançar – em 1990 – o pico de 450 milhões de toneladas (446,2 milhões de tonela-
das). Esse foi um ciclo no qual repousou o próprio poder político do país, posto em
questão em junho de 1989.
Existem ainda dois processos que estão diretamente imbricados no crescente
peso aplicado, na agricultura, do intenso processo de modernização geral da econo-
mia chinesa. Estamos falando de outro estágio que permeia o aumento da produ-
tividade do trabalho, agora pautado pela gradação tecnológica. Se nas tabelas 30, 31 e
32 exibimos um arranjo geral do aumento da produção agrícola, a tabela abaixo nos
lança luz sobre os principais elementos a serem trabalhados:
363
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Apesar dos citados sérios problemas que a China teve de enfrentar a partir da
segunda metade da década de 1990, a produção de cereais alcançou 500 milhões
de toneladas em 1996. A produção por hectare aumentou de 2,5 para 5 toneladas
entre 1978 e 2008, o que significa que os problemas que atingiram o campo chinês
foram concomitantes ao aumento da tecnificação da agricultura. A tabela 33 expõe
isso de forma clara: a extensão da terra irrigada aumentou em quase 30%, dando
condições para cultivos, como, por exemplo, de algodão e melão em pleno deserto
do Tarim (Xinjiang). O consumo de fertilizantes químicos aumentou 5,9 vezes des-
de 1978 e o de energia elétrica se multiplicou por 22,6 desde 1978, com aumento
médio anual de 10,9%.
Com o acréscimo de outros fatores sociais de ordem positiva, a China alcan-
çou o patamar de 528,5 milhões de toneladas de grãos em 2008, com apenas 121
milhões de hectares de terras em condições de plantio. Algo louvável se compa-
rarmos com o Brasil, que em 2009 colheu 146 milhões de toneladas de grãos,
com terras aráveis potenciais de cerca de 400 milhões de hectares. Claramente,
uma produção muito aquém da chinesa, independentemente de todo o avanço
364
O desenvolvimento e suas faces na China
365
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Duas considerações acerca desse salto de qualidade devem ser feitas. A pri-
meira é a própria contradição encerrada na liberação em massa de mão de obra no
campo sem grandes condições de reemprego em sua área de hukou original. Cal-
cula-se que, em 2005, esse número chegou a 120 milhões. Trata-se de um número
explosivo que explica, dada a não completa flexibilização do mecanismo hukou, a
existência – no ano de 2004, em nossa primeira visita – de centenas de mendigos
e pedintes nas ruas de Pequim e Xangai. É interessante saber que somente nos
últimos anos esses migrantes fora de seu hukou passaram a ter direitos de cidadão
urbano. Eis um problema urbano tipicamente agrário.
A segunda consideração se relaciona com a conjuntura do momento em que
a produtividade do trabalho na agricultura chinesa teve de passar a outro patamar.
Estamos falando do processo de admissão da China na Organização Mundial do
Comércio (OMC) e dos efeitos da competitividade da agricultura do país sobre agri-
culturas altamente produtivas (EUA e União Europeia). Um problema muito sério
120
ESPÍNDOLA, Carlos J. “Notas sobre o agronegócio de carne na China”. In Revista de geografia
econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto, pp. 210-219. Núcleo de Estudos Asiáticos do De-
partamento de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007, pp. 215-220. Pode parecer um dado
contraditório, mas não é. A China também é importadora de carne de frango, porém parte de
sua produção desse tipo de carne é exportada após processamento.
121
Idem.
366
O desenvolvimento e suas faces na China
estava por detrás da necessidade de a China (por conta da admissão na OMC) ter de
baixar sua tarifa média de importações de alimentos de 22% para 15%, colocando
em xeque o emprego de mais de 20 milhões de agricultores chineses. Poderia-se
dizer que, diante do trigo, do milho e do algodão norte-americano e europeu, es-
taria decretada a proscrição da agricultura chinesa e, em consequência, do regime.
É muito imprudente para o analista menos informado, ou com “verdades
prontas”, subestimar o poder de reação de uma superestrutura segundo a qual o
desenvolvimento e a estabilidade social são questões de primeira pauta. Os núme-
ros expostos acima demonstram tanto um processo de diversificação (exportação de
carnes, por exemplo), quanto um de especialização (trigo, milho, algodão e horta-
liças, conforme veremos a seguir). Acima, citamos as possibilidades previstas de
“morte da agricultura chinesa” diante do trigo, milho e algodão norte-americano e
europeu. Pois bem, a produção de trigo na China em 2000 foi de 99,66 milhões
de toneladas, atingindo seu grau mais baixo em 2002, com a produção de 90,29
milhões de toneladas. Desde então, a partir de 2003, a produção continuou a cres-
cer, alcançando o total, em 2008, de 165,91 milhões de toneladas, um aumento de
quase 70% desde a admissão da China à OMC. Já a produção de milho seguiu
em ascensão desde 2000, indo de 99,63 para 165,91 milhões de toneladas em 2008.
A cultura do algodão, cada vez mais presente no deserto irrigado do Tarim, teve
em 2000 uma colheita de 441 mil toneladas para chegar, no ano de 2008, a 749,2
mil toneladas122.
Esse processo, que não encerra as imensas disparidades tecnológicas (e de for-
mas de produção) no campo chinês, tem servido para gradualmente colocar o país
na rota do abastecimento internacional de alimentos. Em nossa viagem, fizemos
de trem, em 2004 e 2009, o trajeto de 1.400 km entre Pequim e Xangai, e em 2009
ainda fomos até Shenzen e a Hong Kong. Em 2004, a paisagem do entorno da
ferrovia ainda era dominada por imensas plantações de sorgo. Em 2009, pudemos
perceber que boa parte dessas plantações foi substituída por estufas com hortaliças
voltadas para a exportação para o mercado asiático, principalmente o Japão. Dessa
maneira, do ponto de vista geográfico, o que se pode vislumbrar para o futuro é
a transformação do litoral chinês, acrescido de mais 250 km ao interior, em um
verdadeiro complexo agroindustrial voltado para os dois mercados, o interno e o
122
China Statistical Yearbook.
367
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
123
OLIVEIRA, Amaury P. Terceira Revolução Agrária na China. Versão mimeo a nós oferecida pelo
autor.
124
China Statistical Yearbook.
368
O desenvolvimento e suas faces na China
vistas que realizamos acerca da origem das frutas, a grande maioria dava conta de
plantações recentes em áreas próximas do centro urbano. Tendência semelhante
pôde ser verificada na formação de olarias, principalmente no entorno de Pequim,
cujos tijolos produzidos estão sendo utilizados na readequação de hutongs que cir-
cundam o centro da cidade125.
Entre uma viagem (2004), em que o fenômeno da mendicância começava a se
transformar em problema de ordem pública, e outra (2008), a impressão que ficou
foi a da diminuição sensível da pobreza urbana. Iniciativas individuais (ou mesmo
coletivas) como as descritas acima são apenas a ponta de um iceberg que esconde o
enfrentamento de problemas profundos.
Hutongs são vielas nem sempre pequenas, porém muito estreitas, que estão – em Pequim – em
125
369
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
das presentes contradições que podem travar o projeto nacional chinês. O sucesso
no enfrentamento dessa gama de contradições condicionará internamente, a nosso
ver, a China a alcançar o grau de maior e mais influente nação do mundo pelos
idos de 2050.
É nesse contexto que o principal objetivo traçado pelo primeiro-ministro Wen
Jiabao, em seu informe à sessão anual da Assembleia Nacional Popular (ANP),
em março de 2006, foi o de implementar políticas com o objetivo de construção de
um “Novo Campo Socialista” no período que compreende a execução do 11° Plano
Quinquenal (2006-2010). Buscaremos tratar três questões nesse ponto: a questão
social e financeira, a reforma do estatuto da concessão de terras pelo Estado, e a
problemática do meio ambiente.
370
O desenvolvimento e suas faces na China
ceira de 2008, chegaram a ter uma carga tributária sobre os camponeses da ordem
de 30% da produção. O segundo significado interessante é o do entrelaçamento
dessa reforma com o próprio aumento da capacidade financeira do Estado chinês
no que tange à compensação para as províncias mais afetadas. Uma das formas que
chegou a nosso conhecimento, por exemplo, é o repasse de 1% do orçamento das
30 cidades mais desenvolvidas do país às províncias onde o impacto dessa medida
foi de grande monta.
Outra medida de impacto executada em 2004 foi a instituição do Sistema
de Medicina Cooperativa (SMC). Ideia de impacto estratégico, inclusive como
forma de mobilizar – em outro patamar – a poupança doméstica, o SMC é finan-
ciado por um fundo com recursos de contribuintes, governo nacional, províncias
e cidades. Anualmente, o contribuinte paga a quantia de US$ 1,30, enquanto o
governo, em diversas esferas, contribui com US$ 5,20126. Muitos depoimentos que
colhemos pelo país no referido ano davam conta de um aumento do prestígio da
dupla Hu Jintao e Wen Jiabao após a execução dessa diretriz127. Vejamos o alcance
dessa política recente na tabela abaixo:
126
“Cooperative healthcare for rural residents”. China.org.cn. 08-06-2007. Disponível em:
<http://www.china.org.cn/english/government/213331.htm>. Acessado em 15-09-2008.
127
Sobre o funcionamento e o sucesso dessa política, ver reportagem sobre o exemplo do cantão
de Luochan, na província de Shaanxi, na edição de 13-10-2007 da The Economist, “Missing the
barefoot doctor”.
371
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
128
Segundo quadros da administração pública que pudemos conversar em Chongqing em 2007,
esse programa de renda mínima tem inspiração não nos programas europeus de “bem-estar
social”, mas na experiência do governo Marta Suplicy na cidade de São Paulo e no reconhecido
internacionalmente programa Bolsa Família no âmbito do governo federal.
372
O desenvolvimento e suas faces na China
373
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
sim como as recentes reformas na legislação trabalhista, são meio para sintonizar
as relações de produção com o desenvolvimento das forças produtivas. Essa verdade
tem base no fato de esses aumentos salariais se darem em um ambiente de baixa
inflação. Isso diz muita coisa. Vivemos em um país onde a atual política de aumen-
to do salário-mínimo atrelado ao desempenho do PIB sofre ataques a todo instante.
No Brasil, sob o rótulo da “demanda candente”, do terrorismo inflacionário e de
outras formas de expressão fascistas e antipopulares, impõe-se um senso comum
de ataques diuturnos contra tudo o que signifique melhoria da capacidade de con-
sumo do povo.
O nível de vida do povo chinês nas próximas décadas pode servir – por si só –
como uma grande forma de diferenciação entre o socialismo e um capitalismo cada
vez mais agressivo e envolto – em prol de sua própria sobrevivência – em guerras e
pilhagens em geral. Trata-se de interessante reflexão estratégica a ser feita.
374
O desenvolvimento e suas faces na China
aaaaaaaaaaaa
132
“Rural banking in China”. In Asia Focus. Federal Reserve Bank of San Francisco. Maio/2010.
Disponível em: <www.frbsf.org/publications/banking/asiafocus/2010/may.pdf>. Acessado
em12-03-2009.
375
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Pequim, Miyun
Suizhou, Cengdu
Zona Litorânea Chongqing, Dazu
Zona Central Fujian, Yongan
Zona Ocidental
Guangdong, Enping
Áreas piloto
Fonte: Rural Banking. HSBC. Beijing Office. 2009. Disponível em: (http://www.hsbc.com/1/PA_1_1_
S5/content/assets/investor_relations/091119_asiatrip_ruralchina.pdf).
376
O desenvolvimento e suas faces na China
377
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
7,000
6,000
5,000
4,000
3,000
2,000
1,000
–
2003 2004 2005 2006 2007 2008
Fonte: “Rural Banking in China”. In Asia Focus. Federal Reserve Bank of San Francisco. Maio/2010.
Acessível em: (www.frbsf.org/publications/banking/asiafocus/2010/may.pdf).
Sobre esta participação, ler: Rural Banking. HSBC. Beijing Office. 2009. Disponível em: <http://
136
www.hsbc.com/1/PA_1_1_S5/content/assets/investor_relations/091119_asiatrip_ruralchina.pdf>.
378
O desenvolvimento e suas faces na China
379
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
alimentar deverá aumentar em 25% até 2020, com base em 2008137. Em síntese, o
governo chinês nos próximos dez anos deverá elevar consideravelmente sua pro-
dução dentro do limite estabelecido (já utilizado) de 120 milhões de hectares. A
questão é: como um país, no limite de suas capacidades (em matéria de terras em
condições de plantio), poderá alcançar objetivo dessa grandeza?
Revisemos o processo. Expusemos, com números, que a agricultura chinesa
também foi beneficiária do processo de modernização industrial, com a elevação da
composição orgânica do capital, a especialização e a diversificação. Vimos algumas tendên-
cias em andamento no país, entre elas a cooperativização. Deixamos subentendido
que essa elevação das forças produtivas rurais da China deveria ser acompanhada de
relaxamento das relações de produção; algo a que o governo atendeu de forma extensa,
com a execução de audaciosas políticas nos campos financeiro, tributário e social.
Assim sendo, não dá para imaginar um aumento de 25% da produção agrícola
(e a duplicação da renda per capita rural) em dez anos num país com as condições na-
turais e demográficas da China. Felizmente ou infelizmente, alcançar objetivos dessa
monta passa – necessariamente – pela transição de uma agricultura ainda baseada
na pequena produção mercantil (em algumas regiões, já em estado de trânsito para
a cooperativização) para outra baseada na técnica e na mecanização nos marcos da
grande propriedade. Essa necessária transição nos leva a crer que o caso chinês – e seu
dilema agrário moderno – se resume ao fato de as formas de propriedade e conces-
são da terra inauguradas em 1978 já estarem em vias de esgotamento. O problema
não é mais assegurar condições institucionais para a manutenção de um ambiente
de mercado. A questão é como dar um salto de produtividade sem ferir os interesses
materiais dos camponeses, ao mesmo tempo em que a questão da propriedade esta-
tal da terra não seja subvertida. Vejamos o encaminhamento da questão.
Outra questão que se coloca é como combinar propriedade estatal da terra com
a necessária transição da pequena produção mercantil para outra de nível superior em
todos os aspectos. Um exame baseado em teoria fina pode encaminhar para uma
solução onde a institucionalização de pequenos lotes familiares não se restrinja so-
137
MOREIRA, Assis. “Emergentes embalam produção agrícola”. Valor econômico, 14-06-2010.
380
O desenvolvimento e suas faces na China
381
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Pode soar muito forte afirmar que, em matéria de meio ambiente, a China
atingiu o “fundo do poço”, pois da mesma forma que apontamos sucessos acumu-
lados pelo projeto nacional chinês, a responsabilidade política e intelectual deve
382
O desenvolvimento e suas faces na China
139
OLIVEIRA, Amaury P. “A China abraça a causa verde”. In Bresser Pereira Website. Disponível em:
http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=3676
140
JABBOUR, Elias: China: Infraestruturas e crescimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo,
2006. p. 125.
383
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
1978 e 2005, foi construída na China uma usina movida a carvão por semana141.
Fomos acometidos, em Pequim, por duas “chuvas de areia”. Antes esse fe-
nômeno era consequência do avanço da desertificação, mas a expansão da classe
média, em velocidade maior que a correspondente em forma de obras urbanas,
juntamente com a facilidade do crédito para a compra de automóveis, alimentava
mais um fator poluidor no uso de carros a gasolina. O transporte público, tanto em
Pequim como em Xangai, tinha grande fonte poluidora em ônibus urbanos cuja
fabricação datava da década de 1970.
Como se pode perceber, de concreto, não faltavam razões para alimentar um ver-
dadeiro clima de terrorismo142. Pequim se preparava para receber os Jogos Olímpicos
de 2008, e os dirigentes do país não escondiam a intenção de utilizar tal evento como
forma de promover a imagem da China no mundo. Para tanto, um dos objetivos era
transformar Pequim em uma cidade “politicamente correta” do ponto de vista am-
biental, com a construção de três grandes parques e dois “cinturões verdes”. Pequim
prometia baixar a poluição por meio do aumento da proporção do consumo de gás e
eletricidade em até 75%, em 2005, e 83%, em 2010. Para os Jogos Olímpicos de 2008,
90% dos táxis e 70% dos ônibus da cidade seriam abastecidos por gás natural.
Já a cidade de Xangai, maior centro industrial e comercial, com 70% – naquele
momento – de seu consumo energético providos pela queima de carvão, planejava
o aumento do consumo de gás nos setores industrial e automobilístico juntamente
com a pretensão de construir usinas elétricas a gás até 2010.
Poucos acreditavam que esses objetivos seriam alcançados. Porém, o poço não
era tão profundo quanto parecia.
141
China Statistical Yearbook para os anos citados.
142
Esse clima de terrorismo orquestrado teve seu pico em 2008, durante a realização dos Jogos
Olímpicos. A mídia deu grande destaque à hipocrisia imperialista/racista de atletas norte-ameri-
canos e europeus chegando a Pequim com narizes protegidos por lenços. O detalhe é que, no dia
8 de agosto, data em que se inaugurou o evento, a qualidade do ar em Pequim estava havia 26
dias melhor que o verificado em Nova York. No final das contas, a China realizou o maior evento
esportivo da história. Era a inauguração do “século chinês”.
384
O desenvolvimento e suas faces na China
385
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
386
O desenvolvimento e suas faces na China
Após a reflexão acima, podemos vislumbrar que a superação desse óbice pela
China não se dará a partir de parâmetros idealistas. Não estamos num mundo
perfeito, e sim num planeta onde os problemas que freiam seu processo de repro-
dução (ainda) são enfrentados somente sob o amparo da acumulação de capital.
Apesar de parecer esdrúxulo, temos a clareza de que – no concreto – é assim
que as coisas funcionam. Afinal, leis proibitivas a ações degradantes não
passam de instrumentos jurídicos e institucionais que fazem parte
da superestrutura. A superestrutura deve, porém, refletir impulsos da
base econômica. Esse complexo sugere expor a questão ambiental como mais
uma fronteira de acumulação. Sem base material, as leis – por mais avan-
çadas que sejam – transformam-se em letras mortas. É por essa razão
que a solução da questão ambiental também é parte essencial tanto da transição
para a III Revolução Industrial como da concorrência estratégica entre socialismo e
capitalismo.
143
Neste momento aprofundamos as opiniões do embaixador Amaury Porto de Oliveira, divul-
gadas no texto já citado, “A China abraça a causa verde”.
387
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
388
O desenvolvimento e suas faces na China
389
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
para o gás natural no transporte público e em táxis nas grandes cidades tiveram
êxito, além do fato de o Instituto Nacional de Estandardização (o Inmetro chinês)
implementar políticas de regulação que objetivaram a diminuição em até 10% do
consumo de energia nas cidades. No final de abril de 2010, se alcançou a dimi-
nuição de 14% na utilização de energia por unidade do PIB, porém o consumo de
energia na China desde 2006 aumentou em 24%. Outro exemplo desse empenho é
o Programa de Eficiência 1.000 Empresas, já utilizado com sucesso anteriormente,
voltado para a fiscalização de empresas que usam mais de 5 mil toneladas anuais
equivalentes de carvão144.
O plano quinquenal encerrado elevou a moral da governança chinesa para
tratar internacionalmente do problema ambiental. Vale lembrar que a citada
participação de Hu Jintao na Assembleia Geral das Nações Unidas teve ponto
culminante não somente no relato dos feitos desse país ao longo de 60 anos
de poder popular, e nem apenas no crédito dado pelo dirigente chinês sobre
a inexequibilidade desse projeto apartado do socialismo. A ampliação da polí-
tica de reflorestamento, aumentando em 20% a taxa de utilização de energia
limpa com base em 2005 e aumentando para 15% a utilização de combustíveis
limpos (atualmente em 7%, enquanto no Brasil é de 45%), e a viabilização de
uma “economia verde” foram políticas em execução anunciadas – internacio-
nalmente – pelo mandatário chinês, com amplas repercussões pelo mundo. Do
ponto de vista estratégico, o embaixador Amaury Porto nos alerta que pelo
menos 60% dos aportes financeiros chineses voltados à contenção dos efeitos
da crise financeira (quase US$ 600 bilhões) foram “carimbados” ao subsídio de
energias limpas. Opinamos que um imenso mercado para produtos ancilares
à “economia verde” está em ebulição na China. Trata-se da acumulação como
pêndulo do processo em pauta.
Discurso e prática que caíram como uma torrente, dados os óbices à economia
norte-americana e mundial em decorrência da crise financeira. O processo de fra-
gilização do governo Obama no âmbito doméstico, expressa na imensa barganha
em sua política externa em prol da aprovação da reforma da saúde. A face ambien-
talista de Obama se expressa nas tentativas de fortalecimento da “indústria verde”
144
LASH, Jonathan. “A China verde é sustentável?”. In Especial China – CEO Exame. Edição nº 6.
Junho/2010.
390
O desenvolvimento e suas faces na China
Não é preciso ir muito longe para se ter uma noção da imensidão do merca-
do norte-americano para práticas de “economia verde”. Além disso, os EUA são a
maior potência jamais vista na história humana. Por outro lado, o papel virtuoso
cumprido pela China na contenção dos efeitos da crise financeira elevou-a a uma
condição jamais vivida por ela desde a segunda metade do século XVII. Projeta-se
assim a necessidade do diálogo entre as duas maiores potências sobre os desígnios
do século XXI, entre eles a área energética. A competição também é parte desse
complexo, obviamente. Trabalhemos dois exemplos. Um de cooperação e outro de
competição. O de cooperação está nos arranjos conjuntos entre os dois países para
procurar sínteses comuns em fóruns internacionais, como as “conferências do cli-
ma”; algo como a extensão do Diálogo Econômico-Estratégico lançado em 2006.
Nesse campo, as dificuldades maiores ficam a cargo dos Estados Unidos, uma vez
que nem sempre promessas de campanha são factíveis na prática, como demons-
traremos abaixo.
A competição entre os dois países no terreno das energias limpas e suas respec-
tivas indústrias está na dialética entre a demanda norte-americana pela mudança
de seu vetor energético e a cada vez maior capacidade chinesa de atender a essa
demanda. Dois exemplos são pertinentes. O primeiro está na capacidade produtiva
instalada no setor de energia limpa pela empresa Himin, que produz cerca de 2
milhões de metros quadrados de painéis para captação de energia solar por ano,
145
“China doubles wind power in single year”. In U.S. News – Green machines. Disponível em:
<http://www.msnbc.msn.com/id/35219596/ns/us_news-environment>.
146
“China has world’s fastest growing wind power capacity”. In Business week. 28 de abril, 2009.
Disponível em: <http://www.businessweek.com/globalbiz/blog/eyeonasia/archives/2009/04/chi-
na_has_world.html>. Acessado a 13-07-2010.
391
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
produção equivalente ao dobro das vendas anuais desse produto – por estrangeiros
– ao mercado norte-americano147.
Outro exemplo encerra-se na polêmica sobre a construção de uma planta de
energia eólica no Texas ao custo de US$ 1,5 bilhão, empreendida por um consórcio
sino-americano. O lado chinês (com 49% de participação) é a A-Power Energy Ge-
neration Systems, com sede em Shenyang. Cerca de 30% da obra estão sendo finan-
ciados com fundos governamentais de incentivo à instalação desse tipo de planta.
A polêmica reside no fato de que todas as 240 turbinas geradoras de energia a serem
utilizadas no empreendimento são de fabricação chinesa148. É curioso notar que há
alguns anos a China foi um grande mercado para turbinas e geradores fabricados
por empresas como GE e AES. O jogo, pelo jeito, pode estar virando. Empreendi-
mentos desse tipo tendem a se repetir no futuro próximo, com a percepção de um
confronto econômico que tende a ser cada vez mais iminente e agressivo.
aaaaaaaaaaaa
392
O desenvolvimento e suas faces na China
Estados Unidos é que mais da metade dos estados da federação são produtores de
energia proveniente do carvão. Um país dominado por oligopólios dificilmente pode
cumprir acordos internacionais em matérias que mexem com os interesses desses
oligopólios.
A China também tem problemas desse tipo, mas de menor intensidade, afinal
os oligopólios chineses são estatais e devem plena satisfação ao Esta-
do. Essa é uma vantagem considerável dentro da observação de mais largo alcance
envolvendo a superioridade do socialismo em relação ao capitalismo. Essa superiori-
dade também explica a rapidez com que a China direciona capital e incentivos à
abertura de empresas, institucionalização de reserva de mercado e agressividade
externa em áreas jamais imaginadas ao pesquisador menos atento. A “indústria
verde” é prova disso. Porém, tudo guarda contradição. Conversamos com muitos
membros do PCCh em cidades diferentes, como Pequim e Xangai. Em Pequim,
existe uma aceitação muito maior da necessidade de uma “industrialização verde”.
Em Xangai, a indústria já instalada tem muita força na seção local do PCCh, por-
tanto mais avessa a uma escalada mais rápida de desmonte das plantas movidas a
carvão. Sendo o carvão uma forma de geração de energia amplamente difundida
em todos os rincões da nação, e como muitos dos membros do PCCh têm status
maior ou menor dependendo da performance econômica da província em que go-
vernam, o controle de políticas nacionais é muito dificultado. Existem lobbies de
grandes estatais petrolíferas? Claro que sim, mas seus gerentes são nomeados pelo
Estado e não por interesses privados. Nessa e em outras refregas o governo chinês
tem muito mais capacidade de manobra do que o governo americano.
Nesse espaço político entre o governo central e as províncias é que surge uma
imensa classe média com grande capacidade de mobilização e pressão sobre o go-
verno. O governo chinês sabe disso, fazendo grande apelo à sua participação po-
lítica nos quadros da mobilidade social em que a classe média tem expressão. Os
intentos da classe média norte-americana estão mais na necessidade de ampliar
sua capacidade de consumo do que no incômodo diante da pobreza alheia e de
problemas ambientais e sociais mais agudos.
Essa relação estratégica entre dois países com sistemas sociais, políticos e eco-
nômicos diferentes deve ser analisada sob a luz de variáveis que muitas vezes es-
capam de qualquer pesquisador, inclusive sob o medo do rótulo. Ser rotulado é um
393
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
394
O desenvolvimento e suas faces na China
149
“ONU: China investe 3% do PIB em energia limpa”. In Portal Vermelho, 06-05-2010. Dispo-
nível em: <http://www.rubro.paginaoficial.ws/noticia.php?id_noticia=128899&id_secao=10>.
Acessado em 07-05-2010.
150
“China to double investment in environment protection to US$ 454 bn”. In, BusinessGreen.
com. Disponível em: <http://www.businessgreen.com/articles/print/2253986>. Acessado em
10-06-2010.
151
SYLVAIN, Darnil & LE ROUX, Mathieux. 80 homens para mudar o mundo. São Paulo, La Selva,
2009, p. 240.
395
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
396
O desenvolvimento e suas faces na China
Unmqi
ShenYang
Huhhot
II Pequim
LanZhou
I XiAn ZhengZhou
Fonte: 2º Congresso Anual de Tecnologia e Investimento em Energia Solar na China. Disponível em: (http://
www.noppen.com.cn/events/2nd_solar/2nd_solar.asp).
397
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
elencadas acima demonstram que a escala 1 vai desde o altiplano do Tibete até
as extensões do deserto do Tarim. Já a escala 2 é percebida nas regiões que se es-
tendem do sul país ao deserto de Gobi, e também na Mongólia Interior. A escala 3
se estende na direção das planícies litorâneas chinesas. O destaque é o fato de as
províncias mais pobres da China guardarem maior potencialidade de produção.
O mapa 12, sobre fatores de capacidade para instalação de unidades geradoras
de energia eólica, demonstra tendência semelhante:
Fator de
Capacidade (%)
0.27 - 7.5
7.6 - 11
12 - 15
16 - 19
20 - 23
24 - 27
28 - 32
33 - 47
398
O desenvolvimento e suas faces na China
399
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
cionou chamar de “crescimento potencial”, que vai além da relação entre capaci-
dade produtiva instalada e utilizada com o movimento da demanda. Logo, pude-
mos constatar as mesmas especulações que lançamos na introdução deste livro
e, por termos acreditado que tais especulações foram demonstradas ao longo da
tese, lançamos mão das mesmas palavras da introdução, segundo a qual a com-
plexidade da China pressupõe crescimento econômico como resultado de alguns
fatores, entre eles:
400
O desenvolvimento e suas faces na China
401
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
402
6. Conclusões / Reflexões
403
Conclusões / Reflexões
aaaaaaaaaaaa
405
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
aaaaaaaaaaaa
406
Conclusões / Reflexões
após intensa luta interna, o “pensamento de Mao Tsetung” passou a reger a tática
revolucionária do PCCh em contraponto aos desígnios da III Internacional. Outra
decisão difícil: em 1937, Mao Tsetung propugna pela Frente Única Antijaponesa,
tomando a iniciativa de propor aliança com seu inimigo principal, o Kuomintang
de Chiang Kai-shek. Mais uma: em 1951, com a intervenção chinesa na Guerra da
Coreia, onde, pela primeira vez desde sua independência, os EUA foram derrotados
militarmente, uma derrota que indicou o caminho da própria experiência chinesa.
Dentre as decisões mais complicadas, a de reformar a estrutura econômica e abrir
as portas ao exterior (1978) foi uma das mais difíceis, porém com alcance a ser sen-
tido no mundo pelos próximos séculos. Enfim, a história demonstra a capacidade
chinesa de tomar decisões de vulto.
Decisões nada tranquilas foram tomadas recentemente, entre as quais se des-
taca a de maior envergadura, o Programa de Desenvolvimento do Oeste, promul-
gado em 1999, além de toda uma política de enfrentamento dos óbices sociais e
políticos que contornam o desenvolvimento futuro da China. Além da “marcha
para o oeste”, outra decisão de alcance ainda a ser avaliada é a relacionada à trans-
formação completa do campo chinês, com o chamado Novo Campo Socialista. O
desenvolvimento da agricultura – no rumo da transição de formas familiares e
artesanais de produção para outra de nível superior – foi, talvez, a decisão estraté-
gica mais acertada na governança Hu/Wen. Juntamente a essa diretriz, indicamos
também a recente política de altíssima valorização do trabalho, que trouxe em seu
bojo aumentos médios salariais que alcançaram a marca de 100% em alguns casos.
Esse movimento de readequação da economia chinesa – cada vez mais voltada
para a formação de mercado interno de massas – tende a se consolidar nos próxi-
mos anos. A agricultura chinesa, desde o início (2004) da execução das políticas
do Novo Campo Socialista, teve aumento médio da produtividade do trabalho da
ordem de 6% ao ano. Estima-se que tanto o avanço da agricultura quanto a urba-
nização dela decorrente, juntos, serão responsáveis por 6% a mais de crescimento
anual do PIB por muito tempo1.
Outro fator que será base para o contínuo crescimento do país é o crescente
papel da ciência, tecnologia, inovação e educação básica. Expusemos a transição
1
FOGEL, Robert W. “US$ 123.000.000.000.000”. In Especial China – CEO Exame. Edição n. 6.
Junho/2010.
407
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
408
Conclusões / Reflexões
aaaaaaaaaaaa
409
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
contrário tivesse ocorrido. Os preceitos para a aceitação ao “clube” são muito mais
morais que propriamente econômicos ou políticos. O Ocidente, vivendo ainda de
ilusões simplistas de “fim da história”, julga a democracia liberal como o melhor
dos mundos e que deve ser exportado, até mesmo pela guerra. A China rebate con-
tundentemente, expondo que o país nunca será uma “democracia liberal”.
A verdade é que a cada dia a China vai se tornando a grande interlocutora
dos Estados Unidos no campo internacional. As iniciativas tomadas por Bush Jr.
(segundo mandato) e Barack Obama indicam essa necessidade. Trata-se de uma
relação em que a análise deve estar amparada em muito materialismo e em muita
dialética, pois se a China se conforma gradualmente como um polo alternativo ao
modelo único do Consenso de Washington, ela também necessitará, por algum
tempo, das tecnologias monopolizadas pelos Estados Unidos. Logo, essa relação,
apesar de cada vez menos amistosa, demandará cooperação mútua por muito tempo.
Nessa unidade de contrários cristalizada em meio à crise financeira ainda em desen-
volvimento é que surgirá o “novo” em contraposição ao “velho”.
O possível avanço da hegemonia chinesa no mundo não é produto de sua rea-
ção à atual crise financeira. Na verdade, ficamos inclinados a observar que a China
foi a maior vitoriosa dentro do processo histórico iniciado com a derrota estratégica
do socialismo com o fim da União Soviética. Para o analista mais comprometido
com a verdade, a débâcle do neoliberalismo – apesar de toda a carga de propaganda
irresponsável – seria uma questão de tempo, pois a história já demonstrava o livre
mercado como uma falácia idealista e que a reprodução do próprio capitalismo de-
manda efetiva participação estatal. A década de 1990, com um país que se aprovei-
tou sagazmente do reordenamento produtivo internacional, pode ter sido o início
do fim do capitalismo selvagem levado às últimas consequências e que deságua na
decadência relativa dos Estados Unidos como afiançadores da ordem global.
O símbolo dessa decadência é o fato de cada vez menos mercadorias (indepen-
dente da gradação tecnológica) serem fabricadas no centro do sistema capitalista
em contraposição a uma China, com grandes investimentos na periferia (capital
produtivo). Os fluxos de capitais internacionais produtivos estão cada vez mais cen-
trados nas relações Sul-Sul do que nas Norte-Sul. Sinal interessante dos tempos!
Quem imaginaria isso em 1991? O resultado é o fortalecimento da própria periferia
do sistema, originando uma nova ordem mundial, sendo que a institucionalização
410
Conclusões / Reflexões
do G-20 e a contenda por uma participação maior dos países da periferia nas deci-
sões do FMI são apenas expressões da mudança.
Se no campo da “moralidade ocidental”, daqueles que insistem em se referir
à China nos mesmos moldes de Aristóteles3 e Voltaire (como símbolo de um “des-
potismo oriental”), não existe espaço de poder para a China, na economia ocorre o
contrário. Dentro de uma estratégia de inserção externa soberana, ela traçou uma
estratégia exportadora que a transformou numa nação poderosa financeiramente,
com capacidade de intervenção financeira em todos os cantos do mundo e pronta
a superar as instituições surgidas no âmbito de Bretton Woods. A imensidão de
seu mercado interno é fator de fortalecimento das relações Sul-Sul e da solução de
diferentes “questão nacionais” em regiões como América Latina e África.
Seria uma “nova Bandung”, como sugere Giovanni Arrighi em seu Adam Smith
em Pequim, sob os escombros dos déficits gêmeos do imperialismo, do fracasso da
tentativa de executar uma política no sentido de viabilizar “um novo século ame-
ricano” e dos crescentes intercâmbios comerciais e produtivos no âmbito Sul-Sul
tendo como centro de gravidade uma China socialista assentada sobre uma gigan-
tesca economia continental? Sim, não temos dúvidas. Porém, essa nova Conferên-
cia de Bandung surge incluindo o elo débil do imperialismo, a América Latina, já com
experiências que encetam a transição ao socialismo, além da vitoriosa resistência
cubana (Venezuela, Equador, Nicarágua e Bolívia), e outras experiências de con-
flito entre estagnacionismo x desenvolvimentismo e entre projeto nacional x imperialismo
(Brasil e Argentina). Essa nova realidade surge não mais apenas em elos ideológi-
cos e de irmandade entre povos e nações, mas sob os auspícios de poderosos elos
financeiros, de IEDs entre seus países e sobre bases financeiras nucleadas no maior
de seus países, a China.
É sobre essas bases que temos em mente a inserção chinesa no mundo.
aaaaaaaaaaaa
411
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
do marxismo. Deng Xiaoping, o homem que David Harvey quis definir como um
busto a serviço do neoliberalismo, em 1992, na última atividade pública, num périplo
pelo sul da China, foi indagado sobre o futuro do marxismo e do socialismo. Sua
resposta foi clara e objetiva4:
Eu estou convencido de que mais e mais pessoas irão abraçar o marxismo. Por
quê? Porque o marxismo é uma ciência. Através do materialismo histórico, foi
possível descobrir as leis que governam a sociedade humana. A sociedade feudal
substituiu a sociedade escravista; o capitalismo suplantou o feudalismo; e, de-
pois de um longo tempo, o socialismo necessariamente sucederá o capitalismo.
Trata-se de uma irreversível tendência histórica, mas a roda da história é feita
também de reviravoltas. Durante vários séculos em que o capitalismo demorou
para suplantar o feudalismo, quantas monarquias foram restauradas? (...) al-
guns países sofreram reveses e o socialismo, aparentemente, desapareceu. Mas
o povo deverá aprender as lições e colocar o socialismo no rumo justo, correto.
(...) Nada de pânico, não acreditem que o marxismo desapareceu. Nada disso!
4
XIAOPING, Deng. “Excerpts from talkings given in Wuchang, Shenzen, Zhuhau and Shan-
ghai”. In XIAOPING, Deng. Selected works. Foreign Languages Press, Pequim. 1994. Vol. 3, p.
370.
412
Conclusões / Reflexões
413
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
interessados em enfrentar esse tema reside no nível em que essa discussão está se
travando à luz tanto da experiência chinesa quanto das bolivarianas na América
Latina, experiências essas que se demarcam com a esquerda dita tradicional, a par-
tir da elaboração e execução de algo nomeado como “socialismo do século XXI”.
Infelizmente, não temos tempo, neste livro, de travar uma discussão mais pro-
funda sobre o que realmente significa este “socialismo do século XXI”, elaborado
pelo economista alemão Heinz Dieterich Steffan e amplificado pelo presidente da
Venezuela, Hugo Chávez. Porém, de antemão, não acreditamos em experimentos
teóricos e práticos com viés antimercado, em que a propriedade privada deva ser
passiva de regulação estatal. Afinal, o desenvolvimento das forças produtivas é con-
dição sine qua non para se alcançar relações sociais de um novo tipo. Não existe mais,
neste mundo, espaço para fantasias, nem tampouco aventuras em nome de um
socialismo que não está baseado nas leis econômicas e sociais do processo de desen-
volvimento. O tempo de experimentação tende a minguar-se, na mesma medida
em que recrudesce a ofensiva imperialista como resposta à sua própria decadência.
414
Bibliografia
415
Bibliografia
ARRIGHI, G. Adam Smith em Pequim. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 208-
212.
417
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
418
Bibliografia
GUO, P.; JIA, X. The structure and reform of rural finance in China.
Pequim: China Agricultural University, 2008.
419
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
KWONG, P. China and US are joined at the hip: the chinese face of
neoliberalism. Counterpush, outubro, 2006.
LANE, K. One step behind: Shaanxi in reform, 1975-1995. In: CHEUNG, P.;
CHUNG, Jae Ho.; LIN, Z. Provincial strategies of economic reform in post-
Mao China: leadership, politics and implementation. Nova York: Armonk,
1998, p. 213.
420
Bibliografia
___________. “We have paid too much”. In: Lenin’s collected works. 2nd
Printing. English Edition. Moscou: Progress Publishers, v. 33, 1972a, pp. 330-
334.
421
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
422
Bibliografia
423
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
424
Bibliografia
425
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
ZEMIN, J. “Hold high the great banner of Deng Xiaoping theory for an all-
round advance of the cause of building socialism with chinese characteristics
into the twenty-first century”. In: Report to the Fifteenth National
Congress of Communist Party of China. Pequim: People’s Publishing
House, 1992, 15 p.
426
Bibliografia complementar
427
Bibliografia Complementar
ALLEN, F.; QIAN, J.; QIAN, M. China’s financial system: past, present, and
future. Finance Department, março, 2007.
429
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
BO, Z. “Hu Jintao and the CCP’s ideology: A historical perspective”. Journal of
chinese political science, v. 9, n. 2, 2004.
BUDD, A. “A new life for Lenin: a review of P. Le Blanc, Lenin and the
revolutionary party”. International socialism journal, New Jersey, 1993.
430
Bibliografia Complementar
CEPA. Bargaining power and foreign direct investment in China: can 1.3
billion consumers tame the multinationals?. Center for Economic Policy
Analysis, agosto, 2002.
431
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
432
Bibliografia Complementar
GABRIEL, S.J. What do you mean China is socialist? China Essay Series, n.
21, julho, 2003a.
433
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
HUANG, J.; ZHANG, Q.; ROZELLE, S. “Economic growth, the nature of growth
and poverty reduction in rural China”. China economic journal, v. 1, n. 1,
fevereiro, 2008.
434
Bibliografia Complementar
KOTZ, D.M. “The state of official marxism in China today”. Monthly Review,
setembro, 2007. Disponível em: <http//www.mothlyreview.org/0907kotz.php>.
Acesso em: 27 out. 2008.
LAM, W. “Hu Jintao’s great leap backward”. Far Eastern Economic Review,
janeiro, 2009. Disponível em: <http//www.feer.com/essays/2009january/hu-
jintaos-great-leap-backward>. Acesso em: 28 fev. 2009.
LENIN, V.I. “Eleventh Congress of the R.C.P. (B)”. In: Lenin’s collected
works. Moscou: Progress Publishers, v. 33, 1965, pp. 237-242.
435
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
LENINA, P. (coord.). Economia. São Paulo: Ática, 1981. In: LANGE, O. Papers
in economics and sociology. Londres/Varsóvia: Pergamon Press, 1970.
LIU, L. Local government and big business in the people’s of China: case
study evidence from Shandong province. Asia Pacific Business Review, 2008.
436
Bibliografia Complementar
437
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
438
Bibliografia Complementar
OVERHOLT, W.H. The rise of China: how economic reform is creating a new
superpower. Nova York: Cultural Diffusion, 1993.
PEI, M. “Will the Chinese communist party survive the crisis?”, Foreign
Affairs, março, 2009. Disponível em: <http://www.foreignaffairs. com/
print/64862>. Acesso em: 24 mar. 2009.
PERLEZ, J. “China competes with west aid to its neighbors”. The New York
Times, setembro, 2006.
439
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
440
Bibliografia Complementar
441
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
SPENCE, J. The search for modern China. Nova York: W.W. Norton &
Company Inc., 1990.
442
Bibliografia Complementar
The Economist. Until China breaks down the barriers between town and
countryside, it cannot unleash the buying power of its people: or keep its
economy booming. The Economist Newspaper Limited, maio, 2010.
UNDP, Access for all: basic public services for 1.3 billion people. The 2007/08
China National Human Development Report, julho, 2008.
443
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
WU. X.; PERLOFF, J.M. China’s income distribution over time: reasons
for rising inequality. Department of Agricultural e Resource Economics, UCB,
University of California, 2004.
444
Bibliografia Complementar
445
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
446
Apêndice
447
Apêndice
Elias Jabbour
449
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
Continuidade de um processo
450
Apêndice
foram abolidas todas as taxas que incidiam sobre a renda camponesa. Desde então
se somam sete recordes seguidos – apesar da queda anual da área agricultável – na
produção de grãos: em 2010, foram 545,4 milhões de toneladas (2,9% superior em
relação a 2009). Ainda no quesito agricultura, sublinho que o grande desafio chinês
de contenção e equação dos gritantes níveis de desigualdade entre campo e cida-
de se encontra justamente na velocidade com que se dá a atual transição de uma
agricultura de tipo pequena produção mercantil para outra marcada pela grande
propriedade cooperativada, altamente especializada e com elevada composição or-
gânica do capital. É neste processo de largo alcance, que ocorre essencialmente no
interior chinês, que se devem concentrar os estudiosos das desigualdades sociais e
regionais na China e seus desdobramentos futuros.
Aprofundamento de rumo
Uma política de valorização dos salários foi instituída com reajustes médios
anuais com variação determinada pelo crescimento do PIB. Interessante notar que,
no quesito salário, os aumentos médios, que incluem todas as categorias, em 2010
foram da ordem de 20%. O encaminhamento de uma dita “questão social” no país
faz parte das prioridades do orçamento nacional para 2011. Com o crescimento da
arrecadação da ordem de 8% com relação a 2009, o governo central deve manobrar
US$ 1,36 trilhão sob forma de investimentos. Desse montante, 75% devem ser dire-
cionados a projetos de melhoria das condições de vida do povo e concentrados nas
áreas de educação, saúde, previdência social, emprego e cultura, além de grandes
projetos de infraestruturas rurais (2).
Algumas anotações sobre a amplificação do sistema nacional de saúde. A re-
forma fiscal promulgada em 1994 ao mesmo tempo em que fortaleceu o governo
central debilitou em demasia as finanças no nível provincial. O resultado mais
visível desse processo foi o colapso do sistema de saúde e a utilização desse serviço
como forma de arrecadação fiscal. A reversão deste quadro inicia-se em 2004 com
a criação do Sistema de Medicina Cooperativa (SMC), financiado por um fundo
entre contribuintes, governo nacional, províncias e cidades. Entre 2004 e 2010, o
número de cidades ou vilas participantes subiu de 233 para 2.999. No mesmo pe-
ríodo, o número de cidadãos com cobertura desse plano saltou de 76 milhões para
451
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
585 milhões (3). Até 2011 a expectativa é que aumente a cobertura total para 90%
das localidades nacionais. Para 2015, a cobertura (via Estado) deverá sair do atual
patamar de US$ 18,29 por pessoa para US$ 61,20.
A transição iniciada no 11° Plano Quinquenal (2006-2010) de um tipo de cres-
cimento quantitativo para outro qualitativo é evidente nas metas de redução do
consumo de combustíveis fósseis e emissão de poluentes expostas no 12º Plano.
Caminhará, em paralelo ao plano quinquenal anunciado, um chamado “plano
quinquenal verde” que estima investimentos na reestruturação produtiva e con-
servação ambiental da ordem de US$ 222,5 bilhões, objetivando a queda de 17% na
intensidade do uso de carvão por unidade do PIB (4). Não é somente em políticas
setorializadas e sob pressões externas que se mede a opção pela proteção ambien-
tal. E sim no próprio caminhar do processo histórico expresso em uma política
industrial em plena concordância com metas estratégicas sob o patrocínio de polí-
ticas monetárias expansionistas. Daí o déficit orçamentário para 2011 estar calcu-
lado em cerca de 2% do PIB (US$ 137 bilhões). Os chineses, definitivamente, não
têm medo de si mesmos.
São sete os setores industriais prioritários a investimentos para os próximos
cinco anos, a saber: geração de energia via fontes não fósseis, indústrias relacio-
nadas a setores de alta tecnologia, novas matérias-primas, biotecnologia, indústria
farmacêutica, tecnologia da informação e carros elétricos. Uma política industrial
desse porte depende de mais esforços em matéria de ciência e tecnologia e maior
interação entre os 149 conglomerados estatais e o sistema financeiro. Objetiva-se
subir do atual patamar de 1,8% em investimentos no setor de C&T para uma média
de 2,2% com relação ao PIB. Ao lado disso, a concentração dos investimentos no
ensino secundário é muito clara com a intenção de aumentar os investimentos mé-
dios em 87% com relação ao verificado nos últimos cinco anos (5). Uma verdadeira
revolução educacional em curso e à vista.
Nesse sentido, outra relação de continuidade com o 11° Plano deve ser desta-
cada, pois desde 2010 a China já é a maior produtora mundial de células solares
e turbinas eólicas, inclusive mudando uma situação de importadora desse tipo
de tecnologia para exportadora para o mercado norte-americano. Essa ênfase
– também – na reestruturação produtiva demonstra que a questão ambiental,
antes de ser uma questão a ser tratada no campo da moral, transformou-se, para
452
Apêndice
453
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado
454
Apêndice
Notas:
(1) Setting out strategies for the future economy. In: Beijing Review. N. 11, 17
de março de 2011. Acessível em: http://www.bjreview.com.cn/Cover_Sto-
ries_Series_2011/2011-03/14/content_...
(2) A budget for the people. In: Beijing Review. N. 12, 24 de março de 2011.
Acessível em: http://www.bjreview.com.cn/business/txt/2011-03/20/
content_345843.htm
(4) China Economic Watch: New 5-year plan and budget set to support China’s
growth. In: BBVA Research. Hong-Kong, 25 de março de 2001. Acessível
em: http://www.bbvaresearch.com/KETD/ketd/bin/ing/publi/asiayotros/
novedades...
(5) Idem.
455
Este livro foi composto em Latin
725 BT, 10/14, e impresso em papel
pollem 80g, março de 2012.