Tortura Na Ditadura Militar
Tortura Na Ditadura Militar
Tortura Na Ditadura Militar
Gissele Cassol2
Resumo
O objeto central deste trabalho é a tortura, método repressivo amplamente utilizado durante o período da
Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). A partir de fontes bibliográficas, procura-se traçar, em linhas gerais, a
estruturação do Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN) e, dentro dele, a utilização sistemática da tortura no
combate à “subversão”, suas técnicas e seus alvos e a superação de limites geográficos entre o Brasil e as
ditaduras militares do Cone Sul em busca de opositores políticos.
Palavras-chave: Ditadura Militar, Brasil, Repressão, Tortura.
Abstract
The central object of this work is the torture, repressive method used during the military dictatorship in Brazil
(1964-1985). Starting from bibliography sources, it’s tried to sketch, in general lines, the structure of the Internal
Security System (SISSEGIN) and, in it inside the use of the torture against the “subversion”, it technicals and
targets and the overcome of geographical limits between Brazil and militaries dictatorship of Cone Sul,
searching political oppositionists.
Keywords: Military Dictatorship, Brazil, Repression, Torture.
1 Introdução
1
O presente artigo é derivado de minha Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em História,
homônima, sob orientação de Diorge Alceno Konrad, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP,
Professor do Mestrado em Integração Latino-Americana da UFSM (MILA), e Professor Adjunto do Curso de
História da Universidade Federal de Santa Maria.
2
Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestranda do Mestrado em
Integração Latino-Americana da UFSM (MILA). E-mail: [email protected].
3
COIMBRA, Cecília apud Agência Brasil. Disponível em < http://www.panoramabrasil.com.br> Acesso em: 18
nov. 2005.
2
Mesmo sendo amplamente utilizada pelos Estados através de suas Polícias e Armas, a
tortura não foi por eles inventada. Os primeiros registros de maus-tratos e penas cruéis datam
da Idade dos Metais. Na Babilônia do segundo milênio antes de Cristo, o rei Hamurabi
regulava a vida social através de penas severas e degradantes, cuja máxima chegou aos nossos
dias: “olho por olho, dente por dente”. Já os assírios foram pioneiros em torturar povos
conquistados. No ocidente, por volta do século VIII a.C., foi a vez dos escravos perecerem
sob os maus tratos de seus senhores. Após o fim do Império Romano do Ocidente, no século
V, o terror e o medo tornaram-se elementos presentes no cotidiano da chamada Idade Média,
e maximizaram-se durante os longos séculos da Inquisição, que se valeu dos mais hediondos
suplícios para punir heresias. Especial fixação dos inquisidores se deu em relação às bruxas,
tanto que os dominicanos Heinrich Kramer e Johan Sprenger redigiram uma “bíblia” para
instruir os inquisidores, o Malleus Maleficarum. O “Martelo das Feiticeiras” 4 era um manual
que previa diagnósticos e prognósticos às manifestações de bruxaria. Com a retomada do
modo de produção escravista no século XV, os negros foram oprimidos e severamente
punidos, situação mantida até o século XIX.
Enfim, por muito tempo, os Direitos Humanos foram violados, quer seja pelo ato da
tortura, seja pelas execuções extrajudiciais, ou ainda pelas idealizações raciais, econômicas,
religiosas, bélicas, etc. No período entre-guerras (1918-1939), os regimes nazi-fascistas se
disseminaram pelo mundo e o holocausto judeu espantou pela atrocidade e pela quantidade de
mortos. O fim da Segunda Guerra, marcado pela experiência da bomba atômica, “fez com que
a proteção internacional aos direitos básicos da pessoa humana encontrasse o seu gérmen de
criação baseado em uma necessidade real, ocorrida em território europeu e japonês – e não
nas colônias – e com cidadãos europeus, e não colonos”.5
Mesmo com a chegada da humanidade ao século XXI, o desrespeito ao próximo e à lei
segue num ritmo alarmante. Vários são os exemplos. Talvez o mais expressivo seja a invasão
do Iraque pelos Estados Unidos de George W. Bush, a pretexto de levar àquele povo a sua tão
decantada democracia e “salvá-lo” da ditadura de Saddam Hussein. Desde então, a imprensa
mundial não se cansa de noticiar as milhares de mortes ocorridas, o ataque aos civis e a
destruição do patrimônio cultural da humanidade, entre outros.
Na América Latina, a prática da tortura ganhou novo fôlego com a instauração das
ditaduras militares na segunda metade do século XX. A primeira a surgir foi no Paraguai, em
4
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, Johan. Martelo das Feiticeiras. 16 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos,
2002.
5
MORONI, Cristiano. Direitos humanos e tortura. Disponível em: < http://www.torturanuncamais.org.br >.
Acesso em: 15 out. 2005.
3
1954. Dez anos depois, o verde-amarelo brasileiro deu lugar ao esmaecido verde-oliva. Em
1971, a Bolívia entrou na marcha fardada, seguida pelo Uruguai e pelo Chile em 1973. Pouco
tempo depois, a Argentina encerrou a seqüência de golpes militares, no ano de 1976. No
centro deste estudo está o Brasil e a sua Ditadura Militar, que em vinte e um anos torturou
aproximadamente dois mil de seus cidadãos, e matou e desapareceu com quase quatrocentos.
As barbaridades praticadas por esses regimes deixaram um saldo de milhares de
mortos e desaparecidos, e fizeram do uso da tortura um método científico de larga
aplicabilidade para a extorsão de informações e/ou confissões, em cujos conteúdos se fazia
invariavelmente presente uma ameaça tamanha ao Estado e à ordem que, para combatê-la,
esse mesmo Estado permitia-se cometer crimes muito maiores do que aqueles aos quais, de
acordo com seus devaneios ideológicos, estaria exposto.
A criminalização da tortura em nosso país é quase tão recente quanto a conquista de
nossa democracia. A tortura institucionalizou-se como crime com a Lei 9.455, de 7 de abril de
1997. Antes dela, a tortura estava tipificada como crime somente no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), quando fosse praticada contra estes. Contudo, não definia a tortura em
termos específicos.
2 A máquina burocrática
6
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de
Janeiro: Record, 2001, p. 42.
7
FICO, op.cit., p. 112.
8
ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: nunca mais. 15 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1985, p. 73.
9
FICO, op. cit., p. 144.
10
FON, Antonio Carlos. Tortura. A história da repressão política no Brasil. 4 ed. São Paulo: Global, 1979, p.
19.
5
A OBAN, sob a ótica de Carlos Fico, “era uma organização que contava com o apoio
oficial, mas não estava prevista nem normatizada por nenhum diploma legal da época”.
Mesmo assim, configurou-se como imprescindível para a consolidação do projeto de
estruturação do sistema de segurança.11
Devido justamente à ausência de estrutura legal, a OBAN adquiriu ampla margem de
liberdade em suas ações. Ainda que o general José Canavarro Pereira, comandante do II
Exército (São Paulo), freqüentasse assiduamente a Delegacia de Polícia, à rua Tutóia, sede da
Operação, não havia vinculação formal e legal entre esta e o Exército, apesar de sua
subordinação àquele comando.
Os êxitos obtidos pela OBAN na repressão à esquerda – alicerçada fundamentalmente
na violência – fizeram com que tal modelo fosse adotado em nível nacional. Então, o sistema
CODI-DOI – Centro de Operações de Defesa Interna - Destacamento de Operações de
Informações – suplantou a OBAN e se estabeleceu em todo o país, exceto no Rio Grande do
Sul.12
A organização do SISSEGIN envolveu todos os governadores de estados e os
secretários de segurança pública. De acordo com as normas contidas nas diretrizes de
segurança interna, em cada área militar deveriam ser criados órgãos cuja responsabilidade
estaria a cargo do comandante do Exército respectivo, que seria denominado comandante de
Zona de Defesa Interna (ZDI). Como o Brasil ficou dividido em seis grandes zonas, poderiam
ser criadas Áreas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Áreas de Defesa Interna (SADI) dentro de
cada grande zona, segundo as necessidades repressivas.13
Em cada ZDI seriam criados um Conselho de Defesa Interna (CONDI), um Centro de
Operações de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operações de Informações
(DOI). Organizados burocraticamente, cada uma dessas instâncias tinham funções específicas
dentro do sistema. Mas foi principalmente dentro dos DOI que a tortura tornou-se prática
comum no tratamento dispensado aos prisioneiros. Visando extorquir informações – delações
–, tais como revelações de “pontos” (encontros estratégicos entre militantes), de “aparelhos”
(locais que abrigavam opositores) e de nomes de companheiros das organizações, policiais e
militares lançavam mão de uma série de violências físicas e psicológicas contra os detidos.
11
FICO, op. cit., p. 116.
12
Em Porto Alegre, na mesma época da criação da OBAN, foi instalada a Divisão Central de Informações
(DCI), com vinculação legal à Secretaria de Segurança Pública. No entanto, o controle desse órgão estava sob os
auspícios do comando militar. A DCI tinha por função apenas a análise e produção de informações. Encarregado
dos interrogatórios e ações de combate estava o Departamento de Ordem Política e Social. Essa estrutura
manteve-se por algum tempo, mesmo já instalados os CODI-DOI em substituição à OBAN na grande São Paulo.
Cf. FICO, ibid., p. 117-118.
13
Ver FICO, op. cit., p. 120-123.
6
3 A máquina repressiva
14
CHAUÍ, Marilena. Um regime que tortura. In: ELOYSA, Branca (org.). I Seminário do Grupo Tortura
Nunca Mais. Depoimentos e debates. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1987, p. 33.
15
Ibid., p. 33.
16
Ibid., p. 33.
7
estabeleça com o algoz uma relação intersubjetiva, sem a qual o torturador perde a
função e perde o sentido.17
17
Ibid., p. 34.
18
BOFF, Leonardo. Prefácio. In: ELOYSA, op. cit., p. 12.
19
PELLEGRINO, Hélio. Um regime que destrói. In: ELOYSA, op. cit., p. 101.
20
Ibid., p. 100.
21
BOFF, op. cit., p. 13.
22
PELLEGRINO, op. cit., p. 98.
23
CHAUÍ, op. cit., p. 34.
8
do Estado quanto por parte dos cidadãos. No momento de quebra desse acordo, tem fim o
Estado de Direito, e nasce o estado ditatorial que, para manter-se no poder, evita qualquer
participação social, valendo-se, para tanto, da violência que, conforme Leonardo Boff, é
“verbal pelo mandonismo dos decretos-leis; ideológica pela versão oficial dos principais fatos
nacionais e pela sistemática sonegação da informação; política pela utilização da repressão
policial para impor uma ordem social autoritária e vinda das cúpulas militares com seus
políticos faraônicos. Em vez de política há a polícia”.24
Esse Estado autoritário, através do terrorismo de Estado, isto é, a transgressão, por
parte do governo, dos marcos ideológicos e políticos da repressão “legal” e a apelação para
“métodos não-convencionais” de aniquilação da oposição política,25 “liquida com os líderes
de qualquer seguimento da sociedade, capazes de articular resistência, elaborar alguma
alternativa ou manter viva a chama da liberdade. Simultaneamente cria um sistema de
controle sobre todas as manifestações da vida e uma rede de delação secreta, levando a tortura
psicológica a toda a sociedade”.26
A tortura política também adquiriu status científico. Conforme os ensinamentos do
norte-americano Daniel Anthony Mitrione, “a dor exata, no lugar necessário, na proporção
precisa para alcançar o efeito desejado [...]. Atuar com a eficiência e a limpeza de um
cirurgião, a perfeição de um artista”27 seria premissa básica para alcançar êxito contra o
inimigo. Se a dor não for utilizada na medida certa, terá sua lógica revertida contra o próprio
sistema, isto é, se, durante o suplício, a dor não for infligida com maestria, pode deixar de ser
instrumento de persuasão e se transformar em motivo de ódio por parte do torturado. Dessa
forma, em vez de falar por medo de sofrer, física e psicologicamente, o supliciado, justamente
por estar sofrendo muito, passa a odiar seu algoz. E então, como forma de castigar o carrasco
e fazê-lo sofrer também, nega-se convictamente, e com todas as suas forças, a colaborar. O
torturador, na medida em que aumenta sua frustração, age com mais violência, provocando
cada vez mais a ira e o desprezo do torturado.
Nesse sentido, Firmiano José Pacheco, ex-delegado da Divisão de Ordem Social do
DOPS em São Paulo, notório torturador de presos políticos deste estado, ratifica que o preso
político é o mais difícil de ser interrogado pois, além do cuidado que se deve ter com o
24
BOFF, op. cit., p. 11.
25
PADRÓS, Enrique Serra. A ditadura cívico-militar no Uruguai (1973-1984): terror de Estado e Segurança
Nacional. In: WASSERMANN, Claudia; GUAZELLI, César; BARCELOS, Augusto (orgs.). Ditaduras
militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 53.
26
BOFF, op. cit., p.11.
27
MARIANO, Nilson. As Garras do Condor. Como as ditaduras militares da Argentina, do Chile, do Uruguai,
do Brasil, da Bolívia e do Paraguai se associaram para eliminar adversários políticos. Petrópolis: Vozes, 2003, p.
108.
9
momento exato da ruptura do “delinqüente”, existe a desenfreada corrida contra o relógio, que
transforma o interrogatório quase num “corpo-a-corpo” entre torturador e torturado.28
Para que não houvesse qualquer tipo de falha no seu principal instrumento repressivo,
os militares passaram a contar com aulas de tortura, teóricas e práticas. Um dos primeiros
professores dessa macabra disciplina, o já citado Dan Mitrione, demonstrava suas requintadas
técnicas em mendigos recolhidos das ruas de Belo Horizonte. Posteriormente, tornaram-se
cobaias os próprios prisioneiros feitos pela ditadura.29. A estudante Dulce Pandolfi, de 24
anos, por exemplo, foi supliciada no Quartel da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro.
Nua, foi espancada, recebeu choques elétricos e também foi posta no pau-de-arara, entre
outras humilhações e sevícias.30
Nessas aulas, os militares aprendiam como infligir dor nos pontos mais vulneráveis do
corpo e da alma. A cientificidade era constantemente reiterada pela presença de médicos e
enfermeiros nas seções de tortura, cujas intervenções davam o aval ou não para o
prosseguimento das demonstrações ou, durante toda a Ditadura Militar, dos próprios suplícios
nos CODI-DOI e nos DOPS.
A pesquisa Brasil: Nunca Mais, com base em processos do Tribunal de Justiça
Militar, contabilizou uma cifra de 843 denúncias de depoentes que haviam sofrido algum
suplício nas mãos dos militares. Dessas testemunhas, foi possível isolar 283 tipos diferentes
de torturas, que foram subdivididas pela pesquisa em “moral/psicológico, físico geral e físico
específico. Este, por sua vez, é dividido em sexual; elétrico; com instrumentos cortantes ou
queimantes; com instrumentos mecânicos (...); torturas de beira de morte; torturas combinadas
e torturas atípicas.”31
As categorias de suplícios inseridas na especificação “físico geral”, as mais
comumente utilizadas, poderiam estar sozinhas ou combinadas com outras formas de tortura.
Espancamentos eram sistemáticos, quase um “boas-vindas” ao prisioneiro. Poderiam se
constituir em socos e pontapés, ou surras com objetos específicos ( como cassetetes, pedaços
de madeira, correntes, ou ainda, no caso de necessidade de não deixar marcas no preso,
espancamentos com cassetetes feitos com jornal molhado ou com toalhas molhadas).
28
PACHECO, Firmiano José apud FON, op. cit., p. 71.
29
ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 32.
30
Ibid., p. 31-33.
31
WESCHLER, Lawrence. Um milagre, um universo. O acerto de contas com os torturadores. Trad: Tomás
Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 60.
10
32
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 41.
33
Ibid., p. 34.
34
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 41.
35
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 40.
36
FON, op. cit., p. 78-79.
37
Ibid., p. 79.
38
Ibid., p. 74.
11
“Pianola Boilensen”.39 Por sua vez, a “Coroa de Cristo consistia numa tira de aço “ajustável
ao crânio do supliciado através de um mecanismo de rosca e parafuso”.40 À medida que ia
sendo apertada, comprimia o crânio da vítima, até que ele rachasse, esmagando o cérebro.
Este ignominioso instrumento coroou a morte da estudante Aurora Maria Nascimento, então
com 26 anos. 41
As torturas de beira de morte mais recorrentes foram os afogamentos (“banho
chinês”), que podiam ter duas variações: ou “imergir a cabeça da vítima na água – no mar, em
um rio ou até mesmo num barril – até que esteja próxima da morte”42 ou, através de uma
mangueira, introduzir água nas narinas e na boca do prisioneiro, quase sempre imobilizado no
pau-de-arara.43
As chamadas “torturas atípicas” expressaram, de certa forma, a demência dos
militares, sua fixação em produzir suplícios inimagináveis para extrair confissões e
“confissões”. Vários torturados, de modo especial as mulheres, relatam o uso de animais nos
interrogatórios (jacarés, cobras, cães...).44 Uma prisioneira do regime declarou que teve
colocadas sobre seu corpo inúmeras baratas, e uma delas fora introduzida no seu ânus.45
Produtos químicos, como ácidos, também estiveram a serviço da repressão. Um pano
embebido em amoníaco era aplicado no nariz do prisioneiro, causando sufocamento,
queimaduras nas vias respiratórias e alucinações. Com éter, a técnica era diferente. Poderia
ser ministrada em borrifos nos olhos, ou em injeções, geralmente feitas nas plantas dos pés,
que provocavam fortes dores e que, tempos depois, necrosavam a área afetada. O éter poderia
igualmente ser gotejado no ânus da vítima, causando uma ardência insuportável.46
Já o soro pentotal sódico, apesar de sua intimidadora alcunha “soro da verdade”, não
teve muita eficácia. Sendo uma droga anestésica, deixava o supliciado em estado de letargia, e
reduzia seu grau de consciência. Como era aplicado após seções de torturas, encontrava o
corpo em situação debilitada, e às vezes extraía algumas informações. Contudo, se o
interrogado realmente não queria falar, o soro não extrairia nada além de “verdades”.47 Houve
39
Ibid., p. 77-78.
40
Ibid., p. 76.
41
Ibid., p. 76-77.
42
Ibid., p. 74.
43
ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 36.
44
ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 39.
45
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 39.
46
FON, op. cit., p. 76.
47
Ibid., p. 75.
12
um único caso conhecido de uso de venenos. Uma injeção de inseticida matou o líder operário
Olavo Hansen.48
As sevícias sexuais, apesar de ocorrerem com mais freqüência com relação às
mulheres, também atingiram os homens, maioria absoluta no total de capturados pelo regime.
Mário Alves, um dos líderes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), foi
empalado com um cassetete de madeira com estrias de aço, além de ter tido sua pele raspada
com uma escova, também de aço.49
O estupro foi comum no tratamento com as mulheres, mas outras formas de sevícias
sexuais também foram aplicadas às prisioneiras. Uma delas foi torturada juntamente com
outro homem, e “receberam aplicações de choque procedidas pelos policiais, obrigando a
interrogada a tocar os órgãos genitais de ‘Pedro’ para que dessa forma, recebesse a descarga
elétrica”.50 Nem mesmo a gravidez foi respeitada nos “porões” da ditadura. Algumas
mulheres abortaram simplesmente por coação psicológica, por medo. Para outras, a tortura foi
a causa da perda de seus bebês.
Até mesmo a inocência foi torturada, pois crianças sofreram sevícias, psicológicas e
físicas, sem mesmo saber ou compreender o por que. Algumas crianças sofreram ameaças ou
foram objetos de chantagem dos militares e policiais para com seus pais e mães. Outras de
fato foram torturadas, como a pequena Isabel Gomes da Silva, de quatro meses. Cada vez que
os torturadores questionavam sua mãe e esta respondia que não sabia de nada, aplicavam
choques elétricos na menina.51
As sevícias morais e psicológicas constituíram-se basicamente de ameaças e
chantagens, mentiras envolvendo amigos, parentes, etc. Humilhações eram uma constante no
cotidiano de qualquer prisioneiro. O simples fato de ser torturado(a) nu abalava o sujeito de
ambas as formas, moral e psicológica. Muito mais terrível seria assistir um ente querido sendo
torturado. Era um golpe na alma.
A quem eram destinadas todas essas formas de tratamento desumano? Os mais
perseguidos foram os militantes de organizações partidárias de esquerda, na época, atuando na
clandestinidade. Grande parte desses grupos possuíam orientação marxista e descendiam de
um tronco comum, qual seja, o Partido Comunista do Brasil, o PCB, fundado em 1922. As
organizações de maior destaque foram o Partido Comunista Brasileiro (pós-1962), o PCB, a
48
Ibid., p. 76.
49
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 6 ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 203.
50
Depoente BNM apud ARQUIDIOCESE, op. cit., p. 47.
51
FON, op. cit., p. 39.
13
4 A máquina integrada
Os limites geográficos do Brasil não foram suficientes para conter a fúria da repressão
ditatorial. A perseguição à oposição política se estendeu também pelos países vizinhos do
Cone Sul, antes e depois da ocorrência de seus respectivos Golpes de Estado. Uma vez
marchando no mesmo passo fardado, pesado e destruidor, o Brasil e os demais países
promoveram então uma espécie de “integração”, sugerida pela Direção de Inteligência
Nacional (DINA) do Chile. A partir de fins de 1975,54 tomou forma a Operação Condor que,
conforme o agente do Federal Bureau of Investigation (FBI) norte-americano Robert Scherrer,
então atuando na argentina, “é o nome chave para a recoleção, o intercâmbio e o
armazenamento de informação secreta relativa aos denominados esquerdistas, comunistas e
marxistas. Estabeleceu a cooperação entre os serviços de inteligência da América do Sul com
o propósito de eliminar as atividades terroristas na região”.55
Nesse sentido, Samuel Blixen acredita que o Plano Condor
Nació en sucesivas etapas entre 1974 y 1975, por iniciativa del general chileno
Manuel Contreras, jefe de la Dirección de Información Nacional (DINA). En el
cuartel general de la policía secreta de Pinochet, en Santiago, se formaliza y
organiza una “colaboración” ya activa en precedencia – configurada
substancialmente sobre la base de secuestros, torturas e asesinatos en América latina
52
Ibid., p. 33.
53
GORENDER, op. cit., p. 142.
54
Cf. MARIANO, op. cit., p. 19-21. Em 29 de outubro de 1975, o Chile convocou a “primeira reunião de
trabalho de inteligência nacional”. Mas a origem “oficial” da Operação Condor foi durante uma Conferência
naquele mesmo país, realizada entre os dias 25 de novembro e 1º de dezembro de 1975. Tal Operação, batizada
de Condor em homenagem a seu anfitrião, expressou o desejo do ditador chileno, Augusto Pinochet, que
acreditava ser necessária a atuação conjunta dos governos da região contra o comunismo internacional. Inclusive
a Argentina, distante poucos meses de seu golpe militar, participou da conferencia e assinou a ata da primeira
reunião, acima mencionada.
55
SCHERRER, Robert apud MARIANO, op. cit., p. 18.
14
y en otras partes del mundo – entre los aparatos represivos de las dictaduras chilena,
paraguaya, boliviana, brasileña, del régimen argentino (…).56
Dezessete brasileiros morreram além dos limites geográficos de seu país. Um número
baixo, se comparado aos índices apresentados pelos países vizinhos, mas nem por isso
insignificante. Muito pelo contrário.
É importante salientar que, além de menos da metade dos caçados além-fronteira
verde-amarela ter sido vítima da Operação Condor (ou, ao menos, se situaram dentro do
período de sua existência e atuação), dos vinte e quatro brasileiros presos no exterior
(incluindo os mortos), metade o foram antes que ocorressem os golpes militares naqueles
países, o que evidencia certo descompasso entre os golpes militares, a formação da Operação
Condor e as necessidades repressivas dos militares brasileiros.
Num balanço rápido, percebe-se que, de um total de vinte e quatro brasileiros
vitimados no exterior, dois foram repatriados e mortos em solo natal. Dezesseis foram
executados nos países onde estavam, e apenas um foi detido num país (Argentina) e depois
enviado e morto em outro (Chile), contabilizando um total de dezenove mortos. E somente os
quatro brasileiros presos no Uruguai e um dos aprisionados na argentina sobreviveram.
56
BLIXEN, Samuel. El Vientre del Cóndor: del archivo del Terror al caso Berríos. 3 ed. Uruguay: Ediciones
de Brecha, 2000, p. 26.
57
MARIANO, op. cit., p. 18.
58
Ibid., p. 18.
59
Ibid., p. 83-200.
15
60
São estes os de Maria M. Pinto, Sérgio Fernando Tula Jorge A. Basso, Wálter K. Nelson Fleury, Roberto R.
Rodrigues, Luís Renato L. Faria e Flávio Tavares (único sobrevivente).
16
5 A máquina exterminadora
O mais tenebroso quadro pintado pela repressão ditatorial brasileira retrata, além de
todo o suplício infligido pela tortura, o espectro de centenas de mortos e desaparecidos, um
estúpido saldo (ou déficit?) acumulado durante os vinte e um longos anos em que o Brasil
esteve sob o tacão militar. Três crimes nefandos, distintos, mas intrinsecamente interligados
porque, de certo modo, um é sinônimo do outro, uma vez que ser desaparecido é uma forma
de tortura, ser torturado é morrer aos poucos, e morrer é de fato desaparecer.
O desaparecimento político configurou-se, naquele momento, como a forma mais
simples e prática encontrada pelo Estado para se livrar de opositores e, ao mesmo tempo, se
isentar de qualquer responsabilidade com relação às vítimas. E ainda, por ricochete, os
desaparecimentos serviam para atemorizar e intimidar indivíduos ou grupos cujas pretensões
fossem contrárias às do governo.
O fato de os militantes de esquerda atuarem na clandestinidade sob falsos nomes
deixava a família numa situação estática e angustiante. O receio de prejudicar seu ente
querido fazia com que a busca pelo desaparecido fosse adiada por algum tempo, e quando ela
finalmente acontecia, em muitos casos, não havia mais o que fazer: a morte e o ocultamento
do cadáver já eram fatos consumados, realidade negada com veemência pela repressão, autora
do crime. A certeza da execução, aos poucos, foi suplantando a esperança do reencontro.
E para as famílias de militantes que foram mortos e reconhecidos como tal pela
repressão, juntamente com essa dolorosa confirmação, restou uma mescla de angústia e
revolta, pois os laudos necroscópicos, ao passo que reconheciam a morte dos indivíduos,
ocultavam sua real causa mortis, qual seja, morte sob torturas.
Outro estratagema de que se valeu a repressão foi a alteração de identidade dos corpos.
Muitos dos que hoje constam na lista de desaparecidos, na verdade estão sepultados com
nomes falsos, o que torna praticamente impossível a localização dos restos mortais por parte
de seus familiares.
Apesar de haver tantos crimes cometidos pelo Estado passíveis de condenação, foi
feita uma Lei de Anistia que acabou por beneficiar os autores desses crimes, fugindo assim a
lei de seu real propósito. A Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, em seu artigo 1º prevê:
É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro
de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes,
crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores
da Administração Direta ou Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos
servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e
17
6 Considerações finais
61
BRASIL. Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.acervoditadura.rs.gov.br > Acesso em: 20 mar. 2006.
62
Ibid.
63
BICUDO, Hélio. Parecer sobre a anistia. Disponível em < http://www.torturanuncamais-rj.org.br >. Acesso
em 05 nov. 2005.
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Ibid.
65
Apesar das dificuldades burocráticas e das limitações da Justiça brasileira, não morre a esperança de que um
dia sejam condenados todos os criminosos da Ditadura Militar, especialmente os torturadores. E essa esperança
se renova toda vez que, de alguma forma, a verdadeira Justiça se materializa, tal como acontece atualmente na
Argentina: conforme dados do Centro de Estudos Legais e Sociais, 170 militares estão presos em todo o país, e a
cifra poderá chegar a 207 até o final de 2006, resultado da anulação das leis de Obediência Devida e Ponto Final.
Na Espanha, Itália, Alemanha e França também estão em andamento processos contra militares argentinos que
atuaram na Ditadura de Videla. Ver NIELL, Paz Rodríguez. Hay casi 200 militares detenidos. Disponível
em: < http://www.lanacion.com.ar > Acesso em: 24 mar. 2006.
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Contudo, muitas investidas militares aconteceram nesse período: Wladimir Herzog e Manuel Fiel Filho são
mortos em 1975; e em 1976 a Chacina da Lapa elimina grande parte do Comitê Central do PC do B.
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Referências bibliográficas
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