Cavalcanti (Bandeira)

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MANUEL BANDEIRA, POETA MENOR?

Luciano Marcos Dias Cavalcanti*

Resumo com a tradição. No entanto, uma das características básicas


Este trabalho tem como objetivo principal consta- de todo o modernismo brasileiro é a tendência a recuperar a
tar a valorização do “pequeno” (entendido como o deta- cultura popular, tradicionalmente excluída pelo conceito de
lhe, o humilde e as coisas consideradas simples e banais do cultura elitista tradicional. O que havia no país, antes do
cotidiano) e do desqualificado na obra poética de Manuel modernismo, era predominantemente a separação entre o
Bandeira. erudito e o popular, o elevado e o baixo, e assim por diante.
Representando o panorama cultural brasileiro de forma ho-
Palavras chaves: Manuel Bandeira, humildade, desqualificado. mogênea e sem originalidade, muito mais preocupado em
copiar o modelo europeu do que em criar sua própria con-
Abstract cepção artística e cultural.
This essay seeks to verify Manuel Bandeira’s poems Os modernistas, combatendo essa perspectiva sub-
emphasize “smallness”, (as a category including missa à cultura européia, passam a valorizar o popular e
humbleness, love of detail and the representation of simple também a incorporá-lo a sua proposta estética. Esta nova
and trivial everyday things), and privilege “disqualified” atitude, provinda das estéticas vanguardistas como a futu-
objects. rista, a cubista e a surrealista, etc., derruba as categorias até
então consideradas símbolos do valor artístico, como a do
Key Words: Manuel Bandeira, smallness, disqualified. “sublime” e do “vulgar”, da “alta” e da “baixa cultura”.
É, sem dúvida, a emergência do Modernismo, como
O início da produção poética de Manuel Bandeira um valor questionador de toda uma tradição que historica-
foi influenciado pela estética parnasiano-simbolista, que mente via como “arte superior” somente a arte associada à
usava da linguagem de estilo elevado e das metáforas cultura branca européia, que coloca em pauta todo um re-
penumbristas para se expressar. Logo após A cinza das ho- pertório popular anteriormente desqualificado, nesse mo-
ras, já percebemos, no poeta, um processo de libertação de mento posto como matéria artística.
sua herança parnasiano-simbolista; sua linguagem começa Uma prática corrente nos anos 20 e 30, no modernis-
a se desvincular do estilo elevado da poética tradicional in- mo brasileiro, era a da valorização da simplicidade (como a
corporando, a esta, elementos da cultura popular, mas de utilização da linguagem do dia-a-dia e a valorização da cul-
forma que o sublime se encontre no humilde. Em Manuel tura popular) para a concepção de obras artísticas. Esta sim-
Bandeira, o grande é encontrado sutilmente no pequeno. E plicidade pode ser notada nos poemas e romances de Oswald
para isto, o poeta utiliza as palavras do dia-a-dia, o verso de Andrade, em parte da obra literária de Mário de Andrade,
livre e valoriza o que é comumente considerado desqua- nos poemas de Manuel Bandeira, entre outros autores.
lificado como matéria poética. Manuel Bandeira, em seu poema “Testamento”, nos
Posteriormente ao primeiro momento modernista, em diz: “Sou poeta menor, perdoai!/Não faço versos de guer-
que seus ideólogos assumiram uma posição iconoclasta, ra”. Nestes versos, Bandeira fala de sua impossibilidade de
negando o sublime e questionando as classificações e con- fazer “versos de guerra”, ou seja, versos engajados. Quan-
cepções de arte culta, principalmente a partir de 1924, os do estes versos foram escritos, a maioria dos poetas brasi-
modernistas tendem a uma atitude mais conciliatória para leiros, como Drummond, com “Carta a Stalingrado”; Cecí-

* Doutorando em História e Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

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lia Meireles com “Jornal, Longe”; Murilo Mendes com As três características da literatura menor são de
“Aproximação do Terror”, entre outros, estavam escreven- desterritorialização do indivíduo no imediato-políti-
do poemas engajados, relacionados ao contexto histórico- co, o agenciamento coletivo de enunciação. Vale di-
zer que “menor” não qualifica mais certas literatu-
social da época, em que estava havendo mortes, massacres
ras, mas as condições revolucionárias de toda a
e destruição por causa da Segunda Guerra Mundial. literatura no seio daquela que chamamos de grande
Manuel Bandeira diz que a emoção social aparece (ou estabelecida). (DELEUZE-GUATTARI, 1977: 28).
pela primeira vez em sua poesia em “Chanson des petits
esclaves” e “Trucidaram o rio” e, posteriormente, reapare- A estética clássica que via a poesia como um produ-
cerá em “O martelo” e “Testamento” (Lira dos to nobre do espírito, de uma idéia nobre de inspiração, de
Cinquent’Anos), em “No vosso e em meu coração” (Belo um vocabulário no qual se distinguiam as palavras nobres
Belo), e na “Lira do Brigadeiro” (Mafuá do Malungo). O das baixas, sendo as últimas excluídas da linguagem poéti-
poeta também diz que por estes poucos poemas de carga ca, e que também distinguia temas apropriadamente poéti-
social não podemos considerá-lo um poeta maior, mesmo cos, aspirando à pureza da linguagem é o modelo do qual
tendo ele desejo de participação mais efetiva. Para Bandei- Manuel Bandeira vai se dissociar, incorporando à sua poe-
ra, só Carlos Drummond de Andrade era capaz de exprimir sia elementos da linguagem prosaica e conversacional utili-
com propriedade tais emoções sociais, como o fez em Sen- zadas no dia-a-dia, o verso livre, etc.
timento do Mundo e a Rosa do Povo. (Ver BANDEIRA, Esse tipo de recurso, utilizado por Bandeira,
1984: 102). descomprometido com ideais elevados é identificado por
Manuel Bandeira não é um poeta engajado, não fez Erich Auerbach a uma atitude que surge no cristianismo
poesia participante. Vejamos o que nos diz o poeta em seu medieval, a partir da qual se promoveram mudanças nas clas-
Itinerário de Pasárgada: sificações estilísticas da Antigüidade, em que os estilos ele-
vado e baixo se distinguiam de acordo com o assunto a ser
Tomei consciência de que era poeta menor; que me tratado. O estilo elevado era utilizado para tratar de atos
estaria para sempre fechado o mundo das grandes heróicos e situações extraordinárias, associados às figuras
abstrações generosas; que não havia em mim aquela
míticas e nobres, como é característico da tragédia; e utili-
espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento,
as emoções maiores se transmudam em emoções esté- zava-se do baixo para narrar os eventos banais do cotidia-
ticas: o metal precioso ou teria que sacá-lo a duras no. De acordo com Auerbach,
penas, ou melhor, a duras esperas, do pobre minério
das minhas pequenas dores e ainda menores alegri- Na antiga teoria, o estilo de linguagem elevado e su-
as. (BANDEIRA, 1984: 30). blime chamava-se “sermo gravis” ou “sublimis”; o
baixo, “sermo remissus” ou “humilis”; ambos devi-
Para Péricles da Silva Ramos, em Itinerário de am permanecer severamente separados. No cristia-
Pasárgada (1954), livro em que Bandeira historia sua vida nismo, ao contrário, as duas coisas estão fundidas
desde o princípio, especialmente na encarnação e na
literária, Bandeira comete um equívoco paixão de Cristo, nas quais são tornadas realidade e
são unidas, tanto a “sublimitas” quanto a
em sua excessiva modéstia: por exemplo, quando “humilitas”, ambas, no mais auto grau. (AUERBACH,
perfilha a arbitrária caracterização da poesia lírica 1971: 129).
e da poesia social (ou solidária) como menor e mai-
or. O critério que preside a essa distinção nada tem
Nesse sentido, promove-se então uma ruptura radi-
de comum com a História nem com a Teoria da Lite-
ratura, que não podem sequer levá-la a sério. (RA- cal com a tradição da retórica, já que, no contexto cristão,
MOS, 1980: 141). as coisas menores são tão valorizadas (ou até mesmo mais
valorizadas) quanto às elevadas. Os mistérios mais eleva-
Deleuze e Guattari vão nos dizer que uma literatura dos da fé tornam-se acessíveis a um maior número de pes-
menor “não é a de uma língua menor, mas antes a que uma soas, já que as escrituras passam a ser feitas com palavras
minoria faz em uma língua maior.” (1977: 25). Este tipo simples, de maneira que qualquer um pode entendê-las e
de literatura vai se caracterizar de três maneiras; a primei- elevar-se do mais simples ao sublime. O termo latino humilis
ra característica é dada por um forte coeficiente de – que vem de humos, solo, e significa literalmente “baixo”
desterritorialização da língua; a segunda característica diz – perde, portanto, a conotação pejorativa que tinha na lite-
que tudo na literatura menor é político (contrariando, as- ratura não-cristã e começa a designar o estilo baixo e a ca-
sim, visivelmente a auto-caracterização dada por Bandei- racterizar a Encarnação e a Paixão de Cristo. A própria fi-
ra como poeta menor por não escrever versos políticos); a gura de Cristo, evoca tanto Deus quanto o Homem, tanto o
terceira característica diz que tudo na literatura menor ad- sublime quanto o baixo.
quire valor coletivo. Desse modo, como bem nos expli- Passa-se a procurar, então, nas Sagradas escrituras,
cam os autores: passagens que remetessem à idéia de que a Revelação era

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reservada aos pequeninos e ocultada dos sábios, como tam- Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicio-
bém “do fato de que Cristo não elegeu como seus primeiros nário o cunho vernáculo
apóstolos homens de elevada posição e cultura, mas pesca- [de um vocábulo
dores e publicanos e outros homens humildes semelhantes”. (...)
(AUERBACH, 1971: 130).
De mesmo modo, podemos dizer que existe uma Diante disso, não se pode tomar literalmente o fato de
espécie de dialética entre o simples e o complexo no univer- que Manuel Bandeira nega sua participação no movimento
so poético bandeiriano, cujo fundamento formal modernista de 1922, quando, por exemplo, nos diz que o ele-
mento do humilde cotidiano que passou a estar presente em
é o produto de um trabalho profundo sobre os meios sua poesia não resultava de nenhuma intenção modernista.
expressivos e a experiência, regida por uma deter- Mas sim, muito mais simplesmente, do ambiente do Morro
minada maneira de conceber e praticar a operação do Curvelo, atestando o que disse Ribeiro Couto, citado pelo
de dar forma à poesia, por um estilo. Por ele, o po-
próprio Manuel Bandeira em seu Itinerário de Pasárgada:
eta altera os meios expressivos dominantes em seu
tempo, a fim de exprimir uma experiência complexa,
em termos naturais e simples, num estilo humilde, Das vossas amplas janelas, tanto as do lado da rua
muito semelhante ao da tradição cristã. em que brincavam crianças, como as do lado da ri-
(ARRIGUCCI, 1990: 13). banceira, com cantigas de mulheres pobres lavando
roupas nas tinas da barrela, começastes a ver muitas
coisas. O Morro do Curvelo, no seu devido tempo,
Desta forma, Manuel Bandeira vai buscar (tanto em sua
trouxe-vos aquilo que a leitura dos grandes livros da
vida quanto em sua obra) a atitude humilde dos franciscanos humanidade não pode substituir: a rua. (Apud BAN-
que vêem “nos negócios mundanos o cenário propriamente dito DEIRA, 1984: 65).
para a imitação...”(AUERBACH, 1971: 142) onde não há
motivo para a separação do “baixo” e do “elevado”. É possível notar em “Poética”, como em vários outros
poemas de sua obra, por exemplo em “Os sapos”, o rompi-
Todos os acontecimentos da história universal estão mento com a estética parnasiana (sendo, assim, visível sua
fundamentalmente contidos nesse grande drama, e proximidade com a estética modernista) que se valia da nor-
todas as posições de altura ou baixeza do comporta-
mento humano, assim como todos os níveis da sua
ma, da métrica, dos temas elevados, todos utilizados como
manifestação estilística, têm no seu seio a sua justifi- pressupostos para a construção de poemas “perfeitos”.
cativa moral e estética de existência, justificativa bem Este estilo humilde que aproxima-se à maneira
fundamentada. De tal forma, não há motivo para uma franciscana, pode ser notado tanto em Manuel Bandeira
separação entre o sublime e o baixo cotidiano, os quais como também em alguns escritores modernistas brasileiros
já aparecem na vida de Cristo, unidos de maneira que rejeitavam a tradição bacharelesca. Como é caracterís-
indissolúvel. (AUERBACH, 1971: 134).
tico nos princípios irreverentes do Manifesto da poesia pau-
brasil, publicado por Oswald de Andrade em 1924. Mesmo
Mas é preciso notar que esta pobreza franciscana é
quando Bandeira diz que a poesia Pau-Brasil deveria se cha-
uma pobreza “do supérfluo e do inútil, que se compensa
mar Poesia Pau,
pela riqueza interior, pela profundidade, pelo anseio de pu-
reza e perfeição” (LINS, 1987: 120). Manuel Bandeira ex- porque a poesia de programa é pau. O programa de
prime num mínimo de palavras um máximo de poesia. Oswald de Andrade é ser brasileiro. Aborreço os po-
O poeta rebela-se contra o gosto ortodoxo em poesia. etas que se lembram da nacionalidade quando fazem
Os padrões poéticos configurados pelo parnasianismo são versos. Eu quero falar do que me der na cabeça. Que-
enfaticamente atacados em seu poema intitulado “Poética”: ro ser eventualmente mistura de turco com sírio-liba-
nês. Quero ter o direito de falar ainda da Grécia.
(BANDEIRA,1966: 247).
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Nesse momento, Bandeira se aproxima de Oswald
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expe-
de Andrade e de sua concepção de poema “pau-brasil”, que
diente protocolo e
fazia um retrato da contraditória realidade brasileira, unin-
[ manifestação de apreço ao Sr. diretor
do o primitivismo e modernismo1.

1
Como ressalta Davi Arrigucci: “Embora o tratamento em que cada um dá a essa matéria seja, no mais fundo, muito diferente, em ambos, a
redescoberta entusiástica permite o reconhecimento de uma poesia nos fatos, como se estes estivessem imantados, em si mesmos, por sua
novidade, de um potencial de surpresa estética. Isso fica patente, por exemplo, desde a abertura do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” que
Oswald lançou em março de 1924, valendo perfeitamente também para o achado de Bandeira: ‘A poesia existe nos fatos. Os casebres de
açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos’”. (grifos nossos) (ARRIGUCCI, 1990: 103/4).

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A matéria que ambos os poetas vão tomar será retira- são autores de obras revolucionárias em relação à literatura
da da realidade brasileira e de seu dia-a-dia, uma ampliação dita maior, à literatura estabelecida. Assim, a grandeza des-
do campo estético da literatura conseguida pelo avanço do ses autores está justamente no fato de terem criado uma lite-
modernismo brasileiro que fez uma redescoberta do país – o ratura menor, de não terem descansado dentro da lingua-
Brasil, caracterizado comumente por suas contradições entre gem imposta pelos sistemas dominantes. Poderíamos
o desenvolvimento econômico-social e o atraso, onde o pri- também acrescentar a esta “lista” de escritores o nome de
mitivo e o tradicional se misturam com o mais moderno. Manuel Bandeira, poeta que se dissociou da literatura vi-
O ideal de despojamento do Modernismo, caracteri- gente revolucionando-a seja com o emprego da linguagem
zado pelo uso de elementos prosaicos da linguagem cotidi- popular, do verso livre, etc.
ana, incompatíveis, em momentos anteriores, com as for- Apesar de Manuel Bandeira não ser um poeta
mas elevadas que se exigiam no trabalho artístico, se torna engajado, não quer dizer que ele viveu em uma “torre de
matéria literária. Essa nova perspectiva que se abre então marfim”, isolado do mundo e de tudo, contemplando a si
para a arte recebe a adesão de Manuel Bandeira, que tematiza mesmo. Muito pelo contrário. Manuel Bandeira tem os pés
o “mais humilde cotidiano”, como também de Mário de no chão. É solidário com as pequenas coisas e com a misé-
Andrade, alargando o conceito de literatura. Isso significa- ria social em que as pessoas humildes vivem, como pode-
va uma ruptura com as convenções anteriores, responsáveis mos ver no fato do poeta se utilizar do popular como ma-
por classificações rígidas relativas a temas considerados téria de sua poesia, assim transparecendo uma
poéticos e não-poéticos. potencialidade política visível em seus poemas. Mas não
O que ocorre no cenário modernista brasileiro é uma com a intenção revolucionária de mobilização das massas
união do primitivo com o moderno, provinda da influência para a revolução como faria um poeta engajado. Em An-
da arte de vanguarda européia que, nesse momento, se utili- dorinha, Andorinha, Bandeira nos diz: “... o poeta não é
zava, para configuração da arte, de elementos populares e um sujeito que vive no mundo da lua, perpetuamente en-
primitivos, representando uma ruptura com o modelo aca- tretido em coisas sublimes. É, ao contrário, um homem
dêmico de arte. A respeito disso Antonio Candido observa profundamente misturado à vida, no seu mais limpo ou mais
que: “... no Brasil as culturas primitivas se misturam à vida sujo cotidiano” (BANDEIRA, 1966: 18). Com isso, pode-
cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado mos notar a inserção do poeta na existência real, no mun-
recente. As terríveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, do misturado do cotidiano. Bandeira retira no dia-a-dia de
um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram no fundo, mais coe- seu povo a matéria de sua poesia na qual o “eu” se acha
rentes com nossa herança cultural do que com a deles”. situado, portanto “a pobreza se revela como condição real
(CANDIDO, 1985: 121). de dar forma ao poema (...). Para nosso poeta, a poesia
Como vimos, Manuel Bandeira diz estar farto do li- não está no mundo da lua, mas na terra dos homens, no
rismo “Político/Raquítico/ Sifilítico/De todo o lirismo que chão do cotidiano” (ARRIGUCCI, 1987: 11).
capitula ao que quer que seja fora de si mesmo”. E reitera No parecer de T.S Eliot, em seu ensaio denomina-
sua posição em seu Itinerário de Pasárgada, nos dizendo do O que é poesia menor?, não deveríamos nos preocu-
que compreendeu “antes de conhecer a lição de Mallarmé, par em perguntar se o poeta é maior ou menor, pois esta
que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com pa- pergunta será respondida apenas com o tempo. Mas, o
lavras e não com idéias e sentimentos ...” (BANDEIRA, que deveríamos questionar é se o poeta é genuíno ou não.
1984: 30-1). A ruptura feita por Manuel Bandeira com as normas do
Esta é uma questão preponderantemente moderna, “bom poetar”, com o convencionalismo e com os temas
na qual o assunto tratado no poema: o “baixo” ou o “ele- considerados poéticos por natureza, em relação ao uso
vado” e a forma de tratamento adequada a sua temática de elementos ligados diretamente com sua realidade, com
eram anteriormente construídos pelo modelo da estética o cotidiano, com o verso-livre, além de significar uma
clássica que separava os temas e a linguagem adequada a conquista de liberdade de criação, não “representava ape-
estes ou até mesmo a impossibilidade do uso de certos nas um deslocamento da convenção, no plano literário,
temas. A arte moderna, que abole esta separação dos ní- mas implicava muito mais e dele resultava praticamente
veis de estilo, mescla os níveis da matéria e da lingua- uma ampliação real do espaço da literatura, que ganhava
gem. Mistura, de forma libertária, o sublime com o gro- um terreno até então indevassado ou pouco palmilhado.”
tesco, o elevado com o baixo, explorando liricamente o (ARRIGUCCI, 1990: 53). Percebemos aqui, a
mundo cotidiano. genuinidade da poesia de Manuel Bandeira.
De acordo com o emprego do termo “menor” feito Em “Evocação do Recife”, podemos notar a estreita
por Deleuze e Guattari, em que é retirada conotação relação do poeta com o cotidiano, que é elevado à mais alta
valorativa que comumente lhe é atribuída, os autores irma- emoção poética. O que importa, para o poeta, não é o Reci-
nam escritores como Kafka, Joyce, Beckett e Céline dentro fe glorificado, mas sim o Recife de sua infância, sem histó-
da mesma família, como autores de literatura menor, já que ria, sem importância para outras pessoas, senão para ele.

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Recife Portugal está “desterritorializando” (de acordo com a deno-
Não a Veneza americana minação dada por Deleuze e Guattari) sua literatura, já que
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais o vocabulário utilizado pelo poeta é o português do Brasil e
Não o Recife dos Mascates não o português lusitano, imposto pela estética tradicio-
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois – nal parnasiana passadista. Este uso da linguagem colo-
Recife das revoluções libertárias quial feito por Bandeira é utilizado como elemento de
Mas o Recife sem história nem literatura criação literária, como dizem Deleuze e Guattari (1977:
Recife sem mais nada 36), “a serviço de uma nova flexibilidade, de uma nova
Recife da minha infância intensidade.”

É neste Recife que se forma a mitologia bandeiriana, Uma literatura maior ou estabelecida segue um vetor
constituída de elementos verdadeiramente populares, por- que vai do conteúdo à expressão: dado um conteúdo,
tanto, opondo-se à mitologia clássica2. em uma determinada forma, encontrar, descobrir ou
ver a forma de expressão que lhe convém. O que con-
Além da valorização do povo humilde brasileiro, atra- cebe bem se enuncia... Mas uma literatura menor ou
vés de cenas do cotidiano, Manuel Bandeira também valo- revolucionária começa por anunciar e só vê e só con-
riza a manifestação lingüística popular. cebe depois (“A palavra, eu não vejo, eu a invento”).
A expressão deve despedaçar as formas, marcar as
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros rupturas e as ramificações novas. Estando
Vinha da boca do povo na língua errada do povo despedaçada uma forma, reconstruir o conteúdo que
estará necessariamente em ruptura com a ordem das
Língua certa do povo
coisas. Antecipar, adiantar a matéria. (DELEUZE-
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
GUATTARI, 1977: 43/4).
Ao passo que nós
O que fazemos Por outro lado, os novos tempos exigiam uma atuali-
É macaquear zação dessa linguagem, que se conformava com as situa-
A sintaxe lusíada ções prosaicas do cotidiano das cidades, com suas feiras e
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem seu ritmo próprio. Nas práticas rotineiras ou fora delas ha-
Terras que não sabia onde ficavam veria o espírito popular a ser captado, com suas formas “bai-
xas”, remetendo-nos também, esta incorporação do popular
Esta valorização do coloquial, além de significar uma pela estética modernista, à idéia de humildade.
ruptura com a velha estética literária, também consistia em Um novo recurso poético, para muitos críticos uti-
traduzir para o idioma brasileiro sua expressão poética, re- lizado pela primeira vez no Brasil por Manuel Bandeira,
presentando a vida real do povo brasileiro de origem humil- o verso livre, ajudou enormemente a romper com a dic-
de. Manuel Bandeira nos explica o motivo pelo qual utiliza ção elevada do parnasianismo, possibilitando ainda mais
o linguajar coloquial do brasileiro, em sua poética, através a aproximação da linguagem simples e popular da lin-
de um fato curioso ocorrido quando criança: guagem poética.
T.S. Eliot partilha da mesma preocupação de Ban-
Quando eu tinha os meus treze anos e andava no
deira ao dizer que “as emoções e os pensamentos expres-
Pedro II, vi uma vez Carlos de Laet aproximar-se do
guichê do Jardim Botânico e pedir com toda calma: sam-se melhor na língua comum ao povo – ou seja, a lín-
“Me dá uma ida-e-volta”. Foi uma revelação para gua comum a todas as classes, a estrutura, o ritmo, o som,
mim. Laet era um escritor de sabor clássico. Se di- o idioma de uma língua expressam a personalidade do povo
zia tão naturalmente “Me dá uma ida-e-volta,” isto que a fala” (ELIOT, 1972: 34). O poeta brasileiro assim,
não poderia ser erro no Brasil. Podemos dizer isso nunca poderia expressar-se no linguajar lusitano, pois es-
escrevendo. O que não podemos são construções taria tentando exprimir o sentimento de um povo pratica-
como esta de Herculano: “se dizeis isto pela que me
mente utilizando a língua de outra nação, a portuguesa.
destes, tirai-ma que não vo-lo pedi eu”. Porque no
Brasil não há pessoa alguma, seja o mais primoroso Para Eliot, “um pensamento expresso numa língua dife-
escritor, que construa de semelhante modo essa fra- rente pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um
se. (Apud DANTAS, 1987: 52). sentimento ou emoção expresso num língua diferente não
são o mesmo sentimento e a mesma emoção” (ELIOT,
Manuel Bandeira ao optar pela língua coloquial bra- 1972: 33/4). É por isso que, para Eliot, nenhuma arte é
sileira ao invés da linguagem culta do português falado em mais nacional que a poesia.

2
Bandeira nos fala a respeito da formação de sua mitologia: “... construiu-se minha mitologia, e digo mitologia porque os seus tipos, um Totônho
Rodrigues, uma D. Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avo Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência
heróica das personagens dos poemas homéricos. A Rua da União, com os quatro quarteirões adjacentes limitados pelas ruas da Aurora, da
Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Troada; a casa de meu avo, a capital desse país fabuloso.”. (BANDEIRA, 1984: 21).

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O fato de Manuel Bandeira utilizar, em suas constru- Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
ções poéticas, o linguajar coloquial e popular, não quer di- (Embora a manhã já estivesse avançada)
zer que a feitura de seus poemas não busque se realizar atra- Chovia
vés de um trabalho minucioso e formal. O poeta, além de Chovia uma triste chuva de resignação
construir poemas utilizando o verso-livre, o que lhe propor- Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
cionava uma grande liberdade de criação, construiu tam- Então me levantei,
bém vários poemas com métricas rígidas como o soneto, Bebi o café que eu mesmo preparei,
rondó, os versos alexandrinos, a forma musical Lied, entre Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei
várias outras. No entanto, foi na utilização do verso-livre [pensando ...
que se revelou um mestre. Esta nova forma de expressão Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
poética exigia do poeta um domínio excepcional na cons-
trução do poema para que ele não se tornasse prosaico (sem Neste poema, podemos perceber que Manuel Ban-
poesia) e exigia também um enorme esforço na busca de um deira extrai sua poesia de onde menos se espera. O poema
ritmo próprio. Se antes a construção fixa do poema através trata do momento em que um sujeito se levanta numa ma-
de sua métrica já revelava um ritmo normatizado, agora, nhã escura e chuvosa posterior a uma noite quente e tem-
com a utilização do verso-livre, o poeta encontrava maior pestuosa, faz seu café e o bebe, volta para cama, acende um
dificuldade para suas construções poéticas. O que parecia, cigarro e fica pensando na vida e nas mulheres que amou. O
para muitos, facilitar a feitura do poema, na realidade difi- poema trata de forma mimética de um ato rotineiro que em
cultava, pois exigia uma capacidade a mais do poeta para se princípio não há poeticidade alguma. Provavelmente seja
realizar numa forma não mais arbitrária. Em seu Itinerário por este motivo que Bandeira o deixou em “quarentena”,
de Pasárgada, Bandeira nos revela: como nos diz o poeta em seu Itinerário, por não saber ava-
liar a sua qualidade poética. No entanto, Davi Arrigucci nos
cedo compreendi que o bom fraseado não é o fraseado diz que este poema é um dos pontos mais altos da obra do
redondo, mas aquele em que cada palavra está no poeta; um poema que valoriza o cotidiano e que tem no títu-
seu lugar exato e cada palavra tem uma função preci- lo, o nome de um compositor de Música Popular.
sa, de caráter intelectivo ou puramente musical, e não
serve senão à palavra cujos fonemas fazem vibrar
Jaime Ovalle tinha em seu círculo de amizades sam-
cada parcela da frase por suas ressonâncias anterio- bistas consagrados, hoje mitológicos, como Sinhô, Donga,
res e posteriores. (BANDEIRA, 1984: 49). João da Bahiana, Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Catulo
da Paixão Cearense, entre outros. Além de músicos, a Lapa
Para Manuel Bandeira, a poesia é feita de concentrava outras personalidades que fizeram desta não
“pequeninos nadas”. Isso quer dizer que a poesia é construída somente uma zona de boêmia e de música, mas também um
através do detalhe, das palavras corretas nos lugares corre- espaço literário. Eram poetas, artistas e intelectuais, como
tos. A construção formal e sonora do poema deve ser preci- Raul de Leoni, Ribeiro Couto, Dante Milano, o próprio
sa; do contrário, todo o poema pode ser comprometido. Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio de
Um personagem freqüente na poesia de Manuel Ban- Mello Franco, Oswaldo Costa, Di Cavalcanti, Cícero Dias,
deira é a do sambista Jaime Ovalle. Existem várias referên- Villa-Lobos etc. A Lapa foi mitificada por todas estas pes-
cias a seu nome em diversos poemas, crônicas, cartas e no soas com suas “histórias”, suas memórias, seus desejos, suas
“Itinerário” do poeta modernista. Portanto, a freqüência deste verdades e suas paixões. A Lapa, como ressalta Arrigucci,
personagem em sua obra pode ajudar-nos a entendê-la me- lembraria Pasárgada
lhor. De acordo com Arrigucci, Ovalle tanto quanto Irene,
Rosa, Dona Aninha Viegas, Totônho Rodrigues e várias com sua consistência de desejo e sonho, feita do teci-
outras pessoas da roda familiar e do círculo de amizades do da imaginação, mas correspondendo a realidades
profundas da alma e a aspectos concretos da vida
do poeta, por ele sempre evocadas na sua poesia, têm a material. Na verdade, se percebe o quanto a própria
consistência ambígua dos seres feitos de palavras e imagi- Pasárgada bandeiriana tem a ver com a atmosfera
nação. Estes personagens pertencentes ao mundo real do da Lapa Literária e boêmia dos anos 20, de modo
poeta estão presentes em suas poesias como se fossem fic- que as aspirações singulares do poeta, barradas pela
tícios. Parecendo vindos de um mundo imaginário do poe- vida madrasta, se descobrem de repente realizáveis
no mundo próximo e libertário da vida boêmia, no
ta, cria uma força simbólica que atinge o leitor de seus
mais prosaico dia-a-dia do ambiente carioca. Como
poemas como se fossem verdadeiramente ficcionais. (Ver em Pasárgada, a Lapa tem “alcalóide à vontade e
ARRIGUCCI,1990: 50/1). prostitutas bonitas/ para a gente namorar.”
Manuel Bandeira chegou até mesmo a escrever um (ARRIGUCCI, 1990: 66).
poema em que o nome de Ovalle faz parte do título. Consi-
derado de grande importância para o entendimento de sua Sem dúvida, Manuel Bandeira sentiu a poesia neste
obra, é o “Poema só para Jaime Ovalle”: ambiente onde a paixão corporal e espiritual se confundem,

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tornando-se uma só coisa. Como o próprio poeta diz sobre este ses feitas da nossa linguagem coloquial, sobretudo em ‘Boas
ambiente boêmio e cultural da Lapa: “o ambiente, de resto, vindas’; ‘Amigo seja bem vindo! A casa é sua. Não faça
favorecia as iluminações.” (Apud ARRIGUCCI, 1990: 67). cerimônia. Vai pedindo, vai mandando.” (BANDEIRA,
Ovalle era o elemento que incorporava ou repre- 1984: 83).
sentava este ambiente da Lapa, talvez por isso a tamanha Mesmo os poemas de Bandeira tendo sido musicados
importância que este exerceu sobre Manuel Bandeira. O por músicos de formação erudita é importante ressaltar que
sambista é sempre evocado pelo poeta. Segundo Arrigucci, nesse momento histórico os temas populares eram valoriza-
ele era o catalisador do sublime que vinha do prosaico e dos por estes músicos que através da mudança da perspec-
do cotidiano. tiva puramente elitista da arte buscavam elementos popula-
Manuel Bandeira também se relaciona diretamente res e até mesmo folclóricos para associar a sua música,
com a música. Os compositores o tinham com preferência conforme bem demonstra a relação de vários desses com-
para musicar seus textos poéticos. O poeta, em seu Itine- positores com a estética modernista. Dessa forma, nota-se
rário de Pasárgada, tenta explicar o porquê dessa predi- que a sua obra é marcadamente musical, Bandeira leva sua
leção dos músicos por sua poesia. Ele nos diz que o crítico poesia ao sentido primitivo, que é o canto.
musical Aires de Andrade vê em sua poesia um sentimento A simplicidade aparente dos poemas de Manuel Ban-
e uma expressão muito ligadas aos costumes populares, e deira, nos quais não é percebido o “estranhamento poético”
cita o crítico: que geralmente é o critério utilizado para admitir a qualida-
de poética do texto literário, é paradoxalmente, o que carac-
Mesmo nos momentos em que Manuel Bandeira se teriza e dá qualidade excepcional ao poeta. Poemas como
manifesta exprimindo anseios de universalização, não “Irene no céu”, “Porquinho-da-Índia”, “Poema só para Jai-
consegue o seu pensamento se emancipar inteiramente
me Ovalle”, “Tragédia Brasileira”, entre outros, são exem-
do jugo que estabelecem em suas faculdades criado-
ras as reminiscências acumuladas no espírito do po- plos que nos mostram que Manuel Bandeira retira do coti-
eta pela ação do observador apaixonado das coisas diano mais banal o sublime que se encontrava oculto, como
do povo. Há sempre em seu estilo a intromissão, às bem observaram Gilda e Antonio Candido, em introdução a
vezes franca, às vezes sorrateira, dessas forças que Estrela da Vida Inteira, no qual podemos notar a poesia
se agitam incessantemente nas camadas subterrâne- “desentranhada” de lugares de onde menos se espera como:
as da sua emoção em atitudes expancionistas. Atri-
buo principalmente a esse aspecto da arte de Manuel
Bandeira o motivo de atração que faz convergir para O poema extraído da notícia de jornal, o homem re-
a sua poesia as preferências dos nossos composito- mexendo como animal a lata do lixo à busca de comi-
res. (Apud BANDEIRA, 1984: 81). da, o toque de silêncio no enterro do major, o beco
sobreposto à baía – são exemplos de quase puros desse
senso do momento poético, que aparece modulado na
Certamente, o crítico Aires de Andrade tinha razão, estrutura de outros poemas menos condensados.
pois o próprio Bandeira acredita nessa preferência dos mú- (CANDIDO; MELLO E SOUZA, 1986: lxiii).
sicos por seus poemas de fundo popular e cita alguns dos
mais musicados: “Berimbau” (Ovalle, Mignone), “Trem-de- Manuel Bandeira também vai valorizar a linguagem
Ferro” (musicado já umas quatro ou cinco vezes, e muito coloquial. Em seu livro de estréia A Cinza das Horas, de
bem, por Vieira Brandão), “Cantiga” (Camargo Guarnieri, 1917, já se percebe a presença do coloquial e do cotidiano
Lorenzo Fernandez), “Azulão” (Ovalle, Guarnieri, Gnattali), em sua poesia. No entanto, foi a partir do livro O Ritmo
“Dona Janaína” (Mignone), “Irene no Céu” (Guarnieri), “Na Dissoluto, publicado em 1924, que se tornou mais freqüen-
Rua do Sabão”, “Macumba de Pai Zusé” e “Boca de Forno” te a presença da linguagem coloquial e popular na sua poé-
(Siqueira), “O Menino Doente” (Mignone), “Dentro da tica – até então, ignoradas e proibidas de serem utilizadas
Noite” (Mignone, Helza Cameu), entre outros. Assim como nas obras literárias anteriores ao Modernismo3.
textos para melodias já existentes, entre elas “Azulão” e Assim Bandeira começa seu percurso poético –
“Modinha” com música de Ovalle e uma Modinha de Villa- para em suas obras posteriores aprofundar mais ainda sua
Lobos sob o pseudônimo de Manduca Piá. E além destes relação com as coisas humildes –, representando-as em
poemas, Manuel Bandeira criou letras para músicas escritas seus poemas, priorizando as expressões culturais popu-
por Villa-Lobos chamadas Canções de Cordialidade, cria- lares e seus representantes mais baixos como o mangue,
das para receber visitantes ilustres, para substituir o Happy as docas, a prostituta, o beco, a feira, a rua, a criança e
Birthday to you cantada nas festas de aniversário. Nestas até mesmo os animais.
canções, Bandeira se utilizou “tanto quanto possível das fra-

3
Norma Goldstein, ao falar do penumbrismo, em que inclui Bandeira, diz o seguinte: “Dos temas “nobres”, a poesia crepuscular passa para os
“banais”: o quarto do poeta; a vista encaixilhada pela janela, a praça, a árvore desfolhada, os interiores penumbrosos, a lâmpada velada (Hermes
Fontes), o jardim dissolvido pela chuva, a névoa, a cena quotidiana. A recordação ocupa lugar importante. Não a lembrança de grandes aconte-
cimentos, mas de um momento ou de um pequeno fato que um dado inexpressivo do presente evoca.” (GOLDSTEIN, 1983: 11).

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Além dessa representação visível do popular em sua Manuel Bandeira com toda essa tradição literária na qual a
obra, Manuel Bandeira também mistura outros tipos de temática deveria ser adequada a um estilo apropriado, so-
textos. O poeta não rejeita a tradição do sublime e, em bretudo como elemento valorativo da obra literária, mostra
alguns momentos, concilia-o com o humilde, incorporan- o quanto o poeta foi revolucionário ao fazer a mistura des-
do a seu estilo humilde e recorrendo a materiais diversos tes estilos.
como as situações cotidianas ou extracotidianas; textos A simplicidade, valorizada por Bandeira, também
eruditos ou triviais; clássicos ou modernos. Quando o tex- exige sua correspondência com a linguagem utilizada pe-
to utilizado pertence a tradição clássica ultrapassada como las pessoas simples, do contrário sua poética soaria falsa,
a parnasiana, por exemplo, ele é parodiado; se, pelo con- por isso o uso de uma linguagem coloquial. Esta simplici-
trário, o texto clássico é valorizado, ele é meramente cita- dade, aparentemente fácil, é conquistada através de uma
do. E ocorre também ao poeta utilizar-se da depuração poética que exige do poeta muito trabalho, como
intertextualidade, como em “Balada das três mulheres de uma espécie de artesão que lapida uma pedra rústica trans-
Araxá”, em que a citação de Shakespeare coexiste com a formando-a em uma pedra preciosa. Em Manuel Bandei-
do anúncio comercial. Também se utilizará da prosa, mais ra, o elevado é encontrado no baixo, logo, o baixo e o ele-
propriamente da crônica jornalística e da crítica musical. vado encontram-se juntos dependentes um do outro. A
É nesta heterogeneidade que Bandeira faz a representação ausência de um desses elementos faria com que a poesia
dos elementos da língua popular e de temas do cotidiano, se extinguisse.
transformando o que antes era desprezado pelos poetas em A propósito dessa simplicidade aparente em Bandei-
matéria poética. Estes elementos transformados em maté- ra, Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza nos dizem:
ria artística, nesse momento, adquirem um novo sentido e
uma nova função: tornam-se elementos valorizados como Como os clássicos, possui a virtude de descrever di-
literários, já que são consideradas todas as suas retamente os fatos sem os tornar prosaicos. O caráter
potencialidades expressivas como a rítmico-fonológica e acolhedor do seu verso importa em atrair o leitor para
essa despojada comunhão lírica no cotidiano e, de-
morfológica – elementos utilizados propriamente pelos pois de adquirida a sua confiança, em arrastá-lo para
textos literários. o mundo das mensagens oníricas. Poucos terão sabi-
Na poética de Bandeira, existe um duplo movimento. do, como ele, aproximar-se do leitor, fornecendo-lhe
De um lado, as falas coloquiais entram no texto literário – e um acervo tão amplo de informes pessoais
assim se transformam, sendo trabalhadas retoricamente para desataviados, que entretanto não parecem bisbilhoti-
ingressar na estrutura do texto artístico. Submetem-se às leis ce, mas fatos poeticamente expressivos. O seu feitiço
consiste, sob este ponto de vista, em legitimar a sua
do texto poético. Adotam-se ao metro, ao ritmo, à elocução
matéria –, que são as casas onde morou, o seu quar-
peculiar do poema. É a exigência do texto artístico de modo to, os seus pais, os seus avós, a sua ama, a conversa
geral. De outro, o literário “assume” um tom mais coloqui- com os amigos, o café que prepara, os namorados na
al. De acordo com Maria Helena Camargo Regis: esquina, o infeliz que passa na rua, a convivência com
a morte, o jogo ondulante do amor. (MELLO e SOU-
Na transformação da língua falada para a escrita, e ZA, 1986: lxii).
escrita literária, se dá como que uma elevação de tom,
o que significa que, ao se transferir para o texto ar- Portanto a simplicidade que notamos nos poemas
tístico, a língua, seja coloquial ou popular, participa de Manuel Bandeira é aparente e produto de sua experiên-
do status literário.
cia poética. É o resultado de um trabalho árduo e perma-
De outra parte, textos literários, trabalhados pela
intertextualidade, sobretudo quando constituem pa- nente da busca do poético nas coisas mais simples que o
ródia, dessoram, perdem um pouco aquele ar sole- cercam e de si mesmo. Manuel Bandeira busca a simplici-
ne, ainda mais quando se trata de textos românti- dade absoluta, uma simplicidade que está presente na es-
cos ou parnasianos, muito marcados pelo caráter tética do nosso Modernismo, mas que, como ele, nenhum
retórico. outro poeta de sua geração conseguiria conquistar tão ple-
É possível que este duplo movimento represente uma
namente. A poesia da simplicidade e do cotidiano realiza-
tentativa de nivelar os estilos, na medida em que ele-
va “o estilo baixo” e abaixa o “estilo elevado”. da por Bandeira contraposta à poesia do sublime e do ex-
(REGIS, 1986: 116). cepcional é uma vitória sobre a poética antiquada, que não
nos servia como expressão poética do mundo moderno.
Nesse sentido, o nivelamento entre o “estilo baixo” Como bem disse Otávio de Faria, ao lado de nossos me-
e o “estilo elevado” feito por Manuel Bandeira, com sua lhores poetas, a figura poética de Manuel Bandeira nos dá:
mistura estilística, em sua poética, pode ser considerado “qualquer que seja o ângulo de que se esteja vendo, um
como uma recusa da aceitação de uma divisão de estilos e a grande exemplo de poesia, da altura a que a sinceridade e
priorização de um estilo sobre o outro; neste caso, do “esti- a espontaneidade poéticas podem elevar um homem. (FA-
lo elevado” sobre o “estilo baixo”. O rompimento feito por RIA, 1980: 133)”.

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