As Obras de Saneamento e o Tracado Das P
As Obras de Saneamento e o Tracado Das P
As Obras de Saneamento e o Tracado Das P
2º Congresso Internacional
de História da Construção
Luso-Brasileira
Culturas Partilhadas
Editores
Rui Fernandes Póvoas
João Mascarenhas Mateus
2º Congresso Internacional de História da
Construção Luso-Brasileira
Culturas Partilhadas
Porto, 14-16 Setembro 2016
2 º C I H C L B 2016
LIVRO DE ACTAS
Volume 2
Culturas Partilhadas I
Livro de actas - 2.º Congresso Internacional de História da Construção Luso-Brasileira
ISBN: 978-989-8527-11-0
The first edition of this scientific event took place in September 2013, at Espírito Santo
Federal University, in Vitoria – Espírito Santo, Brazil – aiming at the development of the
discipline of Luso-Brazilian Construction History.
This second edition, organized by the Center for Studies in Architecture and Urbanism,
University of Porto (CEAU-UP), with the support of the Portuguese Society for Studies on
Construction History (SPEHC), wishes to consolidate the progress achieved in previous activities
in this area, that are examples: the “First Conference on Construction History in Portugal:
Alignments and foundations”, that was held in Lisbon in 2010; the ‘Seminar on Luso-Brazilian
Construction History’, held in Vitória do Espírito Santo, Brazil, in 2011; in 2012 Coimbra hosted
the “History of Construction, Contributions to Conservation” workshop, integrated in the ‘2nd
International Meeting on World Heritage of Portuguese Origin’; the International colloquia
‘Construction History” carried out between 2010 and 2013 at the University of Minho, (Portugal);
and, more recently, the “2nd Conference on Construction History in Portugal. Consolidating
a discipline” was held in Lisbon, in 2015.
With undeniable importance but on a separate plan, it is also worth to mention the recent
creation of the Portuguese Society for Studies on Construction History (SPEHC), reflecting
the interest and the development that this field of knowledge is experiencing in Portugal. It is
also expected that this effort can contribute to the creation of a solid base for the promotion
and dissemination of studies focused in this area.
This congress aims to be a forum for discussion of the most recent studies on the history
of constructive processes, between Portugal and Brazil, in its many influences that also
pass through Europe, Asia and Africa. Electing as Congress theme the subject of “SHARED
CULTURES”, we intend to further extend this initiative to other geographical areas, whose
intersection with Luso-Brazilian construction is easily recognized.
Culturas Partilhadas V
Comissão Organizadora
Coordenadores
Rui Fernandes Póvoas (CEAU/FAUP)
João Mascarenhas Mateus (CIAUD/FAUL)
Secretariado
Maria Rodrigues (CEAU/FAUP)
Carolina Medeiros (FAUP)
Filipa Baltazar
Design Gráfico
Juliana Costa
Carlos Gonçalves
CO-FINANCIAMENTO
APOIOS
APOIOS INSTITUCIONAIS
Consulado Geral do
Brasil no Porto
Culturas Partilhadas IX
Temas e Subtemas
- Problemas de método;
- Fontes: edifícios, documentos, etc.;
- Relações com outras disciplinas.
5 – CULTURAS PARTILHADAS
VOLUME 1
APRESENTAÇÃO/ PRESENTACIÓN/ PRESENTATION
91 Abobadilha Alentejana
“Características e Processos Construtivos”
Rei, João; Sousa Gago, António
Culturas Partilhadas XI
PÁG.
215 As Prescrições Técnico-Construtivas de Casimir Tollet para a Ventilação dos Espaços Hospitalares
Hospital ultramarino de Cabinda
Serrano, Inês; Moreira, Anabela
241 Acontecimentos Precursores da Criação da Gaiola Pombalina e Construção Mista com Madeira.
Tavares, Alice; Costa, Aníbal
567 Aspectos da Construção do Espaço Religioso no Século XVIII em Minas Gerais, Brasil
Melo Miranda, Selma
Culturas Partilhadas XV
PÁG.
653 O Papel da Engenharia Civil na Modernização da Cidade Brasileira na Segunda Metade do Século XIX:
O Caso de Vitória – Espírito Santo
Ribeiro, Nelson Pôrto
691 Formação Profissional dos Trabalhadores da Construção Civil nos Séculos XX e XXI,
São Paulo, Brasil
O canteiro de Obras e a Emancipação Social
Barros, Francisco Toledo; Lopes, João Marcos de Almeida
849 Sistemas Auxiliares para la Construcción de las Bóvedas Europeas en el Gótico Primitivo:
Características y Evolución
Maira Vidal, Rocío
CULTURAS PARTILHADAS
1179 As Ruínas da Matriz da Jaguara e a Igreja Inacabada do Rosário dos Pretos em Sabará:
Estudo Sobre o Uso de Estruturas Mistas na Arquitetura Religiosa
Mineira da Segunda Metade do Século XVIII
Dangelo, André Guilherme Dornelles, Brasileiro, Vanessa Borges
RESUMO
Ao se falar sobre culturas partilhadas, entre Portugal e Minas Gerais, no universo da construção e da
arquitetura setecentista, torna-se necessário fazer referências aos homens que chegaram à Capitania de
Minas Gerais na primeira metade do século XVIII e que, ao fixarem as suas residências, iniciaram seus
trabalhos ligados à construção, compartilhando o seu conhecimento com outros profissionais da área.
Mesmo com a existência de vários estudos alusivos ao universo construtivo, pode-se dizer que muito
pouco, ou quase nada, se sabe acerca desses profissionais, mas se forem reunidas as pistas dadas por
pesquisadores do período, assim como se for feita a análise de documentos, referentes aos registros dos
profissionais quando eles chegaram a Minas Gerais, e também de inventários e testamentos deixa-
dos por alguns profissionais, pode-se montar o mosaico dos trabalhadores que chegaram ao território
mineiro e que contribuíram para o fazer arquitetônico e para as práticas relativas à construção, na
primeira etapa do século XVIII.
Até o momento, existem mais questões a serem levantadas do que respostas prontas. As dúvidas fazem
com que seja necessário se debruçar ainda mais sobre esse viés de pesquisa. E um dos objetivos deste es-
tudo é responder a algumas perguntas que se apresentam, tais como: Quem foram esses homens? Quais
funções ocuparam na empresa arquitetônica? De quais regiões vieram? É interessante ressaltar que, ao
tentar responder a essas questões, boa parte das dúvidas relativas à arquitetura em Minas Gerais será
também elucidada, e, dessa forma, algumas conclusões poderão ser tiradas, pois, tendo conhecimento
da origem dos profissionais, esta poderá ser associada ao seu modo de construir, aos seus traços esti-
lísticos, caso eles tenham executado alguma obra em Portugal, comparativamente aos praticados na
Capitania de Minas Gerais, podendo-se, assim, descobrir possíveis autores de obras que estejam com
autorias ainda por serem elucidadas.
*
Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, na Escola de Arquitetura da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG. Especialista em História da Arte. Bacha-
rel/Licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG.
Devassa, dos Acórdãos das Câmaras de Vila Rica6 O trabalhador qualificado, ao finalizar uma
e da Vila do Carmo — fontes importantes e reve- obra, percorria o território da Capitania de Minas
ladoras sobre o universo da construção que possui Gerais, assumindo obras nos diversos locais onde
inúmeras lacunas a preencher. o trabalho se apresentava. Diante dessas infor-
Com base nos dados analisados, foi constatado mações, percebe-se que os que se dedicavam aos
que, no universo arquitetônico, o profissional não ofícios que lhes eram confiados se aprimoravam
permanecia somente em um local, devido às redes cada vez mais, galgando novos postos no meio
de contatos que iam sendo criadas. Essas redes profissional.
profissionais eram consideradas importantes,
pois era a partir delas que o profissional tinha a 2. DESENVOLVIMENTO
oportunidade de se fixar no território mineiro e
Além de abordar os profissionais que ainda
se estabelecer profissionalmente, abrindo, assim,
reclamam um estudo mais meticuloso sobre a
caminho para que pudesse adquirir o ferramental
sua atuação no universo das construções arqui-
necessário para o trabalho, assim como escravos
tetônicas, podem ser ressaltados também aqueles
e demais equipamentos, estabelecendo-se como
que, de alguma maneira, se destacaram em algu-
um homem de fábrica, quesito fundamental para
ma função ligada à construção. Por exemplo, o
atuar como um profissional da construção no
carpinteiro, mestre de obras reais e perito, Ma-
Setecentos mineiro.
noel Francisco Lisboa, pai de Antônio Francisco
O pedreiro Antônio Fernandes de Barros é um
Lisboa, o Aleijadinho, o seu irmão carpinteiro
exemplo de um profissional que tinha a cons-
Antônio Francisco Pombal e o engenheiro militar
ciência que sem fábrica ele dificilmente teria
Pedro Gomes Chaves. Cada um contribuiu, à sua
oportunidades de trabalho. Diante disso, Barros
maneira, para a monumentalidade arquitetôni-
precisou adquirir os equipamentos necessários,
ca, principalmente no que tange à arquitetura
na tentativa de se firmar no ramo da constru-
religiosa praticada na Colônia e que pode ser
ção, solidificar o trabalho no território mineiro
apreciada até os dias de hoje. É importante dis-
e consolidar uma fábrica. O pedreiro adquiriu de
correr um pouco acerca desses pioneiros que
outro colega de profissão escravos calceteiros e
se tornaram expoentes nesse empreendimento,
serventes, além de alguns equipamentos e ferra-
assim como sobre as suas realizações no território
mentas.7 Essa aquisição possibilitou que ele fosse
das Minas Gerais.
aceito entre os arrematantes de Vila Rica para os
Um dos pioneiros a ser analisado é Manoel
serviços de conservação e conserto de calçadas,
Francisco Lisboa, que pode ser considerado “um
pontes e quartéis.
agente da prática construtiva e arquitetônica”
Os portugueses trabalhavam lado a lado com os
(Dangelo, 2006, p. 295), por estar inserido no
escravos, até que conseguissem firmar-se no ramo
mundo da fábrica. Manoel Francisco Lisboa foi
da construção e obter o prestígio almejado para
um profissional emblemático que deixou regis-
arrematar obras, estar à frente de uma oficina ou
tros relevantes na Capitania de Minas Gerais,
possuir uma fábrica, como já salientado.8
tanto na primeira, quanto na segunda metade
6
Atual cidade de Ouro Preto/MG. do Setecentos. São incontáveis as fontes a seu
respeito e que evidenciam a sua intensa parti-
7
Cf. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO - CMOP - DNE, cx. 26, doc.
28, 1751. cipação no desenvolvimento das construções,
tanto civis, quanto religiosas, na Capitania de
8
Cf. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO - CMOP - DNE, cx. 04, doc.
46, 1733.
Minas Gerais. As suas ações como profissional
Fig. 1 - Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso - Caeté/MG Foto da autora, 2014.
do campo arquitetônico podem ser notadas o qual voltará a trabalhar na oficina estabelecida
como arquiteto, como mestre de obras reais, pe- para a construção da igreja de Nossa Senhora do
rito e ainda como avaliador de serviços que eram Rosário, em Vila do Carmo, como louvados de José
realizados por artistas e artífices do período. Pereira dos Santos,9 estando juntos novamente em
A partir das informações extraídas do Livro Vila Nova da Rainha de Caeté, para a construção
de Receita e Despesa da Irmandade de Nossa Se- da igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso (FIG.
nhora do Rosário dos Pretos, do arraial do Padre 1), conforme abordado por Urias (2013).
Faria, percebe-se que esse profissional trabalhou É interessante notar a teia profissional que era
ativamente, nos anos de 1743 a 1744, na igreja de formada. Alguns trabalhadores permaneciam
Santa Efigênia do Alto da Cruz, onde executou, juntos em empreitadas consecutivas, criando
juntamente com Antônio da Silva, as obras da ca- verdadeiras parcerias e sociedades, muitas vezes,
pela, sendo também louvado e mestre de obras na 9
Por volta de 1735, chegou José Pereira dos Santos, procedente da
região do Porto, que deveria assumir o papel de principal concor-
mesma construção. O referido Antônio da Silva era rente de Manuel Francisco Lisboa nas arrematações públicas (Oli-
o mestre pedreiro Antônio da Silva Herdeiro, com veira, 2007, p. 134).
de 1744, encontrando-se sem fábrica, para dar Importante ressaltar que a atuação de Pedro
andamento à construção. Dessa forma, para que Gomes Chaves, nos empreendimentos arquitetôni-
não ficassem inconclusos os trabalhos, estes foram cos das Minas Gerais, ainda se encontra permeada
assumidos por outro carpinteiro, de nome Antônio por inúmeras lacunas a serem preenchidas e in-
dos Santos Portugal, já bastante ativo em Vila Rica terrogações a serem respondidas. Este é mais um
como juiz do oficio de carpinteiro. Os dados rela- personagem que reclama um estudo mais detido
tivos à Pombal cessam no ano de 1745, não sendo acerca de seus trabalhos e trajetória profissional,
localizadas informações alusivas a ele após essa data. pois, como os demais citados, foi, sem dúvida,
O último profissional a ser analisado, que atuou relevante para a empresa arquitetônica e para o
nessa primeira metade do século XVIII, é Pedro universo da construção do Setecentos mineiro.
Gomes Chaves, sargento-mor e engenheiro militar.
Gomes Chaves figura como “o primeiro projetista 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
qualificado atuando nas Minas Gerais” (Dangelo,
2006, p. 296). Escassas são as informações alusivas Este estudo pretendeu lançar luzes sobre al-
a Gomes Chaves. O que se sabe é que, em 1709, guns nomes de profissionais portugueses que,
ele foi promovido ao posto da Carreira Militar e ao chegarem à América Portuguesa, atuaram na
que, conforme Souza Viterbo, “o Conselho Ul- Capitania de Minas Gerais, sendo contratados
tramarino, em consulta de 11 de junho de 1709, para os empreendimentos ligados à construção e
propunha-o em primeiro lugar para engenheiro arquitetura, na primeira metade do século XVIII.
da praça da Bahia” (Souza Viterbo, 1899-1922, O artigo foi dividido entre profissionais cujo
p. 67). Essa informação, sobre o local onde ele se maior conhecimento ainda demanda muitas pes-
encontrava, em princípios do XVIII, é confirmada quisas, mas que foram relevantes aos trabalhos
posteriormente por Beatriz Bueno (2001), que o relacionados à construção e à arquitetura, assim
cita em sua tese como Lente da Aula Militar da como entre profissionais a cujo respeito já existem
Bahia, no ano de 1709. Ele foi localizado no ano bastantes estudos, mas que ainda apresentam lacu-
de 1715 na Vila de Pitangui, sendo responsável
nas sobre a sua atuação no campo da construção
por “repartir terras e acomodar moradores. Pro-
no Setecentos luso-brasileiro.
cedimentos muito eficazes ao aumento e formação
Para tanto, foi necessário analisar algumas fontes
das povoações” (Bastos, 2009, p. 163).
primárias alusivas ao período, entrecruzando-as
No que tange à sua atuação nos empreendimen-
tos arquitetônicos, na Capitania de Minas Gerais, com a literatura existente, para, assim, construir
supõe-se que o risco da igreja matriz do Pilar de o perfil do profissional português e as relações
Vila Rica tenha sido executado por ele no ano de profissionais construídas quando de sua passagem
1720. Infelizmente, a sua atuação ficou limitada pela Capitania de Minas Gerais.
a essa construção, mas, mesmo diante da dúvida Dessa forma, o artigo deixa evidente a relevância
do segundo vereador de Mariana, pode-se dizer, de se seguir esse viés de pesquisa, pois, assim, ou-
a partir da análise da formação do engenheiro tros nomes de profissionais ligados ao universo da
militar Gomes Chaves, que este era o profissional construção luso-brasileira poderão vir à tona e, dessa
que estava, naquele momento, mais afinado com maneira, muitas questões a respeito das técnicas por
as inovações que estavam sendo introduzidas na eles utilizadas, dos materiais e do modo de trabalhar
capitania de Minas Gerais. no interior das oficinas serão melhor compreendidas.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Antonil, André. 1976. Cultura e opulência do Bra- Oliveira, Eduardo Pires de. 2001. Riscar, em Braga,
sil. São Paulo: Melhoramentos. no século XVIII e outros ensaios. Braga: APPACDM.
Ávila, Affonso.1979. Barroco Mineiro. Glossário de Oliveira, Hilton. 2007. Minho Gerais: dinâmicas
Arquitetura e Ornamentação. Rio de Janeiro: Fun- familiares e alianças políticas dos minhotos na
dação João Pinheiro. Comarca do Rio das Velhas - 1726/1800. Tese de
Bastos, Rodrigo. 2009. A maravilhosa fábrica de doutoramento, Universidade Federal Fluminense.
virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Souza Viterbo, Francisco de. 1899-1922. Diccioná-
Rica, Minas Gerais (1711 - 1822). Tese de doutora- rio histórico documental dos architectos, engenhei-
mento, Universidade Federal de Minas Gerais. ros e construtores portugueses ou a serviço de Portu-
Bueno, Beatriz. 2001. Desenho e desígnio: o Brasil dos gal. Lisboa: Imprensa Nacional.
Engenheiros Militares. Tese de doutoramento, Uni- Trindade, Jaelson. 2009. A produção de arquitetu-
versidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura. ra nas Minas Gerais na província do Brasil. Tese
Carrato, José. 1968. Igreja, iluminismo e escolas de doutoramento, Faculdade de Filosofia, Letras e
mineiras coloniais: notas sobre a cultura da deca- Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
dência mineira setecentista. São Paulo: Comp. Ed. Urias, Patrícia. 2013. “A importância dos cons-
Nacional. trutores na Capitania de Minas Gerais: as atu-
Dangelo, André. 2006. A cultura arquitetônica em ações de Antônio da Silva Herdeiro, Domingos
Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Moreira de Oliveira e João Alves Vianna à frente
Europa: arquitetos, mestres de obras e construtores e das construções das igrejas de Nossa Senhora do
o trânsito de cultura na produção da arquitetura re- Bom Sucesso, São Francisco de Assis e Nossa Se-
ligiosa nas Minas Gerais setecentistas. Tese de dou- nhora do Carmo”. I Congresso Internacional de
toramento, Universidade Federal de Minas Gerais. História da Construção Luso-brasileira, Vitória
Martins, Judith. 1974. Dicionário de artistas e artí- do Espírito Santo, Brasil, 4 a 6 de setembro de
fices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio 2013.
de Janeiro: MEC.
[email protected], (4)[email protected]
(3)
RESUMEN
La imperiosa necesidad de dar respuesta a la gran demanda de vivienda que se producirá en las áreas
más industrializadas del estado español durante las décadas sesenta y setenta del siglo pasado, el cono-
cido como periodo del desarrollismo, hará que el parque residencial crezca a un ritmo vertiginoso. La
prioridad de la política urbanística del Régimen quedará claramente reflejada en una frase pronun-
ciada por José Luis de Arrese, primer máximo responsable del recién creado Ministerio de Vivienda,
“primero vivienda, después urbanismo” y hará que los esfuerzos de la mayoría de los intervinientes en
el mundo de la edificación se vuelquen en los aspectos puramente cuantitativos pasando a un segundo
plano los relativos a la calidad y mejora del proceso constructivo.
Pese a ello, el mundo de la construcción experimentará cambios significativos: surgirá la figura del
promotor privado; aumentará el número y tipo de actividades relacionados con la obra; se introducirán
y aplicarán nuevos materiales y soluciones constructivas; se instalará la burocracia en una Adminis-
tración que transmitirá cierta apatía ante los cambios; etc. Una transformación que no concluirá con
el fin del periodo sino que establecerá unos modos de entender y desarrollar los procesos constructivos
que se prolongarán, lamentablemente en muchos aspectos, hasta nuestros días.
El artículo analiza, en toda su amplitud, el proceso de construcción de la vivienda colectiva en el caso
del País Vasco durante aquellos años. Un proceso que no difirió mucho del desarrollado en el conjunto
de los grandes núcleos urbanos del estado español. Se estudian el contexto histórico, la política urba-
nística, la evolución tipológica y constructiva, el debate de la tecnología constructiva del momento en
Europa, el proceso administrativo para llegar a construir y, fundamentalmente, el papel que jugaron los
diferentes agentes intervinientes en dicho proceso (promotores, arquitectos, aparejadores, fabricantes de
materiales, constructores, gremios, Administración, etc).
En definitiva, el artículo permite disponer de una visión global de todos los aspectos relativos a la gesta-
ción y desarrollo del proceso constructivo de los edificios residenciales durante aquellos fundamentales
años en los que, en unas circunstancias determinadas y utilizando lo que en aquella época podía con-
siderarse como tecnología punta, se construyó como mejor se sabía y podía.
sará tras la creación del Ministerio de Vivienda de futuras normativas, tanto de promoción libre
en 1957. Sirvan como ejemplos de esta apatía, el como pública.
Plan Nacional de Urbanismo, que nunca llegará a Las Ordenanzas para Viviendas de Renta Limita-
aprobarse, o los Planes Provinciales, de los cuales da de 1955, además de profundizar en cuestiones
en 1969 solo habrán visto la luz el de Barcelona y de diseño, introducirá, por primera vez, una serie
el de Gipuzkoa (País Vasco). de condiciones específicas sobre aspectos técnicos
Algo parecido ocurrirá con los Planes Gene- y constructivos. Hablará de tipos de cimientos,
rales de las principales ciudades del estado, cuyas muros, forjados, cubiertas, saneamiento o pro-
políticas urbanísticas municipales se desarrolla- tección contra incendios y establecerá, incluso,
rán, en la mayoría de los casos, a espaldas de las unos primeros criterios sobre la utilización de
disposiciones establecidas en dichos Planes Ge- materiales aislantes.
nerales. Los mecanismos urbanísticos definidos Las Ordenanzas Provisionales de VPO de 1969
en los mismos se verán superados y desbordados recogerán los criterios básicos establecidos en el
por las urgencias del momento ante la avalancha Seminario de Viviendas organizado por el Mi-
de solicitudes de licencia, la presión ejercida nisterio de la Vivienda cinco años atrás respecto
por parte de la promoción, tanto pública como a aspectos tales como justificación urbanística,
privada, y los importantes beneficios económi- aptitud y valoración de terrenos, contenido docu-
cos, entre otras ventajas, que dichas concesiones mental de los proyectos, tipología de las viviendas
de licencia reportaban a las arcas municipales. o criterios de diseño y constructivos.
En contra de lo dispuesto en el planeamiento En definitiva, la evolución de la normativa se
general, muchos de los polígonos y conjuntos centrará en los aspectos de diseño y habitabilidad
residenciales se desarrollarán mediante Planes sin experimentar, en ningún caso, cambios radi-
Parciales evitando los engorrosos y lentos pro- cales. Los aspectos constructivos van a quedar
cesos de reparcelación. relegados a un segundo plano, manteniéndose, en
Resulta evidente que la ya citada expresión general, una gran permisividad y una regulación
de “primero vivienda, después urbanismo” no se abierta ante todo tipo de soluciones. Como mucho,
quedó en un simple deseo sino que se convirtió se impondrán leves restricciones por razones
en la piedra angular de la política “urbanística” económicas o ciertas limitaciones condicionadas
durante esos años. a la futura aparición de nuevas normativas. Ante
el vertiginoso ritmo que adquirirá el sector de la
LAS ORDENANZAS DE EDIFICACIÓN construcción durante los años sesenta, el marco
legislativo adoptará una postura permisiva con-
La mayor parte de la normativa aplicada en la
sistente en no inmiscuirse excesivamente en los
época provendrá de etapas anteriores. Las más
aspectos técnicos y observar desde cierta distancia
antiguas serán las Normas Higiénicas de 1944, unas
el transcurrir de los acontecimientos.
de las más importantes por su brevedad, sencillez
y concreción. En este texto, de 14 artículos en
apenas dos páginas, que aún sigue vigente y que LA EVOLUCIÓN TIPOLÓGICA
contrasta poderosamente con las interminables La lenta evolución normativa, los intereses
normativas actuales, se definirán las condiciones y urgencias constructivas de los promotores y
de diseño que debían cumplir todo tipo de vivien- las distintas Administraciones y un desarrollo
das convirtiéndose en el referente fundamental tecnológico limitado serán las causas de que los
Fig. 1 – Barrio de Galtzaraborda en Errenteria (Gipuzkoa) con Fig. 2 – Barrio de Capuchinos en Errenteria (Gipuzkoa) con 900
406 viviendas en total. Planta semisótano y tres alturas. 1963. viviendas repartidas en 13 torres de 16 plantas. 1968. Arquitecto:
Arquitecto: Vicente Saralegui. Felix Llanos.
edificios construidos durante estos años presenten los revestimientos cerámicos (ladrillo caravista
muchas similitudes. y/o plaquetas de gres) y vítreos en los acabados
exteriores.
LOS POLÍGONOS RESIDENCIALES A partir de mediados de los sesenta, surge una
nueva variante del polígono residencial situado
La mayoría de los polígonos residenciales de
en la periferia de los principales núcleos urbanos
los primeros sesenta no serán muy distintos a los
que se caracterizará por la altura de sus edificios.
construidos en la década anterior. Se localizarán
Se tratará de urbanizaciones constituidas por una
en el extrarradio de los centros urbanos, tendrán
serie de torres de entre diez y dieciséis plantas en
un claro carácter de vivienda social destinada,
los que el ladrillo caravista adquirirá el principal
principalmente, a la gente llegada desde fuera
protagonismo a la hora de materializar el acabado
y sus características en cuanto a organización
de fachada.
urbanística y configuración arquitectónica serán
muy similares, constituyendo una tipología muy
LA VIVIENDA
específica y fácilmente reconocible: bloques ais-
lados en urbanizaciones claramente delimitadas El destinatario tipo de la mayoría de las vivien-
y de carácter semiprivado, edificios de baja altura das será una pareja de jóvenes, a menudo inmi-
con viviendas abiertas a doble fachada, estructura grantes, con idea de conformar una familia con
de hormigón armado, revestimientos continuos más de dos hijos. Las intenciones de permanencia
como acabado de fachada, huecos de fachada en el lugar de acogida en el caso de los llegados
reducidos, cubiertas inclinadas con revestimiento desde fuera y las facilidades financieras para la
de teja, etc. adquisición de vivienda harán que la demanda
Con el paso de los años, este tipo de polígonos habitual de las familias de la época consista en
pasarán a tener un carácter más urbano y me- una vivienda de tres o cuatro habitaciones y en
nos privado, con alineaciones a borde de calles propiedad. Una organización funcional basa-
y usos comerciales en planta baja. Aumentarán da en una distribución en planta muy regular y
la volumetría y la altura del edificio, aparecerá el similar en todos los casos, la utilización de un
patio interior de edificio que permitirá, a su vez, repertorio reducido de soluciones constructivas
una configuración de doble hilera de viviendas, y de materiales de acabado, unas instalaciones
una por fachada, y comenzarán a predominar muy básicas desde el punto de vista tecnológico
modas de cada momento. En los primeros años de desarrollo. Las técnicas constructivas, muy
predominarán los revestimientos continuos que, similares en todas las regiones del estado, estarán
con el tiempo, se irán combinando con aplacados basadas en la tradición constructiva y la progre-
de todo tipo (cerámicos, vítreos, pétreos, etc). El siva aparición de nuevos materiales y soluciones
ladrillo caravista comenzará a adquirir protago- constructivas no provocará cambios radicales en
nismo a partir de la segunda mitad de los sesenta, las habituales formas de trabajar. Lógicamente, las
convirtiéndose en el material predominante a particularidades de cada una de las tipologías y
partir de la entrada en la década de los setenta. tradiciones constructivas locales, asociadas a sus
El sistema de evacuación de aguas será de tipo respectivas industrias, y la diversidad climática del
unitario. Las bajantes interiores que discurrirán territorio español harán que el empleo de determi-
por patinillos y patios y que recogerán las aguas nadas soluciones sea más común en algunas zonas
sucias de baños y cocinas, prolongándose ocasio- que en otras. La cubierta plana, por ejemplo, se
nalmente hasta la cubierta para recoger las aguas utilizará prácticamente en todas las zonas aunque
de lluvia, serán de fibrocemento y, en menor caso, en las regiones más húmedas del norte peninsular
de hierro fundido, comenzando a utilizarse las de su uso será minoritario. Los forjados reticulares y
plástico a finales de los años sesenta. Cuando las unidireccionales, por su parte, convivirán durante
conducciones verticales se sitúen en el exterior todo el periodo aunque el empleo de los primeros
de la fachada se limitarán al transporte de aguas será más habitual en las regiones mediterráneas,
pluviales, con predominio de las bajantes de cinc imponiéndose claramente los unidireccionales en
al comienzo del periodo y las de plástico al final. el caso del País Vasco. En cuanto al uso del ladrillo
En cuanto al suministro de agua y en la práctica caravista se irá extendiendo por todo el estado
totalidad de los casos las tuberías serán de hier- aunque su implantación en las diferentes regiones
ro galvanizado. Las conducciones de cobre no no será simultánea. Comenzará a utilizarse antes
aparecerán hasta mediados de los años setenta y en las zonas próximas a donde estaban situadas
su uso será, en cualquier caso, muy reducido. El las primeras industrias fabricantes mientras que al
uso generalizado de las carpinterías exteriores de País Vasco llegará unos años más tarde. Lo mismo
madera se prolongará durante todo el periodo y ocurrirá con el hormigón preparado en central
convivirá con las primeras carpinterías de alumi- cuyo uso será habitual desde los primeros años
nio que aparecerán a finales de los años sesenta. del periodo en el entorno de grandes ciudades
El empleo del vidrio doble en las carpinterías como Madrid y no así en el País Vasco.
de los huecos de las principales estancias de la
vivienda aumentará a partir de mediados de esta EL DEBATE DE LA CONSTRUCCIÓN EN
década. El progresivo aumento del número de EUROPA
plantas provocará, por su parte, una cada vez
Tras el fin del periodo autárquico, el estado
mayor presencia del ascensor.
español comenzará a abrirse al exterior. En el
mundo de la construcción, la apertura se planteará
LA TECNOLOGÍA CONSTRUCTIVA DE en una doble dirección. Por un lado, se producirá
LA ÉPOCA un creciente interés por lo que acontece fuera de
El avance tecnológico de la construcción en el las fronteras estatales y, por otro lado, el sector
estado español no se producirá al mismo ritmo productivo extranjero tratará de encontrar aco-
que en otros países europeos con un mayor nivel modo en el emergente mercado español. En la
década de los 60, varias ciudades europeas serán
escenario de importantes congresos que tratarán al exterior, un entramado industrial poco volca-
sobre la evolución y el futuro de la construcción. do hacia la investigación de nuevos productos y
En abril de 1964, Praga será sede de un impor- prácticamente reducido a la fabricación de mate-
tante Seminario sobre la “Evolución de la estructura riales de construcción tradicionales así como una
de la industria de la construcción”. La discusión fuerte tradición por la construcción artesanal,
principal estará centrada en torno al tema de la característica de la mayor parte de países de la
industrialización y la imperiosa necesidad de que Europa Occidental pero especialmente arraigada
la construcción tradicional evolucione hacia una en el caso español, harán que la modernización y
forma de trabajo mejor organizada y con un mayor la evolución hacia sistemas de industrialización
grado de prefabricación. Según el Dr. Arquitecto más avanzados se produzca a un ritmo mucho
Fernando Aguirre de Yraola, ponente y Delega- más lento que en otros estados europeos.
do de España en el Congreso, “las conclusiones
obtenidas en este congreso han de servir de punto LOS AGENTES INTERVINIENTES EN EL
de partida para enfocar disciplinas que se hallan PROCESO CONSTRUCTIVO
subdesarrolladas, como por ejemplo el problema
La Administración también adoptará una po-
de la coordinación modular, de las técnicas de
sición apática y conformista respecto a la posible
prefabricación, en suma, de las premisas necesarias
introducción de novedades en el procedimiento
para incorporar a nuestro país a las corrientes uni-
administrativo que pudieran suponer una alte-
versales de la industrialización de la construcción,
ración de los habituales, conocidos y asumidos
expresión de un sentido moderno y actual de la
modos de funcionar. El resto de intervinientes se
vida”1. En 1965, el Consejo Internacional de la
adecuará, de forma más o menos cómoda, a una
Construcción (CIB) celebrará, en Copenhague,
situación que experimentará muy pocos cambios.
su 3er Congreso bajo el lema “Hacia la industria-
Los procedimientos, trámites y pasos a seguir
lización de la construcción” y profundizará en los
para llevar a cabo la construcción de un edificio
temas tratados un año antes en Praga. de vivienda colectiva se prolongarán más allá del
En definitiva, la evidente necesidad de una final del periodo desarrollista, llegando muchos
progresiva industrialización del mundo de la cons- de ellos incluso hasta nuestros días.
trucción, tanto en la fase de proceso productivo
de materiales como en la fase de puesta en obra, LOS AGENTES INTERVINIENTES
se convertirá en el principal reto de cara al futuro.
Para comenzar a avanzar en el cumplimiento de El Promotor
los objetivos propuestos, la importancia de con- La figura del promotor experimentará un cam-
seguir una cierta unificación de criterios entre las bio sustancial en relación al periodo inmediata-
diferentes normativas estatales, la coordinación mente anterior. Sin desdeñar el peso específico
dimensional y el desarrollo de nuevos materiales y que tanto la Administración del Estado como
soluciones constructivas en un contexto de coope- diferentes empresas y cooperativas continuarán
ración internacional van a resultar determinantes. teniendo en la primera mitad de los años sesenta,
Pero, ¿cuál será el grado de evolución que vivirá cabe destacar la fuerte irrupción del promotor
el sector de la construcción en España en relación privado, personaje prácticamente inédito hasta
a estos temas en los años siguientes? El escaso ese momento.
tiempo transcurrido desde la apertura del país Si el papel de las sociedades inmobiliarias va
Informes de la Construcción. nº 164. Octubre de 1964. p.96
1 a resultar determinante en la promoción de vi-
viendas a nivel estatal, en el caso del País Vasco y relaciones preestablecidas con el resto de agentes.
al menos durante los primeros años, el perfil tipo Y por último, estará el resto de personas que, sin
del promotor privado responderá a otro tipo de ser propietarias de terrenos ni tener ningún tipo
características. Se tratará de personas, hombres de vinculación con la construcción, se sentirán
en su inmensa mayoría, de diferente origen y simplemente atraídos por las posibilidades de
estatus social y profesional que se aventurarán, prosperar que ofrecerá la nueva actividad.
normalmente de modo unipersonal, a probar Según cuenta el arquitecto José Ramón Mar-
suerte en el mundo de la promoción. Muchas de ticorena, Delegado Provincial de Guipuzcoa del
ellas provendrán del sector de la construcción Ministerio de Vivienda en la década de los 70,
(contratistas, albañiles, fontaneros, carpinteros, durante la entrevista personal realizada el 2 de
pintores, etc) aunque también podrán encontrarse marzo de 20112, el proceder habitual de un pro-
personas totalmente ajenas a ese mundo. motor privado durante esos años sesenta venía
Pero, ¿a qué se deberá esta novedosa irrupci- a ser el siguiente: Primeramente, apalabraba un
ón? El espectacular aumento de la demanda de terreno con su propietario. A cambio del permiso
vivienda hará que la Administración del estado, de construcción, le proponía la entrega de parte
desbordada e incapacitada para dar respuesta a del futuro edificio (locales comerciales, alguna
la nueva situación en solitario, encuentre en el vivienda, etc) y, una vez alcanzado el acuerdo,
promotor privado el gran aliado para afrontar el encargaba el Proyecto y obtenía la Licencia de
problema. La actitud valiente y emprendedora de Obras. Mientras tanto, anunciaba la venta, sobre
esta nueva figura encajará perfectamente en la re- plano, de las futuras viviendas. Ante la gran de-
novada imagen de país que la propaganda política manda existente y las facilidades ofrecidas por las
de la época pretenderá transmitir en un momento Cajas de Ahorro para entregar créditos a muy bajo
de fuerte crecimiento económico, erigiéndose en interés a todo aquel que contara con un jornal,
uno de los iconos de la época. los pisos se vendían en un abrir y cerrar de ojos.
El perfil del Promotor privado será muy varia- Con el dinero obtenido con las primeras ventas,
do. Por un lado estarán aquellas personas que, el promotor podía avanzar con la construcción
sin vinculaciones previas al sector pero siendo del edificio sin haber soltado todavía un solo
propietarias de algún terreno, optarán por parti- duro propio. La obtención de la Calificación de
cipar directamente en la gestión, construcción y Vivienda Protegida le permitía, además, conseguir
promoción de viviendas en sus respectivas par- un crédito de manera casi inmediata para poder
celas mediante sencillos planes parciales uni- terminar la obra. En resumen, el promotor apenas
parcelarios que evitaban engorrosas y complejas corría riesgos.
reparcelaciones previas. Algunas de estas per-
sonas, animadas tras esa primera y satisfactoria El Arquitecto
experiencia, encontrarán en este emergente sector
Teniendo en cuenta que hablamos del periodo
nuevas posibilidades de inversión. Procederán a
de mayor crecimiento urbanístico de la historia
la adquisición de nuevos terrenos y comenzarán
en términos absolutos, no resulta difícil imaginar
a dedicarse a la promoción de forma profesional.
la cantidad de trabajo que llegaron a acumular los
En el caso de las empresas y profesionales vincu-
lados anteriormente al sector de la construcción, 2
Durante el trabajo de investigación se ha entrevistado a 17 perso-
najes que intervinieron directamente en el proceso de construcción
el paso a la promoción se producirá de forma casi del periodo desarrollista: 10 arquitectos, 1 aparejador, 1 promotor,
natural debido a su conocimiento del medio y las 2 contratistas, 2 fabricantes de materiales y 1 alcalde.
cada Ayuntamiento, que pertenecía a un cuerpo dar respuesta a todas las necesidades y comenzarán
de funcionarios de ámbito nacional y se elegía a llegar productos fabricados fuera del territorio.
directamente desde Madrid. Debido a su grado Este hecho se verá favorecido por la extensión de
de conocimiento de los asuntos urbanísticos y a las redes comerciales y la apertura de nuevas sedes
su influencia y poder en muchos consistorios, se y oficinas por todo el estado.
convirtió en la principal figura con la que muchos A medida que la década de los sesenta se apro-
promotores, arquitectos y contratistas tenían que xima a su final, la progresiva incorporación de
lidiar para sacar adelante sus proyectos. El per- nuevos materiales y soluciones al mercado de la
sonal adscrito al Ayuntamiento con intervención construcción comenzará a repercutir de distinta
directa en el proceso administrativo se completaba manera entre las empresas locales. Las dedicadas a
con el arquitecto asesor, en caso de que lo hubiera, materiales formáceos básicos como el cemento, la
y el aparejador municipal. cal, el yeso o los áridos serán las menos afectadas
En cuanto a las Delegaciones Provinciales, éstas aunque la introducción y promoción del hormigón
se crean en el marco de la implantación del nuevo preparado en central supondrá una pequeña revo-
Ministerio de Vivienda en 1957 y, como último lución tanto en ese sector como en el conjunto del
eslabón de la política del Ministerio en su obligada mundo de la construcción. Serán los fabricantes de
relación con las administraciones locales, jugarán elementos conformados o industrializados los que
un papel muy importante en el control de la polí- más notarán el cambio. Por un lado, la gama de
tica de vivienda durante el periodo desarrollista. productos prefabricados de hormigón aumentará
Los nombramientos de los Delegados Provinciales y en este sentido, por ejemplo, la irrupción de las
se realizaban también desde Madrid y su perfil bovedillas de hormigón para forjados supondrá
político estaba estrechamente vinculado a la de una enorme competencia para las empresas locales
los responsables del momento en el Ministerio de dedicadas a la fabricación de las hasta entonces
Vivienda. Sus principales funciones serán redactar tradicionales bovedillas cerámicas. Por otra parte,
un informe técnico en relación con la idoneidad la novedosa aparición del ladrillo caravista, la
del Proyecto presentado respecto del planeamiento mejora de la comercialización y transporte de
urbanístico vigente en la localidad y otro sobre nuevos materiales para fachadas y una cada vez
las condiciones de salubridad e higiene de las mayor exigencia en la calidad del producto final
viviendas libres, también conocido como Informe afectarán de forma importante a los fabricantes
de Habitabilidad. cerámicos de la provincia.
aumento similar en el número de constructores y en valores similares a los que tenía en la segunda
contratistas de obra. Muchos profesionales perte- mitad de los cincuenta.
necientes a diferentes gremios de la construcción, El gremio de los albañiles, por su parte, será el
como albañiles, encofradores, etc, tras comenzar gremio que experimentará un mayor crecimien-
como aprendices y continuar trabajando a destajo to. A finales de los cincuenta, las cuadrillas de
para otros, acabarán ejerciendo labores de contra- albañiles estaban compuestas, casi exclusivamente,
tista como responsables de pequeñas cuadrillas de por personas provenientes del entorno rural pró-
trabajo. Muchas de ellas acabarán convirtiéndose ximo. Al no existir escuelas de formación técnica
en importantes empresas constructoras dedicadas profesional, la forma habitual de comenzar a tra-
tanto a la construcción como a la promoción de bajar y adquirir unos primeros conocimientos era
viviendas. entrando a trabajar como peón o como aprendiz.
El proceso de aprendizaje se desarrollaba en la
Los gremios misma obra y los aspectos más valorados por los
Los diferentes gremios jugarán un papel deter- jefes de cuadrilla a la hora de asignar tareas con
minante en el crecimiento no sólo del sector de la un cada vez mayor grado de responsabilidad eran
construcción sino de la economía vasca en general tanto el nivel de ejecución adquirido como la ac-
durante todo el periodo desarrollista. Muchos de titud y las ganas de trabajar demostradas. A partir
los inmigrantes que llegarán durante esos años del cambio de década, los inmigrantes llegados
desde diferentes puntos del estado pasarán a inte- principalmente de Galicia, Castilla, Extremadura y,
grarse en los diferentes sectores profesionales que en menor medida, de Andalucía jugarán un papel
tomarán parte en la construcción de edificios de determinante debido al alto número de ellos que
viviendas en los principales núcleos de población pasarán a integrarse en este gremio. Debido a la
del territorio. masiva incorporación de gente sin ningún tipo de
Por un lado, estarán los canteros cuya parti- conocimiento previo del oficio, el nivel general del
cipación será bastante baja en comparación con gremio de albañilería de la época bajará muchos
otros gremios debido a que la cantería no tendrá enteros. Las prisas y urgencias del momento no
un papel relevante en el proceso constructivo de permitirán que, a diferencia de la época anterior,
los edificios de vivienda de nueva planta de estos el proceso formativo del operario que comenzaba
años. Su principal uso se limitará al revestimiento a trabajar como aprendiz o peón pueda ir desar-
de superficies en fachadas y suelos mediante pie- rollándose y madurando lentamente en el tiempo.
zas de reducido espesor que llegarán ya cortados Muchas tareas con exigencia de cierto grado de
desde fábrica y cuya puesta en obra podrá ser conocimiento y especialización serán realizadas
realizada, según el nivel de calidad exigido en cada por personas recién llegadas a la obra. La paulatina
caso, tanto por especialistas canteros como por desaparición de la tradicional estructura gremial
albañiles. Al reducido número de canteros propios del oficio de la construcción, caracterizada por las
del lugar se les sumarán los procedentes de fuera, figuras del encargado de obra y el aprendiz, no
principalmente, desde Galicia. Se tratará de gente será un fenómeno exclusivo del País Vasco sino
que llegará con un buen conocimiento del oficio del conjunto de zonas del estado que vivirán el
y serán bien valorados dentro del mundo de la boom edificatorio como, por ejemplo, Catalunya.
construcción. Curiosamente, será el único gremio El arquitecto Ander Basterretxea, en entrevista
que no crecerá en número durante la primera personal realizada el 15 de febrero de 2011, re-
mitad del periodo desarrollista, manteniéndose cuerda que no resultaba extraño ver al aparejador
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lización de la construcción. III Congreso del C.I.B.
RESUMO
Pretende-se analisar os diferentes tipos de contratos de trabalho e de empreitada de obra praticados
nos grandes estaleiros régios portugueses nos séculos XV e XVI, nomeadamente o trabalho à jorna; o
contrato e remuneração anual; e ainda os contratos de empreitada a preço definido. A partir do estudo
de exemplos concretos, sobretudo da construção do Mosteiro da Batalha, mas também do Mosteiro dos
Jerónimos, ou das obras no Paço de Sintra. Existem igualmente exemplos semelhantes na construção
da Alfândega do Funchal, ou nas Praças do Norte de África, por exemplo, embora ressalvando algumas
especificidades. O estudo visa caracterizar cada um desses tipos de contratos, seus intervenientes e mo-
dos de aplicação, que com frequência podiam existir em simultâneo num mesmo estaleiro. O objetivo
é compreender as motivações e lógicas das escolhas dessas diversas opções, no âmbito da organização e
direção geral do estaleiro de construção. Será analisada documentação daquelas construções, publica-
da ou conservada, na sua maioria, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, complementada com os
estudos já existentes sobre aquelas edificações. Deste modo, pretende-se caracterizar os tipos de contra-
tos praticados nos estaleiros promovidos pelos reis, não só em Portugal continental, mas também nas
ilhas atlânticas e praças do Norte de África. Trata-se de uma temática muito importante nos estudos
de História de Construção, mas que para a Idade Média se encontra ainda pouco desenvolvida, em
particular em Portugal e no mundo português.
1. INTRODUÇÃO
O principal objetivo deste artigo é apresentar com o facto do poder régio dispor dum conjunto
as principais formas de contratação de mão-de- de meios e prerrogativas que podia mobilizar
-obra e de empreitadas de trabalhos nos estaleiros para essa construções, que dificilmente estava ao
medievais portugueses dos séculos XV e XVI. alcance de outros promotores. Por outro lado a
Estudamos apenas o caso das construções régias, quantidade de fontes existentes e estudadas são
ou seja de obras promovidas e construídas pelos sobretudo relativas a construções régias, mas de
reis e seus agentes, uma vez que apresentam um diversas tipologias, como os Mosteiros da Batalha
conjunto de caraterísticas específicas relacionados e dos Jerónimos, a Alfândega do Funchal, ou as
obras do Paço de Sintra, entre outras. Em todos o de pagamento e outros documentos de adminis-
caso, quanto à temática aqui em apreço, que são as tração da coroa através dos quais se comprova
tipologias dos contratos laborais e de empreitada, a existência desses contratos e que nos permi-
parece-me que provavelmente seriam semelhantes te inferir pelo menos uma parte das respetivas
nas obras de outros promotores, embora com al- condições e conteúdo. Em todo o caso, o nosso
gumas especificidades distintivas do poder régio. conhecimento sobre eles é em geral incompleto,
Não obstante os estaleiros de outros promotores por essas mesmas razões.
estarem ainda em larga medida por estudar, os Nas construções régias portuguesas do século
poucos casos conhecidos apontam para modelos XV e início do XVI encontramos, em simultâneo,
contratuais semelhantes, como por exemplo em a existência de diferentes tipos de contratos e re-
construções promovidas pelo poder concelhio, lações de trabalho, a que correspondem distintos
como muralhas e paços municipais. Entre ou- tipos de remunerações e com frequência diferentes
tros exemplos, podemos apontar a construção períodos de vigência.
da muralha do Porto, em finais do século XIV, Podemos falar de pelo menos três grandes ti-
ou as obras nos Paços do Concelho dessa mesma pos ou modalidades de contratos de trabalho/
cidade em meados do século XV (Melo e Ribeiro, remuneração:
2012: 150 e 154-155). - A remuneração e contrato “permanente”, em
Finalmente note-se que nos vamos ocupar so- geral definida de forma anualizada.
bretudo dos contratos laborais e de empreitada - A remuneração à jorna, ou seja calculada ao
ligados aos homens da construção, ou seja mestres dia, podendo ser efetivamente paga à semana, ao
e outros mesteirais, apenas referindo de forma mês, ou outra forma, mas tendo sempre o salário/
residual aqueles relativos aos cargos de gestão e dia como unidade base de cálculo da remuneração
administração do estaleiro, que não serão objeto respetiva, e assim pagando segundo o número de
de análise no presente estudo. Por outro lado dias de trabalho efetivo.
existe também um outro tipo de mão-de-obra, - A remuneração à tarefa ou por empreitada,
utilizada nos estaleiros régios relacionada com ou seja um contrato para execução de uma obra
as prerrogativas de requisição de mão obra, de- específica por um determinado valor previamente
signadas anúduvas, em geral gratuita, que recaía fixado pelo conjunto do trabalho, ou por unidade
sobre os homens livres de vários lugares, sobretudo de área construída (por exemplo cada palmo x
para serviços de transporte de materiais ou outras reais). Neste tipo de contratos a remuneração
atividades não especializadas e ocasionais. Este do trabalho encontrava-se em geral misturada
tipo de trabalho também não será considerado com outros custos de produção, como materiais,
no presente estudo, uma vez que não era objeto técnicas, entre outros, pois apenas se fixava o
de contratos de trabalho nem de remuneração, valor global a pagar.
pois decorria do exercício de direitos régios e Estes vários tipos de contratos, por seu turno,
senhoriais (Melo e Ribeiro, 2011: 107-123). podiam aplicar-se a diversos tipos de trabalho
Note-se que regra geral não conhecemos os e de trabalhadores e a diferentes tipos de obras
contratos escritos, nem o seu teor exato, se é que a executar. E por vezes um mesmo homem ou
existiram. Por vezes poderiam ter sido contratos grupo podia ter em simultâneo contratos de
meramente orais, noutros escritos mas neste caso diversos tipos com o mesmo promotor e numa
em geral não se conservaram na íntegra. O que mesma obra, como veremos. Comecemos por
existe são documentos de contabilidade, recibos analisar alguns exemplos retirados da construção
do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ou da à sua função, com frequência pago uma parte em
Batalha, estaleiro iniciado por volta de 1386/88 moeda e outra em géneros.
e que prosseguiu até meados do século XVI, Assim em geral aqueles que recebiam manti-
ou seja uma construção de um edifício que se mento tinham ofícios (ou seja cargos) régios no
prolongou durante cerca de um século e meio, estaleiro. Uns ligados à administração e gestão,
e que conheceu ao longo desse período diversos outros mestres das obras, mas também alguns
momentos e ritmos de construção muito distin- mesteirais, em particular alguns pedreiros e car-
tos, como de resto acontecia com frequência com pinteiros que tinham um ofício – hoje diríamos
construções desta envergadura. um “lugar do quadro” - no estaleiro, em virtude
do qual recebiam o respetivo mantimento. Note-se
2. OS TIPOS DE CONTRATOS LABORAIS que dos vários pedreiros e carpinteiro que traba-
E DE REMUNERAÇÃO lhavam no estaleiro apenas alguns muito poucos
No estaleiro de construção do Mosteiro da (dois ou três de cada mester) detinham um ofício.
Batalha, ao longo do século XV e inícios do XVI Os outros trabalhavam à jorna, ou por contrato
encontram-se alguns homens a trabalhar no es- de empreitada, mas sem terem um ofício (Gomes,
taleiro com relações de trabalho e remunerações 1990: 39-53; Melo, 2014: 279-281).
de “longo prazo”, ou seja sem duração limitada Além do mantimento alguns mesteirais e
nem definida (estaria em vigor enquanto ambas mestres recebiam ainda tenças, que podiam até
as partes quisessem, ou sobretudo o Rei, que era o duplicar em valor o mantimento. Era uma graça
promotor da obra) e com a remuneração definida que o rei podia conceder e retirar como lhe aprou-
em termos anuais. O seu pagamento efetivo podia vesse e a quem quisessem, durante o tempo que
ser efetuado de uma só vez, em diversas tranches entendesse. No caso dos estaleiros régios eram
ou até por vezes sofrer atrasos e ser pago em anos geralmente alguns oficiais régios funcionários
subsequentes, mas era definido de modo anuali- administrativos ou os mesteres especializados
zado: “receber x por ano”. que com frequência obtinham tenças, nuns casos
Estes homens em geral tinham funções de ad- como espécie de reforma no fim da carreira, outros
ministração e gestão da obra, sendo quase sempre como complemento ao mantimento. Mas com
funcionários régios “de carreira”, ou então desem- frequência era uma forma de aumentar o valor
penhavam funções de direção técnica da obra, do mantimento, muitas vezes duplicando-o. Por
como mestre geral ou mestres especializados, outro lado, se o mantimento era a contrapartida
que corresponde, no primeiro caso ao arquiteto ou remuneração direta de um ofício ou serviço,
/ engenheiro dos nossos dias, ou, no segundo, já a tença não surgia associada diretamente a um
do que hoje chamaríamos de artistas de elevada pagamento ou salário por um serviço concreto,
qualidade, como escultores ou pintores de vitrais, mas antes como uma dádiva régia por recompensa
por exemplo (Gomes, 1990: 39-53; Melo, 2014: por serviços prestados, ou a prestar, que se vinha
279-281). adicionar à remuneração diretamente paga por
Em geral estes homens auferiam de uma remu- eles. E assim essas tenças também podiam ser
neração composta de vários elementos. Antes de outorgadas a mesteirais sem ofício e sem manti-
mais o mantimento. Trata-se duma designação mento (Melo, 2014: 280-281).
comum a funcionários régios de qualquer área, Mas os mesteirais que detinham um ofício, que
da justiça à administração civil e militar. Todos eram portanto como que oficiais ou funcionários
recebiam o seu mantimento anual correspondente do rei, que recebiam o seu mantimento e vestir
como remuneração do seu ofício, ou cargo, po- exemplo os recibos de pagamento, ou as queixas
diam também receber simultânea e cumulativa- dos oficiais pelo atraso nos pagamentos (Gomes,
mente, outros tipos de rendimentos por parte do 2004: 153-154 e 236).
rei, seja como complemento do salário ou graça É interessante notar que os montantes desses
régia – as já referidas tenças – seja como paga- contratos são muito mais elevados que o manti-
mento por outros serviços ou trabalhos concretos mento anual, que tinha em contrapartida a van-
que faziam, para além das obrigações do respetivo tagem de ser regular e permanente. Esse contrato
cargo (Melo, 2014: 279-281). significava um rendimento extra, pontual mas de
Vejamos alguns exemplos entre os mesteirais valor muito significativo. No entanto é necessário
da Batalha detentores desses ofícios, ou cargos. ter em consideração que o valor acordado nesses
Por vezes, além do ofício que detinham (mestre, contratos de execução e encomenda de emprei-
pedreiro) e da respetiva remuneração, faziam tada muito provavelmente incluíam não apenas
simultaneamente um contrato de empreitada ou a remuneração do mestre, mas também poderia
de execução de parte de obras específicas por um incluir os custos de funcionamento da empreitada
preço contratado pela empreitada, para fazerem e da equipa de construção: a remuneração dos
tarefas específicas de alto nível e qualidade, como homens que compunham a equipa, provavel-
por exemplo vitrais. Eram portanto pagos à tarefa. mente o desgaste dos equipamentos e utensílios,
Era pois uma remuneração totalmente indepen- e eventualmente os custos dos materiais, ou de
dente do mantimento e das tenças que recebiam parte deles.
pelo facto de deterem o cargo ou função de mestre Claro que não temos a certeza se os materiais
da obra, ou de mestre duma determinada especia- eram fornecidos pelo mestre, e neste caso o seu
lidade da obra. Vejamos, entre outros exemplos, custo estimado estaria incluído no valor do con-
o caso de Mestre João que ocupava o ofício ou trato, ou se era fornecido pela direção do estaleiro,
cargo de mestre vidreiro, entenda-se dos vitrais à sua custa. Como já se referiu os contratos de
do estaleiro da Batalha desde 1483 e continuando encomenda raramente se conservaram e por isso
pelo menos até 1510. Tinha o seu mantimento or- apenas podemos deduzir o seu conteúdo a partir
denado de 6.000 reais por ano. Independentemente de outro tipo de documentos que apresentam o
desse rendimento, além dele, em alguns anos tinha valor global, mas não discriminam as condições
cumulativamente um contrato de execução de do contrato nem a divisão das despesas entre o
vitrais, pelo qual recebeu 27.840 reais em 1509 e promotor da obra e o mestre. Mas no caso da
18.000 reais em 1510 (Melo, 2014: 280). Batalha com frequência os materiais, ou parte
De facto, a 8 de dezembro de 1509 Mestre João deles, eram fornecidos pelos mesteirais, à sua
vidreiro recebeu 27.840 reais por duas frestas de custa, e assim o seu valor incluído nos pagamentos
vitral (vidro de imaginaria) que ele fez na sacristia acordados (Gomes, 1990: 118).
do Mosteiro. Essas frestas mediam 232 palmos. O Como acabámos de verificar, alguns dos mes-
documento diz-nos que de acordo com o contrato teirais que trabalhavam nos estaleiros régios po-
existente, cada palmo de vitral era pago a 120 reais, diam ser detentores de um ofício e daí receber
o que dá a soma referida. De facto o documento um mantimento, mas constituíam a minoria. A
desse contrato não se conservou e desconhe- maior parte dos mesteirais não detinham ofí-
cemos o seu texto exato, mas a sua existência é cio e assim eram pagos à jorna, ou à tarefa por
atestada e parte do seu teor pode ser deduzido a contrato de empreitada. Estes últimos, portanto
partir deste e de outros documentos, como por podiam ser feitos com mesteirais com ofícios –
que nesse caso acumulavam com o mantimento, função do número de dias que trabalhou, tendo
como vimos – ou com mesteirais sem ofício. Em com base de cálculo o valor do salário diário
qualquer dos casos concretizava-se através dum previamente definido, ou geralmente praticado
contrato de encomenda ou de execução no qual se (Melo e Ribeiro, 2011: 120-123).
estipulava as tarefas ou obra realizar – que podia Em geral seria pago à semana e sobretudo ao
ser um conjunto específico de trabalhos num de- mês, conforme se observa em vários exemplos
terminado espaço de construção; ou definindo-se como na construção do Mosteiro dos Jerónimos,
um preço por unidade de área construída - , o entre outros (Melo e Ribeiro, 2015: 23-37). Ape-
tempo máximo de execução, o pagamento devido nas em casos de mão-de-obra excecionalmente
e demais condições, em particular quem pagava contratada por um ou poucos dias poderia ser
os materiais, por vezes uma parte ficava a cargo pago de outra forma.
do mestre, e assim incluído no valor estipulado Portanto entre os mesteirais alguns detinham
pelo conjunto do contrato, e outra parte a cargo ofícios no estaleiro e como tal recebiam remu-
do estaleiro e promotor da obra. Se na maior parte neração sob a forma de mantimentos e tenças.
dos casos estes contratos se perderam, como se Mas a maior parte eram contratados ou através
disse, alguns raros foram conservados. É o caso, de contratos de empreitada, ou seja pago à tarefa
entre outros escassos exemplos, do contrato de (consoante condições definidas nesses contratos),
encomenda da obra de carpintaria para a recons- outros ainda eram contratados mediante paga-
trução do Paço do Concelho do Porto em 1443, mento por unidade de tempo, em geral à jorna
onde essas condições foram claramente definidas ou seja ao dia. No primeiro caso, no contrato de
(Melo e Ribeiro, 2012: 154-155). empreitada definia-se as condições e incluindo o
Estes homens com contratos de execução ou pagamento e os prazos de execução. No segundo
encomenda de empreitadas grandes, ou impor- caso, os pagamentos à jorna (ou seja ao dia) em
tantes, eram em geral a elite dos mesteirais, por geral seriam calculados e pagos ao mês (por vezes à
isso alguns deles eram simultaneamente oficiais de semana), com base no número de dias de trabalho
direção da obra em estaleiros como o da Batalha, (Melo e Ribeiro, 2011: 120-123). Como é sabido
o que se compreende pois estes ofícios seriam o pagamento à hora não existe neste período, só
também entregues aos melhores dos mesteirais. séculos mais tarde começará a ser adotado. Por
No entanto, a maior parte dos mesteirais seria vezes encontramos pagamentos de meio dia, ou
paga à jorna (ou seja, ao dia) ou à tarefa para em- de x dias e meio, mas muito raramente (Van-Ros-
preitadas mais pequenas, como encontramos, por sum, 2001: 279-284 e 303; Melo, 2001: 557-574).
exemplo, nas obras de renovação do Paço de Sintra Note-se que estas três formas de contratos e de
de 1507/1510 (Melo e Ribeiro, 2013: 232-235). remuneração não são necessariamente exclusivas
O pagamento à jorna era como já se disse pago entre si e por vezes são simultâneas. Por exemplo,
pelo número de dias de trabalho realizado, con- já referimos que por vezes os mesteirais que têm
tabilizando-se o número de dias que trabalhou ofícios também podem fazer simultaneamen-
num determinado período de tempo, em geral te contratos de empreitadas, recebendo assim
um mês ou numa semana. De facto nos estaleiros remunerações de duas formas distintas. E nos
o mais vulgar era os salários à jorna serem pagos contratos de empreitada geralmente o mestre
mensalmente. O ser pago à jorna não significa, podia por sua vez contratar os homens à jorna,
portanto, que o salário lhe fosse entregue diaria- pagando-lhes em função do número de dias de
mente, mas apenas que se calculava o salário em trabalho que cada um realizou, como se verifica
de modo muito claro no exemplo dos Jerónimos seja por empreitada (pagamento fixo contratado
(Melo e Ribeiro, 2015: 23-37). pela realização dum determinado conjunto de
Mas além de todas estas possibilidades os mes- trabalho, segundo condições bem definidas); e a
teirais de estaleiros como a Batalha recebiam ainda remuneração por unidade de tempo, que no pe-
outros tipos de remunerações, cumulativamente, ríodo em estudo é quase sempre à jorna (ou seja
normalmente em géneros, ou o seu valor em di- salário definido por dia de trabalho como unidade
nheiro (Gomes, 2004: 198-199), ou sob a forma de cálculo da remuneração final, calculado normal-
de privilégios. Por exemplo todos os mesteirais da mente ao mês, por vezes à semana).
Batalha recebiam todos os meses um par de sapatos, A escolha ou a aplicação de cada um desses tipos
ou o seu valor em moeda. E além disso recebiam um de contrato / remuneração, que como vimos podia
conjunto de privilégios pelo facto de trabalharem coexistir em simultâneo num mesmo trabalhador
nesse estaleiro e apenas enquanto nele se mantives- ou mesteiral, dependia de diversos fatores, em
sem. Por exemplo a isenção de certos impostos ou particular (Melo, 2014: 283-285):
obrigações militares; ou a possibilidade de poderem - A duração do trabalho ou funções;
emprazar (alugar) casas e terras agrícolas, ao rei, por - Tratar-se de serviços ou funções permanentes,
rendas relativamente baixas, em terras próximas do sazonais ou ocasionais;
estaleiro; e podendo ainda contratar jornaleiros para - As formas de organização do trabalho e da
trabalhar nessas terras, não obstante leis gerais do produção;
reino que dificultavam ou proibiam a possibilidade - A conjuntura económica, social e política.
dos mesteirais contratarem jornaleiros para trabalhar A conjuntura fazia variar as vantagens e os
as terras. Aqui essas leis não se aplicavam. Ora este inconvenientes de cada um desses tipos de
tipo de privilégios, como se depreende, são em si relações de trabalho / remuneração, do ponto
mesmo potencialmente geradores de rendimentos de vista dos trabalhadores e mesteirais, mas
extra, pois implicam uma despesa que se deixa de também do ponto de vista dos empregadores.
fazer (como comprar sapatos), ou permite produzir
bens agrícolas, uma parte destinado ao autoconsumo, Em qualquer dessas três formas de relações
mas outra sem dúvida para vender ou trocar. Por de trabalho, a remuneração global podia ainda
tudo isto, estes privilégios e doações em géneros incluir outros elementos, incluindo privilégios,
devem ser igualmente considerados uma forma isenções, e doações, uns individuais, outros de
complementar de remuneração, até porque são ex- conjunto, que permitia ajustamentos e diferenças
pressamente outorgados apenas a quem trabalhava entre as remunerações, outorgando recompensas
no estaleiro (Melo, 2014: 282-283). e reforçando a fidelidade dos homens para com
o empregador régio.
3. CONCLUSÕES Dessa forma, uma mesma pessoa podia ter
ao mesmo tempo diferentes tipos de relações de
O tipo de contrato e de remuneração estava muito
trabalho e assim diversas forma de remuneração,
ligado ao tipo de relações de trabalho, como se pode
provenientes de um mesmo empregador, neste
observar nos três grandes tipos de “contratos de tra-
caso o rei.
balho/remuneração” claramente identificáveis nos
De facto, as funções permanentes e de direção
estaleiros régios de construção: a remuneração fixa
geral da obra, ou de especialidade muito técnica
a longo termo, relacionada com funções de trabalho
e de elevada qualidade, em vários níveis eram
“permanentes”, ou seja por tempo indeterminado;
essenciais e confiavam-se e atribuíam-se como ofí-
remuneração e contratos de trabalho à tarefa, ou
cios públicos com um conjunto de remunerações não existia. Em contrapartida este sistema de rela-
permanentes, definidas ao ano. Eram constituídos ção laboral exigia um maior controlo do trabalho
por ofícios sem duração fixa, tal como os demais realizado e do ritmo de execução dos trabalhadores,
ofícios régios, correspondendo a um serviço per- controlo esse exercido por parte dos agentes da
manente do rei, que implicava grande confiança e direção geral da obra (Melo, 2014: 284-285).
fidelidade desses homens ao monarca, que eram A escolha entre estas diferentes formas de rela-
essenciais para garantir o bom avanço e execução ção laboral e tipo de remuneração correspondente
do processo de construção (Melo, 2014: 283-285). dependia, assim, dos interesses dos mesteirais e do
Por seu turno, o uso da remuneração à tarefa empregador, fosse ele o rei ou outro, e também da
através de contratos de empreitada correspondia conjuntura. De facto, em contextos de maior oferta
a uma forma de organização de trabalho e da pro- de trabalho, o valor do trabalho tendia a baixar,
dução mais descentralizada, ao confiar a mestres pelo contrário em período de falta de mão-de-obra
especialistas, em particular pedreiros, assentadores o valor do trabalho tenderia a aumentar. Mas a isto
e escultores, um dos quais, com frequência era acresce os diferentes tipos de mão-de-obra, pois a
simultaneamente o mestre geral da obra; mas conjuntura podia se distinta, por exemplo, entre o
também carpinteiros, vidreiros (fazem os vitrais, trabalho indiferenciado, ou não especializado de
ou seja vidros com pinturas) e pintores, entre braceiros e serviçais, e a mão-de-obra especiali-
outros (Melo, 2014: 285). Este sistema, através zada, por exemplo carpinteiros e pedreiros; e ser
de contratos que definiam o trabalho a fazer, o ainda mais distinta no caso da mão-de-obra muito
prazo máximo de execução, o valor a pagar – especializada e de elevado prestígio, muitas vezes já
pela totalidade da obra, ou por unidade ou área no âmbito da circulação de artistas ou especialistas
construída - e até as penalizações em caso de não à escala europeia, como grandes mestres de obra,
cumprimento das condições, era uma forma de ou mestres de vitrais de elevada qualidade, como
reconhecer e tirar partido das capacidades dos os mestres alemães da Batalha. Entre todas estas
mestres especializados de prestígio e competência conjunturas que evoluíam de modo distinto ao
reconhecidas, passando-lhes a responsabilidade longo do tempo, os interesses dos empregadores
de controlar o processo de trabalho, qualidade e dos mesteirais e de outros trabalhadores eram
e prazos de execução definidos no contrato, até muitas vezes distintos quando não opostos, e po-
porque nele se incluíam as referidas penalizações diam assim ir no sentido da preferência por algum
monetárias em caso de incumprimento. Dessa daqueles tipos de relação laboral e remuneratória.
forma a fiscalização e controlo desse processo e do Em todo o caso a possibilidade de poder escolher,
ritmo de trabalho, por exemplo, passava da direção em função das necessidades de cada momento,
geral da obra para os responsáveis do contrato, entre aqueles três modelos, que como vimos co-
podendo assim aqueles dedicar-se apenas a uma existiam em simultâneo aparentemente sem pro-
fiscalização de conjunto e dos resultados finais. blemas, seria uma vantagem para melhor garantir
Finalmente o sistema do pagamento à jorna o desenvolvimento da atividade da construção,
(dia), ou seja por unidade de tempo correspondia adaptando-se a diferentes contextos e a variáveis
à necessidade de ajustar continuamente a força de interesses das diversas partes envolvidas - por
trabalho que se remunera às necessidades de cada exemplo adaptar-se a diferentes ritmos constru-
momento e ao número de dias que efetivamente tivos, a diversos recursos financeiros disponíveis,
cada um trabalhou. Ou seja, em geral pagava-se entre muitos outros aspetos que iam variando ao
quando havia trabalho e não se pagava quando ele longo do tempo.
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du salariat, dir. de Patrice Beck, Philippe Bernardi
RESUMO
A produção arquitetônica brasileira nos séculos XVII e XVIII é marcada por intenso movimento
edificatório e admirável atividade criadora. As edificações revelam sabedoria e adequação ao meio,
constituindo notável episódio de trânsito e compartilhamento de saberes e práticas construtivas, que
compõem a cultura construtiva luso-brasileira.
O artigo aborda aspectos do processo de construção de capelas, igrejas de irmandades e ordens terceiras
setecentistas em Minas Gerais (Brasil). Trata de procedimentos de contratação e execução de obras, desde
a elaboração de riscos e condições de arrematação à louvação de entrega dos serviços.
Passa pelas técnicas e materiais adotados e as questões ligadas a sua escolha. Enfoca as alterações em
projetos e obras, o exercício profissional e as preocupações e ideais dos contratantes e contratados em
busca da melhor perfeição técnica, estética e funcional. A propósito, salientam-se as dificuldades de
toda ordem que desafiavam o esforço e o empenho das comunidades, obrigadas ao duplo compromisso
de construir seu templo e promover as festas do padroeiro.
Procura-se indicar que a viabilização dos empreendimentos se assemelhava no mundo luso-brasileiro
em processo acompanhado pelas Câmaras Municipais mediante a atuação de juízes e escrivães dos
diferentes ofícios. Enfim, trata-se de retomar e discutir indagações sobre os bastidores da construção
nas minas do ouro em estudos que têm ainda um longo caminho a percorrer.
INTRODUÇÃO
A história da construção na época mineradora ção e a execução de obras, a busca de qualidade
vem contando com algumas importantes contri- nos empreendimentos e a trajetória profissional
buições, mas aguarda ainda desenvolvimentos, de mestres e oficiais.
que correspondam ao relevo que a disciplina Trata-se de informações garimpadas em fontes
merece. Serão destacados aspectos do processo impressas ou manuscritas relativas à documenta-
de produção de igrejas setecentistas em Minas ção de irmandades e de ordens terceiras, contando
Gerais, como a elaboração e as alterações de riscos, também, com registros localizados em arquivos
os sistemas construtivos adotados, os elementos cartoriais. São termos de mesa, provisões e cartas
técnicos e administrativos gerais para a contrata- régias e, principalmente, condições de arrematação
DO PROJETO À EXECUÇÃO:
PROCEDIMENTOS GERAIS, TÉCNICAS E
PRÁTICAS CONSTRUTIVAS
Com relação aos procedimentos técnicos e
Fig. 1 – Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, MG administrativos para a execução das obras, ve-
Foto: Leo Alvim, 2013.
rifica-se sua semelhança durante todo o século
ou advertências quanto à execução dos diversos XVIII, entrando mesmo pelo século XIX. No
serviços durante as obras. que diz respeito aos aspectos diretamente envol-
Na ausência de tratados ou manuais, os autos vidos com as etapas e providências necessárias ao
e as condições de arrematação constituem refe- planejamento e execução dos serviços, tanto na
rências sobre práticas construtivas, que ainda construção dos edifícios monumentais, quanto nas
oferecem muito a estudar quanto à descrição dos capelas distribuídas nas várias regiões, procurava-
serviços, às especificações de materiais e técnicas, -se, nos limites do possível, seguir procedimentos
e aos procedimentos para concretização dos em- técnicos rigorosos, com a elaboração de projetos
preendimentos. Mesmo aqueles processos mais de arquitetura, ou riscos, e de condições de arre-
simples e de menor porte, não dispensavam tais matação detalhadas. Contava-se, também, com as
determinações. E, ainda que mais investigadas, imprescindíveis louvações, que eram avaliações
as obras oficiais reguladas pelas Câmaras, assim técnicas realizadas nas várias etapas da obra, e
como as de associações religiosas, oferecem ma- buscava-se a contratação de profissionais os mais
terial importante, que continua pouco conhecido. habilitados.
Parte desses documentos, especialmente aqueles Os riscos eram frequentemente fornecidos pelos
relativos às igrejas de maior destaque das prin- contratantes e o ajuste da capela carmelita de Sa-
cipais vilas mineradoras, foi divulgada mediante bará feito com o mestre pedreiro Thiago Moreira
esforços da antiga Diretoria do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional, atual IPHAN, que 1
Estudiosos que vêm contribuindo para o tema são Maria H. Fle-
xor, Beatriz Bueno, Jaelson Trindade, André D’Angelo, Célio M.
estimulou a pesquisa e produziu valiosa coleção Alves, José Newton C. Menezes, Fabiano G. da Silva, Fabricio L.
de publicações. Entre estas estão os trabalhos de Pereira, Patrícia Urias e Daniela Leal. Cf. MIRANDA, 2015.
“na forma das condições e risco que se lhe deu da lhe faça muito bom proveito...” e entregou um
dita obra” (Passos, 1940, p. 95) confirma o fato. No ramo de rosas a Domingos Moreira de Oliveira.
desenrolar dos serviços, novos riscos e condições (Trindade, 1951, p. 294). Com o andamento das
eram elaborados de acordo com mudanças eco- obras, outras tantas arrematações eram feitas para
nômicas, estéticas ou funcionais. Assim, as obras, a cobertura, coro, assoalho, campamento, forro,
por vezes, diferenciam-se da concepção original, pintura e douramento, revestimentos, portas e
demonstrando a presença das contribuições de janelas, grades, e outros.
vários mestres2. A capela dos terceiros franciscanos Quanto aos trabalhadores da construção, desde
de Vila Rica do Ouro Preto é um bom exemplo. a fase inicial da Capitania até a estabilização do
Entre 1750 e 1780 contou com o projeto original povoamento, e mesmo em seus desdobramentos
e duas importantes propostas de reformulação posteriores, concorreram para a constituição desse
arquitetônica. (Fig. 1) acervo, arquitetos, artistas, mestres e oficiais por-
Detalhes em escala natural eram feitos no can- tugueses e brasileiros, por vezes predominando,
teiro da obra, inclusive sobre o reboco de paredes profissionais de origem lusitana, como Luiz Fer-
ou em tábuas de piso, como ainda hoje se vê no nandes Calheiros, João Alves Viana, José Pereira
corredor e no consistório de São Francisco ou- dos Santos, José Pereira Arouca, Francisco de Lima
ro-pretano. No Carmo também há testemunhos Cerqueira e Manoel Francisco de Araújo, entre
de desenhos no piso do consistório. tantos outros ainda não devidamente conhecidos.
Pouco restou desses desenhos de arquitetura Na década de 1770, Antônio Francisco Lisboa,
elaborados no século XVIII em Minas Gerais, e o Aleijadinho, passou também a destacar-se no
conta-se apenas cerca de meia dúzia, entre tantos campo das realizações arquitetônicas.
que foram produzidos. O conjunto pertencente ao Importa ressaltar igualmente a presença de
Museu da Inconfidência em Ouro Preto, atribuído mestres e oficiais brasileiros e, também, aqueles
a Antônio Francisco Lisboa, merece reavaliação, provenientes do arquipélago açoriano, cujo traba-
inclusive de autoria, pois os diferentes tipos e lho e trajetória ainda não foram suficientemente
qualidades de traço e de acabamento apontam a estudados. Pesquisa preliminar apontou ocor-
presença de mais de um autor. rências de vários carpinteiros, e dois pedreiros
Aprovados os riscos e acertados os prazos e atuantes, um em Ouro Preto e outro em São João
detalhes gerais, as obras eram postas em praça Del Rei. Entre os registros dos meados do dezoi-
para, arrematação, ou concorrência pública. O to, menciona-se o carapina Sebastião Francisco
evento era divulgado por meio de edital expedido Quaresma, natural da Ilha do Pico, com 35 anos
com um mês de antecedência e afixado não só na em 1759, que vivia de seu ofício em São Miguel
localidade, mas nas principais vilas da região e do Piracicaba, e o carpinteiro Antônio Pereira
mais partes que fosse necessário. da Silva, natural da Ilha das Flores, com 34 anos
Os serviços eram arrematados pelo menor em 1760, morador em Raposos. (Martins, 1974,
preço e a arrematação fazia-se “solenemente na p. 147 e 221).
forma do estilo”. Na arrematação de São Francisco Os construtores costumavam trabalhar em so-
de Vila Rica, o porteiro dos auditórios disse: “... ciedade e, entre inúmeros exemplos podem ser
afronta faço por que menos não acho, se menos destacadas as parcerias de José Pereira Arouca
achara, menos tomara, dou lhe uma, dou lhe e Antônio Fernandes de Oliveira na capela dos
duas, dou lhe três, e uma mais pequenina que franciscanos de Mariana, e de Francisco de Lima
2
Cf. MIRANDA, 1993-6.
Cerqueira e seu “camarada” Tomás da Maia Brito prazos e a forma de pagamento. Estimava-se de
no Bom Jesus em Congonhas. cinco a seis anos para os grandes templos de alve-
Os contratantes procuravam cercar-se de toda naria de pedra, incluindo-se aí a cobertura, prazo
a proteção para garantir o cumprimento dos con- que, muitas vezes, se estendia por mais tempo. O
tratos e sua execução, de acordo com os riscos e custo total era parcelado e liberado conforme a
condições adotando medidas, como a exigência conclusão de etapas da edificação: até as soleiras
de apresentação de fiadores e, por vezes, a desig- ou embasamentos, a altura de vergas da portada,
nação de comissão de irmãos para fiscalização dos das janelas do coro, arco-cruzeiro, entablamento
trabalhos. Esforços semelhantes faziam os contra- e torres.
tados para que as ordens terceiras e irmandades Mesmo as obras mais simples e de menor porte
cumprissem regularmente seus compromissos não dispensavam tais determinações, como o
com os pagamentos, o que, em diversas ocasiões demonstram as “Condições na forma em que se
não ocorria, como revelam numerosos registros há de fazer a capela do Glorioso Santo Antônio
documentais. do Bacalhau”, datadas de 17373. Entre outros
Outras tantas providências para o funciona- elementos, define-se que o edifício teria seu “...
mento do canteiro de obra exigiam a atenção coro com duas janelas de 6 palmos de altura [...]
dos administradores e dos mestres contratados. hum óculo [...] guarnecido em redondo com sua
Mas na maioria dos empreendimentos as coisas moldura, e no meio do dito óculo de gelosia para
quase nunca corriam rigorosamente conforme o respeito de morcegos ou corujas”. (Anuário...,
planejado. Dificuldades de toda ordem implica- 1954, p. 39-40)4.
vam atrasos constantes e, às vezes, provocavam Quanto aos materiais e técnicas, o documento
o arrastar dos serviços por décadas. esclarece que a capela-mor teria sua tribuna de
Enfim, todos empenhavam sua pessoa e bens tabuado de cedro ou vinhático, com boca e fundo
para garantir a concretização das edificações. de 20 palmos “...com seus degraus, tudo m.to bem
Cumpridas as providências iniciais, realizava-se obrado...”. Refere-se, igualmente, à montagem do
o lançamento da pedra fundamental, passo im- esqueleto estrutural: “Entre esteio e esteio a que
portante que reforçava o compromisso dos irmãos chamam quartel há de ser repartida a altura pelo
com a execução do projeto. O acontecimento meio, em cada quartel há de levar dois baldrames,
era marcado por um rito que incluía procissão e um a superfície da terra, e outro no meio para
transporte da pedra para o local do novo templo, melhor segurança da parede e todo o pau-a-pique
escolhendo-se quase sempre o dia do padroeiro há de ser de lei e feito parte dobrada...” (Idem, p.
para a celebração. 39-40). Na mesma localidade, durante a constru-
As Condições de Arrematação constituíam ção da igreja do Bom Jesus de Matozinhos foram
elementos essenciais a qualquer empreendimento introduzidas alterações referentes ao acréscimo
construtivo e continham a descrição dos servi- de cinco palmos na altura da capela-mor para
ços, aos quais o construtor ficaria obrigado, as acomodação do novo retábulo, seguindo-se es-
especificações de materiais e técnicas e outros pecificações detalhadas aprovadas pela mesa da
procedimentos necessários à execução do em- Irmandade.
preendimento. Portanto, orientavam a realização 3
Adotou-se a grafia atualizada na transcrição de documentos, a
dos trabalhos e possibilitavam seu controle e indicação de fontes no corpo do texto, e o termo projeto no sentido
avaliação posteriores. Além disso, definiam os atual do termo, para ampliar a compreensão do texto.
4
O antigo arraial do Bacalhau é o atual distrito de Santo Antônio
do Pirapetinga, no município de Piranga.
Figs. 2 e 3 – Capelas do Senhor Bom Jesus das Flores (Ouro Preto) e de Matozinhos (Itabirito). Foto: Leo Alvim, 2013.
Houve variação no emprego dos sistemas cons- por Miranda (2012), encontram-se especificações
trutivos conforme as regiões e as tipologias de para se fazer paredes bem “juntouradas”, para se
edificação. A taipa de pilão foi empregada em fingir cantaria e concluir-se a obra de pedreiro,
capelas e nas primeiras grandes igrejas matri- para que depois pudesse trabalhar o carapina.
zes, desde a zona central, como no Pilar de Vila Além dos templos de maior porte, multiplica-
Rica, na Assunção de Mariana, em São José de ram-se capelas edificadas em pedra. Salienta-se
Tiradentes e Conceição de Catas Altas, até aos a propósito, o importante grupo situado na área
sertões sanfranciscanos, na igreja do povoado de ouro-pretana, designado “capelas da serra” por
Porteiras. Nessa mesma área aparece a estrutura Paulo Ferreira Santos (1951). Em outras povoações
autoportante de alvenaria de grandes tijolos de do centro-sul distribuem-se muitos exemplares,
barro cozidos, excepcionais em Minas, nas ruínas como as capelas do Rosário e do Bom Jesus de
da igreja de Mocambinho e na interessante Matriz Itabirito e as igrejas de Lobo Leite e Mateus Leme.
de Nossa Senhora da Conceição, em Matias Car- (Figs. 2 e 3)
doso, já nas imediações da Bahia, o que explica a Mas a estrutura autônoma de madeira com ve-
ocorrência dessa solução. dações de adobe ou de pau-a-pique foi largamente
A alvenaria de pedra ordinária emboçada e empregada em todo o território, especialmente
rebocada, guarnecida com enquadramentos, mol- na antiga Demarcação Diamantina e no norte de
duras e ornatos em cantaria foi preferida para as Minas. Muito conhecida no mundo luso-brasileiro,
grandes igrejas na área central estendendo-se ao não apresenta aqui, grandes variações, consistindo
sul, embora muitas capelas tenham sido assim na armação de esqueleto, ou “gaiola”, com quadros
construídas nessas mesmas áreas. Em vários do- formados por esteios, baldrames, madres, frechais e
cumentos, como os de Barão de Cocais estudados tirantes. Em templos de diferentes escalas a vedação
Fig. 4 - Detalhe de grupo de tijolos encaixados. Fig. 5 - Detalhe dos encaixes nos adobes.
Foto: Geraldo Mendes, 2014. Foto: Geraldo Mendes, 2014.
de adobe foi preferida para o arcabouço externo, estudiosos, como Sylvio de Vasconcellos e Paulo
aparecendo o pau-a-pique nas paredes internas. Thedim Barreto. Sua utilização foi verificada ainda,
Grandes igrejas, como a Matriz do Serro, com suas no norte mineiro, em uma casa de fazenda e em
altas torres, apresentam cruzes de Santo André um sobrado urbano. E, aqui, registra-se uma di-
para distribuir os esforços e reforçar a estabilidade. ficuldade quanto ao conhecimento das técnicas
Interessante salientar um tipo singular de trama construtivas, uma vez que as intervenções atuais
de alvenaria de adobe, identificada pela arquiteta nem sempre são aproveitadas para o aprofun-
Maria Cristina Seabra de Miranda na Igreja Matriz damento das investigações. É provável que uma
de Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro. igrejinha mineira muito especial, a de São José de
Os tijolos possuem encaixes em macho e fêmea Minas Novas, apresente o mesmo tipo de adobe
nas faces menores, e não apenas na face de ligação em alvenaria autoportante na nave e na capela-
com os esteios. Assim, todas as peças se encaixam -mor. (Figs. 6 e 7). Em outros pontos do Estado,
e funcionam em conjunto formando um painel como a área de Ouro Preto, Mariana e São João
totalmente entramado. A pesquisa confirmou del Rei, a pesquisa não apontou qualquer registro
sua utilização ao longo do século XVIII, desde até o momento.
as partes mais antigas datadas de 1720-30 até A escolha da técnica para a construção cons-
às acrescidas nas últimas décadas. (Figs. 4 e 5). tituía assunto importante para a comunidade
Não há argamassa de assentamento entre os empreendedora e sua decisão dava-se geralmente,
encaixes “macho e fêmea”, que são alternados em por meio de votação dos membros da Mesa Di-
cada fiada. As frestas horizontais eram arremata- retora. Em Sabará, os irmãos terceiros carmeli-
das com argamassa de e fragmentos cerâmicos e tas reuniram-se em 1762, para eleger a matéria
pétreos. Sua presença foi constatada também, na “mais apta” para construir a sua capela, tendo sido
mesma cidade, na elevação do arco-cruzeiro da vencedora a alvenaria de pedra, por vinte e seis
Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens votos, contra os vinte contados para a estrutura
Pretos de Conceição do Mato Dentro, construída de madeira. Alguns anos depois, eles optaram
entre os anos de 1728 e 1730, com doação feita por pela taipa de pilão para as catacumbas, por ser
Gabriel Ponce de Leon, o fundador da povoação. “incomparavelmente menos dispendiosa [...],
Trata-se de uma técnica rara nas construções seguríssima [...] muitíssimo duradoura”. (Passos,
mineiras tradicionais, que não foi registrada por 1940, p. 92, 94 e 72).
Figs. 6 e 7 – Capela de São José em Minas Novas, MG. Vista externa e planta esquemática
Foto: Leo Alvim. Planta: Arquivo do IEPHA-MG
Um aspecto que pesava na escolha era a questão podem ser detectadas nos textos das condições
financeira, ou seja, a capacidade das irmandades de arrematação, contratos, advertências e outras
de arcar com os recursos para as obras. São inu- referências documentais. A expressão “com toda a
meráveis os exemplos do fato. Em Caeté, a capela perfeição” acompanha as descrições dos serviços e
construída pela Arquiconfraria do Cordão São reflete os ideais a serem alcançados nas realizações.
Francisco, foi iniciada no século XVIII em alvena- Além da perfeição, para a igreja ouro-pretana de
ria de pedra. A obra foi paralisada, mas retomada Nossa Senhora do Carmo, foi especificado que
pelos confrades por volta de 1780-90. Contudo, os construtores deveriam executar as paredes “...
em 1808, novamente alteraram sua decisão e em- com toda a segurança como se costuma o fazer
preenderam a construção em madeira e adobe, semelhantes obras...” (Lopes, 1942, p. 111).
conforme o “Termo para se fazer Capela de pau As recomendações aparecem também para as
por dentro da obra de pedra, pelos motivos que demais partes da obra. “Perfeição, permanência
vão abaixo declarados...” (Vasconcellos, 1945, p.1). e brilhantismo” eram metas a alcançar no dou-
Com isto, muitos edifícios apresentam mais de ramento e na pintura dos retábulos da mesma
um sistema construtivo, como é o caso da Capela igreja. Para o teto da nave foi recomendada uma “...
de Nossa Senhora dos Anjos, em Mariana, o que bonita, valente, e espaçosa pintura de perspectiva
resulta não só da tentativa de reduzir custos e de organizada de corpos de Arquitetura, ornatos,
executar a obra em etapas, mas de divergências e varandas, festões”.
indecisão dos membros da comunidade quanto Para reforçar as orientações específicas de cada
ao acerto das escolhas. um dos trabalhos e não ficar qualquer dúvida sobre
os resultados almejados recorria-se a advertências
A BUSCA DA QUALIDADE E DA adicionais. Assim, na realização do citado templo
“MELHOR PERFEIÇÃO” NAS OBRAS carmelitano, determinou-se “... que tudo o que
respeita segurança, perfeição e comodidade se deve
Nos processos construtivos destaca-se a atenção
fazer ainda que nas condições expressamente em
em relação à qualidade dos empreendimentos. As
todas as cláusulas se não declare...” (Lopes, 1942,
preocupações dos empreendedores com o bom re-
p. 119). A referência indica a permanência de con-
sultado dos aspectos funcionais, técnicos e estéticos
ceitos vitruvianos no saber dos mestres, aplicados XIX, de ordinário possuíam formação prática
como uma regra no processo de execução da obra. adquirida em ateliês ou em canteiros de obras,
Enfim, todos os serviços deveriam ser realiza- em processo herdado do sistema corporativo
dos com a perfeição necessária “como era estilo”. medieval. Aqui, os preceitos e as formas de regu-
Para tanto, contava-se com o saber e a perícia dos lamentação das profissões mantiveram em parte,
mestres de obra e oficiais, os quais compartilhavam as normas, os compromissos e as características
um corpo de preceitos a serem seguidos no projeto adotadas na metrópole.
e em sua execução. Em Ouro Preto, o arrematante As atividades eram controladas pelas Câmaras
da igreja dos franciscanos, Domingos Moreira de Municipais, que tinham entre suas incumbências,
Oliveira, estava obrigado pelas condições a fazer além da promoção das eleições anuais para os
os cunhais, as pilastras do frontispício e as torres cargos de escrivão e de juízes dos diversos ofícios,
“debaixo da medição ou preceito de Arquitetura”. a confirmação de licenças e cartas de habilitação
(Trindade, 1951, p. 296). Em São João Batista do ao exercício profissional. Os juízes se destacavam
Morro Grande, em 1762, foi lavrado um termo na comunidade e eram convocados pelas Câma-
de ajuste com o arrematante Miguel Gonçalves de ras, por meio de cartas dirigidas separadamente
Oliveira onde determinou-se a realização de uma aos pedreiros, carpinteiros, sapateiros e outros, a
louvação final por mestres, que entendessem e fos- assistir à festa do Corpo de Deus, importante nas
sem “inteligentes de semelhantes obras e riscos”. municipalidades5.
(Vasconcellos, 9 out, 1938). No que se diz respeito aos ofícios relacionados
Portanto, um modo de alcançar a qualidade à construção, os estudiosos, como Caio Boschi
desejada era contratar profissionais de mérito (1988, p. 15-20), geralmente destacam a flexibi-
reconhecido. O procedimento dos terceiros do lidade, que teria caracterizado a demarcação de
Carmo de Sabará, quanto ao contrato dos serviços suas fronteiras. Entretanto, se não houve muita
dos púlpitos e do coro de sua capela, ilustra o fato. rigidez em certos casos, na prática, tais frontei-
Eles declararam que o melhor meio para alcançar ras estavam bem demarcadas. A documentação
“aquela perfeição e pureza, segundo os riscos” era pesquisada oferece por exemplo, a distinção entre
convocar o melhor mestre, e que só Antônio Fran- mestres pedreiros e mestres pedreiros e canteiros.
cisco Lisboa e seus oficiais poderiam executá-los É interessante observar que, a partir da metade
“com toda a boa satisfação”. (Passos, 1940, p. 137). dos anos 1760, passou-se a distinguir os cargos
Outras formas de assegurar a qualificação dos tra- de juiz de alvanéus e juiz de canteiros. (Arquivo
balhos eram o controle do exercício da profissão Público Mineiro, SC, Livro 85, fls. 17 v, 19 v,
e, como foi dito, a prática de louvações nas várias 46 v, 47 e 98).
fases da edificação. Os contratantes costumavam ter Com relação à remuneração, em geral, os apren-
seus consultores de confiança, que eram chamados dizes ganhavam apenas o sustento, enquanto mes-
a representá-los nessas ocasiões, preferindo-se tres e oficiais recebiam valores diferenciados. Em
mestres que já haviam sido juízes de seu ofício. muitos casos, eram feitos descontos ou doações
como ato de devoção. Na mesma obra do Bom
MESTRES, OFICIAIS E APRENDIZES: Jesus em Congonhas, o carapina Manuel de Pinho
CONDIÇÕES DE TRABALHO E recebeu seus jornais, além do que deu de esmola e
EXERCÍCIO PROFISSIONAL o pedreiro Francisco Soares trabalhou por esmola
Os mestres e oficiais que atuaram em Minas 5
1765. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Pre-
Gerais durante o século XVIII e início do século to, Livro 84, fls. 11.
mais de três meses, recebendo carne e farinha de mais pesadas e de apoio, e somente os mulatos
mandioca. Interessante foi também o grande des- teriam em condições especiais, chegado a ser
conto feito por Francisco Vieira Servas no preço juízes de ofício.
do retábulo-mor do Carmo sabarense. (Falcão, Há inúmeras referências documentais de que
1962, p. 84; Passos, 1940, p. 161). escravos especializados ou não, que trabalhavam
Por vezes os contratantes forneciam aos contra- nos canteiros de obras, o faziam em regime de
tados casa, comida, material, local para trabalhar aluguel. Os pagamentos eram feitos aos senhores,
e até ferramentas, quando necessário. Antônio a exemplo do ocorrido durante a obra do Bom
Francisco Lisboa e seus oficiais tiveram casas pró- Jesus em Congonhas, na qual, segundo despesas
prias para o trabalho e moradia durante a execução transcritas por Falcão (1962, p. 90, 99-101), Dona
do cancelo, púlpitos, coro e portas principais para Antônia Maria da Cruz recebeu jornais de seu
o Carmo de Sabará, o que também ocorreu com escravo carapina em várias ocasiões, e muitos ne-
Servas quando da realização da talha do altar-mor. gros foram alugados para os serviços na pedreira.
(Passos, 1940, p. 164 e 56). Importa observar que a discriminação entre
Houve também artista, que recebeu escravo trabalhadores negros e brancos no canteiro de
como pagamento! Pela pintura e douramento dos obras pode ser detectada por meio do tipo de
altares colaterais da Capela de Nossa Senhora do comida e de bebida servidas, pois os primeiros
Amparo em Diamantina o irmão pintor Silvestre tomavam cachaça e comiam farinha, feijão e
de Almeida Lopes, além de tintas e de quantia em toucinho, sem direito aos queijos, carne e vinho
oitavas de ouro, recebeu uma Mulatinha por nome comprados para os oficiais e brancos. De fato,
Maria, cativa da irmandade avaliada em cinquenta feijão, farinha, toucinho e sal seriam servidos na
mil réis. (Del Negro, 1979, p. 71)6. obra de terraplenagem dos carmelitas de Ouro
Mas os trabalhadores da construção, em geral, Preto, reservando-se porém, “alguma carne [...]
não acumularam riqueza. Alguns tornaram-se para algum branco que venha trabalhar”. (Lopes,
grandes empreiteiros, mas a grande parte, talvez, 1942, p. 273-4). Já em Sabará, documentos apre-
não tenha conseguido mais do que o necessário à sentados por Passos (1940, p. 128-9) revelam
sobrevivência ou a uma vida modesta. Mesmo o que os brancos e outros que abriram o caminho
conceituado Francisco de Lima Cerqueira, con- para Caeté e conduziram a pedra para a igreja
vocado a trabalhar nas obras e louvações mais im- da Senhora do Carmelo comeram peixe, queijos,
portantes, era pobre, como observou José Pereira bananas, e até um lombo. Todos tomaram vinho,
Arouca, em 1771. (Lopes, 1942, p. 130). mas os negros tomaram aguardente.
A vigência do sistema corporativo no período Por fim, é interessante salientar com relação
colonial brasileiro é assunto controverso. Jaelson aos compromissos corporativos, o costume de os
Trindade (1988) argumenta que o artesanato ofícios mecânicos apresentarem suas danças nos
urbano em economia colonial tinha estrutura de festejos cívicos ou religiosos, conforme era estilo
mercado livre e portanto, que negros e mulatos e “prática imemoriável”. O ato constituía obriga-
teriam participado em grande escala nas artes e ção supervisionada pelo Senado das Câmaras e
nos ofícios dentro de uma determinada divisão integrava-se ao universo cultural, que incluía as
social e técnica do trabalho. Negros tornaram-se danças coletivas como traço essencial da vida
oficiais, mas em geral, incumbiram-se de tarefas pública portuguesa. (Lange, 1969. p. 56 e p. 17).
6
Foi comum a posse de escravos por irmandades de negros ou par-
As festas vinham da tradição europeia medieval e
dos, como a do Amparo, e também por indivíduos negros e pardos renascentista, especialmente, da tradição ibérica.
forros.
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Antônio Príncipe da Beira. Lisboa: Régia Officina Sistemas Construtivos. Belo Horizonte: UFMG.
Typographica, [179_].
Mascarenhas-Mateus, João(1)*
[email protected]
(1)
RESUMO
O estudo da transição entre as antigas culturas construtivas e a nova cultura do betão armado necessita
ainda um aprofundamento amplo que permita entender todos os seus mecanismos incluindo aspetos
como a implantação de unidades fabris de cimento Portland, a regulamentação de projetos e obras, a
formação de técnicos e operadores, a divulgação do conhecimento ou a organização do trabalho.
No entanto, ações sistemáticas de mapeamento da realidade rural portuguesa, como o Inquérito à
Arquitetura Popular em Portugal na década de 1950, registam a perduração de culturas construtivas
milenares baseadas na cal, na terra e na madeira. Nesse período, de norte a sul do país, o uso do betão
armado parecia não ter ainda alterado substancialmente as formas consolidadas ao longo de milhares
de anos, de extrair, de processar e de aplicar materiais locais. Trata-se pois de um período histórico único
em que as velhas culturas construtivas se encontravam ainda presentes nos territórios.
A partir do Inquérito à Arquitetura Popular, o texto pretende reflexionar sobre as realidades construtivas
nas zonas rurais onde as culturas milenares pareciam persistir no quotidiano.
culturais, numa postura que encontra ecos na visão lisar unicamente a contribuição específica desse
progressista e marxista da História. Contudo, para levantamento para a História da Construção em
compreender os complexos e lentos mecanismos Portugal e em particular para o conhecimento das
de transformação de culturas, importa analisar mencionadas “culturas construtivas postergadas”
este problema não só na perspectiva da “cultura pelas novas indústrias de materiais de construção
vencedora”, neste caso a do betão armado, mas da modernidade.
também na perspectiva das “culturas vencidas”,
ou seja da pedra e cal, da terra e da madeira. O INQUÉRITO DE 1955 E A HISTÓRIA DA
Interessa pois para a História da Construção em CONSTRUÇÃO EM PORTUGAL
Portugal, analisar estas últimas culturas construti-
O material recolhido pelo Inquérito foi muito
vas eclipsadas pelas novas tecnologias, procurando
e variado. Para além dois volumes de relatório
fontes de estudo menos comuns que se estendem
final publicado, foi reunido um importantíssimo
desde os inquéritos socioeconómicos até a estudos
espólio de fichas explicativas (fig. 1), centenas de
no campo da etnografia, da geografia humana e da
desenhos e relatórios e milhares de fotografias, das
antropologia. É neste contexto, que se apresenta
quais cerca de seis mil se encontram hoje deposi-
de particular pertinência a releitura do material
tadas no Arquivo IARP (Inquérito à Arquitectura
produzido pelo Inquérito à Arquitetura Popular
Regional Portuguesa) da Ordem dos Arquitetos4.
em Portugal, realizado pelo Sindicato Nacional
Se o principal objetivo da análise dos dois vo-
de Arquitetos e determinado pelo Decreto Lei nº
lumes do relatório final é extrair informação útil
40.349 de Outubro de 1955, cujos resultados foram
para a História da Construção, rapidamente se
publicados em 1961. Segundo aquele diploma
constata que esta se encontra não sistematizada
legal, o levantamento deveria ser “uma tarefa de
e é apresentada sob critérios distintos consoante
cuidadosa investigação das disposições constru-
as principais zonas geográficas, estabelecidos por
tivas patentes nos documentos arquitectónicos
diferentes equipas de autores: Zona 1 – Minho
de todas as épocas existentes no nosso território
(Arq. Fernando Távora, Rui Pimentel e António
metropolitano”, para obter um repositório de
Menéres); Zona 2 – Trás-os-Montes e Alto-Douro
“tradições da arquitectura nacional” em que as
(Arqs. Octávio Lixa Figueiras, Arnaldo Araújo e
novas soluções “não deverão deixar de apoiar-se”.
Carlos Carvalho Dias); Zona 3 – Beiras (Arqs. Keil
Em oposição às intenções oficiais do regime,
do Amaral, José Huertas Lobo e João José Malato);
integradas na defesa de um “espírito” nacional
Zona 4 – Estremadura (Arqs. Nuno Teotónio
da arquitectura portuguesa, muitos arquitectos
Pereira, António Pinto de Freitas e Francisco Silva
usarão o inquérito como um manifesto demons-
Dias); Zona 5 – Alentejo (Arqs. Frederico Geor-
trativo da pobreza das regiões rurais e da falta de
ge, António Azevedo Gomes e Alfredo da Mata
salubridade de muitas construções tradicionais,
Antunes) e Zona 6 – Algarve (Arqs. Artur Pires
à semelhança do que já tinha acontecido com o
Martins, Celestino de Castro e Fernando Torres).
Inquérito à Habitação Rural, da década de 1940.
Apesar do cuidado na normalização da apresen-
Apesar das múltiplas leituras socioculturais e
tação gráfica e no desenvolvimento de temáticas
políticas que têm vindo a ser produzidas sobre o
comuns como as do “Meio” e das “Formas de
Inquérito de 19553 , interessa ao presente texto ana-
quioarquitecturapopular/actas-coloquio-internacional-de-arqui-
3
Cf. Prista, Marta Lalanda. 2016. “A memória de um inquérito na tectura-popular> (consultado em 3.05.2016).
cultura arquitectónica portuguesa” In Actas do Iº Colóquio Inter-
nacional Arquitetura Popular, 3-6 Abril 2013, edited by Município 4
Daquelas imagens, cerca de duas mil encontram-se digitalizadas e
de Arcos de Valdevez, 273-288. <https://sites.google.com/site/colo- disponíveis em http://www.oapix.org.pt/.
Fig. 2 – Forno de cal em laboração, Portel, Évora (Esq.). Venda de cal no mercado de Leiria (Dir.). © Arquivo Ordem dos Arquitetos
- IARP/OAPIX.
Fig. 3 – Aparelhando “agulhas de passar”, Estrada da Guarda a Vilar Formoso (Esq.). Construção de uma parede de cantaria, Covilhã.
(Dir.). © Arquivo Ordem dos Arquitetos - IARP/OAPIX.
Fig. 4 – Fabrico de tijolo, Cuba, Beja (Esq.). Fabrico de telha, Martinacha, Sobral de Monte Agraço (Dir.). © Arquivo Ordem dos
Arquitetos - IARP/OAPIX.
Fig. 5 – Construção de taipa, Alfundão, Ferreira do Alentejo (Esq.). Fecho de Abobadilha, Moura, Beja (Dir.). © Arquivo Ordem dos
Arquitetos - IARP/OAPIX.
10
Idem, 142. dem dos Arquitetos em 2004, em 2 volumes) e as imagens digitali-
zadas disponíveis no site OAPIX.
Nas imagens disponíveis online no Arquivo IARP da Ordem
11
dos Arquitetos é possível encontrar as seguintes: portas e janela Consultado online no site http://www.oapix.org.pt até 30 de Abril
13
Fig. 6 – Moldagem de adobes e adobeira, Rio Maior. © Arquivo Ordem dos Arquitetos - IARP/OAPIX.
Fig. 7 – Moinho de alvenaria em construção, Bufarda, Peniche (Esq.). Construção do madeiramento de um telhado, Santos, Santarém
(Dir.). © Arquivo Ordem dos Arquitetos - IARP/OAPIX.
Fig. 8 - Colocação de ripado de cana, Alte, Loulé (Esq.). Assentamento de telhas, Selmes, Vidigueira (Dir.).
© Arquivo Ordem dos Arquitetos - IARP/OAPIX.
Fig. 9 – Mulheres a caiar, Benfica do Ribatejo, Almeirim (Esq.).Caiação em Almeirim (Dir.). Arquivo Ordem dos Arquitetos - IARP/
OAPIX.
creveu-se a extração e os tipos de talhe de blocos a produção dos fornos de cal24, a execução de um
de granito ilustrados com fotografias de pedreiras moinho em alvenaria de pedra em Peniche (fig.7),
na região entre a Guarda e Vilar Formoso (fig.3), a montagem de palheiros na Tocha e em Mira, a
em Nelas e Canas de Senhorim14. Identificou-se construção da estrutura de madeira dos telhados
a origem dos calhaus rolados graníticos para pa- (fig.7)25, a colocação de telhados de colmo26, o
redes15, indicou-se a origem da cal importada de comércio da cal aérea viva em Leiria27 (fig.2) e
Cantanhede, referenciaram-se os métodos de caiações no Montijo e em Almeirim28 (fig.9).
construção das alvenarias de granito (fig.3) e de Na zona 5, foram descritos os processos de cons-
xisto16 e dos lajedos de granito17. Foi descrita a trução em taipa ilustrados com um conjunto de
serração manual18 e mecânica da madeira de pi- quinze fotografias das várias fases de preparação da
nheiro, a realização de soalhos, varandas e tectos, a massa de terra, apiloamento entre taipais com me-
fabricação manual de telhas cerâmicas, a execução didas normalizadas (fig. 5) e reboco final29. Idêntica
de telhados de madeira19 e os telhados de palha20. descrição foi feita para as várias fases de fabricação
Na zona 4, foi descrita a extracção e o corte de de tijolo (fig.4) e tijoleira (extracção, amassamento,
blocos de calcários brandos ou tufos com conse- moldagem e cozedura, registo das dimensões)30 e
quente elevação de alvenarias21, o fabrico de blocos para um forno de cal em laboração, em Portel31
de adobe22 (fig.6), a produção de tijolos furados23,
Fornos de cal em Pataias, Alcobaça, nos arredores de Minde,
24
Keil do Amaral, José Huertas Lobo e João José Malato. 2004.
14
Alcanena e nos arredores de Santarém. Cf. Keil do Amaral, José
“Zona 3” In Arquitectura Popular em Portugal edited by Sindicato Huertas Lobo e João José Malato. 2004. “Zona 4” In Arquitectura
Nacional dos Arquitectos (4ª ed.), Vol. 1, 278. Lisboa: Ordem dos Popular em Portugal edited by Sindicato Nacional dos Arquitectos
Arquitectos. (4ª ed.), Vol. 2, 88-89. Lisboa: Ordem dos Arquitectos.
15
Recolha de calhaus rolados no Paul, Covilhã. Idem, 282. 25
Construção do madeiramento de um telhado em Santos, Santa-
Guincho de madeira na região entre a Guarda e Vilar Formoso.
16 rém, foto PT-AO-IARP-STR-STR00-021.
Cf. Keil do Amaral, José Huertas Lobo e João José Malato. 2004. Execução de telhados de colmo em Alfarim, Sesimbra. Cf. Keil
26
“Zona 3” In Arquitectura Popular em Portugal edited by Sindicato do Amaral, José Huertas Lobo e João José Malato. 2004. “Zona 4”
Nacional dos Arquitectos (4ª ed.), Vol. 1, 278-282. Lisboa: Ordem In Arquitectura Popular em Portugal edited by Sindicato Nacional
dos Arquitectos. dos Arquitectos (4ª ed.), Vol. 2, 72. Lisboa: Ordem dos Arquitectos.
17
Idem, 283. Mercado (venda de cal) em Leiria, fotografias PT-OA-IARP-
27
19
Fabrico de telhas no Sabugal. Idem, 286. Fabrico telhas na es-
28
Caiações de fachadas no Montijo. Cf. Keil do Amaral, José Huer-
trada da Malpica, Castelo Branco, fotografia PT-OA-IARP-CTB- tas Lobo e João José Malato. 2004. “Zona 4” In Arquitectura Po-
-CTB13-038/39. Conclusão de um telhado em Nelas, Canas de pular em Portugal edited by Sindicato Nacional dos Arquitectos
Senhorim, fotografia PT-AO-IARP-VIS-NLS01-033. (4ª ed.), Vol. 2, 73. Lisboa: Ordem dos Arquitectos. Caiações em
Almeirim, fotografia PT-OA-IARP-STR-ALR01-005. Mulheres a
20
Construção de telhados de colmo em Relva, Castro Daire e em caiar em Benfica do Ribatejo, Almeirim, fotografia PT-OA-IARP-
Bigorne, Lamego . Cf. Keil do Amaral, José Huertas Lobo e João -STR-ALR01-006.
José Malato. 2004. “Zona 3” In Arquitectura Popular em Portugal
edited by Sindicato Nacional dos Arquitectos (4ª ed.), Vol. 1, 234,
29
As várias fases de construção de paredes de taipa no Alfundão,
287. Lisboa: Ordem dos Arquitectos. Ferreira do Alentejo. Cf. Keil do Amaral, José Huertas Lobo e João
José Malato. 2004. “Zona 5” In Arquitectura Popular em Portugal
21
Extração e corte de blocos de tufo nos arredores de Pernes, Santa- edited by Sindicato Nacional dos Arquitectos (4ª ed.), Vol. 2, 154-
rém e montagem dos mesmos, Arneiro. Idem, 59. 156. Lisboa: Ordem dos Arquitectos.
34
Pedreiras em Estremoz, Vidigueira, Vila Viçosa e Viana do Alen- Idem, 300-301.
42
tejo. Idem, 168.
Idem, 302-303.
43
Serração de tronco na vila de Castelo de Vide. Idem, 171.
35
Idem, 304-306.
44
Construção de telhado em Moura, Beja. Idem, 173.
36
Idem, 307.
45
Forno de cal em Portel, Évora, fotografias PT-OA-IARP-EVR-
37
-PRL00-002/004. PT-OA-IARP-FAR-LLE02-001
46
38
Mulher a caiar, em Oriola, Portel. Cf. Keil do Amaral, José Huer- Cf. Keil do Amaral, José Huertas Lobo e João José Malato. 2004.
47
tas Lobo e João José Malato. 2004. “Zona 5” In Arquitectura Popu- “Zona 6” In Arquitectura Popular em Portugal edited by Sindicato
lar em Portugal edited by Sindicato Nacional dos Arquitectos (4ª Nacional dos Arquitectos (4ª ed.), Vol. 2, 308-309. Lisboa: Ordem
ed.), Vol. 2, 175. Lisboa: Ordem dos Arquitectos. dos Arquitectos.
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A Oficina, CIPRC.
* Investigadora Independente
** Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo, Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto (CEAU/FAUP)
RESUMO
A investigação aborda a implementação das redes de telecomunicações em Portugal na perspetiva da
sua construção e materialidade, observando a estratégia adotada na sua evolução e identificando ou
seus principais atores e dinamizadores, nomeadamente José Vitorino Damásio. Trata-se o primeiro
período de grande expansão na construção de centrais e da rede telegráfica, fundamentalmente o
período entre o ano da instalação da primeira estação telegráfica (1855) e o ano em que Guilhermino
Augusto de Barros, escreve o seu Relatório (1889). São analisadas as fontes de época, nomeadamente
os Relatórios oficiais e Regulamentos publicados, enquadrando brevemente a situação portuguesa
no panorama europeu e mundial. Identificam-se importantes iniciativas nacionais, valorizadas na
Conferência Telegráfica Internacional de 1865 e na imprensa internacional. Destacam-se ainda as
importantes investigações e desenvolvimento de soluções que permitiram o exponencial aumento da
qualidade na construção destas redes, entre eles o método do Dr. Boucherie, no tratamento da madeira
utilizada na construção dos postes e o isolamento dos fios telegráficos, inovações que vieram a permitir
atravessar oceanos e conduzir a comunicação mundial a uma nova era.
1. INTRODUÇÃO
Em Abril de 1855 o ministro António Fontes de 1852, para seguir “as phases da civilisação e
Pereira de Melo e Alfredo Bréguet, representante satisfazer as novas exigencias que ella cria” (Duque
da firma Bréguet de Paris, assinaram o contrato de Saldanha et al. 1852a, 383). Um dos aspectos
para construção das primeiras linhas telegráficas que obsta ao progresso do país é a deficiência da
elétricas aéreas (Barros 1891, 27) que viriam a ser rede de comunicações. Como se refere na mesma
inauguradas a 16 de Setembro, com 4 estações data, no relatório que justifica a necessidade de
telegráficas - Lisboa Principal, Côrtes, Cintra e Recursos Extraordinários para a Viação Pública,
Necessidades (Lima 2010, 65, D’Andrade 1875, 45).
“Quasi sem estradas, sem canaes, e sem cami-
Esta adjudicação faz parte de um quadro alar-
nhos de ferro, deve este paiz a sua existencia
gado de ações que visava a modernização do país
commercial anterior aos mares que banham
e que teve como momento importante a criação
o seu extenso litoral, e aos rios que regam o
do Ministério das Obras Públicas em 30 de Agosto
seu territorio: mas se estes meios (...), tem po- Bélgica [1846], Itália [1847], Suíça [1852], Rússia
dido neutralisar, em parte, a falta de vias de [1853] e Espanha [1854] (Alves & Vilela 1995, 21).
communicação, em relação ás orlas do terri- A ligação de Portugal aos outros países europeus
tório, (...) não acontece outro tanto ao amago dar-se-ia, forçosamente, via Espanha, razão pela
do Paiz, a esses tratos de terra semeados de qual se assinou uma convenção com o país vizinho
Povoações que não se communicam, de ha- em Julho de 1857, tendo-se nesse mesmo ano, a 25
bitantes que não convivem, de produtos que de setembro, estabelecido as ligações Elvas-Badajoz
não circulam, de manufacturas que se não e em 1859 a ligação Valença-Tuy. Para esta última
transportam, e até de riquezas e maravilhas, ligação, um cabo de três fios com 195m de extensão
que se não conhecem” (Duque de Saldanha foi submerso no rio Minho. No Relatório do Diretor
et al. 1852b, 386). Acrescenta que se “tivemos Geral de 1891 é descrito o episódio de como tendo
n’outro tempo as descobertas (...) é força que sido convidado o Diretor Geral homólogo a enviar
entremos agora na communhão geral, e que um funcionário para marcar os pontos de junção e
vamos buscar ás reformas economicas, e á ra- acompanhar os trabalhos, quando este chegou ao
pidez das communicações o que temos perdido local, todos os trabalhos haviam sido concluídos
em muitos annos de lamentavel atrasamen- três dias antes (Barros 1891, 36).
to” (Duque de Saldanha et al. 1852b, 387). A União Telegráfica Internacional, organismo
especializado das Nações Unidas para as teleco-
Ainda neste mesmo dia é decidida a construção
municações, foi criado em 1865, sendo responsável
da linha de “Caminho de ferro do Norte” que “par-
pela regulação, normalização e desenvolvimento
tindo do Porto, venha entroncar na linha ferrea de
das telecomunicações a nível mundial. Foi em
Lisboa á fronteira de Hespanha” (Portugal 1852) e
Paris, a 17 de maio de 1865, que foi assinado
que será aspecto determinante para a construção
o acordo resultante da Primeira Convenção
de uma rede de telegrafia eléctrica nacional.
Telegráfica Internacional, através do qual se pro-
curou encontrar formas de ultrapassar as barreiras
2. O CASO PORTUGUÊS NO PANORAMA
e fronteiras de cada estado através da ligação física
EUROPEU
das redes e da compatibilidade dos equipamentos.
Sabemos que foi Inglaterra o país que tomou a Portugal foi um dos países fundadores, tendo
dianteira na construção das linhas de caminho- estado representado por uma comissão chefiada
-de-ferro e telegráficas, inaugurando-se em 1830 por José Vitorino Damásio, então Diretor Geral
com a construção, para uso público, da linha dos Telégrafos do Reino (Alves & Vilela 1995, 24).
entre Liverpool e Manchester. Esta rede telegráfica Mostrando este esforço de ligação internacional,
foi aberta ao público logo em 1837. É portanto em 1865, José Vitorino Damásio responde aos
ao longo das linhas de caminho-de-ferro que se inúmeros pedidos dos funcionários determinando
vão instalando os primeiros telégrafos elétricos, que só seriam colocados nas estações principais os
que permitiam garantir a segurança à circulação telegrafistas que falassem pelo menos uma língua
das locomotivas, que transitavam numa única estrangeira (Alves & Vilela 1995, 71).
via (Alves & Vilela 1995, 20). Em 1855, ano em
que se inaugurou a rede portuguesa, por toda a 3. A IMPLEMENTAÇÃO DA TELEGRAFIA
Europa são já diversos os países que dispõem de ELÉCTRICA EM PORTUGAL
redes telegráficas, Inglaterra, Prússia [1840-46],
A primeira experiência de ligação telegráfica
França [1845], Holanda [1845], Áustria-Hungria e
elétrica ocorreu, por iniciativa privada, a 4 de Abril
construída em 677, face aos 32 quilómetros do n’aquellas que tiverem accommodações e o governo
ano anterior. Em 1857 efetuou-se a ligação das designar” (Ministerio das Obras Publicas 1868, 7).
linhas portuguesas com as linhas espanholas, e a No seu artigo 30º, o regulamento volta a referir a
partir desse mesmo ano dá-se a oportunidade aos importância dos “telegraphos” para os caminhos-
particulares de enviar telegramas servindo-se de -de-ferro já que “quando a empreza tiver resolvido
estações oficiais. É então estabelecido um valor fazer sair um comboio especial ou extraordinário
de duzentos Reis por vinte palavras, pagando os para o publico, dará conhecimento a fiscalização
telegramas urgentes taxa dupla. (…). A saída d’estes trens será sempre anunciada
Em 1875, Miguel Garcia d’Andrade, Telegraphista pelo telegrapho a todas as estações” (Ministerio
de 1ª classe e Chefe da Secção de Elvas preparava das Obras Publicas 1868, 19).
a Lista geral permanente das estações telegraphicas
portuguezas. Desta lista constavam já 143 estações. 4. EVOLUÇÃO DA REDE
Em 1891 Guilhermino Augusto de Barros publi-
cava um Relatório do Diretor Geral dos Correios, As tabelas que se seguem demonstram a impres-
Telegraphos, Pharoes e Semaphoros relativo ao anno sionante evolução da construção da rede tele-
de 1889, onde, para além da caracterização da situ- gráfica, em número de estações, km de linha e
ação à época, fazia o relato histórico detalhado da km de fio entre 1855 e 1870 (tabela 1) e do tipo
implementação da telegrafia elétrica, até do ponto e localização das estações existentes em 1875
de vista das soluções técnicas. (tabela 2). Esta evolução foi especialmente inte-
A dependência dos caminhos-de-ferro rela- ressante nos primeiros anos até 1860, dando-se
tivamente à telegrafia elétrica encontra-se então uma estagnação até 1864, ano em que o
bem expressa nos regulamentos da época; o Corpo Telegráfico deixa de fazer parte do Exército
Regulamento para a Exploração dos Caminhos e toma posse como Diretor Geral dos Telégrafos
de Ferro a que se refere o decreto de 11 de abril do Reino o dinâmico Engenheiro José Vitorino
de 1868, secção Estações, determina no art. 5.º Damásio. Este foi um ano chave na reorganização
que “As empresas são obrigadas a estabelecer um dos serviços telegráficos nacionais. Entre as suas
posto telegráfico em cada uma das estações e a funções encontrava-se a revisão de todos os regu-
prestar uma casa para o serviço da fiscalização lamentos e instruções, a generalização do meio de
comunicação para o público e a harmonização do
Shaffner (1867) publicou um extenso livro que Verificou que em França geralmente os pos-
era simultaneamente um manual sobre a tele- tes eram pequenos, estreitos, bem produzidos e
grafia no mundo,
A Primeira Idade defazendo
Ouro naaConstrução
sua história
da àRede
data.de Telecomunicações
aplainados e corretamente
em Portugal,pintados, chegando
da Regeneração à
Em França, que serviu em muitos aspetos de a ter cada um doze fios telegráficos. A madeira
Implantação da República
referente a Portugal, Shaffner teve oportunidade utilizada era maioritariamente pinheiro, embora
ao funcionamento
de observar da segunda,
que os postes tinhamcomo vimos)
em média 20 determinam,
em algumas pela
linhasprimeira vez,usado
tivesse sido a aplicação
amieiro, o
sistemática
pés [6 m] deda madeira
altura, no nos
exceto exterior,
centroscom a necessidade
de cidade álamodeouresposta
choupo às mais madeiras
e outras variadas condições
brancas. Em
climatéricas, sendo,com
e nos cruzamentos até linhas
à segunda guerra
férreas. Zonasmundial, as únicasregiões
em algumas utilizações de madeiradotratada
a extremidade poste em
que é
Portugal, executadas nas fábricas da Marinha Grande e Figueira da Foz (Esteves 2009).
que os postes chegavam aos 30 pés de altura [9 colocada na terra é queimada e noutras revestida
m] (Shaffner 1867, 688). com alcatrão até uma altura de 1 m acima do
nível do terreno.
Tabela 2 – Estações existentes em 1875, realizado a partir de (D’Andrade 1875).
Tabela 2 – Estações existentes em 1875, realizado a partir de (D’Andrade 1875).
Data
Secções N N/2 C L B E P S C/HL
Abertura
1ª - Viana - 1 (Braga) 3 9 - - - - - 13 Est. (1857
do Castelo a 1874
- - 5 18 1 - - - - 24 Est. (1860
2ª – Régua a 1875)
1 - 2 10 - - - 1 - 14 Est. (1856
3ª – Porto (Porto) a 1868)
- - 3 6 - - 9 Est. (1858 a
4ª Viseu 1872)
- 1 3 4 1 - - - - 9 Est. (1856 a
5ª Coimbra (Coimbra) (Bussaco) 1874)
1 (Elvas) 3 8 - - 12 Est. (1856
6ª – Elvas a 1867)
2 (Bom - 1 (Belém) 4 - - - 5 - 12 Est. (1857
Sucesso e a 1873)
Ajuda –
7ª - Belém Residência
da Família
Real, aberta
em 1862)
2 (Lisboa - 8 5 - 1 (Queluz) - - 1 (Cintra, 17 Est.
Principal e aberta a (Abertura 1855
Necessidad 16/09/1855) a 1872)
8ª – Lisboa es, abertas
a
16/09/1855)
- - 3 9 - - 1 - - 13 Est. (1856
9ª Évora a 1874)
- - 7 3 1 (Caldas - 1 (Sagres) - 12 Est. (1858
10ª - Faro Monchique) a 1875)
- - 2 (uma em 3 - - - 2 - 7 Est. (1874)
11ª -
S. Vicente
Madeira C. Verde)
12ª - - - - - - - - - - 0 Estações
Açores
TOTAIS 6 2 40 79 3 1 1 9 1
Legenda: “N- Estação
Legenda: “N - Estação de Serviço
de Serviço Permanente);
Permanente); N/2 – de
N/2 – Estação Estação de dia
serviço de serviço de diaatéprolongado
prolongado à meia noite:até à meia de
C- Estação noite: C-
serviço
Estação de serviço
de dia completo; de dia completo;
L - Estação L - Estação
de serviço limitado; de serviço
B - Estação limitado;
aberta duranteBa -épocha
Estação
dosaberta
banhos;durante a épocha
E - Estação dos banhos;
aberta durante a estada
E
de -SS.
Estação
MM.; P -aberta
Estaçãodurante a estada
pertencente de SS.
a companhia MM.; P S-- Estação
particular; pertencente
Estação semafórica; a –companhia
C/HL particular;
Estação de serviço S - Estação
completo no verão, e
semafórica; C/HL – Estação de serviço completo no verão, e limitado no inverno”.
limitado no inverno”.
Shaffner (1867) publicou um extenso livro que era simultaneamente um manual sobre a
telegrafia no mundo, fazendo a sua história à data. Em França, que serviu em muitos aspetos de
referente a Portugal, Shaffner teve oportunidade de observar que os postes tinham em média 20
pés [6 m] de altura, exceto nos centros de cidade e nos cruzamentos comCulturas
linhas Partilhadas
férreas. Zonas
597
em que os postes chegavam aos 30 pés de altura [9 m] (Shaffner 1867, 688).
Verificou que em França geralmente os postes eram pequenos, estreitos, bem produzidos e
aplainados e corretamente pintados, chegando a ter cada um doze fios telegráficos. A madeira
utilizada era maioritariamente pinheiro, embora em algumas linhas tivesse sido usado amieiro, o
Santos, Inês Moreira dos; Vale, Clara Pimenta do
Fig. 3 – Sistema Boucherie para tratamento de postes telegráficos com sulfato de cobre sob pressão obtida pela colocação de depósitos
elevados. Montagem a partir de (Segurado [1904-1906]).
No Arquivo Municipal de Lisboa consta uma iniciativas nacionais após um período inicial de
planta assinada por Augusto César dos Santos aprendizagem com especialistas estrangeiros.
com indicação da localização dos postes de fios No que se refere à construção da rede propria-
telegráficos, datada de 12 de novembro de 1900, mente dita, salienta-se a fundamental evolução do
seguros por esferas de arame fixas no pavimento tratamento da madeira dos postes telegráficos, que
do Cais do Sodré. Dois desses postes eram per- passou a ter, com a aplicação do sulfato de cobre
tencentes à Companhia Anglo-Portugueza de pelo método do Dr. Boucherie, uma média de
Telephones, outros dois ligavam o Ministério do vida de 20 anos face aos 3 ou 4 anos da madeira
Reino com o Paço Real e outros dois pertenciam sem tratamento. Outros elementos fundamentais
à rede geral dos telégrafos. como os isoladores, foram igualmente objeto de
constantes investigações com vista ao aperfeiço-
6. CONCLUSÃO amento das suas qualidades.
A pequena dimensão do país e os limitados
A investigação desenvolvida permite concluir
recursos humanos especializados não impediram
que a introdução da telegrafia elétrica em Portugal
o surgimento de investigações que levaram a
foi rápida e entusiástica, frequentemente acelerada
melhorias em instrumentos estrangeiros, disso
por personalidades fortes e empreendedoras, liga-
sendo exemplo as melhorias introduzidas por
das à engenharia e à inovação tecnológica, desta-
Maximiliano Herrmann no aparelho de Morse.
cando-se neste contexto José Vitorino Damásio. Os
A posição geográfica do país permitiu a sua colo-
naturais obstáculos que foram surgindo ao longo
cação num grupo dianteiro no que se refere à
da criação desta nova rede, importantíssima para
construção de redes submarinas, tema a explorar
o desenvolvimento do país, foram corretamente
futuramente. As fontes de época revelaram-se
tratados, tendo-se valorizado o conhecimento e
fundamentais para a compreensão do contexto
histórico e social.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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pelo telégrafo eléctrico.” O tripeiro 7ª série, Ano XIV Cohen, David Xavier. 1913. Bases para orçamen-
(9):261-267. tos. Terceira edição revista e muito aumentada ed.
Alves, Jorge Fernandes , & José Luís Vilela. 1995. Lisboa: J. Rodrigues & C.ia - Editores.
José Vitorino Damásio e a telegrafia eléctrica em D’Andrade, Miguel Garcia. 1875. Lista geral perma-
Portugal. Lisboa: Portugal Telecom. nente das estações telegraphicas portuguezas appro-
Barros, Guilhermino Augusto de. 1891. Relatório vada e adoptada pela Direcção dos Telegraphos
do Diretor Geral dos Correios, Telegraphos, Pharoes e Pharoes do Reino offerecida ao Excellentissimo
e Semaphoros relativo ao anno de 1889 precedido Senhor Director Valentim Evaristo de Rego, coorde-
pela continuação da História dos Correios até ao nada e desenvolvida por Miguel Garcia d’Andrade,
fim de 1888 e de uma memória histórica acerca Telegraphista de 1ª classe e Chefe da Secção de Elvas.
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da mesma Direcção. Lisboa: Imprensa Nacional. do Futuro.
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Duque de Saldanha, Rodrigo da Fonseca Magalhães, Rollo, Maria Fernanda. 2009. História das
António Maria de Fontes Pereira de Melo, & Telecomunicações em Portugal. Da Direcção Geral
António Aluízio Jervis d’Atouguia. 1852b. “Relatório dos Telégrafos do Reino à Portugal Telecom. Lisboa:
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Legislação Portugueza, editada por José Maximo de Segurado, João Emílio dos Santos. [1904-1906].
Castro Neto Leite e Vasconcellos, 386-388. Lisboa: Materiaes de construcção. [1ª Ed.] ed. Vol. I e II,
Diário do Governo nº 206. Bibliotheca de Instrucção Profissional. Lisboa:
Esteves, Bruno Miguel de Morais Lemos. 2009. “A Bibliotheca de Instrucção e Educação Profissional.
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revista do Instituto Politécnico de Viseu nº 36(14) Manual: A Complete History and Description of
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Leonardo, António José Fontoura. 2011. “O of Europe, Asia, Africa and America, Ancient and
Instituto de Coimbra e a Evolução da Física e da Modern. New York: D. Van Nostrand.
Química em Portugal de 1852 a 1952.” Tese de Silva, Ana Paula. 2007. “A Introdução das
Doutoramento, Faculdade de Ciências e Tecnologia Telecomunicações Eléctricas em Portugal 1855-
da Universidade de Coimbra. 1939.” Dissertação apresentada para a obtenção
Lima, Major-General António Luís Pedroso de. do grau de Doutor em História e Filosofia das
2010. Bicentenário do Corpo Telegráfico 1810-2010 Ciências, especialidade em Epistemologia das
Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar. Ciências, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade
Ministerio das Obras Publicas, Commercio e de Ciências e Tecnologia.
Industria. 1868. Regulamento para a policia e
Rocha, Ricardo(1)*
[email protected]
(1)
RESUMO
Amparando-se em trabalhos anteriores do autor, o presente artigo procura aprofundar o entendimento
das relações entre história e ensino da matemática e o panorama da arquitetura, engenharia e cons-
trução luso-brasileira Setecentista. Para tanto, a discussão sobre os instrumentos matemáticos e de
desenho presentes em dois tratados de engenheiros militares portugueses - “O Engenheiro Português”
(1729), de Manoel de Azevedo Fortes, e “Regras de desenho para a delineação... architectura militar e
civil” (1793), de José António Moreira – e, ainda, nas “Advertências aos Modernos...” do mestre pedreiro
Valério Oilveira, é contextualizada em meio a história das matemáticas euclidiana e não-euclidiana.
Esta última, em especial, liga-se à evolução da mecânica, enquanto corrente complementar de trans-
missão de conhecimentos de geometria e construção desde a Antiguidade, sendo fundamental para
o entendimento do surgimento e desenvolvimento dos instrumentos matemáticos, inclusive em sua
aplicação ao campo da construção.
1. INTRODUÇÃO
Por instrumento matemático será entendido ou esquadro2 e o compasso podem e devem ser
aqui: 1) seguindo uma definição vitruviana para entendidos como instrumentos matemáticos. De
instrumento (organo1), um objeto que pode ser fato, “Os Elementos” de Euclides, como lembra
operado por um único controlador, que o utiliza a historiadora da matemática Tatiana Roque
para a elaboração de cálculos matemáticos, (2012), mostraria(m) tudo o que pode ser feito
construções geométricas, medições, etc.; 2) em geometria com a régua e o compasso. No
um instrumento mental, um mechane, palavra segundo sentido, como se tentará mostrar aqui,
grega para astúcia e também para máquina, uti- a história dos instrumentos matemáticos desde,
lizado para resolver um problema matemático, pelo menos, o compasso, está estreitamente re-
geométrico, etc. No primeiro sentido, a régua lacionada aos desenvolvimentos da matemática,
2
No sentido da construção de figuras geométricas, as palavras
régua e esquadro serão usadas indistintamente aqui, a não ser,
1
Apud Maciel (2006) X.I.1 e X.I.3. adiante, em relação especificamente a história do esquadro.
que lavrassem e edificassem se formasse sobre o exemplo dentro da tradição mecânica para suma-
redondo e sobre o quadrado; e tudo o que se fizesse rizar este tipo de raciocínio mecânico-matemático
fora destas duas figuras, seja tido por falso e não ou físico-matemático, fundamental para a compre-
natural”. Há, assim, uma naturalização das formas ensão da história dos instrumentos matemáticos.
geométricas puras, o círculo e o quadrado, que, A lenda, parcialmente descrita por Vitúvio no
antes de serem encontradas na natureza, estariam preâmbulo do Livro IX, conta que em 427 a.C.
presentes no próprio homem. A última frase, metade da população de Atenas havia morrido
entretanto, parece só poder ser convenientemente por causa de uma peste. Tendo sido consultado,
entendida no contexto de uma compreensão mais Apolo teria dito aos oráculos de Delos para du-
ampla da matemática grega, para além de Euclides. plicarem os altares de acordo com sua medida em
Pappus, por exemplo, propõe que: pés cúbicos. Multiplicando todas as dimensões por
“os antigos consideravam três classes de pro- dois, os altares tiveram seus volumes aumentados
blemas geométricos, chamados ‘planos’, ‘sólidos’ oito vezes. Desde Hipócrates de Quios (c. 470-410
e ‘lineares’. Aqueles que podem ser resolvidos a.C.), o problema, no entanto, havia sido reduzido
por meios de retas e círculos [esquadro e com- ao das meias proporcionais. Sabe-se que Arquitas
passo] são chamados ‘problemas planos’... Mas de Tarento (428-347 a.C.) e Eratóstenes de Cirene
problemas cujas soluções são obtidas por meio (428-347 a.C.), entre outros, propuseram solu-
de uma ou mais seções cônicas são denominados
ções para a questão. A “máquina” (mechane) que
‘problemas sólidos’... uma terceira classe, que é
Eratóstenes inventou para solucionar o problema
chamada ‘linear’ porque outras ‘linhas’... além
consiste em duas paralelas com triângulos entre
daquelas que acabei de descrever, são requeridas
as mesmas (figura 1). AE e DH são comprimentos
para sua construção... as espirais, a quadratriz, o
para os quais devem ser encontradas duas media-
conchóide, o cissóide (apud Roque 2012, p. 153).”
nas proporcionais. Mantendo o triângulo AMF
Como escreve Roque (2012, p. 200), fora da
tradição euclidiana, “foram muitas as tentativas fixo, os triângulos MNG e NQH são movidos sobre
de resolução que empregavam novos métodos AX e EY. Com uma rotação de AX passando por D,
na construção de soluções para os problemas com os pontos B e C cortando MF e NG de modo
clássicos” - a quadratura do círculo, a duplicação a permanecer sobre os lados M’G e N’H. BF e CG
do cubo e a trissecção do ângulo - tais como “a são as duas meias proporcionais entre AE e DH.
neusis, cônicas ou outras curvas e instrumentos A “mecânica” aqui refere-se ao movimento das
mecânicos inventados especificamente para esse figuras geométricas, no caso os triângulos MNG/
fim”, caso do conchóide de Nicomedes (c. 280-210 NQH e a rotação da reta AX, como na espiral de
a.C.), referido por Pappus e discutido abaixo. A Arquimedes: um instrumento mental que permite
principal referência dentro desta outra tradição a manipulação mecânica da geometria. É curioso
seria Arquimedes de Siracusa (287-212 a.C.). que um oficial mecânico como Valério de Oliveira
Em “O Método”, enviado por Arquimedes para instrumentalize a geometria, entendendo como
Eratóstenes de Cirene (Séc. III a.C.), ele utiliza “muito necessária a arte de traçar a geometria,
raciocínios de origem mecânica, do campo da porque entrevem alguns dos termos da geometria,
física, para “equilibrar” grandezas geométricas, como são linhas, círculos, ângulos, triângulos e
como se estas pudessem ser dispostas sobre uma quadrângulos” (p. 20). Pois na passagem a ênfase
balança abstrata. Posto que a descrição do método é dada para a construção das figuras geométricas,
de Arquimedes é algo longa, será utilizado outro seu aspecto material, não ideal, por assim dizer.
Não obstante, na continuidade do texto, ele retorna observação da natureza (phýsis) e dos estudos
à ortodoxia: sobre o movimento dos corpos. Contudo, será
com as Quaestiones Mechanicae, inicialmente
“e assim me pareceu por declaração, que atrás
atribuídas ao filósofo, e, para alguns, elaboradas
fica escrita do autor Padre Manoel de Cam-
pos para as medidas e ciências da geome- pelo pensador pitagórico Arquitas de Tarento
tria, que é uma das sete artes liberais muito (Winter, 2007)3, que se alcançará um maior de-
necessárias a todos os oficiais mecânicos; e senvolvimento. Deve-se às “Questões Mecânicas”
não tendo parte nela, não podem ser resolu- a definição mais antiga sobre as máquinas4: quan-
tos em suas artes. É a geometria instrumen- do é necessário fazer algo contra a natureza, há
to que muito ajuda a compreender todos os perplexidade diante da dificuldade, então a arte
saberes do mundo. Por isto, Platão mandou (techne) é requerida. Chama-se a esta solução
escrever sobre a porta da sua Escola, que ne- da perplexidade um mechane (...). É assim que...
nhum fosse ousado a ouvir, sem que primei- coisas com pouco impetus movem grandes pesos
ro fosse ciente nas ciências da geometria.” (Winter 2007, p. 1; Garcia 2000). É nesse contexto
que talvez possa ser entendida a frase “e tudo o
Embora o mestre pedreiro logo cite Arquimedes, que se fizesse fora destas duas figuras [redondo e
é compreensível que ele não tenha tido acesso às
quadrado], seja tido por falso e não natural”. Fora
obras do pensador de Siracusa, uma vez que estas
da geometria euclidiana as formas são construídas
são de mais difícil leitura. Se “Os Elementos” têm
com mechane, com astúcia, com instrumentos
grande valor pedagógico, enquanto conhecimento
outros que o esquadro e o compasso simples.
básico, as obras de Arquimedes se enquadrariam
mais como uma espécie de matemática avançada
da Antiguidade que se utiliza de outras ferramen- 3. PEQUENA HISTÓRIA DOS
tas como a mecânica, em uma versão “especula- INSTRUMENTOS MATEMÁTICOS
tiva”. Do ponto de vista especulativo, as bases da APLICADOS AO CAMPO DA
mecânica clássica foram lançadas por Aristóteles CONSTRUÇÃO
que, em sua “Física”, destacava a importância da Depois, provavelmente, da régua, o mais antigo
dos instrumentos talvez seja o esquadro, já pre-
sente no antigo Egito – duas “réguas” perfazendo
um ângulo de 90º são mostradas em uma tumba
real (Shelby 1965, p. 244). Na Grécia as referências
existentes não fornecem informações suficientes
sobre as especificidades técnicas de sua construção.
Elas irão aparecer com um pouco mais de detalhes
entre os romanos, nas sepulturas dos construtores
da época, indicando o uso, pelo menos, de dois
3
Para o autor (2007, p. iv) “Vitrúvio sumariza as Questões Mecâni-
cas no interior do seu [livro] sobre máquinas”
4
A definição de Vitrúvio em De Architectura é mais específica: má-
Fig. 1 - A solução “mecânica” de Eratóstenes para as medianas quina seria a “aparelhagem de madeira que proporciona as maiores
proporcionais. Fonte: O’Connor, Robertson (1999). vantagens para a movimentação de cargas” (apud MACIEL 2006,
X. I.1).
modelos. Um semelhante ao que existia no Egito, um pantógrafo, utilizado para copiar figuras. A
outro construído subtraindo-se um ângulo reto figura de Heron assume importância na história
de uma prancha. Já na Idade Média, Shelby cita da tradição mecânica, pois seus textos tiveram
um terceiro tipo, com um dos braços curvos, para ampla divulgação. Embora seja de lamentar-se
a realização de arcos. A teoria de B. G. Morgan o fato de que seu trabalho sobre “arqueação”
(apud Shelby 1965) para alguns destes esquadros tenha sido perdido, por outro lado, outros de
é que eles definiriam um sistema proporcional seus textos ainda aguardam exame mais atento,
baseado em triângulos retângulos, constituindo, dentro da história da arquitetura e da construção.
portanto, uma ferramenta de trabalho bem mais Tendo identificado em “O Método” de Arquime-
sofisticada que as anteriores. des raciocínios passíveis de serem aplicados na
A história do compasso, por sua vez, começa- construção de abóbadas, Heron tem seu tratado
ria na Grécia. Segundo uma lenda ele teria sido comentado por Isidoro de Mileto séc. VI). Outro
inventado pelo mitológico Perdix, sobrinho de comentador de Arquimedes, Eutócio de Ascalon
Dédalo. Os gregos usavam três instrumentos (c. 480-540), pode ter sido aluno de Isidoro e
diferentes para traçar círculos: tornos, karki- amigo de Antêmio de Trales (c. 474-534). Deve-se
nos e diabetes. Para Shelby, o primeiro estaria lembrar que Isidoro e Antêmio são os responsá-
relacionado à maneira mais simples de desenhar veis pela construção da Igreja de Santa Sofia, em
mecanicamente um círculo, utilizando uma corda Istambul. Existe, portanto, uma continuidade de
e um ponto fixo. Posteriormente, já aparecerão, estudos da mecânica, como ramo da física que
além desta maneira mais elementar de operar dá origem à estática e precede a resistência dos
com círculos, e dos compassos simples pro- materiais, durante os períodos da Antiguidade
priamente ditos, compassos de redução. Esta tardia, Idade Média e Renascimento, enquanto
espécie de compassos continuará em uso até o corrente complementar e interligada ao ensino
século XX, sendo mencionados, inclusive, nos e à transmissão de conhecimentos de matemá-
dois tratados que serão discutidos adiante. En- tica (geometria) e construção desde a Grécia.
tre os romanos haveria ao menos três espécies Interessante, nesse sentido, do ponto de vista
de compassos. Dividers, termo em inglês para da história da profissão do arquiteto, é que a
compassos simples de ponta seca. Um outro tipo, tradição de estudos da mecânica atinge um de
com pernas curvas, para medir pequenos objetos seus pontos altos no Império Bizantino, onde os
e, também, proportional dividers ou compassos idealizadores da Hagia Sofia, os mencionados
Isidoro de Mileto e Antêmio de Trales, eram co-
de redução para ampliar e reduzir desenhos.
nhecidos por mechanikos, categoria profissional
Ainda em relação à Grécia, ou à cultura hele-
acima do architekton5.
nística, Nicomedes parece ter desenvolvido um
Em Vitrúvio a mecânica refere-se tanto ao pro-
instrumento matemático para traçar suas curvas
blema da firmitas quanto ao uso de máquinas – o
conchóides, utilizadas na resolução dos proble-
Livro X de De Architectura – portanto, era parte
mas clássicos antes referidos – e que talvez tenha
servido de referência para Filippo Brunelleschi
5
Para Vitrúvio: “passam além do ofício de arquiteto, tornando-
-se matemáticos, aqueles a quem a natureza atribuiu inteligência,
para a construção da cúpula de Santa Maria agudeza de espírito e memória, de modo a poderem ter um conhe-
del Fiore, em Florença. Heron de Alexandria cimento profundo de geometria, astronomia, música e outras ciên-
(18-85 a.C.), por sua vez, possui um trabalho cias” (apud MACIEL 2006, I.I.17). Como exemplos, entre outros
citados pelo arquiteto romano, aparecem os nomes de Arquitas de
sobre a dioptra, espécie de teodolito com nível Tarento, Eratóstenes de Cirene e Arquimedes de Siracusa, comen-
d’água, e no livro sobre Mecânica, fala sobre tados neste artigo.
“lidando com a natureza dos elementos mate- XVIII, como preâmbulo para a discussão dos
riais do universo. A estabilidade e o movimento tratados de Manoel Fortes e António Moreira.
dos corpos ao redor de seus centros de gravida-
de, e seus movimentos no espaço, inquirindo SÉCULO XVIII
as causas não somente daqueles que movem-se Um indício, quiçá, de certa continuidade no uso
em virtude de sua natureza, mas também os que de alguns “artifícios” matemáticos, como os valo-
movem outros de seu lugar em um movimento res aproximados discutidos por Helge Svenshon,
contrário à sua natureza... a mecânica pode ser pode ser identificado desde a época de Heron de
dividida em uma parte teórica e outra manual; a Alexandria, isto é, do Século I, até o Século XVIII.
primeira é composta pela geometria, aritmética, Arquimedes – em “Sobre a medida do círculo” –
astronomia e física; a segunda, pelo trabalho com havia definido os valores para “pi” entre 3 e 1/7
metais, construção, carpintaria, pintura. Aquele (ou 22/7) e 3 + 10/71. Em sua “Métrica” Heron
que for treinado... naquelas ciências e pratique sugere, por razões práticas, dadas as dificuldades
estas artes... será o melhor inventor de mecanismos causadas por “números desconfortáveis para me-
e mestre construtor (Schibille 2009).” didas”, a utilização do valor aproximado de 22/7,
Como antes mencionado, desde Heron e seu encontrado por Svenshon (2009) em suas análises
tratado sobre “arqueação”, comentado por Isidoro das medidas da Igreja da Hagia Sofia. Shelby, por
de Mileto, o qual, junto com Antêmio de Trales, sua vez, analisa um método geométrico para o
foram responsáveis pela construção da Igreja de cálculo da circunferência, retirado da Geometria
Santa Sofia, merecendo o título de mechanikos, Deutsch, publicada por volta de 1487, pelo mestre
é possível falar de uma tradição de estudos de pedreiro Mattias Roriczer: o comprimento da
mecânica aplicados à construção, para a qual circunferência seria três vezes seu diâmentro
Brunelleschi preencheria todos os requisitos – mais 1/7 do mesmo.
ourives, escultor, inventor de máquinas e mestre Mais de duzentos anos depois, o mestre pedreiro
construtor. Apesar de não ter deixado muitos Valério de Oliveira, por seu turno, irá propor
registros escritos, o interesse despertado por sua nas “Advertências”: “todas as obras redondas se
realização em Santa Maria del Fiore – bem como hão de medir pela regra de três, e um sétimo das
a de Isidoro e Antêmio em Santa Sofia - foi sufi- três, como se verá no diâmetro: tem sete palmos,
ciente para instigar pesquisadores a reconstituir diremos, três vezes sete são vinte e um, [mais]
a excepcionalidade de seus feitos, desde seus co- o sétimo são vinte e dois” (p. 34). De Heron no
nhecimentos de matemática não-euclidiana, de Século I, passando por Roriczer no Século XVI,
resolução de problemas de estereometria; à inves- até Oliveira no Século XVIII, trata-se da mesma
tigação da “base matemática e técnica essencial aproximação para o cálculo do comprimento da
para a transformação de conceitos em estruturas circunferência.
reais” (Svenshon 2009); chegando, eventualmente, Por outro lado, em relação às “descontinui-
a “compreender como [estas foram construídas], dades”, em pleno Barroco, é possível localizar
tijolo por tijolo, com as ferramentas e os meios referências a uma geometria não-euclidiana na
disponíveis em sua época” (Ricci et. al. 2010). sequência mesmo de uma introdução dos elemen-
Tendo presente a limitação de espaço neste tos da geometria à maneira de Euclides:
artigo, a seguir será mencionado um exemplo da “ponto é o que não tem partes. Entende-se, se-
continuidade no uso de determinados artifícios gundo a nossa consideração, o ponto com respeito
matemáticos desde a Antiguidade até o Século à quantidade é como a unidade com respeito ao
para além delas, um “sem número” de superfícies para traçar paralelas, o compasso simples e o
curvilíneas. As superfícies mistilíneas, compos- esquadro. O conjunto de instrumentos arrolado
tas por retas e curvas, dividem-se “também em por Fortes, muito mais completo, pressupõe um
regulares e irregulares; as regulares são somente número de tarefas, atividades, habilidades e pos-
duas, que possam cair em prática, como a pará- sibilidades significativamente maior, portanto.
bola e o espaço espiral, que têm regra particular Chama atenção a preponderância de “compassos”.
para se saber o seu conteúdo”. Figuras regulares, O “compasso de copiar plantas” ou pantógrafo é
portanto, são aquelas que podem ser descritas algo relativamente singelo que ainda se usa, para
matematicamente. Não parece possível concordar copiar desenhos, mesmo nos dias de hoje – e,
completamente, assim, com a classificação pro- como dito anteriormente, com protótipos desde
posta pelo historiador da arquitetura Paulo Varela a Grécia; o mesmo acontecendo com o compasso
Gomes (1992), em “A confissão de Cyrillo”, que simples, lembrando que o compasso de parafuso
alinha mestres pedreiros e engenheiros militares (para manter determinada medida sem perdê-la)
na mesma tradição – o paradigma da fabrica – em é apenas uma variação deste, já presente, por
oposição a outra tradição iniciada no Renascimen- exemplo, no Caderno de Villard de Honnecourt
to – o paradigma da architectura. Fortes procura (1991, lâmina 39); já o compasso de redução, como
marcar claramente uma distinção, baseada nos também foi dito anteriormente, era conhecido
conhecimentos de geometria e matemática que desde a Antiguidade Clássica; e o compasso de
propõe necessários aos engenheiros: “o estilo três pernas (para copiar figuras) desde a Idade
dos mestres pedreiros... porque são ignorantes Média (ver atrás).
da geometria prática... cometem vários erros... Por sua vez, as “Regras de desenho para delinea-
os quais apontarei alguns mais ordinários para ção das plantas, perfis e perspectivas pertencentes
exemplo e para que os engenheiros os evitem” a arquitetura militar e civil” (1793), do capitão
(pp. 298-299). Quanto ao uso dos instrumentos José António Moreira, escritas para uso da Real
mais necessários aos Engenheiros, no capítulo Academia de Fortificação, Artilheria, e Desenho,
IX, o autor propõe: dedicam-se inteiramente ao desenho. A obra
“Como a maior parte das operações da geome- é dividida em cinco capítulos: I – construção e
tria prática se não podem executar sem alguns uso dos instrumentos de matemática; II - dos
instrumentos, seria este tratado incompleto, se instrumentos necessários aos engenheiros sobre
nele se não define o modo de bem usar daqueles, o terreno; III – regras para copiar toda a quali-
de que é preciso valer-se; o que faremos neste capí- dade de desenhos e reduzi-los; IV – método de
tulo, começando pelos mais simples e ordinários, desenhar; V – as ordens de arquitetura. Antonio
e que servem a geometria sobre o papel (p. 322)” Moreira inicia o tratado ao modo de “Os Ele-
Estes instrumentos seriam a régua (quatro tipos mentos” de Euclides, justificando sua elaboração
diferentes), o compasso, o petipé (escala com em função da necessidade “de reduzir a regras
medidas em braças, toezas, etc), o compasso de elementares os princípios do desenho”. Assinala
parafuso, o compasso de três pernas, o compasso também a tensão entre teoria e prática ao dizer
de redução, o compasso de copiar plantas ou pan- que “é verdade que [o desenho] se adquire mais
tógrafo, o transferidor, a prancheta e o semicírculo com o uso... do que por meio de longas e fasti-
– e mais o compasso de proporção, comentado diosas descrições; mas também se não deve negar
mais abaixo. Nas “Advertências”, o mestre pedreiro que os preceitos e regras para riscar qualquer
Valério de Oliveira citava a régua simples, a régua planta explicados somente de viva voz, esquecem
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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engenharia militar para a engenharia civil e a ar- bro de 2015.
Rocha, Ricardo(1)*
[email protected]
(1)
RESUMO
Em The book nobody read o historiador da ciência Owen Gingerich narra sua pesquisa para a rea-
lização de An annotated census of Copernicus’ De revolutionibus, um levantamento comentado da
localização das primeiras edições de De revolutionibus, de Copérnico. Durante seu trabalho Gingerich
percebeu que as cópias mais interessantes da obra de Copérnico eram aquelas com anotações de leitores
técnicos, cujos exemplares podiam ter sua história levantada. Nessa direção, adotando alguns dos pro-
cedimentos indicados por Gingerich, mas em uma escala bem mais modesta, o presente artigo examina
um exemplar do Guia do engenheiro na construção das pontes de pedra (1844), de Mousinho de Albu-
querque – figura ímpar da engenharia portuguesa no Século XIX. O interesse no exemplar em questão
reside no fato de que o volume pertenceu à biblioteca dos Condes de Rio Maior, nobres portugueses
dedicados à engenharia. Anotações a caneta ao longo de todo o livro demonstram que o mesmo foi lido
e comentado por um leitor técnico. Adquirido pelo autor em leilão da biblioteca do engenheiro Zake
Tacla, o exemplar possui uma “segunda camada” de anotações, realizadas pelo próprio Tacla, para o
dicionário sobre termos técnicos utilizados na construção que este publicou. Nesse sentido, o texto pro-
cura fornecer dados sobre Mousinho de Albuquerque e seu Guia do engenheiro, e também sobre Zake
Tacla e seu dicionário, para então se deter na análise do conjunto de anotações. Adicionalmente, são
comentadas algumas informações fornecidas no Guia sobre a teoria dos arcos e abóbadas e a Estática.
1. INTRODUÇÃO
O astrônomo e historiador da ciência Owen eram aquelas com anotações de seus donos,
Gingerich (2004), em The book nobody read, nar- principalmente os leitores técnicos – do ponto
ra a estória de sua pesquisa para a realização de de vista de um historiador da ciência – cujos
An annotated census of Copernicus’ De revolu- exemplares podiam ter sua história e trajetória
tionibus, um exaustivo levantamento comentado levantadas.
da localização das primeiras e segundas edições De modo semelhante, o pesquisador brasileiro
de De revolutionibus, de Nicolau Copérnico. Alberto Xavier (1962, 2007), organizador de uma
Durante seu trabalho, Gingerich percebeu que as das primeiras coletâneas com textos de Lucio
cópias mais interessantes da obra de Copérnico Costa (o volume “Sobre Arquitetura”), depois de
deiras, fundamentos (fundações). A terceira parte a theoria das abóbadas, e particularmente a das
traz as demonstrações geométricas – construção abóbadas cilíndricas... e que são as empregadas
da elipse, da parábola, dos arcos “tricêntricos”, nas pontes, deduzida das observações e das expe-
“policêntricos”; e questões de interesse como a riências feitas sobre a estabilidade e o equilíbrio,
“teoria das abóbadas”; a “resistência das pedras as variações de forma e a ruptura de abóbadas...
ao esmagamento e fractura”, etc. O aditamento sendo traduzida em cálculo, dá origem a um certo
fala sobre a organização dos projetos de pontes de número de fórmulas por meio das quais se pode
pedra – condições gerais, divisão, circunstâncias calcular a espessura dos encontros, para um arco
locais, plano da obra, orçamento. de forma e grandeza dadas, extradorsado por
Mousinho de Albuquerque começa salientando um modo conhecido, elevado sobre pés direitos
que seu trabalho “não tem por objecto, nem o de determinada altura e submetido a uma carga
adiantamento das Sciencias que servem de base as igualmente determinada em grandeza e situação
aplicações architectonicas, nem o dos processos até (p. 4).
agora descobertos e executados na edificação das À observação aristotélica da physis, à Mecâni-
ca especulativa clássica sobre a estabilidade e o
pontes”, mas apenas “vulgarizar entre nós, compi-
equilíbrio dos corpos2, soma-se a experimenta-
lando-os e expondo-os por um modo resumido
ção sobre a resistência dos diversos materiais e a
e claro, e na nossa língua materna, os principais
correlação entre forma (geometria) e resistência.
preceitos theoreticos e práticos que regulam este
Ultrapassa-se, desse modo, não só a Mecânica
gênero de construções”. O que explica a origem
Clássica, como as “duas novas ciências” de Gali-
francesa de algumas imagens, uma vez que não leu Galilei (1564-1642). Um determinado corpo,
se trata de uma obra de absoluta originalidade e com uma forma geométrica definida, constituído
sim uma compilação de caráter didático – cujo por materiais cujo comportamento é conhecido,
interesse foi chancelado pela Academia de Ciências submetido a forças também conhecidas, traduz-se,
de Lisboa ao publicá-la. assim, em uma formulação matemática.
A organização do Guia é, de fato, bastante clara.
As partes que compõem as pontes de pedra; os
3. ZAKE TACLA E “O LIVRO DA ARTE DE
materiais utilizados na sua construção; as cons-
truções geométricas dos distintos componentes; CONSTRUIR”
e sua fundamentação. Nesse sentido, a terceira O engenheiro Zake Tacla trabalhou duran-
parte, principalmente, é o que caracteriza cienti- te dezesseis anos na empresa DURATEX S.A.,
ficamente a obra, distinguindo-a de grande parte para a qual elaborou um glossário de chapas de
da tratadística setecentista portuguesa. Nem tanto fibras de madeira, apresentado em uma reunião
pelas demonstrações das construções geométricas, internacional de fabricantes do produto3. A ideia
mas, fundamentalmente - para além da discussão de seu dicionário, “O livro da arte de construir”,
anterior sobre a teoria dos arcos a partir de Jean surge, segundo seu próprio relato, a partir deste
Rondelet (1743-1829) - em função dos comentá- 2
Em relação à Mecânica Clássica, Mousinho dá testemunho de sua
rios sobre a teoria das abóbadas, segundo a famosa “atualidade” ao assinalar que “o cabaço, as bombas e os parafusos
de Arquimedes são suficientes para o esgoto na maior parte dos
memória de Charles A. Coulomb (1736-1806); e casos e em todas as obras de pequena e mediana grandeza” (p. 249).
sobre a necessidade dos estudos de Resistência 3
O engenheiro chegou a montar uma firma própria para a fabri-
dos Materiais. Um “manual prático”, como lembra cação de portas de madeira aglutinada (VASCONCELOS, 2002, p.
o autor, ao qual, no entanto, não falta a “teoria”: 83).
4. CAMADAS DE HISTÓRIA
O primeiro leitor do “Guia do engenheiro” pode
ter sido o 4o Conde de Rio Maior, A. José Luiz
de Saldanha Oliveira e Souza, nascido em 1836,
portanto, bem mais novo que Mousinho de Albu-
querque. Formado em matemática e filosofia pela
Universidade de Coimbra, era ele mesmo autor
Fig. 1 - Exemplo de márginália nas figuras de uma das estampas de uma publicação técnica, as Noções de filosofia
do “Guia do Engenheiro”. química. Nesse sentido, o conde talvez conhecesse,
por seu turno, o autor do Curso Elementar de
primeiro glossário. E, de acordo com Augusto
Química e Físca. O 4o Conde de Rio Maior era
Carlos de Vasconcelos (apud TACLA 1984, p.
casado com a senhora B. A. Tavares de Proença,
vii), provavelmente, ainda, de uma série de ar-
o que explica a origem do carimbo no exemplar
tigos escritos por Tacla, nos anos sessenta, para
aqui analisado, posto que o mesmo pertencia a
a revista Engenharia – editada pelo Instituto de
biblioteca do casal, na Casa da Anunciada, uma
Engenharia de São Paulo. Nestes artigos, o enge-
das melhores bibliotecas particulares de Portugal,
nheiro esclarecia o uso controvertido de alguns
segundo o negociador de obras raras Richard C.
termos no campo da construção.
Ramer (2014).
Tacla possuía, tudo leva a crer, uma vasta bi-
Outra hipótese seria o filho do casal, o 5o Conde
blioteca que lhe serviu para a redação de seu
e 2o Marquês de Rio Maior, João Saldanha Oliveira
dicionário. Muitos dos livros que aparecem na
e Souza, nascido em 1878, e que era engenheiro
bibliografia por ele arrolada deviam constar em
civil. Quanto ao 6o conde, também engenheiro
suas prateleiras. Relativamente por acaso, o autor
civil, ele era nascido em 1901, a chance de ser o
adquiriu algumas destas obras - como as “Adver-
nosso leitor é, assim, menor. De qualquer modo,
tências aos modernos que aprendem o ofício de
nosso leitor debruçou-se sobre o Guia do enge-
pedreiro e carpinteiro (1757), do mestre pedreiro
nheiro com pelo menos uma década passada desde
Valério Martins de Oliveira; o Guia do engenheiro;
e o Livro dos regimentos oficiais mecânicos de
4
Sem esquecer que Tacla foi um dos pioneiros do uso do concreto
protendido no Brasil, sendo sócio da PROTENDIT, junto com outro
Lisboa (1926) - todos utilizados na confecção do estudioso da construção no Brasil, o também engenheiro Augusto
seu dicionário, entre outros, e facilmente iden- Carlos Vasconcelos (VASCONCELOS 2002).
tricêntrico, ao que nosso leitor comenta: porque por seu turno, aparecem, as vezes, remissões às
é sempre possível descrever entre 2 diâmetros páginas onde elas são citadas.
dados uma infinidade de curvas. Não há dúvidas sobre a utilização do Guia do
Como dito antes, suas anotações acompanham engenheiro para a redação de O livro da arte de
todo o livro. A última delas, um sublinhado, en- construir, uma vez que ele consta como referência
contra-se na página duzentos e vinte e um, referin- em alguns dos próprios verbetes deste (Figura
do-se ao mínimo valor de determinada expressão 2). Por outro lado, nem todos os termos técnicos
que coincide com o impulso horizontal, para constantes no índice remissivo anexado por Tacla
verificar se a abóbada projetada está ao abrigo... ao Guia aparecem no seu dicionário e, dos que
[da] ruptura. aparecem, nem todos são remitidos ao Guia.
Ao final de seu exemplar do Guia do engenhei-
ro, Zake Tacla encadernou um índice remissivo, 5. OUTRAS CAMADAS: O GUIA DO
batido a máquina, de onze páginas com mais de ENGENHEIRO E A HISTÓRIA DA
quatrocentos termos construtivos encontrados ESTÁTICA
no volume. Outros livros adquiridos pelo autor
Evidentemente, existem outras camadas de
da biblioteca do engenheiro não receberam o
leitura no Guia do Engenheiro com interesse para
mesmo tratamento, como A nossa casa, de Raul
a História da Construção, para além das estabele-
Lino, que, entretanto, não consta da bibliografia
cidas pelas anotações de Oliveira e Souza e Zake
de O livro da arte de construir. As Advertências, Tacla. Como exemplo, a seguir, serão comentados
do mestre pedreiro Valério de Oliveira, e o Li- brevemente, aspectos das relações entre a história
vro dos regimentos, que constam, também não da construção das pontes de alvenaria, a história da
receberam o mesmo tratamento, o que talvez teoria dos arcos e abóbadas e a história da Estática.
possa ser explicado pelo simples fato de que já A construção de pontes de pedra em arco e
contam originalmente com índices remissivos Mousinho comenta sobre obras em cantaria, alve-
o primeiro das coisas mais notáveis, o segundo naria, tijolo e mistas, seu objeto sendo, portanto,
com as designações técnicas. De qualquer forma, mais propriamente, as pontes de alvenaria, tal
parece explícita a intenção de Zake Tacla de uti- como seria entendido hoje6 - configura um caso
lizar o Guia do engenheiro como uma fonte de especial das construções em alvenaria, com pontos
informações sobre termos técnicos utilizados no em comum, principalmente, com a questão dos
campo da construção luso-brasileira. Mousinho tetos abobadados. Uma história da teoria dos
de Albuquerque, inclusive, muitas vezes fornece arcos e abóbadas não pode prescindir, assim, do
informações sobre os equivalentes em língua exame de seu desenvolvimento histórico. É du-
francesa dos termos que utiliza o que denota, por rante o Renascimento, por exemplo, com pontes
sua vez, a origem de suas principais referências. de maiores vãos em relação à Antiguidade, que
Tacla não fez anotações. A marginália que atri- ocorrem inovações geométricas no desenho dos
buímos ao engenheiro limita-se a assinalar com arcos, somando-se aos arcos plenos, os arcos
x, à margem do texto, os termos técnicos depois abatidos7 - elípticos, policêntricos, baseados em
agrupados no índice remissivo por ele redigido e catenárias, etc.
anexado ao Guia. Outro tipo de registro (E I, E II 6
Ao que parece, Mousinho distingue cantaria, como aparelhagem
= Estampa I, Estampa II) ver a figura 3 - refere-se regular, de alvenaria, enquanto aparelhagem irregular e argamas-
a localização das figuras citadas no texto dentre as sada.
Por outro lado, a história da teoria dos arcos linnha média entre intradorso e extradorso. Para
e abóbadas confunde-se com a história da Es- Jean-Rodolphe Perronet (1708-1794), a junta de
tática e, mesmo, em parte, como a história da ruptura encontra-se no ponto de mudança da
Resistência dos Materiais. Deixando de lado a curvatura, para arcos elípticos, e na linha das im-
hipótese de que alguma coisa dos trabalhos de postas, nos arcos monocêntricos Coulomb, citado
Heron de Alexandria (18-85 a.C.) sobre o assunto por Mousinho, critica de la Hire e Bélidor, no
tenha sido transmitida ao Ocidente, a figura de sentido em que, segundo ele, “todos os geômetras
Leonardo da Vinci (1452-1519) é, possivelmente, dividem um tanto arbitrariamente as abóbadas
uma das primeiras a tentar abordar a matéria, em partes, procurando, em seguida, as condições
mais ou menos, explicitamente. Amparando-se de equilíbrio em cada um delas”. Já Mousinho
na Mecânica clássica e medieval, Leonardo irá não comenta nem o primeiro nem o segundo.
analisar um arco de aduelas como um mecanismo, Perronet, contudo, é uma referência constante,
convertendo uma estrutura construtiva em um enquanto exemplo teórico e prático, como no
conjunto de máquinas simples, composto por caso da Ponte de Neully (1764-1774), sobre o
cunhas e polias. Mais do que uma curiosidade, a Sena8. No entanto, é Jean Rondelet e seu “Traité
importância das especulações de da Vinci ligam-se théorique et pratique de l’art de bâtir” (c. 1800)
ao nome de Philippe de la Hire (1640-1718) que, que constitui sua fonte principal para uma teoria
publicando-as pela primeira vez, desenvolve a dos arcos. Um aspecto interessante que Mousinho
“teoria da cunha” (c. 1712). Bernard Forest de apresenta, a partir de Rondelet (Figuras 4 e 5), é
Bélidor (1698-1761), por sua vez, amplia a teoria o cálculo (geométrico) dos encontros das pontes,
de la Hire em “La Science des Ingenieurs...” (1729), em função do tipo de curvatura do arco – pleno,
no segundo volume, dedicado à “Mecânica das elíptico, policêntrico, etc – problema que Huerta
Abóbadas”. Significativo, nesse sentido, é o fato considera o mais importante, uma vez indentifi-
de que os trabalhos de Bélidor constituíam livros cados a junta de ruptura e o impulso horizontal. É
de referência para o ensino e a formação dos interessante comparar Rondelet/ Mousinho com
engenheiros militares luso-brasileiros no Século Viollet-le-Duc, na medida em que o método de
XVIII (Rocha 2016). cálculo geométrico proposto por este último acaba
Para Kahlow (2001), a história da teoria dos gerando maiores espessuras para a definição dos
arcos e abóbadas seria sumarizada pela história encontros das pontes em arco. Em suma, tendo
da teoria do impulso horizontal que, juntamente em vista, inclusive, esta última comparação com
com a teoria da junta de ruptura, permitiriam Viollet-le-Duc, tudo contribui para indicar que
seu cálculo – ou, em outras palavras, as teorias o Guia do Engenheiro continha informações que
do impulso horizontal/ junta de ruptura cons- podem ser consideradas atualizadas para o mo-
tituiriam, por assim dizer, as bases (históricas) mento de sua publicação.
do entendimento de arcos e abóbadas do ponto
de vista estático. De acordo com Huerta (2015), 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
de la Hire não localiza detalhadamente a junta
É de lamentar-se que bibliotecas inteiras como
de ruptura em seus estudos, situando-a entre
as de J. de Saldanha Oliveira e Souza e B. A. Tava-
o fecho e as origens, com o impulso horizontal
tangente ao intradorso. Bélidor propõe a junta
8
Mousinho não comenta sobre a Ponte de Nemours, terminada
após a morte de Perronet, talvez em função do que Huerta (2015)
de ruptura exatamente a meio caminho entre assinala, em relação ao fato de que as pontes com arcos (muito)
o fecho e as origens, e o impulso horizontal na abatidos foram abandonadas no Século XIX.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Porto Alegre: UniRitter.
RESUMO
A Companhia de Jesus (CJ), instituto religioso gerado no seio da Reforma Católica, caracterizou-se por
se distanciar da conduta das ordens religiosas anteriores ao Concílio de Trento. As diferentes formas
de actuar e de se relacionar com o mundo laico levaram a que se tornasse a congregação de referência
da contra-reforma. Essa forma de actuação distinta traduziu-se na construção das suas casas e desde
a primeira congregação geral que a preocupação com a utilidade e adequação do edifício à função é
manifesta, sendo expressa no cânone intitulado De ratione aedificiorum.
O sucesso do novo instituto levou à disseminação mundial das suas fundações, que assumiram diferentes
tipologias arquitectónicas (casas professas, noviciados, colégios, quintas, missões, etc), exigindo um bem
estruturado sistema de organização no território, repartido por diferentes assistências.
Esta dispersão territorial e a aculturação às praticas locais, fomentaram nos dirigentes da CJ a necessidade
de fiscalizar a forma dos seus edifícios, criando um bem estruturado sistema de controlo do edificado.
Pretende-se com esta comunicação analisar a forma como a CJ geria o seu parque edificado através de
um inovador e actual sistema de licenciamento de edifícios, quais os actores que intervinham no processo
e que tipo de directivas seguiam. Esta análise basear-se-á na leitura dos projectos e de algumas memórias
descritivas enviadas a Roma, hoje à guarda de dois grandes arquivos: a Bibliothèque Nationale de France
(BNF), em Paris e o Archivum Historicum Societatis Iesu (ARSI), em Roma. Referindo casos nacionais e
internacionais, e analisando o caso concreto do processo relativo ao colégio de Santarém à luz de novos
documentos, pretende-se com esta comunicação provar que o processo de controlo de edificação jesuíta
não era apenas uma utopia, mas uma realidade que nos permite ainda hoje aceder aos projectos dos
edifícios da CJ e entender as condicionantes ao processo criativo.
1
Este texto insere-se no âmbito dos trabalhos desenvolvidos no nosso doutoramento, intitulado Modo Nostro. A especificidade da Arqui-
tectura dos colégios da Companhia de Jesus na Província Portuguesa. Os séculos XVII e XVIII (SFRH/BD/110211/2015), desenvolvidos no
Civil Engineering Research and Innovation for Sustainability do Instituto Superior Técnico - Universidade de Lisboa, e apoiado pela Fun-
dação para a Ciência e a Tecnologia com financiamento comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do Ministério
da Educação e da Ciência.
pações mais relacionadas com a funcionalidade e o projecto tendo em vista o respeito pelos princí-
economia, que com questões estilísticas. pios patentes na ratione aedificiorum.
Em seguida o projecto seria deferido, indeferido, Seriam estas directivas que o revisor romano —
ou proposto para alterações pelo geral e devol- o conselheiro técnico do padre geral —, seguiria
vido ao requerente. O sistema, que já havia sido aquando da avaliação dos projectos, sendo ele o
instituído na II Congregação Geral foi reescrito principal regulador do edificado jesuíta. Este cargo
em 1613 e difundido junto de todos os provinciais não seria desempenhado por qualquer quadro
através de uma epistola communis, obrigando a que da CJ. Teria que ser alguém que tivesse sólidos
os processos fossem instruídos em duplicado, de conhecimentos científicos para avaliar a quali-
maneira a que permanecesse sempre uma cópia dade de um projecto e as implicações do risco do
no arquivo da casa professa de Gesú, em Roma. projectista na fase da construção e da utilização.
A implementação do sistema, não terá tido a Inicialmente o cargo foi ocupado por arquitectos
eficácia que os gerais pretendiam, conforme se (padre Giovanni Tristano e padre De Rossis), mas
pode atestar pela epístola de reforço enviada em a partir da segunda década do sec. XVII, o cargo
14 de Julho de 1668 para os diferentes provinciais foi maioritariamente ocupado por professores de
e assinada pelo padre geral João Paulo Oliva: matemática do colégio romano.3
“Au sujet des projets de nos églises et de nos A análise da colecção de desenhos relativos
établissements, ou de quelque bâtiment d’im- aos edifícios da CJ à guarda da BNF revela o tipo
portance, afin qu’aucune modification ne puisse de críticas que condicionavam a aprovação dos
être apporté au projet approuvé ici; ayez soin qu’a projectos. Não seriam críticas muito extensas,
l’avenir tout projet, examiné auparavant chez vous oscilando entre pequenas correcções e outras
par des experts, me soit envoyé en doble exemplai- mais expressivas (as últimas relacionadas quase
re, dont l’un sera conservé ici dans les archives, sempre com a forma da igreja), anotadas no de-
l’autre étant retourné muni de l’approbation, et, senho, propondo uma aprovação condicionada
le cas échéant, des amendements nécessaires, sera do projecto ou mesmo a sua rejeição.
conservé lá-bas avec grande diligence, et qu’il As preocupações mais constantes eram as rela-
ne soit pas permis à quiconque de s’en écarter, cionadas com a utilidade, facilidade de constru-
ce qui a pourtant été fait, ainsi qu’on me la écrit ção, economia e salubridade. No que se refere à
plus d’une fois. Pour le reste, que la construction utilitas, quando a forma condicionava o correcto
de nos établissements soit simple, salubre, ‘fonc- desempenho do edifício, as alterações eram de
tionelle’, et qu’elle ne témoigne en aucune de ses imediato impostas – veja-se o caso do colégio
parties du désir d’éblouir, ni par les matériaux, ni de Castiglione (Itália) em que o revisor mandou
par le style. Qu’elle soit un sujet d’edification et eliminar um pilar para facilitar a comunicação
non pas faite pour le faste ni pour être admirée”2 entre as capelas laterais (Vallery-Radot, 1960,
(Vallery-Radot, 1960, 14). 80). No que se refere à firmitas, no projecto para
A missiva de Oliva, reforça as directivas ante- a igreja de Siena (Itália) podemos atestar a pre-
riores e demonstra que, para além do padre geral ocupação do revisor Orazio Grazzi com o peso
e do revisor romano, também os projectistas e próprio da cobertura, sugerindo um tecto em
responsáveis de cada província teriam que instruir cúpula mais leve e de contrução mais económica
(Vallery-Radot, 1960, 9 e 22). No projecto para o
2
Tradução do latim para francês feita pelo autor à epístola assina-
da por João Paulo Oliva, à guarda do ARSI (ARSI, Epp. com. B2, 3
Sobre este assunto é fundamental a leitura das obras de Richard
p. 153). Para não comprometer o conteúdo optamos por não fazer Bösel sobre cada um dos revisores romanos e sistematizadas pelo
tradução do francês para português. próprio no artigo citado.
colégio de Mirandole (Itália) aprova-se o projecto jesuítas foi global, levando à expulsão dos mesmos
mas alerta-se para a obrigatoriedade de abrir mais nas diferentes assistências e à sua supressão em
janelas no refeitório para assegurar um correcto 1773. Esta manobra que afectou o coração da
arejamento (Vallery-Radot, 1960, 9 e 86). instituição, em Roma, conduziu igualmente ao
A preocupação relacionada com o terceiro extravio dos projectos à guarda da casa generalícia
princípio vitruviano – venustas – é manifestada e do colégio romano.
pelo Padre Oliva, em 23 de Dezembro de 1668: Até agora, considerámos que a explicação mais
“Les projets doivent aussi faire connaitre l’ordre bem fundamentada para o processo de extravio
d’architecture suivant lequel on pense bâtir l’édifi- destes documentos é apresentada na obra Le recueil
ce, et préciser les ornements du décor, afin de ne de plans d’édifices de la Compagnie de Jésus conservé
pas laisser aux exécutants la liberté d’en ajouter a la Bibliothèque Nationale de Paris (1960), assinada
de nouveaux au préjudice de la sainte pauvreté.”4 por Jean Vallery-Radot. O documento focaliza-se
(Vallery-Radot, 1960, 15). na apresentação e análise do acervo iconográfico
Examinando os projectos da colecção de Paris, à guarda da Bibliothèque National de Paris (hoje
Vallery-Radot não encontrou dados que repro- Bibliothèque Nationale de France) compreendendo
duzissem a resposta a esta directiva, à excepcção as peças desenhadas pertencentes aos projectos de
do caso do colégio de Poszawze (Lituânia), em edifícios da CJ, fundados nos dois primeiros séculos
que é referida em nota a intenção de se compor da instituição. Os documentos, predominantemente
a fachada sob a ordem dórica (opus doricum) gráficos, ascendem a mais de um milhar e, antes
(Vallery-Radot, 1960, 15 e 331). Na nossa opinião da reorganização que conduziu a esta obra, apre-
isto não constitui prova de que a directiva não foi sentavam-se como uma miscelânea de desenhos
cumprida. Afinal, em Paris só encontramos peças geograficamente mal identificados e sem catalogação
desenhadas e este tipo de informação poderia lógica. Era urgente o trabalho de reorganização do
estar contido na memória descritiva. acervo. Assim, em 1960, o conservateur en chef do
Cabinet des Estampes da Biblioteca Nacional de
A DISSOLUÇÃO DE UM IMPORTANTE Paris, Jean Vallery-Radot (1890-1971), consciente
ARQUIVO da importância da colecção e da dimensão da tarefa
a empreender, reuniu todos os esforços para enten-
A existência e o cumprimento do referido pro-
der o contexto em que havia sido produzida e para
cesso de avaliação aos projectos dos edifícios da
transmitir aos leitores o que apurou.
CJ, que previa o arquivo de uma das cópias em
Segundo o conservador, em 1773, ano da su-
Roma, garantiria, na teoria, o acesso aos projectos
pressão da Companhia de Jesus, a documenta-
originais dos edifícios da assistência portuguesa
ção relativa aos projectos dos seus edifícios foi
entretanto perdidos no processo político que
vendida em leilão. Terá sido o coleccionador de
afectou os jesuítas lusos. A expulsão dos jesuítas
arte Jaques Laurel Le Tonelier, oficial de Breteuil
de Portugal e dos seus domínios ultramarinos, e
e embaixador da Ordem de Malta na Santa Sé,
o processo de sequestro de bens que a sucederam,
que terá adquirido a colecção que pertencia à CJ
levaram ao desaparecimento de grande parte do
e que hoje se encontra à guarda da BNF. Em 1777,
seu acervo documental. No entanto, o ataque aos
o diplomata deixa Roma para desempenhar em
Paris as funções de embaixador extraordinário da
4
Tradução do latim para francês feita pelo autor ao texto assinado
por João Paulo Oliva, à guarda do ARSI (ARSI, Rom. 207, f. 173).
Ordem de Malta. Morre em 1785 e o seu espólio
Para não comprometer o conteúdo optamos por não fazer tradução é desmembrado nos leilões de Janeiro de 1786.
do francês para português.
A colecção referente à CJ é referenciada com o A obra refere também a existência de dois im-
nº95 no lote denominado “Dessins d’Architecture”. portantes espólios: a colecção de desenhos então
O conjunto é vendido a um comprador não identi- guardada na biblioteca municipal de Quimper
ficado (referido somente como commandeur) e só (França) — organizada pelo padre jesuíta Char-
em 1788 dá entrada no Cabinet des Estampes sob les Turmel e particularmente importante para
a supervisão do arquitecto Bellanger. No catálogo o entendimento dos edifícios jesuítas franceses
de entradas da BNF, a colecção é acompanhada da — e a colecção de projectos — que reúne peças
seguinte nota: “Acheté au Collége romain par M. le desenhadas e memórias descritivas — à guarda
Bailly de Breteuil em 1773. Remis au Cabinet des dos Arquivos Romanos da CJ, organizada pelo
Estampes par M. Bellanger Ier Architecte de M.le padre jesuíta Edmond Lamalle.
Cte d’Artois le mardi 18 mars (1788?)”. O conjunto Lamalle, arquivista da CJ e autor do segundo
de desenhos dobrados e separados em cinco vo- apêndice, apresenta uma reflexão comparativa
lumes, era à época identificado como “Piante di entre dois arquivos – a BNF e os Arquivos Ro-
diverse fabbriche”, englobando maioritariamente manos da Companhia de Jesus. Antes de elencar
plantas de edifícios e, em menor número, cortes, e descrever os projectos, o autor faz uma impor-
alçados e perspectivas. tante introdução em que tece críticas (ainda que
justificadas) às opções arquivísticas que poderão parte com a parede da Ermida de Santo Antão
ter levado ao desmembramento dos processos. na dita vila”.6
Curiosamente, apesar de admitir que os projectos Em 1575 Aires de Sousa, membro da CJ e na-
de Paris sem as memórias descritivas são peças tural de Santarém doa umas casas para que aí se
documentais incompletas, quando se refere aos instalasse um colégio.7 Na época, os inacianos
projectos que se encontram à guarda da CJ, alude contavam com o apoio de D. Jorge de Almeida,
à existência de memórias descritivas, mas acaba arcebispo de Lisboa, mas a sua morte em 1585, fez
por descrever no apêndice apenas os desenhos. com que a fixação em Santarém fosse adiada. De
Tomando como ponto de partida esta obra, acordo com Francisco Rodrigues (1938, 29), uma
procurámos localizar os projectos já identificados missiva do padre Pedro da Fonseca revela que dois
como pertencentes à assistência portuguesa. Na anos depois seriam os governantes escalabitanos
BNF, são referenciados os projectos relativos a a negociar a autorização do rei empreendendo,
Coimbra, Évora, Rio de Janeiro e Goa. No ARSI, porém, esforços infrutíferos.
são assinalados os projectos relativos aos edifícios Em 1607, ano em que ingressa na CJ (Rodrigues,
da CJ localizados em Santarém, Elvas, Baía e S. 1984, 5), o padre Duarte da Costa faz nova doação
Paulo. ao instituto religioso, com vista à criação de um
Sendo a presente investigação, uma parte fun- colégio na vila de Santarém, do qual se viria a tor-
damental de um projecto doutoral mais vasto em nar fundador.8 O documento de doação viria a ser
que se pretende atestar a especificidade da arqui- assinado em Abril de 16099. Encetaram-se então
tectura dos colégios jesuítas na província lusitana5 novos esforços para a criação do estabelecimento
nos séculos XVII e XVIII, os projectos relativos na vila, sendo para isso necessária a autorização
aos colégios de Elvas e de Santarém revelam-se de de D. Filipe II de Portugal. Com autorização régia
maior importância para o nosso estudo. Apesar de concedida, os padres enviaram a Santarém em
ambos estarem à guarda do ARSI e de, segundo 1620 o padre Luís Lobo, mas surgiram entraves por
Lamalle, os projectos conservados no arquivo parte do clero. O arcebispo de Lisboa, D. Miguel
romano estarem completos, não localizámos a de Castro, resistiu até à data da sua morte (1625), à
memória descritiva relativa à planta do colégio presença dos jesuítas na vila. Certo é que, apoiados
de S. Tiago de Elvas (Fig.1). No entanto, no que pelo rei e pelo papa, se fixam junto a Santo Antão
se refere ao colégio de Nossa Senhora da Con- em 1621, figurando nos catálogos da CJ nesse ano
ceição de Santarém, encontrámos novos dados 5 padres e 3 irmãos leigos,10 assumindo no entanto
que, conjugados com documentos provenientes uma posição discreta devido aos problemas con-
de outros fundos e arquivos, ilustram a comple- tinuamente levantados pelo arcebispo.
xidade em torno da execução do projecto de um
edifício inaciano. 6
ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 5, doc.1.
7
ARSI, Lus. 67, f. 108. Citada em Rodrigues, Francisco. 1938. His-
O PROCESSO DE APROVAÇÃO DA tória da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Tomo 2,
TRAÇA DO COLÉGIO DE SANTARÉM Vol.1. Porto: Apostolado da Imprensa, p.29.
8
“Rol da fazenda e renda do Padre Duarte da Costa que se aplica
A ligação dos jesuítas a Santarém data dos pri- ao Collegio que quer se faça na Villa de Santarem, conforme a en-
mórdios da presença da CJ em Portugal. Ainda formação dos que a admenistrão em Dezembro de 607”. ARSI, Lus.
no reinado de D. João III é assinado o documento 85, f. 383 a 384v.
de doação “de um chão na villa de Santarém, que 9
ANTT, Cartório dos Jesuítas, maço 5.
5
Área correspondente ao actual território português. 10
ARSI, Lus. 39, f. 127.
Ao que parece esta localização não agradou dito Senhor na forma siguinte assaber [:] farão
aos inacianos, que identificaram como lugar ideal os ditos padrez nas suas obras duas partes. e hua
para o novo colégio o terreno onde se situavam parte nos ditos paços de Sua Magestade fazendo
as ruinas dos antigos paços reais de Santarém. De duzemtas braças nas suas obras fasam cem braças
acordo com Francisco Rodrigues (1944, 10) os nos ditos paços do dito Senhor e a esse respeito
padres dirigiram uma petição a D. Filipe III soli- yrão correndo sempre as obras dos paços com
citando que “fizesse mercê ao colégio de Santarém as obras dos ditos padrez; e os ditos paços terão
(...) das ruínas do Palácio, que os reis de Portugal as mesmas perrogativas que tem os paços Reais,
tinham naquela vila à Porta de Leiria, e que não com declaração que não temdo o dito Senhor
serviam para nada por não haver nêle habitação ocupados os ditos paços poderão os ditos padrez
nenhuma”11. Comprometiam-se a oferecer, em uzar delles para os abitarem.” 13
troca dessa mercê, três mil cruzados para os gastos. Os padres da CJ viram-se perante um novo
Mais uma vez se levantaram entraves, desta desafio: conjugar o já complexo programa colegial
vez por parte da nobreza. Quinze anos depois com o programa do paço régio, garantindo que
da petição dos jesuítas, D. Francisco de Castelo ambos satisfizessem as necessidades dos seus
Branco, conde de Sabugal, meirinho-mor do reino utilizadores e harmonizando as duas tipologias
e alcaide-mor de Santarém, ainda se mobilizava num só edifício, de forma a garantir a autonomia
acerrimamente contra a possibilidade desta mercê, e privacidade de ambos. O rei, ao fazer a doação
alegando que os paços lhe eram devidos pelo seu refere a existência de um projecto previamente
cargo de alcaide e que já eram pertença dos seus riscado por Mateus do Couto (tio), mas até ao
antepassados, que há duzentos anos desempenha- momento não foi possível localizá-lo.
vam a mesma função12. Discutiu-se longamente Retomando a linha condutora da presente co-
esta querela, decidindo-se que os ditos paços eram municação, se o processo para obter o local ideal
propriedade do rei e não do alcaide, mas só após para a implantação do colégio de Santarém foi
a restauração da independência se efectivou a complicado, a escolha da forma definitiva do
sua doação à CJ. edifício também não se revelou simples, exigindo
A 14 de Julho de 1647, é finalmente assinada muitas alterações ao projecto e trocas de corres-
por D. João IV, a doação dos paços de Santarém pondência entre o reitor e a casa generalícia.
à CJ. Esta mercê não terá porém, correspondido O ARSI conserva nos seus arquivos uma planta
em pleno aos pedidos da CJ, uma vez que o rei sem data intitulada “Planta velha”14, relativa ao
exigia como contrapartida, que o projecto previsse colégio de Santarém15. Apesar deste desenho (Fig.2)
no complexo a construção de um novo paço: “... representar por si só um documento fundamental
que os ditos relegiozos possão fazer no dito çitio para o entendimento da história do colégio da
cazas em que vivão e Igreja e o mais que lhes pa- então vila, procurámos esclarecer se a afirmação
reçer e esta doação lhe fazem com as comdiçois de Edmond Lamalle (que declarava que no ARSI as
seguintes assaber [:] que os ditos relegiozos serão memórias descritivas acompanhavam os desenhos)
obrigados a fazer no dito citio para o dito Senhor se verificava neste caso. E efectivamente existe um
e seus subcessores huns Paços comforme a traça 13
ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 72, nº10.
que fez Matheus do Couto seu mestre das obraz
(...). [Os padres] vão a fazer a obra dos paços do
14
ARSI, FG 1588, 18, 01.
11
ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 68.
15
Esta planta foi apresentada informalmente pela primeira vez por
Pedro Canavarro no colóquio “Comemorações dos 300 anos da edi-
12
ARSI, Lus. 85, f. 399 a 400v. ficação da Sé de Santarém”, em 12.11.2011.
Fig. 2 (à esquerda) - “Planta velha”, [s.d.]. ARSI, F.G. 1588, nº 18, 01. Fig. 3 (à direita) - “Advertencias sobre a nova planta do Collegio
de Santarem”, [s.d.]. ARSI, F.G. 1588, n.º 18, 03.
manuscrito correspondente a este desenho, que o sim de colocar Roma ao corrente da situação e
clarifica e nos fornece informações cruciais para o da evolução do projecto de intenções. Note-se
entendimento da evolução do projecto deste colégio. que o redactor faz alusão à existência de um
O manuscrito intitula-se “Advertencias sobre projecto anterior à “planta velha”, mas não refere
a nova planta do Collegio de Santarem” (Fig.3). que esse tenha sido avaliado fora de Portugal;17
Ao longo de 4 folios, o redactor refere-se a uma E que apesar do título se referir directamente
planta nova (que não está agregada ao actual pro- à nova planta do colégio de Santarém, em dois
cesso) e a uma planta velha. A planta velha serve terços do texto manifestam-se às desvantagens
unicamente para justificar as opções da planta da planta velha que nunca foi enviada. Expli-
nova, desenhada sem grande rigor e enviada à ca-se ainda que o dito desenho não havia sido
pressa para Roma, guardando-se o original em remetido para a casa generalícia “porque nella
Portugal.16 Este envio algo precipitado de ma- se não acha nenhuma aprovação, nem he dever
terial leva-nos a especular que se trate, não de se aprovase la planta tão torta, e irregular e com
um pedido de aprovação de um projecto, mas tantos defeitos, e inconvenientes”.18
16
“... como se ve pello petipé da planta grande que ca fica, que não 17
“...já advirto que esta não foy a primeira planta que se fez para
levou o Padre Assistente por eu estar na missão [ms. ilegível] e só se este collegio.” ARSI, FG 1588, 18, 05.
tirou della à preza este rascunho em papel limitado para poder ir
pello correo, e voltar por elle”. ARSI, FG 1588, 18, 03. 18
ARSI, FG 1588, 18, 04.
Independentemente do objectivo ser a aprova- mónio edificado não era uma premissa da época.
ção final ou apenas fazer um ponto de situação do Esta ideia é reforçada por uma solução de ordem
projecto, certo é que se demonstra a observância prática e económica sugerida na planta nova: “Que
ao cânone 34 acima citado — de ratione aedificio- além de ser necessario he também conveniencia
rum — e ao modo nostro. desfazeremse as paredes dos passos velhos porque
No que se refere à composição formal global, ainda que custe tirasse pedra que logo fica na obra,
denota-se uma grande preocupação com a simetria e que hade custar dobrado se se cortar na pedreira
e com a ortogonalidade. A ausência destes dois e trouxer em carros a monte tão alto como o em
princípios na planta velha é um dos grandes defei- que esta situado o Collegio e fica muito longe da
tos apontados. Esta situação torna-se ainda mais pedreira. Alem de que pouquo mais se desfaz pello
problemática porque se reflete na fachada, ficando que se avia de desfazer segundo a planta velha, para
a “Igreja no canto do terreiro, podendo ficar no se fazer o frontespicio da Igreja, e outro semelhante
meyo”, correspondendo a um traçado em planta que se hauia de fazer no topo do corredor.”23
pouco ortogonal, resultando na “intolerável tortura Os defeitos particulares apontados à planta
com que fiqua a fachada principal do Collegio”19. velha são justificados por questões relacionadas
A planta nova procura soluções para estes problemas, com salubridade e o conforto, patentes inúmeras
ainda que com limitações provocadadas pelas pré- vezes nos documentos da CJ quando se aludia ao
-existências: “Que o corredor que vai de pardo está modo nostro. Relativamente à zona do dormitório,
ja meyo feito que não he possível meterse com elle refere-se “que não fica com mais que hum corre-
a perfeita esquadria a demais obra do collegio assi dor que corre de nascente a poente como todos
por que descompõem o terreyro que fica por fora, os cubículos ficão ao Norte que em Santarém he
como por que encurta muito o pouquo espaço que frigidíssimo e os cubicolos de desmarcada gran-
temos pera edificar.”20 A situação requer uma atenção deza. E os que ficão ao Sul todos são de 2ª luz e
especial, resolvida de modo a que a ortogonalidade deuaços e escuros por culpa da varanda de 24
esteja garantida nas divisões interiores: “Que posto palmos de largo que corre iunto deles. E posto
que todo o sitio he esconco, que nenhua caza o fica que este corredor também fiqua na planta nova;
porque tudo se remedea nas escadas com hum arco ficão cortados alguns cubículos dos cegos que
sem que nenhuma dellas fique esconça.”21 não prestão para nada; e ficão acrecentados 13
A pré-existência das ruínas do antigo paço excellentes ao Sul e a Nascente.”24 Na zona escolar
apresenta-se como uma condicionante ao traçado também se demonstram preocupações da mesma
ortogonal, constituindo um dos principais defei- índole: “Que os estudos ficão sem pateo nenhu e
tos da planta velha: “nem he dever se aprovase la sem ar. Metidos em humas logeas ou masmorras
planta tão torta, e irregular e com tantos defeitos, correndo por cima dellas cubicolos e corredor sem
e inconvenientes; só por não derrubarem três ou varanda nem cousa que o valha”.25
4 cazas dos passos antíguos tortas e desiguaes, e Parece-nos que quem traçou a planta velha não
que hoje para nada possem servir.”22 Esta afirmação possuía o mínimo conhecimento da ratione aedifi-
demonstra que a noção de conservação do patri- ciorum ou do modo nostro jesuíta, uma vez que são
desrespeitados princípios básicos. E isto é claramente
19
ARSI, FG 1588, 18, 03. atestado no manuscrito, onde se refere que “o archi-
20
Idem. 23
Idem.
21
Idem. 24
ARSI, FG 1588, 18, 04.
22
Idem. 25
Idem.
tecto da planta velha (...) foy hum irmão leigo de S. dida à luz do vocabulário da época, se refere a um
Francisco”26 e não um jesuíta, ou Mateus do Couto conjunto de divisões que formam o aposento real.
como havia sido exigido por D. João IV. Este facto, Ainda assim, podemos entender pela descrição que
aliado à inexistência de qualquer referência à presen- o redactor faz desse aposento – “asas limitado, para
ça de um paço no traçado do colégio, seja na planta grandeza de Rey” – que não seria muito grande,
velha ou na nova, leva-nos a especular que estes dois ficando integrado na tipologia colegial. Apesar de
projectos seriam ante-projectos à doação oficial. não termos acesso à planta podemos aferir que o
O que não é uma hipótese e que podemos ates- quarto real se localizava na confluência de dois
tar com documentos é que se fez novo projecto, corredores – “que correm hum de Norte a Sul,
enviado a Roma, em que se previa a articulação em correspondencia ao quarto del Rey; e o outro
do programa colegial com o programa imposto de Poente a Oriente indo topar no mesmo quarto
pelo monarca. Em 1648, o padre reitor João Cabral real”31. A relação entre os diferentes espaços que
envia nova planta a Roma, acompanhada por formariam a residência real é vagamente descrita
uma carta que dá conta da evolução do projecto e pelo padre João Cabral: “estes quartos são casas que
também das obras, entretanto iniciadas. No verso fiquão huas sobre as outras. e sobre as da Rainha
da carta27 lê-se: «manda a Vosso padre a planta do casas para a Camareira mor, e suas companheiras”.32
edificio aprovada pelo Architecto real & outra [ms. Relativamente ao projecto da zona destinada aos
ilegível] com informacam ao Padre Assistente”. jesuítas, são descritas alterações33 feitas pelo arqui-
A planta não se encontra arquivada conjuntamente tecto régio a versões anteriores, que vão certamente
com o manuscrito, mas este fornece-nos dados ao encontro dos pedidos dos inacianos. Emenda-se
fundamentais para o entendimento da maturação a sacristia de forma a torná-la mais luminosa – “fa-
do projecto e da evolução construtiva do edifício. zendo que suba asima a tomar lux no alto; e não fique
O projecto enviado havia sido desenhado pelo debaixo do dormitorio; aonde fiquava acanhada; e
arquitecto régio (que nessa data poderia ser de falta de lux” –, normaliza-se a largura dos corredores
facto Mateus do Couto), que alterou três vezes a “fazendosse todos da mesma largura, que he de 20
traça antes da última versão enviada — “A traça do palmos”, à excepção de um de menor largura que está
collegio para nos ahi vai a nosso Reverendo Padre já construído entre duas paredes mestras, e altera-se
foi yaminada28; dipois de ser fecta polo architecto a localização de uma capela. Equaciona-se a altura
de Rey com muito vagar: e tres ueses emendada”.29 do edifício — “dava a esse dous andares, que ficavão
O programa do edício atendia às duas funções exi- na altura, pouco mais, ou menos dos de Santo Antão,
gidas no documento de doação: “Sua Magestade nos mas velyousse34, que ficava o andar de sima, muy
fez mercê dos seos Passos, pera nelles edeficarmos, ventoso e menos accomodado” – e apresentam-se
com condição de lhe reedeficaremos hum quarto várias opções para a localização das enfermarias,
para ele; asas limitado, para grandeza de Rey; mas alertando que em relação ao que ainda se projecta
fallo pela vontade, que tem de ali se agazalhar com “pode aver facilmente mudança” se o padre geral
nosco”.30 Note-se que a designação de quarto, enten- assim o entender.
26
ARSI, FG 1588, 18, 04.
27
ARSI, Lus. 85, 401-403. 31
ARSI, Lus. 85, 402v.
28
Leia-se examinada. 32
ARSI, Lus. 85, 402v.
29
ARSI, Lus. 85, 402. 33
Idem.
30
Idem. 34
Leia-se avaliou-se.
FONTES
Rodrigues, Francisco. 1938. História da Compa- Vallery-Radot, Jean. 1960. Le recueil de plans
nhia de Jesus na Assistência de Portugal. Tomo 2, d’edifices de la Compagnie de Jésus conservé a la
Vol.1. Porto: Apostolado da Imprensa. Bibliothéque Nationale de Paris. Roma: Bibliotheca
Rodrigues, Francisco. 1944. História da Compa- Instituti Historici S.I, nº XV.
nhia de Jesus na Assistência de Portugal. Tomo 3,
Vol.1. Porto: Apostolado da Imprensa.
RESUMO
No período da Guerra da Restauração (1640-1668), bem como posteriormente, revelou-se a impor-
tância, em termos das construções militares, do conhecimento científico para a defesa e identidade dos
territórios. Irei aprofundar as políticas de D. Pedro II (1648-1706) face a estas questões, analisando
especialmente o Regimento para as Fortificações de Évora, de 1682, enquadrando-o na política em-
preendida pelo monarca com vista à melhoria da formação científica dos engenheiros militares, cuja
atividade se fez notar em Portugal, no Brasil e em Angola.
Esta temática é relevante para a história da arquitectura militar e visa levantar questões, criando pers-
pectivas abertas a novos debates, estando inserida nos interesses actuais a nível histórico, patrimonial
e paisagístico, surgindo a disseminação do conhecimento e o interesse do que se designa por “culturas
partilhadas”.
INTRODUÇÃO
Com a Guerra da Restauração (1640-1668), fortificação, tratando de assuntos como a supe-
intensificou-se a preocupação dos monarcas face rintendência das obras, as funções do arcebispo1,
à protecção do Reino de Portugal, nomeadamente do tesoureiro2, do escrivão da receita e despesa da
as suas fronteiras. fortificação, as funções do vedor3, dos empreiteiros
D. Pedro II, que governou entre 1683 e 1706, e do engenheiro responsável pela mesma. Este
defendeu fortemente as questões da defesa mi- Regimento serve de base à análise da reconstrução
litar, impulsionando as obras de reestruturação de outras fortificações, das quais se irá tratar.
das fortificações danificadas após a dita Guerra.
Neste contexto, deu ênfase à reestruturação da 1
“O Arcebispo se chama Metropolitano como Bispo da Cidade Me-
fronteira alentejana, distinguindo-se a importância tropoli, ou principal, & cabeça da Provincia”. Rafael Bluteau (1727-
1728), vol. 1: 473.
do Regimento para as Fortificações de Évora, de
1682, que possui informações essenciais para o 2
“O ministro, que recebe, guarda, despende, & distribuie o dinheiro
do Principe”. Id., vol. 8: 156.
entendimento da organização das obras de uma
3
“Inspector, e director dos negócios, e fazenda, de obras. O que
tem inspecção, e faz prover do necessário”. António de Morais Silva
(1789): 513.
Durante o seu reinado também se tomaram Faltando os planos definitivos para o prosse-
medidas para impulsionar a formação dos enge- guimento das obras e impondo-se a alteração
nheiros militares, sobretudo no que diz respeito estrutural dos projetos de Langres, com o objetivo
ao ensino da Matemática e Engenharia militar. de neutralizar os conhecimentos militares do en-
Esta política de formação e defesa também se genheiro das vulnerabilidades da praça de Évora,
centrou em Angola e no Brasil, como se poderá e estando o estado da guerra a evidenciar-se com
verificar. a perda de Olivença e de Arronches, tentaram-se
novos projectos8.
REGIMENTO PARA A FORTIFICAÇÃO DA Entretanto, o futuro monarca, D. Pedro II in-
CIDADE DE ÉVORA, 1682 sistiu na conclusão das obras dos baluartes9 e na
conservação do que estava por acabar, sendo as
Ainda como príncipe, e apoiado pela sua mãe,
obras da fortificação custeadas por ele, contri-
a rainha regente D. Luísa de Gusmão, D. Pedro
buindo a cidade apenas com o imposto criado
havia manifestado o seu interesse pela protecção
voluntariamente. Logo a 21 de agosto do mesmo
do reino e territórios ultramarinos, bem como
ano, incumbiu D. Domingos de Gusmão, arce-
na paz com Espanha e legitimação da casa de
bispo da diocese de Évora, e D. Diniz de Melo e
Bragança face aos outros reinos europeus4.
Castro, Conde das Galveias e Mestre de Campo
Neste contexto, deu ênfase à reestruturação e
General, como superintendentes dos trabalhos
protecção da fronteira alentejana, destacando-se
recomeçados.
primordialmente a sua preocupação pela con-
Em 26 de outubro de 1680, nomeou-se por
clusão das obras iniciadas na cidade de Évora5.
carta patente como técnico de engenharia militar
De facto, a adaptação desta cidade ao sistema
e assistente permanente da fortificação de Évora
abaluartado6 iniciou-se sob a influência de Nico-
Dom Diogo Pardo Osório, discípulo de Luís Serrão
lau de Langres7, ainda no período da Guerra da
Pimentel10, com o posto de sargento-mor.
Restauração. Contudo, esta foi muito conturbada
Mostrando as suas referidas intenções, em 1682,
e o próprio engenheiro militar passou a servir o
D. Pedro II mandou que se redigisse um Regimento
inimigo em abril de 1660, tornando-se patente
de general de artilharia em Espanha.
8
Cf. “Os Projetos para a defesa de Évora no período moderno”, Id.:
63-91.
4
Maria Paula Marçal Lourenço (2007): 215. 9
Obra avançada à linha fortificada, geralmente composta por duas
5
Ana Teresa de Sousa (2015): 80. faces ou flancos. Com o desenvolvimento da artilharia, os baluartes
foram sendo reforçados lateralmente e abaixados, tomando uma
6
Sistema em que uma fortificação é guarnecida com baluartes, forma poligonal. Id.: 172.
elementos de desenho normalmente pentagonal, cuja finalidade é
possibilitar o ataque do inimigo com disparos de flanco ou laterais,
10
Foi Tenente-General de Artilharia, Cosmógrafo-mor e Engenhei-
de modo a proteger as cortinas. Id.: 171. ro-mor do Reino. Efectuou trabalhos notáveis na área da arqui-
tectura militar, sobretudo no que se refere à fortificação. Em 1641,
7
Engenheiro militar francês, que serviu no Exército Português, na Pimentel leccionou Ciência Militar, Matemática e Cosmografia,
função de engenheiro ordinário, encarregue de desenhar, erguer e na Aula Militar. Graças ao seu desempenho, instituiu-se a Aula de
reparar as fortificações da fronteira alentejana, através de um con- Matemática e Fortificação da Ribeira das Naus. Pimentel foi ainda
trato de três anos, que aceitou em 1644. Recebeu do rei D. João IV, autor da obra Methodo Lusitânico de Desenhar as fortificações das
a patente de Coronel Superintendente dos Engenheiros. Contudo, Praças Regulares e Irregulares fortes de campanha, e outras obras
Langres passou para o serviço de Espanha, sob o comando de D. pertencentes à Arquitectura Militar, publicada em 1680. Este foi o
João da Áustria, vindo a comandar a artilharia inimiga, aquando primeiro Tratado a apresentar um método português para o siste-
do ataque de 1662 à Fortaleza de Juromenha, por ele projetada e ma de fortificar, bem como foi o primeiro a tratar em português
construída. Id.: 42-43. tais matérias.
para as Fortificações de Évora11, para a urgente que o tesoureiro tomasse conhecimento do que
defesa da dita cidade. Indicou que como príncipe se despendia nas obras; e informar D. Pedro II do
regente e governador de Portugal e dos Algarves, que seria necessário fazer de seguida, através da
convinha ao seu serviço e à própria defesa dos Junta dos Três Estados15.
moradores da cidade de Évora, a conclusão da sua
fortificação. Para este efeito, dever-se-ia contribuir Vedoria das obras
para a despesa através da aplicação do real de
D. Pedro II também indica a necessidade de um
água das fortificações do Reino, dos excessos de
vedor para tratar dos negócios da fortificação. Este
papel, pólvora, munições e sal que se assentaria
deveria ser uma “pessoa de autoridade, respeito e
no pagamento usual dos presídios12.
inteligência”16. O seu provimento era de três anos,
Este Alvará transmite-nos informações es-
como era usual em ofícios afins. Acabado o tempo,
senciais face à organização das obras de uma
o arcebispo deveria informar D. Pedro II sobre o
fortificação, tratando de assuntos relacionados
procedimento do vedor, através da Junta dos Três
com a superintendência das obras, as funções do
Estados. Caso ele não tivesse procedido bem, além
arcebispo, do tesoureiro, do escrivão da receita e
de correr o risco de não ser eleito novamente, não
da despesa, as funções do verdor, dos empreiteiros
teria salário17. Ele poderia continuar no cargo ou
e do engenheiro responsável pela mesma13. Como
poder-se-ia optar pela eleição de outra pessoa.
se poderá observar nas análises seguintes, este
Pertenciam-lhe funções importantes, tais como:
Regimento serve de base à reconstrução de outras
o expediente do negócio da fortificação e sua
fortificações, pela capacidade de informação e
despesa; passar as ordens necessárias para que
detalhe que nos é transmitido.
nas praças públicas da cidade se apregoassem
as obras de empreitada; assinalar o tempo da
Superintendência das obras
arrematação e assistir à mesma; ser vigilante e
A superintendência das obras deveria estar cuidadoso a inspecionar as obras que se faziam
sempre a cargo do arcebispo da cidade, (no caso e ver se estas corriam como estava expresso nos
de Évora, D. Domingos de Gusmão), tendo sobre contratos e plantas. Também competia às suas
elas a mesma jurisdição que tinha o Governador funções, mandar comprar os materiais necessários
das Armas nas fortificações. Estariam às ordens às obras; aprovar os preços fixados pelos mesmos
do arcebispo todos os oficiais da câmara e justiça, e dar os despachos para os pagamentos; averiguar
fazendo cumprir as suas ordens14. se o apontador procedia devidamente, inspecio-
O arcebispo tinha quatro funções principais: nando o Livro do Ponto sempre que lhe parecesse
conferir se as obras eram realizadas no tempo necessário; averiguar ainda se o tesoureiro e o
devido, cautelosamente e devidamente ajustadas escrivão cumpriam as suas obrigações, dando
com a planta do engenheiro; realizar despachos sempre conta ao arcebispo para que havendo que
dando aos engenheiros dinheiro pelas obras na emendar irregularidades, se mandasse castigar
forma dos contratos; elaborar mandados para quem não cumprisse18.
11
Ana Teresa de Sousa (2013): xli-xlvii. 15
Id: 239-239v.
12
Regimento para a Fortificação da cidade de Évora (1682): 239. 16
Id: 239v.
13
Ana Teresa de Sousa (2015): 80-87. 17
Ib.
14
Regimento para a Fortificação da cidade de Évora (1682): 239. 18
Ib.
Existência de outros oficiais materiais, exceto a cal, que se dava por conta da
Fazenda Real, para que não houvesse o risco de
Era obrigatória a existência de um tesoureiro,
se gastar desnecessariamente. Estas arrematações
“pessoa rica e abonada”19. Este era eleito pelos
faziam-se na presença do arcebispo, do vedor
oficiais da Câmara para servir três anos. No fim
e do engenheiro responsável pela fortificação,
desse período, tinha de dar conta na Contadoria
procedendo-se à explicação da planta: alturas,
Geral de Guerra, e lembrar o vedor de quais os
grossuras e escarpes24.
provimentos necessários, num tempo devido, para
O empreiteiro devia assentar a pedraria dos
que não houvesse falta de nada durante as obras.
ângulos da fortificação. Davam-se-lhe os alicer-
A Câmara deveria também nomear um escrivão
ces abertos, cujas alturas o vedor fazia tomar
da receita e despesa dos negócios da fortificação,
pelo engenheiro e escrivão, antes de se começar
sendo um “sujeito de autoridade, e capaz”20. Mas
a parede, pela incerteza que se teria do vão dos
para os trabalhos extraordinários era necessário
alicerces para com a pedra ou o cascalho em que
um apontador, nomeado pelo arcebispo. Este de-
assentava a obra. Deste modo, o escrivão assentava
veria ser cuidadoso, inteligente e bem procedido
no Livro da Ementa, no título do empreiteiro, os
“por ser este ofício de muita confiança”21.
vãos que tocassem na pedra ou cascalho, a fim
de se conferir ao tempo da medição da obra.
Os Livros essenciais às obras
Além disso, declarava-se na arrematação que os
Durante as obras de uma fortificação, deve haver empreiteiros seriam obrigados a deixar a obra
sempre a existência de cinco livros, “do tamanho, segura, sendo medida devidamente.
que parecerem necessários”22, essenciais à fortifi- A planta deverá estar em poder do vedor, tendo
cação: um para a receita e despesa do tesoureiro; os empreiteiros uma cópia da mesma para pode-
outro para a ementa com os empreiteiros e outras rem seguir com as obras.
pessoas que fizessem obras na fortificação; o que O arcebispo superintendente deveria visitar as
incluía os contratos do registo de fianças; o do obras sempre que pudesse. Enquanto isso, o vedor
registo dos mandados e ordens; e um para o ponto faria as suas visitas com muita cautela, inspecio-
dos oficiais que trabalhassem de empreitada. Estes nando tudo o que achasse necessário. Já o enge-
livros, cada um com o seu respetivo título, eram nheiro responsável, deveria assistir todos os dias
numerados e assinados23 pelo vedor. Infelizmente, às obras. Se estes dois últimos considerassem que
não se conhecem exemplares destes livros. os empreiteiros não estavam a cumprir o contrato
e a própria planta, davam conta ao arcebispo para
Sobre as obras numa fortificação que as obras já efectuadas se fizessem emendar à
custa dos próprios empreiteiros25.
As obras deveriam efectuar-se por arremata- Quando se acabasse algum baluarte ou cortina26
ção de preços certos por braças, o que significa da fortificação, o engenheiro deveria efetuar a sua
que os mestres punham por sua conta todos os
24
“Os materiaes que se comprarem para as ditas obras hande ser
19
Id.: 240. por ordem do arcebispo, e intervenção do vedor fazendosse relações
20
Ib. deles com toda a destinção e clareza das qualidades, quantidades e
pezo”. Id.: 243v.
21
Ib. 25
Id.: 242.
22
Id.: 240v. 26
Consiste num troço do reparo situado entre os flancos de dois
23
“Com seos ensemamentos no fim das folhas, que cada hum ti- baluartes. Luís Serrão Pimentel (1680): 44; Rafael Bluteau (1727-
ver”. Ib. 1728),vol. 5: 579.
Sempre que ocorresse algo que não estivesse pre- as fortificações de Arronches, Barbacena, Campo
visto no Regimento, o arcebispo superintendente da Maior, Castelo de Vide, Elvas, Juromenha, Marvão,
obra deveria dar conta a D. Pedro II, pela Junta dos Monsaraz, Moura, Mourão, Ouguela, Serpa, Avis,
Três Estados, para se elaborar uma solução. Vila Viçosa e Estremoz. Também a barra de Lis-
Seguindo estes princípios, e adaptando outros boa, a costa algarvia e as Ilhas mereceram grande
consoante a pertinência das fortificações em causa, preocupação por parte de D. Pedro II. Note-se
D. Pedro II impulsionou várias Regulamentações e que, relativamente ao Faial, o monarca defendia
Alvarás relacionadas com as fortificações e defesa que as obras se deveriam findar com a ajuda dos
do território português e das terras ultramarinas. moradores, assistindo o seu capitão-mor, devendo
O seu Regimento para a Praça de Mazagão, de ainda os oficiais receber o seu salário38.
169237, é extremamente complexo, abrangendo Em 1679, D. Pedro II reconheceu os serviços
todas as necessidades da praça (respeitantes ao do arquitecto e engenheiro real, Mateus do Couto
governo, às pessoas de guerra, às questões da fa- (sobrinho)39, ao nível das fortificações, ressaltando
zenda e da justiça, ao almoxarifado, às provisões e o seu notável trabalho “nos fortes da costa, praça
mantimentos). Extremamente bem ordenado, nele de Cascaes, Setuval, Santarem, Abrantes, Pinhel,
refere-se a importância da atuação do capitão de Brelenga, fortes da barra e fortificação de Lisboa,
artilharia, juntamente com os seus artilheiros para praças da província do Alentejo e outras do reino”40.
a eficaz defesa da praça. Contudo, em termos de A fortaleza de Monção, na província do Minho,
detalhe relacionado com as obras numa fortificação, também foi alvo de grandes reparações por ordens
revela-se muito vago, sendo o Regimento para a deste monarca. O engenheiro da província do
fortificação de Évora bem mais preciso e exemplar. Minho e Mestre na Academia de Fortificação de
Valença do Minho, Manuel Pinto de Villa Lobos
A DEFESA DO TERRITÓRIO: A QUESTÃO (1680-1730) terá sido um dos engenheiros mili-
DAS FORTIFICAÇÕES tares que mais contribuiu na mesma. Contudo,
destaque-se que aquando da Guerra da Sucessão
A partir do referido, pode entender-se como se
de Espanha, esta fortaleza ainda não tinha as suas
organizavam as obras em outras fortificações no
obras de reparação concluídas41.
período em questão. Estas preocupações já advi-
Como mestre que era na dita Academia, o en-
nham desde o tempo de D. João IV, após a Guerra
genheiro militar Manuel Pinto de Villa Lobos,
da Restauração. A rainha regente, Dona Luísa de
efectuou inúmeros estudos das fortificações do
Gusmão e D. Pedro II defenderam fervorosamente
Minho, com o intuito de se proceder à sua recu-
a defesa, recuperação e legitimidade de todo o
peração por ordens do monarca, mas também
seu território. Nomeadamente, no Alentejo con-
para ensinar os seus discípulos. Neste âmbito, em
tinuaram as obras de reparação das fortificações
1713, temos os casos da fortificação de Viana do
que haviam sido grandemente danificadas, tal
Castelo, Caminha, Vila Nova de Cerveira, Castelo
como Évora. Neste contexto, destacam-se ainda
de Lindoso, a praça de Valença, a fortaleza de
porem por sua conta nas obras conforme se ajustarem os contratos
hade ser por ordens do Vedor, conhecimento de recibo dos emprei-
38
Novembro de 1687. Alvará sobre a autorização e providências
teiros e certidão da carga de seo valor na Ementa pera o disconto acerca de obras de fortificação na Ilha do Fayal. Id.: 474-475.
(…).Dando se ferramentas e caminhos pera o trabalho das obras do 39
Antónia Fialho Conde, Maria Virgínia Henriques, Nuno Graci-
Vedor que as entregara ao apontador debaxo de seos recibos (…) o nhas Guiomar (2011): 5.
apontador as dará aos mestres das obras tomando recibos (…) pera
elles os repartirem das suas maos pellos officios (…)”. Id.: 244v-245. 40
Sousa Viterbo (1904), vol. I: 258.
37
José Justino de Andrade e Silva (1859): 277-290. 41
Ayres de Carvalho (1977): 120-121.
Ínsua, a fortaleza de Nossa Senhora da Conceição vários desenhos, e dando conta de se res-
de Castelo de Póvoa42. tringir o desenho da obra do ornavique de
Os seus estudos também se alargaram à pro- Sancta Madalena da praça de Chaves que
víncia de Trás-os-Montes, incindindo na praça o Mestre de Campo Miguel de Lescol ti-
de Chaves43. nha desenhado fora do tiro de mosquete”44.
Destacam-se ainda os serviços prestados por
Segundo Eugénio de Ávila Lins, a atuação deste
António Rodrigues Ribeiro, soldado ajudante
capitão engenheiro está registada em diversos do-
e capitão engenheiro, entre 21 de abril e 11 de
cumentos de denúncia enviados ao Conselho Ultra-
novembro de 1699. Segundo uma informação de
marino. Uma delas remete para o preço e qualidade
D. Pedro II, de 25 de fevereiro de 1700, indica-se
das obras realizadas por empreiteiros, sem a presença
o seguinte dos seus préstimos:
deste capitão engenheiro. “Os documentos deixam
“se embarcar no anno de 682 na Armada transparecer que o Governador Geral não permitiu
que foi a Villa Franca de Xira, o de 687 en- que o referido engenheiro assistisse às obras”45. Já
trar em hum partido da Aula e no de 688 a segunda denúncia remete para “as arbitrarieda-
acompanhar a Luis Pimentel a provincia des cometidas pelos vereadores da Câmara, con-
do Alentejo na qual asestio aos desenhos juntamente com o medidor da cidade: davam aos
que foram necessários, e de 689 passar a moradores de sesmaria os lugares deputados para
Ilha da Madeira em companhia do Aju- os terraplenos da muralha, e para os fossos e obras
dante Enginheiro Manoel Gomes Ferreira, exteriores para os levarem e edificarem cazas com
com o qual asestio aos desenhos que se fi- prejuízos da fortificação e defença dessa Cidade”46.
zeram nas Villas daquela Ilha. E de 690 se Deve destacar-se que em todas estas localidades,
embarcar na armada da costa e recolhendo era a população que contribuía monetariamente
deçça passar de Soccorro a Mazagão onde para os seus reparos, pelo que, se não houvesse
asestio com Luis Pimentel aos dessenhos verba, as mesmas não avançariam. Relativamente
daquela praça the agosto de 691. No mesmo a Évora, destaca-se uma memória de José Romão
anno passar a Coimbra a hua diligencia de da Cruz, na qual se indica que “he tão grande o
que foi emcarregado, e de 692 passar com seu recinto, que seria necessario fazer-se despeza
o posto de Ajudante Enginheiro a provin- grande para regulamente se fortificar”47. Em 20 de
çia do Alentejo de donde veyo de soccorro junho de 1696, D. Pedro II deu a saber aos oficiais
ao Reyno do Algarve no de 693. E voltando da Câmara de Évora que
a mesma provinçia do asestir na praça deo
“por ser conveniente a meu serviço e à de-
licença as fortificações della dando também
fença desta cidade que as contribuições que
alguns avizos convenientes para se evitarem
se impuseram para a fortificação dela se
alguns descaminhos pertencentes as mesmas
administrem como convem e cobrem efec-
fortificações, e passando com o mesmo posto
tivamente para que cresça a obra de que
de Ajudante a provinçia de Trás os montes
tenho a presente mandado tratar com todo
se nella provido no posto de Capitão, ases-
tindo com grande zello e cuidado a todas as
44
TT, HOC, L.A, Mç. 52, n. 82.
fortificações da mesma Provinçia fazendo 45
Eugénio de Ávila Lins (2007): 156.
46
Id.: 157. AHU-CU, Cód. 246: 225.
42
Id.: 121-124. 47
Descrição de Portugal que tem por principal assunto falar de suas
43
Id.: 124. praças (s.d).
o cuidado: fui servido por provisão da data (1525?-1590). Este terá sido autor de um
desta ordenasão o provedor desta comarca Tratado de Arquitetura, essencialmente teórico,
que daqui em diante tenha cuidado de ar- com objectivos didáticos, pelo que terá sido
rendar a renda do sal dessa cidade apre- elaborado para dar apoio aos seus discípulos.
sada a dita fortificação com sua prezenca Contém importantes representações geométricas
com todas as solenidades necessarias na e desenhos de plantas de fortificações51 (Fig. 2).
forma de minhas ordens e que o arrenda- Indique-se que no período da União Ibéri-
mento do real voluntario imposto oferese ca, esta Aula foi transferida para Madrid, com o
fora separado do real de agoa da coroa”48. nome Academia das Matemáticas e Arquitetura.
Posteriormente voltou a deslocar-se para Lisboa,
Como já foi anteriormente referido, D. Pedro
sendo que o arquitecto italiano Filipe Terzi terá
II também teve grande interesse na defesa dos
reaberto a Aula do Paço da Ribeira.
territórios ultramarinos. No Brasil, o engenheiro
Com a inicial transferência da Aula para Ma-
militar, Gregório Gomes Henriques de Matos, foi
drid, em 1590, os jesuítas criaram a Aula da Esfera,
nomeado em 1694, para reparar as fortificações
no Colégio de Santo Antão, em Lisboa. Desta Aula
do Rio de Janeiro e para ensinar sobre fortificação.
saíram formados Francisco Frias de Mesquita e
Contudo, o seu trabalho não foi muito do agrado
Luís Serrão Pimentel. O primeiro, em 1603, foi
do governador do Brasil, pelo que em 1698, foi
escolhido como Arquiteto-mor para o Brasil. O
substituído pelo engenheiro militar José Velho de
segundo, em 1641, criou a Aula de Artilharia e
Azevedo, que há seis anos servia como sargen-
Esquadria, que em 1647 ficou conhecida por Aula
to-mor e mestre de Artilharia, no Maranhão49.
Régia, na Ribeira das Naus, onde se ensinava
sobre Fortificação e Arquitetura Militar. Esta Aula
AS AULAS DE FORTIFICAÇÃO:
destinava-se a formar engenheiros portugueses.
INCENTIVO À CONSTRUÇÃO E
Posteriormente, esta Aula passou a designar-se
REPARAÇÃO
por Academia Militar. Em Janeiro de 1689, D.
Inicialmente, o ensino apoiava-se na experiência Pedro II procurou consolidá-la através da insti-
dos mestres. Em Portugal, o cosmógrafo-mor tuição do Regimento dos Mestres Arquitectos dos
do Reino, Pedro Nunes (1502-1578), ensinou na Paços Reais, documento que passou a orientar o
Aula de Matemática, em 154750, e o arquitecto ensino da Arquitetura. Segundo o mesmo,
Miguel de Arruda (1500-1563) ensinou na Aula
“os Arquitectos Mestres serão obrigados a ter
de Arquitetura Militar, em 1550, sendo Mestre
muito cuidado de ensinar Arquitectura civil
de Obras e das Fortificações do Reino e da Índia.
aos Aprendizes, que lhe forem commettidos
Na Aula do Paço, em Lisboa, ensinava-se
para aprender, e farão que elles saibão, e vão
Geometria, Cosmografia e Arquitetura Militar.
todos os dias tomar lição; e quando faltem a
Em 1559, esta Aula passou a designar-se como
isso os que tem praça de aprender, darão conta
Escola Particular dos Moços Fidalgos da Ribeira,
ao Provedor, para que lhes não passe certidão
ensinando-se Arquitetura Militar através do
para haverem de cobrar os seus ordenados;
mestre-mor das fortificações, António Rodrigues
e também o informarão da sufficiencia de
48
Treslado da ordem da Junta dos Três Estados sobre a defesa da cada hum, para que o Provedor possa saber
cidade de Évora (1696): 190v-191. o seu prestimo; e assim os levarão a todos ás
49
Nireu Cavalcanti (2004): 294. 51
António Rodrigues (1575-1576) - http://purl.pt/27112/5/index.
50
João Filipe Queiró (1993): 8. html (consultado em 23 de março 2016).
medições, e avaliações, e mais funções, a que dos livros que são necessários para os disípullos
forem os ditos Mestres, para que aprendão dessa aulla se não acham nesta Corte, se manda
a forma dellas, e melhor saibão a pratica”52. vir do Norte, e nesta ocasião se remetem os que
comtão da Rellação que leva o Mestre, e se aviza
Além disso, “os Arquitectos serão obrigados a
ao Governador vollos manda entregar. Porem
ensinar aos que tem praça de aprender Arquitectura,
tem de entendido que estes livros sempre se hão
que serão quatro, como até agora; e levará cada hum
de conservar na aulla de maneyra que sirvão de
destes Aprendizes, à custa da minha Fazenda, vinte
huns disipullos para os outros”55.
mil reis cada anno, com obrigação de assistirem á
Já em 1701, foi instituída uma Aula de Fortifi-
lição da Arquitectura, que os ditos Arquitectos serão
cação no Recife. E em 1705, o monarca nomeara
obrigados a lhes ler na fórma que o Provedor lhes
dois novos mestres para a Aula do Rio de Janeiro, os
nomear; ao qual darão conta de como assistem os
sargentos António João e José Ribeiro. Decretando
Aprendizes, e da sufficiencia deles”53.
ainda que os capitães engenheiros-mores deveriam
D. Pedro II criou ainda o I Corpo de Engenhei-
ensinar quem quisesse seguir a profissão de enge-
ros Militares, que consistia num corpo permanente
nheiro militar. Esta questão, aliada ao crescente
de engenheiros ao serviço do Estado.
aumento do número de engenheiros militares nestas
Retomando ao caso do Brasil, foi através traba-
áreas geográficas revela nitidamente a necessidade
lho do engenheiro militar Gregório Gomes Henri-
de povoamento e defesa destes territórios, associada
ques de Matos54, que em 1694 se iniciou o ensino
à sua defesa e à do próprio Reino.
sobre fortificação e arquitetura militar no Rio de
A preocupação face à defesa e ensino da enge-
Janeiro. Sensivelmente desde o mesmo período,
nharia e arquitetura militares também englobava
já o engenheiro militar José Velho de Azevedo,
a Angola. Neste contexto, temos o registo de uma
ensinava sobre Artilharia no Maranhão e no Pará.
carta de D. Pedro II, datada de 15 de Janeiro de 1699,
Depois de 1699, terá começado a funcionar a
onde o monarca indicava que “por ser conveniente
Escola de Artilharia e Arquitetura Militar na Baía,
ao meu serviço, hei por bem que nesse Reino, em
com o intuito de diminuir a escassez de profissionais
que não há Engenheiro, haja Aula, em que elle possa
aptos para a manutenção das fortificações e outras
ensinar a Fortificação, havendo nella tres discípulos
construções civis. O conteúdo programático iria
de partido, os quaes serão pessoas que tenham a
de encontro ao que se leccionava em Lisboa, sendo
capacidade necessaria para poderem aprender – e
que incidia no estudo dos tratados de arquitetura
para se aceitarem terão ao menos dezoito anos de
militar, alargando-se ao campo da matemática,
idade, os quaes, sendo soldados, se lhes dará, além do
aritmética, geometria, fortificação, ataque e de-
soldo, meio tostão por dia, e não o sendo, vencerão
fesa das praças, desenho, artilharia, longimetria,
só o dito meio tostão; e todos os annos serão exami-
altimetria, e ao estudo dos materiais construtivos.
nados, para se ver se se adiantam nos estudos, e se
O já mencionado António Rodrigues Ribeiro,
tem genio para eles; porque, quando não aproveitem
foi primeiro lente na Aula de Fortificação na Baía,
pela incapacidade, serão logo excluídos, e quando
na qual se preocupava com a formação dos seus
seja pela pouca applicação, se lhes assiganará tempo,
discípulos: “me pareçeo dizer vos que como muitos
para se ver o que se melhoram; e não aproveitando
nelle, serão também despedidos – e quando haja
52
José Roberto Monteiro de Campos Coelho e Sousa (1783): 276.
pessoas que voluntariamente queiram aprender, sem
53
Id.: 277.
54
De nacionalidade portuguesa, terá sido enviado ao Reio de Janei- 55
Correspondência encaminhada ao Conselho Ultramarino: 18 de
ro com o intuito de reparar as suas fortificações. agosto de 1706. AHU-CU, Cód. 246: 255.
Fig. 2 – Terrapleno de um baluarte desenhado por António Rodrigues no Tratado de Arquitetura, 1575-1576.
partido, serão admitidas, e ensinadas, para que assim o monarca a interferir inclusivamente no Brasil e
possa nessa mesma Conquista haver Engenheiros, e Angola, por forma a defender os seus territórios,
se evitem as despesas, que se fazem com os que vão constantemente ameaçados.
deste Reino, e as faltas que fazem ao meu serviço, Desta forma, e para bom andamento das obras,
em quanto chegam os que se mandam depois dos D. Pedro II compreendeu a necessidade da for-
outros serem mortos”56. mação relacionada com a arquitectura militar,
tanto em Portugal como no Brasil e em Angola,
CONCLUSÃO por forma a que mestres e discípulos trabalhassem
em conjunto de uma forma mais eficaz.
O Regimento para a Fortificação de Évora, de
Devo ainda destacar que, esta preocupação
1682, impulsionou a continuação das obras de
pela formação relacionada com a construção e
defesa da cidade, mas também todas as outras do
arquitetura militar ultrapassou o reinado de D.
Reino, cujas preocupações comuns era restaurar
Pedro II. Já no reinado de D. João V, em 1732,
o que havia sido destruído durante a época da
decretou-se que além das Academias Militares
Guerra da Restauração (1640-1668), e sobretu-
já estabelecidas na Corte e na Praça de Viana do
do, a resposta eficaz face a uma possível nova
Minho, se estabelecessem mais duas na Praça de
ameaça da estabilidade. Esta preocupação, levou
Elvas e na Praça de Almeida, onde se ensinaria
56
Carta Régia de 15 de Janeiro de 1699. Providências para se ensi- sobre Fortificação, Topografia e Estratégia Tática57.
nar Fortificação em Angola. José Justino de Andrade e Silva (1859):
424. 57
Joaquim Inácio de Freitas (1819): pp. 327-329.
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Engenharia Militar. A Construção da Profissão
RESUMO
Os engenheiros civis - categoria surgida no século XIX a partir da engenharia militar colonial, ao
menos no Brasil – rapidamente transformaram-se nos profissionais de maior impacto e relevância do
período, disputando notoriedade com a classe dos médicos com quem inclusive atuaram intimamente
nos projetos de urbanização e sanitização das cidades brasileiras. Esta categoria, de origem militar e
formada dentro dos padrões da Politécnica francesa recorreu em grande parte à filosofia das luzes rea-
tualizada através do positivismo sociológico de Comte, pensamento impregnado de valores fundamen-
talmente humanos e que recusava toda precedência da teologia e da metafísica. O engenheiro do século
XIX é mais do que um mero construtor, a sua atuação dentro da sociedade brasileira deu-se dentro de
uma perspectiva de modernização e laicização da mesma procurando desfazer os vínculos estreitos que
o Estado brasileiro mantinha ainda com a Igreja Católica - vínculos que só foram rompidos quando
da Proclamação da República - e esta referida atuação deu-se dentro dos mais variados campos desde
a ciência da física dos materiais até a pedagogia e a elaboração de projetos pedagógicos dissociados do
ensino religioso que então vigorava, passando pela atuação no urbanismo, sanitarismo, ciências astro-
nômicas e matemáticas assim como implementando Estradas de Ferro e revolucionando as técnicas
construtivas com novos materiais e procedimentos, tal como as estruturas de ferro e o concreto com
cimento Portland. O nosso texto tentará demonstrar que ainda que não de forma explícita – pois não
existia um Programa propriamente dito ou o mesmo não chegou a ser publicado - é certo que as inter-
venções urbanisticas na cidade de Vitória na passagem do século XIX para o XX tiveram como eixo
diretor a laicização da cidade sagrada do período colonial através de operações as mais distintas como
a demolição de importantes templos do passado; o aterro de áreas conquistadas à baía com a respectiva
urbanização priorizando apenas espaços laicos e civis, etc...
1. INTRODUÇÃO
A engenharia civil no Brasil é oriunda da en- tares localizadas em cidades estratégicas como
genharia militar portuguesa, que, desde o final Salvador, Rio de Janeiro, Recife e São Luis do
do século XVII por determinação da Coroa se Maranhão. Quando em 1810 o regente funda a
instala diretamente na América em aulas mili- Academia Real Militar na cidade do Rio de Janeiro
está apenas dando continuidade aos trabalhos do ensino religioso que então vigorava, passando
da Real Academia de Artilharia, Fortificação e pela atuação no urbanismo, sanitarismo, ciên-
Desenho fundada na mesma cidade em 1792. E cias astronômicas e matemáticas assim como
mesmo quando do surgimento da Escola Central construindo Estradas de Ferro e revolucionando
em 1858, os vínculos com o ensino militar não as técnicas construtivas com novos materiais e
desapareceriam totalmente, pois embora à época procedimentos, tal como as estruturas de ferro e
as disciplinas de cunho militar tivessem sido reti- o concreto com cimento Portland.
radas do currículo e passado a integrar o currículo
da recém-fundada Escola Militar de Aplicação, a 2. A ENGENHARIA NA PROVÍNCIA DO
Escola Central continuava subordinada ao Minis- ESPÍRITO SANTO
tério do Exército. Apenas em 1874 com a criação
Os engenheiros tiveram uma presença muito
da Escola Politécnica a completa desvinculação da
tímida na Província do Espírito Santo na primeira
Engenharia civil com a militar acontece1.
metade do século XIX onde não mais do que meia
Neste processo de reformas sucessivas da enge-
dúzia de profissionais militares e estrangeiros atu-
nharia brasileira através do século XIX, observa-se
aram3. Na segunda metade, contudo, este quadro
o esmaecer da infuência da tradição construtiva
reverteu-se e à medida que o século finalizava
lusa e o fortalecimento da influência da tradição
esta atuação intensificou-se, acredita-se que so-
francesa. O currículo da Politécnica, por exemplo,
bretudo devido à proliferação de profissionais
é todo ele referenciado numa bibliografia majori-
que, desvinculados do caráter militar passaram
táriamente de origem francesa onde as principais
a serem formados na Corte a partir de 1858 pela
referências são os engenheiros J. N. L. Durand,
Escola Central e a partir de 1874 pela Politécnica.
Leonce Reynaud, M. Boudin e A. Demanet2.
Atuaram em primeiro lugar enquanto profis-
A tradição francesa evidentemente vem impreg-
sionais autônomos ou enquanto funcionários da
nada da filosofia das luzes reatualizada através do
Província tal como o conhecido Cézar de Rainville
positivismo sociológico de Comte, pensamento
que atuou no Espírito Santo por cerca de 20 anos,
prenhe de valores fundamentalmente humanos
e depois como funcionários da Estrada de Ferro
e que recusava toda precedência da teologia e da
Sul do Espírito Santo, a qual chegou a contratar,
metafísica. O engenheiro civil do século XIX é
nas duas últimas décadas do século, mais de 70
mais do que um mero construtor, a sua atuação
profissionais da engenharia civil4. É certo que
dentro da sociedade brasileira deu-se dentro de
estes profissionais tiveram lugar de destaque na
uma perspectiva de modernização e laicização da
Província, não apenas na construção civil, mas
mesma procurando desfazer os vínculos estreitos
também na modernização da sociedade capixaba
que o Estado brasileiro mantinha ainda com a
atuando como livres-pensadores, consultores
Igreja Católica - vínculos oriundos da tradição
nos processos de urbanização e sanitização de
lusa e que se manterão em grande parte por todo
Vitória capital da Província e chegando mesmo
o Império, sendo rompidos apenas quando da
a participarem da vida política na Assembléia
Proclamação da República - e esta referida atuação
Provincial assim como a ocuparem os maiores
deu-se dentro dos mais variados campos desde a
cargos administrativos (Presidente da Província)
ciência da física dos materiais até a pedagogia e a
no ocaso do século, início do seguinte.
elaboração de projetos pedagógicos dissociados
1
Souza. 2001. p. 67. 3
Ribeiro. 2012. p.139.
2
Rebouças. 1885. 4
Idem. p.141.
Tentaremos demonstrar que ainda que não de pequena enseada, provavelmente um manguezal
forma explícita – não existe na verdade um Progra- infecto que devia ser tomado pelas águas quando
ma formulado de reurbanização da velha Vitória, da maré cheia. De acordo com Daemon a igreja
este ‘Programa’ se deu na intervenção localizada de foi construída em 17556 e na conhecida Planta da
distintas administraçoes – ainda assim é certo que Villa da Victoria levantada em 1767 e atribuída a
estas intervenções urbanisticas tiveram como eixo José Antonio Caldas ela já aparece individuada.
diretor a laicização da cidade sagrada do período A paróquia teve grande presença na vida social
colonial através de operações como a demolição e religiosa da cidade durante o século XVIII e
de importantes templos; a destruição de eixos seguinte, e as festas da santa, comemoradas a oito
simbólicos processionais importantes como con- de dezembro eram preparadas cuidadosamente
sequencia da demolição destes templos e capelas como se vêem pelos proclamas impressos nos
que os direcionavam na malha urbana; a retirada jornais da época ainda no final do século XIX
dos campos santos (cemitérios) do interior do e que descrevem estas festas como se inician-
centro e o remanejamento dos mesmos para a do no dia anterior com celebração de Vésperas,
periferia; e o alargamento do território da cidade prosseguindo na manhã do evento com missa
através de aterros com a respectiva urbanização solene seguida de procissão e finalizando a noite
priorizando apenas espaços laicos e civis onde com Te Deum Laudamus seguido de fogos de
seriam construidos praças públicas, escolas muni- artifício7. A Devoção da Sra. da Conceição era
cipais, residências e instituições governamentais, suficientemente concorrida pela população local
deixando-se de lado toda e qualquer referência para ter os recursos que fizeram com que o seu
ao sagrado tão predominante no espaço da urbe templo fosse completamente reformado no início
de origem portuguesa. da década de 908, poucos anos antes da sua desa-
Em Vitória é muito visível este Programa de propriação e demolição. Em épocas críticas como
laicização sendo introduzido em tres regiões no ano de 1895 em que a cidade foi tomada por
suficientemente distintas, embora em períodos uma epidemia de varíola, os rituais sagrados de
concomitantes, e todas elas situadas naquilo que exorcização da doença passavam pela igreja da
hoje denominamos como o centro histórico da Prainha através de “missa de penitência e pro-
cidade. Deixaremos de lado o exame do projeto do cissão”9 e posteriormente de missa de júbilo pela
Novo Arrabalde (1896) do Engenheiro Saturnino “extinção da epidemia”10.
de Brito porque ele se encaixa na perspectiva de Ora, o que se passou neste curto lapso de tempo
uma ‘nova’ cidade a qual já nasce laica nos seus para que uma devoção religiosa tradicional e nu-
fundamentos5. merosa, com presença significativa na comunidade
capixaba, com um templo recém-reformado, se
3. O LARGO DA CONCEIÇÃO DA submetesse aos caprichos de uma reformulação
PRAINHA (1890-1927). urbana e se deixasse praticamente extinguir através
de um processo que culmina com a demolição
A ‘cidade baixa’ de Vitória - na região litorânea
dos trapiches e dos pequenos cais – era dominada 6
Daemon. 1879.
sob o ponto de vista do sagrado pela pequena 7
Estado do Espírito Santo. 30.11.1893. p.03.
Igreja de N. Sra. da Conceição da Prainha, locali-
zada entre o Largo de mesmo nome e um saco ou
8
Estado do Espírito Santo. 30.04.1890. p.03.
9
Estado do Espírito Santo. 25.08.1895. p.02.
5
Projeto de um Novo Arrabalde. 1896. 10
Estado do Espírito Santo. 12.04.1896. p.02.
Fig. 1 - Detalhe da Planta da Villa da Victoria levantada em 1767 por José Antonio Caldas onde aparece a Igreja de N. Sra. da
Conceição da Prainha ao lado do ‘saco’ de mesmo nome.
um chafariz na então já denominada Praça Costa época argumentando que “tendo conhecimento a
Pereira16. Santa Sé da edificação de um theatro muito junto
É evidente que nessas obras de melhoramento à capella, tornando-a de tudo impropria para as
existe embutido um projeto claro de laicização funcções do culto cathólico, acceitou a proposta
do espaço transformando um local fortemente do governo – alienando-a mediante idemnisa-
marcado pelo ritual sagrado em um espaço urbano ção”18. O confronto aqui é sensivelmente sentido
moderno destinado ao lúdico e ao lazer e que como o de um espaço profano que se instalando,
mesmo antes da demolição da igreja já tem o seu conspurca toda e qualquer possibilidade do ritual
nome alterado de Largo da Conceição para Praça sagrado, tornando a região mesma impropria para
Costa Pereira (presidente da Província no período o ‘culto católico’. A demolição quase que imediata
de 1861-63) instituindo na antiga cidade colonial da igreja (provavelmente no final de 1896) com a
a prática do século XIX de retirar a nomenclatura remoção da imagem da santa para a igreja do Ro-
sacra e régia dos locais urbanos substituindo-a sário seguida da extinção da Devoção por ato do
por uma nomenclatura civil homenageando per- Arcipreste19 é o golpe final em práticas religiosas
sonalidades públicas e históricas, e não apenas, de longa tradição que marcaram sensivelmente
pois a transformação do Largo em Praça também este espaço da cidade colonial.
é uma modernização do espaço já que o Largo O processo de laicização da região aprimora-se,
pressupõe um espaço urbano de características contudo, na década de 20 do novo século, após
medievais em que o encontro ‘casual’ entre duas o princípio de incendio do Teatro Melpomene
ou mais ruas é apropriado sem regulação pela em 1924 – que era de madeira – e que acabou
população, enquanto a Praça pressupõe projeto obrigando a sua demolição que foi acompanhada
e desígnio assim como uma ‘moderna’ proposta pela reurbanização da Praça com a implantação
de espaço público ainda que reatualizada, oriunda de um projeto de jardim paisagístico assim como
da prática ancestral da cidade clássica. com a construção de um novo teatro em estilo
Mas o golpe final na sacralidade desta região eclético – Teatro Carlos Gomes - confirmando a
vem com o projeto da mesma Diretoria de Obras nova vocação da região como o local de diversões
de construção no local, de um Teatro, o primeiro mundanas e teatrais da cidade, vocação essa ins-
lugar público deste tipo de diversão na cidade de tituida pelos engenheiros provinciais do século
Vitória, e sintomáticamente, na mesma semana XIX, e a qual, 20 anos depois, seria reafirmada
em que o Teatro Melpomene é concluído e o com a construção no lado oposto da Praça de um
seu sistema de iluminação elétrica inaugurado novo teatro; o Glória.
(o primeiro da cidade), o processo de desapro-
priação da igreja visando a sua demolição para 3. ATERRO E URBANIZAÇÃO DO
alargamento da Praça é assinado pelo presidente ANTIGO MANGAL DO CAMPINHO
da Província17, como se as luzes (literalmente) (1890-1912)
estivessem expulsando o obscurantismo religioso.
A região do Campinho era um extenso baixio
Pressionado pela população católica local que vê
numa das laterais da cidade, que como todas as
a demolição da sua igreja como uma capitulação,
regiões baixas da capital capixaba eram tomadas
Monsenhor Pedrinha, Arcipreste da capital, justifi-
por manguezais. Área utilizada provavelmente
ca-se através de carta publicada nos periódicos da
16
Estado do Espírito Santo. 13.04.1894. 18
Estado do Espírito Santo. 14.07.1897. p.01.
17
Estado do Espírito Santo. 21.05.1896. 19
Estado do Espírito Santo. 14.07.1897. p.01.
como um Rocio, era o limite da cidade colonial. to, segurança e hygiene”22. Previa-se ainda para
Apenas na administração Rubim (1812-1819) a o local a construção de uma Escola Municipal e
área passou a se integrar à urbe com a construção de um Quartel de Polícia. Nem um único tem-
em uma colina existente de um novo prédio para plo religioso é projetado, ao contrário do que se
a Santa Casa de Misericórdia20 que até então era passava na cidade alta onde as antigas freguesias
localizada na cidade alta: grande extensão de eram definidas pelas paróquias, na Villa Moscoso
terra desocupada dominada por um conjunto o elemento central, ativador da vida social, seria
arquitetônico religioso de grande importância pois o Parque.
se constituia a época no único hospital existente Trata-se da implementação de um projeto laico
em toda a Província. e positivista em que todas as questões centrais
Ao longo de todo o século XIX as distintas da ciência do urbanismo do século XIX já estão
administrações falaram em aterrar a região por presentes: região preparada para a moderna habi-
necessidades higienistas. Apenas em 1890, contu- tação através de obras de sanitização, esgotamento
do, a administração pública efetiva um contrato e arborização; construção de um grande parque
com o Engenheiro Leopoldo Deocleciano de Mello público que predomina pela sua centralidade e
Cunha, diretor da Companhia Torrens, visando que impõe um projeto lúdico-educativo para a
fundamentalmente o abastecimento de água da região; e a presença do Estado através dos serviços
capital mas, entre outras cláusulas, cedendo à publicos de segurança, educação e saúde.
contratada as terras do Campinho para serem A construção do Quartel é finalizada em 189623.
urbanizadas e posteriormente vendidas de forma a Em 1910 ainda se complementavam aterros, dre-
que a Companhia pudesse se indenizar dos gastos nagens e contruções de casas24. Em 1912 é inaugu-
com aterro, drenagens etc21. rado o parque Moscoso, enorme jardim público
A partir de então é implementado um projeto de características paisagísticas, projetado por
de ocupação da área levado a cabo, sobretudo por Paulo Motta. Mas a cereja do bolo no processo
engenheiros. A Companhia Torrens não finalizou de laicização da região é sem dúvida a demolição
os serviços - que estendia a antiga cidade colonial da antiga Casa de Misericórdia para a construção
para uma área relativamente nova, recusando de um moderno hospital no mesmo local, a partir
contudo a noção ‘colonial’ de espaço urbano que de 1910, quando se constatou que a ‘arruinada e
vigorava até então e que era fundamentalmente anti-higiênica’25 enfermaria colonial não atendia
marcada pela sacralidade. A Villa Moscoso, novo mais as necessidades hospitalares de uma moderna
nome do Campinho urbanizado, já nasce sob o capital: continua a denominação de ‘Santa Casa’
impacto da laicização crescente que a cultura do mas é suprimido o antigo prédio no qual a igreja
século XIX vinha inflingindo ao espaço da cidade. anexa predominava no conjunto arquitetônico
O referido contrato exigia o aterro da região, e ainda imprimindo a marca da cruz em toda a
a elevação do nível do terreno possibilitando a região através de um partido acropólico, e no local
correta drenagem das ruas, o arruamento em é introduzido um moderno prédio hospitalar,
linhas paralelas e perpendiculares, a execução de concebido em alas separadas entre si (os pavilhões
dois largos ou praças, duzentas casas de moradias
populares sendo que estas deveriam gozar de 22
Contracto... 1894. p.08.
“todas as vantagens de confortabilidade, arejamen- 23
Estado do Espírito Santo. 17.01.1896.
20
Daemon. 1879. 24
Estado do Espírito Santo. 22.11.1910. p.1.
21
Contracto... 1894. p.04. 25
Relatorio... 1910. p.46.
das doenças infecciosas) e onde a aparência civil na configuração da cidade colonial, e esta tarefa
e laica, sobretudo científica da moderna medici- coube aos engenheiros, portadores de um discur-
na, se sobrepõe à qualquer resquício de caráter so laico e positivista que recusava a autoridade
religioso e caritativo dos ambulatórios coloniais. da monarquia e a da igreja por serem fontes de
obscurantismo e atraso social.
4. REESTRUTURAÇÃO DA CIDADE ALTA Já desde 1759 com a ação anti-jesuítica desen-
(1911-1918) cadeada a partir da metrópole pelo déspota es-
clarecido Marques de Pombal, que o eixo sagrado
De todos os processos de laicização do ter-
da cidade sofrera um baque com a expropriação
ritório da cidade de Vitória o da cidade alta foi
do Colégio dos Jesuítas e o seu processo de se-
sem dúvida o mais traumático, motivo pelo qual,
mi-laicização, no qual a edificação conventual foi
muito provavelmente, aconteceu mais tarde. Afinal
reconfigurada enquanto palácio da presidência da
tratava-se do coração da cidade histórica, onde
Capitania. Mas a igreja do complexo conventual
ela tinha nascido e onde se situavam os seus mais
tinha perdurado, ainda que como Capela Nacional.
significativos monumentos, onde os seus heróis
Só no final do século XIX, mais precisamente em
sacrossantos estavam sepultados. A destruição
1892 a Capela Nacional teria sido reconfigurada
desses símbolos era a vitória das luzes sobre o
como almoxarifado do palácio do governo27 e
obscurantismo, a do pensamento racional sobre
apenas no início do século XX a administra-
o pensamento alegórico e religioso, a da moder-
ção publica vai ter a ‘coragem’ de demolir (tanto
na engenharia civil sobre a engenharia militar
em fachada como em interior) o vetusto templo
tradicional.
quinhentista dos jesuitas onde Anchieta estava
Num texto anterior, demonstrei como as práti-
enterrado para em seguida integrar o seu espaço
cas religiosas do periodo colonial perduraram na
ao espaço laico do palácio governamental, agora
cidade de Vitória práticamente até o final do século
em reforma completa.
XIX identificando inclusive o eixo processional
Em 1912 o governo estadual assina com o enge-
e simbólico primordial da Vila, que iniciava no
nheiro francês Justin Nobert um contrato “para a
porto dos padres, subia a imponente escadaria
reforma da parte interna do Palácio do Governo
colonial para a cidade alta, chegava à igreja jesuí-
e no edificio da antiga egreja de S. Thiago”28. Na
tica de São Tiago, partia novamente no sentido da
mesma época é desapropriada a igreja da Mi-
igreja Matriz e neste trajeto passava em frente da
sericordia, que no período colonial estava de
Igreja da Misericórdia, do pelourinho e da Casa
frente para o Colégio dos Jesuítas, agora palácio
de Câmara e Cadeia, parecendo querer unificar
governamental, é demolido o templo e já em 24
as duas grandes instituições pilares do Antigo
de maio de 201129 (Relatório. 1912. p.35) lança-se
Regime: a monarquia absoluta representada pelo
a pedra fundamental de um novo edifício para a
Senado da Vila; e o Catolicismo tridentino apoiado
Assembléia Legislativa, projetada em estilo eclético
na sua principal linha de frente, a organização
pelo arquiteto autodidata André Carloni.
jesuítica. Este ritual processional foi inscrito de
Com a desaparição do que restava da igreja dos
forma tão profunda no território da cidade que
jesuítas assim como da igreja da Misericórdia que-
ainda foi percorrido por Pedro II quando visitou
bra-se definitivamente a configuração sagrada do
Vitória em 186026.
Tratava-se agora, no início do século XX, de
27
Lopes. 1997. p.74.
se destruir este eixo simbólico tão importante 28
Contrato... 1912. p.03.
26
Ribeiro. 2009. p.213. 29
Relatório... 1912. p.35.
principal eixo processional proveniente da cidade trar, algum documento que prove cabalmente
colonial, que em tentativas posteriores de reinsti- a existência de um projeto deliberado de enge-
tuição, como nas visitas de Afonso Pena e de Nilo nheiros e de positivistas na laicização do espaço
Peçanha ao Estado (esta última em 1921), e que da cidade de Vitória, na destruição deliberada
apesar do antigo eixo ter estado nestas ocasiões dos seus símbolos sagrados e na substituição dos
tomado por colegiais, populares e militares em for- mesmos, quando possível, por símbolos laicos
mação, nunca atingiram a expressão simbólica dos republicanos. Isso não inviabiliza, contudo nada
tempos idos, significação esta que era dada pelo do que foi dito aqui.
ritual religioso do qual todos, de alguma forma, As radicais transformações técnicas e culturais
participavam com suas crenças mais íntimas. provenientes desde a Revolução Industrial dos
Nesse aspecto da significação e do simbolismo, a finais do século XVIII e que chegaram ao Brasil
festa laica da República jamais conseguiu substituir com atraso, fizeram com que as mentalidades mu-
as festas religiosas do Antigo Regime. dassem radicalmente. Engenheiros estiveram na
A finalização da laicização do território da ci- vanguarda desse processo de mudanças, mas não
dade alta me parece, acontece com a derrubada foram os únicos atores. Foram talvez a categoria
da antiga Matriz em 1918, símbolo da aliança do profissional, juntos com médicos e advogados, que
Estado com a Igreja Católica segundo o acordo melhor estava estruturada a época e, até porque
do Padroado estabelecido desde o início da co- lidavam diretamente com a cidade e seu espaço – a
lonização e só suprimido pela Proclamação da qual encontrava-se em processo de transformações
República. O antigo templo vem abaixo para dar radicais fruto do impressionante desenvolvimento
lugar a uma nova Catedral. Agora, a religião en- econômico e social propiciado pela Revolução
contra-se confinada ao seu próprio espaço, restrita Industrial – a sua atuação nos aparece majorada
à igreja, não toma mais as ruas e não expande mais em detrimento das demais categorias.
os seus símbolos sobre cada uma das localidades
da urbe. Dessacralizou-se o espaço da cidade, 6. AGRADECIMENTOS.
o pensamento do iluminismo do século XVIII
É necessário uma referencia às agencias de fomen-
finalmente venceu e conseguiu definitivamente,
to CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento
no campo da cidade, separar a esfera do espaço
Científico e Tecnológico); CAPES (Coordenação
público da do espaço sagrado.
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
e FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa e Ino-
5. CONCLUSÕES.
vação do Espírito Santo) que ao longo da última
Como deixei vislumbrar, não encontrei, assim década vêm apoiando incessantemente as minhas
como não me parece crível que ainda vá encon- pesquisas.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Arrabalde. Vitória: [s/e]. Typographia Guimaraens.
Contracto entre a Companhia Brasileira Torrens e Contrato que fazem o Governo do Estado do Espí-
o Governo do Estado do Espirito Santo para obras rito Santo e o engenheiro Justin Norbert (...) para
de abastecimento d’agua, esgoto e construcção de a reforma da parte interna do palácio do governo e
no edifício da antiga igreja de São Tiago (...), Ter- Francisco de Athayde em 30 de Julho de 1910. Vic-
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-Santo ao passar o governo ao Exmo. Snr. Dr. Gra- organizado por Luciene Pessotti de Souza e Nelson
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de Janeiro: Typ. Leuzinger. tora.
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Jeronymo Souza, Alberto. 2001. O ensino da arquitetura no
de Souza Monteiro Presidente do Estado pelo Di- Brasil imperial. João Pessoa: Editora Universitária.
rector de Agricultura, Terras e Obras Dr. Antonio
ABSTRACT
The paper deals with the multiple features of the Regulamento de Betão Armado, the 1935 code speci-
fying technical rules for analysis and design of in situ reinforced concrete works in Portugal. By addres-
sing simultaneously the technological, ideological and cultural implications of the code enforcement in
Portugal, the paper proposes a holistic perspective of the subject. The code was approved just two years
after the implementation of the Estado Novo regime, a nationalist right-wing regime headed by Salazar.
This fact is taken as relevant background, much because the code was used as main technical base for
a vast public works programme. The committee that produced the code, a group of six notorious engi-
neers, wrote a thorough technical report, here used and debated as research object. The report explained
carefully the adopted methodology, which was to compare and embrace the most advanced codes of
the time, regardless of their geographical origin or political framing. Dealing with the consequences of
this apparent contradiction, the paper proposes the concept of Reactionary Modernism, adapted from
Jeffrey Herf, as a resolution to this paradox, and also as a way to outline the Portuguese modernity of
the 1930s. Reciprocally, the paper presents the 1935 RBA code as a case-study of such concept.
1. INTRODUCTION
It is usual to accept that engineers deal mostly In order to do so, the paper debates the multi-
with the objective technological features of a buil- fold aspects of the Regulamento de Betão Armado,
ding project, leaving architects with the subjective or RBA, the 1935 code specifying technical rules
duty of settling its cultural and ideological traits. for analysis and design of in situ reinforced con-
This paper challenges this widespread notion, by crete works in Portugal – with focus on the tech-
addressing what could be regarded as the most nological, ideological and cultural implications of
unbiased engineering assignment, i.e., the writing its enforcement in the built environment. The code
of a building code concerned with reinforced con- was first approved on 15 October 1935 by the then
crete. The paper argues that, besides any technical minister of Public Works, the notorious engineer
and legal issues, a building code, as any written Duarte Pacheco (1900-1943). This endorsement
document, may reveal other aspects of the poli- happened just two years after the implementation
tical, social, and cultural life of a specific context. of Estado Novo, the right-wing nationalist regime
headed by Salazar (1889-1970). The paper takes 27). According to his view, the regime may be
these facts as relevant background, much because described by its main pillars, which were: (i)
the code was used as main technical base for a Authoritarianism – a political and legal system
vast public works plan. based on State authority and on almost absolute
The RBA code was written by a committee of subordination to the executive branch; (ii) Cor-
six engineers. A brief glance into their biogra- poratism – an economic and trade organization
phies reveals that they were all connected with submitted to the national interest, as defined by
the conservative regime. Nevertheless, some were the State, to which the forces of both capital and
also involved in the most daring architectural and labour should converge in a non-antagonistic
engineering tasks of their time. The committee mode; and (iii) Colonialism – a strict arrange-
produced a thorough technical report, here used ment of relations between colonized territories
and debated as research object. The report explai- and Mainland central authority, imposed as the
ned carefully the methodology adopted in the sole power in all administrative, economic, and
making of the code, which was to compare and trade activities.
embrace the most advanced codes of the time, One fourth concept, however, served as foun-
regardless of their geographical origin or political dation for these three pillars, and that was Natio-
framing. In a seemingly unbiased and open-min- nalism. To delineate this specific idea, we have to
ded way, the committee compared codes from emphasize that Salazar, the leader, never spared
several countries, e.g. Germany, the United States, any efforts to soothe one major contradiction. This
France, and the Soviet Union. The paper deals with was settled between the fact that his government
the consequences of this apparent contradiction. was debtor of an armed uprising that dismantled
This paper is the adaptation and development of lawfully elected institutions, on one hand, and
a PhD thesis chapter (Delgado 2014, 75-93) and the need to present himself as strictly self-limited
is based in an ongoing research regarding 1930s by ethical principles and by the rule of law, on
Portuguese built environment (Pinto, 2015). In the other (Ramos do Ó 1992, 391-394). In other
order to enable future cross-referencing, most words, Salazar was continuously trying to find a
Portuguese names for schools, universities, go- legitimacy to sustain and to justify himself, both
vernmental departments, and companies were internally and internationally. In part, Salazar did
kept in the original language. Nevertheless, we it by means of the idea of nation, designed as one
provide a short description in English for these major device for the moral and social validation
institutions. of the regime’s political doctrine and its legal and
institutional structure. Thru it, Portugal was pre-
2. HISTORICAL AND POLITICAL sented as a homogeneous ancestral country, born
FRAMEWORK: 1930S ESTADO NOVO and raised apart from History, whose cohesion
REGIME stemmed from the unbreakable will and obstinate
toil of successive generations – of distinct classes
The Estado Novo regime ruled in Portugal from
and of many origins – beyond petty conflicts and
1933 until 1974, and it evolved from a 1926 mi-
temporary disagreements.
litary coup d’état perpetrated in order to install
The Portuguese nation was thus figured as the
a right-wing dictatorship. As most researchers
result of a long-lasting agreement between ages,
find it hard to frame its actual ideological struc-
ethnicities, and classes, and this outline provided
ture, we have adopted the characterization given
a cohesive system of both representation and
by Portuguese historian César Oliveira (1992,
symbolic expression. Being symbolical, it was also 1918, which, in turn, had approved the so-called
poetical, and above all narrative and fictional. This “regulatory instructions for use of RC”. In the
unification had its expression in nationalism, con- gap of about seventeen years that separated the
sidered as a political, social, and cultural thematic publication of the two documents, RC technology
force. Some historians believe that this device was and construction processes had evolved in a very
meant to “institutionalize ‘Portugalhood’” (Ramos significant way. The 1935 diploma summarized
do Ó 1992, 394), meaning the establishment of the set of factors that had made this update ur-
something considered archetypally Portuguese gent. In short, the changes were the following
as a convention for everyday mores and orga- (p. 1493): (i) improvement in the collaboration
nizations. They do not shy from calling this the between building sites and engineering labora-
regime’s “grand idea”. tories; (ii) enhancement in cement quality; (iii)
As it happens, in the 1930s the most straightfo- development of new types of concrete, such as
rward and tangible historical reading was plen- rapid curing concrete and high strength con-
tifully provided by the built heritage. Historic crete; (iv) advancement in the awareness of the
buildings – although recomposed, rehabilitated, relationships between concrete compositions and
adulterated – were ready to serve nationalism and their physical properties; (v) innovation in the
its perception of reality. It is at the light of this no- strength of materials theory, and also in its daily
tion that we should envisage one of the first deeds use; and (vi) evolution of ferrous metallurgy, and
of the Estado Novo regime, i.e., the national mo- the resulting improvement of steel.
numents recovery programme. This programme The RBA was a code of standards enforceable
encompassed the traditionalist, although at times by law, by means of Decree 25948. As in many
fanciful, restoration of several ancient buildings, countries, legislative texts were only binding in
e.g. the National Palace in Queluz, and the Palace Portugal after publication in the official gazette,
of the Dukes of Bragança in Guimarães; the Ca- then called Diário do Govêrno. The RBA code was
thedrals of Lisbon and Porto; various medieval published on 16 October 1935, in the 1st Series
castles, such as St. George’s, in Lisbon (Nunes of the gazette, destined to relevant texts, such as
2008, 62). As we shall see next, this nationalist laws. The decree is structured in three parts. Part
fervour was also transferred to a new public works one (p. 1493) is the preamble, which in a few para-
programme, in a gradual but swift way, over the graphs outlines the code philosophy, and justifies
1930s. Before this could happen, and in order to the necessity of Government intervention in its
grant feasibility and safety standards the regime drafting. Dated 16 March 1935, the preamble is
soon realized that construction activities had to signed by the President of the Republic, Óscar
be regulated. Carmona (1869-1951), by the Government Chair,
or Prime-Minister, Salazar, and by the Minister
3. THE RBA CODE of Public Works and Communications, Duarte
Pacheco. Part two (pp. 1493-1505) is the report,
3.1. BACKGROUND, TYPE, AND STRUC-
which justifies, in a very comprehensive manner,
TURE
all the code’s major options. This is signed by the
Such regulation emerged by as the RBA code. committee members, and it is dated 20 February
Dealing mostly with in situ work, it was not the 1935. Part three (pp. 1506-1522) is the full body
first to regulate the use of RC in Portugal. Its entry of the code. As most early national RC codes
into force revoked Decree 4036, from 18 March (Addis 2007, 464), this part gathered three types of
information: (i) properties of RC constituents and skills they possessed? What contributions may
materials, and the manufacture quality (pp.1507- they have given to the obvious sureness that both
1508); (ii) the various loads that RC structures the body of the code and its preliminary report
and elements should be designed to carry (pp. reveal? What information may we gather from
1508-1509); and (iii) general standards of analysis their careers, regarding both the RBA philosophy
(pp. 1510-1511), and standards of design prac- and the period in which it was written? In order
tice for various RC structural elements, namely to find answers to these questions, the following
floors (pp. 1511-1513), beams (pp.1513-1514), paragraphs reflect on what we can uncover from
and columns (pp.1514-1515). Special elements their biographies.
in different constructions deserve autonomous (i) Manuel Pereira Viana (?-?) – From this first
treatment, with a separation between buildings signatory we could not establish the date or place
(pp. 1515-1517) and bridges (pp. 1517-1519). of birth, which is surprising, given his academic
Besides this information, the code sets detailed and political career. We know he was an officer
standards for the elaboration of the actual building of the Portuguese Navy, with considerable tech-
process (pp. 1519-1521). All RC construction sta- nical preparation, since he was both a graduate
ges are taken in consideration: formwork; arrange- in Mathematics from the University of Coimbra
ment and spacing of reinforcing bars; preparation, and in Civil Engineering from the French École
placing, and compacting of concrete; construction nationale des ponts et chaussées. We also know
joints between earlier and late pours; stripping; that between May and December 1909 Viana was
and curing. A final chapter is dedicated to RC Ministro da Marinha e do Ultramar – Minister
building control (pp. 1521-1522). According to for the Navy and for Overseas Territories. The
the code, RC building works should be surveyed position was awarded in the penultimate admi-
as they proceeded, and this activity should be nistration of the constitutional monarchy regime.
carried by appointed structural engineers, acting Its opponents called this administration the Porto
as officers designated by local municipalities or, Polytechnic Executive (CEPP 2003). In fact, just
in their absence, by the Ministry of Public Works as other ministers, Viana had been professor at
and Communications. the Polytechnic School of Porto, first as chair of
Hydraulic and Machinery and later, from 1889 on,
3.2. THE DRAFTING COMMITTEE of Strength of Materials and Construction Stability
The committee members’ know-how is evident (Aa. Vv. 1945, 231). As we shall see, mastering
in both the detail and the depth of the report. Since notions of Strength of Materials was essential
all these engineers have signed it, their names for the calculation of RC structures. Hence, the
may be easily checked today. It seems important knowledge of this subject may have granted Viana
to list them here, using the same order they were with both the erudition and the prestige necessary
identified in the report. Although this order seems to participate in the commission. His position as
to indicate a hierarchy, this does not stem from first signatory may also indicate that he must have
age alone. The list was as follows: (i) Manuel Terra been its chairman.
P. Viana; (ii) João Alberto Barbosa Carmona; (iii) (ii) João Barbosa Carmona (1894-1958) – Car-
Augusto Vieira da Silva; (iv) António Maria Fer- mona had a degree in Civil Engineering from
nandes; (v) José Bélard da Fonseca; and (vi) Raul Instituto Superior Técnico, the reputed school of
Jales Guimarães. Some questions immediately arise technology in Lisbon. He had been an artillery offi-
from the list. Who were those engineers? What cer, graduated at the Portuguese Military Academy.
He had fought in the First World War, and remai- Revista de Obras Públicas e Minas – Journal of
ned in the Portuguese Army until 1929, reaching Public Works and Mines. We believe that Vieira
the rank of major. At the time of the code drafting da Silva contributed to the code as Engenheiro
he was the Bridge Department Director at Junta Inspector Industrial, a tenure he secured from
Autónoma de Estradas – the Portuguese Road 1925 on (Aa. Vv. 1950, p. cit.).
Authority. He led the construction or renovation (iv) António Maria Fernandes (1892-?) – In
of about three hundred bridges across the country contrast to the wealth of information available
(Aa. Vv. 1966, 1119). Two other facts regarding regarding almost all other members of the com-
Carmona should be outlined. The first is that, in mission, we know very little about Fernandes.
1937, he was the designer of an important viaduct Through the Ministry of Public Works records
crossing the valley of Alcântara, at the outskirts of (BAHOP 2011), we know that between 1920 and
Lisbon (Fig. 1). The viaduct, opened in December 1934 Fernandes was a civil engineer at the Direc-
1944, would take the name of Duarte Pacheco, ção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais
died in a car accident in April of that same year. – the Directorate-General for State Buildings
The second fact is that, as we have learned from and National Monuments. We also know that in
an official decree (Dec. n.º 33621/44 de 25 de 1946 he would become director of Laboratório de
Abril, 396), Carmona was one of the surviving Ensaios e Estudo de Materiais – the Laboratory
passengers of the same crashed car, having suffered for Testing and Study of Materials (LNEC 2012).
serious injuries. These combined facts show how This fact seems to attest Fernandes suitability to
close Carmona was from the regime, and, together integrate the drafting committee.
with his expertise, may fully explain why he was (v) José Bélard da Fonseca (1899-1969) – Bélard
part of the drafting committee. da Fonseca was also an Instituto Superior Técnico
(iii) Augusto Vieira da Silva (1869-1951) – The Civil Engineering graduate. He was a professor
name with greater resonance to the Portuguese lay at that same school, and would become its Dean
public may be that of Vieira da Silva, relatively well in 1942. He would keep this position until 1958,
known as a Lisbon history researcher. In addition when he was appointed as the Technical University
to this activity, he was also a military engineer, of Lisbon Vice Chancellor. Bélard also assumed
graduated by the Military Academy in 1893. He corporate duties, namely as SECIL chairman of
retired from this status in 1936, with the rank of the board. (Castilho et al. s/d). SECIL, a company
colonel (Aa. Vv. 1950, 258). As it was not rare at founded in 1930, is, to this day, one of Portugal’s
that time, Vieira da Silva also led a career as civil leading cement producers. Simultaneously, Bélard
servant. Thus, for example, it was as officer for was head of SETH, a building company that, after
Direcção Geral do Trabalho – the Portuguese being established in 1933 by the Danish firm Hø-
Directorate-General for Labour – where he worked jgaard & Schultz a/s, was immediately awarded
from 1922 on, that he undertook the structural with major public works (Aa. Vv. 1940a, 459).
analysis for the reconstruction of a previous- These included the Marechal Carmona Bridge
ly burnt down building at Praça do Comércio, over the River Tagus, the Pego do Altar Dam,
in Lisbon (Aa. Vv. 1950, 259). From as soon as the Vale do Gaio Dam, and the port of Funchal,
1913, he authored several papers on RC structural Madeira. As a structural designer, and to the date
analysis and design (Aa. Vv. 2004, 12149-12150), of the regulation, Bélard da Fonseca had already
in publications such as Revista de Engenharia contributed to some emblematic buildings from
Militar – Journal of Military Engineering – and the most representative Portuguese architects.
One major example of such architects was Por- integrate the committee. Shortly after the RBA
firio Pardal Monteiro (1897-1957), with whom publication Guimarães became executive officer
Bélard teamed to analyse several RC structures of Junta Autónoma de Estradas. In 1939, Jales
for iconic buildings in Lisbon, such as the Ford was also nominated by the Lisbon municipality
Palace, in 1930; the National Institute of Statistics, to oversee all engineering works required for the
in 1931; and the Church of Our Lady of Fatima, Monsanto hill conversion into a large forest park
in 1933 (Aa. Vv. 1940a, cit.). Another architect (Aa. Vv. 1940b, cit.).
was Cristino da Silva (1896-1976), with whom
Bélard designed the Capitólio Theatre, in 1925 Once the overview of the signatories’ careers is
(Rodolfo 2002, 74). Apart from his various tea- completed, we are now able to come up with some
answers to our questions, here taken as provisional
ching, business, and design undertakings, Bélard
conclusions, or PC. They are as follows:
had intense political activity, namely in associative
PC1 – The reading of each biography seems to
representation. Between 1935 and 1938, during the
indicate that all six engineers were part of a tech-
First Legislature of the Estado Novo regime, he was
nocratic élite of the Estado Novo regime, made up
appointed delegate to the Corporative Chamber,
of those who gathered a renowned merit in their
where he returned for a successive tenure, this
respective activities, on the one hand, and a certain
time as a building companies’ representative. Later,
affinity regarding the ideological sensibilities of
from March 1947 to February 1950, Bélard would
the ruling power, on the other.
take sit at the same chamber (Castilho et al. s/d), PC2 – It seems clear that the eclectic, pragmatic
now as President of Ordem dos Engenheiros – the spirit that guided the composition of many of
regulatory body for the engineering profession in Salazar government cabinets also presided over
Portugal. This impressive résumé fully explains the arrangement of the RBA committee. Its ele-
Bélard appointment to the committee. ments represented a wide range of the Portuguese
(vi) Raúl Jales de Guimarães (1894-?) – Through engineering profession and knowledge, covering
an academic publication (Universidade do Porto, much of the current RC understanding and appli-
1915 p. 125) we can establish that Guimarães cation, and encompassing much of the different
attended the Porto University School of Sciences perspectives regarding the subject.
for a period corresponding to the 1911-1912 and PC3 – Thus, as we have seen, with only six ele-
1913-1914 school years. Immediately after gradu- ments the committee achieved the remarkable feat
ating in Civil Engineering at this university, he of bringing together several latent professional di-
became a civil servant in 1919, namely as design chotomies: between the military and the civilians;
officer at the national railways company (Aa. Vv. between scholars and practitioners; between those
1940b, 142). For a short period of time, Guimarães trained in Lisbon and those graduated in Porto;
became the Ministry of Trade and Communica- between designers and entrepreneurs; between
tions chief of staff. This happened in 1925, a few free professionals and civil servants; between
months before the May 1926 upheaval that led those with experience in private and public works;
to the Estado Novo regime. This did not prevent between those who built bridges and those who
him from accepting, as early as 1930, the duties designed buildings.
of executive officer of the Comissão de Verifica- PC4 – Some of these dualities concerned the
ção da Resistência das Pontes – a commission engineering profession in particular, but also
for the certification of bridges’ structures. It was Portuguese society in general: between the old
probably this membership that allowed him to and the younger; between monarchists and repu-
Fig. 1 – The June 1939 French journal Travaux issue (p. 230) reports the Alcântara viaduct project, in Lisbon, emphasizing the names
of Salazar, Duarte Pacheco, and Barbosa Carmona, its designer.
blicans; between those associated with the regime the RBA code had a time of validity that almost
and those who were relatively neutral. In short: doubled that of the previous 1918 regulation.
all these different groups seem to be represented
by each member of the committee. The breadth 3.3. RBA MODERNITY
of this sociological and political variety provides As we have said, the revocation of the RBA
other piece of information, i.e., that the consensus was not due to any inherent technical shortco-
concerning the widespread use of RC structures mings. It happened because the state of the art
in construction works was, in the 1930s, fairly profoundly changed throughout the 1950s and
unchallenged within the Portuguese élite and the 1960s. A characterization of this state of art in
political regime. the 1930s is now essential, in order to understand
PC5 – It should be noted that he agreement its importance to the Portuguese engineering of
generated around this technology seems to have that time. Even though the charting of a history
been relatively neutral regarding the cultural and of Portuguese RC structures is a task that falls
ideological differences advocated by the various outside the breadth of this paper, we will not able
factions supporting the regime. If we accept that to develop our argument without establishing
all those factions were dominated, in one form some common ground. In order to do this, we
or another, by the “great idea” of nation, we may will need to undertake a very brief discussion
assume with a high degree of certainty that the into the nature of the RC structural analysis and
guardians of the nationalistic systems of represen- design, as it was understood in the first decades
tation and symbolic expression of the State did of the 20th century. Supported by various authors,
not feel particularly threatened by the widespread namely Viseu (1993, 40) we may begin by stating
use of RC. that RC first years were marked by a historical
PC6 – In return, it is this pervasive unanimity coincidence, i.e., the fact that this system evol-
that may explain the RBA strength and cohesion. ved throughout the 19th century at about the
Despite their differences, the committee’s engi- same time that a specific branch of physics was
neers were able to distil a document that was so evolving. This branch was Strength of Materials,
articulate that it only came to be replaced only in or SoM. Since its inception, SoM was recognized
1967, thirty two years later, by the Regulamento to be suitable for buildings’ structural analysis.
de Estruturas de Betão Armado – Portuguese RC In fact, by the study of the interaction between
Structures Regulation – or REBA. Significantly, externally applied loads and their internal effects
on a given body, SoM allows the calculation of ministérielle du 20 octobre 1906 relative aux ou-
both deformation and strength. For this calcula- vrages en béton armé’ – the Ministerial Circular of
tion to be possible, certain conditions must occur, October 20th. Necessarily, RBA was also dedicated
regarding both the nature of the problems and the to this task. Its authors explained (p. 1496):
characteristics of the bodies. In short, the latter “Reinforced concrete forms a heterogeneous
should be: (i) elastic, returning to their original body. In order to allow the application of Strength
shape after undergoing a tension; (ii) linear, with of Materials standards to its constructions, we
deformations proportional to stresses; (iii) homo- use the artifice of turning reinforced concrete
geneous, with the same features throughout their into a homogeneous material, equivalent from
mass; and (iv) isotropic, with equal properties in the mechanics point of view. This is done by am-
all their directions. plifying the metal cross sections, multiplying
Elasticity, continuity, homogeneity, and iso- them by a coefficient m. This must result from
tropy allow the application of a finite set of rules: the ratio between the coefficients of elasticity of
(i) Hooke’s Law, or of linear elasticity; (ii) Ber- both constituents, provided that we do not take
noulli-Navier Hypothesis, or of assumption of into account the modification resulting from the
conservation of plane normal cross sections; and stressed concrete deformation.1”
(iii) Saint-Venant Principle, or of proportionality The contrivance of using the coefficient of equi-
of tensions in any given point of a section to its valence ‘m’ guaranteed the possibility of applying
distance to the neutral axis. The simple statement SoM principles (p. cit.):
of SoM rules is enough to recognize their unsui-
“When the yield point is not exceeded, the
tability for the analysis of certain structural mate-
proportionality between strains and stresses
rials. Timber, for example, does not have identical
(Hooke law) is assumed, as it is the Ber-
mechanical and resistant characteristics, when we
noulli hypothesis regarding the conservation
consider the angle of its fibres, along grain, and the
of flat sections and the consequent Navier
perpendicular direction, across grain. Timber is
law on proportionality between deforma-
therefore not isotropic, being called anisotropic,
tions and distances to the neutral axis.2”
and, as such, SoM rules do not apply to it. A for-
tiori, the same should happen with RC. Being a This type of structural analysis was designated
composite system resulting from the combination elastic approach. More recently it has also been
of two very different materials, concrete and steel, renamed classical method, as opposed to more
RC is by nature heterogeneous and anisotropic. recent approaches (Viseu 1993, 42), such as those
However, for lack of a better scientific support, 1
We will provide the original text of all quotes: “O betão armado
SoM laws were widely used for RC structural é um corpo heterogéneo; para tornar possível a aplicação das nor-
analysis, from the beginning of the 20th century mas de cálculo da resistência de materiais às construções com ele
and for some decades to come. This calculation executadas recorre-se ao artifício de o transformar em um material
homogéneo, equivalente sob o ponto de vista mecânico: e isto faz-se
was made in conditions that were fixed by direct amplificando as secções do metal pela multiplicação por um coefi-
observation, by laboratory experiments, and by ciente m, que deve ser a relação entre os coeficientes de elasticidade
theoretical models, both graphical and analytical dos dois elementos constituintes, desde que não se atenda à modifi-
cação produzida na deformação pelo betão tenso.”
(Viseu, 40). As it is easily inferred, most building
codes concentrated in setting these conditions. A 2
“Admite-se então, quando o limite de elasticidade não é excedido,
a proporcionalidade entre deformações e tensões (lei Hooke), e ain-
pioneer in such approach was the 1906 French da a hipótese de Bernouilli acerca da conservação das secções pla-
regulation, published by the so-called ‘Circulaire nas e a consequente lei de Navier sobre a proporcionalidade entre
deformações e as distâncias ao eixo neutro.”
used in the 1967 code that replaced RBA. We have For this collection of experiences, the report
conducted this short discussion regarding the singles out two countries, which were the United
type of structural analysis proposed by the RBA States and Germany, also listing the reasons for
code with one single goal, which was to establish this choice (p. 1493): (i) population and cultu-
and emphasize two important ideas: (i) in the re; (ii) “prodigious development” in RC building
1930s, a high degree of uncertainty was implicit works; and (iii) great amount of theoretical studies,
in the application of classical structural analysis experimental research, and publications on RC
methods; and, for that reason, (ii) a RC building structures. In addition to these two countries, the
code could not be imposed responsibly without report credited, in great detail, the regulations that
a firm grounding in the most accurate laboratory were compared for the RBA code drafting. We list
tests and in the most advanced theoretical models. them here, respecting both the alphabetical order
It is obvious today, as it was then, that this task and the onomastics used in the report: Austria; Bel-
should be only assigned to highly specialized gium; Czech-Slovakia; Denmark; England; France;
agencies. The report (p. 1494) considered that “this Holland; Hungary; Italy; Russia; Sweden; Switzer-
time-consuming and expensive toil [...] can only land. In short, an impressive number of fourteen
be achieved by permanent study committees, such different regulations were assessed. With greater
as those that happen to exist in other countries.”3 or lesser extent or depth, the committee compared
In the absence of such agencies in Portugal, and three values: (i) Coefficient of equivalence ‘m’ – “it
taking into account that the drafting committee is of prime importance in the reinforced concrete
had opted for a type of regulation that went beyond analysis; its determination is a subject that is, and
providing general information, aiming higher, i.e., will be for a long time, in study at laboratories
at stipulating “minute details regarding structural and in discussion at conferences”6 (p. 1497); (ii)
analysis principles, materials and their use”4 (p. Compressive fatigue limit and bending fatigue limit
1493), the solution was to reach out to other codes, – “establishing fatigue limits is certainly the most
in search of notions, concepts, and values adequate important and critical point of any reinforced con-
to the Portuguese case (p. 1495): crete building code”7 (p. cit.); and (iii) Shear stress
– “calculating shear stresses is a prime problem of
Any revision must be grounded in tests, ex- reinforced concrete constructions; most registered
periments and observations, which demand disasters stem from shear stress failure”8 (p. 1500).
not only time, but also special laboratories Apart from these analysis’ patterns, the committee
and numerous building works, both comple- used the same comparative and comprehensive
ted and under completion; otherwise there methodology to propose rules and references for
is only one sensible secure way to follow, and various constructive solutions which, due to their
this is to profit from the experience of others.5 design complexity, where hitherto seldom used,
3
“ […] tal labor, longo e dispendioso […] só pode ser executado por 6
“ […] é de primordial importância no cálculo do betão armado; a
comissões permanentes de estudo, que existem aliás noutros países.” sua determinação é um tema que está e estará por muito tempo em
estudo nos laboratórios e em discussão nos congressos”.
4
“ […] pormenores desenvolvidos sobre normas de cálculo, sobre os
materiais e sobre o seu emprego”. 7
“ […] a fixação dos limites de fadiga é certamente o ponto mais
importante e de maior responsabilidade de um regulamento de be-
5
“Qualquer modificação tem que ser firmada em ensaios, expe- tão armado”.
riências e observações, que demandam, além de muito tempo, la-
boratórios especiais e numerosas obras executadas e em execução; 8
“ […] o cálculo das tensões tangenciais constitui um problema
de outro modo só há um caminho judicioso e seguro a seguir, que primacial nas construções de betão armado; a maior parte dos
consiste em aproveitar a experiência alheia.” desastres ocorridos provém da insuficiência de esforço transverso”
not only in Portugal, but also in Europe. That was 24 de Maio, 731): (i) completion of both railway
the case of two-way slabs (p. 1502), and of waffle network and road network; (ii) airports; (iii) com-
slabs (p. 1503). mercial and fishing harbours; (iii) telegraphic and
Closing this account, we present the conclusions telephone networks; (iv) nationwide electrical grid;
concerning the establishment of RBA code, in (v) agricultural hydraulics, irrigation, and inland
correspondence with some of the cultural and settlement; (vi) schools and other State facilities;
ideological aspects that we have identified before: (vii) special repairs of national monuments; (viii)
(i) the RBA code merged all the regulatory develo- Lisbon and Porto development works; (ix) loans
pments of the most advanced countries, based both to overseas territories; (x) other undertakings that
on their laboratory tests and on the best practices could interest directly to the goals of the Act. It is
of that time; (ii) this effort of assessment of foreign easy to understand that the regime intended to
experiences was not only clearly stated in the report, achieve economic reconstruction through a State
but it was also deemed as suitable, appropriate, and stimulus that, de facto and de jure, was nothing
advisable; (iii) nothing was written to indicate a else than a vast public works programme.
desire or a need to impose a Portuguese way to Hence, the regime was planning to intervene
solve the problems inherent to RC technology; and on Portuguese economy in two concurring ways.
(iv) the two codes presented as main reference were Directly, it sought to increase opportunities in
from countries with regimes that were different all areas dependent of the construction sector.
from Portugal’s, and in contradiction with each Indirectly, it aimed to boost Portuguese inter-
other. The group formed by the remaining countries nal market, as it was severely hampered by the
amounted to a regime range that was even broader. deficiency of electrical and telecommunications
facilities, and especially by the infrastructural
4. THE RBA CODE AND THE 1930S failure of roads, railways, harbours, and airports
NEWLY BUILT ENVIRONMENT (Nunes 2008, 55). However, as in other countries
These conclusions should be read at the light such as the US or Italy, the main political goal of
given by those previously taken, concerning the this State intervention was an appeasement of
committee members’ biography and their close predictable social tensions, resulting mainly from
proximity to the ruling power. Besides, the con- unemployment issues. It is important to recall that,
clusions should be also taken into account when by a September 1932 decree, the Ministry of Public
assessing that he RBA code, primed with the “most Works and Communications – created only two
modern” (p. 1495) foreign regulations, served for months earlier, in July 1932 – earned part of its
the prosecution and design of all buildings in revenue directly from the Unemployment Fund,
Portugal from the 1935 on, including the extensive thru a tax with the same name (Nunes, p. cit.).
public works programme that the Estado Novo There is, however, one other political and social
regime would undertake. We know that the latter factor that has not been sufficiently discussed, and
were framed by the so-called Lei de Reconstituição that we want to emphasize here. Of all industrial
Económica – the 1935 Economic Reconstitution activities, civil construction seemed to be the most
Act. To reference this statement, and to give ac- able to accept, not to say to promote, an organiza-
count of the key plans and projects that the Go- tion of corporatist type. By the very nature of its
vernment intended to run in the following fifteen labour, civil construction has an inborn hierarchy
years, we may quote directly from the Act, namely of workers, by tradition organized as apprentices,
its 1st Base last paragraphs (Lei n.º 1914/35 de journeymen, and master craftsmen. This organi-
zation raises an almost self-evident assimilation of Estado Novo, as political regime? In our view, this
the concept of guild, or corporation, in which the question is a key for understanding Portuguese
mutual cooperation between various ranks within 1930s. Its answer, however, may be more difficult
the same skilled craft, often connected by family than its elaboration. We propose an example of
ties, admits and even encourages a swift, although such hurdle. While concluding a thorough and
constrained, climb up the social ladder. It seems comprehensive communication on the role of the
therefore that, to the corporatist Estado Novo, Portuguese engineering class in the first half of the
fostering public works allowed the advantages of 20th century, a historian wrote (Madeira 2000, 24):
engaging a large mass of labourers, simultaneou- Finally, it is important to acknowledge that
sly orderly, diligent, and highly ambitious, i.e., a the engineering class, though not tuned up by
multitude with high esprit de corps but with low the tuning fork of Salazar’s traditionalist and ba-
class consciousness. All this without the threats of a ckward thinking, [was] holder of a professional
proper Marxist union organization, easily bred and culture perfectly suited to the institutions and the
hidden inside the closeness of a factory, for example. political objectives of the Estado Novo regime
The public works programme was executed at [our emphasis].9
different territorial levels – national, regional, and It seems clear that only one of the assumptions
local. It encompassed a wide range of projects, and may be true. If Salazarism was traditionalist and
its magnitude has been emphasized by many his- backward – or, at least, just that – then the pro-
torians and critics. Regardless of the interventions’ fessional culture of the engineering class could
scale, the programme always implied the cons- not adjust to the institutions and the political
truction of buildings. What has not been stressed objectives of the regime, fully controlled by Sa-
enough is that this policy was largely supported lazar. One way to logically accommodate both
in a document, the RBA code, which recognized assumptions could be to say that the engineering
itself as debtor of a foreign superiority. Any list of classed was in tune with “Salazar’s traditionalist
the constructions built after 1935 has to face this and backward thinking”. But that would contradict
contingency. From the National Stadium to the all we have uncovered before, and also the very
expansion of the National Museum of Ancient ideas of the historian we have just quoted. As we
Art; from the maritime and fluvial stations to the have already realized, Portuguese engineers were
Lisbon airport; from the Alvalade neighbourhood far from being retrograde. One other way to join
to the Areeiro square; from university hospitals the contradicting statements could be to fully
to small town courtrooms; from high schools to erase the passage we have underlined. Inciden-
primary schools – all their structural analysis and tally, we believe that this would be the only way
design was executed according to the RBA code, to seamlessly merge the abovementioned phrase
the same that borrowed from the “most modern” of with the one that immediately follows it in the
other people’s experiences, whether they were from historian’s communication:
Russia or Italy, from the United States or Germany. An emphasis in technology, in organization and
How to dovetail this condition with the “grand in modernization allowed a focus on the issues of
idea” of nation and, ultimately, with nationalism, 9
“Finalmente, importa reconhecer que os engenheiros, embora não
which, as we saw, was a main unifying motif, afinem pelo diapasão do pensamento tradicionalista e retrógrado
do Salazarismo, são portadores de uma cultura profissional perfei-
both of Salazarism, as a corpus of thought and tamente ajustada às instituições e aos objectivos políticos do Estado
ideological and administrative action, and of the Novo” [our emphasis].
creation of wealth and of effectiveness, undoubtedly tiality could exempt it from contributing to, or be
critical in the 20th century Portuguese society.10 affected by, all polarities generated by such debates.
However, this removal would suggest an ideo- This apparent neutrality may have contributed to
logical neutrality for Salazar and its regime. Such the affirmation of Portuguese engineers as a ruling
suggestion would bleach them both, as if every- class, i.e., an élite of technocrats forming a parallel
thing in them could be seen as an investment in administration of the Estado Novo regime. By equi-
technology and progress. In other words, as if it pping Portugal with new buildings, infrastructural
was possible to cleanse them from all “traditio- works, and telecommunications, this élite provided
nalist and backward” factors, which reportedly Salazar with a two-faced mask:
they used, pledged, and proclaimed. The immediate face – displaying technological
neutrality – presented the tasks as something that
6. CONCLUSION: RBA AS A CASE OF had to be done in Portugal, as soon as possible,
“REACTIONARY MODERNISM” with the best possible contributions, regardless
of the regime in power.
For that reason, it seems that an assessment
Its reverse face – in ideological and cultural
of the mutual impacts between the ideological,
overload – asserted that these tasks, intended
cultural and technological aspects in the Portu-
for the nation’s glorification, could only be made
guese built environment of the 1930s has to rely
through the firm will and the steady action of the
on what, for observers in the second decade of
Estado Novo regime.
the 21st century, appears to be a contradiction:
A regime, we recall, that in the 1930s presented
at that time and in that place, components of two
itself in a very particular manner, i.e., as autho-
distinct trends coexisted, being one conservative
ritarian, corporatist, colonialist, and nationalist.
– or even reactionary –, and modernizing, the
The condition of double mask allows to present
other. We once again recall the biography of the
the 1935 RBA code as a case of Reactionary Mo-
RBA committee engineers, through which we have
dernism, as outlined by Herf (1984) , i.e., as an
remarked that their obvious desire to modernity
uncanny combination of enthusiasm for modern
did not prevent them from gaining access to the
technology and refutation of the Enlightenment
regime’s higher seats of culture and ideology,
as cultural progress – merged with a dismissal of
such as universities or advising chambers. As the
the values and institutions of liberal democracy.
regime, it seems that one person could be both
In Portugal, however, the situation gathers specific
conservative and modernizing – at the same time.
shades because, as we saw, the regime granted to
This notion challenges one critical tool that has
the engineering class the prerogative of lingering
been widely used by Portuguese architectural his-
in the appearance of cultural and ideological neu-
torians dedicated to the 1930s, i.e., the dichotomy
trality. We believe that this appearance marks the
between “culturalist” and “progressive”, seen as two
class, to this day.
opponent fields (Almeida et al. 1993, 73-89). Never-
This was a privilege that the regime intended
theless, we have to admit that, every so often, modern
for engineers, but denied to architects. The
technology seems to advance free from ideological
latter were assigned a different task, and that
and cultural confrontations, as if an intrinsic impar-
was to meddle in cultural polarities, in order
10
“O enfâse na tecnologia, na organização e na modernização to figure an agreement between modernity and
permitiu centrar a atenção nos temas da criação da riqueza e da
eficácia, questões sem dúvida candentes na sociedade portuguesa tradition, between the New Portugal and the
do século XX.” Old Country. The corollary of this effort would
be the Portuguese World Exhibition, in 1940, particular age in the history of the Portuguese
marking the dawn of the 1930s decade, a very built environment.
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talitária – “Ars Arquitectos”: cultura, ideologia e
RESUMO
O casario da Rua do Catete, protegido pelo órgão de preservação brasileiro, é representativo de uma
arquitetura que se difundiu pela cidade do Rio de Janeiro desde meados do século XIX até princípios do
XX, comumente denominada arquitetura menor ou popular. As técnicas construtivas empregadas em
sua construção, fruto do contexto político, econômico e social da época, eram reproduzidas com apuro
pelos mestres artífices, principal mão de obra executora destes exemplares.
No campo da preservação de bens arquitetônicos, é comum o entendimento de que a manutenção de
suas técnicas construtivas históricas é fundamental para assegurar o desempenho da arquitetura como
documento histórico, bem como a sua autenticidade. Não obstante, é ainda assim comum, assistirmos
ao desaparecimento destes registros materiais, especialmente em função das dificuldades inerentes à
gestão de conjuntos urbanos tombados. Pautado em pesquisa documental e em bibliografia específica,
esse artigo presta sua contribuição ao revisitar os manuais de construção da época, do respectivo pa-
drão construtivo, de modo a resgatar sua memória e ainda subsidiar a reflexão e novos olhares sobre a
prática da preservação.
1. A RUA DO CATETE
Até meados do século XIX, o Rio de Janeiro era No entanto, já neste momento observa-se um
uma cidade contida entre morros e dividida em movimento de figuras das classes dirigentes na
freguesias. A população concentrava-se, em fun- direção de freguesias localizadas ao sul da cida-
ção da dificuldade de mobilidade e da necessária de, seguindo um movimento da rainha Carlota
proximidade com o trabalho, majoritariamente nas Joaquina, que morava na freguesia de Botafogo.
freguesias da Candelária, São José, Sacramento, Esta fatia da população, que pela renda mais alta,
Santa Rita e Santana, áreas que hoje correspondem possuía maior poder de mobilidade, procurava
aproximadamente à região central e portuária ares mais calmos, longe da aglomeração urbana
da cidade. As demais freguesias tinham caráter da área central. Em consequência, as áreas mais
rural e suas plantações abasteciam a população próximas das freguesias urbanas começaram a
concentrada nesta região central. (Abreu, 2013) ser divididas em chácaras, que primeiro serviam
às atividades de final de semana desta classe di- XIX e princípios do XX. O período relativo a esta
rigente, mas que foram aos poucos se transfor- virada de século foi de grandes transformações
mando em residências das classes mais abastadas. na malha urbana da cidade. A implantação de
(ABREU, 2013) linhas de bondes puxados a burro facilitou o des-
O atual bairro do Catete fazia parte da freguesia locamento para as freguesias ao sul da cidade e
da Glória (Lapa, Catete e Glória), e era um destes a disponibilidade de linhas de trens possibilitou
locais procurados pela alta classe, recebendo luxu- a ocupação das freguesias ao norte. A primeira
osas construções. Exemplo ainda hoje existente é o linha de bondes inaugurada, em 1868, ligava a
Palácio do Catete, originalmente Palácio de Nova Rua Gonçalves Dias ao Largo do Machado, ou
Friburgo, construído entre 1860-1862, para servir seja, a área central à freguesia da Glória (Abreu,
como residência dos Barões de Nova Friburgo. 2013), fato que evidenciava a importância da
Trata-se de uma residência típica da nobreza do freguesia que hoje comporta a área do Catete.
Segundo Reinado, enriquecida pelo café e dotada No âmbito nacional, alguns acontecimentos vão
de propriedades e escravos.1 marcar de forma definitiva os rumos do país,
O Palácio está implantado no antigo Largo do como a transição do Império para a República,
Valderato, um trecho de alargamento de rua, que proclamada em 1889; a substituição de uma mão
abrigava um chafariz público. Diz a lenda que o de obra escrava, abolida em 1888, para uma classe
Palácio, mesmo situado em um grande terreno trabalhadora assalariada; a implantação de uma
ajardinado, foi implantado junto à rua por von- política imigrantista de relevo, que visava, entre
tade da Baronesa, apesar de haver controvérsias outros objetivos, suprir a demanda de mão de obra
desta versão. Em suposta conversa da Baronesa nas lavouras; a abertura do Brasil para a entrada
com o marido, esta teria dito: “Ó barão, pensas de capitais estrangeiros, que vinha de encontro aos
que vou descer lá da fazenda, no meio do mato, interesses dos países europeus, que enfrentavam
para viver aqui cercada de mato também? Quero fase crítica do capitalismo, e com isso, passaram
a casa dando janelas para a rua.” (GERSON, 2015) a exportar tecnologias para modernizar o país; e
Nesta época, fosse ou não verdadeira a intenção ainda, o início de uma situação mais propícia à
enunciada, provavelmente a Baronesa via de suas industrialização, apesar da economia continuar
janelas uma rua ladeada de “pequenas chácaras e girando em torno da exportação de produtos
alguns sobrados ainda em aspecto marcadamente agrícolas, cultivados em latifúndios.
colonial”2, e pelo pouco tempo que residiu no Estas mudanças de relevo no contexto polí-
Palácio3, não pôde assistir à transformação por tico, econômico e social do período vão atingir
que passaria o Rio de Janeiro de forma geral, e a diretamente a capital, que precisava melhorar
Rua do Catete, especificamente, em fins do século sua imagem a fim de assegurar o escoamento da
própria produção, garantindo a sua inserção no
1
O Palácio Nova Friburgo. Estudo elaborado pela divisão de His- mercado internacional. Este propósito vai impul-
tória do Museu da República. Arquivo Central do IPHAN, Caixa sionar e justificar as grandes reformas urbanas do
RJ008/1/01, Série Inventário, fls 10 a 30.
início do século XX empreendidas na gestão do
2
Idem. presidente Rodrigues Alves (1902-1906), e que
3
O Barão de Nova Friburgo faleceu em 1869 e a Baronesa no ano atingirão o seu ápice com a abertura da Avenida
seguinte, ficando o palacete de posse de seus filhos. O imóvel mudou Central. As reformas urbanas empreendidas pelo
de proprietários algumas vezes até ser recebido pelo Governo Fede-
ral em 1895, passando a servir como sua sede até 1970, quando da
então prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira
transferência da Capital Federal para Brasília. Desde então, e até os Passos, buscavam afastar a imagem de cidade insa-
dias atuais, abriga o Museu da República.
rências bibliográficas, pois provavelmente serviam se referindo, grosso modo, à proteção das caracte-
de referência aos mestres artífices - mão de obra rísticas externas (fachadas e cobertura) e, quando
mais atuante na construção desta arquitetura mo- era o caso, das características internas (interiores).
desta. Cumpre destacar que os mestres artífices,
neste período, constituíam uma mão de obra mais 2.1. FACHADAS
qualificada, se comparada ao período anterior,
As fachadas que compõem o conjunto tomba-
devido a uma política de formação profissional,
por meio de instituições de ensino5, e a uma po- do são em geral de alvenaria (pedra ou tijolo),
lítica imigrantista, que substituiu trabalhadores revestidas de argamassa, com frisos e/ou ornatos
escravos, sem nenhum tipo de instrução, por uma aplicados e o principal acabamento é a pintura.
mão de obra dotada de um novo “saber-fazer”. A ornamentação é singela, com a reprodução de
(Melo, 2006) elementos clássicos da arquitetura; alguns poucos
É notável a presença de imigrantes portugue- apresentam decoração mais sofisticada, com maior
ses no período de 1884 a 1940, cujo número só quantidade de elementos aplicados.
era superado, com pequena desvantagem, pelos Dos 34 imóveis tombados, 4 possuem fachadas
italianos (Alvim, 1998). Em relação aos portu- muito descaracterizadas (nº 144, 190, 192 e 194),
gueses, Ribeiro (1990) afirma que entre 1884 a apesar de algumas poderem passar despercebidas.
1930, entram quatro vezes mais imigrantes desta É o caso dos nº190 e 192 que, segundo Informação
nacionalidade que entre os anos de 1820 a 1883. nº 111 datada de 16.07.1963, não apresentavam,
O imóvel situado na Rua do Catete, nº181, que já naquele momento, “qualquer interesse plástico,
atualmente abriga o Museu do Folclore, tem esse sendo portanto enquadrado [...] para um apri-
registro na declaração do arquiteto responsável moramento futuro” [sic]. Na Informação citada
pelo projeto e acompanhamento das obras de o arquiteto manifesta-se contrário ao projeto
1983, Alcides Rocha Miranda: apresentado, de “gosto moderno”, para instalação
de uma agência bancária no imóvel nº190. Após
Do ponto de vista do dia-a-dia do trabalho, negociações, somente em 1971, é aprovado projeto
a experiência foi importante porque, tendo que “procura uma reconstituição de uma frontaria
a casa sido construída por um português, da época, com a utilização de elementos, guarni-
ao nos aproximarmos do mestre que traba- ções de vãos, grades, esquadrias, tiradas de outros
lhou na restauração, patrício do primeiro, prédios em vias de demolições” (Informação nº
procuramos respeitar a história daquela 108). Retoma ainda o alinhamento frontal, em
construção. Ao mesmo tempo, estávamos concordância com as demais fachadas.
contribuindo para mostrar a importância
Aliás, atualmente, o imóvel de nº 192 é o único
desses profissionais em qualquer construção.6
do conjunto que não encontra-se no alinhamento
Para abordar o método construtivo destes sobra- frontal do lote. A maior parte dos imóveis são
dos, sistematizamos as categorias de acordo com colados ainda nas divisas laterais do lote, com
os critérios de análise do órgão de preservação na exceção do nº160, um dos exemplares de destaque
aprovação ou não das intervenções nos imóveis, do conjunto, que possui molduras dos vãos em
5
Os Institutos Profissionais e as Escolas de Aprendizes Artífices. cantaria e ornatos caprichosos. Não foi possível
levantar muitos dados a respeito da configuração
6
Instituto do Folclore inaugura nova sede do Museu Edison Car-
neiro. Arquivo Central do IPHAN, Caixa RJ012/2/01, Série Inven- das fachadas dos fundos por meio da documen-
tário, fls 7 e 12. tação consultada.
calçada, dotados de guarda-corpo de ferro, fun- De fato, verifica-se este recurso empregado
dido ou forjado, e corrimão de madeira. São 24 extensivamente no conjunto tombado, em 29
imóveis que possuem esta característica, sendo dos 34 imóveis. Este traço em comum, deve ter
que há mais 6 imóveis, cujas sacadas se encontram sido fruto da destinação ao uso comercial do
revestidas/pintadas, não se podendo assegurar a pavimento térreo, já na época da construção dos
presença da cantaria. exemplares. Interessante notar que mesmo os
Provavelmente são poucas as esquadrias do ca- imóveis que receberam portas de enrolar no pa-
sario da Rua do Catete ainda originais da constru- vimento térreo, procuraram manter as bandeiras
ção. Nos pavimentos térreos, 25 imóveis possuem com suas grades de ferro. Aliás, elementos de ferro,
portas de enrolar de ferro em pelo menos um dos caprichosamente decorados, são encontrados em
vãos, algumas descaracterizando inclusive os vãos quase todos os exemplares, seja nas bandeiras, nos
originais. No entanto, percebe-se que grande parte guarda-corpos ou nas esquadrias.
das esquadrias segue uma linguagem compatível As fachadas, em linhas gerais, apresentam um
com os recursos da época, conforme podemos gosto mais clássico em sua decoração, com frisos,
notar na bibliografia de base deste estudo, ca- cimalhas, mísulas, rusticados e cunhais marcados,
racterizando-se pelo emprego de duas folhas de mas se verifica exemplares com maior variedade
madeira, com venezianas, almofadas e caixilhos de ornatos aplicados, expressando com mais no-
de vidro, podendo ou não serem dotadas de ban- tabilidade o gosto pelo ecletismo. No conjunto
deiras. Em 33 imóveis temos esquadrias com estas temos exemplares bem classicizantes, como os
características, sejam somente almofadadas ou nº 152 e 154, e outros com referências distintas,
combinando recursos de ventilação (venezianas) como o exemplar nº182/184, em estilo neogótico.
e/ou iluminação (vidro). Estas possibilidades eram A técnica utilizada na produção de ornatos foi
viabilizadas pelo melhor trabalho com a madeira, o estuque, material barato e de rápida execução,
em função do aparecimento das serrarias mecâ- largamente difundido a partir do século XIX. Estes
nicas, que permitia uma produção mecanizada ornatos podiam ser executados no local ou mo-
de portas e janelas já no início do século XX. delados previamente e posteriormente aplicados.
Sobre os vidros, no final do século XIX começou O estuque era constituído por uma argamassa de
a generalizar-se seu uso nas residências, visto que gesso, cal ou cimento (ou uma combinação destes)
até a década de 1870 estes eram extremamente + areia (ou não) + água, que podia receber no caso
custosos. (Vasconcellos, 1979). dos ornatos em relevo e aplicados, um elemento
O emprego de venezianas e vidros nas esqua- estruturante, seja desde pêlos ou fibras vegetais
drias vinha de encontro com a preocupação vi- até estruturas em madeira e telas metálicas tipo
gente com salubridade, higiene e comodidade Deployée.
nos imóveis, pois permitiam maior eficiência na No caso dos ornatos aplicados, a execução era
ventilação e iluminação dos cômodos internos, feita a partir de um modelo original em gesso do
especialmente os de uso residenciais. Não obstante, qual se tirava o molde para a sua posterior repro-
o uso comercial também demandava cuidados, dução. Já as molduras e os perfis (frisos, cimalhas),
como regulamentava o Decreto nº391/1903 para podiam ser feitos no local, por meio do uso de um
as casas comerciais: “Art. 23. Terão sobre as portas molde de madeira dotado de uma chapa de ferro
e janellas bandeiras abertas com grades de ferro, galvanizado ou zinco, com o desenho de perfil
com a altura mínima de cincoenta centímetros desejado, que corria sobre duas réguas fixadas
para conveniente ventilação.” [sic] no local. (SEGURADO, s/d.a)
sendo que neste caso, o vão não deveria exceder a escada de madeira de lance em serpentina
4,0m (Segurado, s/d.c) e forma encurvada, guarnecida de balaus-
Para o assentamento do tabuado corrido no tres torneados [sic]; os pisos de ladrilhos de
térreo da construção, os barrotes podiam ser mármore bicolor, com desenhos diferentes no
dispostos sobre os baldrames, espaçados em tor- ‘hall’ e caixa da escada; a barra de azulejos
no de 0,30m a 0,50m, sendo sobre eles assentes marmorizados formando painéis que guar-
as tábuas, fixadas a prego (Vasconcellos, 1979). necem as paredes do ‘hall’ [...] (grifo nosso)
Podiam também, conforme especificação de Se- Entretanto, o imóvel não resistiu ao abandono e
gurado (s/d.c), recorrer ao uso de um sarrafado à morosidade de ação dos proprietários, de forma
de madeira embebido em argamassa hidráulica que seu telhado desmoronou em 1972, seguido
para se pregar as tábuas do soalho que se desejava de uma demolição criminosa em 1975. Em 1977
assentar. O Decreto nº391/1903 vai regulamentar resta somente sua fachada principal. Um registro
em seu Art. 16, que a altura do porão não será fotográfico, encaminhado por documento datado
menor que 0,60m, nem maior que 3,00m contados de 18 de dezembro de 1975, realizado pelo Chefe
da superfície impermeável do térreo até a parte da SP12, é extremamente rico do ponto de vista
inferior dos barrotes. Em seu §Iº diz que “quan- do registro de suas técnicas construtivas, apesar
do não houver porão, o chão será ladrilhado ou do estado de arruinamento naquele momento.
cimentado, podendo ser coberto por um soalho No imóvel de nº196 foi conservado trecho do
que corra no máximo a doze centímetros acima piso de mármore bicolor, bem como a escada em
do chão impermeável.”[sic] madeira de acesso aos outros pavimentos. No
Os ladrilhos hidráulicos eram largamente utili- imóvel nº181 também foi conservada a escada em
zados, sobretudo em áreas ditas “molhadas”, como madeira e ainda trechos de ladrilhos hidráulicos
em cozinhas e banheiros, e também em áreas decorados. De forma geral, as escadas internas de
externas, como varandas e pátios, ou em áreas madeira, tinham peças bem recortadas e apare-
destinadas para fins comerciais. Estes ladrilhos lhadas, e balaústres torneados e ornamentados.
podiam ser lisos, apresentar desenhos geométricos, Era comum, quando a escada se iniciava sobre o
simples ou de composição mais complicadas, até piso térreo, executar o seu primeiro degrau em
ramagens, sendo, sempre estilizados e repetidos; pedra, a fim de se preservar a madeira da ação
suas medidas variavam, em geral, de 0,15m x da umidade. Este primeiro degrau deveria ter
0,15m a 0,20m x 0,20m e apresentam 2cm de maior largura que os demais e receber uma forma
espessura. (Segurado, s/d.b) arredondada nas extremidades, partindo-se deste
Nos imóveis do Catete, houve tentativas de então, as pernas da escada, conforme recomenda
preservar alguns pisos em mármore no pavimento Rainville (1880).
térreo, localizados na área da escada ou vestíbulo. Em relação aos forros, eram basicamente dois
Em um documento sem número, datado de 07 os tipos mais difundidos nestas construções, o
de agosto de 197411, após análise do projeto de tabuado de madeira e o estuque, cuja validade
intervenção, o Chefe do Setor de Obras orienta, pode ser confirmada pela imagem acima (Fig.2),
em relação ao imóvel nº154, a necessidade de apesar de não termos conseguido muitos regis-
conservação integral e recuperação dos seguintes tros no conjunto tombado. Os forros de madeira
elementos: consistiam em tábuas aplainadas somente na face
11
Arquivo Central do IPHAN, Pasta nº2409/596, Série Obras, fls 12
Arquivo Central do IPHAN, Pasta nº2410/597, Série Obras, fls.
2616 e 2617. 2700.
Fig. 2 – Registro fotográfico do imóvel situado na Rua do Catete, nº154, encaminhado por documento datado de 18 de dezembro de
1975 (Acervo Arquivo Central do IPHAN).
visível, que eram pregadas no próprio barrotea- base menor; distanciadas em torno de 0,01m entre
mento do piso superior, sendo que no último forro si. A face inferior do fasquiado deve formar um
fazia-se uso de um barroteamento próprio junto plano horizontal, onde se executava em seguida o
à cobertura. As tábuas dos forros diferiam-se das enchimento do teto à pá e aplicava-se posterior-
de piso pela qualidade, “sendo de madeira menos mente o estuque. Tanto neste tipo de forro, como
rígida, mais macia ao trabalho, como o cedro, o naqueles de madeira, para se estabelecer uma
vinhático e outras por serem menor em largura, transição entre o teto e as paredes utilizavam-se as
variando em torno de 0,30m e de menor espessura sancas (também chamadas cimalhas) - elemento
(0,015 e 0,02m)” (Vasconcellos, 1979, p.95). Os que se desenvolve no perímetro do teto e que
forros mais comuns eram do tipo saia e camisa. apresenta sempre a superfície perfilada, sendo
Já os forros em estuque eram destinados às salas mais ou menos ornamentado de acordo com a
e dependências, ambientes de maior valorização decoração do ambiente.
social, pois a fácil trabalhabilidade do material,
permitia executar uma vasta sorte de elementos 3. SOBRE PRESERVAÇÃO
decorativos. Em exemplares mais luxuosos estes A proteção do casario da Rua do Catete resulta
forros eram ricamente decorados, mas em cons- de uma extensão do tombamento, realizada em
truções mais modestas, a ornamentação podia se 1962, do Palácio do Catete, realizado em 1938,
limitar a molduras e frisos. tendo inscrições nos Livros de Tombo Histórico e
Conforme Segurado (s/d.c), a execução do forro de Belas Artes. Ambos, o Palácio e o conjunto de
de estuque devia ser feita a partir da fixação de casas, são objetos do mesmo Processo de Tomba-
fasquias de seção trapezoidal à parte inferior das mento nº153-T-38, em cuja identificação de capa
vigas, dispostas normalmente a elas e assentes pela consta “Casa: Catete (rua), Palácio do Catete, atual
Museu da República. Lanços de casas nºs 126 a [...] à época do antigo Distrito Federal foi
196 e 179 a 187”13. projetada a construção de uma nova aveni-
A motivação inicial da proteção deste conjunto da para ligar a Glória à Lagoa – a Avenida
de imóveis, que totalizam 34 unidades, não é ex- Radial-Sul -, cujo traçado implicava a de-
pressa, já que o Volume I do referido processo, que molição de quase todos os prédios da Rua
possivelmente indicaria algum dado mais preciso, do Catete. Na época só estava tombado o
encontra-se extraviado desde a década de 1960. Palácio do Catete, mas o Instituto foi con-
Contudo, a partir da leitura dos documentos da trário ao projeto, estendendo a medida aos
“Série Obras” e de notícias de jornal guardadas no prédios do lado de numeração par. / Poste-
Arquivo Central, podemos depreender algumas riormente foi criado o projeto do Parque do
das primeiras intenções de proteção, bem como Flamengo, com suas pistas que substituíram
alguns direcionamentos que tomaram as ações a Avenida Radial-Sul, ficando esta defini-
de preservação do conjunto. tivamente cancelada. Para não prejudicar
É sintomático o teor da Informação Técnica demasiado os proprietários dos prédios, o
nº111 de 16.07.196314, que reproduz trecho do Instituto concordou com a construção de
parecer do arquiteto Lúcio Costa, aprovado pelo uma pequena rua nos fundos da Rua do
Conselho Consultivo do IPHAN, em que consta: Catete, já que todos os lotes são de gran-
de metragem. Alguns edifícios já surgiram
Com essa integração do conjunto urba- ali, mas guardam as distâncias necessárias
no, [...] conseguir-se-á não apenas manter para não desfigurar o aspecto arquitetôni-
a atmosfera peculiar local, graças à per- co do conjunto arquitetônico.” (grifo nosso)
manência das casas da época ali contidas
cujo tratamento arquitetônico seja dig- Esta distância, de que tratava Renato Soeiro,
no de preservação, como ainda apurá-lo vinha indicada na própria certidão de tomba-
com a reposição das demais a sua feição, mento, e era citada em vários pareceres técnicos.
aproveitando-se para tanto elementos de Tratava-se de uma faixa de 20m de profundidade,
fachadas de casas que venham a ser de- a contar da fachada pela Rua do Catete, sendo
molidas noutros logradouros, inclusive, que a partir deste limite, as construções deveriam
eventualmente, a transferência intergral obedecer ao P.A. (Projeto de Alinhamento) nº7994,
de frontarias que se adaptem ao lugar. aprovado pelo Decreto “E” nº32 de 16.07.63. Este
P.A. estabelecia o gabarito de 12 pavimentos na
No Jornal O Globo, de 25 de janeiro de 1974, na Rua do Catete, com exceção do trecho em frente
notícia intitulada “Na Rua do Catete, um museu ao Palácio do Catete, entre as ruas Silveira Mar-
arquitetônico do século XIX”15, as informações tins e Correia Dutra, cujo gabarito seria de 10
prestadas por Renato Soeiro, Diretor do IPHAN, pavimentos. (Prefeitura, 1982, p. 140). Parece-nos
revelam com bastante clareza as políticas inicias que a delimitação dos 20m a partir das fachadas
relativas à proteção do conjunto: visava contemplar a área ocupada pelos prédios
13
Uma rerratificação do tombamento, em 2011, incluiu o nº124, existente, diante desta possibilidade de construção
por se tratar de construção geminada ao nº126. de prédios aos fundos do terreno, e que dariam
14
Arquivo Central do IPHAN, Pasta nº2440/606, Série Obras, fls. frente para uma rua projetada paralela à Rua do
3981. Catete.
15
Arquivo Central do IPHAN, Caixa RJ011/1/01, Série Inventário, Com exceção desta diretriz expressa e da Portaria
fls. 50. nº08 de 15 de junho de 1977, que vai regulamentar
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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gueses e os conflitos de trabalho na República Ve-
lha. São Paulo: Editora Brasiliense. 1990.
RESUMO
O presente trabalho insere-se no conjunto de estudos históricos sobre a formação dos profissionais da
cadeia produtiva da construção civil. O objetivo da pesquisa é contribuir com o preenchimento de uma
lacuna histórica: registrar, analisar e propor novos processos formativos para os construtores, os respon-
sáveis pela efetiva materialização da arquitetura, pois, no caso brasileiro, a bibliografia existente está
voltada para a formação de arquitetos e engenheiros.
Ao avançarmos no contexto de estudo (estado de São Paulo, Brasil, últimos 116 anos), verificamos que
há períodos e espaços formativos distintos para formação dos construtores, podendo ser classificados
por suas características processuais (há escolas, liceus, canteiros-escolas, centros de formação, cursos
profissionalizantes e etc.). Identificamos iniciativas que contribuem para a ampliação da autonomia dos
trabalhadores, e sua emancipação, e por outro lado, para ampliação de sua dependência dos dirigentes
do processo construtivo (arquitetos e engenheiros), focando sua formação em treinamentos operativos.
A partir da pesquisa das experiências formativas em fontes bibliográficas, registros em arquivos históri-
cos e entrevistas com atores centrais do contexto pregresso, encontramos elementos que nos permitiram
compor roteiros para ensaios de processos formativos que buscam ampliar a autonomia dos construtores,
pela promoção de cursos livres denominados “Canteiros-Escola”.
Com o objetivo de disponibilizar e compartilhar dialogicamente os resultados da pesquisa nos aproximamos
de grupos que organizam processos formativos emancipatórios em canteiros de obras. Buscamos assim,
pela práxis, alçar melhor compreensão da formação dos construtores, vivenciando suas potencialidades
e limites. Realizamos dois ensaios de “Canteiro-Escola”: um para construção de espaço cultural e outro,
para construção de viela publica, em loteamento urbano popular.
A associação da investigação histórica com a pesquisa aplicada permite-nos dialogar diretamente o
material histórico com as experiências do vivido – isto é, um presente que se compõe e se insere no
processo histórico.
Pretende-se com a organização, registro, analise, publicização e debate das experiências ensaiadas, arti-
culadas no contexto da narrativa histórica, contribuir para a criação de novos cursos emancipatórios,
principalmente aqueles inseridos em politicas publicas de formação profissional de trabalhadores da
construção. Por exemplo, encontra-se em pactuação junto às Prefeituras de Santo André, e São Bernardo
do Campo a criação de “Canteiros Escolas” públicos permanentes.
Pierre Bourdieu6 e Paulo Freire7, estudiosos da As ações pedagógicas que contribuem para a
pedagogia - em caráter geral, não apenas e espe- ampliação da autonomia dos construtores são
cífico dos construtores - o campo da educação é aquelas que formam para além da execução das
lugar de disputas, conflitos, entre duas concepções atividades físicas de elevação de alvenarias, pin-
de ensino, cada qual a orientar os educandos a tura, escavação e etc. Expandindo para a gama
trilhar um caminho. Há a concepção que busca, de conhecimentos do campo da organização e
por meio da critica ampliar a autonomia junto comando das atividades de obras, tais como o
dos educandos avançando suas praticas sociais desenho, o cálculo, a quantificação, a orçamen-
pelo exercício da liberdade e da igualdade. Esse tação dos valores do trabalho e a elaboração de
caminho visa contribuir com sua emancipação. cronogramas de obras. Ou seja, saberes necessários
A outra concepção objetiva efetivar, por meio da para a elaboração de projetos, apenas presentes
ampliação da heteronomia dos educandos, consoli- na formação de arquitetos. Desse modo há a pro-
dar e aprofundar a realidade desigual estabelecida moção de um processo de aprendizado unitário
e a dependência de um grupo social sobre outro. e integral9.
No campo da construção civil o arquiteto e A forma pedagógica que amplia a heteronomia
urbanista Sergio Ferro trabalha os conceitos de dos construtores é aquela voltada para a perfeita
autonomia e heteronomia8 dos construtores em “O execução das tarefas de obra, de forma especia-
Canteiro e o desenho”, escrito em 1976. Trata-se lizada, também com conhecimentos acerca do
este do referencial teórico central para o presente desenho, do projeto de arquitetura, mas apenas de
trabalho. sua leitura e interpretação, de modo que possam
compreender com exatidão os comandos do ato
de construir.
6
Em “A distinção” Bourdieu apresenta-nos o processo de distinção Ou seja, temos aí a reafirmação do ensino dual,
das classes, pelo Capital Cultural. O ensino, junto de outras ações
pode fazer frente a isso, mas isoladamente não, essa é sua tese rea- separado, onde um grupo social se forma apenas
lizada em distintos bairros de paris, de cada lado do rio. Ele cria para operar o trabalho (construtores), e outro
a noção de “Campo”, lugar de disputa social, segundo concepções grupo social se forma apenas para o comando
diversas. Em nosso campo trata-se do ‘campo’ da formação profis-
sional dos trabalhadores da construção civil.
do trabalho (arquitetos).
Cada forma de construir, com autonomia ou
7
Paulo Freire elaborou como publicação ultima o escrito “A peda-
gogia da autonomia”.
heteronomia, impacta diretamente na obra reali-
zada. John Ruskin versa sobre essas características
8
“Heteronomia: ‘condição de pessoa ou de grupo que receba de um
do trabalho, a partir de como se dá a relação dos
elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho à razão,
a lei a que se deve submeter’. Não inclui lei escolhida e assumida, construtores com a obra em realização em ‘A Na-
razão própria: é determinado por ausentes que, de algum ponto tureza do Gótico’ de 1851. Ele classifica a execução
da sequência de heteronomias, impõem a cada um o movimento os ornamentos do seguinte modo:
separado. Diminuída a distância, perdida a imagem de concate-
nação endógena, o movimento mostra que é movimento de quase 1. O ornamento servil, no qual a execução
ensimesmados teleguiados, desenha uma espiral cujo nó interior
é a solidão pendurada a uma vontade distante. Incoerentemente, ou o poder do trabalhador inferior é inteira-
ainda dessa distância menor, a ação conta passividade. O objeto mente submetido ao intelecto do superior; 2.
à procura de corpo, o modo e a cadência de sua incorporação são O ornamento constitucional, no qual o poder
dados como que celestes, despejados das alturas dos artistas, dos
proprietários, dos sábios. Como barra, interpõe-se entre operário e inferior executivo é até certo ponto eman-
operário, entre equipe e equipe, entre sujeito e sua força de trabalho. cipado e independente, e tem vontade pró-
Como cadeia, ceifam o impulso nem bem esboçado ou já desistido pria, ainda que confesse a sua inferioridade
de nascer, retendo somente o programado ato – assim falho”. (FER-
RO, Sérgio. O Canteiro e o desenho, 1976, In: 2006, p.117). 9
Explicar esse unitário e integral.
Fig. 1 – Aula de desenho; Fig. 2 – Oficina dos ferreiros artísticos, c. 1910. In: ‘Pinacoteca: a história da Pinacoteca do Estado de São Paulo’.
e preste obediência a poderes mais elevados; complexidades atuais da luta dos trabalhadores
3. Ornamento revolucionário, no qual ne- da construção civil pela ampliação da autonomia
nhuma inferioridade executiva é admitida”. em seu fazer profissional, que em caráter social
significa sua emancipação.
Cada forma de trabalho seja a autônoma ou a
heterônoma é a expressão da organização social
2. PESQUISA HISTÓRICA: SÃO PAULO,
de determinado grupo. Por exemplo, uma obra
BRASIL, SÉCULOS XX E XXI.
erguida por uma empreiteira de grande porte
possui construtores organizados segundo a forma ANTECEDENTES E A ESCRAVIDÃO
hegemônica da heteronomia, enquanto que, por
Nos séculos XVI e XVII que antecedem o pe-
exemplo, uma obra realizada em regime de mu-
ríodo onde focamos os estudos é possível iden-
tirão, organizada por movimento popular de luta
tificarmos a gênese das características pedagógi-
por moradia, possui construtores organizados de
cas presentes nos dois caminhos formativos de
forma autônoma, autogestionária.
ampliação da autonomia ou da heteronomia. Por
Nossos estudos históricos identificaram os espa-
exemplo, nesse tempo, há indícios de que a função
ços formativos que contribuem para a ampliação
pedagógica da autonomia orbitava as reduções
da autonomia ou da heteronomia na formação dos
jesuíticas. Tem-se noticia de que o processo de
construtores. A partir dai optamos por aprofun-
aprendizado dos milhares de guaranis em dadas
dar a pesquisa nos espaços formativos do campo
situações permitia-se ser aberto, unitário e livre,
da autonomia, por percebermos serem lugares
realizado em oficinas ou nas próprias obras, segun-
passiveis de ampliação da liberdade e da igual-
do os métodos e técnicas tradicionais europeias
dade, máximas do pensamento critico filosófico
com mescla de conhecimentos que lhes eram
e cientifico nas ciências humanas.
próprios.
Como também assumimos como método de
Por outro lado e ao mesmo tempo, no campo da
pesquisa o materialismo histórico dialético, nossos
formação para a ampliação da heteronomia, havia
estudos se realizam por meio da práxis. Ou seja, a
os espaços produtivos onde os povos originários
pesquisa trata de intervir, de experimentar a for-
eram capturados por bandeirantes e escravizados
mação profissional de construtores na atualidade,
em fazendas. Ali, bem como nas vilas, o trabalho
na realidade social, e a partir dela observarmos
de construir se dava pela coação, como obrigação,
a história, o passado, com os pés no presente,
e sua realização bem como aprendizado, eram
nas questões, contradições, limites, barreiras e
fruto do desejo da sobrevivência.
Já no século XVIII, com a expulsão dos Jesuítas, de das oligarquias, ainda havia ali a possibilidade
em 1759, e a crescente escravização dos povos de um contato dos trabalhadores com a elaboração
africanos, vive-se o tempo das irmandades, espaço dos desenhos de obra por meio de relações pro-
onde o conflito entre as duas concepções forma- dutivas com alguma liberdade criativa.
tivas conviviam e conflitavam-se internamente. É neste período que é organizado e imple-
Ali era possível formar-se tanto para a autonomia, mentado o sistema nacional de formação dos
como para a heteronomia, a depender da conjun- profissionais da produção da arquitetura. É o
tura local e do lugar do extenso país. Há registros momento de criação das instituições de ensino
que tratam desse tema com grande variedade de que instruiriam os trabalhadores, mas ainda com
composições. uma qualificação generalista, ampla, inclusive com
Ao longo do século XIX é gestado o período aspectos da autonomia.
de nossa análise. Com a vinda da família real
portuguesa, os conflitos formativos e paradigmas Espaços de formação para ampliação da
europeus nos fazem visita. Debate-se a possibi- heteronomia
lidade da adoção de um sistema formativo que
Liceu de Artes e Ofícios - São Paulo (1873):
proporcionasse o diálogo entre as artes mecânicas
Espaço de formação de construtores onde se en-
com as liberais, com a vinda da missão artística de
sina além da operação de técnicas diversas de
1816. Mas, o que vem a ser de fato implementado
construção, o desenho criativo, pois sua inspiração
é um sistema dual, onde se encontram apartados
inicial foram as escolas idealizadas por William
arquitetos e construtores. Mesmo assim, como
Morris, na Inglaterra. Com o passar dos anos as
ainda vivia-se sob o regime de escravidão, sua
características de formação para a autonomia
implementação é extremamente incipiente. O
foram sendo substituídas por processos cada vez
Brasil será um dos últimos países a viver a possi-
mais estanques, por exigências do mercado de
bilidade da formação de artífices, como veremos,
construção, por fim, a se tornar lugar da repro-
pois a fundação dos Liceus de Artes e Ofícios se
dução da heteronomia.
dará apenas no final do século.
obras à época eram dominados por trabalhadores do industrial: é promulgada a CLT - Consolidação
originários da Itália. Ali mesmo nos canteiros de das Leis do Trabalho e vive-se
obras é que realizavam atividades de formação,
“um esforço de diversificação social (...)
entre as diferentes gerações e entre os construtores
abrangente: era preciso criar os quadros
próprios, a ampliar os conhecimentos de modo a
superiores, os ‘oficiais’ intermediários e
não serem especialistas em apenas uma técnica
um grande exército de trabalho, capa-
construtiva.
zes de construir uma forma brasileira
de ‘cidade moderna’. A definição dos re-
CONSOLIDAÇÃO DA MÃO DE OBRA
quisitos de qualificação do trabalhador
COMO MERCADORIA OPERÁRIA
era uma preocupação recorrente da eli-
Veremos agora um longo e sistemático processo te naqueles anos (...)” (Gitahy e Pereira).
de desqualificação dos construtores, com vistas
a sua especialização e o distanciamento dos co- As mudanças tecnológicas da construção civil
nhecimentos necessários para a elaboração do contribuem para este processo de desqualificação
desenho de arquitetura, como justificativa para o dos construtores com o emprego do concreto ar-
aumento da produtividade pela industrialização, mado como estruturante da cadeia produtiva, pois
ao mesmo tempo em que se defendia ser esta a exige deles ‘baixa qualificação’ e ainda maior alie-
função exclusiva dos arquitetos. nação em relação a seu cálculo e funcionamento
Diante das dificuldades de controle e subjuga- estrutural, complexificado pela nova engenharia.
ção dos estrangeiros, tem-se sua substituição por
braços nacionais. Há inclusive a promulgação de Espaços de formação para ampliação da
uma lei que penalizava ou até proibia a contratação heteronomia
de muitos estrangeiros por unidade produtiva. Escola SENAI ‘Orlando Laviero Ferraiuolo’ –
Essa política se dá de modo contemporâneo ao São Paulo (1959 - ): Uma das primeiras unidades
processo de expulsão de famílias do meio rural, dentre as dezenas em todo o país especializadas
a perfazer o amplo e histórico êxodo rural, com em lecionar técnicas para execução de atividades
milhões de pessoas em migrações internas. especializadas. Faz parte da politica nacional de
Getúlio Vargas cria e proporciona o ambiente formação para o trabalho industrial, por meio
para a frutificação do modo de produção assalaria- do chamado ‘Sistema S’, financiado com recursos
compulsórios descontados das folhas de paga-
Fig. 3 – curso voltado para a formação de pedreiros, 1970. Fig. 4 – Fachada da escola, 1970. Fonte: www.construcaocivil.
sp.senai.br/institucional/1578/0/historico
mentos. Desse modo, é considerado um imposto, Escola Nova Piratininga – São Paulo (1979
mas à época, os empresários pressionaram para a 1985): Organizada pela OSM - Oposição Sin-
que a gestão dos recursos, ou seja, das escolas, dical Metalúrgica do sindicato dos metalúrgicos
ficasse a cargo das entidades patronais. Desde do ABC. Tinha como “(...) objetivo a formação
então pesquisadores sobre o tema e críticos em profissional de trabalhadores que junto ao processo
geral consideram uma anomalia, pois esta função de aperfeiçoamento técnico tivessem uma sólida
deveria estar com o poder publico, e não com a formação política e que viessem a atuar dentro
classe empresarial. Resta-nos assim concordar das fábricas, conscientizando os trabalhadores e
com o dito popular: ‘deixaram a raposa a cuidar fomentando a luta por seus direitos” (Paulista).
do galinheiro’. Operou com recursos originários de entidades
religiosas progressistas da Alemanha e Itália.
Espaços de formação para ampliação da Lecionava para educandos de todo o país. “A
autonomia oficina podia ser comparada a uma indústria de
Ginásios Vocacionais (1961 a 1969): Escolas10 porte médio de usinagem manual ou de máquinas
públicas de ensino fundamental, médio e noturno como fresa plainas, furadeira e tornos e gráfica.
geridas pelo Estado de São Paulo com ensino Alguns alunos vinham aprender uma nova profis-
unitário e integral. A proposta curricular buscava são, outros faziam uma reciclagem e atualização
reunir as atividades propedêuticas às manuais, de seus aprendizados, contando com um plantão
profissionais. Possuía oficinas de artes, marcena- de tira dúvidas” (Paulista). Ali não houve cursos
ria, e produção de objetos, a partir do desenho diretamente relacionados à construção civil, mas
industrial, com atividades de intervenção prática a experiência é gênese para uma série de outros
em construção civil internas às escolas. Devido cursos profissionalizantes críticos do campo da
sua proposta progressista e crítica ao sistema construção civil, tais como os realizados pelo
educacional dual, foram fechadas pelo regime CEEP, como veremos mais adiante.
militar, com a prisão de professores, acusados CET – Conselho Escola de Trabalhadores:
de subversão. Os arquivos de registro das escolas formado por 1011 escolas operárias e sindicais
foram queimados no ato de seu fechamento, de- de educação profissional no Brasil, os chamados
vido a isso não há imagens das oficinas. ‘Centros Públicos Não Estatais de Educação dos
Unilabor Comunidade de Trabalho – São Cidadãos Trabalhadores’ existem desde 1975,
Paulo (1950 a 1967): Grupo operário católico com cursos diversos, inclusive nas atividades de
ligado à paróquia da capela cristo operário, no construção da arquitetura. Quatro delas locali-
Ipiranga. Produzia industrialmente por meio de 11
AST – Ação Social Técnica do bairro de Lindéia, na grande Belo
uma cooperativa autogestionária móveis inspira- Horizonte/MG CADTS; Centro de Aprendizagem e Desenvolvi-
dos nos conceitos estéticos e éticos da Bauhaus. mento Técnico Social do bairro de São Mateus, São João de Meriti,
na Baixada Fluminense/RJ; CTC - Centro de Trabalho e Cultura
Nesse sentido buscava integrar no processo pro- do centro da grande Recife/Pe; Colégio Graham Bell do SINTTEL –
dutivo as artes liberais das mecânicas, tendo, no Sindicato de Trabalhadores em Telefonia e Telecomunicações do Rio
processo de produção formado seus integrantes, de Janeiro/RJ; Colégio Metalúrgico do Sindicato dos Metalúrgicos
do Rio de Janeiro/RJ; Centro de Educação, Estudos e Pesquisa do
e influenciado de modo indireto todos aqueles centro da grande São Paulo/SP; CPA - Centro de Profissionaliza-
que tomaram (e ainda tomam) contato com a ção de Adolescentes (São Paulo, SP); Escola Mesquita, do Sindica-
experiência. to de Metalúrgicos de Porto Alegre (Porto Alegre-RS); Centro de
Educação Comunitária São Paulo Apóstolo (São Paulo-SP); CDI
10
Foram implantados cinco ginásios, nas cidades de Americana, SP - Centro de Democratização da Informática) de São Paulo (São
Batatais, Rio Claro, Barretos, São Caetano do Sul e São Paulo. Paulo, SP).
zam-se em São Paulo, sendo que duas realizam Em 2003, com a mudança para um governo ‘de-
cursos de qualificação profissional na área da mocrático popular’, as experiências unitárias e in-
construção civil: o tegrais tomam forma de política publica nacional.
Em 2014 é criado o PRONATEC, devido a necessi-
“CEEP – Centro de Educação, Estudos e Pes-
dade da rápida formação de quadros para as cadeias
quisas é uma entidade de Trabalhadores, com
industriais, incluindo-se a indústria da construção.
experiência em desenvolver estudos e pes-
Com este programa o governo pede a aceleração
quisas para a formação de educadores e ges-
dos processos formativos e sua rápida ampliação
tores na perspectiva transformadora, contri-
quantitativa, para a casa dos milhões de educandos.
buindo para a definição de políticas públicas
Diante desta pressão de demanda, o ‘Sistema
em educação, trabalho, direitos humanos,
S’, já estruturado há décadas por todo o país tor-
cultura e arte tendo como ponto de partida
na-se o principal executor do programa. Ou seja,
a realidade em que vivem os trabalhadores”.
a heteronomia formativa tornou-se quantitativa-
O centro de formação realiza desde sua fundação mente dominante no país, apesar dos objetivos
dezenas de cursos profissionalizantes na área da defendidos pelo próprio governo.
construção civil junto de gestões progressistas em
municípios da Região Metropolitana de São Paulo; o Espaços de formação para ampliação da
CPA – Centro de Profissionalização de Adolescentes, heteronomia
localizado na periferia paulistana, realiza cursos
World Skills São Paulo 2015: Competição in-
de instalações elétricas residenciais. Em ambos os
ternacional entre escolas de formação profissional
espaços a concepção formativa é unitária e integral;
de todo o mundo, realizada a cada dois anos.
Nesta edição o Brasil foi o campeão mundial,
ATUALIDADE
representado por educandos do SENAI. O objetivo
O período considerado como ‘atual’ inicia-se de cada competidor é realizar no menor tempo
com a promulgação da constituição de 1988. Desde possível e com perfeição acéfala os projetos padrão
então temos vivido um lento e gradual processo fornecidos. No campo da construção civil foram
crescente de experiências formativas alternativas, competições de elevação de alvenaria, instalações
no sentido da ampliação da autonomia. hidráulicas e elétricas, paisagismo, pintura, car-
Esse processo dá-se ao mesmo tempo em que pintaria e marcenaria.
se agudizam os métodos de controle do trabalho, Lei do aprendiz (2000): Atualmente há em
inclusive com o apoio das novas tecnologias de São Paulo dezenas de entidades assistenciais de
desenho e gestão de obras. educação profissional ligadas indiretamente a em-
Em 1996 prefeituras e sindicatos realizam parcerias presas, inclusive de construção civil. Isso se deve a
com a presença da autonomia no processo formativo. promulgação desta lei, que as obriga a contratar no
Trata-se do projeto ‘Integrar’, criado pela CUT – mínimo 5% de aprendizes com idade entre 14 e 16
Central Única dos Trabalhadores, com recursos do anos. Os cursos são obrigatórios e ocorrem uma
FAT, via governo federal. O projeto amplia-se e atua vez por semana, durante um dia todo e apresentam
por todo país, inclusive no estado de São Paulo. Ele baixa qualidade cognitiva, pois se encontram cen-
não se direciona diretamente à cadeia produtiva da trados na abordagem não criativa de leis e normas
construção civil, mas forma jovens na perspectiva da regulamentadoras, ainda de modo incompleto,
educação unitária e integral, que podem optar pelo apenas segundo ‘as exigências do mercado’, e não
ingresso na construção da arquitetura. as reais necessidades dos educandos.
Fig. 7 – Conjunto habitacional União da Juta, Zona Leste de São Fig. 8 – trabalhadoras em atividade organizativa, mesma obra,
Paulo, 1995. 1995. In: http://www.usina-ctah.org.br/uniaodajuta.html.
Fig. 9 – Casa das artes em obras: travamento da cumeeira de Fig. 10 – vista frontal após inauguração, nov. 2014. Fotos dos
bambus, set. 2014. autores.
Fig. 11 – Educandos construtores ajustando piso, abril de 2016. Fig. 12 – viela em seu estado Fig. 13 – Viela e escadaria
anterior ao ‘canteiro escola’, após a obra, maio 2016. Fotos:
janeiro 2016. equipe de pesquisa.
que difere essa experiência formativa de todas ou-
tras é o entendimento preciso de que é necessário ENSAIO RURAL: CASA DAS ARTES FRIDA
intervir na divisão social capitalista heterônoma KAHLO
do trabalho na produção do espaço, dada pela Realizado no Município de Guararema, Escola
separação de arquitetos e construtores. Todos Nacional Florestan Fernandes, espaço de formação
os educandos, de forma integrada, participaram de camponeses militantes do MST – Movimento
coletivamente de todo o processo produtivo, desde dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, nos meses de
sua concepção, com a elaboração do projeto até agosto e setembro de 2014. A atividade “Canteiro
sua execução total, ou seja, segundo a concep- escola construção agroecológica” consistiu na
ção unitária e integral de ensino. Desse modo, realização coletiva de modo unitário e integral, do
proporciona-se aos educandos a possibilidade projeto e da obra em autogestão coordenada por
de quebrarem a barreira da heteronomia, exerci- três mestres construtores e dois arquitetos12, junto
tando atividades de seus pares complementares. de 30 aprendizes, dentre estudantes de arquitetura
Uma vez atuando no mesmo campo, projeto e e trabalhadores rurais. A técnica empregada se
obra, sua associação horizontal fica facilitada. Ou apresentou como inovadora para os educandos,
seja, estes podem se relacionar lado a lado, não segundo conceitos da ‘construção agroecológica’.
mais de modo vertical, em forma de hierarquia Utilizaram-se bambus, sapé e terra local.
dominadora, uma vez que ambos juntos projetam
e executam, tendo o desenho como elemento de ENSAIO URBANO: VIELA ECOLÓGICA
comunicação acessível e modificável por todos FRANCISCO DA SILVA
então arquitetos-construtores.
Por meio das experiências aplicadas a investiga- Realizado no Município de São Bernardo do
ção histórica ganha ainda mais materialidade cog- Campo, Bairro dos Alvarenga em comunidade
nitiva ao ser vivenciada. As questões enfrentadas de baixa renda, realizado em abril de 2016. Fez
são trazidas a luz, pela força da necessidade, pelo parte das atividades de pesquisa aplicada da rede
enfrentamento de problemas reais da educação nacional de pesquisa em Àguas Pluviais, pelo LAB
unitária e integral. HAB - Laboratório de Habitação e Assentamentos
12
Um dos arquitetos é autor do presente, junto de Tomás Lotufo.
13
Um dos arquitetos é autor do presente, junto de Paula Constante.
14
A pesquisa de doutorado sobre o tema aqui abordado será con-
cluída em abril de 2017.
RESUMO
Num tempo em que a causa ambiental se vai tornando cada vez mais consensual, a intervenção no edi-
ficado existente deve começar por privilegiar, sobretudo, a sua manutenção. Este retomar das actividades
de manutenção dos edifícios, bem como a sua efectiva implementação, deverão ser acompanhados por
uma eficaz divulgação de boas práticas de utilização.
A actividade da manutenção foi uma prática corrente no passado, progressivamente abandonada com
o advento da lógica da industrialização, fomentada pelo modelo capitalista. Neste contexto, existe a
expectativa de encontrar na investigação de documentação histórica informação preciosa sobre os
conhecimentos que no passado se reportavam à manutenção do edificado.
A realização de estudos históricos na intervenção e salvaguarda do património edificado, constitui uma
das recomendações mais reiteradas pelos documentos internacionais, da Carta de Veneza (1964) às
Recomendações para a Análise, Conservação e Restauro Estrutural do Património Arquitectónico (2003).
Na sequência de uma investigação em curso para a concepção de um manual de utilização e manutenção
da casa burguesa do Porto, foi efectuada uma análise à normativa histórica, de âmbito autárquico e
nacional (códigos de posturas, etc.), com o objectivo de identificar informação pertinente relacionada
com as actividades de manutenção do edificado histórico em geral e do caso do Porto em particular.
Propõe-se apresentar os resultados da investigação efectuada, discutindo a sua adequação à actualidade,
no que se refere aos critérios exigenciais (segurança, conforto, eficiência energética, etc.), bem como no
que diz respeito às características do sistema construtivo destes edifícios.
1. INTRODUÇÃO
Em Portugal, o parque edificado apresenta, que promovem a substituição e a obra nova; e,
tendencialmente, uma elevada incidência de de- fundamentalmente, a uma ausência de cultura
gradação, abrangendo desde os edifícios antigos nacional de manutenção e conservação dos bens
aos de construção mais recente. Este contexto fica imóveis.
a dever-se a três causas principais: ao resultado Quando se trata de edificado histórico, situado
de várias décadas de congelamento das rendas; em áreas urbanas classificadas, a sua degradação
a modelos de sociedade e de desenvolvimento adquire maior importância, devido ao risco de
perda dos valores culturais que contribuem para tências dos municípios, são várias as autarquias
a coesão arquitectónica do conjunto. que iniciam a edição de pequenos livros com os
Na cidade do Porto, não obstante alguns re- Códigos de Posturas, onde se regulam diversos
centes e meritórios esforços em favor da inversão aspectos do funcionamento da cidade, designa-
desta tendência, ainda continua bem presente a damente: hábitos de utilização do espaço e coisa
ausência de manutenção dos edifícios, inclusive pública; licenças de utilização e funcionamento de
do edificado histórico reabilitado, como é o caso actividades; ordem pública ou coimas; e aspectos
das áreas do Centro Histórico intervencionadas da construção dos edifícios e da utilização das vias
pelo Comissariado para a Reabilitação Urbana públicas, com destaque, para os que interferem
da Área Ribeira-Barredo (CRUARB). com a salubridade e segurança das populações.
Este contexto motivou a constituição de uma As posturas municipais da cidade do Porto
equipa de investigação dentro do Centro de Es- são pela primeira vez compiladas e impressas
tudo de Arquitectura e Urbanismo (CEAU) da num pequeno livro, em 1839, o que vai permitir
Faculdade de Arquitectura da Universidade do a sua maior divulgação. Até esta data, as postu-
Porto (FAUP), tendo por principal objectivo a ras eram publicadas pela Câmara Municipal do
concepção de um manual de utilização e manu- Porto (CMP) em editais conjuntos, impressos e
tenção do edificado corrente da cidade do Porto, manuscritos, que iam sendo reeditados com as
também conhecido por casa burguesa. necessárias alterações, decorrentes de correcções
Partindo do pressuposto, por demais consen- e adições (Vale 2013).
sualizado no meio científico, de que a análise Segundo estudos recentes (Vale 2013), os temas
à documentação histórica constitui uma tarefa relacionados com a conservação dos edifícios só
imprescindível para o estudo sobre os métodos começam a ser introduzido na legislação munici-
e técnicas tradicionais, tem-se desenvolvido uma pal a partir do Código de Posturas de 1889. Antes
investigação à normativa histórica produzida pela desta data, as posturas relativas às edificações, e
autarquia do Porto, visando, directa ou indirecta- em concreto à sua utilização, centravam-se princi-
mente, a conservação do seu edificado, a fim de palmente em aspectos que diziam respeito ou que
encontrar informação sobre práticas de manu- interferiam com a segurança dos cidadãos, através
tenção que ainda se revele útil para a actualidade, das relações que os edifícios estabeleciam com o
constituindo o presente artigo o resultado de um espaço público. São disso exemplo os cuidados
momento de síntese, ainda parcelar, da referida a ter nas varandas, janelas, muros ou telhados
investigação. (CMP 1855: 26; CMP 1869: 32), onde se proíbe
“Ter alegretes ou vasos, sem guardas exteriores
2. ANÁLISE À NORMATIVA HISTÓRICA (...) Pendurar roupas ou fazendas molhadas, ou
DA CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO tingidas, pingando sobre a rua publica (...) Sacudir
capachos, esteirões ou tapetes (...)” (CMP 1869: 32).
De acordo com Vale (2013), as posturas muni-
É igualmente proibido ter nas janelas “(...) taboas
cipais (leis emitidas pelas cidades para regular o
ou quaesquer anteparos de separação, de largura
seu funcionamento) começam a ser compiladas
excedente á das varandas dos predios contíguos,
em diversas autarquias portuguesas, a partir das
quando estas sejam iguaes, ou á menor largura
transformações político-administrativas resultan-
quando sejam desiguaes (...)” (CMP 1869: 32).
tes da revolução liberal. A partir da publicação do
O mesmo acontece com as lojas e armazéns,
primeiro Código Administrativo, em 1836, e da
por se localizarem maioritariamente nos pisos
Portaria Régia, em 1838, esclarecendo as compe-
térreos das casas, confrontando assim direc- Incluiu-se ainda na análise efectuada o Regu-
tamente com a via pública. As restrições cor- lamento de Salubridade das Edificações Urbanas
respondentes prendem-se com as actividades (RSEU), de 1903 (Portugal 1903), e o Regulamento
próprias destes espaços, designadamente: “Ter Geral da Edificações Urbanas (RGEU), de 1951
fóra das ombreiras das portas ramos, ou qualquer (Portugal 1951), devido ao âmbito nacional destes
objecto ou genero, fazendas, roupas ou fato para decretos, aos quais toda a legislação autárquica
amostra, ou vendagem, e bem assim mostradores, se deveria submeter.
balcões, tamboleiros, canastras, ou cestos (...) Ter
retabolos, bandeiras, ou letreiros com inclina- 2.1 CÓDIGO DE POSTURAS DE 1889
ção sobre as portas, janellas ou sacadas (...) Nas
Este é o primeiro Código de Posturas a aludir
lojas de barbeiros é prohibido ter fóra das portas
directamente à prática da manutenção do edificado
os caixões dos rebolos, ou penduradas fóra das
da cidade do Porto.
ombreiras as bacias ou vidros com bichas (...)”
No seu Artigo 97.º, determina que “(...) as
(CMP 1855: 28-28; CMP 1869: 32-33; CMP
frontarias de todos os prédios, bem como paredes
1889: 33-34). Ainda a propósito das lojas, cafés
ou muros, que não forem forrados d’azulejos,
e outros estabelecimentos, o Art.º 60.º estabelece
marmores ou mosaicos, serão rebocados, caiados
as normas que os toldos ou “empanadas” devem
ou pintados de 6 em 6 anos e na mesma ocasião
obedecer, tais como: “(...) ser em forma de bam-
lavadas as cantarias respectivas (...)” referindo
binella, collocados em altura não inferior a dous
ainda que “as portas, janelas e as respectivas
metros, marcados sobre a aresta dos passeios; e
grades e caixilhos para a parte exterior dos pré-
ficam prohibidos os toldos colocados em postes
dios ou muros serão pintados de 12 em 12 anos”
ou varões de ferro firmados sobre o pavimento
(CMPorto, 1889: 33).
das ruas ou passeios (...)” (CMP 1869: 32-33;
De resto, continua a fazer-se referência indi-
CMP 1889: 34).
recta à obrigatoriedade de limpeza das chaminés,
Por último, a segurança contra o risco de incên-
mantendo-se a redacção da postura de 1869 acima
dio constitui um assunto importante e recorrente,
referida.
como é possível constatar pelo destaque que é
dado ao capítulo sobre chaminés em todas as
2.2 REGULAMENTO DE SALUBRIDADE
posturas (CMP 1839: 7; CMP 1855: 19-20; CMP DAS EDIFICAÇÕES URBANAS DE 1903
1869: 18). Além da obrigatoriedade de instalação
deste elemento e das recomendações para o seu Este regulamento trata sobretudo de assuntos
dimensionamento, adverte-se que “Os donos ou relativos à construção nova, sendo, consequen-
habitantes dos predios onde se atearem incêndios temente, o tema da utilização e da conservação
por falta de chaminés ou limpeza d’ellas, serão dos edifícios abordado por via indirecta. É o caso
punidos com a multa de (...)” (CMP 1869: 18). de certos cuidados a observar na construção,
O limite temporal da análise é estabelecido pelo definidos de uma forma preventiva para obviar
Código de Posturas do Município do Porto de a ocorrência de danos a curto prazo e resultantes
1972, por constituir o mais importante documen- de utilização. A excepção ocorre em relação aos
to do género para a cidade, antes da Revolução saguões, para os quais se prescreve que “Quando
de 25 de Abril de 1974, considerando-se assim forem rebocados com argamassa serão caiados de
representativo do culminar da forma de gestão dois em dois annos com cal recentemente preparada
da ordem pública de toda uma época. (...)” (Portugal 1903: 9).
A cor, qualidade e tipo de tinta, bem como a Com efeito, no seu Art.º 9.º, estabelece que
natureza do material de revestimento, a aplicar “As edificações existentes deverão ser reparadas e
nas pinturas e revestimentos, deverão ser comuni- beneficiadas pelo menos uma vez em cada período
cados e sujeitos a aprovação municipal, sob pena de oito anos, com o fim de remediar as deficiências
de autuação, sendo os proprietários intimados a provenientes do seu uso normal e de as manter em
proceder às obras de beneficiação e limpeza que boas condições de utilização sob todos os aspectos de
forem julgadas necessárias, sob prazo marcado. De que trata o presente regulamento.” (Portugal 1951:
igual modo, quando as obras “(...) não tiverem sido 717). Reforçando a importância destas obras, no
executadas com a necessária perfeição ou não forem artigo seguinte, ao prever que “Independentemente
julgadas suficientes, o responsável será autuado e das obras periódicas de conservação a que se refere
intimado a executá-las de novo ou a completá-las, o artigo anterior, as câmara municipais poderão,
marcando-se-lhe prazo.” (CMP 1947: 671). em qualquer altura, determinar, em edificações
As disposições anteriores de conservação e existentes, precedendo vistoria realizada nos termos
limpeza determinam ainda que “tabuletas, placas, do artigo 51.º, § 1.º, do Código Administrativo, a
escudos, globos e outros elementos de anúncio ou execução de obras necessárias para corrigir nas
reclamo que não façam parte das construções e condições de salubridade, solidez ou segurança
digam respeito a estabelecimentos comerciais ou contra o risco de incêndio.” (Portugal 1951: 717).
industriais bem como a escritórios ou consultó- Merece ainda menção o Art.º 12.º, onde se
rios, deverão conservar-se sempre limpos e com refere especificamente determinado tipo de ava-
boa aparência, harmonizando-se com o aspecto rias, que se suspeita, fossem as mais correntes na
exterior do prédio em que se encontrem colocados época, designadamente: “A execução de pequenas
ou afixados.” (CMP 1947: 672). obras de reparação sanitária, como, por exemplo,
Embora não dizendo directamente respeito à as relativas a roturas, obstruções ou outras formas
conservação e limpeza dos edifícios, tem ainda de mau funcionamento, tanto das canalizações
interesse neste Edital a menção à “pintura de interiores e exteriores de águas e esgotos como das
dizeres e de anúncios em empenas, fachadas ou instalações sanitárias, a deficiência das coberturas
muros”, no seu Art.º 13.º, que deverão ser sujeitas e ao mau estado das fossas, será ordenada pelas
a pedido de licença de obra, “instruído com um câmaras municipais, independentemente de visto-
desenho colorido daquilo que se deseja pintar, feito ria.” (Portugal 1951: 718).
na escala mínima de 1.100 e nas cores a aplicar,
e, se for julgado necessário, com uma memoria 2.9 EDITAL N.º 9/58, DE 27 DE DEZEMBRO
descritiva.” (CMP 1947: 672). DE 1958
Este Edital foi criado para introduzir maior
2.8 REGULAMENTO GERAL DAS EDIFI-
eficácia na aplicação do Edital n.º 12/47, através
CAÇÕES URBANAS, DE 1951
da redução para sete meses, em cada ano, do prazo
Muito embora sendo um Decreto-lei de âmbito de execução das obras periódicas de beneficiação
nacional com a pretensão de sintetizar os prin- e limpeza de prédios, permitindo deste modo uma
cipais assuntos relativos às edificações, o RGEU melhor fiscalização, por parte da Câmara, e a im-
pouco ou nada acrescenta ao já previsto nos có- posição da sua execução em época não chuvosa.
digos de posturas da cidade do Porto, em matéria Nestes termos, a redacção do Art.º 3.º do Edital
de conservação e beneficiação dos edifícios. 12/47 passa a mencionar que as obras de benefi-
ciação e limpeza “(...) terão de estar concluídas até e respectivas actualizações, que terão servido
ao dia 31 de Julho de cada ano.” (CMP 1958: 50). de base à sua redacção, introduzindo somente
pequenos ajustes decorrentes, provavelmente, das
2.10 EDITAL N.º 6/61 DE 4 DE MAIO DE dificuldades de implementação desta legislação.
1961 No seu Art.º 105.º, referente à cidade do Porto,
Em face da insuficiência das medidas adoptadas continua a manter-se, para efeitos de “limpeza e
para evitar os incêndios em chaminés, a Câmara conservação dos prédios”, a divisão nas cinco zonas
faz publicar através deste edital uma Postura que definidas pelo Edital 13/61, estabelecendo as res-
visa obrigar todos os proprietários a manter em pectivas datas para a execução das obras, assim
bom estado de limpeza as chaminés existentes como a sua periodicidade, que continua a ser de
nos seus prédios, sob pena de aplicação de multas, cinco em cinco anos. Altera-se, porém, o prazo
quando esta não se verifique, ou após a ocorrência de execução, que é alargado até 30 de Setembro,
de incêndio provocado por esse motivo (CMP passando assim para nove meses (CMP 1972: 44).
1961: 117-118). Os pontos 3 a 7 do mesmo artigo introduzem
novidades importantes a destacar, que dizem
2.11 EDITAL N.º 13/61 DE 5 DE SETEMBRO respeito à identificação e aviso até ao final do 1.º
DE 1961 trimestre, por parte dos serviços municipais com-
petentes, dos prédios com necessidades de obras de
A publicação deste Edital surge na sequência da
beneficiação, quer estes se situem em zona/ano de
constatação da necessidade de intensificar as obras
beneficiação obrigatória ou não (CMP 1972: 44).
de beneficiação e limpeza no exterior dos prédios
De resto, tudo o que diz respeito à comuni-
confinantes com a via pública, devido a motivos
cação e necessidade de aprovação nos serviços
de vária ordem, entre os quais as condições do
municipais do tipo de pintura e revestimento,
clima, o que leva a Câmara a alterar a redacção
bem como à identificação das infracções, segue
dos artigos 2.º e 3.º do Edital 12/47, bem como
da sua alteração posterior através do Edital 9/58 o preceituado no Edital 12/47.
(CMP 1961: 127).
As alterações introduzidas passam assim pela 3. NOTAS CONCLUSIVAS
redução do número de zonas de gestão da conser- A consulta à principal legislação da autarquia
vação dos prédios, que passam de sete para cinco, da cidade do Porto sobre edificações permite
através da reordenação das suas freguesias, e da concluir que a partir do código de posturas de
redução de sete para cinco anos da periodicidade 1889, até ao código de posturas de 1972, existiu
das obras de beneficiação e limpeza. Não obstante, uma crescente preocupação com a manutenção
mantém-se a obrigatoriedade de conclusão das dos edifícios. Se o documento de 1889 inicia,
referidas obras até 31 de Julho de cada ano (CMP em capítulo específico, a abordagem ao tema da
1961: 127). conservação e beneficiação dos edifícios, ainda
que de forma ligeira, é o edital 12/47 que irá dar
2.12 CÓDIGO DE POSTURAS DO CON- maior importância a este tema, estabelecendo
CELHO DO PORTO DE 20 DE JUNHO DE
as suas principais directrizes de gestão, que irão
1972
perdurar, juntamente com as suas actualizações,
Embora com um alcance maior que os anterio- até ao código de posturas do concelho do Porto
res, este código pouco acrescenta ao Edital 12/47 de 1972.
Todavia, toda esta legislação trata o tema da mente requerendo a observação de apropriadas
conservação do edificado de forma muito ligeira, normas de utilização.
praticamente resumida aos revestimentos das As actividades desenvolvidas ao nível dos es-
fachadas e dos seus elementos constituintes, tais paços comerciais, geralmente situados nos rés-
como as caixilharias, grades e ornamentos, sendo -do-chão das casas, prestam-se frequentemente a
ainda importante avaliar até que ponto estas pos- conflitos de vária ordem com o espaço público e
turas se fizeram cumprir e em que grau se deu com os restantes espaços dos edifícios, devendo,
esse cumprimento. por isso, constituir igualmente um tema a tratar
É ainda importante ressalvar o facto de as pelo manual de utilização.
posturas, enquanto leis municipais, terem um
carácter impositivo e punitivo, preceituando a 3.2 RECOMENDAÇÕES DE CONSERVA-
obrigatoriedade e a aplicação de multas, nalguns ÇÃO E BENEFICIAÇÃO
casos, pesadas. Seria interessante, em futuras
No que se refere às recomendações de conser-
investigações, avaliar o impacto que esta prática
vação e beneficiação, desde logo, a sua periodici-
teve na sociedade da época, em particular, no que
dade e época do ano mais adequadas para a sua
às edificações diz respeito.
realização, merecem a maior atenção e reflexão,
Efectuando uma leitura evolutiva dos documen-
devendo resultar de um estudo mais aprofundado
tos, destaca-se a preocupação com a periodicidade
sobre as condições actuais da cidade do Porto.
dos trabalhos de manutenção, assim como com a
Os elementos que constituíram preocupação
sua duração, que procura situar-se nos meses de
nas diferentes épocas abordadas, como as facha-
clima mais favorável.
das e os seus componentes, as caleiras e tubos de
A partir do Quadro 1, com a síntese das re-
queda, ou as canalizações de abastecimento de
comendações de utilização e conservação cons-
água e esgotos, continuam perfeitamente actu-
tantes das posturas analisadas, é possível retirar
ais, devendo constituir um ponto de partida na
contributos válidos para a actualidade, como se
concepção do manual.
expõe a seguir.
Um especial destaque deve ser dado às recomen-
dações a observar nos trabalhos de conservação,
3.1 RECOMENDAÇÕES DE UTILIZAÇÃO
que continuam válidos na actualidade, designa-
As recomendações de utilização apontadas nas damente: ter em atenção a aplicação de cores,
posturas, todas elas directamente relacionadas nos revestimentos exteriores e na pintura dos
com a segurança dos transeuntes ainda se mantêm rebocos, cujos tons se encontrem em harmonia
actuais, pelo que deverão fazer parte das reco- com as dos prédios contíguos; combinar as cores
mendações do manual. A disposição de vasos ou dos caixilhos exteriores com as das fachadas a que
quaisquer objectos nas varandas, muros, telhados pertencem, de modo a produzirem um efeito este-
ou mesmo nos parapeitos das janelas, deve ser ticamente agradável; quando dois ou mais prédios
acautelada, para que daí não resulte qualquer constituam um todo arquitectónico, as pinturas e
risco para os transeuntes. revestimentos a aplicar deverão manter o aspecto
A própria segurança contra o risco de incêndio de conjunto; não permitir a pintura parcial de
continua a ser um tema incontornável de qualquer fachadas, quando desta resulte um agravamento
manual de utilização de edifícios, hoje já não das condições estéticas do prédio; e, por último,
somente restrita às chaminés, mas contemplando não permitir a pintura de cantarias, salvo nos casos
uma parafernália de situações, todas necessaria- em que esta acção beneficie a estética do edifício.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Porto: Typographia da Revista. Porto: Câmara Municipal do Porto.
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Porto. Approvado por sessão da Camara Municipal Porto. Porto: Tip. Reclamo Teatral.
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672. Porto: Câmara Municipal do Porto. corrente.” In I Congresso Internacional de História
CMP 1958. “EDITAL N.º 9/58” In Boletim da Câmara da Construção Luso-Brasileira. Vitória do Espírito
Municipal do Porto, n.º 1187, Ano XXIV, 50-51. Santo, Brasil: UFES, 4 a 6 de Setembro.
Porto: Câmara Municipal do Porto.
ABSTRACT
This paper aims to explore the evolution of the concept of structure within the Poetic Tectonic age. The
theoretical framework of structure possesses a symbolic value related to theory and practice which ex-
plains architectural philosophy at a certain time. A structural overview of structure as a concept, allows
an understanding of what is structuring in architecture and how it has changed over time. It is proposed
a holistic analysis of structure in order to achieve a multidisciplinary approach facing new architectonic
perspectives for post crisis (2008) situation.
Poetic Tectonics presents itself as a new epistemological framework that links to the notion of structure,
concepts such as “nature” and “truth”, allowing new scientific conceptions of tectonic analyses in ar-
chitecture. Architecture is understood in this profound structure has an expression of human ideas in
a unique artistic manner. What arises as a pattern in architectural history is the fact that there is no
architecture without structure.
The applied methodology is based on Complexity Theory as a holistic perspective of architectural know-
ledge and on Kuhn´s (1962) structure of scientific revolutions in order to analyze paradigms and pa-
radigmatic changes. A chronological approach of structure, as an invariant, is developed through the
analyses and overlap of architectural essays and slogans that express theoretical and phenomenological
syntheses of complex thinking. By understanding the genesis of architectural slogans and its evolution it
is aimed to achieve a range of possibilities linked to actuality. The authors analyzed, in a chronological
sequence are: Viollet-le-Duc; John Ruskin; Frank Lloyd Wright; Le Corbusier; Mies van der Rohe; Pier
Luigi Nervi; Buckminster Fuller; Louis Kahn; Oscar Niemeyer; Robert Venturi; Christopher Alexander;
Peter Einsenman; Bernard Tschumi and Wolf Prix.
The process that leads to a new architectonic view is discussed around the proposed slogan - “more with
less”. Structure as Architecture is one of the most profound traditions of architecture with its origins on
the Vitruvian treaty. It has crossed all the Tectonic ages linked to economy within construction. Eco-
nomy is also a structural limit. What if architecture nowadays could absorb the best tectonic ideas of the
Poetic age in order to achieve more with less by learning from the past towards the future?
teorias evoluem quando integram novos factos, Os arquitectos analisados são considerados em
num sistema continuo ao longo do tempo, passan- termos de pensamento arquitectónico “Modernos”,
do a teoria vigente a integrar uma versão evoluída porque fazem parte da Idade Contemporânea. A
da sua predecessora (Kuhn, 1962). época da Tectónica Poética, a nossa Era, possui
A componente teórica do conceito estrutura três estágios de desenvolvimento arquitectónico:
em arquitectura está relacionada com a dimensão o Historicismo, o Modernismo (Ecléctico, Expres-
do tempo, associada à categoria simbólica, pela sionista e Funcionalista) e o Pós Modernismo. Os
relação de influência que a teoria tem com a prá- materiais modernos (betão armado, ferro/aço) são
tica arquitectónica num determinado período. A responsáveis pelo segundo interlúdio da época
compreensão histórica das diferentes perspectivas da Tectónica Poética (séc. XIX). Este período
com enfoque no conceito de “estrutura” permite caracteriza-se pela continuidade dos valores da
um entendimento daquilo que é estruturante na Tectónica Clássica ao qual lhe acrescenta a noção
arquitectura e de como esse conceito se foi alte- de cálculo estrutural como ciência e método de
rando ao longo do tempo. A componente teórica projecto.
assente no discurso Tectónico é entendida como
um projecto cooperativo que abrange diversas EUGÉNE – EMMANUEL VIOLLET-LE-
gerações de arquitectos, uma comunidade de DUC (1814-1879)
mentes interligada desde a antiguidade. A Vontade “A prática da arquitectura significa adaptar,
de Potência de Nietzche aplicada à arquitectura, arte e ciência à natureza dos materiais empre-
considerando que esta tem vontade de se efectivar, gues” (1863)
é aqui entendida e explicitada pela estrutura. Es- Viollet-le-Duc (1863) sugere que os diversos
trutura e arquitectura são indissociáveis, podendo elementos que compõem uma obra arquitectóni-
no limite, na sua essência máxima, na sua redução ca estão relacionados e hierarquizados segundo
eidética, ser ambas uma e a mesma coisa. Esta um sistema lógico a partir do qual se alcança a
noção é claramente expressa por Vitrúvio em “De verdade arquitectónica. Entendia que a teoria
Architectura” quando referindo-se à economia e correspondia ao conjunto de regras e tradições,
beleza na construção dos templos gregos, afirmava: ligadas à ciência, à sociedade e à história, que a
“(…) suprimidos os ornamentos dos epistílios e arquitectura enquanto arte da construção deveria
dos parapeitos e não se fazendo a montagem das saber expressar através da prática. Referindo-se ao
colunas superiores, evita-se um trabalho moroso processo construtivo ligado ao saber-fazer, afir-
e baixa-se o montante de grande parte da despesa mava: “Ser verdadeiro relativamente ao processo
final. Além de que as próprias colunas, subindo construtivo é empregar matérias tendo em conta as
uniformemente em altura até ao travejamento da suas qualidades e propriedades (…) É caracterís-
nave central, parecem acrescentar sumptuosidade tico da verdade alcançar consequências similares
e grandeza à obra” (Vitruvio, p.179). por diferentes caminhos” (Viollet, 1863; p.448).
Por forma a melhor entender a evolução do Viollet-le-Duc (1875) prossegue com esta fi-
conceito de estrutura, entendido como invariante losofia e reinterpreta os princípios Vitruvianos
dentro do contexto da arquitectura é importan- numa alusão à “natureza dos materiais”, fazendo
te analisar o pensamento dos mais relevantes a distinção entre arte e técnica na arquitectura.
arquitectos da Era da Tectónica Poética. A Era Viollet-le-Duc foi um acérrimo defensor do ra-
da Tectónica Poética inicia-se no final do século cionalismo estrutural no qual as considerações
XVIII, coincidente com o início da Era Industrial. em termos de materiais e estrutura eram determi-
nantes na concepção da forma arquitectónica. O estava relacionado com uma tradição simbólica
seu pensamento expressava a procura de atribuir ligada ao trabalho artesanal (mestres pedreiros),
unidade à arquitectura. Viollet-le-Duc evocava o num entendimento da arquitectura como uma arte
conceito de natureza em defesa de uma verdade na maior que a mera concepção estrutural.
arquitectura passível de ser explicada por métodos
científicos. Sobre esta analogia entre estrutura e FRANK LLOYD WRIGHT (1867-1959)
natureza referia: “ (…) simplesmente ao ver uma
folha é possível reconstruir a planta, e ao observar “Each material has its own message and, to
um esqueleto animal, o animal em si mesmo, the creative artist, its own song” (Wright, 1928).
também é possível a partir da estrutura entender Frank Lloyd Wright evocava a importância de
a arquitectura”(Viollet, 1875). explorar as capacidades construtivas de cada ma-
terial e da sua boa utilização. Afirmava, a respeito
JOHN RUSKIN (1819-1900) das estruturas, a necessidade de compreender a
natureza dos materiais aplicados desde início no
“The violation of truth which dishonors poetry esquema de projecto. A natureza dos materiais era
and painting are thus for the most part confined um princípio regulador da obra. Entendia que o
to the treatment of their subjects. But in architec- arquitecto deveria saber tirar partido dos novos
ture another and less subtle, more contemptible, materiais e das suas potencialidades ao nível da
violation of truth is possible; a direct falsity of concepção estrutural. A este respeito afirmou:
assertion respecting the nature of material, or the (…) “por cá para fora a natureza dos materiais e
quantity of labour” (Ruskin, 1880; p.34). deixar a natureza íntima dos mesmos entrar no
Em termos teóricos destaca-se a referência de esquema de projecto”. (…) cada novo material
John Ruskin à “verdade dos materiais” (1880), significa uma nova forma, um novo uso empregue
uma mutação do conceito fundamental enun- de acordo com a sua natureza”(Wright, 1908).
ciado por Vitrúvio relacionado com a técnica
construtiva. A lógica interna de cada material LE CORBUSIER (1887-1965 )
revelava uma origem estruturante relativamente
à concepção estrutural. John Ruskin enaltecia a “ L´architecture c´est l´art de faire chanter le
universalidade do léxico estrutural dentro de cada points d´appuie” ( A. Perret, 1933).
material assente num conhecimento cumulativo Le Corbusier e Auguste Perret aprofundaram
a explorar, demonstrando a ligação entre técnica os princípios teóricos herdados do passado e
e materialidade, na procura da verdade global da recorrendo aos novos materiais do seu tempo,
obra. Entendia que a cada novo material estava definiram através da prática arquitectónica, a
associado um novo tipo de arquitectura. Con- união cultural dos valores recebidos culminando
siderava a prudência no uso de cada material na distinção entre arte e técnica. A arquitectura
fundamental, sendo necessário o conhecimento passou a ser entendida como a junção de dois
dos limites construtivos como prova de sapiência sistemas em separado: a componente estética
dos arquitectos. Enquanto variante do conceito de associada à arte, interrelacionada com a distribui-
estrutura como arquitectura, a “verdade/lógica do ção funcional na definição de um novo modelo
material” é mais abrangente, porque admitia aquilo de espaço; e a componente puramente estrutural,
que não era estruturante: o adorno. O adorno definida pela técnica. A “estética do engenheiro”
das características do material (Sandaker, 2008). O domo geodésico constitui outra contribuição
Nervi atribuia aos materiais uma vontade própria para o léxico estrutural por parte de Fuller. A
ligada à sua natureza intrínseca, no sentido em que logica do domo geodésico tira partido dos novos
são os materiais, que pedem para ser moldados de materiais do seu tempo (aço, plásticos) procurando
uma determinada forma. Para Nervi, a arquitec- o máximo de eficiência entre estrutura e tecnolo-
tura estava dependente da verdade construtiva, gia; entre forma e estrutura; leveza e rigidez; custo/
padrão que detectava na história da arquitectura, beneficio. Os conceitos geométricos estudados
associada aos desejos e gostos da humanidade por Fueller e posteriormente aplicados nos seus
(Sandaker, 2008). domos têm origem nos fundamentos geométricos
da natureza, onde se inspirou. A cúpula geodésica
BUCKMINSTER FULLER (1895-1983) atesta os princípios sinergéticos porque funciona
“Don´t fight forces use them” (Fuller, 1932). como um sistema, observável a diferentes “escalas”.
Buckminster Fuller desenvolveu os seus princí- Num paralelismo com a natureza, as cúpulas geo-
pios estruturais assente em princípios da sinergéti- désicas de Fuller podem ser observadas ao nível da
ca. As concepções estruturais de Fuller baseiam-se sua anatomia (forma de superfície), celular (rede
na sinergia como conjunto de diversos sistemas de elementos triangulares) e molecular (barras
interligados entre si e cooperando para um mesmo rígidas). Os seus domos e as estruturas de barras
fim. As teorias de Fuller estão associadas à teoria rígidas pré-tencionadas enunciam um princípio de
dos sistemas com consciência que o todo é maior desmaterialização da arquitectura, onde existe uma
que a soma das partes e que as partes se auto expressão da estrutura coincidente com a forma
organizam em padrões para formar um sistema arquitectónica que procura a esbelteza. A este res-
complexo capaz de se auto-regular. Nesse sentido, peito refere: “ Os grandes sistemas estruturais do
as teorias de Fuller assumem-se como precursoras universo são formados por ilhas de compreensão
de uma mudança de paradigma porque a noção inseridas num contínuo de tensão. (…) Quanto
de estrutura passa a assumir um sentido mais lato. maior for uma tensegridade, mais forte ela será
O conceito estrutural de Tensegridade desenvol- (…) teoricamente não há limite para o tamanho
vido por Fuller é um sistema que encontra a sua de uma tensegridade”(Fuller, 1961).
auto-estabilização sob a forma de uma estrutura, Buckminster Fuller pertence à tradição moder-
através de um equilíbrio entre forças compressivas nista de “natureza e lógica dos materiais” associada
e tencionadas. A Tensegridade é alcançada com a uma verdade construtiva em que estrutura é
enfoque no equilíbrio mecânico do todo, no qual arquitectura, pela redução à essência construtiva.
a distribuição das forças define a forma estrutural. Contudo, existe uma mutação relativamente ao
Este conceito estrutural subdivide-se em duas cate- pensamento mecanicista moderno pelo colocar
gorias distintas que formam dois tipos estruturais de ênfase na teoria dos sistemas, a teoria da com-
novos, ampliando o léxico estrutural já existente: plexidade. Esta teoria de origem estruturalista
o pré-tensionamento de barras rígidas e o domo une o discurso teórico com uma visão crítica da
geodésico. O pré-tensionamento de barras rígidas sociedade, face à concepção técnica de natureza
encontra o equilíbrio estático das forças ao criar mecanicista. O pensamento sobre a arquitectura e
um sistema que une barras rígidas a funcionar a sua relação com a estrutura representa mais do
à compressão, com elementos flexíveis de aço que um pensamento puramente racional, porque
(cabos) a funcionar à tensão. É o equilíbrio entre lhe acrescenta o simbólico, a ideia de “tensegri-
forças que estabiliza a forma estrutural. dade” como definição (slogan teórico) de forças
opostas a partir do qual se obtém a harmonia: a espacial colocada em síntese. Estrutura é arqui-
estabilidade. tectura para Kahn porque ela própria já carrega
emotividade (Vitra, 2013).
LOUIS KAHN (1901-1974)
OSCAR NIEMEYER (1907-2012)
“Design is form making in Order/ Form emer-
ges out of a system of construction” (Kahn, 1955). “Quando a estrutura está pronta, a arquitectura
Louis Kahn sintetizou o seu pensamento acerca já está lá” (Niemeyer, 2002; p.23).
da definição de arquitectura no poema Manifesto: Estrutura é arquitectura para Niemeyer, ao qual
Order is (1955). Neste texto faz referência à ligação o arquitecto retoma um vocabulário arquitectónico
entre um processo construtivo e o desenvolvimen- e estrutural aplicado ao betão armado: a curva.
to de uma ideia estruturada que dá origem a uma “O universo curvo de Einstein” (Niemeyer, 2007)
síntese sob a forma de projecto. Quando menciona é utlizado como referência teórica de suporte à
Nervi e Fuller fá-lo propositadamente para fazer expressão plástica da arquitectura modernista. A
referência a dois métodos construtivos diferentes arquitectura de Niemeyer expressa os princípios
entre si, sendo que Nervi explora as capacidades modernos de racionalidade estrutural, natureza
do betão armado e Fueller a “pulverização” da dos materiais, e espirito progressista, mas numa
estrutura metálica. O que ambos os citados têm visão Barroca, de contraste critico face à rigidez da
em comum é um desenvolvimento lento, ligada arquitectura modernista. A arquitectura brasileira
à exploração das capacidades de determinados que Niemeyer defende, encontra a sua estrutura
materiais e formas de construir específicas: o profunda na cultura a partir do qual expressa o
estudo do processo construtivo. simbólico e o espirito do tempo. Arquitectura e
O manifesto de Louis Kahn desenvolve a ideia estrutura são uma e a mesma coisa, mas é igual-
de um princípio regrador da natureza das coisas, mente linguagem que procura comunicar com o
evoluindo para uma noção de escola metafisi- mainstream, a partir da beleza. As referências à
ca da arquitectura, assente na crença de que os arquitectura gótica na Catedral de Brasília reflec-
elementos estruturais primários são regradores tem um renovado interesse pela síntese estrutural
da forma construída, sendo por isso, possível a que procura a forma bela e poética, mas que no
sua análise conceptual. No seu manifesto está seu todo estão traduzidas sob a forma de uma
implícita uma dualidade que representa a tensão metáfora arquitectónica: a coroa de espinhos. No
criativa do arquitecto enquanto detentor de deci- seu espirito modernista, Niemeyer é um arquitecto
sões: entre o que o que a “forma” quer ser e entre clássico em termos de tradição Vitruviana.
aquilo que o arquitecto quer que ela seja. Louis
Kahn recorre a um vocabulário arquitectónico ROBERT VENTURI (1925- …)
próprio que explora a macro escala, as figuras
geométricas puras, entendidas como ampliações “An architectural element is perceived as form
dos próprios “blocos construtivos da vida”. Esta and structure, texture and material” (Venturi,
ligação simbólica tira partido da geometria e da 1977; p.20).
expressividade estrutural como uma noção de O pós modernismo inicia-se conscientemente
espaço. O pensamento teórico discorre sobre a com Venturi quando enuncia em 1966 que “Less
microbiologia numa ligação simbólica da arqui- is a Bore”. Este slogan arquitectónico sintetiza o
tectura com a procura da verdade. A verdade da avant-garde da sua época, e quais os princípios que
estrutura é expressa pela depuração estrutural e regem a arquitectura pós moderna com consciên-
clássico de estrutura. A obra de Eisenman assenta abrangente, pragmática e precisa, acerca daquilo
no processo criativo que é o que sustenta a lógica que os materiais podem ou não exprimir. Tschumi
interna da obra (Gandelsonas, 1973). trabalha a correlação directa entre o conceito, o
material, e o resultado final. Importa-lhe a ma-
UNIVERSALIDADE terialidade espacial em arquitectura, a relação
entre os cheios e os vazios, as sequências espaciais,
“ The options seems to be quite clear: to colla- articulações e colisões (Sandaker, 2008).
borate in the maintenance of architecture or to Bernard Tschumi considera que em projecto
work outside of architecture not by only refusing existem diferentes lógicas, podendo estar inter-
to serve, to adorn, to justify but also by pointing relacionadas entre si ou não. As diferentes lógicas
out constantly the nature of these functions”( dentro do projecto são: a lógica das palavras ligada
Gandelsonas, 1973; p.121). ao conceito; a lógica do desenho associada à cria-
Peter Eisenman recorre ao duplo código en- ção de espaço arquitectónico; e por fim, a lógica
quanto tradição pós modernista para subverter dos materiais. A respeito dos materiais refere que:
o discurso arquitectónico. O pensamento ligado (…) a noção de relação directa entre o material e
ao inconsciente relaciona-o com o acto de sonhar, o que se faz com ele tem sido mais uma questão
de invenção. Existe uma exortação teórica para de uso de novos softwares – um computador
uma maior liberdade de acção. O afastamento é quem acaba decidindo o que pode ser feito
face ao pensamento clássico sobre a Tectónica ou não, espacializando matematicamente – sem
é alterado. O pensamento de Eisenamn procura referências à lógica do material”(Tschumi, 2001).
uma maior liberdade de acção assente na des-
construção do espaço, no qual a estrutura serve a WOLF PRIX (1942 - … )
arquitectura (Gandelsonas, 1973). Relativamente
ao conhecimento teórico que substancia a prática, “We want to keep the design moment free of
Eisenman reconhece que o mesmo é limitado all material constraints (…) in the initial stages,
a um pequeno sector capaz de descodificar os structural planning is never an immediate prio-
significados ocultos. Nesse sentido, também se rity” (Prix, 1991).
encontra-se desvinculado da sociedade porque Wolf Prix (Coop Himmelb(l)au) defende a pos-
não comunica directamente com ela, ampliando o sibilidade de existir uma relação de casualidade
misticismo em torno do significado oculto. A este entre o sistema estrutural e a forma resultante, mas
respeito refere em diálogo com Jacques Herzog também admite existir entre estes dois sistemas
(2007) que: “ Casting doubt is the ultimate thing”. alguma dissonância. Prix defende que a estrutura é
uma metáfora para as forças, não ligadas à gravidade
BERNARD TSCHUMI (1944-… )
mas a uma energia. Tschumi, Coop-Himmelb(l)
au, e Gehry opõem-se à natureza dos materiais e
“If you want to follow architecture´s firs rule a uma suposta verdade na arquitectura. A forma
break it” (Tschumi, 1976). é um resultado livre e independente de qualquer
Bernard Tschumi afasta-se da noção de “nature- consideração estrutural. A forma é concebida inde-
za” dos materiais porque de uma forma teórica esta pendentemente dos materiais, e é por isso livre para
implica sempre ligações rígidas que não podem envolver sem preconceitos uma determinada obra,
ser quebradas, uma vez que as partes dependem num material específico. Este pensamento deu azo
sempre das relações interpessoais, com vista ao a uma arquitectura epidérmica, mais ligada à explo-
todo. Considera que a lógica dos materiais é mais ração da imagem em arquitectura (Sandaker, 2008).
tica dos arquitectos, que procura uma superior com vista ao progresso civilizacional, colocando
consciência da sua prática, enquanto arte útil, em Ordem a construção. A “verdade” em arquitec-
marcadamente social. Arquitectura é a arte de tura é uma “verdade Física” ligado à consciência
bem saber pensar o espirito do tempo, extraindo da gravidade enquanto força fundamental da
as potencialidades dentro das restrições existentes, natureza.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Maciel. Lisboa: IST Press. 6, ano 1, Junho de 2001. São Paulo: FAU-USP.
Sampaio, Zita(1)
[email protected]
(1)
RESUMO
Um museu quando inserido numa universidade da área tecnológica é um local privilegiado para a con-
servação da memória histórica relativa à evolução da ciência no ramo de especificidade da instituição.
A indústria da Construção evoluiu em métodos de ensino, nas tecnologias aplicadas, na utilização de
equipamentos e no modo de registo gráfico, devendo existir uma base de lembrança de como se pro-
cessou o avanço para as actuais metodologias de trabalho. O Museu de Engenharia Civil do Instituto
Superior Técnico contém um acervo significativo de elementos, oferecidos por docentes e entidades do
sector, que se encontra patente, numa sala própria de exposição, inserida no espaço da Universidade.
Elementos como uma maquete da gaiola pombalina, ilustrando a técnica construtiva anti-sísmica apli-
cada após o terramoto de 1755, uma amostra de painel de tabique, identificador de como a construção
pré-betão era realizada, ou o tijolo maciço executado em molde de Ivry–Paris pela fábrica Lusitânia,
são exemplos preservados e mantidos em adequadas condições, que contribuem para a divulgação do
património técnico e para a memória da história da Construção.
INTRODUÇÃO
O Museu do Departamento de Engenharia Departamento. Adicionalmente, outras peças de
Civil, Arquitectura e Georrecursos do Instituto interesse museológico e relacionadas com as áreas
Superior Técnico (IST) (w1)1, inaugurado a de conhecimento desenvolvidas no Departamento,
20 de Dezembro de 1993, contém um acervo têm vindo a ser doadas por docentes, ex-alunos e
composto por peças relacionadas com a activi- entidades do sector. O Museu é um espaço de tipo-
dade e o ensino no domínio da Construção. O logia museológica no âmbito das ciências inserida
património didáctico, recolhido para o Museu, na rede de Museu das Universidades2. Sob a acção
encontrava-se nos gabinetes, laboratórios e salas museológica universitária tem colaborado com o
de aula, mantido pelos docentes e técnicos do
1
(w1) Museu de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico 2
(w2) Museus da Universidade de Lisboa http://www.museus.ulis-
http://www.museu.civil.ist.utl.pt/ boa.pt/
5). Nos anos 20, o arquitecto é o primeiro assis- é facilmente identificado nos modelos de gesso
tente da recém-criada cadeira de Arquitectura do expostos (Fig. 5). Os elementos de portal exem-
curso de Engenharia Civil do IST. Pardal Monteiro plificam uma arquitectura característica de edi-
(1897-1957) inicia, em 1927, o projecto das novas ficações nobres e religiosas (Fig. 5).
instalações do IST, ao Arco Cego, em Lisboa, a
convite de Duarte Pacheco então seu director. 3.3 MODELOS DE PORTAL E DE ESCADA
O edifício constitui uma obra emblemática da INTERIOR
primeira vaga de arquitectura modernista em
O Museu possui um conjunto de modelos de
Portugal, e traduz a consciência, adquirida nas
madeira executados por operários e, mesmo,
suas viagens ao estrangeiro.
pelos alunos, nas oficinas do IST. A Fig. 6 inclui
Actualmente, no âmbito da disciplina de
o modelo de madeira representativo de um por-
História de Arte, ministrada no curso de
tal típico de edifício do princípio do séc. XX e o
Arquitectura oferecida na Escola, os alunos são
modelo em madeira de uma escada interior de
confrontados com o reconhecimento, em monu-
edifício, onde é possível analisar o seu processo
mentos e edifícios históricos existentes, dos deta-
construtivo. Os modelos apresentam um trabalho
lhes dos capitéis das ordens jónica, coríntia e
de carpintaria muito detalhado e rigoroso, que
dórica, analisados no Museu (Fig. 5). O sistema
era aplicado nas portas e acessos das edificações
de construção referente à execução de abóbodas
a) b) c) d)
Fig. 7 - Amostras de tijolo Ivry – Paris, betão romano, betão armado e tabique.
1865, foi, em 1897, reconstruída, tendo sido apli- vergas colocadas sobre os vãos. A ligação entre a
cado na obra, pela primeira vez no País, o betão gaiola e a alvenaria é conseguida por mãos que
armado. Naquela época, a fábrica do Caramujo são peças de madeira em forma de dentes. Por
constituiu uma referência significativa no pano- ocasião da deslocação, à Escola, de especialis-
rama nacional e mesmo internacional, como um tas de engenharia sísmica, os docentes da área
exemplo de inovação na Construção. promovem o acompanhamento dos convidados
a uma visita ao Museu para a observação do
4.3 PAINEL DE TABIQUE modelo. Nomeadamente, em Novembro de 2014,
uma equipa da televisão japonesa NHK, solicitou,
no âmbito da realização de um documentário
5. TÉCNICAS CONSTRUTIVAS sobre o “Terramoto de 1755”, que a entrevista
O espólio do Museu contém modelos de ao especialista Mário Lopes, docente na escola e
madeira referentes a soluções estruturais da época membro da Sociedade Portuguesa de Engenharia
da reconstrução pombalina, do sistema tradicional Sísmica, tivesse como fundo a maqueta da gaiola.
da estrutura de coberturas utlizada na construção
antiga portuguesa, e da cofragem em madeira para 5.2 MODELOS DE ASNAS DE MADEIRA
a betonagem de um tipo de elemento resistente.
A típica cobertura de madeira, utilizada na
construção portuguesa, apresenta asnas como o
5.1 MODELO DE GAIOLA POMBALINA
seu principal elemento estrutural (Branco et al.,
O modelo de madeira reproduz o tipo de 2008). Normalmente, as coberturas de madeira
estrutura anti-sísmica, designado de gaiola são suportadas por asnas simples, com origem,
Pombalina, concebido para a reconstrução de provavelmente, no Renascimento. Estas asnas
Lisboa, devastada pelo terramoto de 1755 (Fig. apresentam uma geometria elementar, a trian-
8). Desenvolvida sob o ministério de Marquês de gulação, constituída por uma linha horizontal,
Pombal, no reinado de D. José I, foi usada até ao por duas pernas inclinadas, com uma pendente
final do primeiro quartel do séc. XX. Os edifícios variável entre os 20º e os 30º, para a formação
Pombalinos, com uma estrutura composta por da vertente do telhado, e pelo pendural vertical,
elementos de madeira verticais, horizontais e apertado no vértice do telhado pelas pernas.
inclinados, apresentam elevada capacidade resis- As asnas de Palladio surgiram no século XVI
tente à acção sísmica. O desenho dos elementos vencendo vãos entre 6 e 7 metros. Esta asna
representa a cruz de Santo André, formada por admite, adicionalmente, duas escoras inclina-
frechais, vigas de madeira horizontais que ser- das que ligam as pernas à base do pendural.
vem de base ao posicionamento de prumos, por A forma antiga de interligar os elementos é
travessanhos colocados entre prumos, elementos estabelecida através de samblagens, executadas
que estabelecem o travamento horizontal, e por nos elementos de madeira, dispondo dentes e,
eventualmente, ainda respiga e mecha. A partir
do séc. XIX as ligações passaram a ser substitu-
ídas por elementos metálicos tais como: pregos,
parafusos, cavilhas, bandas metálicas, pés de
galinha e “T”s. O Museu contém 10 modelos
distintos destes elementos (Fig. 9).
Fig. 8 - Modelo de gaiola pombalina.
5.3 MODELO DE COFRAGEM DE PILAR designada por Desenho, 51ª cadeira, desde a
fundação do IST, em 1911, e com uma duração
O elemento de cofragem em madeira de um
de 2 anos lectivos, passa em 1918, à sua posterior
pilar ilustra o modo de colocação de madeiras
designação, com um programa curricular de 3
verticais relativo a um pilar, servindo de molde
anos composto por três partes: 1ª desenho de
ao betão que é projectado para o seu interior, e
construção civil; 2ª desenho de máquinas; 3ª
o modo com é cintado para que mantenha a sua
desenho arquitectónico. Bensaude refere que “o
forma. Actualmente o tipo de cofragem utlizada
curso do segundo ano se destina ao desenho de
para moldar os pilares é metálica, pois a sua colo-
máquinas, com exercícios de esboço à mão livre,
cação é mais rápida, o material é reutilizável e é
como preliminar de todo o desenho rigoroso,
mais facilmente adaptável à secção do elemento
cópia de estampa, desenho de modelo, exercício
a betonar. O exemplo de madeira é ilustrativo da
para facilitar a leitura do desenho, desenho de
tradição da actividade de cofragem, sendo assim
memória e mural”.
uma peça didáctica (Fig. 9).
6.1 DESENHO DE CONSTRUÇÃO
6. DESENHO
O Museu possui um largo acervo de desenhos
O Instituto Superior Técnico foi criado logo
executados pelos alunos, que datam desde a
depois de implantada a República, pela transfor-
formação do IST até após a 2ª Guerra Mundial.
mação do antigo Instituto Industrial e Comercial
A Fig. 10 ilustra alguns desses desenhos
de Lisboa (IICL). Alfredo Bensaude assume a
gestão do IST e define um modelo de organização
e de funcionamento, renovando os métodos de
ensino da engenharia em Portugal.
Segundo as notas histórico-pedagógicas de
Bensaude, de 1922 “de todas as dificuldades a
maior tem sido ensinar o mais depressa possível
os alunos a desenhar; porque sem essa aptidão,
não se pode dar o conveniente desenvolvimento
aos trabalhos práticos das cadeiras de aplica-
ção” (Bensaude, 1922). A disciplina de Desenho
Técnico, a cadeira nº 47, é então ministrada no
2º ano do Curso Geral para todos os cursos
leccionados no IST. A disciplina, inicialmente
Fig. 10 - Desenhos de cantaria e de ligações em madeira.
Assim, os elementos de madeira que actual- aspectos didácticos, à época inovadores, intro-
mente constituem parte do espólio do Museu duzidos por Bensaude, nomeadamente no que se
foram executados pelos alunos ou por operários refere ao envolvimento dos próprios alunos, na
sobre os desenhos traçados pelos alunos. A Fig. execução de modelos de madeira, na oficina de
12 apresenta uma fotografia, incluída na publi- carpintaria, para serem utilizados na reprodução
cação “A Génese do Tecnico – Alfredo Bensaude de desenhos e como apoio à compreensão de
(Silva et al., 2011), que ilustra o aspecto da oficina processos construtivos. Esta perspectiva de ensino
de carpintaria. Os modelos de asnas, o portal exigia ao aluno um profundo conhecimento teó-
de madeira e a gaiola pombalina foram muito rico e prático, necessários à execução detalhada
provavelmente executados nesta oficina. e rigorosa dos modelos.
As peças estão identificadas e caracterizadas
7. CONCLUSÃO com um texto bilingue, proporcionando uma
adequada compreensão, ao visitante nacional e
Na história da Construção, o espólio recolhido
estrangeiro, quanto à proveniência, funcionali-
e conservado em local próprio, no espaço de uma
dade e época de uso, de cada elemento exposto.
escola de engenharia, constitui uma componente
O interesse pelo actual Museu é, ainda, manifes-
importante para a compreensão do que é actual-
tado pela sua utilização como espaço didáctico
mente a tecnologia aplicada ao sector. As peças que
e pela procura da sala para o desenvolvimento
incorporam o espólio do Museu de Engenharia
de actividades científicas e de divulgação, no
Civil, além de confirmarem a efectiva evolução
âmbito da Escola, e de eventos relacionados com
tecnológica actual e os avanços no conhecimento
a engenharia. O Museu serve a comunidade e
teórico alcançado, são também uma identidade
preserva a memória histórica da actividade da
de uma Escola com História. Revelam, ainda,
Construção.
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Técnico, Museu de Engenharia Civil e Arquitectu- -eou-virtuais/a-genese-do-tecnico-alfredo-ben-
ra, Lisboa. saude/.
Tostões, Ana(1)*
[email protected]
(1)
RESUMO
The Calouste Gulbenkian Foundation Headquarters and Museum complex (1959-1969) played a fun-
damental role in the development of building science in Portugal, as it was a Modern Movement design
constructed with a high quality level, demonstrating that there was more beyond the formalism of
the Modern Movement. Opened in 1969, it was designed to create a pleasant environment, providing
prospects from the interior through various vistas to the grove of trees and the surrounding landscape.
As a megastructure linking building and garden, it achieved an efficient technical level that connected
design methods and comfort requirements, under a huge interdisciplinary team working in an intense
collaborative construction process.
Located in central Lisbon, within a park of 7.5 hectares, occupying an area of 25,000 m2, it was de-
signed by the architects Pessoa (1919-1985), Cid (1925-1983), and Athouguia (1917-2006) with the
collaboration of the landscape designers Barreto (1924-2013) and Telles (1922-). The construction
gathered an international interdisciplinary team of specialists. The most up-to-date techniques were
adopted, including reinforced and pre-stressed concrete in its construction. Some figures illustrate the
size of these buildings: 150,000 m2 excavated material, 45,000 m3 of concrete, 3,200 tonnes of steel,
100 km of power cables, 50,Km of air conditioning ducts and 3,500 kW of installed electrical capacity.
The architectural design concept required the structure to be exposed and expressed. The aim of having
a dominant horizontal line that would present the image of a low building hugging the land and the
wish to emphasise the long slabs of concrete that constitute the visible image of the built complex, called
for a very creative structural concept.
The impact that the complex has had, and the way in which it has manifested the effectiveness of its
qualities, such as formal sobriety and assertion, have confirmed the close relationship between the
concept and the constructed reality. With its garden it has created the very image of the prestige and
innovation of the Foundation itself.
The aim of this paper is to present the research carried out during the construction process considering the relation-
ship between architecture, structure and services. By describing the building process, it argues that the complexity
and multidisciplinary nature of the project embodies a mature modernity confirming the outstanding construction
process which lead to its recognition as a national monument in 2011.
Figure 1: Aerial view, AFCG, photo Oliveira. Figure 2: Car park construction, 1964, AFCG, photo Oliveira.
1998) (an architect from the Building Research of green spaces” (FCG, 1960). The inner spaces
Center in London, specialising in architectural also seemed to be organized according to their
technique, with particular expertise in the area of relation with the outdoor spaces, thus “provid-
building physics), coordinated by Luis Guimarães ing a comprehensive overview of the park”(FCG,
Lobato (Tostoes, 2013), engineer and head of the 1960). A further consequence of this approach is
(SPO), which was formed by the architects Som- that it also promotes the treatment of the lower
mer Ribeiro and Sotto Mayor. volumes as a succession of landscaped platforms
The consultants and the SPO team unanimously integrated with the park. Thus, the construction is
suggested the selection of the solution presented manipulated as a megastructure made of garden
by Alberto Pessoa, Pedro Cid and Ruy d’Athouguia and inert concrete bodies, which adhere to the
in the competition. In the jury’s opinion, it was terrain subtly through receding foundations. The
the best study of the three submitted: “it complies furthering of the program allowed the integration
with the conditions established in the programme of the built-up mass into the surrounding park
and, in general terms, its design efficiently meets following a deliberate economy of means and
the demands of the departments to be installed stripped-down formal expression, which led to
in the Foundation’s Headquarters and Museum the most economical proposal, the one involving
building. We are convinced that the study on the the least amount of building only 13% of the Park’s
basis of this functional starting point, which has area (FCG, 1960).
already produced a subtle solution with imagina- The very simple solution basically linked two
tion, can now be taken even further”. wings in a T-shaped disposition, with the ad-
The transition from project to construction dition of the independent volume of the Audi-
work became a long and complex investigative torium: on the northern side was the solid and
process, involving the team of national and in- extended horizontal volume (125 m by 25 m) of
ternational experts, all concentrating on issues the Headquarters building which ran parallel
of structure and construction. The project for to, and overlooked Avenida de Berna and was
licensing was completed by July of 1961 and reaf- extended by the lower mass of the Temporary
firmed the notion of manipulation of nature, since Exhibitions wing; and perpendicular to this, on
“in the framework of the architectural solution, the eastern side, the Museum wing measuring
the landscaping was of great importance in add- approximately 90 m by 60 m.
ing value” (Pessoa, Cid, Athouguia, 1961). The
fact that 86.6% of the site area remained free STRUCTURE, SPECIALITIES AND
allowed the vegetation to serve as a framework CONSTRUCTION
for the building. Construction took place ac-
Along with the detailed design process the ar-
cording to a study that took into account some
chitectural team turned to the specialized areas
of the pre-existing features of the landscape, such
– from structural calculations to the HVAC (Heat-
as the location of the more valuable trees, but
ing, ventilation and air conditioning) aspects, and
also made it possible to effect transformations
from the building physics research to the planning
in the morphology of the site. It is in this sense
of the construction work. It was necessary to
that an unyielding horizontality, when it came
coordinate the technical aspects of the following
to the distribution of the constructed volumes,
areas: lighting, both natural and artificial; acoustic
was appropriate because “it allowed a reading of
and thermal insulation; structural dimension-
the buildings, in all directions, as a continuation
ing; air conditioning and ventilation; the electri-
based on rectangles, which were adapted to the reserved for less significant functions. It allowed
access corridors to the offices disposed along the for an organisation on plan with an internal
four façades. core reserved exclusively for the serving spaces.
This structural solution had the added advan- These were the circulation and archive spaces,
tage of distinguishing the hierarchically most bathrooms, elevators and staircases, which, as
important served spaces from the serving spaces they did not require natural lighting or contact
ity of the “bunker museum” built in reinforced the composition. Based on the distribution of
concrete without windows. long, pre-stressed beams spanning the length
A very clear geometric matrix structured the (90 meters) of the Museum, this matrix structure
60 m by 90 m museum rectangle, dividing it lon- articulates, as in the Headquarters building, a hi-
gitudinally into three sectors, which were then erarchization of the spaces into served and serving
sub-divided transversely by five other dividing spaces. Making use of the 1 m intervals between
lines. The structure developed and interpreted the pairs of beams, the serving spaces house, in
this strict geometry, as well as inscribing the Mu- the levels below the Museum’s principal floor, the
seum’s two interior courtyards in the center of
service stairwells, bathrooms, archives and other Amaral as a compromise between the need to
complementary functions. raise the height and the desire to guarantee the
The openings in the façade were organised in greatest possible horizontality.
harmony with the structure’s modular definition. At any rate, the need to create an inverted stage
The windows emerged precisely in the intervals grid meant that excavation work for five floors
between the pairs of beams framed by the beams below the stage level had to be carried out, giving
that complete the cornice. The structural solution rise to an enormous basement level from which
also gave rise to the design of the ceilings and emerge, by means of silent elevating platforms, the
their lighting, because it called for coordination five stages. The decision to use an inverted “web”
with the design of the electrical, air condition- for the stage, consisting of a system of elevating
ing and security networks integrated into one platforms, combined with revolving walls and a
coherent whole. canopy suspended above the stage characterised
a concept essentially designed for musical perfor-
THE ACOUSTIC DEMANDS OF THE mances but also one that was sufficiently versa-
AUDITORIUM tile for conferences, cinema, ballet, and modern
In the Auditorium it was necessary to create theatre performances. This work was diligently
an innovative space that guaranteed excellent monitored by Hall Stage, a British company spe-
acoustics. Located to the south of the Headquarters cialising worldwide in this field.
and Temporary Exhibitions wings, it is the most Due to the dimensions and volume of the
central element in the complex, implanted in the Auditorium, a complex structural solution was
heart of the park. required, which was designed on the basis of a
The establishment of a visual relationship with series of portal frames in reinforced concrete
the exterior by placing a large window at the back (Vidal, 1965). The concrete frames were neces-
of the stage, so as to provide interaction with sary to span the distance of 27 meters because,
the garden and the pond, and alterations to the in addition to supporting the roof, they also had
design decided from 1962 onwards to house the to support the concrete slab floor of the services
corps de ballet rehearsal rooms underneath the level above, to which the bronze sheeting, that
Auditorium required thorough studies by William formed the hall’s ceiling, was fixed. The stage area
Allen and the engineer Cavaleiro e Silva from the also took on additional complexity (Allen, 1969).
LNEC (Allen, 1969). The canopy that formed the adjustable 250 m2
The Auditorium’s compact volume was de- acoustic panel, weighing more than 50 tonnes,
termined by its direct relationship with the its had to be suspended from the uppermost beam.
acoustic design and performance. The Audito- In addition to this, the last portal frame also had
rium’s curve, a logarithmic spiral, which forms its to support the suspended large window across
base, was studied in great detail, with drawings the rear of the hall. This double glass wall behind
and models (Allen, 1963). The evolution of the the stage provides a view from the auditorium
drawings reveals how the low, horizontal body interior overlooking the pond to the south and a
was transformed when, in order to guarantee ef- direct relationship between the hall’s interior and
fective acoustics, the ceiling height was raised by the park and open-air amphitheatre beyond. The
5 m, thus significantly altering the initially desired contract for the work was awarded to the German
expression. The roof was then given the form of company Glasbau, which, in addition to supplying
a “turtle shell”, which was suggested by Keil do the enormous glass panels, also installed them.
This project has been recorded as a highlight of construction work began with large-scale earth-
the construction work. The placing of the stage works, opening up the land at the northern end
on a level with the pond, separated only by the for the construction of the underground car park.
glass wall, symbolises the close, almost physical, It was an enormous construction project that was
relationship between the interior and the exterior carried out on-site at the same time as the design
that was a constant aim in the project. was still being be perfected, consolidated and
calculated. The building complex is distributed
CONCLUSION over several floors, some of them underground,
For the reasons already given, this work is with a total area of some 64,000 square meters.
representative of the maturity of modern Por- Of this area, only somewhat more than one third,
tuguese architecture, achieving a condition of approximately 25,000 m2, is visible on the surface
contemporaneity through the high quality of the area of the park. This figures give one an idea of
construction work at all levels. The most up-to- the complexity of the project and the earthworks
date methods were used, namely in the execution carried out for its construction.
of the pre-stressed, and, in some cases prefabri- The structures were defined by the largest dimen-
cated, reinforced concrete and in the design of the sions of the main spans. Thus, the dominant hori-
electrical and air conditioning equipment and all zontal disposition and the ground suspension-like
the sophisticated technical service networks. The (I meant that the building is suspended from the
ground) of the building are revealed by the larger The “profiles” of the beams are registered expres-
dimensions of the structural spans used, with a sively on the exterior and finished off with long,
length of 13.5 meters in the Headquarters building horizontal gargoyles which assert the rawness of the
and reaching 17 meters in the Museum wing. The simply exposed concrete, comprehended with the
columns, the size of which are 2.5 meters height same fineness of detail as the coverings in granite,
by 50 centimeters width, are adapted to this canon, the window frames and the bronze roof sheeting.
which is mathematically organised in modules. The simplicity revealed in the choice and use
The construction firmly asserted the principle of the materials seems to pervade the dialoguing
of “served” and “serving” spaces, defined on the intimacy between interior and exterior. The qualities
basis of the structural rule: in the Museum body, of this building complex – sobriety and character,
the secondary serving functions are located in the discretion and assertion – announce the revision
interstitial space between the double beams; in the of the path of Modern Movement architecture in
Headquarters building, an internal “core” houses placing building science above superfluous formal-
the support services, bathrooms and archive spaces. ism, and in highlighting team work values rather
than the primacy of the architect in the leading role.
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RESUMO
A cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo, Brasil, teve a sua primeira grande transformação
urbanística na virada do século XIX para o XX. Na região hoje conhecida como Parque Moscoso, um
grande aterro proporcionou a instalação de um novo bairro. A área passou a abrigar as mais luxuosas
residências da cidade. A Vila Oscarina foi construída por Antenor Guimarães, um próspero empresá-
rio para residência de sua família. O imóvel foi erguido por mão de obra local e estrangeira. A obra
contou com a habilidade de pintores italianos e o uso de material de construção importado. A casa foi
a primeira do município a usufruir de luz elétrica e telefone, era rica em detalhes, com muitos recortes
e adornos. Constituiu-se uma verdadeira obra “feita à mão”. O modelo de implantação da residência
denunciava sua ocupação por família mais abastada. A varanda lateral com alpendre sustentado por
pilastras esbeltas de ferro fundido é acessada a partir de escadaria frontal irregular que concede certa
“monumentalidade” ao conjunto. O artigo apresenta os materiais de construção e acabamentos através de
um mapeamento interno e externo. A questão da permanência e da conservação dos mesmos é avaliada
em função da modificação do uso ocorrida a partir dos anos 70. Este artigo se inscreve no campo da
história da arquitetura e da tecnologia da construção. Quanto aos procedimentos técnicos foram feitas
consultas em material já publicado e em documentação que ainda não recebeu tratamento analítico. A
qualidade da construção, dos materiais empregados e a mão de obra especializada contribuíram para
a manutenção de suas características. A Vila Oscarina constitui-se como um dos poucos remanescentes
residenciais da produção arquitetônica capixaba (que tem origem em Vitória) da primeira metade do
século XX o que enfatiza a relevância desta pesquisa bem como a necessidade da preservação do imóvel.
1. PARQUE MOSCOSO
A ocupação espacial de Vitória nos primeiros Os primeiros aterros (década de 20 do século
séculos se restringiu ao seu núcleo histórico com XIX) foram realizados com enormes dificuldades
edificações locadas na área de topografia aciden- de recursos e de mão-de-obra qualificada que
tada onde o solo era firme. Estas eram construídas dependiam, muitas vezes, da boa vontade dos
em ladeiras estreitas e tortuosas evitando o risco ricos moradores locais. Em 1894 foi contratado à
dos alagamentos pela alta das marés. companhia Torrens o Plano de Arruamento para
a Vila Moscoso na região do centro conhecida de esgoto e a iluminação pública que deu a Vi-
como Lapa do Mangal, Mangal do Campinho ou tória o nome carinhoso de “Cidade Presépio”.
Campinho, área alagada que sofreu sucessivamente O embelezamento da região do Campinho e a
vários aterros em nome da salubridade pública. introdução do bonde também foram iniciativas
“O plano trazia um novo padrão urbanístico de seu governo.
para Vitória prevendo um parcelamento que se A planta da cidade de Vitória em 1895, figura
diferenciava do modelo colonial existente, porém, 1, apresenta a regularização do novo bairro con-
no fim do governo de Freire, as obras da Vila quistado ao mangue, com ruas paralelas e orto-
Moscoso ainda não tinham sido realizadas, gonais, que incluía a destinação de uma grande
devido à crise financeira.” Bellini (2014, 297). área central para um Parque público na cidade,
Muniz Freire governou o estado entre 1892 e o primeiro que não era apropriação de antigos
1896 e novamente entre 1900 e 1904. Somente espaços coloniais e que era projetado especifica-
no governo de Jeronymo Monteiro (1908-1912) mente dentro dos padrões urbanísticos do século
a arrecadação voltou a crescer, o que refletiu em XIX, com um programa que incluía na urbe lazer
obras na cidade: a implantação das redes de água, e saúde.
A área verde, onde é possível ler Campinho, na As pequenas obras públicas e as obras das edifi-
segunda década do século XX é implantado o Par- cações eram absorvidas pelos construtores locais.
que Moscoso. A Vila Oscarina ocupa hoje o local “A principal preocupação dos administradores
no qual em 1895 instalava-se o Lazareto, número públicos era a realização de obras de saneamen-
3 na planta, portanto, a mesma foi construída nas to e de melhoramentos urbanos [...] no ramo
adjacências do parque e sua obra concluída em imobiliário, a atividade se dava por encomenda,
época próxima a inauguração do mesmo. mas de contratantes, que utilizavam as casas para
moradia própria ou de familiares.” (Campos Jú-
A área adquirida compreendia os lotes 3,
nior, 2005, 20).
7bis, 8bis, 9bis, e 10 bis, do quarteirão 17
Devido a baixa demanda também era reduzido
do arrabalde do Campinho (novo bairro da
o número de construtores e os que haviam eram
Vila Moscoso). Estabelecido ainda foro anual
descendentes de imigrantes estrangeiros. Os de
de 21$600, com prazo de quatro anos para
origem portuguesa e italiana foram os que mais
se construir, obedecendo a normas do Códi-
se destacaram no período.
go de Posturas Municipal. Anexo à área, A.
Guimarães já havia aforado o lote 11 bis, O Espírito Santo, terra conquistada pelos
fronteiriço à Rua Vinte e Três de Maio, onde colonizadores portugueses e Canaã dos
construiu sua residência particular (Vila Os- sonhos dos imigrantes italianos e de tan-
carina), pago o valor de 8$000 pelo m². (Esta- tas outras nacionalidades, muito deve aos
do do Espírito Santo, 1914 e 1906). indígenas que habitavam nossas florestas
e aos povos africanos, que tanto contribu-
As obras para a construção do Parque Moscoso
íram para a formação do povo capixaba e
iniciaram no ano de 1910, com o aterro sob a
para o progresso do nosso Estado. A histó-
responsabilidade do Coronel Antônio José Du-
ria da imigração no Espírito Santo sempre
arte. O paisagismo executado posteriormente foi
esteve, e estará referenciada na incansável
realizado sob a supervisão do construtor Paulo
luta desses povos. Sendo miscigenados ou
Rodrigues Teixeira Motta.
não, cada um dos capixabas traz consigo
Inaugurado em 1912, o Parque Moscoso foi
a influência dessas culturas, as quais se in-
construído durante o governo de Jerônimo Mon-
terrelacionam e se complementam. (Fran-
teiro. A denominação: Vila Moscoso, é anterior a
ceschetto, 2014, 15).
construção do parque. No final do século XIX a
área que possuía uma ocupação rarefeita formada A imigração de italianos para o Espírito Santo
por casas com aparência modesta, recebeu o nome foi estimulada pelo governador Muniz Freire que,
de Vila Moscoso em homenagem ao Presidente em 1894 criou um núcleo colonial italiano 27 km
da Província em exercício Henrique de Ataíde acima de Linhares. No período os portos brasi-
Lobo Moscoso (1888-1889). leiros estavam abertos para receber imigrantes da
Itália, o governo concedia ainda permissão para
2. A CONSTRUÇÃO SOB ENCOMENDA recebê-los em definitivo e arcava com as despesas
com as passagens.
No início do século XX a população de Vitória
era pequena. “Habitantes de Vitória em 1900: Em 1889, o governo capixaba inaugu-
11850.” (IBGE, 2016). A cidade vivia do comércio rou a Hospedaria dos Imigrantes de Pedra
do café escoado pelo seu porto e a construção D’Água, localizada na baía de Vitória, mu-
dependia de encomendas. nicípio de Vila Velha, uma importante obra
utilizava corantes minerais do Espírito Santo Aos 16 anos de idade fundou a Guimarães e
em suas obras. Silva, agência de navios, estiva, cargas e descargas
“A firma Miranda e Derenzi foi a subemprei- e transportes terrestres. Esta empresa que deu ori-
teira que realizou o aterro da área sobre a qual gem a Antenor Guimarães & Cia e depois Antenor
está assentado o Parque Moscoso, e foi ela que Guimarães & Cia Ltda. (Ilha da Fumaça, 2016).
construiu esse parque [...] Derenzi, com um novo A fotografia a seguir é datada de 1930 e apre-
sócio, fundou a Politi e Derenzi, que construiu a senta em primeiro plano, sentados da esquerda
sede da Prefeitura de Vitória (1925).” (Campos para a direita, Oscar, Orlando, Alcides e Oswald
Júnior, 2005, 20). (filhos e sócios de Antenor Guimarães), Antenor
Contemporâneos ao italiano Luiz Serafim De- Guimarães, sua esposa Anna Cruz Guimarães,
renzi são os empreiteiros Gismondi e Lourenço sua filha Odette Guimarães e seu marido Sidney
Lucciola cuja notícia é a atuação em obras ur- Pereira de Souza. Em pé, empregados e parceiros.
banas. Também Camilo Gianordoli e Becacici A biografia de Antenor Guimarães é marcada
eram construtores italianos atuando na capital por sucessivas empresas que fundou ao menos
capixaba. Logo, são muitos nomes que poderiam onze até 1920 e descreve um homem circunspecto,
ter colaborado na construção da Vila Oscarina. honesto, sincero e franco em suas relações co-
As famílias tradicionais de Vitória tinham os merciais e pessoais. A oportunidade vislumbrada
seus construtores e sempre demandavam por por ele associava o fato de Vitória ser pequena e
obras recorriam aos mesmos. Os construtores carente de infraestrutura, transportes e serviços à
atendiam o contratante, este estabelecia o local sua vontade de realizar tarefas. Foi através do seu
e de acordo com a disponibilidade financeira do visionismo e de árduo trabalho que conquistou
mesmo o ritmo da obra era definido. riqueza e prosperidade. A sua residência foi a
“De acordo com Campos Júnior não havia mui- primeira da cidade a ter luz elétrica e telefone.
tos construtores, apenas uns quatro ou cinco se O imóvel foi erguido por mão de obra local e
destacavam no ramo [...] e demandavam-se pro- estrangeira. A obra, que contou com a habilidade
fissões como a do estucador, profissional especiali- de pintores italianos e o uso de material de cons-
zado na produção dos ornamentos, especialmente trução importado, passa a seguir a ser descrita.
feitos em gesso.” (Campos Júnior, 2005, 24).
4. A VILA OSCARINA
3. O PROPRIETÁRIO
A residência de Antenor Guimarães foi cons-
Ainda um menino, com 12 anos, chega a Vitó- truída com linguagem eclética e características de
ria em companhia do seu tio, a bordo do vapor chalé, uma arquitetura importada e com influên-
Mayrink, do Lloyd Brasileiro. Antenor Guimarães cia européia. As imigrações de europeus para o
nasceu em Niterói em 1872 e faleceu em Vitória Brasil; as três últimas décadas do século XIX e a
em 1932. primeira do século XX (repletas de renovações,
Em entrevista com Mariza Neves Guimarães, transformações e criações) e o ideal positivista
esta definiu o seu bisavô com as seguintes pala- (base filosófica da República), marcam na arquite-
vras: “Antenor Guimarães foi um empreendedor, tura toda a evolução histórica, social e econômica.
um espírito a frente do seu tempo.” “Por volta dos últimos anos do século XIX e
Advindo da família Bocardo, proprietária de no início do século XX, antes de 1914, podia-se
trapiches, começou a trabalhar muito jovem, como considerar como completa a primeira etapa da
auxiliar, nas firmas que pertenciam a seu tio. libertação da arquitetura em relação aos limites
dos lotes. Fundiam-se desse modo, duas tradições: de madeira, cortado a serra de fita, ao longo de
a das chácaras e a dos sobrados.” (Reis Filho, toda extensão.
1970, 50).
Com uma progressiva aproximação com a
Enquanto os tradicionais chalés são construídos
Europa e com a chegada do romantismo, a
em lugares altos, guardando bem as características
varanda afirma-se definitivamente, intima-
do chalet alpino, a revolução industrial contri-
mente associada ao jardim inglês, de clara
buiu para disseminação de uma tipologia mais
influência oriental, através de um longo
requintada, apresentando acabamentos bem mais
espaço alpendrado que vem denunciar os
apurados. Na residência em Vitória, o “isolamento”
discretos progressos da família patriarcal,
se dá pelo tipo de implantação em centro de lote
agora se abrindo para o público. Com a in-
que afasta do contato direto com a rua.
dependência e a cultura do café, uma cres-
O jardim proporcionava o contato com a na-
cente urbanização conduz os valores antes
tureza e atuava como elemento cenográfico e de
restritos em termos familiares a uma vaga-
lazer. Apesar de ser projetado prioritariamente
rosa abertura. O público então é socialmen-
para valorizar a arquitetura, o jardim é submetido
te “bem-vindo” – mais que isso, estimulado
a um uso mais intenso.
a frequentar os saraus literários ou musi-
Implantada em terreno de esquina, possui a
cais. O corredor-alpendre serve de guia a
fachada principal voltada para a Rua 23 de Maio.
casa, revelando espaços antes invioláveis ao
A primeira leitura é de um sobrado com volume
olho curioso exterior. (Veríssimo, 1999, 33).
prismático recortado onde se destacam a varanda
lateral com alpendre sustentado por pilastras es- O alpendre da residência é acessado por esca-
beltas de ferro fundido e arremate em lambrequim daria principal frontal irregular que concede mo-
Fig. 3 – Residência à Rua 23 de Maio n° 273. Fig. 4 – Fachada Rua Vasco Coutinho.
numentalidade ao conjunto. O acesso de serviço atribuiu a ele a autoria dos murais. Aos 13 anos
é diferenciado, feito por escadaria independente de idade, o menino iniciou na profissão de pintor,
na parte posterior do imóvel. Também marcante decorador de paredes e residiu na França tendo
na fachada principal o pináculo na cumeeira e o realizado as pinturas do interior do Cassino de
caimento acentuado das águas do telhado, diferen- Monte Carlo.
ciando bastante da platibanda de uso generalizado “Pintou também murais para a residência
em Vitória no período. de Antenor Guimarães, conhecida como Vila
A edificação recebe como coroamento uma faixa Oscarina (no Parque Moscoso). Essas pinturas
cerâmica ornamentada confirmando a singeleza desapareceram embaixo de camadas de caiação,
da composição. Outro elemento e presente até os depois que a residência foi transformada num
dias atuais é o portão em estilo art noveau. pensionato de freiras, nos anos 60.” (CMM, 2016).
A imagem a seguir é realizada após a conclu-
Ainda na imagem se destaca o muro e o gradil,
são da construção e anterior ao fato de receber a
este se perderá adiante por conta da transformação
inscrição: Vila Osacrina na fachada.
de uso ocorrida nos anos 70.
Oscarina, filha de Antenor Guimarães e Anna
Os vãos do segundo pavimento da fachada
Cuz Guimarães nasceu em 1899 e faleceu em
voltada para a Rua Vasco Coutinho são em verga
1917. Segundo Mariza Neves Guimarães, sua tia
avó foi acometida de tuberculose e não resistiu à reta, recebem arremate com moldura superior
doença falecendo em Campos de Jordão, Estado contínua. A faixa cerâmica prossegue nesta facha-
de São Paulo, onde realizava tratamento. O luto da coroando a edificação, junto à sanca externa
da família foi demonstrado também através das que faz a ligação da parede com o beiral forrado
cartas; as correspondências continham uma tarja por madeira pintada na cor branca. As vergas do
preta. Dar a residência da família o nome de Vila primeiro pavimento foram resolvidas em arco
Oscarina foi uma homenagem póstuma a jovem. abatido. São ao todo nove janelas nesta fachada,
No alpendre da residência são visíveis, na ima- cinco no segundo pavimento e no primeiro apenas
gem, várias pinturas nas paredes. O trecho a seguir, quatro, a quinta abertura se refere a uma porta
da biografia de Túlio Samorini, que nasceu em lateral. A fotografia, figura 4, apresenta esta des-
Roma, em 1882 e faleceu em Vitória, em 1944, crição e mais o jardim e o muro lateral.
O projeto original foi procurado nos Arquivos data não apresentavam projeto de aprovação para
Públicos do Município e do Estado, no IPHAN/ES, construção.
na Secretaria de Obras e na ECD (Equipe Centro
de Documentação) da PMV (Prefeitura Municipal 4.1 A VILA OSCARINA APÓS 1920
de Vitória), no entanto, não consta nos arquivos
Em 1921 foi pedido a Antenor Guimarães que
destes órgãos. Somente em um site - https://par-
hospedasse o presidente do Brasil, Nilo Peçanha
quemoscoso.wordpress.com/vila-oscarina - está
na Vila Oscarina. Jerônimo Monteiro estava pre-
disponibilizada a planta esquemática do primeiro
sente na ocasião. O presidente foi recepcionado
pavimento. O atual proprietário possui o Projeto
com flores no portão e na escada se dirigiu à sala
de Regularização elaborado em 1996, cujas plantas
de visitas.
se apresentam na figura a seguir. Neste visuali-
“Na bela residência foi servido o almoço, o jan-
zam-se as linhas tracejadas do projeto aprovado
tar e o café da manhã. Oswald Guimarães, filho de
e as linhas cheias do projeto a ser regularizado.
Antenor Guimarães o acompanhou durante todo
Há de se considerar que a promulgação da lei n°
o tempo, este decorou o portão da residência com
351, Código Municipal de Vitória, só ocorreu
uma estrela de lâmpadas e as letras N.P.” (Ilha da
em 1954, portanto, edificações anteriores a esta
Fumaça, 2016).
Vidros coloridos, vermelho, verde a azul apenas retangulares que são ilustrados na figura 8. Os
nas duas esquadrias da fachada principal, nas ladrilhos hidráulicos são revestimentos artesanais
demais o vidro é padrão fantasia Mosaico. feitos à base de cimento, usado em pisos e paredes,
O piso do segundo andar permanece em sua que tiveram o seu apogeu entre o fim do século
totalidade nos quartos e salas. São tábuas corridas XIX e meados do século XX. Foram apresenta-
de 10 centímetros de largura também em Peroba dos como alternativa ao mármore ou como uma
do Campo. “cerâmica” que não necessitava de cozimento.
Segundo Vasconcellos no século XIX os tabua- Os revestimentos estão assentados em áreas ex-
dos são reduzidos em sua largura, utilizam encaixe ternas e de transição (alpendre), portanto visíveis,
macho e fêmea e são confeccionados em pinho a sua alteração comprometeria a autenticidade, no
de riga, peroba do campo ou ipê. (Vasconcellos, entanto há de se considerar que outros revestimen-
1958, 27). tos exteriores foram inseridos nas duas laterais e
A escada interna, também da mesma madeira, no caminho do jardim em direção ao acesso do
é realizada em sistema de encaixe, com peças es- laboratório como exemplificado na figura 6.
culpidas para a curva do dormente (nomenclatura De acordo com Ana Karine Bellini, arquiteta
atribuída ao acabamento lateral onde se encaixam na Secretaria de Obras da PMV, a residência foi
os degraus) e para o corrimão. O balaústre é tor- identificada como de Interesse para Preservação
neado e a mesma apresenta degraus em leque dentro da vigência do Primeiro Plano Diretor
em sistema de compensação que estabelece uma Urbanístico, lei n° 3158 de 1984, o qual não exigia
mudança gradativa da direção da marcha, con- inventário do imóvel. O nível de salva-guarda foi
servando constante o comprimento do passo. Na o GP2 (Grau de Proteção Secundária) que exige a
figura 7 estas características podem ser observadas. manutenção da cobertura e das fachadas.
No segundo pavimento também o ladrilho Pela determinação da prefeitura, a critério do
hidráulico da varanda está resguardado. No pri- proprietário poderiam ter sido alteradas as portas
meiro pavimento o piso original foi substituído internas, a escada de madeira e o piso de tábuas
restando apenas o do acesso que segue do portão do segundo pavimento. Entende-se a manutenção
principal a escada em mármore e abaixo desta dos mesmos como opção pela conservação. O
onde se localizava a lavanderia. proprietário atual, Dr. Cristiano, em entrevista,
Foram encontrados três diferentes desenhos, se declarou apreciador da residência e também
dois em pisos quadrados e um terceiro em peças seu gosto pela arquitetura.
Segundo Jocarly Coutinho, também funcionário A função habitação unifamiliar se perdeu após
da PMV, o imóvel que possui inscrição imobiliária meio século, porém outros tipos de habitação
n° 01.04.024.0168001 e inscrição fiscal n° 13564- coletiva se concretizaram (pensionato e clínica
02, recebeu em 2002, em nome de Laboratório psiquiátrica). O uso de serviço careceu de adap-
Capixaba de Análises Clínicas o certificado de tações que transfiguraram o primeiro pavimento
uso n° 341 e a Certidão Detalhada n° 507 que internamente, no entanto o segundo permanece
descreve os pormenores do primeiro e do segundo original em quase toda sua totalidade; como parte
pavimento. administrativa do negócio acomodou os escritó-
rios nos antigos quartos e ainda utiliza boa parte
5. CONCLUSÕES deles como depósito.
O estado de conservação é excelente não tendo
A obra é objeto de refinado gosto e preciosismo
sido verificado nenhum ponto com rachaduras,
arquitetônico. Os materias de construção empre-
vegetação na alvenaria ou na cobertura, infiltração,
gados influenciaram e influenciam na durabilidade
umidade, desfalque de material de fechamento ou
do imóvel. A definição dos mesmos em nível de
acabamento e infestação por cupim.
projeto (quantificação e dimensionamento) e na
A indicação como imóvel a ser preservado foi
etapa construtiva foi fator preponderante para a
fundamental para a manutenção das fachadas e da
qualidade final da residência.
cobertura permitindo a salvaguarda do bem. Tal
A experiência da mão de obra foi relevante para
iniciativa, ocorrida entre 1984 e 1996, se reflete
o resultado final da construção. Os construtores
atualmente, 20 anos depois, permitindo à popu-
tinham domínio da técnica construtiva o que pode
lação a visão deste belo exemplar de arquitetura
ser observado nos dias atuais pelo alinhamento das
residencial do início do século XX e a academia
paredes, encaixe das esquadrias, forma das escadas
estudos mais aprofundados sobre a linguagem
e do telhado e acabamentos de pisos e paredes.
arquitetônica do período e a permanência dos
materiais.
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tetura do Brasil. São Paulo: Perspectiva.
*Facultad de Arquitectura
Universidad Nacional Autónoma de México
RESUMEN
El uso del tratado de arquitectura Medidas del Romano de Diego de Sagredo en la construcción de
los conventos mexicanos del siglo XVI, tiene como objetivo mostrar la complejidad que hubo en la
construcción de los conventos novohispanos del siglo XVI, y que en ciertas tareas fue necesaria la inter-
vención de personal especializado, así como la manera en que pudo utilizarse el tratado “Medidas del
Romano” de Diego de Sagredo haciendo énfasis en los aspectos referentes a la edificación. Para ello se
revisó en la historiografía y fuentes documentales lo referente al citado tratado, así como la existencia
de ejemplares originales del mismo en Bibliotecas históricas y fondos reservados para comprobar su
existencia en México, así como en documentos de archivo que pudieran hacer referencia a él. Luego
se estudió el texto del tratado y a continuación se compararon y cotejaron sus ilustraciones con los
elementos constructivos, arquitectónicos y ornamentales para demostrar que el tratado Medidas del
Romano fue utilizado en Nueva España para ser interpretado, reinterpretado, copiado o como fuente
de inspiración por los maestros canteros, de albañilería o arquitectura, en los aspectos constructivos, de
diseño u ornamentales. Se efectuó el análisis de la organización del trabajo en la construcción de un
convento, su complejidad y tipo de personal que intervenían en ellas. Por último se hizo una descripción
de los diferentes elementos constructivos buscando la manera en que el tratado de Sagredo pudo servir
en la materialización de cada uno de ellos, pudiendo alcanzar el objetivo planteado.
Palabras-clave: construcción conventos Novohispanos del siglo XVI, Medidas del Romano, Diego
de Sagredo.
1. INTRODUCCIÓN
Con la caída de Tenochtitlan en 1521, las au- y las de la Corona, pues tanto los edificios como
toridades españolas tuvieron que organizar el las formas constructivas utilizadas por las cul-
gobierno del extenso territorio conquistado, dar turas prehispánicas resultaban inadaptables e
soluciones a los problemas inmediatos, como incompatibles con la manera de vivir europea. Al
fueron: fundar ciudades, villas y poblados para principio sus construcciones fueron deleznables,
establecerse en ellos y controlar a la población que con el correr de los años sustituyeron por
indígena. Además, requirieron erigir construc- otros de carácter definitivo y de mejor calidad
ciones para satisfacer sus diferentes necesidades arquitectónica.
construcción para apoyarse en ellos, forzosamente piración, guía para principiantes o como manual
hubo personal especializado en trabajos edilicios. para los artistas, artesanos y técnicos dedicados a
Por eso, primero indagaremos la función de los la construcción por su “...carácter eminentemente
tratados en la construcción, concretamente el de empírico, estos centones de consejos útiles y fácil
Diego de Sagredo que tanta importancia tuvo en el aplicación fueron siempre de uso indispensable
siglo XVI y luego analizaremos algunos aspectos desde el arquitecto más eminente hasta el aprendiz
de las actividades vinculadas con la edificación más inexperto” (Bonet 1993, 16). Así, los tratados
de una obra. ayudaron a edificar “...de acuerdo con un lenguaje clá-
sico, trazar edificios con proporciones, siguiendo los
2.1 LOS TRATADOS DE ARQUITECTU- grandes modelos y composiciones canónicas, dán-
RA Y “MEDIDAS DEL ROMANO” DE doles una ornamentación elegante y bella, levantar
SAGREDO una fábrica sin que ésta tuviese fallos constructivos
Los tratados de arquitectura eran libros que o defectos técnicos” (Bonet 1993, 16).
abordaban aspectos teóricos y prácticos relati- En Nueva España los tratados de arquitectura
vos a la arquitectura y construcción, siendo un fueron accesibles a arquitectos, canteros, albañiles
compendio de conocimientos para el diseño y y carpinteros que sabían leer y escribir, muchos
la edificación, que tuvieron su auge a partir del contaron con varios de ellos y otros libros afines en
Renacimiento. Su objetivo principal fue dar a temas de construcción; en otros casos los tratados
conocer la arquitectura clásica en el mundo oc- se encontraban en las bibliotecas de los colegios
cidental, enseñando el arte de diseñar y construir o conventos de órdenes religiosas o de personas
tomando en cuenta los órdenes clásicos. Además, importantes.
fueron de gran utilidad por incluir conocimientos En cuanto al tratado “Medidas del Romano”
de geometría, matemáticas y mecánica elemental, de Diego de Sagredo, fue la primera obra de ar-
algunos aspectos del urbanismo, materiales de quitectura escrita en España, siendo “el primer
construcción (incluyendo su naturaleza, calidad, tratado que sobre los órdenes antiguos se publicó
uso y adecuación a las necesidades de cada edifi- en lengua romance fuera de Italia en el Renaci-
cio), lo referente a “…la extracción y labrado de la miento” (Bonet 1993, 105); se editó en la ciudad
piedra, la fabricación y corte del ladrillo, la manera de Toledo en 1526. En corto tiempo gozó de gran
de lograr buenas argamasas” (Bonet 1993, 18), el popularidad incluso en otros países europeos, al
funcionamiento de ciertas técnicas constructivas, grado de ser traducido al francés a los pocos años
las medidas, tipos de herramientas e instrumentos de aparecer la primera edición. “En Francia, el
de trabajo (como por ejemplo levantar de forma libro de Sagredo no sólo fue traducido sino que
adecuada un andamio) o “nociones de los prin- también vio su texto y sus grabados aumentados,
cipios esenciales del arte, […] consejos y reglas con añadidos de una persona hoy por hoy anó-
prácticas de construcción” (Bonet 1993, 15). nima […] Al darse este hecho, se produce una
Los dibujos, láminas, xilografías y ejemplos gráfi- ruptura con la edición príncipe, ruptura que se
cos con que los tratados se ilustraron fueron de gran mantendrá en todas las ediciones francesas; pero
utilidad e importancia para evidenciar los postulados el fenómeno tendrá un efecto todavía mayor, ya
en ellos vertidos, facilitando a los maestros de obra y que las ediciones parisinas y sus dibujos, debida-
constructores su comprensión y aplicación práctica. mente traducidos al castellano, pasarán a formar
Además, los tratados sirvieron como instrumento parte inseparable de las ediciones nacionales [y
formativo, de enseñanza, consulta, fuente de ins- portuguesas], con lo que se da una falla entre la
edición de 1526 –hecha en vida del autor– y las México no se ha encontrado algún ejemplar del
posteriores […] las “Medidas del romano” publi- libro de Sagredo utilizado durante el período
cadas varias veces y profusamente empleadas a virreinal en Nueva España en alguna Biblioteca.
lo largo del siglo XVI fueron las “contaminadas” La única referencia histórica que tenemos res-
por las ediciones francesas” (Marías y Bustamante pecto a la existencia de éste es la consignación
1986, 29). de dos ejemplares en el inventario efectuado por
El tratado de Sagredo se publicó en España, la Inquisición, hacia 1655, a la biblioteca de Mel-
Francia y Portugal; alcanzó a tener en total trece chor Pérez de Soto, maestro mayor de la catedral
ediciones entre 1526 y 1608; la última que se de México (Jiménez y O´Gorman 1947, XI). La
haría en castellano fue en 1564. En este idioma se ausencia de ejemplares, posiblemente se deba a
realizaron las tres ediciones portuguesas (1541 y que Medidas del Romano se editó en in-cuarto,
dos en 1542) y otra toledana de 1549, todas ellas formato que, por sus dimensiones, los maestros
llevando las adiciones francesas (Marías 2000, 10; constructores podían trasladar continuamente
Marías y Bustamante 1986, 33, 41-42). como libro de bolsillo para su consulta o sirviendo
Aunque Sagredo pretendió dirigir su obra a de manual, a sus obras y por su constante uso
quienes trabajan con el “ingenio” y el “espíritu” se fueron desgastando y acabando; por ello no
(haciendo alusión al arquitecto humanista) y no quedaron como parte del acervo de alguna bi-
a los que laboran con el “ingenio” y las “manos” blioteca colonial. Sin embargo, existe otra forma
(refiriéndose al maestro-constructor emanado de comprobar su utilización en Nueva España
del gremio) (Chanfón, 1977, p. III), “Medidas del comparando las ilustraciones del tratado con los
Romano” se permitió imprimir por considerarla elementos constructivos y ornamentales de los
una “obra muy útil y provechosa a muchos oficiales edificios virreinales, para nuestro caso, de manera
de manos especialmente a los canteros” (Marías concreta los conventos novohispanos edificados
y Bustamante 1986, 43). en el siglo XVI.
La utilización del tratado de Sagredo en Nueva Aplicando este método, tenemos como ejem-
España se puede entender por ayudar a resolver plos de portadas de templos conventuales cuyos
con mayor facilidad que otros tratados las necesi- elementos ornamentales (tales como columnas
dades constructivas que tenía el virreinato al estar abalaustradas, entablamentos, frontispicios, que-
escrito en castellano y por el tamaño manuable rubines, pilastras, capiteles, fustes y pedestales),
que tenía, sirviendo a la vez para divulgar entre los se inspiraron en el tratado de Sagredo, las de los
constructores del lugar las ideas de Vitrubio, pues conventos de Acolman, Ixmiquilpan, Actopan,
el cantero tenía a la mano los grabados (Sebastián, Metztitlán, Yuriria, Cuitzeo y Yanhuitlán. Ahora
Mesa y Gisbert 1985, 81), y el maestro podía con indaguemos la manera en que pudo influir en las
ello enseñar a su aprendiz de manera más com- actividades constructivas.
prensible y didáctica. Además tenía la ventaja de
contar con un apartado donde se daban consejos 2.2 LA ORGANIZACIÓN DEL TRABA-
útiles y prácticos respecto a ciertos materiales y JO EN LA CONSTRUCCIÓN DE LOS
técnicas constructivas que podía consultar de CONVENTOS
manera sencilla cualquier persona que se dedicara Analicemos ahora las diferentes actividades
a la edificación. vinculadas con la construcción. En la edificación
Son escasos los ejemplares originales que se de un convento intervenían básicamente tres
conservan en la actualidad de este tratado. En tipos de trabajo diferentes: el primero destinado
personas procedentes de la península Ibérica y los bloques eran transportados hasta la obra…”
otros lugares de Europa, que tenían algún oficio (Pleguezuelo 2000, 61).
vinculado a la construcción. Por lo general, los Los Cabildos de las ciudades rentaban o asig-
artesanos españoles que llegaban al virreinato, si naban por tiempo definido las canteras de piedra
eran maestros, traían una carta de examen expedi- y cal para su explotación. Así, por ejemplo, en
da por su gremio o cabildo de su ciudad con la que 1552, las autoridades del Cabildo de Puebla, junto
avalaban su dominio en un oficio determinado. con los frailes franciscanos y los principales de
“El sistema gremial pasó al Nuevo Mundo Huejotzingo acudieron al sitio que se les asignó
constituyéndose en la institución que aseguró el para extraer piedra para sus construcciones y
amplio programa constructivo llevado a cabo en también se les dio permiso para sacar piedra para
la extensa geografía… de Nueva España. Tras un cal2. Hacia 1555 los pueblos de Tlaxcala, Tecali,
primer momento de construcciones de urgencia Tepeaca, Cuautinchan, Totimehuacán, Huejot-
donde la falta de maestros, el aprendizaje de indí- zingo, Calpan y Cholula se proveían de material
genas y la asimilación de las técnicas autóctonas constructivo principalmente en solares y zonas
marcaron el desarrollo, los cabildos ciudadanos circundantes a la ciudad de Puebla3. En 1567
tendieron a normalizar la estructura gremial que el maestro cantero Pedro de Vidana, especificó
les pudiera asegurar una calidad constructiva y adquirieran para el convento de Huejotzingo: la
un funcionamiento regular de los distintos oficios cal de la ciudad de los Ángeles; la madera para
(López et al. 1992, 49). Durante el siglo XVI en los andamios y cimbras, de los montes de Calpan;
Nueva España el ramo de la construcción estuvo la piedra, de la cantera que distaba dos leguas de
principalmente a cargo de los albañiles, canteros Puebla, y aclaraba que era “trabajosa de sacar”
y carpinteros. por lo que convendría hacerlo con bueyes (Castro
1980, 15).
2.2.1 LA OBTENCIÓN DE LOS MATERIA- Con respecto a la transformación de la materia
LES DE CONSTRUCCIÓN bruta en materiales para la construcción, consistió
en el proceso de trabajo para la elaboración, el
Este tipo de trabajo implicaba tres tipos de ac- acabado y el dar forma a los materiales a partir de
tividades humanas: recolección de materia bruta la materia bruta para convertirla en materia prima
(piedra bola, arena de ríos, etc.), extracción de apta y útil en la construcción. En ella participaban
materia bruta (madera, arena de minas, grava, diversos tipos de trabajadores, dependiendo del
piedras en canteras, etc.) y transformación de material a tratar. Así, en las obras intervenían
la materia bruta en materiales de construcción carpinteros para trabajar la madera, caleros para
(por ejemplo los canteros que daban forma a las producir “cal viva”, canteros para darle forma a la
piedras, los ladrilleros que fabricaban ladrillos, piedra, adoberos haciendo adobes y ladrilleros que
etc.). Algunas de estas actividades requerían para fabricaban tanto ladrillos como tejas.
su realización de mano de obra especializada. El Es probable que los caleros tomaran en cuenta
trabajo de la extracción de piedras en canteras y lo dispuesto en “Medidas del Romano” para reco-
pedreras lo efectuaban, con ayuda de peones, los nocer una buena cal, sobre todo porque fue muy
picapedreros o piedrapiqueros, así como canteros” 2
AMP, Actas de Cabildo, Vol. 6 Doc. 222 A. 2 11/22/1552 y Vol. 6,
(García 1968, 179), éstos laboraban en las pedreras Doc. 222 A. 2 10/31/1552.
o canteras “…extrayendo el material de las vetas 3
AMP. Actas de Cabildo, Vol. 7, Doc. 66, A.2, 6/28/1555 y Vol. 7,
a grandes golpes de mazo sobre cuñas. Luego, Doc. 68, A. 2 7/29/1555.
preciada y en muchas ocasiones hubo escases de diera el maestro cantero Pedro de la Cótera para
la misma. “Es buena cal [la] que se hace de piedra labrar las portadas de la iglesia del convento de
dura y blanca. La buena cal ha de pesar después San Agustín de la ciudad de los Ángeles (Castro
de cocida un tercio menos. La cal se desborona 2004, 36-37).
cuando la sacan del horno: no es tan buena como Las piedras debían estar bien labradas para que
la que sale entera y liviana: y retiñe cuando la el edificio tuviera un buen funcionamiento estruc-
tocan como vaso bien cocido: la cual cuando la tural, por lo que debía tenerse especial cuidado en
mojan, respinga dando de si truenos y arrojando aquellas que iban a utilizarse en columnas, arcos
en alto las elaciones y vapores de la humedad del y bóvedas, sobre todo si eran trabajados por can-
agua: y esta tal es buena cal y sufre más arena que teros indígenas, pues, estos elementos y técnicas
otra…” (Sagredo 1977, 72-73). constructivos eran desconocidos para ellos y por
Las piezas de cantería de una obra eran rea- tanto tenía que haber una buena supervisión para
lizadas por el cantero, trabajador del que Saha- que su trabajo fuera correcto y de buena calidad.
gún apuntara en el siglo XVI: “El buen cantero
es buen oficial, entendido y hábil en labrar la 2.2.2 DISEÑO, TRAZA Y DIRECCIÓN DE
piedra, en desbastar, esquinar y hender con la LA OBRA
cuña…” (Sahagún 1969, 554). En un principio En el proceso de edificación la segunda acti-
hubo casos en los que para la erección de un vidad se refería al diseño, traza y dirección y de
edificio se reutilizaron las piedras procedentes de la obra. Se trataba de trabajos especializados que
las demoliciones de edificios prehispánicos, por la requerían de una preparación y conocimientos
necesidad de contar con este material constructivo en el campo de la construcción. El diseño o traza
y tal vez tomaron en cuenta las recomendaciones consistía en la realización del proyecto, así como
que Sagredo daba en su tratado: “la piedra que la planeación de una edificación, tomando en
se saca para los dichos edificios se tenga antes cuenta los aspectos funcionales, estructurales,
de que se labre: por espacio de dos años donde constructivos, expresivos y ambientales; ade-
reciba hielos y soles y otras injurias del tiempo: más se contemplaba la tecnología y la moda del
porque después de esto quedan y se hacen más momento, aunado a las ideas del creador del
fuertes y aprobadas. Y también porque si alguna diseño arquitectónico. Se trataba de un trabajo
de ellas tuviera alguna enfermedad oculta tenga intelectual necesario y previo a la edificación, que
tiempo de demostrarla antes de que se labre y de requería, por el grado de dificultad constructiva
esta manera serán más durables las esculturas y y tecnológica, de conocimientos teóricos que
labores que en ella después se hicieren” (Sagredo se verían plasmados en planos, a los que se les
1977, 71-72). conocía como trazas, así, para la realización del
Los bloques de piedra extraídos en las canteras diseño de un convento se requería de personal
se trasportaban a la obra, “…al pie de la cual, el especializado, pues no se trataba únicamente
cantero labraba la forma definitiva de la pieza de pensar en la distribución del inmueble, co-
según las medidas exactas que le suministraba el piar los modelos tomados de ciertos tratados
aparejador por medio de los moldes, contramoldes de arquitectura, como Medidas del Romano de
o plantillas” (Pleguezuelo 2000, 60). Se sabe que Diego de Sagredo, o aplicar la traza moderada
el maestro cantero Juan Bernal de Valverde se propuesta por el virrey de Mendoza como si se
concertó en 1599 para entregar toda la piedra que tratase de un proyecto plasmado en un plano
fuese necesaria conforme a la traza y medidas que que se iba copiando, repitiendo y pasando de
de las mezclas, abrir zanjas para los cimientos, y que “Ocho años más tarde, Francisco Millán,
etc., siempre bajo supervisión. maestro albañil, se obligó a trabajar en compañía
En algunas de estas tareas los maestros diri- de dos indios albañiles, en la construcción del
gentes pudieron tomar en cuenta los consejos [mismo] convento…” (Castro 2004, 113).
que daba Sagredo en su tratado, como la manera El cantero usa y se sirve de piedra, la labra y
de preparar las mezclas dependiendo del tipo ajusta (Real 1969, 50); extrae la piedra, labraba
de arena que se utilizara y la resistencia que se y la coloca en la fábrica, sabe “hace paredes de
requería, además menciona que para hacer mor- cal y canto y sillería” (García 1968, 70); también
teros de buena calidad, se use cal que tenga más traza en montea. La Nueva España contó con
de tres años de haberse quemado en los hornos numerosas y variadas canteras. Se sabe que el
(Sagredo 1977, 73). maestro cantero Francisco Becerra se encargó
Con respecto a los oficios, en la ejecución de de reedificar el coro de la iglesia del convento
la obra, el carpintero se dedicaba a “… poner las franciscano de la ciudad de Puebla, el maestro
vigas en concierto sobe las paredes” (Sahagún en cantería Alonso Ruiz tuvo a su cargo las obras
1969, 554). y debía saber “…hacer una armadura de las iglesias de Huejotzingo y Cuautinchan
de cinco paños o en tres cuadrada u ochavada (entre 1569 y 1572) y que el cantero Juanes Uri-
así de lazo como de artesones”5. Armaba y co- barri tomó a destajo una obra de cantería en el
locaba en el lugar correspondiente cada uno de convento de santo Domingo de Puebla (Castro
los elementos (vigas, columnas, duelas, etc.) que 2004, 35, 142 y 170).
elaboraba; también era el encargado de efectuar
los techos de madera. Se sabe que el albañil y 2.2.4 ELEMENTOS CONSTRUCTIVOS
carpintero Francisco Doro, hacia 1572, había
Los cimientos de los templos y conventos se
realizado trabajos de carpintería en la techumbre
hicieron en mampostería de piedra de diversa
de la iglesia de Tecali (Castro 2004, 57); que el
índole unida con morteros de cal y arena (piedra
maestro Luis de Arciniega comenzó a cubrir
caliza en Tepeaca; mampostería de piedra braza
con un gran artesonado mudéjar la capilla Real
en Cuautinchan). Es probable que los consejos
de Cholula en 1597 (Castro 2004, 26), y que el
que da Sagredo en su tratado se hayan puesto en
maestro carpintero de lo blanco y albañil Juan
práctica por la diversidad de suelos que se tenían
Pérez de Soto concertó en 1596 para cubrir su
en Nueva España, ya que trata la manera de hacer
nave central con artesón de lazo (Castro 2004,
cimientos para terreno cenagoso, como sería el
132-133).
de la ciudad de México. Apuntaba:
La albañilería era el “…arte de construir edificios
con ladrillos, piedras u otros materiales” (García “…los fundamentos que hicieres penetrar toda
1968, 30). Así, el albañil era “…el artífice que obra la tierra que se vea movediza: y si el lugar no
o edifica casas, sirviéndose solamente de materia- fuere sólido, o por ventura fuere cenagoso o de
les menudos, como son cal, yeso, barro, ladrillo, mala disposición para confiar sus cimientos en
teja, ripio, etcétera” (Real 1969, 50). Se sabe que él. Le puedes afirmar y reparar fincando en él
en 1593 el maestro de albañilería Agustín de Oliva muchas estacas […] de […] árboles […] que
concertó la obra para efectuar en Puebla la iglesia tengan por lo menos a cinco pies de largo, […]
del convento de San Antonio (Cervantes 1938, 6) cuyas cabezas encarcelarás unas con otras, con
5
AMP, Ordenanzas de Carpinteros y Albañiles de la ciudad de vigas muy fuertes […] y encima pondrás tus
Puebla de los Ángeles. 1570. fs.4 vta. y 5. piedras de cimientos las mayores que pudieres
haber con su cal necesaria” (Sagredo 1977, 72). las columnas de cantería de Tecali y los pilares
octogonales, unos en cantería y la mayoría en
Además trata la forma de hacer cimientos en
mampostería, de la Capilla Real de Cholula). Para
zonas sísmicas (Sagredo 1977, 72), regiones abun-
su ejecución se requería de mano de obra especia-
dantes en el virreinato en las que se construyeron
lizada que supiera calcular el peso adecuado que
los conventos del siglo XVI.
Muros, columnas, pilares y contrafuertes fue- debían soportar. Así, los maestros arquitectos y
ron los tipos de apoyos que se presentaron en canteros Luis de Arciniega y Lorenzo Millán con-
los conventos. En la fabricación de muros se trataron en 1593 para el convento de san Agustín
empleó, en la mayoría de las ocasiones, la mam- en Puebla labrar cuarenta y cuatro columnas de
postería, denominada “cal y canto” (Cholula) o cantería (Cervantes 1938, 4).
con sillares de piedra (Huaquechula y capillas En las columnas de los claustros como los de
posas de Calpan), con tezontle (el de Atlixco), y Cuitzeo, y Xochimilco, los de la portería de Uca-
adobe (ciertos muros del convento de Cholula) reo, se nota fueron inspiradas en “Medidas del
(Kubler 1982, 172). En Yuriria, por cuestión Romano”; llevan basa, capitel dórico y fuste liso.
sísmica, los muros del templo se hicieron muy A diferencia de las anteriores, las columnas de la
anchos, al igual que los de las iglesias de la zona planta alta del claustro de Yuriria, presentan en su
de Oaxaca, siendo de menor altura que los de fuste estrías y contraestrías a la manera del tratado
otras regiones del virreinato. En algunos casos se de Sagredo, tratado donde se presentan aspectos
utilizó material proveniente de edificios prehis- como la manera detallada en que el oficial debía
pánicos, como en la fachada de la iglesia de San formar y medir los distintos elementos que con-
Francisco de Tlaxcala. forman las columnas y pilares, dando libertad en
También se usaron ciertas técnicas prehispáni- el intercambio de sus partes (Sagredo 1977, 17-56).
cas, como el bajareque, consistente en un enra- Los contrafuertes o estribos para absorber
mado de varas entrecruzadas, atadas con mecates los esfuerzos de las bóvedas de los templos se
de ixtle que daban sostén al mortero de barro con efectuaron con los mismos materiales y técnicas
que se cubrían, y se rellenaba con lodo, presente constructivos utilizados en los muros de las igle-
en varias paredes (que no son de carga) de las sias (Ixmiquilpan en mampostería de piedra, con
celdas del convento de Huejotzingo, así como refuerzos pétreos en las esquinas, Atlatlahucan
el haber hecho muros de la nave del templo con en mampostería de piedra). así como enormes y
“tierra apisonada y adobe recubiertos con losas de pesados, elaborados en mampostería de piedra,
piedra. El corazón de dichos muros no necesitó de con arcos, en Yanhuitlán. “El grueso de los muros
mezcla a base de cal. Una técnica similar se usó de contención se calculaba de acuerdo con la altura
en Tepeaca” (Kubler 1982, 170). Las portadas de y materiales” (Kubler 1982, 183).
los templos se elaboraron con cantería. En cuanto a los cerramientos, elementos cons-
Elementos constructivos de gran importancia tructivos primordiales en las portadas de los tem-
son los pilares y columnas, en los cuales Sagredo plos, portería, puertas, ventanas, corredores de
centra su interés. Las columnas de los corredores los claustros, encontramos dinteles de madera
de los claustros de los conventos se hicieron con (puertas de las celdas de Huejotzingo), platabandas
cantería de cada región. (Cuitzeo) y los pilares (en cantería en la portada de la iglesia de Cholu-
se efectuaron tanto con mampostería de piedra la, en la puerta de entrada a la sala capitular de
(Tepeaca y Cuautinchan) como en cantería (Atli- Yanhuitlán, aparejada de piedra en las ventanas
xco). Lo mismo sucedió con las iglesias (como de Huaquechula), y arcos de diferentes formas
(medio punto en el claustro de Acolman, rebaja- toques dorados y negros; otra de inspiración
dos en Tochimilco, escarzanos en la portería de renacentista a base de casetones cuadrados y
Metztitlán, carpanel en una de las capillas posas octogonales, con elementos vegetales tallados,
de Epazoyucan, así como conopial en la capilla dorados y policromados” (Castro 1982, 57-58).
abierta de Tlaxcala), pudiéndose presentar el uso Muchos de los templos de los conventos en un
de distintos tipos de cerramientos en un mismo principio tuvieron techos de madera y con el
conjunto conventual realizados con diferentes tiempo, en pleno siglo XVI, fueron sustituidos
materiales. Las ordenanzas de Puebla estipulaban por bóvedas, como sucedió en Cuitzeo (Kubler
que el maestro debía saber hacer distintos tipos de 1982, 184).
arcos. 6 De estos elementos constructivos Sagredo Otro tipo de cubiertas fueron las bóvedas. Las de
no escribe, pero sí se tratan en las adiciones a su cañón, propias del renacimiento, se utilizaron en
tratado; los arcos de medio punto de los claustros los pasillos de los claustros de diversos conventos
de los conventos de Actopan, Hgo., Xochimilco, como en Yuriria y Cuitzeo. También hubo bóve-
cd. Mx., Cuitzeo, Mich., San Gabriel Cholula, das de crucería, cuyas nervaduras soportaban la
Pue., Yuriria, Gto., y la portería de Ucareo, Mich., plementería de cantería, como las del templo de
parecen tomados de una de las láminas añadidas Yanhuitlán; en otros casos, las nervaduras estaban
a la edición príncipe de “Medidas del Romano”. colocadas sobre bóvedas baídas y carecían de funci-
En los conventos se utilizaron principalmente ón estructural, eran decorativas, como en la iglesia
dos tipos de cubiertas: viguería con terrado (en de Huejotzingo. Las nervaduras se hicieron con
los de Tlaxcala, Atlixco, Huejotzingo, Tochimilco, molduras de cantería (Atlixco y capilla abierta de
Cholula y Epazoyucan) y bóvedas, ya fuera de cru- Huaquechula), yeso (las de Huejotzingo), o ladrillo
cería (como en Yanhuitlán) o de medio cañón (en (Tecamachalco, en donde “los tramos entre las
los pasillos de los claustros de Tepeaca, Metztitlán nervaduras [que se cruzan] también están hechos
y Malinalco), utilizando en su fabricación piedra de ladrillo” (Kubler 1982, 187). Para la construcción
o ladrillo. En las capillas posas de Huejotzingo se de las bóvedas se necesitó de “grandes cantidades de
emplearon bóvedas falsas con forma de chapitel, madera para la cimbra y andamios” (Kubler 1982,
a la manera prehispánica, elaboradas con sillares 176). Para hacerlas se requería de mano de obra
de cantería. especializada en construcción, como fueron las
Algunas iglesias llevaron techumbres de ma- bóvedas realizadas por el maestro cantero Alonso
dera como por ejemplo el alfarje mudéjar y el Ruiz entre 1569 y 1572 en el templo conventual de
artesonado del templo del convento de Tlaxcala Huejotzingo maestro que también laboró en las del
convento de Cuautinchan los años de 1571 y 1572
(López et al. 1992, 146-150). La carpintería de
(Castro 2004, 142).
lo blanco tuvo gran importancia, prueba de ello
es el que las ordenanzas poblanas consignaron
3. CONCLUSIONES
los tipos de cubiertas que debía saber hacer un
maestro carpintero.7 “Hubo dos variantes fun- Por lo anterior expuesto se puede inferir de lo
damentales: una de estirpe mudéjar, de lazo y complejo que era la construcción de los conven-
elementos geométricos, con el color de la madera, tos novohispanos del siglo XVI, de las diversas
6
AMP, Ordenanzas de Carpinteros y Albañiles de la ciudad de tareas en la edificación que involucraron y de la
Puebla de los Ángeles. 1570. f. 6. importancia e influencia que tuvo en estas acti-
7
AMP, Ordenanzas de Carpinteros y Albañiles de la ciudad de vidades el tratado de Diego de Sagredo “Medidas
Puebla de los Ángeles. 1570. fs. 4-5. del Romano.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RESUMO
Este artigo apresenta resultados preliminares de uma investigação acerca da História das Obras Pú-
blicas em Belo Horizonte, que visa explorar sua dimensão material, especialmente os aspectos técnico-
-construtivo e de transformação da paisagem natural. No final do século XIX, ganha força uma vonta-
de política em prol da transferência da sede do Governo de Minas Gerais de Ouro Preto para sítio mais
adequado à implantação de uma cidade capital alinhada aos ideais republicanos. Essa medida visa,
sobretudo, a superação da ordem colonial, decadente desde a segunda metade do século XVIII, em de-
corrência do progressivo esgotamento do ouro. Em 1894, é nomeada a “Comissão Construtora da Nova
Capital” - CCNC, que se encarrega dos trabalhos de levantamento geodésico e topográfico, do plano
urbano e dos projetos de infraestrutura e edifícios públicos, bem como de sua construção. Belo Hori-
zonte é inaugurada em 1897. Recentemente, documentos do acervo da CCNC foram selecionados pelo
“Programa Memória do Mundo”, da UNESCO, passando a ser considerados Patrimônio da Humani-
dade na categoria arquivística. Entre tais documentos estão as cadernetas de campo dos levantamentos
realizados pela “Divisão de Estudos e Preparo do Solo” da CCNC. Produzidas entre 1894 e 1898, as
cadernetas trazem dados sobre topografia, cursos d’água, cadastro de imóveis e demografia. Esses são
os registros de dados mais próximos dos aspectos físicos do sítio natural sobre o qual se implantaria o
plano urbano da cidade. A reconstituição e a visualização desses dados em ambiente computacional é
hoje viabilizada pelos SIG e por softwares gráficos, dando margem a novas possibilidades de análise,
em função das diversas possibilidades de visualização de aspectos físicos da paisagem em sequência
temporal. Na primeira etapa do trabalho, desenvolvemos um metódo para a preservação digital das
cadernetas, em duas fases: a primeira consiste no registro fotográfico das 671 cadernetas, totalizando
cerca de 27.000 fotografias; a segunda, ainda em andamento, dedica-se à produção de fac-similes. O
trabalho desdobra-se na modelagem dos dados do levantamento topográfico em ambiente computacio-
nal. Um primeiro momento será dedicado à interpretação dos métodos e instrumentos aplicados, bem
como da notação técnica de seus numéricos. Num segundo momento, será procedida a transposição
desses dados para softwares de modelagem, a partir dos quais serão realizadas simulações do relevo
do sítio de implantação da cidade, tendo em vista a investigação das alterações na paisagem urbana a
partir das obras públicas.
mão dos recursos da computação gráfica e dos Patrimônio da Humanidade, na categoria arquivís-
sistemas de informação geográfica5 (SIG), devido tica”7, atestando assim a relevância dessas fontes.
ao seu potencial analítico, de acessibilidade e de Antes de descrever o método de preservação
interatividade. Há muitos exemplos de utilização digital adotado em nossa investigação e de apre-
do ambiente computacional para a reconstituição sentar os ensaios ora em andamento, faremos um
virtual de paisagens naturais e construídas que breve panorama do contexto político-econômico
potencializam a análise tanto das dinâmicas natu- da mudança da capital e de suas motivações. Tam-
rais quanto dos processos de intervenção humana bém descrevemos sumariamente os trabalhos de
ao longo do tempo. Para além dos métodos de levantamento conduzidos pela CCNC.
registro e de apresentação dos dados, tais recur-
sos tecnológicos abrem novas possibilidades de CONTEXTO ECONÔMICO E POLÍTICO
expressão e veiculação de informações contidas DA MUDANÇA DA CAPITAL
em fontes históricas6 pouco usuais.
A construção de uma nova capital para Minas
Importa ainda ressaltar que em 2015 todo o
Gerais no final do século XIX faz parte dos es-
acervo da Comissão Construtora, incluindo as
forços de superação da decadência econômica
Cadernetas, foi selecionado pela UNESCO para
instalada desde a segunda metade do século XVIII,
integrar o Programa Memória do Mundo (Me-
em decorrência do progressivo esgotamento da
mory of the World), passando a ser considerado
exploração de ouro e diamantes. A exaustão das
minas limita a atividade produtiva da região cen-
5
A incorporação da dimensão temporal ao georreferenciamento tral do estado de Minas Gerais, onde está situada
constitui uma disciplina denominada SIG-Histórico.
Ouro Preto, às lavouras de subsistência.
6
“A interação entre bases de dados espaciais e temporais não cons- Signo da ordem colonial decadente, Ouro
titui campo de estudos novo e vem sendo desenvolvida desde o fi-
nal da década de 1970. Uma bibliografia elaborada em 1993, por Preto perde poder político ao longo do século
exemplo, registrava naquele momento a publicação de aproxima- XIX. Ainda que continue centro da vida política
damente 350 artigos, por cerca de 300 autores. Já a noção de SIG- e cultural, a estagnação econômica impõe um
-histórico é mais recente, datando do final da década de 1990 (AL-
-TAHA, SNODGRASS e SOO, 1993). Um sumário das pesquisas movimento emigratório à sua população e a ci-
empreendidas nesses 25 anos (RAYMOND, 2011; GREGORY, ELL, dade passa a sofrer também com despovoamento.
2007; GREGORY, HEALEY, 2007; DIAS, CÂMARA, DAVIS, 2005; Contrariamente, as demais regiões, especiamente
RUMSEY, WILLIAMS, 2002; SIEBERT, 2000; PEUQUET, 1999;
YUAN, 1996; HEARNSHAW, 1994; GABBAY, MC.BRIEN,1991;
a Região Sul e a Zona da Mata, apresentam sig-
BARRERA, AL-TAHA,1990; ARMSTRONG,1988; CHRIS- nificativo crescimento econômico e populacional
MAN,1988) dá conta de um panorama bastante diverso, com e, em decorrência se fortalecem politicamente. O
múltiplos temas de interesse, entre os quais se destacam dois tipos
principais. Por um lado, a inclusão do tempo como variável carto-
distanciamento entre polos econômicos e centro
gráfica, implica em problemas de caráter estrutural, relacionados político e administrativo passa a ser questionado,
a aspectos, tais como modelagem de bases de dados, produção de resultando em pressões pela mudança da capital.
algorítmos e das linguagens empregadas na sua manipulação, vo- Portanto, a construção de Belo Horizonte está
lume de dados e regras, padrões e escalas temporais etc; por outro
lado, no âmbito da representação, abordam-se, principalmente, as vinculada à emergência de novas forças econô-
metodologias de visualização. Também tem destaque nessas discus- micas no estado, cuja expressão fora viabilizada
sões o grau de acessibilidade às informações e o estado da arte dos
softwares. Alguns estudos, tais como o do Denny Grade, da área
central de Seattle, (RAYMOND, 2011), o artigo Historical Maps in 7
A reportagem “DOCUMENTOS QUE DERAM ORIGEM A BH
GIS (RUMSEY, 2002) e o Using GIS to Document, Visualize and SÃO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE: Acervo da Comissão
Interpret Tokyo’s Spatial History (SIEBERT, 2000), foram espe- Construtora da Nova Capital é selecionado pela Unesco para in-
cialmente importantes na orientação de nossas experiências.”. Cf. tegrar o Programa Memória do Mundo” foi publicada no Diário
GUADALUPE, REZENDE, SANTOS e FIALHO, 2014. Oficial do Município – DOU em 8 de outubro de 2015.
pela República que, de certa maneira, representa mentação e drenagem urbana, energia elétrica.
essas novas forças [RESENDE, p. 601]. Como atividade econômica trabalho-intensiva, a
A seção extraordinária do Congresso Mineiro, construção civil desempenha papel fundamental
realizada em Barbacena em 1893, termina por na instalação da ordem capitalista no meio urbano,
escolher Curral del Rei (Belo Horizonte) como responsável em grande parte pela concentração
sítio de implantação da nova Capital. Sua posição de renda com base na extração de mais valia do
geográfica estratégica é fator de legitimação dessa trabalho assalariado pouco qualificado, abundante
escolha, em função de uma suposta capacidade de na atividade construtiva.
integração e conciliação de interesses. A escolha Conforme já foi dito, em 1894 é nomeada a
leva em conta também a adequação do novo sítio CCNC e se iniciam os levantamentos, que ficam
ao funcionamento de uma cidade capital, incorpo- a cargo da 4a Divisão de Estudo e Preparo do Solo,
rando argumentos utilizados na reforma urbana divididos em trabalhos geodésicos e topográficos,
de diversas outras cidades capitais, a exemplo de dos quais resultam plantas e mapas, cujos dados
Paris, Barcelona, Viena, Rio de Janeiro, Recife. de origem estão registrados nas Cadernetas de
Ancorado no pensamento urbanístico do século Campo, produzidas entre 1894 e 18989.
XIX, o projeto urbanístico de Belo Horizonte
revela um desenho racionalizado de espaço físico, AS CADERNETAS
alinhado aos ideais da então recém instaurada
Os dados topográficos registrados nas Cader-
república e, em decorrênciam, com a ampliação
netas incluem tabelas, estacas, distâncias, ân-
de possibilidades de participação política e a re-
gulos, azimutes, alinhamentos e nivelamentos.
organização das relações de trabalho e produção.
Também estão registrados dados cadastrais que
Esse desenho inclui uma dimensão pedagógica,
compreendem terrenos públicos e particulares do
em que está embutido uma espécie de projeto
arraial do Curral Del Rei, posição das edificações
civilizador8. Uma tal racionalidade projetual,
e suas divisões interiores, estado de conservação,
de cunho científico higienista, está, no entanto,
materiais de construção e notas detalhadas das
subordinada ao aspecto econômico [VEIGA,
benfeitorias existentes nos terrenos adjacentes.
1994, p. 88]. Tal como ocorre nas supracitadas
As Cadernetas podem ser classificadas em 11
reformas urbanas, a inciativa do poder político
categorias diferentes, conforme o tipo de dado
em promover um movimento de produção acaba
por transformar a cidade em mercadoria e enca-
9
“De acordo com a memória descritiva dos trabalhos geodésicos
minhar as decisões acerca das obras públicas para
e topográficos, escrita em outubro de 1894 por Samuel Gomes
interesses privados. A criação de um mercado de Pereira, engenheiro civil, chefe da divisão da CCNC encarregada
obras públicas está diretamente relacionada com o dos estudos do sítio, os levantamentos de campo tiveram início já
novo desenho urbano de ruas e avenidas amplas, em março de 1894, com o estabelecimento da rede de triangulação
geodésica, cujos cálculos foram feitos pelo engenheiro civil Eugênio
em que o espaço moderno, higiênico, saneado se Raja Gabaglia. A partir de então, nove turmas de engenheiros e
faz a partir das grandes movimentações de terra, técnicos percorreram o arraial, coordenadas pelo engenheiro civil
da construção de redes de água e esgoto, pavi- Américo de Macedo, levantando as características físicas dos ter-
renos e edifícios e registrando os dados em cadernetas de campo.
8
“[…] a localidade deveria inspirar possibilidades de uma educa- No Escritório Técnico da CCNC, chefiado pelo engenheiro civil
ção ampliada em várias dimensões, quais sejam: consolidação das Hermillo Alves, os dados registrados nas cadernetas foram sendo
relações de apropriação e exploração da propriedade, ênfase da reduzidos a desenhos deescalas variadas (1⁄1000, 1⁄2000 e 1⁄4000).
higiene em seu sentido tanto cultural como econômico, alocação e E sob a direção do engenheiro Bernardo de Figueiredo, essas infor-
disponibiliade da mão-de-obra e problemas relativos a gastos públi- mações gráficas foram reunidas em um mapa, em escala 1⁄4000,
cos. Na nova cidade deveria surgir um novo cidadão”. Cf. VEIGA, com 240x180cm: a Planta Topográfica e Cadastral da área destina-
1994, p. 83] da à Cidade de Minas.”. AGUIAR, 2012, p.7-8.
DECIFRAÇÃO E ENSAIOS
A decifração da notação técnica12 das Caderne-
tas constitui etapa preliminar à sua transposição
para o ambiente computacional. Num primeiro
Figura 2 – Esquema de estaqueamento do triângulo VI. momento, buscamos esclarecer os procedimentos
Fonte: dos SANTOS, R. E.; FIALHO, T. A., 2015, p-14.
de levantamento a partir do conteúdo do memo-
rial descritivo e da sistematização cronológica
de sua produção. Ao que tudo indica, seguiu-se
o método do geodesista e matemático alemão
Wilhelm Jordan.
Em seguida, baseados nessa interpretação, en-
saiamos a transposição de dados em três situações.
Na primeira delas, os dados numéricos das
Cadernetas de Nivelamento do triângulo VI, da
rede de vinte e sete triângulos do levantamento
geodésico, foram transpostos para o software
AutoCAD, a partir do qual foi possível modelar a
superfície topográfica que se observa na figura 2.
Essa superfície foi gerada a partir da constelação
de pontos formada pelos dados anotados em
cada uma das linhas levantadas (ver esquemas
das figuras 2 e 3). De acordo com as datas em
Fig. 3 – Perfil da linha que parte do Morro do Cruzeiro ao que foram produzidas obedeceu-se a seguinte
Morro Redondo e simulação do relevo do triângulo VI. Fonte: sequência de levantamentos para o triângulo VI:
dos SANTOS, R. E.; FIALHO, T. A., 2015, p-14.
12
O estudo para decifração da notação técnica tomou como objeto
as Cadernetas correspondentes ao Triângulo VI: “[...] a maior par-
inserção da marca de procedência com utilização
te das cadernetas foi levantada no segundo semestre de 1894, com
do software Adobe Photoshop. À medida que trabalhos mais intensos no mês de novembro, provavelmente com
se completa o tratamento de todas as imagens a finalidade de evitar os transtornos do período chuvoso. Pode-se
de uma Caderneta (unidade organizadora), é também inferir que os trabalhos se iniciam com as cadernetas de
Caminhamento, seguidas pelas cadernetas de Alinhamento, Linhas
gerado um arquivo do tipo PDF, configurando Auxiliares e Nivelamento. Para além das cadernetas com dados de
assim o chamado representante digital, que guarda natureza numérica, tratamos de identificar na Planta Geodésica,
autêntica similitude com o original em termos Topográfica e Cadastral da Zona Estudada as demais informações
referentes à posição desse triângulo na rede geodésica definida pela
de dimensão física e cores. Foram tratadas até o CCNC.” Cf. SANTOS e FIALHO, 2015, pp.11-12.
HORIZONTES
No âmbito do trabalho de preservação digital
das Cadernetas teremos como desdobramentos
imediatos o desenvolvimento de três projetos de
pesquisa, apresentados e aprovados ao Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Escola de Arquitetura da UFMG. O primei-
ro deles – Uma história das movimentações de
terra em Belo Horizonte13 – trata de estudar os
efeitos das obras de terraplenagem sobre a pai-
sagem natural tendo como principal ferramenta
a modelagem tridimensional informatizada; o
segundo - História Material da Urbanização: o
Figura 4 – Visualização da ocupação urbana, com ênfase para
o tamponamento dos cursos d’água. Fonte: FIALHO, T. A.; dos
sistema de drenagem da cidade de Belo Hori-
SANTOS, R. E., 2015, p-1423. zonte14 - investiga os princípios de concepção
projetual, as técnicas construtivas e as modalidades
caminhamentos, linhas auxiliares, nivelamentos. de licitação utilizadas na construção do sistema
Posteriormente foram feitos alinhamentos, redu- de drenagem; o terceiro - Somatório de Saberes
ção ao horizonte e novos nivelamentos. para a produção emancipatória da cidade como
Devido ao fato de o trabalho de preservação socionatureza15 - desenvolve plataformas e práticas
digital estar em andamento, impossibilitando a de compartilhamento de saberes e experimen-
completa transposição dos dados das Cadernetas tações, buscando estabelecer uma ponte entre
para ambiente computacional, realizamos simu- Universidade e escolas de ensino fundamental,
lações com ênfase no impacto das obras públicas de modo a ampliar a compreensão das relações
na paisagem urbana tais como a visualização do 13
Apresentado por Thiago Alfenas Fialho.
tamponamento dos cursos d’água no perímetro
da avenida do Contorno, na zona central de Belo
14
Apresentado por Danilo de Carvalho Botelho Almeida.
15
Apresentado por Luiza Fernanda da Silva.
Quadro 2 – Área composta pelos triângulos VIII, XVIII, XIX e XX da região levantada pela CCNC. A bacia do córrego do Cardoso
está representada pela porção circundada pela linha vermelha na imagem abaixo. Elaborado pelos autores a partir de imagem do
Google Earth Pro 2016.
Fragmento da Planta Geodésica, Topográfica e Cadastral, de 1895, Fragmento da Planta Geral de Belo Horizonte, de 1920, em
em sobreposição à imagem do Google Earth Pro (2016). Fonte: APM. sobreposição à imagem do Google Earth Pro (2016). Fonte: APCBH.
Fragmento da Mapa do Município de Belo Horizonte, de 1936, em Fragmento da Planta Cadastral de Belo Horizonte, de 1940, em
sobreposição à imagem do Google Earth Pro (2016). Fonte: APM. sobreposição à imagem do Google Earth Pro (2016). Fonte: APM.
Fragmento da imagem do sobrevôo de 1953 em sobreposição à Fragmento da Planta Cadastral de Belo Horizonte, de 1960,
imagem do Google Earth Pro (2016). Fonte: APCBH em sobreposição à imagem do Google Earth Pro (2016). Fonte:
APM
Fragmento da Cobertura Aerofotográfica do Município de Brelo Fragmento da Cobertura Aerofotográfica do Município de Brelo
Horizonte, de 1979, em sobreposição à imagem do Google Earth Horizonte, de 1989, em sobreposição à imagem do Google Earth
Pro (2016). Fonte: Prodabel. Pro (2016). Fonte: Prodabel.
Fragmento da imagem do sobrevôo de 1994 em sobreposição à Fragmento da imagem do sobrevôo de 1999 em sobreposição à
imagem do Google Earth Pro (2016). Fonte: Prodabel. imagem do Google Earth Pro (2016). Fonte: Prodabel.
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Belo Horizonte. dual de Campinas (Tese Doutorado em História).
RESUMO
A Catedral Metropolitana de Campinas, ou Matriz de Nossa Senhora da Conceição foi construída para
substituir a antiga Matriz, tendo sido conhecida durante muitos anos como Matriz Nova. Suas obras
duraram 76 anos, e na sua inauguração oficial, em 1883, muito havia ainda por ser concluído. Seu
projeto original não é conhecido, nem mesmo seu autor. Muitos diretores e profissionais interferiram
no canteiro de obras até a inauguração, por questões econômicas e políticas. Os entalhes em cedro são
de autoria de vários profissionais, comandados primeiramente por Vitoriano dos Anjos, e num segundo
momento por Bernardino de Sena. Sua fachada principal teve vários projetos preliminares, três deles,
neogóticos. A fachada principal neoclássica foi projetada pelo engenheiro Cristovam Bonini, e finalizada
por Francisco de Paula Ramos de Azevedo que alterou alguns elementos e também foi o responsável pelo
término das obras do interior da Catedral. Em 1923, uma grande reforma geral foi promovida, para
corrigir problemas e terminar o que não havia sido feito por falta de verbas e técnica. Posteriormente,
em 1952, outra reforma foi executada. Desde sua inauguração foram realizadas algumas intervenções
pontuais, as quais não vieram a descaracterizar significativamente sua arquitetura. Apesar de cons‑
truído em taipa de pilão e considerado o maior edifício do gênero na América Latina, com paredes de
largura superior a 1,5 m, sua fachada principal foi acrescida de alvenaria de tijolos como recurso para
viabilizar o projeto neoclássico. O edifício está passando por um processo de restauração que perdura
há mais de 15 anos e o resultado mais visível tem sido a distorção do documento histórico e a perda
da percepção do ambiente construído preexistente. O presente artigo pretende analisar, sob o viés dos
aspectos materiais, de configuração, documentais, memoriais e simbólicos, criticando que o projeto em
execução não assegura significativamente o direito à memória desse edifício para a cidade de Campinas.
1. ORIGENS DA CATEDRAL
METROPOLITANA DE CAMPINAS
A cidade de Campinas teve sua origem na se‑ ertura do “Caminho Geral dos Guaiazes”, a partir
gunda metade do século XVIII, durante o fluxo da rota dos bandeirantes, a qual passava pelo
mercantil da mineração, materializado pela ab‑ território com destino a Mato Grosso e Goiás.
Fig. 5 ‑ Projeto de Cristovan Bonini (Rodrigues, 2010, p. 234). Fig. 6 ‑ Matriz Nova (Centro de Memória ‑ UNICAMP).
Em 1920, faleceu D. João Neri sendo sucedido vitrais do paravento foram também substituídos
por D. Francisco de Campos Barreto. O Bispo (Otávio, 1942).
da Diocese de Campinas, D. Barreto, promoveu Em 1952, foi promovida a segunda reforma
uma reforma geral na Catedral Metropolitana, da Catedral Metropolitana, comandada pelo
sob a responsabilidade do engenheiro Adelardo engenheiro Lix da Cunha, consistindo, a saber:
Soares Caiubi. As reformas iniciadas em 15 de cobertura da Cúpula com revestimento, fecha‑
julho de 1923 consistiram em: troca das telhas mento da iluminação do zimbrório, aterramento
côncavas (capa e canal) do telhado por telhas de todo o porão com provável troca do tabuado
francesas; elevação dos forros da capela‑mor e de madeira da grande Nave. Já em 1978, aproxi‑
do transepto ao mesmo nível do forro da nave; madamente, o forro da grande Nave foi decu‑
elevação das paredes laterais (platibandas); ex‑ pinizado, e algum tempo depois, os forros da
ecução de uma nova cúpula (cimento armado) e Capela‑mor e transepto foram novamente sub‑
novo zimbrório, com a colocação da imagem da stituídos. Em 1982 os entalhadores Ando e Victor
N. S. das Graças; reforma da fachada posterior; Polsak restauraram os entalhes de Vitoriano dos
colocação das imagens dos quatro anjos, da águia Anjos e Bernardino de Sena (Empresas Lix da
e do pelicano, na torre; colocação dos medalhões Cunha, 1988).
com datas significativas na fachada; pintura de Foram documentadas reformas diversas no
toda a igreja; nivelamento do piso do transepto edifício da Catedral de Campinas, das quais as
com ladrilhos e construção da cripta abaixo da mais importantes ocorridas em 1923 e 1952. No
capela‑mór. As paredes foram rebocadas nova‑ relatório do engenheiro Caiubi aparece a infor‑
mente, pois apresentavam rachaduras enormes, mação sobre reparos no reboco das paredes por
as tábuas dos forros foram em parte substituídas causa de rachaduras, no entanto não é possível
e em parte reformadas; as escadas da torre e os afirmar se as mesmas atingiam as taipas.
Fig. 9 ‑ Aspecto antes da intervenção (https://commons. Fig. 10 ‑ Aspecto após a intervenção (Farah, 2015).
wikimedia.org/wiki/File:Catedral_Metropolitana_de_
Campinas_‑_IMG_9776.jpg).
gosto, como, por exemplo, os esguios e des‑ dos dos anos 1970, quando da implantação das
proporcionados apoios das taças dos dois estações do Metrô, que ocasionariam a demolição
púlpitos laterais. Em todo o caso o interior de importantes exemplares do período, os estudi‑
da igreja é muitíssimo melhor resolvido osos passaram a qualificar a arquitetura Eclética
que o exterior e merece o cuidado e o zelo para fins de preservação.
do povo campineiro. Somos de opinião que Apesar do despacho desfavorável do diretor
se deva tombar unicamente o seu interior” técnico Carlos A. C. Lemos, que posteriormente
(Processo de Tombamento Condepacc. desenvolveu inúmeros estudos sobre a Arquitetura
In. Resolução nº. 001/88 de 19/12/1988). Eclética, levando‑a para um novo patamar de
qualificação na historiografia da arquitetura bra‑
Ainda no início da década de 1970 os órgãos
sileira, o parecer final do conselheiro relator Pe.
de preservação tinham por prática privilegiar
Jamil Nassif Abib prevaleceu, tendo sido tombado
exemplares do período colonial de influência
no âmbito estadual, o edifício da Catedral campi‑
portuguesa da história brasileira, considerando os
neira na sua totalidade:
exemplares vinculados ao Ecletismo, de influência
francesa ou italiana de menor importância ou “A proposta contraria o parecer do STCR
mesmo irrelevantes. Apenas a partir das discussões que aconselhou o tombamento, apenas, do
travadas na capital do Estado ocorridas em mea‑ interior ‑ alegando que Ramos de Azevedo
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RESUMO
Esta pesquisa é uma abordagem histórica e tipológica dos Solares Rurais da região de Campos dos
Goytacazes, norte do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil do século XIX. Trata-se de um estudo des-
critivo e comparativo através de levantamentos cadastrais e análises detalhadas de três importantes
remanescentes de edificações rurais (Solar dos Ayrizes, Solar da Baronesa do Muriaé e Solar de Santo
Antônio), que são bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.
Além destes solares, apresentaremos levantamentos cadastrais de construções similares da região con-
tribuindo para nossos estudos comparativos. Este estudo tem como objetivo fomentar a preservação do
patrimônio edificado na cidade de Campos dos Goytacazes e região, através do enriquecimento de seu
acervo de documentos. Daremos ênfase ao levantamento de dados cadastrais, históricos e iconográficos
dos três bens, como também ao estudo individualizado de cada imóvel, suas peculiaridades técnicas e
construtivas e de como uma arquitetura que não é propriamente erudita incorpora os padrões clássicos
através de uma mão de obra experiente como a dos mestres da tradição lusa existentes no século XIX
brasileiro.
1. INTRODUÇÃO
Esta pesquisa trata de uma abordagem histó- de um estudo descritivo e comparativo através
rica e tipológica dos Solares Rurais oitocentistas de levantamentos cadastrais e análises acerca
da região de Campos dos Goytacazes, cidade de três remanescentes destas edificações rurais
localizada no Norte do Estado do Rio de Janeiro. solarengas: Solar dos Ayrizes, Solar da Baronesa
Apesar da cidade já ter no século XIX alguma do Muriaé e Solar de Santo Antônio, localizados
estrutura urbana, na área rural se destacavam no município de Campos dos Goytacazes e que
grandes construções, em função de se encon- são bens tombados pelo Instituto do Patrimônio
trarem no campo as duas principais fontes de Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Com
riqueza da região: a criação de gado e o plantio a reduzida amostra de exemplares que, em tese,
da cana-de-açúcar, fazendo com que seus ricos têm valor significativo para a sociedade brasileira,
proprietários, os “senhores de engenho”, se esta- são acrescidos a presente pesquisa outros três
belecessem nestas propriedades rurais. Trata-se exemplares próximos da realidade já percebida
Fig. 04 – Plantas Baixas Porão alto e Pav. habitável, Faz. Santa Maria. 2010. Levant. do autor.
segundo subtipo, com escada única perpendicular Quanto a análise das fachadas, apesar da inser-
à fachada da casa. ção da varanda circundante ter alterado o estado
original da construção, acreditamos ter sido este
3. FAZENDA SANTA MARIA o caso descrito por Silva Telles como tipo II, em
seu subtipo II, isto é, piso acima de porão alto
A sede da fazenda Santa Maria fica localizada
com sequência de vãos em cada piso, com escada
a cerca de 20 km do centro da cidade de Campos
única perpendicular à fachada. Provavelmente
dos Goytacazes, à margem da rodovia BR 356
sua forma original pudesse ter o acesso feito pelo
no município de São João da Barra. O telhado,
que é hoje considerada a fachada lateral direita.
com telhas capa e canal, e as esquadrias do tipo
Ainda nesta última hipótese, poderia ser inserida
guilhotina, além das fachadas brancas se não
a análise da fachada segundo a descrição de Silva
originais, ao menos mantêm este aspecto (Fig.
Telles como o mesmo tipo citado, isto é tipo II,
03). A varanda, que na fachada lateral direita é
em seu subtipo II. Não foi possível perceber o
pouco notada, quando observada de frente ou
sistema construtivo. Presume-se apenas ter sido
pela fachada lateral esquerda, causa um grande
erigida em tijolo maciço.
desconforto devido a incompatibilidade do seu
aspecto com o estilo oitocentista original. Enten-
4. FAZENDA DA PEDRA
demos também que a parte posterior (marcada em
planta na figura 04) não se trata de remanescente A Fazenda da Pedra, localizada no município
da construção original visto que neste trecho de São Fidélis confronta-se com o município
as espessuras de paredes encontradas diferem de Campos dos Goytacazes. Seu acesso se dá
das demais encontradas em cada pavimento da pela rodovia RJ 158, sendo o solar localizado à
construção original. margem direita do Rio Paraíba do Sul sobre um
Portanto a tipologia da planta inicial é a que se platô natural de pedra.
apresenta em forma de retângulo único, sendo este, Seguindo Silva Telles, para o que se apresenta
segundo o que preconiza Silva Telles, o tipo IV. como construção original, este solar se insere no
segundo padrão, isto é, um retângulo frontal acres-
Fig. 05 – Fach. Principal. 2010. Levant. do autor Figura 06 – Plantas Baixas Pav. Habitável e Porão, Faz. da Pedra.
2010. Levant. do autor.
cido de apenas um corpo perpendicularmente aspecto original com estrutura de madeira e telhas
acoplado aos fundos. Se considerado o acréscimo tipo capa e canal, constituído de nove águas; os
da ala direita teremos um corpo frontal com dois pisos internos em assoalho de madeira apoiados
superpostos ao fundo, neste caso se enquadrando sobre barroteamento – parte ainda original; es-
no padrão I. quadrias e fachadas não apresentam modificações
O sistema construtivo adotado na construção significativas.
pode ser verificado em um testemunho deixa- A planta original foi a de corpo frontal com ala
do no muro que passa em torno desta onde se esquerda acoplada ao fundo. Quanto à sua fachada
verifica a medida aproximada de 0,10 x 0,135 x (Figura 05), ainda segundo Silva Telles este solar
0,325 m para os tijolos burros, que são assentados pode ser inserido no terceiro padrão, que é o que
acima de muro de pedra argamassado e trechos possui edificação térrea com sequencia de vãos
no porão e pavimento térreo onde se podem ver na fachada. A edificação apresenta alpendre com
parte desta alvenaria de tijolos, por lacunas nos escada de acesso único perpendicular à fachada da
emboços. Os assoalhos (seção média de 32 cm) casa, sendo notável ainda a assimetria das janelas
de toda a casa apresentam um bom estado de con- em relação ao conjunto da edificação.
servação, sendo fixados em barrotes de madeira
de lei lavrados a machado com seção média de 5. SOLAR DOS AYRIZES
0,20 x 0,23m mantendo um afastamento médio
Dentre os exemplares aqui apresentados, o
de 0,50m entre eles. Na sala de jantar nota - se
Solar dos Ayrizes é o que se encontra com maiores
um barrado de azulejos portugueses com altura
degradações. O Solar fica de frente para a rodovia
aproximada de 0,75m. O telhado se mantém com
construída de 610,00 m², totalizando 1.220,00 sendo esta a tipologia de planta descrita por Silva
m² (Figura 08). Analisada a edificação, nota-se Telles como grupo IV.
que as alas direita e esquerda existentes junto Quanto à fachada pode ser inserida no tipo
ao corpo principal são construídas com padrões sobrado ou piso acima de porão alto com sequ-
distintos do que apresenta o corpo principal - pé ências de vãos em cada piso, sem escada externa
direito menor, não existe cimalha de arremate saliente - grupo I descrito por Silva Telles.
do beiral, o telhado não tem continuidade com o
telhado do corpo principal, alvenarias de padrão 6. SOLAR DA BARONESA DO MURIAÉ
bastante diferente das que se apresentam no corpo O Solar da Baronesa do Muriaé se encontra
principal da edificação. Os tijolos ali utilizados em melhor situação estrutural, devido a obras
se apresentam com arestas bem definidas em em 1978, e em 2010. É um dos cinco imóveis
dimensões menores que as apresentadas no corpo tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico
principal da edificação. Entendemos ter sido, e Artístico Nacional – IPHAN, no município
originalmente, o caso de construção de um só de Campos dos Goytacazes, tendo este se dado
corpo retangular neste caso em dois pavimentos através do processo nº 890-T-73, com a inscrição
tipo capa e canal, de medidas regulares, com beiral dicularmente formando um U. Uma quarta ala,
sem calhas. São quatro águas voltadas para o pátio ligada à segunda e à terceira, formam um pátio
interno e quatro águas para as fachadas externas, interno.
sendo todas com beirais arrematados por cimalha Na análise das fachadas proposta por Telles o
de argamassa ou madeira, porém sem a presença Solar da Baronesa se enquadra no tipo I- “[...]
de tubos de coleta de água pluvial. O barrotea- frontarias de sobrados ou de pisos acima de porão
mento do piso do sobrado é composto por peças alto, com seqüências de vãos em cada piso, sem
com dimensões aproximadas de 0,20 x 0,20 m, escada externa saliente da fachada [...].” Vale
sendo as peças originais trabalhadas à mão. Estas lembrar que dentro desta tipificação, Silva Telles
peças se encontram engastadas em barrotes que enumera outras tantas, dentre as quais o tipo VII
chegam alcançar seções de 0,30x0,30m assentes que descreve como: “[...] casas compostas à feição
sobre as paredes mestras e de interior, em esteios do neoclássico[...].”
originais de madeira e, em único caso, apoiadas
sobre pilares de concreto armado. 7. SOLAR DE SANTO ANTÔNIO
Quanto à tipologia da planta, o solar da Baro-
O Solar de Santo Antônio, também denominado
nesa do Muriaé se enquadra no tipo III aquele
Solar do Beco, é sede do Asilo do Carmo desde
que é composto por quatro módulos retangulares.
1937 sendo o último a ter alguma ocupação - ins-
Tem-se um primeiro módulo frontal retangular
tituição de abrigo de pessoas idosas, interditado
que é acrescido de dois outros dispostos perpen-
Fig. 13 – Fach. Frontal Solar de Santo Antônio. 2016. Fonte: Acervo autor.
porão alto com sequências de vãos em cada piso, grande parte das construções existentes no Século
tendo à frente escada externa saliente. XIX já se perdeu. Apesar da Baronesa do Muriaé e
de Santo Antônio apresentarem plantas com pátios
8. CONCLUSÃO internos, a estas semelhanças de planta se somam
somente as dimensões e disposições de ambientes
A colonização portuguesa nesta região se fez
do pavimento habitável, pois, analisados os seus
com participação rarefeita de imigrantes de outras
pavimentos de porão alto, nota-se a influência mi-
nacionalidades. Tais fatores aliados à análise dos
neira que sofreu o Solar Baronesa do Muriaé, com
levantamentos cadastrais realizados nesta pesquisa
a sua construção em encosta, o que não ocorreu
nos indicam uma gênese dos solares rurais campis-
com o Solar de Santo Antônio. Quanto ao Solar
tas baseada na arquitetura portuguesa, principal-
dos Ayrizes, entendemos que sua planta inicial
mente na que se encontra na área centro-litoral1,
seja a que se apresenta em corpo retangular único
onde o predomínio na construção é o uso da terra
com pavimento habitável sobre porão alto, o que
crua ou cozida. Esta gênese tipológica sofreu ade-
pode ser dito como predominante para os demais
quações como sugere Gilberto Freyre - 2 “a casa
exemplares estudados na primeira fase do trabalho:
brasileira não foi reprodução da casa portuguesa,
em análise destas demais plantas, notamos uma
mas sim uma expressão nova”. Diferentemente do
predominância para as retangulares, em um ou
que ocorria em Portugal nos Séculos XVIII e XIX,
dois pavimentos. Estabelecendo uma tipologia dos
onde havia a participação de engenheiros (mili-
Solares rurais campistas no século XIX, poderíamos
tares) arquitetos na construção dos Solares, não
dizer que se faz em corpo retangular em pavimento
foram encontradas referências da participação de
único ou sobre porão alto, com sequência de jane-
profissionais eruditos na elaboração dos projetos ou
las e porta principal ao centro, ambas com vergas
obras aqui analisadas, sugere-se portanto que foram
retas e pintadas, podendo ser dotadas de cunhais
construídos por bons mestres de obra da tradição
e lesenas argamassadas, encimada por telhado de
portuguesa. Há a predominância da utilização de
quatro águas com tesouras de madeira cobertas por
estrutura de madeira formada por esteios, madres e
telhas tipo capa e canal. Internamente, tem-se piso
frechais auxiliadas pelos umbrais de portas e janelas,
em tábua corrida apoiado sobre barroteamento
entremeadas com alvenaria de tijolo cerâmico burro
de madeira, sendo o forro de madeira tipo saia e
ou adobe, revestida por argamassa de cal e areia
blusa, contando com um ambiente nobre com forro
caiadas de branco. Para os casos das edificações em
em gamela. O conjunto é dotado de influências
dois pavimentos, em geral encontramos paredes
neoclássicas, que se apresentam em especial pela
mais espessas no pavimento inferior, em função
simetria e singeleza, mais do que por um risco eru-
de todo o sistema se encontrar apoiado nestas al-
dito, evidente com mais intensidade nas fachadas
venarias. Este conjunto é sobreposto por estrutura
principais, tais como marcação com os cunhais
de madeira em tesouras com telhas tipo capa e
e lesenas arrematados em sua parte superior por
canal. Quanto às tipologias das plantas, não se pode
capitéis pouco rebuscados e cimalhas no encontro
afirmar que tenha havido alguma predominância
do telhado com a parede. Por fim, entendemos
nos exemplares apresentados, tendo em vista o
que o conjunto apresentado é decorrente da falta
pequeno número de amostras representativas, pois
de profissionais eruditos e que resultou em uma
1
Conforme localização proposta por Mário Moutinho em A Arqui- arquitetura mais vernácula do que acadêmica,
tectura Popular Portuguesa. portanto sem um estilo mais definido, embora se
2
FREYRE, G. Casa-Grande e Senzala. São Paulo: Global Editora, trate de construções com boa qualidade técnica.
2006. p. 36.
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RESUMO
A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) possui doze imóveis tombados pelos órgãos de tu-
tela do patrimônio cultural dos quais seis anteriores ao período republicano. São edificações públicas
universitárias, profundamente relacionados à técnica luso-brasileira de conceber e edificar e às trans-
formações socioeconômicas, politicas, técnicas e culturais do século XIX, entre as quais se inclui o
início do processo de formação e consolidação do ensino superior no Brasil. São elas: Museu Nacional
(1803/1821), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (1812), Faculdade de Direito (1819), Fundação
José Bonifácio (1842), Palácio Universitário (1852) e Centro de Artes Hélio Oiticica (1863). Consti-
tuem-se, assim, em objeto privilegiado para análise da formação de léxico arquitetônico luso-brasileiro
tendo como eixos as relações entre projeto de arquitetura, em seus aspectos morfológicos e tectónicos,
de cidade e de ensino superior. Sua singularidade seria identificada a partir: (1) da transmissão dos
conteúdos manifestos na competência de edificar e no sentido de conexão ao outro pelo jogo de orde-
namento do espaço; (2) dos conceitos norteadores de projeto e os processos construtivos adotados; e
(3) das práticas sócio-espaciais que conferem valor de uso a elas. Neste artigo abordaremos a configu-
ração deste léxico arquitetônico a partir das questões despertadas na vivência e prática cotidiana da
conservação deste patrimônio arquitetônico. Destacamos nesta análise o Museu Nacional e o Palácio
Universitário e seus “pátios”. Elemento que atravessa a história da arquitetura, comum a estas edifi-
cações neoclássicas, que evidenciariam a participação da cultura árabe no léxico luso, seu arranjo aos
princípios compositivos clássicos e às condições climáticas brasileiras. Buscamos, assim, contribuir para
o avanço dos estudos sobre a história da construção luso-brasileira na interface que estabelece com o
campo da arquitetura, do urbanismo e do patrimônio cultural.
No entanto, optamos por inseri-lo, inicialmente, as cidades portuguesas a partir do século VII até
em um contexto cultural mais amplo para, em se- o século XVI.
guida, apresentarmos as especificidades dos pátios Segundo Cordeiro (2014), os pátios das ci-
luso-brasileiros do Museu Nacional e do Palácio dades portuguesas seriam uma continuação do
Universitário. Uma opção que tem por objetivo pátio árabe construído em Portugal (séculos VII
ressaltar a transversalidade de conhecimentos a XVI) e se constituiriam em micro-lugares ur-
contidas nestes elementos da arquitetura luso- banos dotados de uma invejável multiplicidade
-brasileira que, nos casos específicos analisados, de usos. Naquele momento os pátios portugueses
ao participarem de territórios culturais destinados funcionavam, tal qual os pátios gregos, como es-
ao ensino universitário são eles mesmos compo- paços teatrais. Na medida em que novos usos vão
nentes de uma educação cultural arquitetônica. sendo incorporados aos pátios estes ganha novos
O pátio das construções de origem lusa constru- significados associados às áreas descobertas dos
ídos em suas colônias estão intrinsecamente liga- palácios e conventos até os pequenos conjuntos de
dos ao espírito ibérico de aventura que estabelece casas sem condições de habitabilidade construídas
um marco histórico em relação à Idade Média e em nesgas esquecidas do tecido urbano. O pátio
funda a Idade Moderna no final do século XV. A luso que chegas às colônias se insere, portanto,
busca por novos caminhos que os conduzissem aos no contexto histórico das áreas descobertas no
negócios orientais instaura um profundo processo interior de edificações palacianas e conventuais.
de mudança cultural: ao mesmo tempo em que É, sobretudo, a partir de meados da Idade
possibilita a descoberta das terras americanas e Média, quando as cidades se consolidam como
a disseminação da cultura lusitana no extremo espaço de trocas, que observamos a transmutação
oriente, os intercâmbios socioeconômicos que se gradativa do uso do pátio no espaço das constru-
estabelecem nestas rotas alternativas impulsionam ções. Ao se transferir do ruidoso espaço a céu
grandes mudanças culturais do nascente período aberto das feiras para o interior das edificações
moderno. Um processo de grande envergadura o pátio adquire uma função mais reservada e
que aporta fatores que contribuíram para a consti- protegida, chegando ao paroxismo quando passa
tuição de um léxico arquitetônico luso-brasileiro. a ser destinado às reflexões nos monastérios me-
Ao singrar os mares d’África os navegantes por- dievais. Neste contexto, de crescente importância
tugueses se lançam em rotas ainda não traçadas dos monastérios e dos mercados na vida social
por seus rivais, os árabes e outros povos europeus, das cidades, nascem as universidades ocidentais
na comercialização dos produtos do Oriente e como Bolonha, Coimbra e Oxford, ampliando
levam para as terras recém-descobertas traços ainda mais os usos e significados do pátios. Os
profundamente enraizados na cultura lusitana: pátios universitários chegam a Idade Moderna
cultura ocidental de formação greco-romana como espaços de conhecimento onde as funções
com marcante contribuição da cultura árabe. Os de trocas e conquista de liberdades, presente nas
pátios que ocupavam o interior das edificações feiras e mercados, se somam às de contemplação
gregas (teatros) e romanas (fóruns) ressurgem das reflexões monásticas. O conceito moderno
nas primeiras feiras realizadas a céu aberto que de universidade se estabelece, assim, a partir da
estão na gênese do mercado que revigorariam territorialização dos saberes que nasce destas
as cidades medievais. Uma transformação so- trocas e reflexões.
cioeconômica possibilitada pelos fundamentos Esta breve trajetória dos usos e significados da
matemáticos trazidos pela cultura árabe que ocupa construção social da palavra pátio no léxico luso
que chega às terras brasileiras traz em seu bojo as A diferenciação dos ambientes internos propor-
diferentes narrativas que compõem a trajetória cionada pela introdução do pátio se relaciona,
deste componente construtivo da morfologia ar- portanto, sobretudo, aos usos do que à composi-
quitetônica. Narrativas que perpassam os ruidosos ção dos mesmos uma vez que, de acordo com a
mercados, os lúdicos pátios escolares e os silenciosos linguagem neoclássica, eles tendem a se estruturar
pátios de conventos em torno de um repertorio de de forma morfologicamente semelhante em cada
elementos comuns que vão se adaptando à vivencia construção. Os pátios universitários manifestam
cotidiana e às práticas sócio-espaciais das cidades na sua acumulação histórica um pouco das dife-
portuguesas in loco ou além mar. rentes narrativas apontadas do pátio: embora seja
O idioma construtivo português que chega às destinado ao uso educacional, nem sempre são
terras brasileiras no século XVI traz, assim, uma lúdicos, ainda que sejam teatrais em alguns casos;
gama de elementos árabes e europeus que ao embora não sejam mercados ou conventos, são
se adaptarem ao clima tropical promovem uma por vezes ruidosos, por vezes silenciosos.
releitura destes elementos ao mesmo tempo em As duas edificações notáveis do patrimônio
que cria outros. Até o final do século XVIII a ar- arquitetônico da UFRJ que destacamos neste artigo
quitetura praticada nestas terras já terá constituído são exemplares da tipologia palácio dotadas de
um vocabulário próprio como se pode observar pátios internos que passaram por transformações
nas edificações coloniais remanescentes. O iní- construtivas e de preservação da materialidade
cio do século XIX marca uma nova etapa deste técnica para se adaptarem ao uso universitário. O
processo. A transmigração da Corte Portuguesa Museu Nacional, abrigou a morada da Família Real
para o Rio de Janeiro, impulsiona a construção Portuguesa ao chegar na cidade, permanecendo
de edificações destinadas a abrigar instituições, como Palácio Real/ Palácio Imperial no perío-
como aquelas destinadas ao ensino superior, até do de 1808 a 1889. Em 1892 para lá se transfere
então não permitidas pela metrópole portugue- o Museu Nacional. Já o Palácio Universitário
sa.. As edificações construídas, a partir de então, foi construído para abrigar o Hospício Pedro II
expressam o desafio enfrentado para constituição (1852), uma iniciativa que marca a maioridade do
de um vocabulário arquitetônico brasileiro, tendo Imperador Pedro II e se constitui em um marco
como referência o léxico luso-brasileiro que vinha do processo civilizatório brasileiro (Santos, 2004).
se delineando desde o final do século XVIII. O uso manicomial foi mantido até 1944 tendo
Este momento de ampliação do repertório cons- sido a edificação transferida para a Universidade
trutivo luso-brasileiro é o contexto sociocultural em 1945.. Pelos aposentos, corredores, espaços
da construção de metade dos imóveis tombados públicos e pátios internos destas edificações pa-
da UFRJ, entre os quais se inserem o Museu Na- lacianas de dimensões semelhantes, vivenciados
cional e o Palácio Universitário. São edificações por docentes, funcionários e alunos circularam,
que se expressam construtivamente através de outrora, loucos, médicos, políticos e reis.
um repertório próprio à linguagem arquitetônica É importante destacar que a formação do patri-
neoclássica trazida pela Missão Artística Francesa mônio imobiliário da Universidade Federal do Rio
que aportou na cidade em 1816. Seus princípios se constitui desde a sua fundação em 1920 por um
compositivos se caracterizam pela introdução processo de anexação das edificações das unidades
de elementos arquitetônicos da cultura clássica que vão sendo incorporadas à Universidade e de
(greco-romana) que dominam as edificações de transferência de imóveis públicos sem um critério
volumetria marcadamente geométrica e simétrica. propriamente definido. Um processo que reproduz
a formação fragmentada desta Universidade a par- Estavam lançadas as bases para a formação de en-
tir da reunião de três unidades existentes - a Escola genheiros e arquitetos que seriam responsáveis por
de Medicina, a Escola Politécnica e a Faculdade um novo momento no processo de formação de
de Direito - em torno de uma Reitoria. Outras profissionais aptos na arte de projetar e construir
unidades existentes são anexadas ao mesmo tempo em terras cariocas. Instituições são criadas para
em que novas unidades são criadas. abrigar usos ainda não atendidos pelas existentes.
O pátio está presente nas estruturas do século A partir de 1816 a Missão Francesa imprime
XIX da UFRJ - Museu Nacional (1803/1821), uma nova feição ao ambiente urbano carioca e à
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (1812), formação de artistas e arquitetos que atuariam
Faculdade de Direito (1819), Palácio Universitário nos projetos e construção das edificações sede
(1852) – à exceção da Fundação José Bonifácio das novas instituições. A linguagem neoclássica
(1842), uma construção pavilhonar, e do Centro se impõe no tecido urbano carioca. As edificações
de Artes Hélio Oiticica (1863). É importante men- ganham um novo repertório de revestimentos
cionar neste contexto o Instituto de Assistência à internos e externos. No entanto, a total falta de
Saúde São Francisco de Assis (1879), outra edi- qualificação da mão de obra local para construir
ficação pavilhonar, que articula a preocupação segundo as técnicas construtivas europeias cons-
higienista à necessidade de vigilância em uma titui-se em um grande empecilho para por em
configuração espacial baseada no panóptico de prática as modernizações ansiadas pela sociedade
Bentham. emergente. Para suprir esta falta de requisitos
técnicos da farta mão de obra de origem escrava
A AVENTURA PORTUGUESA NOS importam-se mestres de ofício e trabalhadores
TRÓPICOS – O MUSEU NACIONAL DA portugueses capacitados para trabalhar com os
UFRJ materiais de acabamento importados. São rele-
gados aos escravos os serviços mais pesados e
A transferência da Família Real ao Brasil, em
a operação quotidiana das edificações. Com a
1808, representa a emergência de transformações
abolição da escravatura, em 1888, o programa
sociais, culturais, econômicas e urbanas na cidade
relativo às áreas molhadas (cozinha, banheiro,
do Rio de Janeiro que seriam aprofundadas com a
lavanderia, etc.) e à iluminação, bem como todo
independência do Brasil em 1822. Uma emancipa-
um repertório colonial e imperial de janelas e
ção sob os auspícios da Família Real Portuguesa,
portas pesadas, teve que se tornar mais leve e
metamorfoseada em Família Imperial Brasileira,
funcional, como assinala Reis (1985), uma vez
e da manutenção da escravatura.
que poucos foram os escravos libertos que se
Este é o contexto no qual se desenvolve a
mantiveram no serviço das residências.
construção das primeiras edificações destinadas
A chegada da Família Real estabelece, assim,
especificamente ao ensino superior e que se cons-
uma nova escala para a arquitetura residencial em
tituem em duas das grandes estruturas do século
terras cariocas, o palácio real. Com os acréscimos
XIX que integram o patrimônio da UFRJ: a nova
realizados para abrigar os novos moradores reais,
sede da Academia Real Militar, no Largo de São
nada mais resta da edificação original, construída
Francisco, em 1810, sobre as bases (fundação) da
no século XVIII, em uma das parcelas desmem-
antiga Nova Sé, projetada elo Brigadeiro Alpoim;
bradas da antiga fazenda jesuíta de São Cristóvão.
e a Academia Real de Belas Artes, em 1826, uma
Ao longo do tempo o Paço de São Cristóvão passa
expressão da linguagem neoclássica, do arquiteto
por diversas reformas e expansões a fim de se
francês Grandjean de Montigny nos trópicos.
Fig.01. Museu Nacional – Pátios. Acesso e do antigo Salão Constituinte. Fotos: Acervo LAPA, 2014.
adequar a sempre crescente família real portugue- é construído um grande salão a partir da adição
sa/ imperial brasileira. Este imóvel se consolida de uma cúpula ao pátio central. No entanto o
no século XIX como um dos mais importantes conforto térmico proporcionado pelos pátios nas
palcos políticos, econômicos, culturais e sociais construções árabes, que se valia de um repertório
dos períodos colonial, imperial e republicano mais amplo, foi suprimido, expondo o desvio
(Bellinha e Marinho, 2015a). É nele que, Dom João funcional que o pátio sofreu no processo de adap-
VI assina, em 1818, o decreto criando o Museu tação dos programas arquitetônicos europeus à
Real, primeira instituição científica do Brasil, realidade tropical brasileira. Ao tentar aliar dois
instalado, inicialmente, no Campo de Santana usos – a necessidade da reflexão, inspirada dos
e transferido para este edifício em 1892 após os claustros medievais, às deliberações da Cons-
três anos de destino incerto do imóvel que se tituinte Republicana – os requisitos para troca
seguiram à proclamação da Republica e o exilio térmica foram relegados a um segundo plano
da Família Real, em 1889. comprometendo a edificação. Posteriormente,
O imóvel é, inicialmente, fechado e grande parte por compreender que esta cúpula degradava o
dos móveis, obras de arte e objetos leiloados pelo ambiente ao impedir a ventilação e iluminação
governo republicano. Após uma grande pressão naturais é removida, e reconstituído o uso do pátio
do Museu Nacional são mantidos os acervos mu- interno original, reestabelecendo, assim, a função
seais, sendo algumas peças e coleções enviadas ao primordial de aeração dos ambientes internos
Museu Imperial de Petrópolis, na serra fluminense. que o pátio adquiriu nos trópicos. Esta trajetória
Em 1890 o edifício reabre e recebe o Congresso do pátio interno do Museu Nacional ilustra a
Constituinte Republicano. Para abrigar o grande adaptação criativa visando a ressignificação dos
número de participantes das sessões legislativas espaços construídos – ainda que, por vezes, não
se constituam em propostas bem-sucedidas - que dos eram percebidos como um problema social
confere singularidade ao léxico construtivo luso e tratados das mais diferentes formas. Somente
em terras brasileiras. a partir de meados do século XIX, os alienados
passariam a ser vistos como patologia clínica de
O HOSPÍCIO PEDRO II - PATRIMÔNIO acordo com a ciência promissora que desponta
ARQUITETÔNICO UNIVERSITÁRIO no contexto dos princípios higienistas vigentes..
Em 1842 é lançada a pedra fundamental do
Para abrigar os alienados, o jovem imperador,
Hospício Pedro II, na Chácara do Vigário Geral,
ordena a construção de edificação de dimensões
Praia Vermelha. , Um marco na história da saúde
similares ao seu palácio e que, exceto, pelas barras
brasileira. Naquele momento, por ser um local
de ferro fixadas no exterior das janelas, em nada
mais afastado da área central, com lotes de maiores
se diferenciariam da linguagem arquitetônica ne-
dimensões, é considerado adequado para o desen-
oclássica de um palácio como ditavam os cânones
volvimento de um projeto que contemplasse um
estéticos de meados do século XIX. Tal como o
programa de atividades laborais para o tratamento
Palácio Imperial - o Paço de São Cristóvão – o
dos alienados como forma de reinserção social2.
Hospício também se situava nos arrabaldes da
O privilegio à terapia ocupacional com oficinas de
cidade, naquele momento, ainda circunscrita,
trabalhos é o ponto de partida para a concepção
basicamente, ao núcleo original de ocupação e
deste Hospício. Seriam implementadas oficinas
sua área de expansão imediata que hoje compõem
destinadas a sapateiros e marceneiros, dentre ou-
a área urbana central. O período de construção
tros ofícios voltados para os trabalhadores, como
do Hospício (1842-1852) coincide com o advento
modelos terapêuticos ideais a serem adotados,
do transporte público (bondes puxados a burro)
visando o desenvolvimento de programas que
que estreitam a conexão entre localidades mais
pudessem abarcar atividades laborais benéficas à
distantes e a área central; a chegada de grandes
saúde mental, de acordo com o padrão europeu
levas de imigrantes para trabalhar como assalaria-
vigente.
dos e o lento processo de abolição da escravatura.
O projeto do imóvel é atribuído aos arquitetos
A metade do século XIX é, portanto, um pe-
Joaquim Guillobel, José Maria Jacinto Rabelo e
ríodo de intensos conflitos urbanos e choques
José Domingos Monteiro. No eixo longitudinal
culturais. Com o crescimento populacional au-
está a Capela São Pedro de Alcântara ladeada
menta a possibilidade de casos de “desviantes”
por quatro pátios internos. Uma configuração
– loucos, com desvios de conduta, excluídos do
espacial que permite uma relativa facilidade de
convívio social1 – que, até então, eram amontoados
controle dos internos, além de uma excelente
nos porões da Santa Casa de Misericórdia. Este
ventilação e iluminação naturais. Alguns registros
era o único hospital com atendimento público
dos internos oferecem um panorama da vida no
à população, que apresentava grave carência de
local naquele momento. Dentre estes internos o
infraestrutura e de métodos para tratamento da
mais conhecido talvez seja o escritor Lima Barreto
loucura. Não havia, até então, uma distinção da
(2010) que expõe, de maneira depreciativa, a sua
loucura como caso médico: despossuídos, bêba-
perturbação com a nudez e as más condições de
dos, mendigos, prostitutas, criminosos e aliena-
tratamento dos internos mais pobres. O escritor
1
Até o final do século XVIII, os que desviavam da dita “normalida-
de” eram caracterizados a partir da capacidade de não racionaliza- 2
Para pesquisar os modelos manicomiais vigentes o médico Antô-
ção, sua distinção era dada a partir de aspectos animalescos, sendo nio José Pereira das Neves é enviado, então, para visitar instituições
percebidos como pessoas imersas em vícios, problemas religiosos e afins na Europa, em especial, na França, Bélgica, Alemanha, In-
pobreza. (Bellinha e Marinho, 2015) glaterra e Itália.
Fig.02. Palácio Universitário. Pátios internos em restauro. Fotos: Acervo ETU, 2015.
chega a se referir ao local como “Bolgia do Infer- terísticas do léxico luso-brasileiro - o pátio e o
no”. No entanto, ao ponderar sobre a edificação, azulejo – à competência de edificar. Assim é que
Barreto (2010) aponta repercussões positivas dos após um século de uso hospitalar (1842-1944) a
elementos constitutivos do léxico arquitetônico edificação passa a abrigar o uso universitário que
luso-brasileiro: se desenvolve não apenas nas salas de aula, mas
“O hospício é bem construído e, pelo tempo em também em seus pátios arborizados e corredores
que o edificaram, com bem acentuados cuidados azulejados que conjugam, a um só tempo, aeração,
higiênicos. As salas são claras, os quartos amplos, reflexão e ludicidade.
de acordo com a sua capacidade e destino, tudo Ao final da restauração (1949-1952) a edificação
bem arejado, com ar azul dessa linda enseada de passa a sediar a Reitoria (1949), a Escola Nacional
Botafogo que nos consola [...]”. de Educação Física (1950), a Faculdade Nacio-
Na década de 1940 os internos do Hospício D. nal de Arquitetura (1951), a Faculdade Nacional
Pedro II são transferidos para novas instituições de Farmácia (1952) e o Instituto de Psiquiatria,
de saúde mental e a edificação permanece sem responsável pela manutenção do tratamento de
destinação de uso por algum tempo. Em 1945 doentes mentais no local, sendo renomeada como
a edificação é cedida à Universidade do Brasil Palácio da Praia Vermelha, posteriormente Palácio
e, em 1946 o arquiteto e professor Archimedes Universitário. Em 1953, são finalizadas as obras
Memória é nomeado responsável pelo projeto de de recuperação total da edificação e Calmon so-
adaptação do edifício à Universidade. Em 1949, licita seu tombamento, o que só acontece duas
Pedro Calmon, então Reitor da Universidade, décadas depois.
se compromete com a restauração do Palácio e
começam as obras de transformação de uso. A CONSERVAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO –
edificação perde os traços manicomiais em sua
A ADAPTAÇÃO CRIATIVA
arquitetura (como as barras nas janelas, entre
outros) e ganha uma feição neoclássica adaptada A adaptação criativa do léxico construtivo luso-
aos trópicos. Os pátios passam a agregar o revesti- -brasileiro com vistas à ressignificação do imóvel
mento em azulejo a elementos que proporcionam se operou dentro do limite do transitório, posto
conforto térmico reunindo duas figuras carac- que, paralelamente, já se desenvolvia a ideia de
construção de uma Cidade Universitária de forma como vitrine da produção cultural e científica da
a congregar as diversas instituições de ensino su- UFRJ pode ser uma alterativa respeitosa com a
perior distribuídas pela cidade do Rio de Janeiro, importância desta edificação notável. O que está
com vistas a uma melhor administração de seus em jogo é a priorização de usos tendo em vista
cursos. O binômio ressignificação/conservação, as conservação do imóvel. Esta destinação não é
devido à transitoriedade que o caracterizou, se incompatível com sua utilização pelas unidades
operou em detrimento de seu segundo elemento acadêmicas que poderiam utilizá-lo de forma
compositivo. organizada que obedeça a uma lógica de com-
Um dos principais problemas de conservação do partilhamento e de gestão integrada.
Palácio é a falta de uma gestão integrada do edi- Não se pode esquecer, embora esta seja uma
fício, tão negligenciada por décadas e com reper- questão extrapole os nossos propósitos neste ar-
cussões diretas no desenvolvimento no projeto de tigo, que esta gleba, de proporções consideráveis,
restauração em curso. Atualmente as unidades que está inserida, atualmente, em uma área de grande
ocupam o imóvel têm seus problemas resolvidos valorização de solo e que preservação do patri-
apenas pontualmente o que gera inúmeros danos mônio arquitetônico e especulação imobiliária
ao imóvel. É imprescindível a criação de uma nunca andaram de mãos dadas. Muito pelo con-
gestão única e especializada na manutenção de trário. Não são poucos os projetos que propõem
imóveis tombados, que receba todas as condições a ocupação maximizada deste terreno com torres
técnicas e financeiras para que sejam realizadas coorporativas e outras iniciativas similares. Seria
as intervenções necessárias. É fundamental que importante que o terreno fosse considerado como
se desenvolva uma visão global da edificação que uma Área de Proteção do Ambiente Cultural
permita perceber os problemas que influenciam (APAC), instrumento da normativa urbanística
seu uso para sua correta conservação. Cada uni- e patrimonial municipal, a fim de que este passe
dade hoje tem a sua equipe de limpeza e realiza a ser objeto de ações coordenadas de conservação
investimentos na compra de equipamentos. A patrimonial e expansão das atividades universitá-
maioria deles destinada a aparelhos de ar condi- rias. Esta APAC seria, assim, o reconhecimento da
cionado que, colocados nas esquadrias, forros e significação cultural deste campus universitário
fachadas, acabam danificando as superfícies tal como parte da memória nacional.
como pode ser observado nas colônias biológicas Nesse sentido, a restauração de um marco
e crostas negras que despontam nas fachadas e as exemplar de patrimônio material, que através
infiltrações e fortes vibrações provenientes dos deste processo pode ressignificar seu uso aca-
aparelhos instalados nos forros. Um quadro que dêmico através da reativação de suas instalações
acaba por acelerar a degradação dos painéis de degradadas, se insere num sentido mais amplo
azulejos e rodatetos nos corredores. de ressignificação do papel da universidade como
A compatibilização do uso acadêmico – que agente de transformação do espaço metropolitano.
tem como imperativo categórico a expansão de O campus da Praia Vermelha, no qual está inserido
sua atividade fim - com a responsabilidade da o Palácio Universitário, faz parte, juntamente com
preservação deste patrimônio material - obriga- a Cidade Universitária e as unidades acadêmicas
ção legal, moral e ética do proprietário do bem extra-campi, do território cultural universitário
tombado - representa um grande desafio para con- cujo papel transformador, que se espera da UFRJ,
servação do Palácio Universitário. Neste sentido a pode ser contemplado neste imóvel.
ocupação do imóvel por um projeto que funcione
Fig. 03. Palácio Universitário. Capela São Pedro Alcântara. Foto: ACERVO ETU, 2015.
início a América se constituiu, não apenas como claramente perceber as bases desta característica
um novo espaço, mas como um espaço do outro, fundamental e constitutiva da singularidade do
imaginado e projetado pelo outro. léxico arquitetônico luso-brasileiro, que no caso
Por outro lado, ao cotejarmos com a visão de da UFRJ é representada pelos exemplares aqui
Benévolo (1983), onde ele salienta que “a alta apresentados. Pista fecunda a ser seguida nos
qualidade dos modelos europeus e a baixa qualidade inventários das técnicas construtivas emprega-
das aplicações são dois aspectos estreitamente liga- das nestas obras de restauração que estão sendo
dos em um único sistema cultural”, conseguimos empreendidas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Paulo, Perspectiva. de Janeiro, UFRJ. pp. 09-14.
RESUMO
As tipologias das estruturas de forros em estuque construídas no Brasil no século XIX, devido aos
conhecimentos aportados pelos artesãos europeus, advindos principalmente de Portugal, França e Itália,
representam a influência direta da colonização européia na arquitetura brasileira. A vinda da família
Real Portuguesa para o Brasil em 1808 foi determinante na introdução das tipologias mais comuns na
arquitectura oitocentista portuguesa. Deste intercâmbio resultou um legado patrimonial que se torna
fundamental conservar, sendo para isso importante caracterizar as tipologias construtivas presentes,
analisar os materiais envolvidos na sua construção, bem como as anomalias que apresentam no decurso
do seu uso ao longo da sua vida funcional tanto em Portugal como no Brasil, comparando-se o desen-
volvimento das tipologias bem como as adaptações estruturais para a montagem das mesmas.
As alterações decorrentes da sociedade industrial e o incremento da vida urbana provocaram nos edi-
fícios detentores destes forros, impactos consideráveis quer ao nível do comportamento das estruturas
originais quer na conservação dos materiais que os constituem, ao ponto de muitos receberem novos
arranjos e cargas estruturais incompatíveis com as funções e dimensionamentos originais. De entre as
anomalias mais frequentes a biocolonização das estruturas de madeira por ataque de insectos xilófagos
e térmitas é uma das que origina muitas deformações e desprendimentos que determinam a perda de
resistência mecânica das coberturas.
O estudo de soluções de compatibilidade de materiais para aplicação nas intervenções de reabilitação é
um dos objectivos desta investigação. Neste artigo visamos demonstrar a importância do levantamento
das técnicas construtivas históricas luso-brasileiras tendo por finalidade a definição de metodologias de
intervenção menos intrusivas que respeitem a integridade das obras.
1. INTRODUÇÃO
A arquitetura brasileira do século XIX teve (especialmente no sul do país), facto que justifica
considerável influência europeia destacando-se o eclectismo polifacetado que a define. De entre as
entre os países que mais contribuíram para a tipologias aportadas pelo fenômeno migratório,
definição das suas características físicas e de- realçamos as técnicas construtivas dos forros
corativas Portugal, França, Itália e Alemanha em estuque patentes nos programas decorativos
das edificações religiosas e civis, os quais repre- 2. ESTADO DA ARTE SOBRE ESTUDOS
sentam hoje uma parte importante do patrimô- DE ESTUQUE NO BRASIL
nio edificado do Brasil. Na Europa, o Barroco
A conservação do património edificado his-
constituiu o período de máximo esplendor das
tórico é actualmente uma tarefa assumida pela
técnicas de ornato baseadas no estuque, já que
tutela do IPHAN, criado em 1937 dentro de um
este se adaptava na perfeição à construção de
projeto de construção e modernização da nação,
cenografias interiores complexas que conjugavam
pelo então Ministro da Educação e Saúde, Gustavo
uma grande diversidade de recursos das artes de
Capanema. O IPHAN tinha como ideologia o
aplicação arquitectônica. Deste modo, renascem
recurso à valorização da memoria social como
e aperfeiçoam-se algumas das técnicas variantes
poder, afirmando que o Barroco e o Moderno,
do estuque clássico, como o marmorino, o stucco-
representavam a identidade do país. O tomba-
marmo, a scagliola, o esgrafitado e, principalmente,
mento das edificações consideradas históricas
o stucco in relieve (de ornato), que em conjunto
constituiu o primeiro ato deste órgão, embora
caracterizam as formas e volumes deste estilo. O
apenas com a reestruturação ocorrida em 1940 se
Brasil, acompanhando as tendências europeias,
definiriam os inventários como prioridade a ser
teve seu apogeu na utilização do estuque no século
praticada pela instituição. Entretanto, Rodrigo
XVIII na arquitectura colonial de raiz portuguesa,
Melo Franco de Andrade, primeiro gestor do
e no XIX, período no qual o estuque de ornato
IPHAN, valorizava o postulado da reafirmação
invade o interior (forros) e exterior (cornijas,
de “uma herança europeia a portuguesa, negando
platibandas etc.) das construções civis e religiosas,
em contrapartida, uma possível herança indígena”
não se limitando apenas ao edificado aristocrá-
(Chuva, 2009, p 106), pensamento que se refletiu
tico, mas alcançando igualmente o património
nas práticas de tombamentos por mais de trinta
construído mais corrente das cidades1. A vinda de
anos da instituição.
imigrantes europeus no século XIX, período em
O fundamento para tal exaltação assentava
que o estuque é amplamente comercializado em
no facto dos modernistas do IPHAN terem a
catálogos2 na Europa, determinou um salto evolu-
intenção de “lançar” o Brasil para os exterior,
tivo que se traduziu no facto das elites burguesas
defendendo que os estilos Barroco e o Moderno
brasileiras aderirem à moda decorativa europeia e
brasileiro eram os elos culturais com o mundo,
passarem a realizar as encomendas por catálogo,
sendo as únicas manifestações artísticas capazes
o que deverá ter dado origem a uma actividade
de sensibilizar as outras nações a identificar o
de ateliers que se encontra ainda por estudar, na
Brasil como um país de identidade universal. Esta
qual é provável que as Escolas de Belas Artes e
atitude conduziu as edificações oitocentistas ao
Industriais das grandes cidades possam ter tido
esquecimento, mal chegando a serem catalogadas
um papel determinante na área da formação de
como patrimônio histórico brasileiro à época.
profissionais para este sector3.
Na Constituição Federal de 1988, foi consagrado
1
Cite-se a título de exemplo o património edificado da cidade do o conceito de patrimônio cultural, abarcando
Rio de Janeiro muito marcado pela influência da missão francesa. não só a arte e arquitetura do período colonial,
2
FLAHARTY, David. Preservação do Estuque Ornamental Históri- mas as manifestações culturais de várias cultu-
co. Washington D.C. Outubro, 1990. ras brasileiras, tendo isto constituído um marco
3
A circulação de catálogos é uma realidade comum em muitos
países da Europa, na qual se inclui Portugal onde eram as Escolas nicas Tradicionais de Stucco em Revestimentos de Interior Portu-
Industriais que formavam os estucadores para actuarem como de- gueses. História e Tecnologia. Aplicação à Conservação e Restauro.
coradores no ramo da construção civil. C.F. VIEIRA, Eduarda. Téc- Tese de doutoramento. Universidade Politécnica de Valência, 2008.
para a definição de novas filosofias e desafios na Rio de Janeiro, e FAOP10 em Minas Gerais, cuja
preservação do patrimônio. actividade tem contribuído de modo relevante
O tema dos estuques tem vindo a suscitar o para o conhecimento desta arte do ponto de vista
interesse de algumas instituições culturais e pro- histórico-artístico e técnico com aplicação à con-
fissionais da área da conservação e restauro à servação e restauro desta tipologia patrimonial.
medida que a área das Artes Decorativas emerge Contudo, o aumento do número de intervenções
no contexto do avanço do sector da Conserva- de reabilitação e de conservação integrada, fruto
ção e Reabilitação Urbanas e da Conservação e quer da sensibilização das entidades públicas no
Restauro. Deste modo, destacam-se os trabalhos sentido da consolidação de políticas de preserva-
de Alexandre Mascarenhas4, de Fabio Galli5, de ção do património tombado, quer da conscien-
Samara Soares6 e de Cristina Rozinsky7, a actuação cialização da sociedade civil da apropriação do
do Centro de Estudos Avançados de Conserva- património construído como referencia social
ção Integrada (CECI)8 em Pernambuco, bem colectiva, conduziu à necessidade de aprofun-
como a constituição mais recente de grupos de damento de estudos no domínio da reabilitação
investigação como o da Casa Rui Barbosa9, no estrutural dos forros revestidos a estuque, que
permitam conhecer as suas tipologias constru-
4
MASCARENHAS, Alexandre. Ornatos: restauração e conserva-
tivas, tanto no plano técnico como no material,
ção. Coleção de Artes e Ofícios. Rio de Janeiro: In-Fólio, 2008. no sentido de responder aos diversos problemas
MASCARENHAS, Alexandre. – António Francisco Lisboa. Molda- de conservação que levantam.
gens de gesso como instrumento de preservação da sua obra e o
processo construtivo das oficinas de escultura em Portugal a partir
do século XVIII. Fino Traço, 2014. 2.1 A ARQUITETURA ECLÉTICA NO
BRASIL. ESTUDO E QUESTÕES DE
5
GALLI, Fabio. Termos e modos de fazer relacionados ao estuque
denominado de escaiola nos revestimentos de paredes no século
CONSERVAÇÃO
XIX. Trabalho final de Bacharelato em Conservação e Restauro de
Bens Culturais Móveis. Universidade Federal de Pelotas, 2011.
O estuque dominou a decoração dos edifícios
oitocentistas pela facilidade na obtenção de mode-
6
SOARES, S. S. El. - Arte Decorativo Del Estuco Aplicado em In- los para moldes por catálogos europeus, tendo sido
teriores de Edificios Históricos de Pernambuco (Brasil) Aportación
para Conservação y Restauración. Dissertação de Mestrado. Escola intensamente usado nos ornamentos, em forros e
Técnica Superior d’Arquitetura de Barcelona. Universidade Politéc- ornatos das fachadas das edificações. Os materiais
nica da Catalunya. Barcelona, 2014. utilizados eram distintos, acompanhando as temá-
7
ROZINSKY, Cristina - Arte Decorativa. Forros de Estuque em ticas decorativas que se adaptavam de acordo com
relevo - Pelotas 1876-1911. Dissertação de Mestrado em Memó- o estilo e com a função do edifício. Cidades como
ria Social e Patrimônio Cultural. Universidade Federal de Pelotas,
2014. Rio de Janeiro, São Paulo, Juiz de Fora, Pelotas,
Recife, Belo Horizonte, Niterói, alcançaram um
8
CECI [em linha] http://www.ct.ceci-br.org/ceci/.
desenvolvimento e viram os seus centros históricos
9
Em 2010 promoveu o 1º curso livre sobre Estuques em parceria sofrerem profundas transformações.
com o IPHAN – R.J leccionado pela professora Eduarda Vieira, da
Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa. No âmbito
do sector de Preservação desta instituição e do projecto Casa Se-
nhorial foi criado o grupo de estudos de estuques, coordenado por 10
FAOP - Fundação de Arte de Ouro Preto fundada em 1969 in-
Cláudia Carvalho e no qual têm sido desenvolvida investigação so- tegrou na sua estrutura, a Escola de Arte Rodrigo Melo Franco de
bre os mais emblemáticos palecetes oitocentistas do Rio de Janeiro, Andrade | EARMFA, criada pelos artistas Nello Nuno e Annamé-
estando a decorrer no curso de doutoramento em Conservação e lia Lopes, oferecendo um leque variado de cursos de arte. Ainda
Restauro de Bens Culturais a tese de Teresa Cristina Menezes que neste primeiro momento, o restaurador Jair Afonso Inácio, teve a
incide sobre o estudo material e técnico dos programas decorativos iniciativa de organizar junto à EARMFA, o primeiro curso para a
de alguns destes imóveis. formação de Conservadores e Restauradores no Brasil.
No Rio de Janeiro, capital brasileira do século a papel e pinturas, o forro em estuque e lambris
XIX, ocorreram alterações arquitetônicas e artís- de madeira decorados, seguindo os canônes da
ticas introduzidas com a família real portuguesa decoração europea.
estabelecida desde 1808, em razão a invasão napo- Com o casario homogêneo e modesto, Belo
leônica de Lisboa, e posteriormente com a vinda Horizonte manteve a conservação dos aspectos
oficial da Missão Francesa11, liderada por Joaquim coloniais através da disposição dos lotes longi-
Lebreton (1816) da qual participara o arquiteto tudinais e estreitos, dotados de telhados de duas
francês que mais se destacou no crescimento da águas e elementos decorativos como o frontispício
arquitectura eclética brasileira, Grandjean de e platibandas. Essa tendencia singela e rústica é
Montigny. Montigny deixou um legado arquite- explicada em função da situação economica do
tônico expressivo e exemplares como as igrejas da morador. A ressalva faz-se aos prédios públicos,
Candelária e Santa Cruz dos Militares com seus que possuem em exuberancia a arquitetura eclética
elementos neoclássicos. A atual Casa França-Brasil tanto no interior como no exterior dos edifícios
(Fig.1) situada na Praça do Comércio, no Rio de (Fig.7). Belo Horizonte fora projetada confor-
Janeiro, é outro exemplar de sua trajetória como me a racionalidade moderna, com o projeto do
arquiteto-urbanista no Brasil. Neste edifício re- engenheiro Aarão Reis, em 1986, portando um
alçam a cúpula revestida (Fig.2) a estuque e as conjunto arquitetônico eclético.
grandiosas colunas neoclássicas. Desde finais do século XIX até os anos de 1930
D. João VI também contribuiu para vinda de o uso do estuque nas edificações caracterizou a
arquitetos portugueses ao Brasil. Deste modo, arquitetura eclética nacional (Fig.8). O ecletismo
encontramos Manuel da Costa e José da Costa e contribuiu para a liberdade formal, permitindo
Silva, autores do projecto do antigo Teatro Real a composição rebuscada das fachadas e forros
de São João (1813) (Fig.3), atual Teatro João Ca- internos dos edifícios, respondendo aos interesses
etano (Fig.4 e Fig.5), cuja fachada neoclássica se de uma nova sociedade moderna e burguesa, que
inspira directamente na do Teatro Nacional de buscara expressar o seu estatuto social através da
São Carlos em Lisboa. suntuosidade das edificações.
No interior de Minas Gerais localiza-se o edi- Partindo do princípio de que toda intervenção
fício que hoje abriga o museu Mariano Procópio em edificações históricas deve ser precedida de
(Fig.6), em Juiz de Fora, inaugurado em 1915, uma aturada investigação técnico-científica que
o primeiro museu de Minas Gerais, projetado e possibilite um diagnóstico assertivo, e de que as
construído pelo alemão Carlos Augusto Gambs, edificações do período imperial possuem valores
típico representante da linha projectual arqui- diversos (histórico, artísticos e técnicos), a sua
tectónica do final do século XIX. Implantado
reutilização funcional assume-se como uma
num platô alterado, possui alvenaria estrutural
diretriz no sentido da preservação da herança
em tijolos maciços e aparentes. A ornamenta-
cultural/colonial portuguesa. A Carta de Cracó-
ção foi feita em tijolos com caneluras e arestas
via ao consignar a decoração arquitetónica como
arredondadas. A vila onde o museu se encontra
parte integrante do património construído, cria
ainda preserva as suas características originais.
as bases conceptuais para o enquadramento
No interior é possível ver as paredes revestidas
do projeto científico de restauro dos estuques
11
A Missão Francesa designa o grupo de artífices franceses que esta- decorativos como parte integrante e vinculada
beleceram-se no Brasil no século XIX (1816- 1831). Revolucionan-
do o panorama das belas-artes, introduzindo o sistema de ensino ao projeto de reabilitação geral do edifício.
superior acadêmico e fortalecendo o neoclassicismo. Paralelamente, fornece as linhas orientadoras
Fig.2 - Interior da atual Casa França-Brasil no Rio de Janeiro. (Fonte: Acervo digital Casa França-Brasil, 2016).
Fig.3 - Pintura de Jean Baptiste Debret da antiga fachada do Fig.4 - Fachada frontal atual do então Teatro João Caetano em
Teatro Real de São João (cerca de 1834). (Fonte: Acervo digital Niteroi, Rio de Janeiro. (Fonte: Acervo digital Diario do Rio de
Diario do Rio de Janeiro, 2016). Janeiro, 2016).
e reversibilidade de soluções. (Cotrim, 2004, veis. A cobertura dos forros em estuque constitui
p.39-40) uma unidade orgânica que funciona de modo
O impacto do mau uso funcional destas edi- interligado: a estrutura (fasquiado de madeira) e
ficações, o abandono e a deficiente conservação revestimento de argamassa, bastando uma simples
das coberturas destacam-se de entre as causas rutura de uma telha cerâmica para colocar em de-
mais comuns da ruína de muitos destes imó- sequilíbrio todo o sistema, ocorrendo um conjunto
Fig.5 – Interior do então Teatro João Caetano em Niteroi, Rio de Janeiro. (Fonte: Acervo digital Diario do Rio de Janeiro, 2016).
Fig.6 - Fachada frontal do Museu Mariano Procópio em Juiz de Fora, Minas Gerais.
(Fonte: Acervo digital Museu Mariano Procópio, 2016).
Fig.8 – Vista inferior do forro de estuque do Salão Nobre da Fig.9 - Forro estucado de habitação (finais séc. XIX). Felgueiras,
casa sede da FACEPRE – Fundação de Amparo à Ciência e Portugal. (Fonte: Arquivo Eduarda Vieira).
Tecnologia de Pernambuco. (Fonte: Acervo CECI).
Fig.10 – Cúpula da Catedral Metropolitana de Porto Alegre. (Fonte: Larissa Silva, 2015).
em pasta. Também é “queimado” com ferro quente. em cal. Os aditivos orgânicos, quando utiliza-
A ESCAIOLA é um tipo de estuque cuja a massa dos, eram acrescidos em pequenas quantidades,
é composta de areia fina, lavada, cal em pasta e incidindo nas propriedades físicas e mecânicas
pó de pedra em partes iguais além dos pigmentos das argamassas da cal e, consequentemente, na
coloridos, sendo muito usada nas imitações do “trabalhabilidade”. As fibras vegetais e animais,
mármore.13 quando aditivos (o que ocorria apenas nos es-
Dentre a diversidade tecnológica que carac- tuques de revestimento de forros), influam na
teriza a arte dos estuques, podemos dividi-los menor retração, aumentando a resistencia e a
em dois grandes grupos: os de ornato e os de densidade aparente da argamassa, resultando na
revestimento14 (Fig.10). Os estuques brasileiros maior durabilidade do compósito. O agregado,
de revestimento são constituídos por argamassas apresentara variância a depender do local e época
tradicionais à base de cal, areia, gesso, fasquias da edificação. Na composição do estuque desta-
e tela deployée. Contudo, a disponibilidade dos ca-se os finos, particulas menores a 0,0075 mm,
materiais de cada região determinava a escolha das derivado de compostos como a pozolana, pó de
técnicas a serem utilizadas. Apesar dos escassos tijolo, argilas e siltes, grânulos maiores a 4 mm
estudos sobre a realidade brasileira, os forros de faziam parte da composição quando a argamassa
estuque comprovam a presença de argamassas de necessitava de maior inércia17. Em Portugal a
cal e gesso. O estuque era aplicado em duas ou três primeira camada era composta por cal e areia
camadas de argamassa. Nos forros eram aplicadas fina, na proporção 2:1, nas camadas posteriores
duas camadas, a primeira era constituída de uma era recomendado manter-se a proporção de 1:3.
argamassa de cal e a segunda de uma fina camada Para a aplicação da última camada recomen-
de argamassa de gesso. Esteticamente, a argamassa dava-se que as camadas anteriores estivessem
de cal era considerada desagradável, devido a sua completamente secas18. Contudo há referências
textura, pelo que era sempre a camada base que se portuguesas que mencionam apenas o uso de
cobria com outra de gesso, material mais plástico duas camadas de argamassa. A coloração da ar-
e de fácil regularização por mão de obra menos gamassa era realizada com adição de pigmentos
especializada. (Kanan, 2008, p.37-38). minerais, sendo os tons amarelo e verde obtidos
O traço15 das argamassas a base de cal aérea no pela mistura de peróxido de ferro hidratado ou
Brasil até o século XIX, apresenta, pelo menos, 25 óxido de cromo ou pelos óxidos de magnésio,
a 35% de carbonato de cálcio, o que corresponde de cobre e bicarbonatos de cobre. A argamassa
a um traço, em volume, que varia entre 1:4 a 1:3 era misturada manualmente, na denominada
(cal:agregado). Contudo, dependendo da função16 “preparação a braço”, caracterizada por ser re-
da argamassa, podem apresentar traço mais rico alizada sobre estrados de madeira, conhecidos
na literatura portuguesa como “amassadouros”,
13
CORONA, Eduardo. LEMOS, Carlos. Dicionário da Arquitetura
Brasileira. EDART. São Paulo,1972. sendo o processo mecanizado realizado com o
auxílio de um misturador. Durante o processo
14
VALLE, Arthur. DAZZI, Camila. PORTELLA, Isabel. Oitocentos
- Tomo III : Intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal. Edição. de assentamento da argamassa à estrutura a
Rio de Janeiro: CEFET/RJ. 2014, p. 141 – 145. 2ª madeira era mantida constantemente úmida para
15
Proporção do aglomerante e do agregado em argamassa. 17
KANAN, Maria Isabel. Manual de conservação e intervenção em
argamassas e revestimentos à base de cal. Brasília, DF: IPHAN /
16
As argamassas apresentam funções quando utilizadas em edifi- Programa Monumenta, .2008
cações sendo: Argamassas de assentamento e preenchimento das
alvenarias; Argamassas de revestimento (proteção); Argamassas 18
SEGURADO, J.E. S. Acabamento das Construções, estuque, pin-
decorativas. turas e etc. Lisboa, Livraria Bertrand, 1936.
evitar a desidratação das peças e as consequentes várias camadas de estuques de cal e ou gesso. As
fissuras e perdas de aderência entre o estuque e fasquias distam cerca de 1cm entre si, de modo a
as tramas de madeira19. As técnicas brasileiras20 garantir a resistência da interação com o reboco,
consistem na utilização do ripamento ou barrotes permitir que a argamassa tivesse a capacidade de
em madeira, variando sua estrutura interna com suportar o seu próprio peso e facilitar a adesão da
a produção das telas importadas de depoloyée, mesma ao fasquiado de madeira22. O revestimento
típicas já do século XIX, e finalização a arga- estucado define características e composições
massa de cal. Estas telas podem ser fixadas em variáveis, embora tradicionalmente23 fosse exe-
barrotes distribuídos de forma quadricular, com cutado em três camadas: o reboco, que assenta
espaçamentos entre 30 e 50 cm, quando o estu- no suporte; o esboço, pasta de cal e grânulos, que
que for utilizado como revestimento de forros, variavam de finos (0,0075mm) a grãos maiores (4
em divisórias de madeira. O madeiramento do mm), e o estuque, argamassa ou pasta de gesso e
suporte da tela deve ser independente do telhado cal aérea que, devido ao seu módulo de finura,
para evitar a ação provocada pelos movimentos não possuíra agregados e quando estes eram ne-
de expansão/contração decorrentes das variações cessários, tinham dimensões inferiores a 75µm,
hidrotérmicas que geram fissuração no estuque21. constituindo por fim a camada final do revesti-
Em Portugal a argamassa utilizada nos forros era mento. A adição de materiais fibrosos aos forros
assente diretamente sob a estrutura de madeira, provém da necessidade de aumentar a resistência
constituindo uma solução mais econômica e de mecânica do estuque, podendo ser de cerdas de
mais fácil execução, nomeadamente sob o viga- animal (crina de boi, cavalo, pelo de cão), fibras
mento dos pavimentos e coberturas (tectos de vegetais, madeira, entre outros24.
alvenaria em abóbada, estruturas de madeira). A finalidade do reboco era a de regularizar
O assentamento das fasquias realizava-se comu- e uniformizar o substrato e era assente sobre
mente com ripas de seção trapezoidal, pregadas fasquias sobre abóbadas e arcos de alvenaria
na parte inferior de todo o conjunto de vigas, (Fig.13). Sob estas bases era, em geral, constituído
sendo pregadas com a base estreita para cima, por uma argamassade cal, com traço volumétrico
dispostas na perpendicular do vigamento (Fig. entre 1:1,5 a 1:3 e, quando aplicado uma única
12). As ligações de topo entre as mesmas eram vez, deveria ter uma espessura de 10 a 15mm.
fixadas por chanfros (corte rampeado) apenas sob Entretanto, era muito comum a execução dos
as vigas. O fasquiado era pregado diretamente ao tectos fasquiados com o traço da argamassa de
vigamento de madeira, com as fasquias perpendi- 1:1 a 1:2, mantendo a distancia entre a fasquias
culares umas às outras, seguido da aplicação das de 1cm. O estuque era aplicado em camadas,
sendo a primeira camada o emboço, a segunda
19
VEIGA, R. TAVARES, Martha. Características das paredes an- o reboco e a terceira o esboço.
tigas dos revestimentos por pintura, IN. Actas do Encontro A In-
dústria das Tintas nos inícios do século XXI, APTETI, [Em linha:
mestrado-reabilitacao.fa.utl.pt/disciplinas/jbastos/Rveiga8VMT-
-APTETIb.pdf]. 2002. 22
RIBEIRO, Paulo A. P.M Silveira. Estuques Antigos: Caracteriza-
ção Construtiva e Análise Patológica. Dissertação de Mestrado em
20
OLIVEIRA, Mario Mendonça. Tecnologia da Conservação e da Engenharia Civil, Instituto Superior Técnico, 2000.
restauração – Materiais e Estruturas: um roteiro de estudos. 4th.
ed.rev.and enl. Salvador: EDUFBA, 2011. 23
PEREIRA, Maria Emília Castro. Reabilitação de Tectos Estuca-
dos Antigos. Dissertação de Mestrado em Engenharia Civil, Facul-
21
NASCIMENTO, Bastos Cláudia. Deterioração de Forro em Es- dade de Engenharia da Universidade do Porto, 2010.
tuque Reforçado com Ripas Vegetais: o caso “Vila Penteado”. Dis-
sertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Engenharia 24
KANAN, Maria Isabel. Manual de conservação e intervenção em
de Construção Civil. Escola Politécnica da –Universidade de São argamassas e revestimentos à base de cal. Brasília, DF: IPHAN /
Paulo. São Paulo, 2002. Programa Monumenta, 2008.
Fig.11 - Procedimento de restauro do forro de estuque e das Fig.12 - Modelo estrutural dos forros em estuque.
pinturas nas paredes do Museu Mariano Procópio. (Fonte: Acervo Fórum da Construção, 2016).
(Fonte: Acervo PPV Conservação e Restauro, 2012).
oposição ao que ocorria em Portugal, onde são
Os forros estucados brasileiros e portugueses
comuns três camadas divididas em: emboço,
(Fig.14) apresentam semelhanças no tocante à sua
reboco e esboço com granulometrias distintas 26.
tecnologia de fabrico, funcionando a estrutura e
Em ambos os casos a ligação dos forros às cober-
os revestimentos em ambos os casos como um
turas ressalta como um elemento fundamental na
sistema integrado, onde os materiais base são a
conceção do projeto, dada a enorme interdepen-
madeira e os estuques à base de cal e de gesso. As
dência destes dois elementos e da qual dependia
variações regionais poderão ser encontradas quer
o bom comportamento funcional e conservação.
na composição das argamassas (tipo de rochas,
areias e fibras) dependente das matérias primas
disponíveis quer nas técnicas de execução e apli- 5. CONCLUSÕES
cação. Por seu lado, a experiência e especialização O Brasil possui uma considerável multicul-
dos estucadores seriam ainda determinantes turalidade devido ao fenómeno migratório do
na qualidade dos acabamentos, sendo de não século XIX. Sob influencia das principais nações
menosprezar a adaptação da tecnologia original europeias como a França, Espanha, Holanda,
a uma realidade climática distinta25. Alemanha, Itália e Inglaterra, edificamos nosso
No Brasil, era comum a preparação manual patrimônio histórico. De Portugal importámos
das pastas de cal, por comparação com o recurso artistas e tecnologias que contribuíram para ajudar
a amassadouros em Portugal, onde a tradição era a edificar os monumentos e centros urbanos. A
já mais antiga. Os traços portugueses são mais arte do estuque está já patente no Brasil desde
finos do que os brasileiros, permitindo texturas meados do século XVIII, embora atinja a sua má-
mais homogéneas e expressivas. O assentamento xima expressão no século seguinte, caracterizando
da argamassa de suporte era realizado no Brasil ainda a decoração arquitectónica do século XX,
em camadas grossas, podendo ser únicas, por tanto em interiores como nos exteriores.
26
Veiga, R. Tavares, Martha. Características das paredes antigas
dos revestimentos por pintura. IN. Actas do Encontro A Indús-
tria das Tintas nos inícios do século XXI, APTETI. [Em linha:
25
Estas adaptações não se encontram ainda levantadas no caso bra- mestrado-reabilitacao.fa.utl.pt/disciplinas/jbastos/Rveiga8VMT-
sileiro fazendo parte dos objetivos da investigação em curso. -APTETIb.pdf]. 2002.
6. AGRADECIMENTOS
Fig.14 – Despendimento do revestimento de acabamento por
Agradeço à Professora Eduarda Vieira o apoio infiltrações de humidade no fasquiado de madeira . Edifício de
prestado na redacção deste trabalho. habitação do séc. XIX. Porto, Porugal.
(Fonte: Arquivo Eduarda Vieira, 2016).
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Arquitectonico e Paisagístico. Universidade de Évora.
[email protected]
* Universidade de Évora, Departamento de Arquitectura, Centro da História da Arte
e Investigação Artística (CHAIA) **Faculdade de Belas Artes da Universidade de
Lisboa, Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes de Lisboa (CIEBA)
RESUMO
Este artigo pretende incidir sobre a história da construção do claustro do Mosteiro de Santa Clara-
-a-Nova de Coimbra, em particular na reforma que ocorre a partir de 1737. É sobre a tutela de pro-
tagonistas do Ciclo do Aqueduto que esta se opera, reflectindo preocupações não só estilísticas como
políticas, inerentes à saúde dos povos. Propomo-nos analisar a história da construção, a tratadística e o
estudo da arquitectura da água no claustro, através do desenho e da análise documental.
A traça do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova (1648) é da autoria do engenheiro-mor do reino Frei
João Turriano. A documentação relativa à obra sugere que é sua a planta universal, que estabelece as
principais linhas orientadoras do cenóbio. Será ainda segundo a sua traça que, em 1722, se inicia a
construção do claustro.
Na sequência da ruína de uma ala, em 1737 é pedida a demolição da abóbada do lado do olival. É
sobre a direcção de Custódio Vieira que se inicia a reforma estrutural do piso térreo, alterando defi-
nitivamente a sua tipologia original. Custódio Viera e o seu sucessor, Carlos Mardel, para além de
alterarem a estrutura, introduzem a arquitectura da água, característica da cultura tratadística com
base na política de felicidade dos povos, ligada às correntes do iluminismo (Carreira,2012; pp.3,4). A
obra encetada no claustro a partir de Vieira é caracterizada por um conjunto de fontes que compõem
o espaço, as quais fazem parte de um complexo sistema hidráulico, o qual deveria concluir-se com a
construção do novo Aqueduto de Santa Clara (1789) de Manuel Alves Macomboa.
A partir do estudo documental e da elaboração de desenhos do claustro, propõe-se relacionar a tra-
tadística com o sistema construtivo empregue, que resulta num modelo híbrido, onde se conjugam
diferentes culturas arquitectónicas.
registo do Alvará de Sua Majestade (1647), o qual anexo destinado a Paço Real. Grande parte dessas
salienta que “(…) não aja nisto superfluidades orientações reflectem a importância da gestão
gastos nem despesas de que Deus se não servi- financeira da obra salientando que:
ra nem o aperto das gerras do tempo prezente o
“Logo feitas as traças se ham buscar Mes-
permitem.”(Silva 2000). D. João IV, no contexto
tres para que tomem de empreitada para o
da política de renovação das casas religiosas e
que dará toda segurança ao dinheiro que
devido ao assoreamento do velho Mosteiro de
receberem obrigandosse a trazer a quanti-
Santa a Clara-a-Velha, ordena, em 1649, que se
dade serta de oficiais (…)”;”Todas as ofi-
lance a primeira pedra da construção do Mosteiro
cinas hão de ser de abobedas e se as altas
de Santa Clara-a-Nova para acolher o corpo de
puderem ser do mesmo sera bom cauza
“sua Avó e Senhora”.
porque o mayor gasto he o das madeiras.”;
A necessidade de afirmação política da nova
“Tãobem me paresse que se deve considerar
Dinastia Brigantina resultou num novo programa
a forma das impreitas como se há de dar aos
construtivo, imperativo na busca de um novo
empreiteiros a alvenaria e cantaria e mais
figurino estético que dificilmente é alheio ao en-
materiais que servem o seu officio que se
sino e exercício da arquitectura nacional. A par
tirarem do mosteiro velho, porque fazen-
da principal linha estética de patrocínio régio
do-se empreitada desse respeito podem vir
caminhava outra, nascida do utilitarismo, da es-
a custar muito menos.”;“Comprandose o
cassez de recursos e da falta de encomendas. Esta
sitio se tiver olivais venderá a lenha deles
corrente estética, que faz a transição do estático
pondose em pregam a quem mais der, e o
maneirismo para um decorativismo “epidérmico”
dinheiro procedido de tal venda se carregar
barroco, é muitas vezes exercida por projectistas
em receita ao Tezoureiro (…)”(Silva 2000).
autodidactas pertencentes às Ordens ou Compa-
nhias, onde permanecem em observância religio- A documentação relativa à construção do Mos-
sa. É neste enquadramento que se desenvolve a teiro de Santa Clara-a-Nova mostra que, apesar da
obra de arquitectura de Fr. João Turriano, filho multiplicidade de arquitectos e engenheiros mili-
de Leonardo Torriani, um dos mais importantes tares que sucederam a Frei Turriano na direcção
engenheiros militares de Filipe II e Filipe III de da obra, as plantas originais e infra-estruturas,
Portugal. Não obstante o regime de observância, tais como a “ (…) obra e canos de augoa (…) ”
seguindo a longa tradição de herança de cargos (2º contrato de canos, da fonte da oura até ao
públicos, Fr. João Turriano recebe de D. João IV o Mosteiro, 1650), são da sua autoria (Silva 2000).
cargo de Engenheiro-mor do Reino, após a morte O conhecimento que este adquire, enquanto au-
de seu pai. Durante os treze anos que estará ao todidacta, atribui-se ao papel formativo dos livros
serviço da coroa traça diversas casas religiosas, e tratados da época. No conjunto do catálogo da
onde a estética de fortificação, resultante de um sua biblioteca, que herda do pai, destacam-se
aprendizado de pai para filho, se encontra presente dois conhecidos tratados arquitectónicos, o III e
(Abreu 2003). IV Livros de Sebastiano Serlio (1537, 1540) e os
Em 1648, é determinado pelo Superintenden- Quattro Libri dell’Architettura de Andrea Palladio
te das obras do cenóbio que o Padre Frey João (1570), os quais estudou e anotou com minúcia
Turriano execute a traça para o dito Mosteiro, (Abreu 2003). Pelas suas anotações, verifica-se um
a qual segue as orientações régias de albergar estudo mais aprofundado da edição dos Quattro
sepulturas de reis e da construção de um edifício Libri de Andrea Palladio, a qual era recente à data
de construção do mosteiro de Santa Clara. Preo- pelo emprego da gramática das ordens como
cupações presentes no projecto, como a orientação enunciam Palladio e Serlio, em particular o seu
solar da livraria, a disposição e proporção das salas correcto dimensionamento e a sobreposição em
nobres, a localização de adegas, de dispensas e estruturas porticadas, são notórias na obra final.
latrinas e sobretudo ventilação, são extraídas do Nas suas leituras, constata-se a aversão de Serlio
seu exemplar do livro de Palladio, na parte que à construção de arcarias sobre colunas redondas
concerne aos edifícios civis, as quais adoptou no que este considera “cosa viciosa y falsa” aconse-
cenóbio. Também as potencialidades paisagísticas lhando que “Arcos /se fação sobre pi-/lares e não
da implantação, sobretudo a relação entre o cui- sobre Colunas” (Abreu 2003). A solução que mais
dado da elaboração de fachadas na proximidade tarde seria adoptada no esquema compositivo do
do rio, são extraídas das considerações de Palladio claustro, encontra-se espelhada nessas recomen-
(Abreu 2003). Verifica-se uma correlação entre dações serlianas, sobretudo no que concerne às
as partes que sublinha da obra deste autor e a estruturas porticadas, das quais salientamos: ”se
disposição do mosteiro: os arcos queremos hazer, há de ser sobre Pilastrones
quadrados. Y demas de esto sobreponer o arrimar
“i Tempij, che faranno nella più nobile, & a ellos las columnas redondas para mas ornato.”
più celebre parte della Città, e lontani da’ (Abreu 2003). Considerações técnicas presentes
luoghi dishonesti, e sopra belle e ornate pia- na obra de Serlio, tais como o dimensionamento
zze, (…). E se nella Città vi saranno colli, si de um sistema de arcaria em pontes ou o cravar
eleggerà la più alta parte di quelli. Ma non de gatos metálicos na pedra dos suportes de um
vi essendo luoghi rivelati, si alzera il piano claustro e o seu tratamento (de forma a que não
del Tempi dal rimanente della Città, quanto se crie ferrugem nas paredes), poderão ter sido
sarà conveniente; e si ascenderà al Tempio tecidas por Fr. João no ante-projecto de claustro.
per gradi, concio sia che il salire al Tempio Podemos concluir que a importância do estudo
apporti seco maggior divotione, & Maestà. da robustez dos elementos portantes de Serlio por
Si faranno le fronti de’ Tempij, che guardino Fr. João Torriano “ (…) torna-se num axioma,
sopra grandissima parte della Città; accio- que bem poderia ser ilustrado pela construção do
che paia la Religione esser posta come per claustro de Coimbra, de solidez filiada no exercício
custode, & protetrice de’ Cittadini. Ma se da arquitectura militar.” (Abreu 2003).
si fabricheranno Tempij fuori della Città,
all’hora le fronti loro si faranno, che guar- 2. A PRIMEIRA FASE DE OBRAS NO
dino sopra le strade publiche, ò sopra i fiu- CLAUSTRO
mi, se appresso quelli li fabri.”(Abreu 2003).
A primeira referência documental de que se
O seu exemplar do Livro III de Sebastiano tem conhecimento do claustro do Mosteiro de
Serlio, dedicado às Antiguidades, poderá estar Santa Clara-a-Nova consta do registo das cartas
na génese do desenho do claustro. Nele anota do Superintendente Marquês do Alegrete, de 1700.
proporções de átrios, claustros, cortili e fóruns, Na primeira carta, descreve como conferiu com
cuja função e disposição é fundamental na or- Manoel do Couto as cópias das plantas (supõe-se
ganização das restantes dependências. Não seria que se refere às plantas originais de Frei Turriano),
portanto de estranhar que o claustro do Mosteiro tendo decidido iniciar a obra na cisterna por mo-
Isabelino já estivesse delineado nas plantas ori- tivo de urgência. Segue-se um parecer de Manuel
ginais, da sua autoria. O interesse que mostra Couto sobre a obra do refeitório, referindo: “ (…)
o que toca esta caza a planta o mostra porque vara de lagedo de duas escadas (…); Cada
continuando o claustro se parecer que esta caza vara de lijonja de Pertunhos com sua faixa
de profundos se lhe dará a serventia (…) ” (Silva como se costuma (…); Cada vara de cor-
2000). Em 1718, Manuel do Couto, responsável rimam para as escadas (…); Cada palmo
pela medição das obras do Empreiteiro João de de pedra para degraos (…).” (Silva 2000).
Carvalho Ferreira, refere: “(…) huma Ermida de
Em 1731, “ Custodio Vieyra Sargento mor de
Santo Gonçalo que no claustro das cisternas tinha
Infantaria com exercicio de Enginheiro na cor-
mandado fazer a Abbadesa (…)” , o que sugere
que estaria já delineado para o espaço claustral te e Architecto de todos os paços Reaes e do real
um sistema hidráulico (Silva 2000). Só em 1722 é Mosteiro de Nossa Senhora da Vitoria da Villa
que a obra de pedraria do claustro, ainda segundo da Batalha (…) ” certifica medir as obras que os
as medições de Manuel do Couto, é rematada em mestres empreiteiros Caldeira e Ferreira tinham
pregão num lugar público da cidade por Manuel executado em toda a galeria do primeiro piso do
Caldeira (Mestre Pedreiro das obras da Univer- claustro. Descreve as já executadas:
sidade) e Gaspar Ferreira. O anterior empreiteiro “Em parede de pedra e cal emboçada e re-
deixou a obra devido à quantidade excessiva de bocada só por huma parte achei cento e
pedra, resultante da sua extracção das pedreiras secenta e sete braças e noventa e seis (…);
vizinhas. A cópia da escritura de 1723 apresenta Em parede de pedra e barro achei sessenta
uma valiosa descrição dos materiais empregues na e huma braça e hum decimo de braça (…);
fundação do claustro, com o respectivo orçamento, Em parede de pedra em roço achei setenta
mencionando: e duas braças e quatro quartos de braça
“Cada braça de parede de alicerce para bai- (…); Em parede nos alicerces achei sincoen-
xo (…); Cada braça de superficie de terra ta e seis braças (…); Em abobada dobrada
para sima de preto na gomma que se cos- tosca achei oitenta e duas braças (…); Em
tuma (…); Cada vara de enselharia (…) abobada rebocada achei trezentos e vinte
dando El Rey a pedra; Cada vara de faixa e quatro braças e meia (…); Em emboço,
liza de palmo e meio de largo com a mes- reboco cayado achei trezentos e honze bra-
ma Lavoura dando El Rey a pedra (…); ças e hum decimo de braça (…); Em refor-
Cada vara de faixa com moldura de toda mação groça em parede para azolejo achei
a obra assentada e bem lavrada (…); Cada trinta braças e três quartos de braça (…);
palmo de lancil medido superficialmente Em reformação guoça lavrada nas paredes
(…); Cada braça de abobeda da obra (…) do ditto claustro que erão antigas estavão
sendo de tijolo de canudo de maous e cal muito tortas esburacadas achei vinte e qua-
(…); Cada braça de entulho (…) e havendo tro braças e dous quartos de braça (…); Em
entulho na mesma parte se lha nam pagava capitel em pilares do ditto claustro, corredo-
nada sendo entulho de alicerces; Cada pal- res deles escadas das janelas, simalhas de
mo de capitel de moldura (…); Cada vara de portas empostas e fachas de molduras que
pedra na devolta para arco (…); Cada vara servem de nascimento as abobadas, achei
de pedraria de duas escadas para arcos ou mil e sete centos palmos (…); Embazamen-
pilares (…); Cada palmo de embaramento todos pilares a pes direitos achei quinhentos
na forma do que há (…); Cada palmo de e vinte e nove palmos (…); Em pedraria Liza
cornija de palmo e meio de alto (…); Cada de duas escadas em paços em volta dos ar-
cos achei mil trezentos e trinta e duas va- dar remedear com cintas de ferro. E quanto
ras (…); Em pedraria refendida nos pilares á continuação da obra mandarais acabar
a pes direitos dos arcos achei quinhentos as abobedas sobre o claustro e as tojougas
e vinte e quatro varas (…) ”(Silva 2000). que faltarem em elle e na Caza do Capit-
tolo e lages do claustro (…)” (Silva 2000).
As medições (medidas-padrão medievais por-
tuguesas: braça- 184cm, vara- 110cm, meia-braça-
95cm, meia-vara- 55cm, palmo- 22cm) referem 3. CUSTÓDIO VIEIRA, ARQUITETO DO
que foram executados aproximadamente 69116 CICLO DO AQUEDUTO, E O INÍCIO DA
cm de abóbada rebocada e em abobada dobrada REFORMA BARROCA
tosca 15088 cm, o que sugere que já estariam
A ideologia da Restauração (em que o integris-
erguidas pelo menos duas galerias do claustro. É
mo antijudaico, a devoção mariana imaculista, o
também notório que parte do programa decorativo
messianismo e a devoção à Eucaristia serão as
estaria delineada, que todavia não chegou a ser
correntes de culto presentes na liturgia de legiti-
totalmente executado, como é o caso das alvenarias
midade da nova dinastia), apesar de tradicional,
preparadas para a aplicação azulejar.
apresenta elementos claros de modernidade, re-
Apesar do avanço da obra, em 1737 é pedida
sultantes da conjuntura europeia (Gomes 2001).
a demolição da abóbada do lado do olival, por
Na época, o pensamento escolástico permanecia
ameaçar ruina. Segundo uma carta do Conselho
enraizado nas instituições oficiais do conhecimen-
da Fazenda, dirigida a António de Andrade do
to, porém foram surgindo as Academias, os Salões
Amaral, Comissário das obras, considera-se que
e as Confrarias, locais de sociabilidade onde por
a causa desta não se deveu ao trabalho destes
excelência ocorriam leituras de trabalhos científi-
mestres, informando que foi vista a sua carta
cos, troca de informação e debates. O pensamento
“(…) em que dareis conta haver se vos orde- político estrangeiro, a literatura iluminista e de
nado fizésseis demolir a abobeda do claustro autores cristãos-novos, os diplomatas e o mun-
dito Convento da nave que fica para a parte danismo caracterizaram a emergente sociedade
do olival por ameaçar ruina sem se vos de- de salão (Torgal and Albuquerque 1981). No séc.
clarar se a despeza da demolição se havia de XVIII, Salões, Academias e Lojas Maçónicas são
fazer por conta da fazenda real se pella dos locais por excelência onde se debatem novas ideias
empreiteiros que fizeram a abobeda se pellos e conceitos, em particular a Encyclopédie, cujos
que fizeram a parede da dita nave ou se pella leitores eram de “quatro grupos profissionais que
impervida do que riscou a planta e se se de- pertenciam aos meios urbanos dominantes pelo
via fazer nova planta que fortalecesse mais dinheiro, pelo poder político ou pelos conhecimen-
a obra (…) se vos responde que o desmanda- tos: os negociantes, os administradores (juristas e
do nunca pode ser á custa do Empreiteiros burocratas), os engenheiros das pontes e calçadas,
actuais Gaspar Ferreira e Manoel Caldeira os médicos.”(Perrot 1974).
porque a ruina foy cauzada pella parede Na época, as doenças contagiosas, a má ventila-
que eles não fizerão e a obrou João Carva- ção, a falta de hábitos ou estruturas de higienização
lho Ferreira e pellos seus herdeiros se há de urbana eram escrutinados por periódicos como a
haver a perda toda e as brechas que se vão Gazeta de Lisboa e o Hebdomadário Lisbonense. A
abrindo da parte da porta em a nave que ia capital era descrita como suja, doente, desordena-
fizerão os empreiteiros actuaes, deveis man- da e insegura, e nos Salões eram debatidos modos
de conduta a seguir para preservar a saúde dos choussées, e em Espanha, com as obras hidráulicas
povos. Estudos e tratados médicos observavam, e de saneamento em Madrid, no reinado de Carlos
tanto a nível individual como colectivo, de que III, nas quais participaram Francisco Sabatini e
forma se poderia evitar a propagação de doenças José Hermosilla (Carreira 2012) . De facto, verifi-
(Carreira 2012). A purificação do ar, recorrendo à ca-se que na Europa “o discurso higienista (…) foi
eliminação dos maus cheiros, é a solução adoptada assimilado pelas elites urbanas e repercutiu-se nas
no Tratado de conservação da saúde dos povos de medidas implementadas pelos monarcas esclarecidos
Ribeiro Sanches (1756), cuja corrente higienista os quais, embora interessados no embelezamento
se repercutiu nos circuitos académicos, em par- das suas capitais segundo os sucessivos “figurinos
ticular pelos agentes da saúde e os engenheiros estilísticos” – do Barroco ao Rococó e ao Neoclássico
militares (Carreira 2012). Este tratado apresenta -, se preocuparam em salvaguardar a saúde dos
reflexões e recomendações sobre as cidades, os seus súbditos.” (Carreira 2012). O período Joanino
edifícios públicos e privados. Na sua idealização (1706-1750) foi consideravelmente profícuo na
da cidade arejada, autores da Antiguidade e da aplicação de medidas higienistas, desde sistemas
Renascença, tais como Vitrúvio, Leon Baptista de limpeza urbana, cobertura de esgotos, regulari-
Alberti ou Andrea Palladio, foram peças-chave zação e alargamento de ruas, das quais se destaca a
na fundamentação das soluções urbanísticas que construção do Aqueduto das Águas Livres, o qual
explora no seu capítulo IX, Dos sítios mais sadios solucionou a captação, adução e distribuição de
para fundar cidades e mais povoacoins. Para além água à cidade de Lisboa. Já em 1719, o Rei con-
das respectivas disposições paisagistas, o autor vocou alguns médicos para a reunião relativa à
aborda também a problemática das inundações, escolha do local para a construção da nova Igreja
dos materiais de construção, da água corrente ou Patriarcal (obra joanina de grande vulto), a qual
da iluminação, na procura de esclarecer os que contou também com a presença do arquitecto
frequentavam as escolas de arquitectura civil e italiano Filipe Juvara e de Manuel da Maia, na
militar, incitando-os a edificarem tendo em conta altura jovem engenheiro militar. Num estudo de
os preceitos para a conservação da saúde (Carreira Leonor Ferrão sobre a formação dos engenheiros
2012). O capítulo XVI, Da necessidade de renovar o militares (Eugénio dos Santos e Carvalho, Arqui-
Ar frequentemente nos Conventos e em todas as co- tecto e Engenheiro Militar (1711-1760): Cultura e
munidades, é elucidativo na descrição das condições prática de Arquitectura, 2007) verificou, na inven-
de saúde e higiene, consequentes da arquitectura tariação de obras pertencentes às suas bibliotecas
tradicionalmente empregue. O claustro (centro particulares, a presença de livros de medicina entre
e coração dos cenóbios) com o seu conjunto de os quais diversos Tratados Higienistas. Este facto
fontes, cisternas, canos, algerozes, aquedutos e revela que a cultura arquitectónica e urbanística
nascentes, é proposto como um espaço cuja função da época reconhecia a importância dos modos de
é fundamental na eliminação dos ares pútridos purificação do ar, mostrando a sua assimilação no
característicos da clausura na época. ciclo de obras Joanino (Carreira 2012). Na altura,
Os métodos pedagógicos e obras publicadas as diversas mercês atribuídas aos autores das obras
na Aula da Fortificação de Lisboa, no séc. XVII arquitectónicas e urbanísticas impulsionaram
e XVIII, actualizaram o conhecimento científico a ascensão dos engenheiros militares (Carreira
contribuindo para dignificação dos engenheiros 2012). O Aqueduto das Águas Livres será uma
militares em Portugal. O mesmo se verificou em das grandes obras que contribuíram para o pro-
França com os engenheiros da Écolle des ponts et tagonismo destes e do monarca. O prestígio de
subscrever uma obra desta dimensão motivava do corrente tomada na referida consulta
disputas e candidaturas. Da autoria de Manuel ordenar que se executase a obra do claus-
da Maia e Custódio Vieira (este passa a dirigi-la a tro na forma da planta e juntamente a do
partir 1736)), foi projectada com base na política aqueduto e para que haja mayor para huma
de felicidade dos povos, ligada às correntes do e outra fazer com que efectivamente se co-
iluminismo (Serrão 2003). brem as formas que se devemde consigna-
Na documentação relativa à obra do Mosteiro ção e ao Sargento Mor Enginheiro Custodio
de Santa Clara-a-Nova, a primeira referência que Vieyra se partisipa esta mesma resolução
se conhece do Sargento Mor Engenheiro Custódio por ordem dada lhe desta.”(Silva 2000).
Vieira é num pedido de autorização de pagamento
do Tesoureiro (1739), o qual informa que É já segundo a nova planta, da sua autoria, que,
em 1741, faz uma nova medição à obra dos mes-
“(…) foy duas veze em anos de 1736 e 1737 mos empreiteiros, na qual expressa ” (…) se estava
ás ditas obras (…)” (Silva 2000). Em 1738, ou não na forma da sua planta, e bem feita não se
na sequência da ameaça de ruína das abó- achou nella que reprovar (…) ” (Silva 2000). Men-
badas do claustro, o Conselho de sua Ma- ciona igualmente “ (…) As duas pedras das fontes
jestade e o de sua Fazenda fazem saber o com os seus golfinhos (…) ”, e as “Seis Baixelas no
Desembargador Comissário das Obras que mesmo das tabelas (…)” (Silva 2000), as quais
ordenara Vieira a efectuar a medição dos foram colocadas entre colunas, enunciando que as
trabalhos que Manuel Caldeira e Gaspar obras estruturais e hidráulicas (que se traduziam
Ferreira “(…) fizerão no ditto conserto exa- no seu programa decorativo, de uma fonte em cada
minando se agora que se intentava conduzir canto do claustro e uma no centro da sua quadra)
ao claustro delle estava e muito conveniente no espaço claustral são da sua responsabilidade,
garantia sua que se pretendia ossando o cus- enfatizando a importância atribuída à circulação
to que se fazia e vise o remedio que podia de água, em espaços conventuais, no contexto da
ter o mesmo claustro em alguns sentimentos tratadística higienista da época.
que mostrava (…) tudo examinara e achava Ainda durante a actividade de Custódio Vieira,
que agora se podia conduzir facilmente (…) em 1743, o Conselho da Fazenda informa que a
E pelo que se respeitava á segurança do dito hospedaria (piso superior do claustro) tinha o
claustro expunha a planta a qual mostrava piso de ladrilhos arruinado, tais como as abóba-
hum ladrilho a metade como estava feito das do piso inferior, supostamente devido a um
e a outra mostrava remedio que lhe parecia atraso nas obras.
mays convincente (…) e que a obra que se
pretendia fazer no claustro do dito conven- 4. CARLOS MARDEL, A PLANTA
to não héra obra esperada de que estava UNIVERSAL E O FINAL DO CICLO DO
principiada como mostrava a planta mas
AQUEDUTO
sim accessoria da mesma que ainda não
estava acabada e lhe parecia muito preci- Com a morte de Custódio Vieira, em 1744,
so fazer se pelo método que propunha na com o qual trabalhara na obra do Aqueduto das
dita planta (…) héra de grande utilidade Águas Livres, Carlos Mardel passa a dirigir a obra
fazer esta despeza por se custar outra mui- do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. Sucedeu a
to mais (…) Foy de Sua Magestade venci- Vieira também na Aula do Paço como mestre,
do por sua Real resolução de vinte e dous e como arquitecto real nas Ordens de Santiago
e de S. Bento, e no Mosteiro da Batalha (França gurança assim pelo que tocava a despozição
and Albuquerque 1978). Mardel teve uma activi- da planta que para ela tinha dado Custódio
dade profissional intensa que se estendeu desde Vieyra como ao bem obra do das pedra-
o reinado de D. João V até D. José I. A sua fama rias que para a obra que se seguia que he
será alcançada com a construção da zona oci- a do claustro ou sobre claustro que come-
dental da cidade de Lisboa, cujas obras inicia no ça da dita varanda para sima não achava
período joanino, entre as quais, a Mãe de Água boa a planta do dito Custodio Vieyra por-
das Amoreiras e a Igreja de Santa Isabel (1741). que deixava a parede no estado antigo sem
Após o terramoto de 1755, Mardel, juntamente lhe aplicar a mesma fortificação que as do
com Manuel da Maia e Eugénio dos Santos, fez claustro baixo: e que julgava não poderia
parte da “equipa dos três obreiros da reconstrução com o peso das abobedas como se via nas
da cidade” (França and Albuquerque 1978). A primeiras abobedas que se partirão e forão
sua acção na reconstrução da cidade após 1755 é demolidas e que nestes termos tirara nova
preponderante, delineando os projectos de dis- planta correspondente á da obra feita para
tribuição de água a partir do Aqueduto. Os seus fortificar a obra superior do mesmo modo
que se fortificou a inferior.”(Silva 2000).
elementos terminais, como a Mãe de Água das
Amoreiras e o Arco Triunfal no Rato (1748), têm Na mesma correspondência é remetida a nova
uma simbólica força discursiva iluminista. Em planta, que pretende apenas corrigir estrutural-
1760, será constituído chefe da Casa do Risco das mente o que já se encontrava executado no se-
Reais Obras Públicas, da qual fez parte desde a gundo piso do claustro.
sua fundação (França and Albuquerque 1978). Esta informação faz-nos definitivamente con-
No ano de 1744, o Conselho da fazenda informa cluir que existia uma planta universal (possivel-
o Comissário das obras de Santa Clara que manda mente da autoria de Frei Turriano) a qual, por
o Sargento Mor Engenheiro Carlos Mardel efectuar motivos estruturais, foi alterada no seu piso térreo
a medição das obras, acrescentando que“(…) por Custódio Vieira, sendo mais tarde empregue
deveis conta de ter o Empreiteiro das ditas obras o mesmo sistema de fortificação no piso superior
executado os riscos particulares que o Engenheiro por Carlos Mardel (o seu antecessor tinha man-
Custodio Vieyra lhe tinha inviado tirados da Planta tido a estrutura original). De facto, a tipologia
universal e por ser precizo que com toda a brevidade arquitectónica original do claustro é claramente
o engenheiro nomeado pelo falecimento do dito mencionada numa carta do Conselho da Fazenda
Custodio Vieyra de todos os riscos que pertencia (1748), que averigua a responsabilidade da queda
a ultima simalha e deambulatório que sobre ela das abóbadas segundo a medição de Carlos Mar-
se tinha dellineado e sem ir ver a dita obra e as del. Declara esta que “(…) devia julgar se aruina
paredes e o modo da sua fabrica não poderia fazer que tivera o claustro na nave chamada olival devia
a determinação da Abobedas e da mais obra que se importar aos empreiteiros que a fizerão ou a quem
devia continuar vos parcerá dar a dita.”(Silva 2000). fizera a planta se vos determina que aruina não
Segundo a descrição do Conselho da Fazenda, tocava aos empreiteiros actuais mas ao (…) João
Carvalho (…) Sargento Mor Custodio Vieira que
Mardel, na sua medição
então dirigia essas obras (…) julgara que se havia
“(…) achava que a obra do claustro baixo ruina não sucesera por culpa dos empreiteiros an-
athe o pavimento da varanda que corre por tigos nem dos actuais (…) e que a fraqueza que
cima do mesmo estava a obra em toda se- dera cauza ao ressentimento procedia das janelas
Fig.3 - Mapa do novo aqueducto da agua antigamente Fig.4 - Prospecto ou vista dos arcos (Macomboa 1789b).
descoberta no sitio da Granja (Macomboa 1789a).
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Craveiro, Maria de Lurdes dos Anjos, and Luís Universidade.
Ferrand de Almeida. 1990. Manuel Alves Ma- ———. 1789b. Prospecto ou vista dos arcos e de to
comboa: Arquitecto Da Reforma Pombalina Da [sic, por todo] o aqueducto que se manda fazer p[ar]
Universidade de Coimbra. 1a ed. Subsídios Para a a conductor da agua antigam[en]te descoberta no
História Da Arte Portuguesa 31. Coimbra: Insti- sitio da Granja, pouco distante da Crus [sic] de Me-
tuto de História da Arte da Faculdade de Letras rousos [sic]. [visual gráfico] / feito por Macomboa.
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teiro de Santa Clara de Coimbra : 1647 a 1769 : Da
RESUMEN
La construcción de una bóveda de crucería requiere la ejecución de una importante estructura: las
cimbras. Comparada con la estructura de madera que requiere una bóveda románica, las cimbras de
una bóveda de crucería se han simplificado considerablemente, lo que explica su rotundo éxito. Estas
estructuras auxiliares podían elevar enormemente el coste de la obra, suponiendo en algunos casos la
tala de bosques completos, fuente de recursos en el Medioevo. Por ello el maestro de obras siempre se
verá obligado a ingeniar nuevos sistemas para la simplificación y la reducción de su uso en obra.
El profundo estudio geométrico y estereotómico que hemos realizado de las bóvedas sexpartitas eu-
ropeas, las grandes protagonistas del gótico primitivo, nos ha permitido plantear hipótesis sobre los
medios auxiliares que hicieron posible su construcción. Para ello se han medido las principales bóvedas
sexpartitas de Europa Occidental con estación total, escáner láser o fotogrametría.
Únicamente la construcción permite alcanzar un profundo conocimiento que la especulación teórica no
puede lograr. Gracias al montaje de una bóveda sexpartita a escala 1/3 en la Universidad Politécnica
de Madrid, hemos podido poner en práctica las hipótesis teóricas planteadas previamente, así como
revelar las destrezas necesarias para la puesta en obra de tan complejas estructuras.
La construcción de la bóveda comienza con el montaje de una plataforma horizontal de trabajo donde
apoyarían las cimbras de los arcos, situada en el nivel superior de las jarjas o sobre la línea de imposta
cuando la bóveda carece de jarjamentos. Los nervios con grandes peraltes requerían el apoyo de sus
cimbras a distintas alturas, complicando el diseño de estas plataformas. Las primeras cimbras se cons-
truyen a partir de distintas curvaturas o presentan una estandarización parcial, sin embargo a medida
que se desarrolla el sistema la estandarización es completa. Además, la evolución de las secciones de los
nervios indicaría la transformación del diseño de las cimbras, para conseguir un mayor control de la
calidad de la obra, como ya indicaban Choisy y Fitchen. Esta comunicación pretende poner de mani-
fiesto el diseño y evolución de los medios auxiliares necesarios para llevar a cabo la construcción de las
primeras bóvedas góticas y los procesos que habrían permitido simplificar y reutilizar estas estructuras.
JOHN FITCHEN
John Fitchen realizó un estudio de la construc-
ción gótica proponiendo las posibles estructuras
auxiliares para llevar a cabo los grandes edificios
Fig. 3 - Distintos tipos de cimbras en relación con la sección de medievales (Fitchen [1961] 1981). Tal y cómo
las dovelas según Fitchen. mostraba Choisy en sus ilustraciones, las cimbras
propuestas por Fitchen para la construcción de
TORRES BALBÁS
los nervios de las bóvedas góticas podrían haber
Torres Balbás afirmaba que en primer lugar se sido dobles a partir de finales del siglo XII, lo
construirían los nervios con ayuda de cimbras tal y que justifica a partir de la forma de la sección de
como dicta la lógica, utilizándose posteriormente las dovelas, con un gran baquetón central que
para el apoyo de las plementerías durante su mon- permitiría que quedasen encajadas dentro del
taje. Una vez que fraguaban los nervios, y sin que carril interior de la cimbra, impidiendo así el
hubiesen fraguado las plementerías, que tardaban movimiento fuera de su plano vertical.
más tiempo por su mayor grosor y menor contacto Sin embargo algunas de sus propuestas parecen
con la atmósfera, se procedía al descimbrado de poco probables, como la ejecución de las ple-
la bóveda. Este proceso era crítico y en algunos menterías mediante la sujeción de los plementos
con pesos de piedra atados con cuerdas a los
casos pudo provocar grandes deformaciones o
andamios, hasta que los morteros endurecían3.
incluso el derrumbe del abovedamiento por un
Además plantea la colocación de múltiples cerchas
descimbrado prematuro.
entre los nervios, que permitirían aparejar la ple-
Respecto a las técnicas adoptadas para la colo-
mentería sin dificultad. Sus propuestas muestran
cación de las superficies de plementería, Balbás, soluciones que requieren un trabajo complejo de
contradiciendo las teorías de Viollet Le Duc y ensamblaje, quizá demasiado complicado para
Choisy, aseguraba que no se requiere cimbra al- tratarse de estructuras auxiliares efímeras, que
guna, excepto en el caso de bóvedas extraordina- solo permanecían durante la obra. Tal y cómo
riamente grandes, sino un ligero apeo puntual en indica Bechmann, existen muchos motivos para
cada hilada hasta conseguir salvar la luz entre los pensar que se trataba de estructuras de madera
nervios. Una vez conseguido esto cada lecho se poco trabajadas.
mantiene por sí mismo. En las bóvedas de grandes
dimensiones se podrían requerir cerchas y cimbras ROLAND BECHMANN
añadidas. Afirmaba que las reconstrucciones que
El trabajo realizado por Roland Bechmann es
realizó en las bóvedas de la nave central de la
especialmente interesante ya que reflexiona sobre
Catedral de Sigüenza, con grandes perforaciones
2
La perforación reconstruida de esta forma en la nave central de la
en sus superficies de plementería causadas por los catedral seguntina tenía 5,39 m2 y se realizó sin medios auxiliares a
bombardeos durante la guerra civil española, las 26 metros de altura (Torres Balbás 1939).
llevó a cabo sin ayuda de andamios ni cerchas, 3
Propuesta realizada por Lassaux, y que también menciona Be-
acuñando los sillarejos con la ayuda de operarios chmann.
la importancia de los recursos en el Medioevo y su con cuerdas. El escaso desbaste de la madera las
influencia en la construcción gótica. El aumento haría más resistentes a la intemperie (Bechmann,
de población producido entre los siglos XII y XIII [1981] 2011).
contribuye a la sobrexplotación de la madera du-
rante la Edad Media y la convierte en un material 2. LAS MONTEAS Y EL DISEÑO DE LAS
caro y amenazado. En el siglo XIII su precio se CIMBRAS
dispara obligando a economizar notablemente
Para controlar la forma de una bóveda de cru-
su utilización en la obra. La construcción de una
cería se requiere el dibujo de la montea, donde
gran catedral podía suponer la tala de bosques
quedan definidas las curvaturas de todos sus arcos,
completos para la fabricación de las cimbras y
permitiendo determinar la elevación de una bó-
para la ejecución de algunos oficios fundamenta-
veda coordinándola con su proyección en planta.
les: la fabricación de vidrieras y piezas metálicas
La montea se definía a tamaño real en las “salas
necesarias (clavos de forja, carpinterías de plomo,
de trazas”, donde se tallaban las dovelas de los
fabricación de herramientas), la fabricación de
nervios, las claves y jarjas. Los dibujos a escala
cal, etc. Todos los oficios necesitaban combustible
1/1 permitían la comprobación constante de las
para producir calor. Bechmann asegura que en
piezas directamente sobre la montea, minimi-
este momento también existe una “conciencia
zando los errores de ejecución en obra, que de
medioambiental”, entendida de un modo distinto
producirse podrían resultar muy costosos (Gómez
al actual, ya que el bosque es la fuente de recursos
1998; Palacios 2009). El estudio de las monteas
en el Medioevo (para obtener carne de la caza,
de las bóvedas sexpartitas europeas revela una
ciertas frutas y verduras, e incluso hierbas medi-
evolución de las geometrías y recursos utilizados
cinales). En Francia la protección de los bosques
para conseguir una mayor simplificación de los
para restringir el uso de madera se produce en el
medios auxiliares.
siglo XII, llegando algo más tarde a Inglaterra.
Una de las principales características que resalta
LA ESTANDARIZACIÓN DE LOS
es la reducción de madera que supone la construc-
NERVIOS
ción de las jarjas de la bóveda, ya que las cimbras
solo tienen que hacerse para la parte superior de En la construcción de las bóvedas góticas era
los arcos. Según Bechmann el desplazamiento frecuente el empleo de la misma curvatura para
de estas estructuras de madera, sin desmontarlas la ejecuciónde todos los nervios. De esta forma se
previamente, difícilmente se podría llevar a cabo facilitaba enormemente el proceso constructivo,
en época medieval, dados los medios rudimenta- pudiendo usar la misma cimbra y dovela para
rios del momento, especialmente tratándose de todos ellos. Ya el tratado de Villard de Honnecourt
cimbras grandes y pesadas situadas a gran altura. es el primer testimonio, a principios del siglo XIII,
Solo una parte podría ser reaprovechada ya que de la voluntad de estandarizar las nervaduras de
cada vez que se desplazaban su deterioro obligaba una bóveda de crucería (Palacios 2009).
a remplazar parte del sistema. También se dete- El estudio de las bóvedas sexpartitas europeas
rioraban enormemente como consecuencia de las nos permite afirmar que los primeros ejemplos,
condiciones climáticas a lo largo de tantos meses que datan de la segunda mitad del siglo XII, o
de obra. Para facilitar su construcción además bien se construyen a partir de distintas curva-
de la posibilidad de reutilización, las cimbras se turas para todos sus nervios, o bien presentan
construyen con madera poco trabajada atándose una estandarización parcial. Las bóvedas de la
Catedral de Ávila4 y las de la nave central de la cantería. Esto permitiría descimbrar y reutilizar
Catedral de Notre Dame de Paris son un ejemplo las cimbras en nuevos tramos del edificio en la
del primer caso, mientras que las de la Catedral de siguiente temporada, siempre contrarrestando
Sens y Canterbury son un ejemplo del segundo. antes los empujes en la dirección longitudinal, lo
Sin embargo rápidamente la estandarización se que permite la reducción del gasto en madera y
aplica a todos los nervios de la bóveda, tal y como además mantiene estas estructuras resguardadas
vemos en las Catedrales de Laon, Bourges, Cuenca durante el periodo invernal para mantenerlas en
o Lincoln, construidas a finales del siglo XII o ya buen estado de conservación.
en pleno siglo XIII5. Para la construcción del modelo de bóveda sex-
La estandarización comienza en el gótico primi- partita del Monasterio de Santa María de Huerta
tivo, desarrollándose durante la segunda mitad del realizado en el taller de la Escuela de Arquitectura
siglo XII, y finalmente se convierte en un recurso se propuso una primera montea a partir de los
indispensable a partir del siglo XIII. Este sistema datos medidos. Las deformaciones de los nervios
posibilita la simplificación del montaje de la bó- nos llevaron a concluir que las curvaturas de todos
veda. En primer lugar permite utilizar la misma ellos eran distintas entre sí, aunque con radios
cimbra para la construcción de todos sus nervios. muy próximos. Los propios errores derivados
Además, si las dovelas se tallan con la curvatura del del corte de la madera para la ejecución de las
arco permite utilizar un único baibel para la talla cimbras hacían imposible la diferenciación de una
de todas ellas, es decir, al tener todos los nervios curvatura u otra al compararlas con la montea
la misma curvatura las dovelas son iguales para realizada en el taller a escala 1/1. Este proceso
todos. Sin embargo hemos podido constatar que nos sirvió para darnos cuenta que la interpreta-
en el gótico primitivo las dovelas de los nervios ción de la medición era errónea, la bóveda tenía
son de escasa longitud y se tallan rectas por lo todos sus nervios estandarizados. El diseño de la
que no necesitan este recurso para simplificar montea utilizando la misma curvatura para todos
el proceso de talla, siendo iguales para todos los los nervios no variaba en absoluto el resultado
nervios. Pensamos por tanto que la estandariza- volumétrico final.
ción en el gótico primitivo responde únicamente
a la voluntad de simplificar los medios auxiliares. EL ABANDONO DE LOS NERVIOS CON
Tal y cómo se deduce del documento medieval GRANDES PERALTES
del monje Gervase (Foyle 2013), que explica cómo
En las primeras bóvedas sexpartitas, construidas
se llevó a cabo la construcción de la Catedral de
en la Île de France en la segunda mitad del siglo
Canterbury, podemos afirmar que el montaje de
XII, es frecuente la utilización de arcos semicircu-
las bóvedas solía ejecutarse durante los meses de
lares enormemente peraltados para la ejecución de
temperaturas calurosas o templadas, para permitir
sus nervios centrales. Estos peraltes tienen apro-
el correcto fraguado de los morteros, detenien-
ximadamente 2,50 metros de altura respecto de la
do la obra en los meses más fríos del año, que
línea de imposta de apoyo. Sin embargo, a lo largo
podrían emplearse para avanzar los trabajos de
de la segunda mitad del siglo XII esta geometría
4
Primer ejemplo de bóveda sexpartita en España. Su geometría y se abandona paulatinamente en favor de la utili-
volumetría son propias del románico.
zación de arcos apuntados para todos los nervios.
5
En las bóvedas sexpartitas alemanas la estandarización es siempre Durante el siglo XIII, momento de expansión de la
parcial aún en los abovedamientos construidos en el siglo XIII, tal
y como vemos en las Catedrales de Limburg an der Lahn o Bremen, bóveda sexpartita fuera del territorio francés, los
como consecuencia de la persistencia de la tradición románica. nervios con grandes peraltes prácticamente han
5. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bechmann, Roland. [1981] 2011. Les racines del Maira Vidal, Rocío. (2016). Bóvedas sexpartitas.
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la Edad Moderna: bóvedas de crucería. Valladolid: rera. ETS de Arquitectura de Madrid.
Universidad de Valladolid.
RESUMEN
La sede del Tribunal del Santo Oficio de la Ciudad de México, también conocida como el Palacio
de la Inquisición, es uno de los conjuntos civiles más importantes del siglo XVIII por su novedosa
propuesta arquitectónica y excelente calidad constructiva.
El edificio principal del conjunto, que forma el actual Palacio de Medicina, fue construido para
albergar al Tribunal de la Inquisición entre 1732 y 1736 por Pedro de Arrieta, uno de los arquitectos
del primer tercio del siglo XVIII más importantes en la Nueva España.
El patio principal de este conjunto es considerado como uno de los mejores del periodo. En cada
una de las esquinas llevó a cabo uno de sus más grandes alardes como maestro de la arquitectura, al
suprimir las columnas de los ángulos y diseñar dos arcos cruzados de doble claro que llegan a una
clave en forma de pinjante. Esta ingeniosa solución le permitió tener acceso al edificio en pancupé,
abriendo el acceso hacia la plaza de Santo Domingo.
El conjunto del Tribunal del Santo Oficio se componía del tribunal con sus distintas dependencias,
además de ello, la casa de los inquisidores y las cárceles de La Perpetua.
Después de la supresión del Tribunal durante el siglo XIX, se hicieron sucesivas modificaciones para
adaptar parte del conjunto a los distintos usos que reclamaba la Escuela de Medicina, incorporando
nuevos materiales y técnicas constructivas. Así mismo, los demás predios que componían el conjunto
original del Tribunal del Santo Oficio fueron divididos y vendidos por separado. Los anexos de la
calle de La Perpetua, por ejemplo, adquirieron otros usos, los más relevantes fueron los que le dan
hoy su nombre coloquial: La Secundaria y el Protomedicato. Estos edificios han sido recientemente
restaurados bajo la coordinación del autor de este trabajo. El proyecto fue realizado después de un
profundo proceso de investigación de la historia del edificio, sus arquitectos y los usos y sistemas
constructivos utilizados en las distintas dependencias del edificio. Parte de esta información está
plasmada en las páginas de este documento.
Finalmente, es importante mencionar que hoy el conjunto del Tribunal del Santo Oficio alberga el
Antiguo Palacio de Medicina y es uno de los edificios más importantes que forman parte del patri-
monio de la Universidad Nacional.
Fig. 1 y 2 – Corredores y patio de las cárceles de la Perpetua. Fotografía de Xavier Cortés Rocha. 2016.
importantes del primer tercio del siglo XVIII por LA ARQUITECTURA DE PEDRO DE
su producción y calidad arquitectónica. Su trabajo ARRIETA
profesional comenzó como carpintero de lo blan-
A partir del análisis de los trabajos de Pedro
co, construyendo complicadas cubiertas de madera
de Arrieta podemos percibir que la mayoría de
y lujosos artesonados, trabajo que desempeñó
ellos presentan constantes muy claras, como son
por más de 28 años. En 1691 se examinó como
el uso de ciertos materiales y estilos: Los muros
“arquitecto de lo tosco” lo que le permitió gozar
de sus obras estaban casi siempre recubiertos por
de una brillante carrera marcada por el éxito y la
las dos caras con piezas de tezontle de aparejo
riqueza (Tovar y de Teresa 1995, 108).
semi regular y pegados con mortero. El relleno
A partir de la revisión de los importantes trabajos
era de cal y canto. Otro material muy utilizado
coordinados por Arrieta, podemos deducir que
por Arrieta fue la cantera de los Remedios, en
varios fueron ejecutados de manera simultanea.
portadas, pilares y pilastras y cantera Chiluca en
Y que el dominio de las relaciones personales que
las partes sujetas a mayor desgaste.
poseía le ayudó a ser elegido veedor del gremio
Pero el aspecto que distinguió a la arquitectura
cinco veces consecutivas a partir de 1695, cargo que
de Arrieta sobre otras construcciones de la época,
sólo se otorgaba a los miembros más prestigiados
fue la genialidad plástica que manifestó en los
del gremio. Ese mismo año fue nombrado Maestro
elementos constructivos de sus edificios.
Mayor de Arquitectura e Ingeniería de la Inquisici-
Pedro de Arrieta también comprendió que el
ón, cargo de mayor importancia que ostentó y que
subsuelo de la Ciudad de México requería atención
desempeñó sin descanso por 43 años, hasta que
especializada, por lo que las bóvedas eran construi-
concluyó los trabajos del Palacio del Tribunal del
das con sillarejo de tezontle, que era un material
Santo Oficio, dos años antes de su muerte en 1736.
ligero y resistente que se prestaba para el labrado,
Paralelamente tuvo a su cargo, muchas obras
con enjarjes y arcos fajones de cantera. Soluciones
nuevas de arquitectura, como La Profesa y el
muy similares a las que tiempo después especifica
Santuario de Guadalupe, que constituyen obras
el anónimo autor de Architectura Mechanica.
de una importancia nacional mayor. También
En cuanto a los acabados, además de su gusto
participó en reparaciones y obras de mayor en-
por recubrir los muros de tezontle y sus refuer-
vergadura como el encadenamiento de bóvedas
zos de ladrillo o cantera con un enlucido de cal,
en Santa Clara y Jesús Nazareno y el proceso de
arena y baba de nopal. En algunos casos recurrió
recimentación, sin demoler los muros, de la ca-
al diseño con piezas de tezontle rojas y negras
pilla de San José de los Españoles en el conjunto
en los recubrimientos, acusando las juntas para
de San Francisco. Lo que nos demuestra su gran
darle mayor contraste, en otros, sólo fingió el
destreza para resolver proyectos en condiciones
recubrimiento con pintura. Estos terminados
particularmente difíciles.
en los edificios de Arrieta, ejemplifican la nueva
A pesar de su exitosa carrera, el artista mantuvo
arquitectura que se fue definiendo durante el siglo
una relación desventurada con algunos miembros
XVIII y después durante el México independiente.
de la Inquisición, lo que causó que sus bienes
Varias de las más importantes órdenes y con-
fueran confiscados y que pasara un tiempo en la
gregaciones le otorgaron su confianza. Los Je-
cárcel. Murió en 1738, terriblemente endeudado,
suitas le encargaron el templo de La Profesa,
situación que llevó a su viuda a recurrir a los
los Franciscanos la escalera monumental del
miembros del Tribunal para financiar los gastos
convento grande y la recimentación de la capilla
de su entierro (Amerlinck 1981, 28).
de San José de los Españoles, que forma parte
del mismo conjunto. Los Dominicos le confiaron la ingeniosa solución que implementó en los arcos
obras como la iglesia y la sacristía de su convento. de las esquinas del patio principal, que permitió
Realizó también trabajos para varias órdenes ubicar el acceso al edificio por la esquina ochavada
femeninas: el convento carmelita de San José, ó pancupé que da a la plaza de Santo Domingo.
Santa Teresa la Nueva para la misma orden, se En 1723, Pedro de Arrieta, comenzó a trabajar
encargó del refuerzo de Santa Clara para las en el proyecto del nuevo tribunal. Sin embargo,
Clarisas franciscanas y construyó el Templo de fue hasta 1732 cuando se aprobó la construcción
Corpus Christi. del nuevo palacio, con un proyecto diferente al
original. Este proyecto, fue considerado como
EL PROYECTO DE PEDRO DE ARRIETA “excelente” por los encargados de evaluarlo, par-
PARA EL TRIBUNAL ticularmente la colocación de la portada. Por su
parte los inquisidores llenos de admiración por
El hoy Palacio de la Antigua Escuela de Medici-
la originalidad otorgaron la obra al mismo Ar-
na, fue la obra de mayor importancia de Arrieta.
rieta. Los trabajos comenzaron en 1732 y fueron
Aquí hizo alarde de su manejo de la profesión con
concluidos en Navidad de 1736.
Fig. 3 – Fachada actual del Palacio de Medicina. Fotografía de Cristian Ramo para Voces y Ecos del Palacio de Medicina (México, 2015).
Fig. 4. Izquierda – Una de las esquinas del patio principal del Fig. 5. Derecha -Solución en planta de Pedro de Arrieta en las
Palacio de Medicina. Fotografía de Xavier Cortés Rocha para esquinas del patio principal del Tribunal del Santo Oficio en El
Pedro de Arrieta. Arquitecto 1692-1738 (México, 2014). Palacio de la Escuela de Medicina (México, 1994) p.66.
En la descripción del proyecto, Pedro de Ar- en Toledo, realizado un siglo antes por Alonso
rieta explica hasta dónde se extendería y como de Covarrubias.
colindaría con otros inmuebles; Sobre las columnas, en ambos niveles, se co-
locaron ménsulas que recuerdan las del Colegio
“…sin extenderme por la calle real de San-
Máximo de San Pedro y San Pablo, así como claves
to Domingo más que hasta topar con la
sobriamente decoradas.
casa que llaman del (ilegible), sin que su Lo más sobresaliente de este patio fue la solución
longitud, con esta adición, sea más que de las esquinas, en las que sustituyó las columnas
de sesenta y siete varas; por la calle de la por arcos cruzados de doble claro que descienden
Perpetua hasta topar con la Cárcel de la en el cruce hasta llegar, en vez de a una columna,
Penitenciaría, dejando junto a ella hueco a un pinjante, que es en realidad una clave. Basta
de ocho o diez varas, así para poder dar observar el aparejo para confirmar el artificio,
luces al oriente a la casa del señor Inqui- el cual permitió tener acceso al edificio por una
sidor que ahí viva, como para libertarle esquina “chata” o pancupé.
del bullicio y mala vecindad que puede La portada del edificio, realizada en cantera y
haber con el tiempo en dicha cárcel de localizada en el pancupé diseñado por Arrieta,
la Penitenciaría” (De la Maza 1985, 35). se extiende doblándose hacia los lados de éste. A
El patio principal de dicho conjunto fue su obra los lados de las esquinas tiene grandes pilastras
de mayor ingenio. Lo podemos clasificar como corintias sin pedestales.
manierista por su planta cuadrada de proporciones
IMPORTANCIA DEL EDIFICIO EN EL
perfectas y sus arquerías en dos niveles: colum-
SIGLO XVIII
nas toscanas de mayor dimensión con arcos de
medio punto en la planta baja y apainelados con Las soluciones arquitectónicas de Pedro de
molduración escalonada en el superior, caracte- Arrieta fueron siempre innovadoras y permitieron
rísticas que nos recuerdan el Hospital de Tavera que los estereotipos de la arquitectura de la época
cambiaran en toda Nueva España (Fernández albergar la sede de la Escuela de Medicina (De la
2011, 53). Maza 1985, 21).
Principalmente, la excelente solución que llevó El gremio médico realizó varias adaptaciones
a cabo en el acceso al tribunal, con la esquina en el inmueble para adaptarlo a las necesidades
ochavada le dio un valor único al edificio, in- de la Escuela de Medicina. Las más drásticas,
crementando su importancia y permitiendo el fueron realizadas en 1879, cuando se agregó todo
diálogo con la Plaza de la Real Aduana y la de un nivel sobre el edificio original que modificó
Santo Domingo, que para ese entonces, era la trascendentalmente su fisonomía. A pesar de la
más importante desde el punto de vista civil en adición de un tercer nivel, el palacio conservó,
la ciudad de México, siempre llena de coches de en buena parte, la disposición de 1831 (De la
sitio y carruajes que se enfilaban hacia el Camino Maza 1985, 66). En 1925, la Escuela Nacional de
de Tierra Adentro. Medicina compró la casa colindante del lado de
Flavio Salamanca (2011, 66), menciona acerta- la vieja calle de la Perpetua, que también había
damente que el edificio completó la composición pertenecido a la Inquisición y extendió sus insta-
del conjunto cuando solamente existía el esquema laciones en esa dirección (Fernández 1994, 126).
de las calles, en un periodo en el que la perspectiva El edificio y las instalaciones de la Escuela de
de Santo Domingo era incompleta y prácticamente Medicina dependieron de la Secretaría de Educa-
inexistente. ción Pública hasta 1929, fecha en que el Gobierno
Los muros y soluciones utilizados por Arrieta Federal donó el inmueble a la Universidad Na-
en el Tribunal y sus otras obras son una clara cional Autónoma de México.
muestra de la arquitectura imperante durante el
siglo XVIII en la Ciudad de México. LAS INTERVENCIONES EN EL SIGLO XX
Cuando se celebraron los primeros cien años del
MODIFICACIONES DESPUÉS DE LA
Establecimiento de Ciencias Médicas, el edificio
SUPRESIÓN DEL TRIBUNAL
sufrió una vez más importantes cambios, esta vez
Una vez suprimido el Tribunal del Santo Oficio, coordinados por el arquitecto José Villagrán Gar-
el edificio adquirió nuevos usos y fue sujeto de cía (Martínez Cortés 1983, 148). Se reconstruyó
varias modificaciones. el salón de actos y se construyó un auditorio en
Durante el primer tercio del siglo XIX quedó lo que antes había sido el Patio de los Naranjos,
como la renta de la Lotería y las casas que ocu- se acondicionaron las oficinas administrativas, se
paban los señores inquisidores en viviendas para arregló el salón de actos y se instalaron y refor-
los jefes de esta renta; el edificio principal se con- maron laboratorios.
virtió en cuartel de patriotas y el departamento de En 1954 la Escuela de Medicina se trasladó a la
las cárceles en “Proveeduría del Ejército”. Ciudad Universitaria y parte del edificio lo ocupó
Entre 1830 y 1854 cambió varias veces de fun- la Escuela Nacional de Enfermería y Obstetricia
ción, albergó a la Cámara de Congreso General, hasta su cambio en 1979 a sus nuevas instalaciones
a la primera escuela Lancasteriana de México, en Xochimilco. En ese periodo, en el año de 1968,
al Tribunal de Guerra y Marina y al Seminario el exterior del palacio regresó a su proporción
Conciliar entre otras instituciones. En 1853 el original al ser demolido el tercer nivel como parte
edificio fue subdividido para albergar habitaciones de un proyecto de remodelación de las plazas
de particulares (De la Maza 1985, 48) y finalmente, históricas. Se reconstruyó también el pretil y sus
en 1854 el edificio principal fue adquirido para
remates y se limpiaron las fachadas, recuperando esquina de la plaza de santo Domingo unificaba
así el aspecto que proyectó Pedro Arrieta. la imagen el conjunto.
En 1980 se realizó una de las intervenciones El edificio de Venezuela No. 8 es llamado La
más importantes e integrales al conjunto. A partir Secundaria, pues fue un centro educativo para
de calas exploratorias y de la identificación de los trabajadores de la SEP y el de Venezuela No. 10,
elementos agregados y dañinos, se liberaron y conocido como el Protomedicato, fue la residencia
recuperaron niveles, vanos y espacios originales. del primer Protomédico de la Nueva España.
Se realizó un sondeo estructural y se propuso Como consecuencia de un largo periodo de
una solución para su consolidación con losas de uso inadecuado como escuela secundaria, el in-
concreto armado, se revisó el estado y la capacidad mueble de Venezuela No.8 y como vecindad el de
de carga de las bóvedas catalanas y las vigas de Venezuela No. 10, seguido de uno de abandono,
madera, de las cuales se trataron únicamente las particularmente el segundo de ellos, se dañaron
que tenían posibilidad de ser recuperadas como elementos estructurales y decorativos que pro-
plafón. Se restauraron todos los elementos de vocaron grietas en muros, colapsaron techos y
cantera, se reintegraron pisos de mármol gris y en entrepisos y estropearon otras decoraciones.
los interiores se colaron firmes de concreto sobre El edificio de La Secundaria, en la planta baja
los cuales se colocaron pisos de tablón colonial de tiene dependencias de servicio y cochera, en el
madera. En algunos de los salones se reprodujo el entresuelo despachos y habitaciones para los ad-
diseño de parquet encontrado en las exploraciones ministradores y en la planta alta, las habitacio-
previas. También se reintegraron aplanados y se nes principales. En la crujía sur se encontraban
restauró la pintura mural en los muros donde se las de mayor jerarquía y se les identificó pues
encontraron vestigios. eran las que tenían la decoración más exquisita.
Con la culminación de estos trabajos, fue inau- Todas comunicadas por un corredor que daba al
gurado el 22 de diciembre de 1980, el Centro de patio. Las evidencias que hemos encontrado en
Estudios Superiores, Biblioteca, Archivo Histórico el transcurso de esta investigación, indican que
de la Medicina y el Museo de la Historia de la el edificio puede tener su origen más primitivo
Medicina Mexicana. en el siglo XVII y haber tenido una intervención
muy importante en el siglo XVIII.
LA SECUNDARIA Y EL Es notable que los enmarcamientos de los vanos
PROTOMEDICATO, ÚLTIMAS de la planta baja tienen una tipología muy sencilla,
INTERVENCIONES de trazo recto, en cambio los del primer nivel tie-
nen un trabajo más elaborado: en el arranque de
Los anexos del conjunto, conocidos coloquial-
las jambas hay un pedestal achaflanado, la jamba
mente como La Secundaria y el Protomedicato,
y el dintel forman diferentes planos y una sección
deben su apodo a los usos más relevantes que
de moldura de cantera rodea todo su perímetro.
tuvieron además de haber pertenecido al conjunto
La escalera, con su concepción espacial y defini-
original del Palacio de la Inquisición. Ambas
ción de su sistema constructivo y de soporte que se
construcciones pertenecían al bloque de cons-
apoya en una bóveda de mampostería. Destacan
trucciones de las Cárceles de la Perpetua y sepa-
los enmarcamientos de embarque y desembarque,
raban las cárceles mismas, de la calle que llevaba
que están elaborados en cantera labrada. En planta
el nombre de la tristemente célebre instalación y
baja, está formado de jambas con impostas, desde
que hacía frente al convento de la Encarnación.
las que arranca un arco rebajado moldurado.
La fachada, con características comunes desde la
Fig. 6. Izquierda – Resultado final del proceso de restauración Fig. 7. Derecha – Resultado final del proceso de restauración en
en el salón decorado de “La Secundaria”. Fotografía de Xavier el patio de “La Secundaria”. Fotografía de Xavier Cortés Rocha,
Cortés Rocha, 2016. 2016.
Flanqueando las jambas hay pilastras cajeadas, tran situadas al centro en los pasillos oriente y
entre ellas y el arco se forma un alfiz que da base poniente y a tercios en el pasillo sur, dejando
al entablamento compuesto por su arquitrabe, un libres las esquinas.
friso muy sencillo sin decoración y una cornisa de El edificio del Protomedicato tiene un trazo
remate. En el primer nivel se observan enmarca- irregular e intervenciones de distintas épocas que
mientos más complejos, de doble arco y con una dificultaron el análisis, sin embargo, los elementos
decoración más detallada. Así mismo, gracias a de mayor valor conservados en el edificio son
las calas, se observaron en los muros que confinan dos arcos de cantera de doble altura que forman
el desarrollo de la escalera, vestigios importantes parte de la fachada que da hacia el patio central
de pintura mural decorativa que representan un del edificio y una estela de cantera que habla sobre
recubrimiento de piedra almohadillado y que hoy la fecha de introducción del agua al conjunto.
ha sido rescatada. La fábrica de los muros de planta baja, entresue-
El plafón de esos salones está profusamente lo y primer nivel de la crujía sur y, que corren de
decorado y los vanos del salón central, enmarcados oriente a poniente son de los mismos materiales
con una moldura en madera rematada en el eje y espesor que los de la casa del No. 8. Al contrario
con una flor y hojas de acanto a los lados. Cuenta (a excepción de los muros colindantes) sus muros
también con puertas de madera entableradas que transversales o sea los que corren de norte a sur
intercomunican las tres habitaciones de esta crujía de esta misma crujía sur son de materiales ligeros
y que conservan decoración semejante. más relacionados con el siglo XIX.
En los pasillos oriente, poniente y sur, al igual Existen dos escaleras que dan servicio indepen-
que en la planta baja existe un conjunto de co- diente a los niveles del inmueble. La primera, ubi-
lumnas, cuatro en planta baja con pedestales altos cada en la crujía norte, únicamente da servicio a la
y cuatro en el primer nivel con pedestales bajos, planta alta, lo cual puede responder a una primera
todas con fustes estriados y capiteles toscanos. etapa en la cual el edificio no tenía entresuelos.
Destaca la disposición de estas columnas con La segunda, localizada en el patio central, sirve
respecto a los corredores ya que éstas se encuen- para llegar a los entresuelos de las tres crujías.
El tratamiento de las fachadas de ambos in- que se decidió liberarlas, y se hicieron estructuras
muebles es muy similar al del Palacio de Medicina nuevas de acero exentas.
lo que se observa en los siguientes aspectos; la En El Protomedicato se optó por la recuperación
altura de la fachada; el tratamiento del pretil, el de los espacios originales, de forma tal que fuera
recubrimiento de tezontle y el enmarcamiento de más fácil la lectura del edificio. La intervención
los vanos del primer nivel, así como el rodapié que se llevó a cabo aquí fue muy diferente a la de
de tezontle negro y Chiluca en la parte baja de La secundaria, ya que la probable ornamentación
la fachada confieren una imagen unificada al se había perdido. Al retirar los aplanados se des-
conjunto de edificios. cubrieron elementos como un óculo y un nicho
Para la intervención de los inmuebles, debie- que se encuentran en la terraza de primer nivel.
ron seguirse cuidadosamente los lineamientos y En la fachada se liberaron y reintegraron, desde
recomendaciones del Instituto Nacional de An- sillares completos hasta injertos y remoldeos pe-
tropología e Historia, respetando los espacios queños, para garantizar que toda la pieza se encon-
y materiales originales y diferenciándolos muy trara en óptimas condiciones. También se logró
bien de las nuevas incorporaciones. Siempre con la reunificación estética con el resto del conjunto
el objetivo de recuperar la seguridad estructural mediante la reintegración de los enmarcamientos
de todos los espacios y elementos. de cantera y las tabletas de tezontle que recubren
A pesar de las notorias intervenciones en La toda la fachada.
Secundaria, pudo recuperarse el aspecto de casa
señorial característica del siglo XIX, mediante la EL ANTIGUO PALACIO DE MEDICINA
reintegración de las herrerías originales, el piso HOY
del patio principal y los tres salones decorados con
El conjunto de edificios que conocemos hoy
yeserías. La intervención más arriesgada en La
como Palacio de Medicina y sus anexos ha sido
secundaria, resultó en beneficio del propio edificio.
sede de distintas instituciones y ostentado varios
Los entresuelos que fueron encontrados, estaban
usos a lo largo de los años. Posee una compleja
resueltos mediante pesadas losas de concreto ar-
historia oculta bajo las distintas intervenciones
mado empotradas en los muros históricos, por lo
y el abandono al que han sido sujetos algunos de Las distintas etapas de restauración de los úl-
sus espacios. timos años han permitido devolver el esplendor
Desde que forma parte del patrimonio edificado que había perdido el conjunto al proporcionar un
de la Universidad Nacional Autónoma de México uso integral como sede del Palacio de la Escuela
ha gradualmente recuperado su historia y espacios de Medicina, ofreciendo espacios destinados a
originales, así como la unidad que había perdido. actividades docentes, de investigación y extensión.
Los sistemas constructivos que a partir de este El gran interés y profesionalismo mostrado
proceso se han ido descubriendo, son un testi- por los diversos equipos involucrados en este
monio de la arquitectura mexicana y aunque no proyecto, así como el meticuloso seguimiento que
son todos los espacios producto de un mismo se llevó a cabo a lo largo del mismo, culminó en
arquitecto ni de una misma época, nos relatan los un trabajo que resulta de gran trascendencia para
detalles de la historia constructiva de la ciudad. la salvaguarda del patrimonio de la Universidad
Nacional Autónoma de México.
BIBLIOGRAFÍA
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RESUMO
Coube ao geógrafo Orlando Ribeiro a primeira visão de conjunto sobre a arquitetura tradicional portu-
guesa, no que se refere à sua tipologia e aos materiais de construção mais comuns. Aquela visão guiou
durante décadas a investigação sobre o tema, constituindo o modelo conceptual seguido pela generalidade
dos estudos sobre a nossa arquitetura vernácula levados a cabo por arquitetos e antropólogos.
A abordagem de Ribeiro baseia-se na dicotomia entre um Portugal de construções de terra, sobretudo
meridional, e uma região, mais a norte, onde a pedra se impõe como material de construção por excelência.
Percorrendo o território e analisando a documentação histórica constata-se que a diversidade da nossa
arquitetura tradicional é maior do que a enunciada por muitos dos que a estudaram, especialmente
no que aos seus materiais de construção diz respeito. Assim, para além do uso generalizado dos vários
tipos de pedra e da terra em diferentes regiões, alguns materiais de origem vegetal tiveram aplicações
na construção mais amplas do que se supôs.
Enquanto material abundante em vastas regiões do território português, a cortiça teve outrora uma
utilização variada e extensa, não só como matéria-prima de produção de objetos do quotidiano, mas
também como material de construção usado em coberturas, isolamentos, mas também em situações de
utilização estrutural, como sejam alvenarias específicas e taipas.
Os processos construtivos com cortiça, até há poucos anos praticamente ausentes da nossa bibliogra-
fia específica, têm vindo a despertar um interesse crescente por parte de arquitetos e historiadores da
arquitetura, carecendo, no entanto, de estudos técnicos mais aprofundados sobre o comportamento dos
materiais, a sua origem e natureza e as técnicas de construtivas envolvidas, o que faz deste tema um
campo aberto à colaboração entre especialistas de diversas áreas.
INTRODUÇÃO
A par de uma tendência internacional em que tradicional, por outro lado, também em Portugal o
vários movimentos se têm entrecruzado numa último século foi fértil na assunção desse interesse.
busca quase alquímica dos fundamentos primor- Especialistas de diferentes áreas percorreram o país
diais da arquitetura, por um lado, e na afirmação num afã de registar e classificar edifícios ameaça-
identitária das nações com base na sua arquitetura dos e processos construtivos em extinção. Desse
Proveniente do sobreiro (Quercus suber), espécie Para além de se ter confirmado a vasta disse-
largamente disseminada pelo território português minação territorial das utilizações da cortiça na
desde o período pré-histórico, a abundância de construção, comprova-se à saciedade uma longa
cortiça em grande parte do nosso território e as diacronia que é contemporânea do ambiente natural
qualidades intrínsecas deste material tornaram-no vigente, não só no território português, mas ainda
atraente para a sua utilização não só em utensílios nas duas margens do Mediterrâneo ocidental.
do dia a dia, mas também na sua aplicação em Em Portugal, os mais antigos registos conhecidos
contextos construtivos. da utilização da cortiça em estruturas construtivas
A extração da cortiça e o seu aproveitamento consistem em silos tardomedievais, sendo aquele
popular, muitas vezes quase levados até aos limites material usado aí como revestimento. No entanto,
da delapidação do nosso património florestal são numerosas as referências documentais ao seu
suberícola, são referidos abundantemente nos uso para cobrir construções em ambientes rurais
documentos históricos portugueses do período e urbanos.
medieval, tendo sido vulgar a promulgação de Com o esforço de ocupação do território levado
normativos que procuravam restringir o apro- a cabo nos primeiros séculos da nacionalidade, o
veitamento da cortiça por parte das populações. aumento demográfico, o crescimento dos núcleos
Apesar da larga diacronia e do espaço geo- populacionais existentes e a criação de outros em
gráfico alargado em que se verificaram os usos regiões até então ocupadas por extensos matagais,
construtivos da cortiça, estes foram estranhamente aumentou a procura de materiais locais para se
ignorados pela nossa bibliografia especializada, construir de forma rápida e acessível, condições
existindo parcas referências à sua utilização nas que uma cortiça abundante e, então, de baixo
construções, sendo aquela matéria-prima men- valor económico, reunia.
cionada de forma genérica, remetida para usos Em meados do século XVI, a utilização da
muito circunstanciados no tempo e no espaço. cortiça enquanto material de construção seria
Datam de finais anos 90 do século passado os relativamente comum em boa parte do território
nossos primeiros estudos dedicados à utilização da continental. Prova disso são as numerosas alusões
cortiça na arquitetura tradicional portuguesa, pri- ao seu uso para a cobertura de construções popu-
meiro numa perspetiva local e mais tarde ampliada lares, revestimento de paredes e tetos de edifícios
a várias regiões do nosso território (Ferreira, 2000 civis e religiosos, não só em regiões hoje ocupadas
e 2005), no seguimento de um primeiro esforço pelo montado industrial, mas também noutras
de síntese e após se ter confirmado o caráter mais em que o sobreiro, não sendo a espécie arbórea
alargado dos processos construtivos com base na predominante, estava bem presente na paisagem.
utilização de cortiça. O uso popular e em alguns casos, generalizado,
Aquela investigação, praticamente autossusten- da cortiça, está claramente documentado em ima-
tada por um lado, pelos dados recolhidos em docu- gens da autoria de Duarte de Armas de algumas
mentação histórica diversificada e muito dispersa, e povoações fortificadas da nossa fronteira com a
por outro lado, pelo estudo de construções ignora- Espanha, em que, a par de palha e de telhas, eram
das pela bibliografia específica e cujo conhecimento utilizadas pranchas de cortiça na cobertura de um
apenas pôde ser alcançado através do diálogo com número significativo de construções.
as populações e de métodos semelhantes aos utili- O tipo de utilização documentado por Duarte
zados na arqueologia da arquitetura. de Armas também em diversas localidades de
Trás-os-Montes e nas Beiras é confirmado por
TAIPA E CORTIÇA
Em associação com as alvenarias de cortiça já Fig. 7 – Mapa síntese de referências à utilização de cortiça na
construção: documentação histórica e ocorrências modernas (1:
aludidas, ou como processo construtivo autónomo, 6000000 - mapa do autor).
é possível constatar a existência em alguns locais
de um tipo de taipa em que se misturavam com
A largura das paredes é variável, sendo tenden-
terra (provavelmente com elevado teor de água),
cialmente maior naquelas em que se usam ele-
pedaços de cortiça de dimensão variável e de
contornos irregulares. mentos de cortiça de maior dimensão nas faces, e
Apesar de faltarem informações que possam enchimento de terra e cortiça. Nos casos em que
esclarecer os pormenores de construção deste tipo são sobrepostas placas mais delgadas e/ou simples
de paredes, é possível que fossem utilizadas técni- misturas de terra e pedaços de cortiça, a espessura
cas construtivas semelhantes às da taipa comum, das paredes varia geralmente entre os 45 e os 55
usando-se eventualmente terra com maiores teores centímetros. Em ambos os casos e partindo da
de água para assegurar uma mistura mais perfeita observação de edifícios arruinados, verifica-se
entre os pedaços de cortiça e o barro. propensão para fenómenos de deformação das
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Mariana Correia, 114-118. Lisboa: Argumentum. guesa, VI. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
Carita, Helder(1)*
[email protected]
(1)
RESUMO1
A circulação de arquitectura e de práticas construtivas pelos territórios de influência portuguesa, du-
rante o período de expansão, constituem um estudo delicado e complexo dada a escassez de docu-
mentação existente sobre estes temas como as sucessivas alterações que o actual património histórico
sofreu, ao longo século XIX e XX, afastando-o muito do seu desenho original. O Arquivo do Estado
de Goa guarda, porém, um interessante corpo documental, onde se destaca um conjunto de livros com
contractos de obras da responsabilidade da Câmara de Goa. Se durante o século XVI estes contractos
foram integrados nos Livros de Assentos do Senado da Câmara de Goa, a partir do século XVII estes
contractos diversificam-se e ganham autonomia passando a ser transcritos em livros individualizados
designados por Termos de Obras. Se a grande maioria destes livros se perdeu, os poucos que restam,
distribuídos, no entanto, pelos séculos XVI, XVII, XVIII, permitem-nos, pela diversidade de obras a
que se referem como pela forma detalhada como são descritas e orçamentadas, as diferentes tarefas a
realizar, o acesso a uma multiplicidade de informações sobre técnicas construtivas, materiais, métricas
e nomenclaturas de inequívoco significado para a história da construção. Por questões metodológicas
propomos-mos realizar um enfoque particular nos sistemas de cobertura com telhados de tesoura e nas
argamassas de pedra e cal analisando-os com outras fontes não só escritas como iconográficas. Deste
estudo pretendemos apurar de forma consistente processos de circulação, importação, acomodação e
assimilação que envolvem a tipologia de telhados de tesoura como uso e aplicação das argamassas de
cal de ostra designada, no Oriente, de forma comum por chunambo.
1
Trabalho realizado no âmbito do projecto “Arquitectura regimentada em Portugal, séculos XVI a XVIII: processos de regulamentação de-
senvolvidos pela Provedoria de Obras Reais no seu tempo longo”. (FCT/DFRH/SFRH/ BDP/86848/2012), com financiamento da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do Ministério da Educação e da Ciência.
As normativas do Regimento dos Contadores uma parceria entre mestres cristãos e hindus e
parecem ter sido integradas de forma precoce uma assimilação de materiais e práticas de cons-
nas práticas de construção no Oriente, como nos trução autóctones, que nos elucidam documen-
prova o contrato de obra para as Teracenas de tadamente sobre os processos de mutação destas
Goa, efectuado nesta cidade em 15264. Verifica- práticas arquitectónicas no Oriente, logo no séc.
mos ainda que estes contractos tendem a definir XVI. Exemplo destas mutações é a formação dos
numa lógica de método, a estrutura construtiva telhados de tesouras, sistema de cobertura cuja
da obra e as métricas gerais, sistematizando em adopção o estudo dos contratos de obra nos per-
lista os elementos arquitectónicos e construtivos mitem comprovar e melhor entender.
que, normalizados, permitiam a elaboração de
uma fácil estimativa de custos. 2. DOS TELHADOS DE TESOURA
O estudo dos conteúdos destes contratos for- EM GOA
nece-nos um universo muito preciso quanto a No quadro da arquitectura desenvolvida pelos
nomenclaturas e terminologias de elementos de portugueses no Oriente, os telhados de tesoura
construção, soluções e práticas construtivas, impli- constituem pela sua originalidade, uma temática
cando no seu conjunto, uma ideia de arquitectura particularmente interessante, testemunhando uma
e cidade que lhe está subjacente. Na documentação capacidade de adaptação das práticas construtivas
de que dispomos no Arquivo do Estado de Goa, e da cultura portuguesa face a novas situações.
destacamos um Livro de Acórdãos e Assentos da Caracterizando-se por um sistema de cobertura
Câmara de Goa, datado dos finais do séc. XVI, de quatro águas com pendentes muito inclinadas,
onde se encontra incluído um vasto número de o processo de formação destes telhados tem sus-
contratos de empreitadas de construção. citado muitas interrogações quanto à sua origem,
Dos séculos XVII e XVIII chegaram-nos dois bem como quanto à sua posterior circulação nos
preciosos Livros de Contratos de Obras da Câmara territórios de influência portuguesa. O debate
de Goa, datados respectivamente de 1654-1655 e foi iniciado por um notável artigo de Orlando
de 1770-1773, que se encontram no Arquivo do Ribeiro com o título Açoteias de Olhão e Telhados
Estado de Goa. Fazendo parte de um extensíssimo de Tavira,( Ribeiro 1992) que se mantém, ainda
conjunto documental que se perdeu, cada um hoje, como o texto de referência sobre este tema.
destes livros apresenta o registo dos contratos de Partindo dos telhados múltiplos de quatro águas
todas as obras a cargo da Câmara, num pequeno de Tavira, Orlando Ribeiro analisa outros casos
período de cerca dois anos. Para além do seu em cidades portuárias em Portugal e nas costas
enorme interesse no campo da arquitectura, dese- Africanas, como é o caso de Luanda, filiando a
nham-se aqui as estratégias e formas de gestão da origem desta tradição nos telhados de Goa. Por
cidade, assim como os seus agentes e promotores, semelhança com as morfologias dos telhados dos
constituindo-se como importantes elementos templos hindus, Orlando Ribeiro fundamenta a
para a construção de uma história urbana da origem deste sistema na arquitectura indiana, mas
cidade de Goa. sem desenvolver a problemática da cronologia da
Como pormenor de crucial importância ao sua formação nem das tipologias arquitectónicas
longo do conteúdo destes contratos, verificamos onde se integravam. Reduzidos, hoje, a escassos
exemplos, estes telhados, no século XIX, eram
4
IAN/TT; Corpo Cronológico, Parte II, Maço 136. (Trelado do con-
trato da obra da Taracena que se há-de fazer pera as fustes e galees, ainda muito comuns na paisagem urbana de Goa e
Goa 1526) dos seus arredores, como nos álbuns de fotografias
Fig. 1 - Colégio dos Catecúmenos em Betim. Goa. Fotografia Sousa e Paul. Finais do séc. XIX.
de Sousa e Paul5, ou os desenhos de Lopes Mendes, século XIX, aparecem associados aos mais antigos
realizados ao longo dos anos de 1862 e 1871 para a palácios e quintas de recreio, surgindo de forma
sua obra A India Portugueza (Mendes 1886) e que menos sistemática na arquitectura conventual.
pela sua diversidade temática, nos facultam um (Fig. 1) Este sistema parece assim caracterizar
panorama do património de Goa neste período. uma arquitectura de caracter senhorial e de matriz
A este conjunto podemos acrescentar a sequên- erudita. Porém, verificamos que os novos edifí-
cia de pinturas com vistas de Goa realizadas por cios, como é o caso dos Paços do Concelho, da
José Gonçalves6 e datáveis da segunda década do Alfândega ou do Quartel, com uma arquitectura
século XIX. Um pouco anteriores são as aguare- de programa de edifícios tardo-pombalinos cons-
truídos na cidade de Pangim, apresentam telhados
las de John Johnson (c.1769-1846)7, realizadas
de inclinação comum, sugerindo que o sistema
entre os anos de 1795 a 1801, e que, de uma certa
de telhados múltiplos deixa de ser utilizado ao
maneira, completam um panorama sobre o uso
longo do século XIX, passando a caracterizar uma
destes telhados na arquitectura goesa. arquitectura remontando aos séculos XVI e XVII.
Numa visão de conjunto concluímos que os Em sintonia com esta alteração de gosto, o
telhados de tesoura, nestas representações do palácio dos Vice Reis em Pangim, que vemos
5
Sousa e Paul corresponde a uma firma de dois fotógrafos goeses representado, tanto por John Johnson, como por
com grande actividade entre os finais do século XIX e os inícios do José Gonçalves ou Lopes Mendes, com telhados
século seguinte.
múltiplos em tesoura já aparece nas fotografias de
6
Este conjunto de pinturas, realizadas a óleo sobre tela, apresenta- Sousa e Paul8, dos finais do século XIX com telha-
-se reproduzido no livro do autor: Os Palácios de Goa - Modelos
e Tipologias de Arquitectura Civil Indo-portuguesa. Ed. Quetzal, dos contínuos e de inclinação corrente. Recuando
Lisboa. ao século XVIII, podemos confirmar a presença do
7
Estas aguarelas encontram-se incluídas num álbum com 36 vistas 8
A fotografia encontra-se reproduzida no Catálogo Na India dos
do Sul da Índia na colecção da British Library em Londres, WD Vice-Reis Imagens da Saudade Antecipada, Lisboa, Centro Cultu-
1005. ral de Lisboa, 1993, p.11
Fig. 2 - Pormenor de pintura com vista da aldeia de Ribandar. Goa. José M. Gonçalves. Inícios do séc.- XIX. Óleo sobre tela. Lisboa.
Colecção particular.
sistema de tesouras, nos levantamentos, tanto do nos vários álbuns com as cidades e fortalezas
palácio dos Vice Reis9, em Goa como do Palácio do Estado da Índia, realizados ou atribuídos a
da Inquisição (Fig.3) . Manuel Godinho de Erédia11, Pedro Barreto de
Embora circunscritos a apenas dois exemplos, Resende12 e António de Mariz Carneiro13 de que
estes palácios eram dois casos emblemáticos da existem várias versões dispersas em diversas bi-
arquitectura da cidade, sendo significativa a forma bliotecas e arquivos. Na sua génese, estes álbuns
enfática e hegemónica como os seus telhados aqui tinham como principal objectivo fornecer uma
se destacam. visão sobre as condições geográficas e de defesa
Na falta de representações da arquitectura mais das povoações, assumindo a arquitectura civil ou
corrente da cidade, Placido Francesco Ramponi, religiosa uma importância secundária. Face aos
no Diário da sua viagem a Goa, efectua uma des- outros autores, os desenhos de Pedro Barreto de
crição das casas da cidade de Goa entre os anos Resende destacam-se, em termos das representa-
de 1699 e 1700, escrevendo; “...as casas têm um ções da arquitectura, pelo seu maior naturalismo
só pavimento sobradado,(…) no pavimento térreo e frescura de detalhes. Como secretário do vice-
vivem os servos e escravos negros e por cima vivem -rei, conde de Linhares Resende, teria visitado
os patrões..…os telhados são em forma de bico e as um número significativo de cidades e fortalezas
telhas de barro vermelho são postas como escamas distribuídas pelo território do Estado da Índia,
de peixe, o que não é desagradável de ver”10. tendo feito uma apreciação destes lugares através
Do século XVII, as referências iconográficas 11
Deste autor existe na Biblioteca de São Julião da Barra, em Oei-
sobre a arquitectura e as morfologias urbanas ras o álbum O Livro das Plataformas da Índia ed. facsimile, intr. e
notas de Rui Carita, Lisboa, Ministério da Defesa Nacional, 1999.
são abundantes mas de significado muito fluido
e complexo. Referimo-nos aos desenhos incluídos
12
Os desenhos deste autor encontram-se anexos à obra de António
Bocarro O Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Po-
9
Os desenhos encontram-se na Biblioteca da Sociedade de Geogra- voações do Estado da Índia Oriental. Évora, Biblioteca Pública e
fia de Lisboa. Arquivo Distrital, Inv. CXV-2-1. Ed. Fac-simile introdução e notas
Isabel Cid, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa Da Moeda, 1992.
10
Azevedo, Carlos 1056 “Um artista italiano em Goa –Placido
Francesco Ramponi e o túmulo de São Francisco de Xavier”. In 13
De António de Mariz Carneiro existe o álbum: Descrição da For-
Garcia da Horta, Lisboa. Ministério do Ultramar, Número Espe- taleza de Sofala e das mais da India, Lisboa, Biblioteca Nacional.
cial, p. 301. Ed. Fac-simile Pedro Dias, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1991.
Fig, 3 - Planta do Pallacio em q se havia estabelecido o Tribunal do Santo Officio de Goa. 2ª metade do séc. XVIII. Tinta da china com
aguada. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar. (GEAEM-DIE) cota 1222-2ª.
de um contacto directo. Os desenhos de Pedro banos, constituindo-se como o seu elemento mais
Barreto de Resende, se, pela sua natureza, não emblemático.
pretendem uma transcrição precisa da realidade, Recuando no tempo, na tentativa de estabele-
fornecem, no entanto, uma imagem muito clara cermos uma cronologia para a formação desta
das tipologias arquitectónicas nas suas princi- tipologia de telhados, conseguimos identificar
pais características. Neste sentido, em Mascate dois documentos datados de meados do século
e nas fortalezas do Golfo Pérsico, a arquitectura XVI, que nos permitem comprovar não só a for-
é marcada pela presença sistemática de terraços ma precoce como se manifesta esta tipologia no
de clara expressão árabe. Em territórios mais Oriente, como, ainda, a sua rápida passagem a ele-
afastados de Goa, como Mombaça ou Macau, os mento típico da arquitectura goesa. Na realidade,
telhados muito inclinados e em forma de bico em 1567, o padre jesuíta Gaspar Dias, em carta
desaparecem, não sendo característicos destas dirigida aos seus irmãos de Lisboa, assinalava a
zonas. Igualmente nos arredores dos aglomerados omnipresença destas estruturas na arquitectura
urbanos como em Chaul, as casas de piso térreo da cidade de Goa, descrevendo: “…as casas têm
localizadas fora do recinto muralhado da cidade os telhados altos e impinados a modo de curicheus
são todas representadas sem telhados de tesoura. que estão parecendo muito bem antresachados com
Na realidade, na arquitectura de cariz mais popu- os arvoredos, tem muita graça; assi a cidade como
lar, constituída por edifícios com apenas um piso a ilha…” (Rego 1995 X, p.243).
térreo, esta tipologia dilui-se. Diferentemente do O carácter precoce com que estes telhados se
quadro analisado para o século XIX, no panorama impõem na imagem da cidade é comprovado
das representações de arquitectura realizadas por igualmente na iconografia, onde registamos a sua
Pedro Barreto Resende os telhados de tesoura presença de forma significativa em meados do
parecem não só nos palácios e grandes edifícios século XVI, num desenho do Livro de Lisuarte de
religiosos, mas na generalidade dos edifícios ur-
Em oposição ao Brasil, não encontramos em ar contínua, entrando pelas janelas e subindo até
Portugal referências antigas ao uso deste termo aos pontos mais altos. A forma de colocação das
em estruturas da cobertura tanto em contratos telhas em escama permitia, por sua vez, a saída do
como em regimentos de obra que temos consul- ar quente que se alojava no alto, junto ao telhado.
tado sistematicamente. Bluteau no seu extenso A completar este sistema vemos a abertura de
Vocabulário (1712) não faz igualmente qualquer orifícios de ventilação no alto das paredes, junto
alusão a telhados de tesoura, referindo de forma às sancas, e ainda, noutros casos, mais no século
detalhada outros tipos de telhados comuns em XIX, a aplicação no telhado de respiradores em
Portugal; caso dos telhados de trouxa, que o autor cerâmica.
descreve: “telhado de hua àgua ou madeyrado de A um nível mais iconológico, a vincada inclina-
trouxa , leva hua madre ou trave pelo meyo para ção destes telhados provoca uma enfatização da
a madeyra não dar de si” (Bluteau 1712, VIII, 69). cobertura no desenho do edifício, seguindo uma
Igualmente no livro de João Nunes Tinoco tendência estética de toda a arquitectura indiana.
Taboadas gerais para com facilidade se medir qual- Mais evidente na arquitectura erudita, as cobertu-
quer obra do officio de pedreiro , que dedica um ras dos templos e palácios tendem a assumir uma
capítulo à construção e medição de telhados, o maior expressão formal e uma forte proeminência,
autor não menciona a nomenclatura de telhados em desfavor das paredes, que se apresentam como
de tesoura. Em contraponto, refere o autor: ” elementos menores nas morfologias e tipologias
telhados assi mouriscos, como valadios ou en- arquitectónicas. Salientando um entendimento
sopados e pregados”18. Mais interessante, João muito peculiar da arquitectura, os tratados de
Nunes Tinoco fornece, neste pequeno manual, a arquitectura hindu, caso do Mayamata (Gagens
fórmula utilizada pelos carpinteiros para calcular [1970-1972]) ou do Mansara ( Acharya 1998),
a inclinação das águas dos telhados, afirmando são omissos quanto ao desenho e aos elemen-
ser esta inclinação a melhor “e este he a proporção tos de composição das fachadas, dedicando, em
mais acomodada porque sendo mais alto o ponto oposição, uma particular atenção às coberturas
do emmadeiramento não segurara a telha e sendo dos edifícios. Conforme a sua forma, subdivisão
mais baixo ficara o telhado com pouca correnteza em patamares e remate superior, a cobertura dos
e ariscado a tomar agoa atras com o vento…”19. edifícios destaca-se nestes tratados como um indi-
No oriente, a acentuada inclinação dos telhados cador fundamental da importância de um templo
de tesoura responde a um melhor escoamento das e respectiva tipologia arquitectónica. Verificamos
águas torrenciais das monções, sendo natural que assim que, para além de uma resposta funcional
os portugueses reconhecessem nesta inclinação ao clima, os telhados de tesoura respondiam a
uma solução de maior eficácia para a chuva batida uma lógica de matriz indiana, orientada para a
pelo vento. Em termos do interior, a criação de acentuação dos valores simbólicos, que na arqui-
espaços com pé direito muito alto respondia de tectura civil se revelava como uma afirmação de
forma mais adequada, ao clima quente e húmido supremacia e nobilitação.
da Índia. Por diferença de temperaturas, o ar das O estudo e levantamentos que, durante vários
salas tinha tendência a formar uma corrente de anos, realizámos nos mais antigos templos na
18
Tinoco, João Nunes 1660. Taboadas gerais para com facilidade se região de Goa e da Costa do Malabar, permite-nos
medir qualquer obra do officio de pedreiro, assim de cantaria como concluir que a estrutura espacial dos telhados de
de aluenaria, com outras ...fl.15 tesoura indo-portugueses é muito diferente das
19
Idem, Ibidem, fl.33v tradições construtivas dos telhados da arquitec-
tura hindu, em que sendo as paredes exteriores a confirmação documental que o nome corren-
secundarizadas, toda a estrutura da cobertura temente atribuído a estes telhados provém de um
tende a concentrar-se fundamentalmente na zona sistema construtivo e não da sua morfologia de
mediana do telhado, apoiando-se em séries de quatro águas com pendentes inclinados, a que
prumos ou colunas. O espaço interior tende assim posteriormente estes telhados ficarão associados
a apresentar-se fragmentado por sequências de em Portugal. Este afastamento de uma nomen-
colunas, formando salas hipostilas. Afastando-se clatura original vai permitir a variação de tesoura
desta espacialidade, a estrutura dos telhados de ou tesouro, reforçando a tese de Orlando Ribeiro
tesouras de matriz portuguesa evidencia, na sua sobre a origem indo-portuguesa destes telhados
concepção, uma preocupação de cobrir grandes e a sua posterior divulgação pelos espaços de
vãos sem utilização de apoios verticais desenvol- influência portuguesa.
vendo-se, por sua vez, num sistema de grandes Através da análise dos contratos elaborados em
asnas assentes em espessas paredes de alvenaria. Goa, podemos ainda constatar que as «tesouras »
Neste sentido, os telhados de tesoura apresentam, constituíam um sistema de reforço da armação
não só uma lógica construtiva afecta a uma tradi- da cobertura, ligando-se com peças horizontais e
ção europeia e portuguesa, como propõem uma sugerindo, em conjunto, a forma de uma tesoura.
nova espacialidade que se afasta radicalmente das O contrato de obras do Paço de São Lourenço é
tradições da arquitectura hindu. particularmente elucidativo ao especificar : « …
com a condição q. emmadeirara em doys telhados de
3. OS LIVROS DE TERMOS DA CÂMARA duas águas cada hum que correm no comprimento
DE GOA das ditas com cento e vinte tezouras que as grandes
terão de comprimento nove maons cada um, quatro
Em complemento da iconografia, os contractos
polgadas de grosura em quatro (em quadrado) de
de obras inseridos nos Livros de Termos permi-
marete ou boa teca com seus oliveis e pregara tudo
tem-nos um aprofundamento deste estudo ao
com mão e meya de pregos de aguieiro»20.
especificar dados quanto à sua estrutura e apli-
Noutro documento relativo obras de reparação
cação assim como os nomes e medidas das peças,
do Hospital Real, encontramos uma prescrição
falcutando uma abordagem às características
confirmando que as tesouras eram constituídas
originais destas estruturas.
por duas asnas, assinalando o texto:” E fara de
Confirmando uma origem construtiva portu-
novo cinco tesouras de comprimento ... e pora três
guesa os textos dos contratos apresentam uma
oliveis a tres tezouras velhas da melhor madeira
terminologia portuguesa quanto as peças que
que tirar…21. Estes três oliveis - cujo sentido antigo
compõem estes telhados: ripas, aguieiros, frechais,
era nivel - descritos como elementos da tesoura,
oliveis, tesouras, tirantes, pregos e cumeeiras.Em
são as travessas horizontais que ligavam as pernas
contraponto, verificamos que ao longo dos textos
das asnas, e que encontramos claramente referidas
os materiais e técnicas autóctones são referidas
pelo termo de olivel no Livro das Tabuadas de
com grande liberdade, utilizando as suas designa-
João Nunes Tinoco.
ções originais, caso do chunambo ou das madeiras,
como a teca, sissó ou quinzol , o que nos reforça a
tese que este sistema se desenvolve numa tradição 20
Historical Archives of Goa, Termos de Obras (1770-1773 ), fl. 24v
(Contrato de 5 de Fevereiro de 1772 para obras das casas do capitão
de carpintaria portuguesa. do Paço de São Lourenço).
Quanto à referência explícita de peças de car- 21
Idem, Ibidem , fl. 35v.(Contrato de obras de 20 de Março de 1772
pintaria designadas como “tesouras”, ela dá-nos para obras no Hospital Real de Goa)
Através das fotografias de Sousa e Paul verifi- usado, por sua vez, em Minas Gerais. Para os
camos que, em Goa, a maioria dos telhados de dois casos, o autor descreve estes telhados como
tesoura aparecem marcados com canais enchidos “formados de telha vã ou de telhas embocadas,
com argamassa colocados em intervalos de três ou cujos canais espaçadamente de três em três ou de
quatro fiadas de telhas, numa técnica usualmente quatro em quatro são tomados com cacos de telhas
designada como telhado mourisco ou amourisca- e argamassa”(Barreto 1978: p.114).
do. Assis Rodrigues, no seu Dicionário Técnico Ainda sobre a caracterização dos telhados de
descreve esta técnica: “amouriscado quando os tesoura em Goa, um pormenor que muito nos
intervalos das fiadas são cobertas de argamassa” intrigou é o seu surgimento como uma estrutura
(Rodrigues 1875: p.555). Em contratos de obra toda forrada a cal como nos aparece nas pinturas
antigos, o telhado mourisco aparece, pela sua de José M. Gonçalves, onde é representado tanto
maior complexidade de execução, com um preço o palácio do Vice-reis de Pangim, como o palácio
muito superior aos telhados valadios ou em telha dos Noronha, situado no extremo da cidade na
vã. Como exemplo, no contrato de obras realizado direcção de Ribandar e Velha Goa. A mesma situ-
em 1639, para o Palácio dos Condes de Linhares ação repete-se, décadas depois, na representação
estes preços, são assim mencionados: “…e por da cidade de Pangim pintada, entre os anos de
cada braça de telhados mouriscos sendo todo de 1886 e 1887, pelo pintor inglês Horace Van Ruith
telha nova se lhe pagarão setecentos e cinquoenta (1839-1923).
reis E por cada braça de telhados de telha velha Da análise das representações depreende-se que
pondo ele mestre a telha que faltar se lhe pagará a as armações dos telhadas eram forradas, por cima,
trezentos e vinte reis sendo mouriscos E por cada com tabuado que, por sua vez, era barrado a arga-
braça de telhados valadios cem reis”22. massa de cal com funções de impermeabilização
No confronto com os contratos de obra goeses da cobertura. Na nossa consulta aos contratos de
não observamos a referência à designação de telha- obras goeses encontrámos, em alguns documentos,
dos mouriscos ou amouriscados, aparecendo, esta a alusão ao acabamento dos telhados prescreven-
técnica de reforço referida por “cintas”. De entre do: “algirozes de chunambo e telhado barrado de
vários exemplos, podemos mencionar o contrato modo que não faça goteiras no inverno”24.
de obras para o Paço de Ribandar, de 1655, cujo Em visita aos interiores dos mais antigos palá-
texto prescrevia: “ …e fara o retelhamento de todas cios podémos detectar que os tectos, em salas de
as casas e metera telhas pequenas grandes e telhões maior dimensão e prestígio, eram providos com
que faltam com suas cintas e aldrozes de chunambo dois grandes tirantes em forma de grossas vigas
de modo que não faça goteiras”23. A identificação colocadas nas zonas médias e quatro travessas nos
dos telhados mouriscos como cintados é-nos cantos do espaço para reforço de toda a estrutura.
sugerida por Paulo Thedim Barreto, ao referir, a Destes tirantes dá notícia o contrato de obras
designação, na região da Baía, de “telhado cintado” do palácio de Pangim ao determinar:“…e porá
como sinónimo do termo “telhados espinhados” fechado o dito ripamento cinco mil telhas de ganelos
22
AN/TT Cartórios Notariais, 3º Cartório Notarial de Lisboa, Li- da boa qualidade e bem assados e abaixara os dous
vro de Notas 187, Caixa 53, fls. 100 – 102v. ( Contrato de obra tirantes da dita sala”. Quanto as travessas que
feito entre a Condessa de Linhares e Manuel Quaresma e Manuel
Correia. Lisboa, 29 Outubro de 1639). reforçavam a esquadria das paredes, o contrato
de 1773 prescrevia: “… e porá duas ttravessas nos
23
Historical Archives of Goa, Termos de Obras (1654-1655). Ms
7832. s.n. (Contrato que a nobre cidade de Goa fez a 24 de Abril de 24
Idem, Ibidem Ms. 7832, s.n. (Contrato que a nobre cidade de Goa
1655 para obras no Paço de Ribandar). fez a 24 de Abril de 1655).
Fig. 5 - Pormenor de vista de Pangim destacando-se ao centro o Palácio dos Vice-reis. Horace Van Ruith (1839-1923). Cerca de 1886.
Óleo sobre tela. Lisboa. Colecção particular.
cantos de comprimento de seis maons cada huma marcadamente ritualista de pendor ostensivo e
e hum palmo de groçura em quadrado para con- solene, muito presente na cultura indiana. Po-
duzir com outro dois cantos ficando o dito telhado demos ainda apurar que, na sua formação este
da sala uniforme”25. Estes tirantes e travessas em tipo de telhados se manifesta de forma e precoce
madeira apresentam-se entalhadas com decora- a partir de meados do século XVI tornando-se
ções que combinam elementos hindus e cristãos. rapidamente característicos da imagem de Goa.
Vemos assim, sobre uma decoração de elementos Pela análise da terminologia usada nos contra-
fitomórficos e enrolamentos, aliar-se o tema da tos de obra efectuados pelo Senado da Câmara
flor de lótus com pequenas cabeças de querubins de Goa, podemos confirmar documentalmente
evidenciando um interinfluência cultural que que esta tipologia de telhados se forma a partir
parece atravessar a evolução desta tipologia de de uma tradição portuguesa.
telhados no Oriente. A partir do cruzamento do estudo da iconogra-
fia antiga com os contratos de obra podemos apu-
rar ainda que estas estruturas sofrem adaptações
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
às condições climatéricas sendo providas por um
Embora hoje quase desaparecidos, pudemos sofisticado sistema de impermeabilização, carac-
confirmar ao longo da nossa investigação que os terizado por um barramento final a chunambo (
telhados de tesoura com pendentes muito inclina- cal feita a base de ostra), que era aplicado sobre
das constituíram um dos elementos mais originais um forro colocado por cima das asnas.
e característicos da arquitectura indo-portuguesa, Se este sistema revelava uma adaptação ao clima,
imprimindo nas morfologias arquitectónicas e a forma como é progressivamente abandonado
na paisagem urbana, no Oriente, um sentido ao longo do século XIX denota que o seu signi-
ficado era sobretudo semântico e de uma ordem
25
Idem, Termos de Obras (1770-1773), nª 7840. (Contrato de 23
de Janeiro do ano de 1773 com o lanço das obras do Palácio de retórica que pretendia criar, a par da arquitectura
Pangim). s.n. militar, uma imagem de poder e dominação de
um pequeno povo, face a um imenso território vão perdendo o seu ar faustoso e dominador
marcado por uma grande diversidade de reinos e assumindo um aspecto mais discreto e pacato,
impérios. É assim que, num período de declínio que irá caracterizar a presença portuguesa no
económico e político português, estes telhados Oriente durante os séculos XIX e XX.
5. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
E MANUSTRITAS
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mile, intr. e notas de Rui Carita, Lisboa, Ministério História das Missões do Padroado Português do
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Évora, Biblioteca Pública e Arquivo Distrital, Inv. tectura e Gravura, Lisboa: Imprensa Nacional.
CXV-2-1. Ed. Fac-simile introdução e notas Isabel Tinoco, João Nunes 1660. Taboadas gerais para
Cid, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa Da Moeda. com facilidade se medir qualquer obra do officio
Ribeiro, Orlando 1992. Geografia e Civilização, Te- de pedreiro, assim de cantaria como de aluenaria,
mas Portugueses, Lisboa: Livros Horizonte. com outras com outras varias curiozidades da ge-
ometria pratica...Biblioteca Nacional, Lisboa, Res.
COD 5166.
RESUMO
Trata do partido arquitetônico e das técnicas construtivas utilizados na arquitetura de propriedades
rurais edificadas entre o início do século XX até a década de 1970, no sudeste mineiro, na região do
atual município de Santana do Manhuaçu, que envolve os distritos de Santa Filomena e Santa Quitéria
e o Povoado de São João do Capim, cuja ocupação se deu durante a expansão das frentes pioneiras
por novas zonas cafeicultoras. Levanta, por amostragem, exemplares remanescentes compondo um
quadro desta produção arquitetônica rural, e estabelece comparações com a arquitetura rural de outras
regiões mineiras, verificando possíveis permanências arquitetônicas - quanto à técnica construtiva,
implantação e divisão interna das moradias - originárias das zonas auríferas mineiras do século XVIII,
principalmente da região de Ouro Preto e Mariana, de onde são originários seus primeiros povoadores.
A possibilidade de ouvir as pessoas que as construíram e ainda vivem nestas casas, foi outra importante
fonte de dados. As construções levantadas são do século XX, porém, o método construtivo utilizado,
bem como muitos dos costumes da população local, remonta a séculos passados, muito resistiu devido
ao relativo isolamento da região até a década de 1970. O quase desligamento total dessa população
das “novas formas de viver”, de certa forma assegurou a preservação também de uma nomenclatura
ligada à construção civil, que hoje já não é mais utilizada no Brasil e remonta a um português arcaico,
do século XVIII.
1. INTRODUÇÃO
A ocupação do sudeste de Minas Gerais se deu Conforme a lavoura crescia, se fazia necessário o
nas últimas décadas do século XIX. Os primeiros desmate de novas áreas, para obtenção de terras
povoadores vieram da região de Mariana, seguindo férteis, que possuíam “todo vigor” que a plantação
a ferrovia. A conquista dessas áreas para a cultura precisava para crescer e frutificar.
do café foi feita de forma rudimentar, sem aduba- As terras pertenciam ao Estado que as doava
ções químicas. A consequência era um período a quem possuísse condições para cultivá-la, em
relativamente grande para início de produção, de regime de “sesmaria”1. Segundo o Sr. José Berto-
três a quatro anos. As primeiras colheitas eram 1
Entrevista com o Sr. José Bertolino Júlio, com 100 anos (data
abundantes, decaindo com o passar do tempo. nascimento: 15/05/1912), realizada em 2009, em Santa Quitéria,
lino Júlio, a forma como as pessoas requeriam as de “senhores”3), traziam consigo trabalhadores
terras se dava da seguinte maneira: para a derrubada das matas e primeiros plantios,
nas terras virgens. Somente após alguns meses,
Muitos chegavam pelo Rio Manhuaçu, mo-
quando já efetuadas a limpeza e o plantio, vinham
tivados pela exuberância da Mata Atlântica
mulheres e crianças, tendo início a construção das
ainda intocada e adentravam mata afora.
edificações mais perenes.
Contando os passos, subiam e desciam as
Nas matas, os homens nunca avançavam mais
montanhas e fechavam uma forma geomé-
do que os “olhos podiam ver”4. Eles preparavam
trica imaginária, fazia uma estimativa das
suas ferramentas (machado, foices, e outras), as
medidas, (normalmente tinham as medidas
amolavam com “pedras de amolar”5 para retirar
individuais das passadas, palmos, pés) cal-
o mato do tronco das árvores, identificando a
culavam área em alqueires (alqueire minei-
madeira e seu uso posterior. Feito isso, segundo
ro: 48.400m2) e, então, pediam ao Estado o
o Sr. Júlio, começava o corte das árvores:
direito sobre aquela determinada área em
Davam os piques de machado do lado que dese-
regime de “sesmaria”. O Estado, como dono,
javam que fosse o tombo, sem derrubá-las; assim
enviava ao solicitante o direito de usufruto
faziam até o alto do morro, as árvores da parte mais
da área. Após o pedido e a liberação por par-
alta eram cortadas por inteiro e jogadas para baixo
te do Estado, começava o processo de derru-
sobre as demais que haviam recebido o “pique”,
bada das matas. Mais tarde, era feito um
assim todas tinham o “tombo” programado para
requerimento para o pedido de posse defini-
o lado imaginado de forma desejada.
tiva da área, com a edição da escritura. Esse
processo de liberação nem sempre era aguar- 3
A palavra “senhor” designa o latifundiário, que possuía o “respei-
dado ate o veredicto, que na sua maioria to” e a “admiração” dos demais. Muito desse respeito era medo pelo
era a favor, e logo começava a derrubada.2 que o “senhor” e seus capangas pudessem fazer caso contrariados.
Segundo entrevistados, era “prudente”, na presença do “senhor”,
No início da ocupação, de 1900 a 1910, os “ses- deixar evidente o “respeito” e a submissão a sua pessoa.
meiros” (na época e região, comumente chamados 4
O termo “os olhos podiam ver” era colocado para identificar um
limite de atuação dos trabalhadores na derrubada da mata. Como
não houvesse um meio confiável de orientação quanto à localiza-
distrito de Santana do Manhuaçu, MG. Nos tempos coloniais, o ção, tomavam certos cuidados, não se afastando um dos outros,
termo sesmaria era usado para definir uma gleba de terras, que era nem prolongando a jornada para além do pôr do sol. A densa Mata
entregue pela Coroa Portuguesa a sesmeiros, com o objetivo de que Atlântica era traiçoeira, perigosa tal qual um labirinto. Estar so-
estes iniciassem seu cultivo, com seu próprio capital, movimentan- zinho poderia acabar em acidentes fatais, que eram a origem de
do regiões desocupadas, promovendo seu povoamento, abertura de varias lendas e “casos” como no trecho em que Lemos (1976, p. 59)
estradas, criação de núcleos urbanos, etc. Na região de Santana do cita: ...conversa bastante, contando ‘causos’, normalmente aqueles
Manhuaçu, no início do século XX, sesmaria era um termo ainda do ‘sertam’, envolvendo bugrada brava, feras e ouro escondido nas
usado popularmente, de forma a lembrar que essas terras perten- grupiaras distantes.
ciam ao Estado, que podia cedê-las a determinadas pessoas que as
solicitassem para cultivo, até ser obtida a posse definitiva. Assim
5
O termo “pedras de amolar” é usado na região para designar as
como na época colonial, todas as benfeitorias eram feitas com re- pedras de afiar, encontradas em cachoeiras, ou corredeiras. Tinham
cursos próprios. A distância da presença estatal e as dificuldades de que ser lisas, que não se desfragmentassem, para que não “cegas-
comunicação transformavam essas grandes áreas, segundo relato sem” o corte de suas ferramentas. Eram usadas de tamanhos va-
do Sr. Júlio, quase em pequenos feudos, onde o desbravador era a riados: as pequenas eram levadas para o trabalho no bolso, para
única autoridade reconhecida: ali ele era o mandatário, controlan- quando se fizessem necessárias; as grandes eram fincadas ao chão,
do tudo o que acontecia “na terra”, exercendo a função de juiz e de normalmente na frente da porta da cozinha das casas e perto de
polícia, podendo agir de forma independente e arbitrária, muitas córregos, uma vez que, no processo de afiar, se jogava água e areia
vezes em proveito próprio. na pedra e na ferramenta para se tirar o “margume” do mato (seiva
da planta cortada que gruda com passar do tempo na lâmina difi-
2
Entrevista com o Sr. José Bertolino Júlio. cultando o corte) para facilitar o trabalho.
Os “piques” eram feitos nas árvores de forma era então aberta para o plantio de novos cafezais
que, quando caíssem morro abaixo, causassem o e, com isso, estabelecia-se um círculo vicioso de
menor estrago na madeira, mas a maior clareira corte e destruição da mata original, substituída
possível, permitindo trabalhar com mais segu- por plantações, que acabavam, mais tarde, tor-
rança e ajudando na queima final: nesse momento nando-se pastagens. Nessas regiões a vida era
os homens paravam o trabalho para se deleitar, isolada, austera: sem eletricidade, a tração era
olhando as grandes “torres verdes” se desfazendo a animal; nada de linhas telefônicas ou hospitais;
poder de suas mãos e ferramentas6. Demoravam-se e dinheiro praticamente não se usava. Havia es-
dias para esse trabalho: devido à altura, constru- cassez de quase tudo e isso acabou refletindo na
íam andaimes ao redor das árvores, para a poda arquitetura da região.
dos galhos e derrubada do tronco, em seguida, As casas eram normalmente estruturadas
começavam os trabalhos de corte em toras. Alguns em madeira com paredes barreadas (taipa
troncos eram tão pesados que, mesmo depois de mão ou pau-a-pique, cobertas de sapê ou
abatidos eram deixados para trás, uma vez que tabinha11), mais tarde, erguidas com tijolo
o transporte era feito a arrasto ou em carretão7. queimado; nesse caso as olarias eram criadas
Aquelas retiradas eram usadas na construção de perto da construção e para atendê-la, eram
todo tipo de construção que se fizesse necessário produzidos pelo próprio morador usando do
nas fazendas. conhecimento dos mais velhos, consistia em
A comunicação entre a região desbravada e um engenho onde em sua base havia reser-
a vila de Manhuaçu se fazia através de longas vatório cercado de estacas onde giravam pás
viagens a pé, a carro de boi, a cavalo ou em tro- de madeira que amassavam o barro como
pas de mulas. Normalmente, da cidade traziam um bolo, ali poderia ser acrescentado palha
mantimentos não produzidos na zona rural: sal, de arroz, ou palha de milho para a liga, a
ferramentas, pólvora, munições, tecidos eram as estrutura funcionava com um cavalo ou boi
mercadorias mais requisitadas pelos agriculto- girando o engenho, depois de amassado o
res modestos (Lemos, 1976, p.170). A cultura de barro, era colocado em formas e expostos a
subsistência era forte e acontecia antes e depois sombra e no chão limpo, ate ficarem secos
do plantio do café: o arroz ocupava as encostas para o assentamento, alguns ficavam irre-
dos morros; feijão e milho, entre os “becos” (fi- gulares com as extremidades arrebitadas,
leiras) da lavoura de café; batatas eram plantadas em um período posterior eram queimados
nas “terras soltas” que resultavam da abertura de em fornos como os de carvão, e eram en-
estradas. O cuidado com a terra era mínimo e tão tidos como tijolo cozido ou queimado 8.
devia render o máximo: não eram usados e nem Um trecho de Menezes (1983, p. 219), embora
se conheciam, fertilizantes. Quem possuía curral, se referindo a séculos passados, se aplica perfei-
quando muito, adubava com esterco. Ao decair a tamente às construções da região, durante boa
produção de café, as plantações eram substituídas parte do século XX:
por capim gordura e convertidas em pastagens Quanto ao processo construtivo, predominou as
para o gado leiteiro. Outra área de “mata virgem” estruturas autônomas de madeira, para os pavimen-
6
Entrevista com Sr. José Bertolino Júlio. tos nobres, enquanto o porão podendo obedecer ao
7
Carro puxado por juntas de boi com um apoio paralelo ao eixo 8
Entrevista com o Sr. Jaci Alves de Freitas, 65 anos (nascido a
onde era apoiado o “pé da árvore”. Era largamente utilizado quase 28/08/1946), realizada em 2009, em Santa Quitéria, distrito de
que exclusivamente para o transporte da madeira. Santana do Manhuaçu, MG.
mesmo processo (aqui o autor faz um comparativo o início da fabricação de telhas de barro. Muitas
ao modelo paulista de construção). (...) O telhado casas ainda são cobertas com essas tabuinhas
de madeira não possui tesouras em sua estrutura, rudimentares feitas a machado, mas que funcio-
suportado por esteios que vinham apoiar-se no solo, nam muito bem.
estrategicamente distribuídos para constituírem a Quanto à execução, tudo era simples, mas exi-
estruturas das paredes de pau-a-pique (...). gia esforço, sabedoria e dedicação do construtor.
Essas técnicas da taipa de mão chegaram ao Dentre eles, alguns se especializavam nos encaixes
Brasil com os portugueses e difundiu-se bastante ou “caixas” na madeira, feitos com cortes bas-
na região da mineração de ouro. Aos poucos, a tante precisos, que deviam ser finalizados sem
técnica, que utilizava madeira serrada e consoli- frestas; outros, com mãos habilidosas para “jogar
dada com cravos, adaptou-se ao meio e às possibi- o barro”11, davam o acabamento à taipa; e assim
lidades locais, entrando aí influências africanas e por diante. Aos poucos, formaram-se pequenos
indígenas. Principalmente na zona rural, as peças agrupamentos de casas no entorno das sedes
deixam de ser regularmente aparelhadas, às vezes das fazendas ou de uma capelinha - muitos dos
usada quase da maneira em que foi retirada da “senhores” doavam terras a algum santo de sua
mata; o cravo é substituído pelo cipó na consoli- devoção, dando origem, por exemplo, a povoa-
dação das varas. Isso dá um aspecto característi- dos: Santa Quitéria, São João do Capim, Santa
co a essas construções, meio irregulares, tortas, Filomena, todos estes no município de Santana
mal acabadas... O tabique português se torna o do Manhuaçu. Quando havia necessidade de mais
pau-a-pique brasileiro, “caipira”, e nesse sentido, mão de obra para o trabalho, era ofertada uma
luso-brasileiro. Depois de pronta essa estrutura, casa pelo “senhor”, àqueles que se dispusessem ao
se procedia ao barreamento. trabalho. Essas eram chamadas de “tapera”. Assim,
A grande maioria das primeiras construções os moradores não detinham a posse, ocupando
eram barreadas9 - mais tarde, algumas dessas esses casebres enquanto ali trabalhassem. As tape-
casas tiveram sua taipa substituída por tijolos (cru ras eram simples, insalubres, sem esgoto ou água
ou queimado), porém mantiveram a estrutura encanada, e muitas vezes o ambiente era dividido
autônoma de madeira. A cobertura primitiva era com animais (porcos e galinhas), do consumo da
de lascas de madeira, chamadas “tabinhas”10, até família. Como forma de pagamento:
9
Nome usado na região para casas feitas com taipa de mão ou ta- dava do beiral à cumeeira.
bique, vulgarmente chamado pau-a-pique. 11
“Jogar o barro” – era a forma de trabalho utilizada para preen-
10
O termo “tabinhas” é referência ao tipo de material utilizado nes- chimento das estruturas de pau-a-pique que originavam as paredes.
se período, que foi substituído por telhas de barro para a cobertura Na região de Manhuaçu, utilizavam-se muitas pessoas para esse
das casas. Utilizavam a madeira pela abundância e qualidade da trabalho, que tinha seu começo na preparação do barro a ser em-
mesma, de boa durabilidade. Outro questão pelo não uso das telhas pregado, a terra era afofada ou retirada de outro local e colocada
capa e canal era a dificuldade de fabricá-las devido ao não domínio o mais próximo da casa, no seu entorno. Eram então agregados:
da técnica. As tabuinhas eram feitas nessa região a partir da ma- areia, terra de formiga e fibras, como palha de arroz, e água. Essa
deira da braúna, que era cortada, lascada, e lavrada pelo machado mistura era então pisoteada por juntas de boi, que giravam no en-
até que formasse gomos de 30 a 35 centímetros de comprimento torno da casa até que a massa se tornasse homogênea. Homens se
por 10 a 15 centímetros de largura, esses gomos eram então fatia- encurvavam com os braços nas costas formando um recipiente onde
dos em lâminas de dois a três centímetros de espessura, recebiam era colocado o barro para transporte até o local de aplicação nas pa-
dois piques, em um dos lados longitudinais, e então, era levanta- redes. A falta de instrumentos que facilitassem o trabalho fazia com
da a estrutura do telhado, feito de madeiras nativas que, em sua que formas rústicas de trabalho fossem recuperadas e de certa for-
maioria,era ripado com retirada do tronco do pé de palmito juçara, ma preservadas ou mantidas. Entrevista com o Senhor José Domin-
ali chamado de “içara”. As tabuinhas eram amarradas com arame gos Ramos, 61 anos, nascido em 28/08/1951, realizada em 2009,
que passava pelos piques e era enrolado nas ripas, esse trabalho se Comunidade do Divino, distrito de Santana do Manhuaçu, MG.
(...) alguns trabalhadores recebiam pelo seu e pelas permanências, avançado o século XX, de
dia de trabalho gordura de porco, quartas técnicas construtivas desses tempos passados.
de arroz, feixes de cana para a produção de A casa aqui é quase um anacronismo. Na arqui-
garapa, usada para adoçar o café ou outro tetura rural produzida no sul e centro-sul do
alimento; ou mesmo quando a condição do Estado de Minas Gerais no século XVIII e XIX,
senhor já era mais favorecida, este fazia as todo o peso da estrutura da casa se transfere aos
compras dos principais mantimentos, em esteios de madeira, mas acamados na alvenaria
uma venda na cidade mais próxima, e os en- de pedra; quando possível um lado da construção
tregava aos trabalhadores, cada qual a sua era apoiado em uma encosta e, como resultado
maneira, ao convir do senhor, descontando do desnível, surgia um porão. Na região leste de
deles em dias trabalhados ou a se trabalhar.12 Minas, se percebe as construções ainda com seus
Também havia a meagem: a terra ainda per- esteios de madeira recebendo toda a carga da
tencia ao “senhor”, mas todo o serviço (plantio, estrutura, assentadas quase sempre no meio do
capina, colheita) cabia ao trabalhador; no fim divi- terreiro e edificadas com técnicas setecentistas, o
dia-se a produção, à “meia” (metade da produção) que faz delas modelos novos de técnicas antigas,
ou à “terça” (a terça parte de todo o produzido com algumas peculiaridades.
ficava com dono da terra). Por assim ser, essa casa mineira tem em sua
A ocupação rural dessa região, durante o século estrutura, mais que a manutenção de uma arquite-
XX, produziu pequenas e médias fazendas volta- tura que nos remete aos portugueses, há também
das para a subsistência, plantio de café e pecuária uma forma ingênua de preservação de métodos,
extensiva. Nelas, a arquitetura reproduz, aparen- que pelo distanciamento dos acontecimentos do
temente, um tipo de saber passado de geração restante do país, se manteve quase sem influências
a geração, desde o século XVIII: a estrutura de ou modismos. A casa quase sempre apresenta
madeira, a taipa de mão, o uso do porão alto e, planta retangular ou conformação em “L”, tendo
praticamente, a mesma volumetria da arquitetura aos fundos, na parte perpendicular à fachada:
vernácula da região central de Minas Gerais, de a cozinha, a despensa, a varanda ou, como os
onde vieram aqueles primeiros povoadores. A mineiros se acostumaram a dizer, “alpendre da
principal diferença é que, por ser uma região cozinha”, e também a “bica” (Martins, 1998, p.
mais carente de recursos, raramente essas casas 34). O local era escolhido pela disponibilidade da
são assobradadas ou se utilizam da pedra como água, que era levada até o mais perto possível da
material construtivo, como na região de Mariana sua cozinha; quase nunca dentro dela, caindo o
ou mesmo Portugal, por exemplo. Mas elementos dia todo em um constante e manhoso rumorejar.
como o alpendre, ali estão presentes. (...). Deste modo a casa rural mineira vai locali-
zar-se sempre próximo a um rio, riacho ou nascen-
2. A CASA RURAL EM SANTANA DO te d’água. Isso associado à topografia acidentada
MANHUAÇU de quase todo território mineiro, vai quase que
É importante dizer que, nesta região, a casa obrigatoriamente vincular essa edificação a uma
rural distingue das de outras regiões de Minas, paisagem de meia encosta, em fundo de vales.
não pela riqueza de detalhes, mas pela singeleza (Benincasa, 2003, p. 96).
A água vinha lá daqueles altos, cortando o chão
12
Entrevista realizada em 2009 com o Senhor Jaci Alves de Freitas,
66 anos, nascido em 28/08/1946, em Santa Quitéria, distrito de pra lá, tinha as pessoas que sabiam como trazer a
Santana do Manhuaçu, MG. água, às vezes a água era longe, descia pro mato
abaixo fazendo aquele rego assim pro mato abaixo A cozinha, por vezes, correspondia à metade da
e quando chegava assim faltando uns cinquenta casa, quando não mais. Numa nítida influência
metro pra chegar em casa, aí eles rachava aqueles indígena, ela se expandia, sendo instalada numa
palmito e fazia; cortava aqueles gancho e pondo espécie de varanda: um puxado com meia parede,
aquelas lasca de palmito por cima daquele “trem”, uma despensa em um canto e, “assentado” ali
até que chegava no terreiro, quando chegava no próximo, o fogão a lenha.
terreiro a água tava chegando, era a bica. (...). Cotidianamente, a cozinha é a entrada principal
Água dentro de casa não, só tinha retirado da da casa; a partir dela, as divisões das necessidades
casa uns dez metros ainda, só tinha correndo na são claras, e aí aparecem os cômodos destinados
bica “memo” 13. ao descanso noturno (quartos), a salinha e a sala
Quanto às suas características físicas, a fazen- - espaço que após a chegada da televisão, recebeu
da mineira nunca foi formada por apenas uma destaque e maior importância.
construção isolada (Benincasa, 2003, p.94), havia A sala e a “salinha”, quase sempre, estavam
sempre nos limites do terreiro a tulha, onde se desprovidas de mobiliário; a salinha por vezes
armazenava o café; e o paiol, onde se colocavam os recebia um armário onde se guardavam louças
mantimentos ou cereais como arroz, feijão, milho. pouco usuais, documentos nas gavetas e, nas
Às vezes, a tulha e o paiol eram acomodados em portas maiores, alimentos não produzidos na
uma única cobertura. fazenda, como “açúcar branco”, macarrão, etc. -
Nas proximidades do terreiro ficavam o ga- que requeriam um espaço reservado dos demais
linheiro; o chiqueiro ou mangueiro; a horta, o que iam para a despensa, até por serem difíceis
jardim e o pomar; o engenho de moer cana com a de comprar. A salinha, espaço de distribuição e
varanda cobrindo a tacha onde se fervia a garapa acesso aos quartos, se configurava usualmente
até o “ponto da rapadura”, e as fornalhas onde se de forma retangular, como que absorvendo um
preparavam rapadura, melado, açúcar mascavo espaço sobrado, mas que não devia ser nem sala,
e, também, doces diversos. Quando possível, se nem cozinha: era a mediadora da casa.
a quantidade de água fosse generosa e a queda Passando pela salinha, chega-se a sala, um es-
d’água favorecesse, também podia ser encontrado paço maior, às vezes com bancos e, raras vezes,
o moinho, onde se fazia o fubá. com sofás e, quando os têm, são na sua forma mais
A cozinha é o ponto central da casa mineira, singela: na sala também se recebia, porém pessoas
com o “fogão de lenha” de barro, que subsidiava não conhecidas, ou de status de maior agrado.
o necessário para que a maioria das tarefas diárias Ali também podiam ser armazenados grãos, ao
fosse cumprida pela dona de casa. Durante o dia, menos até que estes pudessem ser acomodados
ela era o local de trabalho da mulher; à noite, era na tulha, paiol ou jirau: ali ficavam protegidos das
local de reunião da família, onde se recriavam intempéries. Era aí, dentro de casa, que o feijão
cenas do dia passado e afastava-se o frio e podia-se era separado da fava, o arroz de sua “munha”15, o
ouvir um pouco de rádio. Era também na cozinha milho do restolho, eles todos limpos eram guar-
que a visita, quando “de casa”14, era recebida: dados na “trava”16, ou levados ao paiol, à tulha. A
enquanto havia movimento e gente acordada, o 15
Quando o cacho do arroz é retirado da lavoura, ele traz muitas
fogão expelia fumaça. folhas secas, que se desfazem em pequenos fragmentos (ou “mu-
nha”) ao serem secos no jirau, sendo necessário abanar tudo o que
13
Trecho da entrevista com o Sr. Anésio Pereira dos Reis. foi colhido para sua retirada.
14
Pessoa íntima da família, a qual não necessitava de protocolos 16
Trava é uma espécie de jirau feito de tábuas, instalado logo abai-
para a chegada, conhecido, parente alguém habitual. xo da estrutura do telhado, preso ao frechal e às linhas (ou tensores)
limpeza de cereais era serviço feito pela própria por entre as aberturas dos balaústres, cobertos
família, à noite, como “distração”, entre conversas, de vergonha e cheios de travessuras.
à luz de uma lamparina que, terminado o serviço,
era apagada, e todos pela força da escuridão e do 3. O MODO DE VIDA RURAL: HÁBITOS E
cansaço se apegavam ao sono imposto pela noite. COSTUMES
É preciso dizer que, em média, durante o século Naqueles interiores de Minas, homens e mu-
XX, numa casa rural mineira residiam de oito a lheres, de várias origens17, misturaram suas raízes,
dez pessoas, às vezes mais. Média que caiu a menos seus hábitos. Vieram dar vida a casa luso-mineira,
da metade, nos últimos anos do século XX. Por além do indígena já citado, também o italiano e
isso havia muitos quartos, que nada guardavam o africano. Todos deixaram sua contribuição no
além de uma cama e um baú, espaço medido pelo cotidiano: na culinária mineira, no trabalho braçal
necessário para se entrar, dormir e sair; o do casal na lavoura, na forma das crianças brincarem no
um pouco mais dimensionado. Eram repetidos terreiro, no hábito de cozinhar no fogão à lenha
quase sempre lado a lado para acomodar a família da “varanda”.
e para receber visitas, principalmente aos fins de O português recém-chegado o que fez foi adap-
semana. Na funcionalidade do cômodo, o quarto tar-se ao clima apelando para improvisações e
das filhas era sempre pensado de forma especial, recursos já conhecidos no Reino, como o alpendre
com porta dando no quarto do casal, sem outro refrescante, cuja sombra sempre amenizava a tem-
acesso que não uma janela, também quase en- peratura interna (Lemos, 1976, p. 45).
costada à do quarto dos pais: assim, garantia-se O índio forneceu a cerâmica da cozinha. Forneceu
a tranquilidade do sono dos pais e a moral das a que possuía e passou a copiar modelos vindos de
filhas, mesmo quando havia visitas aparentadas Portugal. (...). Herança indígena é o jirau: arma-
do sexo masculino em casa. ção horizontal de paus suspensa acima do chão
O alpendre, receptivo e ventilado, deixava a (Lemos, p. 39 e 40).
casa mais fresca, era o lugar onde se recebiam as A criação de gado leiteiro e de porcos, e o cultivo
visitas inusitadas, não esperadas, que só depois de café e de cana de açúcar tornaram constantes,
eram levadas à sala. No alpendre fluíam os casos na mesa da casa rural mineira o queijo branco, o
e assuntos rotineiros dos mineiros, lugar de onde pão de queijo, a linguiça de porco caipira defuma-
da, o café preto coado no pano, o doce feito com a
se via tudo acontecer, e se observava a presença
rapadura, a gordura do porco caipira cuidadosa-
de estranhos, alertada pelo cão, a chegar ao ter-
mente guardada nas latas para “talhamento”. São
reiro. Ele também estabelecia certa imponência
tradições resultantes da mescla cultural brasileira,
à fachada da casa mineira, local de observação,
que pelos seus acertos se firmaram, permanecendo
sempre voltado para onde se podia enxergar o que como costumes não unicamente mineiros, mas que
se movia próximo, na lavoura, no curral. Com seus nas Minas ganharam seu espaço e se mantiveram.
balaústres de madeira recortada, sempre no lado Na casa mineira do século XX, as tarefas ainda
mais alto da casa, sua forma o expunha para fora eram organizadas por gênero, e mesmo hoje,
das paredes como que um puxado da casa, dando 17
Além dos imigrantes europeus, a região de Santana do Manhuaçu
a ela certo movimento. Forneciam esconderijo também recebeu migrantes de outras regiões do Brasil, que agrega-
às crianças que, ao ouvir o latir dos cachorros, ram a essa região seus costumes. Foram principalmente, paulistas e
corriam para ver o que ocorria, bisbilhotando fluminenses que, com as dificuldades em seus Estados, se aventura-
ram nas terras de Minas Gerais, onde o valor das terras era inferior
das tesouras. e havia menos burocracia para a sua aquisição.
certo conservadorismo ainda persiste quanto às A mulher que cuidava da casa mineira era quem
tarefas desempenhadas por homens e mulheres. O primeiro recebia: quando só ela estava em casa
homem trabalhava na lavoura, e trouxe da mata o e a visita era alguém conhecido, essa pessoa era
conhecimento das madeiras, a relação do tempo, convidada a se aproximar pela varanda da cozinha.
o conhecimento do clima, o saber lidar com as Cozinha, varanda, engenho de açúcar, hortas,
plantações. Também descobriu as ervas: muitos pomares e moinhos eram espaços de “lida”20 das
“raizeiros”18 que preparavam “garrafadas”19 pas- mulheres, onde se procurava preparar tudo quanto
savam para as gerações futuras os conhecimentos se consumia. A casa foi praticamente um espaço
adquiridos no preparo de raízes, folhas, cascas e feminino, generosamente aberto à recepção de
flores. Hábitos de poucos, costume de muitos, as seus homens e acolhimento dos filhos.
ervas vieram para próximo da casa, agora cultiva- O terreiro e varanda traseira, durante o dia
das pelas mulheres em suas hortas. Já a madeira palcos de trabalho, em algumas noites transfor-
lapidada pelo homem era matéria estrutural de mavam-se para dar lugar a festas com pagodes
quase tudo que se pretendia edificar ou construir, caipiras, animados ao sabor das quitandas que
em busca de refúgio, proteção e transporte. A alimentavam e revigoravam as forças dos “pés de
água que fervia na trempe, com o fogo atiçado na valsa”. Essas festas eram organizadas por várias
lenha roliça queimando lentamente, era levada ao famílias, adentravam a madrugada.
coador situado na ombreira da janela da cozinha: Os costumes relativos à religião, quase sempre
a brisa do amanhecer levava de volta para dentro são encontrados dentro da própria construção,
o cheiro do café recém-coado. A ele somavam-se como oratórios, estampas com representações
na mesa, o biscoito de polvilho, a broa de fubá, bíblicas, textos na fachada, ou mesmo nas festas
o pão de queijo, o queijo branco e o “leite gordo” folclóricas, tudo representando a devoção das
com nata amarelada. famílias. D. Maria, moradora há mais de 50 anos
Depois de comer, já preparado, o homem partia numa das fazendas de Manhuaçu, conta sobre a
para a lavoura tendo em mente a obrigação de recepção aos charoleiros e fulieiros21:
manter a casa com o que fosse preciso. A mulher Charola, folia, quantas de vez dormiu “charoleiro”
iniciava seu trabalho de cuidar da casa e preparar na nossa casa, os “fulião” na nossa casa, dormia
alimentos. A ideia da mesa farta foi assumida tudo lá, comia, “diara” eles mandava pedir “cumê”
como, mais que costume, questão de honra pe- aqui em casa, eu “pudia” ta sozinha, chegava recado
los mineiros, mas nem sempre isso foi possível. aqui em casa. (...) Ah! O “fulião” mandou falar que
Nos primeiros anos de colonização das terras do vem jantar aqui hoje! Ou vem almoçar amanhã,
leste de Minas, a alimentação era moeda de troca eu podia ta sozinha, ia pro terreiro matar frango...
daqueles que nada possuíam: por uma porção ou Graças a Deus nunca negamos a janta pra “fulião”
medida de feijão, trabalhava-se o dia inteiro para nem pra “charoleiro”.22
conseguir o que comer no outro dia. No meio Outro costume passado e apreciado pela família
rural, a tradição mineira foi lapidada aos poucos, era o bem receber a visita, fosse ela conhecida ou
do que e como fazer, na medida em que a terra 20
O termo “lida” tem o significado, para os mineiros, de trabalho.
foi sendo “descoberta” e repartida. 21
Personagens da Folia de Reis, manifestação folclórica típica das
zonas rurais brasileiras.
não, por isso e também pela necessidade, tropei- e nem sempre a casa se apoiava na encosta, como
ros23 eram bem recebidos por onde passavam, no partido tradicional mineiro. Porém, sempre
era-lhes permitido acampar e ali fazer suas trocas estava próxima a um curso d’água, dentro de um
de mercadorias. Durante muitos anos, o tropeiro vale, de forma que tudo o que se edificasse na
foi o único meio de comunicação entre o sertão fazenda ficasse no seu entorno.
e a cidade. A casa era planejada pelo dono e edificada pelo
O morador rural do leste mineiro, suprido em carapina, tudo partia da conversa onde o primeiro
suas necessidades básicas, acabou por isolar-se devia passar para o segundo o entendimento so-
em sua propriedade. Disso resultou um lingua- bre o desejado. Nada de papel, pranchas; apenas
jar próprio, o jeito rápido, a forma resumida e gestos, palavras e exemplos ilustravam o que seria
adjetivada de falar, que de hábito passou a regra. edificado. Porém, ao contrário do que se possa
Também criou um jeito típico de lidar com estra- pensar, não há ausência de técnica na construção
nhos: para as crianças, a vergonha fazia com que da casa no Leste de Minas. Percebe-se ali o uso
falassem rápido, de cabeça baixa, para que logo do cálculo, encaixes e cortes feitos com precisão,
pudessem se “libertar” das regras e ficar a vontade; embora rudemente, apenas não se inova em meios
para os adultos, a curiosidade de conhecer, saber e técnicas. Há ainda poucos, mas entusiasmados
das novidades do mundo e a necessidade falar construtores remanescentes que auxiliaram ou
de seu cotidiano. Os hábitos de vida, de exemplo edificaram várias dessas casas. Um deles é o Sr.
em exemplo, foram deixados para as próximas Anésio, carapina que ajudou a construir várias
gerações, se enraizaram no cotidiano e no modo casas na região. A partir do seu relato e de outras
de vida, e foram mantidos por muito tempo graças vivências, trataremos de como a casa começava
ao distanciamento do que acontecia nas outras a ser edificada.
regiões. Muitos deles ainda se mantêm vivos, A origem e a forma como a água se apresenta no
mesmo com a melhora das estradas e a com a terreno é de suma importância, o terreno era avaliado
chegada de meios de comunicação atuais. de acordo com a disponibilidade e quantidade de
água, e se essa, por desnível natural, teria condições
4. A CONSTRUÇÃO DE UMA CASA de servir a casa, pois a gravidade era a única força
RURAL NO SÉCULO XX NO LESTE possível de ser usada24. Depois de escolhido o local,
MINEIRO eram abertos os canais ou “regos”, que conduziam
a água da nascente ao mais próximo possível da
Em Santana do Manhuaçu, uma grande parte
casa, se por algum motivo essa distância ainda fosse
das casas da área rural foi edificada com estruturas
relativamente distante, então poderia buscar outras
de madeira nativa, cobertas por sapé, telhas de
soluções. Uma opção seria conduzir a água por
madeira ou de barro. Essas últimas eram produ-
outros meios: em “canos de bambu”, unindo várias
zidas em olarias que funcionavam para atender
partes se canalizava a água até uma bica; também
a uma casa em específico, logo depois, deixando
poderia ser feita com partes de embaúba, madeira
de produzir. Nas paredes foram usadas técnicas
que possui gomos maiores, com a possibilidade
de vedação antigas, como a taipa de mão (pau a
de que a tora fosse lascada ao meio formando dois
pique); na implantação, o terreno era modificado
canais. Ter água em abundância era de extrema
23
Tropeiro era o participante das tropas, espécie de comitiva for- importância para um homem que ao comprar um
mada por homens e animais de carga (mulas e cavalos), que trans-
portavam cargas e animais pelo interior do Brasil. Foram razoa- 24
Entrevista com o Sr. Anésio Pereira dos Reis, com 70 anos (data
velmente comuns até praticamente a década de 1970, quando as nascimento:1942), realizada em 08/02/2013, em Santa Quitéria,
rodovias e os caminhões as substituíram. distrito de Santana do Manhuaçu-MG.
terreno quisesse construir um moinho ou monjolo, pedregosos e secos, ou solos profundos e úmidos.
por exemplo. Construídos, estes serviam a ele e a O uso também era definido pela escolha do sítio,
outros, que pagavam pelo serviço ao seu proprietário, o tipo de solo (úmido ou seco) indicava quais
trabalhando em sua roça. O bom costume ensinava seriam as melhores opções de madeira. Até que
a servir a quem precisasse e nesse caso, água para a madeira começasse a ser lavrada, nada era feito
a bica não era negada nem ao vizinho de conflito, no terreno. Era preciso que fosse retirada da mata
mas possuí-la em abundância permitia à fazenda toda a madeira necessária para se erguer e fazer o
crescer e isso era levado em conta ao edificar a sede. fechamento (“tampar”) a casa - caso não houvesse
Para se construir uma casa de madeira suspensa a madeira necessária nas proximidades, a busca
do chão era necessário trazer pessoas que enten- seria maior e isso atrasaria todo o trabalho.
dessem dos entalhes de madeira, corte, montagem, As peças eram lavradas de maneira a atenderem
enfim, que soubessem trabalhar bem com a madeira. as primeiras necessidades dos carapinas, como por
Para isso era preciso ter alojamento, além de algo exemplo, para um esteio ou manco, viga ou frechal,
para trocar ou dinheiro para pagar, logo, quem não barrote ou tabuado, porta ou janela, cumeeira, “guiei-
possuísse terras dificilmente teria essa mão de obra, ro” (rincão), caibro ou ripa. Separadas para estrutura
nem onde construir ou madeira para cortar. Assim, ou móveis, e assim por diante. A primeira parte da
a construção indicava status, boa situação e garantia construção, o lavrar a madeira, era de responsabi-
o respeito dos demais. Todo o trabalho era feito ma- lidade dos carapinas, carpinteiros. Tendo a madeira
nualmente, de maneira rústica, sem papel e caneta, preparada no estaleiro, se podia começar a trabalhar
havia situações em que o fazendeiro ao falar como no terreno onde seria erguida a nova casa, para isso
queria a sua casa, fazia os carapinas, “chamados” a o dono contava com a ajuda de “companheiros” que
construir, desenhar no chão o esboço da casa. Assim trabalhavam para ele “descampando” e nivelando
o terreno a poder dos enxadões ou “itabiras”, desse
se entendiam os problemas, o que seria preciso para
trabalho surgia um barranco, a área da casa e um
a construção, e os pormenores restantes seria entre
terreiro. Com a madeira lavrada e o terreno prepa-
eles discutido durante a construção.
rado, carapinas, carpinteiros e proprietário davam
Os carapinas, após entenderem as dimensões,
início à segunda etapa, o assentamento dos esteios,
a forma e a posição da casa, partiam para a mata,
que tinham de estar aprumados. E começava o fei-
observavam o que seria preciso e saíam à procura
tio dos encaixes com ajuda de ferramentas como:
da madeira necessária. Ao encontrar, davam no
enxó, formão, macete, etc. Seguia-se a colocação
tronco um pique com o machado, era o sinal para dos mancos, das vigas e dos barrotes que, prontos,
o corte da árvore que, então, era transportada recebiam as tábuas do assoalho.
por bois, a arrasto ou de carretão até o local onde Tendo a base pronta, os carapinas sediam aos
seria preparada, o chamado estaleiro. Quando carpinteiros a ordem de comandar o serviço, come-
armado na encosta, o estaleiro facilitava o co- çava a terceira etapa, a cobertura. Eram armados
locar e retirar a madeira lavrada com o uso do os frechais, já com os pontos (perfurações) para
“gurpião” (grupião) - serrote de dois lados. Cada a estrutura do pau-a-pique; portas e janelas eram
tronco apresentava uma especificidade de uso posicionadas, seguindo certa simetria, “de distância
dependendo da espécie de formato. Influenciava em distância tinha que ter uma janela”, disse o Sr.
também o tipo de terreno em que crescera, por João Pedro25 em entrevista, dono de uma das casas
exemplo, a madeira ideal para esteio era a de solo
Entrevista com o Sr. João Pedro da Silva, com 71 anos (ano nasci-
25
pedregoso e seco. Uma exceção era a braúna, que mento: 1942), realizada em 10/02/2013, Córrego Santo Agostinho,
tinha boa madeira fossem as nascidas em solos município de Santana do Manhuaçu-MG.
antigas que se encontra na região. Após colocar a podiam receber uma camada de terra com areia
madeira do pau-a-pique, de madeira roliça ou lascas fina na tentativa de regularizá-la.
de palmito ou ainda bambu, tudo amarrado com Após o barreamento, a festa em comemoração era
cipó; dava-se início ao madeiramento do telhado: responsabilidade do dono, muito esperada pelos que
assentavam-se cumeeira, espigão, terças, caibros e haviam trabalhado no “jitório”: ela marcava o fim da
ripas, e então se procedia ao telhamento. A telha, construção para os ajudantes, mas ainda havia muito
como já mencionado, também era feita de madeira, a fazer para o morador. Começava aí a quinta etapa,
chamada de tabinha, a “coberta” termo que tem o descanso, um longo período de espera onde a casa
o mesmo sentido de telhado, era então entregue, pronta era deixada toda aberta para que o ar pudesse
e a parte de responsabilidade dos carpinteiros e circular e fazer com que o barro secasse – a espera
carapinas terminava. passar dos seis meses, dependendo da estação do
O barreamento, a quarta etapa, era o ato de ano. Seco o barro, a sexta etapa era a caiação. Alguns
jogar o barro na estrutura amarrada ao pau-a- pintavam as paredes com várias demãos de barro
-pique. Do entorno da casa era retirada a terra, branco (tabatinga), retirado de algum buraco ali por
de um barranco. Desfaziam-se os torrões e jo- perto. A tabatinga, dissolvida em certa quantidade
gava-se água, amassando a mistura com os pés. de água, tornava-se uma mistura viscosa que era
Às vezes, dependendo da quantidade necessária aplicada à parede com um pano. Em outras casas,
de barro, colocavam para girar em torno da casa passava-se “terra de formiga”27 também misturada
juntas de bois ou cavalos para ajudar no maceiro, à água e dependendo da cor, vermelha ou amarela,
quando não, uma multidão de pessoas ofereciam era pintada a parede ou apenas um barrado externo.
Tinta para as madeiras de janelas e portas eram
o jitório26 na difícil “empreitada” de barrear a
compradas na cidade e usadas em tons de verde,
casa, que muitas vezes era deixada para ser feita
azul, laranja e vermelho, as cores mais encontradas
próximo ao fim da semana, quando vizinhos e
nas casas existentes.
conhecidos podiam ajudar na tarefa, pois sabia
A casa de assoalho, alta do chão, sinalizava
que quando precisasse, todos fariam o mesmo.
status: quanto mais alta, maior a importância do
“Era uma alegria”, diz o Sr. Anésio, um antigo
proprietário. Havia dificuldade para encontrar
carapina, ao contar a saudade que sente desses
pessoas que soubessem trabalhar com a madeira
mutirões. O barreamento exigia o trabalho dos para uma casa muito alta28. Era preciso contratar
carregadores e dos cortadores de barro: como não profissionais, que cobravam caro e não trabalha-
havia vasilhames para o transporte do barro, este vam em sistema de mutirão...
era colocado em cestos nas costas dos carregadores Se na casa houvesse uma varanda de chão batido,
que o levavam até o andaime em volta da casa de vez em quando era necessária a aplicação de
onde estavam os cortadores de barro. Quando estrume de boi no chão, também misturado na
lá chegavam, jogavam o barro na treliça do pau- água. Essa “massa” era aplicada com uma “vassoura
-a-pique, o cortador, com o braço, arrematava de mato”: após seca, criava-se uma camada esver-
o excesso de barro da parede, fazendo assim o 27
Terra de cupinzeiro é a terra que a formiga retira dos túneis for-
“corte” do barro. Eram normais as imperfeições e mando a entrada característica dos formigueiros, essa terra tem
ondulações nas paredes, que depois de barreadas a consistência e forma granulada bem pequena, era usada tanto
para “curar feijão” para que não se carunchasse, até para tingir a
26
Termo “jitório”, corruptela de ajutório, é utilizado para explicar alvenaria das casas, ou dar liga na massa para a união dos tijolos.
o serviço prestado ao outro em troca de um mesmo favor quando
este precisar: normalmente muitas pessoas participavam. É uma 28
Entrevista feita com o Sr. João Pedro da Silva, 71 anos, feita em
espécie de mutirão. 2012.
deada, que impedia a criação de poeira e corrigia Nas bordas do terreiro, ficava a horta, o manguei-
pequenos buracos ou fissuras. Aplicar essa mistura ro29, o pomar; e sempre era dedicado um espaço
deixava o ambiente mais “asseado”, fresco, e sem para o plantio de gêneros para o consumo primeiro,
cheiro, segundo antigos moradores. Nessas casas, a nas proximidades da casa, por exemplo, a lavoura
cozinha ficava na varanda de fora, onde o piso era de milho, para o consumo da família, no local de
de terra batida, e esse era um dos motivos da água mais fácil acesso. O motivo maior do terreiro era
não chegar dentro de casa, mas na bica; e quando a secagem do café: ele justifica todo o arranjo das
as condições financeiras permitiam era assoalhada, construções, acomodadas nos cantos. Sempre volta-
mas havia também o medo de que a lenha do fogão do para o norte e o poente, no período de colheita o
pudesse colocar fogo na casa, caso alguma brasa terreiro era banhado pelo sol a maior parte do dia,
caísse no assoalho de madeira e não fosse percebido. sem sombras. Foi o café que constituiu as fazendas
e sítios no leste de Minas Gerais. Anualmente ele
O tipo de casa descrito aqui não foi o único pro-
se transformava em dinheiro, quando vendido na
duzido na região, há relatos de casas mais simples
cidade, que poderia ser trocado pelos itens não
ainda, edificadas até em maior proporção, só não
produzidos no sítio, como o sal, o diesel e etc.
resistiram ao tempo devido a sua precariedade,
cobertas com sapé, de pau-a-pique fincado no
6. CONCLUSÕES
chão, mal barreado, essas construções sofriam com
a chuva e o terreno úmido e a falta de manutenção. Nos levantamentos e nas entrevistas, percebe-se
Elas não possuíam escadas, alpendre ou assoalho. que o modo de construir e viver pouco se alterou
Nessas casas mais simples, luz só a produzida pela do início da ocupação da região na virada do século
gordura de porco. Há relatos de que animais, como XX, até a década de 1970. Com relação às edificações,
porco e galinha, eram criados na cozinha. São todas foram construídas sobre esteios de madeira,
algumas características da casa que ao lado da de erguidas do solo, originando porões abertos ou
madeira abrigou a maior parte dos mineiros nessa fechados, onde são estocados lenha, ferramentas,
região durante o início do século XX. servindo também de abrigos para animais de pe-
queno porte, etc. Os usos são bastante variáveis.
Saindo da etapa construção da casa, o terreiro
Quase todas as casas foram construídas em regime
era a próxima etapa, era então limpo e diferen-
de mutirão, ou ajuda mútua entre vizinhos, com
temente de outras regiões de Minas, aqui a casa
técnica de taipa de mão (as mais antigas) e tijolo (as
se afirma no centro dele, e nas laterais são orga- mais recentes), e estrutura autônoma de madeira.
nizadas as “varandas”, telheiros que recebiam as Essas técnicas construtivas tradicionais foram usadas
funções do sítio. Essas varandas eram telheiros, até a década de 1970, a partir de então, as novas casas
normalmente em duas águas onde ficavam: o passaram a ser construídas com tijolos e estrutura de
engenho de cachaça; a cobertura para a “tacha”, concreto, no entanto, as janelas raramente possuem
onde se produzia a rapadura; as fornalhas onde a folha envidraçada, quase sempre possuem apenas
se preparavam os doces; o curral; o paiol; a tulha; os escuros. Quanto à distribuição dos cômodos,
o chiqueiro; o galinheiro e, quando possível, o há uma tipologia que se repete: a da cozinha aos
moinho e/ou o monjolo, que eram equipamentos fundos, com varanda externa; uma faixa central
caros, e muito excepcionalmente, uma pequena que atravessa toda a extensão da casa, dos fundos
usina de energia elétrica água ou à diesel, que em à frente, ocupada por salinha e sala, ladeada por
alguns sítios fornecia energia a somente a noite e 29
Espaço cercado de lascas de madeira onde se prendiam os porcos
em horários programados. para engorda, com chão de terra e canal de água de água corrente.
Fig. 1 – Sítio Souza, edificação de 1911 e Sítio Reis, de 1977. Apesar de separadas por 66 anos, a disposição de cômodos e a técnica
construtiva é a mesma, e ambas se assemelham a edificações do século XVIII, da região central de Minas Gerais.
um número variável de domitórios, com ou sem partir da abertura de novas estradas, algumas até
alpendre frontal (“varanda”). asfaltadas, e da chegada do automóvel, a influên-
Pode-se concluir que essas casas são muito se- cia das construções urbanas se fizeram sentir. A
melhantes, na volumetria e na aparência externa, facilidade na obtenção de novos materiais cons-
além do emprego das mesmas técnicas constru- trutivos foi determinante nesse aspecto. Em sua
tivas, daquelas encontradas em exemplares de simplicidade e rusticidade, traduzem um modo
fazendas da região de Mariana, Ouro Preto e Barra de vida de um homem ainda muito próximo da
Longa, de onde vieram os primeiros povoadores natureza. Num mundo que se afasta cada vez
e onde há forte influência da arquitetura popular mais do convívio com a terra, essa talvez seja a
do norte português. Esse modo de construir e grande riqueza e lição, dessas casas, para o homem
morar perdurou enquanto se manteve o relativo contemporâneo.
isolamento dessas áreas rurais do leste mineiro. A
8. REFERÊNCIAS
Barbosa, V. Meeiros de café: gente e ocupação da Lemos, C.A.C. Cozinhas, etc. São Paulo, Editora
zona proibida do Caparaó. Rio de Janeiro: Rena- Pespectiva S A, 1976.
van, 2009. Martins, H.T. Sedes de Fazendas Mineiras Campos
Benincasa, V. Velhas Fazendas: arquitetura e coti- das Vertentes séculos XVII e XIX. Belo Horizonte,
diano nos campos de Araraquara 1830-1930. São BDMG Cultural, 1998.
Carlos: EdUFSCar; São Paulo: Imprensa Oficial de Menezes, I.P. Arquitetura Rural em Minas Gerais
São Paulo, 2003. Século XVIII e Inícios do XIX. In: Barroco 12. Belo
Botelho, D.A. História de Manhumirim: municí- Horizonte, 1983.
pio e paróquia - I volume (1808 a 1924). Belo Ho- Vasconcellos, S. Arquitetura no Brasil - Sistemas
rizonte: Editora O lutador, 1987. Construtivos. Belo Horizonte: Escola de Arquite-
Lage, P.R.A. Almeida, D. P. Casa Rural Mineira: um tura da UFMG, 1979.
guia de construção. B. Horizonte, Palco Ed., 2011.
RESUMO
O presente trabalho propõe-se analisar a tipologia construtiva dos franciscanos em Trás-os-Montes -
Vinhais (Portugal) e alguns exemplos desta mesma ordem - no litoral do Nordeste brasileiro durante o
período colonial, destacando os materiais aplicados em elementos formais e decorativos diversificados,
assim como agrandeza assumida por essas arquiteturas.
A arquitetura religiosa do século XVIII na região de Trás-os-Montes, constitui um dos maiores núcleos
patrimoniais da província. Neste período toda esta região vai beneficiar de um longo período construtivo.
Compreender a vivência dos religiosos (Missionários Apostólicos de Vinhais - Igreja de São Francis-
co e respectivo convento) e ligá-la às soluções arquitectónicas assumidas, torna-se fundamental para
podermos entender o edifício como um todo e percebermos as alterações que ao longo dos séculos este
convento foi sofrendo, num esforço de adaptação às conjunturas históricas (sociais, económicas, men-
tais e religiosas) que atravessaram.
O convento franciscano de Nossa Senhora das Neves em Olinda, e a Igreja e Convento de São Francisco
em Sergipe fazem parte de um magnífico grupo de conventos construídos pela Ordem de São Francisco
nesta região do Nordeste Brasileiro, assim como a Igreja de São Francisco e respectivo convento em
Vinhais (Portugal) faz parte de um conjunto de conventos construídos na região de Trás-os-Montes
nesta época. Os franciscanos adotaram soluções construtivas inéditas ao recorrerem aos materiais de
cada região uma vez que a construção destes edifícios resulta de um sistema baseado na tentativa / erro.
Estes conventos não são produtos isolados da criação individual, mas sim de um contínuo processo de
conhecimentos herdados e reformas aplicadas que se desenvolvem de acordo com uma particular e cla-
ra concepção arquitetónica da vida conventual. O programa arquitetónico desses conjuntos apresenta
algumas características comuns, quer em Portugal quer no Brasil.
1. INTRODUÇÃO
Os franciscanos não eram classificados como abadias ou mosteiros. Os conventos eram regra
monges, mas sim como religiosos e realizavam geral construídos junto as vilas ou cidades, mas
voto de pobreza, castidade e obediência. Viviam isolados destas. A localização dos edifícios em
em fraternidades, geralmente conventos e não locais isolados, seguia uma via contemplativa,
modo preferido pela Ordem nos primeiros tempos No Brasil a presença da Ordem Franciscana
pela via Observante1. só foi concretizada a partir de 1585 com a cons-
De acordo com o ideal do fundador os seus trução do primeiro Convento de São Francisco
membros não deveriam possuir nada, estando em Olinda, pois a autorização de construção de
obrigados a viver do modo mais austero possível e qualquer igreja, ou convento no Brasil estava
mantendo a comunhão com o povo e a natureza. sujeita ao parecer do Rei tendo por intermedi-
Deviam adotar uma vida extremamente simples ária a Ordem de Cristo, pelo que as aprovações
dando sempre exemplos de humildade e devoção para a realização de qualquer obra nas colónias
devendo os seus edifícios estar em consonância teria sempre que aguardar a resposta de Portugal
com estes princípios (Carvalho: 2009; p. 19). (Carvalho: 2009; p 30).
No século XVIII, em Portugal a ordem estava A Ordem dos Frades Menores possuía
dividida em sete províncias (Tereno et all: 2010; no Brasil, aproximadamente dezoito con-
p. 2), Portugal e a dos Algarves (Observância), ventos (Bazin: 1983;p.138), dos quais cin-
Piedade, Soledade, Santo António, Conceição co localizados no estado de Pernambuco.
e Arrábida (Estreita Observância). Nesta época Bazin refere que os conventos franciscanos cons-
existiam também Capuchinhos e Franciscanos truídos durante o período colonial no nordeste
(Estreita Observância), estes de origem francesa Brasileiro, apresentam características ímpares e
e que serviram como ponto de apoio às missões inéditas, ao ponto de referir que a ordem francisca-
em África e no Brasil. Além das sete províncias na criou uma escola, que este autor designou como
e duas custódias (S.Tiago Menor - Madeira e Escola Franciscana do Nordeste. Outros autores,
Conceição Açores), fundaram-se ainda cinco como Campello (2001) e Mota Menezes (1986)
seminários autónomos e em 1680, do convento do apontam esta escola como a primeira manifestação
Varatojo, partiram os fundadores de quatro casas arquitetónica de características brasileiras.
do mesmo ramo: Brancanes, Vinhais, Mesão Frio Em Portugal também se tem analisadoa exis-
e Falperra. Para colmatar a falta de missionários tência de um Estilo Arquitetónico Franciscano. O
entre o Minho e Trás-os-Montes e levar aos locais historiador de arte Vicente Garcia Rós salienta
inóspitos a pregação e a assistência espiritual, por que a Ordem dos Frades Menores produziu, uma
volta de 1740 é concedida por D.João V a licença arquitectura dos Franciscanos e não propriamente
para a fundação do Convento dos Missionários uma arquitectura franciscana, sugerindo que “a
Apostólicos Franciscanos de Vinhais. Em1751, diversidade promovida pelos diferentes movimen-
D. Frei João da Cruz então bispo de Miranda, tos e tradições, desde a primitiva Observância, da
autoriza os Missionários Apostólicos do Convento conventualidade aos reformados e às novas Pro-
do Varatojo a “fundar no sítio da Taipa o convento víncias” (Rós: 2000; p. 22) foi factor determinante.
da Nossa Senhora da Encarnação de religiosos da Por isso quando Bazin (1983: p.137), afirma
Ordem de S.Francisco Missionários Apostólicos que os franciscanos criaram uma das expressões
do Instituto de Brancanes ”. O convento de São arquitectónicas mais originais do país (Brasil)
Francisco, Seminário dos Missionários Apostóli- com soluções inéditas, não nos podemos esquecer
cos, tinha uma disciplina monástica e privilégios que a influência portuguesa foi fundamental para
pontifícios iguais ao Seminário de Varatojo em a construção daquelas edificações, mesmo que
Torres Vedras. (Elmano: 2006). estas tivessem sofrido alterações ao longo dos
séculos, pois “ (…) os frades que vieram para o
1
Editorial Franciscana: franciscana. Portal org/portal/índex. Brasil atrelavam sua atuação à existência de uma
php?id=5653.
casa, sede fixa e estável, inicialmente simples, mas, apresentam por regra uma certa unidade do ponto
posteriormente, marcada por uma expressividade de vista arquitetónico, ainda que tal nem sempre
arquitetônica mais arrojada, cuja decoração in- se verifique na decoração, influenciada por gos-
terna ia sendo depurada com o tempo e à medida tos, estilos e maior ou menor disponibilidade de
que os recursos financeiros permitiam” (Maga- mecenas e artistas. Estes conventos articulam-se
lhães: 2012:p 4069). Assim da análise efetuada e tanto com os elementos da paisagem natural como
da documentação consultada, face à localização com as estruturas urbanas. Integram-se, de forma
destes conventos, ao clima e aos materiais usados harmoniosa, com a sua envolvente natural (em
e considerando que muitas vezes a implantação especial com a água, o coberto vegetal as vistas),
destes edifícios era efetuada em territórios com afirmando-se na paisagem como espaço cons-
caraterísticas ambientais, económicas e sociais truído. Os imóveis apresentados são simples,
(Magalhães: 2012; p 4068) e influências arquitetó- aproximando-se dos modelos da arquitectura chã,
nicas distintas, podem surgir imprecisões, quanto ou o designado Estilo Chão (plain architecture)2.
ao seu arquiteto ou mestre de obras ou seja : ao No Brasil, o primeiro ciclo construtivo francis-
registro em base gráfica, das intenções projetuais cano caracterizou-se pela construção de edifícios
iniciais tanto no caso portugues como brasileiro. pobres de acordo com os ideais difundidos pela
Ordem. O segundo ciclo de construção, pelo
2. NOTAS HISTÓRICAS SOBRE contrário, correspondeu ao esplendor da arqui-
“A ARQUITETURA RELIGIOSA tetura conventual franciscana, coincidindo com o
FRANCISCANA” período após a expulsão dos holandeses em 1654
e prolongar-se-ia até meados do século XVIII3.
Qualquer um dos conventos apresenta cons-
truções singelas, mas com toda a atenção vol- Tomando por base as reflexões efetuadas sobre
tada para os frontispícios que recebiam sempre estes casos de estudo, verificamos que nos exem-
um tratamento diferenciado. As fachadas num plos brasileiros a tipologia difere ligeiramente ao
estilo barroco estão emolduradas por pilastras nível do programa previsto para cada convento,
laterais bem marcadas e por frisos e cornijas que mas mantendo as mesmas características.Focámos
se sobrepõem ao conjunto. São executadas em a nossa análise ao nível da configuração dos edi-
alvenaria e apresentam pórticos com três arcos de fícios, elementos estruturais (materiais) e alguns
volta perfeita à mesma altura, do qual o central ornamentos. O mesmo foi realizado para o caso
dá entrada para o átrio e direcciona-nos para a de estudo português.
igreja e para o claustro.
O piso superior, no caso de estudo de Vinhais, 2.1. TIPOLOGIA ARQUITECTÓNICA
é constituído por três janelas de jambas retas, Da leitura efetuada, verificou-se que o programa
tendo a central um arco carpanel. Em Olinda e arquitectónico desses conjuntos apresenta algumas
Sergipe as janelas são de jambas retas; em Olinda características constantes entre si e evidencia al-
é visível uma decoração de fingidos de pedra na guns elementos fixos, tais como o claustro como
parte superior e inferior das janelas. elemento articulador de espaços, igreja conventual
No caso de Vinhais verificamos ainda que a de nave única, capela-mor um pouco mais estreita
Capela do Senhor dos Passos surge do lado es- 2
Designaçãoatribuidapor George Kubler em: Portuguese Plain
querdo da entrada. Toda a construção assenta num Architecture between spices and diamonds, 1521 to 1706, ed. Har-
modus vivendi que se liga à história da Ordem, à mondsworth, 1966 (trad. portuguesa de J. H. Pais da Silva, prefácio
localização, aos materiais, à estrutura e ao fun- de José Eduardo Horta Correia, Ed. Vega, Lisboa
cionamento destas casas. Os exemplos expostos, 3
BAZIN:1983; p 136-194.
que a nave, sacristia e coro, galilé4 sob o coro coroado no centro por uma cruz assente numa
alto, fachada com frontão triangular, campanário peanha barroca.Do lado dos arcos encontramos
único (elemento vertical de destaque ), recuado duas pirâmides. Na parte da cabeceira desta igreja
ou não da fachada e um adro que pode ou não sobressai a torre quadrangular ornamentada por
ter um cruzeiro. pilastras em cantaria de granito bem aparelhado
As fachadas são simples, e apenas mostram nas quatro paredes. Existem quatro vãos para os
um tratamento mais cuidado na principal, onde sinos em forma de arco de meio ponto de grani-
dominam cunhais e modinaturas de cantaria ou to. Existem também nos quatro cantos da torre
silharia fendida de cunho maneirista e clássico. pirâmides barrocas bem esculpidas. Nas paredes
Nos andares superiores, o frontão triangular é existe um friso e cornija de cantaria com alguma
substituído por um frontão cujo perfil apresenta saliência, sob este há uma balaustrada barroca que
um movimento das linhas curvas que define os enquadra a pirâmide branca de alvenaria que está
seus contornos, amparado por duas aletas com coroada por um catavento.
volutas simétricas e rematado em pináculos (um Em Olinda e Sergipe o frontispício apresenta
recurso decorativo utilizado desde o Maneirismo características mais barrocas em Vinhais mais
para esconder uma empena de duas águas). Os clássico . Contudo, quaisquer dos exemplos bra-
andares inferiores dos casos de estudo, apresentam sileiros atingiram maior expressão plástica com o
uma galilé com arcadas iguais em volta perfeita, recurso a introdução de cornijas contracurvadas,
integradas à volumetria do edifício. Estes frontis- que se interrompe no vértice com uma cruz latina
pícios possuem uma só torre, recuada em relação No entanto os seus cunhais são simples.
à sua fachada, excepto Sergipe. Os claustros são todos de planta quadrada e o
No caso de Vinhais o modelo pode ser clas- pátio ou é pavimentado ou convertido em jardim
sificado como clássico. A fachada é depurada, com uma fonte ao centro. São ladeados por um
destacando-se o amplo frontão, com o nicho no conjunto de arcadas apoiadas em colunas, nal-
tímpano.Apresenta no pavimento térreo três ar- guns casos colunas toscanas (Olinda). É normal
cadas, constituídas por arcos de volta perfeitaque encontrarmos as suas paredes decoradas com
dão acesso ao pórtico que sustenta o coro do piso azulejos (Olinda). Este espaço faz a divisão entre
superior. Neste piso existem três janelas de jambas o público e o privado.
retas, tendo a central um arco carpanel em gra- O claustro geralmente recebia um tratamento
nito. A base do frontão triangular é formada por diferenciado. A tipologia comum de claustro, que
uma arquitrave com cornija saliente, apoiada por no conjunto das regras seráficas é em geral dispos-
duas pilastras.Sobre o entablamento e dentro do to em duplo piso, numa secção quadrangular de
tímpano de jambas apilastradas e frontão formado arcaturas robustas e muito simples, cria um espaço
por duas aletas, encontramos o escudo da Ordem de acesso a outras dependências: portaria, casa
Franciscana. Neste conjunto, existe um nicho, com do capítulo, refeitório, cozinha, casa do lavabo,
mísula reta em forma de pedestal e com dossel em despensa, adega, barbearia, rouparia, enfermaria,
forma de concha, que acolhe a imagem de Nossa biblioteca e a ala dos dormitórios, que ocupava um
Senhora da Encarnação.O arco da fachada está grande espaço autónomo e restrito (RÓS: 2000).
4
Uma das caraterísticas dos conventos franciscanos é a galilé (ou Evidentemente que existem muitas variantes sendo
nártex reentrante). Este elemento pode ser entendido como uma isso notório nos exemplos em análise,o que con-
derivação do alpendre. Uma solução comum nas casas senhoriais
ou em igrejas quando foram criados pórticos para abrigar os não firma a dificuldade de identificação do conceito
baptizados. de Arquitectura Franciscana.
Fig. 1 - (1) - Convento/Seminário - Igreja de São Francisco e Seminário dos Missionários Apostólicos de Vinhais - ©Helena Pires 2014.
(2)- Convento Franciscano de Nossa Senhora das Neves – Olinda. Fonte http://www.turismopelobrasil.net/. (3) Igreja e Convento de
São Francisco - Sergipe. Fonte: https://aventure-se.com/2013.
As igrejas têm nave única e planta rectangular. de estudo, refere que a ligação ao segundo piso
Na parte superior da galilé encontra-se ocoro-alto, era por costume assegurada por duas escadas, a
com soalho em madeira e balaustrada também Regral, que partia da zona do refeitório e ligava
em madeira. Com acesso através da galeria su- directamente aos dormitórios, e a das Matinas
perior do claustro, o coro-alto é iluminado por que estabelecia a ligação entre a Via-sacra e a ala
três janelas e pode ter acesso à torre sineira. No de acesso ao coro-alto6. Este facto verifica-se quer
caso de Vinhais este espaço dá acesso a igreja em de Vinhais quer em Olinda.
da Venerável Ordem Terceira. De salientar que Os conventos em estudo neste trabalho estavam
a galilé só surge no século XVIII, pois até era circundados por uma Cerca, que delimitava o
um elemento destacado da igreja, um alpendre terreno do espaço público. Este espaço, não só
circundava o “ território religioso”, como também
anexado à fachada5.
dividia o espaço que se destinava ao cultivo de po-
A historiadora de arte Ana Paula Figueiredo,
a partir da análise de conjunto dos seus casos
6
Idem: FIGUEIREDO, In: Os Conventos Franciscanos da Real
Província da Conceição - análise Histórica, tipológica, artística e
FIGUEIREDO: 2009: p 27-30
5
iconográfica.2009: p 122 e 163.
em 1883, e desde então que foi sujeita a alguma é colocada uma nova torre mais leve. Em 1938
descaracterização. é substituída e construída uma outra mais de
A fachada da igreja apresenta três níveis com- acordo com o modelo arquitectónico da igreja
positivos.No piso térreo, três arcos, ao mesmo (SOUTELO: 2007; p 5).
nível, com arcos de volta perfeita, que dão acesso
a galilé. O nível seguinte é constituído por três 3. OS MATERIAIS E AS SUAS
vão rectangulares, decorados e ladeados por duas CARATERÍSTICAS. BREVE ANÁLISE
pilastras que acentuam a verticalidade da facha- COMPARATIVA DOS CASOS DE ESTUDO.
da a qual remata com duas aletas com volutas e
O sistema construtivo que o caso de estudo em
contra-volutas apoiadas numa cornija, que remata
Vinhais apresenta, é coerente com as técnicas e
com dois pináculos.
materiais utilizados durante este período, nesta
Esta igreja, também seguiu uma matriz jesuíta,
região.
ou seja planta em nave única, transepto inserido
A ficha de inventário que serviu de base para
no perímetro de base e capela-mor estreita mas
a inspecção ao edifício apenas e só no caso de
não muito profunda. No fundo da nave da igre-
estudo de Vinhais12, permitiu-nos reforçar o
ja encontramos o coro-alto, guardado por uma
coFinhecimento quanto à aplicação das desig-
balaustrada em madeira, por cima da galilé.A
nadas “técnicas tradicionais de construção ”. Os
torre localiza-se do lado do evangelho e é recuada
materiais utilizados na construção das paredes
em relação à fachada.Nesta torre o remate final
exteriores deste convento foram a pedra e o barro.
apresenta já característica do século XVIII , isto
A alvenaria era realizada pelo sucessivo encaixe
seja evoluiu da forma piramidal (século XVII)
das pedras de diferentes dimensões sobrepostas
para a forma bulbosa .
umas nas outras, sendo as pedras maiores e mais
lisas assentes no paramento exterior. Para o pre-
3.3 SERGIPE – BRASIL
enchimento dos espaços vazios utilizavam-se as
A Igreja e Convento de São Francisco (Cidade pedras mais pequenas e o barro. Esta técnica é
de São Cristovão /SE)– Sergipe, pertence a atual bastante semelhante à utilizada para a construção
cidade de São Cristóvão, antiga vila de São Fran- dos muros de pedra, construções características
cisco quejá foi a capital do estado10. O conjunto foi nesta região transmontana (com excepção do
erguido na parte alta da cidade, que está localizada emprego do barro), designada por alvenaria
junto à foz do Rio Sergipe. “insossa” ou de junta seca. “É uma técnica de
A nave da igreja, com galilé, é projetada para construção que dispensa o uso de argamassa
a frente em relação à edificação do convento e as na ligação das pedras entre si, tendo-se desen-
instalações da Ordem Terceira (sendo esta mais volvido principalmente nas zonas onde a cal era
recuada em relação ao restante conjunto).11 escassa. Para obviar à menor coesão da parede,
A torre neste exemplo é colocada do lado da consequente da falta de argamassa de assenta-
epístola. A primeira foi construída no século XIX mento, esta técnica requer uma boa execução no
e demolida em 1849 e no início do século XX 12
PIRES, Helena Graça Barros, - Conservação Preventiva - Uma
Arquivo Noronha Santos /IPHAN: São Cristóvão – SE: Convento
10 escolha Sustentável [Seminário dos Missionários Apostólicos de
de São Francisco e Igreja do Bom Jesus. Localização Topográfica: Vinhais - trabalho desenvolvido na unidade curricular de Con-
AA01/M033/P06/Cx.0777/P.2898. N.º do processo: 0303-T-41 servação Preventiva, Curso de Doutoramento em Estudos de Pa-
trimónio, Escola das Artes, Universidade Católica Portuguesa,
As afirmações são feitas com base na análise feita a várias ima-
11
2014.], Universidade Católica Portuguesa. Porto, Escola das Artes:
gens consultadas na internet. Porto.2014.-
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Igreja Católica tinha poder para influenciar,
não somente a construção do traçado urbano
como o desenvolvimento urbano da vila ou da
cidade, onde o convento estava inserido13.
Tratando - se de uma análise comparativa entre
arquitetura e os respetivos materiais utilizados
entre o convento do nordeste transmontano - Por-
tugal e o nordeste brasileiro - Brasil, verificamos o
Fig. 3 - Convento Franciscano de Nossa Senhora das Neves – uso de elementos arquitectónicos comuns a ambos,
Olinda (1925-1930. Fonte: Biblioteca Almeida Cunha – 5ª SR/
Iphan, registo: 9480/07ePlanta do pavimento térreo do Convento que resulta numa composição bastante similar.
Franciscano de Nossa Senhora das Neves – Olinda Fonte:George_ Sabemos que no Brasil, German Bazin iniciou
Hamilton_Paes_Barreto. este estudo e em Portugal Ana Paula Figueiredo14,
fez uma abordagem similar em alguns conventos.
telhas cerâmicas como era uso na Península No entanto, esta autora não abordou na sua totali-
Ibérica (Neto: 1995). dade o nordeste transmontano e assim sendo este
À semelhança do caso de estudo português as trabalho será o primeiro a dar ênfase a este estudo.
paredes seriam construídas em alvenaria mista Em Vinhais ao longo de 260 anos, o Convento/
de pedra e tijolos de barro argamassados com cal Seminário de Vinhais foi alvo de diversas interven-
e a cobertura preenchida com telha cerâmica de ções de manutenção especialmente nas coberturas
canudo, com uma estrutura em madeira. e paramentos entre outras de adaptação às novas
Em Olinda e Sergipe, os pavimentos dos pisos funções. Pouco se sabe acerca dessas intervenções.
superiores ainda mantém o soalho em madeira
CARVALHO: 2009; P 17-35.
13
apoiada em barrotes. No caso de Vinhais, o soalho
é constituído por tábuas assentes em madres, que FIGUEIREDO, Ana Paula Valente de -Os Conventos Francisca-
14
Fig. 5 - Trançado de Palha - Preenchimento das paredes interiores [Sistema Fachwerk] - Convento/Seminário - Igreja de São Francisco
e Seminário dos Missionários Apostólicos de Vinhais - ©Helena Pires2011.
empregados, assim como na procura da harmonia sentido foram analisados os dados recolhidos,
entre os espaços interiores e exteriores e a relação permitindo a construção de um perfil dos edifícios
destes com a natureza. conventuais estudados que possibilitou entender
Em virtude de ainda nos encontrarmos numa as semelhanças tipológicas dos mesmos e os vários
fase de investigação não é possível abordar exaus- materiais, que tiveram sempre na sua génese as
tivamente todas as linhas de investigação. Neste questões históricas e culturais da época.
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nal de Tecnologia do Ambiente Construído – Juiz Municipal de São Cristóvão, 2007. p. 1-12.
de Fora.
RESUMO
Conjunto edificado, traçado, situação geográfica e experiência urbanística do colonizador são assuntos
recorrentemente tratados na historiografia acerca da construção de vilas e edifícios do contexto colonial
das então conhecidas terras brasílicas.
Discursos clássicos, como os de Sérgio Buraque de Holanda e de Nestor Goulart Reis Filho, fundamen‑
taram uma generosa produção bibliográfica subsequente acerca do tema, marcada por argumentos
que oscilam entre o planejamento e a aleatoriedade da construção do meio urbano, impulsionada pelos
portugueses durante os dois primeiros séculos de colonização.
Investigações que vem sendo realizadas desde o ano de 1998 por integrantes do Grupo de Pesquisa Estudos
da Paisagem (Fau‑Ufal‑Brasil), do qual as autoras desse resumo de artigo participam, desenvolvidas em
vários níveis de conhecimento, desde iniciações científicas até teses de doutorado, têm contribuído para
o reconhecimento de que determinadas lógicas de ordenamento permeiam a construção dos primeiros
núcleos urbanos implantados no Brasil, ao mesmo tempo em que garantem a eles feições particularizadas,
como bem sintetizou José Pessoa na expressão ‑ “em tudo semelhante, em nada parecido”.
Tomando como base imagens e textos de época, bem como a própria paisagem edificada de origem colo‑
nial como fonte de observação, este artigo trata de construções de núcleos urbanos e edifícios situados na
região compreendida pela antiga Capitania de Pernambuco, Nordeste do Brasil, enquanto representações
de uma “cultura de território”, como conceituou Manuel Teixeira. Nessa perspectiva, demonstra‑se que,
atentanto para as caracteristicas do lugar, os colonizadores portugueses no contexto dos séculos XVI e
XVII carregavam uma série de normas de implantação das povoações, seja na escala urbana, seja na
escala edilícia, as quais foram estratificadas ainda durante o período da Idade Média, como registrou
Helder Carita, e que foram constituindo modos de operar clássicos traduzidos também no tempo do
Brasil Colonial, permeando formas abstratas de pensar a arquitetura e o meio urbano que podem ser
reconhecidos em iniciativas de projetos de arquitetura contextualizadas até o final da Modernidade.
Fig.1 ‑ Contornos do mapa do Brasil, localizando os limites da antiga Capitania de Pernambuco na região Nordeste, com as suas vilas
no século XVII.
Fig. 2 – Olinda em um detalhe, com legenda, da planta intitulada Prespectiva de Pernaobuco como se mostra olhado do mar desta illa
até a barreta. In: MORENO, Diogo de Campos. Relação das Praças Fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem na costa do
Brasil, 1609. Fonte: Documento microfilmado disponível no Arquivo Nacional do Tombo – Lisboa.
Além do legado português, conta‑se com o ex‑ pintores, naturalistas e cientista.2 A atuação de
traordinário acervo de imagens produzidas pelos Nassau no Brasil foi minuciosamente narrada por
holandeses, especialmente durante a presença Gaspar Barléus em sua obra História dos feitos
de Maurício de Nassau no Brasil (1637‑1644), recentemente praticados durante oito anos no Brasil.
o qual se fez acompanhar pela Companhia das Publicado em 1647, o livro é magnificamente ilus‑
Índias Ocidentais constituída por cartógrafos, trado com mapas, plantas e vistas produzidos por
George Marcgrave e Frans Post respectivamente,
Edição fac‑similada do manuscrito da Biblioteca da Ajuda (1582
registrando as capitanias por eles conquistadas,
‑1585). Leitura, introdução e notas de Melba Ferreira da Costa. Lis‑
boa: Tagol, 1988; Estado do Brasil Coligido das mais sertãs noticias 2
A partir de 1580, com a morte de D. Sebastião, a administração de
q pode aiuntar dõ Ieronimo de Atayde, por João Teixeira Albernaz, Portugal foi anexada ao governo da Espanha resultando em uma
cosmographo de Sua Magde, anno 1631. Mapoteca do Itamarati monarquia dualista, o que comprometeu as relações comerciais
– Ministério das Relações Exteriores/Rio de Janeiro, e Descripção portuguesas com os Países Baixos, o que despertou nesses últimos
de todo o maritimo da terra de S. Cruz, chamado vulgarmente, o o interesse pela expansão colonial. Como decorrência, foi criada
Brazil. Feito por João Teixeira cosmógrafo de Sua Magestade. Anno uma ação holandesa para colonizar a América e a África Ocidental
de 1640, por João Teixeira Albernaz. Lisboa: Aeroportos de Portu‑ chamada Companhia das Índias Ocidentais, a qual precederia a
gal. Edição integral, fac‑similada a cores, do códice pertencente ao Companhia das Índias Orientais que alcançaria as terras brasílicas
Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, de Lisboa. no ano de 1624. (Mello, 1999, p.20)
Fig.3 ‑ Imagem seiscentista (elaborada por Frans Post) e atual da antiga Vila de Igarassu. Fonte: Barléus, 1647 e acervo do Grupo de
Pesquisa Estudos da Paisagem‑Fau‑Ufal.
sendo a região do Recife, península onde estaria tigação apoiou‑se em dados resultantes de uma
situado o porto de Olinda, e a chamada Ilha de revisão bibliográfica sobre temas do urbanismo
Antônio Vaz, honradas com um maior número lusobrasileiro, quais sejam:
de registros imagéticos.3
Além da obra de Barléus, há também uma série 1. Acerca do conjunto edificado da vila
de relatórios, a exemplo dos de Adrian Verdonck
Em 1956, Aroldo de Azevedo afirma que as fei‑
(1630), Joan de Laet (1636) e Adrian Van der
torias são o embrião da cidade colonial portuguesa
Dussen (1639), integrantes da referida comitiva
na América, com potencial para serem convertidas
nassoviana, nos quais há listagens e descrições de
em aldeamentos ou povoados através da implan‑
áreas povoadas, rios e outras estruturas edificadas.
tação da capela que assegurava a estabilidade da
Portanto, a eleição das vilas para observação
aglomeração, mesmo que suas condições incipi‑
baseou‑se nas suas localizações dentro de uma
entes de infraestrutura, insignificância econômica
abrangência territorial específica, no caso a Capi‑
e seus próprios propósitos militares comprometes‑
tania de Pernambuco; possuírem o status de vila
sem o hipotético desenvolvimento urbano, como
no século XVII e na disponibilidade de material
aliás aconteceu: das 4 feitorias fundadas no Brasil
imagético legado pela produção seiscentista, na
no século XVI – Santa Cruz na Bahia, Conceição
perspectiva de ampliar o alcance do olhar inves‑
de Itamaracá e Igarassu em Pernambuco, e Cabo
tigativo sobre a experiência urbanística colo‑
Frio no Rio de Janeiro ‑ apenas as duas últimas
nizadora no início da construção da paisagem
continuaram. (Azevedo, 1956, p.11) O arquiteto
edificada do Brasil.
Nestor Goulart sintetizou essa dinâmica em três
Além dos códigos extraídos dos próprios docu‑
fatores: religião, administração e segurança, os
mentos de época, a análise dessas fontes de inves‑
quais resultaram em: “construções particulares
de residência e trabalho”, “construções oficiais”,
3
As imagens de Marcgrave e Post foram eleitas enquanto fonte para construções “para fins militares” e “construções
estudo aprofundado pela peculiaridade de retratarem Pernambuco
e pelo caráter detalhista que qualificam suas obras, norteado por religiosas”. (Filho, 1968, p. 153‑186) Já o geógrafo
um “olhar atento, transcrito pela mão – o que poderia denominar Pedro Vasconcelos chamou esses fatores de “agen‑
‑se habilidade observacional” ‑ como colocou Svetlana Alpers sobre tes modeladores das cidades”, os quais seriam:
a pintura holandesa seiscentista. (Alpers, 1999, p.159)
a igreja (igreja católica, conventos); as ordens p.71) Sérgio Buarque inicia sua abordagem dis‑
leigas (Ordens Terceiras, Irmandades da Miser‑ cutindo os desígnios dos engenhos e das cidades
icórdia); o Estado (os prédios governamentais enquanto instrumentos de dominação do imperi‑
– os paços, palácios, as casas de câmara e cadeia alismo português; Paulo Santos com a comparação
e outras construções relativas à manutenção do com as cidades medievais, e Nestor Goulart com
território: fortificações, muralhas, diques); os a narração sobre a colonização portuguesa como
agentes econômicos (os proprietários rurais, os um ato político e a urbanização como uma es‑
comerciantes e financistas e os artesãos); a popu‑ trutura dinâmica. O que eles têm em comum
lação e os movimentos sociais. (Vasconcelos, 2005) além do tema abordado, é o esforço em definir
os princípios norteadores do desenho das vilas e
2. Acerca do desenho urbano colonial cidades coloniais. Para Aroldo de Azevedo tais es‑
truturas urbanas não obedeciam a nenhum plano
Sérgio Buarque de Holanda inaugura, nos anos
pré‑estabelecido. (Azevedo, 1956, p.10) O que se
de 1940, o pensamento moderno sobre o tema do
percebe nesses discursos clássicos é a oscilação
urbanismo colonial confrontando as formas de ci‑
entre a espontaneidade e racionalidade no gesto de
dade americana, mais especificamente a produção
implantação das primeiras povoações brasileiras,
do ladrilhador (espanhol) e do semeador (portu‑
sobretudo baseada nas expressões do traçado, do
guês), ou seja, a postura abstrata do colonizador
desenho urbano, especificamente referente a sua
espanhol, gerando um desenho urbano geométrico
adjetivação – formal, informal, regular, irregular,
oriundo de um pré‑planejamento, e a postura for‑
espontâneo, planejado.
tuita do colonizador português definida pelo his‑
toriador como sendo o resultado do diálogo entre
3. Acerca da situação geográfica
a arquitetura e o meio natural, e a predominância
do segundo sobre a primeira. (Holanda, 1989, Segundo Nestor Goulart (1968), a escolha do
p.76) Nos anos de 1960, Paulo Santos continua a sítio é norteada por uma série de fatores, dentre
discussão sobre a onipresença da natureza e do eles: o econômico, ou seja, as potencialidades de
aspecto espontâneo na urbe brasileira, afirmando exploração comercial do lugar; a subsistência,
que esta apresenta uma atraente imprevisibilidade para garantir a permanência das aglomerações;
bem diferente da repetição de traçado das terras e a segurança, o sítio como um aliado das ne‑
colonizadas espanholas, chegando a comparar cessidades de proteção contra invasores, fossem
as cidades brasileiras à variedade de desenho eles nativos ou estrangeiros. Ainda segundo o
urbano islâmico e cristão, que em sua concepção, autor, as justificativas da ocupação da costa podem
seria desordenado e livre de traçado pré‑definido. ser sintetizadas na necessidade da colônia estar
(Santos, 2001, p.18) próxima da empresa colonizadora por questões
Mas é Nestor Goulart a grande referência bra‑ estratégicas de exploração econômica. Para Aroldo
sileira dos estudos urbanos coloniais. Em seu de Azevedo, tal localização configurava‑se como
livro Contribuição ao estudo da evolução urbana um gesto de sobrevivência e manifestação de uma
no Brasil (1968), o arquiteto defende a ideia de esperança” (Azevedo, 1956, p.15). Primeiro porque
que as primeiras vilas e cidades brasileiras, en‑ os planaltos que marcavam as regiões distantes da
quanto produto racionalizado, dispunham de um costa eram como obstáculos naturais; segundo,
desenho geometrizado adaptado às condições da a implantação das aglomerações em áreas mais
topografia, característica chave que as diferem da abertas favorecia a proteção contra os indígenas
experiência da colônia espanhola. (Filho, 1968, estabelecidos nas áreas de mata; terceiro, havia
uma dependência econômica da colônia não ap‑ gumas das localidades estudadas que exemplificam
enas em relação à metrópole, mas também do o emprego das referências dos elementos natu‑
centro econômico local expressivamente repre‑ rais locais na toponímia. Esta também é definida
sentado pelos engenhos, inicialmente alocados pelas denominações indígenas como Serinhaém
em sua maioria em áreas planas para efetuar as e Igarassu que, essencialmente, também estão
plantações que ficam em áreas próximas ao mar, relacionadas com elementos naturais. A essas
o que favorecia também o próprio escoamento de referências somam‑se os nomes de santos, tais
recursos. Ainda segundo este mesmo autor, “os como Cosme e Damião, Penedo de São Francisco,
aglomerados urbanos, no século XVI, além de ti‑ Cabo de Santo Agostinho ‑ “a chancela que invoca
picamente marítimos, surgiram de maneira isolada proteção” (Idem, Ibidem, p.652).
e esparsa, constituindo verdadeiros “nódulos” de Contudo, o embate empírico com as situações
população no imenso “deserto” humano do Brasil urbanas atuais desses ambientes que um dia foram
de então” (Azevedo, 1956, p.19). Nesse sentido, vilas insinua que o conjunto urbano de cada delas
olhadas por este prisma, as povoações implantadas configura um rosto, o que parece comprovar que
no Brasil ainda poderiam compartilhar de uma as cidades portuguesas têm a capacidade de se
expressão física semelhante em termos de desenho, articular intimamente com as características físicas
mesmo considerando as inegáveis variações das dos espaços em que se implantam, nomeadamente
expressões do sítio geográfico. com a sua topografia. Esta constitui a matriz fun‑
damental que marca indelevelmente as cidades e
4. Acerca da postura do colonizador: vilas do Brasil, sobre a qual outras influências se
vieram sobrepor, sem nunca verdadeiramente a
Walter Rossa sintetiza a experiência clássica
suprimir. (Teixeira, 2004, p.08)
urbana portuguesa relacionando 5 características:
Portanto, a premissa motivadora dessa dis‑
1. pela ocorrência de um padrão morfológico e
cussão consiste na ideia de que as referidas vilas
cadastral regular; 2. pelo traçado e dimensiona‑
têm um desenho semelhante de assentamento, ao
mento global em função de espaço público; 3. pelo
mesmo tempo em que apresentam configurações
mono‑direcionamento da malha e correspondente
personalizadas, como pode ser percebido com ao
hierarquização de ruas e travessas; 4. pelo recurso
nos deparamos com as próprias situações atuações
a sistemas proporcionais algébrico‑geométrico
dessas localidades. Nessa perspectiva, buscou‑se
abrangentes os quais se baseiam no quadrado e
identificar, em termos físico‑espaciais, as aproxi‑
progridem para retângulos de proporção √2, √3,
mações e distanciamentos entre os desenhos urba‑
etc...; 5. pela integração estrita da arquitetura nesse
nos seiscentistas das vilas, ou seja, discutir até que
sistema de relações regulares e proporcionais e
ponto tais concentrações urbanas compartilham
consequente florescimento de uma arquitetura
a ideia de uma organização espacial pré‑definida
de programa. (Rossa, 2002, p.434). A flexibili‑
e até que ponto elas se diferenciam.
dade de ação dos colonizadores portugueses em
Nessa perspectiva, o embate entre as fontes
relação às expressões do sítio geográfico pode ser
acima mencionadas (iconografia histórica, relatos
notada no próprio batismo das vilas, tornando
de época e historiografia) e os trabalhos de sínteses
‑se “para o viajante a decodificação geográfica do
gráficas fundamentou uma série de observações
território” (Pessoa, 2001, p.652). Penedo, Alagoa
relativas à formação da paisagem edificada lu‑
do Sul (Marechal Deodoro), Quatro Rios (Porto
sobrasileira de origem colonial, as quais foram
Calvo), Cabo de Santo Agostinho e Recife são al‑
abaixo sintetizadas:
Fig.4 ‑ Esquemas gráficos das vilas estudadas, baseados em detalhes das plantas de Marcgrave, demonstrando as relações de situação
geográfica e ocupação urbana entre as massas de água (linhas contínuas) existentes nas suas proximidades, a concentração de
construções, inclusive alguns caminhos, (manchas claras) e os níveis topográficos (linhas tracejadas).
a) Dentre os elementos paisagísticos compo‑ como o porto e os engenhos, cuja relação com a
nentes dos sítios escolhidos para a implantação concentração urbana parece ter gerado uma série
das localidades estudadas, as massas de água e o de percursos periféricos como pode ser observado
relevo acidentado, de cotas elevadas em relação ao mais expressivamente nos registros das Vilas de
nível do mar, parecem ter sido os condicionantes Olinda, Porto Calvo e de São Francisco.
mais influentes. Esse pacto com a natureza, de d) As vilas apresentam variações no que diz
certo modo, já gera uma certa aproximação entre respeito ao sentido da extensão urbana. Três das
as vilas, independente de suas feições urbanas. seis vilas está distribuída em comprimento, ten‑
b) Os edifícios constituintes da contiguidade dendo para a linearidade. É também a metade
urbana das vilas são os de caráter religioso (con‑ delas que apresenta limites de suas concentrações
ventos, capelas e igrejas), o de caráter admin‑ de edifícios demarcados pelos de caráter religioso
istrativo, o casario e os edifícios de segurança, e militar. Igarassu, Serinhaém e São Francisco têm
tais como redutos, fortes e a própria muralha em uma de suas extremidades a casa do governa‑
no caso de Olinda. Essas vilas apresentam, pois, dor. Esta última vila apresenta ainda um outro
uma certa homogeneidade no que diz respeito limite edificado no sentido Leste‑Oeste: o porto.
aos tipos arquitetônicos e quantidade de edifí‑ e) Contudo, como indicado no item c, a
cios instalados, destacando‑se Olinda, com um definição do traçado não se encerra na área defi‑
número de construções superior que as demais, nida pela concentração de edifícios, tendo outros
e a de Serinhaém por ser a única que possui uma agentes que, de uma forma menos direta em ter‑
capela. Essas duas se aproximam mais ainda por mos paisagísticos, interfere na sua configuração,
compartilharem dos 04 tipos acima mencionados, e, por extensão, podem ser considerados parte do
diferente das demais localidades. ambiente das vilas. A demarcação dos chamados
c) Entretanto, há outras estruturas edificadas percursos periféricos indica que os núcleos ur‑
não representadas iconograficamente, mas sinali‑ banos estão relacionados geograficamente com
zadas pelos códigos das imagens relativos aos outras estruturas edificadas situadas em áreas não
caminhos, e bem explicitadas nos textos de época, enquadradas nas imagens seiscentistas, porém
denunciadas pelos relatos de época, especialmente co, como pode ser observado na representação das
as referências relativas aos engenhos de açúcar e “casas do governador”, de conventos e igrejas em
ao porto. Da mesma maneira, as massas de água, plantas de cinco das seis vilas estudadas.
podem ser entendidas como elementos urbanos, No caso do conjunto conventual franciscano
não apenas por participarem do desenho das de Santa Maria Madalena, situado na antiga vila
vilas, como também por sua função de caminho. de Alagoa do Sul, reconhece‑se uma relação de
Ressalta‑se ainda a existência de pontes sobre os intimidade entre edifício e sítio, participando de
rios registrados nas plantas de Olinda, de Porto um diálogo que marca o percurso histórico da
Calvo e de São Francisco que não interfere na arquitetura.
formação do traçado, mas, de certa forma, con‑ Por muito tempo, a dinâmica da geografia foi
solida/fortalece a ligação entre o núcleo habitado a grande aliada dos construtores em benefício da
das vilas e adjacências. comodidade, a exemplo dos arranjos construtivos
f) Observou‑se uma variedade de locação dos clássicos, como os antigos teatros, cujas arquiban‑
edifícios eclesiásticos, sendo a igreja mais comu‑ cadas se alinhavam à declividade do terreno, e aq‑
mente situada no ponto mais alto dos montes, os uedutos que se valiam de uma inclinação mínima
conventos em local mais afastado da concentração das arcadas para promover o escoamento da água.
de edifícios, mas guardando a característica de Diante das posturas de adaptação arquitetônica
situarem‑se nas extremidades da área urbana‑ do convento, era preciso pensar nas condições
mente enquadrada nas imagens. Apenas o núcleo atmosféricas, na dinâmica do vento e do sol e em
da Vila de Olinda aparece murado. Acredita‑se que seu comportamento quanto ao conjunto edificado
a proteção urbana também se valia dos elementos para garantir o bem estar físico de seus moradores.
naturais como morros e rios que conformavam Ou seja, para além dos movimentos da água e a
uma espécie de empecilho geográfico, como forma do terreno, as variações climáticas também
afirmou Aroldo de Azevedo. Vê‑se, pois, que o se colocam como definidoras da composição de
conjunto edificado das vilas se mostra rendido seus ambientes, definindo, por exemplo, a dis‑
aos contornos do relevo e que associado às ex‑ posição do edifício no terreno de maneira que
pressões do sítio, seus desenhos urbanos seguem as demandas funcionais do convento tirassem
obviamente a função pragmática das estruturas proveito do posicionamento de seus espaços em
edificadas que constituem esses ambientes, como relação aos pontos cardeais para garantir‑lhes
indicado no item b. grande conexão entre interior e exterior. Já em se
g) Relativamente à composição de um espaço tratando dos aspectos formais do edifício, partindo
micro, esses são retratados nas plantas de Marc‑ da correspondência e alinhamento das paredes e
grave de maneira a denunciar aspectos formais de espaços, nos sentidos transversal e longitudinal do
seus espaços, bem como do programa arquitetôni‑ edifício, seu desenho arquitetônico insinua que
Fig. 5 ‑ Na seqüência, detalhes das imagens das Vilas de Olinda, Serinhaém, Porto Calvo, Alagoa do Sul e São Francisco, mostrando a
representação de igrejas, cujo desenho sugere a definição de partidos de planta.
Fig. 6 ‑ Vista da Antiga Vila da Alagoa do Sul (1637), com seu convento franciscano de 1659, à direita. Fonte: OLIVEIRA, In: SILVA,
2012, p.111.
sua lógica de concepção e construção seguiu um garante ao convento uma lógica racionalizada
tipo de sistema de proporções geométricas, ou seja, de espacialização.4
do entendimento da influência do número e das h) Acerca da questão específica do desenho
figuras sobre o arranjo espacial franciscano. Suas urbano, quando se considera o desenho formado
expressões físicas constituem‑se de alinhamentos pelo conjunto de caminhos, metade das locali‑
retilíneos das paredes e de formas retangulares dos dades aparentam malhas constituídas por alin‑
ambientes, aspectos que fundamentarão o sistema hamentos heterogêneos cujos direcionamentos e
teorizado no século XVII por Renée Descartes – o extensões tendem para uma circularidade. Essa
tão conhecido plano cartesiano. Se ampliada para estrutura deriva obviamente da ligação entre a
as extremidades do complexo, a diagramação do vila e os engenhos, o porto, e mesmo entre outras
formato do claustro revela dois módulos: um en‑ povoações. O desenho balizado pelos percursos
quadrando esse ambiente, duas alas e grande parte existentes nas outras vilas, quais sejam, Igarassu,
da igreja; outro correspondendo à área de parte Serinhaém e Alagoa do Sul, é formado basica‑
da sacristia e das áreas de serviço. As medidas de mente um linha solitária que marca uma espécie
seus ambientes revelam um sistema de proporção de eixo da contiguidade urbana resultante da
entre elas, como a relação métrica aproximadade
18, 9 e 6 metros, para as larguras do claustro, 4
“O número três em si fortalece a ideia de eloquência arquitetônica
que se remete à doutrinas místicas. como O triângulo, no contexto
igreja e galerias do claustro, respectivamente, cristão, pode representar graficamente a Trindade. O cordão de três
números que relacionados indicam a derivação nós dá forma aos votos franciscanos e pela própria filosofia fran‑
de uma malha geométrica ortogonal de módulo ciscana, os três votos ‑ obediência, castidade e pobreza – os quais
3x3 metros. Essa malha modular, por si só, já sintetizam a forma maneira de seus seguidores se portarem diante
do mundo”. (Oliveira, in: Silva, 2012, p.122 e 123)
Fig. 7 ‑ Núcleos coloniais seiscentistas das atuais cidade de Itamaracá e Olinda, Pernambuco. Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos
da Paisagem‑Fau‑Ufal.
distribuição de seus edifícios em comprimento. O (um formato, um procedimento tido como invar‑
traço formado pelas construções das vilas, sejam iável) de implantação, por não compartilham da
essas edifícios, caminhos ou pontes, de certa forma imagem de um planejamento rígido, sugerindo
mantém a fisionomia constituída pelo conjunto de terem seguido padrões de métodos (um modo
caminhos de cada vila: polígonos alongados e finos de operar) de princípios de assentamento, que
de Serinhaém e Alagoa do Sul, e outros espessos permitem a formação múltipla de resultados,
com aparência circular, como o caso de Olinda, como se, de certa forma, o lugar dissesse como
Porto Calvo e São Francisco, independente da as vilas deveriam ser...
feição constituída por seus integrantes edificados A análise da iconografia histórica comprova,
e suas distribuições no espaço. pois, que as vilas estudadas pautaram‑se por uma
i) Mesmo reconhecendo aproximações entre proposta urbana que atenta para as características
tipos arquitetônicos e situação geográfica, as vilas topográficas. O sítio apresentou‑se como ingredi‑
possuem feições particularizadas geradas pelo ente fundamental no desenho urbano, trazendo
jogo de composição entre a caracterização de um forte argumento para que fossem dotadas
cada sítio e da locação dos conjuntos edificados. de personificação paisagística e comprovando
Os estudos comparativos mostraram que as a assertiva de parte da literatura sobre a história
intervenções arquitetônicas no meio físico im‑ do urbanismo colonial que afirma a sabedoria de
pressas nas vilas apresentam aspectos de assenta‑ caráter pragmática portuguesa de conduzir‑se pela
mento e estruturação urbana recorrentes, que vão leitura prévia do sítio, gerando uma implantação
desde a escolha do sítio ocupado até a locação de condicionada por ele.
determinados edifícios, indicando que, no con‑ O conceito apresentado nos discursos sobre
texto da representação, elas compartilham de uma esse tema foi o da postura portuguesa diante da
lógica comum de assentamento. Por outro lado, instalação do espaço urbano no Brasil, definida
as situações urbanas das vilas contrapostas entre por Manuel Teixeira (2004) como a representação
si fogem à ideia de terem adotado um modelo de uma “cultura de território”, o que quer dizer
que, mais que uma série de normas de implan‑ por Marcos Vitrúvio Polião – registradas em seu
tação dos núcleos urbanos, a postura portuguesa tratado Re Architectura (40 A.C.) e atualizadas
durante os primeiros séculos de ocupação das por Leon Battista Alberti (1404‑1472), cujas id‑
terras brasílicas atentava para as características eias fundamentaram a Idade Moderna. Um mo‑
do lugar. Indica, pois, que a instalação do espaço mento marcado pela superação de preconceitos
habitado, no caso as povoações com status de estimulados pela curiosidade, pela admiração
vila, foi influenciada pela experiência empírica de descobrir e conhecer, entendendo o mundo
do colonizador, ou seja, há interferências do sítio através da dedução lógica sob a lente da razão.
geográfico na conformação do traçado urbano. Uma tomada de consciência que transcende o
Os argumentos acima construídos demonstram discurso, passando a explicar a natureza, seus
que para o edificio e a vila funcionarem, o diálogo movimentos e suas dimensões espaciais.
entre arquitetura e sítio foi necessário no contexto Essa lógica conjectural de arranjo e disposição
colonial em que se inseria. As formas planificadas de elementos urbanos evidencia espacialmente
desses espaços são, pois, fruto do amadureci‑ aspectos de racionalidade, compartilhando es‑
mento da mentalidade de uma época que se vale tratégias compositivas clássicas, presentes no
de práticas medievais, mas também das conquistas sistema de proporção de antigas esculturas gregas,
trazidas pelo avanço da lógica matemática e do no processo de elaboração dos arcos ogivais de
empirismo pragmático vigentes na Europa. Já no catedrais góticas, nas cidades ideais renascentis‑
final da Idade Média, os portugueses se valiam tas, e mesmo na arquitetura moderna ortodoxa
de certas leis de ordem espacial para proceder às da primeira metade do século XX. A estrutu‑
intervenções urbanas em Lisboa, tais como medi‑ ra arquitetônica clássica de um convento, por
das de arruamentos, de limites de lotes e mesmo exemplo, e sua solução prática foi tomada por
de dimensões de elementos arquitetônicos como Charles‑Edouard Jeanneret‑Gris (1887‑1965),
portas e janelas e a distância entre elas. (Carita, mundialmente conhecido por Le Corbusier, figura
1999, p.150) emblemática da idealização e concretização da
A aparência das vilas também resulta de razões Arquitetura Moderna, como exemplo paradig‑
contextuais, de uma personalidade histórico mático de autossuficiência, fundamentando suas
‑social.5 No século XVI, e especialmente no XVII, teorias funcionalistas aplicadas em vários de seus
as terras brasílicas eram tidas não apenas como projetos de edifícios e de cidade. Para Alan de
propriedade de expansão política, mas também Botton (2007: 59), o arquiteto entendia que “o
como objeto de exploração. Paisagem inspira‑ que o homem moderno precisa é de uma cela de
dora e estimulante, sobretudo pelo seu caráter monge, bem iluminada e aquecida, com um canto
de novidade, o Nordeste foi tema das primeiras de onde possa olhar as estrelas”.
imagens do Novo Mundo e fonte para ricos reg‑ A ideia de que a articulação entre espaço micro
istros etnográficos e enciclopédicos. e macro permite abrigar de forma eficiente um
O processo de formação de novo território, certo número de pessoas, ou seja, a construção de
contudo, carregaria os conceitos e as experiências um nucleo habitado, constitui um aspecto urbano
ocidentais seculares na construção de edifícios e tomado como referência espaço‑funcional para
cidades, como aqueles defendidos na Antiguidade propostas de cidade no século XX, enquadrando
‑se, mesmo com a sua atmosfera secular, no con‑
5
Personalidade social: termo definido por Joseph Rykwet (2006:
241) sobre a consciência humana de se posicionar frente à dinâmi‑
ceito moderno de “Unidade de Habitação”. A
ca de um certo ambiente e modelá‑lo com características inerentes exemplo dos projetos de Le Corbusier para o
à sua imagem.
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RESUMO
O século XX reflectiu diversos efeitos desencadeados pelo processo de industrialização iniciado no sé-
culo XIX, designadamente os progressos tecnológicos. O aparecimento de materiais e tecnologias de
construção inovadoras influenciou decisivamente diversos aspectos da vida humana, tais como a Ar-
quitectura e a Construção que se passaram a produzir.
O desenvolvimento da tecnologia associada aos ligantes, que culminaria na produção industrializa-
da de cimento Portland, introduziu significativas alterações no, então, paradigma da Arquitectura e
Construção. O recurso ao uso do cimento Portland permitiu a produção de betão armado que, por
sua vez, possibilitou a construção de edifícios estruturalmente mais resistentes e com formas até então
impossíveis de materializar.
Em Portugal, a Arquitectura do Movimento Moderno do século XX foi expressa por diversos arqui-
tectos, em várias obras edificadas de Norte a Sul do país. Na cidade de Tomar encontram-se alguns
edifícios habitacionais projectados e construídos por alguns agentes deste movimento, tais como os
arquitectos João Pedro Mota Lima e José Inácio Costa Rosa, e o construtor João Manuel Santos Faria.
Neste artigo propõe-se a descrição da fase inicial de um trabalho de pesquisa sobre edifícios de Ar-
quitectura Modernista na cidade de Tomar, no período compreendido entre as décadas de 30 e 60 do
século XX. O trabalho consiste no levantamento e caracterização de alguns edifícios modernistas, de-
signadamente no reconhecimento dos autores dos projectos, na catalogação das suas principais carac-
terísticas formais e na identificação dos materiais e processos de construção usados. Os edifícios estu-
dados são constituídos por estruturas de betão armado, em soluções que conjugam elementos maciços
e aligeirados, estes últimos com o recurso a materiais cerâmicos. Os materiais da região, tal como são
designados nas memórias descritivas de alguns projectos, estão igualmente presentes nestes edifícios.
1. INTRODUÇÃO
A Arquitectura Moderna ensaiou diferentes se formaria sob a influência das transformações
linguagens e expressões no início do século XX, na produção industrial e das novas técnicas e
configurando um ideário estético e formal que materiais construção. A indústria da construção,
nesse mesmo século, conheceu um forte impulso do século XIX, quer resultante de uma pesquisa
devido ao desenvolvimento da produção de ci- de carácter etnológico, relacionada com a iden-
mento Portland que se transformou num material tidade nacional, quer, mais tarde, associada ao
industrializado no final do século XIX. Surgia, ressurgimento dos nacionalismos europeus, nos
assim, um ligante hidráulico que subsidiaria a anos 30 do século XX. Só a partir dos anos 50, e
produção de betão armado, material que veio na sequência das teses discutidas no I Congres-
ocupar a posição de materiais tradicionalmente so dos Arquitectos em 19482 é que se assume a
usados até então. apropriação da linguagem do moderno com um
É neste contexto que surge o Movimento Mo- sentido crítico (em relação ao regime nacional),
derno como corrente racionalista da Arquitectura mas já obrigada a uma reflexão teórica e disciplinar
modernista e que foi disseminada em quase todo que se filia na crítica internacional3 à ortodoxia
o mundo ocidental. Conquanto, a Arquitectura do do Movimento Moderno.
Movimento Moderno se possa caracterizar pela Os profissionais activos nestas décadas tomam
utilização de elementos formais identificáveis e consciência de uma realidade plural, os projectos,
materiais industrializados, também é verdade as obras, a prática dos seus pares na Europa, mas
que em Portugal, como noutros países onde a sua também no Brasil, onde o moderno se reinventa
afirmação foi mais tardia, se regista a influência na construção da nova capital, Brasília (1957),
da Arquitectura tradicional ou vernacular, quer de Lúcio Costa (1902-1998) e Óscar Niemeyer
nas formas, quer nos materiais aplicados. (1907-2012).
O Movimento Moderno, centrado em Le Cor- A internacionalização da Arquitectura moderna
busier (1887-1965), impôs-se de forma duradoura, construiu-se, então, na procura de uma expressão
fixando-se no designado “estilo internacional”. nacional que a legitimasse. Nessa procura, reen-
A publicação dos “Cinq points d’une architectu- contram-se e interpretam-se algumas tradições
re nouvelle”1 (1927) define os seus princípios: a locais, revelando-se outras expressões dentro da
construção sobre pilotis, a planta livre, a fachada tradição moderna que não se esgotam na influ-
livre, a janela horizontal e a cobertura em terraço. ência da figura tutelar de Le Corbusier e dos seus
Estes princípios formais estavam, não obstan- discípulos [Portas, 1978].
te claramente dependentes das possibilidades O trabalho apresentado insere-se num estudo
construtivas do betão armado. As características de maiores proporções no qual se procede ao le-
técnicas e as propriedades físicas e mecânicas vantamento e caracterização formal e construtiva
aliadas às inovadoras possibilidades de utilização dos edifícios modernistas construídos na cidade
do betão armado descerraram caminhos para que
engenheiros e arquitectos se concentrassem no seu 2
Algumas das comunicações apresentadas ao congresso problema-
estudo, desenvolvimento e aplicação generalizada. tizam as questões relacionadas com a habitação colectiva: Viana
Em Portugal, até ao início da II Guerra Mun- de Lima – O problema português da habitação; João Simões, José
Huertas Lobo, Francisco Castro Rodrigues - O alojamento colecti-
dial, observaram-se algumas obras de gramática vo; Miguel Jacobetty Rosa - Estudo de casas de renda económica
modernista por influência da Arquitectura eu- e A racionalização na habitação e a urbanização; Jorge Segurado
ropeia, filiada nas vanguardas progressistas e - Solução vertical na habitação colectiva e os aposentamentos. In
“1º Congresso de Arquitectura”, 1948 [compil. por] Luís Cristino
tecnológicas, em simultâneo com uma expressão da Silva.
mais tradicionalista que procede desde o final 3
A título de exemplo refiram-se as seguintes publicações: B. Zevi
(1945) Verso un’architettura organica, G. Bachelard, (1958) “Poéti-
1
Foi pela primeira vez publicado na ocasião da exposição de que de l’Espace”, R. Venturi (1966) “Complexity and Contradiction
“Deutscher Werkbund” em Estugarda. in Architecture” e A. Rossi (1966) “L’architettura della città”.
de Tomar, entre as décadas de 30 e 60 do século nuel Mendes Godinho & Filhos”, incluíam uma
XX. Este projecto, que se realiza em parceria com fábrica de materiais cerâmicos com o mesmo
a Câmara Municipal de Tomar, apoia-se na con- nome, e uma fábrica de transformação de madei-
sulta e análise dos processos de obra existentes no ra, Platex. Estas indústrias estavam sedeadas em
Arquivo Municipal de Tomar (AMT). Tomar. Fora do concelho de Tomar, na localidade
Pretende-se, assim, coligir um conjunto de de Caxarias (Ourém) existia outra importante
informações que possibilitem uma melhor com- fábrica de materiais cerâmicos para a construção,
preensão deste património edificado (muitas vezes “Materiais para Edificação Lda.”, criada na década
sujeito a alterações e mudanças de uso que lhe de 40 do século XX por Júlio Redol5 (1915-1992).
alteraram o perfil inicial) e, desta forma, também Esta unidade fabril expandiu-se em várias secções6
contribuir para a sua valorização patrimonial produzindo tijolos, telhas e pastilhas cerâmicas,
e histórica. A metodologia usada nesta fase do tendo atingido notoriedade pelas técnicas inova-
trabalho consiste na recolha e pesquisa biblio- doras dos materiais cerâmicos.
gráfica relativa aos executantes (arquitectos e As referidas empresas produziram muitos ma-
construtores), na inventariação dos edifícios e na teriais usados não só na construção da região
pesquisa arquivística, tendo em vista a indexação de Tomar, mas também em outras regiões do
sistemática da informação contida nas peças dos país, designadamente em Lisboa. Para a capital
projectos, bem como na interpretação crítica de exportavam-se os materiais, mas igualmente a
dados recolhidos. mão-de-obra, já que nas décadas de 20 e 30 do
O artigo estrutura-se da seguinte forma, na século XX, foram muitos os edifícios das áreas de
secção 2 procede-se à caracterização sumária da expansão de Lisboa erigidos por construtores civis
indústria existente no local e na época em análise que partiram da cidade de Tomar, designados por
e apresentam-se os protagonistas do Movimento
“patos bravos” [Filius Populis, 1944].
Moderno, i.e., os autores e as suas obras; na secção
Os dados, até agora, levantados revelaram a exis-
3, procede-se à compilação da regulamentação
tência de dois arquitectos particularmente activos
aplicável ao dimensionamento de estruturas de
nas décadas de 50 e de 60, e que protagonizaram
betão armado, no mesmo período; a análise formal
a maior parte das obras de carácter moderno,
e construtiva das obras seleccionadas é apresen-
em Tomar: João Pedro Mota Lima (1912-2012) e
tada na secção 4; finalmente, as conclusões são
descerradas na secção 5. José Inácio Costa Rosa (1927-). Estes arquitectos,
pertencentes à mesma geração, ilustram, no campo
2. OS PROTAGONISTAS DO MOVIMENTO da Arquitectura doméstica, os exemplos mais in-
MODERNO, EM TOMAR teressantes de matriz moderna da cidade. O nome
do arquitecto João Pedro Mota Lima sobressai,
A zona de Tomar e a sua envolvente assumem, também, no domínio da Arquitectura religiosa
entre as décadas de 20 e de 70 do século XX, uma nacional. Foi também durante este período que
forte capacidade no plano da construção, tanto foram erigidos, numa linguagem de caracteres
ao nível dos executantes, como da indústria de
no concelho de Tomar, e foi o fundador do maior grupo económico
materiais. Esta região detinha um núcleo industrial sedeado em Tomar.
ligado à construção civil com alguma dimensão 5
Júlio Alves Redol nasceu em Tomar.
e expressão. As indústrias do grupo de Manuel
Mendes Godinho4 (1849-1924), “Sociedade Ma-
6
Destas secções faziam parte “Tijomel” de telhas e tijolos, “Duro-
mel” e “Decormel” de elementos cerâmicos decorativos, e “Pavimel”
Manuel Mendes Godinho nasceu na localidade de Cem Soldos,
4
de vigas de betão pré-fabricado.
modernos, alguns edifícios públicos da cidade, Dos autores das obras seleccionadas, João Ma-
tais como o Colégio Nun’Álvares (c. 1939) de Jorge nuel Santos Faria7 é o único, que não é diploma-
de Oliveira (1907-1989), o tribunal de Tomar (c. do em Arquitectura, fazendo parte do grupo de
1955), da autoria de Januário de Almeida (1910- construtores civis tomarenses, que, em Lisboa,
1990), a piscina municipal (c. 1961) ou a sede participavam na construção de vários edifícios.
Os arquitectos Mota Lima e Costa Rosa são, como
dos bombeiros municipais (c. 1963), da autoria
já se referiu, protagonistas regionais, com obra
de João Pedro Mota Lima.
firmada no concelho de Tomar. Amândio Marce-
No processo de seleção dos edifícios para este lino, arquitecto diplomado pela ESBAP em 1948,
trabalho, tomou-se como critério a inclusão de e Jorge Oliveira (1907-1989), são autores que
edifícios cujo projecto ou obra tivessem decorrido trabalharam pontualmente em Tomar: o primeiro
entre as décadas de 30 e de 60 do século XX e afirmou-se no Porto e o segundo realizou grande
que contivessem marcas formais e construtivas parte da sua obra na cidade de Faro8.
associadas ao Movimento Moderno. Os edifícios As obras cujos projectos datam dos anos 30 (fi-
escolhidos localizam-se em duas zonas distintas da gura 1a, b, c e d) estão localizadas em duas artérias
cidade de Tomar, o centro histórico, na margem principais do centro histórico, e resultaram de
direita do Rio Nabão, e a área de expansão da demolições de edifícios anteriormente existentes
cidade, resultante do Plano Geral de Urbanização e inscrevem-se numa estrutura de quarteirão, ar-
(PGU) de Tomar, iniciado em 1938 e concluído ticulando duas fachadas, a principal e a posterior.
em 1944, da autoria do arquitecto Carlos Ramos 7
João Manuel Santos Faria surge referenciado na publicação de Fi-
lius Populis [Filius Populis, 1944] como natural da freguesia da Ser-
(1897-1969) e do engenheiro Emídio Abrantes ra. Entre os edifícios que construiu destaca-se o prédio da Avenida
(1888-1970) [Lôbo, 1995]. Na tabela 1 apresentam- da República nº 93, projetado por Edmundo Tavares (1892-1983)
em 1921, e demolido em 1995. Este edifício, ainda foi construído
-se a localização, a tipologia bem como a autoria
em alvenaria mista.
e o ano do projecto dos edifícios seleccionados. 8
Jorge Ribeiro Oliveira é natural de Tomar, mas a partir de 1943
As imagens da figura 1 referem-se aos edifícios foi nomeado director dos serviços de Arquitectura e Urbanismo da
analisados. Junta Geral do Distrito do Algarve [Fernandes, 2006].
A B
3. A REGULAMENTAÇÃO DE BETÃO
ARMADO ENTRE AS DÉCADAS DE 30 E 60
O aparecimento do betão armado potencia-
lizou a padronização da concepção construtiva,
assegurando e acentuando a continuidade do que
já se conseguia com a utilização de outros mate-
riais, concretamente a pré-fabricação de diversos
G elementos construtivos e, consequentemente, a
rapidez e facilidade de execução. Adicionalmente,
este material também permitia moldar formas até
então inexequíveis.
O betão armado foi objecto de diversos estudos
que culminaram na aprovação de várias patentes e
possibilitaram a definição das primeiras regras de
cálculo francesas, em 1906, e que também foram
adoptadas em Portugal. Na tabela 2 apresenta-se
um resumo dos documentos instrutivos e regula-
mentares para o cálculo de betão armado, publi-
cados e em vigor, em Portugal, entre 1907 e 1960.
9
Na Zona B (onde estão localizados dois dos edifícios selecciona-
H dos), destinada a moradias, os talhões eram da ordem dos 800 m2
e os edifícios poderiam ocupar a percentagem de 24% em relação à
Figura 1 – a) e b) Fachada principal do edifício da Rua da área de terreno.
Infantaria; c) e d) Fachada principal do edifício da Rua Serpa
Pinto; e) Fachada principal do edifício da Rua Doutor Egas Carlos Manuel Ramos, filho de Carlos Ramos, é o autor do Ante-
10
Moniz; f) Alçado poente do edifício da Rua Doutor Egas Moniz; plano de Urbanização de Tomar em 1961.
g) Fachada principal do edifício da Rua Coronel Garcês Teixeira; 11
Informação com a data de 29 maio 1957.
h) fachada principal do edifício da Rua Lopo Dias de Sousa.
Os edifícios analisados foram projectados entre obrigatórias relativamente aos projectos de betão
1933 e 1959 pelo que os diplomas legais vigentes armado, concretamente a definição de condições
durante esse período foram as Instruções Regu- técnicas para o dimensionamento de estruturas de
lamentares para o emprego do Beton Armado betão armado e de actos de foro administrativo
(1918) e o Regulamento de Betão Armado (1935). relacionadas com o projecto de execução das
As Instruções Regulamentares para o Emprego mesmas estruturas.
do Beton Armado (1918) estabeleciam os requisi- As principais diferenças entre os documentos
tos para os materiais que constituem o betão (i.e., regulamentares de 1918 e de 1935, em termos
cimento, areia, pedra e água), definiam as regras de cálculo, referem-se aos valores mínimos de
de cálculo de resistência mecânica de edifícios, resistência mecânica à compressão simples do
pontes, lajes, vigas e lajes vigadas, e peças carre- betão normal e de resistência mecânica à tração
gadas no topo e, ainda, determinavam a execução do aço, cuja exigência se viu reforçada no regu-
dos trabalhos referentes a amassadura de betão, lamento de 1935.
betonagem, colocação de armaduras, moldes e
desmoldagem. 4. ANÁLISE DOS EDIFÍCIOS
O Regulamento de Betão Armado (1935) de- MODERNISTAS
finia os requisitos dos constituintes de betão e
do aço, as regras gerais de cálculo de resistência
4.1 EDIFÍCIO DA RUA DA INFANTARIA
mecânica de lajes armadas numa direcção e em
15, Nº 104
cruz, de vigas rectangulares e em T, de suportes,
pilares e colunas, de edifícios e de pontes. Neste O edifício da Rua da Infantaria 15 (Figuras 1a
documento regulamentar eram também indi- e 1b) foi projectado pelo construtor João Manuel
cados os procedimentos a seguir na montagem Santos Faria. Este edifício é constituído por três
de moldes, cimbres e armaduras, na realização pisos, um dos quais é térreo. O r/c destinava-se
de junções de varões tensos, na preparação de a estabelecimento comercial, designadamente
betão, na betonagem e na desmoldagem. Com a uma livraria e papelaria e uma oficina tipográfi-
publicação do Regulamento do Betão Armado, em ca, enquanto os pisos superiores se destinavam
1935, estabeleceu-se um conjunto de disposições a habitação com um fogo por piso. O acesso aos
pisos superiores do edifício é feito por meio de na edificação das paredes dos edifícios, até àquela
uma escada de quatro lanços encostada à empena época. Os vãos exteriores são rectos, sendo des-
Sul. A fachada principal apresenta uma composi- crita a colocação de vigas de beton armado com
ção dividida em dois panos verticais; o de maior 0.20 m de altura e com a largura da parede. Na
dimensão é ladeado por pilastras com decoração memória descritiva, o projectista (e construtor) é
geométrica, e apresenta os vãos de janela, que explícito na opção de vãos rectos em detrimento
correspondem aos dois pisos superiores, em sacada dos vãos em arco, estes últimos, tradicionalmente
com balcão. Denota influência dos elementos de- realizados com elementos de alvenaria cerâmica.
corativos Art Deco12, quer através dos painéis que É, ainda, mencionada a colocação de uma laje de
surgem no intervalo entre os vãos do pano lateral beton armado com 0.10 m de espessura e varões
com motivos vegetalistas de contorno geométrico de ferro de 5/8’’ sobrepostos e distanciados de
realizados em mosaico, quer pelo desenho das 0.10 m, nas cozinhas e nas casas de banho. Os
referidas pilastras. restantes pavimentos, assim como a estrutura da
A distribuição interna segue um esquema cobertura, são de madeira de pinho, as soluções
tradicional, com corredor a articular a zona de tradicionalmente adoptadas para estes elementos
serviços, localizada sobre a fachada posterior e construtivos. As paredes divisórias são de tabique
os aposentos sociais, escritório e a sala comum, de madeira rebocado com argamassa, o que era
localizados junto à fachada principal. Em virtude também usual nas paredes de compartimentação
de uma implantação em lote estreito e profundo, da construção tradicional.
há dois quartos interiores comunicantes.
O projecto data de 1933 [Processo nº67/32], 4.2 EDIFÍCIO DA RUA SERPA PINTO,
tendo sido planeado durante a vigência das Ins- Nº 32-36
truções Regulamentares para o Emprego de Beton O edifício, projectado em 1939, por Jorge Ri-
(1918), num período de transição entre a utili- beiro Oliveira, está localizado na Rua Serpa Pin-
zação generalizada de materiais tradicionais, i.e., to (Figuras 1c e 1d), artéria principal do centro
pedra, tijolo, madeira e ferro, e a introdução do histórico de Tomar e correspondente à antiga
betão armado. corredoura da cidade. Trata-se de um edifício de
A análise das peças incluídas no projecto [Pro- três pisos (r/c + dois pisos), descrito no projecto
cesso nº67/32] revela a coexistência de técnicas e [Processo nº 467 de 31-07-1939] como prédio para
de materiais tradicionais e de elementos de beton. rendimento com duas habitações independentes e
A superestrutura deste edifício conjuga paredes piso térreo destinado a “moderno estabelecimento
resistentes de alvenaria de pedra calcária com comercial”. O acesso aos pisos residenciais reali-
elementos de beton, designadamente lajes e vigas. za-se através de porta lateral no r/c que conduz
As fundações combinam alvenaria de pedra, em a uma escada de betão de dois lanços encostada
caboucos, com lajes de beton13. As paredes exte- à empena. A fachada principal apresenta uma
riores são de pedra argamassada, com “pedras solução plástica simples, com um corpo central
grandes” nos cunhais devidamente travados com ligeiramente saliente, coroado por elementos deco-
“ferrolhos”, a solução generalizadamente vigente rativos verticais e dois panos laterais em simetria.
Referência à Exposição Internacional de Artes Decorativas e In-
12 A fachada posterior abandona as características
dustriais Modernas, Paris (1925). compositivas da fachada principal, e apresenta
As fundações tradicionais dos edifícios consistiam em caboucos
13 um pano verticalizado com uma única abertura
que eram preenchidos com alvenaria de pedra resistente. oval em cada piso, em contraste com a superfí-
cie envidraçada da marquise em prolongamento para ser em Lusalite17, passa a ser também com
horizontal. a lage de cimento armado”. Estes requerimentos
No interior dos fogos, a distribuição realiza-se referentes a alterações do projecto inicial são
através de um corredor central que liga as divisões acompanhados de memórias descritivas e justifi-
da frente de rua – quarto e casa de estar - e as cativas de cálculos de betão armado. No segundo
divisões sobre a fachada posterior -sala de jantar, requerimento é, ainda, explicitado que à “escada
cozinha e instalações sanitárias. principal são acrescentados dois lanços para dar
À semelhança do projecto anterior, a localização acesso ao terraço. No terraço, junto à empena lateral
do edifício no centro histórico da cidade, implicou esquerda, construirá 3 arrecadações (…), a ½ vez
uma implantação em lote estreito e profundo, de tijolo e coberta a chapa de Lusalite”; é definido
obrigando à existência de divisões interiores. que a claraboia terá 4 águas e é mencionada a
O autor deste projecto foi distinguido, nesse colocação de uma escada de serviço em caracol
mesmo ano, com o Prémio Municipal de Arqui- e o tapamento de um vão, inicialmente previsto,
tectura por um edifício igualmente situado no com “½ de tijolo”.
centro histórico de Tomar. Ainda que as informações contidas nas me-
Trata-se de um edifício com elementos estru- mórias descritivas e justificativas dos cálculos
turais em beton armado. As peças incluídas no de betão armado sejam escassas em informação,
projecto definem que a cobertura plana e a escada o cálculo dos elementos de betão armado terá
sido realizado tendo por base o Regulamento de
principal são construídas em beton armado e que o
Betão Armado vigente na época [Regulamento
acesso ao terraço da cobertura é realizado através
de Betão Armado, 1935]. Através das indicações
de uma escada em ferro localizada nas “traseiras”
traduzidas nos pedidos de alteração, infere-se que
do edifício, não havendo, no entanto, referên-
o edifício terá integrado materiais inovadores,
cias aos restantes materiais, nem aos processos
para a época, tais como as placas de fibrocimento
construtivos utilizados na construção do mesmo.
com amianto na cobertura, ou a construção de
O processo deste edifício, existente no AMT,
paredes de compartimentação com o recurso
integra dois pedidos de alteração, relativos ao a tijolos assentes a “½ vez”, em detrimento dos
período da sua construção, que foram deferidos convencionais tabiques de madeira.
pelos técnicos responsáveis de então e que se
referem: o primeiro14, à alteração da escada de 4.3 EDIFÍCIO DA RUA DR. EGAS MONIZ,
betão armado que inicialmente não permitia o Nº 14-16
acesso ao terraço da cobertura15; e o segundo16, à
alteração da claraboia com uma “placa de beton O edifício da Rua Egas Moniz (Figura 1e e
armado onde assentarão vidros 0.400.40 (…)” e à 1f) é da autoria de José Inácio Costa Rosa. O
cobertura das arrecadações do terraço “que era seu projecto data de 1957 [Processo nº 18988 de
18/10/1957], para moradia bifamiliar, em que
O primeiro requerimento não tem data, no entanto foi deferido
14
pelo técnico da Câmara Municipal a 22 de Janeiro de 1940 [Proces- um dos fogos (com cave e 2 pisos) é destinado
so nº467 de 31-07-1939]. 17
Lusalite corresponde à designação da marca comercial de cha-
O acesso ao terraço da cobertura era, no projeto inicial, realizado
15 pas de fibrocimento e cujas fibras são amianto. O amianto é uma
através de uma escada em ferro colocada nas traseiras do edifício. matéria-prima que foi profusamente usada em diversos materiais
de construção até à década de 90 do século XX, em Portugal. No
O segundo requerimento apresenta a data de 17 de Janeiro de
16
entanto, o amianto foi proibido, em 1991, pelos países que, então,
1940 [Processo nº 467 de 31-07-1939]. integravam a CEE, através da Directiva 91/659/CEE.
ao proprietário, enquanto o outro (com 2 pisos) cobertura. O betão utilizado foi betão normal19,
se destina a um arrendatário. i.e., com a dosagem de 300 kg de cimento, 400 l
Uma das singularidades desta construção reside de areia e 800 l de brita. O dimensionamento dos
no facto dos fogos não se encontrarem alinhados na elementos de betão armado respeitou o Regula-
vertical, i.e., uma habitação está sobre o piso inferior mento de Betão Armado de 1935, e o seu cálculo
da outra habitação. Apresenta uma volumetria foi realizado com o auxílio de régua de cálculo
paralelepipédica onde se joga com a subtracção e de betão armado e com base nas “Tabelas para
adição de volumes, e no diferente tratamento do o Cálculo de Betão Armado” de Fernando Vasco
elemento parietal. Apesar de organizar dois fogos Costa [Costa, 1953].
com dimensões similares, o tratamento da fachada As paredes exteriores e interiores são de alve-
é diferenciador. Uma das habitações, habitação A, naria de tijolo furado assente com argamassa de
apresenta um muro cego para a fachada principal, cimento e areia. O painel cerâmico policromado
enquanto a outra, habitação B, tem um mural cerâ- aplicado na fachada principal (Figura 1e) é da série
mico na parede recuada do 1º piso e uma varanda “Decormel”, da fábrica de Caxarias (mencionada
projectada sobre a parede no 2º piso. É particular- na secção 2). O revestimento da chaminé20, que
mente relevante na solução plástica apresentada, atravessa o alçado Poente (figura 1f), é realizado
o jogo de volumes (elementos que se destacam do em elementos de pedra calcária e o seu acabamen-
pano de parede), entre os quais a chaminé, ados- to é a pico rústico. O amianto está presente nos
sada à fachada lateral (orientada a Poente) que se tubos de queda em fibrocimento, i.e., “Lusalite”.
interpõe entre a cozinha e a sala de jantar. Nessa Os elementos consultados não permitiram iden-
medida, este projecto, embora se firme numa lin- tificar “técnicas tradicionais”, para além dos mate-
guagem internacional, com recursos formais que se riais que o autor designa, na memória descritiva,
enquadram no modernismo, expressa igualmente como “materiais da região” e que se reconhecem
a vontade de integrar elementos da Arquitectura na utilização da pedra calcária, abundante na
tradicional, tal como a introdução destacada do região, e nos elementos cerâmicos do painel que
volume da chaminé parece sugerir. cobre parcialmente a fachada principal.
Os fogos apresentam um acesso em escada de
dois lanços semelhantes, ainda que não simétricos. 4.4 EDIFÍCIO DA RUA CORONEL GARCÊS
Cada piso organiza áreas funcionais distintas com TEIXEIRA, Nº 5B
a tradicional polaridade entre zona de serviços,
O projecto deste edifício [Processo nº 2184/75],
localizada junto à fachada posterior, e as divisões
datado 1959, é da autoria do arquitecto Amândio
de carácter social que se organizam sobre a fachada
Pinto Marcelino e constitui-se como obra com-
principal. O primeiro piso da habitação é constitu-
plementar ao Colégio Nun’Álvares, por ter sido
ído por um vestíbulo, hall, escritório, sala comum,
destinado a habitação para os professores daquela
cozinha, despensa e instalações sanitárias. No
instituição de ensino.
segundo piso estão os quartos e a sala de banho.
O edifício integra três pisos para habitação (com
O edifício integra fundações em alvenaria hi-
dois fogos por piso), e sótão reservado a arrumos
dráulica e pavimentos de massame de betão ma-
(Figura 1g). O acesso ao edifício realiza-se através de
gro. A sua estrutura é de betão armado, com vigas
entrada em posição central, encimada por extensa
e pilares em betão armado, e lajes de vigotas de
betão armado aligeirado com elementos cerâmicos TT12, levando ROK como impermeabilizante” [Processo nº
18988/18/10/1957].
pré-fabricados18, nos pisos superiores e na laje da
Em referência ao Regulamento de Betão Armado de 1935.
19
De acordo com a memória descritiva e justificativa “os pavi-
18
mentos serão lajes cerâmicas de elementos pré-fabricados tipo Na memória descritiva, este elemento é designado “gigante”.
20
pala de betão apoiada em pilotis. Possui, ainda, um de dois pisos que agrega quatro habitações, duas
acesso secundário, através de escada exterior sobre em cada piso, com acesso independente (Figura
o alçado posterior. A volumetria dos pisos superio- 1h). Ao nível da distribuição interna, os fogos
res destaca-se, projectada, da base do piso térreo. organizam-se em três zonas distintas: a zona de
A fachada principal apresenta grelha reticulada estar, a zona de dormir, e uma zona de serviço.
constituída por seis varandas contidas no volume, Na fachada principal, o autor optou por uma
e onde a cobertura surge aparentemente destacada solução de conjunto devido à grande extensão do
do corpo do edifício, expressão conseguida através bloco, com 23 m de comprimento e 7 m de altura.
do recuo do alinhamento parietal. Refere-se na memória descritiva do projecto que
A organização dos fogos apresenta uma matriz a eventual excessiva horizontalidade foi quebrada
convencional, com um programa mínimo: são cinco por elementos - painéis de grelha cerâmica- colo-
divisões, com a área destinada a serviços - que inclui cados no r/c em frente aos quartos, e no 1º andar
“aposentos para a criada” - sobre o logradouro. onde “o perigo da desproporção mais se acentuava
A zona social/familiar, com uma sala comum, devido à extensão da varanda, criaram-se painéis
organiza-se sobre as fachadas principal e lateral. laterais no prolongamento das paredes divisórias.”
O edifício é constituído por uma superestrutura [Processo nº 806/58]. O 1º andar, cujo volume se
de pilares, vigas e lajes de betão armado com uma projecta sobre o piso térreo, apresenta seis vãos
estrutura de madeira na cobertura inclinada. As correspondentes às varandas, compondo um bloco
paredes exteriores e interiores são de tijolo furado. horizontal ladeado nos extremos pelos referidos
Os revestimentos exteriores integram elementos panos de grelha cerâmica. O muro que envolve a
cerâmicos de barro vermelho na fachada Poente cobertura plana recua, retomando o alinhamento
ao nível do r/c, elementos cerâmicos vidrados de parietal do piso térreo, e reforçando, assim, a
cor amarela nas fachadas Sul, Poente e Nascente, expressão de horizontalidade do edifício.
ao nível do r/c; e pastilha de cor preta e branca nas O interior dos fogos apresenta três zonas fun-
fachadas Nascente, Sul e Poente. As caixilharias cionais distintas: a zona de estar que compreende
das janelas são de madeira. um vestíbulo, sala de estar e sala de refeições; a
A construção assume alguns dos caracteres zona de dormir, com 3 quartos; e a cozinha, na
formais modernos, sobretudo no tratamento da zona de serviços, que comunica com a sala de
fachada, embora adopte também soluções mais refeições e que se articula com uma área de lava-
próximas de uma tradição arquitectónica nacional, gens e engomados, ligada à entrada da habitação.
no uso da cobertura inclinada, ou na introdução de As fundações do edifício são de alvenaria de
elementos cerâmicos nos revestimentos das paredes pedra da região e prolongam-se até ao nível do
exteriores (provavelmente provenientes de fábricas r/c. A sua estrutura é de betão armado e inclui
cerâmicas existentes na região). Interessa salientar lajes de vigotas de betão armado aligeiradas com
a estrutura de madeira da cobertura, cujo recurso elementos cerâmicos, i.e., abobadilhas. O pro-
jecto da estrutura do edifício enquadra-se no
(a este material) constituía a solução construtiva
Regulamento de Betão Armado de 1935, tendo
tradicional para conformar coberturas inclinadas.
os cálculos sido realizados com base nas “Tabelas
para o Cálculo de Betão Armado” da autoria de
4.5 EDIFÍCIO DA RUA LOPO DIAS DE
Fernando Vasco Costa [Costa, 1953]. As paredes
SOUSA, Nº 14-16
exteriores, acima do r/c, e as interiores são de
O edifício da Rua Lopo Dias de Sousa foi pro- alvenaria de tijolo furado. A cobertura plana, cuja
jectado pelo arquitecto João Pedro Mota Lima, em estrutura é de madeira, é revestida com “Lusalite”,
1957 [Processo nº 806/58]. Trata-se de um edifício e apresenta “inclinação mínima para escoar as
águas” pluviais. As caixilharias são de madeira e os materiais tradicionais, já que nos edifícios
de pinho21 e os estores são de réguas de madeira mais tardios, i.e., os projectados na década de
com comandos interiores. 50, a estrutura da cobertura foi, ainda, construída
em madeira.
5. CONCLUSÕES As diferenças entre os edifícios projectados
nos anos 30 e os dos anos 50 incidem parti-
O estudo apresentado corresponde ao levan-
cularmente na utilização, nos primeiros, de
tamento e caracterização formal e construtiva
um vocabulário expressivo dentro da corrente
de 5 edifícios modernistas projectados entre
da Art Deco. Diferentemente, os edifícios da
1933 e 1959, na cidade de Tomar. Os edifícios
década seguinte apresentam soluções tipoló-
estudados apresentam na sua constituição ele-
gicas multifacetadas (dentro da Arquitectura
mentos estruturais de betão armado que foram
doméstica), e inscrevem-se no léxico arquitec-
dimensionados tendo em atenção os regula-
tónico moderno, mas matizado por soluções de
mentos vigentes nas épocas em cujos projectos
carácter regionalista (vernacular): o uso das
foram elaborados.
grelhas cerâmicas, dos azulejos como material
A análise das obras apresentadas permite afir-
de revestimento exterior (e decorativo), as co-
mar que, no período em que incidiu o estudo, as
berturas inclinadas, ou as chaminés destacadas
técnicas e os materiais tradicionalmente usados
do volume. Os autores dos projectos utilizaram
foram sendo gradualmente substituídos por
matérias autóctones, designadamente madeira
elementos de betão armado moldado in situ, por
de pinho e pedra calcária, e fizeram, ainda, uso
elementos estruturais pré-fabricados de betão
de materiais produzidos nas fábricas da região,
e por elementos cerâmicos (pré-fabricados). O
tais como elementos cerâmicos produzidos na
construtor e autor do projecto de 1933 explicita,
fábrica de Caxarias, em Ourém.
na memória descritiva, a substituição de vãos
Há, ainda, a referir que em alguns edifícios
em arco (tradicionalmente construídos com
foram colocados materiais contendo amianto,
elementos cerâmicos) por vãos rectos com vigas
que na época era um material inovador, e que foi
de beton armado. Nos edifícios projectados na
proibido na Europa, por ter sido cientificamente
década de 50, as paredes de alvenaria de pedra
comprovada a sua toxicidade para a saúde huma-
da região, i.e., calcário, foram substituídas por
na. Os materiais que contêm fibras de amianto,
alvenaria de tijolo furado que preenche uma es-
na forma de fibrocimento, foram aplicados, nos
trutura de betão armado, enquanto os pavimentos
edifícios analisados, sobretudo em revestimentos
tradicionalmente construídos em madeira deram
de cobertura e em tubos de queda.
lugar a lajes de betão armado aligeiradas por
elementos cerâmicos. Os tabiques de madeira
AGRADECIMENTOS
usados como elementos de compartimentação,
e ainda definidos no projecto de 1933, dão lugar As autoras agradecem a colaboração da Câmara
a paredes de alvenaria de tijolo nos projectos Municipal de Tomar e do Arquivo Municipal de
subsequentes. Tomar.
Verificou-se, ainda, que os elementos de betão
armado não substituíram integralmente as técnicas
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Lisboa. Lisboa: Imprensa Portugal-Brasil. Tostões, Ana. 1997. Os Verdes Anos na Arquitec-
tura Portuguesa dos anos 50. Porto: FAUP edições.
[email protected]
* Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA)
RESUMO
As primeiras cidades brasileiras e suas edificações foram estruturadas a partir do século XVI, com
influência da colonização europeia, sendo a Vila de São Vicente, na região litorânea de São Paulo, a
primeira a contribuir para o desenvolvimento local impulsionado pelo cultivo da cana de açúcar, a
criação de animais e à concentração de colonos oriundos da Europa. A partir de então, várias cidades
foram sendo formadas, principalmente na faixa litorânea do Brasil, que abrange a região sudeste a nor-
deste do pais, entre elas: Olinda, Salvador, Fortaleza, São Luiz, Recife, Rio de Janeiro e Paraty.Durante
o século XVIII a imigração portuguesa trouxe ao sul do Brasil suas técnicas construtivas e influências
arquitetônicas, que remete ao estilo de arquitetura colonial Português e onde as residências eram cons-
truídas no alinhamento das vias públicas e paredes laterais sobre o limite do terreno. O modelo dos
terrenos correspondia à uniformidade dos partidos arquitetônicos no qual as casas eram construídas
conforme as cartas régias ou posturas municipais, garantindo assim a aparência portuguesa nas vilas
brasileiras. As técnicas construtivas mais utilizadas eram o pau-a-pique, adobe ou taipa de pilão e, em
edificações de famílias mais abastadas, empregava-se a pedra e o barro (GOULART, 2000), sendo que
o telhado normalmente apresentava estrutura de duas águas, com exceção de algumas casas de esqui-
na ou residências rurais, que possuíam sistemas de cobertura de quarto águas, como é o caso da Casa
Romário Martins, analisada neste trabalho. Essa pesquisa visa investigar a “Casa Romário Martins”,
a última edificação remanescente do estilo colonial português na cidade de Curitiba, no estado do Pa-
raná, região sul do Brasil. Erigida no século XVIII é parte importante do Centro Histórico da cidade e
foi utilizada como moradia até o início do século XX, quando passou a abrigar um armazém de secos
e molhados. Manteve atividades comerciais até sua desapropriação, em 1970, pela Prefeitura Munici-
pal de Curitiba. Depois de restaurada, recebeu o nome de Casa Romário Martins, em homenagem ao
historiador e pesquisador Alfredo Romário Martins, onde hoje é utilizado para divulgar e promover a
história de Curitiba, por meio de exposições e outras atividades de pesquisa. Como resultado, pretende-
-se obter um levantamento histórico da edificação, avaliar os métodos construtivos originais, bem como
o estado atual da construção após passar por diversos processos de restauração.
Fig. 3 – Imagens do Largo Coronel Enéas: À esquerda, fotografia da Casa Romário Martins de 1915, que funcionava como um armazém
de secos e molhados. À direita, imagem de 1970, com a casa ainda como armazém. Fonte: www.curitiba.pr.gov.br/conhecendocuritiba/
casaromariomartins.
Fig. 5 – Foto atual do interior da Casa Romário Martins, onde se percebe a madeira no piso e no forro, além das paredes internas e o vão
livre adaptados para receber exposições sobre a história da cidade e a planta baixa atual. Fonte: Os autores (2016).
umbrais de pedra, paredes espessas e caiadas, tudo meio de uma argamassa, sendo que as argamassas
era feito de acordo com os preceitos construtivos mais utilizadas eram de cal e areia ou de barro.
portugueses. Covém salientar, que todo o processo Estes materiais que conferiam maior resistência
de restauro da Casa Romário Martins foi baseado às paredes e muros, exprime a razão pelo qual
tanto em estudos sobre a arquiteura colonial por- eram utilizadas nas grandes fortificações, em
tuguesa no Brasil, como em pesquisas e análises igrejas monumentais e nas construções oficiais.
de imagens fotográficas retiradas no local entre Tais técnicas construtivas também serviram como
o século XIX e XX. As imagens apontadas nessa sinônimo de poder e riqueza àquelas famílias que
pesquisa se mostram de fundamental importância puderam fazer uso desses métodos na produção
no entendimento do modo de morar e construir de suas casas, sendo possível detectar a posição
de nossos antepassados e tem contribuído para social de um indivíduo, não apenas pelo tamanho
a reconstituição desse estilo de vida em áreas de sua residência ou quantidade de pavimentos,
diversas. mas também pelo tipo de material empregado na
confecção das paredes de sua moradia.
4. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS As técnicas construtivas do período colonial são
ELEMENTOS DA ARQUITETURA bastante notáveis, como as esquadrias de abertura
COLONIAL PORTUGUESA NA CASA à inglesa e guilhotina, o piso de tabuado corrido
ROMÁRIO MARTINS em seu interior, as paredes feitas em alvenaria de
pedra, sendo a fachada principal enquadrada por
Durante o período colonial brasileiro, a alve-
cunhais de seção ondulada, e o telhado composto
naria era uma técnica de confecção de casas, co-
por telhas de barro, formado por várias águas,
mércios, fortificações, muros e paredes utilizando
uma vez que estes foram alvos de processos ar-
tijolos ou pedras de mão, aglutinados entre si por
quitetônicos no decorrer dos séculos.
Fig.6 – Foto atual da Casa Romário Martins, localizada no Centro Histórico da cidade de Curitiba. Casa de esquina: cunhais em massa,
cobertura em quatro águas, telha capa canal arrematada por beiral em cimalha, também em massa, portas e janelas em estilo colonial
português. Fonte: Os autores (2016).
Sabe-se que o uso das pedras nas constru- civilizações. Inicialmente empregada na forma
ções vem sendo difundido já desde as primeiras bruta, foi sendo, ao longo do tempo, dominada
construções neolíticas, variando a técnica de e transformada. As casas, geralmente, possuíam
sua aplicação de acordo com as argamassas em apenas a fundação e ou um barrado de pedra.
que são assentadas. A pedra natural, enquanto Nas alvenarias de pedra argamassadas com cal,
material imediato e acessível, utilizada em objetos assentavam-se as pedras em argamassa, e as
e construções, foi registrando a trajetória das faces aparentes das referidas pedras eram tra-
Tabela 1 – Relação de elementos da arquitetura colonial portuguesa e a Casa Romario Martins. Fonte: Os autores (2016).
para métodos construtivos que ainda são usuais econômicas do que estéticas, e, não menos im-
em diversos estados do país, como é o caso da portante, a casa torna viva parte de nossa história
taipa de mão, utilizada muito mais por questões que muitas vezes parece estar esquecida.
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Portuguesa. São Paulo: UNESP, 2012. Acessado em: maio 2016.
Veríssimo, Francisco Salvador; Bittar, William
Seba Mallmann; Mendes Filho, Francisco Alves.
RESUMO
O artigo propõe aprofundar contributos de Alfredo de Andrade1 (Lisboa, 1839 - Génova, 1915) – pintor
e arquitecto português - para a história da construção, em particular o que ele designa de “memórias
arqueológicas” que consistem possivelmente na tentativa inacabada de compilação de um “dicionário”.
Esta grande mole de material inédito, encadernada em quinze volumes, engloba um amplo conjunto
de temas - como lugares, monumentos, materiais e técnicas construtivas, costumes, artes ditas menores
-, apoiando-se em exemplos concretos e numa vasta bibliografia em várias línguas (italiano, português,
francês, inglês e alemão), que demonstram a espessura cultural desta personagem, entre dois séculos e
duas nações.
Deste modo, a partir das “memórias arqueológicas” poderemos retirar informações relevantes para o
estudo da história da construção: sobre as fontes (iconografia, manuscritos, história económica e social,
costumes, arqueologia, etc.), sobre materiais e técnicas construtivas (da antiguidade clássica ao século
XIX), sobre elementos construtivos (janelas, portas, alvenarias, arcadas, etc), sobre léxico usado (seja nas
diferentes regiões de Itália, seja em Portugal), entre outros. Por outro lado, a interpretação comparada
de registos e notas feitos nos dois países, permitirá tirar algumas ilações no âmbito das “culturas parti-
lhadas”, ou seja, dos cruzamentos e influências em obras, técnicas e materiais, entre Itália e Portugal.
1
Alfredo Andrade (ou D’Andrade) nasce em Lisboa em 1839 e parte para Itália com quinze anos para estudar a actividade comercial pater-
na e para não mais voltar, definitivamente. Andrade estuda na Accademia Ligustica de Génova e desenvolve uma atividade multifacetada,
entre Itália e Portugal: como pintor, professor, arqueólogo e arquiteto, tendo coordenado mais de trezentas intervenções em preexistências,
dispersas pelo norte de Itália. Ao longo da sua carreira, Andrade torna-se uma personagem de relevo na cultura artística e patrimonial em
Itália, sendo nomeado para inúmeros cargos públicos no âmbito da instrução artística e da salvaguarda do património artístico e monu-
mental. Sobre Alfredo de Andrade cfr. entre outros: Bernardi, Marziano, Viale, Vittorio 1957. Alfredo D’Andrade: la vita, l’opera e l’arte.
Torino: Società Piemontese d’Archeologia e di Belle Arti; Andrade, Ruy 1966 Vida de um artista Português do Século XIX em Itália. Lisboa:
Ed. Auto; Cerri, M. Grazia, Biancolini, Daniela, Pittarello, Liliana (coord.) 1981. Alfredo d’Andrade: tutela e restauro. catalogo della mostra
(Torino, Palazzo Reale, Palazzo Madama, 27 giugno-27 settembre 1981), Firenze: Vallecchi; Costa, Lucília V. 1997. Alfredo de Andrade:
1839-1915: da pintura à invenção do património. Lisboa: Vega; Ferreira, Teresa C. 2014. Il Portogallo di Alfredo de Andrade; città, archi-
tettura, patrimonio. Sant’Arcangelo di Romagna: Maggioli.
del medioevo e del rinascimento dove si incontranno barroco, entre outros exemplos dos séculos XVII,
tutti gli autori fondamentali” 7 (Serra, 1981, 34). XVIII ou XIX.
Para além destes temas encontramos ainda uma As “memórias arqueológicas” organizam-se,
série de textos ligados à pesquisa territorial e grosso modo, em dois grandes âmbitos temáticos:
geográfica, mais concretamente guias turísticos, (1) os “lugares”, com predominância de Portugal,
descrições histórico-artísticas de lugares, arqui- mas também de Itália e de Espanha; (2) as “en-
tecturas, cidades e monumentos. tradas” de conteúdos mais diversificados - arte,
Uma fonte essencial nas “memórias” de An- arquitectura, construção, materiais, etc.- que po-
drade é o Dictionnaire de Eugène-Emannuel derão enquadrar-se, possivelmente, na tentativa
Viollet-le-Duc (1814-1879)8, não só pelo grande de compilação de um “dicionário”.
número de citações, como também pela selecção No primeiro âmbito temático, (1) dos “lugares”,
dos temas, pela estrutura, pelo método de aná- Portugal ocupa um grande espaço, reunindo-se
lise, ou ainda pelos exemplos e pelas ilustrações notas de viagens, comentários, citações, extractos
que acompanham o texto (no caso de Andrade de relatórios, ilustrações, decorrentes de visitas e
encontra-se incompleto e é menos sistemático). estudos realizados por Andrade no país. Salien-
Porém, enquanto Viollet se concentra exclusiva- tam-se os campos dedicados às principais regiões
mente na França medieval entre os séculos XI e e cidades portuguesas (de norte a sul) abrangen-
XVI (Viollet-le-Duc, 1857-1868), nos aponta- do várias épocas e tipologias artísticas9. Já no
mentos de Andrade, apesar da época medieval que respeita a “lugares” italianos, as “memórias”
ser predominante, o “tempo-nação” é ampliado abrangem principalmente as regiões do Piemonte,
a outros períodos representativos da identidade Ligúria e Valle d’Aosta (antigo reino dos Savoia
artística das duas pátrias: as antiguidades romanas, e berço simbólico da Itália unificada em 1861),
o manuelino português, o maneirismo lígure, o onde Andrade vive e trabalha como Soprintendente
durante cerca de trinta anos. Nestes apontamentos
recorre, para além do conhecimento directo, a
7
Cfr., por exemplo, A. Lenoir, Architecture monastique; F. de
Dartein, L’Étude sur l’Architecture lombarde et sur les origines
fontes orais e bibliográficas.
de l’Architecture romano- byzanthin; M. P. Lacroix e M. F.Seré, Não obstante o progressivo afastamento do país
Le moyen age et la Renaissance; Vitet, Étude sur l’histoire de l’art de origem, são recorrentes nas suas “memórias”
Moyen Age; Misland, L’esthetique anglaise – etude sur M. John ; Ra-
mèe, Histoire generale de l’architecture; Cattaneo, l’architettura in
as referências a obras dedicadas a Portugal, que
Italia dal secolo VI al mille circa; Blavignac, Histoire de l’architecture integram a sua biblioteca: o Livro das Fortalezas
sacrèe du quatrieme au dixieme siecle dans les ancienes evèches de de Duarte D’Armas (c. 1509-1510), Portugal de
Geneve; Martigny, Dictionnaire des antiquités chrétiennnes ; entre
Ferdinand Denis (1846), a História de Portugal
outros. Cfr. Biblioteca Privada de A. Andrade, in ASTo.
de Alexandre Herculano (1846-1853), obras de
8
O Dictionnaire de Viollet compreende dez volumes de c. 450 arqueólogos alemães (pioneiros da arqueologia na
páginas, relativas a cerca de vinte anos de investigação e prática
profissional (total de c. 4000 pág. de texto ilustrado e c. 45 000 gra- Península Ibérica), entre outros. Nas suas notas
vuras sobre madeira). ). É uma espécie de relatório de actividade, Andrade constata que a história da arte estava
incluindo estudos pessoais sobre os seus restauros, bem como sobre “na sua infância” em Portugal, com excepção da
monumentos e viagens em França, etc. Cfr., entre outros, P. Boudon
e P. Deshayes, 1979. Viollet-Le-Duc: le dictionnaire d›architecture, obra do Conde A. Raczynski Les Arts en Portugal
Liège: Pierre Mardaga. H. Damish (coord.), 1990. L´architecture
raisonnée extraits du dictionnaire de l´architecture française, Pa-
ris : Hermann. N. Pevsner, J. Summerson, J. Gubler et al., 1980. Eu-
gene Emmanuel Viollet-le-Duc, 1814-1879, in “Architectural design 9
Andrade inclui descrições das principais regiões de Portugal (Mi-
profile”, London: Academy Editions; M. A. Crippa (coord.), 1984. nho, Estremadura, Beira, Trás-os-Montes Algarve, Alentejo). Cfr.
Eugène Viollet-le-Duc, L’architettura ragionata, Milano: Jaca Book. Apontamentos arqueológicos..., cit., s.p.
ou as iconográficas (como detalhes de quadros, (como otoscano, piemontese, genovese), alguns dos
baixos-relevos e miniaturas medievais15). É, pois, quais caíram entretanto em desuso.
visível o seu empenho e rigor metodológico na Este grupo mais lato de temas engloba, por
investigação e na construção historiográfica com exemplo, algumas entradas genéricas sobre a “ar-
interessantes contributos, inclusive ao nível do lé- quitectura civil, religiosa e militar”, com campos
xico, usando termos locais em diferentes dialectos específicos dedicados a várias regiões ou cidades
italianas (Ligúria, Piemonte, Lombardia, Veneto,
Baldinucci, Vocabolario toscano dell’arte del disegno, Firenze,
1681; Francesco Alberti di Villanova, Dizionario francese-italia- Toscana, Sicília, etc.). Relativamente à arquitectura
no, 1772; L. Cibrario, L’economia politica del Medioevo (Torino, militar destaca-se, entre outras, a entrada “Castello”,
1839) e Storia di Torino (Torino, vol. 2, 1846); C. Promis, Dell’arte na qual, focando casos concretos, informa que pre-
dell’ingegnere e dell’artigliere dalle origini sino al principio del XVI
secolo (memoria IV in Francesco di Giorgio Martini – «Trattato»), tendeu “mettere indicazioni di castelli di cui ho avuto
Torino, Ed. Chizio e Mina, 1841; C. Promis, Storia dell’antica Tori- notizia esistenti o distrutti con l’intenzione di clas-
no, Torino, stamperia Reale, 1869; T. Belgrano, Della vita privata sificarli per regione ed epoche o alfabeticamente”16.
dei genovesi, Genova, 1875. As fontes são registadas com a respec-
tiva referência bibliográfica ou arquivística e são sublinhados (ge- Para além destas, merecem ainda especial refe-
ralmente a vermelho) os excertos que se relacionam com o tema ou rência dois volumes escritos predominantemente
objecto em análise. em português: um destes, dedicado aos “costumes”,
15
Andrade copia miniaturas de manuscritos como as Cronicorum
die Hartmann Schedel, Nuremberga, 1493. 16
Cfr. entrada “Castelo” in Apontamentos arqueológicos..., cit., s.p.
Fig. 2 – Mapa Copiado de Emílio Hubner, Notícias Archeologicas em Portugal, (in Apontamentos Arqueológicos de Alfredo de
Alfredo de Andrade, APFA); Fig. 3 – Lisboa – Igreja do Carmo (in Apontamentos Arqueológicos de Alfredo de Alfredo de Andrade,
APFA).
dá informações interessantes sobre a cultura, o escrita em italiano, visto ter sido em Itália que
quotidiano e as artes da época medieval, desig- desenvolveu este que foi o campo mais profícuo
nadamente sobre indumentária, instrumentos, da sua actividade profissional. Nesta entrada são
arte militar, etc. Outro volume inclui entradas apresentados exemplos como o Campanário do
com um carácter mais abrangente, que revelam Duomo de Pisa18 ou as muralhas de Avignon,
algumas ideias sobre as questões que o ocupa- através dos quais aborda temáticas do debate
vam: “Congressos e Exposições”, “Conservação coevo – no qual se destaca a influência de Camilo
de Antiguidades”, “Museu de Antiguidades” e Boito (1836-1914), personagem central da cultura
“Restauro”, entre outros. arquitectónica e patrimonial em Itália - como a
Se a maioria das entradas mais amplas é redigida questão dos excessivos e “maus” restauros, do
em português, a entrada “Restauro”17 encontra-se “engano” (falso histórico) e da distinção dos novos
acrescentos. Assim, as “memórias” de Andrade
17
Neste artigo aplica-se a palavra ‘restauro’ segundo a acepção do sobre o “restauro” registam já a evolução cultural
século XIX, ou seja, termo abrangente que pode incluir diferentes
modalidades de intervenção (desde reposição aos novos acrescen-
tos), diferente do significado atual, de reposição ou repristinação de 18
Cfr. A. Andrade, “Ristauro”, in Apontamentos arqueológicos...,
uma determinada fase anterior. cit., s.p.
Fig.4 – Castelo de Pavone (Piemonte), Fig.5 – Casa de Font’Alva (Alentejo), Fig 6 – Font’Alva, construções rústicas
planeamento do estaleiro, s.d., in APFA. fotografia da obra, c.1896, in APFA. e silos em betão armado (c. 1900),
fotografia da autora, 2007.
(…) sotto all’architettura di Filippo Juvarra, sotto atividade de Andrade, desde os métodos de análise
alle torri del fiero castello trova l’opera romana, la de preexistências até à sua aplicação sistemática
sviscera, la disegna e la ricopre, ma in modo che como ferramenta de transformação do real. É
lo studioso possa facilmente vederla e verificare la evidente ainda a influência dos métodos da ar-
giustezza dei fatti (…)” (Boito, 1893: 390). Deste queologia medieval francesa – em particular na
modo, a intervenção no monumento determina leitura direta das construções - designadamente
a descoberta e reproposição de soluções constru- das obras de Arcisse de Caumont, Eugène-Eman-
tivas históricas, coerentes e atentas ao pormenor nuel Viollet-le-Duc e Ferdinand de Dartein, que
(garantia de uma relação rigorosa com o passado), Andrade possuía na sua biblioteca.
requalificando também o trabalho de estaleiro, dos A documentação relativa aos seus projectos – de-
operários e artesãos (Grimoldi 1993: 44). senhos, correspondência, administração, folhetos,
Importa ainda salientar a riqueza metodológica manuais, notas, maquetes, fotografias, entre outros
no processo de projecto – pesquisa documental e – espelha o quanto Andrade persegue a “obra total”,
iconográfica, levantamento com anotações para a debruçando-se a fundo sobre todos os aspectos da
intervenção (cronologia, construção, diagnóstico, concepção e construção: planeamento do estaleiro,
propostas), comparação com exemplos análogos, fabrico dos materiais, instrumentos de trabalho,
experimentação de ferramentas processuais (foto- coordenação de todas as especialidades (operários
grafia, decalques, maquetes). O desenho é, porém, produzione più semplice, più rapida e più completa di un oggetto. Tutto
o seu instrumento preferencial de investigação e gli serve. Piglia quello che trova sottomano. Tanto gli fa disegnare in un
comunicação - nulla dies sine linae (Viollet-le-Duc, album piccino con la punta aguzza della matita o in un foglietto da
lettera con la fina pena d’acciaio, quanto disegnare con il lapis da faleg-
1879) - transformando-se assim num “linguag-
name, il pennello o la brace sopra un foglio enorme, sopra una parete
gio parlato”21 (Boito, 1893: 392), fundamental na o sul suolo”. Boito, Camillo, 1893. «Gli ammaestramenti della prima
esposizione italiana di Architettura». Questioni Pratiche di Belle Arti.
21
“Una cosa notevole di questo restauratore è il modo come disegna. Restauri, Concorsi, Legislazione, Professione, Insegnamento. Milano:
Per lui il disegno non è un esercizio grazioso e convenzionale: è la ri- Ulrico Hoepli, p. 392.
dos fornos, pedreiros, carpinteiros, artesãos, etc.). mente complexa. Deste modo, podemos afirmar
Estes processos estão igualmente fundamentados que Alfredo de Andrade, sendo uma personagem
por uma grande quantidade de desenhos, que de uma época de transição, representa, como
engloba esquissos à mão livre, desenhos técnicos muitas outras, uma necessária mediação entre
escalados e cotados, detalhes construtivos, que a continuidade com uma tradição construtiva
chegam até à escala real (para os desenhos técnicos plurissecular e os desafios dos novos tempos
tinha o auxílio de desenhadores). É interessante “modernos”, anunciados no limiar do século XX.
notar, ainda, o registo da obra através da fotogra- Por fim, perante uma historiografia que dá mais
fia, uma das revoluções técnicas de Oitocentos, proeminência à concepção e ao projecto (ideias e
que Andrade adoptava sistematicamente nas suas formas) em detrimento da obra construída (esta-
intervenções e que, em conjunto com o resto da leiro, materiais, tecnologias, intervenientes: cliente,
documentação, nos permite reconstituir, à distância utilizadores, construtor, operários, etc.), importa
de mais de cem anos, a história de projectos e de aprofundar, para além da história da arquitectura
estaleiros na transição do século XIX para o XX e dos arquitectos, a “história dos edifícios” - dos
(Ferreira, 2014). seus processos construtivos, usos e transformações
Assim, lado propõe-se enquadrar criticamente no tempo (Grimoldi,1993: 42; Guenzi, 1981: 8).
estes processos na produção ecléctica de final de
Oitocentos, superando visões historiográficas culo XIX pela historiografia “moderna”, que, “na enfatização da
preconceituosas ou redutoras relativas ao século sua poética, acabou por obscurecer as suas próprias origens”. Cfr. I.
XIX22, em favor de uma visão plural e cultural- Solà-Morales, 1981. In Collis, Peter, Los ideales de la arquitectura
moderna; su evolución (1750-1950), Barcelona: Gustavo Gili, 1981
22
Vários autores assinalaram a depreciação da arquitectura do sé- (1965), p. 2.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Andrade, Ruy 1966. Vida de um artista Português do Guenzi, Carlo. 1981. L’arte di edificare. Manuali in
Século XIX em Itália, Lisboa: Ed. Autor, p. 94. Italia 1750-1950, Milano: BE-MA.
Andrade, Alfredo 1867, Carta de Alfredo a Júlio Hübner, Emílio, 1871. Noticias Archeologicas de
de Andrade de 11.02.1867, apud M. Bernardi e V. Portugal, Lisboa: Typografia da Academia.
Viale, 1957. Alfredo D’Andrade: la vita, l’opera e l’arte. Raczynski, Atanazy, 1846. Les arts en Portugal: lettres
Torino: Società Piemontese d’Archeologia e di Belle adressées à la Société Artistique et Scientifique de
Arti, p. 30. Berlin et accompagnées de documents, Paris: Jules
Boito, Camillo, 1893. “Gli ammaestramenti della Renouard et Cie.
prima esposizione italiana di Architettura”. In Ques- Serra, R. Maggio, 1981. “La cultura piemontese
tioni Pratiche di Belle Arti. Restauri, Concorsi, Legis- intorno al Borgo Medioevale”. In Cerri, M. Grazia,
lazione, Professione, Insegnamento. Milano: Ulrico Biancolini, Daniela, Pittarello, Liliana (coord.) Alfredo
Hoepli, p. 390. d’Andrade: tutela e restauro. Firenze: Vallecchi, p. 34.
Ferreira, Teresa C. 2014. Il Portogallo di Alfredo de Viollet-le-Duc, Eugène-Emannuel, 1879. Histoire
Andrade; città, architettura, patrimonio. Sant’Arcan- d’un dessinateur. Comment on apprend à dessiner.
gelo di Romagna: Maggioli. Paris: Hetzel.
Grimoldi, Alberto, 1993. “L’incerta fortuna del parti- Viollet-le-Duc., Eugène-Emannuel, 1857-1868. Dic-
colare costruttivo”. TEMA nº4/1993, Milano: Franco tionnaire Raisonné de l’Architecture Française, 10
Angeli, pp.42-49. vol., Paris: B. Bance édit. (voll. I a VI), e A. Morel
édit. (vol. VII a X).
RESUMO
O território continental de Portugal, embora de pequenas dimensões comparativamente a outros países
da Europa, possui grande diversidade de regiões com características orográficas, climáticas, sociais e
culturais muito distintas.
Esta realidade reflecte-se também na grande variedade de tipologias de construções da arquitectura
popular. Em cada uma das regiões as construções foram concebidos de forma a melhor se adaptarem
às diferentes condições locais.
A arquitectura popular portuguesa constituída maioritariamente por construções concebidas e cons-
truídas por gente simples, fazendo uso dos parcos recursos locais e que revela um notável saber empí-
rico, transmitido e aperfeiçoado de geração em geração, sobre como melhor se adaptar às condições
bioclimáticas das regiões, recorrendo a técnicas simples de construção.
No âmbito do Curso de Técnicas Tradicionais de Construção e Reabilitação do Instituto Politécnico de
Tomar, têm sido realizados alguns estudos de aprofundamento do conhecimento das técnicas construti-
vas com vista à melhor compreensão e salvaguarda, de alguns dos exemplares mais representativos da
arquitectura popular portuguesa.
Desse estudo constata-se que são relevantes, neste tipo de arquitetutra, os aspectos bioclimáticos. Têm
sido elaborados desenhos cuidados dos pormenores arquitectónicos e construtivos para melhor se per-
ceber os aspectos bioclimáticos destas construções.
Numa altura em que são crescentes as preocupações com a sustentabilidade e a ecoeficiência dos edifí-
cios, torna-se importante conhecer, entender e divulgar os aspetos bioclimáticos da arquitetura popular
portuguesa. Neste trabalho são apresentados exemplares da arquitectura popular, de algumas regiões
de Portugal, salientando-se as suas principais características bioclimáticas.
O conhecimento das particularidades desta arquitectura, constituirá um contributo para uma melhor
adaptação das construções às diferentes condições regionais do país e para a sustentabilidade do am-
biente construído, podendo promover a sua aplicação, quer em novos edifícios, quer nas intervenções
de reabilitação.
1. INTRODUÇÃO
A arquitectura popular portuguesa contém
ensinamentos, ainda hoje úteis, por serem con-
sequência do desenvolvimento, por via empírica,
de soluções arquitetónicas e construtivas bem
adaptadas ao clima do lugar e melhoradas ao
longo de gerações.
Essas soluções arquitectónicas e construtivas,
tendo em conta o clima local, possibilitaram
garantir boas ambientais de conforto interior,
recorrendo simplesmente a meios naturais pas-
sivos. É neste tipo de soluções que se baseia a
arquitectura bioclimática, permitindo melhorar a)
a eficiência energética nos edifícios pela redução
das necessidades de energia para climatização.
A arquitectura popular portuguesa é constituída
maioritariamente por construções concebidas e
construídas por gente simples, em meio rural,
fazendo uso dos parcos recursos locais e que re-
vela um notável saber empírico, transmitido e
aperfeiçoado de geração em geração, sobre como
melhor se adaptar às condições bioclimáticas das
regiões, recorrendo a técnicas simples de cons-
trução (Fernandes, 2014).
Neste artigo são apresentadas algumas carac-
terísticas dos edifícios da arquitectura popular
portuguesa no que respeita à forma e aos materiais
utilizados e técnicas construtivas, que permitiram b)
1 – Teto de masseira
a sua adaptação ao clima, garantindo ao mesmo 2 – Taipal de sombreamento
tempo um adequado nível de conforto nas habi- 3 – Compartimento para os animais
tações (AAVV, 1980). Escolheram-se oito tipos
Fig. 1 – Casa do Minho Litoral: a) corte em perspectiva; b) corte
distintos de construções do continente de Portugal, em pormenor.
nomeadamente: Casa do Minho Litoral; Casa
de Trás-os-Montes; Casa das Dunas do Litoral
Centro; Casa das Beiras; Casa do Alentejo; Casa influência oceânica, caracterizado pela existência
do Moleiro do Rio Guadiana; Casa das Serras de verões amenos e de invernos frios com grande
Algarvias e Casa do Litoral Algarvio. pluviosidade, devido às sucessivas vertentes das
montanhas, densamente arborizadas, que con-
2. CASA DO MINHO LITORAL densam a humidade vinda do mar.
As casas, com paredes de alvenaria de grani-
O Minho Litoral é uma região do norte de
to, que é a pedra existente nesta região do país,
Portugal, que possui um clima suavizado pela
têm pés-direitos baixos, para maior facilidade de
As casas, de pequena dimensão, são compactas criava sombreamento, reduzindo a exposição das
com paredes de alvenaria de xisto ou de granito. paredes à radiação solar, e aumentava a inércia
Os animais são colocados no piso inferior (Fig. 4). térmica do conjunto. Alguma separação entre
O revestimento da cobertura é realizado com casas permitia a circulação de ar fresco durante
ardósia, mais estanque ao vento e à chuva e mais o período noturno, ajudando ao arrefecimento
absorvente do calor durante o dia. das habitações.
Verifica-se a inexistência de chaminés, o que
permitia conservar o calor e, através do fumo,
preservar as madeiras das estruturas contra in-
festantes.
Possuem aberturas na envolvente que podem
ser abertas na totalidade, permitindo a máxima
passagem de ar e luz solar quando necessário, mas
com dispositivos de sombreamento que permitam
controlar convenientemente a entrada de radiação
solar e a ventilação dos espaços interiores, que
permitam aumentar a resistência térmica dessas
aberturas e com isso reduzir o fluxo de calor para
o exterior das habitações durante a estação de
aquecimento.
a)
6. CASA DO ALENTEJO
A região do Alentejo é uma vasta região de
Portugal, relativamente plana e não suficiente-
mente elevada para condensar a humidade vinda
do mar. A secura torna a vegetação escassa e esta
escassez acentua as amplitudes térmicas diurnas.
Os verões são longos e registam temperaturas
muito elevadas e os invernos são suaves nas zonas
em que se sente a influência do oceano.
Nesta região as casas têm paredes espessas de
terra, por ser o material argiloso muito abun-
dante nas planícies alentejanas, predominando a
construção em taipa, para tirar partido da maior
inércia térmica (Fig. 5). Têm poucas aberturas
para o exterior e as portadas são recuadas para b)
favorecerem o sombreamento. As fachadas são
pintadas de cor clara para refletirem a radiação. 1 – guarda-pó de tijolo lambaz
As casas são construídas em banda, em aglome- 2 – chaminé “balão”, com entrada de ar lateral
rados compactos, com pouco espaço de separação 3 – parede espessa de taipa
entre elas e com grande pé-direito (Roseta, 2004). Fig. 5 – Casa do Alentejo: a) corte em perspectiva; b) corte em
Os lotes são estreitos e profundos. Esta disposição pormenor.
8. CASA DO ALGARVE
O Algarve situa-se na região sul do país, sendo o
seu clima de fortemente influenciado pelo oceano
Atlântico. É uma região de clima quente e seco,
com temperaturas médias elevadas. No verão a
temperatura é elevada, há forte luminosidade,
grande insolação e ausência de chuva. Nesta região
a) é, portanto, essencial reduzir os ganhos solares
durante o verão.
As construções têm paredes de grande espes-
sura, executadas com materiais que lhes con-
ferem uma elevada inércia térmica, tais como
a terra (taipa ou adobe), a alvenaria de pedra,
ou a conjugação dos dois materiais (Fig. 8). As
paredes são tipicamente pintadas de branco ou
de outras cores claras, ficando dotadas de uma
elevada capacidade de reflexão da radiação solar
(Oliveira, 2008). O pé-direito é elevado, espe-
cialmente nas zonas de maior uso durante o dia,
para atenuar o calor e estratificar o ar interior.
As janelas são pequenas, em número reduzido e
estão colocadas em pontos altos das paredes. Este
b)
1 – Guarda pó feito de caniço
aspeto permite minimizar a entrada de energia
2 – Pavimento em lajedo de pedra solar incidente nas habitações e facilitar a saída
3 – Latada para sombreamento de ar quente do seu interior.
Fig. 7 – Casa da Serra Algarvia: a) corte em perspectiva; b) corte
Relativamente à cobertura dos edifícios, no
em pormenor. lado mais exposto à radiação, existe um terraço
geralmente construído sobre uma estrutura de
apenas uma água com a vertente voltada a norte
madeira, para conferir melhor isolamento tér-
para melhor desempenho em relação aos ventos mico. Os terraços tinham como função a seca do
e chuvas dominantes (Ribeiro, 2008). Os vãos são peixe e dos figos, promovendo algum arrefeci-
poucos e encontram-se normalmente protegidos mento através da mudança de fase da água que
por dispositivos de sombreamento, tais como inicialmente continham (Sassi, 2006). No lado
portadas, que permitem reduzir a entrada da menos exposto a cobertura é inclinada, de uma
radiação solar durante as horas mais quentes do só água, com pé direito elevado. O isolamento
dia e ventilar as habitações durante o período da da cobertura é feito com canas colocadas sob as
noite. É ainda frequente a utilização de vegetação, telhas cerâmicas. Existe uma chaminé encimada
RESUMO
A “Casa Bandeirista”, entendida como uma construção multifuncional resultante do estabelecimento
europeu no interior do continente Sul-Americano, é o objeto de estudo deste artigo. Ao considerá-la
como resposta arquitectónica a uma necessidade capital do “Período Colonial (1500-1822)” – a arqui-
tetura como objeto útil, resultado de uma ação criadora e obra de arte, da qual a construção é parte
integrante essencial, submetida a questões de ordem social – procura-se, através do estudo das diferen-
tes “culturas construtivas” sincretizadas no seu processo gerador, revelá-la como uma verdadeira síntese
da superação do desafio das diferenças existentes entre o Brasil e a Europa. A tomada de consciência
dá-se a partir da confrontação entre as suas condições específicas, patentes na “dimensão programáti-
ca” e “especificidades construtivas”, com as gerais, patentes num panorama das condições construtivas
existentes na Colónia e na Metrópole.
1. INTRODUÇÃO
Etimologicamente, edificar, dispor, organizar: que sendo condicionada pelos diferentes aspectos
construir não é mais que reunir e dispor meto- a que a sociedade se subordina, encontra-se imersa
dicamente as partes de um todo.1 O resultado, a na história da humanidade. O conjunto dessas
construção – do latim construere, erigir, amontoar variáveis é o responsável pelo surgimento de uma
– provoca modificações na superfície terrestre, seja cultura associada à construção: aqui considerada
ela ou não, um fruto da ação antrópica. Quando o como cultura construtiva.
espaço é transformado pelo homem em benefício Nesse contexto, julga-se que quanto mais de-
das suas necessidades, falamos não só de constru-
senvolvido for um povo do ponto de vista do
ção, mas também quase sempre de arquitectura2,
aperfeiçoamento material e tecnológico, mais
1
Dicionário da Língua Portuguesa.
ção e das regras que regem o acto de edificar; arquitectura como
2
“O conceito de arquitectura abrange três significações autónomas obra de arte, isto é, a caracterização do objecto criado, a análise do
mas relacionadas: arquitectura como resultado de uma acção cria- modo de produção desse objecto, de maneira a remeter tal objecto
dora; arquitectura como objecto útil e quadro de vida humana, cuja a uma ordem factual ou a uma valoração artística.” (Rodrigues,
historicidade se constituiu como história da descoberta da edifica- 2002, p.9)
tâncias encontradas em Portugal, permitiram racteriza-se tanto pela forma mais simples como
depois a sua expansão como cultura construtiva pela função mais especializada” (Idem, p.93): um
heterógena. Podemos por isso dizer, que em ter- só piso para habitação. A caiação interior reflete a
ritório português encontramos “testemunhos de luz e refresca a casa e o pavimento é geralmente
uma tradição construtiva própria” (Mateus, 2011, revestido com ladrilhos. No Algarve “parece ter
p.16), cuja origem está também “relacionada com a persistido, desde o tempo dos mouros, a açoteia
evolução observada na Península Ibérica e resulta ou cobertura em terraço” (Idem, p.94), ajustada a
dos materiais naturais, das comunicações internas chuvas escassas e à necessidade de secar alimentos.
e externas de que foi dispondo e das condições É a partir da leitura destes tipos e variantes
socio-políticas e culturais de cada momento his- que se verifica que “os grandes estilos eruditos
tórico.” (Idem) Factores naturais determinaram ganharam frequentemente [...] expressões locais
em primeira instância, a permanência num deter- resultantes de uma adaptação às condições par-
minado local e consequentemente, o rumo dessa ticulares das regiões diferenciadas”. (SNA, 1961,
cultura construtiva. p.XX) A arquitetura popular é agora entendida8
Nas intervenções territoriais assiste-se a uma como resultado do processo evolutivo ao longo da
modelação da fisionomia dos lugares, retirando história, potenciado pela força poética do edifício
partido dos fatores que os caracterizam em be- e da sua relação com o sítio. Assim, podemos
nefício do próprio homem e da actividade que dizer que a cultura construtiva portuguesa se
ali por ele é desenvolvida, tal como a construção define principalmente pela “correlação estreita
vernacular portuguesa. Neste âmbito, foi crucial com as condições naturais da região, o seu radical
o zonamento territorial das culturas construtivas, utilitarismo, a rusticidade e a permanência [...] se
que propôs a divisão da construção tradicional lhe cortam as raízes que a prendem fortemente à
em dois grupos principais caracterizados pela terra e aos seus problemas, desvirtua-se, perde a
matéria-prima abundante: a da pedra com maior força e a autenticidade.” (Idem, p.XIX)
expressão no Norte, que “sugere uma possível
filiação na civilização arcaizante dos castros pré- 2.2. BRASILEIRA
-romanos” e a da terra, desenvolvida sobretudo
Antes da chegada dos povos europeus, mais de
no Sul, onde se lê “a influência de civilizações
duzentas civilizações9 habitavam as terras bra-
superiores, romana, muçulmana”. (Ribeiro, 1998,
sileiras. Ali, aimorés, caiangangues, goitacazes,
p.95) Também na forma e na organização estes
guaranis, tremembés, tupis, entre outras etnias,
grupos são igualmente distintos, apesar de pos-
coexistiram de maneira nem sempre branda e
suírem ambos planta retangular e geralmente
pacífica. Os índios, como esses povos foram cha-
cobertura de duas águas. A casa rural do Norte
mados pelos portugueses, apresentavam entre
“carateriza-se essencialmente por ter dois pisos
si grande homogeneidade cultural e linguística
[independentes], uma loja térrea destinada aos
(Fausto, 2012). Homogeneidade também encon-
gados e à guarda de alfaias e produtos agrícolas, e
trada nas técnicas e materiais construtivos por
um sobrado ou andar para habitação, onde ficam
a cozinha e os quartos” (Idem, p.92), apesar de
8
Com o contributo do Inquérito à Arquitectura Popular Portugue-
sa, desenvolvido entre os anos 50 e os anos 60.
ser comum em algumas regiões a disposição em
torno de um pátio. A cobertura é de telha vã,
9
As poucas mais de duzentas civilizações que habitavam as ter-
ras hoje compreendidas pelo Território Nacional Brasileiro, totali-
colmo ou lousa e as paredes de blocos de pedra zavam entre cerca de dois a cinco milhões de indivíduos. (Fausto,
sem qualquer acabamento. Já “a casa do Sul ca- 2012).
eles empregues nas construções com materiais desde algumas dezenas até mesmo centenas de
naturais, como fibras, folhas, paus, gravetos, entre pessoas. No caso das habitações unitárias dos tuca-
outros de mais fácil obtenção. Os caiangangues, nos (Fig.2), pano e marubo, a cobertura é formada
por exemplo, escavavam o solo, transmutando-o por águas que quase tocam o solo e se projetam
em pisos e paredes cobertos por um emaranhado para além das paredes exteriores, cuja altura não é
de gravetos e folhas secas, protegendo-os das maior do que a de uma pessoa. Duas portas, uma
intempéries (Fig.1). (Cf. Weimer, 2012) De ma- na zona anterior destinada aos homens e outra na
neira geral, os espaços eram destinados ao abrigo posterior destina às mulheres, dão acesso a um
das mais diferentes funções, sem que houvesse, grande espaço central subdivido por biombos
necessariamente, uma correspondência evidente de folhas entrançadas e dispostos de maneira a
entre a forma e a função por elas desempenhada. originar pequenos nichos onde o núcleo familiar
Construções como essas não eram capazes, por- dispõe de privacidade. A ocupação desses nichos
tanto, de responder às necessidades impostas pela dá-se conforme a posição hierárquica ou o status
estrutura social portuguesa que era transportada social que as famílias conquistam, separação que
além-mar, pelo que foram a priori consideradas é complementada por espaços exclusivos para
demasiado primitivas, selvagens e arcaicas. Gün- homens e rapazes, e mulheres e crianças. (Cf.
ter Weimer sugere a existência de mais de setenta Weimer, 2012, p. 43-56.)
tradições construtivas indígenas específicas no Algumas variações tipológicas da Casa Unitária,
Brasil10, o que compreende um número ainda maior como as habitações dos ianomâmis – que são
de possíveis soluções arquitetónicas. Entretanto, o circulares e possuem uma abertura central que
conjunto dessas construções pode dividir-se em proporciona uma espécie de praça – existem sem,
duas grandes categorias, consoante a forma como contudo, alterar a lógica que estrutura os espaços
o espaço interior era utilizado. A primeira, refere-se – ou nichos destinados ao abrigo das unidades
às construções individuais, destinadas a atender às familiares – em torno de um núcleo ou até mesmo
necessidades exclusivas de cada unidade familiar, de um pátio central reservado às cerimónias e ritos
pequenos abrigos contíguos cuja disposição compõe tribais. Fundamento semelhante ao verificado na
aldeias ou assentamentos indígenas. A segunda, disposição das diferentes construções individu-
diz respeito aos edifícios coletivos, destinados a ais, cujo conjunto constitui a aldeia indígena, a
abrigar sob uma única cobertura todas as atividades exemplo da tupi-guarani, descrita pelos primeiros
desenvolvidas pela tribo e é precisamente por isso, europeus que chegaram ao Brasil. “Essas formas
que das mais diferentes tipologias já estudadas pelos de aldeia ainda hoje podem ser encontradas na
arquitetos e historiadores, esta é considerada a mais Amazônia e em pouco divergem de uma forma
simples. (Cf. Weimer, 2012, p.43) comum que é a existência de quatro construções,
As construções coletivas, também denominadas ortogonais entre si e ordenadas de modo que
de Casa Unitária ou Casa-grande,11 abrigavam formem uma grande praça quadrada entre si.”
10
Informação aventada a partir de interpretação do Mapa Etno- (Weimer, 2012, p.48) Esses edifícios, chamados
-Histórico do Brasil, produzido pelo aventureiro alemão Curt Unkel de maloca que em tupi-guarani significa casa de
ou Curt Nimuenjadu, como era alcunhado. Esse levantamento dis- gente, também são divididos internamente de
tinguia mais de trinta civilizações isoladas e outras quarenta, cuja
família linguística era completamente divergente entre si. (Weimer, acordo com a configuração estrutural da cober-
2012, p.42-43). tura, que conforma uma série de espaços de seis
11
O termo Casa-grande era empregue para distinguir a construção metros quadrados onde uma família se abriga.
principal das restantes, dispostas ao seu redor. (Cf. Weimer, 2012, p.48-56)
pole sobre o território atualmente compreendido, doméstica unifamiliar – nos usos e funções que
sobretudo, pelos Estados de Minas Gerais, Goiás, exerceu no passado, usos e funções que vão para
Mato Grosso, Paraná e São Paulo, foi ratificada. além da mera satisfação e esquemas funcionais de
Os Bandeirantes13, grupos compostos por índios, carácter universal – atendimento às actividades
mamelucos14 e portugueses, somavam à propensão de estar, repouso, serviço.” (Lima, 2002) Apesar
natural pela aventura, os interesses económicos de não terem sido construídas com a intenção
e políticos e frequentemente incentivados pela específica de se tornarem obras de arte, certamente
própria administração portuguesa, desbravaram poderiam ser valorizadas artisticamente como
os sertões brasileiros. (Cf. Fausto, 2012, p.51-57) um sincretismo de soluções formais, resultante
Apesar de não terem como objetivo principal a da combinação de componentes eruditos da ar-
fixação numa porção territorial através da funda- quitetura ibérica. (Lemos, 2014, p.13)
ção de vilas e cidades, acabaram por estabelecer Acredita-se que a Casa Bandeirista seria, por-
algumas comunidades autónomas no interior tanto, uma das mais evidentes representantes das
continental, como a de Piratininga em São Paulo. relações passadas entre os europeus e os brasileiros.
Dentre as diversas tipologias arquitetónicas em- Entretanto, a forma como este vínculo é compre-
pregues no estabelecimento dessas comunidades, endido, sobrevaloriza as contribuições ibéricas em
identifica-se a da Casa Bandeirista, desenvolvida detrimento daquelas efectuadas por índios e ma-
no decorrer nos séculos XVII e XVIII. melucos. Talvez isso se deva ao facto, entre outros,
Sabe-se que tais construções eram dotadas de do hibridismo dessas construções ser muitas vezes
um caráter multifuncional: para além de habita- verificado a partir da comparação entre as com-
ção, recinto religioso e abrigo temporário, eram posições formais e suas componentes, a despeito
também local de trabalho e de armazenamento das associações sobre a dimensão programática e as
(Cf. Katinsky, 2005 In Mayumi, 2005, p.50). En- especificidades constutivas. Apesar da leitura que as
tretanto, tal e qual uma esfinge semi-decifrada considere a partir de uma série de casos ilustrativos
(Lemos, 2014, p.12), a Casa Bandeirista não foi parecer, num primeiro momento, demasiado sim-
totalmente entendida pela história da arquitetu- plista, não deixa de ser um contributo para a análise
ra, que a considerou apenas mais uma “unidade da cultura construtiva, temática manifestamente
dos pelos desbravadores portugueses, eram arrojadas pelos sertões abordada pelo presente estudo que não prescinde
brasileiros com uma finalidade principal: a obtenção de metais de reinterpretações com base em critérios bem
preciosos e a captura de escravos. (Fausto, 2012, p. 51) Essas ex- definidos. Por isso, reconhecem-se como notáveis
pedições, também chamadas de bandeiras, duravam meses e até
mesmo anos, atenderam aos interesses de algumas etnias indígenas complexos do tipo15 – desde a casa caiangangue, as
que se aliaram aos portugueses com o objetivo de aumentar o seu casas-grande dos tucanos, marubos e ianomamis,
poder e hegemonia sobre um povo considerado inimigo. Por outro a maloca tupi-guarani, passando pela Casa Árabe
lado, atendiam também aos interesses da Coroa Portuguesa, dese-
josa em estabelecer soberania sobre as terras ainda não ocupadas na Andaluzia (Fig.3) e a Casa Rural Lusitana – as
por um europeu. “Graças às alianças com esses grupos, os europeus Casas-grande16 dos Sítios Querubim (~1680), Santo
puderam ocupar efetivamente diferentes pontos do litoral e, no caso
excepcional de Piratininga (São Paulo), no interior do continente.”
15
Edifícios proeminentes devido à visibilidade em periódicos espe-
(Monteiro, 2013, In Figueiredo, 2013, p.36) cializados como a Revista Acrópole, cujas evidências documentais
possibilitam o confronto com as informações posteriormente reco-
13
Os Bandeirantes eram os integrantes das bandeiras cujo conjunto lhidas.
constituiu o Movimento Bandeirista. 16
Essas construções estão integradas num complexo que integra
14
Os mamelucos eram mestiços nascidos a partir da união afeti- outras edificações, e por isso, à semelhança do que ocorreu com
va entre portugueses e indígenas. (Monteiro, 2013, In Figueiredo, as construções principais das aldeias indígenas, são chamadas de
2013, p.36) Casa-grande.
à capela e ao quarto de hóspedes. Era, pois, uma e indígenas. A combinação de propósitos entre os
espécie de zona mista, social, onde se podiam deixar seus usuários fez com que elas não fossem apenas
temporariamente as montarias, receber visitantes, edificações rurais ou meros edifícios de paragem,
transmitir ordens e separar as classes sociais em dias mas verdadeiras bases civis e militares, que situadas
de missa – pois apenas a personalidades era permi- em locais estratégicos, certamente contribuíram
tido o acesso ao interior da capela. Deste recinto, para a manutenção da soberania da metrópole
acedia-se diretamente à sala que, à semelhança das sobre o território brasileiro.
casas árabes na Andaluzia, era também o coração
do edifício – o ambiente em torno do qual todas as 3.2. ESPECIFICIDADES CONSTRUTIVAS
estruturas interiores eram organizadas. A contigui-
A Casa Bandeirista é construída por paredes em
dade dos espaços articulados em torno de uma área
taipa-de-pilão19 (com cerca de 60cm de espessura,
central é comparável ao pátio, também central, de sistema construtivo que exigia uma modulação
algumas aldeias indígenas como a dos ianomamis, ou rígida, determinante da sua forma, beleza e confor-
à praça em redor da qual se dispunham as malocas to. O facto de não apresentar resistência ao risco,
tupi-guarani. É também às influências indígenas que não trabalhar à tração e ser altamente erodível,
remonta o hábito de cozinhar num anexo à zona de levou a que nos cantos fosse feita uma tentativa de
serviços, localizado na zona posterior do edifício e, travamento dos blocos saídos dos taipais, através
portanto, oposta ao alpendre. do seu cruzamento em forma de malhetes (Cf.
Térrea, de planta retangular e estrutura simétrica, Lemos, 2009). Em alguns casos eram executados
a Casa Bandeirista era uma estrutura aparentemente baldrames como fundações, através da abertura
monolítica que não exteriorizava a flexibilidade no solo de valas perimetrais contínuas com cerca
que possuía, tanto a nível programático – como de 1,5m de profundidade, onde eram colocadas
percebido através dos alpendres – quanto pelas pedras e calda20, no entanto, na maioria das ve-
especificidades construtivas. Numa alusão às ideias zes, a terra era simplesmente pilada em valas,
clássicas, foi comparada por alguns investigadores sem qualquer precaução contra as humidades e
à arquitetura Palladiana, em virtude das propor- assentamentos, problema minimizado em casos
ções geométricas por que se regia. Reconhece-se, raros, com a execução de um embasamento em
contudo, que apesar da sua geometria idealizada pedra das paredes em taipa, evitando a absorção
poder ser uma metáfora do templo grego, ela estava 19
Sistema construtivo de origem portuguesa e adaptado depois pe-
limitada às dimensões que os sistemas construti- los mamelucos às condições especiais do planalto de Piratininga - a
vos utilizados podiam alcançar. No entanto, a sua taipa-de-pilão - é utilizada na construção de paredes (exteriores e
área total variava também em função do estatuto interiores) e muros. A sua matéria-prima é a terra retirada das pro-
ximidades da construção, ultrapassando dificuldades de transporte;
sócio-económico que abrigava e conforme as ne- e o cascalho. A mistura dos dois é compactada horizontalmente em
cessidades apresentadas pelo sistema mercantil camadas (com cerca de 15cm de altura), em cofragens rudimentares
ainda em formação no interior do Brasil. Apesar da de madeira (taipais) com pilões, processo que reduz as camadas para
metade da altura. Quando a terra pilada atinge mais ou menos dois
manifestada origem ibérica da Casa Bandeirista, a terços da altura do taipal, recebe transversalmente pequenos paus,
tradição do habitar não foi imposta aos colonos por roliços envoltos por folhas, geralmente de bananeiras, produzindo
aquele povo, que consentiu adaptações considerá- orifícios cilíndricos denominados “cabodás”, que permitem o ancora-
mento do taipal numa nova posição. Este sistema apresenta um bom
veis ao modelo arquitetónico empregue nas casas desempenho energético e estrutural, permitindo o suporte de cargas
rurais que, tal como as casas em estudo, eram muito como pavimentos superiores ou madeiramentos das coberturas.
similares entre si. Tanto a sua composição como 20
Mistura de barro, cal e um aglomerante que podia ser óleo de
organização evidenciavam as influências mamelucas baleia, borra ou resíduo de cozimentos.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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leira. São Paulo: WMF Martins Fontes. Paulo. Tese de doutoramento.
Zanettini, Paulo Eduardo. 2015. Maloqueiros e *As ilustrações presentes neste artigo são resultado
seus palácios de barro: o cotidiano doméstico na de análise e redesenho dos documentos consultados.
RESUMO
Não é novidade que a circulação de objectos pétreos no mundo atlântico nos sécs. XVII e XVIII levou
à difusão de modelos europeus no contexto da Igreja, mas também dos institutos regulares, que pau-
latinamente se foram implantando nas várias possessões ultramarinas e particularmente em terras de
Vera Cruz.
O recebimento dessas obras, quer para vestir os edifícios, quer para equipar os interiores religiosos, de
produção reinol, contribuiu para a circulação de modelos que perduraram até aos nossos dias e que
ainda hoje testemunham a importância da disseminação de materiais, de um modus faciendi, mas
também de uma cultura visual.
A integração de portais em edifícios religiosos no período barroco no Brasil, espelho da resposta a uma
funcionalidade, mas também de um elemento que se reconhece ser difusor da propaganda devocional
contrarreformista, é um dos melhores exemplos da circulação destes objectos.
O efeito cénico que a decoração do principal acesso do templo ostentava, conseguido através de novas
fórmulas compositivas e decorativas, e a articulação com “materiais exóticos” como o lioz ou a brecha,
foi motivo suficiente para a adesão por parte das comunidades locais a programas que correspondiam
aos ideais da Igreja Católica.
Embora se reconheça que a questão dos portais em edifícios religiosos do Brasil é ampla no que ao
espaço temporal e geográfico concerne, é nosso propósito, através da compreensão da construção, fixa-
ção e definição de modelos portugueses, mormente aqueles da metrópole dos reinados de D. Pedro II
(1648-1706) e de D. João V (1689-1750), e sua comparação com casos de diversos estados brasileiros,
compreender melhor a circulação de algumas dessas obras.
Exemplos como o do portal da igreja da Pena (localizada na antiga freguesia de Santa Ana de Lisboa),
do portal da igreja de São Pedro (da freguesia de Alcântara da mesma cidade) e o da igreja da Ordem
Terceira do Carmo do Rio de Janeiro, este último claramente filiado nos modelos de portal primeira-
mente mencionados, consubstanciam a noção de “barroco transplantado” e a visão de implementação
de modelos portugueses, por sua vez claramente devedores de uma operacionalidade portuguesa e de
uma estética italiana e por conseguinte internacional.
uma “Porta para um castelo e para uma fortale- Das condiçoens que as Paredes terão para serem as
za”. Apesar de esse artista, não tecer definições que convem e Cap. 9. Sobre os Materiaes do officio
sobre os conceitos de porta e portal, mimetiza o de Pedreiro) e nos capítulos 7 e 9 do Livro III
conhecimento da realidade italiana, projetando (Cap. 7. Sobre a compustura em geral dos edifícios
no contexto português, através do desenho, essa e Cap. 9. Sobre as pedrarias mais em particular).
dimensão internacional (Holanda, 1984, 43 e Nas Medidas Gerais de Portugal Tinoco aproveita
47). Já o arquiteto António Rodrigues (c. 1525- a circunstância para tecer considerações acerca de
1590), provável autor do Tractado de Architectura uma das matérias-primas nacionais: “Neste nosso
de 1579, revela uma maior preocupação com Portugal, por mais que me digão, para as obras
estes elementos, manifestada, por exemplo, na nenhuma Pedraria he melhor que a nossa Liós, por
Proposição 9, onde nos dá indicações relativas às ser muito forte” por oposição àquilo que designa
proporções destas estruturas “Por a mesma regra de “pedra Bastarda” e “outras Pedras mais finas
dada na proporção do olho, se pode fazer um portal que parecem agradaueis à vista, e seruem mais
e ficaraa em sua debita proporção com se guardar para brincos, e interpozição de outras em alguas
a dita regra (...)” (Moreira, 1982; Moreira, 2013, partes particulares, que para o geral dos edificios”.
33-38 e 53-55). No que à produção portuguesa de manualística
No âmbito da interpretação feita por portu- e tratadística refere, importa ainda sublinhar que
gueses de tratados e na fixação no papel da sua se desconhece qualquer interpretação em Portugal
experiência e conhecimento, somos ainda levados das três obras mais significativas sobre portais:
a considerar, a par do manuscrito acima referido, Extra ordinem liber ... [Portarum species], incluso
o Compendio Pratico da Arquitectura Politica Em no De Architectura libri quinque de Sebastiano
que se explicão os sinco generos a Saber, Toscano, Serlio (1569), Studio d’architettura civile sopra
Dorico, Ionico, Corintio, & Composito, outros dois gli ornamenti di porte e finestre, do florentino
manuscritos: Tractado de Architectura Que leo o Ferdinando Ruggieri (1702), ou a obra do mesmo
Mestre, e Architecto Matheus do Couto o Velho No nome, do romano Domenico De Rossi (1722).
anno de 1631 (1631)5 e Medidas Gerais de Portugal Para além dos anteriores exemplos várias fontes
(1660)6 de João Nunes Tinoco (act. 1652-1689). seiscentistas e setecentistas, coetâneas ao grupo
Se o primeiro resulta, segundo a opinião de Rafael de portais eleitos neste estudo, informam-nos
Moreira (1989, 492), da interpretação do tratado que nessa mesma Idade Moderna grassava al-
de Leon Baptista Alberti (1404-1472), já o segun- guma indefinição semântica no que refere ao
do, associado a um outro intitulado Taboadas termo portal. Alguns contratos de obra anunciam,
Gerais para com facilidade se medir qualquer obra por exemplo, expressões como “portal da porta
do officio de Pedreiro Assim de Cantaria, Como de Trauessa” ou da “porta principal”, mas também
Alvenaria (...), apresenta-se original. No Tratado de outros casos existem que mencionam “o portal
Arquitectura de Mateus do Couto, tio (act. 1616- da cappela-mor”, quando na realidade não se trata
1676) a pedra e a sua relação com as superfícies de um portal que estabelece a simples relação
parietais desenvolve-se nos capítulos 3, 4 e 9 do entre o espaço terreno e o espaço sagrado, mas
Livro II (Cap. 3. Tambem sobre as Paredes; Cap. 4. antes arcos que separam a capela-mor de outros
5
BNP, Secção de Reservados, Cod. 946: Tractado de Architectura espaços de um templo7. Também a recorrência
Que leo o Mestre, e Architecto Matheus do Couto o Velho No anno
de 1631.
7
Trata-se especificamente do contrato celebrado a 18 de Julho de
1668 entre a mesa da irmandade de Santa Cruz de Cristo do mos-
6
BNP, Secção de Reservados, Cod. 5166: Medidas Gerais de Por- teiro de Nossa Senhora da Graça de Lisboa e o mestre pedreiro Ja-
tugal. cinto Simões, morador na Travessa das Parreiras ao Relógio de S.
dos pedreiros que nos informa que no exame do esta em sima da porta principal (...)”10 (Coutinho,
ofício o proponente tinha que saber executar, 2010, 142).
entre outros aspectos arquitectónicos, “hu portal Igualmente elucidativo da atuação de um mestre
quadrado cõ seu sobrarco capialçado”, mas também pedreiro da capital face a amplas encomendas que
saber traçar e contrafazer “huã coluna Dorica cõ incluíam portais é ainda o contrato celebrado
sua vasa e capitel”. Igualmente esclarecedor é o entre os irmãos da irmandade do Santíssimo Sa-
facto de saber que essa obra devia ser contrafeita cramento da igreja de Santos-o-Velho de Lisboa
em barro, tal como as janelas e cantareiras, con- e o mestre pedreiro Gonçalo da Costa em 1696,
cluindo-se a tarefa “segundo se então usar”. O para a realização do portal lateral, torres sineiras
mesmo exame podia ainda ter um componente e púlpitos no dito templo. Neste caso concreto,
de alvenaria, e, neste caso, o candidato deveria mais minucioso, ficamos a saber que era “tudo
saber “laurar hu peitoril de pedra e huas sedas e na forma do Risco E planta, que deo o Arquiteto
huas couceiras, hus boulhões e hu cunhal”. João Antunes” e que a obra do “portal da porta
Corrobora esta ideia de versatilidade do exe- Trauessa” deveria ser de “pedraria alua, E grossa
cutante o testemunho legado no contrato de obra a onde for necessario”11 (Carvalho, 1962, 165). Por
encomendado pela confraria de São Luís da igreja fim, e no que à remuneração destes indivíduos
homónima de Lisboa ao mestre pedreiro Adrião refere observe-se o curioso exemplo do contrato
João, em 1619, onde esse construtor se obriga a entre membros da irmandade da Senhora da
levar a cabo uma ampla empreitada que incluía Saúde da igreja homónima da Mouraria e o mestre
paredes e janelas, mas também portais8 (Serrão, pedreiro Manuel Antunes para a realização da
1989, 77-80). Ao anterior caso, podemos somar nova obra desse templo em 1705, uma vez mais
a obra contratualizada entre a irmandade de San- com traça do então arquitecto régio João Antunes.
tiago da igreja da mesma invocação de Lisboa e Este ajuste, que contemplava que obra devia ser
os mestres pedreiros Domingos Serrão e António minuciosamente orçamentada - “Por cada vara de
Gomes, para lavrarem, em 1627, dois portais, um lagedo tosco em aliserçes a trezentos e sinquenta
púlpito de lioz e ainda executarem outras tarefas reis e por cada braca de aluenaria a dois mil e oi-
mais grosseiras9 (Serrão, 1989, 87). O exemplo do tocentos reis sendo guarnecida onde for necesario
contrato entre os mestres pedreiros António Fer- Por cada palmo de pedra branca de mucheta a
nandes, Domingos Ribeiro e Manuel Rodrigues, duzentos reis por cada palmo de pedra de lancil
todos moradores em Lisboa, para executarem vermelho a duzentos e corenta reis por cada vara
em 1674 na igreja do Socorro “escada do choro de alçelaria (sic) a seiscentos reis sendo de escoda
e campanario pela banda de dentro”, bem como ou de picão por cada braca de aboboda em arcos
fazer duas torres para os sinos “e mudar a simalha a tres mil reis” -, revela, ao invés de muitos outros
do fronteespicio com sua crus”, previa também a para obras de pedraria desta época, que ao mestre
abrir “huma janella rasgada para dar lus a Igreja pedreiro responsável pela aquisição de materiais e
(...), huma baranda de torre a torre lageada de também pelos desmanchos era pago em géneros
pedra E suas grades de pedraria (...), pulpito em (possivelmente reutilizáveis) - “levará o portal da
correspondencia do outro que já esta[va] fejto” e porta principal da dita igreia que serão somente as
a realização de “huma Imagem de Nossa Senhora ombreiras e sobre arcos”12 (Carvalho, 1973, 30).
do Socorro de pedra para se por em o nicho que 10
ANTT, CNL, N.º 3 (antigo n.º 11), Cx. 82, L.º 309, fls. 23 v.º-24 v.º.
8
ANTT, CNL, N.º 7 A (antigo n.º 9A), Cx. 18, L.º 80, fls. 132-133. 11
ANTT, CNL, N.º 3 (antigo n.º 11), Cx. 91, L.º 364, fls. 45-46.
9
ANTT, CNL, N.º 15 (antigo n.º 7A), Cx. 48, L.º 221, fls. 8 v.º-10. 12
ANTT, CNL, N.º 15 (antigo n.º 7 A), Cx. 83, L.º 451, fls. 24 v.º-26.
No que a este assunto concerne, importa só a escultura pétrea) ter sido enviado em 1693 para
esclarecer que no caso do Brasil, e de acordo o Brasil pelo arquitecto e entalhador lisboeta José
com os estudos de Maria Helena Ochi Flexor Rodrigues Ramalho (c. 1660-1721) (Carvalho,
(2005) e de Henrique Nelson da Silva (2008) a 1964, 17).
situação não diferia tanto daquela operada em António Filipe Pimentel informa-nos sobre
Portugal continental. Aliás, nas sistematizações factos mais concretos para o período barroco,
destes autores, não só compreendemos a criação nomeadamente sobre a ida de uma escadaria de
de uma Casa dos Vinte e Quatro em Salvador (a lioz, concebida em Portugal pelo arquitecto régio
então capital), onde a bandeira de S. José se fez João Antunes (1643-1712), e realizada neste mes-
representar, como o facto da irmandade desse mo país. O conjunto, uma vez mais encomendado
santo também aglutinar, entre oficiais das artes para Salvador, em 1700, foi adquirido por António
das madeiras, pedreiros e alvíneos (Cunha, 2005). Rocha Pita para a Misericórdia dessa cidade, tendo
o mesmo chegado em 1703 (Pimentel, 1999).
4. A MIGRAÇÃO DE MATERIAIS E Pedro Dias afirma que “(...) houve homens de
ARTISTAS Itália, dos Países Baixos, e de França a trabalhar,
no Brasil, mas a mediação do Reino é um caminho
A migração da obra de arte de pedraria e de
que teremos sempre de explorar, para tentarmos
artistas ligados aos ofícios do lavor da pedra en-
encontrar a génese de qualquer projecto” (Dias,
tre Portugal e o Brasil, como já foi mencionado,
2008). Nos seus estudos sobre a arquitectura
não é inédita na historiografia (Carvalho Silva,
religiosa no Brasil português, o historiador de
2007). Por isso, importa sempre relembrar alguns
arte dá-nos conta, entre os múltiplos exemplos
acontecimentos que enquadram a circulação dos
que colheu, da vinda de pedraria do reino em
materiais e objectos por nós eleitos para este es-
1729 para as colunas do claustro da igreja de
tudo, mormente aqueles menos explorados e que
S. Francisco de Salvador, bem como de lagedo
estabeleceram pontes entre o que se produzia na
em 1741 para o pavimento da capela-mor desse
metrópole e nas principais cidades e povoações
templo; dos trabalhos executados pelo pedreiro
do Brasil.
e marmorista Manuel da Silva, para a igreja da
O Pe. Serafim Leite dá-nos conta dos inúmeros
Companhia de S. Luís do Maranhão, entre 1744-
mestres, onde se incluíram pedreiros oriundos de
1747; da notícia de que toda a frontaria da igreja
Portugal, que trabalharam ao serviço da Compa-
de Nossa Senhora do Pilar na Baía, iniciada em
nhia de Jesus no Brasil e que nesse local assen-
1740 e concluída em 1772, foi realizada na capital,
taram obras vindas da metrópole (Leite, 1953).
desmontada e transportada para Salvador, e da
Dessa investigação destaca-se particularmente
vinda de pedra lioz, preparada em Lisboa pelo
a notícia de que em 1641 o jesuíta Manuel Luís
mestre Manuel Vicente, para a reedificação no séc.
é enviado a Portugal para comprar mármores,
XVIII da igreja de Nossa Senhora da Conceição
possivelmente lioz e brecha (calcários mais usuais
da Praia de Salvador.
no sul do país), e contratar marmoristas para as
Já Eugénio de Ávila Lins refere que, entre 1698 e
obras da nova igreja da Companhia em S. Salvador.
1699, a correspondência trocada entre o Conselho
Ayres de Carvalho é outro dos autores que men-
Ultramarino e o Arcebispo da Baía e o Provedor
ciona especificamente o facto de um conjunto de
da Fazenda descreve o envio de lagedo de lioz de
peças escultóricas (cujo material se desconhece, o
Portugal para pavimentar a Sé de Salvador, de
que nos deixa uma margem para considerarmos
mais matéria para a pia baptismal, para as pias
de água benta, para a porta principal e para as Excluindo os casos que se integraram em locais
travessas (Lins, 2001, 183-196). menos visíveis para o transeunte e que por esse
Inúmeros são ainda os dados, concernentes às motivo foram plasticamente menos expressivos14,
obras de pedraria levadas para a Baía e riscadas observámos, num grupo significativo de portais
por mestres reinóis, que coadjuvaram a ideia de colocados à face do alçado principal das igrejas
disseminação artística, levantados por Zenaide - mormente aqueles que integraram imaginária
Carvalho Silva, que menciona que “O lioz é «a» em nichos ou baixos-relevos alusivos ao orago - ,
rocha lisboeta que atravessando o Atlântico nos afinidades formais com alguns dos modelos que
séculos XVII, XVIII e XIX, aportou o Brasil, em vigoraram na metrópole, nos sécs. XVII e XVIII.
locais variados e em particular na Bahia, transfor- Motivados pelo papel catequético, determinado
mando-se em matéria-prima para a construção a partir do Sacrossanto Concílio Tridentino e
de parte ou da totalidade de algumas igrejas em fixado, a partir das directrizes dimanadas por
Carlos Borromeu nas Instructiones fabricae et
Salvador.” (Carvalho Silva, 2007, 17).
supellectilis ecclesiasticae, nas Constituições Sino-
Em suma, através da ida de desenhos, de mão-
dais, os promotores de institutos religiosos como a
-de-obra e materiais portugueses, para enformar
Companhia de Jesus e a Ordem de São Francisco,
as novas igrejas do Brasil, bem como de objectos
entre outros, e o clero secular, integram a Imagem
de natureza escultórica, assistiu-se nos principais no próprio portal. Essa característica, mais usual
destinos das frotas portuguesas: Salvador, Rio de no período pedrino, que ainda hoje confere às
Janeiro e Recife, mas também em outros pontos, a igrejas inacianas, por exemplo, como a do antigo
uma significativa presença desse material pétreo noviciado de Nossa Senhora de Arroios (1705/6)
em portais e cantarias, como mais recentemente de Lisboa, com portal calcário, e a outras, um
também nos foi dado a saber por Vítor Serrão13. traço comum e identitário, pode ser igualmente
aferida na reconstruida igreja do colégio inaciano
5. A MIGRAÇÃO DAS FORMAS de Salvador (Santos, 1951). O mesmo recurso
Por último, e porque não podemos estabelecer compositivo é ainda hoje visível na fachada do
cenóbio de carmelitas descalças dos Cardais (no
relações sobre a tipologia em apreço - o portal
portal da igreja e no da portaria), bem assim como
religioso - no mundo luso brasileiro, sem recorrer
no portal da igreja da Ordem Terceira do Carmo
à evidência das similitudes encontradas entre
de São Cristóvão, no Brasil, entre muitos outros
espécimes, concretizados em materiais diversos,
exemplos deste tipo de conjuntos que poderíamos
como se constata através da simples observação, elencar. Singular foi o caso da fachada da igreja da
importa rever alguns exemplos que comprovam a
14
Veja-se os casos inscritos em fachadas cujo registo inferior era
ideia de uma cultura partilhada, que não se limi- suportado por uma galeria ou nártex. Nestes casos, o portal apre-
tou à cópia de modelos europeus, sendo mesmo sentava, de um modo geral, alizares direitos, por vezes remados
utilizada pelos institutos religiosos como uma por uma cimalha ou por um simples frontão. Se em Portugal, e so-
bretudo em Lisboa, sabemos que esse modelo ganhou consistência
manifestação de poder (Bastide, 2006 [1951]; em igrejas mais eruditas como a de S. Vicente de Fora, a do antigo
Oliveira, 2011). convento do Santíssimo Sacramento, hoje de Santa Catarina, ou na
desaparecida igreja do cenóbio que os padres teatinos construíram
13
Nas últimas deslocações ao Brasil o Professor Doutor Vítor Serrão no Bairro Alto, no Brasil assiste-se à presença desse modelo em lo-
revelou-nos oralmente ter encontrado documentação inédita acerca cais como o mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, que, segundo
de obras de pedraria vindas de Portugal para este país. As obras vários autores, herdou o modelo utilizado na igreja do antigo mos-
incluíam pias, mesas, lavabos, estruturas retabulares e cantarias, teiro de São Bento da Saúde de Lisboa e a igreja do convento de
entre outras. Aguarda-se a publicação destes contratos. Santa Teresa de Salvador.
Fig. 3 - Pormenor do frontão do portal da igreja da Encarnação Fig. 4 - Pormenor do frontão do portal da igreja da Ordem
de Lisboa, com baixo-relevo da primitiva igreja. 2.ª metade do Terceira do Carmo do Rio de Janeiro. 1760.
séc. XVIII.
possuíam múltiplas valências no que à realização Brasil com materiais locais, como a pedra-sabão,
de obras de pedraria refere. local onde alcançaram uma notabilidade escultó-
A migração dos materiais portugueses como rica não conseguida na metrópole.
o lioz, de obras pétreas realizadas na metrópole, Deixando em aberto um vasto leque de hipóteses
bem como a emigração de artistas para o Bra- de trabalho em torno deste tema, fica a convicção
sil, extraída de estudos singulares, permitiu-nos que este estudo não poderá prosseguir isoladamente.
consolidar a ideia da circulação de bens e de sa- Com efeito, para a salvaguarda deste património
beres. Com efeito, quer no seio das comunidades comum, ter-se-á que ter ainda em conta uma maior
religiosas, quer individualmente, muitos foram compreensão acerca de quem concebeu, realizou e
os artistas que se deslocaram até terras de Vera em que condições foram executadas, transporta-
Cruz, transportando consigo saberes. das e remontadas muitas das peças atravessaram
Inevitável, no âmbito do conceito de cultura o atlântico, assim como a compreensão de como
partilhada e de circulação de materiais, foi também foram transplantadas e mesmo recriadas formas em
a compreensão de afinidades plásticas existentes pedra-sabão, ou mesmo em argamassas, que mime-
entre obras portuguesas (de matriz europeia) e tizaram as construções portuguesas de pedra e cal
aquelas que sabemos terem sido já realizadas no que recorreram ao emprego de lioz e de mármores.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RESUMO
As habitações são construções que nos oferecem abrigo e proteção, guardam nossas posses e nos dão
sensação de proteção. Com a evolução dos meios de trabalhos e a modificação dos valores da sociedade,
as relações familiares sofreram alterações nos últimos séculos. O uso da flexibilidade na habitação per-
mite que os espaços transformem-se conforme os desejos de seus residentes, agregando ou separando,
aumentando ou reduzindo. Alterar as condições ao nosso redor e criar o modelo ideal de casa estão in-
trínsecos na nossa mentalidade, por isso, as soluções que possibilitam adaptar a moradia são essenciais
para que o sentido de casa esteja mais próximo dos seus habitantes. O objetivo deste trabalho é traçar o
histórico da flexibilidade na habitação, analisando construções a partir do século XX que representem
diferentes técnicas de modificação do espaço. Pretende-se também apresentar as técnicas empregadas,
sistemas, processos de construção e os tipos de materiais utilizados. A metodologia assenta na análise
e levantamento de casos de estudo, onde são analisadas obras que melhor demonstrem essas condições
e que se enquadrem na delimitação temporal indicada, escolhida por conter um conjunto considerável
de opções.
1. INTRODUÇÃO
A flexibilidade na habitação permite a transfor- trazer conforto e satisfação nos diferentes modos
mação dos espaços, conforme a vontade de seus de morar. O poder de alterar as condições do
residentes, pela agregação, separação, aumento entorno e criar o modelo ideal de casa estão in-
ou redução dos ambientes. Com base na criati- trínsecos na personalidade e cultura individual,
vidade dos usuários e dos projetistas (arquitetos, por isso, as soluções que possibilitam adaptar a
engenheiros e designers), ocorrem modificações moradia são essenciais para que o sentido de casa
sob outras circunstâncias, tirando-se proveito dos esteja mais próximo dos seus habitantes (Kro-
variados materiais existentes no mercado (Inani, nenburg and Bunn, 2002).
Kamar, 2012). Diminui-se assim o risco da habitação tornar-se
Proporcionam-se assim novas formas de comu- obsoleta frente às constantes oscilações sociais
nicação e interação entre os habitantes, a fim de e econômicas, ampliando o período de uso por
uma família e gerando redução de custos com, cronológica e intercalados pelo país (Brasil e Por-
por exemplo, mudanças e reformas. (Celuucci tugal), procura-se tornar mais claro a evolução do
and Di Sivo, 2015). tema e facilitar a posterior análise.
A difusão e discussão deste conceito na ar- Foram recolhidas informações do ano de projeto
quitetura ocorreu principalmente nos anos 50, e/ou construção, arquiteto ou escritório respon-
como parte do Movimento Moderno, fundamen- sável, área ou medidas de referência, estrutura
tado na ideia de que nem todas as partes de uma utilizada e outros materiais relevantes para o
edificação podem ter seus usos especificados e trabalho. Assim, espera-se deixar mais evidente
previstos (Forty, 2000). Desse modo, na pesquisa a sequência da investigação e a apresentação das
bibliográfica ressaltam-se os conjuntos de obras obras a seguir.
que datam a partir desse período, inclusive nos
países luso-brasileiros. 2.1 EDIFÍCIO PRUDÊNCIA
Entre os elementos arquitetônicos mais utili-
Projetado por Rino Levi em 1944 e inaugurado
zados para esse fim estão as partições leves e o
em 1950 na cidade de São Paulo, destacou-se pelas
mobiliário, os quais podem ser movidos, dobra-
suas dimensões e conforto (Fig. 1). Com quatro
dos e funcionalmente convertidos (Živković and
apartamentos por andar (cada unidade 390 m²),
Keković and Kondić, 2014). Já na organização da
sua modulação estrutural em concreto armado
planta baixa, princípios da planta livre, fixação das
propicia uma organização espacial personalizada.
áreas molhadas (cozinha e sanitários), paredes
As áreas de cozinha e sanitários foram fixadas,
hidráulicas e adaptabilidade funcional (Brandão
permitindo que o restante dos ambientes ficasse
and Heineck, 2003).
livre para outras configurações (Jorge, 2012).
Com esse contexto, o objetivo deste trabalho é
As possíveis variações das divisões internas
traçar um breve histórico da flexibilidade na habi-
foram detalhadas pelo arquiteto com vedações
tação do Brasil e Portugal, analisando construções
leves de madeira e armários (Fig. 1). Os ambientes
do século XX e XXI que representem diferentes
podiam ser compartimentados e isolados, conec-
técnicas de modificação do espaço. Pretende-
tados e integrados, criando diferentes circulações
-se também apresentar as técnicas empregadas,
(Jorge, 2012).
sistemas, processos de construção e os tipos de
A maioria dos moradores na época, porém,
materiais utilizados.
optou por construir paredes de alvenaria. Acre-
A metodologia assenta na análise e levantamen-
dita-se que essa decisão é consequência cultural,
to de casos de estudo, onde são analisadas obras
visto que no período a residência deveria ter cô-
que melhor demonstrem essas condições e que
modos bem definidos. As divisórias simbolizavam
se enquadrem na delimitação temporal indicada,
precariedade e pobreza para a classe mais elitizada
escolhida por conter um conjunto considerável
(Villa, 2010).
de opções.
2.2 QUINTA DA MALAGUEIRA
2. CASOS DE ESTUDO
Localizado na cidade de Évora, foi projetado
A escolha dos casos de estudo baseou-se na
por Álvaro Siza Vieira em 1973 totalizando 1200
relevância e diversidade de características, bem
unidades. As construções são do tipo casa-pátio
como na oportunidade de obtenção do máximo
com planta em “L”, implantadas no terreno de 08 x
de informações possíveis. Organizados em ordem
11 metros em uma área suburbana de 27 hectares.
Fig. 1 - Planta baixa original Edifício Prudência e estudos do Arquiteto Rino Levi excluindo as áreas molhadas. Fonte: Villa, 2010;
Arquivo Arq, 2015.
Sua construção demorou cerca de 20 anos para ordenamento da periferia urbana da cidade, a
estar completa (Fracalossi, 2012). partir do qual foram desapropriadas grandes
As casas contém pátio na frente ou nos fundos áreas de terra que eram denominadas de Quintas
e são térreas ou de dois pavimentos (as quais são (Zapatel, 2001).
predominantes), com possibilidade de ampliação
do número de quartos (Fig. 2). A sala de estar e 2.3 EDIFÍCIO SIMPATIA
jantar, sanitário social e cozinha estão localizados
O edifício do Grupo SP (Alvaro Puntoni, João
no térreo e voltados para o pátio. No segundo
Sodré, Jonathan Davies), localizado em São Paulo,
pavimento estão os dormitórios, sanitário e ter-
foi projetado em 2007 e construído entre os anos
raço. O nome de Quinta origina-se do plano de
de 2009 e 2010 (GrupoSP, 2016). Devido à decli- A casa foi pensada como resposta ao estilo de
vidade do terreno o edifício é dividido em dois vida atual e suas constantes mudanças. Ela possui
blocos, um com os espaços de serviço e estacio- como tamanho mínimo 36 m² (Fig. 4) e pode
namento e o outro habitacional. Os apartamentos crescer conforme a necessidade dos habitantes
são ambientes vazios (Fig. 3), livres para que os (Frearson, 2015). Sua estrutura quadrada é di-
residentes o configurem como desejarem (Fer- vidida em módulos de 1.5 x 3 metros em wood
nandes, 2012). frame e suas divisórias são de contraplacado e
A laje não recebeu contra piso e o forro não gesso com variadas cores, as quais podem ser
possui tratamento, viabilizando a escolha dos aca- utilizadas interna ou externamente para substituir
bamentos. As divisórias em gesso acartonado são os grandes panos de vidro. Para a montagem das
distribuídas conforme a necessidade do morador, divisórias internas segue-se uma grelha de 1.5 x
já que as colunas de infraestrutura e hidráulica 1.5 metros (Mima Architects, 2011).
estão junto aos pilares, liberando a localização
da cozinha e sanitários. Na fachada, uma zona 3. ANÁLISE
pode receber janelas modulares padronizadas
Com os estudos de caso aqui expostos foi pos-
desenhadas pelos arquitetos (Troncoso, 2011).
sível apontar alguns aspectos. Nas habitações do
século XX, nota-se que a questão da flexibilidade
2.4 CASA MIMA
focava-se principalmente no poder de divisão e
A casa dos MIMA Architects, foi projetada em organização dos espaços, através de portas de
2011 na cidade de Viana do Castelo. Procurando correr ou mobiliário. A sala de estar e jantar foram
aliar design, customização, construção de boa os ambientes mais empregados, especialmente ao
qualidade, velocidade e preço atrativo, a casa pode agregar ou dividir seus ambientes, em razão de
ser facilmente montada a partir de seus elementos suas funções serem facilmente integradas.
pré-fabricados. Até o ano passado haviam 16 A cozinha poderia estar isolada ou relacionar-se
unidades concluídas, além das 20 em processo com a sala de jantar, porém de um modo subtil,
de construção (Frearson, 2015). como o passa-pratos ou uma divisão parcial, sem
deter necessariamente uma porta que os separe.
O mobiliário concedeu aos cômodos íntimos a Essas peculiaridades foram praticáveis com o
capacidade de sofrerem alterações, particular- uso da estrutura independente (com exceção da
mente no aumento de sua área ou troca de função, Quinta da Malagueira), a qual permitiu a utiliza-
tornando-o uma zona de trabalho. ção das divisórias em madeira e materiais leves de
Para ratificar a análise, pode-se observar outros fácil manejo. A concentração das áreas molhadas
dois projetos do período. O primeiro é o Bloco também foi importante, visto que por meio desse
Costa Cabral do arquiteto Alfredo Viana de Lima, artifício a organização dos ambientes ficou ainda
construído entre 1953-1955 no Porto. Suas paredes mais desobstruída.
exteriores são duplas de tijolo com caixa-de-ar no Além da estrutura independente destacou-se na
interior e a fachada de concreto à vista e tijolos época o emprego dos pré-fabricados, que facilita-
maciços. A flexibilidade é representada pelo pas- ram e agilizaram a construção, proporcionando
sa-pratos entre a cozinha e o jantar e pelas portas uma modulação estrutural e de fechamentos.
de correr e de dobrar entre a sala de estar e jantar No Brasil é difícil especificar a data de início
(Vala et al, 2009). dos pré-fabricados, acredita-se que a primeira
O segundo é o conjunto concebido por João obra de relevância tenha sido o hipódromo da
Batista Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha Gávea em 1926 pelo escritório Christiani-Nielsen
e Fábio Penteado em 1967 na cidade de Guaru- (Vasconcelos, 2002). O arquiteto João Filgueiras
lhos. Com apartamentos de 64 m² distribuídos Lima (Lelé), a partir da década de 60, foi um dos
em blocos de três pavimentos construídos em pioneiros do seu uso na arquitetura (Figuerola,
pré-fabricados, as divisórias internas leves e o 2008).
uso de armários e caixilhos modulares permiti- Na Europa, os pré-fabricados destacaram-se
ram a planta livre (Cattani, 2011; Carranza and depois da Segunda Guerra Mundial na constru-
Carranza, 2015). ção rápida e na independência da mão-de-obra
Para os casos como as casas da Quinta da Ma- escassa, suprindo o déficit habitacional que ocorria
lagueira, a solução para aumento de espaço e na data (Figuerola, 2008).
adequação ao grupo familiar foi facilitar o acrés- No século XXI, a flexibilidade foca-se na função
cimo de cômodos, já que sua pequena área não dos espaços. A planta livre e a personalização
disponibilizava grandes recursos na questão da destacam-se nas habitações, aproximando os re-
organização interna. sidentes das suas necessidades particulares. A
habitação pode ser livremente organizada, e em ído com vigas e pilares metálicos, nas fachadas
alguns casos, até mesmo as áreas molhadas são foram utilizados os mesmos painéis de concreto
livremente alocadas. que os das lajes treliçadas, porém sem estarem
A construção passa a ser industrializada e os concretadas e em duplas com uma camada de ar
materiais chegam prontos à obra para a montagem. no meio (Siqueira, 2014).
Nas divisórias internas, o gesso e as placas de No Sistema Gomos, do arquiteto Samuel Gon-
cimento (que também pode ser utilizadas exter- çalves, os módulos possuem dimensão máxima
namente) são mais aplicados do que a madeira, de 5.90 x 2.35 metros em concreto armado. A
e o uso das estruturas metálicas cresce. primeira unidade demorou três meses para ser
As estruturas metálicas foram mais bem ex- criada em fábrica e depois três dias para ser mon-
ploradas no Brasil somente a partir da década tada (Lusa, 2015).
de 90, devido ao custo do material. Uma estima- Os módulos saem de fábrica com todos os aca-
tiva do ano de 2006 sublinha que apenas 5% dos bamentos, isolamentos, caixilharias, instalações e
prédios com mais de quatro andares adotaram mobiliários que sejam fixos. O desenho permite
esta solução, o que demonstra a predominância ampliações posteriores à construção e podem
do concreto. Na Europa e na América do Norte, ainda sofrer adaptações para diferentes terrenos
este tipo de estrutura é utilizada desde o século (Sistema Gomos, 2015).
XVIII, voltada para conceber soluções audaciosas Retornando-se aos casos de estudo aqui apre-
(Nakamura, 2006). sentados, na Tabela 1 são resumidos e identifi-
A planta livre e a estruturação metálica e/ou cados os materiais adotados e as suas respectivas
modular também são perceptíveis nos projetos do composições estruturais.
Estúdio Madalena e no Sistema Gomos. O Estúdio Nota-se que a tendência é subdividir a edifica-
Madalena do escritório Apiacás Arquitetos, foi ção em elementos para que os mesmos possam
projetado em 2014 e construído na cidade de São ser industrializados, o que agiliza o processo de
Paulo. A vivenda possui planta livre com pontos montagem e reduzindo custos e desperdícios
de hidráulica em espera, para que os residentes durante a obra. A inserção de novas tecnologias
definam livremente o arranjo espacial (Siqueira, construtivas, de processamento e materiais é es-
2014). sencial para que essa evolução ocorra.
Além disso, as instalações são todas visíveis Comparando-se Brasil e Portugal observa-se
para fácil manutenção e flexibilidade. Constru- que os dois Países diferenciam-se na altura em que
as técnicas e materiais são aplicados. No Brasil, a de produtos e sistemas construtivos pelas empre-
mão-de-obra barata e pouco qualificada implica sas (Werna, 1993; Brandão and Heineck, 2007).
em um atraso no uso de novas tecnologias quando No século XXI, um estudo realizado em 2005
comparada com Portugal (Mello and Amorim, pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas
2009; BNDES, 2010). e Micro Empresas (SEBRAE) de Minas Gerais
É relevante também considerar que os dois pa- constatou que o setor da construção brasileira
íses são culturalmente distintos, assim como suas apresentava problemas no cumprimento de nor-
dimensões territoriais e proporções populacionais. mas técnicas e padronização, não possuindo atu-
Desse modo, torna-se interessante sintetizar o alização tecnológica e de gestão ao ser comparada
decurso respectivo da construção civil em cada com os padrões dos países desenvolvidos. Outro
um deles. aspecto observado é a utilização de mão-de-obra
de baixa qualificação e a baixa eficiência produtiva
3.1 CONSTRUÇÃO CIVIL NO BRASIL E (Mello and Amorim, 2009).
PORTUGAL Apesar de a construção civil ter lentamente ul-
trapassado a crise econômica, em 2008 a economia
O edifício Prudência representa o período em mundial é afetada pela crise norte-americana.
que o apartamento começa a destacar-se como Desde então o setor no Brasil passa por altos e
forma de moradia (principalmente para a classe baixos devido à crise deflagrada pela corrupção
média), consolidando-se em 1964 com a imple- no País, a qual continua a estagnar a esfera da
mentação do Sistema Financeiro da Habitação construção (BNDES, 2010).
(SFH) através do mercado imobiliário privado Em Portugal, após a década de 70 consolidam-
(Maricato, 2000). -se no contexto público as políticas de habitação,
A partir da década de 60, com a edificação de principalmente após 25 de abril de 1974, quando
Brasília, no Brasil ocorreram grandes mudanças o Estado passou a investir recursos financeiros
na indústria da construção, principalmente no públicos para o setor. Apesar do grande número
início da década de 70 com o “milagre” econômico. de intervenções, as operações urbanísticas e as
A partir da década de 80, uma grande recessão construções não apresentavam grande qualidade
acabou por afetar o setor até o início do século (Vilaça, 2001).
XXI (Nascimento and Santos, 2003). Nas décadas de 60 e 70, a construção civil não
Na década de 90, surgem as plantas flexíveis possuía o mesmo ritmo de trabalho se comparado
personalizáveis e as plantas flexíveis pré-definidas ao restante da Europa. O quadro reverteu-se pos-
pelas construtoras. Sistemas abertos, que desde teriormente na década de 90, quando se constatou
a década de 70 só eram utilizados em pavilhões o crescimento do setor (Castro and Mateus and
industriais, são agora incorporados na habitação Bragança, 2011).
(Brandão and Heineck, 2007). No período da ditadura do Estado Novo os
Como consequência da crise e a redução da modelos internacionais são integrados nas obras
construção no setor público, verifica-se o cuidado públicas e fortificam-se as grandes empresas de
com a qualidade e produtividade das edificações, projetos e gestão de obra, o que deflagrou uma
já que o padrão de consumo altera-se e a raciona- nova fase na construção (Tostões, 2004). Ao
lização torna-se fundamental. A flexibilidade pos- mesmo tempo, a adesão de Portugal à Comu-
sibilitou a participação de atividades de pequena nidade Econômica Europeia (CEE) em 1985,
escala, além do emprego de uma maior variedade desencadeou alguns esforços de desenvolvimento.
Apesar da propulsão ocasionada pela Expo’98, diferenciando-se eventualmente nas datas em que
quando o dinamismo e o apoio pelos fundos sistemas e materiais foram utilizados. Esse mesmo
comunitários aceleraram a atividade econômica percurso tende a ficar mais semelhante durante
em conjunto com o decréscimo das taxas de juro, o século XXI, uma vez que a globalização e a
a estandardização do projeto foi pouco explorada, internacionalização dos estilos tende a aproximar
sendo que cada construção era específica e possuía os recursos utilizados.
problemas de autoria entre o dono da obra e o A principal diferença entre os séculos XX e XXI
projetista (Afonso et al, 1998). é a flexibilidade como possível divisor de espaço
Com o uso de mão-de-obra intensiva e tecno- e posteriormente a total ou quase total liberdade
logias industriais, as antigas tecnologias não são da planta, tornando-a inteiramente personalizável
totalmente substituídas gerando um conflito na ao usuário. A escolha de todos os acabamentos
necessidade de conhecimentos para o seu emprego e divisórias aproxima o residente com o seu am-
(Afonso et al, 1998). biente ideal, viabilizando a adaptação compatível
Desde 2000 o licenciamento de edifícios em Por- para cada grupo familiar.
tugal vem regredindo. Nos últimos anos, o setor Por fim, destaca-se o emprego cada vez maior
apresentou certa estabilidade e crescimento depois da industrialização, seja nos materiais ou nas
de sofrer por longo tempo de crise. (Agencia técnicas de construção, diminuindo tempo e des-
Lusa, 2016). Aos poucos, a evolução tecnológica perdício de recursos. Como perspectiva futura,
e o aumento de pesquisas são integrados à área. espera-se o aprofundamento da investigação,
definição, estruturação e a consolidação das di-
4. CONCLUSÃO ferentes estratégias de flexibilidade, dirigindo os
resultados da pesquisa para o aprimoramento e o
Observa-se que a flexibilidade tanto no Brasil
desenvolvimento de novas soluções que atendam
como em Portugal seguem um mesmo percurso,
as necessidades atuais dos usuários na habitação.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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bndes/bndes_pt/Institucional/Publicacoes/Con- Décadas de 30 e 60 na Cidade de São Paulo. Mestre
RESUMO
Este trabalho aborda a introdução e adaptação da tradição construtiva de origem portuguesa, nota-
damente no que diz respeito à habitação, em áreas rurais do Estado de Santa Catarina, Brasil, e resul-
ta, sobretudo, da necessidade de documentar as antigas casas de moradia erguidas pelas populações
pioneiras luso-brasileiras, entre os séculos XVII e XIX, destacando os aspectos tecnológicos, quanto ao
emprego de materiais e técnicas construtivas, reunindo assim subsídios para o seu estudo.
Tal tarefa também se faz relevante, na medida em que a fragilidade das políticas públicas de preser-
vação do patrimônio edificado, aliada ao desconhecimento e à indiferença de boa parte da sociedade
local, vem resultando, lamentavelmente, no rápido desaparecimento dessas construções.
Desta forma, as edificações remanescentes vêm sendo identificadas e levantadas pelo autor, e sua aná-
lise complementada por revisão bibliográfica e documental, a fim de se preservar o maior número
possível de informações sobre as antigas técnicas de construção, cujo conhecimento beira a extinção.
Assim como em outros estados brasileiros, foi a partir do século XIX que ocorreu o gradual afastamento
da condição colonial em Santa Catarina, inclusive no que diz respeito aos edifícios, adaptando-se os
modelos arquitetônicos portugueses à nova realidade das localidades litorâneas e serranas, em função
de fatores como a disponibilidade de materiais e a viabilidade das técnicas construtivas, as imposições
da geografia e do clima, o maior ou menor desenvolvimento econômico, dentre outros.
Tornou-se assim possível, para além de permanências e semelhanças, as inovações e os regionalismos
que acabaram, enfim, por caracterizar a construção da casa luso-brasileira catarinense, tanto formal
como tecnologicamente.
INTRODUÇÃO
Para uma melhor contextualização sobre como residência nas áreas rurais, tema do presente traba-
se desenvolveu a tradição construtiva luso-bra- lho, fazem-se necessárias algumas considerações.
sileira no território de Santa Catarina, antes de O período de abrangência da produção arquitetô-
serem abordados especificamente os materiais e as nica luso-brasileira em Santa Catarina, tanto na faixa
técnicas com que se ergueram as antigas casas de litorânea como nas áreas do planalto serrano, se dá
Fig. 1 – Casa rural em alvenaria junto à praia do Siriú, município de Garopaba (c. 1850): exemplo de adaptação da tradição
construtiva luso-brasileira em Santa Catarina. Foto: autor, 2014.
entre a fase inicial de ocupação do território, na 2ª ocorre a formação de uma cultura arquitetônica
metade do século XVII, e o século XIX, na medida luso-brasileira, fato que se deve, em parte, à pre-
em que as fronteiras meridionais do Brasil foram sença de um significativo contingente populacio-
consolidadas, levando a uma situação de estabilidade nal luso-descendente, em boa parte, originado de
que por sua vez possibilitou relativa prosperidade, colonizadores açorianos (chegados entre 1748
refletida no melhoramento geral da construção. e 1756), mas também formado por vicentistas,
Economicamente, fundamenta-se, no litoral, paulistas e portugueses do reino1. Daí a afirma-
na pequena propriedade e na agricultura familiar ção do arquiteto Carlos Lemos, que percebeu
(com destaque para a produção de farinha de na construção colonial em todo o sul do Brasil
mandioca), por vezes associada à pesca, enquan- uma “clara e nítida influência portuguesa, talvez
to na região serrana está baseada no latifúndio, algarvia nas obras populares”, impressão reforçada
numa presença mais expressiva da mão de obra pela presença marcante da simplicidade das formas
escrava e na atividade pastoril, destacando-se a arquitetônicas e do emprego regular da alvenaria
pecuária extensiva de gado de corte (bovinos) e de pedra e cal2.
a criação de cavalgaduras (equinos e muares). A opção de destacar a construção no meio rural
Disso resultou o fato de que, em muitos casos, deve-se ao fato de que a relativa distância dos
é indissociável a relação entre a habitação e as núcleos urbanos ou mesmo o isolamento, como
instalações de trabalho: as eiras e os telhados de no caso das fazendas serranas, tanto favoreceu a
engenhos e galpões são contíguos às residências, permanência de tradições construtivas (longe de
consistindo na sua extensão natural.
É justamente no decorrer do século XIX, che- 1
Luccas, 1997, p. 78.
gando-se mesmo até o início do século XX, que 2
Lemos, 1978, p. 56.
modismos e inovações, ocorridos, sobretudo, após e em outras áreas do Brasil, para a adoção de
a Independência, em 1822), como, justamente soluções inovadoras e genuínas, que acabaram
em situação oposta, estimulou a criatividade e o se mostrando mais exequíveis e eficientes, face
improviso, diante da necessidade de adaptação3. às necessidades locais e à disponibilidade (ou
Além disso, em razão da grande simplicidade indisponibilidade) de certos materiais4.
das formas construtivas encontradas, há de se con- Como exemplo, cita-se o desaparecimento de
siderar a provável disponibilidade de uma mão- varandas e alpendres (elementos comumente
-de-obra menos qualificada e não especializada, encontrados nas residências coloniais da maior
aspecto importante para o estudo da arquitetura parte das regiões brasileiras), e a integração/junção
luso-brasileira e que carece de maior investigação. das cozinhas ao corpo principal da moradia, va-
Tudo indica que a construção, quando não era lorizando-se as áreas abrigadas e buscando maior
um empreendimento exclusivamente familiar, a proteção contra as intempéries. Isso em razão da
cargo do proprietário e de seus filhos e parentes, existência de um regime de chuvas diferenciado, da
contava com o auxílio de indígenas e africanos, incidência de ventos mais intensos e da ocorrência
geralmente na condição de escravos, em substi- de temperaturas baixas, que tornam os invernos
tuição aos pedreiros e carpinteiros profissionais, mais longos e rigorosos. Ou ainda, o aprovei-
em geral escassos. tamento dos sambaquis (sítios arqueológicos
Observando as moradias rurais oitocentistas pré-historicos formados por imensos depósitos
do litoral catarinense, desde São Francisco do Sul, de conchas de moluscos), para a obtenção de cal,
ao norte, passando pela Ilha de Santa Catarina e diante da inexistência de jazidas de calcário, no
indo até Laguna, ao sul, ou ainda, reconhecendo litoral, e a substituição da alvenaria pela madeira
as antigas casas de fazenda dos Campos de Lages, em casas de fazenda do planalto, dada a abundân-
no planalto serrano, constatam-se repetitivamente cia de florestas de araucária, o pinheiro brasileiro,
as fachadas austeras, caiadas, emolduradas por como será visto a seguir.
cunhais e cimalhas de pretensões clássicas, ou
simplesmente arrematadas pelos beirais de telha PEDRA, BARRO E CAL: TRADIÇÃO
(beira-seveira), de caráter indiscutivelmente po- PRESERVADA
pular. Destacam-se igualmente os volumes dos
Em Santa Catarina, a alvenaria autoportante
telhados de duas ou quatro águas em que a cur-
foi certamente a técnica de construção mais em-
vatura elegante proporcionada pela presença de
pregada nas edificações luso-brasileiras, indepen-
galbos de contrafeito e peitos-de-pomba evidencia
dente da sua tipologia, uso e localização. Desde
a ancestralidade lusitana. Em todas essas regiões,
as imponentes fortificações e igrejas erguidas por
é possível encontrar as mesmas soluções formais e
iniciativa das autoridades, até as moradias mais
tecnológicas que remetem, sempre, à arquitetura
humildes, no campo ou nas vilas, foi a pedra arga-
tradicional de origem portuguesa.
massada e rebocada com barro e cal a forma mais
De qualquer forma, é preciso destacar que a
usual para dar forma à arquitetura. Como teria
introdução da construção portuguesa em Santa
observado o historiador britânico Robert Southey
Catarina não implicou tão somente nas perma-
em 1808, as casas eram “(...) bem edificadas de
nências, mas também, na adaptação ou mesmo
pedra e cal (...)” 5.
no abandono de soluções usuais em Portugal
4
Broos, 2002, p. 41-44.
3
Broos, 2002, p. 41. 5
Broos, 2002 p. 96.
Fig. 2 – Casa rural do século XIX na Costeira do Ribeirão da Ilha, Florianópolis, em que se empregou a alvenaria tradicional de pedra,
barro e cal, sendo as paredes rebocadas e caiadas. Foto: autor, 2015.
Processo construtivo de larga tradição, conso- dreiras abertas nas bases dos morros, ao passo que
lidado em Portugal desde o período romano, foi nas cercanias da cidade de Lages, na região serrana,
introduzido em terras brasileiras já nos primeiros o afloramento de arenito botucatu levou à instalação
anos da colonização, desenvolvendo-se mediante de pedreiras, dada a facilidade de corte da pedra
a disponibilidade de pedras, e também, a partir em blocos e lajes. Ainda no planalto serrano, por
da instalação de olarias para fabrico de tijolos, todos os lados abunda o basalto, inclusive na forma
os quais inicialmente costumavam ser utilizados de pedras soltas sobre o solo, por entre os campos,
apenas para elementos de finalização das paredes, em diversos formatos e tamanhos esculpidos pela
como a verga dos vãos, os peitoris das janelas e ação da erosão. Ou seja, a pedra esteve sempre à
a projeção dos beirais em cimalha. É a partir do mão, de forma a garantir que a tradição de se le-
século XIX que gradualmente os tijolos substituem vantar paredes sólidas e resistentes, dentro de uma
as pedras na confecção de paredes, passando estas concepção de construção ideal – conceito aplicado
a se restringirem às estruturas de fundação. principalmente às paredes externas – pudesse ser
À semelhança do que ocorrera em outras regiões perpetuada. Disso resultou que a grande maioria
do Brasil, a abundância de rochas, tanto no litoral, das edificações remanescentes dos séculos XVIII e
repleto de jazidas de granito, quanto no planalto XIX em Santa Catarina tenha sido construída em
serrano, assentado sobre gigantesco afloramento alvenaria de pedra.
basáltico e arenítico, garantiu a preservação dessa Para erguer as robustas paredes, algumas medin-
tecnologia tradicional, sendo a disponibilidade do um metro de espessura, eram confeccionadas
do material fundamental para a sua permanência. ao longo do perímetro projetado da casa, sobre
Na área da costa, o granito era explorado tanto a estruturas de fundação rasas, também em pedra,
partir de rochas expostas sobre o solo como em pe- caixas de madeira dentro das quais se ia montando
sambaquis para a obtenção da matéria prima do pau-a-pique (também conhecido como taipa
necessária à construção, instalando junto aos de mão) e a taipa de pilão.
sambaquis as caieiras, que trituravam e proces- O pau-a-pique compreende a montagem de
savam as conchas até a obtenção da cal7. Muitas uma estrutura independente em madeira, com
localidades litorâeas ainda conservam a denomi- pilares enterrados no chão (origem da expressão
nação “Caieira”, em referência às antigas fábricas “pau-a-pique”), vedada com tramas de fibra vegetal
de cal que aí existiram. amarrada ou pregada (lascas de taquara, palmeira
Mesmo as grandes distâncias em relação ao ou sarrafos de madeira), por sua vez revestidas
litoral não impediram que a cal fosse utilizada nas com barro aplicado manualmente (daí o fato de
moradias serranas: era trazida a pesados custos, também ser denominada “taipa de mão”). Ao
em sacos acomodados sobre o lombo de mulas, final do processo, aplicava-se sobre o barro uma
o que sugere que o apelo de sua utilização, dada a fina camada de revestimento de cal, para efeito
eficiência e durabilidade que conferia à constru- de acabamento e pintura.
ção, era superior às imensas dificuldades que sua Registra-se o fato de que em Santa Catarina
obtenção acarretava. Explica-se assim a escassez e o pau-a-pique é vulgarmente denominado de
o uso racionado da cal nas argamassas de rejunte estuque e foi usualmente utilizado para levantar
da alvenaria nas casas de fazenda (percebe-se uma as paredes internas das residências.
presença muito maior de barro do que de cal na Já a taipa de pilão consistia no apiloamento de
sua composição), destinando-se basicamente ao barro dentro de caixas de madeira com a altura e
acabamento dos rebocos e pintura. Frei Pedro espessura desejáveis para as paredes, eventualmen-
Sinzig registrou em suas memórias: “(...) foi ne- te reforçando-se a construção internamente com
cessário organizar ou contratar tropas que, em varas de madeira (de forma a evitar deformações
seis dias de viagem no mínimo, e outros seis de e rachaduras, após a secagem do barro), entaipan-
volta, iam buscar a cal, em quantidades irrisórias, do-se (levantando-se) a construção.
na costa! Era carga de que nenhum tropeiro gos- Assim como a alvenaria de pedra, barro e cal, a
tava, pois obrigava a duplas providências contra a taipa e suas variantes também tiveram origem nas
chuva e, assim mesmo, incomodava os animais” 8. construções tradicionais portuguesas, sobretudo
Até o recente reconhecimento dos sambaquis na região do Alentejo e nas áreas do norte, na
como patrimônio arqueológico sob proteção fe- divisa com a Espanha, não se podendo esquecer
deral e a consequente proibição de sua exploração as possíveis contribuições africanas para o desen-
(década de 1960), foram a principal fonte forne- volvimento e utilização desta técnica no Brasil9.
cedora de cal utilizada na alvenaria e na pintura Ocorreu com frequência em Minas Gerais e em
dos edifícios em Santa Catarina. São Paulo, particularmente no Planalto de Pirati-
ninga, onde foi aperfeiçoada, sendo amplamente
AUSÊNCIA (OU DESAPARECIMENTO) DA difundida durante o período colonial, em função
CONSTRUÇÃO DE TAIPA da escassez de pedra10.
No entanto, apesar da intensa relação mantida
Além da utilização da alvenaria autoportante, a
entre Santa Catarina e São Paulo até o século XIX,
construção luso-brasileira empregou as técnicas
principalmente no planalto serrano, por conta
do ciclo tropeiro e das trocas culturais que pro-
7
Broos, 2002, p. 106. 9
Weimer, 2004, p. 41.
8
Peluso Júnior, 1952, p. 93. 10
Lemos 1979, p. 39.
Fig. 7 – Casa de araucária da fazenda Cajuru II, em Lages (c. 1890). Foto: Nery Auler da Silva, 2008.
povoadores luso-brasileiros em adaptar e inovar mesma forma como ocorrido em outras regiões
os métodos de construção, mediante a disponi- brasileiras.
bilidade de materiais e as características do novo Outra importante conclusão foi a de que méto-
meio em que se estabeleceram. dos construtivos como o pau-a-pique e a taipa de
pilão (para além da utilização regular do primeiro
CONSIDERAÇÕES FINAIS na confecção das paredes internas das casas),
foram de ocorrência rara, embora tenham sido
Ao abordar os materiais e técnicas empregados
muito utilizados em territórios vizinhos e histo-
na construção da casa rural luso-brasileira no
ricamente relacionados a Santa Catarina, como
Estado de Santa Catarina, a partir do estudo das
os estados do Paraná e de São Paulo. Exatamente
edificações remanescentes e da revisão biblio-
ao contrário do que defendera Carlos Lemos, que
gráfica e iconográfica, pode-se concluir que, de
afirmava ter havido na arquitetura do período
maneira geral, ocorreu a manutenção da alvenaria
colonial, durante o ciclo tropeiro, trocas relevantes
autoportante de pedra, barro e cal. Mesmo que
entre São Paulo e o sul, especialmente com relação
para isso tenha sido necessário obter a cal a partir
ao uso da taipa17.
de conchas extraídas de sítios arqueológicos, em
Reforça este indicativo o trabalho de Nery Auler
face de ausência de jazidas de calcário. Ocorreu
da Silva, que, ao estudar a arquitetura das antigas
também a complementação e posteriormente a
fazendas sul-rio-grandenses estabelecidas ao longo
gradual substituição da pedra pelos tijolos, da
do Caminho Novo da Vacaria, desde a zona das
17
Lemos, 1979, p. 58.
Missões Jesuíticas até a divisa com Lages, em a concepção formal da moradia tradicional, me-
Santa Catarina, demonstrou que das quatorze diante o aproveitamento da madeira abundante.
construções identificadas, apenas numa aparece
a taipa, do tipo pau-a-pique e sendo justamente GLOSSÁRIO
utilizada em paredes internas. As demais residên-
Banhado: charco; terreno lamacento; área de
cias analisadas foram construídas em alvenaria
baixada em fundo de vales de regiões de morro
de pedra e tijolos, dado que levou o pesquisador
onde há acumulo de água de chuvas, nascentes ou
a concluir que principalmente a taipa-de-pilão,
das cheias dos ribeirões e rios, podendo ocorrer
muito utilizada em São Paulo, não teve influência
aí jazidas de barro (argila).
no Planalto Médio gaúcho, tampouco alcançou
Beira-seveira: corruptela de beira-sobre-beira,
a área da Fronteira, conforme havia sugerido
técnica tradicional corrente na arquitetura luso-
Carlos Lemos18.
-brasileira, em que se sobrepõem uma ou mais
Portanto, parece ter sido a força da tradição
fiadas de telhas preenchidas com argamassa ao
construtiva em alvenaria determinante para que,
longo da parte superior das fachadas de uma
na casa rural catarinense, prevalecesse sobre outras
edificação, a fim de se obter a projeção necessária
técnicas: “Apesar de ser substituída por outros
para os beirais dos telhados (em substituição às
materiais, a linguagem formal da casa residencial
cimalhas).
permaneceu deduzida da pedra. Todos os outros
Cachorro: peça geralmente confeccionada em
materiais, inclusive a madeira, foram adaptados
madeira que é encaixada no frechal, em balanço,
às formas tradicionais da pedra. Através de todos
servindo como elemento de sustentação do beiral
os tempos a pedra foi reconhecida como “o ma-
do telhado. O conjunto de cachorros a formar o
terial” de construção, ficando o pau-a-pique ou
beiral de uma casa chama-se cachorrada.
a madeira, apesar do frequente uso, apenas como
Cimalha: o mesmo que cornija; moldura saliente
substitutos, infelizmente necessários, e a proprie-
que remata a parte superior da fachada de um
dade de uma casa “de material”, expressão até hoje
edifício, servindo de beiral ao telhado e impedindo
utilizada, era indício de respeitável fortuna”19.
que as águas escorram pela parede.
Contudo, justamente a título de exceção, regis-
Cunhal é o nome que se dá ao canto externo
trou-se por meio das pesquisas e levantamentos
formado pelo encontro de duas paredes da cons-
mais recentes realizados pelo autor a original
trução, podendo ser ressaltado pela presença de
substituição da alvenaria pela madeira de araucária
pilastra em massa, madeira ou cantaria.
no planalto serrano catarinense, o que resultou
Falquejamento: do verbo falquejar, o mesmo
em moradias luso-brasileiras genuínas, encontra-
que falquear ou acunhar; desbastar um tronco de
das somente nesta região, associadas, portanto, à
madeira; esquadriar com o machado.
ocorrência desta árvore.
Frechal: viga de madeira que, apoiada ao longo
As casas de fazenda, quando habilidosamente
de uma parede, recebe e distribui uniformemente
construídas com o pinheiro – estruturas, pare-
as pressões exercidas por elementos equidistantes,
des internas, fechamento das paredes externas
como por exemplo, caibros de telhados, barrotes
e até mesmo telhados – demonstram o quanto
de sobrados, prumos, pés-direitos ou esteios de
os construtores locais foram capazes de recriar
frontais, etc.
Galbo de contrafeito: perfil resultante da in-
18
Silva, 2003. trodução do contrafeito, que por sua vez consiste
19
Broos, 2002, p. 103-104.
numa peça em madeira componente da estrutura
da cobertura e característica das construções lu- construções brasileiras a partir do final do século
so-brasileiras, cuja finalidade é suavizar o ângulo XIX, sobretudo, nas casas do tipo chalet.
formado pelos caibros do telhado. Peito-de-pomba: também chamado de pom-
Guarda-pó: forro de tábuas que reveste o viga- binha, de larga ocorrência na arquitetura luso-
mento superior dos telhados, geralmente utilizado -brasileira, é a expressão que designa as telhas
na parte aparente dos beirais de cachorrada. com função decorativa recortadas em ângulo
Lambrequim: enfeite rendilhado recortado em pontiagudo e posicionadas na extremidade dos
madeira, utilizado como arremate das extremi- telhados, logo acima dos cunhais, em analogia a
dades dos beirais, tendo se popularizado entre as uma pomba pousada.
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RESUMO
Este artigo teve por base um trabalho de investigação mais abrangente, levado a efeito pela autora, ao
longo de 2013, sobre a fundação e os projetos de expansão de Lourenço Marques, em Moçambique. O
texto aqui apresentado põe o enfoque em alguns aspetos da implantação do “Projecto de Ampliação
da Cidade de Lourenço Marques”, levada a efeito a partir de 1887, inserido no contexto da transição
da vila a cidade (1887) e a capital da colónia (1898). A pesquisa permitiu sobretudo concluir sobre as
dificuldades técnicas, materiais e de recursos humanos encontradas pelas Obras Públicas no pequeno
assentamento urbano de Lourenço Marques ao longo do último quartel do século XIX, em claro con-
traste com a ambição do seu projeto de ampliação.
O anteplano de ampliação da cidade de Lourenço Marques de 1887, implicou o traçado de uma malha
urbana a partir das pequenas travessas e quarteirões irregulares que constituíam o pequeno burgo es-
tremado pelas terras alagadas do Maé e da enseada da Maxaquene e pelo Estuário do Espírito Santo.
A área alagada foi atravessada por três avenidas longitudinais ligadas por dez avenidas transversais,
todas elas construídas, junto à cidade, por aterro, realçando a área interessada em cerca de 2 m. Pelo
menos 2/3 do volume de terras necessário a esse fim proveio do extremo este da cidade, das elevações
que dominavam o (projeto de) porto, sobre a enseada da Maxaquene. As dificuldades técnicas e finan-
ceiras no acesso a materiais de construção e o custo implicado no saneamento de uma área daquela
dimensão obrigou a protelar sucessivamente o movimento de terras necessário para o realçamento
da área, executado em empreitadas parciais. Grande parte destas avenidas permaneceu até ao final
do século XIX com piso em areia, à espera de macadamização, condicionando a edificação nos novos
quarteirões devido sobretudo à dificuldade de transportar materiais de construção naquelas condições.
A pesquisa teve por base relatórios das Obras Públicas de Moçambique ao Ministério da Marinha e Ul-
tramar, correspondência dos diretores de Obras Públicas de Lourenço Marques das duas últimas déca-
das do século XIX e primeira do século XX, cartografia e coleções iconográficas desse período presentes
no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), no Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), na Socie-
dade de Geografia de Lisboa (SGL) e no Centro de Estudos e Desenvolvimento do Habitat (CEDH) da
Faculdade de Arquitetura e Planeamento Físico (FAPF) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM).
Fig. 1 - Extrato do “PLANO/ do/ projectado esgoto e aterro/ do/ PANTANO/ DE/ Lourenço Marques/ por/ S.T. HALL/ Dezembro
1876a./ Copia de/ Augusto de Castilho. Escalla do Plano e secção/ Horizontal 200 pés = 1 poleg.ª/ vertical 10 pés = 1 poleg.ª”, AHM
(D1.03/2021). O plano compreende o projeto do esgoto e aterro do baixo Maé (a noroeste da vila), e de uma nova povoação na
“Estrada de Lydemburgo”.
a
) Pereira de Lima refere que, a Stuart Hall “se ficou devendo o estudo mais completo que conhecemos [até essa data], datado de 1876, para o
saneamento de Lourenço Marques. Propunha a abertura, no pântano, de um canal interior junto à base da encosta sobranceira à povoação,
o qual serviria não só para o dessecamento do mesmo pântano, mas também para o serviço marítimo de uma nova cidade projetada nas
alturas de Mavilene, junto à Estrada para Lindemburgo, no topo portanto da colina do Machaquene.” (Lima, 1969: s.p.).
da vila (datado de 1876) e um primeiro plano para que compreendia o “Progecto de melhoramentos
o saneamento do pântano do Maé e a criação de na povoação antiga e porto”, o “Progecto de esgôto
uma povoação à parte na saída da Estrada para do pantano” e a “Planta da nova povoação” no
Lindemburgo, com um traçado regulador, em Alto da Maxaquene sob a forma de um hexágono
quadrícula (Fig. 1). regular (Fig. 2). O “Projecto de esgôto do pantano”
Segundo alguns autores4, S.T. Hall delineou estabelecia uma rede de valas coletoras junto à
ainda um plano de urbanização, com data de 1878, base das encostas do Maé e da Maxaquene, para
a recolha da água das nascentes que, juntamente
4
Veja-se, Lima, 1968: 48; Plano Diretor de Urbanização de Lourenço com a água das marés, alimentava o pântano do
Marques, 1969: vol. VI, Peça 41; Morais, 2001: 75, 220 nota 43.
Fig. 2 - Extrato da “PLANTA GERAL COMPREHENDENDO/ Planta da nova povoação/ Progecto de esgôto do pantano/
Progecto de melhoramentos na povoação antiga e porto”, 1878, Junta Inv. Ultramar [assinatura ilegível], CEDH-FAPF. O projeto de
melhoramentos previa o saneamento do pântano do Maé (1) e a expansão do porto para jusante (2). Ao longo da velha Estrada das
Mahotas, na Maxaquene, dispunham-se o Hospital e a Igreja Paroquial de Nossa Sra. da Conceição (dentro do círculo vermelho).
Fig. 3 - Planta de Lourenço Marques, ca. 1887. Fonte: Autora, com base na planta de S.T. Hall de 1876, AHM (D1.03/2021) e na
“Planta da Avenida António Augusto de Aguiar” de 1887, AHU (ACL_SEMU_DGU_Cx. 1389/1L_1886_1888). Assinalam-se a nova
estrada de Lindemburgo (1); a antiga estrada de Lindemburgo (2); o novo Hospital (3); a Igreja Paroquial (4); a estrada da Ponta
Vermelha (5); o cemitério de S. Timóteo (6); o Jardim da Sociedade de Arboricultura e Floricultura (7); o traçado do esgoto do
pântano do Maé (8) e o projeto de ampliação da praça 7 de Março com a nova ponte (9).
No que toca às obras levadas a efeito pela expe- Correios (em madeira e zinco) e a Cadeia Civil (já
dição de Obras Públicas na vila/cidade, foi possí- em alvenaria, de pedra proveniente da demolição
vel, utilizando as palavras de João Morais, “[c]om da linha de defesa)8 (Fig. 4).
acesso a novos recursos, materiais e técnicos, [...]
erguer [...] um conjunto de edifícios, ainda que estes
fossem de carácter provisório, construídos à base de
modelos pré-fabricados, em madeira e metal”, de José de Araújo. A memória descritiva e os desenhos encontram-se
anexados ao Ofício n.º 377, de 31 de agosto de 1888, das Obras
forma a responder às necessidades mais urgentes Públicas de Lourenço Marques, AHU (ACL_SEMU_DGU_Mç_
de funcionamento da orgânica do sector público Cx.1389/1L).
(Morais, 2001: 79). De entre esses, salientavam-se, 8
Informação presente no capítulo “Construcção d’uma cadeia
ao longo da avenida D. Carlos (a antiga rua da civil”, “Mappa dos trabalhos executados no mez de janeiro de
Linha, atual avenida 25 de Setembro), os edifícios 1888, Obras Publicas da Provincia de Moçambique”, AHU (ACL_
SEMU_DGU_Mç_Cx.1389/1L, pasta 27_1886_1888). Para o
das Repartições de Obras Públicas7, Imprensa e projeto, veja-se “Projecto e Orçamento/ da Construção/ de uma/
Cadeia Civil/ e/ Estação de Policia/ Reis - 26:980$000/ Lourenço
7
Os desenhos do projeto de arquitetura datam de 25 de agosto de Marques 27 de Outubro de 1887”, AHU (ACL_SEMU_DGU_Mç_
1888 e vêm assinados pelo diretor das Obras Públicas, António Cx.1389/1L, pasta 27_1886_1888).
Fig. 4 - Planta de Lourenço Marques, ca. 1887-1888, com o traçado esquemático do projeto de ampliação da cidade de 1887 (a
vermelho), a abertura das primeiras avenidas (a rosa), a plantação de eucaliptos para o saneamento da área (a verde) e os novos edifícios
e praças erigidos pelas Obras Públicas: Hospital (1); Igreja Paroquial (2); Obras Públicas (3); Cadeia Civil e Estação de Polícia (4);
Paiol (5); Quartel da Polícia (6); Matadouro (7); Alfândega (8); Praça da Estação (9). Fonte: Autora, com base no “Plano do projectado
esgoto e aterro do pantano de Lourenço Marques por S.T. Hall, Dezembro de 1876. Copia de Augusto de Castilho”, AHM (D1.03/2021),
na “Planta de Lourenço Marques levantada em 1886, Escala 1:5000”, AHM (N.º 1711/D.29/2006) e na “Planta da Cidade, Lourenço
Marques, 1903, Escala 1: 5000”, AHM (2014/D.37).
O anteplano, levado adiante pela 3.ª Secção de sobre a enseada da Maxaquene12. Os trabalhos de
Obras Públicas (entre 1887 e 1895), privilegiou aterro foram executados com o auxílio de mão de
duas questões imperativas: maior acessibilidade obra “indígena”, do Corpo de Polícia e com recurso
para o comércio intrarregional e regional e o sa- a uma linha Decauville (Pereira, 1888). A terra
neamento da povoação. A solução projetual para foi acarretada encosta abaixo até ao pântano em
essas questões encontrou-se justamente na boa vagonetas sobre trilhos de metal que depois eram
relação do porto/caminho de ferro com a cidade, empurradas, por tração humana, encosta acima,
permitindo o acesso mais económico e eficaz a para serem carregadas novamente13.
materiais de construção e às restantes mercado- Contemporaneamente, a secção de Obras Pú-
rias. O alargamento da cidade fez-se procedendo blicas edificou, perto do cemitério real Mpfumu,
primeiramente a um aterro de 2 metros em média entre 1887 e 1893, o Quartel da Polícia do Alto
sobre o pântano para a construção da avenida Maé14 (ver Fig. 4), como posto avançado da cida-
D. Carlos (o eixo longitudinal de transição para de a oeste (Lemos, 1987: 16 nota 52). O Quartel
a “cidade nova”) (Relatório da gerência do anno devia comportar uma força de polícia de cem
económico de 1899-1900, 1901), iniciando, de homens de infantaria, vinte e cinco de cavalaria
súbito, a abertura dos traçados viários previstos e acomodações para nove famílias de oficiais15.
no anteplano: uma série de avenidas longitudinais, Esta era uma obra urgente, pois o Corpo Policial
paralelas ao eixo maior da cidade, ligadas por tinha sido alojado precariamente numa caserna de
outras transversais distanciadas entre si entre 100 madeira situada na rua D. Luís I (atual Consiglieri
e 200 m, aproximadamente (Fig. 4). Pedroso), bem perto do pântano. Em meados de
O pântano junto à cidade foi atravessado por 1888, as febres palustres tinham já obrigado ao
três avenidas longitudinais: a primeira, a D. Carlos, internamento, no Hospital Civil e Militar da cida-
contígua à cidade velha, com aproximadamente de, de cerca de três quintos do Corpo de Polícia
2.000 m de extensão; a segunda, de Pedro Alvares (91 elementos), parte dos primeiros contingentes
Cabral, imediatamente a norte da primeira, dis- 12
As obras de ampliação do porto para jusante, entre a ponte da
tando 140 m; e a terceira, de Fernão de Magalhães, Alfândega e o sopé da Ponta Vermelha, nos últimos anos do século
XIX, com o início da construção do muro de cais junto à Ponta
à distância de 120 m da segunda, que passava em Vermelha, foram abandonadas definitivamente devido à falta de
parte sobre a encosta e em parte sobre o pântano, verbas (Silva, 1901). No início da primeira década do século XX
(1902-1903), todo o antigo limite ribeirinho, adjacente e a sul do
todas com o mesmo comprimento. Estas avenidas núcleo antigo da cidade, tinha sido aterrado entre a ponte da Al-
longitudinais estavam ligadas por dez avenidas fândega e a ponte do Caminho de Ferro e redesenhado com uma
transversais. Todas elas foram construídas por pujante estrutura de cais acostável a grandes navios, a ponte-cais
Gorjão, projetada para cobrir a extensão entre a praça 7 de Março
aterro e pelo menos 2/3 do volume de terras neces- e a ponte da Companhia neerlandesa (Alberto, 1907: 179; Lima,
sário a esse fim proveio do extremo este da cidade, 1971: vol. III, 34).
das elevações que dominavam o (projeto de) porto, 13
Ofício n.º 235, 7 de junho de 1888, António José d’Araújo, AHU
renço Marques” — encontra-se no AHM (D1.02/2020), existindo (ACL_SEMU_DGU_Mç_Cx.1389/1L, pasta 27_1886_1888).
cópias em mau estado no AHU (não acessível) e na SGL. O plano, 14
Cf. “PROJECTO/ de/ Um quartel de policia na villa de Lour.º
com data de dezembro de 1887, assinado por António José de Araú- Marques/10 de Outubro de 1887”, com a respetiva memória descri-
jo, foi aprovado pela portaria n.º 598, de 1 de dezembro de 1892, do tiva, assinado pelo diretor da 3.ª Rep. António José de Araújo, AHU
governador-geral Rafael de Andrade, publicada no Boletim Oficial (ACL_SEMU_DGU_Mç_Cx.1389/1L, pasta 27_1886_1888).
n.º 49, de 3 de dezembro de 1892. Para uma descrição do plano, sua
implantação no terreno e comparação com planos contemporâneos 15
António José d’Araújo, Lourenço Marques, informação de 11 de
da chamada “África portuguesa”, sobretudo de Angola, veja-se Mo- outubro de 1887, AHU (ACL_SEMU_DGU_Mç_Cx.1389/1L, pas-
rais, 2001: 85 ss. ta 27_1886_1888).
Fig. 5 : Planta de Lourenço Marques (área central), ca. 1903, com o traçado da ampliação do porto e do limite da cidade a norte.
Assinalam-se alguns edifícios permanecentes na cidade atual (ainda que com alterações): Instituto Dona Amélia (atual Casa de Ferro,
transferida da Repartição de Agrimensura para as imediações do Jardim Vasco da Gama/Tunduru no início da década de 1970)
(1); Consulado Britânico (2); Hotel Clube (atual Centro Cultural Franco-Moçambicano) (3); Vila Joia (atual Tribunal Supremo)
(4); Mercado Central (5); Prédio Pott (6); Cadeia Civil (atual anexo da Imprensa Nacional) (7); Câmara Municipal (atual Tribunal
Administrativo) (8); Mesquita (9); Casa Amarela (10); Casa dos Azulejos (11); Fortaleza (12). Fonte: Autora, com base no “Plano do
projectado esgoto e aterro do pantano de Lourenço Marques por S.T. Hall, Dezembro de 1876. Copia de Augusto de Castilho”, AHM
(D1.03/2021), na “Planta de Lourenço Marques levantada em 1886, Escala 1:5000”, AHM (N.º 1711/D.29/2006) e na “Planta da Cidade
Lourenço Marques 1903, Escala 1: 5000”, AHM (2014/D.37).
188823 no trato norte confinante com o Quartel do Sensivelmente no mesmo período, em 1885,
Alto Maé, entre as avenidas Pinheiro Chagas (atual surgia a Sociedade de Arboricultura e Floricultura
Eduardo Mondlane) e de El Rei D. Manuel (trato de Lourenço Marques. O objetivo da Sociedade
correspondente à atual avenida Josina Machel). era a arborização do pântano que separava a an-
tiga povoação da terra firme e a execução de um
23
“Mappa dos trabalhos executados no mez de fevereiro de 1888”; jardim24 (Longle, 1887: 20). Armando Longle
“Mappa dos trabalhos executados no mez de outubro de 1888” e
“Mappa dos trabalhos executados no mez de dezembro de 1888”, 24
“[...] pela portaria n.º 367, de 15 de Novembro de 1885, publicada
Direção das Obras Públicas de Lourenço Marques, província no Boletim Oficial n.º 47, de 21 do mesmo mês e ano, firmada pelo
de Moçambique, Secretaria das Obras Públicas de Lourenço Secretário Geral José Joaquim de Almeida, em nome do Governa-
Marques, AHU (ACL_SEMU_DGU_Mç_Cx.1389/1L, pasta dor geral, nos termos do artigo 7.º do Regulamento de 10 de Ou-
27_1886_1888). tubro de 1865, foi dada a devida posse e feita entrega à Sociedade
Fig. 6 - Planta de Lourenço Marques (área central), ca. 1903, com a sobreposição do levantamento atual da estrutura viária (a vermelho).
Fonte: Autora, com base na “Planta da Cidade, Lourenço Marques, 1903, Escala 1: 5000”, AHM (2014/D.37) e no levantamento atual.
As alterações de fundo na estrutura urbana, nesta parte da cidade, ao longo do século XX, aconteceram com a construção da praça
Mouzinho de Albuquerque/da Independência (entre finais da década de 1930 e meados da de 1940) (1); na estrutura ferro-portuária
ampliada sucessivamente (2) e no aterro da enseada da Maxaquene (3).
utilizada a plantação intensiva de eucaliptos, bem ocupado pelas classes menos favorecidas e onde
como ao longo das novas avenidas. prevaleciam as habitações em madeira e zinco.
As obras do caminho de ferro, a implantação Segundo o engenheiro Terra Viana, na avenida
do plano de ampliação da cidade, com a abertura Central (atual Karl Marx), encontravam-se os
das avenidas e as obras no pântano implicaram, pontos mais baixos do bairro comercial e mais
naturalmente, a demolição progressiva da antiga densamente povoado, “com cotas que [iam] até
linha de defesa, tendo o entulho das demolições 2,46 m acima do nível medio do mar e inferiores
sido empregue nos aterros, e a pedra na cons- às da antiga vila” (Terra Viana, 1907: 13), e que
trução da Cadeia Civil, no empedramento da continuaram, por muito tempo, juntamente com
praça da Estação e das novas vias26. As obras nas as restantes avenidas de terra batida da Baixa, ala-
avenidas, todavia, prosseguiram com enormes gados pelas águas perdidas que corriam livremente
dificuldades. Uma grande parte dos terrenos na à superfície do solo28. A oeste do Quartel do Alto
área afeta estavam aforados, obrigando a pesadas Maé continuaram a existir áreas pantanosas pelo
indeminizações aos enfiteutas27. As dificuldades século XX adentro, tornando insalubre e pouco
técnicas e financeiras no acesso a materiais de valorizado o bairro a oeste da avenida Central
construção justificaram também que grande parte (Galvão, 1920: 21).
das ruas e avenidas permanecesse até ao final A malha urbana delineada pelo “Plano Araújo”
do século XIX com piso em areia, à espera de foi prolongada sucessivamente até ao perímetro
macadamização, condicionando a edificação nos do arco de circunferência com 2.000 m de raio e
novos quarteirões (Relatório da gerência do anno centro na praça 7 de Março (atual 25 de Junho),
económico de 1899-1900, 1901). limite da área do concelho a partir de 1895,
Por volta de 1900 construía-se uma média de de acordo com a portaria de António Ennes
vinte casas por mês dentro da cidade, cerca de (1848-1901) (Portaria de 20 de abril de 1895
1/4 em alvenaria (Relatório da gerência do anno apud Ennes, 1896: 55-56). Esse arco adquiriu
económico de 1899-1900, 1901). Até ao final da pri- “um estatuto de permanência, estando na ori-
meira década do século XX, a cidade pouco tinha gem do traçado da Estrada da Circunvalação”29
crescido. Para além da Baixa antiga, a ocupação (Morais, 2001: 106). A transferência da capital da
dos quarteirões limitava-se à área entre as avenidas cidade de Moçambique para Lourenço Marques
Augusto de Castilho (atual Vladimir Lenine) e Ge- (em 1 de dezembro de 1898), no sul da colónia,
neral Machado (atual Guerra Popular). A poente pouco desenvolvido, implicou o planeamento
da General Machado, entre as avenidas D. Carlos
(atual 25 de Setembro) e Fernão de Magalhães,
28
No final da primeira década do século XX estava em apreciação
a construção de um sistema separador completo com exclusão das
os quarteirões, desenhados sobre o pântano do águas pluviais, que previa o envio das “águas servidas e materias
Maé, permaneciam desocupados (Fig. 5). A edi- excrementicias” para tanques de represamento, que seriam despeja-
ficação continuava para noroeste, no Alto Maé, dos durante a vazante da maré em águas profundas na Ponta Ver-
melha (Terra Viana, 1907: 21-22). A população residente servia-se
26
“Mappa dos trabalhos executados no mez de janeiro de 1888”, do sistema de fossas fixas ou móveis (que eram descarregadas no
Obras Públicas da província de Moçambique, 3.ª Rep., AHU (ACL_ mar) e a falta de latrinas públicas para os que em grande número
SEMU_DGU_Cx. 1389/1L_1886_1888). visitavam diariamente Lourenço Marques gravava a insalubrida-
de dos terrenos bem próximo das residências e a contaminação do
27
“[...] diffícil fazer escavações entre avenidas indicadas por esta- subsolo.
rem aforadas quasi/ todos os terrenos para abertura avenidas [...]
foi/ preciso dar importantes indemnizações em terrenos/[...]/Arau- 29
Sousa Morais (Morais, 2001: 106), refere 7 km de raio para o arco
jo”, telegrama da Direção de Obras Públicas de Lourenço Marques da Estrada da Circunvalação, no entanto esse primeiro arco tinha,
para o Ministério da Marinha, de 9 de agosto de 1888, AHU (ACL_ como já foi referido, segundo a portaria de 1895, raio de dois km, e
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RESUMO
O presente trabalho pretende, a partir da discussão weberiana sobre a objetividade do conhecimento
nas ciências sociais, colocar em perspectiva a possibilidade de a História da Construção estabelecer-se
como argumento de mediação entre os conteúdos práticos da disciplina arquitetônica e as aspirações
teóricas pretendidas pela historiografia tradicional de Arquitetura. Pela sua capacidade de lidar com tais
conteúdos práticos e de referir-se, ao mesmo tempo, aos objetos cuja essencialidade deriva de julgamentos
construídos conforme os conteúdos da cultura, a História da Construção parece reunir condições de
expor as tensões entre escalas de valor que partem de ordens distintas (as ordens do “ente” e do “dever
ser”, como diz Weber). Para objetivar o estudo em questão, o presente trabalho pretende colocar em
confronto alguns argumentos de obras expoentes da historiografia tradicional da Arquitetura frente
aos conteúdos práticos ali mesmo referidos, evocando as diferentes escalas de valor em que se baseiam,
procurando demonstrar como a História da Construção permite confrontar posições, comparando-as
“com as próprias escalas de valor” (Weber, 1971:19). Procuraremos, assim, defender a necessidade de
confrontarmos valores para “construir uma história que permitisse olhar, ao mesmo tempo, a cabeça e os
pés, a ideia generosa e o lodo embaixo. Uma história da arquitetura vista do canteiro” (Ferro, 2010:15).
de historiadores da arquitetura (mais particular- Nora, chamando nossa atenção para o quanto
mente: paulista) que defendem a historiografia as questões articuladas por esse historiador em
como campo de conhecimento autodeterminado, Présent, nation, mémoire (2011) contribui para,
particular e que goza de uma certa autonomia no caso do Brasil,
heurística. Ferro, ao ser indagado se considerava
“retirar as práticas historiográficas do cam-
que a História da Arquitetura pode ser compre-
po da arquitetura, do urbanismo e da cida-
endida como História da Construção, respondeu
de, em geral, de uma excessiva naturalidade
laconicamente (provavelmente em virtude de sua
e banalização, buscando quiçá, contribuir
compreensão de como se aninha a atividade do
para que se interrogue, no interior das es-
arquiteto): “Sim”. E ponto.
colas e cursos de arquitetura e urbanismo,
sobre uma matéria que sem chegar a ser
1.1. HISTORIOGRAFIA DA ARQUI-
uma disciplina, tampouco é uma forma de
TETURA, TEORIA & AUTONOMIA
HEURÍSTICA saber diante de um fazer ‘descarnado’ – do
arquiteto e do urbanista – que se desconsi-
Talvez a reação tenha sido exagerada, talvez não. dera suas ações seja como memória, história
Talvez a resposta tenha sido muito breve, talvez ou cultura” (Pereira, 2015:24)
não. Certo é que, no conjunto das tendências da
historiografia contemporânea que se dedica a Isto é, a percepção de que o conhecimento orga-
narrar como a arquitetura acontece no tempo e nizado e ensinado pela história da arquitetura, do
no espaço, parece difícil inclusive ao historiador urbanismo e da cidade não é uma “forma de saber
escapar de uma percepção quase generalizada de diante de um fazer ‘descarnado’”, que se trata de
que seu campo de trabalho, ao lidar com objetos um empreendimento que precisa reconhecer que
concretos porém tratados intelectualmente de tem à frente conteúdos eminentemente práticos e
modo eminentemente abstrato, acaba compondo materiais, não é exclusiva dos práticos (que muito
um conjunto de assuntos desprovidos de ob- reclamam dessas abstrações): os próprios historia-
jetividade pragmática. Qual a utilidade prática dores da arquitetura percebem que a historiografia
sabermos como as ordens gregas replicadas no com a qual lidam precisa superar os limites da
Coliseu tornaram-se elementos que se destinam reflexão puramente abstrata sobre “fragmentos
apenas a controlar geometricamente a estrutura, de coisas ou a vida dos homens, seus fazeres e
combinando o sistema arquitravado com o sistema afazeres e suas cidades – já como ruínas, como
de arcos – este sim responsável pela distribuição naturezas mortas – ou como se fosse um voyer
das cargas no edifício (Summerson, 1982:23)? – pelo buraco da fechadura” (Pereira, 2015:44).
Ao discutir as relações entre história e memó- Indo adiante no flanco aberto por aquela au-
ria, aprofundando sua reflexão sobre a tarefa do tora, faria bem à historiografia da arquitetura
historiador de arquitetura, Margareth Pereira rever sua pretensão de autonomia heurística e
recompõe a tradição historiográfica que se cons- de determinação auto referenciada: ela sempre
truiu desde os anos 1970, ordenando algumas se referirá a objetos contingentes. Desse modo,
tendências metodológicas e de abordagens, no poderíamos conjeturar que a resposta de Sérgio
contexto da “guinada epistemológica” operada não foi assim totalmente inadequada. Talvez só
no campo da História como um todo já nos anos um pouco breve demais.
1980. Dessa cronologia, Pereira recupera, numa Com efeito, parece que a historiografia da arqui-
de suas pontas, o trabalho do historiador Pierre tetura, de um modo geral, acaba construindo para
si uma espécie de torre de observação, sem dúvida chegando em Jean Nouvel, Frank Gehry, Calatrava,
bastante alta, mas com apenas três janelas para o Alvaro Siza, Rem Koolhas, Portzamparc, Paulo
exterior: uma lhe permite ver todo o campo, em toda Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi, João Filgueiras
sua amplitude; outra, lhe oferece um excelente ponto Lima etc... – a lista é longa; e (3) a materialidade
de vista para observar o movimento de personagens extemporânea do edifício em si mesmo, conside-
que transitam por aquele campo; a terceira lhe con- rado como pivô, como referência objetiva para o
cede observar partes do campo ou construções que protagonismo contextual dos personagens que lhe
ali se erguem. Concretamente, trata-se de um posto conferem significado. Pensamos nas produções
de observação que reúne boa parte das alternativas também monográficas que lidam com os ele-
de abordagem dos objetos da historiografia tradi- mentos formais e factuais da obra arquitetônica,
cional. Tal estrutura pode conduzir a narrativas que muitas vezes se concentrando nas questões relati-
perigosamente flertam com anseios de autonomia vas ao seu processo de concepção ou às inflexões
heurística e/ou estatuto teórico. das relações entre contratantes, contratados e o
Conforme essa estrutura – e de forma muito contexto em que se inserem; outras vezes – e com
geral, queremos salientar, e sem nenhuma pre- menor frequência – tais produções tomam a obra
tensão taxonômica – cabe ao historiador decidir arquitetônica como ponto fixo da narrativa para
entre: (1) a objetividade fenomênica dos eventos discorrer sobre o debate arquitetônico vigente,
– e daí uma organização do relato histórico em fazendo dialogar seus elementos descritivos com
função da cronologia de tais eventos. Pensamos o universo social, econômico e cultural que os
aqui nos grandes compêndios de História da abriga etc.
Arquitetura, esforços louváveis e necessários de De todo modo, essa tríade de opções parece
consideração historiográfica ampla e de crítica subsidiada por um denominador comum: em
histórica fundamental; particularmente, tomo todos os casos, talvez em virtude do argumento
como referência aqueles dedicados à história da que evoca a cientificidade do método ou a inques-
arquitetura moderna, nos moldes de um “Pio- tionabilidade da validade das fontes, a narrativa
neiros da Arquitetura Moderna” de Pevsner, de histórica faz permear em suas entrelinhas o desejo
“História da Arquitetura Moderna” de Benevolo de se instituir como teoria. Ora, reivindicando tal
ou mesmo de “História Crítica da Arquitetura estatuto a narrativa acaba se insinuando como
Moderna”, de Frampton, e “O futuro da arquitetura conformadora de realidade – e não o contrário.
desde 1889” de Jean-Louis Cohen; (2) a eleição Não seria exagerado dizer que boa parte das pro-
de um profissional como protagonista central duções regidas por aquelas alternativas fazem seus
da trama histórica, tomado como o personagem conteúdos históricos parecerem, grosso modo,
encarregado de conduzir a narrativa em torno “fenômenos regidos por lei natural” e “por um
de suas obras ou de seus ditos e escritos – talvez desenvolvimento unívoco”, conforme a formulação
aqui uma projeção das ciências da cultura, par- de Max Weber (Weber, 1971:7/8). Segundo o autor,
ticularmente da Filosofia e das Ciências Sociais,
“O teórico facilmente se vê tentado a conside-
onde é comum se discutir um determinado autor.
rar como normal esta relação [o saber histó-
Pensamos aqui nas inúmeras monografias sobre
rico subsidiando a teoria – e não o contrário],
as obras de Brunelleschi, Michelangelo, Palladio
ou então, o que é pior ainda, a misturar a te-
etc., passando por figuras como Otto Wagner,
oria e a história até ao ponto de as confundir.
Adolf Loos, Le Corbusier, Frank Lloyd Wright,
(...) A ordem lógica dos conceitos, por um
Louis Kahn, Warchavchik, Oscar Niemeyer etc., e
lado, e a distribuição empírica daquilo que
é conceitualizado no espaço, no tempo e na Sabemos que Weber está a refletir sobre a “ob-
conexão causal, por outro, aparecem então de jetividade do conhecimento nas ciências sociais”
tal modo ligados entre si, que quase chega a e, para referendar seus argumentos a favor da
ser irresistível a tentação de violentar a rea- impossibilidade de tal “objetividade”, o autor
lidade para consolidar a validade efetiva da alemão recusa o alinhamento a vertentes expli-
construção na realidade”. (Weber, 1979:118) cativas tributárias de visões esquemáticas do que
se denomina ‘materialismo histórico’. Registra
Com efeito, a adoção dessas alternativas de abor-
seu profundo respeito às formulações marxianas
dagem historiográfica resultam de julgamentos
(idem:118), mas não cede a leituras de Marx que
realizados tendo como referência um determi-
pretendem estabelecer a “concepção materialis-
nado sistema de valores, estabelecido sempre em
ta da história” como “‘concepção de mundo’ ou
oposição a outros vigentes e que varia “segundo o
quando encarada como denominador comum da
conteúdo da cultura” (Weber, 1971:82)1. Segundo
explicação causal da realidade histórica” (idem:84).
Weber, “as sínteses com que a história constan-
Conforme a argumentação de Weber, não seria
temente trabalha” não são mais que “conceitos
cabível, portanto, argumentar que, por se tratar
determinados relativamente” (Weber, 1979:120). E
de um fenômeno eminentemente “econômico” – e
tais conceitos referem-se, necessariamente, a um
isso tem significado definido para o alemão2 –,
sistema de valores que “varia historicamente de
a construção constrangeria de forma determi-
acordo com o caráter da cultura e do pensamento
nada a arquitetura e, por conseguinte, a própria
que domina os homens” (idem:99):
história da arquitetura. Mas talvez não seja esse
“O conceito de cultura é um conceito de va- o problema: não parece razoável pretender uma
lor. A realidade empírica é ‘cultura’ para nós explicação puramente ‘econômica’ da arquitetura,
porque e na medida em que a relacionamos articulada a partir da história da construção. Tal-
a ideias de valor. Ela abrange aqueles e so- vez a resposta de Sérgio Ferro tenha sido realmente
mente aqueles componentes da realidade sucinta demais.
que através desta relação tornam-se signifi- O problema, parece-nos, seria justamente a
cativos para nós”. (Weber, 1979:92) operação que empurra a história da arquitetura
para um nível de abstração tal que os elementos
1
A “operação historiográfica” – expressão cunhada por Michel de concretos que compõem sua narrativa acabam
Certeau – vem sendo debatida desde os anos 1970 e promoveu uma rebaixados como imagens de fundo – um fundo
“guinada epistemológica”, já nos 1980, alterando profundamente a
difuso e sem protagonismo relevante. Além disso,
prática dos historiadores em geral, a eleição de seus objetos e méto-
dos de pesquisa e investigação. Segundo Margareth Pereira, os his- a história da arquitetura, por diversas vezes, acaba
toriadores de arquitetura, urbanismo e das cidades, contudo, não
se dedicaram atentamente à tal guinada: “simplesmente, a história 2
Já no início do texto que tomamos como referência, Weber es-
continuou sendo evocada, sobretudo, para se estabelecer, quando tabelece uma clara distinção entre problemas econômico-sociais:
muito, um juízo de valor quanto ao presente, para sustentar a ideia aqueles que se referem a “instituições que foram criadas ou são
e um modelo idealizado de arquitetura ou de cidade ou, enfim, utilizadas conscientemente para fins econômicos”, isto é, “eventos
não foram movidos a compartilhar suas reflexões metodológicas” ou instituições ‘econômicas’” propriamente ditas; aqueles que tra-
(Pereira, 2015:22). Como contraponto, Marcel Poëte, desde os anos tam de acontecimentos ou instituições que apenas manifestam in-
1920-1930, e Giulio Carlo Argan, Bruno Zevi e Manfredo Tafuri, diretamente sua relevância econômica, os quais Weber chama de
entre 1950 e 1960, insistiram na necessidade de se lidar com as re- “fenômenos ‘economicamente relevantes’; e aqueles fenômenos que
lações entre a experiência e os questionamentos que atravessam o não são econômicos, estrito senso, mas que são influenciados por
trabalho do historiador, bem como sua responsabilidade sobre o que motivos econômicos – são os “fenômenos economicamente condi-
se registra como rememoração – a história que requererá “legitimi- cionados” (Weber, 1979:80 – grifo do autor). Essa distinção é es-
dade”, que passará a “julgar a memória e a ditar o que deve ser a sencial para o autor alemão conseguir repelir qualquer forma de
memória coletiva” (idem:25). ‘determinismo histórico’ pela via economicista.
incorrendo em sínteses que acolhem conceitos Se busca evitar uma “reprodução da narrativa
estabelecidos absolutamente, como origem e fim épica”, temperando aqui e ali com manifestações
do sentido da própria arquitetura. mais autóctones ou regionalistas – dando vez “à
Veja-se, por exemplo, a obra de Jean-Louis produção às vezes injustamente esquecida, de
Cohen, para ficarmos entre as opções mais recen- arquitetos que seguiram carreiras menos heroi-
tes de abordagem da “operação historiográfica” cas” – por outro lado não escapa das referências
(na acepção de Michel de Certeau): em virtude icônicas (como diz o próprio autor, “alternando
de uma nova conjugação de fatos culturais, o pinceladas largas com detalhes específicos, tentei
autor não consegue fixar-se apenas em “obras evocar uma paisagem de temas recorrentes e,
construídas” para construir o seu “O futuro da por vezes, revelar diferentes modos de pensar
arquitetura desde 1889 – uma história mundial”, sobre o passado” – Cohen, 2013:16). Prevalecem,
originalmente publicado em 2012. Como afirma, contudo, as grandes narrativas. Celebra, de todo
além delas também levou em “conta projetos não modo, as realizações da arquitetura prêt-à-porter,
realizados, bem como livros, revistas e manifes- sem esconjurar deliberadamente a produção da
tações públicas que dão corpo à cultura arqui- alta arquitetura.
tetônica em seu sentido mais amplo” (Cohen, Falta contar-nos, portanto, do seu ponto de
2013:10). Em termos metodológicos, parece um vista3, como se dão as conexões conceituais que
expediente bastante acertado, se a questão é lidar estruturam, dentre outros, o problemático do-
com a história de um campo ampliado no qual se mínio da escala de produção de seus objetos:
insere a arquitetura. como foram construídos? Qual a ordem produtiva
No entanto, apesar de optar por uma periodiza- envolvida? Pensando em termos de uma possível
ção que toma como balizas eventos significativos interpretação cultural do fenômeno econômico
não só da dinâmica cultural e econômica mundial e considerando, nos termos de Weber, que a rea-
– como a “convergência da industrialização e da lidade empírica é ‘cultura’, por que as dimensões
urbanização”, a “instauração da social-democracia tecnológicas que envolveram a produção daquela
na Europa”, o “surgimento das ciências sociais obra não alcançaram papel significativo em sua
como disciplinas autônomas” e a “difusão das narrativa? Quanto custou; quem pagou; como se
ideias de filósofos do porte de Friedrich Niestzsche deu a divisão do trabalho; como se estenderam os
e Henri Bergson” – Cohen acaba mantendo-se trabalhos no tempo; quem construiu; etc. Assim
na ampla superfície do discurso tornado hege- como na maioria das fotografias de arquitetura a
mônico desde Pevsner ou Benevolo: a narrativa pessoa comum desaparece, restando a imagem fria
histórica orientada a partir de eventos macroes- e iluminada da obra arquitetônica, isenta dos ruí-
truturais – a Grande Guerra, o imperialismo, o dos produzidos pela existência humana, também
Iluminismo, a Revolução Industrial, a “ascensão no livro de Cohen as imagens refletem a relação
do estado-nação”, “as normas culturais das nações asséptica com as dimensões mais turbulentas que
líderes” etc. São feitas, então, opções. Opções movimentam o caldo social e econômico, restrin-
essas que denotam um corolário de alternativas gindo-se ao contexto cultural (em sentido lato)
instruídas por uma intencionalidade determi- e político no qual as obras de arquitetura estão
nada: se o autor recusa o ‘movimento moderno’
inventado por Pevsner com os seus ‘pioneiros’, 3
“O que buscam rememorar os textos que se dedicam à história
das cidades, da arquitetura e do urbanismo? (...) Mas afinal o que
por outro lado reorganiza o tabuleiro a favor de é narrar? Como as memórias e emoções do historiador se imiscuem
uma outra conjugação das mesmas presenças. em tantas outras memórias e experiências passadas? Como ele or-
ganiza o tempo e de que modo?” (Pereira, 2015:20).
imersas. Uma ou outra imagem traz pessoas ou de 1941 – umas das obras mais influentes sobre
até mesmo bichos compartilhando a cena (como a história da arquitetura moderna, registrou ali
na foto da Casa del Fascio, de Terragni – trata-se enfaticamente os prejuízos decorrentes da cisão
de uma fotomontagem, agregando uma multidão entre arquitetura e construção, dando destaque
ao lado do prédio! – página 205, imagem 252; ou para a produção de caráter mais pragmático) e
dos jumentos e seus condutores em frente à sede Reyner Banham (um ‘quase’ engenheiro aeronáu-
da Associação dos Produtores de Fios Têxteis, em tico, orientado por Pevsner em seu doutoramento,
Ahmedabad, na Índia, projeto de Le Corbusier defendido em 1960, propunha uma outra genea-
– reforçando o contraste, ressalta a presença do logia do movimento moderno, questionando as
‘futuro moderno’ perpetrado pelas linhas rigo- contingências decorrentes da era da máquina e
rosamente ortogonais do edifício – página 327, sua influência na derrocada da arquitetura mo-
imagem 418; para além da “solidão de Louis Kahn”, derna). Cada um a seu modo, soube trazer à tona
como se refere o autor, resta a aridez desabitada aspectos peculiares da ‘história da arquitetura’ que,
do belo pátio entre os volumes que compõem o no futuro, configurariam o que hoje podemos
Salk Institute for Biological Studies em La Jolla, na designar como abordagens próprias da ‘história
Califórnia, EUA – páginas 354/355, imagem 449). da construção’ (Lopes; Lira, 2013:12/13).
Desse modo, a empreitada historiográfica que Como conhecimento que se constrói a partir
toma a arquitetura como objeto acaba se esqui- de referências, registros, documentos ou depoi-
vando, com bastante frequência e em virtude de mentos, a “operação historiográfica” que lida com
opção determinada, da suas dimensões social e a construção também corre os mesmos riscos
econômica, compreendidas aqui – pelas mãos de daquela que trata da arquitetura. No entanto,
Weber – também como ‘cultura’. seus objetos apresentam um grau de concretude
relativamente mais exacerbado: o pé fincado no
1.2. HISTORIOGRAFIA DA CONSTRUÇÃO mundo prático e concreto não lhe anima arvorar-
& PRÁTICA -se a desenhar a realidade ou pretender-se como
teoria. Isso não basta, contudo, para lhe reservar
Para todos os efeitos, cabe registrar a relativa
alguma vantagem de imunidade em relação à
novidade que é a história da construção como
história da arquitetura: certamente a história da
campo disciplinar e de investigação. Fora os tra-
construção também não escapa de limitações e
tados ou manuais de construção, a tradição his-
problemas – alguns deles congênitos. Um deles
toriográfica de arquitetura levou um bom tempo
parece advir do modo como são tratadas as seg-
até delinear os primeiros contornos de algo que
mentações do campo que agrega seus objetos.
pudesse ser entendido como uma ‘historiografia
O volumoso compêndio que reúne os estudos
da construção’.
apresentados no IV Congresso Internacional sobre
Ironicamente, coube a três engenheiros esboçar
História da Construção, realizado em Paris em
o que isso poderia vir a significar mais tarde:
julho de 2012, dá uma noção do intensivo par-
Auguste Choisy (professor da Escola Politécnica,
celamento das abordagens investigativas que ali
aluno de Viollet-le-Duc, publicou sua Histoire de
se encontraram – sem enunciarem, no entanto,
l’Architecture em 1899, na qual reservou diversas
qualquer possibilidade de conexões entre tais
seções para registrar aspectos técnico-construtivos
abordagens. Claro que é importante lidarmos com
e relativos ao processo de produção das obras
aspectos epistemológicos e historiográficos, tanto
historiadas); Siegfried Giedion (engenheiro me-
quanto os demais recursos, métodos e processo
cânico, autor de Espaço, Tempo e Arquitetura,
educativos relativos ao campo de estudos que vem puramente ‘objetiva’ da vida cultural, ou (...) dos
se constituindo como ‘história da construção’; ‘fenômenos sociais’, que seja independente de
certamente se faz necessário discutir os aspectos determinadas perspectivas especiais e parciais”
tecnológicos como objetos de investigação histo- (Weber, 1979:87)? A realidade empírica – o mundo
riográfica, materiais e sistemas, pré-fabricação e da prática – é, por si, extremamente fragmentada
industrialização etc. (Carvais; Guillerme; Nègre; e, de todo modo, não seria ali o lugar apropriado
Sakarovitch. 2012). No entanto, o fenômeno eco- para construções conceituais mais substantivas, de
nômico ‘construção’ parece não alcançar a possi- validade geral no contexto do sistema de valores
bilidade de uma explicação cultural, no sentido vigente. Para instituir-se uma história da constru-
de Weber, pelo fato de manter-se fragmentado ção como ‘história de cultura’, parece necessário
em campos de abordagem que se isolam não erigir um terceiro lugar, que não se articule nem
só discursivamente, mas também criticamente. como ciência empírica e nem como narrativa
Se necessário, por um lado, devido à extensão histórica com pretensões de especulação teórica.
do próprio campo e das diferentes matizes que
o conformam, por outro lado tal parcelamento 2. HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO COMO
impede a configuração de uma matriz de análise ‘HISTÓRIA DE CULTURA’
que extrapole as peculiaridades dos subcampos
2.1. TEORIA & PRÁTICA
segmentados de investigação. Seria preciso cons-
tituirmos um quadro de referência – um “tipo Conforme Weber, “o domínio do trabalho
ideal”, conforme a formulação de Weber – que científico não tem por base as conexões ‘objeti-
propiciasse o contraste entre os eventos sociais, vas’ entre as ‘coisas’ mas as conexões conceituais
econômicos, culturais e políticos ligados à pro- entre os ‘problemas’” (Weber, 1979:83). No nosso
dução da arquitetura, formando um quadro de caso, se concordarmos com o autor alemão e se
pensamento que nos permitiria então formular a tomarmos posição definida em relação ao que deve
história da construção como ‘história da cultura’. ser significativo para a composição da narrativa
Segundo Weber: histórica – para que se permita vislumbrar alguma
conciliação entre as dimensões abstratas dessa
“Obtém-se um tipo ideal mediante a acen-
narrativa e as conexões causais que determinam
tuação unilateral de um ou vários pontos de
a prática construtiva –, parece ser possível afirmar
vista, e mediante o encadeamento de gran-
que a “operação historiográfica” deveria fundar-se
de quantidade de fenômenos isoladamente
nas conexões conceituais entre as condições – pro-
dados, difusos e discretos, que se podem dar
blemáticas, por certo – que envolvem a produção
em maior ou menor número ou mesmo fal-
da arquitetura, buscando escapar da armadilha
tar por completo, e que se ordenam segundo
que é fixarmos nossas lentes exclusivamente no
os pontos de vista unilateralmente acentua-
objeto, nas “coisas” arquitetônicas e construídas
dos, a fim de se formar um quadro homogê-
submetidas às nossas considerações.
neo de pensamento” (Weber, 1979:106)
Mas é preciso cuidado, como já advertimos
De todo modo, até que ponto as opções de anteriormente, ao comentarmos o posicionamento
segmentação também não correspondem ao re- de Weber em relação à insinuação do materialismo
conhecimento de que não existe uma abordagem histórico como explicação causal da realidade:
totalizante? Até que ponto não se referem à admis- para se posicionar contra uma leitura rasteira
são de que “não existe qualquer análise científica dessa ideia, Weber defende a liberdade frente ao
“preconceito obsoleto de que a totalidade dos tendências como respostas teóricas perante ou
fenômenos culturais poderia ser deduzida como conforme o contexto social, político, econômico
produto ou como função de determinadas cons- e cultural vigentes, a história da construção acaba
telações de interesses ‘materiais’”; ao contrário, enovelada por uma contingência de seu campo
defende o “cultivo de uma interpretação econô- de pesquisa, restringindo-se, via de regra, a uma
mica da história” (idem:84). Sendo minimamente abordagem factual, aos problemas tecnológicos ou
rigorosos e tentando acompanhar a argumentação práticos, às condicionantes econômicas, à análise
de Weber, não seria justo, portanto, defender que técnica documental ou gráfica etc., dedicando
a arquitetura e seus objetos, tomados como “fe- pouco espaço à investigação e problematização das
nômenos sociais” ou “eventos culturais”, tenham conexões entre processos e problemas investidos
como explicação causal exclusivamente seu “condi- na produção da arquitetura como um fenômeno
cionamento e alcance econômico”. Após relacionar ao mesmo tempo econômico e cultural.
quase que esquematicamente e exemplificar, no Mas a história da construção pode transformar
início de seu texto, as modalidades de fenômenos sua limitação em vantagem: pela sua capacidade
e problemas econômico-sociais (conforme regis- de lidar com conteúdos práticos e de referir-se,
tramos na nota 2), Weber insiste em lembrar as ao mesmo tempo, aos objetos cuja essencialidade
limitações da explicação puramente econômica deriva de julgamentos construídos conforme os
daquilo que é essencial nos fenômenos culturais. conteúdos da cultura, a história da construção
Como então vislumbrar alguma possibilidade parece reunir condições de expor as tensões entre
de atravessar entre escolhos – determinismo histó- escalas de valor que partem de ordens distintas
rico e a pura abstração? No que tange a defesa de (as ordens do “ente” e do “dever ser”, como diz
uma alternativa, parece incontornável firmarmos Weber). Ao redigir o proêmio da obra do histo-
posição. E esta posição é em defesa da adoção de riador brasileiro de arquitetura José Lira sobre o
rumos metodológicos que nos conduzam a uma arquiteto Gregory Warchavchik (um dos princi-
abordagem historiográfica que mantenha no ho- pais responsáveis pela introdução da linguagem
rizonte a compreensão da história da construção modernista no Brasil), Adrian Gorelik explicita,
como ‘história de cultura’. em poucas linhas, o significado da posição que
Ao optarmos pela defesa de uma abordagem aqui defendemos:
historiográfica que leve em consideração as co-
“Poucas disciplinas têm maior impacto nas
nexões conceituais entre os problemas que afetam
transformações da cultura, da vida social e
a produção da arquitetura, não pretendemos de-
econômica que a arquitetura. E, no entan-
fender uma explicação essencialmente econômica
to, as versões mais habituais de sua crítica
de um fenômeno cultural como o é a arquitetura.
e sua historiografia têm se empenhado em
Mas também não estamos de acordo com uma
fazer dela um universo ensimesmado, esoté-
interpretação puramente cultural de um fenômeno
rico, perdendo toda relação complexa com o
econômico com também o é a arquitetura.
mundo. Uma dupla perda, na verdade: não
Aparece aqui, portanto, um limiar problemático
só daquilo que a arquitetura oferece como
porém fértil entre a história da arquitetura e a
marco material e simbólico na orientação
história da construção: enquanto aquela pretende
da sociedade no tempo e no espaço, mas
– pelo menos no contexto da tradição historiográ-
também da dimensão cultural que adensa
fica que vem de Pevsner, Benevolo ou Zevi – fazer
a disciplina e faz dela um termômetro tão
transitar a evolução das ideias e o surgimento de
sensível dos conflitos de sua época” (Gorelik
apud Lira, 2011:21). tal situação: já são várias as obras que apresentam
esforços evidentes na direção contrária, em boa
medida tributários da tal “guinada epistemológica”
2.2. CONCLUINDO
à qual se refere Margareth Pereira (que teria como
Vale a pena repetir, agora integralmente: fonte as obras de Marcel Poëte, Giulio Carlo Argan,
“Não existe qualquer análise científica puramente Manfredo Tafuri ou mesmo Bruno Zevi – Pereira,
‘objetiva’ da vida cultural, ou (...) dos ‘fenômenos 2015:22). Desde trabalhos como o de Carl Schorske
sociais’, que seja independente de determinadas ou Frederic J. Schwartz, sobre a Viena fin-de-siécle
perspectivas especiais e parciais, graças às quais e a Deutsche Werkbund, respectivamente, até a
estas manifestações possam ser, explícita ou impli- inusitada narrativa sobre o movimento moderno
citamente, consciente ou inconscientemente, sele- que Adrian Forty organiza em seu “Words and
cionadas, analisadas e organizadas na exposição, buildings – a vocabulary of modern architecture”,
enquanto objeto de pesquisa” (Weber, 1979:87) são exemplos bastante eloquentes de uma linhagem
Escolha, fracionamento, pontos de visagem etc. de historiadores que não se conformaram com
Trata-se, portanto, de empreender um “conhe- estruturas narrativas que acabaram estabelecen-
cimento reflexivo da realidade infinita” a partir de do modelos idealizados de arquitetura e da obra
um “fragmento limitado dessa realidade”. Só assim, arquitetônica.
segundo Weber, é possível “constituir de cada vez o Por outro lado, a história da construção, apesar
objeto da compreensão científica”. Como consequ- de ainda não estar suficientemente madura como
ência lógica, caberia indagar, portanto, quais são os campo de reflexão para discutir seus objetos a
parâmetros que determinam a escolha, o princípio partir das conexões entre os problemas que os
segundo o qual “se isola esse fragmento”. Imaginar extrapolam – isto é, em boa medida, falta-lhe
um “critério decisivo” esbarra no equívoco de se referir-se decisivamente ao modo como se arti-
tomar a parte pelo todo, elegendo o particular cularam, ao mesmo tempo, as ideias e o contexto
como índice do universal, como “típico”, como social, político, econômico e cultural que per-
comenta o alemão. mearam o processo de produção da arquitetura,
No caso da historiografia tradicional de arqui- desde os debates sobre a ordem conceptiva, as
tetura, esse deslizamento acaba acontecendo até tendências culturais vigentes, as injunções políticas
que com certa frequência: ao tomar como objetos que nortearam as escolhas realizadas, as ordens do
(1) um conjunto de edifícios, tendências e eventos trabalho investido em sua produção etc. – ainda
macroestruturais; ou (2) edifícios específicos ou assim, esse campo parece engendrar recursos
eventos particulares; ou ainda (3) trajetórias profis- imprescindíveis para um passo epistemológico
sionais – mesmo que assumidos e afirmados como importante no contexto da historiografia da ar-
fragmentos limitados da realidade – apreende-se, quitetura em termos gerais.
por exclusão, de que são esses e não outros os obje- Se o que importa são as relações das partes entre
tos que revelam “o que é e o que não é arquitetura”. si e entre as partes e o todo, parece-nos então que
Pior: o que é e o que não é uma “boa arquitetura” a história da construção oferece um campo de in-
ou “quem soube ou sabe” fazer uma “boa arqui- teração inigualável para se refletir historicamente
tetura”. O “conhecimento reflexivo da realidade sobre tais relações. A história da construção é o
infinita” parcializa-se tendenciosamente, segundo campo por onde transitam todas as dimensões de
princípios e critérios alegadamente “objetivos”. É uma obra de arquitetura: ela reúne os mais diversos
claro, contudo, que não estamos aqui a generalizar elementos concretos que emanam de uma realidade
eminentemente empírica, permitindo organizá-los história da arquitetura, tentar adensar todas essas
idealmente como um quadro de pensamento e noções no bate-pronto de uma resposta a uma
oferecendo-os à problematização de suas imanentes questão a queima-roupa.
conexões, colocando em choque os valores que lhes
são atribuídos e permitindo a construção de um 2.2. NOSSOS EXEMPLOS
“conhecimento reflexivo da realidade infinita”, de
É claro que não se trata, aqui, de estabelecer um
uma narrativa histórica que nos possibilite “conhe-
receituário, ordenado segundo a ‘posologia típico-i-
cer os fenômenos da vida segundo sua significação
deal weberiana’ – isso seria totalmente inadequado,
cultural” (Weber, 1979:92).
quase um truque mal intencionado. Parece-nos
Esse quadro “não é uma ‘hipótese’, mas pre-
contudo que algumas frentes de investigação e tra-
tende apontar o caminho para a formação de
balhos já vêm ensaiando ou promovendo pesquisas
hipóteses” (Weber, 1979:106); não é realidade
que operam segundo essa chave metodológica – o
histórica nem inclui “a realidade à maneira exem-
que nos permite registrar alguns exemplos daquilo
plar” (Weber:109). Mais que isso, tal quadro tem
que aqui defendemos.
o “significado de um conceito limite puramente
Além do já referido trabalho de Adrian Forty,
ideal, em relação ao qual se mede a realidade a
soma-se a sua “história material” do concreto ar-
fim de estabelecer o conteúdo empírico de alguns
mado, “Concrete and Culture”. Ali o autor remonta
dos seus elementos importantes, e com o qual
a trajetória do material desde sua invenção, arran-
esta é comparada” (idem)
jando em paralelo a geopolítica de sua aplicação, sua
Desse modo – e pensando praticamente no as-
significação cultural e os modos como se manifesta
sunto – para a composição do referido “quadro de
na política, nas relações de trabalho, na fotografia,
pensamento” aos modos de Weber, faz-se necessário
na literatura e no cinema. Numa outra vertente – e
reunir: documentos, fatos, iconografias, ábacos,
mais conhecidos no Brasil e na França (pelo menos
relatórios, tabelas, planos, programas, material
até o momento) – faríamos o registro aqui de dois
gráfico, comentários, informações sobre as rela-
trabalhos de Sérgio Ferro – o personagem cuja res-
ções de produção vigentes, arranjos produtivos
posta ao seu interpelante animou esse escrito: o “Le
instalados, materiais aplicados e alternativas pre-
Corbusier – le couvent de La Tourette”, publicado
teridas, histórico da encomenda (nos termos de
na França, em 1987; e “Michelangelo – arquiteto
Baxandall), tudo o que se escreveu sobre aquela
e escultor da Capela dos Médici”, primeiramente
obra ou conjunto de obras etc. etc. E, mais que
publicado também na França, em 1998, e recém
tudo, é necessário gostar-se e entender-se alguma
publicado no Brasil, agora em 2016. O primeiro,
coisa de construção.
escrito em co-autoria com Chérif Kebbal, Philippe
A construção, pela forma como aparece no
Potié e Cyrille Simonnet (todos integrantes do já
mundo, agrega em si as noções de tempo, de cultura
extinto grupo DessinChantier, sediado na École
material e imaterial vigente, da realidade econômi-
Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble)
ca, dos padrões de comportamento instituídos, de
é resultado de uma pesquisa sobre os processos
conhecimentos acumulados, de ciência, de cultura
investidos na encomenda, contratação, projeto e
tecnológica, de ordenamento político e social, das
realização das obras para a construção do Con-
tensões sociais em curso, das regras e normas de
vento de La Tourette, concebido por Le Corbusier.
conduta estabelecidas ou em disputa etc. etc. Tal-
Neste trabalho o grupo relata as idas e vindas do
vez fosse muito oneroso para Sérgio Ferro, ao ser
processo de concepção, os dilemas da construção
indagado sobre sua posição quanto ao estatuto da
e as contradições que atravessaram toda a reali-
zação da obra. Em “Michelangelo”, Sérgio elabora Por fim, uma vertente em processo e que ainda
uma cuidadosa ‘crônica’, por assim dizer, sobre as carece de espaços mais ágeis de interlocução, para
idiossincrasias do encargo encomendado pelos além dos eventos científicos, é conformada pelos
Médici, sobre a relação de Michelangelo com os inúmeros trabalhos acadêmicos que, aqui e acolá,
trabalhadores envolvidos e os poderes instituídos, vêm pontuando o cenário da historiografia da ar-
sobre a heteronomia e os limites da arquitetura e quitetura com trabalhos consistentemente alinhados
as potencialidades libertárias do mármore e da com uma interpretação cultural, no sentido de
escultura, sobre as interpretações dos teóricos e Weber, do fenômeno da construção. Poderíamos
historiadores etc. Tanto para um empreendimento afirmar, a partir de nossa experiência como ava-
como o outro, as fontes foram as mais diversas liadores desse tipo de produção acadêmica, que
possíveis: entrevistas, visitas, leitura de poemas (de vários deles chegaram muito perto desse tipo de
Michelangelo), escritos, documentos periféricos, abordagem, mas temos a impressão que derrapam
imagens de obras (de La Tourette) etc. um tanto quando adentram especificamente no
Contribuindo para consolidar o campo em universo da construção propriamente dito. Alguns
constituição, além de eventos científicos como os outros, por outro lado, avançam assertivamente
Congressos Internacionais de História da Cons- na direção que aqui delineamos. Um caso para
trução (o qual resultou na publicação Nuts & Bolts registro é o da tese de doutoramento de Raíssa
of Construction History – Culture, Technology Pereira Cintra de Oliveira, “Parque Anhembi: a
and Society) ou este Congresso Internacional de produção de um centro de exposições em São
Construção Luso-Brasileira, cabe fazer referência Paulo (1963-1972)”. Orientada justamente por José
ao encontro Industries of Architecture, realizado Lira (o autor do Warchavchik que mencionamos
em Newcastle, em 2014. Esse encontro propiciou a anteriormente), o trabalho de Raíssa Oliveira reúne
interlocução entre trabalhos muito diversificados, não só aspectos do momento político e cultural
porém todos engajados na discussão de algum em que o processo de produção desse fato urbano
aspecto afinado com a temática da produção da que é o Parque Anhembi numa metrópole como
arquitetura. A partir de abordagens mais gerais São Paulo aconteceu, como também elementos
– Politics, Techniques of Practice, Approaches importantes das injunções sociais e econômicas
& Methods e Technologies & Materials – o IoA que constrangeram o empreendimento, aspectos
parece ter contribuído (pelo menos na escala que relativos ao papel da mídia no contexto das deci-
se propunha) para avançarmos na conformação de sões de projeto e de encaminhamento das obras,
uma teoria crítica da arquitetura, principalmente elementos do processo construtivo, das tecnologias
através de abordagens críticas do problema de sua do concreto armado e de estruturas metálicas em
construção. Uma seleção dessas comunicações foi alumínio, das dinâmicas do canteiro de obras, da
editada e transformada na publicação Industries of prática profissional e do ‘estado da arte’ do cálcu-
Architecture, lançada no início deste ano de 2016, lo estrutural naquele período etc. Enfim, Raíssa
inaugurando a série Critiques: Critical Studies in Oliveira consegue desenhar, perante nossos olhos,
Architectural Humanities, um projeto da Architec- uma história da construção que se apresenta efeti-
tural Humanities Research Association – AHRA. vamente como história de cultura.
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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versidade de São Paulo.
RESUMO
Este artigo sugere a reflexão de aspectos pouco explorados relacionados ao desenvolvimento da cultu-
ra arquitetônica preservacionista no Brasil a partir dos anos 1970 decorrente do compartilhamento
cultural e científico de metodologias italianas de pesquisa, preservação e tratamento conservativo da
arquitetura histórica. Neste período, em que cresceram a crítica e os estudos universitários no âmbito
da compreensão das técnicas, processos, procedimentos e resultantes materiais dessas construções em
território brasileiro, é pouco ressaltado o reconhecimento e o encorajamento à formação de quadros
técnicos especializados no país e no exterior, em especial na Itália, com a presença de jovens arquite-
tos bolsistas. O contato com as discussões italianas sustentadas naqueles anos, ainda que de distintas
filiações e pouco uniforme, circuncreveram significativas mudanças para a preservação dos bens cultu-
rais no Brasil determinando uma mais precisa aproximação à matéria das construções da arquitetura
tradicional luso-brasileira. Com base nestas premissas e nas recentes definições epistemológicas da
História da Construção, com vistas à ampliação dos nexos disciplinares que atualmente a configuram
no Brasil, procura-se relevar o papel dos cursos de formação especializada no exterior, com grande
afluxo de profissionais em busca de qualificaçao técnica em restauro de monumentos visando novas
abordagens de pesquisa e intervenção nos sistemas construtivos luso-brasileiros.
1. INTRODUÇÃO
A História da Construção é campo recente que patrimônio histórico-arquitetônico que exigem,
tem oferecido perspectivas inovadoras sobre o no quadro disciplinar da Restauração Arquite-
estudo das técnicas construtivas tradicionais, a tônica, o estudo crítico da matéria edificada e
investigação dos processos históricos de fabricação a conservação de seus exemplares de interesse
da arquitetura edificada e os meios de sistemati- enquanto documentos históricos de si mesmos.
zação e transmissão desses saberes. As pesquisas De fato, História da Construção e Restauração
dedicadas ao campo vêm crescendo substan- Arquitetônica podem ser consideradas disciplinas
cialmente nos últimos anos, também devido a de mútua colaboração transversal, que buscam
demandas contemporâneas pela preservação do “colocar em relação o conhecimento multidisciplinar
monumentos visando adquirir novas abordagens Desse modo, as primeiras ações governamentais
de pesquisa e intervenção nos sistemas constru- de preservação física dos monumentos históricos
tivos brasileiros. nacionais, ainda que consideradas demasiada-
mente “empíricas”, contribuíram para as primeiras
2. A PRESERVAÇÃO NO BRASIL ENTRE A teses sobre a história da arquitetura brasileira3.
HISTÓRIA E O PROJETO Por meio da matriz dos problemas relacionados à
intervenção, subjazia o estudo das técnicas cons-
O problema da preservação arquitetônica no
trutivas e a reelaboração dos modelos históricos
Brasil tem origem no período de eclosão nos
oitocentistas vigentes, aproximando-se dados
grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro
de natureza físico-material a um novo modelo
das vanguardas modernas no início do século
interpretativo da herança arquitetônica brasileira
XX, com o engajamento de artistas contra as
– ainda que embrionária e imprecisa. Sobretudo,
crescentes correntes historicistas na arte e na
o conhecimento histórico da arquitetura se as-
arquitetura brasileiras. Diferentemente de suas
sociava, em diversas ocasiões, como orientação
vertentes européias, as vanguardas modernas
de soluções programáticas, materiais, espaciais e
brasileiras buscavam a síntese dos parâmetros de
socioculturais, para delinear um repertório formal,
uma nova forma de produção artística, observando
visual e metodológico também para a arquitetura
a singularidade da arquitetura colonial brasileira,
moderna. Cabe lembrar, como exemplo maior, a
construída em terra ou “pedra e cal” e distribuída
figura central de Lucio Costa: diretor da Seção de
no territorio nacional com grande adaptabilidade.
Crítica e Tombamento do SPHAN de 1937 a 1975,
Reconhecer era urgente. A chamada “fase he-
sua erudição sobre a arquitetura tradicional –
róica” do SPHAN assumiu a responsabilidade
muitas vezes refletida em seus pareceres – tinham
de organizar expedições, viagens e comissões
direto impacto na sua obra construída e puderam
técnicas para a identificação das características
estimular a produção de diversos arquitetos ao
do acervo patrimonial brasileiro. O empenho de
longo do tempo.
profissionais e intelectuais para a identificação de
tipos, modelos, técnicas e padrões construtivos da
A “HISTÓRIA DA TÉCNICA” EM SÃO
arquitetura colonial permitiu o aparecimento de PAULO
estudos históricos pioneiros numa época em que
grupos de pesquisas acadêmicas ainda não exis- A partir dos anos 1960, a valoração restritiva
tiam2. No entanto, percebia-se também que havia dos exemplares da história da arquitetura nacional
muito por fazer. A constatação da fragilidade de recebem suas primeiras críticas. Por um lado, no
muitos exemplares propiciou a execução imediata interior do próprio SPHAN, as características das
de diversas intervenções para a manutenção física operações físicas no patrimônio histórico passa-
de estruturas de grande interesse. Nas palavras de ram a ser gradativamente associadas à falsificação
Nestor Goulart Reis Filho, “quando o patrimônio do original e a escolhas elitistas4; por outro, co-
foi criado com o Iphan, a visão era, em princípio, 3
Basta verificar, entre outros exemplos, a abrengência dos temas
técnica. Os arquitetos do Iphan eram tão radicais dos artigos publicados na Revista do Patrimônio Histórico e Artís-
nisso que nunca admitiram a presença de historia- tico Nacional, editada pelo SPHAN em 1937.
dores.” (Reis Filho, 2015:267). 4
Recentemente tem-se articulado a revisão desses parâmetros, seja
pela qualificação da “reconstrução” no leque das possibilidades de
2
Para um trabalho bastante completo sobre a gênese cultural e ins- intervenção aceitas pela Restauração em casos específicos, seja pelo
titucional da preservação no Brasil e a atuação de seus principais reconhecimento do pioneirismo do SPHAN nos anos 1930 em an-
personagens, ver FONSECA, 1997. tecipar critérios de singularidade do monumento histórico – em es-
Figura 1 – A construção do ideário nacional e as ações de recuperação experimental. Nas imagens à esquerda, capa da primeira
Revista do SPHAN (1937) e desenhos-síntese sobre a evolução da casa brasileira por Lucio Costa, publicados no artigo
“Documentação Necessária” (1938); à direita, o exemplo do Sítio Santo António, em São Paulo, comprado por Mário de Andrade e
doado por testamento à instituição para sua recuperação em 1945. Acervo Arquivo SPHAN.
meçam finalmente a se desenvolver também nas das situações próprias ou imprevistas que
décadas seguintes estudos nas universidades que o colonizador teve que enfrentar (...) Vi-
considerassem, mesmo na priorização de conjun- sa-se também criticar a herança colonial,
tos, critérios que substituíssem a caracterização para a constituição das situações presen-
formal-monumental da arquitetura vernacular temente enfrentadas. (Gama, 1989:165) 5
brasileira.
Gama sinalizava um interesse mais amplo pela
Como parte dessa tendência, destacava-se em
arquitetura tradicional, retomando, portanto, um
São Paulo o amplo campo da “História da Técnica”,
tema presente nos primeiros estudos do SPHAN
que crescia e se articulava cientificamente para
que havia se perdido no processualismo cotidiano
o estudo dos meios de produção da arquitetura
do órgão. Partindo da conjunção entre pesquisa
histórica. Seu principal nome era Ruy Gama, ar-
material e estudo filológico, seus problemas eram
quiteto e professor da Universidade de São Paulo
selecionados através dos argumentos fundamen-
que criou a disciplina de mesmo nome na Facul-
tados pelas transformações contemporâneas da
dade de Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP) em
disciplina da História e pelos novos parâmetros
1973. Seus objetivos eram “explicitar as relações
da citada Cultura Material. Desse modo, tinha
que se estabelecem entre os intrumentos criados
as bases para assumir o viés crítico à “herança”
pelo homem, o meio ambiente e suas aspirações
portuguesa – não mais nacional, mas colonizado-
socialmente configuradas ao longo da história ma-
ra – e propiciar de modo autônomo a discussão
nifesta nas diversas formas da ‘cultura material’”
cultural do presente6. Ainda nas palavras de
(Gama, 1989:160) e, em sua disciplina aplicada
Ruy Gama,
ao Brasil, defendia-se
inventariar os instrumentos de atuação 5
Programa das disciplinas “AUH406 – História da Técnica” e
que contava o colonizador para a ocupa- “AUH304 – História da Técnica no Brasil”, em suas edições de 1986
e 1985, respectivamente.
ção da América Portuguesa, a partir do
século XVI, e as adaptações que esses ins- 6
Essa dimensão foi acentuada pelos estudos específicos de Flavio
Motta (também professor da FAUUSP) e do próprio Ruy Gama de-
trumentos tiveram que sofrer por efeito dicados aos seus campos de interesse – Motta ao Art Nouveau pau-
lista e Gama à já citada manufatura colonial brasileira. Buscava-se
pecial aos sítios urbanos tradicionais portugueses no Brasil – como a compreender o sentido tradicional da palavra tecnologia diante
parâmetros que só viriam a se consolidar internacionalmente déca- do significado contemporâneo da palavra produção. Cf. GAMA,
das depois com a Carta de Veneza em 1964. 1990.
Figura 2 – Fazenda Pau d’Alho, São Paulo. À esquerda, estudo programático de Luiz Saia visando a reconstrução do edifício
construído em taipa de pilão. À direita, desenhos de Antonio Luiz Dias de Andrade para a caracterização das técnicas construtivas e
identificação histórica do conjunto. (ANDRADE, 1993:2-7).
nuel Viollet-Le-Duc, até então desconhecido do nos estudos apresentados sobre os projetos de
grande público no país. restauração de Luiz Saia, mesmo reconhecendo
No âmbito da História da Técnica, para Andra- que a prefiguração formal do passado colonial
de, Viollet-Le-Duc era um expoente representante justificou, de forma crescente, a constituição
da corrente racionalista francesa no século XIX, de falsos históricos, para Andrade, Saia fazia-o
motivo pelo qual deteve grande parte de sua tese como um problema de projeto, que envolvia,
na análise do arquiteto e dos argumentos que em canteiro, investigação histórica, material e
fundamentaram um método de estudo da ar- formal como determinante direta das diretrizes
quitetura histórica associada à racionalização da de intervenção. Fazia-o, portanto, por convicção
construção e às premissas desenvolvidas sobre a de ofício. O legado dessas obras, ainda que por
preservação dos monumentos. Sobre Viollet-Le- vezes polêmicas, conduziu ao reconhecimento
-Duc, Andrade afirmou: primordial do papel das técnicas construtivas
na identidade arquitetônica paulista e fomentou
[...] como restaurador, não obstante o cor-
reciprocamente novas pesquisas sobre a história
pus teórico que se empenhou em instituir,
da arquitetura tradicional brasileira.
Viollet-Le-Duc foi eminentemente arqui-
Em suma, a crítica ao SPHAN desses primeiros
teto [...] imprimiu às suas obras a caracte-
anos “heróicos”, portanto, deveria ser conside-
rística de quem se debruça sobre o desafio
rada em dois pontos principais: por um lado a
de um projeto, não dispensando as condi-
valorização do engajamento, do pioneirismo e
ções de liberdade inerentes ao exercício da
da ação efetiva que recuperou muitos edifícios
criação. No horizonte de suas iniciativas
do seu desparecimento; por outra, as dificulda-
encontrava-se um valor histórico deriva-
des operativas que persistiram por décadas no
do de suas interpretações dos fenômenos
interior da política preservacionista brasileira
arquitetônicos. (Andrade, 1993, p. 100)
e que havia dado poucos passos em direção a
Sob esta análise do arquiteto francês, Andrade uma prática científica sistemática. A tendência
advertiu a importância da experiência aplicada à reconstrução era o caminho mais fácil: não se
nas obras de restauração conduzidas por Saia no sabia consolidar as estruturas tradicionais; de fato,
Estado de São Paulo e, sobretudo, o engajamento diante do reaparelhamento formal, tratavam-se
do SPHAN em questões preservacionistas que ti- de questões importantes, porém secundárias.
nham difícil ou nenhuma repercussão. Com base Quando o estudo das construções no âmbito
das formulações da História da Técnica torna-se Itália com uma particular colocação internacional.
importante, buscou-se avidamente pelo aperfei- É na década de 1970 que os italianos consolidam
çoamento metodológico do projeto de restaura- as experiências no pós-guerra e redefinem o cará-
ção de matriz conservativa, em consolidação no ter científico dos novos especialistas necessários
ambiente europeu. para a reconstrução e manutenção do seu acervo
arquitetônico. Indo de encontro à solução das
3. A CULTURA ITALIANA DA dificuldades operativas brasileiras, aos arquitetos
PRESERVAÇÃO NO CASO BRASILEIRO interessados na Restauração Arquitetônica, o
A conjuntura que se configurou nos últimos 40 caráter eminentemente tecnológico dos cursos
anos no Brasil tem demonstrado uma efetiva am- de especialização italianos passam a definir uma
pliação pelo interesse preservacionista. Criaram-se intensa “rede receptora” (Truzzi, 2008:210) vin-
novos cursos, novas disciplinas de graduação e pós- culada ao ensino especializado também ao longo
-graduação, foram orientados trabalhos e elabora- dos anos 1980.
das teses. No entanto, tal ampliação não se justifica Deve-se acrescentar que auxiliava essa atração
sozinha e seria muito simplista supor que apenas o fato de que a tradição italiana – ao lado também
as iniciativas que até agora temos apresentado da tradição francesa – já fazia parte de um ide-
teriam sido capazes individualmente de configurar ário quase mítico construído pela historiografia
políticas mais eficazes de condução conservativa da arquitetura desde o século XIX. Era o lugar
no tratamento do patrimônio histórico brasileiro. “onde se ia estudar os monumentos”, num quadro
Podemos afirmar que o mercado também tinha de interesse que abrangia também a erudição da
um papel preponderante na predisposição e na tratadística. Além disso, e especialmente em São
confirmação destas tendências, por vezes em rea- Paulo, a cultura italiana no Brasil sempre foi muito
ção à existência ou ausência de políticas públicas intensa11, também em razão da grande imigra-
determinando o perfil das próximas gerações de ção ocorrida ainda no final do século XIX12, que
arquitetos. Ou seja, se hoje existe nas universidades trouxe consigo hábitos de enraizamento popular
a afirmação da preservação no leque das possi- e a tradução destes em novos modos de morar e
bilidades de atuação profissional, foram também construir. No entanto, conforme apresentamos
muitas iniciativas individuais que permitiram preliminarmente a seguir, é muito mais pelo
construir uma cultura da preservação em larga interesse italiano na questão, estimulado pelas
escala, ainda que insipiente. Buscando fazer frente suas políticas externa e interna no pós-guerra,
a essas demandas instigadas nas escolas e nos ór- que podemos detectar os indícios para o afluxo
gãos de preservação, mas enfrentando a ausência de arquitetos brasileiros em território europeu.
de cursos mais amplos no Brasil, essa formação 11
Cabe citar, por exemplo, além da presença de artistas italianos
acabou ocorrendo, inevitavelmente, no exterior. emigrados como Pennacchi, Volpi, Rebolo, Zanini, entre outros, a
Embora se identifiquem diversos destinos para a valorização da arte italiana desempenhada pelo crítico Pietro Ma-
ria Bardi nos anos 1950 e que incluía a institucionalização do Mu-
formação de arquitetos no campo da conservação seu de Arte de São Paulo e o relacionamento com industriais como
e da restauração10 no período, podemos assinalar a Francesco Matarazzo para a sua divulgação no país.
10
É merecedora de atenção a participação de arquitetos brasileiros 12
Conforme dados estatísticos de entrada no país do IBGE, no total,
em cursos de especialização, mestrado e doutorado na Espanha, foram mais de 1 milhão os imigrantes italianos entre 1884 e 1903
França e Estados Unidos. que se estabeleceram em São Paulo e nos estados do sul do país.
em 1971.
13
Referência à consulta popular sobre a forma institucional do Es-
tado, realizado em 2 de junho de 1946, no qual a Itália tornou-se 16
Estrutura educacional voltada para a pesquisa aprofundada e o
uma República. ensino, com origem similar às Escolas Normais.
seus primeiros diretores – Guglielmo De Angelis italiano no “Corso di Restauro dei Monumenti
D’Ossat em Roma e Roberto Pane em Nápoles e Centri Storici”, sediado na cidade de Flo-
– para desenvolver respectivamente posturas rença e pioneiro pelo formato didático e pelo
preservacionistas voltadas à formação de corpos público que se visava recepcionar: arquitetos,
técnicos para o Estado. Na produção monográfica historiadores, arqueólogos e historiadores da
para a obtenção do título de especialista, enfati- arte estrangeiros.
zava-se a construção de um perfil profissional de Realizado por iniciativa do Centro Studi per
alto nível. Isto também permitia às universidades il Restauro dei Monumenti e Centri Storici di
manterem-se como local privilegiado para o deba- Firenze com apoio do Collegio degli Ingegneri
te metodológico e as trocas de experiências entre della Toscana e, mais tarde também com apoio
pesquisadores no cenário italiano17. do Centro per la Cooperazione Tecnica Interna-
Em síntese, o fundamento dos cursos era o de zionale (CECTI)19, agência criada e integrada ao
estender o aprendizado em áreas da Arquitetura Dipartimento per la Cooperazione allo Sviluppo
e do Urbanismo aplicada à intervenção nos bens (DCS) do Ministero degli Affari Esteri (MAE)
culturais. Acentuavam-se os estudos teóricos em em Roma, tratava-se de um curso que se inte-
Teoria e História da Restauração – já definida grava uma politica mais global de formação
enquanto disciplina autônoma – e, no caso de tecnológica20. A amplitude de uma “agência para
Nápoles, destacavam-se também as disciplinas o desenvolvimento”, voltada aos países emer-
Urbanística dos Centros Históricos18 e Técnicas gentes como um braço ativo da política externa
de Consolidação de Estruturas, meios de se siste- italiana, tinha como finalidade “a transferência
matizar o conhecimento e procedimentos para o e a adaptação do mais avançado know-how
restauro de estruturas urbanas que se conciliavam e à formação profissional de mão-de-obra”21,
às demais disciplinas práticas, como Restauro de associada ao estímulo de iniciativas locais de
Pinturas, Afrescos e Mosaicos, Noções Jurídicas e excelência nas cidades italianas.
“Cantieristica” – esta última, clara definidora do No campo da Restauração, Florença já era
papel técnico-profissionalizante para o trabalho uma cidade propícia. O trágico aluvião de 1966
cotidiano nos órgãos estatais ou nos trabalhos já havia permitido a experimentação de proce-
em campo. dimentos científicos inovadores para o restauro
de obras de arte, apresentados na mostra Firenze
UM CURSO PARA ESTRANGEIROS EM Restaura, em 1972. E, na universidade, Piero
FLORENÇA Sanpaolesi era professor titular da cátedra de
restauro de monumentos e diretor do Istituto
A avaliação do trânsito dos estudantes destes
per il Restauro dei Monumenti, criado por ele
cursos é ainda trabalho que está em desenvol-
em 1960 na mesma instituição22. Devido à sua
vimento. No entanto, tem sido possível reunir
dados mais consistentes sobre a forte presença 19
De acordo com TAMPONE, 2015, o curso teve turmas anuais de
de arquitetos brasileiros bolsistas do governo 1977 a 1986, sendo que apenas a partir de 1981 foi incorporado
ao CECTI.
17
Um trabalho de pesquisa mais aprofundado sobre as similari- 20
O CECTI tinha em seus quadros didáticos cursos destinados à
dades e distanciamentos entre tais filiações e suas resultantes na formação tecnológica em vários setores considerados estratégicos,
construção didática destes cursos ainda estão em desenvolvimento. da agricultura ao petróleo. Cf. CENTRO..., 1986.
18
Destaca-se a atuação de Roberto Pane na afirmação desta disci- 21
Cf. CENTRO..., 1986. Texto introdutório de Ugo Leone.
plina, também pela participação ativa no texto da Carta de Veneza.
Cf. PANE, 2008. 22
De acordo com Andrea Pane, Sanpaolesi ingressou na carreira
Figura 3 – Exemplos de trabalhos monográficos finais do Curso de Restauro de Monumentos e Centros Históricos do CECTI. À
esquerda, edição especial do Bollettino degli Ingegneri, de 1984; À direita, desenhos de estudo estrutural e de estado de conservação
da Piramide delle Cascine – grupo Alejandro Fuentes (Guatemala), Bernardo Sampaio (Brasil), Carlos Lopes (Brasil), Maria Wolff
(Colombia), Cristina Peixoto (Brasil) – e de estudo estrutural e material da Porta a San Giorgio – grupo Louis Rios (Bolivia), José
Zamora (Costa Rica) e Edwin Naula (Equador). (Balenci; Trotta, 1984).
experiência profissional anterior, refletida nas a nossa abordagem era muito diferente da-
primeiras teses sobre a construção da cúpula quelas que existiam nas universidades ita-
da Basílica de Santa Maria del Fiore e as práti- lianas. [Diferíamos] no método projetual.
cas de recuperação como superintendente dos E projetual arquitetônico. De Sanpaolesi,
monumentos em Pisa durante a guerra, Sanpa- tomávamos o conceito de projeto de res-
olesi defendia o projeto de restauração como tauro e fazíamos os estudantes observarem
uma associação – do arquiteto – entre pesquisa os monumentos sob o aspecto histórico e
histórico-documental e percepção crítica da técnico. E, ainda, éramos mais próximos
materialidade das construção, determinado pelo aos estudantes... Passávamos talvez todos
exato reconhecimento do aparelho murário. os dias com eles. O curso durava 4, 5 me-
Apesar de hoje tais ações de caráter conservativo ses e os cursos das outras universidades
parecerem óbvias, tratava-se de uma novidade 2 anos. Era mais prático, mais intensivo e
associar o projeto de restauração somente como interessante aos estrangeiros. E, claro, era
resultante exclusiva da manutenção física e do eu quem escolhia os professores, os profes-
reconhecimento construtivo dos edifícios23. sores visitantes, fora das estruturas uni-
Para Gennaro Tampone, então presidente do versitárias. Era, na verdade, um experi-
Collegio degli Ingegneri della Toscana e organiza- mento. (Tampone, 2015, tradução nossa)
dor do curso,
Apesar dessa possibilidade, a maioria dos
professores selecionados era da Universidade
de Florença, muitos devedores da linha teórica
universitária em Florença contemporaneamente a D’Ossat em de Sanpaolesi – especialmente nas disciplinas
Roma, sendo estes os primeiros professores de cátedras específicas principais. Sem perder excelência e concentran-
em Restauração Arquitetônica na Itália, já como discipilina autô-
noma. Cf. PANE, 2008. do atividades em pouco tempo – além dos 4
meses de aulas diárias, adicionavam-se 3 meses
23
Cf. Sanpaolesi, 1972.
Figura 4 – Exemplos de estudos do Seminário de Arquitetura Tradicionais e Populares do “Corso di Restauro dei Monumenti e Centri
Storici” do CECTI, envolvendo a descrição e análise de técnicas construtivas a partir de espectros de organização social e uso dos
materiais entre várias culturas. Desenhos de Günther Suhrcke (Chile), Bernardo Sampaio (Brasil), José Ribeiro (Brasil) e Mohamed
Ahmed (Filipinas). (AGO, 1984).
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RESUMO
La visión de la obra de Távora como objeto construido. En paralelo a su historia vital, la síntesis de
elementos opuestos a través de la construcción: la tradición y la modernidad, la baja tecnología y la
tecnología mediada, la personalidad propia y la cultura de masas, Europa y el Atlántico, la escala rural
y la urbana.
Esta influencias y su visión antropológica se explican a través de la tectónica tradicional, como mecanismo
genuino de creación de formas, solventar necesidades y asentarse en el territorio. El hombre y el medio.
Se analizan dos de las obras más importantes de su obra inicial bajo estas premisas: el mercado de Vila
da Feira y el pabellón de tenis de la Quinta de Conceiçao.
1. EL OBJETO CONSTRUIDO Y EL
EXISTENCIALISMO DE POSGUERRA
El análisis de la obra de Távora como objeto o del funcionalismo como vías hacia un mundo
construido permite una lectura que el realismo mejor. Sólo era necesario atender de nuevo a las
de mediados de siglo XX ha obviado por estar variables de la tradición, que no copiarla: el clima,
relacionada con la Bauhaus. Utensilio, artefacto, la topografía y las necesidades funcionales.
objeto, términos asociados al sistema compositivo El nuevo existencialismo nos retrotraía al ma‑
por partes de las escuelas alemana y soviética que terialismo del XIX. El redescubrimiento de la
iban asociados al sistema constructivo. tectónica constructiva y el catálogo de tipos que
De la visión materialista a la visión antropoló‑ se deriva de las necesidades del hombre fue el
gica de postguerra hay un único paso: el contacto revulsivo que ofrecieron Semper y Bötticher a
con la construcción tradicional, con las formas la arquitectura del XX. El zweck alemán, que no
derivadas del cumplimiento estricto de la función incluye sólo función sino también meta y así
y del sitio a través de la técnica. integra función y representación.
La modernidad representada por figuras como Mucho se ha hablado del giro vernáculo de Le
Le Corbusier o Marcel Breuer realizaron el viraje Corbusier, tal vez más discreto fue el de Breuer
de una forma natural por agotamiento del con‑ y acorde con el caso de Távora. Breuer pasó de
vencimiento de los veinte de la machine à vivre componer conscientemente objetos a diferentes
escalas desde la tectónica abstracta de la Bauhaus icono, el objeto casa. Si las formas tradicionales
a construir casas‑tipo asumiendo el valor de fondo eran verdaderas era porque se derivaban de las
de la construcción tradicional en madera y el del condiciones impuestas por el material en base a
paisaje americano. Siempre una contraposición su función, esta arquitectura tradicional debía
de elementos opuestos. unirse al movimiento moderno sin miedo a per‑
Távora parte de la otra orilla y además no parece der su carácter. Semper de nuevo, materialismo
consciente de la calidad de objeto construido de antropológico.
gran parte de su obra. La dicotomía de Breuer
La casa tradicional nos proporcionará im‑
se establece entre modernidad y las posibilida‑
portantes lecciones ya que es más funcio‑
des de la construcción tradicional en madera,
nal y menos fantasiosa por lo que es más
recién descubierta. En Távora el viaje hacia una
cercana a nuestras intenciones con las
arquitectura moderna enraizada que supere la
que surgirá una nueva arquitectura por‑
repetición tanto de los tipos formales del Estilo
tuguesa sin miedo a perder su identidad.
Internacional como de los tipos funcionales de
la construcción tradicional se realiza en sentido Ahí queda todo expuesto, el rechazo de la vieja
inverso. Como siempre una dicotomía, en este casa portuguesa a la que se adhería el régimen
caso el aislamiento nacional del Estado Novo y una por considerarla garante del ser portugués y la
educación conservadora en el seno de una familia repetición acrítica de formalismos del Estilo Inter‑
de la nobleza del Norte Minhoto frente a los aires nacional. También la inauguración de una tercera
de modernidad que Carlos Ramos imprimía en vía basada en la búsqueda de una arquitectura
la todavía Escuela de Bellas Artes de Oporto, portuguesa moderna desde los valores inalterables
combinación del beaux‑arts y el racionalismo, lo de la arquitectura tradicional: el hombre y la tierra.
local y lo internacional.
En ese ambiente contradictorio, Távora entra 2. OBJETO CONSTRUIDO EN LA OBRA
en contacto con la arquitectura de Le Corbusier TEMPRANA DE TÁVORA
y el progresismo brasileño a través del libro Bra‑
En 1952 Fernando Távora, después de años de
zil Builds. En lo que algunos llaman saudade,
docencia en la Escuela de Bellas Artes, presenta
Távora no se lanza totalmente a los brazos de las
su Proyecto Fin de Carrera: A casa sobre o mar.
nuevas propuestas sino que establece una postura
En ella plasma su influencia de un Le Corbusier,
crítica, renegada, intermedia entre la repetición
por aquel tiempo enfrascado en las casas Jaoul,
manierista de modelos históricos representada
pero también de la arquitectura brasileña bañada
por Cassiano Branco, António Varela o Raul Lino
por ese mismo Atlántico que les separa.
–asociados al aparato de Estado de la república‑
Távora ya formaba parte de la sección portu‑
y los jóvenes arquitectos lecorbusieranos como
guesa del Sindicato Nacional dos Arquitectos
Teotónio Pereira.
encabezada por Viana de Lima y había entrado
En 1940 la Exposición del Mundo Portugués
en contacto con las nuevas figuras surgidas del
evidenció esta división y motivó el artículo O
existencialismo de la posguerra como los Smithson
problema de la casa portuguesa, cinco años des‑
o van Eyck que desembarcaron en el Ciam 8 de
pués, donde refleja esa identificación malsana
Hoddeson en 1951, también con un nuevo Le
del régimen con la casa barroca, una mentira
Corbusier y con Kenzo Tange, Coderch o Gar‑
arquitectónica aceptada por una sociedad enfer‑
della como nuevos contactos. En 1950 Bruno
ma. Y aborda la crítica arquitectónica desde el
Zévi había publicado su Storia dell’architettura
moderna, también la obra de Wright se estaba La investigación de las fuentes de la tradición era
poniendo nuevamente en valor. Y desde 1943 el del agrado del régimen pero la visión de Távora
libro de Brazil builds, publicado en ocasión de y sus compañeros pretendía objetivos más abs‑
la exposición del MOMA del mismo nombre, tractos: deducir los valores inalterables a partir
muestra una forma de construir que con todos de los cuales surgió dicha tradición. Estos valores
sus riesgos supone un caso particular del Estilo eran el clima, la luz, los materiales y los modos
Internacional más allá de mero localismo, con de vida o lo que es lo mismo, la función. Esta
carácter e identidad nacionales. orientación realista tenía mucho que ver con lo
Esa maqueta de casa costera, ese objeto a es‑ que se cocía en los últimos CIAMS, con esa visión
cala, tenía el mismo valor que construido, si no antropológica de van Eyck o la sensibilidad hacia
más, pero a pesar de que de una primera lectura una nueva forma de ocupación del territorio que
se podría extraer una precipitada adhesión al se desarrolló en Hoddeson.
racionalismo de Le Corbusier o a la Casa sul Lago El tratamiento de las seis zonas del país era simi‑
de Terragni, estos primeros contactos ya habían lar pero heterogéneo. La zona 1 correspondiente al
introducido cambios de alcance. Minho fue desarrollada por Távora, Rui Pimentel
Los breves muros de mampostería podrían y Antonio Meneres. Al igual que el resto de zonas,
remitir a Breuer. Pero los esbozos estructurales tal vez de forma más acusada, la secuencia de apro‑
–prácticamente únicos en su trabajo proyectual‑ ximación era –en este orden‑ geografía, historia,
nos hablan de l’Unité d’Habitation, de la Unittà ocupación del territorio, materiales tradicionales,
Horizontale de Adalberto Libera, de los hormigo‑ tecnologías derivadas, elementos constructivos y
nes entablillados de Tange aún por desarrollar y la finalmente tipos de repetición. Una visión realista,
sensualidad de las diagonales y el color brasileños. dicen que antropológica, pero no reñida con el
Sorpresivamente a los voladizos de hormigón de materialismo más genuino.
la Casa de la Cascada de Wright, también sobre El Inquérito se publicó finalmente en 1955 tras
la naturaleza indómita. años de investigación y recopilación. Pero ya en
Simultáneamente a su Casa sobre o mar, Távora 1952 se lee en A casa sobre o mar. Los tipos mi‑
estaba inmerso en la experiencia del Inquérito de nhotos con su construcción granítica son objetos
Arquitectura Popular em Portugal que arrancó en construidos tan puros como la casa del acantilado.
1947 desde las páginas de la revista lisboeta AR‑ Se estrena así una forma de hacer que comparte
QUITECTURA promovido por Keil do Amaral. con Coderch, Tange o Gardella: el empleo de tipos
de la tradición que se depuran hacia la abstracción lizadas con costeros, peldaños de piedra maciza,
mediante el empleo indistinto de un catálogo de verandas de madera, espigueiros elevados sobre
elementos constructivos de la modernidad y la pies derechos de piedra, sequeiros acotados con
tradición con énfasis en la tecnología del material. celosías de madera o piedra –cerámicas en zonas
Y aquí la tectónica tiene un peso esencial, fuera más meridionales‑, alpendres estucados en cal...
del ámbito establecido por Frampton, como ley Un catálogo de elementos constructivos ligados
única y racional que rige la disposición de los a la tecnología del material cuya combinación
elementos constructivos y establece las relaciones creaba tipos claramente diferenciables por la
entre los mismos. El mantenimiento de la tectó‑ población y válidos tanto en su función como
nica constructiva tradicional es la que permite el en su representación.
enraizamiento de estas arquitecturas que se han El catálogo de elementos constructivos que
querido llamar regionalistas o vernáculas y evita se extrae de la modernidad es infinito, siempre
que caigan en la banalidad precisamente por su tamizado a través del tipo de la casa portuguesa
carácter racional. o el mercado, el alpendre o el humilde lavadero.
Es importante el eco de Le Corbusier pero igual‑
TÁVORA. TECTÓNICA, TIPO Y mente el que recoge todas sus experiencias en
ELEMENTOS CONSTRUCTIVOS el extranjero desde los CIAMs hasta el viaje de
estudios en el que disfrutó de un extenso periplo
Las fuentes de la tradición eran la construcción
estadounidense y sus principales escuelas, México,
tradicional minhota: pilares y vigas de granito
Japón, Pakistán, Líbano, Egipto y Grecia.
con junta en seco, mamposterias y sillerías rea‑
Pero una influencia iniciática y de un atrac‑ tación. Tipos difusos con elementos constructivos
tivo atronador por su progresismo fue Brasil. sólidos: entramados con sabor colonial en el
Su fuerza exótica de crecimiento imparable era cierre de fachadas, voladizos y pasarelas exte‑
transigida por el Estado Novo en una admiración riores a modo de verandas, celosías cerámicas
similar al orgullo del padre por el hijo brillante en las circulaciones públicas, quebrasoles fijos
aunque despegado. Y así el libro Brazil builds, y moviles1... La rotundidad de los elementos
publicado en 1943, pone en escena la fuerza estructurales que permitían elevar las grandes
del Atlántico, las selvas y flora autóctonas, las moles edificatorias sobre el paisaje e intercalar
lagunas sinuosas, que se traducían en una ar‑ vacíos que liberaban vistas, brisa y vegetación a
quitectura abierta, fruto del Estilo Internacional cota cero y alturas intermedias: pilotis, pilares en
pero independiente. Plagada de un catálogo de V, pescantes, diagonales en rampas y escaleras,
elementos constructivos férreos, que con el tiem‑ generatrices curvas...
po devinieron en manieristas marcas de estilo, Estos elementos que conformaban una tectónica
pero que en ese tiempo eran la orgullosa fuerza brasileña característica se complementaban con
expresiva del futuro prometedor del corazón elementos de representación: azulejos vidriados,
de la selva. Un Manhattan, un Chicago entre el tableros y lamas azules como el cielo y el océano,
océano y el Amazonas. También aquí se explicita
la tierra y el clima como las dos grandes variables 1
En 1.936 Le Corbusier participó como arquitecto consejero en
y son ellas las que modifican los tipos formales cuestiones de solamiento y estructura en el Palacio del Ministerio
de Educación Nacional y Salud Pública de Río de Janeiro, obra de
del Estilo Internacional para dar respuesta a la Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Reidy, Carlos Leao, Jorge
necesidad, tanto a la función como a la represen‑ Moreira y Ernani Vasconcelos. Los azules quebrasoles por tanto
anticipaban los brise-soleils de la misma mano.
los colores también de la monárquica bandera ram em muitas geraçoes. Faí que na verda‑
portuguesa. deira arquitectura tudo tenha una razão e
a presença e a forma de qualquer elemento
3. OBJETO CONSTRUIDO 1: MERCADO possam justificar‑se pelo serviço, digamos,
DE VILA DA FEIRA, 1953‑59 que ele presta no conjunto de adificação.
En paralelo a su trabajo en el Inquérito y en Geológicamente, la región minhota se caracte‑
su actividad en los CIAMs, Távora construye un riza por el predominio silíceo, fundamentalmente
lugar público desde la modernidad respetando la el granito y la pizarra, siendo éstos los principa‑
tectónica y métodos de adaptación a la topografía les materiales de construcción. En los poblados
tradicionales. Se ha de señalar que el método concentrados, las calles solían estar talladas en la
proyectual basado en objetos construidos rotun‑ propia roca con lo que la vivienda granítica se lee
dos no es en él consciente. Él busca una suave y en continuidad con el suelo. Debido al protago‑
anónima continuidad con la tradición, pero ésta nismo de la topografía los accesos y los recorridos
es la que operaba independiente a ese nivel antes juegan un papel importante por lo necesario pero
de que irrumpiera la modernidad. también por lo sugerente.
En una zona prácticamente litoral el clima es
Un estilo nasce do povo e da terra com a
marcadamente atlántico, húmedo, brumoso, con
naturalidade de una flor, e povo e a terra
luz cambiante.
encontram‑se presentes no estilo, que cria‑
El espacio previsto para el nuevo mercado no tañosas: una plataforma horizontal que arranca
se reservó en un lugar con tradición en la loca‑ del punto más elevado del terreno y se transforma
lidad. Como no se contaba con una localización en un potente basamento pétreo a medida que
privilegiada característica de un centro público, avanzamos por la acera.
el proceso se centró en dotar al lugar de la con‑ En la arquitectura tradicional portuguesa se
dición de ágora. encuentra este tipo de edificios abiertos para la
Así, el mercado se configura a partir de gestos venta al público, los barracos, que suelen orga‑
tectónicos simples pero rotundos: la adaptación a nizarse con una banda posterior cerrada para
la topografía y la interrelación entre los pabellones.
almacenaje y un porche abierto a la calle en el
La parcela presenta un acusado desnivel desde
que se realiza la venta a cubierto. Es indudable
el frente de la calle al límite posterior. Este aspec‑
que Távora retoma aquí este modelo junto con la
to permite generar una topografía artificial de
granito, análoga a las descritas, que se acopla al tradición mediterránea de mercados al aire libre
desmonte entre los dos niveles. Así se generan dos como núcleos de la vida social.
plataformas de uso, donde se elevan los elementos La composición se basa en el cuadrado de la
constructivos de primer orden que reproducen el parcela y el módulo de los pórticos de los pabello‑
tipo mercado tradicional. nes que modula a su vez la totalidad de la parcela
El acceso superior aparece tangencialmente a la en cuadrícula, dotando al hecho tectónico de una
suave pendiente de la calle principal y se realiza increíble racionalidad. Para evitar la rigidez de
con el mecanismo tradicional de las zonas mon‑ esta modulación, Távora juega con la posición,
Fig. 9 – Los dos elementos constructivos del juego tectónico: soporte y lámina plegada.
altura y vuelo de las cubiertas, que albergan a su varían para dar respuesta a las funciones de cada
sombra las zonas de venta y descanso. uno de los pabellones.
La creación de un único elemento constructivo Al igual que se veía en los pescantes de A Casa
permite, por repetición según la modulación, re‑ sobre o Mar, los elementos estructurales formados
crear el tipo tradicional de mercado abierto según por un pilar central y dos voladizos de longitud
el mismo criterio de utilidad pero adaptándose variable establecen una ley de repetición defini‑
al nuevo material. El elemento se proyecta como da por la modulación de la plaza y extraen toda
una unidad estructural voladizo‑soporte‑voladizo la capacidad expresiva del hormigón armado
que se repite perimetralmente generando cuatro generando esas alas abiertas que recogen toda el
pabellones independientes, dos de ellos sobre el optimismo brasileño y al mismo tiempo la forma
basamento superior y otros dos en la cota de la de vida rural. La misma necesidad, el mismo tipo,
nueva plaza. Además de romper la monotonía, la otro material y forma inesperada. La flexibilidad
longitud de los voladizos y la altura de los soportes del mercado al aire libre, eliminando los pies
quico de elemento constructivo que los mismos Távora plantea una serie de itinerarios que
voladizos estructurales y la lámina‑canalón. La nacen de los accesos y que van enlazando los
ley tectónica se rige por una tecnología mediada, diferentes objetos construidos, hitos, espacios
que oscila entre los polos de la modernidad y la acotados, de menor escala, concebidos como un
tradición, lo local y lo internacional. conjunto de habitaciones verdes. De esta manera
pretende caracterizar los recorridos más que la
4. OBJETO CONSTRUIDO 2: PABELLÓN propia edificación. El recorrido se potencia me‑
EN QUINTA DE CONCEIÇAO, 1956‑60 diante el cuidado de los pavimentos y limitando la
arquitectura a muros, peldaños, albercas y árboles,
El pabellón de tenis de la Quinta da Conceiçao
con una voluntad conciliadora con el lugar y la
constituye otro ejemplo emblemático de conti‑
tradición material.
nuidad fluida de tradición con modernidad. De
Sobre estos recorridos se va ubicando el pro‑
alguna manera esta pequeña pieza se suma al
grama lúdico consistente en una serie de equipa‑
conjunto de numerosas realizaciones de pequeña
mientos deportivos: piscinas y una pista de tenis.
escala que han ido marcando la arquitectura del
El pabellón es una estancia abierta dentro de la
siglo XX, como objetos que se revelan de su es‑
secuencia del parque. Se orienta hacia las pistas
tricta condición funcional y que logran trascender
y alberga en su basamento pétreo los vestuarios,
a su localización en el tiempo. Y eso es así y sólo
que constituyen el verdadero programa funcio‑
así por su condición de objeto, de artefacto cons‑
nal de la obra. El espacio principal superior no
truido, de tipo derivado de la ley tectónica entre
puede considerarse una tribuna al uso ya que,
los elementos constructivos de orden menor. Y
paradójicamente, no ofrece buenas condiciones
donde cada uno de dichos elementos constructivos
de visibilidad sobre las pistas.
menores se explican a través de la tecnología del
Este hecho es relevante ya que al autor parece
material. Esta actitud ante la arquitectura, casi
no preocuparle. La realidad parece darle la razón
artesanal, es la responsable de su extraña presencia,
a Távora ya que la obra parece dispuesta a asumir
poseedora de la serenidad de los objetos eternos.
un papel distinto: tiene como auténtico objetivo
El pabellón ha de entenderse no como un ele‑
la caracterizacion del espacio, dotar de dimension
mento aislado o autónomo, sino una pieza más
y escala a esa zona del parque y anclarlo al sitio a
dentro del conjunto de actuaciones llevadas a
través de la construcción material.
cabo en el lugar y en armonía con el resto de
preexistencias del parque.
Fig. 15 – Vivienda en Ofir, Fernando Távora. Arquitectura tradicional del Minho y Alentejo.
El pabellón de tenis de la Quinta supone prác‑ La disposición del basamento pétreo de los
ticamente una declaración de principios de los vestuarios a cota de pistas, adaptándose al desnivel
postulados defendidos por Tavora en la llamada del terreno, consigue lograr para la tribuna una
tercera vía, surgida a partir del Problema de la posición predominante sobre el lugar.
Casa Portuguesa y la Encuesta de Arquitectura De alguna manera se usa este mismo esquema
Rural en Portugal. funcional que en las viviendas rurales de las re‑
Hombre y tierra. Así se podría destacar la ma‑ giones septentrionales, la casa de lavoura minhota,
nera de disponer la pieza en el sitio, tratando de donde la planta del basamento alberga el programa
aprovechar la orografía de la manera más favora‑ de servicios mientras la planta superior, a la que
ble, como es común en los asentamientos rurales. se accede por escalera exterior y que presenta un
Fig. 16 – Hotel Ouro Preto, Oscar Niemeyer. Vivienda unifamiliar, Kenzo Tange.
carácter más abierto y de mayor ligereza, alberga Tal y como pasa también en su Casa en Ofir, la
el porche y la galería o veranda. viga soporte de las cerchas también asemeja la tra‑
Así la tectónica constructiva también reproduce dicional carrera de madera de las casas minhotas.
la de estas construcciones rurales del Norte del Por último, para introducir diferencias táctiles
país. En ellas, la base estereotómica de mampos‑ en los elementos constructivos diferentes, ejecuta‑
tería de granito, que se confunde con el propio dos con el mismo material, los pies derechos pre‑
basamento del terreno, contrasta con la ligereza sentan una textura rugosa similar a la del granito
de la estructura de madera de cubierta, acabada abujardado. El material moderno por excelencia, el
con teja árabe. hormigón armado, se camufla así tras la imagen de
Por otra parte es interesante el tratamiento del los materiales tradicionales y establece relaciones
hormigón armado con diferentes texturas. El peto estructurales contradictorias en la fachada trasera
neoplástico apunta a la tradicional galería o al‑ que no son tales, ya que los pilares de hormigón
pendre de madera gracias a la textura introducida se embuten en el muro de contención igualmente
por el encofrado diagonal. de hormigón pero revestido de revoco.
6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Esposito, Antonio. 2005. Fernando Tavora. Milano: Moutinho, Mario. 1979. A arquitectura popular
Electa. portuguesa. Lisboa: Estampa.
Fernández Rodríguez, Luisa, 2001. Imágenes de la Tavora, Fernando, 1954: “O problema de la casa
memoria rural en la Escuela de Oporto, 1955‑75, portuguesa”, Aléo, s4, Ano4, 9.
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sin publicar. Premio COACV 2000‑2001. VVAA. 2012. Fernando Távora. Modernidade Per‑
Goodwin, Philip L. 1943. Brazil builds. Architecture manente. Guimarães: José António Bandeirinha Ed.
new and old 1652‑1942. New York: MOMA. VVAA. 1961. Arquitectura Popular em Portugal.
Kiefer, Flavio. 1998. Brasil meridional. Lisboa: Lisboa: Sindicato Nacional dos Arquitectos.
Estampa. VV.AA. 1992. Oporto 4 arquitectos: Alves Costa,
Tavora, Siza y Souto de Moura. London: Phaidon.
RESUMO
Após o final da Segunda Guerra Mundial a classe de artistas em Portugal aproveita o enfraquecimento
que o governo ditatorial de Salazar apresenta, para reforçar o seu papel na sociedade e adquirir a li-
berdade intelectual até então dificultada pela exaltação das ideologias do regime. Os arquitectos vêem
na arquitectura moderna a possibilidade tão almejada de renovação, abordando as mudanças amplas
que tal pensamento implica, e desta forma compensar o atraso que o estilo fachadista do Estado Novo
implicara. Nos congressos e associações de arquitectos surgem debates sobre a situação portuguesa e
discussões sobre os modelos estrangeiros. No cerne das indagações encontra-se o papel do arquitecto
face ao déficit habitacional do país, que levaria à concentração de esforços por parte do estado e à
criação de um organismo como as «Habitações Económicas» - Federação das Caixas de Previdência
[HE] em meados da década de 1940. As HE, através de uma inquieta equipa de arquitectos, ignora
o modelo dos projectos tipificados procurando soluções personalizadas que se adaptem aos contextos.
Paralelamente, a publicação Brazil Builds recebe ampla divulgação entre os arquitectos, inspirando
a construção a partir de 1950. O bairro dos Ourives em Gondomar, promovido pelas HE, é disso um
exemplo, demonstrando através de um conjunto de elementos espacialmente dispostos, características
presentes em obras de Oscar Niemeyer entre outros. Contudo, ao analisar as técnicas contrutivas usa-
das revela-se uma grande diferença entre os edifícios dos dois países, que permite uma compreensão do
estado da arquitectura de ambos no período em questão.
1. INTRODUÇÃO
A repercussão da arquitectura moderna brasi- MO Brasil. Do mesmo ano, embora com outro
leira em Portugal a partir de 1945 está documen- vector de abordagem, o livro “A construção do
tada por vários autores, dos quais cita-se o artigo Brasil – Relações com a Cultura Arquitectónica
“Recepção da Arquitectura Moderna Brasileira em Portuguesa” de Ana Vaz Milheiro, trata das inter-
Portugal – registos e uma leitura” apresentado por polações da cultura arquitectónica com as quais
Tânia Beisi Ramos e Madalena Cunha Matos em os dois países convivem em vários momentos
2005, por ocasião do 6º encontro do DOCOMO- da história.
criado na metrópole, a sensualidade do Barroco das Estacas, ao lado de Ruy Athoughia, em que
de Aleijadinho em muito era diferente do Barroco os pilotis e os elementos vazados em betão, na
português, mais preso aos cânones do modelo fachada, são facilmente confundíveis com o que
italiano. Era uma metáfora para o que os brasilei- se construía no Brasil da época. Tamanha habili-
ros haviam feito exactamente com a arquitectura dade por parte dos arquitectos na apropriação dos
moderna, inspirados em Le Corbusier, mas com preceitos brasileiros valeria uma menção honrosa
grandes peculiaridades que a distanciavam da na categoria de habitação colectiva, obtida na II
origem europeia. Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo
A chegada a Portugal desta publicação acontece de 1953.
em simultâneo com outros acontecimentos que É igualmente em Setembro deste ano que ocorre
realçam o interesse pelo Brasil, ambos no ano de em Lisboa o III Encontro da União Internacional
1949; o lançamento do número especial da revista dos Arquitectos (UIA), no qual Wladimir Alves de
L’Architecture d’Aujourd’hui1 dedicada a obras do Sousa é palestrante. Numa exposição no SNBA,
Brasil, algumas presentes também na publicação em que expõe 85 projectos em painéis e maquetes,
do MoMA, e a palestra que Wladimir Alves de de obras como o Conjunto Pedregulho de Affonso
Sousa, professor de arquitectura da Faculdade de Reidy, o Conjunto Paquetá de Francisco Bolonha,
Arquitectura do Rio de Janeiro, realiza no ESBAP o Edifício Três Marias de Abelardo de Sousa e o
em Fevereiro de 1949, ao mesmo tempo em que no Prudência de Rino Levi, os dois últimos em São
Instituto Superior Técnico de Lisboa realiza uma Paulo, além de obras dos já conhecidos nomes de
exposição denominada, “A arquitectura brasileira Álvaro Vital Brasil, o escritório MMM Roberto,
em face da arquitectura contemporânea”. Sobre Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, entre outros, que
estavam presentes em Brazil Builds e eram já
esta exposição, constata-se também o impacto
conhecidos no meio arquitectónico português.
que viria a ter, e que pode ser notado pelo ar-
Por esta altura havia já em Portugal alguma pro-
tigo presente nas páginas da revista portuguesa
dução Moderna (Fig. 1), que permitia uma análise
Arquitectura2:
não mais teórica com base em exemplos de fora,
“É evidente e natural que a exposição de mas sim olhar para o que se construía, de facto, em
Arquitectura Brasileira venha a ter refle- Portugal. De início, a arquitectura brasileira é vista
xo nos espíritos novos e, mais acentua- como mais um referência de projecto consolidada,
damente nos alunos de Arquitectura, das com maestria em conjugar condições peculiares
duas escolas do país. Esse reflexo, dizia, de clima, solo e exigências sociais3, em contraste
é natural e é bom que não se deixe arrefe- com a ainda produção incipiente em Portugal.
cer o estado de espírito em que todos fica- Com o passar dos anos, quando cada vez mais se
mos de RENOVAR a nossa Arquitectura” sedimenta o pensamento Moderno em Portugal,
e desta forma a crítica aos projectos, surge como
Portanto, não será de estranhar-se que o mesmo uma ferramenta que permite uma terceira via,
autor do artigo, Formosinho Sanchez, fosse um entre o passadismo imposto governamentalmente
dos influenciados também pela exposição, visto e o rígido cânon do moderno internacional4, em
ter sido um dos arquitectos a desenhar o Bairro 3
Gil Mendes Morais, Encarregado de Negócios do Brasil, in Arqui-
1
L’Architecture d’Aujourd’hui. Brésil. n.º 13-14. Setembro de 1947. tectura nº 53, Novembro/Dezembro 1954.
2
SANCHEZ, Formosinho – “Arquitectura Moderna Brasileira, Ar- 4
Ramos, Tânia B.; Matos, Madalena Cunha. “Recepção da Arqui-
quitectura Moderna Portuguesa”, Arquitectura. 29. Fev-Mar 1949. tectura Moderna Brasileira em Portugal – registos e uma leitura”.
p.17. Anais do VI DOCOMOMO Brasil. Niterói. p. 164-166. 2005.
Fig. 1 – Da esquerda para a direita: Ed. do Instituto de Reseguros do Brasil, Rio de Janeiro – 1940; Bloco Costa Cabral, Porto – 1955;
Edifícios no Parque Guinle, Rio de Janeiro – 1954; Bairro das Estacas, Lisboa – 1952.
que, talvez, seria possível alcançar a originalidade inovações técnicas do trabalho em betão decor-
e tipicidade, ou a conjunção entre a tradição e a rentes de tal procedimento, a correcta orientação
modernidade, que eram observados nos projectos solar entre outros aspectos, que foram agregados
que vinham do Brasil, já que a arquitectura deste ao conhecimento arquitectónico português, não
país constitui-se de uma variação do Estilo Inter- deixa de ser curioso o paralelo na abordagem feita
nacional com apropriações muito características por Fernando Távora e Lúcio Costa na procura
da cultura local. Sobre o real efeito, no que diz pelas raízes dos edifícios dos respectivos países
respeito à construção da identidade arquitectónica com vista a “domesticar” o moderno pragmático, e
nacional, que a proximidade com que os arqui- igualmente o desvio de tradicionalismos artificiais,
tectos da segunda geração moderna em Portugal como era o caso do Neocolonial no Brasil e do
tiveram com a arquitectura moderna brasileira “Português Suave” em Portugal.
faltam conclusões e estudos. O Inquérito à Arqui-
tectura Popular em Portugal teria início em 1955, 2. BAIRRO DOS OURIVES
com o resultado do trabalho divulgado em 1961 a
apontar uma abordagem na raiz da arquitectura Distante cerca de 8 km do centro da cidade do
vernacular, contra o pseudo-tradicionalismo e a Porto, o município de Gondomar é historicamente
importação dos modelos universais modernos um importante centro da arte da produção de
sem adaptação crítica. Ainda que tal relatório ourivesaria em Portugal. Para acolher os funcio-
negue a apropriação de estilos e linguagens es- nários desta actividade, as «Habitações Económi-
trangeiras, o que em certa medida ocorria com a cas» – Federação das Caixas de Previdência (HE)
apropriação da arquitectura moderna brasileira promovem, em 1957, a construção do Bairro dos
pelos arquitectos portugueses, e excluindo as Ourives. A encomenda estava a cargo do arqui-
Disponível em <http://www.docomomo.org.br/seminario%206%20
tecto João Braula Reis por encomenda directa
pdfs/Tania%20Beisi%20Ramos.pdf>. Acessado em 21/04/2016. de Nuno Teotónio Pereira enquanto arquitecto
responsável por um suposto gabinete de projecto acompanhar as curvas de nível do terreno natural,
que estaria a ser montado. e evitar assim taludes muito íngremes.
O referido organismo possuía uma aborda- O sistema viário organiza-se segundo duas
gem projectual que valorizava a importância da hierarquias distintas: a via colectora da Rua de
arquitectura na qualidade de vida dos habitantes, Santo Elói tangencia as construções e distribui-as
encarando desta forma os projectos como um da parte mais baixa à parte mais alta do terreno,
laboratório constante de novas experiências. Esta onde esta termina na Rua Caminho do Calvário;
abordagem negava, enquanto premissa, a multi- entre os blocos a distribuição dá-se pelas vias
plicação de projectos tipificados pelo território, locais construídas especialmente para o Bairro
preferindo respostas que entendessem as comple- dos Ourives. Estas são formadas pelas Ruas do
xidades culturais onde se inseriam, bem como dos Ouro, Prata e das Filigranas. As duas primeiras
habitantes. Ainda assim, a padronização não era apresentam uma largura menor e conectam três
excluída como factor inicial de algumas decisões, blocos, envolvendo perimetralmente um deles
como um primeiro passo de um percurso de de- por completo e com os restantes inseridos nas
senvolvimento do carácter do projecto, que depois extremidades, num esquema que referencia os
era lapidado conforme a especificidade dos con- exemplos de planeamento da garden city. A Rua do
textos. Uma outra abordagem também praticada Ouro constitui-se numa excepção, uma vez que é
pelas HE encarava o inevitável controle de custos mais larga do que as outras e termina numa bolsa,
através de desenhos prévios de componentes da possivelmente planeada para servir de estacio-
construção, designadas por elementos funcionais namento aos moradores do bairro. Este desenho
– tipo. No caso do Bairro dos Ourives o segundo viário permite que todas as residências tenham
procedimento é observado na modulação das dois acessos, tanto pela frente como tardoz.
esquadrias, que partem de uma dimensão básica O espaço restante entre as laterais dos blocos e
unitária e são compostas com outras semelhantes a Rua de Santo Elói foi planeado para ser usado
quando necessário, aumentando, portanto, so- como área ajardinada de uso colectivo, o que viria
mente o comprimento do vão, um procedimento a acontecer, parcialmente, somente muitas décadas
semelhante a outros edifícios promovidos pelo depois. Destes espaços dois tornaram-se efectiva-
organismo que utilizam as mesmas esquadrias mente no que era previsto no projecto original,
das habitações em Gondomar. o outro transformou-se em estacionamento e o
O conjunto de habitações unifamiliares em restante, de menor dimensão, foi incorporado ao
banda está implantado em 4 blocos distintos (Fig. quintal de uma das habitações.
2), num terreno em declive em relação à parte O espaço privativo tem destaque no conjunto
central da freguesia de São Cosme em Gondomar. da proposta, uma vez que todas as habitações
A configuração destes blocos, em que cada um possuem duas importantes extensões de terre-
situa-se numa cota mais baixa do que o anterior, no. As frentes, usadas como espaços ajardina-
tem uma íntima relação com a topografia do lugar, dos, servem de recepção das casas, enquanto as
de modo a permitir, com a excepção do bloco mais posteriores, originalmente como espaços para
a montante, uma vista panorâmica desimpedida da cultivo, hoje possuem um conjunto de anexos
paisagem desde o primeiro piso de cada habitação. edificados pelos moradores. A divisão entre o
O bloco mais a jusante possui a peculiaridade espaço público e privado dá-se através de um
de ter uma angulação e não estar em paralelo muro em pedra granítica, com espessura de 30
com os demais, facto que se deve à intenção de cm e altura média de 80 cm, que funciona como
arrimo quando a configuração topográfica assim diferenças de nível do piso, contribuem para um
o exige. A separação lateral entre lotes na parte espaço proveitoso sem situações disfuncionais.
frontal não contemplava o muro como separação, As aberturas demonstram igualmente esta pre-
sendo esta feita por meio de vegetação, no entanto, ocupação, especialmente nos quartos onde estão
na parte posterior, muros em blocos de cimento localizadas nas extremidades da parede, e conse-
foram usados, o que leva a crer que a pedra tinha guem assim permitir maior área para colocação
também um carácter ornamental, além da referida de armários, além de criar um eixo invisível que
necessidade técnica nos usos como arrimo. condiciona que a passagem desde a referida janela
até à porta fique desimpedida. No topo das janelas
DA LINGUAGEM À CONCEPÇÃO ESPACIAL um elemento em argamassa funciona como caixa
Num primeiro confronto com o conjunto, a dos estores de enrolar, estando logo acima destes
característica mais relevante é a inclinação das as janelas de ventilação que, ocupando todo o
coberturas, seja na versão com um amplo plano comprimento da parede que divide o exterior
único, ou na composta por dois planos com de- do interior, contribui para compensar a pouca
clive centrado numa calha colectora de águas, no área de luz da janela principal e permite maior
denominado telhado “asa de borboletas”. Ambas amplitude visual. (Fig. 3)
as configurações são reflexo das tipologias exis- A cozinha é um elemento agregador das acti-
tentes, sendo o primeiro caso composto por uma vidades e do convívio dos moradores, e a maior
unidade de 3 quartos, e o segundo com 4 quartos, responsável pela amplitude das habitações no
sem que isto acarrete diferenças na projecção das nível térreo. O facto de não ser compartimentada,
dimensões perimetrais em planta, de 11,21m mas associada à zona de refeições apenas com
por 4,88m em ambas. As tipologias T3 têm uma os armários embutidos a fazerem de barreira e
área de 79 m², a contar com a varanda frontal rasgado por amplo balcão que serve como passa
coberta, enquanto que nas T4 a área soma os 108 pratos, permite uma apreensão total e desimpedida
m². A preocupação em criar, dentro do mínimo do espaço. Um desnível, através de dois degraus
espaço, as conveniências que uma habitação deve na versão T3 e de seis na T4, delimita pelo piso o
suprir é verificada pela engenhosa relação entre o espaço anteriormente descrito com a sala de estar,
mobiliário que passa a fazer parte integrante da espaço onde se encontra a entrada da habitação.
arquitectura. Neste aspecto, os armários embutidos Acompanhando o sentido descendente do terreno,
nos quartos, e as prateleiras baixas, ou com gavetas tem função também de diminuir o número de de-
basculantes, que servem como guarda-corpo de graus da escada de acesso ao pavimento superior.
UNIDADES T4
Por comparação com a versão de 3 quartos, crê-se
que aquela seja a base para a de 4 quartos, acabando
esta por interferir em revisõess na primeira. Esta
hipótese é comprovada pela existência de plantas
do térreo da versão T4, que mostram a existência de
um pilar no eixo correspondente à parede de divisão
dos quartos de cima. É válido supor-se que, como na
tipologia T3 o referido eixo é ocupado pela parede,
Fig. 3 – Fachada das unidades T3 na época da construção. e que originalmente esta seria estrutural, quando se
UNIDADES T3 passou para a solução T4 resulta na existência do
tal pilar, que nesta solução ficaria no meio da sala,
Embora, como já referido, a implantação não uma vez que nestas unidades todos os quartos ficam
seja diferente entre tipologias propostas, na no pavimento superior. Com isto, foi necessário
questão interna, e especialmente no pavimento uma revisão da estrutura para eliminá-lo, o que,
superior, a situação é totalmente diferente (Fig. obviamente, acabaria por ter efeito reverso, na tipo-
4). A versão de 3 quartos distribui dois deles no logia-base. O facto do pé direito no térreo ter a altura
pavimento superior (que é composto além deles convencional exigiu que o desnível entre a sala de
pelo quarto de banho), e no térreo situa-se o estar e a sala de jantar/cozinha fosse menor, decisão
restante, de dimensões exíguas se comparado que teve efeitos na escada de acesso ao pavimento
aos demais. Uma vez que este quarto cria uma superior, que tem mais degraus, e consequentemente,
relação com a escada, criando um canto morto uma projeção maior. Isto reflete-se em perda de área
na parte voltada para o desnível das salas, o ar- do quarto na lateral direita, tornando-o contíguo à
quitecto decidiu fechar todo o espaço abaixo da escada. Nota-se que foi uma preocupação de João
mesma, criando uma dispensa. Como forma de Braula Reis, dentro das escolhas que o processo de
compensar a perda de área útil da sala de estar pela projecto acarretou, de minimizar este efeito, surgindo
existência deste quarto, a área coberta externa é a viga em cunha no perímetro da caixa de escadas,
menor, com 5 m² contra 13 m² na outra tipologia, que permite a passagem com uma altura de 1,83m,
e desta forma permite ganho de área na sala. No valor derivado do Modulor de Le Corbusier. O
pavimento superior os dois quartos seguem o telhado em “asa de borboleta” acaba por ter efeito
alinhamento das paredes de baixo, embora elas espacial interno restrito, se comparado à opção T3,
não sejam estruturais, como será visível na análise sendo apreendido em frações, através das inclinações
da outra tipologia. O quarto de banho, situado ao do tecto nos quartos. A expressividade do mesmo
final do corredor de acesso aos quartos, possui apenas tem destaque nas unidades nas extremidades
iluminação por uma clarabóia em metal, com
do bloco, onde a característica silhueta é ressaltada.
planos de vidro em tela de arame. A inclinação
proveniente da cobertura é visível internamente
COMPARATIVOS
e apresenta ressonância com a decisão da posição
da escada, uma vez que a mesma situa-se paralela Através da análise comparativa de características
ao comprimento da edificação, num percurso que visuais e espaciais, bem como da inserção de certos
acompanha a abertura ou diminuição do espaço, elementos arquitectónicos autónomos no projecto
conforme o sentido descendente ou ascendente. em geral, é possível deduzir os modelos brasileiros
Fig. 4 – Unidades T3 à esquerda, com corte, planta do piso superior e do inferior, e à direita a versão T4.
que serviram de base ao Bairro dos Ourives. Refe- Brazil5, lançada em 1956 por Henrique Mindlin, com
rimo-nos em primeiro lugar ao projecto de Oscar amplo destaque para fotografias e desenhos técnicos.
Niemeyer para as residências destinadas às famílias A data desta publicação entra, numa primeira
dos militares da aeronática, denomindas de Tipo abordagem, em conflito com o ano de conclusão
C-2, construídas em 1947, em São José dos Campos, do Bairro dos Ourives, que segundo documentos
cidade a 100 km de São Paulo. Igualmente destinado oficias das HE é de 1957. A data, no entanto, não
a habitação, para um rendimento mais baixo, o é confirmada pelos moradores mais antigos do
Conjunto Residencial de Paquetá no Rio de Janei- bairro, que alegam terem-se mudado somente
ro, projecto de Francisco Bolonha inaugurado em em 1960, ano em que as obras foram terminadas.
1952, é o segundo modelo que apresenta inegáveis Embora seja possível durante este período ter-se
semelhanças com o projecto português. Ambos são 5
MINDLIN, Henrique. “Modern architecture in Brazil”. 1st edi-
mostrados na publicação Modern Architecture in tion. Rio de Janeiro. Colibris. 1956.
Fig. 5 – Da esquerda para a direita: planta inferior, planta superior, corte, fotografia.
desenvolvido o projecto já após o contacto de João proteção solar nos quartos principais, e no quarto de
Braula Reis com o referido livro, não se pode afimar empregada apresenta-se como uma janela na cota
conclusivamente tal facto. Uma outra hipótese alta, em comprimento, que demarca a separação
aponta para a já citada exposição promovida por do volume superior com o inferior.
Wladimir Alves de Souza em 1953, na Sociedade
Nacional de Belas Artes( SNBA) em Lisboa, na qual CONJUNTO RESIDENCIAL DE PAQUETÁ
se apresenta a confirmação da presença do projecto
de Paquetá, e ainda que a presença de obras de Este conjunto de dois blocos em banda (Fig.
Niemeyer também seja comprovada, não se pode 6), com 11 e 16 unidades respectivamente, des-
precisar que as habitações do Centro Técnico da tinava-se aos operários que viviam em favelas, e
Aeronáutica (CTA) estivessem entre as exibidas. a funcionários públicos municipais da cidade do
Rio de Janeiro, portanto, com um programa e
dimensões mais próxima ao objecto de estudo em
RESIDÊNCIA TIPO C-2 DO CTA
Portugal, aspecto visível na distribuição interna
As habitações, que destinavam-se à classe média entre o térreo e primeiro piso, ligados por um
composta por funcionários da força aérea brasileira, pé direito amplo. Apresenta a entrada recuada,
têm uma configuração em planta que está invertida que funciona como corredor protegido do sol, e
em relação ao que se vê no Bairro dos Ourives. que permite acesso aos blocos, além de ser uma
O ponto mais alto to telhado – também em uma área semipública da respectiva residência cor-
plano único inclinado – remete aos quartos do piso responte, de onde é possível observar o parque
superior, mas abaixo destes situa-se a cozinha e o comunitário logo em frente. Correspondente no
quarto de empregada. Desta forma, se em Gondo- piso superior, estão os dois quartos, cuja parede
mar o recuo frontal no térreo corresponde à área de voltada para o exterior apresenta no alto, junto
lazer, em São José dos Campos o recuo serve para a ao tecto, e por toda a extensão do quarto, janelas
área de serviço, sem que, contudo, as alterações de basculantes de ventilação, acima de uma princpal,
distribuição programática modifiquem o aspecto localizada em posição centralizada com a parede,
formal, conforme é visível no corte (Fig. 5). A sala na altura do observador. As referidas janelas de
possui pé direito amplo, delimitada pelo telhado ventilação encontram equivalente na fachada
inclinado, o corredor de acesso aos quartos no piso oposta, igualmente no encontro da parede com
superior e a escada livre na lateral, onde é visível a o tecto, para permitir a circulação cruzada do
equivalência para a mesma situação das unidades vento pela casa. Por fim, da mesma forma que
T3 que Braula Reis desenhou. As semelhanças em Gondomar, a parede de separação entre uma
envolvem também as esquadrias basculantes de residência e outra funciona como agregador das
Fig. 6 – Da esquerda para a direita, de cima para baixo: corte e implantação, planta superior e inferior, fotografia.
instalações hidráulicas da cozinha, área de ser- a garagem dos vizinhos lateralmente e propor-
viço – externa, tal como o modelo inspirado - e cionam privacidade.
quarto de banho, sendo, portanto, as habitações Em Paquetá a análise dos dados disponíveis
espelhadas conforme a referida parede. sugere que se trata de uma execução em sistema
constructivo viga – pilar, e alvenaria de vedação.
BRASIL X PORTUGAL ATRAVÉS DAS Este sistema é justificado por tratar-se de um pro-
ESTRUTURAS E MATERIAIS jecto de custos controlados, e vai de acordo com
o intuito do autor de, ainda que se trate de um
Se a importação dos modelos brasileiros vistos projecto de concepção Moderna, ter uma raiz na
traduziu-se numa aplicação em Portugal, mais arquitectura tradicional brasileira, aspecto visível
ou menos fidedigna, dos mesmos em relação ao nos beirais em telha de zinco, que internamente
partido visual e espacial, e igualmente de soluções resultam no uso de um forro. Esta escolha estrutural
que resolvem as demandas específicas de clima e mais convencional não impede, contudo, que haja
insolação, as diferenças realçam-se quando anali- preocupação em explorar as possibilidades do siste-
sam-se as técnicas e materiais construtivos usados ma escolhido, e neste sentido o balanço verificado
nas respectivas obras dos dois países. no corredor externo, e que avança mais além até
As residências do CTA, ao analisar o corte ao jardim, comprova a destreza do projectista. A
fornecido pela publicação de Henrique Mindlin, escada, diferente do projeto de Niemeyer, e ainda
demonstram ter a laje inclinada feita de betão, que também seja aberta para a sala, é maciça na sua
não sendo possível precisar se esta é imper- estrutura, inclusive nos guarda-corpos, que são uma
meabilizada, ou possui algum outro elemento continuação da solidez da alvenaria das paredes.
sobreposto que realiza a função, tais como telhas Observando o Bairro dos Ourives surge uma
de amianto. O uso do betão é um elemento que situação curiosa: uma improvável associação do
Niemeyer usou em outros elementos da casa uso da pedra e do betão. Esta hipótese provém de
para tirar proveito dos resultados plásticos que documentos do projecto hidráulico (Fig. 7), que
o material proporcionara, visíveis nas escadas mostram a parede de divisão das habitações, onde
com os degraus somente apoiados nas paredes – num dos lados se conjugam as casas de banho das
sendo, portanto, os referidos degraus e a parede bandas, com uma representação gráfica que sugere
que os sustentam no mesmo material - além de tratar-se de um sistema em cantaria; por compara-
nos elementos vazados em círculos que separam ção, exclui-se a possibilidade de ser em alvenaria de
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Dissertação de mestrado apresentada na Faculda- mento apresentada à FAUP, 2016.
de de Arquitetura da Universidade de São Paulo.
RESUMO
Se o fenômeno do surgimento das favelas costuma ser genericamente associado ao Brasil e ao Rio de
Janeiro, usualmente explicado a partir da chegada dos soldados oriundos da campanha de Canudos na
capital da República, ocupando tal como uma erva o topo do Morro da Providência, ao observar mais
particularmente a história de assentamentos informais nas cidades portuárias no Brasil e em Portu-
gal, esta narrativa demasiadamente simplificada parece não sustentar-se. Se analisarmos com alguma
atenção os assentamentos da Cova do Vapor, na Trafaria, região metropolitana de Lisboa e Brasília
Teimosa, entre o centro e a zona sul do Recife, do ponto de vista histórico e morfológico, sobressaem
em quantidade coincidências, em que pese o contraste entre os contextos europeu e latino-americano.
Na história das cidades portuguesas, existem indícios e premissas que podem ter concorrido na
formação dos assentamentos informais no Brasil, ao mesmo tempo em que nas cidades brasileiras
podem estar referências importantes para o entendimento dos bairros de lata lusitanos. Esta relação
pode se verificar sobretudo ao longo do século XX, período no qual os dois países já não se encontravam
ligados por uma relação de dominação política mas quando importantes laços e ligações culturais e
econômicas são bastante evidentes e concretos. Entre os estudos de gerações de arquitectos e etnólogos
centrais para a construção identidade de ambos os países, muitos pontos em comum podem ser encon-
trados nos objetos - no caso, a casa popular, mas sobretudo no discurso que se elabora em torno deles,
notadamente na linha argumentativa que associa a simplicidade destas construções aos elementos es-
senciais de uma arquitetura mais moderna.
Ao aproximar as imagens das primitivas cabanas dos “Índios da Meia-Praia” envolvidos na célebre
Operação SAAL de Lagos, no Algarve, das representações veiculadas acerca dos mocambos recifenses,
seja por Gilberto Freyre, seja por Josué de Castro, similitudes e analogias são quase que inevitáveis.
Ainda que no Brasil o fenômeno do mocambo seja explicado a partir de matrizes africanas e indígenas,
parece haver também algo de caracteristicamente português naquela maneira improvisada e precária
de habitar.
Mais do que apresentar conclusões claras a respeito das raízes e práticas ligadas a estas construções e
assentamentos populares, cuja tecnologia da resistência se transmite por via oral e se aprende fazendo,
esta comunicação pretende formular novas questões acerca da circulação destas culturas e tradições
construtivas entre algumas cidades portuárias em ambos os lados do atlântico.
-ville de Rio de Janeiro –, pour devenir un ritório brasileiro. Até porque mesmo dentro dos
nom commun caractérisant un type d’habi- limites do Brasil, encontraremos uma enorme
tat précaire de Rio de Janeiro, un phénomè- diversidade de assentamentos precários, tipologias
ne propre à l’urbanisation brésilienne, une habitacionais e arranjos urbanísticos, para não
catégorie du recensement, une catégorie des mencionar os problemas comuns a estes territórios
sciences sociales brésiliennes et finalement em diversas nações.
une catégorie internationale (Valladares A associação mais direta que se fará para ex-
2001). (…) Cette longue métamorphose fut plicar o fenômeno da favela e do mocambo no
ponctuée, dès ses débuts, d’enjeux politiques Brasil, a partir dos casos do Rio de Janeiro2 e do
et symboliques. À la fin de la guerre civile Recife, será recorrentemente no sentido de as
de Canudos (1897), les soldats victorieux, associar com as construções africanas realizadas
mais dont la solde n’avait pas été versée, territórios sob domínio português, sobretudo
obtinrent l’autorisation de s’installer provi- pela via etimológica. Mocambo seria esconderijo,
soirement au cœur de la ville de Rio, sur les ou ainda, casa de cobertura de duas águas com a
pentes du Morro da Providência, en face du cumeeira perpendicular à rua, segundo diversos
ministère de la guerre. Ce morro fut alors autores que apóiam-se uns nos outros para expli-
rebaptisé par l’usage populaire Morro da car o fenômeno, normalmente associando-o ao
Favella, du fait de la similitude de végéta- continente africano. José Tavares Correia de Lira
tion sur les deux collines, mais aussi parce em Mocambo e Cidade (1997) retoma o debate
que la colline bahianaise de ce nom avait em torno dos significados culturais do mocambo
joué un rôle décisif dans la victoire finale nos discursos de intelectuais em meio à intensa
de l’armée de la République. L’installation urbanização da cidade do Recife, servindo como
provisoire des soldats se pérennisa, consa- referência para compreender o debate local.
crant la dimension symbolique de la déno-
“Retornemos a Gilberto Freyre. Os mocam-
mination. “ (Topalov et alli, 2005 p.97-98).
bos permitiam então fazer um estudo da
Quais seriam as características específicas da- arte popular da região exatamente porque se
quelas construções? Como se organizava o as- encontravam voltados para um ajustamen-
sentamento? Haveria alguma prática construtiva to ao meio físico e ao espaço social. Em Gil-
imediatamente associada à favela e que destoasse berto Freyre, há uma leitura ecológica sem
da paisagem construída da capital brasileira na dúvida tradicional, da casa adaptada ao
virada do século XX? Podemos ir além e nos meio geográfico, que se desdobra porém em
interrogar sobre as semelhanças entre aquelas características formais e culturais bem espe-
toscas habitações com a arquitetura popular em cíficas: a simplicidade de linhas, a economia
Portugal naquele momento, mesmo sem dispor- de ornamentos, o apoio quase exclusivo
mos dos meios para responder de maneira decisiva sobre as qualidades do material, a hones-
tais suposições. Estas coincidências construtivas tidade plástica. E não apenas neste sentido
decorreriam da experiência e da intuição ou parte o mocambo era investido de valor; também
destes improvisos de saberes foram transmitidos ganharia precedência por realizar virtudes
por via oral? A pertinência destas questões nos sociológicas de adaptação e mobilidade per-
levam a aproximar nossas reflexões da antropolo-
gia e da etimologia, ao relativizar a especificidade 2
Ver Jacques, Paola Berenstein (2001) Estética da ginga: a arqui-
tetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica Rio de Janeiro:
e a exclusividade que associa o fenômeno ao ter- Casa da Palavra
do país, além do fim das guerras coloniais e a condições de vida. Mesmo no conjunto projetado
independência das últimas colônias africanas. Nas pelo arquiteto José Veloso, construído e adapta-
três décadas que se seguiram, Portugal passará do pelos próprios habitantes, ficam evidentes os
por profundas mudanças econômicas, sociais ecos de uma certa tradição construtiva, além da
e geográficas intrinsecamente ligadas à sua re- relação direta dos moradores com o mar, o que
configuração territorial, dos fragmentos de um os faz dividir conhecimentos e materiais entre
império em ruínas para um Estado membro de as tecnologias de construção naval e civil, exa-
uma ‘União’ Européia. tamente como vai se dar na costa brasileira. As
Um marco incontornável tanto da história da relações entre os recursos marinhos e as práticas
arquitetura contemporânea portuguesa quanto arquitetônicas nos parece um campo interessante
das políticas habitacionais no país é o programa e amplo de pesquisa, ainda por descobrir.
do Serviço Ambulatorial de Apoio Local (SAAL), As comunidades de pescadores que construíram
que buscava incorporar a participação e o trabalho suas aldeias, vilas, igrejas, casas e eventualmente
dos habitantes de bairros precários e ‘cortiços’ nos outros equipamentos públicos nos parecem um
projetos de reabilitação e construção de novas bom ponto de partida para refletir acerca das
unidades habitacionais no próprio sítio ou bairro. formas e técnicas construtivas dos assentamentos
Em alguns episódios desta interessante história precários em torno de cidades portuárias, bem
podemos entrever os embates entre as soluções como sobre os meios de circulação destes conhe-
tradicionais ‘ecologicamente’ adaptadas ao seu cimentos construtivos, boa parte empíricos ou
sítio - precariedades estruturais inclusas, face à transmitidos através da oralidade e da experiência,
onda de modernização e transformação do país na sem qualquer outro instrumento de medida ou
qual de alguma maneira o SAAL se inscreve por projeto, entendido aqui como etapa intermediária
fazer de maneira bastante habilidosa a ‘costura’ entre a necessidade e a obra.
entre estes dois universos.
O documentário ‘Os índios da Meia Praia’ 2. EM LISBOA, A COVA DO VAPOR…
(1976), realizado por António da Silva Telles
A Cova do Vapor, comunidade de origem re-
retrata o processo de construção autogerida de
mota localizada na foz do Rio Tejo, na Trafaria,
um conjunto habitacional em uma comunidade
pode nos servir de exemplo aqui como uma aglo-
de pescadores no Algarve viabilizado através do
meração informal que poderia ter alguma relação
SAAL4, onde aparecem também personagens que
com o surgimento de assentamentos precários em
resistiram a esta transformação do território e
outros territórios. Se pode parecer uma hipótese
preferiram continuar a morar em sua precária
pouco fundamentada imaginar que os marinheiros
e instável cabana de palha, testemunho das for-
e construtores que atravessaram o atlântico toma-
mas de habitação anteriores a uma determinada
ram por referência este peculiar assentamento, a
modernização da sociedade portuguesa e de suas
partir da análise de imagens, narrativas e episódios
4
Em outra oportunidade, durante um colóquio incluso nas come- associados a este território incomum, emergem
morações dos 40 anos do SAAL e da Revolução dos Cravos, tive- diversos paralelos e visões comuns a cidades de
mos a oportunidade de refletir acerca das possíveis relações entre outros continentes. O geógrafo Alvaro Domingues
o SAAL e os ‘mutirões’ brasileiros, empreendimentos autogeridos
de produção habitacional que envolviam a mão-de-obra dos tra- recupera alguns deles para criar uma imagem
balhadores que foram possíveis após a redemocratização do país contemporânea da Cova do Vapor:
pós-1964, durante as raras brechas de abertura das políticas pú-
blicas à participação popular organizada através dos movimentos “Localizadas no extremo da margem Sul do
sociais de moradia.
Tejo, mesmo antes do rio penetrar no gran- para estudar a outra margem do Tejo, associan-
de mar oceano, Trafaria, Torrão, Cova do do desordem urbanística com a precariedade
Vapor, parecem terras indefinidas entre a construtiva e as poucas condições de higiene à
geografia da realidade e da ficção. (…) Con- degenerescência moral.
vivem lado a lado o cuidado ínfimo com as
coisas, as tintas frescas, as paredes imacula- “Construiu-se tudo em grande desordem.
das, os vasos de flores, com a ruína, os bar- Há um número exagerado de ruas, muitas
racos e as casas devassadas, os carros velhos das quais são demasiado estreitas, e todas
e a maior diversidade de sucata. O mar rói elas (ou quase) não tem arranjo nenhum,
as margens e as praias nesta língua de areia nem são conservadas de qualquer manei-
que os humanos, o vento, as ondas e as cor- ra. Reina em muitos sítios um cheiro desa-
rentes foram mudando desde que há memó- gradável por falta de instalações sanitárias
ria do mundo. O avanço das águas e a ero- nas casas. Há horríveis barracas, feitas com
são constituem hoje uma ameaça constante. pranchas e com ferro-velho, e um grande
Sobram histórias trágicas destas terras de número de casebres de todas as espécies que
flutuante condição. O lazareto que lá foi ins- servem como habitação para uma grande
talado em 1565 é já um sinal da marginali- parte da população, que por causa disso sofre
dade e estigmatização.” (Domingues, 2015). de todos os danos físicos e morais. A tuber-
culose reina aí.” (Etienne de Gröer, 1946).
A segregação dos territórios de habitação infor-
mal, bem como o processo de estigmatizacão que Ainda que seja difícil estabelecer algum tipo
dela deriva tem suas raízes profundas, constituindo de ligação direta entre este exemplo ímpar e uma
uma espécie de alvo preferencial das ações dos comunidade específica em outras terras, nos pa-
urbanistas, engenheiros hidráulicos e sanitaristas, rece claro que a imagem destes territórios é re-
que tinham ali uma espécie de contraponto do lativamente equivalente, mobilizando estigmas
que deveria ser a cidade moderna. Este é o tom similares.
com que trata o assentamento o urbanista francês Enfrentam-se aqui dificuldades inerentes à
Etienne de Gröer em 1946, quando contratado análise histórica de práticas cotidianas através
de seus remanescentes e dos registros posterio- fugidas da seca abrigadas em barracos e palafitas
res das tecnologias transmitidas por via oral ou de tábuas ou taipa fica evidente na imprensa local:
pela experiência, um pouco como uma busca por
“A praga continua e não há indícios de tão
informações não registradas cujo acesso pode
cedo ver-se a nossa capital livre desse aspecto
ser virtualmente impossível. São questões desta
negativo consequência direta do pauperismo
complexidade que se colocam ao procurar recons-
cada vez mais exasperado, os mocambos tra-
truir as raízes das práticas construtivas populares.
zem no íntimo o drama de uma população
Há de se estar atento aos pormenores e fontes
que amanhece o pão de cada dia. Por isso
de informação diversa no intuito de rastrear os
muito difícil combatê-lo a não ser por uma
vestígios de construções por vezes frágeis ou efê-
política paralela de construir, primeiro, no-
meras, soluções para um tempo circunscrito. A
vas casas e, ao mesmo tempo criar melhores
obra do fotógrafo e pintor canadense Paul Anna
condições econômicas para toda uma classe
Soik, recentemente exposta no Museu Marítimo
de pessoas humildes para as quais a vida é
de Ílhavo, retrata a chegada e a instalação de uma
uma jornada de injustiças. Daí a rápida
frota branca de navios bacalhoeiros portugueses
proliferação dos mocambos afeando a cida-
na capital da Terra Nova. no litoral canadense,
de (...) num desafio evidente ao progresso da
com especial atenção para o tipo de construção
cidade.” (DP, 1963 in Inglez de Souza, 2010).
improvisada sobre as pedras que abrigavam parte
deles durante os intervalos da pesca. Mais do que Se o Pina, areal entre a Praia de Boa Viagem e
restringir o campo de observações, nos parece o estuário dos rios Capibaribe, Jordão e Teijipió
neste momento importante recolher o máximo já era uma área da habitação de pescadores em
possível de informações sobre estas migrações mocambos de palha e taipa desde as primeiras
de grupos humanos que carregaram consigo téc- décadas do século XX, Brasília Teimosa vai sim-
nicas produtivas e construtivas, além de práticas bolizar e concentrar as preocupações da opinião
culturais, religiosas e culinárias, para sublinhar os pública acerca da dimensão do problema habita-
aspectos mais evidentes de circulação. cional das classes populares e marginais no Recife
durante os anos 1950 e 1960, convertendo-se num
NO RECIFE, BRASÍLIA TEIMOSA, caso ímpar de resistência e conquista de direitos
à cidade já nos anos 1980.
Ao longo de todo o século XX, desde momentos
Seus becos e ruas em espinha de peixe, lotes
de cronologia incerta, o Recife conviveu com o
exíguos e de limites imprecisos, resultado da ex-
fenômeno do mocambo, seja sob a forma mais
ploração máxima do terreno sem preocupação
pitoresca - casarios ecologicamente adaptados
urbanística qualquer, sobreposições de funções
espalhados em um coqueiral ou mais dramática, os
e domínios, rua e praia como espaços públicos
enormes aglomerados de casebres que ocuparam
por excelência, assim como a ligação estreita dos
áreas alagadiças ou encostas de morros instáveis
moradores com o mar através da pesca artesanal
- as favelas da capital pernambucana, dito de
poderia aproximar o caso de Brasilia Teimosa
outra maneira. A estigmatização e a imagem de
à Cova do Vapor. Também no caso recifense, a
obstáculo ao progresso materializada por vários
origem da ocupação e do estigma ligado ao ter-
destes novos bairros decorrentes de invasões de
ritório está ligado a implantação de um lazareto
terras públicas ou privadas por um grande con-
(leprosário) nos terrenos instáveis entre mar e
tingente de famílias pobres oriundas do campo e
areia. No único romance escrito pelo médico e
Fig. 6 - Estrutura de uma cabana em Santiago de Cacém Fig. 7 - Protótipo da taipa préfabricada proposta para Cajueiro
(Portugal/OA, 1961). Seco (Pernambuco/Borsoi, 1963-64).
demonstra que existe uma certa zona cinzenta no entre as realidades portuguesa e brasileira recentes
que tange aos termos que descrevem e compreen- a explorar, no que tange a este tipo de fenômeno
dem o fenômeno destas ‘habitações subnormais’ por vezes sórdido de adaptação do homem à um
pois evidentemente o conceito de normalidade determinado sítio.
surge muito depois da ocorrência generalizada de Mais do que hipóteses, esta comunicação pre-
tais soluções improvisadas de habitar, cujas raízes tende abrir questões sobre as quais talvez valha a
apontam para os primórdios da natureza humana, pena se debruçar que emergem de um olhar tran-
o que nos levaria a uma erudita e talvez estéril satlântico sobre as bordas das cidades portuárias
discussão em torno de uma ‘cabana primitiva’ lusófonas, como se as práticas construtivas e os
com o abade Laugier (1765). arranjos urbanísticos característicos destas mar-
Ainda que pesem e contribuam os estudos no gens se transmitissem também através da língua,
campo da linguística e da história de cada um dos dando lugar a intercâmbios culturais complexos
termos elaborada pelo projeto coletivo Mots de que associam o construir, o habitar e o pensar
la ville, parecem haver ainda campos de contato (Heidegger, 1954).
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tado Tese de doutoramento São Paulo: FAU USP
RESUMO
Numa favela na margem esquerda do rio Anil, em São Luís do Maranhão, no Brasil, está em curso um
programa de urbanização que objetiva a total erradicação das palafitas, tipo de moradia construída
sobre estacas considerada precária.
Através de um estudo de caso e como forma de testemunhar essa cultura construtiva, é descrito o pro-
cesso de ocupação do mangue e de construção das casas.
Entre o objetivo da erradicação, como defendem as políticas públicas ali implementadas, e a defesa da
preservação para turismo cultural, como acontece com exemplos de construções análogas em Portugal,
conclui-se que há alternativas possíveis de atuação, que não limitem mas abram possibilidades aos
habitantes.
INTRODUÇÃO
A cidade brasileira de São Luís, capital do estado fitas que é tema do presente artigo (Fig.4). Hoje,
do Maranhão, foi fundada no século XVII, num a área, que fora uma reentrância costeira, está
promontório alto de uma ilha costeira, na baía de quase toda aterrada e asfaltada, encontrando-se
São Marcos, entre a foz dos rios Bacanga e Anil poucas evidências desse modo de construção.
(Fig.1, 2 e 3). Seu território é parte da recortada O termo palafita é usado correntemente no
costa norte do Brasil onde a ação do Atlântico Brasil para designar ocupações informais de casas
produziu amplos estuários e inúmeras ilhas, baías construídas sobre estacas de madeira, em áreas
e enseadas, com extensas áreas alagadiças, inunda- alagadiças, e por isso sempre consideradas precá-
das ao ritmo das marés, os mangues, ecossistemas rias. Mas cabe lembrar que a origem do termo (do
de transição entre o ambiente marinho e terrestre, italiano palafitta, tapume de estacas1) e os modos
com solo lodoso e grande riqueza biológica, onde de construção que lhe são associados historica-
predomina uma vegetação própria, com o mesmo mente não corroboram essa conotação negativa.
nome. Num desses mangues, na margem esquerda Em Portugal, “as palafitas avieiras” da bacia
do rio Anil e na vizinhança do núcleo urbano de do Tejo foram redescobertas recentemente como
fundação da cidade, se formou a favela de pala- objeto de investigação, exemplo de patrimônio
1
Dicionário online da Porto Editora.
cultural a preservar e possível atração turística2. Nas seções que se seguem, começaremos por
No mesmo sentido, na Europa central, as palafitas apresentar em linhas gerais o processo de forma-
do chamado arco alpino foram classificadas em ção, transformação e erradicação do assentamento,
2011 como patrimônio cultural da humanidade3. para então descrever o modo de construção pro-
Já no caso da favela do rio Anil, a Secretaria de priamente dito e finalmente discutir alternativas
Estado das Cidades e Desenvolvimento Urbano de atuação nessas áreas.
do Maranhão (Secid-Ma) elaborou, em 2008 e As informações foram organizadas no âmbito de
em parceria com o governo federal brasileiro, um uma investigação em curso e resultaram de recolha
vasto projeto de urbanização tendo como uma das documental, de observações in loco e de conversas
principais metas a total erradicação das palafitas. com moradores4. As últimas foram realizadas de
O objetivo do presente texto é dar a conhecer forma dirigida durante um trabalho de campo,
e inserir na discussão especializada essa cultura entre janeiro e março de 2016. Durante esse traba-
construtiva brasileira, já que, ao contrário dos lho de campo foram ainda localizadas fotografias
seus análogos em Portugal ou em outros países aéreas que permitiram situar parte do processo
da Europa, tem sido desconsiderada. de ocupação e verificar a evolução morfológica
do assentamento. Quanto às observações in loco,
2
Cf. Pedro Gaspar e João Palla (2009) e Sérgio Marafona (2014) 4
Dessa investigação resultou a dissertação de mestrado em Arquite-
3
Em resposta a uma candidatura apresentada pela Suíça, que in- tura e Urbanismo, orientada por Silke Kapp e defendida por Joana
cluiu 6 países - Áustria, França, Alemanha, Itália, Eslovênia e Suí- Silva em Julho de 2016 na Escola de Arquitetura da Universidade
ça - foram inscritos 111 sítios arqueológicos na lista de patrimônio Federal de Minas Gerais, intitulada “Tudo isso era maré: origens,
da UNESCO. Cf. http://whc.unesco.org/en/list/1363 e http://www. consolidação e urbanização de uma favela de palafitas em São Luís
palafittes.org/en/index.html do Maranhão.”
foram feitas também no referido período, mas a seu respeito tendem a ser frágeis, provindo
acabaram agregando considerações decorrentes ora de estimativas, ora de levantamentos logo
da participação profissional de uma das autoras ultrapassados pelas rápidas transformações da
nos trabalhos da Secid-Ma entre 2012 e 2014. realidade. No caso da favela em estudo, a citada
Devemos ressalvar que pesquisas anteriores e Secretaria das Cidades do Maranhão elaborou, em
registros documentais sobre as palafitas de São 2008, um levantamento para definir as metas do
Luís são extremamente escassos, de modo que o vasto programa de urbanização destinado àquele
presente artigo é uma sistematização preliminar território, o PAC do Rio Anil5.
com muitas lacunas a preencher. Nesse mesmo ano, a Secid-Ma deu início às
obras com base num projeto que acabou por fixar
DA FORMAÇÃO À ERRADICAÇÃO como objeto de intervenção uma área de 175
hectares ocupada por cerca de 13 mil famílias,
Nos primórdios da ocupação do mangue na
das quais perto de 3000 estariam morando em
margem esquerda do rio Anil estiveram as habi-
palafitas sobre a água e as restantes na chamada
tações dos operários da Fábrica de Fiação e Teci-
“área seca”.
dos da Camboa, que ali se estabeleceu em 1890.
Entre outras metas, houve duas que foram ga-
Construída numa porção de terra tipo península,
nhando protagonismo: a total erradicação das
flanqueada por áreas de aluvião, a fábrica se bene-
palafitas, cujos moradores seriam transferidos
ficiou das facilidades de transporte oferecidas pela
para novos apartamentos a construir na área, e a
ampla embocadura do rio. Essa mesma estratégia
construção de uma avenida beira-rio sobre um
justificou, em 1918, a instalação do novo matadou-
extenso aterro que funcionaria como cintura para
ro municipal nas imediações, já contando com a
impedir o avanço de novas construções informais.
proximidade da Estrada de Ferro, que estava então
Não houve estudos aprofundados sobre os
em construção. Essa linha férrea, inaugurada em
modos de vida da população local, mas a orien-
1929, acabou traçando o “limite urbano”, ou seja,
tação a priori para a erradicação das palafitas.
a fronteira entre a cidade, bem definida em terra
Hoje, o PAC do Rio Anil está em fase de conclusão.
firme, e o mangue, parcialmente inundado duas
Foram entregues 832 apartamentos-padrão em
vezes por dia e chamado por muitos habitantes
prédios de quatro andares e dezesseis unidades,
locais apenas de maré. Mais tarde, na década de
distribuídos em três conjuntos. Concluíram-se,
1940, duas grandes indústrias de óleo de coco
ainda, cerca de 4000 das 6000 “melhorias ha-
babaçu ainda se instalaram na área.
bitacionais”, outra das metas do programa, que
Todavia, o expressivo aumento populacional e
consistia em intervenções pontuais nas moradias
o avanço das construções ocorreram essencial-
precárias consideradas “consolidadas”, porque
mente a partir da década de 1960, quando todas
estabelecidas em terra firme6.
as indústrias mencionadas já haviam encerrado
atividades. O êxodo rural, característico desse 5
PAC é o acrónimo para Programa de Aceleração do Crescimento,
período em todo o Brasil, trouxe muitos migrantes um empreendimento desenvolvimentista do Governo Federal Bra-
sileiro, ancorado em diversas obras de infraestrutura, incluindo a
a São Luís. Eles encontraram no mangue um lugar “urbanização de assentamentos precários”. O PAC do Rio Anil re-
para se instalar fora dos olhos e dos interesses das sultou de uma parceria entre o Ministério das Cidades e o Governo
instituições econômicas e políticas dominantes. Estadual do Maranhão e foi assinado com “cláusulas suspensivas”
devido à falta de elementos do projeto.
Se ocupações informais são, por definição, aque-
las que se constituem à revelia do controle formal 6
Com as obras de aterro e o impacto do bate-estacas para a cons-
trução da avenida, ocorreram danos em muitas habitações conside-
das instituições de Estado, os dados demográficos radas “adequadas”, que acabaram por ser incluídas neste serviço.
A avenida beira-rio foi construída e inaugurada transformou grupos sociais inteiros em pobres
parcialmente no final de 2014. Depois de uma urbanos e transformou o vernáculo em informal,
primeira tentativa fracassada, a obra, de fato, já foram amplamente descritos e criticados9.
conseguiu interromper o fluxo das marés no an- Mas a ocupação do rio Anil também se distingue
tigo mangue e o acesso direto de seus moradores de processos comparáveis. No mangue, canais e
ao rio7. (Embora não tenha conseguido impedir subcanais formam potenciais redes de água, esgoto
que um pequeno núcleo de novas palafitas esteja e transporte fluvial, enquanto que qualquer acesso a
timidamente a surgir do lado de lá da avenida.) pé exige previamente um esforço coletivo de cons-
Como era de esperar, não há registros carto- trução de vias sobre a água. (Fig.5 e 6) À diferença,
gráficos do processo de ocupação desse território, por exemplo, de favelas formadas em morros, em
nem houve qualquer estudo etnográfico anterior à que a ocupação começa pelas casas, inicialmente
intervenção do PAC8. Essa circunstância de erra- sem grande preocupação com a linearidade dos
dicação de um tipo de moradia e de apagamento caminhos, no mangue não é possível erguer uma
de um contexto particular de relações sócio-es- casa antes de garantir uma estrutura prévia e com-
paciais e sócio-ambientais nos motivou a estudar partilhada de acesso. Assim, cada nova porção da
a história das palafitas no estuário do rio Anil. favela do rio Anil constituiu um pequeno território,
solidário e relativamente isolado das demais porções.
DO PROCESSO DE OCUPAÇÃO A pesquisa de campo confirmou nossa suspeita
de que os moradores também realizaram coleti-
O processo de ocupação da favela em estudo
vamente o aterro de pelo menos uma parte dos
teve muito em comum com a história de outras
caminhos de madeira. Se no início haviam fabricado
ocupações urbanas informais e pobres (em re-
um território sobre a água, numa segunda fase de
lação aos níveis mínimos de consumo supostos
consolidação da ocupação passaram a fabricar sua
para uma vida urbana dita digna). Nas grandes
própria “terra firme”. Os entrevistados se referem a
cidade de todo o mundo “em desenvolvimento”,
essa fase como grande conquista, frisando a ausência
os migrantes recorreram a conhecimentos do
de apoio externo e a contraposição a obras públi-
seu contexto cultural de origem e os adaptaram,
cas. Também chama a atenção o fato não usarem o
de maneira mais ou menos bem sucedida, aos
termo aterro, mas palavras como entulhar e entu-
recursos a que conseguiram ter acesso num meio
lhamento. Isso indica que, mais do que no produto
físico, social, cultural e econômico novo. Os as-
final (aterro), o imaginário coletivo se concentra no
pectos comuns a essa transposição dolorosa, que
material (entulho) e no processo (entulhar), como
O número (6000) reflete já esse acréscimo. Redefinições do projeto, que mantendo presente a memória dos recursos e
como esta, iam acontecendo continuamente durante a sua imple- esforços ali investidos, que abrangem desde tempo
mentação.
e trabalho braçal até uma extraordinária capacidade
7
A primeira solução adotada para a contenção do aterro foi um de organização. Aqui era tudo maré e a gente é que
sistema de paliçadas de madeira, que eram desfeitas constantemen-
te pelas marés, revelando a falta de conhecimento básico sobre a foi entulhando10. Nós entulhamos e não tivemos ajuda
realidade local. Posteriormente, foi adotado o sistema de contenção
com molhe de pedra e aterro em terra armada. 9
Por exemplo, por John Turner e Robert Fichter (1972), Hassan
Fathy (1976) e Ivan Illich (1981).
8
Houve um projeto governamental anterior, o ProMorar, realizado
no inicio dos anos 1980 e financiado pelo BNH-Banco Nacional de 10
Ana Lea Santos. Entrevistada que nasceu em Alcântara e chegou
Habitação que previa a construção de lotes urbanizáveis e habita- a São Luís na década de 1980, adolescente e grávida, para traba-
ções, do qual não encontramos estudos. O projeto não foi concluído lhar como empregada doméstica. Após o parto foi morar com a mãe
e a principal ação consistiu num extenso aterro por dragagem, ha- numa palafita. Hoje é professora e dá aulas particulares de reforço
vendo também vestígios da definição do traçado de algumas ruas. na sala do apartamento que ganhou pelo PAC.
Fig.5 Avanço das palafitas sobre o mangue. (2008). Fig. 6 Ponte de acesso e novas palafitas. (2008).
Fig. 7 Diferentes fases da “construção” de uma rua: ponte de Fig. 8 Palafitas com duas frentes. Barcos ancorados nos “fundos”.
madeira, aterro e asfalto. (2008). (2008.)
de poder nenhum […] aqui só em época de eleição é quarteirões mais ou menos regulares, em que os
que eles aparecem11. fundos, após o aterro, passaram a ser quintais,
Segundo contaram vários moradores, os aterros reconhecíveis nas fotografias aéreas pela mancha
começavam linearmente pelas vias de madeira e de verde e vegetação.
logo se expandiam para a frente das casas, que
assim podiam ganhar uma fachada de alvenaria, DA CONSTRUÇÃO DAS CASAS
mas permaneciam com os fundos sobre estacas
A construção das palafitas na área do rio Anil
e abertos para a água, o que permitia o acesso
não seguiu uma técnica única e homogênea, por-
direto dos barcos de pesca e o escoamento dos
que muito dependeu das características específicas
esgotos. (Fig.8) É possível observar que esta lógica
de cada porção do território e da disponibilidade
de organização com frente e fundos resultou em
de materiais e recursos no momento das obras.
11
Vitória Barbosa. Entrevistada que nasceu em Alcântara e se
Podemos, todavia, sintetizar algumas caracterís-
mudou para São Luís na adolescência. Mora numa palafita, mas ticas recorrentes, descritas pelos entrevistados e
apenas os fundos estão sobre estacas, pois a rua da frente e o espaço observadas nas palafitas ainda existentes ou em
sob a casa já foram aterrados. Está em vias de transferência para
um apartamento, construído pelo PAC.
construção na outra margem do rio.
DÉCADA DE 1960
Franjas de palafitas
começam a avançar para
o interior do mangue,
no seguimento das ruas
existentes.
DÉCADA DE 1970
Uma palafita de 18m2 (3m x 6m) se faz em cerca roliços de madeira bruta, muito usados na cons-
de duas semanas e consome aproximadamente 150 trução civil também para escoramento de lajes.
estacas e 20kg de pregos de todo tamanho, como Se se pode investir mais, ou quando se pretende
diz o senhor Tássio Ribeiro12. Os construtores construir uma palafita de dois andares, recorre-se
distinguem genericamente entre pau de mangue às pernas-mancas, peças serradas industrialmente,
e madeira do mato, mas à pergunta sobre o tipo de seção quadrada e madeira segura: pau-darco,
de madeira não respondem com muita clareza – tatajuba, que chegam a resistir quinze anos.
tem de toda a qualidade, tem bacuri... tem toda a O piso ou assoalho de uma nova palafita costu-
madeira. Preferem o mangue vermelho para as mava seguir a altura da ponte que lhe dava acesso,
estacas, porque tem os paus mais grossos e resis- subindo um pouco. No início, nem sempre havia
tentes, que se preservam na lama, o seu habitat muita preocupação com eventuais inundações: de
natural, e demoram mais tempo a apodrecer que oito em oito dias a maré fazia a limpeza geral.16 Mas
outras madeiras. Da sua casca provém ainda uma desde que a energia elétrica e os eletrodomésti-
resina rubra que é uma das tinturas mais eficazes cos chegaram, grosso modo, nos anos 198017, os
para colorir as velas dos barcos, uma vez que fecha construtores previnem-se para a água não entrar
bem o pano, tornando-o resistente ao vento e ao na palafita, mesmo com a maré cheia. Primeiro
salitre agressivo da maresia. fincam um pau, que é marcado pela maré de lua
No entanto, hoje as estacas são compradas so- - quando a água do mar atinge o seu nível mais
bretudo nos vários depósitos de construção exis- alto18 - depois sobe meio metro acima da altura da
tentes na avenida da Camboa - onde no passado maré porque a tendência [da palafita] é só arrear.
existiu a linha férrea - ou diretamente no cais, Definida a altura do piso, trata-se de fincar
dos barcos que chegam do interior.13 Segundo na lama as estacas da casa, também chamadas
o senhor José Américo14, agora apenas chega de pernas, paus ou mourões: a gente vai batendo,
madeira do mato […] porque pau de mangue o batendo, até sentir [a lama] endurecer, até não ir
Ibama15 não deixa […] por causa da desmatação mais. Joberval Bertoldo lembra os ensinamentos
que está demais. As peças que vimos empilhadas dos mais antigos sobre a importância de perce-
no cais custavam cerca de R$10 (2,5€) por unidade ber as diferenças de densidade do solo: debaixo
e vinham com 5m de comprimento e um dos topos
afiados. Eram peças de seção circular, troncos 16
Basílio Durans nasceu em Perimirim e foi para a capital com
20 anos, na década de 1960, morar com a madrinha, empregada
doméstica que habitava numa palafita na Liberdade. Mais tarde,
12
Tássio Ribeiro é construtor de barcos e de palafitas, e é também construiu a sua própria palafita que, na sequência de melhorias
pescador com barco próprio. Nasceu em Alcântara, onde viveu até e aterros feitos pelo próprio, é hoje uma casa de alvenaria, de dois
aos 17 anos, quando foi para a capital “tirar os documentos e se andares. Participante ativo em movimentos de defesa de palafitados
alistar no exército”, mas não serviu e por ali ficou, onde construiu a e favelados e em grupos culturais, gere hoje um depósito de material
sua palafita. Hoje mora num apartamento do PAC. Quando o en- de construção, no mesmo bairro.
trevistamos, tinha acabado de construir uma palafita para a filha, 17
Este período é aproximado devido à referida descontinuidade
na margem oposta do rio. territorial e porque a energia elétrica chegava muitas vezes pon-
13
A avenida foi construída no leito da ferrovia, desativada e des- tualmente, através de favores de políticos a determinado núcleo de
mantelada nos anos 1970; constitui uma parte do chamado anel vizinhança.
viário, que delimita no seu interior o “centro” da cidade. 18
Formalmente chamada maré de sizígia, acontece nas luas nova e
14
José Américo é carpinteiro naval. Oriundo de Alcântara, onde cheia, quando as forças de atração do sol e da lua se somam, pro-
nasceu, mudou-se para São Luís com a família para que os seus duzindo as mais altas preamares e as mais baixas marés baixas
filhos pudessem ali frequentar uma escola. do ciclo. As marés de quadratura, chamadas de “marés de quarto”
acontecem na lua crescente e minguante, quando as referidas forças
15
Ibama - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente. de atração se opõem, originando oscilações de menor amplitude.
Fig. 9 Interior de cozinha, com jirau. (2012). Fig.10 Remendos na parede lateral de palafita. (2012).
da lama mole tem o teso, que já é terra firme 19. frente recebe certas atenções, ficando a estrutura
Também chamada de tabatinga, é uma terra ar- do lado de dentro, de forma a garantir a referida
gilosa, mais densa que a lama. Em média, 3m da continuidade, desta vez, na superfície exterior da
estaca são afundados na lama até à tabatinga e parede. É frequente pregarem-se ainda tábuas ou
2m separam a superfície desse solo lamacento ripas finas cobrindo as juntas das primeiras tábuas.
do assoalho da casa. É aberta, via de regra, uma porta e uma janela,
Nas estacas são pregadas ou aparafusadas as bastando não fechar o vão que se pretende aberto,
travessas, formando um sistema porticado sim- coincidente com os intervalos da estrutura.
ples, via de regra, sem contraventamento. Aqui Uma vez que as palafitas costumam ser constru-
começa a ser utilizada a furadeira elétrica - a única ídas em linha e apesar das paredes vizinhas nunca
ferramenta que não é manual - que é conveniente se encostarem, não costuma haver aberturas nas
para não lascar a madeira, senão em pouco tempo fachadas laterais, resultando estreitos intervalos
penetra água e a madeira apodrece mais rápido. entre as casas. Nos fundos, onde se situa a cozinha,
Em cima das travessas assentam-se ainda os bar- pode existir um tipo de abertura conhecido como
rotes, onde se vão sobrepor as tábuas que formam jirau, uma espécie de bancada que se prolonga do
o piso, como uma mesa - onde se vai construir a lado de fora, permitindo que a água da lavagem
casa em cima. de alimentos ou utensílios caia diretamente no
As paredes têm uma estrutura pontual, feita canal (Fig. 9).
muitas vezes de peças roliças iguais às que ser- Para além das tábuas, a vedação pode fazer-se
viram de estacas, como que prolongando estas, com painéis de compensado, também chamado
em todo o perímetro da mesa. Pelo interior, pre- madeirite (contraplacado em português euro-
gam-se, a essas peças verticais, tábuas na direção peu), ou com lonas de plástico. É muito frequente
contrária, subindo quase em simultâneo. Desta apresentarem retalhos ou emendas posteriores de
forma, com a estrutura no exterior, as paredes diferentes materiais, sempre aplicados pelo exte-
internas ficam lisas e contínuas. A fachada da rior (Fig. 10). Anteriormente, já foi muito usada
a meaçaba, que é uma esteira de fibra entrançada
19
Joberval Bertoldo, é engenheiro mecânico aposentado. Nasceu na das folhas da palmeira de babaçu, material de que
Fé em Deus, onde os pais se instalaram quando vieram do interior já foram também feitas portas e janelas.
e o pai construiu uma palafita.
adiciona-se um quarto, junto ao que existe, no se chame alguém familiarizado com carpintaria
meio, mantendo a organização base. ou construção civil, para as construir. A nossa
Antes do trabalho de campo, levantamos a interpretação é de que esse relativo desprezo por
hipótese de que os procedimentos para a cons- um saber do qual muitos dependeram por tanto
trução das palafitas poderiam ter afinidade com tempo é correlato ao desprezo pelas moradias que
as técnicas da carpintaria naval, uma vez que ele produz. Ambos – desprezo pelo processo e
muitos dos moradores do rio Anil eram ou ainda pelo produto – provêm das instituições a que os
são pescadores. De fato, os dois ofícios usam o moradores da favela do rio Anil inevitavelmente
mesmo material e as mesmas ferramentas: serrote, estão sujeitos e cujo ideário tendem cada vez mais
enxó, machado, plaina e furadeira. No entanto, os a incorporar: a palafita é, necessariamente, uma
poucos artífices que trabalham em ambos dizem forma de habitação precária.
taxativamente que não tem nada a ver. Como
explicou Valdimar Santos20, barcos têm de ser CONCLUSÃO
construídos no seco, de preferência em estaleiro
Assim, parece-nos que o processo de substitui-
coberto, enquanto a palafita constrói já na água
ção das palafitas do rio Anil por casas de alvenaria
mesmo e sempre continua no mesmo lugar. Nas
ou por prédios de apartamentos está muito mais
embarcações, as juntas das pranchas devem ser
relacionado a motivações simbólicas dos mora-
perfeitamente vedadas (utilizam uma mistura de
dores e a ações diretas do Estado (simbólicas e
óleo de mamona e cal), enquanto nas palafitas,
físicas), do que a técnicas e materiais construtivos.
é até uma vantagem a ventilação trazida pelo ar
Não são necessariamente questões materiais
condicionado natural que entra nas brechas das
que motivam a preservação ou a erradicação, se
tábuas, como lembrou Basílio Durans. Apenas
técnicas construtivas semelhantes podem servir
um entrevistado mencionou que seu pai usava
de pretextos para ações tão distintas como as
entalhes de embarcação na pregação dos elementos
que estão em curso nas palafitas do rio Anil e
estruturais das palafitas.21
nas palafitas do rio Tejo. Também no próprio
Maranhão, não muito longe de São Luís, se de-
DA PALAFITA À ALVENARIA
senvolvem estudos profundos sobre as ruínas
As declarações apresentadas, assim como o palafíticas da região dos lagos, identificadas já no
contraste entre a pintura mais caprichada dos passado como “a civilização lacustre do Brasil”22 e
barcos e a falta de acabamento externo em muitas herança de culturas indígenas anteriores à chegada
palafitas, indicam a distância social entre as duas dos europeus. Enquanto se produzem maquetes
práticas. Enquanto a carpintaria naval é de fato de reconstituição dessas culturas desaparecidas,
entendida como um ofício, um saber-fazer espe- na favela do Anil, o aniquilamento parece ser a
cializado e respeitado, a construção de palafitas única resposta defendida pelas políticas públicas
não tem o mesmo status, ainda que, via de regra, e praticada pelos programas de urbanização.
Nesse sentido, apresentamos o processo de cons-
20
Valdimar Santos, pesca desde os 8 anos. É pescador profissional,
sem barco próprio. Nasceu em São José de Ribamar, um dos quatro trução e ocupação dessa favela como memória de
municípios, incluindo São Luís, que formam a ilha do Maranhão, e uma cultura construtiva em vias de erradicação.
mudou-se para a Camboa nos anos 1980.
21
Joberval Bertoldo. O pai “sempre teve igarité” e trabalhou numa
“costeira”. Igarité é um pequeno barco e costeira é a designação local 22
Esse legado de ruínas de habitações construídas sobre estacas, em
das embarcações de navegação costeira, que pescam em mar aberto estreita relação com o contexto hidrográfico da região, foi estudado
e eventualmente em águas internacionais. e documentado inicialmente por Raimundo Lopes (1924).
Acreditamos que há outros caminhos possíveis a construção naval, ou mesmo os rituais religio-
para os programas governamentais e, ao contrá- sos e de danças da cultura negra, que também
rio de bloquear os modos de vida instituídos, e ali se desenvolveram de modo intenso; soluções
limitar oportunidades - como aconteceu com a que podem passar também pela valorização das
construção da avenida marginal que obstruiu a palafitas como cultura própria.
conexão com o rio, - devem procurar-se soluções Se, em boa verdade, as palafitas daquela área já
que aumentem as possibilidades dos habitantes. praticamente não existem, há em São Luís muitas
Soluções que vão no sentido do apoio à transmis- favelas de palafitas, onde podem ser implemen-
são de conhecimentos e técnicas, à valorização de tadas ações que considerem os modos de vida
atividades e saberes que ali existem como a pesca, próprios.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Artitextos n.º 8, p. 153-174 Lisboa: CEFA /CIAUD. build: dweller control of the housing process. New
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Kapp, Silke e Baltazar, Ana. 2012 “Metropolitan Ver- dos bairros Camboa, Liberdade, Fé em Deus e Ale-
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a Brazilian City.” In Nuts & Bolts of Culture, Techno- entre os quais Ana Santos, Basílio Durans, Joberval
logy and Society Construction History, vol. 2 edited Bertoldo, José Américo, Tássio Ribeiro, Vitória Bar-
by Carvais, Robert et al., p. 3-10 Paris: Picard bosa e Valdimar Santos, citados ao longo do texto.
Lopes, Raimundo. 1924. “A civilização lacustre do
Brasil” Boletim do Museu Nacional do Rio de Janei-
ro v.1, nº2 p.87-109. Rio de Janeiro
Miranda, Elisiário(1)*
[email protected]
(1)
RESUMO
O investimento dos governos central e provincial no desenvolvimento da antiga província ultramarina
de Moçambique, conduziu, no período entre o segundo pós-guerra e o eclodir da guerra colonial / de
libertação, a um acréscimo na programação e construção de edifícios de equipamento coletivo, destina-
dos a colmatar as lacunas existentes e a acompanhar o constante crescimento populacional.
Ao longo desta comunicação serão observados quatro casos de edifícios infraestruturais construídos em
Moçambique durante o referido período histórico, com o objetivo de aferir a sua filiação na coetânea
arquitetura do Movimento Moderno internacional e a sua proximidade com a moderna arquitetura
brasileira: o Complexo Comercial, Turístico e Habitacional Montegiro, em Quelimane (1954-1966),
projeto do escritório portuense de Arménio Taveira Losa (1908-1988) e Cassiano Barbosa (1911-1998);
a Estação Central da Beira (1957-1966), edifício desenhado por Paulo de Melo Sampaio (1926-1968),
João Afonso Garizo do Carmo (1917-1974) e Francisco José de Castro (n.1923), equipa de arquitetos à
época residentes naquela cidade; o Palácio das Repartições de Vila Cabral, atual Lichinga (1959-1962),
projeto de João José Tinoco (1924-1983) e Maria Carlota Quintanilha (n.1923), casal de arquitetos
residente em Lourenço Marques; e a Escola Técnica Elementar Governador Joaquim de Araújo (1957-
1966), síntese de anteriores experiências de arquitetura escolar desenhada por Fernando Mesquita
(1916-c.2000) e José Cotta no gabinete técnico dos Serviços de Obras Públicas do governo provincial,
em Lourenço Marques.
O efetivo impacto que o projeto, construção e inauguração destes edifícios modernos obteve nas co-
munidades locais, demonstra a capacidade da sua arquitetura para responder às condicionantes pro-
gramáticas, climáticas, económicas e tecnológicas do território. Revela igualmente a sua predisposição
para se tornarem ex-libris no tecido urbano envolvente e símbolos dos valores de modernidade, progres-
so e permanência que integraram a utopia identitária do regime do Estado Novo.
INTRODUÇÃO
O investimento dos governos central e provin- maior dimensão no período após o final da II
cial no desenvolvimento infraestrutural da antiga Guerra Mundial e o eclodir da guerra colonial ou
província ultramarina de Moçambique, assumiu de libertação, em 1964. Este processo conduziu a
um quarteirão com quatro frentes através de um de vidro “Evinel”, azulejos, granito polido, pe-
embasamento contínuo, pontualmente interrom- dra Lioz polida e reboco pintado. Por empresas
pido no miolo do quarteirão, acima do qual se do Porto e mão-de-obra metropolitana foram
projetam quatro prismas retangulares autónomos produzidas as caixilharias dos vãos exteriores,
com diferentes altimetrias. O conjunto edificado quer as de alumínio anodizado dos espaços mais
contém uma grande unidade na sua expressão representativos, quer as de madeira envernizada
arquitetónica: semelhante resolução das frentes que encerram todos os vãos restantes – com ex-
urbanas dos espaços comerciais, ordenação dos ceção das aberturas do armazém e do portão de
alçados principais segundo grelhas estruturais de acesso ao pátio de carga e descarga, executadas
betão, proteção climática dos alçados posteriores com perfis de ferro.
com “brise-soleil”, hierarquizada pormenorização O carácter funcional dos espaços públicos do
dos vãos exteriores e constante utilização dos snack-bar e hotel foram enfatizados pelos ma-
mesmos materiais, motivos gráficos e princípios teriais selecionados para o seu acabamento: os
de aplicação dos revestimentos exteriores. revestimentos de pedra Lioz, mármore Verde
Os edifícios projetados cumpriam funções Viana, madeira maciça envernizada e estafe dos
distintas, reflexo da diversidade das atividades pavimentos, paredes e tetos do vestíbulo de entra-
económicas desenvolvidas pela Monteiro & Giro: da, escada nobre e galeria do entrepiso realçam a
comerciais nas instalações de aluguer ou naque- representatividade da zona de receção do hotel; a
las destinadas à sede da empresa e a firmas a ela marmorite, reboco e perfis metálicos brancos dos
associadas (instalações comerciais, armazém e degraus, despenhamentos e guardas da escultórica
escritórios); habitacionais nos fogos de rendi- escada helicoidal, iluminados lateralmente contra a
mento dos três blocos mistos; e turísticas no hotel tijoleira canelada em forma de bambu e a madeira
e snack-bar. maciça das paredes envolventes, revelam a sua
A disposição da estrutura de suporte do con- função articuladora; o uso de extensas superfí-
junto obedeceu a uma articulação de duas malhas cies de madeira maciça envernizada de jambir,
de pilares, compostas por pórticos estruturais de umbaua ou umbila, tijoleira, alcatifa e parquet,
pilares e vigas de betão armado, dimensionadas acentuam o conforto das salas de estar e jantar,
segundo uma métrica plasmada ao longo das do café-bar e da boîte, do snack-bar, dos espaços
frentes urbanas dos edifícios principais. de circulação e dos quartos. Em todo o bloco H os
Os principais materiais que foram utilizados vãos interiores e os armários predominantemente
na edificação do complexo têm origem indus- executados em madeira maciça envernizada e
trial. Entre eles destaca-se a intensiva utilização “placarol” folheado, sendo de destacar o sofisticado
dos produtos da Fábrica Cerâmica da Monteiro desenho dos pormenores da porta de pivot que
& Giro (1956-1960), em edificação nos arre- separa o vestíbulo dos quarto-tipo da respetiva
dores de Quelimane, quer no encerramento e zona de dormir. Neste edifício predominam os
compartimentação dos espaços interiores, com revestimentos que remetem para temas caracte-
paredes simples ou duplas de tijolo vazado, quer rísticos da arquitetura da década de 60: a extensiva
no revestimento de coberturas e paredes ex- utilização de madeira maciça envernizada, de
teriores e interiores com tijoleira lisa, ou com reboco carapinha, de alcatifas, napas e cortinados,
diversos motivos em relevo formando painéis o desenho dos pontos de luz em forma de cilindros
decorativos. Outros revestimentos dominantes e hexágonos de gesso ou metal, suspensos das lajes
são a marmorite, o “cavan”, a pastilha de pasta ou compondo tetos falsos.
e Construções, sido assinado em Fevereiro de foi desenhada por João Garizo do Carmo como
1963. Nessa altura decorriam já os trabalhos de um espaço longitudinal constituído por linhas
cravação das estacas de betão. Os acabamentos ferroviárias, plataformas dos cais e respetivos
foram executados pela Empresa de Construções alpendres, e pelos vinte e sete módulos do edifício
Civis e Industriais, após a empreitada ter sido de comando do cais.
trespassada pela adjudicatária inicial. As infra- Na edificação do complexo foram utilizados
estruturas da zona do cais ficaram concluídas e sistemas construtivos industriais e materiais es-
entraram em funcionamento em 31 de Dezembro tandardizados. Devido à natureza instável dos
de 1963 enquanto a inauguração do complexo teve terrenos da cidade o edifício foi fundado sobre
lugar no dia 1 de Outubro de 1966 estacas cravadas nos fundos lodosos. A construção
A estação localiza-se na margem direita de um de todos os pavimentos térreos interiores e exte-
braço de mar localizado a norte da língua de areia riores foi prevista em lajes de betão armado com
sobre a qual assenta o núcleo inicial da cidade, diferentes espessuras e revestimentos. A estrutura
uma área com desenho urbano e ocupação funcio- de suporte do complexo foi erguida com pilares,
nal definidos pelo Plano de Urbanização da Cidade vigas e arcos construídos em betão armado, e
da Beira (1943-1951), da autoria do arquiteto José lajes planas e curvas construídas em betão ma-
Luís Porto (1883-1965) e do engenheiro Joaquim ciço ou em elementos vazados “Rosacometa”. A
de Oliveira Ribeiro Alegre. abóbada de cobertura do corpo do átrio, formada
A implantação do complexo tem a forma de por uma laje curva com 0,18m de espessura, é
um “L”, permitindo uma continuidade visual e suportada por sete arcos parabólicos invertidos
funcional entre a zona do cais, a nordeste, e as de betão com 1,00m de dimensão transversal e
instalações portuárias, a noroeste. A sua complexa abatimento de 1/4. Estes arcos vencem um vão
organização volumétrica resultou da subdivisão de 53,40m ao nível do solo, os seus impulsos
das duas zonas requeridas pelo programa geral suportados por tirantes em betão pré-esforçado
- estação e administração -, em três áreas de ca- enterrados na camada arenosa de 2m de aterro.
rácter funcional distinto: corpo do átrio, corpo da A pala que cobre a entrada do átrio está suspensa
administração e zona do cais. A atribuição a cada por tirantes metálicos dos arcos parabólicos, à
um dos três arquitetos da equipa de projetistas vista na frente sudoeste e embebidos nos perfis
de uma área de intervenção autónoma reflete da caixilharia do lado nordeste. A toda a altura
esta estruturação tripartida do programa. A esta dos oito pisos do corpo da administração, com
organização correspondem três sólidos geométri- 78,4m de comprimento sem juntas de dilatação, a
cos autónomos, ordenados segundo uma matriz estrutura é composta por pórticos de pilares e vigas
compositiva assimétrica e articulados por espaços aparentes. Na zona do cais a estrutura do edifício
de transição claramente definidos: o corpo do de comando é constituída por pórticos de pilares
átrio foi desenhado por Francisco José de Castro e vigas de betão formando módulos cobertos por
como um volume coberto por uma membrana lajes planas, a que se sobrepõem abobadilhas de
parabólica de betão, suportada por sete arcos betão em arco de escarção. Os pilares centrais de
parabólicos invertidos; o corpo da administração perfil oblíquo dos alpendres dos três cais apoiam
foi projetado por Paulo de Melo Sampaio, com a vigas triangulares que por sua vez suspendem lajes
forma de um prisma retangular assente em pilotis em “borboleta” de betão aparente.
com oito pisos de altura, formado pela sobrepo- Nos elementos de encerramento e comparti-
sição de oito prismas menores; a zona do cais mentação dos espaços, assim como no revestimen-
to das superfícies e nos equipamentos utilizados, ladas cobertas por abóbadas em arco de escarção.
recorreu-se predominantemente a componentes A ventilação transversal dos espaços foi garantida
de produção industrial, a maioria dos quais fa- pelo encerramento de vãos com persianas de vidro
bricados pela indústria local. Os paramentos ex- reguláveis (sistema “Beta”) e por grelha formada
teriores e as compartimentações interiores foram por blocos vazados de betão moldado.
realizados com fiadas simples ou duplas de tijolo A integração de obras de artes plásticas concre-
vazado, não tendo sido concretizada a prevista tizou-se através da extensiva utilização de painéis
utilização de divisórias amovíveis na compar- decorativos em mosaico de vidro representando
timentação dos espaços interiores do bloco da padrões geométricos, composições abstratas ou
Administração. Os pavimentos exteriores foram motivos figurativos.
revestidos a betonilha esquartelada à cor natural O tema da membrana de betão formando uma
enquanto os interiores foram executados com nave abobadada fora já explorada em projetos e
mosaico cerâmico tipo “Cerabati” e parquet de obras de moderna arquitetura brasileira: na piscina
madeira. No revestimento de paredes foi utilizado coberta para a Sociedade Esportiva Palmeiras,
reboco pintado e mosaico vitroso (fabricado pela em São Paulo, Brasil (1951) por Carlos Frederico
Vidrul, Vidreira Ultramarina, empresa sedeada em Ferreira, no Clube Diamantina, em Diamantina,
Luanda) e no revestimento de tetos reboco pintado Minas Gerais (1954) por Óscar Niemeyer, no gi-
e contraplacado. A constituição dos vãos exteriores násio do conjunto residencial do Pedregulho, Rio
e interiores contribuíram para o estabelecimento de Janeiro (1950-1952) e na Escola Experimental
de uma hierarquia dos espaços em função da qua- Brasil-Paraguai, em Assunção, Paraguai (1953),
lidade das componentes construtivas empregues: por Afonso Eduardo Reidy.
foram encerrados com caixilharias compostas por A linguagem da Estação Central da Beira apre-
perfis de ferro pintados a tinta de esmalte, com senta um vasto repertório de formas caracterís-
guarnições e bites de alumínio anodizado (cons- ticas da arquitetura do Movimento Moderno do
truídas pela empresa José de Magalhães, com sede segundo pós-guerra: jogos de volumes isolados,
na Beira e fábrica no Dondo), com caixilhos de composição assimétrica, libertação dos volumes
madeira maciça pintados a tinta de esmalte e com do solo por pilotis, “plan libre”, janelas em compri-
caixilhos constituídos por perfis de ferro zincado mento, sistemas construtivos industriais, materiais
com pintura de esmalte e persianas de vidro. Os estandardizados, arcos e abóbadas parabólicas e
portões e grades foram igualmente executados catalãs, coberturas em borboleta, “brise-soleil”,
com perfis de ferro, zincados e pintados a tinta grelhagens de ventilação, plasticidade escultórica,
de esmalte. As madeiras locais foram utilizadas murais cerâmicos e integração de obras de arte.
para hierarquizar e qualificar alguns espaços e
elementos arquitetónicos através de arrincoados PALÁCIO DAS REPARTIÇÕES DE VILA
CABRAL, LICHINGA (1959-1962) - JOÃO
e painéis de travessas macheadas de madeiras
JOSÉ TINOCO (1924-1983) E MARIA
exóticas como a panga-panga.
CARLOTA QUINTANILHA (N.1923)
Para proteção da incidência solar utilizaram-se,
entre outros sistemas, “brise-soleil” compostos por O empreendimento de construção do Palácio
painéis de fibrocimento de orientação regulável das Repartições de Vila Cabral, capital do então
com mecanismos de comando manual, fabricados Distrito do Niassa, constituiu uma iniciativa oficial
pela Lusalite de Moçambique, persianas interiores do governo-geral da antiga província de Moçam-
reguláveis “Lusaflex”, produzidas pela empresa bique. O seu programa visava dotar a capital do
Persianas Luso Texas (Beira), e lajes duplas venti- distrito do Niassa com uma infraestrutura na qual
num lote irregular resultante da associação de dois “Lusalite”, assentes em barrotes de madeira, ou
talhões separados pela antiga Rua 31 de Janeiro. De por asnas metálicas suportando chapas onduladas
acordo com os princípios testados anteriormente de fibrocimento. Os muros de suporte exteriores
nas escolas técnicas de Nampula, Quelimane e foram construídos com alvenaria irregular de
Inhambane, as construções da escola de Lourenço pedra grossa.
Marques implantaram-se sobre uma matriz or- Os materiais de construção que foram utilizados
togonal ortodoxamente disposta na direção dos são predominantemente de produção industrial,
pontos cardeais, autónoma em relação à orientação baixo custo e grande resistência e facilidade de
da malha urbana envolvente e aos limites do ter- manutenção. Os pilares e vigas aparentes foram
reno. O traçado da implantação baseou-se num rebocados no interior e bujardados a pico fino no
esquema em árvore formado por duas galerias exterior, assim como as lâminas de betão prefabri-
de circulação, orientadas na direção norte-sul, cado que constituem os “brise-soleil”. As paredes
nas quais entroncam os diferentes corpos do exteriores foram erguidas com fiadas duplas de
programa e respetivas circulações, dispostos na tijolo formando caixa-de-ar, revestidas por fora
direção este-oeste. Os diversos corpos da escola a placagem de pedra artificial e rebocadas nos
são intercalados por pátios exteriores de recreio, tímpanos das coberturas. As paredes interiores
deixando livre um vasto espaço a norte no qual rebocadas foram constituídas por fiadas simples
se localiza a zona desportiva. ou duplas de tijolo. As divisórias interiores foram
Dimensionada para uma população escolar de erguidas, nalgumas divisórias do pavilhão da
1000 alunos de ambos os sexos, o seu programa administração, com painéis amovíveis “Robwall”,
detinha a maior dimensão e complexidade entre compostos por prumadas de alumínio e painéis de
todas as escolas técnicas construídas em Moçam- enchimento de madeira, e nas instalações sanitá-
bique durante o período inicial da década de 60. rias das salas de desenho e do ginásio por placas
Compunham-na os pavilhões da administração, de granulito armado com 4cm de espessura. As
de salas de aula, das salas de desenho, de trabalhos paredes interiores das salas de aula, de canto coral
manuais feminino, de trabalhos manuais mascu- e das instalações sanitárias foram rebocadas e
lino, da Mocidade Portuguesa e copa, do ginásio protegidas por lambrins de “Vinylex”, masonite
e de canto coral. A zona desportiva compreendia e aparite, utilizando-se ainda revestimentos acús-
pistas de corridas, de saltos em comprimento e ticos de “Treetex” e “Selotex”. Os tetos falsos que
de saltos em altura, um tanque de natação, um ocultam asnas metálicas foram revestidos com pla-
campo de hóquei em patins, um de basquetebol cas de frigotermo, com forros parciais de masonite
e três de voleibol. acústico perfurado e “Oregon-Pine” arrincoado, e
O dimensionamento da estrutura de suporte com chapas de fibrocimento ondulado. Os pavi-
dos pavilhões e galerias obedeceu à repetição mentos exteriores dos cobertos e galerias foram
e multiplicação de uma modulação de base. A revestidos a argamassa asfáltica e rematados com
estrutura das galerias é formada por pórticos de chapins de pedra artificial nos pisos superiores.
pilotis tubulares metálicos, nos quais se apoiam Os pavimentos interiores foram quase totalmente
vigas transversais de betão que por sua vez su- revestidos com ladrilhos de “Vinylex” e as esca-
portam lajes do mesmo material. Nos diversos das com mosaicos cerâmicos “Cerabati”. Os vãos
pavilhões a estrutura foi formada por pilares, vigas exteriores, que têm soleiras e peitoris em pedra
e lajes de betão, sendo as coberturas protegidas artificial, foram maioritariamente encerrados com
por telhados de chapas onduladas de fibrocimento esquadrias de madeira esmaltada suportando
Fig. 1 - Complexo Montegiro, Quelimane - Planta geral, Março de Fig. 2 - Complexo Montegiro, Quelimane - Bloco A e Hotel
1956 a 20 de Junho de 1960 - FAUPCDUA, AL/CB, ARQ/115. Chuabo (Elisiário Miranda, 2009).
portas de madeira esmaltada ou janelas com vidros de placas verticais de betão perpendiculares ao
fixos ou persianas estandardizadas com vidros plano das fachadas sul de diversos pavilhões, o
móveis, presos em perfis de alumínio. Os vãos sombreamento das lajes de cobertura de alguns
exteriores do ginásio foram constituídos também pavilhões por telhados duplos ventilados, com-
por portas e portões metálicos esmaltados, janelas postos por chapas de fibrocimento assentes em
basculantes e rasgos de ventilação protegidos por estruturas de madeira pousadas na laje de betão,
lâminas fixas de madeira. As guardas das escadas ventiladas por aberturas contínuas ao longo das
e das galerias dos pisos superiores dos diversos frentes maiores dos pavilhões.
pavilhões foram compostas por varões verticais A ventilação transversal dos espaços interiores
de aço esmaltado e corrimões realizados com foi realizada com persianas de vidro orientáveis
tábuas de madeira esmaltada. integradas nas caixilharias das frentes longitudi-
O mobiliário fixo da escola integrou-se no de- nais dos edifícios (sistema “Beta”), por lâminas
senho dos pavilhões-tipo: os armários tinham oblíquas fixas de betão moldado e por grelhas
estrutura, rodapés, aros e puxadores de portas vazadas de módulos cerâmicos.
em madeira de umbila envernizada, cobertura O desenho desta escola nasceu de um processo
com lajetas de pedra artificial armada, folhas de evolutivo do projeto-tipo de escolas de arquitetura
portas em masonite, fundo do armário em aparite moderna desenvolvido por Fernando Mesquita
ou “Vynilex”, prateleiras em tábuas de umbila ou desde meados da década de 50 nas escolas de
pedra artificial polida. No ginásio os suportes Nampula, Quelimane e Inhambane. Apenas o
das cortinas dos balneários das raparigas foram desenho das treliças metálicas suportando cober-
pormenorizados com varões e chapas de cobre e os turas onduladas de pendente única da cobertura
móveis fixos dos balneários dos rapazes com perfis dos pavilhões de trabalhos manuais nos revela
tubulares e tábuas de madeira maciça de umbila. uma possível influência estrangeira: a semelhante
O desenho da Escola resultou em grande parte utilização de longarinas de vergalhões de aço su-
da resolução dos problemas de proteção climática portando chapas de alumínio ondulado na casa de
do edifício. Salientam-se, entre os sistemas de pro- campo de Lota de Macedo Soares, em Petrópolis,
teção solar adotados, a aplicação de “brise-soleil” Rio de Janeiro (1953), por Sergio W. Bernardes,
Fig. 3 - Estação Central da Beira - Planta do conjunto, 18 de Abril de 1959 - PT/IPAD/UM/DGOPC/DSCTT/1566/06898 (Elisiário
Miranda, 2010).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Diário de Moçambique. Beira. Diversos números. Infraestruturas de arquitetura moderna em Mo-
Esteves, Joaquim Moura (coord.); Tavares, João çambique (1951-1964). Guimarães: [s.n.]. Tese de
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Universitárias Lusófonas. África: Angola e Moçambique. Lisboa: ICIST, Téc-
Mattoso, José (dir.), Barata, F. Themudo (coord.); nico.
RESUMO
Propõe-se, a partir de uma obra de habitação plurifamiliar, de 1948/50, da autoria do arquitecto Má-
rio Bonito, explicitar o processo de desenho tendo em conta a sua relação entre forma e construção na
procura de uma expressão arquitetónica, ou seja, afirmar um discurso coerente e propositivo de autor
como resposta aos prementes problemas associados à arquitectura contemporânea.
No Prédio de rendimento na rua Aires Ornelas o modelo de cidade alternativa não está em discussão,
garantindo a continuidade da cidade tradicional, transferindo a pertinência do conjunto para o seu
desenho de composição e expressão arquitectónica.
O processo de desenho traduz uma clareza na articulação volumétrica com a hierarquização e decom-
posição dos alçados em vários planos, através da individualização de vários elementos arquitectónicos,
tirando partido da qualidade artesanal e técnica dos materiais e, sobretudo, da duplicidade dos dois
sistemas construtivos utilizados.
O discurso entre tradição e modernidade apresenta-se a partir de uma interpretação da verdade cons-
trutiva e da compreensão da natureza dos materiais utilizados. O discurso construtivo misto de pa-
redes resistentes em alvenaria de pedra e lajes de betão será o princípio condutor da composição e
caracterização do volume e hierarquização das duas fachadas principais.
Esta hierarquização, através da implementação de uma expressão formal distinta, será recorrente nou-
tras obras/autores modernos da época, no entanto, a clareza de desenho na procura de uma expressão
dicotómica com significação formal/estrutural e obedecendo a princípios teóricos distintos será invul-
gar e significativa para a clarificação de uma cultura e tradição construtiva contemporânea.
A introdução e reinterpretação de materiais tradicionais e sistemas construtivos mistos colocam novas
questões de desenho na construção de uma poética arquitetónica que permite/procura informar/con-
formar, nas narrativas contemporâneas, a identidade do objecto arquitectónico.
Tomás, de Júlio José de Brito de 1936 e no gaveto sino na Escola Superior de Belas-Artes do Porto
com a rua Firmeza, de Manuel Passos e Eduardo e as comunicações e conclusões do 1º Congresso
Martins, de 1942-45. A rua Fernandes Tomás, Nacional de Arquitectura, meses antes.
eixo de ligação entre o centro e a parte poente da
cidade, também conta com diversos exemplos de DA PROCURA DE UM DESENHO
prédios de rendimento resultantes da associação
de lotes de forma a cumprir o objectivo do inves- A implantação e a volumetria da proposta
timento imobiliário das casas-andar.4 respondem aos objectivos programáticos com a
No entanto, será com o Bloco da Carvalhosa ocupação integral da frente do lote, de 15 metros,
localizado na rua da Boavista, de Arménio Losa com um volume de aproximadamente 10,5 metros
e Cassiano Barbosa, de 1946-1949,5 obra para- de profundidade (incluindo varanda de serviço) e
digmática deste tipo de prédio urbano, que se de quatro pisos de altura para a rua Aires Ornelas.
introduzirão novos temas de desenho, associados à A configuração regular do lote e uma diferen-
arquitectura moderna, explorando não só a carac- ça de cota de 2 metros para a rua possibilitam
terização particular do volume na relação cheio/ estruturar o programa através da sobrelevação
vazio, incorporando grandes envidraçados, tirando do rés-do-chão, em 1,5 metros6, o que permite
partido do sistema construtivo, como ainda na localizar as garagens numa meia cave a partir da
organização dos espaços interiores, introduzindo cota natural do terreno e as quatro habitações
novas formas do habitar, sinais de ruptura com o nos restantes pisos.
modelo característico dos prédios de rendimento. O edifício organiza-se com uma habitação por
As condições e condicionantes do projecto de piso, servida por uma caixa de escada lateral in-
Aires Ornelas serão distintas das do Bloco da terior, complementada por uma galeria/varanda
Carvalhosa, tanto na localização e dimensão do e escada exterior de serviço, de acesso a partir do
lote – largura e profundidade – como ainda na logradouro. Esta opção permite regrar o sistema
ambição da encomenda do cliente, sobretudo pela estrutural e atribuir, não só, um significado fun-
afirmação das premissas da casa-andar de aluguer cional e formal distinto aos dois alçados, como
sem explorar a espacialidade e a interpretação de ainda, definir um circuito complementar de apoio
novas formas de habitar inerentes à ideológica à área de serviço, atribuindo maior flexibilidade
célula habitacional moderna. na gestão dos três núcleos da habitação – diurno,
Contudo, através do aprofundamento de temas nocturno e serviços.
de desenho específicos, será interessante verificar Mas será a localização da caixa de escadas inte-
como Mário Bonito se debate com a ambiguida- riores junto do alçado principal que anunciará um
de de desenvolver uma tipologia funcional de dos temas-chave na composição e qualidade da
características modernistas - prédio de rendi- distribuição colectiva e respectiva caracterização
mento - em paralelo com a participação activa volumétrica, ausentes na maioria dos prédios de
na defesa da arquitectura moderna enquadrada rendimento, tendo em conta a rentabilização da
pelas iniciativas da ODAM, a pedagogia do en- 6
A solução de implantar o rés-do-chão a meio piso ou sobrelevado
4
Rua Fernandes Tomás nº 137, Rogério de Azevedo, 1933; o nº 32- em relação à rua, de forma a garantir a privacidade das habitações
48, ARS, arquitectos, 1938; o nº 515-531, ARS, arquitectos, 1938, e e de ventilar e iluminar o piso em cave, será recorrente nos projectos
rua Fernandes Tomás nº 9-31 com rua Santo Ildefonso nº 553, José monofuncionais e com tradição na opção tipológica dos edifícios
Ferreira Peneda, 1936. oitocentistas na ocupação do lote do Porto. Ver Fernandes, Fran-
cisco Barata. 1999. Transformação e Permanência na Habitação
5
Licenciamento, nº 22 330, de 27 Dezembro 1946; Licença de habi- Portuense. As Formas da Casa na Forma da Cidade, Porto: Faup
tabilidade: 13 Setembro 1949. Publicações.
Fig. 6 – Hans Schmidt, “Contraprojecto para uma torre de água em Basileia”, 1925.
cobertura, em telha ou terraço com platibanda, e qualidade de resposta que a indústria nacio-
o remate superior, enquadrando os movimentos nal representava, nas opções arquitectónicas,
horizontais sombreados das varandas como corpo conforme se confirma na memória descritiva do
principal (Fig. 5). aditamento “os rasgamentos da fachada prin-
A proporção final dos volumes e dos elementos cipal que se previam cheios em tijolo de vidro,
arquitectónicos, em ambos os alçados, permite e devido à falta deste material no mercado em
perceber a importância da composição arquitec- boas condições de aplicação serão cheios a vidro
tónica como um equilíbrio das diversas partes e martelado sobre prumos do tipo gracifer”. (Bonito,
a individualização dos elementos construtivos
M; Lima, J. 1949)
disciplinados por um traçado geométrico e modu-
Mas serão os conceitos teóricos que fundamen-
lação atenta à escala humana – a medida a partir
tam a expressão formal de um volume compacto
da proporção do corpo humano.
de geometria simples que inscreve vãos pontuais,
Nesta obra predomina, sobretudo na base do
alçado principal, o ofício do artesão em contra- apresentando o paramento exterior como conten-
ponto aos materiais e elementos que incorporam ção do interior, em oposição ao entendimento do
o sentido da indústria da construção com sistemas edifício como um sistema integrado e correlacio-
e elementos em série ou prefabricados presentes nado identificando a identidade/autonomia de
no desenho do alçado do logradouro. Os motivos cada elemento, os condutores principais do dese-
para esta opção poderão estar relacionados com nho. Neste entendimento a composição deverá ser
a encomenda ou gosto do cliente, mas estarão, vista como uma narrativa texturada nas relações
por certo, condicionados pela capacidade, custo que os diversos elementos estabelecem entre si.
A dupla fórmula estabelecida por Hans Schmidt te para os princípios arquitectónicos de Auguste
sobre a redução do peso na composição arquitec- Perret – “matériaux apparents, ossature aparente”.
tónica, “Construção x Peso = Monumentalidade; (Vago, Pierre. 1932, p 17)
Construção/Peso = Técnica”,8 explorando a tecno- Verificar-se-á que a opção de utilizar mate-
logia e a indústria da construção em série como riais como o granito e elementos arquitectónicos
resposta às necessidades sociais, será a matriz salientes no mesmo material do pano de fun-
do discurso arquitectónico de Mário Bonito e o do será abandonada nas obras seguintes, com
ensaiado no alçado sobre o logradouro deste caso a expressão arquitectónica traduzida através da
de estudo. (Fig. 6) introdução de materiais, de diversas texturas e
Será a distinção entre o corpo principal e a base processos construtivos associados à indústria da
numa frente e a horizontalidade na outra que construção, afastando-se de soluções construtivas
introduz o discurso entre tradição e modernida- mistas, enraizadas na tradição da construção de
de, tirando partido da verdadeira natureza dos caracter artesanal.
materiais e do sistema construtivo, utilizando nos Contudo, o caso de Aires Ornelas apresenta-se
paramentos resistentes granito e reboco pintado, como um interessante ensaio sobre o processo de
vãos pontuais e uma valorização artesanal da pedra trabalho assente na procura de princípios concep-
e nas lajes de betão em consola a horizontalidade tuais, tendo o sistema construtivo e estrutural, não
da fachada livre articulada de forma escultórica só, como condutor de rigor e de sistematização
com um elemento arquitectónico destacado – compositiva, mas sobretudo, como condutor te-
caixa de escada secundária. Poder-se-á afirmar mático do desenho.
que o alçado sobre o logradouro expressa uma Deste modo, interpretar a utilização de uma
condição do moderno radical dos anos 20, indi- solução estrutural misto – industrial/artesa-
vidualizando os vários elementos arquitectónicos nal - como condicionador ou contaminação
na sua expressão mínima, atribuindo-lhes uma de uma ideia clara de projecto, sobretudo na
autonomia e um significado específico na com- afirmação de uma arquitectura moderna, é
posição do conjunto. aqui contrariada com a transformação de uma
Esta procura de expressar a natureza da sua possível condicionante num tema objectivo de
composição, pela identificação e exploração do desenho que interpreta a condição do lote no
betão armado no processo estrutural e construtivo tecido urbano.
ou nos respectivos elementos prefabricados, reme- A liberdade com que Mário Bonito ensaia três
momentos distintos – a espessa base de granito,
8
“Este reparto de responsabilidades entre estructura e cerramiento
plantea con toda evidencia el problema del peso de los edificios el o articulado paramento do alçado principal e o
cual pasa al primero plano de las preocupaciones de los arquitectos sistema/sequência de elementos no alçado sobre
radicales. La materialidad y la pesadez de los muros de carga han o logradouro demonstra que a verdade de uma
desaparecido pero el paso debe ser el logro de un verdadero alige-
ramiento de los elementos constructivos, una progresiva supresión estrutura ou sistema construtivo está na interpre-
de su peso muerto. (…) Es en la revista ABC donde, de un modo tação da sua natureza com a consequente expres-
más intenso y pionero, se debate y se analiza el problema del peso. são compositiva e plástica, e não numa simples
(…) Pero es Hans Schmidt, con su proverbial capacidad de sínte-
sis, quien lleva más lejos este razonamiento en la descripción de su interpretação técnica e cientifica.
contraproyecto para una torre de agua en Basilea. Para subrayar Assim, Mário Bonito, longe de uma interpreta-
el carácter irrefutable de esta comparación, Schmidt establece una ção linear, condição da cultura e tradição constru-
doble fórmula que se convertirá en un verdadero grito de guerra
de los arquitectos radicales.” (Martí Arís, Carlos; Monteys, Xavier. tiva contemporânea, propõe mentir para dizer a
1985, p. 31) verdade, ou seja, expressar a condição polifacetada
de um sistema estrutural misto que ao conjugar as constrói uma narrativa de acentuada expressão
duas lógicas com critérios de oposição/clarificação arquitectónica – de autor, logo, com identidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ramento FAUP. policopiado FAUP publicações.
Fernandes, Francisco Barata. 1999. Transformação e Vago, Pierre. 1932. “Perret”. L´Architecture d´Au-
permanência na Habitação Portuense – As formas da jourd’hui, Outubro, número especial.
casa na forma da cidade. Porto: FAUP publicações.
Neves, António(1)*
[email protected]
(1)
RESUMO
Pretende-se com o artigo que agora se propõe contribuir para a compreensão da história da construção
em Portugal, mais particularmente na cidade do Porto, no século XX.
Para tal análise utiliza-se como ponto de referência a obra de dois destacados arquitectos portuenses -
Arménio Losa (1908-1988) e Cassiano Barbosa (1911-1998).
Centra-se a análise na época que se segue ao aparecimento das primeiras influências do Movimento
Moderno e tenta perceber-se a forma de relacionamento destas com a tradição construtiva local e com
os primeiros esforços de renovação dessa mesma tradição levados a cabo por José Marques da Silva
(1869-1947), figura tutelar da arquitectura portuense.
Tendo sempre como pano de fundo a referida tradição construtiva local, começa-se por uma análise
de alguns aspectos construtivos de alguns dos primeiros projectos de Arménio Losa, realizados numa
primeira fase individualmente.
Estes projectos são depois cotejados do ponto de vista construtivo com aqueles que realiza, a partir de
1943, em sociedade com Cassiano Barbosa.
Simultaneamente procura-se reflectir sobre a forma como a crescente afirmação do carácter autoral
dos projectos realizados já em parceria equacionam de um ponto de vista construtivo a evolução de
alguns dos paradigmas teóricos associados ao Movimento Moderno, e até que ponto reflectem (ou não)
a crescente circulação de informação técnica associada ao fim da 2ª guerra mundial.
Tenta-se ainda perceber se e como, neste mesmo período do segundo pós-guerra, e fruto desse mesmo
aumento da circulação de informação, o processo internacional de revisão do Movimento Moderno
influencia do ponto de vista conceptual e construtivo as obras realizadas por Arménio Losa e Cassiano
Barbosa até ao fim da respectiva parceria, em 1963.
1
Sobre o percurso de Arménio Losa e Cassiano Barbosa veja-se
5
Sobre este assunto veja-se Gonçalo Canto Moniz “O Ensino Mo-
António Neves, “Arménio Losa e Cassiano Barbosa, Arquitectura derno da Arquitectura: A Reforma de 57 e as Escolas de Belas-Artes
no Segundo Pós-guerra - Arquitectura Moderna, Nacionalismo e em Portugal (1931-69)”.
nacionalização”. 6
David Van Zanten “Le Systeme des Beaux-Arts e Architectural
2
Ver nota anterior composition at the Ecole des Beaux-Arts, from Charles Percier to
Charles Garnier”; Joseph Rykwert “The Dancing Column, On or-
3
Alexandre Alves Costa “Introdução ao estudo da história da ar- der in Architecture” e “The École des Beaux-Arts and the classical
quitectura portuguesa”. tradition”.
e o início do século XX, mas numa ligação que principalmente em Paris, onde estava sediada a
se sente de forma mais subtil em arquitecturas École, que lhes permanecia indiferente.
mais correntes quando nestas, ao lado do mes- Marques da Silva desempenhará um papel im-
tre de obras encontrámos um arquitecto - como portantíssimo no Porto no debelar na Escola de
vimos, necessariamente formado no paradigma Belas Artes local destes dois óbices da instituição
das Beaux-Arts e porventura mais permeável às que lhe servia como referência:
influências estrangeiras. Por um lado, está amplamente referenciada
Isto traduz-se, por exemplo, num cruzamento a sua preocupação com as questões técnicas e
dos sistemas estruturais e das caixilharias típicas construtivas: tem sido relevado o seu papel como
da casa burguesa portuense7 com a utilização um dos introdutores do uso do betão armado na
simultânea de elementos de clara influência pari- cidade do Porto. Diga-se em abono da verdade
siense, como é o caso de coberturas em mansarda que, do ponto de vista da linguagem as implica-
ou de portadas funcionando pelo exterior (que ções do novo material são formalmente pouco
por vezes coexistem até com as portadas interiores assumidas numa primeira fase, mas não deve ser
habituais nas casas portuenses). menorizada a sua contribuição desde logo para
No entanto, precisamente no período em que o aparecimento de novas formulações espaciais.
Marques da Silva a frequentou, a formação da Gostaríamos de sublinhar ainda um aspecto que
escola parisiense começava a revelar duas im- não é muitas vezes referido: o seu contributo para
portantes lacunas: a formação de um ensino com uma componente
prática e técnica muito forte. Marques da Silva
– Em primeiro lugar a crescente subvalorização
foi o responsável pela criação no curriculum da
da componente prática e técnica do projecto,
Escola de Belas Artes do Porto (EBAP) de ca-
resultante da cisão entre essa instituição e a Es-
deiras científicas e de outras mais relacionadas
cola Politécnica e do fracasso que se revelaram
com a prática do arquitecto. Refira-se ainda que
os esforços posteriores para estabelecer pontes
ensinava em paralelo na Escola de Artes Deco-
com alguns professores daquela, como foi o caso
rativas onde inscrevia alguns alunos do curso de
de Viollet-le-Duc (1814-1879). Refira-se que esta arquitectura da EBAP, que assim frequentavam
cisão é, ainda hoje, considerada por arquitectos ambos os cursos.
como Aldo Rossi (1931-1997) como um aconte- Tudo isto traduz uma preocupação grande com
cimento catastrófico.8 a componente prática do projecto, porventura
. Em segundo lugar a indiferença perante a relacionada também com a sua passagem pelo
influência das vanguardas artísticas que mar- atelier de marmorista do seu pai. Preocupação
caram, muito para além do aspecto meramente que transparece bem do aforismo que gostava
cronológico, a transição do século XIX para o de usar: “Comecei como um artista do cinzel,
século XX - vanguardas que por essa altura se continuei como um artista do lápis.”
manifestavam um pouco por toda a Europa, mas Por outro lado, a sua ligação com essa então
7
Veja-se a propósito deste sistema construtivo Joaquim Teixeira nova realidade das artes decorativas vai ainda con-
“Descrição do sistema construtivo da casa burguesa do Porto entre tribuir para que Marques da Silva tenha também
os séculos XVII e XIX”; e ainda “Salvaguarda e Valorização do Edi-
ficado Habitacional da Cidade Histórica. Metodologia de Interven- um papel essencial na renovação da linguagem
ção no Sistema Construtivo da Casa Burguesa do Porto”. arquitectónica associada à introdução do estilo
8
Aldo Rossi “Prefazione” in L´Architettura di Adolf Loos, in Bene- Art-Deco no Porto. O reconhecimento deste papel
detto Gravagnuolo Adolf Loos, Teorie et opere. levará mais tarde Cassiano Barbosa a descrevê-lo
Fig. 1 – Arménio Losa, casa na Rua Vieira Portuense, Porto, 1935. foto: António Neves (AN); des: Arquivo Histórico Municipal do
Porto (AHMP).
como “o último arquitecto clássico e o primeiro tivos da casa burguesa típica do Porto. Partindo
arquitecto moderno do Porto”.9 Mesmo descon- do pormenor corrente, praticado por mestres de
tando a imprecisão terminológica da frase de obras que trazem consigo uma tradição local de
Cassiano, ela parece remeter para um sentido de construir - por sua vez resultante de um processo
continuidade (também verificável do ponto de de síntese e decantação de todo um percurso que
vista construtivo) que contribui para um certo é o da construção pré-industrial - na produção de
consenso que parece construir-se no Porto sob o Losa (e de alguns outros arquitectos portuenses
que deve ser a forma de actuar de um arquitecto, neste período), através da introdução de uma
assente numa rede de ateliers com uma profunda reflexão erudita sobre a tradição construtiva da
ligação à escola, como é o caso do de Marques da cidade, consegue levar-se a cabo uma actualização
Silva - onde Losa trabalhou -, do seu discípulo formal de grande relevância e, por esta via, de
Rogério de Azevedo (1898-1983) - onde trabalhou marcado cunho local. Os pormenores resultantes
Cassiano - e de outros, num processo porventura deste processo, quase correntes, são usados em
ainda verificável no presente. paralelo com algumas inovações técnicas: apa-
recem elementos de betão-armado apenas nos
OS PRIMEIROS PROJECTOS DE elementos onde tal material é essencial - mais uma
ARMÉNIO LOSA vez ajudando a introduzir nos edifícios conceitos
É precisamente neste ambiente de continuidade como a fluidez espacial.
de um saber oficinal e de despontar das influências Mantêm-se pormenores construtivos muito
da Art-Deco no Porto que Arménio Losa inicia semelhantes aos da referida casa burguesa, efec-
o seu percurso profissional, na primeira metade tuando sobre eles uma interessante actualização
da década de 30. formal. Exemplificando, tal acontece no caso das
Confirmando a hipótese avançada, os seus edifí- caixilharias,10 e também na utilização de platiban-
cios deste período caracterizam-se por uma grande das para esconder a estrutura tradicional de asnas
radicalidade formal, mas simultaneamente por 10
Esta análise é confirmada por um estudo centrado precisamente
uma grande continuidade dos sistemas constru- nas caixilharias. Veja-se Nuno Valentim, “Reabilitação de caixi-
lharias de madeira em edifícios do século XIX e inicio do século
9
Cassiano Barbosa, s/t in “José Marques da Silva arquitecto 1869- XX : do restauro à selecção exigencial de uma nova caixilharia : o
1947”, coord. António Cardoso, p36. estudo do caso da habitação corrente portuense”.
Fig. 2 – Arménio Losa, casa na Rua da Agra, Porto. 1935 foto: AN; des: AHMP.
Fig. 3 – Arménio Losa, Edifício de Habitação na Av. da Boavista, Porto. 1937 foto: AN; des: AHMP.
Entre estes refugiados incluem-se alguns en- de Almeida Garret, engenheiro que escreve uma
genheiros vão colaborar com vários dos mais série de artigos sobre novos sistemas construtivos
avançados arquitectos portuenses. em revistas de arquitectura portuguesa e que,
Assiste-se assim à introdução de algumas segundo Alexandra Trevisan13, projecta aquela
novidades do ponto de vista da concepção e da que foi a primeira casa com cobertura plana no
construção dos edifícios que vai fazer-se sentir já Porto, localizada na Rua da Igreja de Cedofeita.
não apenas nas obras de excepção - como tinha Esta proximidade entre gabinetes de engenharia
acontecido no início da década de 30, por exem- e os arquitectos mais avançados do Porto neste
plo, no caso da garagem do Comércio do Porto, período é um facto relevado em muitos depoi-
de Rogério de Azevedo, ou da Casa de Serralves, mentos. Refiram-se, a título de exemplo, a enorme
de Marques da Silva - mas em programas, apesar proximidade de Januário Godinho (1910-1990),
de tudo, mais correntes. com a empresa OPCA - da qual o seu irmão,
É o caso, por exemplo, de Alfredo Daniel - engenheiro, é um dos sócios fundadores; o alar-
cuja empresa ostentava a sugestiva nomenclatura gamento da relação com essa empresa a Rogério
de SIMCO (Sociedade Introdutora de Métodos de Azevedo (1898-1983); a presença do arquitecto
Modernos de Construção) - e que colabora, entre José Porto (1883-1965) na empresa Engenheiros
outros arquitectos, com Losa no edifício do gaveto Reunidos, ou a colaboração da mesma empresa
da Avenida da Boavista com a Rua do Pinheiro SIMCO com a ARS arquitectos e com José Júlio de
Manso, licenciado na Câmara Municipal do Porto Brito (1896-1965) - com quem trabalhou também
em 1937. Cassiano Barbosa.
Segundo Clara Vale, este é um dos primeiros O período que se segue, coincidente com Se-
edifícios do Porto a fazer uso do sistema de lajes gunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, parece
de betão aligeiradas com elementos em pré-esforço ter constituído um travão a esta evolução dos
e o primeiro edifício do Porto a propor de uma processos de construção assistindo-se, também
forma efectiva o uso da sua cobertura para lazer relacionado com a contenda, a um certo conge-
dos habitantes12. lamento da situação da cultura arquitectónica
Note-se também que, por esta altura, Losa revela portuguesa, ambos resultantes da diminuição do
também uma enorme proximidade com Antão volume de construções.
12
Clara Vale “Os processos de licenças de obra na cidade do porto.
Caracterização construtiva do património edificado Entre 1911 e Alexandra Trevisan “Influências internacionais na arquitectura
13
Fig. 4 – Arménio Losa, casa na Clube dos Caçadores, V. N.Gaia, 1947. foto: AN; des: Arquivo Municipal de Vila Nova de Gaia.
Barbosa (através da utilização de perfis metáli- É certo que Le Corbusier já havia mostrado - por
cos ou de novas formas de pormenorização dos exemplo nas suas casas Errazuris, Mandrot e de
perfis de madeira) continue a ser acompanhada Les-Mâthes - que uma menor sofisticação tecno-
da combinação de elementos em betão-armado lógica não era incompatível com a arquitectura
com elementos construtivos tradicionais, como moderna. Mas agora, quase inesperadamente, no
sejam alvenarias de perpianho e coberturas com trabalho desse período dos arquitectos brasileiros
carpintaria de asnas. surgia esta arquitectura que, simultaneamente,
Existe, no entanto, uma notável diferença: tais não só era radicalmente moderna e de raízes
sistemas construtivos são utilizados de modo a locais, mas que, mais ainda, se apresentava como
contribuir para uma arquitectura de cariz mais evolução de uma herança comum luso-brasileira.
abstracto, mas, por exemplo, no caso das cober- Isto acontece precisamente num período em que
turas, já não é escondida a sua inclinação, sendo a relação da arquitectura com a história e a com
antes serenamente assumida (provavelmente tam- a tradição local (incluindo as suas manifestações
bém por razões funcionais relacionadas com uma
do ponto de vista construtivo) eram os principais
avaliação racional custo-benefício) numa atitude
handicaps apontados à arquitectura moderna.
que não deixa de remeter para a obra construída
Com Lúcio Costa à cabeça, se funda uma nova
de Dudok e para a obra escrita de Adolf Loos,
abordagem onde a questão da tradição, é agora
segundo a qual um novo processo construtivo ape-
nas deveria ser adaptado se apresentasse decisivas compatível não só com a Arquitectura Moderna
vantagens sobre os processos tradicionais. Vemos mas também com as suas declinações locais -
neste processo mais um reflexo do sentido de brasileira e portuguesa - e ainda com as raízes
continuidade e racionalidade que temos defendido. comuns de ambas.
Também por esta altura, uma influência decisiva Este aspecto da arquitectura Brasileira não pas-
e até então pouco conhecida irrompe de forma sou despecebido aos arquitectos portugueses e
fortíssima em Portugal: a Arquitectura Moderna são vários os que citam exemplos em textos então
Brasileira. publicados sublinhando precisamente a relação
Esta influência parece chegar através do nú- entre estas questões. Por exemplo, Formosinho
mero especial que a “Architecture d’aujourd’hui” Sanches mostrava o seu espanto pelo facto de “Lú-
lhe dedica em Setembro de 1947, presente em cio Costa (…) o maior arquitecto da arquitectura
várias bibliotecas de arquitectos portuenses desta clássica e colonial, [ser] hoje (…) o técnico melhor
geração. preparado da arquitectura moderna brasileira”.
Fig. 5 – Arménio Losa/Cassiano Barbosa, casa na Rua F. V. Dourado, Porto, 1951. foto: AN; des: AHMP.
23
Keil do Amaral “Uma Iniciativa necessária”. uma Vivência, pp 455-456.
24
Lúcio Costa “Documentação Necessária” (1937), in Revista do 27
Sindicato Nacional dos Arquitectos “Arquitectura popular em
Serviço de Património Histórico e Nacional nº1. Rio de Janeiro: Portugal”, Lisboa : SNA, 1961.
SPHAN
Lúcio Costa “Registro de uma Vivência”, São Paulo: Empresa das
28
25
Lúcio Costa “Tradição Local” (s/d) in Registro de uma Vivência, Artes, p457.
Fig. 6 – Arménio Losa/Cassiano Barbosa, casa na Rua F. V. Dourado, Porto, 1951. foto: Centro de documentação de Arquitectura e
Urbanismo da Faup (FAUP/CDUA); des: AHMP.
Fig. 7 – Arménio Losa/Cassiano Barbosa, casa na Rua Tristão da Cunha, Porto, 1948. foto: Centro de documentação de Arquitectura e
Urbanismo da Faup (FAUP/CDUA); des: AHMP.
estruturas de cobertura em madeira já não são - e da Europa, do Norte - com Alvar Aalto à cabeça
nem escondidos por detrás de uma roupagem - do centro - com Aldo Van Eyck, por exemplo; e
moderna de paredes brancas nem transformados do Sul, com Coderch ou com Rogers. Arquitectu-
numa espécie de tampas que se põe em cima de ras que trilhavam caminhos convergentes e que
prismas de ressonâncias do movimento purista. a participação dos arquitectos portugueses nos
Agora, passam eles próprios a fazer parte de uma CIAM permitiu conhecer, numa revisão crítica
nova arquitectura potencializando mais uma vez do Movimento Moderno, construindo sobre ele
novas espacialidades mas na qual aqueles materiais - e não contra ele.
tradicionais são agora deixados aparentes, num pro- A participação dos arquitectos portuenses (Losa
cesso de valorização das suas texturas e densidade. incluído29) nos CIAM introduz um importante
Sintomas adicionais do processo de continuida- processo de “re-alimentação” entre o Movimento
de que temos vindo a defender, também do ponto Moderno, a sua revisão crítica e o interesse pela
de vista construtivo, com a tradição local e com arquitectura vernacular e pelos problemas do
a herança do Movimento Moderno, influências homem comum30.
a que se juntam agora a Arquitectura Moderna 29
Arménio Losa participa no IX CIAM realizado em 1953 em Aix-
Brasileira e as arquitecturas vernaculares. -en-Provence, acompanhado por Viana de Lima (1913-1991) e por
O próximo passo seria a descoberta de outras Fernando Távora (1923-2005).
arquitecturas: americanas - como as de Louis Khan 30
Sobre esta questão veja-se António Neves “Arménio Losa e Cas-
siano Barbosa, Arquitectura no Segundo Pós-guerra - Arquitectura
Moderna, Nacionalismo e nacionalização”, pp 297-351.
Fig. 8 – Arménio Losa/Cassiano Barbosa, casa de Férias, Esposende, 1958. foto e des: FAUP/CDUA.
As obras deste período reflectem este contexto Continuidade das tradições construtivas locais,
e mostram como crescentemente e até ao fim dos nesta valorização do saber oficinal, nesta forma
vinte anos da sua parceria (1943-1963), se prati- minuciosa de detalhar o edifício, integrando, atra-
cou no escritório de arménio Losa e de Cassiano vés do desenho - ferramenta essencial - métodos
Barbosa uma arquitectura onde a qualidade não construtivos tradicionais e avançados.
tem nenhuma relação com a quantidade dos meios Continuidade também da herança do Movimen-
disponíveis - normalmente pouco mais do que to Moderno, com a sua revisão crítica feita num
parcos - mas resulta da eficácia de uma aturada movimento de aproximação ao homem comum
reflexão, sobre as várias vertentes do projecto - e aos seus sistemas construtivos, mas que não
incluindo os sistemas construtivos - que permite abdica da sua erudição, da herança abstracta das
fazer arquitectura de grande qualidade a partir de vanguardas e da sofisticação tecnológica (apesar
dispositivos relativamente simples mas de grande de tudo) permitida pela realidade local.
delicadeza. Continuidade que passa também pela redes-
coberta maravilhada da arquitectura vernacular
CONCLUSÃO e dos seus sistemas construtivos.
Talvez seja este sentido de continuidade inte-
Emerge assim uma caracterização da arquitec-
grador, ainda hoje, uma das chaves para a com-
tura portuense do século XX assente neste sentido
preensão não só da arquitectura de Arménio
de continuidade.
Losa e Cassiano Barbosa, mas da arquitectura
portuguesa actual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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London: Secker & Harburg.
RESUMO
A política de obras públicas e melhoramentos materiais seguida pelo fontismo, que exigiu um maior re-
curso aos engenheiros civis, confrontou-se com a escassez destes profissionais na sociedade portuguesa.
À falta de formação específica no campo da engenharia civil atribuíram os contemporâneos muitos dos
insucessos de várias obras públicas. Como referia em 1857 o Visconde da Luz “nós temos engenheiros
muito hábeis, porque os nossos engenheiros têm muita teoria, e só o que lhes falta é a prática, mas não
são inferiores em instrução aos estrangeiros. O que nós temos, infelizmente, é muito menos prática de
certas construções” (DG 1857, 970).
Para superar a insuficiência do ensino de engenharia civil vários engenheiros foram completar a sua
formação no estrangeiro, nomeadamente na Escola de Pontes e Calçadas de Paris. A escolha desta
escola ligou-se com a preocupação de dotar os engenheiros portugueses de uma sólida formação teórica
actualizada e de uma formação prática que era completada pelas missões escolares anuais. Estas mis-
sões permitiram-lhes um contacto directo com as principais obras públicas que se estavam a realizar
em França, o que lhes possibilitou conhecer os novos materiais de construção, contactar com as novas
técnicas construtivas, perceber a formas mais actuais de organização dos estaleiros e avaliar as técnicas
que eram mais adequadas para aplicar em Portugal quer ao nível da construção de pontes e viadutos,
quer ao nível dos caminhos-de-ferro, para darmos alguns exemplos. Além disso, estes engenheiros pro-
curaram difundir, entre os seus pares e subordinados, e aplicar nas várias obras públicas que planifica-
ram e dirigiram os conhecimentos que tinham adquirido durante a sua estada em França.
Nesta comunicação pretendemos, através dos depoimentos e relatórios das missões de estudo dos en-
genheiros que estudaram na École des Ponts et Chaussées, perceber a importância que esta escola teve
para os trabalhos que estes engenheiros desenvolveram em Portugal.
INTRODUÇÃO
Na segunda metade do século XIX a política de comunicação que passariam a ligar os vários pon-
modernização do país, que pretendia desenvolver tos do país, confrontou-se com a existência de um
quer os espaços urbanos, quer a rede de vias de escasso número de engenheiros, que possuíssem
sobre este ramo de engenharia civil, indispensáveis século XIX 44 engenheiros portugueses aí tivessem
para bem desempenhar esta nova missão; porquanto completado a sua formação.
é sabido que nas escolas que frequentámos se estu-
dam de leve e muito imperfeitamente as matérias que 2. OS ENGENHEIROS PORTUGUESES NA
dizem respeito a trabalhos daquele de que é questão, ÉCOLE DES PONTS ET CHAUSSÉES
não tendo depois onde ir na prática colher aqueles
Como se referiu ao longo do século XIX vários
conhecimentos que só à vista das construções se
engenheiros completara a sua formação na École
adquirem completamente”9.
des Ponts et Chaussés. A inscrição na École des
Para tentar ultrapassar a falta de engenheiros
civis no país vários engenheiros foram enviados Ponts et Chaussées pressupunha a frequência de
para o estrangeiro para completarem os seus es- estudos preparatórios de engenharia, e, por isso,
tudos. Pelas características do seu ensino a École os engenheiros portugueses que frequentaram esta
des Ponts et Chaussées era uma referência a nível escola tinham adquirido em Portugal uma prévia
internacional para os engenheiros que pretendiam formação nesta área nas várias escolas em que a
ter uma intervenção activa nas obras públicas mesma era leccionada: Escola do Exército, Escola
dos seus países10. Em 1854 o engenheiro Joa- Politécnica de Lisboa, Academia Politécnica do
quim Thomas Lobo d’Ávila (1819-1901), que havia Porto e Universidade de Coimbra. Alguns enge-
completado a sua formação nesta escola, proferiu nheiros estudaram em Paris a expensas próprias,
uma intervenção na Câmara dos Deputados, em mas outros receberam bolsas do Estado. A partir
que referiu as vantagens dos métodos de ensino de 1852 o Ministério das Obras Públicas, Comér-
que aí eram praticados – “um aluno da escola do cio e Indústria apoiou a ida de engenheiros para
pontes e calçadas, de Paris, por exemplo, estuda escolas estrangeiras, os quais após terminarem
um certo tempo, no ano, nas escolas, e depois vai os estudos eram obrigados a trabalhar durante
para a prática, e o que acontece, é que os alunos um certo tempo para o Estado. Inicialmente os
saem das escolas em estado ‘dirigir’”11. engenheiros que seguiriam os seus estudos no
O renome da École des Ponts et Chaussées e a estrangeiro eram seleccionados sem concurso e
importância que o ensino práctico assumia nesta só a partir de 1855 essa selecção passou a ser feita
escola foram determinantes para que ao longo do com base num concurso público.
Ao longo dos anos que estiveram na École
9
Silvério Augusto Pereira da Silva. 1860. “Projecto de Melhoramen-
to da Barra de Aveiro. Relatório”. Boletim do Ministério das Obras des Ponts et Chaussées de Paris, os engenheiros
Públicas, Comércio e Indústria, 229-230 portugueses contactaram com alguns dos mais
10
Existe uma ampla bibliografia sobre os engenheiros dos diferentes importantes engenheiros franceses e os estudos e
países que frequentaram as escolas francesas, nomeadamente esta projectos que realizaram permitiram-lhes adquirir
Escola. Refira-se apenas Gouzévitch, Irina ; Grelon, André ; Kar- as competências necessárias para posteriormente
var, Anouchet. 2004. La formation des ingénieurs en perspective:
modèles de référence et réseaux de médiation : XVIIIe-XXe siècles. virem a intervir em diversas áreas, desde a cons-
Rennes : Presses universitaires de Rennes. Sobre os engenheiros por- trução de pontes até à hidráulica agrícola.
tugueses veja-se Matos, Ana Cardoso de. 2009. “Asserting the Por-
tuguese Civil Engineering Identity: the Role Played by the École des
ponts et chaussées” In Les enjeux identitaires des ingénieurs : entre 2. A FORMAÇÃO TEÓRICA E A PRÁTICA
la formation et l’action/The Quest for a Professional Identity: Engi- ANO TERRENO NA ÉCOLE DES PONTS ET
neers between Training and Action, edited by Matos, Ana Cardoso CHAUSSÉES
de, et ali, 177-209, Lisboa: Colibri/CIDEHUS/CIUHCT,
11
Diário da Câmara dos Deputados, sessão de 10 de Julho de 1854, Na primeira metade do século XIX a École des
171- 189. Ponts et Chaussées continuava a ter como missão
principal a formação de engenheiros que viessem obra e de viabilidade económica, assim como a
a integrar o Corpo de Pontes e Calçadas que, no prática no terreno continuaram a ter nesta es-
âmbito do Ministério do Reino, dirigia a constru- cola um lugar preponderante. A importância da
ção das obras públicas que se estavam a realizar elaboração dos projectos foi realçada em 1854
em França. As reformas introduzidas nesta escola pelo engenheiro Albino Francisco de Figueiredo
entre 1830-1840 procuraram integrar nos curricula (1803-1858), professor na Escola Politécnica de
disciplinas que correspondessem ao surgimento de Lisboa e que tinha completado os seus estudos na
novos materiais e processos de produção e às novas École des Ponts et chaussées. Segundo ele,
técnicas de construção. Foi o caso da siderurgia ou
das terraplanagens a vapor. Nesta altura professores “A descrição técnica, e os desenhos gráfi-
como Amédée Bommart, (1807-1865), tentaram cos, são partes essenciais de um projecto
conciliar o pragmatismo que caracterizava a École qualquer, porque não só se completam e
des Ponts et Chaussées com a exigência do rigor auxiliam uma à outra, mas em grande
conceptual necessário à “tecnologia do engenheiro”12. parte se justificam reciprocamente. (…) é
Apesar da polémica sobre as áreas de intervenção a descrição técnica considerada a peça ca-
e as competências de engenheiros e arquitectos, a pital de um projecto, e que por si caracte-
arquitectura continuou a ser considerada como uma riza o engenheiro que a confeccionou”15.
formação indispensável para os engenheiros civis.
Sob o professorado de Léonce Reynaud (1803-1880), A elaboração de orçamento da obra era outro
arquitecto e engenheiro, foi valorizado o carácter uti- dos aspectos que Albino Francisco de Figueiredo
litário da arquitectura associado ao “génie civil”, e as considerava indispensável na realização de qual-
suas lições incidiam também sobre as características quer obra pública.
e a resistência dos vários materiais de construção13. Na segunda metade do século XIX engenheiros
A década de 1850 marcou a renovação desta portugueses tiveram como professores alguns dos
escola, adaptando-a à lógica da era industrial, nomes mais eminentes da engenharia francesa:
pois “les nouveaux débouchés offerts aux ingénieurs Louis- Charles Mary (1842-1868)16 no curso de
des Ponts grâce au développement des chemins de rios e canais; Pierre Dominique Bazaine-Vas-
fer, la coopération étroit à laquelle ils sont con- seur (1809-1893) no curso de caminhos-de-ferro;
duits par la force des choses avec les ingénieurs Louis Auguste Chevalier (1844-1854) no curso
des Mines, les ingénieurs civils ainsi qu’avec leurs de mecânica aplicada à resistência de materiais;
propres conducteurs, marquent autant de ruptures Charles-François Hervé Mangon (1821-1888) no
décisives par rapport à 1’ancien fonctionnement de
curso de hidráulica agrícola; Leónce Reynaud, no
leur administration”14.
curso de arquitectura17. Para além dos já referidos,
Com a reforma de 1851, a elaboração de pro-
jectos, acompanhados de estudos de cálculos de
15
“Relatório acerca das obras da estrada de Aldeã-Gallega a Elvas,
apresentado pelo Conselheiro Albino Francisco de Figueiredo, em
12
Por isso, o ensino da matemática e da mecânica tinha um papel virtude do disposto na Portaria do Ministério das Obras Publicas,
importante nos cursos de Bommart sobre pontes e caminhos-de- Commercio e Industria, datada de 28 de Janeiro de 1854” in Bole-
-ferro. Picon, Antoine. 1992. L’invention de l’ingenieur moderne. tim do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, nº 3,
Op. Cit, 512-513. Março de 1854, 234-235.
13
Nomeadamente os novos materiais, como era o caso do cimento 16
Que em 1858 foi autor do projecto para a distribuição de água à
Vicat. cidade de Lisboa.
14
Picon, Antoine. 1992. L’invention de l’ingénieur moderne. Op. AHMOPCI. Processo Individual de Augusto Luciano Simões de
17
adquiriram os mais recentes conhecimentos tecno- não só os desenhos, como a cópia das memórias
lógicos ligados a áreas como os caminhos-de-fer- descritivas. Em Marselha, estudaram a construção
ro, a construção de pontes, viaductos ou portos, do porto artificial, as obras realizadas para um
existente em França, os quais, posteriormente, novo bairro e os trabalhos do caminho-de-ferro
aplicaram em Portugal e ensinaram àqueles que que se dirigia a Toulon. Nesta cidade puderam
trabalharam nas obras públicas sob a sua direc- também visitar as oficinas do caminho-de-ferro
ção, ou transmitiram aos seus alunos sempre que e examinar “sobretudo em detalhe as pontes de
foram escolhidos para leccionar numa das escolas ferro e tôle. Possuímos os tipos destas pontes para
de engenharia existentes no país. diversas aberturas, e tanto para a passagens sobre
elas das estradas ordinários (ponts en dessus),
3. AS MISSÕES DE ESTUDO E O como para a passagem do caminho de ferro, (…)
CONTACTO COM OS GRANDES (ponts en dessous)”26.
ESTALEIROS DE OBRAS PÚBLICAS A missão realizada em 1858 por Pedro de Al-
No final de cada ano escolar os alunos reali- cântara Gomes Fontoura levou-o até Itália para
zavam missões de estudo que lhes permitia um estudar a linha de caminho-de-ferro de Génova a
contacto directo com os estaleiros e as principais Turim. Na sequência dos estudos que realizou na
obras que estavam a ser realizadas em França. So- altura escreveu no seu relatório, “ O que a minha
bre essas missões de estudo escreveram relatórios experiência tem dado sobre a exploração dos
que são uma importante fonte para conhecermos caminhos de ferro de grande pente deve oferecer
o que estudaram. uma lição útil para o futuro das nossas vias férreas;
Em 1857, quando completaram o 1° ano de julgo portanto que não será fora de propósito
estudos na École des Ponts et Chaussées de Paris, apresentar nesta memória os resultados do estudo
João Evangelista de Abreu, Pedro d’Alcântara Go- que sobre tal assunto fiz no reino da Sardenha”27.
mes Fontoura e Valentim Evaristo Rego, fizeram Gomes Fontoura considerava que a experiência
uma missão de estudo a Pau e a Marselha, para que tinha adquirido seria de grande utilidade
estudar a construção de estradas, caminho-de-fer- para a construção das vias férreas em Portugal.
ro e portos, tendo elaborado um relatório sobre As notas que Gomes Fontoura tomou sobre
os estudos realizados. O contacto directo com as o porto de Génova juntamente com os esclare-
obras que estavam a ser realizadas e a informação cimentos que sobre esta obra lhe foram dados
que lhes era disponibilizada permitiram a estes pelo engenheiro Dionysio, director da mesma,
engenheiros conhecer as mais recentes técnicas permitiram-lhe escrever uma memória sobre
construtivas que eram utilizadas em França. Como este porto, acompanhada por quatro desenhos
referiram no seu relatório de missão – “graças as aguarelados28.
cartas de missão de que nos achávamos munidos, 26
Ibidem.
fácil nos foi pormo-nos em relação com os diver- 27
Fontoura, Pedro de Alcântara Gomes. 1860. “Exploração do ca-
sos engenheiros, dos quais, como em toda a parte minho de ferro de Génova a Bussala. Linha de Génova a Turim
recebemos o melhor acolhimento. Desenhos, peças (Memoria extrahida dos documentos que me foram fornecidos pelo
escritas e indicações de todo o género, eram por Ministério de Turim e das minhas notas sobre os esclarecimentos
que me subministrou, durante as minhas excursões á linha, o Dr.
eles postos à nossa disposição”25. Relativamente Borgnini, engenheiro da exploração) ” in Boletim do Ministério das
à ponte sobre o rio Adour, foram-lhes facultados Obras Públicas, Comércio e Indústria, nº 5, Maio de 1860, 469.
No final do segundo ano João Evangelista de interessante foram os trabalhos hidráulicos a cargo
Abreu realizou uma missão a Bordéus que tinha dos engenheiros M Margot e Nestor Brizac. No
por fim o estudo: da embocadura do Gironda; final do segundo ano a sua missão de estudo foi
da construção de uma nova ponte de ferro sobre realizada em Bordéus e no final do terceiro na
o rio Garona, destinada a ligar as duas linhas de Exposição Universal de Paris, no departamento
Orleans e do Meio Dia; dos processos e resultados do sul e sudoeste de França e em Espanha, espe-
económicos da fixação das dunas; e da distribuição cialmente no litoral para estudar os faróis.
das águas de Bordéus29. Sobre a ponte de ferro
destinada a ligar as gares do caminho-de-ferro de 4. A APLICAÇÃO DOS CONHECIMENTOS
Orleans e do Meio Dia referiu “Tenho em meu ADQUIRIDOS ÀS OBRAS PUBLICAS
poder vinte e três grandes desenhos relativos ao REALIZADAS EM PORTUGAL NA
projecto d’esta importante obra; além disso tive SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
ocasião de trabalhar nos cálculos e orçamentos
definitivos do projecto, graças ao bom acolhi- Em 1851, o novo regime político introduzido
mento que recebi de mr. Régnault, engenheiro no país, o Fontismo, assumiu como uma das suas
de pontes e calçadas, empregado no caminho de prioridades o desenvolvimento das obras públicas
ferro do meio dia e autor do projecto”30. O seu e a construção de uma rede ferroviária. Para levar
estudo sobre a distribuição de águas em Bordéus a cabo este objectivo o governo procedeu a uma
“foi todo de detalhe” e como resultado possuía reorganização administrativa e, em 1852, criou
no seu “álbum numerosos croquis representado o Ministério das Obras Públicas, Comércio e
uma série de detalhes interessantes, relativos ao Indústria (MOPCI), chefiado pelo engenheiro
estabelecimento das máquinas a vapor que dão Fontes Pereira de Melo.
movimento às bombas elevatórias, aos reserva- Com a criação do Ministério das Obras Públicas
tórios, tubos de condução, etc.”31 os engenheiros formados na École des Ponts et
No final do primeiro ano Augusto Luciano Chaussées integraram o seu quadro técnico e ao
Simões de Carvalho realizou a sua missão em longo da segunda metade do século desempenha-
Grenoble sob a orientação de mr. Berthier, enge- ram importantes actividades quer na construção
nheiro chefe, que lhe facultou vários documentos dos caminhos-de-ferro e na direcção de obras dos
e informações e demonstrou a maior disponibili- vários distritos, quer em várias comissões técni-
dade para acompanhar os seus estudos. A parte cas. Aliás, os engenheiros que frequentarem esta
da missão que este engenheiro considerou mais escola a expensas do governo comprometiam-se
trahida dos esclarecimentos que me foram dados pelo SR. Dyonisio
a trabalhar no MOPCI nos anos que se seguiam
engenheiro director d’estas construções e das minhas notas sobre os ao seu regresso a Portugal.
trabalhos) in Boletim do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Os trabalhos que estes engenheiros realizaram
Indústria, nº1, Janeiro, 62-66
permitiram que em 1861 se considerasse que gra-
29
“Relatório sobre o emprego do Tempo de missão feita no fim do ças ao “estudo de ciência e arte das construções
segundo ano do curso de Pontes e Calçadas pelo aluno João Evange-
lista de Abreu, dirigido ao excelentíssimo Senhor Visconde de Pai- nos países estrangeiros feito por engenheiros
va, Ministro de sua Magestade Fidelíssima em Paris” in Boletim do nossos” 32 se tinha começado a formar no país um
Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, nº8, Agosto, corpo técnico capaz de realizar muitas das obras
1860, 112.
públicas de que o país necessitava.
30
Idem, 117. 32
Boletim do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria,
31
Idem, 147 n° l, Janeiro de 1861, 12.
Pouco depois de ter sido criado o MOPCI, Nunes de Aguiar nos projectos e obras do abasteci-
João Crisóstomo de Abreu e Sousa encarregou mento de água a Lisboa, enquanto os engenheiros
os engenheiros José Anselmo Gromicho Cou- Pedro Inácio Lopes e Álvaro Kopke de Barbosa
ceiro e Joaquim Simões Margiochi das obras do Ayalla foram destacados para trabalhar com o
caminho-de-ferro de Lisboa ao Carregado que até engenheiro Francisco Maria de Sousa Brandão
aí estavam a cargo de Waring Brothers & Shaw. nos estudos e projectos das linhas férreas do Porto
Assumindo a direcção dos trabalhos estes enge- e Coimbra à fronteira com Espanha36. É possí-
nheiros puseram em prática os conhecimentos vel que a iniciativa de requisitar os engenheiros
que tinham adquirido em Portugal e na École recentemente chegados de Paris tenha partido
des Ponts et Chaussées e “reorganizaram estalei- de Joaquim Nunes de Aguiar e Francisco Sousa
ros e criaram operários” e deram sequência aos Brandão, os quais tendo anos antes sido alunos
trabalhos necessários à construção deste troço de da École des Ponts et Chaussées eram capazes de
caminho-de-ferro. avaliar as competências adquiridas pelos engenhei-
Por seu lado, Joaquim Simões Margiochi foi ros oriundos deste estabelecimento de ensino nas
encarregado de fiscalizar a construção do cami- várias áreas da engenharia civil.
nho-de-ferro do Leste e do Sul e foi nomeado Nos anos seguintes estes engenheiros assumi-
inspector das obras públicas dos distritos de Leiria, ram a direcção e a fiscalização de várias linhas
Lisboa, Santarém e Castelo Branco. Em 1852 férreas e de outros trabalhos de obras públicas que
José Anselmo Gromicho Couceiro integrou a estavam a ser realizados no âmbito do MOPCI.
comissão encarregada de determinar a directriz Por exemplo, na década de 1870 Álvaro Kopke
do caminho-de-ferro do Norte, em 1856 foi no- de Barbosa Ayalla foi encarregado de realizar
meado engenheiro chefe da Companhia Central estudos e projectos sobre o porto de Viana do
e Peninsular dos Caminhos de Ferro Portugueses Castelo e de Ponta Delgada e de dirigir as obras
e no ano seguinte assume a direcção das obras do destes dois portos37.
distrito de Castelo Branco33. Os engenheiros que se formaram em Paris
João Evangelista de Abreu foi nomeado chefe em 1862 e 1864 tiveram um papel importante
da 2ª divisão fiscal de construção de caminho-de- não só nos caminhos-de-ferro mas também nas
-ferro. A partir de 2 de Outubro de 1866 passou a obras hidráulicas que se estavam a realizar no
acumular estas funções com a direcção de estudos país. Joaquim Pires de Sousa Gomes, que entrou
do caminho-de-ferro do sul do Tejo34. Valentim para o serviço do MOPCI em 1864 foi colocado
Evaristo do Rego depois de ter dirigido várias na direcção das obras para o abastecimento de
obras públicas, como as obras de melhoramento água a Lisboa. Álvaro Kopke de Barbosa Ayalla,
do Porto e Barra da Figueira da Foz, em 1867 foi depois de ter exercido funções nos caminhos-de-
nomeado director da Direcção geral dos Telégrafos -ferro, em 1872 foi nomeado director do porto
e Faróis35. artificial de Ponta Delgada e em 1875 director
Em 1864, o engenheiro Joaquim Pires de Sousa do porto artificial da Horta, cargos que exerceu
Gomes foi destacado para trabalhar com Joaquim cumulativamente. A partir de 1886 exerceu várias
33
Em 1868 é nomeado para servir às ordens do rei e em 1883 é comissões de serviço hidráulico tendo revelado
nomeado como preceptor dos infantes D. Carlos e D. Afonso. “Especialmente nos importantíssimos trabalhos
34
Boletim do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 36
Decreto de 27 de Agosto de 1864.
nº 11, Novembro de 1866, 330. 37
Sobre o Porto de Ponta Delgada publicou a obra “Notice sur le
35
AHMOPCI, Processo individual de Valentim Evaristo do Rego. Port artificiel Ponta Delgada, Lisbonne.1873
de portos marítimos, que dirigiu e a que dedicou a nos caminhos-de-ferro e na modernização dos
maior parte da sua vida pública (…) muita aptidão portos do país.
profissional”38. Ao longo dos anos estes engenheiros foram
Considerado um especialista em questões de encarregados de realizar vários estudos sobre o
hidráulica no regresso a Portugal, Manuel Afonso traçado que deviam seguir as linhas do caminho-de-
Espergueira, desempenhou vários cargos ligados -ferro ou sobre o estado de desenvolvimento desses
com esta área. Em 29 de Dezembro de 1865 foi no- trabalhos. Refiram-se, como exemplos, o “Relatório
meado director das obras da barra da Figueira da sobre o resultado do reconhecimento do terreno
Foz e dos trabalhos de melhoramento dos campos entre o caminho de ferro do norte e a fronteira de
do Mondego. Em 2 de Outubro de 1866 foi nome- Leste, a fim de conhecer a possibilidade de uma
ado para dirigir a 1ª circunscrição hidráulica. Foi linha férrea nesse direcção” apresentado por José
ainda encarregado de dirigir as obras dos portos Anselmo Gromicho Couceiro em 9 de Outubro de
de Lisboa, Viana do Castelo, Figueira da Foz e 1859, ou o “Relatório sobre o reconhecimento do
Ponta Delgada e os trabalhos da barra do Douro. caminho de ferro pela Beira”, apresentado por Fran-
Em 1869 Augusto Luciano Simões de Carvalho cisco Maria de Sousa Brandão nesse mesmo ano40.
foi nomeado 1º engenheiro da Repartição distrital
das obras públicas de Beja. Ao longo da vida ocupou CONCLUSÃO
vários cargos ligados à construção das diferentes No século XIX a modernização de Portugal
linhas de caminho-de-ferro. Mas a sua actividade esteve directamente associada aos engenheiros.
profissional estendeu-se também a outras áreas: Eram eles que possuíam as competências técnicas
em 1888 foi nomeado director da 2ª circunscrição necessárias para pôr em prática dos trabalhos de
hidráulica; 1899 foi nomeado vogal do Conselho construção de estradas e de caminhos-de-ferro
Superior dos Monumentos Nacionais; em 1900 que permitiam a criação de um mercado nacional.
assumiu o lugar de vogal da Comissão Superior A situação do ensino de engenharia em Portugal
de Comércio e Indústria; em 1906 desempenhou não permitia que o país possuísse um corpo de
o cargo de inspector dos edifícios públicos. engenheiros civis capaz de dar resposta às obras
Quando regressou a Portugal, Ressano Garcia públicas que se procurava incrementar no país,
pôs em prática os conhecimentos adquiridos na embora vários engenheiros militares tenham tido
realização de vários projectos de estradas que um papel activo nestas obras. Para tentar superar
“mereceram a aprovação da Junta Consultiva de a situação vários engenheiros completaram a sua
Obras Públicas e Minas sem alteração alguma”39. formação no estrangeiro, nomeadamente na École
Em 1872 foi nomeado professor de geometria des- des Ponts et Chaussées.
critiva aplicada à indústria do Instituto Industrial Pela sua actividade profissional e pela sua inter-
de Lisboa e engenheiro da Câmara Municipal de venção na vida política e social do país, os enge-
Belém. Em 1874, após concurso público, assumiu nheiros formados na École des Ponts et Chaussés
o cargo de engenheiro da Câmara Municipal assumiram-se como um factor importante da
de Lisboa tendo tido nos anos seguintes uma afirmação da engenharia portuguesa e um veículo
importante acção na modernização da capital. de transferência de saberes e tecnologias associa-
Desenvolveu também uma actividade relevante dos à engenharia civil que contribuiu para a sua
38
Revista de Obras Públicas e Minas, tomo XXVI, nºs 301 e 302, modernização.
1894, 5-6. 40
Boletim do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria,
39
AHMOPCI, Processo individual de Ressano Garcia. nº1, Janeiro de 1860 p.74-75 e nº3, Março de 1860, 261-280.
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documentos que me foram fornecidos pelo Minis- by the École des ponts et chaussées” In Les enjeux
tério de Turim e das minhas notas sobre os esclare- identitaires des ingénieurs : entre la formation et l’ac-
cimentos que me subministrou, durante as minhas tion/The Quest for a Professional Identity: Engine-
excursões à linha, o Dr. Borgnini, engenheiro da ers between Training and Action, edited by Matos,
exploração) ” in Boletim do Ministério das Obras Ana Cardoso de, et ali, 177-209, Lisboa: Colibri/
Públicas, Comércio e Indústria, nº 5, Maio, 469-480. CIDEHUS/CIUHCT.
Fontoura, Pedro de Alcântara Gomes. 1861. “Porto Picon, Antoine. 1992. L’invention de l’ingenieur mo-
de Génova. Prolongamento do molhe novo, muros derne. L’Ecole des Ponts et Chaussées 1747-
de cães, etc. (Memoria extrahida dos esclarecimen- Sepúlveda. Cristóvão Aires de Magalhães.1913.
tos que me foram dados pelo SR. Dyonisio enge- História do Exército Português, Provas VII. Coim-
nheiro director d’estas construções e das minhas bra: Imprensa da Universidade.
notas sobre os trabalhos) in Boletim do Ministério Sepúlveda. Cristóvão Aires de Magalhães.1913.
das Obras Públicas, Comércio e Indústria, nº1, Ja- História do Exército Português, Provas VII. Coim-
neiro, 62-66. bra: Imprensa da Universidade.
Gouzévitch, Irina ; Grelon, André ; Karvar, Anou-
RESUMO
O engenheiro-arquiteto Milton Monte representa um dos principais nomes responsáveis pela produção de uma
arquitetura de cunho modernista regionalista desenvolvida em Belém (PA) a partir da segunda metade do
decênio de 1960. Apesar da escassez de material didático, motivo que dificultou bastante o desenvolvimento
de um trabalho mais apurado sobre o tema proposto, este período corresponde ao momento mais prolífero
da arquitetura belenense, quando o grupo constituído pelos primeiros arquitetos formados no Estado do
Pará, contribuiu de maneira significativa na construção de uma identidade arquitetônica regional.
O presente artigo apresenta uma revisita à gênese da arquitetura moderna amazônida belenense através
de dois objetos norteadores; o resumo biográfico de Monte, com a finalidade de reconhecer a essência
pessoal que o mesmo assentava em seus projetos e a exposição de algumas das principais contribuições do
arquiteto para a construção. Neste sentido, foi possível identificar a preocupação do engenheiro-arquiteto
em responder, de maneira eficiente, às questões climáticas características de uma região tropical. Durante
a releitura de alguns trabalhos de Milton Monte, percebe-se que o arquiteto buscou a otimização do
ambiente construído através de uma arquitetura pragmática, fundamentada na utilização de métodos
construtivos e materiais regionais.
BELÉM MODERNA
A Casa Modernista da Rua Santa Cruz (1927 Entretanto, a partir da primeira metade da
– 1928), de autoria do arquiteto ucraniano Gre- década de 1930, o então Presidente Getúlio Var-
gori Warchavchik, é considerada a primeira ma- gas incentivou por meio de uma administração
nifestação de uma arquitetura fundamentada ditatorial centralizada e principalmente inter-
totalmente nos critérios do modernismo europeu; vencionista (Segawa apud Ackel, 2007, p. 117)
destoando de tudo o que fora produzido até o o aumento da produção arquitetônica no Brasil,
momento e apesar das ressalvas, a obra confere desde que a mesma estivesse legitimada pelas as-
algum reconhecimento e credibilidade ao estilo pirações nacionalistas; esta condição permitiu que
recém-chegado ao país.1 a arquitetura moderna brasileira assumisse ares
tupiniquins2, porém sem interromper o diálogo
1
A presente pesquisa foi desenvolvida e articulada com a tese de Pertencente a nação Tupi, Tupiniquim é um grupo indígena bra-
2
doutoramento em andamento “Milton José Pinheiro Monte: Vida e sileiro com mais de 500 anos de história; na linguagem coloquial,
obra de um arquiteto equatorial amazônida”. tupiniquim quer dizer o mesmo que “brasileiro”.
com as características gerais determinadas pelo respeitassem as características locais, mas que de
“International Style”. Consequentemente a esta certa maneira, concatenassem com os critérios do
mistura de critérios (nacionalismo e modernis- “estilo internacional”.
mo), aliada a forte influência de Le Corbusier, o Segundo Sarquis (2012), o primeiro contato
regionalismo apadrinhado por Lúcio Costa e a destes engenheiros com a arquitetura moderna
plasticidade popularizada de Niemeyer, o Brasil se ocorreu de diversas maneiras; sobretudo através
tornou um dos expoentes máximos da arquitetura de cursos realizados fora do Estado do Pará, via-
moderna (Sarquis, 2003, p. 30). gens pelos Estados Unidos e Europa, catálogos
Neste mesmo período, o crescimento socioe- de projetos e publicações especializadas. Esta
conômico do Brasil permitiu que outros estados, rasa proximidade possibilitou a estes engenhei-
além de Rio de Janeiro e São Paulo, pudessem ros um novo olhar sob importantes aspectos a
proporcionar um ambiente favorável à recepção ser considerados na concepção projetual, como
de profissionais advindos de outras regiões; uma novas técnicas construtivas, a utilização de novos
das classes mais beneficiadas por essa política de materiais, elementos formais entre outros.
desenvolvimento foram os arquitetos, tanto por Contudo, apesar da intensa produção arquitetô-
meio de novas possibilidades de trabalho como nica destes profissionais e a tentativa dos mesmos
docentes em cursos recém-criados de arquitetura em desenvolver uma arquitetura conectada com
assim como colocações tanto em instituições pri- as novidades construtivas, a cidade carecia de
vadas e públicas (Sarquis apud Bastos, 2012, p.47); especialistas que pudessem entender e responder
estas oportunidades foram determinantes tanto na adequadamente as necessidades ambientais espe-
difusão dos critérios balizadores do modernismo cificas da região amazônica. Esse questionamento
como na releitura deste modelo pelos arquitetos quanto à produção de uma arquitetura mais ade-
brasileiros sediados nos demais estados brasileiros. quada à realidade ambiental de Belém, ganhou
Seguindo esta cronologia, em Belém (PA) o reforço quando o trabalho irregular de concepção
trabalho de criação e desenvolvimento da ar- projetual destes profissionais começou a ser posto
quitetura até o inicio da década de 1960 com- em causa; consequentemente, a criação de um
petia aos arquitetos formados em outros esta- curso de arquitetura na capital paraense se tornou
dos, desenhistas e, sobretudo, aos engenheiros uma necessidade. Após a mobilização de diversos
locais. Nesse período, o traçado da maioria das engenheiros e projetistas, foi criado em Belém, em
edificações da cidade já apresentava um certo 1963, o primeiro curso de arquitetura do Estado,
alinhamento com os princípios defendidos pela resultante de uma parceria entre a Universidade
corrente modernista (Vidal, 2008, p. 163), prin- Federal do Pará (UFPA) e a Universidade Federal
cipalmente nos desenhos desenvolvidos pelos do Rio Grande do Sul (UFRGS).
engenheiros Alcyr Meira, Camillo Porto, Judah Consequentemente à criação do curso de ar-
Levy e Milton Monte. As linhas sinuosas, o uso quitetura, a consideração das particularidades
de pilotis, de rampas, do concreto entre outros, do local na concepção de projeto ganhou maior
eram elementos constantemente utilizados por significado aos olhos dos primeiros engenheiros-
esses profissionais. A partir de meados de 1960, -arquitetos formados pela nova graduação, devido
com os primeiros arquitetos formados no Estado, principalmente a dois fatores: a influência dos pro-
a arquitetura desenvolvida assumiu de maneira fessores, provenientes principalmente da UFRGS
acanhada, alguns traços tipicamente regionais, e responsáveis por importantes departamentos
através da utilização de soluções e elementos que do curso de arquitetura na Universidade Federal
ressaltar que essa nova maneira de enxergar a uma morada pertencente a tribo indígena Wa-
concepção projetual, Monte atribuía não só a sua iãpi construída nos jardins do Comando Aéreo
formação de arquiteto, mas também a sua histó- Regional, em Belém (PERDIGÃO, 1997, p. 198).
ria de vida6; para o arquiteto, o seu entusiasmo As peculiaridades da rústica habitação chama-
criativo estava intimamente relacionado com a ram a atenção de Milton Monte e o inspiraram
sua origem amazônida. na concepção do seu mais celebrado artefato: o
Esse sentimento nativo amazônida de Monte, beiral quebrado, conhecido também como beiral
aliado ao reconhecimento das principais caracte- quebra-sol/quebra-chuva. A partir de sua cria-
rísticas climáticas7 de Belém, permitiu ao arquiteto ção, o dispositivo de proteção tornou-se uma
desenvolver um trabalho pragmático caracterizado constante nos seus projetos e, reconhecida a sua
sobretudo pelo respeito das condicionantes cli- proficuidade, foi assimilado também no trabalho
máticas da região; tanto que é comum encontrar de outros arquitetos.
nas suas principais obras referências à utilização Em 1985, a Universidade Federal do Pará
de mão-de-obra local, técnicas construtivas tradi- (UFPA), juntamente Coordenação de Aperfei-
cionais, algumas padrões da arquitetura vernácula çoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
amazônica e diversos tipos de materiais locais. organizou o primeiro e único (até o momento)
Munido desta compreensão proveniente de curso de especialização no âmbito do conforto
suas raízes nativas, Milton Monte buscou no de- ambiental. Denominada “Arquitetura nos Tró-
correr de sua vida profissional, aperfeiçoar o seu picos”, o curso com duração de dezoito meses,
conhecimento técnico enquanto engenheiro e buscou dar a devida importância a arquitetura
arquiteto; fosse através de estudos práticos, onde regional amazônica, analisando através de debates
avaliou as características e a aplicabilidade de entre docentes e discentes, os principais aspectos
materiais regionais; por meio da participação em que lhe caracterizam. Ao mesmo tempo a espe-
cursos de especialização referente a arquitetura cialização tinha como objetivo consciencializar
regional, ou simplesmente por observação de arquitetos e professores da importância de se
soluções comumente utilizados na arquitetura considerar as condicionantes climáticas da região
(vernacular e erudita). no desenvolvimento do projeto arquitetônico.
Um momento que marcou positivamente essa Alguns dos casos de estudos debatidos durante
busca pelo apuramento de seu trabalho e talvez o o curso foram desenvolvidos por Milton Monte
mais importante no percurso de Monte enquanto que, enquanto constituinte do corpo discente da
difusor de uma arquitetura moderna e regional, especialização, desenvolveu sua monografia inti-
aconteceu em 1976 e exemplifica perfeitamente a tulada “Estudos e contribuições sobre modelos de
deferência do mesmo pelo conhecimento nativo, projetos e edificações na Amazônia Equatorial”
diz respeito a visita que o arquiteto realizou a (1986) destacando-se mais uma vez no cenário
acadêmico regional (Sarquis, 2012).
6
Depoimento dado pelo arquiteto ao “Projeto Memórias”, trabalho
desenvolvido pelo Núcleo Cultural da Universidade da Amazônia Porém, grande parte do reconhecimento profis-
(UNAMA) realizada em 2010, com o intuito de homenagear pes- sional de Monte resulta da sua perceção relacio-
soas que contribuem de maneira positiva para o desenvolvimento nada aos tipos e a correta aplicação de materiais
cultural Amazônia nos âmbitos das artes, educação, ciência, lite-
ratura e história. regionais, os requisitos técnicos destes materiais
(físicas e mecânicas) e sua conformidade com o
7
Temperatura média em torno dos 25ºC e 30ºC, sensação térmica
chega a 40ºC ao ar livre; chuvas torrenciais quase diárias e uma
clima tropical; esta ciência oriunda em sua maio-
umidade do ar que pode chegar a níveis de 85% (SARQUIS, 2012, ria, de diversos estudos práticos realizados ao
p.24)
longo de sua carreira. Disto isto, pode-se afirmar de platibandas, elemento muito utilizado pelos
que o arquiteto buscou ao longo de sua carrei- arquitetos modernistas, Monte elevou a impor-
ra, o alinhamento entre a correta utilização dos tância da cobertura, conferindo-lhe destaque não
materiais locais, o aprimoramento da arquitetura apenas estético, mas, principalmente, funcional.
vernacular amazônida e o conhecimento técnico Como referido anteriormente, Monte visitou, em
com o intuito de promover uma arquitetura ade- 1976, uma morada indígena da tribo Waiãpi (Fig.
quada às condicionantes ambientais da região. 2 e 3); esta visita de reconhecimento permitiu
ao arquiteto perceber algumas características
CONTRIBUIÇÕES PARA A construtivas que otimizavam o desempenho tér-
CONSTRUÇÃO: BEIRAL QUEBRADO OU mico da morada. Dentre diversos fatores consi-
BEIRAL QUEBRA-SOL/ QUEBRA-CHUVA derados pelo arquiteto, o que mais lhe chamou
atenção diz respeito a relação entre os beirais da
Grande parte da arquitetura produzida por
cobertura e a edificação. Constituída de palha,
Milton Monte caracteriza-se volumetricamente,
a cobertura apresentava o caimento dos beirais
como um barracão simples, com um telhado
a uma distância aproximadamente de 1.20m a
simples de duas águas. Ao renunciar a utilização
1.30m do solo. Esse caimento excessivo aliado ao
desempenho do material utilizado, permitia uma
ventilação natural satisfatória do espaço interno
da habitação. Se anteriormente, o gênio criativo
de Monte estava condicionado pela limitação
formal imposta pela telha de barro, após a visita a
habitação indígena, Monte idealizou o celebrado
beiral quebrado, conhecido também como beiral
quebra-sol/ quebra-chuva (Fig. 4).
A partir deste momento, Milton Monte adota
em praticamente todos os seus projetos a utili-
Fig. 4 - Residência Kalume. Primeira manifestação do beiral zação do beiral quebrado. Apresentando carac-
quebrado. Fonte: Arquivo pessoal - K. Perdigão (2009). terísticas físicas superdimensionadas, o beiral
Fig. 7 - Residência “Onda Amarela”. Fonte: Arquivo pessoal - K. Fig. 8 – Pavilhão Recreativo. Interpass Club de Mosqueiro
Perdigão (2009) Fonte: Giovanni Sarquis (2011).
que definira para o projeto, Monte buscou utilizar do término da sociedade responsável pelo com-
tecnologias e materiais que respondessem de plexo; consequentemente a falta de utilização e
maneira adequada as condicionantes ambientais manutenção tornaram o local alvo de sucessivos
do local. A mão-de-obra correspondia a 90% furtos aos elementos estruturais e de revestimentos
de trabalhadores da região (Carvalho, Miranda, do complexo. Atualmente, resta apenas uma área
Tutyia, Apud Projeto). tomada pela vegetação e parte do ambiente que
As edificações que constituíam o complexo, abrigava palco (Sarquis, 2012).
pavilhão principal e outros blocos de menor di-
mensão (destinados a administração e logística CONCLUSÃO
do clube) apresentavam semelhantes soluções
Neste trabalho procurou-se apresentar uma
estruturais, como a utilização de concreto arma-
revisita à gênese da arquitetura moderna amazô-
do, tijolo cerâmico, madeira dos tipos angelim e
nida belenense através das obras do engenheiro-
maçaranduba. Como revestimento na cobertura
-arquiteto Milton José Pinheiro Monte. Contudo,
destes blocos, fora definido a utilização de telhas
é impossível falar sobre a obra deste profissional,
cerâmicas e cavacos de madeira, fornecidos por
sem relatar, mesmo que sucintamente, aspectos
moradores da região.
importantes sobre sua vivência pessoal. Pragmáti-
Com 860 m2 de área construída, o pavilhão
co, Monte buscava aplicar no seu processo criativo
principal destacava-se de diversas maneiras. A so-
de concepção projetual, experiências e observações
lução formal da grandiosa cobertura da edificação,
do dia-a-dia, consciente de que “A sofisticação
alusiva a um pássaro pousando na água, era reves-
moderna é importante para a produção de um
tida por telhas cerâmicas e cavacos de madeira da
projeto na arquitetura, mas só a sensibilidade do
espécie jarana dispostos alternadamente; os beirais
olhar voltado para aquilo que parece comum faz
quebra-sol/ quebra-chuva superdimensionados,
uma obra autêntica”9. Ao avaliar o fato de que sua
com grandes ângulos de inclinação, faziam as
inspiração para a criação do beiral quebra-sol/
vezes de paredes e permitiam simultaneamente
quebra- chuva, surgiu ao visitar uma habitação
o aproveitamento da ventilação natural; além
indígena corrobora que Monte buscava, através
disso, protegiam o salão de convívio dos raios
de um olhar crítico, mas humilde, compreender
solares e das chuvas constantes típicas da região.
como desenvolver uma arquitetura de maneira a
Esta solução de cobertura assentava sobre seis
responder adequadamente as necessidades cli-
estruturas compostas por treliças de madeira (Fig.
máticas de uma cidade amazônica.
10 e 11), dispostas a uma distância de 5 m uma
Sem alienar o estilo arquitetónico vigente,
das outras com altura máxima de 12 m (Sarquis,
Monte procurava priorizar nos seus projetos ca-
2012); essa superestrutura permitiu a composição
racterísticas culturais e ambientais da região, fosse
de uma planta semilivre, com ausência quase total
através do uso de materiais locais, pela utilização
de paredes, o que possibilitava a integração do
de técnicas construtivas locais, pela volumetria de
interior da edificação com o seu entorno. Talas de
uma edificação que remeta a uma morada indígena
diferentes espécies de palmeiras como bacabeira,
ou um “grande barracão”, ou pelo bom desempe-
jupati, miriti e inajá, constituíam a estrutura das
nho térmico previsto no projeto arquitetônico.
luminárias do salão central (Carvalho, Miranda,
Aspectos estéticos e funcionais importantes da
Tutyia, Apud Projeto, 2015).
O funcionamento público do Interpass Club 9
Milton Monte, em discurso como mestre homenageado na “Re-
perdurou até o final da década de 1990, aquando cepção ao Calouro” da Faculdade de Arquitetura (UFPA) em
27.02.2008.
arquitetura moderna como o uso de pilotis, janelas utilização de materiais locais, da volumetria, da
superdimensionadas, vãos livres, rampas, entre organização espacial ou do emprego do beiral
outros, são elementos que Milton não renegava quebrado, particularidades que legitimam assim
nos seus projetos, desde que cumprisse seu pro- o estilo arquitetônico fruto da sensibilidade e
pósito: a criação de um espaço adequado à região do pragmatismo de Milton Monte. Porém ape-
amazônica. Propósito que ele conseguiu alcançar. sar do reconhecimento do seu talento e da sua
É necessário reafirmar a colaboração extrema- contribuição para o cenário urbano de Belém
mente significativa de Milton Monte na construção do Pará, materiais didáticos dedicados ao estudo
de uma Belém mais moderna e regional. Seus do trabalho do arquiteto são praticamente ine-
projetos, balizados muitas vezes no autodidatis- xistentes; fator que delimitou o apuramento do
mo, são reconhecidos como os primeiros traços presente trabalho. Até o momento da conclusão
identitários de uma arquitetura paraense, tanto deste artigo, as características técnicas conhecidas
que esta bem-sucedida contribuição transcendeu dizem respeito maioritariamente a adaptação das
o trabalho desenvolvido por Monte e propor- edificações às condicionantes ambientais através
cionou um ambiente favorável para que outros principalmente da utilização de materiais que as
arquitetos pudessem assumir em seus projetos compõem assim como a utilização de recursos re-
traços característicos da arquitetura regionalis- conhecidos na arquitetura vernacular amazônida;
ta. Tanto que é possível identificar em diversas portanto, não foi possível identificar componentes
construções em Belém elementos balizadores da técnicas definidas por Monte na concepção dos
arquitetura defendida por Monte; seja através da referidos casos de estudo.
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movimento moderno em arquitetura e urbanismo no no clima quente-úmido de Belém do Pará”. Conforto
RESUMO
Este estudo pretende abordar questões relativas à tecnologia de construção utilizadas na arquitetura
religiosa mineira na segunda metade do século XVIII, com ênfase nos pequenos centros, onde as condições
econômicas eram mais precárias e a presença de grandes mestres construtores mais difícil. Estas circuns-
tâncias fizeram surgir uma tipologia intermediária, ainda baseada em alguns recursos das igrejas de
taipa e pau a pique da primeira metade do século XVIII, mas que foram obrigadas a incorporar na sua
linguagem um repertório mais moderno e erudito, em voga nas construções religiosas a partir de 1750,
quando os mestres construtores assumiram, nos grandes centros, a tarefa do projeto e da construção,
impondo a presença do recurso da pedra e cal.
A metodologia utilizada consiste na análise das ruínas ainda existentes de duas igrejas, uma concluída
parcialmente e outra abandonada ao longo do tempo. São elas a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos, em Sabará, construção em alvenaria de pedra que teve seu projeto abandonado com a abolição
da escravatura em 1888, e a Matriz da Jaguara, uma obra de 1770, também na região de Sabará, que
abrigou um dos mais importantes conjuntos de talha de Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho.
Abandonada pelos protestantes que compraram as terras onde o monumento se localiza, o edifício foi
sendo lentamente delapidado pelos homens e pelo tempo, tornando-se, depois de tardiamente tombada,
um exemplar que guarda uma série de segredos da tecnologia construtiva mais rural da segunda metade
do século XVIII.
1. INTRODUÇÃO
O estudo das técnicas construtivas ligadas aos conhecida até a década de 1960, definiram uma
antigos monumentos do século XVIII em Minas relação direta entre tipologia arquitetônica do
Gerais ainda constitui matéria incompleta. Os edifício religioso e o sistema construtivo. Talvez, a
existentes classificam genericamente os sistemas melhor síntese desse modelo seja aquela proposta
construtivos vernaculares e seguem as conclusões por Sylvio de Vasconcelos presente em “Arqui-
dos estudos pioneiros feitos por autores como Ger- tetura: dois estudos” (1983), onde o prestigiado
main Bazin, Sylvio de Vasconcellos, Paulo Santos e pesquisador procurou articular a relação entre as
Suzy de Melo, os quais, baseados na documentação tipologias de produção arquitetônica e a economia
Fig. 3 – Capela da Fazenda da Jaguara. Acervo dos autores, 2003. Fig. 4 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em
Sabará. Acervo dos autores, 2016.
ção, sabe-se que os trabalhos foram contratados Neste sentido, podemos começar a nossa análise
com o mestre Antônio Moreira Gomes, com a dizendo que a Capela da Jaguara foi concebida
participação dos pedreiros João Paulo e Antonio mesclando influências arquitetônicas e constru-
Machado Penha e do mestre carpinteiro Antônio tivas da primeira e da segunda metade do século
Ferreira de Brito. O edifício foi edificado total- XVIII, sendo um edifico híbrido, tanto do ponto
mente em pedra e cal, com adro à frente para de vista arquitetônico como construtivo.
monumentalizar o edifício e resolver o problema Do ponto de vista arquitetônico, essa solução
do desnível do terreno. mais arcaica encontra-se no frontispício com
torres quadradas e frontão de influência clássica
2. ESTUDO DE CASO 1: ANÁLISE DO com empena triangular, ainda à moda da primeira
SISTEMA ESTRUTURAL DA CAPELA DA fase jesuítica brasileira. No entanto, a distribuição
JAGUARA da composição das fenestrações arranjada com
um óculo quadrilobado – já não mais existente,
A Capela da Jaguara é um interessante modelo
mas visto em fotografias antigas (Fig. 6) – dia-
de como nas construções particulares parece ter
logava com a linguagem formal do Rococó, que
havido uma certa preferência por ser manter os
também compunha as elegantes seteiras das torres
modelos formais da arquitetura, mais ligados
e uma portada simples, executada em talha de
à arquitetura tradicional das velhas matrizes.
madeira, que lembra as reformas impostas em
No entanto, não despreza os avanços funcio-
1780 para modernizar para o estilo Rococó da
nais implementados a partir de 1750, nos quais
Matriz de Santa Bárbara. É muito provável que
o corredor ao lado da nave e da capela-mor, que
essas modernizações tenham sido impostas pelo
abriga as tribunas no segundo pavimento, vai
Aleijadinho quando ali esteve para construir o
sendo suprimido para, num primeiro momento,
conjunto de talha que envolvia dois púlpitos,
melhorar a composição arquitetônica do edifício
dois altares do cruzeiro, arco cruzeiro, altar-mor
com a valorização formal da torre. Num segundo
e altar da sacristia. Essas peças estão hoje adap-
aspecto, esta modificação colabora para trazer a
tadas na Matriz de Nova Lima, cidade próxima
luz para dentro do templo, como exigia a nova
a Belo Horizonte. A linha de três janelas do coro
estética do Rococó, em moda a partir de 1770. E,
também está compatível com uma composição
num terceiro argumento, para baratear as obras,
mais vinculada à segunda metade do século XVIII,
em um momento em que o ouro já não era tão
que trabalha com maior liberdade a composição
abundante na economia. É novamente Sylvio de
tradicional, que nas velhas capelas e matrizes
Vasconcellos quem melhor define as condicio-
organizavam-se numa composição fixa de um
nantes arquitetônicas da mudança na tipologia
triângulo invertido cujos vértices eram as duas
da arquitetura religiosa em Minas Gerais entre
janelas do coro e a porta principal.
a primeira e a segunda metades do século XVIII
No programa funcional, entretanto, a planta é
quando afirma que a característica mais marcante
totalmente compatível com a tipologia de planta
dessa evolução foi “(...) Reduzir as composições
utilizada na região de Sabará a partir de 1750,
à sua mais simples e esquemática forma; usando
quando foi ali introduzido o sistema construtivo
os próprios volumes como único componente
de pedra e cal a partir da construção da igreja da
emocional; eliminando as decorações supérfluas
Ordem Terceira do Carmo (Fig. 5) pelo mestre
para enfatizar o ornato essencial: clarificando as
português Tiago Moreira, e que será reproduzido,
proporções e fazendo-as concisas (...)”. (Lemos,
posteriormente, tanto na igreja do Cordão de São
2004)
Fig. 6 – Capela da Fazenda da Jaguara, circa 1910. Fig. 7 – Capela da Fazenda da Jaguara, planta. Acervo dos autores.
Fig. 8 – Capela da Fazenda da Jaguara, vista interior do Fig. 9 – Capela da Fazenda da Jaguara, vista interior do arco
frontispício. Acervo dos autores, 2003. cruzeiro. Acervo dos autores, 2003.
pequenas varas de madeira fixadas ao esteio que certamente para não sobrecarregar a estrutura
depois de argamassadas dão o ressalto e propor- das torres, que ainda contariam com o peso dos
cionam a coluna, sendo que nos socos foram já sinos que, em movimento, multiplicam em três
utilizados tijolos queimados, que é uma solução vezes o seu peso transmitido à estrutura da torre
rara neste período em Minas. Um recurso de sineira (Samassa, 1943; Dangelo, 2013).
carpintaria, com essa mesma intenção, foi feito
para fingir o entablamento, utilizando um gaba- 3. ESTUDO DE CASO 2: ANÁLISE DO
rito de carpintaria que definia o perfil da forma SISTEMA ESTRUTURAL DA CAPELA DO
do entablamento, que era multiplicado em várias ROSÁRIO DE SABARÁ
peças iguais e fixado aos frechais para ser poste- A capela do Rosário também segue estritamente
riormente revestido por tábuas de madeira, que o modelo de planimetria da Jaguara que, como
depois recebiam acabamento com tinta à base de dissemos anteriormente, remete ao modelo mais
cal e pigmento. Hoje não existem mais resquícios antigo na região de Sabará, que foi o da construção
do forro, que certamente era em cambota e feito da igreja da Ordem Terceira do Carmo pelo mestre
de madeira com pintura em fundo claro à moda português Tiago Moreira. O programa segue a
do Rococó. Existem algumas antigas fotos que seguinte estrutura funcional, também já descrita
registram fragmentos dessas pinturas. O piso era anteriormente: nave sem corredores, iluminada
campado e ainda existia parcialmente na época por janelas altas, articulada por arco cruzeiro com
dos primeiros levantamentos técnicos no início a capela-mor, também iluminada pelo alto das
de 1982. As escadas eram circulares com seu peso paredes, que é ladeada por dois corpos baixos de
principal descarregado numa peça central. Parte ambos os lados, que servem de sacristia e capela
de uma delas ainda existe. Outros fragmentos do Santíssimo (Fig. 13).
demostram que foram utilizadas as tradicionais Do ponto de vista estrutural, a construção da
soluções de forro de madeira em saia e camisa. igreja utiliza, como sistema único, a alvenaria
As coberturas das torres, no entanto, seguiram de pedra e cal com junta em pedra seca, com
as antigas soluções das velhas matrizes, com o a construção de adro à frente para resolver o
telhado de forma piramidal coberto de telhas, problema do desnível do terreno e também para
Fig. 11 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Fig. 12 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em
Sabará, vista do adro. Acervo dos autores, 2016. Sabará, detalhe da portada. Acervo dos autores, 2016.
Fig. 13 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Fig. 14 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em
Sabará, vista lateral esquerda. Acervo dos autores, 2016. Sabará, vista interior, com capela original ao fundo. Acervo dos
autores, 2016.
14), obra do início do século XVIII, que registra
cidades da Capitania, onde existia uma população
como essas instituições religiosas eram abrigadas
mais letrada e aberta a bancar as experimentações,
incialmente, além da ambição da obra não con-
aclimatadas regionalmente, do repertório religioso
cluída, que está em sintonia com o significado da
do tardo-barroco internacional.
rivalidade entre os grupos sociais na Capitania,
Esse tradicionalismo, no entanto, muitas vezes
geralmente agrupados em tornos desses sodalícios
também veio acompanhado, conforme podemos
religiosos por cor ou corporação de ofício.
verificar em vários documentos sobre as constru-
Infelizmente, não conhecemos o projeto ar-
ções religiosas do século XVIII em Minas Gerais,
quitetônico original dessa construção, mas pelo
de limitações de toda ordem, principalmente
que está edificado é possível prever a tipologia do
econômicas, que condicionavam a atividade do
edifício, que não deveria divergir muito do que
arquiteto ou do construtor a preferir soluções
vemos edificado tanto na citada igreja do Carmo
funcionais e racionais, de modo a poupar despesas.
como na igreja do Cordão de São Francisco, cons-
Isso ocorria, principalmente, nas obras ligadas
truída no mesmo período.
à participação da Coroa, como era o caso das
Matrizes na primeira metade do século XVIII,
4. CONCLUSÕES mas também de capelas mais rústicas como a da
Feitas as análises tipológicas e dos sistemas cons- Jaguara, e mesmo igrejas de Ordens Terceiras e
trutivos dessas duas edificações, podemos concluir Irmandades de localidades mais conservadoras,
que, ao contrário do que a literatura especializada como parece ter sido o caso da Vila de Sabará,
afirma, a introdução do sistema de pedra e cal na onde se situa a igreja do Rosário. Esta, embo-
construção das principais igrejas da Capitania de ra construída utilizando o sistema de alvenaria
Minas a partir de 1750 não extinguiu totalmente de pedra e cal, que tanta experimentação for-
o gosto mais conservador por uma tipologia mais mal proporcionou aos arquitetos e construtores
tradicional e mais ao gosto português. Na verdade, mineiros que atuaram em igrejas construídas
essa tipologia sempre existiu ao lado da vertente no mesmo período, tal como nas Vilas de Ouro
mais criativa da nova cultura arquitetônica, que Preto, Mariana e São João del-Rei, aqui se manteve
se expressou com maior facilidade nas grandes ainda vinculado às soluções mais tradicionais da
arquitetura mineira.
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da Arquitetura Brasileira. São Paulo: Edart. Vasconcellos, Sylvio. 1983. Arquitetura: dois estudos:
Editora da Universidade Católica de Goias.
Licordari, Mariangela(1)*
[email protected]; [email protected]
(1)
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo principal fornecer informações sobre a implementação do betão armado
em Portugal, nomeadamente procurando esclarecer os mecanismos, os acontecimentos e as figuras-chave
que ajudaram, ao longo dos últimos dois séculos, a implementar esta nova técnica de construção neste
país, no início da industrialização. Para a vulgarização do uso deste novo material na construção em
Portugal, as competências empresariais de François Hennebique, pai da patente de betão armado mais
conhecida a nível internacional, serão fundamentais. Através da análise do seu perfil profissional e da
sua empresa, pretendemos apresentar os primeiros anos de utilização desta técnica de construção no
país e as primeiras obras realizadas com este material.
O primeiro período de utilização do betão armado em Portugal estende-se por cerca de 30 anos, desde
o início dos anos ’90 do século XIX. Várias referências definem este prazo de tempo: 1892 (abril), que
coincide com a concessão da primeira patente Cottancin em Portugal através da pessoa de José Martins;
1894 (setembro), quando se regista a primeira patente Hennebique em Portugal, na pessoa de Jacques
Monet; 1897, que vê a construção da Fábrica de Moagem de Caramujo, primeiro edifício do país cons-
truído inteiramente em betão armado; 1925, ano do início das obras do Cinema Capitólio, primeira
manifestação portuguesa da arquitetura moderna; 1927, data da construção de um armazém de três
andares em Sta. Apolónia, projetado pelo arquiteto João Jorge Coutinho e feito inteiramente de estru-
tura de betão armado, com uma área de mil metros quadrados, onze metros de altura e um terraço no
telhado. Também temos de reconhecer que a história da implementação do betão armado em Portugal
está fortemente ligada ao início da produção de Portland no país; produção alcançada inicialmente
pela indústria de cimento localizada em Alhandra, propriedade de António Teófilo de Araújo Rato,
que, desde 1894, tinha começado a fabricar o material após a apresentação da sua patente para “[...] o
fabrico de cimento artificial Portland por via húmida ou seca [...]”. Naquele tempo, as condições sociais
e económicas do País eram ideais para o desenvolvimento destas inovações tecnológicas. Além disso,
para Teófilo António Rato, a produção nacional deste sector era necessária para o desenvolvimento
global do país, porque permitia também reduzir a importação de Portland de países estrangeiros, como
França, Alemanha, Inglaterra, favorecendo, portanto, a economia do país. A difusão do betão armado
em Portugal está, então, ligada ao crescimento industrial que o país estava a viver na viragem do século
e à recuperação e desenvolvimento urbanos que advinham deste crescimento.
Através deste trabalho, deseja-se, por conseguinte, descrever a implementação do uso deste material no
contexto socioeconómico referido em Portugal.
feito com cimento inglês Eagle, para a Faculdade A partir de 1902, por exemplo, outros trabalhos
de Medicina de Lisboa no campo de Santa Ana, realizados com a patente Hennebique foram feitos
cujo trabalho foi dirigido por “M. S. Reynaud & no norte do país. São exemplo de tal os trabalhos
C.”, naquela época representantes em Portugal da realizados na cidade de Porto pelo engenheiro
patente Cottancin. Especificamente,“[...] tratava-se Bernardo Joaquim Moreira de Sá, que, na época,
de uma dupla laje de betão armado, constituindo se associara à casa Hennebique de Madrid como
o teto do átrio principal e o pavimento da zona distribuidor em Portugal, e que criaria a famosa
da tribuna real da sala dos actos grandes [...]” 2. empresa de construção Moreira de Sá e Malevez,
Isto mostra como, naquele tempo, para vários muito importante para a divulgação da patente em
empresários/fabricantes de betão armado, Portugal todo o país.4 Em outubro de 1903, o engenheiro
era visto como um território virgem onde pode- tinha começado a construção do segundo trabalho
riam experimentar as invenções ou patentes, a fim em betão armado do país: a Estação dos Bombeiros
de conquistar um mercado ainda sem competição. de Porto, encomendada à empresa pelo município
Ainda no ano de 1899, e com sistema Cottancin, da cidade. 5
foi com betão armado que se construiu a laje de O referido engenheiro descreveu, em 1904, as
cobertura da instalação de roldanas de transmissão circunstâncias que levaram ao nascimento da
do cabo de tração das carruagens, nas estações de obra arquitectónica e a escolha do betão armado
chegada e de partida do antigo funicular de São como material do projeto:
Domingos, em São Sebastião da Pedreira, que a
“ […] O município do Porto possuía há vá-
companhia concessionária Larmanjat criara para
rios anos um terreno vasto, em declive, de
o transporte de passageiros até à estação do Rego.3
aterro muito heterogéneo e em que o solo
No ano anterior, em 1898 (embora o projeto
bom se encontrava a 18 m de profundidade.
fosse de 1897), tinha sido levado a cabo o gran-
O município pensava ocupar este terreno
dioso projeto da Fábrica de Moagem de Caramujo,
com o novo quartel dos bombeiros, mas o
de António José Gomes, considerado em todos os
alto custo que implicaria a fundação num
aspetos o exemplo mais notável da fase pioneira
tal terreno impedia-o de tomar uma decisão.
do betão armado em Portugal, sendo o primeiro
Propusemos então construir em Betão arma-
edifício do país a ser construído inteiramente com
do os diversos edifícios, incluindo as funda-
a nova técnica de construção, usando a patente
ções. Seria a primeira obra de Betão armado
Hennebique. Mas se a estrutura da nova Fábrica
executada em Portugal. [...] a natureza do
de Caramujo se configura como a mais importante
solo que deveria suportar o edifício era [...] o
obra arquitectónica do início da implementação
que constituía o ponto mais difícil a resolver
portuguesa do material, outros casos igualmente
[...]. A adoção do Betão armado impunha-
importantes podem ser citados para enfatizar a
-se do ponto de vista económico e dava intei-
rápida difusão do betão armado no contexto da
ra e plena satisfação no aspeto técnico [...].”6
indústria de construção do país e o seu uso em
outras obras arquitectónicas e de engenharia.
4
Cf. António Maria Santos, op. cit., pp. 183-184.
2
Arnaut P. de Meneses, Experiências na escola médica de Lisboa, e
em França na escola de pontes e calçadas e no ministério da guerra. 5
Cf. Antonio de Carvalho Quintela, Contribuição para a história
“Revista de Obras Públicas e Minas”, Lisboa, Tomo XXX, n. 351, do Betão armado em Portugal: Primeiras obras, in “Revista por-
352, Janeiro-Fevereiro 1899, p. 40-47. tuguesa de engenharia de estruturas”, n. 30. Ano X, Janeiro 1990,
pp. 9-15.
3
Cf. Carlos Antero Ferreira, Betão a idade da descoberta. Lisboa,
Ed. Passado Presente, 1989, p. 66. 6
Ibidem, p. 12.
Embora nesta descrição se fale erroneamente Livraria Lello & Irmão, na Rua das Carmelitas n.
desta obra como a primeira em Portugal realizada 144, em que o betão armado é usado em algumas
com a nova técnica de construção (de facto não partes estruturais do edifício, como na bela escada
devemos esquecer a construção da fábrica de que ocupa a parte central. Coberta com painéis
Caramujo alguns anos antes), ela é, apesar de de madeira que disfarçam a natureza do material
tudo, muito interessante para compreender as utilizado, esta escada é um excelente exemplo,
razões que, às vezes, estavam por trás da escolha na estrutura e na peculiaridade da forma, do
do material: o custo mais económico do sistema potencial arquitetónico do novo material, apesar
e a sua extraordinária capacidade de rolamento. de estar ainda longe o reconhecimento estético
No mesmo ano de 1904, a empresa irá realizar a do mesmo e da sua aplicação sem revestimento
primeira ponte em betão armado do país, ou seja, de outros materiais. De 1911, aliás, é o projeto de
a ponte de Vale Meões em Mirandela, construída um depósito de wagons a construir em Campolide
em apenas 34 dias. (Lisboa) para a Companhia de wagons-lits, e do
mesmo ano são as Tabellas da “Direção Técnica
“ […] A ponte compõe-se essencialmente
das Obras Públicas”, elaboradas sob a orientação
de dois arcos parabólicos de 19 m de vão,
de Vicente Ferreira, engenheiro-chefe da “Socie-
afastados 1,70 m. Eles são unidos por ti-
dade dos Caminhos de Ferro Portugueses”, que
rantes de 0,15 m por 0,20 m de secção, têm
explicam com precisão os valores dimensionais a
0,20 m de espessura e 0,40 m de altura no
considerar em função das obras a realizar.
fecho e 0,60 m no encastramento. A fecha
Em 1912, o betão armado é igualmente usado
é de 3,00 m. O pavimento do tabuleiro tem
na construção do primeiro tanque de água de
1,90 m de largura e cada passeio 0,70 m de
Portugal, construído no Entroncamento pela So-
largura, o que dá ao tabuleiro a largura to-
ciedade dos Caminhos de Ferro Portugueses. Com
tal de 3,30 m. O pavimento tem 10 cm de
uma capacidade de 250 m3, era uma construção
espessura e é recoberto por uma camada
caracterizada por uma geometria rigorosa e uma
de balastro de 20 cm. [...] O pavimento re-
grande pureza formal, onde as vigas de contra-
pousa a meio diretamente sobre os arcos e
ventamento e os finos pilares que caracterizavam
sobre pilares (2 de cada lado) [...]. A secção
a estrutura eram modelados com doçura para
destes pilares é de 0,20 por 0,20 m [...].”7
fazer uma estrutura que fosse o mais elegante
A partir de 1906, serão realizados outros tra- possível. Pequena fineza arquitectónica aplicada
balhos importantes: um viaduto em Arraiolos a uma infraestrutura industrial.
(1906) e duas pontes de maiores proporções feitas Em 1913, outros viadutos e pontes, totalmente
respetivamente em Oliveira de Frades, a Ponte em betão armado, foram construídos por esta
Luiz Bandeira de 44 metros de comprimento Companhia. Por outro lado, como exemplo de
para um arco de abertura de 32 metros (1907), uma fase inicial de conciliação do novo material
e em Braga, a Ponte de Parada de 33 metros de com as técnicas de construção tradicionais, sempre
comprimento (1908).8 Mais ou menos do mesmo em uso, pode-se mencionar a construção da Fá-
período (1906) é a construção no Porto da famosa brica de Cerveja Portugália, de António Rodrigues
7
Transcrição de uma parte de texto, relativa à descrição do projeto, da Silva Júnior, construída em Lisboa a partir de
feita por Moreira de Sá em 1904. Ibidem, p. 13. 1913 para Empresa Fernand Touzet.9 Da mesma
8
Cf. António Maria Santos, op. cit., pp. 181-182; e Revista de Obras
Públicas e Minas. Lisboa, Associação dos Engenheiros Civis Portu- 9
Voir: Carlos Antero Ferreira. Betão aparente em Portugal, Lisboa,
gueses, 1908. Tomo XXXIX. p. 25. Associação Técnica da Indústria do Cimento, 1972, p. 22.
são também os Armazéns Nascimento, projeta- Antes deste desenvolvimento, incentivado por
dos por Marques da Silva, e a cúpula do templo um governo que via no progresso industrial na-
bizantino-românico de Santa Luzia, na cidade de cional um imperativo para o crescimento global
Viana do Castelo, que o arquitecto Ventura Terra do país, temos de reconhecer, no entanto, que em
irá projetar em 1903 e Miguel Nogueira realizará Portugal a atividade industrial ligada à produção
em 1926. Nos anos vinte do século XX, o betão de cal hidráulica e cimento natural, já se encon-
armado tornou-se um elemento próprio da ar- trava ativa desde há algumas décadas, apesar do
quitetura portuguesa, certamente não sem erros pessimismo de alguns importantes estudiosos
de trabalho. Apesar da desconfiança inicial dos do assunto, destacando-se o engenheiro José da
especialistas, tal material passou a ser considerado Paixão Castanheira das Neves que, em 1890, havia
para todos os efeitos como elemento indispensável descrito da seguinte forma a situação desta in-
à revolução na indústria da construção. dústria nacional no seu relatório Estudos sobre
cimentos naturais:
2. A PRODUÇÃO DO CIMENTO NA
“[…] A indústria dos cimentos em Portugal
PREDISPOSIÇÃO INDUSTRIAL DE
tem tido atè ao presente pouquissimo desen-
PORTUGAL E SUA RELAÇÃO COM O
volvimento. (...) è insignificantissima esta
BETÃO ARMADO
nossa indústria, o que è tanto mais para es-
Na história do advento do betão armado em tranhar, quanto o consumo dos cementos e
Portugal, também temos que reconhecer como das caes hydraulicas importadas no paiz tem
fundamental para sua rápida difusão no País, a consideravelmente augmentando nos ulti-
relação com o nascimento da produção nacional mos cinco anos, desde 1885 a 1889 [...]”.11
de Portland artificial. De facto, se nas primeiras
Uma das fábricas mais conhecidas na época,
obras de Cottancin realizadas em Portugal ainda
porque constantemente publicitada nas revistas
era usado o cimento inglês de marca Eagle, a
mais importantes do país, era a “Empresa de cal
partir do registo da primeira patente Hennebique,
hidráulica e cimento natural da Rasca”, fundada
passará a ser determinante a estreita colaboração
em Lisboa em 1866, com sede na Rua do Alvito em
entre o engenheiro belga e o primeiro fabricante de
Alcântara. Primeira empresa portuguesa dedicada
Portland artificial em Portugal: António Teófilo de
à produção de ligantes naturais, a Empresa da
Araújo Rato. A correspondência que teve lugar em
Rasca extraía e trabalhava os calcários margosos
1896 entre Herculano Galhardo, primeiro diretor
do concelho de Setúbal, na Serra da Pedra Branca.
da fábrica “Moreira Rato & Filhos” de Alhandra, e
Apesar da qualidade apenas suficiente do ligante,
Jacques Monet, primeiro representante da patente
principalmente devido ao fabrico rudimentar e
Hennebique em Portugal, e os ensaios de algumas
ao controlo de qualidade inexistente, a marca de
obras de Hennebique feitos na fábrica de Alhan-
“Cal e Cimento da Rasca” permaneceu opera-
dra, como por exemplo “[…] as experiências de
cional no mercado português por muitos anos
resistência de uma viga com pavimento de cimento
e, inclusive, em 1889 a Empresa era referida na
armado, pelo sistema Hennebique […]”, de 14 de
conhecida “Revista de Obras Públicas e Minas”
Julho 1896, são mais que reveladoras desta estreita
a par de outras companhias de ligantes naturais
colaboração.10
11
Cf. Carlos Antero Ferreira. Betão a idade…, op. cit., p. 74; e Re-
latorio apresentado à direcção da 3ª circumscripção hydraulica em
10
Cf. Gil Braz de Oliveira. A indústria portuguesa do cimento: um 21 de Abril de 1890, in “Revista de Obras Publicas e Minas”, Lisboa,
século de história. Lisboa, Cimpor, 1995, p. 34. Tomo XXII, Junho-Setembro, 1891, p. 181.
presentes no momento em Portugal: a Empresa escrito em 1892 e intitulado Estudos sobre algumas
de Maceira e a de Cabo Mondego. caes hydraulicas e magnesianas nacionaes15.
Desde os anos ’70 do século XIX, de facto, novas No entanto, apesar da boa predisposição do País
empresas de produção de cimentos naturais entra- para o desenvolvimento deste tipo de indústria,
vam no mercado português. Em 1873 foi formada os cimentos naturais produzidos em Portugal
a Companhia Mineira e Industrial do Cabo Mon- no final do século XIX não tinham qualidade
dego, cuja atividade interessava essencialmente à suficiente para igualar ou ultrapassar os que eram
construção de “[…] vidraça, garrafas, cal, cimento importados do estrangeiro. As causas eram mui-
e outras […]”12. Como recordado pelo engenheiro tas: desde a natureza química da marga calcária,
E. Ackermann, que em 1906 publicou na “Revista passando pelas tecnologias de fabricação pouco
de Chimica Pura e Applicada” um estudo sobre desenvolvidas, até à falta de controlo de qualidade.
as indústrias cimenteiras portuguesas, a fábrica A este respeito, num parecer de 30 de Junho de
de Cabo Mondego: 1890, assim falava a Junta Consultiva de Obras
Públicas e Minas de Lisboa:
“[…] No principio não fazia (...) senão cal
hydraulica, que è parecida com a cal hy- “[…] é de opinião que os cimentos nacionais
draulica da fabrica franceza do Teil. Agora não soffrem comparação com os estrangei-
faz-se também cimento no Cabo Mondego. ros, devido à fraca pujança dos jazigos de
Conforme as analyses, o cimento do Cabo onde se explora a rocha para o fabrico, à
Mondego tem 3,37% e a cal hydrauli- sua desigual e pouco uniforme composiçao
ca tem de 1 a 2% d’acido sulfurico [...]”.13 chimica, e à rudimentar execução do fabri-
co; não podendo n’estas condições soffrer a
Nesta fábrica a produção de Portland artificial
concorrencia dos productos similares estran-
começará só em 1948 com a construção de um
geiros, e tendo fatalmente de ser banidos das
novo edifício oficialmente inaugurado em 1950.14
nossas construcções, emquanto se não pro-
Nos anos seguintes, outras empresas portuguesas
duzirem em condições acceitaveis [...]”.16
serão desafiadas a produzir ligantes naturais: a
“Empresa de Maceira” no Concelho de Leiria Uma melhoria da situação é alcançada com
(mais tarde conhecida por sua produção de ci- a entrada em vigor dos sistemas de protecção
mento Portland LIZ), ou os cimentos de Pataias aduaneira, tornados efectivos pelo Decreto de 22
e de S. Pedro de Moel, produzidos pela empresa Setembro de 1887 e reafirmados com mais força
“João Silva Monteiro e filho”. Em seguida, houve pela Lei de 10 Maio de 1892, que permitiram uma
as fábricas dedicadas exclusivamente à produção melhoria da qualidade dos ligantes nacionais,
de cal hidráulica, cujos produtos foram também passo necessário para reduzir a importação de
estudados por Castanheira das Neves num Ensaio produtos estrangeiros.17 Além disso, como argu-
mentado por Castanheira das Neves no texto já
12
Cf. Carlos Antero Ferreira, Betão a idade…, op. cit., p. 76; e O
Complexo Industrial do Cabo Mondego. Colecçao “Cadernos Mu-
nicipais”, n. 10, Figueira da Foz, 1982, p. 27. 15
Cf. J. P. Castanheira das Neves. Estudos sobre algumas caes
hydraulicas e magnesianas nacionaes, in “Revista de Obras Publi-
13
Cf. E. Ackrmann. As fábricas portuguezas de cimento, in “Re- cas e Minas”, Lisboa, Tomo XXII, Julho-Setembro, 1892.
vista de Chimica Pura e Applicada”, II ano, n. 12, Madrid, 1906,
pp. 469-470. 16
Cf. Carlos Antero Ferreira. Betão a idade..., op. cit., p. 77; e Revis-
ta de Obras Publicas e Minas, Lisboa, Tomo XXII, Junho-Setembro,
14
Cf. Carlos Antero Ferreira. Carlos Antero. Betão a idade…, op. 1891, p. 232-236.
cit., p. 77; e Gil Braz de Oliveira. A indústria portuguesa do ci-
mento..., op. cit. 17
Cf. Carlos Antero Ferreira. Betão a idade..., op. cit., p. 80.
mencionado, “Estudos sobre algumas caes hy- sendo esse producto consumido nos logares
draulicas e magnesianas nacionaes”, finalmente proximos a essa producção e os processos
era alcançado: que se empregam n’esse fabrico são ainda
os primitivos, limitando-se a cosedura e
“[...]o momento mais opportuno para cre-
moagem dos calcareos. Nestas condições
ar e desenvolver a industria d’este genero
não pode a industria nacional, affrontar a
no nosso paiz. À sua fundação e desenvol-
concorrencia do producto similar estran-
vimento é mister que presida a orientação
geiro [...]. Estabelecer uma grande fábrica
scientifica e pratica que lhe permita apre-
de cimento artificial, que possa pela sua
sentar, em boas condições de concorrencia
qualidade e pelo seu custo modico fazer
de preço, artigos que satisfaçam ao uso a
cessar, senão no todo pelo menos em parte,
que se destinam, dotados sobretudo de com- a importação estrangeira d’este artigo, foi
posição constante e homogenea (...). N’estas o problema que me propuz resolver [...]”.20
condições poderão ser vencidos na lucta
os productos similares estrangeiros [...]”.18 A ideia de construir uma fábrica de cimento
artificial que pudesse atender a todas essas neces-
O panorama industrial português encontra- sidades remonta a 1888, quando António Teófilo
va-se, portanto, perante um verdadeiro ponto de Araújo Rato, que então teria 30 anos de idade,
de viragem.1894 será o ano em que se decidirá movido por uma impressionante audácia, se lança
experimentar a produção de Portland artificial. na busca de um lugar adequado para construir
O primeiro Portland do País será produzido por esta nova indústria.
uma indústria de cimento localizada em Alhandra, A escolha recai sobre Alhandra, vila localizada
propriedade de António Teófilo de Araújo Rato, a 26 Km de Lisboa, que naquele momento ofe-
que, a partir de 1894, começa o fabrico “[…] de recia excelentes condições naturais e sociais para
cimento artificial Portland por via humida ou seca a instalação da nova fábrica: em primeiro lugar,
[…]”19, acreditando que a produção nacional deste a natureza excelente dos calcários margosos do
sector era necessária para o desenvolvimento glo- local, atestada pelas análises feitas pelo empre-
bal do país e que, assim fazendo, poderia mostrar sário, tanto em Portugal como no estrangeiro,
o seu compromisso no crescimento industrial e entre 1888 e 1889; em seguida, a proximidade do
económico, permitindo ao mesmo tempo a redu- rio Tejo e do transporte ferroviário, importante
ção de importação de Portland de países como a meio de comunicação para a comercialização do
França, a Alemanha ou a Inglaterra. António Rato produto; e por último, mas não menos importante,
explicava deste modo a sua posição: a facilidade de encontrar uma força trabalhadora,
“[...] A fabricação de cimento artificial é apta a pôr de pé a fábrica. Em 1890, António Rato
entre nós completamente desconhecida decide alugar, por um período de noventa anos,
[...]. Alguma producção de cimento se faz os terrenos do Bom-Jesus e do Alto do Pinheiro,
em Portugal, mas simplesmente de cimento no distrito de São Pedro de Alverca, precisamente
natural e ainda assim em pequena escala, com a intenção de “[…] arrendar a descrita e
confrontada propriedade, para n’ela esplorar, a céu
18
J.P.Castanheira das Neves. Estudos sobre algumas...,op. cit., p.
288. aberto, argilas e quaisquer outros materiais que
se encontrem no subsolo, e de que precise para
19
Para mais informações consulte: Carlos Antero Ferreira, Betão a
idade..., op. cit. p. 70. 20
Ibidem, pp. 70-71.
a laboração da fabrica ou fabricas que venha a ser empregado pelo serviço d’engenharia
estabelecer nesta Villa ou seus suburbios […]” 21. no campo entrincheirado de Lisboa [...]”.22
Após ter consultado as mais famosas marcas
Quando começou a produzir o primeiro
estrangeiras que operavam há anos na produ-
Portland de Portugal, a fábrica de Alhandra era,
ção do material, localizadas principalmente em
sem dúvida, o testemunho de algo incomum,
Inglaterra, França e Alemanha, e depois de ter
surpreendente e moderno no contexto industrial
importado a maquinaria mais moderna para o
do país, não só no que diz respeito à natureza ar-
efeito pretendido, a 6 de Outubro de 1892, António
quitetónica do edifício, mas também e sobretudo
Rato pede em seu nome um Alvarà Regio para a
pelo processo de produção adotado, nascido como
introdução da nova industria, que será concedido
resultado de difíceis escolhas de projeto relativas
no dia 24 de Abril de 1894. De facto, embora os
aos sistemas de preparação de matérias-primas, à
trabalhos para a construção da planta industrial
cozedura e à moagem do cimento, à organização
tivessem sido iniciados em meados de 1892, para
do trabalho dentro da fábrica.
todos os efeitos a fábrica estará concluída e pronta
A escolha do sistema produtivo foi a primeira
a produzir somente a partir de 1894. O produto
pergunta técnica à qual António Teófilo de Araújo
obtido foi registado com a marca Tejo, após pe-
Rato tentou responder. Provavelmente com base
dido de registo da marca feito a 12 de Dezembro
no parecer da primeira empresa produtora de
de 1894, e já no final desse ano começou a ser
cimento Portland artificial na França, a empresa
comercializado em todo o território português.
em Boulogne-sur-Mer em Pas-de-Calais (a partir
De imediato o cimento Tejo se mostrará à altura
da qual se originou a Société des Ciments Français),
das expectativas, competindo com os cimentos
o empresário português decidiu adoptar, para o
estrangeiros não só relativamente ao custo mas
sistema de preparação e confecção das argilas,
também à qualidade do produto, que tinha dado
o forno contínuo Hoffmann de forma anelar,
excelentes resultados nas primeiras aplicações
propondo a tecnologia adotada pelos fabricantes
realizadas. Assim, em 1906, o Eng. Ackermann
franceses.
falou do cimento Tejo no seu estudo sobre a in-
Rapidamente a nova marca vai ser emprega-
dústria cimenteira portuguesa:
da em todo o mercado nacional com excelentes
“[…] O producto è o verdadeiro cimento resultados. A sua reconhecida qualidade e os
portland. Conforme as condições do uso, esforços promocionais promovidos por Antó-
o tempo necessario à prêsa varia consi- nio Rato levam o produto a ser utilizado pelos
deravelmente, mas em agua doce é em profissionais mais importantes da época como
menos de tres horas e em agua do mar é arquitetos, engenheiros e construtores: entre eles
mais que cinco horas. Pelo cimento sim- podemos lembrar, por exemplo, Adães Bermudes
ples, a resistencia média à tracção por cen- (1864-1948), José Luiz Monteiro (1849-1942); João
timetro quadrado é 7,28 e 84 dias depois Piloto (1880-1956) e Ventura Terra (1866-1919).
da manipulação é de 32, 40 e 42 kgr. pelo De particular interesse são as declarações feitas,
producto amassado e immergido em agua em Março de 1898, pelos dois primeiros arquite-
doce e de 35, 52 e 57 kgr. para producto tos, em que, depois de quase quatro anos após a
amassado e immergido em agua do mar. colocação do material no mercado, apesar de não
O cimento “Tejo” era bastante bom para fazer referência direta à sua utilização em obras
de betão armado, se especifica: “[…] o cimento
21
Para mais informações consulte: Gil Braz de Oliveira. A indústria
portuguesa do cimento..., op. cit., p. 22. 22
Cf. E. Ackermann. As fábricas portuguezas....,op. cit., p. 469.
Com a entrada em função do primeiro sector de No mercado nacional, o cimento Liz igualará
transformação, a 3 de maio de 1923, a fábrica de e superará a concorrência devido à alta qualida-
Leiria inicia a sua produção. O processo escolhido de de produto, tornando rapidamente a fábrica
foi o sistema de via seca com forno rotativo para Maceira-Liz protagonista indiscutível da indústria
a cozedura dos calcários margosos, o primeiro nacional de cimento Portland, até ficar, em 1935,
a ser instalado em Portugal, e os equipamentos a principal acionista da “Companhia Cimento
empregados foram todos adquiridos na Alemanha Tejo”. 33
com assinatura Polysius, incluindo os geradores da
central eléctrica especialmente construída na área 3. CONCLUSÕES
da fábrica, que foram comprados pelo grupo AEG.
Na história das origens do betão armado em
A fábrica foi equipada com um excelente labora-
Portugal e na rápida vulgarização do uso deste
tório de análises químicas e de testes práticos, um
material na arquitetura portuguesa do século
dos mais modernos da Europa na época. Tinha uma
XX, a Fábrica da Alhandra, a Fábrica da Rasca e
caldeira para a recuperação do calor produzido pelos
a de Maceira-Liz têm indubitavelmente um lugar
gases provenientes do forno, que eram utilizados para
privilegiado.34 Se as últimas duas são testemunho
accionar a central de turbinas a 1500 Kw construídas
e confirmação das oportunidades comerciais e
no interior do edifício. Além disso, promoveu um
industriais que o país atravessava nas primeiras
“Bairro do pessoal”, com escolas, centros recreati-
décadas do século XX, a primeira representa o
vos, empresas e hospital, situado num belo parque
sonho de um empresário que unicamente mo-
servido por estradas. Uma descrição completa da
vido pela sua intuição e teimosia, no final de
fábrica, incluindo as etapas de processamento e de
século XIX, foi capaz de introduzir num Portugal
análise do cimento obtido, mais uma vez será feita
comprometido com a sua “segunda revolução
pela revista Técnica em Julho 1926:
industrial”, um setor produtivo ainda latente: o
“[…] A E.C.L. produz, por via sêca, cimen- da fabricação de Portland artificial.
to Portland artificial, isto é um cimento O nascimento da primeira indústria nacional de
tipo Portland empregando materias pri- Portland, em nome de António Teófilo de Araújo
mas de varias origens, em proporções con- Rato, o registo da patente Hennebique, na pessoa
venientes. O producto tem uma composi- de Jacques Monet, e a construção do primeiro
ção definida, cuja constancia se consegue edifício português realizado inteiramente em betão
pela concomitante e metodica fiscalização armado, a “Fábrica de moagem de Caramujo” de
do Laboratorio. É portanto ele que cons- Antonio José Gomes, são, naquele final de século,
titue o verdadeiro centro directivo: dà a modelos de mérito e de coragem empresarial que,
directriz a seguir; analisa a materia pri- 33
Para mais informações consulte: Gil Braz de Oliveira. A indústria
ma; fiscaliza o andamento dos moinhos e portuguesa do cimento.., op. cit., p. 170.
do forno; verifica a qualidade do clinquer 34
Para uma discussão completa do assunto, deve-se notar que, nos
e do cimento: numa palavra, acompanha anos da instalação da fábrica Maceira-Liz, outras pequenas fábri-
a evolução gradual da materia prima até cas de cimento presentes nas províncias portuguesas do ultramar
ao clinquer e ao cimento, traçando un ver- vinham tentando estabelecer-se no mercado nacional: pensamos na
Fábrica da Matola, em Moçambique, na “Mozambique Portland
dadeiro diagrama de fabricação [...]”.32 Cement Company Ltd”, que tinha direito a explorar as matérias-
-primas da província africana, ou mesmo na Fábrica da Fontinha,
32
Cf. Técnica: revista de engenharia dos alunos do Instituto Supe- na ilha de Porto Santo, cujo objetivo era “[…] o fabrico de cimento
rior Técnico, n. 5, Julho 1926, Associação de Estudantes do Instituto e de outros produtos silico-calcáreos, telhas, tijolos e materiais co-
Superior Técnico, Lisboa, p. 13. rantes […]”. Ibidem, p. 253.
no seu conjunto temporal, constituem um teste- para entender cabalmente a história do advento
munho claro e um importante ponto de partida do betão armado em Portugal.
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bonne, Mémoire du Master Erasmus Mundus TPTI : episódios da presença do betão armado nas estraté-
(Techniques, Patrimoine, Territoires de l’industrie : gias de projecto dos arquitectos nos primeiros anos
Histoire, Valorisation, Didactique). do século XX. Porto.
RESUMO
Filippo Terzi (1520-1597) was born in Bologna, but grew up in Pesaro, a town where goldsmiths and
clockmakers, such as his father, prospered, and where mathematical studies were cultivated. An archi-
tect at the court of the Della Rovere, a lively centre of sixteenth-century Italian culture, he accepted the
invitation of King Sebastião in 1576 to come and work in Portugal, and thereafter was greatly favoured
by Filipe II. In the late nineteenth century, the historiography of Portuguese architecture attributed him
with having played an essential role in its development, and we might also consider that he represented
an important link with Italian culture during the last quarter of the sixteenth century. The political
affinities between the two countries in the 1930s encouraged the publication of a number of parallel
studies about this particular time, bringing to light several important documents, but also leaving us
with an ambiguous legacy, which needs to be clarified in order to safely reconstruct the history of that
period. The list of his works remains unclear and no documents have yet been found, either in Italy or
in Portugal, that serve to establish this in an unambiguous fashion. A manuscript acquired by the Por-
tuguese National Library in 1989 bears his name, but it cannot be ascribed to him with any safety, as
this article shows. Perhaps this uncertainty has discouraged scholars in Italy from looking more deeply
into this matter, although the culture of Pesaro and Urbino in the second half of the sixteenth century,
including the scientific developments that took place there, is currently being fully re-evaluated. In Por-
tugal, research into this same period has been more intense and studies have gradually resulted in more
convincing models for its interpretation. The stereotypical view of the Renaissance, which describes it
as irradiating from Italy as its centre, has been substantially revised: from the first half of the sixteenth
century onwards, the Renaissance was a shared culture, expressing the shared vision of Europe’s social
and professional elites and leading to widespread cultural exchanges all across the continent.
Terzi’s institutional role is essential for recognising and understanding his work. As the coordinator in
chief of the Portuguese kingdom’s most significant architectural projects at that time, his importance
has necessarily been judged in accordance with the complex mechanisms and the numerous authori-
tative opinions that shaped the decision-making processes of the Spanish monarchy, to which Portugal
belonged between 1580 and 1641. Since he was responsible – with varying degrees of influence – for the
transition from the design to the realisation of architectural projects, his experience of Italian building
sites proved crucial in helping him to adapt to different Portuguese building traditions, particularly
those that were based on stone constructions and involved the use of stereotomy. This aspect remains
relatively unexplored and would seem to be a most promising avenue for future research.
coherent set of works, each with their own recog- in keeping with the requirements of a specialist
nisable (and local) features, while also displaying publication.
the latest trends of their time. He compared these During this same period, Francisco Marques de
buildings – more than Terzi’s own work – with Sousa Viterbo opened up another fundamental line
the Claustro dos Felipes in Tomar, and with the of research with the publication of his dictionary:
convent of Nossa Senhora da Serra do Pilar in the history that he produced was mainly founded
Porto, in which there are major doubts about upon a rigorous and critical analysis of the written
Terzi’s actual involvement. sources and bibliography, and the actual publi-
The pictures published in the Portuguese edition cation of these documents was its most essential
effectively support this interpretation and reflect moment. Terzi’s biography, his institutional role
his training as an architect and his experience and the building sites at which he worked were
as a builder, which he developed alongside his all outlined with some precision, albeit limited in
studies. Generally consisting of detailed, close-up nature, which the ensuing bibliography expanded
views, the pictures are used to select and then to upon, but did not substantially change (Sousa
emphasise particular aspects of construction. He Viterbo 1898-1922, vol. III).
also often made use of line drawings to highlight
certain features, in particular the cut of the stone. 2. ITALIAN STUDIES IN THE 1930S
Using a detailed survey as his study tool, Haupt Within the context of a relationship with Ita-
made the careful examination of buildings – both ly that was founded on the existence of similar
their form and the manner of their construction authoritarian political regimes, the resumption
– one of the central instruments of his historiog- of studies about Terzi and sixteenth-century ar-
raphy, with which he introduced the idea of the chitecture in the early years of the Estado Novo
building as the main source of its own history. was marked by close personal ties and a clear hi-
This procedure was further consolidated in the erarchy of roles. A skilled Italian cultural attaché,
volumes that he published from 1886 to 1922 on Guido Vitaletti, attempted to find a place for his
the Renaissance palaces of Northern and Central father-in-law. Guido Battelli, who had followed
Italy: these contained, city by city, surveys in the him to Portugal, as a Lecturer in Italian Studies
form of geometrical line drawings and orthogonal at the University of Coimbra. Battelli was a rich
projections, with both floor plans and elevations, dilettante from Sarzana who lived in Florence,
together with some photographs and decorative a kind of “humanist Jack of all trades”. He left
details, which an eclectic architect could copy. behind more than thirty articles, pamphlets and
Schematic, but not inaccurate, these drawings monographs in the field of architecture and art
represented a kind of transition from the academic history, as well as a number of translations and
traditions sublimated by Paul Letarouilly (which, literary and poetic works (Apa, 1993). This quite
on the one hand, they regularizing while, on the considerable publishing activity relied greatly on
other hand, turning them into picturesque views) his clever manipulation of public relations, which
to the building surveys conducted in the late was simultaneously both a tool that provided him
positivism, which searched for a more specific with the contents for his writing and the main
and detailed notation of the constructive aspects. purpose of the writing itself. Battelli’s game was
Haupt interpreted the Portuguese Renaissance soon rumbled, however, and he lost his position as
according to the methods and standards of the a lecturer in Coimbra after just one year, in 1930,
German history of art and architecture, and thus although he continued to enjoy the support of the
ill-fated Portuguese Foreign Minister, Henrique was published in 1918, the second in 1930, and
Trindade Coelho, the son of a famous writer, not in 1929).
who, after being removed from office, was later Some less reliable supports that he also quoted
compensated by being appointed to the post of from were the Hachette guide (Bertaux, 1916)
ambassador to the Vatican. and the more academic essays by Emile Bertaux
Battelli did not simply limit himself to treasur- (Bertaux, 1911 and 1913) in the Histoire de l’art
ing Haupt’s book, but also made use of Watson’s edited by André Michel. With its eighteen volumes
work (Battelli, 1929, p. 7), which covered the on architecture, sculpture, painting and the deco-
whole of Portuguese architectural history, from rative arts, this latter work had more universalist
its origins to the early twentieth century. The ambitions than its German counterparts, but it
author was an architect who illustrated his work was even more inaccurate. Bertaux attributed to
only with architectural plans placed alongside Terzi the church of São Vicente de Fora “dont la
photographs. This was to become the accepted coupole rebâtie domine la ville”, and illustrated
pattern for the remainder of the twentieth century its interior with a view of the church of Mafra,
in the production of texts about architectural as is indicated by the use of a wrong caption
history, especially when they were conceived (Bertaux, 1913, p. 823).
as a particular variant of art history. Watson’s The contents of this work were not brilliant,
book served as a kind of architectural guide, full and moreover Battelli was not sufficiently skilled
of information about the state of preservation to be able to directly research the documentary
of the buildings and their context, offering an sources themselves. Therefore, despite his four-
overall picture intended mainly for an educat- year stay in Portugal (1928-32), he also repeated
ed readership, but one that did not require any the unfounded arguments of the earlier literature,
specialist expertise. Watson’s sources were the and the small differences that he showed from
nineteenth-century anthologies or monographs these were only due to the publication in 1922 of
written on individual sites or monuments. Al- the last volume of the dictionary by Sousa Viterbo.
though he quoted from Haupt, he did not accept As far as the buildings were concerned, since
his thesis about the cloister of Tomar, mainly in “there is in Portugal no publisher of artistic
deference to the earlier literature on this subject. photography” (Battelli, 1935) – in other words,
His direct expression of his gratitude to Joaquim nothing to compare with the very useful Alinari
de Vasconcelos (Watson, 1908, VIII) was proba- – he spent his time “collecting the best photo-
bly due to the support that was readily offered to graphs that the generous contributions of private
all initiatives promoting knowledge of Portugal individuals have placed at my disposal”, who
abroad by this famous scholar, whose studies on also lacked the most basic instruments of direct
Romanesque architecture and the applied arts documentation.
were highly regarded during the first decades of Battelli’s methodological shortcomings and his
the twentieth century. Given Battelli’s inclination lack of technical knowledge also helped to fuel
for cultivating personal relationships, Watson’s the typical debate that took place during these
book perhaps encouraged him to enter into contact years, motivated by nationalistic sentiments, and
with the now quite aged scholar, whose edition in which attention was focused on the great clois-
of Francisco de Hollanda’s treatise on painting ter of Tomar and the corresponding “nationality”
he actually quoted from (Battelli, 1938, p. 244), of its author. Among the most easily identifiable
although he got the dates wrong (the first edition references are the quarter cylinders on each side
of the façade of the courtyard of the Imperiale brochures (Battelli, 1935), in which Terzi’s work
Nuova, the Della Rovere villa near Pesaro de- was reduced to the design of the upper storey of
signed by Girolamo Genga.3 They contained the Claustro dos Felipes. Nevertheless, it proved
within them the curved ending afforded to the easy for Garcez Texeira to emphasise Battelli’s
straight stairs connecting the two storeys, while contradictions with barely concealed sarcasm.
in Tomar, on a slightly larger scale, the cylinder Battelli was, however, to reiterate all of his
houses an entire spiral staircase. Francisco de theses in the article that he devoted to Terzi in
Hollanda had reproduced the Italian example in a the Treccani encyclopaedia (1937), recalling
famous drawing from his desenhos das antigual- not only the “volume” that he had dedicated to
has dating from his trip to Italy, with an enforced Andrea Sansovino (Battelli, 1936), but also re-
stop in Pesaro, in 1538-41. The manuscript – now peating what had been written in the prestigious
housed in the El Escorial Library – was published review L’Arte, founded by Adolfo Venturi. This
by Tormo (Tormo, 1940). Battelli dedicated his was enough to incite Giuseppe Fiocco’s lively
first study – published in a literary review, Byblos, (and just as precariously grounded) objections
and based upon these unstable foundations – to in its competitor, the Rivista d’Arte.4 Claiming
the presumed influence of Andrea Sansovino on for himself a monopoly in the understanding of
early sixteenth-century Portuguese art: i.e. he Venetian Art, as a professor of Art History in
tried to arbitrarily give consistency to Vasari’s Padua, he became angry as a result of Battelli’s
confused history. He did not hesitate to attribute faithfulness “to the teachings of Palladio and
to Terzi the construction of the entire Claustro Sansovino” and the “strong Palladian imprint”
dos Felipes (Battelli, 1928). According to a pas- that Battelli attributed to the cloister of Tomar.
sage in a famous contemporary report contained Instead, Fiocco suggested a “peruzzesca” and
in Isidro Velazquez’s book (Velazquez, 1583), “serliana” ascendancy, which he found even in
Terzi had supervised the cloister’s provisional the palace of Carlos V in Granada, designed by
completion in wood on the occasion of the oath Pedro Machuca, whom he compared – albeit
of allegiance taken by the Cortes in recognition of fleetingly – with Diego de Torralva. With better
the new king Filipe II, and, according to a contract grounded arguments, he focused on a date, 1562
published by Sousa Viterbo, was responsible for (quoting Emile Bertaux, but without mentioning
the completion of the building in accordance him) written on one of the vaults of the upper
with the already existing parts. The documents, gallery, “a groin vault, where the Gothic style has
which have been examined with care in more clearly survived”. But his attention to the structure
recent times, reveal many contradictions and may was merely formal in nature and his competency
attributed Terzi with a more significant role. It was on architecture faded completely after just a few
nationalism, as Kubler (Kubler, 1972) and Pires words: the poor Guarini “… takes from Mudejar
Coelho (Pires, Coelho 1987) were to say half a Spain... its domes made from ribs linked together
century later, that, in 1931, encouraged Vieira (in Italian nervature conteste – sic)”. Fiocco, more
Guimarães to exalt the role of the Castilian Diogo outspoken than Battelli, demonstrated the habit of
de Torralva, and it was an even greater display of the art history of his time of looking at a building
nationalism that earned the use of the adjective just as you would look at a painting, and refused
“pernicious” to describe Battelli’s two Florentine to understand the specificity of the architecture.
3
On this subject, see Pinelli and Rossi (1971) and the more synthetic 4
These publications were respectively a 36-page booklet (Battelli,
work of Miotto (2011). 1936) and two critical articles (Battelli, 1938) and (Fiocco, 1938).
In these same years, Gustavo Giovannoni aimed which was more open to the various intellectual
this very rebuke at Adolfo Venturi, criticising the offshoots. It was no coincidence that authorita-
excesses, but not the limits, of the neo-idealist tive ecclesiastics, such as Pietro Tacchi Venturi
vision that was to impact heavily on the quality “della Compagnia di Gesù”, or aspiring young
both of the history of architecture and of the officials at the Ministry of National Education,
practice of restoration in Italy. such as Cesare Brandi, were included among the
In this far from brilliant competition, Emilio authors. The question of architecture – this was
Lavagnino – in the volume that he devoted to merely a matter of prestige, not to say academic
“Italian Artists in Portugal”, part of the famous se- power – was dealt with by Fiocco, who repeated
ries on the “Works of the Italian Genius Abroad”, his theses, in an exaggeratedly syncretic and lit-
funded by the Ministry of National Education erary fashion.6 Battelli’s theses were entrusted to
– questioned many of the ideas put forward by General Maggiorotti, who had been won over to
Battelli. The editorial staff of L’Arte kept their the cause, and Battelli limited himself to writing
distance and Battelli’s answer to Fiocco only came on a Florentine subject (Battelli, 1940). Around
in 1941 in the pages of the Bollettino del Genio this same time, the old dilettante completed his
Militare (Military Engineering Bulletin), thanks survey of the Portuguese Cinquecento with two
to the relationship that he had established with essays on Francesco de Hollanda.
General Leone Andrea Maggiorotti5, the author Battelli’s greatest merit – perhaps stimulated
of the book dedicated to the “Architetti Militari by the criticism he received in Portugal, for it is
in Spagna e Portogallo” (Military Architects in an ill wind that blows nobody any good – was to
Spain and Portugal), which was included in the start a systematic collection of Italian documents
same series as the volume by Lavagnino. When on Terzi, whose place of origin Battelli was able
to sense: the architect had been listed as coming
analysing the work of Filippo Terzi, Maggiorotti
from either Bergamo or Verona, according to all
faithfully returned to Battelli’s arguments and
the literature on his Portuguese work, from the
reused his photographs. What was, however, new
early nineteenth century until Battelli’s article in
was the great wealth of illustrations, appropriate
1929. The new documents looked more closely at
to the official character of the publication, which
Terzi’s move to Portugal, in 1576, which was later
included plans and simplified reproductions of
established more precisely as taking place at the
ancient engravings, but did not, however, provide end of that year (Dos Santos, 1951). In his 1929
any specific references. article, Battelli had accepted the date of 1572,
Relations with Portugal were important for the which had been proposed by the Portuguese texts
politics of certain currents of Fascism: in 1940, written in the early nineteenth century.
the Italian Royal Academy devoted a volume to The impressive collection of manuscripts gath-
the “Historical Relations between Italy and Por- ered together by Annibale degli Abati Olivieri,
tugal”, which opened with a Saluto alla Nazione and left to the Biblioteca Oliveriana in Pesaro,
Lusitana (Greetings to the Portuguese Nation) stands as one of the most significant monuments
by Luigi Federzoni and ended with an essay by to the aristocratic erudition that by the early eigh-
Giuseppe Bottai on “Corporatism in Italy and teenth century had become a “duty of their own
Portugal”, i.e. cementing an alliance between rank and status” for the fading Italian patriciates,
the more moderate wing of Fascism and that 6
L’influenza del Rinascimento e del Barocco italiani nell’arte por-
5
Maggiorotti died on 4 February, 1940, as is borne out by the notes toghese (The Influence of the Italian Renaissance and Baroque on
in his article (Reale Accademia, 1940, p. 432). Portuguese Art) in Reale Accademia (1940, pp. 173-186).
who had the ability to, more or less consciously, whose cause Terzi had always supported. At the
coordinate the “Republic of Letters” far beyond time, these letters were considered to be both an
the limits of the city walls, and to involve clergy- important historical and a literary testimony. Once
men, professionals, landowners, technicians and again, Battelli profited from the systematic work
artists in their work. They helped to develop the of a German art historian, Georg Gronau, who
very soul of the great age of the Italian eighteenth had settled in Florence and, in 1936, published
century, turning their attention to the study of the a collection of documents from the systematic
national heritage with an attitude of scientific examination of that archive, based on many years
rigour and seeing this as a valuable asset that of work (Gronau, 1938).
could be invested with intelligence and prudence
in order to build the future. Taking advantage 3. A SLOW CHANGE OF PERSPECTIVE:
of a bibliography that was being compiled at FROM TERZI’S WORKS TO HIS ROLE
that time (Viterbo, 1923-33), Battelli discovered AND ACTIVITY
the first documented biography of Terzi7 in the
“Abecedario” by Domenico Bonamini, an other In drawing attention to Terzi’s activities in the
patrician from Pesaro, who, at the end of the Duchies of Pesaro and Urbino, Battelli sensed
eighteenth century, had focused his attention on that he had discovered a vital key to understand-
the architectural and artistic heritage and who ing not only the favour that had been granted to
had produced his work again through a rigorous the architect by Filipe II and his good fortune in
examination of the written sources. There were, obtaining the position that he did, but also the
therefore, a great number of letters written by important role that he played in Portugal, although
Terzi himself, published in the nineteenth cen- Battelli did not develop this theme in any detail,
tury8, as well as a biography to which little has Terzi was clearly a participant (in terms that still
since been added, and which was based in turn remain to be determined with greater precision)
on the “Abecedario” compiled by Bonamini in in a technical-scientific culture that was promot-
accordance with the codes of the Biblioteca Oli- ed as part of the overall ducal policy. It was the
veriana, and confirmed by the “Opere” by Gian world of empiricism and experiment, the world
Andrea Lazzarini. concerning the paintings in of clockmakers, such as Terzi’s father, and of the
the churches of Pesaro (1806) manufacturers of precision instruments or autom-
Other letters – these were truly new materials ata, all of whom made their contribution to the
– were conserved in the archive of the Dukes of foundation of the new science, together with the
Urbino, at the Florence State Archives: this leg- re-reading (and rewriting) of ancient science.
acy had come to the Medici, their allodial heirs, Studies produced in the last twenty years have
through the last member of the Della Rovere clearly revealed the links between the atmosphere
family, Victoria, the wife of Ferdinando II of that prevailed at that time in Urbino and Pesaro
Tuscany. For the most part, they were sent from and Galileo’s first steps in the development of
Portugal to correspondents in Urbino, including his mechanics, personally supported by Guido-
the same Duke, Francesco Maria II della Rovere, baldo del Monte (see, in particular, Gamba, 1988;
Gamba, 2001; Becchi, Bertoloni and Gamba,
7
Bonamini (1996, pp. 83-85).
2013). On the other hand, applied mechanics and
8
In Nozze Massarini Ballarini. Lettere inedite del Cavaliere Filippo the machines themselves were instrumenta regni,
Terzi, Pesaro, Gualtiero Federici, 23 gennaio 1881 (from manus-
cripts Nos. 422 and 426, and from c. XIII of the Biblioteca Olive- not just bizarre toys developed for the entertain-
riana). ment of Carlo V and Filipe II, as other studies,
i.e. those on Juanelo Turriano, have shown. Juane- stantial revision has been taking place very slow-
lo’s great nephew, Leonardo Turriano (Zanetti, ly since the 1950s. George Kubler’s extensive
2015, pp. 141, 156, 184; Camara, Moreira and synthesis (both in terms of space – Spain and
Viganò, 2013), succeeded Terzi as Chief Engineer Portugal – and time – from the sixteenth to the
(Sousa Viterbo, 1922, pp.145-149), and this co- nineteenth century), in the volume that he wrote
incidence helped to clarify the fundamental skills for the Pelican History of Art, was based on the
that were required for running state building sites, most recent general histories of Portuguese art,11
a task that could also include the construction of and, to a much lesser extent, on more specific
royal residences and monuments confirming the studies. It is strange how the text describing the
dynasty’s great religious piety. The training of a solution adopted for the corners of the Tomar
limited number of more highly-skilled technical cloister presents the quarter cylinder as an antic-
staff9, which has been included among the tasks ipation of the late Baroque style, while the foot-
performed by Terzi ever since Sousa Viterbo’s note more correctly mentions the Francisco de
study (Sousa Viterbo. 1922, pp. 96-97), was clear- Hollanda drawing that illustrated the well-known
ly a major part of this role. The coordination of source of this design, the Imperiale Nuova
numerous works, both civil constructions and (Kubler, 1959, pp. 103, 14). In the same year of
fortifications, required that the heads of individ- 1959 (even though the essay was only published
ual building sites should conduct this training in 1965), Giulio Bresciani Alvarez returned to
activity. The neo-idealist idea of an architect – the theses of his master, Giuseppe Fiocco, and
vaguely expressed by Battelli – as an “artistic added, from a documentary point of view, a review
personality” who achieved his own undeniable of manuscripts at the Biblioteca Oliveriana, al-
individuality through the “work of art” that he though the only real addition is Zacconi’s “Mem-
created, was far removed from the historical set- orie di Pesaro” – from the early seventeenth
ting of those times and did not form part of the century – and its rough indications. The mention
organisation of sixteenth-century building sites. of Terzi in the manuscript treatise on military
Attention has been paid solely to institutional architecture by Gian Giacomo Leonardi, ambas-
roles (Soromenho, 1995, vol. II, pp. 396-401; sador to Venice for Duke Guidubaldo II (Bresciani
Soromenho, 1997) and the actual work undertak- Alvarez, 1965, p. 371, n. 9) had already been
en by technicians in those times (Moreira and the past two or three decades, there has been a remarkable increase
Soromenho, 1999, pp. 115-118; Ruão, 2006, pp. in the number of studies on Terzi’s activity in Portugal and on six-
98-128). These studies enable us not only to re- teenth-century architecture in Portugal in general, many of which
are of a very high level. The limited scope of this article and the clear
assess the attributions of works that were largely choice not to discuss the attributions of buildings, or events taking
based on unstable foundations, but also to recon- place at the building sites, already investigated in depth by Portu-
sider both the meaning of those catalogues, and guese scholars, leads us to mention just those texts that seem to us
the evolution of the aims and methods of research (perhaps wrongly) to be most directly relevant to the arguments that
have been put forward. The reader will still be able to reconstruct
on fortifications, hydraulic works, and buildings an overall picture through the bibliography of numerous scholars,
that were produced outside Lisbon and, in par- including, among others, Jorge Segurado, J.H. Pais da Silva, J.E.
ticular, in Coimbra (Craveiro, 2002)10. This sub- Horta Correia, Vítor Serrão, Rafael Moreira, Paulo Pereira, Maria
João Pires Coelho, Maria de Lurdes Craveiro, Miguel Soromenho,
9
For a detailed view of this training, until midway through the se- Paulo Varela Gomes, Giuseppina Raggi, Nunziatella Alessandrini
venteenth century, see Ruão (2006, pp. 193-218). and Carlos Ruão.
10
The authors are most grateful to Salazar Ribeiro, who made avai- 11
In particular, the Historia da Arte em Portugal (Porto: la Portu-
lable to them the annotated bibliography on Terzi’s work that he calense, 1942-1953) with contributions by Reynaldo dos Santos and
had prepared for his dissertation. As has already been noted, over Mario Tavares Chicò.
highlighted in the 1930s by Luigi Serra, the su- ed or even just drawn. Even the tools of philol-
perintendent of the Gallerie delle Marche, who ogy cannot be mechanically transferred from the
had so actively helped to spread awareness of the literature on architecture, since they apply in a
cultural heritage of the region.12 Albeit without pertinent way, to the building itself, which main-
any archival evidence, in 1978, Rimondini’s brief tains its irreducible specificity. The catalogue of
notes extended the catalogue of Terzi’s Italian Terzi’s Italian works was further increased in the
works and, with some subsequent confusion, book dedicated in 1985 to the Ducal Palace in
presented the doubts about the works attributed Urbino, a building which Terzi expanded, pro-
to him in Portugal, especially Sao Vicente de ducing the rooms of the second floor known by
Fora. Two years earlier, the architect Jorge Se- the name of “Terze Logge”, a series of works in
gurado (Segurado, 1976), who remained faithful which Giulio Thiene also participated, attracting
to the old canons of art history, had attributed to the critical notes by Bernardino Baldi. The essay
Juan de Herrera the first design of the monumen- by Sikorsky (Sikorsky, 1985) gives special priv-
tal church, relying for this purpose on documents ilege to the formal aspects and pays greater at-
and drawings (incomplete and inconclusive, as tention to the stuccoes by Brandani, but the ac-
often happens), as well as on formal analogies. curate metric survey published at the time and a
He gave little importance to the long duration of careful survey of the minute transformations that
the building works (the consecration of the church were then introduced provides the most detailed
in 1629 did not necessarily coincide with the information available on a work by Terzi, although
completion of the building) and was silent on the the construction details are not investigated in
question of the repairs made after the 1755 earth- great depth. In 2001 and 2002 respectively (al-
quake, which determined its current appearance. though the studies in this latter case date back to
The construction of the large coffered barrel vault 1999), Darius Sikorsky and Gianni Volpe rear-
of the nave and its connection to the masonry ranged all the information gleaned in the previous
terrace above is only illustrated in the photograph, bibliography, from local histories (both printed
but it is not studied at all. The first order of the texts and manuscripts) and monographs on indi-
façade, framing the entrance porch, is reminiscent vidual buildings, such as the Palazzo Ducale di
of El Escorial, and it is certainly strange that the Pesaro, and these syntheses can be integrated by
large barrel vault has a span of eighteen metres, other studies, such as those of Sabine Eiche, on
which is very similar to the one at Sant’Andrea the cultural policy firstly of the Sforza from Pesa-
in Mantua, more than the walls of the nave and ro, and then of the Della Rovere. The subsequent
the way in which they are joined together. How- studies on the village of Barchi also add a few
ever, the circulation of models was based on the more details to this summary (De Marchi, 2004
dissemination not only of printed texts, but also
and 2012). The purpose of identifying particular
of manuscripts, and this was a very complex
signs of the authorship of a particular architect
process, as suggested for Portugal in the stimu-
comes up against the changes caused by use and
lating essay by Susana Matos Abreu (Abreu,
the modest nature of the construction. If the cat-
2013). Frase cancellata. Each building may be
alogue of Terzi’s work has increased since 1978,
just the description of a lost antigraph, construct-
and if, as in the case of Villa Miralfiore, this points
12
Serra had a broad view of cultural heritage, in which he included to the work of an architect who consistently de-
the decorative arts, as shown by his collaboration with L’Arte Ita-
liana Decorativa e Industriale in the first decade of the twentieth veloped the experimentalism of Girolamo and
century (Serra Crispolti, 2006). Bartolomeo Genga, then Terzi’s effective partic-
ipation in the Italian works remains no less unclear handwriting and with a different coloured ink.
than it does in the case of his Portuguese works. Sheet No. 3 (p. 85) is dedicated to Embadome-
tria o misura delle superfici (the measurement
4. A PROBLEMATIC ATTRIBUTION of surfaces); sheets Nos. 4 and 5 (pp. 86-87) to
stereometria o misura dei corpi solidi (the mea-
A purchase made by the Biblioteca Nacional de
surement of solid bodies), as is repeated by the
Portugal in the German antique market in 1989
titles written at the top on each page. The sheets
has finally opened up a new avenue of interpreta-
dedicated to the measurements, literally repeat
tion. The respective manuscript (No. 12956 in the
in their titles, but not in their drawings, the two
Seção de Reservados) has since been examined
treatises by Ferdinando Bibiena, respectively the
and discussed by Portuguese researchers.13 A
quarto and the octavo editions. In the following
careful study of the paper, its watermarks, hand-
pages (from Sheet No. 6 to Sheet No. 9), the
writing and binding is so far lacking, as well as
synthetic representation of the architectural or-
of the family coat of arms engraved on the final
ders in the measurements refers directly, but only
page beneath the last sentence of the text and
partially, to the “Regola” (Rule) of Vignola. The
above the title on the title page. This bears the
sheets from Sheet No. 11 to the first half of Sheet
number 83, but it is preceded by a sort of flyleaf
No. 16, again have the treatises by Ferdinando
with the number 77, which reveals the lack of five
Bibiena as their main source. In particular, the
pages in the sequence. The title in capital letters,
illustration piedestallo e base dell’ordine composi-
“FILIPPO TERZI ARCHITETTO E INGEG-
to (pedestal and base of the composite order) in
NERE MILITARE IN PORTOGALLO. 1578”
Bibiena (1711, after p. 65) is identical to the one in
(Filippo Terzi – Architect and Military Engineer
Manuscript No. 12956 of the Biblioteca Nacional
in Portugal – 1578) curiously coincides with the
de Portugal, drawn on Page No. “100”, or Sheet
one chosen by Battelli for his 1929 article. The
No. 14, and the mention of the “Ionic Capital of
manuscript is a fragment of a much larger one,
Michelangelo Buonarroti in the Capitol” (Sheet
as suggested by the numbering of the pages. The
No. 11, unnumbered page) can be read under
number is always placed at the top right of each
the same design, the fourth plate after p. 60 of
sheet, written in ink, in the same handwriting as
Bibiena’s Treatise, which in this case repeats some
the text. The sequence runs from No. 83 to No.
editions of the Regola and repeatedly mentions
104, but it is not continuous. This numbering
Vignola. The similarities (almost identical copies)
is flanked by a parallel continuous numbering,
are no less marked with the “Directions ...” of
although these latter numbers are inserted with
1725, conceived for teaching at the Accademia
much less regularity, running from 1 to 16, but in
Clementina in Bologna. The 1711 designs are
another handwriting. On sheet 89, there are two
replicated in less accurate engravings and distrib-
drawings of cannons, the second also indicating
uted by adapting them in a different format. It is
the trajectory of the cannonball, in a different
sufficient here to mention just Table No. 67 and
13
In general, the possibility of its having been written by Terzi has the cornice drawn on the first half of Sheet No.
not been excluded (e.g. Moreira and Soromenho, 1999, p. 116;
Ruão, 2006, pp. 258-264; Tavares da Conceição, 2008, pp. 391- 16 (Page No. 104) or Plate No. 66 and Sheet No.
401; idem, 2010, with a previous bibliography). Alessandrini and 15. The author of the manuscript had probably
De Cavi (2014, p.62, n.51) mention the attribution of the manus- worked on both the books. The last three pages
cript to the Servite Friar Giovanni Vincenzo Casale by Lanzarini
in 2000. However, Orietta Lanzarini correctly refers to the B16-49 contain practical indications about the size of an
code of the National Library of Spain. altar and of the stalls in a horse stable. The use
Fig. 1 - Biblioteca Nacional de Portugal, Seção de Reservados, Manuscript purl 12956 p.10 e 14.
Fig. 2 - Haupt 1888, Plates not numbered, The Church of S. Antao in Lisboa, attributed to Filippo Terzi.
of the Bolognese foot as the unit of measurement the personal relationships among the aristocracy
would seem to confirm the geographical origin of during a tumultuous period in Portuguese history
the manuscript, the milieu in which these notes between the Napoleonic era and the first liberal
(which were, perhaps, in part exercises under- governments.
taken while attending an academic course) were
prepared. Similar descripti derived from famous 5. NEW THEMES AND NEW RESEARCH
printed treatises were commonly found and not AVENUES
only show a possibility of reproducing books,
The case of Terzi is a suitable one for illustrating
but also demonstrate the actual training process. the limits of a model of architectural history. Once
In this case, the references are broader in their all of the most continuous and direct documen-
scope. Because there was a prevalence of copies tary sources have been exhausted, notarial deeds
of Bibiena’s treatises, this evidence affords the and institutional events have to be quantitatively
manuscript a broad terminus post quem. Editions researched, making it impossible to focus on a
of Bibiena’s “Directions”, even after the many single figure and entering into conflict with the
Bolognese reprints, were still being published in aim of reconstructing his or her specificity within
Venice by Giuseppe Orlandelli, in 1796, at the a reasonable time.
height of the neoclassical period. A cultivated Moreover, these difficulties in deciding on
gentleman, such as Gomes Freyre de Andrade, the attribution of a work, these uncertainties in
would therefore naturally demonstrate some in- identifying a precise contribution to individual
terest in a similar text. He placed his signature buildings, are all the more pertinent if a shared
and the date, Paris, 26 September, 1814, at the culture is disseminated, in which multiple exper-
top left of the front page, numbered 77, which is iments converge, as in the small court of Pesaro
something that is normally done in the case of a and Urbino: here the glorious legacy of the fif-
gift or a purchase. Even more than the fact that teenth century became almost an element of its
the Bolognese foot is used as the unit of mea- identity, to consolidate working in compliance
surement, the mention of the city (Paris) makes it with. Mannerist experiments, beginning with
quite unlikely that the manuscript is of Portuguese Girolamo Genga, led to the creation of a common
origin, which the quotes from Ferdinando Bibiena culture, from Rome to Florence, as well as in
might suggest. We might, for example, think about many North Italian centres, which was enhanced
his favourite student, Giuseppe Antonio Landi, through political and commercial ties, and the
who settled in Belém, or about his nephew, Gian circulation of both people and books. In the sec-
Carlo Sicinio, the son of Francesco, who built the ond half of the century, in the Habsburg Europe
Royal Theatre in Lisbon, which was destroyed that had stabilised after the Peace of Augsburg,
in the earthquake of 1755. Still on the first page, this heritage and these collective developments
but lower down, Antonio de Sousa Falcão wrote spread over a vast geographical area, taking on
that he had received the manuscript in Lisbon, on an international dimension (we might say today,
26 January, 1834, as a gift from Manuel de Faria somewhat belying the nationalist concepts of
e Mello, in memory of Gomes Freire, the com- the nineteenth and twentieth century), centred
rade-in-arms of Mello and the cousin of Falcão. around the policy of Filipe II. As always happens
It remains to be determined how old the title and when the consensus is so vast and long-lasting,
the drawings of the guns are and why they have this was also, and perhaps above all, a cultural
been included in this involuntary testimony to policy, made up of shared values and common
languages among the social and technical elites, recesses, when they were built of stone and when
also spreading into systems of economic trade in they were built of brick? And what was the case
goods, as well as affecting people and their skills. when both materials were used, or when there
In later years, especially in the field of construc- was also a partial use of concrete? The remnants
tion, this network of relationships became even of the vault of the Chapter with its stone ribs and
more evident. These large-scale interchanges did, its recessed brick panels, which are still visible
however, come up against one incontrovertible in Tomar and have been attributed to João de
fact, namely the fixed nature of buildings and Castilho, suggest that there is a need to continue
the sheer weight of the materials used, although this line of research. According to Genin and
the latter also migrated over quite remarkable Palacios (Genin and Palacios, 2007, pp. 395-
distances (as, for example, the Carrara marble 396; fig. 10), at the same Convento do Cristo,
that reached as far as Spain). “Global” models the coffered vault of the refectory “présente un
thus necessarily have to be confronted with the mode de construction gothique”. The study of
resources that were available at the different sites. the evolution of these coffered vaults, from the
In this sense, we need to reinterpret the work of presbytery at the Mosteiro dos Jeronimos to the
Filippo Terzi and more generally of the architects Mosteiro de São Vicente de Fora and other church-
of his time: the vocabulary that they shared has es rightly or wrongly attributed to Terzi, may well
to be seen in the light of their construction prac- provide a rich seam of research for acquiring new
tices. Francisco de Hollanda himself unwittingly knowledge, if we look closely at the differences
revealed this problem: he had identified brick in their construction, rather than search for their
construction as one of the fundamental features of similarities. We must start with the current state of
Italian fortifications, which he sought to transfer the building and gradually subtract the additions
to Portugal, along with most of their design, in and the changes that have been introduced over
order to achieve the same results (Porras Gil, time, and then distinguish between what actually
2002, p. 168). remained from one particular building phase and
Thus, Terzi and Northern Italian architects, who what were the alterations that were made. The
were accustomed to considering brick masonry history of architectural literature and the histo-
and vaults as the best form of construction, had to ries of the architects themselves coexist with the
rethink their designs and their role at the building history of the buildings, i.e. with their use and
site when they were forced to work with stone, their changes over time. We need to undertake an
and in particular to use stereotomy as the most intelligent revision of the different specialisations
sophisticated kind of construction . that were made among the scholars according
From the beginning of the sixteenth century to the traditional epochs of the architectural or
onwards, the trend in brick constructions was art historiography. To reconstruct the state of a
towards a gradual decrease in the use of scaffold- building in a given historical period, we need at
ing for the building of vaults: they were shared in least to know how to read documents, to under-
individual parts that could be build separately, as stand the mentality and the practices of distant
was also the case in the late Gothic experiments. eras, which were all quite different from one
How different, for example, were the links be- another. The history of the buildings themselves
tween coffered vaults (a widespread feature in can provide us with new references and new and
this period) and arches, longitudinal lintels and different tools for this purpose.
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This work is funded through FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), project IF/01501/2014.
RESUMO
O Núcleo de Reabilitação do Instituto da Construção (NR‑IC), da Faculdade de Engenharia da Univer‑
sidade do Porto (FEUP) tem participado em diversos projetos envolvendo ações de inspeção, diagnóstico
e intervenção em estruturas antigas.
A presente comunicação abordará as estruturas de defesa da fronteira do rio Minho, que foram alvo de
um estudo integrado executado no âmbito do Plano Diretor das Fortalezas do Rio Minho executado
para Comunidade Intermunicipal do Rio Minho no que se refere às fortalezas em território nacional.
Um outro Plano Diretor foi executado por uma equipa espanhola para a Xunta da Galícia no que se
refere às fortalezas situadas em território espanhol tendo posteriormente os dois planos diretores dado
origem a um único Plano Diretor Conjunto dado a existência de pares opostos ou conjuntos fortifica‑
dos, edificados em ambos os lados da fronteira tais como: A Guarda‑ Caminha; Goián‑ Vila Nova de
Cerveira; Valença – Tui; Monção – Salvaterra e Melgaço – Fornelos.
Tratam‑se de estruturas que perderam a sua função original de defesa, assumindo hoje em dia um carácter
simbólico de memória histórica. Se nalguns casos estas estruturas foram mantidas, noutros foram semides‑
truídas ou simplesmente abandonadas tendo chegado aos nossos dias bastante degradadas. Neste âmbito
serão analisadas e caracterizadas a estrutura das diferentes estruturas de defesa e serão descritas e comen‑
tadas as abordagens de inspeção tendo em conta a grande dimensão da maioria das estruturas envolvidas.
1. INTRODUÇÃO
Os vestígios fortificados de defesa da nacionali‑ identidade. Nos dias de hoje, contudo, em resultado
dade ao longo da fronteira do rio Minho inserem‑se das vicissitudes do tempo e da história, castelos,
na paisagem e no quotidiano das populações com a torres, fortificações, praças‑fortes, fortes e fortins
tranquilidade de séculos de permanência. No espírito já não desempenham o mesmo papel central no
de muitos, tais elementos constituem a materialização quotidiano como acontecia em outras eras. Mesmo
do antigamente: uma nebulosa povoada de mouros e assim, continuam, com grande assiduidade, a ser
romanos, de reis e princesas, de gestas heroicas e de objeto de múltiplos e variados olhares, quer estes
episódios picarescos que configura a memória histó‑ sejam distraídos, indiferentes, ou pelo contrário,
rica, esse elemento tão indispensável à construção da admirativos, curiosos e preocupados. A preservação
deste património afigura‑se, assim, imprescindí‑ forma inequívoca a sua interpretação. É o caso
vel de modo a garantir que estes testemunhos da de estratégias de domínio territorial que determi‑
identidade cultural possam vir a ser olhados pelas nam, por exemplo que a fortificação abaluartada
próximas gerações. Neste contexto, este trabalho esteja pensada para que fique oculta no terreno
apresenta a descrição da evolução das fortificações e só se perceba através da “vista de pássaro” ou
transfronteiriças do rio Minho e a metodologia desde uma posição elevada. Por outro lado existe
utilizada na inspeção e diagnóstico estrutural das uma tradição, refletida nos desenhos de Duarte
estruturas militares (Andrade 2005) integradas no d’Armas, de colocar nos fortes grandes bandeiras,
Plano Director das Fortalezas Transfronteiriças do de modo a torná‑los percetíveis, suprindo assim
Rio Minho (Santos et al. 2005). problemas de reconhecimento e iniciando uma
tradição de marcar as fronteiras, especialmente
2. IDENTIFICAÇÃO DAS os caminhos, com bandeiras. Assim, ao anali‑
FORTIFICAÇÕES sar o enquadramento territorial das fortifica‑
ções não se podem esquecer os fenómenos de
Constituindo o rio Minho uma fronteira que
inter‑visibilidade.
nos separa desde a Idade Média dos nossos vi‑
zinhos espanhóis foi preocupação dos nossos
2.1. FORTIFICAÇÕES TRANSFRONTEIRI-
primeiros reis e até bem recentemente, a cons‑ ÇAS DO RIO MINHO
trução e manutenção de um esquema de forti‑
ficações e núcleos fortificados, que ao longo dos Variando em forma e em tipo de construção, as
séculos mantiveram a integridade territorial do fortificações que incluíram o Plano das fortalezas
nosso país. De forma quase simétrica, também Transfronteiriças do rio Minho foram:
do outro lado se estabeleceram fortificações, que -- Castelos Roqueiros de Fraião, Penha da Rainha
defendessem o território espanhol das investidas e Castro Laboreiro, Figura 1a), em que é o
portuguesas. território onde se implantam que se destaca e
Temos assim, dois sistemas de fortificações, um que, pela sua localização e soluções constru‑
de cada lado da fronteira, correspondendo a estra‑ tivas, estavam destinados a garantir a defesa
tégias militares e de afirmação de independência, de pontos fulcrais como estradas e passagens;
e que inevitavelmente fazem parte de uma mesma -- Fortificações de Vila Nova de Cerveira, de
história de guerras, confrontos, conquistas, cercos. Valença, Figura 1b), de Monção e de Melgaço
Em qualquer das margens, existem fortificações que reafirmavam a linha de oposição frontei‑
variadas, quer de origem medieval ‑ torres e castelos riça e permitiam materializar a estreita ligação
‑, ou abaluartadas ‑ praças‑fortes e redutos ‑, que ao monarca. No caso da fortificação de Vila
foram objeto de maiores ou menores destruições, Nova de Cerveira esta contava com o apoio
modificações, ou abandonos. do forte de Lovelhe e do fortim da Atalaia do
As fortificações mais importantes do lado Espírito Santo;
português são núcleos urbanos amuralhados, -- Torres de Lapela e de Silva que revelando
preservados de forma muito diversificada como uma evidente função residencial na sua orga‑
Valença a praça‑forte emblemática ou Vila Nova nização interna beneficiavam de localizações
de Cerveira quase reduzida ao núcleo medieval. privilegiadas;
No que diz respeito à própria implantação es‑ -- Fortes de terra de S. Luís Gonzaga, de S. Jorge
tratégica das fortificações, convém ter em atenção da Silva, Figura 2, de Gandra, Figura 3, de
alguns fatores territoriais, que condicionam de Gingoleta e de Balagota. Estes fortes de terra
correspondem a grandes redutos de ataque ou português sendo uma linha avançada espanhola
de defesa construídos em terra no lado portu‑ no ataque a Valença. Bibliografia refere ainda
guês. Refere‑se que o forte de S. Luis Gonzaga outros fortes de terra que não foi possível à data
era um forte espanhol localizado em território localizar no terreno.
Fig. 4 ‑ Plantas de Valença: a) séc. XIV, b) séc. XVI e c) séc. XVII, adaptadas de (Teixeira e Valla 1999).
veis, nestes casos essas aberturas são de maior frente arredondada, com seteiras rasgadas ver‑
dimensão e são denominados eirados. ticalmente em locais apropriados para o tiro
Na parte superior da muralha corre o adarve neurobalístico.
ou caminho de ronda, defendido por um muro 2.ª Fase: Final do séc. XIII – Torres de Menagem,
ameado, cuja largura variava desde menos de 1 torreões prismáticos com elementos góticos (so‑
metro a 3 ou 4 metros, quando destinado a instalar bretudo portas e janelas) deixando de ser estreitas
a artilharia. A elevação vertical do castelo assume frestas e com os andares dos torreões abobadados.
uma importância fundamental, tendo em conta a 3.ª Fase: Final do séc. XIV – Fase marcada pela
possibilidade de se escalar a muralha e o alcance primeira aparição das armas de fogo, levando à
de algum do armamento utilizado. Assim, as altas substituição das seteiras por troneiras com distin‑
muralhas eram muitas vezes complementadas com tas formas. Em frente à muralha, em todo o seu
fossos circundantes que impediam a aproximação perímetro ou simplesmente frente à porta prin‑
dos exércitos atacantes2. O aparelho construtivo cipal, é construída a barbacã. Aparecem também
pode ser de distintos tipos, desde os mais regulares os cubelos (torreões redondos).
aos mais irregulares3. 4.ª Fase: séc. XV – Surgem as ameias de corpo
Em Portugal, apenas na etapa medieval, podem largo, com balcões dionisianos no perímetro dos
‑se identificar cinco fases distintas da arte de torreões, que gradualmente se transformam num
fortificar: balcão corrido, com ou sem matacães. O cubelo
1.ª Fase: Reconquista – apresentam muralhas desenvolve‑se transformando‑se num torreão
altas, ritmadas por torreões com torre de me‑ ultra semicircular.
nagem, ameias de corpo estreito com abertu‑ 5.ª Fase: séc. XVI – Foi neste período que se
ras proporcionadas, torreões retangulares ou de desenvolveram as inovações anteriores. As tro‑
neiras são substituídas por bombardeiras e os
2
in (Rodríguez‑Villasante 1984). elementos fortificados são reforçados com taludes.
Gradualmente o castelo vai sendo substituído
3
in (Rodríguez‑Villasante 1984).
pela fortaleza ou pela fortificação. Assim, é nesta exterior com outros 4 baluartes, os quais também
etapa de transição que vão aparecendo e impondo têm a correspondente obra exterior.
elementos com características abaluartadas4. Ou seja, a arte de fortificar acaba por sofrer
Durante o séc. XV começam a alterar‑se as alterações importantes, decorrentes da evolução
táticas de defesa, seguindo‑se, ao longo do séc. da artilharia e da necessária adaptação à mentali‑
XVI um rápido desenvolvimento da artilharia dade renascentista. Assim, passa a dar‑se especial
pirobalística5. “A fortificação em relevo (castelo), atenção a questões como a construção matemática
dá lugar à fortificação baixa e depois à fortificação e a geometria. “Las proporciones geométricas,
rasante (...)”6. estudiadas desde un campo teórico dibujarían
No entanto, interpõe‑se entre ambos os mo‑ la «traza ideal» para un planteamiento táctico,
mentos, uma fase de fortificação de transição em militar y naval.”7
que as construções militares mantêm os requisi‑ Os objetivos continuam a ser, no entanto, os
tos básicos do castelo medieval, mas tentam, ao mesmos que estavam já presentes no Castelo
mesmo tempo, responder à capacidade das armas Peninsular, ou seja, o controle de um determi‑
de fogo. Assim, vai‑se diminuindo a altura das nado território, por meio da defesa de pontos
muralhas e dos torreões, passam a evitar‑se as estratégicos, logo condições como a localização
superfícies curvas, reforça‑se a base das muralhas geográfica ou a implantação demográfica conti‑
com taludes, etc. nuam a ter um peso de destaque. As fortificações
A construção de couraças, como aconteceu no abaluartadas continuam igualmente a ser recintos
caso de Melgaço ou de Baluartes são outras solu‑ fortificados capazes de fechar e controlar o acesso
ções, que pretendem adaptar as fortalezas medie‑ a um território, ao mesmo tempo que são capazes
vais à utilização de armas de fogo, encontrando‑se de repelir qualquer ataque. A zona interna, man‑
já documentadas nos desenhos elaborados por tém a sua importância, agora com um traçado
Duarte D’Armas nos primórdios do séc. XVI. poligonal para que as partes mais expostas fossem
Na etapa seguinte, séc. XVII, sobretudo a par‑ defendidas ou flanqueadas pelas menos expostas
tir da Guerra da Restauração que se constroem à ação do fogo inimigo.8
fortificações abaluartadas como a Praça‑forte de Mesmo um esquema básico de fortificação
Valença, os Fortes de Lovelhe, de S. Luís Gonzaga, implicava, no seu interior, uma disposição de
de S. Jorge da Silva, de Gandra, de Campos e o edifícios por determinada ordem sempre sub‑
Fortim da Atalaia do Espírito Santo. O baluarte metida à eficácia militar. Eram necessários, um
caracteriza esta etapa da construção militar, adap‑ local amplo para a formação e movimentações
tando na íntegra as construções à defesa contra da guarnição, dormitórios, cozinhas e refeitórios,
armas de fogo. Tratam‑se de fortificações muito locais de armazenamento de víveres, artilharia,
mais baixas e espessas com merlões e canhoeiros, residências para os oficiais ou governantes, etc.9
estando ausentes os torreões, as ameias, as torres A fortificação abaluartada deveria obedecer a
de menagem. As obras de fortificação são com‑ algumas imposições no que diz respeito à forma
plementadas com obras exteriores. Por exemplo e à funcionalidade, sendo esta última sempre
a Praça‑Forte de Valença apresenta 8 baluartes a determinante. Assim, a forma depende sempre da
Norte, ligados por uma passagem a uma vasta obra
4
in (Nunes 1988). 7
in (Rodríguez‑Villasante 1984, p.39).
5
in (Correia 1997, p.36). 8
in (Rodríguez‑Villasante 1984) e (Correia 1997).
6
in (Nunes 1988, p. 23). 9
in (Correia 1997, p.84).
articulação entre a função militar, a capacidade rampa para que os soldados pudessem fazer “fogo
financeira e o material utilizado na construção. coberto ao peito”.13
Para fortificar um recinto era escolhida uma Na base do parapeito, pelo lado exterior existia
cota, na qual se construíam os baluartes nos vér‑ uma moldura exterior arredondada denomina‑
tices mais salientes e eram depois unidos pela da cordão que materializava o limite das obras
cortina. As dimensões das diversas partes eram interiores do forte. Em muitos casos eram cons‑
variáveis, sendo as linhas fixantes e os ângulos truídos contrafortes para garantir a resistência
capitais de grande importância. do conjunto arquitetónico da cortina (talude e
O traçado poderia ser regular ou irregular, terrapleno). Já exteriormente poderia existir um
sendo este último o mais frequente, ainda que o segundo conjunto que, num nível inferior, seria
ponto de partida fosse sempre um desenho regu‑ uma repetição do parapeito.14
lar.10 Todas as partes deveriam estar dispostas de No exterior deste elemento, ou no caso deste não
modo que pudessem flanquear‑se reciprocamen‑ existir, abria‑se um fosso escavado, que poderia
te.11 Necessitavam igualmente, de uma esplanada encontrar‑se seco ou inundado. Na linha central
periférica com um perfil que facilitasse a proteção encontrar‑se‑ia o refossete. Limitando o fosso pelo
lado externo, um ultimo conjunto, a esplanada.
dos flancos mais débeis da muralha. No entanto,
Trata‑se de um caminho coberto do fogo inimi‑
no caso de se tratar de uma fortificação destinada
go, que resultava da berma entre o fosso e uma
a proteger uma cidade tinha‑se igualmente que
contra‑escarpa com características semelhantes às
ter em conta, o próprio urbanismo. 12
da muralha. Este elemento esplanava até terreno
A fortificação abaluartada depende pois de um
aberto com declive constante que deveria ter a
plano rigoroso do qual fazem parte:
maior extensão possível.
1. Ortographia (Perfil) – Na fortificação abalu‑ A partir do séc. XVIII, as obras exteriores assu‑
artada a ortographia mantém‑se estável ao longo mem uma relevância especial. Estas obras externas,
dos sécs. XVI, XVII e XVIII. Desde o interior ou avançadas eram sempre muito condicionadas
para o exterior, encontramos, ao nível da praça os pelas características do terreno, sendo que atual‑
edifícios logísticos. Partindo deste nível deparamo mente muito poucas subsistem.15
‑nos com um talude mais ou menos inclinado, ou 2. Ichnographia (Planta) – é definida pelo perí‑
contramuralha que delimitam um terrapleno que metro da cortina em cujos flancos se erguem os
forma o adarve. A sua função é servir de trânsito baluartes, na frente da qual estão todas as obras
ao exército e proporcionar um local adequado para exteriores ou avançadas. No que diz respeito à
colocação da artilharia. Trata‑se de uma evolução forma final do polígono que encerrava e fortifi‑
do mesmo elemento presente nas construções cava a praça, pretendia‑se que este fosse o mais
medievais, adaptando‑o à utilização de armas regular possível. Deste modo, assumem especial
de fogo. Existe sempre um grande parapeito que importância, os traçados em triângulo, quadrado,
protegia os utilizadores dos canhões e as rondas. pentágono e outros polígonos regulares. As pri‑
Estes eram edificados em forma de merlões com meiras tinham o inconveniente de apresentar uns
troneiras. Neste parapeito existia também uma ângulos demasiado agudos. No entanto facilitavam
10
in (Correia 1997, p.84). 13
in (Rodríguez‑Villasante 1984) e (Correia 1997, p.86).
11
in (Rodríguez‑Villasante 1984). 14
in (Correia 1997, p.87).
12
in (Rodríguez‑Villasante 1984). 15
in (Correia 1997, p.88).
a adaptação ao terreno, apesar de não terem sido no entanto não conseguiram prolongar‑se durante
muito difundidas. muito tempo.
Já as de planta quadrada foram utilizadas muitas Este período levou a que se voltassem a olhar
vezes para modernizar os antigos castelos medie‑ com interesse as velhas fortificações militares
vais ou para construir de raiz em terreno aberto implantadas ao longo das margens do Minho e
ou de pouco declive, onde não se verificavam que se reativassem em força, os sistemas militares
interferências à regularidade do traçado.16 que após o fim da Guerra da Restauração eram
As plantas pentagonais foram as mais utili‑ sobretudo símbolos de soberania territorial, mais
zadas para construir fortes, por se considerar do que construções estratégicas do ponto de vista
uma figura perfeita ao cumprir todas as regras da militar.
regularidade e simetria, ao que se devia agregar a No final do séc. XX, com a abertura das frontei‑
capacidade de acomodação das guarnições com ras, estas construções permanecem como memória
grandes dimensões. histórica, marcando essa linha que atualmente
Já os polígonos de seis ou mais lados eram deixou praticamente de fazer sentido, enquanto
usados para fortificar cidades ou praças‑fortes elemento de separação, para se converter num
que, pelas grandes dimensões dos conjuntos, privilegiado ponto de contacto entre as povoações
adotavam formas irregulares. do Norte de Portugal e da Galiza.
3. Escenographia (Alçado) – Trata‑se da repe‑
tição de um perfil previamente definido e numa 4. METODOLOGIA DE INSPECÇÃO
variação muito limitada do traçado e dos elemen‑
Tendo as fortalezas transfronteiriças do Rio
tos compositivos da planta.17 Mesmo quando o
Minho características técnicas, processos cons‑
traçado geral da planta tem a capacidade de variar,
trutivas e problemas associados muito diferentes,
adaptando‑se ao terreno, o alçado não varia. A
procurou‑se, nas inspeções efetuadas, adequar a
única alteração será na horizontalidade das linhas
informação daí resultante aos objetivos do es‑
do alçado. Deste modo, este elemento depende
tudo. No processo de inspeção, dividiram‑se as
sempre da planta e do perfil.
fortalezas em 3 grupos de acordo com as suas
Os elementos formais que poderiam ganhar
semelhanças a nível de estrutura e de processo
alguma expressão em termos de alçado seriam as
construtivo.
portas, guaritas, parapeitos, que, no entanto, cons‑
Na praça‑forte de Valença e de Monção foram
tituem elementos definidores da forma exterior.18
identificadas “as costuras” entre as muralhas
A fronteira minhota ganha novamente relevo
medievais e as abaluartadas fruto da necessida‑
militar no séc. XIX, durante as Invasões Francesas,
de de crescimento do burgo e das necessidades
sendo que no final do ano de 1807, o exército fran‑
defensivas.
cês comandado por Junot, entra sem resistência
Para o estudo estrutural as fortalezas foram di‑
em Portugal, provocando a fuga da corte e da
vididas em: fortalezas tradicionais de paramentos
Família Real para o Brasil. A esta seguir‑se‑iam
em granito, castelos roqueiros e fortes de terra.
mais duas tentativas de ocupação (a segunda
Salienta‑se que neste tipo de estruturas os ta‑
liderada por Soult e a terceira por Massena) que
ludes são elementos estruturais fundamentais
na estabilidade dos paramentos que sobre estes
16
in (Correia 1997, p.95). apoiam.
17
in (Correia 1997, p.84).
18
in (Correia 1997, p.85).
4.1. VILA NOVA DE CERVEIRA, VALEN- ladas como informação adicional e fundamental
ÇA, MONÇÃO, MELGAÇO, CASTRO ao processo de inspeção.
LABOREIRO, LAPELA, SILVA, LOVELHE E Para as estruturas de maior porte, quer com
ATALAIA DO ESPÍRITO SANTO panos de muralha elevados e/ou a vários níveis,
Nestas fortalezas, caracterizadas por várias foi efetuado um levantamento fotográfico e uma
linhas de defesa executadas em paramentos mais análise estrutural por troços, Figura 6. Para cada
ou menos altos em estrutura de granito, foram troço em estudo, identificado em planta, mostra‑se
efetuadas inspeções visuais de âmbito estrutural nestas fichas um registo fotográfico e um quadro
ao longo de todas as suas linhas de defesa. Para síntese que relaciona os danos registados na es‑
cada fortaleza, após a identificação e a descrição trutura e a sua intensidade de ocorrência (baixa,
da estrutura portante, registaram‑se em fichas de média ou alta). Obtém‑se desta forma, para além
danos os que foram considerados mais relevantes das fichas de danos, uma relação entre o dano, a
(Costa et al 2005). Nestas fichas, Figura 5, para sua intensidade e o local da sua ocorrência muito
além da localização em planta do dano, fez‑se mais intuitiva, permitindo mais rapidamente obter
ainda uma breve descrição associada à identifica‑ uma identificação geral do estado da estrutura e
ção da sua causa provável. Também a interligação a determinação de pontos críticos. Destaca‑se
entre diferentes tipos de muralhas (cruzamento/ o facto de, correntemente, os taludes exteriores
prolongamento de muralhas medievais com mu‑ não serem considerados como parte integrante da
ralhas abaluartadas) foram identificadas e assina‑ estrutura e por isso apresentarem geralmente uma
manutenção bastante deficiente. Esta situação é
estabilidade dos blocos de pedra que constituem necessária de godo para a confeção do torrão,
os castelos. associada à exposição ao inimigo espanhol que
da outra margem espreitava, que sentido faria
4.3. FORTES DE TERRA: S. LUÍS GONZA- que as populações se expusessem a tal perigo
GA, S. JORGE DA SILVA, GANDRA, CAM- para construírem depois algo que as defenderia?
POS, GINGOLETA E BALAGOTA Como transportariam tamanha quantidade de
Os fortes de terra, apesar da sua importân‑ godo? Porque não optaram por ir buscar pedras
cia estratégica de defesa e ataque ao território, graníticas mais para o interior do território e mais
encontram‑se hoje votados ao esquecimento e à perto do que o rio para executarem construções
destruição, necessitando por isso duma análise tradicionais de defesa e com a garantia da sua
mais detalhada. Refere‑se a título de exemplo e de segurança? Estas questões levaram a que fosse so‑
interesse histórico que o forte de S. Luís Gonzaga licitado apoio geotécnico ao Núcleo de Geotecnia
em território português era um posto avançado da FEUP e, efetivamente, as questões levantadas
espanhol na estratégia de ataque e tentativa de mostraram ter pertinência, tendo‑se identificado
tomada de Valença. que as fortalezas de terra foram construídas com
Estes fortes de terra, construídos no decorrer da materiais de terraços aluvionares (segundo a carta
guerra da Aclamação em situações de emergência, geológica da zona de implantação dos fortes)
seguiram de forma exemplar as teorias bélicas, que foram gerados por cursos de água afluentes
apresentando configurações geométricas perfeitas, ao Rio Minho, hoje desaparecidos, bem como
muitas vezes em forma de estrela, Figuras 2 e 3. de movimentos associados aos ciclos glaciares
O processo de inspeção destes fortes de terra, e do Plistocénico, e que são típicos desta região
uma vez que muitos deles se encontravam “per‑ (Teixeira 1953).
didos” e tendo sido esquecida a sua existência, Assim, engenhosamente, os materiais do solo
passou fundamentalmente pela sua identificação bem trabalhados e compactados transformavam
e localização no terreno e pela sua inventariação. ‑se em importantes redutos de defesa e ataque,
Alguns deles já não se encontravam referenciados com taludes autoportantes que, mais tarde, se a
sequer em documentação das câmaras municipais situação assim o exigisse, poderiam ser forrados
sendo, nestes casos, fundamental a informação das a cantaria de granito. Destes fortes refere‑se o
populações locais. A visita aérea ao local revelou‑se forte de Gandra, já identificado na Figura 4 e
fundamental na identificação e perceção destes novamente mostrado na Figura 8, onde, para
fortes de enormes dimensões. além da estrela bem definida e com uma ponta
A sua construção num material designado já cortada por uma estrada, se pode ver ainda o
por “torrão”, uma mistura de godo de diferentes que poderá ter sido uma trincheira numa linha
granulometrias, argila e silte, sugere enormes avançada, sendo este o único vestígio de que este
movimentos de terra, face às dimensões destes forte teria dimensões bem maiores do que o que se
fortes e à mistura necessária dos ingredientes para vê atualmente. Numa fotografia oblíqua, e tendo
a execução do torrão. Uma primeira abordagem como escala a construção do lado direito da es‑
a estes fortes indiciava que este godo teria vindo trada, pode‑se apreciar a dimensão dos taludes
das margens/leito do rio Minho para, no local da destas estruturas.
execução dos fortes, ser misturado com o barro e Associando as teorias bélicas ao material que
o silte. Mas face à localização afastada do rio de estava à mão, chegou‑se a uma técnica de cons‑
alguns dos fortes de terra, à quantidade imensa trução eficaz: a mistura e apiloamento do torrão,
eventualmente com alguma rega da camada final, realçando‑se a importância de uma boa orga‑
que se traduz num material com boa consistência nização e sistematização da informação para a
e com uma camada protetora impermeabilizante realização desse diagnóstico e interpretação da
que impede a sua desagregação. Chama‑se a aten‑ situação estrutural dos monumentos, de forma
ção para o facto deste material (torrão) ter sido a poder decidir de forma sustentada acerca da
também encontrado no interior da praça forte de necessidade de uma intervenção.
Valença e nos taludes do forte de S. Francisco de A inventariação de novas estruturas militares
Lovelhe. Neste último caso, o corte dos taludes associadas a um sistema construtivo não muito
devido à construção da ponte internacional de usual no Norte do país, como se tratou do caso dos
Cerveira, e o arranjo a que estes foram sujeitos no fortes de terra, revelou‑se como uma mais valia
âmbito da recuperação da envolvente, levaram ao no desenvolvimento do trabalho. As inspeções
corte da vegetação rasteira que funcionava como permitiram identificar, para além de outros danos
proteção a este material, e mesmo à destruição da importantes e devidamente assinalados, o corte e o
camada final de torrão com características imper‑ deslizamento dos taludes de proteção às fundações
meabilizantes (com cerca de 15cm), permitindo das fortalezas bem como o corte dos afloramentos
assim a infiltração da água e, consequentemente, rochosos de apoio das estruturas como um dos
o início da sua degradação. Qualquer intervenção danos mais generalizados e responsáveis pela
efetuada nestes fortes terá de passar pela ma‑ perda de estabilidade das estruturas. Será aqui
nutenção do torrão, pelo preenchimento com importante a chamada de atenção para uma boa
material deste tipo dos buracos já existentes, e manutenção destes elementos que, embora sejam
pelo não arranque de vegetação que propicie a tratados como não integrantes da estrutura portan‑
desagregação deste material. te dos monumentos, são fundamentais para a sua
estabilidade sendo, de facto, sua parte integrante.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Realça‑se ainda que a interação neste tipo de
trabalhos entre diferentes áreas técnicas: Arqui‑
Apresentou‑se neste trabalho o procedimento
tetura, História, Estruturas, Geotecnia, resulta
utilizado na inspeção e diagnóstico de um vasto
numa mais valia no trabalho final.
conjunto de estruturas militares fortificadas,
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arquitectónica de las defensas de Galicia. Funcio‑ guês, séculos, XIII‑XVIII. Livros Horizonte.
RESUMO
O estudo da produção da arquitetura residencial brasileira do início do século XX tem se concentrado
na transformação dos modos de morar nos grandes centros urbanos e nas regiões cafeicultoras, as-
sim como na introdução do Movimento moderno. A configuração do habitat urbano no interior do
País durante o mesmo período, por outro lado, tem sido praticamente esquecida. A presente pesquisa
busca suprir essa lacuna, por meio do estudo de quatro habitações urbanas nas cidades de Formosa e
Planaltina, construídas entre a 1902 e 1932. As quatro edificações são analisadas do ponto de vista de
seus processos construtivos e da tipologia de suas plantas, de modo a situá-los no universo dos conheci-
mentos arquitetônicos do Planalto Central do Brasil ao longo do tempo. A especialidade das habitações
e sua relação com o contexto urbano são abordadas desde o referencial da tipologia processual, bem
como da configuração arquitetónica.
Desse conjunto de análises, destaca-se a caracterização das casas do Planalto Central no início do sécu-
lo XX como híbridos. Os sistemas construtivos combinam, ao menos a partir dos anos 1920, caracte-
rísticas coloniais e modernas: o emprego do frontal (estrutura independente em madeira com vedação
em adobe) como estrutura, associado a fachadas em tijolo cozido e estuque. As configurações espaci-
ais demonstram influências da habitação rural de matriz paulista, com a presença de grandes salões
centrais e alpendres, juntamente com a distribuição característica da arquitetura urbana do período
colonial, baseada em corredor central. São agregados, ainda, elementos da espacialidade eclética, tais
como acessos por varandas laterais. Tal levantamento preliminar oferece indicações para estudos mais
aprofundados dos processos de interiorização das tradições arquitetônicas no Brasil dos séculos XIX e
XX. Demonstra, também, o desenvolvimento econômico e a circulação de conhecimentos numa região
geralmente considerada como letárgica.
e em São Paulo. Verificam-se, também, algumas Para exemplificar esses processos de configura-
pesquisas sobre a arquitetura rural do interior de ção no Planalto central, foram escolhidos quatro
São Paulo no século XIX, fora do eixo cafeeiro exemplares de moradia urbana nas cidades de
principal (Martins 1978). A habitação goiana Planaltina (Distrito Federal) e Formosa (Goiás),
em geral, e especialmente a do Planalto central, inseridas na antiga Estrada do Nascente. As cida-
por outro lado, tem recebido pouca atenção, em des distam 43 km uma da outra na direção apro-
virtude da percepção de que o declínio econômico ximada leste–oeste. São analisados o atual Museu
após o ciclo do ouro teria inviabilizado qualquer Histórico e Artístico de Planaltina, antigo casarão
transformação social — visão já amplamente dos Guimarães, construído em 1902 (Fig. 2), o
refutada na historiografia, mas que ainda vige na Casarão Azul, também em Planaltina, datado de
arquitetura. A configuração da moradia rural e 1926 (Fig. 3), e as residências do Professor Alcides
urbana no Planalto central oitocentista permane- Borges (primeira década do século XX, Fig. 4) e da
ceu essencialmente alheia tanto à introdução do família Castro (1932), em Formosa (Fig. 5). Todas
neoclassicismo quanto à do ecletismo, ao menos, têm em comum a localização nos respectivos cen-
até o início da terceira década do século XX. Essa tros históricos, caracterizando-se, portanto, como
situação não implica, por outro lado, uma estag- moradias urbanas desde sua construção. Também
nação nos modos de morar — ao contrário, há um adotam características de tipos arquitetônicos
processo de transição e reconfiguração de tipos rurais, evidenciando a fluidez da tipologia no uni-
arquitetônicos, baseado tanto na reinterpretação verso do Planalto central. Apresentam-se a seguir
de elementos arraigados na cultura local, quanto o contexto histórico, territorial e o repertório de
na integração entre tipos rurais e urbanos. elementos nas tipologias residenciais urbanas e
Fig. 2 – Partes do bambu (National Mission on Bamboo Figura 3 – Casarão Azul, Planaltina, 1926
Application – NMBA, 2004). 1–2: Corredor; 10: Varanda; 11–12: Depósito; 13: Lavabo; 16:
Área de serviço 17: Cozinha; 22: Alpendre; 23: Terraço
rurais do período. Na sequência, cada uma das do Noroeste de Minas Gerais, nas encostas dos
quatro casas é estudada do ponto de vista de sua afluentes do Rio Tocantins, até o vale do Rio Co-
inserção na malha urbana, distribuição interna, rumbá, em Goiás. Desde o século XVIII, essa zona
técnicas construtivas e elementos decorativos. com cerca de trezentos quilômetros de extensão
na direção leste–oeste por cem na direção norte–
CONTEXTO HISTÓRICO E TERRITORIAL sul tem sido um funil de estradas articulando a
atividade econômica e a integração cultural do
O Planalto central do Brasil pode ser defini-
interior do Brasil (Barbo 2011).
do, mais em termos histórico-culturais do que
Após o declínio econômico que se seguiu ao
geomorfológicos, como um eixo leste–oeste es-
esgotamento do ouro, o Planalto Central tornou
tendendo-se do Noroeste de Minas Gerais, nas
a se desenvolver a partir de finais do século XIX,
encostas dos afluentes do Rio Tocantins, até o vale
atingindo seu ápice de prosperidade graças à pe-
do Rio Corumbá, em Goiás. Desde o século XVIII,
cuária, nas primeiras décadas do século XX. Com
essa zona com cerca de trezentos quilômetros
a construção de Brasília, Planaltina e Formosa
de extensão na direção leste–oeste por cem na
tornaram-se parte da região metropolitana da
direção norte–sul tem sido um funil de estradas
nova capital federal.
articulando a atividade econômica e a integração
Formosa surgiu em 1736 como o Registro da
cultural do interior do Brasil (Barbo 2011).
Lagoa Feia, na Estrada do Nascente, que ligava
O Planalto central do Brasil pode ser defini-
Pernambuco, Bahia e Minas Gerais a Goiás. Em
do, mais em termos histórico-culturais do que
1749 a localidade já era conhecida como o Arraial
geomorfológicos, como um eixo estendendo-se
ou da alvenaria de tijolos cozidos era restrito, em famílias locais, os Guimarães. Também o Casarão
geral, aos exemplares mais ricos. Azul era vinculado à mesma família, em que pese
Os elementos de composição arquitetônica em sua configuração bastante diversa. A residência da
uso no Planalto central no final do século XIX família Castro, em Formosa, está situada na rua
e início do XX pertenciam a um elenco restrito mais antiga da cidade, em frente à praça princi-
de variantes possíveis. Havia as casas mais po- pal, no que seria o núcleo originário do Arraial
bres, com cobertura em palha, e as demais, com dos Couros. A Residência do Professor Alcides,
cobertura em telhas artesanais formando capa por outro lado, foi construída próxima ao centro
e canal. A estrutura da cobertura apresentava do poder, representado pela Igreja matriz e pela
poucas variações, sendo mais comum a constru- Casa de Câmara.
ção com caibros diretamente apoiados sobre os
frechais. Formas simples de tesouras não caíram IMPLANTAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
em desuso total, porém tornaram-se mais raras na
O Museu de Planaltina e o Casarão dos Castro
arquitetura privada; estruturas muito rebuscadas
têm implantação em esquina, diante de duas das
desapareceram quase por completo. O telhado
principais praças de suas respectivas cidades. O
da casa de fazenda, sem empenas, continuou
Casarão Azul e a Residência do Professor Alcides
dominante, ainda que telhados de duas águas se
estão situados em ruas menores, em meio de
fizessem ocasionalmente presentes.
quarteirão, mas ainda próximos a importantes
Portas e janelas podiam configurar apenas aber-
praças. Apenas o Casarão Azul está geminado a
turas na massa de vedação das paredes, princi-
outra residência, em sua divisa norte, mas trata-se
palmente no caso de construções com adobe, ou
de situação anômala resultante da transformação
estarem enquadradas entre esteios, sobretudo no
de um alpendre em residência autônoma em 1938.
caso de paredes em taipa de mão. Muito difundido
As distribuições das quatro residências com-
era o uso de treliças de madeira formando gelosias
binam elementos da morada urbana, da casa de
nas janelas desprovidas de vidraças; a alternativa a
fazenda e, no caso do Museu e do Casarão dos
essas treliças era venezianas instaladas e acionadas
Castro, também apresentam elementos de ar-
mais frequentemente pelo lado interno.
quitetura comercial. As duas últimas edificações
A arquitetura neoclássica, introduzida no Norte
possuem ao menos uma sala com diversos acessos
do Brasil a partir de finais do século XVIII, agre-
diretos ao exterior, localizada na esquina da via,
gou a esse repertório as fachadas ornamentadas
configurando espaço característico de venda.
em alvenaria de tijolo cozido. Tal solução passou a
Todas as quatro também possuem corredor de
ser atestada em diversas cidades cafeeiras a partir
acesso a partir da porta principal. No entanto,
da segunda metade do século XIX (Lemos 1989),
apenas no Casarão Azul essa circulação possui
comparecendo em Goiás apenas em finais do
a configuração completa do corredor da casa
mesmo século ou início do seguinte.
de morada inteira, distribuindo para todos os
aposentos da metade dianteira da edificação. Nas
ANÁLISE DAS CASAS outras três residências, há aposentos adjacentes ao
Todas as quatro casas estudadas se encontram corredor que não possuem acesso a partir deste,
nos centros de suas cidades, reforçando sua vin- tendo suas portas voltadas para a varanda.
culação com as elites municipais. De fato, no caso A varanda é o cerne da distribuição de espaços
de Planaltina, o atual Museu Histórico e Artístico nas casas analisadas. Em todas, possui acesso
foi residência particular de uma das principais direto a partir do corredor, e por sua vez distribui
para a maior parte dos outros ambientes, por vezes No estar ou setor social, com as janelas
com redundância de acessos. Ademais, na análise voltadas para a rua, estavam as salas e al-
de profundidade1 exemplificada na Figura 7 para gum quarto de hóspedes, representando os
o Casarão dos Castro, verifica-se que em todos os espaços domésticos masculinos, pois era
casos a varanda é o espaço mais integrado, ou seja, onde se dava o contato com o mundo ex-
acessível, de toda a residência. Tal característica terior; no setor íntimo ou repouso, apare-
aproxima a varanda das quatro casas estudadas da ciam as alcovas ou quartos sem iluminação
configuração rural, em que esse espaço é o centro e ventilação naturais e outros ambientes
geométrico e funcional da casa. destinados ao descanso; na transição en-
Ao mesmo tempo, a varanda possui sempre tre as áreas íntima e de serviço, estava a
um acesso para a área aberta aos fundos da casa, varanda posterior ou sala de jantar, que
seja uma simples porta, como no Casarão Azul e era o local de convívio da família e de
no dos Castro, seja a sequência de amplas janelas parte dos afazeres femininos, como ates-
atestada na Residência do Professor Alcides e no tam viajantes e escritores. (Oliveira 2001)
Museu. Tal configuração remete mais claramente No Casarão dos Castro, o dito espaço doméstico
à varanda da morada urbana. masculino era ocupado por escritório e uma sala
O Casarão dos Castro é o único a apresentar para receber visitas de negócios. O armazém ou
varanda com disposição longitudinal com respeito venda também se localizava nessa faixa. A venda
ao corredor, assemelhando sua composição à do se faz presente em todas as casas analisadas, exceto
portego dos palácios venezianos. Ao se estudar no Casarão Azul, cuja história registra as funções
mais atentamente tal agenciamento, porém, ve- de hotel e clínica médica, incompatíveis com a
1
A análise de profundidade é uma ferramenta da sintaxe espacial, presença de comércio de bens.
consistindo na construção de grafos representando a topologia dos No setor íntimo estão localizados os quartos
espaços. Tem por objetivo identificar a profundidade, ou seja, a se-
gregação espacial de um conjunto, bem como evidenciar quais am- do casal e das crianças. A situação dos quartos
bientes são mais ou menos acessíveis, numa visão sistêmica. é mais resguardada, evitando-se a comunicação
direta com a rua. Na transição, a varanda cumpre com adobe não constitui apenas vedação, mas
tanto o papel de permitir o convívio familiar, participa do desempenho estrutural do conjunto.
quanto de delimitação entre a área social e as O revestimento das paredes, originalmente com
áreas de intimidade e de afazeres domésticos. A argamassa de barro, sofreu diversas intervenções
partir desse ambiente, adentra-se o mundo dito nas quatro residências, inclusive com a danosa
feminino, dos afazeres domésticos, dos serviços aplicação de reboco de cimento. A inserção de
familiares e da interação com os empregados. esquadrias metálicas nos Casarões Azul e dos
Na Residência do Professor Alcides, o conceito Castro constitui provável substituição de aberturas
de setorização é semelhante, porém expresso com primitivas meramente fechadas com venezianas.
detalhes diversos. O corredor é adjacente a uma Nas demais janelas dessas duas edificações, bem
sala de estar junto à fachada principal, por sua vez como do Museu e da Residência do Professor
separada da varanda por outro salão. Tanto essa Alcides, constata-se o emprego de guilhotinas
residência quanto o Museu contradizem a crença com vidraças pelo lado externo, com as venezianas
popular de que a varanda atenderia à moderna instaladas do lado interno. Tanto as venezianas
função da sala de jantar. Na casa de Formosa, quanto as portas são em tábuas, no padrão de saia
os depoimentos familiares indicam que o salão e camisa também empregado nos forros.
intermediário entre a sala de estar e a varanda é Nenhuma das casas preserva o madeiramento
que cumpre, de longa data, as funções de sala de original da cobertura. Com exceção do Casarão
jantar. Na residência de Planaltina, antiga morada Azul, cuja cobertura foi descaracterizada em 2010,
da família Guimarães, o agenciamento original, a volumetria externa do telhado é, senão idêntica à
preservado quando da desapropriação do imóvel, original, ao menos verossímil diante do que se sabe
também previa a função de jantar na sala inter- das técnicas construtivas tradicionais. A grande
mediária entre a venda e a varanda. espessura da parede central do Casarão Azul per-
mite deduzir que sua cobertura teria concepção
COMPOSIÇÃO ARQUITETÔNICA extremamente simples, com a viga de cumeeira
e os espigões sustentados diretamente sobre os
Todas as quatro residências adotam o sistema
frechais da parede, e os caibros descendo daí para
construtivo do frontal. As paredes se erguem sobre
o perímetro externo sem outra estrutura. O ali-
uma fundação corrida, elevada acima do nível da
nhamento da cumeeira com a parede interna no
calçada, sendo construída em tijolo cozido na
Museu permite fazer semelhante suposição nesse
residência da família Castro, ou em pedra, nos três
caso, e o mesmo se verifica no Casarão dos Castro.
outros casos. Alicerces em madeira são emprega-
Nas duas casas mais antigas, o Museu, cons-
dos para estabilizar a estrutura em pedra rústica.
truído em 1902, e a residência do Professor Al-
O declive do terreno enseja o aproveitamento do
cides, provavelmente datando da mesma época,
espaço sob o piso como porão, para armazenagem
a composição da fachada preserva fielmente as
de mantimentos. A fundação é coroada por bal-
características ancestrais da arquitetura luso-brasi-
drames em madeira, sobre os quais são fixados os
leira: Paredes sem ornamentos, com molduras das
esteios da estrutura principal. Os frechais são, por
portas e janelas expostas, protegidas por beirais
sua vez, sustentados pelos esteios. Percebe-se, pela
amplos. Sofitos em madeira, compostos por um
grande distância entre os apoios verticais, que o
friso vertical e duas tábuas inclinadas, ocultam os
esqueleto em madeira não seria capaz de sustentar
caibros, apresentando solução projetual idêntica
a cobertura. Assim, o preenchimento das paredes
à de diversas outras cidades goianas. O Museu
(Fig. 8) apresenta-se na forma canônica de pare- da fachada. O Casarão dos Castro (Fig. 10) possui
des caiadas com madeiramento pintado em azul, cinco pilastras toscanas, inclusive duas enquadrando
mas foram registrados relatos, pelo historiador o chanfro da fachada, e semelhante prolongamento
planaltinense Mário Castro, de que a casa fosse dos capitéis em cimalhas. Ao contrário do Casarão
originalmente toda pintada de azul. No próprio Azul, não apresenta platibanda nem coruchéu. Os
Casarão Azul há resíduos de camadas lilás e verde detalhes decorativos remetem à geometrização do
sob a atual pintura da fachada. O Casarão dos art déco, tendo grande semelhança com a antiga
Castro era, segundo relatos familiares, lilás antes fachada da Casa de câmara e cadeia de Planaltina,
de ser pintado em ocre vermelho, e a residência concluída no mesmo ano de 1932.
do Professor Alcides era originalmente pintada Um conjunto de pinturas murais na varan-
de amarelo com madeiramentos não revestidos. da, executado em óleo e excepcionalmente bem
Os dois mais recentes se destacam por suas facha- conservado, completa o programa ornamental
das ornamentadas. Ambas são construídas em tijolo do Casarão dos Castro. Sua linguagem remete às
cerâmico, com molduras decorativas em estuque de pinturas das casas de fazenda paulistas de finais
cal. A extensão linear da fachada do Casarão Azul do século XIX e início do XX. Devido às pesadas
(Fig. 9) é enquadrada por um par de pilastras dóricas, intervenções nos revestimentos das outras casas,
cujos capitéis são prolongados numa cimalha con- não é possível averiguar se alguma delas teve,
tínua. O conjunto é encimado por uma platibanda, outrora, pinturas murais em seus interiores; em
com um tímpano no centro, ecoando o espírito todo caso, tal fato não faz parte das respectivas
eclético dos demais ornamentos florais e curvilíneos narrativas familiares.
que o alpendre data da mesma campanha de para fortalecer a coerência do conjunto arqui-
construção da estrutura originária da residência, tetônico ao qual ela pertence.
em adobe. Desse conjunto de análises da técnica Assim é que a hibridização tipológica verificada
construtiva, conclui-se que a fachada em tijolo nas quatro residências de Planaltina e Formosa
cozido é coetânea da estrutura em adobe do torna-se duplamente relevante. Num primei-
restante do Casarão Azul. O anexo, apesar de ro nível de leitura, ela apresenta um exemplo
construído em adobe, tem, consequentemente, de compatibilidade entre a persistência do tipo
data posterior à da fachada em tijolo cozido. arquitetônico e da fachada da casa de morada
inteira, e a modernização do modo de vida, ca-
racterizada pela distribuição e pelo gradiente de
CONCLUSÕES privacidade introduzidos no tipo da casa eclética.
Num segundo nível, essa análise tipológica suge-
As cidades do Planalto central do Brasil ti-
re, seja pela transposição direta da sua solução
veram, durante as primeiras décadas do século
de distribuição, seja pela aplicação do próprio
XX, um significativo desenvolvimento econô-
conceito de hibridização de tipos, a viabilidade
mico e demográfico. A produção arquitetônica
de se preservar características históricas numa
residencial resultante desse processo é diver-
perspectiva pragmática em que seja indispensável
sificada e peculiar, sinalizando elementos de
dar abertura à expressão de expectativas e modos
transição do vernáculo luso-brasileiro para as
de morar distintos daqueles implantados nos
influências cosmopolitas do ecletismo e do art
séculos XVII e XVIII.
déco. Por outro lado, e à semelhança do que já
A riqueza de dados coletados a partir de apenas
foi documentado na arquitetura rural paulista
quatro edificações, em dois centros históricos já
do século XIX fora dos grandes eixos cafeeiros,
grandemente descaracterizados, sugere que é
a tipologia residencial apresenta não apenas
possível reconstituir um panorama muito mais
transformações evolutivas ou a incorporação de
completo e complexo da arquitetura goiana nas
influências exógenas, mas também a hibridização
primeiras décadas do século XX, estudando-se
de dois tipos anteriormente segregados: a casa
cidades com maior estoque construído, espe-
de morada urbana e a casa de fazenda, ambos
cialmente aquelas do período ferroviário. Por
oriundos do período colonial.
fim, o dinamismo das práticas construtivas e dos
O estudo da tipologia enquanto prática ope-
modos de morar exemplificados no hibridismo
rativa permite um olhar dual, simultaneamente
dessas residências permite até arriscar uma pro-
retrospectivo e prospectivo, sobre a preservação
vocação quanto às políticas de preservação do
de edificações históricas que, como aquelas da
patrimônio cultural em sítios degradados: talvez
tradição residencial vernácula, possuam tanto
sejam os processos de adaptação tipológica os
características típicas quanto especificidades
mais adequados para fomentar uma consciên-
individuais. A visão retrospectiva permite re-
cia preservacionista nas comunidades locais,
constituir a produção do exemplar a partir das
em vez do contraste sabido e abstrato entre o
suas raízes tipológicas, explicando a natureza
antigo e o novo.
das intervenções que deram forma ao objeto.
A partir dessa explicação, a visão prospectiva
busca depreender normas e boas práticas para
intervenções futuras na edificação, bem como
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A D
Addis, Bill 61 D’Amelio, Maria Grazia 43
Afonso, J. Ferrão 909 Dangelo, André Guilherme Dornelles 1179
Almeida, Luís 153 Da Silva, Ana 983
Alves, Ueslei Domingos 895 Delgado, João Paulo 663
Andrade, Roberta Aparecida de 331 De Paris, Sabine Ritter 1009
Dias, Adalberto 191
Diniz, Luciana Nemer 747
Dos Santos, Roberto E. 177, 773
B
Barata, Francisco 343
Barros, Fernando C. 493 E
Barros, Francisco Toledo 691
Barroso, Carlos E. 493 Etxepare, Lauren 545
Belgas, Lurdes 971
Bellinha, Paulo Roberto Tavares 811
Benincasa, Vladimir 895
F
Borde, Andréa de Lacerda Pessôa 811
Branco, Fernando G. 971 Farah, Ana Paula 787
Brasileiro, Vanessa Borges 1179 Ferreira, J. P. 413
Ferreira, Rui Fontes 873
Ferreira, Teresa Cunha 961, 1203
C Fernández Rodríguez 1071
Fialho, Thiago A. 773
Cachioni, Marcelo 787 Flávia Cerullo 921
Camargo, Arildo 949 Fonseca, Jorge 281, 291
Candeias, P. X. 413 Franco de Mendonça, Lisandra 1031
Cardoso de Matos, Ana 1157 Freitas, Pedro Murilo Gonçalves de 1057
Carita, Helder 881
Carrasco, Edgar 823
Carvais, Robert 33
G
Casal Ribeiro, Helder 1135
Castro, Caio Alexandre Maronese Garofalo, Emanuela 163
Rodrigues de 1085 Gato de Pinho, Inês 627
Cerqueira, Karina Matos de Araújo Fadigas 305 Genin, Soraya M. 481
Chagas, Humberto Neto das 799 Grimoldi, Alberto 1203
Cortés Rocha, Xavier 861 Guimarães, Ana 119
Costa, André 983
Costa, Aníbal 191, 203, 227, 241, 269, 281,
291, 469, 1219
N
I Neves, António 1145
O
J Oliveira, Danie V. 493
Oliveira, Filipe X. 713
Joaquim, Bianca dos Santos 357 Oliveira, Mário Mendonça de 75, 305
Oliveira, Roseline 921
K
Kapp, Silke 1109 P
Palazzo, Pedro Paulo 1233
Palomares Alarcón, Sheila 143
L Paupério, Esmeralda 1219
Pereira, António 129
Lacerda Lopes, Carlos Nuno 1009 Pereira, Fernando Baptista 837
Landi, Angelo 1203 Pereira Coutinho, Maria João 997
Lemos, Rubiana Cardoso Campos 1233 Pinheiro, Levi 119
Licordari, Mariangela 1189 Pinto, Paulo Tormenta 663
Lizundia, Iñigo 545 Pires, Helena 909
Lopes, João Marcos de Almeida 357, 371, Póvoas, Rui Fernandes 703
691, 1045
Lourenço, Paulo B. 493
Luisa María 1071
Q
Quinta, Ana Luísa 399
M
Maciel, Patrícia de Lima 1169
Magalhães, Ana Cristian 383 R
Maira Vidal, Rocío 849 Radaik, Carlos Eduardo 371
Malheiro, Miguel 469 Ramos, Luís F. 493
Manuel, João 255 Rangel, Bárbara 119
Marcos, Micheline 949 Rei, João 91, 105
Mariz, Luís 443, 455 Ribeiro, Maria do Carmo 129
Marques, A. I. 413 Ribeiro, Nelson Pôrto 653, 799
Martins, Mateus de Carvalho 319, 331 Ribeiro dos Santos, Maria Helena 1219
Mascarenhas, Jorge 971 Riveiro, Belén 493
Mascarenhas-Mateus, João 579 Rocha, Ricardo 605, 617
Matos, R. Bruno 343
Melo, Arnaldo Sousa 559
Melo, Carina Mendes dos Santos 677
Melo Miranda, Selma 567 S
Mendes, Carlota 281 Sagarna, Maialen 545
Mendes, Pedro 713 Salema, Sofia 837
Miranda, Antonio 949 Sampaio, Zita 727
Miranda, Elisiário 1121 Santa, Rita 255
Mirão, José 153
T
Tavares, Alice 203, 227, 241, 281, 291
Tavares, Domingos 3
Tavares, Maria 1085
Tavares, Pedro 837
Tavares, Rui 1169
Teixeira, Joaquim 703
Terán Bonilla, José Antonio 759
Tirello, Regina Andrade 1057
Tostões, Ana 737
U
Uranga, Eneko Jokin 545
Urias, Patrícia 537
V
Vale, Clara Pimenta do 509, 519, 593
Valentim Lopes, Nuno 269
Veiga, Maria do Rosário 153, 413
Vesco, Maurizio 163
Vicente, Romeu 281, 291
Vieira, Eduarda 823, 909