Poetica Do Cinema Novo - David Neves
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das Mortes, esse personagem fabuloso não seria, por exemplo, esse “homem O tempo favoreceu a abolição do supérfluo. De Boca de Ouro a Vidas Se-
diferente composto da deformação dos modelos reais?”2 cas, por exemplo, que incrível aumento de objetividade narrativa. Os estímu-
Dessa poesia viril, faceta de um mundo, região, como uma região geográfica los se filtram, o cinema novo busca a universalidade através da análise, da
de um Brasil imenso, se pode passar a outras aparências. consciência acerca de meios e fins, da autoria. Realiza-se, enfim, pelo amor
Cinema é crônica, pensaria Roberto Farias, seguindo a prosa narrativa de Nel- ao homem brasileiro e pela concentração em objetos realmente autênticos.
son Pereira dos Santos quanto à despreocupação com o veículo e renovando o es- Finalmente, se me perguntassem, à queima-roupa quais as raízes e origens
tilo em certos detalhes, fiel, porém, ao processo da découpage e dos vrais raccords. mais profundas do cinema novo, ou melhor, de sua poética, eu responderia de
Cinema é tudo, pensava ainda Nelson, que começa a ser menos cronista do que forma conclusiva:
cantador; dolente, rústico, singelo, despojado como Graciliano Ramos se revela,
ele próprio, em S. Bernardo: “extraio dos acontecimentos algumas parcelas: o 1) a autossuficiência do brasileiro, fator perigoso que às vezes, como no
resto é bagaço”. Como escritor, Nelson passa a ser evasivo, seco e intransigente. caso presente, age de maneira positiva;
2) como causa material a influência direta, de um lado, da chanchada, o
Cinema é paixão, choraria Paulo Cézar Saraceni.
cinema industrial carioca decorrente da novela radiofônica; de outro lado,
Cinema é “música”, dirá, mais tarde, Sérgio Ricardo, completando a tempo:
uma forma de aculturação brasileira mais elevada (escritores) e os curtas
música popular. É ritmo e raciocínio, responderia Joaquim Pedro de Andrade. -metragens Caminhos, Cruz na Praça, Domingo, Arraial do Cabo, O Poeta do
Cinema é intimidade, replicaria Carlos Diegues. À polêmica que não chega a Castelo e Couro de Gato;
ser está aí: porém todos concordam na aparente discordância. 3) a coragem, o amor do cinema como forma de expressão e, em sentido
Todas essas manifestações que transtornam nosso espírito, no fundo, exis- não pejorativo, a lei do menor esforço.
tem da forma a mais brasileira possível, isto é, displicente, balbuciante, tími-
da ainda. E não vão ser as tais correntes que para facilitar inventei, que as
separarão em compartimentos estanques. Assim, Nelson Pereira dos Santos
influencia Glauber Rocha que influencia Carlos Diegues que se exercita. O uni-
verso de Nelson, seus conceitos dramáticos agem sobre Joaquim Pedro que
também se estimula com a retórica de Glauber. Paulo Cézar acha que quase
tudo vem de Rossellini, mas, por exemplo, toma Viaggio in Italia como um meio
e nunca corno um fim. Pelo realizador italiano, o mundo de Paulo Cézar en-
contra o de Glauber Rocha e ambos se entrechocam, numa dialética criadora.
Eis aí resumida a poética do cinema novo. Falta, também, mencionar que os
problemas técnicos que assaltam quase sempre a realização de um filme, agem
de maneira a influir sobre a formação desses mesmos mundos. Aos poucos,
porém, a consciência vem chegando e universo pessoal e condições materiais
atingem uma fase quase familiar de concordância: são os casos de Vidas Secas,
Deus e o Diabo na Terra do Sol e o exemplo paulista de Noite Vazia.
Ao final, entretanto, tudo é válido e conta como aquilo que Louis Marcorelles
diz ser “a feitura concomitante da história de um povo e de um cinema”. O amor
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ao cinema chega ao extremo de se realizarem filmes com o conhecimento pré-
Cândido, Antônio, “Tese vio de sua quase impossibilidade de recuperação financeira no mercado interno
e Antitese”, Cia. Editora
Nacional, 1964. do Brasil e já hoje em dia o mercado externo é visto com certa desconfiança.
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