Tortura Na Ditadura Militar

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1

TORTURA NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA (1964-1985) 1

Gissele Cassol2

Resumo
O objeto central deste trabalho é a tortura, método repressivo amplamente utilizado durante o período da
Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). A partir de fontes bibliográficas, procura-se traçar, em linhas gerais, a
estruturação do Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN) e, dentro dele, a utilização sistemática da tortura no
combate à “subversão”, suas técnicas e seus alvos e a superação de limites geográficos entre o Brasil e as
ditaduras militares do Cone Sul em busca de opositores políticos.
Palavras-chave: Ditadura Militar, Brasil, Repressão, Tortura.

Abstract
The central object of this work is the torture, repressive method used during the military dictatorship in Brazil
(1964-1985). Starting from bibliography sources, it’s tried to sketch, in general lines, the structure of the Internal
Security System (SISSEGIN) and, in it inside the use of the torture against the “subversion”, it technicals and
targets and the overcome of geographical limits between Brazil and militaries dictatorship of Cone Sul,
searching political oppositionists.
Keywords: Military Dictatorship, Brazil, Repression, Torture.

1 Introdução

Apesar de criminalizada em nível mundial, a tortura permanece em voga na sociedade


contemporânea e é cotidianamente praticada de formas diversas: nas prisões, nos quartéis, em
estabelecimentos privados e até mesmo dentro de muitos lares.
No caso específico da violência praticada no interior das Forças Armadas,
recentemente a imprensa nacional divulgou imagens dos “trotes” aos quais os novatos oficiais
da 2ª Companhia de Fuzileiros Navais de Curitiba (os “panteras”) são submetidos – uma
espécie de “batismo” para os militares que ascendem na carreira. Conforme Cecília Coimbra,
vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, “isso que aconteceu no Paraná é um cotidiano
nos treinamentos militares (não só nos batalhões de polícia especial), polícias militares e em
alguns segmentos das forças armadas”.3 Poder-se-ia afirmar, inclusive, que tais procedimentos
adquiriram contornos de tradição dentro dessas instituições.

1
O presente artigo é derivado de minha Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em História,
homônima, sob orientação de Diorge Alceno Konrad, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP,
Professor do Mestrado em Integração Latino-Americana da UFSM (MILA), e Professor Adjunto do Curso de
História da Universidade Federal de Santa Maria.
2
Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestranda do Mestrado em
Integração Latino-Americana da UFSM (MILA). E-mail: [email protected].
3
COIMBRA, Cecília apud Agência Brasil. Disponível em < http://www.panoramabrasil.com.br> Acesso em: 18
nov. 2005.
2

Mesmo sendo amplamente utilizada pelos Estados através de suas Polícias e Armas, a
tortura não foi por eles inventada. Os primeiros registros de maus-tratos e penas cruéis datam
da Idade dos Metais. Na Babilônia do segundo milênio antes de Cristo, o rei Hamurabi
regulava a vida social através de penas severas e degradantes, cuja máxima chegou aos nossos
dias: “olho por olho, dente por dente”. Já os assírios foram pioneiros em torturar povos
conquistados. No ocidente, por volta do século VIII a.C., foi a vez dos escravos perecerem
sob os maus tratos de seus senhores. Após o fim do Império Romano do Ocidente, no século
V, o terror e o medo tornaram-se elementos presentes no cotidiano da chamada Idade Média,
e maximizaram-se durante os longos séculos da Inquisição, que se valeu dos mais hediondos
suplícios para punir heresias. Especial fixação dos inquisidores se deu em relação às bruxas,
tanto que os dominicanos Heinrich Kramer e Johan Sprenger redigiram uma “bíblia” para
instruir os inquisidores, o Malleus Maleficarum. O “Martelo das Feiticeiras” 4 era um manual
que previa diagnósticos e prognósticos às manifestações de bruxaria. Com a retomada do
modo de produção escravista no século XV, os negros foram oprimidos e severamente
punidos, situação mantida até o século XIX.
Enfim, por muito tempo, os Direitos Humanos foram violados, quer seja pelo ato da
tortura, seja pelas execuções extrajudiciais, ou ainda pelas idealizações raciais, econômicas,
religiosas, bélicas, etc. No período entre-guerras (1918-1939), os regimes nazi-fascistas se
disseminaram pelo mundo e o holocausto judeu espantou pela atrocidade e pela quantidade de
mortos. O fim da Segunda Guerra, marcado pela experiência da bomba atômica, “fez com que
a proteção internacional aos direitos básicos da pessoa humana encontrasse o seu gérmen de
criação baseado em uma necessidade real, ocorrida em território europeu e japonês – e não
nas colônias – e com cidadãos europeus, e não colonos”.5
Mesmo com a chegada da humanidade ao século XXI, o desrespeito ao próximo e à lei
segue num ritmo alarmante. Vários são os exemplos. Talvez o mais expressivo seja a invasão
do Iraque pelos Estados Unidos de George W. Bush, a pretexto de levar àquele povo a sua tão
decantada democracia e “salvá-lo” da ditadura de Saddam Hussein. Desde então, a imprensa
mundial não se cansa de noticiar as milhares de mortes ocorridas, o ataque aos civis e a
destruição do patrimônio cultural da humanidade, entre outros.
Na América Latina, a prática da tortura ganhou novo fôlego com a instauração das
ditaduras militares na segunda metade do século XX. A primeira a surgir foi no Paraguai, em

4
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, Johan. Martelo das Feiticeiras. 16 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos,
2002.
5
MORONI, Cristiano. Direitos humanos e tortura. Disponível em: < http://www.torturanuncamais.org.br >.
Acesso em: 15 out. 2005.
3

1954. Dez anos depois, o verde-amarelo brasileiro deu lugar ao esmaecido verde-oliva. Em
1971, a Bolívia entrou na marcha fardada, seguida pelo Uruguai e pelo Chile em 1973. Pouco
tempo depois, a Argentina encerrou a seqüência de golpes militares, no ano de 1976. No
centro deste estudo está o Brasil e a sua Ditadura Militar, que em vinte e um anos torturou
aproximadamente dois mil de seus cidadãos, e matou e desapareceu com quase quatrocentos.
As barbaridades praticadas por esses regimes deixaram um saldo de milhares de
mortos e desaparecidos, e fizeram do uso da tortura um método científico de larga
aplicabilidade para a extorsão de informações e/ou confissões, em cujos conteúdos se fazia
invariavelmente presente uma ameaça tamanha ao Estado e à ordem que, para combatê-la,
esse mesmo Estado permitia-se cometer crimes muito maiores do que aqueles aos quais, de
acordo com seus devaneios ideológicos, estaria exposto.
A criminalização da tortura em nosso país é quase tão recente quanto a conquista de
nossa democracia. A tortura institucionalizou-se como crime com a Lei 9.455, de 7 de abril de
1997. Antes dela, a tortura estava tipificada como crime somente no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), quando fosse praticada contra estes. Contudo, não definia a tortura em
termos específicos.

2 A máquina burocrática

Acalentado por Golbery do Couto e Silva durante muitos anos, o projeto de


criação do Serviço Nacional de Informações (SNI) sairia do papel somente em 1964, poucos
meses após o golpe civil-militar, em meio a um clima de radicalização da “Revolução”,
levada a cabo pelos capitães, majores, tenentes-coronéis e coronéis integrantes da linha dura.
O governo de Juscelino Kubitschek criara um Serviço Federal de Informações e
Contra-Informações (SFICI), considerado ineficiente para atender as demandas do pós-64,
seja por não oferecer informações seguras, seja por destoar da Doutrina de Segurança
Nacional (DSN). Esta ideologia, gestada pela Escola Superior de Guerra (ESG), além de
enquadrar o Brasil no contexto internacional da Guerra Fria, considerava a capacidade deste
país aflorar como uma grande potência mundial, afastando, para isso, qualquer “ameaça
comunista”.
Desse modo, o Serviço de Informações brasileiro, conforme Carlos Fico, “foi criado
em 1964, momento em que a linha dura ainda agia de maneira assistemática, ou, para dizê-lo
4

cabalmente, fase em que inexistia o sistema de segurança que se implantara formalmente


cerca de cinco anos depois”.6
Com a criação do SNI, topo do aparato repressivo, teve início a montagem do Sistema
Nacional de Informações (SISNI), composto por uma série de órgãos. No entanto, o SNI
evidenciou-se como um órgão de informações, e não de repressão propriamente dito, apesar
de ter tido envolvimento direto em prisões e interrogatórios.7 Em sua elaboração, o Serviço
contou com a orientação norte-americana e, posteriormente, os órgãos de repressão obtiveram
também o auxílio econômico de grandes multinacionais, como a Ford, General Motors e o
Grupo Ultra.8
A montagem de um órgão de segurança repressivo, de uma polícia política, vincular-
se-ia às frustrações dos oficiais mais exaltados, decepcionados pelas punições moderadas do
governo, e ansiosos por uma atuação mais enérgica, que combatesse de fato as “ameaças” que
rondavam o regime. Era preciso “agir”. E, nesse contexto, a montagem de uma estrutura
nacional de repressão, sob o comando das Forças Armadas, emergia como fundamental no
combate ao “perigo comunista”.
A deturpação de leis e direitos prefaciou a organização do aparelho repressivo. O Ato
Institucional n° 2 (AI-2) determinou a adoção de jurisdição militar no tocante a crimes
políticos e suspendeu temporariamente o habeas corpus. Mas “foi o AI-5 [13 de dezembro de
1968] que abriu as portas para a efetivação do sistema de segurança”,9 pois além de
restabelecer cassações e suspensões de direitos políticos, suspendeu a garantia do habeas
corpus por prazo indeterminado. Com estas alterações jurídicas, os militares ganharam espaço
para concretizar os objetivos da “Revolução” Teriam assim liberdade de ação nos casos de
crimes políticos e crimes contra a segurança nacional.
Uma espécie de “projeto piloto” do Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN) foi
implantado em São Paulo, cidade considerada “centro irradiador dos movimentos de
esquerda”.10 Lançada em 1° de julho de 1969, a Operação Bandeirantes (OBAN) reuniu as
Forças Armadas, a Polícia Federal e a Polícia Estadual – Civil e Militar – com o intuito de
travar uma luta anti-subversiva e anti-terrorista.

6
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de
Janeiro: Record, 2001, p. 42.
7
FICO, op.cit., p. 112.
8
ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: nunca mais. 15 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1985, p. 73.
9
FICO, op. cit., p. 144.
10
FON, Antonio Carlos. Tortura. A história da repressão política no Brasil. 4 ed. São Paulo: Global, 1979, p.
19.
5

A OBAN, sob a ótica de Carlos Fico, “era uma organização que contava com o apoio
oficial, mas não estava prevista nem normatizada por nenhum diploma legal da época”.
Mesmo assim, configurou-se como imprescindível para a consolidação do projeto de
estruturação do sistema de segurança.11
Devido justamente à ausência de estrutura legal, a OBAN adquiriu ampla margem de
liberdade em suas ações. Ainda que o general José Canavarro Pereira, comandante do II
Exército (São Paulo), freqüentasse assiduamente a Delegacia de Polícia, à rua Tutóia, sede da
Operação, não havia vinculação formal e legal entre esta e o Exército, apesar de sua
subordinação àquele comando.
Os êxitos obtidos pela OBAN na repressão à esquerda – alicerçada fundamentalmente
na violência – fizeram com que tal modelo fosse adotado em nível nacional. Então, o sistema
CODI-DOI – Centro de Operações de Defesa Interna - Destacamento de Operações de
Informações – suplantou a OBAN e se estabeleceu em todo o país, exceto no Rio Grande do
Sul.12
A organização do SISSEGIN envolveu todos os governadores de estados e os
secretários de segurança pública. De acordo com as normas contidas nas diretrizes de
segurança interna, em cada área militar deveriam ser criados órgãos cuja responsabilidade
estaria a cargo do comandante do Exército respectivo, que seria denominado comandante de
Zona de Defesa Interna (ZDI). Como o Brasil ficou dividido em seis grandes zonas, poderiam
ser criadas Áreas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Áreas de Defesa Interna (SADI) dentro de
cada grande zona, segundo as necessidades repressivas.13
Em cada ZDI seriam criados um Conselho de Defesa Interna (CONDI), um Centro de
Operações de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operações de Informações
(DOI). Organizados burocraticamente, cada uma dessas instâncias tinham funções específicas
dentro do sistema. Mas foi principalmente dentro dos DOI que a tortura tornou-se prática
comum no tratamento dispensado aos prisioneiros. Visando extorquir informações – delações
–, tais como revelações de “pontos” (encontros estratégicos entre militantes), de “aparelhos”
(locais que abrigavam opositores) e de nomes de companheiros das organizações, policiais e
militares lançavam mão de uma série de violências físicas e psicológicas contra os detidos.
11
FICO, op. cit., p. 116.
12
Em Porto Alegre, na mesma época da criação da OBAN, foi instalada a Divisão Central de Informações
(DCI), com vinculação legal à Secretaria de Segurança Pública. No entanto, o controle desse órgão estava sob os
auspícios do comando militar. A DCI tinha por função apenas a análise e produção de informações. Encarregado
dos interrogatórios e ações de combate estava o Departamento de Ordem Política e Social. Essa estrutura
manteve-se por algum tempo, mesmo já instalados os CODI-DOI em substituição à OBAN na grande São Paulo.
Cf. FICO, ibid., p. 117-118.
13
Ver FICO, op. cit., p. 120-123.
6

A montagem burocrática da estrutura repressiva, seus órgãos comandantes e


comandados, suas subordinações, enfim, todas as suas engrenagens de funcionamento,
compostas por peças com funções específicas, levaram ao reconhecimento internacional do
sistema de segurança brasileiro.
A eficiência demonstrada nos resultados da contra-subversão e do contra-terrorismo
fez com que fosse exportado know-how brasileiro a outros países da América Latina. E uma
das principais causas do sucesso do SISSEGIN foi o uso sistemático e indiscriminado da
tortura como método de intimidação e extorsão de informações.

3 A máquina repressiva

A origem etimológica da palavra “tortura” pode auxiliar na compreensão da dimensão


de seu significado. Esse substantivo, homônimo do latim, vincula-se ao verbo tortare,
“entortar, torcer, atormentar”. Assim, tortura é a “ação de torcer”. Implícita nessa ação está
sempre, de certo modo, alguma forma de violência.14
Violência, para Marilena Chauí, “é a destruição da essência de alguém”. No caso da
violência contida na tortura, é a destruição da humanidade, definidora de um sujeito. A
desumanização dos participantes desse processo se dá à medida que “o torturador se coloca
acima da condição humana e força o torturado a se colocar na situação abaixo da condição
humana. O suplício não é apenas a dor [física], é a humilhação (...)”.15
Contudo, a violência intrínseca à tortura é paradoxal, “pois o torturador deseja da
‘coisa’ [do sujeito que ele próprio reduziu à condição de objeto ao desumanizá-lo] é que ela
atue como ‘gente’: uma coisa é inerte, passiva e silenciosa, mas o que o torturador deseja da
‘coisa’ é que ela sofra, grite, confesse, fale”.16
Na ótica de Marilena Chauí, a contradição absurda que se estabelece com a tortura é a
seguinte:
deseja-se que, através da dor e da degradação, um ser humano vire “coisa” e ao
mesmo tempo permaneça gente para que reconheça no torturador um outro ser
humano, pois se tal reconhecimento não existir, não pode haver confissão, não pode
haver capitulação e sobretudo não pode haver admissão do poder do torturador.
Assim, o que a tortura cria é a situação-limite e impossível na qual se destrói a
humanidade de alguém para que esse mesmo alguém atue como humano, isto é,

14
CHAUÍ, Marilena. Um regime que tortura. In: ELOYSA, Branca (org.). I Seminário do Grupo Tortura
Nunca Mais. Depoimentos e debates. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1987, p. 33.
15
Ibid., p. 33.
16
Ibid., p. 33.
7

estabeleça com o algoz uma relação intersubjetiva, sem a qual o torturador perde a
função e perde o sentido.17

Dentro do processo de desumanização, o torturador reprime “todas as dimensões de


ternura, de cuidado, de solidariedade que vigem dentro da interioridade humana(...). O
opressor, na verdade, é um reprimido e repressor contra o melhor de si mesmo. É a condição
para sua tentativa funesta de desumanizar o torturado”.18
Do ponto de vista da psicopatologia- psicanalística, o torturador é
um psicopata sádico. Ele é, no fundo, um impotente, filosoficamente fátuo e vazio.
O torturador, para afirmar sua própria força e potência precisa esmagar o seu
próximo(...) para ele se sentir potente, precisa torturar, precisa extrair do torturado a
confissão de que necessita. O torturado não pode fazer essa confissão e, nessa
medida, o torturador estará derrotado, liquidado (...). Ele é uma sombra do torturado.
19

Contudo, ao classificar o torturador como psicopata, não considerando a dimensão


política do fato, poder-se-ia incorrer no erro de considerar a tortura como coisa de doente
mental. Por isso, ela tem de ser encarada como um fato político e não simplesmente como um
fato psicopatológico. Não há como separar comportamento individual e político, pois “somos
peixes dentro do aquário social, e o líquido no qual nos movemos é político”.20
Com relação ao torturado, a situação é incrivelmente dramática, pois “a solidão e o
sentimento total de impotência e de passividade imposta podem destruir aquela autoconfiança
mínima, necessária para afirmar a vontade da vida contra o instinto da morte”.21 A tortura
“racha o ser humano ao meio. Ela divide a unidade indissolúvel de corpo e mente. E joga o
corpo do torturado contra a sua mente (...). A tortura consegue essa coisa monstruosa que é a
alienação total do próprio corpo”.22
Daí a luta incessante pela manutenção, por parte do torturado, da lucidez, a única
forma de resistência, barreira que impede a penetração do torturador no interior de sua alma e
de sua inteligência.23 A lucidez é a resistência contra a cisão corpo/mente que o suplício
provoca, e impede o que se chama de “identificação com o agressor”, psicanaliticamente, uma
das defesas mais primitivas contra a ansiedade e a perseguição imaginária.
A tortura política desponta como fundamental na manutenção de uma ordem quando é
rompido o consenso social, que prevê a admissão de direitos e deveres básicos, tanto por parte

17
Ibid., p. 34.
18
BOFF, Leonardo. Prefácio. In: ELOYSA, op. cit., p. 12.
19
PELLEGRINO, Hélio. Um regime que destrói. In: ELOYSA, op. cit., p. 101.
20
Ibid., p. 100.
21
BOFF, op. cit., p. 13.
22
PELLEGRINO, op. cit., p. 98.
23
CHAUÍ, op. cit., p. 34.
8

do Estado quanto por parte dos cidadãos. No momento de quebra desse acordo, tem fim o
Estado de Direito, e nasce o estado ditatorial que, para manter-se no poder, evita qualquer
participação social, valendo-se, para tanto, da violência que, conforme Leonardo Boff, é
“verbal pelo mandonismo dos decretos-leis; ideológica pela versão oficial dos principais fatos
nacionais e pela sistemática sonegação da informação; política pela utilização da repressão
policial para impor uma ordem social autoritária e vinda das cúpulas militares com seus
políticos faraônicos. Em vez de política há a polícia”.24
Esse Estado autoritário, através do terrorismo de Estado, isto é, a transgressão, por
parte do governo, dos marcos ideológicos e políticos da repressão “legal” e a apelação para
“métodos não-convencionais” de aniquilação da oposição política,25 “liquida com os líderes
de qualquer seguimento da sociedade, capazes de articular resistência, elaborar alguma
alternativa ou manter viva a chama da liberdade. Simultaneamente cria um sistema de
controle sobre todas as manifestações da vida e uma rede de delação secreta, levando a tortura
psicológica a toda a sociedade”.26
A tortura política também adquiriu status científico. Conforme os ensinamentos do
norte-americano Daniel Anthony Mitrione, “a dor exata, no lugar necessário, na proporção
precisa para alcançar o efeito desejado [...]. Atuar com a eficiência e a limpeza de um
cirurgião, a perfeição de um artista”27 seria premissa básica para alcançar êxito contra o
inimigo. Se a dor não for utilizada na medida certa, terá sua lógica revertida contra o próprio
sistema, isto é, se, durante o suplício, a dor não for infligida com maestria, pode deixar de ser
instrumento de persuasão e se transformar em motivo de ódio por parte do torturado. Dessa
forma, em vez de falar por medo de sofrer, física e psicologicamente, o supliciado, justamente
por estar sofrendo muito, passa a odiar seu algoz. E então, como forma de castigar o carrasco
e fazê-lo sofrer também, nega-se convictamente, e com todas as suas forças, a colaborar. O
torturador, na medida em que aumenta sua frustração, age com mais violência, provocando
cada vez mais a ira e o desprezo do torturado.
Nesse sentido, Firmiano José Pacheco, ex-delegado da Divisão de Ordem Social do
DOPS em São Paulo, notório torturador de presos políticos deste estado, ratifica que o preso
político é o mais difícil de ser interrogado pois, além do cuidado que se deve ter com o
24
BOFF, op. cit., p. 11.
25
PADRÓS, Enrique Serra. A ditadura cívico-militar no Uruguai (1973-1984): terror de Estado e Segurança
Nacional. In: WASSERMANN, Claudia; GUAZELLI, César; BARCELOS, Augusto (orgs.). Ditaduras
militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 53.
26
BOFF, op. cit., p.11.
27
MARIANO, Nilson. As Garras do Condor. Como as ditaduras militares da Argentina, do Chile, do Uruguai,
do Brasil, da Bolívia e do Paraguai se associaram para eliminar adversários políticos. Petrópolis: Vozes, 2003, p.
108.
9

momento exato da ruptura do “delinqüente”, existe a desenfreada corrida contra o relógio, que
transforma o interrogatório quase num “corpo-a-corpo” entre torturador e torturado.28
Para que não houvesse qualquer tipo de falha no seu principal instrumento repressivo,
os militares passaram a contar com aulas de tortura, teóricas e práticas. Um dos primeiros
professores dessa macabra disciplina, o já citado Dan Mitrione, demonstrava suas requintadas
técnicas em mendigos recolhidos das ruas de Belo Horizonte. Posteriormente, tornaram-se
cobaias os próprios prisioneiros feitos pela ditadura.29. A estudante Dulce Pandolfi, de 24
anos, por exemplo, foi supliciada no Quartel da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro.
Nua, foi espancada, recebeu choques elétricos e também foi posta no pau-de-arara, entre
outras humilhações e sevícias.30
Nessas aulas, os militares aprendiam como infligir dor nos pontos mais vulneráveis do
corpo e da alma. A cientificidade era constantemente reiterada pela presença de médicos e
enfermeiros nas seções de tortura, cujas intervenções davam o aval ou não para o
prosseguimento das demonstrações ou, durante toda a Ditadura Militar, dos próprios suplícios
nos CODI-DOI e nos DOPS.
A pesquisa Brasil: Nunca Mais, com base em processos do Tribunal de Justiça
Militar, contabilizou uma cifra de 843 denúncias de depoentes que haviam sofrido algum
suplício nas mãos dos militares. Dessas testemunhas, foi possível isolar 283 tipos diferentes
de torturas, que foram subdivididas pela pesquisa em “moral/psicológico, físico geral e físico
específico. Este, por sua vez, é dividido em sexual; elétrico; com instrumentos cortantes ou
queimantes; com instrumentos mecânicos (...); torturas de beira de morte; torturas combinadas
e torturas atípicas.”31
As categorias de suplícios inseridas na especificação “físico geral”, as mais
comumente utilizadas, poderiam estar sozinhas ou combinadas com outras formas de tortura.
Espancamentos eram sistemáticos, quase um “boas-vindas” ao prisioneiro. Poderiam se
constituir em socos e pontapés, ou surras com objetos específicos ( como cassetetes, pedaços
de madeira, correntes, ou ainda, no caso de necessidade de não deixar marcas no preso,
espancamentos com cassetetes feitos com jornal molhado ou com toalhas molhadas).

28
PACHECO, Firmiano José apud FON, op. cit., p. 71.
29
ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 32.
30
Ibid., p. 31-33.
31
WESCHLER, Lawrence. Um milagre, um universo. O acerto de contas com os torturadores. Trad: Tomás
Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 60.
10

À “físico geral” também pertenciam a palmatória, “uma borracha grossa, sustentada


por um cabo de madeira”,32 e o “pau-de-arara”, constituído por “uma barra de ferro que é
atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, sendo o ‘conjunto’ colocado entre
duas mesas, ficando o corpo do torturado pendurado a cerca de 20 ou 30 cm do solo”.33
Integravam ainda esta categoria métodos como arrancar dentes e unhas dos interrogados,
quebrar membros, o “telefone” e o “Cristo Redentor”. Neste último, o torturado era obrigado
a permanecer nas pontas dos pés, com os braços abertos, com vários volumes de catálogos
telefônicos em cada uma das mãos.34 Já o “telefone” consistia em “tapas dados nos dois
ouvidos ao mesmo tempo”,35 o que provocava lesões nos tímpanos, surdez temporária ou
permanente (esta de modo parcial).
No entanto, as mais bárbaras formas de tortura foram as ditas “específicas”. Destas,
ganhou um grande destaque o emprego da eletricidade, seja pelo alto índice de sua utilização,
seja pelo elevado grau de crueldade. Descoberta pela Gestapo nazista, a “maquininha de
choque” foi introduzida no Brasil pelo Delegado José Ary de Moraes Novaes, nos tempos de
Getúlio Vargas, na década de 1940.36 Durante a Ditadura Militar, tal máquina ganhou o
carinhoso nome de “Pimentinha”, talvez pelo seu efeito, talvez pela cor da caixa que continha
o aparelho, que era vermelha. Outro aparelho de choque era a Pianola Boilensen, uma espécie
de teclado que fornece uma descarga elétrica crescente, como a escala de notas musicais.37 Os
eletro choques, na absoluta maioria das vezes eram dados nas regiões sexuais (vagina, seios,
pênis, testículos), na região anal, nas orelhas, dentes, gengiva, língua e dedos, das mãos e dos
pés.
A “geladeira”, elemento importado do sistema inglês de tortura, tinha como objetivo
“quebrar a resistência do prisioneiro desorientando-o psicologicamente”: era uma espécie de
solitária com variações vertiginosas de clima, luminosidade e som. 38
Os principais instrumentos mecânicos de tortura foram a “Cadeira do Dragão” e a
“Coroa de Cristo”, conhecida também como “torniquete” ou “anjinho”. A Cadeira (talvez
uma variação moderna, movida à luz, da Donzela de Ferro medieval) “é uma poltrina [sic]
tosca, de madeira, com o assento, o encosto e o apoio dos braços revestidos de placas de
metal, nas quais são ligados os fios terminais de uma “maquininha de choque” ou de uma

32
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 41.
33
Ibid., p. 34.
34
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 41.
35
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 40.
36
FON, op. cit., p. 78-79.
37
Ibid., p. 79.
38
Ibid., p. 74.
11

“Pianola Boilensen”.39 Por sua vez, a “Coroa de Cristo consistia numa tira de aço “ajustável
ao crânio do supliciado através de um mecanismo de rosca e parafuso”.40 À medida que ia
sendo apertada, comprimia o crânio da vítima, até que ele rachasse, esmagando o cérebro.
Este ignominioso instrumento coroou a morte da estudante Aurora Maria Nascimento, então
com 26 anos. 41
As torturas de beira de morte mais recorrentes foram os afogamentos (“banho
chinês”), que podiam ter duas variações: ou “imergir a cabeça da vítima na água – no mar, em
um rio ou até mesmo num barril – até que esteja próxima da morte”42 ou, através de uma
mangueira, introduzir água nas narinas e na boca do prisioneiro, quase sempre imobilizado no
pau-de-arara.43
As chamadas “torturas atípicas” expressaram, de certa forma, a demência dos
militares, sua fixação em produzir suplícios inimagináveis para extrair confissões e
“confissões”. Vários torturados, de modo especial as mulheres, relatam o uso de animais nos
interrogatórios (jacarés, cobras, cães...).44 Uma prisioneira do regime declarou que teve
colocadas sobre seu corpo inúmeras baratas, e uma delas fora introduzida no seu ânus.45
Produtos químicos, como ácidos, também estiveram a serviço da repressão. Um pano
embebido em amoníaco era aplicado no nariz do prisioneiro, causando sufocamento,
queimaduras nas vias respiratórias e alucinações. Com éter, a técnica era diferente. Poderia
ser ministrada em borrifos nos olhos, ou em injeções, geralmente feitas nas plantas dos pés,
que provocavam fortes dores e que, tempos depois, necrosavam a área afetada. O éter poderia
igualmente ser gotejado no ânus da vítima, causando uma ardência insuportável.46
Já o soro pentotal sódico, apesar de sua intimidadora alcunha “soro da verdade”, não
teve muita eficácia. Sendo uma droga anestésica, deixava o supliciado em estado de letargia, e
reduzia seu grau de consciência. Como era aplicado após seções de torturas, encontrava o
corpo em situação debilitada, e às vezes extraía algumas informações. Contudo, se o
interrogado realmente não queria falar, o soro não extrairia nada além de “verdades”.47 Houve

39
Ibid., p. 77-78.
40
Ibid., p. 76.
41
Ibid., p. 76-77.
42
Ibid., p. 74.
43
ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 36.
44
ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 39.
45
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 39.
46
FON, op. cit., p. 76.
47
Ibid., p. 75.
12

um único caso conhecido de uso de venenos. Uma injeção de inseticida matou o líder operário
Olavo Hansen.48
As sevícias sexuais, apesar de ocorrerem com mais freqüência com relação às
mulheres, também atingiram os homens, maioria absoluta no total de capturados pelo regime.
Mário Alves, um dos líderes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), foi
empalado com um cassetete de madeira com estrias de aço, além de ter tido sua pele raspada
com uma escova, também de aço.49
O estupro foi comum no tratamento com as mulheres, mas outras formas de sevícias
sexuais também foram aplicadas às prisioneiras. Uma delas foi torturada juntamente com
outro homem, e “receberam aplicações de choque procedidas pelos policiais, obrigando a
interrogada a tocar os órgãos genitais de ‘Pedro’ para que dessa forma, recebesse a descarga
elétrica”.50 Nem mesmo a gravidez foi respeitada nos “porões” da ditadura. Algumas
mulheres abortaram simplesmente por coação psicológica, por medo. Para outras, a tortura foi
a causa da perda de seus bebês.
Até mesmo a inocência foi torturada, pois crianças sofreram sevícias, psicológicas e
físicas, sem mesmo saber ou compreender o por que. Algumas crianças sofreram ameaças ou
foram objetos de chantagem dos militares e policiais para com seus pais e mães. Outras de
fato foram torturadas, como a pequena Isabel Gomes da Silva, de quatro meses. Cada vez que
os torturadores questionavam sua mãe e esta respondia que não sabia de nada, aplicavam
choques elétricos na menina.51
As sevícias morais e psicológicas constituíram-se basicamente de ameaças e
chantagens, mentiras envolvendo amigos, parentes, etc. Humilhações eram uma constante no
cotidiano de qualquer prisioneiro. O simples fato de ser torturado(a) nu abalava o sujeito de
ambas as formas, moral e psicológica. Muito mais terrível seria assistir um ente querido sendo
torturado. Era um golpe na alma.
A quem eram destinadas todas essas formas de tratamento desumano? Os mais
perseguidos foram os militantes de organizações partidárias de esquerda, na época, atuando na
clandestinidade. Grande parte desses grupos possuíam orientação marxista e descendiam de
um tronco comum, qual seja, o Partido Comunista do Brasil, o PCB, fundado em 1922. As
organizações de maior destaque foram o Partido Comunista Brasileiro (pós-1962), o PCB, a

48
Ibid., p. 76.
49
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 6 ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 203.
50
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 47.
51
FON, op. cit., p. 39.
13

Ação Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Revolucionário – 8 de outubro (MR-8), o


PCBR e a VPR.
Sob a mira da repressão também estiveram religiosos, jornalistas, políticos, estudantes,
sindicalistas e até mesmo militares, como o ex-sargento do Exército Manuel Raimundo
Soares, torturado na Ilha do Presídio, em Porto Alegre, e morto afogado no rio Jacuí,52 ou
como o também ex-sargento do Exército, João Lucas Alves, que, brutalmente torturado, teve
seus braços quebrados, olhos vazados, unhas arrancadas e sua pele esfolada a fogo, morrendo
“enforcado na cela”.53

4 A máquina integrada

Os limites geográficos do Brasil não foram suficientes para conter a fúria da repressão
ditatorial. A perseguição à oposição política se estendeu também pelos países vizinhos do
Cone Sul, antes e depois da ocorrência de seus respectivos Golpes de Estado. Uma vez
marchando no mesmo passo fardado, pesado e destruidor, o Brasil e os demais países
promoveram então uma espécie de “integração”, sugerida pela Direção de Inteligência
Nacional (DINA) do Chile. A partir de fins de 1975,54 tomou forma a Operação Condor que,
conforme o agente do Federal Bureau of Investigation (FBI) norte-americano Robert Scherrer,
então atuando na argentina, “é o nome chave para a recoleção, o intercâmbio e o
armazenamento de informação secreta relativa aos denominados esquerdistas, comunistas e
marxistas. Estabeleceu a cooperação entre os serviços de inteligência da América do Sul com
o propósito de eliminar as atividades terroristas na região”.55
Nesse sentido, Samuel Blixen acredita que o Plano Condor
Nació en sucesivas etapas entre 1974 y 1975, por iniciativa del general chileno
Manuel Contreras, jefe de la Dirección de Información Nacional (DINA). En el
cuartel general de la policía secreta de Pinochet, en Santiago, se formaliza y
organiza una “colaboración” ya activa en precedencia – configurada
substancialmente sobre la base de secuestros, torturas e asesinatos en América latina

52
Ibid., p. 33.
53
GORENDER, op. cit., p. 142.
54
Cf. MARIANO, op. cit., p. 19-21. Em 29 de outubro de 1975, o Chile convocou a “primeira reunião de
trabalho de inteligência nacional”. Mas a origem “oficial” da Operação Condor foi durante uma Conferência
naquele mesmo país, realizada entre os dias 25 de novembro e 1º de dezembro de 1975. Tal Operação, batizada
de Condor em homenagem a seu anfitrião, expressou o desejo do ditador chileno, Augusto Pinochet, que
acreditava ser necessária a atuação conjunta dos governos da região contra o comunismo internacional. Inclusive
a Argentina, distante poucos meses de seu golpe militar, participou da conferencia e assinou a ata da primeira
reunião, acima mencionada.
55
SCHERRER, Robert apud MARIANO, op. cit., p. 18.
14

y en otras partes del mundo – entre los aparatos represivos de las dictaduras chilena,
paraguaya, boliviana, brasileña, del régimen argentino (…).56

Ainda conforme as observações de Scherrer, foi possível distinguir três fases da


atuação do Plano Condor. Num primeiro momento, houve a montagem de um Banco de
Dados, contendo fichas com nomes e informações sobre pessoas e organizações relacionadas
com a “subversão” em todos os países-membros.57
Num segundo momento, teve início a execução de opositores políticos refugiados nos
países vizinhos, eclipsando fronteiras geográficas e desrespeitando regras de direito
internacional. No último e mais avançado estágio da Operação Condor, a caçada ultrapassou
os limites do Cone Sul e atingiu alvos localizados nos EUA e na Europa.58 As mais notórias
ações da Operação Condor em território próprio foram os assassinatos de Carlos Prats
González, Héctor Gutiérrez Ruiz, Zelmar Michelini e Juan José Torres, todos executados na
capital da Argentina, Buenos Aires.59

4.1 Nem tão Condor assim

Dezessete brasileiros morreram além dos limites geográficos de seu país. Um número
baixo, se comparado aos índices apresentados pelos países vizinhos, mas nem por isso
insignificante. Muito pelo contrário.
É importante salientar que, além de menos da metade dos caçados além-fronteira
verde-amarela ter sido vítima da Operação Condor (ou, ao menos, se situaram dentro do
período de sua existência e atuação), dos vinte e quatro brasileiros presos no exterior
(incluindo os mortos), metade o foram antes que ocorressem os golpes militares naqueles
países, o que evidencia certo descompasso entre os golpes militares, a formação da Operação
Condor e as necessidades repressivas dos militares brasileiros.
Num balanço rápido, percebe-se que, de um total de vinte e quatro brasileiros
vitimados no exterior, dois foram repatriados e mortos em solo natal. Dezesseis foram
executados nos países onde estavam, e apenas um foi detido num país (Argentina) e depois
enviado e morto em outro (Chile), contabilizando um total de dezenove mortos. E somente os
quatro brasileiros presos no Uruguai e um dos aprisionados na argentina sobreviveram.

56
BLIXEN, Samuel. El Vientre del Cóndor: del archivo del Terror al caso Berríos. 3 ed. Uruguay: Ediciones
de Brecha, 2000, p. 26.
57
MARIANO, op. cit., p. 18.
58
Ibid., p. 18.
59
Ibid., p. 83-200.
15

Considerando também o total de vinte e quatro vítimas e os golpes de Estado nos


respectivos países, metade foi seqüestrada após a tomada de poder pelos militares. E a outra
metade foi seqüestrada em países ditos mantenedores da democracia e da liberdade.
E considerando novamente os vinte e quatro indivíduos vitimados além-fronteira
brasileira, nove certamente foram caçados pela Operação Condor (apenas um sobreviveu).
Porém, os outros quinze foram seqüestrados e/ou mortos antes mesmo da colaboração
repressiva ser oficializada/formalizada. Existe concomitância entre golpe militar e existência
da Operação Condor tão-somente em sete casos.60
Em solo brasileiro foram caçados apenas argentinos e uruguaios, entre os anos 1974 e
1980, período em que o país se encontrava sob a Ditadura Militar. Do total de argentinos, um
foi morto no Brasil, sem qualquer vinculação com o governo argentino, inclusive antes
mesmo do golpe militar acontecer por lá. Os outros cinco foram alvos em potencial da
Operação Condor, que estava no auge de sua atuação. Já no que diz respeito aos uruguaios,
não restaram dúvidas quanto a íntima colaboração entre as repressões brasileira e uruguaia,
planejada e executada sob a sombra das asas da Condor.
Desse balanço, pode-se concluir que as democracias que cercavam o Brasil ditatorial
estavam em crise em fins da década de 1960, e que esta perduraria até os golpes militares que,
por sua vez, trataram de eliminá-la completamente. Uma segunda conclusão é o óbvio
descompasso entre as necessidades repressivas do Brasil, no seu auge entre 1968 e 1974, e as
de seus países vizinhos. O Uruguai e o Chile tornaram-se ditaduras em 1973, o penúltimo ano
repressivo no Brasil; e na Argentina, o golpe aconteceu em 1976, muito depois da super-
caçada nacional e internacional empreendida pelo governo brasileiro contra opositores
políticos.
Neste contexto, a Operação Condor não foi tão significativa para o Brasil quanto foi
para os outros países-membros. As relações entre Uruguai, Chile e Argentina foram de uma
intensidade incrível. Em contraposição, a relação destas ditaduras com o Brasil foi
relativamente baixa, quer seja pelo fato de, no momento de seus respectivos golpes, a
esquerda brasileira já se encontrar desbaratada, evitando, dessa forma, a emigração de
“subversivos” brasileiros, não existindo assim ninguém para caçar fora do território nacional;
seja pelo receio que a repressão brasileira causava nos que aqui buscavam exílio, impedindo o
ingresso de militantes de esquerda daqueles países.

60
São estes os de Maria M. Pinto, Sérgio Fernando Tula Jorge A. Basso, Wálter K. Nelson Fleury, Roberto R.
Rodrigues, Luís Renato L. Faria e Flávio Tavares (único sobrevivente).
16

5 A máquina exterminadora

O mais tenebroso quadro pintado pela repressão ditatorial brasileira retrata, além de
todo o suplício infligido pela tortura, o espectro de centenas de mortos e desaparecidos, um
estúpido saldo (ou déficit?) acumulado durante os vinte e um longos anos em que o Brasil
esteve sob o tacão militar. Três crimes nefandos, distintos, mas intrinsecamente interligados
porque, de certo modo, um é sinônimo do outro, uma vez que ser desaparecido é uma forma
de tortura, ser torturado é morrer aos poucos, e morrer é de fato desaparecer.
O desaparecimento político configurou-se, naquele momento, como a forma mais
simples e prática encontrada pelo Estado para se livrar de opositores e, ao mesmo tempo, se
isentar de qualquer responsabilidade com relação às vítimas. E ainda, por ricochete, os
desaparecimentos serviam para atemorizar e intimidar indivíduos ou grupos cujas pretensões
fossem contrárias às do governo.
O fato de os militantes de esquerda atuarem na clandestinidade sob falsos nomes
deixava a família numa situação estática e angustiante. O receio de prejudicar seu ente
querido fazia com que a busca pelo desaparecido fosse adiada por algum tempo, e quando ela
finalmente acontecia, em muitos casos, não havia mais o que fazer: a morte e o ocultamento
do cadáver já eram fatos consumados, realidade negada com veemência pela repressão, autora
do crime. A certeza da execução, aos poucos, foi suplantando a esperança do reencontro.
E para as famílias de militantes que foram mortos e reconhecidos como tal pela
repressão, juntamente com essa dolorosa confirmação, restou uma mescla de angústia e
revolta, pois os laudos necroscópicos, ao passo que reconheciam a morte dos indivíduos,
ocultavam sua real causa mortis, qual seja, morte sob torturas.
Outro estratagema de que se valeu a repressão foi a alteração de identidade dos corpos.
Muitos dos que hoje constam na lista de desaparecidos, na verdade estão sepultados com
nomes falsos, o que torna praticamente impossível a localização dos restos mortais por parte
de seus familiares.
Apesar de haver tantos crimes cometidos pelo Estado passíveis de condenação, foi
feita uma Lei de Anistia que acabou por beneficiar os autores desses crimes, fugindo assim a
lei de seu real propósito. A Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, em seu artigo 1º prevê:
É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro
de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes,
crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores
da Administração Direta ou Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos
servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e
17

representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e


Complementares.61

No § 1º, vem a “definição” de “conexos”: “consideram-se conexos, para efeito deste


artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política”. 62
É na interpretação desse dispositivo que todos os que mataram e torturaram em nome
do Estado se livraram da condenação. Torturados e torturadores equiparam-se perante essa lei.
Se a Lei de Anistia considera os crimes políticos, considera então os delitos que atingem
interesses do Estado, ou um direito político do cidadão.63 Logo, essa lei não abrange os atos
cometidos pelo Estado, pois os crimes conexos, subterfúgio dos criminosos do Estado, na
verdade “contemplam as ações de uma ou mais pessoas objetivando o mesmo resultado”.
Portanto, a pretendida e alegada conexidade não existe, pois os crimes em questão vêm de
encontro uns aos outros. Como pondera Hélio Bicudo, “não se pode admitir a interpretação
que reconhece na lei 6683/79 o duplo efeito de beneficiar vítimas e seus algozes. Ela é
dirigida exclusivamente aos crimes políticos e eleitorais cometidos no período que vai de 2 de
setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979”.64
Em vez de beneficiar os indivíduos que foram lesados pela ação repressora do Estado,
a Lei de Anistia garante a impunidade aos agentes desse mesmo Estado que atentaram contra
os direitos humanos daqueles indivíduos. Esses agentes não cometeram crime político ou
crime conexo a crime político, mas sim crime contra a humanidade, e como tal deveriam ser
julgados e punidos. Mas não o foram. Talvez um dia o serão.65

6 Considerações finais

61
BRASIL. Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.acervoditadura.rs.gov.br > Acesso em: 20 mar. 2006.
62
Ibid.
63
BICUDO, Hélio. Parecer sobre a anistia. Disponível em < http://www.torturanuncamais-rj.org.br >. Acesso
em 05 nov. 2005.
64
Ibid.
65
Apesar das dificuldades burocráticas e das limitações da Justiça brasileira, não morre a esperança de que um
dia sejam condenados todos os criminosos da Ditadura Militar, especialmente os torturadores. E essa esperança
se renova toda vez que, de alguma forma, a verdadeira Justiça se materializa, tal como acontece atualmente na
Argentina: conforme dados do Centro de Estudos Legais e Sociais, 170 militares estão presos em todo o país, e a
cifra poderá chegar a 207 até o final de 2006, resultado da anulação das leis de Obediência Devida e Ponto Final.
Na Espanha, Itália, Alemanha e França também estão em andamento processos contra militares argentinos que
atuaram na Ditadura de Videla. Ver NIELL, Paz Rodríguez. Hay casi 200 militares detenidos. Disponível
em: < http://www.lanacion.com.ar > Acesso em: 24 mar. 2006.
18

Antes de mais, é fundamental ressaltar que nenhum assunto, inclusive o tema


“tortura”, é capaz de edificar conclusões herméticas e imutáveis. O que surge, de fato, são
conjuntos de opiniões, estas calcadas em ideologias e valores próprios a cada indivíduo.
Assim, reiterou-se a certeza de que a tortura é um crime brutal, nefando e que, apesar
do respeito crescente aos direitos humanos, tanto por parte do Estado como dos cidadãos, tal
atrocidade ainda permanece em voga mundialmente. Contudo, modificou-se a visão relativa
ao Brasil e sua participação na Operação Condor. Alardeada como promotora de uma série de
crimes, a relação de ambos, a bem da verdade, ocasionou a prisão e morte de poucas vítimas,
dentro e fora da fronteira verde-amarela.
Entretanto, o mais latente questionamento envolvendo a tortura durante a Ditadura
Militar brasileira a ser feito aqui é: a utilização da tortura, como método repressivo, atingiu
seus objetivos?
Considerando o fim da ditadura, em 1985, e os anos de maior repressão (1968-1974)
como sendo também os de maior atuação na luta armada da esquerda brasileira, chega-se à
dedução que, se em 1974 a repressão diminui, é porque não havia, proporcionalmente ao
início da Ditadura, tantos “subversivos” para caçar.66 A grande maioria dos opositores já
estava liquidada. E os que restaram, atuavam com cautela para não serem presos. Logo,
quando tem fim a ditadura, não há uma oposição ameaçadora.
Nessa medida, então, a repressão militar, por meio da tortura (mas não somente pelo
uso dela), chega ao ponto desejado: a eliminação de opositores políticos perigosos, em
especial os comunistas e trostskistas. Sem tais “subversivos”, o regime militar pode dar
continuidade ao seu governo sem maiores preocupações acerca da política interna.
Por último, parafraseando Gilberto Gil e Caetano Veloso, “resta o peito”. Haveria algo
mais a ser dito, um pouco daquilo que se sente, que se sofre ao estudar a tortura, não só como
instrumento político-repressivo, mas como uma violência atroz praticada por seres humanos
contra seres humanos. Indignação? Impotência? Angústia? Talvez um misto destes
sentimentos. Mas o que quer que seja está situado dentro do indizível, fora do alcance das
palavras, mas possível de ser compreendido dentro do peito de cada um de nós.

66
Contudo, muitas investidas militares aconteceram nesse período: Wladimir Herzog e Manuel Fiel Filho são
mortos em 1975; e em 1976 a Chacina da Lapa elimina grande parte do Comitê Central do PC do B.
19

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