Livro China Hoje

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ELIAS JABBOUR

CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento
e Socialismo de Mercado

Apresentação de Armen Mamigonian


Prefácio de Domenico Losurdo
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
J12c
 
Jabbour, Elias, 1975-
    China hoje : Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado / Elias
Jabbour ; apresentação de Armen Mamigonian ; prefácio de Domenico Losurdo.
- 1.ed. - São Paulo : Anita Garibaldi : Fundação Mauricio Grabois ; Paraíba :
EDUEPB , 2012.

    456p.
 
    Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-7277-106-1


 
    1. China - Condições econômicas. 2. China - Condições sociais. 3. Socialismo
- China. 4. Previsão econômica - China. 5. Previsão social - China. I. Fundação
Maurício Grabois. II. Universidade Estadual da Paraíba. I. Título.

11-7433.                                  CDD: 330.951


                                                CDU: 338.1(510)

03.11.11   07.11.11                                         030996

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Joviana Quintes Avanci – FIOCRUZ
Marcionila Fernandes – UEPB
Rosilda Alves Bezerra – UEPB
Waleska Silveira Lira – UEPB
A minha companheira LUCIANA.

Para CLÁUDIO e DONA AURORA,


meu eterno carinho.

Ao mestre, com carinho,


ARMEN MAMIGONIAN.

Com profunda gratidão a


RENATO RABELO,
ADALBERTO MONTEIRO e
HAROLDO LIMA.
N o conjunto, nossos objetivos não são tão ambiciosos. Nós nos damos 20 anos – isto
é, de 1981 até o final do século – para quadruplicar nosso PIB e alcançar uma
prosperidade comparável, com uma renda per capita anual de US$ 800 a US$
1.000. Então devemos tomar esse quadro como novo ponto de partida e tentar quadruplicá-lo
novamente, de modo a atingir uma renda per capita de US$ 4.000 em mais 50 anos. O que
isso significa?
Isso significa que na metade do próximo século esperamos alcançar o nível dos países mo-
deradamente desenvolvidos. Se atingirmos esse objetivo, primeiro, nós teremos cumprido uma
tremenda tarefa; segundo, teremos feito uma verdadeira contribuição à humanidade; e ter-
ceiro, teremos demonstrado de forma mais convincente a superioridade do sistema socialista.
Como nosso princípio de distribuição é socialista, nossa renda per capita de US$ 4.000 será
diferente de igual quantia nos países capitalistas. Por uma razão, a China tem uma enorme
população. Se supusermos que em meados do século XXI nossa população terá chegado a 1,5
bilhão, e que teremos uma renda per capita de US$ 4.000, então nosso PIB anual será de
US$ 6 trilhões. Isso posicionará a China no topo do ranking das nações. Quando atingirmos
essa meta, teremos não somente aberto uma nova trilha aos países do Terceiro Mundo, que re-
presentam três quartos da população mundial, mas também – e isso é ainda mais importante
– teremos demonstrado à humanidade que o socialismo é o único caminho, e que é superior
ao capitalismo.
Portanto, para construir o socialismo é necessário desenvolver as forças produtivas. Para
sustentar o socialismo, um socialismo superior ao capitalismo, é imperativo, primeiro e mais
importante, eliminar a pobreza. É verdade, nós estamos construindo o socialismo, mas isso
não significa que o que conquistamos até agora corresponde ao padrão socialista. Não antes
da metade do próximo século, quando tivermos atingido o nível das nações moderadamente
desenvolvidas, poderemos dizer que realmente construímos o socialismo e declarar de forma
convincente que o socialismo é superior ao capitalismo.
Nós estamos avançando rumo a essa conquista.

DENG XIAOPING (1904-1997), arquiteto da política de


Reforma e Abertura.

11
“Uma imagem vale mais
que mil palavras”

Na Praça Tiananmen, Elias Jabbour em meio a três gerações de uma


família camponesa da província de Sichuan.
Estavam a cumprir, segundo o chefe da família, uma missão
patriótica: a de visitar o mausoléu do “libertador nacional” Mao
Tsetung (julho de 2009).

13
Sumário
AG R A D E C I M E NT O S .......................................................... 25

APRESENTAÇÃO (por Armen Mamigonian)..................................................31

PREFÁCIO (por Domenico Losurdo).................................................................39

1. INTRODUÇÃO..............................................................................................57

2. O MÉTODO E A BUSCA DO SENTIDO HISTÓRICO DA


TRANSIÇÃO E DO “SOCIALISMO DE MERCADO”.........................73

2.1 O MÉTODO E A “RESTAURAÇÃO CAPITALISTA” NA CHINA.........75


2.1.1 O socialismo com características chinesas como expressão do
processo................................................................................................79
2.1.2 Pós-modernidade e “neutralidade” científica..............................81

2.2 O PONTO DE ENCONTRO ENTRE A GEOGRAFIA E A ECONOMIA


POLÍTICA NA CATEGORIA DE FORMAÇÃO SOCIAL................................83
2.2.1 Exemplo: a categoria de formação social em contraponto à
perspectiva do “sistema-mundo”...........................................................87
2.2.1.1 Um problema – também – de ortodoxia marxista...........88
2.2.1.2 Modo de produção e processo........................................90
2.2.1.3 O “sistema-mundo” e o socialismo....................................91

2.3 FORMAÇÃO SOCIAL E SOCIALISMO DE MERCADO NA CHINA....94


2.3.1 A historicidade do desenvolvimentismo chinês (1)...................94
2.3.2 Algumas considerações acerca do socialismo na China.......99
2.3.2.1 Os pilares do socialismo de mercado na China............100
2.3.3 A “via prussiana” com características socialistas...................103

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CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

2.3.3.1 A necessária compreensão da transição feudalismo-


capitalismo e a “revolução pelo alto”........................................104
2.3.3.2 O “modelo soviético” e/ou “revolução pelo alto”............107
2.3.3.3 A Reforma e Abertura de 1978 e a “grande estratégia”...111

2.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O MERCADO E A TRANSIÇÃO E UM MO-


DELO DE APROXIMAÇÃO AO SOCIALISMO DE MERCADO CHINÊS..120
2.4.1 O contraditório a-histórico no ultraliberalismo...........................124
2.4.2. Oskar Lange e a “solução competitiva” no socialismo............125
2.4.3 Acumulação no rumo do “socialismo pleno”..............................127

2.5 CONCLUSÕES DA PARTE 2...............................................................129

3. ESTADO, DESENVOLVIMENTO E A DINÂMICA DA FORMAÇÃO


SOCIAL CHINESA.........................................................................................135

3.1 A GEOGRAFIA E O IMPERATIVO DO ESTADO E DO


DESENVOLVIMENTO ...................................................................................138
3.1.1 Um relato rápido de travessias norte-sul..................................140

3.2 ESTADO E MERCADO NO DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO


DA CHINA........................................................................................................143
3.2.1 A problemática do desenvolvimento e a afirmação nacional....143
3.2.1.1 Relações externas de produção, taxa de câmbio e co-
mércio exterior planejado...............................................................145
3.2.1.2 A historicidade do desenvolvimentismo chinês (2)....148
3.2.1.3 “Caminho natural para a opulência” ou “via dos
produtores” ?...................................................................153
3.2.2 Questão cultural e desenvolvimento na China........................155
3.2.2.1 Homem, natureza, ideologia e forças produtivas.........157
3.2.2.2 Relações diversas.............................................................159

16
Sumário

3.2.3 Nacionalismo, socialismo e desenvolvimento........................161

3.3 CONCLUSÕES DA PARTE 3............................................................163

4. O DESENVOLVIMENTISMO CHINÊS COM CARACTERÍSTICAS


SOCIALISTAS.......................................................................................169

4.1 V. LÊNIN E O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO EM SOCIEDA-


DES AGRÁRIAS.............................................................................................172
4.1.1 Lênin e o problema/solução do mercado.......................................172
4.1.1.1 De Samara à NEP...................................................................173
4.1.1.2 O mercado, a propriedade privada e o desenvolvimento
numa formação social complexa.......................................................178

4.2 O PLANEJAMENTO, O MERCADO, O ESTADO E A MEDIAÇÃO


DO DESENVOLVIMENTO............................................................................184
4.2.1 A dialética do desenvolvimento e as relações entre mercado e
planejamento.........................................................................................184
4.2.1.1 Níveis de planejamento............................................................187
4.2.1.2 Atributos do “modelo chinês”..............................................189
4.2.2 O desenvolvimento, as diferentes formações econômico-sociais e
os setores constitutivos e mediadores do processo.............................191
4.2.2.1 Crescimento econômico, divisão social do trabalho e
produtividade...........................................................................196

4.3 POUSO NO CONCRETO: SOBRE O FATOR “MÃO DE OBRA


BARATA”..............................................................................................198
4.3.1 Grande coincidência nos casos da China de hoje e da URSS
de ontem........................................................................................................199
4.3.1.1 Centralidade do fator trabalho?........................................200

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CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

4.3.2 A relação entre o socialismo e a taxa de exploração: a questão do


financiamento...............................................................................................201
4.3.2.1 Superexploração e visão de conjunto.............................203

4.4 CONCLUSÕES DA PARTE 4................................................................ 204

5. O DESENVOLVIMENTO E SUAS FACES NA CHINA...............209

5.1 O CRESCIMENTO ECONÔMICO................................................................211


5.1.1 Dispositivos gerais do crescimento............................................... 212
5.1.1.1 Sobre as Empresas de Cantão e Povoado (ECPs)........ 222
5.1.2 Crescimento potencial e real........................................................... 231
5.1.2.1 O estatal, o privado e o crescimento na China................. 233
5.1.2.1.1 As múltiplas formas de propriedade....................... 235
5.1.2.1.2 O real tamanho do público e do privado.............. 236
5.1.2.1.3 As estatais na China e o peso dos investimentos em
Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)...................................... 243

5.2 INSERÇÃO EXTERNA SOBERANA E ACUMULAÇÃO DE CAPITAL.255


5.2.1 A geopolítica da plena inserção.................................................... 257
5.2.1.1 A dinâmica territorial da “abertura ao exterior”................... 260
5.2.1.1.1 A economia continental chinesa no início do pre-
sente século..........................................................................263
5.2.2 Os Investimentos Estrangeiros Diretos (IEDs) e sua parte no
processo....................................................................................................265
5.2.2.1 A estratégia macroeconômica........................................... 265
5.2.2.1.1 As duas faces da mesma moeda: o dólar e o yuan...
........................................................................................................269
5.2.2.2 Os IEDs em si....................................................................... 278

18
Sumário

5.2.2.2.1 A serviço de um projeto nacional ou da


desindustrialização?......................................................279
5.2.2.2.2 Criador ou criatura do desenvolvimento?........... 286
5.2.3 Política externa e a tendência recente e crescente dos IEDs chineses
no exterior.......................................................................................................290
5.2.3.1 A China e a redefinição das relações centro-periferia....291
5.2.3.1.1 Um rápido olhar sobre as multinacionais...............296
5.2.3.1.2 O alcance dos IEDs chineses...................................299
5.2.3.1.3 Fatores de expansão.................................................300
5.2.3.1.4 Evolução e lógica geográfica do processo..........302

5.3 O CRÉDITO E AS “MÚLTIPLAS FORMAS DE FINANCIAMENTO”


COMO MOTOR PRIMÁRIO DO DESENVOLVIMENTO CHINÊS......... 306
5.3.1 Capitalismo, socialismo e sistema financeiro............................... 306
5.3.2 Exemplos e viagens........................................................................ 310
5.3.2.1 Conversas esclarecedoras................................................ 310
5.3.2.1.1 Chongqing e Três Gargantas................................... 312
5.3.2.1.2 Pequim, janeiro de 2007: no Ministério das Ferro-
vias........................................................................................314
5.3.3 Transitando para um novo sistema financeiro............................ 316
5.3.3.1 O processo de desenvolvimento do sistema nacional de
financiamento e a lógica histórica do desenvolvimento recente
da China,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,317
5.3.3.1.1 O processo de recentralização financeira........... 322
5.3.3.1.2 O movimento da mudança do uso do financiamento
e os ativos financeiros............................................................. 325

5.4 A MILENAR E CONTEMPORÂNEA QUESTÃO REGIONAL NA


CHINA.......................................................................................................328
5.4.1 Desenvolvimento regional na “Nova China”.............................. 328

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CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

5.4.1.1 A política de desenvolvimento regional entre 1949 e


1978..............................................................................................330
5.4.1.1.1 Da hinterlândia litorânea à “economia regional
autossustentável”................................................................330
5.4.1.1.2 Resultados do processo pré-1978...................... 334
5.4.1.1.3 As potencialidades e os limites dessa linha de de-
senvolvimento regional............................................................. 336
5.4.1.2 Gradualismo e expansão econômica “continental”: 1978-
2010............................................................................................343
5.4.1.2.1 Preferências regionais 1978-1992..........................343
5.4.1.2.1.1 Fatores convergentes de renda: reformas rurais
e ECPs....................................................................................346
5.4.1.2.2 Preferências regionais 1992-2010...........................348
5.4.1.2.2.1 O grande desafio do Estado chinês no
desenvolvimento do oeste.................................................. 351

5.5 REFLEXÕES SOBRE O “MUNDO AGRÁRIO” CHINÊS E SEU


DESENVOLVIMENTO..................................................................................357
5.5.1 O problema rural de volta ao centro...............................................358
5.5.1.1 Problemas e avanços do processo de desenvolvimento e
da agricultura na China.....................................................................359
5.5.1.1.1 Os ciclos da produção agrícola recente................. 361
5.5.1.2 Salto econômico e conjuntura............................................365
5.5.1.2.1 Hábitos de consumo e pressão positiva sobre a
produção......................................................................................365
5.5.1.2.2 A contradição, a OMC, a cooperativização do processo
produtivo e a “pequena produção mercantil” nas periferias
de grandes centros...........................................................366
5.5.1.3 O “Novo Campo Socialista”....................................................369
5.5.1.3.1 Medidas para enfrentar a questão social e finan-
ceira.......................................................................................370

20
Sumário

5.5.1.3.1.1 No rumo de um novo sistema financeiro rural...374


5.5.1.3.2 A reforma do estatuto de concessão de terra: pri-
vatização?.................................................................................379
5.5.1.3.2.1 Buscando consolidar o processo.....................380

5.6 O DILEMA AMBIENTAL CHINÊS..........................................................382


5.6.1 O “fundo do poço”?..........................................................................382
5.6.1.1 Péssimas impressões...........................................................383
5.6.1.2 Posturas diante do concreto, experiências de viagens e
questões de ordem subjetiva...........................................................384
5.6.1.2.1 O desenvolvimento como pré-condição para a solução
do óbice ambiental chinês......................................................385
5.6.2 O grande esforço estratégico........................................................387
5.6.2.1 De uma postura hesitante ao engajamento diferenciado..387
5.6.2.1.1 Primeiros sinais para o mundo...................................389
5.6.2.1.2 Cooperação e competição com os Estados
Unidos.................................................................................391
5.6.3 Avanços na “indústria verde” chinesa.........................................394
5.6.3.1 Uma grande reserva de mercado.....................................394
5.6.3.1.1 Reflorestamento, um grande negócio..................395
5.6.3.1.2 A expansão das formas solar e eólica de geração
de energia...........................................................................................397

5.7 CONCLUSÕES DA PARTE 5..................................................................399

6. CONCLUSÕES/REFLEXÕES...............................................................403

BIBLIOGRAFIA........................................................................................415

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR.......................................................427

APÊNDICE (por Elias Jabbour).......................................................................447

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CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

SUMÁRIO DE TABELAS, MAPAS E GRÁFICOS

TABELAS
Tabela 1 – Crescimento econômico da China, 1978-1990 (%).................212
Tabela 2 – Crescimento econômico da China, 1991-1999 (%).................212
Tabela 3 – Crescimento econômico da China, 2000-2009 (%)................212
Tabela 4 – Quadro comparativo entre crescimento chinês, mundial e de
alguns países selecionados, 2003-2007 (%)..................................................214
Tabela 5 – Composição e dinâmica do PIB chinês, 1978-2007..............217
Tabela 6 – Contribuição de cada setor da economia ao crescimento chinês,
1990-2007 (%)......................................................................................................219
Tabela 7 – Dinâmica de população e emprego na China, anos selecionados
entre 1952 e 2005 (em milhões)........................................................................221
Tabela 8 – Trabalhadores empregados nas Empresas de Cantão e Povoado,
anos selecionados (em milhões).......................................................................223
Tabela 9 – Total de valor agregado nas empresas de Cantão e Povoado,
anos selecionados (unidade: 1 milhão de yuans)..........................................227
Tabela 10 – Participação das ECPs nas exportações (em 100 milhões de
yuans e em %)......................................................................................................230
Tabela 11 – Estatais vs. privadas na China: número de empresas, participação
da produção industrial e população empregada, 1998-2007 (%)................238
Tabela 12 – Empresas chinesas no ranking da Fortune 500.........................239
Tabela 13 – Índices de produtividade e lucratividade entre empresas estatais
e privadas (em 10.000 yuans).............................................................................242
Tabela 14 – Índices básicos em ciência e tecnologia na China, 2003-
2007........................................................................................................................244
Tabela 15 – Aplicação de recursos em P&D mais participação de gastos go-
vernamentais, 2007 (em %).................................................................251
Tabela 16 – Reservas internacionais da China, 1980-1990 (em bilhões de
US$)…......................................................................................................……..266
Tabela 17 – Reservas internacionais da China, 1991-2001 (em bilhões de

22
Sumário

US$)................................................................................................................266
Tabela 18 – Reservas internacionais da China, 2002-mar/2010 (em bilhões
de US$)..................................................................................................................267
Tabela 19 – Cotação do yuan diante das principais moedas estrangeiras
(unidade: cem yuans)………………................................................................…276
Tabela 20 – Fluxo de IEDs na China, 1984-1996 (em bilhões de US$)........278
Tabela 21 – Fluxo de IEDs na China, 1997-2009 (em bilhões de US$)........278
Tabela 22 – Exportações, 1978-1994 (em bilhões de US$).............................288
Tabela 23 – Exportações, 1995-2000 (em bilhões de US$).............................288
Tabela 24 – Exportações, 2001-2008 (em bilhões de US$)..............................288
Tabela 25 – As grandes multinacionais chinesas no século XXI.......................298
Tabela 26 – China: os dez maiores receptores de IED chinês, 2004-2008
(em milhões de US$)…..............…………………………………………………303
Tabela 27 – China: distribuição internacional de IEDs, 2004-2008 (em %)..... 305
Tabela 28 – China: participação/composição nos ativos, por tipo de instituição,
1993-2004 (bilhões de US$)..............................................................................318
Tabela 29 – Investimentos em construções básicas, 1953-1999 (aumento
dos investimentos em % entre Leste, Centro-Oeste, Central e Oeste)..........335
Tabela 30 – Produção de grãos, 1978-1987 (em milhões de toneladas).....361
Tabela 31 – Produção de grãos, 1988-1998 (em milhões de toneladas).....362
Tabela 32 – Produção de grãos, 1999-2008 (em milhões de toneladas)......362
Tabela 33 – Evolução da área irrigada, consumo de fertilizantes, estações
hidroelétricas e consumo de energia elétrica na zona rural chinesa (anos
selecionados).................................................................................................364
Tabela 34 – Alcance geral do Sistema de Medicina Cooperativa..................371

MAPAS
Mapa 1 – China: divisão político-administrativa................................................139
Mapa 2 – China: elevações topográficas............................................................139
Mapa 3 – Localização de Chongqing em relação a Guangdong...................262
Mapa 4 – Escala de preferência da política regional chinesa (1980)............344
Mapa 5 – Escala de preferência da política regional chinesa (1984).............344

23
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Mapa 6 – Escala de preferência da política regional chinesa (1988).............345


Mapa 7 – Escala de preferência da política regional chinesa (1992).........348
Mapa 8 – Escala de preferência da política regional chinesa (1998).........349
Mapa 9 – Taxa de crescimento anual e médio do PIB per capita na China,
1979-1998 (em %)…….....................................................................................…349
Mapa 10 – Localização de cidades-piloto da reforma do sistema financeiro
rural..........................................................................................................376
Mapa 11 – Escalas de produção de energia solar na China (e localização
dos dois últimos congressos nacionais sobre o tema)....................................397
Mapa 12 – Fatores de capacidade para instalação de unidades geradoras de
energia eólica........................................................................................................398

GRÁFICOS
Gráfico 1 – População chinesa ano 1-2030......................................................... 117
Gráfico 2 – Investimentos em ativos fixos por tipo de empresa, jan-2006 a out-
2009 (% sobre o total dos investimentos realizados no país)......................240
Gráfico 3 – Balança comercial chinesa com Leste Asiático e Japão................267
Gráfico 4 – Resultado em conta corrente na China, 1990-1998 (em % do
PIB)..................................................................................................................268
Gráfico 5 – Dívida externa líquida da China, 1990-1998 (em % das expor-
tações)..........................................................................................................269
Gráfico 6 – China: fluxo e estoque de IED no exterior, 1990-2008 (em bilhões
de US$)...................................................................................................................301
Gráfico 7 – Estoque de ativos financeiros na China, 1994-2004 (% do
PIB).....................................................................................................................326
Gráfico 8 – Desigualdade interprovincial (PIB e consumo)................................347
Gráfico 9 – Crescimento médio anual das províncias do oeste da China, 1978-
1998 e 1998-2008 (%)...........................................................................................355
Gráfico 10 – Total de ativos das instituições e cooperativas de crédito rural,
2003-2008 (em bilhões de yuans)..................................................................378

24
Agradecimentos
Agradecimentos

H onestamente gostaria muito de evitar determinados clichês


obrigatórios na parte dos agradecimentos de uma publica-
ção. Não sou muito fã de clichês de nenhum tipo, mas convenhamos
que muitos deles guardam pontas de verdade. Por exemplo, é verdade
que o trabalho intelectual é muito solitário. Buscar e cotizar dados,
historicizar, encontrar uma teoria capaz de subscrever nossa hipótese
e estudar a fundo esta teoria; viajar ao país, ficar meses fora de casa
andando de trem para cima e para baixo em um país das dimensões
da China. Neste sentido, sim, este trabalho foi muito solitário. So-
lidão que aumentava na medida em que as hipóteses que levantei,
e busquei sustentar, não são as mais difundidas. Algo novo, capaz
de influenciar o “grande debate”, e onde obrigatoriamente um pleno
domínio teórico do marxismo se fazia mister. Isso demanda tempo,
paciência, concentração e muita solidão. Concordo. E quem sofreu
muito com isso foi minha companheira, Luciana – a quem também
dedico esta publicação. O amor explica muitas coisas, de ambas as
partes. Amor com amor se paga, já dizia o outro. Existem coisas que
as palavras por si não explicam, Luciana sabe do que estou falando.
E meu amor por esta mulher é incondicional.
Mas não estaria sendo injusto se levasse isso ao pé da letra, pois
posso me considerar uma pessoa de muita sorte. Posso dizer que te-
nho o privilégio de conviver e trocar intensas ideias com algumas
das melhores cabeças de meu país. A começar por meu orientador
e mestre – Armen Mamigonian. Refiro-me também a Luiz Gon-
zaga Belluzzo, Aldo Rebelo, Carlos Augusto Figueiredo Monteiro e
Amaury Porto de Oliveira. A estes cinco expoentes, e gigantes, do
pensamento social brasileiro agradeço não somente pelas horas de
conversa, orientação e discussão. Agradeço também pela chance de
viver, ser contemporâneo de cada um deles. Por estes citados, é evi-

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CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

dente que guardo consideração especial. Mas gostaria de me concen-


trar na figura de Armen Mamigonian. Não fosse por sua generosi-
dade e espírito de mestre, certamente não estaria escrevendo estas
palavras. Como agradecer a uma pessoa a quem devo a apresentação
da essência universal e ampla do marxismo e de sua extensão criati-
va e sofisticada no pensamento de Ignacio Rangel? É de ciência que
estou falando...
Seria injusto se não me lembrasse das contribuições de pes-
soas, e intelectuais, do nível de Carlos José Espíndola, José Mes-
sias Bastos, Marcos Aurélio da Silva, Vasco Rodrigo, Altair Freitas,
Nivaldo Santana, Lucas Ferreira, Marta Luedemann, Domingos
Sávio Correa, Dante Aldrighi, Fábio Contel, Lecio Morais, Luis Fer-
nandes, Carlos Alonso Barbosa de Oliveira, Fábio Palácio, Ronaldo
Carmona e Carliana Rebelo, Reginaldo da Silva Domingos, Sergio
Barroso, André Martin, Marcio Pochmann, Pedro Cross e Drica
Madeira, Osvaldo Bertolino, Ricardo Abreu (Alemão), André Be-
zerra, Osvaldo Napoleão, André Cintra, Dilermando Toni, Edmil-
son Valentim, Maurício Dias David, Beatriz David, Olival Freire Jr.,
Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Marlon Medeiros, Aldo Arantes,
Fernando Sampaio e de minha querida Graciana Vieira. De Márvia
Scardua, Elder Vieira e Cláudia Rodrigues, Roberto Monteiro, Ro-
mero Bruno, Elizangela Lisardo, Paulo Vinicius, Amanda Souza e a
turma do CACO (FND/UFRJ), Ana Elisa Rodrigues Pereira, Anto-
nio Poso, Pedro Mezgravis, Priscila Helena Lee, Marta Alves, Divo
e Raquel Ghizoni, Angela Albino, Ricardo Portugal, Elisa Campos,
Carla Santos, Hugo Laerte Maas, Caíque Tibiriçá, Márcio Xavier,
Luciana Acioly e Alexandre Teixeira ficam as finas flores da inteli-
gência, da amizade. De Walter Sorrentino ficam as lições da impe-
tuosidade intelectual e da prontidão em provocar uma discussão de
fundo. Para Pedro de Oliveira dedico uma rosa alusiva a seu papel
na minha própria formação política, mas principalmente humana.
Para Jaime Andrade e Adalgisa Dias a gratidão por coisas até inex-
plicáveis. O mesmo, elevado ao quadrado algumas vezes, serve para

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Agradecimentos

Cláudio Romero e Dona Aurora, pois receber a simples chance de


viver fez muito a diferença.
De Renato Rabelo fica algo difícil de mensurar com palavras,
afinal, exemplo de seres humanos é o que somos levados a buscar
cotidiamente. Renato é uma simbiose do político com alto grau de
sofisticação, do homem que “enxerga a luz no fim do túnel”, do in-
telectual com compromisso de classe, completamente inflexível com
princípios e maleabilidade na forma e ação imediata. Além de tudo,
claro, do ser humano sensível, fino, decente. Haroldo Lima, idem. O
homem que não perdeu o norte, o incentivador, meu iniciante em
estudos sobre a China, o militante que se obriga a cumprir o papel
histórico de socializar conhecimento e formar gerações de quadros
e militantes consequentes. Adalberto Monteiro, o responsável por
muitas vezes fazer “o mais difícil”, de chamar às falas, expor limites
e incompreensões. Deixar claro onde se está errando, fazer o papel
de amigo, do irmão mais velho. Ao lado de Armen Mamigonian,
Cláudio Romero e Luciana Jabbour, Adalberto Monteiro é daquelas
pessoas que você olha para si e para trás e acaba se perguntando:
“Aonde eu chegaria sem Adalberto Monteiro na minha vida?”.
Termino por aqui ainda utilizando o espaço para agradecer
ao Comitê Central do PCdoB e à Fundação Maurício Grabois por
todo o esforço material disponibilizado para que esta pesquisa fosse
completada com relativo êxito. Agradecimento especial segue para
a professora e reitora da Universidade Estadual da Paraíba, Marlene
Luna. Um forte abraço a todos os citados e àqueles de que, porven-
tura, acabei me esquecendo. Ao fim e ao cabo, todos têm – ao ajudar
este projeto a ser concluído – um lugar especial no fundo do meu
coração e consideração.

ELIAS MARCO KHALIL JABBOUR


Brasília, DF, 24 de agosto de 2011

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Apresentação

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Apresentação

E lias Jabbour, em 1997, quando tinha 22 anos, apresentou Chi-


na, capitalismo e socialismo de mercado: potência do século XXI
como Trabalho de Graduação Individual (TGI), para o curso de Geo-
grafia na USP. Seu interesse pelo gigante asiático continuou até hoje,
tendo se expressado em três viagens àquele país visando à prepara-
ção de mestrado (China: Infraestruturas e crescimento econômico), que
teve boa votação para o Prêmio Juca Pato, e de doutorado (Projeto
nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado na China de hoje). Ao
longo do tempo recebeu sugestões acadêmicas dos geógrafos André
Martin, Ariovaldo Umbelino de Oliveira e Fábio Contel; dos econo-
mistas Carlos Alonso de Oliveira, Dante Aldrighi e Luiz Gonzaga
Belluzzo; do embaixador Amaury Porto de Oliveira e do filósofo Do-
menico Losurdo.
Na época de seu TGI (1997), dominava no Brasil e no Ocidente
em geral o Consenso de Washington, isto é, a ofensiva neoliberal do
imperialismo, da destruição dos Estados nacionais na América Lati-
na e na África, enquanto na Ásia os projetos nacionais de orientação
socialista ou capitalista travavam, em comum, lutas anticolonialistas.
Logo depois, na época do seu mestrado, o “milagre” chinês ocupava
o centro das atenções: economistas ocidentais de centro, esquerda
e direita estavam unanimemente deslumbrados com a China, en-
quanto os sociólogos, também unânimes, clamavam contra o horror
da “exploração sanguinária dos trabalhadores”. O viés simplista de
economistas e sociólogos mudou após a crise financeira do centro do
sistema capitalista (2008), e assim o doutorado de Elias Jabbour veio
em boa hora, visando a decifrar este “enigma” de bom tamanho, já
que muitos marxistas ocidentais consideram que a China é, na me-
lhor das hipóteses, capitalismo de Estado e, na pior, simplesmente
neoliberal, e poucos a analisam como socialista.
O cerne do enigma, como assinala Elias Jabbour, chama-se

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Partido Comunista Chinês, o “moderno Príncipe”, na feliz expressão


de A. Gramsci, que foi capaz de conduzir o gigante asiático à revo-
lução camponesa vitoriosa, sob a liderança de Mao; que foi capaz de
conduzi-lo à modernização acelerada e à inserção vitoriosa na eco-
nomia mundial (Deng), e que provavelmente se tornará o condutor
de toda a humanidade para a transição pacífica do capitalismo ao
socialismo, cujos primeiros sinais começam a se tornar visíveis. P.
Gorou, um dos grandes geógrafos do século XX, não via futuro para
a China dos anos 1950, levando em conta o brutal desmatamento
que o país havia sofrido – em típica visão “especializada”, insuficien-
te como explicação, que exige um olhar abrangente, de “múltiplas
determinações”, no dizer de K. Marx. Aliás, está faltando aos pen-
sadores ocidentais de hoje em dia certa visão profética que Kant e
Hegel tiveram, eles que foram os grandes mestres da filosofia clássica
alemã, de onde se originaram o marxismo e a geografia moderna.
Afinal de contas, a civilização humana está migrando do Ocidente
para o Oriente e o Oceano Pacífico está gradativamente ultrapassan-
do o Oceano Atlântico.
Aquela unanimidade dos economistas deslumbrados e dos soci-
ólogos horrorizados com a China está sendo substituída ultimamen-
te pela perplexidade e por perguntas angustiadas sobre o futuro do
gigante asiático e do mundo. Para exemplificar: um cientista político
como F. Fukuyama começa a duvidar do “fim da história” comanda-
do pela democracia ocidental, que ele mesmo havia prognosticado, e
aceita nova perspectiva, o chamado Consenso de Pequim como ideia
que vai ganhando força internacional. Deve-se dizer que o irraciona-
lismo do sistema capitalista se intensificou no período depressivo do
ciclo longo (Kondratieff), iniciado com a crise do petróleo de 1973-74,
dando origem a figuras como Reagan, Thatcher, Bush e outros, e esti-
mulando os pensadores ocidentais a se distanciarem deliberadamen-
te do pensamento iluminista e enveredarem em formas grosseiras de
irracionalismo (triunfalismos, catastrofismos, feitiçarias etc.), e em
muitos casos em pura picaretagem (F. Wheen), tornando-se meros

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Apresentação

objetos – como as birutas dos aeroportos –, às vezes bem remunera-


dos. Mas é preciso fazer ressalvas: se historiadores bem intenciona-
dos como T. Mommsen ou R. Simonsen encontraram capitalismo
na antiguidade romana ou nas capitanias hereditárias, por que es-
tudiosos bem intencionados de hoje em dia não podem caracterizar
a China como capitalismo de Estado? Entretanto, é bom relembrar
que o caminho do inferno é cheio de boas intenções, como ensinou
K. Marx.
Como se sabe, O Capital de Marx só foi traduzido, enquanto ele
vivia, para o russo (1872) e para o francês (1875), o que quer dizer que
o mundo anglo-saxão (Inglaterra e EUA) estava imune ao fantasma
do comunismo, mas não a Rússia. Enquanto a edição alemã (1867)
de mil exemplares levou quatro anos para se esgotar, coisa seme-
lhante com a edição francesa, a edição russa de 3 mil exemplares se
esgotou em um ano (F. Wheen). O marxismo estava migrando para
o Oriente e demorou, assim mesmo, para chegar à China (1920), mas
chegou de maneira explosiva, pois a vitória da Revolução Soviética
– conjugada aos vexames do Tratado de Versalhes impostos ao país
– levou à criação do PC Chinês, o que significou a importação do Oci-
dente das ideias mais avançadas da época. Mesmo com um proleta-
riado insignificante, o Partido chegou ao poder em 1949, apoiando-se
num marxismo criativo, como o de Li Dazhao, que desenvolveu as
ideias de “nações proletárias” e revolução camponesa.
No Japão a vitória da Inovação Meiji foi dirigida pelos senhores
feudais nacionalistas, contrários ao shogunato subalterno às potên-
cias ocidentais, centralizando o poder e implantando o capitalismo
a partir do Estado para a sociedade (zaibatsus etc.). Assim também
na China. Sem um proletariado urbano em 1949, o Partido Comunis-
ta desempenhou um papel proletário e anti-imperialista, assumin-
do tarefas da revolução burguesa e da revolução socialista: reforma
agrária antifeudal, criação da burguesia nacional, até então insigni-
ficante, “fabricando fabricantes” e criando ao mesmo tempo um pro-
letariado urbano cada dia mais numeroso e um Estado socialista po-

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deroso (sistema financeiro gigantesco, mais de cem conglomerados


industriais, planejamento da produção e do comércio exterior etc.).
O Partido Comunista Chinês tem desempenhado de maneira
competente o papel de Moderno Príncipe, acertando mais do que er-
rando: 1) na substituição da orientação soviética pela orientação mao-
ista na condução da Revolução Chinesa (1935); 2) na superação do cer-
co capitalista, como resultado da aproximação com os EUA (1972); 3)
reformulando a questão camponesa, com a política de arrendamento
das terras e garantia de preços mínimos (1978), superando os erros da
coletivização maoista; 4) desburocratizando as empresas estatais e au-
mentando a eficiência empresarial (1995); 5) instituindo eleições dire-
tas nas aldeias, com centenas de milhões de chineses, e implantando
o sistema de gerações de dirigentes em período máximo de 10 anos;
e 6) estabelecendo prioridades políticas em cada plano quinquenal,
como o reforço do consumo interno, no atual plano recém-aprovado.
A superação do cerco imperialista começou a ser implementada
pela aproximação com os EUA, proposta por Mao e planejada por
Kissinger pelo lado norte-americano, visando a combater a União So-
viética. Assim, o isolamento que o imperialismo impôs à URSS desde
seu nascimento, que culminou com a Cortina de Ferro por Churchil
logo após a Segunda Guerra Mundial, criou muitos danos ao socia-
lismo, como a corrida armamentista interminável, que acabou levan-
do ao acovardamento dos Ieltsin e Gorbachev. A China conseguiu se
livrar do mesmo destino se inserindo na divisão internacional do tra-
balho, ingressando na OMC, absorvendo melhor a tecnologia avan-
çada do exterior e se preparando para tornar o yuan moeda conversí-
vel. Helmut Schmidt, um dos criadores da moeda europeia, em 1991
previa que em futuro não muito distante o comércio internacional
seria regido por dólar, euro e yuan, o que já está começando a acon-
tecer. Aliás, ultimamente, Kissinger tem se mostrado pessimista em
relação à China, talvez arrependido das suas feitiçarias. De qualquer
modo, para a China os ganhos têm se mostrado grandes e talvez a
sua tenha sido a mais importante estratégia geopolítica no tabuleiro

36
Apresentação

internacional, o que lhe tem garantido uma ascensão pacífica que


não foi permitida à URSS.
Internamente a questão mais importante talvez tenha sido a
da reforma da burocracia, que não pode mais se eternizar no poder,
com a criação do modelo das “gerações” de dirigentes, com mandato
máximo de 10 anos, findo o qual nova “geração” assume o poder,
evitando a gerontocracia, a acomodação e os privilégios. Trotsky, a
propósito da URSS, havia chamado a atenção sobre a possibilidade
de restabelecimento do capitalismo a partir da burocracia dirigente,
como acabou acontecendo. Aliás, a revolta da Praça da Paz Celestial
teve por base os privilégios dos filhinhos de papai em levar vantagens
nos negócios que envolviam abastecimento de bens escassos nos anos
1980. Como a hegemonia do PC Chinês corre riscos – pelo lado da
corrupção dos burocratas –, há um combate sério, que tem levado à
fuga para o exterior de muitos corruptos, ameaçados pelo rodízio de
poder instituído por Deng. Assim, de 1993 a 2008 cerca de 17 mil
membros do PC Chinês, policiais, membros do Judiciário e executivos
das estatais fugiram para os EUA e outros destinos, carregando US$
123 bilhões. Como previra Deng, a abertura das janelas numa casa
provocaria a entrada das moscas... Que, combatidas, acabam saindo.
Estas e outras questões importantes, como o problema da eco-
nomia camponesa, o papel fundamental dos bancos no alavanca-
mento das empresas estatais e privadas (Lenovo, que adquiriu um
setor da IBM, por exemplo), da agricultura, do comércio exterior etc.
são tratadas de maneira apaixonada e com muito cuidado por Elias
Jabbour, tornando seu doutorado leitura obrigatória sobre a China,
como já havia sido sua dissertação de mestrado.

ARMEN MAMIGONIAN
Professor livre-docente dos programas de pós-graduação
em Geografia na USP e na UFSC

Florianópolis, SC, 20 de agosto de 2011

37
Prefácio

39
Prefácio

F oi com muita alegria que recebi o convite de meu amigo Elias


Jabbour para prefaciar este livro sobre a China. Eu o conheci
há alguns anos por conta de minhas viagens a São Paulo, Campinas
e Florianópolis. Sua evolução intelectual desde então foi rápida, o que
acabou desembocando neste brilhante livro sobre a realidade chinesa.
Saliento duas marcas deste trabalho: a riqueza de informações e o
pleno domínio da teoria em conformidade com o rigor no método. São
marcas que o distinguem – e este livro somente o demonstra – como
um diferenciado, respeitado e prestigiado intelectual em seu país.
Por sua seriedade e compromisso, também não me surpreendi
que os resultados obtidos por este livro encontrem muitos pontos em
comum com as próprias impressões de viagem recente que fiz à China.
Abaixo seguem minhas impressões de viagem. Na leitura do livro
ficarão claros os muitos pontos em comum com as ditas impressões.

“Uma viagem instrutiva à China”

De 3 a 16 de julho de 2010 tive o privilégio de visitar algumas


cidades e realidades da China, no âmbito de uma delegação con-
vidada pelo Partido Comunista da China, da qual também faziam
parte representantes dos partidos comunistas de Portugal, Grécia
e França, e da Linke (Esquerda) alemã. Da Itália, participaram da
viagem Vladimiro Giacchè e Francesco Maringiò. Este texto não é
um diário nem uma crônica: são apenas reflexões, fruto de uma
experiência extraordinária.

1. A primeira coisa que salta aos olhos, no decurso do encontro com


os representantes do Partido Comunista da China e com os di-
rigentes das fábricas, das escolas e dos bairros visitados, é a tônica
autocrítica, digamos mesmo a paixão autocrítica de que dão provas os
nossos interlocutores. Neste ponto, é evidente a ruptura com a tradição

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CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

do socialismo real. Os comunistas chineses não deixam de sublinhar


que o caminho a percorrer é longo, e numerosos e gigantescos são os
problemas a resolver e os desafios a enfrentar e que, apesar de tudo, o
seu país continua a fazer parte do Terceiro Mundo.
Na verdade, no decurso da nossa viagem, não encontramos esse
Terceiro Mundo. Pelo menos em Pequim, que fascina com o seu aero-
porto ultramoderno e reluzente, e ainda menos em Qingdao, onde se
desenrolaram os Jogos Olímpicos de 2008 e que lembra uma cidade
ocidental, com beleza e elegância especiais e um nível de vida elevado.
Também não encontramos o Terceiro Mundo quando nos afastamos
1.500 km das regiões orientais e costeiras, que são mais desenvolvi-
das, e em Chongqing, a enorme megalópole que contém um total de
32 milhões de habitantes e que, há alguns anos, parecia ter dificulda-
de em acompanhar o milagre econômico. Não temos dúvidas de que
o Terceiro Mundo existe ainda no enorme país asiático, mas o encon-
tro falhado com ele foi consequência não da vontade de esconder os
pontos fracos da China moderna, mas do fato de o impetuoso cresci-
mento em curso já há mais de 30 anos estar a reduzir, a diminuir e a
pressionar a um ritmo acelerado a área do subdesenvolvimento, que
se atenua numa lonjura cada vez mais distante.
No Ocidente não faltarão, a este propósito, os que vão fazer uma
careta: desenvolvimento, crescimento, industrialização, urbanização,
milagre econômico duma amplitude e duração sem precedentes na
história. Que vulgaridade! Este esnobismo do belo mundo parece con-
siderar insignificante o fato de que milhões de pessoas tenham esca-
pado a um destino que os condenava à subnutrição, à fome e mesmo
à morte por inanição. E os que acham que o desenvolvimento das
forças produtivas é apenas uma questão de bem-estar econômico e
de consumismo deviam ler (ou reler) as páginas do Manifesto do Parti-
do Comunista que põe em evidência o idiotismo duma vida rural cir-
cunscrita pela miséria, incluindo a cultural, das fronteiras apertadas
e intransponíveis. Quando visitamos hoje as maravilhas da Cidade
Imperial em Pequim e, a alguns quilômetros de distância, a Gran-

42
Prefácio

de Muralha, nos deparamos com um fenômeno que não existia não


apenas no longínquo 1973, mas até mesmo no ano 2000, ou seja, nas
minhas duas viagens à China anteriores. Hoje em dia, salta aos olhos
a presença maciça de visitantes chineses: são turistas com caracterís-
ticas especiais. Chegam frequentemente dum canto remoto do enor-
me país; provavelmente é a primeira vez que visitam a capital; no
plano cultural, começam a apropriar-se de certa forma da noção de
civilização muito antiga de que fazem parte; deixam de ser simples
camponeses ligados como numa prisão ao quinhão de terra que culti-
vam e tornam-se verdadeiramente cidadãos de um país cada vez mais
aberto ao mundo.
Muito depois das horas de abertura para a visita dos monumen-
tos e museus, a praça Tiananmen continua a formigar de pessoas: são
muitos os que esperam e observam com orgulho o içar das cores da
bandeira da República Popular da China. Não, não se trata de chauvi-
nismo: os chineses gostam de ser fotografados com visitantes estran-
geiros (também fui alvo e aceitei com prazer pedidos deste tipo): é
como se convidassem o resto do mundo a festejar com eles o regresso
duma civilização muito antiga, oprimida e humilhada durante mui-
to tempo pelo imperialismo. Não há a menor dúvida: o prodigioso
desenvolvimento das forças produtivas não se limitou a arrancar da
miséria e das privações centenas de milhões de homens e mulheres;
assegurou-lhes uma dignidade individual e nacional, e permitiu-lhes
alargar consideravelmente seu horizonte, abrindo-se perante o enor-
me país de que fazem parte e, mais ainda, perante o mundo inteiro.

2. Mas o desenvolvimento das forças produtivas não é sinônimo


de degradação e destruição da natureza? Eis-nos em presença
duma preocupação, e até mesmo duma certeza evidenciada de modo
especialmente gritante pela esquerda ocidental. Vemos nisto aflorar
uma estranha visão da natureza, que é considerada doente se as plan-
tas murcham e secam, mas que, segundo parece, é considerada per-
feitamente sã se os que definham e morrem em massa são os homens

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CHINA HOJE
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e as mulheres. Há certo ecologismo que acaba por escavar ainda mais


profundamente o abismo que, no entanto, pretende querer criticar,
entre o mundo humano e o mundo natural. Mas, mesmo assim, con-
centremo-nos na natureza no seu sentido estrito. Há uns tempos um
historiador bastante conhecido (Niall Ferguson) escreveu um artigo,
publicado também no Corriere della Sera, que logo no título denunciava
“a guerra da China à natureza”. Na realidade, logo no longo percurso
que vai do aeroporto de Pequim à Grande Muralha e no outro lon-
go trajeto que, seguindo outro percurso, vai do centro de Pequim ao
aeroporto, notamos uma quantidade impressionante de árvores ob-
viamente recentemente plantadas, no âmbito de um projeto bastante
ambicioso de reflorestamento e de extensão da superfície florestal em
que todo o país investe. Uns dias antes do fim da nossa viagem, tive-
mos a possibilidade de visitar uma área ecológica de 10 quilômetros
quadrados, situada nos arredores de Weifang, uma cidade do nordes-
te em rápida expansão, dedicada ao desenvolvimento da indústria de
alta tecnologia, mas que simultaneamente quer distinguir-se pela sua
qualidade de vida. A área ecológica, cujo acesso é livre e gratuito para
todas as pessoas, e que só pode ser visitada a pé ou com um minúsculo
veículo aberto e movido a eletricidade, foi liberada recuperando um
território até então muitíssimo degradado e que atualmente resplan-
dece em beleza encantadora e serenidade.
O desenvolvimento industrial e econômico não está em contra-
dição com o respeito pelo meio ambiente. Claro, o equilíbrio entre
estas duas exigências é extremamente difícil num país como a Chi-
na, que tem que alimentar um quinto da população mundial tendo à
sua disposição apenas um sétimo da superfície cultivável: é neste en-
quadramento que devem ser situados os erros praticados e os gran-
des prejuízos infligidos ao ambiente nos anos em que a prioridade
absoluta era o desenvolvimento econômico necessário para pôr fim
o mais rapidamente possível à desnutrição e à miséria das massas.
Mas esta fase felizmente foi ultrapassada: atualmente é possível pro-
mover um ecologismo que, enquanto garante a vida das árvores e
das flores, também saiba garantir a vida e a saúde dos homens e das
mulheres.

44
Prefácio

3. Já falei da paixão autocrítica que parece caracterizar os comu-


nistas chineses. São eles que insistem no caráter intolerável,
em especial, do fosso crescente entre cidades e campo, entre zonas
litorais, por um lado, e o centro e o oeste do país, por outro. Esses
fenômenos não são a demonstração do desvio capitalista da China?
É uma tese que está amplamente espalhada na esquerda ocidental e
que parece encontrar eco entre alguns membros da nossa delegação
multipartidária. No debate franco e vivo que se desenvolve, interve-
nho com uma pontuação por assim dizer “filosófica”. Podemos proce-
der a duas comparações muito diferentes uma da outra. Não podemos
comparar o “socialismo de mercado” com o socialismo a que chama-
mos dos nossos “desejos”, com o socialismo de certa forma maduro e,
portanto, pôr em evidência os limites, as contradições, as desarmo-
nias, as desigualdades que caracterizam o primeiro: são os próprios
comunistas chineses que insistem no fato de o país que dirigem estar
apenas na “fase primária do socialismo”, fase destinada a durar até a
metade deste século, confirmando a grande duração e a complexidade
do processo de transição necessário para chegar à edificação de uma
sociedade nova. Isso não torna lícito, porém, confundir o “socialismo
de mercado” com o capitalismo. Como ilustração da diferença radical
que subsiste entre os dois, podemos ter que recorrer a uma metáfora.
Na China estamos na presença de dois comboios que se afastam sin-
tetizados no “subdesenvolvimento”. Sim, um desses dois comboios é
muito rápido, o outro de velocidade mais reduzida: por causa disso, a
distância entre os dois aumenta progressivamente, mas não podemos
esquecer que os dois avançam na mesma direção; e também é preciso
lembrar que não faltam esforços para acelerar a velocidade do com-
boio relativamente menos rápido e que, de qualquer modo, dado o
processo de urbanização, os passageiros do comboio muito rápido são
cada vez mais numerosos. No âmbito do capitalismo, pelo contrário,
os dois comboios em questão avançam em direções opostas. A últi-
ma crise pôs em destaque um processo em ação há várias décadas:
o aumento da miséria das massas populares e o desmantelamento
do Estado social encontram-se a par da concentração da riqueza nas
mãos de uma oligarquia parasitária restrita.

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CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

4. E, no entanto, entre os comunistas chineses cresce a intolerân-


cia no que se refere ao afastamento entre zonas litorais e áreas
do centro-oeste, entre cidades e campo e no seio da própria cidade. É
uma atitude observada com surpresa e agrado por toda a delegação
da Europa ocidental. Esta intolerância exibe-se de forma aguda em
Chongqing, a metrópole situada a 1.500 quilômetros de distância da
costa. A palavra de ordem “Vão para oeste!”, que incita a estender ao
centro e ao oeste do enorme país os prodigiosos desenvolvimentos do
leste, foi lançada já há dez anos. Os primeiros resultados são visíveis:
por exemplo, o Tibete e a Mongólia interior exibem nos últimos anos
uma taxa de crescimento superior à média nacional. Não é o caso de
Xinjiang, onde, em 2009 (o ano da crise), em relação a uma média
nacional de 8,7%, o PIB “só” aumentou 8,1%. E foi em Xinjiang preci-
samente que se derramou, durante as últimas semanas e meses, uma
nova vaga de financiamentos e de estimulantes. Mas agora, para além
das regiões habitadas por minorias nacionais, a que o governo central
dedica evidentemente uma atenção especial, trata-se de aplicar em
nível geral uma aceleração decisiva e um significado novo e mais ra-
dical à política do “Vão para oeste!”.
Tornada um município autônomo sob a direção do governo cen-
tral (na mesma situação estão Pequim, Xangai e Tianjin), e podendo
assim se beneficiar de estimulantes e de apoios de todo tipo, Chon-
gqing aspira a tornar-se uma nova Xangai, ou seja, aspira não só a
ultrapassar o atraso, mas a atingir o nível da China mais avançada,
e constituir um ponto de referência também no plano mundial. A
megalópole situada no interior do grande país asiático aparece diante
dos nossos olhos como um enorme estaleiro: a atividade de potencia-
lização das infraestruturas desenvolve-se em pleno vapor, tal como a
da construção de fábricas, de escritórios, de habitações civis; as fileiras
de árvores recém-plantadas e ciosamente tratadas saltam aos olhos,
tal como as plantações de verdura que ladeiam e por vezes também
separam estradas e autoestradas. Sim, porque para além do milagre
econômico, Chongqing persegue um objetivo ainda mais ambicioso:
pretende apresentar-se a toda a nação como um “novo modelo” de
desenvolvimento, regulando melhor e de modo mais “harmonioso”

46
Prefácio

as relações no interior da cidade, entre cidade e campo e entre homem


e natureza. Naquilo que deverá vir a ser a nova Xangai, a referência
a Mao Tsetung é permanente, e não se trata apenas da homenagem
devida ao grande protagonista da luta de libertação nacional do povo
chinês, ao pai da pátria que, e não por acaso, está na praça Tianan-
men e nas notas de banco; trata-se de levar a sério a retomada do
“pensamento de Mao Tsetung”, inscrito no estatuto do Partido Comu-
nista da China. Em Chongqing temos a nítida impressão de que co-
meçaram os debates e, pressupomos, a luta política para a preparação
do próximo congresso do Partido Comunista da China.
Convém, neste momento, livrarmo-nos de um equívoco possí-
vel: a discussão não se trava sobre a política de reforma e de aber-
tura definida há mais de 30 anos na Terceira Sessão Plenária do XI
Comitê Central (18-22 de dezembro de 1978): no estatuto do PCCh
está inscrita também a retomada da “teoria de Deng Xiaoping” e da
“importante ideia das três representações”, apesar de a categoria de
“pensamento” querer ter uma importância estratégica maior do que
a categoria de “teoria” (que faz referência a uma conjuntura, apesar
de ser uma conjuntura de longo prazo) e que a categoria de “ideia” (a
qual, por mais “importante” que seja, designa uma contribuição sobre
um aspecto determinado). Mas, acima de tudo, ninguém quer voltar
à situação em que na China não havia “igualdade”, senão no sentido
em que os dois comboios da metáfora que utilizei várias vezes estavam
ambos parados na estação do “subdesenvolvimento” ou se afastavam
dela lentamente. Não, de agora em diante pode-se considerar como
definitivamente adquirida a consciência segundo a qual o socialismo
não é a distribuição igual da miséria. Tanto mais que uma “igualda-
de” dessas é totalmente ilusória e pode mesmo funcionar ao contrário.
Quando a miséria atinge certo nível, pode conter o risco da morte por
inanição. Nesse caso, por mais modesto e reduzido que seja o naco de
pão que garante a sobrevivência aos mais sortudos assinala, apesar
de tudo, uma desigualdade absoluta, a desigualdade absoluta que se
mantém entre a vida e a morte. Foi, antes da introdução da política de
reforma e de abertura, o que se constatou nos anos mais trágicos da
República Popular da China: consequência quer da herança catastró-

47
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

fica derivada da pilhagem e da opressão imperialista, quer do embar-


go impiedoso imposto pelo Ocidente, quer dos graves erros praticados
pela nova direção política. A centralidade do dever de desenvolvimento
das forças produtivas mantém-se, pois, garantida, mas essa centralida-
de pode ser interpretada de modo sensivelmente diferente…

5. A pessoa que foi chamada para dirigir Chongqing é Bo Xilai, o


brilhante ex-ministro do comércio exterior. É uma circunstância
que nos permite refletir sobre o processo de formação do grupo dirigen-
te na China. Um representante do governo central, que, no desenvol-
vimento da sua função, se distinguiu e adquiriu prestígio até mesmo
no plano internacional, é enviado para a província para enfrentar uma
tarefa de natureza diferente e de proporções gigantescas. Combatendo
a corrupção de modo capilar e radical e propondo na teoria e na prática
real de governo um “modelo novo”, destinado a queimar etapas na li-
quidação das desigualdades que se tornaram intoleráveis, e na realiza-
ção da “sociedade harmoniosa”, Bo Xilai suscitou um debate nacional:
é fácil prever a sua presença numa posição eminente no grupo dirigente
que sairá do XVIII Congresso do PCCh, apesar de que seria um erro dar
como dado adquirido o resultado desse debate (e da luta política) em
curso. Portanto: a concluir um período de incertezas, de conflitos e de
violências, à primeira geração de revolucionários que tinham no centro
Mao Tsetung sucedeu a segunda geração de revolucionários com Deng
Xiaoping no centro. Seguiram-se depois a terceira e a quarta gerações
de revolucionários tendo ao centro, respectivamente, Jiang Zenin e
Hu Jintao. Do próximo congresso do Partido sairá a quinta geração
de revolucionários. É uma perspectiva dada em seu tempo por Deng
Xiaoping, que confirmou assim a sua clarividência e a sua lucidez na
construção do Partido e do Estado: a personalização do poder e o culto
da personalidade foram ultrapassados; pôs-se fim à ocupação vitalícia
dos cargos políticos; afirmou-se um processo de formação e de seção
dos grupos dirigentes que, até agora, tem dado excelentes resultados.

6. Mas até onde podemos considerar como socialista o “socialismo


de mercado” teorizado e praticado pelo Partido Comunista da

48
Prefácio

China? Na delegação multicolorida que vem do Ocidente não faltam


as dúvidas, as perplexidades, as críticas abertas. Desenvolve-se um
debate, aberto e aceso, mais uma vez encorajado pelos nossos interlo-
cutores e anfitriões. Não subsistem dúvidas de que, na sequência da
afirmação da política de reforma e de abertura, a área da economia
do Estado foi restringida e que a área da economia privada se alargou:
estaremos na presença de um processo de restauração do capitalismo?
Os comunistas chineses fazem notar que o papel central e dirigente
do Estado (e do Partido Comunista) se mantém firme: qual é?
O panorama econômico e social da China de hoje caracteriza-se
pela presença simultânea das formas mais diversas de propriedade:
propriedade do Estado; propriedade pública (neste caso o proprietá-
rio não é o Estado central, mas, por exemplo, um município); socie-
dades por ações no âmbito das quais a propriedade do Estado ou a
propriedade pública detém a maioria absoluta, ou então uma maioria
relativa, ou ainda uma percentagem significativa do pacote de ações;
propriedade cooperativa; propriedade privada. Nestas condições, tor-
na-se muito difícil calcular com rigor a percentagem da economia
do Estado e pública. Quando voltei para casa, encontrei um número
especialmente interessante do International Herald Tribune: leio nele
um cálculo efetuado por um professor da prestigiada universidade de
Yale, precisamente Chen Zhiwu (um americano, portanto, de origem
chinesa, talvez em posição privilegiada para se orientar na leitura da
economia do grande país asiático), indicando que “o Estado controla
três quartos da riqueza da China” (7 de julho de 2010, p. 18). É preciso
acrescentar a isto um dado geralmente esquecido: na China a proprie-
dade do solo está inteiramente nas mãos do Estado; os camponeses
têm o usufruto dele, que também podem vender, mas a sua proprie-
dade não. No que se refere à indústria, outros cálculos atribuem um
peso mais reduzido ao Estado. Em todo caso, os que imaginam um
processo gradual e irreversível de retirada do Estado da economia es-
tão completamente enganados. Na revista Newsweek de 12 de julho,
um artigo de Isaac Stone Fish chama a atenção para as “empresas de
propriedade do Estado que dominam de modo crescente a economia
chinesa”. Em todo caso – reafirma o semanário americano –, no de-

49
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

senvolvimento do oeste (que a partir de agora se desenha em toda a


sua amplitude e profundidade) o papel da empresa privada será bem
mais reduzido do que o desempenhado no seu tempo no desenvolvi-
mento do leste.
Os camaradas chineses fazem-nos notar que, ao introduzirem
fortes elementos de concorrência, a área econômica privada contri-
buiu em última análise para o reforço da área do Estado e pública,
que foi assim obrigada a desembaraçar-se da burocracia, da falta de
empenho, da ineficácia, do clientelismo. Com efeito, precisamente
graças às reformas de Deng Xiaoping, as empresas do Estado gozam
atualmente de solidez e de competitividade sem precedentes na his-
tória do socialismo. É um ponto que pode ser esclarecido a partir de
um número da revista The Economist (10-16 de julho de 2010), que
compro e leio no confortável aeroporto de Pequim, enquanto espero
o voo de regresso à Itália; o artigo de fundo sublinha que quatro dos
dez bancos mundiais mais importantes são atualmente chineses. Es-
tes, contrariamente aos bancos ocidentais, estão com excelente saúde,
“ganham dinheiro”, mas “o Estado detém a maioria das ações e o
Partido Comunista nomeia os mais altos dirigentes, cuja retribuição
é uma fração da dos seus homólogos ocidentais”. Além disso, esses
dirigentes “têm que responder a uma autoridade superior à da Bolsa”,
ou seja, às autoridades de um Estado dirigido pelo Partido Comunista
da China. O prestigiado semanário financeiro inglês não consegue
assimilar essas novidades inauditas; tem esperança e aposta que as
coisas vão mudar. Hoje há um fato que aparece aos olhos de toda gen-
te: a economia do Estado e pública não é sinônimo de ineficácia, como
pretendem os paladinos do neoliberalismo, e os bancos não têm que
pagar aos seus dirigentes como nababos para serem competitivos no
mercado interno e internacional.

7. É provável que a área econômica privada satisfaça exigências ul-


teriores. Primeiro de tudo, torna mais fácil a introdução da tec-
nologia mais avançada dos países capitalistas: não esqueçamos que
nesse ponto os EUA procuram ainda impor um embargo à custa da
China. Mas há outro ponto, de que me apercebo quando visitamos

50
Prefácio

o muito avançado parque industrial de Weifang. Em certos casos os


chineses do ultramar é que fundaram as empresas privadas: estuda-
ram no estrangeiro (sobretudo nos EUA), obtendo excelentes resul-
tados e acumulando por vezes algum capital. Regressam agora à pá-
tria, com uma decisão que suscita alguma perturbação na região em
que se estabeleceram. Como é possível intelectuais de primeiro plano
abandonarem a “democracia” para regressar à “ditadura”? Para além
do apelo patriótico que os convida a participar no esforço coletivo de
todo um povo para que a China atinja os níveis mais avançados de
desenvolvimento, de tecnologia e de civilização, estes chineses do ul-
tramar são também atraídos pela perspectiva de fazer valer os seus ta-
lentos e a sua experiência tanto nas universidades como nas empresas
privadas de alta tecnologia que fundam. Em outros termos, estamos
perante a continuação política da frente unida teorizada e praticada
por Mao não só no decurso da luta revolucionária, mas também du-
rante vários anos após a fundação da República Popular da China.
Mas entremos finalmente nessas fábricas de propriedade priva-
da. Com ou sem chineses do ultramar, reservam-nos grandes sur-
presas. Os que vêm ao nosso encontro são em primeiro lugar mem-
bros do Comitê do PCCh, cujas fotografias estão em grande destaque
nos diversos serviços. Nas conversas aparecem quase casualmente os
condicionalismos que pesam sobre a propriedade. Esta é obrigada ou
pressionada a reinvestir uma parte considerável dos lucros (por ve-
zes até 40%) no desenvolvimento tecnológico da empresa; outra par-
te dos lucros, cuja percentagem é difícil de calcular, é utilizada para
intervenções de caráter social (por exemplo, a construção de escolas
profissionais entregue ao Estado ou ao município, ou então o socorro
a vítimas duma catástrofe natural). Se nos lembrarmos de que essas
empresas dependem fortemente do crédito atribuído por um sistema
bancário controlado pelo Estado e se pensarmos também na presença
no interior dessas empresas do PCCh e do sindicato, impõe-se uma
conclusão: nessas empresas privadas o poder da propriedade privada é
equilibrado e limitado por uma espécie de contrapoder.
Mas qual é o papel desempenhado pelo PCCh e pelo sindicato? As
respostas que recebemos não satisfazem todos os membros da nossa

51
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

delegação. Certamente, dando novamente eco a uma tendência bas-


tante espalhada na esquerda ocidental, concentram a sua atenção ex-
clusivamente no nível dos salários. Os nossos interlocutores chineses,
pelo contrário, explicam-nos que, para além da melhoria das condi-
ções de vida e de trabalho dos operários, eles preocupam-se com a
contribuição que as suas empresas podem dar para o desenvolvimen-
to da economia e da tecnologia de toda a nação. Desta troca de ideias
vemos novamente surgir a oposição entre as duas figuras em que
Lênin insiste em Que Fazer?: o representante da esquerda ocidental,
que apela aos operários chineses para rejeitar todos os compromissos
com o poder do Estado na sua luta por salários mais elevados, julga
estar sendo radical e mesmo revolucionário. Na realidade, coloca-se
na esteira do reformista ou, pior ainda, do “secretário” corporativista
“de um sindicato qualquer”, que Lênin censura por perder de vista a
luta por emancipação nos seus diversos aspectos nacionais e interna-
cionais, tornando-se assim por vezes o ponto de apoio de “uma nação
que explora o mundo todo” (naquela época, a Inglaterra). O revolucio-
nário “tribuno popular” conduz-se de forma muito diferente. Claro,
em relação a 1902 (ano da publicação de Que Fazer?) a situação mudou
radicalmente. Entretanto, na China o “tribuno popular” pode contar
com o apoio do poder político; o que não quer dizer que, para ser
revolucionário, ele, aproveitando-se dos ensinamentos de Lênin, não
deva saber encarar o conjunto das relações políticas e sociais em nível
nacional e em nível internacional.
Impõe-se um aumento consistente dos salários e está já pre-
visto, favorecido ou promovido pelo próprio poder central (como é
reconhecido pela grande imprensa internacional), mas este aumen-
to, para além de melhorar as condições de vida e de trabalho dos
operários, visa a aumentar o conteúdo tecnológico dos produtos in-
dustriais e a consolidar assim a economia chinesa no seu conjunto,
tornando-a também menos dependente das exportações. As (justas)
reivindicações salariais imediatas não podem comprometer a reali-
zação do objetivo estratégico de reforço de um país que, com o seu
crescimento econômico, refreia cada vez mais os planos do imperia-
lismo ou da “hegemonia”, como os nossos interlocutores chineses

52
Prefácio

preferem dizer de modo mais diplomático.

8. Finalmente, último objeto de escândalo: em homenagem à


“importante ideia das três representações”, até os empresários
são aceitos nas fileiras do Partido Comunista da China. E de novo
surgem as preocupações e as angústias de alguns membros da de-
legação europeia: estaremos a assistir ao aburguesamento do Parti-
do que deveria garantir o sentido da marcha socialista da economia
de mercado? Para começar, os interlocutores chineses fazem notar
que o número de empresários aceitos nas fileiras do Partido (após
um processo rigoroso de verificação e seleção) é insignificante em
comparação com uma massa de militantes que quase atinge os 80
milhões; em outros termos, trata-se de uma presença simbólica. Mas
esta explicação não é suficiente. Vimos que alguns desses empresá-
rios desempenham um papel nacional: em certos setores da econo-
mia eliminaram ou reduziram a dependência tecnológica da China
vis-à-vis do estrangeiro; por vezes, não apenas no plano objetivo, mas
de modo consciente alguns deles colocaram-se na primeira fila na
luta travada pelo Partido Comunista da China desde 1949: a luta para
derrotar o imperialismo, passando da conquista da independência
no plano político para a conquista da independência também no pla-
no econômico e tecnológico. Em um mundo que se caracteriza cada
vez mais pela knowledge economy, ou seja, por uma economia baseada
no conhecimento, pode acontecer que o herói do trabalho stakhano-
vista da URSS de Stálin assuma o aspecto totalmente novo de um
técnico superespecializado que, lançando uma empresa de alto valor
tecnológico, forneça uma contribuição importante para a defesa e
para o reforço da pátria socialista.
Podemos fazer uma última consideração. Na onda do “socialis-
mo de mercado” constituiu-se um novo estrato burguês em rápida
expansão. A cooptação de alguns dos seus membros no quadro do
PCCh comporta uma decapitação política deste novo estrato, do mes-
mo modo que na sociedade burguesa a cooptação por parte da classe
dominante de algumas personalidades de extração operária ou popu-
lar estimula a decapitação política das classes subalternas.

53
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

9. Chegou o momento de tirar conclusões. No meu inglês claudi-


cante, exponho-as por ocasião de alguns banquetes e, sobretudo,
do jantar que precede a viagem de regresso e que se desenrola na pre-
sença, entre outros, de Huang Huaguang, diretor-geral do Gabinete
para a Europa Ocidental do Departamento Internacional do Comitê
Central do PCCh. Todos os participantes na viagem são convidados a
exprimir-se com grande franqueza. Nas minhas intervenções, tento
dialogar também com os outros membros da delegação da Europa oci-
dental e, provavelmente, sobretudo com eles.
Quando declaram encontrar-se apenas na fase primária do socia-
lismo e preveem que essa fase vai durar até metade do século XXI, os
comunistas chineses reconhecem indiretamente o peso que as rela-
ções capitalistas continuam a exercer no seu país imenso e tão varia-
do. Por outro lado, o monopólio do poder político nas mãos do PCCh (e
dos oito partidos menores que reconhecem a sua direção) está à vista
de todos. Para um observador atento, também não deverá escapar o
fato de – situadas como estão numa posição de subalternidade no pla-
no econômico, político e social – as próprias empresas privadas, mais
do que levadas pela lógica do lucro máximo, serem estimuladas, em-
purradas e pressionadas a respeitar uma lógica diferente e superior: a
do desenvolvimento cada vez mais generalizado e cada vez mais rami-
ficado e espalhado tanto da economia como da tecnologia nacional.
Em última análise, através de uma série de mediações, até mesmo
essas empresas privadas estão sujeitas ou subordinadas ao “socialismo
de mercado”. E, portanto, os sermões moralistas que certa esquerda
ocidental não se cansa de fazer ao Partido Comunista da China são,
por um lado, redundantes e supérfluos e, por outro, infundados e in-
consistentes.
Evidentemente, é sempre legítimo formular dúvidas e críticas so-
bre o “socialismo de mercado”. Mas pelo menos em um ponto conside-
ro que devia ser possível à esquerda chegar a um consenso. A política
de reforma e de abertura introduzida por Deng Xiaoping não signifi-
cou de forma alguma a homologação da China ao Ocidente capitalista
como se o mundo inteiro passasse a ser caracterizado por um mapa
calmo. Na realidade, a partir precisamente de 1979 desenvolveu-se

54
Prefácio

uma luta que escapou aos observadores mais artificiais, mas cuja im-
portância se manifesta com uma evidência cada vez maior. Os EUA e
seus aliados esperavam reafirmar uma divisão internacional do traba-
lho nesta base: a China teria que se limitar à produção, a baixo preço,
de mercadorias desprovidas de real conteúdo tecnológico. Por outras
palavras, estavam à espera de conservar e acentuar o monopólio oci-
dental da tecnologia: nesse plano, a China, como todo o Terceiro Mun-
do, deveria continuar a sofrer uma relação de dependência em relação
à metrópole capitalista. Percebe-se bem que os comunistas chineses
interpretaram e lutaram para fazer fracassar esse projeto neocolonia-
lista como a continuação da luta de libertação nacional; não há uma
verdadeira independência política sem independência econômica;
pelo menos os que se reclamam marxistas deviam estar de acordo
com esta verdade!
Graças à manutenção cobiçada do monopólio da tecnologia, os
EUA e seus aliados pretendiam continuar a ditar as leis das relações
internacionais. Com o seu extraordinário desenvolvimento econômi-
co e tecnológico, a China abriu a via para a democratização das rela-
ções internacionais. Os comunistas e também todos os verdadeiros
democratas deviam congratular-se com esse resultado. Atualmente
há melhores condições para a emancipação política e econômica do
Terceiro Mundo.
Neste ponto, convém desembaraçarmo-nos de um equívoco que
torna difícil a comunicação entre o PCCh e a esquerda ocidental no
seu conjunto. Mesmo no meio de oscilações e contradições de todo
tipo, desde a sua fundação a República Popular da China se empe-
nhou em lutar contra não uma, mas duas desigualdades: uma de ca-
ráter interno e a outra de caráter internacional. Na sua argumenta-
ção da necessidade da política de reforma e de abertura que desejava,
Deng Xiaoping, numa conversa de 10 de outubro de 1978, chamava
a atenção para o fato de que o “fosso” tecnológico estava em vias de
se alargar em comparação com os países mais avançados. Estes se
desenvolviam “a uma velocidade terrível”, enquanto a China corria
o risco de ficar cada vez mais para trás (Selected works, vol. 3, p. 143).
Mas se falhasse no processo de internalização da nova revolução tec-

55
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

nológica, ficaria numa situação de fraqueza semelhante à que a tinha


entregado, indefesa, às guerras do ópio e à agressão do imperialismo.
Com esta possível falha, para além do prejuízo para si mesma, a Chi-
na provocaria um enorme prejuízo à causa da emancipação do Tercei-
ro Mundo no seu conjunto. É preciso acrescentar que, precisamente
porque soube reduzir de forma drástica a desigualdade (econômica e
tecnológica) no plano internacional, a China está hoje em melhores
condições, graças aos recursos econômicos e tecnológicos que acu-
mulou, para enfrentar o problema da luta contra a desigualdade no
plano interno.
O “século das humilhações” da China (período de 1840 a 1949,
a saber, desde a Primeira Guerra do Ópio à conquista do poder pelo
PCCh) coincidiu historicamente com o século da mais profunda de-
pravação moral do Ocidente: guerras do ópio com a devastação infli-
gida a Pequim no Palácio de Verão, com a destruição e pilhagem de
obras de arte, expansionismo colonial e recurso a práticas escravagis-
tas ou genocidas em detrimento das “raças inferiores”, guerras impe-
rialistas, fascismo e nazismo, com a barbárie capitalista, colonialista
e racista que atingiu o auge.
A partir da forma como o Ocidente souber encarar o renascimen-
to e o regresso da China, poderemos avaliar se ele está decidido a
acertar realmente as contas com o século da sua mais profunda de-
pravação moral. Que pelo menos a esquerda saiba ser intérprete da
cultura mais avançada e mais progressista do Ocidente!

DOMENICO LOSURDO
Professor titular de História da Filosofia da
Universidade de Urbino, Itália.

Urbino, Itália, 17 de fevereiro de 2011

56
1. Introdução

57
Introdução

O tema deste livro insere-se numa problemática nada nova. Resi-


de na busca por algumas sínteses entre projeto nacional, desen-
volvimento e socialismo na China. Duas observações são pertinentes.
Primeiramente, 16 anos de estudos, três viagens ao país e milhares de conversas
com nosso orientador nos permitiram ter segurança para apresentar algo criati-
vo. Neste livro não se observam revisões bibliográficas infindáveis, nem tampouco
inúmeras referências bibliográficas de “meio de parágrafo” como forma de assen-
tar determinado argumento. Por exemplo, não é necessária uma leitura completa
dos trabalhos de I. Wallerstein para perceber qual a sua visão sobre o socialismo.
Da mesma forma que não se encontrarão nas obras políticas de Lênin as respostas
para uma “teoria do desenvolvimento em sociedades agrárias”. Propusemo-nos o
desafio de me distinguir elaborando uma visão particular dos acontecimentos à
luz do materialismo histórico. Sentimo-nos dispostos a colher o ônus e o bônus desta
escolha.
Também nos colocamos o desafio de, em nenhum momento, colocar ponto
final nesse tema. O conhecimento, a experiência e a serenidade são coisas que so-
mente o tempo, a mente aberta e a humildade podem nos proporcionar.

aaaaaaaaaaaa

Quais nossas principais referências? Não se trata de uma pergunta de difí-


cil resposta. Balizamo-nos pelo materialismo histórico de Karl Marx, Friedrich
Engels, Vladimir Lênin e dos pensadores brasileiros Ignacio Rangel e Armen Ma-
migonian. Como geógrafo, permitimo-nos não cair na tentação de atribuir a Karl
Marx o equívoco de não ter trabalhado com a dita categoria de “espaço”. Atribui-se
tal engano a geógrafos “marxistas” que não conhecem os trabalhos de Marx sobre
a Ásia e as regiões coloniais. Tampouco cremos que o território seja o motor do pro-
cesso. O motor do processo é a luta de classes, sendo o território e a divisão social do
trabalho as consequências dessa luta. Se a luta dos trabalhadores avança, avança
também a divisão social do trabalho. Se a correlação de forças entre imperialismo,

59
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

socialismo e projetos nacionais autônomos desfavorece estes últimos, a divisão so-


cial do trabalho estanca e até retrocede. Não cabem invenções nem elucubrações
sobre a “desigualdade do território”, como alguns geógrafos propugnam ao analisar
a realidade periférica fora de marcos politizados e historicizados.
A divisão social do trabalho somente desaparece no comunismo. Daí
trabalharmos a hipótese marxista, que tem na superação da divisão so-
cial do trabalho a principal tarefa da transição socialismo/comunismo.
Esta definição de transição socialista permeia todo este trabalho.
De Marx e Engels garimpamos suas dispersas proposições sobre a transição
socialista. É bem verdade que não se aventuraram nesta seara de forma efusiva,
mas também é verdade que a teoria da história elaborada por esses dois pensado-
res nos capacitou a compreender as tendências históricas principais ao entendimento
da transição. No pensamento dos fundadores do materialismo histórico observa-se
que o socialismo não encerra nenhum sonho de sociedade igualitária. Isso é anti-
científico na medida em que os esquemas de distribuição no socialismo ainda estão
sob a égide do trabalho e não da necessidade. Busquei me apropriar da máxima da
contradição como o motor do processo para trabalhar o processo de desenvolvimento
como algo que surge da necessidade de solucionar problemas que não se encerram
por si mesmos, pois o processo é marcado pelo surgimento de outros problemas e
outras soluções. Assim, tento me diferenciar daqueles que colocam excessiva ênfase
nas contradições do processo de desenvolvimento na China, bem como não a clas-
sificam de “socialista” pela pura existência de desigualdades de diversas montas.
A desigualdade social e regional é uma contradição do processo. Portanto, socia-
lismo como superação da divisão social do trabalho. Fator interessante para se en-
tender em que estágio de transição se encontra a China. Um país com mais da me-
tade da população vivendo no campo e diferentes formas de produção convivendo
entre si, formando um todo heterogêneo. Assim transitamos de Marx e Engels para
Lênin, tentando resgatar a essência da produção de Lênin sobre a transição em
formações sociais periféricas. Maximizar a produção privada camponesa, centralizar a
grande produção sob formas socialistas de propriedade e indigenizar o que de mais
avançado o mundo exterior e capitalista produziu são alguns itens. A especialização
da agricultura e da indústria mediada pelo avanço da técnica conforma uma divi-
são social do trabalho em plena transição. Dizemos transição, neste caso, para tratar

60
Introdução

a necessária correspondência entre diferentes níveis de transição que podem afetar


uma formação social. O Lênin da Nova Política Econômica (NEP) não nasceu de um
passe de mágica; ele é resultado de sua própria produção teórica (última década
do século XIX) voltada à compreensão do mundo camponês russo. Lênin percebe
na pequena produção mercantil uma fonte de ociosidade produtiva a ser amplamente
explorada no rumo da acumulação. Eis o “x” que liga a Rússia de Lênin à China de
Deng Xiaoping. É o “x” inclusive para se compreender o imperioso da convivência
de diferentes formas de propriedade num socialismo em estágio inicial.

aaaaaaaaaaaa

O senso comum alimenta teses de restauração capitalista na China a partir


do avanço da propriedade privada e do capital estrangeiro, por um lado. Por outro,
ainda não se tornou rotina metodológica classificar a China como uma formação
social complexa. Afinal de contas, o que significa isso? Significa muito, significa
extrair o que de melhor Lênin e Ignacio Rangel trabalharam em seus tempos. A
transição na Rússia deveria obedecer a velocidades distintas diante de diferentes
modos de produção que conviviam em uma unidade de contrários. Uma formação
social complexa é aquela que se comporta de modo ativo diante da conjuntura eco-
nômica internacional e se vê diante de diferentes formas de produção interna que
transitam de acordo com o contato entre as leis econômicas da própria formação
social e as leis econômicas do centro do sistema em seu tempo. A grande indústria
pode ser produto do financiamento externo e a pequena produção mercantil pode se
transformar em indústria em concordância com os impulsos da superestrutura.
A economia de mercado, como produto histórico das relações entre homem e natu-
reza, é o termômetro do processo de desenvolvimento a partir da decomposição
da economia voltada à subsistência (economia natural) e a entrada de seus in-
tegrantes na lógica da especialização, da concorrência, da economia de mercado
em si. Sob o socialismo, a lei da correspondência entre superestrutura e base econômica
deve obedecer a esta dinâmica.
Assim Lênin elencou, em seu tempo, as diferentes formações econômico-sociais
presentes na grande Rússia. A vasta China e a complexidade de sua formação em
muito coincidem com a Rússia. Neste caso, a indústria socializada deve passar por

61
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

um largo processo de concentração e centralização, acompanhada pelo controle dos


instrumentos estratégicos do processo de acumulação pelo Estado de novo tipo,
pela formação de um vasto esquema de intermediação financeira. À propriedade
privada, em condições normais de tempo e temperatura, deve-se deixar cumprir
seu papel histórico estabelecido não pela vontade humana, mas, principalmente,
pelas leis da sociedade e da natureza.
O caráter socialista de uma formação social complexa não resi-
de no tamanho e na extensão da propriedade privada, e sim no que
é dominante: caráter de classe do poder político, controle dos meios
estratégicos de produção e detenção dos instrumentos estratégicos do
processo de acumulação (câmbio, crédito, juros e sistema financeiro),
além do monopólio sobre o comércio exterior.
Ignacio Rangel desenvolveu as ideias de Lênin neste quesito. Sua visão dialé-
tica do processo de desenvolvimento municiou-me para a percepção de pelo menos
três relações que foram centrais no desenvolvimento desta tese. A primeira, entre a
historicidade intrínseca e o papel do privado e do estatal no processo de desenvolvi-
mento. Além disso, a própria relação entre mercado e planejamento como duas cate-
gorias que em tese não se anulam. O problema da propriedade privada não deve ser
visto sob marcos morais, e sim históricos. Outra relação está em decifrar qual é a vari-
ável estratégica de um processo de desenvolvimento numa formação periférica. Pode
existir mais de uma, porém o papel do comércio exterior é algo a ser destacado. O
contato entre o externo e o interno determina a própria lógica do comportamento das
diferentes formações econômico-sociais numa mesma formação social. Esse é um
aspecto desta relação.
Outro ângulo consiste na lógica dos ciclos econômicos. A expansão do comércio
exterior traz consequências à formação de reservas em moeda estrangeira, que, por
sua vez, delimita o alcance da taxa de juros e sua atratividade ao crédito interno.
A retração externa leva a um processo de centralização e concentração do capital
estatal interno e à “liberação” de novas formas de acumulação fora da propriedade
estatal. Na China esse movimento explica tanto a formação de 149 conglomerados
estatais quanto a liberalização da propriedade privada. Ambas as medidas foram
colocadas em prática nos albores da crise financeira asiática de 1997. A acumulação
capitalista e seus ciclos guardam grande importância na descoberta dos caminhos

62
Introdução

chineses, afinal, é sob leis econômicas, regulamentações comerciais e uma conjun-


tura amplamente dominada pelo modo de produção capitalista que a China busca
se equilibrar e se desenvolver.
Ignacio Rangel gostava sempre de chamar a atenção para a “ordem no caos” re-
presentada pelo processo de desenvolvimento num país complexo como o Brasil. É in-
teressante notar que, em minha primeira viagem à China, conversando com alguns
estrangeiros, muitos deles chamavam a atenção para o caos no país. “Caos” esse
representado por milhares de obras públicas nas cidades, pelo interior transitando
do século XVII para o século XX a passos lentos, e pelo esplendor magnetizante da
Zona de Pudong em Xangai. Acostumados com cidades do “mundo livre” – como
São Paulo e Rio de Janeiro e até umas áreas em Paris –, não conseguíamos entender
uma “ditadura feroz” com o menor número de policiais para cada 100 mil habi-
tantes (Pequim) no mundo, nem muito menos o fato de os policiais não andarem
armados. O check-out em aeroportos chineses demora pelo menos dez vezes menos
tempo do que o que se passa, para o mesmo fim, no aeroporto Charles de Gaulle.
Das insistentes leituras de Rangel, das experiências particulares vividas pelo
país e da leitura de dados consegui chegar à primeira conclusão mais séria desta
tese: as causas do crescimento econômico chinês devem ser buscadas
não somente no que existe de padrão no mundo, mas também na aná-
lise da complexidade da formação social chinesa, expressada em diferen-
tes formas de produção no mesmo território.
Uma complexidade como a chinesa pressupõe crescimento eco-
nômico como resultado de alguns fatores. Entre eles, a necessidade
da maximização do mercado e sua capacidade de alocar recursos; da
maximização também do planejamento, que ocupa o espaço reser-
vado a pensar o estratégico, os grandes empreendimentos, a gestão
macroeconômica capaz de gestar movimentos imediatos e futuros da
grande economia, agora sob a égide de um poderio financeiro, como
já exposto – jamais sonhado pelas antigas gerações revolucionárias. O
crescimento chinês é resultado também da maximização do potencial
privado, da “permissão” ao cumprimento de seu papel delegado pela
história. O privado é ancilar à grande produção socializada e estatal.
Trata-se de um setor-chave para as necessárias aberturas de novos

63
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

campos de investimentos capazes de criar empregos e manter a esta-


bilidade social. O crescimento desse grande país não poderia deixar
de estar presente fora da maximização do papel indutor do Estado. A
grande empresa é a grande expressão do desenvolvimento capitalista,
e também deve ser do desenvolvimento socialista afiançado por um
poder político de novo tipo e por um sistema financeiro cada vez mais
profundo e complexo.
Ousamos definir a formatação de uma base econômica de tipo socialista em
etapa inicial como a síntese dos elementos acima elencados.

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Em outro ponto reside, de forma clara, a herança de nosso orientador Armen


Mamigonian. De forma objetiva, buscamos desenvolver o que ele tem de melhor:
sua capacidade particular de enxergar um movimento dentro de um escopo maior,
a partir de uma visão de processo histórico. Karl Marx dizia que a única ciência que
ele conhecia era a história. O jovem Marx herda de Hegel a noção de processo. A no-
ção de processo ganha maturidade e grau de categoria filosófica central no método
do materialismo histórico. Transição deixou de ser um mero conceito para também
transformar-se em categoria. Karl Marx sintetiza todos esses avanços em sua mais
completa obra (escrita juntamente com Engels), A Ideologia Alemã. Obra esta em
que as linhas mestras do materialismo histórico e dialético são pela primeira vez
expostas. Nela é que se inaugura uma visão de processo histórico.
A visão de processo histórico – do estudo das relações entre homem e natureza
e entre os homens e eles mesmos – é a essência do método e da visão marxista
de mundo. Seu aperfeiçoamento é a maior contribuição de Mamigonian ao pen-
samento social brasileiro. Em nossa opinião, clara neste livro, a visão de processo
histórico é o passo à frente, a superação da “periodização”, tão cara aos neopositivis-
tas e “fotógrafos” da realidade que lhes cabe. Tal afirmação pode parecer confusa,
mas não é. De concreto esta nossa opinião guarda sentido na rotineira separação
(“periodização”) que se faz entre a China de 1949 e 1978 e a nascida por meio das
reformas de Deng Xiaoping, quando na verdade se trata de dois processos históricos
que se imbricam numa dialética de continuidade e ruptura que escapa ao alcance de

64
Introdução

jornalistas e “especialistas” em China. Chamamos sempre a atenção para o fato


de que não se compreende o “socialismo de mercado” chinês fora dos marcos da
compreensão do modo de produção asiático e suas diferenças em relação ao modo de
produção escravista e mesmo ao modo de produção germânico.
Acreditamos que se guarda certa contradição ao se trabalhar esquemas “pe-
riodizantes” com categorias de “tempo”, “espaço” e “totalidade”. A subjetividade
do pesquisador não deve estar presa a esquemas de conformação da realidade. A
subjetividade do pesquisador deve ser preparada para a “análise concreta da situ-
ação concreta”, capaz de lhe permitir elaborar o novo e pensar o futuro; pensar a
grande estratégia a partir de tendências históricas consagradas. Somente uma visão
de processo histórico pode auferir segurança intelectual e teórica ao enfrentamento
do presente e do futuro.
A visão de processo histórico não é um fim em si mesmo. Só se
aprende exercitando e o exercício se dá a partir da utilização de pelo menos algu-
mas categorias-chave do materialismo histórico: formação social e modo de produção;
forças produtivas e relações de produção; superestrutura e base econômica. A análise da
formação social, de seus limites e potencialidades, nos capacita a compreender
os processos e transições e a convivência entre o “velho” e o “novo”, numa unidade
dialética e histórica de pura reflexão e sofisticação do pensamento. O termo “for-
mação” está diretamente relacionado a “desenvolvimento”; desenvolvimento este
que se dá no território, daí a necessária compreensão tanto da geografia quando
do marxismo como ciências que estudam as relações entre homem e natureza
e dos homens entre si mesmos. As relações entre homem e natureza redundam
no desenvolvimento e na acumulação de forças produtivas. As relações entre os
homens são sinônimos de relações de produção que se transformam ao longo do
tempo. As revoluções sociais são o elo entre o desenvolvimento das forças produtivas
em contradição com as relações de produção. As forças produtivas sintetizam a base
econômica da sociedade, enquanto as relações de produção guardam expressão
máxima na superestrutura de poder estatal.
Geografia e história são mais que ciências correlatas, elas formam
um todo único. Sempre existe a necessidade do salto metodológico,
algo que se confunde com ousadia intelectual e compromisso político.
Assim, geografia e história só fazem sentido no “casamento” com a

65
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

ciência econômica. A economia é a determinante em primeiro grau de


todo esse processo. Assim como a economia só tem sentido com sua
transmutação em “economia política”, a geografia e a história só fa-
zem sentido na priorização em “geografia econômica” e em “história
econômica”, respectivamente.
De concreto, isso significa que não faz sentido trabalhar a história e o de-
senvolvimento de um determinado território sem compreender o papel de uma
justa política cambial e de juros no desenvolvimento desse território. Discutir
planejamento territorial sem explicitar os meios e elementos do financiamento des-
te planejamento tem sido um exercício de diletantismo muito caro aos geógrafos
de hoje – muitos deles mais preocupados com discussões epistemológicas sem
algum fim do que com a utilização do trabalho intelectual necessário à transfor-
mação da realidade.

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Este livro contém quatro partes, excetuando-se a introdução (parte 1) e as


conclusões (parte 6). Da segunda à quarta parte (2- O método e a busca do sentido
histórico da transição e do “socialismo de mercado”; 3- Estado, desenvolvimento
e a dinâmica da formação social chinesa; 4- O desenvolvimentismo chinês com
características socialistas), fez-se necessário todo um apanhado teórico/histórico
e metodológico que desse conta de nossa visão particular sobre o processo chinês.
Em primeiro plano, demarcamos fronteira metodológica com os postulados neo-
positivistas. Neste caso, não foi suficiente demonstrar as debilidades dessa forma
de se encarar a ciência, sendo preciso também expor as características de nossa
opção teórico-metodológica. Porém, a demarcação desta fronteira não se dá fora
de algo mais profundo. Nosso intento foi o de expor uma visão muito particular
e realista sobre o próprio socialismo. O projeto nacional chinês emana da
necessidade de uma visão mais objetiva e histórica do próprio socia-
lismo. Desta conclusão, nosso ponto de partida foi a assertiva segundo a qual a
economia política não é a mesma para todos os países (Engels). Logo, a
investigação de qualquer realidade concreta deve-se pautar – em toda a sua exten-
são – na formação social. Não uma ideia de formação social cara à II Internacional,

66
Introdução

mas algo que interliga cada formação a uma ideia estanque de modo de produção.
Formação social, nesse caso, transforma-se em teoria e método na medida em que
abarca, sob a sua categorização, as múltiplas determinações do concreto (geografia,
economia, direito, natureza, filosofia etc.). Não existe Economia Política con-
sequente fora do estudo radical da formação social. A análise do processo
de desenvolvimento é – em primeira instância – a análise da história do processo
de desenvolvimento. Assim procuramos acumular também no sentido de colocar a
invalidade teórica de modismos, como o “sistema-mundo”. Desta forma, investigar
os meandros da dinâmica da formação social chinesa nos instrumentaliza de ins-
trumentos poderosos para a compreensão de uma realidade tão peculiar.
Se as relações de produção e as forças produtivas são produtos do tempo e do espaço,
logo, como expressões deste mesmo tempo e espaço, também devem ser observadas
categorias como o mercado e a propriedade privada. Assim como o próprio socialismo.
São três categorias que devem ser vistas à luz da história. Somente o desenvolvi-
mento das forças produtivas pode dar prazo de validade histórica ao mercado e à
propriedade privada. A questão não é moral, nem a de busca de um mundo perfeito,
do “homem novo”. O desenvolvimento das forças produtivas enceta não um mun-
do longe de contradições, mas relações sociais que denodam a própria superação
da pré-história da humanidade. E o mercado e a propriedade privada, como
marcos históricos, devem estar a serviço não somente do capitalis-
mo, mas também do socialismo. O contrário disto é pura ladainha religiosa,
temperada pela busca de uma sociedade jamais sonhada pelos clássicos do mate-
rialismo histórico.
O Estado nacional chinês tem dado cabo de um projeto nacional capaz de mu-
dar qualitativamente a correlação de forças no mundo com seu desenvolvimento.
Trata-se de uma razoável assertiva da qual tentamos dar consequência neste livro.
Tal Estado reinaugurado em 1949 não é um produto de si mesmo ou mesmo da
divindade de um homem. É um Estado construído ao longo de pelo menos 2.500
anos, fruto de uma precoce economia de mercado e causa e consequência de uma di-
visão social do trabalho que desde então alçava as massas camponesas ao leme do
curso político. Um Estado que surge diante de desafios que a própria geografia lhe
impôs. Esta mesma geografia que impele a moderna República Popular a enfrentar
o nó górdio de vastas regiões do país ainda atreladas à perificidade e ao atraso. Con-

67
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

dições tais que estão sendo objeto de amplo enfrentamento. Enfrentamento que se
dá com o auxílio da técnica, do moderno poderio financeiro chinês e da disposição
política de colocar o país na vanguarda do século presente.
Esta mesma formação social, cujos limites só seriam postos à prova com a
ocupação estrangeira, buscou soluções para seus problemas de coesão estatal, e for-
matação de sua superestrutura em formas de administração que seriam adotadas
na Europa, somente em meados do século XIX. É irresistível perceber que o moder-
no planejamento chinês e o processo de formação dos quadros governantes de seu
Estado guardam muito da minúcia e da engenharia de grandes obras milenares e
de um nada rústico planejamento urbano. Planejamento este que se mostrou capaz
de projetar uma cidade como Pequim na mesma época histórica em que a Europa
se afogava em sangue de guerras religiosas. O projeto nacional, o desenvolvi-
mentismo e o socialismo com características chinesas têm na essência
a milenaridade do Império Chinês.
Como se poderá perceber, as partes 2, 3 e 4 deste livro estão amplamente dedi-
cadas a uma discussão de fundo sobre o socialismo, a formação social chinesa e a
dinâmica desta formação sob os auspícios do desenvolvimento com características
chinesas. Falar em desenvolvimentismo chinês deve seguir-se de uma teorização
também da dinâmica das diferentes formações econômico-sociais em conflito e
suas relações no território. A transformação do país se acentua com sua entrada
na Divisão Internacional do Trabalho, o que faz com que o comércio exterior passe a
ser a variável estratégica do processo. Variável esta capaz de dar lubrificação para
que as “transições dentro da grande transição” ocorram a um ritmo e velocidade
pautados pelo Estado. O centro desta transição interna está na transferência de
recursos para a economia de mercado. Esta transição de recursos não se restringe à
questão financeira, mas refere-se principalmente a pessoas que deixam a economia
de subsistência para adentrarem na produção mercantil e/ou socializada. Enfim, o
processo de desenvolvimento tem como ponto de avaliação inicial a dinâmica da
entrada ou saída de pessoas da economia de mercado.
A transição para o socialismo, do ponto de vista interno, se mede
pela entrada de contingentes de trabalhadores na economia socializa-
da. A economia socialista de mercado pode ser vista como uma lei de

68
Introdução

correspondência entre um Estado que enceta a transição ao socialis-


mo com uma base econômica onde coexistem diversas formas de pro-
dução, diversas formações econômico-sociais num imenso e variado
território.

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Ênfase no teórico ou ênfase no empírico? Este livro dá margem para ambas as


interpretações. Nossa tentativa foi de, na primeira metade do trabalho – até a parte
4 –, trabalhar fortemente questões mais relacionadas à teoria e à história. Mas o
empírico – mesmo nesta fase do trabalho – foi ganhando peso cada vez menos rela-
tivo e cada vez mais absoluto. É como se fosse uma transição em que dois elementos
convivem até chegar a um ponto em que a necessidade faz um deles se sobressair.
Foi assim que chegamos à quinta parte do trabalho (“O desenvolvimento e suas
faces na China”), totalmente voltada à exposição e análise de dados sob a forma de
gráficos, tabelas e mapas. Foi o momento em que tivemos de demonstrar a forma
concreta das migrações abstratas. Tamanha importância reservada à demonstração
empírica e prática do processo chinês demandou certa desproporção de tamanho
entre as partes 2, 3 e 4 e a quinta parte.
Como se conforma a base econômica de uma sociedade em tran-
sição ao socialismo, mas com fortes traços de modos de produção,
nas palavras de Ignacio Rangel, “contemporâneos, mas não coetâ-
neos”? Eis uma questão que tende a se resolver com a apresentação do papel
do Estado e da iniciativa privada no processo de crescimento. Uma questão que
chama outra. Por exemplo, no capitalismo o centro de gravidade do processo de
acumulação está na simbiose da grande empresa privada com a grande finança.
Tivemos de demonstrar – nesta quinta parte – que além do papel ge-
renciador do Estado, o processo em si gira em torno de 149 conglome-
rados estatais situados em setores estratégicos da economia, além da
cada vez mais complexa rede de financiamento público e privado sob
o controle de grandes bancos estatais. Tentamos demonstrar que no capi-
talismo existe uma tendência objetiva de o processo de inovação tecnológica ser

69
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

parte do capital constante da grande empresa privada. Na China não é diferente,


porém as empresas estatais é que são o centro de captação e radiação do
processo de inovação.

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Existem dois processos históricos que se imbricam. É muito recorrente neste tra-
balho expor que a siderurgia está para o “modelo soviético” da mesma forma que
o sistema financeiro está para o socialismo de mercado na China. A implantação
da siderurgia correspondeu à afirmação do desenvolvimento e da independência
nacional em certo momento histórico. É a chave da compreensão do que chama-
mos de “via prussiana” de tipo socialista – a dita revolução pelo alto, da qual a
siderurgia é uma forte expressão. Nos tempos atuais, a consagração de um sistema
de intermediação financeira é o imperativo para qualquer projeto nacional de de-
senvolvimento, seja ele socialista ou capitalista. A política de Reforma e Aber-
tura em curso desde 1978 é o processo histórico em que se caminha da
formação de empresários a partir da permissão da acumulação cam-
ponesa (“via dos produtores” ou “via americana”) para a formação de
um sistema financeiro, produto da fusão do banco com a siderurgia
formada nos tempos de Mao.
Quando trabalhamos o empírico na quinta parte do trabalho, queremos de-
monstrar que o atual processo de crescimento chinês está cimentado
num poderoso sistema financeiro. O futuro de temas importantes, que vão
desde a inserção externa chinesa, a solução dos impasses agrários – totalmente
relacionados com uma base financeira sólida que capacite a transição da pequena
produção mercantil para formas superiores de produção (cooperativas) –, a moder-
na questão regional e os óbices ambientais, está amplamente relacionado com a
adoção de novas e superiores formas de planejamento. Formas novas de planejamento
diferenciadas pelo assentamento numa verdadeira fortaleza financeira. Eis o novo
no processo chinês (e na própria história do socialismo), amplamente debatido na
quinta parte deste livro. Não se compreende o “socialismo do século XXI”
fora do escopo da necessidade de se adotar um sistema financeiro na-

70
Introdução

cional capaz de dar solução aos imensos desafios impostos pela reali-
dade. Trabalhar estas questões sob a máxima da relação entre sistema financeiro
e soberania no século XXI é o objetivo da quinta parte deste livro.

aaaaaaaaaaaa

E o futuro? O que dizer do futuro? Na resposta a esta questão é que nos re-
metemos ao segundo processo histórico indicado acima. Trata-se de algo análogo ao
processo de formação do poderio norte-americano no século XX. O poderio norte-
americano assenta-se no processo histórico de formação de uma imensa economia
continental na América do Norte na segunda metade do século XIX. A Pax Ame-
ricana e o moderno imperialismo são fruto deste processo que se cristaliza com um
capitalismo centrado em grandes oligopólios industriais e financeiros. Até hoje, e
por muito tempo, estamos condenados a curtir os efeitos deste processo.
Remetendo-nos ao exemplo histórico da formação da economia continental
norte-americana e seu papel na consolidação do capitalismo em escala internacio-
nal, pode-se dizer que o século XXI – e sua história – trará em seu bojo transforma-
ções qualitativas que incidem diretamente no processo de transição capitalismo – socia-
lismo em escala global. Este segundo processo histórico a que nos referimos se baseará
em dois fatos históricos interdependentes: o primeiro na transformação da China em
uma potência financeira em escala global. Se a indústria foi fator de concorrên-
cia entre imperialismo e projetos nacionais autônomos (socialistas e
capitalistas) no século XX, e o próprio capital financeiro capitalista
foi a variável que desequilibrou o jogo, é na formação de uma potência
financeira capaz de superar o legado de Bretton Woods (FMI, Banco
Mundial) – sob a forma de imensos investimentos chineses na peri-
feria – que se conformará uma das bases materiais da transição. Um
país das dimensões da China, necessariamente, caminha para ser um polo gravi-
tacional, na mesma proporção que um dia Marx se referiu à transição mundial ao
socialismo pela gravitação do mundo em torno de Alemanha, França e Inglaterra.
O futuro da periferia (e da solução de diferentes “questões nacionais”) está nesse
processo. Processo não mais ligado a laços ideológicos e políticos que se fragilizam

71
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

diante da primeira investida financeira do imperialismo. Este processo corre em pa-


ralelo com a perda de poderio, inclusive moral, dos Estados Unidos, conforme a
própria crise financeira em curso tratou de demonstrar. Ao contrário da China, que
nele se fortaleceu sobremaneira.
O segundo fato está no recente processo de formação de uma economia continental
chinesa – projeto acelerado em meio às duas crises financeiras: a de 1997 na Ásia e a
de 2008 focada nos Estados Unidos e na Europa. Está inserida nesse processo a base
territorial da transição capitalismo-socialismo no mundo. Com fronteiras que se es-
tendem do Oriente Médio ao Pacífico, da Ásia Central à Índia, da Rússia ao Vietnã,
e com a reedição – sob a forma de trem-bala – da Rota da Seda, a China, de forma
evidente, é o centro. A robustez de seu mercado interno garante mercado exporta-
dor para seus vizinhos. Na Ásia já ocorrem mais transações comerciais que entre
os países do Atlântico Norte. Interessante imaginar o impacto de uma economia
continental unificada na China nas próximas três décadas.

aaaaaaaaaaaa

É a construção desses dois processos simultâneos que nos propomos debater


neste livro. Eis a nossa contribuição particular para a sociedade e a ciência voltada
para a transformação da realidade.

72
2. O método e a busca do
sentido histórico da transição
e do “socialismo de mercado”

73
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

A volúpia desenvolvimentista chinesa constitui-se na grande novidade do


cenário internacional neste início de século. Uma grande rede a serviço
de empresas, universidades e governos tem disponibilizado tempo e recursos para
análises que contemplem interesses de variadas ordens, cujo objetivo tem ficado
– quase – restrito a estudos que contemplem estruturas de oferta, demanda e pre-
visões de cenários internacionais ante a real possibilidade de a China ocupar o
espaço atualmente reservado aos EUA como maior potência econômica do mundo
e, consequentemente, de se tornar ator político de primeira grandeza na ordem
mundial por ela inaugurada.
Esta realidade faz-se mais imponente diante do mundo. Recentemente, um
grandioso desfile cívico e militar foi o ápice das comemorações dos 60 anos de
fundação da República Popular da China. Além disso, há também um intenso
processo de reocupação de espaços perdidos entre 1839 e 1949, que se intensifica na
medida em que o país se transforma numa grande potência não somente econômi-
ca, mas principalmente financeira.

2.1 O MÉTODO E A “RESTAURAÇÃO CAPITALISTA”


NA CHINA
Uma grande reserva de mercado tem sido explorada no assunto China. In-
felizmente, a maioria dos estudos em voga dá margem a análises estilizadas e
com grande fundo ideológico e conservador. As variáveis medidas à explicação do
fenômeno em tela, em sua maioria, não conseguem ultrapassar a superfície dos
itens mão de obra e papel do capital estrangeiro, não cabendo alusões históricas,
políticas e superestruturais, tão vitais a uma explicação de caráter científica e mi-
nimamente honesta. Análises mais à esquerda têm sido hegemonizadas por cor-

75
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

pos teóricos de validade discutível, sendo a mais comum delas uma determinada
análise da inserção chinesa num chamado “sistema-mundo”. Ou seja, “um convite
ao desenvolvimento” feito pelo imperialismo hegemônico, desencadeando grandes
deslocamentos geográficos de cadeias produtivas, que, de um lado, servem ao aten-
dimento da reprodução do capital e, de outro, ao desenvolvimento acelerado das
forças produtivas no país “convidado”1.
O ponto de encontro da absoluta maioria dessas análises encontra-se na ob-
servação de uma “restauração capitalista” em curso na China: algo em andamento
e absolutizado, dadas as relações de profundidade que o país mantém com o ca-
pital internacional e sua respectiva interação interna, com consequências para a
base econômica chinesa. Como tentamos demonstrar ao longo do livro, de forma
imediata cabe aos observadores da “conversão capitalista chinesa” a observação de
Ignacio Rangel endereçada a Jacob Gorender e seu “escravismo colonial”2:

Se, em vez de cientista social, o Sr. Gorender fosse químico, por exemplo, não
poderia, pelo visto, compreender como é que certos grupos de átomos – os radi-
cais – podem passar de uma molécula para outra, sem perderem sua identidade,
isto é, como se fossem simples átomos.

Na mesma ordem de argumentação, é pertinente a relação feita por Marx en-


tre o desenvolvimento das formações geológicas e o processo verificado no âmbito
da sociedade, conforme sugerido em carta enviada – e datada de 16 de fevereiro de
1881 – a Vera Zasulich3:

A formação arcaica ou primária de nosso globo contém ela mesma uma série de
estratos de diferentes idades, e dos quais um está superposto a outro; a formação
arcaica da sociedade nos revela igualmente uma série de tipos diferentes, que
formam uns com os outros uma série ascendente, que caracteriza as épocas pro-
gressivas. A comunidade rural russa pertence ao tipo mais recente desta cadeia.
O cultivador já possui nela a propriedade privada da casa que habita e da horta
que constitui seu complemento.

1
Uma crítica à ideia de “sistema-mundo” em comparação ao arcabouço teórico e metodológico
da categoria de “formação social” será apresentada mais adiante.
2
RANGEL, I. “Dualidade e escravismo colonial”. In RANGEL, I. Obras Reunidas. Vol. 2. p. 626. RJ,
Contraponto, 2005.
3
Citado por: SERENI, E. “La categoría de formación económico-social”. In, Cuadernos de Pasado y
Presente, n. 39, pp. 60-61. Córdoba, Siglo XXI, 1976.

76
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

Este tipo de observação comum acerca de uma “restauração capitalista” tem


certa guarida científica na utilização de determinadas formas de “periodização”
em detrimento de uma profunda visão de processo histórico. A partir desta forma de
analisar o problema, torna-se irresistível constatar que a China pós-Mao rumou
no sentido da “restauração capitalista”. Tem sentido, na medida em que se “perio-
diza” uma conjuntura caracterizada pela reação keynesiana de Reagan, marcada
pela “assustadora” proposta de Guerra nas Estrelas à URSS, à imposição – ao Ja-
pão – dos leoninos Acordos de Plaza (imposição de mudança da política cambial
japonesa) e a crescente incorporação do mundo socialista à lógica dos “ciclos lon-
gos de Kondratiev”. Assim, na medida em que o então mundo socialista também
passou a ser encurralado pela crise de 1973, a sedução pela economia de mercado
(neste caso, capitalismo) seria um indício da “falência do socialismo” – fato que
as imposturas de Gorbatchev (convite a intelectuais norte-americanos a minis-
trarem, na URSS, palestras sobre as virtudes da economia de mercado) estavam
demonstrando, e que acabou confirmado pela “recuperação” norte-americana na
década de 1990.
Exemplo recente desse tipo de “análise” pode ser encontrado em obra de Da-
vid Harvey4, onde – além de colocar Deng Xiaoping no mesmo altar neoliberal de
Ronald Reagan e Margareth Thatcher –, por exemplo, pode-se destacar a seguinte
passagem5:

A espetacular emergência da China como uma força econômica global pós-1980


foi uma consequência não intencional do rumo neoliberal no mundo capitalista
avançado.

Neste caso, os limites teóricos e conceituais desse renomado geógrafo ficam


claros. Exemplo desses limites está na não demonstração das diferenças, não so-
mente de crescimento, entre a América Latina subjugada pelo neoliberalismo e a
China “neoliberal”, mas também de condução de política econômica, de papel do
Estado e das empresas estatais na condução da política econômica. Além disso, este
autor nada relata sobre a utilização dos mecanismos de planejamento anexos ao pro-
4
Um capítulo intitulado “Neoliberalism with chinese characteristics” pode ser encontrado em:
HARVEY, D. A brief history of neoliberalism, Oxford University Press. New York, 2005.
5
HARVEY, D.: A brief history of neoliberalism, Oxford University Press. New York, 2005, p. 121.

77
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

cesso chinês. Abrindo parêntese, em oportunidade anterior, em certa apresentação


em território brasileiro, o mesmo David Harvey tratou de resumir a dinâmica urba-
na mundial como algo padronizado, pois “as grandes cidades e metrópoles de todo
o mundo guardam semelhança, por exemplo, na existência de bolsões de miséria
e riqueza”. Ora, Harvey esquece-se – pelo menos – de diferenciar que, enquanto as
metrópoles centrais contam com um vigoroso capital financeiro para suprir suas
demandas de reprodução, as de tipo periférico sofrem justamente pelo estrangu-
lamento financeiro imposto aos seus respectivos países pelo centro do sistema. Eis
uma essencial diferença esquecida por Harvey: a existência de um “capital financei-
ro” como expressão da fusão do banco com a indústria, sem deixar de lançar mão
da ação, sobre a periferia, das irradiações intrínsecas à lei do desenvolvimento desigual
e combinado. Forma mais pobre de criticar e proscrever inclusive a dinâmica centro-
-periferia, típica da década de 1990.
Outro fenômeno que nos chama muito a atenção, com “liga” direta a determi-
nadas formas de manejo de periodizações, está na tomada ipsis litteris de esquemas
prontos à compreensão “fotográfica” da realidade – algo que, na verdade, está mais
próximo de um relativismo pós-moderno que de algo mais objetivo e histórico. Marx e
Engels elaboraram um grande “esquema ideal” do funcionamento das diversas
sociedades, de forma que se tornam inteligíveis suas possíveis evoluções. Represen-
tações de esquemas podem se tornar modelos que nos capacitem a ter uma visão
apurada de diferentes processos históricos. Enfim, além de histórico, o materialismo
também é dialético. Logo, os chamados esquemas não devem ser levados ao pé da
letra, conforme a vida acadêmica tem nos feito perceber.
Retornando, assim, à contramão do pensamento hegemônico da grande maio-
ria política ideológica e acadêmica, acreditamos numa caracterização socialista do
processo em curso na China. Além de outras observações e argumentações que
são expostas mais adiante, tal processo é caracterizado pela centralidade de uma
superestrutura de poder diferente das existentes no centro e periferia capitalista do sistema,
capaz de concentrar, pelo menos, duas ferramentas vitais à superação da anarquia
da produção, a saber:

a) a propriedade sobre os setores estratégicos e com alto grau de monopólio


da economia nacional;

78
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

b) o planejamento.

Eis duas características que auxiliam a esmiuçar o fato de a China crescer de


forma robusta e longeva, independente e à margem das crises intrínsecas ao centro
do sistema, conforme os próprios desdobramentos da crise financeira de 2008-2009
revelaram.

2.1.1 O socialismo com características chinesas como expressão


do processo

Se a máxima da política à frente da economia estiver correta, não é demais


afirmar que o chamado socialismo com características chinesas é expressão deste verti-
ginoso processo de desenvolvimento, que combina o planejamento da política ge-
ral, o controle, por parte do Estado, dos instrumentos cruciais do processo de acumulação
e a ação microeconômica do mercado com o incentivo às iniciativas comerciais
locais que têm se tornado, com o passar do tempo, cada vez mais nacionais. Ou
seja, a opção política pelo desenvolvimento – por meio do diagnóstico de que a China
se encontra na etapa primária do socialismo e da consequente estratégia arquitetada
a partir disto – é o motivo de primeira ordem do sucesso do processo em curso.
Trata-se de algo com mais importância em relação a fatores objetivos, como o preço
de sua mão de obra e a abertura do mercado europeu e do norte-americano a seus
produtos. O processo é mais complexo do que se imagina.
Partindo desse pressuposto e à luz da história das primeiras experiências so-
cialistas findadas em fins do século passado, com seus erros e acertos, a grande
questão a se levantar em primeiro plano é a da relação entre o sucesso do modelo
chinês e a busca do sentido histórico do que se convencionou chamar genericamen-
te de “socialismo de mercado”. Esta busca faz sentido como tentativa de executar
uma elaboração capaz de superar a excessiva generalização do objeto que marcou
a economia política produzida na URSS na década de 1950, onde um modelo de
desenvolvimento fora gestado e importado de forma que o “modelo soviético” se
tornasse a última palavra em matéria de construção econômica do socialismo, dei-
xando de lado – portanto – a máxima do materialismo histórico, segundo Engels6:
6
ENGELS, F. AntiDüring. Paz e Terra. São Paulo, 3ª ed., 1990, p. 127.

79
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

As condições sob as quais os homens produzem e trocam o que foi produzido


variam muito para cada país e, dentro de cada país, de geração em geração. Por
isso, a Economia Política não pode ser a mesma para todos os países nem para
todas as épocas históricas.

Dessa forma, o elemento nodal de nossa proposta passa por reconhecer na


categoria de formação social um possível elo e/ou ponto de encontro entre a ciência
da economia política e a ciência geográfica. Quando expomos sobre a categoria de
formação social (formação socioespacial, em Milton Santos), buscamos o sinônimo
com uma das categorias basilares do materialismo histórico, porém acrescida de
seu ulterior desenvolvimento que, além de elementos da estrutura do modo de produ-
ção em si, abarca também os elementos da localização humana e sua reprodução
em interação com a natureza7. A categoria de formação social, amplamente utilizada
– por exemplo, por Lênin e Mao Tsetung –, e revisitada por Milton Santos, ao ter
objeto concreto e histórico, sob nosso ponto de vista, ganha legitimidade e inclusive
pode ser classificada como o grande paradigma das ciências humanas na
contemporaneidade, dada sua objetividade em descrever um fenômeno presente
como algo puramente histórico. Afinal, a história pode ser vista como um privilegia-
do campo de experimentação para as ciências sociais, cujo resultado/sustentação final
é lastreado pelo materialismo histórico e seu poder de validação científica.
Antecipando a discussão, e exemplificando de forma imediata, se a lógica que
rege o desenvolvimento da sociedade tem em seu DNA muitos dos elementos cons-
titutivos das leis naturais, não resta grande margem para dúvidas com relação a
alguns fatores relacionados à formação social que diferenciam a China dos últimos
60 anos, e, em particular, aquela a partir de 1978. Entre tais fatores, de imediato
sublinhamos o espírito empreendedor do produtor voltado ao mercado (self-made
7
Apesar de Milton Santos trabalhar, de forma competente e única, a questão da localização
como parte do todo que envolve uma superação da categoria de formação social inerente aos
teóricos da II Internacional, acreditamos estar implícita esta questão (localização) já em Marx;
por exemplo, nas análises do trabalho necessário e excedente em diferenciados pontos do globo.
Daí utilizarmos o termo “formação social” em detrimento de “formação socioespacial” denomi-
nada por Santos, o que não implica o não reconhecimento do papel prestado por este grande
cientista e colocar a teoria e o método da geografia em patamares pautados pela pura ciência,
pela história, pelas relações entre homem e natureza e dos homens com os próprios homens.
Sua contribuição nesta área pode ser colocada como uma das maiores realizações do marxismo
na segunda metade do século XX, como analisaremos mais à frente.

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O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

man); a grande capacidade do Estado socialista chinês em prover políticas públicas


voltadas para 1,3 bilhão de habitantes e o papel do confucionismo e do taoismo
na formação do horizonte moral do homem chinês. Outro exemplo de fuga da su-
perfície e da busca do sentido do “socialismo de mercado” pode estar no ponto
de vista da análise envolvendo a dinâmica das classes sociais na China. Assim, o
elementar – para um país que ainda conta com quase 70% de sua população viven-
do no campo – é compreender o papel e o protagonismo produtivo e político dos
camponeses. Desembocamos, dessa forma, em uma observação que relaciona dire-
tamente o contemporâneo socialismo de mercado chinês com o antigo, conforme
denominado por Marx, modo de produção asiático.
Observando o objeto desta forma, de antemão vaticinamos que não existe econo-
mia política fora das margens da formação social. Daí a conclusão, em Deng Xiaoping,
da ideia da construção do socialismo com características chinesas. Aliás, uma das grandes
lições das primeiras experiências socialistas é a da determinação nacional e não inter-
nacional da concepção da construção do socialismo. A imposição de “modelos” é,
assim, um dos grandes desvios de cunho liberal legados pelo século XX e impostos
de “cima para baixo” ao movimento comunista internacional.

2.1.2 Pós-modernidade e “neutralidade” científica

O exposto acima busca demonstrar diferenças de abordagem de realidade, vi-


são e de método. Trata-se de uma investida teórico-metodológica em acordo com
certa forma de enfrentar a realidade e o fenômeno colocado. Em verdade, no campo
do debate de ideias, situamo-nos no campo oposto ao dos postulados hegemônicos
da ciência social de hoje – entre eles o positivismo clássico, que se expressa sob a
forma de certo modismo intelectual pós-moderno. O método inerente ao exposto é
imposto de cima para baixo, como consequência da contrarrevolução em marcha
no mundo desde o fim da URSS. Passam a ser colocadas no centro do processo de
construção da subjetividade humana a teoria e a prática do relativismo como fio
condutor e norte da teoria do conhecimento.
Em nossa opinião, isso significa não somente o reconhecimento da relativida-
de de nossos conhecimentos, como também a negação de qualquer medida ou mo-
delo objetivo existente, independentemente da humanidade, do qual se aproxima o

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CHINA HOJE
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nosso conhecimento relativo. Em reles palavras, significa abrir condições objetivas


ao subjetivismo; ao julgamento da validade das explicações de determinados fe-
nômenos a partir de referências sustentadas puramente em valores morais, valo-
res tais sustentados por referenciais quase sempre próximos à extrema-direita do
espectro político; à negação da visão de conjunto, cuja consequência mais visível
no dia a dia da academia reside numa rigidez disciplinar, numa especialização
absoluta, tornando, assim, a ciência cada vez menos científica e cada vez mais uma
síntese dos interesses do poder econômico, dos grandes monopólios e oligopólios.
De nossa parte, contra qualquer princípio de “neutralidade” na prática cientí-
fica, acreditamos que a objetividade e, consequentemente, a visão de processo his-
tórico ainda são os critérios cruciais em matéria de explicação baseada em critérios
científicos. Somente no campo da objetividade pode-se vislumbrar a historicidade
do movimento em estudo, pois a apreciação de qualquer fenômeno deve-se remeter
necessariamente à história8.
Sobre essa relação colocada, interessante é a opinião do escritor inglês Francis
Wheen, segundo o qual9:

À medida que se transformou no desconstrucionismo e, mais tarde, no pós-


-modernismo, o pós-estruturalismo muitas vezes pareceu constituir um modo
de evitar por completo a política – ainda que muitos de seus representantes con-
tinuassem a se autodenominar marxistas. A lógica de sua insistência jocosa, em
que não existiam nem certezas nem realidades, levou a um relativismo descom-
prometido, que tanto podia celebrar a cultura pop norte-americana quanto as
superstições medievais.

Por fim, a objetividade e o ferramental da ciência histórica são expressão de


uma abordagem que insiste na “unidade concreta do todo”. Referimo-nos, logo, ao
método inerente ao materialismo histórico, popularmente sinônimo de marxismo.
Como antítese ao modismo do específico, da especialização e do a-historicismo em
voga atualmente, mediamo-nos pela visão da multiplicidade que forma o concreto,
ao mesmo tempo em que reconhecemos que as leis inerentes ao desenvolvimento
8
Exposição sobre o pós-modernismo, conforme FERNANDES, L. O enigma do socialismo real – Um
balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais. Mauad, 2000, p. 32.
9
WHEEN, F. Como a picaretagem conquistou o mundo. Record. Rio de Janeiro, 2004, p. 103.

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O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

humano não têm determinação universal, mas sim se revelam de forma diferente
em diferentes locais do globo10.

2.2 O PONTO DE ENCONTRO ENTRE A GEOGRAFIA


E A ECONOMIA POLÍTICA NA CATEGORIA DE
FORMAÇÃO SOCIAL
Independentemente da exposição de esquemas e modelos de desenvolvimento,
é importante proceder, mesmo que de forma inicial, a uma relação entre a econo-
mia política – e seu objeto de estudo – e a geografia e a uma de suas subtotalidades,
a geografia econômica. Isto serve a uma melhor compreensão pari passu à consci-
ência de que a própria aplicação de modelos e/ou esquemas deve obedecer à lógica
do funcionamento da formação social. Até porque dita categoria, como construção
histórica, pode ser tida e lida como o ponto de encontro entre diferentes ramos das
ciências humanas. E isso fica mais clarificado na medida em que se chega ao nível
do específico, como é o caso da China e seu processo recente de desenvolvimento.

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O processo econômico é um conjunto de ações humanas que se repetem cons-


tantemente. Em condições determinadas, resultantes de certo desenvolvimento
histórico da sociedade, essas ações se repetem de maneira definida, isto é, carac-
terizam-se por um conjunto de regularidades específicas. Pode-se decompor essas
regularidades em certos elementos, constituídos por relações repetindo-se constan-
temente entre as diversas ações ou atividades que compõem essas ações. Tais ações
são designadas pelo nome de leis econômicas11. Tais leis, que podem ser aludidas
10
Segundo Lênin afirmava, em Nosso Programa, “não consideramos a teoria de Marx como algo
completo e inviolável; pelo contrário, estamos convencidos de que ela colocou a pedra fun-
dacional da ciência, a qual os socialistas devem desenvolver em todas as direções se desejam
manter-se em consonância com a vida. Pensamos que uma elaboração independente da teoria
de Marx é particularmente importante para os socialistas russos; porque essa teoria fornece
apenas princípios diretivos gerais, os quais são aplicados, em particular, à Inglaterra de um
modo diferente que à França, na França diferentemente da Alemanha e na Alemanha de modo
distinto da Rússia”.
11
LANGE, O. Moderna economia política. Fundo de Cultura. Rio de Janeiro, 1962, p.55.

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como as “leis da economia política”, refletem o caráter regular de processos que se


realizam independentemente da vontade humana. Porém, à diferença das leis da
natureza, que têm caráter duradouro, as leis econômicas têm caráter historicamen-
te definido. Segundo Stálin12:

Aqui, da mesma forma que nas Ciências Naturais, as leis do desenvolvimento


econômico são objetivas, refletem os processos do desenvolvimento econômico,
que se realizam independente da vontade dos homens. Os homens podem des-
cobrir essas leis, conhecê-las, e, baseando-se nelas, utilizá-las no interesse da
sociedade, dar outro rumo à ação destruidora de algumas leis, limitar sua esfera
de ação, dar livre curso a outras leis que abrem caminho pra adiante; mas não
podem destruí-las ou criar novas leis econômicas.

Logo, as leis econômicas, seu caráter, sua objetividade, alcance histórico, modo
de ação, relações mútuas e suas consequências nas múltiplas determinações do
concreto são o objeto de estudo da economia política.
O desenvolvimento científico da economia política, historicamente, está ligado
aos interesses de determinadas classes progressistas. Seu desenvolvimento inicial
remonta ao momento histórico em que se verificava na burguesia um reservatório
de ideias avançadas. Em primeiro lugar, a economia política desenvolveu-se no qua-
dro da superação do feudalismo pelo capitalismo e em associação com a burguesia
progressista de então. Na medida em que a oposição capital-trabalho tornou-se a
contradição principal – e com o surgimento do imperialismo, esta contradição prin-
cipal criou um aspecto principal residido nas relações centro-periferia –, a ciência
em questão tornou-se associada aos interesses da classe operária e dos movimentos
de libertação ocupados não somente com a libertação nacional em si, mas também
com a apreensão dos mecanismos essenciais de planejamento econômico aos seus
programas de reconstrução nacional.
Assim, a economia política pôde se desenvolver e, em compasso com outras
ciências, dar maiores contribuições à busca da síntese das relações entre homem
e natureza.
12
STÁLIN, J. Problemas econômicos do socialismo na URSS. Anita Garibaldi, 1991, pp. 3-4.

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O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

Alguma similaridade ao caminho percorrido pela economia política pode ser


encontrada na geografia. Isso no que se refere, essencialmente, a um determinado
fim de percurso em que ambas as áreas do conhecimento passaram a ser influen-
ciadas pelo marxismo ou, ao menos, a caminharem ladeadas. Quanto ao método,
isso fica a cargo da dialética, as leis gerais que regem o movimento.
Retornando, a tendência a uma postura holística e histórica da geografia mo-
derna é explicada por sua raiz filosófica comum ao marxismo, ou seja, a filosofia
clássica alemã. Porém, diferentemente do marxismo, que nasce das ideias igualita-
ristas (típicas das terras comunais) embandeiradas pela burguesia radical no ápice
da transição feudalismo-capitalismo, a geografia surge a serviço do nacionalismo
prussiano contra as investidas napoleônicas, sendo assim uma determinação que
conferiu papel de proa à arrancada alemã no rumo de seu capitalismo tardio13.
Porém, somente após a Segunda Guerra Mundial é que essas duas correntes
hegelianas se encontram. Expressão do grande prestígio alcançado pela vitória
da União Soviética no período, o marxismo passa a pautar o estudo de geógrafos
franceses. Em primeiro lugar, na abordagem em termos de gênero de vida e, na
medida em que foi importante para a superação dos limites inerentes a tal noção,
foi ganhando espaço entre os geógrafos14. Ao longo de algumas décadas, no âmbi-
to da geografia francesa, o marxismo abriu caminho para a análise de estruturas
objetivas (relações centro-periferia, por exemplo), lançando mão de categorias
analíticas, como imperialismo, colonialismo, forças produtivas e relações de pro-
dução, entre outras.
Nesta explosão de criatividade acadêmica é que a categoria marxista de
formação social é resgatada, e em Milton Santos é elevada à condição de mais
completa e apta categoria com capacidade de elevar qualitativamente o aparato
metodológico da geografia. Este salto permitiu o reencontro com uma geografia
humboldtiana, ou seja, uma ciência do todo e suas relações e, principalmente,
13
Sobre isto ler: AMARAL PEREIRA, R. M.: Da geografia que se ensina à gênese da geografia moderna.
Editora da UFSC, Florianópolis, 3a ed., 1999, pp. 110 a 114.
14
Para Max Sorre, gênero de vida, “(...) é uma noção que designa o conjunto mais ou menos
coordenado das atividades espirituais e materiais consolidadas pela tradição, graças às quais um
grupo humano assegura sua permanência em determinado meio”. In, SORRE, M.: “Fundamen-
tos da geografia humana”. In, MEGALE, J. (org.): Max Sorre. Coleção Grandes Cientistas Sociais,
n. 16, Ática, São Paulo, 1984, p. 90.

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assim como a economia política para Engels, “uma ciência pautada pela matéria
histórica”15.
Marx utilizou, de forma muito genérica, a categoria de formação social, como
se vê no Prefácio à crítica da economia política, no qual emprega esta expressão no
mesmo sentido que deu à categoria de sociedade. A expressão e/ou categoria de
formação social ganha força na análise estruturalista, porém de forma ainda muito
pobre, pois a relaciona sem muito rigor à categoria de modo de produção que, em
muitos casos – como frequentemente se pode observar em Althusser –, acaba ne-
gando a unidade dialética de continuidade e descontinuidade do tempo histórico.
Em oposição à leitura estruturalista, Emilio Sereni aufere que a noção de formação
social permite revelar o funcionamento lógico-estrutural e/ou sociológico de uma
dada sociedade. Assim, em Sereni, a categoria de formação social ganha mais cor-
po e mais legitimidade epistemológica. Porém, numa visão particular, é em Milton
Santos que essa categoria atinge sua maturidade e ápice como unidade científica,
pois, para ele, mesmo que a formação social seja intrinsecamente ligada à categoria
de modo de produção, ela está ligada à evolução de uma dada sociedade em sua
totalidade histórica. Segundo Milton16:

A localização dos homens, das atividades e das coisas no espaço explica-se tanto
pelas necessidades externas, aquelas do modo de produção puro, quanto pelas
necessidades internas, representadas essencialmente pela estrutura de todas as
procuras e a estrutura das classes, isto é, a formação social propriamente dita.

Pela inclusão da localização dos homens como uma determinação que pode
e deve ser abarcada pela categoria de formação social é que Armen Mamigonian
(1996, p. 202) lembra que Milton Santos:

(...) percebeu que formação social e geografia humana não coincidem completa-

15
Idem à nota 14; p. 221. Sobre a categoria de formação econômico-social ler: SERENI, E. “La
categoria de formación económico-social”. In Cuadernos de Pasado y Presente, n. 39. Córdoba. Siglo
XXI, 1976; SANTOS, M. Sociedade e espaço: A formação social como teoria e como método. Espaço e
Sociedade. Vozes, 2a ed., Petrópolis, 1982; MAMIGONIAN, A. “A geografia e a formação social
como teoria e como método”. In, SOUZA, M. A. A. (org.): O mundo do cidadão, o cidadão do mundo.
Hucitec. São Paulo, 1996.
16
SANTOS, M. “Sociedade e espaço: A formação social como teoria e como método”. In, Espaço
e sociedade. Vozes. Petrópolis, 1982, p. 11.

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O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

mente, menos pelas teorias que embasam aquela categoria marxista e esta área
do conhecimento acadêmico do que pela prática indispensável de localização da
geografia, nem sempre usada nos estudos de formação social, daí ter proposto a
categoria de formação social.

Daí não somente devermos a Milton Santos um estado de maturidade devi-


do à categoria de formação social, mas também uma contribuição ao desenvolvi-
mento do marxismo de grande vulto. Isso tem grande valia, dada uma conjuntura
que possibilita a transformação em senso comum de determinados “contrabandos
conceituais” de tipo substituição da categoria de imperialismo por “globalização”,
ou mesmo a troca da ideia de “consciência de classe” pela vazia categoria de “ci-
dadania”, que mais serve à perpetuação do atual status quo do que à sua necessária
substituição.
Voltando ao cerne, é justamente por ser uma construção histórica (como con-
creto) que vemos na categoria de formação social o fio de Ariadne possibilitador de
um estudo que combine economia política e geografia, permitindo assim um ver-
dadeiro salto na contribuição à elaboração de uma economia política do socialismo
renovada e em condições de ser parte de um todo que envolve os desafios impostos
tanto à teoria marxista quanto aos movimentos operários e de libertação nacional
deste início de século.

2.2.1 Exemplo: a categoria de formação social em contraponto à


perspectiva do “sistema-mundo”

Como antessala de uma análise de caso – a China –, envolvendo a catego-


ria de formação social, julgamos importante compará-la com outras perspectivas
metodológicas, sobretudo as relacionadas a certo “mundialismo metodológico”, in-
corporado inicialmente pelos teóricos da dependência e atualmente amparado em
investigações levadas a cabo por historiadores como Immanuel Wallerstein. Apesar
do modismo em que navegam até que ponto se pode levar em consideração a his-
toricidade de tais tipos de enfoque metodológico em contraposição a uma proposta
centrada na categoria de formação social?

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CHINA HOJE
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O marxismo, seja no Brasil ou na América Latina, é marcado pela hegemonia


de um determinado enfoque teórico-metodológico baseado na ideia central de de-
pendência que, por sua vez, em âmbito mundial, tem na perspectiva do sistema-
-mundo sua mais bem acabada e difundida teoria. Seu principal teórico, Imma-
nuel Wallerstein, parte da premissa da “externalidade” – o que, em curtas palavras,
significa que o lugar ocupado por determinado país no mundo depende sobrema-
neira da dinâmica do “sistema-mundo” que, por sua vez, tem grande impacto no
desenvolvimento interno de cada nação17.

2.2.1.1 Um problema – também – de ortodoxia marxista

Observando-se de forma superficial, a lógica da ênfase no “externo” desloca a


necessária concentração nas condições internas de cada unidade de análise (forma-
ção social), tendo consequência direta na impossibilidade de análise da transição
e suas fases – análise esta que se constitui no principal objetivo do materialismo histó-
rico18. Isto por si só torna a perspectiva do “sistema-mundo”, no mínimo, tendente
a uma síntese a-histórica do processo de reprodução tanto do capital quanto da
gênese e substituição de modos de produção.
Retornando, Wallerstein assenta sua hipótese no desenvolvimento de um sis-
tema capitalista mundializado que nasce e se desenvolve entre o século XV e o
XVII, e se consolida após a Revolução Russa de 1917. O nível de integração que
alcançou esse “sistema capitalista mundial” levou o autor a designar o conjunto
sistêmico não mais de “economia mundial” e sim “economia-mundo”19. Isto tem
relação direta (fases de desenvolvimento) com uma duvidosa base marxista prati-
17
Sobre as “hegemonias” no âmbito do marxismo brasileiro e na análise de sua formação social,
ler: VIEIRA, Graciana M.E.D. Formação social brasileira e geografia: Reflexões sobre um debate interrom-
pido. Dissertação de mestrado apresentada ao PPGEO/UFSC. 1992. Florianópolis. 1992. Sobre
as premissas de Wallerstein, sugerimos: WALLERSTEIN, I. “The capitalist world economy”. In
Essays by Immanuel Wallerstein. Cambridge University Press, 1979.
18
VIEIRA, Graciana M.E.D. Formação social brasileira e geografia: Reflexões sobre um debate inter-
rompido. Dissertação de mestrado apresentada ao PPGEO/UFSC. 1992, p. 94. Não podemos nos
esquecer da contribuição do prof. Marcos Aurelio da Silva. Muitas de nossas elucubrações acerca
da teoria da geografia e da relação entre geografia e marxismo são fruto da leitura e trocas de
ideias com este grande intelectual.
19
WALLERSTEIN, I. “Patterns and prospectives of the capitalist world-economy”. In, The politics
of world economy. Cambridge University Press, 1974.

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O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

cada por Braudel que, em suas periodizações históricas (ciclos históricos), abstraiu,
por exemplo, os ciclos de curta (Juglar-Marx) e longa duração (Kondratiev). Tal
negação dos “ciclos econômicos” pode redundar na própria negação do processo de
acumulação ou, na pior das hipóteses, relacionar-se com ele, tal como fez Wallers-
tein: confundindo a acumulação capitalista em si com o processo de acumulação
primitiva a partir do século XVI.
A verdade marxista elementar demonstra que o processo de acumulação capi-
talista opera segundo leis intrínsecas do modo de produção capitalista, sendo que
o processo de acumulação primitiva, engendrado na Europa a partir do século XVI,
criou certas condições objetivas à transição ao capitalismo na Europa dominada
pelo feudalismo. A diferença entre um caso de acumulação e outro reside no modo
de produção em si, pois se a acumulação capitalista é possível somente pela via da
apropriação privada do excedente econômico, que é síntese de uma forma social
de produção, na acumulação primitiva o excedente é, via comércio, ancorado em
diferentes formas de estabelecimento de preços em diferentes modos de produção
do mundo por meio das rotas comerciais, então integradas.
Ao não apreender de forma séria o marxismo, Wallerstein deixa-se levar por
uma definição de capitalismo muito genérica, sintetizada na ideia de produção para
a venda no mercado, em que o objetivo é o lucro máximo. Dessa forma, Wallerstein apro-
xima-se muito mais da economia política produzida por Adam Smith do que da
crítica a ela produzida por Marx. Somente um deslocamento do marxismo – em
sua forma radical –, em detrimento de uma caduca economia política, pode servir
de base a uma falsa totalidade hegeliana (afinal, pode-se vislumbrar o todo mesmo na
parte) e à esquematização e estratificação (logo, não observando historicamente o proces-
so de formação e desenvolvimento das nações) do mundo em centro, semiperiferia
e periferia, acreditando que processos autônomos de desenvolvimento só podem
existir com “autorização” (ou “convite”) e a serviço dos interesses do centro.
Resumindo, tal perspectiva metodológica (que pressupõe a existência do capi-
talismo na Europa do século XV) só pode evoluir devido a outro – mais um – deslo-
camento: o do eixo do capitalismo, da análise do processo produtivo à análise do processo
de circulação. Algo, aliás, muito conhecido entre nós no Brasil, acostumados com as
“hegemonias” cepalina, da teoria da dependência, das ideias de Caio Prado. Por

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CHINA HOJE
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exemplo, o que existe em comum em todas elas é a não explicação do dinamismo


de países como o Brasil (que chegou a ser a 8ª economia do mundo no início da
década de 1980), e a busca cega por explicações de nosso atraso.

2.2.1.2 Modo de produção e processo

Sob outro campo de observação, ao não perceber (a perspectiva do “sistema


mundo”) as especificidades de cada formação social (como fez Sweezy no debate
sobre a transição feudalismo-capitalismo na Europa, ao negar tanto o feudalismo
quanto o capitalismo durante a transição), acaba-se por negar inclusive a própria
categoria de modo de produção, categoria central no arcabouço teórico-metodológi-
co do marxismo20. Eis a essência do circulacionismo e sua ramificação, a perspec-
tiva do “sistema-mundo”.
Crendo na existência de um capitalismo consolidado na Europa pelo menos
200 anos antes da Revolução Puritana, Wallerstein, assim como Sweezy, credita
ao capital comercial o principal elo à transição ao capitalismo. Wallerstein vai mais
longe ao já perceber na forma comercial um estágio de capitalismo consolidado.
Sendo o processo histórico algo inerente às diferentes formações sociais e não
algo que somente pode ocorrer no geral, a superficialidade da análise circulacionis-
ta e wallersteiniana fica facilmente perceptível quando comparada com uma típica
abordagem que parte da categoria de formação econômico-social, como segue nas
palavras de M. Dobb, para quem o capital comercial europeu, ao invés de promover
o avanço do capitalismo, pode inclusive tê-lo retardado21:

Um traço dessa nova burguesia mercantil, que de início se mostra surpreendente


e mundial, é a presteza com que tal classe entrou em acordo com a sociedade feu-
dal (...). O grau em que o capital mercantil floresceu num país nesse período não
nos proporcionou medida alguma da facilidade e rapidez com que a produção ca-
pitalista ia desenvolver-se e em muitos casos sucedeu exatamente o contrário22.

20
Idem à nota 23; p. 72.
21
VIEIRA, Graciana M. E. D. Formação social brasileira e geografia: Reflexões sobre um debate interrom-
pido. Dissertação de mestrado apresentada ao PPGEO/UFSC. 1992, p. 92.
22
DOBB, M. A evolução do capitalismo. Zahar. 1976, pp. 155-156.

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A passagem de Dobb demonstra que a negação da categoria de modo de produ-


ção – e em consequência do processo como categoria filosófica e angular à compre-
ensão de uma formação social – levou Sweezy a escamotear que o desenvolvimento
do capitalismo na Europa ocidental se deve ao florescimento do modo de produ-
ção da pequena produção mercantil, responsável pela transformação de pequenos
produtores em capitalistas. Essa forma de transição feudalismo-capitalismo (“via
revolucionária”) fora exposta por Marx, que a contrapôs a outra via que Lênin
denominou de “via prussiana”, caracterizada por uma transição capitaneada por
uma aliança entre capital comercial e senhores feudais (Japão e Alemanha, por
exemplo), que, por sua vez, de cima para baixo impõe novas relações sociais23.
Tal elaboração marxista, desenvolvida por Lênin, é mais uma prova de que
é no âmbito da formação social que deve partir a análise do processo em si, pois,
sendo o modo de produção uma categoria axial do marxismo, somente no âmbito
da formação social é que pode ser detida na sua singularidade. Caso contrário, po-
deremos chegar à conclusão de que o camponês na Europa ocidental ou na China
não passa de um ser a-histórico, sem vida, sem passado nem presente, cujas nações
e seu futuro dependem ou das decisões do “centro” do “sistema-mundo” ou de
uma ruptura sistêmica em escala mundial.
Por fim, e fazendo uma analogia histórica, na mesma medida em que Sweezy
passa por cima da observação de processos históricos concretos – daí não observar o
desenvolvimento do concreto e suas múltiplas determinações na homogeneidade restrita
da Europa Ocidental –, Wallerstein e seus discípulos do “sistema-mundo” nunca
poderão perceber que a produção e distribuição em diferentes zonas do globo são
determinadas pelo nível em que se dão as relações homem-natureza. Essas relações
(e independente de variáveis externas) fizeram surgir de forma precoce modos de
produção mediados por mecanismos como o planejamento econômico e territorial
datados de mais de 2 mil anos, por exemplo, na China. E não utilizar o passado
da formação social no deciframento de determinado processo recente significa, em
última instância, jogar fora o menino junto com a água suja do banho.

23
Sobre as duas formas de transição, ler: MARX, K. “Considerações históricas sobre o capital
comercial”. In: O capital. Tomo 3, vol. 6. e LENIN, V. “Prefácio à 2a Edição”. In: El desarrollo del
capitalismo en Rusia. Ariel História. Barcelona, 1974.

91
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

2.2.1.3 O “sistema-mundo” e o socialismo

De um “marxismo sem dialética”, o desenrolar teórico de uma premissa cir-


culacionista só pode desembocar na síntese segundo a qual se considera capitalista
qualquer Estado que mantenha relações comerciais na esteira do mercado mun-
dial unificado capitalista, independentemente das formas de produção internas em
cada país. É o suprassumo da negação do processo como ente histórico/filosófico
e, consequentemente, da categoria de modo de produção. Desta forma, Wallerstein
caracterizou como “capitalistas” – por serem “componentes do sistema-mundo ca-
pitalista” –, em sua essência, as experiências socialistas, remotas e presentes.
L. Fernandes (1999, p. 144) demonstra os limites teóricos e empíricos desta abor-
dagem – de forma simplificada, porém categórica – a partir da seguinte constatação:

(...) a mais flagrante evidência das limitações das teses que caracterizaram os
antigos regimes do Leste como foi (é) dada pela própria crise geral que se insta-
lou nesses países com sua derrocada. Afinal, se essas sociedades já eram capi-
talistas, por que estão sendo necessárias rupturas políticas, econômicas, sociais
e culturais tão profundas e traumáticas para adequar seu desenvolvimento à
“normalidade” do mundo capitalista? (...) Basta lembrar que a superação dos
regimes nazifascistas na Europa do pós-guerra não produziu crise semelhante.
Enfim, nos termos da teoria marxista, fica evidente que os países do Leste estão
passando por um processo de profunda ruptura sistêmica [grifo do autor],
e não de mera transformação superestrutural.

Segundo Wallerstein24:

Assim como não há sistemas feudais, tampouco existem sistemas socialistas


na economia-mundo hoje. Só existe um sistema mundial (...) com uma forma
capitalista por definição. (...) o socialismo implica a criação de outro tipo de sis-
tema-mundo que não é nem um império-mundo, nem uma economia-mundo
capitalista, mas um governo-mundo socialista.

O próprio autor analisado alerta, porém, para o surgimento, pós-1917, de “mo-


24
In FERNANDES, L. O Enigma do socialismo real – Um balanço crítico das principais teorias marxistas
e ocidentais. Mauad, 2000, p. 138.

92
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

vimentos antissistêmicos” que inclusive chegaram ao poder nacional em muitos


países. Porém, o limite desse tipo de movimento que alcança o poder reside em sua
própria forma nacional, cuja necessidade de desenvolvimento e reprodução acaba,
necessariamente, tornando-se fator de cooptação pelo “sistema-mundo”. Assim,
em Wallerstein, como para Trotsky, se vê uma base teórica de negação da questão
nacional, bem como da não-observância da evidência empírica de que há muito
tempo o comércio internacional praticado pelos países socialistas, principalmente
a China hoje, dá-se de forma planificada e não como no capitalismo, onde também
nesse aspecto ainda reina a anarquia da produção. Logo, também no aspecto do
comércio internacional, o mesmo deve ser visto a partir de suas múltiplas determina-
ções, inclusive a determinação política.
Obedecendo a uma visão de conjunto e não desprezando o fator “comércio
externo” no âmbito do desenvolvimento interno de países como a China, a magni-
tude de seu mercado interno tende a diminuir o papel estratégico do comércio ex-
terior em seu já citado desenvolvimento interno. No estratégico âmbito das relações
internacionais, conforme o exemplo das relações comerciais chinesas com a peri-
feria, o comércio exterior é variável central, tanto na derrocada da atual estrutura
imperialista como na transição capitalismo-socialismo em nível mundial.
Dentro da visão de sistema-mundo de Wallerstein e em sua ideia de “governo-
mundo socialista”, resta-nos expor que, para ele, somente uma ruptura global po-
derá colocar o capitalismo em xeque. Desta forma, aproxima-se da perspectiva do
filósofo húngaro Istvan Mészáros, ou seja, da necessidade de um movimento social
mundial como pré-requisito à derrubada do capitalismo.
O idealismo dessa perspectiva de desenvolvimento histórico nos remete, nova-
mente, à negação da centralidade da formação social no processo de transição no âm-
bito de diferentes modos de produção, pois inclusive para Marx a vitória internacio-
nal do socialismo não prescindia da vitória inicial nas formações mais avançadas do
mundo, França, Inglaterra e Alemanha. Além disso, desloca-se da lógica marxista,
que nos leva a não investigar a forma de funcionamento de uma economia praticada
na África Central partindo das mesmas leis que regem o funcionamento da Bolsa de
Valores de Nova York e dos planos quinquenais chineses. A única similaridade nesses
casos é a da existência de homens buscando sua reprodução social.
Da mesma maneira que a economia política não pode ser a mesma para todos

93
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

os países, a transição capitalismo-socialismo não é algo possível, cientificamente,


fora de marcos nacionais. Deve-se essa conclusão particular ao fato de os ritmos e
as transformações se condicionarem (também) a fatores internos de cada forma-
ção. Ao abstrairmos o nível de uma totalidade verdadeira e exata, concluímos, empiri-
camente, que na atual quadra histórica somente por meio do “elo débil do imperia-
lismo” é que as transformações qualitativas são possíveis. Transformações tais que
devem estar em concorde com as leis sociais e naturais. Leis estas que fogem da
manipulação humana.
Assim, podemos nos basear em teorias científicas – como a teoria do impe-
rialismo de Lênin –, e não em “fórmulas” que estão mais próximas de “becos sem
saída” que de necessárias luzes ao futuro do desenvolvimento da teoria transfor-
madora e da humanidade em consequência.

2.3 FORMAÇÃO SOCIAL E SOCIALISMO DE


MERCADO NA CHINA
Uma análise do socialismo em consonância com o tempo atual e desafios deve
obedecer a duas ordens de fenômenos, a saber: uma geral, global, e outra especí-
fica, mais relacionada com determinado território e/ou região. Em ambos os casos
devem ser observadas, à construção da teoria, a forma como deverão ser inseri-
das as categorias filosóficas de transição e processo, a correlação de forças na luta
de classes em âmbito mundial e a história das transições anteriores ocorridas no
mundo e do socialismo no século XX em particular. No específico, a principalidade
reside na investigação da história de determinada formação social, o nível de de-
senvolvimento das forças produtivas e as relações de produção e da relação entre
superestrutura e base econômica. Assim, a partir de uma visão de conjunto e um
poder político de caráter popular, podem dar bom termo à complexa tarefa de tran-
sição entre um sistema sociopolítico e outro e à gradual transformação das relações
sociais herdadas de determinado modo de produção em vias de superação.
Tendo em mente que o processo histórico só é passível de ser analisado concre-
tamente no âmbito da formação social, que seu contrário redundaria na negação da
categoria de modo de produção, será que podemos na esteira desta discussão falar
– inclusive – de uma economia política da formação social?

94
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

2.3.1 A historicidade do desenvolvimentismo chinês (1)

Em princípio, a historicização dos porquês que envolvem o desenvolvimento


chinês deve ser, necessariamente, relacionada com:
a) a Revolução Nacional-Popular de 1949, que criou as condições políticas
necessárias ao rompimento do círculo de dominação estrangeira, em fa-
vor da edificação socialista e da utilização do planejamento econômico e
da hegemonia estatal sobre os setores estratégicos da economia, anulan-
do assim o aspecto espontâneo inerente à ação das leis econômicas (logo
substituindo a anarquia da produção pela tomada do processo conscien-
te de desenvolvimento);
b) fatores naturais, entre eles a constelação de recursos oferecidos por seu
território de cerca de 9 milhões km2, possibilitando assim a “construção
do socialismo em um só país”;
c) fatores sociais, entre eles a estrutura social, estabelecida naquele terri-
tório durante um processo de sedentarização de tribos nômades sobre
imensos vales férteis datado de 5 mil anos atrás, criando condições ao
surgimento tanto de uma pequena produção camponesa como de um
império centralizado, servindo de base, desde seus estertores (cerca de
2.500 anos atrás, com a unificação da nação), a um acelerado e preco-
ce processo de desenvolvimento das forças produtivas, surgimento de
instituições estatais, do mercado e comércio interno e externo e mile-
nar utilização de mecanismos de planejamento estatal25, o que significa
dizer que o surgimento da economia de mercado é datada de cerca de
3.600 anos.

Descendo ao específico e buscando nexos genéticos entre a formação social


chinesa e seu processo de revolução e reforma, o elemento camponês é de capital
importância, dando inclusive cores originais. Por isso, o que se busca na China
desde as lutas revolucionárias lideradas por Mao Tsetung é a viabilização do que
25
Sobre a formação social e cultural do povo chinês e a relação de tal formação com o desenvol-
vimento do marxismo e do socialismo na região, ler: MAMIGONIAN, A. “As bases naturais e so-
ciais da civilização chinesa”. In Revista de geografia econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto.
Núcleo de Estudos Asiáticos do Departamento de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007.

95
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

se convencionou chamar de “socialismo com características chinesas”, aliás, numa


clara alusão à independência do processo revolucionário chinês e à expressão de
uma subjetividade nacional milenar, sem complexo de inferioridade em relação a
nenhum outro povo ou nação. Retornando, do elemento citado, para fins de melhor
compreensão do processo de desenvolvimento da civilização e nação chinesas, é
importante ressaltar pelo menos dois aspectos:

a) o aspecto cioso, contestador de qualquer poder estabelecido;


b) o aspecto empreendedor, típico da subjetividade de regiões do globo
onde predominou a pequena produção mercantil (nordeste dos EUA,
por exemplo).

Desde a formação do Império Chinês até a fundação da República Popular


em 1949, o processo de substituição de dinastias é caracterizado pela erupção de
revoltas camponesas. Foi assim em 221 a.C., em 1368, 1644, 1820 e na proclama-
ção da República da China em 1911. A última rebelião camponesa chinesa levou o
Partido Comunista da China ao poder em 1949. Isso se explica tanto pela formação
de uma subjetividade nacional (confucionismo e taoismo), para a qual “todo poder
emana dos céus, porém o mesmo é revogável pelo povo”, quanto pelo próprio modo
de produção surgido neste tipo de formação social: o modo de produção asiático.
O modo de produção asiático correspondeu ao primeiro grande esforço de planeja-
mento estatal ao intervir – com o apoio de massas camponesas – em imensas obras
hidráulicas que permitiram ampliar as áreas agriculturáveis, a partir de áreas pro-
pícias (centrais) para áreas menos favorecidas pela natureza26.
A análise histórica e radical pode nos levar à irresistível constatação que
prova que a prática milenar de planejamento territorial – inerente ao modo de
produção asiático – pode ser observada ainda hoje na China, tendo em vista o
dinamismo do Partido Comunista da China (PCCh) em prover políticas públicas
com rápidos impactos no território do 3º maior país do mundo, com população
estimada em 1,3 bilhão.
A dinâmica cíclica do modo de produção asiático demonstra que, em períodos

26
MAMIGONIAN, A. “Desenvolvimento econômico e questão ambiental”. In Cadernos da VII
Semana de Geografia. Universidade Estadual de Maringá. Junho de 1997.

96
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

largos de tempo, as forças produtivas, apoiadas em grandes obras de engenharia,


desenvolviam-se rapidamente, contribuindo assim para o crescimento geométrico
da população (daí a China ser o país mais populoso do mundo). Porém, em outras
épocas percebia-se o apodrecimento de determinada superestrutura, expressa na
cada vez maior corrupção e inépcia estatal em tocar adiante projetos necessários à
reprodução econômica e social – daí as revoltas camponesas terem cumprido papel
central na formação e desenvolvimento da nação chinesa27. Essa percepção do his-
tórico papel camponês foi a maior prova de sabedoria e independência política de
Mao Tsetung, fundamental para o sucesso da Revolução de 1949.
Partindo do princípio da não-existência de modos de produção “puros”,
como explicar, a partir de uma análise histórica e fundamentada na categoria de
formação social, o sucesso da “economia socialista de mercado” chinesa, tendo
em conta que a China cresce ininterruptamente há quase 30 anos? Será que se
trata apenas de um “modelo exportador” eficiente? Um capitalismo sustentado
na superexploração de mão de obra abundante, como sugerem muitos analistas?
Ou a expressão de algo construído historicamente e assentado em uma civiliza-
ção milenar, que foi capaz de gestar filosofias com propostas éticas e morais se-
melhantes às criadas na Grécia antiga, e em uma economia mercantil com mais
de três milênios de existência?
Conforme já sugerido acima, alguns fatores genéticos têm grande poder de ex-
plicação acerca do fenômeno. Ao contrário de experiências passadas de “socialismo
de mercado” (Hungria, Iugoslávia e Polônia) – onde, amiúde a conjuntura política e
histórica, tentou-se instituir modelos mercantis em sociedades onde revoluções bur-
guesas foram abortadas e em seguida um processo de refeudalização foi posto em
marcha (processo esse encerrado com a instalação de democracias populares após a
Segunda Guerra Mundial) –, a China, desde seus primórdios civilizacionais, com uma massa
camponesa assentada sobre vales férteis rapidamente, dadas as boas condições naturais, permi-
tiu o surgimento de uma divisão social do trabalho ou, em outras palavras, do mercado como
27
O poder camponês pode-se fazer sentir ainda nos dias de hoje, quando pressões desta camada
social têm levado o governo chinês e o Partido Comunista dirigente a centrarem fogo em pro-
jetos que têm por objetivo reduzir as diferenciações sociais e territoriais do país após quase 30
anos de início da política de Reforma e Abertura. Essa pressão camponesa sobre a superestru-
tura do país é fator a se levar em conta em análises que tentem contemplar as diferenças entre
China e URSS: enquanto o camponês russo sempre foi um servo, o camponês chinês sempre foi
um agricultor livre.

97
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

instituição. Esta tradição comercial pode-se fazer sentir tanto na expansão territorial
chinesa quanto nas centenas de expedições feitas pelo mundo por chineses (diga-se
de passagem, os chineses foram os inventores da caravela) entre o século XII e o XV.
Tais zonas de pequena produção mercantil (vales do rio Yang-Tsé e Amarelo)
e seu atual desenvolvimento, capaz de puxar à frente a locomotiva chinesa (vales
do Yang-Tsé, Xangai e Guangdong), se enquadram perfeitamente na ideia marxista
– já citada – de “via revolucionária” para o capitalismo, de transformação em capi-
talistas não de comerciantes e sim de pequenos produtores28. É evidente que uma
revolução burguesa não ocorreu na China, mas dessa constatação podemos tirar
algumas outras conclusões. Exploremos melhor essas questões abaixo.

aaaaaaaaaaaa

De certa forma, fica subentendido que Mao Tsetung apoiou-se nos camponeses
pobres para levar a cabo a Revolução Nacional-Popular que liderou. Agora, resta uma
questão prenhe de respostas, que avalia em quais forças sociais Deng Xiaoping29 pôde
se apoiar para levar adiante seu audacioso programa de modernização da China, e
inclusive para ter resistido aos ventos contrarrevolucionários do final da década de
1980, mantendo a China no mesmo rumo traçado em 1949 e retificado em 1978.
Ao longo do tempo, das análises e de conversas feitas no Brasil e na Chi-
na, constatamos que na base de um novo processo de acumulação de novo tipo
(socialista)30, iniciada com a política de Reforma e Abertura, está toda uma classe
de camponeses médios, com comprovada capacidade de iniciativa empresarial, ca-

28
Sobre esta forma de transição feudalismo-capitalismo, ler artigos de Maurice Dobb em res-
posta a Paul Sweezy em A transição do feudalismo para o capitalismo. Paz e Terra, 5ª ed., São Paulo,
2004, 247 p.
29
É mister salientar que Deng Xiaoping valeu-se de sua experiência revolucionária (aos 25 anos,
já era general do Exército Vermelho) e de dirigente (desde o início da década de 1950, era
membro do Politburo do PCCh) para colocar a China no rumo que se encontra em nossos dias.
Como homem que viveu “por dentro” o século XX, pôde-se basear, e muito, nos erros e acertos
de processos como o próprio processo chinês, bem como o soviético.
30
Dizemos de novo tipo, pois, ao contrário do modelo soviético, em que a relação entre campo e
cidade – a formação de poupança – era marcada pelo desfavorecimento do campo, as reformas
de 1978, inspiradas na NEP de Lênin, são caracterizadas pela inversão desta prioridade. Esta in-
versão de prioridade, no caso chinês, deve-se não somente a fatores econômicos, mas principal-
mente a fatores de ordem política, pois os camponeses, desde 1928, são a base social do PCCh.

98
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

pacidade esta recriminada desde o período que vai do início da década de 1950 até
1978. A pujança econômica chinesa explica-se muito pela liberação dessas energias
camponesas esmeradas por séculos de pequena produção mercantil. Não é de es-
tranhar que mais de 70% dos atuais empresários de nacionalidade chinesa eram
camponeses médios em 1978, e que somente na cidade sulista de Shenzen (espelho
maior das reformas pós-1978) cerca de 90% dos empresários o eram em 197831.
Em resumo, pode-se auferir que ao caso atual da China é perfeitamente plau-
sível a aplicação da ideia leniniana que relaciona a implantação do socialismo em
formações periféricas com a “ressurreição” do espírito empreendedor, a energia e a
ousadia empresarial típicas da pequena produção mercantil, que há muito tempo
havia sido sufocada pelo advento do monopólio32.

2.3.2 Algumas considerações acerca do socialismo na China

Se da formação social chinesa pode-se extrair elementos que nos coloquem


em linhas retas uma chamada “essência do socialismo de mercado chinês”, nunca
devemos deixar de lado o estágio em que se encontra a transição ao socialismo e ao
comunismo em determinada formação social – a chinesa, em nosso caso. Esta é a
chave para melhor auferir tanto a historicidade de determinadas categorias (sejam
elas historicamente concebidas – mercado e lei do valor, por exemplo –, sejam elas
filosóficas – transição, processo, por exemplo) como a implementação de políticas
que estejam em consonância com a base econômica de dada formação. No entan-
to, vale repetir o já exposto anteriormente: a transição capitalismo-socialismo em
âmbito mundial não deve ser absolutizada, pois o socialismo, diferentemente de
outros modos de produção e/ou propostas de sociedade, não se baseia na exploração
do homem pelo próprio homem; logo, a sua cristalização ante o capitalismo poderá
ser muito mais lenta e gradual do que imaginamos. Agregamos a isto a seguinte
observação de Armen Mamigonian (1996, pp. 95-100):
31
WENZHEN, Pen. Entrevista concedida a Elias Jabbour. Comissão de Assuntos Econômicos da
Assembleia Popular de Shenzen. Shenzen, Guangdong, 15-10-2006.
32
Lênin expõe esta posição em meio à polêmica que se seguiu à necessidade de utilização de
mecanismos de mercado durante o processo de acumulação primitiva socialista na URSS. Su-
gerimos a leitura de LÊNIN, V. “Como organizar a emulação?”. In Obras escolhidas. Vol. 2 Alfa-
Omega. São Paulo. 2004, pp. 441-447.

99
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Assim como a revolução socialista permaneceu isolada na URSS, por décadas, a


primeira revolução capitalista ficou isolada na Inglaterra, frente à hostilidade do
feudalismo da Europa continental. As relações entre os fenômenos nacionais e
mundiais não são tão simples e a transição de um sistema a outro é mais com-
plexa e prolongada do que se imagina.

2.3.2.1 Os pilares do socialismo de mercado na China

O socialismo é a fase primária do comunismo e, na concepção dos chineses,


a China ainda se encontra na “etapa primária do socialismo”33. A verdade desta
constatação pode ser mais bem auferida se nos fundamentarmos em Marx, que
creditou à transição socialismo-comunismo a tarefa de eliminar as diferenças en-
tre campo e cidade, trabalho manual e intelectual e as inerentes à agricultura e indústria.
Os chineses classificam esta constatação de “as três grandes diferenças”34.
São concretos os fatores que caracterizam a etapa primária do socialismo:
a) formação social, onde a maior parte da população está ocupada na agri-
cultura e dependente do trabalho manual;
b) escassez de recursos minerais;
c) ciência e tecnologia atrasadas em relação ao centro do sistema;
d) grandes disparidades regionais de ordem econômica, social e cultural;
e) parte da população vivendo com dificuldades;
f) falta de autonomia tecnológica e/ou de financiamento;
g) grande distância em relação ao nível de desenvolvimento do centro do
sistema35.
33
O economista russo Evgeni Preobrazhenski (1886-1937) foi o primeiro a se referir a uma
chamada “etapa primária do socialismo”. Preobrazhenski, ferrenho opositor da NEP, tornou-se
famoso pelas análises da relação entre inflação e industrialização em economias agrárias atra-
sadas e em estado de isolamento internacional, como a Rússia revolucionária. Sobre suas ela-
borações, sugerimos a leitura de DAY, R. B. “Preobrazhenski and the Theory of the Transitional
Period”. In Soviet studies 8. New York, 1975. E de FILZER, D. (org.). 1921-1927: The Crisis of Soviet
Industrialization: Selected Essays. White Plains. Sharpe, London, 1980.
34
WANCHUN, Pen: The dialectical materialism and the historical materialism. Foreign Language
Press, Pequim, 1985, p. 218.
35
ZEMIN, Jiang. “Hold high the great banner of Deng Xiaoping theory for an all-round advance
of the cause of building socialism with chinese characteristics into the twenty-first century”. Em:
Report to the fifteenth national congress of Communist Party of China. People’s Publishing House, Pequim,
1992, p. 15.

100
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

Em um país como a China – de dimensões continentais e altamente populoso,


com cerca de 60% da população vivendo em zonas rurais e onde a própria natureza
(montanhas e desertos) é fator de dificuldades –, vale questionar: quanto tempo
esse processo de transição (socialismo-comunismo) demoraria? Daí ser correta a
conclusão chinesa acerca do estágio da transição em que se encontram.
No entanto, é evidente que as características apresentadas são expressões do
fato de o socialismo ter vencido em formações periféricas. Logo, e naturalmen-
te, as heranças de sistemas anteriores continuam a agir. A consequência dessas
influências é sentida nas superestruturas de países como China, Cuba e Vietnã:
são muito sensíveis à fluidez (corrupção, influência de culturas estrangeiras, so-
brevivências feudais etc.).
Mais especificamente – para o caso da China –, recapitulando, pode-se verificar a
ação de resquícios do modo de produção asiático. Resquícios positivos (planejamento,
administração pública eficiente, capacidade de rápida intervenção sobre o território,
capacidade de iniciativa comercial dos camponeses etc.) e negativos (cultura feudal).
Assim, por mais que a China tenha internalizado os instrumentos (superes-
trutura de poder popular, socialização dos meios de produção e planejamento) que
viabilizam a anulação do caráter espontâneo da ação das leis econômicas, as leis
econômicas intrínsecas a economias planificadas e baseadas na propriedade social
ainda não alcançaram o nível de cristalização necessário. A título de exemplo, os
sobreinvestimentos em determinados ramos industriais na China têm – além do
carreirismo de muitos governadores de províncias e/ou regiões autônomas – nas re-
lações (de tipo feudal) entre gerentes de bancos e prefeitos de cidades médias uma
das fontes do problema.
Por fim, no âmbito da base econômica ainda é necessária uma combinação dos
fatores expostos com a finalidade de se decifrar – minimamente que seja – qual a
formatação econômica inerente a uma formação social complexa e única36 como a
36
At last but not least, uma formação social como a chinesa demanda um estudo muito mais obje-
tivo e profundo das complexas estruturas que emergiram e emergem naquela sociedade, de for-
ma que o dogma exportado pelos teóricos da ex-URSS – para quem a equação da complexidade
da formação russa apontada por Lênin em 1921, Sobre o imposto em espécie... – fora superada com
o sucesso dos primeiros planos quinquenais; logo um dogma da crescente e inexorável homo-
geneização social e política determinado pela generalização do progresso técnico foi sendo ab-
sorvido, e não seja repetido numa análise mais fecunda sobre a formação social em tela. Acerca
desta generalização na análise soviética, ler: FERNANDES, Luís: O enigma do socialismo real – Um
balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais. Mauad, 2000, 256 p.

101
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

chinesa, na fase em que se encontra o seu particular caminho ao socialismo. Para


tanto, ter em mente as características da chamada etapa primária do socialismo e
o fato de o socialismo ser uma grande transição – que envolve outras transições e
etapas que podem perdurar até séculos37 – é primordial à apreensão exata da res-
posta ao fenômeno.
Prova analítica dessa necessária transição foi sublinhada por Marx em sua
Crítica ao programa de Gotha, em que argumenta acerca da impossibilidade, após a to-
mada do poder político pelo proletariado, de se suprimir, de forma imediata, todas
as diferenças de classe da sociedade. Isso porque, segundo Marx38:

Uma sociedade comunista que não se desenvolveu sobre sua própria base, mas
de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista (...), portanto,
apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelec-
tual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede.

Partindo deste nível de abstração (formação social chinesa, etapa primária


do socialismo, impossibilidade de transições imediatas), fica mais claro perceber
que, na fase em que a China se encontra, o velho e o novo estão em cena e que,
assim sendo, uma fase de convivência entre o planejamento, os setores estraté-
gicos da economia e os elementos cruciais do processo de acumulação (sistema
financeiro, juros, crédito e câmbio), sob controle estatal, com outras formas de
propriedade (particular, privada, joint ventures) é amplamente necessária. Necessá-
ria para o fortalecimento do Estado socialista e consequente sobrevivência num
ambiente internacional marcado por uma correlação de forças ainda favorável,
em todos os sentidos, ao imperialismo norte-americano. Além disso, tal compo-
sição de propriedade é condição primordial ao rápido desenvolvimento das forças
produtivas, tendo em vista o domínio ainda existente, sobre a subjetividade das
amplas massas chinesas, da mentalidade típica da pequena produção. Afinal,
a transformação da subjetividade a partir de novas relações sociais é um processo
mais largo e demorado do que a vontade humana pode conceber, e as experiên-

37
Para os chineses, sua etapa primária durará pelo menos até 2050, ano este em que se terá
completada sua modernização.
38
MARX, K. “Crítica ao programa de Gotha”. In Obras escolhidas de Marx e Engels. Vol. 1 Alfa-
Omega. São Paulo. 1977. p. 231.

102
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

cias socialistas do século passado – e seus malogros – são prova cabal disso.
De posse dessas particularidades, fica plausível denominar como uma economia
de mercado sob orientação socialista a formatação de uma base econômica em transição
como a chinesa. Para termos uma ideia, em Marx, somente na fase superior da
sociedade socialista (comunismo) é que se reuniriam condições objetivas para a
superação do direito burguês, e assim se passar a regular a distribuição não mais
em acordo com o que cada um trabalhou e sim em concordância com as próprias
necessidades39. A razão disso, em Marx, encontra-se na necessidade de se gerar,
ainda sob o socialismo, formas que contemplem o rápido desenvolvimento das for-
ças produtivas como forma de se passar de uma situação de escassez para outra
marcada pela abundância40.
Daí a necessidade e a utilidade do mercado – como forma de regular a escassez
e alocar os recursos – e de múltiplas formas de propriedade, nucleada pela proprie-
dade estatal ou coletiva durante a complexa transição de um modo de produção a
outro de novo tipo.
De forma generalizada, eis os pilares do que se convencionou chamar de “so-
cialismo de mercado”41.

2.3.3 A “via prussiana” com características socialistas

Elementos da formação social, “DNA” da sociedade e do território, modo de


produção asiático, pequena produção mercantil, algo sobre os clássicos e o socia-
lismo – uma série de elementos já foi coletada e exposta no sentido de, neste mo-
mento, proceder-se a uma visão geral do desenrolar histórico da República Popular
da China desde seu nascimento, concomitante com algumas peculiaridades do so-
39
Idem, p. 237.
40
Daí a correta afirmação de Deng Xiaoping, repetida inúmeras vezes nos combates que travou
no seio do PCCh, de “o socialismo não ser a mesma coisa que pobreza”. Em Deng Xiaoping e sua
política modernizadora, podemos observar a expressão da transição no seio da superestrutura
chinesa de uma subjetividade igualitarista (típica das comunidades agrárias chinesas influen-
ciadas pelo taoismo e representada na figura de Mao Tsetung) para outra marcada pelo culto
à acumulação como parte de um todo que envolve o desenvolvimento integral do socialismo
naquela formação social.
41
Demais referências históricas, teóricas e conjunturais serão tomadas no decorrer deste livro,
assim como – quando necessário – determinadas categorias históricas relacionadas à formação
chinesa.

103
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

cialismo no século XX, e em comparações pontuais com as principais experiências


pretéritas e em curso.
Dado o tamanho do país e a complexidade nele guardada, é importante colo-
car que um bom ponto de partida a uma metodologia mais consequente no sentido
de uma interpretação mais sofisticada da realidade chinesa encontra-se na relação
feita por Marx entre o desenvolvimento das formações geológicas e o processo veri-
ficado no âmbito da sociedade, conforme sugerido em carta enviada – e datada de
16 de fevereiro de 1881 – a Vera Zasulich, e já citada anteriormente.
Logo, como definir as revoluções e experiências socialistas do século XX, in-
clusive aquela em andamento na China?
Eis um desafio que devíamos empreender para além da constatação da obvie-
dade inerente ao fato de esses eventos não terem ocorrido nos países desenvolvi-
dos do centro capitalista. Infelizmente, deixando de lado a determinação subjetiva,
muitos não relacionam a categoria filosófica de transição com as complexidades
singulares do processo de acumulação de cada formação social, tornando-se mais
superficiais ainda, e preferindo – a-historicamente – situá-las como continuidade
das revoluções burguesas europeias.

2.3.3.1 A necessária compreensão da transição feudalismo-


capitalismo e a “revolução pelo alto”

Considerando-se os países onde ocorreram revoluções de novo tipo, onde a


transição feudalismo-capitalismo ora mal havia se iniciado, ora não havia se re-
alizado, cremos que, para tanto, devíamos retornar aos clássicos e perceber a di-
nâmica entre superestrutura e base econômica e as possibilidades de transição
feudalismo-capitalismo teoricamente plausíveis, sendo elas42:
a) a via junker ou prussiana, onde as pressões internas e externas leva-
ram a classe de senhores feudais a empreender reformas de cima para
baixo;
b) a chamada via revolucionária (ou via dos produtores ou via americana),
para quem os pequenos produtores rurais, aos poucos, transitam de uma

42
Uma síntese dessas formas de transição feudalismo-capitalismo pode ser encontrada no Pre-
fácio à 2ª edição de O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, escrito por Lênin.

104
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

condição subalterna do ponto de vista econômico até atingirem o grau


de classe econômica dominante, reivindicando para si o poder político.

No entanto, tais formas de transição não podem ser absolutizadas. Existem


casos de combinação entre as duas formas. O Brasil, por exemplo, onde Vargas (es-
tancieiro, senhor feudal), ao tomar o poder, criou as condições institucionais para
a transformação de pequenos produtores em empresários (Gerdau, Bardella, Weg
etc.), à custa de uma industrialização sem reforma agrária (via prussiana). No pró-
prio Japão (Inovação Meiji), o que são os zaibatzus e, na Coreia do Sul, as chaebols? E
na própria China, o que significa o esforço, nos últimos anos, de formação de gran-
des conglomerados estatais prontos para enfrentar a concorrência econômica entre
capitalismo e socialismo em âmbito mundial? Em todos esses casos se verifica pelo
menos uma característica única: o de desenvolvimento tardio, onde o Estado teve
de tocar adiante reformas modernizantes em detrimento do grande atraso relativo
ao centro dinâmico mundial.

aaaaaaaaaaaa

Defendemos a hipótese de o socialismo notabilizado no século XX, notada-


mente por meio do “modelo soviético”, ter sido uma “via prussiana”. Antecipamo-
nos àqueles que, justamente, podem colocar as diferenças, como – por exemplo – a
falta de reforma agrária na Alemanha ou no Brasil, ou mesmo o caráter de classe
do poder. Ignacio Rangel, porém, com sua flexibilidade intelectual ímpar, sempre
nos advertira que o dogmatismo e o preparo destinado somente a partir de análises
de “modelos prontos” tinham na assertiva hegeliana de apego ao ardil do conceito
seu pressuposto.
Em verdade, a Alemanha teve Bismarck e o Brasil, Getúlio Vargas. Na Rús-
sia, houve Kerensky e, na China, Chiang Kai-shek. Ora, na falta de um Bismarck
na Rússia ou na China, a solução para a entrada dessas nações no século XX fora
Lênin e Mao Tsetung, em cujos ombros foi carregado o fardo de transformar suas
semifeudais realidades em realidades industriais, ante o abismo que encontravam
diante de si e da alternativa neocolonial.
Abrindo parêntese, sem indústria, economia monetária e mercado de capitais,

105
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

a superação do capitalismo é um sonho somente possível aos amantes da economia


natural (de subsistência) do socialismo, acreditando – como os populistas russos
– num socialismo gestado a partir do retorno a formas primitivas de agricultura.
Daí a NEP soviética, a Nova Democracia e a Reforma e Abertura na China. Deng
Xiaoping, endereçando-se aos seus opositores de “esquerda”, deixava claro que
“converseira ideológica” não levaria a China a lugar algum e, se a Inovação Meiji
colocou o Japão no rumo de se transformar em grande potência, os chineses, como
proletários, teriam de ir além e ser melhores43.
A via prussiana socialista, assim como na Alemanha de Bismarck, condicio-
nou imensos investimentos em indústria pesada, química e em ciência e tecnolo-
gia. Assim como Bismarck consolidou as bases para a unificação da Alemanha pelo
caminho do intercâmbio comercial de “feudos independentes”, e criou condições
propícias ao enfrentamento da ameaça externa (militarização), na URSS de Stálin
e na China de Mao esse caminho de transformações econômicas “de cima para
baixo” redundou na implementação do que se convencionou chamar de “modelo
soviético de industrialização”, que capacitou ambos os países a enfrentarem ame-
aças militares externas (Segunda Guerra Mundial e Guerra da Coreia), a lançarem
bases para a construção de satélites, bombas atômicas e enviar seres humanos ao
espaço. É evidente que fortes diferenças no “conteúdo de classe” desses processos
de transformação – capitalista ou socialista – devem ser notadas. Por fim, no que
tange à justeza histórica do “modelo soviético” ao caso chinês, a passagem abaixo
também tem serventia no que se refere à clarificação empírica desta constatação44:

Depois de anos de trabalho duro, a economia nacional foi restaurada e retomou


o caminho do desenvolvimento. Em 1952, a produção industrial já havia aumen-
tado em 77,6% em relação ao índice de 1949. A produção agrícola ultrapassou
os números de antes da revolução e o nível de vida do povo melhorou de forma
generalizada. Comparado com o nível de 1949, os salários dos trabalhadores au-
mentaram em 70% em 1952 e a renda dos agricultores, em 30%.

Cabem ainda mais abstrações. Por exemplo, na simpatia de Gramsci pela via

43
XIAOPING, D. “Respect the knowledge, respect trained personal”. In Selected works of Deng
Xiaoping. Foreign Language Press. Pequim, 1982. Vol. 2, pp. 54-57.
44
REBELO, Aldo & PAULINO, Luís. “Os 60 anos da Revolução Chinesa”. In Revista Princípios. São
Paulo, n. 104, nov.-dez/2009.

106
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

da NEP, como algo que poderia deixar de lado a violência e a virulência, como vis-
to tanto em processo de acumulação por expropriação dos meios de produção em
posse dos camponeses (Inglaterra, por exemplo), e mesmo as “revoluções pelo alto”
e/ou “passivas” em detrimento da chamada “via americana”, mais sutil, vamos
dizer, como algo mais próximo da NEP. Tem grande fundo de verdade a relação
direta entre uma chamada “guerra de posição” – não somente para ilustrar uma
tática defensiva do movimento comunista – e os rumos soviéticos (conjuntura de
isolamento internacional) no final da década de 1920. Assim como, nessa esteira,
também caracterizar o processo soviético pós-NEP como uma “revolução pelo alto”,
de caráter defensivo ante o cerco imperialista, dando primazia à indústria pesada.
Nessa mesma linha gramsciana é plausível ver o bonapartismo como consequência
de processos tortuosos e complexos (URSS e China), personificado em figuras como
Stálin e Mao Tsetung45. Enfim, eis, a nosso ver, a via prussiana socialista (modelo
soviético) espraiada em outras experiências, inclusive a da China, com média de
crescimento anual entre 1950 e 1978 de 6,5% mesmo diante de conjunturas como a
do Grande Salto Adiante e a da Revolução Cultural.

2.3.3.2 O “modelo soviético” e/ou “revolução pelo alto”

Tornou-se convencional relacionar ou colocar um sinal de igualdade entre a


ineficiência econômica e o “modelo soviético”. Tal procedimento não obedece a leis
que convergem para a própria historicidade do fenômeno e para a própria dialética.
Afinal, esse modelo pautado por um financiamento do desenvolvimento por meio
de relações desiguais entre indústria e agricultura é produto da história, uma res-
posta a uma conjuntura de cerco político, militar e econômico que não permitiu,
por exemplo, executar um tipo de NEP pela não viabilização de uma mínima pauta
de comércio exterior, o que é central na consolidação, no âmbito interno, de novas
tecnologias, financiamentos e acordos comerciais. Soma-se a isso o fato de nem a
URSS nem os demais países socialistas serem detentores de colônias externas.
Além disso, essa forma de produção industrial e de financiamento obedece
45
Sobre este assunto, ler: PONS, Silvio. “O afastamento de Gramsci do mito da URSS”, em
Gramsci e o Brasil (http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1116). Acessado em
11 abr.2009. Acerca do “bonapartismo” e o processo de desenvolvimento socialista, sugerimos:
LOSURDO, Domenico: Fuga da História? Revan. Rio de Janeiro, 2004.

107
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

a uma lógica de industrialização pautada pela indústria pesada, que tinha como
grande objetivo imediato a preparação para a Segunda Guerra Mundial. Abrindo
parêntese, existem ainda duas questões puramente de ordem histórica – quase não
percebidas quando o assunto é a execução de projetos socialistas – que, sob o nosso
ponto de vista, estão diretamente relacionadas tanto com a construção do socialis-
mo até os dias atuais quanto com os limites do “modelo soviético”, expresso numa
necessária “revolução pelo alto”. Portanto, “demonizar” figuras como Stálin e Mao
Tsetung por conta somente da tomada desse tipo de caminho de desenvolvimen-
to pode redundar numa grande “filosofia de brincadeira”, idealista. Advogar, por
exemplo, o caminho da NEP (“via americana”) sem perceber que ele demanda
contatos e comércio exterior desenvolvidos também pode redundar num idealismo
(tal qual foi vítima Bukharin no final de sua vida), o que não justifica analisar e
tampouco apontar os excessos cometidos por tais estadistas supracitados.
A primeira questão reside no fato histórico de o projeto socialista ser o primeiro
a objetivar a abolição da exploração do homem pelo próprio homem, o que não é
qualquer determinante, afinal durante milhares de anos o progresso humano e o
caminho para o rumo da civilização (sociedade pautada pela urbanização e o traba-
lho social na manufatura) dependeram dessa forma de exploração. O segundo fato
histórico era perceptível para qualquer classe que almejasse tanto o poder político
no âmbito das transições anteriores (escravismo-feudalismo e feudalismo-capita-
lismo) e (demandava-se tal condição), quanto o posto de classe dominante economi-
camente. Ora, fica sobremaneira complicado trabalhar a ideia de transição capita-
lismo-socialismo fora dessas determinações. E também pode se tornar a-histórico
e economicista não compreender os limites das primeiras experiências socialistas,
deixando de lado tais parâmetros lastreados historicamente, inclusive as demandas
conjunturais por detrás do “modelo soviético” e da “revolução pelo alto”.
Pois bem, esse caminho de desenvolvimento, intitulado “acumulação primiti-
va socialista”, foi trabalhado por Evgeni Preobrazhenski. Ele foi o mais destacado
teórico da chamada “oposição de esquerda” do Partido Bolchevique46. Brilhante
economista ganhou notoriedade a partir de seus textos sobre a relação entre infla-
ção e industrialização em países atrasados. Como já exposto, foi o primeiro teórico
marxista a expor o que comumente se chama (principalmente pelos chineses) de
46
Sobre indicações de leitura sobre este tema e Preobrazhenski, ler nota 35.

108
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

“etapa primária do socialismo”. Entrou em choque com as opiniões de Lênin e


Bukharin, partindo da constatação de que a NEP seria responsável por um aumen-
to da demanda sem que a velocidade da industrialização fosse capaz de abarcar o
crescente consumo.
Esmiuçando o problema, a solução por ele proposta tanto para o âmbito da in-
dustrialização como para o equilíbrio necessário entre oferta e demanda partiu do
pressuposto da impossibilidade de a industrialização se autossustentar pela própria
indústria, e, aliada à impossibilidade do aprofundamento do isolamento da URSS,
a forma mais viável de se alcançar uma rápida industrialização (a partir da indús-
tria pesada) seria a implantação de trocas desiguais entre campo e cidade. Isso sig-
nifica que o setor rural repassaria a preços baixíssimos produtos primários à cidade
que, por sua vez, os revenderia a preços mais elevados, de forma que o excedente
extraído seria voltado ao financiamento da industrialização e do envio de insumos
industrializados ao campo, acarretando um aumento da produtividade do trabalho
agrícola e impulsionando – desta forma – a própria indústria em si.
Os elementos mercantis inerentes à intermediação comercial entre produtores
e consumidores seriam substituídos pelo monopólio estatal do comércio interno.
Além de acelerar o processo de industrialização, um dos grandes objetivos dessa po-
lítica seria uma sobretaxação do setor privado da agricultura como forma de refrear
os estímulos de tipo capitalista que poderiam surgir no campo, impulsos esses que
levaram Stálin, a partir de 1928, a empreender uma verdadeira guerra civil contra
os camponeses ricos, solapando assim a experiência da NEP e introduzindo em
grande escala o modelo proposto por Preobrazhenski.

aaaaaaaaaaaa

Como algo dado historicamente, esse modelo deve ser visto por duas fases: de
ascensão e de queda. De um lado, capaz de transformar países como URSS e China
de formações semifeudais a potências industriais num tempo muito curto em com-
paração com os países capitalistas centrais. Sua fase de dinamismo levou a URSS a
quebrar o monopólio anglo-germânico de aviões a jato em 1932, financiou o maior
esforço de guerra da história moderna, lançou o homem ao espaço antes dos EUA,
além de condicionar o país a adentrar a III Revolução Industrial. Na China, foi

109
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

responsável pelo lançamento de satélites de observação ao espaço em 1971 e testes


com bombas de hidrogênio, em 1964, além de várias duplicações na produção de
aço entre 1949 e 1979.
Falando sobre seus limites, podemos colocar que essa dinâmica de acumu-
lação é muito diferente da empregada no mundo capitalista. Para o economista
russo Feldman, esse modelo tem na estrutura de oferta um limite intrínseco ao
crescimento. Ou seja, quanto maior a oferta por bens de capital, maior o crescimen-
to econômico, pois a oferta de bens de capital é determinada pela quantidade de
cereais colhidos e que só tendem a aumentar de acordo com o nível de mecanização
do campo, o que depende de maior oferta de bens de capital47. Do ponto de vista da
política, podemos dizer que este limite ao crescimento também é determinado pela
relação entre Estado e camponeses, que tendeu a piorar ao longo dos anos, tanto
na China quanto na URSS. Como exemplo, dada a queda do ânimo camponês na
URSS, amiúde pela acelerada mecanização, desde meados da década de 1970 a
URSS havia se transformado em importadora de alimentos. O problema de fundo é
de caráter puramente político e se expressa diretamente na economia.
Retornando, existe também – fechando o círculo – a oferta por bens de con-
sumo (que, por sua vez, é determinada pela expansão do Departamento 1, que
também recaía sobre a capacidade camponesa de gerir produtos agrícolas para a
sociedade e, na medida em que essa demanda aumentava, de forma a pressionar
os preços de produtos alimentares e de matérias-primas. É interessante notar que,
no caso chinês, a solução desse problema de desproporção e desequilíbrios entre
diferentes setores da economia residiu na desaceleração das taxas de investimentos
no Departamento 148.
Além das questões puramente políticas, problemas do processo produtivo em si
foram se exacerbando. Para o caso chinês, em especial, alguns números podem ser
bem ilustrativos. Como exemplo, entre 1966 e 1976 a produção industrial chinesa
teve crescimento industrial médio de 9,5%. Nada mal – e até mesmo surpreendente
– para um país sem acesso a tecnologias ocidentais. Para esta performance eco-
47
DOMAR, E. “A soviet model of growth”. In NOVE, A. & NUTI, D.M. Socialist perspectives. Pen-
guin. Nova York, 1972. Também trabalhado em MEDEIROS, Carlos A. “Economia e política do
desenvolvimento recente da China”. In Revista de economia política. Vol. 19, n. 3, pp. 92-112. São
Paulo, julho-setembro/1999.
48
IMAI, H. “Explaining China`s business cycles”. In Developing economies, n. 34, 1996.

110
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

nômica, foram necessários investimentos da ordem de 36,6% do PIB. Esse mesmo


crescimento industrial fora também alcançado entre 1952 e 1966, porém com a uti-
lização de investimento bem inferior, exatamente 24% do PIB. Outra demonstração
de limites pode ser percebida na relação entre crescimento econômico e energia
utilizada. Em 1976, para 1% de crescimento do PIB na China eram gastos três vezes
mais recursos energéticos do que a mesma proporção de crescimento no capitalis-
mo central49.
Por fim, no caso específico da China, fica bastante claro que a continuidade
desta via pós-Mao poderia redundar numa completa débâcle do regime, a exemplo
da URSS e do Leste Europeu. Apesar dos avanços alcançados, estava clara uma
cada vez maior brecha entre os interesses das mais amplas massas camponesas e
a superestrutura do país, ameaçando o condomínio de poder estabelecido em 1949.
Uma mudança de curso era necessária. A China não deveria seguir o efeito dominó
do final da década de 1980.

2.3.3.3 A Reforma e Abertura de 1978 e a “grande estratégia”

Em linhas gerais, no que consistiria o apelo de Mao Tsetung (encampado por


Deng Xiaoping) relativo a um socialismo com características chinesas? Do ponto
de vista da estratégia, o que se encerra em tal apelo? Por outro lado, quais as ideias-
-força nelas contidas?
Especulamos que esse caminho se confunda com o programa da Nova Demo-
cracia, da mesma forma que a NEP soviética teve curta vida por conta do recrudes-
cimento do capital internacional contra o “Novo Mundo” que surgira com a aber-
tura, nas palavras de Stálin, da era do imperialismo e das revoluções proletárias.
Pouco se nota, mas o programa executado por Deng Xiaoping e seus com-
petentes sucessores foi vislumbrado por Mao no Programa da Nova Democracia
lançado em 1945. Não é de somenos que a bandeira chinesa é vermelha com cinco
estrelas, com a principal delas representando o Partido Comunista, e as outras me-
nores o proletariado, os camponeses e, diga-se de passagem, a pequena burguesia
e a burguesia nacional. Eis a diferença entre uma superestrutura de tipo República
Popular (fórmula elaborada por Stálin de um governo pós-Segunda Guerra Mun-
49
In: China Statistical Yearbook para todos os anos entre 1952 e 1978.

111
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

dial, abarcando as mais amplas forças anti-imperialistas e hegemonizado pelo PC)


e outra tipicamente de caráter socialista, como o Vietnã.
A União Soviética chegou ao final dos anos de 1970 com uma economia em
franca desaceleração – fruto da decadência do modelo importado por Lênin e Stá-
lin, o fordismo, porém com forças produtivas plenamente desenvolvidas a ponto
de esse país ter sido um dos precursores da III Revolução Industrial (siderurgia).
No caso soviético, também não cabem certas assertivas, como a necessidade de
câmbio a uma forma intensiva de produção. Segundo Rangel, que visitou a URSS
mais de uma dezena de vezes, o problema da URSS estava na necessária redução
da jornada de trabalho, fruto de um pleno desenvolvimento das forças produtivas
e, concomitante a isso, a execução de novas e superiores formas de planejamento e
não a aplicação de formas mercantis de mediação econômica.
O caso chinês é totalmente diferente. O estágio de desenvolvimento das forças
produtivas em 1978 era o mesmo que o da URSS em 1938, porém com uma popula-
ção de 900 milhões. A ameaça externa condicionou problemas ao desenvolvimento
da divisão social do trabalho, com a lógica das comunas autossuficientes e prontas
para a defesa interna, independentemente do que acontecesse ao resto do país. Essa
lógica tem um lado positivo e outro negativo: positivamente, uma menor descentra-
lização industrial (transferências de unidades produtivas do litoral ao interior) possi-
bilitou o desenvolvimento de áreas inteiras no interior do país, sendo inclusive condi-
ção nodal para o êxito de formas rurais de industrialização pós-1978; negativamente,
a formação de hinterlândias (ilhas econômicas) impedia a plena conexão regional no
país, desde a formação de mercados regionais até a formação de um grande mercado
nacional, como hoje vislumbram os atuais herdeiros do “Grande Timoneiro”, dando
plena vazão à lógica marxista para quem definia – na superação da divisão social do
trabalho (diferenças entre campo e cidade, entre indústria e agricultura e trabalho
manual e intelectual) – a grande tarefa histórica do socialismo. Vejamos abaixo, de
forma geral, como as políticas executadas pós-1978 têm enfrentado essas questões.

aaaaaaaaaaaa

Para fins de introdução, é interessante analisar e elaborar questões sobre o


futuro da humanidade e o papel do desenvolvimento da Revolução Chinesa que

112
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

esse processo demanda e, conforme já exposto, deixarmos de lado os limites da


“periodização” em detrimento de uma ampla visão de processo histórico. Visão esta
que, ao pressupor a análise de um fenômeno como fenômeno histórico, capacite-nos
a compreender o mundo atual – e a China –, a partir de parâmetros conjunturais,
ou mesmo criados há quase 200 anos, com destaque ao surgimento do imperialismo
e à transformação do desenvolvimento desigual e combinado em lei econômica objetiva
do capitalismo, elevando a lógica do “chão da fábrica” ao nível internacional, da
abertura de um novo ciclo histórico com a Revolução Russa de 1917 e a transformação
da Ásia no campo de excelência das maiores atrocidades imputadas pelo imperia-
lismo no século XX, onde a luta entre capitalismo e socialismo se deu de forma mais
sangrenta.
A Revolução Chinesa, expressão moderna de milenares revoltas camponesas, é
produto direto das novas formas de dominação adquiridas pelo capital na segunda
metade do século XIX. Vale lembrar que esse país, por sua extensão territorial, po-
sição estratégica e recursos naturais, tornou-se o “banquete” mais disputado pelas
grandes potências, sendo inclusive palco de uma infame guerra impetrada pela In-
glaterra em prol da legalização do tráfico de drogas. A lógica da lei do desenvolvimento
desigual e combinado transformou a nação mais desenvolvida do planeta, com 40%
do PIB concentrados em seu território (final do século XVII), no mais pobre país do
mundo em 1949. Desta forma, faz-se necessário compreender o próprio socialismo
como o caminho forçoso e necessário para a quebra do ciclo destruidor dessa citada
lei de desenvolvimento.
Sobre tais bases expostas e encetando o caminho do processo de desenvolvi-
mento possibilitador de base material à consecução do socialismo, em rápidas pa-
lavras podemos sugerir que o marco da atual estratégia chinesa reside no processo
de transformação do país em uma nação moderadamente desenvolvida pelos idos da
metade do presente século. Esse processo, expresso por Deng Xiaoping, passa por
oito duplicações do PIB chinês até 2050, tendo o ano de 1978 como marco, de forma
que, nas palavras do próprio Xiaoping50:

É verdade, nós estamos construindo o socialismo, mas isso não significa que
o que nós conquistamos até agora corresponde ao padrão socialista. Não antes

50
XIAOPING, Deng. “To uphold socialism we must eliminate poverty”. In, XIAOPING, Deng.
Selected works. Foreign Languages Press, Beijing. 1994. Vol. 3, pp. 221-223.

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CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

da metade do próximo século, quando nós tivermos atingido o nível das nações
moderadamente desenvolvidas, poderemos dizer que realmente construímos o
socialismo e declarar de forma convincente que o socialismo é superior ao capi-
talismo. Nós estamos avançando rumo a essa conquista.

Essa estratégia, que foi capaz sobreviver à débâcle do bloco socialista no início
da década de 1990, guarda em si algumas ideias-força, entre elas: a ideia, elaborada
ainda por Mao Tsetung, do chamado socialismo com características chinesas e a da
teorização – já mencionada conforme citação anterior do economista russo Evgeni
Preobrazhenski – de uma determinada etapa primária do socialismo, sintetizada sobre
uma base econômica privada e mercantil, porém hegemonizada pelo setor socialis-
ta da economia sob a égide de uma superestrutura de poder popular, cuja síntese pode
ser vista na essência de um chamado (nada paradoxal) socialismo de mercado. Este
conjunto de ideias e conceitos trabalhados minuciosamente é parte de um todo que
envolve uma grande política de Estado nascida em 1978, cujas palavras de ordem
estão expostas segundo as chamadas Quatro Modernizações51.
De forma concreta, as expostas ideias-força implicaram o reconhecimento da
impossibilidade de uma Terceira Guerra Mundial, envolvendo o capitalismo e o so-
cialismo e abrindo condições políticas internas a um amplo processo histórico e
geográfico de inserção soberana chinesa na chamada “globalização” como forma
– em um mundo marcado pelo rápido desenvolvimento das forças produtivas (de-
cadência do modelo fordista com grandes impactos negativos sobre a URSS e o
nascimento da III Revolução Industrial centrada no Japão) –, reprojetando o país
no rol das grandes nações. Faz-se necessário salientar que esse processo de retifica-
ção de curso baseou-se em dois movimentos, um interno e outro externo, capazes de
moldar as duas molas propulsoras iniciais do projeto chinês, a saber:

a) o movimento de reconstrução de pacto de poder de 1949, de forma que as


relações entre campo e cidade passassem a ser favoráveis à agricultura, o
que redundou na utilização da capacidade milenar de comércio e de acu-
mulação do camponês médio chinês, por meio não somente da produ-

Trata-se da modernização da agricultura, indústria, forças armadas e dos setores relacionados


51

à ciência e tecnologia. Essa ideia surge elaborada inicialmente pelo outrora primeiro-ministro
Zhou Enlai em 1964.

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O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

ção agrícola em si, mas principalmente do aparecimento das chamadas


Empresas de Cantão e Povoado (ECPs) que, por um lado, ao abrigar mão
de obra intensiva no campo, transformaram o processo de urbanização
na China em um fenômeno tipicamente rural e, por outro, ao responder
por até 40% das exportações recentes chinesas, constituíram condição
de primeira ordem à invasão pelo mundo de produtos made in China. Na
ponta desse processo, podemos dizer com tranquilidade que a utilização
deste potencial camponês foi o epicentro de uma política econômica ba-
seada no acúmulo de reservas internacionais, como a base interna para
a sustentação do projeto de modernização do país. Eis a primeira mola
propulsora do projeto e da estratégia chinesa;
b) o movimento de constituição de um círculo internacional chinês espa-
lhado pelo Sudeste Asiático, com poder financeiro suficiente para carrear
seus excedentes pelo continente, viabilizando, assim, tanto o financia-
mento externo da modernização e a internalização de avançadas técnicas
modernas de administração quanto a solução de pendências históricas
como Hong Kong, Macau, e principalmente Taiwan. Esse círculo interna-
cional tornou-se, assim, a segunda mola propulsora do processo.

aaaaaaaaaaaa

Vejamos bem: as ditas “molas propulsoras” elencadas acima integram a base


de uma necessidade de qualquer processo histórico que encete a construção do so-
cialismo: a harmonia entre superestrutura e base econômica. Trata-se de uma questão
objetiva, de teoria e prática, que coloca a concorrência interna entre os setores es-
tatal e privado da economia como meio de dinamizar a própria base econômica
socialista da economia – além do reconhecimento da historicidade de determinadas
categorias, entre elas o mercado e a lei do valor. No plano externo, a mesma situação
ocorreu: os chineses trouxeram a disputa entre os dois sistemas para o campo do
comércio exterior52.
52
A relação entre o processo de solidificação do socialismo e a concorrência entre os setores so-
cialista e privado da economia pode ser encontrada em Princípios do comunismo, de Engels. Esta
relação foi retomada por Lênin em meio à NEP soviética e está em claras palavras em LÊNIN, V.
“We have paid too much”. In LENIN, V. Collected works, 2nd Printing. English Edition. Progress
Publishers. Moscou. 1972. Vol. 33, pp. 330-334.

115
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

A consequência dessa “guerra comercial” é encerrada em seu crescente pode-


rio financeiro como a tábua em que se assenta uma planificação do comércio exterior,
possibilitadora da implementação de uma convivência imediata com o imperia-
lismo, que inclui – não espantosamente – o financiamento dos chamados déficits
gêmeos do próprio imperialismo. Porém, a grande expressão dessa nova força fi-
nanceira internacional está na possibilidade de proscrição dos principais órgãos
financeiros surgidos no âmbito de Bretton Woods, notadamente o FMI e o Banco
Mundial – conforme a política africana e latino-americana da China vem demons-
trando nos últimos anos.
A grande pré-condição de todo esse complexo político-econômico reside no
controle estatal sobre os setores estratégicos da economia, e principalmente o con-
trole dos instrumentos cruciais do processo de acumulação (crédito, juros, câm-
bio e sistema financeiro). Combinado a esse controle seletivo está o planejamento,
possibilitando à China anteparo diante de crises externas, conforme a resposta
chinesa à crise asiática de 1997 e à recente crise financeira centrada nos EUA: em
ambos os casos, os chineses giraram o compasso de seu crescimento em torno
de seu mercado interno, combinando alavancamento de imensas obras públicas e
financiamento a consumo e produção internos, a partir de uma política de juros
altamente atraente ao crédito.
O resultado dessa política calculada vê-se no estatelamento mundial com o
desempenho econômico chinês. Porém, sabendo-se que a contradição é o motor do
processo, e que o próprio processo de desenvolvimento é marcado por sucessivas so-
luções/surgimentos de contradições, não podemos nos esquivar perante as grandes
contradições surgidas no bojo desse processo, conforme veremos a seguir.

aaaaaaaaaaaa

Podemos de imediato relacionar três grandes fontes de limites que se relacio-


nam ao processo em andamento na China. Trata-se da relação entre o tamanho de
sua população, os recursos existentes em seu território e o modelo clássico de industrialização
extensiva. Dessa relação, podem ser extraídas as principais contradições surgidas
nessa esteira desenvolvimentista: a pressão sobre os recursos naturais, as desigual-
dades sociais e regionais e os danos ao meio ambiente.

116
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

Gráfico 1 – População chinesa ano 1-2030


10 000 000 –

1 000 000 –

100 000 –

10 000 –
0–
50 –
100 –
150 –
200 –
250 –
300 –
350 –
400 –
450 –
500 –
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650 –
700 –
750 –
800 –
850 –
900 –
950 –
1000 –
1050 –
1100 –
1150 –
1200 –
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1400 –
1450 –
1500 –
1550 –
1600 –
1650 –
1700 –
1750 –
1800 –
1850 –
1900 –
1950 –
2000 –
2030 –
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

A população chinesa ainda não atingiu seu pico (ver gráfico acima). O início
de sua curva decrescente deverá ocorrer por volta de 2030, quando o país poderá
chegar a 1,5 bilhão de habitantes.
Apesar de a economia da China ter superado a japonesa em 2010, tornando-se
o segundo maior PIB do mundo, sua economia ainda se encontra muito atrás do
conjunto norte-americano e da União Europeia. A China – apesar das duplicações
do PIB pós-1978 – ainda se situa entre as economias de baixa renda per capita. É
sempre relevante colocar em pauta o fato de, com 1/5 da população mundial, a Chi-
na contar com somente 6% das terras em condições de plantio no planeta.
No campo de análise da produção industrial e do caráter extensivo caracte-
rizado por um grande aporte de capital e trabalho, em detrimento da incorporação de
novas tecnologias, podemos afirmar que esse tipo de produção é grande fonte de
contradições, cuja superação é determinada pela incorporação de novos paradig-
mas tecnológicos capazes de acelerar a produtividade do trabalho. Não somente
isso – conforme o desenvolvimento interno do país vem nos mostrando –, também
é necessário aprofundar a mudança em curso do modelo, o que implica o fortale-

117
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

cimento da demanda interna e das empresas nacionais e a lenta diminuição do


fator comércio exterior na composição do PIB, que passou de 22% em 1992 para a
altíssima taxa de 47% em 2006.
Em que pese a grande façanha da inclusão na China, a grande verdade é que
as desigualdades, pelo menos até a metade da primeira década do século XXI, au-
mentaram substancialmente. Além disso, apesar de a pobreza rural ter diminuído,
a pobreza urbana aumentou, passando, entre 1999 e 2003 de 11 milhões, ou 2,5%
da população, para 23 milhões, ou 4% da população urbana. Voltando à questão
do aumento das desigualdades, se tomarmos o coeficiente 20/20 (parte da renda
nacional dos 20% mais ricos e 20% mais pobres), perceberemos que o mesmo au-
mentou de 6,5 em 1990, para 10,6 em 2001. Esses dados se confirmam se partirmos
das bases de cálculo do índice de Gini (10/10): os 10% mais ricos passaram a deter,
entre 1999 e 2001, de 24,6% a 33,1% da renda nacional53.
É imperioso demonstrar também a pressão sobre os recursos naturais origi-
nados desse tipo de organização industrial: atualmente a China necessita de 832
toneladas de petróleo para produzir US$ 1 milhão em riquezas, isto é, quatro vezes
mais que os EUA (209 ton.), seis vezes mais que a Alemanha (138 ton.) e sete vezes
mais que o Japão (118,8 ton.)54.

aaaaaaaaaaaa

À luz da estratégia chinesa remodelada em 1978 e observando atentamente o


atual curso de contradições em marcha no país, podemos expor que, 30 anos após a
inauguração do projeto de Reforma e Abertura, o país encontra-se em outro patamar,
para enfrentar tanto seus desafios externos quanto – principalmente – os internos.
Não se trata de mais uma repetição atualizada de conjunturas como a de 1949,
em que a necessidade de industrialização rápida e acelerada contava com pífios
recursos, nem como a de 1978, quando os requerimentos da modernização eram,

53
BUSTELO, Pablo. “China 2006-2010: hacia una nueva pauta de desarrollo”. In Revista electró-
nica de la Fundación Real Instituto Elcano. Madrid: n. 127-2005 – 26-10-2005. Acessado em 25-03-
2007.
54
BEI Jin. “From concept to implementation: a scientific concept of development”, Time, 24-
01-2007. Disponível em: http://www.safea.gov.cn/english/content.php?id=12742807. Acessado
em 03-03-2008.

118
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

em larga medida, assentados numa grande inflexão externa do regime, dada sua
não autonomia financeira e tecnológica. O que a China e seu projeto têm a favor na
atual contenda é o fato de as suas soluções estarem ao alcance de uma economia
já calcada em bases industriais sólidas, com uma política ativa em ciência e tecno-
logia e – o principal – nos marcos de uma solidez financeira sem precedentes em
sua história.
Essa conjunção de fatores é condição objetiva para o lançamento de novas e
superiores formas de planejamento, como expressão prática e em correspondência aos
objetivos e desafios colocados pela conjuntura à atual geração dirigente. Um plane-
jamento de nível superior que signifique a utilização do acúmulo financeiro chinês
no combate às desigualdades sociais e regionais num outro patamar e que seja
capaz de aproveitar a oportunidade dada pela história. O momento atual se carac-
teriza pela convivência em um mesmo mundo de milhares de cabeças, homens
dedicados à ciência. Homens esses que em nenhum momento da história foram
contemporâneos – tanto nossos, quanto de si mesmos – e que à sua disposição con-
tam, especialmente no centro do sistema, com recursos materiais inimagináveis e
capacidade de dar curso às suas elucubrações mediados por um planejamento estatal
e privado cada vez mais milimétrico.
Ora, se a prática é o critério primário capaz de auferir a verdade, é muito claro
que novas abordagens em matéria de planejamento estão altamente inseridas em
projetos como os relacionados ao desenvolvimento do oeste e à recente reforma fi-
nanceira que possibilitou reduzir a “zero” os impostos sobre os camponeses (tendo
como resultado a colheita recorde de grãos de 528,5 milhões de toneladas em 2008).
Tais abordagens planificadoras podem ser registradas inclusive no atual aproveita-
mento da oportunidade aberta pela crise financeira dos EUA para a compra, por
parte de chineses, de ativos bancários tanto norte-americanos quanto europeus.
No plano da política, isso se expressa em novas ideias-força, entre elas o obje-
tivo de construção de uma “sociedade socialista harmoniosa” e a transformação do
“conceito científico de desenvolvimento” em política de Estado.
Enfim, se podemos falar de um legado que se clarifica no passar dos últimos
30 anos, pode-se registrar que, como uma civilização milenar, os chineses pude-
ram tanto modelar seu próprio projeto revolucionário quanto adaptar os tentos da
Revolução Industrial inglesa com as próprias formas rurais de industrialização,

119
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

dando cores novas ao desenvolvimentismo de tipo asiático, e gerando, conforme M.


Castells, um “Estado revolucionário e desenvolvimentista”.

2.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O MERCADO E A


TRANSIÇÃO E UM MODELO DE APROXIMAÇÃO AO
SOCIALISMO DE MERCADO CHINÊS
Uma necessária polêmica que deve ser enfrentada é relacionada ao senso co-
mum, que relaciona mercado com capitalismo e que, portanto, entende socialismo
e mercado como duas categorias incompatíveis, assim como capitalismo e plane-
jamento econômico ou territorial55. Isso se aplica também à lei do valor. Enfim, o
mercado deve ser visto, de forma pobre, apenas como o local onde se encontra a
oferta e a procura, ou analisado como uma categoria historicamente concebida?
Além disso, é necessário o resgate de pensadores como Oskar Lange, tanto para ini-
ciar o combate ideológico com os setores liberais no debate de ideias quanto para se
buscar uma elaboração que contemple a aplicabilidade do socialismo e de modelos
de aproximação com o caso chinês.

aaaaaaaaaaaa

55
Sobre o mercado e a lei do valor, no suplemento ao Prefácio do Tomo 3 de O Capital, F. Engels
escreveu: “Mas a troca de mercadorias remonta a uma época pré-histórica que nos reporta, no
Egito, a pelo menos 3.500, talvez 5.000, na Babilônia, a 4.000 e talvez 6.000 anos antes de nossa
era; a lei do valor reinou por conseguinte durante um período de 5.000 a 7.000 anos”. Já Mau-
rice Dobb, em seu clássico A evolução do capitalismo (p. 129 da 7a edição), deixa claro que: “No
correr de suas notas sobre o capital mercantil, Marx assinalou que este, em seu estágio inicial,
tinha uma relação puramente externa com o modo de produção. Que permanecia independente
e intocado pelo capital: o mercador era apenas o ‘homem’ que ‘removia’ os artigos (...) para
ganhar com as diferenças de preço entre as diversas zonas produtoras”. Enfim, o que determina
a característica do processo é a produção e não a circulação como muitos pensadores consagrados
(I. Wallerstein, P. Sweezy, C. Prado etc.) colocavam ou colocam. Giovanni Arrighi, em Adam
Smith em Pequim (p.35), de forma quase brilhante, numa leve crítica a Gunder Frank e outros
“teóricos da dependência”, remete-nos à seguinte reflexão: “Até a década de 1960, nenhum teó-
rico marxista de algum relevo havia aceitado o convite de Marx para ‘deixar por algum tempo a
esfera barulhenta (do mercado), onde tudo acontece na superfície e à vista de todos os homens,
e seguir (o possuidor do dinheiro e o possuidor da força de trabalho) até a morada oculta da
produção’, onde, prometia, ‘descobriremos finalmente o segredo da força do lucro”.

120
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

O mercado é uma categoria histórica e, como toda categoria histórica – seja o


mercado ou a lei do valor –, demanda condições objetivas e subjetivas à sua supe-
ração56. A bem da verdade, o mercado é síntese da separação, no bojo da economia
doméstica, entre a economia de ganho e a economia de troca. Como síntese da ação
espontânea das leis econômicas expressas nas relações homem-natureza, e do nível
do desenvolvimento das forças produtivas derivadas do mercado, a sua superação
não é determinada pela vontade humana. Afinal, a história do homem ou mesmo
a história da natureza devem ser observadas como um grande processo permeado
por transições dentro de outras transições e assim sucessivamente.
Por outro lado, enxergando a história sob o ângulo das categorias filosóficas
de processo e transição, vale enfrentar, rapidamente, outra polêmica encerrada
na dicotomia: socialismo como superação do capitalismo ou como uma proposta
anticapitalista. Como proposta política e bandeira estratégica de luta, o socialismo
identifica-se como algo diametralmente oposto ao capitalismo e suas contradições.
Porém, como construção que demanda longos processos históricos e tendo em re-
levo sua ocorrência não no centro do sistema e sim na periferia – onde as forças
produtivas sociais não chegaram a determinados patamares e onde a mentalidade
da pequena produção é hegemônica –, o socialismo é uma etapa que inicialmente
busca superar o capitalismo partindo de parâmetros produtivos semelhantes ao
capitalismo, pois:

a) ainda se faz necessária a utilização de mecanismos de mercado como a


melhor forma criada pelo homem para a melhor alocação de recursos;
b) a produção de mercadorias subsiste mediada produtivamente, seja por
sua forma em pequena produção mercantil (NEP na URSS), fordista,
seja pela forma mais avançada e próxima do socialismo, o toyotismo;
c) a mais-valia continua exercendo seu papel, porém agora não mais sob
forma de apropriação privada, e sim concentrada e voltada às necessida-
des do plano e da sociedade;
56
A principal condição objetiva para a superação do mercado é a capacidade de produção de
magnitude tal que a escassez venha a ser superada, pois o mercado é meio de aferição da escas-
sez. Já como condição subjetiva, pode-se citar um poder político comprometido com a abolição
da exploração do homem pelo próprio homem e da quebra do poder exercido pelo monopólio/
oligopólio de indução de elasticidade na oferta de produtos.

121
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

d) o processo de acumulação do socialismo não prescinde da etapa finan-


ceira (sistema financeiro completo sob o formato de bancos e mercado
de capitais); daí por que, para Lênin, “a economia monetária, sendo a
maior invenção do capitalismo, também deve estar a serviço do socia-
lismo”;
e) as diferenças entre capitalismo e socialismo restringem-se à nova com-
posição de classes no poder, pela forma de apropriação do excedente
econômico, pela propriedade social dos meios de produção nos setores
com alto grau de monopólio e pela ampla utilização dos mecanismos de
planejamento e não pelo processo produtivo em si57.

O exposto acima, ao ser analisado de forma minuciosa e à luz das caracterís-


ticas de dada formação econômico-social, serve à abertura de um amplo conjunto
de atividades científicas que têm como núcleo a possibilidade de funcionamento de
uma economia centralmente planificada, baseada na propriedade social dos meios
de produção, onde as relações de troca, distribuição e alocação de recursos têm no
mercado o seu norte.
Interessante notar que foram os neoclássicos, e não os marxistas propriamente
ditos, os primeiros economistas a demonstrar não somente a possibilidade econô-
mica do socialismo como também a combinação entre plano, mercado e superes-
trutura de poder popular. Assim, podemos classificar Vilfred Pareto e Enrico Baro-
ne como pioneiros da ideia de uma economia mercantil com orientação socialista.
Ambos partiram do correto princípio que compreende a similaridade de fun-
cionamento econômico do capitalismo e do socialismo. Assim, concluíram que as
condições de equilíbrio poderiam ser alcançadas pela utilização de um sistema de
equações simultâneas onde os preços delas resultantes poderiam servir de parâme-
tro à correta e racional alocação de recursos58.
57
Em diversas ocasiões circunstanciadas em dezenas de artigos escritos entre 1918 e 1924, Lênin
deixa clara a necessidade de o socialismo se apropriar das maiores invenções e técnicas postas
em uso pelo capitalismo. Isso deveria servir de parâmetro a heresias como as reproduzidas pelos
laboratórios de Geografia Agrária da USP e Unesp de Presidente Prudente acerca da erupção de
uma nova sociedade partindo de formas primitivas de agricultura e calcadas em conceitos sem
fundo científico como “agricultura familiar”.
58
Pareto demonstrou sua hipótese em duas obras: Socialist system (1903) e Manual of political
economy (1906). Barone destacou-se pela publicação, em 1908, de The ministry of production in the
collective state.

122
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

Já em matéria de prática concreta em “socialismo de mercado”, além do mo-


delo inaugurado, em 1978, na China, vale mencionar a Nova Política Econômica
(NEP) apresentada por Lênin no final da década de 1910 e aplicada a partir da
década de 1920. Apesar da necessidade de se historicizar cada uma das citadas ex-
periências, uma série de convergências pode ser destacada, entre elas:

a) superestrutura de poder popular;


b) concentração da propriedade estatal e/ou coletiva restrita aos setores com
alto grau de monopólio;
c) estatização do comércio exterior;
d) internalização de tecnologia avançada a partir de concessões a investi-
mentos estrangeiros;
e) permissão à comercialização de excedentes agrícolas, dando margem a:
– divisão social do trabalho marcada por relações favoráveis à agricultu-
ra em relação à cidade e
– transformação de recursos ociosos na agricultura em poupança inicial
para a modernização industrial do país59.

Resumindo, já em Lênin a possibilidade de uma regulação mercantil no âm-


bito do poder popular e do plano já fora auferida e posta em prática. Desta forma,
nada do que a China aplica em matéria de política econômica e transição a uma
organização superior de sociedade é novo. O que muda é a conjuntura e o nível
de acirramento da luta de classes em âmbito mundial que, por sua vez, viabiliza
ou não determinadas experiências e ousadias em matéria de prática política e de
programação econômica.
Assim sendo, a correlação de forças da luta de classes em âmbito mundial e na-
cional é uma determinação (dentre as múltiplas) de primária ordem à elaboração
de uma economia política do socialismo calcada na categoria de formação social,
pois tudo está em movimento. Nada é estático e nem sólido, e o processo – filosofi-
59
A NEP, como experiência, foi abortada pelo acirramento da luta de classes no âmbito mundial
(isolamento comercial da URSS); logo, o “modelo soviético” marcado pela formação de poupan-
ça relacionada às safras agrícolas foi a melhor forma de se auferir uma rápida industrialização.
Sobre a “espinha dorsal” da NEP, ler LÊNIN, V. I. “Sobre o imposto em espécie (o significado
da nova política e suas condições)”, in Obras escolhidas. Vol. 3, Alfa-Omega. São Paulo. 2004, pp.
492-520.

123
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

camente falando – está sob comando da política que, por seu turno, tem seu centro
imediato na correlação de forças.

2.4.1 O contraditório a-histórico no ultraliberalismo

É importante voltarmos ao conjunto de debates que envolveu os defensores ou


não da viabilidade econômica do socialismo. A visão de conjunto é mister na aná-
lise deste debate para se perceber que os ataques ao socialismo eram proporcionais
ao aumento da influência da URSS no mundo, notadamente por seu crescimento
em meio a uma crise mundial capitalista pós-1930 e o papel, por ela desempenha-
do, na Segunda Guerra Mundial. Observamos ainda que a ofensiva ultraliberal era
direcionada tanto ao socialismo quanto à versão século XX do welfare state.

aaaaaaaaaaaa

A partir de 1920, Von Mises e seus seguidores (notadamente Hayek e Robbins)


desafiaram os socialistas com assertivas demonstrativas da impossibilidade do fun-
cionamento de uma economia centralmente planificada.
Suas elaborações buscaram demonstrar que a inviabilidade do socialismo re-
pousa na insuficiência do planejamento em substituir o cálculo econômico como
meio de analisar a melhor forma de alocação de recursos. Resumidamente, sendo
o cálculo a única forma de se auferir escassez, na falta desse mecanismo torna-
-se proibitiva a tomada de decisões racionais de investimentos60. Uma economia
planificada e baseada em decisões elaboradas por agentes administrativos estaria
fatalmente condenada ao caos macroeconômico.
O ultraliberalismo é legado do que Marx classificou desdenhosamente como
“economia vulgar”. Resumidamente, são dois os pressupostos teóricos dessa corrente:

a) da mesma forma que as leis da natureza, as leis econômicas também


têm caráter universal;
b) como universais, as leis econômicas atuam de forma uniforme e invari-
ável em qualquer lugar onde ocorram atividades econômicas.
60
O trabalho de Von Mises de 1920 pode ser encontrado em inglês em Von Hayek, F. (org.).
Collectivist economic planning, publicado em 1935. Outra obra, Socialist, foi publicada em 1937 em
Nova York.

124
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

Como se vê, para os ultraliberais a economia política não é uma ciência voltada
à matéria histórica, onde o fenômeno é visto como problema histórico e a busca de
sua essência passa por sua historicização. Daí o caráter místico, idealista e coisifi-
cador do pensamento liberal.
A essência do materialismo histórico encontra-se na demonstração de que as
leis e categorias da economia política não são imutáveis como as leis da natureza,
mas sim o resultado das relações econômicas entre os homens no curso do pro-
cesso social de produção, distribuição e troca dos meios materiais. Logo, as leis da
economia política – e as relações sociais que dela derivam – têm prazo de validade
determinada pela história.
Para os ultraliberais, a propriedade privada dos meios de produção é requisito
fundamental tanto para a alocação racional dos recursos como para a liberdade de
escolha dos consumidores.
Tomando a observação acima e agregando que, na cultura liberal, o processo
econômico é regido por leis de cunho universal (logo, negando a formação econô-
mico-social), com a finalidade de colocar em xeque a hegemonia exercida atual-
mente no mundo por esse “corpo teórico”, podemos questionar:

a) a “concorrência perfeita” no capitalismo não foi substituída pelo oligopó-


lio, cuja superação só é possível no socialismo?
b) afirmar a inviabilidade do socialismo pelos motivos já expostos não re-
dunda numa surpreendente análise institucionalista de uma elaboração
ultraliberal?
c) se as leis econômicas têm caráter universal, não é contraditório enunciar
a racionalidade econômica como característica intrínseca de uma socie-
dade baseada na propriedade privada dos meios de produção?61

2.4.2. Oskar Lange e a “solução competitiva” no socialismo

Desse embate (entre socialistas e ultraliberais) datado inicialmente da década


de 1920, pode-se dizer que fora gestada uma ideia sistematizada sobre a essência de
61
A negação da possibilidade da racionalidade econômica no socialismo é um enunciado pura-
mente institucionalista.

125
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

uma economia mercantil de orientação socialista, independentemente da hegemo-


nia exercida pelo pensamento emanado de Moscou acerca do processo de acumula-
ção sob o socialismo e a censura branca imposta a elaborações dessa natureza.
A principal resposta no campo marxista às elaborações ultraliberais veio de
Oskar Lange (1904-1965). Suas mais importantes elaborações foram publicadas
inicialmente em duas partes, em 1936, sob o título On the economic theory of socialism.
Posteriormente, em 1938 – em parceria com Fred Taylor –, transformou-as em livro
sob o mesmo título.
Lange, demonstrando sensibilidade diante dos problemas levantados pelos ul-
traliberais, construiu – juntamente com Fred Taylor e Abba Lerner – um teorema
que alcançou um surpreendente resultado, onde um sistema socialista mediado pela
planificação central e munido de um sistema de preços como referência à alocação
de recursos poderia obter um ótimo resultado econômico semelhante ao obtido nos
teoremas econométricos de Arrow Abreu. Para tanto, partiu de cinco premissas:

a) a diferença entre os dois sistemas encontra-se na composição de classes


no poder e na forma de apropriação do excedente econômico;
b) o modo de determinação dos preços no socialismo deve funcionar de
forma análoga à verificada numa economia capitalista;
c) o poder popular deve se ocupar, em princípio, somente com a socializa-
ção dos meios de produção essenciais ao funcionamento da economia;
d) o cálculo econômico é essencial, pois nenhum mecanismo substitui
completamente o mercado;
e) a propriedade privada em pequena escala na indústria e na agricultura é
parte essencial do processo de acumulação socialista62.

O núcleo de sua teoria é baseado na formação – no âmbito do plano – de um


organismo capaz de simular o mercado. A combinação do mercado com o socialis-
mo reside na relação dialética entre três níveis decisórios:

a) o topo da pirâmide, com a Comissão de Planejamento Central, com a


tarefa de:
62
LANGE, O. The practice of economic planning and the optimum allocation of resources. Econometrics.
Chicago, 1949, vol. 17, pp. 167-178.

126
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

– ajustar os preços dos meios de produção de acordo com a oferta e a


demanda;
– distribuir os ganhos sociais utilizando as reservas das empresas esta-
tais;
– apesar de seu poder, a Comissão – como na China – não tem poder
sobre o que e como se vai produzir;
b) o nível intermediário, ocupado pelos departamentos de administração
das indústrias, responsáveis pela determinação de vários setores da pro-
dução;
c) o plano inferior, onde estão as empresas estatais, a permitida proprieda-
de privada em setores não estratégicos e as famílias.

Ao elaborar, divulgar e ter a elaboração acima colocada em prática, e adaptada


à realidade chinesa, Oskar Lange pode ser colocado ao lado de pensadores como A.
Gramsci, M. Kalecki, I. Rangel, M. Dobb e outros no panteão dos grandes cientistas
sociais marxistas do século XX63.

2.4.3 Acumulação no rumo do “socialismo pleno”

Em qualquer investigação que tenha a transição ao socialismo como objeto, e


consequentemente a categoria de modo de produção como eixo, é válida a devida
historicização das transições históricas como um todo. Dizemos isto para expor que,
diferentemente de seus predecessores, o socialismo é a única proposta de sociedade
que vislumbra o fim da exploração do homem pelo próprio homem, logo, seu pro-
cesso de engendramento tende a ser muito mais complexo e tortuoso. Isso se aplica
diretamente à questão que envolve o processo de acumulação socialista, dado o fato
de os principais adversários do novo regime não serem ainda – e mesmo na fase
preliminar da referida acumulação – diretamente a pequena ou média propriedade
63
Oskar Lange, da mesma escola polonesa que produziu intelectuais do nível de Michael Kale-
cki, iniciou sua atividade científica na Universidade de Cracóvia em 1938. Entre 1938 e 1945, foi
professor da Universidade de Chicago, onde pôde polemizar pessoalmente com Von Hayek. Após
a Segunda Guerra Mundial, foi conselheiro econômico do governo indiano e ocupou variados
postos de comando na planificação econômica de seu país, a Polônia, além de ter sido membro
do Comitê Central do Partido Operário Unificado Polonês.

127
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

privada intrínseca à realidade nacional, e sim o imperialismo e os monopólios. A


teorização deve estar constantemente colada à história e à realidade específica da
unidade de análise. É importante repetir: isso se remete diretamente ao processo e
à velocidade do processo de acumulação sob um regime de novo tipo.

aaaaaaaaaaaa

A vantagem obtida por economistas como Oskar Lange e gestores do modelo


chinês encontra-se no fato de haverem percebido que a solução da problemática
econômica do socialismo passa pela utilização dos enunciados clássicos.
No terceiro volume de O capital, Marx – influenciado por David Ricardo – de-
monstra claramente o papel exercido pela demanda sobre a racional alocação de re-
cursos. Isto se deve ao fato de o valor utilidade de uma mercadoria estar relacionado
diretamente com a demanda efetiva da mesma. Segundo Engels64, “a utilidade que
apresentam todos os bens de consumo, comparada entre si, e a consideração ine-
rente à quantidade de trabalho para produzi-los, serão os fatores que determinarão
o plano”.
Em poucas palavras, Engels suscita a solução do problema. Solução esta traba-
lhada detalhadamente por Oskar Lange.
Em Lange, o socialismo demonstraria superioridade na medida em que a
quantidade de trabalho utilizada na produção de uma mercadoria refletisse a quan-
tidade marginal; logo, os custos de produção tenderiam a se reduzir. Assim, em lon-
go prazo tal custo refletiria os custos do trabalho necessário. A diferença entre os
custos do trabalho e o valor real da mercadoria é consequência das rendas diferenciais
originadas no preço dos serviços dos recursos naturais65.
Ao levar às últimas consequências o processo de acumulação descrito acima,
chega-se ao ponto em que a produtividade marginal do capital chegaria a zero66. A
lei da oferta e da procura, e a lei do valor, perderiam razão de existir na medida
em que a produção de cada mercadoria se elevasse a ponto de as quantidades mar-
ginais de trabalho empregadas na obtenção de diferentes mercadorias se iguala-
64
ENGELS, F. AntiDüring. Paz e Terra. São Paulo, 3ª ed., 1990, pp. 335-336.
65
LANGE, O. On the economic theory of socialism. Universidade de Minnesota. 1938, p. 147.
66
A redução da quantidade marginal a zero é produto da ação da propriedade social dos meios
de produção e do planejamento.

128
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

rem à razão auferida das utilidades marginais e dos preços dessas mercadorias67.
A apreensão de automação industrial é a condição objetiva principal ao êxito
desse processo de longo prazo. Além do já escrito, a automação industrial permite
a libertação do homem do jugo da máquina: é o fim do processo de educação do
proletariado que, enfim, poderia gerir a produção à sociedade.
Mas vale dizer que o processo descrito acima – concebido pelos clássicos e
melhor decifrado por pensadores como Oskar Lange – deve ser passível de prova no
âmbito da formação econômico-social. Eis o “x” da questão. O exposto é o genérico,
mas – ao contrário do momento em que se generalizou o modelo soviético – o salto
metodológico reside no estudo do objeto de análise. Na China, em nosso caso.

2.5 CONCLUSÕES DA PARTE 2


Esperamos que este capítulo tenha sido capaz de demonstrar uma visão geral,
tanto no que se refere à teoria e método, quanto ao próprio objeto. Os passos se-
guintes servem, necessariamente, para aprofundar algumas considerações, princi-
palmente aquelas relacionadas à dinâmica da formação social chinesa, o processo
de desenvolvimento e seus pilares produtivos-chave (agricultura e indústria) com
uma necessária dose de “empírico”.
A intenção inicial passou, necessariamente, por uma demarcação de fronteira
do ponto de vista do método (resgate da objetividade histórica) e da própria teoria.
Nesta questão da teoria, em verdade, intentamos conceber a geografia como um pos-
sível ponto de encontro entre a ciência da economia política e da categoria marxista
de formação social. Eis o caminho que trilhamos no rumo de uma compreensão
mais realista da essência tanto da transição quanto do socialismo de mercado chinês.
Daí o resgate da velha citação de Engels no AntiDüring acerca da não possibilidade
de haver uma única economia política. Fazendo uma analogia com outra citação de
Engels, podemos dizer que existe tanto a economia política das tribos africanas, das
leis que norteiam o mercado de Caruaru, como a dos planos quinquenais chineses.
Logo, a síntese das relações entre forças produtivas e relações de produção e entre
base econômica e superestrutura não obedece à mesma lógica em todos os cantos do
mundo, e sim às peculiaridades de cada nação, região ou formação social.
67
ENGELS, F. AntiDüring. Paz e Terra. São Paulo, 3ª ed., 1990, p. 127.

129
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Aliás, talvez seja nesta relação entre “local e global” que Marx tenha superado
os tratados liberais. Para os liberais, as leis econômicas são universais e servem de
parâmetro tanto para analisar o funcionamento da Bolsa de Nova York quanto da
economia natural do deserto da Austrália. A história, a formação social e a exis-
tência da matéria, precedendo o pensamento, estão fora do escopo da chamada
“economia vulgar” (os monetaristas de hoje). Assim também cabe ao socialismo.
Ora, não é incomum a relação direta entre o projeto socialista com propostas ultra-
estatizantes ou, nas palavras de Gramsci, a “estatolatria”. O “modelo soviético” e a
própria III Internacional, além de seus partidos-satélites pelo mundo, contribuíram
muito para essa lógica da primazia da indústria pesada e da completa estatiza-
ção dos meios de produção, partindo de princípios maniqueístas quanto ao papel
histórico da propriedade privada. Modelo com potencialidades comprovadas pela
história recente teve – dentre outros limites – na escassez do investimento privado
um sério problema, pois ao sobrecarregar o Estado em investimentos prioritários
como a indústria pesada e depender, em demasia, de safras camponesas, acabava
afetando gravemente a demanda.
Carlos Aguiar de Medeiros expõe esse problema como se segue68:

Historicamente, tendo em vista o tamanho da população chinesa e o seu nível de


renda, a principal restrição ao crescimento liderado pelos investimentos públicos
foi o ritmo de expansão da produção de bens de consumo, essencialmente for-
mado pelos alimentos. Assim, na medida em que os investimentos estatais eram
acelerados segundo as decisões de governo, a expansão consequente da massa de
salários punha em marcha uma demanda por alimentos que se transformava no
curto prazo numa pressão inflacionária – ou como o que aconteceu no período
do “grande salto à frente” numa escassez generalizada –, levando a uma desace-
leração dos investimentos e do crescimento econômico (...).

Resgatar esse sentido da transição é essencial ao enfeixamento de encaminha-


mentos e elaborações que, se não conclusivas, ao menos lançam luzes sobre um
debate quase sempre feito no campo do dogmatismo. Buscar o sentido da transição

68
MEDEIROS, Carlos A. de. “A China como um duplo polo na economia mundial e a recentra-
lização da economia asiática”. In Revista de economia política. Vol. 26, n. 03, julho/setembro de
2006.

130
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

na ciência histórica, na economia política de Marx, Engels, Lênin e Ignacio Rangel


e na categoria de formação social, é uma estrada sem vicinais, porém até certo
ponto tortuosa, que leva ao objetivo de se ter uma visão mais séria e científica sobre
o socialismo.
Partindo do pressuposto segundo o qual a forma é estática e a formação é algo
em constante desenvolvimento ao longo da história, e que não existe economia po-
lítica voltada aos interesses das mais amplas maiorias da sociedade fora dos marcos
da formação social, é que se segue para uma análise histórica e depois conjuntural
da questão chinesa. O sentido do socialismo de mercado chinês está presente tanto
no entendimento do caráter historicamente dado de categorias como o mercado e
a lei do valor, do dinamismo da pequena produção mercantil, do papel desempe-
nhado pela família camponesa no âmbito do modo de produção asiático, na com-
petência de um Estado nacional, formado 500 anos antes do nascimento de Cristo,
quanto na extensão temporal do próprio projeto nacional chinês.
É importante também resgatar o raciocínio de Medeiros, para expor a solução
do problema dos limites dos investimentos públicos entre 1949 e 197869: “Com as
reformas de Deng Xiaoping em 1979, a agricultura chinesa passou por um choque
de produtividade, elevando a taxa de crescimento potencial da economia chinesa
reduzindo sua volatilidade”.
Algo novo que lançamos e para o qual queremos chamar (novamente) a aten-
ção é o fato de a China, um país sob orientação socialista, ter-se tornado, ao longo
dos anos, uma verdadeira potência financeira que, com sua maleabilidade política,
aos poucos vai prescrevendo instituições criadas no âmbito do acordo de Bretton
Woods e levadas, ao longo do século XX, a obedecer aos desígnios estratégicos do
imperialismo. Mais do que isso, com sua capacidade de suplantar a anarquia da
produção no âmbito do comércio internacional, ter-se mostrado o único país-ins-
tituição com margem de manobra financeira suficiente para manter a liquidez in-
ternacional em tempos de crise financeira, demarcando assim território e prestígio
internacionais.
Logo, duas observações devem ser consideradas. A primeira acerca da transi-
ção de um mundo unipolar para outro multipolar, baseado no G-20 e, o mais im-
portante, sob a fiança financeira da República Popular da China, algo inimaginável
69
Idem.

131
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

nos tempos de bipolaridade da Guerra Fria. E a segunda, de cunho mais estraté-


gico: em qual campo se dará o embate entre capitalismo e socialismo em âmbito
mundial? Não temos dúvidas de que esse embate ocorrerá no campo do comércio
internacional, como Lênin previra há cerca de 90 anos. E mais, sob os auspícios de
um mundo marcado pela hipertrofia do sistema financeiro, com o capitalismo sob
o comando e interesses de grandes instituições privadas e que, ainda “cegas” pelo
retorno imediato, continuarão a manter o capitalismo sob intenso risco de crises de
tipo financeira, enquanto o socialismo, tipificado pela China, mantém sob contro-
le estatal o centro nevrálgico financeiro, além da estatização do próprio comércio
internacional. E comércio, os chineses fazem há mais de 3 mil anos. Observemos,
abaixo, a seguinte afirmação dos fundadores do socialismo científico70:

Com a manufatura, as diferentes nações entraram em uma relação de concor-


rência, em luta comercial, que foi levada a cabo através de guerras, impostos
alfandegários de proteção e proibições das mais variadas, enquanto no passado
as nações, quando ainda estavam em contato umas com as outras, mantinham
entre si um intercâmbio comercial inofensivo. A partir de então o comércio pas-
sou a adquirir conotação política.

Caminhando para o final desta conclusão, de imediato, guardamos uma re-


lação indispensável entre o passado e o presente desse projeto nacional. Ora, se na
Antiguidade obras como o Grande Canal e a Grande Muralha eram expressões
e ícones de um grande e duradouro projeto nacional a ser seguido por gerações
de chineses, atualmente expressões semelhantes podem ser vistas nas instalações
dos Jogos Olímpicos de Pequim, na usina das Três Gargantas do rio Yang-Tsé e na
ferrovia Qinghai-Tibete. Antes de ser um caso de restauração capitalista em curso
e independentemente das grandes interrogações que o modelo encerra, o caso chi-
nês, com sua milenar história e peculiar estrada de desenvolvimento e edificação
de um novo tipo de poder, é um grande e histórico caso de uma concepção teórica,
política e prática mais realista acerca do próprio socialismo. E do próprio marxismo.
Enfim, analisar a experiência chinesa e comparar com alguns traços da ex-
periência soviética poderá nos levar a perceber uma série de diferenças e, com um
70
In MARX, K. & FRIEDRICH, E. A ideologia alemã. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2007.
p. 82.

132
O Método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”

ferramental teórico de certa forma inaugurado por Oskar Lange, podemos traçar,
mesmo que de forma inicial, um esboço do modelo socialista de mercado chinês.
Sob outra ótica, uma maneira mais tranquila e científica de se compreender
a experiência chinesa, suas escolhas pós-1978 e atuais contradições (inerentes a
qualquer processo social) depende, em grande monta, de um olhar historicizado,
trabalhando uma sofisticação metodológica intrínseca à junção de história, geogra-
fia, economia e política.
Algo que pode deixar de lado a sedução tanto do historicismo quanto do econo-
micismo, ambos viciantes e anticientíficos.

133
3. Estado, desenvolvimento
e a dinâmica da
formação social chinesa

135
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

N ão é incorreto dizer que os Estados nacionais, sejam eles modernos ou mi-


lenares, têm relação de efeito com o desenvolvimento do comércio entre
feudos e causa de seu ulterior desenvolvimento. Muito se tem falado e
estudado sobre o desenvolvimento econômico. A maximização da técnica delimita
territórios econômicos e cria condições para o espraiamento da divisão social do
trabalho, criando condições para o distanciamento (ou não) histórico em detri-
mento da distância espacial. O mainstream do pensamento econômico restringe
sua análise à elaboração de planilhas econométricas e séries estatísticas onde o
homem, o centro do processo em si, muitas vezes não passa de um desvio padrão;
é criador de uma verdade duvidosa, pois o cerne de seu pensamento é a-histórico.
Os keynesianos/estruturalistas vão mais longe ao relacionar o desenvolvimen-
to com a chamada estrutura social, que os marxistas chamam (a estrutura) de
formação social.
Mais adiante, trabalharemos melhor a definição de desenvolvimento. Porém,
tendo como pressuposto a historicidade da ciência econômica, é pouco provável se-
guir o rumo da verdade comprovada pela história sem uma ampla visão dialética e
de conjunto que nos capacite a ter uma noção exata do estágio de desenvolvimento
de determinada formação.
A bem da verdade, em algum ponto da vastidão de sua obra, Marx e Engels
nos confirmam essa impressão dialética, ao fazerem da economia o campo espe-
cífico em que estabelecem unidade de conflito de duas variáveis estratégicas de
que cogita a ciência econômica, a saber: as forças produtivas e as relações de produção.
Um pouco mais de atenção e esmero e percebemos que o estágio de desenvolvi-
mento das forças produtivas não reflete, essencialmente, outra coisa senão o nível
de desenvolvimento das ciências da natureza. Da mesma forma que as relações

137
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

de produção constituem a base sobre a qual, a partir do direito de propriedade, se


ergue toda a superestrutura social, indo cair, portanto, no campo das ciências da
sociedade. Assim, o marxismo pode ser definido como uma ciência que estuda as
relações entre homem e natureza e a relação dos homens com eles mesmos. O de-
senvolvimento em si é síntese dessas relações.
Outra questão se remete diretamente aos interessados nos desdobramentos
práticos da empreitada histórica do socialismo. O socialismo científico não é ne-
nhum tratado de busca de uma sociedade igualitária. Tanto Marx quanto Engels
tinham repulsa por definições igualitaristas de socialismo. Para ambos, o socialis-
mo e sua grande tarefa histórica de transição estão na superação da divisão social
do trabalho. No início deste livro, expomos a visão adotada pelos chineses de uma
“etapa primária do socialismo”. Em viagem pelo país, munidos desta visão marxis-
ta de transição, podemos confirmar esta constatação. E a natureza guarda obstá-
culos e potencialidades para esta transição. Tudo depende do desenvolvimento das
forças produtivas, da técnica, em última instância.
Se as forças produtivas e seu desenvolvimento refletem o nível de desenvolvi-
mento das ciências da natureza, nada mais correto do que proceder a uma mínima
análise da natureza chinesa. Talvez poucas formações sociais tenham sido tão mar-
cadas pela sua natureza como esta.

3.1 A GEOGRAFIA E O IMPERATIVO DO ESTADO E


DO DESENVOLVIMENTO
A República Popular da China é composta por 31 províncias distribuídas em
cerca de 9,6 milhões de km2. Sua área geográfica abriga a maior população do mun-
do, com mais de 1,3 bilhão de habitantes de 56 etnias diferentes, sendo que a etnia
han conta com cerca de 92% da população.
O tamanho de seu território e o clima são semelhantes aos dos Estados Uni-
dos, porém com grandes diferenças topográficas. A China conta com relevo alta-
mente diversificado, com acidentes geográficos de grande expressão, como a Cor-
dilheira do Himalaia, o planalto tibetano, bacias áridas do nordeste, os desertos
de Takli Makan e de Gobi. As montanhas ocupam 43% do território, os planaltos
montanhosos, 25% e as bacias, 19%. Apenas 12% da superfície do país são planos.

138
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

Mapa 1 - China: divisão político-administrativa

Heilongjiang

Jilin

Liaoning
Xinjiang
Mongólia Interior Pequim
Gansu Tianjin
Hebei
Ningxia Shanxi Shandong
Qinghai
Jiangsu
Shaanxi Henan
Xizang Xangai
Chengging Anhui
Hubei
Sichuan Zhenjiang
Jiangxi
Hunan Fujian
Guizhou
Taiwan
Yunnan
Guangxi Guangdong
Hong Kong

Hainan

Fonte: Relatório de Desenvolvimento Humano, PNUD, 2003.

Fisicamente, o país faz lembrar uma escada com três degraus, começando com
uma média de 4 mil metros no Platô Qinghai-Tibete, localizado no noroeste do
país, planaltos e bacias ao centro com altitude variando de mil a 2 mil metros aci-
ma da linha do mar e terminando com regiões montanhosas e planas com menos
de mil metros de altitude, conforme o mapa 2:
Mapa 2 - China: elevações topográficas

<0
0 - 500
500 - 1000
1000 - 2000
2000 - 3000
3000 - 4000
4000 - 5000
5000 - 6000
> 6000

Fonte: Relatório de Desenvolvimento Humano, PNUD.

139
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Esta característica topográfica, muito acidentada, implica grandes investimen-


tos, pois as grandes jazidas de petróleo, gás e carvão estão situadas no oeste do país.
Daí o imperativo das forças produtivas e da técnica.

3.1.1 Um relato rápido de travessias norte-sul

Como se pode perceber, do ponto de vista da geografia, a China é um país


muito contrastante, para dizer o mínimo. Viajamos por ele três vezes e em todas as
ocasiões pudemos fazer travessias (de trem, barco ou avião) de norte a sul do país,
e de leste a oeste. Em 2004, fomos de trem de Pequim para a capital da Mongólia
Interior (Hohhot), de Hohhot para Xangai. De Xangai para Yichang (usina de Três
Gargantas) e depois para Chongqing. Em 2007, fomos de Pequim para Xangai, de
Xangai para Chongqing e de Chongqing para Shenzen (próximo de Hong Kong) de
avião. Em 2009, de Pequim, passamos alguns dias em Xangai e depois foram 20
horas de trem rumo a Shenzen. Enfim, a diferença visual entre o norte e o sul é
latente. Trata-se de um país ao norte e de outro ao sul.
Existe uma grande planície seca, que se torna desértica no contato com o Gobi
e se estende até as cercanias ao sul de Pequim. No verão, na planície seca, pode-
-se avistar (como John King Fairbank) grandes extensões e campos e gramados
circundando as aldeias. Tanto Fairbank quanto um americano que conhecemos
durante uma dessas travessias de norte a sul do país comparam essa vista com o
meio-oeste dos Estados Unidos da década de 1950. Dissemos a este norte-america-
no que, em seu país, essa planície seca circunda casas e algumas famílias distri-
buídas pontualmente no território, enquanto na China essa particularidade serve
para contornar vilarejos inteiros. Provocamos nosso amigo, afirmando que essa
conformação demográfica condicionou a forma de uma nação milenar, enquanto
a deformação demográfica dos campos do meio-oeste norte-americano tratou de
desbaratar os princípios de coletivismo surgidos na pequena produção mercantil
que engendrou a formação das Treze Colônias.
Indo em direção ao sul, o contraste vai ficando claro na medida em que se
percebem plantios de arroz, subindo e descendo grandes elevações, ou mesmo na
forma de escada e indicando determinadas elevações. Neste mesmo véu de contras-
tes também percebemos, em pleno vale fértil do Yang-Tsé, as grandes construções

140
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

de infraestruturas tomando áreas outrora de plantio e aumentando tensões sociais.


Xangai, no delta do citado rio, por exemplo, transformou os campos de arroz do
vale leste do Huang Po no espetáculo futurístico da Zona Econômica Especial de
Pudong.
Muitas vezes as imagens de grandes extensões em processo de plantio, o sol
refletindo em zonas alagadas de plantações de arroz e certo vazio espacial nos en-
ganam, pois cerca de 60% da população chinesa vivem abaixo de Pequim, entre
o sudeste, Xangai e o sul do país, correspondente a um terço da terra cultivável.
Para termos uma noção, a parte mais povoada da China corresponde a quase toda
a área habitada dos Estados Unidos. Muitos se perguntam as razões que envolvem
a dimensão da população chinesa. Uma boa pesquisa nos demonstrará que são
muitas. A maioria das regiões do mundo com maiores densidades populacionais
está situada ao longo de grandes vales férteis. A generosidade natural, em grande
medida, favorece a reprodução geométrica da população. No caso da China, as fases
expansivas cíclicas do modo de produção asiático e suas grandes colheitas favorece-
ram em demasia essa tendência, juntamente com a melhoria da capacidade tanto
individual quanto coletiva de prover saúde, na famosa e eficiente medicina chinesa.
Resumindo, a China tem de alimentar em torno de 24% da população mundial
com 6% das terras em condições de plantio.
O divisor entre os lados norte e sul do país é o chamado paralelo 33. Isso indica
diferentes ritmos naturais e demarca não somente diferenças visuais, mas também
– e consequentemente – a forma como o homem trabalha a terra, seja nos campos
de cereais e trigo ao norte ou nos arrozais ao sul. Retomaremos adiante o assunto
agricultura de modo mais específico.
No retorno, viajando de Yichang até Chongqing, de barco, pudemos perceber
a violência do regime de chuvas do país. Fizemos a viagem juntamente com um
geógrafo formado na Universidade de Pequim. Ele nos relatou que o regime de
chuvas se dá de acordo com o terreno. Certa obviedade para muitos, pensamos;
porém, deve ser considerada a intrepidez dos ventos de monções que, além de pre-
cipitar ao longo da planície chinesa, se depara com um “grande muro” chamado
Himalaia, ocasionando quase sempre as maiores tragédias naturais da história da
China, ao lado dos terremotos. Essa é a particularidade natural do sul do país, que
encontra quase seu oposto ao norte, onde, mais distante do Mar Meridional, chove

141
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

menos e de forma diferenciada ao longo dos anos: não existe um índice padrão de
chuvas para a área norte do país, o que ocasiona, de tempos em tempos, grandes
secas, tendo provocado há muitas décadas grandes motins camponeses em função
da seca e da fome.
Por outro lado, seguindo orientação de John King Fairbank em seu clássico
sobre a China1, torna-se irresistível citar algumas comparações procedidas por ele e
que são muito caras a geógrafos e marxistas. A complexidade que constatamos na
formação social chinesa reside não somente em questões puramente históricas e
populacionais – e isso fica mais latente nas devidas comparações. A título de exem-
plo, segundo Fairbank e Goldman, e constatadas por nós2:

(...) Cada uma das três regiões ao longo do curso do rio Yang-Tsé – a província
de Sichuan a oeste, as províncias gêmeas de Hubei ao norte e Hunan ao sul, e o
delta do baixo Yang-Tsé – é comparável com a Alemanha em extensão, e todas
elas são maiores em termos populacionais.

Por isso, no sentido de atingir o objetivo deste relato, faz-se necessário relacio-
nar essa complexidade “norte-sul” com a própria topografia do país, pois percebe-
mos que a China (mais precisamente no Tibete) se transforma no maior altiplano
do mundo, local onde nascem grandes cadeias de rios em obediência a uma decli-
vidade até as áreas planas do litoral, de leste para oeste; sinal de grandes enchentes,
de milhares de habitantes em situação de risco; risco de plantações se perderem.
Daí o chamado à relação entre exercício de poder estatal na China e o “domínio das
águas”. Além disso, as condições naturais e seu poder de influência sobre diferentes
regiões do país fazem emergir diferentes questões regionais, sociais e políticas.
Resumindo, as condições naturais do país, no passado e no presente, nos re-
servam convincentes respostas à necessidade milenar da presença de um Estado
centralizado e forte e de um desenvolvimento econômico contínuo para abarcar as
necessidades materiais do país. É a história e a conjuntura impondo desafios que
somente nos marcos do binômio Estado e desenvolvimento são passíveis de enfren-
tamento. Vejamos um pouco da história dessa relação, no sentido de compreender
o presente.

FAIRBANK, J. K. & GOLDMAN, M. China: Uma nova história. L&PM. Porto Alegre, 2006.
1

2
Idem, p. 23.

142
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

3.2 ESTADO E MERCADO NO DESENVOLVIMENTO


HISTÓRICO DA CHINA
Após mais de 15 anos dedicados ao tema, uma série de indagações acabou
perpassando nossa subjetividade e inteligência, principalmente quando o assunto
envolve China, socialismo, Estado, projeto nacional e desenvolvimento. Trata-se de
discussões que, na mente de muitos, encontram-se ultrapassadas. Porém, a realidade
do desenvolvimento chinês encerra várias questões que colocam em xeque muitas
verdades prontas categorizadas pelo Ocidente, inclusive pelo marxismo. Tanto no
subtítulo abaixo quanto nos mais específicos sobre o caso chinês, tentamos expor
algumas opiniões acerca do conceito de desenvolvimento, principalmente relacio-
nando-o com realidades periféricas.
Deste modo, achamos necessária uma rápida investida sobre o dito conceito,
tentando – ao menos e superficialmente – dar uma contribuição a este debate tão
candente em nossos “brasileiros” dias. Neste sentido é que a própria ciência econô-
mica toma a dimensão de um processo histórico.

3.2.1 A problemática do desenvolvimento e a afirmação nacional

Em primeiro lugar, assumamos não ser algo fácil nem tampouco tranquilo
caracterizar o processo de desenvolvimento. Afirmamos isso porque, assim como a
economia política não é a mesma para todos os países e regiões, o processo de de-
senvolvimento – e sua análise – não deve ser enfrentado partindo-se de princípios
teórico-metodológicos generalizantes. Podemos, sim, dizer que o processo de de-
senvolvimento, como um processo histórico, engendra transformações de variadas
ordens, entre elas o movimento populacional, a forma de produção e apropriação
da riqueza, a técnica, a divisão social do trabalho etc.
Não nos restrinjamos a tais fatores. Sendo o homem produto da base ma-
terial de seu tempo, questões de ordem subjetiva também seguem em marcha
adiante, entre elas a própria visão que o homem guarda de si mesmo e sua pos-
tura diante de seu entorno, algo como uma crescente preocupação enquanto in-
divíduo (e parte de um conjunto humano em pleno desenvolvimento de suas
particularidades), por exemplo, perante a nação. Daí, o surgimento de questões

143
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

como a “questão nacional” e seu desdobramento numa chamada “questão cultu-


ral”. Conforme I. Rangel 3:

A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e mor-
re, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da
Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá
por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro
dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves
problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes
disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos
e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos.

Seria interessante conceituar desenvolvimento como um processo que vai além


de números crescentes de aumento do PIB, levando em conta uma renda per capita
capaz de dar conta das necessidades materiais de um determinado povo e nação.
A realização do desenvolvimento nesse sentido tem relação direta com o desenvol-
vimento espiritual e material do povo e serventia na medida em que consegue, a
partir do processo de crescimento econômico, equacionar as grandes diferenças de
renda entre as diferentes classes que se reproduzem em um determinado territó-
rio. Porém, deve-se perseguir ideias-força contempladoras de realidades periféricas,
pois o próprio desenvolvimento tem demandas diferenciadas, dependendo do país.
Por exemplo, o desenvolvimento para um país como os Estados Unidos está cada
vez mais relacionado com a necessidade de manutenção de níveis estratosféricos de
consumo, pois o nível de consumo do povo norte-americano se entrelaça – cada dia
mais – com a própria noção de “democracia norte-americana”. Aos países europeus
“centrais” (Alemanha, França, Inglaterra e Itália) pode-se relacionar desenvolvi-
mento com os desafios do welfare state e da cada vez maior “funilização” de sua gra-
de populacional. Aos demais europeus – Portugal, Espanha, Grécia e outros – fica
o desafio de alcançar seus primos ricos da União Europeia.
Dando seguimento à citação acima, colocada e escrita por Ignacio Rangel,
conceber o desenvolvimento para países como a China deve ser a síntese de uma
relação entre desenvolvimento e nação, ou seja, desenvolvimento neste caso
deve ser visto como o meio pelo qual as nações buscam sua afirmação,
3
RANGEL, I. “Recursos ociosos e política econômica” (1962). In Obras reunidas de Ignacio Rangel.
Contraponto. Rio de Janeiro, 2005. p. 450.

144
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

equacionando seus problemas internos, unificando seu território, criando


as bases para a divisão social do trabalho e promovendo assim condições
objetivas para se fazer valer e ouvir – de forma soberana – na comunidade
internacional das nações. A nosso ver esse é o melhor conceito de desenvolvi-
mento possível de ser aplicado em realidades como a chinesa.
É claro que, em tempos de neoliberalismo, existem aqueles que – por sinal,
maioria – trazem para a discussão a chamada “internacionalização de fatores” como
forma de mostrar que a categoria de nação não é mais aplicável nos dias atuais.
Obviamente, a técnica por si só impôs uma determinada divisão social e interna-
cional do trabalho, pois os fatores internos de produção tendem a se esgotar ou, ao
menos, a se transformar em empecilhos para o desenvolvimento. Daí a importância
da expansão do comércio internacional que, nas condições atuais de avanço da fi-
nanceirização como forma moderna de acumulação, requer ainda mais das nações
periféricas uma imensa capacidade de planejar seu comércio internacional no sen-
tido de contabilizar superávits comerciais e acúmulo de moeda estrangeira em suas
reservas; acúmulo este indispensável como forma de proteção a choques externos.
Esse raciocínio (comércio internacional e acúmulo de divisas estrangeiras) só
é possível, porém, nos marcos de um (conforme chamamos repetidamente a aten-
ção) planejamento do comércio exterior como parte de um todo, que envolva o desen-
volvimento nacional como um fim. O crescente processo em marcha em países
como a China, em uma conjuntura de anarquia da produção em termos de comér-
cio internacional, vem demonstrar que a relação entre desenvolvimento e nação
aponta para uma fusão entre a necessidade de se contabilizar superávits comer-
ciais e a necessidade de se acumular reservas em moeda estrangeira, por meio do
comércio exterior planejado. Em um contexto de maior envergadura – e, digamos,
estratégico –, o comércio exterior planejado é a via de substituição da anarquia da
produção nas relações comerciais internacionais; uma das vias da transição capita-
lismo-socialismo em âmbito mundial.

3.2.1.1 Relações externas de produção, taxa de câmbio e comércio


exterior planejado

O desenvolvimento é a grande expressão de soberania das nações, sobretudo


as que entraram em estado de independência após a Segunda Guerra Mundial,

145
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

entre as quais incluímos a China. Pois bem, a problemática do desenvolvimento


em países periféricos deve ser encarada considerando-se pelo menos um marco
histórico: o surgimento do capital monopolista, do imperialismo como fenômeno
e estágio objetivo do capitalismo. Logo, em grande grau de importância, quando se
trata de desenvolvimento em países periféricos, temos a variável estratégica das rela-
ções com o imperialismo. E, portanto, a categoria de relações de produção, conforme
Ignacio Rangel, deve ser subdividida em duas partes, a saber: as relações internas de
produção e as relações externas de produção. Isso serve ainda mais para a China, por
conta da grande proporção do comércio exterior em relação ao seu PIB.
Como já observamos, a planificação do comércio exterior é a superação da
anarquia produtiva nas relações internacionais. A forma mais direta para isso está
na manipulação do câmbio, de forma que as relações externas de produção
passem a ser favoráveis ao desenvolvimento da nação, ao contrário de um câmbio
regido pelas leis cegas do mercado. A nosso ver, o câmbio é o principal instrumen-
to de dominação externa de um país sobre outro, sobretudo os que não possuem
base industrial em condições de concorrência internacional. No caso chinês, essa
planificação do comércio exterior é visível não somente nas políticas citadas, mas
também em déficits planejados para com seus vizinhos e muitos países periféricos,
além de superávits, também planejados, com a “tríade” (EUA, Europa e Japão).
Em suma, o que se convencionou chamar de “câmbio” é o instrumento da eco-
nomia monetária que objetiva aproximar a dada realidade nacional os custos visíveis
dos produtos importados ou exportados. Ora, dependendo da forma como se utiliza
tal instrumental, em vez de se aproximar dos custos das mercadorias, muitas ve-
zes os deforma. Tal deformação ou aproximação tem nos custos sociais, ou seja, nos
efeitos sobre a vida de um determinado povo ou nação, seu mais sério auferidor.
Do ponto de vista marxista, pode-se conceituar o câmbio como um elemento
talvez principal no processo mediador das relações externas de produção de um deter-
minado país. Detalhadamente, dado o desenvolvimento desigual (sinônimo tam-
bém de diferentes escalas de produção industrial entre centro e periferia) intrín-
seco ao capitalismo, o uso do câmbio flexível como mediador entre os custos sociais
e os custos visíveis traz em seu bojo – à nossa periférica realidade – efeitos que, na
ponta do processo, tendem a radicalizar uma predeterminada participação “peri-
férica” na divisão internacional do trabalho: país exportador de matérias-primas e

146
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

importador de produtos manufaturados. O acerto da política cambial chinesa con-


siste tanto no adensamento de suas cadeias produtivas quanto na proteção contra a
concorrência externa. Do início das reformas econômicas aos dias atuais a pauta de
exportações e importações da China vem obtendo saltos de qualidade em função
de uma política cambial acertada, afora o fato de o país ter as maiores reservas em
moeda estrangeira do planeta.
A importância do câmbio não se restringe somente à problemática das reser-
vas, proteção e institucionalização de reservas de mercado para indústrias nativas.
Na recente história econômica chinesa, a utilização da taxa de câmbio está rela-
cionada, diretamente, à viabilização de uma política de juros atraente ao crédito.
É nesta questão da expansão do crédito que se funde o interno e o externo, possibi-
litando, de um lado, a expansão do consumo interno e, de outro, a transformação
do país em uma sólida potência financeira internacional, mudando, assim, paula-
tinamente a correlação de forças em âmbito mundial; um espelho ante as verdades
impostas pelo Consenso de Washington.
A questão do “câmbio administrado” na China, ao lado de todo um conjunto
que forma um ambiente de aceleração da massa salarial, sem comprometer a com-
petitividade externa chinesa, guarda todo um papel na elevação dos salários no
país, conforme Medeiros4:

Desde a crise asiática de 1997, a manutenção da estabilidade nominal do yuan


levou à elevação relativa dos salários chineses vis-à-vis os competidores asiáticos
que desvalorizaram suas moedas (MEDEIROS, 2006) e, nos anos mais recentes,
uma moderada valorização do yuan frente ao dólar (uma direção que possivel-
mente se afirmará nos próximos anos) tem provocado uma elevação dos salários
industriais chineses em moeda internacional.

Enfim, o presente desenvolvimento chinês demonstra inclusive que a solução


da chamada “questão nacional” chinesa – questão esta pautada e mediada por um
contínuo desenvolvimento econômico e social – vai se tornando condição objetiva à
solução de outras “questões nacionais” periféricas, dadas a largura e a extensão de
4
MEDEIROS, Carlos A. de. “China: Desenvolvimento econômico e ascensão internacional”. In
China. III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional. Fundação Alexandre Gus-
mão. Rio de Janeiro, 2008, p. 93.

147
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

sua influência internacional e de seu mercado interno, conforme muitas experiên-


cias latino-americanas e africanas vêm demonstrando ao longo dos últimos anos.

3.2.1.2 A historicidade do desenvolvimentismo chinês (2)

O atual desenvolvimento chinês se faz acompanhado de consequências em va-


riegados campos, não somente relacionados à economia como também à necessária
revisitação à história por parte de um sem-número de pesquisadores. Contribui
para essa onda investigativa não somente o crescimento chinês, mas também todo
um processo de erupção de “Estados desenvolvimentistas” asiáticos após a Segun-
da Guerra Mundial, como Japão, Coreia do Sul e Hong Kong, além de Taiwan. Em
2008, o comércio intra-asiático foi responsável por 49,7% de todo o comércio feito no
mundo. Mesmo no século XVIII, o maior mercado nacional do mundo não estava
na Europa, a caminho de sua II Revolução Industrial, e sim na China, como nos
advertiu sapientemente Giovanni Arrighi5. A China tem participado crescentemen-
te no montante de Investimentos Estrangeiros Diretos (IEDs), principalmente na
África e América Latina, e o Japão ainda é uma das maiores economias do mundo
e um dos grandes credores líquidos do mundo atual.
Há algum tempo poderíamos encerrar qualquer discussão sobre o problema do
desenvolvimento asiático dentro dos parâmetros da história recente da Guerra Fria e
da abertura do mercado norte-americano a produtos asiáticos. Embora hoje esse tipo
de argumento ainda tenha grande serventia, é irresistível constatar que a própria
história pode jogar “cascas de banana” no caminho das afirmações peremptórias.
Ora, hoje se sabe – por exemplo – que o planejamento aplicado à economia e ao
território não foi invenção soviética, e que houve equívoco ao se admitir a economia
de mercado como algo de caráter puramente capitalista. Podemos admitir, hoje,
que o próprio Estado nacional não é decorrência – pura e simples – de esquemas
burgueses europeus. Aliás, o próprio Marx engana-se a esse respeito, pois, pelo me-
nos 500 anos antes do início dos processos de transição feudalismo-capitalismo na
Europa, a China já era um grande centro tributário da Ásia, além de principal posto
5
Algumas discussões desta seção estão baseadas em um seminal estudo procedido por Giovanni
Arrighi e recém-editado no Brasil sob o nome de Adam Smith em Pequim. Boitempo, 2008. Julga-
mos uma obra essencial, o que não significa total concordância com as opiniões expressas pelo
autor.

148
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

comercial da região e em plena competição, por esse mesmo centro tributário, com
o Japão. Sob outra ótica, os dois sistemas (asiático e europeu) poderiam ser diferen-
ciados, por um lado, pela não existência de um centro de poder nítido na Europa,
dando origem à guerra como forma de solução de seus impasses, e, por outro, pela
indiscutível centralidade da China no sistema asiático, o que levou o campo da
concorrência entre os Estados asiáticos, desde então, ao campo do comércio. Mas a
relação entre os desequilíbrios de poder como explicação para certa “paz duradou-
ra” não encerra a discussão. Arrighi, amparado por outros pesquisadores, coloca a
questão do “caminho ao desenvolvimento” verificado na Europa e Ásia como outra
fonte de explicação que retomaremos, mais adiante, na discussão sobre o processo
de acumulação na China.
Como sempre gostamos de salientar, além de uma economia de mercado com
mais de 3 mil anos de existência, o instituto do concurso público para seleção de
quadros ao serviço público existe há 1.500 anos, moldando não somente desta for-
ma as bases de um grande Estado nacional, mas também a própria e atual Repúbli-
ca Popular. A própria assertiva acerca da variável “trabalho escravo” perde sentido
ao se estudar, com a alma menos armada, as grandes rebeliões camponesas que
sacudiram o Império Chinês ao longo dos últimos 25 séculos.
Antes de continuarmos nosso raciocínio, outro parêntese se faz necessário e
tem relação direta com o dinamismo chinês. Acerca do processo de formação e con-
solidação da nação chinesa, é oportuna a seguinte observação de Armen Mamigo-
nian, que busca contrastar a equivocada ideia segundo a qual o processo de forma-
ção da referida nação deu-se baseado em um único ponto geográfico. Segundo ele6,

Por volta de 2100 a.C. as organizações pré-dinásticas (de 5000 a 1700 a.C.) come-
çaram a ceder lugar às chamadas dinastias antigas, Xia, Zhang, Zhou e ao perí-
odo das Primaveras e Outonos e ao período dos Reinos Combatentes, ainda du-
rante os quais o rei do Estado de Qin partiu para encarniçadas lutas de conquista
de numerosos Estados rivais e concluiu a unificação da China, conferindo-lhe
um sentido de nacionalidade (dinastia Qin: 221 a 207 a.C.). Portanto, deve-se
insistir na ideia de que houve um longo período histórico de milênios para que
culturas nascidas lentamente ao longo dos rios Amarelo e Azul, em Shaanxi e
outros pontos desde 5000 a.C. e não num único lugar como se pensava no início

6
Idem à nota 4.

149
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

do século XX (MASPERO, 1926, pp. 135-154), dessem origem à civilização que


permitiu o nascimento da nação chinesa, muito antes das nações europeias nas
suas transições feudalismo-capitalismo, a partir de uma visão histórica não-
-eurocêntrica (AMIN, 1979).

Seja em pontos da obra de Marx e Engels ou mesmo nos – até então am-
plificados – manuais de economia política editados na URSS, aprendíamos que o
desenvolvimento das forças produtivas é expressão exata do nível de relação entre
o homem e a natureza, e que a própria técnica nada mais é do que expressão da do-
minação humana sobre o meio natural. Além disso, constatávamos que a própria
superação das formas atrasadas de produção depende, sobremaneira, da forma em
que se dão na relação entre os próprios homens.
Esse tipo de elaboração guarda grande sentido na compreensão da historicida-
de do desenvolvimento chinês, pois se a relação entre homem e natureza terá nas
forças produtivas e na técnica sua ulterior expressão, nunca é demais lembrar do
próprio ambiente natural que deu vazão ao surgimento da civilização responsável
pela origem do antigo e atual Estado moderno chinês. É importante sublinhar os
motivos do surgimento e da sobrevivência desse Estado ao longo dos séculos e de
sua base natural, conforme segue abaixo:

a) a posição geográfica chinesa como fator de proteção e consequente lon-


gevidade de sua civilização e império;
b) a expansão generalizada da cultura do arroz;
c) o desenvolvimento da civilização chinesa em torno de extensas planícies
fluviais, de grande fertilidade agrícola e capazes de comportar altas den-
sidades populacionais, foi fator central no rápido desenvolvimento das
forças produtivas verificado no período7;
7
Segundo Oskar Lange: “A maneira e os meios empregados pelo homem para agir sobre a na-
tureza no processo de produção, assim como a formação do homem ligada a essa ação, foram
designados por Marx com o nome de forças produtivas. Uma vez que o processo da produção tem
um caráter social, as forças produtivas apresentam igualmente esse mesmo caráter: elas são for-
ças produtivas sociais (...). Marx emprega igualmente o termo forças produtivas materiais salien-
tando dessa maneira que as forças produtivas são a expressão da atitude do homem em face da
natureza, quer dizer, da relação entre o homem e o mundo material que o cerca. São igualmente
a expressão do caráter ativo dessa relação”. In LANGE, Oskar. On the economic theory of socialism.
University of Minnesota. 1938, p. 34.

150
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

d) o surgimento de filosofias civilizatórias e tolerantes como o confucio-


nismo e o taoismo8.

Pois bem, analisar a historicidade do desenvolvimentismo chinês, para nós, é


um puro exercício de observar, no espaço e no tempo, a dinâmica de duas variáveis
entrelaçadas: a dinâmica do território e, consequentemente, a dinâmica histórica
do processo de acumulação no país. Daí uma síntese na forma de uma noção de “di-
nâmica da formação social chinesa”, que nos capacite a elaborar diferentes visões
de diferentes processos históricos que tiveram e têm lugar tanto na China como
nas demais regiões e países asiáticos. Assim, por exemplo, como é recomendado na
atualidade observar o território do oeste da China como mais uma grande fronteira
de realização econômica, acumulação e espaço geopolítico que envolve as relações
chinesas com a Ásia indiana, a Rússia e a própria Europa, é irresistível constatar as
mediações de problemas, internos e externos, do Império Chinês a partir da dinâ-
mica territorial e econômica, principalmente no período Song (1127-1275).
Arrighi discorre com competência sobre essa dinâmica. Por exemplo, apontan-
do – no período Song – que o giro do compasso no sentido sul do Império Chinês
deveu-se a problemas econômicos decorridos com a perda da Rota da Seda e con-
sequente perda de monopólios estatais que lucravam com a mediação da produção
e venda de sal, arroz e ferro, além de elevadas despesas militares e indenizações
de guerra aos povos mongóis9. Conjugando-se as opiniões de Arrighi com as de
Mamigonian e Woo, percebemos que um estudo mais aprofundado da história eco-
nômica chinesa nos levará a concluir que o centro dinâmico econômico do país
tem mudado ao longo dos tempos. Por exemplo, movendo-se da grande planície
do rio Amarelo (região onde, por volta de 2000 a.C., surgiu a civilização chinesa),
distante cerca de mil quilômetros da região costeira10, para o litoral, desde o século
XIX. O surgimento desse primeiro centro econômico na história do país deve-se
8
Importante ressaltar que o confucionismo e o taoismo são contemporâneos – e com propostas
éticas semelhantes – da filosofia clássica grega (Sócrates, Platão, Aristóteles etc.). A questão que
se coloca é que, enquanto Confúcio e Lao-Tsé continuam presentes na formação moral do povo
chinês, a filosofia clássica grega foi sumariamente substituída pela lógica mercantil/capitalista.
9
ARRIGHI, G. Adam Smith em Pequim. Boitempo. São Paulo, 2008, pp. 208-212.
10
MAMIGONIAN, A. “As bases naturais e sociais da civilização chinesa”. In Revista de geografia
econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto. Núcleo de Estudos Asiáticos do Departamento de
Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007, p. 33.

151
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

ao fato de, naquele tempo, a alta produtividade agrícola localizada em meio a uma
rota comercial (Rota da Seda) guardar muito mais vantagens do que um comércio
baseado nas regiões costeiras11.
Porém, pelos motivos já expostos acima, encetou-se a transformação do vale
do Yang-Tsé numa região densamente povoada; atributo este – causa e consequên-
cia – de um grande aumento da produtividade do trabalho no país, emoldurando-
-se um quadro do que viria se tornar uma superestrutura, já no século XVIII, que
se autodenominava “Centro do Mundo”. Com o passar dos tempos, a expansão po-
pulacional e o início das invasões por tribos pelo norte motivaram a transferência
populacional a outras regiões, sobretudo ao sul e ao sudeste, o que tornou, por volta
do século XII, o vale do Yang-Tsé uma região densamente povoada e o colocou em
vias de rápido desenvolvimento econômico. Na atualidade, esta região tem servido
como um ímã de investimentos crescentes por parte de grupos de empresários de
Taiwan.
Essa viragem ao sul ganhou ímpeto com o incentivo a tecnologias relacionadas
a estaleiros e produção dos navios mais rápidos do mundo até então, possibilitando
inclusive uma passagem do navegador Zheng pelas Américas, antes mesmo dos eu-
ropeus. Esse momento de ameaças externas e de prejuízos financeiros por conta da
pressão vinda do norte demarca o início de um processo de maior interação chinesa
com seus vizinhos próximos e de aumento da importância da tributação ao comér-
cio marítimo privado, e de momentos em que inclusive estatizou-se esta forma de
intercâmbio. Esse período evidencia o exposto acima, acerca da não militarização
das relações entre os países da Ásia. A concorrência era puramente comercial, po-
rém contraditória. Aqui, um breve parêntese: a argumentação de que esse “dese-
quilíbrio de poder” não seria suficiente para uma “paz duradoura” (apesar de ter
havido paz duradoura na Ásia) encontra amparo nas investidas militares japonesas
no século XIV. Eis aí um ponto acerca da dinâmica chinesa que nos leva também a
crer na existência de ciclos de crescimento – tanto econômicos como institucionais
– “para fora” e “para dentro”, utilizando a feliz observação de Prebish e Ahumada
acerca do processo de substituição de importações.

11
WOO, Wing Thye & BAO, Shuming: “China: case study on human development progress towards
the millennium development goals at the sub-national level”. In Human development report office.
Occasional Paper. PNUD, 2003.

152
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

aaaaaaaaaaaa

Para fechar a demonstração em curso, é de grande valia trabalhar mais um


pouco sobre o já dito acerca da transformação do vale do rio Yang-Tsé em motor
econômico interno e institucionalizado durante o período Song e consolidado du-
rante a era Ming (1344-1644) e, até certo ponto, continuados com a última dinastia
chinesa Qing (1644-1911), amortecida e destruída pelo estrangulamento nacional
imposto pelo colonialismo e o imperialismo. Algo que se relaciona diretamente
tanto com a natureza do processo de acumulação na China quanto com a impor-
tância do modo de produção asiático. Nesse caso, é importante pontuar com a pró-
pria obra de Arrighi, além de se destacar a importância da “via dos produtores” (ou
“via revolucionária”).

3.2.1.3 “Caminho natural para a opulência” ou “via dos


produtores”?

Como dizíamos, além da expansão do comércio marítimo, a própria utilização


do vale do rio Yang-Tsé como grande celeiro de cereais do Império Chinês acentua
a consolidação do “comércio como instrumento de poder na China”, algo que tem
contemporaneidade com o grande papel do comércio exterior planejado no país
hoje. Dizemos “comércio” em vez de “mercado” no sentido de contrapor a tentativa
de Arrighi de superlativar a obra de Adam Smith à compreensão da China moder-
na em detrimento das contribuições de Marx e Schumpeter. O mercado pode ser
entendido tanto como instituição quanto como expressão da centralidade de certa
categoria histórica adquirida em determinado modo de produção. Porém, a polí-
tica entendida como a arte da convergência e da estratégia e tática de certa classe
social só pode, neste caso da China, ser associada diretamente com o comércio. O
comércio é meio e fim para a prática da grande política na arena internacional; o
mercado é só um meio.
A questão não se restringe a esta problemática da visão do mercado, algo inclu-
sive menor que não serve de parâmetro ao julgamento da obra. O mais polêmico,
porém altamente aceitável por “especialistas” em China, está na inclinação pela
noção smithiana de “caminho natural da opulência” em contraponto à visão de

153
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

acumulação primitiva marxista. É como se Marx somente tivesse compreendido


a transição feudalismo-capitalismo a partir desse ponto de vista – logo, uma su-
perlativação do eurocentrismo de Marx. Para se compreender essa colocação, vale
voltarmos ao ponto da historicização do desenvolvimentismo chinês.
Havíamos falado anteriormente sobre um dito, por nós, processo de institucio-
nalização do vale do Yang-Tsé como o motor econômico da China e sua consolida-
ção no período Ming. Faz-se necessário ir além, pois se trata de um processo histó-
rico de consolidação de uma subjetividade comercial; porém, seguida da inversão,
do “crescimento para fora” para um “crescimento para dentro”, marcado pela qua-
se proibição do comércio marítimo e resultado da crescente insatisfação campone-
sa. No período, segundo apontamentos convergentes de Arrighi e Mamigonian, a
pressão social fora amainada com uma grande política de ação estatal em prol do
alargamento da fronteira agrícola e da execução de imensas obras públicas, sendo
tais execuções parte de um conjunto em torno de uma menor desigualdade territo-
rial, pela via do comércio interno. Trata-se de um ciclo econômico possível somente
com o aumento da base fiscal do Império, obtida – entre outros meios – com o au-
mento do excedente camponês. Este ciclo com alcance milenar é a realização plena
do modo de produção asiático, baseado numa variante de feudalismo centralizado
por um Estado que surge da dinâmica natural e social do aparecimento precoce de
uma economia de mercado e, consequentemente, geradora de diferenciação social.
Ora, a conjunção desses fatores – e sua consequência no enriquecimento do
país e de milhares de camponeses – é descrita por Adam Smith (e amplificada
por Arrighi) como um “caminho natural para a opulência” ou, segundo Braudel,
“acumulação sem desapropriação” (o que está correto), também como exemplo da
ação da “mão invisível”. Arrighi utiliza esta observação para contrapor a ideia de
acumulação primitiva de Marx. Voltamos a repetir: tanto uma via quanto a outra
foram devidamente analisadas por Marx e especificadas como diferentes formas de
transição que obedecem a leis determinadas pela realidade concreta de cada lugar.
Na China, ocorreu desta forma (via dos produtores), e na Inglaterra houve acumu-
lação primitiva. Arrighi não se remete novamente a esse equívoco quando analisa
as reformas chinesas, mas não destaca suficientemente o papel do enriquecimento
camponês por esta mesma via radicalizada na era Ming, embora já sob a égide de
uma superestrutura voltada a um projeto de caráter socializante e com forte apoio

154
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

e incentivo estatais, o que demonstra a inexistência da “mão invisível” tanto na era


Ming quanto agora, conforme muitos ainda querem nos fazer acreditar.
Na ideia supracitada é tão difícil de acreditar quanto na possibilidade de uma
ascensão chinesa ser acompanhada de uma tendência de crescente igualdade nas
relações entre nações por conta de uma maior margem de manobra, dado o papel
da mediação mercantil de tais relações. A democratização das relações interna-
cionais passa pelo maior intercâmbio comercial. Para Lênin, o “comércio propicia
a paz”, porém a concorrência, não (muito pelo contrário). Paz com imperialismo
(ainda que decadente) mostra-se algo problemático, ainda mais se comparado com
os processos de decadência de Portugal e Espanha. Mas os Estados Unidos não são
Portugal e Espanha.

3.2.2 Questão cultural e desenvolvimento na China

Logo acima, falamos rapidamente sobre uma chamada “questão cultural”,


diretamente relacionada ao processo de desenvolvimento. Temos certeza de que
análises e estudos puramente econômicos, de observações de variáveis “x” e “y”,
guardam serventia central à observação de dado fenômeno. Mas, com certeza, não
são suficientes, pois se trata de um nível de análise que se dá invariavelmente no
campo conservador. Também no campo conservador podem-se situar determina-
das ênfases em questões de história e cultura; sob esse ponto de vista, a história
sem a economia é sem luz, e o “culturalismo” surge aqui justificando uma série de
atrocidades no campo da ciência.
Com relação à China, essa tradição “culturalista” ganhou peso após a lua de
mel dos intelectuais europeus com as virtudes sintetizadas nos impérios nascidos
ao longo dos vales dos rios Yang-Tsé, Ganges e Nilo: “Despotismo oriental” foi o
termo predileto utilizado por Voltaire para (des)caracterizar, por exemplo, o “Im-
pério do Meio” chinês. Desse modo, o Iluminismo dava forma a um eurocentrismo
que influenciaria inclusive Karl Marx. Em relação à China, seguindo este sentido
culturalista (e muitas vezes racista), poderá ser instigante a adoção do conceito
de “despotismo asiático” para explicar a dinâmica de poder na China, tão caro a
Voltaire – por exemplo.
Aliás, Voltaire não foi o primeiro a utilizar este termo; algumas centenas de

155
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

anos antes, Aristóteles, em pleno centrismo helênico, classificou o Império Egípcio


e seus similares orientais como variantes de um “despotismo oriental”. Aristóteles
havia se esquecido de que a “democracia grega” havia condenado Sócrates à morte
pelo simples fato de, ao analisar a decadência do homem grego, ter concluído que
tal decadência era proporcional à decadência de uma democracia que nunca havia
existido.
Enfim, trabalhar a questão cultural deve ser objeto de muito cuidado e, princi-
palmente, encarado como parte de um conjunto que envolve as “múltiplas determi-
nações” do chamado concreto. Daí sua relação com o desenvolvimento, a história, a
economia e principalmente com a luta de classes. Daí as grandes contribuições de
Antonio Gramsci e Amílcar Cabral, sendo este último um dos principais pensado-
res da relação entre formação cultural, libertação nacional e desenvolvimento das
forças produtivas12. E é desta forma que se deve fazer a relação entre desenvolvi-
mento e cultura – não somente neste caso – para a China.

aaaaaaaaaaaa

Conforme já dito, visitamos o país em três oportunidades, sendo que na úl-


tima aproveitamos a distância e a disponibilidade para também passar duas se-
manas na Coreia do Norte. As duas primeiras visitas serviram para acumular
uma série de experiências, entre elas a de que o contato próximo com o “chinês
simples” vale mais que uma série de leituras e intercâmbios acadêmicos; que
longas viagens por terra (ou rio) são condições sine qua non para se formar, pelo
menos de forma inicial, um razoável intelectual interessado em desvendar algo
sobre o país asiático.
Assim, a nosso ver, pode-se conhecer a China de verdade. Aquela que “cedo
madruga sem esperar a ajuda divina”. Assim se compreende, pelo menos inicial-
mente, a alma de um povo cujo horizonte moral é moldado por uma filosofia con-
fuciana e taoista surgida em momento histórico quase contemporâneo à filosofia
clássica grega; onde, ao mesmo tempo em que uma pessoa se diga marxista, ela
reafirme seu budismo, transforme Mao em uma divindade e demonstre costumes
12
Sobre esta relação, sugerimos a leitura de CABRAL, Amílcar. A arma da teoria. Codecri. Rio de
Janeiro, 1980.

156
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

confucianos (senso de hierarquia e respeito aos mais velhos) aliados a uma rebeldia
típica taoista.

3.2.2.1 Homem, natureza, ideologia e forças produtivas

Faz-se necessário relembrar alguns pontos já expostos anteriormente.


Explicar qualquer fenômeno que se expressa na subjetividade humana deman-
da a plena compreensão de uma gama de determinações que formam o concreto.
No caso da formação de uma subjetividade humana e nacional de caráter chinês,
deve-se compreender a cristalização de seu corpo filosófico. Muitos que ainda va-
gam na fronteira que separa Kant de Hegel afirmam que “pensamento é matéria”.
Pensamento não é matéria, mas é consequência da evolução da matéria. Em curtas
palavras, o pensamento gerido por determinada sociedade é expressão do nível de
desenvolvimento das forças produtivas e do estágio de acúmulo material obtido.
Surge, então, outra questão, de crucial importância à compreensão de dife-
rentes dinâmicas sociais: o que são forças produtivas e que tipo de relação elas
expressam?
As forças produtivas expressam relações entre homem e natureza. Na Crítica
ao programa de Gotha (1875), Marx desfere cortante crítica à conclusão segundo a
qual o “trabalho é a fonte primária de toda riqueza”, apontando a natureza como
a fonte nodal da riqueza. Logo, entrelaçando o surgimento e as características de
determinada expressão ideológica e filosófica, a primeira coisa a se fazer é observar
as condições naturais de reprodução humana. Abre-se, assim, um largo campo
para a devida relação entre forças produtivas materiais e erupção de determinadas
ideologias, nefastas ou não, messiânicas ou tolerantes.
Salvo engano, no capítulo XIV do Livro 1 de O capital, Marx faz a devida relação
entre trabalho necessário e excedente em diferentes pontos do globo. A partir dessa
análise, ele viria a provar que o capitalismo triunfou justamente onde as condições
naturais eram nada propícias; onde, em suas próprias palavras, “o homem teve de
dominar a natureza”. Assim sendo, onde o homem não teve de dominar a nature-
za, ao contrário, bastava o convívio pacífico, tendo por base grande fonte de água e
terra, sendo o trabalho necessário para a reprodução humana muito menor do que
em espaços desérticos ou árticos.

157
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Os grandes vales férteis do rio Amarelo e do rio Azul (China), Ganges (Índia),
Nilo (Egito), e dos rios Tigre e Eufrates (Mesopotâmia), são considerados como os
berços civilizacionais. “Civilizacionais” no sentido mais amplo do termo, pois a
tranquila convivência entre homem e natureza permitiu tanto saltos espetacula-
res no desenvolvimento das forças produtivas (surgimento precoce, cerca de 4 mil
anos atrás, de economias mercantis, dados os crescentes excedentes de produção
agrícola e da invenção do arado de boi) quanto (e consequentemente) o surgimento
de filosofias tolerantes e civilizatórias (taoismo, confucionismo e hinduísmo). No
Oriente o indivíduo é parte da natureza, que, por sua vez, é o centro do mundo. Na
China, por exemplo, a influência desse tipo de expressão filosófico-ideológica pode
ser percebida nos inúmeros quadros e desenhos que se vendem em lojas ou mesmo
nas ruas, onde uma verdadeira “ode à natureza” é apresentada.
Abrindo parêntese, eis o sentido histórico da proclamada “sociedade socialista
e harmoniosa” perseguida pelos atuais herdeiros de Mao Tsetung no poder central
do país. Harmonia entre homem e natureza.
É curioso notar que Sócrates, Platão e Aristóteles, fundadores da moral oci-
dental, sistematizaram propostas comportamentais semelhantes e quase con-
temporâneas às de Confúcio e Lao-Tsé. Cabe a nós nos perguntar, pesquisadores
ou simplesmente curiosos: se o confucionismo e o taoismo se encontram ainda
presentes e vivos na formação moral do povo chinês, por que no Ocidente os
fundadores da moral ocidental (filosofia clássica grega) estão devidamente co-
locados na lata de lixo da história? Interessante questionamento. De imediato,
deixamos a dica para irmos além de Michel Foucault que, apesar de descobrir
brilhantemente o desdobramento da subjetividade ocidental na lógica do “vigiar
e punir”, não apontou os verdadeiros mecanismos do desenvolvimento histórico
dessa anomalia superestrutural.
Mudando o foco, analisando-se os fenômenos dessa forma não é difícil enten-
der que o surgimento de filosofias do tipo “destino manifesto”, “povo eleito”,e afins
seja produto de regiões do globo onde o homem teve de arduamente dominar a na-
tureza, por exemplo, do Mediterrâneo Oriental até a Europa Ocidental. Esse tipo de
relação dominadora diante da natureza levou o homem europeu ocidental a transi-
tar do escravismo ao feudalismo, daí até a pequena produção mercantil num ritmo
histórico muito mais lento que nos “berços civilizacionais”; porém, com resultados

158
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

que desembocaram numa transição ao capitalismo como necessidade histórica e


espacial, ao contrário de regiões como o Sudeste Asiático, onde a “generosidade da
natureza” não levou o homem a pensar em meios e maneiras de multiplicar ganhos
de produtividade, nem tampouco em formas de dominar terceiros territórios.

3.2.2.2 Relações diversas

Vamos tentar dar um pouso no concreto, tentando relacionar os postulados da


filosofia clássica chinesa com o dia a dia do chinês comum.

aaaaaaaaaaaa

O trabalho começa bem cedo. Praticamente, de segunda a segunda, desde as


sete da manhã, percebe-se um movimento anunciando a abertura do comércio.
Sendo um local onde a economia de mercado surgiu há milhares de anos, é fácil
constatar que em um hutong com pouco menos de um quilômetro existem mais
estabelecimentos comerciais que na rua do Catete no Rio de Janeiro. Também fica
mais tranquilo entender a ferocidade comercial chinesa e o sucesso do “socialismo
de mercado” por essas áreas. Os chineses apreenderam que a melhor maneira de
levar vantagem nessa contenda de dimensões históricas é sorver o imperialismo
comercialmente.
Tanto o confucionismo quanto o taoismo surgem de bases sedimentadas sobre
uma rústica dialética (ying e yiang) e um materialismo (muito) mais avançado que
o de Feuerbach, formando a base teórico-histórica de uma “ideologia do trabalho”
disseminada, por exemplo, no Japão. A existência de Deus é algo estranho a um
denominado “reino dos céus” espiritualista, mas não deísta. A hierarquização do
poder, desde a base familiar até o topo do poder estatal, é sustentada pela “expe-
riência adquirida” e a “capacidade de prover o bem comum”. Daí em Confúcio ser
importante a “ordem na casa”, mas sob o requisito do merecimento e do “poder
celestial” ser “revogável pelo povo”. Abrindo parêntese, conversas e prescrições de
nosso orientador têm nos alertado de que todo povo e/ou nação é marcado por cer-
tos níveis de religiosidade. Por exemplo, em países como Índia, Estados Unidos e
Inglaterra, o nível de religiosidade (que não significa simplesmente fé religiosa no

159
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

sentido protestante ou hindu da constatação) tem grande repercussão na subjetivi-


dade popular, enquanto na China o papel da religião tem pouco valor na formação
de seu povo, para quem valores morais e materialistas têm grande peso. Ouvimos
de um professor chinês da Academia de Ciências Sociais que a religião chinesa é
a “nação”. Daí um mix entre o self-made man chinês e sua consciência perante o
futuro da nação e a centralidade do desenvolvimento nesse processo de “rejuvenes-
cimento” da nação chinesa.
Retornando, pode parecer estranho às gerações atuais ocidentais ver um se-
nhor de 90 anos manifestar-se e, com isso, fazer todos ao seu redor ficarem quietos,
assim como considerar Mao Tsetung um “ditador” quando, a bem da verdade, sua
“deificação” seja “eterna enquanto dure”. Importante salientar isso, pois, se o Oci-
dente credita às reformas de 1978 o sucesso da China de hoje, para o povo desse
país está claro que 1978 é continuidade de 1949, e que sem 1949 não existiria 2010.
Isso significa que o termo “ditadura” para os chineses é algo estranho na caracteri-
zação do regime, o que sugere que o retrato de Mao que domina a Praça Tiananmen
continuará por lá enquanto Hu Jintao e as próximas gerações dirigentes forem ca-
pazes de tocar adiante essa nação de alguns milhares de anos. Na subjetividade po-
pular, do camponês mais simples, o regime iniciado em 1949 é mais um capítulo de
uma história milenar de continuidades e rupturas. Por isso, insistimos em colocar
o atual processo como parte do desenvolvimento de um Estado nacional unificado
há 2.500 anos. Eis o desenvolvimento como o motor de um projeto milenar e vivo
na já citada subjetividade popular. São muito claros para o chinês comum a história
de seu país e o significado dos acontecimentos de 1949, bem como o pedestal reser-
vado à figura de Mao Tsetung.
A relação entre desenvolvimento e “questão cultural” também está presente
em manifestações populares ante as “dores do parto” de todo esse processo históri-
co que se acelerou em 1978. As desigualdades sociais têm no crescente culto à figu-
ra de um líder camponês e igualitarista como Mao Tsetung uma forma de protesto.
Suas fotografias estão cada vez mais presentes em residências e estabelecimentos
comerciais localizados tanto nos hutongs do centro de Pequim quanto em aldeias
camponesas localizadas em áreas de solo fértil e que, portanto, se enriqueceram de
forma mais acelerada do que outras regiões do país. Por conta da acentuação das
diferenças sociais e regionais, ouvimos muitas declarações de repúdio ao governo

160
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

de Jiang Zemin, ao contrário do que ocorre com Hu Jintao e Wen Jiabao, muito
populares por conta da atual disposição de enfrentar as desigualdades. A questão
social ganha força no país, daí a figura de Mao encontrar-se cada vez mais em des-
taque em grandes centros como Xangai e mesmo Shenzen, nos “fundos” de Hong
Kong. Não foram poucas as pessoas, com as quais pudemos conversar na China,
que relacionaram esse “ressurgimento” ao culto de Mao Tsetung aos problemas do
desenvolvimento, afinal a China está muito longe de ser um paraíso. Nesse sentido,
a questão cultural impulsiona mudanças de postura da superestrutura de poder
para com o desenvolvimento e suas implicações.
A história demonstra que mudanças de postura dos condomínios de poder
instalados advêm somente de pressões “de baixo”. E a própria história chinesa é
testemunha concreta desse tipo de movimento.

3.2.3 Nacionalismo, socialismo e desenvolvimento

A repulsa do chinês comum para com a desigualdade social não é de difícil


explicação. A não naturalização do fenômeno da desigualdade pode ser reparada
por meio da própria forma com que os chineses se relacionam consigo mesmos.
Por exemplo, em épocas de calor que assolam Pequim, não é incomum presenciar-
mos almoços e jantares ao ar livre, numa clara reminiscência das comunidades
agrárias, igualitaristas e milenares. O fator “camponês” está presente nos pratos
servidos a céu aberto: uma quantidade enorme de comida, parecendo um lar in-
teriorano brasileiro onde, no café da manhã, se serve, além de pão com manteiga,
um agradável mix de café com bolo de fubá. É a “China Profunda” nos quarteirões
muito próximos do portão de entrada da Cidade Proibida. É a antítese do fenômeno
da individualização, muito presente entre os “novos ricos” chineses. Porém, os chi-
neses têm plena consciência de que as contradições do processo de desenvolvimen-
to não serão solucionadas com políticas de contenção da demanda. É nesse sentido
que o nacionalismo presente na subjetividade chinesa se entrelaça com o desenvol-
vimentismo e a própria construção do “socialismo com características chinesas”.
Desde o momento em que demos os primeiros passos na concepção da Chi-
na como objeto de estudo, nos acostumamos a um crescente senso comum acerca
da mudança de postura do regime na década de 1990, de abandono da ideologia

161
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

socialista em prol de uma radicalização de conteúdos subjetivos nacionalistas. Tal


constatação é válida, mas não deixa de ser uma meia verdade, na medida em que,
para o próprio Marx, a maximização das forças produtivas tem centralidade diante
do objetivo estratégico de se superar a divisão social do trabalho. Em nossa opinião,
o nacionalismo, para os países periféricos, é a grande expressão cultural e subje-
tiva de certa “ideologia do desenvolvimentismo”, seja tal ideologia com vertente
latino-americana ou asiática. Além disso, o nacionalismo é a essência do desen-
volvimentismo quando transformado em teoria econômica e mesmo como causa
e consequência da “questão cultural” na periferia do sistema. Lênin, em meio a
intenso debate acerca da NEP, replicou seus oponentes afirmando, pragmaticamen-
te, que os bolcheviques seriam reconhecidos como melhores e mais competentes
na mesma proporção em que dispusessem – de forma mais diligente e desburo-
cratizada que seus antecessores – de crédito. E que é o crédito senão o motor do
desenvolvimento capitalista e também socialista? Não seria assim, enriquecendo os
camponeses, que o PCCh poderia sair vitorioso do vendaval contrarrevolucionário
de junho de 1989, em Tiananmen? Nesse sentido, qual a contradição entre nacio-
nalismo e socialismo?
Por fim, em outro nível de abstração – que relaciona a compreensão da “nação”
como “religião chinesa” (questão nacional) com a capacidade do governo em prover
novas fronteiras de acumulação aos seus camponeses e empreendedores, e com o
fato de a derrocada da China, como potência no passado, estar em consonância
com o advento do capitalismo, do imperialismo e da “lei do desenvolvimento de-
sigual e combinado” –, remetemos outras questões acerca da tal contradição entre
socialismo e nacionalismo na China:

a) Será que a simpatia do chinês comum pelo marxismo não tem ligação
direta com o fato de o próprio desenvolvimento capitalista ter sido nega-
do ao país como forma de se retomar um chamado “rejuvenescimento”
da nação chinesa diante da brutalidade ocidental entre 1839 e 1949?
b) Existe contradição entre o discurso socialista e o nacionalista, na me-
dida em que a história recente tem demonstrado que somente pela via
socialista seria possível o “rejuvenescimento” da nação chinesa?
c) Qual a contradição da máxima da III Internacional sobre a junção entre

162
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

o nacional e o popular, tendo o desenvolvimento das forças produtivas


como feixe central?
d) Não é de se pensar que a “era do imperialismo e da revolução proletá-
ria” não seja coincidente com a realização de um processo histórico em
que o homem, muito à frente do “homem da caverna”, mas ainda longe
do “homem novo”, passe a se reconhecer como um “ser nacional”, de
forma que suas atitudes em nome da autorreprodução não estejam em
concomitância com a centralidade da questão nacional no rumo de uma
estratégia socializante?

Estamos convencidos de que as respostas a essas questões poderão abrir uma


série de debates aos interessados em relacionar o desenvolvimento com a “questão
cultural”, pelo menos na periferia capitalista.

3.3 CONCLUSÕES DA PARTE 3


No capítulo anterior, buscamos aproximar dois níveis de discussões: o processo
de transição e um modelo aproximativo do “socialismo de mercado” chinês. Pode-
-se achar abstrato em demasia, mas tratou-se de passo essencial para uma visão
menos cinzenta da relação entre o processo de transição, as vicissitudes do socia-
lismo como algo procedente dentro dos marcos de diferentes formações sociais e a
busca, ainda muito inacabada e em fase de iniciação, de um modelo que se encaixe
à formação social chinesa – daí a ênfase em aspectos da formação chinesa capazes
de servir de link entre o histórico e o concreto em plena transformação. A relação
com o concreto se dá no “modelo” formado pelas partes constituintes que vão da
história do país à história do socialismo no século XX, e pela conjuntura que emol-
dura o pleno desenvolvimento do modelo chinês.
Se Deng Xiaoping parafraseia – a seu tempo – o Manifesto de Marx e Engels,
recolocando em seu devido lugar a centralidade do desenvolvimento das forças pro-
dutivas como condição sine qua non para a transição, seja ela entre o capitalismo e o
socialismo e mesmo entre o socialismo e o comunismo, nada mais justo e certeiro
do que se iniciar de forma menos superficial a discussão entre o socialismo, o de-
senvolvimento e o projeto nacional chinês – iniciando com uma breve discussão

163
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

sobre o próprio conceito de desenvolvimento, como algo que deve estar plenamente
relacionado com o desenvolvimento nacional na periferia, conforme tentamos de-
monstrar. Retornando a Marx e Engels, se o desenvolvimento das forças produtivas
expressa determinados níveis de relações entre o homem e a natureza e entre os
homens consigo mesmos, o imperioso deste capítulo é expor as condições naturais
que baseiam a formação e o desenvolvimento dessa nação; causa e consequência do
“socialismo em um só país”. Num outro nível de análise, podemos concluir (como
exposto no capítulo) o entrelace entre a questão nacional na periferia após a Segun-
da Guerra Mundial e o desenvolvimento.
Assim sendo, pode-se concluir tranquilamente, para o caso chinês, que o de-
senvolvimento é o ponto de fusão entre o socialismo com características
chinesas e o próprio projeto nacional chinês. Como exemplo, esta relação é
muito clara na necessária demonstração da concentração territorial da população
chinesa e da porcentagem das terras em condição de plantio do país. Foi uma for-
ma demonstrada, neste capítulo, de colocar o leitor a par do imperativo do de-
senvolvimento na China, assim como o próprio imperativo do socialismo, único
caminho possível para o desenvolvimento – em forma quase de via prussiana com
características socialistas, e numa “via dos produtores”, maximizando a capacidade
empreendedora do camponês chinês. São formas de desenvolvimento condiciona-
das pela história e a conjuntura.
Além de alguns mapas descritivos, lançamos mão de um pouco de nossas ex-
periências pelo país como forma de proporcionar maior vivacidade ao livro e à pró-
pria descrição num ponto de encontro entre o concreto e o abstrato e entre o teórico
e o empírico. Tentamos, então, colocar em sua devida medida a capacidade de pôr à
prova nossa própria experiência naquele país e inclusive nossa própria visão daque-
le processo singular, que não se limita aos números e aos relatórios oficiais. Acre-
ditamos que neste capítulo muitas de nossas visões acumuladas foram expostas,
inclusive enfrentando uma polêmica nada periférica com alguns pontos da grande
obra de Giovanni Arrighi.
Com alguns exemplos, também tiramos algumas conclusões acerca do Estado
nacional chinês, tentando deixar nítido que, sobre uma base natural “x”, capaz
de elevar substancialmente o nível de desenvolvimento das forças produtivas do
país, surgiu um Estado – conforme a própria topografia do país exige – planejador,

164
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

eficiente na execução de obras públicas e lubrificado por um serviço público ante-


rior a qualquer tipo de experiência desse tipo no Ocidente. Eis os atributos de um
chamado “modo de produção asiático”, cuja compreensão é condição necessária
para uma noção mais esmerada do “socialismo de mercado” chinês e da dinâmica
do desenvolvimento do país. Assim como o socialismo de mercado chinês, o modo
de produção asiático é o modo de produção de uma formação social baseada por
milhares de centenas de famílias camponesas pressionando a superestrutura no
rumo de saltos qualitativos. Pode-se concluir indo mais além: o modo de produção
asiático está para o feudalismo na China assim como o “socialismo de mercado”
está para o socialismo chinês, pois ambos – a partir de uma ampla visão de pro-
cesso histórico – se desenvolvem sob uma formação social rural, com liberalização
do comércio de excedentes e um Estado Nacional planejador e centralizado, cuja
sofisticação pode ser percebida na exata noção do papel do desenvolvimento para
a consecução de objetivos de variada monta e a quase perfeita relação entre Estado
e iniciativa privada e suas variantes, dependendo dos ciclos endógenos e exógenos
da economia.
Por exemplo, se num momento o comércio privado marítimo pode ser incen-
tivado, em outro pode ser inclusive proibido em detrimento do mercado interno
e de arranjos territoriais necessários à expansão da divisão social do trabalho. Se
em um momento a conjuntura impôs um crescimento pela indústria pesada e re-
lações desiguais entre campo e cidade, em momento diferente pode-se explorar ao
máximo as virtudes de uma economia de excedentes camponeses. Se no modo de
produção asiático não existia propriedade privada da terra e a relação entre Estado
e camponês era mediada por concessões de terra, o mesmo ocorre no “socialismo
de mercado” na China. Em todos os casos, sempre com um Estado com percepção
exata de onde surgem pontos de estrangulamento na economia e como enfrentá-
-los antes de afetar o conjunto econômico como um todo. Enfim, e a princípio, este
capítulo busca levantar essas reflexões para o debate.
No capítulo anterior, num segundo nível de discussão, discorremos sobre o
socialismo, já introduzindo uma discussão sobre o “modelo” e o processo de desen-
volvimento. Neste capítulo, trabalhamos sobre as bases naturais já propondo um
maior aprofundamento sobre a questão do próprio desenvolvimento. Nesse sentido,
concluímos primeiramente a necessidade de introdução de assuntos posteriores no

165
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

imediato. Trata-se aqui da máxima de separar o essencial do periférico e em segui-


da recuperar a “essência do periférico”. Se a essência do periférico no capítulo an-
terior esteve no desenvolvimento, por sua vez neste capítulo buscamos já introduzir
uma análise mais detida de pelo menos dois pontos sobre o desenvolvimento: a
variável estratégica do comércio exterior planejado e da relação entre questão cul-
tural e desenvolvimento, tão deixada de lado diante dos primados economicistas
da década de 1990. Objetivamos, com isto, adiantar desde já que a dinâmica da for-
mação social chinesa – ainda que dinâmica periférica – tem no comércio exterior o
ponto de encontro entre as leis econômicas objetivas do capitalismo central e as leis
econômicas de uma formação social socialista ainda em processo de cristalização.
A expressão dessa relação entre interno e externo está num processo peculiar de
desenvolvimento, onde o setor externo da economia é capaz de pressionar os seto-
res, socialista e privado, da economia a impulsionarem o desenvolvimento da pró-
pria economia de mercado, com a inclusão de milhões de pessoas que estão fora do
processo mercantil, impulsionando assim o próprio processo de desenvolvimento.
Eis uma conclusão a ser mais bem trabalhada no próximo capítulo, contribuindo
assim com uma visão particular do processo, que escape ao que está sendo discuti-
do mundo afora. Afinal de contas, em Lênin o próprio processo de desenvolvimento
em economias agrárias deve ser medido pela quantidade e velocidade de pessoas
que acessam a própria economia de mercado, gerando efeitos multiplicadores ao
conjunto do processo13. Eis um ponto.
A respeito da chamada questão cultural, interessamo-nos muito por analisar
também questões de subjetividade. Afinal, como disse Marx, para que ideias ga-
nhem concretude elas precisam ganhar a mente das massas. E o desenvolvimento,
acrescido de certa ideologia do trabalho oriental e uma formação moral segundo a
qual “a felicidade se encontra na Terra”, é algo a ser trabalhado na compreensão do
processo chinês. Nada culturalista, ao contrário. Trata-se de um processo em que
o próprio Estado se apropria da formação popular para gerir política econômica e
gerir as demandas dessa massa, que se manifesta inclusive diante das contradições.
13
Essa visão de desenvolvimento periférico como expressão da velocidade de entrada de pesso-
as na economia de mercado pode ser auferida em todos os trabalhos de Lênin sobre a questão
camponesa, escritos entre 1893 e 1910. De forma mais elaborada, indicamos a leitura de LÊNIN,
V. “On the so-called market question”. In LÊNIN V. Collected works, 4th English Edition. Progress
Publishers. Moscou. 1972. Vol. 4, pp. 75-175.

166
Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa

Mas é preciso também, como imperativo do trabalho científico, ter no empírico


uma fonte saudável de sustentação de determinada ideia. Daí conviver numa rua
comercial e entrevistar dezenas de pessoas para demonstrar, entre outras coisas, a
concretude da nação, o ponto de fusão entre nação e desenvolvimento e as conse-
quências e contradições de um Estado para o qual, fora do desenvolvimento, não
existem margens para grandes manobras. Esperamos que, ao aludirmos a esta ex-
periência pessoal, possamos contribuir para a discussão.
Por fim, a polêmica com Arrighi. Não há problema com a obra em si. Como já
citado, Adam Smith em Pequim é uma obra seminal, apesar da grande distância em
matéria de importância de autores como Joseph Needham e John Fairbank. O pro-
blema também não é com Adam Smith, pois sem a lógica smithiana do desenvol-
vimento pouco se avançaria em matéria de compreensão da evolução da tecnologia
e sua consonância com a dinâmica da divisão social e internacional do trabalho.
Não consideramos Marx ou Engels como anti-Smith ou anti-Ricardo, mas sim a
superação dessa forma liberal de pensar a dinâmica econômica e social. Portanto, o
problema não é ideológico. O que colocamos em questão é a utilização da máxima
smithiana de “caminho natural à opulência” como forma alternativa à elaboração
marxista da chamada “acumulação primitiva”, como se Marx pudesse compreen-
der Detroit, mas não a China. Trata-se de um grande primarismo, pois a economia
política marxista é a economia política que arma o investigador a pensar e entender
a dinâmica da acumulação seja nos Estados Unidos, seja na China. Daí Maurice
Dobb ter se saído muito melhor que Sweezy no debate da transição feudalismo-
-capitalismo, pois Dobb compreendeu a essência do método do materialismo histó-
rico e percebeu a transição pela “via revolucionária” (ou “via dos produtores”, ou,
ainda, “via americana”), ou da transformação do pequeno produtor em capitalista.
O que se pode dizer quanto à falsa contraposição de uma dita “acumulação
primitiva” a outra de tipo “acumulação sem desapropriação”? As duas formas são
possíveis e pensáveis sob o ângulo do marxismo. O que se pode colocar em questão
é que essa via dos produtores na China, naquela época, não redundou em trans-
formação do modo de produção asiático em capitalismo, o que – a nosso ver – não
invalida essa hipótese, pois o que deve ser medido são o desenvolvimento das for-
ças produtivas e a capacidade da superestrutura em absorver essa fluidez da base
econômica e conduzir a nação adiante. Logo, o que se deve compreender não é esse

167
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

“caminho natural” – até porque nada é natural em matéria de desenvolvimento so-


cial –, e sim a lógica do funcionamento do modo de produção asiático e as implica-
ções históricas dessa lógica para a melhor assimilação do “socialismo de mercado”
na China. O que, do contrário, só pode recair num puro diletantismo acadêmico
sem consequências científicas e tampouco políticas.
Encerrando esses comentários, chamamos a atenção para certa universalida-
de das categorias do marxismo, principalmente a de formação social. Fica a si-
nalização de que essa acumulação pela via dos produtores está presente tanto no
modo de produção asiático quanto no “socialismo de mercado” chinês – avançan-
do, obviamente, para uma forma de acumulação cada vez mais centrada na grande
margem de manobra financeira do país, pois os grandes saltos civilizacionais são
necessariamente acompanhados por um grande lastro político e financeiro. Além
disso, resta outra conclusão mais periférica deste capítulo e desta discussão: o atual
poderio financeiro chinês está para o socialismo de mercado da mesma forma que
a siderurgia e a indústria pesada estão para o “modelo soviético”. Outra analogia
conclusiva: se a indústria infante de Liszt é o rock bottom para a “via prussiana” bis-
marckiana, por que não dizer que a acumulação camponesa está na base da tran-
sição pela via de um socialismo de mercado, configurando-se assim uma clara “via
dos produtores” com feições socialistas numa China em que os “novos ricos” eram,
há três décadas, nada mais do que os camponeses médios à espera de mudanças
superestruturais que colocassem à prova sua milenar capacidade empreendedora?
Como se percebe, urge adentrarmos no processo de desenvolvimento chinês
em todas as suas determinações para, a partir daí, tirar conclusões mais próximas
de algo mais original.

168
4. O desenvolvimentismo
chinês com características
socialistas

169
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

N ão é mais nenhuma novidade que, no ano de 2009, quando os estilhaços


da crise financeira poderiam ter levado de roldão o “modelo chinês” (da
mesma forma que a crise do fordismo dilacerou as bases do “modelo soviético”), a
China cresceu exatos 8,7%. Já em 2008, suas exportações corresponderam a US$
1,428 trilhão e suas importações a US$ 1,221 trilhão. Suas reservas cambiais em
setembro de 2009 chegaram a US$ 2,272 trilhões e os fluxos de Investimentos
Estrangeiros Diretos (IED’s) a mantiveram na dianteira internacional, com US$
92,4 bilhões em 20081. Já não é segredo para ninguém que, por volta de 2030, a
China poderá arrebatar dos EUA o posto de primeira economia mundial no mesmo
momento em que poderá se completar o processo de unificação de seu território
econômico com a incorporação do oeste do país por completo, do espaço econômico
litorâneo e das margens do rio Yang-Tsé.
Normalmente, deveríamos desde já partir para o esmiuçamento desse proces-
so em andamento. Porém, o importante neste capítulo é, para nós, não cairmos na
tentação de já enumerar uma série de determinações sobre o desenvolvimento chi-
nês, expondo – de antemão – opiniões sobre o papel desta ou daquela determinação
(por exemplo, relacionando IEDs com o fomento tecnológico), nem muito menos
sobre o papel do câmbio e da taxa de investimento ao crescimento econômico final.
É interessante também ter sempre à mão e na mente algumas elaborações já con-
tidas nos dois primeiros capítulos, entre elas a centralidade da variável comércio
exterior.
O que queremos dizer é que há grande relevância, neste momento, em buscar
explicações que se diferenciem do convencional e, para isso, o mais importante é a
retomada de uma teoria do desenvolvimento que leve em consideração a complexi-
dade da formação social chinesa. Processo tal onde o regional acaba por se entrela-
1
Dados anualizados do desempenho econômico chinês poderão ser observados no www.chinabi-
lity.com. Mais à frente no trabalho, séries periodizadas serão expostas e comentadas.

171
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

çar com o nacional, e onde a pequena produção mercantil afeta o desenvolvimento


do setor socialista da economia e vice-versa. É a história do que já expusemos sobre
diferentes distâncias territoriais e históricas convivendo numa mesma formação
nacional.

4.1 V. LÊNIN E O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO


EM SOCIEDADES AGRÁRIAS
Lênin é muito lembrado (e lamentavelmente reduzido) por suas contribuições
políticas ao processo de luta política do proletariado na era do amálgama existente
entre capital financeiro e o surgimento do imperialismo. Joseph Stálin, de forma
muito acertada, concebeu a definição do leninismo como o “marxismo da época
do imperialismo e da revolução proletária”2. A nosso ver, tal observação não deve
se resumir a um enorme esforço particular de Lênin em conceber uma estratégia e
táticas justas à tomada do poder, como demonstraremos adiante.

4.1.1 Lênin e o problema/solução do mercado

Independentemente de, no segundo capítulo, termos explicitado o caráter de


categoria historicamente dada tanto do mercado quanto da lei do valor, é ainda
evidente a não suficiência desta constatação para justificar um possível rumo so-
cialista do projeto nacional chinês. Esta insuficiência deve-se também ao fato de
os fundadores do socialismo científico não terem trabalhado com a hipótese de o
socialismo triunfar na periferia do sistema. Logo, faz-se conveniente expor o papel
da própria economia de mercado na supressão de vestígios feudais de determinada
formação social e seu papel central de arranque no processo de transição, seja ao
capitalismo, seja ao socialismo.
Ao contrário do que se pode imaginar, as primeiras preocupações de Lênin
não se referiam à elaboração de uma teoria que envolvesse a estratégia e a tática do
proletariado. Nesse sentido, ressaltamos em Lênin certo mix entre o racionalismo
político de Maquiavel e o socialismo científico de Marx e Engels: Lênin desenvol-

2
STALIN, J. “The foundations of leninism”. In Works of Joseph Stalin. Foreign Languages Pu-
blishing House. Moscou, 1953. Vol. 6, p. 121.

172
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

veu a ciência política de Maquiavel ao alçar o movimento político imediato (tática)


do proletariado ao grau de ciência.
Esse caminho somente foi possível, porém, graças a um profundo conheci-
mento da realidade que lhe cercava: a Rússia czarista em decomposição ante o de-
senvolvimento da base econômica do Império Russo por meio do desenvolvimento
de uma economia mercantil e, consequentemente, a diferenciação social; enfim, do
desenvolvimento do modo de produção capitalista na Rússia. Esse processo se fazia
sentir na nascente indústria lastreada pelo capital industrial inglês, mas tomava
tons mais dramáticos no campo, onde ocorria um acelerado processo de centraliza-
ção dos meios de produção. Numa sociedade de maioria esmagadora de pequenos
produtores pulverizados e sob a transição do modo servil de produção a um embrio-
nário capitalismo, é de enorme importância vaticinar que o cerne da construção de
uma teoria e método de derrubada da autocracia e abertura de um amplo leque de
ações políticas para a emancipação social demandou ir a fundo, abstratamente, na
percepção deste processo geral de transição feudalismo-capitalismo na Rússia e, no
concreto, mergulhar no cotidiano dessa ampla massa camponesa. E foi justamente
isso que Lênin percebeu. Compreender a China e seu “socialismo de mercado” pas-
sa também, necessariamente, pelo entendimento de toda a problemática levantada
pelo pensador russo em seus primeiros 17 anos de atividade intelectual e política.

4.1.1.1 De Samara à NEP

Existe uma grande nuvem em torno da essência da NEP e das dimensões em


que sua variante chinesa tem sido aplicada. Tanto na década de 1920 como hoje,
na China, a aplicação desse “modelo” ainda é observada como um retorno ao ca-
pitalismo ante a inaplicabilidade de um programa de transformação socialista. O
contrário, em que esse modelo é parte de um todo que envolve o fortalecimento do
próprio socialismo, não é vislumbrado pela maioria, inclusive entre as esquerdas.
No entanto, a névoa sobre essa forma de transição deve-se à universalização do
“modelo soviético” que, dados seus aspectos positivos, serviu como biombo para as
práticas mercantis e de colaboração com o capital estrangeiro por países de orienta-
ção socialista, algo bem à moda maniqueísta da Guerra Fria.
Porém, o que nos interessa neste momento são duas observações. A primeira

173
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

é buscar a essência da NEP aplicada por Lênin e, em seguida, de posse dessa es-
sência, compreender sua aplicação à China. Algo fora de parâmetros modelares e
com grande serventia à explicação de processos de desenvolvimento e transição em
formações sociais agrárias e periféricas. O que significa, para nós, compreender a
essência da transição encetada sob uma pequena produção mercantil, variando
formas de acumulação e tendo como objetivo o próprio socialismo. Neste caso, o
“socialismo de mercado” é o meio por onde as forças produtivas terão ambiente
superestrutural para sua maximização.

aaaaaaaaaaaa

Argumentamos que a elaboração da NEP, em Lênin, é síntese de todo um


esforço iniciado em 1893 voltado à compreensão dos problemas da penetração do
capitalismo no complexo agrário russo.
O seu primeiro trabalho com este objetivo é a análise de um texto assinado,
em 1891, por V. I. Postinikov, chamado Fazenda camponesa no sul da Rússia. O estudo
dessa obra se sintetizou na publicação, em 1893, de Novos desdobramentos econômicos
na vida camponesa. Nesse ensaio, voltado à compreensão da situação camponesa em
Samara (sul da Rússia), Lênin conclui que o desenvolvimento rápido da economia
de mercado tem no modo de produção capitalista seu ápice. Percebe-se na leitura
desse trabalho a precoce consciência de Lênin, para quem, ao mesmo tempo em
que a Rússia ainda vivia o momento do aumento da produtividade de trabalho
gerado pelas condições naturais, já estava se gestando – no país – um aumento
de produtividade com relação de causa e efeito com o aumento da divisão social
do trabalho e da concentração dos meios de produção. Nesse caso, a economia de
mercado é a causa e o efeito do aumento da produtividade e da diferenciação social,
pois a organização econômica dos camponeses mais ricos poderia ser descrita como
“largamente comercial” e “baseada no trabalho de terceiros”3. Pode ser uma obvie-
dade, mas na verdade o que está colocado, por Lênin, é um caminho de acumula-
ção baseado em leis econômicas objetivas, entre ela o da “lei da oferta e procura”,
cuja negação em qualquer estágio de desenvolvimento humano poderia redundar
3
LENIN, V. “New economic developments in peasant life”. In LENIN V. Collected works, 4th En-
glish Edition. Progress Publishers. Moscou. 1972. Vol. 1, pp. 11-74.

174
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

em grandes problemas, principalmente de abastecimento. O que evidencia, empiri-


camente, o próprio papel histórico da economia de mercado, pois a própria subjeti-
vidade camponesa gira em torno da realização pela acumulação pessoal.
Nesse primeiro trabalho, Lênin lança mão das bases teóricas que iriam nortear
posições cada vez mais bem elaboradas no decorrer de sua obra. Entre elas, desta-
camos a plena utilização da relação smithiana entre desenvolvimento da técnica
e a dinâmica da divisão social do trabalho. Aliás, a crítica de Lênin a Postinikov
está na não total observância da variável tecnologia para a explicação da dinâmica
acumulativa camponesa e expressão do cada vez maior domínio do homem sobre a
natureza. Sob nosso ponto de vista, a compreensão exata dessa relação entre técni-
ca e divisão social do trabalho é nodal à sofisticação de visões acerca da transição.
Esse árduo exercício de conhecimento da realidade russa e seus desdobramen-
tos, que serviram de base à NEP, são aprofundados nas seguintes obras: Em torno
ao chamado problema dos mercados (1893), Quem são os “amigos do povo” e como lutam
contra os social-democratas? (1894), Conteúdo econômico do populismo e sua crítica no
livro do senhor Struve (Reflexo do marxismo na literatura burguesa) (1895), e também
no clássico O desenvolvimento do capitalismo na Rússia (1899). Além disso, também
representaram uma contribuição importantíssima para a economia política mar-
xista os seguintes trabalhos de Lênin sobre a questão agrária, que generalizaram
os dados concernentes ao desenvolvimento da agricultura na Rússia e em outros
países: O problema agrário e os “críticos de Marx” (1907), O programa agrário da social
democracia na primeira Revolução Russa de 1905-1907 (1907) e Agricultura e capitalis-
mo nos Estados Unidos (1910, nesta é perceptível a melhor elaboração de Lênin acerca
do processo de acumulação capitalista a partir da pequena produção mercantil – a
chamada “via dos produtores” ou “via americana”) e Novos dados acerca das leis do
desenvolvimento do capitalismo na agricultura (1914-1915). A título de exemplo, po-
demos observar, no conjunto desses trabalhos, análises sólidas que demonstram
um desenvolvimento particular da problemática (ao aumento da produtividade) da
renda diferencial e a renda absoluta, esclarecendo como esta última trava o progresso
das forças produtivas no campo. Pode-se também perceber como Lênin mostrou a
inconsistência das afirmações dos economistas burgueses sobre a existência da “lei
da fertilidade decrescente do solo”, além, é claro, de colocar o desenvolvimento do
mercado interno como uma das “missões” centrais do modo de produção capitalista.

175
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Nesta esteira de elaborações, guarda particularidade com a relação entre a


ideia/constatação marxista em torno da composição orgânica do capital e seu aden-
samento como forma concreta da transição entre um modo de produção que tem
na terra seu fator principal de produção para outro, em que o capital passa a ter
centralidade. Daí, no capitalismo, o fator composição orgânica do capital substituir o
fator tamanho da propriedade no que concerne aos parâmetros de julgamento de uma
propriedade rural. Em Lênin, essa relação é muito clara ao se colocar que o processo
de especialização da agricultura, como passo primeiro ao processo de urbanização/
industrialização, transforma a agricultura em apenas mais um elo na divisão social
do trabalho. Consequentemente, a “forma como se produz” passa a ter valor secun-
dário, na medida em que a existência da própria pequena produção depende de sua
relação complementar com a grande produção. Logo, Lênin nos aponta a falta de
oposição entre pequena e grande produção, tão cara a muitos intelectuais “marxis-
tas” brasileiros e latino-americanos4. Por fim, pelo estudo da “questão agrária” e
seu papel no processo de desenvolvimento, pode parecer imperceptível, mas Lênin
diagnostica o tempo exato em que se dá a convergência entre a agricultura, o mo-
tor primário no investimento e o ulterior desenvolvimento. Ora, se o desmonte do
complexo agrário é a pedra de toque da formação do mercado interno, essa forma-
ção do mercado interno torna-se o combustível do processo de desenvolvimento na
própria liberação de mão de obra da agricultura para a indústria, com a finalidade
de se criar bens. Logo, quanto maior a população rural, maiores as possibilidades
de crescimento acelerado5. Vejamos o atual caso chinês.
Por outro viés, e neste mesmo rumo de elaboração, em sua luta contra o revi-
sionismo russo e o da Europa Ocidental, que negavam a vigência das leis da con-
centração e da centralização do capital na agricultura, Lênin analisou cientifica-
mente as particularidades que o desenvolvimento do capitalismo na agricultura
apresenta. Enfim, a obra econômica de Lênin, que o credencia ao posto de um
4
A partir dessa concepção, para quem a agricultura, com a penetração do capitalismo no cam-
po, passa a ser um elo na divisão social do trabalho, coloca-se a nu a inconsistência tanto da
oposição entre pequena e grande produção quanto da cientificidade do conceito nomeado – na
era da pós-modernidade – de “agricultura familiar”. Nada mais equivocado e anticientífico do
que essa “moda”.
5
LÊNIN, V. “The economic content of narodism and the criticism of it in Mr. Struve’s book (The
reflection of marxism in bourgeois literature)”. In LÊNIN V. Collected works, 4th English Edition.
Progress Publishers. Moscou. 1972. Vol. 1, pp. 333-508.

176
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

economista completo, sintetiza-se – além do exposto acima – em cerca de 110 tra-


balhos. É de uma magnitude ímpar sua colaboração, essencial para os que têm para
si a tarefa de desmistificar não somente o papel das leis economistas sobre e sob o
socialismo, mas também para perceber os rumos chineses na atualidade.
Tal obra também é essencial na exata medida em que Lênin concebeu uma
teoria do desenvolvimento que pode ter alcance universal e ajudar a compreender
o desafio da soberania nacional em sociedades onde a atividade agrícola tem hege-
monia na composição da riqueza nacional. Essa “teoria para o desenvolvimento em
sociedades agrárias” é uma grande continuidade da crítica marxista à economia
política inglesa. Não encontraremos fora da obra de Lênin a construção de um
caminho “periférico” de desenvolvimento capaz de romper o simplismo da teoria
das “vantagens comparativas” (David Ricardo)6. A crítica mais frontal a esta teoria
não foi, como se acredita, dada por Raul Prebisch, e sim por Lênin, ao perceber
que o desenvolvimento periférico deveria se pautar pela utilização total das trocas
comerciais entre campo e cidade. Trocas estas que, sendo mediadas por um Estado
disposto a romper com os grilhões da economia rural – necessariamente –, ali-
mentarão as bases de uma complexa economia monetária, capaz de gerir crédito e
poupança capazes de afrouxar os laços da dependência financeira da periferia com
relação ao centro.
É assim que Lênin trabalha efusivamente a relação entre desenvolvimento pe-
riférico e a descoberta marxista do papel nodal que o crédito assume no desenvol-
vimento do capitalismo. O pensador e revolucionário russo nos leva a entender a
economia monetária como a maior invenção do capitalismo, e que, portanto, deve
também estar a serviço do socialismo. Afinal, somente nos marcos da utilização
dos mecanismos da economia monetária é possível o desenvolvimento (seja capita-

6
Apesar de utilizar outras denominações ou slogans (“combate à inflação”, “responsabilidade
fiscal” etc.), a grande verdade é que a teoria das vantagens comparativas é o grande pano de
fundo das políticas econômicas monetaristas. Concretamente, isso se dá a partir da adoção de
políticas, monetária e fiscal, que sustam o desenvolvimento de um sistema financeiro nacional.
Ou seja, ao inviabilizarem a fusão entre capital bancário e industrial (a partir de “teorias” que
contemplam a não existência de poupança interna na periferia), pelo caminho da abertura co-
mercial (pela via da liberalização do câmbio) e compressão da demanda (altas taxas de juros),
o que se busca é uma lógica de desenvolvimento que leva às últimas consequências o legado da
utilização das vantagens comparativas. É neste momento que o direito ao desenvolvimento ga-
nha contornos políticos e cores revolucionárias (questão nacional na periferia x imperialismo).

177
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

lista, seja socialista) sob a égide da transformação da pequena produção mercantil


em indústria7.

4.1.1.2 O mercado, a propriedade privada e o desenvolvimento


numa formação social complexa

A extensão da crítica à economia política inglesa concebida na obra agrário-


-econômica de Lênin propiciou a construção de hipóteses para o desenvolvimento
dos países periféricos. A consequência de tais elaborações só teria total consistência
e validade na proporção em que se demonstrasse aplicável na realidade concreta. A
primeira grande prova de todo esse emaranhado teórico se daria na própria Rússia
soviética. Deve-se deixar claro que, para o caso da Rússia, toda uma complexidade
que envolvia o lado externo e o interno da conjuntura se fazia presente. Foi o momen-
to da substituição de uma forma de exceção em matéria de transição (comunismo
de guerra), marcado pela total estatização da vida econômica e social do país, para
outra “mais amena” e em conformidade com o nível de desenvolvimento das forças
produtivas. Trata-se, evidentemente, da NEP, conforme temos observado até aqui.
A princípio, a transição a partir de uma sociedade onde as forças produtivas
atingiram um alto grau de desenvolvimento – com monopólios estatais e privados
de grande magnitude e com um sistema de intermediação financeira em pleno
funcionamento – guarda menor complexidade, cabendo-lhe apenas tarefas de ocu-
pação de superestrutura e aplicação de políticas de socialização e estatização me-
diadas pela conjuntura e a correlação de forças nos ambientes interno e externo.
Outro nível de complexidade pode ser verificado em transições hipotéticas,
tendo como palco formações nacionais com diferente perifericidade, composta, por

7
Sobre essa problemática e a relação entre desenvolvimento periférico, trocas entre campo e
cidade, economia monetária e transformação da pequena produção mercantil em indústria, su-
gerimos, de Lênin, entre tantos trabalhos:
LÊNIN, V. El desarrollo del capitalismo en Rusia. Ariel História. Barcelona. 1974. 581 p.
________. “Economics and politics in the era of the dictatorship of the proletariat”. In LÊNIN
V. Collected works, 4th English Edition. Progress Publishers. Moscou, 1965. Vol. 30, pp. 107-117.
________. “How to organize competition?”. In LÊNIN V. Collected works, 4th English Edition.
Progress Publishers. Moscou, 1965. Vol. 26. pp. 404-415.
________. “Sobre o imposto em espécie (O significado da nova política e as suas condições)”. In
Lênin, V. Obras escolhidas. Editora Alfa-Omega. São Paulo. 2004. Vol. 3, pp. 492-520.

178
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

exemplo, por um campo já predominantemente capitalista e em transição para


formas mecanizadas de produção, onde a I Revolução Industrial já se completara
e onde uma indústria mecânica pesada (Departamento 1 novo) está se encami-
nhando no rumo de uma completa absorção e implantação. Neste caso, o problema
consiste em avaliar minuciosamente os fatores internos de produção e suas poten-
cialidades, bem como abrir caminho – via planejamento econômico e territorial – a
uma satisfatória socialização da grande produção já existente, aplicando formas de
mediação entre campo e cidade e entre a nação e o exterior que permitam saltos
qualitativos ao processo em si.
A atenção a diferentes formas que a transição pode adquirir, dependendo do
nível de desenvolvimento das forças produtivas, nos leva a fazer questionamentos
sobre o estágio chinês. Algo já fora anteriormente desenvolvido quando analisa-
mos, em capítulo anterior, as características de um país em “fase primária do socia-
lismo” juntamente com o caráter historicamente dado do mercado. Queremos dizer
que, de concreto e diante de determinados níveis de complexidade e situações, dife-
rentes formas de transição podem conviver numa diferente formação social.
Lênin, em seu tempo, diante do desafio de reconstruir as bases materiais de
um país arrasado, deu-se conta não somente da complexidade da problemática do
desenvolvimento e da transição em sociedades agrárias, como também de que o
fomento das relações comerciais e mercantis entre campo e cidade constituía-se em
grande válvula de escape ao processo de acumulação.
Selecionamos duas observações de Lênin muito interessantes. A primeira de-
las, essencial, a nosso ver, é a melhor elaboração de uma teoria de desenvolvimento
capaz de abarcar o conjunto do “problema chinês”8:

Mas o que significa a palavra transição? Não significará, aplicada à economia,


que no regime atual existem elementos, partículas, pedaços de capitalismo e
de socialismo? Todos reconhecem que sim. Mas nem todos, ao reconhecerem
isto, refletem sobre precisamente que elementos das diferentes estruturas eco-
nômicas e sociais existem na Rússia. E nisto está toda a essência da questão.
Enumeremos esses elementos:
• economia camponesa, patriarcal, isto é, natural em grau significativo;

8
LÊNIN, V. “Sobre o imposto em espécie (O significado da nova política e as suas condições)”. In
Lênin, V. Obras escolhidas. Editora Alfa-Omega. São Paulo. 2004. Vol. 3, pp. 493 e 508-509.

179
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

• pequena produção mercantil (que inclui a maioria dos camponeses que ven-
dem cereais);
• capitalismo privado;
• capitalismo de Estado;
• socialismo.

Citação dada, o passo seguinte deve refletir a análise dos diferentes níveis de
transição nesta formação social complexa. Neste mesmo documento, Lênin assinala
o papel dominante da formação econômica e social socialista no conjunto da eco-
nomia. Essa hegemonia deve-se em função do controle estatal sobre, basicamente,
fulcros de monopólio na indústria, no setor de comunicações, sistema financeiro,
ferrovias e solo urbano e rural, além, é claro, do – mais importante – encerrado no
condomínio do poder estatal monopolizado pelo Partido Bolchevique. Por outro
lado, de grande importância é a sua percepção dialética da impossibilidade de uma
transição direta ao socialismo numa formação social com essas características.
Essa “percepção dialética” de Lênin, na verdade, não constitui novidade na
literatura clássica desde então. Independentemente de Marx e Engels não terem
elaborado algo acabado sobre o problema da transição, é muito clara essa tendência
de não possibilidade de transição em linha reta, o que o próprio documento sobre
o Programa de Gotha deixa claro. No caso de Lênin, com sua teoria sobre o impe-
rialismo e o caráter de “aspecto principal da contradição principal” tomada pela
“questão nacional na periferia”, é de grande interesse sua proposição de tomada
de consciência acerca do grande avanço correspondente à introdução e ao aprofun-
damento de mecanismos de capitalismo de Estado tomando o exemplo alemão,
como a última matéria nesse sentido. Algo que, segundo nosso entendimento, tem
grande valia para casos de transição em formações sociais de certa complexidade,
entre elas a China. Ilustramos uma síntese dessa matéria (capitalismo de Estado),
na segunda observação sugerida mais acima, conforme Lênin:

Voltamos frequentemente a cair ainda neste raciocínio: “o capitalismo é um


mal, o socialismo é um bem”. Mas este raciocínio é errado, porque esquece todo
o conjunto de estruturas econômico-sociais existentes, abarcando apenas duas
delas. O capitalismo é um mal em relação ao socialismo. O capitalismo é um
bem em relação ao medievalismo, em relação à pequena produção, em relação
ao burocratismo ligado à dispersão dos pequenos produtores. Uma vez que ainda

180
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

não temos forças para realizar a passagem direta da pequena produção ao socia-
lismo, o capitalismo é em certa medida inevitável, como o produto espontâneo
da pequena produção e da troca, e, portanto, devemos aproveitar o capitalismo
(principalmente dirigindo-o para a via do capitalismo de Estado) como elo in-
termédio entre a pequena produção e o socialismo, como meio, via, processo ou
método de elevação das forças produtivas.

O capitalismo de Estado, neste caso, tem como características a existência de


empresas privadas, grandes ou pequenas, em grande medida submetidas ao Estado
pela via do controle e inspeção estatais (com o fim de evitar o monopólio privado) e
pelo carregamento de crédito centralizado por bancos estatais. Pode-se chamar de
uma regulação da empresa privada pelo Estado pela via da regulação estatal sobre
a própria economia de mercado9.
Pois bem, mirando-se a citação de Lênin, enxergamos a solução do problema
na forma de dois níveis de transição entrelaçados, sendo eles:

a) de primeira ordem: seguindo um caminho de transição da economia


natural e da pequena produção mercantil no rumo do capitalismo de Es-
tado (pequenas e grandes empresas privadas), o que significa também,
de um lado, a liberação de mão de obra para a economia de mercado
(pequena produção ou setor capitalista de Estado) e a transformação
da pequena produção mercantil em indústria, dependendo do nível de
desenvolvimento tanto das forças produtivas quanto do alcance da eco-
nomia de mercado. É nesse sentido, replicando, que em Lênin o processo
de desenvolvimento na periferia pode ser medido pela quantidade de
pessoas que adentram a economia de mercado, o que também signifi-
ca entrada no mercado consumidor e, em última instância, entrada na
produção socializada;
b) de segunda ordem, diretamente relacionado à transformação da in-
dústria capitalista em socialista. Trata-se de algo mais complexo, pois
implica não somente aspectos econômicos como também problemas de
9
Uma síntese competente da evolução do conceito de capitalismo de Estado no pensamento
marxista pode ser encontrada em: FERNANDES, L. O enigma do socialismo real – Um balanço crítico
das principais teorias marxistas e ocidentais. Mauad, 2000, p. 117-120.

181
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

ordem política, sendo sua principal variável a chamada “correlação de


forças” interna e externa.

No desenrolar dessa relação entre estatal e privado no socialismo, ou entre


central e periférico, guarda grande papel a economia de mercado como mediadora
entre as diferentes formações econômico-sociais em contato permanente, depen-
dendo do grau e dinâmica do processo de desenvolvimento gestado pelo crescimen-
to econômico. Desta feita, fica posta mais uma tarefa da economia de mercado em
formações em constante “unidade e luta”. O enfraquecimento da economia privada
em relação à estatal, encetando um longo processo histórico de transição, pode ser vis-
to de algumas maneiras. Pode-se dar pela via da expropriação propriamente dita,
sendo neste caso também interessante associar essa possibilidade com a variável
correlação de forças. Outra forma, mais tranquila – no que se refere à ação das leis
econômicas –, reside no papel estratégico da concorrência entre essas duas formas
de transição.
Falando em concorrência entre os setores privados e socialistas como forma
– na gestação da nova sociedade – de fortalecer a produção socializada, julgamos
necessário, como parte da discussão em tela, trazer à tona pelo menos dois pontos
de um total de 12, como forma de resposta à questão levantada por Engels acerca
dos caminhos a serem tomados pela revolução socialista. Seguem abaixo os dois
primeiros pontos10:

a) limitação da propriedade privada mediante impostos progressivos, fortes


impostos sobre as heranças, supressão dos direitos hereditários em linha
colateral (irmãos, sobrinhos etc.), empréstimos obrigatórios etc.;
b) expropriação gradual dos proprietários fundiários, fabricantes, proprie-
tários de ferrovias e armadores navais, em parte mediante a concorrên-
cia das indústrias do Estado, em parte diretamente, mediante indeniza-
ção em hipotecas.

Em outro momento, ao ser questionado sobre a possibilidade de eliminar


10
ENGELS, F. “The principles of communism”. In MARX, K. & ENGELS, F. Selected works. Pro-
gress Publishers. Moscou. 1969. Vol. 1, p. 91.

182
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

a propriedade privada “de um só golpe”, o mesmo Engels expôs em Princípios do


comunismo:

Não, do mesmo modo que as forças produtivas existentes não podem ser multi-
plicadas de um só golpe na medida necessária para a instituição da comunidade
dos bens. A revolução do proletariado que, com toda a probabilidade está para
se produzir, só poderá, portanto, transformar gradualmente a sociedade atual e
só poderá abolir a propriedade privada quando tiver criado a massa de meios de
produção necessária para isso.

Seguindo semelhante linha de raciocínio, Lênin discorre sobre o papel da pro-


priedade privada no socialismo da seguinte forma11:

Isto pode parecer um paradoxo: o capitalismo privado no papel de auxiliar do


socialismo? Não se trata de nenhum paradoxo, mas de um fato econômico ab-
solutamente incontestável. Tratando-se de um país de pequenos camponeses,
com os transportes particularmente arruinados, que está a sair da guerra e do
bloqueio e que é dirigido politicamente pelo proletariado, que tem em suas mãos
os transportes e a grande indústria, destas premissas decorre de modo absolu-
tamente inevitável, primeiro, que a circulação local de mercadorias tem neste
momento uma importância primordial, e, em segundo lugar, que o capitalismo
privado (sem falar já do capitalismo de Estado) pode ser utilizado para ajudar o
socialismo.

É evidente que a existência de um setor privado numa economia socialista


traz em seu bojo focos de contradições a serem solucionadas ou minimamente ad-
ministradas. Sabendo-se que o poder é a questão central à solução do problema,
é factível que este mesmo poder imponha regras à participação do setor privado.
Oskar Lange, ao dissertar sobre a questão da transição, sugere três condições
necessárias à participação privada12:

a) tal propriedade deve existir e coexistir num ambiente de livre compe-


tição;
11
LÊNIN, V. “Sobre o imposto em espécie (O significado da nova política e as suas condições)”.
In LÊNIN, V. Obras escolhidas. Editora Alfa-Omega. São Paulo. 2004. Vol. 3, p. 511.
12
LANGE, O. On the economic theory of socialism. University of Minnesota. 1938, p. 134.

183
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

b) os meios de produção possuídos por um produtor privado (ou o capital


possuído por acionista privado de indústrias socializadas) não devem ter
um volume tão grande que possa causar uma considerável desigualdade
na distribuição de renda;
c) a produção em pequena escala não deve ser, em longo prazo, tão custosa
quanto a produção em grande escala.

Uma transição de tal magnitude, e que propõe a edificação de uma sociedade


livre da exploração do homem pelo próprio homem, chama para si a utilização de
mecanismos e de mediação entre a superestrutura e a base econômica viabilizado-
ras de saltos quantitativos e qualitativos nas forças produtivas materiais e sociais.
Eis que urge a utilização em diferentes escalas do ferramental do planejamento, fa-
zendo possível surgir no horizonte a superação da anarquia da produção, conforme
já colocado no capítulo 2.

4.2 O PLANEJAMENTO, O MERCADO, O ESTADO E


A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
Até aqui tentamos explorar ao máximo a temática “mercado”, o que pode pas-
sar a impressão de um tema – neste trabalho – recorrente e repetitivo. Mas não é,
pois ao nos apropriarmos desta categoria, como precaução é mister trabalhá-la em
seus mais amplos aspectos: como categoria historicamente determinada, ou seja,
como síntese da transição da economia doméstica para economia de troca; como
o local onde a oferta e a procura se encontram, sendo mediadora de preços deter-
minados pela escassez; como uma categoria comum na transição do escravismo
ao feudalismo, realizando-se no socialismo e encerrando suas possibilidades na
transição ao comunismo.

4.2.1 A dialética do desenvolvimento e as relações entre mercado


e planejamento

No socialismo, o mercado passa a ter caráter objetivo e ferramental necessá-


rio na medida em que ainda é preponderante uma racional alocação de recursos
e onde a maximização da eficiência, ao mesmo tempo em que tem serventia ao

184
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

pleno desenvolvimento das forças produtivas, é também nodal ao enriquecimento


comum. Assim sendo, esse processo histórico pode desembocar na demonstração –
na economia, pela via do aumento da produtividade do trabalho – da superioridade
do socialismo ante o capitalismo. No socialismo, sendo uma transição – também –
de uma forma inconsciente de construção societal para outra, onde se estancam as
consequências das ações espontâneas das leis econômicas e se utiliza o prévio co-
nhecimento das formas objetivas de manifestações das ditas leis, o mercado passa
a atuar em concomitância com o planejamento. Pode-se dialetizar, resumindo-se a
economia de uma formação de transição do capitalismo ao socialismo como uma
economia de mercado centralmente planificada.
No caso específico, já hipotetizando o papel do mercado em âmbito nacional –
em uma formação social complexa, em que a troca entre campo e cidade e mesmo en-
tre campo e campo é nodal ao desenvolvimento pleno das forças produtivas e ponto
comum por onde se relacionam mutuamente as diversas formações econômico-
-sociais presentes –, eis uma relação em que se desenvolverão, sob a égide de uma
superestrutura que enceta a superação do próprio mercado, as plenas condições de,
num primeiro momento, ao utilizar os meios adensadores do que se convencionou
chamar de “mercado interno”, gerir uma divisão social do trabalho e, dialetica-
mente, chegar às condições para superação da própria divisão social do trabalho.
Dizemos e definimos a economia de transição de uma economia agrária a ou-
tra de tipo superior, na forma de capitalismo de Estado a caminho do socialismo,
como uma economia de mercado centralmente planificada, no sentido de conjugação do
papel do mercado em transição a uma forma superior de regulação, o planejamen-
to. Essa combinação pode ser constatada, para o caso chinês, sob algumas formas
onde, de um lado, o mercado é o ator principal e, de outro, é o planejamento.
Por exemplo, quando se fala em adensamento de uma divisão social do traba-
lho em termos de combinação, no conjunto, é possível perceber a lógica do mercado
agindo no processo de causa e efeito da expansão privada e comercial no âmbito da
localidade ou mesmo província no fomento a empresas de pequeno e médio porte
de caráter privado. Essas empresas são capazes de absorver grandes contingentes
de mão de obra com o suporte (eis um dos pontos de combinação) de um sistema
financeiro estatal pronto para o apoio a essas formas de empreendimento ampla-
mente baseadas em leis mercantis. Como exemplo, aprofundando-se, toma-se o

185
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

advento das reformas econômicas no campo chinês com a transição de uma eco-
nomia centralmente planificada para outra regida pelo mercado. Trata-se de uma
meia verdade, afinal transitou-se de uma economia onde o poder do consumidor
estava atrelado a um planejamento central ocupado em gerir o número de um de-
terminado produto produzido numa província a “x” quilômetros de Pequim para
outra forma onde o mercado determinaria o que seria produzido. Porém, pouco se
percebe que esse papel do mercado é definido regionalmente, no sentido de que:

a) tais iniciativas locais são sementes de formação de mercados regionais


que, ao se interligarem nacionalmente, trarão consequências na forma-
ção de uma divisão social do trabalho e de um grande mercado nacional,
como a base material do Estado socialista;
b) na medida em que fomentam uma classe de empreendedores, essas ini-
ciativas locais fomentam também capacidade de abertura de novos cam-
pos de acumulação no país, dando margem à ampliação do emprego e
da renda, amainando e contribuindo – dessa forma – com a elevação do
poderio nacional e a estabilidade social em um mundo ainda hegemoni-
zado pelas ideias e modo de vida irradiados pelo imperialismo altamen-
te hostil a diferentes formas de projeção nacional e, principalmente, ao
socialismo;
c) o mercado e a iniciativa privada cumprem papel de proa no processo
de abastecimento de gêneros de vários tipos, papel esse que se cumpre
pela interação privada em nichos de mercado deixados pela presença
estatal; presença estatal essa cada vez mais restrita (na fase primária do
socialismo) aos ditos setores estratégicos da condução da economia e da
sociedade;
d) como se percebe, a introdução da economia de mercado traz em seu
bojo a iniciativa privada que, por sua vez, numa lógica de “transição
ideal” mediada pela concorrência entre estatal e privado, com gradual
suplantação do privado pelo estatal, torna válido situar essa relação de
cooperação/concorrência nos marcos da crescente absorção de técnicas
de gerenciamento e produção embutidos no setor privado (nacional e/ou
estrangeiro) pelo setor estatal, que na ponta do processo sintetiza pro-

186
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

cessos de adensamento produtivo e maior poder do – neste caso – Estado


chinês na condução dos mais variados assuntos13.

4.2.1.1 Níveis de planejamento

Se existe, nem sempre correta, uma quase relação entre setor privado e econo-
mia de mercado, o mesmo fato pode-se auferir da relação entre economia estatal e
planejamento. Planejamento este que, para muitos, repetindo-se, foi proscrito com
as reformas de 1978, opinião que não resiste à própria prova da história. Como
exemplo, é muito raro relacionar as lutas de libertação nacional como expressão do
desejo de se desenvolver. Mais raro ainda é surgirem relações que mesclem esses
níveis (libertação nacional, socialismo e desenvolvimento) com o próprio desejo
de planejar esse desenvolvimento. O preconceito é muito comum por se relacionar
o ferramental do planejamento com esquemas sovietizados de “economia de co-
mando”. Além de não dialética, essa falsa relação esconde que, assim como existe
mercado no socialismo, o próprio planejamento vai se transformando em necessi-
dade de um modo de produção cujas crises demonstram os limites da anarquia da
produção e do próprio comércio internacional. Se subtrairmos a necessidade de
programação econômica para a própria sobrevivência, poderemos nos ver pergun-
tando qual o sentido, dessa forma, da obra de Keynes e Schumpeter.
Essa relação entre planejamento e Estado insere-se na lógica da “construção
consciente da sociedade”. Afinal, não existe desenvolvimento fora dos marcos da ação
estatal, pois, se a ilusão do laissez-faire baseia-se numa escalada de desenvolvimento
onde a ação individual tinha guarida em relações propícias entre homem e natureza,
não é ilusório supor que o desenvolvimento contínuo (desenvolvimento da técnica,
por exemplo), e que dará contornos à divisão social do trabalho, vai depender, em
medida cada vez maior, do apoio estatal a empreendimentos privados. Abrindo parên-
tese, pode ser polêmico, mas assim se procede no capitalismo e também no socialismo
13
Um exemplo do desenrolar dessa relação, mediada pelo mercado, entre os setores estatais,
está em nossa visita à fábrica de alimentos Fulin. A Fábrica Fulin é uma joint venture entre capi-
tais chineses, de Hong Kong (Noble Group) e investimentos individuais provindos de chineses
étnicos de Cingapura. Com apenas cinco anos de existência, ela já tem um porto próprio em
Nanjing e alcança um faturamento de US$ 11,6 bilhões. Na palestra oferecida por executivos da
empresa, destacou-se a presente concorrência interna com estatais do mesmo setor de atividade,
como dínamo para a busca de uma constante modernização nos dois setores.

187
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

ungido em sociedades agrárias e onde a produção agrícola ainda está pulverizada em


milhares de pequenos agricultores. Aí estão, a nosso ver, os limites históricos do lassez-
-faire em fronteira com a necessidade do Estado e do planejamento econômico. Obser-
vando diferentes processos históricos sob a ótica do planejamento como indispensável
instrumento de apoio ao desenvolvimento é que podemos compreender o porquê de
as tarefas históricas encetadas na Revolução Inglesa de 1640 e da Revolução Francesa
de 1789 terem sido somente introjetadas na Rússia a partir de 1917, na China em 1949
e no Brasil com a Revolução de 1930. Em todos os três casos, em questão de décadas,
percorreu-se uma distância histórica que a Europa demorou cerca de 400 anos, o ca-
minho histórico correspondente à distância entre a Idade Média e a Contemporânea.
Por outro lado, relacionando-se essa dinâmica da divisão social do trabalho e
o planejamento estatal, para este último a maximização das possibilidades da divi-
são social do trabalho somente é possível pela planificação e viabilização de formas
de – por exemplo – levar produtos agrícolas produzidos em algum lugar remoto do
interior chinês ao mercado consumidor de Pequim, assim como levar o gás natu-
ral extraído da Região Autônoma de Xinjiang ao imenso mercado consumidor de
Xangai. O planejamento estatal permite a implantação de infraestruturas que rea-
lizem o processo de circulação interna, na ponta do processo, resultando na gradual
formação de um imenso mercado nacional que se desenvolve nos marcos de uma
planificação centralizada. Outro exemplo que está em ligação com esta constatação
é o próprio papel do planejamento na elaboração de medidas estatísticas que dotam
o Estado chinês das condições de empreender investimentos, incentivos e afins
na medida exata das necessidades de índices de crescimento capazes de dar vazão
à criação de 13 milhões de empregos anuais necessários para a reprodução social
da nação. Assim, sabe-se exatamente o quanto deverá crescer o país nos próximos
anos e decênios, com a dimensão dos recursos financeiros para tal, incluindo nisso
a quantidade de créditos e/ou políticas de incentivo de ordem tributária capazes de
dar cabo de mais e melhores empreendimentos privados e locais.
Porém, a análise do fator planejamento não pode se dar de forma estrita e es-
tática. O planejamento pode ser analisado sob vários ângulos e ordens, da mesma
forma que o mercado. Por exemplo, as formas de planejamento variam de acordo
com o nível de desenvolvimento das forças produtivas e dos próprios desafios im-
postos pela conjuntura.

188
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

Em alguma altura do trabalho, colocamos que a China já se encontra em con-


dições de lançar mão de novas e superiores formas de planejamento. O que isso
quer dizer para nós? Queremos dar a entender que, na medida em que a China se
transforma numa potência financeira e que seus problemas passam pela alocação
de grandiosas somas de recursos, o país está em condições de lançar mão de formas
superiores de alocação não mercantil de recursos. Historicizando, tentamos dizer
que num determinado momento o planejamento se daria pela simples socialização
e coletivização completa dos meios de produção, processo esse condizente com um
determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas e da necessidade de
transferência de recursos do campo para a cidade, suficientes para tocar projetos,
por exemplo, de indústria pesada. Enfim, o planejamento voltado para a alocação
direcionada de recursos para determinada área específica.
Na atualidade, o planejamento em nível superior consiste numa ampla visão
dos problemas internos e externos, da transformação da problemática da ciência e
tecnologia não mais como expressão da cópia deste ou daquele produto ou meca-
nismo de produção, mas principalmente da capacidade financeira do Estado de,
aproveitando conjunturas recessivas, comprar pacotes fechados de tecnologia nova
e até novíssima. É não somente planejar o comércio exterior pela entrada e saída de
recursos e produtos, como também dar cabo de processos de colocação de conglo-
merados estatais e privados no jogo da grande concorrência internacional, que na
ponta do processo significa a própria concorrência entre capitalismo e socialismo.
Enfim, planejar para o enfrentamento da formação de uma economia nacional e
continental unificada para meados do presente século e para o enfrentamento in-
ternacional em um mundo caracterizado pela superlativação do capital financeiro.

4.2.1.2 Atributos do “modelo chinês”

O próximo passo do trabalho será identificar tanto os atores sociais envolvidos


como as diferentes formações econômico-sociais que interagem no país. A feição e
a síntese dessa interação podem qualificar exatamente a forma como o “desenvol-
vimentismo chinês com características socialistas” se dá concretamente. Na verda-
de, muitos têm essa resposta, seja por fórmulas ligando a formação de mercado in-
terno a um “modelo exportador” ou mesmo sugerindo variáveis como preço do solo

189
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

e da mão de obra como fatores de primeira ordem. Tudo isto tem valor, mas temos
certeza de que não é capaz de explicar o processo histórico em curso, que conjuga
pontos de encontro de diferentes níveis de desenvolvimento no país e da utilização
de instrumentos não coetâneos, como o planejamento e o mercado, denunciando
inclusive essa formação social complexa chamada China. Resumindo, o país é, uti-
lizando a genial elaboração de Ignacio Rangel, expressão de contemporaneidades
não coetâneas. É esta a visão inicial que devemos ter do processo em tela.
Mesmo aqui, neste trabalho, utilizamos o termo “modelo”, seja para tratar o
socialismo com características chinesas, seja para tratar o desenvolvimento chinês.
Sempre entre aspas, claro, pois não é novidade a aplicação deste termo sem a devida
noção de cientificidade das leis da economia, da sociedade, da natureza e da própria
ciência. Seria como atribuir o processo chinês a algo como “ao deus dará”, tornando
ininteligível qualquer minúcia maior da análise do fenômeno concreto e abstrato.
Como se percebe ao longo dos primeiros capítulos deste trabalho, o “modelo
chinês” é algo que deve ser buscado e analisado na história. Ao lado disso, é mister
salientar o próprio desenvolvimento como algo baseado em leis e como expressão
política e ideológica da plena utilização das leis econômicas em propósito do desen-
volvimento. Já desenvolvimentismo de tipo socialista, pode ser visto e definido como
a aplicação de processos desenvolvimentistas anteriores – e com relativo sucesso em
países capitalistas – para uma formação social hegemonizada por uma força política
que inicia, como objetivo estratégico, a consecução do socialismo e do comunismo.
Visto que, com certa demasia, já apontamos caracteres históricos suficientes
capazes de auferir uma elaboração mais profunda sobre esse modelo e que estamos
a apontar atores e formas do processo, faz-se importante neste momento demons-
trar outra gama de caracteres importantes para o objetivo do trabalho.
O principal atributo do “modelo” chinês encontra-se em sua perifericidade.
Sem dúvida, há diversas perifericidades, mas o fato é que países como China, Bra-
sil, Rússia e Índia – os chamados Bric – guardam uma perifericidade diferente;
uma perificidade industrial, com certa autonomia, inclusive de financiamento e
tecnologia em algumas áreas. Porém, o principal é saber que a condição de país pe-
riférico deve ser utilizada para compreender que a China, neste caso, desenvolve-se
gravitando em torno de um centro de capitalismo do sistema. Abrindo parêntese,
por mais que a China esteja prestes a se converter em outro polo gravitacional,

190
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

ainda guarda certa dependência de mercados como o norte-americano e o euro-


peu. Retornando, o mais importante é sublinhar que a China é uma formação que
se desenvolve pela absorção da cultura e ciência produzidas no centro dinâmico
capitalista, e a importação desta cultura e desta ciência produzida externamente é
uma face clara do desenvolvimentismo chinês com características socialistas, além,
é claro, da formação de superávits comerciais com o centro como forma de mediar
políticas econômicas condizentes com as necessidades materiais do país. Logo, a
variável comércio exterior ganha ordem primária na análise.
Ou seja, perceber essa diferente perifericidade e suas potencialidades, pela via
do comércio exterior, é o primeiro atributo que destacamos do “modelo chinês”. O
segundo atributo, não menos importante, é a dimensão quase inelástica de seu mer-
cado interno; não somente desse mercado, mas da própria extensão de sua população
camponesa, jogando peso no fator mão de obra e na própria duração e necessidade de
crescimento econômico variante entre 8% e 10% ao ano, conjugando num mesmo país
crescimento qualitativo (com maior adensamento tecnológico) e quantitativo (com a
entrada anual de milhares de pessoas na chamada economia de mercado). Daí a im-
portância das observações de Lênin sobre o desenvolvimento em sociedades agrárias.
A grandeza destes dois atributos faz com que a China tenha a especial, e quase
única, capacidade de inverter papéis mediante dada conjuntura. Podemos colocar
o mercado interno e o comércio exterior sob a forma de um círculo moldado por
um compasso: dependendo da conjuntura, o compasso pode girar ora em direção
ao mercado interno, ora ao mercado externo. Isso não exclui a lógica dialética do
processo de desenvolvimento, segundo a qual o mercado externo tem grande papel
para a formação do próprio mercado interno chinês.
Eis, a princípio, alguns atributos salientes do “modelo chinês” que ganhará
maiores detalhes no decorrer deste livro.

4.2.2 O desenvolvimento, as diferentes formações econômico-


sociais e os setores constitutivos e mediadores do processo

Até aqui, é bastante clara a utilização, por nós, da noção smithiana de divi-
são social do trabalho e do desenvolvimento como expressão de sua conforma-
ção conjuntural e histórica. Sabe-se que o processo de desenvolvimento também

191
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

é marcado pela liberação da mão de obra para a indústria. Logo, para se ter uma
noção próxima da exatidão acerca do processo de desenvolvimento na China faz-se
urgente ter consciência, como Lênin fizera em seu tempo, das diferentes formações
econômico-sociais que se relacionam no processo. Assim, certamente estaremos
capacitados tanto para melhor auferir o alcance do desenvolvimento chinês quanto
para termos com clareza em que tempo se dá a transição de uma economia agrária
para outra, industrializada e socializada.

aaaaaaaaaaaa

Mais acima, lançamos mão da constatação de Ignacio Rangel, no caso brasilei-


ro, das contemporaneidades não coetâneas. Logo, o ponto de partida deve ser claro
com relação à China e seu desenvolvimento: como um processo de interação de
diferentes distâncias históricas em curtas distâncias espaço/territoriais. Viajar pela
China é como viajar no tempo, através de diferentes “idades”, desde a Idade Média
até os tempos contemporâneos. Como exemplo, já estivemos – em nossas viagens
pela China – tanto em escritórios de empresas estatais como a Baosteel quanto
em aldeias camponesas que transitam da produção natural e de subsistência à
pequena produção mercantil. Estivemos diante tanto dos arranha-céus da Zona
Econômica Especial de Pudong em Xangai como diante de beduínos no deserto
de Gobi. Da mesma forma que diferentes formações naturais seguem os estímulos
de diferentes latitudes, na China convivem formas moderníssimas de produção
com o arado típico do século XVII. Ou se percebe o desenvolvimento chinês dentro
da dinâmica de interação dessas diferentes formações ou estamos condenados ao
simplismo dos números.
Assim, é prudente passarmos em vista as diferentes formações econômico-
-sociais e os diferentes setores da economia chinesa, como se segue. Em primeiro
plano, as formações econômico-sociais:

a) economia natural de subsistência: cerca de 80 milhões de chi-


neses, sendo a maioria composta de minorias étnicas, ainda estão nos
limiares dessa forma de produção;
b) pequena produção mercantil: caracterizada pela produção agríco-

192
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

la voltada para o mercado, principalmente nas cidades médias, mas é


também crescentemente praticada na periferia de grandes cidades como
Pequim e Xangai. Estima-se que cerca de 400 milhões de chineses ocu-
pam-se desse tipo de atividade, sendo que grande parte em transição à
produção cooperativada;
c) indústria rural privada e/ou coletiva: trata-se da grande novidade
do processo recente chinês sob a forma das já citadas Empresas de Can-
tão e Povoado, ocupadas na acoplação de nichos de mercado deixados
pela grande indústria estatal e privada na China e com grande partici-
pação na estratégia chinesa de ocupação de espaços no mercado interna-
cional. Nessas empresas, produzem-se desde quinquilharias e têxteis até
automóveis e helicópteros militares. Trata-se da essência da chamada
urbanização rural chinesa. Pode-se discutir se as ECPs constituem-se
por si uma formação econômico-social, mas não se pode questionar seu
papel de proa no processo em curso na China;
d) capitalismo privado: encerrado em pequenas, médias e grandes
empresas chinesas e estrangeiras, em regime ou não de joint ventures,
presentes no país com grande importância na estratégia chinesa tanto
de assimilação de novas e novíssimas tecnologias, de modernas formas
de gerenciamento, quanto de assimiladora de mão de obra e reservas
internacionais. Vale colocar também a predominância sobre o setor de
serviços, o que explica em grande parte a crescente presença privada no
total do PIB;
e) capitalismo de Estado: conformado nas relações de dependência do
capital privado com as políticas executadas pelo governo chinês;
f) socialismo: hegemônico em todos os setores com alto grau de mono-
pólio, como o de siderurgia, transportes, energia e comunicações. Além,
evidentemente, da propriedade sobre o solo urbano e rural. Sua princi-
palidade não deve ser medida por sua composição no PIB, e sim sobre as
indústrias cujo monopólio privado poderia acarretar em ampla margem
de manobra para formas anárquicas de produção. Acrescentemos a essa
formação econômico-social o sistema financeiro como seu cerne.

193
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

O processo de desenvolvimento se dá e é perceptível na própria dinâmica in-


trínseca a cada formação. Por exemplo, podemos perceber a velocidade do processo
de desenvolvimento a partir de processos como o do aumento do setor de serviços
na participação da riqueza nacional e no crescente papel que vem sendo cumpri-
do pela formação de grandes conglomerados estatais, e mesmo na centralidade
do sistema de intermediação financeira a partir da ação de instituições bancárias.
Porém, o desenvolvimento não é algo que se dá como um fim em si mesmo, muito
pelo contrário, ele ocorre a partir de impulsos que, por sua vez, servem para pres-
sionar, por exemplo, pela proscrição de formações como o da economia natural
pela sucção de mão de obra para a economia de mercado. Num primeiro momento,
conforme Lênin, a essência do processo de desenvolvimento está no fortalecimento
da economia de mercado (e consequente elevação da produtividade do trabalho). Já
num segundo momento, acrescentamos, a essência do processo se dá pelo aumento
do poderio das empresas, sejam elas estatais ou privadas, já sob forte influência do
setor financeiro.
Desta forma, na atual quadra de desenvolvimento na China, alguns setores
mediadores da dinâmica entre as citadas formações econômico-sociais devem ser
listados, pois é a partir do poder objetivo de ação direta na realidade, dos setores
abaixo, que é permeado o processo chinês14:

a) economia natural em franco processo de decomposição;


b) economia de mercado, onde convive e compete entre si a economia
privada de variado tamanho, desde a pequena produção mercantil até a
produção de escala capitalista. Porém, em comparação com economias
de mercados essencialmente capitalistas, neste mercado predomina a
grande propriedade estatal, que, por sua vez, pode ser considerada como
a peça fundamental do sistema;
c) comércio exterior, onde predominam relações de novo tipo em rela-
ção ao comércio externo capitalista. Apesar de a China atuar – por inter-
médio de seu comércio externo – em um campo de domínio capitalista,
a competência de seu planificado contato com o exterior demonstra que
14
Esquema elaborado e amplamente baseado nas ideias de Ignacio Rangel sobre o desenvolvi-
mento econômico brasileiro.

194
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

o socialismo, ao mesmo tempo em que disputa com o capitalismo, tor-


nou-se também algo já afirmado com inegável sucesso.

É importante estabelecer as diferenças entre uma análise baseada na dinâ-


mica das diferentes formações econômico-sociais e a pura análise intersetorial da
economia. No primeiro caso, o objetivo é mensurar a situação dos já chamados di-
ferentes níveis de transições: aquele visualizado entre a pequena produção mercan-
til e o capitalismo de Estado; e aquele entre este último e o socialismo. Já a análise
intersetorial remete diretamente ao processo de conformação de uma divisão social
do trabalho a partir do fortalecimento da economia de mercado pela decomposição
da economia natural, conferindo assim certo grau de uniformidade ao setor da
economia natural, passando-se da economia de mercado propriamente dita ao co-
mércio exterior planificado sob a égide da economia de mercado socialista.
Isto remete também ao problema da mediação institucional. Por exemplo, o
problema da conformação de um Estado de Direito socialista e de leis basilares da
economia de mercado de novo tipo é ancilar ao trânsito mais rápido da economia
natural à economia de mercado, ao processo de desenvolvimento do setor privado
da economia e à formação de conglomerados estatais livres à concorrência externa
e interna.
Por fim, explanando rapidamente e novamente sobre o comércio exterior, o
processo de desenvolvimento e sua história na China são marcados por uma opção
essencialmente política. Esse é um ponto. O outro ponto é o fato de um dos atribu-
tos da economia chinesa citados acima residir em sua perifericidade, significando
que, dependendo do grau de abertura e/ou liberalização comercial, ela estará mais
ou menos sujeita às intempéries inerentes à ação da chamada lei do desenvolvi-
mento desigual e combinado. Portanto, não é nenhuma novidade perceber que o
setor da economia em que deve recair – em primeira instância – o processo de es-
tatização e planificação seja o do comércio exterior. A condição sine qua non para
o desenvolvimento em um país periférico está na necessária institucionalização
do comércio exterior, seja pela adoção de uma taxa de câmbio administrada pelo
Estado, seja (também) pela promulgação de regulamentos que visam ao controle de
entrada e saída de capitais. É pela ação estatal direta sobre o comércio exterior que
se poderão liberar energias para o desenvolvimento das forças produtivas pela via

195
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

da simples substituição de importações seguida da fusão entre o setor industrial e o


sistema bancário, dotando o país de condições financeiras para entrar no mercado
internacional de novas e novíssimas tecnologias.

4.2.2.1 Crescimento econômico, divisão social do trabalho e


produtividade

O crescimento econômico tem relação de causa e consequência com o aumento


de produtividade do trabalho. Por sua vez, a dinâmica entre os diferentes setores da
economia – e consequentemente da divisão social do trabalho – vê-se diretamente
afetada qualitativamente. Dessa forma, como explicar a dinâmica do crescimento
econômico da China?
De forma mais geral, o crescimento econômico chinês (e das economias pe-
riféricas em geral) obedece a estímulos externos que, por sua vez, levam a trans-
formações qualitativas, seja pela via da transformação da economia natural em
pequena produção mercantil ou pela transformação da pequena produção mer-
cantil em indústria. Logo, os impulsos vindos do comércio exterior chinês levam à
liberação de recursos da economia natural para a pequena produção mercantil (pe-
quena produção cada vez mais voltada ao abastecimento de um mercado nacional
em concomitância com os próprios entornos consumidores), que, por sua vez, acaba
liberando energias para sua transformação em indústria, ora privada, ora coletiva,
como, por exemplo, as chamadas Empresas de Cantão e Povoado (ECPs) e algumas
empresas privadas de grande porte como a Hayer, cujos proprietários eram, em
1978, camponeses de médio porte. A dinâmica do crescimento econômico e da
divisão social do trabalho, neste caso, não é somente resultado da qualificação da
mão de obra e do aumento da intensidade dos meios de produção, mas também
expressão do processo de especialização da própria agricultura. Por isso, repetimos:
o alargamento da economia de mercado é a base do crescimento econômico.
Partindo desse raciocínio, fica visível que a grande variável estratégica do cres-
cimento chinês está no setor comércio exterior. Mas, se encerrarmos nessa lógica
– sem observá-la considerando o processo de desenvolvimento como processos his-
tóricos que se encontram e se entrelaçam –, podemos prejudicar uma análise mais
séria. Em primeiro lugar, porque o crescimento pós-1978 não foi algo que partiu do

196
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

zero, mas foi algo já baseado na existência de um Departamento 1 na economia.


E não somente isso, como também capacidades produtivas instaladas e – de certa
forma – espraiadas em diferentes pontos do território, sob o formato de unidades
ancilares à grande produção siderúrgica e também base para produção de vestuário
e alimentos para as grandes cidades.
Por outro lado, o adensamento técnico e do próprio mercado interno, com o
passar do tempo, não pode semanter na dependência de uma variável e de poucas
formas de financiamento (endividamento externo, por exemplo). Chega-se ao pon-
to em que a própria realização produtiva depende, em grande medida, da fusão da
indústria com o banco. Eis que, no próprio processo de desenvolvimento, a variável
sistema financeiro passa a ganhar notoriedade e, no caso chinês, vai ganhando
tanta importância quanto o setor de comércio exterior.
Assim, o sistema financeiro de tipo socialista passa a ser a base fundamental
do funcionamento do sistema, inclusive como resultado da dimensão do comércio
externo e da cada vez maior necessidade, como resultante do processo de cresci-
mento, de importar. Torna-se variável estratégica de primeira grandeza.
Aproxima-se o momento, neste livro, em que certas opiniões e elaborações
devem ganhar consequência teórica e empírica. Inicialmente, procuramos fazer
uma aproximação histórica entre o chamado “modelo soviético” e o que se con-
vencionou chamar de “via prussiana” ou “revolução pelo alto”. Realizando esta
comparação, ainda intentamos relacionar as primeiras experiências socialistas,
incluindo o período dito maoista na China, como uma resposta ao binômio entre
nação e desenvolvimento.
Se repararmos de forma menos superficial, concluiremos que o exercício da
soberania (pela via do modelo soviético ou de vias prussianas de sucesso, como o
Brasil) esteve diretamente ligado ao aparelhamento de uma indústria siderúrgica
(Departamento 1 da economia) que capacitasse o país a se instrumentalizar com
um aparato produtor de máquinas e armas. Enfim, um país sem siderurgia é um
país que se pode considerar sem condições plenas de exercer sua soberania política
e de tampouco, economicamente, planificar seu desenvolvimento. Afinal, planeja-
mento e desenvolvimento em formações sociais periféricas devem ser tratados como
sinônimos, principalmente após a exitosa experiência dos planos quinquenais so-
viéticos (e chineses) postos à prova primeiramente na Segunda Guerra Mundial.

197
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

A questão é que o exercício da soberania, assim como o próprio desenvolvi-


mento, também tem sua dinâmica e leis próprias. No século XX, pode-se constatar
a necessidade de uma siderurgia como expressão produtiva da soberania nacional
e do desenvolvimento; podemos vislumbrar que, ao lado da siderurgia, o aparelha-
mento de um sistema financeiro, na presente quadra marcada pela chamada hiper-
trofia do sistema financeiro imperialista, passou a ter principalidade e expressão
moderna de soberania nacional. Logo, apontamos que – no âmbito do socialismo
– a siderurgia teve para o “modelo soviético” de industrialização intensiva a mes-
ma importância que o sistema financeiro de tipo socialista tem para, neste caso, o
socialismo de mercado chinês.
O sistema financeiro chinês tem demonstrado grandes sinais de seu papel no
processo em andamento na China. Pouco se fala sobre o papel também comple-
mentar que exerce com o orçamento nacional na consecução de grandes tarefas
impostas pela conjuntura do país, interna e externamente.
Não é demais concluir que esse sistema financeiro tornou-se a essência do que
chamamos de “via dos produtores”; essência da fusão do Estado revolucionário
fundado em 1949 com o Estado desenvolvimentista internalizado em 1978.

4.3 POUSO NO CONCRETO: SOBRE O FATOR “MÃO


DE OBRA BARATA”
Em termos gerais e generalizantes, discutir sobre o crescimento econômico
chinês e suas características sempre remonta a pelo menos dois aspectos. Um
deles é discutido mais à frente e se encerra no papel do capital estrangeiro. O ou-
tro se relaciona diretamente com o preço da mão de obra. Como neste capítulo
tratamos diretamente da questão do desenvolvimento e das sociedades agrárias,
convém partir do pressuposto de que sociedades agrárias e em rápido processo
de urbanização têm como característica a existência de um grande reservatório
de trabalho sob a forma de mão de obra, o que por si só se transforma em grande
fator de produção.
Fazendo um necessário “pouso no concreto” em meio a argumentos quase abs-
tratos sobre o processo de desenvolvimento e dinâmica entre diferentes formações
econômico-sociais e setores da economia chinesa, achamos necessário enfrentar,

198
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

ainda que de forma superficial, o debate acerca da regulação do trabalho naquele


país e na “superexploração do trabalho” (ou, para muitos adeptos do senso co-
mum, “trabalho escravo”) como forma de explicar a competitividade dos produtos
chineses no exterior e o sucesso de seu tido “modelo exportador”. Argumentamos
que, em primeira instância, a discussão não se pode dar somente sob o ângulo da
matemática financeira e da economia, mas também nos campos da história e da
categoria de formação social e da própria trajetória da construção do socialismo em
formações sociais periféricas; e, já sob outro ângulo, a discussão muito menos deve
se limitar a uma simples questão moral.

4.3.1 Grande coincidência nos casos da China de hoje e da URSS


de ontem

Do ponto de vista da disputa política e do debate de ideias, é interessante no-


tar que, nas décadas de 1940-50, a utilização de trabalho escravo, não somente
dos gulags, mas também do campo e da cidade, assentava a base de quase todas as
explicações acerca do crescente poder soviético e dos porquês que envolviam o fato
de ter surgido, de um país até 1917 pautado por relações semisservis de produção,
outro capaz de derrotar a maior máquina de guerra da história e de se equiparar em
variegados campos com a maior potência de então. Assim como se dá hoje em rela-
ção à China, dados sobre o trabalho necessário para a construção daquela potência
disseminavam-se pelos gabinetes de economistas e espiões.
Exceções à parte, a começar pelo notável historiador polonês Isaac Deutscher
– e acompanhado pela capacidade de propaganda do movimento comunista inter-
nacional –, muitos se davam conta dos avanços sociais daquele país. Atualmente,
se compararmos os editoriais econômicos internacionais ocupados em explicar o
sucesso chinês, esbarraremos exatamente na mesma explicação acerca da URSS:
mão de obra barata, superexploração do trabalho etc.
A grande diferença, como já dito, é que, naquele momento, todo o movimen-
to comunista estava pronto para a defesa dos avanços alcançados pela Revolução
de Outubro; hoje, grande parte do citado movimento – pelos mais diversos moti-
vos – amplifica as opiniões acerca da superexploração do trabalho na China em
detrimento do processo histórico de construção e desenvolvimento de um projeto

199
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

nacional que chegou ao poder em 194915. Seriam mais honestas as tentativas de


se responder como um país mediado por relações de produção semiescravas pôde
retirar 400 milhões de pessoas da linha da pobreza em 25 anos. Bom notar que
fenômeno semelhante, de inclusão no mercado consumidor (guardadas suas devi-
das proporções), não ocorreu nem em meio à escravidão romana e muito menos no
Brasil entre o século XVI e o XVIII.

4.3.1.1 Centralidade do fator trabalho?

Pode-se perceber a superficialidade da centralidade do fator mão de obra no


processo chinês. Tão superficial quanto “recortar” e “colar” um dado que diz terem
55% das exportações chinesas sido feitas por empresas estrangeiras, quando na
verdade este dado, se pesquisado de forma séria, pode ser alterado, pois 51% das
ações de 83% das empresas exportadoras são de chineses16. Não é correto discorrer
somente sobre a participação de empresas estrangeiras; mais próximo da verdade é
citar a composição de tais empresas na pauta.
Voltando, diz-se que a mão de obra é um fator para o sucesso chinês. Isso é ver-
dade, um tanto quanto incontestável. Mas acreditar que isso é uma determinação
nodal constitui expressão de uma falta de visão de conjunto. Afinal, se todo o pro-
blema é a disponibilidade de uma mão de obra tendente a ser barata pela existência
de um imenso exército industrial de reserva, seria mais vantajosa a instalação de
plantas industriais de matrizes norte-americanas, europeias ou japonesas em paí-
ses como Botswana, Guiné-Bissau, Djibouti e até na Nigéria, e não na China. Aliás,
fora o fator trabalho, os custos de transporte de um país como a Nigéria (dada a
proximidade geográfica) para centros de consumo como os EUA e a Europa seriam
muito mais baratos do que se partindo da China.
15
Bom salientar que a mão de obra média na Índia, em determinadas localidades com mais de
10 milhões de habitantes (Bombaim, Madras e periferia de Nova Délhi), é até 70% mais barata
que a verificada na China. E para a direita a Índia é um exemplo de crescimento atrelado a um
regime democrático. Mas se esquece de que, enquanto a China saiu de um patamar de 94% de
analfabetos em 1949 para menos de 4% hoje, a Índia contava com 89% de analfabetos em 1945,
caindo hoje para 35% da população, sem contar que 55% da população indiana são classificados
como “analfabetos funcionais”, segundo dados fornecidos pela ONU. A diferença, a nosso ver, é
que a China, aos olhos da literatura e imprensa ocidental, não passa de uma ditadura, enquanto
a Índia, quantitativamente falando, é a maior democracia do mundo.
16
China Statistical Yearbook 2006.

200
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

Ora, uma das determinações é a busca de implantação de cadeias produtivas


próximas a um mercado de potencial de cerca de um bilhão de consumidores, so-
mente na China. Trata-se de algo que qualquer aluno de primeiro ano de geografia
tem conhecimento. E, se elevarmos nossa abstração a outro nível, perceberemos
que a instalação de fábricas na China é condição objetiva para se alcançar e concor-
rer pelo consumo de metade da população do mundo encontrada em um mesmo
lugar, a Ásia. “Disputar” significa dizer que países como a China têm seu mercado
interno cada vez mais preparado para empresas nacionais, dada a incorporação
rápida de novas tecnologias de empresas norte-americanas e europeias situadas em
seus territórios.
Substanciando o acima escrito, na ótica do senso comum reinante poderia
ser classificada como “insanidade” por parte da classe capitalista internacional a
escolha, para instalar suas fábricas, de um país que teve aumento médio da produ-
tividade de trabalho nos últimos dez anos da ordem de 4,3% ao ano; porém, com
aumento médio de salários (nos mesmos últimos dez anos) de 10,4% nas cidades
e de 7,4% no campo17. É importante saber que, com o aumento da produtividade
do trabalho na China, se não houvesse aumento correspondente nos salários, um
grande problema de harmonia das forças produtivas em relação às relações de pro-
dução estaria em marcha, colocando em xeque o poder do Partido Comunista da
China (PCCh) da mesma forma que, milenar e ciclicamente, o poder imperial foi
chocado com revoltas camponesas.

4.3.2 A relação entre o socialismo e a taxa de exploração: a


questão do financiamento

A China não é socialista por ter uma mão de obra superexplorada por em-
presas estrangeiras. Se o problema é esse, deixemos a palavra para ninguém mais
ninguém menos que o maior revolucionário de todos os tempos, Vladimir Lênin18:

Os EUA e a URSS se complementam. A URSS é uma nação decadente com te-


souros imensos, na forma de recursos inexplorados. Os EUA podem encontrar

17
China Statistical Yearbook para todos os anos.
18
HAMMER, A. & LYNDON, N. Hammer: um capitalista em Moscou. Best Seller. São Paulo, 1988,
pp. 121-130.

201
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

aqui matérias-primas e mercado para máquinas e, depois, para produtos manu-


faturados. Acima de tudo, a URSS necessita da tecnologia e dos métodos ame-
ricanos, como também de suas máquinas, de seus engenheiros e instrutores.

Lênin fala abertamente em parcerias com empresas estrangeiras para a ex-


ploração de “tesouros imensos”. Raciocinemos o preço da mão de obra em um país
destruído como a URSS de então. Paremos para pensar e comparemos com a China
de hoje e perguntemos: proporcionalmente, seria diferente tal preço?
Retornando, a questão que se coloca é que poucos entendem o socialismo como
um modo de produção e que, como modo de produção, guarda todas as caracterís-
ticas de seu predecessor, o capitalismo, com uma única diferença: a forma de apro-
priação do excedente econômico19. Para quem não sabe, no socialismo continuam
existindo linhas de produção e também, por mais estranho que pareça, mais-valia.
Partindo da premissa acima exposta e observando historicamente a empresa
que foi a construção do socialismo na URSS e hoje na China, cabe uma questão
típica dos economistas: quem financiou a construção de uma indústria de base
com capacidade de produzir tanques e aviões capazes de destruir o exército alemão,
ou mesmo quem financiou as pesquisas que culminaram na ida do primeiro ser
humano ao espaço? Ou, sobre a China, quem financia um trilhão de dólares de
infraestruturas em apenas dez anos, sendo que mais de 80% desse financiamento
são totalmente estatais? Ou, ainda, de onde sai o dinheiro para a implantação de
um sistema de proteção social que só este ano consumirá US$ 200 bilhões?
De um estudo mais aprofundado acerca da relação entre o socialismo, sua
construção e a taxa de exploração20, pode-se deduzir que, dada a necessidade de
alcançar rapidamente, cada um ao seu tempo, o nível de desenvolvimento dos pa-
íses capitalistas centrais, tanto a URSS quanto a China caracterizam-se por terem
economias onde se pode considerar altíssima a taxa de exploração e também por
terem um índice enérgico de formação de capital; afinal de contas, sem concen-
tração de mais-valia carreada para o sistema financeiro, o investimento torna-se
simplesmente impossível.
19
A questão sobre o socialismo ser ou não um modo de produção é cada vez mais uma falsa
polêmica. É só observarmos as formas de estrutura produtiva e a divisão social do trabalho, nas
experiências socialistas passadas e presentes.
20
A taxa de exploração é um conceito marxista cujo objetivo é determinar a correlação entre
a parte do dividendo nacional que vai para as mãos dos trabalhadores sob a forma de capital
variável e a parte que o empresário (ou Estado socialista) retém como lucro.

202
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

Essa taxa de exploração verificada no socialismo tende a ser de grau mais ele-
vado na medida em que nenhum país socialista dispôs ou dispõe de colônias exter-
nas, logo todo o peso de se desenvolver a “passos de cavalo” recaiu ora nos ombros
camponeses (no modelo soviético), ora no dos trabalhadores urbanos e com um duro
preço político a se pagar21. Enfim, analisando por essa ótica a “superexploração do
trabalho”, tal fator não é privilégio somente da China, mas também da URSS e de
qualquer país socialista que queira se desenvolver partindo de atraso absoluto. Não
é demais lembrar que a natureza, a sociedade e a economia são regidas por leis ob-
jetivas e espontâneas e fora do alcance de alteração pelo homem. Logo, não existe
“fórmula mágica” para a construção de uma nova e avançada sociedade.

4.3.2.1 Superexploração e visão de conjunto

É fato que existe uma alta taxa de exploração na China, dadas as circunstân-
cias históricas, a luta de classes em âmbito mundial e a necessidade de se indigeni-
zar tecnologias concentradas no exterior, pois sem tecnologia é impossível superar
o estágio da exploração do trabalho (não da exploração do homem pelo homem).
Porém, daí a argumentar que o trabalhador chinês seja ultraexplorado constitui
uma distância considerável, pois nesse cálculo devem ser auferidas as múltiplas
determinações que envolvem a produção e o consumo de mercadorias, entre elas a
capacidade de consumo permitida por seu salário, as escalas de produção, a quan-
tidade de crédito à disposição para consumo das massas populares e também a
consideração de que a lei do valor pode ser universal, mas sua aplicação deve levar
em conta as vicissitudes da formação social. Exemplo disso é o fato de se calcular
o PIB em concordância com o poder de compra da população; o PIB chinês fica so-
mente atrás do norte-americano, afinal um dólar na China não é mesma coisa que
um dólar nos EUA ou na Europa Ocidental.
A análise pormenorizada de todas as determinações elencadas acima e outras
não incluídas, em comparação com outros países em tempos históricos diferentes,
não oferece margem de manobra para afirmar que o trabalhador chinês seja ultra-
explorado.
21
Sobre as vicissitudes do modelo soviético de desenvolvimento, um anexo de nosso livro China:
Infraestruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006. 256 p.) é dedicado a esse tema.

203
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Uma consideração histórica pode remeter à já citada relação entre quebra de


status quo e milenares revoltas camponesas na China. Caso ela seja realmente um
“campo de trabalho quase forçado”, em que as multinacionais extraem até a úl-
tima gota de sangue do trabalhador, é estranho não haver grandes reações a isto,
inclusive de contestação ao poder do PCCh. As recentes revoltas em curso na China
são muito mais relacionadas a problemas do próprio desenvolvimento, como a con-
taminação de mananciais e infraestruturas ocupando áreas de plantio, do que a
“excesso de trabalho mal pago” em si. Dessa forma, é bom nos perguntarmos se o
trabalhador médio chinês vive melhor ou pior hoje do que há 30 anos.
Em nossa primeira viagem à China, em 2004, pudemos visitar pelo menos 30
residências de trabalhadores da indústria, tanto estatal como privada, e em todas
as casas observamos equipamentos como geladeira, televisão, liquidificador, DVD,
ventilador, máquina de costura etc. E, dada uma taxa de juros atraente ao crédito,
fruto de uma política de acúmulo de reservas cambiais, todo trabalhador industrial
na China pode adquirir sua casa própria, via crédito estatal, utilizando somente
4,7% de seu salário22. Nesse aspecto, segundo o professor Armen Mamigonian, em
inúmeros relatos de suas viagens tanto à URSS (1984) quanto à China (1984 e
1999), há um incentivo maior ao consumo na China em comparação à URSS, onde
saltos de qualidade no nível de vida de um trabalhador eram praticamente “segu-
rados” pelos dirigentes do país.
Retornando, dois em cada cinco operários fabris chineses fazem uma viagem
de trem de pelo menos 500 km durante uma das chamadas “semanas de ouro”.
Aqui no Brasil, qual a possibilidade de um trabalhador residente na Grande São
Paulo levar sua família para um passeio de fim de ano às praias da Baixada Santis-
ta, distantes 70 km da capital?

4.4 CONCLUSÕES DA PARTE 4


Um dos objetivos deste livro é desbravar caminhos teóricos diferentes do ha-
bitual para explicar de forma mais convincente o teor exato do processo de tran-
sição socialista em conluio com o projeto nacional chinês, de mais largo alcance.
Para nós, o alcance de um objetivo dessa monta explica, por si só, o grande

22
The Bank of China Journal. Número 677, 08-15 de abril de 2004.

204
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

papel que temos guardado para a ciência histórica e para uma teoria justa capaz
de contemplar tal alvo. Neste capítulo, intentamos trazer à tona uma teoria capaz
de explicar o processo de transição ao socialismo numa escala nacional complexa,
além de compreender o desenvolvimento chinês por meio da interação de diferen-
tes setores da economia nacional.
Em primeiro plano vale expor, porém, as conclusões acerca do que significa o
processo de desenvolvimento em economias agrárias. Para isso, resgatamos as cola-
borações de dois autores muito presentes em nosso pensamento e ação intelectual.
Referimo-nos a Vladimir Lênin e Ignacio Rangel. Sobre o lastro desses dois pensa-
dores lapidares, algumas conclusões podem ser expostas, entre elas:

a) o desenvolvimento em sociedades complexas e caracterizadas por uma


pulverização da agricultura em pequenos produtores é um processo cuja
velocidade é determinada pela saída de pessoas da economia natural
para a economia de mercado. Enfim, o aumento de musculatura da eco-
nomia de mercado é a essência do desenvolvimento periférico;
b) acrescentamos ao colocado acima que, após certo período de desenvol-
vimento, a essência do desenvolvimento passa a ser a transformação da
pequena produção mercantil em indústria e, no caso da China, além
desse processo, salientamos que a formação de conglomerados estatais
prontos para o enfrentamento da concorrência internacional (no mesmo
estilo dos chaebols coreanos e zaibatzus japoneses) também ganha rele-
vo como uma situação concreta e característica de determinado estágio
de desenvolvimento;
c) o sistema financeiro de novo tipo, na China, tornou-se a essência da “via
dos produtores” sob a égide de um projeto socialista com características
chinesas.

Assim, pode-se concluir que o desenvolvimento chinês, num primeiro mo-


mento, dá-se sob o compasso do comércio externo. O comércio externo, nesse caso,
pode ser compreendido sob pelo menos um ângulo que, para nós, guarda certo
sentido: o principal atributo geral do “modelo chinês” está em sua condição ainda
periférica, em que o atraso é grande atributo explicativo de seu dinamismo. Logo,

205
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

e apesar de não termos conhecimento de nenhum texto dos clássicos que corrobo-
re a centralidade da estatização do comércio exterior sob o socialismo (apesar da
grande importância que Lênin atribuía a esse aspecto), ousamos afirmar – dada a
ação constrangedora da lei do desenvolvimento desigual e combinado sobre pro-
jetos desenvolvimentistas de caráter periférico – que a primeira ação de qualquer
governo que inicia o socialismo (ou mesmo projetos nacionais autônomos) deve ser
o de estatizar/institucionalizar o comércio exterior. Essa ação é parte de um todo
que envolve a institucionalização da reserva de mercado para empresas nacionais.
É no campo das relações externas de produção que se dá o embate entre imperia-
lismo e projetos nacionais autônomos ou de caráter socialista. Afinal, um aspecto
fundamental da contradição principal do mundo de hoje se encerra nos díspares
interesses do imperialismo diante de projetos nacionais autônomos, principalmen-
te aqueles que guardam objetivos estratégicos de cunho socializante. Obviamente
a estatização da taxa de câmbio guarda centralidade nesse processo, como demons-
tramos anteriormente.
Acerca do processo de transição ao socialismo em formações sociais comple-
xas, sociedades onde convivem formas díspares de produção e diferentes tempos
históricos, se pode concluir que:

a) o socialismo não é um modelo ideal de sociedade perfeita e lúdica, e


sim uma necessidade histórica diante dos limites criados pelo próprio
capitalismo. Tudo tem seu prazo de validade, vaticinado pela história e
pela contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e as novas
e necessárias formas de relações de produção. O socialismo é a superação
do capitalismo e não sua negação simples. Logo, tendo em vista as leis
econômicas do desenvolvimento e suas peculiaridades em sociedades
agrárias, a propriedade privada ainda guarda grande necessidade. Dá
para se concluir que – tendo o controle do poder político por parte de
forças que dão início à transição ao socialismo e à consecução do co-
munismo, além dos instrumentos cruciais do processo de acumulação
(sistema financeiro, política cambial e de juros e o sistema de crédito) e
do controle da produção em setores com alto grau de monopólio (além
do solo urbano e rural) – a propriedade privada deve coexistir e ser in-

206
O desenvolvimentismo chinês com características socialistas

centivada, não podendo ser instrumento de ideologização determinadas


características do processo histórico;
b) deve-se reparar na necessidade de diferentes níveis de transição numa
mesma formação social: o primeiro, capaz de levar a transição da eco-
nomia natural à pequena produção mercantil e da pequena produção
mercantil à indústria, sob o formato de um capitalismo de Estado; o
outro nível corresponde à transição lenta e gradual deste capitalismo de
Estado à grande produção de tipo socialista;
c) o planejamento também está sujeito a condicionantes históricas. O caso
chinês pós-1978 demonstra que o planejamento central, agora em con-
vivência com o mercado, guarda o papel tanto de regulação macroeco-
nômica quanto de grandes diretrizes que empreendem o processo de
desenvolvimento de uma divisão social do trabalho caracterizada pela
construção de um mercado nacional único. Há a necessidade de en-
frentar novos problemas resultantes de um rápido e robusto processo
de desenvolvimento, ganhando-se também novas formas inerentes ao
surgimento de um poderoso sistema financeiro de novo tipo;
d) conforme já demonstrado, o direito ao desenvolvimento (e sua planifi-
cação) é a grande expressão do direito à soberania nacional inerente às
nações periféricas até os nossos dias. O objetivo socialista, para muitos
países, incluindo a China, também se tornou sinônimo de direito ao de-
senvolvimento. No século XX, o direito a esse processo teve, na edifica-
ção de um complexo siderúrgico, uma grande expressão exemplificada
em vias como a brasileira, mas também presente nos planos quinque-
nais soviéticos, chineses e indianos. Logo, tendo em vista as diferentes
formas de dominação imperialista (hipertrofia financeira) presentes e
aceleradas com a contrarrevolução da década de 1990, concluímos que,
no caso da China, seu poderoso sistema financeiro de novo tipo está
para o socialismo de mercado assim como a siderurgia estava para o
modelo soviético, no mesmo grau de importância. A fusão do banco com
a indústria torna-se (ao lado do comércio exterior institucionalizado),
neste início de século, a grande demonstração de opção pelo desenvolvi-
mento e, consequentemente, de soberania nacional;

207
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

e) esta constatação acerca do papel do sistema financeiro obedece também


a critérios mais estratégicos, pois é nesse campo que se dará (e tem-se
dado) a luta de classes no plano internacional de forma mais acirrada.
É nesse embate que, em nossa opinião, se encerrará o destino tanto do
socialismo quanto do capitalismo.

Por fim, o arguidor ou mesmo o simples leitor deve ter estranhado o fato de
termos tratado, ainda neste capítulo, da questão do trabalho na China. Em primei-
ro lugar, nossa tentativa foi – utilizando um tema polêmico e candente – “pousar
no concreto” de forma definitiva, preparando o terreno para a próxima seção, dessa
vez encarregada de aspectos puramente empíricos do processo. Em segundo lugar,
é interessante chamarmos a atenção para a superutilização de um fator para a
explicação de todo um processo, mais complexo do que as ingênuas almas liberais
acreditam.

208
5. O desenvolvimento e
suas faces na China

209
O desenvolvimento e suas faces na China

A creditamos ter sido necessária uma longa explanação colocando certa ordem
teórica e histórica como forma de expor nossa visão geral desse processo
de extrema importância, encerrado no presente caso chinês. Seria normal um ca-
minho inverso, mais voltado a um mínimo de história e teoria e a um máximo de
observações empíricas. Porém, preferimos o caminho contrário e, neste momento,
caminhando ao final do trabalho, fica a possibilidade de as coisas serem postas
nos lugares com maior clareza e objetividade. Passa-se, assim, à discussão de fatos
e números e, enfim, do que realmente significa o processo de desenvolvimento da
China, do socialismo e de seu projeto nacional.
É o momento de expor as mais amplas faces desse processo.

5.1 O CRESCIMENTO ECONÔMICO


Não é novidade o fato de o crescimento econômico, na China e em qualquer
parte, fazer-se pela expansão da indústria. Sabe-se também que as taxas de cres-
cimento estão intimamente ligadas à manutenção de altas taxas de investimento
que, por sua vez, ao criarem demanda social ou empresarial, ativam a sirene do
consumo, gerando assim um círculo virtuoso. A queda nas taxas de crescimento é

211
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

derivada da queda das taxas de investimentos e, consequentemente, da capacidade


de consumir de uma dada sociedade. O crescimento pode ser induzido também por
diferentes tipos de demanda: a demanda externa e a demanda doméstica, sendo
esta última mais elástica, de acordo com o grau de distribuição da renda gerada e
da própria taxa de exploração do sistema.

5.1.1 Dispositivos gerais do crescimento

O caso chinês torna-se mais interessante na medida em que se percebem suas


irradiações além do perímetro de seus limites geográficos. Sente-se, em toda parte
do mundo, o fato de cerca de 400 milhões de pessoas terem se tornado consumi-
doras nos últimos 30 anos, e de a própria reprodução da nação depender cada vez
mais de fatores de produção fora do alcance de suas fronteiras, redundando na –
não mais lenta – formação de um polo econômico e político capaz de transformar
as realidades mais distantes de seu arco fronteiriço. Esse processo é fruto de uma
“grande estratégia” já exposta no capítulo 2; logo, não segue impulsos simplesmen-
te espontâneos e sim algo muito bem calculado e milimetricamente planejado.
Passemos em vista alguns dados iniciais sobre crescimento econômico, para
posteriores considerações:

Tabela 1 – Crescimento econômico da China, 1978-1990 (%)


1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990
11,7 7,6 7,8 5,2 9,1 10,9 15,2 13,5 8,8 11,6 11,3 4,1 3,8
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/GDP.htm). Elaboração própria.

Tabela 2 – Crescimento econômico da China, 1991-1999 (%)


1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
9,2 14,2 13,5 12,6 10,5 9,6 8,8 7,8 7,1
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/GDP.htm). Elaboração própria.

Tabela 3 – Crescimento econômico da China, 2000-2009 (%)


2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
8,0 8,3 9,1 10,0 10,1 9,9 11,1 11,4 9,6 8,7
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/GDP.htm). Elaboração própria.

212
O desenvolvimento e suas faces na China

A princípio, o que significam esses números? Bem, com uma média de cresci-
mento de 9% ao ano, pode-se perceber que a economia chinesa dobra de tamanho
a cada 10 anos, assim como dobra sua própria oferta de serviços – o que por si só
corrobora sua “grande estratégia”, cuja condição de viabilização depende de suces-
sivas duplicações do PIB até o ano de 2020.
A sustentabilidade de seu crescimento econômico pode ser vista na própria
relação entre dívida externa e PIB que, em 2006, era de 22,1%. Com relação às ex-
portações, essa dívida externa tinha em 1990 uma relação positiva de 83%, caindo
em 2008 para 98% negativos1. Logo, pode-se admitir por meio desses dados o gran-
de grau de autonomia do desenvolvimento chinês. Autonomia tanto no sentido
político quanto econômico do termo. O processo de conquista desse largo grau de
autonomia ocorreu – diga-se de passagem – em um tempo em que várias realidades
da periferia capitalista conviviam com as chamadas “condicionalidades” impostas
de cima para baixo por ideologias e políticas econômicas de instituições, como o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, redundando – via de
regra – na impossibilidade de muitas nações gerirem seus próprios destinos.
De um ponto de vista mais estratégico e histórico, se tomamos a tarefa de
recuperação de espaços perdidos pelo país no mundo desde o início das agressões
estrangeiras em 1839, fica evidente o andamento rápido desse processo: em 1820,
a participação chinesa no PIB mundial era de 33%, caindo para 17% em 1870, e
para 13% em 1913. Entre 1949 e 1975, essa participação manteve-se na casa dos
5%, chegando a 12% em 2001, com previsão de alcançar 20% em 20202. É muito
provável que, no ano de 2049, quando a Revolução Nacional/Popular completar seu
centenário, estejam cumpridos os objetivos colocados tanto por Mao Tsetung em
1949, quanto os expostos por Deng Xiaoping em dezembro de 1978. Nesse sentido, é
oportuno abrir um parêntese e expor um quadro comparativo entre o crescimento
chinês e o de alguns outros países no período 2003-2007:

1
CUNHA, André M. & ACIOLY, Luciana. “China: Ascensão à condição de potência global – ca-
racterísticas e implicações. In CARDOSO JR, José C.; ACIOLY, Luciana; MATIJASCIC, Mico..
Trajetórias recentes de desenvolvimento. Ipea. Brasília-DF, 2009, p. 396.
2
Conselho Empresarial Brasil China. www.cebc.org.br.

213
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Tabela 4 – Quadro comparativo entre crescimento chinês, mundial e


de alguns países selecionados, 2003-2007 (%)
PAÍS 2003 2004 2005 2006 2007
Mundo 2,6 4,0 3,4 3,9 3,7
China 10,0 10,1 10,4 11,1 11,4
Índia 6,9 7,9 9,1 9,7 9,2
Japão 1,4 2,7 1,9 2,4 2,1
Coreia do Sul 3,1 4,7 4,2 5,1 5,0
Vietnã 7,3 7,8 8,4 8,2 8,5
Nigéria 10,3 10,6 5,4 6,2 6,4
África do Sul 3,1 4,9 5,0 5,4 5,1
Canadá 1,9 3,1 3,1 2,8 2,7
México 1,4 4,2 2,8 4,8 3,3
EUA 2,5 3,6 3,1 2,9 2,2
Argentina 8,8 9,0 9,2 8,5 8,7
Brasil 1,1 5,7 3,2 3,8 5,4
França 1,1 2,5 1,7 2,0 1,9
Alemanha -0,3 1,1 0,8 2,9 2,5
Itália 0,0 1,5 0,6 1,8 1,5
Rússia 7,3 7,2 6,4 7,4 8,1
Polônia 3,9 5,3 3,6 6,2 6,5
Romênia 5,2 8,4 4,1 7,9 6,0
Austrália 3,0 3,8 2,8 2,8 3,9
Fonte: International Monetary Fund Database. Elaboração própria.

O período compreendido na tabela acima inclui o ano de 2005, que foi marca-
do pela suplantação da Alemanha pela China no posto de 3ª economia do mundo,
atrás somente dos EUA e do Japão. Consideremos, diante desses dados, um país
que, em 1949, tinha uma indústria siderúrgica incipiente e que, em 2007, produziu
o volume de 530 milhões de toneladas de aço, ou seja, cinco vezes mais do que o
produzido pelos EUA. Dessa quantia produzida, cerca de 80% são utilizados pelo
próprio mercado interno do país. Num outro escopo de comparação, a tabela acima
comprova algumas verdades. A primeira está diretamente relacionada aos países
com projetos nacionais sólidos (China, Índia, Vietnã): todos eles obtêm, ao longo
dos anos, taxas contínuas de crescimento baseadas em uma política cambial admi-
nistrada. Os dados explicitam também que o dínamo econômico do mundo não é
mais o centro do sistema, e sim os países periféricos, entre eles os já citados casos
da China e da Índia.

214
O desenvolvimento e suas faces na China

Outros países, como Brasil e África do Sul, são levados a conviver com es-
quemas de stop-and-go, crescendo ano sim, ano não, expressando (nesses dados)
grandes disputas no âmbito de suas superestruturas e afogando-se em políticas
econômicas de “combate à inflação”. Por exemplo, da mesma forma que na cor-
te czarista conviviam em pleno conflito anglófilos e germanófilos, no núcleo da
superestrutura brasileira estão em plena disputa aqueles favoráveis à inserção no
mundo, subordinados aos interesses norte-americanos, e outros que ainda tentam
retomar um projeto nacional nascido com a Revolução de 1930 e interrompido com
a eleição de Collor em 1990.
Por fim, há ainda um grupo de países que crescem sob os auspícios das cres-
centes demandas do crescimento de China e Índia, como, por exemplo, a Nigéria,
grande produtora de petróleo.
Retornando ao tema anterior à análise comparativa do crescimento mundial
e chinês, a taxa de inflação na China em 2008 foi de 4,3%. Este dado nos leva a
uma análise mais acurada do próprio processo de desenvolvimento recente do país
que, após iniciar suas reformas econômicas, conviveu, principalmente no final da
década de 1980, com surtos inflacionários (daí uma das razões para as baixas taxas
de crescimento entre 1987 e 1990)3, afinal é sabido por todos que a demanda tende
a crescer de forma mais rápida que a oferta. O diferencial chinês, neste caso, com
relação às imposturas do Consenso de Washington, fica na relação entre a visão
estratégica do processo e a negação do planejamento pela via de políticas – conhe-
cidíssimas pelos brasileiros – de buscas anuais de “metas de inflação” que, via de
regra (e de acordo com o credo liberal), devem ser alcançadas pela manipulação
cega da taxa de juros e de câmbio, que sufocam a demanda.
Em nossa opinião, a forma mais justa e progressista de se combater a inflação

3
A queda na taxa de crescimento chinês nos referidos anos também guarda razão na não uni-
dade do PCCh com relação à amplitude das reformas, pois, de um lado, havia os partidários de
Deng Xiaoping e, de outro, aqueles segundo os quais a economia de mercado deveria estar res-
trita aos ditames do plano. Somente em 1992, em meio ao conhecido périplo de Deng Xiaoping
ao sul da China, é que a confiança interna no futuro do país se cristalizou, chegando ao ponto
em que, no 14º Congresso do PCCh realizado em 1992, a “teoria de Deng Xiaoping” foi alçada ao
mesmo grau de importância do marxismo-leninismo e do pensamento de Mao Tsetung. Outros
problemas podem ser elencados nas consequências internacionais do trágico desfecho da rebe-
lião contrarrevolucionária de junho de 1989 na Praça da Paz Celestial, momento aquele em que
o G-8 impôs sanções ao governo chinês.

215
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

reside na contínua expansão da oferta pelo ferramental do aumento da relação


entre investimentos e PIB. A inflação é uma anomalia que só poderá ser superada
numa sociedade onde a oferta (desenvolvimento das forças produtivas) esteja to-
talmente maximizada sob a égide da produção e da apreensão social do excedente
econômico. Enquanto não chegar esse momento histórico, a inflação continuará
sendo algo com que se conviver, devendo ser enfrentada de forma que seu “remé-
dio” não tenha efeitos colaterais negativos sobre a renda e a qualidade de vida das
mais amplas parcelas da sociedade. Os chineses enfrentam esse problema – nota-
damente – com uma política de altas taxas de investimentos, como se pode notar
no gráfico abaixo, expondo que, no ano de 2008, por exemplo, o montante dos
investimentos com relação ao PIB foi de 45%. Como base de comparação, é interes-
sante saber que no Brasil, nos últimos anos, esse índice tem variado de 16% a 19%.
É importante sublinhar que uma forma de “despressurizar” as taxas de in-
flação na China está justamente, além dos elevados índices de investimentos, no
fato de a China ainda ser uma economia essencialmente agrícola, com plenas ca-
racterísticas rurais, diminuindo o impacto sobre o consumidor dos gastos com a
alimentação. Vale salientar que percebemos – comparando a cidade ao campo na
China – empiricamente em nossas viagens pelo país que o preço da alimentação
em cidades como Xangai e Pequim era, em média, três vezes menor que nas zonas
rurais visitadas por nós. Do ponto de vista da estratégia geral de crescimento, isso
redunda em razoável capacidade de consumo de bens manufaturados nas zonas
rurais.
Outra forma de avaliar as transformações correntes é a partir da análise da
dinâmica da composição do PIB chinês no período. Vejamos:

216
O desenvolvimento e suas faces na China

Tabela 5 – Composição e dinâmica do PIB chinês, 1978-2007


Ano Setor Primário Setor Secundário Setor Terciário
1978 28,2 47,9 23,9
1979 31,3 47,1 21,6
1980 30,2 48,2 21,6
1981 31,9 46,1 22,0
1982 33,4 44,8 21,8
1983 33,2 44,4 22,4
1984 32,1 43,1 24,8
1985 28,4 42,9 28,7
1986 27,2 43,7 29,1
1987 26,8 43,6 29,6
1988 25,7 43,8 30,5
1989 25,1 42,8 32,1
1990 27,1 41,3 31,6
1991 24,5 41,8 33,7
1992 21,8 43,4 34,8
1993 19,7 46,6 33,7
1994 19,8 46,6 33,6
1995 19,9 47,2 32,9
1996 19,7 47,5 32,8
1997 18,3 47,5 34,2
1998 17,6 46,2 36,2
1999 16,5 45,8 37,7
2000 15,1 45,9 39,9
2001 14,4 45,1 40,5
2002 13,7 44,8 41,5
2003 12,8 46,0 41,2
2004 13,4 46,2 40,5
2005 12,2 47,7 40,1
2006 11,3 48,7 40,0
2007 11,3 48,6 40,1
Fonte: China Statistical Yearbook (www.stats.gov.cn). Elaboração própria.

À primeira vista, podem parecer impressionantes alguns fenômenos que esta


tabela revela. Além do óbvio processo de adensamento do setor de serviços – cau-
sa e consequência da própria dinâmica do crescimento, onde o setor primário
tende rapidamente a perder centralidade (dado o rápido incremento do dito setor
“economia de mercado”) –, o mais interessante é que, já em 1978, a indústria

217
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

correspondia a quase 50% do PIB. Isso só vem a confirmar que, entre 1949 e 1978,
com a taxa média de crescimento acima dos 6% ao ano, criou-se a verdadeira
base para o salto visto nos últimos 30 anos. Ou seja, o processo de combinação
da chamada “via dos produtores” com a “via prussiana” dá-se sob o amparo de
um longo processo de “desenvolvimento pelo alto”, ou seja, a partir da constitui-
ção de um poderoso Departamento 1 da economia, ou melhor, de máquinas que
reproduzem máquinas.
Outro elemento a se considerar nesse conjunto é o crescimento do setor pri-
mário da economia entre os anos de 1978 e 1984. Isso quer dizer que teve sucesso
a estratégia de mudança dos preceitos do dito “modelo soviético”, pautado por uma
industrialização sustentada pela agricultura e impondo relações desiguais entre
campo e cidade. A inversão dessa relação na China está diretamente associada ao
aumento da participação do setor primário na composição do PIB nos anos citados.
Por outro lado, também tem serventia na contra-argumentação àqueles que colo-
cam o “modelo chinês” como algo sustentado pela demanda externa em detrimen-
to da demanda interna e que as primeiras medidas do processo de reforma de 1978
concorriam para o fortalecimento de indústrias voltadas ao mercado exterior. Esta
tabela demonstra o contrário: os incentivos ao consumo interno (como veremos
no assunto “agricultura”) precederam a própria instalação das Zonas Econômicas
Especiais (ZEEs). Nesse caso, é muito claro que o fortalecimento do setor terciário
(serviços) inicia-se de forma rápida a partir de 1985, ano marcado pelos sucessos
iniciais da implementação das primeiras ZEEs no litoral chinês, quase totalmente
voltadas para o mercado externo. Enfim, existe uma grande lógica para a relação
entre o fortalecimento do mercado interno num primeiro momento e a implemen-
tação, num segundo, de um modelo disposto a enfrentar o mercado internacional,
cuja expressão é a diversificação industrial e o aumento de musculatura do setor
terciário (serviços).
Por fim, vejamos a expressão da grande contradição da China contemporânea,
encerrada no fato de, apesar de 55% da população ainda viverem no campo, o setor
primário da economia corresponder a apenas 11,3% do total do PIB. Abrindo um
leque de possibilidades à abstração, podemos elucubrar que uma situação contradi-
tória dessas abriga, por exemplo, a resposta para problemas como o da diferença de

218
O desenvolvimento e suas faces na China

renda entre campo e cidade, afinal as atividades manufatureiras são mais rentáveis
do que as atreladas à agricultura. Também coloca em relevo o problema do fosso
entre as zonas rurais e as zonas litorâneas desenvolvidas e em íntima relação com
o mundo exterior. Como desenvolveremos no decorrer do trabalho, não é à toa que
a questão da renda rural ainda é o centro da problemática da governança chinesa
e motivo de sucessivas reformas empreendidas pelo governo ao longo dos últimos
30 anos.
Apreciemos agora, também, para fins de conformação ao que foi dito acima, a
contribuição de cada setor para o crescimento do PIB a partir de 1990:

Tabela 6 – Contribuição de cada setor da economia ao crescimento


chinês, 1990-2007 (%)
Setor Secundário
Setor Setor Secundário Setor
Ano (indústria + setor
Primário (indústria) Terciário
de construção)
1990 41,7 41,0 39,7 17,3
1991 7,1 62.8 58,0 30,1
1992 8,4 64,5 57,6 27,1
1993 7,9 65,5 59,1 26,6
1994 6,6 67,9 62,6 25,5
1995 9,1 64,3 58,5 26,6
1996 9,6 62,9 58,5 27,5
1997 6,8 59,7 58,3 33,5
1998 7,6 60,9 55,4 31,5
1999 6,0 57,8 55,0 36,2
2000 4,4 60,8 57,6 34,8
2001 5,1 46,7 42,1 48,2
2002 4,6 49,7 44,4 45,7
2003 3,4 58,5 51,9 38,1
2004 7,8 52,2 47,7 40,0
2005 6,1 53,6 47,0 40,3
2006 5,3 53,1 46,6 41,7
2007 3,6 54,1 48,2 42,3
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

A tabela acima nos permite ter uma visão de conjunto maior das partes que
integram os fatores do crescimento acelerado chinês. Por exemplo, confirma-se a

219
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

tendência exposta anteriormente de aguçamento das contradições entre campo e


cidade, ao mesmo tempo em que se demonstra o grande papel cumprido pelo setor
de serviços para o crescimento econômico do país. Pode-se reparar num certo “exa-
gero” do fator setor primário no crescimento de 1990, mas esse ano foi o de menor
crescimento desde 1978, e as reformas no campo já estavam muito bem consolida-
das. Por outro lado, foi importante separar o setor secundário em dois polos: o setor
puramente industrial e o ligado à construção propriamente dita, pois é interessante
notar que o setor de construção tende a se tornar fator essencial para o crescimento
de países continentais como a China, onde o processo rápido de urbanização e a ne-
cessidade de infraestruturas conectando mercados regionais se fazem sentir como
necessidade de primeira ordem na continuidade de processos desenvolvimentistas4.
Retornando ao setor de serviços, é relevante salientar que ele foi o que mais
se aproveitou de desregulamentações, como inclusive foi o mais controlado e
constrangido entre 1952 e 1978. Sua desregulamentação foi estendida, muito ra-
pidamente, à sua própria estrutura de propriedade. Entre 1952 e 1978, o número
de estabelecimentos comerciais na China caiu de 5,5 milhões para 1,3 milhão,
denunciando uma crescente centralização estatal do setor e também um grande
preconceito, na China pós-revolucionária, da classe comercial, em grande parte
envolvida com comércio de exportação e importação pré-1949 (a chamada “bur-
guesia compradora”). Isso num país que, no período citado, teve um aumento
populacional de quase dois terços. Atualmente, 93% dos estabelecimentos comer-
ciais chineses são de propriedade individual e/ou privada, sendo que 96% dos res-
taurantes seguem a mesma tendência de predominância absoluta da propriedade
individual e/ou privada5.
Como forma de dar maior consequência à nossa exposição, vejamos a tabela
abaixo acerca da dinâmica da população e do emprego na China entre os anos de
1952 e 2005:

4
Vejamos o caso brasileiro, onde as limitações infraestruturais são fator central para a não con-
tinuidade de crescimento desde os fins da década de 1970, amiúde termos completado nossa
industrialização com a implantação de um novo Departamento 1.
5
MADDISON, Angus. Chinese economic performance in the long run. Development Centre Studies.
OECD. Second Edition. 2007, p. 84.

220
O desenvolvimento e suas faces na China

Tabela 7 – Dinâmica de população e emprego na China, anos selecio-


nados entre 1952 e 2005 (em milhões)
Rural/não
Ano Rural Urbano Agricultura Urbano Total
agrícola
População População Emprego Emprego Emprego Emprego
1952 503,19 71,63 173,17 9,50 24,62 207,29
1957 503,04 99,49 193,090 13,69 30,93 237,71
1958 552,73 107,21 154,90 60,04 51,06 266,00
1959 548,36 123,71 162,71 48,30 51,00 261,74
1960 531,34 130,73 170,16 31,69 56,96 258,81
1962 556,36 116,59 212,76 4,55 41,79 259,10
1970 685,68 144,24 278,11 8,75 57,46 344,32
1977 783,05 166,69 293,40 17,32 83,05 393,77
1978 790,14 172,45 283,73 31,51 86,28 401,52
1987 816,26 276,74 308,70 81,30 137,82 527,83
2005 745,44 562,12 318,56 166,30 273,31 758,25
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

Além do crescente peso das chamadas zonas urbanas, causa e consequência


do acelerado processo de crescimento pós-1978, vejamos de imediato, a partir da
leitura da tabela acima, outra contradição pouco percebida pela quase totalidade
de autores voltados à temática chinesa. Tal contradição é encerrada no fato de um
país com grande margem de sua população ainda vivendo no campo e em ativi-
dades agrícolas ter a grande tendência (não recente, diga-se de passagem, dada a
importância do setor secundário em 1978) de se comportar – diante do comércio
internacional – como exportador de máquinas, equipamentos e produtos indus-
triais. Como se explica isso? Além de todo o aparato de planejamento central, que
permite que a contradição entre campo e cidade não saia dos limites da ordem
pública propriamente dita, existe – a nosso ver, o que pode parecer óbvio a econo-
mistas mais atentos – o fato de, apesar de a atividade agrícola ser ao menos apa-
rente e relativamente mais barata com relação à atividade industrial, essa relação
poder se inverter. Isso porque a indústria tende a reduzir custos (na medida em se
incrementa seu capital constante), enquanto a agricultura em países como a China,
onde se percebe ainda uma baixa produtividade do trabalho, é uma atividade cuja
reprodução vai se tornando algo cada vez mais, digamos, de alto custo.

221
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Outra observação a que a tabela 7 nos remete é que, sendo a China um país
ainda com forte essência rural, essa “essencialidade” pode estar expressa no baixo
custo de produtos alimentícios e no baixo impacto no orçamento familiar em com-
paração a outros países, principalmente aqueles onde, como no Brasil, o monopólio
da compra de alimentos direto do produtor é feita por oligopsônios/monopsônios
que, por sua vez, manipulam para cima o preço dos alimentos6. É notório o papel
que o preço dos alimentos cumpre na lógica não inercial da inflação brasileira,
reduzindo a capacidade de consumo de milhões de famílias. Esse problema (oligop-
sônios/monopsônios) não ocorre na China e por isso constitui uma vasta reserva
de mercado para um tipo de crescimento cujo papel de consumo tende a aumentar
cada vez mais em detrimento do mercado externo, como a própria crise financeira
em andamento nos demonstra.

5.1.1.1 Sobre as Empresas de Cantão e Povoado (ECPs)

Continuando, já procedendo a uma relação entre as tabelas 6 e 7, pode-se ob-


servar que o crescimento do emprego urbano, notadamente na década de 1990, é
acompanhado por um ritmo quase na mesma proporção do setor de serviços na
economia. O diferencial existente entre o crescimento do setor secundário e ter-
ciário no período compreendido a partir da década de 1990 pode ser preenchido,
em grande medida, pelo aumento da participação na produção industrial chinesa
pelas – já citadas no segundo capítulo – ECPs, que podem estar amplamente re-
presentadas acima no fato de, entre 1977 e 2005, a população rural não empregada
em atividades agrícolas ter crescido aproximadamente 960%, o que denuncia a já
citada urbanização rural tipicamente chinesa. Daí o diferencial chinês em relação
aos seus vizinhos desenvolvimentistas e asiáticos no próprio papel das ECPs, tan-
to na produção industrial como nas exportações, conforme unanimidade entre os
analistas do tema. Abaixo, segue a evolução das estatísticas de emprego nas ECPs,
como forma de cotejarmos com a tabela 7:

6
Cerca de 50% da inflação no Brasil têm como causa primária a alta dos alimentos.

222
O desenvolvimento e suas faces na China

Tabela 8 – Trabalhadores empregados nas Empresas de Cantão e


Povoado, anos selecionados (em milhões)
Ano Total Agricultura Indústria Construção Comércio Transportes
1978 28.265.566 6.084.227 17.343.595 2.356.133 544.289 1.038.297
1984 38.480.993 2.839.337 25.489.125 6.834.888 697.163 1.293.020
1989 93.667.793 2.392.996 56.241.046 14.037.287 6.923.355 6.993.660
1992 106.247.146 2.618.203 63.363.961 15.524.240 8.667.901 7.997.384
1995 128.620.586 3.135.221 75.647.153 19.325.217 12.261.104 9.520.275
1998 125.365.458 2.739.147 73.342.330 16.337.455 14.188.978 8.863.356
2001 130.855.754 2.000.282 76.151.065 15.644.119 16.437.365 9.026.864
2004 138.661.740 2.847.173 81.605.448 13.759.756 16.993.032 8.444.657
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

Em primeiro lugar, é importante observar a quase coincidência entre o total


de empregados em 2004 (tabela 8) e o emprego não rural em 2005 (tabela 7), o
que corrobora nossa opinião acerca do caráter rural do processo de urbanização
da China. Por outro lado, abrindo parêntese para questões ancilares, é importante
salientar a questão do planejamento nesse caso. Quando colocamos anteriormente
no livro a questão do surgimento de “novas e superiores formas de planejamen-
to”, deve-se deixar claro que a essência de tais “novas formas” reside na utilização
do planejamento já sobre bases financeiras muito mais sólidas do que o planeja-
mento clássico do “modelo soviético”. Eis um ponto essencial da questão, ainda
mais quando se envolvem tanto demandas da urbanização das cidades costeiras
quanto as desse novo e “chinês” tipo de urbanização, que envolve o assentamento
de cerca de 140 milhões de pessoas e as respectivas consequências em matéria de
infraestrutura urbana, o que constitui – por si só – mais um grandioso campo de
acumulação e garantia para anos de crescimento a partir da construção de médias
cidades (isso tem importância para os que pesquisam justamente sobre os “limites”
do crescimento chinês). Outro fator que aperfeiçoa esse processo reside no fato de
na China não existir propriedade privada dos solos urbano e rural. Isso quer dizer
que os recursos ora despendidos (em países como o Brasil, onde demandas em in-
fraestruturas e moradias são intensas) para alimentar o círculo vicioso criado pela
renda diferencial da terra é “desviado” para fins muito mais produtivos, como a cons-

223
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

trução de imensas linhas de metrô em um número cada vez maior de cidades7.


Levemos os números frios expostos pelas tabelas 7 e 8 a outros patamares de
consequência. Por exemplo, temos trabalhado com uma ideia específica acerca do
processo de desenvolvimento. A principal delas, útil principalmente para a análise
de formações sociais complexas, é a formulada por Lênin, para quem o desenvolvi-
mento pode ser visto e medido a partir da análise da rapidez com que se dá
o trânsito de pessoas da economia natural à economia de mercado.
Uma das formas de corroborarmos essa visão de desenvolvimento pode estar na
percepção, por exemplo, de que entre 1978 e 2004 o nível de emprego nas ECPs
cresceu exatos 491%.
A fusão da análise teórica e empírica não para por aí, pois um intenso processo
de transformação das ECPs em indústrias de variados tipos se intensifica na mes-
ma medida em que o peso das ECPs no cômputo geral de empregos no país perde
fôlego, com menor absorção da força de trabalho. Vejamos: entre 1978 e 2004, a
queda da participação da agricultura na questão emprego nas ECPs caiu 242%,
enquanto na manufatura aumentou em 471%, na indústria de construção, 582%;
nos transportes, 3.000%, e no comércio (serviços), mais de 3.000%, o que fortalece
a argumentação acerca da transição da economia natural para a pequena produção
mercantil e daí para o capitalismo de Estado ou socialismo. Fortalece também a
visão de uma “via dos produtores”, em rápido processo no país pela transformação
de camponeses médios em empresários. É relevante observar que as ECPs são em-
preendimentos puramente camponeses e alternativas fortes de emprego fora dos
movimentos clássicos de saída de trabalhadores de uma zona periférica para outra
industrializada num mesmo país.
Antes de darmos continuidade a essa análise, é importante traçarmos rapi-
damente as características das ECPs em matéria de financiamento e natureza de
propriedade. Do ponto de vista histórico, esse tipo de empresa de caráter municipal
tem fortes relações com uma estrutura industrial que muito lembra as unidades

7
Em nosso trabalho China: Infraestruturas e crescimento econômico – publicado em 2006 – relatamos
o projeto chinês de implantar, até o ano de 2020, linhas de metrô em mais de 20 cidades do país.
Além, é claro, de estender linhas existentes e construir novas linhas em cidades onde o metrô
já é uma realidade. Grande impressão nos causou a verificação desse progresso em matéria de
metrô na China desde nossa primeira visita em 2004 até as visitas seguintes, ocorridas em 2007
e 2009.

224
O desenvolvimento e suas faces na China

de produção surgidas antes da ocupação japonesa na década de 1930, que, na sua


maioria, eram voltadas à produção têxtil, bem à moda dos ofícios ingleses e das
pequenas manufaturas genovesas e holandesas. Tiveram um grande declínio com
a ocupação japonesa, tendo sido quase extintas entre 1949 e 1978. Mas por incrível
que possa parecer, têm na Revolução Cultural (1966-1976) sua raiz moderna com
a política de interiorização da indústria levada a cabo por Mao diante da ameaça
de intervenção estrangeira. Nesse momento da história recente chinesa, o país foi
levado a implementar uma ideologia de plena autossuficiência (em todos os níveis)
expressa na divisão do país em comunas e das comunas em brigadas de produção.
Cada comuna teria de implementar simplesmente tudo o que fosse possível para
sua autossuficiência perante um estado de guerra, e isso incluiu a difusão de pe-
quenas unidades produtivas em nível de comuna e brigada. As ECPs e seu desen-
volvimento demonstram que, se as comunas foram desmanteladas, as unidades de
seu interior não foram.
Na verdade, segundo Fairbank, contrapondo-se aos que acreditam numa li-
nha de total descontinuidade entre 1949 e 19788:

A industrialização rural da China começara na dinastia Song, ou até antes


quando as famílias das aldeias usavam a força de trabalho de mulheres e crian-
ças para aumentar a renda da fazenda produzindo chás, tecidos de algodão e
seda, tijolos, cestos e outros produtos. Na era das fábricas, indústrias rurais de
pequeno porte (...) eram um “pilar central na estratégia de desenvolvimento de
Mao”. Em 1979 cerca de oitocentas mil indústrias e quase noventa mil esta-
ções hidrelétricas de pequeno porte empregavam 24 milhões de trabalhadores e
eram responsáveis por 15% da produção industrial da China. Isso incluía todas
as ferramentas agrícolas e a maioria do maquinário de pequeno e médio porte,
metade do fertilizante químico, dois terços do cimento e 45% do carvão.

Retornando, sobre bases produtivas já instaladas e exemplificadas na citação


de Fairbank, as ECPs ganharam muita força a partir de 1978, respondendo tanto
a impulsos quase espontâneos, no âmbito da aldeia, como a incentivos institucio-
nais, tanto pela política de contratos de responsabilidade na agricultura como pela
descentralização fiscal – momento esse em que as províncias ganharam grande
mobilidade e autonomia de gerenciamento de seus negócios. É muito nítido, para

8
FAIRBANK, J K. & GOLDMAN, M. China: Uma nova história. L&PM. Porto Alegre, 2006, p. 366

225
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

quem teve oportunidade de visitar algumas unidades fabris desse tipo, que seu es-
copo de atuação dentro do país esteja diretamente voltado para nichos de mercado
não explorados por estatais e empresas privadas9, o que denuncia por si só – nas
ECPs – uma escolha racional de maximização de um tipo de manufatura com carac-
terísticas chinesas voltadas ao crescimento econômico.
Outra constatação particular que corrobora nossa tese de distintas formas de
transição numa mesma formação social: ao contrário das estatais moldadas pelo
“modelo soviético”, o que explica em grande parte seu dinamismo inicial, é exata-
mente o porte pequeno dessas empresas, sua flexibilidade (dada a não interferên-
cia estatal direta) e, principalmente, sua vocação de produzir diretamente para o
mercado, sem mediações estatais e nem obrigações de cotas impostas à produção
agrícola diretamente voltada tanto para o abastecimento das cidades quanto para a
realização particular de lucro.
Sua natureza, no âmbito geral, é municipal e coletiva, constituindo-se numa
nova forma “socialista” de propriedade, muito semelhante aos kolkhozes soviéticos,
mas muito mais dinâmica, eficiente e autônoma. Daí ser um novo campo privile-
giado de acumulação e – do ponto de vista estratégico – o motor de uma visão de
longo alcance de urbanização, que impede a China de assimilar o que de pior a
anarquia da produção demanda na agricultura de tipo capitalista: as crises de
superpopulação e as crises de superprodução na agricultura. Abrindo
parêntese, um grande ponto de estrangulamento de um país periférico em desen-
volvimento é quando o problema de superpopulação agrária se transforma em crise
urbana de superpopulação (favelização). Talvez isso explique em parte a razão por
que a China (apesar de sua imensa população) não possui esse problema crônico
de habitação tão comum não somente em países como o Brasil, mas também nos
Estados Unidos. O “x” da questão reside na absorção de mão de obra sobrante no
âmbito da aldeia.
Sobre a questão da propriedade, não se pode chegar a conclusões peremptórias
a partir de observações marginais. Isso quer dizer que a rapidez das transformações
da estrutura de propriedade de economia chinesa constitui um grande obstáculo
para auferir de fato o nível de transformação da estrutura de propriedade das ECPs.

9
Exemplo disso está na fabricação de embalagem para alimentos.

226
O desenvolvimento e suas faces na China

Mas já se sabe que a mesma evoluiu no mesmo ritmo que as estatais no sentido
de trabalhar com capital inteiramente coletivo, com joint ventures com empresas
privadas nacionais e estrangeiras e com o lançamento de ações no mercado de va-
lores. Desconhecemos estatísticas e esse respeito, mas no geral são empresas não
estatais e não privadas. Do ponto de vista do financiamento, um traço interes-
sante é a mínima participação de bancos estatais no processo de financiamento
da produção. Segundo um gerente de banco de uma aldeia que visitamos em 2009
na província de Zhejiang, “os créditos totais nacionais para as ECPs não passam
de 10% dos créditos empenhados por bancos estatais”. Interessante é que, nessa
mesma aldeia, numa das respostas que recebemos de um integrante de uma ECP
voltada para a produção de autopeças, afirmou-se que a principal fonte de financia-
mento desse tipo de empresa na China está no reinvestimento quase total de lucros,
descontadas a participação dos trabalhadores no lucro e os encargos municipais e
provinciais. Em outras palavras, são empresas coletivas alimentadas por poupança
privada. Daí seu caráter complexo de ser algo nem estatal, nem privado. Outra nota
interessante é que a questão da propriedade nesse tipo de empresa tipicamente
rural não guarda grande relevância, pelo fato de a terra, na China, não ser objeto
de regulação privada; isso sim é o que importa e tem consequência num mercado
de tipo socialista.
Retornando à questão que envolve a participação das ECPs no cômputo geral
da economia chinesa, segue abaixo uma tabela que muito poderá dizer a esse res-
peito, num aparente contraponto à tabela 8:

Tabela 9 – Total de valor agregado nas empresas de Cantão e Povoa-


do, anos selecionados (unidade: 1 milhão de yuans)
Ano Total Agricultura Indústria Construção Comércio Transportes
1978 20.832,24 1.537,20 15.954,92 1.257,07 431,95 903,61
1984 63.321,06 1.688,50 17.521,76 1.626,90 375,353 1.609,29
1989 208.316,25 2.439,28 130.563,30 20.566,52 10.546,12 10.873,62
1992 448.524,20 5.648,48 335.013,82 43.017,75 23.374,65 27.231,74
1995 1.459.522,68 27.982,32 1.080.404,23 128.135,39 96.007,30 80.416,87
1998 2.218.645,61 34.615,66 1.553.027,25 178.102,42 196.982,62 136.141,01
2001 2.935.638,86 28.662,27 2.031.466,21 219.352,28 295.574,04 182.190,79
2004 4.187.536,25 56.439,23 2.935.856,60 266.601,06 390.919,22 218.868,01
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

227
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Pode parecer, por exemplo, uma grande discrepância entre as porcentagens de


aumento de força de trabalho em comparação com o aumento de valor agregado
em si. Por exemplo, na agricultura, onde a diminuição da força de trabalho foi
enorme, também enorme foi a adição de valor agregado ao produto total: entre 1978
e 2004, apesar de a força de trabalho ter diminuído em quase 250%, o valor agre-
gado teve aumento de cerca de 5.000%. Esse movimento acelerou-se entre os anos
de 1992 e 1995, quando as reformas econômicas tornaram-se política de Estado e
os IEDs fluíram com grande intensidade também para ECPs localizadas a 200 km
do litoral. Um novo salto é percebido depois de 2001, quando a China é admitida
na OMC e sua agricultura fica exposta a quedas bruscas de tarifas de importação;
momento em que o país – aproveitando a possibilidade de falência de sua agricul-
tura – parte para uma ousada política de especialização, passando a concorrer no
mercado internacional de cereais e tornando-se um exportador líquido de alimen-
tos10. Vale observar que em todos os setores o salto se inicia no final da década de
1990, demonstrando tanto o grande papel na reação à crise financeira asiática de
1997 como a qualidade do crescimento chinês, que deixou de ser extensivo para
ser intensivo em capital e tecnologia, transformando-se em mais uma evidência do
modelo desenvolvimentista de tipo asiático empreendido no país.
Do ponto de vista do domínio da teoria, percebe-se com esses dados que o es-
quema de desenvolvimento das ECPs segue uma trilha muito previsível. Segundo
Masiero11:

Neste processo, unidades familiares se especializaram na comercialização e in-


dustrialização de insumos agrícolas. Passaram a comprar, vender e alugar equi-
pamentos para a produção de bens e serviços que não estavam facilmente dis-
poníveis aos produtores rurais. Outras unidades se especializaram na criação de
galinhas, porcos, transportes, assistência técnica, sistema de irrigação e controle
de pragas etc. Através de atividades comerciais e industriais, muitas delas, com
o passar dos anos, acumularam montantes de capital sensivelmente superiores
às demais famílias.

10
Mais adiante trataremos da questão da agricultura.
11
MASIERO, Gilmar. “China: Origens e desenvolvimento das Township and Village Enterprises
(TVEs) chinesas”. In Revista de economia política. Vol. 26, n. 3 (103), pp. 425-444. São Paulo, julho-
-setembro de 2006.

228
O desenvolvimento e suas faces na China

É indispensável tirarmos o máximo de consequência desse tipo de citação.


Falamos mais acima em um processo previsível de desenvolvimento industrial. Do
ponto de vista histórico, isso segue leis objetivas da transformação da pequena pro-
dução mercantil em indústria capitalista e, no caso da China, em capitalista de Es-
tado, coletiva ou simplesmente socialista. A citação acima serve para desnudar que
ao lado das atividades propriamente rurais desenvolveu-se todo um esquema de co-
mercialização e locação de insumos agrícolas, como aluguéis de pequenos insumos
agrícolas ou industriais destinados à melhora da produção agrícola. Isso explica
também o aumento de valor agregado na agricultura e na indústria, por exemplo.
Outro dado extraído em entrevista na Baosteel em 1997: pequenas peças utilizadas
em fornos eram compradas por essa estatal em ECPs especializadas na fabricação
de determinados componentes. Ou seja, com o tempo as estatais passaram a ser
clientes das ECPs, garimpando um imenso nicho de mercado capaz de multiplicar
o escopo de atividade das mesmas. Nesse caso, as ECPs ganham crescente espaço
na divisão social do trabalho. Ainda cabe uma abstração nesse ponto diretamente
relacionado com a própria lógica de funcionamento da divisão social do trabalho.
Numa das sínteses de Lênin em seu imenso trabalho sobre o desenvolvimento em
formações agrárias, além do fato de haver uma crescente especialização, também
há o papel complementar entre a grande produção e a pequena produção agrícola, sendo que
a pequena produção existe, majoritariamente, em função de demandas da grande
produção12. Esse mesmo tipo de complementaridade se observa nessa relação virtu-
osa entre estatais e ECPs na China, assim como entre a indústria automobilística e
suas indústrias ancilares de autopeças.
Vejamos outro ponto pouco abordado, mas já citado: o processo de especiali-
zação da agricultura e da saída das estatais de determinados ramos de atividade
para fins de formação de conglomerados concentrados em pontos estratégicos da
economia chinesa. Em Lênin, especialização é sinônimo de industrialização, de
aumento da produtividade do trabalho e de constante aumento de valor agregado
à indústria. Curiosamente, a agricultura foi um tipo de atividade transferida para
terceiros, e foi um dos setores onde avançaram as ECPs. Abrindo parêntese, a his-

12
Exemplo disso no Brasil está no papel complementar entre os criadores de pintinhos e sua
relação com complexos como o da Sadia. Sobre isto, ler: ESPÍNDOLA, Carlos J. As agroindústrias
no Brasil: o caso Sadia. Grifos. Chapecó, SC. 1999.

229
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

tória demonstra a relação virtuosa para qualquer região entre o desenvolvimento e


a constante inserção na divisão social e regional do trabalho. O aumento do escopo
de ação mercantil das ECPs, por conta do autodeslocamento do Estado de determi-
nadas atividades econômicas para outras, reflete-se no avanço das atividades das
ECPs sobre os chamados complexos agroindustriais, no sentido de produzir, em
escalas cada vez maiores, máquinas agrícolas e pesticidas. Não somente nesse cam-
po; o mesmo ocorre no setor de mineração e materiais de construção. A crescente
participação das ECPs nessas atividades enceta também uma crescente exploração
de nichos de mercado, distante de empresas privadas e estatais, em artigos de con-
sumo de massa, como eletrodomésticos, por exemplo.
Outra fonte de explicação para o aumento da produtividade nas ECPs pode es-
tar em sua crescente participação no montante das exportações chinesas, conforme
tabela abaixo:

Tabela 10 – Participação das ECPs nas exportações (em 100 milhões


de yuans e em %)
Roupas
Ano Exportações Químicos Máquinas Prod. leves Calçados e têxteis
artesanais
1989 271,6 7,6 6,6 14,4 47,7 11,1
1992 904,7 7,4 8,0 20,5 47,7 7,6
1997 5.430,8 6,7 9,3 26,9 36,9 12,0
2002 9.225,5 6,4 13,2 29,1 31,3 12,9
Fonte: Gilmar Masiero.

A tabela acima é mais uma ilustração do tempo do processo do que um instru-


mento de precisão, afinal seus dados são remanescentes de 2002, mas amplamente
suficientes para explicar algo mais da tabela 9. Por exemplo, o aumento do valor
agregado provém também do aumento significativo da qualidade de suas expor-
tações; percebe-se uma queda das exportações de têxteis, um aumento acima de
100% de produtos leves (ventiladores, por exemplo) e outra duplicação na exporta-
ção de máquinas. A princípio, isso corrobora a formulação acima exposta de certo
padrão previsível de crescimento, que inclusive nos remete ao exemplo dos chaebols
coreanos e zaibatzus japoneses, conglomerados privados que surgem com forte apoio
do Estado.
Dessa forma, outra discussão deve ser diretamente associada com o aumento

230
O desenvolvimento e suas faces na China

de peso das ECPs: a crescente participação desse tipo de empresa no mercado in-
ternacional. Ao falarmos – conforme vimos fazendo desde o início – do trabalho
de planejamento do comércio exterior como expressão de uma grande estratégia,
convém salientar que esse tipo de planificação que obedece a certa historicidade do
desenvolvimento não se restringe a políticas monetárias que induzem a esse tipo
de enfrentamento. O complemento desse círculo deve ser remetido à formação de
empresas, conglomerados. No caso da China, os conglomerados estatais obedecem
à dominância do processo, mas nichos de mercado externo não explorados pelas
estatais estão sendo devidamente preenchidos por ECPs.
O apoio a este tipo de estratégia internacional pode estar diretamente rela-
cionado ao fato de ECPs como a Haier (detentora de 50% do mercado de pequenos
frigoríficos nos EUA), a Galanz (detentora de 33% do mercado mundial de micro-
-ondas), a Legend (20% do mercado internacional de placas para computadores) e a
China International Marine Containers (40% do mercado internacional de contêi-
neres refrigerados)13, conforme apontam os números entre parêntese, fazerem cada
vez mais parte do dia a dia de empresas e pessoas pelo mundo.
Eis o “x” do processo.

5.1.2 Crescimento potencial e real

É recorrente, neste livro, o objetivo de demonstrar as relações entre o socia-


lismo e o projeto nacional chinês. Processo este cuja explicação repousa, e muito,
em processos históricos e territoriais imbricados, em “contemporaneidades nada
coetâneas”, mercado e planejamento, capitalismo e socialismo, público e privado,
pequena produção mercantil e produção altamente socializada e assim por diante.
Uma irresistível resposta ao porquê do crescimento chinês, robusto e ininterrupto,
pode estar na própria consciência da superestrutura de poder do país dessa grande
complexidade nacional de trabalhar políticas econômicas, monetárias e financeiras
capazes de maximizar cada potencial diferenciado, como já demonstrado anterior-
mente, da maximização do mercado e da maximização dos instrumentos de pla-
nejamento, do “modelo soviético” ao “socialismo de mercado”. Enfim, explicar o
fenômeno partindo da explicação de sua complexidade.

13
“How fit is panda?”, The Economist. Print edition. 27 de setembro de 2007.

231
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Abstrações à parte, um dado dito composto merece um tratamento especial: o


da relação entre crescimento real e potencial. Isso significa que um nível de análise
se dá numa abstração sobre o crescimento potencial em íntima relação com o con-
creto, ou seja, do crescimento real. Exemplo interessante está numa grande e no-
tável reportagem publicada em setembro de 2007 pela The Economist14 , baseada em
dados do Banco Mundial. Nela, a comparação entre crescimento real e crescimento
potencial é feita entre 1990 e 2007. Percebe-se que os dois pontos encontram-se en-
tre os anos de 1996 e 2007. Entre 1990 e 1991, o crescimento real fica muito abaixo
do potencial, resultado que expressa tanto a reação externa aos acontecimentos
de junho de 1989 em Tiananmen (quando a China sofreu sanções impostas pelo
G-7) quanto problemas internos, pois fora o interregno em que os opositores das
reformas econômicas mais amplas estiveram controlando os gânglios vitais da eco-
nomia do país. É notório que as reformas econômicas ganharam impulso no ano
de 1992, com a realização do 14° Congresso Nacional do PCCh, em que o setor ali-
nhado a Deng Xiaoping, finalmente, venceu a disputa interna do PCCh. Entre 1992
e 1994, o crescimento real ficou entre 3% e 4% acima do potencial, redundando
numa inflação na casa dos 25% em 1994. Como já colocado, em 1996, após ajus-
tes no ano de 1995, o crescimento real e potencial passaram a conviver em quase
harmonia, denunciando – positivamente – o encontro do eixo central do processo
econômico, o que significa que um ponto de equilíbrio entre todo o complexo que
forma a economia nacional chinesa foi alcançado.
Existem determinantes para explicar esse equilíbrio baseado em altas taxas
de crescimento. Logo, não se trata de um equilíbrio baseado em taxas medíocres
de aumento do PIB. O primeiro ponto que queremos salientar são as altas taxas de
investimento, ou melhor, de Formação Bruta de Capital Intensivo, já expostas no
gráfico 1. A média desse agregado em toda a década de 1980 foi de 28,62%. Esse
número foi crescendo de forma robusta desde então: de 27,48% em 1991, para 45%
em 200815. Para termos uma noção, no Brasil do chamado “milagre econômico”
esta taxa chegou – em 1974, quando o Brasil cresceu em torno de 14% – a exatos
33% do PIB.
Pelo tamanho de sua população, área territorial e extensa base camponesa, a
14
“How fit is panda?”, The Economist. Print edition. 27 de setembro de 2007.
15
China Statistical Yearbook para todos os anos.

232
O desenvolvimento e suas faces na China

Índia é uma base de comparação com a China no sentido de assimilarmos a di-


mensão do processo em curso no país. Pois bem, desde 1991 a Índia vem ganhando
terreno e destaque na arena econômica internacional. Por exemplo, entre 1991 e
2005 suas taxas de crescimento variaram entre 5% e 8%, passando do patamar
de 9% a partir de 2006. Porém, no sentido de demonstrar a singularidade da im-
portância da Formação Bruta de Capital Intensivo para o crescimento chinês, é
interessante notar que, enquanto na China essa taxa alcançou a casa dos 45%; na
Índia, no biênio 2003-2004, ela foi de 28,2% e, em 2007-2008, de 36,3%16; portanto,
bem distante da China.
Retornando ao caso chinês, outra relação necessária a uma visão mais abran-
gente de seu processo de desenvolvimento é a concomitância e similaridades entre
as taxas de investimento e de poupança: a taxa de poupança média na década de
1980 foi de 35,1% do PIB, alcançando em 2003 43,17%, sendo que, nesse mesmo ano
de 2003, a taxa de investimento da China foi de 42,16%17. A princípio, fica o óbvio
de que não existe crescimento de longo prazo fora dos marcos das altas taxas de
investimentos. Por outro lado, apesar da taxa de formação de poupança trazer em
seu bojo determinadas contradições sociais – como já exposto no capítulo 2 – na
verdade esse tipo de dado revela, por exemplo, uma reserva gigantesca a ser mobili-
zada em momentos de problemas de realização pela via da demanda externa, como
nos momentos da crise financeira asiática em 1997 e a presente crise financeira.

5.1.2.1 O estatal, o privado e o crescimento na China

Argumentamos desde o início deste trabalho que o processo de transição a


uma sociedade de nível superior depende de um tratamento adequado das relações
entre estatal e privado como forma de se sustentar – cientificamente – qualquer
tipo de projeto nacional e o próprio processo de desenvolvimento em si, inclusive no
socialismo. Daí acreditarmos que o desenvolvimento é um processo de maximiza-
ção das possibilidades tanto do planejamento quanto do mercado, do setor público
e do setor privado. Logo, nessa matéria torna-se muito complicada a sustentação de

16
Dados do Banco Mundial.
17
VIEIRA, Flávio V. “China: Crescimento econômico de longo prazo”. In Revista de economia polí-
tica. Vol. 26, n. 3 (103), pp. 401-424. São Paulo, julho-setembro de 2006.

233
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

qualquer argumento pela via ideológica, tanto de direita como de esquerda.


A China – tornamos a repetir – é uma expressão clara dessa virtuosidade de
inúmeras relações. Principalmente entre as duas formas de propriedade em tela.
Justas e racionais relações dialéticas entre o estatal e o privado na China têm no
crescimento robusto e num projeto de desenvolvimento de sucesso sua principal
síntese. Vamos à análise dessa relação.

aaaaaaaaaaaa

Ao lado da crescente institucionalização do setor privado da economia como


parte importante da “economia socialista de mercado”, buscou-se na China uma
reestruturação das empresas estatais no sentido de transformar tais empresas em
“corpo central do mercado”, em detrimento de um pressuposto do “modelo sovi-
ético”, segundo o qual as empresas estatais são prolongamentos da ação governa-
mental. Um salto interessante de qualidade, no que tange às empresas estatais, é a
introdução de um mecanismo já amplamente utilizado pelo capitalismo nos idos
da II Revolução Industrial: o da separação entre gestão e propriedade, algo fulcral
à preparação das empresas no âmbito da grande concorrência interna e externa; é
principalmente – como já argumentado – onde as empresas estatais jogam todo o
seu peso como expressão dos interesses do Estado chinês. E, para isso, devem estar
preparadas com o que de melhor o modo de produção capitalista criou no âmbito da
gestão empresarial. Trata-se de um salto sem precedentes tanto para a reprodução
do projeto nacional chinês como para a própria história da edificação do socialis-
mo em contraposição aos próprios cânones criados e amplificados sobre o papel da
grande empresa estatal segundo o “modelo soviético”.
A partir de uma visão ampla de processo histórico e econômico, da utilização
da complexidade de sua estrutura social, além da pauta leniniana segundo a qual
o socialismo deve amplificar o que de melhor o capitalismo criou no âmbito da
gestão empresarial, é que a China segue para a diversificação de sua estrutura de
propriedade. O setor estatal deixa de ser único, mas continua predominante em se-
tores estratégicos e de alto grau de monopólio, porém ladeado por múltiplas formas
de propriedade.
Vamos nos aprofundar.

234
O desenvolvimento e suas faces na China

5.1.2.1.1 As múltiplas formas de propriedade

Em grande parte compreensível, mas plenamente superficial, uma análise


equivocada parte do princípio de que o desenvolvimento chinês é produto quase
exclusivo de uma bem-sucedida transição ao capitalismo. “Bem-sucedida” transi-
ção, apesar da convivência entre um setor dinâmico privado, com crescente impor-
tância, e um setor estatal obsoleto. O “processo histórico” corroboraria com essa
tendência: transição de uma estrutura econômica centralmente planificada para
outra baseada nas leis econômicas mercantis, autonomia comercial aos campone-
ses, gradual liberalização dos preços de produtos agrícolas e dos meios de produção,
surgimento das ECPs, privatização de milhares de estatais na década de 1990, lega-
lização da propriedade privada, permissão para “capitalistas” se filiarem ao PCCh
etc. Quase nenhuma atenção é dada ao caráter estatal do sistema financeiro, do
solo urbano e rural e do controle estatal sobre os instrumentos cruciais do processo
de acumulação.
Outra ideia mais moderada diz respeito à característica mista da economia
chinesa, também em essência equivocada, na medida em que não toca em ca-
racterísticas de fundo da própria superestrutura do país nem no fato de que mais
de 80% das empresas chinesas associadas a empresas estrangeiras sob a forma de
joint ventures serem de propriedade estatal, o que serve de corredor às estatais para
internalização de formas modernas de administração e de tecnologias ocidentais e
mesmo orientais (japonesas, por exemplo)18.
O que pouco se comenta é que a convivência da propriedade estatal (domi-
nante) com outras formas de propriedade é a característica nodal do “socialismo
de mercado”. Não existe amparo teórico para caracterizar a base econômica chi-
nesa como um “combinado” de diferentes formas de propriedade. Isso pode dar
a impressão de certo caos, quando na verdade esse aparente caos obedece a uma
ordem determinada e definida como uma economia de mercado de orientação
socialista. Abrindo parêntese, o “hibridismo” não se aplica à análise de fe-
nômenos sociais, somente biológicos; o progresso social só é passível
de realização pela determinação de algo que tome o papel dominan-
te, e descobrir a essência do modo de produção e da formação social
18
China Statistical Yearbook.

235
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

é o caminho cientificamente comprovado para a plena compreensão


do processo. A ênfase na mediação do processo equivoca-se pela superfície, pois
analisar o mercado e a circulação não resolve o problema do economista nem do
cientista social. E a preponderância da propriedade estatal é o núcleo do comple-
xo econômico chinês. Como veremos, esse domínio da propriedade pública é um
paradoxo apenas aparente.
Retornando, existem diferentes dimensões para se tratar essa questão, sendo
a principal delas – sob nosso ponto de vista – buscar a compreensão do processo de
desenvolvimento a partir de sua complexidade, e não de simplificações anticien-
tíficas19. Uma das maneiras de se abordar o problema encontra-se nas diferentes
formas de transição dentro de uma formação social complexa, já colocada no capítulo
4. Outra maneira é perceber as imbricações e relações entre as diferentes formas
de propriedade a partir, por exemplo, da mediação financeira e do uso civil de
diferentes inovações no campo militar e na própria relação entre um chamado
sistema nacional de ciência e tecnologia chinesa e as empresas estatais e privadas.
Sem falar na própria dependência privada da assimilação pelas empresas estatais
de novas tecnologias e métodos de administração internalizados pela via das joint
ventures. Tão importante quanto essa plêiade de maneiras de se aferir o processo
é a apreensão dos diferentes níveis de produtividade de trabalho verificados nas
empresas estatais e privadas na China. Dessa maneira, fica mais fácil observar a
essência produtiva do “socialismo de mercado”.

5.1.2.1.2 O real tamanho do público e do privado

Existe um movimento, a partir de 1978, de busca de uma harmonia entre a


superestrutura e a base econômica chinesa. Expressão disso está na chamada tran-

19
Interessante colocar que mesmo um economista situado no mainstream tem chamado a aten-
ção para a necessidade de se buscar a compreensão do processo chinês tendo como um dos
pressupostos as diferentes formas de produção inseridas no país, como expressão de algo em
correspondência com os diferentes níveis de desenvolvimento percebidos e observados na Chi-
na. Referimo-nos a Dani Rodrik. Sobre isto, ler: RODRIK, D. “Make room for China in the world
economy”. Paper prepared for the AEA session on Growth in a partially de-globalized world, chaired
and discussed by Philippe Aghion. Disponível em: <http://www.hks.harvard.edu/fs/drodrik/Re-
search%20papers/Making%20room%20for%20China.pdf> . Acessado em 5 de março de 2010.

236
O desenvolvimento e suas faces na China

sição de um modelo de economia dita de “comando” para outras onde as forças de


mercado jogariam peso na mediação econômica e principalmente na alocação de
recursos. Esse movimento se coaduna com outra manobra importante do regime,
baseada na descentralização financeira, com maior autonomia para as províncias
quanto à gestão econômica. Essa questão é essencial para perceber que, historica-
mente, o empresário privado frutifica em meio a processos de descentralização re-
gional, onde a própria lógica de reprodução local depende muito da reprodução eco-
nômica e empresarial de “empresários locais”. É importante salientar que qualquer
política regional com vistas ao sucesso deve ser precedida por políticas de indução
às iniciativas individuais no âmbito da região a ser desenvolvida. A implantação
das infraestruturas necessárias pode ser o passo seguinte. Portanto, a pura trans-
ferência de recursos do centro para a periferia no âmbito da formação social não
deve ser absolutizada.
Passos posteriores são percebidos, no caso chinês, na própria transferência de
tarefas outrora designadas ao setor estatal ou coletivo para o setor privado, como,
por exemplo, a reprodução de um amplo e poderoso setor de serviços no país. Por
outro lado, o Estado diversifica seu escopo de atuação seja no controle macroeco-
nômico, seja na estatização e institucionalização do comércio exterior. Outro movi-
mento que se aproxima do elaborado por nós no segundo capítulo está na formação
de 149 conglomerados estatais notadamente nos setores estratégicos da economia
chinesa. Vale ressaltar que esse processo de concentração e centralização do capital
estatal chinês ganha impulso em meio a graves crises financeiras que assolaram a
Ásia em particular (1997) e o mundo20. Esses conglomerados se compõem no que
de mais dinâmico existe na economia chinesa, entre elas a indústria espacial – por-
ta de entrada do país para a III Revolução Industrial.
A dominância, por um lado, do setor estatal da economia e, por outro, do dina-
mismo do setor privado pode ser percebida no fato de, entre as 500 mais destacadas
da China, 331 empresas serem de propriedade estatal. Vale dizer que, em 1978,
78% delas eram de propriedade estatal e 22%, coletivas. Como se observa abaixo,
a transformação da estrutura de propriedade na China passou por transformações
de vulto:
20
GABRIELE, Alberto. The role of the State in China`s industrial development. MPRA Paper n. 1451.
Munique. Abril de 2009, p. 15.

237
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Tabela 11 – Estatais vs. privadas na China: número de empresas,


participação da produção industrial e população empregada,
1998-2007 (%)
ESTATAIS E CONGLOMERADOS ESTATAIS EMPRESAS PRIVADAS
Número de Participação Número de Participação
empresas produção População empresas produção População
Ano
(% do total industrial empregada (% do total industrial empregada
nacional) nacional nacional) nacional
1998 39,2 49,6 60,5 6,5 3,1 2,6
1999 37,8 48,9 58,5 9,0 4,5 3,9
2000 32,8 47,3 53,9 13,6 6,1 6,2
2001 27,3 44,4 49,2 21,1 9,2 10,0
2002 17,5 40,8 43,9 27,1 11,7 13,3
2003 12,9 37,5 37,6 34,5 14,7 17,9
2004 10,1 34,8 29,8 43,2 17,4 22,9
2005 10,1 33,3 27,2 45,5 19,0 24,5
2006 8,3 31,2 24,5 49,6 21,2 26,8
2007 6,1 29,5 22,1 52,6 23,2 28,6
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaborado por Alberto Gabriele e Elias Jabbour.

O exposto anteriormente nos dá condição de auferir o nível de transformação


na estrutura de propriedade no país, algo que a tabela 11 corrobora. Interessan-
te notar dois movimentos na tabela acima: o primeiro, marcado pela rápida “de-
sestatização” da cadeia produtiva chinesa; entre 1998 e 2007, o total de empresas
estatais na China caiu 642%, apesar de a queda do número de empregados ter
sido de “apenas” 168%, explicada pelo caráter “intensivo” do trabalho de muitas
empresas estatais, principalmente as localizadas no nordeste do país. O aumento
da população empregada nas empresas privadas, que saltou de 2,6% em 1998 para
28,6% em 2007, coloca a nu o papel central desse tipo de empresa na geração de
empregos num país que necessita criar anualmente cerca de 13 milhões de postos
de trabalho.
Por outro lado, a aceleração da “desestatização” guarda explicação na própria
pressa chinesa em adiantar o processo de admissão à OMC, ocorrida em 2001.
Indo ao encontro de nossa tese de predominância do setor estatal, predomi-
nância essa confirmada a partir da formação de 149 conglomerados estatais, a ta-
bela abaixo demonstra a força do setor, conforme segue:

238
O desenvolvimento e suas faces na China

Tabela 12 – Empresas chinesas no ranking da Fortune 500


Ordem Empresas Classificação no ranking
1 Sinopec 23º
2 State Grid 32º
3 China National Petroleum 39º
Industrial & Commercial Bank
4 119º
of china
5 China Mobile Commnications 202º
6 China Life Insurance 217º
7 Bank of China 255º
8 Hutchison Whampoa 259º
9 China Souther Power Grid 266º
10 China Constrution Bank 277º
11 China Telecomunictions 279º
12 Baosteel Group 296º
13 Sinochem 304º
14 Agricultural Bank of China 377º
15 China Railway Engineering 441º
16 Cofco 463º
17 China First Automotive Works 470º
18 Shangai Automotive 475º
19 China Railway Constrution 485º
20 China State Construction 486º
Fonte: CORRÊA, Domingos S. “Desenvolvimento econômico e estratégias de expansão de empresas
na Ásia”. In: Revista de geografia econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto, pp. 210-219. Núcleo
de Estudos Asiáticos do Departamento de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007.

Alguns detalhes chamam a atenção para a lista acima. O primeiro, com certo
destaque, é o fato de todas essas empresas serem estatais. Talvez por isso essa lista
não tenha obtido no Brasil grande destaque. Não é difícil perceber as razões, pois
no Brasil o debate econômico, pautado pelo grande partido político da imprensa
ultraliberal, é altamente ideologizado. Essa ideologização ganhou terreno na mes-
ma proporção em que os postulados neoliberais careciam de sofisticação e base
empírica e histórica. Esse é um fato a ser abordado neste debate. Por outro lado, essa
tabela coloca a nu a força desses conglomerados recém-criados na China. A força de
empresas siderúrgicas, bancos estatais, empresas de construção e infraestrutura –
além das gigantes petrolíferas – está na vanguarda do processo de desenvolvimento
chinês.

239
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Essa lista nos permite ainda alguns exercícios de futuro: primeiro, são todas
empresas que já enfrentam com êxito a concorrência internacional; segundo, em
sua maioria já contam com grandes somas de investimentos fora da China, aliás,
um fenômeno previsível mas recente; terceiro e último, estão concentradas, em
alguns casos, em setores-chave para a continuidade do crescimento chinês, sobre-
tudo construções, energia e infraestrutura.
Outra forma de medir o peso entre o estatal e o privado encontra-se na fonte
de investimentos. Como já dito, essa taxa na China já alcançou casados 45%, logo
a questão que deve ser respondida gira em torno do papel das diferentes formas de
propriedade. O gráfico abaixo, apesar de seu nível de generalização, municia-nos
para enfrentar essa discussão:

Gráfico 2 – Investimentos em ativos fixos por tipo de empresa,


jan-2006 a out-2009 (% sobre o total dos investimentos
realizados no país)

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%
0
jan/06

abr/06

jul/06

out/06

jan/07

abr/07

jul/07

out/07

jan/08

abr/08

jul/08

out/08

jan/09

abr/09

jul/09

out/09

Privadas Estatais
Outras Estrangeiras
Fontes: Dragonomics

Fonte: Macro China (fonte primária: Dragonomics). Elaborado pelo Conselho Empresarial Brasil
China (www.cebc.org.br).

240
O desenvolvimento e suas faces na China

Escolhemos este gráfico retirado da revista eletrônica Macro China justamente


pelo grau de generalização e pelo período compreendido, que abarca um período
com condições normais de “temperatura e pressão” (fora da influência de crises
externas) e outro com recessão externa, em que o gráfico mostra uma queda dos
investimentos externos e uma subida, quase brusca, dos investimentos estatais e
privados internos.
Por enquanto, porém, nos mantemos diagnosticando um aumento dos in-
vestimentos de tipo estatal relacionado ao pacote de US$ 586 bilhões (sobretudo
em infraestruturas) lançado pelo governo chinês em fins de 2008, no sentido de
aquecer a demanda interna em detrimento de uma demanda externa em queda
e os investimentos privados em recuo (sobretudo o setor imobiliário). No final de
2009, percebe-se um aumento do investimento privado, como resultado – inclusive
– de uma política deliberada e planejada para desaquecer a economia chinesa, que
cresceu acima dos 8% previstos pelo governo. Além disso, do ponto de vista con-
juntural, a grande questão a ser salientada (novamente), e que o gráfico nos expõe,
é a presença de um setor privado em condições de auxiliar o setor estatal na ma-
nutenção de objetivos desenvolvimentistas estratégicos. Eis um ponto interessante,
pois sem um equilíbrio entre o setor estatal e o privado da economia,
dificilmente se logra um desenvolvimento contínuo e estável, sob os
riscos da lógica do stop-and-go. O que significa dizer que o desenvolvimento
não é algo a ser analisado à luz de ideologismos, e sim baseado na realidade concre-
ta e na objetividade histórica.
Analisar a centralidade das empresas de tipo estatal ou coletiva no processo
chinês em detrimento da maior participação das empresas privadas deve ir além de
ideologismos privatistas muito comuns ao mainstream do pensamento econômico
seguido à risca pelos jornalistas e repórteres da “grande imprensa”. Se o normal é
relacionar a eficiência econômica com a propriedade privada, pode ser que o caso
chinês seja no mínimo um grande paradoxo, para não dizer paradigma, das rela-
ções entre eficiência e desenvolvimento.
Analisemos a tabela a seguir:

241
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Tabela 13 – Índices de produtividade e lucratividade entre empresas


estatais e privadas (em 10.000 yuans)
Produtividade do Rendimento por
Tipo de empresa
trabalho trabalhador
Empresas públicas
Empresas estatais 58,3 84,7
Empresas estatais (total) 54,8 84,7
Empresas públicas não estatais (ECPs) 41,2 24,8

Empresas privadas
Empresas privadas (total) 48,1 32,5
Empresas privadas nacionais 41,7 23,7
Empresas de capital estrangeiro 54,2 41,0

Conglomerados estatais
Conglomerados públicos/estatais 68,7 90,8

Empresas de capital misto


Empresas de capital misto 59,6 57,3
Empresas de capital misto sob controle
88,0 99,2
estatal
Empresas de capital misto sob controle
41,6 90,8
privado
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

Uma apreensão mais geral dos dados expostos na tabela acima sugere um
elemento ou, talvez, uma generalização: as empresas estatais concentram a
fina flor de algo intensivo em capital, enquanto as empresas privadas
se encarregam de setores intensivos em mão de obra. Trata-se de uma
abstração com alto grau de correção, na medida em que as estatais estão passando
por um processo de organização em torno de conglomerados, apesar de muitas
delas ainda existirem sob a forma de pequenas e médias indústrias de tipo “Depar-
tamento 1” que ainda não foram fundidas por outras de porte maior. Da mesma
forma, percebe-se que as empresas privadas passaram a ser dominantes em setores
como o têxtil, e outras onde a intensidade em trabalho é a tônica, o que coloca em
evidência a afirmação exposta anteriormente sobre o papel das iniciativas empre-
sariais particulares num país que necessita gerar 13 milhões de empregos por ano.
Outro ponto menos superficial a ser observado é que uma grande transição entre

242
O desenvolvimento e suas faces na China

uma economia de tipo “modelo soviético” para outra baseada em relações de merca-
do está em andamento na China, porém mediada por um grande planejamento de
caráter estratégico e menos micro. Argumentamos (novamente) que, no atual estágio
de desenvolvimento chinês, já pautado por uma sólida condição financeira, a busca
por novas e superiores formas de planejamento passa a ser um imperativo. Assim sendo,
essa transição para um modelo de múltiplas formas de propriedade sob a égide da pro-
priedade pública é uma verdadeira arte contornada por uma ciência: o planejamento.
A formação de conglomerados estatais e a transferência de setores inteiros da
economia para a iniciativa privada em absoluto foram uma obra do mercado, do laissez-
-faire. São escolhas políticas e estratégicas do Estado em consonância tanto com uma
superestrutura voltada para objetivos estratégicos de longo alcance (socialismo) quan-
to a uma base econômica fluida, em rápida transição e transformação qualitativa.

5.1.2.1.3 As estatais na China e o peso dos investimentos em


Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)

A busca da verdadeira essência do equilíbrio econômico sob o “socialismo de


mercado” deve ser realizada na relação entre propriedade estatal e privada. São dois
níveis de historicidade que se cruzam e que, por isso mesmo, exigem um tratamen-
to correto, principalmente dadas as contradições que de tal relação emanam. Para
nós, demonstrar a importância capital da propriedade estatal não deve se resumir
a esse ou aquele dado sobre lucratividade, tamanho e produtividade do trabalho.
Tais dados podem abrir outra margem de análise, com serventia a um ar-
gumento calcado na realidade. Pois bem, uma das formas de demonstrar o nível
dessa relação entre diferentes formas de propriedade (e mesmo duas formações
econômico-sociais contemporâneas, mas não coetâneas) está nas entranhas do de-
senvolvimento da ciência e tecnologia e sua importância para qualquer projeto
nacional digno desse nome21. O próprio futuro da China (e da lenta, gradual e se-
gura mudança de perfil de seu crescimento econômico) depende em grande parte
do futuro do processo de inovação no país. Isso inclui, entre outros fatores, o de-
21
Sobre a crescente e central importância dada para a C&T no processo de Reforma e Abertura
na China, recomendamos a excelente leitura de: OLIVEIRA, Amaury P. “Governando a China: a
quarta geração dirigente assume controle da modernização”. In Revista brasileira de política inter-
nacional. Brasília, vol. 42, n. 002, ju./dez, 2002, pp. 138-160.

243
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

safio do crescente aumento da renda popular e de sua própria posição no mundo.


Em primeiro plano, observemos a evolução recente em proporção à importân-
cia da inovação para o país na tabela abaixo:

Tabela 14 – Índices básicos em ciência e tecnologia na China,


2003-2007

2003 2004 2005 2006 2007


Pessoal engajado em atividades de C&T
328.4 348.1 381.5 413.2 454.4
(10.000 pessoas)
Cientistas e engenheiros 225.5 225.2 256.1 279.8 312.9
Pessoas empregadas em tempo integral
109.48 115.3 136.5 150.2 173.6
(10.000 pessoas)
Fundos para atividades em
3459.1 4328.3 5250.8 6196.7 7695.2
C&T (em 100 milhões de yuans)
Fundos governamentais 839,3 985.5 1213.1 1367.8 1703.6
Autofinanciamento via empresas 2053.5 2771.2 3440.3 4106.9 5189.5
Empréstimos bancários 259.5 265.0 276.8 374.3 384.3
Investimentos em P&D (em 100 milhões
3121.6 4004.4 4836.2 5757.3 7098.9
de yuans)
Pesquisa básica 87,7 117.2 131.2 155.8 174.5
Pesquisa aplicada 311.4 400.5 433.5 489.0 492.9
Desenvolvimento experimental 1140.5 1448.7 1885.5 2358.4 3042.8
Fundos governamentais 460.6 523.6 645.4 742.1 913.5
Autofinanciamento via empresas 925.4 1291.3 1642.5 2073.7 2611.0
Proporção de investimentos x PIB 1.13 1.23 1.34 1.42 1.49
Valor total de exp/imp de produtos de alta
2296 3267 4160 5288 6348
tecnologia (em 100 milhões de yuans)
Exportações 1103 1654 2182 2815 3478
Importações 1193 1613 1977 2473 2870
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

Antes de uma análise fria dos números, é conveniente uma explanação sobre
esta questão que envolve o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Em primei-
ro lugar, a ciência e a técnica não surgem do nada, mas sim de onde se dão con-
dições para tal. Em segundo, relacionando com a categoria de modo de produção,
“não foi a máquina a vapor que inventou o capitalismo, foi o capitalismo que criou
a máquina a vapor”, o que significa dizer que a ciência frutifica em concomitância

244
O desenvolvimento e suas faces na China

com o nível de acumulação de capital na sociedade, daí a ciência e a tecnologia ga-


nharem o status de forças produtivas sob o capitalismo. Enfim, o modo de produção,
o nível de acumulação e a indução para esse processo determinam o papel primário
ou secundário da ciência e tecnologia na reprodução da sociedade22.
É muito importante esse prólogo na medida em que a discussão sobre o tema
no Brasil toma cada vez mais um caráter lúdico, quase ingênuo, em que se con-
funde aumento de bolsas de mestrado e doutorado, mais aportes de capital de de-
terminadas agências de fomento, com o advento de uma política de “ciência e tec-
nologia”. É como se – trabalhando uma analogia histórica – a invenção de Santos
Dumont não fosse um acidente histórico e sim algo plausível de acontecer indepen-
dentemente de condições objetivas. Afinal, não é incomum pérolas do tipo “ciência
é poder”, como se o poder sob o feudalismo não fosse determinado pela quantidade
de terras possuída por alguém ou, mesmo sob o capitalismo, o poder não tivesse
relação direta com o acúmulo de capital. Mais um motivo para colocar a análise do
modo de produção no centro do problema.
O modo de produção capitalista ou mesmo a transição ao comunismo (socia-
lismo) é sinônimo de empresa e de desenvolvimento amplo de suas forças produ-
tivas. A grande empresa é expressão mater do acúmulo de capital, pois o limite do
capital é o próprio capital. E a ciência e a tecnologia tendem a ser algo cada vez
mais fruto do desenvolvimento da empresa, sua causa e consequência, consequ-
ência essa dependente de forma progressiva, da fusão da empresa com o banco23.
22
A relação entre o modo de produção e o progresso da técnica é trabalhada de forma próxima
da perfeição por Armen Mamigonian em: MAMIGONIAN, A. “Tecnologia e desenvolvimento
desigual no centro do sistema capitalista”. In Revista de ciências humanas, n. 2. Florianópolis.
Editora da UFSC, 1982. Mamigonian trabalha sinteticamente as contribuições de Marx, Sweezy,
Schumpeter, Kalecki e Rosa Luxemburgo no sentido de demonstrar o caráter conservador do oli-
gopólio norte-americano em detrimento da corrida empreendida pelo Japão, tornando difíceis
as condições norte-americanas de enfrentar o aparato criado pelo país asiático nessa contenda
interimperialista na década de 1980. Muitas de nossas ideias a respeito – e desenvolvidas neste
trabalho – têm como fonte essa contribuição de Mamigonian.
23
Esse é o “x” da falta de compreensão da historicidade do processo de desenvolvimento tecno-
lógico em nossa época. Trata-se do suprassumo da utilização da categoria de modo de produção
para essa problemática tão carente de análises sérias e atreladas, em muitos casos, a esta ou
aquela política periférica de ação governamental. No Brasil, somente Ignacio Rangel atentou
para esse problema em seu tempo, até hoje longe da compreensão dos que estudam o assunto.
RANGEL, I. “Ciclo, tecnologia e crescimento” (1982). In RANGEL, I. Obras reunidas. Vol. 2. Con-
traponto, RJ, 2005. Esse subitem sobre a questão tecnológica está amplamente baseado em suas
seminais e quase insuperáveis contribuições.

245
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Assim sendo, de forma genérica, a historicidade do processo de desenvolvi-


mento nos aponta o papel de proa do Estado no processo de acumulação, desde a
desapropriação camponesa na Inglaterra até as guerras de pilhagem, sendo que
nestas últimas a presença do Estado a serviço de sua empresa privada é muito
clara, daí a categoria atual de imperialismo apresentada por Hobbes e elaborada
em exaustão por Lênin. Continuando, a acumulação primitiva é o passo inicial à
consequente formação da empresa e grande empresa capitalista que, por si só,
dado seu aparato financeiro, passa ao leme do processo de desenvolvimento e
coloca o Estado a serviço de seus interesses, sobretudo na política e comércio ex-
terno. É o velho revezamento entre Estado e propriedade privada na consecução
de tarefas econômicas.
No desenvolvimento de tipo periférico, o grande desafio do Estado, após ter
“fechado” um ciclo de participação ativa do Estado no processo endógeno de acu-
mulação (pela formação de grandes empresas, em boa parte estatais, de utilidade
pública, e pela formação de um ambiente de reserva de mercado institucionali-
zada para empresas nacionais, dando base à completa transição da pequena pro-
dução de mercadorias ao novo Departamento 1 da economia, ou seja, a indústria
mecânica pesada), passa a ser a capacitação de empresas privadas para uma nova
e mais complexa participação na divisão social do trabalho. Isso se dá inclusive
pela transferência de setores de atividade pública do setor estatal para o privado,
seguida pela quase estatização do comércio exterior pela via da adoção de uma
política cambial que capacite o pleno uso da capacidade produtiva instalada no
chamado período de “substituição de importações”. Assim, chega-se ao (para o
caso dos países periféricos) dilema político da fusão do banco com a in-
dústria ou a adoção de políticas “estabilizadoras” que, no fundo, guardam
intenções, sendo a mais notória o dumping em seu mercado interno em prol da
“modernidade da globalização”.
Fica nesse contexto a seguinte questão: o que tem a ver o desenvolvimento da
técnica e da ciência nesse processo? Qual o limite desse processo no capitalismo e
quais suas possibilidades no socialismo? Que tendência histórica a tabela 14 revela?
O desenvolvimento, a importação, a exportação e a transformação da ciência e
da tecnologia em “forças produtivas autônomas”, no dizer de Ignacio Rangel, guar-
dam ao menos dois processos históricos, a saber:

246
O desenvolvimento e suas faces na China

a) um iniciado com o artesanato e a manufatura até a industrialização


amadurecida;
b) outro iniciado com a irrupção do capitalismo financeiro e do socialismo.

Para bem dizer, a importação de tecnologia, por mais notoriedade que tenha
obtido nos últimos tempos, já existe desde o momento em que o “novo mundo” foi
posto em contato com o “velho mundo” (tal trânsito de tecnologia da metrópole
para a colônia é parte integrante da origem de formações sociais complexas na peri-
feria do capitalismo, como expressão do funcionamento simultâneo de diferentes
formas e modos de produção numa mesma formação social periférica). Nesses dois
processos históricos referidos, diferentes formas de importação de tecnologia ga-
nham corpo; dois níveis qualitativos de importação de tecnologia são sobrepostos,
obedecendo a níveis distintos de desenvolvimento cuja fronteira está, necessaria-
mente, ligada à fusão da indústria com o banco; a uma revolução socialista capaz
de centralizar todos os recursos da nação, ou a um simultâneo processo envolvendo
tanto uma revolução socialista como a fusão do capital bancário com o capital industrial,
como parece ser o caso da China pós-1949 e acelerada no pós-1978.
O processo de substituição de importações engendra importações de tecnolo-
gias e sua respectiva substituição de importação. Isso gera aumento de produtividade
suficiente para a construção, de forma lenta ou rápida, de determinado edifício in-
dustrial, caso, por exemplo, de máquinas e equipamentos que num dado momento
levam à internalização de um determinado centro dinâmico produtivo, como, por
exemplo, o Departamento 1. Nesse momento, o país se capacita a não somente copiar
o criado no estrangeiro, mas passa a uma condição produtiva de acompanhamento
da inovação tecnológica no mundo. Como processo histórico, percebe-se assim a dife-
rença entre um Departamento 1 de tipo artesanal e um Departamento 1 moderno,
capaz de produzir e criar máquinas. Nesse caso, importar “quinquilharia da tecno-
logia” não mais interessa ao desenvolvimento. É o momento em que o processo de
reprodução do sistema depende da fusão de interesses entre banco e indústria, e a
própria tecnologia – para os projetos nacionais autônomos – passa a ser um problema
essencialmente financeiro24 e não mais de pura contabilidade industrial.

24
Conforme: RANGEL, I. “O papel da tecnologia no Brasil” (1982). In RANGEL, I. Obras reunidas.
Vol. 2. Contraponto, RJ, 2005, p. 337.

247
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Quando se trata da transformação da ciência e da tecnologia em “forças pro-


dutivas autônomas”, ou seja, da transformação da arte da técnica em indústria
propriamente dita, como toda indústria deve ser organizada como tal: com exér-
citos muito bem pagos e condicionados a um ambiente de rápida transformação
do processo de desenvolvimento em sua própria realidade e no mundo à sua volta,
a partir de um planejamento estratégico – estatal e privado – como consequência
de uma superestrutura interessada em liquidar seu atraso relativo e absoluto. O
banco cumpre seu papel histórico de suportar esse esforço da empresa, que passa
a ser não mais importadora desta ou daquela novidade no mercado de tecnologia,
por onde circulam as inovações, e sim compradora líquida de pacotes prontos de
novíssima tecnologia. Essa empresa passa a substituir o Estado em matéria de
financiamento de boa parte da pesquisa científica e da compra de pacotes tecno-
lógicos, atingindo assim outro patamar de atuação na sustentação do sistema e do
modo de produção (ou da transição socialista). Eis mais uma diferença entre os dois
processos históricos citados.
O Estado é o planejador em primeira e última instância desse processo ao via-
bilizar um ambiente propício à inovação, com induções em matéria de política ma-
croeconômica (câmbio voltado aos interesses nacionais, juros atraentes ao crédito
e um sistema financeiro desburocratizado e pronto para a sustentação material do
projeto nacional, e não dos interesses do “mercado”). Trata-se de mais um exemplo
da aplicação de novas e superiores formas de planejamento já suscitadas nesse trabalho.
Fora desses parâmetros, não existe política de ciência e tecnologia capaz de deter-
minar ganhos no rendimento do PIB e da produtividade do trabalho. Pode surgir
a inovação, mas sem capacidade de contribuir ao processo de reprodução da eco-
nomia e da sociedade, como no caso brasileiro atual, onde certa “intelectualidade”
dita progressista prefere tergiversar, atribuindo a culpa pela falta de investimentos
em ciência e tecnologia e de ambiente para inovação aos empresários (numa forma
ideologizada, de “esquerda” e pobre, apesar de “politicamente correta”), em vez
de enfrentar a essência da questão: por que a indústria brasileira continua sendo
destruída? Repetindo: fora do âmbito da grande empresa, falar em inovação é puro
exercício de idealismo filosófico.
Por outro lado, intelectuais adeptos da economia natural do socialismo, com
grande apelo na academia e na imprensa dita de esquerda, preferem contrapor o

248
O desenvolvimento e suas faces na China

socialismo ao desenvolvimento do crédito, das finanças, dos bancos e da grande


empresa rural e urbana, sob a justificativa de um “socialismo do século XXI”, tão
pobre e idealista quanto um tal “planejamento indicativo”. Como será que a URSS
financiou os 60 mil tanques que partiram de Stalingrado, Kobruk e Kursk rumo a
Berlim na Segunda Guerra Mundial? Eis uma pergunta com difícil resposta a ser
dada pelos nossos teóricos do “socialismo do século XXI”.
Outro nível de planejamento tem prática na preparação do país para os efeitos
e estímulos dos ciclos de acumulação do centro do sistema capitalista. A questão
reside no fato de a condição periférica de um país como a China demandar formas
de organização ativas aos impulsos ou retrações externas. A capacidade de organi-
zação de respostas ativas aos impulsos externos é uma grande arma característica
da China nesse processo de organização de uma indústria de tecnologia – superada
hoje somente pelos EUA, mas que em 1978 estava muito atrás, por exemplo, do
Brasil. Juntamente com essa capacidade de organização está a transformação do
país em uma potência financeira com estratégia e tática para aproveitar, no mo-
mento certo, a falta de encomendas de determinadas empresas (tipo Siemens) no
próprio centro do sistema para organizar – política e financeiramente – a compra
de ativos e escritórios de P&D de certas empresas de ponta, além, é claro, de ativos
financeiros europeus e norte-americanos25. Eis aí a “questão financeira”, também
nesse aspecto, como determinante cada vez maior da correlação de forças entre
imperialismo e socialismo com projetos nacionais autônomos.
Por fim, uma última consideração envolve diretamente o oligopólio, o capita-
lismo e o socialismo. Existe uma diferença muito grande entre um oligopólio que
controla o mercado, e para o qual o lucro, naturalmente, é seu objetivo-fim, e outro
onde o oligopólio é instrumento do projeto nacional e de uma política de largo
alcance como a China, onde o lucro tem muito mais caracteres políticos do que
financeiros. Num caso, a inovação passa a ser obstruída pelo privilégio e o monopó-
lio sobre a compra e a venda e, no outro, a inovação é imperativo da sobrevivência
do próprio Estado nacional no rol das grandes potências. No caso do capitalismo,
a inovação tende a ser cada vez mais monopólio das pequenas e médias empresas

25
Durante nossa última visita, pudemos ter acesso a informações acerca de uma possível compra
de todo o escritório de P&D da Siemens alemã por parte da China por valores em torno de US$
30 bilhões. Os valores podem parecer exagerados, mas o fato em si não causa grande surpresa.

249
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

(em busca de sua sobrevivência no “salve-se quem puder” das fusões e aquisições),
enquanto no socialismo a busca de inovação é a tônica tanto nos conglomerados
estatais (siderurgias, por exemplo) quanto nas pequenas e médias empresas pri-
vadas em expansão (setor de energia limpa, por exemplo). De forma genérica, o
caráter conservador do oligopólio capitalista dá margem de manobra ao próprio oli-
gopólio de tipo socialista e mesmo em outros projetos nacionais periféricos de tipo
capitalista. Eis outra forma, nada superficial, de responder ao dinamismo chinês e
compará-lo com o dos Estados Unidos26.

aaaaaaaaaaaa

É claro que inúmeras questões muito específicas da área de ciência e tecno-


logia poderiam ser desenvolvidas. Mas o importante, para fins de argumentação,
está no essencial, que pode contemplar o conteúdo da tabela 14 que, para nós, é a
própria essência do problema tanto da hegemonia da propriedade estatal dos meios
de produção na China quanto dos maiores índices de produtividade de trabalho –
deste setor – em comparação ao setor privado. E o essencial está no aumento signi-
ficativo das empresas no processo de P&D no país. Vejamos.
O período compreendido é muito sugestivo, pois nos quatro anos que com-
preendem os saltos em matéria, por exemplo, de pessoal com dedicação exclusiva
às atividades de ciência e tecnologia (C&T), o financiamento estatal e empresarial
e o próprio montante do PIB destinado ao setor tiveram aumentos significativos.
Somente entre 2003 e 2007 o número de pessoas engajadas em atividades de C&T
– bem como o número de engenheiros formados no país – teve aumentos varia-
dos (para cada categoria), entre 45% e 55%, o que só se pode classificar como algo
impressionante, mas que não se encerra em si mesmo e sim em outros fatores que
26
Kalecki, Sweezy e Rosa Luxemburgo apontaram essa tendência comprovada pelo avanço de
“capitalismos” como o brasileiro e o japonês, além do próprio socialismo soviético e chinês e, nos
últimos anos, o vietnamita. Mamigonian desenvolve a análise dessa tendência, evidenciando
empiricamente, conforme nota 131. Essa tendência pode ser verificada in locu em pelo menos
duas ocasiões: em 2004, em visita ao complexo siderúrgico de Yuhetan em Pequim, onde o res-
ponsável por nossa recepção nos informou que nos últimos 10 anos as máquinas haviam sido
substituídas por outras mais modernas por pelo menos três vezes. Na segunda ocasião em que
visitamos a Baosteel (2009), os engenheiros de produção presentes nos confirmaram a troca por
máquinas mais modernas no ano de 2008. No Japão, país de vanguarda em matéria de siderur-
gia, as cadeias produtivas do setor não são substituídas há pelo menos 15 anos.

250
O desenvolvimento e suas faces na China

comentaremos adiante. Outra observação interessante reside no fato de, no período


compreendido, a China ter deixado uma condição “deficitária” em matéria de co-
mércio internacional de “tecnologia” para se tornar “superavitária”, expressando
uma mudança de situação e sinalização de que o país está deixando de ser perifé-
rico. Deixa para trás também uma das características expostas no capítulo 2, que
descreve um país em etapa primária do socialismo (baixo nível tecnológico e não
autonomia tecnológica).
Se em 2003 o país era deficitário em cerca de 10% na compra e na venda de
tecnologias novas, atualmente está superavitário em mais de 20%. Assim, pode-se
vaticinar que a China alcançou um estágio muito próximo da autonomia tecnoló-
gica; isso é resultado tanto de sua Revolução (1949) e Reforma (1978) quanto da
fusão entre os interesses bancários e industriais, ambos sob controle de um Estado
empenhado a dar cabo de objetivos estratégicos de grande monta. Uma observação
é válida: todo esse salto em matéria de C&T, do ponto de vista geopolítico, nos re-
mete à velha questão, colocada por policemakers e acadêmicos norte-americanos e
europeus, de como “situar” a China num sistema internacional pautado por valores
políticos liberais. Mas essa é outra questão.
Antes de analisarmos mais a fundo a tabela 14, seria interessante cruzarmos
seus dados com os da tabela abaixo:

Tabela 15 – Aplicação de recursos em P&D mais participação de gas-


tos governamentais, 2007 (em %)
País Proporção do PIB Participação do governo
Japão 3,44 16
Coreia do Sul 3,21 24
Estados Unidos 2,77 27
Alemanha 2,53 29
China 1,49 25
Brasil 1,09 52
Rússia 1,03 65
Índia (dados de 2006) 0,78 75
Argentina 0,51 67
México 0,37 50
Fonte: OCDE. Elaboração própria.
A tabela acima nos dá uma base mais sólida para discutir o papel crescente

251
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

da empresa no processo de desenvolvimento tecnológico na China em comparação


com outros países, sejam eles em grau de desenvolvimento maior ou menor que o
chinês. De imediato, a tendência apontada por nós nesse subtítulo acerca da rela-
ção entre P&D e a fusão do banco com a indústria é oportuna. Seguindo a lógica
dialética segundo a qual “o que está acima demonstra o caminho para os que estão
abaixo”, podemos tirar como referência principal o Japão, para quem os gastos
governamentais correspondem a somente 16% do total; a Coreia do Sul, cujos da-
dos apontam a mesma tendência com 25% do total sendo feito pelo governo; e os
próprios Estados Unidos, onde o índice padrão está em 29%.
O Brasil encontra-se intermediário, digamos assim. Preso à lógica financista
e anti-industrial desde 1990, com uma taxa de câmbio irracional e uma taxa de
juros sem explicação científica, atualmente o Brasil remete aos bancos 31% de seu
orçamento na forma de pagamento de juros da dívida interna. Isso explica, em
grande medida, os 52% dos gastos em P&D no país serem feitos pelo governo, o
que o coloca em posição melhor que Rússia, Índia e Argentina. Porém, nenhum
desses países (com exceção da Rússia) saiu da Idade Média em 1930 e adentrou
na Idade Contemporânea em 1980, com o final de nosso processo substituidor de
importações (implantação de uma indústria mecânica pesada), momento em que
a fusão entre banco e indústria entra na ordem natural das coisas – processo esse
postergado ano após ano, desde então, com a transformação de D em D’, expressa
na transferência de mais-valia produzida no país para o sistema financeiro. Henry
Kissinger foi bem ilustrativo, em meados da década de 1970, acerca da retomada
dos destinos do Brasil, pautando uma política que o pudesse impedir de se trans-
formar em um Japão do hemisfério sul da América.
Assim, a macroeconomia está para o desenvolvimento econômico e para o
desenvolvimento tecnológico na mesma proporção que a anatomia do homem está
para a compreensão da anatomia do macaco. O resto é uma grande alegoria con-
juntural para os incautos e acadêmicos, segundo os quais a economia não é a po-
lítica feita de formas especiais, isso apesar do ufanismo em torno de uma “política
de C&T” sendo aplicada no país.

aaaaaaaaaaaa

252
O desenvolvimento e suas faces na China

Mas a China ainda está muito abaixo de países como Coreia do Sul, Estados
Unidos, Alemanha e Japão. Apesar disso, a diferença tende a cair rapidamente. Por
exemplo, em 2003 1,13% do PIB foi destinado às atividades correlatas de C&T; em
2010, 2% do PIB. O interessante é que esse aumento sensível num curto prazo de
tempo se dá justamente alguns anos após a China ter completado seu processo de
industrialização com a implantação de uma moderna indústria mecânica pesada.
Esse feito nos fora anunciado em 2004 por um engenheiro empregado na Compa-
nhia Municipal encarregada do planejamento da expansão do metrô de Pequim
para as Olimpíadas de 2008. Segundo ele, “acabou o tempo de copiar o modelo
alemão da Siemens ou o francês da Alston, ou mesmo os da antiga União Soviética.
Chegou o tempo de construir nosso próprio modelo de trem rápido para transporte
urbano”. Se, na China, eles partiram para o financiamento pesado de pesquisas
para trens novos, modernos e competitivos, no Brasil partiu-se para a compra de
trens espanhóis, escadas-rolantes da Coreia do Sul e de trilhos da China. Isso num
país que, em 1975, inaugurou o trem mais moderno do mundo (São Paulo) com
componentes todos nacionais (Mafersa). Uma apostasia evidente e em nome da
“sagrada concorrência” e da estabilidade monetária.
Para um salto dessa monta, seriam necessários aportes financeiros por parte
não somente do Estado, mas também, cada vez mais, das empresas. É nesse ponto
de transição – entre uma forma de inovar pela própria cópia ou transferência de
tecnologia via joint ventures em determinados setores (transportes, por exemplo) e
outra, centrada na empresa – que estava a China de meados de 2000 e o Brasil da
década de 1980. O salto era a necessidade da própria sobrevivência.
Os dados da tabela 14 são interessantes e elucidativos: os fundos para ativida-
des em C&T via Estado aumentaram em pouco mais de 100% entre 2003 e 2007.
Por outro lado, esse tipo de financiamento via empresa alcançou um aumento aci-
ma de 250%, enquanto os empréstimos bancários subiram pouco mais de 50% e os
investimentos em P&D no total nacional, cerca de 230%; no âmbito das empresas, o
salto foi de quase exatos 300%. Em suma: os chineses transitaram de forma rápida
e dinâmica, saindo do centro do gasto governamental para a hegemonia do gasto
empresarial nessa matéria, num processo contemporâneo da formação de 149 con-
glomerados industriais no final da década de 1990, o que significa uma consolida-
ção do próprio núcleo duro do socialismo com características chinesas. Esse salto,

253
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

repetindo mais uma vez, foi o que faltou para o próprio projeto nacional brasileiro
fundado pela Revolução de 1930 e prejudicado pelo imperialismo (Consenso de
Washington), com a eleição de Collor em 1989, derrotando o então candidato da
Frente Brasil Popular, Luiz Inácio Lula da Silva.

aaaaaaaaaaaa

O trabalho de substanciar uma argumentação em torno da centralidade da


propriedade estatal e coletiva dos meios de produção na China não é tarefa das
mais tranquilas. Do ponto de vista puramente ideológico é insustentável, dada a
necessidade de dados empíricos para posterior corroboração. Preferimos que o apelo
ideológico fique por conta dos liberais, dada sua falta de ciência para enfrentar a
realidade. Também se trata de um trabalho nublado por uma conjuntura altamen-
te complicada, onde a ciência deu lugar ao partido político da “grande imprensa”,
munido de jornalistas e “acadêmicos” que mal conhecem a realidade brasileira,
tampouco a chinesa.
Existe ainda um senso comum acerca de uma “restauração capitalista” em curso
no país que se lastreia a partir da grande importância setorial da propriedade priva-
da. Em nenhum momento neste livro nos propomos à contraposição, e sim locali-
zar determinada faixa histórica inerente a qualquer processo de desenvolvimento,
sobretudo periférico. Além disso, as próprias prerrogativas teórico-metodológicas
nas quais nos apoiamos e apontamos no capítulo 2 não nos permitiriam observar
o fenômeno de outra forma.
O importante, assim, é localizar o papel da empresa estatal no país, de-
monstrando o andamento de todo um processo (já ocorrido no sistema capita-
lista) de formação de grandes conglomerados localizados em pontos-chave da
economia chinesa. Vale repetir o argumento já exposto no início do trabalho: a
presença desse controle estatal sobre os meios estratégicos de produção mais a
utilização de mecanismos de planejamento e controle macroeconômico é o que
sustenta o alicerce socialista do país, criando condições para a superação de cri-
ses típicas do modo de produção capitalista, e explicando – em grande medida –
a razão pela qual a China cresce há 32 anos ininterruptos. Tal performance inclu-
sive tem estado diretamente relacionada ao equilíbrio econômico amealhado entre

254
O desenvolvimento e suas faces na China

o papel do planejamento e o do mercado, entre propriedade estatal e privada.


A tabela 13 lança luz sobre nossa proposta, pois demonstra a superioridade da
propriedade estatal no quesito básico da produtividade do trabalho, fundamental
para desvendar os caminhos e descaminhos do socialismo no século passado e
presente. A produtividade maior ou menor do trabalho pode encontrar razão em
uma série de questões, mas a principal delas só pode estar atrelada ao nível de
desenvolvimento tecnológico e ao nível de automação industrial de determinado
setor de atividade. Surge a questão da principalidade do desenvolvimento de uma
ciência e tecnologia pronta para atender a desafios colocados pela história e pela
concorrência internacional.
Nesse caso, não sobram muitas alternativas a não ser historicizar o processo de
produção de C&T e o cada vez maior deslocamento para o âmbito das empresas des-
se processo. Isso tem grande significado na medida em que o assunto C&T se torna
uma grande fonte de idealismos a ser enfrentado com história, teoria e demonstra-
ção empírica, em comparação a diferentes processos (Brasil x China, nesse caso). Se
no capitalismo a empresa privada deve ser o centro do processo, no socialismo de-
vem ser as estatais; caso contrário, a ideia de “restauração” ganha grande guarida.
No caso da C&T e dos investimentos em P&D, mais uma vez os números cor-
roboram nossa argumentação: 30% do total de atividades em P&D são feitas por
centros de pesquisa mantidos pelo Estado. As empresas estatais ou, melhor dizen-
do, os conglomerados estatais são responsáveis por 27% desse tipo de atividade; as
empresas privadas nacionais, somente por 7%, e 36% estão centrados em empre-
sas associadas entre Estado e empresas estrangeiras (joint ventures)27. Conforme
já colocado, são as empresas estatais as primeiras a se beneficiarem da associação
com empresas estrangeiras e as respectivas transferências de tecnologia, dados que
respondem por si.

5.2 INSERÇÃO EXTERNA SOBERANA E


ACUMULAÇÃO DE CAPITAL
O objeto deste livro é relacionar diretamente socialismo, projeto nacional e

27
GABRIELE, Alberto. The role of the State in China`s industrial development. MPRA Paper n. 1451.
Munique. Abril de 2009, p. 12.

255
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

desenvolvimento; buscar uma síntese desses três conceitos que melhor diagnos-
tique do que se trata o chamado “modelo chinês”. O importante também não é
somente relacionar esse trinômio com crescimento acelerado, mas também com
outros caracteres construídos historicamente, pois a afirmação da soberania pode
dar-se não somente com o centro no desenvolvimento, mas também por outros
meios e maneiras.
Entre 1949 e 1978 a China, conforme já colocado, afirmava-se no mundo
com um crescimento médio de 6,5% ao ano. Mas era um momento em que o
desenvolvimento não estava no centro da problemática chinesa, apesar de ser
um imperativo enfrentado pela 1ª geração dirigente. A problemática da luta de
classes foi alçada ao centro desde o enfrentamento na Coreia, que redundou em
uma conjuntura de cerco e isolamento diplomático, econômico e financeiro do
país. Nessa conjuntura de comércio internacional reduzido ao bloco socialista,
não soa estranho afirmar que o comércio internacional, como proporção do PIB,
nunca tenha atingido 10%, chegando ao piso de 5% durante a Revolução Cultural
– o que demonstra a incorreção das afirmações acerca do completo isolamento
chinês, afinal os insumos industriais para o seu projeto megaindustrial da época
davam-se por contatos comerciais, sobretudo com a URSS –, e próximo dos 60%
na atual quadra28. Nesse conjunto histórico, fica óbvio que sua política externa
não estava voltada para a acumulação de capital; afinal, a acumulação primitiva
pelas relações desiguais entre campo e cidade era a forma primária de acumulação de
capital na China pré-1978.
Nos marcos dessa forma de acumulação e das hostilidades internacionais, fi-
cam inviáveis a plena realização e o amadurecimento de uma economia de tipo
monetária. Assim, o comércio exterior chinês era monopolizado por instituições
mediadoras que repassavam ao mercado interno, em concordância com o plane-
jamento centralizado, deduzidos os custos sociais anexos, incluindo aí os próprios
custos com a exportação de equipamentos que, por sua vez, eram “abatidos” com a
exportação de petróleo (a China foi o maior exportador de petróleo do leste asiático
até meados da década de 1980) e de gêneros alimentícios.

28
CUNHA, André M. & ACIOLY, Luciana. “China: Ascensão à condição de potência global – ca-
racterísticas e implicações”. In: CARDOSO JR, José C.; ACIOLY, Luciana; MATIJASCIC, Mico.
Trajetórias recentes de desenvolvimento. Ipea. Brasília-DF, 2009, p. 358.

256
O desenvolvimento e suas faces na China

O esgotamento desse modelo – dado seus próprios limites internos e o crescen-


te dinamismo do capitalismo asiático – demandava novas formas de se enfrentar
a afirmação de sua soberania. Chega-se ao clássico momento em que os fatores
internos de produção passam a ser insuficientes para a manutenção de índices
mínimos de desenvolvimento e a “internacionalização de fatores” passa a entrar
na ordem natural dos acontecimentos. É exatamente nesse momento que, para os
países periféricos, o comércio exterior transforma-se em variável estraté-
gica. Coincidentemente, é nesse interregno com novas formas mais racionais de
acumulação que a questão do desenvolvimento (em detrimento da luta de classes
contínua) passou a ser – para os chineses – “a mãe de todas as batalhas” e que a
plena utilização de seus benefícios passou, necessariamente, pelo reordenamento
das próprias relações internacionais do país.
Dialeticamente, dada a dimensão da China, um futuro marcado por saltos
qualitativos na relação entre países deixaria de ser uma expressão de vontade
ideológica para ser cada vez mais dependente do sucesso do projeto desenvolvi-
mentista chinês: a solução da questão nacional chinesa seria a senha para a solução de
diferentes questões nacionais pela periferia do sistema afora. A solução desse problema
estratégico da humanidade voltava ao seu curso natural. O que poderia parecer
um recuo de tipo “revisionista” ou parte da “restauração capitalista” tornou-se
condição objetiva de transformações estratégicas de vulto pelo caminho do co-
mércio internacional.

5.2.1 A geopolítica da plena inserção

É temerário atribuir somente a inflexões datadas de 1978 a intenção chinesa


de se “abrir ao mundo” e aproveitar essa abertura para atingir seus objetivos. Foi
Mao Tsetung, e não Deng Xiaoping, o primeiro a intentar esse objetivo com o aceno
à retomada de relações com os Estados Unidos na esteira da “diplomacia do ping-
-pong”, iniciada em 1971, que culminou com a visita de Richard Nixon ao país no
ano seguinte. A nosso ver, foi a maior jogada geopolítica de Mao Tsetung antes de
sua morte. Algo que seria nodal ao próprio desenvolvimento ulterior do país a par-
tir da abertura do mercado norte-americano aos produtos chineses.
No entanto, essa proximidade com os Estados Unidos e a dependência mútua

257
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

atualmente verificada não são sinônimos de “inserção chinesa à luz dos esquemas
de poder norte-americano na Ásia e no mundo”. Os movimentos imediatos podem
muito bem nublar qualquer análise de longo prazo.

aaaaaaaaaaaa

Tendo em vista o comércio internacional como a variável estratégica do desen-


volvimento chinês, fica uma – um tanto quanto óbvia – observação acerca da ne-
cessidade de criação de um ambiente internacional favorável ao desenvolvimento.
Por exemplo, a Guerra Fria foi uma grande oportunidade de desenvolvimento para
países como o Brasil deixarem para trás o atraso absoluto. Esse movimento pode
ser notado no imediato rompimento com uma determinada órbita em favor de ou-
tra, por exemplo, na troca da hegemonia inglesa pela hegemonia norte-americana
encampada pelo Brasil na década de 1930, fazendo fluir ao nosso território maciças
transferências de capital sob a forma da própria Companhia Siderúrgica Nacional
e da indústria automobilística na década de 1950. A política de contenção à URSS
e as próprias necessidades de reprodução do capital norte-americano fizeram sua
parte no desenvolvimento brasileiro (e da Ásia do leste). Nesse sentido, uma exata
leitura da correlação de forças no mundo tem importância para qualquer projeto
modernizador e tardio.
Assim, podemos colocar que a China se beneficiou – inicialmente – de dois
movimentos de caráter internacional, sendo que o primeiro tinha direta relação
com a estratégia de contenção à URSS pelos Estados Unidos e o segundo mais dire-
tamente ligado às pressões norte-americanas pela revisão da taxa de câmbio japo-
nesa, expressas nos Acordos de Plaza em 1985. A chamada hendaka e a consequente
rearrumação de cadeias produtivas por parte de Taiwan e Japão (além dos EUA) na
Ásia do leste beneficiaram sobremaneira o projeto industrial chinês. Vale notar que
essa estratégia de contenção econômica japonesa por parte dos EUA é parte de um
todo que envolve a própria recuperação de espaços perdidos pelo imperialismo, seja
para o Japão, para a Alemanha e para a própria URSS. Trata-se da tentativa agressi-
va da reversão do quadro pintado na década de 1970 diante da humilhante derrota
militar no Vietnã e da recuperação econômica do Japão e da Alemanha.
A princípio, trata-se de dois movimentos que não se excluem; são concomi-

258
O desenvolvimento e suas faces na China

tantes, tendo epílogo somente no início da década de 1990, com o fim da União
Soviética e a campanha norte-americana contra a candidatura chinesa aos Jogos
Olímpicos de 2000. Os Estados Unidos apresentavam-se como o “caminho natural”
para as ambições estratégicas chinesas, tanto pela capacidade de isolamento do ini-
migo soviético muito mais próximo espacialmente como pela concentração – nos
EUA – do que de mais avançado existia em matéria de mercado para seus produtos,
com tecnologias novas em matéria de capacidade produtiva e de técnicas modernas
de administração. Além, obviamente, do acesso a créditos internacionais ultrane-
cessários ao projeto de modernização do país.
O chamado “primeiro movimento” pode ser dividido em três etapas. A pri-
meira, a partir do já citado encontro de Mao com Nixon em 1972, seguido do rea-
tamento de relações comerciais; a segunda, com o reatamento de relações diplo-
máticas plenas em 1979, e a terceira, com Bill Clinton, quando a China obteve o
tratamento de “nação mais favorecida” comercialmente.
Nessa cadeia de acontecimentos, vale expor que já em 1979 a China se tornara
o maior exportador de têxteis para os EUA, mesmo fora do Gatt; além disso, a en-
comenda de três Jumbos 747, mais o envio de centenas de estudantes chineses aos
Estados Unidos, denunciavam a verdadeira feição da inserção chinesa no exterior
pautada por meios e maneiras de absorver tecnologia ocidental. Acerca dos citados
créditos externos, a reaproximação com os EUA logrou à China acesso a emprésti-
mos internacionais em condições altamente favoráveis. Por exemplo, com o Japão,
obtido em 1979 com juros de 7,25% ao ano a serem pagos em cinco anos; outros US$
30 bilhões de bancos de exportação-importação avalizados por governos ocidentais;
e mais US$ 18 bilhões provenientes de 14 bancos de variadas nacionalidades29. Do
ponto de vista da grandeza, a extensão de seu mercado passou rapidamente a signi-
ficar um grande poder de barganha ante seus objetivos de largo alcance.
A China estava prestes a aproveitar a oportunidade não oferecida a Lênin em
seu tempo. Porém, para ambos foi reservada a razão pela visão larga de política,
economia, transição e socialismo.
Já o “segundo movimento” tem relação direta e acelerada com a hendaka japo-
nesa, que colocou a China e a conquista de seu mercado no centro da concorrência

29
JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas e crescimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006,
p. 53.

259
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

oligopólica mundial, beneficiando o país com a intensa transferência de capitais


para seu território. Nesse processo, também se acelera sua conexão financeira com
o leste asiático, sobretudo Hong Kong, quando se fecham as conexões da China con-
tinental com os chineses de ultramar: de um lado, mão de obra qualificada, território,
incentivos fiscais e disposição ao desenvolvimento e, do outro, capital abundante e
indústrias em deslocamento. Oportuno dizer que essa estratégia de indigenização
de capital e tecnologia externos passou, a partir de 1993 – quando a China passou
a ser importadora de petróleo –, pela adição da busca de suprimentos em matérias-
-primas, encetando mais um problema cuja solução só poderia se encontrar nos
marcos da manutenção de grandes reservas cambiais e um apurado planejamento
do comércio exterior, como observaremos mais adiante.
Uma geopolítica de plena e soberana inserção, cujos objetivos econômicos não
se encerram por si só, demandava novos reordenamentos territoriais chineses, ca-
pazes de viabilizar também a formação de uma zona de convergência econômica
entre a China e seus vizinhos, sobretudo Taiwan e Hong Kong. A correção de toda
uma política de abertura só teria consequência prática na medida em que fosse
auxiliar na criação de condições objetivas para a reunificação do país segundo a
fórmula “um país, dois sistemas”.

5.2.1.1 A dinâmica territorial da “abertura ao exterior”

Se compararmos o verdadeiro desastre econômico, político e social, que carac-


terizou a abertura econômica de países como Brasil e Argentina com a abertura
executada pela China no início dos anos 1980, percebemos que o caso chinês foi
uma das maiores obras de planejamento – não somente territorial, mas também
político e geopolítico – da segunda metade do século XX, algo somente comparado
com os primeiros planos quinquenais soviéticos.
Tudo muito gradual, milimetrado, com objetivos estratégicos a serem alcança-
dos em décadas e séculos. Um exemplo reside na lógica de abertura, primeiro em
pontos estratégicos voltados para o Pacífico, como porta para o mercado da América
Norte. Além disso, algo que compatibilizasse com o objetivo proclamado a 1° de
outubro de 1949 por Mao Tsetung, resumido na tarefa primária de reunificação do
país. Outro princípio também utilizado foi o de permissão para o enriquecimento,
primeiro, de algumas regiões de forma que, em momento histórico apropriado,

260
O desenvolvimento e suas faces na China

outras regiões também se privilegiassem do processo. Tal princípio se transformou


numa característica interessante do “modelo chinês”. Uma expressão concreta des-
sa política é visível nos diferentes momentos em que diferentes cidades e regiões
da China se transformaram em Zona Econômica Especial (ZEE), além da própria
localização geográfica das mesmas.
A experiência de implantação das ZEEs, pela China, está inserida em outros
modelos correlatos de sucesso, sobretudo a Cidade-Estado de Cingapura e as Zonas
de Processamento de Exportação (ZPEs) coreanas. É sugestivo o nível de relações
implicadas na instalação das primeiras e experimentais ZEEs. Por exemplo, as
ZEEs de Shenzen e Zhuhai estão em “íntima” proximidade de Hong Kong e Ma-
cau, respectivamente30. Já a ZEE de Xianmen está “de frente” para Taiwan. Posição
estratégica também foi reservada para a ZEE situada na ilha de Hainan, direciona-
da às comunidades chinesas do sudeste asiático.
Em 1984, outras 14 cidades litorâneas foram abertas ao status de ZEE. Em 1987,
já nos marcos do objetivo estratégico de construir uma “economia de mercado cen-
tralmente planificada”, todo o litoral chinês tornou-se uma grande ZEE pronta para
aproveitar a oportunidade aberta pela acelerada concorrência oligopólica, pela hendaka
japonesa e pelo crescente fluxo de capitais chineses ultramarinos. A União Soviética
tragicamente chegou ao fim em 1991, e em 1992 Deng Xiaoping manobra com grande
sucesso para o aprofundamento das reformas e da possível iminente invasão de novos
capitais à antiga URSS em detrimento da China: todas as capitais de províncias tam-
bém se tornaram ZEEs, além de 52 cidades de fronteira, sobretudo com a Rússia, num
dispositivo pronto para indigenizar as tecnologias em variados setores em posse do
país vizinho, entre elas as relacionadas com as indústrias espacial e petrolífera. Além
disso, uma grande porta de entrada à Ásia soviética e à Europa estava sendo aberta,

30
Estivemos em Shenzen em janeiro de 2007 e em setembro de 2009. Se a cidade-epicentro da
Revolução Russa levou o nome de Lênin, se a cidade-símbolo da resistência vietnamita foi re-
batizada com o nome do grande líder revolucionário, Ho Chi Minh, não seria nenhum exagero
batizar Shenzen como a “Cidade de Deng Xiaoping”. Expressão disso é o fato de ser Shenzen,
até o ano de 1982, uma vila de apenas 300 mil habitantes, e atualmente com cerca de 8 milhões,
e que, a partir de então, transformou-se numa das grandes metrópoles asiáticas, onde se en-
contra um terço das companhias estrangeiras na China e onde se concentram 9% da atividade
econômica do país. Seu PIB atualmente é de US$ 80 bilhões, com crescimento médio nos últi-
mos 25 anos de 28% ao ano. Conseguiu, em 2005, praticamente igualar o volume de comércio
exterior de um país com as dimensões do Brasil: o valor arrecadado de exportações foi de US$
127 bilhões e suas importações alcançaram a cifra de US$ 96 bilhões.

261
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

formando condições objetivas para uma Rota da Seda versão século XXI.
Na China, além das províncias e das regiões autônomas, existem as chamadas
municipalidades diretamente subordinadas ao poder central. São beneficiárias de
políticas e repasses orçamentários diretamente elaborados e executados por Pe-
quim. Entre 1949 e 1992, existiam três destas municipalidades: Pequim, Xangai
e Tianjin. Desde 1993, Chongqing – situada no meio oeste chinês, encravada na
província de Sichuan, com 30 milhões de habitantes, com grandes reservas de gás
natural, uma poderosa indústria química e um território maior que o da Bélgi-
ca – passou a desfrutar do mesmo status das três cidades citadas acima. Vejamos
no mapa abaixo a localização estratégica de Chongqing em relação à província de
Guangdong – berço das primeiras experiências de ZEEs.

Mapa 3 – Localização de Chongqing em relação a Guangdong

COREIA DO NORTE

Pequim
Huangcun Bahai

Mar
Amarelo
C H I N A
CHONGQING Xangai
SICHUAN
Chengdu Shuangxi
Chongqing

Taipei
GUANGDONG TAIWAN
MIANMAR Guangzhou Shenzhen
Hong Kong
VIETNÃ
LAOS Mar do Sul da China
TAILÂNDIA 750 km

Fonte: The Economist.

É impossível não imaginar que a transformação de Chongqing em municipa-

262
O desenvolvimento e suas faces na China

lidade diretamente subordinada ao governo central não tenha relação alguma com
uma futura política agressiva de inserção do oeste chinês no território econômico
da nação. O mapa 5 demonstra isso. Sua localização, necessariamente, nos remete
ao papel cumprido por Chicago na expansão ao oeste dos Estados Unidos na segun-
da metade do século XIX31. Nessa perspectiva, na primavera de 1999, é lançado pelo
então presidente chinês Jiang Zemin o Programa de Desenvolvimento do Oeste.

aaaaaaaaaaaa

Desde 1979 até os dias de hoje, com esse programa de desenvolvimento do


ocidente chinês em plena execução, a China saiu de um patamar em que sua par-
ticipação no comércio internacional era de 1,02% em 1979, para 6,9% em 2008. Se
no âmbito dos fluxos dos IEDs o país em 1990 respondia, como destino, somente
por 7,2%, no ano 2000 já era o destino de aproximadamente 25% dessa modalidade
de investimento. Não se tratava mais de uma simples extensão do território econô-
mico norte-americano, como muitos nos querem fazer acreditar, para se tornar o
alvo número um da política externa do imperialismo, que tenta reeditar, contra a
China, as pressões que redundaram nos Acordos de Plaza de 1985 sobre o Japão. A
China não é um Estado sob ocupação estrangeira como o Japão, nem um “semies-
tado nacional” como a Coreia. É nesse contexto internacional que se deve analisar
o atual processo de unificação do território econômico chinês, que desembocará no
centenário da República Popular sob os auspícios de uma economia continental
muito mais poderosa que a dos Estados Unidos.

5.2.1.1.1 A economia continental chinesa no início do presente


século

Acerca do processo territorial chinês, algumas elucubrações podem ser


trabalhadas. A primeira, muito recorrente neste livro, trata do poderio finan-
ceiro chinês como grande lastro para as transformações qualitativas neste
início de século. O próprio desenrolar da crise financeira responde e a crise de

31
Trabalhamos intensamente essa questão do desenvolvimento ocidental chinês em nossa dis-
sertação de mestrado. Maiores detalhamentos em: JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas e cres-
cimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006.

263
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

instituições formadas no âmbito de Bretton Woods demonstra isso.


Por outro lado, a expressão territorial do soerguimento chinês prestes a trans-
formar em realidade econômica o sonho daqueles que, desde 1839, foram ao com-
bate – em nome de uma nação milenar e que no início do século XIX estava à fren-
te, sob todos os aspectos, de todo o conjunto europeu – tem um fundo e proporções
ainda a serem analisados, que darão contornos ao século XXI.
Fruto de uma inserção externa voltada para a acumulação de capital (afinal
o poder se concentra com posse de capital), o projeto chinês depende, em grande
medida, da capacidade de seus líderes de enfrentar um emaranhado de contra-
dições contemporâneas. Entre tais contradições, a necessidade de suprimento de
matérias-primas em um mundo onde as grandes rotas do comércio internacional
estão guardadas por bases militares norte-americanas, da mesma forma que a ar-
mada inglesa dominava os mares e os entornos possíveis das fronteiras de desen-
volvimento dos EUA na segunda metade do século XIX. Porém, historicizando, o
triunfo do capitalismo como modo de produção internacional também é a história
do impacto da formação de um território com saída para o Atlântico e o Pacífico, de
um grande reservatório de terras férteis e de 92% de todos os minérios necessários
para um desenvolvimento autárquico em caso de cerco militar. Nesse território da
América do Norte, onde o feudalismo e suas relações não plantaram raízes, a em-
presa capitalista moderna surgiu como causa e consequência de suas conexões fi-
nanceiras e bancárias. Enfim, a história moderna também é a história da formação
da economia continental norte-americana e das instituições por ela consagradas.
Muitas questões devem ser respondidas pelo analista ocupado em antecipar
tendências para o século XXI. Nossa primeira observação está calcada no papel
do poderio financeiro chinês nas transformações de fundo na estrutura de poder
mundial. A segunda passa necessariamente pela análise dos impactos de um futu-
ro onde a economia continental chinesa será uma grande e transformadora reali-
dade. Analogias históricas são muito bem-vindas, mas somente com rigor científi-
co. Apontamos esse processo como o embrião da transição capitalismo-socialismo
em âmbito mundial, na mesma visão marxista de uma transição internacional
pela via gravitacional, com o mundo girando em torno de um núcleo duro socialista
na Inglaterra, França e Alemanha. O atual e sensível poderio gravitacional chinês
nos impulsiona na direção dessa síntese.

264
O desenvolvimento e suas faces na China

Esse processo depende em grande medida da capacidade do governo chinês de


tocar adiante esse projeto, o que nos faz lembrar a falta de capacidade da governan-
ça soviética de enfrentar esse desafio. Por outro lado, os Estados Unidos substituí-
ram uma Inglaterra decadente que teve seu poder esfarelado na crise de 1929.
Os Estados Unidos de hoje não podem, porém, ser considerados na mesma
proporção das transições anteriores, quando países “caíram de maduro” diante dos
acontecimentos. Uma China unificada economicamente terá, no poderio militar
norte-americano, um grande contraponto. Daí essa contenda de dimensões estraté-
gicas e a busca, como solução, da via do comércio internacional, pelos chineses.

5.2.2 Os Investimentos Estrangeiros Diretos (IEDs) e sua parte


no processo

A acumulação de capital e a sua viabilização estão diretamente relacionadas


com a própria viabilização de um projeto nacional. Capital é poder. O desafio é com-
preender, num mundo disposto por uma hipertrofia do sistema financeiro, qual a
forma mais eficiente de relacionar o objetivo mater de consecução de um projeto
nacional com o processo de acumulação nacional de capital. Analisar as formas de
IEDs é parte interessante nesse processo.

5.2.2.1 A estratégia macroeconômica

Já abordamos neste livro o papel central do planejamento e do câmbio como


mediadores das relações externas de produção. Evidências históricas demonstram
que, sem um câmbio ajustado às necessidades nacionais e sociais, torna-se difícil
a viabilização de qualquer projeto nacional. O câmbio ajustado aos interesses na-
cionais significa possibilidades – precedidas de uma estratégia de inserção – para
o acúmulo de capital que, por sua vez, ao mesmo tempo em que blinda deter-
minado país de choques externos, possibilita o manejo de políticas econômicas
atraentes ao crédito e ao consumo, também baseadas em uma política fiscal in-
dustrializante. Como resultado desse processo circular, a estabilidade monetária
advém do crescimento econômico, e não o contrário, conforme certos cânones.
O ordenamento territorial do processo já demonstrava a principal parte da es-
tratégia de acúmulo de capital pela China, voltada à promoção de suas exportações,

265
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

como forma de financiar importações imprescindíveis ao seu projeto de moder-


nização. O segundo passo seria, além do ordenamento institucional em torno de
vantagens capazes de atrair empresas estrangeiras e o capital chinês ultramarino
com vistas ao adensamento produtivo do país, aproveitar a oportunidade históri-
ca de seguir o modelo exportador de seus vizinhos asiáticos. O terceiro incluía a
integração de “praças financeiras internacionalizadas” ao complexo asiático, a ser
centrado na China, em formação32. Para isso, conforme já dito, a hendaka japonesa
contribuiu sobremaneira.
Se na época histórica em que o socialismo chinês e internacional vivia em
permanente estado de exceção o comércio internacional era monopolizado por tra-
dings e outras formas periféricas à economia monetária, em condições normais de
temperatura e pressão, a economia monetária deveria passar a cumprir seu papel
no âmbito do socialismo. Assim, as formas primitivas de planificação do comércio
exterior deveriam ser substituídas por “institucionalidades financeiras” mais con-
vencionais. É nesse momento que o câmbio passa a ser instrumento principal para
acúmulo de forças e de capital no projeto chinês. Pode-se afirmar que a manipu-
lação cambial tem sido a principal forma de captação de poder, pela China, tanto
regional quanto internacional.
Desde o início das reformas, a China tendeu a desvalorizar sua moeda como for-
ma de dar ímpeto a sua estratégia mercantilista. As tabelas abaixo demonstram o re-
sultado dessa estratégia, no que tange ao acúmulo de reservas em moeda estrangeira:

Tabela 16 – Reservas internacionais da China, 1980-1990


(em bilhões de US$)
Ano 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990
Valor 2,5 5,1 11,3 15,0 17,4 12,7 11,5 16,3 18,5 18,0 29,6
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/Reserves.htm). Elaboração própria.

Tabela 17 – Reservas internacionais da China, 1991-2001


(em bilhões de US$)
Ano 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
Valor 43,7 20,6 22,4 52,9 75,4 107 142,8 149,2 146,2 165,6 212,2
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/Reserves.htm). Elaboração própria.

32
BELLUZZO, Luiz G. “Prefácio”. In JABBOUR, Elias: China: Infraestruturas e crescimento econômi-
co. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006.

266
O desenvolvimento e suas faces na China

Tabela 18 – Reservas internacionais da China, 2002-mar/2010


(em bilhões de US$)
Ano 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Mar/2010
Valor 286,4 403,3 609,9 818,9 1.066,3 1.528.2 1.946,0 2.399,2 2.447,1
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/Reserves.htm). Elaboração própria.

Essa estratégia de grande acúmulo de moeda estrangeira foi a principal causa


de o país ter resistido às duas últimas crises financeiras. Por outro lado, seu poder
se projetou no mundo a partir dessa política, sobretudo pela planificação de supe-
rávits com o centro do sistema capitalista e déficits com a periferia e seus vizinhos.
A competitividade de seus produtos em âmbito mundial produziu relações de coo-
peração/competição com seus vizinhos asiáticos: ao mesmo tempo em que a China
suplantou seus vizinhos em mercados como o norte-americano e o europeu, ela se
transformou também em mercado potencial a ser abastecido por esses mesmos vi-
zinhos, pois na mesma medida em que ela passou a ser o maior importador líquido
dos EUA (2002-2003), sua autonomia monetária propiciadora de crescimento eco-
nômico a transformou em grande fonte receptora de exportações de seus vizinhos,
conforme gráfico abaixo:

Gráfico 3 – Balança comercial chinesa com Leste Asiático e Japão

250000

200000

150000 Importações
US$ Milhões

Exportações
100000
Saldo

50000

-50000
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003

Fonte: MEDEIROS, Carlos A. de. “A China como duplo polo na economia mundial e a recentraliza-
ção asiática”. In: Revista de economia política, vol 26, n. 3.

267
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Esse exemplo da relação chinesa com os Estados Unidos, estendida a seus vizi-
nhos, serve como amostra da capacidade da manipulação do câmbio como variável
estratégica e da capacidade de transformá-la em dividendos políticos. Entre esses di-
videndos, os angariados com a política responsável dos dirigentes chineses em não
desvalorizar sua moeda em meio aos vendavais da crise financeira asiática em 1997, o
que poderia gerar um novo processo de tipo “bola de neve” em torno de desvaloriza-
ções competitivas. Em vez disso, o governo chinês, naquele momento, deu preferência
à alternativa da via do estímulo de gastos públicos em infraestrutura como forma de
adensar seu mercado interno. Enfim, ao mesmo tempo em que mostraram respon-
sabilidade ao seu entorno, os chineses combateram a possibilidade de crise interna,
mas não com políticas de contenção ao consumo, tão caras ao Brasil e outros seguido-
res do Consenso de Washington. Ao contrário: a expansão de seu mercado doméstico
passou a ser o centro da solução de seu problema. Somente com uma política cambial
planejada é que o país poderia girar o compasso de seu processo desenvolvimentista
do exterior para o interior, afinal sem reservas cambiais dificilmente qualquer país do
mundo tem condições de sustentar uma taxa de juros atraente ao crédito e o consu-
mo. Suas reservas internacionais possibilitaram esse giro, conforme os dois gráficos
abaixo demonstram, comprovando o quão correta é a lógica da estabilidade monetá-
ria como consequência e não causa do desenvolvimento. Tal estabilidade monetária,
diga-se de passagem, resulta de uma política cambial justa.

Gráfico 4 – Resultado em conta corrente na China, 1990-1998


(em % do PIB)

12,0
10,0
8,0
6,0
4,0
2,0
0,0
-2,0 1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001 2004 2007

-4,0
-6,0

Fonte: International Monetary Fund Database. Elaborado por Luciana Acioly e André Cunha.

268
O desenvolvimento e suas faces na China

Gráfico 5 – Dívida externa líquida da China, 1990-1998 (em % das


exportações)
100

50

0
1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008
-50

-100

-150

Fonte: International Monetary Fund Database. Elaborado por Luciana Acioly e André Cunha.

Relacionado a um processo em andamento, esse aumento do poderio regional


e internacional e a grande margem de manobra das políticas econômicas internas
e indutoras ao desenvolvimento nos levam a refletir de forma irresistível sobre o
Brasil e seu “entorno”. Pensemos nas possibilidades abertas ao desenvolvimento
contínuo de países vizinhos como Paraguai e Bolívia, atrelados a uma opção em
matéria de política monetária condizente com a grandeza e os desafios impostos ao
Brasil. O exemplo chinês, ao menos nessa matéria, deveria servir de reflexão sobre
qual país queremos e sobre quais bases deve ocorrer o processo de integração sul-
-americana e latino-americana.

5.2.2.1.1 As duas faces da mesma moeda: o dólar e o yuan

Sob o risco de uma grosseira ingenuidade, não poderíamos esperar que políti-
cas baseadas em manipulação cambial como forma de diminuir as assimetrias en-
tre “pobres” e “ricos” no mundo fossem recebidas com naturalidade por governos e
policemakers de países como os Estados Unidos. A lembrança de Alemanha, Japão e
Coreia do Sul colocando sob pressão a competitividade econômica norte-americana
ainda é muito recente na memória. Por outro lado, em momentos de tensões cau-
sadas por crises financeiras, é complicado definir o papel que a integração – da

269
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

economia norte-americana com países como a China – cumpre para o controle da


inflação doméstica dos EUA e, consequentemente, da maior ou menor capacidade
de consumo de sua população.
É curioso notar que o próprio conceito de democracia nos Estados Unidos de
hoje tem cada vez menos a ver com a participação popular nos assuntos do Estado
(assuntos dominados pelos oligopólios da indústria armamentista e da petrolífera).
A democracia norte-americana tem relação direta com a capacidade de consumo de
seu povo. Para a satisfação dessa demanda interna gigantesca é que se busca des-
de guerras de pilhagem em nome da “democracia” até o deslocamento de cadeias
produtivas inteiras para regiões de menores custos de produção, num movimento
acelerado após a Segunda Guerra Mundial. A irracionalidade consumista do sis-
tema é irmã gêmea da estupidez por trás da divulgação de bodes expiatórios para
justificar os problemas dos EUA.
Outro ponto interessante: pouco se percebe que mais de 40% das exportações
chinesas aos EUA são processadas por empresas norte-americanas em território
chinês, afora a possibilidade de transferência de lucros da China para os EUA des-
sas mesmas empresas. Não se coloca em questão, por exemplo, o papel central do
pacote de estímulo de US$ 586 bilhões executado pelos chineses como forma de
amenizar os efeitos da presente crise financeira, entre os quais a própria volta ao
normal do preço das commodities (o que beneficia muito os países periféricos) e seus
efeitos sobre a economia de países como a Coreia do Sul, conforme atesta passagem
abaixo colocada pelo professor Luiz G. Belluzzo no jornal Valor econômico33:

A partir do segundo trimestre de 2009, o comércio mundial começou a emergir


(+ 0,5%) do mergulho profundo em que se lançou entre o 4º trimestre de 2008
(-7,8%) e o 1º trimestre de 2009 (-10,7%). Essa modesta estabilização do comércio
mundial foi promovida, sobretudo, pelas importações dos países asiáticos que
cresceram 7,2% no período enquanto as importações dos países desenvolvidos
continuaram a se contrair.

Belluzzo faz uma genial observação: “o yuan desvalorizado é a outra face da supre-
macia do dólar”34. O caso da integração econômica, e inclusive macroeconômica, en-
33
BELLUZZO, Luiz G. “A China e a resistência cambial”. Valor econômico, 07-04-2010. Sobre essa
problemática cambial chinesa, o professor Belluzzo já escreveu diversos artigos muito interes-
santes e elucidativos.
34
_________________. “Nos limites da Chimérica”. Carta capital nº 573. São Paulo, SP, 25-11-
2009, pp. 62-63.

270
O desenvolvimento e suas faces na China

tre Estados Unidos e China é um desses em que a história acaba por demonstrar a
própria incapacidade de uma ou outra nação – ou mesmo de um modo de produção
em relação a outro – levar às últimas consequências essa integração. Os limites do
escravismo romano ficaram mais expostos na proporção em que aumentava a in-
tensidade comercial com tribos germânicas; o capitalismo de tipo inglês sucumbiu
diante de sua incapacidade de levar adiante formas diferenciadas de exportações de
capital, insistindo em não acompanhar as tendências do capitalismo de tipo ame-
ricano (demonstradas no início do século XX por Lênin em Capitalismo e agricultura
nos Estados Unidos da América), e acreditando na postergação de formas radicais de
relações centro x periferia.
Já os norte-americanos perceberam que, quanto à periferia pós-Segunda Guer-
ra Mundial, o próprio desenvolvimento dela dependia de graus maiores de “coe-
ficientes de abertura” (a reconstrução do pós-guerra foi um dos estopins daquilo
que muitos acadêmicos classificaram como Revolução Técnico-Científica ou, para
nós, III Revolução Industrial). É claro que, nos marcos deste avanço civilizacional, a
abertura planificada abria possibilidades enormes para o desenvolvimento econômi-
co, mesmo para países com grandes constelações de recursos como URSS, Estados
Unidos, China e o próprio Brasil35. Por outro lado, concomitante com a aparição de
projetos nacionais autônomos nos dois lados da Cortina de Ferro, essa tendência
à externalidade ganhou corpo e se transformou no próprio imperativo do equilíbrio
macroeconômico do capitalismo norte-americano, de uma democracia cada vez me-
nos baseada na subjetividade das pequenas propriedades das 13 colônias e mais na
própria capacidade de endividamento das famílias. Os Estados Unidos utilizaram
ao máximo essa perspectiva de alargamento de fronteira do próprio capitalismo,
valendo-se inclusive da imposição do dólar como reserva internacional em detri-
mento do ouro, num grande golpe contra o sistema internacional e a própria razão.
Ações unilaterais desse tipo, como lastrear a própria moeda como reserva in-
ternacional (em detrimento de idealismos economicistas), foram fatores de proa
para a emersão de algo que poderia estar naufragando diante da força econômica
japonesa, alemã e da própria URSS. A elevação de suas taxas de juros na década de

35
RANGEL, I. “A Polônia e o ciclo longo”. S/L, S/D. Artigo especial para Encontros com a civiliza-
ção brasileira. Trata-se de um texto praticamente desconhecido de Rangel, não estando sequer
incluído em suas Obras reunidas. Essencial para os interessados em analisar diferentes processos
históricos e o papel do comércio internacional na transição capitalismo-socialismo.

271
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

1970 anunciou – para os mais inteligentes – os estertores do saqueio universal por


detrás da “Nova Ordem Mundial” na década de 1990 e, para alguns mais eufóricos,
o próprio “fim da história”.
A China, porém, ungida como nova fronteira de reprodução do capitalismo des-
de o aperto de mãos entre Nixon e Mao em 1972, colocada na proa do processo com
a hendaka japonesa e independentemente do fracasso da intentona norte-americana
em junho de 1989 em Tiananmen, guardava (e guarda) muitas possibilidades para o
capitalismo norte-americano e para as próprias famílias da América do Norte. Mas a
China é uma entidade política com muito mais capacidade de manobra e autonomia
que países como Coreia do Sul e Japão. Seus objetivos de “renascimento da nação”,
que levaram à derrota dos EUA e de seu aliado Chiang Kai-Shek em 1949, são con-
trapostos aos “divinamente” lapidados na ocupação da “Nova Canaã” em solo indí-
gena. Eis o limite estratégico dessa relação de simbiose econômica, algo mais a cargo
da dialética rústica do ying e yiang do que uma história de amor anglo-saxão de tipo
shakespeariano. Não existe espaço para julgamentos de ordem moral.
Julgamentos de valor e de ordem moral são compartilhados tanto pela extre-
ma-direita republicana e democrata quanto pelos partidários da “economia natural
do socialismo” (ilustrados num fantasmagórico “socialismo do século XXI”). Sobre
a extrema-direita do imperialismo não teceremos comentários. Os chineses, ao tra-
zerem para o seu campo (e território) aqueles que investem bilhões de dólares nas
“democráticas” campanhas eleitorais norte-americanas, já dão uma solução a eles;
mesmo sabendo que o que não encontra solução, solucionado está.
Ao socialismo, muitas vezes o que resta é voltar à própria lógica do debate
sobre a importância relativa e absoluta ora do comércio internacional, ora da
ênfase na indústria pesada. Num certo momento da história, a segunda via
tornou-se um imperativo. No momento vivemos a primeira via (a mesma alme-
jada por Lênin), que se faz presente com toda a sua complexidade, mas também
com todas as suas possibilidades. Se a crise de 1929 abriu amplas possibilidades
a um tipo de desenvolvimento para dentro, a presente crise abre – para o socia-
lismo na China – uma ampla estrada de desenvolvimento também para fora. Tal
desenvolvimento inclui o paradigma atual das possibilidades de adensamento
de novas modalidades da divisão internacional do trabalho, conforme demonstra a
emergência do chamado Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), de uma América

272
O desenvolvimento e suas faces na China

Latina em ebulição e de um Irã misturando teocracia com terceiro-mundismo.


O pós-crise financeira que viveremos poderá ser um momento especial para
uma China que se abriu ao mundo em 1978. A integração comercial entre capita-
lismo e socialismo é um imperativo à solução de impasses próprios do capitalismo
dominante. O mercado capitalista, em determinado momento, veio a demonstrar
seu poder de sedução e suas possibilidades. E a decisão chinesa pelas reformas em
1978 foi a de enfrentar todos os perigos intrínsecos a esta integração muito bem-
-vinda para os Estados Unidos, em diferentes momentos históricos desde então.
A grande questão que envolve a análise dessa integração – que parece testar seus
próprios limites – está na própria historicidade de diferentes formas e conteúdos de
comércio internacional. Os Estados Unidos, da mesma forma anárquica com que
manifestam a necessidade de consumo de sua população, também se expressam
anarquicamente no plano do comércio internacional, conforme seus próprios défi-
cits gêmeos demonstram. Antagonicamente, os chineses adotam uma forma nova
de comércio entre países, onde a planificação é a tônica.
O contato dessas duas formas de comércio e a exposição dos limites de um
deles só podem ser verificados em épocas de crises sistêmicas. E as crises capitalistas
são crises também de uma forma superada de comércio internacional. Atualmente
os EUA consomem 20% mais do que suas contas permitem. Seus déficits comer-
ciais com a China são a senha para a manutenção de baixos índices de inflação
e alargamento da capacidade de endividamento das famílias. Ao mesmo tempo,
alimentam os estoques em reserva estrangeira de seu concorrente estratégico. Os chi-
neses passaram a ser os maiores compradores de títulos norte-americanos, o que
quer dizer que são os maiores financiadores externos do império. O que seria uma
forma de enquadramento da China – sua admissão na OMC – é muito mais um
palco de acúmulo de forças políticas onde se “joga o jogo” de isolamento estratégico
dos EUA pela via de déficits programados com a periferia.
É evidente que existem desequilíbrios gigantescos na ordem econômica mun-
dial. Porém, eles devem estar muito mais relacionados com o nível de subsídio ao
consumo nos EUA e à hipertrofia do sistema financeiro internacional do que com
a própria banda cambial chinesa. Abrindo parêntese à reflexão: foram os bancos
norte-americanos que “quebraram” e levaram o mundo de roldão e não o “frágil”
sistema financeiro chinês.

273
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Afora essas questões, vemos um jogo muito perigoso nessa pressão exercida
pelos EUA pela valorização cambial chinesa. Nele, existe o próprio movimento de
pressões diretas sobre a China. O outro movimento envolve a cooptação de ter-
ceiros países – como o Brasil –, “prejudicados”36 pela cotação da moeda chinesa.
Objetivamente, fica uma ponderação: qual economia do mundo poderia dispor da
escala necessária para colocar, no mercado estadunidense, mercadorias a um preço
tolerável dentro dos parâmetros e limites da própria democracia norte-americana?
Vietnã, Malásia?
Fica evidente, com certa capacidade de se observar o problema dentro de um
determinado conjunto, o fundo puramente político da intentona norte-americana
contra a taxa de câmbio chinesa. E política internacional sem fundo econômico
se torna algo sem consequência, beirando a desmoralização, como a própria des-
moralização do poder americano diante de um mundo em que Venezuela, Bolívia,
Equador podem começar a deixar de ser exceções para se constituírem em regra.

aaaaaaaaaaaa

Abramos um longo parêntese nesta discussão.


Novamente, recorremos a Dani Rodrik e seu texto já citado (Making room for
China in the world economy). Analisando a experiência da capacidade de manobra
chinesa em trabalhar nas “brechas” do sistema internacional, garantindo sua in-
dependência de gerência de políticas mercantis e industriais de forma deliberada e
partindo da premente problemática em torno das relações entre China e EUA e do
imbróglio do yuan, Rodrik propõe como solução para o desequilíbrio econômico
mundial uma flexibilização maior do Acordo Sobre Subsídios no âmbito da OMC,
36
O sentido das aspas no termo se refere ao fato de, ao contrário de FMI, Banco Mundial e
outros instrumentos de dominação financeira, a China em nenhum momento impor regras a se-
rem seguidas por terceiros países. Não estamos dizendo que as relações chinesas com o mundo
ocorrem sem contradições, muito pelo contrário. As opções em matéria de política monetária do
Brasil são de inteira responsabilidade e “soberania” do Banco Central, que coloca ao “mercado”
a tarefa de encontrar o preço do dólar em relação ao real. Porém, transfere ao Estado os custos
de manutenção do preço final da referida moeda. Sobre os custos financeiros arcados pelo Esta-
do brasileiro pela via de operações de salvamento cambial encampados pelo BC, ler: MORAIS,
Lecio. “O câmbio continua matando: o real e a livre circulação cambial”. In Princípios. São Paulo,
n. 106. Mar/abr de 2010, pp. 39-43.

274
O desenvolvimento e suas faces na China

colocando inclusive que tal acordo “faz pouco sentido” no que se refere à indução
do desenvolvimento em países pobres.
Fica subentendido que a flexibilização desse acordo significa maior liberdade
de manobra, principalmente cambial, para que os países pobres possam manejar
suas políticas industriais. Independentemente da posição política e ideológica clara
que sustentamos neste livro e do próprio reconhecimento do progressismo desta pro-
posta, a verdade é que não devemos encará-la de forma excessivamente eufórica.
E isso do ponto de vista não só estratégico e das questões econômicas, mas princi-
palmente político, social, cultural e ideológico que aqui apresentamos e que envol-
ve a “bandeira do desenvolvimento”. Esta proposta tem, porém, pelo menos dois
problemas. O primeiro está diretamente relacionado com a política internacional e
a correlação de forças no mundo. Avançar na implementação de algo dessa natureza
demanda um acúmulo de forças por parte dos países periféricos capaz de colocar em
xeque a própria estrutura de poder mundial; e não somente isso, como também a
própria lei do desenvolvimento desigual e combinado perderia eficácia e o capitalismo
perderia a razão mater de sua sobrevivência como sistema socioeconômico. Isso
redundaria, consequentemente, na proscrição do poder norte-americano e, logo,
da própria OMC. A implementação de algo dessa natureza causaria o fim da hege-
monia dos Estados Unidos. Possibilidade que, segundo nosso entendimento, não
é plausível de ocorrência num horizonte tão próximo. Isso independe da vontade
dos catastrofistas de plantão, que desde sempre têm previsto a derrocada norte-
americana (Samir Amin, por exemplo).
Com relação à política cambial chinesa e o impacto de uma medida dessa
monta, é muito difícil fazer qualquer prognóstico mais justo. A sugestão de Rodrik
é tão impraticável no plano imediato que, no momento histórico viável à aplicação
dessa medida, a própria China já teria reunido todas as condições objetivas para a
proscrição do ferramental cambial.
Já pensando no concreto presente, essa opinião de Rodrik guarda certo nível de
inconsequência. Por quê? Porque uma opinião desse cunho também pode servir
à fuga da discussão do principal fator dos desequilíbrios econômicos acumulados
desde o momento em que o dólar passou a ser lastreado não mais por tratados como
Bretton Woods, e sim pelo poderio militar dos EUA: a hipertrofia do sistema finan-
ceiro em detrimento da esfera produtiva, da economia real.

275
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

aaaaaaaaaaaa

O problema da valorização do yuan não será solucionado sob marcos não con-
vencionais ou, melhor dizendo, sob intensa pressão. Não vemos grande evidência
empírica a partir daqueles que colocam a valorização do yuan como fronteira do
crescimento da demanda interna chinesa em detrimento de sua estratégia ex-
portadora, pois uma valorização do yuan poderia provocar uma queda nos preços
internos de tradables. Na verdade, a questão da demanda interna e de seu alarga-
mento depende de altos níveis de investimentos e é algo que não se anula com
uma “política exportadora”, na medida em que se planifica a própria capacidade de
investimentos tanto em setores poupadores de mão de obra como naqueles mais in-
tensivos em capital. Por outro lado, depende – também – da relação entre aumentos
salariais e inflação no país que, desde a década de 1990, tem se situado favorável
aos salários; afora isso, existe um sistema de crédito pautado por baixíssimas taxas
de juros. Enfim, o movimento interno já ocorre independente da forma como a
China se coloca no mercado internacional. Por outro lado, a tabela abaixo demons-
tra uma tendência interessante em matéria de política cambial na China:

Tabela 19 – Cotação do yuan diante das principais moedas estran-


geiras (unidade: cem yuans)
Ano Dólar norte-americano Iene japonês Dólar de Hong Kong
1993 576,20 5,2020 74,41
1995 835,10 8.9225 107,96
1997 828,98 6,8600 107,09
1999 827,83 7,2932 106,66
2000 827,84 7,6864 106,18
2002 827,70 6,6237 106,07
Fonte: El Comercio en China. Elaboração própria.

A tabela 19 demonstra, como se percebe, a escalada de desvalorização do yuan,


iniciada em 1993, até o ano de 2002. Ela sugere que esse processo atinge seu pico
justamente no momento em que a China alcança (internamente) um patamar se-
melhante de relação exportações x PIB mundial. Além disso, esse processo coincide
com o aumento de integração chinesa ao mercado internacional, o que pressupõe

276
O desenvolvimento e suas faces na China

uma profilaxia que evitou a exposição de suas empresas à concorrência interna-


cional. Neste mesmo ínterim, todo um arcabouço fora preparado para a elevação
da capacidade das empresas chinesas de “enfrentar o mundo”, sendo a mais sig-
nificativa delas o intenso processo de fusões e aquisições internas no sentido de
formar os já citados 149 conglomerados estatais e o início do processo de crescentes
investimentos chineses no exterior.
O ano de 2002 foi um “pico cambial” que coincide com outro processo: o da
admissão da China na OMC, que também coincide com o “piso” em matéria de
tributação sobre importações. O patamar de US$ 1 = 8,27 yuans foi mantido até
2008. Desde então, a utilização de uma “cesta de moedas”, ao mesmo tempo em
que buscava certo resguardo com relação às oscilações do dólar, também permitiu
que a China iniciasse um processo de valorização metódica do yuan em relação ao
dólar. Ou seja, uma valorização que chegou a patamares acima dos 15%.
A racionalidade nessa contenda é perceber que, em se tratando da China (da-
dos os custos sociais anexos), tudo tende a (e deve) ser lento, gradual e seguro, como
a tabela 19 nos sugere. O que inclui a retomada de uma política de banda cambial
(cesta de moedas) proscrita com a crise, a utilização de suas reservas cambiais para
compra de ativos no exterior e o adensamento de cadeias produtivas nacionais em
face da concorrência externa (que aos poucos poderá prescindir da necessidade de
um yuan imensamente desvalorizado). Além desses fatores, o yuan não poderá ter
uma valorização conforme determinadas vontades ocidentais sem antes a China
superar outros tipos de problemas. Entre eles, os relacionados aos diferentes níveis
de renda entre litoral e interior, campo e cidade; ademais, a população chinesa só
alcançará seu pico em 2030. Até lá, meios e maneiras para a estabilização do nível
de renda e emprego para cerca de 13 milhões de pessoas que entram no mercado
de trabalho todo ano demandarão novas soluções, pois a economia avança de de-
sequilíbrios em desequilíbrios. O câmbio administrado estará por muito tempo
na ordem quase natural dos acontecimentos em um país cujo objetivo precípuo é
alimentar e vestir nada menos que 1,3 bilhão de habitantes.

5.2.2.2 Os IEDs em si

O papel dos IEDs é de capital importância para a elaboração de uma visão de

277
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

conjunto do processo de modernização da China. Por exemplo, entre 1979 e 2006


a China utilizou US$ 882,7 bilhões em capitais estrangeiros, sendo US$ 691,9 bi-
lhões de forma direta; em 2006, 58,6% das exportações do país foram oriundas de
empresas multinacionais e, nos últimos anos, a China ultrapassou os EUA como a
maior receptora desse tipo de investimento, com as 500 principais empresas mul-
tinacionais do mundo presentes no país. Conforme demonstram as tabelas abaixo,
entre 1984 e 2009 os IEDs cresceram quase 800%. Em 2009, o montante investido
pelo exterior no país foi de US$ 90,03 bilhões, ou seja, “apenas” 2,3% menor que
em 2008, considerando que 2009 foi o ano de maior intensidade da mais forte crise
financeira vivida pelo mundo desde 1929.

Vejamos abaixo o crescente dessa modalidade de investimento desde 1984:

Tabela 20 – Fluxo de IEDs na China, 1984-1996 (em bilhões de US$)


Ano 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Contratado 2,7 5,9 2,8 3,7 5,3 5,6 6,6 12,0 58,1 111,4 82,7 91,3 71,3
Utilizado 1,3 1,7 1,9 2,3 3,2 3,4 3,5 4,4 11,0 27,5 33,8 37,5 41,7
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/FDI.htm). Elaboração própria.

Tabela 21 – Fluxo de IEDs na China, 1997-2009 (em bilhões de US$)


Ano 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Contratado 51,0 52,1 41,2 64,2 71,1 84,8 115,1 153,5
Utilizado 45,3 45,5 40,4 42,1 48,8 55,0 53,5 60,6 60,3 63,0 74,8 92,4 90.03
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/FDI.htm). Elaboração própria.

Os números por si só têm servido para inúmeras conclusões, muitas delas


superficiais, que classificam o capital estrangeiro como a variável estratégica do
processo ou como a “alma do desenvolvimento chinês”, sua principal razão de
existência e o “criador do desenvolvimento chinês”. Assertivas que servem in-
clusive como base para a manutenção de políticas econômicas na periferia com
serventia para atrair mais IEDs. Muitas questões precisam, porém, ser respon-
didas. Por exemplo, os IEDs na China têm o mesmo caráter daqueles realizados
em países como o Brasil? Quais as diferenças? O capital estrangeiro realmente
“criou” o desenvolvimento chinês?

278
O desenvolvimento e suas faces na China

5.2.2.2.1 A serviço de um projeto nacional ou da


desindustrialização?

A princípio, nosso interesse não é a análise esmiuçada do regime institucional


lato sensu por detrás dos IEDs em território chinês. Para nós, o importante é situá-
-los no escopo das necessidades do projeto nacional chinês37.
Dessa forma, identificar diferentes formas de inserção e preparo à recepção
de IEDs é uma questão de existência ou não de projeto nacional. Conforme dito
e redito, projeto nacional é sinônimo de indústria e não o contrário. O contrário é
estranho, como no Brasil na década de 1990, diante da paridade cambial entre real
e dólar e a total liberdade de entrada e saída de capitais. Excetuando elementos
puramente políticos, demonstrar se os IEDs estão a serviço de determinado proje-
to demanda saber se está havendo crescimento no país receptor. Demanda saber
se está havendo elevação de gradações tecnológicas e crescente valor agregado às
exportações. Por exemplo, em 1992 as exportações de têxteis corresponderam apro-
ximadamente a 14%; em 2005, caíram para 7%. No mesmo período, as exportações
de calçados caíram de 7% para 4%, as de aparelhos eletrônicos de baixo valor agre-
gado, de 27% para 12%; brinquedos e afins, de 10,5% para 8%. Já as exportações de
aparelhos de telecomunicações subiram de 3% para 14%; as de maquinaria eletrô-
nica, de 3,5% para 9%; e as de máquinas de escritório, de 1,5% para 13%38.
Na mesma tendência de aumento de valor agregado das exportações, como
parte do processo de admissão na OMC, as tarifas médias alfandegárias caíram de
55,6% em 1982, para 12,3% em 2002. Logo, o câmbio funciona como substituidor
de uma política de defesa pela via tributária39. Conclui-se que o padrão exportador
37
Para informações completas, e de conjunto, sobre não somente a natureza dos IEDs na China,
mas também comparações com outras formas de inserção externa na década de 1990, indicamos
a brilhante tese de doutorado de Luciana Acioly, técnica do Ipea, a quem agradecemos muito
pelas sugestões e opiniões para o nosso trabalho. ACIOLY, Luciana. Brasil, Índia e China: o inves-
timento direto externo nos anos noventa. Tese de doutorado orientado pelo Prof. Dr. Luiz Gonzaga
Belluzzo. Instituto de Economia da Unicamp, 2004.
38
AMITI, Mary & FREUND, Caroline. “ China`s export boom”. In Finance and development. Vol.
44, n. 03. Setembro de 2007.
39
RODRIK, Dani. “What`s so special about China`s exports?”. In NBER working papers. Working
Paper n. 11947. Disponível em: <http://www.nber.org/papers/w11947>. Acessado em 10 de
abril de 2010. Dani Rodrik, neste artigo, argumenta, assentado nos dados de queda de tarifas de
importação, acerca da abertura como condição sine qua non ao desenvolvimento. Concordamos
em parte com esta colocação, pois advogamos a necessidade de planificação dessa abertura.

279
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

da China está na mesma proporção do de um país com renda per capita três vezes
superior a ela. Alusões a vantagens comparativas, sendo uma das principais delas
o custo de produção, são as explicações mais disseminadas, como se determinadas
vantagens – como já expusemos anteriormente – não estivessem presentes, e em
melhores condições, em outros pontos do globo. Por outro lado, está ficando muito
clara a tendência ao acerto de uma política de IEDs em que a transferência de tec-
nologia guarde centralidade40.
Na verdade existem, a nosso ver, duas “vantagens competitivas”: a primeira, já
densamente debatida neste livro, está no câmbio voltado aos interesses nacionais e
sociais chineses. A segunda “vantagem” está no controle absoluto do fluxo de
capitais. Voltemos, porém, ao assunto câmbio. Um economista da lucidez de Dani
Rodriksustenta, corretamente, que o que está em andamento em grande medida
na China são políticas industriais capitaneadas pelo Estado. Coloca ainda que o que
deve ser posto em questão não é a existência dessas políticas, mas a forma como
elas têm sido implementadas41. Nesse rumo, por exemplo, política industrial deve
ser acompanhada de políticas educacionais e fiscais correspondentes às necessida-
des do projeto. Insistimos, porém, que essa política industrial só tem consequência
na China sob uma política de câmbio administrado e de controle do fluxo de ca-
pitais.
Citando ainda Dani Rodrik, a utilização de um câmbio do tipo chinês é parte
de uma forma de política industrial, que – com as contradições anexas – tem dado
resultados na China. Mais do que isso, o mesmo Rodrik coloca que a utilização – no
pós-guerra – de taxas de câmbio desvalorizadas em países pobres redundou, ne-
cessariamente, em crescimento. Exemplo disso pode ser visto no próprio conjunto
do Bric, onde existem, de um lado, países como Brasil e Rússia, que privilegiaram
a liberalização financeira e cambial e têm nos produtos primários seus principais
itens de exportações, enquanto, de outro, Índia e China vêm ganhando gradação
tecnológica para sua pauta de exportações na mesma proporção em que têm traba-
lhado fora de marcos liberalizantes.
40
Idem à nota anterior.
41
RODRIK, Dani. “Make room for China in the world economy”. Paper prepared for the AEA
session on Growth in a partially de-globalized world, chaired and discussed by Philippe Aghion.
Disponível em: <http://www.hks.harvard.edu/fs/drodrik/Research%20papers/Making%20
room%20for%20China.pdf>. Acessado em 05/03/2010.

280
O desenvolvimento e suas faces na China

É notório que a institucionalização das ZEEs – que durante mais de 15 anos,


desde suas primeiras experiências (1982), impunham a condição de associação das
empresas estrangeiras com empresas estatais – entabula por si uma grande dife-
rença de inserção externa entre diversos casos: o IED como janela de investimentos
para adensamento produtivo e ponte para aquisição de novas tecnologias, e não
indutor de fundos para fusões e aquisições ou processos de privatizações.
Câmbio administrado, somado ao controle sobre o fluxo externo de capitais,
tem influência direta nas formas de comportamento dos IEDs. Na China, esse tipo
de investimento difere, totalmente, das formas verificadas no Brasil, onde as ope-
rações de fusões e aquisições tiveram primazia. Na China, por exemplo, em 1998
somente 1,8% dos IEDs foi direcionado a fusões e aquisições; em 1999, 5,9%; em
2000, 5,5%; em 2001, 5,0%, e em 2002, 3,9%. Já no Brasil da década de 1990, mais
de 70% desse tipo de investimento foram direcionados para privatizações (desna-
cionalizações) e F&A (fusões e aquisições)42.
A nosso ver, o essencial no regime dos IEDs a ser apreciado para fins de com-
preensão do núcleo do projeto nacional chinês está, sobremaneira, na identificação
do ambiente político e macroeconômico propício à maximização das oportunida-
des abertas por essa modalidade de investimento.

aaaaaaaaaaaa

O câmbio seguido do controle das contas de capital é instrumento que serve


para a proteção geral de uma economia periférica em expansão e de um projeto
nacional com vistas a obter legitimidade interna (pela expansão de renda e em-
prego) e externa (poderio internacional, excelência científica e tecnológica). Tam-
bém existe a necessidade de se formar um bloco periférico (Bric) em condições de
transformar representatividade econômica em força política e, assim, transformar
a correlação de forças em âmbito mundial em prol da paz, do direito à autonomia dos
países da periferia em escolher caminhos ao desenvolvimento e da defesa da alter-
nativa socializante. Enfim, uma alternativa concreta em matéria de política econô-
mica e monetária em um país com as dimensões e história da China não pode ser
42
JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas e crescimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006,
p. 25.

281
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

passiva de análise puramente econômica, dado as influências que ela pode irradiar.
Há, porém, outro aspecto que afeta diretamente os IEDs na China. Confor-
me já colocado, mecanismos de manipulação cambial e controle sobre os fluxos
de capital atendem somente a disposições genéricas, porém vitais ao processo de
desenvolvimento. Além disso, estão claros neste livro os aspectos da superestrutura
lastreadores do desenvolvimento, pois o desenvolvimento não resulta da livre ação
de agentes econômicos por intermédio do mercado.
O círculo se fecha com a elaboração e aplicação de todo um aparato jurídico-
-institucional capaz de utilizar as formas de ação de determinadas leis econômicas
em prol do desenvolvimento setorial de uma economia em expansão, algo em con-
formidade com o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Isso é o que a
literatura econômica convencional chama, na forma de leis e regulamentos, de
utilização de políticas industriais. Geralmente, o conteúdo desse tipo de política
envolve subsídios para exportadores, proteção legal a determinados setores e meios
para indigenização de novas e novíssimas tecnologias.
Desde 1982 o Conselho de Estado da República Popular da China publica o
Catálogo Orientador do Investimento Estrangeiro43. Nosso intento não é demonstrar mi-
nuciosamente os efeitos e os setores beneficiados por esse tipo de regulamento.
O que é importante é o desenrolar dessa regulamentação, que envolve a própria
história do desenvolvimento recente chinês. Por exemplo, no âmbito da política regio-
nal, o Catálogo de 1982 privilegiava IEDs no litoral do país em detrimento de um
interior onde as ECPs avançavam sobre nichos de mercado que o setor estatal da
economia não conseguia abranger, onde os camponeses estavam em acelerado pro-
cesso de acumulação de riqueza. Além disso, naquele momento histórico políticas
de elevações planejadas de preços de grãos, além da permissão à comercialização
de excedentes, davam conta de um crescimento quantitativo acelerado e pautado mui-
to mais pelo consumo que pelo investimento. Esse cenário muda com o lançamento
do já citado Programa de Desenvolvimento do Oeste no final da década de 1990.
Em 2000, um encarte especial do Catálogo foi publicado no sentido de liberar joint
43
Tivemos acesso a esse documento a partir da seguinte publicação: KE, Ma & JUN, Li. El co-
mercio en China. China Intercontinental Press. Pequim, 2008. 487 p. Sobre esse tema, indicamos
também a leitura de: CUNHA, André M. & ACIOLY, Luciana. “China: Ascensão à condição de
potência global – características e implicações. In CARDOSO JR, José C.; ACIOLY, Luciana; MA-
TIJASCIC, Mico. Trajetórias recentes de desenvolvimento. Ipea. Brasília-DF, 2009.

282
O desenvolvimento e suas faces na China

ventures para a construção de infraestruturas no oeste do país, além de permitir, de


forma completa, IEDs no setor de serviços. Enquanto isso, no litoral do país, setores
em que a China já dispunha de total autonomia gerencial e tecnológica passaram a
ter o status de “proibido”, como o setor siderúrgico44. Outro exemplo está no setor de
matéria-prima e minérios que, até 2007, gozou de todo tipo de incentivo possível do
governo para atração de IEDs, principalmente em projetos de pesquisa e prospecção
de petróleo e gás natural. Desde o Catálogo de 2007, estes setores passaram a ser
classificados sob a rubrica de “proibida” para IEDs.
Para se compreender a institucionalização dos IEDs, a citação abaixo segue
como interessante síntese45:

O Catálogo divide as indústrias em três setores: encorajado, restrito e proibido.


Às companhias estrangeiras que investem nos setores encorajados é permiti-
do o estabelecimento de empresas de capital 100% estrangeiro, enquanto que,
na categoria restrita, investimentos são limitados a joint ventures de equidade
(...). As indústrias inseridas na categoria proibida, por sua vez, são fechadas ao
investimento estrangeiro. As indústrias inseridas na categoria restrita e proibi-
da são justificadas, pelo governo chinês, com base na necessidade de proteger a
“segurança econômica nacional” e de se ter cautela na abertura de indústrias
estratégicas e áreas sensíveis, como matéria-prima e minérios (...).

Pode parecer altamente contraditório falar em liberalização da economia


chinesa pós-1978 com todo esse arcabouço legal protegendo a indústria nacio-
nal num país que se encontra no topo mundial de IEDs. Tentemos responder a
algumas questões. Como, num ambiente altamente regulamentado, com dificul-
dades de acesso total ao mercado interno chinês – onde até 1997 a propriedade
privada não estava legalizada e onde o Estado e o Partido Comunista estão pre-
sentes em todas as instâncias sociais e políticas da sociedade –, os IEDs conti-
nuaram afluindo com tanta rapidez? A existência de instituições que garantam,
em certa medida, o pleno jogo do laissez-faire é condição para a atração de IEDs,
44
É interessante que para o setor siderúrgico o status de “proibido” tenha coincidido com o mo-
mento em que se completou um rápido processo de fusões e aquisições na área, culminando na
formação do complexo siderúrgico da Baosteel (informação colhida em conversa com membros
da direção da empresa em janeiro de 2007).
45
CUNHA, André M. & ACIOLY, Luciana. “China: Ascensão à condição de potência global –
características e implicações. In CARDOSO JR, José C.; ACIOLY, Luciana; MATIJASCIC, Mico.
Trajetórias recentes de desenvolvimento. Ipea. Brasília-DF, 2009, p.365.

283
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

como é o caso de um país plenamente liberado quanto ao aspecto financeiro?


Segundo Dani Rodrik, em artigo para o jornal Valor econômico (“Diagnósticos
de crescimento”, em 10-09-2004), após pesquisa feita em diversos casos (mais de 80
países), a existência de instituições que contemplam os diversos interesses do capi-
tal não tem relação direta com a atração de investimentos externos. O economista
estabelece então uma comparação entre China e Rússia.
Para Rodrik, a China driblou toda essa armadilha institucional com a simples
disposição do governo chinês de dividir lucros e prejuízos com empreendedores
privados estrangeiros. Em suma, vemos neste caso, como garantia para a não ex-
propriação, a participação, ainda que residual, do Estado46.
Pode parecer óbvia tal afirmação, mas pela primeira vez lemos tal opinião, o
que demonstra que a transformação institucional em larga escala não é pré-requi-
sito para o início de um processo de crescimento econômico.
Outra gama de questões ainda merece respostas. Por exemplo, que tipos de rea-
ções haveria, no âmbito da OMC, se um país qualquer, mesmo Brasil ou Argentina,
decidisse colocar em prática um programa de proteção e expansão de seu complexo
industrial partindo de práticas semelhantes às da China? Que reações existiriam
com relação a Estados Unidos e União Europeia47? Por que não se “mexe” com a
China e se impõem as piores decisões possíveis aos países mais pobres, como – por
exemplo – a destruição da indústria de caju de Moçambique como pré-requisito e
“condicionalidade” para esse país obter empréstimos do Banco Mundial e do FMI
em 1992? Trata-se de pura questão de poderio econômico e financeiro transforma-
do em poderio político.
Em 1986, as exportações chinesas correspondiam a 1,4% das exportações
mundiais e as importações, a 1,9%. Em 2001, essas porcentagens chegaram a 4,9%

46
RODRIK, Dani. “Devemos distinguir entre estímulo de crescimento econômico e sustentá-lo”.
Valor econômico, 22-09-2004.
47
Uma caricatura disso pode estar na reação da mídia brasileira para qualquer “mexida” mí-
nima na política monetária em curso. A simples utilização de um mecanismo fiscal, como o
Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), foi suficiente para alguns jornalistas iniciarem um
verdadeiro clima de terror em torno do governo brasileiro. Os “déficits” com a previdência social
são tratados de forma nitidamente fascista, enquanto o fato de cada 0,5% a mais na taxa Selic
corresponder a aumento de US$ 5 bilhões é tido como símbolo de responsabilidade. É nesse
clima interno que o projeto nacional brasileiro vem sendo postergado, e o governo que tentar
implementá-lo e torna-se passível de ser derrubado.

284
O desenvolvimento e suas faces na China

(o que demonstra que o comércio exterior chinês cresceu em média anual de 16%),
em 2008 as exportações chegaram próximas a 9%, e as importações, a 6,9% do
montante mundial. As exportações mundiais em 1980 equivaliam a 20% do PIB
mundial e, em 2008, a 32%48. Isso demonstra que a China associou o desenvolvi-
mento interno ao poderio nacional, dado o papel cumprido na elevação da relação
PIB/exportações mundiais e no alavancamento da demanda internacional, princi-
palmente de commodities.
A força política da China se concentra, assim, na crescente gravitação de
países da periferia em torno dela. Do ponto de vista estratégico, essa relação entre
a China e o Terceiro Mundo é vital para um país pronto a disputar, inclusive no
campo moral, a hegemonia internacional49. O outro lado dessa relação está na
crescente dependência, por empresas norte-americanas e europeias, das vanta-
gens de estarem instaladas na China. Sanções contra as práticas industrializan-
tes do governo chinês poderiam respingar nas próprias corporações, que mantêm
em pé a superestrutura do imperialismo e do próprio financiador de seus déficits
gêmeos, além, é claro, do papel cumprido pela produção chinesa para o controle
inflacionário nos EUA.
Outro fator para se refletir está na relação entre o acúmulo de reservas cam-
biais e a formação de uma potência financeira como consequência da crescente
demanda chinesa por produtos primários. Nesse sentido, é importante lembrar que
a liquidez da economia internacional em meio à presente crise financeira está sen-
do mantida graças à capacidade chinesa de substituir, gradualmente, entidades
cada vez mais desmoralizadas – como FMI e Banco Mundial – como financiadoras
internacionais de primeira instância. Esse tipo de movimento diz muita coisa e nos
ajuda a responder as questões levantadas acima.

5.2.2.2.2 Criador ou criatura do desenvolvimento?

Existem muitos mitos criados no sentido de corroborar uma importância ex-

48
Dados extraídos de China Statistical Yearbook e IMF World Report.
49
Em 2003 a China “zerou” as tarifas de importação para os 35 países mais pobres do mundo.
Além disso, esses mesmos países tiveram perdoadas suas dívidas externas para com ela. Ne-
nhum desses dois movimentos foi até agora acompanhado nem pelos EUA, nem pela União
Europeia.

285
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

cessiva dos IEDs no processo de desenvolvimento chinês. Essa afirmação é irreal


na medida em que o montante de IEDs na China atualmente não chega a 10% da
Formação Bruta de Capital Intensivo (FBCI). Por outro lado, o sistema financeiro
estatal chinês é responsável por 50,2% de todo o crédito que envolve a FBCI.
Essa discussão acerca do criadouro do desenvolvimento chinês e do papel dos
IEDs no processo suscita novos debates. Um tipo de afirmação muito comum (las-
treada no “desenvolvimento” criado pelos IEDs) é colocar a China como exemplo de
aplicação do modelo neoliberal, conforme assinala, de forma primária e irresponsá-
vel, David Harvey em sua Brief history of neoliberalism. Nesse rumo, é comum apontá-
-la como “o país mais aberto do mundo” por causa de seu gigantesco coeficiente de
comércio exterior, resultado de um país que, em plena década de 1980, pediu conse-
lhos a Milton Friedman50. É muito estranho o “país mais aberto do mundo” praticar
deliberadamente políticas industriais e ter um sistema financeiro estatal, um câmbio
administrado e um controle de fluxo de capitais. Não se trata de contrapor argumen-
tos ideológicos com argumentos também ideológicos, mas sim com fatos.
Giovanni Arrighi, de modo sagaz, aponta outra fronteira de argumentos duvi-
dosos sobre a abertura chinesa, entre eles as muito difundidas pela mídia forma-
dora de opinião ultraliberal (revista The Economist, jornal Financial Times) acerca da
relação direta entre redução da pobreza e liberalização de sua economia51. Sobre
essa questão da diminuição da pobreza no mundo e a radicalização da liberaliza-
ção, atentemos para a longa passagem escrita pelo atual presidente do Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), Márcio Pochmann52:

Os mais recentes indicadores a respeito da evolução da pobreza global revelam


uma crescente desconexão entre o que o mundo poderia ser e o que realmente
é. Em grande medida, a maior fragilidade da governança global conduzida pelas
nações ricas durante as duas últimas décadas tem apontado para maior polari-
zação social entre riqueza e pobreza.
Em parte, essa polarização se deve ao agravamento da questão social em quase
dois terços da população do planeta. Não fosse o desempenho de alguns poucos
países como Brasil e China, por exemplo, na redução da quantidade de miserá-

50
KWONG, Peter. China and US are joined at the hip: The chinese face of neoliberalism. Counterpush,
7 e 8 de outubro de 2006.
51
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim. Boitempo. São Paulo, 2008, p. 360.
52
POCHMANN, Márcio. “Os Bric e a globalização da pobreza”. Valor econômico, 14-04-2010.

286
O desenvolvimento e suas faces na China

veis e pobres, o retrocesso poderia ser ainda mais grave. Na comparação de 2005
com 1981, percebe-se, por exemplo, que o universo de miseráveis do mundo com
renda mensal per capita atual de até R$ 61,20 passou de 1,9 bilhão (52,2% da
população em 1981) para 1,4 bilhão de pessoas (25,7% da população em 2005).
A diminuição de 26,8% na quantidade de miseráveis globais (meio milhão de
indivíduos) ocorreu fundamentalmente pelo fator China, com a saída de 627,4
milhões de pessoas da condição de miseráveis entre 1981 (835,1 milhões) e 2005
(207,7 milhões).
Essa fantástica queda de 75,1% no número de miseráveis chineses foi acompa-
nhada pelo aumento da quantidade de pessoas na condição de miseráveis no
resto do mundo. Ou seja, sem a China, o mundo apresenta uma adição de 114
milhões de pessoas miseráveis, tendo em vista o aumento de 1,1 bilhão de pes-
soas nessa condição em 1981 para 1,2 bilhão em 2005. Mesmo com o aumento
médio anual de quase 5 milhões de miseráveis no mundo sem a China, a taxa
de miseráveis caiu 29%. Entre os anos de 1981 e 2005, a taxa de miseráveis do
mundo baixou de 40,4% para 28,7% da população, sem a China, em virtude do
crescimento demográfico para o segmento fora da condição de miserabilidade.

É evidente que essas colocações de Pochmann demonstram o oposto: a libe-


ralização mundial seguida pelo fim da URSS significou uma longa série de óbices
econômicos e sociais no antigo bloco socialista, na América Latina e na África
subsaariana. A ausência da Índia nesta plêiade de países que se notabilizaram pela
queda dos índices de pobreza é muito sugestiva na mesma proporção em que se
tenta confrontar o desenvolvimento “democrático” indiano com um tipo de desen-
volvimento notabilizado pelo desrespeito aos “direitos humanos” (China). Coinci-
dentemente, a Índia advoga seu caminho particular e original de desenvolvimento
capitalista (desenvolvimento autônomo, diga-se de passagem), enquanto nenhum
dirigente chinês – na contramão da ampla maioria dos “especialistas” formados e
informados por órgãos como The Economist e Financial Times – advoga o capitalismo
como meio para alcançar seus objetivos nacionais e sociais.

aaaaaaaaaaaa

Não se pode negar a importância do capital estrangeiro para o desenvolvimen-


to recente da China. Os números apontados anteriormente demonstram tal fato. A
questão é se esse tipo de investimento tem ou não caráter principal no processo. Em

287
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

primeiro plano, a centralidade do processo é política, é de decisão política pelo desen-


volvimento e pela inclusão de pessoas no mercado consumidor. Ademais, conforme
demonstraremos na seção sobre o desenvolvimento da agricultura chinesa, as po-
líticas indutoras à formação de um imenso mercado consumidor para produtos in-
dustrializados antecedem tanto o início dos fluxos de IEDs no país quanto o próprio
boom das exportações. Sobre a questão das exportações, vejamos as tabelas abaixo:

Tabela 22 – Exportações, 1978-1994 (em bilhões de US$)


Ano 1978 1980 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994
Exportações 9,75 18,12 27,37 30,94 39,44 47,52 52,54 52,09 71,84 84,94 91,74 121,01
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/Trade.htm). Elaboração própria.

Tabela 23 – Exportações, 1995-2000 (em bilhões de US$)


Ano 1995 1996 1997 1998 1999 2000
Exportações 148,78 151,05 182,79 183,71 194,93 249,20
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/Trade.htm). Elaboração própria.

Tabela 24 – Exportações, 2001-2008 (em bilhões de US$)


Ano 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Exportações 266,10 325,60 438,37 593,40 762,00 968,90 1.127.80 1.428,60
Fonte: Chinability (http://www.chinability.com/Trade.htm). Elaboração própria.

Levando-se em consideração o papel das empresas estrangeiras instaladas na


China no estímulo das exportações, é interessante perceber que as exportações,
como variável de monta da estratégia chinesa, somente ganharam ímpeto (cres-
cimento geométrico) após a admissão chinesa na OMC, ou seja, mais de 20 anos
depois do início das reformas. A própria tabela 24, em comparação às demais, de-
monstra isso. As exportações saíram de um share em relação ao PIB quase nulo
na década de 1960 para fechar em 30% do PIB em 2003, enquanto a relação das
exportações em relação ao PIB mundial, em 2002, era de 29%. Logo, somente em
2003 a relação entre exportações e PIB na China chegou ao mesmo patamar que a
média internacional do período em relação ao PIB mundial53.
O crescimento anterior das exportações demonstrado nas tabelas acima nos
53
RODRIK, Dani. “What`s so special about China`s exports?”. In NBER Working Papers. Working
Paper n. 11947. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w11947 Acessado em 10-04-2010.

288
O desenvolvimento e suas faces na China

indica a existência de um estágio de crescimento quantitativo e não qualitativo (maior


valor agregado às exportações, expressas também no valor das mesmas) até o ano
de 2001. Associando os dados dispostos nas tabelas com a conjuntura internacional
de concorrência oligopólica, torna-se óbvio que, até 2001, o capital estrangeiro via-
-se diante de um grande dilema: investir na China ou perder a corrida para seus
concorrentes, o que leva a concluir que o capital estrangeiro procurou se aproveitar
ao máximo de um processo de desenvolvimento que ele não criou e tampouco
liderou54.
Outro traço comprobatório dessa tendência está no alto nível regional que ca-
racteriza o desenvolvimento chinês. Se tomarmos Hong Kong, Macau, Taiwan e
Cingapura como parte do “complexo chinês” ultramarino, perceberemos que quase
60% dos IEDs na China são feitos por chineses. Por outro lado, em 1990 esse per-
centual era de 75%. Isso denuncia, sobretudo, que o capital norte-americano e o
japonês chegaram ao país no momento óbvio para quem, dadas as características
do processo de construção nacional chinês pós-1949, o desenvolvimento chinês não
sofreria dos mesmos problemas que o japonês, sobretudo a falta de soberania e
desenvolvimento dentro dos limites intrínsecos aos esquemas norte-americanos.
Assim, a dinâmica – nada paradoxal – dos IEDs na China mostra que os “chineses”
chegaram muito antes dos estrangeiros.

aaaaaaaaaaaa

A intenção até aqui não foi diminuir o papel dos IEDs no contexto do projeto
nacional chinês. Desde o início deste livro, nossa proposta, apoiada em visitas re-
centes à China, é explicar o processo chinês como síntese de complexidades como
causa e consequência do desenvolvimento. Temos exatos 15 anos de estudos sobre
um tema que tem sofrido a primazia do “simplismo” para explicar algo com muito
mais profundidade do que se imagina. Isso se coaduna com uma época histórica de
rebaixamento da ciência em prol de métodos que, no máximo, aproximam-se de
um economicismo tacanho.
Dessa forma, os IEDs são superlativados em detrimento de determinações
mais amplas e de fundo, entre elas a elaboração e a execução de um projeto na-
54
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim. Boitempo. São Paulo, 2008, p. 359.

289
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

cional de largo alcance. A política vem à frente da economia em qualquer processo


social; daí o papel estratégico das primeiras ZEEs na absorção do capital externo
chinês. Afora isso, a a-historicidade é um ingrediente à parte. A China, em 1978, já
havia completado quase todo o ciclo da I Revolução Industrial, contava com uma
classe operária altamente educada, inclusive para gerir a produção, o que não é
pouco, sendo tal característica quase desconhecida do público em geral55.
Aqui não estão em pauta apenas a viabilidade e as facilidades encontradas por
esta ou aquela forma de financiamento, e sim a investigação do processo histórico, isto
é, que considera muito mais a história que determinadas conjunturas e interesses.

5.2.3 Política externa e a tendência recente e crescente dos IEDs


chineses no exterior56

Já vimos a transformação, na China, do eixo interno da luta de classes como


o centro para a primazia do desenvolvimento acelerado. Isso implicou uma grande
mudança de postura externa, iniciada com o aperto de mãos entre Nixon e Mao,
passando pelo reatamento pleno de relações diplomáticas e pela atual complemen-
taridade das economias chinesa e norte-americana, em que a relação de valoriza-
ção e desvalorização entre o dólar e o yuan é a grande expressão.
A independência política da China, marcada por um desenvolvimento que
se dá fora dos esquemas norte-americanos de poder, rapidamente a colocou no centro
dos acontecimentos da Ásia a partir da criação de um “mundo chinês”, formado
por círculos produtivos e financeiros em seu entorno, criando condições objetivas
para uma relação dialética de competição/cooperação com seus vizinhos. Em contex-
to histórico semelhante a quando o poder norte-americano dependia de uma forte
base regional (América Latina), a China e seu crescente poderio hoje dependem
de sua posição na Ásia. Assim, há o processo de aumento gigantesco das expor-
tações e a participação do IEDs nesse processo, que reúne não somente acúmulo

55
Em nossa visita ao complexo siderúrgico Baosteel em janeiro de 2007, foram-nos apresentados
cinco “engenheiros de produção” com as mesmas funções de qualquer profissional análogo em
qualquer país do Ocidente. O detalhe: nenhum deles tinha diploma universitário e todos traba-
lhavam no ramo siderúrgico há pelo menos 20 anos.
56
Agradeço a Luciana Acioly, chefe da Coordenação de Estudos das Relações Econômicas Inter-
nacionais do Ipea, pela liberação de dados e informações atualizados sobre esse tema e recente-
mente sintetizados em um estudo intitulado A internacionalização das empresas chinesas.

290
O desenvolvimento e suas faces na China

de reservas, mas também transferência e desenvolvimento tecnológico. Processo


esse capitaneado por “chineses” e aprofundado algum tempo depois do início das
reformas econômicas.
É evidente que uma política externa pautada, de um lado, para a acumu-
lação de capital e, de outro, para o aumento de sua influência e capacidade de
manobra no terreno geopolítico, demanda o desenvolvimento de novas formas
de inserção externa. Essa transformação se faz necessária na mesma medida
em que cada vez mais as diferenças de concepção de mundo e de política vão
ficando evidentes. A própria reprodução econômica chinesa depende, em alto
grau, de sua capacidade financeira e política, principalmente desde 1993 – ano
em que a China passou a ser importadora de petróleo. Nesse contexto, o pe-
tróleo passa a ser de vital importância tanto para ela quanto para os EUA 57.
Enfim, a própria segurança energética chinesa e a sua admissão ao centro de
um mundo pautado por valores liberais estranhos à sua civilização e revolução
dependiam, nos marcos da execução de novas e superiores formas de planejamento,
de uma crescente capacidade política, comercial e financeira que se expressa,
na atualidade, no aumento de seus investimentos produtivos para fora de seus
marcos territoriais.

5.2.3.1 A China e a redefinição das relações centro-periferia

Qual nossa visão das relações centro-periferia atualmente e do papel cumprido


pela crescente tendência de aumento dos IEDs chineses no exterior? Uma primeira
assertiva deve ser posta: não temos ilusões quanto a um declínio brusco da hege-
monia norte-americana no mundo. Esse tipo de processo tende a ser mais longo do
que se imagina, portanto a China – nesta contenda – está no que Lênin chamaria de
acúmulo estratégico de forças. Mas, dialeticamente, com o aumento do poderio relativo
e absoluto no mundo de hoje, a tendência de mudança e redefinição das relações
centro-periferia tem sido mais rápida do que se imagina. E isso se deve à China.
Outro ponto: a China está subvertendo as “regras do jogo” ou joga de acordo
57
PAUTASSO, Diego & OLIVEIRA, Lucas Kerr de. “A segurança estratégica da China e as reações
dos EUA”. In Contexto internacional. Vol. 30, n. 2, p. 365. Rio de Janeiro, mai/ago de 2008. Trabalho
sério e interessante acerca da relação entre a segurança energética chinesa e as relações com os
EUA. Trata-se da melhor obra que já lemos sobre o assunto.

291
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

com elas? É óbvio que ela joga as regras colocadas pelo centro do sistema capita-
lista (EUA). Em primeiro lugar, não existe disposição para o desenvolvimento fora
dos marcos do comércio de tipo capitalista. Ela pode estar colocando em contra-
dição a forma anárquica de comércio internacional com um comércio de novo tipo
(planificado). Se esse contato entre as duas formas de praticar o jogo do comércio
internacional vai gerar ou não uma transição satisfatória para o socialismo é algo
que somente a história poderá dizer. Porém, é diante dos marcos da hegemonia
norte-americana que a China acabou por se tornar um player de primeira grandeza
nas relações internacionais, o que demonstra a correção de sua forma planificada
de fazer comércio internacional e a transição em curso. Afora isso, o tipo autárquico
de gerar desenvolvimento mostrou seus limites no próprio “modelo soviético”. Há
um momento do processo de desenvolvimento em que a necessidade de fatores ex-
ternos de produção torna-se imperativa à reprodução do processo; exemplo disso está
na própria necessidade chinesa de importar petróleo, apesar de o país ser o quinto
maior produtor mundial desse hidrocarboneto.
Assim sendo, o reordenamento das relações centro-periferia se dá nos marcos
do que Bernardo Kocher chama de “diplomacia financeira”58. Esse tipo de diplo-
macia ocorre como forma de contornar os limites de uma potência emergente, mas
sem correspondência no plano militar ou ideológico, em comparação com seu com-
petidor estratégico, o imperialismo norte-americano. Para compreender o pro-
cesso histórico de formação de condições objetivas para essa forma
de diplomacia, é importante ter em mente toda a macroeconomia da
inserção chinesa, sobretudo voltada à formação de grandes reservas em moeda
estrangeira, à viabilização de um poderoso sistema financeiro estatal e levando em
conta as próprias dimensões do país, capazes de alterar, significativamente, o preço
das principais commodities e de abrir condições para outro paradigma de desenvol-
vimento, contraposto ao Consenso de Washington, o chamado Consenso de Pe-
quim59. No mesmo rumo do Consenso de Pequim, em seguida à ascensão, ao poder
58
KOCHER, Bernardo. “Do Terceiro para o Segundo Mundo. China: suas transformações econô-
micas e as relações internacionais”. In Seminário REDEM Buenos Aires, 2006.
59
Esse termo “Consenso de Pequim” foi lançado em 2004 por Joshua Copper Ramo (disponível
em: <http://joshuaramo.com/_files/pdf/The-Beijing-Consensus.pdf>). Esse texto é obrigatório
aos ocupados em compreender o mundo em transição de uma época de “fim da história” para
outra em que o desenvolvimento intrínseco ao projeto nacional chinês coloca o mundo diante
de um novo paradigma econômico, político, social e ideológico.

292
O desenvolvimento e suas faces na China

do PCCh e do Estado, da quarta geração dirigente nucleada por Hu Jintao, iniciou-


-se um processo de divulgação da nomeada Ascensão Pacífica, correspondendo a
uma total diferenciação em relação às formas de ascensão de potências pretéritas
(Portugal, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Japão e Estados Unidos), marcadas por
brutal violência para com os países ditos periféricos e mesmo entre si, para algo
mais pautado pela busca de convergências entre a China, as potências centrais e os
países periféricos60.
Apesar de os chineses ainda trabalharem com essa categorização de seu
futuro, nos últimos anos a expressão Ascensão Pacífica tem sido retirada da lite-
ratura oficial em decorrência de disputas internas no seio do PCCh em torno de
uma mensagem que poderia parecer excessivamente defensiva em um mundo
onde ainda existe imperialismo, racismo e neocolonialismo. De qualquer modo,
o fato de o governo chinês amplificar uma mensagem de Ascensão Pacífica serve
de resposta à crescente propaganda ocidental em torno do “perigo amarelo” e
da possibilidade do surgimento de uma “China imperialista”. A nosso ver, essa
questão do futuro comportamento chinês diante do mundo está, e muito, pauta-
da tanto por suas necessidades materiais quanto por elementos de sua formação
social.
Outro aspecto a ser abordado, ainda que genericamente, é a validade ou não
– na atualidade – do que se convencionou chamar de “teoria dos três mundos”,
elaborada por Mao Tsetung61. Ainda é possível falar na execução dessa teoria numa
China já adentrando ao rol dos “países desenvolvidos”? Ou essa teoria foi proscrita
com a morte de Mao Tsetung? Ou a China ainda leva adiante essa proposta, agora
em fase mais, digamos assim, sofisticada, dentro do quadro da transformação do
país em uma potência financeira, como defendemos neste livro?

60
Sobre a concepção de “Ascensão Pacífica”, ler: BIJIAN, Zheng. “China`s ‘Peaceful Rise’ to
great power-status”. Foreign affairs. vol. 84, n. 5, set./out. de 2005. Zheng Bijian é assessor do
presidente Hu Jintao e um dos mais proeminentes intelectuais da China de hoje. Nesse artigo,
além da conceituação de “Ascensão Pacífica”, o leitor terá acesso a um amplo leque de limites e
potencialidades do “modelo chinês”.
61
Segundo essa teoria, o mundo estaria dividido em “três mundos”, porém com diferenciação,
dada a transformação da URSS de então numa potência de tipo imperialista ou, no dizer dos
chineses, “social-imperialista”. Portanto, no Primeiro Mundo estariam os Estados Unidos e a
URSS, no Segundo Mundo os países capitalistas e socialistas desenvolvidos e no Terceiro Mundo
os países capitalistas e socialistas periféricos, inclusive a China.

293
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Vejamos: à primeira vista, a validade dessa teoria poderia estar em xeque


pelo próprio colapso do mundo socialista. Em contraposição a isso, o mundo
ainda é formado por países centrais e periféricos, sendo que as guerras de agres-
são continuam sendo uma prática quase normativa nas relações entre impe-
rialismo e periferia, agora sob o véu de “intervenções humanitárias”, contra o
tráfico internacional de drogas e pela defesa dos “direitos humanos”. Essas as-
sertivas ganharam mais adjetivos e substantivos numa proclamada “guerra ao
terror”, que reserva grande manobra à dominação imperialista sobre o mundo
periférico, sobretudo o Oriente Médio, rico em petróleo. Em todos os casos, po-
vos periféricos sofrem as consequências das demandas do imperialismo. Logo,
as mudanças da década de 1990 para cá obedeceram mais a questões de forma
que de conteúdo. O imperialismo continua sendo, nas palavras de Lênin, “a re-
ação em toda a linha”.
Por outro lado, temos a China – cujas relações com a periferia podem ter
nuances pautadas pela conjuntura histórica (Guerra Fria, Cisma Sino-Soviético).
Apesar da relação com certos países, como Brasil e Índia, de competição x coope-
ração, a China nunca se coloca como algo estranho ao mundo periférico62. Seus
princípios nas relações internacionais seguem parâmetros opostos aos das “po-
tências democráticas”, sendo tais princípios chamados de Cinco Princípios da Coe-
xistência Pacífica, a saber:

a) respeito mútuo à soberania e integridade nacional;


b) não agressão;
c) não intervenção nos assuntos internos de um país por parte de outro;
d) relação de igualdade e benefícios mútuos;
e) coexistência pacífica entre Estados com sistemas sociais e ideológicos di-
ferentes.

Já descrevemos, em certo grau, a teoria de Cooper Ramo, chamada Consenso


de Pequim, e também a Ascensão Pacífica. Citamos anteriormente o perdão chinês

62
KOCHER, Bernardo. “Do Terceiro para o Segundo Mundo. China: suas transformações econô-
micas e as relações internacionais”. In Seminário REDEM, Buenos Aires, 2006.

294
O desenvolvimento e suas faces na China

das dívidas externas dos países mais pobres do mundo. Existem questões acerca
das posições chinesas em todos os fóruns globais (OMC, ONU, Conferências do Cli-
ma etc.), em que o país se coloca em defesa dos interesses periféricos. Claro que, por
trás desse movimento, existem questões como o suprimento energético e de outras
matérias-primas, além da busca de apoio dos países periféricos à causa chinesa no
Tibete e Taiwan. Mas também existem relações financeiras entre a China e seus
parceiros periféricos nas quais o “interesse mútuo” é respeitado, com empréstimos
sem condicionalidades e transferências de tecnologia jamais imaginadas por países
acostumados com formas “democráticas” de relações bilaterais63. Além do mais, a
China tem problemas internos grandes e suficientes – entre eles, uma desigualdade
social até certo ponto assustadora, além de problemas ambientais – para não gastar
energias em assuntos de outros países. Tudo pode ser resolvido pelo diálogo e por
seu poderio financeiro.
Não estamos colocando aqui que as relações internacionais chinesas com os
países periféricos ocorram sem traumas, sem contradições, nem muito menos isen-
tas de conflitos de interesse. O passado imperial chinês e sua condição de país
periférico suscitam questões que somente o futuro poderá responder.
O que supomos, neste caso, é a não proscrição da “teoria dos três mundos”. O
que existe, a nosso ver, é uma sofisticação de uma prática de relações internacio-
nais não mais pautadas em ajuda a guerrilhas falimentares e nem a movimentos
de libertação. Atualmente, com uma poderosa indústria endógena e um crescente
poderio financeiro e planejamento de seu comércio externo, o que existe é uma
sofisticação dessa política para um mundo altamente financeirizado e onde os cri-
térios de validação de presença internacional assentam-se muito mais em parâ-
metros econômicos que propriamente políticos. Há toda uma dialética envolvendo
política e economia, mas no caso chinês a política continua no comando. Entretanto,
dialeticamente, a política está ancorada em poderosos instrumentos econômicos
pautados em formas quase clássicas de inserção externa. Dizemos “clássicas” com
63
A questão da transferência de tecnologia para países pobres com “custo zero” é perceptível
nas intervenções de diplomatas chineses, por exemplo, na última Conferência do Clima, em Co-
penhague. Em contraposição, vale observar o pacote de “ajuda” do Banco Central Europeu e do
FMI à Grécia e as condicionalidades anexas, algo impensável de ser praticado pela diplomacia
chinesa.

295
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

a intenção de expor que as guerras de ocupação não fazem parte do repertório dos
chineses em sua política externa.
O papel das multinacionais, de seu sistema financeiro de novo tipo e, conse-
quentemente, dos IEDs, está no leme do processo. Pode parecer “mais do mesmo”,
mas quem leva a sério demais esse esquema pode estar equivocado.

5.2.3.1.1 Um rápido olhar sobre as multinacionais

A estratégia chinesa se insere num quadro de intensa realocação produtiva dos


países centrais aos países periféricos, tendo em “modelos” asiáticos de desenvolvi-
mento referências em matéria de política industrial, voltada ao acúmulo de capital
pela via de exportações com crescente gradação tecnológica. Contrariamente ao
Japão e à Coreia do Sul, Estados seminacionais sob ocupação estrangeira, a China
tem o diferencial da maior margem de manobra política para gerir seu destino e
pautar estratégias políticas, sociais e econômicas fora dos esquemas norte-america-
nos. Além disso, sua demanda é tão grande que se revela capaz de redimensionar
não somente a divisão internacional do trabalho como também os esquemas de
poder no âmbito das nações.
É recorrente neste trabalho a ideia de “potência financeira” capaz de pros-
crever o pós-Bretton Woods a partir de um comércio exterior não pautado pela
anarquia da produção, e sim por algo de novo tipo, planejado. O que seria a expres-
são desse crescente poder da China? Existem várias expressões, uma delas é sua
poupança interna, pronta para ser mobilizada internamente e, com isso, alterar
preços de commodities, respaldando assim o alavancamento econômico da periferia
do sistema e colocando em xeque – moral e politicamente – as verdades únicas e
universais do mainstream do pensamento social e econômico. Existe a grandeza de
suas reservas cambiais, que passam a ser uma necessidade urgente, dados os cres-
centes movimentos especulatórios que reservas da magnitude da chinesa suscitam.
Enfim, existem partes e existe um todo. A poupança interna e as reservas cambiais
são parte de um todo que se expressa, no final da década de 1990, na formação de
149 conglomerados estatais voltados a preencher espaços estratégicos na divisão
social do trabalho interna e também na configuração de uma nova divisão inter-

296
O desenvolvimento e suas faces na China

nacional do trabalho cada vez mais centrada na Ásia, em detrimento do capital


financeiro ter sede principal no Atlântico Norte.
A reestruturação do grande capital em âmbito mundial condicionou o soergui-
mento de nações e regiões inteiras, e a fusão do Estado revolucionário de Mao Tse-
tung com o Estado desenvolvimentista de Deng Xiaoping abriu um amplo relevo
de suporte ao surgimento de um novo paradigma em matéria de economia inter-
nacional. As multinacionais chinesas são expressão desse movimento, já inteira-
mente descrito ao longo deste trabalho. O dinamismo empresarial de tipo asiático
é demonstrado por Diego Pautasso64:

Entre as 100 multinacionais mais importantes do mundo periférico, 70 são asi-


áticas, sendo que 44 são chinesas e 21 indianas. Estas empresas cresceram cerca
de 24% por ano entre 2000 e 2004, 10 vezes mais que as multinacionais dos EUA,
24 vezes mais que as japonesas e 34 vezes mais que as alemãs.

A citação demonstra alguns elementos interessantes para o debate, entre eles


o dinamismo asiático capitaneado por Estados nacionais, comprometidos com pro-
jetos nacionais de largo alcance; a cada vez mais acirrada corrida oligopólica, tendo
agora como atores empresas de regiões periféricas do globo (o que por si só é uma
grande novidade), e a cada vez maior transferência do centro dinâmico econômico
mundial para a Ásia, centrada num país que, por ironia do destino, advoga uma
estratégia socializante após somente 20 anos da débâcle soviética, momento marca-
do pela enxurrada de publicações atestando o fim do socialismo como experiência
humana. Eis o detalhe mais significativo de todos.
Advogando a tese acerca da transformação da China numa potência financeira,
nada mais normal do que apresentarmos suas empresas como expressão disto. Por
que as empresas? Porque a grande empresa e o grande banco vão se tornando – como
processo histórico – o centro dos acontecimentos do mundo contemporâneo. Grande em-
presa e grande banco são consequências de um Estado nacional forte e senhor de seu
destino. Vejamos abaixo as principais multinacionais chinesas neste século XXI:
64
PAUTASSO, Diego. “Diplomacia e negócios internacionais: O caso das multinacionais chine-
sas”. In Think (Porto Alegre), v. 6, pp. 43-47, 2008.

297
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Tabela 25 – As grandes multinacionais chinesas no século XXI


EMPRESA SETOR DE ATUAÇÃO
Aluminum Corporation of China (Chalco) Minerais e metais
BOE Hudis Technology Company Computadores e componentes de tecnologia de informação
BYD Company Produtos eletrônicos
China Aviation Corporation Aeroespacial
China FAW Group Corporation Equipamentos automotivos
China HuaNeng Group Combustíveis fósseis
China International Marine Containers Group Company (CIMC) Transporte
China Minmetals Corporation Minerais e metais
China Mobile Communications Corporation Serviços de telecomunicações
China National Heavy Duty Truck Group Corporation (CNHTC) Equipamentos automotivos
China Netcom Group Corporation (CNC) Serviços de telecomunicação
China Petroleum & Chemical Corporation (Sinopec) Combustíveis fósseis
China Shipping Group Transporte
Chunlan Group Corporation Bens eletroeletrônicos
CNOOC Combustíveis fósseis
COSCO Group Transporte
Dongfeng Motor Company Equipamentos automotivos
Erdos Group Têxtil
Founder Group Computadores e componentes de tecnologia de informação
Galanz Group Company Bens eletroeletrônicos
Gree Electric Appliances Bens eletroeletrônicos
Haier Company Bens eletroeletrônicos
Hisense Bens eletroeletrônicos
Huawei Technologies Company Equipamentos de telecomunicação
Johnson Electric Motores e autopeças
Konka Group Company Bens eletroeletrônicos
Lenovo Group Computadores e componentes de tecnologia de informação
Li & Fung Group Têxtil
Midea Holding Company Bens eletroeletrônicos
Nanjing Automobile Groups Corporation (NAC) Equipamentos automotivos
Pearl River Piano Group Instrumentos musicais
PetroChina Company Combustíveis fósseis
Shanghais Automotive Industry Corporation Group (SAIC) Equipamentos automotivos
Shanghai Baosteel Group Corporation Siderúrgica
Shougang Group Siderúrgica
Sinochem Corporation Produtos químicos
Skyworth Multimedia Internacional Company Bens eletroeletrônicos
SVA Group Company Bens eletroeletrônicos
TCL Corporation Bens eletroeletrônicos
Techtronic Industries Company Motores e autopeças
Tsingtao Brewery Agroalimentares
UTStarcom Equipamentos de telecomunicações
Wanxiang Group Corporation Equipamentos automotivos
ZTE Corporation Equipamentos de telecomunicações

Tabela elaborada e gentilmente cedida por Diego Pautasso.

298
O desenvolvimento e suas faces na China

Na tabela 25 estão listadas 44 empresas multinacionais chinesas, das quais


38 são estatais. A área de atuação delas nos dá uma amostra inclusive da gradação
tecnológica que vêm ganhando suas exportações. Os setores em que estão atuando
também demonstram a preocupação chinesa com suas fontes de energia externas:
são duas empresas siderúrgicas, uma ligada ao setor de minerais e metais, uma
empresa do setor agroalimentar (a Tsintao, estatal que produz a melhor cerveja da
Ásia) e três petrolíferas.
Assim, tem-se uma visão de conjunto da área de ação das empresas chinesas
pelo mundo. Tudo altamente planejado e em concordância com os objetivos tra-
çados pelo Estado. As multinacionais chinesas são a extensão da própria política
externa do país.

5.2.3.1.2 O alcance dos IEDs chineses

Vamos nos ater ao que é geral e essencial no que se refere aos IEDs chineses.
Os IEDs da China no exterior seguem um parâmetro bem previsível, pelo menos
no aspecto da busca por fontes de energia. São sofisticados na medida em que lan-
çam mão de diferentes formas de se inserir no mercado internacional. Por exem-
plo, utilizando desde joint ventures, passando por uma visão estratégica de busca de
oportunidades no setor financeiro (serviços) e por fusão e aquisições, sobretudo em
momentos de crise de liquidez internacional65.
Outra forma de investimentos externos é a utilização de mecanismos finan-
ceiros externos para alavancar economias externas e partir para compras em eco-
nomias centrais e periféricas. Por exemplo, o recente pacote de U$ 586 bilhões
ajudou a atenuar a queda de economias como a da Alemanha, beneficiária da
demanda chinesa por maquinários e autopeças (somente no “giro alemão”, são
mais de US$ 10 bilhões em 36 pedidos com fabricantes de automóveis como Audi,
Volkswagen, BMW e Daimler. Ainda na Alemanha, foi feita uma oferta de US$
30 bilhões pelo escritório de P&D da Siemens, conforme informação exposta por
nós anteriormente).
Outros US$ 10 bilhões foram repassados à Petrobras em negócio mediado pelo

65
Mais uma vez, agradecemos a Luciana Acioly pela troca de ideias e disposição de dados.

299
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

China Development Bank (o maior banco de fomento do mundo), onde foi em-
penhado o pagamento em petróleo da camada do pré-sal. Nessa área de petróleo,
outros US$ 25 bilhões foram concedidos à Rússia para pagamento em óleo cru nos
próximos 20 anos. Além disso, acordos envolvendo US$ 12 bilhões foram fechados
com a Venezuela para o fornecimento de 1 milhão de barris de petróleo/dia até o
ano de 201566.

5.2.3.1.3 Fatores de expansão

A política de IEDs chineses é parte integrante de um complexo político e eco-


nômico que envolve a reprodução de sua política industrial. Trata-se de um mo-
vimento clássico já seguido por outros países. Uma diferença em relação ao Brasil
é que o que muito se lê sobre a internacionalização de nossas empresas é baseado
numa certa euforia conjuntural, dado o “acerto” de determinadas políticas. Acredi-
tamos que há um tipo de IED que sustenta o próprio projeto nacional e a acumu-
lação de capital, que passa a ser cada vez mais centrada na grande empresa. Outra
situação é as empresas irem ao exterior em fuga de determinados custos de produ-
ção imanentes em taxas de juros e spreads bancários de caráter extorsivo e de uma
taxa de câmbio que atropela a competitividade de empresas nacionais. É evidente
que o Brasil se enquadra nesse segundo grupo. Estivemos, em nossa visita mais
recente à China, na sede da empresa brasileira Marcopolo. Expusemos questões, e
a principal delas se referia às razões de se buscar filial na China e a uma política
de Estado no Brasil de incentivo a ocupar espaços no mundo. Com grande ironia,
o executivo da empresa nos brindou com uma assertiva direta: “Não saímos do
Brasil em nome de uma política de Estado. Muito pelo contrário, saímos do Brasil
expulsos pela taxa de câmbio...”.
Outro ponto envolve diretamente questões relativas a acúmulo de reservas
que, nesse caso, expressa – inclusive – um período de tempo de acumulação de forças.
Antes de aprofundarmos esse dado, visualizemos o gráfico a seguir:

66
“Comendo pelas beiradas”. Estado de Minas, 22-02-2009.

300
O desenvolvimento e suas faces na China

Gráfico 6 – China: fluxo e estoque de IED no exterior, 1990-2008 (em


bilhões de US$)

150 –
140 –
130 –
120 –
110 –
100 –
90 –
80 –
70 –
60 –
50 –
40 –
30 –
20 –
10 –
-–


















1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008
Fluxo Estoque

Elaborado e gentilmente cedido por Luciana Acioly e Rodrigo Leão.

O que se percebe é que somente na última década é que se dá a saída de capi-


tais chineses para o exterior. Algo que se associa ao aumento expressivo das reser-
vas cambiais, à criação dos 149 conglomerados estatais e à formação de um fundo
soberano (em 2007, com aportes iniciais de US$ 200 bilhões) que se direciona à
aquisição de ativos no exterior. Algo em gestação, mas com forte resistência no Bra-
sil. Os fundos soberanos chineses estão entre os cinco maiores do mundo, ao lado
dos de Dubai, Noruega, Catar e Cingapura.
Durante todo o período inicial das reformas, a grande prioridade do regime era
buscar, ao mesmo tempo em que adquiria máquinas para as suas cadeias produti-
vas, um balanço de pagamentos indutor à formação de grandes reservas cambiais.
Nesse caso, o controle da conta de capitais serviu não somente para disciplinar o
capital estrangeiro que saía do país, mas também para impedir que os capitais chi-
neses saíssem em busca de oportunidades externas em detrimento da necessidade
de se ocupar espaços internos. A conservação das reservas cambiais do país era a
prioridade em um mundo em que a globalização dos mercados financeiros avança-

301
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

va em grande velocidade. Porém, não nos esqueçamos do que já foi dito acerca da
imediata tarefa de ocupar espaços internos.
Como se observa no gráfico, o salto acontece, principalmente, a partir de 2002
e entre 2006 e 2008. A principal razão está na institucionalização de um chamado
going global, referendado no 16° Congresso Nacional do PCCh, onde todos os tipos
de incentivos políticos e financeiros foram lançados como suporte a essa nova orien-
tação, já baseada em uma larga base financeira. Um ponto que não se pode deixar
de lado é essa expansão seguir o mesmo ritmo de certa ousadia em política exter-
na. Para ilustrar, se em 1990 a China fez vistas grossas à participação da ONU na
Guerra do Golfo, atualmente ela tem-se oposto a uma solução de força contra o Irã.
Sugestivo.

5.2.3.1.4 Evolução e lógica geográfica do processo

Após uma quadra de “acúmulo de forças”, no sentido financeiro do termo,


os chineses adentram com muita força na era de internacionalização de seu pró-
prio capital. Os números são muito elucidativos a esse respeito, conforme Acioly e
Leão67:

Os fluxos de investimento direto chinês no mundo multiplicaram-se por mais


60 vezes entre 1990 e 2008, segundo os dados da United Nations Conference of
Trade and Development (Unctad). Em 1979, quando a China iniciou seu pro-
cesso de abertura, esses investimentos saíram de um valor próximo a zero para
atingir US$ 830 milhões em 1990 e, posteriormente, US$ 52,1 bilhões em 2008.

Outras informações levantadas pelos autores citados ainda nos chamam a


atenção e são dignas de nota: em 2008, a China já havia se tornado – entre os países
periféricos – o segundo maior investidor estrangeiro, atrás apenas de Hong Kong,
com 7% do valor total de investimento estocado. Os chineses ocupam o 24° posto
mundial na modalidade “estoque”, estando atrás de Rússia (14°) e Brasil (21°).
Acerca, ainda, da natureza dos IEDs chineses, vale comentar que, apesar de
não termos exatidão do tamanho, muitos chineses continentais gerenciam seus

67
ACIOLY, L. & LEÃO, Rodrigo P. F. “A internacionalização das empresas chinesas”. In Carta
Sobeet. São Paulo. Ano XII, n. 54, abril/2010.

302
O desenvolvimento e suas faces na China

negócios produtivos e financeiros tendo como base a Região Administrativa Espe-


cial de Hong Kong. Por outro lado, avaliar o alcance desse tipo de investimento para
o caso chinês não é simples: trata-se de um exercício de certa complexidade. Quan-
do colocamos que a China encampa a grande empresa como parte principal de sua
estratégia, é importante observar que a própria expansão da mesma é o centro de
sua política de IEDs. Não é incomum, para o caso chinês, confundir os IEDs com
puro e simples investimento em ativos de tipo matéria-prima em outros países,
principalmente os periféricos. Vejamos a tabela abaixo para melhor apreendermos
essa complexa questão:

Tabela 26 – China: os dez maiores receptores de IED chinês,


2004 - 2008 (em milhões de US$)
País 2004 2005 2006 2007 2008
Hong Kong 2.628 3.420 6.931 13.732 38.640
África do Sul 18 47 41 454 4.808
Ilhas Virgens 386 1.226 538 1.876 2.104
Austrália 125 193 88 532 1.892
Cingapura 48 20 132 398 1.551
Ilhas Cayman 1.286 5.163 7.833 2.602 1.554
Macau 27 8 - 43 47 643
Cazaquistão 2 95 46 280 496
Estados Unidos 120 232 198 196 462
Rússia 77 203 452 478 395
TOTAL 5.498 12.261 17.634 26.506 55.907
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

Suscita muitos questionamentos e dúvidas a tabela acima. Porém, tenhamos


em mente a questão sobre “oportunidade de negócios”. Nesse mote, oportunidade
de negócios é sinônimo de custos financeiros, aproximação com mercados finan-
ceiros, montagem de holdings e matrizes em praças financeiras. Significa também
fusões e aquisições de ativos, também financeiros, no exterior. Além, obviamente,
de investimentos produtivos “puros” em infraestruturas e matérias-primas para
reprodução do capital. Daí a ênfase em negócios sediados em Hong Kong, uma das
principais praças financeiras do mundo. A isso se enquadram também as Ilhas
Virgens, Cayman e os próprios Estados Unidos.

303
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

No caso de Cayman e Ilhas Virgens, cerca de 80% das empresas multinacio-


nais chinesas têm ali sedes instaladas. Trata-se de localidades onde há negócios
de serviços envolvendo transações financeiras de altíssima monta e onde existem
grandes incentivos fiscais e financeiros para instalação, além do “conforto” da con-
centração de ações de centenas de empresas, entre elas da Bolsa de Nova York, onde
as ações da Petrobras são leiloadas. Cita-se como exemplo também a aquisição de
16,5% da mineradora australiana Fortescue Metal pela Hunan Valin, que ocorreu
sob os auspícios da praça financeira de Hong Kong. Nesse mesmo caso entra a (po-
lêmica) decisão da Chinalco de investir US$ 19,5 bilhões no grupo austro-britânico
Rio Tinto, empresa com ativos espalhados em praças como Hong Kong, Ilhas Vir-
gens e Cayman68.
A partir de alguns exemplos didáticos, o que fica é a concentração de inves-
timentos chineses no exterior em compra de ativos de empresas do setor mine-
ral. Trata-se de uma forma de evitar negócios diretamente pautados por preços
de mercado (minério de ferro, por exemplo) em favor do controle direto chinês
sobre ativos de empresas do setor. Além disso, essa concentração de IEDs em
Hong Kong tem muito a ver com a própria forma de incorporação dessa Região
Administrativa Especial ao território chinês. Se há 30 anos essa incorporação
se dava, notadamente, pelo setor produtivo, atualmente ela ocorre nos marcos
da maximização de suas potencialidades existentes no setor financeiro, dado o
fato de as Bolsas chinesas (Xangai e Shenzen) ainda estarem concentradas em
negócios envolvendo – quase exclusivamente – a necessidade de financiamento
de empresas chinesas.
Outra evidência dessa tendência de IEDs centrados no fortalecimento de em-
presas chinesas e de busca de ativos no exterior está no próprio salto, entre 2007 e
2008, das operações em Hong Kong, de quase 200%. Nos Estados Unidos, o salto
foi de mais de 150% e em Macau, passou dos 1.000%. Nunca é demais deixar claro
que 2008 foi o ano inicial de uma crise financeira que, como toda crise sistêmica,
inibe a aplicação de bilhões de dólares em negócios envolvendo fusões e aquisições.
E os chineses – conforme demonstram os números – estavam preparados para esse
momento, em mais uma demonstração de força de uma potência financeira em as-
68
MOREIRA, Assis. “China vai às compras atrás de ativos baratos”. Valor econômico, 26-02-
2009.

304
O desenvolvimento e suas faces na China

censão. Resumindo, as fusões e aquisições no exterior são a parte mais importante


dos IEDs chineses.
Vejamos a distribuição internacional dos IEDs chineses por região:

Tabela 27 – China: distribuição internacional de IEDs, 2004-2008


(em %)
Continente 2004 2005 2006 2007 2008
Ásia 54,8 36,6 43,5 62,6 77,9
África 5,8 3,2 2,9 5,9 9,8
Europa 2,9 3,2 3,4 5,8 1,6
América Latina 32,1 52,7 48,0 18,5 6,6
América do Norte 2,3 2,6 1,5 4,2 0,7
Oceania 2,2 1,7 0,7 2,9 3,5
Fonte: ACIOLY, L. & LEÃO, Rodrigo P.F. “A internacionalização das empresas chinesas”.

Devemos ser minuciosos. Os dados cedidos a nós por Luciana Acioly sugerem
outras formas de análise. Por exemplo, se descontados os investimentos em praças fi-
nanceiras como Hong Kong, Cayman e Ilhas Virgens, o valor “sobrante” fica em US$
37,2 bilhões, investidos em 170 países, em mais de 10 mil projetos empenhados por
cerca de 5 mil investidores. O quadro muda em 2008, para 51,6% dos investimentos
na Ásia e Oceania (regiões ricas em petróleo, gás natural e minério de ferro), 21% na
África, 13,7% na Europa, 9,7% na América do Norte e 3,8% na América Latina.
Em todos esses casos, o interesse central se concentra nos hidrocarbonetos,
além de produtos dos países da Asean69, que recebem cerca de 30% dos investimen-
tos chineses e, além de petróleo e gás, recebem também investimentos em setores
relacionados ao agronegócio.
Porém, é com a África que a China mantém relações continentais e onde joga
todo o peso de sua diplomacia, transformando-a num laboratório de sua política
externa. Dentro de uma visão de processo histórico, a China – na atualidade – vai
construindo algo que se coloca como a antítese das resoluções da Conferência de
Berlim de 1885, marcada pela partilha do continente africano entre algumas potên-

69
A Associação de Nações do Sudeste Asiático é composta pelos seguintes países: Tailândia,
Filipinas, Malásia, Cingapura, Indonésia, Brunei, Vietnã, Mianmar, Laos e Camboja.

305
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

cias “democráticas”. É sob a marca do que o professor Bernardo Kocher chama de


“diplomacia financeira” que as relações entre os “dois continentes” se desenvolvem70.

5.3 O CRÉDITO E AS “MÚLTIPLAS FORMAS DE


FINANCIAMENTO” COMO MOTOR PRIMÁRIO DO
DESENVOLVIMENTO CHINÊS
Algumas vezes, neste livro, buscamos fazer certa analogia histórica entre o
papel da siderurgia para o modelo soviético e o grau de importância do sistema fi-
nanceiro de novo tipo para o socialismo de mercado chinês. Não é por menos. Talvez
nenhum projeto nacional recente tenha sabido lidar com os instrumentos da eco-
nomia monetária da mesma forma que o chinês. Diferentemente da União Soviéti-
ca, que se restringiu a utilizar os bancos apenas como local de saques e depósitos, a
China está utilizando todo seu potencial na forma de poupança, a maior do mun-
do, da mesma forma que estende suas cadeias de financiamento a outras formas,
entre elas o uso de um emergente mercado de capitais interno (Xangai e Shenzen)
e outro externo (Hong Kong) e a capilarização de cooperativas e crédito no campo.
A entrada da China na era da formação de grandes conglomerados e das imen-
sas necessidades de investimentos em infraestrutura, assim como a instituciona-
lização de toda uma reserva de mercado no oeste do país, levou o país a colocar
o crédito como o motor primário de seu desenvolvimento71. Se Marx descobriu na
economia monetária a maior invenção do capitalismo, a China a utiliza para repro-
dução de seu próprio socialismo.

5.3.1 Capitalismo, socialismo e sistema financeiro

Falando em socialismo, algumas considerações são pertinentes sobre o siste-


70
Infelizmente o espaço – neste livro – é um tanto limitado para aprofundar a análise das rela-
ções entre a China e a África. Assim, indicamos a leitura de: OLIVEIRA, A. Porto de. “A política
africana da China”. Disponível em: <http://www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/674760.
pdf>. Acessado entre os dias 15 e 27-03-2008.
71
Sobre essa relação entre o papel do crédito e o processo de acumulação de capital, indicamos
a indispensável leitura da tese de doutorado do prof. Luiz Gonzaga Belluzzo, intitulada Valor e
capitalismo – Um ensaio sobre economia política, editada recentemente pela Editora da Unicamp.
Belluzzo, o mais completo economista brasileiro da atualidade, há muito tempo sustenta ar-
gumentos sobre o papel do crédito para o desenvolvimento chinês, mesmo na contratendência
daqueles que davam ênfase a aspectos como “mão de obra barata” e outras superficialidades.

306
O desenvolvimento e suas faces na China

ma de financiamento a partir das bases de uma república de tipo popular que busca
a superação do atraso e da condição periférica sob o manto de um “socialismo com
características chinesas”. O futuro tanto do capitalismo quanto do socialismo está
no papel do sistema financeiro. Daí trabalharmos a hipótese de um século XXI
pautado por, pelo menos, dois paradigmas:

a) a formação de uma economia continental chinesa nos marcos da unifi-


cação do território econômico chinês;
b) a transformação da China em uma potência financeira, capaz de abolir
o mundo que surgiu das entranhas de Bretton Woods, condição objetiva
para a solução da questão nacional no restante da periferia do sistema.

Estamos falando da transição capitalismo-socialismo, da mesma forma que


não se pode analisar o século XX sem colocar em pauta a transformação dos Esta-
dos Unidos em uma economia continental unificada na segunda metade do século
XIX e o próprio evento que inaugurou o século XX, a Revolução Russa.
A China, neste século, caminha para ser uma síntese desses dois aconteci-
mentos: uma grande extensão do modelo norte-americano de ligações territoriais
leste-oeste (que Lênin guardava como exemplo a ser alcançado pelo socialismo, afi-
nal a “anatomia do macaco se compreende a partir da anatomia humana”) e uma
“natural” consequência dos eventos de Petrogrado liderados por Lênin em 1917 e
da repercussão da grande batalha de Stalingrado na 2ª Guerra Mundial.

aaaaaaaaaaaa

Na via prussiana de tipo socialista a questão do financiamento se resolveu da for-


ma mais dramática possível. A siderurgia, que serviu como condição objetiva para
expulsar os alemães do território soviético e libertar a Europa do jugo nazista, fez
a China ter média de crescimento, entre 1949 e 1978, semelhante às dos “tigres
asiáticos”. Porém, sua construção foi baseada numa relação desigual entre campo
e cidade. Mesmo as tentativas de Mao de inverter essa lógica, frequentemente com
custo social e político altíssimo, acabaram se tornando a base para o lançamento
do salto chinês pós-1978.

307
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Nada disso é novidade, nem a observação acerca de um mix, na China pós-


1978, da citada via prussiana de tipo socialista com a via dos produtores, muito marcan-
te no nordeste dos Estados Unidos. A transformação de pequenos produtores em
industriais – com o passar do tempo – só pode ocorrer e se sustentar sob a lógica
da intermediação financeira, assim como o legado da via prussiana socialista nos
149 conglomerados estatais depende de um salto de qualidade no financiamento
da produção.
A fusão do banco com a indústria entra na ordem do dia do socialismo nota-
damente no final da década de 1970. A China é uma demonstração dessa tendência
e o Vietnã caminha no mesmo rumo. Atualmente, o maior banco do mundo em
valor de mercado é chinês (ICBC) e, se compararmos a presença dos bancos estran-
geiros em mercados periféricos, perceberemos que os dois maiores são também
chineses (ICBC e China Construction Bank)72. Se tomarmos outro ângulo de visão,
mais precisamente os dois pontos levantados como os principais paradigmas do
século presente, podemos concluir a relação altamente dialética entre um fator e
outro: os bancos chineses são a bomba ejetora do processo de desenvolvimento
no oeste chinês, um processo que se retroalimenta com repercussões no mundo
a serem ainda calculadas, ainda que enormes contradições existam no presente e
surjam no decorrer do processo.
Em perspectiva histórica, vivemos uma época de hipertrofia do sistema fi-
nanceiro. Com todo respeito, somente para os incautos essa tendência é novidade,
pois se trata de uma tendência histórica apontada por Lênin em O imperialismo, fase
superior do capitalismo. O marco-chave dessa tendência está registrado no abandono
norte-americano do padrão-ouro (em 1973), no aumento das taxas de juros, no
estrangulamento financeiro da periferia (crises da dívida) e nos Acordos de Plaza
impostos ao Japão em 1985 – somente para citar alguns exemplos.
Esse processo histórico de retomada de espaços perdidos no mundo pela via de
uma ditadura militar global e pela plena utilização do dólar como expressão de
72
“Eles podem virar gigantes – O setor bancário nos mercados emergentes”. In Carta Capital, n.
598. Ano XV, 02-06-2010, pp. 35-53. Entre 2005 e janeiro de 2010 os lucros do ICBC quase dupli-
caram. Foi o banco que mais cresceu no mundo durante a crise. Por exemplo, somente em 2009
cerca de US$ 11 bilhões foram investidos em compra de ativos na Indonésia, Macau e África do
Sul. Tanto na China quanto nos países em que está presente, suas atividades estão concentradas
no fomento de cadeias produtivas, C&T e infraestruturas urbanas.

308
O desenvolvimento e suas faces na China

poder mundial (aliás, a moeda, em qualquer momento da história, é expressão


de poder) culminou na intensa propaganda, na década de 1990, em torno do fu-
turo do planeta atrelado à lógica financeira do centro do sistema. “A história aca-
bou” e o futuro chegou sob a forma de um banco de investimentos. Esse sistema
foi apresentado como uma espécie de “panaceia de Novo Mundo”, algo acima do
bem e do mal. O sistema como grande líder infalível, como o Big Brother de Geor-
ge Orwell, ou, menos religiosamente, a “turma da bufunfa”, como coloca o nosso
querido mestre Luiz Gonzaga Belluzzo em referência a “investidores estrangeiros”
que encontram em nossa moeda supervalorizada um porto seguro para atividades
de lesa humanidade73.
Atualmente, o que mais existem são dúvidas sobre o futuro da hu-
manidade. O futuro do sistema financeiro internacional é, por exem-
plo, grande fonte de questionamentos. A resistência a uma nova ordem
financeira é colossal e tem guarida no próprio sentido do poder no capitalismo cen-
tral. Os bancos exercem o poder político, principalmente nos EUA74. Eis o grande
drama do mundo contemporâneo. Não se trata de uma forma ideológica de ver o
mundo. Classificar as coisas dessa forma é se conformar em fugir daquilo que nos
cerca. A realidade se encontra diante de nós, a olhos vistos. Observar e compreen-
der essa realidade deve ser tarefa precípua de cada um de nós. O que está em jogo
é o futuro da espécie humana.
Concomitantemente a esse processo histórico, outro processo centrado na Ásia
surgia, há mais de 30 anos, cheio de dúvidas – da direita e da esquerda – e cheio
de marcas registradas. Uma delas refere-se a um sistema financeiro que se expan-
de em proporção ao tamanho da demanda de seu país. A opção pela política de
substituição de importações, notadamente na América Latina, foi alvo preferencial
de ataques do mainstream do pensamento único econômico. Sustentamos que o
problema da superação da política de substituição de importações não estava no
modelo em si, e sim na necessidade de fundir esse esforço industrializante com o
papel histórico a ser cumprido pelo sistema financeiro. As políticas de estabilização
estancaram esse processo. Assim, fica mais tênue a compreensão de que, no mesmo

73
BELLUZZO, Luiz G. “A peste holandesa”. Valor econômico, 18-08-2009.
74
Recentemente, o presidente norte-americano Barack Obama convocou para uma reunião os
donos dos 14 maiores bancos norte-americanos. Nenhum deles compareceu.

309
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

momento em que o sistema financeiro do centro financeiro era alçado ao grau de


senhor do reino celeste, a literatura dita científica passou a centrar fogo no sistema
financeiro chinês. Na verdade, em 30 anos, nessa matéria a China vem ganhando
posições que o capitalismo central demorou mais de 150 anos para ganhar. O gran-
de país asiático vai construindo seu quinhão de poder mundial com os mesmos
mecanismos norte-americanos testados por meio do Plano Marshall na Europa,
o que constitui sinal de grande evolução, nada agradável à “teologia do mercado”,
diga-se de passagem. Também nessa matéria, os chineses se colocam como a antí-
tese da “verdade revelada” pelos teólogos do pensamento único.
Para compreender esse complexo financeiro em que está se transformando
a China, tentaremos – a título de experiência – dar maior vivacidade à análise.
Porém, faremos o sentido inverso. Após essa abordagem mais histórica, comen-
taremos algumas passagens sugestivas de nossas recentes viagens à China. Em
seguida, apresentaremos algumas datas e números, para uma visão mais conjunta
da essencialidade do processo.

5.3.2 Exemplos e viagens

Primeiro episódio: corria o ano de 2004, mais precisamente o mês de maio.


Havíamos chegado a Pequim, com escala em Hong Kong, no início de março. Após
desgastantes viagens de trem entre Pequim, Hohhot (capital da Mongólia Interior),
Tianjin e Xangai – lugares em que havíamos tentado decifrar algo relacionado a
desenvolvimento urbano e visitado a recém-instalada indústria de gás natural da
Mongólia Interior, a instalação de uma Zona de Alta Tecnologia em Tianjin e pas-
sado por Xangai –, decidimos pegar um barco de Xangai para Chongqing. A curio-
sidade era imensa para conhecer a antiga capital do Império e verificar de perto a
quantas andava o projeto de transformar essa cidade na “Chicago Chinesa”.

5.3.2.1 Conversas esclarecedoras

Antes de conhecer a “Chicago Chinesa”, estávamos em Xangai. Saímos do


Brasil com a curiosidade de esclarecer a velha e boa questão que os economistas
mais gostam de fazer: quem financia isto? Quem financia aquilo? Duas conversas

310
O desenvolvimento e suas faces na China

foram essenciais antes dessa viagem. A primeira, na defesa do relatório de qualifi-


cação ao mestrado ocorrida em 2003, quando o professor Dante Aldrighi, da FEA-
USP, me bombardeou com esse tipo de questão, inclusive a tão propalada questão
da “saúde financeira” dos bancos chineses. Na verdade, em início de carreira como
pesquisador, estávamos mais acostumados e interessados em conhecer o fim do
processo do que o meio dele. Tivemos outra conversa com Armen Mamigonian e
com o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, na residência deste último.
O professor Belluzzo tratou logo de encaminhar a conversa para duas ques-
tões. A primeira, o papel do crédito para o desenvolvimento chinês. Economista da
Unicamp, profundo conhecedor da obra de Ignacio Rangel (sobretudo seu clássico
marxista de economia monetária, A inflação brasileira), ele sabe como poucos sobre
a centralidade da fusão do banco com a indústria para o processo de desenvol-
vimento. Belluzzo falava de uma relação entre crédito na praça e o montante do
PIB chinês da ordem de 194% (em 2009, no auge da crise, esse índice alcançou a
marca de 210%), enquanto no Brasil, de Palocci e Meirelles, a relação era em torno
de 40%. A quase unanimidade achava perigoso esse índice. Outro dado: o siste-
ma financeiro chinês é basicamente estatal. Disse-nos isso após questionar sobre
a saúde financeira do sistema bancário chinês. Subentende-se: se os bancos (que
são estatais) quebram, o próprio regime fica proscrito. A China não era a Coreia do
Sul das “cascas de banana”, dos empréstimos de curto prazo. A história recente deu
razão ao mestre Belluzzo: quem quebrou foi o Lehman Brothers e não os bancos
chineses de fomento.
Os bancos na China são subordinados aos interesses da superestrutura e não à
essência da superestrutura, como nos Estados Unidos. Compreende-se isso ou não
se compreende nada. Câmbio ajustado aos interesses nacionais mais institucionali-
zação de reservas de mercado para as empresas chinesas, mais as maiores reservas
cambiais do mundo, mais sistema estatal de financiamento, mais projeto nacional
de desenvolvimento é igual a juros atraentes ao crédito e, consequentemente, de-
senvolvimentismo com características chinesas.
Uma forma de se ter contato com essa realidade é conhecer o dia a dia de uma
agência bancária chinesa ou mesmo de corporações com ações em Bolsa e os proje-
tos de um ministério. Os dados estatísticos se tornam um essencial complemento.
Kant colocava que “não se pode tomar o espírito senão por partes”. Vamos por

311
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

partes, do modo mais didático possível. O exemplo de Chongqing e a obra de Três


Gargantas como partes do todo são suficientes como expressões empíricas iniciais.

5.3.2.1.1 Chongqing e Três Gargantas

Voltando a tratar da viagem a Chongqing, nesse caminho de alguns dias de


barco pudemos trocar experiências com muitos taiwaneses que se instalavam nas
margens do rio Yang-Tsé com suas pequenas, médias e grandes empresas. Tratavam
inclusive de abrir contas bancárias nas agências de Chongqing, transferindo para lá
alguns milhões de dólares, capital a ser investido puramente na produção. Assim
como havíamos percebido em Pequim e Xangai, havia pelo menos duas agências
bancárias por quarteirão, pertencentes ao Bank of China (BC), ao Agricultural Bank
of China (ABDC), ao gigantesco Industrial and Commercial Bank Of China (ICBC) ou
ao Construction Bank of China (CBC). Esses quatro bancos formam o Big Four, centro
nervoso do sistema financeiro da China, formado em 1985 pela transferência de
funções de banco comercial e de desenvolvimento do People’s Bank of China que,
por sua vez, passou a ter funções típicas de Banco Central em 198375. Mais adiante,
voltaremos a tratar do papel dessas instituições.
A necessidade de centralização de recursos em moeda estrangeira é evidente
no fato de, em qualquer agência bancária, estar disponível um serviço de câmbio.
O papel do mercado negro de câmbio na União Soviética na drenagem de recursos
estatais parece ter alarmado os chineses; essa impressão foi solidificada após uma
rápida entrevista com um gerente de câmbio de uma agência do Bank Of China,
nessa mesma Chongqing.
Utilizar o caso de Chongqing para tratar de esquemas de financiamento de
uma economia do porte da chinesa é um exercício interessante. Como já dissemos
anteriormente, trata-se de uma municipalidade diretamente subordinada a Pe-
quim e que tem sob sua jurisdição 40 cantões e povoados, 31 milhões de habitantes
e um território de 82.000 km2, o equivalente a seis vezes o território da Bélgica.
Na condição de um centro motriz de expansão regional, não é de causar surpresa
75
Agradecemos ainda ao mestre em economia aplicada pelo IE-Unicamp, Rodrigo Leão, pela dis-
ponibilização de dados centrais para nosso argumento, além das conversas interessantes sobre
o tema. Defendeu, recentemente, sob a orientação de professor Carlos Alonso Barbosa, disserta-
ção de mestrado intitulada Padrão de acumulação e desenvolvimento da China.

312
O desenvolvimento e suas faces na China

que seu crescimento ainda tenha muito de transferência orçamentária, mas tendo
também um papel crescente do setor financeiro. Como exemplo, sua taxa média de
crescimento entre 1978 e 1997 foi de 5,7% e, desde então, subiu para a média atual
de 11,7%76.
Sua grande demanda nasce de uma massa salarial resultante de uma transfe-
rência anual pelo governo central, desde 2001, de US$ 20 bilhões na forma de infra-
estruturas em energia e transportes. Já o crescimento de seus depósitos bancários
tem média anual de 12%77, o que por si só vai se tornando uma base financeira
para o seu suporte futuro de crescimento. A transição de uma economia baseada
na agricultura de seu entorno e na indústria do gás natural para outra multiforme
é outra face que revela inclusive a necessidade de captação de recursos por institui-
ções financeiras baseadas localmente. Em Chongqing – por mais que as agências
bancárias das quatro instituições mencionadas estejam em grande expansão – os
incentivos de abertura de conta corrente e de depósitos em cooperativas de crédito
rural e urbano (voltadas ao suporte de, por exemplo, ECPs) são a tônica em jornais,
rádios e televisão. Um exame mais meticuloso das razões por detrás desses tipos
de campanha nos levou a perceber que o volume de crédito oferecido por essas co-
operativas está diretamente relacionado aos depósitos existentes. Os depósitos são
os lastros dessas instituições, enquanto os negócios envolvendo títulos da dívida
pública têm cumprido (ao lado dos depósitos) seu papel para a liquidez dos quatro
grandes bancos chineses.
Atualmente, percebe-se em Chongqing uma grande corrida atrás de crédito
para formação de ECPs como indústrias ancilares às que se deslocam para a re-
gião, como a siderúrgica, a automobilística e a alimentícia. Boa parte da busca por
créditos na municipalidade está direcionada à formação de bases produtivas com-
plementares às novas indústrias que chegam à região (em torno de 25%, segundo o
gerente de crédito do Banco da China que entrevistamos em Chongqing em 2004).
Assim, alarga-se o escopo de atuação dessas cooperativas, principalmente em cida-
des localizadas no oeste do país.
De Chongqing, partimos para Yichang, cidade-sede da usina hidrelétrica de
Três Gargantas, situada a algumas dezenas de quilômetros de Chongqing. Tínha-
76
Chongqing Statistical Yearbook, para todos os anos.
77
Chongqing Statistical Yearbook, para todos os anos.

313
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

mos visita marcada e encontro a se realizar pontualmente com um economista


enviado de Pequim para gerenciar os custos financeiros da obra, a maior já em-
preendida na área de engenharia do mundo moderno, com custos que variam –
segundo as fontes – de US$ 22,5 a US$ 25 bilhões, transformando Três Gargantas
num marco da utilização de formas múltiplas de financiamento. O acúmulo de
métodos licitatórios modernos começou com a construção da usina hidrelétrica de
Ertan. O instituto da reserva de mercado permeou o processo de mercantilização de
energia em detrimento de subsídios estatais.
Esse economista que nos recebeu na obra discorreu por pelo menos uma hora
acerca das formas de financiamento, destacando a transferência direta de recursos
públicos e o pagamento de royalties para as cidades do entorno do empreendimento.
Sua última e mais instigante observação nos remeteu ao exemplo de pelo menos
duas empresas brasileiras: Petrobras e Eletrobrás, que foram criadas sob um estatuto
jurídico de empresas públicas concedidas para outra empresa pública. Isso significa que essa
empresa tem permissão para buscar fundos fora dos marcos do orçamento estatal.
Logo, o controle da empresa pelo Estado segue uma lógica puramente política, assim
como sua submissão aos planos estratégicos traçados pelo Estado nacional. O finan-
ciamento pela via do mercado de capitais veio instantaneamente à nossa mente.
Duas corporações foram formadas para enfrentar a batalha pelo financiamen-
to nas Bolsas de Xangai e Shenzen. A primeira, nomeada de Corporação para o
Desenvolvimento das Três Gargantas do Rio Yang-Tsé da China, é voltada para a
captação de recursos exclusivos para a obra de Três Gargantas. Já a Companhia de
Eletricidade Changjiang da China, formada em setembro de 2002, foi um impor-
tante passo estratégico para captar recursos para outros projetos elétricos no rio
Yang-Tsé. Fala-se que foram captados US$ 6,2 bilhões em bolsas de valores para o
projeto de Três Gargantas, algo em torno de 25% da obra. Esse tipo de operação foi
seguido em outras obras, como o gasoduto Oeste-Leste e a ferrovia Qinghai-Tibete.

5.3.2.1.2 Pequim, janeiro de 2007: no Ministério das Ferrovias

Entre abril de 2006 e fevereiro de 2007, trabalhávamos na Assessoria Econô-


mica da Presidência da Câmara dos Deputados, em Brasília. No mês de janeiro
de 2007, a convite da Embaixada da China no Brasil, um grupo formado por dois

314
O desenvolvimento e suas faces na China

parlamentares foi designado para visitar a China, ficando a nosso cargo a elabora-
ção do roteiro e instituições a serem visitadas juntamente com representantes da
embaixada. Evidentemente, fizemos o possível para visitar órgãos relacionados a
obras de infraestruturas, além de conhecer cidades do interior (como Chongqing),
onde esse tipo de investimento andava a todo vapor. O interesse não era por menos.
O objetivo era impressionar nossos parlamentares, além de procurar investigar me-
lhor os meandros do problema do financiamento, que ainda não estavam claros.
Um ministério-chave a ser visitado seria o relacionado ao transporte sobre
trilhos, o poderoso Ministério das Ferrovias. O primeiro momento da visita foi a
exposição dos objetivos do 11º Plano Quinquenal (2006-2010), em execução. Aqui
no Brasil, se comentava bastante sobre o projeto ferroviário Pequim-Xangai. Po-
rém, nessa visita, pudemos perceber que essa obra é apenas parte de um todo que
envolve gastos de US$ 128 bilhões no setor. Um passo gigantesco será dado com o
objetivo de unificar o território econômico chinês, por meio da construção de 2,5
mil novos quilômetros de trilhos por ano. Cerca de 60% das obras estão direciona-
das para o oeste do país, seja com o objetivo de unificar mercados regionais, seja em
prol da já citada unificação territorial e econômica do país.
O momento propício para saber de onde sairiam os recursos e – consequen-
temente – para delinear um debate menos superficial sobre a questão do finan-
ciamento se deve a um ponto levantado durante nossa audiência nesse mesmo
ministério, onde fomos recebidos por Chen Juemin, chefe do Departamento de Co-
operação do Ministério das Ferrovias, acompanhado de sua equipe de economistas,
todos com menos de 40 anos de idade.
Após Chen Juemin repetir as informações sobre os principais investimentos
e o valor a ser investido pelo setor, houve oportunidade de questionar acerca dos
canais de financiamento de tais investimentos, tendo em vista que o orçamento
do ministério não comportava tal cifra, e que as concessões de serviço público a
empresas públicas, por si só, não seriam capazes de, com sua capacidade de busca
de fundos para as obras, “fechar a conta” dos investimentos previstos e em an-
damento. O que acontece, nas palavras dele, é que “os ministérios responsáveis
por gerir grandes empreendimentos têm cerca de 60% do orçamento dotado pelo
Estado e pelos governos provinciais. A outra parte do orçamento cabe aos bancos
emprestarem aos ministérios”.

315
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Tal medida parece ser algo no mínimo novo para o vocabulário econômico da-
queles que habitam num país onde as palavras “investimento” e “crédito” somente
agora estão voltando a ser mais usuais. Porém, se percebermos que os empreendi-
mentos – dadas as necessidades imediatas do país – têm altíssimo índice de liqui-
dez, o retorno do investimento é garantido. O ressarcimento do crédito bancário
pode variar de 15 a 20 anos, com juros não revelados. Para aqueles que acreditam
em alguma “caixa-preta” como sinônimo de financiamento da produção na China,
essa relação entre bancos e ministérios pode ser algo no mínimo elucidativo.
Trabalhemos melhor, a partir desses exemplos, essas formas de financiamento
citadas.

5.3.3 Transitando para um novo sistema financeiro

Tentamos mostrar, da forma mais didática possível, certa correspondência en-


tre o crédito, em um país onde ele é fator primaz de fomento ao investimento, e
o desenvolvimento. A China, em primeiro plano, instituiu o que chamamos de
“centro nervoso do seu sistema financeiro”, formado por quatro grandes bancos
estatais, os Big Four. Eles foram formados na esteira de dois processos, entrelaçados
e intrínsecos a qualquer processo de desenvolvimento. São eles:

a) o movimento de elevação dos depósitos bancários como expressão de


um aumento tanto de lucros de empresas quanto da massa salarial, re-
sultante das primeiras reformas rurais direcionadas à liberalização de
excedentes agrícolas;
b) o movimento diretamente ditado pelo aumento da demanda por cré-
ditos bancários em um país cujo desenvolvimento rápido e acelerado
transformou-se em objetivo mater do regime.

Por outro lado, utilizando os exemplos, cabem ainda outras ponderações que
julgamos necessárias. A primeira: a China rapidamente vai fechando o processo
histórico, de uma fase em que o orçamento cumpre centralidade na execução de
investimentos para outra em que as instituições financeiras passam a tomar seu
posto no processo de reprodução nacional e industrial. O papel do mercado de

316
O desenvolvimento e suas faces na China

capitais no financiamento de grandes obras e a participação dos bancos na execu-


ção de projetos ministeriais em infraestruturas revelam isso. Esse fato corrobora
também o rápido caminho trilhado pela China no rumo de se tornar um país
desenvolvido ou, ao menos, cumprir o script para tal. Daí nossa insistência em
relacionar – historicamente – o significado da siderurgia no início da segunda
metade do século XX (para os países recém-saídos do jugo colonial) com o capital
financeiro e o objetivo precípuo de exercício da soberania, com direito ao plane-
jamento e ao desenvolvimento.
Numa segunda ponderação, observa-se que, na contramão da corrente que
relaciona diretamente a modernização do sistema financeiro de países periféricos
(como o Brasil) com a necessidade de privatização e desnacionalização do sistema,
a China encaminhou seu processo sem a necessidade de proscrição da propriedade
pública78. Em nosso país, o BNDES passou por uma profunda reforma que buscou
subverter sua natureza de banco de desenvolvimento a fim de torná-lo um afiançador
de processos de privatizações. Na China, a reforma do sistema financeiro serviu ine-
quivocamente à gestão da poupança de milhares de famílias, e – consequentemente
– ao aprofundamento e modernização de um sistema de crédito capaz de sustentar
um esforço nacional de desenvolvimento sem precedentes na história moderna.

5.3.3.1 O processo de desenvolvimento do sistema nacional de


financiamento e a lógica histórica do desenvolvimento recente
da China

Compreender o desenvolvimento a partir de sua história é a senha para se alcan-


çar o objetivo de buscar a excelência na análise de processos sociais, incluindo –
evidentemente – a economia. Trabalhar dados sintetizados em tabelas e/ou gráficos
pode ser um bom meio didático.
Assim é que discorremos acerca da evolução do sistema de financiamento chi-
nês desde a implementação das reformas econômicas. Vejamos quais processos se
intercalam a partir da tabela a seguir:

78
LEÃO, Rodrigo. Padrão de acumulação e desenvolvimento da China. Dissertação de mestrado no
Instituto de Economia da Unicamp sob a orientação do professor Carlos Alonso Barbosa. Cam-
pinas, 2010, p. 87.

317
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Tabela 28 – China: participação/composição nos ativos, por tipo de


instituição, 1993-2004 (bilhões de US$)
Join-stock Coop. City com-
Bancos estatais Policy Estrangeiros
Ano commercial de crédito mercial
(4) Banks (191)
banks (12) (36.000) banks
1993 73,9 4,4 11,4 - 9,9 -
1994 72,1 5,4 12,9 - 9,2 -
1995 69,7 6,6 14,3 - 8,8 -
1996 65.3 7,3 14,1 - 12,4 -
1997 65,8 7,1 14,2 - 12,0 -
1998 65,1 7,5 13,5 - 13,0 -
1999 64,9 8,1 13,3 - 12,8 -
2000 63,9 9,6 13,1 - 12,3 -
2001 60,5 11,3 14,1 - 12,8 -
2002 57,9 12,8 9,9 4,9 11,4 1,2
2003 56,1 14,0 10,1 5,3 11,5 1,2
2004 54,6 15,0 10,4 5,4 11,4 1,6
Fonte: CINTRA, Marcos A.M. “As instituições públicas no sistema de financiamento da China”. In:
ROCHA FERREIRA, F. & MEIRELLES, B.B. (org.). Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janeiro:
BNDES, 2009. p. 136.

A tabela acima abrange não somente a evolução da rede creditícia chinesa


como também o próprio histórico das etapas de desenvolvimento vividas pela Chi-
na nos últimos 30 anos. Até 1993, o cenário foi amplamente dominado pelo Big
Four, ainda misturando atividades de bancos comerciais e de fomento propriamen-
te dito, daí sua extensa participação na rede. A partir de 1993, há uma separação
entre bancos comerciais e bancos de desenvolvimento, com a formação dos chama-
dos policy banks, diretamente voltados ao fomento, demarcando fronteira com o Big
Four, cuja centralidade passou a ser as operações comerciais. O Agricultural Deve-
lopment Bank of China é voltado ao crédito para compra de insumos e máquinas
agrícolas pelo Estado. Seu capital de giro vem de títulos da dívida colocados à venda
junto a outras instituições financeiras. O China Development Bank, cuja capitali-
zação advém de fundos do Ministério das Finanças, emissão de títulos e parte dos
depósitos do China Construction Bank, é voltado a atividades de financiamento de
infraestruturas e de certas indústrias de construção. O terceiro, o Eximbank China,
tem como missão o financiamento de longo prazo de importações e exportações de

318
O desenvolvimento e suas faces na China

bens de capital; sua liquidez provém de aportes do Ministério das Finanças79. Com
a separação de atividades entre sete bancos diferentes se criaram condições para a
proscrição do Plano Central de Crédito, criado na era anterior a 1978.
O controle pelo Estado do sistema financeiro já era garantia mais do que su-
ficiente da capacidade da instauração de novas e superiores formas de planejamento
capazes de administrar tanto a taxa de investimentos quanto outras questões, que
vão desde a banda cambial até a obtenção de uma política de juros adequada a essa
nova complexidade bancária. Isso quer dizer que, a partir da subordinação total
dos policy banks à lógica dos objetivos dos planos quinquenais, o Big Four, atuando
dentro do escopo das leis do mercado, deveria ser o norte a ser seguido no sentido
de adequar o sistema financeiro chinês a padrões internacionais de excelência,
num processo de médio e longo prazo, dados os problemas de financiamento de
estatais, sendo as mais problemáticas delas o complexo siderúrgico do nordeste do
país. Rodrigo Leão resume essa transição controlada da seguinte forma80:

Assim, essas iniciativas buscaram readequar a administração de todo o sistema,


definindo critérios econômicos e de contabilidade (de padrão internacional), e
direcionar as atividades de fomento, determinadas anteriormente por razões po-
líticas e sociais. Como resultado desse processo, emergiu um sistema bancário
dual na China, isto é, um sistema com bancos regulados segundo os parâmetros
internacionais de gestão, de um lado, e submetidos ao planejamento central do
Estado, de outro.

A readequação de todo o sistema de financiamento também está presente nas


cooperativas de créditos, que em 2004 totalizavam 36 mil unidades, denunciando
certa pulverização do sistema e, consequentemente, o ponto inicial de um processo
que pode culminar no surgimento de esquemas mais centralizados desse tipo de
unidade financeira. Em 2004, vimos anúncios nos jornais de Chongqing para a
abertura de contas nesse tipo de estabelecimento. Em 2009, em conversa com um
79
CINTRA, Marcos A.M. “As instituições públicas no sistema de financiamento da China”. In
ROCHA FERREIRA, F. & MEIRELLES, B.B. (org.). Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janei-
ro. BNDES, 2009, p. 130.
80
LEÃO, Rodrigo. Padrão de Acumulação e Desenvolvimento da China. Dissertação de mestrado ao
Instituto de Economia da Unicamp sob a orientação do prof. Dr. Carlos Alonso Barbosa. Cam-
pinas, 2010, p. 93.

319
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

técnico do Ministério das Finanças, Chen Duqio, tivemos conhecimento de que


uma das medidas contra o acúmulo de créditos inadimplentes estava na fusão de
unidades inteiras e de que, a partir de 2004, as 36 mil unidades já estavam em
processo de se fundirem em cerca de 23 mil. Isso demonstra o crescente papel do
desenvolvimento do interior do país no processo de busca de meios e maneiras de
otimizar e alongar o crescimento econômico para as próximas décadas. Devemos
aprofundar essa questão mais à frente, quando trabalharmos as transformações
recentes na agricultura chinesa.
Outra impressão a ser registrada, a partir dos índices da tabela 29, é que o pico
de atividades dessas cooperativas ocorreu entre 1994 e 2001, justamente no auge da
participação das ECPs tanto nas exportações chinesas quanto no PIB do país. Ou-
tra evidência interessante é o fato de essas cooperativas de crédito se direcionarem
(segundo o citado técnico) a pequenas e médias empresas coletivas, sendo que as
grandes estão no escopo de atuação das instituições de fomento. Daí a necessidade
de maior centralização dessas cooperativas, dados os desafios sociais concentrados
no interior do país. Mais crédito é sinal de mais empreendimentos a serem viabi-
lizados e, consequentemente, mais empregos. Nesse ciclo de centralização, aliado
ao papel dos depósitos, tem-se discutido na China a necessidade de capitalização
dessas instituições pela via de fundos bancários tanto do Big Four como das insti-
tuições de fomento.
Duas categorias de instituições financeiras abarcadas na tabela 29 merecem
considerações: as 12 joint stock commercial banks e as city commercial banks. As joint
stock commercial banks têm natureza mista e controladas pelas províncias (sem au-
torização de ação fora do escopo das províncias), com participação amplamente
majoritária do Estado, cuja participação privada se remete ao final de década de
1990 sob a forma de ações81. Já os city commercial banks, surgiram no início desta
década, apesar de o primeiro ter aparecido em 1995 (Shenzen City Commercial Bank);
atualmente são compostos por 111 instituições, das quais 88 resultaram de fusões
de 3.240 cooperativas de crédito urbano, demonstrando certo pioneirismo em rela-

81
Exemplo dessas instituições com ações em Bolsa no mercado doméstico de capitais são o Bank
of Communications, o Shanghai Pudong Development Bank, o Shenzen Development Bank, o
China Merchants Bank e o China Minsheng Banking Corporation.

320
O desenvolvimento e suas faces na China

ção ao processo descrito de centralização nas cooperativas de crédito rural82.


Mas qual processo social fica evidenciado com a tabela 29, envolvendo essas
duas modalidades de instituições financeiras? Primeiro, o fato de os city commer-
cial banks terem ganhado relevância somente no ano de 2002, pois, como insti-
tuições citadinas, elas surgem de uma necessidade crucial ao processo de acu-
mulação notada no imperativo do desenvolvimento urbano em um país onde a
permissão de mudança de domicílio se torna um problema a ser administrado,
mas, por outro lado, se torna fator de abertura para novos campos de acumulação no
país. Esse tipo de instituição é fator também de aceleração do processo de maior
peso dos bancos, diante dos fundos orçamentários na consecução de tarefas eco-
nômicas. Exemplo disso está na relação direta entre o desenvolvimento urbano e
a existência de um complexo financeiro citadino. No caso chinês, onde existe ca-
pital financeiro citadino, o desenvolvimento urbano ocorre de forma mais rápida;
surgem mais linhas de metrô, mais túneis são viabilizados. Das 20 cidades chi-
nesas que entraram em 2002 num programa de extensão metroviária, somente
oito estão em processo mais acelerado com relação às demais, e justamente nelas
esse tipo de instituição é presente. Uma das diferenças entre distintos processos
de urbanização no centro e na periferia do sistema é justamente a existência ou
não desse suporte financeiro local.
Outro processo coincidente tanto com o surgimento de bancos de fomento
quanto com o aumento da participação das duas modalidades institucionais ex-
postas está no processo de recentralização financeira do país. Esse processo signi-
fica uma verdadeira reversão nas políticas de descentralização fiscal, iniciada em
1979 com vistas à maximização das iniciativas em âmbito local, a expensas do
enfraquecimento financeiro do Estado como um todo. Além disso, o surgimento
das ECPs e o aprofundamento da industrialização rural têm relação de causa e
consequência com isso.
Em nossa opinião, trata-se de um ponto do processo histórico onde o orçamento
nacional tem peso máximo em relação ao papel do sistema financeiro para o pro-
cesso de acumulação. Por outro lado, se um sistema financeiro só tem o papel de
jogar no processo de desenvolvimento a partir do momento em que o montante dos

82
KE, Ma & JUN, Li. El comercio en China. China Intercontinental Press. Pequim, 2008, p. 92.

321
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

depósitos seja suficiente para tal, é muito sugestiva a visão estratégica embutida na
“via dos produtores” com características socialistas e chinesas: por um lado, ela surge
a partir de uma institucionalidade que permite o acúmulo individual de riqueza e do
apoio provincial; por outro, se transforma em condição objetiva (no médio e longo
prazo) para a viabilização de um poderoso instrumento de intermediação finan-
ceira pela composição de um complexo sistema financeiro estatal. Como nos disse
um estudante de economia da Universidade de Pequim, por conta dessa política
estratégica, “perde-se hoje, para se multiplicar os ganhos amanhã”. Eis um daqueles mo-
mentos em que se percebe o papel de uma política fiscal baseada em objetivos de
pequeno, médio e longo prazo.
O aprofundamento do sistema financeiro chinês nas duas últimas décadas
também deve ser visto sob o prisma do processo de admissão do país na OMC em
2001, processo iniciado em 1993. O direcionamento de três instituições financei-
ras para o crédito a áreas-chave, a redução dos créditos podres e a abertura de
capital em algumas instituições – inclusive a flexibilização à instalação de ban-
cos estrangeiros no país – são parte desse processo. Apesar de amiúde o capital
bancário estrangeiro ser residual, mesmo após as reformas dos últimos anos, ele
ajudou no fortalecimento do poder estatal sobre o crédito. O capital privado e
estrangeiro se inserem muito mais num esquema de otimização e modernização
de métodos administrativos e gerenciais do que propriamente são parte de algo
que gere um desmonte da capacidade do Estado em enfrentar – a partir de seu
setor bancário – os desafios postos na contemporaneidade, inclusive a presente
crise financeira.
Pela evolução inserida na tabela 29, deve ficar claro o processo de aprofunda-
mento das reformas no sentido de dotar a China de um sistema de intermediação
financeira completa e em correspondência com os objetivos e diferentes estágios do
processo de acumulação do país.

5.3.3.1.1 O processo de recentralização financeira

Falar em recentralização financeira, num país em que as disparidades regio-


nais são um desafio permanente à ordem política e social, é algo polêmico. Esse
tipo de ação política e econômica deve ser feita de forma meticulosa e planejada.

322
O desenvolvimento e suas faces na China

As condições para o processo de recentralização ocorreu com vários movimentos


de forma simultânea, entre eles, a já citada capilarização regional do sistema
financeiro e, o mais importante, a “oxigenação” dos estoques de créditos podres,
principalmente no Big Four. Falemos um pouco disso.
A formação dos 149 complexos estatais seguiu uma lógica baseada em fusões
e aquisições, muita delas compulsórias. É evidente que a aquisição de empresas do
mesmo setor traz consigo o problema da administração dos ativos podres dessas
empresas. Na China, essa questão – dadas as características da economia chinesa
– torna-se um problema de Estado. A reestruturação dessas dívidas ocorreu de for-
ma que a maior parte dessas ações fosse convertida em ações da própria empresa,
já fundida em uma maior ou simplesmente tomada aos trabalhadores da própria
empresa que, sob sua responsabilidade, deveriam dar um destino lucrativo a elas.
Nesse processo, cerca de 50 mil pequenas e médias empresas foram fundidas ou
simplesmente passadas ao controle privado, dado o caráter não estratégico das mes-
mas. Essa foi uma forma de solucionar o problema dos créditos podres no mercado
de futuros. Outra forma foi a injeção de recursos financeiros do Estado. Entre 2001
e 2005, o volume de crédito inadimplente caiu de 31,1% para 10%, ou cerca de US$
125 bilhões83.
Esse foi um processo imbricado num outro de maior alcance, que envolveu
a aceleração da recentralização financeira. Outro processo nesse sentido ocorreu
no âmbito do próprio perfil dos créditos no país. Se, em âmbito provincial, o pro-
cesso de compensação das perdas fiscais foi amenizado pelo alargamento do setor
bancário pela abertura de instituições de nível municipal e provincial, no âmbito
puramente financeiro a crise asiática abriu perspectivas de mobilização de pou-
pança em escala nacional jamais imaginadas no mundo contemporâneo. Uma
grande justificativa conjuntural para proceder a um drástico processo de algo que
poderia ir de encontro a interesses provinciais poderosíssimos.
Independentemente das pressões que o FMI impôs sobre Tailândia, Filipi-
nas, Malásia e Coreia do Sul em meio à crise financeira, os chineses perceberam

83
LEÃO, Rodrigo. Padrão de acumulação e desenvolvimento da China. Dissertação de mestrado no
Instituto de Economia da Unicamp sob a orientação do professor Carlos Alonso Barbosa. Cam-
pinas, 2010, p. 94.

323
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

que o problema não estava no excesso de gastos, “pressões inflacionárias” e ou-


tras alquimias anticientificas e ideologizadas. A governança chinesa observou
que o óbice estava numa clara deflação, sinônimo de um mercado interno ainda
potencial. A recentralização financeira acelerou-se diante dos fatos. Alavancar
gastos públicos e acelerar o programa de desenvolvimento do oeste passou à
ordem dos acontecimentos, e as províncias pobres do país tinham muito a ga-
nhar com isso.
Coincidência ou não, o fato é que a crise financeira asiática acelerou um pro-
cesso que tem muito de ciência e de arte, de recentralização fiscal e financeira,
acompanhada por compensações que nada lembram a quebra do pacto federativo
no Brasil na década de 1990, sob a égide da Lei de Responsabilidade Fiscal, do
aumento da dívida dos estados e municípios para com a União. Ainda no Brasil, a
baixíssima taxa de investimentos em relação ao PIB verificada desde a década de
1990 é mera expressão de uma equivocada mediação fiscal entre União, estados
e municípios. Pelo lado chinês, a percepção do potencial de seu mercado interno
levou à implementação de uma ampla política de mobilização de poupança in-
terna. A Lei de Responsabilidade Fiscal na China levaria ao chão aquele governo,
bem como a capacidade de consumo de seu povo. O que parece ser bom para o
Brasil, via FMI e Banco Mundial, pode ser péssimo para a China e o destino de
1,3 bilhão de habitantes. Nunca são demais as comparações: na China, diante do
enfrentamento da crise financeira atual, a relação entre crédito e PIB passou dos
200%. No Brasil, estima-se que em 2010 essa relação chegue a 49%. Lá, o proble-
ma é a expansão da demanda; aqui, o objetivo mater de nossa política macroeco-
nômica é a contenção da capacidade de consumo do povo.
O primeiro sinal da reação ao problema criado externamente não poderia
ser outro senão um recado de responsabilidade aos seus vizinhos: a não desvalo-
rização do yuan naquele fatídico 1997 colocou a China no leme da política regio-
nal diante da hesitação japonesa. Esse foi o primeiro grande sinal da mudança
da correlação de forças na Ásia, que evitou desvalorizações competitivas na re-
gião. Internamente, a mobilização de um montante de US$ 532 bilhões de sua
poupança doméstica foi precedida por um recado estritamente político de lança-
mento de US$ 32 bilhões em títulos da dívida, deixando aos bancos sob pressão

324
O desenvolvimento e suas faces na China

do Estado a tarefa da ampliação do crédito para tocar a expansão doméstica84.

5.3.3.1.2 O movimento da mudança do uso do financiamento e os


ativos financeiros

A recentralização financeira na China envolve ainda outras ações que se entre-


laçam com o movimento de expansão ao oeste e a ampliação da demanda domésti-
ca. Devemos também expor as condições financeiras que permitem à China alcan-
çar números impressionantes, entre os quais a altíssima taxa de investimentos. Em
quais condições as instituições financeiras bancam esse progresso?
O processo de desenvolvimento na China atingiu um estágio em que os crédi-
tos de longo prazo ultrapassaram os de curto prazo no montante total distribuído.
Ao que tudo indica, o processo se acentuou com as necessidades de destravamento
dos nós de estrangulamento de sua economia, notadamente aqueles relacionados
a uma economia continental, onde a conexão de mercados regionais depende da
execução de obras gigantescas de infraestrutura, com largos prazos de entrega.
O que liga essa relação com o processo de recentralização financeira é o cresci-
mento dos créditos de longo prazo no final da década de 1990.
Entre 1989 e 1998, os empréstimos de longo prazo saltaram de 12% para 24%.
Portanto, um salto de 100% em dez anos. Já entre 1999 e 2008 chegaram a 51% do
total. Entre 1989 e 1998, os créditos voltados para a agricultura caíram de 14%, do
total dos créditos de “curto prazo”, para 5%. Essa queda foi estancada no período
seguinte, com ligeira alta de 1%, chegando a 6%, com certeza obedecendo à lógica
de um governo que enfrentou entre 1999 e 2003 uma queda acentuada na produção
agrícola. Não dispomos, infelizmente, do destino dos créditos de longo prazo85.
Para explicar a alta taxa de créditos em relação ao PIB e às altas taxas de in-
vestimentos, é importante observar o estoque dos ativos financeiros, conforme o
gráfico a seguir:

84
Processo descrito em JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas e crescimento econômico. Anita Ga-
ribaldi. São Paulo, 2006.
85
LEÃO, Rodrigo. Padrão de acumulação e desenvolvimento da China. Dissertação de mestrado no
Instituto de Economia da Unicamp sob a orientação do professor Carlos Alonso Barbosa. Cam-
pinas, 2010, p. 95.

325
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Gráfico 7 – Estoque de ativos financeiros na China, 1994-2004 (% do PIB)


240

180
% do PIB

120

60

0
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

Depósito Bancário Dívida Pública Dívida Corporativa Ações

Fonte: CINTRA, Marcos A.M. “As instituições públicas no sistema de financiamento da China”. In:
ROCHA FERREIRA, F. & MEIRELLES, B. B. (org.). Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janeiro.
BNDES, 2009, p. 139.

Como se observa no gráfico 8, o estoque de ativos financeiros chineses cresceu


de 117% do PIB em 1994 para 221% do PIB em 2004, num salto acima de 90% no
período. Essa é a explicação básica para o elevado índice de dinheiro circulando
na China na forma de crédito. Os 33% referentes aos depósitos das corporações
(pode-se chamar também de “dívidas das corporações”) são explicados, em grande
parte, por exigências dos bancos de empréstimos concedidos. O que impressiona é
o alto grau de poupança familiar gerida pelos bancos. Quase 60% das riquezas acu-
muladas na China no âmbito familiar (não empresarial) estão depositadas como
poupança em bancos na China e correspondem a 160% do PIB, quando no Japão
representava, em 2004, 145% e, nos EUA, 77%86.
Os problemas de fundo da sociedade chinesa estão inseridos nesses números.
A alta taxa de poupança das famílias tem relação (quase) direta com problemas de
ordem social, de uma estrutura educacional, de saúde pública e previdenciária que

CINTRA, Marcos A M. As instituições públicas no sistema de financiamento da China. In RO-


86

CHA FERREIRA, F. & MEIRELLES, B.B. (org.). Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janeiro.
BNDES, 2009, p. 138.

326
O desenvolvimento e suas faces na China

chegou à beira do colapso na década de 1990. Não devemos ser laudatórios com o
sucesso chinês, afinal assim como os louros do sucesso chinês são os louros da su-
perioridade do socialismo ante o capitalismo, os problemas chineses contemporâneos
de todas as ordens também devem ser creditados aos próprios problemas de uma al-
ternativa ao capitalismo. Uma alternativa que ainda não alcançou 100 anos de vida.
A questão é saber se esses problemas estão sendo enfrentados ou não. Afir-
mamos que sim, e os montantes que envolvem a transferência de recursos e inves-
timentos ao interior do país são parte disso. Entre 2002 e 2008, US$ 320 bilhões
foram investidos na estruturação de uma nova previdência social. Outros US$ 103
bilhões, em programas de massificação educacional e viabilização de serviços pro-
vinciais e locais de saúde pública87. Todas essas modalidades de investimentos tive-
ram aumentos anuais – desde 2002 – médios de 17,2%.
A contradição é o motor do processo.

aaaaaaaaaaaa

O sistema bancário público chinês ainda é o centro do aparato de financia-


mento da economia nacional em detrimento de um mercado de capitais ainda em
desenvolvimento. Por exemplo, apenas 6% do financiamento das empresas chine-
sas passam pelo mercado de capitais. Nesse aspecto, e apesar de as grandes obras
chinesas já estarem sob o controle de empresas públicas concedidas pelo Estado e,
por conseguinte, terem ações nas Bolsas de Xangai e Shenzen capazes de financiar
parte do investimento, a China tem de enfrentar o problema de ainda não ter um
mercado de capitais à altura de seu projeto nacional.
O fato de contar com um mercado de capitais ainda “engatinhando” demons-
tra que, apesar de já ser complexo e profundo, o sistema financeiro chinês ainda
tem certo caminho a percorrer. O principal já ocorre: o crédito como instrumento
do planejamento estatal e do controle dos investimentos. Enfim, o crédito como
o próprio cerne da economia nacional, e a economia monetária abrindo espaço
ao processo de construção de uma sociedade de novo tipo. Assim se constitui um
sistema financeiro como base para a independência nacional e não seu contrário.
Acompanhemos o desenvolvimento desse processo.

87
China Statistical Yearbook para todos os anos citados.

327
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

5.4 A MILENAR E CONTEMPORÂNEA QUESTÃO


REGIONAL NA CHINA
No capítulo em que analisamos a relação entre Estado e desenvolvimento na
China foi importante historicizar acerca de um Estado precoce, que nasce diante
das demandas de uma nação com natureza peculiar. O altiplano do Tibete e os rios
que nascem do alto de suas montanhas trouxeram o desafio de contenção das en-
chentes nos vales dos rios que serviram de berço para a civilização chinesa. Desse
modo surgem as condições para o surgimento de um “feudalismo com caracterís-
ticas chinesas” no modo de produção asiático.
Atualmente, pontes, ferrovias, estradas, gasodutos e linhas de transmissão
oeste-leste dão corpo a um Estado que se impôs o desafio de concluir o trabalho de
milhares de anos de formação de uma economia continental. O desafio está sendo
enfrentado e constitui uma grande fronteira de acumulação para a China e condi-
ção mater para o sucesso de seu projeto nacional e da tarefa histórica do socialismo
de “superação da divisão social do trabalho”, o que demanda – dialeticamente – no
estágio atual do problema, uma potencialização das possibilidades dessa mesma
divisão social do trabalho. O desenvolvimento é o caminho. Desde 1999 (início do
programa de desenvolvimento do oeste) até 2008, apesar de o oeste corresponder
somente a 17,8% do PIB chinês (proporcional à sua população em relação ao restan-
te do país), seu crescimento médio entre 1998 e 2008 foi de 11,42%, acima da média
nacional no período, de 9,64%. Uma região autônoma de apenas dois milhões de
habitantes como a Mongólia Interior cresceu, entre 1978 e 1998, em média 10,2%.
Já entre 1999 e 2008 esse índice médio foi de 16%. O Tibete cresce desde 1999 com
média de 12,2%, maior que aquela entre 1978 e 1998, que foi de 9,3%88.

5.4.1 Desenvolvimento regional na “Nova China”

A questão do desenvolvimento regional pode se resumir no desafio de reti-


rar do imobilismo vastas regiões de um determinado país, inserindo-as em novos
esquemas de divisão social do trabalho e abrindo portas para o advento de novas
relações de produção. No caso da China, isso significa a possibilidade de trânsito
de uma grande rede populacional da economia natural para a economia de mercado e
88
China Statistical Yearbook para todos os anos citados.

328
O desenvolvimento e suas faces na China

dessa ao socialismo. Significa perceber que, apesar da queda extraordinária dos ín-
dices de pobreza no país, 83% de sua população que ainda vive abaixo da linha da
pobreza residem nas vastidões interioranas do país. Significa enfrentar o desafio de
soerguer suas minorias étnicas das raias da pré-história, pois 85% da pobreza ex-
trema do país atingem diretamente essas minorias, o que conforma um problema
político e social permanente.
Um contato direto com dados de tal envergadura pode levar a uma atitude
pessimista com relação ao quadro pintado para o desenvolvimento do centro-oeste
da China propagado pela imprensa, diuturnamente, dando conta da existência de
“dois países”. Os índices demográficos mais gerais e os índices de pobreza não de-
vem ser suficientes para se esboçar um quadro do problema. O importante é que
essa região está em pleno crescimento e esse deve ser o ponto de partida da análise,
conforme os dados no início deste subtítulo nos demonstram.
Por outro lado, no âmbito regional trabalhamos com a hipótese de que o de-
senvolvimento local deve se subordinar a um esquema mais amplo de desenvolvi-
mento que atenda as necessidades mais gerais do país. Do ponto de vista da teo-
ria, isso remete ao imperativo da quebra de esquemas rígidos de divisão social do
trabalho, que impossibilitam o pleno desenvolvimento de um país das dimensões
seja da China, do Brasil ou da Índia. Em tese, o processo de desenvolvimento em
um país periférico de dimensões continentais pode ser compreendido como uma
“caixa vazia” sendo preenchida. Esse preenchimento pode ser sintetizado no avan-
ço da divisão social do trabalho, na otimização das possibilidades regionais e na
consolidação de uma ampla economia de mercado. Afinal, a questão regional e sua
solução são partes indissolúveis do desenvolvimento.
Nesse caso, a percepção das demandas externas de regiões que devem ser afe-
tadas por um amplo processo de desenvolvimento nacional e regional é o primei-
ro passo89. Por exemplo, o pleno desenvolvimento da região autônoma de minoria
89
RANGEL, I. “Breves notas com vista a um plano de desenvolvimento econômico para a Bahia”.
In Revista de desenvolvimento econômico. Ano 3, n. 3. Salvador, janeiro de 2000. Texto escrito em
1963, porém publicado somente em 2000. Trata-se de uma contribuição de grande monta à
literatura marxista sobre o desenvolvimento regional. Nele, Rangel, em polêmica aberta com
Furtado, demonstra os limites da programação econômica levada a cabo pela Sudene e – num
outro patamar – denuncia os limites teóricos do estruturalismo, o que torna atual seu conteú-
do. A questão das “demandas externas” no processo de desenvolvimento é um dos conceitos
utilizados por Rangel como afronta aos esquemas preconcebidos de então e, de certa forma, em
voga até os dias de hoje.

329
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

uigur e muçulmana de Xinjiang está condicionado ao pleno uso de seus fatores


internos de produção, notadamente o petróleo e o gás natural; suas relações com os
vizinhos da ex-URSS a condicionam a ter um futuro diretamente relacionado a ex-
portações de máquinas e equipamentos ao rico produtor petrolífero (Cazaquistão)
e, por conseguinte, ao atendimento das demandas petrolíferas e gasíferas da região
leste do país, onde se concentram tanto 60% da população chinesa quanto o grosso
da manufatura do país.
Do mesmo modo se insere a região autônoma do Tibete e sua riqueza em pe-
cuária e potencial em energia eólica. Caso semelhante é observado na potente agri-
cultura de Sichuan, bem como sua indústria de máquinas e equipamentos voltados
ao suprimento de plantas industriais existentes e em formação na municipalidade
de Chongqing, notadamente a recém-formada indústria automobilística e as rela-
cionadas ao abundante gás natural da região.
Trabalhemos um pouco as nuances desse movimento em dois períodos: 1949-
1978 e 1978-2010.

5.4.1.1 A política de desenvolvimento regional entre 1949 e 1978

O desenvolvimento precoce do vale do rio Yang-Tsé propiciou bases (milena-


res) para uma precoce economia de mercado, assim como para o próprio Estado
nacional chinês. Era uma economia autóctone que se reproduzia sobre as bases de
largos excedentes de produção agrícola. É natural que uma economia desse tipo,
onde os fatores internos de produção encerravam por si as necessidades materiais
do país, estivesse centrada em si mesma e em seus próprios ciclos econômico/polí-
ticos e institucionais. É a lógica do modo de produção asiático aplicada ao desenvolvi-
mento regional.

5.4.1.1.1 Da hinterlândia litorânea à “economia regional


autossustentável”

Com o advento do capitalismo e a “entrada forçada” da China na divisão social


do trabalho, o eixo da economia nacional – já voltada ao mercado internacional,
sobretudo após as Guerras do Ópio (1839-1842) – passou a girar em torno das pro-

330
O desenvolvimento e suas faces na China

víncias litorâneas. Em 1952, nos estertores do 1° Plano Quinquenal, apesar de a


agricultura ser a responsável por 74% do PIB e empregar 84% da força do trabalho,
as províncias costeiras detinham 72% dos investimentos em ativos fixos e 69% da
produção industrial90. Esse é um foco por onde se pode vislumbrar uma política
industrial e regional em que o “espalhamento” da indústria seria fator direto de
desconcentração.
Cabe uma analogia interessante com o caso brasileiro pré-Revolução de 1930,
onde a lógica da hinterlândia se impunha. Fazendo analogia às palavras de Ignacio
Rangel91, sobre o litoral brasileiro ser constituído por formações econômicas regio-
nais centradas num “porto-empório”, a economia regional chinesa pré-Revolução
de 1949 constituía-se de uma grande economia litorânea onde o “centro” poderia
ser formado pelos portos de Hong Kong, Xangai e Tianjin, circundado por uma
“periferia” interligada por rodovias. Dessa observação, percebe-se que a dominação
externa é um fator de proa ao travamento da divisão social do trabalho e, em con-
sequência, ao desenvolvimento.
Adentrando no aspecto regional após o 1° Plano Quinquenal, há mais um ele-
mento para o desenvolvimento regional da China maoista que serve também para
o processo de desenvolvimento como um todo: a influência da conjuntura interna-
cional, muitas vezes elencada somente como um fator a mais capaz de explicar os
“erros” da política regional de Mao Tsetung. Lembremos que a China foi fator de
desconcerto na correlação de forças após a Segunda Guerra Mundial. Não se cogi-
tava nem mesmo nos planos de Stálin a vitória da revolução na China, que sofreu
ameaças de vários fronts no âmbito de suas fronteiras: os norte-americanos insta-
laram uma frota de proteção a Taiwan em pleno litoral chinês; a Guerra da Coreia
90
DEMURGER, Sylvie; SACHS, Jeffrey; WOO, Wing Thye; BAO, Shuming; CHANG, Gene &
MELINGER, Andrew. “Geography, economic policy and regional development in China”. NBER
Working Papers. Working Paper 8897. Disponível em: http://www.nber.org.br/papers/w8897.
Acessado entre os dias 10-03-2009 e 15-04-2009.
91
Citado por MAMIGONIAN em recente e brilhante trabalho intitulado O Nordeste e o Sudeste
na divisão regional do Brasil (disponível em:<http://fmauriciograbois.org.br/beta/noticia.php?id_
sessao=8&id_noticia=226>): “Sob forma de um imenso território muito desigualmente ocu-
pado e apresentando quase que exclusivamente ao longo da costa formações econômicas regio-
nais, geralmente estruturadas em torno de um porto-empório, orientadas mais para o comércio
exterior do que para o comércio com as outras regiões, tendo cada uma como espinha dorsal um
sistema regional de transportes, o qual servia de base a um esquema regional de divisão social
do trabalho”.

331
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

(iniciada em 1950), com ameaça de bombardeio nuclear nominalmente sugerida


pelo general MacArthur “em nichos industriais chineses”, fora irrompida ante-
riormente à execução do 1º Plano Quinquenal (1952); escaramuças militares com
a Índia no início da década de 1960 e o rompimento com a URSS no mesmo perí-
odo (com o consequente ônus da retirada de linhas de financiamento e assistência
técnica soviética ao país). Todo esse ambiente internacional foi determinante para
uma política de desenvolvimento desconcentradora e radical, de tipo “autossufici-
ência regional”. Uma economia regional de guerra, diga-se de passagem.
Outro ponto se encontra na relação entre essa imposição de autossuficiência
e a própria subjetividade igualitarista de Mao Tsetung: o desenvolvimento regional
planificado e voltado à desconcentração industrial era parte de um todo em torno
do objetivo do ideal de uma sociedade igualitária. Tal fator, na ponta do processo,
gratificou as províncias mais pobres do país. Afinal, foram das províncias mais
pobres do país que surgiram as condições objetivas para a derrota do citadino Kuo-
mintang na Guerra Civil de 1945-1949. Por exemplo, a província de Shaanxi, onde
está localizada a histórica cidade de Yanan – um verdadeiro solo sagrado para os
comunistas chineses –, foi contemplada com 24 dos 156 projetos industriais mais
importantes executados com assistência soviética92.
Didaticamente, o que significa uma política de “autossuficiência regional”?
Trata-se de uma política baseada na autossuficiência em vários níveis, em especial
na agricultura e na indústria. A base dessa política, onde se insere o ordenamento
do governo central, reside numa diretriz geral de transferência de unidades pro-
dutivas do litoral para o interior, seguida de investimentos do governo central em
províncias e indústrias-chaves. Detalhe importante está na não autonomia local
ou provincial na gerência dos excedentes agrícolas. Tais excedentes são repassa-
dos ao Estado, ao estilo soviético, como forma de financiar projetos estruturantes
e de grande envergadura, como o projeto da bomba de hidrogênio, de satélites
artificiais e do metrô de Pequim. Resumindo, as províncias deveriam ser capazes
de atender às demandas básicas de produtos destinados à população local.

92
LANE, Kevin. “One step behind: Shaanxi in reform, 1975-1995”. In CHEUNG, P., CHUNG, Jae
Ho., LIN, Zhimin. Provincial strategies of economic reform in post-Mao China: Leadership, politics and
implementation”. Armonk, Nova York, 1998, p. 213. Para localização geográfica das províncias,
consultar o Mapa 1.

332
O desenvolvimento e suas faces na China

Alguns exemplos devem ser citados acerca do método em torno dessa políti-
ca regional. Por exemplo, a instalação de complexos militares nas províncias do
centro-oeste, notadamente Qinghai. Instalado o complexo industrial, o governo
central ainda tinha a incumbência de promover investimentos sociais em diversas
áreas, dentre as quais educação e saúde. Passo importante para o sucesso desse
esquema é perceptível na disseminação de indústrias leves pelo interior (a raiz das
ECPs), substituindo os complexos de médio porte do litoral. Dessa forma, como
mais um exemplo, a implantação completa da Segunda Companhia Automobilís-
tica e das indústrias correlatas de autopeças na província de Hebei que, a despei-
to dos problemas inerentes a esse tipo de instalação em uma província distante,
encontra-se atualmente na vanguarda na construção de motores e montagem de
automóveis.
Nesse esquema de regionalização industrial de Chongqing, na era Mao, atual-
mente não deve causar surpresa a existência de uma forte indústria automobilística
nacional e uma das maiores fabricantes de motocicletas do mundo. As indústrias
de insumos industriais deveriam estar próximas às fontes de matérias-primas. As-
sim, entende-se o surgimento de uma grande indústria química e de fertilizantes
na região de Sichuan e dos primórdios de indústria petroquímica nessa mesma
Sichuan (Chongqing), na Mongólia Interior e em Xinjiang. Uma simetria pode ser
observada na herança do “modelo soviético” de descentralização industrial na anti-
ga república soviética do Cazaquistão, fronteiriça da região autônoma do Xinjiang:
o Cazaquistão é uma das maiores potências industriais na área petrolífera e gasí-
fera da Ásia.
Esse processo se acelera na década de 1960, com a institucionalização de uma
chamada defesa de “três frentes”: a litorânea, a central e a oeste, sendo que um
grande complexo militar industrial foi edificado no centro-oeste do país, nas mon-
tanhas que circundam o platô tibetano na província de Qinghai.
O complemento desse aparato reside na institucionalização de um instru-
mento central da planificação de tipo soviética, o sistema nomeado de Hukou, que
é uma instituição de controle de migração interna entre campo e cidade. Histo-
ricamente, desde aproximadamente o século X, as dinastias chinesas recorriam
a instrumentos de controle semelhantes a esse como forma de dimensionar, por
exemplo, o nível de taxação fiscal referente a cada família camponesa (mais uma

333
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

evidência da utilização de formas nada rústicas de planejamento na China anti-


ga). É importante observar que a China não é uma federação. Em tese, trata-se
de uma república de tipo popular, com grande concentração de poderes sobre o
conjunto do país em todos os assuntos possíveis. A autonomia regional somente
é aplicada às províncias onde minorias étnicas constituem maioria da população
(Tibete, Xinjiang, Mongólia Interior etc.). Pode-se perceber, ao longo do tempo,
uma distensão maior ou menor às iniciativas provinciais e locais. Porém, essa
distensão é produto de uma política estatal historicamente dada. Voltemos à pauta
anterior.
Amiúde as máximas liberais da “liberdade de ir e vir”, mais conveniente
do que colocar ênfase no atraso do oeste chinês seria buscar nesse sistema uma
das causas acerca da não-existência de favelas num país com as dimensões
da China – e da existência de milhares delas na Índia “democrática”. Com a
abertura econômica e a necessidade de plena utilização dos fatores industria-
lizantes inerentes à liberdade de migração, esse sistema tem se adequado – de
forma planejada – a uma nova realidade, onde a competitividade da economia
ganha contornos de sucesso ou não do projeto nacional chinês. Voltaremos a
tocar nesse ponto.

5.4.1.1.2 Resultados do processo pré-1978

É difícil fazer o julgamento de um processo com as dimensões da política re-


gional dos tempos de Mao Tsetung. Ao menos dois pontos devem estar presentes
em uma análise minimamente séria e dialética. O primeiro está relacionado às
condições naturais num país que tem a maior parte de seu território coberto por
montanhas, florestas ou desertos. Isso implica condições árduas de trabalho e de
vida para milhões de famílias camponesas. Anexo a isso, estão os custos e as di-
mensões em vários níveis (políticos e financeiros, por exemplo) de um enfrenta-
mento de tal monta. Outra questão é a conjuntura em que a superestrutura ma-
oista se inseriu para o enfrentamento dessa contenda. Sobre isso, a análise acima
(questão da conjuntura, por exemplo) deve contemplar uma análise pautada por
uma visão de conjunto do problema. Tendo essas questões em mente, observemos
a tabela a seguir:

334
O desenvolvimento e suas faces na China

Tabela 29 – Investimentos em construções básicas, 1953-1999 (aumen-


to dos investimentos em % entre Leste, Centro-Oeste, Central e Oeste)
Período Leste Centro-Oeste Central Oeste
1953-57 36,9 46,8 28,8 18,0
1958-62 38,4 56,0 34,0 22,0
1963-65 34,9 58,2 32,7 25,6
1966-70 26,9 64,7 29,8 34,9
1971-75 35,5 54,4 29,9 24,5
1976-80 42,2 50,0 30,1 19,9
1981-85 47,7 46,5 29,3 17,2
1986-90 51,7 40,2 24,4 15,8
1991-95 54,2 38,2 23,5 14.7
1996 53,0 7,6 23,6 14,0
1997 52,4 39,2 23,7 15,5
1998 52,2 39,2 22,2 17,0
1999 52,1 39,6 22,5 17,1
Fonte: China Statistical Yearbook on Fixed Asset Investment 1950-1955, China Statistic Press 1997,
1998-2000, China Statistical Abstract 1998, 1999, 2000. Elaboração própria.

O importante é nos atermos aos dados que compreendem o período de 1953 a


1980. Colocamos alguns números que comprovam uma imensa concentração in-
dustrial no leste do país no período pré-revolucionário. Em seguida, expusemos
as linhas gerais que determinaram uma política de reversão dessa tendência de
concentração industrial na costa. Os números acima demonstram os resultados
dessa opção.
O share das construções básicas no leste do país atingiu seu menor ponto no
período do 3° Plano Quinquenal (1966-1970), chegando a 26,9%. Em contrapartida,
nesse mesmo período esse índice para a região centro-oeste atingiu seu maior pico,
com 64,7%. Tendência semelhante é perceptível à região oeste, onde entre 1966 e
1970 chegou a 34,9%, com alta em relação ao período anterior acima de 40%. A
explicação básica para tal tendência é a execução da construção da “terceira frente”
de defesa no oeste do país. Deve-se remeter à geopolítica para se analisar tanto os da-
dos do aumento dos investimentos em construção básica no 3° Plano Quinquenal
quanto o retorno desse tipo de investimento ao leste do país no período do 4° Plano
Quinquenal (1971-1975) e do posterior (1976-1980). O share no 3° Plano Quinquenal
dos investimentos em construções no leste chegou, praticamente, aos mesmos índi-

335
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

ces do 1° Plano Quinquenal com 35,5% (ante 36,9% no 1° Plano), e entre 1976 e 1980
se inicia o processo de reversão do período começado com o 2° Plano Quinquenal.
No 5° Plano Quinquenal, o share das construções básicas no leste da China chegou
a 42,2%, enquanto na região centro-oeste atingiu os menores índices desde 1958,
com exatos 50%, e no oeste, com 19%.
A explicação para o início dessa reversão reside, principalmente, na distensão
entre China e Estados Unidos com a visita de Nixon a Pequim em 1972 e o início do
processo de reatamento pleno das relações diplomáticas entre os dois países. Entre
1972 e 1980, o comércio bilateral cresceu a taxas médias de 13,2% ao ano. Esse é o
início, sob a direção de Mao Tsetung, de uma transição com vistas à inserção chine-
sa no mercado internacional.
Outra determinação nesse processo reside na porcentagem reservada às pro-
víncias interioranas entre o 1° e o 3° Plano Quinquenal. No período de 1952 a 1956,
do total dos investimentos realizados no país, 56% foram destinados ao interior.
Esse índice se eleva, no período seguinte, que se estendeu até 1962, para 59%. Esse
número chega a 71% entre 1966 e 1970, como resultado dos esforços de construção
da “terceira frente”.
Para ilustrar, entre 1952 e 1958 o crescimento do PIB per capita de algumas
províncias do oeste da China foi o seguinte: Xinjiang ,7,4%; Mongólia Interior,
7,7%; Shaanxi, 6,8%, e Qinghai, 7,1%. Percebe-se a diferença em comparação com
algumas províncias costeiras, como Guangdong (4,5%), Fujian (5,2%), Zhejiang
(3,3%) e Hebei (1,4%)93.
Do ponto de vista mais geral, pode-se ter, a partir desses números, uma visão
do processo que envolveu a execução de uma política regional na era pré-reforma.
Vamos agora finalizar essa análise com outra forma de observar o período.

5.4.1.1.3 As potencialidades e os limites dessa linha de


desenvolvimento regional

Não é tarefa simples fazer uma síntese dos limites e potencialidades dessa
abordagem em matéria de desenvolvimento regional. Deve-se compreender, em
um primeiro momento, as próprias potencialidades e limites do “modelo soviético”.

93
China Statistical Yearbook para todos os anos.

336
O desenvolvimento e suas faces na China

Uma típica “revolução pelo alto” sentida diretamente pelas províncias mais pobres
da China nos primeiros tempos de República Popular.
A questão a ser pautada em discussões profundas deve englobar os esquemas
de financiamento possíveis para a economia de uma nação cercada militarmen-
te, isolada politicamente e estrangulada financeiramente, com índices baixos de
comércio exterior. Não se tem respostas consequentes para o problema regional
chinês da época de Mao fora da resposta a essas questões, algo que já foi discutido
no segundo capítulo deste livro.
A dita autossuficiência regional fora levada “quase” às últimas consequências.
Colocamos o “quase” entre aspas como forma de expor que, na ponta do processo,
o desenvolvimento regional chinês – como hoje – era ancilar a grandes projetos e
diretrizes, encetados pelo planejamento central. Apesar disso, a produção agrícola
dessas províncias deveria ser suficiente para o abastecimento alimentar local ao
mesmo tempo em que excedentes deveriam ser remetidos ao governo central.
O alto índice de crescimento das províncias interioranas é produto primário
da reforma agrária universal, que foi executada pelo governo popular no início
da década de 1970. Assim, a produção agrícola chinesa sai de um patamar de 164
milhões de toneladas de grãos em 1952 para 195 milhões em 1957, repetindo esse
mesmo índice em 1962, chegando a 240 milhões de toneladas em 1970 e alcan-
çando 285 milhões em 197594. Essa produção agrícola foi a base, ao lado da grande
ajuda financeira e técnica da União Soviética até 1962, para a escalada do cresci-
mento econômico e da taxa de investimentos no período maoista. Se o crescimento
médio entre 1952 e 1978 foi acima dos 6%, o da produção industrial alcançou 11%
no mesmo período. O traço marcante do “modelo soviético” está no crescimento
anual médio de 15,3% para a indústria pesada, o que demandou uma queda da par-
ticipação da agricultura no montante do PIB de 58%, em 1952, para 33% em 1978;
porém, a força de trabalho continuou concentrada em atividades primárias: caiu de
83,5% em 1952, para 73,3% em 197895.
Pode-se discutir que as colheitas poderiam ser maiores, mas a melhora nas
colheitas passaria por uma total mudança nas relações de produção entre Estado e

94
China Statistical Yearbook para todos os anos.
95
Idem.

337
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

camponeses, daí essa mudança de paradigma nas já citadas relações de produção


ter sido o principal fator de arranque atual da economia chinesa. Algo que prece-
deu inclusive a instalação das ZEEs no início da década de 1980. São momentos
históricos (1949-1978) distintos, em que o destravar das forças produtivas depende-
ram quase exclusivamente de mudanças qualitativas nas relações de produção entre
Estado e campesinato.
É importante também uma análise de cunho estratégico nesse caso. Cerca
de 200 cidades de médio porte foram criadas no interior do país como consequên-
cia dessa política de dispersão territorial, sobretudo de pequenas e médias cadeias
produtivas96. As campanhas de massa em torno da universalização da educação de
base na aldeia e de uma política que contemplava a necessidade de pleno conhe-
cimento do funcionamento de cadeias produtivas completas criaram – no interior
do país – uma classe operária das mais bem educadas do mundo; um dos fatores
para a corrida do capital estrangeiro na China pós-1978 e que diferencia a China
de outras realidades da periferia capitalista. Dificilmente se encontra um residente
urbano com mais de 70 anos de idade no interior da China que não tenha fluência
sobre assuntos que vão desde a realidade internacional e a chinesa até a própria
história do desenvolvimento da indústria em que ele passou toda sua juventude e
fase adulta até a aposentadoria97. Algo um tanto quanto toyotista dentro da lógica da
aplicação do “modelo soviético” na China, o que é interessante notar.
Nessa necessária visão estratégica da industrialização pré-1978 deve ser in-
serido o papel de uma empresa do porte da Norinco. Essa empresa originalmente
se localizou no fundo de cavernas e pés de montanha do centro-oeste do país na
metade da década de 1970, com ramificações em cidades estratégicas que circun-
dam todo o norte da China até a província de Jilin (Manchúria). Voltada naquele
momento à fabricação de artefatos militares, desde a metade da década de 1980 se
transformou em uma holding que envolve a fabricação desde artigos para uso mili-

96
Esse dado foi comentado em conversa com Chen Muqiao, técnico do Ministério da Constru-
ção, a 13 de janeiro de 2007.
97
Encontramos na cidade de Xian um grupo de estudantes de administração de empresas as-
sistindo a uma palestra (de um ex-trabalhador dessa planta industrial, de 72 anos de idade)
na subsidiária da Baosteel na cidade sobre o funcionamento do complexo administrativo dessa
planta industrial. Perguntado, por nós, sobre o seu nível de escolaridade, respondeu que era
de um nível de instrução semelhante ao que no Brasil corresponderia a um curso de torneiro
mecânico no Senai.

338
O desenvolvimento e suas faces na China

tar até autopeças para a indústria automobilística. Trata-se de um processo histórico


cujos atuais desdobramentos (desenvolvimento do oeste) corroboram a invalidade
teórica das leis das vantagens comparativas em detrimento das vantagens competi-
tivas98. Entre as maiores do mundo no setor de autopeças, as fábricas da Norin-
co foram essenciais ao planejamento tanto da expansão do setor automobilístico
chinês quanto do atual projeto em andamento de desenvolvimento do oeste da
China99. A pulverização industrial das décadas de 1950 e 1960 foi parte essencial
no sucesso das reformas econômicas de 1978. Assim, mais uma vez repetimos que
1978 não é a negação de 1949.
Quais os reais limites dessa forma de gestar indústria levando em consideração
a questão regional? Mais acima, chamamos a atenção para o fato de os limites des-
se modelo serem os próprios limites da aplicação de um modelo de financiamento
custeado por relações desiguais entre campo e cidade. Para um país com as dimen-
sões geográficas e populacionais da China, esse problema da gestão de recursos,
numa situação de cerco e aniquilamento, é grave. Trata-se de ínfimos recursos para
demandas gigantescas. Eis um problema profundo que deve ser relacionado a uma
análise mais objetiva do processo.
Quanto aos limites do processo, devemos colocar inicialmente a problemáti-
ca da relação proporcional entre aumento das hostilidades externas e o cada vez
maior subjetivismo em matéria de política econômica. O cerco militar e político exi-
gia maiores esforços para a construção econômica e militar. Porém, dialeticamente,
o próprio cerco trazia em seu bojo problemas para a ampliação da divisão social do
trabalho na China a partir de maiores intercâmbios comerciais com o Ocidente.
Logo, o problema do financiamento tende a se esgarçar e a busca de soluções para
98
No citado artigo Geography, economic policy and regional development in China, os autores utilizam
a máxima da subversão da lei das vantagens comparativas no sentido de demonstrar os limites
desse tipo de industrialização regional. Baseiam-se no fato de o crescimento das províncias ter
ocorrido às expensas do crescimento de uma cidade como Xangai. O limite desse argumento
encontra-se na não-percepção de outras ordens de fatores, entre elas a própria natureza do
financiamento da produção e da dinâmica (ou não) da divisão social do trabalho, argumento
puramente ideológico.
99
Para ir além da análise desse tipo de empresa no projeto nacional chinês e suas associações
externas, é indispensável a leitura de PERKOWSKI, Jack. Domando o Dragão – Como estou cons-
truindo uma empresa de 1 bilhão de dólares na China. Landscape. São Paulo. 366 p. Jack Perkowski é
diretor-executivo da ASIMCO, indústria de componentes automobilísticos instalada na China.

339
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

esse problema nos marcos anunciados tende a uma grande dose de “vontade” em
detrimento da objetividade das leis econômicas. Em curtas palavras, se tornou uma
obsessão na China pós-1956 a busca de uma solução rápida para o problema da cor-
respondência entre uma superestrutura de novo tipo, superior à capitalista, e uma base
econômica e material muito atrasada em relação tanto ao sistema capitalista quanto
ao socialista (URSS).
O desprezo de uma subjetividade camponesa que há milhares de anos traba-
lhava em torno da realização particular pela acumulação de excedentes foi, “de
cima para baixo”, subvertido em prol de formas comunais de produção. Essas for-
mas comunais de produção podem ser descritas como a essência negativa da pro-
dução regionalizada e autossustentada. O objetivo de passar a produção industrial
inglesa em apenas 10 anos (somente ultrapassou no ano de 2006), a partir de fornos
de fundo de quintal e o “arrocho” sobre a produção de excedentes agrícolas – num
país que ainda hoje convive com formas de produção na agricultura do século XVII
–, foi a senha para verdadeiros desastres como “O Grande Salto à Frente” (1956-
1962) e a própria Revolução Cultural (1966-1976), que ceifaram a vida de milhões
de camponeses e abalaram as relações entre Estado e base camponesa, que foi res-
tabelecida somente com a subida ao poder de Deng Xiaoping em 1978. Como tudo
se relaciona, queremos repetir a necessidade de se perceber o papel do externo na
busca por soluções internas e o papel que essas experiências tiveram para uma
convergência virtuosa em torno do arranque pós-1978.
Pedimos licença para uma reflexão profunda. Temos colocado que o desenvol-
vimento da divisão social do trabalho demanda a expansão da técnica, a especia-
lização produtiva, a maximização de fatores internos e, por fim, as necessidades e
fatores externos de produção. O fortalecimento da economia de mercado é a essência
desse processo. São fatores que dão causa para o surgimento de economias de esca-
las regionais e, num segundo momento, nacionais, que por seu turno concorrem à
unificação econômica de territórios e regiões. Essa é parte da história da transição
feudalismo-capitalismo, dos processos de unificações nacionais na Europa da pri-
meira metade do século XIX. Essa lógica quase mecânica prossegue na construção
do socialismo em países continentais. Sendo a superação da divisão social do tra-
balho o principal objetivo da transição socialismo-comunismo, a industrialização
regionalizada linkada com objetivos nacionais mais gerais determinados pelo plano

340
O desenvolvimento e suas faces na China

tem caráter estratégico em todos os sentidos; daí as preocupações de Lênin com a


absorção do território econômico de Cazaquistão, Turcomenistão e Sibéria Oriental.
Tal absorção se daria pela via da industrialização baseada na proximidade de recur-
sos naturais e, em compasso com o centro econômico do país (Moscou, Leningrado
e Kiev), pela implantação de imensas linhas de transmissão de energia e estradas
e ferrovias100.
Nessa linha de raciocínio, temos de observar essa visão leniniana partindo do
princípio que a Rússia pós-Guerra Civil não seria um país isolado diante tanto
de uma hipotética revolução na Alemanha quanto da necessidade de inserção da
Rússia – com recursos naturais de vários tipos –, como necessidade do capitalismo
que sai da Primeira Guerra Mundial em destroços. O sentido da NEP e das conces-
sões ao capital estrangeiro nela inseridas reflete essa visão. Não aconteceu nem um
evento, nem outro. A recém-formada URSS teve de partir, como dizem os norte-
coreanos, de “suas próprias forças” para enfrentar os desafios de um mundo onde
a Segunda Guerra Mundial era uma questão de tempo. A ênfase na instalação de
uma larga indústria pesada ganhou ares, podemos dizer de sobrevivência.
O que tinha em mente Mao Tsetung quanto à questão regional? Em linhas
gerais, para um país que passou mais de um século sob intensa ocupação e violên-
cia estrangeira e com grandes partes de seu território original sob domínio externo
(Tibete, por exemplo), o espraiamento da indústria nas regiões ocidentais veio a
calhar. E quanto à questão do desenvolvimento das forças produtivas na China e
as relações com o exterior? Seria Mao Tsetung um idealista rústico nessa matéria
a ponto de acreditar que a propriedade privada teria de ser aniquilada em um só
golpe como ocorrido a partir de 1956? Não acreditamos nisso. O que especulamos
é que se exacerbou a subjetividade igualitarista e comunal de Mao Tsetung com a
pressão externa e com o cancelamento de linhas de financiamento e assistência
da URSS. Antes desse período, Mao estava mais próximo da heterodoxia, tal como
Lênin, do que do dogmatismo e do subjetivismo de Stálin. Seus vários panfletos
escritos entre 1946 e 1949 (Sobre a nova democracia) davam conta de uma nítida
aproximação de Lênin pós-1919 e a prova disso foi a tomada de todo o continente

100
Lênin dedicou cerca de 45 artigos à temática da questão regional. Consideramos que o mais
didático e acessível deles seja As tarefas imediatas do poder soviético, escrito no início da Guerra Civil
(1918). Pode ser encontrado em suas Obras completas, tomo 16.

341
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

pelo seu Exército de Libertação Popular e a espera por retomar Hong Kong depois
do fim do último contrato de arrendamento com a Inglaterra (1997). Sua atitude
para com a burguesia nacional e a pequena burguesia era de estreita aliança. Após
1956, “encontrou-se” com o Stálin da coletivização forçada, da “revolução pelo alto”,
da “via prussiana socialista”.
Expusemos a abstração acima para pontuar que as escolhas em matéria de po-
lítica econômica e política regional – seja no capitalismo, seja no socialismo – não
se encerram na “loucura” desse ou daquele dirigente. O século XX teve poucos esta-
distas da estatura de Mao Tsetung e a China de hoje é prova disso. A circunstância
faz o homem, e o homem constrói a circunstância. Os problemas da abordagem
industrial e regional da era maoista devem ser vistos dentro do escopo da gestação
de um sistema de novo tipo, que ainda não havia completado 50 anos. E também
de uma conjuntura internacional que levou esse processo de industrialização a ser
marcado por uma divisão social do trabalho quase estática; expressão disso é a pró-
pria ausência de mobilidade de mão de obra pelo país (sistema hukou). Isso explica,
por exemplo, certos óbices, entre eles a quase não-existência de economia de escala
na China entre 1949 e 1978, apesar do crescimento da produção local.
Outro fator que concorre contra o pleno sucesso de uma política industrial
regionalmente planificada é o dos custos de transporte. Um sistema de transportes
é a essência da integração produtiva nacional, ao lado do mercado consumidor,
evidentemente. O baixo nível de acumulação de capital numa realidade como a
chinesa pré-1978 demanda uma concentração excessiva num ramo industrial (o
siderúrgico, no caso). Afora isso, numa conjuntura em que a troca internacional
é plenamente prejudicada, a utilização de mecanismos de economia monetária com
vistas à acumulação de capital se torna algo exangue. Por exemplo, atualmente
a China caminha para uma malha ferroviária de 80.000 km, sendo que, das fer-
rovias construídas pós-1978 (principalmente após 1995), 73% ligam cidades com
mais de 700 km de distância. Entre 1949 e 1978, a China saiu de um patamar de
21.800 km de ferrovias para 48.600 km. Um salto gigantesco101.
Por fim, sendo as economias de escala produtos de um processo de especializa-
ção produtiva, e sendo a especialização uma necessidade de mercado, dada a concor-

101
Dados disponibilizados, a 12-01-2007, pela gerência de relações internacionais do Ministério
das Ferrovias da República Popular da China.

342
O desenvolvimento e suas faces na China

rência, o grande limite desse modelo regional de industrialização pode ser notado
pela plena restrição de ação das leis típicas de uma economia de mercado. A acumu-
lação camponesa como o start de uma acumulação necessária para a posterior ex-
plosão da indústria não ocorreu em sua plenitude na China de Mao. Eis a essência
dos óbices dessa forma de gerir a industrialização e, consequentemente, a questão
regional. Afinal, existem ônus e bônus em escolhas que enfatizam a equidade em
detrimento da eficiência.

5.4.1.2 Gradualismo e expansão econômica “continental”: 1978-


2010

Uma prova candente da influência de externalidades na adoção e execução de


políticas de desenvolvimento internas está na tendência de redução de construções
básicas no centro-oeste da China (ver tabela 30, a partir de 1971) em detrimento
de maiores investimentos no litoral do país. Foram os primeiros sinais emitidos da
distensão chinesa em relação aos Estados Unidos. A institucionalização das refor-
mas em 1978 serviu de outorga para uma tendência histórica iniciada anteriormen-
te. Da mesma forma que o objetivo de viabilização de uma economia de mercado
sob orientação socialista enceta transformações profundas tanto na estrutura in-
dustrial chinesa como – e consequentemente – nas prioridades regionais. Vejamos,
em linhas gerais, esta opção em execução na atualidade.

5.4.1.2.1 Preferências regionais 1978-1992

A clara impossibilidade de ocorrer uma Terceira Guerra Mundial envolvendo o


capitalismo e o socialismo, e a transformação da Ásia na região mais dinâmica do ca-
pitalismo internacional, além de contradições de variadas ordens no front interno,
levou a China a uma séria reversão das políticas empenhadas entre 1949 e 1978. A
decisão de enfrentar a grave contradição entre superestrutura e base econômica pela
via do relaxamento de relações de produção entre Estado e campesinato e da inserção
(soberana) chinesa no jogo do comércio internacional trouxe profundas mudanças
nas preferências regionais desde então.
Como síntese, analisemos os três mapas a seguir:

343
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Mapa 4 – Escala de preferência da política regional chinesa (1980)

China shp
0
1
2
3

Mapa 5 – Escala de preferência da política regional chinesa (1984)

China shp
0
1
2
3

344
O desenvolvimento e suas faces na China

Mapa 6 – Escala de preferência da política regional chinesa (1988)

China shp
0
1
2
3

Fonte: RUIZ, Machado Ricardo. “Desenvolvimento econômico e política regional na China”. Relató-
rio do projeto “Diretrizes para formulação de políticas de desenvolvimento regional e de ordenação do território
brasileiro”. Ministério da Integração Regional. Brasília/DF. Julho de 2004.

Nesses mapas, percebe-se a construção gráfica da máxima de Deng Xiaoping


que se tornou a síntese da política regional chinesa pós-1978, segundo a qual se
devia proporcionar primeiramente o enriquecimento de algumas regiões, para
depois crescer o conjunto do país. A preferência máxima (grau 3) da política re-
gional chinesa ficou desde então restrita à região de Guangdong, na proximidade
de Honk Kong e do “capital internacional chinês”. Os graus de preferência foram
se estendendo de acordo com as instalações das ZEEs já descritas neste livro.
Percebe-se que o litoral chinês ganhou ênfase nas políticas regionais do país na
década de 1980.
Essa ênfase nasce de claras preferências regionais voltadas para uma inserção
externa que levou à acumulação de capital. A política econômica e a monetária
tiveram o poder de criar “vantagens competitivas”, dados os altos custos de produ-
ção em Hong Kong, Taiwan e principalmente no Japão pós-hendaka. Convergências
provinciais de renda foram obtidas com o relaxamento do sistema hukou no âmbito
provincial. A alta taxa de densidade demográfica nas primeiras províncias que ti-

345
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

veram ZEEs instaladas favoreceu a formação de um mercado de trabalho. Porém,


há outros movimentos que ocorreram no país nessa longa década de 1980 e que
merecem alguma atenção.

5.4.1.2.1.1 Fatores convergentes de renda: reformas rurais e ECPs

Apesar de a diferença de renda entre litoral e interior variar – dependen-


do das condições naturais da província interiorana e da remessa de dinheiro de
famílias interioranas trabalhando nas cidades litorâneas –, a verdade é que, na
década de 1980, a renda avançou em maior velocidade nas províncias interio-
ranas do que no litoral. Por exemplo, entre 1980 e 1988 a província que teve
crescimento mais rápido de renda foi Xinjiang (115,87%), seguida pela litorânea
Fujian (112%), e pela ocidental Yunan (107,83%). A quarta colocada no período
foi a sulista (“ao lado” de Hong Kong) Guangdong (107,62%). Das seis províncias
seguintes, somente duas eram litorâneas. O Tibete, mesmo com 39% de aumento
da renda (baixo em comparação com as províncias citadas), teve um crescimento
três vezes mais rápido que o dos Estados Unidos no período Reagan102. Existem
algumas razões para isso. A primeira delas se refere às reformas na agricultura,
onde os camponeses passaram a ter permissão para vender seus excedentes de
produção, após a entrega de cotas de produção ao Estado. Trata-se de um ele-
mento pouco notado quando se propugna uma reversão total e rápida da política
regional chinesa. Outro fator é referente ao gradual relaxamento do hukou. So-
mente esse relaxamento pode explicar a explosão populacional de cidades como
Shenzen, o surgimento de um poderoso mercado de trabalho na China e a grande
transferência de renda do litoral para o interior ou mesmo de capitais de determi-
nadas províncias para o interior rural das mesmas.
O catch up na renda interiorana também tem causa direta na rápida expan-
são das ECPs. Já discorremos a respeito de sua importância. A industrialização do
campo chinês permitiu que as grandes assimetrias de renda entre litoral e interior
durante as reformas econômicas não chegassem ao nível do insuportável. Em 1978,
76% da renda rural eram resultados de atividades agrícolas; já em 1994 essa parcela

102
OVERHOLDT, W. The rise of China – How economic reform is creating a new superpower. Cultural
Difusion. Nova York. 1993, p. 65.

346
O desenvolvimento e suas faces na China

tinha caído para 26%, enquanto as empresas coletivas e privadas rurais passaram a
gerar, respectivamente, 50% e 24% da renda rural103.
Na década de 1990 se percebe, porém, uma estabilização da renda rural e a
expansão da concentração não somente no litoral chinês, mas também em polos
rurais afetados, de um lado, pelo sucesso das ECPs e, de outro, pela disparidade
da própria produção agrícola. O gráfico abaixo demonstra esse processo de con-
vergência de renda na década de 1980, enquanto na década de 1990 as diferenças
regionais passaram a aumentar no mesmo ritmo do aumento (da desigualdade) no
nível de consumo:

Gráfico 8 – Desigualdade interprovincial (PIB e consumo)

0,4

0,35

0,3
Desigualdade (G)

0,25

0,2

0,15

0,1

0,05

0
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998

Ano
PIB Consumo

Fonte: Lu, M. & WANG, E. “Forging ahead and falling behind: Changing regional inequalities
in post-reform China”. Growth and change 33 (1). 2002, p. 31.

Questões de ordem geográfica voltaram a afetar o processo. A ampliação das


“zonas abertas” às cidades de fronteira em 1992 acentuou as disparidades dentro
103
RUIZ, Machado Ricardo. “Desenvolvimento econômico e política regional na China”. Re-
latório ao projeto Diretrizes para formulação de políticas de desenvolvimento regional e de ordenação do
território brasileiro. Ministério da Integração Regional. Brasília/DF. Julho de 2004, p. 43.

347
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

das próprias províncias. Mas o planejamento regional seguia seu curso. O processo
de desenvolvimento expunha problemas que, em seu tempo, seriam devidamente
enfrentados.
O programa de desenvolvimento do oeste e a formação de uma economia con-
tinental unificada estavam entrando na ordem natural dos acontecimentos.

5.4.1.2.2 Preferências regionais 1992-2010

Pode-se vaticinar que o fim da URSS coincidiu com a expansão de zonas aber-
tas aos IEDs. Sim, pode ser, porém a escalada continental da economia chinesa
dependia da expansão industrial para zonas de fronteira, coincidentemente com a
da antiga URSS, que era a segunda potência industrial do mundo. O desmanche
da indústria soviética e a necessidade de abrir as portas chinesas para um capital
que poderia ter como destino natural uma economia em franca desregulamentação
levaram o país a expandir seu escopo de atuação industrial e territorial.
Observemos os mapas a seguir:

Mapa 7 – Escala de preferência da política regional chinesa (1992)

China shp
0
1
2
3

348
O desenvolvimento e suas faces na China

Mapa 8 – Escala de preferência da política regional chinesa (1998)

China shp
0
1
2
3

Mapa 9 – Taxa de crescimento anual e médio do PIB per


capita na China, 1979-1988 (em %)

China shp
5.3 - 6.5
6.5 - 7.5
7.5 - 8.1
8.1 - 8,7
8.7 - 11.5

Fonte: RUIZ, Machado Ricardo. “Desenvolvimento econômico e política regional na China”. Rela-
tório do projeto Diretrizes para formulação de políticas de desenvolvimento regional e de ordenação do território
brasileiro. Ministério da Integração Regional. Brasília/DF. Julho de 2004.

349
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Os mapas acima continuam a dar conta de uma concentração de prioridades


na região de Guangdong e em Xangai. O nível de prioridade 2 começou a englobar
as províncias fronteiriças com a ex-URSS, e algumas delas (Mongólia Interior e
Xinjiang) também passaram a ser beneficiárias não somente de transferências de
rendas individuais da costa como também de incentivos a IEDs na prospecção de
gás natural e petróleo, pois a China, desde 1993, iniciou sua escalada de grande
importadora de hidrocarbonetos.
Retornando ao caso de Xangai, a partir de 1985 se inicia o projeto de constru-
ção, na margem leste do rio Huang Po, da ZEE de Pudong. Nesse momento, Xangai
se tornou o centro do entrosamento chinês com cadeias produtivas globais não in-
seridas nas experiências das primeiras ZEEs, entre elas os setores de siderurgia, de
telecomunicações, petroquímica e energia. A chamada Zona de Pudong, localizada
numa exuberante área de 350 km2, locus de prédios ultramodernos, transformou-se
nas duas últimas décadas em abrigo de grandes escritórios e laboratórios de proces-
samento da mais alta tecnologia em amplos setores. A formação de um “triângulo
de desenvolvimento” centrado em Xangai trouxe consequências para o vale do rio
Yang-Tsé como um todo. É essencial o papel cumprido pelo capital taiwanês, o
qual, já no final da década de 1990, estava presente na execução de projetos de im-
plantação de cerca de 6 mil unidades produtivas ao longo do vale do rio Yang-Tsé104.
A grandeza da demanda chinesa começava a se fazer presente na subjetividade dos
empresários taiwaneses.
Os taiwaneses foram os primeiros a perceber a oportunidade criada com o
grande aumento do fluxo navegatório com a canalização integral do Yang-Tsé.
No final da década de 1980, esse fluxo era de 10 milhões de toneladas anuais de
mercadorias. Em 1997, chegou a 30 milhões de toneladas, atingindo 50 milhões
em 2001.
Esse início de desconcentração industrial/territorial ocorrido desde 1992 na
China concorreu para a tendência da redução das assimetrias campo-cidade e li-
toral-interior? Não, e o gráfico 8 demonstra o início de aumento das assimetrias
de desenvolvimento e consumo na década de 1990. Por quê? Porque apesar de a
implantação das ZEEs ter se iniciado na década de 1990, o poder da concentração
104
Dados atualizados de JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas e crescimento econômico. Anita Ga-
ribaldi. São Paulo, 2006, p. 222.

350
O desenvolvimento e suas faces na China

da grande indústria somente se impôs na década de 1990105. Por exemplo, entre


1990 e 1998, 80% dos IEDs se concentraram no litoral, sendo 42% deles direcio-
nados às quatro primeiras ZEEs. Em 1985, a região sulina, onde estão localizadas
as mais bem-sucedidas ZEEs, era responsável por 49% das exportações, 71% das
importações e 74% dos IEDs no país. Em 1998, as exportações saltaram para 75%,
as importações para 74% e os IEDs recuaram para 66,2%106.
Em um ambiente de transferência de prioridades do interior para o litoral, o
mais óbvio é o crescimento do PIB ser mais acelerado no litoral que no interior,
conforme demonstra o mapa 9. As províncias localizadas entre Shandong e Guang-
dong tiveram crescimento médio que variaram de 8,7% até 11,5%. Um efeito dégradé
se percebe no restante do território chinês, com províncias que cresceram a uma
média variável entre 5,3% e 6,5% até as que cresceram entre 7% e 8,5%. O interes-
sante é que todas as províncias chinesas cresceram em média superior à verificada
no conjunto econômico mundial. O problema é que as altas taxas de crescimento
verificadas no litoral abriram margem a uma grande concentração de todos os in-
dicadores econômicos numa mesma região.
Havia a necessidade de novas mudanças no eixo do desenvolvimento do país. O
mais importante é que essa tendência já era intrínseca às novas preferências regio-
nais surgidas na década de 1990. Chegou o momento em que a acumulação de capital
e tecnologia no litoral, mediada por um planejamento de nível superior, passaria a ter
papel no maior projeto de desenvolvimento regional do mundo moderno.

5.4.1.2.2.1 O grande desafio do Estado chinês no desenvolvimento


do oeste

Chamamos a atenção anteriormente para a necessidade de uma postura mais


aberta com relação ao oeste da China. Tem sido muito comum enfrentar essa ques-
tão de forma preconceituosa, muito semelhante à maneira como muitos intelectu-
ais estruturalistas abordam o “atraso” do Nordeste brasileiro. Esse tipo de postura,
105
Lu, M. & WANG, E. “Forging ahead and falling behind: Changing regional inequalities in
post-reform China”. Growth and change 33 (1). 2002, p. 43.
106
RUIZ, Machado Ricardo. “Desenvolvimento econômico e política regional na China”. Re-
latório do projeto Diretrizes para formulação de políticas de desenvolvimento regional e de ordenação do
território brasileiro. Ministério da Integração Regional. Brasília/DF. Julho de 2004, p. 40.

351
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

na ponta do processo, não permite sair da superfície e observar que, por detrás do
atraso relativo e absoluto, existe – em muitos casos – um dinamismo próprio. Exem-
plo disso é o caso da província mais pobre da China, o Tibete. Analisando-se em
perspectiva mais histórica, os dados demonstram que, entre 1951 e 2007, sua econo-
mia cresceu 59 vezes sobre a base de 1951, com crescimento médio de 8,9%. Entre
2000 e 2007, seu PIB aumentou em 297%107.
Não estamos tentando pintar um quadro que não existe, em relação à reali-
dade do oeste da China. Sem nenhuma dose de presunção, talvez sejamos um dos
poucos brasileiros que teve contato profundo com a realidade do oeste chinês. O
atraso de algumas regiões mais inóspitas tem caráter absoluto e relativo. Em alguns
casos, há uma diferença gritante diante do que se observa no litoral. Mas a leitura
deve ser historicizada, o que significa considerar que a população ocidental da China
– na atualidade – vive em condições muito melhores que a de seus antepassados.
Essa percepção geracional do problema (e de sua solução) é um dos elementos que
dão suporte à unidade nacional chinesa.

aaaaaaaaaaaa

Em linhas gerais, o que significa “integração regional”? Quais seus meios


principais numa economia em expansão e ditada por regras de mercado? Um gran-
de senso comum traduz essa questão como “integração de mercados regionais”.
Correto, porém – a nosso ver – existe um problema que o precede, que é a cria-
ção de condições para o surgimento da empresa, do empresário. Sem empresários,
torna-se inútil expor sobre “integração de mercados”. Esse é um traço em grande
medida solucionado pela governança chinesa com o surgimento das ECPs. Porém,
o surgimento de empresários e empresas depende de fatores que, em alguns casos,
fogem ao escopo da “iniciativa individual”, entre as quais as condições naturais,
por exemplo.
De forma geral, nossa experiência em estudos e presença na China nos leva
a concluir que as ECPs cumpriram importante papel no que tange à formação de
mercados internos regionais. Por outro lado, o desenvolvimento da agropecuária
107
LI, Luo. The economy of Tibet: Transformation from a traditional to a modern economy. Foreign Lan-
guage Press. Pequim, 2008, p. 127.

352
O desenvolvimento e suas faces na China

em províncias mais pobres, como Gansu e Tibete, além do petróleo e do gás natural
de Xinjiang, Sichuan e Mongólia Interior, tiveram o mesmo peso que a formação
das ECPs nas proximidades do litoral chinês e no vale do rio Yang-Tsé. Vale notar
que o surgimento de ECPs em seu início dependia – dentre outros fatores – de uma
forte densidade populacional, dado o caráter intensivo do trabalho em determi-
nadas indústrias, entre elas a têxtil. Diferentes realidades, diferentes formas de
inserção.
De certa forma, quando trabalhamos questões como a execução de novas e
superiores formas de planejamento, a “dinâmica territorial da ‘abertura ao exterior’”,
do processo de recentralização financeira, a relação entre os custos de transpor-
te e o baixo nível de acumulação de capital – além de questões que giram em
torno da necessidade da pobreza concentrada em regiões habitadas por mino-
rias étnicas e do imperativo das demandas externas e o desenvolvimento regional
– buscávamos provocar, mesmo que subjetivamente, um raciocínio que levasse a
exploração das potencialidades do oeste da China à nova fronteira, quase natural,
capaz de sustentar por décadas seu projeto nacional. Não somente sustentar, mas,
principalmente, consolidar e cumprir – por inteiro – os objetivos que levaram o
PCCh ao poder em 1949.
Esse processo planificado de unificação deve ser analisado sob três ângulos, a
saber:

a) como consequência de um poderio financeiro sem paralelo na história


da República Popular;
b) pela integração possibilitada pela transferência de energia do oeste em
troca do capital e tecnologia concentrados no litoral;
c) pela construção de uma ampla rede de transportes assentada numa ca-
pacidade ilimitada de mobilização de sua poupança doméstica.

Frequentemente temos apontado, neste livro, os exemplos de Xinjiang e do


Tibete dentro do todo que envolve o processo de integração. Os motivos para a
utilização dessas duas referências regionais se assentam sobre algumas variáveis.
Do ponto de vista geográfico, trata-se de regiões autônomas localizadas em pontos
estratégicos do território chinês. O Tibete está no topo de um altiplano fronteiriço

353
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

com a Índia (rival histórico dos chineses), onde nascem os principais rios chineses.
Logo, é do Tibete que saem as principais linhas de suprimento de água. Xinjiang,
com grandes reservas de hidrocarbonetos, tem-se transformado na principal base de
uma malha de dutos voltada para o suprimento da China, numa ligação que se inicia
praticamente no Oriente Médio, chegando até o Pacífico. O Tibete – estrategicamente
– está destinado a ser base de uma ampla rede rodoviária e ferroviária ligando-o ao
conjunto territorial chinês e à própria Ásia Meridional, explorando assim enormes
possibilidades comerciais. Mas ainda sobram elucubrações sobre as possibilidades
internacionais abertas com a solução das questões regionais chinesas. Entre a cidade
de Wuhan (situada no interior do país) e Guangzhou (próxima de Hong Kong) já
funciona uma ferrovia com trens que chegam a 350 km/hora. Nenhum trem japonês
ou coreano alcança essa velocidade. A ideia estratégica por detrás desse tipo de em-
preendimento está na construção de 8 mil quilômetros de ferrovias de alta velocida-
de, capazes de ligar a China a mais de 16 países, reprojetando, em pleno século XXI,
a chamada Rota da Seda108, e com impacto sobre o entorno chinês (principalmente a
Rússia e seus interesses na Ásia Central) ainda em fase de cálculo.
O caso do Tibete encerra um exemplo dessa política de integração regional
pautada pela ampliação do sistema de transportes (ferrovia Qinghai-Tibete, a mais
complexa obra de engenharia do mundo moderno). Por exemplo, a carne produzi-
da no Tibete passou a ser consumida em cidades como Pequim, Xangai e Shenzen
após a conclusão dessa obra. Do ponto de vista da integração pela troca de capital
e tecnologia do litoral pela energia do oeste, fica o exemplo do gasoduto oeste-leste
ligando Xinjiang a Xangai, obra que custou US$ 20 bilhões. Outro exemplo está na
exploração máxima da capacidade hidrelétrica do centro-oeste do país (a 2ª maior
reserva de hidroeletricidade do mundo, atrás apenas do Brasil) e na construção de
hidrovias ligando o país aos seus vizinhos do Sudeste Asiático. Entre 1998 e 2004,
foram investidos cerca de US$ 1 trilhão em cerca de 10 mil obras de médio e grande
porte no oeste da China109.
De certa forma, o gráfico a seguir clarifica os avanços em matéria de cresci-

108
LIU, Melinda; NEMTSOVA, Anna; MATTHEWS, Owen. “A nova Rota da Seda”. In: Especial
China – CEO Exame. Edição n. 6. Junho/2010.
109
Investimentos, financiamentos e obras detalhados em JABBOUR, Elias. China: Infraestruturas
e crescimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006. 256 p.

354
O desenvolvimento e suas faces na China

mento do PIB no oeste da China, antes e depois do lançamento do Programa de


Desenvolvimento do Oeste:

Gráfico 9 – Crescimento médio anual das províncias do oeste da


China, 1978-1998 e 1998-2008 (%)
% 16,0
16
1978 - 1998 1998 - 2008
15

14
12,2 12,2
13
11,2 10,8 11,4 11,2 11,4
12 11,1
10,3 10,6
11 10,6
9,9 9,8
10
9,9 10,2
9 9,7 10,1 9,5
9,5 9,3 9,3
9,0 9,5 8,9 9,0 9,6
8

7
7,1
6
g n u n e i u í a g r i a A
qin ichua uizho unna Tibet haanx Gans ingha ingxi injian nterio uangx Chin CHIN
ong S G Y S Q N X ia I G e da
Ch ó l
st
ng Oe
Mo

Fonte: “West China: Significant growth and development”. In: People`s Daily. 17-09-2009. Disponí-
vel em: (http://english.peopledaily.com.cn/90001/90776/90882/6760223.html).

O gráfico diz muito: enquanto o crescimento médio da China nos dois períodos
variou de 9,6% para 9,8%, o do oeste do país subiude 9,5% para 11,4%. Todas as pro-
víncias e regiões autônomas crescem com média superior à nacional. Pelo menos três
destaques: o gigantesco salto verificado na Mongólia Interior (de crescimento médio
de 10,2% para 16%), no Tibete (que variou de 9,3% para 12,2%) e em Qinghai (que
saiu de um patamar de 7,1% para 11,4%). No caso da Mongólia, a construção de um
gasoduto que vai até Pequim e depois para Xangai, aliada a uma política de royalties
(que aumentaram em 120% desde 1999) para as províncias produtoras, explica em
grande medida esse salto. O Tibete deve seus grandes índices de crescimento, além
dos investimentos públicos, ao alargamento da demanda do leste do país de seus pro-
dutos primários (diretamente relacionado à construção da ferrovia Qinghai-Tibete).

355
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Esses dados não encerram por si o papel dos investimentos públicos nesse pro-
cesso. Existem outros níveis de indução. Verificamos, por exemplo, quando estive-
mos em Lhasa (capital do Tibete) e em Hohhot (capital da Mongólia Interior), em
2004, que, em comparação com Pequim e Xangai, para se comprar desde carros a
eletrodomésticos, o número de prestações é muito maior, chegando a até 100 vezes,
enquanto no litoral do país essas prestações não passam de 72. As taxas de juros
para esse tipo de compra chegam a ser negativas no interior do país, enquanto no
litoral variam de 0% a 0,2% ao mês. O crédito bancário é muito menos burocrati-
zado no interior que no litoral, com taxas de juros “japonesas”, ou seja, negativas.
As políticas de aumento de depósitos compulsórios ou aumento da taxa de juros,
utilizadas para conter o aquecimento da economia, não são aplicadas no interior
do país110.
Do ponto de vista da política, essa inversão de prioridades também expressa
a subida ao poder, no ano de 2002, da dupla Hu Jintao e Wen Jiabao. Trata-se de
dois homens altamente experimentados em matéria de governança em províncias
no interior da China. Hu Jintao, por exemplo, administrou entre 1986 e 1998 as
duas províncias mais pobres da China (Tibete e Gansu). Tudo isso influencia na
radicalização de certas políticas, entre elas as sintetizadas em alguns dados que so-
mente há alguns meses vieram a público, notadamente pela publicação da OCDE,
Economic survey of China, 2010.
Independentemente dos “conselhos” desse grupo de países (desmoralizados
pelo alcance da crise financeira) para privatizar o sistema financeiro chinês, nesse
relatório veio à baila uma grande notícia: entre 2005 e 2010 o ritmo de aumento
das desigualdades entre campo e cidade não somente foi estancado como também
começou a regredir. Nada que obedecesse a conselhos da OCDE: utilizando o índice
de Gini, a China saiu de um patamar de 49,6 em 2005 para 40,8 em 2007, tornan-
do-se um país menos desigual que Brasil, México, Rússia e África do Sul, ficando
atrás de países como Estados Unidos (ligeiramente à frente da China), Coreia do
Sul, Reino Unido e Japão.
Entre 2002 e 2009, segundo esse relatório, os investimentos em educação subi-
ram 122%; em saúde, 235%, além do dado já exposto neste livro, e confirmado pelo
110
Informações extraídas em conversas e entrevistas em lojas de departamentos no litoral e
interior da China, e com pelo menos 20 gerentes de bancos das citadas regiões.

356
O desenvolvimento e suas faces na China

relatório da OCDE, sobre os US$ 320 bilhões aplicados na formação de um novo


sistema de previdência social.
Do ponto de vista estratégico, podemos concluir que a China, neste momen-
to, colhe os frutos de uma acertada política regional. O mundo deve se preparar
para os impactos da formação de uma economia continental em desenvolvimen-
to na Ásia.

5.5 REFLEXÕES SOBRE O “MUNDO AGRÁRIO”


CHINÊS E SEU DESENVOLVIMENTO
A questão agrário-camponesa é o ponto em comum de todos os diferentes
processos históricos pelos quais a China passou desde a unificação de seu Estado na-
cional, passando pelo precoce desenvolvimento de sua economia de mercado, e que
desembocou na Revolução de 1949. A população camponesa da China, ainda hoje,
é maior que toda a população da África, América Latina ou mesmo da Europa.
Além dessa justificativa histórica e demográfica, um estudo que dê conta de
um gigantesco processo de desenvolvimento como o chinês deve ser guiado não
somente pela análise da expansão industrial, mas também das grandes transfor-
mações que esse desenvolvimento acarreta à agricultura. Isso serve para o estudo
de qualquer caso.
A importância de uma análise que contemple o urbano e o rural, mediados,
ou não, pelo desenvolvimento das forças produtivas, segue a velha lógica filosófica
consagrada pelo materialismo histórico, segundo a qual a anatomia do macaco só
é passiva de compreensão nos marcos da análise da anatomia humana. No caso
do processo de desenvolvimento, isso significa que o futuro do campo é a cidade, e
não seu contrário.
A evolução da agricultura chinesa nos últimos 30 anos é reflexo do intenso
processo de urbanização e modernização pelo qual passa o país. Em 1978, a produ-
ção agrícola correspondia a 28,2% do PIB chinês. O emprego agrícola correspondia
a 70,5% de toda mão de obra ativa do país. Em 1985, 12,1% das importações chine-
sas eram de produtos alimentícios e 24,5% das exportações, de produtos primários.
Em 2008, apenas 11,3% da mão de obra chinesa estavam empregados no setor pri-
mário da economia, além de a participação desse setor no emprego total do país ter

357
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

caído para 39,6%. Nesse mesmo ano, apenas 5,1% das importações chinesas eram
de produtos agrícolas, enquanto a participação nas exportações caiu para 2,8%111.
Uma análise pautada por pura matemática pode levar a uma visão do processo
não condizente com a realidade, pois todos os índices apontam para uma perda de
importância absoluta da agricultura na economia chinesa. Embora isso seja verda-
de, não encerra o fato de a maioria dos chineses ainda viver na zona rural; o que
permite colocar que até hoje a questão agrária e camponesa é a variável estratégica
no que concerne ao desenvolvimento da própria superestrutura de poder na China.

5.5.1 O problema rural de volta ao centro

Amaury Porto de Oliveira, em vários de seus valiosos textos, discorre sobre


três revoluções que se intercalam na China no século XX. A primeira instaurou a
República em 1911, a segunda culminou na instauração da República Popular em
1949, e a terceira foi levada adiante por Deng Xiaoping em 1978, quando se deu o
passo inicial para a introdução massiva de mecanismos de mercado tão necessários
ao destravamento das forças produtivas observadas desde então. De nossa parte,
colocamos o papel do modo de produção asiático e do surgimento de filosofias nativas
na formação de uma subjetividade camponesa incapacitadora de arranjos institu-
cionais “por cima” no processo de desenvolvimento histórico do Estado nacional
chinês. Historicamente, os camponeses chineses são chamados a tomar seu lugar
na história. Os ciclos de acumulação na história da China são marcados pela parti-
cipação política direta dos camponeses no processo.
Para um país com uma população camponesa do tamanho da verificada na
China, é simples concluir que, ciclicamente, vem à tona uma chamada “questão
camponesa” no país. Está se confirmando, atualmente na China, o enfrentamento
e a solução de graves problemas que afetam diretamente o campo chinês. Para
Amaury Porto, trata-se de uma Terceira Revolução Agrária. Em nossa opinião, essa
Terceira Revolução Agrária nada mais é do que um processo de tomada de decisões,
que vem contemplar uma nova rodada de relaxamento de relações de produção.
O atual processo guarda cores semelhantes ao do ocorrido no início da década
de 1950, quando a entrega da terra aos camponeses obedeceu a critérios políticos

111
China Statistical Yearbook para todos os anos.

358
O desenvolvimento e suas faces na China

e capacitou o país a erigir a unidade nacional e uma siderurgia necessária à afir-


mação dessa soberania. Tem semelhança na institucionalização da “via dos produ-
tores” em 1978 na mesma medida em que 1978 e hoje são faces da mesma moeda
sintetizadas na necessidade de ciclos de reformulação do pacto que levou o PCCh ao
poder em 1949. Problemas sociais, ambientais e de concentração de renda social e
territorial vêm à tona no mesmo momento em que o país caminha na ocupação de
espaços econômicos, sociais e geopolíticos neste século XXI.
Do sucesso ao enfrentamento de mais esse cíclico desafio repousa o sucesso, ou
não, do projeto nacional chinês.

5.5.1.1 Problemas e avanços do processo de desenvolvimento e da


agricultura na China

Ser convidado para proferir uma palestra, conferência ou simplesmente par-


ticipar de um debate demanda ter respostas convincentes para certas questões
levantadas em nove de cada dez eventos sobre a China. Uma dessas questões
se refere aos trágicos acontecimentos ocorridos em junho de 1989 na Praça da
Paz Celestial, em Pequim. Pode-se tomar partido do governo ou dos estudantes.
Como advogar a ação do governo é algo que pode causar desconforto e o contrário
se torna mais interessante e “politicamente correto”, o mais sensato é dispor de
argumentos de fundo. Argumentos de fundo para aqueles que enxergam na ação
do governo algo correto, dada a radicalização da contrarrevolução na China e no
mundo naquele momento.
Costumamos dizer que o regime não caiu somente pela ação violenta do Exérci-
to de Libertação Popular (ELP). Essa ação esteve mais a cargo da capacidade de alcance
estratégico de Deng Xiaoping, um homem que viveu o século XX como ninguém.
Outro ponto é deixar claro que a China não se resume a Pequim, Xangai ou a outro
grande centro. A China é muito mais que sua capital ou seu rico litoral. Enfim, ela
não caiu como a URSS pelo fato de que em nenhum outro momento de sua história
recente os camponeses dispuseram de tamanha capacidade de consumo e acumu-
lação, fruto da institucionalização da mercantilização de excedentes camponeses.
Chegamos a Pequim no início de março de 2004. Tudo impressionava. O de-
senvolvimento em sua plenitude na forma de guindastes, prédios novos, milhares

359
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

de carros nas ruas, linhas de metrô em construção etc. Por outro lado, outro pro-
cesso nos assustava e nos chamou a atenção: a quantidade de mendigos e pedintes
pelas ruas da cidade.
A observação do problema social urbano, seja na China ou em qualquer lugar
do mundo, deve ser pautada pela existência de outros problemas, notadamente a
transformação da crise agrária de superpopulação em crise social urbana. O quadro era
desolador com a produção agrícola em queda, problemas ambientais afetando a
vida de milhares de famílias camponesas e corrupção no rumo de se tornar en-
dêmica, tendo como resultado problemas sociais urbanos e a eclosão, somente em
2003, de cerca de 70 mil protestos capitaneados por camponeses. Era o segundo
ano de governo da geração centrada em Hu Jintao – homem que, por ter governado
as duas províncias mais pobres do país (Gansu e Tibete), trazia consigo a meta de
reverter essa situação.
Nesse mesmo ano, 2004, a Academia Chinesa de Ciências Sociais interpelou
109 dos mais notáveis intelectuais da China sobre questões diversas que afetavam
o desenvolvimento do país. Do total, 73% manifestaram urgência para questões
relativas ao complexo agrário chinês. Já em 2005, em meio à sessão anual da Asso-
ciação para as Regiões Subdesenvolvidas, o então ministro do Comércio, Bo Xilai,
confirmou essas preocupações com o anúncio de que 90 milhões de chineses ti-
nham renda anual de US$ 112. Desses 90 milhões, cerca de 75 milhões viviam na
zona rural112.
As notícias que vinham do campo, como as acima colocadas, eram as piores
possíveis. Os números mostravam a mesma situação, com a queda contínua das
colheitas. Em 1999, atingiu seu pico com a produção de 508,4 milhões de toneladas,
chegando a uma depressão de 430,7 milhões de toneladas em 2003113.
Essa grande variação descendente tem razões diversas. Entre elas, as enchen-
tes que varreram o país em 1998, o avanço das construções urbanas na zona rural
– além de ferrovias, estradas e autoestradas. Um problema mais sério é a deserti-
ficação. Em 2002, a aridez do solo chinês alcançou 1,71 milhão de km2, ou 20%
de sua superfície territorial. A cada ano, 3.400 km2 tornam-se arenosos, causando

112
OLIVEIRA, Amaury P. Terceira Revolução Agrária na China. Versão mimeografada a nós oferecida
pelo autor.
113
China Statistical Yearbook.

360
O desenvolvimento e suas faces na China

prejuízos da ordem de US$ 500 milhões anuais e ameaçando a produção e a vida


de 170 milhões de pessoas114.
Dialeticamente ligado ao problema da queda da produção agrícola está o
combate à desertificação. Poucos sabem, mas o maior programa de arborização
do mundo – tanto em velocidade, quanto em envergadura – tem na China o seu
palco. Iniciado como parte de seu 9° Plano Quinquenal (1996-2000), continuado
no 10° Plano e acelerado no 11°, a taxa de cobertura florestal do país subiu de 14%
em 1998 para 16,55% da área total do país em 2002, alcançando o patamar de 150
milhões de hectares. O plano previa que essa área coberta por florestas chegasse
a 20,3% em 2010115.
Do ponto de vista do movimento mais geral da economia, especulamos que a
queda na produção agrícola e a ascensão de revoltas no interior do país têm relação
quase direta com o processo – já comentado – de recentralização financeira em
1998. Em todas as províncias, essa política teve de ser remediada com o aumento
de impostos sobre a produção camponesa, que se tornou um grande fator de arre-
fecimento moral da classe camponesa chinesa.

5.5.1.1.1 Os ciclos da produção agrícola recente

O rápido processo de desenvolvimento que a China experimenta nas últimas


três décadas vem acompanhado de profundas mudanças na estrutura agrícola do
país. Tais mudanças atingem desde o nível da produtividade de trabalho na agricul-
tura (transformando a China, apesar de seus limites geográficos, na maior produ-
tora de cereais no mundo) até os hábitos de consumo da população.
As tabelas abaixo podem nos auxiliar numa análise mais profunda da agricul-
tura chinesa e de seu futuro:

Tabela 30 – Produção de grãos, 1978-1987 (em milhões de toneladas)


1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987
304,8 332,1 320,6 325,0 354,5 387,3 407,3 379,1 391,5 403,0
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

114
China ABC, 2004. Chapter 9: “Environment`s protection”. In: www.china.org.cn.
115
Idem.

361
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Tabela 31 – Produção de grãos, 1988-1998 (em milhões de toneladas)


1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998
394,1 407,3 446,2 435,3 442,7 456,5 445,1 466,6 504,5 494,2 512,3
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

Tabela 32 – Produção de grãos, 1999-2008 (em milhões de toneladas)


1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
508,4 462,2 452,6 457,1 430,7 469,5 484,0 498,0 501,6 528,5
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

É importante frisar que, quando se trabalha com a variável aumento da produ-


tividade do trabalho, não se pode absolutizar a questão tecnológica. Ela é central e
evidente. Porém, outra variável também pode ter peso nesse processo. Falamos da
solução pela via do relaxamento das relações de produção. Em um primeiro momento,
esse processo prescinde da questão do avanço tecnológico, mas, num segundo,
não, pois o avanço tecnológico passa a ser condição primária para o aumento da
produtividade.
Exemplo disso é o aumento da produção agrícola chinesa entre 1978 e 1984.
Pode-se observar que, entre os anos citados, a produção agrícola cresceu na mes-
ma proporção que a do período compreendido entre 1957 e 1978. Porém, não se
pode menosprezar que as condições físicas criadas pela duplicação da terra irri-
gada na China entre 1952 e 1977 tenham sido fator de proa para o sucesso dessa
política agrícola116. O relaxamento das relações de produção nesse caso está direta-
mente relacionado com o fim das amarras que prendiam a entrega do excedente
total ao Estado. Os contratos de responsabilidade assinados entre Estado e famílias
camponesas permitiam que, após a entrega compulsória de uma cota ao Estado,
as famílias poderiam dispor do excedente para venda no mercado. A nosso ver,
eis o ponto fulcral para a compreensão do processo de desenvolvi-
mento da China desde então.
Por quê? Porque, se temos como pressuposto o desenvolvimento como uma
opção política, as condições políticas para esse processo na China só foram possíveis
por meio da recomposição do pacto de poder de 1949 entre Estado e classe campo-
116
ARRIGHI, G. Adam Smith em Pequim. Boitempo. São Paulo, 2008, p. 375.

362
O desenvolvimento e suas faces na China

nesa, e por meio da institucionalização do acúmulo individual a partir de 1978. É


o ponto de encontro da propriedade imperial da terra do modo de produção asiático
com o milenar aparato empreendedor do camponês oriental. Trata-se da “via dos
produtores” decifrada por Marx e Lênin e levada em intensa consideração nos tra-
balhos de Maurice Dobb e Ignacio Rangel. Tal via foi a responsável pelo surgimento
de milhares de empresários capazes de tocar novos campos de investimentos e
acumulação na China de nossos dias, e não por meio da negação da dialética do
“caminho natural da opulência” vislumbrado por Adam Smith. Nada é natural em
se tratando de processos sociais.
Por outro ângulo, pode-se registrar que inclusive um imenso mercado interno
para consumo de bens industrializados foi criado a partir dos acúmulos campone-
ses iniciais. Também se deve considerar que as tão faladas ECPs surgem da inicia-
tiva coletiva de camponeses e da mão de obra excedente desse espetacular processo,
tornando o adensamento do mercado doméstico – também – parte desse complexo
da inserção chinesa na economia internacional.

aaaaaaaaaaaa

Podemos dispor de pelo menos três ciclos de produção agrícola recente na Chi-
na. O primeiro, tratado acima, está diretamente relacionado com os incentivos à
acumulação particular do final da década de 1970. Por essa forma de relaxamento
das relações de produção, a China pôde alcançar – e manter – patamares de produção
saindo em 1978 de algo acima de 300 milhões de toneladas de grãos para quase
alcançar – em 1990 – o pico de 450 milhões de toneladas (446,2 milhões de tonela-
das). Esse foi um ciclo no qual repousou o próprio poder político do país, posto em
questão em junho de 1989.
Existem ainda dois processos que estão diretamente imbricados no crescente
peso aplicado, na agricultura, do intenso processo de modernização geral da econo-
mia chinesa. Estamos falando de outro estágio que permeia o aumento da produ-
tividade do trabalho, agora pautado pela gradação tecnológica. Se nas tabelas 30, 31 e
32 exibimos um arranjo geral do aumento da produção agrícola, a tabela abaixo nos
lança luz sobre os principais elementos a serem trabalhados:

363
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Tabela 33 – Evolução da área irrigada, consumo de fertilizantes,


estações hidroelétricas e consumo de energia elétrica na zona rural
chinesa (anos selecionados)
Número de estações hi-
Consumo de Energia elétrica
Área irrigada droelétricas/ capacidade
Ano fertilizante químico consumida na
(1.000 hectares) de geração
(10.000 tons.) zona rural
(10.000 kW)
1978 44.965,0 884,0 82.387/228,4 253,1
1985 44.035,9 1.775,8 55.754/380,2 508,9
1990 47.403,1 2.590,3 52.387/428,8 844,5
1994 48.759,1 3.317,9 48.722/503,6 1.473,9
1998 52.295,6 4.083,7 33.185/634,8 2.042,2
2003 54.014,2 4.411,6 26.696/862,3 3.432,9
2004 54.478,4 4.636,6 27.115/993,8 3.933,0
2005 55.029,3 4.766,2 26.726/1.099,2 4.375,7
2006 55.750,5 4.927,7 27.493/1.243,0 4.895,8
2007 56.518,3 5.107,8 27.664/1366,6 5.509,9
2008 58.471,7 5.239,0 44.433/5.127,4 5.713,2
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

Apesar dos citados sérios problemas que a China teve de enfrentar a partir da
segunda metade da década de 1990, a produção de cereais alcançou 500 milhões
de toneladas em 1996. A produção por hectare aumentou de 2,5 para 5 toneladas
entre 1978 e 2008, o que significa que os problemas que atingiram o campo chinês
foram concomitantes ao aumento da tecnificação da agricultura. A tabela 33 expõe
isso de forma clara: a extensão da terra irrigada aumentou em quase 30%, dando
condições para cultivos, como, por exemplo, de algodão e melão em pleno deserto
do Tarim (Xinjiang). O consumo de fertilizantes químicos aumentou 5,9 vezes des-
de 1978 e o de energia elétrica se multiplicou por 22,6 desde 1978, com aumento
médio anual de 10,9%.
Com o acréscimo de outros fatores sociais de ordem positiva, a China alcan-
çou o patamar de 528,5 milhões de toneladas de grãos em 2008, com apenas 121
milhões de hectares de terras em condições de plantio. Algo louvável se compa-
rarmos com o Brasil, que em 2009 colheu 146 milhões de toneladas de grãos,
com terras aráveis potenciais de cerca de 400 milhões de hectares. Claramente,
uma produção muito aquém da chinesa, independentemente de todo o avanço

364
O desenvolvimento e suas faces na China

tecnológico visto em nosso país nessa área e da grande diversificação de nossa


agricultura.

5.5.1.2 Salto econômico e conjuntura

Existe um caminho quase natural para trabalhar as questões do complexo rural


chinês de forma negativa e reta. Sendo o processo de desenvolvimento nada mais
que algo solucionador de contradições e gerador de outras, para nós o mais impor-
tante é demonstrar como os óbices do desenvolvimento são superados dialeticamen-
te. Assim sendo, o “natural”, tanto para a agricultura quanto para o processo de
desenvolvimento chinês como conjunto, seria elencar argumentos para destacar as
fragilidades do sistema.
Preferimos seguir na contratendência, no caminho inverso.

5.5.1.2.1 Hábitos de consumo e pressão positiva sobre a produção

A mudança de hábitos de consumo (troca de carboidratos por proteína na


dieta diária, por exemplo) influenciou a produção de alimentos. Tal mudança foi
acompanhada por grande aumento na produção de carne bovina, que saiu de 8,56
milhões de toneladas em 1978 para atingir 72,787 milhões de toneladas em 2008.
O consumo per capita anual ascendeu de 8,9 kg em 1978 para 54,8 kg em 2008. A
produção de peixe foi de 4,6 milhões de toneladas em 1978 para 48,95 milhões em
2008, sendo que o consumo per capita partiu de um patamar de 4,9 kg, em 1978,
para 36,9 kg em 2008117. A tendência de troca de consumo de carboidratos por pro-
teínas também se expressa na queda do consumo de arroz, no mesmo período, de
38%118. Queda de consumo que também se reflete na queda da produção de arroz,
que em 1990 foi de 189,33 milhões de toneladas, caindo para 174,53 milhões de
toneladas em 2002, recuperando-se somente em 2008, com a produção de 191,89
milhões de toneladas119.
117
China Statistical Yearbook.
118
MEDEIROS, Marlon C. “Notas sobre a produção e o comércio de grãos na Ásia”. In Revista de
geografia econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto, pp. 210-219. Núcleo de Estudos Asiáticos
do Departamento de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007, pp. 241-245.
119
A recuperação dessa produção, apesar da queda da área de cultivo do arroz, deve-se – sobre-
tudo – ao desenvolvimento do “arroz híbrido”, que aumentou a produtividade de 4,3 para 12
milhões de toneladas por hectare.

365
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Esse salto no consumo doméstico de proteínas foi devidamente acompanhado


por um aumento absoluto da produtividade de carnes diversas: em 1990 a produção
chinesa de carne de frango representava 6,45% da produção mundial; já os Esta-
dos Unidos eram responsáveis por 30,46%, e o Brasil por 9,57%. Em 2006, a China
passou a responder por 17,24% da produção mundial, contra 26,89% dos Estados
Unidos e 15,44% do Brasil. Nesse mesmo ano de 2006, a China exportou excedentes
de frango da ordem de 330 mil toneladas120. Essas taxas de crescimento da produ-
ção também se expressam na carne bovina: entre 1985 e 2003 o salto produtivo foi
de 1.289%, apesar de o país ser um grande importador, notadamente do Brasil121.

5.5.1.2.2 A contradição, a OMC, a cooperativização do processo


produtivo e a “pequena produção mercantil” nas periferias de
grandes centros

Duas considerações acerca desse salto de qualidade devem ser feitas. A pri-
meira é a própria contradição encerrada na liberação em massa de mão de obra no
campo sem grandes condições de reemprego em sua área de hukou original. Cal-
cula-se que, em 2005, esse número chegou a 120 milhões. Trata-se de um número
explosivo que explica, dada a não completa flexibilização do mecanismo hukou, a
existência – no ano de 2004, em nossa primeira visita – de centenas de mendigos
e pedintes nas ruas de Pequim e Xangai. É interessante saber que somente nos
últimos anos esses migrantes fora de seu hukou passaram a ter direitos de cidadão
urbano. Eis um problema urbano tipicamente agrário.
A segunda consideração se relaciona com a conjuntura do momento em que
a produtividade do trabalho na agricultura chinesa teve de passar a outro patamar.
Estamos falando do processo de admissão da China na Organização Mundial do
Comércio (OMC) e dos efeitos da competitividade da agricultura do país sobre agri-
culturas altamente produtivas (EUA e União Europeia). Um problema muito sério

120
ESPÍNDOLA, Carlos J. “Notas sobre o agronegócio de carne na China”. In Revista de geografia
econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto, pp. 210-219. Núcleo de Estudos Asiáticos do De-
partamento de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007, pp. 215-220. Pode parecer um dado
contraditório, mas não é. A China também é importadora de carne de frango, porém parte de
sua produção desse tipo de carne é exportada após processamento.
121
Idem.

366
O desenvolvimento e suas faces na China

estava por detrás da necessidade de a China (por conta da admissão na OMC) ter de
baixar sua tarifa média de importações de alimentos de 22% para 15%, colocando
em xeque o emprego de mais de 20 milhões de agricultores chineses. Poderia-se
dizer que, diante do trigo, do milho e do algodão norte-americano e europeu, es-
taria decretada a proscrição da agricultura chinesa e, em consequência, do regime.
É muito imprudente para o analista menos informado, ou com “verdades
prontas”, subestimar o poder de reação de uma superestrutura segundo a qual o
desenvolvimento e a estabilidade social são questões de primeira pauta. Os núme-
ros expostos acima demonstram tanto um processo de diversificação (exportação de
carnes, por exemplo), quanto um de especialização (trigo, milho, algodão e horta-
liças, conforme veremos a seguir). Acima, citamos as possibilidades previstas de
“morte da agricultura chinesa” diante do trigo, milho e algodão norte-americano e
europeu. Pois bem, a produção de trigo na China em 2000 foi de 99,66 milhões
de toneladas, atingindo seu grau mais baixo em 2002, com a produção de 90,29
milhões de toneladas. Desde então, a partir de 2003, a produção continuou a cres-
cer, alcançando o total, em 2008, de 165,91 milhões de toneladas, um aumento de
quase 70% desde a admissão da China à OMC. Já a produção de milho seguiu
em ascensão desde 2000, indo de 99,63 para 165,91 milhões de toneladas em 2008.
A cultura do algodão, cada vez mais presente no deserto irrigado do Tarim, teve
em 2000 uma colheita de 441 mil toneladas para chegar, no ano de 2008, a 749,2
mil toneladas122.
Esse processo, que não encerra as imensas disparidades tecnológicas (e de for-
mas de produção) no campo chinês, tem servido para gradualmente colocar o país
na rota do abastecimento internacional de alimentos. Em nossa viagem, fizemos
de trem, em 2004 e 2009, o trajeto de 1.400 km entre Pequim e Xangai, e em 2009
ainda fomos até Shenzen e a Hong Kong. Em 2004, a paisagem do entorno da
ferrovia ainda era dominada por imensas plantações de sorgo. Em 2009, pudemos
perceber que boa parte dessas plantações foi substituída por estufas com hortaliças
voltadas para a exportação para o mercado asiático, principalmente o Japão. Dessa
maneira, do ponto de vista geográfico, o que se pode vislumbrar para o futuro é
a transformação do litoral chinês, acrescido de mais 250 km ao interior, em um
verdadeiro complexo agroindustrial voltado para os dois mercados, o interno e o
122
China Statistical Yearbook.

367
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

externo. Notícias recentes dão conta da conquista do mercado de hortaliças japonês


em detrimento da Califórnia. Se, em 1995, a China produzia um terço dos melões,
verduras e legumes do mundo, em 2008 já era responsável pela metade da produ-
ção mundial123.
Essa tendência é seguida de outra, iniciada em 2001, marcada pela gradual
substituição do pequeno lote familiar por médias e grandes propriedades coope-
rativadas e com médio grau de composição orgânica do capital. Podemos mencionar
também a entrada de parte da agricultura chinesa (conforme os números do pro-
cesso de tecnificação demonstram) num patamar em que a produtividade do tra-
balho depende tanto do aumento do grau de especialização quanto do alargamento
da propriedade. Existem hoje na China cerca de 150 mil fazendas cooperativadas
que abarcam 37,5 milhões de camponeses, cuja renda média passou de US$ 530 em
2001 para US$ 1.212 em 2008124.
Outra tendência percebida em nossa última viagem foi que, com o relaxamen-
to do sistema hukou, grande parte da população migrante em cidades como Pe-
quim, Xangai, Shenzen e Chongqing passou a se ocupar de um setor de serviços
em grande expansão. Porém, outro fenômeno é interessante: a recomposição da
pequena produção de mercadorias no entorno dessas grandes cidades. Não são poucas
as pessoas envolvidas nesse tipo de entrosamento econômico e social
Em 2009, muitas feiras livres de frutas e hortaliças foram abertas. Nas entre-
Elias Jabbour e Diego
Pautasso em feira livre de
Pequim (ago-2009).

123
OLIVEIRA, Amaury P. Terceira Revolução Agrária na China. Versão mimeo a nós oferecida pelo
autor.
124
China Statistical Yearbook.

368
O desenvolvimento e suas faces na China

vistas que realizamos acerca da origem das frutas, a grande maioria dava conta de
plantações recentes em áreas próximas do centro urbano. Tendência semelhante
pôde ser verificada na formação de olarias, principalmente no entorno de Pequim,
cujos tijolos produzidos estão sendo utilizados na readequação de hutongs que cir-
cundam o centro da cidade125.
Entre uma viagem (2004), em que o fenômeno da mendicância começava a se
transformar em problema de ordem pública, e outra (2008), a impressão que ficou
foi a da diminuição sensível da pobreza urbana. Iniciativas individuais (ou mesmo
coletivas) como as descritas acima são apenas a ponta de um iceberg que esconde o
enfrentamento de problemas profundos.

5.5.1.3 O “Novo Campo Socialista”

Tanto o nível de desenvolvimento das forças produtivas quanto o acúmulo de


contradições que esse desenvolvimento criou na China demandaram novas abor-
dagens em matéria de trato político e econômico, principalmente na chamada ques-
tão social. A China chegou a seu limite nessa questão particular nas problemáticas
da questão regional, nas insuportáveis disparidades sociais e no imenso problema
ambiental criado após quase 30 anos de um padrão de desenvolvimento, que em
muito se assemelhou aos vistos anteriormente nos Estados Unidos, Europa e União
Soviética. A agricultura chinesa respondeu o quanto pôde em matéria de meca-
nização, porém também chegou o momento em que as relações de produção entre
Estado e camponeses deveriam passar por uma renovação.
No segundo capítulo deste livro, tratamos do surgimento de pelo menos duas
ideias-força, surgidas no momento em que os atuais sucessores de Mao Tsetung
chegaram ao poder em 2002. Trata-se do objetivo de construção de uma “sociedade
socialista harmoniosa” e da transformação do “conceito científico de desenvolvi-
mento” em política de Estado. Concretamente, tais ideias podem ser sintetizadas
na busca de um crescimento que conjugue harmonia entre homem e natureza, cidade e
campo e entre a economia e a sociedade. São verdadeiras senhas para o enfrentamento

Hutongs são vielas nem sempre pequenas, porém muito estreitas, que estão – em Pequim – em
125

processo de transformação em pequenas e médias ruas comerciais. Ficamos hospedados (2008)


em um hotel localizado num hutong a cerca de 400 metros da Praça Tiananmen.

369
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

das presentes contradições que podem travar o projeto nacional chinês. O sucesso
no enfrentamento dessa gama de contradições condicionará internamente, a nosso
ver, a China a alcançar o grau de maior e mais influente nação do mundo pelos
idos de 2050.
É nesse contexto que o principal objetivo traçado pelo primeiro-ministro Wen
Jiabao, em seu informe à sessão anual da Assembleia Nacional Popular (ANP),
em março de 2006, foi o de implementar políticas com o objetivo de construção de
um “Novo Campo Socialista” no período que compreende a execução do 11° Plano
Quinquenal (2006-2010). Buscaremos tratar três questões nesse ponto: a questão
social e financeira, a reforma do estatuto da concessão de terras pelo Estado, e a
problemática do meio ambiente.

5.5.1.3.1 Medidas para enfrentar a questão social e financeira

Apesar de terem se transformado em objetivo imediato do regime em 2006,


as reformas que viriam dar contorno ao chamado “novo campo socialista” têm
sido aplicadas desde 2003, ano em que a produção agrícola atingiu seu menor pico
desde 1990. Além disso, foi o período em que as revoltas no campo foram tomando
caracteres de revolta em massa organizada. Para além dessa questão conjuntural,
fica a nossa assertiva acerca do contínuo melhoramento da vida do povo como base
para qualquer projeto de largo alcance, pressuposto que se deve salientar no caso
chinês, pois, mais que um projeto nacional, trata-se de um projeto que enceta a
viabilização de uma sociedade de nível superior, socialista.
Em 2003, iniciou-se o processo de reforma do sistema tributário rural.
Inicialmente, foram escolhidas algumas cidades onde o imposto sobre a produção
de grãos deveria cair a zero até o ano de 2004. Passado esse ínterim, tal norma foi
estabelecida para todo o país. Guarda grande significado e importância essa re-
forma. Primeiro, porque existiam impostos sobre a produção camponesa desde os
primeiros anos de formação do Império Chinês. Ao longo dos séculos, tais taxações
foram progredindo ou regredindo de acordo com o estado financeiro do Império e,
mesmo na contemporaneidade, em plena República Popular. Por outro lado, toda
uma reengenharia financeira teve de ser elaborada e executada para compensar
províncias como Shaanxi e Sichuan que, em média, após a recentralização finan-

370
O desenvolvimento e suas faces na China

ceira de 2008, chegaram a ter uma carga tributária sobre os camponeses da ordem
de 30% da produção. O segundo significado interessante é o do entrelaçamento
dessa reforma com o próprio aumento da capacidade financeira do Estado chinês
no que tange à compensação para as províncias mais afetadas. Uma das formas que
chegou a nosso conhecimento, por exemplo, é o repasse de 1% do orçamento das
30 cidades mais desenvolvidas do país às províncias onde o impacto dessa medida
foi de grande monta.
Outra medida de impacto executada em 2004 foi a instituição do Sistema
de Medicina Cooperativa (SMC). Ideia de impacto estratégico, inclusive como
forma de mobilizar – em outro patamar – a poupança doméstica, o SMC é finan-
ciado por um fundo com recursos de contribuintes, governo nacional, províncias
e cidades. Anualmente, o contribuinte paga a quantia de US$ 1,30, enquanto o
governo, em diversas esferas, contribui com US$ 5,20126. Muitos depoimentos que
colhemos pelo país no referido ano davam conta de um aumento do prestígio da
dupla Hu Jintao e Wen Jiabao após a execução dessa diretriz127. Vejamos o alcance
dessa política recente na tabela abaixo:

Tabela 34 – Alcance geral do Sistema de Medicina Cooperativa


Fundos governamentais
Número de Pessoas bene- investidos
Taxa de participa-
Ano cidades partici- ficiadas (100 (unidade = 100 milhões
ção (%)
pantes milhões) de yuans;1 US$ = 6,7
yuans)
2004 333 75,20 0,76 26,37
2005 678 75,66 1,22 61,75
2006 1471 80,66 2,72 155.81
2007 2451 86,20 4,53 346,63
2008 2929 91,53 5,85 662,31
Fonte: China Statistical Yearbook. Elaboração própria.

126
“Cooperative healthcare for rural residents”. China.org.cn. 08-06-2007. Disponível em:
<http://www.china.org.cn/english/government/213331.htm>. Acessado em 15-09-2008.
127
Sobre o funcionamento e o sucesso dessa política, ver reportagem sobre o exemplo do cantão
de Luochan, na província de Shaanxi, na edição de 13-10-2007 da The Economist, “Missing the
barefoot doctor”.

371
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Os números e a progressão geométrica dessa política são incontestáveis (vale


observar que, no Brasil, o governo poderia ser derrubado se aplicasse política se-
melhante, por conta da “responsabilidade fiscal”). Resta saber, por exemplo, qual
o alcance da medida. Faltam-nos ainda elementos para saber – utilizando termo
próprio dos planos de saúde – qual a “carência” dessas cooperativas, devendo-se
observar a fronteira entre a medicina preventiva e a execução de operações mais
complexas. A medicina preventiva tem sido ampliada, pois acordos com o governo
cubano foram fechados nessa matéria em 2006 e, em território chinês, conhecemos
pelo menos 20 médicos cubanos trabalhando na formação de 5 mil médicos que
terão como território de trabalho o oeste da China. Muitas pesquisas nessa área
ainda devem ser feitas para conclusões mais profundas. Os dados da tabela contri-
buem, no entanto, para uma reflexão inicial e menos pessimista da questão social
na China.

aaaaaaaaaaaa

Na mesma esteira de ousadas e necessárias iniciativas, ainda se enquadram a


introdução de uma política oficial de subsídios agrícolas (independente-
mente dos protestos de países como EUA, França e Brasil), a implementação de
uma extensa política de renda mínima aos residentes abaixo da linha
da pobreza das zonas rural e urbana128 e a transformação em lei (como parte
do Programa Nacional de Ciência e Tecnologia da República Popular da China) da
educação compulsória e gratuita de nove anos nas regiões central e
oeste do país.
Após a exposição dessas iniciativas, surgem perguntas. Entre elas, quais os
resultados disponíveis no plano imediato. Nada fora do normal, afinal o futuro
do mundo está associado – em grande parte – ao futuro da própria China. Quanto
aos resultados imediatos, o que se pode colocar é que após um período de quedas
sucessivas na produção agrícola, a partir de 2004 (ver tabela 32) a China acumulou

128
Segundo quadros da administração pública que pudemos conversar em Chongqing em 2007,
esse programa de renda mínima tem inspiração não nos programas europeus de “bem-estar
social”, mas na experiência do governo Marta Suplicy na cidade de São Paulo e no reconhecido
internacionalmente programa Bolsa Família no âmbito do governo federal.

372
O desenvolvimento e suas faces na China

recordes sucessivos na colheita de grãos129. Num ponto de análise de médio e longo


prazo, somente a variação negativa da taxa de poupança poderá corroborar essa
ação social incisiva do Estado em prol da manutenção desse ciclo de desenvolvi-
mento, agora plenamente condicionado a promover melhoras significativas na vida
da população.
Para nós, já envolvidos há algum tempo em estudos e pesquisas da realidade
chinesa, esse dado diz muito. Trata-se de uma política de relaxamento das relações
de produção de ordem estratégica, principalmente por envolver não somente pro-
blemas de ordem conjuntural, mas também moral. O chinês comum cultiva uma
cultura de prosperidade comum130, não sendo indiferente para com a pobreza, muito
diferente do europeu médio que acredita no caráter civilizatório e pacificador das
intervenções europeias na África ou na Ásia, e diferente também de muitas pessoas
da “América profunda”, que se opuseram sistematicamente à recente proposta de
Barack Obama sobre a reforma da saúde.
Nesse contexto de alta da “questão social” no campo se inserem também os
aumentos sucessivos de salários dos trabalhadores. A crescente revolta rural veri-
ficada nos últimos anos chegou com força às cidades, incluindo suicídios e mortes
por excesso de trabalho. Não temos interesse de esconder que as condições de tra-
balho na China deixavam muito a desejar. Temos de reconhecer, porém, o papel
das pressões sociais (vindas diretamente do povo), que levaram o governo a imple-
mentar políticas de aumentos salariais que chegaram a 100% em vários setores.
Em Shenzen e em outras cidades do litoral, a hora extra aumentou em 300%131. Em
qual contexto se dão essas revoltas e respectivos aumentos salariais? Primeiramen-
te, revoltas camponesas ou de trabalhadores urbanos denunciam falta de sintonia
entre as forças produtivas e as relações de produção, algo dentro da normalidade
para a forma como o país cresceu nos últimos 30 anos. Os aumentos salariais, as-
129
No momento em que escrevemos este capítulo, o governo central liberou os resultados da
produção agrícola de 2009: colheram-se 530,8 milhões de toneladas de grãos, significando um
acréscimo de 1,8% com relação a 2008.
130
Perguntamos para inúmeros chineses, de diferentes idades e regiões, o que significava para
eles o termo socialismo. Ampla maioria define socialismo como o ideal de busca da “prosperidade
comum”. Além dessa definição, muitas pessoas também associavam diretamente socialismo com
“governo do povo”.
131
Dados expostos em PASTORE, José. “Salários e competitividade na China”. In O Estado de São
Paulo. 06-07-2010.

373
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

sim como as recentes reformas na legislação trabalhista, são meio para sintonizar
as relações de produção com o desenvolvimento das forças produtivas. Essa verdade
tem base no fato de esses aumentos salariais se darem em um ambiente de baixa
inflação. Isso diz muita coisa. Vivemos em um país onde a atual política de aumen-
to do salário-mínimo atrelado ao desempenho do PIB sofre ataques a todo instante.
No Brasil, sob o rótulo da “demanda candente”, do terrorismo inflacionário e de
outras formas de expressão fascistas e antipopulares, impõe-se um senso comum
de ataques diuturnos contra tudo o que signifique melhoria da capacidade de con-
sumo do povo.
O nível de vida do povo chinês nas próximas décadas pode servir – por si só –
como uma grande forma de diferenciação entre o socialismo e um capitalismo cada
vez mais agressivo e envolto – em prol de sua própria sobrevivência – em guerras e
pilhagens em geral. Trata-se de interessante reflexão estratégica a ser feita.

5.5.1.3.1.1 No rumo de um novo sistema financeiro rural

Essa ofensiva desenvolvimentista nas áreas rurais chinesas é a “mãe de todas


as batalhas”, que envolve a busca de novos campos de acumulação de crescimento
para um país que deve crescer, por muitos anos ainda, a taxas superiores a 8% ao
ano. Crescer a essa taxa, porém, se concentrando em nichos territoriais em que a
industrialização já chegou aos patamares míninos da II Revolução Industrial, pode
ser perigoso, pois a disseminação de tecnologias atinge um ponto em que o próprio
processo torna-se poupador de mão de obra.
Também é nesse contexto que se explica o papel do Estado desenvolvimentista
(e revolucionário) chinês na otimização da capacidade de consumo das populações
das zonas pobres do país. Todo esse investimento social pode ser parte da explica-
ção da queda da taxa de investimentos prevista, por técnicos do BNDES brasileiro,
de 45% em 2008 para 43% em 2012.
O desafio – dadas as transformações em curso e as que viriam adiante – que
deveria ser enfrentado residia na transformação do sistema financeiro rural em su-
porte, em outro patamar, tanto da capacidade de consumo de médio e longo prazo
das populações do campo quanto de uma agricultura em transição para superiores

374
O desenvolvimento e suas faces na China

formas de organização. A transformação de uma agricultura não moderna em ou-


tra de maior porte deveria estar acompanhada de um sistema financeiro pronto.
Pode-se dizer que as operações financeiras no campo têm atração proporcional ao
tamanho e à mecanização da própria atividade agrícola, o que também é fator de
aumento das desigualdades. Na China, isso é exemplificado pelo fato de, no fim
de 2009, ainda existirem 2.792 cantões e povoados sem instituições financeiras132.
Deixar o “mercado” com plena liberdade de ação, nesse caso, seria a própria decre-
tação de míngua para o oeste do país, apesar de existir uma grande pulverização
das cooperativas de crédito rural no país.
Por outro lado, o que seria, a princípio, uma tarefa do Agricultural Bank of
China (ABC), de dar suporte ao desenvolvimento agrícola do país, não ocorreu,
pois o alto nível histórico de inadimplência levou o banco a – via induções mercantis
– voltar sua atividade para as cidades de médio porte do interior do país. Essa ten-
dência começou a mudar a partir de 2006, momento em que o governo ordenou a
mudança do foco para as zonas pobres, como parte não somente do financiamento
de produtos para a atividade fim da pequena agricultura camponesa, mas tam-
bém do suporte ao consumo de massa de milhões de camponeses. Isso nos leva a
acreditar que o projeto de crescimento baseado em amplas reservas de mercado no
interior do país deveria se basear – também – no financiamento do consumo (em
concomitância com a elevação dos investimentos sociais no interior da China). O
foco estratégico ainda seria dar suporte financeiro para a criação de uma agricultu-
ra de outro nível. Tais mudanças obedeceram, no entanto, a critérios não somente
políticos, mas também técnicos e financeiros.

aaaaaaaaaaaa

Em primeiro lugar, o mapa abaixo sugere as cidades-piloto das primeiras ex-


periências de transição para um sistema financeiro rural de tipo superior. Vejamos:

132
“Rural banking in China”. In Asia Focus. Federal Reserve Bank of San Francisco. Maio/2010.
Disponível em: <www.frbsf.org/publications/banking/asiafocus/2010/may.pdf>. Acessado
em12-03-2009.

375
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Mapa 10 – Localização de cidades-piloto da reforma do sistema


financeiro rural

Pequim, Miyun

Suizhou, Cengdu
Zona Litorânea Chongqing, Dazu
Zona Central Fujian, Yongan

Zona Ocidental
Guangdong, Enping
Áreas piloto

Fonte: Rural Banking. HSBC. Beijing Office. 2009. Disponível em: (http://www.hsbc.com/1/PA_1_1_
S5/content/assets/investor_relations/091119_asiatrip_ruralchina.pdf).

O mapa acima sugere, de forma clara, que as primeiras experiências implan-


tadas (como forma experimental) para um novo sistema financeiro rural atendem
às regiões do país onde se encaminha de forma mais rápida a transição no sentido
de grandes propriedades rurais, sendo a maioria delas cooperativada.
Sobre as transformações de âmbito operacional do sistema financeiro, ainda
não existem muitas informações para uma avaliação mais exata do processo. Porém,
algumas ações já podem ser avaliadas, assim como a análise de alguns dados nos
capacitam, mesmo que inicialmente, a apontar alguns rumos de longo prazo. Mais
acima expusemos, por exemplo, sobre o início dessa experiência a partir de 2006, a
necessidade de um melhor posicionamento do Agricultural Bank of China (ABC)
como elemento nodal ao sucesso do empreendimento. No início de 2007 o governo
central impôs ao ABC um retorno ao seu foco inicial de suporte à atividade agríco-
la, agora em outro patamar.
Com relação ao ABC e seu papel nesse processo, devemos analisar dois eventos.
O primeiro consistiu numa injeção financeira, por meio de uma entidade direta-
mente ligada ao Ministério das Finanças (Central Huijin), de US$ 19 bilhões, segui-

376
O desenvolvimento e suas faces na China

da de transferência de débitos a outros membros do Big Four da ordem de US$ 120


bilhões133. O outro evento foi a transformação do ABC de banco estatal (um dos Big
Four) para uma joint stock commercial entity – ou seja, em um banco de capital aberto,
passivo de injeção de dinheiro privado e externo. Ações do ABC já são transicionadas nas
Bolsas de Xangai e Hong Kong.
Caso interessante foi o lançamento do Postal Savings Bank of China (PSBC).
Na verdade, já existia uma entidade financeira diretamente ligada ao Ministério das
Comunicações, formada em 1986, sob o gerenciamento de um grupo dentro desse
ministério, voltada à administração das finanças do Ministério das Comunicações.
Num país em amplo e contínuo crescimento como a China, o setor de comunica-
ções tende a ter permanente ascensão, dadas as necessidades de plena comunicação
postal entre e intraprovíncias. Em 2003, surge a ideia de formar um banco para o ge-
renciamento de todas essas finanças, porém ainda diretamente ligado ao People’s
Bank of China e sem designação própria. A entidade gerenciava somente depósitos
de funcionários dos “correios” chineses; logo, sem desenvolver serviços financeiros
propriamente ditos. Essa realidade muda em 2007 com a formação de um grande
banco estatal denominado Postal Savings Bank of China, agora com um cardápio de
opções financeiras, sendo que 60% delas operando exclusivamente na zona rural do
país. Assim como as outras instituições financeiras voltadas ao sustento do esforço de
desenvolvimento do campo chinês, o PSBC está trabalhando em áreas-piloto (como
as designadas no mapa 10). Seu capital inicial, em março de 2007, era de US$ 2,57
bilhões134. Enfim, mais uma entidade financeira formada, o que nos faz refletir – es-
trategicamente – sobre um sistema financeiro rural amplamente baseado na concor-
rência, inclusive de bancos estrangeiros, o que constitui um avanço135.
As cooperativas de crédito rural também passam por um processo de refor-
mulação de seu funcionamento. O primeiro passo rumo a essa reformulação foi
a transferência da administração, em 2007, não mais para o nível da cidade ou
133
Para maiores detalhes, ler Agricultural Bank of China Annual Report, 2008.
134
GUO, Pei & JIA, Xiangping. “The structure and reform of rural finance in China”. Working
papers in economics and management. Working Paper n° 2008E002. China Agricultural University.
Pequim, 2008, p. 14.
135
Sobre esta participação, ler: Rural Banking. HSBC. Beijing Office. 2009. Disponível em:
<http://www.hsbc.com/1/PA_1_1_S5/content/assets/investor_relations/091119_asiatrip_rural-
china.pdf>.

377
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

municipalidade, e sim para as províncias. Trata-se do início de um processo que


desembocará na transformação de boa parte dessas cooperativas em bancos comer-
ciais, já que a redução do número de cooperativas já vinha sendo uma tendência.
A questão é acelerar esse processo, tendo em vista que seus créditos ditos “podres”
em 2003 eram da ordem de 37%. Logo, a capitalização via People’s Bank of China
estava na ordem dos acontecimentos. Essa capitalização ocorreu no mesmo ano de
2007, com aportes do People’s Bank de US$ 25 bilhões, o que serviu para reduzir os
créditos “podres” para 9,3%136.
As maiores cooperativas de crédito rural se transformaram em bancos comerciais
rurais, outras, em bancos cooperativos rurais. No final de 2008 já estavam registrados
185 novos bancos, entre eles 163 cooperativos rurais e 22 rurais comerciais. Novas
instituições financeiras tendem a surgir no futuro a partir de fusões envolvendo
4.965 cooperativas de crédito rural.
O gráfico abaixo pode nos dar um quadro preliminar da institucionalização
desse novo sistema financeiro rural na China.

Gráfico 10 –Total de ativos das instituições e cooperativas de


crédito rural, 2003-2008 (em bilhões de yuans)
8,000

7,000

6,000

5,000

4,000

3,000

2,000

1,000


2003 2004 2005 2006 2007 2008

Cooperativas de crédito rural Bancos comerciais rurais Bancos cooperativos rurais

Fonte: “Rural Banking in China”. In Asia Focus. Federal Reserve Bank of San Francisco. Maio/2010.
Acessível em: (www.frbsf.org/publications/banking/asiafocus/2010/may.pdf).

Sobre esta participação, ler: Rural Banking. HSBC. Beijing Office. 2009. Disponível em: <http://
136

www.hsbc.com/1/PA_1_1_S5/content/assets/investor_relations/091119_asiatrip_ruralchina.pdf>.

378
O desenvolvimento e suas faces na China

O gráfico anterior demonstra, a nosso ver, o estágio em que se encontra o pro-


cesso analisado. O estágio inicial em que se encontra a reforma é perceptível pelo
amplo domínio das antigas e pulverizadas cooperativas de crédito rural (formadas
na década de 1950, na esteira da ofensiva coletivista do Grande Salto Adiante). Po-
rém, já se percebe o desenvolvimento do processo diante da crescente participação
dos bancos rurais comerciais e dos bancos cooperativos rurais.
Como analisar, então, o quadro futuro do sistema? Apesar do ainda escasso
material disponível a respeito desse processo em andamento no interior da China,
é importante especularmos sobre isso. Um primeiro olhar sobre o tema nos leva a
imaginar que um sistema como o que o governo chinês propõe demanda uma bus-
ca por excelência que somente algo desenvolvido nas leis do mercado pode exercer.
Não nos apeguemos a questões morais ou ideológicas. O problema é tornar atra-
tivo o mercado rural para o avanço de um sistema financeiro ainda concentrado
em grandes centros. Para isso, a especialização se faz necessária, para diferenciar os
serviços de crédito a pequenos produtores e a grandes empreendimentos. Deve-
-se exortar os bancos que operam nos grandes centros financeiros e industriais
litorâneos não partindo de princípios de “responsabilidade social”, mas sim pela
atratividade de um mercado quase virgem.
Enfim, várias demandas ainda se fazem necessárias para o sucesso da em-
preitada e precisam ser debatidas não partindo de uma visão anglo-saxônica dos
problemas chineses, mas do pressuposto de que os chineses não começaram hoje
em assuntos comerciais. Além de sua milenaridade, eles contam com ampla liber-
dade de escolha política e com muitos exemplos, ocidentais ou de seus vizinhos.
Exemplos que devem ser seguidos ou não.

5.5.1.3.2 A reforma do estatuto de concessão de terra:


privatização?

Se, para o corpo geral da economia nacional, a governança chinesa trabalha


com objetivos de longo prazo, o mesmo ocorre com a agricultura. O objetivo primário é
elevar a renda per capita dos habitantes da zona rural dos atuais US$ 600 para US$
1.200 até o ano 2020. A produção mínima para a manutenção de sua segurança

379
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

alimentar deverá aumentar em 25% até 2020, com base em 2008137. Em síntese, o
governo chinês nos próximos dez anos deverá elevar consideravelmente sua pro-
dução dentro do limite estabelecido (já utilizado) de 120 milhões de hectares. A
questão é: como um país, no limite de suas capacidades (em matéria de terras em
condições de plantio), poderá alcançar objetivo dessa grandeza?
Revisemos o processo. Expusemos, com números, que a agricultura chinesa
também foi beneficiária do processo de modernização industrial, com a elevação da
composição orgânica do capital, a especialização e a diversificação. Vimos algumas tendên-
cias em andamento no país, entre elas a cooperativização. Deixamos subentendido
que essa elevação das forças produtivas rurais da China deveria ser acompanhada de
relaxamento das relações de produção; algo a que o governo atendeu de forma extensa,
com a execução de audaciosas políticas nos campos financeiro, tributário e social.
Assim sendo, não dá para imaginar um aumento de 25% da produção agrícola
(e a duplicação da renda per capita rural) em dez anos num país com as condições na-
turais e demográficas da China. Felizmente ou infelizmente, alcançar objetivos dessa
monta passa – necessariamente – pela transição de uma agricultura ainda baseada
na pequena produção mercantil (em algumas regiões, já em estado de trânsito para
a cooperativização) para outra baseada na técnica e na mecanização nos marcos da
grande propriedade. Essa necessária transição nos leva a crer que o caso chinês – e seu
dilema agrário moderno – se resume ao fato de as formas de propriedade e conces-
são da terra inauguradas em 1978 já estarem em vias de esgotamento. O problema
não é mais assegurar condições institucionais para a manutenção de um ambiente
de mercado. A questão é como dar um salto de produtividade sem ferir os interesses
materiais dos camponeses, ao mesmo tempo em que a questão da propriedade esta-
tal da terra não seja subvertida. Vejamos o encaminhamento da questão.

5.5.1.3.2.1 Buscando consolidar o processo

Outra questão que se coloca é como combinar propriedade estatal da terra com
a necessária transição da pequena produção mercantil para outra de nível superior em
todos os aspectos. Um exame baseado em teoria fina pode encaminhar para uma
solução onde a institucionalização de pequenos lotes familiares não se restrinja so-
137
MOREIRA, Assis. “Emergentes embalam produção agrícola”. Valor econômico, 14-06-2010.

380
O desenvolvimento e suas faces na China

mente a uma manobra jurídica, mas também (dependendo do nível de desenvolvi-


mento das forças produtivas) seja considerada um instrumento de mercado, logo “quase
à mercê” da lei da oferta e da procura. A diferença é que a natureza da propriedade não
muda, apesar de novas e sofisticadas formas de concessões de terra, muito propícias
para o aumento da escala de produção de cereais.
Foi exatamente isso o que ocorreu: passou-se a permitir o arrendamento ou
transferência do usufruto da terra a terceiros dentro de um prazo determinado
pelo Estado. Esse instituto é o meio para a transformação qualitativa da agricultura
chinesa. Interessante é perceber que esse tipo de ação pode corroborar a instituição
de um módulo jurídico de uma prática que já poderia ter acontecido anteriormente,
algo muito comum na história, afinal as leis – quase sempre, em matéria de direito
econômico – são outorgadas por força da verdade objetiva.
A grande e superficial impressão que essa medida pode passar é a de uma “pri-
vatização da terra” em marcha na China. É preciso ter cuidado ao considerar isso,
pois em nenhum momento a diretiva expõe que a terra deixa de ser propriedade
estatal, mas sim em “transferência de direitos de propriedade”, que são dois elemen-
tos distintos, pois as famílias ou pessoas envolvidas são concessionárias do Estado, o
que quer dizer que o Estado permitiu-lhes o usufruto da terra. A natureza do processo
é moldada pelo comando do processo e pela natureza da propriedade do objeto em transição.
Pode-se mencionar que a China entrou num processo de “acumulação por de-
sapropriação” em semelhança à desapropriação camponesa ocorrida na Inglaterra
no século XVIII, fato que – ao retirar dos camponeses o acesso aos meios de pro-
dução concomitante com o aparecimento de uma superpopulação urbana – serviu
de condição objetiva à própria Revolução Industrial vitoriosa na Inglaterra. Como
já demonstrado neste livro, essa reforma rural é parte de um todo que envolve
crescentes investimentos do governo central nas zonas rurais, especialmente na
formação de uma previdência social, de uma rede competente de educação gratui-
ta em todos os níveis e da própria criação de condições para que “novas cidades”
recebam os excedentes de mão de obra. Assim, o relaxamento do sistema hukou
fará com que o excedente de mão de obra rural se aloje não nos centros urbanos do
litoral chinês, mas em 150 cidades de médio porte planejadas no interior do país138.
138
Projeto piloto desse planejamento de novas cidades é a vila de Dongtan, localizada a 25 km
de Xangai, às margens do rio Yang-Tsé. O objetivo é que, a partir de 2012, a vila de Dongtan se
transforme na primeira cidade ecológica do mundo.

381
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Os marxistas não devem se opor a processos que busquem a elevação da pro-


dutividade em todos os seus matizes, sob a justificativa de “viagens ideológicas”
que estancam a máxima de analisar o concreto a partir da situação concreta. O impor-
tante é a manutenção do processo de aceleração das forças produtivas. Isso, para nós,
é o que importa na análise de processos sociais, ainda mais quando os rendimentos
marginais dos camponeses – no caso chinês – tendem a diminuir por conta do uso
intensivo do solo, cuja solução só existe nos marcos de uma crescente mecanização
da agricultura. Ou então se aprofunda um processo de “beco sem saída”, colocando
o governo chinês em maus lençóis.
Não podemos nos esquecer que a essência do sucesso da política de Refor-
ma e Abertura reside justamente na liberação de uma milenar capaci-
dade dos camponeses chineses em matéria de comércio e poder de
acumulação.

5.6 O DILEMA AMBIENTAL CHINÊS

Muitos questionamentos foram lançados ao longo dos últimos anos no sen-


tido de apontar os limites imediatos e estratégicos do projeto nacional chinês. De
forma constante, existe um claro direcionamento às candentes questões sociais e,
de forma mais agressiva, ao presente problema ambiental criado pelo desenvolvi-
mento chinês. Pairando entre o jocoso e o irresponsável, poucos têm conhecimento
a respeito do progresso chinês nessa área, o que é muito grave para o progresso do
conhecimento e da própria ciência social.
Assim, tentaremos, no último tópico deste livro, tratar, ainda que não profun-
damente, da questão ambiental. Nada que tente fugir dos enormes problemas que
os chineses enfrentam nesse campo.

5.6.1 O “fundo do poço”?

Pode soar muito forte afirmar que, em matéria de meio ambiente, a China
atingiu o “fundo do poço”, pois da mesma forma que apontamos sucessos acumu-
lados pelo projeto nacional chinês, a responsabilidade política e intelectual deve

382
O desenvolvimento e suas faces na China

bater em nossos ombros, principalmente para afirmar que, ao tornar inelásticas


as possibilidades de crescimento seguindo os moldes dos fundadores da sociedade
industrial, a China agravou em demasia o problema ambiental – tanto doméstica
quanto internacionalmente.

5.6.1.1 Péssimas impressões

Os impactos de 30 anos de rápida e ininterrupta industrialização sobre o meio


ambiente têm sido altos. Por exemplo, 70% das águas subterrâneas do país estão con-
taminadas, principalmente as localizadas no norte, onde 60 milhões de pessoas con-
tinuam com dificuldade para dispor de água potável; 16 das 20 cidades mais poluídas
do mundo se localizam na China, que, por sua vez, ocupa o segundo posto em emis-
são de dióxido de carbono (apesar de sua emissão per capita ainda ser muito baixa), e
o primeiro lugar na emissão de dióxido sulfúrico por superfície habitada. Como nos
informa o embaixador Amaury Porto de Oliveira, as emissões de óxido de enxofre
na China, no início da década de 1990, atingiram um nível 17 vezes maior do que as
do Japão e 15 vezes o emitido pela Coreia do Sul139. Os prejuízos para o país, somente
em 2005, foram da ordem de US$ 10 bilhões, por conta dos efeitos da chuva ácida140.
Os números acima guardam certa suficiência para alardes de inspiração
anglo-saxônica acerca da “tragédia iminente” encerrada nos danos ao meio am-
biente causados pelo desenvolvimento chinês. Na verdade, não somente os nú-
meros como também a impressão causada pela poluição do ar na China, para
um visitante estrangeiro no início da presente década, corroboravam-na. Nas três
viagens pela China que fizemos, principalmente na de 2004, nossa impressão foi
das piores. A “nebulosidade” do ar de Pequim, por exemplo, em vez de ser expres-
são de alguma chuva iminente era, na verdade, pura poluição. O vento que vinha
da direção nordeste trazia toda a fumaça exalada pelos complexos siderúrgicos
localizados nas províncias que compõem a Manchúria. Desde 1993, a China tor-
nou-se importadora de petróleo. Somente em 2006, a demanda de importação de
petróleo cresceu, em média, 500 mil barris diários em comparação a 2005 e, entre

139
OLIVEIRA, Amaury P. “A China abraça a causa verde”. In Bresser Pereira Website. Disponível em:
http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=3676
140
JABBOUR, Elias: China: Infraestruturas e crescimento econômico. Anita Garibaldi. São Paulo,
2006. p. 125.

383
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

1978 e 2005, foi construída na China uma usina movida a carvão por semana141.
Fomos acometidos, em Pequim, por duas “chuvas de areia”. Antes esse fe-
nômeno era consequência do avanço da desertificação, mas a expansão da classe
média, em velocidade maior que a correspondente em forma de obras urbanas,
juntamente com a facilidade do crédito para a compra de automóveis, alimentava
mais um fator poluidor no uso de carros a gasolina. O transporte público, tanto em
Pequim como em Xangai, tinha grande fonte poluidora em ônibus urbanos cuja
fabricação datava da década de 1970.
Como se pode perceber, de concreto, não faltavam razões para alimentar um ver-
dadeiro clima de terrorismo142. Pequim se preparava para receber os Jogos Olímpicos
de 2008, e os dirigentes do país não escondiam a intenção de utilizar tal evento como
forma de promover a imagem da China no mundo. Para tanto, um dos objetivos era
transformar Pequim em uma cidade “politicamente correta” do ponto de vista am-
biental, com a construção de três grandes parques e dois “cinturões verdes”. Pequim
prometia baixar a poluição por meio do aumento da proporção do consumo de gás e
eletricidade em até 75%, em 2005, e 83%, em 2010. Para os Jogos Olímpicos de 2008,
90% dos táxis e 70% dos ônibus da cidade seriam abastecidos por gás natural.
Já a cidade de Xangai, maior centro industrial e comercial, com 70% – naquele
momento – de seu consumo energético providos pela queima de carvão, planejava
o aumento do consumo de gás nos setores industrial e automobilístico juntamente
com a pretensão de construir usinas elétricas a gás até 2010.
Poucos acreditavam que esses objetivos seriam alcançados. Porém, o poço não
era tão profundo quanto parecia.

5.6.1.2 Posturas diante do concreto, experiências de viagens e


questões de ordem subjetiva

Ainda sobre as impressões ruins de nossa primeira viagem à China, achamos

141
China Statistical Yearbook para os anos citados.
142
Esse clima de terrorismo orquestrado teve seu pico em 2008, durante a realização dos Jogos
Olímpicos. A mídia deu grande destaque à hipocrisia imperialista/racista de atletas norte-ameri-
canos e europeus chegando a Pequim com narizes protegidos por lenços. O detalhe é que, no dia
8 de agosto, data em que se inaugurou o evento, a qualidade do ar em Pequim estava havia 26
dias melhor que o verificado em Nova York. No final das contas, a China realizou o maior evento
esportivo da história. Era a inauguração do “século chinês”.

384
O desenvolvimento e suas faces na China

importante observar o problema sob outro ângulo, o subjetivo. Quando tratamos


da questão social e agrária na China, ficou claro que o regime atingiu pontos-limite
nesses aspectos no início da década. Essa impressão se coaduna com outra demons-
tração de limite do “modelo”, sintetizada na problemática ambiental e suas reper-
cussões nacionais (revoltas camponesas) e internacionais (chuva ácida no Japão,
Coreia e costa oeste dos EUA). Não significa nenhum reconhecimento de incompe-
tência do regime em lidar com seus problemas quando abordamos a questão como
um momento de “fundo de poço”.
Trabalhar com filosofias e abstrações mantendo distância física do objeto de pes-
quisa pode produzir uma relação um tanto quanto maniqueísta de júbilo com o su-
cesso ou o pessimismo antidialético. São muito comuns essas formas de expressão
em pesquisadores, ensaístas e “especialistas” em China. Amplos seminários, por
exemplo, se organizam pelo mundo todo sobre temas que vão desde o desenvolvi-
mento econômico até a condenação da “pena de morte”. A grande maioria partindo
de pressupostos altamente negativos.
Esse tipo de postura é mais comum do que se pensa. Conhecemos muitos
casos de intelectuais e jornalistas com essa tendência e que, apesar de passarem
temporadas de meses e anos no país, apresentam a única assertiva “interessan-
te” de classificar a China como um “país de contrastes”. É como se o contraste
ou a contradição fossem privilégios puramente chineses. Entendemos, porém, essa
postura, porque, realmente, ao se deparar com a realidade concreta chinesa, duas
impressões ficam claras: uma é relacionada ao processo de desenvolvimento em si,
com a rapidez das transformações; a outra é de choque com os problemas criados
por esse desenvolvimento. Daí a sedução da ideia primária de “país de contrastes”.
E nós, por certo momento, fomos “seduzidos” por essa postura. Uma postura sub-
jetiva e a-histórica, diga-se de passagem.

5.6.1.2.1 O desenvolvimento como pré-condição para a solução do


óbice ambiental chinês

Questões de subjetividade devem tomar parte da análise de qualquer realidade


concreta. Observando-se fora dos marcos do “choque do concreto”, é possível per-
ceber algo além da aparência. A busca do equilíbrio entre desenvolvimento e meio

385
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

ambiente se insere em questões mais profundas, dentre as quais a própria relação


entre homem e natureza no âmbito da filosofia oriental. Nela, ao contrário da cul-
tura ocidental – onde o domínio humano sobre a natureza é fator de afirmação
máxima da espécie humana –, vê-se uma concepção em que o homem é parte da
natureza tão importante quanto os rios e a terra. Prova disso é que dificilmente se
encontram na China pinturas como as de Van Gogh, celebrando a desgraça ou a
bonança humana. A arte chinesa é dominada por celebrações à natureza, com pin-
turas de rios, cachoeiras, árvores e plantas. Pouco se percebe a presença de retratos
humanos em exposições de artes na China.
É nesse ambiente carregado de fatores filosóficos e subjetivos que se insere a
máxima, da atual geração dirigente, de edificação de uma “sociedade socialista
harmoniosa”. Essa questão da combinação entre harmonia e socialismo pode ser mo-
tivo de muitas controvérsias teóricas; não vamos tratar delas aqui. O importante é
saber que – em nossa visão sobre o processo chinês – essa concepção de desenvolvi-
mento está relacionada a uma questão que extravasa as fronteiras da China: diante
de seu tamanho territorial, demográfico e econômico, as soluções para os proble-
mas chineses sugerem abranger a solução de problemas que afetam não somente
a China, mas o mundo como um todo. Se é ilusório acreditar que a China vai des-
cuidar de seu desenvolvimento em favor da proteção ambiental, também é verdade
que a solução do problema ambiental chinês é um sinal estratégico para todo o
mundo. Esse conceito de sociedade pode ser analisado à luz do desdobramento de
uma civilização futura de nível superior, onde o mundo deve estar pronto a assimilar
o que de melhor se gestou no território chinês em matéria de desenvolvimento e
“sustentabilidade” ambiental.
Isso significa que se os chineses, guiados por uma excepcional classe política, ti-
verem sucesso em mais essa empreitada, podemos crer que o futuro da humanidade
não será pautado mais em concordância com uma visão catastrofista, mas sim por algo
mais afeito ao materialismo. Afinal, o homem tende a solucionar os problemas por ele
mesmo criados. A Idade da Pedra não chegou ao fim por conta do fim da pedra, e
sim pelo desenvolvimento contínuo da técnica. Logo, a solução dos problemas
ambientais chineses é parte do próprio processo de reprodução da so-
ciedade humana, não havendo, portanto, solução fora dos marcos do
amplo alargamento das forças produtivas materiais e sociais.

386
O desenvolvimento e suas faces na China

5.6.2 O grande esforço estratégico

Após a reflexão acima, podemos vislumbrar que a superação desse óbice pela
China não se dará a partir de parâmetros idealistas. Não estamos num mundo
perfeito, e sim num planeta onde os problemas que freiam seu processo de repro-
dução (ainda) são enfrentados somente sob o amparo da acumulação de capital.
Apesar de parecer esdrúxulo, temos a clareza de que – no concreto – é assim
que as coisas funcionam. Afinal, leis proibitivas a ações degradantes não
passam de instrumentos jurídicos e institucionais que fazem parte
da superestrutura. A superestrutura deve, porém, refletir impulsos da
base econômica. Esse complexo sugere expor a questão ambiental como mais
uma fronteira de acumulação. Sem base material, as leis – por mais avan-
çadas que sejam – transformam-se em letras mortas. É por essa razão
que a solução da questão ambiental também é parte essencial tanto da transição
para a III Revolução Industrial como da concorrência estratégica entre socialismo e
capitalismo.

5.6.2.1 De uma postura hesitante ao engajamento diferenciado

Data do final da década de 1980 e início da de 1990 a amplificação interna-


cional do problema ambiental e suas decorrências sobre o clima do planeta143. O
crescimento chinês e o posto de “maior poluidor do mundo” (apesar de, por índices
per capita, os Estados Unidos poluírem nove vezes mais que os chineses) colocaram
mais uma vez o país na “alça de mira” dos analistas. Não importa saber que os pa-
íses europeus (mais os Estados Unidos) no início do século XX colocaram de lado
a opção da eletricidade como fonte de energia dos automóveis em prol do petróleo.
Não importa colocar em questão que metade da energia em uso nos EUA é gerada
pelo carvão, ou que “o país mais livre do mundo” não assinou o Protocolo de Kyoto.
O modelo de desenvolvimento chinês deveria ser alquebrado moralmente, assim
como qualquer alternativa ao Consenso de Washington deveria ser proscrita. De
forma semelhante deveria ser proscrita qualquer alusão à história do desenvolvi-

143
Neste momento aprofundamos as opiniões do embaixador Amaury Porto de Oliveira, divul-
gadas no texto já citado, “A China abraça a causa verde”.

387
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

mento do próprio capitalismo. As hipocrisias de Al Gore valeram-lhe um Prêmio


Nobel. A China e a periferia deveriam arcar com as consequências de 400 anos de
história do capitalismo. Essa é a conjuntura ideológica/religiosa em que se dá a
discussão sobre o problema ambiental no mundo. Não negamos a existência de um
problema ambiental sério em curso na China e no mundo. Apenas não acredita-
mos que a solução desse problema ocorrerá a partir da condenação da periferia do
sistema ao retorno à Idade da Pedra. Nesse caso, somente o espraiamento da tecno-
logia e do financiamento, do centro para a periferia, de novas formas de geração de
energia representa solução equilibrada para o problema.
O limite da China nessa questão está exatamente na manutenção de seus
índices de crescimento. Essa assertiva fica imanente na declaração elaborada
pelo Conselho de Estado em julho de 1990. Sob o título de Problemas e posições
relacionados com os temas ambientais globais, surgiram os princípios norteadores da
diplomacia chinesa exercidos até hoje nos fóruns mundiais sobre meio ambiente
e clima. São eles:

a) a responsabilidade dos países desenvolvidos pela deterioração do meio


ambiente;
b) a harmonia entre a proteção ambiental e o desenvolvimento econômi-
co;
c) o direito dos países em desenvolvimento de se desenvolverem;
d) a igualdade soberana de todos os países;
e) a necessidade de estabelecimento de fundos para os países em desen-
volvimento.

É evidente que esses princípios por si só podem ser constrangedores para as


“democracias” ocidentais. Porém, não nos atenhamos somente aos princípios em
si, mas principalmente ao fato de ser conveniente à China defendê-los, não somen-
te pela sua história e seu regime político, mas também por se considerar um “país
em desenvolvimento” e, portanto, muito reticente com compromissos globais que
possam colocar em risco seu processo de crescimento. Daí sua postura se equili-
brar entre algo hesitante e o engajamento diferenciado. Porém, tal discurso lança luzes
para outra questão, que é a própria transferência de tecnologia dos países do centro

388
O desenvolvimento e suas faces na China

para a periferia do sistema, no tocante à problemática da redução de emissão de


gases. Essa constatação nos leva a substanciar o argumento, já colocado, da difu-
são da técnica como forma de enfrentar os problemas candentes da humanidade.
Na questão do meio ambiente, a técnica em condições de viabilizar relações mais
racionais entre homem e natureza está concentrada em apenas alguns países. A
China tem grande interesse em transformar essa transferência de tecnologia numa
nova fronteira de acumulação, facilitando e aprofundando as experiências internas
que encetam a III Revolução Industrial.
Tal forma de salvaguardar seus interesses não impediu a China de, desde 1990,
adotar e assinar – além do Tratado de Kyoto – 50 tratados internacionais, mais de
15 convenções de área e 27 acordos bilaterais na área ambiental. Foi, porém, firme
contra a tentativa de imposição aos países periféricos das famigeradas “cotas de
carvão”, que poderiam ser vendidas aos países desenvolvidos. Podemos exercitar
analogia afirmando que as cotas de carvão são os “ouros” a serem trocados por
espelhos no século XXI?
Essa inserção internacional chinesa no âmbito da discussão sobre o meio am-
biente e as alterações climáticas ganham corpo não somente no âmbito da “gran-
de política”, mas também na colaboração científica com Japão, Estados Unidos e
Coreia do Sul, conforme nos informou o embaixador Amaury Porto em seu citado
artigo. A crise financeira em curso alçou a China e a discussão em si para outro
patamar, incluindo a utilização – pela primeira vez por um chefe de Estado chi-
nês – da tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas no sentido de confirmar
o comprometimento chinês com a redução das emissões de carbono. Além disso,
um crescimento que pontua a transição da II para a III Revolução Industrial – na
China – é incompatível com a utilização de fontes fósseis de energia, insustentável
inclusive economicamente.

5.6.2.1.1 Primeiros sinais para o mundo

A execução do plano quinquenal que se encerrou em 2010 foi caracterizada


pela virada completa do compasso do desenvolvimento para o oeste do país, e tam-
bém pela primeira tentativa de massificação de uma mentalidade e prática politi-
camente correta em matéria de meio ambiente. As metas de transição do petróleo

389
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

para o gás natural no transporte público e em táxis nas grandes cidades tiveram
êxito, além do fato de o Instituto Nacional de Estandardização (o Inmetro chinês)
implementar políticas de regulação que objetivaram a diminuição em até 10% do
consumo de energia nas cidades. No final de abril de 2010, se alcançou a dimi-
nuição de 14% na utilização de energia por unidade do PIB, porém o consumo de
energia na China desde 2006 aumentou em 24%. Outro exemplo desse empenho é
o Programa de Eficiência 1.000 Empresas, já utilizado com sucesso anteriormente,
voltado para a fiscalização de empresas que usam mais de 5 mil toneladas anuais
equivalentes de carvão144.
O plano quinquenal encerrado elevou a moral da governança chinesa para
tratar internacionalmente do problema ambiental. Vale lembrar que a citada
participação de Hu Jintao na Assembleia Geral das Nações Unidas teve ponto
culminante não somente no relato dos feitos desse país ao longo de 60 anos
de poder popular, e nem apenas no crédito dado pelo dirigente chinês sobre
a inexequibilidade desse projeto apartado do socialismo. A ampliação da polí-
tica de reflorestamento, aumentando em 20% a taxa de utilização de energia
limpa com base em 2005 e aumentando para 15% a utilização de combustíveis
limpos (atualmente em 7%, enquanto no Brasil é de 45%), e a viabilização de
uma “economia verde” foram políticas em execução anunciadas – internacio-
nalmente – pelo mandatário chinês, com amplas repercussões pelo mundo. Do
ponto de vista estratégico, o embaixador Amaury Porto nos alerta que pelo
menos 60% dos aportes financeiros chineses voltados à contenção dos efeitos
da crise financeira (quase US$ 600 bilhões) foram “carimbados” ao subsídio de
energias limpas. Opinamos que um imenso mercado para produtos ancilares
à “economia verde” está em ebulição na China. Trata-se da acumulação como
pêndulo do processo em pauta.
Discurso e prática que caíram como uma torrente, dados os óbices à economia
norte-americana e mundial em decorrência da crise financeira. O processo de fra-
gilização do governo Obama no âmbito doméstico, expressa na imensa barganha
em sua política externa em prol da aprovação da reforma da saúde. A face ambien-
talista de Obama se expressa nas tentativas de fortalecimento da “indústria verde”

144
LASH, Jonathan. “A China verde é sustentável?”. In Especial China – CEO Exame. Edição nº 6.
Junho/2010.

390
O desenvolvimento e suas faces na China

ao mesmo tempo em que a China constrói capacidade de suprir a meta de 20% de


utilização de fontes renováveis no âmbito industrial em 2020 somente pela utiliza-
ção da capacidade instalada em energia eólica. E mais: a capacidade de geração de
energia eólica dobrou a cada ano nos últimos quatro anos145 e, ao que tudo indica,
a China está prestes a ultrapassar a capacidade norte-americana na produção de
turbinas geradoras para esse fim146.

5.6.2.1.2 Cooperação e competição com os Estados Unidos

Não é preciso ir muito longe para se ter uma noção da imensidão do merca-
do norte-americano para práticas de “economia verde”. Além disso, os EUA são a
maior potência jamais vista na história humana. Por outro lado, o papel virtuoso
cumprido pela China na contenção dos efeitos da crise financeira elevou-a a uma
condição jamais vivida por ela desde a segunda metade do século XVII. Projeta-se
assim a necessidade do diálogo entre as duas maiores potências sobre os desígnios
do século XXI, entre eles a área energética. A competição também é parte desse
complexo, obviamente. Trabalhemos dois exemplos. Um de cooperação e outro de
competição. O de cooperação está nos arranjos conjuntos entre os dois países para
procurar sínteses comuns em fóruns internacionais, como as “conferências do cli-
ma”; algo como a extensão do Diálogo Econômico-Estratégico lançado em 2006.
Nesse campo, as dificuldades maiores ficam a cargo dos Estados Unidos, uma vez
que nem sempre promessas de campanha são factíveis na prática, como demons-
traremos abaixo.
A competição entre os dois países no terreno das energias limpas e suas respec-
tivas indústrias está na dialética entre a demanda norte-americana pela mudança
de seu vetor energético e a cada vez maior capacidade chinesa de atender a essa
demanda. Dois exemplos são pertinentes. O primeiro está na capacidade produtiva
instalada no setor de energia limpa pela empresa Himin, que produz cerca de 2
milhões de metros quadrados de painéis para captação de energia solar por ano,
145
“China doubles wind power in single year”. In U.S. News – Green machines. Disponível em:
<http://www.msnbc.msn.com/id/35219596/ns/us_news-environment>.
146
“China has world’s fastest growing wind power capacity”. In Business week. 28 de abril, 2009.
Disponível em: <http://www.businessweek.com/globalbiz/blog/eyeonasia/archives/2009/04/chi-
na_has_world.html>. Acessado a 13-07-2010.

391
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

produção equivalente ao dobro das vendas anuais desse produto – por estrangeiros
– ao mercado norte-americano147.
Outro exemplo encerra-se na polêmica sobre a construção de uma planta de
energia eólica no Texas ao custo de US$ 1,5 bilhão, empreendida por um consórcio
sino-americano. O lado chinês (com 49% de participação) é a A-Power Energy Ge-
neration Systems, com sede em Shenyang. Cerca de 30% da obra estão sendo finan-
ciados com fundos governamentais de incentivo à instalação desse tipo de planta.
A polêmica reside no fato de que todas as 240 turbinas geradoras de energia a serem
utilizadas no empreendimento são de fabricação chinesa148. É curioso notar que há
alguns anos a China foi um grande mercado para turbinas e geradores fabricados
por empresas como GE e AES. O jogo, pelo jeito, pode estar virando. Empreendi-
mentos desse tipo tendem a se repetir no futuro próximo, com a percepção de um
confronto econômico que tende a ser cada vez mais iminente e agressivo.

aaaaaaaaaaaa

Em uma análise que procure estabelecer os limites dessa cooperação/competi-


ção entre a China e os Estados Unidos, em matéria de meio ambiente, se faz neces-
sário localizar problemas de outra ordem. Referimo-nos a diferenças no âmbito da
superestrutura entre os dois países.
A vida demonstra que o poder real norte-americano não é exercido plena-
mente pelo signatário eleito pelo sufrágio universal. O poder nos Estados Unidos é
exercido pelo grande capital instalado no complexo industrial-militar, na indústria
petrolífera e nos interesses em outras formas de energia, como o carvão. São esses
oligopólios que elegem os presidentes norte-americanos. Se não os elegem, ao menos
tocam os cordéis do governo de forma a inviabilizar o aprofundamento de mudan-
ças qualitativas no processo político e social. Isso explica o fato de Bill Clinton não
ter enviado ao Congresso as cláusulas propositivas do Protocolo de Kyoto. Outro
fato que retarda a adoção de políticas radicais de contenção do uso do carvão nos
147
OLIVEIRA, Amaury P. “A China abraça a causa verde”. In Bresser Pereira Website. Disponível em:
<http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=3676>.
148
“Business week – China wind farm inside Texas”. In Wind4Me. 03-11-2009. Disponível em:
<http://wind4me.com/2009/11/03/businessweek-china-wind-farm-inside-texas>. Acessado
em: 12-01-2010.

392
O desenvolvimento e suas faces na China

Estados Unidos é que mais da metade dos estados da federação são produtores de
energia proveniente do carvão. Um país dominado por oligopólios dificilmente pode
cumprir acordos internacionais em matérias que mexem com os interesses desses
oligopólios.
A China também tem problemas desse tipo, mas de menor intensidade, afinal
os oligopólios chineses são estatais e devem plena satisfação ao Esta-
do. Essa é uma vantagem considerável dentro da observação de mais largo alcance
envolvendo a superioridade do socialismo em relação ao capitalismo. Essa superiori-
dade também explica a rapidez com que a China direciona capital e incentivos à
abertura de empresas, institucionalização de reserva de mercado e agressividade
externa em áreas jamais imaginadas ao pesquisador menos atento. A “indústria
verde” é prova disso. Porém, tudo guarda contradição. Conversamos com muitos
membros do PCCh em cidades diferentes, como Pequim e Xangai. Em Pequim,
existe uma aceitação muito maior da necessidade de uma “industrialização verde”.
Em Xangai, a indústria já instalada tem muita força na seção local do PCCh, por-
tanto mais avessa a uma escalada mais rápida de desmonte das plantas movidas a
carvão. Sendo o carvão uma forma de geração de energia amplamente difundida
em todos os rincões da nação, e como muitos dos membros do PCCh têm status
maior ou menor dependendo da performance econômica da província em que go-
vernam, o controle de políticas nacionais é muito dificultado. Existem lobbies de
grandes estatais petrolíferas? Claro que sim, mas seus gerentes são nomeados pelo
Estado e não por interesses privados. Nessa e em outras refregas o governo chinês
tem muito mais capacidade de manobra do que o governo americano.
Nesse espaço político entre o governo central e as províncias é que surge uma
imensa classe média com grande capacidade de mobilização e pressão sobre o go-
verno. O governo chinês sabe disso, fazendo grande apelo à sua participação po-
lítica nos quadros da mobilidade social em que a classe média tem expressão. Os
intentos da classe média norte-americana estão mais na necessidade de ampliar
sua capacidade de consumo do que no incômodo diante da pobreza alheia e de
problemas ambientais e sociais mais agudos.
Essa relação estratégica entre dois países com sistemas sociais, políticos e eco-
nômicos diferentes deve ser analisada sob a luz de variáveis que muitas vezes es-
capam de qualquer pesquisador, inclusive sob o medo do rótulo. Ser rotulado é um

393
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

risco que se corre ao se procurar a essência do problema, quando se comparam


as relações desses dois países sob o prisma da composição de classes sociais e das
superestruturas de poder.

5.6.3 Avanços na “indústria verde” chinesa

Com certeza não dispomos de espaço para enumerar os avanços chineses em


matéria de proteção ambiental. Mas é sugestivo expor, a princípio, que entre 2004
e 2009 foram feitas três visitas ao país e em cada uma delas a impressão variou de
muito ruim em 2004 para satisfatória em 2009. Ao menos em 2009 já era possível
enxergar estrelas no céu de Pequim. E essa impressão empírica já diz muito, apesar
de reconhecermos que muito trabalho terá pela frente a governança chinesa para
dar solução a esse óbice. Somente o fato de não haver mais em circulação ônibus
antigos e movidos a gasolina ou diesel já constitui grande avanço, algo que no Bra-
sil ainda se encontra em seus primeiros passos.
Trabalhamos esse ponto de forma a substanciar argumento já exposto sobre o
papel desse salto na China como uma nova fronteira de acumulação.

5.6.3.1 Uma grande reserva de mercado

Para qualquer investimento ter retorno financeiro, deve-se ter um cálculo de


mercado, de forma que fique clara a existência ou não de uma grande reserva de
mercado a ser institucionalizada. O crescimento econômico é movido por energia.
Em um país com estimativas de crescimento e de migração de 350 milhões de
pessoas para cidades (estimadas até 2025), o que mais se presencia é reserva de
mercado para novas formas e fontes de energia. Há a questão dos investimentos
na área, também como forma de se criar mercado para produtos novos. Além disso,
novos produtos e serviços na área de energia demandam outros tipos de investi-
mentos, assim como novas formas de acumulação. Novamente colocamos: tudo se
relaciona.
Não é surpresa – dado o já exposto neste livro – que a China está promovendo
esforços no sentido de se modernizar no âmbito da proteção do meio ambiente e da
adoção de formas limpas de energia.

394
O desenvolvimento e suas faces na China

No período 2006-2010 investiu-se num “plano quinquenal verde” a quantia de


US$ 222,5 bilhões, o que explica a rápida ascensão do país nessa matéria em apenas
alguns anos. Para o próximo plano quinquenal, a meta é duplicar os investimentos,
o que colocará a China à frente de Estados Unidos e Japão nessa matéria. Em 2009,
ela já havia ultrapassado esses países quando se comparam os investimentos em
energia em relação ao PIB: 3%149. O impacto dessa recente opção do país é sentido
no crescimento dos serviços e indústrias correlatos: entre 2005 e 2009, o crescimen-
to ao ano variou de 15% para 20%. Por isso, a China já é o maior produtor mundial
de células solares, turbinas eólicas e aquecedores solares de água150.

5.6.3.1.1 Reflorestamento, um grande negócio

Um país com variação média de crescimento de dois dígitos nos últimos 30


anos e com uma imensa faixa de sua população em acelerado processo de urbani-
zação é um país onde a construção se transforma em um dos motores do processo
de crescimento. Logo, nessas condições, surge o mercado para a comercialização
de uma série de itens com estrita ligação com a madeira. O desmatamento e a des-
truição no vale do rio Yang-Tsé durante as enchentes de 1998 (4 mil mortos e 18
milhões de desabrigados) ampliaram essa demanda.
Apesar de o consumo per capita chinês de madeira ser somente a vigésima par-
te do norte-americano, o papel, o setor de construções e equipamentos manufatu-
rados de madeira consomem 300 milhões de metros cúbicos anualmente. A China
é a segunda maior importadora mundial de madeira.
A preservação pode se transformar em algo de grande retorno financeiro.
Abordaremos um capítulo do livro 80 homens para mudar o mundo151, intitulado “Re-
florestamento: um novo negócio”.

149
“ONU: China investe 3% do PIB em energia limpa”. In Portal Vermelho, 06-05-2010. Dispo-
nível em: <http://www.rubro.paginaoficial.ws/noticia.php?id_noticia=128899&id_secao=10>.
Acessado em 07-05-2010.
150
“China to double investment in environment protection to US$ 454 bn”. In, BusinessGreen.
com. Disponível em: <http://www.businessgreen.com/articles/print/2253986>. Acessado em
10-06-2010.
151
SYLVAIN, Darnil & LE ROUX, Mathieux. 80 homens para mudar o mundo. São Paulo, La Selva,
2009, p. 240.

395
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

A história gira em torno de Allen Chen, fundador e presidente da Sino Forest,


empresa de Hong Kong responsável por 5% do mercado chinês de madeira e ponta
de lança empresarial de um grande projeto encaminhado desde 2001, pelo gover-
no chinês, de promoção – após proibir a exploração no vale do rio Yang-Tsé e das
florestas naturais como um todo – da chamada “madeira renovável”. A contradição
é que, apesar de essa medida de proibição da exploração da madeira em florestas
naturais ter ajudado a diminuir, nos últimos dez anos, em 20% a produção chinesa
de madeira, a demanda não diminuiu, aumentando o desmatamento em áreas da
Sibéria e de seus vizinhos tropicais ao sudeste da China.
O citado capítulo expõe que, desde 1993, Allen Chen percebeu que era pos-
sível produzir madeira e propor uma alternativa ao desmatamento por meio da
implantação de “fazendas de arborização”. Tais fazendas funcionam da seguinte
(e simples) forma: plantam-se eucaliptos e pinhos que levam somente cinco anos
para atingir a maturidade. Ou seja, um processo muito mais rápido que o verificado
no tempo de renovação de árvores de reservas naturais. Em uma floresta concedida
pelo governo para exploração privada (com pagamento ao Estado de 30% do lucro
da empresa no final do ano – no caso para a Sino Forest), o círculo se encerra com
o replantio dessas árvores no lugar da área explorada. Se apenas um quinto da flo-
resta concedida pelo governo é suficiente para o trabalho proposto por Chen, fun-
damentalmente num período de concessão, que pode demorar entre 20 e 30 anos,
tudo o que foi desmatado foi reposto. Dado o tempo de recuperação da área, Chen
conseguiu reduzir custos de transporte e exploração, podendo vender no mercado
chinês materiais 20% mais baratos que os resultantes da exploração de florestas
naturais.
É um exagero colocar que os problemas ambientais gerados pelo desfloresta-
mento na China estejam perto de uma solução definitiva. Porém, o mais impor-
tante é saber que essas soluções existem e estão sendo estudadas e trabalhadas
pelo governo chinês. Os chineses não são anglo-saxões que miram na tragédia e
num futuro da espécie humana a caminho do “juízo final”. Logo, o futuro tende
a ser promissor se levadas às últimas consequências experiências como as da Sino
Forest. A expansão da empresa pode dizer muita coisa sobre o futuro: crescimento
médio anual de 33%, emprego de 35 mil trabalhadores e faturamento em 2004 de
250 milhões de euros.

396
O desenvolvimento e suas faces na China

5.6.3.1.2 A expansão das formas solar e eólica de geração de


energia

Já mencionamos o potencial encerrado nas energias solar e eólica para o fu-


turo do projeto energético chinês, inclusive com números. O desenvolvimento de
tais fontes de energia, para a China, encontra guarida em algo que é sério motivo
para se compreender o passado, o presente e o futuro do país: a natureza. O mapa
abaixo, de escalas de produção de energia solar na China, pode nos dizer algo a
respeito, incluindo os sugestivos lugares em que se realizaram os dois primeiros
congressos sobre o tema:

Mapa 11 – Escalas de produção de energia solar na China


(e localização dos dois últimos congressos nacionais sobre o tema)

Congresso de Tecnologia e Investimento em


Energia Solar na China
Harbin

Unmqi
ShenYang
Huhhot
II Pequim

LanZhou
I XiAn ZhengZhou

Valor Anual - kWh/m2 Xangai


Lhasa
I: >1860
WuHan
ChangSha
III
II: 1350-1860 FuZhou
Taipei
III: <1350
GuangZhou
2º Congresso Anual de Tecnologia e
Kunming
Investimento em Energia Solar na China Haikou

Fonte: 2º Congresso Anual de Tecnologia e Investimento em Energia Solar na China. Disponível em: (http://
www.noppen.com.cn/events/2nd_solar/2nd_solar.asp).

Na China existe a combinação de dois domínios naturais propícios ao desen-


volvimento desse tipo de energia: altiplanos e desertos. As escalas de produção

397
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

elencadas acima demonstram que a escala 1 vai desde o altiplano do Tibete até
as extensões do deserto do Tarim. Já a escala 2 é percebida nas regiões que se es-
tendem do sul país ao deserto de Gobi, e também na Mongólia Interior. A escala 3
se estende na direção das planícies litorâneas chinesas. O destaque é o fato de as
províncias mais pobres da China guardarem maior potencialidade de produção.
O mapa 12, sobre fatores de capacidade para instalação de unidades geradoras
de energia eólica, demonstra tendência semelhante:

Mapa 12 – Fatores de capacidade para instalação de unidades


geradoras de energia eólica

Fator de
Capacidade (%)
0.27 - 7.5
7.6 - 11
12 - 15
16 - 19
20 - 23
24 - 27
28 - 32
33 - 47

Fonte: China’s potent wind potential. Disponível em: (http://www.technologyreview.com/energy/23460/


page2/).

A mesma tendência percebida para a geração de energia solar só é subverti-


da, no caso da fonte eólica, em baixos fatores de capacidade localizados em bacias
como a do Tarim e de Sichuan. Nos demais casos, o fator máximo está em pleno
deserto de Gobi (Mongólia Interior) e no Tibete.
Os mapas acima, ilustrando a estratégia chinesa de implantação de um merca-
do para energia limpa e renovável nas províncias mais pobres do país, demonstram
que mais um desafio de ordem nacional e internacional deverá ser enfrentado e
vencido com êxito pela China.

398
O desenvolvimento e suas faces na China

5.7 CONCLUSÕES DA PARTE 5


• Nas quatro primeiras partes, buscamos base teórica para assentarmos uma
visão mais ampla, historicizada e não dogmática sobre a transição ao socialismo e
sobre as bases sociais e territoriais do Estado nacional chinês. Afinal, a República
Popular é expressão moderna da China milenar e a transição ao socialismo na
China se dá sob condições não previamente expostas por nenhum clássico do mar-
xismo – apesar de Lênin ter lançado as vigas mestras de uma teoria da transição e
do desenvolvimento voltada à análise de sociedades agrárias. Outro ponto que me-
receu destaque foram as proposições de Ignacio Rangel acerca do desenvolvimento
periférico marcado por contemporaneidades não coetâneas.
• É com essa base inicial que partimos para a essência do livro. O volume da
parte 5, que corresponde a mais da metade do trabalho, fala por si. Nele, tratamos
de aspectos correspondentes a crescimento econômico, inserção externa, geopolíti-
ca do processo, sistema financeiro, questão regional, agricultura e meio ambiente.
Trata-se de determinações suficientes para que o analista possa angariar elementos
palpáveis para entender as razões do sucesso do desenvolvimento chinês e as pers-
pectivas para o futuro do país e do regime.
• É nesse contexto teórico e histórico que buscamos explicações para o pro-
cesso de desenvolvimento chinês que vão além dos agregados macroeconômicos.
É evidente que foi de grandiosa importância, nessa parte, expor as múltiplas deter-
minações do processo, no que tange às determinações macroeconômicas. É central
explicar e expor sobre determinantes como altas taxas de investimento em relação
ao PIB, o papel do câmbio e a construção de um complexo e multiforme sistema
financeiro como a base do “todo concreto” do atual estágio de desenvolvimento da
China. As séries estatísticas foram grande base de argumentação.
• Porém, as ditas séries estatísticas como forma de sintetizar as razões de um
desenvolvimento com as características daquele que ocorre na China não podem
encerrar a discussão. O tema urge explicações originais e criativas que fujam do
lugar comum das análises em voga. Assim, concluímos que as causas determinan-
tes do processo não estão somente em pontos convergentes com outros modelos de
desenvolvimento presenciados na história. O diferencial chinês é a complexidade.
• Assim, pudemos abrir uma nova forma de compreensão do que se conven-

399
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

cionou chamar de “crescimento potencial”, que vai além da relação entre capaci-
dade produtiva instalada e utilizada com o movimento da demanda. Logo, pude-
mos constatar as mesmas especulações que lançamos na introdução deste livro
e, por termos acreditado que tais especulações foram demonstradas ao longo da
tese, lançamos mão das mesmas palavras da introdução, segundo a qual a com-
plexidade da China pressupõe crescimento econômico como resultado de alguns
fatores, entre eles:

a) a necessidade da maximização do mercado e sua capacidade de alocar re-


cursos;
b) a maximização do planejamento que ocupa o espaço reservado a pensar o
estratégico, os grandes empreendimentos;
c) a gestão macroeconômica capaz de gestar movimentos imediatos e futuros da
grande economia, agora sob o amparo de um poderio financeiro jamais
sonhado pelas antigas gerações revolucionárias.

• O crescimento chinês é resultado também da maximização do potencial privado,


da “permissão” para o cumprimento de seu papel delegado pela história. O privado
é ancilar à grande produção socializada e estatal. Trata-se de um setor-chave para
as necessárias aberturas de novos campos de investimentos capazes de criar em-
pregos e manter a estabilidade social. O crescimento desse grande país não poderia deixar
de estar presente fora da maximização do papel indutor do Estado. A grande empresa é a
grande expressão do desenvolvimento capitalista, e também deve ser do desenvol-
vimento socialista afiançado por um poder político de novo tipo e por um sistema
financeiro cada vez mais profundo e complexo.
• Nessa linha de raciocínio, também expusemos questões em que a transição
se encontra a pleno vapor: o papel crescente das estatais no fomento à C&T, dando
consequência ao nosso diagnóstico acerca da maior produtividade do trabalho nas
empresas estatais em comparação com as privadas. A inserção externa chinesa,
voltada à acumulação de capital em um mundo financeirizado, é a chave para se
compreender o papel do crédito como indutor ao consumo e resultado de taxas de
juros atraentes a esse mesmo crédito. Nesse sentido, evocamos a planificação do
comércio exterior, pois o comércio exterior é uma variável estratégica quando se

400
O desenvolvimento e suas faces na China

elabora e se executa uma política voltada à acumulação de capital.


• Trabalhamos, desde o início, com hipóteses referentes a um estágio de de-
senvolvimento do socialismo onde novas e superiores formas de planejamento deveriam
ser lançadas em decorrência de grandes demandas nacionais e sociais. Esse estágio
coincide – necessariamente – com a viabilização de um sistema de intermediação finan-
ceira, como resultado de um longo processo de acumulação de capital. A concretude
dessa abstração pode ser percebida numa leitura em conjunto do processo de de-
senvolvimento chinês, como, por exemplo, na expressão geográfica do processo de
inserção externa. Algo que demanda a superação de uma milenar diferença entre
litoral e interior e, numa visão mais estratégica, a própria superação da divisão so-
cial do trabalho no socialismo.
• Irresistível, nesse sentido, é o giro do compasso do desenvolvimento para o
oeste do país. Fizemos comparações entre diferentes políticas regionais adotadas na
China antes e depois de 1978. Duas políticas planejadas e executadas com óbices e
sucessos que devem ser elencados fora de parâmetros puramente teóricos. Se o mo-
delo executado entre 1949 e 1978 impediu que as grandes favelas ganhassem corpo
nos centros urbanos, de 1978 para cá – de forma planificada – combinou-se uma
política de lento relaxamento do sistema hukou com uma estratégia de urbanização
“para fora do litoral” altamente sofisticada.
• No topo desse processo está a formação de uma economia continental com im-
pactos na correlação de forças em ordem global comparáveis ao processo análogo
verificado nos EUA na segunda metade do século XIX. Como já colocado aqui, eis
um dos fatos que terão grande peso na conformação do presente século.
• O intenso processo de transformação da agricultura em vias de transitar de
uma base familiar camponesa para outra, de nível superior, de tipo cooperativada.
Demos consequência às nossas abstrações na medida em que apontamos que essa
transição no campo é sinônimo de um amplo processo de formação de um sistema
financeiro rural; de uma política de financiamento da agricultura, e da formação
de uma vasta rede de proteção social. Nesse sentido, também não fechamos os
olhos aos imensos problemas de ordem social surgidos com a transição para uma
economia onde o mercado passou a ter grande importância, indo além da simples
alocação de recursos.
• Examinamos também os problemas concernentes ao meio ambiente. De

401
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

forma semelhante à análise das desigualdades sociais e regionais, pontuamos os


óbices nessa questão. Porém, também concluímos – após exposição sobre as políti-
cas empreendidas pela governança chinesa – que o país está em vias de assumir a
dianteira mundial em vários ramos de atividade industrial e social nessa matéria.
Concluímos que um dos segredos do dinamismo da “indústria verde” chinesa re-
side na transformação de tal empreendimento em nova fronteira de acumulação e
cooperação/concorrência com os Estados Unidos.

402
6. Conclusões / Reflexões

403
Conclusões / Reflexões

N ão é temeroso, nem algo fora da realidade, trabalhar uma relação direta


entre os desafios imediatos e estratégicos chineses e os desafios envoltos
no futuro do próprio socialismo. Não estamos na fase em que seria impe-
rativo classificar ou não a China como uma experiência socialista. Trata-se de uma
experiência socialista com características chinesas, características tais que fogem ao
alcance analítico da grande maioria dos analistas, incluindo os de inclinação mar-
xista. Aos que não enxergam similaridade entre China e socialismo, que este livro
responda por si só. Que traga algum instrumento ao debate, inclusive sobre a pos-
sível natureza de “capitalismo de Estado” da experiência chinesa. Apesar de Lênin
classificá-lo como uma formação econômico-social, ele não pode ser analisado sob o
prisma de um modo de produção diferente. O modo de produção é o capitalismo.
Este livro também buscou responder per si a outra gama de pesquisadores e
militantes que confundem socialismo com um mundo ideal onde a desigualdade
social desaparece e as contradições são proscritas. Não guardamos ilusões quanto
à busca da “sociedade ideal”. No socialismo, a sociedade ainda é regida pelo trabalho,
não pela necessidade. A eficiência econômica e sua busca definem o futuro da tran-
sição socialista em comparação ao capitalismo. Daí as desigualdades ainda serem
uma tônica, uma contradição do processo; uma expressão da regência exercida pela
“ideologia do trabalho”, ainda sob o socialismo.

aaaaaaaaaaaa

O alcance dessa experiência se encerra nas próprias dimensões geográficas,


econômicas e demográficas do país. Isso nos leva a acreditar que os destinos chine-
ses estão interconectados com os destinos da própria humanidade. O futuro da China
está para o socialismo no mesmo alcance em que o capitalismo tem seus limites históricos na
experiência norte-americana. A derrota do imperialismo é a derrota da experiência ca-
pitalista. Pode-se falar na Europa, mas se levarmos em conta que, dos atuais 20%,
em 2040 a Europa corresponderá – evidentemente – a uma porcentagem menor
da economia mundial, podemos concluir que continuará, a passos largos, a deca-

405
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

dência europeia, acelerada com o processo de descolonização de Ásia e África (um


declínio nada relativo), enquanto a própria China deverá alcançar o topo mundial,
dividindo essa condição com os EUA.
Esse caminho chinês rumo à liderança internacional não se dá e nem se dará,
porém, de forma reta e uniforme. Os desafios que a liderança chinesa deverá en-
campar podem colocar em xeque a própria experiência em andamento. Neste li-
vro pudemos passar a vista pela maioria desses problemas. A questão social e a
agrária, a continuidade do desenvolvimento acelerado, a rápida urbanização e o
meio ambiente são problemas candentes. Existem ainda questões de necessidade
de contínua legitimação do regime encerradas no entrelaçamento entre a questão
democrática e a “burocracia”. Analisemos, rapidamente, algumas delas.

aaaaaaaaaaaa

Há possibilidades de continuidade do processo rápido e acelera-


do de desenvolvimento na China? Trata-se de uma pergunta cuja resposta
é similar à visão de mundo de cada pesquisador. Antes econômica, se trata agora
de uma questão política. Não existe desenvolvimento espontâneo. A época de um
desenvolvimento que contava somente com a vontade humana e a gentileza da na-
tureza se foi há muito tempo, apesar da influência que essa época ainda exerce nos
próceres do laissez-faire e do mainstream do pensamento econômico. Atualmente, o
desenvolvimento é o irmão siamês do planejamento. Crer no contrário, num Estado
para tocar o dia a dia da burocracia enquanto o mercado responde pelas necessida-
des materiais da população é algo que os acontecimentos em andamento no âmbito
da economia internacional trataram de procrever.
Antes de responder acerca das possibilidades futuras da economia chinesa,
deve-se questionar se existe um Estado forte, um planejamento e uma superestru-
tura de poder não afeita a quimeras ideológicas, e sim à prática como único critério
da verdade e capaz de enxergar além dos obstáculos conjunturais. Se a resposta for
positiva, podemos crer que esse desenvolvimento perdurará por décadas. Aprofun-
dando um pouco a questão, em primeiro plano é interessante notar que poucas
forças políticas no século XX demonstraram tanta capacidade de tomada de deci-
sões difíceis, porém de alcance estratégico, como, por exemplo, em 1935, quando,

406
Conclusões / Reflexões

após intensa luta interna, o “pensamento de Mao Tsetung” passou a reger a tática
revolucionária do PCCh em contraponto aos desígnios da III Internacional. Outra
decisão difícil: em 1937, Mao Tsetung propugna pela Frente Única Antijaponesa,
tomando a iniciativa de propor aliança com seu inimigo principal, o Kuomintang
de Chiang Kai-shek. Mais uma: em 1951, com a intervenção chinesa na Guerra da
Coreia, onde, pela primeira vez desde sua independência, os EUA foram derrotados
militarmente, uma derrota que indicou o caminho da própria experiência chinesa.
Dentre as decisões mais complicadas, a de reformar a estrutura econômica e abrir
as portas ao exterior (1978) foi uma das mais difíceis, porém com alcance a ser sen-
tido no mundo pelos próximos séculos. Enfim, a história demonstra a capacidade
chinesa de tomar decisões de vulto.
Decisões nada tranquilas foram tomadas recentemente, entre as quais se des-
taca a de maior envergadura, o Programa de Desenvolvimento do Oeste, promul-
gado em 1999, além de toda uma política de enfrentamento dos óbices sociais e
políticos que contornam o desenvolvimento futuro da China. Além da “marcha
para o oeste”, outra decisão de alcance ainda a ser avaliada é a relacionada à trans-
formação completa do campo chinês, com o chamado Novo Campo Socialista. O
desenvolvimento da agricultura – no rumo da transição de formas familiares e
artesanais de produção para outra de nível superior – foi, talvez, a decisão estraté-
gica mais acertada na governança Hu/Wen. Juntamente a essa diretriz, indicamos
também a recente política de altíssima valorização do trabalho, que trouxe em seu
bojo aumentos médios salariais que alcançaram a marca de 100% em alguns casos.
Esse movimento de readequação da economia chinesa – cada vez mais voltada
para a formação de mercado interno de massas – tende a se consolidar nos próxi-
mos anos. A agricultura chinesa, desde o início (2004) da execução das políticas
do Novo Campo Socialista, teve aumento médio da produtividade do trabalho da
ordem de 6% ao ano. Estima-se que tanto o avanço da agricultura quanto a urba-
nização dela decorrente, juntos, serão responsáveis por 6% a mais de crescimento
anual do PIB por muito tempo1.
Outro fator que será base para o contínuo crescimento do país é o crescente
papel da ciência, tecnologia, inovação e educação básica. Expusemos a transição

1
FOGEL, Robert W. “US$ 123.000.000.000.000”. In Especial China – CEO Exame. Edição n. 6.
Junho/2010.

407
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

de um sistema onde a inovação dependia basicamente do orçamento estatal para


outro onde a grande empresa passa a ser o centro do processo. A China alcançou o
estágio em que a ciência e a tecnologia passam a ser parte do capital constante. Uma
das vantagens competitivas chinesas utilizadas amplamente para atração do capi-
tal estrangeiro no início das reformas foi a alta qualidade de sua mão de obra. Essa
tendência se fortaleceu. Em 1998 havia apenas 3,4 milhões de chineses matricu-
lados em cursos de ensino superior. Entre 1998 e 2002 esse número aumentou em
156%, e, entre 2002 e 2008, ficou próximo a 50%, sendo que somente em 2005 a
China formou 600 mil engenheiros2.
É claro que tal virada estratégica também traz consigo uma série de contradi-
ções. A primeira reside na séria e explosiva questão social sob a insígnia histórica da
questão camponesa. É verdade que o país avançou, e muito, nessa questão, seja pela
intervenção cirúrgica no campo, seja na visível diminuição da pobreza urbana. A
China conta, ainda, com uma população camponesa de dimensões europeias e
africanas juntas – população essa que tende a aumentar seu acesso à formação e
à informação por meio de parentes que ganham a vida nas cidades. Apesar dos
progressos verificados, a verdade demonstrada pela história é que as atividades in-
dustriais citadinas são mais rentáveis que as agrícolas. Essa referência para um país
com uma população camponesa das dimensões da China é sinal de alerta. Além
disso, existe a questão da propriedade e do acesso à terra. A manutenção de formas
socialistas de propriedade da terra é essencial à manutenção da ordem social no
campo. A diferenciação social é parte do processo, assim como dele deve ser parte o
peso político do Estado na conformação de uma sociedade em que as desigualdades
sociais e regionais não cheguem ao ponto do insuportável.
Outro desafio premente é a questão ambiental. O país avançou muito rapida-
mente nessa questão, mas a pressão sobre os recursos naturais, entre eles a água,
deve aumentar com a probabilidade de 350 milhões de pessoas saírem do campo
para a vida urbana nas próximas décadas. Comparação interessante nesse sentido
pode ser verificada no aumento das pressões sobre a natureza com a entrada dos
Estados Unidos na era da indústria. Da mesma forma, se percebe o aumento dessa
pressão sobre os recursos naturais com a rápida industrialização da China, iniciada
em 1949 e acelerada a partir de 1978. Nem os EUA e nem a China podem se com-
2
China Statistical Yearbook.

408
Conclusões / Reflexões

parar com os mercados consumidores de países como Alemanha, França e Ingla-


terra. Um país como o Brasil adentra no processo de desenvolvimento na chamada
“fronteira energética”, ou seja, baseando-se em formas limpas de geração de ener-
gia. China e Estados Unidos são casos diferentes, e é nessa relação de competição/
cooperação – também e principalmente em busca de formas limpas de geração de
energia – que deve se pautar o mundo daqui por diante. Essa pauta mundial am-
biental que está sendo posta em relevo pelos dois concorrentes estratégicos, a nosso ver,
deve ser vista sob dois ângulos: a continuidade da não terminada transição para
a III Revolução Industrial e a competição entre socialismo e capitalismo em âmbito
mundial. Apesar das diferenças de apreensão tecnológica nessa área, as caracterís-
ticas superestruturais de poder na China a colocam em ligeira vantagem perante
os Estados Unidos. Além disso, não cabem muitos argumentos sobre uma solução
final aos problemas ambientais passar pela própria revisão do american way of life.
Um dos juramentos solenes feitos nas trocas de presidentes nos EUA é o da busca de
manutenção do modo de vida americano. Desde Thomas Jefferson até Barack Oba-
ma, esse discurso se repete e ganha concretude nas crescentes guerras de pilhagem
impingidas pelo imperialismo na periferia.
A questão é saber até que ponto os oligopólios norte-americanos estarão a co-
operar numa mudança de paradigma de consumo. Diz muito a respeito o fato de o
governo chinês anunciar que as necessidades de energia previstas para 2020 serão
supridas com a adoção em escala industrial da energia eólica, além da construção
de uma usina de geração de energia solar, na Mongólia Interior, 30 vezes maior que
as existentes na Europa.

aaaaaaaaaaaa

Tema que é pauta para qualquer interessado no futuro imediato do mundo é o


próprio futuro da inserção externa chinesa. Não alimentamos nenhuma ilusão quanto
à aceitação imperialista da crescente participação chinesa nos affairs internacio-
nais. Nem a União Soviética, com o espólio de ter derrotado o nazismo, pôde dar-se
a esse luxo. Bom lembrar que a intervenção militar dos EUA na Coreia, no início
da década de 1950, deu-se sem a anuência da URSS, pelo simples fato de o país ter
boicotado a reunião do Conselho de Segurança da ONU – algo inimaginável se o

409
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

contrário tivesse ocorrido. Os preceitos para a aceitação ao “clube” são muito mais
morais que propriamente econômicos ou políticos. O Ocidente, vivendo ainda de
ilusões simplistas de “fim da história”, julga a democracia liberal como o melhor
dos mundos e que deve ser exportado, até mesmo pela guerra. A China rebate con-
tundentemente, expondo que o país nunca será uma “democracia liberal”.
A verdade é que a cada dia a China vai se tornando a grande interlocutora
dos Estados Unidos no campo internacional. As iniciativas tomadas por Bush Jr.
(segundo mandato) e Barack Obama indicam essa necessidade. Trata-se de uma
relação em que a análise deve estar amparada em muito materialismo e em muita
dialética, pois se a China se conforma gradualmente como um polo alternativo ao
modelo único do Consenso de Washington, ela também necessitará, por algum
tempo, das tecnologias monopolizadas pelos Estados Unidos. Logo, essa relação,
apesar de cada vez menos amistosa, demandará cooperação mútua por muito tempo.
Nessa unidade de contrários cristalizada em meio à crise financeira ainda em desen-
volvimento é que surgirá o “novo” em contraposição ao “velho”.
O possível avanço da hegemonia chinesa no mundo não é produto de sua rea-
ção à atual crise financeira. Na verdade, ficamos inclinados a observar que a China
foi a maior vitoriosa dentro do processo histórico iniciado com a derrota estratégica
do socialismo com o fim da União Soviética. Para o analista mais comprometido
com a verdade, a débâcle do neoliberalismo – apesar de toda a carga de propaganda
irresponsável – seria uma questão de tempo, pois a história já demonstrava o livre
mercado como uma falácia idealista e que a reprodução do próprio capitalismo de-
manda efetiva participação estatal. A década de 1990, com um país que se aprovei-
tou sagazmente do reordenamento produtivo internacional, pode ter sido o início
do fim do capitalismo selvagem levado às últimas consequências e que deságua na
decadência relativa dos Estados Unidos como afiançadores da ordem global.
O símbolo dessa decadência é o fato de cada vez menos mercadorias (indepen-
dente da gradação tecnológica) serem fabricadas no centro do sistema capitalista
em contraposição a uma China, com grandes investimentos na periferia (capital
produtivo). Os fluxos de capitais internacionais produtivos estão cada vez mais cen-
trados nas relações Sul-Sul do que nas Norte-Sul. Sinal interessante dos tempos!
Quem imaginaria isso em 1991? O resultado é o fortalecimento da própria periferia
do sistema, originando uma nova ordem mundial, sendo que a institucionalização

410
Conclusões / Reflexões

do G-20 e a contenda por uma participação maior dos países da periferia nas deci-
sões do FMI são apenas expressões da mudança.
Se no campo da “moralidade ocidental”, daqueles que insistem em se referir
à China nos mesmos moldes de Aristóteles3 e Voltaire (como símbolo de um “des-
potismo oriental”), não existe espaço de poder para a China, na economia ocorre o
contrário. Dentro de uma estratégia de inserção externa soberana, ela traçou uma
estratégia exportadora que a transformou numa nação poderosa financeiramente,
com capacidade de intervenção financeira em todos os cantos do mundo e pronta
a superar as instituições surgidas no âmbito de Bretton Woods. A imensidão de
seu mercado interno é fator de fortalecimento das relações Sul-Sul e da solução de
diferentes “questão nacionais” em regiões como América Latina e África.
Seria uma “nova Bandung”, como sugere Giovanni Arrighi em seu Adam Smith
em Pequim, sob os escombros dos déficits gêmeos do imperialismo, do fracasso da
tentativa de executar uma política no sentido de viabilizar “um novo século ame-
ricano” e dos crescentes intercâmbios comerciais e produtivos no âmbito Sul-Sul
tendo como centro de gravidade uma China socialista assentada sobre uma gigan-
tesca economia continental? Sim, não temos dúvidas. Porém, essa nova Conferên-
cia de Bandung surge incluindo o elo débil do imperialismo, a América Latina, já com
experiências que encetam a transição ao socialismo, além da vitoriosa resistência
cubana (Venezuela, Equador, Nicarágua e Bolívia), e outras experiências de con-
flito entre estagnacionismo x desenvolvimentismo e entre projeto nacional x imperialismo
(Brasil e Argentina). Essa nova realidade surge não mais apenas em elos ideológi-
cos e de irmandade entre povos e nações, mas sob os auspícios de poderosos elos
financeiros, de IEDs entre seus países e sobre bases financeiras nucleadas no maior
de seus países, a China.
É sobre essas bases que temos em mente a inserção chinesa no mundo.

aaaaaaaaaaaa

O Consenso de Washington foi o marco da apostasia em nosso tempo, mar-


cada pela certeza do “fim da história” com a derrota do socialismo e da proscrição
3
A “democracia grega” tratou de dar um destino trágico a Sócrates, assim como a “democracia
ocidental” assassinou Martin Luther King e apoiou o regime do apartheid sul-africano.

411
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

do marxismo. Deng Xiaoping, o homem que David Harvey quis definir como um
busto a serviço do neoliberalismo, em 1992, na última atividade pública, num périplo
pelo sul da China, foi indagado sobre o futuro do marxismo e do socialismo. Sua
resposta foi clara e objetiva4:

Eu estou convencido de que mais e mais pessoas irão abraçar o marxismo. Por
quê? Porque o marxismo é uma ciência. Através do materialismo histórico, foi
possível descobrir as leis que governam a sociedade humana. A sociedade feudal
substituiu a sociedade escravista; o capitalismo suplantou o feudalismo; e, de-
pois de um longo tempo, o socialismo necessariamente sucederá o capitalismo.
Trata-se de uma irreversível tendência histórica, mas a roda da história é feita
também de reviravoltas. Durante vários séculos em que o capitalismo demorou
para suplantar o feudalismo, quantas monarquias foram restauradas? (...) al-
guns países sofreram reveses e o socialismo, aparentemente, desapareceu. Mas
o povo deverá aprender as lições e colocar o socialismo no rumo justo, correto.
(...) Nada de pânico, não acreditem que o marxismo desapareceu. Nada disso!

A paz e o desenvolvimento são os dois principais temas de nossa época, porém


nenhum dos dois está resolvido. A China socialista deverá mostrar ao mundo,
através de suas ações, que se opõe ao hegemonismo e à política de força e que
nunca deverá aspirar à hegemonia. (...).

Nós deveremos tomar a estrada da construção do socialismo com características


chinesas. O capitalismo desenvolveu-se ao longo de séculos. Quanto tempo há de
demorar para construirmos o socialismo?

Partindo dos princípios adotados acima – não por um intelectual afeito à


moda, ao descompromisso com a humanidade e a aparição fácil, mas por um ho-
mem que viveu o século XX como ninguém, herói da Longa Marcha, general do
Exército de Libertação Popular (ELP) e arquiteto de uma China que muda os ali-
cerces do mundo pós-década de 1990 –, o que podemos dizer sobre o próprio futuro
do socialismo?
Tendemos a considerar a transição socialista em âmbito interna-

4
XIAOPING, Deng. “Excerpts from talkings given in Wuchang, Shenzen, Zhuhau and Shan-
ghai”. In XIAOPING, Deng. Selected works. Foreign Languages Press, Pequim. 1994. Vol. 3, p.
370.

412
Conclusões / Reflexões

cional, partindo do pressuposto da elevação a um novo patamar das


relações Sul-Sul, centrada num crescente poder gravitacional chinês.
Eis um ponto que se encontra com a própria consideração do poder gravitacional
do centro do sistema capitalista europeu (em uma hipotética transição ao socia-
lismo) em relação ao resto do mundo exposto por Marx. Encontra-se também na
historicidade relativa ao próprio papel do comércio como arma política da Inglaterra
pós-Revolução Industrial, também apontada por Marx.
Se as relações de produção com o centro do sistema acabam moldando as próprias
características internas do modo de produção em cada formação social periférica, para
nós é claro que a transição ao socialismo em âmbito mundial está diretamente
relacionada ao que Ignacio Rangel chamou de planificação do comércio ex-
terior. Tal planificação é compreendida como a superação de formas anárquicas
de produção nas próprias relações comerciais entre o centro e a periferia do siste-
ma. Daí as crises financeiras e de superprodução, que demonstram os limites das
formas anárquicas de relações comerciais. Eis uma grande problemática a ser ex-
plorada nas pesquisas relativas à questão da transição e da “questão nacional” em
diferentes formações sociais periféricas.
Afora países como China, Vietnã, Cuba, Coreia do Norte e Laos (que se autoin-
titulam socialistas), uma série de nações de pequeno, médio e grande porte está
muito próxima daquilo que nosso orientador, Armen Mamigonian, tem chamado
de “sociais-democracias progressistas”. Trata-se de experiências muito presentes
de keynesianismo econômico, políticas distributivistas e comércio exterior planeja-
do de países como Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina, Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau, Cabo Verde, África do Sul e até mesmo Brasil, com sua política ex-
terna coerente e nacionalismo interno em ascensão. São abordagens que nasceram
em meio à crise do Consenso de Washington, e em que a China se apresenta como
grande referência, daí Joshua Cooper Ramo colocar o paradigma do Consenso de
Pequim. São fulcros de transição em andamento.
Falamos em Consenso de Pequim, uma “nova Bandung”, intensificação das
relações, intercâmbios comerciais e fluxos de capital Sul-Sul. Trata-se de expressões
objetivas que nos remetem, necessariamente, à retomada da temática e da luta em
torno de novas formas de abordagem socializante. Em outras palavras, o socialismo
voltou à ordem do dia no mundo. A polêmica que deve ser enfrentada por aqueles

413
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

interessados em enfrentar esse tema reside no nível em que essa discussão está se
travando à luz tanto da experiência chinesa quanto das bolivarianas na América
Latina, experiências essas que se demarcam com a esquerda dita tradicional, a par-
tir da elaboração e execução de algo nomeado como “socialismo do século XXI”.
Infelizmente, não temos tempo, neste livro, de travar uma discussão mais pro-
funda sobre o que realmente significa este “socialismo do século XXI”, elaborado
pelo economista alemão Heinz Dieterich Steffan e amplificado pelo presidente da
Venezuela, Hugo Chávez. Porém, de antemão, não acreditamos em experimentos
teóricos e práticos com viés antimercado, em que a propriedade privada deva ser
passiva de regulação estatal. Afinal, o desenvolvimento das forças produtivas é con-
dição sine qua non para se alcançar relações sociais de um novo tipo. Não existe mais,
neste mundo, espaço para fantasias, nem tampouco aventuras em nome de um
socialismo que não está baseado nas leis econômicas e sociais do processo de desen-
volvimento. O tempo de experimentação tende a minguar-se, na mesma medida
em que recrudesce a ofensiva imperialista como resposta à sua própria decadência.

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Apêndice

A China, o Conceito e o Plano 1

Elias Jabbour

E ncerrou-se, há algumas semanas, a reunião anual da Assembleia Popular


Nacional, o órgão máximo legislador da República Popular da China. Po-
rém, essa sessão teve características especiais. Foi nela que se discutiram e apro-
varam as metas a serem alcançadas pelo país para o próximo quinquênio, que se
inicia este ano e tem fim previsto para 2015.
O informe apresentado pelo primeiro-ministro Wen Jiabao pôs a nu as difi-
culdades de uma conjuntura de retração externa e uma alta nos índices de preços
internos que por si são alarmantes para um governo que luta a todo custo pela
manutenção da ordem social. Por outro lado, o caráter “externo” da inflação mais
a imposição de uma “guerra cambial” pelos EUA demonstram que o mundo coloca
a governança chinesa diante de duros desafios. Essa indicação é perceptível na
ambição exposta nas metas a serem alcançadas, entre elas: índices médios de cres-
cimento que podem variar de 7% a 8% ao ano. Portanto, mais baixa que a média de
quase 10% dos últimos 30 anos, o que, antes de indicar um “pouso suave”, demons-
tra busca de um equilíbrio econômico difícil de ser alcançado por uma economia
de tal dinamismo e com altíssima liquidez.
Além da questão que envolve o crescimento econômico, a busca por índices
de inflação anuais que não passem dos 4,5%, a criação de 50 milhões de empregos
urbanos e construção de 36 milhões de casas para população de baixa renda são
números que indicam a continuidade do processo de transição interna da estrutura
econômica e social do país. Outro exemplo está no implícito recado à base rural do
regime no objetivo de subsidiar a agricultura com a injeção de US$ 300 bilhões nos
próximos cinco anos, significando em aumento de 23% com relação aos anos com-
preendidos entre 2006 e 2010 (1). Mas a realidade deve ser apreendida no processo.
E é isso que tentamos demonstrar.
1
Publicado na revista Princípios, edição 112.

449
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

Continuidade de um processo

A imprensa internacional tem dado conta de um giro de 180° na orientação


política e econômica chinesa a partir da execução deste 12° Plano. Trata-se de uma
meia verdade. A elaboração, nos estertores da subida ao poder da dupla Hu Jintao e
Wen Jiabao em 2002, de ideias-força como o “conceito científico de desenvolvimen-
to” e o de “sociedade socialista harmoniosa” são expressões políticas deste processo
nada novo.
O que existe é uma transição de prioridades iniciada já no final da década
de 1990, nos albores da crise financeira asiática de 1997, com destaque ao lança-
mento do Programa de Desenvolvimento do Oeste. Plano este que desde então já
consumiu US$ 3 trilhões. Na verdade, as opções chinesas de inserção na economia
internacional, aliadas à liberalização do comércio de excedentes agrícolas em 1978,
trouxeram duas grandes consequências. A primeira, traduzida na grande diferença
entre interior e litoral, e a segunda, que nasce no bojo da formação de uma divisão
social do trabalho e consequente diferenciação social, que desembocou em lapi-
dares diferenças de renda sociais e entre indústria e agricultura. O Programa de
Desenvolvimento do Oeste é o atual carro-chefe do regime e tem-se constituído
na maior transferência territorial de renda da história contemporânea, na forma
de transferências de recursos financeiros do litoral ao interior, que, por sua vez, re-
mete às manufatureiras litorâneas matérias-primas essenciais, como o gás natural
de Xinjiang e da Mongólia Interior. Anexa a esta empreitada está a formação – a
partir de 1999 – de 149 conglomerados empresariais estatais, formando a espinha
dorsal da base estatal que serve tanto como ponta-de-lança da estratégia interna-
cional chinesa quanto como base objetiva interna, núcleo sobre o qual se assenta
o enfrentamento de crises externas e por onde gravitam as demais formas de pro-
priedade do país.
Na mesma esteira de transformações pós-1999 estão as mudanças ocorridas
no âmbito rural. Com a entrada da China na OMC em 2001 e a consequente que-
da da taxa de importação de grãos, o que se esperava era uma degringolada na
produção agrícola e (dado o peso político dos camponeses no país) uma situação
de deriva do próprio regime. O resultado foi inverso, inclusive com o aumento do
nível de especialização da agricultura e das exportações de hortaliças. Em 2004

450
Apêndice

foram abolidas todas as taxas que incidiam sobre a renda camponesa. Desde então
se somam sete recordes seguidos – apesar da queda anual da área agricultável – na
produção de grãos: em 2010, foram 545,4 milhões de toneladas (2,9% superior em
relação a 2009). Ainda no quesito agricultura, sublinho que o grande desafio chinês
de contenção e equação dos gritantes níveis de desigualdade entre campo e cida-
de se encontra justamente na velocidade com que se dá a atual transição de uma
agricultura de tipo pequena produção mercantil para outra marcada pela grande
propriedade cooperativada, altamente especializada e com elevada composição or-
gânica do capital. É neste processo de largo alcance, que ocorre essencialmente no
interior chinês, que se devem concentrar os estudiosos das desigualdades sociais e
regionais na China e seus desdobramentos futuros.

Aprofundamento de rumo

Uma política de valorização dos salários foi instituída com reajustes médios
anuais com variação determinada pelo crescimento do PIB. Interessante notar que,
no quesito salário, os aumentos médios, que incluem todas as categorias, em 2010
foram da ordem de 20%. O encaminhamento de uma dita “questão social” no país
faz parte das prioridades do orçamento nacional para 2011. Com o crescimento da
arrecadação da ordem de 8% com relação a 2009, o governo central deve manobrar
US$ 1,36 trilhão sob forma de investimentos. Desse montante, 75% devem ser dire-
cionados a projetos de melhoria das condições de vida do povo e concentrados nas
áreas de educação, saúde, previdência social, emprego e cultura, além de grandes
projetos de infraestruturas rurais (2).
Algumas anotações sobre a amplificação do sistema nacional de saúde. A re-
forma fiscal promulgada em 1994 ao mesmo tempo em que fortaleceu o governo
central debilitou em demasia as finanças no nível provincial. O resultado mais
visível desse processo foi o colapso do sistema de saúde e a utilização desse serviço
como forma de arrecadação fiscal. A reversão deste quadro inicia-se em 2004 com
a criação do Sistema de Medicina Cooperativa (SMC), financiado por um fundo
entre contribuintes, governo nacional, províncias e cidades. Entre 2004 e 2010, o
número de cidades ou vilas participantes subiu de 233 para 2.999. No mesmo pe-
ríodo, o número de cidadãos com cobertura desse plano saltou de 76 milhões para

451
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

585 milhões (3). Até 2011 a expectativa é que aumente a cobertura total para 90%
das localidades nacionais. Para 2015, a cobertura (via Estado) deverá sair do atual
patamar de US$ 18,29 por pessoa para US$ 61,20.
A transição iniciada no 11° Plano Quinquenal (2006-2010) de um tipo de cres-
cimento quantitativo para outro qualitativo é evidente nas metas de redução do
consumo de combustíveis fósseis e emissão de poluentes expostas no 12º Plano.
Caminhará, em paralelo ao plano quinquenal anunciado, um chamado “plano
quinquenal verde” que estima investimentos na reestruturação produtiva e con-
servação ambiental da ordem de US$ 222,5 bilhões, objetivando a queda de 17% na
intensidade do uso de carvão por unidade do PIB (4). Não é somente em políticas
setorializadas e sob pressões externas que se mede a opção pela proteção ambien-
tal. E sim no próprio caminhar do processo histórico expresso em uma política
industrial em plena concordância com metas estratégicas sob o patrocínio de polí-
ticas monetárias expansionistas. Daí o déficit orçamentário para 2011 estar calcu-
lado em cerca de 2% do PIB (US$ 137 bilhões). Os chineses, definitivamente, não
têm medo de si mesmos.
São sete os setores industriais prioritários a investimentos para os próximos
cinco anos, a saber: geração de energia via fontes não fósseis, indústrias relacio-
nadas a setores de alta tecnologia, novas matérias-primas, biotecnologia, indústria
farmacêutica, tecnologia da informação e carros elétricos. Uma política industrial
desse porte depende de mais esforços em matéria de ciência e tecnologia e maior
interação entre os 149 conglomerados estatais e o sistema financeiro. Objetiva-se
subir do atual patamar de 1,8% em investimentos no setor de C&T para uma média
de 2,2% com relação ao PIB. Ao lado disso, a concentração dos investimentos no
ensino secundário é muito clara com a intenção de aumentar os investimentos mé-
dios em 87% com relação ao verificado nos últimos cinco anos (5). Uma verdadeira
revolução educacional em curso e à vista.
Nesse sentido, outra relação de continuidade com o 11° Plano deve ser desta-
cada, pois desde 2010 a China já é a maior produtora mundial de células solares
e turbinas eólicas, inclusive mudando uma situação de importadora desse tipo
de tecnologia para exportadora para o mercado norte-americano. Essa ênfase
– também – na reestruturação produtiva demonstra que a questão ambiental,
antes de ser uma questão a ser tratada no campo da moral, transformou-se, para

452
Apêndice

os chineses, em mais uma larga fronteira de acumulação e de alcance estraté-


gico. Em outras palavras, isso significa que a questão ambiental e sua solução
terão cabo na medida em que esta empreitada suscitar lucros no horizonte. Uma
grande fronteira entre a II Revolução e a III Revolução Industrial e por onde se
travará mais um capítulo na novela da concorrência e cooperação entre China e
Estados Unidos.

A China em outro patamar

Os dados e informações apontam que na China, além da questão ambiental


(inserindo nessa questão a reestruturação produtiva), a urbanização e a elevação
da produtividade do trabalho na agricultura estão no topo de sua agenda. Agen-
da esta concentrada na desarticulação das imensas contradições sociais e terri-
toriais surgidas no bojo de um processo ininterrupto de crescimento que já dura
três décadas. Mas existem diferenças essenciais a serem destacadas para uma
exata e científica noção do processo. Uma delas, no que concerne à urbanização,
é o fato de – ao contrário de países como o Brasil, cujo processo de urbanização
levou ao pé da letra as (não) lições da anarquia da produção – na China as re-
formas rurais iniciadas por Deng Xiaoping de estímulo à produção familiar de
gêneros alimentícios, da própria concessão da posse da terra e da flexibilização
planificada do sistema hukou de residência e migração interna terem criado um
verdadeiro colchão para a não favelização das metrópoles do país. Isso explica
em grande medida a não presença em metrópoles como Xangai e Pequim de
um numeroso exército industrial de reserva: esta reserva de mão de obra está
concentrada no âmbito do vilarejo, indo e vindo para as grandes cidades depen-
dendo da conjuntura.
Como dissemos em oportunidades anteriores, existe a diferença essencial a ser
destacada no fato de a transformação da China em uma potência financeira e na
margem deste lastro financeiro executar o que chamamos de novas e superiores
formas de planejamento. Formas capazes, a partir do dispêndio financeiro esta-
tal em grandes empreendimentos, de orientar o próprio mercado em concordância
com os objetivos estratégicos do regime. Este planejamento de nível superior se
diferencia das praticadas pela própria China e URSS – também e principalmente

453
CHINA HOJE
Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado

– pela existência de uma solidez financeira jamais sonhada e mesmo concebida


pelos chamados “teóricos da programação”. Daí a capacidade do país de “girar o
compasso” de seu próprio modelo, combinando estratégias mercantilistas externas
agressivas com a gestão de centenas de bilhões de dólares em projetos como o já
citado go west e os anexos à reestruturação produtiva em prol da menor utilização
de combustíveis fósseis.
Os desdobramentos das reformas econômicas chinesas desembocaram na ne-
cessidade da fusão da “grande empresa” com o “grande banco”. A fusão entre esses
dois setores da economia é a própria essência moderna deste nada paradoxal “so-
cialismo de mercado” e “com características chinesas”. É fulcral ao elaborarmos os
caminhos de um novo salto civilizacional como moldura da transição socialista no
Brasil a apreensão deste processo de fusão da indústria com o sistema financeiro. A
China demonstra que se esta grande empresa baseada num sólido sistema finan-
ceiro foi a base da arrancada norte-americana, o mesmo processo se dá no socia-
lismo, cuja superioridade diante do capitalismo está na própria capacidade de gerir
este processo em meio a um mundo ainda amplamente hegemonizado social, polí-
tica, ideológica e militarmente pelo imperialismo. Além deste fator, existe o próprio
desafio de gerir este processo de dimensões gigantescas numa formação social com-
plexa e eivada de desequilíbrios como a verificada na China. Estudar o socialismo e
seus desafios neste século passa – obrigatória e necessariamente – pelo estudo das
complexidades em volta do processo em andamento no gigante asiático.
Se num primeiro estágio o acúmulo de reservas cambiais foi amparo à execu-
ção de uma política de juros atraente ao crédito, num outro momento a construção
de um complexo e sofisticado sistema financeiro controlado pelo Estado, e em con-
sonância com as normas da moderna economia monetária, tornou-se essencial. Já
se foi o tempo da existência de um único banco de depósitos e retiradas. O cami-
nho passou pela criação de quatro bancos estatais de investimentos. Atualmente já
chega a 20 o número destes bancos, incluindo os de estímulo ao desenvolvimento
urbano de cidades como Pequim, Xangai e Shenzen. Esse desdobramento financei-
ro das reformas se espraia também nas zonas rurais. Está em execução o processo
de fusão das 35 mil cooperativas de crédito rural e sua transformação num amplo
sistema financeiro agrícola formado por sete bancos de investimento (6). Trata-
se da necessária base financeira ao já colocado processo de transição da pequena

454
Apêndice

produção mercantil para outra marcada pela “grande propriedade cooperativada,


altamente especializada e com elevada composição orgânica do capital”.
Enfim, tanto a análise dos fatos quanto a do processo per si demonstram que
se colocar diante do espelho é prática cíclica de boa governança na China. Lições
para o Brasil? Que a história demonstre tanto as acertadas opções chinesas quanto
as nossas, equivocadas. Lá e cá ainda ecoam, para o bem e para o mal, as opções
feitas na década de 1990.

Notas:

(1) Setting out strategies for the future economy. In: Beijing Review. N. 11, 17
de março de 2011. Acessível em: http://www.bjreview.com.cn/Cover_Sto-
ries_Series_2011/2011-03/14/content_...

(2) A budget for the people. In: Beijing Review. N. 12, 24 de março de 2011.
Acessível em: http://www.bjreview.com.cn/business/txt/2011-03/20/
content_345843.htm

(3) China Statistical Yearbook para todos os anos.

(4) China Economic Watch: New 5-year plan and budget set to support China’s
growth. In: BBVA Research. Hong-Kong, 25 de março de 2001. Acessível
em: http://www.bbvaresearch.com/KETD/ketd/bin/ing/publi/asiayotros/
novedades...

(5) Idem.

(6) Sobre isto ler: “O crédito e as múltiplas formas de financiamento como o


motor primário do desenvolvimento chinês”. In: JABBOUR, Elias Marco
Khalil: Projeto nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado na China de
hoje. Tese de doutorado defendida ao Programa de Pós-Graduação em Ge-
ografia Humana da FFLCH-USP. Dezembro de 2010, pp. 256-278.

455
Este livro foi composto em Latin
725 BT, 10/14, e impresso em papel
pollem 80g, março de 2012.

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