Mito e Verdade Da Revolução Brasileira - Guerreiro Ramos

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~GUERREIRO RAMOS

j~~o
MITb·--;í ;ERDADE
DA REVOLUÇÃO
BRASILEIRA

ZAHAR EDITôRES
RIO DE JANEIRO
©
A. GtJEUElllO RAMOS

Capa de

"'""

Exemplar N• 279 2

1963

Direitos adquiridN para uia ediçlo por


ZAHAR EDITÔRES
Rua México, 51 - Rio de Janeiro

lmJltt#O no Briull
Ao saudoso Presidente Vargas, mestre do
realismo polilico, fundador do trabalhismo
brasileiro.
O AUTOR
"A história nos diz que fatos de muita ilnpor1tn-
cia que Um mudado a face dos Escados, que lêm
do:idido da vida d05 povos, se tbn operado e con5u-
mado, nlo porque todos quises5Seln, nlo porque a
maioria quiseue, mas por que, servindo-me da frase
de TAci!o, nullo adwnante, por que ninguém 5e op6s".

BÊRP.NCF.11. (a DuDARD): O l10111111n e superior ao


ri1iacerontel
lmo.s1:0,.Rinareron1t

"_,.sou uma unidad11 1ranqiiil11 e nunca me 1i11to


mais desa1Jom/1rado e livre do q11e quando sou uni·
dade".
IND!CE

Pre/dcio

CArlTULO 1

Pequeno Trawlo Brasileiro da Revolução

Sociologia e revolução - A conccpção volun1arist1 - A conccpção


historicis1a - A concepçlo sincré1ica - Definição da revolução - O
principio da praxis - O principio de limites - O principio da classe
social - O principio de totalidade - Intcrnacionali~mo e rcvoluçll.o
- Decisão polftica e determinismo econômico - lneditis1no da épaca
contemporinea - A atitude revoluciom\ria - A situaçao revolucio-
ml.ria - Modelos da revolução - A cire11lação de elites - A derrocada
- A revolução assumida - Notas . 17

CAPhl'LO Jl
Revolução Direta e Socialismo

Revolução poUtica e revolu'i_lo Mldal - Tcrrorbmu, di1adurn,


democracia - Pressil.gio de Ll!n1n: socialismo pela barMric - A
hi.Hória rebelde à ieoria - Suc:ialismo e npon1aneidadc - Atualidade
do "renegado" Kautsky - Rado socialisla contra razllo partidária
- E ROA. Luxemburgo tinha razao ... - Xoias . 63

CArln•w Ili
Uma Conuptela d• Filoso6a: o Muxismo-Leninismo

Marx contra os manr.ista5 - Unin oonna 01 leninistas - Manis-


1110-Icninismo, fenõmeno russo - O caso Lukacs - Brecht, vir1uose
tlii atleslo amblgua - O º'Outubro" polonh - lntennczzo .. lacerdista"
- Togliatti faz Kremlinologia - 'ºA Soma e o Resto" - Notas ...•• IH
CAPfTVto IV
O Morto e o ViTo no lntcmadooalismo ProJct6rl.o

Prim6rdios do intcmacionalismo proleui.rio - Man: e a Primeira


Internacional - Como surge a Internacional Soviética - Originalidade
da Internacional Bolchevis1a - A Internacional Bolchevista e a cons·
ciéncia socialista - Lênin e o Comintern - O Comintcrn depois de
Unin - Internacionalismo SO\lié1ico e desestalinizaçto - lndlcios de
nõvo internacionalismo proleulrio - Notas ... ·'·. . 109

CArfroLO V
De(esa do Rerisionismo

Aparecimento do revisionismo - Concepção russa do revisionismo.


Unin - lt.evislio do revisionismo - Correnlcs atuais do revisionismo
- Superação do man:ismo - Notas . . ... 128

C:.o\PITVLO VI
Homem-Organi~ e Homem-Parentético

Organização e patologia da normalidade - A atilude parentélita


- Von1ade orgãnica e vontade reíletida - O pensamcn10 planificado
- A imaginação sociológica - O homem e o robô - A normalidade
patológica - A lei de bronze da organiza~o - Organização, problema
de teoria revolucionária - Os aparelhos e a {.1ica socialista - Unin.
teórico burguC!s - Nota, .......... •................................ 145

CA.riror.o vn
Revolução Brasileira ou Jornada de Ol:irios?
J'lõo1as .............................. ········' ................ 175

Ari:NDICE l
A Filoso6a do Guerreiro 1C111 SenlO de HWDOI'

Defonnaçlo direilisla da "redução" - Guerra e paz - Conlra-


diç.lo e magia - A consciência de1ermi11a a co11scii;ncia - Naciona·
lismo e alienação - Nacionalismo antioper.irio - O riso é o limite -
A consciência critica e a crise de uma consciência - Nacionalidade
e totalidade - No1as ..... . ............. 19!1

A1•.bm1a; II
Trabalhiqao e Mlll1ilmo-Leninllmo . . .217
Prefácio
"Um fim que necasila de mclOI la)llllta.
nlo •um fim jwco."

"O Panido Camunlata pode fazer que a


~1,:C ::;~~ es:!:1 :'~ra ~~ma;;:J.~
MAUUC& MUUAU-POJtTY

DuDAu: O 9lfe hd de m•is 11•l1m1J qu. um


ririo,n011lel
BiUNGBa: .Sim, m&1 um homflm qu. vira
rlnoarronle, lua ' indl11:11llw:lmm"' ..:1or-
mar.
loNueo,.Rinouronu

O MOVIMENTO EMANc1rAD011. do Brasil e11ã ameaçado de gra,·e desnatu-


rac;lo por duas debilidades que o acometem; uma de ordem cultural;
outra de natureza organiiacional. Vivc1n larga.mente os que pretendem
liderá-lo de teorias de empr4!stimo e de fic~es literárias e conceptuais,
que nlo traduiem, com o mfnimo de exatidão requerida, as tendência
concretas do proCC5SO br11sileiro, cm sua presente etapa. Al6n disso, nêle
surgiram aparelhos que forcejam por empolgá-lo e sub5tituir as suas exi-
gências por critérios grupislas. A tentativa de contribuir para que a
consciência nacional se aperceba dessa situac;lo é extremamente arriscada.
A crf1ica de revoluc;to produz grandes dividcndol no Brasil de hoje,
para aquêles que a fazem do ponlo de vi11a da direita. Exi51em mesmo
agências de financiamento deSlinadas a encorajá·la. Carreiras pollticu,
pequenas e médias fortunas 1êm sido (eilas à eusla du prodigalidadet
dessas agências. Todavia, a crldca da revoluc;ão. do ponto de vis1a da
e5qUcrda, além de tôda sorle de ünus, acarrela inauditos danos morais.
A história con1emporll.nea da revolução está ;11 para provar que caa
espécie de crflica é ingrata. Os que a fizeram foram '"renegados" ou li·
quidados moral, quando nlo Hsica1nente, pelos filis1eus travestldol ele
guardiles da pureza revo.luciomi.ria. Rosa Luxemburgo, Sultan Gali&'I',
Trotsky, Nagy. Lukacs foram vl1imas daquele capricho da revolução, qq
espantou a Alber1 Camus, e que consis1c em convener, cm nome •
filosofia, a5SllS5inOJ e aventureiros cm jufzcs da história. ..:,
Neste livro. faço a crflica rcvolucioml.ria da revoluçlo brasileira. CIÍllÍli
pleno conhecimento dê~s episódios c clara consciência dos pcrip • 11!1
10 MITO E VERDADE DA REVOLtJÇÃ.O BRASILEIRA

me exponho. Mu a lógica de minha presente situação vital é inexo-


rável e, assim, mais poderosa do que 11 minhas propens6es à comodidade.
Nas circunslAncias atuais de minha vida, escrever l!ste livro é um ponto
de honra. Cometi a enorme imprudlncla de dedicar-me ao trab:dho de
equacionamento sociológico dos problem11 brasileiros, na perspectiva do
desenvolvimento independente. Há c:érca de dez anos essa tarefa enron-
trava muito poucos entusiasta•. Lembro-me que num Con~ de Socio-
logia, oconido no Rio, em 195!1, fui dettitu!do da presidência de uma
comlsslo, porque defendia tese!J que, hoje, se tomaram dominantes, não
só entre os que se dedicam à ciência social, como no m011imento naciona-
lista. Regimei hsc fato em Cartilha Brasileira dr1 Apr11ndi1. de Socidlog11
(pref;icio a uma Sociologia nacional), editada em 195!1, e depois repu-
blica.da como parte de fntrodurfo Critica d Sociologia Brasileira (1957).

!,:~:. i~je.8~~"!o!~ d~~a~, :pi:::i:!º v~:t~~~ ;°..!::i';. ~~r:


1955. no antigo mESP, como diretor de seus semin,rios, e, depois, como
fundador e chefe do Departamen10 de Sociologia do TSEB, realizei uma
produção cientifica, inspirada num projeto de sistematiiaçlo do nõvo
pen51men10 brasileiro e de que do produto A Reduçlo Sodol6gicn (1958)
e O Problema Nacional do Brasil (1960). Essas atividades me granjea·
ram posição destacada no panorama cultural e polltico do Pais. O ano
de 1958 Foi. porém. data critica. Os inle!fJ3.ntcs do grupo que Fundou o
IBF.sr e o ISP.B se desentenderam. Naquela dara, hse grupo tinha a lidcran~
intelectual do movlmen10 nacionalista. Consegulramos empolgar a juven·
tude univer5it:\ria e a intelcc1ualidade mais válida do Pais, tomando
marginais os drculos "pecebis1as". tramos entlo por êstes assediados.
No que me toca, nunca os hostilizei e até os tratava com a compreensão
que merecem todos os que prete11dem par1idpar da lula pela ema11ci·
paçlo nacional. Na Cli1edra de Sociologia do llESP e do JSF.a, nunca dehi:ei
de manifestar minha insa1isfação com respeito ao marxismo, cujos reslduos
positivis1as e dogmiticos procurava demonstrar perante O!I que freqiienta·
vam os meus cunD.!. Também nunca ocullei que con~iderava o rca orga-
nização alienada. Em 1957. em conferéncia na Escola Superior de Guerra.
que levou o Almirante Penna Bouo a denunciar-me, em processo, à Consul·
toria-Geral da República como incurso na lei de Segurança, dizia: " •.. no
Brasil, é o nacionalismo que esl;i suscilando a atual crise do Partido Co·
munista e o 1!5Vaziando de perigosidade. t, finalmente, o nacionalismo que,
formulando os problemas nacionais, em forma de dilemu concrelos e
leg:ltimos. csl:I. tornando o comunismo uma questão secund:\ria e de super·
ílcie ... " (Vide O Problema Nacional do Brtuil, 1960, pdg. 69). Em
1958, por qucHão de princlpios, retirei-me do ISEB. Não desejo entrar
aqui em minddas de cunho pslcológioo s6bre os inciden1es que deter-
minaram a minha renúncia ao cargo de chefe do Departamento de Socio-
logia daquele órgão. Aperias quero assinalar que, a parlir de dezembro
de 1958, o 1sr:a se transformou 11uma agê11cia elcitoreira, e tlltimamente,
numa escola de marxismo-leninismo, com honrosa exclusno 1alvez de
alguma dissidência, devidamente neutralizada.
Em 1959, o ISED era um dos aparelhos da campanha em prol da
candidatura Lou à Presidl!nda da República. Lutei quan10 pude pata
eviti-la. Em janeiro de 1959, em entrevista a O MetTOpolilano (Diário
de NoliciaJ, !I de janeiro de 1960) dizia: "é uma insensatez transformar
o nacionafümo num comilê l.ott"; e mais: "o dilema )Anio-Lou não
PREFÁCIO li

reOele u tens6es reais do Pais. t um mcdlocre dilema". E coerente


com l!sses ponlos de vista, parlicipci de dilnan::h1s que visava1n a lazer
candidalo o saudo!IO brasileiro Osvaldo Aranha. Por fim venceu o
"disposilivo nacionalbta" e, preferindo o que me parecia enllo o mal
menor, tive que, em coluna que mantinha no jornal rl1tinia Hora, apoiar
a candidatura suicida. Desde então, agravaram-se minhas incompatibili·
dades com certos isebianos e nacionalistas. Pouco depois de janeiro de
1960, visitei a União Soviélica e a China continenial. De lá l'ohando,
apó.s perman~nda de drca ele uts meses, escrevi uma série de ar1igos
na imprensa carioca, em que expunha minha visão do mundo socialista,
nconhecendo o que apresentava de avanço histórico, e ao mesmo tempo
assinalando os seus aspectos de atraso e obscurantismo. Cal cm desgraça
nos meios pecebisw mab sectários. E para culminar, impedi, com a
valiosa ajuda de amigos, que um grupo de pccebbtas e isebianos cm
aliança fizcne, em 1960. diretor do ISEB, um professor dêsse órgão que
era funcionário da Ligh1 e revendedor da Shell, sob a alegação de que,
tendo boas relações com a equipe do então n6vo Presidente da Repú-
blica, Sr. Jinio Quadros. poderia assegurar a sobreviv&acia da inslicuiçlo.
Essas ocorrências, além de outras que me dispenso agora de mcn·
cionar, tornaram-me execrável, um "renegado" aos olhos de alguru ma11i-
puladores de aparelhos nacionalistas. Contra mim organixou-se campanba
sistemá.tica. Nas salas de aula do 1w.u, meu nome era alvo constante de
dia1ribcs. Em certo periódico que circula entre nacionali11as, fui cha·
mado de "flor que não se cheira" e de "advogado de Moreira Sallcs".
Jamais tive qualquer contalo com o Sr. Moreira Sallcs, que nem conheço.
Em certo periódico estudantil. um isebiano me tra1ou como "frondizista".
Autor pecebista, em livro sóbre sindicalismo, apo111a-me como figura da
reação. ao lado do Almirante Penna Bouo. Fui candidato, pelo Pal'tido
Trabalhista Brasileiro, à Cãmara Federal na campanha de 1962. hcbia-
no1 e pecebistas organizaram dispositivo de contrapropaganda, que, em
tõda a Guanabara, me combalia por todos os meios e modos. Um pro·
fcssor do ISEll, lambém marxis1a-lcninista, escreveu ar1igo cm que me
apontava como comerual do Sr. Augusto Frederico Scl1midt. Jamais o
fui. Acusa,•a-me de ter impedido que candidatos do PGll f(lo;sem incluldos
na chapa do 1"1'11. Era mentira. Vale o ensejo para expor a verdade. Na
ocasill.o da campanha, um deputado petebiHa se declarava marxisla-leni-
nilta no.s comidos. Na Executiva do l'artido alguém nouxe o assunlo
à diliCussio, e lembrou a conveni~ncia de que se fizesse uma declaração
de que o 1"1'11 nao era marxista-lcninis1a. Nio era membro da Executiva,
mas aprovei a proposta, e fui incumbido de redigir o documento (\·ide
anexo). Nessa ocasião, disse, porém, que o repúdio ao marxismo·leni·
nlllQo nil.o deveria implicar a negação de lugar na ch~pa do l"1B a candi-
datDI do rcn, pois naquele momcn10 agiam como aliados, na Guanabara.
O meu repUdio ao marxismo-leninismo foi especialmente utilizado para
p11ar.me nos meios da classe média, onde eu era arrolado juntamente
eom laccrdis111 e os que fadam e fazem a indús1ria do anticomuni11no.
'Mali ainda, processos de truculenta sabotagem fo1·am utilizados. Anun·
ti.na-te palestra minha cm certa escola, faculdade, ou associação. Frcqüen·
mente, ocorria que, na da1a marcada, alguém dizendo-se parente meu,

t telefone, avisava à instituição que eu adoecera repenlinamenle. Quando


chegava. à hora aprazada, era para constatar a sabotagem, nll.o havia
li pl'.'lblico. F.m certa faculdade, aconteceu que na hora de minha
12 MITO E \'J::RDADE DA REVOLUÇÃO BRASIU:IRÂ

palettra, nlo baYia luz, nem se encontravam as cbavQ do salto. Certa


vez. uma palestra minha foi anunciada em prestigiou. assocl~ão subur-
bana, inclusive com profuu propaganda nas ruas, por meios de cartaies
convocando o pUblico. Dois dias antes, alunos de u1n colégio local rece-
beram infonnac;ão de que eu era "inimigo dos estudanta". Os cartazes
foram destrufdos numa noite e à palclllra compareceram apenas as pes-
soas que compunham a diretoria da associação. Por que "inimigo dos
estudantes"~ Houve, nes1a cidade, como se sabe, uma peve universitária
pela participação de um ti!rto de alunos nas congregações das faculdades.
Numa escola onde ensino, a proposta foi apresentada. Desde o inicio
dos debates senti a maciça repulsa da Congregação pela proposta. Surgi-
ram substitutivos. Defendi quanto pude os mais liberais a favor dos
estudanles, e fui vencido. Mas volei com a Congregação rontra a pre-
para verifkar a imporcãncia da organização na boçalir.ação das ronsci.!n-
partidpava da intenção última da reivindicação de 1/3, que era a re·
forma da universidade, o seu ajustamento à realidade brasileira. Foi
isto que me valeu ser apontado, pelo dispositivo pecebo·isebiano, romo
"inimigo dos estudan1es"'.
Durante a minha campanha eleiloral, aprofundei meu ronhccimento
do problema polltico do País. A campanha me: deu oparlunidade para
conhecer a fundo o nacionalismo e o comunismo de imposlura, e ainda
para verificar a importância da organização na boçaliiação das ronscien-
clas. A f6rça da pressão par1iddria organizada alcançou a1C pessoas amigas,
que, melhor do que ninguém, poderiam opor·sc à mistificação organi·
zada conlra minha pessoa. Enarreceu-me oonst<11ar que também alunos
meus, felizmente poucos, sucumbiram à contrapropaganda, fies que nas
minhas aulas linllam dela o mais vivo desmentido. EnliO compreendi,
em seus mati;res mais sutis, o sentido profundo da peça Rirweeronle, de
loNisco. Por menos de novecentos votos fui derrotado. Sensibilizei alguns
milhares. de pessoas, às quais devo a suplência que ocupo na banca.da
pe1ebi.Ha da Guanabara à Cãmara Federal. !sses votos me dão a espe-
rança de que os rinocerontes nio slo invenclvcis.
i!:sle livro é um desafio aos rinocerontes. A que vêm aqui os rino-
cerontes? Expliquemo-lo.
Não parlicipa do irracionalismo e do niilismo que inspiram a obra
de lonesco. Reconh~-lhe, porém, grande atualidade, pois decompondo
anallticamente as condutas, propicia compreender o que, em ntxsa qioca,
é defonnidade moral disfan;ada em virlude. A p~a Rinocrronie pode
ser considerada, por vários motivos, sil.tifa conna o conformismo do ser
humano, tiranizado pelos M.bitos sociab. Em caphulo dê11e livro, re·
porto-me ao cnrêdo da peça. lonesco mostra como o absurdo pode 1or-
nar-se con1eúdo ordinário do co1idiano. Quando na cidade onde 1rans-
corre o drama aparece o primeiro rinoceronte, todos se enchem de
espanto ao contemplar a [era. No primeiro ato, o autor marea a estranheza.
da ocorrência, fazendo os penonagens exclamarem repetidas vloies ··Ah!
oh I", Jean, que, no segundo ato, " transformarã no paquiderme, eomo
outros eircunstan1es, 1ambém exclama, no primeiro aio: "Oh ! um rino-
ceronle I" Dirá, depais que a populaçlo da cidade já se transformara
quase lõda num bando de rinocerontes: "Por que nlo ser um rinoce-
ron1e? Gosto de mudar." Jean, no en1an10, já enuneiara previamente
o diagnóslico de seu caso, quando, cm conversa com Bérenger, lhe disse:
'·Todo mundo 1em que se habituar."' O maior dos absurdos pode con-
0
»UP'ÁCIO i~

Vflter·le no mais corriqueiro e un6nime critério da exisli!nci.a, mediinte


o con16gio social. Daisy, quando resistia hcrôicamente, ao lado de seu
noivo, Bérenger, contra a rinoceron1iuçlo, achava o animal, "enorme,
feio'". No fim do drama. quando cu cidadlos, emre os quais o cardeal,
o prefeito, as autoridades, se haviam transformado em rinocerontes e
h1es animais controlavam as citações de rádio e os telefones, Daisy
b~~.;. ~nS::~~n~ci~; ~er"e°.!;u~ v!~r:-un~:. r~&~~~ ~~n=:~:~.!~
que ela enuncia pouro anlcs de terminar o drama:
"Ttdve;c o.s a11ormais 1ejamos ndr.''

"Não existe razão obwlula. Q11en1 tem razio d o mundo ... "

E contemplando os rinocerontes:
"liso i que é gente. Tdm um ar {diz, estão de Gedrdo com
iles mesmos. Níia ti!m aspet:to de loucos, slo oU bem noturail.
Devem ter lido razlíes.''

'"l.les cantom, esld ouvindo1"

'"S4o bo11ilos . . Sil.o deuses.''

Sob o &igno do drama de Iom:sco, escrevi ('Ste livro. Ni!le trato da


metafbica da revoluçao. No Brasil, a revoluçlo corre o risco de tomar·sc
façanha rinocerüntica. Reajamos enquanto nllo e tarde. Reajamos contra
01 aparelhos que pre1endcm empolgar a liderança da revoluçlo brasi·
cita e que, impondo com bruta de1crminac;io os seus siog1111s, comandos e
palavras de ordem, pretendem fazer passar as suas conveni~ncias grupistas
por conveniências gerais do povo brasileiro. l'ela sua audãcia, pois nlo
hesitam cm macular a honorabilidade polflica de legflimos patriotu,
~sses aparelhos slo hoje, entre nós, absurdas e intoleráveis modalidades
urbanas de cangaço e banditismo.
Nenhuma justificativa sêria existe que recomende silenciar s6bre o
que hã de impostura no :lmbito do movimen10 emancipador do Pais.
Nenhuma con1emporizaçlo é pMSlvel com clrculos que, em nome da
revolução brasileira, petulantc:s e irrespons:lveis, organizam rumores, injó·
rias e campanhas contra cidadlos válid03 e insuspeitos, dC\'OtldOI às
causas nacionais. Surgiu neste Pais o negócio da revoluc;lo. Surgiram
aparelhos que decretam. arbitràriamenle, quem é e quem não é revolu·
don;irio, e que têm, a seu serviço, radicais de estimação, cúmplices dóceis
de seus propósi1os mistificadores. SituaçOes parado1Cais se regi.suam em
alguns setores da vida brasileira. Setor do govêmo ex:iste, de transccn·
denlal releváncia econ6mica e financeira, onde a crllica e discwslo dOI
atos e prátiw dill auloridadcs, do ponto de vi&ta da eficiência, é consi·
derada antinacionalista ou entreguista, porque essas au1oridadcs slo pre-
Pº"°' de aparelhos "'revolucionários". Técnicos idõneos, polftica e moral·
mente, têm sido marginaliudos como .agentes do "imperalismo", porque
ou1aram resistir a essa impostura. 2sses aparelhos teriam institucionalizado
I~ '.\l ITO t: H'.Rl>AlJE DA 'RF.VOl.UÇÃ.O BRASILEIRA

o julzo da história, seus atos seriam frutos de infalfvel sabedoria revu-


lucionãria, pois se acreditam iniciados 1101 segredos eleusinos do processo
brasileiro. Assim, hoje, no Brasil Clf.iste a figura do pecado contra o
E~plrito Santo, no domlnio polftico.
O autor dhte livro tem C01ne1ido v;lrios pecad05 contra êssc Espfrito
Santo. O mais l"ecente em que incorreu foi proclamar a nllo-validade
filosófica do marxismo-leninismo. Apl'O\'Citando-se da Incultura de alguns,
ou do mmantis1no rel"Dlucionário dos mais inteligentes e imtrufdos, pas-
sou-se, a parlir de minha avenlo ao marxismo-leninismo, a divulgar, notada·
menu: nos dias de minha campanha eleitoral, que eu me passara para
a Reação (escrevo e11ta palavra com maiúscula, em respeito ao sortilégio
m;lgico que ela suscita cm certo.1 meios sectilrios). Lembro-me de que um
dos meus mais lniimos amip, homem de grande saber, mas de esquerda,
&e deixara envenenar pela propaganda. Ao ouvir-me, em ~111 ca11, dizer

a~:~~:~~~~~~se,m:r;=~-l~:i~~~::aru~~ ~ª~.~~~as~lo ~i::~


se dissesse tal coisa". Não quis perder o amigo e, para desfazer o COll5·
!:::~:ento, pedi que pusesse na vitrola um frm·o de Capiba. Mudei <ll'
Houve tempo em que coruunista5 indianos e seus correligiomlrios no
mundo inteiro lançaram sôbre Ghandi a pecha de lacaio do imperialismo.
Hoje sabe1nos que Ghandi encarnou a verdade nacional de sua pátria.
Nlo lenho pretensões a merecer a grandeza de Ghandi. Não tenho
vocação para mártir. Creio, porém, na ventade brasileira, islo é, creio
que existe perspectiva, caminho independente para o desempenho poli·
tiro do Brasil, tanto em sua vida interna como externa. Creio que ~sse
caminho nlo será marxista-leninista. E, por isso, com a minha coni-
\'ência e o meu apoio nlo se implantará neste Pais uma república
marxista-leninista. Nlo precisamos importar os defeitos eslavos. Gosta-
mos de nossos defeitos, rei.·ersos de nossas qualidades nacionais.
Sei o que me espera após a publicação dêste livro: o rec--;;;d~­
mento da campanha sectdria contra a minha pessoa. Não alimento a
esperan~a de convencer o pequeno contingente d05 que servem a qual·
quer pm;o a aparelhos inid6neos que exploram a boa-fé e o sentimento
patriótico de muitos brasileiros. Dirijo-me ao grande numero daquelei;
que, distante de igrejinhas, podem julgar por si mesmos, do imen~o
público que, àvidamente, procura, sem md-f~ partidária, instruir-se a
respeito dos problemas nacionais. Por menos de 900 votos debtei de
ser eleito deputado federal. Na minha campanha, imprcHionaram-me, po-
rém, mais do que os votos que me faltaram, os votos, mais numerosos, com
que me honraram 05 eleitores desta cidade e que me deram lugar de
suplente. ~o pCS110as que se opuseram à pn:ulo da conlrapropaganda
mal5 torpe que tem sofrido um homem de esquerda no Brasil. Foram
\'Otos que conquistei numa campanha franciscana, pedestre. t a fos~e
público nlo·enquachado, que é a massa quase total dos brasileiros, que
~;SC::~!~os~~u!~:ª:fs';e, A,:e:i·i~~~e J:sç~ro~e 8ja~er:~edeu1~:.csn~
Clmara dos Deputados: "Quem julgará entre nós e vós? Quem será o
juiz entre c:on~ervadorcs e progressi11as? Respondo: a Nação. A Nação
nlo é um partido ;"
O presente livro corresponde à primeira parte do que projetei ser
um Tr11111do Br1uileiro da. RevolupJo. Na R.evisca Tempo Brosileito,
PREFÁCIO 15

n." !I. cheguei a anunci;l.Jo. Toda"Yia a aceleração hist6rica que hoje


marca a nossa vida polllica me induziu a publicar imcdi:uamcnte a
primeira parte dessa obra. Na segunda parle, pretendo analisar. pril·
priamen1e, a si1uaçlo do marxismo no panorama filos6fico de nossa
época. A terceira parte reserva·se à hislória do poder no Brasil, desde
a lndependéncia alé o presente. Relardando, porém, a publicação desta
primeira parte, corro a risco de ser !agrada pelas circunstãncias, como
cerlo his1ariador russo. Duranle anos a fio. trabalhou com esmero na
claboraçla minuciasa de u111a história da RUssia. No dia em que sala
de casa para entregar <1$ originais ao editor, ci;tan nas ruas a revoluçlo
liderada pelos bolchevistas. Teve que 'll<lllar para casa. a fim de aguardar
o desfecho dos acon1ecimentos e reescrever a sua obra. No Bra~il de
hoje, temos que andar depressa porque o praceS10 hi5tõrico desatualiza
ràpidamente o que s6brc éle escrevemos e pensamo1.
Convém ainda observar que bte livro poderia chamar.se Os Rino.
C'f!'rõnles e o. Revolução Brasileiro.. fac é o titulo que mais me agrada,
Mas cedi a ponderações do editor e adotei o lftulo que apr~ua. Cos·
1aria que o leitor levasse em conu. minha prefcrfncia. No pl'C'lcnte livro
procuro Lransn1itir experiéncia de cstarrccimento an1e o insólilo fato de
se ter constitufdo no Brasil uma "esquerda" contra·revoludonária, cujo
suporte é a metafisica da revolutão, uma "esquerda'" que se mobiliza
para desmoralizar palriotas, recorrendo à m;l.fé sistemálica e consciente.
DiMc·ia uma sociedade de esquerdeil'O.I que, pela gritaria e pela baderna,
procura abafar a voz dos que ainda acreditam que o homem é superior
ao rinocer<mle.
O titulo Mito e J'erdo.de da Revolução Brasileira é pertinente. Na
verdade, a maior parte dbte Jino trata, à primeira vista, da revolução
em geral. Mas tudo o que se diz nêle está referido à realidade brasileira.
Creio que esu afirmativa é incontestável.
Deixo aqui consignada minha gratidão aos eleitoro que sufragaram
o meu nome no pleito de 7 de outubro de 1962. ts1c li"Yro parlicipa
um pouco da 11ature:m de uma circular a esses dignos compatriotu. A
Clélia. minha mulher, agradeço a ajuda moral e material que me 1em
prcslado nlo apenas na elaboração di!Sle livro, mas na luta pelos valÕl'ell
que o inspiram. igualdade, fra1ernidadc. liberdade, que. na data de hoje,
queda da Bastilha, comemoram todos os homens livres do mundo.
G. R.

Rio, 14 de julho de 1965.


CAPÍTULO I

Pequeno Tratado Brasileiro


da Revolução

IU•.aEsGn.: E11 p111 txempla naa consigo


me habituar.
JEAN:Toda 1111111!10 lrm q111~ .se habituar.
Ou .serd q1111 1mci é 11ma nalureza
tuperiar1
DÍ.11.F.NGF.R: Eri mio prtlt11do ..
(Jm;r.soo, RiNflf'Cl'OR/fl)

" ... a vrrdadeira rrbrlião é criadora de


1"1/âre~". ,.\LHRT C:A~US

REVOLUÇÃO é categoria \'iva da história contemporânea do


Brasil. Por isso encontra-se o sociólogo brasileiro numa situa-
ção privilegiada, que não deve malbaratar, mas aproveitar, em
sua riqueza conceptual, na promoção do progresso científico.
Assim sendo, o estudo do processo revolucionário envolve mais
do que um teste de preparo profissional ou de competêrtcia
acadêmica. Envolve, sobretudo, um teste de sensibilidade huma-
nfstica. Eis por que nossas presentes considerações relletem
vivência e projeto concretos, ao mesmo tempo que esfôrço de
objetividade - de distanciamento sem prejuir.o da participação.
Na História chega a ve-.t de eminente desempenho brasileiro.
to momento de escrever o tratado brasileiro da revolução.
Classificar e discutir em tese os trabalhos que sôbre o
assunto têm sido escritos faria as delícias do erudito em Socio-
logia ou em Política. Cremos, porém, que êsse tipo de procedi-
mento não seria útil ao propósito de tratar, em têrmos acessíveis
ao público não-iniciado nos quiproquós aradêmicos, da situação
18 '.\llTO J-: \'t:RDADE DA REVOI.UÇ.ÃO BRASILEIRA.

em que se encontra o Brasil atualmente, situação cujas caracte-


risticas justificam defini-la como revoluciom\ria. Para com·
preender a realidade brasileira ele nossos dias, é preciso não
estar pervertido pelos hábitos, pelos conceitos esclerosados. Por
isso no presente estudo, não hesitamos em fazer afirmações
exploratórias. Embora de ordem conceptual, qualquer dos ~eus
detalhes está referido ao Brasil contemporàneo.
As palavras revoluciontfrio e revolução, por serem das mais
ambíguas, requerem tratamento ticnico-sociológico. Não ha-
vendo conclusões tranqüilas sôbre a matéria, entre os estudiosos
de Ciência Social, cumpre formular alguns esclarecimentos pre-
liminares. Para tanto, são infelizmente escassos os subddiO!I
que existem no domínio específico da Sociologia, tal como se
cultiva nos centros universitários oficiais. Traindo o seu vício
de ori~, de discip1ina comprometida com a ordem burguesa,
os soCiólogos ou evitaram focali7.ar diretamente o tema ou,
quando o fizeram, adotaram diante dêle um ponto de vista
formal, inadequado ao propósito de quem, como o autor dêste
livro, pretende contribuir para o aclaramento e a consumação
de um processo em marcha.

Sociologia e revolução
O criador do cêrrp_Q__:sp.9-l?!!?g!a", Augusto Com~e, conferiu
ao sistema que, sob aquêle nome, ãpreSêiitõil'CoiliO Cieittlfico,
sentido nitidamente conservador e até contra-revolucionário.
De plano, negou o caráter de necessidade histórica à revolução
e a considerou capítulo de patologia social. Em seu Curso de
Filosofia Positiva afirmou que '.'a influência conservadora do
positivismo ... enobrece a obediência e a autoridade". Refe-
ria-se, com mau humor, ao "espfrito revolucionário" de sua
época, confundia-o com uma espécie de lesão moral e psicoló-
gica cujos efeitos, julgados por êle negativos, poderiam e deve-
riam ser neutralizados pela "reforma da inteligência". Dêle
é a afirmativa de que "a reorganização final deve operar-se pri-
meiro nas idéias, para passar em seguida aos costumes e, em
último têrmo, às instituições". Com o lema Ordem e Progresso,
acreditava na chamada evolução contínua, em que as grandes
transformações reclamadas seriam feitas sem dramatismos e aba-
los, isto é, gradati\'amente, em consonânda com os avanços
PEQVE!liõO TRATADO aRA~ll.l::IRO DA RE\'OLU<.,:Ão 19

das idêias humanitárias. Definia, por isso, o progresso como


le développcment de l'm·drc (1 )•. Para êle, por assim dizer, a
revolução seria questão de consdênda. ,\sociologia de Augusto
Comte e conseqüentemente seu conceito de revolução revelam·
-se hoje como episódio do pemamenlo rnnservador. (2)
Igualmente, um contemporâneo de Comte, co-fundador da
Sociologia, Herbert Spencer, tratou do.~ aspectos dint1mic:os da
sociedade, em grandes traços, como alilís também Comte, que
via na evolução da humanidade três grandes períodos, o teo·
lógico, o metafisico e o positivo, cada um tlefinido por carac-
terísticas intelectuais. Spencer analisa os aspe<"tos dinâmicos
da sociedade, igualmente do pomo de vista genériro e ;1hstrato.
Segundo êle, a evolução "é uma integração de matéria e con-
comitante dissipação de movimento, durante o qual a matéria
passa de uma homogeneidade indefinida, inc:ocrente a uma
heterogeneidade definida, coerente". No plano da sociedade,
a evolução consiste em transformações gradativas a partir da
coletividade militar, onde predomina a cooperação coerciliva,
para a coletividade industrial, onde prevalece a cooperação
voluntária.
Nenhum dêsses fundadores, bem como nenhum de seus
numerosos seguidores, referiu o movimento social, a dinâmica
social, à categoria concreta de classe. Por isso não poderiam
chegar a um conceito objetivo de revolução. Ora, é impossível
compreender o fato histórico-social da revolução sem referi-lo
às classes sociais.
Recentemente surgiram alguns estudos de caráter socioló·
gico sôbre a revolução, mas de cunho noladamente formal,
em que o fenômeno é examinado em suas expressões históricmi
encerradas ou decorridas. E o máximo que a Sociologia uni-
versitária oficial pode permitir-se: tratar da revolução <·omo
processo extinto, descrever a fJostcriol"i as suas regularidades
aparentes. São tipices desta atitude A Sociologia da Rcvol11ção,
de Sorokin, A Anatomia da Revolução, de Crane Brinton, e o
verbête da Enciclopédia de Ciências Sociais (norte-americana)
intitulado Revolução e Contra-Revolução, e§crito por Alfred
Meusel.
Seriam elucidativas algumas ilustraç~s da in.digência que
ordinàriamente apresenla a Sociologia universitária no enfoca-
mento do tem.a.
(º) Nocas no fim do capl1ulo.
20 ).UTO F. Vt:RD.\l>F. DA kl~VOLUÇÃO BRASILEIRA

Comecemos por Alfredo Povifia, que, em 1988, publicou


Sociologia de la Revolución. Supõe-se que tendo-se proposto
um exame por assim dizer monográfico do assunto estivesse
disposto a esmiuçá-lo pelo menos em seus aspectos mais salicn·
tes. No entanto, em 1945, ao retomar a matéria num capitulo
de Cur.so.s de Sociologia, ainda incide em debilidades ostensivas.
Não existe em tal texto uma definição satisfatória do têrmo.
À guisa de definição, lá se encontra apenas o seguinte: "la
revolución es un proceso anormal de evoluc:ión social que se
realiza por la violencia" (pág. 809). Confüma assim Povii'ia,
tardiamente, o mesmo ponto de vista conservador de Comtc
para o qual, também, o estigma de anormalidade existia nos
movimentos libertários. :t certo que Povifia tem a defesa de
ter aplicado o adjetivo "anormal", na acepção proposta por
Durkheim, isto é, como equivalente a não-habilual, pouco
freqüente. "Anormal", no caso, não tem prbpriamente uma
conotação ética. Mas o têrmo "anormal", no caso, introduz
ambigüidade na de(inição em aprêço, pois objetivamente a
revolução pode representar a instauração precisamente da
normalidade, sê>mente que se trata de uma normalidade em
conflito com a vigente, porque representativa de condições
~~~: s;ee~~~~f:~~n.~~ni;:~~ue~i(;~~p~ Je~ó~~~;~;~º:O~f~:
(pág. !109) e, assim, inspira-se num ideal de normalidade.
Poviiia tem ainda o mérito de qualiíicar a palavra violência,
salientando que não deve ser entendida em seu "aspecto mate-
rial", de "fórça". :tle vislumbrou o problema que o têrmo
implica sem, no entanto, ferir, nem mesmo superficialmente,
o magno impera1ivo de uma teoria sociológica da violência.
Feitas essas ressalvas, parece, no entanto, ostensiva a deficiên-
cia de definição de Povifia, que trata do tema em nível tão abs-
trato e geral que não conduz a um verdadeiro conhecimento.
É uma definição tautológica e impressionista, que omite aspec-
tos fundamentais da revolução, como as classes sociais. (3 )
O Dicionário de Sociologia, de que é editor Henry Pratt
Fairchild, não é menos impressionista que Alfredo Povifia. Lá
se encontra o seguinte verbête:
"revoluçcfa - Mudança sUbita, esmagadora, na eslrutura SO·
dai ou em algum aspecto impartante dela. Forma de mudança
social que se dis1ingue por seu alcance e velocidade. Pode ser
ou 11110 acompanhada de violência e desorganização &Ocial.
Quando se verificam mudanças de igual magnitude em forma
PEQUENO TRATADO BRASILEIRO DA REVOLUÇÃO 21

gradual e tem lura ou viol.,nda excepcionais, traia-se, de ordi-


nário, de uma expressão da evoh1ção social. O e~ntial na
revolução é a mudan~a bru'iCa, nlo o levanle violr.nlo q11e com
freqililncia a acompanha. Com efeito, exb1e justifica~o plena
da looria que afinna que a verdadeira rcvolu~o. como feninneno
50cial, se inicia muilo anles de que aparecam suas manifesta·
ções violenlas e que pràticamente fica realiHda anl~ de que
se produzam tais manifestações. A viol~ncia é, ~implesmcnle, a
prova manifesla de que a mudança ocorreu ... "

O mesmo impressionismo notado acima se repete aqui. A


definição gira em tôrno do têrmo "mudança", um dos mais
escamoteadores da Sociologia universitária, notadamente nor-
te-americana. Sob essa rubrica, numerosos compêndios tratam
de movimentos e alterações sociais, de modo abstrato e genérico,
sem referi-los concretamente às suas causas ou aos seus fat<"1res.
t certo que a revolução é "mudança na estrutura social", mas
dizer só isso nada explica. Os adjetivos que o Dirionário usa
para preci~ar a definição também não atingem ao âmago do
assumo. Afinal, se resumlssemos o verbête, poderíamos dizer
que a revolução é "mudança na estrutura social, bru•ca, de
grande envergadura, não necessàriamente acompanhada de
violência". t esta definição que, pela sua superfidalidade,
ocorreria a qualquer leigo medianamente instruído que fôsse
designado para emiti-la. Não careceria essa pessoa de nenhum
treino sociológico. Além disso, apontemos algumas impreri•ões.
r;-~~or;:c~.ª~~rs :;~r~~~e ns~~ ~.~~u~c':.· c~::ic:i:u~ac!~~ó~~~
ser "violenta"? Se é "brusca", necessàriamente contém cará-
ter altamente impositivo e coercitivo, sobretudo para os que
se identiriram com o regime ou a situação anteriores. O ver-
bête faz referência infeliz à "desorganização social", conceito
aliás, por si mesmo, carregado de intenções consenradoras. Ne-
nhum esclarecimento se encontra nesca Crase: "pode ser ou não
ser acompanhada de desorganização social". Em resumo, nada
.explicaria melhor a perplexidade de certos sociólogos cm face
do nosso tema do que o presente verbête.
Autores competentes, como entre outros, Luís Recasens Si-
ches, não se eximem dessa perplexidade e5pecífica. No seu
excelente Trotado General de Sociologia (1956), sob vários
aspcctos, Recasens em nenhum momento focaliza o tema direta-
mente. Nas 656 páginas do seu TTatado, o que há sôbre revo-
lução é o seguinte trecho, eiva<lo de tõda sorte de afirmativas
contestáveis:
22 MITO E VERDADE DA RF.Vot.uc;:Ão BRASILEIRA

"A atitude radimJ gosta de tõda inovação a fundo na


ordem social, inclusive por meio de proce5505 de viol~nda. Pare·
ce que seus motivos consislcm sobretudo em um 1entimento de
mal-es1ar, de desajustamento, de injustiça, de eaplrito raciona-
liiita de tipo geométrico, o qual quer o perfeito e não aceita
compromissos, transações, nem percebe os matizes variados e a
grande wmpleJ1.idade das realidades. Apóia-sc em ilimi-
1ado otimismo s6bre as poaibilidades da razão, e da açno
prática dirigida por esta. Nutre-se de espfrito hipen:rflico, de
veemente a(eição pela novidade. Geralmente esta atitude radi·
cal começa mos1rando-se como desejo de inovação, mas quando
a realiução desta tropeça com oblt:lculos, é então quando se
torna radical e quer demolir o existen1e para substitui-lo pela
realização de planos construidos idealmente com o in1elec10
racional. Esta atitude radical não se conforma com ir tapando
ou remendando a ordem social exislente para inlroduiir me-
lhorias, mas aspira 11 sul»tituiçll.o tolal dessa ordem por outra
nova. A atitude radical se diversifica em duas p05ições, quan10
ao proCedimen10: a posição daqueles que crfem que essa subs-
tiluiçlo pode efemar-se só medianle um ca1aclismo, islo é, a
posição rrooluciondria prõpriamenle dila do ponto de visla for.
mal, ou seja, nlo do ponto de vis1a do conteádo, mas do ponto
de vi11a do procedimento; e a posição evolulivo, a qual, de
logo. aspira à substhuição total da ordem social exis1ente, mas
espera que isto possa levar-se a cabo gradualmen1e por sucessivas
etapas".(4)

Recasens vê a atitude radical como pura tendência psico-


lógica. No seu modo de entender, é uma preferência, traço
temperamental, questão de gõ.sto. Para êle não existem radi-
cais ou revolucionários contrafeitos, ou seja, que assim o são,
ou por imperativo humanístico ou por integração numa classe
espoliada. Todo o trecho supõe, por assim dizer, a inexistência
de uma sociologia da revolução, que seria o exame de seus
determinantes objetivos, transcendentes à mera psicologia dos
individuas. Ademais, Recasens refere-se à atitude radical de
maneira depreciativa, equiparando-a a um desejo de "realizar
planos construidos idealmente", não lhe reconhecendo como
deveria nenhum fundamento nos fatos. E, num sectarismo
mal dissimulado, termina sugerindo a superioridade da evo-
lução sôbre a revolução.
Não é mais satisfatório, como seria legitimo esperar, o
tratamento que dá ao tema Crane Brinton, em sua conhecida
obra Anatomia da Revolução (editada em língua nacional
sob o tflulo Anatomia das Revoluções). Rico em informação
histórica, o livro é conjunto de observações de cunho analógico,
preocupado em focalizar as uniformidades ou regularidades
PEQUENO TRATADO DRASll.EIRO DA REVOLUÇÃO 2l

do fenõmeno, em diferentes momentos. Sem dúvida, o autor


realizou tarefa relevante como esfôrço de dassific:ação ele epi-
sódios. Mas o autor se deixou prender nas malhas do forma-
lismo, contentando-se em assinalar nas re\'oluções que focaliza
o que aparentemente as torna similares. E por fôrça de tal
formalismo, o autor não possui um conceito objetivo ele revo-
lução. Recorrendo à analogia, considera a revolução uma
doença. Taxativamente, escreve:
""A despeito de apresentar grave defeito, o melhor csque1na
conceptual para o nosso objelivo parece deva ser tomado à
Patologia. ConsiderarcmOJ as revoluções - ilnicamcn1e por
que5llo de conveniência, bem entendido, e sem implicações
de validade eterna e absoluta, nem reRexos morais - como
uma espécie de febre. Os concomOJ de nosso grifico de
febre surgem prontamente. Na sociedade da geração anterior
à revolução - no antigo regime - encontra1nos sinais de per·
turbação próxima. A rigor ~HC'!l sinais nio si.o bem sintomas,
porquanto a doença já e~tá presente quando Oll sintomas estão
em plena manifestaç-do. Talvez seja 1nelbor designá·loe: por
sinais precu15orcs - predisposições que mos1tam ao diagnosti·
cador arguto a doença já em formação, porém ainda não sufi·
cienlemente desenvolvida para ser considerada doença. Depois
~Tq:a~::~~°ei~~~i~rt 0q'::1 :e,:;:'~r:mre!:u~~ ==~
luo se proceua não regularmente, mas com avanços e recuos, até
atingir um estado de crise, frcqtlcntemente acompanhado de
delhio - domlnio pelos revolucionários mais violentos. reinado
do Terror. Após a crise vem um perlodo de convalC$CC11Ça,
geralmen1e marcado por uma ou duas recaldas. Finalmente,
a íebre passa e o doente volta a si, talvez em certo sentido revi-
gorado pelo que sofreu, imunizado pelo menOJ por algum
tempo conlra outro a1aque semelhante, mas certamente nlo
de todo transformado em um homem n6vo. Aplica·se o para-
lelo ate o fim, pois as sociedades que passam pelo ciclo com·
pleto da revolução saem talvei, em algum aspecto. forlalecidas;
mas dêle nlo emergem inteiramente renovadas'".(~)

Embora o autor pretenda que o ~eu enfocamento do


assunto não tem "reflexos morais", na verdade os tem. Em sua
conclusão linal, o trecho insinua que as revoluções não alteram
nada. As sociedades - diz Brinton - passam pelo ciclo da re·
volução, mas "dêle não emergem inteiramente renovadas". Por
conseqüência, é um traumatismo desnecessário ou cngõdo. Po-
derá ser assim considerada a Revolução Francesa, a Revolução
Soviética? Evidentemente não. A visão de Crane Brinton é
eminentemente conservadora, e assim cega para o que no fenó-
meno revolucionário existe de positivo. Do ponto de vista
24 MITO E VERDADF. DA RF.VOLUÇÃO BRASILEIRA

científico, ao adotar retardatàriamente o organicismo, pois a


tanto corresponde, no caso, comparar a sociedade a um paciente,
o estudo de Brinton carece de qualificações. Do ponto de
vista ideológico, o autor deixa-se ingênuamente surpreender
em posições em que mal disfarça as conotações aristocratizan-
tes do seu pensamento. Para demonstrá-lo leia-se à página 280,
o seguinte: "Tal é a natureza conservadora e rotineira da
massa dos sêres humanos, tão fortes são os hábitos de obediên-
cia na maioria dêles que quase se pode dizer que nenhum
govêmo corre o Tisco de ser derrubado enquanto não perde a
capacidade de empregar adequadamente suas /ôrçtu militaTeS
e policiais" (o grifo é nosso). Bem se vê que, a despeito de
sua advertência, Crane Brinton escreveu o seu livro numa
perspectiva moralis1a, incompatível com o espírito cientifico.
Os subsídios para uma compreensão objetiva da matéria
se encontram menos nas dissertações acadêmicas dos sociólogos
do que nas atividades e escritos dos revolucionários. Por isso,
não há como evitar que, no presente livro, recorramos, de
preferência, a êsse material. Aí se refletem várias atitudes,
que implicam diferentes concepções da revolução, as quais,
esquemàticamente, podem ser reduzidas a três tipos.

 conceJ1fão voluntarista
Na ordem de seqüência cronológica, cabe focalizar inicial-
mente a concepção voluntarista ou iluminista ela revolução,
que a considera criação histórica, imune da inílu!ncia do pas-
sado e mesmo do presente. Um texto de Feuerbach presta-se
às mil maravilhas para caracterizar êsse modo de ver. Reza o
seguinte: (9)
"A humanidade, se quer f1mdar nova era, deve cortar qual·
quer vinculo com o passado: deve estabelecer que tudo o que
houve até agora l nada. Sbmente assim adquiriril. ardor e f6rça
para novas criações; tudo o que tiver relação com as condições
atuais não poderia senão secar o manancial de sua atividade."

Em diferentes graus e matizes, foram voluntaristas Rous-


seau, Helvétius, Fichte, Owen e Blanqui, enquanto supunham
que a tarefa revolucionária ou de regeneração social devesse
fundamentaNe na atividade de uma minoria que, por suas
qualificações extraordinárias, estivesse apta para exercer um
mandato da maioria, a fim de conduzi-la a nova era. Todos
PEQUENO TRATADO BRASILEIRO DA Ri:VOLUÇÃO 25

aqul!les homens acreditaram na clarividência dessa minoria e


lhe reconheceram o direito de tutelar o resto da rnleLividade,
como se ela estivesse a rnvaleiro dos condicionamentos histó-
ricos. :Esse tipo de revolucionário perde de vista que as idéias,
enquanto traduzam minimamente tendências em num:ha cm
sua época, não são fortuitas. t o processo histórieo que as sus-
cita. Elas são revolucionárias, não enquanto estejam desligadas
da época presente e assim do passado, mas enquamo exprimem
o que, na época, é possibilidade efetiva, que não se realiza por-
~~e :~~~tJ;!~mAo':e~~7~~~1i~~tii~~aco:c~=~:e e~e~>~;it:~
intermédio, liga-se ao passado. Libera o que, no presente, e~tá
condenado pelas circunstâncias. Mas é na história que a revo-
lução acontece, como o desfecho de uma luta entre o nôvo e o
velho, concretamente configurados, na própria realidade social,
sob a forma de intcrêsscs de dasses ou categorias cm dissídio.
As novas formas históricas não são dedmidas n priori, por
atos unilaterais, clarividcntcs, de minoria.~ dcs\·inruladas do
processo histórico. Ainda que proclamem o C"ontrário, na rea-
lidade, essas minorias são herdeiras do passado, cnmntram-se
no curso real dos arontecimentos. O \'oluntari~mo rcvolndo-
nário é "pretensão soberba" porque, como explica Rodolfo
Mondolfo, "afirma a atividade humana como livre criadora do
mundo, considerando a realidade existente como obstáculo ou
matéria para sua ação, porém sempre exterior ao espÍl'ito hu-
mano, em lugar de reronhecê-la como fôrça \•iva interior ao
homem mesmo, operando nêle no ato em que quer lutar con-
tra ela".(') Ademais destrói não só "tõda possibilidade de
compreender a história como processo vital, que tem unidade
e continuidade e, assim, um.a necessidade interior de desenvol-
vimento" (8 ) como ainda impossibilita ação política eficaz, à
altura da necessidade histórica real. O C"hamado blanquismo é
tática revolucionária crónicamente votada ao insucesso, porque
suas intenções fazem labula rasa das condições históricas exis-
tentes e ultrapassam o seu horizonte de possibilidades.

A concepção historicista

Marx reçonheceu o que, à guisa de crítica tla ordem exis·


tente, havia de posi1h·o no legado \'olnntarista, mas procurou
os fundamentos da revolução no plano histórico. Quando pro-
26 )!llTO E VERDADE DA 1u-:vm.1•çÃo BRASILEIRA

clamou que a classe operária é herdeira da filosofia, apontou


a deficiência básica do volumarismo, o anti-historicismo, a
repugnância pela quotidianidade e seu comeódo inovador,
que era preciso liberar, acelerando as transformações em mar-
cha, nas quais se achava empenhada uma parte majoritária da
sociedade. A revolução, para Marx, não é outorga, mas culmi-
nação de um processo real. Contra o iluminismo de Feuerbach,
afirmou:
"A doutrina matttialisla, que afirma que os homens &lo
o produto das circunstãncias e da educação, esquece que silo
os homens que mudam as circunslãncias e que o educador lam-
bém deve ser educado. Por isso, a teoria termina nccessllria-
mente por dividir a sociedade em duas partes, uma das quais
é .wperior à 10Ciedade (em Robert Owen, por exemplo). A
coincidência da mudan~a das circunslãncias com a da atividade
humana pode ser concebida e compreendida racionalmente ape-
nas como pnitictJ rn.ro/11ciot11iri11."(0)

A revolução deriva da prática humana, tal como se apre-


senta no plano da sociedade. Não lhe é estranha, à maneira de
ideal abstrato, vivido como privilégio de poucos. A revolução
é atividade transformadora de todos os que vivem as reivindi-
cações concretas contra o status quo e, como diz Mondolfo,
"nasce do estimulo perpétuo da necessidade; as condições que
suscitam a necessidade, sejam derivadas da natureza, ou cons-
tituídas pelos resultados da atividade humana antecedente,
não são exteriores à humanidade, antes devem penetrar na
vida de seu espírito para impulsioná-la à atividade, ou são
eXpressão ou produto desta vida e atividade; produto, que é
também produtor, criação e criador ao mesmo tempo, no pro·
cesso infinito do revolvimento da prática". (1 º) Nessa ordem
de idéias, afirma ainda Mondolfo que "nenhuma ação supera·
dora pode alcançar eficácia histórica sem ter em conta a reali-
dade existente, herança do passado, e sem compenetrar-se ela
consciência de que superar não é destruir, mas realizar e de-
senvolver germes e potencialidades enquadradas pelo passado
e oferecidas pelo presente". (11)
Esta concepção permite tratar o processo social da revo·
lução como objeto do conhecimento técnico e cientifico. A
aspiração de Marx e de seu colaborador Engels foi mostrar que
a transformação qualitativa da sociedade não depende unila·
teralmente da subjetividade, mas obedece a leis, resulta de
fatôres que operam continuamente na realidade social, con-
tando·se entre êles, é certo, o elemento subjetivo. Eis que
l'EQL'E?\O l"RATADO BRASILEIRO DA RF."\"OLl'ÇÂ.O 27

o socialismo, de doutrina utópica, teria sido convertido


por Marx e Engels em ciência. tles são os fundadores
da ciência da revolução. Por que ciência? Porque admi-
tiram que tóda revolução tem seu determinismo, no qual se
liquida o dualismo entre o elemento subjetivo e o elemento
objetivo, mediante a categori:l de prática (praxis). Esta noção,
que não é das mais fáceis de aprender, tem, no entanto, rele-
vante importância no esclaredmento do fenômeno. A prática
(praxis) é atividade humana, transformadora das coisas, na
qual o sujeito e o objeto se relacionam reciprocamente e são
têrmos inseparáveis de um processo uno. t. nesse sentido que
Engels afirmou ser a história "o uno e o todo", entendimento
que torna insustent<lvel a pretensão voluntarista. Em conclus.'i.o,
podemos definir a revolução, segundo o que aqui chamamos
de concepção historicista, utilizando as palavras com as quais
Marx certa vez definiu o comunismo: a 1·evolução não é um
estado que deve ser criado, ideal destinado a orientar a reali-
dade; é o movimento efetivo que, segundo as possibilidades
concretas de cada momento, niprime a situação pre.ftmte.

A concepção sincrética

Terceira concepção pode ainda ser caracterizada pelo adje-


tivo sincrético. Tal é o que tem sido chamado de leninismo.
Lênin combinou o blanquismo e o marxismo. Mestre do que
Daniel Guérin (12) chamou de "socialisme pm· en haut", o
"socialismo de cima para baixo", foi, ali<ls, continuado por
Stalin. Unin nunca se libertou da admiração pelos teóricos
do voluntarismo revolucionário, dentre êles principalmente seu
compatriota Tkatchev e o francês Blanqui. Segundo o primei-
ro, (13 ) "nem hoje, nem no futuro, o povo entregue a si mesmo
é capaz de realizar a revolução social. Sbmente nós, minoria
revolucionária, podemos ou devemos fazê-la . . . O povo não
pode salvar-se a si mesmo . . . não pode dar corpo e vida às
idéia.s da revolução social". E ainda afirmava Tkatchev: (14 )
"O povo, privado de dirigentes, não é capaz de chefiar um
mundo nôvo . . tste papel e esta missão pertencem exclusi·
vamente à minoria revolucionária." Em tais têrmos o pensa-
mento de Tkatchev coincide com o blanquismo, sôbre cujos
adeptos escre,·eu Engels: "eclucaclos na escola de conspiração,
28 ~llTO F. \'ERDADE. l>A RJo:\'Ol.UÇÂO BRASILEJRA

ligados pela estrita disciplina que lhe é própria ... partiam


~~~~ ::~iu~:s ~u~e~mo~~i~~=·:e~~aª~ae;:: s:.q~i!n~!e~;~
oportuno, não sàmente se apoderar do poder, como também,
llesenvolvendo grande enerpia e audácia, aí se manter bastante
tempo para lograr conduzir a massa do povo à Revolução e
reuni-la em tômo da pequena tropa dirigente. Para isso, seria
necessária, antes de tudo, a mais estrita centralização de todo o
poder nas mãos do nôvo govêrno revolucionário". (15)
Daniel Guérin, procurando esclarecer o pensamento de
Marx em relação ao blanquismo, observa que o autor de O
Capital condenava a preocupação dos conspiradores de "arti·
ficialmente" improvisar uma revolução "sem as condições de
uma revolução". Para êles, disse Marx, "em lugar da situação
real, é a simples vontade que se Lorna a fórça motriz da revo-
lução". Precisa Daniel Guêrin a concepção marxista de revo-
lução nas seguintes citações de Marx e Engels: "Nós não somos
conspiradores que querem, num dia determinado, deflagrar
uma revolução", "as revoluções não se fazem de propósito
deliberado e à vontade . . . em tôda parte e em todos os tem·
pos foram conseqiiência necessária de circunstâncias inteira-
mente independentes de vontade e de direção de tais e tais
partidos".(111) •
Unin é representante de uma concepção que, de todos os
modos, apresenta traços originais. Jamais contestou Marx ou
~ngels, no tocante ao entendimento da tarefa revolucionária.
Mas não os seguiu à risca e, a partir de seus ensinamentos,
acentuou aspectos da questão, em tênnos que nenhum militante
marxista ousou antes dêle. Encarou frontalmente o lado subje-
tivo daquela tarefa, assinalando a contribuição positiva do pen·
~:m;;:~r~~on1~:~fi~~re oT!:~i;:~.e~co~ ~~·is~~~i~:~t~:!~~
ciente ou dissimulado.
Para Lênin, as massas não alcançam espontâneamente a
consciência totalizante do processo histórico. Só vêem os seus
aspectos fragmentárias. Por isso, combateu energicamente o
economismo e o sindicalismo, isto é, a mera agitação polí-
tica no teITeno econômico e sindical. Na verdade, Lênin se
propôs interferir no movimento operário espontâneo, con·
ferindo-lhe uma qualiiicação c1ue, a seu ver, êle não podia
criar por si só - a consciência toLalizante. "Sem teoria revolucio-
nárin, não existe movimento revolucionário'', disse. Ora, "teoria
PEQUENO TRATADO RIL\SIU'.IR.O DA RF.VOJ.UÇÂO 29

revolucionária" no caso é a visão do papel ela classe operãria


à luz da totalidade, ou seja, da situação histórica em seu con-
junto. A .simples luta por vantagens e direitos distancia a
massa da compreensão de sua missão pràpriamente revolucio·
nãria e, ao contrário, acarreta o fortalecimento da ideologia
burguesa. O espontaneismo é, a seu ver, debilidade do movi-
mento socialista. Lênin cita e acolhe Kautsky quando diz que
a consciência socialista não "deriva automàticamente ela luta
de classes", (11 ) mas "é algo introduzido de fora na luta de
classes do proletariado". E sem nenhum receio de ser argüido
de aristocratismo, não hesitou cm observar que a doutrina so·
cialista foi elaborada por intelectuais burgueses versados cm
teorias filosóficas, históricas e económicas, inacesslveis às massas.
Uma situação revolucionária pode existir objetivamente e,
no entanto, abortar por falta do "fator subjetivo". t. o que,
segundo Unin, teria acontecido na década de 1860, por oca-
sião das lutas constitucionais ocorridas na Prússia. Na Rússia,
revoluções abortadas pela mesma razão também se registraram,
por exemplo, no ensejo das crises polhicas antes da cmanci-
paç-do dos servos e no momento culminante das atividades ter-
roristas dos narodniks.

espos~!c~~r t:::~ ~ã~i~;rt~~c~p~icc:~c:ç~::;sº~~~!º~~~~


e Engels fizeram aos "blanquistas" e "conspiradores". Care·
ciam êles do treino dialético necessário para iituar a ação
subversiva na totalidade concreta. Lênin, ao contrário, não
atribui valor intrínseco à vontade, ao elemento subjetivo. Sua
eficácia, a seu ver, dependia de condições concretas, cuja nalu·
reza e cujas características procurava determinar meticulosa-
men1e, com o objetivo de anular o menor conteúdo de aven-
tura de suas palavras de ordem insurredonais. Mas desde o
momento em que, à luz da análise dialética de uma situação
social, a decisão revoluciomiria se afigurasse equivaler a
uma exigência da totalidade, cumpri-la seria mera c-on-
seqüência metodológica antes que aventureirismo. Para Lênin,
a revolução é questão ele medida, no esíôrço inteligente de
combinar o elemento voluntário com o elemento espontâneo
da realidade social.
~o :1.111'0 f'. \'~:RDAllE DA u:vou•çÃ.o BRASU.F.IRA

Definição da revolução
Blanqui, Marx e Lênin não foram mencionados aqui por
acaso. Representam três momentos necessários no eníocamento
da tarefa revolucionária. No primeiro momento (Blanqui),
foi ressaltado o aspecto subjetivo. No segundo (Marx e Engels),
o intento de fazer ela revolução objeto de amtlise ciemífka
induziu os que o assumiram, não própriamente a excluir o
elemento subjetivo, mas a integrá-lo como componente inse-
parável das condições da realidade histôrico-social. No terceiro
momento (Lênin), embora não se tenha recusado a validade
genérica do segundo modo de entender, aprofundou-se o co-
nhecimento de como atua o "fator subjetirn" na din5mica da
revolução.
Estamos agora em condições de formular um conceito de
revolução, que, daqui em diante, norteará o nosso raciocinio.
Tal conceito, em que procuramos integrar os elementos posiLi-
vos contidos nas concepções anteriormente discutidas, pode
ser assim emitido; revolução é o movimento, subjetivo e obje-
tivo, em que uma classe ou coalizão de classes, em nome
dos interésses gerais, segundo as possibilidades concretas de
cada momento, modifica 011 sup1·ime a situação presente, deter·
minando mudança.de atitude no excrclcio do poder pelos ntunis
titulares e/ou impondo o advento de novos mandatários. Con-
tém êste conceito quatro principias que merecem realtc, a
saber: o principio da praxis, o princípio de limites, o princípio
da classe social e o principio de totalidade.

O princí#Jio da "praxii'
A medida em que o elemento subjetivo e o objeth·o par-
ticipam da revolução não é questão abstrata. Sàmente na prá-
tica ela se determina. t, no entanto, inconcebível uma transfor.
mação social, qualquer que seja o seu esporte, sem a participa-
ção do elemento subjetivo. Qualquer transformação social (e
a revolução o é) se efetua necessàriamente mediante a ativi.
dade humana, que supõe relação entre o homem e o mundo
dos objetos, na qual um e outro se influenciam reciprocamente.
A prática é criação simultânea do homem e de seu mundo exte-
rior, O homem se faz a si mesmo na medida e enquanto
PEQUE:"O l'RAl'ADO URASILEIRO DA REVOLUÇÃO 31

participa da elaboração da sua circunstância externa, que,


assim, equivale à materialização do seu trabalho. M:is con-
vém advertir que a prática não é sintmimo de atividade e tra-
balho. Os animais trabalham e re:1li7.nm ativiclades. Mas não
seria correto atribuir-lhes a pr<itka. Esta é um modo de ser
especificamente humano, superior ao dos animais, precisamente
porque implica um teor de isubjetiviclade ele que os animais
ordinàriamente não são capazes. O pássaro que faz seu ninho
e a aranha que prepara sua teia se -empenham numa alicude e
reali7.am um trabalho, mas não são capazes da prática. O
pássaro e a aranha cumprem passivamente funções orgtmicas
ao fo7.erem o ninho e a teia. Na prática, o homem não se
subme:e rigidamente a exigências, mas ajusta-se ativamente
aos objetos. A prática é atividade permeada de uma intenção
transformadora do mundo exterior, supõe um grau de subjeti-
vidade especifico do homem. A prática é atividade cspedíi-
camcntc humana, carregada ele sentido e intencionalidade. P"ol'
isso os homens têm história. Daqui a mil anos, se ainda exis-
tirem, as térmicas e as formigas terão a mesma organização
social em que se encontram hoje. Não há progresso na orga-
nização social dos animais. O homem tem história e progride
em sua organização social porque é capaz de prática, de ajus-
tamento ativo às circunstâncias.
A revolução é um problema de prática. Seu modêlo, sua
tática, sua estratégia se induzem da prática revolucionária. Dela
deriva conhecimento da mesma natureza do que tem o ope-
rário do seu ofício. Naturalmente, o elemento subjetivo con-
tido na prática varia, desde o grau mais elementar, que é o
espontâneo, até o mais qualilicado, que é o sistemático. Há,
por exemplo, mec:\nirns de automóvel que aprenderam seu
ofício por tentati\'as e aproximações. Só sabem estritamente
o que a experiência lhes ensinou. Há, porém, os que .se ini-
ciaram na teoria do motor, a partir da experiência. A ação
dêsscç é assim mais eficaz e segura nos reparos dos carros do
que a daqueles. Do mesmo modo, o conhecimento sistemático
da revolução é o mais elevado requisito de competência revo-
lucionária. Lênin contemplou a variedade da qualificação
subjetiva da prática revolucionária. Considerou o "elementti
espontâneo" a mais embrionária forma do consciente. É êsse
"elemento espontâneo" que está pr<:sente no movimento gre-
vJstico russo da segunda metalle do século passado, por exem-
plo, nas greves acompanhadas de destruição de máquinas.
32 '.\llTO 1-: n·Rll.\bE l>A REVOl.UÇÂO BJlASILEIRA

"Vistas em si mem1as - diz U~ni11 - essas greves eram luta


~inclicalista, aintla n:lo eram luta social·dcmocrá1ica, assinalavam
o despertar do an1agonismo entre os operários e os patrões,
11115 os operários não tinham nem podiam ler a conscibicia do
antagonismo inconciliável entre seus interêsses e todo o regime
polilico-social con1e1npor.1nco, islo I!, nio tinham consciência
~ocial·demornl.tica. Nesle sentido, as greves da última década do
século passado, apesar de representarem enorme progresso em
comparação com os "motim'", continuavam sendo um movimento
puramente espontfineo". (IA)

Não é pois qualquer espécie de pnítica que se compadece


com o socialismo, mas sàmentc aquela que transcende o "espon.
taneísmo" e tem um ingrediente teórico sistemi\tico altamente
elaborado. Unin focalizou um ponto mivo da prática revo-
lucionária. Embora Marx tenha distinguido entre a classe em
si e a classe para si como graus de consciência do proletariado,
apenas esboçou alguns enunciados sôhre a romponente sub-
jetiva da prática revolucionária. Coube a Lênin acentuar que
a consciência socialista não surge espont;ineamente da luta de
classes. O que supõe que, a par1ir de certo ponto, a subjetivi-
dade do revoluciomírio pode, pela sua qualidade teórico-sis-
tem:ítica, maximbrnr os efeitos da lula de classes, dando-lhe
cfirácia que o mero cspontaneísmo está longe de assegurar-lhe.

O princípio de "limite_s
O desempenho revolucionário tem limites. (1 11 ) A deter-
minação dêsses limites requer apur:ido esfôrço ele análise das
circunstâncias e nunca é obtida de uma vez por tt"xlas. :tsses
limiles variam incessantemente. Uma posição que, em dado
momento da luta de classes, afigura-se viável ou oportuna, em
outro, pode tornar-se o contrário. Não h:í regras lixas, receitas
uniformes nesse domínio. Em tôda situação revolucionária há
um número limitado de possibilidades objetivas. O êxito do
desempenho revolucionário requer a capacidade de tomar de-
cisões que não ultrapassem essas possibilidades. Existe o que
se poderia chamar competência revolucionária da qual é cons-
titutiva a aptidão de discernir, em determinadas circunstâncias,
o que é ou não é uma possibilidade objetiva. A revolução é
uma transformação consciente da sociedade e, portanto, em
certo sentido, uma questão de consciência. Mas de uma cons-
ciência portadora de qualificações específicas que a distinguem
PJ:Ql;l•::\O l'JtATAOO BRASll.F.IRO DA RF.VOl.UÇÃO

da consciência ingénua, da consciência vulgar, da falsa cons-


ciência. Lukacs, para quem a possibilidade objetiva é uma
categoria metódica, exprimiu o que aqui chamamos principio
de limites quando escreveu que "a teoria objetiva da cons-
ciência de classe e il teoria de sua possibilidade objetiva". (20)
Do mesmo modo, Marx o concebeu quando, em O 18 Brumário
de Luls Bonaparte, observou que "os homens fazem sua pró-
pria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob
~~r~~~~~r:c~~r:!:~~~te~5~~!~~se e5 i~a:!i~iJ~~1 ;e1:0~a~~~º~~
O princípio de limites não é incompatível com a iniciativa
revolucionária. A história só conta as revoluções ocorridas.
Não se fêz, nem se poderá nunca fazer, a história das revoluções
que não aconteceram, não por falta de possibilidades objetivas,
mas por falta da iniciativa. As possibilidades objetivas de uma
situação social não se eíctivam automàticamentc. Só se efeti-
vam por imerméclio de decisões, mediante ações. Todo revo-
lucionário autêntico cria as condições ela revolução, evidente-
mente seguro da existência, na sociedade, de uma virtualidade
concreta. Numa an;\lise fundamentada e convincente, Sidney
Hook (21 ) sustenta que na véspera ela Revolução de Outubro,
quando Lênin lançou a ordem Agora OH Nunca, o Comitê
Central do Partido Bolchevique não tinha a intenção de pas·
sar à ofensiva aberta. Em várias ocasiões, I.ênin ficou cm dis·
sidio total com seus companheiros. Assim foi, por exemplo,
no dia 1 de abril de 1919, quando lançou a palavra de ordem
Todo Poder aos Sovietes, que correspondia a um apêlo à derro-
cada do govêrno Kcrenski, naquela data apoiado pelo Partido.
Só a muito custo Lênin obteve apoio. Posteriormente (em
1921) Stalin, referindo-se à posição do Partido, dá o seguinte
testemunho da competência revolucionária de Unin: "Essa
posição era de todo errônea (a contrária a Lênin - G. R.)
porque engendrou ilusões pacificas, levou água ao moinho dos
paruclúrios de uma guerra defensiva e travou a educação revo-
lucion:'aria das massas. Naqueles dias, eu participei desta posi-
ção equívoca com outros correligionários e só renunciei a ela
por completo, em meados de abril, quando aderi à tese de
Lênin." (22 ) "Che" Guevara, lider da Revolução Cubana, obser.
vou recentemente que o Coco insurrecional pode criar as con-
dições da revolução. E, .de fato, desde a fase de Sierra Maestra
até o epis6dio do bloqueio norte·americano a Cuba, a liderança
re\·oludonúria naquele país vem dando provas de capacidade
!4 MITO E VERDADE DA Rt'.VOl.UÇÃO llRASILf:lllA

de iniciativa realista. Graças a tal capacidade, essa liderança


vem tirando partido das tensões entre a China e a União So·
viética, compelindo ambas a dar apoio às suas decisões.
No Brasil, exemplo de iniciativa realista foi a chantagem
do Plano Cohen, documento forjado, que serviu para criar
clima de ameaça comunista e com a qual se justificou o Golpe
de JO de novembro de 1937. À parte os aspectos éticos da
questão, o Plano Cohen ilustra acurada intuição de uma possi-
bilidade objetiva contida num momento da vida brasileira.
Naqueles dias de 1937, sob o amparo do Govêrno, preparou-se
meuculosamente a implantação do que temos chamado de bona-
partismo estado-novisla. O primeiro passo para o Golpe de
1937 foi a declaração, em outubro dêsse ano, do estado de
guerra, pelo prazo de noventa dias. A medida foi fundamen-
tada em exposição do Ministro da .Justiça, Sr. Francisco Cam-

~;r'ee~~i~~3~e~~ ~s~~~:~::~r0ct! 1 ~~~r~~~~eQui~~:e~~ ~~a:


gresso se pediam provas da autenticidade do documento, invo-
cou-se o argumento de que os Ministros da Guerra e da Ma-
rinha mereciam fé, pois tinham "responsabilidade" perante
seus colegas de farda e perante a História". E assim foi con-
cedido o estado de guerra, sob cuja proteção surgiu o Estado
Nôvo, regime que durou até 1945. Neste ano, em v:\rias de-
clarações à imprens;i, o General Góis Monteiro revelou a inau-
tenticidade do famoso documento.
Iniciativa realista, no campo da agitação política, teve-a
também o Sr. Leonel Brizola, por ocasião da renúncia do Pre-
sidente Jânio Quadros, em agôsto de 1961. Ante a disposição
dos ministros militares de impedir que o então Vice-Presidente
João Goulart assumisse a Chefia da Nação, o Sr. Leonel llri-
zola, na época Governador do Rio Grande do Sul, conclamou
o povo do seu Estado e do Brasil para a resistência. O gesto
criou um impasse, de que poderia resultar mesmo a guerra
civil. Para evitá-la, encontrou-se a fórmula do Alo Adicional
(Emenda Constitucional n. 0 4), que assegurou a posse do Pre-
sidente João Goulart, mas diminuiu-lhe os podêres, conferindo
a um Conselho de Ministros grande parcela de atribuições
executivas. Por fôrça do plebiscito de 7 de janeiro ele 1963, o
Ato Adicional foi revogado e restabelecido o regime da Cons-
tituição de 1946. O Sr. Leonel Brizola teve sempre relevante
papel em todas essas vicissitudes. Presentemente, o Sr. Leonel
Brizola, tudo o indica, parece não estar disposto a ser agente
PEQUENO TRATADO BRASll.F.IRO DA REVOLU~:ÂO S5

passivo dos acontecimentos e cada vez mais nêle se acentua


a característica oposta. t, hoje cm dia, um Hder populista, que
persegue, de modo consistente, o objetivo de interferir na con-
dução dos negócios públicos, segundo diretrizes e mélodos que
êle mesmo proclama "não-convencionais". Sem nenhuma dú-
vida, dentre os lideres populistas, o Sr. Leonel Urizola se des-
taca precisamente por sua capacidade de iniciativa política,
fundamentada nas virtualidades concretas da atual etapa em
que se encontra o País. O êxito do Sr. Leonel Brizola depende
da acurácia de sua avaliação dos acontecimentos, segundo o
"principio de limites". Ser estrêla ou meteoro é o dilema que
virá. Poderá permanecer muito tempo em crescente eminência
em nosso panorama político, se ajwtar a sua conduta às dr·
cunstâncias. Caso contrário, isto é, se tentar substituir-se ao
curso dos fatos ou clestorcê·los em incontido impulso subjetivo,
poderá ser repentinamente expelido cio proscênio político para
a penumbra onde mergulham os meteoros.

O !>rincít>io da classe social


Cumpre agora focalizar o principio da classe social, pondo
de lado a imensa controvérsia que o conceito de classe tem sus-
citado. t.ste princípio pode ser assim enunciado: "tôda revo-
lução tem destinatários". Jus1i(icam-na os interêsses de tais
destinatários que se proclamam contrariados pelo vigente dis-
positivo de poder. Evidentemente, uma verdadeira revolução
só se realiza quando o seu destinatário é uma classe ou coalizão
de classes representath·a de avanço no nível das fôrças produ-
tivas. A contra-revolução também tem destinatários: as classe~
passadistas que pretendem restaurar um estado de fôrças pro-
dutivas já liquidado ou em adiantada liquidação. Revolução
é forma aguda e crítica de luta de classes. Por ronseqüência,
o quadro revolucionário deve estar concretamente nela situado,
o que o compele a manter, de modo organizado, ligaçõe~ e rela-
ções com as categorias ou classes em nome de cujas reivindica-
ções realiza o trabalho de agitação social. Para o quadro revo-
lucionário estar situado concretamente na luta de classes equi-
vale a contar com uma organização mediante a qual garante
permanente contato com as camadas sociais que representa.
Sem essa e.spécie de organização, jamais se consegue promover
transformação de envergadura, no domínio econômic.o, político
36 MITO E VERDADE DA RF.VOJ.UÇ.ÃO BRASILEIRA

e social, e a própria estabi1idade no poder. Naturalmente, essas


observações se referem à época contemporânea. Nos períodos
:°:iêf~ep:;~a~~~~a c~:i1 ª:;:o~E;;!;i~~ 1;a~~~t:. ~~~~=~s d~º;!::-0

prêsa, putsch, meros golpes de Estado, mníinados nos setores


dominantes, sem nenhuma participação da maioria. Na ver-
dade, estas modificações eram promovidas no interêsse da mi-
noria e assim não careciam de transcender o seu âmbito, bastan-
do.lhe o vago assentimento da maioria. As revoluções contempo-
râneas, porém, têm outro caráter, na medida em que os seus diri-
gentes só conseguem obter o apoio das massas, quando diante
delas lhes parecem representar "a expressão de suas próprias ne-
cessidades" (Engels). ta ampla latitude dos suportes sociais elas
revoluções de hoje que as distingue elas revoluções do passado,
diferença de quan1idade que redunda em diferença de quali-
dade. Engels, sublinhando o fato, escreveu: (23 )
"T6das as revoluções si;: reduziram a1é hoje à derrocada do
dominio de uma classe determinada e sua substiluição por
ouira; mas, alé agoril, 11idas as classes dominantes eram sõmcntc
pequenas minorias compara1h·amen1e à massa dominada do
Pº"'º· 1''.ra derrubada uma minoria dmninilllle e outra minoria
tomava em suas mãos o limllo do Estado e lramformava as
inslilllições p1,blicas de acürdo com seus illlerêsse~. Ella minoria
era si::mpre o grupo que se capacitava para o domlnio e era
chamado a. êle pelas condi'i'!e~ do de~envolvimcnlo econômico,
sendo prc:ci•amentc JlOT i5sO que, quando da derrocada, a maio-
ria dominada ou tinha uma participação favorável à minoria ou,
pelo menos, a aceitava paclficamellle. Todavia, se abstrairmos
o conteúdo de cada caso, 11 forma comum de 16das euas revolu-
fiies eram revolurües de minorias (o grifo ~ nosso). Mesmo
quando a maioria presiava sua colaboração. o fazia - consciente
ou incomcien1emen1e - a serYiço de uma minoria; mas esra, seja
pela aliludc passiva ou não-resistente, da maioria, aparentava
representar lodo o povo."

No entanto, qualquer que seja a "forma" das revoluções,


isto é, tanto a pretérita como a atual, o principio da classe se
faz sempre observar. Tôda revolução tem deitinatários. Diver-
samente do que acontecia no passado, hoje êste principio im-
plica imperativo de organização. Sem suportei sociais organi-
zados, o poder não se conserva nas mãos dos que o exerçam. No
Brasil, o Sr. Jànio Quadros, uma vez na Preiidência da ·Re-
pública, pretendeu fazer uma "revolução" sem tais suportes.
Num dado momento, não eram claramente perceptiveis quais
os destinatários de seu govêrno. Um dito popular muito signi-
PEQUENO TRATADO BRASll.F.IRO DA RF.\'Ol.UÇÂO !7

ficativo diagnosticou na época o govêmo do ex-governador


paulista. Chamavam-lhe de "vento encanado" porque, expli·
cava-se, "(azia mal a Lodo mundo". Conhece-se a sorte cio Sr.
JAnio Quadros. Caiu do poder, deixando a nação atônita. O
princípio da das.se soda) não é ducubração abstrata de gahi·
nete. :t regra induzida da experiência concreta, da prática
revolucionária.

O princípio de totalidade
O princípio de totalidade deco1Te necessàriamente do obje-
tivo essencial de tôda revolução: modificai' ou suprimir uma
situação vigente. Lênin considerou o economismo e o sindica-
lismo formas menores ou bastardas de luta de class<:s, exatamente
porque se prendiam aos aspectos tópicos da realidade social,
sem compreendê-la em seu c:ar:iter geral. A luta econômica e
a luta sindical, quando não integradas numa estratégia e Lática
referidas à compreensão global da situação vigente, em última
análise reforça a minoria dominante, ou, quando muitD, pehl
capilaridade social e politic<i, apenas acarreta substituiçõe5 par-
dais dos titulares do poder, sem modificação de seu mntet\do
ideológico. Não subordinad<1 à consciência totalizame da socie-
dade e ao imperativo de substituir sua estrutura ;111;1crbnica
por outra, adequada às novas condições materiais, notad:i-
mente económicas, a luta sindical pode tornar-se sutil instru.
mento da minoria dominante para postergar a sua derrocad:i.
Deve-se levar à conta do que é lícito chamar a astúcia de tal
minoria a concessão de regalias a setores isolados d:i classe
operária, como por exemplo, vantagens salariais, partkipação
em setores da administração pública, acesso à Yida parlamentar.
Os beneficiários de tais vantagens se expõem ao emburguesa-
mento e dificilmente, graças à sua capacidade de agitação e à
eficácia do aparelho sindical de que dispõem ordini1riamcnt.e,
resistem a mistificar as massas, e a engDlhí-las, ao fazerem da
defesa de seus privilégios uma causa geral dos trabalhadores.
Um dos méritos de Lênin foi denunciar essa modalidade de
exploração do operariado pela aristocracia sindical, que fala
e decide em seu nome. Onde se forma tal aristocracia,
desfigura...se o movimento revolucionário, pela atuação de ver.
dadeiras "gangs", sindicais ou partidárias, que, graças aos oon·
trôles que têm nas mãos, exercem o coronelismo disfarçado em
38 MITO F. Vt-:RDADE DA RF.VOLUÇÁO BRASILEIRA

comunismo, socialismo, luta ideológica. l.ênin fêz a crítica des-


tas distorções, do ponto de vista revolucionráio, naturalmente
centrado no prindpio de totalidade. Insislia em "subordinar,
como a parte ao todo, a luta pelas reformas à luta revolucio-
nária pela liberdade e o socialismo." (2-1) •
O princípio de totalidade não concerne apenas aos assun-
tos de estratégia e tática. t. principio metódico, de análise cien-
tífica da realidade social. "Estudo concreto - diz l.ukacs -
significa: re1ação com a sociedade <."Olllo totalidade. Pois é sô-
mente nesta relação que a consciência que os homens podem
ter de sua existência, a cada momento, aparece em suas deter-
minações essenciais." f"~) A revolução é movimento ronsciente
que visa a efetivar uma possibilidade objetiva e esta só pode
ser conhecida concreta e objetivamente enquanto situada numa
totalidade. Por isso não h:i modelos uniformes ele revolução.
Cada uma é questão específica. Na realidade social, há mil e
uma combinações de fatôres, e um projeto revoluciomlrio que
num momento seria insensato, noutro momento pode torná-lo
períeitamente viável, o elo mais fraco de uma cadeia de circuns-
tâncias. A utilidade metóclica da categoria de totalidade, no
tocante à revolução, consiste cm que serve para determinar o
elo mais fraco. Assim o entendia Lênin, o primeiro a lançar
esta expressão de que os estudiosos não têm advertido suficien-
temente as implicações metodológicas e conceptuais. Nunca
será realmente líder revolucionário quem não saiba, com pre-
cisão, enxergar o instante do agora ou nunca, quem, prêso a
comandos rígidos, a fórmulas fixas, não sabe encontrar o ela
mais fraco de uma situação e, a partir daí, tomar uma decisão.
"Tdda questão - diz Lênin - move-se num círculo vicioso,
pois tôda a vida política é cadeia sem fim, composta de série
infinita de elos. A arte tôda de um político está exatamente
em encontrar e segurar com fôrça aquêle elo que mais dincil-
mente lhe possa ser attancado das mãos, que seja o mais impor-
tante no momento dado, que garanta o mais possível a quem
o possua a posse de tôda corrente." (211 )
O elo mais fraco constitui contribuição original de Unin
para a teoria de revolução. Não tinha sido previsto nem por
Marx, nem por Engels. Por exemplo: consideravam o socialis-
mo sàmente possível de vingar nos países que, em sua época,
se encontravam em adiantada industrialização, e onde se cons-
!~~~;i~~~*~i~~0E:r0:p~~~J:1:~~aÁ~~o!~fo~es;:~~=:
PF.QUENO TRATADO BRAS1u:1Ro PA lt.l·:VOLUÇÃO 39

pela Rússia e mantiveram c:orrespondénci:1 com revolucionários


désse pais. Mas em suas observações mmrn pre'liiram a possi-
bilidade do que efetivamente ocorreu cm 1917. Sustentaram
Marx e Engels, a respeito da Rússia, posições "menc:hevistas"
tão estigmatizadas por Lênin, isto é, o ponto de vista de que
a tarefa revolucionária naquele pais não poderia ir além da
implantação da democracia burguesa. Os próprios líderes bol-
chevistas, inclusive Lênin, participavam dêsse modo de ver,
até poucos meses antes da Revolução de Outubro. Várias te-
riam sido as razões que le\'aram Lênin a mudar bruscamente
em 1917. Entre essas razões está a convicção, que firmou nessa
data, de que se o mundo capitalista de sua época fôsse consi-
derado como uma cadeia, o elo mais fraco desta era então a
Rússia. A revolução socialista destruiria êsse elo e com isso
acarretaria a revolução socialista mundial. t de ver-se que a
conclusão em aprêço supõe prévia análise da situação do capi-
talismo mundial como totalidade mnueta. Não se confirmou
totalmente a expectativa de Lênin, porque os outros países não
responderam à Rússia com a derrocada da burguesia, mas o
êxito da Revolução de Outubro demonstrou que o elo mais
fraco do capitalismo estava realmente onde Lênin o apontava.

Internacionalismo e revolUfão
A luz dos princípios expostos, induzidos da prôpria pr:i-
tica, impõe-se observar que a revolução é menos um modêlo
do que uma atitude metódica. A Hhtória prova que t! teme-
rário afirmar em tese as condições da revolução, por exemplo,
dizer que onde não surge um operariado urbano não pode
ocorrer uma revolução socialista. A Histúria demonstra que
Marx e Engels fizeram extrapolações indéhitas, ao se deixarem
impressionar pela idéia modelai· de revolução. t.les, alias, o
confessam. Falando por seu nome e no de Marx, Engels de-
clara que suas considerações sôbre a revolução proclamada em
Paris, cm fevereiro de 1848, "estavam fortemente coloridas pela
lembrança dos modelos ele 1789 e 1830".(27 ) No entanto -
escreve Engels, em março de 1895 - "a História nos desmentiu
e a todos os que pensavam de maneira análoga". (28)
Não é dialético pensar em têrmos de modêlo de revolução.
Não é dialético subordinar o trabalho revoluciomírio num pais
a critérios externos, seja livremente adotados, seja muito
40 :\llTO E \'ERDADE DA u:vo1.1•ç.Ão BRASll.F.IRA

menos dogmàticamente impostos. Na'" medida em que desna-


tura o trabalho revolucionário em cada país, o internaciona-
lismo hoje é algo nefasto. 't natural que õLS revoluções de
grande conteúdo libertário tenham exercido sempre influência
generalizada. A Revolução Americana e a Francesa granjearam
entusiastas em todo o mundo. Por assim dizer, em fonção delas
surgiram internacionais, sob a forma de mo\'imentos espontâ-
neos. Os inconfidentes mineiros eram admiradores da Revolu-
ção Americana e entre êles houve mesmo quem tivesse tentado
conquistar o apoio direto de políticos norte-americanos para a
conspiração.
Desde a segunda metade do século passado, as internacio-
nais se constituem em bases organizadas. Recentemente, até
Estados passaram a integrá-las. Há, por exemplo, uma inter·
nacional soviética, outra chinesa, outra cubana, tõdas a serviço
de razões de Estado em escala mundial, cada uma agindo com
suportes organizacionais e financeiros. O fent>meno não pode
ser visto à luz da indignação moral. A despeito de suas diver·
gências e particularidades, os regimes vigentes na União SoviC-
tica, na China e em Cuba têm efetivamente largo sentido
libertário de interêsse universal. Mas cada Govêrno dêsses paí-
ses tem problemas próprios de segurança e, por isso, são inevi-
tàvelmente compelidos à instauração de dispositivos, tanto na-
cionais como internacionais, conduzidos segundo as respectiv;L~
razões de Estado. No Brasil, é notória a existência de círculos
que atuam politicamente como unidades daquelas internacio-
nais. Essas unidades, como outras que lhe são antipodas, entre
as quais o MAC, de intuitos norte-americanizantes, têm sua
ra1.ões de Estado. No Brasíl, C notória a existência de drculos
sentam dados relevantes da vida partidária e, assim sendo, não
podem ser descuradas. Pode ocorrer que, beneficiando-se da
debilidade na liderança de movimentos nacionais, êles logrem
empolgar largamente a direção das lutas partidárias, como j:í
tem acontecido, disto resultando grave distorção, ou seja um
balanço pervertido entre infiuências internas e externas, pela
indevida preponderância destas sôbre aquelas.
Uma das tarefas mais urgentes nos dias de hoje, entre nós,
consiste em criar uma vanguarda política, que não tema pres-
sões levianas e aventureiristas, que ordinàriamente se fazem
sob inspiração externa. Nossa vida política não se resume na
tensão entre os círculos que no Brasil agem como teleguiados
de "internacionais", seja de direita, seja de esquerda. Ela tem
PEQUF.SO TRAl'ADO KRASll.Elk<> DA REVOl.tJÇÁO 41

critérios próprios, e seu hori1.0nte transcende o horizonte limita-


do dêsses círculos. Certo "internacionalismo" é hoje a doença
infantil do movimento socialista brasileiro. !ste movimento
não adquire os atributos de adulto, enquanto não se constituir
uma liderança C'apaz de rnnduzi-lo, segundo estratégia e tática
apropriadas à realidade brasileira, e às quais se subordinem mes-
mo as conveniências estratégicas e táticas de idênticos movi-
mentos no exterior. As razões internas do movimento de liber-
tação nacional primiim sôhre quaisquer ra7.Ões "internacionais''.
Assim, não são os amigos profissionais de Cuba, da China e da
União Soviética, entre os quais os há sinceros, ingênuos e até
mercenários, que rnbe liderar o nosso movimento socialista. Há
de constituir-se, em breve, uma liderança capaz de conduzi-lo
segundo sadio internacionalismo, que, por juízos próprios, sa-
berá quando e <.'omo deve apoiar gestão ou providênda, em
favor de eventual causa externa.

Decisão #HJlítica e determinismo econômico


Ao fim de nrnis de um sél:ulo de marxismo militante e
sob os efeitos elucidativos das contemportmeas experiências de
socialismo em v:lrios pontos da Terra, a revolução apresenta
hoje inédita equação histórica. Os textos de Marx e Engels
boje não são mais que subsídios. As revoluções socialistas, no-
tadameme a soviética, a chinesa e a cubana, constituem episó-
dios que cara<:tcri:tam nova época histórica, da qual alguns
aspectos meret-em destaque.
Os povos estão saindo de um período em que a revolução
se verificava sob os efeitos da predominância vegetativa do
fato econômico para outro em que as decisões políticas vão
tomando o lugar do determinismo econômico. Esta é a prin-
cipal particularidade histórica de nosso tempo. Marx escreveu
em 1859 que: "O modo de produção de vida material condi-
ciona em geral o processo da vida social, politica e intelectual."
E ainda que: "Nenhuma formação social desaparece antes que
se desenvolvam tôdas as fõrças produtivas que ela contém, e
jamais aparecem relações de produção novas e mais altas, antes
de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as con-
dições materiais para a sua existência."
Estas afirmativas seriam corretas no pressuposto de que o
papel dominante do fator económico na revolução continuasse
42 MITO E Vl-:RDt'IDE U.\ Rl::VOl.VÇÂO Bll.ASll.F.lRA

a exercer-se à revelia da consciência política. Mas a primeira


demonstração da não-validade do pressupouo foi a Revolução
de 1917 na Rússia e a constituição cio regime soviético. 2.ssc
acontecimento, na verdade, é tributário do marxismo, embora
negue dialCticamentc um de seus enunciados metodológicm. A
Rússia em 1917 era um país atrasado que, a serem válidas
aquelas arirmativas, deveria percorrer os graus ele evolução por
que tinham já passado os paises da Europa ocidental, a fim
de obter as condições de uma revolução socialista. No entanto,
o grupo que em 1917 tomou o poder na Rússia imprimiu ao
processo histórico uma urgência que não lhe adviria, sem .deci-
sões políticas, conscientes e sistemáticas. Posteriormente a
China passou de uma fase pré-capitalista para o socialhmo e,
nos dias correntes, nesse pais, populações primitivas nômades
estão sendo organizadas em comunas populares socialistas em
que se têm mesmo verificado casos em que ex-escravos se trans-
formam em dirigentes socialistas. Na América Lntina, um dos
países de mais incipiente sistema capitalista, Cuba, tornou-se
socialista.
Marx e Engels não puderam prever que o conhecimento
objetivo do fenômeno polilit-o e das condições da evolução per-
mitiriam aos quadros revolucionários tornarem-se agentes ati·
vos dos acontecimenLos e acelerarem o processo social. Uma
coisa é a evoluç~o da sociedade sem que nem os cidadãos nem
os dirigenLes estejam providos da compreensão objetiva
de seu movimento. Outra coisa é tal evolução ocorrer
guiada por uma teoria. A evolução social, de fato, tenderia
a verificar-se conforme o enunciado de Marx, ali onde o co-
nhecimento objetivo de seus fatôres ou não existisse ou não
estivesse encarnado socialmente numa organização revolucio-
nária, militante, e sistemàticamente interessada em acelerar o
ritmo dos acontecimentos.

lneditismo da época contemporânea

Nossa época apresenta específicas condições revolucionárias.


Hoje a consciência humana, por fôrça do avanço do pen-
samento científico, tende a participar dos acontecimentos numa
escala que não tem similar no passado. A presente tende a
ser uma época de desenvolvimento consciente dos povos. Dêste
l'F.QllF."'0 TRATADO bRA\11.l::IRO DA RJ..VOl.l;'ÇÃO ·1-'
mo.do, o fato da emlução e da revolução mesmas se lornou
nôvo. A revolução social não se e1womra mais cnrndeada nos
condicionamentos vegetativos, que impressionaram Marx. t
certo que a revolução não se reali7.a no v;kuo, não se efetiva,
segundo a conc-cpção voluntarista, como um at~ livre do qu:i-
dro mililante, mas ao contrário, depende de cirrnnstâncias
ex.ternas à vontade. Mas hoje, cm tôda parte, a qualidade de
tais circumtâncias é tão alta que orerece relativamente escassa
inércia ao empreendimento revolucionário. Dizer que a quali-
dade das circunstâncias é alla é dizer que a subjetividade huma-
na passou a ser, hoje mais do que nunca, significativo elemento
constitutivo delas. A atual circunstância dos povos apresenta
grande teor de racionalidade quando se compara rom a cios
povos no passado.
Pela primeira vez, na presente época, a civilização se tor-
nou fato universal. Em outras palavras, a cultura e a técnica
não se apresemam em lugares privilegfados do planêta, como
ocorria até recentemente. C.:ivilização e barbárie não são cate-
gorias geográficas, são categorias sociais. Os povos mais desfavo-
recidos, do ponto de vista material, podem ingressar no mais
alto nível de subjetividade da época, por intermédio de seus
quadros dirigentes. Não será isso que se comprova em nossos
dias? Coletividades que, não há muito, ilustravam a barbárie
organizam-se em formas his16ricas superiores e, através dos
seus quadros dirigentes, logram obter destacada influência no
campo internacional. Um território, por exemplo, como o
de Quénia, em breve adquirirá o estatuto de nação, saltando
assim as suas populações de estádios tribais para um enádio
qile, no presente, é o mais elevado. Quénia, como outros terri-
tórios da Alrica e da Ásia, é teatro de revoluções que não obe-
decem à lei formulada por Marx. A universalização da civili-
zação eleva a consciência das massas em tôda parte, propicia
a formação de quadros hábeis para mobilizá-las em projetos rc-
"\"olucionários que ultrapassam de muito a qualiclacle material
de suas circunstâncias vegetativas.
Nos dias de hoje, o socialismo se tornou processo mundial.
Não é mais apenas teoria de isolados intelectuais subversivm.
Não é mais regime concreto geogràficamente segregado. t uma
fôrça mundial, que se faz sentir sob a forma de consciência
reivindicadora dos povos, principalmente dos chamados sub-
desenvolvidos, e sob a forma de solidariedade ativa das massas,
contra o colonialismo em tôdas as suas modalidades. O soda-
:\llTO ~: V!:RDADE DA REVOLUÇÂO BRASILEIRA

lismo é o modêlo de tôda revolução popular ela presente época,


independentemente da qualidade do modo de produção. Assim
pode surgir, mesmo onde não ocorra a roncentração de capital
que Marx julgava ser a preliminar indispensável ao advento
do socialismo. Os revoludonários de Quênia não se renderam
ao caráter tribal da organização social das populações resi-
dentes nesse território. Adaptaram a tática de agitação anti-
colonialista àquele nível de organização, e lograram promover
populações tribalizadas à prática de um terrorismo histbrica-
mente avançado (o dos Mau-Mau). O terrorismo Mau-Mau
é um grande salto histórico para uma população tribal. Os
Kikuyus, ràpidamente, atingiram o nível de consciência histó-
rica dos maquis na França. São ocoITências possíveis tão-só
num mundo histbricamente unificado, como o nosso, em que
a subjetividade das populações tende a nivelar-se.
Resulta assim anacrônico o clássico modêlo marxista de
revolução, segundo o qual cada sociedade teria de percorrer,
um após outro, os direrentes modos de produção até chegar
ao socialismo. O modêlo tem validade restrita. Isto é, ajusta-se
hoje a tipos de sociedade onde chegou a constituir-se um capi-
talismo nacional e, assim, uma dasse burguesa beneficiada pelo
processo de acumulação interna do capital, e que se sente expio·
rada pelo setor estrangeiro da economia, ali onde, ademais, se
constitui um proletariado para o qual a liberação Ue tal bur-
guesia implica a conquista de melhores condições de vida
para si, em decorrência de uma expansão cio sistema. Neste
caso "a formação social" tende a não ser destruída violenta-
mente desde que "se desenvolvam as fõrças produtivas que
contém''. Assim mesmo, se a classe dominante, por temor ao
fortalecimento .do proletariado interno, além de outros moti·
vos, resignar-se à leonina co-participação de titulares estrangei-
ros no proces...o de acumulação ele capital, e conduzir o sistema
económico-social à rigidez, a alternativa socialista se torna ne-
cessàriamente imposta como tarefa insurrecional.
Nos territórios ocupados por emprêsas capitalistas estran-
geiras e nos países que nada mais são do que simulacros dessa
espécie de territórios, a revolução social tende a assumir cará-
ter socialista, criando sistemas econômicos em que prevalece o
setor público sôbre o setor privado. Foi o que aconteceu na
China Popular. Foi o que aconteceu em Cuba. E o que tem
acontecido em diversos territórios recém-libertados na África
e na Ásia.
PEQl~ESO 111.A.TArm llR.ASILF.IRO DA RF.VOLUÇÂO 45

Assim com_o a Revolução Francesa de 1789 e as revoluções


de 1818 na Europa levaram Marx e Engels a uma visão destor-
dda da tarefa revolucionária, também efeito idêntico tiveram
os episódios de 1917 na Rússia. O prestigio da Revolução de
1917 perturbou, em todo o mundo, a formação de uma teoria
das lutas sociais nos diferentes países, induzida de suas par-
ticularidades históricas. Do mesmo modo, agora, a Revolução
Cubana exerce o seu efeito à distância, induzindo muitos dr-
culos de vanguarda a admitirem que o seu modêlo pode ~er
repetido. Por ocasião da crise de agôsto de 1961, resultante
da renúncia do Sr. Jãnio Quadros, correu a notícia de que um
grupo de estudantes se ocultou no interior de Minas Gerais, a
fim de, à luz dos ensinamentos de "Che" Guevara, procederem,
se füsse necessário, à organização de fôrça guerrilheira campo-
nesa. 2ste fato lembra conduta semelhante do nosso Partido
Comunista que, durante algum tempo, innuenciado pela estra·
tégia e tática do Partido Comunista Chinês, pretendeu a der.
rocada da burguesia no Brasil, pela insurreição ele camponeses
organil3dos em um Exército Revolucionário. De resto, o Par-
tido Comunista do Urasil mecânicamente submetido a diretriies
soviéticas foi sempre fator de perturbação, no tocante ao esfôrço
de constituir um pensamento revolucionário verdadeiramente
nacional.
Em tôda parte, na África, na Asia e na América Latina,
elucidadas pelas frustrações que têm coroado as tentativas alie-
nadas de revolução, as vanguardas estão em bwca de diretrizes
ajustadas às condições específicas de cada coletividade. Entre
elas vai-se firmando o salutar entendimento de que a icleali·
7.ação dos modelos de revoluções acontecidas não é mais admis-
sivel entre aquêles que proft5sam respeito à objetividade his-
tórica. As revoluções acontecidas lhes parecem constituir hoje
necessàriamente elementos subsidiários.

A atitude revolucionária
A história decorrida das lutas sociais revela que o elemento
decisivo que assegura o êxito de tôda revolução não é um mo-
dêlo prévio dt5ta, mas a objetividade da atitude revolucioná·
ria dos que a empreendem. t assim impossível uma teoria da
revolução, à maneira de receita a ser seguida em face de deter-
minada situação. Os êxitos de U:nin, de Fidel Castro e seu
grupo se devem menos a uma teoria revolucionária concluída
:\111"0 t: n:RllAl>t'. J>A RF.\'Dl.l:ÇÃO BRASILEIRA

do que à atitude revolucionária que os tornou aptos a tirar


partido das circunstâncias particulares que viveram quando
decidiram tomar o poder. Em outras palavras, só é possível
fazer a teoria das revoluções que aconteceram, e não das revo-
luções por acontecer. Elaborar uma teoria da reyoluçãQ romo
algo final é aspiração de professôres, Não é tarefa de revolu-
ciomirios. O que importa, portanto, nessa ordem de idéas, é
descrever as características da atitude revolucionária, proceder
!:~~ [:e~~:e~~~~fj~a ~Of~~~: r~:IÇ=ê<f': a~e C~~:~!~a~
pecado do revisionismo, depois de Kautsky, maquiavClicamente
utizado por Lênin como instrumento de intimidação, e nisto
seguido por Stalin e Mao Tse-Tung, com o propósito de criar
ortodoxia revolucionária mundial, para fins de assegurar uma
liderança hegemônica. Não há nada mais pernicio&o ao trabalho
revolucionário do que os escritos de Marx, Engels, Lênin,
Stalin, Mao Tse-Tung, quando se lhes emprestam atributos bi-
bli.cos, ou evangêlicos.
t legítima, no entanto, a tarefa de descrever as caracterís-
ticas da atitude revolucionária objetiva, algumas das quais, em
conclusão, apresentaremos a seguir.
1) A atitude revolucionária implica a indignação moral con-
tra uma or~em de coisas, que se mostra à consciência do
revolucionário como injusta do ponto de vista do interêsse
geral da coletividade. O elemento ético não pode faltar
em nenhuma revolução, porque é êle que polariza os esfor-
ços dos cidadãos, levando-os, sob a fôrça de um imperativo
.da consciência, a sacrmcar as comodidades quoticlian.n
de que desfrutem porventura, a fim de cumprir tarefas de
sentido coletivo. A nova sociedade que os revolucionári05
desejam implantar em nome da necessidade histórica con-
tém uma ética, que é vivida por antecipação. Nesta vivên-
da reside o traço distintivo de tôda conduta revolucionária.
A revolução é criação histórica, e assim implica a adesão
a um valor ainda não socialmente encarnado. O revolucio-
nário erige uma possibilidade de sua época à categoria de
imperativo ético. Por isso, parecem-lhe execr:ívei5 os que
se apegam aos modos anacrónicos de ser.
2) A atitude revolucionária implica a certeza de que os supor-
tes da ordem social vigente se encontram em processo de
irremediável deterioração. Todos os revolucionários con-
l'J-:QUF.NO TRATADO BRASU.EIRO DA RF.VOLUÇÂO 47

sideram a história como sua aliada. A sua tarefa portanto


apresenta-se-lhes como fundada numa lei dos fatos. Não
se lhes afigura arbitrária. Karl Jaspers falou numa "fé fi-
losófica", t. lícito afirmar que o revolucionário tem "fé
sociológica", isto é, uma fé cujo fundamento não é místico
nem irracional, mas as tendências reais do movimento so-
cial, a objetiva razão histórica da época.
3) A atitude revolucionária supõe que o momento da insur-
reição é condicionado objetivamente pelo processo histó-
rico-social, mas o fato de deflagrá-la é ato responsável e
livre do líder ou do aparelho de liderança, que põe à
prova a sua clarividência. A razão histórica trabalha pelo
revolucionário, mas por si só não promove o colapso da
ordem existente. Chega um momento em que se confi-
gura uma "situação revolucionária" que pode ser abortada,
se um agente ativo do processo histórico, um liderou um
quadro de militantes não fôr capaz de tomar a iniciativa
da insurreição. Há no processo histórico-social espaço
aberto à liberdade do individuo. O individuo é tambCm
capaz de criação histórica e isto se comprova tôda vez
que procede a mudanças sociais deliberadas, naturalmente
segundo as possibilidades concretas ao seu alcance.
4) A atitude revolucionária não se submete a modelos finais
de revolução, antes, pelo contrário, confia na possibilidade
de inovar no terreno da estratégia e da tálica, a fim de
responder adequadamente ao ineditismo de vicissitudes
históricas concretas. Todo revolucionário é revi.sionista,
porque sabe que não existem receitas para a revolução,
porque sabe que o êxico de sua façanha depende de, em
tempo hábil, tirar partido das circunstâncias favoráveis
ao seu projeto de criação histórica.
5) A atilude revolucionária é realista e, portanto, não sacri-
fica um avanço possível por uma exigência supostamente
ortodoxa que exorbite das condições viáveis num deter-
minado momento. Todo revolucionário tem um proble-
ma de "linha justa", mas esta não pode ser ditada por
nenhuma agência oracular, esiranha à sociedade, nem pode
ser deduzida de poslulados dogmàticamente impostos. A
"linha jusla" da revolução é diretriz necessàriamente indu-
zida de condições particulares em que se encontra direta-
mente o quadro militante.
48 MITO E VERDADE DA Rl-'.VOl.L'ÇÁO BRASIUIRA

A .situação revolucionária
A atitude revolucionária revela o seu realismo ao tirar
partido das possibilidades que lhe oferece a situação revolucio-
nária. A luz dos informes históricos existentes, é possJvel apon-
tar alguns dos mais constantes sintomas de tal situação. Essa
indagação não é ociosa, antes concsponde a requisito para o
cabal cumprimento da tarefa revolucionária. Queremos dizer:
é preciso conhecer os sintomas daquela situação não para con-
templá-los como quem se satisfaz com o mero prazer intelectual,
mas à guisa de reconhecimento prévio de um terreno que se
sabe vai ser teatro de decisiva ba1alha. Entre tais sintomas os
que, a seguir, serão discriminados, afiguram-se os mais salientes:

1 - Perda pela minoria dominante do contrôle da situação


econômica e política. Uma minoria é dominante, durante e
enquanto tem capacidade para controlar, em seus aspectos
essenciais, o movimento económico e o movimento polltico.
Com efeito, tôda minoria dominante tem ligações consistentes
com definidos setores econômicos. Nem sempre, no entanto,
os interêsses dêsses setores coincidem ou mesmo se acomodam
com o da economia em geral. Com o desenvolvimento das
fôrças produth•as-, outros setores pas.~am a adquirir condições
de preeminência, que, por sua vez, tendem a ser traduzidas em
têrmos de poder. A luta entre êsses setores se reflete como de-
sordem económica e pode ser dirimida por um compromis~o
de que resulta nova composição da minoria dominante. Acon-
tece, porém, em determinados momentos, que o interêsse geral
da economia não se compadeça com nenhuma composição a
que se disponha a minoria. Neste caso, por carecerem de posi-
tividade as suas decisões, escapa de suas mãos o contrôle efe·
tiva do mO\rimento económico. Estabelece-se a anarquia finan-
ceira e económica, que persiste até que surja um nôvo poder,
em consonância com o estadão vigente das fôrças prodmivas.
A correlação entre contrôle económico e contrôle político é
iniludível, isto é, enquanto o papel de uma minoria dominante,
a despeito dos privilégios desta, exprime as necessidades do
sistema produtivo, levando-o para diante, tal minoria normal-
mente está habililada para conduzir o movimento político. A
anarquia financeira e econômica é, assim, o reverso da anarquia
política. Estudiosos de diferentes posições metodológicas tCm
l'}:Ql"Jl:-0:0 TRAT,\1)() llRASIU'.IRO UA REVOl.UÇÃO 49

assinalado a vinculação do fato revolucionário à crise no âmbi-


to da minoria dominante. Gaetano Mosca, por exemplo,
observa que tôda classe dirigente "só se mantém enquanto fôr
capaz de não permilir que qualquer "fôrça social" importante
que acaso se ronslitua se organize fora do horizonte de sua
direção". (29 ) E Lênin escreveu cm A Doc11ça lllfantif dtJ
"Esqucrdismo" no Comunismo que, "para a revolução, é neces-
sário que os exploradores não possam continuar vivendo e go-
vernamlo ':omo vh-em e governam". E esclareceu: "Só quando
os "de baixo" não querem e os "de f'ima" não podem continuar
~~:~0pi:;la~:,~~ ~1t1~;~~r~al~e e~1~~:!~~~!:;u:~it~n~~do~~
revoluç-Jo é impossivel sem uma crise geral (que afete explo-
radores e explorados." (ªº) Considerou Lênin "lei fundamen-
tal" êsse enunciado.
:2ste sintoma pré-revolucionário é hoje ostensivo na sima.
ção do Brnsil. De longa daca, a inflação constitui, entre nós,
sinal de crise, de um dissidio entre categorias sociai.~ em disputa
por melhor participação na renda social produzida, disputa
que cresce em dramaticidade, na proporção cm que se acentua
a inconciliabilidade dos interêsses em jôgo. Tudo indica que
se torna cada vez menos pratk;ívcl obter uma ammodação dos
inlerêsses que representam, no Brallil de hoje, o laLifímdio
pré-capitalisLa e os exportadores (principalmcme do café), os
capitais estrangeiros, o empresariado vinculado à acumulação
interna do capilal e o pí1hlic:o em geral. A política financeira
do Govêrno não se decidindo, cm caráter sistcmáliro, por ne·
nhum dêsLes setores, tende a descontentar a todo~. Se, em
tempo, não encontrar a equação interna da emnomia nacional,
o agravamento da inflação acarretará uma crise geral, susccp-
tível de converter-se em fator eminente e iminente da revolução.
As démtu·cllc.r pelo sucessor do Presidente Kubitschek mos-
traram que, em 1960, já fugira mmpletamcntc da minoria do-
minante o contrôle da situação política, uma vez que foi com-
pelida a aceitar candidaturas consolidadas contra as suas con-
veniências. Dai para c:i, tem-se aguçado essa inrnpacidade.

11 - Acentuada consciincia coletiva da caducidade do


sistema institucional vigente. Nenhum regime est<i ameaçado
enquanto as instituições cm (1ue se concretiza contam com um
minimo de consentimento social. Têm-no quando, pelo menos,
não consticuem alvo de reiterada condenação pública. O des-
511 MITO F. VF.RDAlll:'. llA R~:vou·~:Ão. BRASILEIRA

c:ompasso das instituições em relação à realidade social se tra-


duz, no plano subjetivo, sob a forma de repulsa popular ao
que se considera sobrevivência do passado, remanescente, "anti-
go regime". Como mostrou Crane Brinton, quando uma situa-
ç.ão vigente assume, aos olhos das camadas populares, o car.iter
de "antigo regime", os seus dias estão inexorhelmente conta-
dos. T6da revolução é inspirada por um ideal de atualização,
de contemporaneidade, que indispõe os seus adeptos contra
tudo o que é considerado anacrônico, superado, velho. :Eviden-
temente êsses aspectos subjetivos não são moda arbitrária, têm
fundamento concreto no mal-estar resulta,nte da incapacidade
efetiva das instituições no atendimento dos redamos sociais.
Por isso, é exato dizer-se, com Lênin, que, "quando as camadas
"de baixo" não querem o velho ... a revolução pode triunfar".
Aliás, mesmo a sociologia burguesa, de Comte aos neopositi-
vistas de hoje, acolhe pacificamente a verificação de que sem
consenso coletivo não h:í estabilidade social.
Também não falta no Brasil de hoje eSLa nota pré-revolu-
cionária, São exceção os que não participam cio côro contra
as instituições. 1'a hol'a eleitoral, tanto os partidos de esquerda
como os de direita são unânimes em pregar a urgência das re-
formas. Ninguém ousa defender o status quo de público. Duas
dessas reformas dão a metlida da reinante crise institucional: a
reforma agr;íria .e a reforma universiuíria. A primeira, signi-
ficativo contingente político a quer radical, envolvendo restri-
ção essencial ao direito de propriedade privada, e o próprio
Presidente da República endossa o propósilo de reformar a
~~~::i!~i~~~ti~:r~~~::i~s ~L~e !:~~~[a~~~a~~~iiada.in~e~h~
macia reforma universitária, que empolga o estudante brasi-
leiro, é animada não apenas pela intenção de alterar a admi-
nistração das escolas, mas atinge fundo o conteúdo do ensino.
Pretende-se desalienar o sistema educacional, conferindo-lhe
sentido que ainda não tem, sentido correspondente ao das con-
dições que surgiram recentemente no Pais. Considerados êsses
e outros objetivos de reforma em conjunto, se espelha nltido
projeto revolucionário.

III - lneficiincia do aparelho governamental no tocante


aos negócios ordinários e especialmente à defesa da autoridade
e do regime. :t êste um dos sinais inequlvocos da situação revo-
lucionária. Nela, os serviços do Estado entram em falência
PEQUENO TRATADO BRASILEIRO DA REVOLUÇÃO 51

ostensiva, firmando-se cada vez mais nas camadas populares a


convicção de que constituem pêso morto, pois sua vinculação
às necessidades públicas é nula ou escassa. No corpo burocrá-
tico reinam a indisciplina, a desídia, a desnaturação das hierar-
quias funcionais, a confusão nos crilérios de trabalho, atmosfera
~e~.S:~~;;: ~~:nrs~r:~~~ c~ru:v~1~~~ t:~1;;irde!e º~~~~
peito pelos funcionários, os quais já não exibem a "moral
alta" de outros tempos. A atitude negativa do público renete·
se no corpo de servidores do Estado, dos mais altos aos mais
baixos, como uma espécie de complexo de culpa, passando os
próprios agentes do Estado a aderir às criticas que são dirigidas
à instituição burocrática e administrativa. Próxima de um des-
fecho dramático se encontra a situação revolucionária quando
o aparelho de segurança nacional reage de modo lerdo e insa-
tisfatório, com tolerância às manifestações contra o status quo.
Acontece mesmo que uma parte dos agentes do Estado se torna,
no interior dêste, conivente com a oposição que, na sociedade,
o condena como anacrónico. Começa, desde então, a dualidade
de poder que, no momento insurrecional, dcdara-se com 1ôda
a nitidez.
Basta ligeira inspeção para surpreender no Hrasil de hoje
êsses sinais. A deterioração de nossos serviços públicos atingiu,
nos dias atuais, a um grau sem precedente. É patente a anar-
quia reinante no domínio dos direitos e deveres, vantagens e
~~~~~~~~~pl~~!e;s:;;ri~i~a~.m~:J:~~i~ ~~tsad6org::· e:Ji~~ci~~
públicos: o desleixo aí se retrata sob o aspecto da degradação
material. A precariedade física dos próprios do Estado nos dias
atuais é algo de estarrecer. Mais grave, porém, do que essa
precariedade Usica é o panorama subjetivo dos círculos gover-
namentais. Nêles se observa temerária divisão. O propósito de
modificação do regime encontra adeptos nos quadros governa·
mentais. Ministros, parlamentares, militares aliam-se a movi-
mentos inconformistas, e disputam o [avor de correntes de
opinião radicalizadas. Por exemplo, homens romo o General
Osvino Alves, o Sr. Leonel Hrizola e o Ministro Almino (•)
são expressões de inconformismo, e nem por isso deixam de ter
livre trânsito nas altas esferas ofidais. Evidentemente, quando
(º) Escrilo antes ela refonna ministerial de junho (1963). Não paMOu a
!\linillro da Guerra o General c>s~ino, como esperava sua corren1c. Foi cxone-
p.do o Ministro Almino Afonso. f.SSC!i awn1cciaum1os (Onfinoam noua anüise.
52 :\1 rro I~ \'lo:RDADF. DA RH'Ol.uc;_:Ão BRASii.EiRA

o poder, por complacência, deixa de ser impositivo, é quj! seus


alicerces se encontram abalados.
IV - Deserção dos intelectuais. A despeito de suas dife-
rentes motivações ideológkas e da \'aricclade de sua formação,
os intelectuais constituem, cm <:<>njunto, uma camada de pessoas
que pretendem conduta inteligente e, portanto, superior à da-
queles que de ordinário não vi\'em sob o prisma da reflexão.
Na situação revolucionária, a esterilidade da função da mino-
ria dominante a incompatibiliza em tal escala com o resto da
sociedade, que os intelectuais, sensfveis mais do que quaisquer
outros individuas à execração e repúdio públicos, recusa-se a
lhe dar apoio. Os intelectuais conservadores desertam de
suas posições antigas, e passam a abraçar novas idéias, tanto
mais depressa quanto mais avança o processo revolucionário, ao
mesmo tempo em que intelectuais antes marginalizados nas
esferas consagra.das do chamado mundo cultural passam .a ser
ai admitidos e por fim festejados. Esboça-se nôvo sistema de
prêmios e castigos para o exercício do trabalho intelectual, sur-
gem no\'OS critérios de avaliação do êxito cultural e cientifico.
A adesão a tais critérios se torna crescente, dela resultando pro-
porcional esvaziamento da situação reinante.
Ilustraremos êsse aspecto da situação revolucionária. Os
intelectuais que no Brasil preconiza\1 am, no início da década
passada, a necessidade de estudar a realidade nacional numa
perspectiva própria, e do ponto de vista sistemático do desen-
\•olvimento, eram \'erdade1ras a\•es solitiírias. Tiveram de sus·
tentar duras polêmkas com a V<"iha guarda dos intelectuais.
São êstes, em maioria, que hoje aceitam o que combatiam. A
instituição universitária brasileira começa a dar sinal de que
acordou. Pelo menos aparentemente parece estar disposta a
reorientar-se: funda institutos, instaura revistas, cria cursos,
aprova teses de concurso, em que é dominante o oonteúilo de
idéias inexoráveis com o Brasil ainda remanescente. Em suma,
hoje, entre nós, nenhum intelectual consegue êxito em sua car-
reira se estiver em conflito com as idéias que, há dez anos
aproximadamente, marginalizavam os que se dedicaram, de
modo pioneiro, il sua elaboração e difusão.
V - Espontâneos movimentos de massa e organização
revolucionária. Os elementos da no\'a sociedade em emergên-
cia se afirmam pmgressi\•amente na simação revolucionária de
modo irrevereme e intransigemc. O descontentamento lC\·a
PEQUF.NO TRATADO BRASIU-:IRO DA REVOLUÇÃO 53

as massas a tomarem em suas mãos a defesa do que proclamam


sew interêsses, recorrendo desde as formas costumeiras de pro-
testo, como dissídios e greves, até aos recursos dramáticos, como
a depredação, o assalto, o motim. Na situação revolucionária,
essas ocorrências são isoladas, mas, pela sua intenção, anunciam
a revolução prôpriamente, uma vez que chega o momento em
que nenhuma concessão, dentro dos limites do regime consti-
tuído, pode atender aos reclamm generalizadm de reforma. Ade-
mais, preparam-se, nesta fase, para o momento culminante,
organizações com fins revolucionários, ocultos ou expressos, to-
leradas pelas próprias autoridades, minadas em sua moral, e
por isso timoratas em suas reações à oposição.
No Brasil de hoje também não falta êsse sinal. O ex-gover-
nador Leonel Ilrizola, por exemplo, que tenta, nos dias atuais,
organizar um movimento popular pelas reformas, declara na
tribuna da Câmara Federal, na televisão, no rádio e na impren-
sa escrita, que não acredita numa solução "convencional" para
os problemas do Pais. Diz-se um polftiro "não-convencional",
ou seja, que não se ajusta às práticas traclidonais do regime.
Igualmente "não-convencionais" são, entre outras, organizações
como o Pacto Sindical de Unidade e Ação, o Comando Geral
de Greve, as Ligas Camponesas, a Frente Parlamentar Nario-
nalista, o Comando Geral dos Trabalhadores.

Modelos da revolução

Se a atitude revolucionária tende hoje a substituir a fé


na consumação fatal de um modêlo uniforme de revolução,
não é ocioso indagar como pode concretizar-se a aspiração de
ajustar uma estrutura social anacrônica a novas exigências
pretendidas por classes ou categorias, que se sentem usurpadas
em seu esfôrço cotidiano de produção. É lícito e útil procurar
conhecer os modelos possíveis segundo os quais uma situação
vigente é susceptivel de ser modificada, suprimida ou substi·
tuida por outra. Modêlo, neste caso, não é arquétipo, mas vir-
tualidade contida num processo em curso. É algo que o passado
confirma, porém que se induz também elo presente, do acon-
tecer, aqui e agora.
tste modo de entender é, entre outras coisas, corretivo para
a tendência a antropomorfizar a re\•olução, que se surpreende,
54 MITO E VERDADE DA REVOLUÇÃO BRASILElllA

com freqüência, não só nos meios iletrados, como até nos


círculos esclarecidos de estudiosos. Fala-se da revolução como
se fôra um ente, dir-se-ia fôrça da natureza, cega, destruidora,
transcendente à subjetividade coletiva.
Ora, a revolução repousa no agir coletivo. Realiza-se ou
deixa de realizar-se conforme determinadas características sub-
jetivas da coletividade, isto é, conforme o estado real do querer
coletivo. t. certo que êsse querer não é arbitrário, mas condi-
cionado por circunstâncias materiais, por necessidades concre-
tas. De todos os modos, porém, é um querer que, só dentro
de limites, pode ser manipulado.
Neste ponto, importa sublinhar quatro modelos de re\'O-
lução, pelos quais ocorre episbdicamente a mudança de con-
teúdo do poder numa sociedade: a circulação de elites, a der-
rocada, a revolução assumida e a revolução direta,

A circulafão de elites

A circulação de elites lembra naturalmente o nome de


Vilfredo Pareio. PreC'onceitos parLidários e políticos tornam
tabu o nome de Pareto em certos círculos liberais. O soció·
logo italiano foi estimado e respeitado por Sarei, sua obra
constiLuiu uma das fontes do fascismo e, hoje em dia, são
tealmente pensadores de direita os seus mais ardorosos sim·
patizantes. Entre êsscs está o arquidireiLista James nurnham
que, em seu livro Os Defensores Maquiavélicos da 1.iberdade,
lhe dedica um capítulo entusiástico. De outro lado da palestra
ideológica estão os que vêem Pareto como figura exeC'rável, la-
caio ela burguesia (já o chamaram "Marx da Burguesia"),
cuja obra é destituída de valor cientifico. Típico de atitude
intermediária é, por exemplo, o livro de Borkenau, intitulado
Pareto. De resto, os adeptos do credo marxista não perdoam
a Pareto as severas criticas que foz a Marx, notadamente em
Os Sistemas Socialislas e no ensaio Crítica a "O Capital" de
Marx, e que teriam preocupado Lênin.
A verdade é que existe o fato social da elite e da circula-
ção das elites, a que Pareto dedicou p:lginas marC'antes na
história das idéias. Cumpre assim examiná-lo, objetivamente,
isto é, dissipada a aura emocional que o envolve.
PEQUENO TRATADO BRAS1u:1Ro l>A Rf.VOl.UÇÃO 55

Existe a elite. Existe a circulação de elites. Apesar das


iracundas objurgatórias contra Pareto. No âmbito das pre-
sentes considerações, a elite (e consideramos aqui a elite polí-
tica em especial) exerce uma função de alta essencialidade que,
por sua natureza, lhe confere o privilégio de impor suas deci·
sões, mesmo contra a resistência dos que se opõem a tais de-
cisões. O problema de saber se o exercício de tais funções é
livremente consentido ou impôsto coercitivamente não afeta
o fenômeno prôpriamente. O fundamento da elite pode variar,
pode ser econômico, racial, religioso, político ou ideológico,
sem que se altere o seu caráter de camada minoritária onde é
máxima a liberdade de tomar decisões, em determinada so-
ciedade.
Até agora nenhuma sociedade se constituiu que dispensasse
a [unção das elites. E, em nosso tempo, não se divisa nenhum
consistente indício que anuncie tão cedo o seu desaparecimento.
Na história contemporânea, as massas passaram a ter papel nôvo
nos acontecimentos, que justifica falar-se numa "rebelião das
massas". Mas essa emergência das massas, na área decisória
das sociedades, não elimina a elite, apenas impõe-lhe mudança
de atitude, instaurando no''ª época cm que, como já observava
Lorenz von Stein no século passado, as revoluções sociais to-
mam crescentemente o lugar elas meras revoluções políticas.
A elite é eminentemente função social. A pergunta sôbre
que fatôres promovem uns antes que outros indivíduos ao seu
âmbito não pode ter resposta genérica. Os indivíduos ai não
chegam de modo lotérico. Mas só em cada circunstância con·
ereta os fatôres de tal promoção podem ser satisfatôriamente
conhecidos.
Se a elite é função, o que con\'ém ao equillbrio social
é que seja cumprida. Nenhuma minoria se mantém por longo
tempo em posição dominante, quando a descumpre. É compe-
lida a adaptar-se ao exercício dessa função, em sua variabili-
dade histórica, seja realizando tarefa.s novas, seja modificando
a sua composição, ou, simultâneamente, por ambas as coisas.
Chamamos aqui circulação de elites às alterações que, sem perda
essencial do poder, uma minoria realiza em sua composição
interna, pela incorporação de novos membros, provenientes
de camadas sociais em oposição ao seu mandato. Ordinària-
mente, essas alterações &e verificam antes que se declare uma
guerra civil, embora esta última, algumas vêzes, seja o fator
precipitante da circulação de elites. Entendemos aqui a circula-
56 MITO E VERDADE DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

ção de eli.tcs apenas como movimento pelo qual a maioria


dominante absorve os lideres e chefes da oposição, e assim priva
~~1d~:~~as ~~~~~:s~~~d;:r~°tdrr~r:c;::::. c~n~~:~i~ª;ã! ~~
à
elites vai além dêsses lim'ites e inclui até mesmo a derrocada
da elite dominante e sua substituição por outra, modificação
para a qual reservamos outra terminologia, como se verá
adian.te.
O êrro fundamental da visão paretiana da cir'culação de
elites consiste no niilismo que a inspira. Pareto vê a espoliação
como fenómeno normal e permanente, que as revoluções não
eliminam e apenas modificam na forma. A circulação de elites
não restituiria a sociedade ao mínimo de consenso coletivo, se
apenas se traduzisse em conferir vantagens pessoais a novos
beneficiários da posição dominante. Ao contrário, só cumpre
o papel de evitar o desfecho dramático de uma crise, quando
dela resulta que diminui o quantum de espoliação imposta a
11mplas ramadas sociais, ou seja, melhorias reais para essas ca-
madas. Pela circulação de elites se acomodam interêsses de
diferentes classes, evita-se a rigidez em suas relações e, assim,
posterga-se a derrocada.
Na história política do Brasil alguns avanços têm sido re-
gistrados mediante êsse processo. A instauração do regime
republicano em 1889 e a chamada Revolução de 1980 não
passaram de episódios inclusos na categoria de circulação de
elites. Em cada um dêsses momentos, a classe dominante mu-
dou a atitude, novos circulas foram promovidos ao poder,
tendo disso resultado melhorias reais para setores expressivos,
antes desatenclidos em suas reivindicações.

A derrocada

Outro modêlo a ser examinado é a derrocada. Dela po-


dem ser salientadas trés características. A derrocada é (a) assal-
to armado ao poder, que, uma vez bem sucedido, (b) implica
a deposição e às \'êzes liquidação física de governantes, como
passo preliminar para (c) a instauração de nôvo regime em
nome de interésses sociais esbulhados.
A dcrrorada é fruto de extrema rigidez nas relações entre
a classe dominante e as outras classes e, por conseqüência, da
PEQUENO TRATADO BllASIU:IRO DA RF.VOl.~ÇÃO 57

inviabilidade de acomodação pela circulação de elites, de inte-


rêsses em luta, seja em virtude do esgotamento das possibili-
dades reais do sistema, seja, quando is.\o não se verifique, em
decorrência da incapacidade subjetiva cios dirigentes, seja, fi-
nalmente, pela verificação simultânea dessas duas debilidades.
A derrocada é um golpe de misericórdia num paralítico, diria
Trotsky.
Obra de militantes iniciados na técnica insurrecional, seus
promotores a preparam secretamente. Muito antes da ação
direta, elaboram os seus planos de ataque aos centros nevrál-
gicos do poder, determinam seus alvos estratégicos e táticos;
objetivam, com antecipação, pessoas, instituições e lugares. As
vanguardas derrocadistas contam com abundantes subsídios para
a elaboração e a execução de seus planos, nas reflexões espanas
em escritos de Marx e Engels em que examinam movimentos
revolucionários e, atualmente, nas crônicas do golpe de Estado
bolchevique, entre as quais o livro A Técnica do Golpe de
Estado de C. Malaparte, bem como nos estudos sistemcitirns
sôbre guerrilhas, de Mao Tse-Tung e "Chc" Guevara. Onde
quer que, no mundo atual, se encontrem conspiradores prepa·
rando-se para a tomada do poder, o manuseio dessas fontes se
verifica. Um dos ineditismos mais saliente.\ dos atuais movi-
mentos de massa, de caráter revoludon:lrio, é o fato de que os
seus líderes estão em condições de conduzi-los segundo nma
técnica apropriada, cuja eficiência deixa muito longe o leme·
rário processo das tentativas e aproximações a que eram expos-
tos os insurretos no passado. A confiança na técnica insurre-
cional justifica certas afirmações otimistas de Trotsky. "A
insurreição - dizia - não precisa de circunstâncias favoráveis."
Para êle, "a insurreição não é arte, é uma máquina. Para
colocá-la em movimento, é preciso técnicos e só técnicos pode-
riam detê-la". Tôda derrocada, à diferença de qualquer escala
em que se verifique a circulação .de elites, requer o emprêgo ela
técnica a que se refere Trotsky.
A permanência no poder da equipe insurrecional é exdu-
sivista. Não tolera os bene[iciêlrios da antiga situação. O grau
de violência dessa intolerância é variável. É tanto maior quanto
mais o antagonismo enlre vitoriosos e vencidos envolver uma
polaridade subslanciva, de princípios, situada no terreno das
concepções, exigindo, portalllo, não apenas substimiç13cs ele
pessoas no contrôle do Estado, mas reformas radicais de ron-
Lcúclo nessa instituição. Neste rnso. a 110\•a guarda governa-
58 MITO E VERDADE DA RJ-:V<lLl!ÇÂO BRASILEIRA

mental torna-se extremamente sendvel às filiações e convicções


ideológicas dos agentes do Estado. Segue-se ao êxito da derro-
cada, necessàriamente, um momento de depurações, deposições
e até liquidação física de pessoas que suposta ou efetivamente
encarnem o que se considera exacrável, do ponto de vista re-
cém-dominante. O terrorismo, como registrou Crane Brinton, é
inevitável nota pós-insurrecional, desde a expressão mais aguda
que assumiu na Revolução Francesa e na Soviética, até a mais
branda, que se registra sob a forma de derrubadas, sem sacri-
fício sangrento dos vencidos.
Há derroca.das que não acarretam reformas de fundo.
Não têm inspiração pràpriamente revolucionária. São modi-
ficações de superfície, simples revezamento no poder de grupos
em luta pelas vantagens do maneio. A maioria dos p1"0nu11-
ciamentos hispano..americanos tem êsse sentido. Mas da derro-
cada revolucionária, uma vez coroada de sucesso, resulta um
esfôrço de reestrumração institucional, cujo alcance depende
do conteúdo de classe no dispositivo insurrecional. Pode a
reestruturação afetar as bases cio Estado, na medida cm que o
coloca sôbre suportes sociais novos, por exemplo, uma classe
antes relegada e espoliada e de tal reforma do Estado decor-
rem inevità\"elmente outras nos .diíerentes aspectos da vida
coletiva, entre os quais o econ6mico, o jurídico, o educacional.
De todos os modos, qualquer que seja a nmmça no conteúdo
de classe do dispositivo insurrecional vitorioso, que o diferen-
cie do an1igo poder, tende a traduzir-se em inovações institu-
cionais.
No Brasil, várias têm sido as tentativas frustradas de derro-
cada. Para ficar apenas nas décadas mais recentes de nossa
história republicana, lembremos as quarteladas de 1922 e de
1924, o levante paulista de 1932, a intentona "pecebista" de
1935 e a integralista ele 19!18. Atualmente circulas derroradistas
alimentam esperanças de ver chegada sua oportunidade. Os
mais notórios são as Ligas Camponesas dirigidas pelo deputado
Francisco Julião, grupos ligados à internacional cubana, dissi·
ciências do PCB mais vinculadas à chamada "'linha chinesa",
e não estaria fora da perspectiva do deputado Leonel Hrizola
o recurso â insurreição se, como tem afirmado, os meios tta·
dicionais falharem no encaminhamento de soluções para a pre-
sente crise nacional.
l'F.Ql:f.NO TllA.Ti\DO DllASll.li:JRO DA Rt'.\'OLUÇÂO 59

A revolução asmmida

Denominamos revolução assumida aquela que um círculo


dominante realiza atendendo a 1·einvindicaçôes de camadas so·
ciais radicalizadas, mas no inten"'-sse do desenvolvimento de
possibilidades contidas ainda no vigente sistema econômico-
social. Sua efetivação real não implica derrocada, porque
é concessão, outorga, dos que se encontram no poder e nêle
continuam. Pode implicar circulação de elites, mas não
necessàriamente.
A classe dominante britânica tem sido hábil na prática
dêsse tipo de revolução. Há mais de um século tem sabido
manter suas prerrogativas, mudando de atitude e ajustando-se
às condições emergemes, rendendo-se ao inevitável. t ce.rto
que os atributos subjetivos daquela classe não constituem va·
riável independente. Refletem as condições objetivas particula-
res da nação brilânini. Mas o fato é que nela, h<i mais de um
século, a luta de classes jamais atingiu a impasses que não pu-
dessem ter solução outorgada pela classe dominante. Para de·
finir a ideologia desta classe, com acêrto lembra Mannheim uma
frase de Collingwood: "a dialética da política interior é a
conversão de uma classe dominada em colaboradora da arte
de governar". (31)
Na história política do Brasil há revoluções assumidas. A
abolição da escravatura foi o resultado final de revolução dêsse
tipo. Nabuco exprimiu exemplarmente seu sentido, Chamou
a campanha abolicionista de "mandato da raça negra''. E na
verdade os abolicionistas, muitos dos quais senhores e filhos
de senhores de escravos, assumiram não apenas a eventual causa
dos mancípios, mas a causa do desenvolvimento capitalista do
Pais. "Aceitamos êsse mandato - dizia Nabuco - como ho-
mens políticos, por motivos politicos, e assim representamos os
escravos e os ingênuos . .. no interêsse de todo o Pais e no nosso
próprio interêsse." :t só aparente o paradoxo de um Congresso
constituído, em sua maioria, de homens llue combateram o abo-
licionismo ter votado a Lei Áurea de 1888. O complicado me.
canismo dessa revolução assumida foi bem explicado por dois
jovens sociólogos paulistas, Otávio lanni e Fernando Henrique
Cardoso. "Enquanto - diz Fernando Henrique Cardoso - a
produção mercantil escravocrata funcionou em conjunturas eco·
(ill :\ll'J'O •: \º1'.KnAm: DA U:\'01.l'lí,:,\o BRASii.EiRA.

nômicas que pc1mitiram altos lucros e o suprimento de mão-de-


obra escrava foi constante e barato, a fragilidade inerente ao
sistema por causa da contradição básica que o defina não caiu
no fingulo da consdência social.'º :\-las houve um momento
cm que a escravidão passou a e.storvar o desenvolvimento capi-
talista. E1uão "suprimir o escra\•o conservando o operário foi
a expressão consciente do movimento de desintegração da ordem
escravocrata em benericio dos grupos empenhados na generali-
ração, no pais, do trabalho assalariado". (12) Quem quer que
estude a história das lutas sindicais no Brasil verá que na
década de 1920 já existia consistente agitação nos meios ope-
rários. A legislação tràbalhista que se implantou depois <li1
Revolução de 1930 atendeu a uma pressão de massa. E não
seria temer:írio afirmar que o Golpe de 10 de novembro de
19.37 teve muito do que chamamos de revolução assumida.
Durante o .Estado Nôvo pràpriamente (19.37-1915), é que se
cumpriu o sentido da Revolução de 1930, tal como o expressou
Antônio Carlos: "fazer a revolução antes que o povo a fizesse".
O Estado I'\ôvo foi uma re\'olução assumida, no interêsse de
tôdas as classes, inclusive a operária, então vinculadas ao pro-
cesso interno de acumulação capitalista.
Realizar hoje, no Brasil, uma revolução assumida é apa-
rentemente o alvo que perseguem alguns circulas da dasse
dominante. Tôda a carreira política do Sr. San Thiago Dantas
está presidida por essa intenção, que lembra a de Nabuco, ao
abraçar, no século passado, a causa abolicionista. E de Cato
existem no País possibilidades reais <1ue permitem unificar,
numa frente, a burguesia industrial e a mas.\a dos trabalha-
dores. A expansão imlustrial do Pais, na fase atual, é condição
para a melhoria elas condições de vida da massa obreira, no
campo e na cilla<le, pelas mesmas razõe~ que, em 1850, levaram
Marx a formular as seguintes considerações, principalmente
com respeito il Frnl}ça: "O desenvolvimento do proletariado
industrial tem por condição geral o desenvolvimento da burgue-
sia industrial. l?. sàmente sob o domínio desta última que sua
existência toma amplitude nacional, permitindo-lhe elevar sua
revolução ao ní\'el de revolução nacional; é sàmente então que
êle próprio uia os meios de produção que se tornam outros
tantos meios de sua liberação revolucionária. Sàmente o do-
mínio da burguesia industrial ex.tirpa as raízes materiais da
sociedade fcud<1l e aplaina o único terreno s<ibre o qual uma
revolução proletária é poHível." A reforma agrária lioje re-
l'EQ.UF.NO TRATAl>O BllASILF.IRO DA Rl-:\'OLUÇÃO 61

clamada pelos trabalhadores pode concretizar-se, como ontem a


abolição, como mandato do operariado rural e urbano, assumido
por círculos dominantes, "por motivos políticos, no interêsse
próprio e de toclo o Pais". E as outras reformas ele base, vir-
tualmente, poderão entrar em idêntica equação política. Assim
como se formulou uma "política externa independente", que
desperta 05 aplausos simultâneos cios setores mais progressistas
do empresariado industrial e da \'anguarda operária, do me... mo
modo se pode admitir semelhante solução para o problema
da absorção do deficit em nosso balanço de pagamentos e
outros, de igual importância.

Restaria focalizar a revolução direta. Dedicar-lhe.emos,


porém, estudo à parte, pois envolve o problema cio socialismo
e das condições de sua realização.

NOTAS
(1) S6tne o car.ltcr conser-·ador do pensan1en10 de Comtc, vide Herbert M.ucv1r..
Rr&10n and Rrt10/urion. New York, l!HI. Vide 1ambfm jean LAC110P:,
La Sodolagi11 d'A11gus111 Comlr. Paris, 1956.
(2) 56bre as carac1erl11iC<11 do '"pcnsmncn10 com1erndor'", \·idc Karl l'.ho;N11r.m,
Iiko/ogfa )' Ulopla. Mêlico, 19U.
(3) Vide Alfredo PovrfA, Crmoi dr Sociologla. Córdob;i., 1945.
(-1) Vide Lul1 lleca&e111 SICllll, Tralado Grnrral dr Sotiologia. ~léxico, 1950,
ptg.2!8.
(5) Crane DtlNTOo;, Anolomio das Rrwluçãe1, Rio, 1958, p~g. '9.
(6) Vide Rodolfo MONDOLFO, E1pirilu Rniolutionorio '1 Con1rlt>11rio Hii/driril.
811enos AiRs, 1955, pjg. 15.
(7) IDIM, ~g. 18.
(8) IDEM, ~I· 1-1.
(9) Esi:a ~ a tcn;<!in du Tr#s l()b" Fcurrblll"h. Consulte o ter.to co1npctcntc·
mente tnduzldo e com ano1açües. por Maximilicn Ruu.1., cm seu llHo
K11rl AlorJC, Pog11 Choi1irs Pour pnc t/11i911c Sori11fült. Pari~. 19-111.
( 10) Vide R. Moo;DOLPO, op. til., ,~,. 24.
(ll)lnM,N.53.
(li) Daniel GulllN, Jr1<ncsw d11 Sorialismc I.ilu•l~irt'. Paris, 19rt!I.
(15) IW.M, ~g. 97.
(14) IDZM, ~I· 97.
(15)1nM,N.92.
(16) IDIM,~g.9,.
(17) Vldit Lhu.:, Obras E1ta/hid.u, Vul. 2, Q11c /o'aiaf Rio, 19.;i!>, P'I· 49.
(18) IDEM, p~g. '9.
62 '-llTO F. VF.RDADE DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

(19) No Brasil, devem-se a J.Hrlo Lt:u mudol pioneiros s6bre • apllcaçlo do


"principio cW llmlles" no campo da Sociologia. S6bre o pena.men10 dfsle
compctmle aoc:iólogo bra1llciro, vide seu livro: A. Trtt.ns/ormo,10 dll L6giu
Ccmccp1ua/ da. S~io/ogU1. Rio, l!M'l'. Vide tamb•m SoRos.IH, "The Principie
of Limiu", Caplmlo de Sot:kly, Culture and Per.roriolily, Nova Iorq11e, 1947.
pllgs. 699 e seguin1e11.
(20) Vide Luucs, Hi111Mre '1 Con.u:ienr. de C/"""". Pari1, 1960. p.6g. 105.
(21) Vide Sidney Hoox, O HtmJI ns Hld6rlo. Rio, 1962.
(22:) loeM, plg. 145.
(23) Vide Karl M11u:., As Lulas de ClllS#s 11a Fronra d11 1148 • J9JO, in Mnll·
ENGUS, Obras Eicolhid11s, vol. I, Rio, 1956, ptp. IOl·IO!I.
(M) Vide Lbm.i, op. t:il. plig. 7!.
(~)Vide LuL\Ç!I, op. til. pj(. 72.
(26) Vide Lbl1N, op. eil. p.6g. 179.
(27) Vide M1111x·ENC1LS, Obros, etc., p;lg.
(28) IDEM, p:lg. 110.
(29) Vide James Buu•H11M, ''Mosca: la Théoric de la Classe dirigcante'', apl1ulo
de IAI Madli11r1111/cn11"/llllSHrl dt la Li/Jnli. Paris, 1949.
(SO) Vide Lbix. Jf Docnra In/anlil • •• Rio, 1960, ptgs. 96-97.
(SI) Vide Karl MANNHHIM, I.illflrdoll, Poder ., Pla11i/lcaâ6n Dc1110,r4fica. Mhico,
195!,pig.ISO.
(32) Vide Fernando Henrique C...RDC»O, C11pi111/is1110 e EJCTtnlid/Jo. S!lo Paulo,
1002. Con•ulle 1amb•m Oaavio IA)llO, lfJ MdamorfouJ do Esmi1'0. S!lo
Paulo, 1962.
CAPÍTULO II

Revolução Direta e Socialismo

jt:.\N: O lw111e111 . .. Não diga CJstJ pol11vra.


BilRENC".F.R: Eu rne re/r.ria ao ur lnunann, li
humanidade ...
jF.AN: O htHnanismo Cflducou. f'ori é mn .m1li·
mc11talão ridiculo.

Ui-:Rll.NGt:R: Acalme-se, }eall 1 Yacê i ridlc11/o.


011 ! seu târno esta cnrsamdo 11 nlllM r1i.1·
/os! ... l'nrllirinaceron/c!
Jt:.\'I:: 1'11 le r.w1a~111ri! /e cst1111g11rl'i!
(lm;ESoo, Ri11oreronle)

.. .\"1mca /1mws mlora1/011's id6lalra• do saciii-


lisma 1w111 tfo marxim1n•'
Rc1ul.uxurnt•11e;o
.. A e111t111dfm,ãti dm trabal/1adores 1rr1í "brado~
fml/iri1u lraliu/11adm·rs." IC.Aai.)lux

O QUE, À FALTA de melhor designativo, chamamos aqui de


revolução dirc1a, implica o problema da l'calização do socialis-
mo. A revolução direta distingue-se de qualquer outra, porque
não é mediada por uma minoria, ainda que em nome da maio-
ria. Supõe-se que só se \'erifira onde, efetivmne1He, pelo menos
a maioria desempenha papel ativo, e não delega as funções de
rcronstrução social a um grupo restrito que a representa.
Dadas as condições específicas de nossa época, a revolução
direta implicará neccssàriamcnte a implanta\·ão do socialismo,
ou seja, a substituição da propriedade privada dos meios de
produção pela propriedade social dos mesmos, de início, me·
diante a substituição do Estado burg1.1ê5 por um f.5tado tle
trabalhadores. Sublinhou-~c o "rlt~" porque não se trata de
li4 :-0111'0 E ''f.R.l>Al>F. DA Rfo'.VOl.l'ÇÃO BRASll.l:'.IRA

Estado dirigido por uma burocracia pretendidamente repre-


sentativa da massa obreira. Trata-se de Estado com fundamen-
to na demorracia obreira, isto é, em intensa capilaridade polf-
tira, na qual a drculação, de cima para baixo e de baixo para
rima, seja line, ou não tenha senão os impedimentos coletiva-
mente c·onsentidos.
Alé a presente data, ainda não se concretilou revolução
dêsse tipo.

coml~:~u~lr~sF;a~~· ~eªrn~~~~r~d~s i~::~e fa~~e~~~~i~~ 1:!~


menta, aprisionam a consciência fOpular e amortecem, quando
não paralisam, movimentos polit1r.os e soriais de positivo sen-
tido histôrico. A fim de impulsionar para Crente o pensamento
nilico de nossa época, é necessário submeter à discussão teses
e ronrcitos tidos como tranqililos em meios de vanguarda e que,
à luz de critérios intransigente.~. revelam-se nefastos.

Revolução polí!ica e revolução social


Sem rernlução direta não se instaura o socialismo. Em
outras palavras, a revolução direta é condição neress:iria para
que se inicie concretamente a in.stauração do socialismo. Impll-
citamente é o que admitiram Marx e Engels. Es1a afirmação
é de extrema relevância, pois determina a necessidade de colo·
car, em seus devidos têrmos, o que, amalmente, em diversos
países, se admite seja a concretização cio socialismo. O ad\•ento
dêste - cumpre dizer, à guisa de lema primeiro - re.mlta de
revolução essencialmente social e secundàTiamenle politica. No
século passado, um sociólogo burguês e conservador, Lorenz von
Slein, tinha realçado essa associação. Para êle, o que distingue
a revolução socialista de tôdas as outras é o seu caráter social
por excelência. E assim também entenderam Marx e Engels.
Nessa ordem de raciocínio, assume hoje capital import;\ncia
esta observação contida no Manifesto do Partido Cumunisla (1 ):
"To.cios os movimentos históricos têm sido até hoje movimentos
de minorias ou em proveilo de minorias. O movimento pro-
letário é o movimento espontâneo da imensa maioria em pto·
veito da imensa maioria." Resulta disso que, na revolução SO·
cialista, à diferença de qualquer outra, e necessário que a
"imensa maioria" adote posição ronsdente, ativa e militante.
REVou;çÃo DIRF.TA E SOC:IAl.IS~IO

Se não se levar em conta êsse aspccto aparentemente quan-


titativo, mas na verdade qualitativo, não se poderá. desfazer
o mal-entendido hoje corrente, que consiste em identificar o
socialismo, tal como o concebia Marx, com o que, sob ~sse
nome, se pratica em alguns países, notadamente na União So-
viética. Na visão de Marx e Engels, o socialismo só se concre-
tiza quando a maioria da sociedade, pelo alto nível qualitativo
de suas condições objetivas, tende espontâneamente para êle.
t. preciso que a massa tenda ao socialismo, para que a sua
implantação não degenere em terrorismo. t. a espontaneidade
do movimento operário que assegura o êxito da revolução so-
cialista, pois a classe operá.ria não pode ser salva à sua revelia.
Em 1890, Engels acentuava êsse ponto de vista. Escrevia então:
"Marx confiava a vitória definitiva das proposições insertas no
Manifesto Unicamente ao desenvolvimento inteleccual da classe
operária, o qual devia resultar da comunidade de ação e de
discussão." (2 ) Em vários textos, Marx exaltou a espontanei-
dade (selbsttiitigkcit) como requisito para a auto-emancipação
da classe operária. E, neste ponto, situava-se no pólo oposto
ao de Lênin, que mais de uma vez manifestou sua desconfiança
pela espontaneidade dos movimentos operários, segundo êle,
por si sós, incapazes de atingirem à consciência socialista. Aos
illlelectuais caberia, por doutrinação, desenvolver es.~a cons-
ciência na massa obreira. Marx, porém, concebia o trabalho
teórico como esfórço de trazer para a esfera abstrata o que
concretamente se encontrava implícito na experiência operá-
ria, que, embora enriquecido pelos "elementos de cultura" que
lhe anescentavam os intelectuais, continuava, assim, em nível
mais alto de elaboração, o curso impôsto por sua lógica interna.
O socialismo é produto do desenvolvimento social e não mero
episódio político. "Uma revolução - diz Marx - cuja alma
é política organiza, conforme a natureza limitada e dividida
desta alma, uma esíera dominante da sociedade a expensas
da sociedade." (3) O reexame da distinção entre revolução polí-
tica e revolução social habilita a uma crítica do que atualmente
se tem considerado socialismo. Max Adlcr, por exemplo, real-
çando alguns aspectos do legado de Marx, mostra a que dis-
tância se encontra do socialismo o regime soviético. Mas Adlcr
distingue três formas de govêrno: o terrorismo, a ditadura e a
democracia.
66 MITO E VERDADE DA Rl:'.VOl.l'ÇÂO BRASU.ElltA

Terrorismo, ditadura, democracia


O terrorismo é o domínio discricionário da minoria contra
a maioria, implicando o exercido cruel da violência. O govêmo
burguês seria também, para Adler, modalidade disfarçada de
terrorismo, pois que se exerce no interêsse de uma minoria. O
que oculta o seu conteúdo terrorista é o Cato de que a classe
burguesa, controlando os meios de educação, informação e
~l~~!':~ã3~ :S!0::r~.ir'~~;~f:~a~ i;:~~~~~::l~~i~s~.;:~:
crada formal tem seu sustentáculo na falsa consciência da
maioria. O terrorismo fascista é o recurso extremo da burgue-
sia, quando Calha em conseguir a adesão supostamente livre
da maioria. A ditadura é o poder da maioria contra a mino-
ria. t neste sentido que Marx observava: "o movimento pro-
letário é o movimento autônomo da imensa maioria no inte-
rêsse da imensa maioria''. Tal espécie de ditadura é o passo
~r:!~m~:: r:c'i~a~~st:e~ª~f:ss~: ~e:::ic~~:~i:l~s~ ~~:aCC:,'::e1::
pela autonomia", (4 ) A tanto corresponde, seria inótil acres-
centar, a concretização do socialismo.
Karl Kautsky acusou de terrorismo (11 ) o regime implan-
tado por Lênin, o que, segundo êle, teria traído o programa de
Marx. E para Max Adler, jamais existiu na URSS a ditadura
do proletariado, tal como a entendia Marx. Os fatos dão cada
vez mais razão a essas críticas. E, em nossos dias, é a causa
mesma do socialismo que impõe seja reaberta a discussão ampla
dessas questões.
Ao encarecer que a auto-emancipação da classe operária
só poderia efetivar-se por uma "revolução social", Marx ma.
nifestava sua desconfiança pela mera "revolução política",
ainda que realizada em nome dos trabalhadores, porque se
o estado social geral dos trabalhadores ainda não se encontra
em consonância com o socialismo, êste não poderá ser instau-
rado politicamente, de cima para baixo. Em tais condições, o
circulo 9ue tem cm suas mãos o poder político transforma-se,
necessàriamente, numa minoria dominante no próprio interêsse,
e não no interêsse geral. Necessàriamcnte, tal circulo se torna
independente em relação à sociedade. Tem êsse sentido a fór-
mula: só se concretiza o socialismo ali onde, graças ao elevado
REVOLUÇÃO DIRETA E SOCIALISMO 67

nível das fórças produtivas, se constitui um proletariado urbano


dotado de plena consciência de suas necessidades. Equivale a
dizer que sàmente quando existem as condições sociais da
emancipação do proletariado é que a ditadura política dessa
classe não corre o risco de representar uma forma dissimulada
de terrorismo.
O êxito polltico da Revolução de Outubro de 1917, na
Rússia, não suprime a validade dessas observações. Por assim
dizer, Marx e Engels previram que naquele pais o socialismo
era impossível e que ao fazer-se a iabula rasa das condições
sociais vigentes, da iniciativa de ali implantá-lo decorreria ne-
cessàriamente o advento de um cesarismo de nôvo tipo. Marx
e Engels mantiveram freqüente correspondência c:om revolu·
cionários russos, simpatizantes ou adeptos de suas idêias. Em
carta a Mikhailowsky, Marx justificava as posições dos popu-
listas, que os "marxistas" russos, entre êles Plekhanov e Lênin,
posteriormente tanto acusavam de oportunistas. O futuro da
Rússia era o capitalismo, acarretando a transformação de cam-
p6nios em proletários, e seguindo a seqiiência de fases que
apresentava em outras nações. Um ano antes de sua morte,
Marx escreveu no prefácio à edição russa do Monifcslo Comu-
nista, para consôlo dos "marxistas" e revolucion:lrios que, como
Vera Zassoulitch, se rebelavam conlra o papel de contribuir
para o desenvolvimento capitalista russo: "Se a revolução russa
se torna o sinal de uma revolução operária no Ocidente, de
modo que ambas se completem, a atual propriedade comum
russa pode tornar-se ponto de partida de uma evolução comu-
nista." A Vera Zassoulitch, também dizia Engels não admitir,
para a Rússia, mais do que um "1789". Engels reprovava o
1'marxista" Plekhanov, negando o acêrto de seus ataques aos

populistas (norodovoltyY) "que são os únicos no momento que


fazem alguma coisa na Rússia".(º) Que diria Engels de Unin,
muito mais radical do que Plekhanov, em sua oposição aos
populistas? Não é por acaso que êsses textos de Marx e Engels
nunca foram lembrados por Unin, nem muito menos reeditados
oficialmente na URSS. Mas naquele pais que, segundo Engels,
"se prestava às mil maravilhas às aventuras blanquistas", em
nome da teoria social de Marx, uma vanguarda revolucionária
pretende ter implantado o socialismo. (i). Como apreciar êsse
socialismo, à luz dos ensinamentos de Marx e Engels ?
68 !\llTO E \'ERDADE DA Rl::VOL.l'C:,:Ão BRASll.EIP.A

Presságio de Llnin:
socialismo pela barbárie
A referência mais satisfatória para responder à pergunta
se encontra em considerações que Engels escreveu em A Guerra
dos Camponeses. "O pior que pode acontecer - diz Engels -
ao chefe de um partido avançado é ser obrigado a tomar o
poder numa época em que o movimento não está maduro para
o domfnio da classe que êle representa e para a aplicação das

r;:::a::o ~~~e~J~d: s~~r:~~~~d~~~3asc~~5~ta?io ~0~u~1 ~h~;:~


o antagonismo das diferentes classes e do grau ele desenvolvi-
mento das condições da existência material e das relações de
produção e troca, que determinam, cm cada momemo dado,
o grau de desenvolvimento das opo5ições de das5e. O que êle
deve fazer e o que o próprio partido exige dêlc não dependem
dêle, mas do grau de desenvolvimento da lula de cla5ses e
de suas condições. :2le está ligado às doutrinas que ensinou e
às reivindicações que formulou até então, doulrina~ e reivin-
dicações que não são resultantes das relações das dasses sociais
em presença e do estado momentâneo mais ou menos contin-
gente, das relações de produção e troca, mas de sua compreen-
são mais ou menos grande dos resultados gerais do desen\'ol·
vimento social e polltko. :21e se encontra assim necessàriamente
colocado diante de um dilema insolúvel: o que êle pode (azer
contradiz t6da sua ação passada, seus princípios e os interêsses
imediatos de seu partido, e o que êle deve fa7.er é irreali7.ável.
Em uma palavra, é obrigado a não representar seu partido, sua
classe, mas a classe para o domlnio da qual o movimento é
precisamente maduro. :t obrigado, no interêsse de todo o
movimento, a defender o interêsse de uma classe que lhe é
estranha e de retribuir à sua própria classe com frases, pro-
messas e a afirmativa de que os interêsses dessa classe estranha
são seus próprios interêsses. Quem quer que caia nesta situa-
ção, está irremediàvelmente perdido."(ª)
O que aconteceu na Rússia estava assim na previsão dos
fundadores do materialismo dialético. Tudo o que Marx e
Engels escrevera sôbre a Rússia levava à conclusão da impos-
sibilidade do socialismo nesse pais, na época em que ambos
viviam. O que ali se instaurou, com a Revolução de Outubro
de 1917, não foi o que chamavam de socialismo, mas algo
REVOLUÇÃO DIRE"fA E SOCIALISMO 69

intermediário entre o capitalismo e o socialismo. Algo a que se


pode chamar de "socialismo de Estado", "capitalismo de Esta-
do". A minoria que tomou o poder na Rússia em 1917 logo se
enrontrou diante do dilema a que se refere Engels. As condi-
ções do pais não se achavam ainda maduras para o nôvo
regime. Assim, para se manterem no poder, seus titulares ti-
veram que assimilar os processos tradicionais do cesarismo, a
fim de submeter.cm a maioria da sociedade, que não compreen·
dia o socialismo, nem mesmo o reivindicava. O bolchevismo
pretendeu implantar o socialismo mediante simples revolução
polftica, quando Marx e Engels já tinham demonstrado que
êle decorre eminentemente de uma revolução social e subsi-
diàriamente da revolução política. O escasso ronteúdo social
ela revolução bolchevista pode ser demonstrado pelos próprios
relatos dos que a empreenderam.
"A subversão do poder - testemunhou Trotsky - teve
lugar pela iniciativa e pcfas íêirças de uma l"id;acle (Petrogrado)
que ronstituía aproximadamente a septuagésima-quinta parte
da popula<:ão do país. Se se quiser, pode tli:r.cr-se que o maior
dos atos demorrátiros foi realizado ele maneira não-demorr:í·
tica. Todo o pais se encontrou diante elo fato consumado."(º)
N'o pais que, segundo Engels, "se presta''ª às mil maravi-
lhas às aventuras blanquistas", mais uma dessas aventuras vinha
de aconterer, para vingar. t. o mesmo Trotsky quem teste-
munha o raráter aventureiro da Revolu<:ão Bokhf'·ista.
"Sabiamas já de antemão - diz Trotsky - que nos falta-
vam a necessária organização, a necessária disciplina e o neces·
sário saber histórico; sabíamos tudo isso, mas isso não nos
impedia de marchar com os olhos abertos pata a conquista
do Poder. Estávamos convencidos de que íamos aprender tudo
isso."(1º)
Na análise que Isaac Deutscher fêz do stalinismo perrebe-se
a influência do texto de Engels, anteriormente transcrito. Os
lideres bolchevistas, a principio, e enquanto arreditavam na
revolução comunista nos países ocidentais, se "sentiam adma
elo meio ambiente russo" e não ocultavam o seu desprêzo pelo
~~~~ e~~~~i::1 neop~l~J~~s:;~ºa~~is~a~o;;~r;~';:;u~:s: v~:;;
na Rússia, sem tirania, sem adotar processos orientais, "abai-
xar-se até o nlvel de seu meio semi-asiático". Mas a revolução
no Ocidente não se verificou e o bokhevismo teve forçosamente
tle "recolher-se"' "ã ~ua carapaça uarional", assimilar os métodos
70 :1.11'1'0 E n:RDAI>): DA R!:\'OLUç,\o BRA.!lll.l::IRA

de govêrno e de rnmponamento dos czares, dos buyardos feu·


dais e da velha burocrncia num propósito ele "extinguir a
barbárie por métodos bárbaros". Escreve Isaac Deutscher:
"Pouco antes de sua morte, Lênin teve um presságio. Evocou
o conhecido fenômeno histórico pelo qual uma nação, após
conquistar outra civilização superior, sucumbe sob a influên-
cia cultural do vencido. A luta de classes - dizia Unin - bem
poderá sofrer sorte análoga. Uma classe oprimida e pouco ins-
truída pode assimilar uma classe dirigente que a domine
no plano cullural, e após isso a classe vencida poderia impor
seus próprios critérios às [ôrças revolucionárias vitoriosas." Mas
êsse press:igio foi vão. Lênin mesmo recorreu às práticas de
Pedro, o Grande, a fim de "preparar a Rússia para o socialismo
no plano industrial, no técnico e no pedagógico". E depois de
Lênin, Stalin, observando o princípio autocrático, consolidou
o bolchevismo como uma "liga de marxismo ocid-ental e bar-
bárie russa".(º)
Diz-se que Engels, em 1891, aprovou o projeto alemão do
programa social-democrata de Erfurt, no qual havia al!nea, que
não consta no testo definitivo, e que assim rezava: ( 12 ) "O par-
tido social-democrata nada tem ele comum com o chamado so-
cialismo de Estado, que é um sistema de estatização com intui-
tos fiscais e que põe o Estado no lugar do empresário privado,
reunindo assim em uma só mão o poder de exploração cr.onô-
mica e de opressão polltka do operário." É alínea confirma-
dora de que o socialismo se define em têrmos saciai$ antes que
políticos.
E, no entanto- como assinala Rubel - Lênin era marxista
como nós somos newtonianos, todos nós que nos movemos se·
gundo a gravidade. (13 ) Com eíeito, explica Rubel: "Lênin e
seu partido substituíram a burguesia russa, que, como tôda
burguesia, tinha a tarefa de criar os pressupostos materiais do
socialismo futuro, a saber: uma economia capitalista. Os bol-
chevistas tinham um meio à sua disposição: apre;entar esta con-
cepção burguesa e jacobina sob um disfarce "marxista", cha-
mando a autocracia do partido bolchevista de "ditadura do
proletariado". (14 )
Sem dúvida, o regime que .se implantou, sob o rbtulo de
socialismo, não atendia ;is prescrições que Marx e Engels lhe
atribuíram. Para êssc.s, o sodali5DlO é um regime que só começa,
pelo menos, ali onde a "imensa maioria" da sociedade, por seu
elevado nh"el social, "cspont;ineamente" tende a praticá-lo. Co-
RH'Ol.l'\ÃO DIRl-.TA f. SOCIAl.IS:\10

mo Isaac DeulScber observou, a camada de mujiques analfabetos


e a incipiente classe obreira que constituíam o grosso da popu-
lação russa, em 1917, não oferedam condições sociais maduras
para a instauração do socialismo. E os próprios lideres bolche-
vistas pensavam assim e fizeram a Revolução na certeza de
que, logo após, o mundo ocidental se levantaria para derrocar
o capitalismo. Suas intenções eram idóneas. Seus ideais, since-
ros. Mas o mundo ocidental não respondeu à Revolução e
assim os lideres bolchevistas, pela lógica da situação niada,
para não perder o poder, foram compelidos a realizar o "soda-
lismo num só pais". Estava Lênin ainda no poder, quando
Kautsky escreveu: "O Govêrno de I.ênin está ameaçado <lc
um 9 Termidor. Mas pode ocorrer outra coisa. A história não
se repete. Um Govêmo que se propõe um fim que não pode
alcançar nas condições em que atua pode fracassar de duas
maneiras. Acaba por cair, se se aferra ao seu programa. Pode
manter-se, se vai modificando o seu programa, e acaba por
abandon:S..lo. Para a causa, o resultado é o me~mo por um
procedimento ou por outro. Agora, para as pessoas, varia muito
a situação, se conservam em suas mãos o poder do Estado ou
caiam vencidas indefesas nas mãos de seus inimigos." ( 1 ~) Os
Hderes bolchevistas foram realistas. Adaptaram-se às drcuns-
ti\ncias, brutalmente, ferindo a sensibilidade dos "marxistas oci-
dentais", como Kautsky, Rosa Luxemburgo e, em nossos dias,
Ruhel, Daniel Guérin e tantos 0111ros que têm denundarlo a
infidelidade dos soviéticos às concepções originais de Marx e
Engels.

A hist6ria re/nlde à teoria

O fato, porém, é q_ue, à parte a relevânda teórica das crí-


ticas dos "marxistas ocidentais", com a Revolução Holchc\'isla
surgiu, pela primeira vez na História, um regime que, chamado
de "socialismo de Estado" ou de "capitalismo de Estado", na
realidade não só acabou tornando-se um prntossocialismo, ao
evoluir, como ainda instaurou, em escala mundial, a luta con-
creta entre capitalismo e socialismo. Os "marxistas ocidentais"
vêem no regime bolchevista um aleijão de seus ideais. Mas êsse
aleijão tende a retificar-se, está longe ele ser arquétipo, porém
caminha para êle. A própria União Soviética apaga progressi-
,·amente seu pecado original. Não é por acaso que o stalinismo
72 Mrr:o E VERDADE DA RJo:Vor.uçÃo BRASILEIRA

foi condenado. A população soviética de hoje não mais suporta


Oi processos autocráticos brutais de até bem pouco tempo, e,
pelo seu nível social, está capacitada para exercer pressões sô-
bre os seus governantes, no sentido de cada vez mais democrati-
zar os métodos de ação politica.
Até agora - é certo - em nenhum pais dito socialista o
nôvo regime se implantou pela revolução direta, no sentido
aqui adotado, apesar do largo e profundo con~eúdo social de
revoluções de que resultaram a China e Cuba de nossos dias.
A História não se deixou aprisionar na teoria social de
Marx e Engels. Pouco se lhe dá, se assim é permitido dizer,
que a emergência da fase socialista da humanidade não se
esteja verificando como previram aquêles pensadores. Consi-
dere-se o regime instaurado na União Soviética como "socialis-
mo de Estado" ou "capitalismo de Estado", o fato é que colo-
cou em novos têrmos o problema do socialismo.
Vamos em seguida examinar em que consistem êsses novos
têrmos. O conhecimento dessa questão assume especial rele-
vància no encaminhamento das lutas sociais nos dias presentes.
Em primeiro lugar, é lícito observar que no século XX se
encontra inteiramente superado o ponto de vista daqueles que,
no século passado, admitiam que o advento do socialismo se
assinalaria por um conjunto de revoluções simultâneas em dife-
rentes pa!ses. Marx e Engels concebiam tal advento des.c;a
maneira, e assim também os líderes bolchevistas. A História
desbaratou suas esperanças. O mundo entrou na fase socialista
de modo não.ortodoxo, à luz do "marxismo ocidental". O
inicio dessa fase foi o "socialismo num só país", verdadeira
heresia aos olhos do "marxismo ocidental". O "socialismo num
só pais" foi golpe decisivo nas teses do "marxismo ocidental",
quaisquer que sejam as restrições que seus adeptos façam ao
caráter socialista do regime soviético. Consolidada a União So-
viética, mais ainda se delinearam tendências não-previstas
pelo marxismo do século XIX: a principal delas sendo o apa-
recimento de uma potência socialista num mundo em que
tôdas as demais eram capitalistas. Também fora da visão do
século passado estava a constituição de regimes socialistas em
diferentes países (o que ocorreu no pós-guel'ra na Europa
oriental, dai excluindo a Jugoslávia), menos por fôrça de le-
vantes do proletariado do que por pressão externa de uma
potência sodalista hegemônica. Tôdas essas ocorrências consti-
Rt:vou;çÃ.o DIRl·:TA t: SOCIAi.iSMO 73

toem verdadeiro escândalo para a consciência marxista da pas-


sada centúria.
Em segundo lugar, a História não confirmou a hipótese
de que o socialismo surgiria, de infcio, nos países de capitalismo
maduro. t.stes são hoje precisamente aquêles em que não se
divisam seguros indícios de que tão cedo possam adotar o
nôvo modo de produção. O socialismo assume cada vez mak,
em nossa época, feição de método político e econõmico, ade-
quado para promo'"er o desenvolvimento acelerado de nações
onde o capitalismo ou não chegou a medrar, ou se encontra
em condições ainda rudimentares. t provável que o socialis-
mo só se torne factível em escala universal, implicando isso a
derrocada cio capitalismo, depois que os povos periféricos te-
nham elevado significativamente o nível Ue suas fõrças produ-
tivas. Enquanto isso não se efetivar, o imperativo da revolução
socialista mundial fica subordinado às conveniências dos dife-
rentes empreendimentos de construção do socialismo em países
isolados. A chamada polltica de coexistência ativa e pacifica
é o reconhecimento dêste fato, que jamais podiam imaginar os
marxistas ocidentais do século passado.
Em terceiro lugar, na medida em que procedam as cri-
ticas dos "marxistas ocidentais" (entre êles Kautsky, Rosa Lu-
xemburgo, Maximilien Rubel), que negam caráter socialista
ao regime soviético, e, por analogia, aos que lhe sucederam,
inclusive o chinês e o cubano, um esclarecimento se impõe.
Se, na história contemporânea, hi discrepância entre o socialis-
mo de fato e a pretendida teoria ortodoxa do socialismo, não
há dúvida de que se impõe reformulação superadora de tal
desacôrdo. A antiga teoria "ortodoxa" passa a ter valor histórico.
Na história contempod.nea, a caracterlstica fundamental de um
regime socialista não é prôpriamente o nível das f6rças produti-
vas, mas o nível empresarial do Estado e seu conteúdo polltico.
Socialismo hoje existe ali onde, independentemente do nfrel
geral das fôrças produtivas, o Estado assume o papel de único
empresârio, e organiza a produção segundo o critério do inte-
rêsse público. É êste entendimento que possibilita hoje distin-
guir entre pais capitalista e pais socialista.
Em resumo - e êste seria um quarto aspecto do problema
em exame - remlta das considerações anteriores que o socia·
lismo se tornou a tendência histórica dominante da presente
época, sua lei estrutural. O socialismo hoje é menos doutrina
do que processo mundial em marcha, que se realiza de modo
74 ~UTO F. VERDADE DA RF.VOLUÇÃ.O BJlASILF.lllA

multifário e muitas vêzes rebeJde aos esquemas teóricos, por


isso mesmo que condicionado por uma cadeia infinita de cir-
cunstâncias. t. pueril a pretensão de julgar essas circunstâncias
a partir de uma teoria supostamente ortodoxa. As atuais
disputas em tôrno de ortodoxia e revisionismo pouco têm a ver
própriamente com o esfôrço intelectual sério no sentido de
rnmpreender objetivamente a história do presente. Essas que-
relas não são episódios prôpriamente culturais, mas disputas
políticas, disfarces da luta pelo poder.

Socialinno e espontaneidade
Para os que estão vivendo a exigência cultural de nossa
época, não só no sentido de compreendê-la como de participar
das lutas sociais por imperatim humanlstico, cada \'ez mais o
socialismo assume o caráter de concepção-limite, tarefa sem fim,
que nunca se realiza definitivamente, nem tampouco se encerra
em regras e modelos rígidos. O socialismo não se realizará
nunca. É limice, para o qual se encaminha a história, sem
nunca atingi-lo. Transcende a tôda contingência. Eis que o
socialismo concepção-limite abre nova pauta de deveres para
a consciência humanística. Na medida em que o socialismo
se desconfina de países isolados, de campos estanques, e se torna
processo mundial, por isso mesmo passa a ser tarefa livre, que
não pode ser burocràticamente unificada e comandada, por
nenhuma agência exclusiva, seja ela potência ou partido.
O socialismo é tarefa !ivre em cada país. Em função dela,
é Ucito julgar o mundo não só capitalista como também "socia-
lista", lutar contra tôda sorte de mistificações, as capitalistas
como também as "socialistas".
E neste ponto voltamos ao tema que iniciou o presente
<:apitulo: o da revolução direta e sua relação com o socialismo.
Adquire, cm nossos dias, interêsse primordial certa nuan-
ça do pensamento de Marx, a respeito do que entendia como
revolução socialista. No Manifesto Co1nunisla, Marx disse que
o "movimento proletário é o movimento espontAneo de imensa
maioria em proveito da imensa maioria". Em primeiro lugar,
note-se o adjetivo espontâneo. Qual a inteligência da expressão
"movimento espont;"meo"? Cremos interpretar o pensamento
de Marx se observarmos que espontâneo, no caso em pauta, não
equivale a instinth•o, irracional, intempestivo, explosivo ou
RF.VOl.l'ÇÂO DIRFrA F. SOCIAi.iSMO 75

súbito. De um movimento obreiro se poderá dizer que é espon-


tâneo, quando é impulsionado por motivos longamente ama·
durecidos e sedimentados, que refletem estado generalizado da
condição subjetiva e objetiva do proletariado em sua "imensa
maioria". A tentativa tle instaurar o socialismo omle não se
verifique êsse elemento de espontaneidade seria, para Marx,
prática avcntureirista, blanquista ou bakuninista. Levaria ao
sacrifício da democracia obreira, que a seu ver constitui a
essência do socialismo. Marx seria o antipoda de Lênin, que
desprezou o elemento espontâneo. Na penpectiva de Marx,
seriam condenadas, implacàvelmente, como maquiavelismo,
tôda sorte de ação política em que, por falta de espontaneidade
do movimento operário, a classe obreira fôsse rnbstituída por
um partido supostamente marxista.
Em nossos dias, a defesa cio socialismo impõe o desmasca-
ramento dessa nova forma tle maquiavelismo. Onde a classe
operária se encontra insuficientemente evoluída e sem sólida
consciência de seus interêsses gerais, pode acontecer {e acontece
freqüentemente) que minorias organizadas, seja cm clispositirn
sindical ou em partido, como o partido comunista, tomem o
lugar da classe operária e passem a agir dhcricionàriamcnte,
isto é, não como intérpretes das conveniências efetivas da dassc
operária, tal como existe, concretamente, mas cm nome de
uma íkção ela classe opcr:íria. Num artigo dos estatmos d:i
Primeira Internacional, redigidos por Marx, diz-se que "a eman-
cipação da classe operária não pode ser senão obra da própria
classe operária". Diríamos, em outra terminologia: a eman-
cipação da classe operária começa pela revolução direta. .Eis
por que Marx sempre encorajou a espontaneidade dos movi-
mentos obreiros e, ao contrário de Lênin, tinha em alta conta
a contribuição das lutas sindicais: (1 11) "jamais os sindicatos
devem ser ligados a uma associação política ... Os sindicatos
são as escolas do socialismo ... Apenas êles são capazes de 1·c-
presentar um verdadeiro partido político e de opor um dique
ao poder do capital".

Atualidade do "renegado" Kau!sky


As críticas que alguns "renegados" dirigiram mntra Lênin
e os lideres bolchevista~ em geral, consideradas sem sectarismo,
revelam-se altamente fiéis ao pensamento original de Marx.
76 MITO E VERDADE DA Rl-'.\'01.llÇÂO DRASILFJRA

Num momento da história do socialismo, como o atual, em


que o desmascaramento de certas perigosas mistificações "so·
cialistas" é um imperativo da consciência humanística, a rea-
valiação do papel dos "renegados" parece oportuna. Um desses
"renegados" é Kautsky, que viu, no nascedouro, as taras de
origem do regime soviético e que o tempo, dando-lhe razão,
só f& acentuar.
Kautsk.y previu o que todos sabemos hoje: que os métodos
bolchevistas não levariam senão a um socialismo atrasado, ao
"socialismo bárbaro", conforme as considerações de Engels e
a análise de Isaac Deutscher. Estava o regime soviético em seu
segundo ano de existência, quando Kautsky escreveu: " ... A
democracia não exclui a coação, mas não reconhece outra forma
de coação, além da que a maioria exerce sôbre a minoria. A
coação empregada para eíetivar o trânsito do capitalismo é a
coação dos operários sôbre os capitalistas. Mas aqui Lênin
se refere ao segundo estádio de revolução em que o proletariado
já rompeu suas cadeias. Aqui se fala de coação exercida por
algumas pessoas sôbrc a massa dos trabalhadores. Lênin não
demonstra de modo algum que esta coação seja compatível com
a democracia: trata de fazê-la aceitável por um sofisma, en-
quanto da coação que tem de exercer a massa sôbre os
capitalistas para produzir o socialismo, o que é perfeitamente
compadvel com a democracia, deduz a legi1imidadc de tôtlii
coação exercida para produzir o sodafümo, indmivc com a
onipo1ência de algumas pessoas." (1 i) E ao diagnostkar o rc-
"gime soviético como ditadura de minoria, frisava, com as
ir~~;,raÔ d1~/e~ó~~!~o1J;:!~:a~ ~~1~:d~~~1:~~~:~~~Í1~~t~nc(~~~
cialista - G. R.) só pode ter êxito como obra histórica
da maioria da população, e antes de tudo da maioria da classe
trabalhadora." (18)
Se a maioria está madura para o socialismo, a esponta-
neidade exis1e, pois, neste caso, a realidade tende incoerclvel-
mente para essa forma de produção. Kautsky não via na Rússia
êsse elemento espontâneo, mas uma "estrutura primitiva do
proletariado". Em tais condições, os bolchevistas, conservan-
do-se no poder, estavam condenados à adoção do terrorismo.
"Não só mdividuos - diz Kautsky - mas também partidos
~~~ei:u~~~~~eTus~~~d~ d~:~: i:;~~~irea i~~~~:i~: ~~r:~~fe~~
prestigio. Não é impossível que, enquanto fracassa na Rússia
RH'Ol.l'ÇÃO UlllEl"A F. SOCIAl.IS:\IO

a experiência comunista, se transfo~e o bolchevismo e se salve


como partido governante. .Já se dirige nesse caminho. Polfticos
realistas IegÍlimos, os bolchevistas têm desenvolvido em alto
grau, no transcurso de seu govêrno, a arte de adequar-se às
exigências da vida." (1')
Ao ser c:onstitufdo o regime soviético, Kautsky e todos
aquêles que tinham responsabilidades na liderança do socialis-
mo europeu viram-se numa situação dilkil. Os Uderes boi·
chevistas eram militantes socialistas. Fizeram a Revolução na
Rússia, contando com a resposta que o mundo ocidental lhes
daria. Mas a resposta esperada não veio. Entre viver abstrata-
mente a pureza de uma doutrina e viver até às últimas conse-
qüências a lógica do poder adquirido, preferiram esta última
ponta da alternativa. E adaptaram-se realisticamente aos fatos,
protegendo-se. maquiàvelinmentc sob a bandeira do socialis-
mo. Kautsk.y percebeu perfeitamente que, a despeito dos seus
erros, crimes e vídos, o bolche\'ismo contribuía para a causa
da revolução mundial, pois um "enorme sentimento de fôrça"
seria despertado na "classe operária de todos os países", pelo
fato de, numa grande nação, "ter subido ao poder um Govêrno
proletário". (2º) Sentiu, por outro lado, Kautsky, que era ne-
cessário proceder à critica da revolução, digamos, do ponto de
vista revolucionário. Uma razão oportunístira, uma razão de
tática não poderia prevalecer sôbre o que lhe parecia consti-
lllir a e5sl:ncia do socialismo. Repeliu os argumentos de cnn.
vcniência, e cedeu a uma exigência político-cultural, enfren-
tando a avalancha de impropérios, a falsa indignação de Lênin,
Bukharin e seus seguidores menores em todo o mundo. "Até
agora - ad\"ertia Kautsky em 1919 - o bolchevismo triunfou
na Rússia, mas o socialismo sofreu a derrota mais lamentá-
vel." (21 ) E esclarecia: "O que o socialismo europeu deve
procurar frente ao comunismo é que a catástrofe de um mé-
todo determinado do socialismo não se converta em fracasso
do socialismo em geral, diferenciar cuidadosamente êste método
marxista e fazer \"er claramente às massas a diferença entre
ambos." (2 2 ) No meio da euforia reinante, nos meios de van-
guarda em todo o mundo, evidentemente o distanciamento de
que dava prova Kautsky se destinaria a ser desnaturado pelos
mal-entendidos. Kautsky e outros foram esmagados pelo bando
mundial de rinocerontes, que o bolchevismo alimentou e ali-
menta.
\'f.lll>.\DF. O.\ RF.VOI l "ÇÃO BRASILEIRA

Hoje, porém, em que não preva1eccm mais as razões t:í·


ticas para silenciar a crítica socialista dos socialismos de Cato,
em que, ao contrário, são mesmo razões táticas, além das estra-
tégicas, que tomam imperativa essa crítica, em que, no próprio
mundo "socialista'", se abriu francamente a discussão de idéias
~~:t~:·rt~~~mO J:r;::n~ ~~CSJ~t~z~~~Íé~ic:~ a:l~~:~~~ ::~
Jugoslávia, da Albânia e até de Cuba, hoje adquire indiscuti·
vel atualidade a atitude intransigente que, algumas década.~
atrás, fizeram de Kautsky um "renegado".
Kautsky hoje é mais atual do CJUe, por exemplo, Lênin, em
muitos aspectos. Assia', no que diz respeito à critica da revo-
lução, está do seu lado, em nossos dias, a razão, quando afir.
ma que é "absolutamente antimarxista" "a opinião que conta
com tantos defensores, de que não devem ser assinalados os
defeitos de um movimento quando é um movimento revolu-
cionário, para não diminuir o Jmpeto da massa". (23 ) "Ao
contrário - afi11na Kautsky - é necessário censurar aquêles
erros que não nasrcm de informações ocasionais, falsas ou
insuficientes, mas de uma c:oncepção fundamental equivocada
e que emanam neccssàrinmcnte dela. Tais erros só pode c\·i·
tar-sc reronheccndo-se a falsidade claquc1a concepção, e amea-
çam a todo o movimento revolucionário futuro se se deixa
passar sem critica, e com maior motivo se se os elogia. . no
suposto interêsse da revolução." (2 ') Nos dias atuais e55as
pala\'fas são particularmente oportunas.

Razão socialista contra razão partidária


O movimento i.ocialista, em tôda pane, está por demais
ameaçado de distorções, porque se tem permitido a ~ua estreita
associação com governos e organizações hábeis em paralisar o
exercício livre da critica da revoluçjo. Trab;1lhar hoje pelo
avanço do socialismo é realizar um esfôrço de colocá-lo cm seu
sentido de ronccpção-limite, evitando seja confundido com suas
maniíest:içf>es contingentes. Kautsky se antecipou à nossa épo-
ca, ao denunciar a temeridade da tática de idcntifüar o socia-
lismo com o experimento soviético. Hoje é igualmente teme-
rário pcrmilir que a razão socialista se encarne em partidos
e que 11s rnm·cniências de tais partidos muitas ,·êies se afirmem
REVOl.l"ÇÃ.O lllR~:"fA I·'. í'9

contra os interêsses mesmos da emancipação das camadas po-


pulares. Temos razões para reformular aqui ohsenações que
se enronlram em omros capítulos dêsle livro. llay motivo.
Em recente estudo, Maximilien Rubel (21) procurou re-
constituir o pensamento de Marx " respeito da questão dos
partidos. fala não é cogilação acadêmica, mas de magno
cunho prático. Os partidos "comunistas" e "socialistas", nas
condições atuais do mundo, estão a pedir acurada crítica. A
apropriação do marxismo e do socialismo por partidos que
se pretendem orarnlares ê uma das maiores mistificações de
nosso tempo. Marx nunca admitiu essa apropriação e deixou
considerações em que patenteia clarame,nte o seu ponto de
vista. Numa carta à Freiligrath, datada de 29 de fevereiro de
1860, disse: "Por partido, entendo o partido no sentido emi-
nentemente histórico da palavra." Como tal, jamais poderia
coincidir com qual<1ucr organização epis6dica. A idêia de
um partido comunista, na acepção sovié1ica, ê tudo o <111e há
de mais estranho :\ concepção original de Marx. Maximilien
Rubel, em seu estudo, negligendou essa carta, que daria cabal
fundamento à sua interpreu1ção cio conceito de partido prole-
tário, segundo Marx. Na verdade, como diz Rubel, segundo
Marx, nenhum partido poderia realizar em seu próprio nome
o 'zue é a tarefa "histórica" da dasse operária. ~o que rnn-
cerne aos "comunistas", "Marx não os considera um partido
operário distinto dos outros, mas como uma sorte de elite
intelectual portmlora do conhecimento e da consdência do
que êle chama 5el1JsUiiligkcit, a autonomia e o movimento
real da classe operária"'.
Pode-se admitir que os partidos "marxistas"', na feição co-
mo Unin consolidou na Rússia e como o Comintern difundiu
pelo mundo, tivessem, cm algum tempo, realizado função posi-
tiva. Foram instrumentos de defesa da União Soviética, quando
era o único pais socialista. Hoje, porém, a apropriação do
marxismo, do socialismo. elo comunismo, por partidos "orto-
doxos", é duplamente injustificável. À luz daquelas conside-
rações de Marx e Engels, pode-se dizer que essa apropriação
é antimarxista, ou seja, prática expressamente condenada por
aquêles pensadores. (28 ) E tinham razão ao condemí-la, pois
uma função eminentemente hi5tórica, por sua natureza C"Om-
plexa, só livremente exercida no choque das controvérsias e
pontos de vista tem condiçOO de ser cumprida. A História
não pode ser substituída por uma organização partidária, senão
80 :>.rrro J: V)'.RDADF. DA RF.VOl.UÇÂO BRASIJ.F.IRA

à custa do sacrifício da liberdade, como demonstrou o stali-


nismo. Os partidos monolíticos se tornam cada vez mais fat6-
res de retardamento cultural e rnrrupção das massas, e até
dos intelectuais. Muita gente confunde alfabetização com de-
senvolvimento n1ltural, e não vê o relativo atraso cultural das
massas nos países socialistas, apesar dos êxitos da alfabetização.
t. licito falar no "sono dogmático" da mente coletiva nos paises
socialistas, submetida a uma doutrina oficial, que não tolera
a discussão livre, e assim - o pensamento criador. No século
XX, a experiência dos palses socialistas veio demonstrar que
o atraso cultural pode coincidir mm alto nkel de alfabetização.
Finalmente não é idôneo negar o papel corruptor que hoje
exercem os par lidos "marxistas", de feição leninista, adestran-
do os seus adeptos para o maquiavelismo sislcmático na discus·
são das idéias, bem como na luta política. Em sua maioria,
êsses adeptos são virtuoses da m;í-fé, para os quais a razão par.
tkl:iria prevalece sôbre os csrrupúlos, a que estariam moral·
mente sujeitos todos os que se pl"eocupam com a função emi·
11cntcme11te l1üt1frica de seu pl'ojelo individual de existênda.

E Rosa Luxemburgo tinha razão . ..

Nos dias em que o regime soviético se iniciava, Rosa Lu-


xemburgo recorreu à arma da crílica socialista para advcnir
o mundo sôbre os perigos do bolchevismo. Não era a primeira
vez que ela se opunha à corrente ortodoxa dominante na então
jovem União Soviética. Antes da Revolução de Outubro, esti·
vera ao lado dos menchevistas contra posições de Lênin, no
tocante a problemas de organização. A despeito disso, Lênin
dedicava grande respeito por aquela mulher extraordin:íria,
que denunciou na Alemanha, o opormnismo ela social-demo-
nada e tel'minou os seus dias, em 1919, como mártir, executada
que foi, juntamente com Karl Licbknecht, por ter apoiado o
levante armado ela Cacção cspartaquista.
Rosa Luxemburgo é a mais pura encarnação da atitude idô-
nea que uma vanguarda deve assumir em lace das vicissitudes
episódicas do socialismo. Nenhum socialista, até mesmo ne-
nhum marxista, está obrigado a silenciar sôbre o que, nos cha.
mados países socialistas, lhe pareça digno de discus5ão ou
critica. A crítica da revolução não é mister exclusivo dos
Rt:\'OLn;Ão DllU:'l'A F. SOC:IAl.ISMO 81

circulas conservadores ou de direita. :t também dever dos


revc•lucionários, e assim em seu tempo a entenderam e exer-
ceram Marx e Engels. A despeito da simpatia que votava,
ele modo geral, aos líderes bolchevistas, Rosa Luxemburgo não
se eximiu da crítica que seus métodos de ação mereciam, e
nestt particular legou à posteridade contribuição rica de ensi-
namentos para a compreensão de problemas contemporâneos
do socialismo.
Profêticamcnte, Rosa Luxemburgo disse sôbre o partido
marxista de feição leninista: ;'Não poderiamas conceber maior
fif:.!~o l~~~t>~s~C:r~~~ ~~~~~~is~a~5;,,J:r~aº:n~il:~~u~:;;::;
escravi7.ar um movimento operário, ainda tão jovem, a uma
elite intelectual, sedenda de poder, que essa couraça burocrá-
tica em que se o imobiliza." (27 ) Para Rosa Luxemburgo, é a
revolução direta o passo preliminar do socialismo autêntico, o
primeiro movimento da história que "conta com a ação direta
e amônoma da massa" (28 ) e, a rigor, não é "ligado à organi-
zação da classe operária", mas antes "é o movimento próprio
da cla~u: operária". (2º) Essa crítica ao chamado centralismo
democr:itico cios partidos leninistas está longe de ter penlido
sua fôrça e oportunidade. Procurou ainda clarificar a noção
de "ditadura do prole1ariado", que não é incompatível com
a democracia socialista, pois não implica o "domínio de um
partido ou de um grupo'', mas tem por "base a mais ativa,
ilimitada participação da massa do povo, ilimitada democracia'',
que "começa" simultãneamentc com a "tomada do poder". (3º)
A ditadura do proletariado - diz Rosa Luxemburgo - "deve
ser trabalho da classe e não de pequena minoria dirigente em
nome da classe - isto é, procede passo por passo desde a ativa
parLicipação das massas; deve estar sob sua direta influência,
sujeita ao completo contrôle da atividade pública; originar-se
da crescente consciência política da massa do povo". (31 ) Em
resumo, socialismo é revolução direta.
A Rosa Luxemburgo não se pode estigmatilar com o la-
béu de "renegada". Haverá em nossos dias idêntica maneira
de assumir uma posição critica em Cace do "marxismo", do
"socialismo", do "comunismo".
82 MITO E VERDADE DA ltl.:VOLUÇÃO BRASILEIRA

NOTAS

(1) Vide !.l11u-El<GJ1u, Obl'llJI E.rcolhi~. Vol. 1, Jllo, 1956, pJg. '5.
(1) Vide, obro ,;111dll an1erio:rmm1e, plg. 22.
(9) Vide Maxlmlllen R.uan., "De Man: au BolchCYisme: Partis ct Conscils, in
Argumirnll, n.o11 15-26, 1962. pq. 51. Marx, auinala 11.ubel, cinha em
alta conta "o dinamismo inven1i110 do prole11riido, sua capacidade de
ln1enrlr e1pon1ineamea1e no1 aoon1«imentos da história, sua von1ade revo-
lucionaria. O levante dos 1ccelGes 1ilcsianos em 18H, mais 1arde a Comuna
de Paris, lhe fornecen.m oca•iGes para magnificar esta S.lbsllWiglr.ell. Es1endc
sua confiança aos camp6nios dlS comunidada russu (mnlrapanlda, sem
dúvida, de sua ruuofobia, de sua crença num de11ino ''mongol" da Jlliuia).
Quan10 ao 1eórim do prolc1arlado, nlo tem uma amaciênda à parte. Aos
operários rcvo.luclcm:lrlm, defe nazer, o!le, ln1clectual burguH, uma "cons·
ciência soc:iali11a" l (Kauuky e seu diadpulo Lênln o admitem.) Nllo.
Sbmen1e pode comunica:r·lhes ..eleme111os de cul!ura•• (p;lg. '3).
(4) Vide Yvon llouaor.T, "Di!nmcn.1le, classe et panl d'apm Max Adln .., ln
Argununu, n.os 25·20, 19(12. Diz Max Abl.n: .. No 1cnorisino. é a mnioria
que é vlolenlada; na diladura, é a mil•oria ... O lcl'TGl'ismo é uma violência
"arlHornl.lka..: a di1adura, uma violência dcmuml.tica.. (pig. 4.1). Max:
Adler comJdera a den1ocracia, informa Bo1mle1, como "saci.Wacle solidária,
umfNl.rlido"(p;lg.4.2).
(5) Vide Karl K.\unn, TerTori,mo y Conumismo. Madri. Sem dala.
(6) "O de que se 1ra1a hoje - diz El«ll:u - nllo é um programa, ma1 a
rcvolu~. Quando cs1a se puser em maKl1a nllo serllo oa $Oda\istas, mH
os liberais que tomarllo o poder na Rllssla. O que é ncccsSõlrio hoje na
Rdula li reunir lodos os elementos din.1mlcos sem distiH(llO de )>T08Tllma,
em vista da açto. Plckhanov erra atacando os 1111rado110llJ)', que 1llo os
ónicos que fazem alguma coisa na RIUsia." (Vide Ru11., anigo ci1ado,
p;lg.!!.)
(7) S6bre a natureza do socialismo na Uni.lo SovWtic:a., \·ide o e1timulan1e
estudo de M. RUBIL, "La Croissance du Capital en U. R. s. $.", in &ono·
mie Appliq11t, n ... 2·S, tomo X, 1957.
(8) Vide ENCELI, La Rniolulion Demom11iqu1 Bourgeoi2 .-n Allem11g1111. Edi1ion1
Socialc1. Paris, 1951, p;lp. ~-97.
(9) Vide Hidoinr de la nholNlio11 RIWt'. Paris, 1950, tomo J, p:lg. 1!8 (AJmd
Yvon Bouuzr, 11rligo cilado.)
(10) Citado por KAUTSH, em Terrari1mo etc., p;lg. 217.
(li) Vide Isaac: D111une11n, A Ri!.uio Depoi~ de S111lin. Agir, Rio, 1956, p;\gs.
31·!2·!3.
(12) a o que afirma o oompeicnte marxólogo, r.f. llu•EL, no artigo citado acima
"De Marx au Dolchevi•mc ... ".
(IS) .. En un 11ena, Lenine fui le "marxiste" parfait: il a joué sem r6le hisiorique
oonfonnl!mcn1 à la "loi du monvcmen1 «onomique de la satiét~ buurgcoisc"
qui Marx disait avoir d~ilK ... Lninc el san panl l'ont joué en Rus&le
cl 1rts bico joull. Unine icail donc man:isie c:ommc nou1 10mme1 nrwto·
nistcs, nuus tous qul HOUI mouvom ct chutons cm gravl1ant .. (Ruur., idem,
p;lp. 57-38).
(14.) INM, p;lg. 57.
(15) K.l.ur1n, op. cil., pig. 265.
REVOLUÇÃO DIRJ::lºA •: sot:IAl.ISMU 83
(16) Declara(lo feita a sindicali11u aleinla, publlaida cm Vol.lsrl11<11dl, 27 de
novembro de 1869 (vide Ru11u, 'ºRema"lues 1us lt! Concept de P1ni Prolii-
1ariim chn Marx", ln R-• Franp1i~ de S«iolo&le, n.• S, 1961, p:lg. 168).
(J?) KAUTlllY, op. ril., pAgs. 231-2'2.
(18) IMM, pi(. 229.
(19)1DF.M,p:lg.266.
(20) IDF.M, p;l.g. 286.
(21) IDEM, pip. 247-248.
(22:) IDEM, p:lp. 2!i7·258.
(25) IDIM, p:lg. 200.
(lM)Im:1i1,p:lg.200.
(25) Ruau, "RCll11"1.UC!" CIC.
(26) EICfeve R.uBl!L no d1ado 111mdo: " •.• Marx el Engcll n'ont pas lavoriR la
naissance de parlis."marxli1111". lls 11e IOnl opposb: t. rmdoclrit1cme"nl au
nom de rcxplrknttt ouvrlf:re... Du vlvanl de Marx ct aprã sa mon,
Engels •vait llOU~imt b:ril aux premlen dlsclplrs françals, l1ali1m1, a~ri­
aiin1, po11r ICl dinuader d'oricn1er t. leur 111ode la clauc uavailleuse: "Qu'clla
aicnt un mouYCnient 1 elles, quelle qu'en 110it la forinc, paurvu que ce
soit leur mcn11111m11N1" (A Snrge, 20 de novembre de 1886). "De Mant au
Bolchc:visllle:", p:lgs. "·34).
(27) Vide Daniel Gub.IN, ]H'lfflssr dn SOciofilmc Libttlllin. Paris, 1959, pág. 109.
(28) JnM, p:lg. 109.
(29) VidcGub1N, op. cil., p<lgs. 105-IOG.
(SO) Vide Wright MILLI, Th• M11ni1l1. Ncw York, 1962, p;tg. ,06.
(31) Vide Sidney Hoo11, Af(lrx anel lh• Marxlsu. Ncw York, 1955, p4r. 211.
CAPÍTULO III

Uma Corruptela da Filosofia:


o Marxismo-Leninismo

8oTA111: Isso i mi.slificação!


DUDAltD: Q.ur i que i mhlificaçii111
Bou.Rb: Essa história de ri11oct"r011/r, 0111! P.
a sua propagando que faz COrTr:r b.st.s boa/os!
(IONl!SCO, Rinaurm1t~)

"Stolin ê o Unin dr hojl'."


..Stalin"
(Vide o di5eurso secreto de Kruschev.)
"Prlrificaçiio t complat,Jnr:id mio ~à.o a/1r:11as
os piores inimigos da belr:w, mas da roi:iio pou.
lica."

"Cullurally, l.e11inism mml be regardr:d in


lhe ligld of ils dr:veiopmenl, a.s l/1r: /irsl Fas·
ti.si movemrnt of tl1e lwtnlitlll ce,.11117."
Sidney 110011

UMA DAS MAIS ELOQÜENTES PROVAS da astúcia dos dirigentes


bolchevistas consiste em ter impingido a muita gente no mundo
o marxismo-leninismo, não só como legitima síntese das con-
tribuições de Marx, Engels e Lênin, mas também como per-
feito equivalente ou sinônimo de marxismo. Não se diga que
se deixaram pregar esta peça aquêles que não tinha nenhuma
iniciação na história das idéia.s, indivíduos pouco instruídos.
Não. Intelectuais, homens de excepcional inteligênda e pre-
paro filosófico renderam-se aos efeitos subliminais dêste ardil
da propaganda, que não resiste hoje a uma argüição mesmo
ligeira.
O :l.IAkXISMO·U:l'I:'l:IS:l.10 85

Marx contra os marxistas


:Marx não era manr.isw. Lênin nunca foi leninista. E
muito menos marxista-lcninista.
:Enquanto viveu, Marx procurou desestimular a consti-
tuição de movimentos e partidos "marxistas". Seu pensa-
melllo ê claro s<">bre o assunto. Considera um "mal-entendido"
identificar a função "eminentemente histórica" <los comunis·
Las com esta ou aquela entidade episódica, uma Liga, uma
redação de jornal. A partir de certo momento de sua carreira,
aproximadamente por volta de 1852, Marx decidira recusar
apoio a organizações fechadas, convicto de que "meus trabalhos
Lcúric:os eram mais úteis à classe operária que uma colaboração
com essas organizações que não tinham mais ratão de ser". (1 )
í.sse modo de ver, ao que tudo indica, refletia convicção pro-
funda e amadurecida, confirmada por escritos de Engels. t.
êste último que, em 1851, frisa reiternclamente, em carta ao
seu amigo, a necessidade de manterem-se "independentes", de
"assegurar a autonomia" face aos partidos e de se entregarem à
elaboração de textos que apresentem a posição de ambos. "Da-
qui por diante - escreve Engels - não seremos mais r~sponsá­
veis senão por nós mesmos." E mani[estava horror pelo ali-
ciai. "?\ada de situação o[idal de Estado", "nada de partido
oficial", escrevia Engels em 1:arta ao seu amigo. E declarando
que "cuspia na popnlaridade", ocorrem-lhe pala\'ras rnmo
"asnos", "imbecis", "forjadores de frases" referindo-se a certo
tipo de "gente limitada" que pretendia na êpoca pass:ir por
socialista e talvez man.:is1a. Em todo caso, textualmente afir·
iitava: (-!) "Não temos nós agido desde alguns anos como se
tôda sorte de gente constituísse nosso partido, quando não
tinhamas o menor partido e as pessoas que considerávamos como
de nosso partido, ao menos oficialmente, não C'Omprcendiam
sequer os elementos de nossa doutrina?" Como Marx e Engels
detestavam o leninismo 1
Não há subterfúgio, nenhuma razão sofistica, que possa
negar a aversão lle Marx e Engels pelo que, na Cpora de
ambos, representa\'a tentativas de institucionalização de seu
pensamento. Ao contrário, formularam condenações daras e
contundentes contra essa prática nefasta que se revelava j;í
na segunda metade do século passado.
86 :\ll'rO •: n:RD.\DF. DA U'.\'OJ.IJl;,:Ão BRASii.EIRA

Marx disse certa \•ez: "não sou marxista". Teria sido


esta men1 frase de espírilo? Marx sabia fazê-las quando que-
ria. No caso, porém, visava a repelir o "marxi5mo" que certos
militantes franceses professavam e no qual via distorção peri-
gosa de suas itléias. Por isso escreveu a seu genro, Paul La-
fargue: "Ce qui il y a de certain, c'est que moi, je ne suü pas
marxiste." Insisto em ressaltar êsses aspectos, intencionalmente
omitidos, da vida de Marx e Engels, porque contêm os prin-
cípios mesmos de uma crJtica do marxismo em nossos dias,
especialmente do "marxismo-leninismo". t. Engels quem nos
oferece espetáculo aparentemente paradoxal, quando abre luta
rontra um grupo de marxistas que se Cormar:i. em 1888 no seio
do Partido Social Democrata alemão, Numa carta a Paul Lafar-
gue, (1 ) Engels {ala da "multidão de estudantes, literaLos e
outros jovens burgueses desclassificados", que procuravam em-
polgar os postos partidários na qualidade de aliciais, se não de
generais, supondo que, para tanto, estavam habilitados, por íre-
qüentarem a universidade burguesa transformada assim em
verdadeira "escola de SainL-Cyr Socialista". E concluía Engels:
''Todos êstes senhores pratkam o marxismo, mas ela espécie
que conheceis em França, há dez anos e da qual Marx <lizia:
"Tudo o que sei é que eu não - não sou marxista." E prov.à-
\'elmente êle diria dêsses senhores o que Heine diziil dos que
o imitavam: "semeei dragões e colhi pulgas".
Na evolução llos movimentos libertários, parece incidir
o que se poderia chamar "lei de bronze", segundo a qual, a
partir de certo momento, os representantes autênticos tendem
a ser substituídos e até derrocados por arrivistas e falsários.
Existe em todos os palses uma espécie de "lumpen-proletariat"
de colarinho branco, filhos de família desdassiíicados, intelec-
tuais ratés, mal sucedidos, universitários ansiosos por fazerem
carreira, que, após aprenderem a íraseologia doutrinária em
voga, se lançam à conquista de lugares no comando do movi·
menta. Numa carta a Engels em 1876, Marx chamava de "arri·
vistas literários imbecis" a êsse tipo de militantes. No Brasil,
o aluai movimento nacionalista está iníestaclo por elementos
dessa fauna bizarra, fato que o \•em debilitando gravemente e
contra o qual se faz imperiosa enérgica ação saneadora. Em
1884, quando certos êxitos eleitorais atraem para o Partido So-
cial Democrata alemão crescente numero de intelectuais e
literatos egressos de meios burgueses, Engels acusava Wilhelm
I.iehknecht dé fraqueza, e advertia: "Estas constituem, na Ale~
O MAllXIS:W:O·l.t:NINISMO R7

manha, as pessoas mais perigosas, e Marx e cu não cessamos


ele combatê-las desde 1845. Desde que se as admite no parti-
do, onde se promovem por tõda parte aos primeiros lugares,
é preciso forçar incessantemente seu rebaixamento ... "('')
As razões que levaram Marx a condenar o "mal'xismo"
as.semelham-se às que hoje persistem contra os partidos e mo.
l'imentos ditos marxistas ortodoxos.

Llnin contra os leninistas


Embora Lênin seja o principal responsável pela institu·
cionalização do marxismo, que. tanto indignava Marx e Engels,
a seu favor· se pode alegar elevada e hone5ta decisão de lutar
pelo que acreditava serem os interêsses da classe operária. Em
mdo o que fêz Lênin, há muito de risco calculndo. Conhecia
perfeitameme o alcance negativo que poderiam ter muita-;
das posições que defemleu, mas julgava que, no final das
contas, o saklo positivo que delas adviria as justifiral'a. Lênin
era mestre do oportunismo positivo. Maquiavéliro moderno,
no interêsse da marcha para o comunismo, deu versão original
ao postulado: "os fins justificam os meios". Pode ser, portan-
to, argüido de oportunismo, intransigência, voluntarismo, e
até de crueldade. Nunca de imodéstia. São unânimes os tes·
temunhos autorizados de sua exemplar modéstia.
Lênin nunca foi leninista. O leninismo é post /esturn. Em
maior razão, também o é o marxismo-leninismo.
Um historiador da sociologia russa, Max M. Laserson, faz
declaração aparentemente rorriqueira, mas de enorme poder
esclarecedor, no contexto elo presente capitulo. Diz êle: "A
doutrina do leninismo não foi prôpriamente formulada por
Lênin mesmo. De resto lle nunra empregou esta 11arlio (o
grifo é nosso). O ponto de vista de Lênin era, a seus prl>prim
olhos, o de um adepto do marxismo ... " (11 ) O que se sabe
é que, enquanto viveu Lênin, a palavra leninismo tinha sentido
pejorativo. Segundo Souvarine, foi forjada pelos menchcvistas
para inferiorizar e ridicularizar os membros da Cacção bolche-
vista. A palavra irritava Lênin. ce) O leninismo é criação da.
queles que, após a morte de Lênin, se autonomearam seus
executores testamentários no terreno ideológico. :t obra prin·
cipalmente de Stalin. Extrema importância assumem os estu-
dos que o escritor russo Boris Souvarine vem publicando sôbrc
a história do regime soviétko. Além de dispor de documentos
88 \'Jo:RDADF. DA kt:v01.1·çÃo BRASll.F.IRA

de valor excepcional, Souvarinc tem imaginação filosófica, in-


dispensável nesse terreno da crônica das idéias, para sur-
preender o embuste. É um dos raros autores que souberam
demonstrar como além de forjicação, o marxismo-leninismo
não é mais nada. "Se Lênin - diz Souvarine -, ferido de
marxismo livresco, não queria ouvir falar de leninismo, Stalin,
ao contrário, julgou útil dêle aproveitar-se e fêz do "mancis-
mo-leninismo" a ideologia oficial, custosa e obrigatória, de
seu despotismo.'' (7) E, num raciocínio competente de histo-
riador das idéias, esclarece: "O Hamlet europeu ele Valéry,
com o crãnio de Kant nas mãm, sabe que "Kant genuil Hegel,

::~uf,e;~;:in~;~:'gei:~t ~~~i:l~~~·~>;~~r:~~~~~~~~a~:~~a~~~
se sabe, a um Kozlov qualquer. Mas Kant remonta a Leibniz,
que remonta a Descartes, para dêlc separar-se, e por falla de
discernir soluções de continuidade nesta filiação mais ou me-
nos legítima arrisca-se a confundir tudo e a não rnmprccnder
nada_ Para quem é capaz dêste discernimento, o marxismo é uma
coisa, complexo e variável, o leninismo é outra, mais simples,
e o "marxismo-leninismo'', uma tcrc-eira que con1rasta ('Otn as
precedentes por diferenças profundas, malgradn as similitucles
verbais," (8 ) Lênin propôs em seu "te~Lamemo" a destituição
de Stalin do cargo de secretário-geral do Partido. Acusava-o
de brutalidade, falta de lealdade e arbitrário, atributos que o
contra-indicavam para o pôsto e com êlc rompeu relações, for-
m~lmente, antes de morrer, chocado com a insolênda com <1ue
tratou sua companheira Krupskaya. Os lideres bolchevistas
associados a Stalin ocultaram ao públko o "testamento" de
Lênin. Nunca foi publicado na URSS, senão quando Kruschev
julgou oportuno, por ocasião de seu discurso contra o c:ulto
da personalidade em 1956. t. tal conduta capciosa que se encon-
tra na raiz do mito do leninismo e no contrabando chamado
"marxismo-leninismo", Justo é, pois, o comentário de Souva-
rine: "A quinta-essência do stalinismo é a mentira. E o "mar-
xismo-leninismo" que reivindicam em nossos dias os herdeiros
de Stalin, seus cúmplices, não é outra coisa senão o stalinismo
<[UC não quer dizer seu verdadeiro nome. Um stalinismo
expurgado do "culto da personalidade" paranóica de Stalin
ao qual Kruschev e consertes substituem o culto abjeto de
Lênin, mas sempre um stalinismo em que .rnbsislc a mentira
fundamental." (9) Lástima é que essa memira .:.eja a verdade,
o alimento espiritual de muita gente de boa-fé.
O :\IARXl~'.\IO-U:Xli\bMO 89

Stalin definiu o Jeninismo como "o marxismo na época


do imperialismo e da revolução prole1ária". Assim conduzindo-
.se, perseguia os mesmos objetivos que o levaram, contra a re-
pugnância de Krupskaya, e de ou1ros militantes, entre os quais
Riazanov e Trotsky, a colocar o corpo embalsamado do grande
chefe da Re\"olução de Outubro no mausoléu da Praça Verme-
lha, desta maneirn fundando, com a prática de singular rito
de sagração, nova e sinistra modalidade de culto mágico ao
totem. Contra as intenções de Stalin, escreveu Krupskaya na-
queles dias de 1924 cm que se cogitava de construir o santuário
de Lênin: " ... Não deixeis vossa tristeza com relação a Ilitch
exprimir-se em veneração exterior de sua personalidade. Não
e<lifiqueis, em seu nome, monumentos, palácios, não Or!'{anizeis
cerimônias pomposas em sua memória etc. Quando vivo, êle
dava tão pouca importância a tudo isso, que lhe incomodava.
Lembrai-vos quanta miséria e desordem existe ainda em nosso
Pais. Se quereis honrar o nome de Vladimir Ilitch, criai creches,
jardins de infância, casas, escolas, bibliotecas, ambulâncias, hn~­
pitais, asilos ele., e sobretudo realizai em "ida seus ensinamen-
tos"' (Boris Souvarine, Staline, Paris, 1935, pág. 332). O mar·
xismo-leninismo está também permeado .dessas intençõe5 de
apropriação de um legado, para fins mágicos e pollticos. A
desestalinização implicava assim, lbgicamente, retirar da
Praça Vermelha o ataúde de Stalin. Na URSS, os totens
sobem ou descem na hierar<1uia filosófica - por decreto. O
marxismo-leninismo é uma c:orruptela filos6Cica, adrede cria-
do, a fim de paralisar a critica do regime soviético, ou a distus·
são livre de suas debilidades. Não é própriamente sistema filo.
sóíico. É técnica soUstiea de argumentação em que se substitui,
na avaliação da objetividade, da verdade e da exatidão, o cri-
tério racional pelo critério politico, a razão, simplesmente, pela
razão de Estado. Começou como um protorreacionarismo e, nos
dias de hoje, revela-se na plenitude de sua degenerescência.

Marxism<J..leninismo, fen6meno nu.so


O marxismo-leninismo é fenômeno tipicamente russo.
É a história da inlelligenlzia russa que o explica. O que na
Rússia da segunda metade do século passado se entendia por
intelligentzia era camada social muito característica. lntegra-
"·am-na intelectuais e ideólogos, de diferentes origens sociais,
!JO :\llTO ~: n:llDAm: DA RL".VOl.LJÇ.ÃO BRASll.f:JRA

inspirados por ideal de reforma, e cuja conduta inronfonnista


frcqüentemente se deixava empolgar pelo dogmatismo e pelo
messianismo. Quer fôssem eslavó(ilos ou ociclentais, isto é,
quer admitissem para a Róssia um destino pràprio, quer vis·
sem a história dêsse país integrada na civilização ocidental,
os membros da intelligentzia se consideravam convocados para
missão salvadora e, a fim de cumpri-la, viviam at~ às últimas
conseqüências as suas convicções. Adotavam as doutrinas oci-
dentais, menos como subsidias, pontos de referência, do que
ordinàriamente como verdades absolutas, careciam de senso
relativista, da atitude de tolerância teórica. O que, no Ocidente,
é hipótese de trabalho sujeita a discussão livre, susceptlvel de
ser retificada, com o esclarecimento, passa a ser, no seio da
intelligentz.ia, verdadeiro dogma. Seus típicos representantes
viveram, com intransigência, o darwinismo, o sainc-simonismo,
o fourierismo, o proudhonismo, o hegelianismo, o materialismo,
o marxismo. Um niilista russo do século passado declaravn,
referindo-se ao seu circulo: "Cada um de nós estava disposto
a ir ao patibulo e dar sua cabeça por Moleschott e Darwin."
E Piasarew considerava Lamarck um traidor, porque Darwin
estava certo.('º) BercliaeH (11 ) vê a intelligentzia dominada pela
moral do "raskol", que se encarna no tipo hibrido, mistura de
vagabundo, místico e revolucionário cujo retrato muitas vêzes
pintou Dostoiewsky em seus romances. Os marxistas russos, em
especial os bolchevistas, remontam a essa família.
Em sua passagem por Paris nos princípios da década de
1840, Marx já encontra russos adeptos de suas idéias e é na
Rússia que se traduzirá pela primeira vez O Capital. Marx
nunca demonstrou simpatia pela Rússia e parece ter compreen-
dido, desde cedo, que os revolucionários russos dificilmente con-
teriam seus impulsos messiânicos. Conheceu Bakunine e com-
bateu com energia suas posições voluntaristas e utópicas no
seio da Primeira Internacional. Posteriormente, admitiu que
a comuna rural (obshechina) poderia ser ponto de partida na
construção do socialismo, e ainda aplaudiu o assassinato do
Czar Alexandre II, em 1881, subscrevendo assim as táticas dos
populistas. t digno de nota que os marxistas russos, e especial-
mente Plekhanov, condenavam os populistas, precisamente no
tocante ao terrorismo e à valorização da comuna rural. Não
seria esta a primeira vez que Marx se chocaria com os marxistas.
No marxismo russo, a corrente que terminou por tornar·
se vitoriosa, tendo, após a ReYolução de Outubro, esmagado
91

05 que se lhe opunham, notadamenlc os mendte\·islas, foi


a liderada por Lênin, ou seja, a corrente bolchevista, na qual
não é difkil discernir os traços caractcrístkos da psicologia da
intelligentz.ia. Não vingou a tentativa de implantar na Rússia
um movimento socialista à maneira ocidental, que teve em
Plekhanov o seu representante mais destacado. Plekhano\',
para quem o socialismo só poderia instaurar-se gradativa-
mente, depois da industrialização capitalista, da ascensão
ao poder da burguesia, discordava fontalmente das concepções
de Lênin. tste, ao contrário, assimilou o marxismo à tradição
russa dos intelligentzistas. Seus verdadeiros precursores são,
entre tantos, por exemplo, um Tchaadev, que aLTeditava num
destino especifico da Rússia (12 ) como nação escarmentadora e
exemplar aos olhos do mundo, um Tkatchev, que, em carta a
Engels em 1875, afirmava a impossibilidade de observar estri-
tamente o marxismo na Rússia, país no qual, a seu ver, a
revolução requeria procedimentos originais. Messianismo, dog-
matismo e voluntarismo definem o ar de família em que se
sentem a cômodo figuras como Tchaadev, Tkatrhev, Lênin,
Trotsky, Stalin e os arlepto5 do bold1e\•ismo em geral, de que,
em última análise, resulta o marxismo-leninismo.
Muito antes de se tornar patente, como acontece hoje, o
caráter sofistico do marxismo-leninismo, vinham ocorrendo,
já de longa data, no seio mesmo elos militanles de partidos
comunistas, controvérsias em tôrno das diferenças entre o mar-
xismo russo e o "marxismo ocidental". O ra5o Lukacs é
extremamente elucidativo neste particular.

O Caso Luluu:s
Lukacs é um dos maiores conhecedores de Marx e da filoso-
fia em geral, além de ser, também, filósofo a quem se devem
contribuições marcantes em nossa época. Desrendente da nobrc-
7.a judia-lul.ngara (seu pai era banqueiro). nasceu em Budapeste
em 1885. Freqüentando a Universidade de Herlim e outras fa.
mosas da Alemanha, teve formação intelectual privilegiada. En-
tre seus prolessôres e companheiros se incluem figuras como
Windelband, Rickert, Dilthey, Husserl, .Jaspers, Heidegger,
Korsch, Bloch, Max Weber, Simmel, l\lannheim, Gundolf,
Thomas Mann, nomes c.iue representam correllles dominantes
do nosso tempo: o hegelianismo, o marxismo, o neokantismo, a
D2 ~llTO f. n:RDAlll-'. llA Rr:nn 1;çÃo RRASll.F.IRA

fenomenologia, a sodologia do conhecimento e ela compreen·


são. ( 13 ) Atraldo pelos assuntos de estética e pela literatura, na
juvcmude, funda em Budapeste um teatro livre onde se reprc·
sentam S1rimlberg, lbsen e outros dramaturgos; escreve, em
1908, A EuulHção do Drama Moderno; cm 191 l, A Alma em
Formas; e cm 1916, A Teoria do Romance. Thomas l\fann, a
quem impressionara com um dos seus ensaios, torna-o persa·
nagem de Montanlia Mágica, com o nome de Naphta, A guerra
o põe em contato com o movimento operário e, em 1919, j<i.
membro do Partido Comunista, participa do govêrno Bela Kun,
como Comissário para a Cultura Popular. É após o fracasso
dê.sse govêrno que, refugiado a princípio em Viena e posterior-
mente na Alemanha, escreve o "livro maldito" (Kostas Axelos),
História e Consciência de Classe, publicado em 1928, e uma
obra sôbre Lênin (1924). Com a vitória dos nazistas, retira-se
da Alemanha. Visita pela segunda vez a União SoviCtica, tra-
balha no Instituto Marx-Engels de 1929 a 1931. Em 1915 é
prolessor de Estética na Universidade de Budapeste. Entre
1915 e 1960, os títulos de seus principais trabalhos são Balzac,
Stendhal, Zola; Nietuche e o Fascismo; O ]ovem Hegel; Karl
Marx e Frederico Engels, Historiadores da 1-itel'aduru; O Rea-
lismo Russo na Literatura Mundial; Existencialismo ou Mar-
xismo? Breve História da Literatura Alemã; Goet/1e e S1m
F.porn; Destruição da Razão (2 vols.); A Significnçiin Pre.fenlr
do Realismo Critico.
O caso Lukacs ilustra a degradação a que tem levado o
principio leninista do partido no trabalho cultural. Obrigado
a enquadrar-se na interpretação soviética oficial do marxismo,
Luk.acs, por duas vêzes, retratou-.se abjurando suas produções.
História e Consciência de Classe foi cama de seu primeiro
insucesso no meio soviético. Nesse li\'ro acentuou os aspectos
hegelianos da obra de Marx, mas naquele tempo Hegel e~ta\•a
condenado pela diretriz partid:íria, ao contrário do que acon-
tece hoje, em que, no âmbito mesmo do Partido, se estimula o
estudo do filósofo alemão. Lukacs foi julgado à luz da obra
de Lênin, Materialismo e Empiriocriticismo, um texto pan.
fl.etcirio, em que é exacerbado o que em Marx representa\'ª
apêgo ao positivismo. Lukacs mostra a debilidade do positi-
vismo e seu caráter antidialé1ico, indiretamente, portanto, infir-
mando a "teoria do reflexo" de Lênin. Também nega, conlra-
riando Engels, a existência de uma "dialética da natureza" no
que, aliás, hoje, é secundado por Merleau-Ponry. Sartre, Gold-
() MARXISM0-1.•:~1s1s~lo 93

mann, entre outros, tendo o primeiro dêsses, Merleau-Ponty,


ac:ertadamente observado que a magia é exatamente a "mescla
de dialética e espírito positivo que transporta à natureza as
formas do ser do homem", mescla, de resto, que constitui a
essência do marxismo-leninismo. Mas a magia disfarçada em
"teoria do rerlcxo" e em ortodoxia condenou uma interpretação
criadora de Marx.
A data cm que se publica História e Consciência de Classe
(1928), o Comintern está intensamente aplicado na sovietização
dos Partidos Comunistas, tornando-os monolíticos e cxpurgad05
de facções dissidentes.
Após o colapso da fugaz ditadura comunista na Hungria,
em 1919, Lukacs e Bela Kun, no exílio, são os representantes
das facções que pretendem o comando do Partido naquele
país. Lênin os reúne em Mascou e tenta dirimir as divergências
entre ambos. Bela Kun, associado a Rakosi, procura aliciar
apoio para sua causa e, por fim, com a publicação do livro
de Lukacs, descarta o seu concidadão. Lénin fale1·e em janeiro
de 1921. É a hora do leninismo. É a hora de capitalizar a
memória de 1.ênin, utilizando-a como instrumento de sovieti·
zação, em escala mundial, do movimento comunista. Recor-
ramos a um historiador competente, Boris Souvarine. "Nesta
data (1921) - diz êlc - o leninismo foi proclamado ideologia
legal exclusiva do Estado soviético. Antes chamavam-se leni·
nistas os partidários de Lênin, que profes.'lava estritamente o
marxL~mo cm teoria e não tolerou em seu partido outra dou-
trina - ... De agora em diante, o leninismo será a rigorosa
observância retrospectiva e formal da obra lenini;ma impressa,
\"álida ou caduca, obscura ou contraditória, Bíblia nova, de-
composta cm versetes como se af se encontrassem respostas defi-
nitivas a tôdas as questões apresentadas pela história" (B. Souva-
rine, Stalin, Paris, 1935, pág. 33!1). Leninismo, a principio, e
marxismo-leninismo, depois, eis em que se transforma, nas mãos
dos lideres bolchevistas, o legado de Marx. Bela Kun já estava
perfeitamente adaptado à atmosfera intelectual reinante na
Rússia. Em abril de 1921, num significativo artigo, "A Propa-
ganda do Leninismo", Kun, referindo.se indiretamente a Lu-
kacs, denuncia as "tentativas surgidas na literatura alemã" de
"rever" e "emascular" o materialismo dialético. Posteriormente,
um antigo entusiasta de Lukacs, Ladislau Rudas, criva a sua
obra de ataques furiosos, tornando-se para tôda a vida perigoso
inimigo de seu ouirora mes1re. Associam.se a êsses militantes
).llTO )'. \'J.'.R.OAIW li.\ Rl.\"Ol.t!(,:ÂO BRASILEIR.\

húngaros, influentes marxislas russos, entre os quais, Deborin.


Luppol, HmnmcI, Wcinstein. Mas é em junho de 1921 que a
rnndenação de l.ukacs se torna oficial. ('4)
A data de 1924 é digna de atenção. E marco histórico,
divisor, entre o marxismo russo (o marxismo-leninismo) e o
"marxismo ocidental". Assinala o Quinto Congresso da Inter-
nacional Comunista, Contra I.nkacs se pronuncia Bukharin, no
Congresso, advcnindo sôbre as "recaídas no velho hegelianis·
mo", cabendo a Znoviev a palavra decisiva. Da intervenção ele
Znoviev, é opornmo relembrar os seguintes tópicos:
"Se nós ... estivermo.~ dispostos a prestar mais do que um
serviço verbal ao leninismo, não devemos deixar esta tendên-
cia da extrema esquerda transformar-se num revisionismo te6-
rico ... difundindo-se e tornando-se fenõmeno internacional.
O camarada Graziadei.. publicou um livro.. atacando o
marxismo. :Este revisionismo teórico não pode ser passado com
impunidade. Nem nós toleramos nosso camamda hú11gnro /n·
:zendo o mesmo no dominio da Filosofia e da Sodologia.. Te-
mos similar tendência no Partido Alemão. O camarada Grazia-
dei ê um professor, Korsch é também um professor. (Interven-
ção: "Lukacs é também um professor!") Se tivermos alguns
mais dêsses proíessôres dh·ulgando suas 1corias marxistas, nd.f
c.slamos perdidos. Não podemos tolerar ... revisionismo teórirn
desta espécie cm 11os.sa Internadonal Comuni.oita." (Os grifos
são nossos).(111)
I.ukacs e Graziadei foram condenados e também o foram
Karl Korsch, Revai, Fogarasi, acusados de "lukacsismo". Korsc:h
se rebelou. Em 1925 é excluído do partido e, cm 1921i, como
membro do executivo ampliado da Internacional Comunista
protesta contra o que chama "imperialismo vermelho", atitude
que lhe valeu, para sempre, o ódio de todos os escribas que,
na imprensa partidária parassoviêtica, reza,·am na cartilha de
Bukharin e Znoviev. Posteriormente êsses dois Torquemadas
pagaram com a morte seus pecados contra o que outros compa-
nheiros seus interpretavam como "linha ortodoxa", Lukacs, po-
rém, não resistiu. Aceitou disciplinado a decisão do Comintern,
mamendo-se em suas lilciras. Convenceu-se sinceramente do
seu êrro? Ou apenas, como insinuou Kostas Ax:elos, preferiu
uma "recusa tática elo sacrifício" a beber a cic:uta como Sócra-
tes? É difícil julgar taxativamente o dilema. O fato é que
Lukacs reincidiu no "hegelianismo", em "desviacionisníos".
Ruelas, seu antigo discípulo, em 1948 o acusa de "cosmopolitis-
() MAllXISMO-U:NINIS,_.O 95

mo", apontando a influência burguesa em sua obra, e é cor-


roborado por Revai, também ex-discípulo de Lukacs, agora
adepto de .Jdanov. Lukacs é demitido da cátedra de Esté-
tica na Universidade de Budapeste. Em 19<!9, proclama sua
"reconversão" ao marxismo, numa segunda autocrítica, Mais
uma ve7., é lídto indagar se, nessa oportunidade, c~tava
ou não numa ;atitude de "recusa tática do sacrirído''. Fa-
tos posteriores tornam plauslvcl a hipótese afirmativa. Quan-
do irrompe cm 1956 a Revolução 1-Iímgara, êlc aparece
entre os que a lideram. Como Ministro da Cultura Popular,
participou do Govêrno Nagy e naqueles dias tentou íunrlar
nôvo partido, o Partido Socialista Operário Húngaro, em
moldes antistalinistas. Para concretizar a idéia, chegou a ser
constituído um Comitê de Organização de que participavam,
entre outros, Nagy, Losonc:r.i, Donath e Janos Kadar. :Este últi-
mo havia sido encarregado de apresentar ao pais o nôvo par-
tido, e tão anti·soviétko se mostrava que propôs a dem'.mcia do
Pacto de Varsóvia, no que teve a oposição de Lukan. Traiu,
porêm, os seus comp;mheiros, prestando-se a ser o algoz da Re-
volução, aliado aos soviétkos. Nagy, Lo.~oncii, Donath e I.ukacs
se refugiam na embaixada iugoslava. A despeito· disso, Kadar
procurou insistentemente o apoio de Lukacs. Dessa ve-L, porém,
o filósofo nega-se a fazer autocrítica. Consegue refugiar.se na
Romênia. Nagy é fu:r.ilaclo. Em 1957 é autorizado a retornar
;\ Hungria, onde até hoje se encontra vigiado pelo Govêrno,
como professor aposentado.
Poucas inforim1ções seguras existem a respeito da atuação
de Lukacs no interior do Partido. É provável que a docilidade
do íilósofo às crilicas e pre.ssões seja aparente. Aqui e ali
lranspiram depoimentos que pintam um Lukacs bastante re-
belde. Em 1935, Lukacs teria estado "momentâneamente" prê-
~o em Mosrnu, segundo informa Michel Kàrolyi. O próprio Lu-
kacs, em coníerência proferida na Academia Polltica do Par-
lido húngaro, em junho de 1956, recordou aspectos da luta
interna que teria ocorrido no PC húngaro, entre 1929 e 1937,
na qual distinguia "a linha sectária representada por Bela
~~~ ~u:l I~~h~ ~a~;el~l~~~iJ~~:~~~:!~o~ ~~~:~u7:;~~~~
..
sam a "liquidação" de Bela Kun pela N. K. V. D. (1 8 )
Essas vicissitudes da vicia de Lukacs não podem ser jul-
gadas levianamcme, sobretudo não podem ser apreciadas à luz
de um stalinismo às avessas, que consistiria em imputá-las a
96 MITO E \'ERD.\DE DA RF.VOl.1.ÇÃO BRASIU:IRA

debilidades morais ou psicológiras do filósofo. François Fejto


aponta no filósofo um "gôsto pela auto-humilhação", comple·
xo ele rulpa por ser lilho de banqueiro, e ter sido freqüentador
dos círculos mais fec:hados de Budapeste, Viena e Berlim. (1i)
Na verdade, todo pensador engajado, todo in1uêle que, por
imperativo humanistice, se associa a um movimento politica·
mente organilado, de objetivos libertários, está necessàriamente
('()mpelido a concessões. O caso Lukacs parece mais um exem-
plo de grandeza e dignidade moral do que expre~são menor de
pusilanimidade e oportunismo. t um caso que, em resumo,
ilustra o problema ético da inteligência na época re,·oludom\-
ria. t certo que Lukacs é surpreendido em atitudes aparente-
menie degradantes, como o stalinismo de seus úllimos livros
e escritos, aí inclusive os dois volumes de Deslrniçt'io da Ra-
zão, em que o tratamento deformado e simplificado das teo-
rias o expõe até ao ridículo, e deixa estarrecidos todos os que
conhecem a agudeza, a competência e os antecedentes culturais
do au:or. O autor dêsse livro é um Lukacs de miolo mole,
esmago.ado pelo stalinismo. A despeito disso, o nosso raciod-
cínio inclulgenie tem fundamento. Como diz T~omas Munzer,
é na obra, e não nos episódios biográficos da existência de
Lukacs, nem nos seus preconceitos, que se deve buscar a chave
da interpretação dêsse caso. Uma das categorias fundamentais
dessa obra é a mediação. Ao perseguir o ah'o marxista de tor-
nar a filosofia instrumento de transformação do mundo, de
realiz<í-la pràticamente, o autor encarna no partido proletário
o agente por exc:elênc:ia de mediação entre a atual realidade
de existência, agrilhoada em ttida espécie de servidão, e a so-
c:iedacle cm de\·enir, cm que se realiza progressivamente a l!esa·
lienação subjetiva e objetiva da humanidade. O Partido é a
\'Ontade totalizante, a consciência global do processo histó-
rico, no mais alto grau que as circunstâncias permitem. Por-
tanto, para Lukan, a identificação com o Partido é imposição
ética. E o será sempre, enquanto, malgrado suas eventuais
fraquezas e até traições, êle realizar um papel revolucionário.
Nestas condições, tudo o que na conduta de Lukacs parece, à
primeira \"Ísta, vil oportunismo, pode ser fidelidade a funda-
memal postulado filosófico de sua obra. O que se lhe pode
objetar é que êle é vítima do que Joseph Gabei chama de "ilu-
são trotskista". Essa modalidade de falsa consciência, de que
pode ser acometido mesmo "um autor de obra genial sôbre a
falsa consciência" (Gabei), consistiria em admitir que o sta-
linismo resuha de fa1lires irrelevantes e histôricamente super·
fidais, como a burocracia parasitária, e não de deformação
básica, essencial, antiproletária, que afeta um regime dito socia-
lista e proletário, como o soviético.
,\ "ilusão trotskista" salrn a honorabilidade inteleclual de
Lukacs. :\las não orulta a sua posição inamal, porque anti·
revolucionária e antiproletária. De há muito que a militânda
nos quadros dos ~>artidos c:omunistas se esvaziou de conteúdo
ético-revoludomlrio. De há muito que o marxismo-leninismo,
que, desde o inicio, foi um abastardamento da t"ilosofia, é
cxpres.~ão de recrudescência da barbárie em pleno século XX,
rnm a qual a inteligência não pode pactuar. O chamado "mar-
xismo ocidental" é largamente animado dêsse inconformismo.
Foi por ocasião do expurgo de História e Consciência de
Clt1sse, pela Intemaciona) Comunista, em 192'1, que Karl Korsch,
disclpulo de Lukac.s, formulou a expressão "marxismo or.i-
demal", cujos adeptos não aceitam o "marxismo russo", para os
quais seria "declaração de princípios" Materialismo e Empirio-
crilicismo de Unin. Pode-se descobrir hoje di.~Carçada oposi·
~i~a ª~e ~~r:~~~~obu~~i~u?:~leê~~n~~.r7,:~fi~~~:~% j:92~~~=
qual não menciona sequer uma vez Materialismo e Empirio-
rritici~mo. Dada a atitude de Lukacs, de obediência à diretriz
SO\'iética no trabalho filosófico, há hoje "lukacsianos", a des-
peito de Lukacs, isto é, intelectuais que continuam fiéis ao
projeto original de História e Consciência de Classe, tal o de
desenvolver dialêticamente a contribuição de Marx. "Lukac-
si;mos" podem ser considerados, além de Karl Korsch, Lucien
Goldmann, Joseph Gabei, alguns colaboradores da revista
Argumcnts e, de certo modo, Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre,
todos autores que repudiam o marxismo-leninismo, e prind-
palmente negam a validade da "teoria do reflexo" e da exis-
têncfa de uma dialétira da natureza.
O repúdio ao marxismo-leninismo, no interior mesmo do
chamado campo socialis1a e do movimento comunista obediente
às diretrizes soviéticas, só rcponton manifestamente depois do
discurso ele Kruschcv rontra S1alin, e da Revolução Húngara.
!\.las êsse repúdio j<~ cr;1 percepth·el antes de tais ocorrências. O
fato de Lukacs ter, cm 1956, participado da Revolução Húngara
revela, no interior do campo socialista, a existência de oposição.
Em circunst:lncias propícias, pode gernr insurrcições, como ge-
rou, por exemplo, na ,\lcm:mh:i Oriental cm junho de 195S;
98 ~111"0 F'. \'t:ROADF. DA llF.\"Of.l'ÇÂO BRASILEIRA

na Polônia, nos dias que antecederam a ascensão de Gomulka


ao poder. Muita gente se cncomra hoje dentro do campo so-
cialista, como Lukacs, em liberdade vigiada e, a qualquer mo-
mento, podem surgir <.-ondições que lhe permitam viver de
outro modo. Wolfgang Harich, marxista dissidente da linha
ortodoxa, está por isso mesmo encarcerado na Alemanha
Oriental.

Brecht, virtuose da adesão ambígua


:t de lembrar-se, a prop1lsito, a conduta do dramaturgo
Bertolt Brecht durante os anos que viveu na Alemanha Orien-
tal. Brecht é, como Lukacs, no campo socialista, um dêsses
valôres para efeitos externos de propaganda. Até a data de
sua morte (1956), nunca se conciliou com a diretriz marxista-
leninista no trabalho eSlétko e sustentou, em face do regime
da Alemanha Oriental e da União Soviélica, uma i1titude que
pode ser chamada de adesão ambígua ou de protesto disfarçado
em ironia. (1' ) No domínio do teatro, Brec:ht repeliu a linha
marxista-leninista, representada pelo soviético Stanislavisky e
a considerava anacrônica, incompatível com o marxismo. Sta-
~::~ªt::k1ri:to~:1f:~~ã~u;e~~~~~~~~~~ad~ i~~~ti~~:~~~ ~~ª:~~~
com o seu papel, de molde a induzir o póblico à empatia, à
adesão sentimental a personagens porventura portadores de
valor positivo. O dramaturgo alemão considerava êsse um
~:: ~:it~~~omc~~~1:~ ~~ ~%~~~~~~ã~:,~~r:ro~ ~;u~C=~~:
o "Leatro épico" ou o "teatro dialético", que desenvolve o espí-
rito crítico, não explora os sentimentos da audiência, mas a
eleva a um plano de rdlexão analítica sôbre o conteúdo da
peça e dos personagens. Ao invés da identificação, valorizava
o "distanciamento" de atôres e espectadores em relação aos
personagens e incidentes do drama. O espectador do antigo
teatro di7.: "choro com os que choram no palco, rio com os
que ali riem". O espectador brechtiano deve dizer: "rio dos
que choram no palco; choro quando êles riem". Intransigente
em sua concepção, Brccht jamais aceitou a linha marxista-leni-
nista que o Partido lhe queria impingir. (Ili)
A pressão sôbrc o dramaturgo o teria le\·ado a "escolher a
liberdade", tornando-se um tn1nsfuga, não fôra a sua intrepide7.
99

moral e intelectual. Virtuose da adesão ambígua, certa vez


explicou seu dilema na Alemanha Oriental, de maneira para-
bólica. Um médico se encontra em face de dois pacientes re-
pugnantes acometidos de horríveis doenças venéreas: um velho
libertino e uma prostilnla grávida. Será rnmpelido c·ertamente
a salvar a mulher, se tem penicilina cm dose bastante para sal-
var apenas um paciente, pois ao menos esmlhe a chance de
que possa nascer uma friança robusta. O regime vermelho dC\·e
ser apoiado como transição possível para melhores dias, pnis,
ainda que de bõca, seus dirigemcs afirmam que a sociedade
é perfectível. (2º)
Bre<;ht contornou irônicamente as pressões da burorraria
marxista-leninista. Quando Mãe Coragem foi encenada em
Berlim, os dirigentes do Partido se sentiram d1ocados. O dra-
maturgo ortodoxo Friedrkh Wolf criticou a ausênda de poli-
tização no desfecho da peça. Mãe Coragem volta à sua antiga
profissão de vivandeira, quando pollia assumir atitude mili·
tante. Brecht retruca ao censor: "Se Coraf{em não aprcntlc
nada - em minha opinião o público pode aprender alguma
coisa, observando-a." Igualmente o Comitê Central do Par-
do condenou a peça Mãe, pela palavra de Fred Oclssncr, um
<le seus membros: "Isso C realismo? Essas figuras tipirns são
vistas cm tlpicas circunscâncias? Em minha opinião, is~o não é
teatro." E o jornal ortodoxo Nr.11es Deulsclilancl, após a re-
presentação de O Interrogatório rle I.riwlo: "rnrcc·e de real
tensão dramática que compeliria o espectador a participar
e a definir-se, pró ou contm". Os incidentes da '"ida de Hrccht
na Alemanha Oriental servem para iluslrnr o problema
ético do artista socialista. Mostram que a adesão da rnnsriên-
cia revolucionária ao socialismo, na forma episódica rnmo exis-
te hoje nas chama.das repúblicas democratas, tem limites. No
fim de sua existência, Brecht já quase esgotara a sua tole-
rância pelo autoritarismo socialista. Por isso escreveu: "Viver
num pais sem senso de humor é insuportável, porém é ainda
mais insuportável habitar um país em que se precisa ter ~enso
de humor para viver." A adesão primária e dcsqnalificalla ao
comunismo e ao socialismo, em suas atuais formas episódkas.
é um fenômeno de massa, manifostação da tonduta imperita
e inculta que campeia, em tôda parte, até mesmo em cirndos
ditos intelectuais, apedeutas, apesar de letrados. A modali-
dade de adesão ambígua é um escândalo para a ordimíria
consciência ingênua dos militantes socialistas e comunistas.
100 MITO F. \'l·'.RU.\llt'. llA Rl·.\º01.UÇÁO llRASll.F.IRA

Evidentemente, apesar de suas deficiências inevitáveis, o


advento dos regimes ditos socialistns representa um avanço
na evolução polílicn e social da hum;midade, mas a adesão
ingénua a tais regimes, que os Partidos Comunistas procuram
estimular em todo o mundo, começa a tornar-se fator de abas-
tardamento das massas, e sério obnáculo para o próprio de-
scm1olvimento socialista. O típico membro dos Partidos Co-
nnmistas é um cidadão dominado pela consciência ingénua, na
medida em que concebe o socialismo c.miticamente, como a
com.lição atual em que se encontram as chamadas repúblic'as
populares, e não compreende que o socialhmo é csscndal-

::~~: ~~~~i:~~ra~;;::i~º~ºu·,~!:~~~~~1·1;ê~~:'.:~. cÀ~u~;l~1 ~~~n~~~~


ção transcendente do socialismo, aquêles são países onde apenas
\•icejam relações sodais socialistas de rnr;ítcr :dmla incipiente
e tôsco. São, portanco, países a cujos regimes, intelectuais
intransigentes, como Lukacs e Brcdit, só podem dar uma
adesão ambígua. São pabcs omle a consciência ingênua, em
sua modalidade fetirhe de marxismo·leninismo, domina de
modo intolerante, e cm tiue não se pode \"i\"CJ', rnm dignidade
imelectual, sem senso de humor. Por i~so, nêlcs, homens tomo
Hrecht são incômodos. Adamo\', um dramaturgo 1·usso obse-
dado pelo problema religioso, mmprecmlcu a sen modo o
paradoxo .da adesão ambígua ao comunismo. (21 ) O existen·
dalista e espiritualista Admnov, para quem "a crise de nosso
tempo é essencialmente uma crise religiosa", apôia o comunis-
mo, empolgado por um sentimento de urgénda. t necessário
colaborar para o êxito do comunismo, no plano social e poli·
tico, pois no dia em que forem supernd;ts as contradiçlics que
impedem a troca dos bens entre os homens e o seu bem-estar
físico, saberão que a verdadeira raiz tlc sua infelicidade não é
desordem material. Nessa perspectiva, o êxito político e social
do comunismo é necess:irio para que não permaneça oculto ao
homem o car;íter religioso de seu problema cxi~tencial. As\im
Adamov justifica seu apoio ao comunismo.
Não fôsse o bloqueio a que onlinàriamemc est:i sujeita a
consciência dos militantes do Partidos Comunistas e, desde o
famoso discurso de Kruschev em fevereiro de 1956, também
parn êles o marxismo-leninismo se tecia revelado como o pró·
prio stalinismo. O marxismo-leninismo é elaboração tipica-
mente stalinista. t. o m<ll'Xbmo rus~o em fase posterior a Lê-
nin. É stalinismo. Constitui conlradição cm têrmos condenu
IOI

o stalinismo sem, por isso mesmo, condenar o marxismo-leninis-


mo. Só por petriricação mental e complac~nda é pmsível levar
a sério êsse passe de mágica, não ver o grosseiro truque por
trás dêle. Desde que se tornou conhecido o disrnrso de Krus-
chev, crescente número de marxistas-leninistas vem de:pertando
do sono dogmático. Um despertar trágico, especfalmeme na
Polónia e na Hungria, países em que a descstalinilação não
ficou no meio do caminho, como na URSS e cm outras rcm'1-
bliras populares, mas assumiu feição radical, levando muitm
intelec1uais ao repúdio taxativo do marxismo-lcnini,mo e até
à problematização do próprio marxismo. Diremos algumas pa--
lttvras sôbre a desestalinização na Polónia.

O "Outubro" polonês

Já em 1955, o sociólogo polonês J. Chalasinski afirmava,


na revista Nauka Polslta, a tese de que o materialismo histó-
rico transcende aos textos dos fundadores do marxismo, e se
insubordinava contra a ortodoxia, levando à sua conta o atraso
dos estudos no domínio cientifico. E no mesmo sentido se
pronunciavam em setembro daquele ano os jovens cofabora-
dores do hebdomadário 1~ropo1tu, que, pelas suas atitudes heré-
ticas, chegou a ter edições de cento e cinqüenta mil exempla-
res vendidos em uma hora. O fato revela generalfaado enado
de espírito, entre os poloneses, mal contidos na disciplina sta-
linista. O ano de 1956 é turbulento. Prosseguem as inidativas
irreverentes dos intelectuais, em publicações, clubes de debn1es,
à semelhança dos círculos Potõfi e Kossuth, atuantes na mesma
época na Hungria, levantando-se os trabalhadores pe:lindo
"Pão e Liberdade", em Poznan e outras cidades, em julho, e
acontece o "Outubro" polonês, que conduz Gomulka ao po-
der. Apesar das relações aparentemente amistosas do Gov~rno
e do Partido com a URSS, e das declarações por assim dizer
oficiais de filósofos como A. Schaff, o processo do marxismo-
leninismo parece irreverslvel na Polônia contemporânea. Nu-
ma visita a Varsóvia, logo após o XX Congresso do PCUS, la-
mentava Bulganin que nas (ileiras dos comunistas poloneses
tivesse decaído o zêlo pelas idéias cio marxismo-leninismo. Isso
~:w~m~~!i, &~ãf~5f~~~~7ºen;:~Sdo~~~~~!~ s~t=~~res~~
102 MITO E VERDADE DA u:vm.uçÃo BRASll..EIRA

revisionista de Leszek Kolakowski, "Os Intelertuais e o Movi-


mento Comunista", que declara existir um impasse na teoria
marxista contempor!mea e formula quatro pontos básicos: 1)
não há pauperização absoluta da classe trabalhadora no capi-
talismo; 2) a teoria das crises é inaplicável ao capitalismo C'On·
temporlneo; 3) a doutrina socialista da revolução requer
revisão; 4) a doutrina do Partido e seu papel no Estado é
incorreta. Embora Kolakowski não seja expressão do pen-
samento dominante nos meios governamentais, é, porém, te·
presentativo de vigorosa corrente em ascensão na Pol6nia. (22)
Em janeiro de 1957, Kolakowski publica em Nol/Ja Kulluro,
sob o título "As Concepções Válidas ou Não do Marxismo",
um ensaio onde mostra o ridlculo da versão soviética do mar-
xismo.
•o marxismo, na União Soviética, se tornou, segundo Kola·
kowski, "insiitucional", espécie de saber cujo critério de ver-
dade é ditado autoritàriamcnte por um Ofício Supremo, que
é simultâneamente o Maior Lingüista, o Maior Filósofo, o
Maior Economista, o Maior Historiador, o Maior Estrategista
Militar do Mundo. (23 ) Stalin foi tudo isso até o discurso de
Kruschev. A institucionalização da teoria social de Marx e En-
gels resultou necessàriamente numa degenerescência: o mar-
xismo-leninismo, doutrina que se caracteriza não pelo ron-
teúdo, mas "de maneira Unicamente formal". O marxista·
leninista não dá importância às questões de conteúdo. O
que lhe importa é pôr-se de acôr.do com a interpretação oficial
do Oficio Supremo. Assim, a qualquer momento, pode ser
proclamado falso o que afirma agora ser verdadeiro. A qual-
quer momento, a comunidade dos marxistas-leninistas pode
ter a revelação de que o que admitia como "verdade" pa.,sou
a ser "êrro". Antes de fevereiro de 1956, eram antimarxistas,
reformistas, metaiisicos idealistas, todos os que admitiam a pos-
sibilidade de edificação do socialismo sem violência revolucio-
nária. Depois de fevereiro de 1956, "é o inverso: só é marxista
o que reconhece a possibilidade da passagem pacifica ao so-
cialismo". O adepto do marxismo institucional é necessària-
mente homem de fé, que substitui o racionalismo metódico por
um evangelho. Kolakowski é um liquidacionista: dissolve o
marxismo na metodologia das Ciências Sociais, metodologia que
não pode ser convertida em tábua de logaritmos, máquina de
calcular, ou em qualquer espécie de instrumento, que sirva à
pretensão de monopólio no domínio do conhecimento.
108

lntenneuo "lacerdista"

A dcsestalinização de nenhum modo representou o aban-


dono das nefastas práticas do "marxismo institucional''. Con-
tinua a existir o Oficio Supremo na URSS. Agora a infalibili-
dade não é mais atributo de uma pcnonalidade. É atributo
do Partido. O culto da personalidade foi substituído pelo culto
do Partido. Num artigo sôbre dcsestalinização, publicado na
Pravda (6 de julho de 1956), diz-se textualmente que o "Par-
tido Comunista foi, é e será o orientador dos pensamentos".
Enquanto durar na URSS a diladura do Partido a sociologia
oficial será incapaz de diagnosticar o scalinismo. A teoria so-
cial na URSS, servindo para justificar razões ele Estado, por
isso mesmo está incapacitada para explicar objetivamente o
stalinismo, uma vez que a raiz do fenõmeno é estrutural, loca·
liza-se no regime. Os episódios associados à desestalinização na
URSS indicam o baixo nível de preparação teórica reinante
nos meios dirigentes dessa grande potência. Segundo Riazanov,
Lênin já se referia aos "velhos bolchevistas" como "velhos
imbecis". (B. Souvarine, Slalin, Paris, 1935, pâg. S38). As
resoluções e manifestações do Panicio, e o discurso de Kruschev
sôbre o culto da personalidade, revelam quanto no marxismo
rwso se acentua a deformação psicologística. O famoso discur-
so secreto de Kruschev é Dagrantc do mais puro "lacerdismo"
para usar conceito pertinente à nossa vida política. O "la-
cerdismo", rnmo tôda interpretação psicológica dos aconteci-
mentos, ignora ou Cinge ignorar o condicionamento histórico-
social da conduta humana. Os governos são bons se os gover-
nantes forem bons, em outras palavras, se seus atributos psico-
lógicos Corem sadios. O conteúdo social, ou de daslie de um
regime, não teria efeito relevante na psic:ologia dos dirigentes.
Kruschev denunciou o "mar de lama" na era stalinista, à
maneira "lacerdista", como processo de luta pelo poder. Não
apontou nenhum fator político-social do stalinismo, nem po·
deria fazê-lo, sem tirar o tapête de baixo dos pés. Stalin era
mau e corrompeu os quadros dirigentes, que sucumbiram
unànimente ao culto da personalidade. t. êsse um modo pa-
radoxal de admitir a validade da teoria do herói na história.
Tal primarismo não é apenas expressão da personalidade de
Kruschev, mas constitui característica geral do marxismo ofi·
10-1 :\111"0 ~: n:RDAl>E D.\ Rl·:\'01.l:ç.:\o BRASIU'.IRA

dai na LRSS. Para muitos mililantes comunistas, o discurso


secreto foi um golpe mortal na ilusão em que viviam. Para
êles, agora, o rei estava nu, a mistificação se tornava clarivi-
dente.

Togliatti faz Kremlinologia


O líder comunista Palmiro Togliatti, numa entrevista em
que mal disfarça o seu desapontamento em face do discurso
secreto, repele polidamente, mas com energia, a leviandade de
Kruschev. Considera "estranho ... êrro" a fala de Kruschev no
XX Congresso. "Não se pode - diz Togliatti - encontrar
explic:ações senão na análise atenta da maneira pela qual se
d1egou ao sistema que se caracterizou pelos erros de Stalin. Sô-
mente assim poder-se-á compreender como êstes erros não fo-
mm apenas algo pessoal, mas invadiam profundamente a reali-
dade da vida soviética" (os grifos são nossos). (2-f) Togliatti
ensina dialética aos soviêticos, procurando justificar a deses-
talinização de maneira sociológica. Indiretamente, acusa os
teóricos soviêticos de incompetente utilização do marxismo e
os chama à ordem. Diz: "Antes, todo o bem era devido às
sôbre-humanas qualidades positivas de um homem; agora, todo
o mal ê atribuído a seus defeitos, também excepcionais e
assombrosos. Num como no outro caso, estamos fora dos cri-
tirios de julgamento que são caracterislicos do marxismo (o
grifo é nosso). Omitem-se os verdadeiros problemas, tais os
de como e por que a sociedade soviética pôde chegar a certas
formas de afastamento do caminho democrático e da legali-
clade que ela se havia traçado, e mesmo de degenerescência".
Quando a sovietologia é praticada por um llder do Partido
Comunista, é que o "encanto" do mundo soviético está desfa-
zendo-se nas próprias fileiras dos marxistas-leninistas. A so-
\"ietologia é exterior à URSS. Sômente quem dela se liberta
pode considerá-la objeto de especulação fria. Togliatti já é
um Kremlinólogo. Escândalo! Em sua entrevista, cuja impor-
tância não tem sido suficientemente encarecida, indica o con-
teúdo de classe do stalinismo: "Não nos parece duvidoso que
os erros de Stalin estejam ligados a um aumento excessivo do
!::t~~; :p:~~~~!~sa:t~~o<~~á~~c~~. ~~~~~:~~~~~~~~.e l~t::~~
dizer, aqui, qual a causa e qual a conseqilência. Uma tornou-
.se, pouco a pouco, a expressão da outra. É necessário tam-
105

bém relacionar êste pê110 ext·essivo <le burorracia com uma


tradição que pro\'ém das formas de organização pol itica e
dos hábitos ela Velha RúS5ia." Hábil maneira de tonir numa
ferida, sem fa7.er gritar o padente. O PC Sm·iétko quis oml·
tar o que precisamente Togliatli sublinha: "Stalin - inshte
Togliatti - foi, ao mesmo tempo, a expressão e n autor de
uma situação." E proclama que, cm tal situação, onde o apa-
relho burocr:itirn "prev11leceu s6bre as formas de \'ida dcmo-
nátirn", uma "doutrina errlinca"' servia de "sustcmárulo" e
"justificação doutrimiria" d_o poder pessoal, "a ponto de fa-
1ê-lo assumir formas de degenercscênria". Togliaui não diz
que essa "doutrina errónea" era chamada, não só pelos sovié-
ticos, romo por todos os militantes comunistas, de mane.ismo·
leninismo. O líder ilaliano não est<Í satisfatàriamente desmis-
tificado.

"A Soma e o Resto"


A ent.revista de Togliatti chocou profundamente os sovi..!-
ticos e ru descobriu perante o mundo. A Resolução do Co-
mité Central do PC Soviético, intitulada "A Superação do Culto
il Personalidade e de Suas Conscc1üéncias" (.30 de janeiro 1\c
1!156), é um texto de adoles<:ente escabriado, surpreendido cm
flagrante ao cometer uma mancada. A Resolução, cm sinte~e.
explica o stalinismo invocando "fatôres temporárim" e "rnn-
.diçõcs do passado que não afetam a essência do regime". Só
faltou dizer <1ue o "culto da personalidade" surgiu na URSS
num momento em que estranhamente ficaram suspensas as
leis sociais que <:onstituem postulado do marxismo. A Reso-
lução refuta "teses erradas" de Togliatti, particularmellle quan-
do admite ter a sociedade soviética chegado até "certas formas
de degenerescência". A Revolução ladeia as questões e, rnmo
aves!rm: que imagina não ser vista por que esconde a cabeça,
declara: "Pensar que uma penonalidade, mesmo tão
importante quanto Stalin, pudesse modificar no.~so regime so-
da) e político é contradizer os fatos, o marxismo, a realidade,
é l:air no ide:ilismo. Isso significa atribuir a uma personali-
dade fôrças sobrenaturais incríveis, com a capacidade de modi-
ficar o regime soda!"". Ora, é precisamente por isso que o
:;talinismo, fcnômeno de envergadura coletiva que foi, não
pode ser explicado apenas pela psicologia individual de Sta-
lin. .\ Resolução afirma ainda: "'Criticando o culto à persa-
106 ).llTO E \'ERDADE DA Rl'\"Ol.l"<JÃO BR.\51Ll-:IRA

nalidade, o Partido apóia-se sóbre os princípios do marxismo-


leninismo". E informa que o XX Congresso encarregou o Co-
mitê Central de "tomar medidas sistemátk;1s para fór Cim a
éste culto estranho ao marxismo-leninismo". Outrora, porém,
"êste culto estranho ao marxismo-leninismo" era jurado unâ-
nimente pelo Partido como o próprio marxismo-leninismo. E
nada garante hoje, na URSS, que amanhã um ato declaratório
do Partido, em nome do marxismo-leninismo, surpreenda em
êrro ou desvio a coletividade dos comunistas, exatamente por
observar agora conduta considerada correta.
Em 1954, em discurso perante o Soviete Supremo, Kru~­
chev afirmava ser Stalin "continuador" de Lênin, "executor"
.de seu "testamenLo". Em 1956, Kruschev proclama ser Stalin
deturpador do legado de Lênin. O PC da União Soviética,
liderado hoje por Kruschev, condenou o stalinismo. Mas o
ato não foi conseqüente. Para tanto deveria ser condenado tam-
bêm o marxismo-leninismo, êsse engenhoso ardil de Stalin. É
inútil esperar que Kruschev e os atuais dirigentes do PCUS
venham algum dia, enquanto pelo menos estiverem no poder, a
condenar o marxismo-leninismo. Não podem {uê-lo, porque
são neostalinistas. Por isso salvaram da fogueira depuradora
o marxismo-leninismo. É possível que Kruschev son·ia intima-
mente dessa paradoxal criatura que milita nos partidos comu-
nistas: um marxista-leninista que repudia o stalinismo. Mui-
tos dêsses militantes, porém, vêm recusando-se a exercer êsse
papel de fantoche e de otário. Essa recusa tem que ser recusa
total, recusa do Partido. Só o ex-militante pode recuperar o
sentido humanista da causa libertária.
Há ex-militantes que, ressentidos, vingam-se dos que tra-
pacearam com os seus ideais de justiça social, abraçando um
anticomunismo equivocado e estulto. Não se pode ser comu-
nista, não se pode ser anticomunista, dizia com propriedade
Merleau-Ponty. Há, porém, ex-militantes que sabem utilizai·
de modo criador a sua frustração. Dêsses, um dos mais típicos
é Henri Le[ebvre, durante trinta anos membro do PC da
França. !'\um balanço de sua vida, significativamente intitu-
lado A Soma e o Resto, Henri Lelebvre procura discernir o
que restou de essencial, para, a partir dai, continuar a viver
o seu projeto de verdade. Henri Lefebvre, no passa.do, quei-
mou incenso em louvor ao stalinismo. Após o famoso discurso
de Kruschev (vide Pl'oblêmes Actuelles du Marxisme, 1958) der
cobriu que a interpretação staliniana erige "a esfera do Estado
O MAllXISMO-U::lil:'IÕISMo 1117

e Stalin como chefe ele Estado", cm "critério do real e do


verdadeiro". E exclama, dominado pela indignação moral:
"E se chamava "marxismo-leninismo", oricialmente, êsse aban-
dono do marxismo vivo."
Todos os desestalinizaclo.~ mnseqi.icntcs estão l"Ompelidos
a chegar a êsse desencanto.

NOTAS
(1) Cana a Fteilign11h de 29 de fllvereiro de 11160, reprod11ilda cm MHx-Ermns,
Sur Ili Lllll!ra!ure Ili tA.r1. Edi1ions SOcialH, Pari•. l!l!it, pi113. 377-380. Neste
documenlo di~ Marx: "Sublinho prinieiramen1e que. a panir do monien10
em que a ""Liga"", a meu pedido. foi di'501vida cm non!lnbro de 1852,
nunm mais penencl a uma orpnizaçlo itcreta ou pública. nlo pertenço
hoje a nenhuma; assim o partido, comprMndido ne'1e sentido esscncialmen1e
efémero, deade oilO ann<, cessou de e~isiir para mim"". (Os grifOll do ~le
Marx). I!. ac:resc:erua " ... desde 1852 nlo me e11conuava em ri=li\r;lo com
nl'nhulJIG (o grifo i! de Manr.) organlaçlo e linha a firme convicr;lo de
que meus 1rabalho:11 1eóricos eram mais úiels à claMe opcnlria que uma
colaboraçto com orp.ni..,çõC!I que nlo linham mai• rullo de ..:r no conli·
nen1e". Con1inua ainda: "A '"Liga"" como a "soc:icdade das Esiaçlles" de
Pari1 e como cem outl'll• sociedades nllo lem sido oen~o epi..-..lio na lli11ória
do panido, o qual nasce c•pom:lneamentc do wlo da sociedade moc\C!rna."
(2) Cana de Engel1 a Marx de 13 de fevereiro de 1851. Vide Mux·ENcr.u,
Corresl>tmdtnu. Tomo li, Alfred Custe<, F.dlrcur, l'ari•, 19111.
(3) Carta de Engels a Paul l.a.brguc de 27 de outubro do: 11100. Vide M ... n.·
E:<c:mu, Sur Ili Lill~ralure ele., págs. 258.
(4) Carla de Engels a Bebei de 22 de junho de 1885. \'ide .'111r /11 l.illlra/Hrr ..
pig.257.
(5) Vide Max M. LAfilllll1', "l.a Sociologie lluue"", in G. (;u"·i1ch (editor),
l.G Soclologit au XXt. Siklt. Vol. li, Paris, 1947, p;tg. 697.
(6) Vide Boris SoUYAIUSI, ""La Qulnll.'5SCllCC du M'an:isme-U11ini•me", in IA
C1»1trat1 S«i11l. lofaio, 1960, \'ol. IV, n. 0 3... li n•est for1uit - db Souvarlne
- que l'i!pi11u!1e de .. bolduMk!"' oe soil \·i1c im~ po111 dilférencier Le·
nine e1 1e11 disc:iples des auue:s man:istcs qui, à lcur 1our, ont forg4! le
ierme de "b!-ninisme"" caracthi<anl lei opinions e! lc rompor1n1en1 ele le11n
frtmcnnemis"' (pilg. 130).
(7) IDIM.
(8) ID•M.
(9) IDEM.
(10) CJ. A.lberl CAuus, lil Milo dt Sl&i/o. E.I Homllrl!' Rt:llt:ldt. Losada, s. A.,
Buenos A.ires, 1957. p~g. 249. Xn e~ludo O llomtm Rell1Mt:, C:amus n:cons·
1i1ui e analisa o compor11mcn10 da in1.,l/ip111%ia, na qual •i1ua LOnin e
os bolchevi11a1. Rcssal1a C".amus a innuOncia do penumento alem!n na
lltbsia dur.1n1c o século XIX. "A primeira universidade ru1Ma, a de Mo.cn11,
fundada em 1750, i! alemll. A. lenta coloniz.1çJ.o da Rússia pelos educadora,
os buroc:nnas e os milltan:s alemães, iniciada sob Pedrn, o Grande, se
1ranlfonaa, graç:is à sollci1wle de Nicolau 1. cm gennani1aç(lo $\•tcmá1iar..
A in1dligm11i11 se apaixona por Sdielling ao mesmo tempo qm= pelo1 rr.m·
cme1 na d~ de 50; por Hegel na de 40; e, na segunda mc1adc do sfc:ulo,
pelo socialismo ale1nlo nascido de Hegel. A. ju•-.:ntudc ru55a verte enilo
DCSICll pensamentos abslr.1101 a fc)rça paaional desmedida que a carac1crlra
e \'j\•e alllfnlicamcmc csla• if\éias morr~s"" (p.1p. 2'14·245).
IOR :\llTO .- \'l'.RDAt'W !).\ R~:\·m.n;J.o llR,\Sll.F.IRA

(li) Vide Bu.DIAl!FF, Lt1 Sau~J C'I /e "'"' du C:ommunisme Ruue, Gallimanl,
Paris, 1938. Para Bcm:\iaeff, ""o ln1elUFDlli11a 1'\l!ISO aplica à clf,ncla os
métodOI idólatras" (p;\g. 29) e nlo d ponlvd co1npmmder o cumunisn10
russt> sem rcbcioná-lo com a inld/ig<!nlii11. Considera Unin herdeiro de
dua• lr~di\'ÕC': ··a lr.idiçlo da inlelligen1do revolucionhia, em suas lell·
<Wnci~• mai• c:i.;trcmas, e a nadiçllo russa do poder, cm suas mais despóllcas
1nani(C'lta~llc!'' (p,ãg. 164). S6brc o in1ernao:ionalismo nisso, emite as ill'-
gul111c; ob11el"l'açôcs: ··na reYolução comunl•a nwa o lnternacion1Jismo 1c111
uni cunho autóctone e nacional" (pjg. 156); "a Terceira ln1crnacioual 11lo
é11malll:ernacional,masldi!ian~11alrussa" (p:lg.195).
(12) "Marx •.• rcjected Slavophiliam; and 1'101hing made hlm ll'IO<e (urious than
lhe 1alt aboul Russia's socialiH mission." SJlo palavra1 de lsaae DF.unc:11u.,
numC!ltudodnati1udcsde f.fa(llem relação à R.Liula, "f.brx and R.ussiaº',
capbulo de /iussi11 i11 Transition (Ncw York, 1960). Ainda para um con·
~~'~º a..i: :!~:.Cl\:'::e:ro:a~~!11:: ::':.:!i1s~º~:ll~·~,,:::s7i~~,: :S~:~· 1~2~
(IS) Boa n111lcia biogrí(ica sôbre Lukacs slo os anl(os de J. Muszr.a e J. G.nK1.
~111 ..trgumeq/s (N. 0 3 - 195i) n:1pcaivamm1e lntllulados "'A Propus de
l.i1k.1e1"" e ··A Propo1 de l"articlc ele Munzer". Con111l1e também o pre·
(:ic:lo de Kos1as AxELOS à tradu~o (r.mccsa do lino de LUKAC:S, llisloire ri
Coqscienre dr C/11.sse, Paris. 1960.
(li) Vide Mnrri1 W,.r,.w.K, ""R.elativism. and Class Consciousnlllll: Gcotg Lulr.acs",
in l.eoj>old Labcd! (cdimr). Rn1iJioni1111, Essays on //u: liis/ory of Mtmcisl
/delU. l.ondrcw.1961.
(IS)IDEi\f.
{Ili) Vide François Fl:JTO," ··Gcorgca L11k.aes'", ln Espril. N.0 2. 1001.
(17)JDEM.
(Ili) Antigo clisclpulo (iel de J.ukaes, Bl:la Fog:irasi, hoje enquadrado na orto·
doxia. am ..1 o (ilúso(o de ambiglllcb.de. Em 5Cldo da AcadL'mia lhlngar.a
de Ciências ( 19511) dl1ia: '"Perguntam-nos por qm: espcram05 1an10 1empo
para criticar as ld~ias de Lukae1. Mlnlm resposta l: a 111ç11inte: sempre
1·i111os a ambigüldade 1111e ac manlre11a a1ravés de !&la sua obra. Mas
L.,,per.ivam1111 que i:le :u;ab.iria por se colocar ao lado do man.iamo-lcnlnl1mo.
F.nquanm t!lc pertencia ao campo marxista, nlo atribulamos multa Impor·
1;1.ncia aos st:111 dnvios u:óricos e polftico-litcri.rins. Mas depois de 1956,
aguardhamos.. esperando c:m vllo que t!!Sl;l veterano do panido e: do movi·
mento mar11.is1a acab.1...:: por compreender que esia~a 110 caminho errado.
DC"graçadam.cme, nói; nos enganamos." Lukaes decidiu nmo acompanhar Janos
Kadar. Enquamo hte c:s1;l. redimida, Lukaes !IC !ornou al1'0 de censuras.
Em l!lli8, u órglo lilosó!ico olicial do PCUS, l'ofJrossi l'i/<nafii, n.~ 100
acusa Lukaa de se ic:r "reunido em 1956, t!poca de sua participação, ao
Circulo Pelli[i e, mais tarde, durante 1 conlra 0 revol11çlo na Hungria, ao
nacionalismo ma;iar, bt~ nacio11a\ilmo dirigido contra a U11ila Sovléllca,
que tlnba, 110 emamu, libcnido a Hungria du jugo l.isci1ca". (Vide FBJTO,
op. ril.J A tllp11la SO\"i<'lica 111o es11u«e seus alas de çcnelOlildacle.
(19) Vide Martin F~us. nrtthl, lhr Mau tmd his ll'nrl!. Ncw York, 1961.
{20) lbEM.
(21) Vide M.ir1in E1oSl.IN, ··Artl1ur Adamov: the Cur1ble and lhe lneurablc",
capifulo de The TheslTe o/ Absurd. Xew York, 1961.
(22) Vide L LABJ:bZ, ""Spotlig11t oo Pol:u1d'". capllulo de Laqucor e Lichtheim,
Tlu: Souit:I Cnlmral .fteqe 19'6·1'1'7. ~ew York, 1!158.
(23) Vide o tHto do ar1igo de Ko1.AKOwsK1, sob o 1111110 "Lc r.ran.isnit: C".omme
lnHilullon et lc Manismc O>lnme Mt!lhodc:'", na n::vis1a La Nouwlle 11.i·
forme, 195i, n.0 1, Paris.
(2-1) Vide Palmiro TOGLIATII, ··os Proble1na1 da Democracia !nci1li11a" e ""A
Lu1a pelo Caminho ltalia110 ]>ata " Sncialismo", cm Que 1. o S/1lini1mo
(Edirnrial \'itória. Rio, !õenl damo.
CAPÍTULO IV

O Morto e o Vivo
no Internacionalismo Prolet;írio

Biii.r.llõGF.•: O.s morto.s siio mais 11111nero.s1>s q11e


01 vhlo.s. O rulmero dilr.s aumenla e os vivos
s4oraTOI.
JEAN: Os mortos nllo existem ..
BF.llENGr.R: Pergunlo a mim mesmo se existem
ov não! (lo:u:sco, Rinot'flronle)

"A vergonha t jd 1111111 t1spétie de rev11f11çilo".


KAIL MAlllt

"Outrora aqui na lhi.s.•ia, ti11/1amas o ma·


triarcado, depois livemo.s o pa1riarcado, e 11gom
V11mo.se11/r11rna em tlti uritlariadC1."

"O .surt"s.so sd é jrulifirnr11fl 1111111 o.s imbecis."


IG:<Ai10SH.0NI

O INTF.11.NACIONALISMO é idCia-fôrça do movimento socialista.


Há cêrca de um século, \·em merecendo a adesão posiciva da
vanguarda operária em tôda parle. Há cén:a de um século se
pratica o internacionalismo de modo organizado e sistemático.
Mas o sentido dessa prática não tem permanecido invari:h-el.
Nos dias atuais, o internacionalismo ganha novos matizes em
seu significado e o exame do fato constitui uma das tarefas
necessárias para depurar o movimento socialista de modos de
agir e de ver, que se tornaram anacrónicos e lesivos ao esfôrço
de libertação das massas. Hoje em dia, um certo internaciona-
lismo está caducando. Outro está em \·ia de nasC"cr. Em outras
palavras, uma idéia-fôrça despoja-se de \'elha forma hist6rica,
e reveste-se de outra, a lim de continuar em vigência.
110 ~ll"ro ~- \'ERDADF. DA kF.VOLt'ÇÃO BRASILEIRA

Primórdios do internacionalismo proletário

Podemos considerar marco inicial do internacionalismo


prolecário a data de 28 de setembro de 1861 em que, em ato
publicado em St. Martin's Hall, Long Acre, Londres, foi fun-
dada a Associação Internacional dos Trabalhadores. No Ma-
nifesto da Associação, elaborado por Marx, pela primeira vei
foi apresentada a conccpção socialista do internacionalismo.
Voltar a essa fonte não atende a mero impulso de curiosidade:
é antes buscar fio <le meada que nos guiará na critka do
internacionalismo rnntemporâneo.
Marx, também nesse terreno, teve precursores. Desde o
princípio do século XIX surgem associações revolucionárias e
reformistas na Europa, dinamizadas pela idéia de união dos
operários como fôrça que transcende fronteiras nacionais. Os
pobres não têm pálria, já proclamava Baboeuf, um dos líderes
da "Conjuração do.~ Iguais", ocorrida na França no fim do
século XVIII. Tbdas as insurreições populares de envergadura
no século passado tendem à internadonalização. Um dos le-
mas da Liga dos Juslos, íundach1 em 18.36, é: "todos m homens
são irmãos". O alfaiate alemão Wichelon Weitling, mcmbrn
proeminente da Liga, dizia que "só tem pátria quem tem pro·
priedade ou pelo menos a liberdade e o meio de tornar-se pro-
priet.1rio". Weitling j;í pode ser considerado vcrdadeirn rn-
munista. Vinte e quatro anos antes da fundação da Assoriação
Internacional dos Trabalhadores, Flora Tritan, na França,
em sua obra, Unión Ouvrii!re, idealizava uma lntcmndom1l
em que "não se devia fazer distinção entre nacionais e oper:í-
rios que pertencessem a qualquer nação da terra". Em 1836
aparece na Inglaterra a Working Men's Association (W. M. A.).
Numa mensagem a operários belgas, a Associação proclama:
"Causa das divisões insensatas que separam as nações vem de
que a classe operária ignora a situação que ocupa na socie-
dade." Pouco depois, uma ala da W. M. A. funda a Dcmocrntic
Association e um seu porta-voz, Julian Harney, procura com-
bater o nacionalismo que, na época, empolga\·a circulas ope-
rários. Dizia Harney: "a liberdade é indivisi\•el". Em 1846
surge a sociedade dos Fratemal Democrals, no ano seguinte
transformada em associação internacional com sede em Lon-
dres. No mesmo ano de 1816, a Liga dos Justos se transfor-
1:-.:TF.RNACION'AUSllO f'ROLF.TÁRJO Ili

mou em Liga dos Comunistas. t em nome desta Liga que,


em 1848, o Manifesto do Pa,-Udo Comunista lança o apêlo:
"Proletários de todos os países, uni-vos."
Mencionamos aqui apenas as entidades mais famosas que
se formam no século passado. (1 ) Numerosas oútras aparece-
ram nesse período rom idênticos objetivos revolucionários. O
advento dêste esfôrço organizativo corresponde ao que Mane
e Engels consideravam a estruturação da dasse operei.ria em
partido. Para êles o "partido operário" (2) se realiza na plu·
ralicla.dc dessas iniciativas. t.~te aspecto do pensamento dos
fundadores do socialismo cientifico merece destaque especial.
Escrito por Marx e Engels, publicou-se em fevereiro de
1818 o Manifesto do Partido Comunista. Existia ne~sa data
um partido comunista na acepção hoje corrente? Não. Na-
quela data não existia ne11hum partido operário na acepção
legal estatutária. No entanto, Marx e Engels se referiam, cm
1848, a um partido comunista. O reexame dêsce assunto não é
questão bizantina. É questão primordial para desfazer equl-
voros que se tornam verdadeiramente sinistros nos dias de
hoje. E significativo que, em carta de 1860, endereçada a Frei-
ligrath, Marx se referisse ao que chamava de "mal-entendido"
com relação ao "partido". Repele taxath'amente Marx a iden-
tificação do "pnrtido" com esta ou aquela associação operá-
ria "cfêmera". O Manifesto do Pm'lido Cnm11nista foi lançado
como documento teórico da união operária internacional, de-
nominada Liga dos Comunistas. A despeito disso, Marx escre-
veu em 1860: "A Liga como a "Sociedade das Estações" de
Paris, e comn cem outros sociedades, não foi senão episódio
na história do partido." (2ª) (os grifos são nossos.) Para Marx,
é evidente, seria inadmissivel que o partido, no "sentido emi-
nentemente histórico", pudesse ser representado por uma asso-
ciação isolada. E em 1872, quando Engels proclama o "enve-
lhecimento" de "alguns pontos" do Manifesto, lembra que isso
decorre não só do desenvolvimento da grande indústria nos
últimos vinte anos, mas também "da organização da clas~e
opcriíria em partido". Também nessa data, nenhum partido
isoladamente pretendia representar a classe oper:lria. Nem isso
poderia ser jamais admitido por Marx. A concepção oracular
do Partido Comunista como encarnação da \'erdade histórica
já está proscrita no próprio Manifesto ele mudo <1ue não deixa
margem a dubiedades. Aí se diz: (2b) "Os comunistas não
formam um partido à parte, oposto aos outros parlidos operá-
112 '.\lffO )". \"Ekb.\Dt: llA Rl'.VOl.l'ÇÀU hRASIU"llL\

rios.,. Não proclamam princípios partiwlares segundo os


quais Jm:lendcriam modelar o movimento opcrdrio" (os grifos
são nossos.) O partido único, entendido mmo \'anguarda infa-
lfrel do proletariado, é produto do messianismo russo.

lllur,. e '" Pritneira lntemacimUJl


Marx j;i pcmava na fundação de uma Internacional desde
1816. Para concre:izar sua idéia teria pedido o npoio de
Proudhon, que, em 17 de maio dêsse ano, lhe responde com
palnnas que tinham, aliás, sentido profético: (3) "Procuramru
- cfü Proudhon - as leis da sociedade, a maneira como essas
leis se re:1lizam, o clcscnvolvimen10 segundo o qual rhegamos
a descobri-l:is; mas, por Deus, depois de ter demolido os dog-
matismos 11 priori, de nossa parte não aspiremos a doutrinar o
povo, não caiamos na contradição de vos.so compatriota Mar-
tinho Lutero que, depois de ter subvertido a teologia católica,
passou logo, servindo-se tle excomunhões e anátemas, a Cundar
uma teologia protestante, Aplaudo, de todo o coração, vossa
idéia de admitir tôdas as opiniões; foçamos boa e leal polêmica:
demos ao mundo o exemplo de uma toler:"mda sábia e previ-
dente: mas não é porque estejamos à frente do movimento
<1ue nos de\"amos tornar os cheíes de uma nova i11tolerânda,
posar de apóstolos de nova religião, ainda que fõsse a religião
da lógica, a religião da razão. Acolhamos todos os protes·os,
condenemos tôdas as exclusões ... não consideremos jamais um
problema rnmo esgotado ... Sob esta condição, entrarei com
prazer cm vossa associação; de oulro modo, não!" Os temores
de Proudhon, sabemos hoje, não eram infundados. Marx insis-
te em sua inidativa. Num comido dos Fralernnl Dcmocrals,
ocorrido cm Londres cm 29 de novembro de 18·17, lançou nôvo
apéit>: "devo pedii·-lhcs ciuc organizemos um mngrcsso de na-
ções, um congresso de trabalhadores, a Cim de estabelerer a
liberdade em tôda parte no uni\'erso". Marcaram-se a data e o
lugar clêstc Congresso, ou seja, 25 de outubro de 1818, em
Uruxe\as, mas a rC\"Olução que irrompeu nesse ano frustrou o
projeto. Só cm 1861 surge a Primeira lnternarional, sob a
.denominação de Assodação Imernacional de Trabalhadores.
É pcrlincnte sublinhar algumas características [undamen-
lais d:i Assod:ição.
A Primeira Internacional é uma organização nexivel, fe-
deralista, dirigida por um colcgiado, o Conselho Geral, cons-
l:'l:Tl-:R.:'l:ACJO:'l:Al.l!i:\10 l'R.01.E"l",Í.RIO

tituido de operários. Seus estatutos pro'iéem em cada país


uma seção, órgão central de caráter nacional. As sociedades
operárias ligadas à Associação não têm estnitura uniforme.
".Embora unidas por um vínculo perpéLUo de cooperação fra-
ternal. . . conservarão intactas as suas organitações." Provéem
ainda os estatutos a realização anual de um Congresso, que for-
mula "as aspirações comuns da classe operciria"'. Ademais, em-
bora a Associação se disponha a estimular a niação, nos dife-
rentes palses, de órgãm rcntrais nacionais, nenhuma soriedadc
local independente - rezam os euatutos - será impedida de
manter contato direto com o Conselho Geral, exceto quando
houver obstáculos legais. A condição do membro não é rí-
gida.. O item 9 dos estatutos diz: "todo aquêlc que concor·
dar com os prindpios da Associação Operária lnternacional e
defendê-los cstar;í habili1ado a nela ingressar como membro".
Dir.se-ia que, em matéria de organização, a Primeira Interna·
cional é menchevista.
A Primeira Internacional praticava o pluralismo ideológi-
co. A liderança nela exercida por Marx não assumiu feição
autocn\tica. Ao redigir os Estatutos foi obrigado a concessões e
constantemente estava em luta rnm selL~ companheiros, prin-
cipalmente mm a farção bakuninista. "Foi muilo difícil -
diz êle em cana a Engels - formular a rnisa ele modo <1ue nos·
sos conceitos aparecessem de maneira accit:ível do ponto de
vista atual do mo\'imcnto operário." A Primeira Internadonal
abrigava representantes das tmde uniam inglêses, Iassallianos
alemães, prudhonistas franceses, correntes ideológicas diversas,
que não primavam pela homogeneidade. A Associação não
pretendia ser, portanto, monolítica. Como diz o item 1 de seus
estatutos, "é fundada no intuito de estabelecer um centro
de comunicação e de cooperação entre as Sociedades Operárias
existentes, em diferentes países e voltadas para o mesmo obje·
tiva, ou seja, a proteção, o progresso e a completa emancipação
da classe operária". Nenhuma exigência de ortodoxia e muito
menos de ortodoxia marxista. Isso não impediu, aliás, que
prevalecessem na atmu;ão da Primeira Internacoinal os pontos
<le vista de Marx, não porque U>Ssem impostos em nome de
uma doutrina olicial, mas porque eram objetivamente cor-
retos.
Outro aspecto digno de nOLa. Os filiados à Primeira Inter-
nacional podiam ser sociedades e até indivíduos isolados. Era
coligação de movimentos que objeth-ava "conquistar o poder
111 MITO F. n:RDALW DA Rl-\'Ol.t:<;Ão BRASILEIRA

político", constituir a classe operária em "parlido polftico dis·


tinto, em oposição a todos os velhos partidos políticos consti-
tufdos pelas dasses possuidoras", com o íim de "assegurar o
triunfo da re\•olução social". (4 ) Vê-se por aí que a Associação
tinha como pressuposto a coordenação e rnligação .de movimen-
tos operários e não a rígida e mecânica unidade C§tatutária.

Como su1'ge a lntemacitmal Savi.ética

Assim se organizou sob o~ auspícios de Marx o internacio-


lismo proletll.rio.
Interessa-nos, nesta oportunidade, discutir o rumo que to-
mou quando o bolchevismo surgiu como ideologia dominante
no movimento socialista. E é à guisa de reíerênda que a Pri·
meira Internacional foi sumàriameme descrita. Antes, porém,
de passar ao centro de nosso assunto convém dizer alguma coisa
sôbre a evolução das Internacionais. A Associação Internacio-
nal se dissolveu em 1872, e foi sucedida pela Segunda Interna-
cional, fundada em 1889. Constituía-se de partidos social.de·
mocratas e, de modo geral, foi tambêm organização plástica,
onde se procurava obter a coordenação pelo debate livre das
questões, sendo de saliemar 11ue não dispunha mesmo de nuiqui-
na administrativa centralizada, nem de nenhum conselho inves-
tido de autoridade internacional. A Segunda lntemaçional
entrou em colapso durante a Primeira Grande Guerra, recons·
tituiu~e em 1923, e finalmente dissolveu-se com a Segunda
Grande Guerra, depois de, no último período, intensamente
combatida pela Terceira Internacional ("Comintern"), fun-
da.da em 1919. Entre 1921 e 1923, funcionou a chamada "In-
ternacional 2~f': congregava partidos social-democratas de
esquerda. Em 1936, partidários de Trotsky fundaram a Quarta
Internacional, que jamais exerceu influência cm larga escala.
A crítica que, a seguir, será feita do internacionalismo so-
viético não se inspira em nenhuma idealização ou supervalori·
zação ele formas pretéritas de internacionalismo. Na verdade,
o internacionalismo operário muda necessàriamente de forma
e conteúdo em cada período. As internacionais não desapare·
ceram porque não tivessem exercido nenhuma função positiva.
Apesar de suas debilidades, contribuíram largamente para o
avanço do socialismo. Morreram quando mereciam morrer.
JNTERNACJONALISMO PROLETÁRIO 115

Do mesmo modo, seria antidialético julgar a Internacional Bol-


chevista (o Comin~ern e o Cominform) à luz de princípios
morais entendidos como fixos e imutâveis. O internadonalis-
mo bolchevista foi histhricamenre válido. Hoje, porém, não
mais persistem as razões que justificam rontinue a ser obser-
vado. Foi expediente adequado para cirrunstâncias que desapa-
receram e, por isso, chegou a hora de proclamar a sua inatua-
lidade.

Com~n~t':)iF~r~nJ;J.~~~ª 1~~~~r3;s~~~:~ce:u e1~uf~;.ci~~~


momento em que a União Soviética se aliara a países capila-
listas contra as potênciaas fascistas. A medida evidentemente
visava a desfazer suspeita contra a União Soviétirn no campo
aliado. Em 1947, surgiu o Cominfonn, com sede a princípio
em Belgrado, e após o desentendimento entre Tito e Stalin,
estabeleceu·se em Bucareste. Foi extinto em 1956. Amalmeme,
embora não exista ostensivamente nenhuma organfaação nos
moldes do Comintern e do Cominform, a rnonlenação dos par-
tidos comunistas se procede por intermédio de seções espedali-
zadas do Partido Comunista da URSS. Tôdas e'lsas são vicis·
situdes do que chamamos aqui a Internacional Bokhevista ou
Soviética, cujos aspectos mais importantes pas.'lamos a men-
cionar.

Originalidade da Internacional Bolchevista


A Internacional Bolchevista é organiLação rígilla, de di·
reção ultracentralizada e constituída segundo a concepção leni-
nista de "cen1ralismo clemoc:rático". Dentro dela o Panido
Comunista da URSS exerce incontestável hegemonia. O Comin-
tern era dirigido por um Comitê Executivo controlado pelos
soviéticos, ao qual incumbia, segundo os estatutos, dar diretivas
a tôdas as seções da Internacional, dela excluir seções inteiras,
grupos e indivíduos isolados, retifkar os programas ele c:ada
organismo nacional. Ainda segundo os estallltos, o Comitê Exe·
cutivo e n Presidium podiam enviar representantes às seções
nacionais, com direito ele assistir ás suas reuniões e intervir
contra o Comitê Central do Par1ido sob fis<·alização. Os rnn-
gressos das seções não podem realizar-se sem autorilação cio Co·
mitê Executivo e qualquer pôsto dirigente ê considerado per·
tinente à Internacional e não ao seu ocupante. Depois do
116 MITO t: VF.RDADF. DA u:vo1.uçÃo BRASILEIRA

II Congresso do Comintcrn, estabeleceu-se que o deputado


comunista cm qualquer país é responsável perante o Partido
Comunista legal ou ilegal e não perante os seus eleitores. Com
tais podêrcs, o Comitê Executivo pode impor suas decisões, no
tocante a todos os assuntos internos do Partido. Em I9M, por
exemplo, o Partido Comunista francês recebeu o seguinte 1ele-
grama do Comitê Executivo: "Ao Bureau Político, a Thorez e
a Doriot. Consideramos necessário cessar a luta interna no
Partido. En\'iem até aqui Thorei e Doriot. A lnternadonal
Comunisla examinar:í o desacôrdo fracionista no Partido fran-
cês. Informem-nos quando êles partirão." Ornrrência seme·
lhante tem sido costumeira ontem e hoje nos Partidos Comu-
nistas, inclusive no do Brasil, segundo abundames depoimentos,
entre os quais os de Osvaldo Peralva em seu livro O Retrato.
Ignazio Silone narra que, certa \'ez, em 1927, repeliu, em sessão
extraordinária do Executivo do Comintern, juntamen•e rom
Togliatti e outros companheiros italianos, a condenação de uma
carta ele Tro1sky, que apenas os ru55os C"onhedam. Ao retornar,
inteirou-se de que a carta ,·inha sendo atacada com veemênda
na imprensa dos Partidos Comunis1as amerkano, húngaro,
tcheco-eslovaco. Ocorreu-lhe perguntar a Thaelmann, diefe do
PC alemão, se o teor da misteriosa rnrta hm·ia aíinal sido re-
velado. "Não - disse-lhe Thaelmann. - l\las 1u deves apren-
der com os comunistas americanos, ln\ngaros e tdiero-eslovaC"os
o que significa a fórmula disciplina com1111i.fta." Sim, à diferença
das que lhe precederam, a lnternadonal Bolchevista de~rnbriu
os podêres da organização.
Outro aspecto original do Gomintern é o seu monolitismo
ideológico. Segundo os estatutos, "a lntcrnadonal Comunista
é a organização dos Partidos Comunistas dos difercnles pai:;es
em um Partido Comunista únko mundial". Em 1920, foram
adotadas "condições de ingresso" para os partidos e organiza-
ções que desejassem pertencer à Internadonal, as quais condu-
1em à mais intransigente homogeneidade. Na pnitka, o PC
da URSS se tornou verdadeiro oráculo e seus pontos de ,·ista,
obrigatórios. Impunha-se o de,·er de realizar depurações pcrib-
dicas, de ruplura lotai e absoluta com as c:orrentes des\·iarioni.~­
tas, a fim de manter a unidade do movimento. O divisionismo,
o revisionismo, o fracionismo, o reformismo passaram à categoria
de pecados ideológicos, de C"aráter mortal. Os que incorreram
nesses pecados têm sido castigados rnm a liquidação moral, fre.
qüentemente arnmpanhada de liquidação física. O Comintern
INTERNACIONAi.iSMO PROLETÁRIO 117

introduziu no movimento socialista o procedimento inquisito.


rial dos autos-de-fé, a figura do crime ideológico.
Finalmente, pela primeira vez na história do movimento
socialista, surge uma Internacional, a Bolchevista, de que par-
ticipam governos ao lado de partidos. É certo que essa parti-
cipação governamenial /: formalmente indire·a, mas na verdade
efetiva cm tôcla a linha, É uma situação no\•a. Em 1920, nas
"condições de ingresso", estabeleda-sc no i1em 15: "Cada um
dos partidos que deseje pertencer à Internacional Comunista
tem o dever de prestar apoio incondicional a cada Reoúbfü a
Soviética em sua luta contra as lõrças contra-revolucionárias."
Um documento soviético de 1928 reza: "O prole•ariaclo de
todos os países encontra pela primeira vez na URSS uma ver-
dadeira pátria e os movimentos coloniais, um poderoso c·entro
de atração ... O Proletariado Internacional tem por dever mn·
tribuir para o sucesso da edificação do socialismo na URSS e
de a defender por todos os meios contr:l os ataques rl:1s notências
capitalistas." Donde se conclui que a Internarional Bolrhevisra
tem sido interpretada pelos seus dirigentes como unidade da
política externa da União Soviética.

A Internacional Bolchevista
e a consciência .socialista
2stes os fatos a respeito ela Internacional Hokhevist:i. Não
cabe examiná-los e julg;\.Jos de maneira rnmân1fr;1, isto é, romo
se houvesse um princípio ético eterno, extrínscrn i1os arontcci·
mentas. As originalidades da Internacional Bolchevista não são
fortuitas, nem resultam dos atributos individuais singul:lrissimos
dos líderes sovié;icos. São aspectos de uma totalidade histcírirn-
social, e sómente reíeridas a totalidade, potlcm ser rnmprcen-
didas. É óbvio <1ue o ad\·emo da União Sodétirn em 1917 1·omo
república oper:iria não poderia, por si sô, deixar de acarret:1r
para o movimento socialista c;u·acteristirns radirnlmente dis·
tintas daquelas prevalecentes nos períodos anteriores. O adven·
to, pela primeira vez no mundo, de um pais sorialista, quaisquer
que sejam as argüiçõe.~ <1ue susdtc no terreno tebrirn quanto
ao seu caráter sodalista, teria que mudar o sentido do inter-
nacionalismo. Agora não se tratava mais de disrntir, em tese,
i<léias, programas, doutrinas. Vinha de ser ,·itoriosa uma revo-
118 MITO E VERDADE DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

Iução social que se deflagrara em nome da classe operária. Era


natural que a defesa dessa revolu.ção se tornasse ponto de honra,
para os que acolhiam as idéias libertárias. Os revolucionários
mais lúcidos e escrupulosos, como por exemplo Rosa Luxem-
burgo, viram, desde o princípio, germes de aberrações no bol-
chevismo, mas nem por isso negaram a validade imensa da
Revolução de Outubro. E a História provou que era mais
correia do que injustificada a conduta dos milhões de pessoas
que, nos partidos comunistas e fora dêles, aceitaram e obser-
varam a fórmula soviética de internacionalismo, Sob o cêrco
do capitalismo, o êxito da edificação do socialismo na URSS
era, sob muitos aspectos, realmente uma causa do proletariado
mundial. Por isso, verberar, como perversão psicológica, o
devotamento de milhões de homens e mulheres às diretivas do
internacionalismo bolchevista é incorrer num ingênuo e abstrato
moralismo, incapaz ele fazer história, incapaz de participar do
esfôrço pelo progresso concreto da liberdade, pois que, em
todos os tempos, cada vitória dêsse esfôrço nunca deixou de
consumar-se sem cruéis dramatismos, que necessàriamente trau-
matb:am a consciência convencional em vigor. Vinga o nôvo
na História com o inexorável sacrifício do \•elho, do conven·
dona!.
A luz do humanismo militante, o internacion:di~mo bol-
chevista, até há bem pouco, teve plena validade. A lm: do mesmo
humanismo, começa, nos dias atuais, a mudar de sinal. Ontem
era, em sentido dialético, admissível proclamar a URSS ver-
dadeira pátria dos trabalhadores de todo o mundo. Hoje, po-
rém, nem a URSS nem nenhum pais dito socialista merece
ser assim considerado. O socialismo, hoje, não é mais empreen-
dimento isolado de uma nação ou ele um grupo ele nações.
t lei fundamental da presente época. As nações onde hoje se
constituiu um poder socialista se encontram num mundo cm
que o capitalismo ainda sobrevive com fôrça consider;ível, e
assim essas formas de poder socialiSla não estão imunes de
elementos estranhos à concepção em nome de que se justificam.
Cabe, assim, à consciência socialista mundial, função própria,
inalienável, isto é, que não pode ser transferida a nenhum
partido-oráculo, a nenhuma nação-oráculo. O sentido da his-
tória não é prisioneiro de nenhum colégio de teóricos, nem
jamais haverá teoria que o reflita sem destorcê-lo. O sentido
da História é irredutivel à teoria. t na prática re\'Olurion:lria
das massas que êle se rc\'ela, É essa prática que, na presente
IN11::RNACIONAt.ISMO l'ROJ.~;r..\RJO 119

época, condena irremediàvelmente o sistema capitalista, julga


também o próprio socialismo, em suas contempor;\neas expres-
sões efêmeras, em acontecimentos como os levantes de Poznan
e de Budapeste. O internacionalismo operário não pode mais
continuar a ser doutrina oficial de Estado, tem de ser devol-
vido às massas obreiras, e tornar-se manifestação direta de
seus interêsses universais.
Estamos no limiar de nôvo internacionalismo operário. E
para ajudá-lo a configurar-se é necessário declarar a caducidade
do internacionalismo bolchevista. De 1919 até esta data, o
internacionalismo bolchevista tem passado por diferentes fases,
que, para efeitos elucidativos, focalizaremos a seguir,

Lênin e o Comintem

A Terceira Internacional surgiu sob a liderança de Lênin.


A conferênda de que resultou sua fundação teve lugar cm
Mos(.'OU. Três dias antes de sua morte, Rosa Luxemburgo tinha
incumbido um delegado alemão de resistir energicamente à
constituição da nova entidade. Todos os representantes alemães
presentes à reunião opuseram-se à delegação russa, intcbrrada
por Lênin (um dos presidentes do cer1ame), Trotsky, Znoviev,
Stalin, Boukharin e Tchitcherin. Graças à abstenção de Eher-
lein, obtida pelo delegado austríaco, a reunião de 4 de março
de 1919 pôde tomar o nome de Primeiro CongrC!>~o <la Inter-
nacional Comunista. "Tão pequeno número de organizações
acorreu à íundação tia III Internacional - disse Eberlein -
que era difícil apresentii-la à opinião pública." tsses porme-
nores sôbre os começos do Cominlern são oportunos. Muitas
são as iniciativas soviCticas que devem o seu aparecimento a
processos semelhanles, para depois adquirirem ronsiclerável
envergadura . .Já no Segundo Congresso, em 1920, se fizeram
representar delegados de 37 países, e foram aprovadas as Vinte
e Uma Condições de Ingresso. t nessa oportunillade que se
lançam as bases do internacionalismo bolchevista. Lênin d:í
especial atenção ao Congresso, e escreve A Doe11ra Infantil do
"Esquerdismo" no Comunismo para distribuí-lo a todos o.~ dele-
gados, e se..i empenho nisso foi tão grande, que pessoalmente
controlou os prazos marcados para a composição e impressão
do opúsculo.
120 MITO !·: VF.RDADE DA R1:VOLVÇÃO BRASILEIRA

Antes, Lênin procurava frisar o que, em suas teorias, re-


fletia convicções especificas da Rússia. Em Que Fat.er1 (1902),
por exemplo, relaciona o "centralismo democrático" com as
niractcristicas autocráticas da situação russa. Diz êle: "no pafs
da autocracia, quanto mais rsetringirmos o contingente dos
membro.~ de uma organização dêsse tipo, até não incluir nela
senão aquêlcs filiados que se ocupem profissionalmente na arte
de lutar contra a polícia política, mais dificil será "caçar" essa
organização". Agora, porém, com a III In•ernacional, trata
de transferir para o âmbito mundial o "centralismo democrá-
tico", cm defesa da URSS. As "condições de ingresso" dão à
Internacional o cunho de partido mundial ó.nico. Agora fala
assim: "não são apena.~ alguns, mas todos os aspectos funda-
mentais - e muitos secundários - de nossa revolução que têm
significação internacional - entendendo por significação inter·
nacional a sua tr:msfcrêm-ia mundial ou a inevitabilidade histó.
rica de que se repita cm e.scrila univer.ral (o grifo é nosso) o que
amntcceu em nos\O pais".(") Lênin não esconde que o seu
folheto "tem por ohjeti\"O aplicar à Europa ocidental o que
a história e a t;ítica atual do bolchevismo têm de aplic:ível,
import:mte e obrigatório em t&da parte" {o grifo é no.\so).
Afirma ainda que o "revolucionarismo cio proletariado russo"
se "coTI\·crtcu em modêlo", como havia previsto Kamsky. (1 ) E
numa das páginas finais, escreve: "Os comunistas elevem con-
sagrar todos O.\ seus esforços para orientar o movimento ope·
rário e o desenvoh·imenro social em geral no sentido do caminho
m<1is reto e rápido para a vitória mundial do Poder Soviéti·
c'o." (8 ) Como sabemos hoje, a pregação de Lênin encontrou
adeptos entusiastas em todo o mundo.

O Comintern depois de Lhiin


Sob a liderança de Lênin, o C..:omintem funrionou sem
1·igidez exce5siva, apesar de seu "centralismo democnítico'' e
das "21 mndições". Em 1924, após a morte de Lênin em ja-
neiro, Znoviev lança o slol{tm: "Bolchevizar o Comimcrn",
o que, em outras palavras, significa afirmar a hegemonia incon-
test;h·el do PC so,·iético. É nesses dias ou meses <1ue, com tôcla a
prohabilidacle, o ''ocabuhirio da Revolução se cnri<1uece com
um OÔ\"O têrmo, ou seja, o "leninismo"', o "marxismo-leninis-
mo"", mediante o qual se procura capitalizar, em favor dos atuais
ISTF.R.NACIONAl.IS"IU l'ROWTÁRlt> 121

donos do poder na URSS, a memória do grande líder russo.


Stalin, feito secretário-geral do Partido, pacientemente procura
moldar o Comintern à sua feição. Em 1927, elimina Trouky,
e po11teriormente se livra de Znoviev e de Bukharin. Segundo
depoimento de antigo membro do Comintcrn, quando Znoviev
deixou de ser presidente do Comitê Executivo, muilos indaga-
ram quem iria substituí-lo. Os russos dil.iam-lhe que a direção
unipessoal não mais era considerada conforme os prindpios
comunistas. "Não podemos ter um liÓ homem na chefia. De-
vemos ter um coletivo." O coletivo era o rerurso de que StaHn
se valia para, ent.;o, tomar a si diretamente ns assuntos do
Comintern. Dai por diante, fêz sempre dominar a sua vontade
por interposta pessoa no coletivo. Durante algum tempo, Mo-
lotov exerceu êsse papel- (º)
Depois de extinto o Comintern, o internacionalismo bol-
chevista assume outras formali. M:i~ o seu espírito pourn se
altera. O 'lue se sabe sõbre a intimidade do Cominform atesta
que persisuu na observfmcia dos proce'isos que rnracterilaram
seu antecedente. Sôbre o assunto são particularmente t'11eis as
informações oontidas no livro de Osvaldo Peralva, O Retrato
(1960). De resto, até hoje, as relações do PC soviétiro rom
os outros partidos c:omuni.~tas ainda se inspiram largamente
no complexo hegemônico subjacente na conduta do Comin-
lem e do Cominform.

Internacionalismo soviético e de.restalinização


Mas, de modo geral, o internacionalismo lmkhevista eMá
em via de desaparecimento. A URSS, mediante alterações frc-
qücntes de suas diretivas, no tocante a seus contatos com os
partidos comnnistas, dá sinais de que procura atualizada equa-
ção para o internacionalismo. No documento que em 1956
explira\•a a dissolução do Cominform, alega-se uma série de
fatos que, efetivamente, definem nova situação mundial. Diz
o documento: (Iº)
"Mudanças ocorre!"am no curso do5 últimos anos na situa-
ção internacional: a extensão do sodali.;mo além elas fronteiras
de um sô pais e sua transformação em sistema mundial; a for-
mação de \'asta "1011a de pa.l', induimlo ao mesmo tempo
países periíérico~ sodali~tas e não-sucfalistas da Europa e da
Asia; o crcsdmcnto e a rnnsolidação de numerosos partidos
122 '-llTO F. VEllJ)ADE DA REVOl.UÇÃ.O BRASILEIRA

comunistas nos países capitalistas, dependentes e coloniais, e


suas atividades acrescidas na luta contra as ameaças de guerra
e a reação, na luta pela paz e pela independência nacional de
seus países; enfim, a tarefa particular e urgente hoje de superar
as divisões no seio da classe operária e de reforçar a unidade
da classe operária no interêsse de uma Juta coroada de êxito
pela paz e o socialismo. Essas mudanças criaram no mundo
novas condições para as atividades dos partidos comunistas e
operários. O Bureau de Informação (Cominform), nem por sua
estrutura, nem por sua atividade, responde mais a essas novas
condições.''
Muito do que se diz nesse texto é correto. Desaparecido,
porém, o Cominform, persistiu, embora atenuado, nas relações
entre a URSS e os partidos comunistas no exterior, o antigo
complexo de hegemonia ideológica, que se exprimiu de ma-
neira mais aguda e truculenta durante a existência do Comin-
tem. A dissolução do Cominform teve lugar por ocasião do
"degêlo", iniciado com o "relatório secreto" de Kruschev. Apa·
rentemente, o fim do Cominform foi resultado da desestalini-
zação, significa o fim do centralismo ideolôgico. Só em parte,
entretanto, isso é verdade.
A desestalinização foi largamente formal. Representou, de-
certo, alteração ele conteúdo no internaciom:1Iismo bolchevista.
Mas muito escassa, o que não impede de,..·a ser reconhecida como
um progresso. Depôs-5C o stalinismo. Continua, porém, ple-
namente em vigor, como diretriz oficial do internacionalismo
observado pela URSS, o que constitui a essência filosófica do
Comintern e seus remanescentes, o marxismo-leninismo, ou
simplesmente o leninismo. Essa ideologia de domesticação
mundial do proletariado nasceu nos bastidores do Comintern,
nos dias em que Znoviev lançou a palavra de ordem de "sovie-
ti1ar o Cominterm", imediatamente após a morte de Lênin em
janeiro de 1924. A desestalinização conseqüente importaria re-
conhecer (.'omo impostura filosófica o marxismo.leninismo,
ou simplesmente o leninismo. Ao invés disso, os círculos diri-
gentes da URSS agarraram-se a essa tábua de salvação da
antiga hegemonia. A luta entre a URSS e a China Popular
em tômo do que e verdadeiro ou revisionismo no marxismo-
leninismo, ou simplesmente leninismo, não tem cunho prô-
priamente filosófico ou cultural, é disputa Ue bastidores que
tem sentido t5sencialmenle partill:lrio, é conflito entre duas
secretas razões de Estado,
1:.:TERNACIONAUS:\IO l'ROl.F.TÁRIO

lndicio.r de nôvo internacionalismo proletário


O internacionalismo bolchevista - de que é expressão
filosófica e doutriniíria o marxismo-leninismo, ou simplesmente
o leninismo - está com seus dias contados. Não sobreviverá
muito tempo. V;irias circunstâncias e movimentos anunciam,
para breve, o encerramento de seu ciclo histórico. Menciona-
remos alguns fatos em que se fundamenia o nosso raciodnio.
Em primeiro lugar, o êxito mundial da política de não-
=~n~:~:~: di~Ji~:. f~! ~~~~~:a ªoh~:!•í~i:bi~s~e S~!~ir~cna~I~
círculo de estadistas do campo sodalista, tem tido eminente
papel na luta contra as pretensões hegemônicas da URSS. Sob
o bombardeio da contrapropaganda soviética, o Govêrno iugos-
lavo lançou, sistematizou e difundiu uma concepção anti-
bloquista de relações internacionais, hoje dominante entre as
nações periféricas, e que constituem o impràpriamente chama-
do "terceiro mundo", O êxito da política do não-alinhamento
representa uma vitória não só no domlnio teórico como no
domínio político. A "coexistência ativa e pacifica" por que
se batia ontem a Jugoslávia, isolada no c·ampo socialista, tor-
nou-se diretriz oficial da política externa soviética. Não estão
muito longe os dias em que o Govêrno iugoolavo era o objetivo
preferido de todos os tipos .de ataque da União SoviCtica e das
potências socialistas alinhadas. O "tilismo" era apontado como
perigoso e infamame "desvio", conspiração imperialista contra
o bloco socialista, ideologia de um regime de "assassinos e
espiões", como se afirmava num drn1 relatórios do Cominform,
no ensejo de sua terceira reunião na Hungria, em 1919. Em
1953, porém, de repente, a lugoslávia cessa de ser o cavalo de
Tróia do rapitalismo. Kruschev refere-se ao "camarada" Tito
num "toast" e no seu relatório secreto" de 1956 lembra, para
condená-lo, o dito de Stalin ao saber do rcpõdio iugoslavo às
imposições soviéticas: "Basta-me mover o dedo mínimo e não
haverá mais Tito." últimamente, o chefe da nação iugoslava
teve recepção triunfal em Mascou, justamente no momento
em que os chineses recrudesciam a sua campanha contra o
chamado revisionismo titista,
A desestalinização iniciada em J956 cada veL mais produz
efeitos que o circulo dirigente na URSS não pode controlar.
Põe a nu o filisteismo e a hipocrisia de tôda polltica interna-
12·1 :\llTO •. \"F.RDAllF. li.\ RE\'Ol.l!ÇÂO llRMll.Y.IR.A

danai, que, em nossos dias, pressuponha o caráter oracular


do PC russo. Krwchev revelou aspecLos hilariantes e grotes-
cos do stalinismo em seu famoso relatório, afastam.lo definiti·
vamente a possibilidade de reconstituir-se o antigo monoli-
tismo na conduta d05 partidos comunistas. Nestas organizações,
em tô<la parte, surgem grupos de novos militantes, rebeldes aos
processos clássicos do "centralismo democrático" e semíveis
ao primarismo ideológico, filosófico e cuhural dos lilleres
russos. Têm..se indícios de que, por exemplo, no Partido Co-
munista do Brasil é significativo o número de membros para
os quais a situação moralmente inronfortável em que se encon-
tram vai tornando-se ràpidamente insuport;\vel. São por
assim dizer comunistas em·ergonhados, os mais h\ddo.~ :' espera
ele um pretexto que lhe propicie saída honrosa do mal-en1en-
dido a que os levaram um dia sentimentos legítimos de fra-
ternidade.
Pouco a pouco, nas 1·elaçf>es entre os países c.:h:unados so-
cialistas, o chauvinismo da URSS vai sendo neutralilado. De-
pois do "rclat<'>rio secreto", acontedmen1os dram•íticos vieram
rc"·elar a existência de uma tensão entre as repúblicas popula-
res e a URSS. Aquelas procuram fórmulas "nacionais" c!o
comunismo, maior soberania na condução elos seus negórios
internos. As razões que levaram, em 1918, a Jugoslávia a re-
belar-se contra as imposições do Kremlin não era fato isolado.
Em 1956, o movimento de protesto dos operários de Pozn:m
na Polónia tinha sentido anti-!iOviético. A ascensão de Gomulka
ao poder, cm outubro de 1956, a1endendo, de algum modo, à
ir1~:1~fr0c\:r:~~:~~v:t~~l~~~~~c~~b~~!cdi~::!~1~~e~~~~~1~~-r!:1~~
rontrando cada vez mais o sentido próprio de sua política. A
Revolução Húngara teve significado idêntico. Atra,·és da pa-
lavra de seus prinripai~ líderes, notadamente de Nagy, mani-
festou abertamente conflito com o internacionalismo bolche-
vista, cujos eíeitos destorch·os pretendeu corrigir. Fracassou a
RC\·olução, mas as suas conscqüências ainda se fazem notar
no interior mesmo do chamado campo socialista de que é
centro a URSS.
As objurgatórias dos chineses contra o revisionismo dos
dirigentes do PC russo, a sua pregação de pureia leninista e,
Ultimamente, a defecção da Albânia, seguida dos ataques 11ue
o Gol-·êrno dêsse país dirigiu contra Krusd1ev diretamente, e
0U1r:15 person;lliclades governamentais da URSS, são fatos c:ons-
INTERNACIONALISMO PROlEl'ÁRIO 12.:i

ternadores que retiram seriedade à polêmica em ti">rno do


leninismo, no qual só os ingénuos não vêcm o que contCm de
filisteismo, hiprocrisia, maquiavelismo primário.
Também é relevante, pelo seu selllido renm·ador, o surgi-
mento de nações com regimes de cenclência sociali5ta, consticuí-
clos à feição nativa. As jovens nações aíricanas aparecem com
forte consdência da especificidade de seus problemas e, em
suas relações externas, repelem, c1uanto podem, a-. prátiras ana-
crônicas de cooperação internacional. Assim íazenclo, contri-
buem, ele modo decisivo, para a atualização cio movimento
socialista.
A Revolução Cubana é outro episódio marcante. Cuba é
o primeiro pais latino-americano que adota o regime de repí1-
blica popular. Em si mesma, a Revolução Cubana é demons-
tração da falência do internacionalismo bolchevista em que se
integram os partidos comunistas. A liderança da primeira re-
volução de índole socialista, ocorrida na América Latina, se
exerceu, se não contra o partido comunista lornl, certamente i1
sua revelia. Fidel Castro, reconhece, em 1961, que: "se eu
estivesse na situação de Carlos Rafael (militante comunista)

~~~~f~ f~7d°:1 ªc~=tr::· ~~~ ~~~!~~::ª ~·r:~~~Js:~-~~\~1i;:fi~~1~~~


mantinha à distância os militantes do PC, vitima do que um
autor enquadrado na linha bokhevista (Jacques Arnaud) dia-
ma de "preconceitos anticomunistas". ( 11 ) É significati\"a a
reflexão de Fidel Castro sôbre tais "preconceitos". Di7. êlc:
"TalvC'.t: se eu não tivesse êsses preconceilos, não e.;taria cm
condições de dar uma rnntribuição à revolução, como o fize-
mos." ( 12) Na origem da Revolução Cubana se encontra em
embrião um proletarismo nôvo. Compelido pelas represálias
norte-americanas, o regime fi.delista teve que buscar o apoio
soviético, a fim de sobreviver. Mas não é difícil perceber c1ue
os principais líderes cubanos são extraordinàriamente bem do-
tados de senso de humor. Seu marxismo-leninismo tem muito
de manobra tática, ao que parece. Conhecem-se, cm pequenos
círculos, altamente informados, muitas apredações e opiniões
que demonstram a ambigüidade de Fidel Castro e de seus
íntimos, no tocante ao marxismo-leninismo, e à adesão ;\ linha
atual do Kremlin, No ensejo das gestões sübre a suspensão du
bloqueio norte-americano;\ Cuba, diverso.~ incidentes ocorreram
de que ainda não se tem conhecimento exato, embora existam
indícios consistentes de que os lideres cubanos têm períeita e
126 !>111'0 1-: \'F.RDA.DF. DA. REVOl.IJÇÂO BRA.SILF.JRA.

lúcida consciência do ineditismo de sua revolução. A presente


diretriz de enquadramento na concepção soviética lhes foi
imposta pela necessidade de ganhar tempo. De todos os mo·
dos, o futuro reserva surprêsas para aquêles que não estejam
dando o devido desconto irónico ao bolchevismo dos principais
lideres cubanos, nas circunstincias atuais que estão vivendo.
Resta ainda referir, como fator de superação do interna·
cionalismo bolchevista, o avanço da cultura socialista na his-
tória contemporânea. Existem hoje, dispersos no mundo, mas
estimulando-se e influenciando-se reciprocamente, por \'arfadas
formas de informação e intercâmbio, numerosos intelectuais e
pensadores livres, de cuja produção resultam uma consdência
ile nossa éeoca e uma cultura socialista que refletem a pers-
pectiva mais ampla. :Esses intelectuais e pensadores integram
uma comunidade vanguardista. Conjuntamente, são deposi·
tários de um saber à luz do qual as formas episódicas de soda·
lismo atualmente vigentes têm de ser criticadas. Marx e Engels
estavam para o socialismo episódico de seu tempo (Robert
Owen, Proudhon) como hoje aquela comunidade está para
as repúblicas populares, a União Soviética em particular, e
os próprios Marx e Engels. Depressa tornou-se e•;idente o
quanto há <le anacrônico no socialismo militante de nossos
dias. Passada a fase <le guerra do despontar do socialismo,
como regime roncreto, impõe-se \'iver agora a exigência revo-
lucionária de combater aquêle anacronismo. Do ponto de vista
da atual consciência socialista, a União SO\·iética é, particular·
mente, um país política e culturalmente atrasado, participando,
em diferentes graus dessa condição, os países que integram o blo-
co soviético. A relação entre os socialislas e a Rússia tem hoje
critérios distintos daqueles que deram positividade ao interna-
cionalismo bolchevista. A causa operária é uma causa mundial.
O proletariado mundial tem hoje conjuntamente rica cxperiên·
eia que, mais do que nunca, o habilita ao papel de educador
e dirigente do processo histórico. O nôvo internacionalismo
terá de surgir (está surgindo) como expressão livre ela contem-
porânea prálica revolucionária das massas obreiras. Lutando
por reivindicações nacionais próprias, ca<la movimento operá·
rio luta pelo advento mundial do socialismo. O nôvo interna-
cionalismo resultará de uma institucionalização da solidarie-
dade ativa das massas. Descobre-se hoje necessàriamcnte a
internacionalidade da causa operária, sàmente a partir de
genuíno projeto nacional de socialismo. Todo país onde [ôr
ISTl·'.R.NAC:IOSAl.JSMC> l'R.OU:T.-Í.IUU 127

coroada de êxito genuína revolução socialista, tem condições


de empolgar o apoio das camadas populares ele outros pafses.
A realidade mundial contempor.inea tende para o 50cialismo.
Por isso o nôvo socialismo se organizará, não mais a partir
de razões de Eslado, mas a partir de legitimas convcniêndas
concretas da emancipação dos trabalhadores em t·ada nação.

NOTAS
(1) 56bte os pm:unores do iniemacionali•mo prolcldrio. \·ide "l.es Pn!cumun
Inu:mulonalisu:s de Manio" i11 Michel COL.UN&T, La Tmgftlie d• Mor:Kirme.
Parla,19t8.
(2) Pan uma misto do conttilo manioi•ta de "partido", vide Maximilien
Rt"UL, "Remarques sur lc concept de pani prolet:i.rien che:r. Max". i11
Rni1111 F,.nfGise de Sociologifl. Vol. li, n.• !I, 1961 .
(2a) Vide Carta de Mana Freiligraih de 29 de re1-erelro de 1860, reproduzida cm
hlAD·ENcF.1.s, $11r /., /.iufralurfl ri /.'Arl. F.clitions Socialcs, Paris, 19.;4,
J>'ga. 877·!80. AI dii )ofani;: ""Temei assim di..ipar o mal-cn1cnclitlo s6hre
o assunto do "'partido": como se, por CSS."1 palan·a, cu entcndl-S..C uma "Liga."
desapan:cida há oito anos ou uma rc.'C\a~3o de jornal dissolvida h:I itmc anos.
Por partido, eu cnicndia o t><inidn nn 5emido eminc111cmen1c hi•tóricn 1\a
p11lavra."
(2b) Vide M""ifeslo do ""•lido Com1111is10. ;,, )ol.\11.11-F.scl'a.5, Obt"lls E1<0//lid1u.
Rio, 1956, voL 1, ptg. !6.
(8) ln lgnazio Su.or.:11, "LI:• .<1.11;1rcils ct la D~mocralic", iN La Nom~llr ll~ft>rmr.
N.• 1, 1957, p;lg. 14.
(4) Consulte-se o Moni/11110 1/11 La11c1>mrnlo "" A.uot"iaçlo /nlerr111,ion11f dos
Trab11/h11dous e 01 F.Slo/UIOJ d" Arsoti.,(iio 1"lemui01111/ dar Tr.,ballu1dott1,
incluldo:s em Karl MARK e F. Er.:c;i;i.s, Obms /l.m>ll1idu, Vol. 1, Jlio, 1956.
(5) Confira Lb1s, Que 1-·.,:er t cm Obr"s .Esrolhidos. Vol. li, Rio, 1955, p:ls,'11.
U7·U8.
(G) Vide Lbm~. A Doc11r" lnfoutil 1/11 "faq11rrdisrno"" "" Com11ni11110. Ed. \'i·
uma. Rio. 1960, p:lg. 9 ..
(7) IDl.M, pág. li.
(8) lui.t,pq. 121.
(9) Vide o muito informa1ivo llcpoimclllo de anligo funcionário do CGmlntcm,
que se man1éttl an6ni1110, '"Comin1crn Re1ninisa:11ccs"', in Sm•irl S11rvry,
A Quar1ely Re~icw of Cul1u111.l Trcnds, n. 0 82, 1960.
( 10) Vide Alfred G11.ossn. '"Lcs 1n1enia1ionalcs de Par1i1 Poliliques" i11 Enrydo-
'JRdie F,.nraise. Tome XJ. La J'ie lnlem.,lionnkl.
(li) Vide JaaJ.UU AIUIAUD, Cuba ri lt M ..rx.iime. La Nou\Cllc C:ri1ique. N. 0 189,
1962.P'g.88.
(12) IDllN.
CAPÍTULO V

Defesa do Revisionismo

l>t'b.lRb: Por que f qw: voâ l11i de jtJ preocup11r


por causn de alg1111s ctuos de rir/tlcrrite 1 Aq11i·
lo l11111bbn pndc $er 1111111 doenra.
B•.llESGF.R; ]/1.1lam1:11/1' 0 1'11 /r11Jw mfdu do Cat/•
lrigiu.

I>m>ARD: Hd a l1i/101<'.fe tln r/1itlemia. f. rn11111


a gfiJ>r. EJ>iflc>mias atmrlrec>m.
(lw.:ESCO,lli11onro11fe)

FATOS DA HISTÓRIA POLÍTICA contcmporimea tornam imperativo


~:~~~~~:n~~j;º;!iá~~~e0 ~t:X!~~e'::nJrJ!t~~t~:ºc~~~~!º~i~~~:
sionismo nada mais é que recurso maquiavélko para utilizar
a doutrina de Marx e Engels como instrumenlo de i11emorização
intelectual e de consolidação, no poder, de minorias governa·
mentais. Atualmente, o revisionismo readquire seniido idôneo,
e legitima os que, redefinindo.o, discutem sem temor aos labéus
a validade das interpretações "ortodoxas" do marxismo. O
marxismo instilucionalizado é hoje obscurantismo, quando não
Calor de abastardamento e corrupção da vida intelectual em
todo o mundo, modalidade mental de rinocerite. Não pode,
portanto, continuar a ser tolerado e admitido no domínio da
cultura. Num momento da história cultural cm que preci-
samente as contribuições de Marx e Engels saíram da es[era
proscrita, nesse momento constitui exigência do próprio traba-
lho cultural dissociar o esfôrço de genuína produção ciemlfica
das querelas em tôrno do revisionismo e do anti·rc\•isionismo.
Essas querelas não são episódios da vida dcntifica, mas aspec-
tos da luta pelo poder em nosso tempo.
bElõESA bo llEVISIONISlW 129

Que é revisionismo ? Sob êste nome, os que se consideram


intérpretes ortodoxos e Ciéis de Marx e Engels englobam tôda
tentativa de emendar ou ajustar a doutrina dêsses pensado-
res aos fatos, que, no juízo dêles, importa em sua desnaturação
e distorção. Segundo o Dicionário Polllico soviético, o revi·
sionismo "é tendência no movimento da classe trabalhadora
que, em beneficio da burguesia, deseja infirmar, emascular,
lfestruir o marxismo por meio de revisão, isto é, pelo reexaml!,
distorção e negação de seus prirtcípios básicos". A ortodoxia
marxista é, para a União Soviética, questão de segurança. Ten1
pois razão de afirmar a revista soviética I\foskva (N.0 1, 1958):
"ou destruímos o revisionismo ou o revisionismo nos destruirá:
não h;i terceiro caminho". (1 ) Ordinàriamente, todo aquêle
que incorre nessa prática é acusado de um propósito antiprole-
tário, de intenção oportunista. O revisionista não é sô argüido
de um êrro de técnica de pen'iar, mas também e sobretudo ele
falta moral, de traição ao proletariado. Perante a comunidade
dos ortodoxos, o revisionista fica estigmatilado como um excluí-
do. O revisionismo tem uma história, na qual podem ser dis-
tinguidos três períodos.

Aparecimento do 1'evisionismo

No primeiro período, que transcorre emre a última ,1<..1...


cada do século passado até aproximadamente a Revolução Hol-
chevista, o revisionismo é considerado e julgado num clima
de discussão livre e aberta, no qual a nenhuma organização, a
nenhuma pessoa isolada é atribuída a qualidade de árbitro ou
de zelador oficial da pure-..:a do marxismo. Nessa época, emho·
ra o socialismo já constituisse lôrça política de significação
universal, consistia num movimento heterogêneo, cujas cor-
rentes de pensamento se encontravam em polêmica, sem que
nenhuma delas alcançasse hegemonia mundial. ~ cer:o que,
nessa época, gozava de imenso prestigio o Partido Social Demo-
crata alemão, entre outros motivos, porque de sua constituição
partidparam Marx e Engels, pela sua expressão numérica, e
pelo alto preparo intelectual de seus dirigentes, entre os quais,
o teórico Karl Kautsky. A despeito disso, a margem de tole-
r:"mcfa no movimento socialista era bastante ampla. t. signi·
130 MITO E \'l::RDADE DA Jt.l!'.VOl.UÇÃO B'R.ASILEIRA

ficativo que o Partido Soda] Democrata alemão, fundado no


ensejo do Congresso de Gota em 1875 resultou de uma con-
ciliação de correntes marxistas e lassallianas até aquela data
em luta. Enquanto Marx e Engels eram vivos pode-se di7.er
que os partidos socialistas jamais pretenderam ortodoxia mar-
xista. O pensamento de Marx e Engels estava constantemente
em atitude polémica no movimento socialista. Na Alemanha,
a social-democracia só adotou um programa de caráter marxista,
depois <le revogada a lei anti-socialista de Bismarck, isto é, na
oportunidade do Congresso de Erfurt em 1891. As discussões
que êsse programa suscitou estão na origem do revisionismo, E
não será exagêro afirmar que as condições em que passava a
atuar na Alemanha o Partido Social-Democrata, então nova-
mente na legalidade, tornavam inevitável o revisionismo, romo
saída para o dilema a que se re[ere Christian Gneuss. (!') Con-
sis1ia no foto de que aquela organização de massa, cuja teoria
original começara com uma rejeição radical da ordem existente
até agora, na prática era compelida a uma árdua luta diária
em busca do êxito político. O revisionismo, observa Christian
Gncuss, renete um abismo entre a teoria e a prática, abismo
que se tornou vislvel no fim da época heróica do socialismo
que, na Alemanha, surgiu quando se revogou a lei anti-socia-
lista, nos anos 90 do século passado. A Alemanha e outros paí-
ses do Ocidente europeu apresentavam uma situação de pros-
peridade econômica, e tinham assegurado aos trabalhadores
não apenas significativa melhoria de suas condições de vida,
como prerrogativas pollticas que os habilitavam a lutar com
sucesso, em prol de suas reivindicações. O revisionismo é pro·
duto destas circunstâncias.
O revisionismo foi iniciado por Eduard Bernstein, destaca.
da figura da social-demorrada alemã, amigo e exerutor testa-
mcntêlrio de Engels. Foi um ano após a morte dêste que Bern-
stein começou a publicar na revis1a dirigida por Kautsky, Neue
~eil, uma série de cinco artigos sob o título Problemes der So-
Úttlismus, nos quais apresentava as teses que tanto alarido ha-
veriam de causar. Em trabalhos posteriores, tornou-se ainda
mais nítida a intenção retificadora de Bernstein. Tais são
JloTaus.stzungen der Soziali.smus und die Aufgaben deT Sozial..
democratie (1899) e Wie ist wissenscluifllicheT Sozialismus mO-
gli<h (1910).
Não é a oportunidade para expor cm minúcias o pensa-
mento de Bernstein. Para os objetivos dêstc breve retrospecto,
m
basta assinalar que, em essência, preconizava mudança de
tática por parte da social-democracia. O Programa de Erfurt,
em que se baseava o Partido Social Democrata, pressupunha
o aumento do exército de oper.irio:; desempregados e o colapso
iminente do modo capitalista de produção, a braços com crises
que deveriam tornar-se cada vez mais agudas e devastadoras.
Nada disto, nos anos 90, tinha confirmação nos fatos. Bern-
stein, mediante abundante ilustração analítica de suas obser-
vações, concluiu que, ao contrário do que pensavam Marx e
Engels, o capitalismo, naquela década final do século, tinha
desenvolvido vários mecanismos cstabilizadore~. que adiavam o
seu colapso. Não se verificava a pauperização das massas, as
classes médias não se proletarizavam, e a prcvis.'io de crises
agudas não se afigurava realista. Por conseqüência, a social
democracia deveria consistir em assegurar e cle<;cnvolver a de-
mocracia polltica, através da instituição parlamentar, dos sin-
dicatos, e de medidas de organização da produção em benefício
direto das massas.
A reação contra Bernstein foi arregimentada por Alexan-
der Helphand, judeu russo de Odessa, mais conhecido pelo
pseudônimo de Parvus. Em nome da ortodoxia marxista, Par-
vus organizou campanha sistemática contra Bernsrein, na qual
vieram tomar parte Rosa Luxemburgo, Julian Marchlewski e
outros militantes. Os artigos de Pa1'Vus encontraram grande
eco entre os militantes da Europa oriental e os russos Plekha-
nov, Trocsky e Lênin. :Este último, da Sibéria, e~CTC\'eu a sua
mãe pedindo·lhe que enviasse cópias dos ariigos de Parvus. A
atitude dos social-democratas em face da querela foi moderada,
tendo Bebei admitido que Parvus ignorava as comliçõe;; da
Alemanha. De qualquer modo, o Partido Social Democrata,
reunido no Congresso ele Dresden, atlolou resolução condena-
tória do revisionismo, cujo parágrafo inicial reza o seguinte:(')
"O congresso condena enfiHicamente os esforços revisio-
nistas para mudar nossa tática, baseada na luta de da~ses.
que !em sido provada e coroada de êxi10, e em que pretendem
substiluir a tomada do poder político, mediante a derrocada
de nossos inimigos, por uma política de acomodação à ordem
existente. O resultado desta lática revisionista seria fater o
partido não ir além de reformas da sociedade burgue>a, em
vet de induzi-lo a trabalhar pela transformação mais r•ípi~!a
possível da aluai ordem burguesa numa sociedade socialista."
132 MITO F. vi:RDADE D,\ Rl·:\'01.t:çÃo llRASILEIRA

O revisionismo como heresia apareceu assim na história


do marxismo. Lênin e Stalin haveriam de, posteriormente, fa-
zer dêle instrumento de unificação ideológica dos partidos
comunistas.

Com:e#Jfão russa do revisionismo. Lhiin


No segundo período, que se inicia durante a Revolução
Bolchevista e termina em 1956, com o discurso de Krus[hev
sõbre o stalinismo, a atitude contra o revi.sionismo nesce em
intransigência e intolerância. O Partido Social Democrata ale-
mão era agremiação política legalmente reconhecida, que ali-
mentava a esperança de chegar ao pm.ler por proc·essos parla-
mentares, quando Bernstein iniciou suas criticas a Marx. Den-
tro do Partido, as posições não eram rigidas. Seus dirigentes
procuravam somar adeptos e assim não podiam senão profes-
sar um marxismo elástico. Bernstein mesmo não foi expulso
do Partido, mas apenas censurado, continuando a desempenhar
papéis importantes no seio da organização. E Bebei, embora
tenha apresentado a proposta oficial condenando as teses de
Bernstein, frisou que não importava em considerá-lo "mau ca-
marada" ou renegado. No período em exame, clesaparere a tole-
rância para com os revisionistas. Os militantes russos dão à
luta contra o revisionismo caráter de venladcira guerra santa.
É oportuno mencionar alguns ante(·cdcntes desta fase, a
[im de melhor compreender a razão do tono que lhe dão
os russos. No !im do século passado, nos países como Rússia e
Polônia, em que ainda dominava o tzarismo, os grupos marxis-
tas e socialistas existiam clandestinameme. A poliria os per-
seguia como conspiradores. Alguns dêsses militantes se reíugia-
ram no exterior. Nos anos 80 e 90, as universidades suíças abri·
gavam um circulo ele militantes refugiados, que estavam fadados
a exercer importante papel na hist(iria elo marxismo. Alcxmt-
der Helphand é um .dêsses. Em 1891, seduziclo pela fama do
Par1ido Social Democrata, se transfere para a Alemanha. Logo
vem juntar-se a êle seu amigo .Julian Marchewski, um dos íun-
dores do Partido Comunista Polonês, e Rosa Luxemburgo, a
quem Helph;,nd introduz no jornalismo. Helphand, mais co·
nhecido pelo pseudónimo de Parvus, é uma espédc de ideólogo
e aventureiro. Radical, como seus companheiros recém-d1ega·
dos à Alemanha, Helphand critica violentamente as teses de
DEFESA DO REVISIONISMO

Bernstein, que o acusa de uma doença a que chama de "cas-


tratofile social". Os artigos de Parvus despertam calorosos
aplausos de Plekhanov, Lênin, Trotsky. Parvus iníluencia espc-
cialmenlc Trotsky a quem transmite suas idéias sôhre os aspec-
tos técnicos da rc\'olução e a revolução permanente. Helphand
escreveu artigos para lskra, participou da Re\•olução Russa de
1905 e, com Trolsky, foi prêso e deportado para a Sibéria, Em
março de 1917, então naturalizado cidadão da Prússia, Par\'us
é um homem rico, e graças às suas estranhas relações, simullâ-
neamente com os social-democratas e o Minislério do Exterior
Alemão, teria ajudado a Lênin a viajar num trem blindado
para a Rússia, em abril de 1917.
Antes de 1917, Unin já tomara severa posição contra o
revisionismo. Em nome da revolução proletária, assume papel
de zelador fiel da ortodoxia do marxismo e não perde o ensejo
de, quando necessário, denunciar o que se lhe afigura serem
distorções do pensamento de Marx e Engels. Lênin (4) ressalta
duas faces no movimento revisionista: uma de caráter tático,
outra de caráter filosófico. No plano da t;\.tica revoluciomiria,
o revisionismo opõe à luta de classes a idéia da colaboração e
da hal'monia e admite a transição pacifica do capitalismo ao
socialismo. No plano filosófico, os adeptos desta rorrcnte in-
clinam.se para a aceitação de teses neokantianas e marhistas
(refere-se a Ernst Mach), umas e outras de inspiração idealis-
ta, enquanto posu1lam a negação da existência do mundo exte-
rior. Nesta concepção, teriam incidido os bcrnsteinianos, os
kaULskistas, na Alemanha; os "economistas" e menchevistas na
Rússia; os "ausu·o-marxistas", na Austria; os trabalhistas e
"labianos" na Inglaterra; e os socialistas de direita na França.
A causa do revisionismo, segundo Lênin, reside na melhoria
das condições de vida da classe operária em alguns países
europeus, principalmente Inglaterra e Alemanha, no último
quartel da centt'.lria passada, melhoria que determina a forma-
ção de uma "aristocracia operária", cuja existência confortá-
vel a distanciava dos sofrimentos e problemas da massa tra-
balhadora.
O advento do comunismo como regime politico, na Rússia,
a partir de 1917, compeliu parcela expressiva de socialistas em
todo o mundo a identificar o destino do socialismo com o de.~­
tino daquele país. O primeiro pais socialista da História, gra-
ças à aemplaridacle da façanha polltica de que resultava, lur.
nou-se o guardião da pureza doutrinária do marxismo. O tem·
MITO 1-: VERDADF. DA RE.VOI.uç.\o llR.,.!>ILEIRA.

po só veio solidificar a posição de hegemonia ideológica da


União Soviética, posição incontrastável desde que Stalin se
manteve no poder de 1924 a 195!. Stalin, cioso desta hegemo·
nia mundial, esmagou e combateu em lôda parte qualquer pre-
tensão de contestá-la e enquanto se manteve no poder jamais
foi tão carregada de sentido pejorativo a palavra revisionismo.
Em tal período o marxismo se tornou em larga escala uma
escolástica, assumindo feição de verdadeira heresia tôda e qual-
quer formulação doutrinária que discrepasse das diretrizes dog-
màticamente impostas pelos arautos do Partido Comunista
Russo, e principalmente por aquêle que, no dizer do sociólogo
polonês Kolakowslc.i, veio a realizar o papel de Santo Oficio na
interpretação do marxismo - ou seja, Stalin.

Revisão do revisionismo
Dois Catos, porém, marcam o surgimenlo de nova fase na
evolução do marxismo: o relatório secreto de Kruschev sôbre
os erros de Stalin, divulgado por ocasião do XX C.Ongresso do
Partido Comunista Russo, reunido de 14 a 25 de fevereiro de
1956, e a Revolução Húngara de outubro de 1956.
A luta contra o dogmalismo stalinista, no âmbito do pró-
prio comunismo internacional, já se processava muito antes
de 1956. Para ser fiel à história, desde 1918, logo após a Revo-
lução Comunista de 1917, ela surgira. Com efeito, um romu-
nista asiático, o mulçumano Mir Sayid Sultan Alioghly (em
russo, Sultan Galiev) previra nnquele ano os perigos da hege-
monia soviética para o socialismo em outras partes do mundo.
Por isso advogara a formação tle uma Internacional Colonial,
entidade destinada a impedir que se viesse a constituir na
Rússia um monopólio da interpretação do materialismo dialé-
tico e que garantisse condições para o ajustamento do marxismo
militante às necessidades dos povos mulçumanos. A tentativa
de Sultan Galiev (li) fracassou e êle mesmo Coi condenado em
1928 e executado em 1937.
Sultan Galiev é precursor de posições como Tito, Mao
Tse-Tung, Gomulka e Nagy. Hoje se conhece o alcance das
tensões que de há muito existiram entre êsses homens e o co-
mando stalinista, no setor político e ideológico do comunismo
mundial. Tito encaminhou a lugosl:ívia para um regime inde-
pendenlc tlo morlêlo so\'iélico. Mao Tse-Tung, conservando-se
135

oportunlsticamente no campo SO\'iético, de Cato segue, cm larga


escala, diretrizes originais e, nos dias presentes, declara-.~c em
conflito com a orientação de Kruschev. A ascensão de Gomul-
ka ao poder, em ou1ubro de 1956, assinalou o êxito de uma
rebeldia contra o stalinismo. Foi, no entanto, a Revolução Hún-
gara, também em outubro de 1956, que suscitou universal-
mente um movimento revisionista, mm o propósito não só de
denunciar as insuficiências doutrinárias do marxismo, tal como
o entende o Partido Comunista Soviético, ma~ também de
proceder, em caráter radical, a um reexamc do pensamento
de Marx.
O atual movimento revisionista, à diferença do de Cpm:a
an1erior, ao contrário de infamar ou estigmatizar os que dêle
participam, valoriza-os. Grosso modo, seus participantes o jnsti-
ficam como conjunto de iniciativas que objetivam, no plano
prático, desvencilhar o legitimo socialismo da forma histúrica
aberrante que assumiu na União Soviética e nas dmmadas
democracias populares vinculadas a êsse pais; e, no plano
teórico, reabrir a discussão do marxismo, livre de tôcl;i restri-
ção dogmática.

Correntes atuais do revisionismo


A numerosa literatura revisionista de nossos dia.s pode
ser classificada em cinco grandes itens, que mencionaremos a
seguir:
l) contribuições tendentes a esclarecer o problema dos
diversos caminhos para atingir-se o socialismo. lnduem-se nes·
te item os livros, escritos e estudos de vária natureza em que
se exprime e se fundamenta a reivindicação de nações da pe·
riferia soviética contra o dogma1ismo dos modelos polí1icos
estranhos às suas particularidades históricas. Cogitam -essas
COJltribuições freqüentemente da organização do socialismo
na Jugoslávia, China, Polônia e Hungria. Seria impossível
registrar com pormenor os documentos que ilustram êste aspec·
to do revisionismo atual, pois êle se concretiza em multidão
de artigos e trabalhos, desde os discursos e informes de Mao
Tse-Tung e outros comunistas chineses até obras como a de
Imre Nagy, A Trag,dia da HungTia (Edilôra Saga, Rio, 1959).
Vamos reproduzir um trecho extraído de um estudo de Nagy,
136 MITO E VERDADE DA REVOLL'ÇÃ.0 BRASILEIRA

"Algumas Questões Atuais Sôbre a Aplicação do Marxismo-


Leninismo", incluso no livro citado, e que focaliza tema tlpico
da corrente revisionista a que se refere o presente item. Es-
cre\'C Nagy:
"O monopólio stalinista sôbre o marxismo-leninismo foi
a origem de determinadas concepções nos comentários da dou-
trina marxista-leninista e na política dos partidos comunistas
e operários. Segundo estas concepções, as teses do sodalismo
científico só são aplicadas corretamente quando seguem os ca-
minhos, formas e métodos adotados na URSS. Os textos onde
Lênin explicava que o socialismo na União Soviética era uma
aplicação particular do marxismo-leninismo às condições par-
ticulares da URSS, foram deixados na sombra e esquecidos. Sem
dúvida, a existência, o desenvolvimento e o refôrço da União
Soviética constituem para o futuro do socialismo no mundo
inteiro um fator de alcance histórico, Esta é uma tese funda-
mental e inatacável do socialismo cientifico. Da mesma ma·
neira, não é possível a ninguém negar que o Partido C..:omu-
nista da URSS tem uma experiência de pioneiro no terreno
do marxismo-leninismo. A experiência do Partido Comunista
da União Soviética é, também, a mais rica, o que signirka que
êste Partido se encon1ra diante elas maiores tarefas do desen-
volvimento do marxismo-leninismo. Tudo isto, porém, não
justifica a opinião errada segundo a qual, abstraindo-se as par-
ticularidades sovié1icas, a aplicação do marxismo-leninismo à
situação da URSS pode estabelecer uma lei de \•alor universal.
Proclamar que tal lei é a única jus1a e obrigatória, mnferir-lhe
validez universal, isso provoca grandes dificuldades ao desen-
volvimento do socialismo no mundo inteiro.
"É inevitável que tôdas as nações cheguem ao sodalismo,
dizia Lênin, mas não chegarão de maneiras absolutamente
idênticas. Cada uma contribuirá com uma originalidade em
tal ou qual forma da democracia, cm tal ot1 qual variedade de
ditadura do proletariado, em tal ou qual ritmo de transforma-
ção socialista dos diferentes aspectos da vida soci:il."
Encontrar-se-.i ampla focalização dêsse tema nos seguintes
documentos: "La Révolte de la Hongrie", h1 Les Tcmps Mo-
demes (janeiro, 1957); "Le Socialisme Polonais", in Lcs Temps
Modems (fevereiro-março, 1957); .Josip Brm-Tito, O Cami·
nho Socialisla da Jugoslávia (Editôra Saga, Rio, 1959).
2) estudos sôbre a situação cio marxismo na União Sovié-
tica. Incluem-se neste item autores que se preocupam em ava·
liar a produção imelectual no mundo soviélico, indicando as
caracleristicas que ali adquiriu a doutrina de Marx e Engels.
É de notar-se que, ao se propor C'Omo objeto de investigação
o marxi$mO na Rlissia, j:í se admite implicitamente que se está
em face de uma distorção episódica da doutrina em aprêço.
É êsse episódio que se procura descre\·cr e explicar. Ordinària-
menle, a despeito das suas diversas orientações, os estudiosos
cm questão acentuam entre os prindpais caracteres do mar·
xismo na União Soviélka; a) sua subordinação às rn7.Ões de
Estado; b) seu dogmatismo e mecanicismo; e) seu csrnlastids-
mo; d) sua escassa originalidade. Entre os trabalhos que me-
lhor ilustram o presente capítulo, deslacam-se: Michel Colli-
net, Du Rolcl1evisme, Évoltdion et Variation$ du Marxisme-
I.éninisme (Paris, 1957); 1. M. Bochenski, E/ Materialismo
Dialftico (Madri, 1958); Gustav A. Wetter, Dialeclictil Mt1.
terialism (Londres, 1958); Marcusc, Marxism in Soviet Union
{Londres, 1958); e W. Z. I.aqueur, G. Lichteim, Tlie Souiet
C11ltural Scene, 1956-57 (Londres, 1958); Léopold Labedz (edi-
tor), Rcvisionism, Essays on tire History o/ Marxisl /dr.as (Lon-
dres, 1961). Nesta corrente se incluem também numerosas
revistas que se dedicam a estudos que constituem hoje o campo
da sovietologia e da Kremlinologia. São tipirns: 1.e Contrai
Socitll e Soviet Survcy.
3) depoimentos autobiogrMicos de significação teórica.
Nesse terreno, é particularmente nltido o que há ele inCdito
no nÔ\'o revisionismo. Até rcc:entemente, publicações como
E.rcolhi a Liberdade, de Kravchcnko, e O Zero e o Infinito, de
Kostler, por maior que fôsse a parecia de verdade que conti-
vessem, não conseguiriram vencer as reservas que lhes opu·
nham os meios socialistas. Podiam alcançar ampla aceitação
nos meios hostis ao socialismo, seja da direita ou mesmo da
esquerda, mas, fora daí, era sempre restrita a sua eficácia. Hoje,
entrctanlo, alguns documentos dessa ordem passaram a ter
considerável impotlância. Observe-se que o próprio Relatório
secreto de Kruschev tem muito de autobiográfico, e constitui
acontecimento deflagrador do revisionismo.
Por assim di7.er, graças às contribuições recentes de ex-mi-
litantes dos partidos comunistas se está formando um socia-
lismo libertá1·io, para usar expressão de Daniel Guérin, aberto
à discussão livre, não sujeito a comandos dogmáticos provenien-
tes da União Soviética. São representativos de tal corrente os
artigos de ex-comunistas, que foram publicados nos três nQ·
1!8 MITO E VERDADE DA REVOLUÇ".ÃO BRAS1LEJRA

meros da revista francesa La Nouvelle Ri/orme, em que ho-


mens como Ignazio Silone, Pierre Hervé, John Gates, Jean
Rous, Auguste Lecqueur, André Philip e outros, a partir da
experiência adquirida em situações polilico-ideológicas c!e que
se libertaram, procuram repensar as grandes teses do marxismo.
Nesta ordem de cogitações, gravitam os livros nos quais o ma-
terial autobiográfico apenas serve para subsidiar um es(ôrço
de teorização. Citemos dentre os mais representativos: O Deus
Nu, de Howard Fast (Saga, Rio, 1959); Autoo·ilique, de Edgar
Morin (Paris, 1959) e La Sommc et le Reste, de Henri Lefeb-
vre (Paris, 1959). Todos êsses autores são ex-militantes comu-
nistas aos quais, ao contrário do que sucedia em outra époC"a, o
labéu de "renegados" ou "traidores" não atinge, por falta de
um minimo de suporte subjetivo nas esferas socialistas e paras.
socialistas em tôda parte.
4) os estudos do marxismo cm nível técnico-sistemático.
Floresce hoje o que Maximilicn Rubel chamou com felicidade
de marxologia. Marxólogo é o connoisseur ele Marx, o profis·
sional de qualquer das Ciéncias Sociais ou o filósofo que não
apenas conhece profundamente a obra do revolucionário ale-
mão, como a interpreta de modo original. Assim como há uma
ciência de Dante, de Goethe, de Camões, de Shakespeare, de
Kant, há uma ciência de Marx. A interpretação de autores
complexos, como êsses, não é inequívoca. A cada perspectiva
assumida, as suas obras mostram uma nuança correspondente.
Marxólogo tanto pode ser um jesuíta como .Jean-Yves Calvez
(!-a Pensée de Karl Marx, Paris, 1956), um professor da Sorbon-
ne, como Georges Gurvitch (1.e Concepi de Classes Sociales
de Marx a nos ]ours, curso ditado na Sorbonne em 195!J-51),
como também um comunista, no caso de Henri Lefebvre (Pro-
blhnes Aclucls du Ma1'Xisme, Paris, 1958). Uma revista de
marxologia, Argumcnls, vinha sendo publicada em Paris cle;de
de7.embro de 1956, tendo encerrado suas atividades em fins de
1962.
Os marxólogos retiram à doutrina de Marx seu antigo signi-
ficado conspirativo e a tornam asmnro de investigação e de-
bate acadêmico. Já se propôs o adjetivo marxianos para aquê·
les filósofos, economistas, cientistas políticos, sociólogos, antro-
pólogos, que embora inlluenciados pelo pensamento de Marx,
mantêm-se em posição não-partidária, à distância ele qualquer
forma de atuação nos quadros de partidos comunistas parasso-
,·iéticos.
DEFESA no RE\'ISIONISMO 139

5) finalmente, o conjunto de sociólogos e filósofos para


os quais o pensamento de Marx é legado vivo do qual muito
boi que incorporar na cultura do século XX. No campo da
Sociologia, Georges Gurvitch de há muilo vem revalorizando
nuanças do pensamento de Marx, ordinàriamente postas à
margem. Em Ln Voration Actuelle de la Sorfologie (1950),
Gurvitrh considera Marx um "príncipe da Sociologia" e realça
a atualidade de sua teoria da realidade social romo superposi·
ção de camadas metodolOgicamente distincas, de sua noção de
totalidade e de suas contribuições ao embasamenco cientifico
daquela disciplina. No famoso ensaio L'Hipei·empirisme JJia-
léctique, publicado em 1953, Gurvitch formula uma concepção
radical da dialética, em confronto com a qual a dialética mar-
xista estaria viciada pelo dogmatismo e domesticada pela cren·
ça no desfecho socialista do processo histórico. tste ensaio
fl!z de Gurvitch, durante algum tempo, na imprensa parasso-
viética da França, alvo de uma campanha sem quartel. Em
obra recente, Dialéctique et Sociologie (1962). Gurvitch retoma
suas posições críticas no torante a Marx. Jean-Paul Sartre tnm-
bém se inclui nesta linha do re,,.isionismo contemporâneo. Ape-
sar de ter dado, em certo período, um apoio crítico ao Partido
Comunista Francês, nunca se deixou apanhar nas malhas do
marxismo-leninismo. Por ocasião da reação soviética à Rernlu-
ção Húngara, cm 1956, escreveu uma das mais contundentes de.
núncias das contradições do movimento comunista, imitulaclo
O Fantasma de Stalin. Em Marxismo e Revolução procurou
repelir o que chamou de "escolástica marxista", dis.~imulada no
"neomarxismo staliniano". Em sua úlcima obra Critique de ln
Raison Dialéctique, procurou tirar o marxismo da situação cm
que se encontra, de filosofia estagnada em busca de um "saber
antropológico", no qual "o existencialismo não terá mais ra7.ão
de ser". Incluiríamos ainda neste grupo autores romo Mcrlcau-
Ponty (1.es Aventin-es de Dialéctique, 1955), l.es7.ek Kolakowski,
Sidney Hook (Marx and 01e Mai·xists, 1955), Wright Mills (Tlu:
Marxists, 1962), Pierre Fougeyrolles (Le Marxisme en Qu1:.tlim1,
1959) e, de modo geral, os escritores solidários com os propó-
sitos da revista Arguments.

:Estes fatos mostram que vivemos numa época de dissolução


do marxismo, ou em que essa teoria passa a ser ingrediente da
140 MITO J:: \'i:RDADF: DA IU:\'ol.l:<_.:Ão URASILF.JRA

ciência social, e não a ciência social. Marx é episódio da for-


mação da ciência social, como Platão, Vico, Comte, Max Weber,
Pareto e outros. Esta posição em fac-e do marxismo é imlispen·
sável para que o problema da revolução, na época atual, seja
devidamente equacionado, como ainda, para que, em par-
ticular, no Hrasil, se possa constituir uma teoria de revolução
nacional. O marxismo ortodoxo, segundo os dmoncs sovié-
ticos, é hoje o maior obstáculo para a formação da teoria nacio-
nal da revolução, não só no Brasil, como em outros países. A
história do revisionismo mostra que a pretensão da ortodoxia
no campo do marxismo obedeceu a um imperativo tático, que
não tem mais validade em nossos dias. Hoje C tão estulto ser
antimarxista como pretender ser marxista ortodoxo.
Que é marxismo ortodoxo ? Tomemos a resposta de Gcorg
~~~:-vi~:I'co~~.1~~~~03~!~~fi~:~:éi;:~:i~~esm~':xi~°m°:,u~s~i~
Lukacs - refere-se exclusivamente ao método. Implica a con-
vicção científica de que, com o marxismo dialético, achou-se
o método _justo de pesquisa, de que êste método não pode ser
desenvolvido, aperfeiçoado e aprofundado, senão no sentido de
seus fundadores".(ª) O sectarismo expõe à tolice mesmo um
homem de excepcional preparo e fúrça intelectual, como o
filósofo húngaro. A definição é insustent;ível e suas debilidades
se mostram mesmo no próprio texto em <1ue Lukacs clesenvoke
seu pensamento. Observa Lukacs que Hegel "descobriu a sig-
nificação da realidade concreta", (i) mas "não foi rnpaz de che-
gar às fôrças verdadeiramente motoras da história porque, nn
epoca em que seu sistema nasceu, estas fdrras não eram sitfi-
cicnleme,1lc visíveis (o grifo é nosso); êlc foi assim compelido
a ver nos povos e na consciência dêles os portadores efeti\'OS do
desenvolvimento histórico".(") Seria inadmissível que o prin-
cípio de limites cessasse de ter vigência na época de Marx,
aliás, nascido quando ainda vivia Hegel. Embora admitindo
que na época de Marx se tenham tornado mriis visiveis "as
fôrças verdadeiramente motoras da his1ória", pode-se supor que
uma mente fôsse capaz de exprimi-las de uma vez por tôdas,
iium sistema conceptual, sistema que daí por diante nunra po-
deria ser emendado, aperfeiçoado ou aprofundado senão no
sentido do seu funda.dor? Responder afirmativamente equiva·
leria a dizer que o pensamento de Marx estaria a cavaleiro de
limitações históricas. Lukacs, ao que parece, perfilha êsse
absurdo: "no materialismo histc'irico - diz êlc - a l'azão "que
Hl

sempre existiu, mas nunca sob a forma racional", atingiu a


sua forma "racional" pela descoberta de seu verdadeiro subs-
trato". (1') Mas êste otimismo ingênuo encontra enorme esco-
lho nas próprias palavras do autor. Diz êle: "o ronhecimento
de si, subjetivo e objetivo, que tem o proletariado numa etapa
determinada de sua evolução é, ao mesmo tempo, o conhcci-
meOlo do nível atingido nesta época pela evolução social". ( 1º)
O meio historicismo de Lukacs, re,,.·clac.lo ne5sas observações, não
é um cochilo, não é acidental, reflete deficiência do próprio
Marx, que se tornará esrandalrn;11 cm alguns "marxistas". Por
exemplo, em Lênin, em cu jn teoria do conceito-reflexo da rea-
lidade, o germe do positi\-ismo, esrondido em Marx, frutifica
exuberantemente.
Não é de admirar que, para espíritos mais fracos e menos
treinados que I.ukacs, depois de :\larx, tudo o que se disser
de \'erdadeiro é marxista. A realidade é marxista, .disse um te<>-
rico cubano. O dito de Hegel teria no,,.·a versão: "tudo que é
real é marxista, tudo que é marxista é real". Ora, não é o
fato de ser marxista que habilita necessàriamente a quem quer
que seja a um conhecimento racional e objetivo. É a correção
de sua atitude diante do aspecto da realidade que se procura
conhecer. Essa atitude não foi Marx quem inventou, êsse mé·
todo não foi Ma1x quem formulou de maneira suficientemente
acabada, de tal modo que tôda emenda, aperfeiçoamento ou
aprofundamento que sofra não possa alterar o sentido que
Marx lhe conferiu. tste método transcende Marx e nenhum
pensador isolado o expôs definitivamente. Sua elaboração é
tarefa infinita, contínua, de que participa a comunidade d0$
pensadores pas.sados, presentes e fuluros. A razão tem história.
Mas história que não se detém. Uma história que só acaba-
ria com o gênero humano. Um método é um fato histórico e,
por isso mesmo, superâvel. É \'erdade que as contribuições vá-
lidas no domínio elo pensamento superam-se no sentido que
Hegel emprestava ao verbo auflrcben, em que superar ê, de
certa maneira, conservar. Neste sentido é superável o mancis-
mo, e está sendo superado. É neste sentido que Leszek Kola-
kowski afirma que "a noção de roanismo enquanto orientação à
parte" acabará por desaparecer definitivamente, à medida que
se aperfeiçoe o aparelho conceptual das ciências humanas, como
desapareceram o "newtonismo" em l''ísica, o "lineismo" em Bo·
tânica, o "harveyísmo" em Fisiologia, o "gaussismo" em Mate-
mâtica, o "platonismo" em Filosofia. "O processo espontâneo
\llTO F. \TIUl\llF. ll.\ Rl-'.\"ot.l'ÇÁO BRASii.EiRA

de desenvolvimento da ciência assimilará o conjunto da contri-


buição cientific:a durá,·el de Marx, limitando certamente o
domínio cm que certas aCirmações poderão ser aplicadas, tor-
nando muras mais rigorosas, eliminando outras enfim. A maior
vitória de um grande pensador ocorre, de resto, quando suas
descobertas cessam de definir uma orientação à parte do pen-
samento, para integrar-se na estrutura da vida cientifica e dela
tornar-se parte constitutiva, perdendo, por isso mesmo, tôda
existência separada." (IO) O marxismo, como todôli os ismos,
é um episódio da hislÓria cio saber.
Sartre aparentemente refutaria a possibilidade de supera-
ção do marxismo. No entanto, não só a proclama, mmo ao
contrário de Lukacs, não lhe reconhece acabamento enquanto
método. Escreve Sartre: "Que é que faz que não sejamos sim-
plesmente marxistas ? t. que consideramos as afirmações de
Engels e de Gar:mdy princípios diretores, indicações de tare-
fas, problemas e não verdades concretas; é que elas nos parecem
insuficientemente determinadas e, como tais, susceptiveis de
numerosas interpretações: em uma palavra, é que elas nos pa-
recem idéias reguladoras. O marxismo contempor.âneo, ao cem·
trário, as considera claras, precisas e unívocas; para êle, consti·
tuem já um sa/Jer. Pensamos, ao contrário, que resta tudo a
fazer: é preciso encontrar o método e constituir a ciência." ( 11 )
Só os que não passaram da primeira p:lgina de C1·itique de Ili
Raison Dialêctiquc atribuem a Sart1·e a insuperabilidade cio
marxismo. É c·crto que escreveu: "considero o marxismo a
filosofia insuperável de nosso tempo". Mas a frase está enchar-
cada de relativismo histórico, e logo Sartre esclarece, páginas
adiante, que tambêm foram insuperáveis, cm seus respectivos
"momentos", as filosofias de Descartes, Lockc, de Kant e Hegel,
cada uma, por sua vez, tornando-se "o humo de todo pensa-
mento particular e o horizonte ele tôda c:uhura''. Mas desde
que se concluiu o momento histórico de que elas eram expres·
são, foram superadas. Nenhum pensador atualizado com o sa·
ber em elaboração, no presente século, acolhe a idéia da insu-
perabilidade do marxismo. Ao contrário, o esfôrço de superá-
lo é a caractcristica de todo intelectual que vive a urgência
maior da preseme época. Mas isso não importa necessàriamente
em declarar-lhe guerra, em atitude inamistosa. É imposição do
desenvolvimento dialético do saber. A ciência não se detém em
nenhum sistema. Nessa perspectiva situa-se Wright Mills: " ..
hoje não hii nenhuma ciência social marxista ... Há apenas ciên·
J)F.FESA DO R.F.\'1510:'\'IS:o.IO 113

eia social; sem a obra de Marx e outros marxistas, ela não seria
o que é hoje: apenas mm a contribuição dêlc.s não seria apro-
ximadamenLe ião satisfatória quanto ela é. Ninguém que não
tenha assimilado idéias do marxismo pode ser adequado den-
tista soda!: ninguém que arredi1c que o marxismo contém a
última palavra não o é por sua vez." (1:!) Superar o marxismo
obedece a um imperali\'O de desmis1ifüação. Significa siluar-sc,
do ponto de vista geral do sahrr, romo produto contínuo de
labor coletivo. Não é <·omlenar o marxismo, mas incorpor;ir,
confundir no pau·imônio geral da dênria sua contribuição po·
sitiva, do mesmo modo que ai se incluíram as contribuições <le
outros pensadores como Saint-Simon, Comte, Max \Vcbcr.
Na história da cultura, todos os grandes pensadores têm
sido objeto ele renovados revisionismos. Até hoje, Sócrates é
revisto. Como Platão, Aristóteles e outros, Marx não foge it
regra. O revisionismo, com respeito a Marx, é hoje a 1arefa
heróirn de iodo intelectual rebelde à tentativa de submeter o
pensamento a critérios estranhos ao seu domínio específico.
Liberar Marx dos marxistas é seguir-lhe o exemplo que, em
vida, êle deu. "Le marxisme n'est pas à revisei-'' disse Sartre,
certa vez, em carta a Garaucly. E acrescentava: "1.e marxisme
est à faire." E tinha ralão, porque de fato considera o marxis-
mo como "quadro formal do pensamento filosófico'', (13 ) !\las
a utilização concrew dêsse "quadro formal" <1ue passa por com;-
tiluir o marxismo é aberração, que lem largo efeito nod\'O à
inteligência no mundo de nossos dias. Na mesmõl carta, Sartre
reconhece que o marxismo "deixou-se gangrenar pelo posi1i-
vismo". E que positivismo! O mais sórdido que a história
dos íiltimos tempos 1em conhcciclo, porque fundado na ma-
quiavélica tentativa de substituir a razão filosófica pela razão
partidária. Defesa do revisionismo, sim. Não do revisionismo
entendido oomo volta a um horizonte cn1tural anterior a M;1rx,
por exemplo, como volta a Kant ou a Hegel. Revisionismo CO·
mo exercício da crítica, independen1e de todo critério .de con-
veniência, que não seja o da objetividade e da verdade.
141 :\TITO •: \'t:RIJADt: D.\ kt'.\'OLl!ÇÁO BRASILF.IRA

NOTAS

(1) Vide Leopold l ..nEDZ (edllor), Rn>i1io11i1m, F.MOJJ cm lhe 1li11ory o/ Mar·
:ri1u ld"'. Londres, 1961, pjg. 18.
(2) Vide ChriHlan GsEu.1111, "ffow 11 all Bcgan: Eduard Dl'Tns1cin", in RINi1ioni1111.
(li) IDEM, plgs. SS-39. E111 R.evisimiislfl, vide lambém o capliulo redigido por
7.bynek ZDIAf<, Fwm lhe Comm11nisl M•111i/rJ/o '" lhe D11rl1mllion o/ "li",
págs.IOJ.104.
(4) Con1ultc a colel.tnea dc arilgos de Lbm.:, C1m1t11 el Riroüioni1mo. Mmcou,
1959.
(!í) Sóbre Sullan G.1.1.no;v, •·ide E1pri1. N.~ 4, 1957.
(6) Vide LUKM~. ffi•loi" ti Co11~itnn de Clauc. Paris, 1960, p.;ig. 18.
(7)1DJ:)l,ptg.S7.
(8) IDr.M, plg. 37.
(9) IDEM, pág. 38.
(10) IHN,plg.44.
(li) Vide jean-Paul SA111a11, Criliq1111 dr /11 llaison Di1i1'diq11e. P;iri•, 1960, pAg. SS.
(12) Vide Wright M1u .., The A111rxi1ts. Ncw York, 1962, p.;ig. 11.
(13) Vido: Jo:an-Paul SA11111io.. ··~!antiame 0:1 l'llilosophit1 do: l"F.xislo:nc:c"", in Rogcr
GA11.l.UPV, Pt1rsJl«li1oe d11 r11amm11. Pari8, 1000. p~gii. 110.11s.
CAPÍTUI.O VI

Homem-Organização
e Homem-Parentético

"/!. mll mar dr. rinacero11te.1. E did111n que


t'ra um 1mi111al .111/iltiria! f"nh,,/ P. preciso
riwdificar esi;a Ctll/Cl'/Ji,"íi"!R.lc-s dr.1tr11{ra111 lodos
01 bancos da ave11ida. Q.11c f1m:rr'
(lot<aco, m11ouro11/rJ

•· ... a fôrça df! 11111 fmrlida polilico ... r11-


fm111a •.• na of1l'diin<i11 dii;riplinatld com q11e a
dirrpio i11lelec111a{ n.ucgrHa a vilórid. Quem
decide ê n própria dirf'pio.''
(HnLu, Minhfl 1-11111)

'" . .a ce11traliwç40 intonditional e a dUci-


plin11 mais severa do prolctarfodo conslilHem
111110 dll.!I etmdiçür$ fund111nrnlais da vitória."
(Lb:i:!I", A Dorllfll lrrfttnlil 1/a "Etq1111rdiJm11"
no Co1111111i11110.)

"O socialiJ1110 .. ê "au1oconscili11tia" pOJitiva


liuma11n."
(Karl MA.X, .U111111scristaJ Ecomlmi'OJ e Filo-
sóficos.)

O FATO Dt: sF. Tl·'.R TORNADO a organh:ação, em nossos dias, objeto


da rellcxão sistenuitica, no campo da ciência social e da filoso-
fia, assinala nôvo momento na evolução do saber e confere ao
homem um patler sôbre si mesmo e sôbre as circunstâncias,
que não tem precedente na História. Assegura, ainda, pela pri-
meira vez, plena validade ao famoso dito: saber é poder. A
incorporação dês.ie avanço do conhecimento no horizonte da
consciência acrescenta â conduta humana qualidade que não
tinha: a atitude parentética. Com ela, o homem habilita-se a
ajustar-se ativameme à sociedade e ao universo. Sem ela, é
146 MlTO F. VERDADE O,\ Rl·TOl.UÇÃO BRASILEJRA

matéria bruta dos arnntecimentos, unidade indiferenciada ele


um rebanho, coisa cmre outras coisas. A atitude parentética,
na medida em que se democratize, fundará, por fim, o período
da hist.c'1ria consciente do homem. De humanização da natureza.
De naturalização cio homem.
t, portanto, a organização capitulo essencial da teoria re-
volucionária. Não há teoria revolucionária qualificada, sem
conhecimento sistemático da organização e seus efeitos. Dado,
porém, o estado incipiente do assunto, examiná-lo-emos em di-
ferentes aspectos. Como não poderia deixar de ser, as presen-
tes considerações são meramente exploratórias. Pretendem reu-
nir contribuições dispersas, num eslôrço preliminar, que per·
mita ulterior desdobramento. (1 ) A teoria da organização, como
protofenômeno da sociedade em geral e da vida humana, no
presente momento, está longe de ter atingido acabamento satis-
fatório. Apenas fragmentos dela podem ser discerníveis. Vemo-
los, por exemplo:
- no existencialismo em geral. Grosso modo, a filosofia
da existênc:ia inspira-se num protesto contra a rotina, contra o
dever como condicionamento histórico-social heteronõmiro. Suas
categorias de opção, autenticidade, liberdade, projeto, escolha,
implicam uma critica indireta dos efeitos da organização no
plano sedai e individual. Em Ka[ka e lonesco, é particular-
mente aguda a rebeldia contra o fato organizadonal.
- na sociologia do conhecimento e na extrapolação, ao
domínio do social e do humano, dos princípios e resultados da
cibernética. A essência da Sociologia, para o au1or dêste livro,
é o que chama de "redução sociológica", atitude me:ódica à
luz da qual se revelam à consciência os condicionamentos SO·
dais externos de todo fato social e humano. Nesta pcrspcrtiva,
adquire novas conotações o que Ferdinand Tiinnies denomi-
nava "vontade reflexiva". Mannheim chama de "pensamento
planmcado'", uma sorte de pensamento que procura transcen-
der o significado intrínseco e direto das ações e as vê como
parte de estruturas sociais. Wright Mills recorre à "imaginação
sociológica", como superior qualidade mental do individuo
alerta contra a robotização da vida interior. Norhert Wiener,
nivelando os autómatos com os sêres humanos, pretende redu-
zir a Sociologia a uma teoria das mensagens e, assim, ao con-
trário dos autores citados, parece indiferente ao problema ético
da organização. Num nível menos geral, isto é, da casuística e
da monogra[ia, é digno de nota o conhecido estudo The Orga-
HOMEM·ORGAiSIZAÇÃO 147

nizaiion Man (W. H. Whyte). De todos os modos, nestas con-


tribuições sociológicas se encontram os rudimenlos de nôvo
modo de existência humana, lúcida e apta a resistir à organiza·
ção. O elemento ronstitutivo por excelência dêsse modo de
existir é a atitude parentétirn.
- na sociologia política. Incluímos nesta rubrica a contri-
buição d:isska de Robcr1 Mirhels em Polilirnl Parties, no qual
a organização cons1imi reíerência básica no e~tmlo da ação po·
lítica. Mos1raremos adfantc que J\.(ichels erige o moclêlo bur-
guês de organi7.ação à categoria de moclêlo geral, e por isso
conforma-se com o diagnóstico pessimista do problema.
- na teoria da revolução prõpriamente. Com Lênin, a
organização passou a ter merecido lugar de destaque na teoria
da revolução, cabendo a Lukacs, posteriormente, focalizar as
implicações Hlosófkas e melodológicas das ohsern1çõcs do líder
soviético. Atualmente são numerosos os estudos situados neste
rampa.
- na critica das organizações partid:lrias episbdic:as, prin-
cipalmente dos partidos comunistas. Nos trabalhos de dHeren-
tes autores, classificados nesta rubrica, começam a delinear-se os
rudimentos de uma ciência social socialista, à luz da qual apa·
rece a solução para o problema organizacional.

Organização e patologia da normalidade

Organização é aspecto da vida i.ocial e imlivic!ual cuja


relevcincia só rct·entemente ,·cm sendo assinalada. No entanto,
dificilmente se compreende o essencial da vida cole·iva, raso
se descure do seu aspecto organizacional. A organização é o se-
~~~ed~ ~:;~d= ~~i:~?s"in~e1!i~~=s.º\;~~~!~:a:~sc:nJ~~a~
.subordinando-as mecânica e dogmàticamcnte, reduz e até anula
a liberdade. A descoberta e o estudo dos efeitos da organização
sôbrc a vida humana estão destinados a ter importânda idi!n-
tica à que tem o conhecimento sistematizado do inconsciente.
A compreensão do inconsciente caracteriza a conduta superior.
Do mesmo modo, a compreensão da organização libera a exis-
tência humana de grande parte de suas servidões. Talvez não
seja de todo incorreto afirmar que a filosofia da existência, de
modo genérico, inspira-se numa rebeldia contra a organização,
148 MITO F. VF.RDADE DA RF.VOl.tJÇÃO URASTLF.IRA

num propósito intransigente de denunciar o escândalo existen-


cial por excelência: o embru:ecimcnto a que esuí sujeito ordi-
nàriamente o ser humano, enquanto inconsciente do aspecto
organi:r.acional de sua existência. O homem é existente brmo,
enquanto padeça dessa inconsciência. t. o entendimento dessa
condição, antes oculta, que o promove a uma existência inte-
ligente. O existencialismo é rilosofia da resistência à organi-
zação. E neste sentido vai até ao niilismo, ao postulado de
que a vida humana é absurda.
À luz da filosofia da existência, a vida social é coml?dia de
engodas. Kafka, ao ver passar em direção a um rnmi' io um
grupo de operários, diuc, certa vez: "Esta gente está tão c6m-
cia de si mesma, tão segura de si mesma, e com tão bom humor !
Sencem-se ti.anos ti.a rua e se acreditam senhores do mundo ê~scs
operários. No entanto se enganam. Atrás dêles se antecipam
já os secretários, os burocratas, os políticos profissionais, todos
é55es sultões modernos, cujo acesso ao potler, êsscs opcnírios pre-
param." E acrescentou: "a revolução se e\'apora, só re~ta
então a \'asa de nova burocracia"". C:) São pala\•ras impregna-
das de de.sencanto e decepção, de resto, que não caracteriLam
apenas o universo específico ti.e Kafka, mas o ele todos os escri-
tores ditos existencialistas. Para todos êles, em geral, a existên-
cia otária, tósca e in(erior, é essencialmente a que se enrnntra
numa espécie ele conformismo inconsciente e complacente, apri-
sionada nos moldes impostos pela organização, cm suas mil e
uma formas. A literatura existencialista, principalmente o tea-
tro e o romance, contém os elementos ele uma sociologia da
organização, que urge incorporar ao saber cio século XX. De-
compondo a conduta humana e social, em suas minúcias mais
sutis, êsses autores têm demonstrado, de maneira analítica, o
que já se chamou ele patologia ela normaliclacle, (ª) a doença
cotidiana, lesiva ao ser humano, que não se revela como tal
à maioria, porque a organização social dissimula a sua noci\'i-
dade. Um defeito, des<le que socialmente pa<lroniza<lo, torna-
se virtude. O defeito só o é quando afeta uns poucos. Quando
afeta a maioria ou a todos, perde o caráter <le lc~ão, e se afi-
gura mesmo traço ele normalidade. Essa forma de escamote;ição
ou de trapaçaria só se desmascara quando se examina a ação
humana cio ponto de \•ista organizacional- lonesco feriu o
tema, recorrendo à caricatura. O drama Rinoceronte mal dis-
simula o pessimismo em face do cotidiano. Rinocerontes apa-
recem numa cid!ldç. Ao vê-los, os habitantes se tomam de
llOMEM-ORGA:-.ilZAÇÂU 119

espanlo. Mas o número de paquidermes cresce. t. uma doença,


a rinocerite, que grassa na população, lransformamlo as pessoas
no exótico animal. Paradoxalmenle, porém, as pessons come-
çam a se comprazer com a mmação, ao ponto de dc.,ej•í-la. B~1 -
renger e sua noiva, llaisy, no fim da peça, são os ó.nkos sêrcs
humanos. l\fas a môça não resiste :l tenmção e se torna um
membro do bando. O pano desce, em1uanto, Bérenger, solit•í-
rio, gritando, se dirige aos rinoreronLes: "Sou o t~ltimo ho-
mem, hei de sê-lo até o fim ! Não me rendo!"
Segundo depoimento de lonesco, a peça é impirada cm
sua experiência do fascismo. Traduz muitos sentimentos que
\•iveu em 1933, na Romêni;i, quando o movimento dos Guar-
das de Hrom:e ganhava illi adeptos, emre os quais, amigos seus.
Desde então lhe pare<·eram rinorerontes aquêlcs seus íntimos
que, contagiados pela opinião geral, se transformavam em fas-
cistas. Rinoccrnntc poderiil ter subtítulo de "o poder da orga-
nização". Ionesco descreveu o mal da organização. Mas não
indicou explicitamente o seu antidoto.

A atitude parentético

Pode afirmar-se que êsse antídoto ê a a1itude parenlêtica.


A organização é pressuposto oculto da existência hum;ma. t. o
Yeneno do cotidiano, cujos efeitos lesivos passam ordinàriamente
desapercebidos. Slnnente quando se examina a exiSLênda hu-
mana do ponto de vista sistemátirn da organi1.ação, é que se
pode perceber o quamo nela ê patolc'Jgico disfarçado em nor-
malidade. A atitude parentética transcende a organização, é
uma característica deslreza da \•ida culta, de existência superior,
ciosa de liberdade, que defende o ser humano rontra o embru-
tecimento, a rotinização mental, a alienação. O homem que,
como Hérenger, não se habitua mm os rinocerontes é um ho-
mem parentético.
A SOciologia, cujo objetivo é submeter a existência sorial
à reflexão, fundamenta-se na atitude parentética, constitutiva
de tu.do o que existe de mais representativo do saber no século
XX. Comprovam-no wntl"ibuições como as de Ferdinand Tiin-
nies, Karl Mannheim, Wright Mills e Norbert Wiener, que
focalizaremos a seguir.
150 VF.RDADE DA 1t•:\.-OLUÇÃO BRASILEIRA

Vontade orgânica e vontade refletida

A noção lle atitude parentética revaloriza TCinnies. O que


ordin:\riamcnte se tem destacado em sua obra Co1111midadc e
Sociedade (Germeinsc11aft und Gesellschaft, 1887), não faz jus-
tiça à profundidade do pensamento do sociólogo alemão. (4 ) O
livro é mais do que uma teoria geral da evolução histôrka entre
duas categorias-limite: da "comunidade", em que a organização
social se fundamenta no sentimento, para a "sociedade", onde
predomina a razão abstrata, o cálculo, como critério configura-
dor das relações humanas. O autor não consegue livrar-se de
certa nostalgia das fonnas comunitárias pretéritas, nota rom!in-
tica e saudosista que, tal\'ez, tenha prcjudic;1do a carreira do
conceito de "vontade reflexiva" (Kiirvillc, do \'erbo Kiircn,
que significa "escolher"). Mas ês.-.e personagem de Ccmumitfadc
e Sociedade merece, agora, ttillas as h1Les de nossa atenção. A
"vontade refletida" é rnmponente es1rutural d;i organiLação
"societária", como a "\•omade org!inica" o é da organização
"comunii:iria". Representam tipos diferentes de psicologia hu-
mana. A "vontade orgânica", presidida pelo prazer, pelo há-
bito e pela memória, tem sua m;ixima Função in1cgm1iva onde
a convivência humana pouco se dis1anciou do plano natural, da
afetividade direta entre os individuas. A "vontade rdletida"
é escolha, contêm o pensamento, cm escala decisiva, é presidida
pela reflexão, pela com•eniência, pelo conceito, aspectos que,
na "vontade orgânica", el'am incipientes, por fôrça de condi-
ções estruturais. Influenciado por Hobbes, Tünnies não tra·
tou o assunto em tôda sua importância e riqueza. Acentuou-lhe
os aspectos desfavoráveis. Viu a "vontade refletida" como qua-
lidade subjetiva de cálculo, vaidade, egoísmo, ambição, atri-
buto do "homem lôbo do homem" na sociedade competitiva e
aquisitiva. Compete à ciência social socialista recolocar a "von-
tade refletida" em outra pauta, torná-la característica da atitu-
de parentética, manifestação de moralidade superior, corres·
pontlente a uma fase da história universal, em que os homens
não vivem mais confinados em pequenos grupos ou povoações.
Na época da história universal, viver sob o signo da vontade
orgânica é viver de modo degradado. Tõnnies escre,·eu um
livro sóbr.e Marx (Mm·x: Lebcn und Lclire, 1921), cujos ensi·
namentos teve em grande estima. Isso torna mais estranhável
llOMEM·ORGANIZAÇÁO 151

o fato de não ter visto o qualllo a rtliludc 1·efletid(l significava


como atributo da conduta despert::i contra o poder da alienação,
difuso em todO.!i os detalhes da sociedade capitalista. Numa
fase da história em que, pela primeira l"ez, a alienação humana
passa a conscimir objeto do conhecimento e da ronsdênd:i, o
próprio homem tende, por assim dizer, a mudar de natureza.
O processo histórico promo\'e o homem da 1:ondição local para
a condição universal. O homem universal é um homem pare11-
tético, criatura portadora por excelência de "\'ontacle refie·
tida".

O pensamento planificado

Mannheim é um dos mc.,trcs 1·ontemportrneos da atitude


paremética. Dá-lhe êsse titulo o que esrreveu sôbre "as témicas
sociais", "a transformação do homem", '"os meios de influir
sôbre a conduta humana". Considera o "mais importante des-
cobrimento que já fêz a sociedade moderna", o dos podêres da
organização, ou seja, "a coordenação quase mecânica de fôrças
sociais que, antes, eram rigorO.!lamente deixadas de lado", jus·
tamente "com a manipulação conscienie dos influxos psiroló·
giros".(~) :Esse enunciado implica reconhecer nôvo momento
na evolução do saber sociolclgico. Hoje, a pedra de to-
que dêsse saber, <:orno fotor de desalienação, é a sua rararte-
ristica tle saber referido ao aspecto organizacional da \"ida co-
letiva. Constante preocupação de Mannheim foi indagar rumo
seria possível c:ondliar a inevitabilidade da planifirnção, na
sociedade de massas, com a liberdade humana. Não cnrnntrou
solução satisfatória p:1ra o problema, embora tenha contribuído
muito para elucidá-lo. Cunhou, por exemplo, a fecunda noção
de "pensamento planificado" que define um tipo de atitude
apta a liberar o individuo do "poder uniformizador Oo mêdo
infundido pela coação organizada". (6 ) O "pensamento plani-
ficado", que êle algumas vézes qualifica de "interdependente",
!i~~. t.)e e5eb~:~-'!:r~~n:\;~~~t!~~~: ~~!arºc':1~~i~~~~ ~!:
perceber conexões interdependentes na estrutura social". (8 )
"Nova capacidade" à qual chamamos anteriormente de "atitu-
de parentética".
152 :1.1rro t: Vl·'.KDADE DA RF.\'Ol.U\:Ão BRASIU:IRA

Mediante o "pensamento planificado", o indivíduo canse·


gue uma integração livre e criadora na coletividade. E a con-
vict;ão disco leva Mannheim a escrever cm tom triunfal essas
palavras capitais na ordem de idéias dêstc capítulo:
"Esta nova atilude con~iste no falo de lJUt', no processo an1e11
descrito, o individuo é capaz de perceber não apenas todOll os
fal<n apropriados e tõdas as maneiras apropriadas de con~idcrar
as coisas (em úllimo caso, tem que percebl'·la.s se llá que evitar
a destruição), como ainda chqp a ser capaz de ver sua posição
espacial no processo, e de compreender que seu pensamcnlo
eiit.fi modelado por sua pe»i<;ão. Agora surgem novas possibili-
dades de planificação que ames era diflcil conceber inclusive
tOOricamenlc. O individuo não só logra oonheccr·sc a si mesmo.
como pode aprender a compreender ns fat6rcs que dctenninam
sua conduta e pode, dêste modo, inclusive pre1emkr l"Cgulá-lus.
Em certo senlido, seu pensamento se fl•l mais <"llponl;ineo e ab51>-
lulo como nunca o foi ames: pois agora vê a possibilidade de
determinar-se a si mesmo. l'or cmtra parle, nunca pixle alcançar
nsa etapa por si mesmo, n1a~ lll'lmente parlicipando de uma ten-
d~ncia social nesta dirC\'ll.o. Sua compree11sao, todavia, con1in11a
sendo produto do processo histórico que se produz indepente·
n1e111e dêle. Mas mediante a compreensão de-;la delcnninaçllo,
o individuo, pela primeira \"Cl, se eleva acima do proccs50 social.
o qual, agora, mais do que nunca, fica sujeito ao ~eu próprio
poder. Ncsla elapa, a detenninaÇ'.lo do penu.mcnm medhuue as
circunsiâncias se ele\·a ao nlvel da comcií:ncia de ia\ modo que,
na medida cm <111e é fonte do í:rm, pode ser corrigido. Os ho·
mens traiam de transcender a estreiteza de seu próprio hori-
zonte, porque a vida mC!lma sc faz mais ampla. Tratam de
alllecipar os fatos íuturos. a fim de superar suas limila\"ÕCS me-
diante !iCUS próprios esforços ... l~ assim corrigem seu limitado
horizonte, porque de5Cjam liberar-se da di•c1·epâneia enLre o
fato e o pen.sarnento, ou entre a 1eoria e n prática. rnnto no indi·
1·id110 como no grupo."(11)

A imaginQfâo .sociol6gica
:tsse tipo de imaginação conferiu maturidade á Sociologia.
:~l!~~~: ªucs~mf;~~ ~;;rarop~f:~: a~e::~~I~~ ;:ln:.m_cl~I::~~
messa". A "promessa" da Sociologia é a de constituir-se num
saber liberador, consistente em possibilitar ao cidadão comum,
e não apenas aos especialistas, a qualidade mental que Mills
chama de "imaginação sociológica". Em meu livrn A lled11ção
Socioldgica (1958), publicado antes de The Soáologiral Imapi·
nalion (1959), de Mills, desenvolvi um pensamento muito afim
l·IO~U:,,HJR.CiA~IZAÇÂO 153

ao do sodólogo norte-americano. Embora tenha concentrado


meu iillerêsse no pmhlema da utilização ni:1dora do patrimô-
nio nil111ral e Lécnirn estrangeiro, rnnccbi a "redução sodoló-
gka" como nôvo modo ele pensar, <111e servia não sbmentc para
trnnspor rnnhedmcnlos de um c0111exto para outro como lam-
bém era o exame de <1ualquer fato soda!. "Redução socioló-
girn", "pensamento pl:mifirndo", "imaginação sodoMgirn",
":itimde parentétirn", "vontade rcftctida" são cxprcs.Wes dh'cr-
sas de uma sc'I rnrrcnte de idéias.
Sãn numerosas as implicações da "1·edu~iío" e da "imagi·
nação" sodolbgicas. Ressaltaremos aqui apenas ;1qnelas que
Mills das....ificou e que se referem ao assunto: <irganização 11er.ms
liberdade. O livro de l\fills é uma crítica indireta do totalila-
rismo dissimulado em democrac-ia formal, na modalidade como
se \"erifka nos Estados Unidos. Totalitarismo fortalecido pelos
efeitos uniformizadores da organização, que, nos Estados Uni-
dos, se falem sentir em todos os planos da existência humana.
J:í se escreveu que nesoe pais domina a organização. É nos
Estados Unidos que a robotização do ser humano se encontra
cm grau mais a\•ançado, pois, graças à organiLação, ali, muiio
poder se emprega com êxito, "sem a sanção da razão e da
consciênda dos que obedecem" (10 ) e não sc'J a produção cst;í
racionaliLada, como o consumo, o ócio, as informações. Só a
União So\'iética disputa, com os Estados Unidos, galharda-
mente, nesse terreno, pois os dois países cada vez mais se asse-
melham no tocance ;\ concentração dos meios diretos e indiretos
de conformar as condutas.
A "imaginação sociológica" foi concebida largamente como
remédio cultural para essa ;imeaça. Propiciando "compreender
nossas próprias realidades intimas em relação com as mais
amplas realidades sociais", o "signilicado social e histórico do
individuo na sociedade e o período em que tem sua qualidade
e seu ser", equivale, cm ó.ltima análise,;\ "mais fértil forma de
consciência de si mesmo". É ó.til registrar as várias maneiras
como o autor define explicitamente a "imaginação sociológica".
Tais são:
- "a imaginação sociológica permite captar a história e a
biografia e a relação entre ambas dentro da sociedade. Esta é
sua tarefa e sua promessa" (págs. 25-26).
- "essa imaginação é a capacidade de passar de uma pers-
pectiva para outra: da política à psicologia, do exame de uma
só família à es1imação comparativa dos pressupostos mundiais
154 Vl·'.RDAPJ-'. DA RI·'.VOl.UÇÂO BJl.ASH.EIRA

do mundo, da escola teológica ao estabelecimento militar, do


estudo da indústria do petróleo ao da poesia contcmporãnea.
É a capacidade de passar das transformações mais impessoais e
remotas :\s características mais Intimas do ser humano, e de
ver as relações entre ambas as coisas" (pág. 27).
- "dar-se conta da idéia de estrutura e usá.Ja com sen•<llC.t
é ser capaz ele descobrir vínculos entre uma grande diversidade
de meios; e ser capaz disso é possuir imaginação sociológica"
(pág. 30).
A aspiração de Mills é difundir a atitude parentética como
"qualidade meneai" ordinária e até popular, a fim de que se
logre, de modo efetivamente democrático, "orientar o presente
como história". Assim, Mills vincula freqiientemen1e em seu
livro a exposição da "imaginação sociológica" aos problemas
fundamentais da presente época: o po.der, a democracia, a li-
berdade. Agora - di7. êle - escão intimamente relacionadas
cultura e política (pág. 171). Sente·se o soriôlogo compelido
a elucidar o obscurantismo em suas feições modernas. Sob a
acumulação acordoante dos "artifícios tecnol6gicos'', vê uma
pouível "deradência ela mente humana como fato sorial", no
que diz r.espeilo à sua "qualidade e ao seu nfrel cultural". A
acumulação de artefatos ocultaria o abastardamento ment::tl do
homem contemporâneo. "Os c1ue usam êsses arcefatos não os
entendem - escreve Mills. Os que os inventam, não entendem
muitas outras coisas. Por isso não podemos, sem grande ambi-
güidade, usar a abundância tecnológica como índice de qua-
lidade humana e de progresso cultur::tl" (pág. 188). Nos Esta-
dos Unidos, por exemplo, do pomo de vista da racionalidade
a mente do homem médio está abaixo da qualidade do.s obje-
tos. Em outras palavras, não raro os objetos são mais inteli-
gentes do que os indivíduos que os utili7.am.
Não é espantoso assim afirmar que os Estados Unidos e a
União Soviética são hoje países inatuais, do ponto de vista
do avanço cultural em nossa época. São países atrasados, à luz
da consciência cuhural do nosso tempo, representada por uma
ainda pequena comunidade de inteleccuais. Wdght Mills \•iu
claramente os perigos da nova barbárie, que agora resulta do
poder que as minorias governantes usam, em escala concentrada,
nunca ocorrida no passado. A organização do poder, em nos·
sos dias, em particular onde se registra de modo mais cons·
ciente e em·olvente, parece servir ao propósito de impor ao ser
humano um padrão de existência diminuída, bloqueando as
llO:\IF.M·ORGANIZAC:,:Ã.11 155

suas virtualidades, em ve1. de encorajar sua livre efetivação.


f:ste panorama da humanidade le\'OU Mills a cliler: "A ins1ru.
ção universal pode conduzir à idiotia te<:nológka e ao provin·
cianismo nacionalista, e não à inteligência ilustrada e inde·
pendente. A distribuição em massa da cultura histbrica não
pode elevar o nível da sensibilidade cultural, senão ames tri·
vializá-la simplesmente, e rivali7.ar poderosamente rnm a opor·
tunidade para a inovação criadora. Um alto nível de rndo-
nalidadc burocrática e de tecnologia não 5ignifüa um alto
nível de inteligência individual e social. Do primeiro. não
pode inferir-se o segundo, porque a racionalidade social, tec-
nológica e burocrática não é meramente uma grande recapilu·
Jação da vontade e do talento do indivíduo para raciocinar.
A oportunidade mesma para adquirir essa vontade e êsse talento
parel·e antes, na realidade, diminuir com ela. Os dispositivos
sociais racionalmente organizados não são necessàriamente
meios ele aumentar a liberdade para o indivíduo e para a sacie·
clade. De fato, muitas vêzes, são meios de tirania e de mani·
pulação, meios de expropriar à razão sua oportunidade, a npa-
cidade mesma de atuar como homem livre" (pág. 181). Um
patrício de Mills moscrou, com abund:"mcia de ponnenores, a
aberrante indigência a que reduz o ser humano a desmedida
radonalização tecnológica. O "'homem.organização", descrito
por W. H. Whyte, de que se trarar:i mais :idfante, é criatura
precisamente destituída de im:iginação sociológica. Essa rn·
rência lhe é fatal.

O honunn e o 7'obô

Norbert Wiener, examinando a organização do particular


ponto de vista da cibernética, salienta outros ;ingulos da que~·
tão, de grande interêsse sociológico. Contribui para a com·
preensão do paradoxo do universo. Espomâneamente, o uni.
verso tende a ser dominado pela entropia, isto ê, tende a um
comportamento disparatado e caótico, tendência que só é ron·
tida onde viceja a organização. O livro de Wiener (Tlle H11.
man Use o/ Human Deings, Cybernetics aml Society, 1951)
pretende ser mera exposição objetiva da cibernética. Com um
pouco de imaginação, porém, se transforma em um tratado do
desamparo do homem, num mundo cuja org:inização êle não
156 :1.111'0 1-'. v~:Rt>Al>F. 1>.\ Rn·o1.11çXo BRASIU'.IRA

compreende nem domina. E indiretamente legitima a C"Onvic-


ção de que, sem a atitude parentética, não se conjura aquêle
desamparo. A cibernética se fundamenta nesta rnnstatação:
"à medida que a entropia aumenta, o universo e todos os sis·
temas fechados no universo tendem naturalmemc a deteriorar
e a perder sua especificidade, a mudar do estado menos pro·
vável ao mais provável, de um estado de organização e dife-
renciação, no qual existem distinções e formas, para um escada
ele caos e indistintividade". Diz Wiener: "No universo de Gibbs,
a ordem universal é menos provável, o caos o mais prov:ivel.
Mas enquanto o universo como um todo, se é <·eno que existe
um universo como um todo, tende a desagregar.se, exis1em en-
claves locais cuja direção parece oposta à do universo em geral,
e nos quais se registra uma tendência limitada e temporária
para crescer a organização. A vicia surge nesses enclaves." ( 11 )
í.ste é o ponto de partida da cibernética. Naqueles térmos se
toma pela raiz a questão da organização, e se e\'idcnria o fun-
damento niillstico da cibernética e, por via de deduç<>es, do
poder mesmo.
A luz daquele ponto de partida, a vida é preliminarmente
fenômeno de organização, resistência local à tendência espon-
t;\nea do universo à desagregação, à entropia. Inclusive a vida
social. "A máquina como o organismo vivo - diz \Viener -
é um dispositivo que, local e temporàriamcmc, pal'CCc resistir
à tendência geral para o aumento ela entropia. Por sua capa·
cidade de tomar decisões, pode produzir em tôrno dela uma
zona local de organização, num mundo cuja tendência é desa.
gregar-se." (12 ) A vitória da organização no universo não tem
resultado de deliberações humanas. Em nossa 'época, po.rém, a
consciência do fator organização no cosmos natural e social
é dimensão inédita do ser humano, que lhe dã um poder sem
precedente. Os circulas que utilizam hoje a organização e
seus efeitos cósmicos, sociais e humanos passaram a ter a pos·
sibilidade de exercer um comrt>le ilimitado elos acontecimen·
tos. A maioria da humanidade cst;i excluída do conhedmentÕ
dêsses assuntos, e daqui por diante se tornar:i crescente a pe-
riculosidade dessa ignor:lncia. Eis por que o equilíbrio inte·
rior e a integridade moral do homem do século XX exigem o
domínio da atitude parentética. A organização tem inevitàvel·
mente duas faces. Uma boa, outra má. Sem ela, a vida é
impossível; com ela a vida se desnatura. E o paradoxo a que
nos referíamos. Se um ideal ele justiça sti nmscgue encarnar-se
llOlfUl-()RCA:"l:l7.AC,,:Âo 157

histàricamente mediante correspondente organização institu-


cional, uma vez implantada, tôda organização institucional
tende a ser conduzida de modo privilegiado, cm benefido dos
que a empolgam. Mas a inorganicidac:le nunrn é saída para
as crises no plano social. Só a organiza<:ão corrige os malefJ-
cios de uma organilaç~ío ilcgitima ou c·aduca. O homem está
rnndenado à organização.
Com cícito, seus ideais não têm ampla eficácia, pelo sim-
ples valor da verdade intrínseca de que episbdicamente se
revistam. Não ingressam na vigência social, sem organi:r.ação.
Assim, a luta contra uma organização mistificada não pode
ser a mera critica e denúncia de seus aspectos negativos, mas
a sua substituição por outra organi:r.ação, adequada aos novos
critérios válidos. Mas por que os ideais desamparados de orga-
nização têm restrita eficácia? A cibernétka pode ser invocada
para responder á pergunta.
A cibernética tem um cruel pre~suposto. Para ela, o ho-
mem não se distingue essencialmente do autômato. É um
rnbü. A sociedade - di7. \Viener - pode ser compreendida me-
diante o estudo das mensagens. Donde se conclui que a ciber-
nétira aspira a ser uma sociologia, teoria do contrôle em geral.
\Viener confirma: "Quando eu dou uma ordem a uma mcíqui-
na, a situação não é essencialmente diferente da que surge quan·
do dou uma ordem a uma pessoa. Em outra, palavras, até onde
minha experiência atinge, sou consciente da ordem exposta e
do sinal de adesão que se lhe associa. Para mim, pessoal-
mente, o foto de que o sinal, cm seus cst:igios imediato.~. surge
atra\•Cs ele uma miíquina, :intes que através de uma pessoa, é
irrelevante e, em nenhum caso, modifica grandemente minha
relação com o sinal. Portanto, a teoria do rnntrt>le cm "engi-
neering", seja humano, seja animal, ou mecânico, ti um capitulo
da teoria das mensagens" (13 ) (o grifo é nosso). Advirta-se
que 'Viener considera as próprias mensagens como formas de
modelagem e organização. ( 1 ~) As instituições sociais e, nota-
damente, os partidos de massa, como o nazista, n fascista (ita-
liano) e os comunistas de íeição leninista e staliniana funcio-
nam como se seus pressupostos fôssem os formulado§ por Wie-
ncr, a respeito dos amômatos.
Depois de afirmar que o "(uncionamento fisico do indiví-
duo vivo e a operação de algumas das novas máquinas de co-
municação são precisamente paralelas, em suas tentativas de
controlar a entropia", mediante as mensagens, '.Yiener escre·
158 \TJl]),\llE ll \ Rl'\'01.l'Ç;,\o l\RA.~ll.F.IRA

vc: "E.ste comportamento complexo é ignorado pelo homem


médio e. cm parlit ular, não exerce o papel que pode exercer
cm nossa habitual amllise ela sociedade; pois do mesmo modo
que as respostas foicas e individuais podem ser olhadas dêste
ponto de vista, assim o podem as respostas originais da socie-
dade. Não quero dizer que o sociólogo ~eja inconsciente da
existência e da complexa natureza das comunicações na sacie·
<lade, mas até recentemente êle tendeu a descurar da medida
em que elas são cimento que liga duas partes." ('r.) SOmenie
à luz ele uma sociologia eminentemente redutora, a cibernética
se torna um conhecimento liberador.

A normalidade patológica

As considerações de Wiener são ;i\armantes, a despeito da


tranqüilidade com que as emite. Impossível negar que são lar-
gamente corretas. Pode.se até aduzir que o contrôle social, que
assegura a est;ibiliclade nas relações sociais e um mínimo de
condutas uniíormes, se regislra cm tôdas as ço]ctividades, rnn·
firmando a teoria das mensagens. Gabriel Tarde muito ante~
de \Viener, ao estudar o cont<lgio so<"ial, a difusão das inova-
ções, tinha já formulado uma teoria da imitação que, em
alguns aspectos, é precunora da teoria das mensagens. Tarde
enunciou as "leis lla imitação .. , parecendo-lhe inadmissível uma
~odedade em que elas deixassem de ter vigência. Para êle, o
homem não pode anular essas leis. Teria sido a compreensão
dessa impotência que levou Ionesco a pintar, em Rinurcmnte,
a vicia social como um pesadelo, um beco sem saída para a
libenlade.
Sem aderir própriamente ao psicologismo ele Tarde, é
licito aíirmar que não é a persistência das leis da imitação ou
a valide;. da teoria das mensagens que condena o homem neces-
súriamente à patologia da normalidade. É o valor dominante
na p.>icologia rnletiva e a qualidade da estrutura 11;lobal que
tornam nefasta a vigência das leis da imitação. Essas leis não
são intrlru.ecamente boas, nem más. Há rotinas negativas, de-
generativas. Há rotinas positivas e criadoras. H;i normalida-
des negativas, palológicas. Há normalidades positivas, saudá-
veis. Quando, cm determinada sociedade, não se substitui por
llOMEM-OllCA!'.llZA'i,:ÁO 159

outra superior, uma normalidade que perdeu positividade, sur-


ge o momento liberticida, que lonesco dramatiza, sem lhe
ofererer solução, por fôrça de seu niilismo e de seu esteticismo
ultra-individualista.
t num momento romo êsse em que se encontra hoje a
sociedade norte-americana. O "homem-organização", que ali
encontrou William H. Whyte, .Jr., não ê fortuito, mas sintoma
grave de uma sociedade que, em seu conjunto, deve ser consi-
derada um paciente enfêrmo. O "homem-organização" é um
tipo de homem para o qual a sociedade, segundo o modêlo ca-
pitalista vigente hoje nos Estados Unidos, parece-lhe final ou
definitivo. Para êle, esta sociedade em conjunto não está em
causa. tle a idolatriza. A sociedade norte-americana, como de
resto tôda sociedade enfêrma, logrou converter "as pressões
contra o indivíduo" em "pressões moralmente legitimas". E
a ideologia de sua personalidade básica pode ser re.~umida nas
seguintes palavras de Whyte: "O homem existe ramo unidade
da sociedade. Por si mesmo, está isolado, carece de sentido. Sà-
mente quando colabora com outros se converte em algo valioso,
porque, ao sublimar-se no grupo, ajuda a produzir um todo
que é maior que a soma das partes. Não deveria existir, pois,
conflito algum entre o homem e a sociedade. O que concebe-
mos como conflitos são mal-entendidos, interrupções da comu-
nicação. Aplicando os métodos da ciência :1s relações humanas,
podemos eliminar êsses obstáculos ao consenso geral e criar
um equilíbrio no qual as necessidades da sociedade e as do
individuo são uma e mesma coisa." (1 6 ) Whyte baseou suas
conclusões em pormenorizada pesquisa, o que dá surpreendente
fôrça às suas generalizações. Embora advirta que o "homem-
organização" não designa a categoria dos trabalhadores e empre·
gados de escritório, salienta que a "mente e a alma das grandes
instituições" nos Estmlos Unidos estão moldadas pela psicologia
dêsse tipo humano dominante, cujos "valôres estabelecem o
temperamento norte-americano". O retrato dos Estados Unidos,

~~~~~ ~~~tr~~Jjt:it! ~ ~~a~~ad~~c:~~~1~a~~«N)e ào"~~~!:


tivização desumanizada", (18) à Organização, que ali toma o
lugar não só da própria moral como das faculdades humanas.( 19)
Nas páginas finais do livro, Whyte formula a pergunta: que é
a moralidade ? Mas não lhe dá resposta. Aprisionado, êle mes-
mo, na conccpção burguesa de sociedade, termina o seu livro
com acusações vagas, sem saber o que fazer com os materiais
160 MITO JI. VF.RDADF. DA Rlo'.VOl.l'(_,:ÃO BRASii.EIRA

clínicos que reuniu: "!?. fácil lutar contra a tirania manifesta;


não o é lutar contra a benevolência, e poucas coisas têm sido
melhor calculadas para roubar ao individuo suas defesas cio
que a idéia de que seus interêsses e os da sodcdadc podem ser
inteiramente compatlveis. A boa sociedade é a única em <1ue
êles são compatíveis, em sua maior parte, mas nunca o podem
ser inteiramente, e aquêle que permite que a organização seja
o juiz, em última análise, se sacrificar:\.. Como a hoa sorietlade,
a boa organização encoraja a expressão individual e muitas
assim têm feito. Mas sempre resta algum conflito entre o indi-
víduo e a Organização. A Organização deve ser o :írbitro jl A
Organização valerá por seus próprios imerêsscs, mas rnnside-
rará os do indivíduo, sôme11te do modo como a Otganizaçiio os
interprete." (20 ) O "homem-organização" é modalidade qualita·
tiva da sociedade norte-americana.

A lei de brome da organização

A atenção que o tema em pauta vem recentemente me-


recendo no domínio da sociologia geral j;í desde 1915 se fizera
no:ar no campo específico da sociologia política. Naquela data
foi publicada a obra de Robert Michels, Partidos Polítiros, que
antecipou de muito gênero de estudos que só apôs o surgimento,
em diversos países, de partidos lcninistas, se tornaram freqüen-
tcs. Pai·tido.s Políticos é trabalho de um "scholar", texto acadê-
mico enquanto o autor não é um militante, ideólogo, mas espe-
cialista preocupado cm descrever a ação partidária, assinalando
o que ela apresenta de constante, regular, rec-orrente, sem dis-
cutir o seu conteúdo intrínseco. Embora Michels se valha de
episódios e fatos notadamente dos partidos sodali.stas europeus,
pretende que os seus enunciados tenham sentido genérico. Pre-
tende ter fcilo análise cientifica da nacureza do partido como
instituição, fato social, que, independentemente de lugar, de
época e de programa, se desenvolve de maneira idêntica. Sa-
lientaremos, a seguir, três das mais importantes teses de Mi-
chels.
A primeira refere-se naturalmente :l compulsoriedade da
organização, a que não pode fugir nenhuma eficaz atuação po-
litica. O partido, qualquer que seja, é um querer coletivo e,
rnmo tal. não toma forma social, senão mediante a organização.
HO'.\f)'.:\l·ORGAJl:IZAÇÃO Hil

:Este é verdadeiro principio viLal, condição indispensável da


luta política, o que decorre não sbmente da necessidade de
economizar energia, como de possibilitar minimo de unidade
de ação, no interêsse de pe\soas numerosas. ,\ organização tem
atributos próprios, que as pessoas isolal!as não possuem. Per·
mite a formaçjo de um fundo financdro, institucionaliza a
liderança, dá car:itcr sistemático :1 sua ação, supre a impossi-
bilidade da ação direta das m<L~sas. Em outr.1s palavras, enlre·
gues a si mesmas as massas são impmentes, incapazes de tomar
resoluções, e de tornar efeliva a ftil'ça politka que representam.
Para Michels, a rompulsoriedade da organização partidií-
ria, com o seu rnrtejo de wnveniências e im:onvcniêndas, não
é episódica. E a ral.ão disto é n incompetênria cs~endal, rons-
titutiva, das massas. t esta ou11·11 tese a ser destacada. Michels
inclina-se, ao que parece, para a adoção de um ponto de vista
aristocn\tico, muito próximo da doutrina de Vilfrcdo Pareto,
no tocante às relações entre elile e massa. Refere-se a uma "pa-
tologia da multidão", como Cato incontesl:ivel. São precisamente
as qualiricaçõcs subjetivas primárias das massas que justificam
o domínio dos lideres. Sem evasivas, J\.Iichels expressa o seu
ponto de vista aristocrático: "A imaturidade objeti\•a das massas
não é lcnômeno meramente transitório, que desaparecení com
o progresso da democratização no dia st·guiitle no socialümo.
Ao contrário, resulta dn efetiva natureza da massa como mas-
sa, pois esta, mesmo quando organizada, sofre de incurável
incompetência para a solução dos diversos problemas - pois
a massa per se é amorfa e por i!ISo precisa de divisão de tra·
balho, especialização e d1efia. "A e.'lpécie humana quer ser
governada; ela o .'lel':i. Tenho vergonha de minha espécie",
escre\'eU Proudhon, de sua prisão, em 1850. "O homem como
indivíduo é por nature1.a predestinado a ser g11i;1do e a ser
guiado cada vez mais na proporção em 'lue a.~ funções da vida
e
dividem-se e subdividem-se." 1) Veremos, mais adiante, como
na prática traços désse al"i~IOl"l'atismo persistrm no ptiiprio mo·
vimenLo socialista.
Focalizaremos, agora, em ten:eiro lugar, aspecto mais ori·
ginal e mais comemado de Partidos Po/ilims. Diz respeito à
tese segundo a qual, a organização, uma \'C't. constituida, torna.
se um fim em 5j mesmo, esfera de relações dotada de lógica
própria. A organização é requi~ito essencial para que imUvi·
duos dispersos passem a agir, de modo consistente. Representa
t' tl:i corpo ao querrl' dos indivíduos, que, de omra forma, agi·
162 MITO F. VERDADE DA RF.VOl.llÇÂO BRASILF.IRA

riam fragmentária e descoordenadamente, com escassos resul-


tados. Tende, porém, a libertar-se do contrôle dos que a com-
põem, notadamente quanto maiores sejam as suas dimensões,
e até a sujeitá-los aos seus interêsses fa7.enclo surgir, em seu seio,
uma burocracia que se substitui aos que, formalmente, a orga-
nização representa. A burocracia, em seu sentido pejorativo
de aparelho com as conotações autoritárias, não é prôpriamente
carncterlstica da má organização, mas ~qüela inevitável ele
tôda organização que, seja qual fôr a sua natureza, tende ne-
cessàriamente para a oligarquia na proporção direta de seu
tamanho. A organização molda à sua imagem a psimlogia dos
que a servem, impõe-lhe uma personalidade básica, cuja tipo-
logia Robert K. Merton procurou descre\'er em fame»o estu-
do. (2 2 ) :\.richels afirma a impossibilidade definitiva de um
govêrno de massas e considera vã a pretensão de anular os
aspectos aberrantes da organização. O "exerdcio da vontade
geral", como Rousseau a imaginava, é imposslvel. Monopoli-
zando a competência e o poder, a organização torna fictício o
princípio da delegação. E lembra, em apoio de seu modo de
ver, palanas de Victor Considérant: "Si lc pcuple délCgue sa
SOU\'eraineté, il l'abdique. I.e peuple ne se gouverne plus
lui-même, on le gouverne ... Pcuple, délêgue clone ta souve-
raineté 1 Cela fait, je te garantis, à ta souveraineté le sort in-
verse de celui ele Saturne: ta souveraineté sera devorée par la
Délégation, ta filie". (23 ) Vê Michels, nas massas, profunda
necessidade de "adorar divindades temporais", venerar cega-
meme os seus lideres como encarnação de seus ideais. Combi-
nado com essa espécie de culto, o determinismo especifico do
exercício do poder transforma os lideres em autocratas ou tira-
nos. Em todo partido - diz Michels - sobretudo num par1ido
combativo, democracia não é para o consumo doméstico, mas,
antes, artigo feito para exportar. O autor não se refere, em
tais considerações, a um partitlo particular. Pretende estar c.les-
c:revemlo a natureza cientifica de todo partido. Também, para
êle, ao poder corresponde modalidade própria ele psicologia,
que transcende os atributos singulares e peMoais, dos líderes e
governantes. A organização político-partidária tem sua psi-
cologia própria. Ao ingressar nela, na sua camada burocrá-
tica dirigente, sobremdo, o individuo adquire o caráter da
organização, despoja-se de seus atributos personalógicos antigos.
Descrevendo essa mutação, Michels cita Alphonse Daudet:
"Bicn vitr. s'i1 s'ngit de l'affre11.se pf>1itiq11c, nos qualités tour-
HOMEM·ORGA:OOIZA~:Ão 163

neni au pire: l'cntl1011siusmc deiiicnt hypoCl'isic; l'cfoqucncc,


faconde ci boniment; Ir. sccpticisme lêger, escroquetie; l'amo11r
::ri:~i1i~;, ~;;~';;~J;:r~;,.p1;~r~:1 :~c f~:1td;~c~:~~;, 1afi;;~s!,'"~~;p!~
linodie". (2t) E perseguindo a sua linha de radodnio, eis <1uc,
em 1915, l\Hchels pinlava anledpadamcntc o retrato do sla-
linismo, hoje ainda sobre\'ivendo largamente como marxismo-
leninismo: "O buro<:r:1ta identifkn-se completamente rnm a
organização, confundindo seus próprios intcrêsse~ com os dela.
Todo criticismo objetivo do partido é tomado turno afronta
pessoal. Isso é a causa da óbvia incapacidade de todos os
lideres partidários para tomar uma justa e serena atitude em
face do criticismo hostil. O líder se declara pessoalmente oíen·
dido fazendo isso parcialmente de boa-ré, a rim de que po.,sa
apresentar-se como objeto inocenle de ataque injustificável, e
despertar na mente das massas em relação aos seus oponentes
teóricos aquela antipatia que é sempre dedicada àqueles cujas
ações são ditadas pelo rancor pessoal. Se, por outro lado, o
líder é atacado pessoalmente, seu primeiro cuidado é fazer pa·
recer que o ataque t: dirigido rontra o partido como t.tm
todo". (2:1) Stalin, seus discípulos e herdeiros marxista-Jeninis-
tas são inconscientemente exímios executores do tl'atado de
Michels.
Depois da longa exposição do que afl"edita serem suas
"convicções científicas", Robert ).ficheis sintetiza o sentido ge-
ral de sua obra na lei de /Jronzr. tia oligflrquin, que lhe parece
aíigurar-se "a fundamental lei sociológica dos partidos politi·
cos". r-º> Essa lei é assim formulada: "!! a organização que
produz o domínio das elites sôbre os eleitores, dos mamfat;írios
sôbre os mandantes, dos delegados sôbre os delegantes. Quem
diz organização, diz oligarquia." Indagar se es.~a lei é enuncia-
do científico ou ideológico é questão de máxima seriedade que
não pode permanecer sem esclarecimento.

Organizm;ão, problema
de teoria 1'evolucionária

Nos diàs atuais, a\'ulta a importând;a do ponto de vista


de Lênin e dos adeptos do bolchevismo no toc;mte ;\ organiza-
ção. t precisamente nas obras de Lênin que a organização se
164 MITO J-: Vt:RD\ill' ll.\ Rt\'Cll.l'~:ÃO UR.\SU.t:JRA

torna objeto de reflexão sistemática, romo quc~ião teórica, e


não simples aspecto irrelevante da ação política. Num dado
momento da evolução da social-c:lemon:ffia russ:1, o líder bol-
chevisLa tral a organização para o centro dos debates. Em
190.!I, vence a oposição dos mcnchevistas dentro do Parliclo, e
nêle introduz a prática da disciplina Cérr~a e dn rham:ulo "c·cn-
tr.ilismo democrático". Não basta para ser membro do Par-
tido, a adesão à ideologia. t. necessário, para tanto, partidpar
ativamente ela organiLação e obedecer às suas diretivas. O Par-
tido é uma organização superior do operariado. "Na luta pelo
poder, o proletariado não 1em outra arma, senão a organi1.ação'',
diz Unin. Concebe o P;irtido como minoria dos mais sclelos,
mais conscientes, mais decididos, abnegados e :ivançaclos que,
em conjunto, constituem parcela da classe obreira, inv~titla ele
funções de liderança e pedagógicas. O Partido é uma elite ope-
rária. Lênin o aclmile claramente e reconhece existir no ope·
rariado vários graus de mnsdência. O Partido é a inst:incia
que representa o mais elevado grau de consdênd:i de classe.
Por isso cabe-lhe, romo vangu:mfa, "instruir, ilustrar. crlm·ar,
atrair para uma vida nova as r:nnada~ e as ma~sas mais atrasa-
das da classe operária e do rnmpcsinato." (21 ) Pret1üentemcme
I..ênin insiste na função de "educar"' as ma..sas e a atribui ao
Partido. Sbmente guiado, rnnduzido e mhmetido :'l instrução e
educação, o proletariado adquire a mmriênda rcvoludon:lria
de classe. Entrcgnc a si me-;mo, a inércia dos preconceitos e
da ideologia burguesa dominante empolga a sua mente. É o
Partido que o faz ingrc.~sar na consdêm'ia de '·lasse. Na ver·
dacle, Lênin idealiza o Partido cm tal escala, que o identifica
<-'Om a classe oper:iria mesma. I::m 1920, alimm em A nor:ll('fl
Infantil do "I'':.Sqt1cl'di.mw" no Comunismo, c1ue na União So-
viética, "sob a direção do Partido" se "exerce a ditadura de
classe." (2") Stalin, cm 1929, dir<i: "a ditadura do proletariado
é substancialmente a clitadurn do partido, como a fôrça que efe·
tivamente guia o proletariado". Rosa I..nxcmhurgo combatia
a concepção leninista cio Pnrtido, e Trotsky muito antes dela
j:i considerava jacobinista o "centralismo dcmocr:ilico'', em
suas palavras assim resumido: "A organização do Par1ido toma
o lugar do próprio Partido; o Comitê Central toma o lugar da
organização; e finalmente o ditador toma o lugar cio Comitê
Central."
Com Lênin e o bolchevismo, a consciência da organização
e de seus podêres atinge plena maturidade. Os bolche\'istas
llOMl·'.!\f·OP.C.\Nl7.A<,:Ã<l IG5

são os primeiros tebricos da organização que, na História, che-


gam ao poder. É a primeira vez que um drculo governante
usa o poder 11ssociado à manipulação organizada das emoções,
dos sentimentos e das consciências. Porque o Partido Comunis-
ta de feição leninista, o Comintern e outros órg;ios de exp;msão
internacional da política soviétira são menos entidades de;ti-
nadas a reordenar os pontos de vista livres dos mililantes do
que agências de arregimcntação mental, que se socorrem de pro-
ce\sos refinados de inculcação doutrinária e pressão moral, de
fôrça irresistível. (2º) A consciência da organização só se tornou
ingrediente sistemático do poder político no campo soviétiro.
Fora dai, ela é a culminação de um esfôrço teórico de corren-
rentes restritas de intelectuais. Têm-na os filósofos da exis-
tência, mas a utilizam como conhecimento desalienante, e a
põem ao alcance de todos. Têm-na sociólogos como Mannheim,
Mills e outros, mas a aplicam como nova referência meto:loló-
gica na amílisc dos fatos sociais. Têm-na os teóricos da cfücr-
nética, como Norbcrt \Viener, mas atC agora nenhum pais foi
conquistado por cibernéticas. Têm.na pesquisadores rnmo
Whytc, que dcscobl"iu o "homem-orgilni1.ação" como per. ona-
lidade dominante nos Estado.~ Unidos, mas nesse pais tal tipo
humano é produto insconsdente da cstruLUra social e não re·
sultado de pressão uniformizadora cxcrdcla sob o auspício ofi-
cial e direto do Estado. A União Soviética é o primeiro govêr-
no que se constitui na Hi5tória, pro\'ido de aparelhos políti·
cos destinados à robotização universal em massa dos seus adep·
tos e simpatizantes. No nascedouro dêste Govêrno, Rosa Lu-
xemburgo viu o que encerrava ele perigoso: "O perigo - diz
Rosa, referindo-se aos soviéticos - começa apenas quando êles
fazem da necessidade vir1ude e desejam converter cm com-
pleto sistema teórico tôdas as táticas a que são compelidos por
circunstâncias fatais e desejam recomenchi-las ao proletariado
internacional como modêlo de táticas socialistas". flll) Rosa
Luxemburgo é rigura isolada entre os socialistas europeus sim-
patizantes da Revolução Russa, que, no entanto, não se deixa·
ram ofuscar pelo prestigio do notável acontecimento. Um 5Cu
contemporâneo, Georg Lukacs, como ela extraonlinàriamente
competente e lúcido, destacado militante do Partido Comunis·a
Húngaro, passa ao contrário a corroborar para o domínio do
aparelho soviético.
Lukacs retoma as idéias de Lênin sôbrc organização e lhes
dá ampla fundamentação filosófica. Considera sinal de matu-
166 MITO E VERDADE DA R.F.VOl.llÇÃO BRASILF.JRA

tidade a irrupção da questão organizacional "com necessidade


imperiosa na consciência das massas e de seus porta-vozes". (31 )
A organização - diz Lukacs - é a forma de mediação entre a
teoria e a prática. Clarifica os princípios na luta de classes, e
assegura ao proletariado a condição de verdadeiro sujeito da
História, 1oma-o livre e apto a emancipar-se conscientemente
dos "sistemas de leis" cósmicas objetivas que, antes, o determi-
navam como objeto passivo na sociedade burguesa; habilita-o
a caminhar deliberadamente para o "reino da liberdade"; do-
ta-o de uma "vontade de cónjunto consciente" à qual deve
subordinar-se a liberdade individual no sentido burguês. E
nessa ordem de raciocínio, atribui ao Partido a qualidade de
oráculo da História. A vontade de conjunto consciente - cliz
Lukacs - é o partido comunista. Portanto, o Partido merece
que lhe seja entregue tôda a pcrsonaliclade do militante. A
articulação do militante ao Partido não pode ser frouxa, vaga,
à guisa de adesão sem implicações éticas, mas pressupõe "com-
promisso ativo cio conjun10 ela personalidade". Por isso "a
disciplina cio partido comunista, a absorção incondicional cio
conjunto da personaliclacle de cada membro na praxi.f do mo-
vimento, é a O.nica via possível para realizar a liberdade autên-
tica". (32 ) Em seu hegelianismo conseqüente, Lukacs não he~ica
em dizer que o Partido é o "principio ele mediação entre o
homem e a História". O tempo mostrou afinal a que aberra·
ções conduz necessàriamente êsse hegelianismo ingénuo que, no
fundo, não passa ele estreito posilivismo.

Os aparelhos e a ética socialista

No clima da desescalinização, veio à tona nos meios socia-


listas amplo debate sôbre os malelicios cios aparelhos ele feição
leninista. La Nouvclle Rifol"me, revista editada cm Paris e que
só atingiu o terceiro número, abriu suas páginas para intelec-
tuais de esquerda, denire os quais alguns egressos de partidos
comunistas. No debate houve quem equiparasse os aparelhos
do partido a "verdadeiros trustes políticos" (Lecoeur), en-
quanto se reconhecia que "estamos num mundo em transfor·
mação completa, onde o verdadeiro conflito é entre a organi-
zação e a Iiberclade" (André Philip). Jean Rous considera
"fenômeno mundial" o que chama de "totalitarismo do secre-
tariado e do aparelho", e parece concordar com Trotsky, quan-
llOMF.M-ORCA:O-:IZAÇÃO 167

do êste lembra que é tipicamente stalinista a Lemlênda a


ideali7.ar o secretariado e a lhe conferir padrões polícicos pró-
prios. Lênin - disse Trotsky - jamais foi secretário-geral do
que quer que seja, embora tenha sido o líder mai~ prestigioso.
Parece-nos, porém, que é lgnalio Silone <1uem focaliza os
aspectos mai5 pertinentes da questão. O "relatbrio Knischev
- diz Silone - fa7. desaparecer definitivamente o simulacro de
net-essidade his1órica absoluta (que muitos ocidentais estavam
dispostos a lhe atribuir também) do aparelho de terror stali-
nista". (33)
Silonc locou no cerne da matéria. Os aparelhos, instru-
mentos de brutalização psicológica de seus adeptos e das mas-
sas, desnaturnram em tôda parte o movimento socialista. Tor-
naram-se verdadeiros demiurgos em nosso tempo, a própria
encarnação do juízo histórico. Em outras palavras, o curso dos
acontecimentos deixou de ter significados objetivos. São os
atos dedaratórios do secretariado-geral que re\'elam o sentido
dos fato.s. Contra essa pr:ítica, afirma: "S(nnente para os im-
becis, o sucesso é justificação." Reporta-se à origem do apare-
lho leninista e a situa no momenlo em que surge a divergência
em tôrno da organização, no ensejo do segundo congresso do
partido sodal-demorrata russo, ororriclo no estrangeiro. Dis-
cutiu·se ai quem deveria ser considerado membro do Partido.
Martov defendia o Partido como organização aberta, cujos inte-
grantes se definiriam pela adesão à doutrina. Lênin, porém,
defendeu a tese de que os militantes deveriam ser revolucioná-
rios profissionais, de coragem testada e disciplinados. Sua <'or-
rente venceu e daí por diante os partid:irios de Lênin passaram
a ser conhecidos como "bolchevistas"' (do russo "bolscinstvó",
maioria) e a corrente de Marlov foi batizada de "menchevista"
(do russo "menscinslvó", minoria). Em seguida, cleu pleno
acabamento à sua concepção do trabalho politico-particlário,
notadamente em Que Fazer 1 Lênin criou e aper(eiçou a orga-
nização do aparelho ele que hàbilmence se serviu depois Sta-
lin, na construção do "socialismo num só país". Sôbre os
aparelhos, diz Silone: "São máquinas executivas que monopo·
lizam o trabalho do Partido, desde o trabalho de pesquisa até
o mais humilde e o mais material, e favorecem a inércia dos
membros. São máquinas que, por intenção ou de Cato, despo-
litizam a base dos partidos e a reduzem a simples côro, massa
a manobrar. . . Agindo dessa maneira, os aparelhos cedo ou
larde preparam fatalmente sua próprhl punição: a esclerose
168 n:RDADE llA K~'.V(ll.l'(,:ÂO RRMiJl.F.IRA

do pal'lido e sua derroLa. A efie<ida, de Lãa exagerada, acaba


por levar ao esvaziamento e se transforma em seu contnírio."
Vale a pena, finalmente, conhecer as sugestões que faz Silone
para <:orrigir os efeitos negativos dos aparelhos. Tais são:
"1.0) Deve-se garantir aos funcionários do aparelho os
mesmos meios de existência, nas me.~mas condições e segundo
as me~mas modalidades que às categorias correspondentes do
emprêgo privado. (Só uma situação econômica segura pode
subtrair os funcionários a um servilismo obrigatório em rela-
ção aos dirigentes.)
2.0) Os funcionários de todos os graus do aparelho não
podem ser delegados ao congresso. (Esta regra foi incluida por
Bortliga no estatuto do PC italiano, apresentado ao 2.° Con.
gresso. Tem a mesma significação política e moral que a in-
compatibilidade estabelecida pela lei eleitoral para funcioná-
rios do Estaelo.)
3.0) Os membros do Executivo e da Direção nacional não
podem ser candidatos às eleições políticas. (Esta regra, que
pode parecer louca aos interessados, está em vigor cm alguns
partidos operários escandinavos; ela estava igualmente e
rnm os melhores resullados, no partido socialista e nos sindi-
catos italianos antes de 1919.)
4.0 ) Uma Comissão nomeada pelo Congresso, compreen-
demlo igualmente representantes das minorias, deve examinar
o relatório financeiro, e, se necess:l.rio, todos os documentos
administrativos do partido ou do sindicato. O mesmo contrôle
será efetuado por romissões idênticas, nomeadas por assembléias
anuais de Seção ou Federação.
5.0 ) Os cantatas livres, o intercâmbio e a amizade entre
os militantes serão facilitados (em particular nas grandes ci-
dades, cm que as assembléias-gerais são impossíveis em vir-
tude do grande número de adeptos) pela organização de Cir-
culas ou Clubes e por periódicos de pesquisa cultural ou po·
lítica."
Intencionalmente reproduzimos aqui as sugestões de Silone
sôbre organização partidária. Não são pormenores secundá-
rios. Refletem cabal condenação do "centralismo democnítico'',
à luz de um conceito de socialismo, cuja restauração se afigura
hoje constituir imperativo humanístico. O problema da li-
berdade não se resolve apenas no plano abstrato dos conceitos.
H<l:\lf:;\l·CIRGASIZAÇÂO lfi!l

lmplic:t a descoberLa e insLauração de novas formas de organi·


zação, que encerrem possibilidades de cxistênda humana su-
perior. A critica da organização seria utópka, se rnndulisse
à hostilidade intransigente con1ra tôda orgnnização. A cTitica
da organização só é positiva quando inspirada na dialética, e,
assim, conclua que os malefícios de determinada forma episó-
dica de organização só podem ser erradkaclos por outra orga·
nização de tipo superior, cuja qualidade será tamo mais elevada
quanto mais n consciêncin paremética participe de sua estru-
tura.

Lênin, teórico burguds


,\ lei de bronze da orga11iz.açifo não é uma lei g~ral da
sociedade. t uma lei partkular da sodedadc burguesa. Robert
Michcls atribuiu caráter permanente ao tipo de relação entre
massa e elite predominante na soded:ulc Lmrgucsa. ;\ lei de
bronze resulta necessàriamente dê'iSe tipo de relação. t. c:erto,
porém, que a qualidade da massa varia histôrirnmcnte. É per-
mitido, assim, supor que a lei de bronze diminui prngre~siva·
mente sua vigência até perdê-la de todo no periodo limite em
que a cultura se torna ingrediente ordinário da conduta de
todos os indivíduos. ::\ficheis formulou a lei da ol'ganização
burguesa.
Lênin escreveu, cena vez, que o "conceito de massa se
modifica no curso da luta". Mas sua teoria elo partido e da
organização l'evolucion:íria é largamente pré-sodalisla, contém
evidentes reslduos de ideologia burguesa, o que a torna ina-
tual. Hoje, após a Revolução de Outubro, o advento da~
chamadas repúblicas populares, e em conseqüênda dos e[eitos
pedagógicos universais clêsses acontecimentos, os escritos ele Ll'·
nin sôbre revolução têm mais valor histórico do que exempla-
ridade. Foi Lênin, mesmo, quem muito insistentemente obser-
vou que a ideologia burguesa exerce sutil e penetrante inlluên·
da nos próprios meios socialistas. Dentro cht sociedade rnpi·
talista, a consciência do socialista se encontra bloqueada e só
à custa de muita energia e vigilância pode imunizar-se contra
o falso travestido de verdadeiro. As mais cnntunden1es refie·
xõcs de Lênin sôbre o assunto se encontram no 01n\sculo A
Doenra lnfanlil do "Esqiterdismo" 110 Com11nismo. Aí, con·
170 lllTO t'. VERDADE DA u:nJl.l'ÇÃO BRASll.F.JRA

testa a existência de um proletariado "puro" dentro do capi-


talismo, mas o vê "rodeatlo de uma massa de elementos de
variadissimas gradações'' (pág. 82). A ditadura do proleta·
riado, ao instalar-se, não liquida êsses elementos. Tem de ser
exercida "não com um material humano fant:istico, nem espe-
cialmente criado por nós, mas com o que nos foi deixado de
herança pelo capitalismo" (pág. 50). Durante muito tempo,
no regime socialista, verifica-se um "renasdmento espontâneo
e continuo do capitalismo e da burguesia", contra o qual é
necessário severa vigiU.ncia. Por isso, conclui Lênin " ... para
permitir que o proletariado exerça acertada, eficaz e vitoriosa·
mente a sua função organiuidora (que é sua função principal)
(os grifos são do original) são necessárias uma centralização
e uma disciplina severíssimas no partido politico do proleta-
riado. A ditadura do proletariado é uma hua tenaz, cruenta e
incruenca, violenta e pacífica, militar e econl>mica, pedagógira
e administratirn, c·ontra as fôrças e as tradiçõe; da antiga SO·
ciedade. A fôrça do hãbito de milhões e de-1.enas ele milhões de
homens é a fôrça mais terrível. Sem um partido férreo e tempe-
raclo na luta, sem um partido que goze da confiança ele ludo
que existe de '10tm1do dentl'o da classe (o grifo é nosso), sem
um partido que saiba tomar o pulso do estado de espírito das
massas e influir nêlc, é impossh•cl levar a cabo, com êxito, essa
luta" (págs. 41-12). No mesmo opúsculo, Lênin apresenta-se
num flagramc do que chamamos o seu dnismo transcenc.lenle,
ao reconhecer o caráter "oligárquico" cio recém-instaurado re-
gime soviético. Colocando aspas na palavra oligarquia, escre-
veu: "Estamos, por conseguinte, diante de uma verdadeira "oli-
garquia". Nenhuma qucslão importante de polilica ou de orga-
nização é resolvida por qualquer instituição estatal de no5sa
República, sem as diretrize.s elo Comitê Central do Partido"
(piigs. 46-47). Essas declarações são particularmente dignas ele
exame.
Lênin teria ficado na História como o mais conseqüente
adepto de Pareto, não fôsse a sua irrepreensível honradez revo-
lucionária, a sua sincera com·icção de que estava trabalhando
pelo desaparecimento da espoliação do homem, com os seus
processos "oligárquicos". ~las não estaremos longe da verdade,
se o considerarmos um bem sucedido "sociafüta utópico". Um
Robert Owen, cujos empreendimentos fornm coroados de
êxito. Pois Marx condenou em Owen e nos "socialistas utó-
picos", na terceira "tese sôbre Feuerbach", precisamence o fato
171

de admitirem a sociedade divitlida cm duas partes, uma melhor


do que outra. Foi nessa tese que êlc ainda affrmou que
"o educador deve ser também educado", Porventura, os inte-
grantes do Comitê Central, naquelas circunstc"mcias, estavam
"fora" da sociedade burguesa? Que uitério inlallvel garante
que "tudo que existe de honrado dentro da classe operária"
se encontra no partido? !"\as rnndições históricas sociais cm
que Lênin viveu na Rússia, essa crença foi recurso politico-
partidário a que se pode atribuir valimento. Nos dias atuais,
porém, e em particular, mil e um motfros históricos tornam
essa crença um traço de paranóia, descarado e criminoso embus-
te que a consciência socialista tem de repelir enCrgicamente.
Enquanto ainda fiéis ao modêlo de Lênin, os partidos comu-
nistas são escolas de robotilação em massa, dentro das quais
criaturas ordinàriamente movidas por sadio impulso generoso
se transformam, por assim dizer, em enfezados rinocerontes
que perturbam o inteligente encaminhamento das lutas sociais.
A concepção leninista do partido e da ditadura do prole·
tariado é produto da ideologia burguesa. É antimarxista, se é
que o adjetivo exprime hoje alguma coisa. f") Marx disse: "a
emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalha-
dores". O par1ido leninis1a se declara uma minoria de melho-
res, aos quais incumbe "instruir" e "educar" a massa, a classe
operária. Seu modêlo é burguê5. Supõe uma relação entre teo-
ria e prática da mesma modalidade vigente numa f;íbrka capi·
talista, em que o escritório de planejamento é um órgão sepa·
nulo e distante dos trabalhadores, cabendo a êSLes cumprirem
as determinações técnicas que lhes são transmitidas. Axelrod
já havia leito êsse reparo. Defendendo-se, escreveu Lênin: "a
fábrica ... é a forma superior da cooperação capitalista, que
grupou, disciplinou o proletariado, c1ue lhe ensinou a organila-
ção, que o colocou à frente de hklas as categorias da população
trabalhadora e explorada". ( 3 ~) Aos partidos leniniuas se aplica
a ponderação de Lagardelle, formulada em 1907: "tles repro-
duziram, para uso dos operários, os meios de dominação dos
capitalistas; constituíram um govêrno operário tão duro quanto
o govêrno burguês; uma democracia operária tão pesada quan-
to a burocracia burguesa; um poder central que diz aos operá-
rios o que podem e o que não podem fazer; que quebram, nos
sindicatos e entre os sindicalizados, tõda independência e tõda
iniciativa e que deve, às vêzes, inspirar a suas vitimas a nostal·
gia dos modos rnpi1alist115 ele autoridade''. (30 ) São entidades
li2 \'FRll.-\lll'. li\ IU:\"Ol.l"C;Âo llRASll.F.IRA

construidas como "adversários simétricos" do "poder centrali-


1.ado da burguesia" (Claude Lefort). e•)
O socialismo ê um es(ôrço de superação da rnncepção bur·
guesa, é um movimento em permanente depuração, ou melhor,
auto.depuração. Não discutimos aqui as razões históricas justas
que poderiam ser invocadas em defesa do pleno cabimento e
da oportunidade do "centralismo democrático", lnduimo-nos
entre os que afirmam a existência de tais razões. Mas o movi·
menta socialista não pode parar. Não pode muito menos ido-
latrizar regimes episódicos, ditos socialistas. Exatamente porque
existiu Lênin, porque êle realizou a genial tarefa que o cansa·
grou, é que hoje o problema da organilação não mais pode ser
equacionado em têrmos leninistas. Porque colhemos as lições
do empreendimento leninista é que hoje a consdênda socialista
repudia o "centralismo clemorrático" e o substitui por uma su-
perior concepção de organização revoluciomiria. O socialismo
não se diferencia da concepção burguesa, tão-só no que concer-
ne aos aspectos 1eôrkos, ma.\ tamhém no tocante às questões
de organização. J:: nesse úhimo domínio, dado o p1·ecaríssimo
esta<lo gemi do operariado russo, Lênin foi C"Ompelido ;Is prá-
tiras burguesas de organização. l\:esse domínio poum cm nada
o disLingue de HiLler, Por exemplo, Lénin poderia perfcit<1-
111eme subsue\'er essas palavras de Hitler: "Para se <·onseguir
a vitória das idéias ... deve-se organizilr um partido popular,
um partido que não se componha sàmente de guias intelecmais,
mas também de proletários. Sem uma organização forte, qual-
quer tent;lli\"a para promover a realização de idêias no seio do
povo ser:'1 sem conseqüêndas, hoje, como no futuro." (:•11 ) Cons-
titui, hoje, dever da consciência libert•íria mostrar que a mn-
cepção leninista de organização é um contrabando burguês, que
mui1os pretendem passar para o campo do mm·imcnto revolu-
domirio c<1ntcmpor:lneo. (Um parêntese: caberia, hoje, tam.
hém, a .essa consciência manifesiar sua repulsa ao partido único.
O regime do partido único é libertidda, ainda que seus dirigen-
tes se digam socialistas. Na presente época, o socialismo não só
é inrompatlvel com o partid<1 ímim, como requer o plumlismo
partidário como garantia e>scndal para depurar-se de sobre-
vivências burguesas.)
O fato de que as organi1ações, mesmo aquelas instaurndas
por socialist:is, com os melhores propôsitos, até aqui tenham
degenerado invariàvelmente cm associações oligárquicas não
jus1iíirn o uhra-esq1wrdismo dn'i que parecem. nestes dias, devo-
HOMF.M·ORCA!lilZAÇÃO li3

tos da inorganiddade sistemática do moYimento socialista. Ne-


nhuma ação social, ai, inclusive a politic:a, é efi<'az e duradou-
ramente exercida se não lôr organizada. O que importa, no
caso, é o equacionamento dialético do pr<iblcma. A organ itaçãD
socialista, no plano político-par1idário e no plano geral da so·
ciedade, não é mo.dêlo pronto e acabado, não existe rnmo para-
digma ideal. Nenhum indivíduo isolado, nenhuma minori:i
esclarecida dispõe do segrl'<IO de sua fórmula. t. um prm·e~so.
Sabemos hoje muilo mais coisas do que onLcm sahiamos a 1·cs·
peito do que deve ser uma organização soda \is1a e devemos
aplicar êste saber. Sabemos que uma organiLação não é socia-
lista se as suas manifestações exprimirem apenas o que pensam
e querem os dirigentes que se substituem aos trabalhadores e
lhes ditam, em nome da teoria, o que devem ser e c:omo devem
ser. Sabemos que êsse modo de ver é antiproletário e rnmlu1.
menos à ditadura do proletariado do que à ditadura de uma
casta burocrática. Na organização socialista, qualquer que
seja, não persiste a relação alienada entre dirigidos e dirigentes.
O socialista não se reconhece no homem-<1rgani1.ação que
Whyte descreveu. Nem tampouco no "robô"' rnlérico que pro-
fessa o marxismo-leninismo ou o "centralismo democr;itirn".
Luta pelo advento do "reino da liberdade". Por um mundo no
qual a organização não transcenda o homem. \las o homem
transcenda a organização.

NOTAS

(1) bpero n:tnmar j!J&C as1untn. de modg mai• analllicn, pn'»<.im;imcnu~. na


segunda C!diç5n de meio li\'m A R"tluç&o S11rWlõ11ir11,
(2) Vide Ka./lt.o. m"" Dil (di~lugo entre C:WLta\' Jannuch ., Kafka, cm 1920·1922.
Calmann-Uvy cdl16rcs). Exccrm nansaito cm A~m,.,,nu !'il. 0 17, 1960,
ptg. 40. '"Ao rim de t6da e1nln<;1o re1'0luci11mlria a11arccc 11111 !'l:apnlcnn
Bonapa11c'" - diz KAPKA.
(5) O autor teve ensejo de aplicir a nnçto de ··pawlngia da nonnalidadc"' no
esludoda1 rela~de raça no Drasil. Vide "'PalnlngiaSocial do ""Branco"
Brasilelm'", caplluln da lntrorJurlfo Crllira .i Soriolo~ill Dr111i/.,ira (Rio,
1957). Consulte ainda Gus1av le1111r.isu., "'Misurulcr5tandings ln H11man Rc·
la1ions". Amrrkan Jn1mwl o/ Soc:io/ogy, setembro, 1949.
(4) \lide t'crdlnand Tlii.:s1r..1. Com1midt1tl y Sori,,dod. Buenos :\ire5, 1947. S&brc
o penu.mcnlo de TOnnies, consulle J. Lr.1F, IA .foriolol{i" de Tii11nits (Paris,
l!H6). Tamb~m: •·r111 PAPPF.:«nr.m, Thf 1Jlirn<11inn o/ .\/nrJ,,rn Mon. New
\'nrk,1959.
174 :o.llTO •: VF.RDAI>): llA R~:vor.uçÃo nR.\511.F.IRA

(5) Vide Karl M"NNllllM, Lill,,r/11d 'J Pl1'"if~ió11 Sori11/. Mbico, UH6, pi(. 260.
(U)IDitu,p.1g.2!i!I.
(7) IDF.M, p;lg. 237.
(8) IOl.M, pig. 231.
(9) IDF.M, p~g. 216.
(10) Vide Wright M1u.s, Lo lm11gi1111ticl11 So,ioldgini. Mbico, 1961, ptx. 59.
(li) Vide Norberc WIP.NQ, Thtt H11ma1J u.,, o/ Human Bcings, Cybernetics and
SOCiety. New York, 19S4, p,g, UI.
(12)1na.r,pig. M.
(l!)IDEM,pqt.16·li.
(lf) "Meuages are themselYC!S a ronn of paucm and organlzation" (pllg. 21).
(15)1or.M:,plg.27.
(16) Vide William H. Wh)·le Jr., E/ Hambrt Organi1ttión. México, 1961, pllg. li.
(17)JDUl,ptg'.378.
(18) IDUI, P'gs. 386-387.
(19) IDEM, plg. 12.
(20) IDJiM, ptg. !110.
(21) Vide R.nbei1 M1mn ... Politirol P11rlies. The )'ra:: Pres. Glencoe, lllinob,
1949,p=ig.4.IM.
(22) lloben K.. Mf.Rnm, ''Burca11cr.uie Snucuu11 and Penonalit)"', in Robl'Tt
li.. Mr.aTOH e oUlros, Rnder in Bureauuacy. lllinnis, 19!i2.
(25) R. )hc11r.1.s, op. C'il., p;lg. 37.
(24) IDEM, JJ'g. 207.
(25) IDRM, p;lg. 228.
(26)lr1n1,p=IJ.401.
(27) U.NIN, A DoenfB iuf11nlil do '"E•q.,rrdiHNO" uo Comnnismo. Rio, 1960, p;lg. !il.
(211) lout, p:ig. <17.
(29) Consulle-sc ltlbre n :11-"U•Uo a nD\:lvel obra de Philip 51.U.'l;ICK, Tht1 OIJlll•
niz11fion1d Wupou. Illinois, 1960.
(JO) Vide Wrighl MILU, Thfl A/arxis/s, New York, 1002, p;ig. 308.
(51) Vide Luucs, lil•loil'fl fl/ Consrit1urt1 dt1 C/111M. Paris, 1960, p;'p. 335·336.
('2) lor.M, J>'g. ll&O.
(5') Con1ul1e La Nouwlk Rlfornte. 1957, n. 0 J.
(M) En1re os &Oclal-democra1as nclden1al1 corria, a rcspei10, a seguinte anedula,
depois da morte de l.ênin. t.ne, ao bater :I• por1as do Ct!u, é inquirido
por Slo P~ro: "Quem 1: voei i'" Responde Uniu: "Sou o juro da C11pi111/
de Maiii. Maiii e11;I. li çn1baixo e me balçU a. panas do inferno na çara."
l!.n1re os bolche~is1as, a anf;'d<Ha 1: CDnlada com a s11pn-u:llo da alus5o a
Marx. (Vidç Sidnçy HooK, O HrrOi mi Histdrlo. Rio, 1962..)
(35) Vide Mlchel Co1.1.111"r.T, Du Bokh.,•iJmfl, lttio/u1im1 ti VBri111ions lfu Mar.
•i1mt1-l.10ni11iJmfl. Paris, 19!i7, p;lg. 17.
(!6) Vide R.. M1c111.LS, op. n1., pq. 43.
(57) Vide Claude Lr.roar, "Organisa1ion ct Parll", in Snti11/iJIR# au llorb11rk.
1958.n.•26.
(38) Vicie Adolf Hnua, .Vi,,h• Lula, 5ao Pa11lo, 1!162, p;ig. 296.
CAPhuw vlf

Revolução Brasileira
ou Jornada de Otários?

BbtErwu: Um riJiouronte em liberdade,


não tlld certo.
jEA:-.i: Isso não deutria acontecer.
BtREKCl'.ll.: De acdrdo. Isso não dt:ueria aconle·
P. atd unia coisa imensala. De acórdo.
(lc»1uoo, Rillouronlt)

O BRASIL NUNCA FOI um país tão internacionalizado como em


nossos dias. Fôrças externas interferem hoje nas esferas decisó·
rias da sociedade brasileira, aí impondo o critério dos seus
interêsses, e assim condicionando o curso dos acontecimentos,
como ainda ditam, por mil modos diretos e indiretos, grosseiros
e sutis, a maneira de ver a realidade nacional. O primeiro
aspecto da internacionalização - a interferência estrangeira em
nossos negócios internos - é por demais reconhecida e, contra
o fato, a consciência popular está suficientemente alertada e
mobilizada, O mesmo não ocorre no tocante à domesticação da
inteligência do nosso processo histórico-social, em sua presente
etapa. Diagnósticos ela crise brasileira têm sido numerosos e
freqüentes. Mas não rarn enfeudados a uma visão estranha à
nossa vida coletiva, infiel às suas particularidades. Muitos há
que proclamam - e com acêrto - existir caminho independente
para o Brasil na solução do seu problema. Não obstante, quan·
~:ade~~~~os~ f~::'~~~~~~re~~:?t~~mi~:~~t~~:r~~mp:s;i~;~:'º;
estudos, jornais, revistas, editôras, estações de rádio e televisão,
dependentes de financiamento externo, são mobilizados para
l'i6 \'F.RDADJ-: llA REVOLUÇÂO BRASILEIRA

impingir diagnósticos de nossas dificuldades, à feição de inte-


rêsses alienígenas. No dominio da esquerda campeiam categorias
e pomos de vista, se não mortos, em ll\"ançada senilidade, como
o marxismo-leninismo, ora na versão soviética, ora na versão
chinesa, ora até na versão cubana. Assim, temos interpretações
do problema brasileiro acomodadas à visão soviética, i1 visão
chinesa, à visão cubana. Rinocerontes de tôda espécie empol·
gam a nossa paisagem cultural. A crise brasileira é também
crise de cultura poUtica.
A luta contra a internacionalização do Brasil não consiste
apenas em repelir o condicionamento externo de nossa vida
política e econômica. Também consiste em libertar a intelec-
tualidade da servidão conceptual em que se acha. Compreender
o Hrasil e o mundo de hoje na pcrspectiva própria da história
nacional não é imperativo acadêmico, é requisito da existência
independente. Evidentemente, nenhum intelectual isolado será
capaz .de formular êsse diagnóstico requerido pelas circunstân-
~~sito~~ ~º::~:a r~~u~~~~a~~v:,sr~~~~r!~~:~:d~n:i;t:ifcf:ªc\~~:s~
sas considerações, tentaremos agora compreender alguns aspec-
to.s da presente crise política do Brasil, fugindo aos processos
curiais, aos cacoetcs das seitas partid:irias, ás convenções con-
ceptuais ainda sagradas em certos círculos militantes de esquer-
da. No intento de procurar encontro idôneo e leal com os fatos,
e realizar experiência de lucidez, tão próxima quanto possível
da verdade, recorreremos, a seguir, até a enunciados não-0rto-
doxos, deule que nos compensem com algum conteúdo reve·
lador, e assim nos abram clareira, por menor que seja, na
confusão reinante. Há um momento em que o emprêgo mecâ-
nico e desqualificado de categorias originalmente válidas se
torna tão abusivo que antes tonfunde do que esclarece. ~ o
momento do escoteirismo cultural, isto é, em que, transformadas
em vulgata, tornam-se passes mágicos, senhas, ritos de exorcis-
mo, elaborações que tinham fôrça interpretativa, quando for.
muladas pela primeira vez. Está-se formando, hoje, no Brasil,
ràpidamcnte, numerosa biblioteca escoteira de livros e opús-
culos que, salvo raras exceções, dão a largas camadas do públi-
co a ilusão do saber, e assim agravam a confusão geral. Além
disso, a corrente linguagem política está inflacionada de expres-
sões que servem como verdadeiro.s sinais para disparar reflexos
condicionados em certos tipos de cidadãos de boa.fé, e assim a
revolução deixa de ser tarefa séria, de vez que a !raseologia re-
lii

volucionária não só substitui a exigência de compromisso exis-


tencial como a ele indagação teórica rigorosa. Resistindo a
êsse esclcrosamento, procuraremos, a seguir, em caráter explo-
ratório, examinar a presente crise brasileira sob alguns !lngu-
los habitualmente descurados.
Um dos aspectos mais dignos de nota ela presente situação
nacional é a crise do poder. Na sociedade brasileira, chegamos
hoje a um momento cm cz.ue o poder carece de um centro con-
figurador. Três são os prmcipais sentidos do l·entro do poder
que nos parece conveniente destacar.

Cc11tro é símbolo ou premissa dominante, ou conjunto ele


simbolos e premissas em função do qual se configuram as con-
dutas e arões dos cidadãos independentemente das classes a q11e
pertencem. Sem êsse requisito, não se constitui a sociedade, as
condutas tornam-se disparatadas, perde-se a reíerênda cardinal
do que é inferior ou superior, bom ou mau. Em estudo sôbre a
literatura moderna, Nathan A. Scott, .Jr. \"ê a época atual em
c:rise, notadamente porque é uma época de centro quebrado
("broken center"). Por isso mesmo, não possibilita aquela gran-
de-1.a de acabamentos que apresentam as obras de Dante, Sha-
kespeare, Racine. "Nesses velhos escritores - diz Scott - senti-
mos uma espécie de libenlade e de segurança de reíerência
que nos espanta como sendo conscqüência de terem tido a boa
fortuna de viver em culturas que, tendo unidade vital, pude-
ram liberalmente provar aquelas "imagens primordiais" e
aquêles "arquétipos" que centralizam e ordenam a imaginação
poética." (1 ) Scott recorre ainda i1 noção de "experiência para-
digmática", fol"mulada por Mannheim, e sem a qual, no dizer
do sociólogo, não é posslvcl nenhuma conduta consistente, ne-
nhuma cooperação, e o universo perde ma articulação. O cen-
lro político, em seu plano cspeci(ico, tem atributos similares aos
que Scott menciona. O centro, enquanto socialmente válido o
seu conteúdo, ordena as ações políticas e exerce função arbitral,
preservadora da hierarquia, em seus múltiplos aspectos.
Após a proclamação da Independência, cm 1822, não fal·
taram estadistas que tiveram plena consciência de que sem
centro poUtico a nO\'a nação estaria fadada a desintegrar-se.
Tudo parece indicar que José Bonifácio e outros, ao procura-
rem ganhar a adesão de D. Pedro, além de outras razões, tinham
em alta conta o valor mítico - paradigm;ltico da figura do
Imperador. "Sem a monarquia - disse José Bonilikio - não
178 '.\llTO F. \'f.RflAm: DA Rl-TOl.1 "ÇÂO BRASILF.IRA

haveria um centrn de fôrça e união" (o grifo é nosso). E acres-


c:cntava o Patriarca: "sem êste (centro) não se poderia resistir
~ ~:~~~s ::~ ~~~t~g:~~:r~3~~r~:h:~=~~~~~~f.~: ~:~:~~~~~ ~!
mente popular e os artífices da Independência foram hábeis em
ligá·la indissolllvelmente ao Estado Nacional. Depois ela abdi-
cação, o Pais passa por sucessivas crises que ameaçam a sua
unidade. Expediente hábil que ocorreu aos mais responsáveis
para sanar êsse perigo foi a Maioridade de D. Pedro II. Du-
rante os anos em que o príncipe não passava de um menino,
o corpo político fingiu que havia um Rei do Brasil. O Im-
perador foi um mito, no sentido soreliano, que ajudou a for-
mar nas populações o sentimento nacional. O prestígio po-
pular dessa figura foi tão irresistível que, no comêço da Re-
pública, persistiu nos confins do sertão sob a forma de sebas-
tianismo. O Conselheiro e seus fiêis eram contrários à Repú-
blica e, na sua rudeza, associavam :\ imagem do Imperador a
integridade da Pátria. Euclides da Cunha registrou nos canta-
res rústicos dos sertanejos alusÕC'i a D. Pedro II. Esta, por
exemplo:
"Saiu D. Pedro segundo
Para o reino de Lisboa
Acal.Jou·se a monarquia
O Bl"asil ficou à 1oa''(3)

O Poder Moderador é a expressão c·onstitucional do cen-


tro político, e em sua instauração os mais lúcidos políticos da
época se empenharam com o máximo de zêlo. Em seus estudos
de sociologia política, Oliveira Viana fala do "pequeníssimo
núcleo", que, no Império, "tinha o sentido elo poder central
e de seu papel". Diz Oliveira Viana: "Para compor o mecanis-
mo dêsse govêrno necessàriamente unitário, os estadistas da
Independência encontraram ;\ mão, por um acaso feliz, uma
peça es.sencial: um Rei, sem o qual "o desmembramenlo cio
pais seria absolutamente inevitável." (4 ) E realça ainda "a
fúrça centripeta da realeza", "a ação catalítica da pessoa real",
que permite "neutralizar a ação dispersiva dos fatbres geográ-
Cicos, mantendo unida a nação durante os dois Impérios". (G)
No nascedouro da nação brasileira, a instituição do poder
foi, como se vê, um ato mais inteligente do que muitos espí-
ritos ligeiros comumente imaginam. Em 1841, um dos persona-
gens de maior descortino, o Senador Alves Branco, integrante
REVOLUÇÃO OU JORNADA DE OTÁRIOS? 179

da guarda de estadistas que, no govêrno ou fora dêle, se man-


tinham permanentemente ocupados com o intcrésse geral, e>CTC·
via:
"A Sociedade tem ncccHidadcs \'ariávcis, ma~ tmnbém :u
u:m invariáveis de alio ''alor; a ít' rcligio.u, a fé militar ele
honra e brio, o sentimcmo da glória, os princlpim da julli'ia
cstlio nessa dalSC.''
E acrescentava:
"O monarca é o shnbolo 1lc lodos t'SSC§ objc111'1." (B)

Havia, decerto, no período de nossa histó~ia imperial, pe-


queno círculo cujos membros, formados na escola de sadio
ceticismo, sabiam perfeitamente distinguir o relevante do irre.
levante, no que concernia ao exercício do poder. Quamlo a
luta das Cacções atingia o que era relevante, logo o instinco po-
Htico da sociedade, encarnado nesse círculo, fazia valer-se, com·
pelindo os contendore§ a um pacto viável que evitasse o <·olapso
do poder. O Monarca, mediante a prática do revezamenlo nos
diferences gabinetes, ora de uma Cacção ora de outra, manteve,
até quando pôde, a integridade do regime. Não relembramos
aqui o conteúdo episódico do centro politico na fase imperial,
para idealizá-lo, para justificar atitude de 1·et<irno, \'amos dizer,
ao parlamentarismo em moldes antigos. O que importa é frisar
que o centro polJtico é requisito essencial da integridade de
todo poder. Quando o centro político do Império se desajusta
à realidade nacional, outro lhe toma o lugar na República. Não
é fortuito o fato de que são marechais os dois primeiros Pre.
sidentes da República Brasileira. Pode-se indagar em que me·
dida o carisma dêsses militares, além de fatôres materiais de
tôda origem, teve significativa importância na consolida(âO
do nôvo poder. t. lícito reconherê·la, embora não nos cumpra
agora examinar êssc aspecto. Quando o Marerhal Floriano Pei-
xoto passa a Presidênria ao civil Prudente de Morais, já se
constituíra no País nÔ\'O centro politico, mediante o qual se
convencionara o atributo carismático da personalidade de todo
chefo de Estado, dali por diante. De Prudente de Morais a João
Goulart, o carisma presidencial passa por diversas vici~sitmles,
cada uma delas em estrita correlação com específicas conjun-
turas políticas.
Podemos ainda salientar uma \'inrnlação do centro ao eso-
terismo de todo poder. O seg1·êtlo é a alma do poder e o rentro
político é conslituldo pelos que possuem êsse scgrédo. Tanto
nas sociedades rudimentares quanto nas mais desenvolvidas, co-
180 :\llTO 1-: VJ.'.KD,\DJ·: l>A Rl'\'Ol.l:c;,:ÃO BRASll.F.TRA

mo a industrial, os poderosos são indivíduos que se distinguem


ela maioria por um oonhecimen10 e um domínio de meios para
impor a sua vontade mesmo contra a resistênr.ia dos outros.
Os que estão de fora do circulo minoritário dos poderosos po·
dem ter idéia acêrca de tai.~ meios, mas a sua po~ição na estru-
tura social não lhes assegura possibilidade de intcrfcl'ir ativa-
mente nos acontecimentos em seu redor, por .decisões próprias.
O mero conhecimento da natureza e da estrutura do poder não
dá poder a ninguém que estiver no âmbito externo da minoria
dominante. Assim o exercício do mando não só é matéria es•en-
cialmente secreta, como implica, nos seus beneficiários, cons-
tante vigilância na manutenção das barreiras que os separam
do resto da sociedade. O poder da minoria, segundo as palavras
de Wright Mills, "pode ser considerado como um grande de-
senho oculto". (7 ) Essa ocultação é requisito essencial de tôda
f6rça impositiva. Por isso, toclo Rei nu é Rei deposto. O poder
não pode estar nu, senão clescle o momento em que se extingue.
:t licito, portanto, falar da categoria de sorir.dade expasla.
:t uma categoria neressária para deíinir aspccto eminente da
crise do poder no Brasil. A sodedade merece ser chamada ex-
posta, quando a minoria dominante, por drcunstândas v<irias
não convém reíerir, perde a capacidade de reo;guardar o car;í-
ter secreto dos meios que utiliza, na manutenção de sua po-
sição privilegiada, notadamente em virtude do ingresso de in-
divíduos na área esotCrica do poder, contra a vontade do.~ po-
dero.~05. Nos momentos extremos ele crise o poder se fragmenta,
e os circunstantes não-poderosos se sentem árbitros das disputas.
Desfazem-se as fronteil'as entre o palácio e a rua, e ns governan-
tes e candidatos a governantes são levados à desmedida ma busca
frenética do favor popular. Em tais circunstâncias, a reserva é
impossível, as autoridades falam demais e, por isso mesmo, dei-
xam de ser autoridades, pois o exercido do poder é incompatf\'el
com a incontinência verbal. "I?. impmslvl go\·ernar sem ser
lacônico" - dizia Saint-Just. t. fatal, para todo poder constituí-
do, a diluição dos limites entre o esotérico e o cxotérko, a pro·
pagação da psicologia cxotérica entre aquêles que, pela sua
posição na hierarquia das decisões, integram o círculo esoti'rirn
do poder.
Vivemos hoje no Brasil gra\'C momelllo cm que muitos
ocupantes formais dos postos de elevada hil•r;1rquia politico-
governamenlal, com ;1 cle.~medida tlc suas dcdar:1çi1es extrcm:1.
das, tentam m uhar a rnntr:adição cxistem:i:al implícita na .!ii-
Rt:VOl.UÇ.ÁO OU JOR:-IADA DF. ()'f,\RIOS? 181

tuação em que se encontram. A revolução deixa de ser séria


quando se transforma numa corrida inconseqüente de pala-
vras, de declarações carbon:irias não npenas dos que têm razões
vitais para fazê-las mas tnmbém e sobretudo dos que, a partir
dos escalões do govêrno, tão-só perseguem o beneficio da pro-
moção política. No caso brasileiro de nossos dias, essa compe·
netração dos planos esotéricos e exotéricos do poder constituido
não só não aproveita aos que têm ~cnulno interêsse na revolu-
ção, como a posterga, uma ve7. que falseia as tensões e imobiliza
o Estado, levando-o seus dirigentes, por oportunismo ou temor,
ao ponto morto entre as tendências em choque. Por \•árias mo-
tivos, a recente crise que determinou a recomposição ministerial
de junho (1963) ilustra o que chamamos ele falseamento de
tensões e a atual debilidade subjetiva e objetiva da área t·ên-
tric:a cio poder. :t significativo que, no ensejo da reforma, ao
deixar o cargo de Ministro da Fa7.encla, tenha ocorrido ao Sr.
San Thiago Dantas reflexão sôhre a necessidade ele reronstj-
tuir o "centro quebrado". Referiu-se o Sr. San Thiago Dantas
a um "grande e importan1e grupo plenamente afinado rom
os princípios da posição independente", que "lem o direito
de governar u Bra&il" (o grifo é nosso), grupo que, segundo o
ex-Ministro, "representa as fôrças mais responsáveis e c~dare­
ciclas e as \\nicas em que o Presidente Josão Goulart pmlerá
basear-se para dar ao Govêrno um sentido ... ". E condenando
a linha do ponto morto, afirmava: "as vacilações, as dubieda-
des, as concessões simultâneas, as posições contraditórias nfio
representam um processo de formação ... de opinião e ele Go-
vêrno e são extremamnte prejudiciais à Nação". Como os ho-
mens hkidos sabem colhêr as lições das crises que os atingem
na carne 1
Importa ainda assinalar outro sentido do rentro elo poder.
Além de seu conteúdo simbólico e csotérirn, o rcntro do 1'oder
é o conjunto de pessoas q11e cxcrrem funç,irs de alia rssencinli-
dade na condução dos nr.górios p11blicos. t o grupo que, por
suas condições objetivas e subjetivas, se supõe rom o "direito
ele governar" na exprc,sfio do Sr. San Thiago Danta§, ou que,
segundo o entendimento clássico de l\fax \Veber, e§t;I. capaci-
tado para "impor sua \'Ontade na ação rnmum, mesmo contra a
resistência dos outros". t claro que o centro, ne§ta arcpção, não
se compõe apenas dos figurantes ostensivos do govêrno, inclui,
também e sobretudo, outros indivíduos mni~ resguardados da
atenção pll.blica. Coincide com o que \Vright l\Iills cha~a de
182 MITO E VERDADE DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

"elite do poder", isto é o "grupo que tem o máximo que se


pode ter, inclusive, de modo geral, dinheiro, poder e prestígio
- bem como todos os modos de vida a que êstes levam", (8 ) Ou
ainda: "os círculos políticos, econômicos e militares, que, como
um complexo de igrejinhas interligadas, partilham das dechões
de conseqüências pelo menos nacionais". (9) 2 êsse grupo -
diz Mills - que decide os acontecimentos nacionais, na medida
em que possam ser decididos. Sem êsse corpo político, a socie-
dade está mutilada.
Resistimos aqui à tentação de Descrever, com pormenores,
a "elite do poder'' no Brasil. O que, na intenção dêste capi·
tolo, merece ser salientado é que, nos dias atuais, ao contrário
do que ocorria no passado e até mesmo recentemente, essa
e1iLe se encontra em extrema dilaceração interna, o que per-
mite dizer que hoje o Brasil é um pais em orfandade política.
Se fôsse permitido, diríamos que hoje o Brasil é um pais sem
time, isto é, sem um núcleo ele homens dotados de vontade-po-
der, e em cujas mãos esteja centralizado "o comando das prin-
cipais hierarquias institucionais" (Mills). Naturalmente, os
vários postos dêsse comando estão ocupados, mas os seus ocupan-
tes não constituem conjuntamente um timc, na medida em
que lhes falta a rnnsciência mínima de sua htnção geral, e
em que não se acham continuamente mohili7.ado.~ para exerrê-
la. O Sr. San Thiago Dantas pode, numa hora ele nise, em
que se estarrec-e ante o caráter vacilante da ação governamental,
falar na existência de um "grupo que tem o direito de gover-
nar'', mas êsse grupo não exerce, de modo c-onsistente, êsse
direito, e a maioria dos que o integram não sabem que o tem.
:Esse grupo existe c-omo soma de indivíduos, não c-omo oorpo
ou time politico propriamente.
A atual crise do poder assinala um avanço do proc-esso
emancipador. Equivale a uma dissipação de fôrças populares
sacriíicar a revolução possível pela metafisica da rc\'olução. Re-
compor, rom o nôvo conteúdo de classe, o diretório polltico
da nação é a tarefa positiva que se apresenta hoje, com extrema
urgência, aos homens ele vanguarda. A tarefo implica a coor-
denação, no nível da liderança, de tôdas as categorias sociais
que, pelo seu trabalho, participam do processo emancipador
da nação brasileira.
A revolução brasi1eira, entendida como reorganização insti-
tucional, tendo em vista reajustar o Estado, não só tomando-o
reflexo da correlação de classes dominantes hoje na sociedade,
R.EVOLUÇÁO ou JORl'\AD.\ Dl-'. <rrARtos? 18S

por Cõrça do seu desenvolvimento nas últimas décadas, como


também para habilitá-lo às novas funções que exige o avançado
estágio material que o País vem de atingir, está ameaçada pela
imaturidade da liderança do movimento emancipador. Essa
liderança se encontra largamente alienada; duplamente, em
sua ideologia e em sua organização. Em sua ideologia, porque
a sua visão da realidade nacional ainda é reflexa, tributária de
formulações estranhas aos têrmos verdadeiros da equação de
nossos problemas políticos e ccont1micos. No tocante à orga-
nização, tal liderança alua sem um mínimo de coordenação,
não poucas vê7.es levando seus representantes mais capazes, aca-
tados e legitimas, a cumprirem diretivas aventureiristas e sui-
cidas.
Definida, de modo geral, nos têrmos acima, a revolução
está madura hoje no Brasil. Para efeito de comparação, é útil
lembrar o período em que se verificou a Revolução de 1930.
Naquela ocasião, o povo tinha apenas vago sentimento de sim-
patia e aprovação com respeito aos <Jlle preconiza\'am a neces·
sidade de reformar, embora os epigonos do movimento não ti-
vessem idéia clara do que queriam. Hoje, existem categorias
sociais diferenciadas, um operariado de dimensões consideráveis,
que, mais de uma vez, tem-se mostrado apto a responder, com
apoio ativo, às direti\'as reformistas e, malgrado certa insufi-
ciência, um conjunto de diagnósticos das principais dificulda-
des nacionais, razoàvelmente claros, de que é exemplo a última
plataforma da Frente Parlamentar Nacionalista. Em 1930, po-
rém, homens como Getúlio Vargas e Antônio Carlos foram le-
vados à decisão revolucionária, graças à capacidade organiza-
dora e coordenação de personalidades como Osvaldo Aranha e
Virgílio de Melo Franco, além de alguns outros. Evidentemen-
te, a tarefa organizadora e coordenadora que agora se apre-
senta, no nível da liderança do movimento emancipador, é
mais complexa, mas ainda não encontrou empresários hábeis,
como ocorreu naquele período. A Revolução de 1930 não foi
positivamente uma jornada de ntários. Dela resultou nova
equipe de Go\'érno, nova "elite do poder", nôvo time, em SU·
ma, resultaram alterações no quadro dos titulares das decisões
estatais, alterações necessárias e\ reforma institucional de cunho
coletivo genérico, e a que se procedeu no primeiro período go-
vernamental de Getúlio Vargas, ele 1930 a 1915.
Como assinalamos anteriormente, o presen1e capitulo se
despoja intencionalmente de predosismo técnico. Nosso obje-
jg.j lllTO •: V)'.RDADE DA RF.VOl.UÇÂO BRASILEIRA

tivo é fazer uma experiência de comunicação do q.ue nos parece


essencial na presente conjuntura brasileira: a crise de lideran-
ça. Em outros estudos e livros como O Problema Nacional do
Brasil e A Cl"ise do Poder no Brasil, temos focalizado, nos mol-
des ortodoxos da ciência social, a'I modifirnções estruturais de
que resulta a crise nacional. As condições brutas para supera-
ção dessa crise já existem. Estão faltando condições subjetivas.
A inconsistente liderança do atual movimento emancipador
contribui para postergar a revolução brasileira. Na medida
em que assim permaneça tal liderança, a revolução, que se
prodama inevit;ível, pode ocorrer, de fato, contudo não de
modo orgânico e adulto, mas como expressão impulsiva, mero
protesto indistinto e sem fôrça configuradora da nova ordem.
Por falta de maturidade política de sua liderança, a revolução
brasileira pode acontecer como o equivalente brasileiro de
uma bógotá. O ativismo que se manifesta nos setores sindicais,
na c:1tegoria cios sargentos e dos oficiais das f6rças armadas, e
em outras esferas nacionalistas, constitui enorme capital polí-
tico exposto ao malbaratamento, na ausência de liderança com-
petente e renlista, que lhe dê sentido verdadeiramente nacional.
O Pafs se encontra numa situação rcvoludonária muito
peculiar. Não é uma situação em que os revolucionários se
tenham torna.do inassimiláveis à estrutura política. Não surgiu
ainda a polaridade política e social que tem constituído o ante-
cedente invari:ível de revoluções como a russa, a chinesa, a
n1bana, e as ocorridas no continente africano. Enquanto durar
essa ambigiiidade, é inútil esperar que a revolução arnnteça
como peripécia de uma brigada; os cavaleiros não virão ao
encontro dos que os esperam no obelisco da Avenida Rio
Branco. No Brasil de hoje, são indiscerníveis, como drculos
rompactos e fechados, o poder e o antipoder. O poder ei;tá
aberto a revolucionários. Como personalidades isoladas, há
revolucionários no poder e contra-revoluciomtrios no antipo-
der. Por isso nem sempre, entre nós, pode ser existencialmente
dara a distinção entre esquerda e direita.
Empolgada largamente por fetichcs verbais, a liderança
de nosso movimento emancipador tem perdido várias oportu-
nidades para desempenho adulto. Um quadro que não vive
concreta e rigorosamente, com todos os seus ónus vitais, a ra-
dicalidade, não pode fazer uma revolução radic:al. t. impossível
impingir ao nosso processo a radicalidade dos manuais e de
outros países. O desempenho revolucionário não se rnmpadecc
RF.VOLUÇÁO OU JOk:-.iADA Dt: OTÁklUS? IR5

com a conduta literária. Há no Brasil de hoje poucos ho-


mens de esquerda, porém, muitos esquerdeiros. tstes últimos
viv.ern da gesticulação revolucionária e de ficções verbais.
Jâ vivemos, no passado, idêntico momento de ligeireza
e leviandade. Houve tempo - precisamente na dêcada agitada
de 1920 - em que a revolução russa passou a inspirar círculos
partidários, alguns dos quais pretendiam "esLabelecer <1mmto
antes, entre nós, o regime cios sovietes".( 1º) Nn época, marxismo
e comunismo se chamnvam também maximalismn. Em artigo
sob o título "A Propaganda J\Iaximafüta e a sua Superfluida-
de", Gilberto Amado examina o significado da agitação. Narra
que senadores, entre os quais um presidente do Senado, indus-
triais como o Sr. Jorge Street, governantes como o Presidente
do Estado ele São Paulo, todos ele tracli(ão consen··adora, raziam
côro com os prcgoeiros do nôvo reitime imin.cntc. Gilberto
Amado comentava a atmosfera daqueles dias:
"' ... de 1õda parle s11111:;en1 tais ;uk!IÕCi ao comunismo, que
os próprios socialistas teóricos que primcim falaram aqui l'm
tais assuntos se sentem como em·l'rROnh:td<IS. l'l'mam até cm
n:tro11:;radar ... Estio mais ai rasados do qul' o~ próprio~ chere~
do Estado." (li)

E acrescentava:
"'Es1a gcn1e escreve ou rala por cscre\·e1· ou falar, niio li·
gtmdn, pensando que "polllica (: i3MI mesmo", nr.m $ilhem o
que dizem. Aos propagandislas marxistu, aqui, e5t:\ assim re-
servada, segundo parece, a trls!e sone do' rcpuhfüano' histó-
rico5. Serio tragados pela onda dos adesisras. Xiio lhe5 rcs1a,
por1a1110, se são ambiciosos, e desejam a glória ou o dumlnin,
senllo contramarchar ou parar. A 8Ua propawmcla é supérílua ...
Ao fazer1nos o maximalismo, entre nós. já n!lo haverá mais
conservadores.. Todo numdo ser;'\ maximalista." (12)

E Lerminava, rnm ironia, dizendo que instalada a no\"a


ordem, surgiriam para celebrá.!a escritores e oradores de tôda
espécie. "Escreverão e Calarão - diz Gilberto Amado - mas
hão de permitir que algumas pessoas reservem o seu juízo, e
tenham por isto e diante disto, em vez de vanglória, um senti-
mento bem diverso." E, no entanto, não foi vã a agitação dos
anos vinte. O fenómeno revolucionário tem tido, no Brasil,
um pattern original, regra cspecffica que governa o seu curso.
Nossa história tem mostrado sua astúcia. a qual se vem re\'e·
!ando, in\"ariàvelmente, sobretudo nos momento.~ criticas em
186 :\!!TO E VERDADF. DA REVOl.llÇÃO BRASILEIRA

que tudo parece vir abaixo. Nesses momentos, paradoxalmente,


termina a hora dos agitadores, e costuma surgir uma guarda
nacional que realiza a revolução, não conforme a imagem hi-
perbólica dos milenaristas românticos, e dos exploradores da
emoção popular, mas segundo as conveniências reais consagra-
das pelo consenso coletivo. A revolução de 1930 e o Golpe de
1937 não implantaram os "sovietes" ou a "república maximalis-
ta" com que sonhavam os inconformistas a que se referia Gilber-
to Amado, na década de 1920, mas deram aos problemas do Pais
a evolução avançada possível, mediante modificações institu·
cionais de envergadura e o ad\'enlo de n6vo conteúdo de classe
no balanço do poder.

prôp~~~= J~:~:t~~~:~s.j~o5i~, ::~~~zi~g~tt:~s~~ei~~e~~~


buco de Araújo, são "inábeis para manterem a autoridade que
minaram, para criarem o respeito que destruíram". (1 2) Ao
contrário, precisa de homens que - como diria o biógrafo do
Conselheiro, seu filho Joaquim Nabuco - "encarnam o des·
contentamento" com "fórmula concreta" e com a "consciência
do que o pode satisfazer". (B) A revolução está madura no
Brasil, e a nação precisa digeri-la, segundo o seu metabofümo
próprio. Aquêles que têm sincero interêsse de salvar a revolu·
ção, de realizar esCôrço sério no sentido de evitar sejam esca·
moteadas as reivindicações populares, terão muito que apren-
der no que escreveu Theophilo Ottoni na Circular aos Elcilo·
res de Minas. Do 7 de Abril, disse Ottoni que foi verdadeira
jq1-nada de olários. Os que fücram o movimento perderam o
senso de medida e no dia seguinte ao da vitória - lembra
.Joaquim Nabuco - "foram lançados fora como inimigos da
socie.dacle". (Hi) E conclui Nabuco: "a fatalidade das revoluções
é que sem os exaltados não é possível fazê-las e com êles é
impossível go\•ernar". (1 6 ) Estaremos, nos dias atuais, presen-
ciando uma "jornada de olários"? Quem são os olários hoje?
Podemos responder que são todos os que estão falando demais,
falando mais do que podem, aventureiros e literatos que, por
êrro de perspectiva ou por gôsto, se vão especializando na des·
medida, compelindo muitos a segui-los, por temor de parecerem
não-re\'olucionários, ou inimigos das causas populares. Otários
são os que, ingénuamente, se deixam manipular e conduzir
pelos corretores da revolução. Ot:idos são todos os que imagi-
nam que a revolução brasileira só poderá eíetivar-se mediante
a internacionalização do Pais,
kE\'OLL'ÇÂO 01.' JOR.'ôi\ll,\ ln'. 01'.\RIOS? 18i

Desejamos ainda recorrer à noção de período intervalar


ou de intervalo para focalizar outro aspcrto da crise brasileira.
Vivemos momento imervalar. O desenvolvimento econômico e
social do Pais, nas últimas décadas, gerou condições que encer·
ram um período ele nossa história em que Cramos nação reflexa
e dependente, e que inauguram "nôvo período" de efetiva aUlo-
determinação. No entanto, a concreta fc'irmula política e insti·
tucional dêsse "nôvo periodo"' não foi encontrada em caráter
sistemático. No plano político-institucional \'eririca-sc um inler·
valo, ou, na linguagem do criador dêste conceito, EugCne Du·
préel, do antecedente A não resultou ainda o conseqüente
B como seria compulsório, cio ponto de vis1a teórico-abstrato.
O "quadro de probabilidades"' de "nôvo período" de nossa
histórica política existe. Para efetivar-se concretamente, rarece,
porém, de desempenho adulto e rcalistico. Retarclando-se o
aparecimento cio corpo político, apto para êsse desempenho,
o amece<lente que dh•isamos hoje pode deixar de gerar o con-
seqüente esperado. H:í sempre - diz Dupréel - um intervalo,
ínfimo ou considerável, entre o antecedente-causa e o consc-
qüeme-cfeito. E esclarece Dupréel: "o tempo que transcorre
entre a causa e o efeito tem muita importância, pon1ue, nós o
sabemos, muito pequeno, torna a distinção dos dois têrmos
pràticamcnte inútil, pois neste caso não se poderá agir sôbre a
causa tanto quanto sôbre o efeito. Ao rontr:lrio, se um tempo
prolongado transrorre entre a causa e o efeito, é óbvio que
tôda sorte de acontecimenlos pode ad\'ir capaz de impedir a
produção do conseqüente". (li) Os acontecimentos que se veri-
ficam no intervalo entre o antecedente e o conseqiiente podem
ser classiricados em três categorias: 1) - fatos que não favore-
cem nem entravam a consecução causa-efeito; 2) - Catos des·
favoráveis à produção do efeito; 3) - fatos fa,•oráveis. Os
adeptos da metafisica da revolução passam por cima da reali·
dade intima do intervalo social e, num otimismo leviano, acre-
ditam que o efeito decorre necessàriamente da ca11sa. Aplica-
se à realidade social o raciocínio de Dupréel: "jamais se pre·
tende que a causa baste absolutameme, admite-se que são ne·
cessárias ainda condições, circunstâncias, isto é, presenças e
ausências complementares ela causa; enfim admitem-se impe-
dimentos, obstáculos". (18) A revolução brasileira não é um
processo exterior à subjetividade do corpo político que pretende
representá-la, mas é afetado por ausências e presenças, omissões
e atos. Ela tem o seu quadro de probabilidades, entre as quais
IHH \"l:RU.\11•: lJ.\ ltY.\'Ol.tJÇÃO BRASll.F:IRA

se encontra a do abôrlo. Tanto em tese como de fato, não existe


jamais a "causalidade como um determinismo necessário". A
<·au.\a situa-se num quadro de probabilidades. Escreve Dupréel:
",.\ causa, própriamente, não é senão peça dêstc quadro; para
rcprcsenlil-lo em sua integridade, é preciso acrescentar o con-
junto de fenómenos que, independentemente da causa, virão
c-ombinar-se com esta no intervalo que separa a causa do efei-
to." (1º) A noção de intervalo social serviria admiràvelmente
para debelar o vicio metafísico e o otimismo ingênuo que
acomete muitos dos no55os revolucionários, se esth•essem dispos-
tos à renexão.
A revolução no Brasil cone o perigo de transformar-se em
metafísica. Esta deliciência .de nosso movimenLo emancipador
lem de ser corrigida, não só pela crítica revolucionária, como
simultâneamente pela diligência de homens de vanguarda, mo-
bilizados em trabalho político adequado realisticamente às
circunstâncias objetivas e concretas do processo brasileiro. A
anarquia é um csiado social fcrundo, do ponto de vista revolu-
cionário. Mas na ausênda de C'apaz e idónea organização revo-
lucionária, a anarquia reinante hoje no Brasil pode conduzi-lo
11 modalidade de colapso econômico, social e político, de 1111e
a Argenlina é hoje a imagem \'i\'a.
As analogias são perigosas e enganadoras. Não obstallle,
não se deve desprC'.mr a lição que pode estar contida em do-
cumentos de nossa história política transcorrida. Um desses é
certamente o panfleto de Justiniano José da Rocha, publicado
em 1855, Ação; Reação; Trnnsação. Quando em 1899, Joa-
quim Nahuco publica a biografia de seu pai, Um Estadista do
Império, ·~i cscre\'C: "para o estudo da evolução monárquica, ler
rnda palavra dêsse opúsculo". Hoje, ainda continua digno de
intcrêssc. Justiniano José da Rocha ê um dialeta c:aboclo, um
dialcta por (ôrça de sua humildade ao real. Como um hege-
liano, à maneira nativa, viu o processo polilico nacional, como
transformação dialética, da qual são categorias a ação, a reação
e a transação, palavras que intitulam o livro e definem seu
sentido. Começa dizendo:
··o estudo refletido da his16ria nos patenteia uma verdade.
iguahnen1c pela razão e pela cii!nda do polilico dcmonslr.ida.
:\;a lula clema da autoridade c."0111 a liberdade hd perJodos de
llaunc;ao, em 11uc se rcali!a o progrcs~o do esplrito humano e
se fim1a a eo11quis1a da civiliz<1çlo. As conslituic;õcs modernas
mesmas uão sllo senão o lrabalho defi11itivo dos periodos de
lransa(llo.
1u:vm.uçÃo ou JORNADA m: OT ..\Rtns;. IR9

Chegados os povos à fase em q11e a reação não pude pro·


grcdir, em que a ac;iio esmorece, cumpre que a !ll1bedoria dos
1eus governanles a reconhcc;a, ai pare, e pelo c:s111dn da sucie·
dade descubra os meiO!I de 1rawr a um jmto equililnio o;
principio& e elementos que haviam lmado. Se a imprudência
nllo quer reconhecer a nova fase, se a loucm·a n111trari:t o 5cn
desenvolvimento, se proS11Cgue na 511a rnnquis1a de !"cação. e a
quer IC\·ar acs seus últimos limites. a ação torna a pmduzir-.e,
a exagerar-se e vence a sociedade, prêH de um Ít':r1·co e s;mii;ui·
nole11lo circulo de paixõL'S e de desgraça~. aniquila-se nas rufna5
das discórdias civis.
A fase de transação e pois a 11ue exige mais prudê-nda. mais
1ino, mais devoção nos estadistas a quem e confiada a fc'\rça
governamental e a alia direção dos públicos 11cgócio'I; pnis se
a não sabem ou não querem reconhecer, se a não CJUC!l.'111 nu
não sabem facililar, se ainda mais a contrariam, pnm1cam cala·
midades a que depois nlo há sabedoria que p05Sa acudir."(~"')

:t de notar-se que a transação, para Justiniano, tem pleno


sentido dialético, muito próximo do que Hegel exprimia com
o verbo aufheben. A transação, aqui, não encerra nenhuma
carga moral negativa, é c:ombinação de superar e conservar, C
simese. A transação, em Justiniano, "realiza o progresso do
espirita humano", e "firma a <:enquista da dvilização" . .Justi-
niano escreveu o seu opúsculo para justificar a conciliarií.7, o
gabinete do Marquês de Paraná, que realizou obra de padfka-
ção política e propiciou o reajustamento do poder às necC.'i.\i·
dades vigentes do Pais. Justiniano via "o presente como hist1'1-
ria" e sua análise não esconde uma intenção de esclarereNe e
esclarecer o que chamava a "razão pública" ou a "razão nacio-
nal", tendo em vista guiar o presente. É o nosso Sweezy mcs1iço
do século passado. Não tem exemplaridalie em nossos dias o
significado literal de Arão; Reação; Trnn.roção. O autor rnnfia
na magnanimidade dos poderosos e reclama a conciliação como
outorga. "Cumpre - diz êlc - que o poder cspontâneameme
se desarme de quanto lhe foi dado, não por ser-lhe essendal
para desempenhar os seus tutelares encargos, mas cm atenção
a circunstâncias exccpcionais da posição cm que êlc se viu rnlo-
cado; cumpre-lhe renunciar ao arbítrio com que suprime n
liberdade individual, com que subjuga a nação militarizada.
Cumpre-lhe ver entre as idéias que os liberais puseram por
diante nos dias de suas lutas (idéias que felizmente foram escri-
tas em três programas notáveis) quais as que satisfazem as ver-
dadt:iras necessidades públicas, quais as que, sem perigo, Uão ao
elemento democrático algum quinhão na organização política do
país; cumpre que o que é elo povo seja restituldo ao po\'0."(2 1)
190 :\UTO E \'ERDADE DA RF.VOLUÇÂO BRASILF.IRA

A idéia magnânima do poder é a principal inatualidade do


texto de Justiniano. O que conta, neste opúsculo, é o esfôrço
de sabedoria política nêle refletido, sabedoria filha de expe-
riência pedestre, e não de aprendizagem livresca, induzida di-
retamente das circunstâncias e não deduiida de fkçõe~ com:ep-
tuais estranhas à realidade nacional.
Vivemos hoje um período que lembra o que inspirou a
Justiniano o seu opúsculo. A crise se declara aguda no próprio
centro do poder. Queremos dizer: não existe, hoje, no Hrasil,
como discreto corpo político, informalmente organizado, sem
prejuízo de sólida consciência de seu papel, um centro de po-
der. Carecemos de diretório político, como conjunto de homens
dotados da compreensão instrumental do poder, nos quais
esteja representado o projeto de emprêsa nacional, como tarefa
transcendente às episódicas lutas sociais. tsse diretório sempre
existiu no passado, tanto na monarquia como na república,
com períodos curtos de desagregação, semelhante ao que pre·
senciamos nos dias correntes. tsse diretório pode ser reconsti-
tuído, faltando para tanto que as personalWades diretoriais,
ji existentes isoladamente, se encontrem e coordenem na
execução de um eslôrço compositivo do nôvo centro de poder.
A atual crise brasileira, malgrado os seus efeitos deterio-
rantes no domínio econômico, financeiro e soci::tl, até agora
não gerou polarilações agudas que permitam surgir um movi-
mento te\•olucionário adulto do ponto de vista da organização,
da ideologia e da liderança. Até esta data, o que caracterila
êsse movimento é a imaturidade, que o tem exposto im·ariil-
velmente à frustração. A vigente e1trutura social tem assimilado
as crises nas relações de classe. O Estado é complacente com os
líderes revolucionários e, com algumas de suas agências e fi-
guras mais expressivas e atuantes, parece ter estabelecido mo-
dus vivendi, espécie de pacto tácito, mediallle o qual se regula
o trabalho de agitação até onde convém às claúsulas subenten-
didas. Nestas condições, seria impróprio arirmar que a revo-
lução no Brasil est:í avacalhada. Mas, sem nenhuma dúvida,
quanto à sua liderança, sofre de grave insuficiência vital, que
a converte numa gesticulação ames que num empreendimento
conseqüente, sério, arriscado.
Ocorre, entre nós, que os círculos conservadores não estão
suficientemente minados em suas bases e destituídos de meios
para não poderem repelir, com eficácia, ameaça grave aos seus
interêsscs essenciais e, por outro lado, não existf' liderança ca-
Ri:\'Ol.l"ÇÃO 01· JOR:-\AI>.\ l>t'. c1r.\R1os? 191

pacitada para fazer da revolução um fato nacional, manifes-


tação coletiva do povo brasileiro, configuradora de nõvo poder.
A revolução, no Brasil de hoje, é idéia-fôrça, não é processo
político orgânico. Por isso, os revolucionários podem ter êxito
como personalidades isoladas, mas não como expressão de um
romando da revolução, nacionalmente unificado.
Mas esta siluação é nltidamcntc imervalar, hiato entre
um período de nossa evolução que se cstoí encerrando e outro
que pretendem representá-la e servi-la não se dcsvencilharem
tucional. Para ser superado tal momento é necessária uma
transação no sentido dialético em que usou a categoria Justi-
niano José da Rocha, isto é, são necessárias alterações no pacto
do poder, que possibilitem decisões conseqiientes do Estado,
mediante as quais se efetivem as chamadas reformas de base,
sem as quais o desenvolvimento do País não pode prosseguir.
Convém advertir que transação não equivale a concilia-
ção. O Brasil de hoje atingiu a um estádio de sua história,
marcado por um conflito, que uão se verificava rom idêntica
natureza nn época de .Justiniano, entre o esrbrço nativo de
acumulação de capital e os titulares do latifúndio pré-capita-
lista, bem como do capital estrangeiro responsável pela expio·
ração predatória de nossos recunos. Em tais condi\'ÕCS, a tran-
sação de que se fala aqui tem por substrato a união nacional,
sem prejuízo, aliás, da luta de classes no interior dêsse disposi-
tivo solidário, para efeito de emancipação geral do povo brasi-
leiro.
A revolução brasileira será mistificada, se e enquanto Os
~~ec!tf:i~=~~~b:i~~r~e~~~l~ç~os~;:;~~ei~!ºh~je de~~~e~~:~~~~~
dilema: mito ou verdade. Aos otários - o mito. Façamos a
revolução - segundo a verdade da história nacional.

NOTAS
(1) Vide Nalhan A. ScmT, Jr., '"The Broken Cenler: ,\ Delinilioa nf lhe Cri~ll
in Modem Literamrc'", caplmlo de Rollo May (edilor), symboliJm in Re·
ligirm .rud Ll1ena1u..e. New York, 1960, p~g. 184.
(2) Vide Oi;ivio Tarqulnio de SouEA, llist6ri.r dos F1mdadoreJ do lmf"rio do
llruil. Vol. 1, }osl B011if1kio, Rio, 1957, J>llg. 251. Di• O. Tarqulnio de
Souza: ""Ganhar D. hdro ~ra a caullõl emancip.:ulnra pareceu com raZlo
ao grupo de pairiotu do Rio de janeiro da maior significaçto; teria dar
à revoluçlo da irulepeodência um carilrr nacional, TC•guardada a unidade
br.uilelra" (J>llg.161).
192 '.\flTO F. Vf.RDADE DA RP.VOLUÇÃO BRASILEIRA

(.S) Vide Euclides da CUNHA, 01 !Jt1rliie1. llio, 195f, P'f. 183.


(4) Vide Oli\'t'ira VIANA, O ldnlismo d11 Ctnuliluiflo, 2.• edição, li.lo, 19!9,
pjt.. 19. Rl:ftte·se o autor aos "que compunham o pequenlulmo nddco,
que se constiluiu em ocnno de reação conser1·adom. 2s1c1, n&o obstante a
sua formação mental, 1inh1m muito viva a consci&ncia dos grandes ob)etl-
do Escado em nosso povo: pouulam f11e sen1!do lmperlalllla e nadonal111a,
quera dizer, fetc sentido do poder ccnnal e do seu papel na ordem poll-
lica e 10Cial do Pais, que cnaacri•a a mentalidade do:I grandes estacfü111
do lmpftio. de tipo cons1ru1ivo e consl.'TVador. Na ConSllltuintc de 23, o
csplrito mais rcalla!a, mais pragmlliSla, mal1 segura das noaa1 realiciada
na. sem d611id11, Vergueiro."
(~)Vicie Ollvcln. V1Aw11, lii"'1hlrfo do l'o"° Brarilciro. Terul.ra ediçllo, Rio. 1938,
P'gs. 287-288. Dii O. V.: "O llei l:, pois. a JJC9I mestra de lodo o mea-
nismo do go\'f;ITIO nac:ionnl, conarulilo pelo:s estadist11 imperiais. l11n, em
16das u suas aç!ies, inspiram.se, por isso, no principio da hnangibilidade
dessa ~ CS1Cm:ial: nlo lhe consentem nenhuma inodificaçlo, nenhuma
al1en11~ nenhuma l"Cslri(lo à s11a iníluéncia. Com ela, jogando.a com
habilidade, éln rcalizam li• dua• grandes miulles do poder cennal do pal1:
a unifii:açlo da nacionalidade e a orpnizaçlo da sua ordeia legal. Sem ela,
nlo leriam ~alizado a primeira e, por1an10, nlo teriam realiiado a aq;unda
- seriamos hoje lalvez um aldonlOlldo de pequenas repdbllcas dnorpnl·
niiad11."
(6) Vide Visconde do U1111tUAI, l!n1'1io SIJ/m: o Dirtilo Adminiltraliw. Tomo J,
Rio, 1802, ptgs. 269·270.
(7) Vide C. Wrigllt M11.u, A E./i111 do Poder. Rio, ptg'. 28.
(8)1DEM',fil•J!I•
(9) IDEM', p~g. SI.
(10) Vide Gilberto A)llADO, E/11i(&o 11 R11prrun111,110. Rio, 1951, p.;lg. 192.
(li) IDEM, p;ig. 193.
(12)1m:N,pllg.195.

....
(U) Vide Joaquim NAIUCll, Um E11adi1/a da l111J>hio. Tomo J, Rio, 1936, p'J.

(14) IDPI, pfg'. 76.


(U) IDEM, pAg. 21.
(16) ln&M, ptg. 21.
(17) Vide 1!.upne DurúEL, Euais Plurali1lr.1. Paris, 1~9. fig. iOI.
(IB)lm:M, fig. iOI.
(li) IDZM, ptf. 202.
(20) Vide R. M.teAUl.llEll JúNm11, Trl1 PanfklArios do Segundo R11infldo. Slo
Paulo, pigs. 163·164.
(21) IDEM, pig. 217.
APÊNDICE 1

A Filosofia do Guerreiro
sem Senso de Humor

O J.6c:1co: Assim, vejamos um silogismo exem·


piar: O gato tem quatro polas.
O SF.11111oa IDOSO: O me11 cachorro tem qu111ro
p11ltu.
O L6G1co: Enliio ' um gato.
(IONISCO, Rinoceronle)
"Todtry . .. ideologies are exhawted."
DANIEi. B11.1,

" ... o "falso" ' um momento do ''vudadei·


ro" ... " Lt1UC!I

"NIJ.o l1d um sd homem que nlJ.o deseje ser


um d'spola quando ~ld. excitado ... lle f!JS·
ta ria de esl11r s6 no mundo .•• qualquer espi·
cie de igualdade d111truiria o dispotismo de
que desfruta então." r.larquh de SADI

FR.EQÜENTEMENTE sou SOLICITADO a pronunciar-me sôbre o livro


do Sr. Alvaro Vieira Pinto, Con.sciência e Realidade Nacional
(1960). Alega-se que o livro em aprêço é notôriamente influen-
ciado pelo meu pensamento e, em particular, pela concepção
que formulei em A Redução Sociológica (1958). Julgo agora,
por mil razões, oportuno sair da discrição em que me mantinha,
e emitir um juízo sôbre a contribuição do a~ual diretor do
ISEB. Aqui o têm, desdobrado nos seguintes itens:
- Deformação Direitista da "Redução";
- Guerra e Paz;
- Contradição e Magia;
194 :\llTO F. \'ERDADE DA RF.VOUJÇÂ.O BRASILEIRA.

- A Consciência Determina a Consdência;


- Nacionalismo e Alienação;
- Nacionalismo Antioperário;
- O Riso é o Limite;
- A Consciência Crítica e a Crise de uma Consciência;
- Nacionalidade e Totalidade.
Nada há mais confortador para um intelectual do que
verificar a irradiação do seu pensamento. Por is.so comecei a
ler CRN com encanto, na expectativa de ver desdobradas teses
particularmente gratas a mim. Não era infundada minha ati-
tude. O Sr. Ah-aro Vieira Pinto é devotado estudioso de ques-
tões filosóficas, erudito dos mais ilustres em nosso Pais. Logo
nas primeiras páginas, porém, senti a debilidade técnica do
livro. Ao terminar sua leitura, conrirmava-se o sentimento, ou
melhor, a con\'kção de que CRN é, quando muico, caderno de
aprendiz ainda imaturo. Pode-se avaliar, portanto, quão de-
sagradável e penoso para mim é não poder louvar CRN, como
esperava. Pode-se alvitrar que, nesse caso, poderia ocultar o
meu parecer. Mas C.:RN não compromete apenas quem o
escreveu. Pela posição elo Sr. Álvaro Vieira Pinto, professor
de uma faculdade e diretor do ISEU, hoje transformado numa
agência de militarização intelectual, os nefastos equívocos de
que esLá afetado o livro podem generalizar-se e comprometer
o desinteressado trabalho dos que lutam pela renovação cultu-
rcil do Brasil, entre os quais se inclui o próprio autor do CRN.

Defonnaçiio direitista da "redução"


Para começar, própriamente, a expor o nosso juízo crítico,
afirmamos que, de modo geral, Consciência e llealidlJde Na-
cional é uma deformação direitista de A Redução Sociológica.
Neste, a posição de compromisso do autor com a realidade
nacional não prejudicou, acredito, o rigor, os requisitos cien-
tíficos. Em CRN o projeto de elaboração rigorosa foi sacrifi-
cado pelas emoções e até pela exaltação. Emoções e exaltação
compreensíveis e louváveis, mas que não têm o direito de se
sobreporem à objetividade, sem a qual nenhuma elaboração
pode qualificar-se para a cidadania rultural. Confrontemos
195

alguns textos. Em RS afirmei que, num país subdesenvolvido,


a qualidade cientifica de t1ma produção intelec:tnal é tanto
maior quanto o produtor "adota sistemàticamente uma posição
de engajamento ou de compromisso consciente com o seu con-
texto" (pág. 75). Mas advertia na pág. 76:
"O comprmni5.~o de que se fala aqui. na 1nedida que seja
sistermltico, sillla o cie11tista no fxmto de vi•tn 1mi1JCl'&t1/ dn
com1111idade 1111n11m111. O regional e o nacional. em l:tl compro-
misso. não silo t.Jrmos firiais, sllo ll-nnos imediatos de concrc-
tiiaçlio universal" (os grifos sio do presente texto).

O Sr. Álvaro Vieira Pinto assimilou mal a idéia da com-


patibilidade entre o pensar rigoroso e o comprometimento, e
foi levado a verdadeiros absurdos como êste:
"Desde que a nação à qual perten~ é única, pois para mim
nlo hã ou1ra, é por iwi mesmo universal. t o universal con-
crc10" (pá.g. 369 - 2.º \'ol.).

Note-se bem. Apal'entemente seria admi.sshtcl dizer que


a nação "é o universal concreto", se o autor fizesse apêlo à
categoria de mediação. De fato, o universal se reflete no..~ obje-
tos concretos, como a nação. Portanto, mediante êsses objetos,
chega-se ao universal. O universal não se dá a conhecer como
tal, direta e abstratamente. 1. por meio do sen reflexo nas
circuns1âncias que o apreendemos. A nação "medeia", se me
permitem, o universal. Mas não é o próprio universal, o uni-
versal "em pessoa", finalmente concretizado, como afirmou o
Sr. AVP. Talvez êle mesmo se assuste com o <1ue disse. Não,
a nação não é um "têrmo final" do universal, é preciso repetir.
Dizer o contrário seria incorrer em deliranle nacionalismo. Mas
infelizmente não está longe disso o Sr. AVP e para demonstrá-
lo leiam-se os seguintes enunciados:
" ... o real se apresenia como o .lmbito da existé11cia nacio-
nal" (pág. 555 - 2.0 vol.).
" ••• se pergun1annos pelo que é a nacionalidade, lerem~
de de[ini-la, em primeiro lugar, como a realidade objeiiva"
(p:\g. 554 - 2.º vol.).
"A historicidade objcliva ... agora sabemos ser a da naçl.o"
(pág. 555 - 2.0 vol.).
"Para d(ICObrir a racionalidade própria do real é preciso
ter a configuraçao déle em cs1ru1uru nacionais ... " (pãg. 558 -
2.0 vol.).
196 MITO E VERDADE DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

Poderíamos multiplicar os exemplos em que se exprime o


desconcertante mal-entendido filosófico que é CRN. O Sr.
AVP revela ter feito leituras de Hegel, mas, ao que parece,
apressadas. Por isso não chega a ser mesmo um hegeliano, pois
não entendeu o mínimo essencial da doutrina do filósofo ale·
m:!o. O Sr. AVP fêz uma p:losa do famoso dito de Hegel: "tudo
que é real é racional, tudo que é racional é real". Diz o Sr.
AVP: "tudo que é nacional é racional". Primeiro, a palavra
real, em alemão, tem conotações que o adjetivo "real", na lín-
gua materna, não pode reproduzir, e, portanto, uma coisa não
equivale a outra. :t grave que um lente de escola superior não
se dê conta disso. Nem é preciso saber alemão para aprender
corretamenie o sentif.lo hegeliano do "real". Que história é
essa de "tudo que é nacional é radonal", identificando o "na-
cional" com o "real"? Leia o Sr. AVP a Introdução à Filosofia
da Hi.sldria de Hegel e veja ali, quando se descreve a sucessão
de períodos e povos, como o "real" tem um sentido mais trans-
cendente do que o Sr. AVP imagina. Verá o Sr. AVP, depois
de atenta leitura daquele texto, como em CRN entrou numa
briga errada da parte contra o todo, como o "real" hegeliano
não pode confundir-se com a "realidade nacional", com o con-
tingente "real nacional". Na maneira obtusa de entender He-
gel, o Sr. AVP repete Vissarion Belinsky. Quando Belinsky
leu Hegel pela primeira vez, entusiasmou-se tanto com o dito
de que "tudo que é real é racional" que aderiu ao regime
autocrático russo. Depois se apercebeu do sentido dialético do
enunciado e, da noite para o dia, tornou-se revolucionário. O
Sr. AVP é um temperamento eslavo.
.. Nada é mais real do que a nação" (pág. 560 - 2.0 vol.).
:Esse tipo de nacionalismo passa do limite de tolerância. O
pensamento redutor que lastreia o es(ôrço de fundamentação
da cultura nacional nada tem a ver com a leviandade de afir·
mativas como essa e outras abudantes em CRN. A redução é
assunto sério. Na sua perspectiva, é hilariante dizer-se que
"nada é mais real do que a nação". Mais real do que a nação
é por exemplo a comunidade humana universal, ou, simples-
mente, a humanidade. Por isso escrevemos, em RS, depois de
nos referirmos a trabalhos de autores europeus:
"Há ainda um v!cio europodntlico em tais estudos ... Aqui
1e verifica um limite impõsto ao estudioso europeu. A 1ua
prática social entra em conflito com a prática do estudioso
197

de regiões subdesenvolvidas. O estudioso europeu só poder!


ultrapassar hse limite se, par um ed'6rço de "desidcologização'',
adolar, em cariler sistemático, o ponlo de vista ruliverml do
comunidade l11tmana" (o grifo é de agon) (pág. 81).

O pensamento rigoroso está ao alcance de todos, indepen-


dentemenle da contigência nacional. O Sr. AVP, conseqüente
com os seus bizarros postulados filosóficos, vai a ponco de
proclamar que o pensador do5 países desenvolvidos estí1 conde-
nado à impotência de apreender o real. O europeu foi exilado
da ciência e do saber pelo Sr. AVP. O europeu, como todo
cidadão de nações desenvolvidas, carece de consciência rritica.
t pobre criatura dominada pela consciência ingênua, uma espé-
cie de Candide vagando entre as coisas. É esta enormidade que,
além de outras, o Sr. AVP afirma no seguinte trecho:
"A nação supcrdescnvolvida perde a sensibilidade para a
história, que lhe aparece como um relato de acontecimentos
des1inado a sancionar a dominação que osien1a. bqucro-se de
que sua siiuaçao é produ10 de longo esfô~ coroado do exilo,
que a atual prosperidade se explica por um processo de descn·
volvimcnto, no curso do qual mui1as vidui1udcs poderiam ler
alterado o desfecho, para ela, feliz. se a fidelidade a uma ali\'a
convicção ideológica não a 1ivcssc sustcn1ado. Chegado ao apo·
geu, a nação dominante nllo tem outro inlerêssc senão cnteTTar
a história. E o modo como lenta fazê.lo é 1apar os ouvidos i1
'\"OZ da consciência que foi a sua. e agora lhe é molcs1a. Olvida
o seu efe1ivo passado, ao vi!·lo do ápice do presente. pois
interpreta as etapas anasadas vencidas como meros ol»táculos
de valor lúdico, que se compraz cm referir apenas com o fim
de melhor gozar, por con1ras1e. das riquezas que atualmcrue
possui. Não se recorda do wMmento real que é o estado de
subdescnvolvimen10. <111c para ela é coisa definitivamente re\'O·
gada, nem admi1c que cm algum momcn10 tivcs'IC a conscién·
eia de pais 5ubdesenvolvido... Ao cons1ituir c1n ideologia, se
tal têrmo se lhe pode aplicar, o desejo de que nada mais acon·
teça, decai na atiludc ingênua" (pág. 9!1 - 2.0 vol.).

O Sr. AVP se sente em guerra filosófica. Seu nacionalismo


é doutrina de guerra, em que os países subdesenvolvidos vão à
desforra contra os seus antigos colonizadores. Diz êle:
"'Crescemos vegetativamente na penumbra do tempo. sem
trazer qualquer con1ribuição li realidade, tal como a considera
o historiador do pais deienuolvido que se arroga o direito de
assinalar o nosso lugar na cxisteDda universal, e nem discute,
198 :\llTO E n:1m.\DE DA R~'.VOl.l"\J\o BRASILT~IRA

e 1alvc-1: nem perceba, o apriorismo, o partidarilmo, a intcn·


cionalidade da sua coniprccnsão. A r11ls cornprle·nos fazer con1-
denlem<'11le e par11 n6s aq1d/o q11t1 o l1idoriador faz inronscirn-
lrrm:nle r f1ara llr; inlerprctar o mundo m1 pcrspectiva de quem
se acha im•cslido de intcri'SSCS particulart'!i, localizado$ no tempo,
no espaço, na classe, n:t na1;lln" (os grifos silo nos1os) (p:igi;,
556-557- 2.º l"OI.).

A redução não é arma de rC\'illlche. Não podemos deixar


de, energicamente, assinalar que seria tolir.c convcnê-la cm
expressão de ressentimento. O Sr. AVP despolicia 05 seus senti-
mentos e os leva ao plano filosófico, onde não podem ter aco-
lhimento. Todo o livro - dir-se-ia estar o autor sob o dominio
de um amok - de ponta a ponta está marcado ele confusão
sentimental. E a sua manifesta imperícia poderá levar os <1ue,
neste Pais, têm sincero interêsse pelo conhecimento a repelirem
horrorizados o que se tem chamado de atitude redutora e o
que bá de legitimo no esfôrço de renovação da cultura nacio-
nal. Não foi fortuitamente que em RS falei no "ponto de
\'ista universal da comunidade humana". A nação por fa:r.er,
nos países subdesenvolvidos, só é uma referência rica, em1uanto
aspecto efêmero da comunidade humana unfrersal. A comu-
nidade humana universal é mais real do que a nação e, assim,
mesmo nos centros metropolitano.~. a objetividade está ao alcan-
ce do pensador. Insistimos: é es1ridente asnice "definir a na-
cionalidade.. como a realidade objetiva" (pág. 55'1 - 2.0
vol.). Faria bem ao Sr. AVP o estudo de Kant. Por incrivel
que pareça, existe em Kant contribuição esclarecedora para o
que se afigura ao Sr. AVP conflito insanável entre a condição
metropolitana e a objetividade. Todo o opúsculo de Kanc,
escrito em 1784, ldéia de Uma História Universal do Pomo de
Vista Cosmopolita, refere :'l espécie humana o progresso da ra-
zão. Kant antecipa Marx, quantlo diz: "O problema essencial
ela espécie humana, aquêle que a natureza constrange o homem
a resolver, é a realização de uma sociedade civil administrando
o direito de modo universal.''( 1 ) (O grifo é nosso.) Foi ado-
tando êsse cosmopolitismo que Marx chegou a formulações ver-
dadeins e corretas. Para êle, a classe operária é universal porque
é a humanidade despojada de seus dons e atributos. Na ver-
dade, em Mane, a categoria de comunidade humana universal
sobrepuja a de classe operária. A racionalidade, pressupõe bà-
sicamente o referido opústuto de Kant, é menos atributo de
indivíduos, grupos ou nações do que da espécie humana em
conjunto. Taxativamente escreve Kant: "N'o homem (enquan-
199

to ímica criatura racional sôbre a terra) as disposições naturais


que visam ao uso ela razão não podem ter completo desenvol-
vimento no individuo, mas sõmente na espécie." (2 ) Posterior-
mente Marx polilizou Kant, identificando a espécie alienada
com a classe operária espoliada. Mas a classe operária, no caso,
não tinha pátria, por definição. É internacional por natureza.
Marx, êle próprio, não era, não podia ser nacionalista, embora
soubesse compreender e apoiar os nacionailstas posili\'OS, e abo-
minasse os nacionalistas de direita, os Álvaro Vieira Pinto de
seu tempo. Em Kant, a "comunidade humana" era rclcrênc:ia
filosófica do pensamento, embora não lhe tenha mnccdido n
dignidade de um lugar na tábua das categorias do pensamento,
romo, confundindo o addental com o essencial. o fêz o Sr. AVP,
no quadro de categorias da consciência crítica, aí induindo a
nação, ao lado da totalidade, da racionalidade, da liberdade.
Leia-se Kant: "Ao egoísmo não se pode opor senão o plurn-
lismo, isto é, a maneira de pensar que C"onsistc em não mais se
considerar e comportar como um ser que contém todo o uni-
verso em si, mas como simples habitante do mundo." (3 ) É
porque se consideram "habitantes do mundo" <1uc akançam a
objetividade europeus, como Myr.clal, Perroux, e alé norte-ame-
ricanos, como Paul Baran e o saudoso Wright Mills. TransC"Cll·
<lendo a nação norte-americana, situando-se na perspectiva da
comunidade universal, Wright Mills produziu um pensamento
objetivo, cujo conhecimento talvez servisse ao Sr. AVP como
remédio para o seu provincianismo. Cidadão norte-americano,
o Sr. AVP, seguindo à risca a receita de CRN, seria :McCarthy.
No Brasil é um cripto-reacion/1rio. Vença o Sr. AVP o seu so-
lipsismo intolerante, assimile os escritos de Kant sôln·e filosofia
da história e néles já encontrará, como disse Lucien Golclmann,
"quase tôdas as categorias fundamentais da futura filosoíia da
história de Hegel, Marx e Lukacs", (4 ) autores dos quais se
acredita hoje muito próximo o diretor do ISEH.
t de justiça observar que o Sr. AVP vislumbrou, em certo
~:cm::º·a1~ ~i!te1:~a~~:i~:.ea~~~e :C~:i~~~:;. V~~~i:~1~o~
abandonar o seu nacionalismo e a livrar-se da tentação de aban-
donar sua idéia fixa, e prosseguiu identificando a nação com a
humanidade. Aqui esti\ o flagrante:
"A questão de saber se algum dia a humanidade por inteiro
\•id. a ser uma dnica forma responde·se declarando que de·
penderá do processo hb1órico. Se a realidade 5e tornar um
200 MITO E \'Jo:lUlADE DA Rl:\'OTXÇÃO BRASIU'.IRA

complexo de correfações materiais pacificas tão amplo que incor-


pore a totalidade dos problemas humanos, 011 seja, se, em con-
seqiiéncia da conquista, pela imensa maioria das populações da
terra, de um estado de desenvolvimento econômico isento de
desníveis e de um sistema de relações sem imperialismo nem
dominações, de tal modo se unifirarcm os interesses reais dos
homens que possam ser apreendido~ por uma consci~ncia uni·
tária, nada impede que a categoria de nacionalidade venha a
~e oonfodir com a de humanidade. Para isso, porém, (; neccs-
s.1.rio que se tenham resolvido as contradições que atualmente
wmpanimcntam a comunka~ão humana. diferenciando os su·
portes desta cm :\rcas amagônicas. Em nome da teoria
empirica da história, eximimo·nos de profeiizar que tal uni-
ficaç~o de in1er(>sses venha a ocorrer. Nenhuma lei indu-
tiva a toma necessária, como nenhuma lei dedutiva a e\;\ por
impos.dvel. Se ocorrer, será fato empírico, a que corresponder:!.
naturalmente uma conscii'ncia unitária, por enquanto impre-
\islvel no ~eu conlCúdo. Seria preciso clemonstrar a inviabili-
dade das atuais formas poHticas de conviv(>ncia nacional, cm
face do progresso do desenvolvimento eronômico, da resolução
dos antagonismos de classe. para concluir pela inevitabilidade
futura de transformaçlio da humanidade cm pátria única. Mas
nenhum aspecto da realidade atual nos ob1iga a acredirnr que
i~m tenha fatalmente de acontecer, por não ha1•er outro meio
de imtalar a cocxisti!ncia pacifica de todos os grupos huma-
nos. O que a hi•Hória agora no~ indica <: que a representação
da realidade pol!tica admite como conceito envolvente a cate-
goria de nacionalidade" (pág. 30!i - 2. 0 vol).

O Sr. AVP é irreme<li<ívcl antropomorfista. Recusa-~e a


adotar, alçando-se~ companhia de Kant, Hegel, Marx, Lukacs e
outros, a humanidade como referência-limile do pensamento,
~implesmente porque hoje existem "contradições que comparti-
mentam a comunicação humana, diferenciando os suportes desta
em <ireas antagónicas". Nega a essênda mesma do filosofar,
que consiste em desvendar as virtualidades ocultas sob o empí·
rie. í.le congela o empírico. Aceita a compartimentação huma-
na como dado filosófico. "t evidente - diz êle - que reconheço
a existência de outras (nações) além da minha, mas êste sim-
ples conteúdo do saber não basta para me fazer viver a rea-
lidade delas; são sempre estranhas . . " (o grifo é nosso) (pág.
369 - 2.0 vol.). :É aberrante 1 À luz da filosofia, as outras na-
ções, os outtos em geral, são sempre familiares. O Sr. AVP é o
guerreiro sem senso de humor, é o guerreiro iracundo, o guer-
reiro colérico. Referindo-se à nação, êle diz implacável: "Não
acabamos nunca de realizá-la" (pág. 199 - 2.0 vo\.). E de sua
~inistra determinação se infere a atitude metódica de - inimigo
da humanidade.
A FILOSOFIA DO GUERREIRO 201

Contradifão e magia
CRN é abundante em enunciados que se anulam reclpro·
camente. Diz-se aqui uma coisa e ali se diz o dito por não
dito. Vimos anteriormente como o Sr. AVP vê a nação superde-
senvolvida aprisionada na atitude ingênua. lsso não lhe impede
de afirmar exisLir uma correlação positiva entre desenvolvi-
mento e poder de objetividade. Na p:íg, 386, 2.0 vol., êle diz:
"A consciência do pais subdesenvolvido ~. por namreu.,
alienada."
Duas páginas adiante (pág. 388) afirma:
"A nac;lo desenvolvida é, por definição, dotada de cons·
cil'!ncia autl'!ntica."
Já agora mudou 180 graus o Sr. AVP. Se fôsse conseqüente
com o que escreveu à pág. 93 do I.º vol, já reproduzido, de-
veria afirmar que "a nação desenvolvida é, por definição, dota·
da de consciência ing!nua". Agora, porém, dá marcha à ré.
Escreve:
. . . só a oonscll'!ncia daqueles que pcrt~nccm ;b ci:1pas
mais avançadas do procc550 hist6rico universal, os expoentes da
cultura dos palses econõmicamente mais adiantados, para a
época considerada, têm condiçi!cs para representar com plena
veracidade o mundo real" (pág. 389 - 2.0 vol.).
Observe-se que o Sr. AVP diz que, "sendo atrasada a estru-
tura material" que serve de base "à consciência do país subde-
senvolvido", é esta consciência, por natureza, alienada (pág.
386 - 2.0 vol.). Por conseguinte, onde houver mais atraso ma.
terial, haverá mais alienação. Por exemplo, o Nordeste do Bra-
sil deveria ser, do ponto de vista da consciência coletiva, mais
retardado do que o Sul. Mas o Sr. AVP nega-se a si próprio:
"Nio tem sentido dizer que o Brasil adian1ado seja o do
1ul e o atrasado o do norte. Muito ao con1ririo, a rigor deve-
ria dizer.se que o Brasil adiantado, do ponto de vis1a da cons·
ciência nacional 1otal, tende a se encontrar em maior proporção
no Norte e no Nordeste, onde 1c estão gerando as condi~6cs de
um pensamenco renovador e revolucionário a1uantc, e por isso,
mais caracteri~do pelo sentido nacionalista. A menlalidade
nat:ionalis14 das regiões se1entrionai5 não se deve a rcslduos
coloniais, à reminisdncia de invaslies esuangeiras, ao primi·
tivismo da existl:ncia, mas exatamente ao progre"o da cons·
dilncia social, que, pelo mecanismo dialético jã apontado, se
m05tra mail adiantado ai do que nas áreas desenvolvidas"
(pig. 419 - 2.0 vol.), (O grifo é nosso - G. R.).
202 ~llTO F. \'t:RJ)ADF. DA u:vou:çÃo BRASILEJRA

Agora não é mais a "estrutura material" que determina


ou condiciona a consciência, como admitia antes o Sr. AVP.
Agora é a consciência que determina a consciência. No trecho
anterior, êle dil literalmente que a "mentalidade nacionalista"
se deve "ao progresso da consciência social". Entramos aqui
no terreno da magia. A consciência nacionalista surge ine\pe
radamente em cena, vinda não se sabe de onde, e dissipa a
alíen:1ção, mesmo nas áreas materialmente atrasadas. Nova-
mente, o Sr. AVP incorre na prática da antropomorfüação.
Quando se vê em difirnldacles para explicar alguma coisa, ape-
la, como nos terreiros de macumba, para um 01·ixd. A consciên-
cia nacionalista é um orixd e o Sr. AVP o seu "cavalo", como
se diz em linguagem umbandista. E, por isso, CRN tem um
tom mosaico. t. um livro sagrado, que se destina a iniciar aspi-
rantes a uma seita, a revelar aos alunos de nacionalismo - a
consciência n:icionalísta. O ISEB seria um templo. Tenda onde
se prarica hoje uma das mais grotescas formas de magia - o
nacionafümo de direita.

A consciência determina a consciência

Não estamos caricaturando. O Sr. AVP passa do ultramate-


rialismo ao ultra-espiritualismo. Ou melhor é um abstracionista
sistemático. Marx dizia que o materialismo abstrato é espiri-
tualismo e o espiritualismo abstrato é materialismo. O Sr.
AVP é simultâneamente adepto do materialismo abstrato e do
espiritualismo abstrato. Vejamos, por exemplo, um aspecto de
seu espiritualismo absnato. Para êle, é o pensamento que de-
termina o pensame11lo. Com as próprias palavras do Sr. AVP,
vamos ilustrar êsse postulado:
"Se u que define a verdade de uma consciência é ser reflexo
fiel da realidade, a do pais subdesenvolvido, não podendo re-
flclir nenhu1na realidade, nem a dos outro. nem a 1ua, Vl!·5C
despojado de tôda veracidade" (pág. !190 - 2.0 vol.).
Mas
"Hoje podemos ter em nOS11a consciência como conteUdo o
conhecimento do nosso estado, ainda real, de dependência eco·
nõmica, e 110 en1an10 a consciência, assim formada, ser cr1.
1ica, porque nlo vemoa mais o significado de.ta dependência
por meio das categorias do pensar estrangeiro superior, m11
por meio das nossas próprias idéias a respeito de nós mesmos"
(pág. !190 - 2.0 vol.).
A FILOSOFIA. DO Gn:RRF.JRO 203

Portanto, qual é o recurso para suprimir a alienação?


Responde o Sr. AVP: é a con~ciênda nacionalista, a ideo-
logia nacionalista, simplesmente o nacionalismo. Com efeilo,
para o Sr. AVP:
"·De fato, o nadonalisnm 1-evela-se como o 1inico rer111·.•o
para superar e suprimir a alienação da amsdência do pais
sulidesenvoh"ido. Por natureza, o m1rionalinnu $il{fli/ira o fim
1la alier111çõo, pois define a ellll!ncia de uma con!lt'ié:ncia nacio-
nal que rcílete a sua realidade e só através desta ~1kança a
realidade resrnn1e"' (os grifm são nossos - G. R.) (pág. 1194 -
2.º vol.).

A consciência passa assim a ser variável independente do


processo histórico-social. O problema da alienação se resolve
na consciência coletiva, na medida cm que adote as categorias
adequadas (as que o Sr. AVP apresenta no segundo volume de
CRN) e pensa o seu estado alienado ! Ademais, para o Sr.
AVP, não há desenvolvimento, sem ideologia do dcsenvoh·i·
menta, "Não hei. desenvolvimento, sem ideologia do desenvolvi.
menta", diz êle (pág. !14!1 - 2.0 "·ol). Ingressamos em órbita
seráfica. Nesse tipo de afirmação, o Sr. AVP se assemelha a
uma espécie de criatura celestial, recém-chegada ao nos.m pla-
nêta. O céu deve ser um lugar em que as condutas são lógkas,
onde domina o pensamento puro, onde as ações cumprem c'l
risca, literalmente, o pensamento. O Sr. AVP - doclor sertt·
phicus do nacionalismo burguês - acaba de encarnar-se na hh-
tória terrena, e assim ainda não teve tempo de reparar que,
nesse mundo cá de baixo dos mortais, a não ser recentemente
nos países socialistas, nunca houve desenvolvimento com tr.orin
ou ideologia do desenvolvimento. Até agora, na hist<iria decor-
rida da humanidade, só tem havido desenvolvimento, sem ideo·
logia e sem teoria do desenvolvimento. O próprio Brasil se
tem desenvolvido, sem ideologia do desenvolvimento. t certo
que a teoria do desenvolvimento, em elaboração penosa, em
nossa época, está destinada a conferir crescente radonalidacle
ao progresso material e não-material dos povos. Mas o que se
entende por teoria do desenvolvimento, nos meios qualificados
de cientistas sociais, não coincide precisamente com a "teoria
ou ideologia" do desenvolvimento, de que se fala em CRN.
Não é, pelo menos, essa forma de voluntarismo mágico, que
admite que "os fatôres ideológicos produ%llm o processo do
desenvolvimento" (pág. 31 - I.0 vol). Não desejamos, agora,
204 '.\111º0 E \'ERDADE bA llE\'OLUÇÂO BRASILEIRA

nem seria pertinente nesta critica, dissertar sôbre o que, cor-


retamente, se deve entender por teoria do desenvolvimento.
Mas devemos frisar que a teoria do desenvolvimento, como
capítulo da ciência social, é fato recente de nossos dias, e o
mundo, antes de nós, vinha-se desenvolvendo. Ademais, no
domínio da ciência social, a teoria do desenvolvimento se não
é post /cstum, é concomitante com o próprio desenvolvimento.
Não é dialética, apesar de pensar e proclamar o contrário o
Sr. AVP, a maneira como vê as relações entre a teoria e a ação,
a teoria e o processo do desenvolvimento. Para o Sr. AVP "a
teoria prece.de a ação" (pág. !143 - 2.0 vol.). Em outras pa-
lavras:
. . . o de5envolvimento supõe a con5cil!ncia, onde aparece
primeiramente ç0mo idéia, plano de ai;ão, antes de ç0nvcrtcr·se
em ç0metimento social" (pég. 82 - 1.0 vol.).

No caso, como no reino dos anjos, a teoria do desenvolvi·


mento é ante lioc. Isso jamais aconteceu e jamais acontecerá
no mundo terreno. Nem nos países socialistas, onde a consciên-
cia teórica do processo é comparativamente elevada, as relações
entre a teoria e o processo do desenvolvimento ocorrem como
supõe o Sr. AVP. O Sr. AVP ainda não superou o ponto de
vista burguês no tocante às relações entre a teoria e a prática.
Sua ideologia do desenvolvimento tem muita coisa comum com
o positivismo de Augusto Comte, que também atribuía ao
pensamento uma fôrça própria, e geralmente achava que a filo-
sofia social precedia os cometimentos sociais. Outras similitudes
entre o Sr. AVP e Augusto Comtc poderiam ser lembradas.
Ambos são pensadores de claustro. Ambos são ideólogos tardios.

Nacionalismo e alienação

O Sr. AVP tem o talento da glosa. Seu livro está repleto


de transposições de Hegel. Transposições felizes, magistrais,
consideradas no mero plano da fraseologia. Leia-se, por exem·
pio, o subcapitulo: "O nacionalismo como supressão da alie-
nação", da pág. !:186 à pág. 404 (2.0 vol.) e ai se encontram
~~u~~~~o: s~:~~::~I~1a'à~~ f~~~s~:~m~~~~s;d~!~o~::rª~nda~
liticamente o que é síntese concentrada naquele que toma
A FILOSOFIA DO GUERREIRO 205

como paradigma, Hegel, no caso. Aqui está uma das suas di-
versas proezas fraseológicas que nos remonta ao filósofo alemão:
"O ser alienado ~ aqu~le que nlo po55ui a sua essfocia
como falo alua!, mas lc:m de ad<111iri·la ao longo do seu processo
hiJtórico" (pág. 586 - 2.0 vol.).

Mas vençamos o nosso fascinio pelos reais dotes literários


do Sr. AVP e examinemos o conteúdo dessa frase. Exatamente
tal conteúdo está em contradição, briga com outros enunciados
taxativos do autor. O Sr. AVP, aqui, admite que, no processo
bistórico, chega um momento em que a essência se converte em
fato, e o fato em essência. E nesse momento que termina a
alienação. Pois bem, vamos mais uma \'ez reencontrar o Sr.
AVP aderindo ao mais radical subjetivismo, ao mais indisfar.
çável idealismo, êle que se proclama aler!a con!ra essa fraqueza.
Por exemplo, considera o nacionalismo como o extermínio da
alienação. Vamos selecionar várias frases em que se repele isso
em CRN.
"Por natureu., o nacionalismo significa o 1érmino da alie·
naçto'' (pág. !194 - 2. 0 vol.).
"Devemos, parlanto, considerar o nacionalismo como a
andtesc: da alienação que até agora iemos vivido" (pág. 396
- 2.0 voI.) .
. .. o nacionalismo ... realiza por ~ncia o lérmino de
t6das as alienações de que padece a conscil!ncia pobre" (pâg.
400 - 2.º vol.).
" ... a con~ciência dc:salic:nada ... chama.se agora naciona·
!ismo" (pág.10!1- 2. 0 vol.).

Mas, para o Sr. AVP, "não acabamos nunca de realizar a


nação". Segue-se daí que a desalienação só é possível para o
nacionalista. :t êste que, pelo saber, pela assimilação das "ca-
tegorias da consciência critica", muda o conteúdo de sua cons-
ciência, e se livra da alienação. Mas a nação, condenada a
eterno inacabamento, jamais atingirá um momento de seu
processo histórico, em que sua essência se converte em fato, e
termina sua alienação. A. nação permanecerá semprn alienada.
Só o nacionalista alcança dcsaliena1·-sc. :t o reino da confusão.
:tum perigo entrar no labirinto de CRN, sem o fio de Ariadne
bem seguro nas mão.s. Cotte-se o risco de lá ficar para tóda a
vida, no emaranhado de cavilações pretendidas filosóficas, e em
reciproca discórdia. Existe ou não, afinal, nação desalienada ?
206 ~l ITO }; \'l::RDAllE llA RJ::VOl.l 'ÇÃO BRASILl!'.IRA

Nacionalismo antioperário
O Sr. AVP é amador em prestidigitação. Como o Lógico d11
peça Rinoceronte, é capaz de demonstrar que um rnchorro é
um gato. Conhece o segrêdo de certos passes de m•ígica e aplica
bse conhecimento na sua teoria do nacionalismo. Assim, me-
diante desculpas esfarrapadas, procura ocultar o ~entido anli-
proletário de sua concepçio. Escreve o Sr. AVP:
'"Nio nos parece que tenhamos, por enquanl11. chegado a
uma e1apa de divido social de trabalho que permil;a a plena
aplicação do conceito de lula de classes, elevando-a à condição
de contradição social principal. No esiado de inicio de liberta-
ção do subdesenvolvimento a real dh·isão social do trabalho é
aquela que se d:I. entre o 1rabalho enl beneficio dos inle~s
internos do pais e o que é feito em provei10 dos exploradores
c<11Tangciros em regime imperialisla e colonial. Db1c ângulo
é que cnnv(!m apreciar a dM5lio e1n c:Jasses, sem dúvida presente
na sucied:ule subdesenrnlvida, mas é a primeira das divisõC$
apontadas que constitui 110 nmmcnlo a contradição do processo,
seu cuno se encaminha 1mra fases superiores, onde lerá vigi.ln-
cia prepoderanle a divisão cm classes segundo a modalidade
da expropriação do nabalho das ma55as por um grupo p1W111itlo1·
do capital.
Muit05 crilic05 e examinadorc5 dos lat05 sociais e1n 00550
meio deixam-se enganar por falta de suficiente percepção dêsre
fcnômeno de fase. Sem d1\vida é llci10 raciocinar cm tl-rmos de
rfgida conccpçio de lma de classes, e 11111i1as vl:zes com isso
se esclarecem aspcc:tos reais dos problemas, mas é preciso nllo
esquecer que não devem05 precipitar a aplic:ação de tal esquema.
quando as divergl:nda5 sociais são de uma ccono1nia ainda
primitiva e sujeita ao regi1nc de pressão e espolhu;ão externa,
que subverte os modelos habituais na 1it11ação metropolitana,
obrigando-nos a desc:obrir, por indução, quais os elementos que
compõcin no momcnco a contradição principal da nossa reali·
dadc"" (pág. ll.'i8 - 2.0 ,·oJ.).
Proclama-se ai incompatibilidade entre a "concepção ele
luta de classes" e o reconhecimento eventual de existência de
uma contradição principal. Não sabe o Sr. AVP que essa con-
cepção tem caráter metodológico. t. procedimento metodoló-
gico que serve para aclarar as relações sociais vigentes em qual-
quer (ase, no passado, no presente, no futuro. A classe operd-
ria jamais poderia deixar de lado esta concepção, em favor do
ponto de vista da nação, porque, dêste modo, se exporia à
mistificação e postergação de seus intcrêsses. Ademais, é à luz
da conrepção de luta de classes, que a dasse operária pode
determinar, segundo suas rnm·eniências, os têrmos ela união
A J'IU>SOl'IA l>O GI ·•:RREIRO 207

com setores da classe c.lominante, em prol da libertação nado·


nal. O Sr. AVP, situando-se no ponto de \·ista da ideologia
burguesa, prega a suspensão do nilério metodoMgirn de lnta
de dasses, sem romprcendcr 11uc exi~lc uma relação dialética
entre união nacional e lma de 1:lasscs. Para a rlas.~e operária,
a união nacional <·ontra o imperiafümo é uma 1mitio rom /ltta
dí' rfossrs. somente para o nacionalismo burguês é concebível
tal união nacional sem hna de classes.
De resto, cm larga mal"gem, CRN é generalização da teoria
burguesa do nacionalismo e, ao mesmo tempo, tentativa ele
domesticação burguesa de teoria proletária. Para o Sr. AVP,
a nação, t-omo a consciência nacionalista, é "constante históri-
ca"' (pág. 353 - 2.0 vol). E assimilando a teoria proletária na
ideologia burguesa, declara inatlmissível possa existir nação
imperialista, ren1sando-sc, assim, a reconhecer o que é evidente
e ostensivo cm algumas parles do mnndo de hoje. Eis aqui
um jôgo de palavras com o qm11. identifüando das.~e operária
rom nação, tenta ocultar o reacionarismo de sua teoria:
'"Q11m1do o nnss11 p1nce!IM1 th·cr a1•a11(ado para clapas mais
adianiaclas e atingido simm;íit'!I onde. Cl"l."ntuahnclllc. se RC'ª"
riam interêsscs que se bcndicias1CITI tom uma polftica impc·
rialis1a, isto acomeecria cm rclm;llo a uma classe apenas. aquela
que, por hip61csc, é a dirigcllle do processo nc-;11e momelllo.
Mas já cnlão havcrá 1ambém a grande ma5u de 1rabalhadorcs
a quem tal polflica nãn hucrcs!la e é claro q11e na sua élica nao
figurará a idéia impcl"iali\la. F.m tal siluação. por1:m. a mns·
cii."flcia critica por dc(inii;ão estará idcnli(icada à das clas.\es
1rabalhadoras, à da maioria da naçi:o, à própria naç:io. Ao di·
zcrmos que a élica se cons1ilui 110 quadro de 1-efcrê11cia à naç.iio,
significamos, neste ca•o. que se ronstit1ii com rcCcn'nda au que
forma a realidade CS"õ<."flriill da na~ao. as mas.~as operárias. Como
na ideologia desta classe não fig11rará rcnamcn1c 11 imperialismo,
fk.t invalidada a objcçllo geral IJUC 1·i!IC 11a rcfcrf"ncia à nação
o perigo de defesa de idCias impcriali5las. como acomeceu ao
naiismo, porquanto, cm nosso caso, nem agora. quando a nação
se identifica aos sc1orcs progrcs.~istas da soc:icdade cm geral,
nem no fllluro, 1pmndo se iden1ificará às mas.•as trabalhadoras,
a élica do desenvolvimento contém a possibilidade de fazer
considerar como valor 11osi1il"o a presslio econlHnica silbrc outras
nações. Por CDn'ieguin1c, jamais o imperialismo 5erá admitido
como polltica apta a favorecer os intcrêsscs de alguma na~ão. e
sim apenas de alguma classe dominame, a qual na11nalmen1e
dirá q11e os i.cus in1crêsscs são Oll da naçio. O f.a10 de que o
imperialismo da5 grandes naçlie~ amais obriga·as à corrida
armamcnlista e à c11nsran1c ameaça de guerra, onde muito pro-
vi1velmcntc sucumbiriam. b.asla pa1·a m11strar que uma polilica
imperialisla nunca protegerá 011 auti:nlirn~ intcrês\l!S de qual·
quer nação"" (pág. 2!17 - 2." \"ol.).
2118 :\11"10 t: \'V.RDADI·: IJA R~:\'Ol.lÇÃO BRASll.t:IRA.

O Sr. AVP abusa ele seu conceito ampliado de nacionali-


dade. Rigorosamente a nação é uma forma política do período
moderno da história. Não se aplica, legltimamente, em sen-
tido histórico-técnico, aos períodos pretéritos da idade média
e antiguidade. A Polis grega, a Civitas Chistiann., não eram
prôpriamente nações, e não serão nações as formas políticas
dominantes, no mundo futuro, de avançada unificação polí-
tica e económica do gênero humano. O Sr. AVP diz: "A nação
é histàricamente um fato recente" (pág. 141 - 2.0 vol.). Mas
afirma também: "O homem não alcançará a ronsciéncia de si
e o domlnio do seu mundo se não conseguir organizar em nação
o seu circulo social de coexistência" (pág. 301 - 2.0 vol.). En-
tão o pensador grego e o medieval estavam excluídos da cons·
ciência de si e não tinham o domínio do mundo? :Este assunto
nos levaria muito longe, e não é agora oportuno Cocali7.á·lo.
Com·t.".m, no entanto, frisar que a nação é um conceito essen-
cialmente burguês, valor essencial da revolução burguesa, Hou-
ve um momento, na Europa, cm que a burguesia e a classe
operária tinham de fato interêsses comuns e, por isso, se uni·
ram para o desempenho da revolução nacional. Tão logo se
cumpriu essa revolução, a nação perdeu positividade para a
classe operária. A classe oper:lria hoje, nos países subdesen-
volvidos, conhecendo a história decorrida das revoluções bur·
guesas no Velho Mundo, adere com ironia ao nacionalismo e
aos n:tcionalistas. Mas ela não é nacionalista. Por essência,
ela é internacionalista. Sua vocação não é a nação. t. a comu-
niclade humana universal. Para a classe oper;íria, o nacionalis-
mo é uma ideologia de circunstância. (15 )

O riso é o limite

E assim se desmorona o castelo de cartas que o Sr. AVP


construiu àrduamente cm alguns anos de trabalho monástico.
Poderíamos apontar muitos outros aspectos de CRN para de·
monstrar a debilidade cientifica, filosófica e sociológica da
concepção do Sr. AVP. Para terminar, porém, importa ainda
examinar dois pontos que não podem ficar sem registro.
Ao pretender ter exposto em CRN a ideologia do desen·
volvimento, ou a ideologia nacionalista, o Sr. AVP entrou nu·
ma fria. Chega a ser cômira a sua ingenuidade. Dizemos isso
A FILOSOFIA DO GUERREIRO 209
com pesar, pois reconhecemos que êle tem habilitações para
fazer melhor figura. Imaginamo-lo recém-admitido na intimi-
dade do circulo que fundou o JSEB em 1955, e que vinha do
antigo IBESP. Aí, provàvelmente, o Sr. AVP ouviu, diversas
'Vêzes, alusão à necessidade de formular-se a ideologia do na-
cionalismo brasileiro. Convenhamos que êssc projeto, para os
mais inteligentes e experimentados, nunca foi entendido senão
como têrmo de conversa, incitamento à compreensão global do
fenômeno brasileiro. Por definição, só se compreende cabal-
mente uma ideologia depois que ela encerra a sua eficácia
histórica. Nunca houve, na história da inteligência, quem
quer que seja minimamente categorizado para o trato das coi-
sas do saber, que concebesse a idéia de formular uma ideologia.
Só as ideologias mortas podem ser narradas. As ideologias vivas,
como o nacionalismo em nossa terra, são inenarráveis como
sistema. Enquanto estivermos sob a sua vigência, apenas frag-
mentos delas podemos apreender. Tem o Sr. AVP o direito
de buscar realizar a sua façanha intelectual. Tem capacidade
para dar relevante contribuição ao nosso progresso cultural.
Desde, porém, que escolha tarefas factíveis. Essa, não. Essa,
de escrever, de expor a ideologia nacionalista - não 1 Não é
viável. O livro do Sr. AVP é, êle próprio, reflexo da singulari-
dade que, no Brasil, apresenta o movimento nacionalista e o
assunto da revolução. Aqui, em nossa terra, são matéria de
debate licerário, antes que risco existencial. Muitos são os vi-
rulentos de palavra, cuja existência pusilânime, cuja docili-
dade às concessões, desde que resguardem os seus pequenos
interêsses ou satisfaçam seus mesquinhos ressentimentos, ates-
tam o contrário do que aparentam. O movimento nacionalista,
como organização, ganhará tanto mais o respeito do público
em geral, quanto mais depressa depurar-se da ideologia livresca
e da fraseologia carbonária de que a vida concreta dos que
a adotam não dá testemunho.
Temos notícia de que Bob Hope escreveu um livro inti-
tulado Nunca Sai de Casa. Nunca o lemos. Mas o titulo já
diz muito. Que estaparfúdias aventuras imaginárias não deve
!:~~r J~e~~~~n~~~ai~~e :=~;~ila. QJ::a~c~~~uC~Nm'~~:n~:
cultura filosófica. Está inteiramente por fora. Não há mais
cândida pretensão do que a de elaborar ã "ideologia naciona-
lista", a "ideologia do desenvolvimento brasileiro". Pois não
é tal pretensão que confessa o Sr. AVP ? t um menino grande
210 MITO i,: ''F.RDADE DA RF.VOu:çÃo BRASILEIRA

que brinca de demiurgo, de Espírito do Mundo hege1iano, a


ditar a JVcltmud1auung, a ideologia da nação brasileira. Dil-
they, em ;ilgum lugar do além, deve estar in1rigado e pergun-
tando.se que espécie de país é êsse, o nosso, o do Sr. AVP tam-
bém, onde um catedrá1ico de universidade (.de universidade
oficial) deixa surpreender-se em tais travessuras irresponsáveis
e nada acontece. Isso é o Brasil, Dilthey, país onde o Govêrno
estipendia pro[essôres para elaborar uma ideologia, uma M'el-
tanscl1auung !
O Sr. AVP, no tocante ao problema ideológico, está comple.
tamente fora ele foco. N'ão conhece o assunto satisfatàriamente,
como poderíamos supor. Originalmente, ideologia em Marx e
Engels é consciência falsificada. t. cerio que, em ambos, po-
dem encontrar-se "Ve5tígios de um conceito positivo de ideologia,
mas o que nêles é dominante é a aspiração explídta de consti-
tuir um saber cientffico, desmascarador da ideologia, da "cons-
ciência falsa". A ciência se define por um esff>rço de trans-
cender a ideologia, embora se admita seu insuperável condi-
cionamento histórico-social. Portanto, elaborar ou defender
uma ideologia é confessar um propósito mistificador. O pro-
jeio, que inspira CRN, de outorgar :'Is mass<IS a consciência da
sociedade brasileira, além de constituir rontradição em têrmos,
alenta contra o cspfrito cientifico. ",\ ideologia que defende-
mos - diz o Sr. AVP - é aquela que se constitui como cons-
ciência da sociedade brasileira" (pág. 36 - 1.0 vol.). A defesa
de uma ideologia não é bem tarefa do homem de ciência como
tal. É tarefa do homem de partido. A tarefa do homem de
ciência é formular a teoria. Pode, por exemplo, o homem de
ciência brasileiro projetar a elaboração da teoria da sociedade
brasileira atual. Mas à luz dessa teoria, o nacionalismo, a ideo-
logia do desenvolvimento do Sr. AVP, o antinacionalismo, o
entreguismo são materiais sodológicos, manirestações estrutu·
rais de sociedades que têm de ser examinadas, diagnosticadas,
situadas e hierarquizadas segundo os diferentes graus de posi-
tividade histórica. A teoria da sociedade brasileira está pra
lá da ideologia nacionalista e do nacionalismo. t por isso que
a inteligência brasileira não pode tolerar o ISEB, enquanto
academia de professôres ideólogos. O lugar dos ideólogos sis-
temiíticos é nos partidos, nos comícios, nas guerrilhas, nas bar-
ricadas. Ideólogo qüe se preza não é professor ele ideologia
nacionalista, não aceita o me<.-cnaLo de um Estado que procla-
ma caduco. Porque aceitando ê~e mecenato, posterga o colapso
A FILOSOFIA DO Gl:l·'.llRF.IRO 211

dêsse Estado, tornando-se ideólogo de estimação, criamra muito


parecida com os bobos da Corte, de outro tempo.
A ideologia é atcórica, assistemática, a teoria é transideoló-
gica e sistemáti<:a, As massas são ideológicas e também o filó·
safo, enquanto tal, ê um teórico.
Chegamos hoje, no domlnio do saber, ao fim da ideologia.
Apesar de sua vã esperança de reanimar o sistema capitaJis·a,
Daniel Bell, em seu livro Tllc End o{ ldeolo,zy (Illinois,
1960), caracteriza C'orretameme o estado de col15riênda n-i1irn
de nossa êpoca. Depois de tantas frustraçóe5, de tant:1s pro-
messas não-cumpridas, a ideologia chegou ao fim: " ... ideo)o.
gy, which once was a road to action, has come to bc a deml
cnd" (pág. 370). E acresC'enta: "ln the struggle of claMes, true
consdousness, rather false consdousness, could be achievcd"
(p:lg. 370). Está por fazer a amllise do que Isaac Dcutscher rha-
mou a "consciência cio ex-comunista". (6 ) Um dos seus traços
marcan1es parece ser o fastio rhl ideologia. Pierre Hené, mi-
litante comunista, antes r1ue começasse a dcscstalinização na
URSS, publicou cm principias de 1956, La fü!rmlutitm r.t lcs
Félic11es, cujo sentido libertário lhe valeu a expulsão ci;cmda-
losa do PC francês. Dizia então Hervé: "Uma rnisa é.. a
ideologia; outra coisa é o conhecimento. Se ambas são unidas
ao longo da história e se compenetraram freqiicntemcntc até
às vêzes se identificarem, nem por isso poderiam ser c:onf1111-
dic1as. No quadro da primeira, se coloca a questão: qual é o
papel que exerce tal idéia num contexto social e político dado?
No quadro do segundo, se apresenta questão não menos impor-
tanTe: tal idéia é verdadeira ou falsa?" (pág. 18). E Fabrizio
Onofri, depois de expulso do PC italiano, e~nevia: "o mar-
xismo deve cessar de ser tratado C'Omo ideologia e tornar-se de
nt.vo uma sociologia viva, ciência social viva". (7 ) O fim da
ideologia é as.~im momento não só da evolução do saber, mas
também da pr6pria experiência revoludomíria. O tempo do
Sr. AVP e de CRN é o pretérito perfeito.
Outro ponto digno de nota refere-se às dimensões magnifi-
cadas que a consciência crítica aprcs-cnta no livro do Sr. AVP.
As expressões "consciência ingénua" e "consciência critica" são
incidenles da linguagem fenomenológica. Do ponto de vista
fenomenológico, o individuo alcança a consciência critica, quan.
do se habilita, pelo treino, pelo estudo,· pela meditação, ao
"pensar rigoroso". A consciênda critica é, vamos dizer, 11m
modo do "pensar rigoroso"; não é o próprio '"pensar rigoroso".
212 MITO E VERDADE DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

Em A Redução Sociológica, ocorreu-nos falar da "consciência


crítica da realidade nacional", não como equivalente do "pen-
sar rigoroso" do filósofo e do cientista, mas como qualidade no-
va de psicologia coletiva do povo brasileiro decorrente da rica
experiência de desenvolvimento que vem realizando. Nunca
no.s passou pela cabeça que se pudesse dar à consciência critica,
mormente de caráter nacional, coletivo, os atributos do "pensar
rigoroso". O Sr. AVP, porém, como um personagem de "O Riso
é o Limile", ou "Noites Cariocas", entra em sua segunda fria:
escreve Consciência e Realidade Nacional em dois volumes,
sendo o primeiro sóbre A C0Nsc1ÊNCIA lNGÊNUA, e o segundo
s6bre A CONSCIÊNCIA CRfTICA, Parece incrível, mas é verdade.
Como estão desocupados os n05505 nacionalistas de direita 1

A consci.b&cia crítica
e a crise de uma consciência

Em tais condições, o livro tinha que ser o que é: cons-


trução livresca, cerebrina, sofística, fragmeniária. Umas das
maiores mancadas que nossa história da Cilosofia já registrou até
esta data. Os franceses têm palavra adequada para êsse género
de elucubração - /icelle.
CRN não tem unidade. t. livro costurado. Conjunto de
dissertações justapostas, onde campeiam generalizações e asso-
ciações impressionistas e erradas. O Sr. AVP proje:a na consdên-
cia ingênua tudo aquilo que êle detesta agora. O primeiro \'O·
lume, podemos garantir, explica·se literalmente pelo mecanismo
freudiano da projeção. Vemos ai o autor em tit!inico duelo com
os fantasmas de sua própria mente. Não há uma página, prin·
~i~~;:~5~e0 dlf:t~~~I~~~: Â~epn!~r:~~e~~ad!!~~~:~~~-a ~;:::
pessoas incômodas que êle abomina, as quais não têm o nome
próprio mencionado e aparecem como ·onceitos. Sim, os con-
ceitos do primeiro volume são conceitos-personificação - os
desafetos do Sr. AVP. O que o Sr. AVP é mesmo, no primeiro
volume, é retratista. O primeiro volume deveria chamar.se
como o de La Bruyêre, Os Caracteres. Ou então Os Defa{etos
do meu Caminho. Excelente material etnogr.iíico da revolução
brasileira de nossos dias, no que tem de gratuidade.
213

O Sr. AVP pretenderá ter feito a descrição fenomenológica


da consciência ingênua? Mas nenhuma das notas que lhe atri-
bui pode ser verdadeiramente considerada essencial, porque a
consciência ingênua é inapreensível como modo de ser siste·
mático. t. vã tarefa conferir constância à consciência ingénua.
O Sr. AVP não cstoí longe de reronhecer isso quando escreve
que a consciência ingênua "não é um sistema" (pág. 520 - 2.0
vol.). t. uma roisa agora e pode ser outra depois. O Sr. AVP
diz que o "apêlo à violência na solução das questões sodais" é
marca da consciência ingênua. Não é nec-essàriamente. O pa-
cifismo pode ser manifestação da visão ingênua. Outra marca
apontada pelo Sr. AVP - o moralismo. Por que não o imo-
ralismo, a recusa de tõrla moral, o protesto estético contra t6da
obrigação ética? Indica o "desprêzo pela massa". Por que
não a idealização da massa? Sublinha a "deresa do progresso
moderado". O Sr. AVP não admite o revolucionário de cons-
ciência ingênua? O que, na verdade, o Sr. AVP descreveu não
foi a consciência ingénua. Foi alguma das caracterfslicas da
mentalidade regressista, conscnadora, tal como a mostram tipos
atuais ela história de nosso País.
Voltemos à consciência crítica. Insistimos, o Sr. AVP con-
funde a consciência crítica e, o que é infinitamente grave e
espantoso, "consciência crítica da realidade nacional" com o
"pensar rigoroso". Estaria êste Pais temeràriamente exposto ao
despoliciamento cientifico e cultural se deixasse passar, sem
sanção crítica, o contrabando filosófico que o Sr. AVP chama
de "categorias" da consciência crítica. Se o Sr. AVP não f6sse,
como demonstrou, sincero na sua ingenuidade, o seu livro tra-
zendo a chancela oficial do Ministério da Educação e Cultura
seria imensa gozação, escárnio da comunidade dos que se de-
dicam, neste País, aos estudos superiores. "Categorias da cons-
ciência critica", filosofia das Arábias. O Sr. AVP arromba uma
porta aberta. Com exceção de uma - a nação -, a objetivi-
dade, a historicidade, a racionalidade, a totalidade, a atividade,
a liberdade são categorias do pensamento filosófico rigoroso,
já secularmente formuladas e reformuladas, notaclamente no
período moderno, por Descartes, Kant, Hegel, Husserl, Marx.
Como pôde o Sr. AVP diler que as induziu empiricamente da
realidade brasileira? t tão fantástica essa ilusão do Sr. AVP
que somos compelidos a documentá-la. Depois de dissertar, no
2.0 volume, sôbre cada uma das "categorias", diz o autor, em
capítulo conclusivo (pág. 565): "Nas páginas anteriores exami·
214 MITO ~: Vl·:Rl>ADF. DA RF.VOl.UÇÃO BRASILl".IRA

namos algumas das categorias que 1ws pllrercm rm1sti111tivlls


da c<msriênâa c1·íticn dfl realidade 11t1rional." (O grifo é nmso.)
No caso, noce-se bem, "realidade nadonal" equivale a "realida·
de brasileira", Mas Kant, Hegel, Husscrl, Marx e os c1uc nia-
ram a herança doC'ente da cultura filosófka eram brasileiros?
Porventura é a primeira vez que se utiliza a Lotalidacle como
categoria do pensar? Não, para não rcn1ar muiw, já estava
expressamente indicada na tábua de ca1cgorias de Kant, j<í
estava em Hegel, em Marx. Qu:nno às cmtras, um radorínio
analítico poderia levar a idêntka mndusão, como sabem co:1os
os que tenham conhecimento elementar da história da filosofia.

Nacionalülade e totalülade

Há que observar, porém, na "t:llma de categorias" do


Sr. AVP uma originalidade, mais um indício de seu estado de-
lirante. :Ele inclui a nação na mesma hierarquia de dignidade

f~~J~.el:~r ~:c-:lt:j~~ ::ahu1\~~~'.is:·~~~~:'.i::~~;i!:!~~1~:~~::~~: ~;;1~~;


êle, está acima de tôda5 a5 outras c:atcgorias. Textualmente:
"é a expressão mais hFCral do modo de 5Cr da wnsriênd:1" (p;\g.
803 - 2.0 voJ.). Isso não sú é êrro de perspertiva filosMira,
rnmo procedimento grosseiro, que fere frontalmcute <1 dialética,
além de caracterizar o sentido antioper;irio do narionalismo de
direita, que professa o Sr. AVP. A nação pode ser viilicl;i, cn·
quanto referência do pensar, mas rnmo modalid:nlc partkul:ir,
episódica, efêmera, subalterna, da romunidade universal ou
da toialidade. Em Marx, por exemplo, a rntegoria fundamenta\
da dialética é a totalidade. A classe operária é mais universal
do que a nacionalidade. Mesmo as.'lim, êlc viu a dassc oper:i·
ria como modo de ser eventual da totalidm\e, e não confundiu
uma c:oisa com outra. Para l\farx, a c·lasse operária não é
eterna, como a nação, para o Sr. AVP. Sen\ suprimida um
dia. No entanto, conrrctamentc, Marx a refere ;i totalidade.
"t rom a entrada cm cena do proletariado - diz Lukacs - que
o conhecimento da realidade social encontra o seu acabamento:
com o pomo de vista de dassc do proletariado, um pomo foi
encontrado a panir do qual a totalidade da i.odcdadc se torna
vislvel." (8 ) :\fane. c:orrctamentc obsc-n·ou <iue a nação é, no
plano melodológico, subordinada à fiasse operária. Neste sen-
215

tido escreveu no Ma11ife.~lo: "Os comunist;1s si'1 ::e diferenciam


dos outros partidos prolct;írios cm dois pontm: de uma parte,
nas diversas lutas nacionais dos prolct;írios, f"zem pl'r.valrrrl'
os interêsses comuns a t<Hlo o prnleütriw/o e indcpcndC'lllcmen-
lC da nacionalidade; e de outra parte, nas di\'crsas ra~:.-s por
que passa a luta entre o proletariado e :i burguesia, l'epl'eJtm-
lam sempre e em tdda parte os intcrêssC'I do 11umime11to lo-
tai."(º) (Os grifos são nossos.) Para mim, Marx não é um
or;írnlo. 'Mas é certamente melhor dialcta do que o Sr. ,\ VP.

Hií na história cultural fundadores e escoteiros. Os fun·


dadores inovam. Os csroteiros ronvertem-na em ídolos. Trans-
formam o que era apenas matiz de uma fisionomia, em traço
gro.uo. O que era hipótese de trabalho, em certeza rontun-
denle. O que era procedimento metodológico, cm critério onto-
ltigico. O que era picada aberta a cuslo para ronherer uma
floresta numa estrada milagrosa de trânsito compulsório. O
que era pensamento, em magia. O que era residuo cpisbdim
da espernlação, em postulado. Os fundadores são ante far/11111,
Os escoteiros post facunn. Os fundadores têm senso de humor.
Os escoteiros são coléricos.
O Sr. Álvaro Vieira Pinto é o mais eminente escoteiro do
legado ibesp-isebiano. Um cs<·otciro é sempre um esr<>Leiro.
Quando renegar o nacionalismo, é prov;ívcl que adin1, com
entusiasmo virulento, ao marxismo-leninismo. Depois de ter
sido o filósofo tardio do ISEH, tornal'-se-;i o tebrico rrepusrular
do PCB. É homem de fim de festa.
Co11scii11cirt e lka/idrule. Narimllll é fol'jirnção filosMica.
Ficará na história das idéias no Brasil como simile de O Mito
do Sérulo XX de Alfredo Rosenberg, que serviu aos nazistas
para a dopagem cm massa de consdéncias im·amas. É uma espé-
de de Plano Cohen cm linguaguem filosófica destinado a boça-
lizar inteligências desarmml<1s, a arregimentar adeptos do na-
cionalismo de direita, a embair otários 1 Sottisie1· filnsMko do
nacionalismo burguês. l\ião subestimamos a fôrça dos mitos.
Como o rinoceronte de lonesco, o Sr. AVP não é criatura iso-
lada. Esforça-se, com outros escoteiros, por difundir como pa-
nacéia de salvação nacional, o.~ ensinamentos de no\•a Kultura.
216 ~ITO E VERDADE DA llEVOLUÇÃO BRASILElllA

NOTAS

o/ Kanl, Imm1nuel K1nt'1 Moral and Polltlcal


(1) \lide KANT, Tht! 1'hilosofih'
Wri1i11p (cdi~ e lntroduçlo de Carl J. Frlcdrlc:h). New York, 1949, pig. IRO.
(2) IDDI, pig. 118.
(S) Vide Luden GoulMANN, LI Communsuli lfumoirie d L'Uniwr& m.z Konl.
Paris, 1948, pâg. XVI.
(4)ID1!.M,~2!19-210.
(S) S6bre nRCionalismo como Ideologia de eircun1ut.nei1, vide ll'ICU livro O l'To·
llkma NociOflol do Brasil (Rio, 1960). O nacio1U1lim10 do ST. AVP li! l•rwa·
men1e reformulaçllo de minhas concepçlles, num plano de deliTin e exaltaçlo
--=ntimental. Leia-se e compare-se, por e1templo, o 1ex10 dhte livro, e espe·
dalmer11e de seu capitulo, "Prinelpios do POYo Bnsilelro", com o que diz
o Sr. AVP s6bre nacionalllmo no 2.0 •-ol. da CRN. Pua mim, o l'llcionalilmo
ll!ideologiadecim1nstância, pais constitui mcioprovisóriodequeseaervemos
povos pcrif~ricos, nas preM::nles condi(6es do mundo, para 11e libenarem da de·
pcndo!ncia colonial. Dilia ainda (plig. 251): "Mais do q11e os poVOI claen-
volvldos. os aluais povoa pcrif~lcos s.'lo porladOTCS do ponlo de vi•la da
comunidade humana 11nlvcn.il.'" Para aimpR"endcr n que represen1a de
re1racc11SO poU1ico e culmral CRN, é lndlspcndvc\ a lci111ra de meu~ 1ivro1
O Probkm11 Nacional da RrlUil (1960). A Rttluçdo Saclo/61{iCll (l!l!i8) e
A Criu da Pndtr no Br1uil (1961). Dcddldamcnte, o ST. AVP ICDI Bido
inrcfü na elabon~o de •na T1U/,tat11 e como cnet1mjado1 de outras vu/g111111.
A.Um do naclonall!mo, o Sr. AVP cm CRN é dcvnto de o\llTO !dolo - o de-
acnv0Mmen1i1mo. S6brc a f3l:lda do descnvoMmcntismo, vide espeeialmen1e
A Crile do Pnder no B>'flril, pig. 120.
(6) Vide Isaac DEUTSCllr.R. "'Thc F.ic-Communi••'~ Cunscicnce", caplmlo de Rus.Ua
ln Tmnrilion, New York, l!lGO.
(7) Vide Fabrizlo 01.:on1, "Elcmcnts pou1 11ne Cri1iq11c dn Lénlnlnnc", in La
Nouwlle Bifor~. N.• 1, 19!>7, Pa1i1.
(8) Vide LUJ.Acs, Hisltnre el ConHitnte de C/ane. Paris, 1960, plig. 40.
(9) IPIUI, p:lg. 4:1.
APÊNDICE li

Trabalhismo e Marxismo-Leninismo
Dttlaraçã.o ttdigidn pelo autor tr11

sdtmbro dt 1962 11 pedido de mtmliros


da Extt1diva do PTJJ (Seçio da Gu11r11.1-
bara.)

TENDO EM" VISTA esclarecer o eleitorado e preveni-lo contra des-


naturações correntes de seus princípios, o Partido Trabalhista
Brasileiro, seção da Guanabara, julga oportuno declarar que:
1) o Partido Trabalhista Brasileiro, fiel ao legado de seu
fundador, o inesquecí\'el Presidente Getúlio Vargas, tem como
objetivo principal a emancipação econômica, ~ocial e política
do povo brasileiro, mediante o de5emrolvimento independente
da Nação e a instauração no Pais de um Poder a serviço exclu-
sivo dos interêsses da coletividade brasileira;
2) o PTB só defende soluções brasileiras para os proble-
mas brasileiros, repudia diretivas estranhas à realidade nacio-
nal, o comando ideológico externo das lutas sociais dos traba-
lhadores brasileiros, e não reconhece validade objetiva no mar-
xismo-leninismo, doutrina que, histôricamcme, sob o disfarce
de ciência, tem sido instrumento de direção monopolística,
em escala mundial. de mo\'imcntos políticos e agitações de
massa;
218 ;\llTO 1': \'J-:RDAbF. DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

3) o PTB, na defesa dos interêsscs das massas obreiras,


proclama a sua vocação socialista, mas não admite nenhum
figurino pré-fabricado de socialismo, o qual sú poderá vingar
no Brasil, na medida em l(UC f6r gerado pelas mndições par-
ticulares da his16ria do nosso povo;
1) o PTU, tendo em vista ;is circunstâncias do momento,
cm que conheddas personalidades e organizações, a serviço
da oligarquia financeira internacional, pretendem confundir
o povo e golpear as liberdades democráticas, ronclama tôdas
as lôrças populares à união, a lim de, no pn'1ximo pleito de
7 de outubro, elegerem aos postos parlamentares candidatos
autênticamente nacionalistas;
5) o PTB está aberto a alianças que, sem prejuízo de
seus princípios, contribuem para a constituição de sólida fren-
te popular contra os inimigos das causas dos trabalhadores.
Obro ~erolfldtJ n11•oflt:lnaada
SÂO PAULO EDITORA S. A.
Rua Barão de Lndoírio. 2211
Slo Pauln 11. SP - Brasil

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