Olavo Bilac - Poesias

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Ie ne fay rien

sans
Gayeté
(Montaigne, Des livres)

Ex Libris
José M i n d l i n
OLAVO BILAC

POESIAS
EDIÇÃO DEFINITIVA

PANOPLIAS, VIA LÁCTEA


SARÇAS DE FOGO
ALMA INQUIETA, AS VIAGENS
O CAÇADOR DE ESMERAL&AS

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
71, RUA DO OUVIDOR, 71 6, RUE DES S A I N T V P È R E S , G

RIO DE JANEIRO PARIS

1902
POESIAS
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A. f\.

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OLAVO BILAC

POESIAS
EDIÇÃO DEFINITIVA

PANOPLIAS, VIA LÁCTEA


SARÇAS DE FOGO
ALMA INQUIETA, AS VIAGENS
O CAÇADOR DE ESMERALDAS

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
7 1 , RUA DO OUVIDOR, 7 1 I 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6

RIO DE JANEIRO I PARIS

1902
PROFISSÃO DE FÉ

Le poete est ciseleur,


I,e ciseleur est poèti\
VICTOR HUGO.

Não quero o Zeus Capitolino


Hercúleo e bello
Talhar no mármore divino
Com o camartello.

Que outro — não eu! — a pedra corte


Para, brutal,
Erguer de Athene o altivo porte
Descommunal.

Mais que esse vulto extraordinário,


Que assombra a vista,
Sediiz-ine um leve relicario
De Jino artista.

Invejo o ourives quando escrevo :


Imito o amor
l
PROFISSÃO DE FE

Com que elle, em ouro, o alto relevo


Faz de uma flor

Imito-o. E pois, nem de Carrara


A pedra firo :
O alvo crystal, a pedra rara,
O onyx prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,


Sobre o papel
A penna, como em prata firme
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,


A idéa veste :
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.

Torce, aprimora, altcia, lima


A phrase; e, emfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.

Quero que a estrophe crystallina,


Dobrada ao geito
Do ourives, saia da officina
Sem um defeito :

E que o lavor dooerso, acaiso,


Por tão subtil,
P R O F I S S Ã O DE FE

Possa o lavor lembrar de um vaso


De Becerril.

K horas sem conto passo, mudo,


O olhar aitento,
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento.

Porque o escrever — tanta perícia,


Tanta requer,
Que ofjlcio tal .. nem ha noticia
De outro qualquer.

Assim procedo. Minha peniia


Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena,
Sen-na Junina !

Deusa! .1 onda ril, que se avoluma


De um torro mar,
Deira-u crescer, e o lodo e a espuma
l)ei.r.a-a rolar!

lUaspheiiio, em grita surda i horrendo


ímpeto, o hando
Venha dos Bárbaros crescendo.
Vociferando...

Deii-a-o : que venha e uivando passe


— Bando feroz!
PROFISSÃO DE FE

Não se te mude a côr da face


E o tom da voz!

Ol/ia-os somente, armada e prompta,


Radiante e bella :
E, ao braço o escudo, a raiva affronta
D'essa procella!

Este que á frente vem, e o todo


Possue minaz
De um Vândalo ou de um Wisigodo
Cruel e audaz;

Este, que, dentre os mais, o vulto


Ferrenho alteia,
E, em jacto, expelle o amargo insulto
Que te enlameia :

Ê em vão que as forças eança, e á lueta


Se atira; é em vão
Que brande no ar a maça bruta
Á bruta mão.

Não morrer ás, Deusa sublime!


Do throno egrégio
Assistirás intacta ao crime
Do sacrilégio.

E, se morreres porventura,
Possa eu morrer
PROFISSÃO DE FK

C.orniigo, e a mesma, noite escura


Nos e n rol ver!

A/i! ver por terra, profanada,


A ara. partida,
E a Arte immortal aos pés calcada,
Prostituída!...

Ver derrihar do eterno so/io


() Bello, e o som.
(lurir da queda do Acropolio,
])o 1'artlienon !...

.Sem sacerdote, a Crença morta


Sentir, e o susto
\ cr, e o e.rterminio, entrando a porta
Do templo augusto!...

Ver esta língua, que cultivo,


Sem ouropeis,
Minada ao hálito nocivo
Dos infieis!...

Não! Morra tudo o que me è caro,


Fique eu sitsinho!
Que não encontre um só amparo
Em meu caminho!

Que a minha dòr nem a um amigo


Insjiiee dó...
PROFISSÃO DE FE

Mas, ah! que eu fique só comtigo,


Comtigo só!

Vive! que eu viverei, servindo


Teu culto, c, obscuro,
Tuas custodias esculpindo
No ouro mais puro.

Celebrarei o teu officio


No altar : porém,
Se inda é pequeno o sacrifício,
Morra eu também!

Caia eu também, sem esperança,


Porém tranquillo,
Inda, ao cahir, vibrando a lança.
Em prol do Estylo!

1886.
PANOPLIAS
A MORTE DE TAPVR

I m.-i rolunma de ouro e purpuras ondeautes


^nliia o Armamento. Arresos M''OS, radiantes
líuliras nuvens, do sol á viva In/., do Poente
\ inham, sollas, correr o espaço resplciidente.
Foi a essa hora, — ás mãos o arco p o s t u l e , á cinta
l>o le\e cnduape a tanga em varias cores tinia,
\ aincára ao pescoço, o kanilar á lesta, —
Ltne T a p \ r penetrou n seio da lloi\ sta.
Fra de vel-a assim, eom o vidlo enorme ao peso
Dos amios acnrvado, o olhar faiscando aeceso,
Firme o passi ape/.ar da e\frcma idade, e Itsrte,
NinytUMU, como elle, em lace, altivo e lierculeo, ;; morte
lautas ve/rs liloii... Ninguém, como elle, o liraço
Fruueodo, a lama aguda atirava no espaço.
(Quanta \e/., do napy ao ronco troar, ligeiro
I'tiniu a corra, ao rugir do e-trepito guerreiro
O lacape lirntal rodando no ar, terrível,
1.
10 PANOPLIAS

Incólume, vibrando os golpes, — insensível


As prevês, ao clamor dos gvitos, surdo ao pranto
Das viclinias, — passou, como um tufão, o espanto,
O extermínio, o terror atraz de si deixando .
Quanta \e/, do inimigo o embale rechaçando
Por si só, foi seu peito uma muralha erguida,
Mm que vinha bater e quebrar-se vencida
De uma li-iiiu contraria a onda medonha e bruta !
Onde um pulso que, tal como seu pulso, á lucia
Costumado, um por um, ao chão arremessasse
Dez combatentes ? Onde um arco, que atirasse
Mais célere, a ztinir, a fina ílecha hervada ?
Quanta vez, a vagar na floresta cerrada,
Peilo a peito luctou com as fulvas onças bravas,
E as onças a seus p: ; s tombaram, como escravas,
Nadando em sangue quente, e, em roda, o echo infinito
Despertando, ao morrer, c:>m O derradeiro g r i t o ! . . .
Quanta vez ! E hoje velho, hoje abatido !

II

E o dia
Entre os sangüíneos tons do Occaso decahia...
E era tudo em silencio, adormecido e quedo...
De súbito um tremor correu lodo o arvoredo :
E o que ha pouco era calma, agora é movimento,
Treme, agita-se, accorda, e se lastima... 0 vento
PANOPI.IAS 11

lòalla Tapyr ! T a p y r ! I" finda a tua r a ç a !


E em tudo a mesma MI/. mvsleriosa passa ;
\ s arvores o chão despertam, repetindo :
Tapyr! Tapxr ! T a p y r ! O leu poder é lindo!

I., a essa hora, ao fulgor do derradeiro raio


Do sol, «pie o disco de ouro, em Incido desmaio,
Quasj no extremo eco de todo mergulhava,
Aquolla estranha voz pela floresta erhoava
Vuin confuso rumor eutrecortado, insano...
Como que em cada tronco havia um peito humano
Que se queixava... E o \elho, humido o olhar, seguia.
E, a cada passo assim dado na matta, via
Surgir de cada canto uma lembrança... fora
Desia iuimensa mangueira á sombra protectora
Que uni dia repousara... Além, a arvore annosa,
Em cujos galhos, no ar erguidos, a formosa,
\ doce Juraey a rede suspendera,
— A rede que, com as mãos linissimas, locéra
Para elle, seu senhor e seu guerreiro amado !
Alli... —contai-o vós, contai-o, embalsamado
Hetiro, ninhos no ar suspensos, a\es, flores !...
Contai-o — o poema ideal dos primeiros amores,
Os corpos um ao outro estreitamente unidos,
(ls abraços sem conta, os beijos, os gemidos,
E o rumor do noivado, estremecendo a matta,
Sob o plácido olhar das eslrellas de p r a t a . . .

.Iiirarv ! Jurai*) ! virgem morena e pura !


Tu t a m b é m ! tu também desceste á sepultura!...
12 PANOPLIAS

III

E Tapyr caminhava... Ante elle agora uni rio


Corria ; e a água t a m b é m , ao crebro murmúrio
Da corrente, a rolar, gemia anciosa e clara :
— Tapyr ! T a p y r ! Tapyr ! Que i> da veloz igara,
Que é dos remos dos teus ? Não mais as redes finas
Vêm na pesca sondar-me as águas crystallinas...
Ai ! não mais beijarei os corpos luxuriantes,
Os curvos seios nús, as fôrmas palpitantes
Das morenas gentis de tua tribu extincta!
Não mais ! Depois dos teus de bronzea pelle tinta
Corn os suecos do urucú, de pelle branca vieram
Outros, que a ti e aos teus nas selvas suecederam...
A i ! Tapyr ! a i ! Tapyr ! A tua raça é morta ! —
E o indio, tremulo, ouvindo aquillo tudo, absorta
A alma em scismas, seguiu,curva a cabeça ao peito...
Agora da floresta o chão não mais direito
Estendia-se, e plano era um declive ; e quando
Pelo tortuoso anfracto, a custo, caminhando
Ao crepúsculo, poude o velho, passo a passo,
A montanha alcançar, viu que a noite no espaço
Vinha a negra legião das sombras esparzindo...
Crescia a treva. A medo, entre as nuvens luzindo
No alto, a primeira estrella o calix de ouro abria...
Outra após scintillou na esphera immensa e fria...
1'ANOPLIAS 13

Outras v i e r a m . . . e, em breve, o céo de lado a lado


Foi como um cofre real de pérolas coalhado.

IV

Então, Tapxr, de pé, no arco apoiado, a fronte


Ergueu, e o olhar passeou no infinito horizonte :
Acima o abxsmo, abaixo o abxsmo, o abxsmo adiante...
E, longe, entre o n e g r o r d a noite, viu, distante,
\l\ejando no xalle, as tabas do estrangeiro...
Tudo exlinclo !... era elle o ultimo guerreiro !
E do xalle, do céo, do rio, da montanha,
De tudo que o cerrava, ao mesmo tempo, estranha,
líoina, extrema, rompeu a mesma \oz :
— I" finda
Toda a raça dos teus só tu es xi\o ainda!
Tapxr ! Tapxr ! Tapvr ! morre lambem com ella !
.lá não falia Tupan no uhilar da prorclla...
\s batalhas de outr'ora, os arcos e os lacapes,
\ s florestas sem fim de flechas e acanguapes,
Tudo passou ! Não mais a fera inubia á bocea
Dos guerreiros, Tapxr, soa medonha e rouca.
í. mudo o inaracá. V tribu exterminada
Dorme agora feliz na Montanha Sagrada...
Nem uma rede o xento entre os galhos agita !
Não mais o vivo som de estranha dansa, e a grita
Dos Pages, ao luar, por baixo das folhagens,
J4 PANOPLIAS

Rompe os ares... Não mais! As poracés selvagens,


As guerras e os festins, tudo passou ! E' finda
Toda a raça dos teus. . Só tu es vivo ainda !

E n u m longo soluço a voz mysferiosa


Expirou... Caminhava a noite silenciosa :
E era tranquillo o céo; era tranquilla em roda,
Immersa em plúmbeo somno, a natureza toda.

E, no tope do monte, era de ver erguido


O vulto de Tapyr... Inesperado, um ruido
Secco, surdo soou, e o corpo do guerreiro
De súbito rolou pelo despenhadeiro...
E o silencio outra vez cahiu.
N"esse momento,
Apontava o luar no curvo firmamento.
PANOPLIAS 15

A GONÇALVES DIAS

Celobrasle o domínio soberano


Das g r a n d e s t r i b u s , o t r o p e l f r e m e n l e
Da g u e r r a b r u t a , o e n t r e c h o c a r i n s a n o
Dos l a c a p e s v i b r a d o s r i j a m e n t e ,

(» m a r a r á e a s flechas, o e s t r i d e n t e
Troar da iiiubia, e o k a n i t a r i n d i a n o . . .
E, e l o r n i s a n d o o povo a m e r i c a n o ,
V ives e t e r n o e m teu poema i n g e n t e .

Estes r e v o l t o s , l a r g o s r i o s , e s t a s
Zonas f e c u n d a s , e s t a s s e c u l a r e s
V o r d e j a n l o s e a m p l í s s i m a s florestas

( • u a r d a n i leu n o m e : e a l y r a q u e p n h r . s i e
Inda se e s c u t a , a d e r r a m a r nos a r e s
O eslridor das batalhas que contaste.
10 PANOPLIAS

GUERREIRA

I" a encarnarão do mal. Pulsa-lhe o peito


Ermo de amor, deserto de piedade...
'Tem o olhar de uma deusa e o altivo aspeito
Das cruentas guerreiras de outra idade.

O lábio ao rictus do sarcasmo affeito


< risjw-se-lhe num riso de maldade,
Quando, talvez, as pompas, com despeito,
líerorda da perdida magostade.

E assim, com o seio aneioso, o porte erguido,


('orada a face, a ruiva cabelleira
Sobre as amplas espaduas der .um ida,

Faltam-lhe apenas a sangrenta espada


Inda rubra da guerra derradeira,
E o capacete de metal polido.
PAN0PL1AS 17

A UM GRANDE HOMEM

Hourcusf au fond du tiois Ia source


panvre et puro!
I.AMARTINE.

O l h a : Tira u m t e i m e fio
De á g u a e s c a s s a . C r e s c e u , T o r n o u - s e em rio
D e p o i s . Roucas, a s v a g a s
Engrossa a g o r a , e é t u r b i d o e brav io,
líoendo penedos, alagando plagas.

Humilde arroio brando!...


V c l l e , no e m l a n t o , as flores, i n c l i n a n d o
O débil c a u l e , i n q u i e t a s
M i r a v a m - s e . [•',, e m seu c l a r o e s p e l h o , o b a n d o
Se rev ia d a s leves b o r b o l e t a s .

Tudo, p o r é m : — c h e i r o s a s
Plantas, curvas ramadas rumorosas,
l l u m i d a s relv a s , n i n h o s
18 PANOPTLIAS

Suspensos no ar entre jasmins e rosas,


Tardes cheias da voz dos passarinhos, -

Tudo, tudo perdido


Atraz deixou. Cresceu. Desenvolvido,
Foi alargando o seio,
E do alpestre rochedo, onde nascido
Tinha, crespo a rolar descendo veio...

Cresceu. Atropeladas,
Soltas, grossas, as ondas apressadas
Estendeu largamente,
Tropeçando nas pedras espalhadas,
No galope impetuoso da corrente...

Cresceu. E {• poderoso :
Mas enturba-lhe a face o lodo ascoso...
É grande, é largo, é forte :
Mas, de parceis cortado, caudaloso,
Leva nas dobras de seu manto a morte.

Implacável, violento,
liíjo o vergasta o latego do vento.
Das estrellas, cahindo
Sobre elle em vão do claro Armamento
Batem os raios límpidos, luzindo...

Nada reflecte, nada !


Com o surdo estrondo espanta a ave assustada;
E turvo, é triste agora...
PANOPI.IvS 19

Onde a vida de outr'ora socegada ?


Onde a humildade e a limpidcz de outr'ora ?

Hoiueui (pie o mundo acclama!


Semi-deus poderoso cuja fama
O mundo com vaidade
De echo em echo no século derrama
Aos quatro ventos da celebridade!

Tu, (pie humilde nasceste,


Traço obscuro mortal, também crescesle
De vicloria em vieloria,
E, hoje, inflado de orgulhos, ascendeste
Ao snlio excelsfi do esplendor da gloria !...

Mas, ali ! n'esses teus dias


De fausto, entre essas pompas luzidias,
— líio soberbo e nobre !
Ilas-de chorar o tempo em que viv ias
Como uni arroto socegado e pobre...
20 PANOPLIAS

A SESTA DE NERO

Fulge de luz-banhado, esplçndido e sumptuoso,


() palácio imperial de porphyro luzente
E marmor da Laconia. O tecto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nacar do Oriente.

Nero no toro eburneo estende-se indolente...


(iemmas em profusão no esfragulo custoso
De ouro bordado vêm-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da purpura da Thracia o brilho esplendoroso.

Formosa ancilla canta. A aurilavrada lyra


Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a myrrha da Arábia em resrcndenle pyra.

Fôrmas quebram, dansando, escravas em rhoréa...


E Nero dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios mis da lubrica Poppéa.
PANOPLIAS 21

O INCÊNDIO DE ROMA

líaiva o incêndio. A ruir, soltas, dosconjuncladas,


\ s muralhas de pedra — o espaço adormecido
De echo em echo accordando ao medonho estampido,—
( 'oi 11 o a um sopro fatal, rolam esphaceladas.

E os templos, os museus, o Capitólio erguido


Em marmor phrvgio, o Foro, as ercctas arcadas
Dos aqueiluclos, tudo as garras inflammadas
Do incêndio fingem, tudo esbróa-se partido.

Eonge, reverberando o clarão purpurino,


Arde em chammas o 'libre e arceude-se o horizonte...
— Impassível, porem, no alto do Palatino,

Nero, com o manto grego ondeaudo ao hombro, adorna


Entre os libertos, e ebrio, engrinaldada a fronte,
Eyra em punho, celebra a destruição de Roma.
22 PANOPLIAS

0 SONHO DE MARCO ANTÔNIO

Noite Por todo o largo firmamento


Abrem-se os olhos de ouro das estrellas..
Só perturba a mudez do acampamento
O passo regular das sentinellas.

Brutal, febril, entre canções e brados.


Entrara pela noite adiante a orgia ;
E]m borbotões, dos cântaros lavrados
Jorrara o vinho. O exercito dormia.

Insomne, emtanto, vida alguém na tenda


Do general. Esse, entre os mais sosinho,
Vence a fadiga da batalha horrenda,
Vence os vapores calidos do vinho.

Torvo e cerrado o cenho, o largo peito


Da couraça despido e arfando ancioso,
PANOPLIAS 23
I.ivida a face, taciturno o aspeito,
Marro-Anlonio medita silencioso.

Da lâmpada de prata a luz escassa


Resvala pelo chão. A ([liando e quando,
Treine, cnfunada á viração (pie passa,
A cortina de purpura oscillando.

O general medita. Conto, soltas


Do alveo de um rio transvasado, as águas
( resceiu, cavando o solo, — assim, revoltas,
Fundas a alma lhe vão sulcando as magnas.

Que vale a Grécia, e a Macedonia, e o enorme


'Território do Oriente, e este infinito
\. invencivel exercito «pie dorme ?
Que doces braços que lhe estende o Egvpto!...

Que vença (tclavio! e seu rancor profundo


l.eve da llispania á Sv ria a morte e a guerra '.
Fila e o céo... Que valor tem lodo o mundo,
N' os mundos todos seu olhar encerra !

Elle é valente e ella o subjuga e o doma...


só ( leopatra é grande, amada e bella !
tvlue importa o Império a salvação de Roma?
Roma não vale um só dos beijos delia !...

Assim medita. E allueinado, louco


De pe/ar, com a fadiga em vão luetando,
24 PANOPLIAS

Marco-Antonio adormece a pouco e. pouco,


Nas largas mãos a fronte reclinando.

II

A harpa suspira. O melodioso canto,


De uma volúpia languida e secreta,
Ora interpreta o dissabor e o pranto,
Ora as paixões violentas interpreta.

Amplo docel de seda levantina


Por columnas de jaspe sustentado
Cobre os setins e a cachemira fina
Do regio leito de ebano lavrado.

Move o leque de plumas uma escrava.


Vela a guarda lá fora. Recolhida,
Os pétreos olhos uma esphinge crava
Nas fôrmas da rainha adormecida.

Mas Cleopatra accorda... E tudo, ao vel-a


Accordar, treme em roda, e pasma, e a admira
Desmaia a luz, no céo descora a estrella.
Como que a esphinge move-se e suspira...

Accorda. E o torso arqueando, ostenta o lindo


Collo opulento e sensual que oscilla...
PANOPLIAS

Murmura um nome e, as palpebras abrindo,


Mostra o fulgor radiante da pupilla.

III

Ergue-se Marco-Vntonio de repente...


Ouve-se um grito estridulo que soa
O silencio cortando, e longamente
Pelo deserto acampamento erhôa.

O olhar em fogo, os carregados traços


Do rosto em contraccão, alto e direito
O vulto enorme, — no ar levanta os braços,
E nos braços aperta o próprio peito.

Olha em torno e desvaira. Ergue a cortina,


A vista alonga pela noite afora...
Nada vê. Longe, á poria purpurina
Do Oriente em chammas, xem raiando a aurora.

E a noite foge. Em todo o Armamento


Vão se fechando os olhos das estrellas :
Só perturba a niudez do acampamento
O passo regular das sentinellas.
2G PANOPLIAS

LENDO A ILIADA

Eil-o, o poema de assombros — céo cortado


De relâmpagos — onde a alma potente
De Homero vive, e vive eternisado
O espantoso poder da argiva gente.

Arde Trova... De rastos passa atado


O heróe ao carro do rival., e, ardente,
Bate o sol sobre um m a r illimitado
De capacetes e de sangue quente.

Mais (pie as armas, porém, mais «pie a batalha,


Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia
O ódio e entre os povos a discórdia espalha :

— Esse amor que ora activa, ora serena


A guerra, e o heróico Paris encadeia
Aos curvos seios da formosa Helena.
PANOPLIAS 27

MESSALINA

Recordo, ao ver-te, as epochas sombrias


Do passado. Minhalma se transporta
A' Roma antiga, e da cidade morta
Dos Césares roanima as cinzas frias;

Trielinios e vivendas luzidias


Percorre ; pára de Suburra á porta,
E o confuso clamor escuta, absorta,
Das desvairadas e febris orgias.

Abi, n um throno erecto sobre a ruina


De um povo inteiro, tendo á fronte impura
0 diadema imperial de Messalina,

Vejo-te bella, estatua da loucura !


Iírguendo no ar a mão nervosa e fina,
Tinta de sangue, que um punhal segura.
28 PANOPLIAS

A RONDA NOCTURNA

Noite cerrada, tormentosa, escura,


Lá fora. Dorme em trevas o -convento.
Queda immoto o arvoredo. Não fulgura
I ma estrella no forvo Armamento.

Dentro é tudo mudez. Flebil murmura,


De espaço a espaço, emtanto, a voz do vento
E ha um rasgar de sudarios pela altura,
Passo de espectros pelo pavimento...

Mas, de súbito, os gonzos das pesadas


Portas rangem... Echõa surdamente
Leve rumor de vozes abafadas.

E, ao clarão de uma lâmpada tremente,


Do claustro sob as tácitas arcadas
Passa a ronda noHurna, lentamente.
PANOPLIAS 29

DELENDA CARTHAGO!

Fulge e dardeja o sol nos amplos horizontes


Do céo da África. Ao largo, em plena luz, dos montes
Destacam-se os perfis. Tremulamente oudeia,
Vasto oceano de prata, a requcimada areia.
O ar, pesado, sulibra. E, desfraldando ovantes
Das bandeiras ao vento as pregas ondulantes,
Desfilam as legiões do exercito romano
Diante do general Scipião Emiliano.
Tal soldado sopesa a clava de madeira.
'Tal, que a custo sollréa a cólera guerreira,
Maneja a bipennata e rude machadinha.
liste, á ilharga pendente, a rutila bainha
Leva do gladio. Aquelle a poderosa maça
Carrega, e ás largas mãos a ensaia. A custo passa,
Curvado sob o peso e de fadiga afflando,
2.
30 PANOPLIAS

De guerreiros um grupo, os aríetes levando...


Brilham em confusão cristados capacetes...
Cavalleiros, contendo os ardidos ginolos.
Solta a chlamyde ao hombro, ao braço alivclado
O concavo broqucl de cobre cin/.elado.
Brandem o pilum no ar. liesona, a espaços, rouca,
A bellica buecina. A tuba cava á bocea
Dos Enneatores troa. Hordas de sagiltarios
Vêm-se, de arco e carcaz armados. O ouro e os varies
Ornamentos de prata embutem-se. cm tauxias
De um correcto.laxor, nas armas lu/idias
Dos goneraes. E, ao sol, que, entre nuvens, scintilla,
Em torno de Carihago o exercito desfila.

Mas, passada a stirpre/a, ás pressas, a cidade


Aos escravos cedera armas e liberdade,
E era toda rumor e agitação. Fundindo
Todo o metal q u r f i a v i a , ou, céleres, brunindo
Espadas e punhaes, capacetes e lanças,
Viam-se a trabalhar os homens e as creanças.

Heróicas, abafando os soluços e as queixas,


As mulheres, tecendo os lios das madeixas,
('ortavam-nas.
Cobrindo espaduas deslumbrantes,
Cercando a camarão de seios palpitantes
Como véos de velludo, e provocando beijos,
Excitaram paixões e lubricos desejos
Essas trancas da cõr das noites tormentosas ..
Quantos lábios, ardendo em sedes luxuriosas,
Tocaram-n'as outr'ora entre febris abraços!
PANOPLIAS 31

Trancas que tanta vez — frágeis e doces laços ! —


Foram cadeias de ouro invencíveis, prendendo
Almas e corações, — agora, distendendo
Os arcos, despedindo as seitas aguçadas,
Iam levar a morte... — ellas. que, perfumadas,
Outrora tanta vez deram a vida e o alento
Aos presos corações!...

Triste, entretanto, lento,


Ao pesado labor do dia succedera
0 silencio nocturno. A treva se estendera :
Adormecera tudo. E, no outro dia, quando
Veio de novo o sol, e a aurora, rutilando,
Encheu o firmamento e illuminou a terra,
A lucta começou.

II

As machinas de guerra
Movem-se Treme, estala, e parte-se a muralha,
Racha de lado a lado. Ao clamor da batalha
Estremece o arredor. Brandindo o pilum, prompta*,
Confundem-se as legiões. Perdido o freio, ás tontas;
Dcsboccam-se os corceis. Enrijam-se, esticadas
Nos arcos, a ringir, as cordas. Aceradas,
Partem setías, zunindo. Os dardos, sibillando,
Cruzam-se. Eneos broaueis amol^am-se, resoando,
32 PANOPLIAS

Aos embates brutaes dos piques arrojados.


Loucos, afuzilando os olhos, os soldados,
Presa a respiração, torvo e medonho o aspeito,
Pela férrea squammata abroquelado o peito,
Se encruam no furor sacudindo os macetes.
Não param, entretanto, os golpes dos aríetes,
Não cansam no trabalho os niusculosos braços
Dos guerreiros. Oscilla o muro. Os estilhaços
Saltam das pedras, ( o r a , inda uma vez vibrada
No ar, a machina b r u t a . . . E, súbito, quebrada,
Entre o insano clamor do exercito e o fremente
Ruído surdo da queda, — estrepitosamente
Rúe, desaba a muralha, e a pétrea mole roda,
Rola, remoinha, e tomba, e se esphacela toda...

Rugem acclamações. Como em cachoes, furioso,


P a r t e os diques o mar, roja-se impetuoso,
As vagas encrcspando acapelladas, brutas,
E inunda pov nações, enche valles e grutas,
E vae semeando o horror e propagando o estrago,
— Tal o exercito entrou as portas de Carthago...

0 ar, os gritos de dòr e susto, espaço a espaço,


Cortavam. E, a bramir, atropelado, um passo
O invasor turbilhão não deu victorioso,
Sem que deixasse afraz um rastro pavoroso
De feridos. No Occaso, o sol morria, exangue :
Como que rcflectia o íirmamenlo o sangue
Que tingia de rubro a lamina brilhante
Das espadas. Então, houve um supremo instante
Em (pie, cravando o olhar no intrépido africano
PANOPLIAS 33

Asdrubal, ordenou Scipião Emiliano :


— Deixa-me executar as ordens do Senado!
Carthago morrerá : perturba o illimitado
Poder da invicta Roma... E n t r e g a - t e ! —
Orgulhoso,
A fronte levantando, ousado e rancoroso,
Disse o Carthaginez :
— Emquanto eu tiver vida,
Juro que não será Carthago demolida!
i Quando o incêndio a envolver, o sangue d'este povo
lla-de apagal-o. Não! Retira-te! —
De novo
Fallou Scipião :
« — Attende, Asdrubal! Por mais forte
Que seja o teu poder, h a - d e prostral-o a morte!
Olha! A postos, sem conta, as legiões de Roma,
Que Júpiter protege c que o pavor não doma,
Vão começar em breve a mortandade infrene!
Entrega-te! —
— Romano, escuta-me! (solemne,
O outro volveu, e a raiva em sua voz rugia)
Asdrubal é o irmão de Annibal... Houve uni dia,
Em (pie, ante Annibal, Roma estremeceu vencida,
E tonta recuou de súbito ferida. . .
Ficaram no logar da pugna, ensangüentados,
Mais de setenta mil Romanos, trucidados
Pelo esforço e valor dos punicos guerreiros;
*eis alqueires de anéis dos mortos cavalleiros
Carthago a r r e c a d o u . . . Verás que, como oinVora,
Do eterno Baal-Moloch a protecção agora
Teremos. A viciaria ha-de ser n o s s a . . . Escuta :
;}1 PANOPLIAS

Manda que recomece a carniceira lucta! —

E horrível, e feroz, durante a noite e O dia,


Recomeçou a lucta. Em cada casa havia
l m punhado de heróes. Seis vezes, pela face
Do céo, seguiu seu curso o sol, sem que parasse
O medonho estridor da sanha da batalha. . .
Quando a noite descia, a treva era a mortalha
Que envolvia, piedosa, os corpos dos feridos.
Rolos de sangue e pó, blasphemias e gemidos,
Preces e imprecações... As próprias mães, emtanto
Heróicas na afílicção, enxuto o olhar de pranto,
Viam cahir sem vida os filhos. Combatentes
Houve, que, não querendo aos golpes inclementes
Do inimigo entregar os corpos das creanças,
Matavam-n'as, erguendo as suas próprias lanças...

Por fim, quando de todo a vida desertando


Foi a extincta cidade, e, lugubre, espalmando
As azas negras no ar, pairou sinistra e horrenda
A morte, teve um fim a peleja tremenda,
E o incêndio começou.

III

Fraco e medroso, o fogo


A branda viração tremeu um pouco, e logo,
PANOPLIAS 35

Inda pallido e tênue, ergueu-se. Mais violento,


Mais rápido soprou por sobre a chamma o vento :
E o que era labareda, agora, ignea serpente,
Gigantesca, estirando o corpo, de repente
Desenrosca os anéis llammivomos, abraça
'Toda a cidade, estala as pedras, cresce, passa,
lióe os muros, estronda, e solapando o solo,
Os alicerces bróca, e estringe tudo. Fm rolo
De plúmbeo e denso fumo ennegrecido em torno
Se estende, como um véo, do comburente forno.
Na horrorosa eversão, dos templos arrancado,
Vibra o mármore, salta; abre-se, estilhaçado,
Tudo o que o incêndio aperta... E a fumarada cresce,
Sobe vertiginosa, espalha-se, escurece
O Armamento... E, sobre os restos da batalha,
Arde, voraz e rubra, a colossal fornalha. . .

Mudo e triste, Scipião, longe dos mais, no emtanto


Deixa livre correr pelas faces o pranto. . .

F que, — vendo rolar, num rápido momento,


Para o abjsmo do olvido e do anniquillamento
Homens e tradições, revezes e victorias,
Batalhas e trophéus — seis séculos de glorias
N u m punhado de cinza —, o general previa
Que Roma, a invicta, a forte, a armipotente, havia
De ter o mesmo fim da orgulhosa Carthago. . .
E, perto, o crepitar ostrepitoso e vago
Do incêndio, que lavrava e inda rugia activo,
Era como o rumor de um pranto convulsivo...
VIA-LACTEA
VIA-LACTEA 39

Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via


Que, aos raios do luar illuminada,
Entre as estrellas tremulas, subia
Lnia infinita e scintillante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a... Em cada


Degráo, que o ouro mais limpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Resoante de supplicas, feria...

Tu, mãe sagrada ! vós também, formosas


Illusòes ! sonhos meus ! ireis por ella
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu a m o r ! eu te buscava, quando


Vi que no alto surgias, calma e bella,
0 olhar celeste para o meu baixando...
itl VIA-I..VCTK.V

11

'Tudo ouvirás, pois (pte, bondosa e pura,


Me ouves agora com melhor ouvido :
Toda a anciedade, todo o mal soffrido
Em silencio, na antiga desventura...

Hoje, quero, em teus braços acolhido,


Rever a estrada pavorosa e escura
Onde, ladeando o abysmo da loucura,
Andei de pesadelos perseguido.

Olha-a : torce-se toda na infinita


Volta dos sete círculos do inferno...
E nota aquelle vulto : as mãos eleva,
K
Tropeça, cáe, soluça, arqueja, grita,
Buscando um coração que foge, e eterno
Ouvindo-o perto palpitar na treva.
VIA-LA Cl'li A 11

III

Tantos esparsos vi profusamente


Pelo caminho que, a chorar, trilhava !
Tantos havia, tantos ! E eu passava
Por todos elles frio e indifferente...

Emfim ! cmfim ! pude com a mão tremente


Achar na treva aquelle que buscava...
Porque fugias, quando eu te chamava,
Cego e triste, tacteando, anciosamente .'

Vim de longe, seguindo de erro em erro,


'Teu fugitivo coração buscando
E vendo apenas corações de ferro.

Pude, porém, tocai-o soluçando...


E hoje, feliz, dentro do meu o encerro,
E ouço-o, feliz, dentro do meu pulsando.
4-2 VIA LÁCTEA

IV

Como a floresta secular, sombria,


Virgem do passo humano e do machado,
Onde apenas, horrendo, echôa o brado
Do tigre, e cuja agreste ramaria

Não atravessa nunca a luz do dia,


Assim também da luz do amor privado,
Tinhas o coração ermo e fechado,
Como a floresta secular,' sombria.

Hoje, entre os ramos, a canção sonora


Soltam festivamente os passarinhos.
Tinge o cimo das arvores a aurora...

Palpitam flores, estremeeem ninhos...


E o sol do amor que não entrava ouír'ora,
Entra dourando a areia dos caminhos.
VIA LÁCTEA 43

Dizem todos : « — OinVora como as aves


Inquieta, como as aves tagarela,
V hoje... que t e n s ? Que sisudez revela
Teu ar ! que idéas e que modos graves!

Que tens, para que em pranto os olhos laves 1


Sê mais risonha que serás mais bella ! —
Dizem. Mas no silencio e na cautela
Ficas firme e trancada a sete chaves...

E um diz : — Tolices, nada mais ! — murmura


Outro : « — Caprichos de mulher faceira ! — »
E todos elles afinal : « — Loucura ! — »

Cegos que vos causaes a i n t e r r o g a l - a !


\ ei-a bastava ; que a paixão primeira
Não pela voz, mas pelos olhos fala.
V I A 1.ACT1.A

VI

Em mim lambem, que descuidado vistes,


Encantado e augmentando o próprio encanto,
Tercis notado que outras cousas canto
Muito diversas das que outr'ora ouvistes.

Mas amastes, sem duvida .. Portanto,


Meditae nas tristezas que sentistes :
Que eu, por mim, não conheço cousas tristes,
Que mais aftlijam, que torturem tanto.

Quem ama inventa as penas em que vive :


E, em logar de acalmar as penas, antes
1,'u^ca novo pezar com que as avive.

Pois sabei que é por isso que assim ando :


Que é dos loucos somente e dos amantes
Na maior alegria andar chorando.
VIA-LACTEA

VII

Não têm faltado borras de serpentes,


(IVessas que amam fallar de todo o mundo,
E a todo o mundo ferem, maldizentes)
Que digam : — Mata o teu amor profundo !

Abafa-o, que teus passos imprudentes


Vão-te levando a um pélago sem fundo...
« Vaes-te p e r d e r ! — E, arreganhando os dentes
Movem para teu lado o olhar immundo :

— Se ella é tão pobre, se não tem belleza,


Irás deixar a gloria desprezada
E os prazeres perdidos por tão pouco ?

Pensa mais no futuro e na riqueza ! —


E eu penso que afinal... Não penso em nada :
Penso apenas (pie te amo como um louco !

3.
40 VIA-LACTEA

VIII

Em que c -os mais azues, mais puros ares,


Võa pomba mais p u r a ? Em que sombria
Moita mais nivea flor acaricia,
A noite, a luz dos límpidos luares ?

Vives assim, como a corrente fria,


Que, intemerata, aos trêmulos olhares
Das estrellas e á sombra dos palmares,
t o r t a o seio das mattas, erradia.

E envolvida de tua virgindade,


De teu pudor na cândida armadura,
Foges o amor, guardando a caslidade,

— Como as montanhas, nos espaços francos


Erguendo os altos pincaros, a alvura
Guardam da neve que lhes cobre os flancos.
VI V-LÁCTEA l\t

IX

De outras sei que se mostram men»-< frias,


Amando menos do que amar pareces.
Fsam todas de lagrimas e preces :
Tu de acerbas risadas e ironias.

De modo tal minha attenção desvia-*,


Com tal pericia meu engano teras,
Que, se gelado o coração tivesses,
Certo, querida, mais ardor "ferias.

Olho-te : cega ao meu olhar te fazes...


Falo te — e com que fogo a voz levanto! —
Em vão... Finges-te surda^ás minhas phrases.

Surda : e nem ouves meu amargo pranto !


( e g a e nem vés a nova dor que trazes
A dôr antiga que doía tanto!
VIA-LACTEA

Deixa que o olhar do mundo cmfim devasso


Teu grau;';' amor que é o teu maior segredo !
Que terias perdido, se, mais cedo,
'Todo o affecto que sentes se mostrasse ?

Basta de enganos! Mostra-me sem medo


Aos homens, afTront ando-os face a lace :
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.

Ollia : não posso mais ! Ando tão cheio


D'este amor, que iniuh'alina se consome
De te exaltar aos olhos do universo...

Ouro cin tudo leu nome, em tudo o leio :


E, faíigado de calar teu nome,
Qiiasi o revelo no íinal de um verso.
VIA-LACTEA 40

'Todos esses L m ores — bem o viste —


Não conseguiram demudar-me o aspecto :
Só me turbou esse louvor discreto
<v!ue no volver d: s i lltos traduziste...

Inda bem que entendeste o meu affecto,


E, atravez dVstas rimas, presentisie
Meu coração que jialpitaxa, triste,
ü o mal que havia dentro em mim secreto.

Ai de mim, se de lagrimas inúteis


Estes versos banhasse, ambicionando
Das néscias turlias os applausos luteis !

Dou-me por pago, se um olhar lhes deres :


Fil-os pensando em ti, lil-os pensando
Na mais pura de todas as mulheres.
r><> VIA-LACTEA

XII

Sonhei que me esperavas. E, sonhando,


Sahi, ancioso por te ver : corria...
E tudo, ao ver-me tão depressa andando,
Soube logo o logar para onde eu ia.

E tudo me fallou, tudo ! Escutando


.Meus passos, atravez da ramaria
Dos despertados pássaros o bando :
— Vae mais depressa! Parabéns! — 9 dizia.

Disse o luar : — Espera ! que eu te sigo :


Quero também beijar as faces d'ella ! — »
E disse o aroma : a — Vae, que eu vou comtigo ! —

E cheguei. E, ao chegar, disse uma estrella :


— Como és feliz ! como és feliz, amigo,
Que de tão perto vaes ouvil-a o vel-a ! —
VIA-LACTEA

XIII

— Ora (direisi ouvir estrellas ! Certo


Penleste o senso! — E eu vos direi, no emtanto,
Que, jjara ouvil-as, muita vez desperto
E abro as janellas, pallido de espanto...

E conversamos toda a noite, emquanto


A via láctea, como um pallio aberto,
Sciutilla. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céo deserto.

Direis agora : — Tresloucado amigo!


Que conversas com ellas ? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão comtigo ?

E eu vos direi : — Ainae para entendel-as !


Pois só quem ama pôde ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrellas.
VIA-LACTEA

XIV

Viver não pude sem que o fel provasse


DYsse outro amor que nos perverte e engana :
Porque homem sou, e homem não ha (pie passe
• Virgem de todo pela vida humana.

Porque tanta serpente atra e profana


Dentro d'alma deixei que se aninhasse ?
Porque, abrazado de uma sede insana,
A impuros lábios entreguei a face ?

Depois dos lábios sôfregos e ardentes,


Senti — duro castigo aos meus desejos —
O gumc fino de perversos dentes...

E não posso das faces polluidas


Apagar os vestígios (Tosses beijos
V os sangrentos signaes d e s s a s feridas.
VIA-LÁCTEA 53

XV

Inda hoje, o livro do passado abrindo.


Lembro-as, e punge-me a lembrança (Tellas;
Lembro-as, e vejo-as, como as vi partindo,
Estas cantando, soluçando aquellas.

I mas, de meigo olhar piedoso" e lindo,


Sob as rosas de neve das capellas;
Outras, de lábios de coral, sorrindo,
Desnudo o seio, lubricas e bellas...

Todas formosas como tu chegaram :


Partiram... e, ao partir, dentro em meu seio,
Todo o veneno da paixão deixaram.

Mas, ali ! nenhuma teve o teu encanto,


Nem teve olhar como esse olhar, tfo cheio
De luz tão viva, (pie abrazasse t a n t o !
VIA-LACTEA

XM

Lá fora, a voz do vento ulule rouca !


Tu a cabeça no meu hombro inclina,
E essa bocca vermelha e pequenina
Approxima, a sorrir, de minha bocca!

Que eu a fronte repouse anciosa e louca


Fjn teu seio — mais alvo que a neblina
Que, nas manhãs hiemaos, humida e fina*
Da serra as grimpas verdejantis louca.

Solta as trancas agora, como um manto!


Canta ! Embala-me o-somno com.leu canto !
E eu, aos raios tranqtiillos d'esse olhar,

Possa dormir sereno, como o rio


Que, em noites calmas, soeegado e frio,
Dorme aos raios de prata do luar !..
VIA-LACTEA

XVII

Por estas noites frias e brumosas


E que melhor se pôde amar, querida !
Nem uma estrella pallida, perdida
Entre a nevoa, abre as palpebras medrosas.

Mas um perfume calido de rosas


Corre á face da terra adormecida...
E a nevoa cresce, e, em grupos repartida,
Enche os ares de sombras vaporosas .

Sombras errantes, corpos nús, ardentes


Carnes lascivas... um rumor vibrante
Do attritos longos e de beijos quentes...

E os céos se estendem, palpitando, cheios


Da tepida brancura fulgurante
De um turbilhão de braços e de seios.
VIA-LACTEA

\ \ 111

Dormes... Mas que sussurro a huniederid.i


'Terra desperta ? Que rumor enleva
As estrellas, que no alto a Noite leva
Presas, luzindo, á túnica estendida ?

São meus versos ! Palpita a minha vida


.Yoües — phalenas que a siudade eleva,
De meu seio, e que vão, rompendo a frcv.i,
Encher teus sonhos, pomba adormecida !

Dormes, com os seios mis, no travesseiro


Solto o cabello negro... e eil-os, correndo,
Doudejantes, subtis, teu corpo inteiro...

Beijam-te a bocca tepida e macia,


Sibein, descem, teu hálito s•irvend ;...
Porque surge tão cedo a luz do dia ?!...
VIA-LACIE.V 57

XIX

Sae a passeio, mal o dia nasce,


Bella, nas simples roupas vaporosas ;
E mostra ás rosas do jardim as rosas
Frescas <> puras que possuo na face.

Passa. E todo o jardim, por que ella passe,


Atavia-se. Ha falas misteriosas
Pelas moitas, saudando-a respeitosas...
E como se uma sylphide passasse !

E a luz rer,\i-a, beijando-a. 0 vento é um choro.


Curvam-se as (lòres tremulas... 0 bando
Das aves todas vem saudal-a em coro...

E ella vae, dando ao sol o rosto brando,


As aves dando o olhar, ao vento o louro
Cabello, e ás flores os sorrisos dando ..
5S VIA-LACTEA

XX

Olha-me !"0 teu olhar sereno e brando


Entra-me o peito, como um largo rio
De ondas de ouro e de luz, límpido, entrando
O ermo de um bosque tenebroso e frio.

Fala-me! Em grupos doudejantes, quando


Falas, por noites caudas de estio,
As estrellas accendem-se, radiando,
Altas, semeadas pelo eco sombrio.

Olha-me assim ! Fala-me assim 1 De pranto


Agora, agora de ternura cheia,
Abre em chispas de fogo essa pupilla...

E emquanto eu ardo em sua luz, emquanto


Em seu fulgor me abrazo, uma sereia
Soluce e cante nessa voz tranquilla !
VIA-LACTEA

XXI

.4 minha mãe

Sei que um dia não ha (e isso é bastante


A esta saudade, mãe \), em que a teu lado
Sentir não julgues minha sombra errante
Passo a passo a seguir teu vulto amado.

— Minha m ã e ! minha mãe ! — a cada instante


Ouves. Tornas, em lagrimas banhado,
O rosto, conhecendo soluçante
Minha voz e meu passo costumado.

E sentes alta noite no teu leito


Minh'alma na tua alma repousando,
Repousando meu peito no teu peito...

E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho,


E abres os braços trêmulos, chorando,
Para nos braços apertar teu filho '
GO VIA-LACTEX

XXII

.1 liwthe.

Quando te leio, as srenas animadas


Por teu gênio, as paizagens (pie imaginas,
Cheias de vida, avultam repentinas,
Claramente aos meus olhos desdobradas...

Vejo o céo, vejo as serras coroadas


De gelo, e o sol, que o manto das neblinas
Rompe, aquecendo as frigidas campinas
E illuminando os valles e as estradas.

Ouço o rumor soturno da charrúa,


E os rouxinóes que, no carvalho erg.lido,
A voz modulam de ternuras cheia

E vejo, á luz tristíssima da lua,


Hermann, que scisma, pallido, embebido
No meigo olhar da loura Doro;h '•»,
VIA-I.AC1EA Gl

X\'l

De Caiileron.

Latira ! dizos que Fábio anda olfendido


E, apezar de olfendido, namorado,
Buscando a extincta chamma do passado
Nas cinzas frias avivar do olvido.

Vá que o faça, e que o faça por perdido


De amor... Creio que o faz por despeitado
Porque o amor, uma vez abandonado,
Não torna a ser o que já tinha sido.

Não lhe creias,nos olhos nem na bocca,


Inda mesmo que os vejas, como pensas,
Mentir earieias, desmentir tristezas...

Porque finezas sobre arrufos, louca,


Finezas podem s e r ; mas, sobre offensas,
Mais parecem vinganças que finezas.
02 VIA-LACTEA

XXIV

A Luiz Guimarães.

Vejo-a, contemplo-a eoinmovido... Aquella


Que amaste, e, de teus braços arrancada,,
Desceu da morte a tenebrosa escada,
Calma e pura aos meus olhos se revela.

Vejo-lhe o riso plácido, a singela


Feição, aquella graça delicada,
Que uma divina mão deixou vasada
No eterno bronze, eternamente bella.

Só lhe não vejo o olhar sereno e triste :


— Céo, poeta, onde as azas, suspirando,
Chorando e rindo loucamente abriste...

— Céo povoado de estrellas, onde as hordas


Dos archanjos cruzavam-se, pulsando
Das lvras de ouro as geniedoras cordas.
VIA-LACTEA G'i

XXV

.1 Bocage.

Tu, que no pego impuro das orgias


Mergulhava* anrioso e descontente,
E, quando á tona x inhas de repente,
Cheias as mãos de pérolas trazias ;

Tu, que do amor e pelo amor vivias,


\\ que, como de límpida nascente,
Dos lábios e dos olhos a torrente
Dos versos e das lagrimas vertias ;

Mestre querido! viverás, emquanto


Houver quem pulse o mágico instrumento,
E preze a lingui que prezavas tanto :

V, emquanto houver n'um ponto do Universo


Quem ame e soffra, e amor e solTrimento
Saiba, chorando, traduzir no verso.
G'l VIA-LACTEA

XXVI

Quando cantas, minh'alma, desprezando


• I cnvolucro do corpo, ascende ás bellas
Alias espheras de ouro, e, acima d e l i a - ,
Ouve archanjes as citharas pulsando.

Corre os pai/es longos, que revelas


Ao som divino do teu canto e, ([liando
Baixas a voz, ella também, chorando,
Desce, entre os claros grupos das estrellas

['. expira a tua voz. Do paraíso,


A (pie subira ouvindo-te, cabido,
Fico a fitar-te pallido, indeciso...

V. emquanto scismas, sorridente e casta,


A teus pés, como um pássaro ferido,
Toda a minha alma tremula se arrasta...
VIA-LACTEA <Í5

XXVII

llontein — néscio que fui! — maliciosa


Dis-e uma estrella, a rir, na immensa altura :
— Amigo ! uma de nós, a mais formosa
De todas nós, a mais formosa e pura,

Faz annos amanhã... Vamos! procura


i A rima de ouro mais brilhante, a rosa
De cor mais viva e de maior frescura ! —
E eu murmurei eommigo : < — Mentirosa ! —

E segui. Pois tão cego fui por ellas,


Que, emfim, curado pelos seus enganos,
J á não creio em nenhuma das estrellas...

E — mal de mim! — eis-me, a teus pés, em pranto.


Olha : se nada li/, para os teus annos,
Culpa as tuas irmãs que enganam t a n t o !
66 VIA-LACTEA

XXVIII

Pinta-me a curva (Testes cios... Agora,


Erecta, ao fundo, a cordilheira apruma :
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.

Solta, ondulando, os veos de espessa bruma,


E o valle pinta, e, pelo valle em fora,
A correnteza turbida e sonora
Do Parahyba, em torvelins de espuma.

Pinta; mas vê de que maneira pintas...


Antes busques as cores da tristeza,
Poupando o o-»rrinio das alegres tintas :

— Tristeza singular, estranha magua


De que vejo coberta a natureza,
Porque a vejo com os olhos rasos d'agua...
VIA-LACTEA G7

XX I \

Por tanto tempo, desvairado e affliclo.


Filei 11'aquella noite o firmamento,
Que inda hoje mesmo, quando acaso o fito,
'Tudo aquillo me vem ao pensamento.

Sahi, 110 peito o derradeiro grito


Calcando a custo, sem chorar, violento...
E o céo fulgia plácido e infinito,
V. havia um choro no rumor do vento...

Piedoso céo, que a minha dor sentiste !


A áurea esphera da lua o Occaso entrava,
Rompendo as leves nuvens transparentes :

E sobre mim, silenciosa e triste,


A via-lactea se desenrolava
Como um jorro de lagrimas ardentes.
68 VIA-LvCTEA

\XX

\o coração (pie soflVe, separado


Do teu, no exílio em ([lie a chorar me xojo,
Não basta o affecío simples e sagrado
Com que das desventuras me proíejo.

Não nie basta salier que sou amado,


Nem só desejo o leu amor : desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na bocca a doçura de teu beijo.

E as justas ambições que me consomem


Não me envergonham : pois maior baixeza
Não ha que a terra pelo céo trocar ;

E mais eleva o coração de um homem


Ser de homem sempre , , na maior pureza,
Ficar na terra e huinan-iinente amar.
VIA-LACTEA 69

XXXI

Longe de ti, se escuto, porventura,


Teu nome, que uma bocca indifferente
Entre outros nomes de mulher murmura,
Sobe-me o pranto aos olhos, de repente...

Tal aquelle, que, mísero, a tortura


SoiTre de amargo exilio, c tristemente
A linguagem natal, maviosa e pura,
Ouve falada por estranha gente...

Porque teu nome é para mim o nome


De uma pátria distante e idolatrada,
Cuja saudade ardente me consome :

E ouvil-o é xer a eterna primavera


E a eterna luz da terra abençoada,
Onde, entre flores, teu amor me espera.
7ü VIA-LACTEA

XXXII

.1 um poeta.

Leio-te : — o pranto dos meus olhos rola


— Do seu eabello o delicado cheiro,
De sua voz o timbre prazenteiro,
Tudo do livro sinto que se evola...

Todo o nosso romance : — a doce esmola


Do seu primeiro olhar, o seu primeiro
Sorriso, — n e s t e poema verdadeiro,
Tudo ao meu triste olhar se desenrola.

Sinto animar-se todo o rneu passado :


E quanto mais as paginas folheio,
Mais vejo em tudo aquelle vulto a m a d o .

Ouço junto de mim bater-lhe o seio,


E cuido vel-a, plácida, a meu lado,
Lendo comungo a pagina que leio.
VIA-LACTEA 71

XXXIII

Como quizesse livre ser, deixando


As paragens nataes, espaço em fora,
A ave, ao bafejo tepido da aurora,
Abriu as azas e partiu cantando.

Estranhos climas, longes céos, cortando


Nuvens e nuvens, percorreu : e, agora
Que morre o sol, suspende o vôo, e chora,
E chora, a vida antiga recordando...

E logo, o olhar tornando compungido,


Atraz volve, saudosa do carinho,
Do calor da primeira habitação.

Assim por largo tempo andei perdido :


— Ah ! que alegria ver de novo o ninho,
Ver-te, e beijar-te a pequenina mão !
íZ VIA-LACTEA

XXXIV

Quando adivinha que vou vol-a, e á escada


Ouve-me a voz e o meu andar conhece,
Fica pallida, assusta-se, estremece,
E não sei porque foge envergonhada.

Volta depois. A porta, alvoroçada,


Sorrindo, em fogo as faces, apparece :
E talvez entendendo a muda prece
De meus olhos, adianta-se apressada.

Corre, delira, multiplica os passos ;


E o chão, sob os seus passos m u r m u r a n d o ,
Segue-a de um hymno, de um rumor de festa.

E — a h ! que desejo de a tomar nos braços,


O movimento rápido sustando
Das duas azas que a paixão lhe e m p r e s t a !
VIA-LACTEA

XXXV

Poiteo me pesa que mofeis sorrindo


Destes versos puríssimos c santos :
Porque, n'islo de amor e Íntimos prantos,'
Dos louvores do publico prescindo.

Homens de bronze ! um haverá, de tantos,


(Talvez um só !) que, esta paixão sentindo,
Aqui demore o olhar, vendo e medindo
O alcance e o sentimento (Testes cantos.

Será esse o meu publico. E, de certo,


Esse dirá : — Pode viver tranquillo
Quem assim ama, sendo assim amado ! —

E, tremulo, de lagrimas coberto,


Ha-de estimar quem lhe contou aqtullo
Que nunca ouviu com tanto ardor contado.
SARÇAS DE FOGO
m-mm

O JULGAMENTO DE PHKYNliA

Mnczarete — a divina, a pallida Phrynéa —


Comparece ante a austera e rígida assembléa
Do Arcopago supremo. A Crecia inteira admira
Aquella formosura original, que inspira
E dá vida ao genial cinzel de Praxiteles,
De Ilypcrides á voz e á palheta de Apelles.

t^uan Io os vinhos, na orgia, os convivas exaltam,


E das roupas, emfim, livres os corpos saltam.
Nenhuma hetére sabe a primorosa taça,
Transbordantc de t ó s , erguer com maior graça,
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio,
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.

Estremecem no altar, ao contemplal-a, os deuses,


Nua, entre aeclainações, nos festivaes de Eleusi -,,.
Basta um rápido olhar provocante e lascivo ;
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, captivo..
78 PARCAS UE 1'UtiÜ

Nada eguala o poder de suas mãos pequenas :


Basta um gesto, — e a seus pés roja-se humilde Alheiia-*...

Vae ser julgada. Um véo, tornando inda mais bella


Sua occulta nudez, mal os encantos vela,
Mal a nudez occulta e sensual disfarça.
< áe-lhe, espaduas abaixo, a cabelleira esparsa...
Queda-se a multidão. Ergue-se Euthias. Fala,
E incita o tribunal severo a condemnal-a :

— Eleusis profanou! E falsa e dissoluta,


Leva ao lar a sizania e as famílias enluta!
Dos deuses zomba! É i m p i a l é má! » —(Eopranto ardente
Corre nas faces d'ella, em fios, lentamente...)
— Por onde os passos move a corrupção se espraia
E estende-se a discórdia! Ileliostes! condemnai-a! — >

Vacilla o tribunal, ouvindo a voz que o doma...


.Mas, de prompto, entre a turba Hvperides assoma.
Defende-lhe a innocencia, exclama, exora, pede,
Supplíca, ordena, exige... O Areopago não cede.
— Pois condemnai-a agora! — » E á ré, que treine, ;t I
'Túnica despedaça, e o véo, que a encobre, arranca...

Pasmam subitamente os juizes deslumbrados,


— Leões pelo calmo olhar do um domador curvados :
Nua e branca, de pé, patente á luz do dia
Todo o corpo ideal, Phrynéa apparecia
Diante da multidão attonita o surpreza,
No triumpho immorlal da Carne o da Belleza.
SARÇAS DE FOGO 70

MARINHA

Sobro as ondas oscilla o batei docemente...


Sopra o vento a gemer. Treme enfunada a xéla.
Na água mansa do mar passam tremulamente
Áureos traços de luz, brilhando esparsos n'ella.

Lá desponta o luar. Tu, palpitante o hella,


Canta ! Chega-te a mim ! Dá-me essa borra ardente 1
Sobre as ondas oscilla o batei docemente...
Sopra o vento a gemer. Tremo enfunada a xéla.

Vagis azues, p a r a i ! Curvo céo transparente,


Nuvens de prata, o u v i ! — Ouça na altura a estrella,
Ouça do baixo o oceano, ouça o luar albente :
Ella canta! — e, embalado ao som do canto (Telia
Sobre as ondas oscilla o batei docemente.
80 SAIU-AS DE FOGO

SOBK12 AS BODAS DE L XI SEXAGENÁRIO

Amas. Lm novo sol apontou no horizonte,


E offuscou-te a pupilla e illuminou-te a fronte...

Livido, o olhar sem luz, rôfo o manto, cabida


Sobre o peito, a tremer, a barba encanecida,
Desvias, cambaleando, a encosta pedregosa
Da velhice. Que mão te offercceu, piedosa,
Lm piedoso bordão para a m p a r a r teus passos?
Quem te estendeu a vida, estemlendo-le os braços?
Ias desamparado, em sangue os pés, sósinho...
E era horrendo o arredor, torvo o espaço, o caminho
Sinistro, aceidontado... Uivaxa porto o vento
E rodavam bulcões no turvo lirmamento.
Entrado do terror, a cada passo o rosto
Voltavas, perscrutando o caminho transposto,
E volvias o olhar : e o olhar allucinado
Via de um lado a trova, a trova de outro lado,
SARÇAS DE FOGO Si

V, assombrosas visões, vultos extraordinários,


Desdobrando a correr os trêmulos sudarios.
E ouvias o rumor de uma enxada, cavando
Longe a terra... E paraste exanime.

Foi quando
Pareceu-te escutar pelo caminho escuro,
Soar, de instante a instante, um passo mal segui o
Como o teu. E attentando, entre alegria e espanto,
Viste que vinha alguém comparlindo o teu pranto,
Trilhando a mesma estrada horrível que trilhavas,
E ensangüentando os p ) s onde o- ensanguentaxas.

E sorrisle. No céo fulgurava uma esírella.


E sentiste falar subitamente, ao vela,
Teu velho coração dentro do peito, como
Desperto muita vez no derradeiro assomo
Da bravura, — sem voz, decrépito, impotente,
Tropcgo, sem vigor, sem vista, — de repente
Riça a juba, e, abalando a solidão nocturna,
Urra um velho leão n u m a apartada furna.
í
82 SARÇAS DE FOGO

ABYSSUS

Bclla o traidora ! Beijas e assassinas. .


Quem te vê não-tem forças que te opponha
Ama-te, e dorme no teu seio, e sonha,
E, quando accorda, accorda feito em ruínas

Seduzes, e convidas, e fascinas,


Como o abysmo que, pérfido, a medonha
Faucc apresenta flórida e risonha,
Tapetada de rosas e boninas.

O viajor, vendo as flores,' fatigado


Fogo o sol, o, deixando a estrada poonta,
Avança incauto... Súbito, esbroado,

Falta-lhe o solo aos pés : recua e corre,


Vacilla e grita, lucta e se ensangüenta,
E rola, c tomba, e se espedaça, e morre...
SARÇAS DE FOGO 83

PANTUM

Quando passaste, ao declinar do dia,


Soava na altura indefinido arpejo
Pallido, o sol do e:;o so despedia,
Enviando á torra o derradeiro beijo.

Soava na altura indefinido arpejo...


Cantava perto um pássaro, em segredo;
E, enviando á t e r r a o derradeiro beijo,
Esbatia-se a luz pelo arvoredo.

Cantava perto um pássaro em segredo;


Cortavam fitas de ouro o Armamento...
Esbatia-se a luz pelo arvoredo :
Cahira a t a r d e ; socegára o vento.

Cortavam fitas de ouro o Armamento...


Quedava immoto o coqueiral tranquillo..
SARCAS DE FOGO

Cahira a tarde. Socegára o vento.


Que magua derramada em tudo aquillo!

Cuedava immoto o coqueiral tranquillo...


Pisando a areia, que a teus pés falava,
(Qur magua d e r r a m a d a em tudo aquillo!)
Vi lá em baixo o teu vulto que passava.

Pisando a areia, que a teus pés falava,


Entre as ramadas flóridas seguisto.
Vi lá cm baixo o leu vulto que passava...
Tão distrahida! — nem sequer me viste!

Entre as ramadas flóridas seguisto,


E eu tinha a vista de teu vulto cheia.
Tão distrahida! — nem sequer me viste!
E eu contava os (eus passos sobre a areia.

Ett tinha a xista de teu vulto cheia.


E, quando te stimiste ao fim da estrada,
Lu contava os teus passos sobro a areia :
Vinha a noite a descer, muda o pausada...

E, quando te suuiisíe ao fim da estrada,


Olhou-me do alto uma pequena estrella.
\ i.ilia a noite a descer, muda o pausada,
E outras estrellas s^ accendiam n'ella.

01h(.u-me do alto uma pequena estrella,


Abrindo as áureas palpebras luzcntes :
SARÇAS DE FOGO 83

E outras estrellas se accendiam n'ella,


Como pequenas lâmpadas trementes.

Abrindo as áureas palpebras luzentes,


Clarearam a extensão dos largos campos;
Como pequenas lâmpadas trementes
Phosphoreavam na relva os pyrilampo-.

Clarearam a extensão dos largos campos.


Vinha, entre nuvens, o luar nascendo...
Phosphoreavam na relva os pyrilampos...
E eu inda estava a tua imagem vendo.

Vinha, entre nuvens, o luar nasi-end >


A terra toda em derredor dormia...
E eu inda estava a tua imagem vendo-,
Citando p:;ssaste ao declinar do dia !
86 SAItÇAS DE FOGO

NA THEBAIDA

Chegas, com os olhos humidos, fremente


A voz, os seios nús, — como a rainha
Que ao ermo frio da Thebaida vinha
Trazer a tentação do amor ardente.

Lucto : porém leu corpo se avizinha


Do meu, e o enlaça como uma serpente...
Fujo : porém a bocca prendes, quente,
Cheia de beijos, palpitante, á minha...

Beija mais, que o teu beijo me incendeia !


Aperta os braços mais! que eu tenha a morte
Preso nos laços de prisão tão doce!

Aperta os braços mais ! — frágil cadeia


Que tanta força tom não sendo forte,
E prende mais que se de ferro fosse!
SA.RÇAS DE FOGO S7

E n'es(as noites socegadas


Em que o luar aponta, e a fina
Mobil e tremula cortina
Rompe das nuvens espalhadas;

Em que no azul espaço, vago,


Scindindo o céo, o alado bando
Vae das estrellas caminhando
— Aves de prata á flor de um lago -

E nestas noites — que, perdida,


Louca de amor, minh'alma vòa
Para teu lado, e te abençoa,
0 minha a u r o r a ! ó minha vida!

No horrendo pântano profundo


Em que vivemos, és o cysno
Que o cruza, sem que a alvura lisne
Da aza no limo infecto e immundo.

Anjo exilado das risonhas


Regiões sagradas das alturas,
SN SARCAS DE FOGO

Que passas puro entre as impura-


Humanas coloras medonhas!

Estrella de ouro calma o bella,


Que, abrindo a lúcida pupilla,
Brilhas assim clara e tranquilla
Nas torvas nuvens da procella!

Raio de sol dourando a esphcra


Entre as neblinas (Teste inverno,
E nas regiões do gelo eterno
Fazendo rir a primavera !

Lirio de pétalas formosas


Erguendo á luz o niveo seio,
Entre estes cardos, o no meio
IVestas cupborbias venenosas!

Oásis verde no deserto !


Pássaro voando descuidado
Por sobre um solo ensangüentado
E do cadáveres coberto!

Eu que homem sou, eu que a miséria


Dos homens tenho, — eu, verme obsrun
Amei-te, flor! o, lodo impuro,
Tentei roubar-to a luz siderea.

Vaidade insana ! Amar ao dia


que negreja !
SARÇAS DE FOGO

Pedir a sorpe, que rasteja,


Amor á nuvem fugidia!

Insano a m o r ! vaidade insana!


Unir n'um beijo o aroma á peste!
\ asar, 11'iun jorro, a luz c,-ie^e
Na escuridão da noite humana!

Mas, ali! quizesie a ponta il 1 aza,


Da pluma tremula de neve
Descer a mim, roçar de levo
A superfície d'csta vasa...

E tanto ponde essa piedade,


E tanto poude o amor, que o lodo
Agora é céo, é flores todo,
E a noite escura é claridade '.
00 SARÇAS DE FOGO

NUMA CONCHA

Pudesse eu ser a concha nacarada


Que, entre os coraes e as algas, a infinita
Mansão do oceano habita,
I-i dorme reclinaila
No fofo leito das areias de ouro...
Fos-e eu a concha e, ó pérola m a r i n h a !
Tu fosses o meu único Ihosouro,
Minha, somente minha !

Ah ! com (pio amor, no ondeante


Regaço da água transparente e clara,
Com que volúpia, filha, com que anceio
Eu as valvas de nacar apertara,
Para g u a r d a r - t e toda palpitante
No fundo de meu seio !
SARÇAS DE FOGO

SUPPLICA

Faliaxa o sol. Dizia :


— Accorda ! Que alegria
Pelos ridentcs céos se espalha a g o r a !
Foge a neblina fria...
Pede-te a luz do dia,
Pedem-te as chammas e o sorrir da aurora !—»

Dizia o rio, cheio


De amor, abrindo o seio :
— Quero abraçar-te as fôrmas primorosa-!
Vem tu, que embalde veio
O sol : somente anceio
Por teu corpo, formosa entre as formosas !

Quero-te inteiramente
Nua ! quero, tremenle,
Cingir de beijos tuas roseis pomas,
SAIiÇAS 1)1! FOGO

Cobrir leu corpo ardente,


E na água transparente
Guardar teiu v i v e , U-Í-ÍJUSCS i.i\,i..aü! —

E proseguia o vento :
— Tis-n'a o meu Ir.ir.enío !
Vem ! não (pioro a folhagem j-i rh.inada ;
( DIII a flor não me contento !
Vais alto é o meu intento :
Quero embalar-te a coma desnastrada ! —

'Tudo a exigia... Emianto,


Alguém, oceulto a um canto
Do jardim, a chorar, dizia : — O bella !
Já te não peço tanto :
Soccára-se o meu pranto
Se v isso a tua sombra na janella! —
SAIU:AS DE I-ÜGO . !I:J

CANCAO

Dá-me as pétalas de rosa


D'essa bocca pequenina .
Vem com teu riso, formosa !
Vem com teu beijo, divina '.

Transforma n u m paraíso
O inferno do meu desejo...
Formosa, vem com teu ris > !
Divina, vem com teu beijo!

Oh ! tu, que tornas radiosa


Minhalina, que a dôr do.nina,
Só com teu riso, formosa,
Só com teu beijo, divina !

Tenho frio, e não diviso


Luz na trova em (pie me vejo
Dá-me o clarão do teu riso !
Dá-me o fogo do teu beijo !
94 SAUÇAS DE FOGO

RIO ABAIXO

Treme o rio a rolar, de vaga em vaga...


Q.uasi noite. Ao sabor do curso lento
Da água, que as margens em redor alaga,
Seguimos. Curva os bambuaes o vento.

Vivo, ha pouco, de purpura, sangrento,


Desmaia agora o Oceaso. A noite apaga
A derradeira luz do Armamento...
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.

Lm silencio tristíssimo por tudo


Se espalha. Mas a lua lentamente
Surge na fimbria do horizonte mudo :

E o seu reflexo pallido, embebido


(orno um gladio de prata na corrente,
Rasga o seio do rio adormecido.
S A R Ç A S DE FOGO !).J

SATANIA

Núa, de pi-, solto o cabello ás costas,


Sorri. Na ai cova perfumada e quente,
Pela janella, como um rio enorme
De áureas ondas tranquillas e impalpáveis,
Profusamente a luz do meio dia
Entra e se espalha palpitante e viva.
Entra, parte-se em feixes rutilantes,
Aviva as cores das tapeçarias,
Doura os espelhos e os crysíaes inflamnia.
Depois, tremendo, como a arfar, deslisa
Pelo chão, de-.enrola-se, e, mais leve,
(orno uma vaga preguiçosa e lenta,
Vem-lhe beijar a pequenina ponta
Do pequenino pé macio o branco.
<JG S A R C A S DE FOGO

>s)')o... cingo-lho a perna longamente,


Sohe .. — o que volta sensual descreve
Para abranger todo o q u a d r i l ! — proseguc,
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura,
Morde-lhe os bicos tumidos dos seios,
Corre-lhe a espadua, espia-lhe o recôncavo
Da axilla, acccnde-lhe o coral da boeca,
E antes de se ir perder na escura noite,
Na deusa noite dos c:\bollos negros,
Pára confusa, a palpitar, diante
Da luz mais bella dos seus grandes olhos.

E aos mornos beijos, ás caricias ternas


Da luz, cerrando levemente os cilios,
Satania os lábios humidos encurva,
E da bocca na p u r p i r a sangrenta
Abre um curto sorriso de volúpia...
Corre-lhe á flor da pelle uni eilofrio ;
'Todo o sou sangue, alvoroçado, o curso
Apressa ; o os olhos, pe!a íêada estreita
Das abaixada s palpebras radiando,
Turvos, quebrados, languidos, contemplam,
Fitos no vácuo, uma visão querida...

Talvez ante elles, scintillando ao vivo


Fogo do Occaso, o mar se desenrole -.
'Tingem-se as águas de um rubor de sangue,
Uma canoa passa... Ao largo oscillam
Mastros enormes, sacudindo as flamuiulas...
E, alva o sonora, a murmurar, a espuma
SARÇAS DE FOGO Í.I,

Pelas areias se insinua, o limo


Dos grosseiros cascalhos prateando...

Talvez ante elles, rígidas o immoveis,


Vicem, abrindo os leques, as palmeiras :
Calma em tudo. Nem serpe sorrateira
Silva, nem ave inquieta agita as azas.
E a terra dorme n'um torpor, debaixo
De um céo de bronze que a comprime o abala...

'Talvez as noites tropicaes se estendam


Ante elles : infinito firniamento,
Milhões de estrellas sobre as crespas águas
De torrentes caudaes, que, esbravejando,
Entre altas serras surdamente rolam...
Ou talvez, em paizes apartados,
Fitem sons olhos uma scena antiga
Tarde de outono. F m a tristeza iinmeusa
Por tudo. A um lado, á sombra deleitos-i
Das tamareiras, meio adormecido,
Fuma uni árabe. A fonte rumoreja
Perto. A cabeça o cantharo repleto,
Com as mãos morenas suspendendo a saia,
Lma mulher afasta-se, cantando...
E o árabe dorme n uma densa nuvem
De fumo... V o canto perde-se á distancia...
E a noite chega, tepida o estrellada...

Certo, bom doce devo ser a scena


Que os seus olhos extaticos ao longe,
Turvos, quebrados, languidos, contemplam.
G
98 SARÇAS DE FOGO

Ha pela alcova, emtauto, um murmúrio


De xo/.es. A principio é um sopro escasso,
Lm sussurrar baixinho... Augmenta logo :
É uma prece, um clamor, um coro iiiiniens •
De ardentes vozes, de convulsos gritos.
É a voz da Carne, é a voz da Mocidade,
— Canto vivo de força o de belleza,
Que sobe dVsse corpo illuminado...

Dizem os braços : — Quando o instante doí-e


Ha-de chegar, em que, á pressão anciosa
D'estes laços de músculos sadios,
Lm corpo amado vibrará de gozo? — »

E os seios dizem : « — Que sedentos lábios,


Que «ávidos lábios sorverão o vinho
Rubro, que temos n'esfas cheias taças?
Para essa bocca que esperamos, pulsa
Nestas carnes o sangue, encho estas veias,
V entesa e apruma estos rosados bicos... —

E a bocca — Eu tenho nVsla fina concha


Pérolas níveas do mais alto preço,
E coraes, mais brilhantes e mais puros
Que a rubra selva (pie de um iyrio manto
( o b r e o fundo dos mares da Abxssinia...
Ardo e suspiro ! Como o dia tarda'
Em que meus lábios possam ser beijados,
Mais que beijados : possam ser mordidos ! — ..
SARÇAS DE FOGO 99

Mas, quando, emfim, das regiões descendo


Que, errante, em sonhos, percorreu,— Satania
Olha-se, e vê-se núa, e, estremecendo,
Veste-se, e aos olhos ávidos do dia
Vela os encantos, essa voz declina
Lenta, abafada, tremula...

Lm barulho
De linhos frescos, de brilhantes sedas
Amarrotadas pelas mãos nervosas,
Enche a alcova, derrama-se nos ares...
E , sob as roupas que a suffocam, inda
Por largo tempo, a soluçar, se escuta
N'um longo choro a entrecortada queixa
Das deslumbrantes carnes escondidas...
lllíl S A R Ç A S DE FOGO

QUARENTA ANNOS

Si n ! ('orno um dia de x erão, de acresa


Luz, de accosos o cal idos fulgores,
(Onio os sorrisos da estação das flores,
Foi passando também tua belleza.

Hoje — das garras da descrença preza —


Perdes as iIlusões. Vão-se-te as cores
Da face. E e n t r a m - t e iTalma os dissabores,
Nublam-te o olhar as sombras d a tristeza.

Expira a primavera. O sol fulgura


< um o brilho extremo... E ahi vêm as noites frias,
Abi vem o inverno da velhice escura...

Ah ! pudesse eu fazer — novo Ezequias —


Que o sol poente d'essa formosura
\olvosso á aurora dos primeiros d i a s !
SAtfÇAS DE FOGO 101

VESTÍGIOS

Foram-te os annos consumindo aquella


Belleza ou(r'ora viva o hoje perdida...
Porém teu rosto da passada vida
luda uns vestígios tremidos revela.

Assim, dos rudes furacões batida,


Velha, exposta aos furores da procella,
Tina arvore de pé, serena e hella,
Inda se ostenta, na floresta erguida.

Raivoso o raio a lasca, e a estala, e a feudo


Racha-lhe o tronco annoso... Mas, em cima,
Verde folhagem triumphal se estende.

Mal segura no chão, varilla... Embora !


Inda os ninhos conserva, e se reanima
Ao chilrear dos pássaros de outr'era.
G.
102 SARÇAS DE FOGO

EM TRECHO DE GAETIER

(MilK de Mau pi n.)

E porque eu sou assim que o mundo me repelle,


E é por isso também que eu nada quero (Telle :
Minh'alma é uma região ridente e esplendor,is;i
Na apparencia : porém pútrida e pantanosa,
Cheia de emanações mephiticas, re]ilel a
De immundos vibriões, como a região inferia
Da Batavia, de um ar pestifero e nocivo.
Olha a vegetação : Tulipas de ouro vivo,
Fulvos nagassaris de ampla coroa, flores
Do angsoka, pompeando a opulencia das cores,
Viçam ; xiçam rosaes de purpura, sorrindo
Sob o limpido azul de um céo sereno e inlindo...
Mas a flore.i cortina entreabre, e vê : — NO fundo,
s-ohrc os tropegos p i s movendo o corpo immtuido,
Vae de rasíos um sapo hydropico e nojento...
SARÇAS DE FOGO KKJ

Olha esta fonte agora : O claro firmamento


Traz no puro crystal, puro como um diamante.
Viajôr! de longe vens, ardendo em sedo? Adiante!
Segue ! Fora melhor, ao cabo da jornada,
De um pântano beber a água que, estagnada
Entre os podres juncaes, em meio da floresta
Dorme... Fora melhor beber d o s s ' á g u a ! Nesta
Se acaso a incauta mão mergulha um dia a gente,
Ao sentir-lhe a lrescura, ao mesmo tempo seule
As picadas mortaos das peçonhentas cobras,
Que colleiam, torcendo e destorcendo as dobras
Da escama, e da atra bocca expellindo o veneno...

Segue ! porque é maldito e ingrato este terreno :


Quando, cheio de fé na colheita futura,
Antogosando o bem da próxima fartura,
Na terra, que fecunda o boa te parece,
Semeares trigo, — ein vez da ambicionada mes-e,
Em vez da espiga de ouro a scintillar, — apenas
Colheráso meimendro o as cabelludas pennas
Que, como serpes, brando a mandragora bruta,
Entre vegetações de asphódelo o eicuía.

Ninguém logrou jamais atravess;u- em vida


A floresta sem fim, negra e desconhecida,
Que eu tenho dentro d'alma. E uma Heresia enorme
Onde — xirgem intacta — a natureza dorme,
Como nos maltagaos da America e de Java :
Cresce, crespa e cerrada, a laçaria brava
Dos líexiles cipós, curvos c resistentes,
As arvores atando em voltas de serpentes ;
10'l SARÇAS UM FOGO

Lá dentro, na espessura, entre o esplendor selvagem


Da Hora tropical, nos arcos de folhagem
Balançam-se animaes fantásticos, suspensos :
Morcegos de uma fôrma extraordinária, e ininiensu;
Escaravelhos que o ar posado o morno agitam.
Monstros do horrendo aspecto estas furnas habitam:
— Elephantos brulaes, brutaes rhinocerontes,
Esfregando ao passar contra os rugosos montes
A rugosa couraça o ospedaçando os troncos
Das arvores, lá v ã o ; e hippopotainos broncos
De tumido focinho o o relh is eriçadas,
Batom pausadamente as patas compassadas.
Na clareira, onde o sol [lonotra ao meio-dia
0 auriverde docel das ramagens, o enfia
Como uma cunha de ouro um raio luminoso,
Ti onde um calmo retiro achar contaste ancioso,
— Transido de pavor encontrarás — piscando
Os olhos verdes, e o ar, sôfrego, respirando,
1 ni tigre a dor.nitar, com a língua rubra o pelo
Do xelludo lustrando, ou, em calma, um novelo
De boas, digerindo o touro devorado...

Tem receio de tudo ! O o o puro o azulado,


A herva, o frueto maduro, o sol, o ambiente mudo,
Tudo aqui é inortal... Tom receio de t u d o !

E o porque oa sou assim (pie o mundo me repelir,


Ti o por isso também (pio ou nada quero d'elle !
SARÇAS DE FOGO I ü."j

NO LIMINAR DA MOHTIi

Grande lascivo ! espeiM-tc a vnliiptnnsid ide


do nada.
(Mackailo úc Assis, mwx r.rnw

Ehgelhadas as I.K-OS, OS cibellos


Brancos, ferido, chegas da jornada.
Revês da infância os dias ; e, ao revel-os,
Que fundas maguas na alma lacerada'.

Paras. Palpas a trcva em torno. Os golos


Da velhice te cercam. Vês a estrada
Negra, cheia de sombras, povoada
De atros espectros o de pesadelos...

Tu, que amaste e soffreste, agora os pa--- >s


Para meu lado moves. Alma em prantos,
Deixas os ódios do mundano inferno...

Vem ! que emfim gozar.is entre meus braço.


Toda a volúpia, todos os encantos,
Toda a delicia do repouso eterno !
10G SARÇAS DE FOGO

PARAPHRASE DE BAUDELAIRE

Assim ! Quero sentir sobre a minha cabeça


(J peso dessa noite embalsamada e espessa...
Que suave calor, que volúpia divina
As carnes me penetra e os nervos me domina !
Ah ! deixa-me aspirar indefinidamente
Este aroma suhtil, este perfume ardente!
Deixa-me adormecer envolto em teus cabellos!...
Quero sentil-os, quero aspiral-os, sorvel-os,
E n'elles mergulhar loucamente o meu rosto,
Como quem vem de longo, o, ás horas do sol poslo,
Acha a um canto da estrada uma nascente pura,
Onde mitiga ancioso a sede que o tortura...
Quero tel-os nas mãos, o agital-os, cantando,
Como a um lenço, pelo ar saudados espalhando. .
Ah ! se pudesses ver tudo o (pie n'elles xejo !
— Meu desvairado amor ! meu insano desejo!...
SARÇAS DE FOGO 107

Teus eabellos contêm uma visão completa


— Largas águas, movendo a superfície inquieta,
Cheia de um turbilhão de velas e de mastros,
Sob o claro docel palpitante dos astros.
Cava-se o mar, rugindo, ao peso dos navios
Do todas as nações e todos os feitios,
Desenrolando no alio as flammulas ao vento,
E recortando o azul do limpo firniamonto,
Sob o qual ha uma eterna, uma infinita c j l m i .

E prevê meu olhar e presente minlTalma


Longe, — o n d e , mais profundo e mais azul, se arqueis
0 ei o, onde ha mais luz o onde a atmrsphera, cheia
Do aromas, ao repouso e ao divagar convida, —
1 111 paiz encantado, uma região querida,
Fresca, sorrindo ao sol, entre fructos e flores
— 'Terra santa da luz, do sonho e dos amores ;
Terra tpie nunca xi. terra que não existe,
Mns da qual, entretanto, eu, desterrado e triste,
Sinto no coração, ralado de anoiedade,
Fma siudade eterna, uma fatal saudade !
Minha pátria ideal! Em vão estendo os braços
Para teu lado ! Em vão para teu lado os passos
Movo! Em vão ! Nunca mais em teu seio adorado
Poderei repousar meu corpo fatigado...
Nunca mais! nunca m a i s ! . . .
Sobro a minha cabeia,
Querida ! abre essa noite enibalsaniida e espessa !
Desdobra sobre mim os teus negros eabellos '.
Quero, sôfrego e louco, aspiral-cs, mordel-o-,
E, behedo de airo-r, o seu peso sentindo,
108 SARÇAS DE FOGO

N'elles dormir envolto e ser feliz dormindo...


Ah ! se pudesses ver tudo o (pie n'elles vejo !

Meu desvairado amor ! Meu insano desejo !


SARÇAS DE FOGO 109

RIOS E PÂNTANOS

Muita vez houve céo dentro de um peito :


Céo coberto de estrellas resplendentes,
Sobre rios alvissimos, de leito
De fina prata e margens florescentes...

Um dia veio, em que a descrença o aspeilo


Mudou de tudo : em turbidas enchentes,
A água um manto de lodo e trevas feito
Estendeu pelas veigas rescendentes.

E a alma que os anjos de aza solta, os sonhos


E as illusõos cruzaram revoando,
— Depois, na superfície horrenda e fria,

Só apresenta pântanos medonhos,


Onde, os longos sudarios arrastando,
Passa da peste a legião sombria ..
110 SARÇAS DE FOGO

DE VOLTA DO BAILE

Chega do baile. Descansa.


Movo a eburnea ventarola.
Que aroma de sua trança
Voluptuoso se evóla!

Ao vel-a, a alcova deserta


E muda até então, em roda
Sentindo-a, treme, desperta
E é festa e delírio toda.

Despe-se. O manto primeiro


Retira, as luvas agora,
Agora as jóias — chuveiro
De pedras da côr da aurora.

E pelas pérolas, pelos


Rubins de fogo. e diamantes,
SARÇAS DE FOGO 111

E'aiscando nos seus eabellos


Como estrellas corusoantes,

Pelos collares em dobras


Enrolados, — pelos finos
Braceletos, como cobras
Mordendo os braços divinos,

Pela grinalda de flores,


Pelas sedas que se agitam
Murmurando e as varias cores
Vivas do arco-íris imitam,

— Por tudo, as mãos inquietas


Movem-se rapidamente,
Como um par de borboletas
Sobre um jardim florescente.

Voando em torno, infinitas,


Precipitadas, vão soltas
Revoltas nuvens de fitas,
Nuvens de rendas revoltas.

E, de entre as rendas e o arminho,


Saltam seus seios rosados,
Como de dentro de um ninho
Dois pássaros assustados.

E da lâmpada suspensa
Treme o clarão; e ha per tudo
112 SvliÇxS D1-: FOGO

Fina agitação iinuiensa,


I ni êxtase imnienso o mudo.

E como (pio por encanto,


N u m longo rumor de beijos,
Ha vozes em cada canto
E em cada canto desejos...

Mais um gosto... E, vagarosa,


Dos hombros solta, a camisa
Pelo seu corpo — amorosa
E sensualmente desusa.

E o tronco altivo o direito,


() braço, a curv a macia
Da espadua, o talhe do peito
Que de tão branco irradia ;

O ventre que, como a neve,


Firme e alvissimo se arqueia
E apenas em baixo um leve
Buço dourado sombreia ;

A coxa firme que desce


Curvamente, a perna, o artelho
Todo o seu corpo appareco
Subitamente no espelho.

Mas logo um deslumbramento


Se espalha na aleova inteira :
SARÇAS DE FOGO 113

Com um rápido movimento


Destouca-se a cabelleira.

Que riquíssimo thosouro


Yaquellos fios dardeja !
E como uma nuvem de ouro
Que a envolve, e, em zelos, a beija.

'Toda, contorno a contorno,


Da fronte aos pés, cerca-a ; e em ondas
Fulvas derrama-se em torno
De suas fôrmas redondas;

E depois de apaixonada
Beijal-a linha por linha,
( áe-lhe ás costas, desdobrada
Como um manto de rainha...
114 SARÇAS DE FOGO

SAHARA VITJí

Lá vão elles, lá xão! O céo se arqueia


Como um tecto de bronze iiifiiido e quente,
E o sol fuzila o, fuzilando, ardente
Criva de flechas de aço o mar de areia.

Lá vão, com os olhos onde a sede ateia


Lm fogo estranho, procurando em frente
Esse oásis do amor que, claramente,
Além, bello e fallaz, se delineia.

Mas o simun da morte sopra : a tromba


Convulsa envolve-os, prostra-os; o aplacada
Sobre si mesma roda e exhausta tomba...

E o sol de novo no igneo céo fuzila...


E sobre a geração exterminada
A areia dorme plácida e tranquilla.
SARÇAS DE FOGO 115

BEIJO ETERNO

Quero um beijo sem fim,


Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo !
Ferve-me o sangue. Acalma-o com teu beijo !
Beija-me assim !
0 ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida !
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor !

Fora, repouse em paz


Dormida em calmo somno a calma Natureza,
Ou se debata, das tormentas preza, —
Beija inda mais !
E, emquanto o brando calor
Sinto em meu peito de teu seio,
Nossas boccas febris se unam com o mesmo anceio,
Com o mesmo ardente a m o r !
HO SARÇAS DE FOGO

De arrebol a arrebol,
Vão-se os dias sem conto! e as noites, como os dias,
Sem conto vão-se, calidas ou frias !
Rutile o sol
Esplendido o abrazador !
No alto as esirellas coruscantes,
Tauxiando os largos céos, brilhem como diamantes !
Brilhe aqui dentro o amor !

Succoda a treva á luz !


Vele a noite de erepe a curva do horizonte;
Em véos de opala a madrugada aponte
Nos céos azues,
E Venus, como uma flor,
Brilhe, a sorrir, do Occaso á porta,
Brilhe á porta do Oriente ! A treva e a luz — que importa?
Só nos importa o amor I

Raive o sol no Verão !


Venha o Outono ! do Inverno os frigidos vapores
Toldem o céo! das ax es e das flores
Venha a estação!
Que nos importa o esplendor
Da Primavera, e o Armamento
Limpo, e o sol scintillanle, o « neve, e a chuva, e o vento?
— Beijemo-nos, a m o r !

Beijemo-nos ! que o m a r
Nossos beijos ouvindo, em pasmo a voz levante !
E cante o s o l ! a ave desperte e cante !
Cante o luar,
SARÇAS Dtí FOGO 117

Cheio de um novo fulgor!


( ante a amplidão ! canto a floresta !
E a Natureza toda, em delirante festa,
( a n t e , cante este amor !

Rasgue-se, á noite, o véo


Das neblinas, e o vento inquira o monte e o valle
"— Quem canta assim ?—» V, uma áurea estrella lalle
Do alto do céo
Ao mar, preza de pavor :
— Que agitação estranha é aquella? —
E o mar adoce a voz, e á curiosa estrella
Responda que é o amor.

E a ave, ao sol da manhã,


'Também, a aza vibrando, á estrella que palpita
Responda, ao vel-a desmaiada o aíflicta :
— Que beijo, irmã !
Pudesses ver com que ardor
Elles se beijam loucamente! —
E inveje-nos a estrella... o apague o olhar dormente,
Morta, morta de amor !...

Diz tua bocca : — Vem ! — »


» — Inda mais! —» diz a minha, a soluçar... Exclama
Todo o meu corpo que o teu corpo chama :
— Mordo também ! — »
Ai! m o r d e ! que doce é a dôr
Que me entra as carnes, e as tortura !
Iteijamais! morde mais ! que eu morra de ventura'
Morto por teu amor !
\ 7.
118 SARÇAS DE FUGO

Quero um beijo som fim,


Que dure a vida inteira o aplaque o meu desejo!
Ferve-mo o sangue : acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim !
0 ouvido fecha ao rumor
Do mundo, o beija-me, querida !
Vive só para mim, só para. a minha vida,
Só para o meu amor!
SARÇAS DE FOGO 119

POMBA E CHACAL

O Natureza ! ó mãe piedosa e pura !


O cruel, implacável assassina !
— Mão, que o veneno e o balsamo propina,
E aos sorrisos as lagrimas mistura !

Pois o berço, onde a bocca pequenina


Abre o infante a sorrir, é a miniatura,
A vaga imagem de uma sepultura,
0 germen vivo de uma atroz ruina ? !

Sempre o contraste ! Pássaros cantando


Sobre túmulos... flores sobre a face
De ascosas agitas pútridas boiando...

Anda a tristeza ao lado da alegria...


E esse teu seio, d'onde a noite nasce,
E o mesmo seio d'onde nasce o dia...
120 SARÇAS DE FOGO

MEDALHA ANTIGA

De Liste.

Este, sim! viverá por séculos o séculos,


Vencendo o olvido. Soube a sua mão deixar,
Ondeando no negror do onyx polido e rutilo,
A alva espuma do mar.

Ao sol, bella e radiosa, o olhar surpreso e estático,


Vê-se Kypre, á feição de uma joven princeza,
Mollemente emergir á flor da face tremula
Da liquida turqueza.

Núa a deusa, nadando, a onda dos seios tumidos


Leva diante de si, amorosa o sensual :
E a onda mansa do mar borda de argenteos florrulns
Seu pescoço immortal.

Livre das fitas, solto em quedas de ouro, espalha-sc


Gottejante o cabello : e seu corpo encantado
SARÇAS DE FOGO 121

Hrilha nas águas, como, entre violetas humidas,


Lm lirio immaculado.

E nada, e folga, emquanto as barbatanas ásperas


E as fulvas caudas no ar batendo, e em derredor
TurvamlooOceanOjOm grupo os delphins atropelam-se
Para a fitar melhor.
122 ' SARÇAS DE FOGO

NO CÁRCERE

Porque hei-do, em tudo quanto vejo, xel-a?


Porque hei-de eterna assim reproduzida
Vel-a na água do mar, na luz da estrella,
Na nuvem de ouro e na palmeira erguida?

Fosse possível ser a imagem d'ella


Depois de tantas magnas esquecida !...
Pois acaso será, para esqueoel-a,
Mister c força que me deixe a vida?

Negra lembrança do passado ! lento


Martyrio, lento e atroz ! Porque não ha-de
Ser dado a toda a magua o esquecimento?

Porque ? Quem me encadeia sem piedade


No cárcere sem luz d'esle torniento,
Com os pesados grilhões d'esta saudade ?
SARÇAS DE FOGO 123

OLHANDO A CORRENTE

Põe-te á margem ! Contempla-a, lentamente,


Crespa, turva, a rolar. Em vão indagas
A que paragens, a que longes plagas
Desce, ululando, a lugubre torrente...

Vem de longe, de longe... Ouve-lhe as pragas !


Que infrene grita, que bramir freqüente,
Que coro dv blasphemias surdamente
Rolam na queda dessas negras vagas !

Choras? Tremes? E tarde... Esses violentos


Grilos escuta ! Em lagrimas, tristonhos,
Fechas os olhos ?... Olha ainda o horror

D'aquellas águas ! Vê ! 'Teus juramentos


Lá vão ! lá vão levados os meus sonhos,
Lá vae levado todo o nosso amor !
124 SARCAS DE FOGO

Tenho frio e ardo em febre !


0 amor me acalma o enclouda I o amor me eleva e abato!
Quem ha (pie os laços, que mo prendem, quebre?
Que singular, que desigual combato!

Não sei que hervada frécha


Mão certeira e fallaz me cravou com tal geito,
Que, sem que eu a sentisse, a estreita brecha
Abriu, por onde o amor entrou meu peito.

0 amor me entrou tão canto


0 incauto coração, que eu nem cuidei (pie estava
Ao recebel-o, recebendo o arauto
DVsta loucura desvairada e brava.

Entrou. E, apenas dentro,


Deu-me a calma do céo e a agitação do inferno...
E hoje... ai! de mim, que dentro em mim concentra
Dores e gostos n'um luctar eterno !

0 amor, Senhora, vede :


Prendeu-me. Em vão me estorço,e nie debato, e grito;
SARÇAS DE FOGO \2~>

Em vão me agito na apertada rede...


Mais me embaraço quanto mais me agito !

Falta-me o senso ; a esmo,


( nino um cego, a tactear, busco nem sei que porto.
E ando tão difFerente de mim mesmo,
Que nem sei se estou vivo ou se estou morto.

Sei que entro as nuvens paira


Minha fronte, e meus pés andam pisando a terra ;
Sei que tudo me alegra e me desvaira,
E a paz desfructo, supportando a guerra.

E assim peno e assim vivo :


Que diverso querer ! que diversa vontade !
Se estou livre, desejo estar captivo ;
se captivo, desejo a liberdade !

E assim vivo, e assim peno :


'Tenho a bocca a sorrir e os olhos cheios de água,
E acho o nectar n'um calix de veneno,
A chorar de prazer e a rir de magua.

Infinda magua ! infindo


Prazer ! pranto gostoso e Sorrisos convulsos I
Ah ! como dóe assim viver, sentindo
Azas nos hombros o grilhões nos pulsos !
126 SARÇAS DE FOGO

NEL MEZZO DEL CAMIN...

Cheguei. Chegaste. l i n h a s íatigada


E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada
E a alma de sonhos povoada ou tinha...

E paramos do súbito na estrada


Da vida : longos annos, presa á minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida


Nem o pranto os teus olhos humedece,
Nem te commove a dôr da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,


Vendo o teu vulto que desapparece
Na extrema curva do caminho extremo..
SARÇAS DE FOGO 127

SOLITUDO

Já que te e grato o soffrimento alheio,)


Vae ! Não fique om minlTalma nem um traço
Nem um vestígio t e u ! Por todo o espaço
Se estenda o luto carregado e feio.

Turvem-se os largos céos... No leito escasso


Dos rios a água seque... E eu tenha o seio
Como um deserto pavoroso, cheio
De horrores, sem sigual do humano passo..

\ ão-se as aves e as flores juntamente


Comtigo... Torre o sol a verde alfombra,
A areia envolva a solidão inteira...

E só fique om meu peito o Sahara ardente


Sem um oásis, sem a esquiva sombra
De uma isolada e tremula palmeira !
128 SARÇAS DE FOGO

A CANÇÃO DE ROMEU

Abre a janella... accorda!


Que eu, só por te accordar,
Vou pulsando a guitarra, corda a corda,
Ao luar !

As estrellas surgiram
Todas : e o limpo véo,
Como lírios alvíssimos, cobriram
Do céo.

De todas a mais bella


Não veio inda, porém :
Falta uma estrella... Eis tu ! Abre a janella,
E vem !

A alva cortina anciosa


Do leito entreabre; e, ao chão
SARÇAS DE FOGO 129

Saltando, o ouvido presta á harmoniosa


Canção.

Solta os eabellos cheios


De aroma : e semi-iuís,
Surjam formosos, trêmulos, teus seios
A' luz.

Repousa o espaço mudo ;


Nem uma aragem, vês ?
Tudo é silencio, tudo calma, tudo
Mudoz.

Abro a janella, accorda !


Que eu, só por te accordar,
Vou pulsando a guitarra corda a corda,
Ao luar !

Que puro céo ! que pura


Noite! nem uni rumor...
Só a guitarra em minhas mãos murmura
Amor '....

Não foi o vento brando


Que ouviste soar aqui •
E o choro da guitarra, perguntando
Por ti.

Não foi a ave que ouviste,


Chilrando no jardim :
130 SARÇAS D!: FOGO

E a guitarra que gome o trilla triste,


Assim.

Vem, que esta voz secreta


E o canto do Romeu :
Accorda! quem te chama, Juliefa,
Sou ou !

Porém... (> eotovia,


Silencio! a aurora, em vôos
De nevoa e rosas, não desdobro o dia
Nos céos...

Silencio! que ella accorda...


J á fulge o seu olhar...
Adormeça a guitarra, corda a corda,
Ao luar !
SARÇAS DE FOGO 131

A TENTAÇÃO DE XENOKRATES

Nada turbava aquella vida austera :


Calmo, traçada a túnica severa,
Curva a fronte, cruzando a passos lentos
As aléas de platanos, — dizia
Das faculdades da alma e da theoria
De Platão aos discípulos attentos.

Ora o viam perder-se, concentrado,


No labyrintbo escuso de intricado
Controverso e sophisiieo problema,
Ora os pontos obscuros explicando
Do Tiniineu, e seguro manejando
A lamina bigumea do dilemma.
132 SARÇAS DE FOGO

Muitas vozes, nas mãos pousando a fronte,


Com o xago olhar perdido no horizonte,
Em pertinaz meditação ficava...
Assim, j u n t o ás sagradas oliveiras,
Era immoío sou corpo horas inteiras,
Mas longe d'elle o espirito pairava.

Longe, acima do humano fervedouro,


Sobre as nuvens radiantes,
Sobre a planície das estrellas de ouro :
Na alta esphera, no paramo profundo
Onde não vão, errantes,
Bramir as vozes das paixões do mundo :

Abi, na eterna calma,


Na eterna luz dos céos silenciosos,
Voa, abrindo, sua alma
As azas invisíveis,
E interrogando os vultos magcstosos
Dos deuses impassíveis...

E a noite desce, a fuma o Armamento...


Sôa somente, a espaços,
0 prolongado sussurrar do vento...
E expira, ás luzes ultimas do dia,
Todo o rumor de passos
Pelos ermos jardins da Academia.

E, longe, luz mais pura


Que a e.xtincta luz d'aquclle dia morto
Xenókrates procura :
SARÇAS DE FOGO 133

— Immortal claridade
Que é protecção e amor, vida o conforto,
Porque é a luz da verdade !

II

Ora Laís, a siciliana escrava


i)\w Apelles seduzira, amada e bella
Por esse tempo Athenas dominava...

Nem o frio Demosthenes altivo


Foge-lhe o império : dos encantos delia,
Curva-se o próprio Diogonos captivo.

Não é maior que a sua a encantadora


Graça das fôrmas nitidas e puras
Da irresistível Diana caçadora;

lia nos seus olhos um poder divino ;


Ha venenos e pérfidas doçuras
Na fita de seu lábio purpurino ;

'Tem nos seios — dois pássaros (pio pulam


Ao contado de um beijo, — nos pequenos
Pés, que as sandálias sôfregas osculam,

Na coxa, no quadril, no torso airoso,


134 SARÇAS DE FOGO

Todo o primor da eallypigia Venus


— Estatua vixa e esplendida do Cozo.

Caem-lhe aos pés as pérolas o as flores,


As drachmas de ouro, as almas o os presentes,
Por uma noite de febris ardores.

Heliostes e Eupatridas sagrados,


Artistas e Oradores eloqüentes
Leva ao carro de gloria acorrentados...

E os generaes indomitos, vencidos


Vendo-a, sentem por baixo das couraças
Os corações de súbito feridos.

III

Certa noite, ao clamor da festa, em gala,


Ao som continuo das lavradas taças
Tinindo cheias na espaçosa sala,

Vozeava o Cerâmico, repleto


De cortozans e flores. As mais bellas
Das hetéres de Samos e Mileto

Eram todas na orgia. listas bebiam,


Nuas, á deusa Cores. Longe, aquellas
SARÇAS DE FOGO 135

Em animados grupos discutiam.

Pendentes no ar, em nuvens densas, vários


Quentes incensos indicos queimando,
Oscillavam de leve os incensarios.

Tíbios flautins fiuissiinos gritavam.


E, as curvas harpas de ouro acompanhando,
Crótalos claros de metal cantavam...

0 espumeo Chypre as faces dos convivas


Accendia. Soavam desvairados
Febris a eventos de canções lascivas.

Via-se a um lado a pallida Phrynéa,


Provocando os olhares deslumbrados
E os sensuaes desejos da asscmbléa.

Laís além falava : e, de seus lábios


Suspensos, a beber-lhe a xoz maxiosa,
Cercavam-n'a Philosophos e Sábios.

Nisto, entre a turba, ouviu-se a zombeteira


Voz de Aristippo : — Es bella e poderosa,
Laís! mas, por que sejas a primeira,

A mais irresistível das hetéres,


Cumpre domar Xenókrates ! Es bella...
Poderás fasciual-o, se o quizeres !

Doma-o, e serás rainha ! — > Ella sorria...


136 SARÇAS DE FOGO

E apostou que, submisso o vil, íVaquella


Mesma noite a seus pés o prostrarta.

Apostou e partiu...

IV

Na alcoxa muda o quieta,


Apenas se escutava
Leve, a areia, a cahir no x idro da ampulheta..,
Xenôkratos velava.

Mas que harmonia estranha,


Que sussurro lá fora ! Agita-so o arvoredo
Que o límpido luar serenamente banha :
Treme, fala em segredo...

As estrellas, que o o -o cobrem de lado a lado,


A água onde.inte dos lagos
Fitam, iTella espalhando o sen clarão dourado,
Em tímidos affagos.

Solta um pássaro o canto.


Ha um cheiro de carne á beira dos caminhos...
K aooordain ao luar, como que por encanto,
Estremecendo, os ninhos...
SARÇAS DE FOGO 137

Que indistincto rumor ! Vibram na voz do xento


Crebros, vivos arpejos,
E vae da terra e vem do curvo firmamento
Como uni clamor de beijos.

Com as azas de ouro, em roda


Do céo, naquella noite humida o clara, vôa
Alguém cpie a tudo accorda c a natureza toda
De desejos pox ôa :

E a Volúpia que passa e no a r desusa ; passa,


E os corações iuflamma...
Lá vae ! E, sobre a terra, o Amor, da curva taça
Que traz ás mãos, derrama.

E entretanto, deixando
A alva barba espalhar-se em rolos sobre o leito,
Xcnókrates medita, as magras mãos cruzando
Sobre o escarnado peito.

Scísma. E tão aturada é a scisma em que lluclua


Sua alma, e que a regiões ignotas o transporta,
— Que não sente Laís, que surge semi-núa
Da muda alcova á porta.
138 SARÇAS DE FOGO

E bella assim ! Desprende a knemide. Revolta,


Ondeante a cabelloira, aos niveos hombros solta,
Cobre-lhe os seios mis o a curva dos quadris,
N'um louco turbilhão de áureos fios subtis.
Que fogo em sou olhar ! Vel-o o a seus pés prostrada
A alma ver supplicante, om lagrimas banhada,
Em desejos aecesa ! Olhar divino ' Olhar
Que encadeia, o domina, c arrasta ao seu altar
Os que morrem por ella, e ao céo pedem mais vida,
P a r a tel-a por ella inda uma vez perdida !
Mas Xenókratcs scisma...

E om vão que, a prumo, o sol


D'esse olhar abre a luz n u m radiante arrebol...
Em vão ! Vem tarde o sol! Jaz oxtineta a cratera;
Não ha xida, nem ar, nem luz, nem primavera :
GeTo apenas! E, em golo envolto, ergue o vulcão
Os flancos, entre a nevoa o a opaca cerrarão...

Scisma o sábio. (>ue importa aquelle corpo ardente


Que o envolve, e enlaça, e prende, u aperta loucamente?
Fosse cadáver frio o mudo ancião ! talvez
Mais sentisse o calor d'aquella eburnea tez!...
SARÇAS DE FOGO 139

Em vão Laís o abraça, e o nacarado lábio


Chega-lhe ao lábio frio... Em vão! Medita o sábio,
E nem sente o calor d'essc corpo que o attráe,
Nem o aroma febril que (Tessa bocca sáe.

E ella : — Vivo não és ! Jurei domar rim homem,


Alas de beijos não sei que a pedra fria domem ! —

Xenókrates então do leito levantou


0 corpo, e o olhar no olhar da cortezã crax ou :

— Pôde rugir a carne... Embora ! D'ella acima


Paira o espirito ideal (pie a purifica e anima :
Cobrem nuvens o espaço, o, acima do atro véo
Das nuvens, brilha a estrella illuminando o céo! —

Disse. E outra vez, deixando


A alva barba espalhar-se em rolos sobre o leito,
Quedou-se a meditar, as magras mãos cruzando
Sobre o oscarnado peito.
ALMA INQUIETA
A AVENIDA DAS LAGRIMAS

A um Poeta morto

Quando a primeira vez a harmonia secreta


De uma lyra accordou, gemendo, a terra inteira,
Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lagrima primeira.

E o poeta sentiu os ofhos rasos de água;


Subiu-lhe á bocca, ancioso, o primeiro queixume :
Tinha nascido a llôr da Paixão c da Magua,
Que possue, como a rosa, espinhos e perfumo.

E na terra, por onde o Sonhador passaxa,


Ia a roxa corolla espalhando as Sementes :
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lagrimas ardentes.

Foi assim que se fez a Via Dolorosa,


A avenida cnsombrada e triste da Saudade,
144 ALMA INQUIETA

Onde se arrasta, á noite, a procissão chorosa


Dos orphãos do carinho o da felicidade.

Recalcando no peito os gritos e os soluços,


Tu conhecoste bem essa longa avenida,
— Tu que, chorando em vão, io esfalfaslo, de braços,
Para, infeliz, galgar o Calvário da vida.

Teu pé deixou também um sigual n'este solo ;


Também por este solo arrastaste o teu manto...
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinlias ao rollo,
Passou para outras mãos, molhou-se de outro pranto.

Mas tua alma ficou, livre da desventura,


Docemente sonhando, ás caricias da lua :
Entre as flores, agora, uma outra flor fulgura,
Guardando na corolla uma lembrança lua...

0 aroma d'ossa flor, que o teu niartvrio encerra,


Se immortalisará, pelas almas disperso
— Porque purificou a torpeza da lerra
Quem deixou sobre a terra uma lagrima e um versn.
ALMA INQUIETA 145

INANIA VERBA

Ah! quem ha-de exprimir,alma impotente e escrava,


0 que a bocca não diz, o que a mão não escreve?
— Ardes, sangras, pregada á tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

0 Pensamento ferve, o é um turbilhão de kwa :


A Fôrma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a ldéa leve,
Que, perfume o clarão, refulgia o voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo ?


Ai! quem ha-de dizer as ancias infinitas
Do sonho? o o céo que foge á mão que se levanta ?

E a ira muda ? e o asco mudo ? e o desespero 11111110?


E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta ?!
9
146 ALMA INQUIETA

MIDSUMMERS NIGTH'S DREAM

Quem o encanto dirá (Tostas noites do estio?


Corre de estrella a estrella um leve calofrío,
lia queixas doces no ar... Eu, recolhido e só,
Ergo o sonho da terra, ergo a fronte do pó,
Para purificar o coração manchado,
Cheio de ódio, de fel, de angustia e de peccado...

Que exquisita saudade ! — Lma lembrança estranha


De ter vivido j á no alto de uma montanha,
Tão alta, que tocava o céo... Bello paiz,
Onde, em perpetuo sonho, eu vivia feliz,
Livre da ingratidão, livre da indifferença,
No seio maternal da Illusão e da ( ronca !

Que inexorável mão, som piedade, captivo,


Estrellas, me encerrou no cárcere em que vivo ?
Louco, cm vão do profundo horror d'este alascal
ALMA INQUIETA 147

Braccjo, e peno em vão, para fugir do mal!


Porque, para uma ignota e longínqua paragem,
Astros, não me levaes nessa eterna viagem ?

Ah! quem pôde saber de que outras vidas veio?...


Quantas vezes, fitando a Via Láctea, creio
"Todo o mysterio ver aberto ao meu olhar!
Tremo... e cuido sentir dentro do mim pesar [dida,
Uma alma alheia, uma alma em minha alma escon-
— 0 cadáver de alguém de quem carrego a vida...
148 ALMA INQUIETA

MATER

Tu, grande Mãe!... do amor do teus filhos escrava,


Para teus filhos es, no caminho da vida,
Como a faixa de luz que o povo hebreu guiava
A longe Terra Promettida.

Jorra de teu olhar uni rio luminoso...


Pois, para baptisar essas almas em flor,
Deixas easoalear (Tosse olhar carinhoso
Todo o Jordão do teu amor.

E espalham tanto brilho as azas infinitas


Que expandes sobre os teus, carinhosas e bellas,
Que o seu grande clarão sobe, quando as agitas,
Ti vae perder-se entro as estrellas.

E elles, pelos degráos da luz ampla o sagrada,


Fogem da humana dôr, fogem do humano pó,
E, á procura de Deus, xão subindo essa escada,
Que é como a escada de Jacob.
ALMA INQUIETA 149

INCONTENTADO

Paixão sem grita, amor som agonia,


Que não opprime nem magoa o peito,
Que nada mais do que possúe queria,
Ti com tão pouco vive satisfeito...

Amor, que os exaggeros repudia,


Misturado de estima e de respeito,
E, tirando das maguas alegria,
Fica farto, ficando sem proveito...

Viva sempre a paixão que me consome,


Sem uma queixa, sem uin só lamento!
Arda sempre este amor que desanimas !

E ou tenha sempre, ao murmurar teu nome,


0 coração, máo grado o soffrimento,
Como um rosai desabrochado em rimas.
150 ALMA INQUIETA

SONHO

Quantas vezes, om sonho, as azas da saudade


Solto p a r a onde estás, e fico de ti p e r t o !
Como, depois do sonho, é triste a realidade !
Como tudo, sem ti, fica depois deserto !

Sonho... Minha alma vôa. O ar gorgeia e soluça.


Noite... A amplidão se estendo, illuminada e calma :
De cada estrella do ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.

Ha por tudo a alegria e o rumor de um noivado.


Em torno a cada ninho anda bailando uma aza.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva a luz do luar cáe sobre a tua casa.

•Porém, subitamente, um relâmpago corta


Todo o espaço... O rumor de um psalmo se levanta.
E, sorrindo, serena, appareees á porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...
ALMA INQUIETA

PRIMAVERA

Ah ! quem nos dera que isto, como outr'ora.


Inda nos eommovesse ! Ah ! quem nos dera
Que inda juntos pudéssemos agora
Ver o desabrochar da primavera !

Sabíamos com os pássaros e a aurora...


E, no chão, sobro os troncos cheios de hera,
Sentavas-to sorrindo, de hora em hora :
i' Beijemo-nos ! amomo-nos ! espera !

E essa carne de rosa rescendia,


E aos meus beijos de fogo palpitax-a,
Alquehrada de amor c de cansaço...

A alma da terra gorgeiax r a e ria...


Nascia a primavera... E eu te levava,
Primavera de carne, pelo braço !
152 ALMA INQUIETA

DORMINDO

De qual de x ós desceu para o exílio do mundo


A alma (Testa mulher, astros do eco profundo ?
Dorme talvez agora... Immaculas, serenas,
Cruzam-se n'uma prece as suas mãos pequenas.
P a r a a respiração suavíssima lhe ouvir,
A noite se debruça... E, a oscillar e a fulgir,
Brande o gladio do luz, (pio a escuridão recorta,
Lm archanjo, de pé, guardando a sua porta.
Versos ! podeis voar em torno (Tosse leito,
Ti pairar sobro o alvor virginal do seu peito,
Aves, tontas de luz, sobre um fresco pomar...
Dorme... Rimas febris, podeis febris voar...
Como olia, num livor de nevoas mvsteriosas,
Dorme o céo, campo azul semeado de rosas ;
E dois anjos do céo, alvos <> pequeninos,
Vêm dormir nos dois céos dos seus olhos divinos.
Dorme... Estrellas, velai, intindando-a de luz !
ALMA INQUIETA 1~>3

Caravana, que Deus pelo espaço conduz,


Todo o vosso clarão n'esta pequena alcova
Sobre ella, como um nimbo esplendido, se inova :
E, a sorrir e a sonhar, sua leve cabeça
Como a da Virgem-Mãe repouse e resplandeça!
154 ALMA INQUIETA

NOCTURNO

Já toda a t e r r a adormece.
Sáe um soluço da flor.
Rompe de tudo um rumor,
Leve como o de uma prece.

A tarde cáe. Mysterioso,


Geme entre os ramos o vento.
V, ha por todo o Armamento
Lm anceio doloroso.

Áureo thuribulo immenso,


0 occaso em purpuras arde,
E para a oração da tarde
Desfaz-se em rolos de incenso

Moribundos e suaves,
0 vento na aza conduz
ALMA INQUIETA 155

O ultimo raio da luz


E o ultimo canto das aves.

E Deus, na altura infinita,


Abre a mão profunda e calma,
Em cuja profunda palma
Todo o Universo palpita.

Mas um barulho se elex r a...


E, no paramo celeste,
A horda dos astros investe
Contra a muralha da treva.

As estrellas, psalmodiando
0 Pceian sacro, a voar,
Enchem de cânticos o ar...
E vão passando... passando...

Agora, maior tristeza,


Silencio agora mais fundo;
Dorme, num somno profundo,
Som sonhos, a Natureza.

A flôr-da-noite abre o calix...


E, soltos, os pyrilampos
Cobrem a face dos campos,
Enchem o seio dos valles.

Trefegos e alvoroçados,
Saltam, fantásticos Djinns,
156 ALMA lNyUIETA

De entre as moitas de jasmins,


De entro os rosaes perfumados

Um (Telles, pela janella


Entra do teu aposento,
E pára, — plácido e attento,
Vendo-te, — pallida e bella.

Chega ao teu cabello fino,


Mette-so nelle : e fulgura,
E arde nossa noite escura,
Como um astro pequenino.

E fica. Os outros lá fora


Deliram. Dormes... Feliz,
Não ouves o que elle diz,
Não ouves como elle chora...

Diz elle : 0 poeta encerra


Uma noite, em si, mais trisie
Que essa que, quando dormislc
Velava a face da terra...

Os outros saem do meio


Das moitas cheias de flores :
Mas eu sahi de entre as dores
Que elle tem dentro do seio.

Os outros a toda parte


Levam o vivo clarão :
ALMA INQUIETA 157

E eu vim do seu coração


Só para ver-to e beijar-to.

Mandou-me sua alma louca,


Que a dôr da ausência consome,
Sabor se em sonho o sou nome
Brilha agora cm tua bocca !

Mandou-me ficar suspenso


Sobre o teu peito deserto,
Por contemplar de mais perto
Todo esse deserto immonso ! «

Isso diz o pyrilauipo...


Anda lá fora um rumor
De azas rufladas... A flor
Desperta, desperta o campo.,.

Todos os outros, prevendo


Que vinha o dia, partiram.
Todos os outros fugiram...
Só elle fica gemendo.

Fica, ancioso e sósinho,


Sobre o teu somno pairando...
E apenas a luz fechando,
Volve de novo ao seu ninho,

Quando vê, inda não farto


De te ver e de te amar,
Que o sol descerras do olhar,
E o dia nasce em teu quarto...
158 ALMA INQUIETA

VIRGENS MORTAS

Quando uma virgem morre, uma estrella apparece,


Nova, no velho engaste azul do Armamento.
E a alma da que morreu, de momento em momento,
Na luz da que nasceu palpita e resplandece.

O vós, que, no silencio e no recolhimento


Do campo, conversaes a sós quando anoitece,
Cuidado Lo que dizeis, como um rumor de prece,
Vae sussurrar no céo, levado pelo vento...

Namorados, que andaes com a bocca transbordando


De beijos, perturbando o campo soccgado
E o casto coração das flores inflammando,

— Piedade ! ellas vêm tudo entre as moitas escuras...


Piedade! esse impudor olfende o olhar gelado
Das que viveram sós, das que morreram puras! \
ALMA INQUIETA 159

O CAVALLEIRO POBRE

(Pouchkine)

Ninguém soube quem era o Cavalleiro Pobre,


Que viveu solitário, e morreu sem falar :
Era simples o sóbrio, era valente e nobre,
E pallido como o luar.

Antes de se entregar ás fadigas da guerra,


Dizem que um dia viu qualquer cousa do céo
V. achou tudo vazio... e pareceu-lhe a terra
Um vasto o inútil mausoléo.

Desde então, uma atroz devoradora chamma


Calcinou-lhe o desejo, o o reduziu a pó.
E nunca mais o Pobre olhou uma só dama,
— Nem uma só ! nem unia só !

Conservou, desde então, a viseira abaixada;


E, fiel á Visão, e ao seu amor fiel,
160 ALMA INQUIETA

Trazia uma inscripção de trez lettras, gravada


A fogo c sangue no broquel.

Foi aos prelios da Fe. Na Palestina, q laudo,


No ardor do seu guerreiro o piedoso mister,
Cada filho da Cruz se batia, invocando
Lm nome caro de mulher,

Elle, rouco, brandindo o pique no ar, clamava :


Lumen endi, Regina! », o, ao clamor dVssa MI/,
Nas hostes dos ineréos como uma tromba entrava,
Irresistível o feroz.

Mil vezes sem morrer viu a morte de perto,


E negou-lhe o destino outra vida melhor :
Foi viver no deserto... E era immonso o deserto !
Mas o seu Sonho era maior !

E um dia, a se esforcei-, aos saltos, desgronhado,


Louco, velho, feroz, — naqtiella solidão
Morreu : — mudo, rilhando os dentes, devorado
Pelo seu próprio coração.
ALMA INQUIETA 161

IDA

Para a porta do céo, pallida c bella,


Ida as azas levanta o as nuvens corta,
forrem os anjos e a creança morta
Foge dos anjos namorados d'ella.

Longe do amor materno o céo que importa ?


O pranto os olhos límpidos lhe estrella...
Sob as rosas de neve da capella,
Ida soluça, vendo abrir-se i porta.

Quem lhe dera outra vez o escuro canto


Da escura terra, onde, a sangrar, sósinho,
Um coração de mãe desfaz-se em pranto !

Cerra-se a porta : os anjos todos voam...


t o m o fica distante aquelle ninho,
Que as mães adoram... mas amaldiçoam
162 ALMA INQUIETA

NOITE DE INVERNO

Sonho que estás á porta...


Estás — abro-te os braços ! — quasi morta,
Quasi morta de amor o de anciedade.
De onde ouviste o meu grilo, que voava,
E sobre as azas tremidas levava
As preces da saudade?

Corro á porta... ninguém ! Silencio o trova.


Ilirta, na sombra, a Solidão eleva
Os longos braços rígidos, do golo...
E ha pelo corredor ermo o comprido
O perfume subtil de teu cabello
E o suave rumor de teu vestido.

Ah ! se agora chegasse* !
Sc eu sentisse bater om minhas faces
A luz celeste que teus olhos b a n h a ;
ALMA INQUIETA 163

Se este quarto se enchesse de repente


Da melodia, o do clarão ardente
Que os passos te acompanha :

Beijos, presos no cárcere da bocca,


Soffreando a custo toda a sede louca,
Toda a sede infinita que os devora,
— Beijos de fogo, palpitando, cheios
De gritos, de gemidos e de anceios,
Transbordariam por leu corpo a fora !...

Rio acceso, banhando


Teu corpo, cada beijo, rutilando,
Se apressaria, acachoado e grosso :
E, cascateando, em pérolas desfeito,
Subiria a collina de teu peito,
Lambendo-te o pescoço...

Estrella humana (pie do céo descesto,


Desterrada do oco, a luz pordeste
Dos fui vos raios, amplos e serenos ;
. E na pelle morena o perfumada
Guardaste apenas essa cor doirada
Que é a mesma côr de Sirius e de Venus.

Sob a chuva de fogo


De meus beijos, amor ! terias logo
Todo o esplendor do brilho primitivo;
E, eternamente presa entre meus braços,
Bella, protegerias os meus passos,
— Astro formoso e vivo !
164 ALMA INQUIETA

Mas... talvez te olfendosse o meu desejo


E, ao teu c o n t a d o gélido, meu beijo
Fosse cahir por terra, desprezado.
Embora ! que ou ao menos to olharia,
E, preza do respeito, ficaria
Silencioso e immovel a leu lado.

Fitando o olhar ancioso


No teu, lendo esse livro mysterioso,
Eu descortinaria a minha sorte...
Até que ouvisse, (Tosse olhar ao fundo,
Soar, num dobre lugubre o profundo,
A hora da minha morte !

Longe embora de mim leu pensamento,


Ouvirias aqui, louco e violento,
Bater meu coração em cada canto ;
Ti ouvirias como unia mclopéa,
Longe embora de mim a tua idéa,
A musica abafada de meu pranto.

Dormirias, querida...
E eu, guardando-te, bella ( adormecida,
Orgulhoso e feliz com o meu thosotiro,
Tiraria os meus versos do abandono,
E elles embalariam o teu somuo,
Como uma rode de ouro.

Mas não vens! não virás! Silencio e treva.


Hirta, na sombra, a Solidão (deva
ALMA INQUIETA 165

Os longos braços rígidos, de gelo;


E ha, pelo' corredor ermo e comprido,
0 suave rumor de teu vestido
E o perfume Mihlil de teu cabello.
106 ALMA INQUIETA

VANITAS

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa o fria,


Trabalha. A alma lhe sáe da penna, allucinada,
E enche-lhe, a palpitar, a estrophe illuminada
De gritos de triumpho e gritos de agonia.

Prende a idéa fugaz ; doma a rima bravia;


Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada :
« Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada !
Filha-do meu trabalho! ergue-te á luz do dia !

Cheia da minha febre e da minha alma cheia,


Arranquei-te da Vida ao adyto profundo,
Arranquei-te do Amor á mina ampla e secreta!

Posso agora morrer, porque vives ! » E o Poeta


Pensa que vae eahir, exhauslo, ao pé de um mundo,
E cáe—vaidade humana! — ao pé do um grão de areia.. •
ALMA INQUIETA 167

TKRCETTOS

Noite ainda, quando ella me pedia


Entre dois beijos que me fosse embora,
Eu, com os olhos em lagrimas, dizia :

Espera ao menos que desponte a aurora !


Tua alcova é cheirosa como um ninho...
E olha que escuridão ha lá por fora'.

Como queres que eu vá, triste e sósinho,


Casando a trova e o frio de meu peito
Ao frio e á treva que ha pelo caminho?!

Ouves? é o vento! é um temporal desfeito!


Não me arrojes á chuva e á tempestade !
Não me exiles do valle do teu leito!
168 ALMA INQUIETA

Morrerei de afflicção o de saudade...


Espera ! até que o dia resplandeça,
Aquece-me com a tua mocidade!

Sobre o teu collo deixa-me a cabeça


Repousar, como ha pouco repousava...
Espera um pouco! deixa que amanheça!

— E ella abria-me os braços. E eu ficava.

II

E, já manhã, quando ella me pedia


Que do seu claro corpo me afastasse,
Eu, com os olhos em lagrimas, dizia :

Não pôde ser! não vós que o dia nasce .'


A aurora, em fogo o sangue, as nuvens corta
Que diria de ti quem me encontrasse ?

Ah! nem me digas que isso pouco importa!.


Que pensariam, vendo-me, apressado,
Tão cedo assim, sabiiulo a tua porta,

Vendo-me exhauslo, pallido, cansado,


E todo pelo aroma de teu beijo
Escandalosamente perfumado ?
ALMA INQUIETA 169

O amor, querida, uão exclúe o pejo...


Espera! até que o sol desappareça,
Beija-me a bocca ! mata-mo o desejo!

Sobre o teu collo deixa-mo a cabeça


Repousar, como ha pouco repousava !
Espera um pouco! deixa que anoiteça !

— E ella abria-me os braços. E eu ficava.

10
1/0 ALMA INQUIETA

IN EXTREM1S

Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia


Assim 1 de um sol assim !
Tu, desgrenhada e fria,
F r i a ! postos nos meus os teus olhos molhados,
E apertando nos teus os meus dedos gelados...

E um dia assim ! de um sol assim! E assim a csphera


Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Azas, tontas de luz, cortando o Armamento!
Ninhos cantando! Em flor a torra toda! 0 vento
Despencando os rosaes, sacudindo o arvoredo...

E, aqui dentro,o silencio...E este espanto! eeste medo!


Nós dois... e, entre nós dois, implacável o forte,
A a r r e d a r - m e de ti, cada xez mais, a morto...

Eu, com o frio a crescer no coração, — tão cheio


ALMA INQUIETA 171

De ti, mesmo no horror do derradeiro anceio!


Tu, vendo retorcer-se amarguradamente
A bocca que beijava a tua bocca ardente,
A bocca que foi tua!

E eu morrendo! e eu morrendo,
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o ceo, e vendo
Tão bella palpitar nos teus olhos, querida,
A delicia da vida! a delicia da vida!
172 ALMA INQUIETA

A ALVORADA DO AMOU

L 111 horror grande e mudo, um silencio profundo


No dia do Peccado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disso :

Chega-te a m i m ! entra no meu amor,


Ti á minha carne entrega a tua carne om flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o peccado!
Ahençòo o teu crime, acolho o leu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lagrimas do rosto!

^ é ! tudo nos repelle : a toda a rreação


Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A colora de Deus torce as arvores, cresta
Como um tufão do fogo o Seio da floresta,
ALMA INQUIETA 173

Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;


As estrellas estão cheias de calofrios ;
Ruge soturno o m a r ; turva-se hediondo o céo...

Vamos! que importa Deus ? Desata, como um véo,


Sobre a tua nudez a eabelleira! Vamos !
Arda em chammas o chão; rasguem-te a pelle os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes atravez,
Se cmmarauhem no chão as serpes aos teus pés...
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
(Ilumina o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo levando o teu corpo querido !

Pôde, em redor de ti, ludo se anniquillar :


— Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares o céos, arvores e montanhas,
Porque a Vida perpetua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da bocca, se cantares !
Rios te correrão dos olhos, se chorares !
E se, em torno ao teu corpo encantador e nú,
Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que peccaste!

Ah! bemdito o momento em que me revelaste


0 amor com o teu peccado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico, na terra, á luz dos olhos teus,
— Terra, melhor que o Céo! homem, maior que Deus I
10.
174 ALMA INQUIETA

V1TA NUOVA

Se ao mesmo gozo antigo me convidas,


Com esses mesmos olhos abrazados,
Mata a recordação das horas idas,
Das horas que vivemos apartados!

Não me fales das lagrimas perdidas,


Não me fales dos beijos dissipados!
Ha numa vida humana cem mil vidas,
Cabem num coração cem mil peooados!

Amo-te! A febre que suppunhas morta


Rex ive. Esquece o meu passado, louca !
Que importa a vida que passou? Que importa,

Se inda te amo, depois de amores tantos,


E inda tenho, nos olhos e na bocca,
Novas fontes de beijos e de prantos 9 !
AIíMA INQUIETA 175

MANHA DE VERÃO

As nuvens, que, em bulcõcs, sobre o rio rodavam,


Já, com o vir da manhã, do rio se levantam.
Como hontem, sob a chuva, estas águas choravam!
E hoje, saudando o sol, como estas águas cantam !

A estrella, que ficou por ultimo velando,


Noiva que espera o noivo e suspira em segredo,
— Desmaia de pudor, apaga, palpitando,
A pupilla amorosa, e estremece de medo.

Ha pelo Parahyba um sussurro de vozes,


Tremor de seios nús... corpos brancos luzindo...
E, alvas, a cavalgar broncos monstros ferozes,
Passam, como num sonho, as nayades fugindo.

A rosa, que accordou sob as ramas cheirosas,


Diz-me: « Accorda com um beijo as outras flores quietas!
176 ALMA INQUIETA

Poeta! Deus creou as mulheres e as rosas


Para os beijos do sol e os beijos dos poetas!

E a ave diz : Sabes t u ! conheço-a bem... Pareço


Que os Gênios do Oberon bailam polo ar dispersos,
V, que o céo se abre todo, o que a terra floresce,
— Quando ella principia a recitar teus versos!

E diz a luz : Conheço a cõr (Taquella bocca!


Bem conheço a maciez d'aquellas mãos pequenas!
Não fosse (dia aos jardins roubar, trefega e louca,
0 rubor da papoula o o alvor das açucenas!

Diz a palmeira : Invejo-a! ao xir a luz radiante,


Vem o vento agitar-me e desnastrar-nio a coma :
E eu pelo vento envio ao seu cabello ondeante
Todo o meu esplendor e todo o meu aroma!

Ti a floresta, que canta, c o sol, que abre a coroa


De ouro fulvo, espancando a matutina bruma,
E o lírio, que estremece, o o pássaro, que vôa,
Ti a água, cheia de sons o de floecos de espuma,

Tudo, a cõr, o clarão, o perfume o o gorgeio,


Tudo, elevando a voz nesta manhã do estio,
Diz : « Pudesses dormir, poela ! no sou seio,
Curvo como esto céo, manso como esto rio!
ALMA INQUIETA 177

DENTRO DA NOITE

Ficas a um canto da sala,


Olhas-me e finges que lês...
Ainda uma vez te ouço a fala,
Olho-te ainda uma vez,
Saio... Silencio por tudo :
Nem uma folha so agita ;
E o firmamento, amplo e mudo,
Cheio de estrellas, palpita.
E eu vou súsinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz o teu olhar.

Mas não sei que luz me banha


Todo de um vivo clarão ;
Não sei que musica extranha
Me sobe do coração.
178 ALMA INQUIETA

Como que, em cantos suaves,


Polo caminho que sigo,
Eu levo todas as aves,
Todos os astros commigo.
E é tanta essa luz, é tanta
Essa musica sem par,
Que eu nem sei se é a luz que canta,
Se é o som cpio vejo brilhar.

Caminho, em êxtase, cheio


Da luz de todos os soes,
Levando dentro do seio
Um ninho de rouxinóes.
E tanto brilho derramo,
E tanta musica espalho,
Que accordo os ninhos inflammo
As gottas frias do orvalho.
E vou sósinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Caminho. A torra deserta


Anima-se. Aqui e alli,
Por toda parte desperta
Um coração que sorri.
Em tudo palpita um beijo,
Longo, ancioso, apaixonado,
E um delirante desejo
De amar e de ser amado.
ALMA INQUIETA 179

E tudo, — o céo que se arqueia


Cheio de estrellas, o mar,
Os troncos negros, a areia,
— Pergunta, ao ver-me passar :

0 Amor, que a teu lado levas,


A que logar te conduz,
Que entras, coberto do trevas,
•E sáes coberto de luz ?
De onde xens? que firmamento
Correste, durante o dia,
Que voltas lançando ao vento
Esta inaudita harmonia?
Que paiz de maravilhas,
Que Eldorado singular,
Tu visitaste, que brilhas
Mais do que a estrella polar"?

E eu continuo a viagem,
Fantasma deslumbrador,
Seguido por tua imagem,
Seguido por teu amor.
Sigo... Dissipo a tristeza,
De tudo, por todo o espaço,
E ardo, o canto, e a Natureza
Arde e canta, quando eu passo
— Só porque passo pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz o teu olhar...
180 ALMA INQUIETA

CAMPO SANTO

Os annos matam o dizimam tanto


Como as inundações o como as pestes. .
A alma de cada velho é um Campo Santo,
Que a velhice cobriu de cruzes e cyprestes
Orvalhados de pranto.

Mas as almas não morrem como as flores,


Como os homens, os pássaros o as feras :
Rotas, despedaçadas pelas dores,
Renascem para o sol de novas primaveras
E de novos amores.

Assim, ás vezes, na amplidão silento,


No somno fundo, na terrível calma
Do Campo Santo, ouxe-se um grito ardente
E a Saudade! é a Saudade!... E o cemitério da alma
Accorda de repente.
ALMA INQUIETA 1S1

Eivam os ventos funeracs, medonhos...


Brilha o luar... As lapides se agitam...
E, sob a rama dos chorões tristonhos,
Sonhos mortos de amor despertam e palpitam,

1!
182 ALMA INQUIETA

DESTERRO

Já me não amas? Basta! — Irei, triste, e exilado


Do meu primeiro amor [tara outro amor, sósinho...
Adeus, carne cheirosa! Adeus, primeiro ninho
Do meu delírio! Adeus, bello corpo adorado!

Em ti, como n'um valle, adormeci deitado,


No meu sonho de amor, em meio do caminho...
Beijo-te inda uma vez, num ultimo carinho,
Como quem vae sahir da pátria desterrado!

Adeus, corpo gentil, pátria do meu desejo!


Berço em que se omplumou o meu primeiro idylho,
Terra em que floresceu o meu primeiro beijo!

Adeus! Esse outro amor ha-de amargar-me tanto


Como o pão qu3 se come entre estranhos, no exílio,
Amassado com fel e embebido de pranto...
ALMA INQUIETA 183

ROMEU E JULIETA

(Acto III, scena vn.)

Porque partir tão cedo? inda vem longe o dia...


Ouves? é o rouxinol. Não é da cotovia
Esta encantada voz. Repara, meu amor :
Quem canta é o rouxinol na romanzeira em flor.
Toda a noite essa voz, que te feriu o ouvido,
Pòvóa a solidão como um longo gemido.
Abracemo-nos! fica! inda vem longe o sol!
Não canta a cotovia : é a voz do rouxinol!

nOMEU.

E a voz da cotovia annunciando a aurora !


Vês? ha uni leve tremor pelo horizonte a fora...
Das nuvens do levante abre-se o argenteo véo,
E apagam-se de todo as lâmpadas do céo.
184 ALMA INQUIETA

Já, snbre o cimo azul das serras nebulosas,


Hesitante, a manhã coroada do rosas
Agita os lexes pés, o fica a palpitar
Sobre as azas de luz, como quem quer voar.
Olha! mais um momento, um rápido momento,
E o dia sorrirá por todo o firmamento!
Adens! devo partir! Partir para viver...
Ou ficar a tens p ' s para a teus p"s morrer!

Jl .-L1KTA.

Não é o dia ! O espaço inda se estende, cheio


Da noite caridosa. Exhala do igneo seio
O sol, piedoso e bom, este vivo clarão
Só para ie guiar por entre a cerrarão...
Fica um minuto m a i s ! porque partir tão cedo?

Mandas? não partirei! esperarei som modo


Que a morte, c o m a manhã, venha eucontrar-nic aqui!
Succumbirei feliz, suecumbindo por ti!
Mandas ? não partirei! queres? direi comtigo
Que o mentira o que vejo e mentira o que digo!
Sim! tens razão! não é da cotovia a voz
Este encantado som que erra em torno de nós!
E um reflexo da lua a claridade estranha
Que aponta no horizonte acima da montanha!
Fico para to ver, fico para te ouvir,
Fico para te amar, morro por não partir!
Mandas? não partirei! cumpra-se a minha sorte!
Juliela assim o quiz : bemvinda seja a morte!
Meu amor, meu amor! olha-me assim ! assim!
ALMA INQUIETA 185

Não! é o dia! i" a manhã! Parte ! foge de m i m !


Parle ! apressa-to ! foge ! A cotovia canta
E do nascente em fogo o dia se levanta...
Ali! reconheço emfim estas notas fataes !
0 dia!... a luz do sol cresce de mais em mais
Sobre a noite nupcial do amor e da loucura !

r.ovna .
tresre... E cresce com ella a nossa desventura!
186 ALMA INQUIETA

VINHA DE NABOTII

Maldito aquelle dia em que abriste em meu seio,


Cruel, esta paixão, como, ampla e illuminada,
Uma clareira verde, aberta ao sol, no meio
Da espessa escuridão de uma selva cerrada!

Ah! trez vezes maldito o amor que me avassalla,


E me obriga a viver dentro de um pesadelo,
Louco ! por Ioda a parte ouvindo a tua fala,
Vendo por toda a parte a côr do teu cabello!

De teu collo no valle embalsamado e puro


Nunca descansarei, como num Paraíso,
Sob a tenda aromai desse cabello escuro,
Olhando o teu olhar, sorrindo ao (eu sorriso.

Desvairas-me a razão, tiras-mo a calma e o somno!


Nunca te possuirei, bella o invejada vinha,
O Vinha de Naboth que tanto ambiciono!
O alma que procuro o nunca serás minha !
ALMA INQUIETA 187

SACRILÉGIO

Como a alma pura, que teu corpo encerra,


Podes, tão bella e sensual, conter?
Pura demais para viver na terra,
Bella demais para no céo viver...

Amo-te assim, — exulta, meu desejo!


É teu grande ideal que te apparece! —
Offerecendo loucamente o beijo,
E castamente murmurando a prece!

Amo-te assim, á fronte conservando


A parra e o acantho, sob o alvor do véo,
E para a terra os olhos abaixando,
E levantando os braços para o céo.

Mesmo quando, abraçados, nos enleva


0 amor em que me abrazo e em que te abrazas,
188 ALMA INQUIETA

Vejo o teu resplandor arder na treva


E ouço a palpitação das tuas azas.

Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,


Os céos se estendem pelo teu olhar,
E, dentro d'ello, os seraphins errantes
Passam nos raios claros do luar :

Em vão! descerras humidos, e cheios


De promessas, os lábios sensuaes,
E á flor do peito empinam-se-te os seios,
Ameaçadores como dois punhaes.

Como é cheirosa a tua carne ardente!


Toco-a, c sinto-a offegar, anciosa e louca..
Beijo-a, aspiro-a... Mas sinto, de repente,
As mãos geladas e gelada a bocca :

Parece que uma santa immaculada


Desce do altar pela primeira vez,
E pela vez primeira profanada
Tem por olhos humanos a nudez...

E m b o r a ! hei-de adorar-1e n e s t a vida,


J á que, fraco demais para perdei-a,
Não posso um dia, deusa foragida,
Ir a m a r - t e no seio de uma estrella.

Beija-me! Ficarei purificado


Com o que de puro no teu beijo houver;
ALMA INQUIETA 189

Ficarei anjo, tendo-te ao meu lado :


Tu, ao meu lado, ficarás mulher.

(Juo me fulmine o horror (Testa impiedade!


Serás minha! Sacrilego e profano,
Hei-de manchar a tua castidade
E dar-te aos lábios um gemido humano!

E á sombria mudez do sanetuario


Preferirás o calido fulgor
De um cantinho da terra, solitário,
Illuminado pelo meu amor...
190 ALMA INQUIETA

ESTÂNCIAS

Ah! finda o inverno! adeus, noites, breve esquecidas.


Junto ao fogo, com as mãos estreitamente unidas!
Abracemo-nos muito! adeus! um beijo ainda!
Prediz-me o coração que é o nosso amor que finda, -
Ha-de em breve sorrir a prima\ r era. Em breve,
Branca, aos beijos do sol, ha-de fundir-se a neve.
E, na festa nupcial das almas o das flores,
Quando tudo accordar para os novos amores,
Meu amor! haverá dois logares vasios...
Tu tão longe de mim! e ambos, mudos e frios,
Procurando esquecer os beijos que trocámos,
E maldizendo o tempo em que nos adorámos...
ALMA INQUIETA 191

II

Mas, ás vezes, sósinha, has-de tremer, o vulto


De um fantasma entrevendo, em tua alcova occultc.
E pelo corpo todo, a offegar de desejo,
Pallida, sentirás a caricia de um beijo.
Sentirás o calor da minha bocca anciosa,
Na água que te banhar a carne cõr de rosa,
No linho do lençol que te roçar o peito.
E has-de crer que sou eu que procuro o teu leito,
E has-de crer que sou eu que procuro a tua alma!
E abrirás a janella... E, pela noite calma,
Ouvirás minha voz iio barulho dos ramos,
E-bemdirás o tempo em que nos adorámos...

III

E eu, errante, atravez das paixões, hei-de, um dia,


Volver o olhar atraz, para a estrada sombria.
Talvez uma saudade, um dia, inesperada,
Me punja o coração, como uma punhalada.
192 ALMA INQUIETA

E agitarei no vácuo as mãos, e um beijo ardente


Ha-de subir-me á bocca : o o beijo e as mãos somente
Hão-dc o vácuo encontrar, sem te encontrar, querida!
E, como tu, também mo acharei só na vida,
Só! sem o teu amor e a tua formosura :
E chorarei então a minha desventura,
Ouvindo a tua voz no barulho dos ramos,
E bemdizendo o tempo em que nos adorámos...

IV

Renascei, revivei, arvores sussurrantes !


Todas as azas vão partir, loucas e errantes,
A ruflar, a ruflar... O amor é um passarinho,
Deixemol-o partir : — desertemos o ninho...
A primavera vem. Vae-se o inverno. Que importa
Que a primavera encontre esta ventura morta?
Que importa que o esplendor do universal noivado
Venha este noivo achar da noiva separado ?
Esqueçan os o amor que julgámos eterno...
— Dia que illuminaste os meus dias de inverno!
Esqueçamos o ardor dos beijos que trocámos,
Maldigamos o tempo em que nos adorámos...
ALMA INQUIETA 193

PECCADOR

Este é o altivo peccador sereno,


Que os soluços affoga na garganta,
E, calmamente, o copo de xreneno
Aos lábios frios, sem tremer, levanta.

Tonto, no escuro pantanal terreno


Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta,
Nem assim, miserável e pequeno,
Com tão grandes remorsos se quebranta.

Fecha a vergonha o as lagrimas comsigo.


E, o coração mordendo penitente,
E, o coração rasgando castigado,

Acceita a enormidade do castigo,


Com a mesma face com que antigamente
Acceitava a delicia do pcccado.
194 ALMA INQUIETA

REI DESTHKONADO

O teu logar vazio !... E esteve cheio,


Cheio de mocidade e de ternura !
Como brilhava a tua formosura !
Que luz divina te doirava o seio!

Quando a camisa tepida despias,


— Sob o reflexo do cabello louro,
De pé, na alcova, ardias e fulgias
Como um ídolo de ouro.

Que fundo o fogo do primeiro beijo,


Que eu le arrancava ao lábio rescondonte!
Morria o meu desejo... outro desejo
Nascia mais ardente.

Domada a febre, languida, em meus braços


Dormias, sobre os linhos revolvidos,
ALMA INQUIETA 195

Inda cheios dos últimos gemidos,


Inda quentes dos últimos abraços...

Tudo quanto eu pedira e ambicionara,


Tudo meus dedos e meus olhos calmos
Gozavam satisfeitos nos seis palmos
De tua carne saborosa e clara :

Reino perdido ! gloria dissipada


Tão loucamente! A alcova está vazia,
Mas inda com o teu cheiro perfumada,
Do teu fulgor coberta...
196 ALMA INQUIETA

so

Este, que um deus cruel arremessou á vida,


Marcando-o com o signal da sua maldição,
— Este desabrochou como a herva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...


Som constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos máos, filhos da silidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!


Alma cega, perdida á toa no caminho !
Roto casco de náo, desprezado no m a r !

E, arvore, acabará sem nunca dar um fructo...


E, homem, h a - d e morrer como viveu : sôeinho!
Sem ar! sem luz ! sem Deus ! sem fé! sem pão! sem lar!
ALMA INQUIETA 197

A UM VIOLINISTA

Quando do leu violino, as azas entreabrindo


Mansamente no espaço, iam-se as notas querulas,
Anjos de olhos azues, ás duas mãos partindo
Os seus cofres de pérolas,

— Minhas crenças de amor, esquecidas em calma


No fundo da memória, ouvindo-as recebiam
Novo alento, e outra vez do oceano de minh'alma,
Archipelago verde, á tona appareciam.

E eu via rutilar o meu amor perdido,


Bello, de nova luz e novo encanto cheio,
E um corpo, que suppunha ha muito consumido,
Agitar-se de novo e offerecer-me o seio.
198 ALMA INQUIETA

Tudo resuscitava ao teu influxo, a r t i s t a !


E minh'alma revia, allucinada o louca,
Olhos, cujo fulgor me ontontocia a vista,
Lábios, cujo sabor me eutontecia a bocc;a.

Oh m i l a g r e ! E, feliz, ajoelhava-mo, em pranto,


Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas
De um cemitério, xae achar vivas a um canto
As suas illusões que acreditava mortas...

E ficava a pensar... como se não partia


Essa fraca madeira ao teu toque violento,
Quando com tanta febre a paixão se estorcia
Dentro do pequenino e frágil instrumento!

Porque, nesse instrumento, unidos num só peito,


Todos os corações tia terra palpitavam ;
E havia dentro d'elle, em lagrimas desfeito,
O amor universal de todos os que amavam.

Rio largo de sons, tapetado de flores,


A harmonia do céo jorrava ampla e sonora ;
E, boiando e cantando, alegrias e dores
Iam corrente em fora...

A Primavera rindo esfolhava as capellas,


E entornava no chão as amphoras cheirosas ;
E a canção accordava as rosas e as estrellas,
E enchia de desejo as estrellas e as rosas.
ALMA INQUIETA 199

E a agua verde do mar, e a água fresca dos rios,


E as ilhas de esmeralda, e o céo resplandecente,
E a cordilheira, e o valle, e os mattagaes sombrios,
Crespos, c a rocha bruta exposta ao sol ardente :

«— Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava !


0 amor, caudal de fogo atropelada e accesa,
Entrava pelo sangue e pela seiva entrava,
E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!

E eil-o triste, no chão, inanimado e frio,


0 teu pobre violino, o teu amor primeiro :
E inda nas cordas ha, como um leve arrepio,
A ultima vibração do arpejo derradeiro...

Como, igr.eas e immortaes, num redomoinho insano,


Longe, a torvclinhar em céos inaccessiveis,
Pairam constellações virgens do olhar humano,
Nebulosas sem fim de mundos invisíveis :

— Tal no teu violino, a r t i s t a ! adormecido


A espera do teu arco, em grupos vaporosos,
Dorme, como num céo que não alcança o ouvido,
Um mundo interior de sons mysteriosos...

Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento 1


l)ei.xem-n'o ao sol, em gloria, em delirante festa !
E elle se embeberá dos perfumes que o vento
Traz dos frescos desvãos do valle e da floresta.
200 ALMA INQUIETA

Os pássaros virão tecer nelle os seus ninhos!


As rosas se abrirão em suas cordas rotas!
E elle derramará sobre os verdes caminhos
Da antiga melodia as esquecidas notas!

Hão-de as aves cantar, hão-de cantar as flores...


< >s astros sorrirão de amor na immensa esphera.
Ti a terra accordará para os novos amores
De nova primavera !

II

Porque, como Terpandro accresceutou á lyra,


Para a tornar mais doce, uma corda mais pura,
Que é a corda onde a paixão desprezada suspira,
Ti, em lagrimas, a arder, suspira a desventura;

Também d'esse instrumento ás quatro cordas de ouro,


O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade,
— Tu, nobre alma, chorando accreseentaste o choro
Eterno o a eterna dòr da corda da Saudade.

F saudade o que sinto, e mo enche de ais a bocca,


E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga,
Quando te ouço tocar : saudade anciosa e louca
Do primitivo amor e da belleza antiga...
ALMA INQUIETA 201

Para traz! para traz ! Basta um simples arpejo,


Basta uma nota só... Todo o espaço estremece :
E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo,
Quasi morta de dôr, Magdalena apparoco ..

Ao luar de Verona, a amorosa cabeça


De Julieta desmaia entre os braços do amante :
Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça,
E na deveza em flor a cotovia cante...

Viuva triste, que á paz do clatistro pede allivio,


Para a sua viuvez, para o seu luto immenso,
Branca, sob o livor do oscapulario niveo,
Heloisa ergue as mãos, numa nuvem de incenso...

E na suave espiral das melodias puras,


Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes.
Mostrando ao meu amor as suas amarguras,
Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.

Canta! o rio de sons que do seio te brota


E, entre os parceis da dôr corre, cascateande,
E vae, de vaga em vaga, o vae, de nota em nota,
Ao sabor da corrente os sonhos arrastando ;

Que pelo valle espalha a cabelleira inquieta


Refrescando os rosaes, e, em levo borborinho,.
Um gracejo segreda a cada borboleta,
E segreda um queixume a cada passarinho ;
202 ALMA INQUIETA

Que a todo o desconforto o a todo o soflrimento


Abre maternalmente o rogaço das águas,
— F o rio perfumado o azul do Esquecimento,
Onde se xão banhar todas as minhas maguas...
ALMA INQUIETA 203

EM UMA TARDE DE OUTONO

Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janellas


Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarellas
Rodam, caem. Viuvez, x ei bico, desconforto...

Porque, bello navio, ao clarão das estrellas,


Visitaste este mar inhabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos


A espuma, desmanchada em riso e íloccos brancos..
— Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!

E eu olho o céo deserto, o vejo o oceano triste,


E contemplo o logar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol...
204 Al MA INQUIETA

RALLADAS ROMÂNTICAS

Branea-

Vi-te pequena : ias rezando


Para primeira communhão :
Toda d . branco, murmurando,
Na fronte o véo, rosas na mão.
Não ias só : grande era o b a n d o . . .
Mas entre todas te escolhi :
Minh'abna foi te acompanhando,
A vez primeira em que te vi.

Tão branca o moça! o olhar tão brando!


Tão innocente o coração !
Toda de Franco, fulgurando,
ALMA INQUIETA 20."»

Mulher em flor ! flor em botão !


Inda, ao lembral-o, a magua abrando,
Esqueço o mal que vem de li,
E, o meu rancor estrangulando,
Bemdigo o dia em (pie te xi !

Rosas na mão, brancas... E, quando


Te vi passar, branca visão,
Vi com espanto, palpitando
Dentro de mim, esta paixão...
0 coração puz ao teu mando...
Ti, porque escravo me rendi,
Ando gemendo, aos gritos ando,
— Porque te amei ! porque te x i !

Depois fugisto... E, inda to amando,


Nem te odiei, nem te esqueci :
— Toda de branco... Ias rezando...
Maldito o dia em que te vi !

II

Azul...

Lembra-te b e m ! Azul-celeste
Era essa alcova om que te amei.
0 ultimo beijo que me deste
Foi nessa alcova que o t o m e i !
1.
206 ALMA INQUIETA

E o firtnamento que a reveste


Toda de um calido fulgor :
— Um firmamento, em que pu/.esto,
Como uma estrella, o teu amor.

Lembras-te ? Um dia, me disseste :


Tudo acabou 1 » E eu exclamei :
« Sc vaes partir, porque vieste ? >
E ás tuas plantas me arrastei...
Beijei a fimbria á tua veste,
Gritei de espanto, uivei de dôr :
« Quem ha que te ame c te reqneste
Com febre igual ao meu amor? »

Por todo o m a l que me fizeste,


Por todo o pranto que chorei,
— Como uma casa om que entra a peste,
Fecha essa casa em que fui rei !
Que nada mais perdure e rosto
I)'esse passado embriagador :
E cubra ;i sombra de um oypreste
A sepultura d'este a m o r !

Desbote-a o inverno ! o estio a creste !


Abale-a o vento com fragor !
— Desabe a igreja azul-celeste
Em que officiava o meu a m o r !
ALMA INQUIETA 207

III

Verde...

Como era verde este caminho !


Que calmo o céo ! que verde o m a r !
E, entre festões, de ninho em ninho,
A Primavera a gorgeiar!...
Inda me exalta, como um vinho,
Esta fatal recordação'
Seccou a flor, ficou o espinho...
Como me posa a solidão !

Orphão de amor e do carinho!...


Orphão da luz do teu olhar
— Verde também, verde-marinho,
Que eu nunca mais hei-de olvidar !
Sob a camisa, alva de linho,
Te palpitava o coração...
Ai! coração ! peno e definho,
Longe de ti, na solidão !

Oh! tu, mais branca do que o arminho,


Mais pallida do que o l u a r !
— Da sepultura me avizinho,
Sempre que volto a este logar...
208 ALMA INQUIETA

E digo a cada passarinho :


Não cantes m a i s ! que essa canção
Vem me lembrar que estou sósinho,
No exílio (Tosta solidão!

No teu jardim, que desalinho!


Que falta faz a tua mão!
Como inda é verde este caminho...
Mas como o afeia a solidão!

IV

Negra...

Possas chorar, arrependida,


Vendo a saudade que aqui vae!
Vò que inda, negro, da ferida
Aos borbotões o sangue cae...
Que a nossa historia, assim relida,
O n ;sso amor, lembrado assim,
Possam fazer-tc, eommovida,
Inda uma vez pousar em mim !

MinlTalma pobre e desvalida,


Orphã de mãe, orphã de pac,
Na escuridão vaga perdida,
De queda em queda e do ai em ai !
ALMA INQUIETA 209

E ando a buscar-te. E a minha lida


Não tem descanso, não tem fim :
Quanto.mais longe andas fugida,
Mais te vejo eu perto de mim !

Louco! e que lugubre a descida


Para a loucura que me attráe !
— Terriveis paginas da vida,
Escuras paginas, — c a n t a i !
Vim, ermitão, da minha ermida,
Morto, do meu sepulcrò vim,
Erguer a lapide cabida
Sobre a esperança que houve em mim !

Revivo a magua j á vivida


E as velhas lagrimas... a fim
De que chorando, arrependida,
Possas lembrar-te inda de mim !

12.
210 ALMA INQUIETA

VELHA PAGINA

< boxe. Que magua lá fora !


Que m a g u a ! Embruscam-so os ares
Sobre este rio que chora
Longos e eternos pezares.

E sinto o que a terra sente


E a tristeza que diviso,
Eu, de teus olhos ausente,
Ausente de teu sorriso...

As azas loucas abrindo,


Meus versos, num longo anceio,
Morrerão, sem que, sorrindo,
Possa acolhel-os teu seio !

Ah ! quem mandou que fizesses


Minh'alma da tua escrava.
ALMA INQUIETA 211

E ouvisses as minhas preces,


Chorando como eu chorava ?

Porque é que um dia mo ouviste,


Tãó pallida e alvoroçada,
E, como quem ama, triste,
Como quem ama, calada?

Tu tens um nome celeste...


Quem é do céo é sensível !
Porque é que me não disseste
Toda a verdade terrível ?

Porque, fugindo impiedosa,


Desertas o nosso ninho ?
— Era tão bella esta rosa !...
Já me tardava esto espinho !

Fora melhor, porventura,


Ficar no antigo degredo
Que conhecer a ventura
Para perdel-a tão cedo !

Porque me ouviste, enxugando


0 pranto das minhas faces ?
Viste que eu vinha chorando...
Antes assim me deixasses !

Antes ! Menor me seria


0 soffrimento, querida !
212 ALMA INQUIETA

Antes ! a mão que allivia


A dôr, c cura a ferida,

Não deve depois, iranquilla,


Vendo sullôcada a magua,
Encher de sangue a pupilla
Que j á vira cheia de água...

Mas junto a mim que te falta ?


Que gloria maior te chama ?
Não sei de gloria mais alta
Do que a gloria de quem ama !

Talvez te chame a riqueza...


Despreza-a, beija-me, e fica !
Verás que assim, com certeza,
Não ha quem seja mais rica !

( orno é que quebras os laços


< om que prendi o universo,
Entro os nossos quatro braços,
Na jaula azul do meu verso?

Como hei-de eu, de hoje em diante,


Viver, depois que partiros ?
Como (piores tu que eu canto
No dia em que não mo ouvires ?

Tem pena de mim ! tem pena


De alma tão fraca ! Como ha-de
Minh'alma, que é tão pequena,
Poder com tanta saudade? I
ALMA INQUIETA 213

WILFREDO

LENDA DO RITENO. GRANDMOUGIN

O Castello.

Sobre os rochedos, longe, o Castello apparece,


Dominando a extensão das florestas sombrias.
A tarde cáe. O vento abranda. O ar escurece.
V, Wilfredo caminha entro as neblinas frias.

Vae vel-a... E estuga o passo. Alto e silencioso,


Abre o Castello, em fogo, os vitraes das janellas.
Nas ameias, manchando o céo caliginoso,
Aprumam-se perfis de immoveis sentinellas.
214 ALMA INQUIETA

Wilfredo vae ouvir a voz da sua Dama...


Mas, no seu coração perturbado, parece
Que vixe, em xoz do amor, essa ligeira chanima,
Que arde apenas um dia, arde o desapparece...

Ti o arruinado solar, reflertido no Rbeno,


Sobre o qual paira e pesa um sonho sobrohumano,
Sobe, entre os astros, só, furando o céo sereno,
Com a calma e o esplendor do um velho soberano.

II

As fadas da lagoa.

Wilfredo conheceu o amor nos braços d'Ella...


Teve-a núa, a tremer, nos braços, mia e fria !
Teve-a nos braços, louca, apaixonada e bella !
Mas parte, allucinado, antes que aponte o dia...

E que uma outra paixão o descuidado peito


Lhe entrou. Paixão cruel, loucura que o atordoa,
Desde o momento em que, formosas, sobre o leito
Das águas calmas, viu as fadas da lagoa.

PíTte... A margem fatal da lagoa das fadas


Chega, e em êxtase fica, a riba em flor mirando.
Cm ligeiro rumor de vozes abafadas
Augmenta... E exsurge da água o apaixonado bando.
ALMA INQUIETA 215

Corre Wilfredo, em febre, a apertal-as ao seio,


E despreza o passado e esquece o juramento :
Beija-as, e, na expansão do carinhoso anceio,
Itnmola toda a vida aos beijos de um momento.

Para os seus corpos ter, toda a alma lhes entrega;


E, na allucinação do gozo em (pie se inflamma,
Por esse amor, por essa embriaguez renega
0 Deus dos seus avós, o amor da sua Dama...

III

O Remorso.

Delira. Mas, depois do delirio sublime,


0 remorso, immortal, nasce com o arrebol.
E elle mede a extensão do seu monstruoso crime,
E esconde a face á luz vingadora do sol.

Busca assustado a p a z ; busca chorando o olvido...


A volúpia infernal o coração vendeu,
E o inferno lhe reclama o coração vendido,
Cobrando em sangue e pranto o gozo que lhe deu.

Quer rezar, quer voltar ao seu fervor primeiro,


Quer, nas lages, de rojo, abominando o Mal,
Ser de novo Christão, Fiel e Cavafleiro :
Mas não encontra paz na paz da cathedral.
216 ALMA INQUIETA

Pobre ! até no pallor das faces maceradas


Das monjas, cuida ver as faces que beijou :
Ah ! seios de marfim ! alt ! borras perfumadas !
Recordação cruel de um lídcn que acabou !

Parte só, sem destino, errando, a passo incerto,


Por montes o rechans, no inverno o no verão,
E por annos sem conta habitando o deseno,
Som lagrimas no olhar, sem fé no coração.

Das florestas sem fim sob a abobada escura


Ouve, nos alcantis de em torno, a água rolar;
Sobre elle, a longa voz das arvores murmura,
E o vendaval retorce os ramos negros no ar.

Mas á fera, ao insecto, ao limo verde, ao vento.


Ao sol, ao rio, ao valle, á rocha, á serpe, á flor
E em vão que Wilfredo implora o esquecimento
Do seu amor cruel, do seu horrendo amor...

IV

O Castigo.

Volta... Nem lucta j á contra o crime que o aítráe


Velho e tropego vem, mendigo esfarrapado.
ALMA INQUIETA 217

E exanime, por fim, num calefrio, cáe


Sem consciência, ao pé das águas do Peccacto.

Calma. A noite cahiu. Nem um pássaro vòa.


Não piam no silencio as aves agoireiras.
Mas palpitam, luzindo, á beira da lagoa,
Fogos fatuos subtis sobre as hervas rasteiras.

E, então, Wilfredo vê, preza de um medo atroz,


Do denso turbilhão dos fogos repentinos,
Com tentações no olhar e convites na voz
Surgirem turbilhões de corpos femininos.

E o Inferno pela voz dos fogos fatuos fala !


Wilfredo foge. 0 horror vae com elle, inclemente!
Foge. Ti corre, e vacilla, e tropeça, e resvala,
E levanta-se, o foge allucinadamente...

Em vão ! pesa sobre elle um destino fatal:


E o louco, om todo o horror dos campos tenebrosos,
Vè fechar-se o prendel-o a cadeia infernal
Da infernal multidão dos Elfos amorosos...

13
218 ALMA INQUIETA

TÉDIO

Sobre minh'alma, como sobre um throno,


Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, ultimo outono,
Lançar-me as folhas ultimas ao vento !

Oh ! dormir, no silencio o no abandono,


Só, sem um sonho, som um pensamento,
E, no lethargo do anniquilamonto,
Ter, ô pedra, a quietudc do teu somno!

Oh ! deixar de sonhar o que não vejo !


'Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,

Deixar a alma dormir sem um desejo,


Ampla, fúnebre, lugubro, vazia
Como uma cathedral abandonada!...
ALMA INQUÍETA 219

REQUIESCAT

Porque me vens, com o mesmo riso,


Porque me vens, com o mesmo olhar,
Lembrar aquelle Paraíso,
Extincto para nós?

Porque levantas esta lousa ?


Porque, entre as sombras funeraes,
Vens accordar o que repousa,
0 que não vive mais ?

Ah ! esqueçamos, esqueçamos
Que foste minha o que fui teu :
Não lembres mais que nos amámos,
Que o nosso amor morreu!

0 amor é uma arvore ampla, e rica


De fruetos de o t r o , e do embriaguez :
220 ALMA INQUIETA

Infelizmente, fructifica
Apenas uma vez...

Sob essas ramas perfumadas,


Teus beijos todos eram meus :
E as nossas almas abraçadas
Fugiam para Deus.

Mas os teus beijos esfriaram...


Lembra-te bem ! lembra-te bem!
E as folhas pallidas murcharam,
E o nosso amor também.

Ah ! fruclos de ouro, (pio colhemos,


Fructos da calida estação,
Com que delicia vos mordemos,
Com que sofreguidão!

Lembras-te ? os fructos oram doces...


Se inda os pudéssemos provar I
Se eu fosse teu... se minha fosses,
E ou to pudesse a m a r . . .

Tini vão, porém, mo beijas, louca !


Teu beijo, a palpitar o a ardor,
Não achará, na minha bocca,
Outro para o acolher.

Não ha mais beijos, nem mais pranto !


Lembras-te ? quando te perdi,
ALMA INQUIRIA 221
Beijei-te tanto, chorei tanto,
Com tanto amor, por ti,

Que os olhos, vês ? j á tenho enxutos,


E a minha bocca se cansou :
A arvore j á não tem mais fructos!
Adeus! tudo acabou !

Outras paixões, outras idades !


Sejam os nossos corações
Dois relicarios de saudados
E de recordações.

Ah ! esqueçamos, esqueçamos !
Durma tranquillo o nosso amor
Na cova rasa onde o enterrámos
Entre os rosaes em flor...
222 ALMA INQUIETA

SURDINA

No ar socegado um sino canta,


Um sino canta no ar sombrio,..
Pallida, Venus se levanta...
Que frio!

Lm sino canta. 0 campanário


Longe, entro uexoas, appareee...
Sino, que cantas solitário,
Que quer dizer a tua prece?

Que frio ! ombuçam-se as colunas :


( hora, correndo, a água do rio ;
E o céo se cobre de neblinas...
Que frio !

Ninguém... A estrada, ampla o silente,


Sem caminhanles, adormece...
ALMA INQUIETA 223

Sino, que cantas docemente,


Que quer dizer a tua prece ?

Que medo pânico me aperta


O coração triste e vazio !
Que esperas mais, alma deserta ?
Que frio!

Já tanto a m e i ! j á soffri t a n t o !
Olhos, porque inda estaos molhados?
Porque é que choro, a ouvir-te o canto,
Sino que dobras a finados?

Trevas, cabi ! que o dia é morto !


Morre também, sonho erradio !
— A morte é o ultimo conforto...
Que frio!

Pobres amores, sem destino,


Soltos ao vento, e dizimados !
Inda vos choro... E, como um sino,
Meu coração dobra a finados.

E com que magua o sino canta,


No ar socegado, no ar sombrio !
— Pallida, Venus se levanta...
Que frio I
224 Al.MA INQUIETA

ULTIMA PAGINA

Primavera. Um sorriso aberto em tudo. Os ramos


Numa palpitação de flores e de ninhos.
Doirava o sol de outubro a areia dos caminhos
(Lembras-te, Rosa?)e ao sol de outubro nos amámos.

Verão. (Lembras-te, Dulce?) a beira-mar, sósinhos,


Tentou-nos o peccado olbaste-me... e peccámos.
E o outono desfolhax a os rosciraes vizinhos,
0 Laura, a vez primeira em que nos abraçámos...

Veio o inverno. Porém, sentada em meus joelhos,


Núa, presos aos meus os teus lábios vermelhos,
(Lembras-te, Branca ?) ardia a tua carne em flor...

Carne, que queres mais? Coração, que mais queres?


Passam as estações e passam as mulheres...
E eu tenho amado tanto! e não conheço o Amor!
AS VIAGENS

13.
**n$$$$i

Primeira migração.

Sinto ás vezes ferir-me a retina offuscada


Um sonho : — A natureza abre as perpétuas fontes.
E, ao clarão creador que invade os horizontes,
Vejo a Terra sorrir á primeira alvorada.

Nos mares e nos céos, nas rechans o nos montes,


A Vida canta, chora, arde, delira, brada...
E arfa a Terra, num parto horrendo, carregada
De monstros, de mammouths e de rhinocerontes.

Rude, uma geração de gigantes accorda


Para a conquista. A uivar, do refugio das furnas
A migração primeira, em torvelins, transborda.

E ouço, longe, rodar, nas primitivas eras,


Como uma tempestade entre as sombras nocturnas,
0 estrupido brutal d'essa invasão de feras.
228 AS VIAGENS

II

Os Phenieios.

Ávida gente, ousada e moça! Ávida gente!


— D'esse estéril torrão, d'esse areai maninho
Entre o Libano e o m a r da Syria, — que caminho
Busca, turvo de febre, o vosso olhar ardente?

Tyro, do vivo azul do pelago marinho,


Branca, nadando em luz, surge resplandecente...
Na água, aberta em clarões, chocam-se de repente
Os remos. Rangem no ar os velamos de linho.

Hiram, com o sceptro negro em que ardem pedrarias,


Couta as barcas de cedro, atupidas de fardos
De ouro, purpura, onyx, sodas e especiarias.

Sus! Ao largo! Melkhart abençoe a partida


Dos que vão de Sidon, de Oebol e de Anlardus
Dilatar o commorcio e propagar a Vida!
AS VIAGENS 229

III

Israel.

Caminhar! caminhar!... O deserto primeiro,


0 mar depois... Areia e fogo... Foragida,
A tua raça corre os desastres da vida,
Insultada na pátria e odiada no estrangeiro!

.Onde o leito, onde o mel da Terra Promettida?


— A guerra! a ira de Deus! o êxodo! o captiveiro !
E, molhada do pranto, a oscillar de um salgueiro,
A tua harpa, Israel, a tua harpa esquecida !

Sem templo, sem altar, vagas perpetuamente...


E, em torno de Sião, do Líbano ao Mar Morto,
Fulge, de monte em monte, o escarneo do Crescente :

E, impassível, Jehovah te vê do céo profundo,


— Naufrago amaldiçoado — errar de porto em porto,
Entre as imprecaoõcs o os ultrages do mundo!
230 AS VIAGENS

IV

Alexandre.

Quem te cantara um dia a ambição desmarcada,


Filho da heráklea estirpe ! e o clamor infinito
Com que o povo da .Emathia acorreu ao teu grito,
Voando, como um tufão, sobre a terra abrazada!

Do Adriatico-Mar ao Indus, e do Egyplo


Ao Caucaso, o fulgor do aceiro d'essa espada
Prosternava, a tremor, sobre a lama da estrada,
ídolos de ouro e bronze, e esphinges de granito.

Mar que regouga e estronda, ospedaçando diques,


— Aos confins da Ásia rica as phalanges corriam,
Encrespadas de fúria e crriçadas de piques.

E do sangue, do pó, dos destroços da guerra,


Aos teus pés, palpitando, as cidades nasciam,
E a Alma Grega, comtigo, avassallava a T e r r a !
AS VIAGENS 231

Cezar.

Na ilha de Seyne. O mar brame na costa bruta.


Gemem os bardos. Triste, o olhar por céos em fora
Uma druidiza alonga, e os astros mira, e chora
De pé, no liminar da tenebrosa gruta.

Abandonou-te o deus que a tua raça adora,


Pobre filha de Teut! Cezar ahi vem ! Escuta
0 passo das legiões! ouve o fragor da lucta
E o alto e crebro clangor da buccina sonora!

Dos Alpes, sacudindo as azas de ouro ao vento,


As grandes águias sobre os domínios gaulezes
Descem, escurecendo o azul do firmamento...

E já, do Interno Mar ao Mar Armoricano,


Retumba o entrechocar dos rutilos pavczes
Que carregam á gloria o Imperador romano.
232 AS VIAGENS

VI

Os bárbaros.

Ventre uú, seios mis, toda núa, cantando


Do esmorecer da tarde ao resurgir do dia,
Roma lasciva e louca, ao rebramar da orgia,
Sonhava, de triclinio em Iriclinio rolando.

Mas já da longe Scythia e da Cormania fria,


Esfaimado, rangendo os dentes, como um bando
Do lobos o sabor da preza antogozando,
O tropel rugidor dos Bárbaros descia.

Eil-os! A herva,aos seus pés, mirra. De sangue cheios,


Turvam-se os rios. Louca, a floresta farfalha...
E cil-os, — turvos, brutaos, cabelludos e feios!

Donar, Pae da Tormenla, á frente dellos corre :


Ti a ignea barba do deus, que o incêndio ateia c espalha,
Illumina a agonia a esse império que morre...
AS VIAGENS 233

.. VII

As cruzadas.

(Diante de um retrato antigo.)

Fulge-te o morrião sobre o cabello louro,


E avultas na moldura, alto, esbelto e membrudo,
Guerreiro que por Deus abandonaste tudo,
Desbaratando o Turco, o Sarraceno e o Mouro!

Brilha-te a lança á mão, presa ao guante de couro.


Nos peitoraes de ferro arfa-te o peito ossudo.
E alça-se-te o brazão sobre a chapa do escudo,
Nobre : — em campo de blau sete besantes de ouro.

(i Diex le volt I E, barão entre os barões primeiro,


Foste, atravez da Europa, ao Sepulcro ameaçado,
Dentro de um turbilhão de pagens e escudeiros...

E era-te o gladio ao punho um relâmpago ardente!


E o teu pendão de guerra ondeou, glorioso, ao lado
Do pendão de Balduino, Imperador do Oriente.
f * » # 234 AS VIAGENS
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» 4 ,•
fl ^»T \k S*> a attracção da aventura os sonhos te arrebata,
^ J Conquistador, ao l a r g o ! A tua alma sedenta
to «^ Quer a gloria, a conquista, o perigo, a tornienta ?
at C Ao largo! saciares a ambição que te mata!


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• Bella, verás surgir, da água azul que a retrata,
w JL'athax,
a cujos pés o mar em ílôr rebenta;
, E Cvpaugo verás, fabulosa o opulenta,
Apunhalando o céo com as torres de ouro e prata.

Pisarás com desprezo as pérolas mais bell is !

X t ti
Í
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De niyrrba, de marfim, de incenso carregadas,
Se arrastarão, arfando, as tuas caravellas.

s» * * Ti, a acclamar-te Senhor das Terras e dos Mares,


f ^ X _ Os regidos e os reis das ilhas conquistadas
_ 1 f Se humilharão, beijando o solo que pisaros.

•k \\
v*
AS VIAGENS 237

XI

O Polo.

.. Pára, Conquistador intimorato e forte!


Pára! que buscas mais que te ennobreça e eleve?
E tão alegre o sol! a existência é tão breve!
E é tão fria essa tumba entre os gelos do Norte!

Dorme o céo. Numa ronda esquálida, de leve,


Erram fantasmas. Reina um silencio de morte.
Phocas de vulto informe, ursos de estranho porto
« Morosamente vão do rastros sobre a neve...

Em vão!... E o gelo cresce, o espedaça o navio.


E elle, subjugador do perigo e do medo,
Sem um gemido cáe, morto de fome o frio.

E o Mysterio se fecha aos seus olhos serenos...


Que importa? Outros virão devassar-lhe o segredoI
Um cadáver demais... um sonhador de menos...
238 AS VIAGENS

XII

A Morte.

Oh! a jornada negra! A alma so despedaça...


Tremem as mãos... 0 olhar, molhado e ancioso, espia,
E vê fugir, fugir a ribanceira fria,
Por onde a procissão dos dias mortos passa.

No céo gelado expira o derradeiro dia.


Ti a ultima região que o teu olhar devassa !
E só, trevoso e largo, o mar estardalhaça
No indizivel horror de uma noite vazia...

Pobre! porque, a sofTror, a Leste e a Oeste, ao Norte


E ao Sul, desperdiçaste a força de tua alma?
Tinhas tão perto o Bem, tendo tão perto a Morte!

Paz á tua ambição! paz á tua loucura !


A conquista melhor é a conquista da Calma :
— Conquistaste o paiz do Somno e da Ventura!
AS VIAGENS 239

XIII

A MISSÃO DE PURNA

(Do Evangelho de Buddha)

Ora Buddha, que, em prol da nova íé, levanta


Na índia antiga o clamor de uma cruzada santa
Contra a religião dos Brahmanes, — medita.

Immensa, cm torno ao sábio, a multidão se agita


E ha nVssa multidão, que enche a planicie vasta,
Homens de toda a espécie, Aryas de toda a casta.

Todos os que (a principio, enchia Brahma o espaço...)


Da cabeça, do pé, da coxa ou do antebraço
Do deus vieram á luz para povoar a terra :
— Kchátrias, de braço forte armado para a g u e r r a ;
Çakias, filhus de reis; leprosos perseguidos
Como cães, como cães de lar em lar corridos :
240 AS VIAGENS

Os que vivem no mal e os que amam a virtude;


Os ricos de belleza e os pobres de saúde;
Mulheres fortes, — mães ou prostitutas, cheio
De tentações o olhar ou de alvo leite o seio ;
(Guardadores de bois ; robustos lavradores,
A cujo arado a terra abre em fructos e flores ;
Creanças; anciãos; sacerdotes de Brahma;
Párias, Sudras servis rastejando na l a m a ;
— Todos acham amor dentro da alma de Buddha,
Ti tudo nosso amor se eternisa o transmuda...
Porque o sábio, envolvendo a tudo, em seu caminho,
Na mesma caridade o no mesmo carinho,
Sem distineção promette a toda a raça humana
A bemaventurança eterna do Nirvana.

Ora, Buddha medita...


A maneira do orvalho,
Que, na calma da noite, anda de galho em galho
Dando vida e humidade ás arvores crestadas,
— Aos corações sem fé o ás almas desgraçadas
Concede o novo credo a esperança do sonino :
Mas... as almas que estão, no horrivel abandono
Dos desertos, de par com os animaes ferozes,
Longe de humano olhar, longe de humanas vozes,
A rolar, a rolar de poceado om peccado?...

Ergue-se Buddha :
Punia!
O discípulo amado
Chega :
i P u r n a ! é mister que a palavra divina
AS VIAGENS 241

Da água do mar de Oman á água do mar da China,


Longe do Indus natal e das margens do Canges,
Semeies, atravez de dardos, e de alfanges,
E de torturas 1
Purna ouve sorrindo, e cala...
No silencio em que está, um sonho doce o embala :
•No profundo clarão do seu olhar profundo,
Brilham a anciã da morte e o desprezo do mundo.
0 corpo, que o rigor das privações consome,
Esquelético, nú, comido pela fome,
Treme, quasi a cahir, como um bambu com o vento;
E erra-lhe á flor da bocca a luz do firmamento
Presa a um sorriso de anjo...
Ti ajoelha junto ao Santo:
Beija-lhe o pó dos pés, beija-lhe o pó do manto.

i Filho amado! — diz Buddha — essas barbaras gentes


São grosseiras e xis, são rudes e inclementes;
Se os homeus(que, em geral,sãomáosos homens todos)
Te insultarem a crença, e a cobrirem de apodos,
Que dirás, que farás contra essa gente inculta?

Mestre! direi que é boa a gente (pie me insulta,


Pois, podendo espancar-me, apenas me injuria...

ii Filho amado! e se, a injuria abandonando, um dia


Um homem te espancar, vendo-te fraco e inerme,
,E sem piedade aos pés te pisar, como a um verme? »

« Mestre! direi que é bom o homem que me magoa,


Pois, podendo ferir-me, apenas me esbordôa...
14
242 AS VIAGENS

Filho amado! e se alguém, vendo-te agonisante,


Te furar com um punhal a carne palpitante?

Mostre! direi que é bom quem minha carne fura,


Pois, podendo m a t a r - m e , apenas me tortura...

Filho amado! e se, emfim, sedentos de mais sangue,


Te arrancarem ao corpo enfraquecido e exsangue
O ultimo alento, o sopro ultimo da existência,
Que dirás, ao morrer, contra tanta inclemencia?

Mestre! direi que é bom quem me livra da vida!


Mestre ! direi que adoro a mão boa o querida,
Que, com tão pouca dôr, minha carne cansada
Entrega ao summo bem o á sinniia paz do Nada ! »

Trilho a m a d o ! — diz Buddha — a palavra divina,


Da água do mar de Oman á água do mar da China,
Longe do Indus natal e dos valles do Ganges,
Vae levar, atravez de dardos e de alfanges!
Punia ! ao fim da Renuncia o ao fim da < aridade
Chegaste, estrangulando a tua humanidade !
Tu, sim! podes partir, apóstolo perfeito,
Que o Nirvana já tens dentro do próprio peito,
E és digno de ir pregar a toda a raça humana
A bemaxonturança eterna do Nirvana!
AS VIAGENS 243

XIV

SAGRES

.. Acreditavam os antigos celtas, do


Guadiana espalhados até á costa, que,
no templo circular do Promontorio Sa-
cro, se reuniam á noite os deuses, em
mysteriosas conversas com esse mar
cheio de enganos e tentações .,.
OL. MARTINS. — Uist. de Portugal.

Em Sagres. Ao tufão, que se desencadeia,


A água negra, em cachoes, se precipita, a uivar ;
Retorcem-se gemendo os zimbros sobre a areia...
E, impassivel, oppondo ao mar o vulto enorme,
Sob as trevas do céo, pelas trevas do mar,
Berço de um mundo novo, o promontorio dorme.

Só, na trágica noite e no sitio medonho,


Inquieto como o m a r sentindo o coração,
Mais largo do que o mar sentindo o próprio sonho,
— Só, aferrando os pés sobre um penhasco a pique,
Sorvendo a ventania e espiando a escuridão,
Queda, como um fantasma,.o Infante Dom Henrique ..
244 AS VIAGENS

Casto, fugindo o amor, atravessa a existência


Immune de paixões, sem um grito sequer
Na carne adormecida em plena adolescência ;
E nunca approximou da face envelhecida
0 nectario da flor, a bocca da mulher,
Nada do que perfuma o deserto da vida.

Forte, em Ceuta, ao clamor dos pifanos de guerra,


Entre as mesnadas (quando a matança sem dó
Dizimava a moirama e estremecia a terra),
Viram-no levantar, immortal e brilhante,
Entre os raios do sol, entro as nuvens do pó,
A alma de Portugal no aceiro do montante.

Em Tanger, na jornada atroz do desbarato,


— Duro, ensopando os pés em sangue portuguez,
Empedrado na teima e no orgulho insensato,
Calmo, na confusão do horrendo dcsenlaco,
— Vira partir o irmão para as prisões de Fez,
Sem um tremor na voz, sem um tremor na face.

E que o Sonho lhe traz dentro de um pensamento


A alma toda captiva. A alma de um sonhador
Guarda oin si mesma a terra, o mar, o firmamento,
E, cerrada de todo á inspiração de fora,
Vive como um vulcão, cujo fogo interior
A si mesmo immortal se nutre e se devora :

Terras da Fantasia ! Ilhas Afortunadas,


Virgens, sob a meiguiee o a limpidez do céo,
AS VIAGENS 245

Como nymphas, á flor das águas remansadas!


— Pondo o rumo das náos contra a noite horrorosa,
Quem sondara esse abysmo e rompera esse véo,
0 sonho de Platão, Atlantida formosa!

n Mar tenebroso! aqui recebes, porventura,


A syncope da vida, a agonia da luz...
Começa o Cháos aqui, na orla da praia escura?
E a mortalha do mundo a b r u m a que te veste ?
Mas não! por traz da bruma, erguendo ao sol a Cruz,
Vós sorrides ao sol, Terras Christans do Preste '.

Promontorio Sagrado! Aos teus pés, amoroso,


Chora o monstro... Aos teus pés, todo o grande poder,
Toda a força se esváe do Oceano Tenebroso...
Que anciedade lhe agita os flancos? Que segredo,
Que palavras confia essa bocca, a gemer,
Entre beijos de espuma, á algidez do rochedo ?

Que montanhas mordeu, no seu furor sagrado ?


Que rios, atravez de selvas e areiaes,
Vieram n'elle encontrar um túmulo ignorado ?
De onde vem elle? ao sol de que remotas plagas
Borbulhou e dormiu ? que cidades reaes
Embalou no regaço azul de suas vagas ?

a Se tudo é morte além, — em que deserto horrendo,


Em que ninho de treva os astros vão dormir?
Em que soidão o sol sepulta-se, morrendo ?
Se tudo é morte além, porque, a soffrer, sem calma,
14.
24tí AS VIAGENS

Erguendo os braços no ar, havemos de sentir


Estas aspirações, como azas dentro da alma?

E, torturado e só, sobre o penhasco a pique,


Com os olhos febris furando a escuridão,
Queda como um fantasma o Infante Dom Henrique...
Entre os zimbros e a nevoa, entre o xentoe asalsugem,
A voz incomprehendida, a voz da Tentação
Canta, ao surdo bater dos macaréos que rugem :

Ao largo, Ousado! o segredo


Espera, com anciedade,
Alguém privado do medo
E provido de vontade...

Verás d'estes mares largos


Dissipar-se a cerrarão!
Aguça os teus olhos, Argus !
Tomará corpo a visão...

Sonha, afastado da guerra,


De tudo ! — em tua fraqueza,
Tu, d'essa ponta de t e r r a ,
Dominas a natureza!

Na escuridão (pie te cinge,


OEdipo ! com altivez,
No olhar da liquida ^phinge
O olhar mergulhas, e lês...
AS VIAGENS 247

Tu que, casto, entre os teus sábios,


Murchando a flor dos teus dias,
Sobre mappas e astrolabios
Encaneces e porfias;

Tu, buscando o oceano infindo,


Tu, apartado dos teus,
(Para dos homens fugindo,
Ficar mais perto de Deus);

Tu, no agro templo de Sagres,


Ninho das naves esbeltas,
Reproduzes cs milagres
Da edade escura dos Celtas

Vê como a noite está cheia


De vagas sombras... Aqui,
Deuses pisaram a areia
Hoje pisada por ti.

E, como elles poderoso,


Tu, mortal, tu, pequenino,
Vences o Mar Tenebroso,
Ficas senhor do Destino !

J á , enfunadas as velas,
•Como azas a palpitar,
Espalham-se as caravellas,
Aves tontas pelo m a r . . .
248 AS VIAGENS

N'essas taboas oscillantes,


Sob essas azas abertas,
A alma dos teus navegantes
Povoa as águas desertas.

J á , do fundo do mar vario,


Surgem as ilhas, assim
Como as contas de um rosário,
Soltas nas águas sem fim.

Já, como cestas de flores,


Que o mar de leve balança,
Abrem-se ao sol os Açores
Verdes, da cõr da esperança.

Vencida a ponta encantada


Do Bojador, teus horóes
Pisam a África, abrazada
Pela inclemencia dos soes.

Não basta ! Avante !


Tu, morto
Em breve, tu, recolhido
Em calma, ao ultimo porto,
— Porto da paz o do olvido,

Não verás, com o olhar em channi


Abrir-se, no oceano azul,
O vôo das náos do Cama,
De rostros feitos ao sul...
AS VIAGENS 249

Que importa ? Vivo e offegando


No offego das velas soltas,
Teu sonho estará cantando
A flor das águas revoltas.

Vencido, o peito arquejante,


Levantado em furacões,
Cheia a bocca e regougaute
De cscuma e de imprecações,

Rasgando, em fúria, ás unhadas


0 peito, e coutra os escolhos
Golfando, em flammas iradas,
Os relâmpagos dos olhos,

Louco, ululante, impotente


Como um verme, — Adamastor
Verá pela tua gente
Galgado o Cabo do Horror !

Como o reflexo de um astro,


Scintilla e a frota abençoa
No tope de cada mastro
0 Sant' Elmo de Lisboa.

E alta j á , de Moçambique
A Calicut, a brilhar,
Olha, Infante Dom Henrique !
— Passou a Esphera Armillar...
250 AS VIAGENS

F a r t a r ! como um sanctuario
Zeloso de seu thesouro,
Que, ao toque de um temerário,.
Largas abre as portas de ouro,

— Eis as terras feiticeiras


Abertas... Da água atraxez,
Deslisom fustas ligeiras,
Corram ávidas galés!

Ahi vão, opprimindo o oceano,


Toda a prata que fascina,
Todo o marfim africano,
Todas as sodas da China...

F a r t a r ! . . . Do seio fecundo
Do Oriente abrazado em luz,
Derramem-se sobre o mundo
As pedrarias de Hormuz !

Sonha, — afastado da guerra,


Infante!... Em tua fraqueza,
Tu, d'essa ponta de terra,
Dominas a natureza !... »

Longa e calida, assim, fala a voz da Sereia...


— Longe, um roxo clarão rompe o nocturno véo.
Doce agora, ameigando os zimbros sobre a areia,
Passa o vento. Sorri pallidamonte o dia...
E súbito, como um tabernaculo. o céo
Entre faixas de prata e purpura, irradia...
AS VIAGENS 251

Tenuo, a principio, sobre as pérolas da espuma,


Dansa torvelinhando a chuva de ouro. Além,
Invadida do fogo, arde e palpita a bruma,
Numa seintillação de nacar e amethystas...
E o olhar do Infante x ê, na água que vae e vem,
Desenrolar-se vivo o d r a m a das Conquistas.

Todo o oceano referve, incendido em diamantes,


Desmanchado em rubis. Galeões descommunaes,
Crespas selvas som fim de mastros deslumbrantes,
Continentes de fogo, ilhas resplandecendo,
Costas de âmbar, parccis de aljofres e coraes,
— Surgem, redomoinhando e desapparecendo...

E o dia! — A bruma foge. Illuminam-se as grutas.


Dissipam-se as visões... 0 Infante, a meditar,
Como um fantasma, segue entre as rochas abruptas...
E impassível, oppondo ao mar o vulto enorme,
Fim de um mundo sondando o deserto do mar,
— Berço de um mundo novo — o promontorio dorme.
O CAÇADOR DE ESMERALDAS

IIPISODIO DA E P O P E A SERTANISTA NO X V I I o SÉCULO


44444 44444444444

O CAÇADOR DE ESMERALDAS

Foi e;n março, ao findar das chuvas, quasi á entrada


D.i outono, quando a terra, em sede requeimada
Bebôra longamente as águas da estação,
— Que, em bandeira. buscando esmeraldas o prata,
A frente dos peões filho* da rude matta,
Fernão Dias Paes Leme entrou pelo sertão.

Ah! quem to vira assim, no alvorecer da vida,


Bruta Pátria, no berço, entre as selvas dormida,
No virginal pudor das primitivas eras, [anceio
Quando, aos beijo-, do sol, mal comprehendendo o
Do mundo por nascer quo trazias no seio,
Reboavas ao tropel dos indios e das feras!
256 O CAÇADOR DE ESMERALDXS

J á lá fora, da ourela azul das enseadas,


Das angras verdes, onde as águas repousadas
Vêm, borbulhando, á flor dos cachopos cantar ;
Das abras o da foz dos tumultuosos rios,
— Tomadas de pavor, dando contra os baixios,
As pirógas dos teus fugiam polo mar...

De longe, ao duro vento oppondo as largas velas,


Bailando ao furacão, vinham as caravellas,
Entro os uivos do mar e o silencio dos astros;
E tu, do littoral, de rojo nas areias,
Vias o oceano arfar, xias as ondas cheias
De uma palpitação de proas e de mastcos.
i

Pelo deserto iminenso o liquido, os penhascos


F e r i a m - n a s em vão, roiam-lhes os cascos...
A quantas, quanta vez, rodahdo aos ventos maus,
0 primeiro pégão, como a baixeis, quebrava!
E lá iam, no alvor da espumarada brava,
Despojos da ambição, cadáveres de naus.

Outras vinham, na febre heróica da conquista !


E quando, de entre os véos das neblinas, á vista
Dos nautas fulgitrava o teu verde sorriso,
Os seus olhos, ó Pátria, enchiam-se de pranto :
Tira como se, erguendo a ponta do teu manto,
Vissem, á beira d á g u a , abrir-se o Paraíso!

Mais numerosa, mais audaz, de dia em dia,


Engrossava a invasão. Como a enchente bravía,
O CAÇADOR DE ESMERALDAS 257

Que sobre as terras, palmo a palmo, abre o lençol


Da água devastadora, — os brancos avançavam :
E os teus filhos de bronze ante elles recuavam,
Como a sombra recua ante a invasão do sol.

Já nas faldas da serra apinhavam-se aldeias ;


Levantava-se a cruz sobre as alvas areias,
Onde, ao brando mover dos leques das jussáras,
Vivera o progredira a tua gente forte...
Soprara a destruição, como um vento de morte,
Desterrando os pagés, abatendo as cahiçaras.

Mas além, por detraz das broncas serranias,


Na cerrada região das florestas sombrias,
Cujos troncos, rompendo as lianas e os cipós,
Alastravam no céo léguas de rama escura ;
Nos mattagaes, em cuja horrível espessura
Só corria a anta leve e uivava a onça feroz ;

Além da áspera brenha, onde as tribus errantes


A sombra maternal das arvores gigantes
Acampavam ; além das socegadas águas
Das lagoas, dormindo entre aningaes floridos ;
Dos rios, acachoando cm quedas e bramidos,
Mordendo os alcantis, roncando pelas fraguas :

— Abi, não ia echoar o eslrupido da lucta...


E, no seio nutriz da natureza bruta,
Resguardava o pudor teu verde coração !
Ah ! quem te vira assim, entre as selvas sonhando,
Quando a bandeira entrou pelo teu seio, quando
Fernão Dias Paes Leme invadiu o sertão !
258 O CAÇADOR DE ESMERALDAS

II

Para o norte inclinando a lombada brumosa,


Entre os nateiros jaz a serra mvsloriosa ;
A azul Vupabussú beija-lhe as verdes lábias
1-i águas crespas, galgando abxsmos e barrancos
Atulhados de p r a t a , humedeeem-lhc os (lanços
Em cujos socavões dormem as esmeraldas.

Verde sonho!... o a jornada ao paiz da Loucura


Quantas bandeiras já, pela mesma aventura
Levadas, em tropel, na anciã de enriquecer!
Em cada tremodal, em cada escarpa, em cada
Brenha rude, o luar beija á noite uma ossada,
Que vêm a uivar de fome, as onças remexer.

Que importa o desamparo em meio do deserto


Ti essa vida sem lar, o esse vaguear incerto
De terror em terror, luctando braço a braço
Com a inclemencia do eco o a dureza da sorte ]
Serra b r u t a ! d a r - l h e - h a s , antes do dar-lhe a mortt
As pedras de Cortez que escondes no regaço !
O CAÇADOR DE ESMERALDAS 251)

E sete annos, de fio om fio destramando


0 niysterio, de passo em passo penetrando
O verde arcauo, foi o bandeirante audaz...
— Marcha h o r r e n d a ! derrota implacável o calma,
Sem uma hora do amor, estrangulando na alma
'Toda a recordação do que ficava a t r a z !

A cada volta, a Morte, afiando o olhar faminto,


Incançavel no ardil, rondando o labyrintho
Em que ás tontas errava a bandeira nas mattas,
Cerca ndo-a com o crescer dos rios iracundos,
Espiando-a no pendor dos boqueirões profundos
Onde vinham ruir com fragor as cascatas.

Aqui, tapando o espaço, entrelaçando as grenhas


Em negros paredões. levantavam-se as brenhas
Cuja muralha, em xão, som a poder dobrar,
Vinham acommetter os temporãos, aos roncos;
E os machados, de sol a sol mordendo os troncos,
Contra esse adarve bruto em vão rodavam no ar.

Dentro, no frio horror das balseiras escuras,


\ iscosas e oscillando, humidas colgaduras
Pendiam de cipóè na escuridão nocturna :
Ti um mundo de reptis silvava no negrume.
Cada folha pisada exhalava um queixumo,
E uma pupilla má chispava em cada furna.

Depois, nos chapadões, o rude acampamento


As barracas, voando em frangalhos ao vento,
200 O CAÇADOR DE ESMERALDAS

Ao granizo, á invernada, á chuva, ao temporal...


E quantos (Telles, mis, sequiosos, no abandono,
Iam ficando atraz, no derradeiro somno,
Sem chegar ao sopé da collina fatal!

Que importava? Ao clarear da manhã, a eonipanha


Buscava no horizonte o perfil da montanha.
Quando appareceria emfim, vergando a ospalda,
Desenhada no céo entro as neblinas claras,
A grande serra, mãe das esmeraldas raras,
Verde o faisi-anto como uma grande esmeralda ?

Avante! o os aguaçaes seguiam-se ás florestas...


Vinham os lamarõos, as leziras funestas,
De água paralx-ada e decomposta ao sol,
Em cuja face, como um bando de fantasmas,
Erravam dia o noite as febres o os miasmas,
N"uma ronda lethal sobre o podre lençol.

Agora, o áspero morro, os caminhos fragosos...


Lev o, de quando em quando, entro os troncos nodosos,
Passa um plumeo cocar, como uma ave que voa...
lima freeha, subfil, silva o /.argunoha... Ti a guerra!
São os índios! Relumba o echo da bruta serra
Ao tropel... E o estridor da, batalha robôa.

Depois, os ribeirões, nas levadas, transpondo


As ribas, rebramando, o do estrondo em estrondo
Inchando om macareos o seio destruidor,
E desenraizando os 1 roncos seculares.
O CAÇADOR DE ESMERALDAS 261

No esto da alluvião estremecendo os ares,


E indo torvos rolar nos valles com fragor...

Sele annos! combatendo Índios, febres, paludes.


Feras, reptis, — contendo os sertanejos rudes,
Dominando o furor da amotinada escolta...
Sete annos!... E eil-o volta,emfim,com o sou thosouro!
Com que amor, contra o peito, a saccola de couro
Aperta, a transbordar de pedras verdes ! — volta...

Mas num desvão da matta, uma tarde, ao sol posto,


Pára. Lm frio livor se lhe espalha no rosto...
É a febre ! 0 Vencedor não passará d a l l i !
Na terra que venceu ha-de cahir vencido!
É a febre ! o a morte! E o Heróe, tropego e envelhecido,
Roto, e som forças, cáe judio do Guaycuhy...

15.
262 O CAÇADOR DE ESMERALDAS

III

Fernão Dias Paes Leme agonisa. Um lamento


Chora longo, a rolar na longa voz do vento.
Mugem soturnamente as águas. 0 céo arde.
Trasmonta fulvo o sol. E a natureza assisto,
Na mesma solidão e na mesma hora triste,
A agonia do heróe e á agonia da t a r d e .

Piam perto, na sombra, as aves agoireiras.


Silvam as cobras. Longe, as feras carniceiras
Uivam nas lapas. Desce a noite, como um véo.
Pallido, no pallor da luz, o sertanejo
Estorce-so no crcbro e derradeiro arquejo.
— Fernão Dias Paes Leme agonisa, e olha o céo.

Oh! osso ultimo olhar ao firmamento! A vida


Em surtos de paixão o febre repartida,
Toda, num só olhar, devorando as estrellas!
Esse olhar, que sáe como um beijo da pupilla,
— Que as implora, que bebe a sua luz tranquilla,
Que morre... c nunca mais, nunca mais ha-de vel-as !
O CAÇADOR DE ESMBHALDAS 263

Eil-as todas, enchendo o céo, de canto a canto...


Nunca assim se espalhou, resplandecendo tanto,
'Tanta constellação pela planície a z u l !
Nunca Venus assim fulgiu ! Nunca tão perto,
Nunca com tanto amor sobre o sertão deserto
Pairou tremulamcnte o ( ruzeiro do Sul!

Noites de oulr'ora !... Emquanto a bandeira dormia


I-lxhr.nsla, e áspero o vento em derredor zunia»
E a voz do noitibó soava como um agouro,
— Quantas vezes Fernão, do caboço de um monte,
\ ia lenta subir do fundo do horizonte
A clara procissão iTessas bandeiras de ouro!

Adeus, astros da noite l Adeus, frescas ramagens


Que a aurora desmanchava em perfumes selvagens!
Ninhos cantando no a r ! suspensos gynecéos
Resoantes de a m o r ! outonos bemfeitores !
Nuvens e aves, adeus ! adeus, feras e flores!
Fernão Dias Paes Leme espera a morto... Adeus!

0 Sertanista ousado agonisa, sósinho...


Empasta-lhe o suor a barba em desalinho ;
E com a roupa de couro em farrapos, deitado,
Com a garganta afogada em uivos, ululante,
Entre os troncos da brenha hirsuta, — o Bandeirante
Jaz por torra, á feição de um tronco derribado...

E o delírio começa. A mão, que a febre agita.


Ergue-se, treme no ar, sobe, descamba aiflicta,
264 O CAÇADOR DE ESMEUXLDAS

Crispa os dedos, e sonda a terra, o oscarva o chão :


Sangra as unhas, revolve as raízes, acerta,
Agarra o saeco, o apalpa-o, o contra o peito o aperta,
Como para o enterrar dentro do coração.

Ah! mísero demento ! o teu thesouro e falso !


Tu eaniinhasio om vão, por sele annos, no encalço
De unia nuvem falia/., de um sonho malfazejo '
Enganou-to a ambição! mais pobre que um mendigo,
Agonisas, sem In/, sem amor, sem amigo.
Sem terquemtoconceda aextrcnia-unoçãode uni beijo !

E foi para morrer de cansaço o de fome,


Sem ter quem, murmurando om lagrimas teu nome,
Te dê uma oração o uni punhado de cal,
— Que tantos corações calcaste sob os passos,
Ti na alma da mulher que te estendia os braços,
Sem piedade lauçaste um veneno mortal!

Ti eil-a,a morte! oeil-o, o fim! A pallidez augnienta;


Fernão Dias se osváo, numa svncopo Ienla...
Mas, agora, um clarão illumína-lhe a face :
E essa face cavada o magra, que a tortura
Da fome o as privações maceraram, — fulgura,
Como se a aza ideal de um archanjo a roçasse.
O CAÇADOR DE ESMERALDAS 265

IV

Adoça-se-lhe o olhar, num fulgor indeciso ;


Leve, na bocca afflante, esvoaça-lhe um sorriso...
— E adelgaça-se o voo das sombras. 0 luar
Abre no horror da noite uma verde clareira.
Como para abraçar a natureza inteira,
Fernão Dias Paes Leme estira os braços no ar...

\ crdes, os astros no alto abrem-se em verdes chaminas.


Verdes, na verde malta, embalançani-sc as ramas,
E flores verdes no ar brandamente se movem ;
Chispam verdes fuzis riscando o céo sombrio ;
Em esmeraldas flúe a água verde do rio,
E do céo, todo verde, as esmeraldas chovem...

E é uma resurreição ! 0 corpo se levanta :


Nos olhos, j á sem luz, a vida exsurge c canta!
E esse doslroço humano, osso pouco de pó
Contra a destruição se aferra á vida, o lucta,
E treme, e cresce, c brilha, c afia o ouvido, c c.a-uta
A voz, que na soidão só elle escuta, — só :
260 O CAÇADOR DE ESMERALDAS

K Morre! morrem-te ás mãos as pedras desejadas,


i Desfeitas como um sonho, o em lodo desmanchadas...
Que importa ? dorme em paz, que o teu labor é findo!
Nos campos, no pendor das montanhas fragosas,
Como um grande collar de esmeraldas gloriosas,
As tuas povoaçôes se estenderão fulgindo...

Quando do acampamento o bando peregrino


Sahia, ante manhã, ao sabor do destino,
i Em busca, ao norte e ao sul, do jazida melhor,
— No comoro de terra, em que teu pé poisara,
t Os colmados de palha aprumavam-se, e clara
A luz de uma lareira espancava o arredor.

Nesse louco vagar, nossa marcha perdida,


Tu foste, como o sol, uma fonte de vida :
Cada passada tua era um caminho a b e r t o !
Cada pouso mudado, uma nova conquista!
1-] emquanto ias, sonhando o teu sonho egoista,
Teu pé, como o de um deus, fecundava o deserto!

Morro ! tu viverás nas estradas que abrisle !


i Teu nome rolará no largo choro triste
« Da água do Guayeuhv... Morre, Conquistador!
Viverás quando, feito em seiva o sangue, aos aros
Subiros, e, nutrindo uma arvore, cântaros
Numa camada verde entre um ninho e uma flor !

« Morro ! germinarão as sagradas sementes


Das gottas de suor, das lagrimas ardentes!
O CAÇADOR DE ESMERALDAS 267

Hão-de fructificar as foines e as xigilias!


E um dia, povoada a terra em que te deitas,
Quando, aos beijos do sol, sobrarem as colheitas,
Quando, aos beijos do amor, crescerem as famílias,

« Tu cântaras na voz dos sinos, nas charrúas,


No esto da multidão, no tumultuar das ruas,
No clamor do trabalho e nos hymnos da paz 1
i E, subjugando o olvido, atravez da,s idades,
Violador de sertões, plantador de cidades,
Dentro do coração da pátria viverás !

Dissipa-se a visão. Dorme do novo tudo.


Agora, a desusar pelo arvoredo mudo,
Como um choro de prata algeníe o luar escorre.
E sereno, feliz, no maternal rogaço
Da terra, sob a paz estrellada do espaço,
Fernão Dias Paes Leme os olhos cerra. E morre.

1900.
ÍNDICE

PANOPLIAS
Profissão de fó. I
A morte de Tap,\ r. 9
A Gonçalves Dias. 15
Guerreira.. . 16
A um grande homem. 17
A sésta de Nero. 20
O incêndio de Roma. 21
O sonho de Marco-Antonio. ^2
Lendo a Iliada 26
Messalina. . 27
A ronda nocturna. 28
Delenda Carthago!. ,'• . . 29

VIA-LACTEA
Talvez sonhasse quando a vi. Mas via. 39
Tudo ouvirás, pois que, bondosa e pura. . 10
Tantos esparsos vi profusamente. -ti
Como a floresta secular, sombria. . 42
'Dizem todos : « — Outr'ora comS as aves. 13
Em mim também, que descujdado vistes. 41
Xão tòm faltado boceas de serpentes. 15
Em que céos mais azues, mais puros ares. 46
De outras sei que se mostram menos frias. 17
270 IXDICE

Deixa que o olhar do mundo emfim devasse. |s


Todos esses louvores — bem o viste —. 19
Sonhei que me esperavas. E, sonhando. ,70
— O r a (direis) ouvir e s t r e l l a s ! C e r t o . . 51
Viver n ã o pude s e m q u e o fel provasse 5^
Inda hoje, o livro do p a s s a d o a b r i n d o .Mi
Lá fora, a voz do vento ulule rouca !. j1
Por estas noites frias e bnimosas. . . 55
Dormes... Mas que sussurro a humedecida. .Mi
Sae a passeio, mal o dia nasce. . .r>7
Olha-me! O teu olhar sereno : brando. 5s
Sei que um dia não ha, e isso é bastante. 59
Quando te leio, as scenas animadas. . 60
Laura! Dizcs que Fábio anda oflendido. 61
Vejo-a, contemplo-a commovido. Aquella. 62
Tu que no pego impuro das orgias . . 63
Quando cantas, minh' alma, desprezando. 61
Hontem — néscio que fui! — maliciosa. G.*i
Pinta-me a curva d'estoscóos. v Agora. G(i
P o r tanto tempo, desvairado e afflicio. 07
Ao coração que soffre, s e p a r a d o . (ix
Longe de ti, se escuto, p o r v e n t u r a . 69
Leio-te : — o pranto dos meus olhos rola —. 70
Como quizesse livre ser, deixando. , . 71
Quando adivinha que vou vel-a, e d escada. 72
Pouco me pesa q u e motéis s o r r i n d o . 77

SARÇAS DE FOGO
O julgamento de P h r y n é a . 73
Marinha. . . 79
Sobre as bodas de u m s e x a g e n á r i o . .. sn
Abyssus. S2
Pantum. . 83
Na Thebaida. 86
E' n'estas noites socegadas. 87
N'uma concha. 90
Supplica. •, 91
Canção.. t> - 93
Rio abaixo. ... 91
Satania. 95
Quarenta annos . 100
ÍNDICE 271
Vestígios. . .'• 101
ü m trecho de Gaulier ' 102
No liminar da morte. 105
Paraphrasc de Baudelaiiv 106
Rios e Pântanos. 109
De-volta do baile. 110
Saltara vitíe. 111
Beijo eterno. 115
Pomba e Chacal. 119
Medalha antiga . 120
No cárcere. 122
Olhando a qprrentc. . 123
Tenho frio e ardo em febre!. 124
Ijleljpezzo dei camin. 126
Sol|fudo. . H7
A carfção de Romeu. v 12S
A (tentação de Xenókra^cs. 131

ALMA INQUIETA
A Avenida das Lagrimas. 143
Inania verba . 115
Midsummer's nigth"s dream 146
Mater. , 118
Incontentado. 149
Sonho. 150
Primavera. 151
Dormindo. 152
Nocturno. . . 151
Virgens mortas 158
O Cavalleiro pobre. 159
Ida.. . 161
Noite de inverno. 162
Vanitas. J 166
Tefrcettos. 167
In extremis . ,. 170 1
A alvorada do Amor. 172
Vita nuova. , 171
,Manhã de verão. 175
Dentro da noite. 177
Campo Santo. . 180
Desterro. 182
2/2 .-, ÍNDICE

Romeu e Julieta 183"


V i n h a de N a b o t h . 186
Sacrilégio. 187
Estâncias . 190
Peccador. . 193,
Kei d e s t h r o n a d o . 191
Só. . . .,. 196
A u m violinista. 197
E m u m * ' t a r d e de outono. 203
Bailadas românticas. 204
Velha pagina. . 210
Wilfredo. . 213
Tédio. . ., . 218
Requieseal. 2J$
S u r d i n a -. . # . 222
Ultima pagitia; 224

AS VIAGENS

Primeira migração. 227


Os p h e n i c i o s . 228
Israel. . 229
Alexandre. 230
César. 231
Os bárbaro-, 232
As c r u z a d a s 233
As í n d i a s . 2.'!1
O Brasil. 235
O Voado- 236
O PólOjL. 237
A morte!. 238
A m i s s ã o de F u r n a ., 239
Sagres. *«

OÜCAÇfcDOR DE ESMERALDAS 25^

Paris. — Tip. H. GAHNIER, ti, rue des Saint-Pères. 3Í9.2.1902.


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Contos sem prelenção. 1 vol. Rio de Jarteiro. 2 vpl.
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FilagranasT 1 vol. mysloriosa. i vol. '
Corymbos. 1 vol, O Rio do Quarto. I vol. #
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r- •
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Obras'completas. 2 vol. Thealro completo. 3 vol.
Victimas Algozes (As). 2 vol.
Landrio (Mgr). Memoriasda rua do Ouvidor.
A mulher forte. 1 vol. i vol.
Paris. — Tip. Gvr.MEit lli:nu\M)j II. ido des Saiut S H N Í K
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