Berman Cid Contemporanea Paisagem
Berman Cid Contemporanea Paisagem
Berman Cid Contemporanea Paisagem
RESUMO
Este trabalho busca relacionar o conceito de Modernidade de Marshall Berman em Tudo que é sólido
desmancha no ar ao de paisagem cultural, especificamente no que este se refere à preservação do
patrimônio cultural urbano das sociedades contemporâneas. A componente prática da discussão
teórica terá por objeto a cidade de Fortaleza, Ceará. Metrópole contemporânea e periférica, Fortaleza
luta para harmonizar os efeitos da crescente globalização e da expansão urbana à manutenção dos
valores e da identidade de sua comunidade. A “tragédia da burguesia”, descrita por Marx e analisada
por Berman, é inexorável: toda criação do Capitalismo inspira admiração temporária, pois sua
destruição é inevitável. A preservação do patrimônio e das paisagens culturais é uma questão
nevrálgica quando enquadrada nesse pensamento. A tensão entre preservação da memória e
desenvolvimento acirra-se com o processo de globalização, daí a urgência em discuti-la, sob pena de
perder-se o patrimônio cultural contido nas paisagens construídas pelo homem. De Varine (2012)
afirma que o patrimônio só tem razão de ser se incorporado ao desenvolvimento, mas como garantir
integração e preservação, se, no contexto da Modernidade, prevalece a lógica de
destruição/substituição de tudo que é produzido? Fortaleza vive intensamente esse conflito. Seu centro
histórico, por exemplo, sofre processos avançados de descaracterização, gentrificação, além de outras
mazelas comuns às metrópoles contemporâneas, como a epidemia de drogas e a violência urbana.
Investiga-se, assim, a relação desses processos com a Modernidade. Essa reflexão norteia o trabalho
que, embora focado em Fortaleza, é aplicável a outras realidades urbanas com semelhantes
características.
1. Introdução
Este trabalho busca relacionar o conceito de modernidade em Marshall Berman, no livro Tudo
que é sólido desmancha no ar, ao de paisagem cultural, especificamente no que este se refere
à preservação do patrimônio cultural das sociedades contemporâneas. A componente prática
da discussão teórica terá por objeto a cidade de Fortaleza, Ceará. Metrópole contemporânea
e periférica, Fortaleza luta para harmonizar os efeitos da crescente globalização e da
expansão urbana à manutenção dos valores e da identidade de sua comunidade.
Essa reflexão norteia o trabalho e, embora centrada no caso de Fortaleza, pode se aplicar a
outras realidades urbanas com características similares. Dessa maneira, o trabalho está
organizado em quatro partes: um primeiro item onde o serão analisados os diálogos literários
entabulados por Berman com autores diversos considerados como arquetípicos textos
modernos. Dentro desse item, a modernidade do próprio Berman também será discutida no
sentido de demonstrar as várias condicionantes da lógica do capitalismo que impactaram as
sociedades.
Na terceira parte será apresentado o caso de Fortaleza, cidade essencialmente moderna, cujo
desenvolvimento comercial e social ocorreu tardiamente, quando no contexto europeu, já se
sentiam os efeitos da revolução industrial. Neste caso, a descaracterização e a efemeridade
das manifestações culturais, como será demonstrado, são características intrínsecas da
modernidade própria da cidade.
Nas considerações finais o trabalho, em harmonia com a perspectiva adotada por Berman,
refletirá acerca das consequências destrutivas da modernidade sobre o corpus memorial e
patrimonial das sociedades contemporâneas, no que diz respeito às manifestações materiais
de suas culturas.
Em Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman demonstra a relação dialética entre
“a crescente modernização do meio ambiente – particularmente o meio urbano – e o
desenvolvimento da arte e do pensamento modernistas”. A compreensão associada dessas
duas dimensões da modernidade - a da materialidade e a da espiritualidade, dos valores e do
psicológico humano - é, para Berman, imprescindível para que o homem moderno se
posicione no torvelinho da humanidade pós-feudalismo.
Uma das mais relevantes questões levantadas por Berman é a da efemeridade de todos os
tipos de manifestações e relações entabuladas pelo homem moderno: tudo é criado para que
se desmanche em seguida, de objetos a sentimentos e ideias, tudo se desmancha para que o
sistema continue a funcionar. A “tragédia da burguesia”, descrita por Marx e analisada por
Berman, é inexorável: toda criação do Capitalismo inspira admiração temporária, pois sua
destruição é inevitável.
O instigante diálogo literário promovido por Berman têm como interlocutores alguns dos
representantes cruciais do pensamento moderno. De início, percorre junto ao Fausto de
Goethe o primeiro período posterior à queda do Antigo Regime. A apatia e a angústia iniciais
de Fausto demonstram, diz Berman, a instabilidade social engendrada quando “um sistema
mundial especificamente moderno vem à luz” (BERMAN, 2007, p. 52). Em tal sistema não
existe outra força vital que não o desejo pelo desenvolvimento, pela modernização.
Fausto, arquétipo do herói moderno, personifica a quebra dos grilhões feudais, a traumática
dissolução dos antigos valores e a tragédia do desenvolvimento. Para Berman, a caminhada
de Fausto junto a Mefistófeles, seu romance com Gretchen, sua aventura no mundo de
sexualidade exacerbada, poder e riqueza e o enorme empreendimento de construção do novo
mundo resumem a epopeia da modernização, ou ainda, a corrida pela produção e construção
de uma nova era que, ao destruir barreiras humanas e naturais, solapa o antigo mundo.
Assim, tudo se modifica quando Fausto percebe que tem o poder sobre a força de trabalho
dos homens, ele percebe isto como um dever de criar um novo mundo para o novo homem,
ainda que isso signifique destruir o que existia de melhor no Velho Mundo. Dessa maneira, o
chão de Fausto e do homem moderno é trêmulo, pois estes são obrigados a se desfazer do
passado, das raízes, do antigo e, assim, não possuem razão para continuar no mundo: esta é
a dialética do homem moderno apresentada por Goethe, onde, justamente no ápice da
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO
Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
mudança de sistema e da vida material, Fausto, o homem moderno, sofre sua derrocada
espiritual.
Segundo Berman, o desenvolvimento infinito proposto por Marx, “de acordo com o qual tudo
que é sagrado se destrói” no ritmo desenfreado do capitalismo, que a tudo arrasta em
vertiginosa corrente para a desintegração, não se limita aos bens de capital, às obras públicas
ou à economia. Com a mesma velocidade transforma em descartáveis os princípios e
fundamentos do espírito, a criatividade artística, que se traduz em apatia moral e espiritual,
um niilismo que funde as possibilidades humanas em nome da economia burguesa. Nesse
quadro, até o trabalho intelectual está condenado à mercantilização e à produção a partir de
demanda, processo que submete artistas e pensadores à estranha relação de venda da
própria mente.
No terceiro capítulo, quando Berman dialoga com Baudelaire, que a transformação do espaço
moderno, especialmente o público, se evidencia. Ao vivenciar da forma mais próxima possível
as grandes reformas empreendidas pelo Barão Haussmann em Paris, Baudelaire expõe na
sua obra os impactos e rupturas nas tradições e na vida urbana da capital francesa, dentre
eles, a abertura dos bulevares, que permitiam o tráfico fluir em meio às residências
miseráveis, os cafés com suas largas calçadas e o esplendor das luzes a iluminar pobres e
ricos ao mesmo tempo trazendo à luz mazelas urbanas diversas, como a desigualdade
social1.
Em meio a esse turbilhão de novidades e mudanças, o poeta constrói o perfil do novo homem,
o burguês moderno. Exalta seus “grandes feitos” e sua “grande mente” que, brilhante, se
ocupa de frivolidades e “põe de lado as sombrias possibilidades de seus movimentos políticos
e econômicos”. Utilizando-se da mais fina ironia, Baudelaire exalta este homem moderno
1
Questão explícita no poema Os olhos dos pobres, analisado por Berman em Tudo que é Sólido Desmancha no
Ar.
Nesse contexto, Baudelaire expressa também a liquidez das relações e de toda manifestação
do homem como característica da vida moderna e aqui também a efemeridade é manifesta.
No entanto, sua contribuição maior, aponta Berman, está no fato de que Baudelaire, ao
concentrar sua visão no “instante em que passa”, ou seja, nos aspectos cotidianos da vida
moderna: “[...] nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a
modernização da cidade simultaneamente inspira a força e a modernização da alma de seus
cidadãos” (BERMAN, 2007, p.177).
Fora do mundo ocidental, Berman empreende diálogo com escritores do modernismo russo:
Alexander Puchkin, Gogol, Dostoievski e outros. Berman interpreta “a Rússia do século XIX
como um arquétipo do emergente Terceiro Mundo do século XX” (BERMAN, p. 206, 2007) e
destaca o fato de que, em apenas duas gerações, tal modernismo produziu uma das maiores
literaturas do mundo, carregada dos “mitos e símbolos mais poderosos e duradouros da
modernidade”.
Entre os aspectos mais importantes desse diálogo destacam-se: a criação da cidade de São
Petersburgo que, projetada e organizada por arquitetos e engenheiros estrangeiros, trouxe
imensuráveis custos humanos para o país; e o Projeto Nevski, transformado por Gogol em
trágico romance. São temas recorrentes: o crescimento da voz política do povo russo, as
agruras dos governos autoritários e, por fim, o ganho das ruas de toda uma população
subdesenvolvida que ansiava pelas “propostas deslumbrantes do mundo moderno”
(BERMAN, 2007, p. 229).
Em seu último capítulo o autor insere a si próprio no vórtex moderno e descreve a aventura e
o progresso humanos e a fé no futuro como “os ideais heroicos da idade para a qual [havia]
nascido” (BERMAN, 2007, p. 341). Assim, reporta precisamente sua experiência com a lógica
de destruição/substituição do ambiente em que viveu desde a infância: Nova Iorque.
Embora seja um conceito primário da Geografia, a Paisagem, aponta Ribeiro, persiste como
um conceito polissêmico. Mas, apesar do universo de interpretações a que dá ensejo, parece
existir um consenso no que toca à Paisagem Cultural, tratada como “fruto do agenciamento do
homem sobre o seu espaço” (RIBEIRO, 2007, p. 9).
No plano político internacional, em 1992 a Organização das Nações Unidas para a educação,
a ciência e a cultura – UNESCO – complementou a Convenção que realizou em 1972 e
adotou 2 a paisagem cultural como “conceito fundamental para enfrentar os desafios da
preservação no mundo moderno” (ALMEIDA In RIBEIRO, 2007, p. 7).
Luís Fernando Almeida, ex-presidente do IPHAN (In RIBEIRO, 2007, p. 7), caracteriza
paisagem cultural pelo convívio entre “a natureza, os espaços construídos e ocupados, os
modos de produção as atividades culturais e sociais numa relação complementar entre si,
2
Sobre o contexto brasileiro: “Em consonância com a Unesco, o Iphan regulamentou a paisagem cultural como
instrumento de preservação do patrimônio cultural brasileiro em 2009, por meio da Portaria nº 127. Como definição,
a chancela de Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo
de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram
valores. (FONTE: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/899/)
Partindo desta acepção, a relação da paisagem cultural com a memória e a identidade das
sociedades é íntima, o que torna sua posição no processo globalizante e desenvolvimentista
da modernidade intensamente conflituoso. Desse modo, o reconhecimento das paisagens
culturais implica a busca por “caminhos teóricos e metodológicos de abordagem (...) cada vez
mais amplos, envolvendo diversos campos disciplinares e correntes teóricas (...)” (GARZEDIN
2011, pp. 175).
A tensão resultante das relações entre o patrimônio cultural contido nessas paisagens –
incluídos os valores tradicionais e as manifestações imateriais – e o desenvolvimento
característico do sistema capitalista - ou seja, intrínseco à modernidade também - acirra-se,
daí a urgência da discussão, sob pena de consumar-se a perda ou a descaracterização
dessas paisagens. Nesse sentido, em seu livro Raízes do Futuro (2012), Hugues de Varine,
ao definir patrimônio, afirma que este só tem razão de ser se incorporado ao desenvolvimento
das sociedades. Afirma:
No entanto, como garantir a integração e a preservação ora citadas, se, no contexto moderno
prevalece a lógica de destruição/substituição de tudo que é produzido? Se na dialética da
modernidade proposta por Berman, nada é permanente, o arrasamento e a desintegração são
premissas para o desenvolvimento e proporcionam oportunidades lucrativas (BERMAN, 2007,
p. 118), como encarar a problemática sem adentrar no domínio do passadismo e, ao mesmo
tempo, trabalhar no sentido do tão falado “desenvolvimento sustentável”?
O avanço teórico do tema parece não ter sido acompanhado pela prática da preservação e as
dificuldades inerentes à integração entre políticas de desenvolvimento daí porque a gestão
das paisagens culturais urbanas tornam-se especialmente delicadas de se tratar. Nesse
sentido, Bandarin e Van Oers (2012) atestam que a gestão do patrimônio cultural urbano é um
campo onde a prática se especializou em setores específicos das cidades – leia-se nos
centros históricos apenas – e isolou-se dos demais processos e políticas de desenvolvimento
urbano.
Esses agentes deveriam produzir um plano de gestão com ações direcionadas ao tratamento
dessas paisagens. No entanto, foram várias as dificuldades relacionadas à identificação
segura dos procedimentos nas primeiras tentativas de registros de paisagens culturais no
país3, motivo pelo qual levou o IPHAN a suspender a utilização do instrumento.
3
A primeira tentativa de tombamento de uma paisagem cultural foi proposta pela 11ª SR IPHAN e tinha como alvo
as localidades de Testo Alto e de Rio da Luz no Vale do Itajaí em Santa Catarina. O processo de constituição de um
plano de gestão não aconteceu e muitos conflitos foram identificados com a população local. O caso foi registrado
de maneira sensível através do documentário “Vale tombado” realizado pela produtora Escritório de Cinema.
O período anterior ao Século XVIII foi, para Fortaleza ou Vila do Forte, sua denominação à
época – essa informação foi colhida nos registros cartográficos (ANDRADE, 2012) - de pouca
ou nenhuma movimentação. Na capitania do Ceará as manifestações econômicas e urbanas
mais representativas, anteriores a esse período acontecem, como mostra Jucá (2007), a partir
da introdução e desenvolvimento da pecuária no sertão do estado.
As cidades de maior relevância até então eram as vilas de Nossa Senhora da Expectação de
Icó e de Santa Cruz do Aracati. A Vila do Forte permanece como um pequeno aglomerado até
meados do século XIX quando a prosperidade do comércio algodoeiro modifica sua situação.
Aponta Berman que, em tal conjuntura os “Estados nacionais [já] despontam e acumulam
grande poder, [...] os trabalhadores da indústria despertam aos poucos para uma espécie de
consciência de classe” (BERMAN, 2007, p. 113) e a burguesia, ressalta em Marx,
“efetivamente realizou aquilo que poetas, artistas e intelectuais modernos apenas sonharam,
em termos de modernidade.” (BERMAN, 2007, p. 115).
[...] desde a sua eleição como capitania autônoma, a cidade de Fortaleza cresceu
induzida por planos e normas de regulação urbanística elaborados pelo poder
público, mas foi edificada pelas mãos da iniciativa privada. Coube ao poder público
orquestrar o processo de apropriação e produção social dos espaços. (ANDRADE,
2012, p. 23)
Assim como os objetos arquitetônicos, os sítios históricos urbanos da capital também são
tratados isoladamente, excluídos das políticas de desenvolvimento, fato já relatado por Duarte
(2012). O Sítio Histórico Alagadiço Novo (SHAN) é um exemplo emblemático. Localizado na
região sudeste de Fortaleza, última a ser incorporada à malha urbana da capital, o Sítio foi
local de nascimento do escritor e patrono do romance brasileiro, José de Alencar.
No local encontram-se, ainda hoje, a pequena casa de arquitetura vernacular, onde nasceu
Alencar, as ruínas do primeiro engenho a vapor instalado no local pelo pai do escritor, o
4
Os terrenos remanescentes do Sítio Alagadiço Novo foram comprados pela UFC em 1964, por intermédio do
então Presidente Humberto de Castello Branco, parente, por linha materna, de José de Alencar.
5. Considerações Finais
Neste trabalho procurou-se refletir acerca do conceito de modernidade proposto por Marshall
Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar e sobre os impactos decorrentes da aplicação
de tal pensamento às questões relacionadas à preservação das paisagens culturais urbanas e
contemporâneas. O caso de Fortaleza foi escolhido para ilustrar esse enquadramento da
modernidade e elaborar um panorama de como vêm sendo tratadas as paisagens urbanas de
uma cidade contemporânea.
Poder-se-ia acreditar que uma cidade que nasce no auge do período moderno e que,
sobretudo, já inicia a produção do que seria seu patrimônio cultural em uma época em que as
discussões de preservação já haviam sido iniciadas, teria condições de ter investido na
salvaguarda de grande parte das manifestações concretas de sua cultura para os dias de
hoje.
Referências
BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. Porto Alegre: Companhia das Letras.
2007
GARZEDIN, M.A.S. Espaços Livres Urbanos, Paisagem e Memória. In: GOMES Marco A. A.
F; CORREA, E.L. (Org.). Reconceituações Contemporâneas do Patrimônio. Salvador:
EDUFBA, 2011.