Texto I - Cidadania
Texto I - Cidadania
Texto I - Cidadania
COSTA, M.I.S., and IANNI, A.M.Z. O conceito de cidadania. In: Individualização, cidadania e inclusão
na sociedade contemporânea: uma análise teórica [online]. São Bernardo do Campo, SP: Editora
UFABC, 2018, pp. 43-73. ISBN: 978-85-68576-95-3. https://doi.org/10.7476/9788568576953.0003.
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O CONCEITO
DE CIDADANIA
a) Vínculo de pertencimento
É o conceito de Estado-Nação que se configura
como central na definição de uma identidade nacional,
de pertencimento coletivo e de inclusão em determinada
comunidade política. Por sua vez, o que faz o liame para
articular esse espaço de Estado-Nação é a consolidação de
uma cultura nacional homogênea que congrega e solidifi-
ca o sentimento de pertença. A consolidação dessa cultura
nacional depende da idealização e do reconhecimento de
fatos, lendas, tradições, costumes e mitologias diversas a
respeito do passado, ocorridos ou concebidos no territó-
sociedade democrática.
No ambiente da modernidade, o modelo de política
esteve sob o pêndulo do dicotômico do jogo de esquerda-
-direita, de acordo com Bauman (2001). Esse jogo oscilava
entre os propósitos e os anseios de perspectivas das revo-
luções burguesa ou socialista. Cada parte desse espectro
político propunha seu próprio processo de avanço da so-
ciedade. Assim, parlamentos, partidos e sindicatos eram
os verdadeiros atores sociais da política e sua atuação
refletia sua ideologia de classe. Essa configuração política
estava de acordo com os paradigmas da modernidade, se-
gundo os quais a política representativa determinava sua
ação. Assim, na sociedade democrática, a ação política do
54 cidadão moderno dá-se nas urnas em períodos eleitorais,
por meio do seu direito ao voto e, em momentos excepcio-
nais, em plebiscitos e conferências populares (a forma da
organização partidária como componente viabilizador
da representação).
Porém, com a emergência dos novos paradigmas
da sociedade contemporânea, o modelo político moder-
no não responde às novas exigências e às transformações
sociais. Os problemas sociais da nova modernidade são
mais complexos, com mais variáveis, menos hegemônicos,
mais individuais e, por vezes, desterritorializados. Dizem
respeito às condições de vida do indivíduo contemporâ-
neo, que fogem da simples dicotomia direita-esquerda e
de suas ortodoxias. A política, ao menos no cotidiano, não
é mais a dos grandes sistemas ou soluções, ela representa
um espaço em defesa da voz das novas identidades, das
afinidades profissionais, estéticas e minoritárias.
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Para Giddens (2002, p. 197), o conceito de política-vida “[...] refere-se a
questões políticas que fluem a partir dos processos de auto-realização em
contextos pós-tradicionais, onde influências globalizantes penetram pro-
fundamente no projeto reflexivo do eu e, inversamente, onde os processos
de auto-realização influenciam as estratégias globais”.
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Para Beck (1997), o conceito de subpolítica significa o espaço em que os
indivíduos, apesar de não inseridos no sistema político formal, interferem
na política, quer por meio de questões reflexivas, quer de forma direta.
Tais ações podem ocorrer em vários campos, seja na saúde, na tecnologia
ou no direito.
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A micropolítica procura desmistificar o poder de forma centralizada,
mostra seu enraizamento e penetração no cotidiano da vida dos sujeitos,
de forma capilar. Apresenta o poder não apenas como negativo, coercitivo,
o Estado do cidadão.
Nesse novo paradigma, a sociedade e o Estado não
são fenômenos dados, mas sim constituídos pelo próprio
homem. São concebidos como criações humanas, resul-
tantes de um pacto entre os indivíduos. A desigualdade e
o poder ilimitado deixam, pois, de ser justificados como
naturais, isto é, como decorrentes da ordem natural das
coisas, ou, ainda, como materializações de uma vontade
extraterrena. Os arranjos sociais e políticos tornam-se,
portanto, passíveis de contestações e sujeitos à interven-
ção do homem que os constituiu.
Além da igualdade de direitos naturais, deriva daí,
também, uma nova concepção de liberdade. A liberdade,
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nesse novo paradigma liberal, deixa de ser concessão ou
característica de uma camada social ou de um estamen-
to, mas converte-se em um atributo do próprio homem.
Locke (2006) afirmou que o homem é definido por sua
vida, sua liberdade e seus bens. Dessa forma, toda e qual-
quer desigualdade provocada pelo arranjo social passa a
ser entendida como um resultado do acordo realizado en-
tre indivíduos, ou seja, o homem passa a ser responsável
por seus próprios fracassos e desigualdades.
Os preceitos filosóficos forneceram os fundamentos
para uma nova arquitetura social. Esses arranjos encon-
traram sua manifestação mais explícita na codificação da
igualdade entre os homens a partir de normas legais, ou
seja, na formalização dos direitos. Esses direitos consti-
tuem e delimitam a cidadania moderna. Ser cidadão sig-
nifica ser detentor de direitos e deveres que os outros, os
ser “[...] protegidos pelo império da lei, para que o ser hu-
mano não seja compelido, como último recurso, à rebelião
contra a tirania e a opressão” (idem).
Faz-se necessário ressaltar que a declaração foi um
ato de internacional de reconhecimento por parte de to-
dos os Estados-Nações que compunham a Organização
das Nações Unidas (ONU). Ao contrário dos civis, sociais e
políticos, os direitos humanos não são fruto da legislação
de uma nação, mas, sim, são concebidos para toda a
humanidade, independentemente de sua nacionalidade,
somente pelo fato de constituírem-se como ser humano.
Entretanto, Arendt (1989) afirma que a garantia desses
direitos, também, está vinculada à primeira dimensão do
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conceito de cidadania, a de pertencimento. A eficácia dos
diretos humanos depende de mecanismos presentes no
interior de um Estado para garanti-los aos seus cidadãos.
Isso quer dizer que os apátridas, que não possuem qual-
quer vínculo com o Estado, estão destituídos da proteção
que esse possa assegurá-los e, por não serem mais um in-
divíduo político, não têm a quem reivindicar seus direitos
(ARENDT, 1989; LAFER, 1988).
Outra questão importante a ser elucidada é em re-
lação aos deveres dos cidadãos. A função primária da lei
é a de se fazer cumprir, restringir e corrigir ações. As leis
são essencialmente imperativas e visam obter o compor-
tamento desejado ou evitar o indesejado. Dessa forma,
podemos afirmar que “[...] o direto e o dever são o verso e
o reverso de uma mesma moeda” (BOBBIO, 2004, p. 53).
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TIPOLOGIA DA CIDADANIA
Aqui, partiremos do pressuposto de que, apesar de
a identidade social política ideal ser constituída pelos três
elementos – vínculo de pertencimento, participação polí-
tica/coletiva e consciência de ser portador de direitos e
deveres –, essa composição não é rígida. Ela pode ser com-
posta de um, dois ou três elementos. O único elemento es-
sencial para sua constituição é o primeiro, o de pertenci-
mento a uma comunidade, que se justifica pela afirmação
de Nogueira (1999, p. 70):
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Carvalho (2015) afirma existir três tipos de cidadãos brasileiros: o ci-
dadão pleno, que é detentor dos três direitos (civis, políticos e sociais); o
cidadão incompleto, que é detentor de ao menos um dos direitos; e o não
cidadão, que não se beneficia de qualquer dos direitos. Para o autor, há um
vínculo entre alguns direitos, como o civil e o político. Se não há a garantia
do direito civil, como a liberdade, não se pode garantir o direito político.
Entretanto, o direito político, como a possibilidade de escolher um gover-
nante, não é garantia de direitos sociais. Tomamos emprestada a catego-
ria cidadão pleno, que é definida por ser “[...] titular dos três direitos”
(CARVALHO, 2015, p. 9). Entretanto, ampliaremos seu significado ao acres-
centarmos mais duas dimensões: a de pertencimento e a de participação
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não ser ativo politicamente, tem conhecimento de seu per-
tencimento e de como usufruir e garantir seus direitos.
O terceiro, o do cidadão tutelado, é constituído ape-
nas pelo primeiro elemento, o de pertencimento. Os cida-
dãos desse grupo são caracterizados por não conseguirem
exercer seus direitos políticos e por não terem garantidos
seus direitos como cidadãos. Em sua maioria, são indiví-
duos considerados inimputáveis, isto é, não responsáveis
por seus atos, e encontram-se tutelados pelo Estado ou por
outro indivíduo responsável por eles. São os indivíduos em
situação de grande vulnerabilidade social, como os doen-
tes mentais. Estes, na maioria das vezes, são considerados
cidadãos apenas pelo pertencimento a um Estado-Nação,
pois nem sempre possuem condições de garantir sozinhos
os seus direitos, deveres e o livre exercício político.
É possível inferir, segundo a tipologia anterior, que
há diferentes gradações no exercício da cidadania, e que
essa tipologia não se resume a uma identidade única na
MARIA IZABEL SANCHEs COsTA | AUREA MARIA ZÖLLNER IANNI
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