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Memória, corpo e cidade: voguing como resistência pós-moderna
Memória, corpo e cidade: voguing como resistência pós-moderna
Memória, corpo e cidade: voguing como resistência pós-moderna
E-book204 páginas2 horas

Memória, corpo e cidade: voguing como resistência pós-moderna

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Sobre este e-book

É inspirado na recente notoriedade do voguing, que o autor pontua a criação de cenas de dissenso como posicionamento político oportuno nas metrópoles pós-modernas. Neste contexto, voguers nos ensinam que o corpo, a memória e as cidades contêm a matéria-prima da alteridade, antagonizando convenções de gênero. Nesta obra, o autor percorre o campo da memória social, chama o corpo à cena investigativa, problematiza a espacialização das relações de poder no espaço urbano e, a partir disso, convida-nos a refletir sobre desafios hoje postos às multidões queer.
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No documentário "Paris is Burning", Willi Ninja chega a melhor definição de que se tem conhecimento sobre o que é voguing: "é uma forma segura de jogar shades", diz ele. E o que seria jogar shades (sombras) senão aguçar a potência de afecção de corpos empoderados?
Podemos interpretar as shades de duas formas: primeiro, tratamos como adereço de maquiagem, que representa este desejo humano de compartilhar fantasias e usar o corpo como textualidade para comunicar subjetividades. Estas sombras podem ser tratadas como o elemento estético que integra as sociabilidades pós-modernas e apazigua a vontade de autocomposição neste jogo ambíguo de imitação/alteridade.
Segundo, o cruzamento dos termos shade e shadow nos serve de analogia para entender o voguing como sombra de corpos precários que ironizam os padrões estéticos hegemônicos. Nesta sociedade pós-moderna, cuja espetacularização de corpos-objeto reforça ideais de normalidade, voguers dispõem poses de corpos desviantes sob os holofotes e, assim, notabilizam a gestualidade como sombra de subjetividades represadas.
Por fim, chama-nos atenção o fato de que, ao performar às sombras de referenciais performativos preexistentes, voguers desestabilizam as categorizações binárias de gênero arrastadas pelo racionalismo excludente. De fato, os voguers até revisitam as sombras normativas, mas as rasuram com gradações de sombreamento, como um chiste perspicaz, uma fagulha que empodera corpos dançantes.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de nov. de 2021
ISBN9786557160466
Memória, corpo e cidade: voguing como resistência pós-moderna

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    Memória, corpo e cidade - Roney Gusmão

    CAPÍTULO 1

    O QUE HÁ DE PÓS-MODERNO NO VOGUING?

    1.1. VOGUING: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

    É na cultura dos ballrooms que nasce o estilo de dança chamado vogue. São movimentos largos e angulares que imprimem no corpo o desejo de empoderamento por grupos subalternizados. O voguing é o resultado simbólico do cruzamento de diversos marcadores sociais e étnicos que reverberaram em gestos sincronizados, capazes de expressar um posicionamento diante do efervescente, no contexto político da segunda metade do século XX.

    Muito embora seja difícil precisar quando o voguing tenha surgido, é certo dizer que o estudo de seus significados deve estar atrelado a questões sociais amplas que motivaram posturas de resistência da comunidade LGBTQIA+ no transcurso do século XX. Portanto, na tentativa de nos aproximarmos de seus significados, torna-se necessário compreender os lugares de fala, ou seja, é preciso observar as camadas sobre as quais seus dizeres estão ancorados.

    Para isso, a análise da cultura LGBTQIA+ exige levar em conta a convergência de muitas variáveis sociais, étnicas, políticas e econômicas que tanto podem servir de intersecção, como também de fragmentação e diversificação, dada suas especificidades. É precisamente a isso que nos referimos ao tratar da cultura underground gay nova-iorquina que, a partir dos anos 1960, tornou-se altamente heterogênea em função das muitas identidades assumidas por grupos minoritários. O próprio desenho espacial dos eventos culturais já demonstrava a segmentação étnica e social, a exemplo dos concursos de drag queens, que se tornaram cada vez mais subdivididos em linhas raciais. O ensaísta Lawrence (2011) lembra que, uma vez sentindo-se excluídas dos concursos de beleza, as drag queens de etnia negra começaram a organizar seus próprios eventos em áreas mais segregadas da cidade.

    Na ocasião, muitos gays negros do subúrbio eram triplamente discriminados: pela condição racial, pela condição social e pela orientação sexual. Por efeito, gays latinos e afro-americanos afeminados dos guetos não eram objetos de preocupação, nem mesmo nos movimentos mais progressistas daquela época. Assim, mobilizações antirracistas e anticapitalistas, que eclodiam no período pós-guerra, não tinham representatividade deste segmento da comunidade gay, fato este que aprofundava a sensação de vulnerabilidade e exclusão. Isso era agravado ainda pelo fato de que o movimento gay nova-iorquino, ainda embrionário, era majoritariamente composto por homens brancos, que, mesmo pontuando questões altamente válidas para mudança de paradigmas, estavam mais próximos de um "padrão gay cosmopolita" sob a tutela de um segmento específico do mercado capitalista.

    Esse conjunto de situações motivou o surgimento das primeiras families nos anos 1970. Eram chamadas houses, inspiradas pelo desejo de (re)construir uma sensação de amparo entre gays que experienciavam uma trajetória similar de exclusão. Com isso, de modo semelhante ao surgimento das gangues nos anos 1960, as houses, como salienta Lawrence (2011), também se tornaram lugar de refúgio para grupos estigmatizados, cuja exclusão ocorria pelo cruzamento de marcadores que impregnam o corpo, o gesto e a pele. Outro aspecto diz respeito à formação de gangues que, representando uma resposta das margens à política de exclusão econômica, cultural e territorial urbana, dificilmente alcançava os gays não-heteronormativos. Isso porque os próprios espaços de sociabilidade e manifestação da contracultura não pareciam apropriados para aqueles desvios da masculinidade reinante.

    Como reação à exclusão, as families se organizaram de modo semelhante ao modelo de família convencional, ou seja, eram chefiadas por uma mother (normalmente uma drag queen) ou por um father. Embora servissem de contraponto ao padrão convencional de família, uma vez que abraçavam a diversidade sexual, normalmente as families não rompiam totalmente com papeis convencionais de gênero. Arnold e Barley (2009), por exemplo, lembram que até mesmo divisões sexuais do trabalho se tornavam semelhantes às heteronormativas, já que as mothers tendiam a assumir funções domésticas, além de demonstrarem um envolvimento afetivo mais sólido com seus filhos. Do mesmo modo, os fathers acabavam não rompendo com a masculinidade tradicional, na medida em que assumiam a função de estabelecer e impor normas da casa e, portanto, associando o paternalismo àqueles que desempenham o gênero masculino.

    Como salientamos, a exclusão desses grupos ocorria em praticamente todos os segmentos da sociedade: nos ambientes heteronormativos brancos e negros; nos espaços de sociabilidade gay, predominantemente frequentados por gays brancos heteronormativos de classe média, e nos próprios guetos dominados por gangues. Assim, o desejo de notoriedade e reconhecimento foi roubado de gays negros de subúrbio, que encontraram nas families o único lugar para aceitação da condição subalterna e, ao mesmo tempo, para alcance da notoriedade que lhes foi negada. Com isso, é possível afirmar que, além da exclusão social e econômica, a vida cultural também se tornou um dilema para estas minorias das minorias, fato que os motivou a encontrar uma outra alternativa de sociabilidade: o ball scene, ou seja, a sinergia entre as houses e os sujeitos excluídos dos lugares de normalidade. Paulatinamente, esta cena cultural underground LGBT foi sendo também contagiada por uma identidade cultural própria, fato que redundou no advento de bailes voltados à celebração e à premiação dos talentos e atributos de fathers, mothers e suas children.

    Nos anos 1980, a tragédia da AIDS deve ser considerada parte fundamental para entendimento do contexto no qual se insere a cultura dos ballrooms. Ao coibir os espaços de sociabilidade gay em grande parte de Manhattan, a intervenção regulatória do governo acabou desencadeando outras formas de expressão identitária dentro dos subúrbios. Assim, uma vez tendo em seus corpos impressas as marcas da estigmatização pelo discurso moralista assentado na AIDS, gays periféricos viram a expressão gestual e corpórea como um meio de alteridade e empoderamento.

    Ora, é exatamente no contexto de convergência entre o desejo de empoderamento pelo corpo e a vontade de compensar uma notoriedade negada em espaços hegemônicos, que membros das houses recorrem à moda, ao glamour e às divas do cinema como inspiração. As poses consagradas pelas divas seriam, então, um meio de grafitar no corpo o empoderamento e a alteridade, recorrendo à linguagem corpórea como gatilho para extravasar toda a afetação proibida fora do ball scene. Assim, ao ser considerada a bíblia da moda, a Revista Vogue passa a ser um lugar de inspiração e, ao mesmo tempo, de subversão pelos performers.

    Acredita-se que o estilo voguing tenha nascido no Harlem dos anos 1980, no entanto, mais importante do que precisar a data de seu nascimento, é observá-lo como uma expressão cultural reativa ao cenário de tensionamento que envolvia a comunidade gay na segunda metade do século XX. Por esta razão, é interessante compreender o voguing como um lugar de catarse, como uma expressão do desejo de reconhecimento e empoderamento, que canaliza a linguagem para o corpo, aqui emoldurado por movimentos largos e contundentes. O performer corporifica uma hipérbole de gestos e sobrepõe camadas de poses inspiradas em personalidades míticas para o imaginário da comunidade LGBT no transcurso do século XX, a exemplo de Marilyn Monroe, Greta Garbo ou Marlene Dietrich.

    Uma vez que gays afeminados eram rechaçados de ambientes heteronormativos, o voguing se tornou uma alternativa hiperbólica para anunciar subjetividades coibidas nos espaços hegemônicos (MAZZONE; PERESSINI, 2013). Diante disso, também é útil salientar que o estilo voguing, ao mesmo tempo que incorpora a estética hegemônica da Revista Vogue, utilizando-a como mecanismo catártico, também a subverte, na medida em que dela se apropria, simultaneamente, ironizando-a. O voguing funciona como uma espécie de pastiche (o que será tratado no próximo capítulo), que recompõe um estilo passado sem a obrigação de lhe ser fiel, mas, sim, privilegiando sua releitura pela ironia. O pastiche denuncia a inexistência da originalidade, na medida em que expõe sua caricatura tão facilmente imitável, o que, no final, desconstrói modelos estéticos rígidos e os expõe à possibilidade de subversão. No final, o voguer não se rende à estética hegemônica imediatamente, antes, ele a satiriza, ele a utiliza para escancarar sua própria alteridade, reapropriando-se do glamour hegemônico pela caricatura e encorajando a comunidade a combinar múltiplas poses que empoderam o corpo individual e coletivo.

    Podemos considerar essa estética satírica exagerada do ball scene e do estilo vogue como resultado de uma forte influência da cultura camp entre os anos 1960 e 1980. Mesmo assumindo a dificuldade de conceituar camp, Sontag apresenta alguns apontamentos importantes para constatar sinais deste estilo no ball scene: "Camp é uma visão de mundo em termos de estilo – mas um estilo peculiar. É a predileção pelo exagero, por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são" (SONTAG, 2020, p. 3). A partir disso, a autora conclui que o camp vê tudo entre aspas, porque é extensão da metáfora da vida como teatro e, por isso, desenssencializa coisas e objetos pela performance superlativamente caricaturada. Em se tratando precisamente do voguing, sua estética camp é notória, tanto pela extravagância, que escarnece um modelo comportamental, como também porque glorifica corpos reais estilizados num personagem. Ao vogar ao estilo Marilyn Monroe, o performer não pretende tornar-se um sósia ou cover da Marilyn, mas ironiza a hipernormatividade de gênero e expõe sua possibilidade de reapropriação e desconstrução. Ademais, na extravagância da performance, o voguer não imita padrões estéticos impostos pela cultura de massa, mas prefere usá-los como gatilho para apropriação do seu corpo e aclamação coletiva da alteridade.

    Como destaca Sontag, o camp rejeita harmonias tradicionais, pois destrona o sério e denuncia a artificialidade do refinamento. Disso resulta que, no último quartel do século XX, o camp se apresentava como excentricidade atraente para identidades culturais não-hegemônicas, uma vez que oferece modos peculiares de satirizar os padrões aristocráticos que impõem exclusão. Com isso, não estamos afirmando que o camp tenha sido uma estética apropriada unicamente pelas margens, pelo contrário, a cultura de massa também nele se inspirou, bastando observar, por exemplo, alguns personagens emblemáticos do mainstream media nos anos 1980: Cyndi Lauper, Madonna ou Prince.

    Simultaneamente a isso, é também nesse mesmo período que observamos uma atenção ainda maior da indústria cultural para com expressões identitárias periféricas. Artistas pós-modernos entraram numa arena concorrencial mais agressiva e, como típico da cultura pós-moderna, passaram a rastrear novas inspirações e novos nichos do mercado. O estilo vogue não escapou deste fato. No início dos anos 1990 houve um marco importante, sobretudo porque o lançamento da música Vogue, de Madonna, no ano de 1990, e do documentário "Paris is Burning", em 1991, projetaram o ball scene para o mundo.

    Embora não seja escopo deste texto tratar detalhadamente desta questão, vale apenas destacar que a incorporação do voguing ao mainstream media provocou dissensos sobre os seus impactos para as comunidades guetificadas: em que medida a música Vogue, de Madonna, e o documentário "Paris is Burning", de Livingston, realizaram uma apropriação para fins mercadológicos, provocando tensionamento dentro de grupos já fragilizados? Em que medida estes grupos também se beneficiaram desta projeção realizada pelo mercado? Ao beneficiarem-se, em que medida cisões internas ao grupo fragilizam a coesão? Não nos compete responder a estas questões aqui, mas é certo dizer que análises sobre tal requerem um olhar dialético que vislumbre, tanto os novos estereótipos sugestionados pelo esteticismo cosmopolita de Madonna (GUSMÃO, 2019a), como também a projeção das identidades minoritárias como uma possibilidade de nutrir o empoderamento.

    O certo é que Madonna e Livingston contribuíram imensamente para difusão do ball culture, mas também é importante levar em conta o fato de que, nos anos 1990, o alargamento das fronteiras do voguing (outrora restritas ao Harlem) ocorreu em simultaneidade com a própria notoriedade das multidões queer pelo mundo. Assim, o transbordamento das fronteiras bairristas do voguing não pode ser bem compreendido fora do contexto de consolidação do movimento queer, tanto no campo acadêmico, como, também, na prática de resistência política. Ambos os movimentos revelam um deslocamento de alteridades que não mais cabem no silêncio, no localismo, no recato e no binarismo de gênero. É uma explosão caleidoscópica de tantas cores quanto as multidões puderem

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