Rosa Luxemburg: Dilemas da ação revolucionária
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Rosa Luxemburg - Isabel Maria Loureiro
Rosa Luxemburgo
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
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Conselho Editorial Acadêmico
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Milton Terumitsu Sogabe
Newton La Scala Júnior
Pedro Angelo Pagni
Renata Junqueira de Souza
Rosa Maria Feiteiro Cavalari
Editores-Adjuntos
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ISABEL LOUREIRO
Rosa Luxemburgo
Os dilemas da ação revolucionária
3ª edição revista
© 2019 Editora UNESP
Direito de publicação reservados à:
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior – CRB-8/9949
Esta publicação foi realizada com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo com fundos do Ministério Federal para a Cooperação Econômica e de Desenvolvimento da Alemanha (BMZ).
Editora Afiliada:
Se o homem pudesse enfim aprender a não pensar de maneira tão dogmática, a não julgar de maneira tão definitiva e a não responder sempre às perguntas feitas apenas para permanecerem eternamente perguntas! Se ele pudesse enfim compreender que todo pensamento é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso!
Tolstoi
Como resolver a contradição, evidente ao primeiro passo prático do revolucionário, entre, por um lado, a força do entusiasmo, a coerência radical dos princípios, e, por outro, o intelecto calculador, a necessária unilateralidade de toda política?
Franz Mehring
Sumário
Agradecimentos
Apresentação à terceira edição
Prefácio à segunda edição
Apresentação à segunda edição
Apresentação à primeira edição
1 – História e revolução
Marxismo e história
A greve de massas
A força da história
Dialética histórica
e vida
A varinha mágica
2 – Socialismo democrático: as polêmicas
O novo que desponta
A revolução permanente
Socialismo e democracia
Das águias e das galinhas
3 – A integração do proletariado e a crise da social-democracia
Ruínas
A crise da social-democracia
Esclarecimento e agitação: a Liga Spartakus
4 – A revolução alemã
Os conselhos
Assembleia nacional versus conselhos
A insurreição de janeiro
Um olho que ri, outro que chora
Epílogo
Referências bibliográficas
Texto de capa
Agradecimentos
Agradeço a Gerhard Dilger, ex-diretor do escritório da Fundação Rosa Luxemburgo (FRL) em São Paulo, pelo estímulo para continuar o trabalho de divulgação do pensamento de Rosa Luxemburgo e o apoio a esta terceira edição; à equipe da FRL, que me ajudou a dar novo sentido a esta pesquisa; a Holger Politt e Jörn Schütrumpf, meus interlocutores do outro lado do Atlântico, sempre dispostos a esclarecer dúvidas sobre a obra da nossa revolucionária.
Apresentação à terceira edição
A interpretação das ideias de Rosa Luxemburgo apresentada neste livro foi sendo tecida num diálogo implícito com o PT das origens, dividido entre os princípios socialistas e a Realpolitik. Na época em que a face mais visível da ditadura começava a desintegrar-se, permitindo o retorno de uma vida política mais livre, renascia também o interesse pelas ideias socialistas. Foi então que me voltei para Rosa Luxemburgo, instigada pela leitura de Vanguarda Socialista, semanário editado por Mário Pedrosa no Rio de Janeiro, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Contra a petrificação autoritária do stalinismo, Pedrosa divulgava a concepção socialista democrática da revolucionária polonesa, ideário que, embora marginal na esquerda brasileira, acabou por encontrar acolhida no PT que nascia abrigando esperanças de refundação da esquerda. Mas com o passar do tempo, e sobretudo no papel de coadjuvante dos governos Lula/Dilma (2003-2015), o PT se transformou num partido da ordem, para o qual a perspectiva socialista-democrática-revolucionária de Rosa Luxemburgo não faz mais sentido, como eu já apontava na apresentação de 2004 à segunda edição do livro.
O que mudou desde então? Primeiro, assistimos a treze anos de conciliação lulista com o arcaísmo brasileiro. O lulismo acreditou na mágica de dar aos pobres sem tirar dos ricos, apostando no modelo desenvolvimentista, ancorado na exportação de produtos primários, processo facilitado pelo aumento do preço das commodities. Com isso, submeteu-se à divisão internacional do trabalho, que impõe a expropriação dos bens comuns: terra, biodiversidade, florestas, água; não fez reforma agrária nem reforma urbana, não enfrentando assim a concentração fundiária; procurou integrar as classes populares pelo consumo, não pela cidadania, o que pouco afetou a desigualdade obscena que nos caracteriza. Em suma, foram governos que se abstiveram de enfrentar o capitalismo brasileiro, umbilicalmente ligado ao atraso. Desse modo, em termos econômicos e produtivos, deixaram a indústria nacional mais debilitada, a economia mais extrativista e mais subordinada à globalização. Mas, apesar disso, os pequenos avanços em favor das camadas sociais desfavorecidas, numa tentativa de amenizar o império total do mercado e conter a completa decomposição da sociedade, agora pálida lembrança, geraram forte ressentimento de classe. Esse elemento, aliado a outros fatores, entre eles a adesão desses governos à corrupção civil-estatal, produziu uma conjuntura que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016, num processo duvidoso, travestido de legalidade parlamentar e jurídica.
Desde 2016, os interesses do capital, agora sem máscara, fizeram o país regredir a estágios anteriores ao lulismo, a falta de reformas estruturais permitindo o rápido desmanche de uma aparência civilizatória. Essa regressão arcaica do capitalismo à brasileira exige liquidar direitos dos trabalhadores, dos camponeses, dos povos tradicionais em nome da modernidade
, deixando para as calendas a construção de um país socialmente integrado. A prisão de Lula em abril de 2018, atropelando a Constituição pelo temor de o ver vencer a eleição presidencial – processo que culminou na vitória de um obscuro deputado de extrema-direita –, configurou mais uma vitória das forças do atraso contra aquele que, apesar das contradições, foi símbolo de um país menos injusto. Pode-se concluir deste rápido esboço que a contrarrevolução sem revolução de 1964 engessou de tal modo o país na camisa de força da modernização conservadora, amarrada à globalização neoliberal, que, sem ruptura estrutural desse padrão, dificilmente o Brasil puxará o freio do trem em direção ao abismo.
A impressão dolorosa de eterno retorno do mesmo nos remete ao começo dos anos 1990, quando este livro foi terminado e a esquerda também amargava uma derrota profunda, decorrente do fim do comunismo e do ajuste neoliberal. A conjuntura daquela época me levou a querer entender outro fracasso, o da revolução de novembro de 1918 na Alemanha, que se encontra na origem de uma das maiores tragédias políticas e sociais do século passado, o nazifascismo. Sabemos que a história não se repete, nem mesmo como farsa. Mas não deixa de ser inquietante o retorno mundo afora de uma onda conservadora, de traços fascistas, ameaçando conquistas civilizatórias aparentemente inabaláveis. Num contexto de retrocessos cotidianos, sem qualquer expectativa de futuro a curto e médio prazo, será que um estudo sobre o pensamento e a prática política de Rosa Luxemburgo ainda faz sentido? A dúvida tem fundamento, pois a esquerda, posta para escanteio no Brasil e no mundo, tem mais uma vez diante de si o desafio de se reinventar, caso queira voltar a ter voz no capítulo. Será que as ideias de Rosa Luxemburgo ainda podem contribuir para essa reinvenção?
Nos últimos quinze anos, graças ao trabalho da Fundação Rosa Luxemburgo (FRL) – uma de suas funções consiste em divulgar o pensamento da revolucionária polonesa ao redor do mundo –, cresceu o número de comentários sobre ela.¹ Meu estudo, iniciado solitariamente na virada dos anos 1980, se beneficiou das novas publicações, embora neste livro a bibliografia utilizada ainda seja em grande parte francesa. A rebelião de maio de 1968, reatualizando a ideia de auto-organização das massas, deu fôlego novo aos estudos sobre Luxemburgo e à publicação de parte de sua obra na França, incluindo a correspondência. Franceses e alemães ocidentais foram pioneiros na divulgação de uma Rosa revolucionária, adepta das liberdades democráticas, que, em contraposição à leitura vigente na antiga República Democrática Alemã (RDA), era vista como alternativa de esquerda ao vanguardismo e ao autoritarismo bolcheviques.
Essa tendência é seguida atualmente pela grande maioria dos comentadores de Luxemburgo na antiga Alemanha oriental. Com a queda do Muro de Berlim, eles reconheceram o equívoco de sua leitura anterior, sintetizado nas palavras de uma das organizadoras das Gesammelte Werke (GW) [Obras coligidas]:
Alguns [...] como Günter Radczun e eu [...] se enredaram em contradições porque o pensamento e a ação de Rosa Luxemburgo foram medidos sobretudo em comparação com Lenin e não foi oferecida resistência suficiente ao culto formal dos heróis. (Laschitza, 2002, p.10-1)
Porém, apesar das vicissitudes na publicação das GW, é imprescindível reconhecer o esforço da equipe envolvida nesse trabalho que, ao longo dos anos, enfrentando obstáculos sem conta, tornou conhecida a obra de Rosa Luxemburgo.² Sem as GW, nada de sério se pode fazer nesse terreno.
Mas, além das GW, é preciso mencionar os novos estudos sobre a participação dos spartakistas na Revolução Alemã, com base em descobertas de arquivos.³ Essas publicações me permitiram corrigir imprecisões provenientes da bibliografia francesa mais antiga e acrescentar detalhes importantes para dirimir dúvidas a respeito do comportamento de Luxemburgo nesses dias tumultuados. Por exemplo: a insurreição de janeiro de 1919 em Berlim foi muito mais responsabilidade da ala berlinense do Partido Social-Democrata Independente (USPD) e dos delegados revolucionários que do Partido Comunista Alemão (KPD)/Liga Spartakus, como explico no capítulo 4. Este foi depois o bode expiatório, em grande parte por causa de sua inabilidade política, que o levou ao isolamento. Se os estudiosos revelam tanto empenho em operar distinções, é para deixar claro que a Alemanha não estava às portas do bolchevismo, antiga acusação da direita, que criou assim terreno fértil para o nazismo. As lideranças da Liga Spartakus – Rosa Luxemburgo, Leo Jogiches e Paul Levi – eram socialistas e democráticas, ou seja, favoráveis à ideia de um caminho ocidental para o socialismo, diferente do bolchevique. Essa sempre foi minha leitura, assentada na historiografia alemã ocidental dos anos 1960/1970, a que os estudos recentes acrescentaram alguns detalhes.
Uma última observação sobre a recepção de Luxemburgo. Só recentemente vem sendo preenchida a grande lacuna no tocante aos escritos poloneses – um terço de sua obra –, quase ignorados por completo na antiga RDA.⁴ Esses escritos vêm sendo traduzidos para o alemão por Holger Politt e em breve serão publicados nas GW. Até agora tivemos acesso a traduções suas de alguns textos, além de dois volumes (2012 e 2015) com acuradas introduções e aparato crítico,⁵ que contribuem para aprofundar a compreensão que se tinha da obra de Luxemburgo.
Um aspecto importante dessa obra, de que não tratei no livro em virtude de sua complexidade, refere-se à questão nacional. Para entender a posição de Luxemburgo seria necessário um estudo alentado que não posso fazer aqui. Quero apenas registrar algumas linhas básicas de sua abordagem, a fim de indicar que o modo como trata a questão nacional confirma a interpretação que faço de seu pensamento político.⁶
Para tanto voltemos às origens da militância de nossa autora no movimento socialista polonês. A social-democracia do Reino da Polônia, fundada em Zurique em 1893 por Rosa Luxemburgo, Leo Jogiches (1867-1919), Adolf Warski (1868-1937) e Julian Marchlewski (1866-1925), resultou de uma cisão no Partido Socialista Polonês (PPS), criado um ano antes nos arredores de Paris, que defendia o socialismo aliado à restauração da Polônia, dividida entre Rússia, Prússia e Áustria-Hungria. Com a adesão dos socialistas da Lituânia em 1899, liderados por Feliks Dzierzynsky (futuro criador e chefe da Tcheka), o pequeno partido adotou o nome de Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia (SDKPiL). Contra o que consideravam o programa social-patriota
do PPS, Rosa e seus amigos, internacionalistas convictos, filhos da Ilustração europeia, abraçavam a ideia de uma República democrática para todo o império russo, a partir de uma aliança entre trabalhadores poloneses e russos, em luta contra a autocracia tzarista. Só depois viria o combate pelo socialismo e, por fim, a solução da questão polonesa: a Polônia deveria ter autonomia territorial e cultural, mas não seria independente do Estado russo.
Opondo-se a Marx e Engels, que defendiam a independência da Polônia como uma barreira contra o tzarismo, símbolo da reação na Europa, Rosa Luxemburgo considerava que a situação se transformara desde a época de Marx. Ela fundamentava teoricamente sua posição na análise feita em sua tese de doutorado, intitulada O desenvolvimento industrial da Polônia (1898), na qual mostrava que a integração econômica da Polônia ao mercado russo, principal comprador da produção polonesa, era total e irreversível. De acordo com esse raciocínio, não havia base social para um programa nacionalista, pois nem a burguesia nem o proletariado tinham interesse em apoiar um Estado polonês independente. Só alguns proprietários agrícolas, a pequena-burguesia e os intelectuais continuavam nacionalistas, mas não passavam de forças sociais pouco importantes. Em suma, a independência da Polônia era uma palavra de ordem retrógrada que em nada contribuía para o movimento socialista. Como escreve Luxemburgo: Patriotismo e socialismo são duas ideias que não combinam
(GW 1/2, p.313).
Contudo, sua posição não era unívoca. Tratava-se de analisar cada caso concreto. Por exemplo, ela defendia a independência dos povos submetidos à Turquia (gregos, sérvios, búlgaros, armênios).⁷ O que há de comum em todas as análises de Rosa Luxemburgo é o peso concedido ao interesse de classe prevalecendo sobre os sentimentos patrióticos. Nesse sentido, a análise materialista da situação polonesa mostrava que o desenvolvimento do capitalismo tinha vinculado a Polônia à Rússia e criado uma classe operária polonesa-russa cujo interesse era, em última instância, a revolução socialista (depois da derrubada do tzarismo). Já o caso da Turquia era diferente, pois as estruturas feudais do império turco constituíam um freio ao desenvolvimento capitalista. Logo, tratava-se de abater o feudalismo turco para permitir a passagem às relações capitalistas. Tudo o que atrasava o curso objetivo do desenvolvimento econômico e social do capitalismo retardava o advento do socialismo.
É claro que Rosa, seguindo a cartilha social-democrata, defendia os povos oprimidos contra os opressores. Não era isso que estava em questão. Mas a defesa dos movimentos de independência nacional dependia da análise de cada situação, e o que importava, acima de tudo, era saber se esses movimentos contribuíam ou não para a revolução socialista. Nisso ela concordava com Lenin.
As divergências estão em outro ponto: será que os movimentos de libertação nacional podiam (e em que medida) tornar-se aliados da revolução proletária? Para Luxemburgo, não só isso não era possível, como ela temia que esses movimentos levassem à instauração de novos Estados capitalistas, afastando o movimento operário da revolução e quebrando a unidade internacional dos trabalhadores nos Estados plurinacionais. É preciso reconhecer que, depois de um século de lutas de libertação nacional, ela acabou tendo razão. As lutas pela independência nacional não levaram à constituição de governos socialistas, nem sequer progressistas, e sim ao monopólio do poder por novas elites, adeptas de políticas autoritárias.
No entanto, por mais que tenhamos simpatia pelas posições políticas de Luxemburgo, é difícil discordar do historiador polonês Feliks Tych (1976, p.240), segundo o qual Rosa assume uma posição mecânica a respeito da questão nacional, na medida em que insiste em demonstrar de modo simplista que a superestrutura depende diretamente dos processos econômicos
. No entanto, em outros domínios de suas análises políticas, ao enfatizar o papel criador das massas na história, Rosa se afasta de uma concepção mecanicista de sociedade. Tal ambiguidade, de acordo com Tych, revelaria uma antinomia em seu pensamento. Dessa perspectiva, o tratamento que Rosa Luxemburgo dá à questão nacional reforça a análise que faço neste livro, mostrando que sua obra é atravessada por uma tensão entre um polo determinista e outro libertário, traço ignorado pela maioria dos comentadores e que, a meu ver, fornece a explicação mais convincente para certas inconsistências de nossa autora.
O restante dos escritos poloneses publicados até agora consiste numa crônica da Revolução Russa de 1905, de que Rosa participou ativamente como jornalista, primeiro em Berlim, mais tarde em Varsóvia. As principais ideias desses artigos, veiculados na imprensa da SDKPiL no decorrer de 1904-1906, acabaram condensadas em Greve de massas, partido e sindicatos
(1906), texto escrito para o SPD, que marca o início de sua ruptura com o mainstream da social-democracia alemã. É importante assinalar que, com a Revolução Russa de 1905, o grupo de Luxemburgo viu a confirmação de seu programa antinacionalista, o que se traduziu no crescimento do pequeno partido. Na época, este passou a contar com cerca de 30 mil a 40 mil membros, mas, com a derrota da revolução, retornou à sua irrelevância inicial.
Tema central desses artigos, de candente atualidade – e que atravessa toda a obra de Luxemburgo –, é o do valor das liberdades democráticas para a formação política das massas populares. Estas aprendem e se formam sobretudo no decorrer da luta, mas também durante os debates travados nos jornais e nas reuniões de que participam. Liberdade de expressão, discussão e crítica é um bem precioso a ser cultivado no interior do próprio movimento operário:
Liberdade de opinião e de imprensa é a primeira condição para o proletariado adquirir consciência, mas outra condição é que o próprio proletariado não ponha em si nenhum grilhão, que não diga que isto ou aquilo não deve ser discutido. É o que sabem os trabalhadores esclarecidos do mundo inteiro, que sempre se esforçaram por conceder, mesmo a seus piores adversários, o direito de expor livremente suas concepções. (Luxemburgo, 2015, p.152)
O PPS não pensa assim:
Centenas de correspondências provenientes de círculos operários relatam que quando os militantes do PPS são maioria nas reuniões, os membros de outros partidos são impedidos de modo implacável de expressar sua opinião, e, quando são minoria, procuram impedir a discussão com gritos e algazarra! (ibid.)
Os membros do PPS, de acordo com Rosa, não podem ler publicações de outros partidos, são obrigados a acreditar no que diz o PPS, assim como os católicos fiéis devem acreditar no que ensina a Igreja
. O pessoal do PPS quer impedir que seus militantes escutem os argumentos dos adversários e denuncia qualquer opinião diferente dentro de suas próprias fileiras como desorganização e amotinação, para criar assim uma Igreja de crentes, não quadros de trabalhadores reflexivos, conscientes e críticos
(ibid., p.153).
Os escritos poloneses trazem água ao moinho dos que, com razão, enfatizam o viés democrático e libertário das ideias de nossa autora, deixado na sombra pela recepção comunista na antiga RDA, em que um Lenin canonizado e abstrato servia de medida para as ideias erradas
que ela inoculara no movimento operário alemão. Com o fim da linha justa
imposta pela burocracia soviética, acabou a interferência do Estado e do Partido Comunista da RDA (SED) na pesquisa historiográfica alemã.
Hoje vivemos uma crise de credibilidade da esquerda e do socialismo no mundo inteiro. Enquanto na Rússia e nos antigos países do Leste europeu, ela é em parte fruto da falta de liberdade e da ineficiência econômica típicas da burocracia comunista, no Ocidente a responsabilidade cabe aos governos social-democratas e progressistas
que, tendo adotado o programa do adversário, assumiram o papel de gestores do capitalismo e da funcionalização da pobreza. Onde há gestão não há política, e sim a paz dos cemitérios, agora rompida com o retorno da extrema-direita ao palco.
Num cenário tão desolador, precisamos urgentemente de espaços de discussão que contribuam para a reinvenção da esquerda. O que me traz à lembrança o exemplo de Mário Pedrosa logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando se inspirava nas ideias socialistas libertárias de Rosa Luxemburgo no fito de criar uma nova esquerda, independente dos grupos políticos então dominantes, stalinistas e social-democratas. Nessa perspectiva, ele combatia a favor da formação de um partido socialista de massas, democrático e anticapitalista.
Mas, hoje, quando a ideia de partido político é profundamente questionada e parte relevante do campo antissistêmico aderiu às lutas identitárias – fundamentais, é preciso reconhecer – com suas miríades de grupos isolados, cada um apegado à sua causa, o que falta, para superar essa fragmentação que nos enfraquece, é retomar a construção de um projeto coletivo anticapitalista, por mais arriscada que seja a proposta no momento quase indecifrável em que vivemos. Esse projeto alternativo poderia ser organizado ao redor de três eixos principais: democracia radical; desmercantilização de todas as dimensões da vida; centralidade da questão socioambiental. Aqui Rosa Luxemburgo tem voz no capítulo.
No tocante ao primeiro ponto, Rosa é uma referência no campo da esquerda por sua conhecida defesa do socialismo democrático. Democracia e socialismo se condicionam reciprocamente; socialismo autoritário não passa de um círculo quadrado. Para Rosa, tanto o período de transição ao socialismo quanto a própria construção de uma sociedade socialista requerem não só os direitos políticos que as revoluções burguesas inventaram, como sua complementação pelos direitos de igualdade social. Ou seja, pluralidade política e igualdade social. Daí sua aposta nos conselhos de trabalhadores como nova forma de soberania popular. Esse beabá do socialismo foi suprimido nos países comunistas e o resultado foi o que sabemos.
Um aspecto interessante e atual dessa defesa da liberdade é que, no seu entender, não existe sociedade livre sem indivíduos conscientes, que não se deixam manipular. Daí seu entusiasmo pela liberdade de imprensa, pelo direito de associação e reunião, pelo debate de ideias em todos os níveis e em todos os lugares – também, e com mais razão ainda, nos partidos de trabalhadores. Entendendo que é proibido proibir, ela pensa que o partido é um espaço de debate intelectual e político, de esclarecimento, de convencimento por meio da argumentação, de criação de indivíduos autônomos – uma escola de socialismo –, muito mais que um instrumento de luta pelo poder. Sem trabalhadores intelectualmente autônomos, reflexivos e críticos, não é possível a construção de um projeto anticapitalista.
Mas sua grande sacada é que a formação da consciência dos de baixo se dá na luta prática, na ação – em grande parte espontânea – contra as instituições vigentes, bem mais que pela leitura de livros, panfletos, ou pela frequência às aulas nas escolas de formação de quadros. Isso significa que a consciência não é levada de fora por uma vanguarda esclarecida de revolucionários profissionais, substituta das massas. Nesse sentido, há que rejeitar a separação entre bases e lideranças. O papel do líder é deixar de liderar, e transformar a massa em líder de si mesma, o que não só lembra o mandar obedecendo
dos zapatistas, como exclui qualquer projeto caudilhista em que um grupo de líderes infalíveis
domina o aparelho partidário e impõe suas resoluções às bases infantilizadas. Dessa perspectiva autonomista
, não é possível falar em revolução socialista em nome do proletariado, e tanto isso é verdade que Rosa se opõe às revoluções fabricadas
por grupos armados em nome do povo.⁸ Em suma, o lema da autoemancipação das massas populares, como catalisadora de mudanças estruturais na sociedade, é o fio vermelho que atravessa toda a obra de Rosa Luxemburgo, ainda não desmentido pela história. E serve até hoje de inspiração às feministas: tal como as massas, se as mulheres não agirem por si mesmas, outros sempre atuarão sobre elas, ou em seu nome. A emancipação dos oprimidos só pode resultar da ação dos próprios afetados. Liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade.
O segundo ponto refere-se à crítica do capitalismo, base das análises políticas de Luxemburgo. Em sua obra magna de economia política (A acumulação do capital, 1913), ela mostra que, para além da apropriação de mais-valia, a acumulação do capital como processo histórico real só foi e é possível no intercâmbio entre economias capitalistas e não capitalistas. Desde os primórdios, o capitalismo precisou de mercados externos para se reproduzir, entre outras coisas transformando economias simples em economias de mercado. A violência e o saque contra as camadas sociais não capitalistas, que Marx restringia ao período da chamada acumulação primitiva
, ela considera uma característica intrínseca do capitalismo até sua plena maturidade, num processo que David Harvey (2004), recuperando a tese de Luxemburgo, chamou de acumulação por expropriação
. Hoje continuamos a assistir à transformação de tudo em mercadoria: serviços públicos, saúde, educação, cultura, ciência, conhecimento, direitos autorais, recursos ambientais etc. A lista é longa. As feministas alemãs dos anos 1970-1980, inspiradas em Rosa, incluíram nesse âmbito o trabalho doméstico não remunerado das mulheres, indicando que os espaços de acumulação do capital não são apenas geográficos, mas também sociais, e vão muito bem, obrigado.
Essa ideia de acumulação primitiva permanente
foi retomada por Silvia Federici em seu instigante livro, Calibã e a bruxa (2017). Criticando Marx (sem mencionar Rosa Luxemburgo), que pensava que a violência dos primeiros estágios de acumulação retrocederia com o desenvolvimento do capitalismo, na medida em que a exploração e o disciplinamento do trabalho seriam alcançados basicamente por meio do funcionamento das leis econômicas, Federici escreve:
Nisso, estava profundamente equivocado. Cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que mostra que a contínua expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época. (Federici, 2017, p.27)
Assim como Luxemburgo reconhecia que o desenvolvimento capitalista não é apenas o domínio da ‘concorrência pacífica’, das maravilhas técnicas e do puro comércio de mercadorias
, mas também o terreno da violência ruidosa do capital
, o mesmo fazem hoje os movimentos socioambientais na América Latina, denunciando a simbiose entre Estado e grandes empresas como responsável por extorquir os meios de vida dos povos tradicionais, indígenas, trabalhadores sem terra etc.
E com isso chegamos ao nosso terceiro ponto, que toca na questão socioambiental. Numa época em que o capitalismo, para sobreviver, precisa mais do que nunca extrair valor do meio-ambiente, o socialismo só pode ser entendido como ecossocialismo, numa rejeição ao desenvolvimentismo fóssil
tal como posto em prática pelos governos progressistas
na América Latina (e continuado pelos governos conservadores), apoiados na exportação de commodities, agronegócio, mineração, numa palavra, no extrativismo predador. O planeta precisa urgentemente de uma alternativa civilizatória antagônica ao desenvolvimento entendido como puro crescimento econômico, para o qual não importa que o preço a pagar seja a destruição do meio ambiente, como em Belo Monte, ou as cidades entupidas de automóveis, para mencionarmos apenas o Brasil.
Rosa Luxemburgo, ao enfatizar em suas obras de economia política a violência com que as culturas primitivas são aniquiladas pelo colonizador europeu e substituídas pela economia de mercado, apresenta uma crítica da modernização capitalista, mais atual hoje que na sua época. Diferente de uma concepção iluminista do progresso, segundo a qual a violência capitalista é admitida como mal necessário
no caminho para o socialismo, Rosa acredita que os povos originários podem ensinar aos civilizados
formas de sociabilidade mais igualitárias e não predadoras, determinadas pelos interesses da coletividade. A polonesa Rosa Luxemburgo