Cavalcanti (Bandeira)
Cavalcanti (Bandeira)
Cavalcanti (Bandeira)
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Como ressalta Davi Arrigucci: “Embora o tratamento em que cada um dá a essa matéria seja, no mais fundo, muito diferente, em ambos, a
redescoberta entusiástica permite o reconhecimento de uma poesia nos fatos, como se estes estivessem imantados, em si mesmos, por sua
novidade, de um potencial de surpresa estética. Isso fica patente, por exemplo, desde a abertura do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” que
Oswald lançou em março de 1924, valendo perfeitamente também para o achado de Bandeira: ‘A poesia existe nos fatos. Os casebres de
açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos’”. (grifos nossos) (ARRIGUCCI, 1990: 103/4).
É neste Recife que se forma a mitologia bandeiriana, Uma literatura maior ou estabelecida segue um vetor
constituída de elementos verdadeiramente populares, por- que vai do conteúdo à expressão: dado um conteúdo,
tanto, opondo-se à mitologia clássica2. em uma determinada forma, encontrar, descobrir ou
ver a forma de expressão que lhe convém. O que con-
Além da valorização do povo humilde brasileiro, atra- cebe bem se enuncia... Mas uma literatura menor ou
vés de cenas do cotidiano, Manuel Bandeira também valo- revolucionária começa por anunciar e só vê e só con-
riza a manifestação lingüística popular. cebe depois (“A palavra, eu não vejo, eu a invento”).
A expressão deve despedaçar as formas, marcar as
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros rupturas e as ramificações novas. Estando
Vinha da boca do povo na língua errada do povo despedaçada uma forma, reconstruir o conteúdo que
estará necessariamente em ruptura com a ordem das
Língua certa do povo
coisas. Antecipar, adiantar a matéria. (DELEUZE-
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
GUATTARI, 1977: 43/4).
Ao passo que nós
O que fazemos Por outro lado, os novos tempos exigiam uma atuali-
É macaquear zação dessa linguagem, que se conformava com as situa-
A sintaxe lusíada ções prosaicas do cotidiano das cidades, com suas feiras e
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem seu ritmo próprio. Nas práticas rotineiras ou fora delas ha-
Terras que não sabia onde ficavam veria o espírito popular a ser captado, com suas formas “bai-
xas”, remetendo-nos também, esta incorporação do popular
Esta valorização do coloquial, além de significar uma pela estética modernista, à idéia de humildade.
ruptura com a velha estética literária, também consistia em Um novo recurso poético, para muitos críticos uti-
traduzir para o idioma brasileiro sua expressão poética, re- lizado pela primeira vez no Brasil por Manuel Bandeira,
presentando a vida real do povo brasileiro de origem humil- o verso livre, ajudou enormemente a romper com a dic-
de. Manuel Bandeira nos explica o motivo pelo qual utiliza ção elevada do parnasianismo, possibilitando ainda mais
o linguajar coloquial do brasileiro, em sua poética, através a aproximação da linguagem simples e popular da lin-
de um fato curioso ocorrido quando criança: guagem poética.
T.S. Eliot partilha da mesma preocupação de Ban-
Quando eu tinha os meus treze anos e andava no
deira ao dizer que “as emoções e os pensamentos expres-
Pedro II, vi uma vez Carlos de Laet aproximar-se do
guichê do Jardim Botânico e pedir com toda calma: sam-se melhor na língua comum ao povo – ou seja, a lín-
“Me dá uma ida-e-volta”. Foi uma revelação para gua comum a todas as classes, a estrutura, o ritmo, o som,
mim. Laet era um escritor de sabor clássico. Se di- o idioma de uma língua expressam a personalidade do povo
zia tão naturalmente “Me dá uma ida-e-volta,” isto que a fala” (ELIOT, 1972: 34). O poeta brasileiro assim,
não poderia ser erro no Brasil. Podemos dizer isso nunca poderia expressar-se no linguajar lusitano, pois es-
escrevendo. O que não podemos são construções taria tentando exprimir o sentimento de um povo pratica-
como esta de Herculano: “se dizeis isto pela que me
mente utilizando a língua de outra nação, a portuguesa.
destes, tirai-ma que não vo-lo pedi eu”. Porque no
Brasil não há pessoa alguma, seja o mais primoroso Para Eliot, “um pensamento expresso numa língua dife-
escritor, que construa de semelhante modo essa fra- rente pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um
se. (Apud DANTAS, 1987: 52). sentimento ou emoção expresso num língua diferente não
são o mesmo sentimento e a mesma emoção” (ELIOT,
Manuel Bandeira ao optar pela língua coloquial bra- 1972: 33/4). É por isso que, para Eliot, nenhuma arte é
sileira ao invés da linguagem culta do português falado em mais nacional que a poesia.
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Bandeira nos fala a respeito da formação de sua mitologia: “... construiu-se minha mitologia, e digo mitologia porque os seus tipos, um Totônho
Rodrigues, uma D. Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avo Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência
heróica das personagens dos poemas homéricos. A Rua da União, com os quatro quarteirões adjacentes limitados pelas ruas da Aurora, da
Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Troada; a casa de meu avo, a capital desse país fabuloso.”. (BANDEIRA, 1984: 21).
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Norma Goldstein, ao falar do penumbrismo, em que inclui Bandeira, diz o seguinte: “Dos temas “nobres”, a poesia crepuscular passa para os
“banais”: o quarto do poeta; a vista encaixilhada pela janela, a praça, a árvore desfolhada, os interiores penumbrosos, a lâmpada velada (Hermes
Fontes), o jardim dissolvido pela chuva, a névoa, a cena quotidiana. A recordação ocupa lugar importante. Não a lembrança de grandes aconte-
cimentos, mas de um momento ou de um pequeno fato que um dado inexpressivo do presente evoca.” (GOLDSTEIN, 1983: 11).