O Homem Transicional-Para Além Do Neurótico e Borderline

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O homem transicional: para além do neurótico & borderline

O homem transicional: para além


do neurótico & borderline
Armony, Nahman. Rio de Janeiro: Zagodoni Editora, 2013. 239 p..

Ana Lila Lejarraga*

No mundo contemporâneo, assistimos a inegáveis mudanças nos costu-


mes, nos comportamentos e na moral sexuais, nos valores e ideais, nas formas
de parentalidade, nas certezas de outrora, etc. Sociólogos e antropólogos refle-
tem sobre esse fenômeno, enfatizando as profundas transformações que ocor-
rem na subjetividade, principalmente a partir da década de 1960 do século
passado. Nahman Armony, em seu novo livro, intitulado O homem transicio-
nal: para além do neurótico & borderline, a partir de uma perspectiva psicana-
lítica, dirige seu olhar clínico, atento e sensível, para pensar essas transformações
subjetivas.
Armony estabelece, neste livro, uma linha de continuidade com o ante-
rior, Borderline, uma outra normalidade, mas desta vez configurado como uma
coletânea de artigos que teorizam sobre as características da subjetividade pós-
-moderna, contraposta à subjetividade moderna própria da sociedade patriar-
cal da época freudiana. O autor, referindo-se a variados campos do saber,
como psicanálise, filosofia, cinema, arte, e lançando mão de inúmeras referên-
cias teóricas, como Freud, Winnicott, Foucault, Niesztche, Bauman, Lipo-
vetsky, entre outros, passeia por múltiplas questões que dizem respeito à
emergência de uma nova subjetividade. Assim, Armony reflete sobre questões
teóricas da psicanálise em sua íntima articulação com a sociedade atual, sobre
desafios clínicos, sobre problemas éticos, propondo uma nova concepção da
saúde psíquica e da clínica. O autor vai tecendo e entrelaçando ideias que já se
insinuavam no seu livro anterior, desdobrando e avançando nas hipóteses,
para propor, sutilmente e sem anúncios bombásticos, a aposta na emergência

* Psicanalista, membro efetivo/CPRJ, profa. associada/Instituto de Psicologia-UFRJ.

Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 35, n. 28, p. 205-209, jan./jun. 2013 205
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de uma subjetividade mais saudável e ética, que está além do neurótico e do


borderline: a utopia do homem transicional.
Com estilo instigante e claro, enriquecido por valiosas referências a casos
clínicos, filmes e outras produções culturais, Armony desenvolve suas refle-
xões sobre o homem pós-moderno – o borderline – em contraposição ao ho-
mem moderno – o neurótico de Freud. Cabe esclarecer que, se em alguns de
seus textos encontramos o termo “pós-moderno” – já que foram escritos em
diferentes épocas – Armony prefere, acompanhando Lipovetsky, utilizar o ter-
mo “hipermoderno”, por entender que, mais do que uma superação da moder-
nidade, a hipermodernidade consiste numa exacerbação da mesma. A palavra
“pós-modernidade”, objeto de muita controvérsia, foi praticamente aposenta-
da, diz o autor, sendo substituída pelo termo “hipermoderno”, que reflete me-
lhor a ideia de que a modernidade foi levada a seus extremos, produzindo
radicais transformações na subjetividade.
Quando Freud teoriza sobre o homem moderno, como não podia deixar
de ser, aborda a visão de mundo da época, testemunhando a violência da famí-
lia patriarcal da sociedade vitoriana, cuja marca era a repressão. No contexto
do paradigma repressivo, o sujeito reprime seus aspectos femininos – sensibi-
lidade, empatia, compaixão –, seus múltiplos desejos e seus pequenos “eus”,
sua espontaneidade e criatividade, produzindo-se uma dicotomia entre a men-
te – o intelecto – e o psique-corpo. Para atingir o modelo ideal do homem
moderno – disciplinado, cumpridor de obrigações, retilíneo em sua trajetória
de vida, etc. – o menino deve aceitar a castração e abandonar os modos e valo-
res femininos, prejudicando a espontaneidade e a criatividade. Freud explica
essa constituição subjetiva – neurótica – com a teoria edípica, em que a repres-
são externa, dura, exercida pela figura paterna, torna-se recalque do desejo
edípico e da matriz materno-infantil, tendo como herdeiro um superego cruel
e implacável. O superego é garantia da segregação da matriz materno-infantil
e do feminino. Assim, no neurótico normal – modelo do homem moderno –
as características femininas são vistas como fraquezas, valorizando-se a objeti-
vidade e o intelecto. A subjetividade neurótica se caracteriza por obediência,
disciplina, ordem, rigidez e pelo pensamento dicotômico, que separa razão e
emoção, sujeito e objeto, etc. O mal-estar do homem neurótico reside na im-
possibilidade da plena satisfação pulsional e na inevitável renúncia aos desejos,
já que sua subjetividade funda-se na repressão/recalque e na obediência a um
superego cruel e desapiedado.
A partir da segunda metade do século passado, a família patriarcal entra
em declínio e a figura paterna perde parcialmente seu poder, produzindo-se

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“um vácuo (que) ainda está em processo de elaboração” (p. 93). A autoridade
do pai perde sua força, diluindo-se as identificações com a figura paterna e a
severidade do superego. O capitalismo de acumulação cede lugar ao capitalis-
mo de consumo, de forma concomitante a um colossal desenvolvimento tec-
nológico que possibilita, entre outros efeitos, novas formas de comunicação e
sociabilidade. Ao mesmo tempo, ocorre a revolução feminista e sexual, provo-
cando profunda mudança nos comportamentos e na moral sexuais, entrando
em decadência valores e ideais do mundo moderno. Desse modo, transforma-
-se radicalmente a subjetividade neurótica teorizada por Freud.
Segundo Armony, encontramos, no mundo hipermoderno, em contrapo-
sição à excessiva repressão da modernidade, uma permissividade excessiva,
que dificulta as identificações com as figuras parentais e a internalização de um
superego forte, ficando o homem atual sem referências sólidas, à deriva, com
suas “valências identificatórias” em aberto.
Armony lança mão das teorias de Winnicott e da categoria de borderline
para pensar a subjetividade contemporânea. O autor afirma que, da mesma
forma que o neurótico é paradigma do homem moderno, podemos considerar
o borderline como paradigma do homem hipermoderno. E assim como Freud
entendia que havia neuróticos patológicos e neuróticos “normais”, também é
possível considerar que há borderline patológicos e “normais”. Vejamos.
O processo básico constitutivo do borderline não é a repressão e o recal-
que, como era no neurótico, mas a cisão. Como esclarece o autor, não se trata
de processos excludentes, já que os dois processos são constitutivos e univer-
sais, mas enquanto no neurótico predomina o recalque, nos borderline predo-
mina a clivagem. Devido à clivagem, convivem aí, lado a lado e mantendo-se
acessíveis à consciência, variados aspectos da personalidade: razão e emoção,
modos de ser masculinos e femininos, múltiplos “eus” e desejos, onipotência e
limites, etc.
O contato com outras subjetividades é, nos borderline, empático e poroso,
já que não predomina o recalque nem se formam fronteiras rígidas. O border-
line, com facilidade, estabelece contato afetivo com o outro, permitindo entra-
da e saída de afetos e fantasias. Essa porosidade, que Armony denomina
“identificação dual-porosa”, funciona não só em relação a outras subjetivida-
des, como também em relação com o próprio mundo interno. Assim, os bor-
derline mantêm contato fluído e permeável com o próprio inconsciente,
podendo ser espontaneamente criativos.
Como carece de firmes identificações, mantendo abertas suas “valências
identificatórias”, o borderline, de forma substancial, necessita e depende da

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aprovação do ambiente. Quando essa aprovação não acontece, o sentimento é


de vergonha, pela insuficiência. Desse modo, a cultura da culpa – marca do
mal-estar da modernidade – é substituída pela cultura da vergonha, própria do
homem hipermoderno.
No borderline, a onipotência não é reprimida como no neurótico, mas se
mantém cindida, permanecendo como uma “onipotência mitigada” (p. 86),
que pode ser fonte de grandes realizações e conquistas. Entretanto, quando
fracassam os planos onipotentes, emergem sentimentos de impotência e de-
pressão, nosso homem hipermoderno oscilando entre a exaltação e o abati-
mento. Da mesma forma, a porosidade do borderline, que provoca alegrias
pela facilidade do contato com outras subjetividades, também pode ocasionar
intensos sofrimentos, já que esse contato é fluido e com limites frouxos.
O homem hipermoderno – o borderline “normal” – pelo declínio da auto-
ridade paterna e pela fraca identificação com as figuras parentais, forma não
um superego severo, mas, ao contrário, um superego frouxo e um ideal de ego
confuso. Desse modo, a precariedade da referência parental e a excessiva per-
missividade do mundo atual provocam no sujeito hipermoderno uma nova
forma de mal-estar: ficar solto no mundo, à mercê de múltiplos desejos, con-
fuso pelo excesso de ofertas de consumo, disperso e fragmentado.
Armony retoma, neste novo livro, sua distinção entre borderline bran-
do, ou “normal”, e borderline pesado, sabendo que os traços próprios da perso-
nalidade borderline (cisão, onipotência mitigada, porosidade, atuações,
suscetibilidade, etc.) podem tanto produzir severas dificuldades e sofrimento,
quanto expressar saúde psíquica e riqueza de personalidade. Assim, a saúde e
a normalidade deixam de pertencer ao campo da neurose. No mundo contem-
porâneo, afirma o autor, a normalidade neurótica está sendo substituída pela
normalidade borderline. Essa constatação, que já era parcialmente teorizada no
seu livro anterior, Borderline, uma outra normalidade, vai ter novo desdobra-
mento ou, como Armony diz, um “ponto de virada”. A normalidade contem-
porânea não se encontra nem na neurose nem na psicose, consistindo “num
misto” de processos neuróticos e borderline, nos quais coexistem cisões, recal-
ques benignos, porosidade, onipotência mitigada.
Desse modo, as reflexões sobre a subjetividade hipermoderna conduzem
o autor a propor a utopia do Homem Transicional, que habitaria de forma
predominante o espaço potencial, afirmando sua criatividade e singularidade.
Essa aposta numa subjetividade mais saudável e ética, diz respeito tanto à clí-
nica quanto ao social. Nas palavras do autor: “Uma utopia que privilegia o
acolhimento, a colocação delicada e sensível de limites, a compreensão da sub-

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jetividade alheia e da própria, o comprometimento com uma ecologia humana


ética” (p. 114). Sempre de mãos dadas com Winnicott, Armony reflete sobre
uma ética do holding e do cuidado e, acompanhando os teóricos da intersubje-
tividade, propõe uma “ética da igualdade hierárquica no campo intersubjetivo”
na clínica psicanalítica (p. 149). O autor nos acena, assim, com a perspectiva
de uma nova clínica e com renovadas possibilidades éticas e criativas que co-
meçam a se vislumbrar nas subjetividades hipermodernas.
Sem deixar de apontar o sofrimento e o mal-estar atuais, mas contrapon-
do-se às visões nostálgicas e catastróficas do homem contemporâneo, Armony
enfatiza seus aspectos positivos, apostando na emergência de uma subjetivida-
de mais livre, que não abre mão de sua singularidade e criatividade, mais ética
e saudável.
Escrito em linguagem simples e acessível, o livro O homem transicional se
dirige não só a psicanalistas ou profissionais das ciências humanas, mas tam-
bém a todos aqueles que se interrogam sobre as transformações do mundo
atual. A riqueza e originalidade das análises de Armony trazem frescor e reno-
vação ao pensamento psicanalítico tradicional, tornando imperdível a leitura
deste livro para refletir sobre a subjetividade contemporânea e sobre a psicaná-
lise no século XXI.

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