NADIM
NADIM
NADIM
Personagens
Parcela – Natan
Fração – Caio
Esbirro – Maurício
Beleguim / Galfarro – Babi
Inquiridor – Jackson
Alferes Mor –
Nadim – Maurício
Moça – Edilly
Homem Gordo – Pedro
Ministro Especial – Rosberg
*Este texto não corresponde ao original por trata-se de uma edição para o processo de montagem do
Teatro Experimental de Arte-TEA, de Caruaru-PE (Maio 2018), onde o texto mantém-se fiel ao original,
porém com supressão das rubricas.
PRIMEIRO ATO
CORO - Uns certos senhores, em vários lugares e desde muito tempo, insistem no mau gosto – no péssimo
gosto – de fazer do teatro um lugar triste, onde se exibem chagas e mazelas de uma sociedade em
decadência. Nós autores, atores, diretores, empresários etc. de bom gosto – de ótimo gosto – recusamo-nos
terminantemente – ter – mi – nan – te – men – te! – a insistir na tolice. Por isto, e porque achamos que se a
sociedade estivesse mesmo decadente há tantos séculos já não teria mais para onde decair, resolvemos fazer
uma peça para rir, para rir, para rir! Sem nenhuma alusão a realidade próxima ou distante no tempo ou no
espaço. E assim, devolvendo o teatro ao seu verdadeiro papel de diversão sadia, cumprimos o sagrado
dever de preserva-lo fiel ao seu destino e a única razão de sua eternidade: embelezar a vida e enobrecer o
homem. Se é que a vida pode ser mais bela, se é que a vida pode ser mais nobre.
Entram os vagabundos...
PARCELA – Não sei, mas ganhamos. É melhor. Ou você quer ficar com os que perderam?
FRAÇÃO – Ah claro! Ganhamos! Ganhamos! Quem ainda não souber que fique sabendo: nós ganhamos!
Entra inquiridor...
INQUIRIDOR – É uma pena que cinco anos depois da vitória – por que nós ganhamos!
TODOS – Ganhamos!
INQUIRIDOR – ... Ainda precisemos andar as voltas com estes casos. E logo com quem?
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TODOS – Com quem? Com quem? Com que?
INQUIRIDOR – Vá busca-lo!
Esbirro sai...
INQUIRIDOR – É uma pena, por que se continuarmos assim – prende um, mata outro, expulsa aquele,
este outro foge – quem fica em Fuleiró? Só nós, do Governo! E ai, quem vamos governar? Assim não tem
graça! O Governo manda e o povo obedece. É a ordem natural das coisas. Agora, um governo sem um
povo para obedecer é logicamente um governo desobedecido. Um governo desobedecido é um governo
desmoralizado. E um governo desmoralizado não pode governar.
INQUIRIDOR – Nadim!
INQUIRIDOR – Nadim!
NADIM – Sexta-feira!
INQUIRIDOR – Não! Em termos de história Nadim! Em termos de história, que dia foi ontem?
TODOS – Ganhamos!
NADIM – Quinto!
INQUIRIDOR – Quinto! Muito bem! E o que foi que houve na cidade Nadim?
NADIM – O desfile.
NADIM – Tudo. Toco na banda... Estudo... Trabalho na oficina... Curo doença... Canto ao violão... Danço
nas festas... Namoro... Sou bom, sou mau... Rico, pobre...
Sou patrão, sou empregado... Digo verdade, minto; Falo, escuto; Pago, recebo; Faço versos... Faço tudo!
INQUIRIDOR – Fazia!
INQUIRIDOR – Era!
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NADIM – Um pouco de cada um.
INQUIRIDOR – Era! No momento você não faz nada, nem é ninguém! É um prisioneiro. Um pri-sio-nei-
ro. É muito importante usar o verbo adequado no tempo certo. Principalmente diante do fato histórico.
Você era já não é! Fazia, já não faz. Se deixarmos que diante do fato histórico os tempos dos verbos se
confundam, vamos acabar trocando a ordem dos eventos, por exemplo, de que Colombo descobriu a
América antes de Cristo nascer. E está claro que se permitirmos esta confusão...
... Cansa muito ser inteligente. Eu gostaria de ser como vocês. Mas voltemos aos fatos, Nadim. Ontem foi o
quinto aniversário da vitória. Santa Vitória!
TODOS – Amém!
INQUIRIDOR – E você teve coragem de sair no meio da rua, Nadim, em pleno desfile, gritando:
Liberdade! Liberdade! Liberdade? Nadim, para que foi que nós lutamos?
TODOS – Ganhamos!
INQUIRIDOR – Então, Nadim, já conquistamos a liberdade. Mas se você grita: Liberdade! Liberdade!
Liberdade, você está implicitamente ou explicitamente dizendo que a liberdade é pouca.
NADIM – É que liberdade à gente deve estar sempre pedindo, para que não se esqueçam de dar.
INQUIRIDOR – Ah, bom! Então você não reclamava? No fundo aplaudia. Você lembrava e agradecia a
liberdade que já tem, sem pedir mais. Justo, justo, muito justo. Mas o caso estaria encerrado, Nadim, se
depois você não tivesse gritado: Paz! Paz! Paz! Você não gritou Nadim?
Nadim confirma...
INQUIRIDOR – Como é que você teve coragem de fazer uma coisa dessas?
NADIM – Eu... Eu agradecia a paz que já tenho. O senhor mesmo não disse? Agradecia a paz que já tenho,
sem querer mais.
NADIM – Sim!
INQUIRIDOR – Não!
NADIM – Sim!
INQUIRIDOR – Nadim, Fuleiró é um país de lutadores! Um país de tradições guerreiras, seus filhos não
podem ter paz!
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NADIM – Você foi à trincheira? Você está ferido? Vocês ouvem tiros?
INQUIRIDOR – (sorrinndo) A guerra é mais que tiros, feridos e trincheiras... É mais do que um fato ou
uma batalha. A guerra... é um estado d´alma!
NADIM – Não!
INQUIRIDOR – Claro! Não fosse a guerra um estado d´alma, para que estaríamos comprando canhões,
aviões, porta-aviões, caminhões e outros ões? Para encher... os porões? A guerra é um estado d´alma como
o êxtase poético! Hinos, bandeiras, desfiles, planos, estratégias, manobras!... Aquele sentimento de
combate! O culto do heroísmo e da bravura! Veja Nadim, que eu me arrepio todo ao pensar nisto! Mesmo
sem inimigos à vista ou a prazo, sem tiro, lama, sangue, avançadas, recuos, mesmo assim eu me arrepio
todo! E chego às portas do gozo! O que é isto? Poesia! Se a guerra é poesia – como está demonstrado – e a
poesia existe por sí só – a guerra também existe por sí só, mesmo durante a paz.
... Não sei se vocês conseguem acompanhar meu raciocínio, por que cansa muito ser inteligente... Mas é
como estou lhes dizendo. E talvez você possa atingir mais facilmente minha verdade, através da emoção –
que cansa menos. De acordo Nadim?
NADIM – De acordo!
INQUIRIDOR – Nem devem ir! Por que indo correriam o risco de morrer. E morrendo os guerreiros,
talvez morresse a própria guerra. E sem guerras, como vamos fazer história?
NADIM – De acordo...
INQUIRIDOR – De acordo, graças a Deus! ... Mas tem mais Nadim. Você gritou: Igualdade, igualdade,
igualdade! Não gritou?
INQUIRIDOR – Claro!
NADIM – E só doido pede aos homens aquilo que nem Deus pode nos dar.
INQUIRIDOR – Nadim, estou muito feliz! As coisas caminham muito bem. Vou estudar o seu caso, leva-
lo a consideração dos escalões superiores e voltaremos em breve a nos encontrar.
Entra a Moça...
MOÇA – Nadim! Nadim! Onde é que você está? Eu tenho saudades de você! Eu tenho desejo de você!
Saudades! Desejo! De você! Nadim?
NADIM – Miriam?!
MOÇA – A filha do carcereiro deu-me a chave. Mas ninguém sabe que estou aqui. Nadim, gritei tanto seu
nome, quase sem forças, procurando você... Agora que me dá vontade de gritar de alegria não posso mais.
Entra Gordo...
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GORDO – E... quais são as novidades ministro?
MINISTRO – Presidente...
GORDO – Exato...
MINISTRO – Obrigado. Vossa Alteza, poucos dias depois da vitória, escolheu-me entre os trezentos
fuleirenses mais fiéis para seu ministro especial.
GORDO – Exato...
MINISTRO – Obrigado. E me disse: “Ministro, quero que Fuleiró conheça o melhor governo de sua
história. O povo está cansado de tanta fuleiragem, te tantas promessas vãs, de tantas leis inócuas”.
GORDO – Exato...
MINISTRO – Exato.
GORDO – Obrigado.
MINISTRO – Obrigado digo eu Alteza. “Quero um governo austero e grave! Que preciso fazer ministro?”
– Deu-me na honra de perguntar em seguida. E eu tive a honra de responder: Atacar os problemas mais
graves, Presidente.
GORDO – Alteza.
MINISTRO – Naquele tempo, mesmo na intimidade, Vossa Alteza gostava que o chamássemos de
Presidente.
MINISTRO – Historicamente falando. Mas eu disse: atacar os problemas mais graves. – E Vossa Alteza
ordenou: “Procure o pior de todos deles, e vamos liquidá-lo!” – Pois bem, Alteza: eu trouxe o problema no
dia seguinte. Digo: Presidente – historicamente falando – em Fuleiró, a despeito de toda nossa riqueza
natural – e artificial – de todo nosso progresso, e de todo o sentimento piedoso de nosso povo, morrem duas
crianças por minuto! Crianças de um ano de idade, e até menos, morrem de fome crônica e de doenças
bobas. – Vossa Alteza duvidou, lembra-se? Chegou a dizer: “Ministro, não será invenção dos agitadores,
que andavam infestando Fuleiró? Tem mesmo tanta criança pra morrer em nossa terra? E essa população
como é que cresce a cada dia?” – Cresce de fuleirice – respondi eu. Cresce de fuleirice, esse sentimento de
amor por Fuleiró, que está acima de todas as coisas, inclusive da vida e da morte. – Vossa Alteza deu me
honra de sensibilizar-se pelo problema, e ordenou: “Pois bem Ministro! Vamos ver se é verdade.” – Eu
sinceramente quase me ofendi Alteza.
GORDO – Sem razão ministro, sem razão. Eu não duvidava das suas palavras. Duvidava dos agitadores.
Tanto assim que mandei queimar todos os livros que eles tinham escrito. Depois continuei esperando pra
ver se as crianças continuavam morrendo mesmo.
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MINISTRO – Nesta espera, Alteza, perdeu-se um ano de governo.
GORDO – O que é que eu posso fazer ministro? O tempo passa, o tempo voa! É o maior inimigo dos
governos. Passa tão depressa, que quando a gente vê já esta na hora de passar a rapadura.
MINISTRO – O ano seguinte Alteza, foi gasto pelos seus agentes de informação secreta, que foram
examinar “in loco” se as crianças morriam mesmo, como eu tinha dito.
GORDO – Mas eu continuava não duvidando do senhor, ministro. Realmente, mandei meus agentes
secretos. Porque era preciso apurar! Podiam estar enganando o senhor! Criança mente muito!
MINISTRO – Ai Vossa Alteza ordenou: “Ministro! Diga a Fuleiró, de ponta a ponta, que vamos acabar
com esse flagelo nacional!” Era o segundo aniversário da vitória, Alteza... Ontem... foi o quinto... E as
crianças... continuam... morrendo...
MINISTRO – Continuam...
... Esta certo ministro. Amanhã vou tomar severas providências sobre isto. Agora preciso estudar o caso de
um rapaz que andou gritando “Paz! Igualdade! Liberdade!” no desfile de ontem. Veja: paz, igualdade,
Liberdade! Naturalmente querendo insinuar que os outros governos de Fuleiró davam mais que o meu. E
me diga, ministro, me diga! Como é que eu posso dar liberdade a essa gente, com duas crianças morrendo
por minuto? Dá liberdade, começa a morrer três, quatro, cinco, dez que não acaba mais!
Moça e Nadim...
NADIM – É bom ouvir alguém rindo. Ah, se a gente pudesse ensinar os amigos a rir, mesmo das coisas
tristes! Eles haviam de ser mais felizes. E mais fortes. Eu fui ao matadouro, Miriam. Chamaram-me para
construir um muro novo. E dali, trabalhando no andaime, vi matar um boi. Depois ainda quente, sangrá-lo.
E esquarteja-lo. Não sei porque, mas comecei a rir. De pena, ou de nervoso, não sei, mas comecei a rir.
Sabe que o açougueiro – pela primeira vez em toda sua vida – pensou no que estava fazendo e teve medo?
Ele mesmo confessou “Pare de rir! Não fiz nada de engraçado! Matei um boi! Agora lhe arranco as pernas!
Esta é a minha desgraça profissão! Pare de rir!” E avançou para mim. Era medo. Eu vi pelos olhos dele.
Agora imagine se todos ficassem rindo ao seu redor. E se os bois pudessem rir? Os próprios bois irmãos do
morto! Se mandarem me enforcar Miriam...
NADIM – ... Junte todos os nossos amigos em torno da forca. E riam, riam muito. É capaz de o carrasco
fugir sem me matar. Ou se não puderem rir, cantem! O canto é uma forma de riso, na boca do povo.
Cantem com todas as forças do meu coração! Mesmo baixinho. O sussurro de muitos é pior que
tempestade.
Canção...
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Amanhã vai ser outro dia...
GORDO – Pronto! Recomeçou! Não é possível! Não é possível! Assim ninguém dorme em Fuleiró! Que
mania foi essa que deu nessa gente? Cantam dia e noite, dia e noite, noite e dia!
GORDO – Ah! Então a culpa é minha! A culpa é minha! Onde está o Ministro Inquiridor?
GORDO – Diga-lhe para ser mais rigoroso! E que toda Fuleiró conheça o meu rigor!
GORDO – No diário Fuleirense de amanhã, que sejam publicados todos os novos aumentos de preço de
uma vez!
GORDO – E tem mais! Alteração no Imposto de Renda. Tome nota: sessenta por cento sobre os lucros e
cinquenta por cento sobre os prejuízos.
GORDO – Não, mas eles precisam aprender a negociar. Não quero incompetentes em Fuleiró!
Canção...
GORDO – Ministro, diga alguma coisa! Não fique olhando como se tivesse medo de mim! Que me
aconselha?
GORDO – Já sei, já sei! As crianças! Mas quero saber para agora, o que fazer para essa gente parar de
cantar aos meus ouvidos!
MINISTRO – Alteza... Fuleiró é a terra da canção. Todo fuleirense nasce cantando e morre cantando, até
as crianças...
GORDO – Já sei! As crianças! As que morrem e não cantam mais. Ainda bem. Eu quero saber o que devo
fazer com os que vivem. E cantam, cantam como doidos!
MINISTRO – Se Vossa Alteza proibir o povo de cantar, vai ficar muito mal colocado na opinião dos
outros povos, Alteza. Parece que cantar faz parte dos direitos humanos. Os outros povos, com raras
exceções também cantam. Que vão dizer os jornais do mundo inteiro?
GORDO – Antes de ser Ministro do Governo de Vossa Alteza – o que muito me honra – eu estava um dia
vagando pelas ruas do centro da cidade. E de repente ouvi uma gritaria: “Pega ladrão, Pega Ladrão!” –
Vinha de longe, mas crescia depressa. Um minuto depois, surge de uma esquina a multidão gritando! E
corre na direção de onde eu estava, Alteza: se eu não me viro e saio correndo junto com eles, morria
esmagado! Aderi! “Pega ladrão, Pega Ladrão!” com todas as minhas forças. De noite, já tínhamos
percorrido toda a cidade sem pegar ladrão nenhum. Sabe por quê? Ele estava correndo ao nosso lado,
gritando conosco. Cante Alteza. Vai sentir-se melhor e mais protegido do barulho.
GORDO – Mas um chefe supremo pode cantar alguma coisa, além do seu hino nacional?
MINISTRO – Experimente!
GORDO – O senhor tem razão ministro! Agora estou feliz como o meu povo! Fuleiró é a terra da canção!
GORDO – Agora vou dormir que já estou cansado. As crianças podem esperar, não podem?
GORDO – Impacientes! Bom, amanhã eu dou um jeito nisto, mando o ministro da justiça fazer uma lei,
que não morre mais ninguém.
Nadim na prisão...
BELEGUIM – Quem tratou de minha mulher quando esteve doente? Doutor Nadim.
MEIRINHO – Nós não queremos que você morra! As ordens são severas, Nadim!
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ESBIRRO – E basta o que? Uma coisa a toa! Você dizer que retira tudo quanto gritou no desfile. Faz isso
Nadim.
NADIM – Não!
NADIM – Tanto faz. Pra mim o tempo não passa, nesta prisão.
ESBIRRO – Mas lá fora correu... voou... Houve tanta coisa, desde que você foi preso! Ninguém sem se
lembra de você!
BELEGUIM – Nadim, eu vou lhe contar um segredo de Estado. Nem eles sabem. Quem me contou foi a
mulher do Alferes-mor... Talvez isso faça você mudar de ideia. Se você não retirar o que disse, vai ser
condenado à morte.
Na praça...
INQUIRIDOR – O muro! Os degraus! A forca e a guilhotina! E só. Corta a luz de ensaio! Amarelo! Azul!
Verde! Vermelho! Muito bem! Primeira combinação... Cenário pronto!
FRAÇÃO – Imagine se eu perco a hora do fuzilamento? O Chefe Supremo faz questão que eu assista.
PARCELA – Inda bem que parou de chover! Fuzilamento com chuva é insuportável!
PARCELA – Cidadão Nadim Nadinha! Por elevada decisão da suprema corte do altíssimo tribunal do
conselho superior... Estais altamente condenado a morte por crime de altíssima traição ao regime!
NADIM – Eu sei!
NADIM – Não!
FRAÇÃO – Não concordais que vossa atitude serviu para criar condições emocionais em Fuleiro, gerando
contentamentos infundados?
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NADIM – Não!
FRAÇÃO – Não admitis que praticastes ato de ingratidão e pecado contra nosso Chefe Supremo?
NADIM – Não!
FRAÇÃO – Não aceitais a morte como remissão de vossas culpas e como exemplo para toda Fuleiró?
PARCELA – Exatamente o que imaginávamos. Isso prova que não sois doido e que portanto agistes com
pleno uso da razão. Logo, não mereceis a clemência que o amado chefe só concede aos loucos amigos.
Alferes-Mor...
ALFERES-MOR – Posição!
Voz de moça...
ALFERES-MOR – Preparar!
MOÇA – Nadim!
ALFERES-MOR – Apontar!
ALFERES-MOR – Fogo!
Nadim cai...
MOÇA – Nadim! Eles fizeram tudo em segredo! Não deu tempo de avisar aos amigos! Perdoa Nadim!
Perdoa tua mulher!
PARCELA – Exatamente às cinco horas e trinta e dois minutos do dia vinte de agosto de mil novecentos e
trinta e seis – sétimo aniversário da vitória em Fuleiró – foi executado diante de nossos olhos – e disto
damos fé – o cidadão Nadim Nadinha, perigoso e contumaz agitador.
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GORDO – Muito bem! Divulgue se a notícia pelos quatro cantos do país. Que nenhum só fuleirenses
ignore o castigo!
OS DOIS – Às cinco horas e trinta e dois minutos de hoje, caiu sob os tiros da justiça Nadim Nadinha, o
perigoso agitador que toda Fuleiró temia! Pode agora a família fuleirenses trabalhar em paz, porque nós
zelaremos por sua tranquilidade e segurança.
GORDO – Amém!
MINISTRO – Amém!
OS DOIS – Às cinco horas e trinta e dois minutos de hoje, caiu sob os tiros da justiça Nadim Nadinha, o
perigoso agitador que toda Fuleiró temia! Pode agora a família fuleirenses trabalhar em paz, porque nós
zelaremos por sua tranquilidade e segurança.
GORDO – Amém!
MINISTRO – Amém!
GORDO – Obrigado! Sei que deve ter sido terrível para vocês, para mim também foi. Mas quem governa
precisa, em certas horas por o coração de lado. Podem ir! Pronto Ministro vamos aos negócios de Estado.
MINISTRO – Alteza... Já que voltou a paz ao Governo de Fuleiró, não vos parece oportuno pensar nas
crianças, que...?
GORDO – Pergunto ao Ministro da Saúde e ele me diz que as crianças vão bem, obrigado, vacinadas
contra raiva, sarampo, mais sabin, tríplice, BCG... Pergunto ao Ministro da Educação ele me diz que as
crianças estão estudando cada dia mais! Sem exagero, palavras dele: tem escola e, que as crianças já sabem
muito mais que os professores! Quer dizer: progresso, desenvolvimento! Só o senhor que não sai dessa
lenga-lenga!
GORDO – Eu acho melhor o senhor parar com essas crianças, porque já está me aborrecendo!
GORDO – Pois é! Sete anos! O senhor acha que alguém resiste há sete anos de uma idéia fixa? Isso é
monomania, Ministro! Isto é monomania!
GORDO – Mentiram! Desobedeceram as minhas ordens! Venha todos! Venham todos à minha presença!
Estão vendo em que é que dá usar o coração? Vocês não me disseram que Nadim morreu às cinco e trinta e
dois sob os tiros da justiça?
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PARCELA – Morreu! Ele viu!
PARCELA – Morreu!
GORDO – Chega! E como Nadim foi visto hoje pelas ruas da cidade?
PARCELA – Vivo!
INQUIRIDOR – Caminhando!
ALFERES-MOR – Só se as balas estão falsificadas Majestade! Mas é fácil saber... Você! Cinco passos à
frente! Marche! Alto!
... Veja Alteza! Perfume de flor! Rosa! Este é rosa! Cravo! Jasmim! Violeta! Munição perfumada Alteza.
Tecnologia inédita e rigorosamente nacional! A possibilidade de uma guerra sem o cheiro acre das pólvoras
vulgares! A defesa do meio ambiente. Está em curso alías uma nova patente, juntando ao perfume um
saudável efeito inseticida. É o que se pode chamar de arma limpa, útil e cheirosa! E não se diga que
estamos imitando outras nações, por que a própria bomba de nêutrons, ao que consta, não perfuma! Agora
vejamos o efeito... por que seria ridículo se perfumasse, desinfetasse... e não matasse! Lógico!
... Completamente morto! ... Eu juraria! Estas balas são garantidas pelo fabricante que é meu sogro. Não
falharam até hoje! Levem este herói! Que repouse pelo resto dos tempos no panteão da pátria! Morreu pelo
bem de Fuleiró, em defesa da verdade!
INQUIRIDOR – Em pessoa!
INQUIRIDOR – Confesso que fiquei tonto com a surpresa, Majestade. Quando voltei a mim, ele havia
desaparecido.
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GORDO – Pois que seja preso outra vez! E outra vez passado pelas armas! Esteja onde estiver, quero-o
preso, julgado e executado em 24 horas.
INQUIRIDOR – Atenção para o toque de 8 segundos! Oito! Sete! Seis! Cinco! Quatro! Três! Dois! Um!
Zero!
Saem
Segundo Ato
MOÇA – Dizem que a polícia vareja casa por casa à sua procura...
NADIM – Já sei.
NADIM – O mundo inteiro hoje é a mesma coisa. Não se vive um lugar, vive-se um tempo. Seria preciso
fugir não de um país – de um século. Seria preciso fugir não de um país – de um século – por que todos os
países são assim. E ninguém dura tanto tempo Miriam. Só nos resta esperar que passe essa longa noite. E
acordar com os olhos dele... Num possível amanhã.
NADIM – Resistir. Por dentro. Cada um na sua própria cidade, destruindo uma por uma as mentiras que
lhe ensinam. Para que ele amanhã não se envergonhe do seu país. Nem cresça com medo.
Batidas na porta...
VOZ DE HOMEM – Pedro, o carpinteiro. Minha filha piorou! Doutor Nadim pode atender?
MOÇA – Ele está indo! Toda vez que você me beija parece a última.
Nadim Sai...
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ESBIRRO – Por que tínhamos que leva-lo preso?
GALFARRO – O que?
ESBIRRO – Obrigação?
GALFARRO – Nem eu! Já disse: graças a Deus que não achamos ele! Homem...
GALFARRO – Homem... Você está lançando a confusão na minha cabeça viu? O Alferes disse que era
obrigação – e você não sabe mais do que o Alferes, tá? Senão você estava lá e ele aqui! Então pronto. Se
Nadim aparecer vai preso. Obrigação é o que o superior ensina e manda fazer, o resto é besteira.
ESBIRRO – Ou consciência!
GALFARRO – Um momento! Seus papéis! É ele! É ele! Aqui del Rei! Nadim passou por aqui!
INQUIRIDOR – Está certo. Você não quer dizer uma palavra. Não nos olha na cara! Não diz onde esteve
escondido, quem lhe ajudou, quais são seus cúmplices. Não, não diz nada! Não pede clemência, não que o
diálogo. Numa palavra: Não quer diálogo. Mas explique pelo menos como foi que você ressuscitou! Como
foi que você ressuscitou despois de fuzilado?
... Olhe Nadim, eu juro... Eu juro pela minha honra.. Pela minha inteligência que é tudo quanto mais prezo
nesta vida! Pela vida dos meus filhos... Pela minha honestidade... Juro que se você me contar como fez
isso, eu vou interceder por sua vida! Juro Nadim, mas conte! Quer morrer outra vez! Parece mentira, mas
ele quer morrer outra vez! E desta vez, para que não haja dúvidas quanto às balas... Será enforcado em
praça pública, ao romper da manhã.
GORDO – Pronto?
PARCELA – Às seis horas e trinta e cinco minutos do dia quinze de dezembro de mil novecentos e trinta e
sete – oitavo ano da vitória – foi enforcado em praça pública – e disto dou fé – Nadim, Nadinha, cidadão de
Fuleiró, perigoso e contumaz agitador.
PARCELA – Muita!
PARCELA – Enterrado sob as nossas vistas, Majestade! Por um mês inteiro haverá guarda montada dia e
noite sobre a lápide.
MINISTRO – Alteza...
GORDO – Sim?
MINISTRO – Já!
GORDO – E dai?
INQUIRIDOR – Majestade?
GORDO – Este sujeito está despedido! Mande cortá-lo da folha de pagamento! E fica proibida sua entrada
no Palácio!
MINISTRO – Alteza...
GORDO – (Em fúria) Já não aguento mais ouvir falar das crianças que morrem a toda hora de fome em
Fuleiró!
GORDO – Quando eu lhe vejo de manhã, de noite sonho com o diabo das crianças! Quando ouço a sua
voz no corredor, parece que tem crianças chorando de fome no palácio! Eu não quero mais saber da sua
existência ministro...
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MINISTRO – Alteza, eu não tenho culpa!
GORDO – Tem!
GORDO – Fora!
GORDO – Fora!
GORDO – Fora!
GORDO – Fora!
MINISTRO – Se vossa Alteza consultar a Revista Oficial, vai ver um artigo meu aconselhando a limitação
dos filhos...
GORDO – E adiantou?
MINISTRO – Não, porque as mães e os pais não sabem ler, são analfabetos! Só se preparássemos umas
histórias em quadrinhos... Ou uma fotonovela anticoncepcional...
GORDO – Foooooora!
MINISTRO – Por piedade, Alteza! Não me mande embora por causa das crianças! Eu queria dar seriedade
ao seu Governo. Mas se vossa Alteza prefere eu estudo um programa mais alegre. Faremos... um festival,
Alteza! Um festival é ótimo! Um plano de turismo pelas nossas florestas e montanhas, com feras, índios e
pessoas bonitas. Nuas! Quase nuas. Prostíbulos especiais para os turistas, aproveitando a farta matéria
prima nacional, que até hoje o Estado não soube utilizar em favor de divisas estrangeiras. Qualquer coisa
assim! Tenho muitas ideias Alteza! Sou um homem muito útil ao Governo, não me mande embora
GORDO – Ministro Inquiridor! Se este homem disser mais uma palavra, pode matá-lo!
Ministro Inquiridor saca um revólver... Ministro especial sai de joelhos...Nadim dedilha canção ao
violão...
Saem os dois...
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ALFERES-MOR – Foi o chefe supremo quem mandou. Não posso fazer nada!
ESBIRRO – É absurdo!
ALFERES-MOR – Cada vez que Nadim ressuscitar, não sendo recapturado em até 24 horas, demitir um
de nós para castigo da tropa.
ALFERES-MOR – Não sei! Só sei que é ordem, vamos lá! Uni, duni, tê, salame, minguê, pior cego não
quer ver o culpado foi você... Passe as armas
GORDO – É um descalabro! Um descalabro! O que é que adianta ser chefe supremo de Fuleiró? O que
adianta? Se não consigo impor minha vontade a quem tem obrigação de obedecer?
FRAÇÃO – Majestade...
GORDO – Comem do que eu dou! Vestem o que eu jogo fora. Gastam o que eu pago! A obediência de
vocês parece o amor das prostitutas. Eu quero a obediência do povo! Quero respeito, veneração!
GORDO – Estão ouvindo? Estão ouvindo? É de Nadim! Eu sei que é de Nadim! E vocês pensam que
adianta proibir que eles cantem? Se eu mandasse cortar a língua de um por um, cantavam todos pra dentro,
feito mudo. Cantavam com os olhos! Cantavam com o rabo! Mas cantavam!
... Tirei retrato com a coroa nova. Mandei fazer desse tamanho! Lindos! Coloridos! Distribui 10 mil só na
capital! Vão ver se tem algum só para remédio, numa casa qualquer. Para não dizer que não, meus agentes
encontraram um, numa privada. Agora revistem as bolsas das mulheres. Não existe carteira onde não haja
uma foto de Nadim! Pequena, feia, velha, rasgada, sem coroa, mas tá, rindo de mim, zombando de mim!
... Mandei botar minha cara nas moedas. No dinheiro! E vocês pensam que adiantou? Gastam tudo logo pra
não me ver!
FRAÇÃO – Eu também...
FRAÇÃO – Mas fora daqui ninguém vê dinheiro Majestade. Não é por mal, é carência.
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GORDO – E essa gente cantando dia e noite dentro dos meus ouvidos! Cantando para escarnecer! Vocês
sabem por que fazem isso? Por que não tem um fuzil para me dar um tiro! E quem é o culpado? Nadim!
Nadim! Nadim! Nadim!
ALFERES-MOR – É uma pena! Uni, duni, tê, Salamê minguê, pior cego não quer ver... O culpado foi
você. Sinto muito meu velho!
ESBIRRO – Bah!
Entra Esbirro e fala para Galfarro e moça que estão em um canto aprendendo a canção, que é
interrompida pelo Esbirro.
MOÇA – Continuem!
Saem...
INQUIRIDOR – Os olhos iguais. Dentes, os mesmos. Cabelos idênticos. É Nadim, não há dúvida. É
Nadim! Mas como? Se já foi fuzilado, enforcado, degolado, esquartejado, estraçalhado pelos cães, afogado
no poço, queimado na fogueira, mordido pelas cobras venenosas, comido pelos ratos. Como pode estar
vivo outra vez? Já não penso em outra coisa, dia e noite! Qual é o mistério nisso tudo?
... Nadim você me venceu. Você me venceu, concordo! Reconheço... Eu tenho guardas, soldados, prisões,
instrumentos de tortura, delatores, informantes, tenho tudo. Mas por algum motivo, você é mais forte. Mas
agora me explique, onde está o seu poder de renascer, cada vez que o matamos? Você fez pacto com o
diabo ou com Deus? – Que palavra de honra – já duvido até dele... Fez? Um dia você se disfarça de
pedreiro, depois de médico, poeta, juiz, mecânico, livreiro, pescador – mas é o mesmo! O mesmo Nadim,
que morre e ressuscita.
GORDO – Onde está? Onde ele está? Quero vê-lo e desta vez, sou em mesmo quem vai cortá-lo em
pedacinhos...
... Ah é o senhor! É o senhor que pretender roubar-me o coração do povo de Fuleiró? É o senhor que se
proclama o verdadeiro rei de nossa terra? É o senhor que se diz amado por todas as mulheres? É o senhor?!
GORDO – E ainda sorri? É doido! Doido varrido! Tão doido que não se convence de que morreu, cada vez
que morre e continua vivendo. É isso, é isso! Ele não sabe que morreu.
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TODOS – Meu nome está dizendo, Alteza: Nadim Nadinha, cidadão de Fuleiró, mas faço tudo. Toca na
banda, estudo, trabalho na oficina, curo doença, canto ao violão, danço nas festas, namoro, sou bom, sou
mau, sou rico, sou pobre, sou patrão, sou empregado, recebo, pago, fico com a sobra, quando tem sobra,
digo a verdade, minto, falo, escuto, faço versos! Porque sou todos num só, um pouco de cada um! É cada
vez que mandar me matar, só morre um dos tantos que eu sou!
NADIM – Este é o meu segredo Ministro Inquiridor! Nem pacto com Deus e nem com o diabo, que a
muito não se envolvem nestes assuntos, não sei se por cansaço ou por desamor. De homem para homem,
simplesmente.... Já ouviu falar dos judeus Alteza?
NADIM – Reis tem prazo de validade Majestade! Nascem, governam, se corrompem, corrompem,
desgovernam e morrem. Ministros são projetos de reis, pedacinhos de reis, são reis frustrados. Também
tem prazo fixo. Nadim Nadinha é povo, é Zé Ninguém. Não sabe quando nasceu nem quando vai morrer.
Por isso não tem começo e nem fim. Judeus no Egito, na Espanha, na Alemanha; Cristãos em Roma;
Herege na Inquisição; Homem livre em Fuleiro – todos prisioneiros da corrupção. Tenho cem filhos
crescendo em cada rua para me vingar. Cem viúvas lembrando-se de mim e prontas para a luta. Caibo na
roupa de todos vocês, até na nudez dos miseráveis.
... E ainda que um dia meu corpo se acabe, ainda que morra o último Nadim, ficarão meus sonhos, minha
voz, minha canção! Nadim Nadinha, sou gente! Preto, Branco e amarelo, sou povo.
GORDO – E quem foi que disse que eu não acabo com você? Depressa, o cofre. O caixão de ferro! O
caixão de ferro! Joguem-no ai dentro! Para o palácio já! E avisem a todos, que eu, pessoalmente, matei
Nadim Nadinha e em seu sangue, me sagrei Tudão I, primeiro imperador de Fuleiró.
OS DOIS – Às sete horas e trinta minutos do dia 13 de abril de 1940 – Ano décimo da vitória - Nadim
Nadinha, o perigoso e contumaz agitador que toda Fuleiró temia, foi derrotado e morto pelo Chefe
Supremo, quando então em seu sangue se sagrou Tudão I, o primeiro imperador de Fuleiró!!
DOIS – Sua Majestade faz questão que de que todo povo saiba que matou Nadim pessoalmente, sem
auxílio de qualquer potência estrangeira, nem pessoa deste ou do outro mundo.
MINISTRO – Hum! O que é que ele quis dizer com isso? Que vocês guardas de Fuleiró são todos uns
incapazes? Quantos vocês já mataram sem precisar da ajuda de ninguém?
ALFERES-MOR – Bom...
MINISTRO – E precisava matar? Foi um crime com todo o aspecto de vingança pessoal, o que não fica
bem para um Governante. Que espécie de governante ele é? O que foi que ele fez por Fuleiró? Hum?
Coisíssima nenhuma! Não é por estar na sua presença Alferes, mas você, com seu espirito de disciplina,
forjado na caserna, com seu amor as leis, sua coragem pessoal, você teria feito muito mais. Oh... sem
comparação!
Alferes fica em silêncio, Moça ensina a canção... Gordo curioso com a arca...
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MINISTRO – Você viu! Não precisa ninguém contar! Eu tive culpa? Uma coisa que ele me pediu no dia
seguinte ao da vitória... E resolveu? Nem resolveu e nem vai resolver, por que para governar meu filho, é
preciso crânio, inteligência. O que você, não desfazendo de ninguém tem para dar e vender.
Inquiridor confirma
MINISTRO – Sabe o que quer dizer isto? Qualquer dia desses, Vocês que estão lá em cima é que vão ser
acusados, hein? Vocês é que vão se dar mal...
VOZ DE NADIM (TODOS) – E ainda que um dia meu corpo se acabe, ficarão meus sonhos, minha voz,
minha canção, acima de vossas balas, vossa força ou prisão...
GORDO – Medo? Eu tenho medo? Alferes-Mor?! Alferes! O senhor ouviu uma voz aqui ainda à pouco?
GORDO – A minha?
GORDO – Mentira! Fique sabendo que eu não tenho medo! Porque matei Nadim Nadinha! Eu! Eu! E
tranquei o corpo aqui dentro. Se ele estivesse vivo eu mataria de novo! Cem vezes! Mil vezes! Quer ver?
Gordo abre a arca... Vazia...
Gargalhada de Nadim...
Coroação...
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MINISTRO – Ah morreram, morreram Alteza!
ALFERES – Então não precisamos nos preocupar mais com este problema?
Canção...
NADIM – Miriam?!
Canção...
* FIM *
ou
* RECOMEÇO*
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