Poetica Do Cinema Novo - David Neves

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Poética do Cinema Novo1 condenar (v. g.

o episódio do deputado nordestino, ridículo, grosseiro, desto-


ante, verbalista, como se queria na festa primitiva). Defeituoso, maladroit, eis
a chave-mestra para se classificar formalmente o. seu mundo e o que lhe
seguirá. Esperar a perfeição, os ornatos, o rigor num filme brasileiro somente
Não se pode negar que uma visão de conjunto de uma obra artística qualquer,
se se tivesse uma visão brasileira desses elementos. O Brasil e seu cinema
mesmo a que não disponha de finalidades essenciais, faz sempre extravasar,
para os brasileiros. Num determinado momento, a ousadia máxima para um
bem ou mal, uma poética distinta. Assim, se fora do cinema novo tomamos
filme de produção pobre e de conceitos pobres a respeito da produção: a grua
a fase das chanchadas (ou das comédias musicais), elas, na sua grosseira
improvisada que termina por trucagem numa maquete da visão-tipo do Rio:
insuficiência artística, nos apresentarão sempre um universo específico como
o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara. Nelson Pereira dos Santos, usando
pano de fundo, e diversas peculiaridades, todas dependentes de ou imanentes
recursos de todo um Cinema que lhe antecedeu, traça as bases de uma nova
a esse mesmo universo.
escola: a da autenticidade.
Indago-me que critério usar para abranger, com clareza, e, com brevidade,
Rio, Zona Norte  confirma com mais secura a tese da unidade e da perso-
o problema. Uma divisão prática seria interessante no sentido de “visualizar”
nalidade ou autoria. O compositor Espírito da Luz Soares é a “voz do povo”
em detalhe essa poética ou esse universo específico em seus diversos seto-
e sua vida a nossa vida. Eis o samba-na-caixa-de-fósforos, o despojamento,
res. Digamos, adotando o método indutivo que, no cinema novo, as correntes
quase o cinema-verdade em 1957. Eis a coragem, a necessidade de utilização
principais são:
da inteligência, do amor ao cinema. Que tipo de universo é esse? A poesia do
a) a tradicional, que evoluiu do antigo cinema industrial; real, da crueza, do drama, da pobreza, da infelicidade. A poética do cinema
b) a híbrida que mantém pontos de contato com a anterior e com, novo, queiram ou não, é essa aparência, às vezes titubeante, ou a ilusão dessa
c) a moderna, originada no espírito jovem de jovens apaixonados pelo aparência. Titubeante, na verdade, tem sido o espectador brasileiro que não se
cinema, teóricos, estudiosos, cineclubistas e, finalmente, autores de filmes. entrega facilmente, que reage, que perde a seiva de um mundo novo, em busca
de contatos, de relações, de ressonância com uma concepção provinciana e
Essas três correntes ou saídas do atual cinema brasileiro são absolutamente alienada que traz consigo.
autênticas e cada uma comporta de  per si  uma característica própria que no Depois de Rio, Quarenta Graus, Rio, Zona Norte veio Mandacaru Vermelho e
entanto se liga com intimidade à sua congênere do outro grupo. Se poética e uni- Nelson Pereira dos Santos já entrava pelas outras correntes, formando, pen-
verso são a mesma coisa, não significarão, também, em última instância, estilo? sando, ruminando Vidas Secas.
E o cinema novo prima justamente por uma unidade dentro da diversificação Em outros planos, outros realizadores seguiram-lhe os passos: Glauber Ro-
estilística. As causas desse fenômeno residem de modo especial na formação cha, Roberto Pires, Roberto Farias. Sobretudo Glauber. Os demais, assistiam,
independente de cada realizador e na emulação inconsciente que existe no meio. apreendiam, debatiam. preparavam-se.
Na primeira corrente, fundam-se os princípios dessa poética. São, por as- Cinema é antes prosa do que verso, mas que melhor poeta do que Guima-
sim dizer, os alicerces do universo cinematográfico brasileiro, a origem dos rães Rosa?, devia pensar Glauber Rocha, digerindo o roteiro de Deus e o Diabo
vetores que orientarão um determinismo cultural. na Terra do Sol. Que afinidade sutil entre o jovem baiano e o grande escritor. “...
Para começar,  Rio, Quarenta Graus,  de Nelson Pereira dos Santos. Como ele será tanto mais original quanto mais fundo baixar na pesquisa, trazendo
transformar em palavras sua concepção? como resultado um mundo e um homem diferentes, compostos de elementos
Filme fragmentado em episódios que se interdependem entre si e se com- que deformou a partir dos modelos reais, consciente ou inconscientemente
1
Originalmente publicado no pletam. Cada uma, célula de poesia, ora realista, ora de referência cinemato- propostos”. Falando da técnica criadora de Guimarães Rosa, Antônio Cândido
livro Cinema Novo no Brasil.
Petrópolis: Editora Vozes. gráfica. Sublinhe-se e atente-se, no filme, a nostalgia relativamente à chan- não se refere também e com certa intimidade à elaboração de Deus e o Diabo
1966. Pg.20
chada que ele tanto como produção quanto como realização parece querer na Terra do Sol, ou, mais particularmente, à técnica de Glauber Rocha? Antônio

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das Mortes, esse personagem fabuloso não seria, por exemplo, esse “homem O tempo favoreceu a abolição do supérfluo. De  Boca de Ouro  a Vidas Se-
diferente composto da deformação dos modelos reais?”2 cas, por exemplo, que incrível aumento de objetividade narrativa. Os estímu-
Dessa poesia viril, faceta de um mundo, região, como uma região geográfica los se filtram, o cinema novo busca a universalidade através da análise, da
de um Brasil imenso, se pode passar a outras aparências. consciência acerca de meios e fins, da autoria. Realiza-se, enfim, pelo amor
Cinema é crônica, pensaria Roberto Farias, seguindo a prosa narrativa de Nel- ao homem brasileiro e pela concentração em objetos realmente autênticos.
son Pereira dos Santos quanto à despreocupação com o veículo e renovando o es- Finalmente, se me perguntassem, à queima-roupa quais as raízes e origens
tilo em certos detalhes, fiel, porém, ao processo da découpage e dos vrais raccords. mais profundas do cinema novo, ou melhor, de sua poética, eu responderia de
Cinema é tudo, pensava ainda Nelson, que começa a ser menos cronista do que forma conclusiva:
cantador; dolente, rústico, singelo, despojado como Graciliano Ramos se revela,
ele próprio, em S. Bernardo: “extraio dos acontecimentos algumas parcelas: o 1) a autossuficiência do brasileiro, fator perigoso que às vezes, como no
resto é bagaço”. Como escritor, Nelson passa a ser evasivo, seco e intransigente. caso presente, age de maneira positiva; 
2) como causa material a influência direta, de um lado, da chanchada, o
Cinema é paixão, choraria Paulo Cézar Saraceni.
cinema industrial carioca decorrente da novela radiofônica; de outro lado,
Cinema é “música”, dirá, mais tarde, Sérgio Ricardo, completando a tempo:
uma forma de aculturação brasileira mais elevada (escritores) e os curtas
música popular. É ritmo e raciocínio, responderia Joaquim Pedro de Andrade. -metragens Caminhos, Cruz na Praça, Domingo, Arraial do Cabo, O Poeta do
Cinema é intimidade, replicaria Carlos Diegues. À polêmica que não chega a Castelo e Couro de Gato; 
ser está aí: porém todos concordam na aparente discordância. 3) a coragem, o amor do cinema como forma de expressão e, em sentido
Todas essas manifestações que transtornam nosso espírito, no fundo, exis- não pejorativo, a lei do menor esforço.
tem da forma a mais brasileira possível, isto é, displicente, balbuciante, tími-
da ainda. E não vão ser as tais correntes que para facilitar inventei, que as
separarão em compartimentos estanques. Assim, Nelson Pereira dos Santos
influencia Glauber Rocha que influencia Carlos Diegues que se exercita. O uni-
verso de Nelson, seus conceitos dramáticos agem sobre Joaquim Pedro que
também se estimula com a retórica de Glauber. Paulo Cézar acha que quase
tudo vem de Rossellini, mas, por exemplo, toma Viaggio in Italia como um meio
e nunca corno um fim. Pelo realizador italiano, o mundo de Paulo Cézar en-
contra o de Glauber Rocha e ambos se entrechocam, numa dialética criadora.
Eis aí resumida a poética do cinema novo. Falta, também, mencionar que os
problemas técnicos que assaltam quase sempre a realização de um filme, agem
de maneira a influir sobre a formação desses mesmos mundos. Aos poucos,
porém, a consciência vem chegando e universo pessoal e condições materiais
atingem uma fase quase familiar de concordância: são os casos de Vidas Secas,
Deus e o Diabo na Terra do Sol e o exemplo paulista de Noite Vazia.
Ao final, entretanto, tudo é válido e conta como aquilo que Louis Marcorelles
diz ser “a feitura concomitante da história de um povo e de um cinema”. O amor
2
ao cinema chega ao extremo de se realizarem filmes com o conhecimento pré-
Cândido, Antônio, “Tese vio de sua quase impossibilidade de recuperação financeira no mercado interno
e Antitese”, Cia. Editora
Nacional, 1964. do Brasil e já hoje em dia o mercado externo é visto com certa desconfiança.
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