As Irmãs Papin Ou A Loucura A Dois
As Irmãs Papin Ou A Loucura A Dois
As Irmãs Papin Ou A Loucura A Dois
Certo dia, quando as patroas estavam ausentes, houve uma pane no circuito elétrico
da casa, causado acidentalmente por uma das irmãs. Ao chegarem as patroas, cada
uma das irmãs subjuga suas adversárias, arrancando-lhes, ainda em vida, os olhos da
órbita, e as espancando. Munidas de objetos que tinham a seu redor (martelo, pichel
de estanho, faca de cozinha) amassam os rostos da vítimas, deixando o sexo à
mostra. Cortam suas nádegas e coxas profundamente, ensangüentam o corpo de uma
com o sangue da outra. Após o ritual atroz, lavam todos os instrumentos, banham-se e
deitam-se na cama nuas e abraçadas. Trocam as seguintes palavras: "Agora está tudo
limpo!"
Na prisão, cinco meses após estar separada da irmã, Christine apresenta estados de
agitação e autopunição. Em um desses episódios, tenta arrancar o próprio olho. A
tentativa deixa lesões, e é necessário o uso da camisa de força. Posteriormente,
indaga sobre suas vítimas, mostrando alteração na percepção da realidade. Diz que
suas vítimas voltaram em outros corpos; ela mesma acreditava ter sido, em outra vida,
o marido de sua irmã.
O filme Entre elas baseia-se nos fatos verídicos e se mantém fiel a estes na medida
permitida por uma obra de arte. Lacan já nos falava da verdade em estrutura de ficção.
Falemos dela, portanto.
"Durma, irmãzinha, durma / Durma através da escuridão, durma / Todo rio corre para o
mar / Durma para mim, irmãzinha / Sonhe, irmãzinha, sonhe / Sonhe seus sonhos,
estou aqui / Todas as coisas que quiser ser / Irmãzinha minha, sonhe para mim / Há
um lugar com campos / Há um lugar com montanhas / Lá os cavalos correm soltos /
Há também carneiros / Durma, irmãzinha, durma / Pegue minha mão e durma / Nunca
a deixarei sozinha / Feche seus olhos, irmãzinha."
A partir desse ponto, a história se desenvolve tal qual previamente relatada, com
poucas alterações e significantes sutilezas. Léa e Christine dormem no mesmo quarto,
na mesma cama e passam juntas seus dias na casa com suas patroas, mãe e filha. As
patroas, Senhora e Senhorita Danzard, apreciam muito a chegada da irmã mais nova
e elogiam as várias qualidades daquele par, entre elas, a confiabilidade característica
de garotas de convento.
Christine comenta sobre a patroa: "Ela vê tudo!"; "A madame verifica tudo."
As patroas, por sua vez, mantinham entre si uma relação peculiar de posse e ciúmes.
O presente de aniversário que a filha recebe é um porta-retratos com uma foto em que
está ao lado da mãe. O presente suscita nas irmãs o desejo de ter uma foto similar.
Por intermédio do cartão do fotógrafo, vão a este e pedem uma foto igual; o fotógrafo
observa que pareciam gêmeas. Os afetos circulam entre os quatro personagens e
tem-se, muitas vezes, a impressão de se estar diante de cenas duplas, como se um
espelho refletisse metaforicamente os dois pares femininos.
Christine: Madame...madame voltou...
Madame Danzard: O que é isso? Ousa esperar que eu volte a uma casa escura?
Christine: Foi o ferro, madame. Queimou os fusíveis.
Madame Danzard: Outra vez? Não pode ser, acabou de ser consertado!
Senhorita Danzard: E minha blusa de cetim? Sua irmã a queimou, não?
Madame Danzard: Na igreja todo domingo, achando que era uma filha de Deus...
Senhorita Danzard: Maman!
Madame Danzard: Olhe bem para sua irmã. Nunca mais trabalhará com ela. Deus me
perdoe pelo que abriguei aqui! Imundas! Ralé! (Cospe) Escória de irmãs!
Ao comentar o caso, Lacan cita traços clássicos que definem a paranóia: "um delírio
intelectual, que varia seus temas das idéias de grandeza às idéias de perseguição;
reações agressivas, com freqüência homicidas; evolução crônica." (Lacan, 1987,
p.384)
O autor aponta, como primordial nos fenômenos psicóticos, a dinâmica das tensões
sociais que definiriam a personalidade do sujeito de acordo com seu equilíbrio ou
ruptura.
Na prisão, porém, sintomas típicos de delírio puderam ser observados, assim como
sintomas melancólicos de recusa à alimentação, auto-acusação, atos expiatórios,
frases delirantes e desconhecimento da realidade.
Lacan afirma que a forma da psicose nas irmãs se assemelhava correlativamente. O
delírio a dois é comumente reconhecido entre parentes próximos: o sujeito delirante
ativo atua por sugestão no sujeito débil passivo. Lacan propõe, em seguida,
explicação mais satisfatória a esse respeito. Recorre ao estudo psicanalítico sobre a
psicose, pontuando sua estreita ligação com a homossexualidade e a perversão
sadomasoquista. A pulsão assassina estaria na base da paranóia.
A homossexualidade, por sua vez, seria uma expressão do narcisismo, pois toma o
objeto semelhante ao sujeito. Lacan usa a expressão o "mal de ser dois" como o mal
de Narciso, que culmina com a morte.
Para Lacan, as irmãs desejavam suas vítimas, assim como viam nessas a imagem de
seu mal. A metáfora "arrancar-lhe os olhos" ganha literalidade no ato criminoso. Os
olhos são o primeiro foco do ataque, tal qual ocorria na castração das bacantes.
Sugerimos, a partir desse ponto, confrontar essa passagem da obra de Lacan com o
momento posterior em que ele centra a questão das psicoses no conceito de
foraclusão do nome-do-pai. Os comentários de Lacan sobre o crime das irmãs Papin,
ainda influenciados por sua formação em psiquiatria, já revelam aspectos
fundamentais que estarão presentes em sua formulação futura a respeito da psicose.
Tentaremos ainda apontar hipóteses relativas ao desencadeamento.
Podemos ter como hipótese, a partir da teoria, que alguma coisa pode ter sido
experimentada como ameaça à relação entre as irmãs. O filme confirma essa visão
dos fatos. Na versão cinematográfica, a Senhora Danzard ameaça separar as irmãs
como punição ao incidente da pane elétrica. Essa versão parece consoante à hipótese
teórica apresentada. Frente ao chamado à simbolização, que pede uma situação de
separação, o psicótico não consegue simbolizar. Rompe-se a relação imaginária.
Podemos então fazer uma relação com as faces esmagadas das vítimas. O
rompimento se dá ainda na relação "entre elas", entre as duplas irmãs/patroas. O
espelho não mais reflete a imagem do eu e este se desfaz. O que surge frente a tal
chamado é o real em forma de delírio.
Por fim, podemos perceber, pelos dados da história das duas irmãs, a relação com um
pai real ausente, que abandona a função paterna na relação com suas filhas. A
ausência do pai real estende-se, nesse caso, à ausência do pai simbólico, capaz de
implementar a função de metáfora paterna, instituindo o nome-do-pai. É por causa da
ausência desse significante que a situação de injunção simbólica teve como resposta
o delírio que culmina no ato criminoso. Lacan se refere às irmãs como verdadeiras
"almas siamesas": aquelas que, todavia, sofrem o imenso dano da separação.
Temos agora elementos suficientes para retomar o filme e reunir os pontos ficcionais
da versão representada que nos permita ilustrar as hipóteses até aqui formuladas.
Uma canção de ninar que não mais embala sono nem sonho tranqüilos. O encontro do
rio e do mar (retorno a um estado primitivo de indiferenciação com o Outro no ventre
materno), as montanhas (representante do seio materno), os cavalos soltos (que
remetem à falta de rédeas e de limites), o pegar a mão e ser protegida da solidão não
mais resguardam os sujeitos adultos que não puderam se inserir na lógica fálica da
falta.
O desencadeamento